Jornalismo Especista: Textos e Fragmentos de Olhares sobre os Animais não Humanos na Mídia
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Jornalismo Especista - Paula Brügger
Jornalismo Especista
TEXTOS E FRAGMENTOS DE OLHARES SOBRE
OS ANIMAIS NÃO HUMANOS NA MÍDIA
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora.
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Paula Brügger
Jornalismo Especista
TEXTOS E FRAGMENTOS DE OLHARES SOBRE
OS ANIMAIS NÃO HUMANOS NA MÍDIA
Para Belinha, Sofia, Felícia, Cachá, Fofo, Boomy, Cindy, Branquinha, Windy e Aretha. Em seus olhos, vi pulsar a essência da biosfera senciente. E a minha própria essência.
AGRADECIMENTOS
À jornalista Silvana Andrade, pela parceria, sempre, com seu trabalho de vanguarda de dar voz aos animais na mídia.
Quanto mais um órgão de imprensa ou meio de expressão qualquer pretende atingir um público extenso, mais ele deve perder suas asperezas, tudo o que pode dividir, excluir; (não deve) jamais levantar problemas, ou apenas problemas sem história.
(Pierre Bourdieu)
APRESENTAÇÃO
Da educação formal à informal.
Do ambientalismo crítico ao ambientalismo abolicionista animal.
Minha formação interdisciplinar consubstanciou-se numa visão transdisciplinar que me conduziu a muitos territórios. Minha trajetória acadêmica nunca seguiu um caminho linear, e o tema em pauta não é uma exceção: os textos vieram aos soluços, em todos os sentidos que essa expressão abriga. Este é o preço do caminhar inter e transdisciplinar: abrir mão de feudos de poder acadêmico, ser dono de nada. Ao contrário da tradição científica mecanicista e monodisciplinar, marcada pela expertise em diferentes áreas do conhecimento, o olhar transdisciplinar é caleidoscópico. Cada fragmento colorido descortina facetas de um todo maior, no caso aqui, a forma como se expressa a nossa relação com os outros animais.
Meu despertar para o potencial educativo dos meios de comunicação de massa surgiu durante a redação da minha dissertação de mestrado, em 1993. Meu objeto de estudo era a educação formal voltada à questão ambiental. Desejava construir um ideário que ajudasse a reverter, pelo menos em parte, o que chamei de adestramento ambiental
— as formas de instrução fundamentadas numa racionalidade puramente instrumental, na qual a ciência e a técnica tornaram-se a razão tout court. Todavia, me dei conta de que o adestramento também se concretizava, de forma poderosa, via educação informal.
Sobre a avassaladora influência das grandes emissoras de TV, percebi que — além de não haver uma programação com uma visão crítica sobre a questão ambiental — muitas mensagens não relacionadas ao meio ambiente tinham conteúdos implícitos extremamente antiambientais, e isso as tornava ainda mais eficientes no sentido de deseducar. Um exemplo emblemático foi um anúncio de classificados que esteve no ar em 1992. Nele, dizia-se (basicamente): Anuncie no O Globo. Os leitores do O Globo são peixes grandes, eles têm maior poder de compra, consomem mais roupas, restaurantes, diversão etc.
. Junto a essa fala, apareciam imagens de frutas, bebidas etc. sendo devoradas num ritmo frenético. O anúncio configurava um caso típico de aprendizado incidental
, aquele que acaba influenciando mais a formação de valores do que as diversas modalidades de ensino que visam explicitamente a essa finalidade.
A educação é um processo contínuo, abrangente e complexo. E essa exposição diária a um verdadeiro bombardeio de informações que fazem apologia aos aspectos meramente materiais da vida, à eficiência, à competitividade, ao poder, ao status social e outros valores egocêntricos tem causado impactos negativos em nossas ecologias
tanto interior quanto exterior.
Decidi, então, eleger esse tema para a minha tese de doutorado. Inicialmente, foquei na ideia de que os mass media seriam — como a educação formal, adestradora e acrítica — elementos cruciais na tecitura das bases éticas da nossa relação com a natureza. Durante a escritura da tese, porém, descobri mais sobre a inter-relação entre comunicação, racionalidade instrumental e meio ambiente: a trajetória histórica da comunicação no Ocidente, em si, foi um fator importante para a emergência de um mundo vivido
marcado por um domínio implacável sobre a natureza. À guisa de conclusão, examinei o final dessa trajetória com seus poderosos meios de comunicação de hoje.
Foi nesse momento que o meu ambientalismo crítico alargou-se em direção a um ambientalismo abolicionista animal
. Um ponto de inflexão foi o livro A publicidade é um cadáver que nos sorri, de Oliviero Toscani, não propriamente pelo seu conteúdo, mas pela minha releitura do seu título. Voltarei brevemente a esse assunto no primeiro capítulo deste livro. Esse foi também o início do meu processo rumo ao veganismo. Daí por diante, a minha forma de ver os animais não humanos jamais foi a mesma.
Desde então venho publicando textos que nos remetem a uma questão ética fundamental e urgente: a de que os animais não têm voz na mídia. Isso é fruto do especismo estrutural e institucional que vive firme e forte no nosso caldo cultural. Por ora, apenas sintetizo o termo como formas de preconceito e segregação — desprovidas de lastro ético ou científico — praticadas por nós, humanos, contra as outras espécies animais. O especismo é também, como o racismo e o sexismo, uma forma de discriminação baseada em diferenças moralmente irrelevantes. A compreensão desse conceito, incluindo o de especismo seletivo, é fundamental para entender por que os animais não têm voz (tampouco) no jornalismo e na publicidade. Pelo menos, não todos.
PREFÁCIO
Em tempos de crise ambiental e civilizatória, em que a natureza é diuturnamente vilipendiada pelo homem e os animais padecem com o estigma da servidão, Paula Brügger traz a público uma obra atualíssima. Jornalismo especista: textos e fragmentos de olhares sobre os animais não humanos na mídia — que reúne ideias e textos essenciais da trajetória acadêmica da autora sobre o tema — projeta um olhar pluridimensional sobre o mundo contemporâneo na esperança de contribuir com uma reflexão mais do que necessária. Sua questão central envolve, portanto, a tensa relação humana com os animais na mídia.
O livro parte do conceito de especismo, cuja prática pôs a natureza a serviço do homem e abriu caminho para uma série de desastres ambientais anunciados. Não apenas isso. Tal preconceito perante o ser biologicamente diferente, além de desconsiderar o valor intrínseco do Outro que também sente e sofre, tem relegado os animais a uma injusta condição de inferioridade existencial, privando-os de consideração moral e direitos básicos. Sob essa visão de mundo distorcida, a crueldade torna-se naturalizada e, por vezes, legitimada pelo próprio direito, restando a postura abolicionista como meio de defender as principais vítimas de tamanha insensatez.
Nesta coletânea, a autora debruça-se sobre as múltiplas faces do especismo estrutural que se imiscui na sociedade e pode ser identificado, pela análise do discurso, também na área do jornalismo informativo, em que a palavra escrita/falada pode ocultar o grito dos inocentes. A insanidade do consumo que se reflete na publicidade desconsidera, em contrapartida, que o meio ambiente é finito e que os animais não existem para servir ao homem. Ao compactuar com esse estado de coisas sem atentar ao compromisso pedagógico que um veículo de comunicação tem em relação a valores éticos, a mídia acaba por erguer um intransponível abismo entre natureza e civilização. Este livro é, portanto, destinado não apenas a jornalistas e outros profissionais dos meios de comunicação, mas também a todos nós, destinatários de suas mensagens.
A formação interdisciplinar da autora permitiu-a aprimorar, ao longo dos anos, sua visão plural incorporada a um magistério comprometido com a vida que vive e quer viver, que se preocupa com o ser e com o respeitar. Nesse percurso, ela tem mostrado que a educação ambiental, em sua forma mais autêntica não é adestramento, mas, simplesmente, consciência. Paula Brügger bem sabe, afinal, que apenas o ambientalismo crítico e libertador dos animais pode estabelecer a sonhada reconciliação do homem com a natureza e antes que seja tarde demais.
Laerte Levai
Promotor de Justiça Grupo de Atuação Especial
de Defesa do Meio Ambiente — Gaema Ministério Público do Estado de São Paulo Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero
Sumário
Introdução
PARTE I
Fundamentos Antiespecistas: estudos de casos
CAPÍTULO I
É o especismo, estúpido! Abolicionismo Animal, Ambientalismo, e Meios de Comunicação de Massa
Introdução
O especismo como questão moral
A educação e o papel da mídia
É o especismo, estúpido!
Referências
CAPÍTULO II
Especismo na TV: Um olhar abolicionista sobre o programa Pelo Mundo
I Introdução: a natureza da mídia
II O especismo como questão cultural e moral
III Considerações sobre os objetos deste estudo
IV Análise do material selecionado
Pandas chineses passam temporada em floresta tropical artificial para incentivar a reprodução (Data: 14/12/12; Tempo: 04’26’’)
Programa de treinamento ensina outras atividades a cavalos de corrida aposentados (Data: 14/12/12; Tempo: 03’09’’)
Japonês vende bolo especial de natal para cães (Data: 21/12/12; Tempo: 02’40’’)
Peru vira bicho de estimação em Los Angeles (Data: 21/12/12; Tempo: 03’04’’)
Considerações finais
Referências
CAPÍTULO III
Educação e Televisão: O leão Cecil no programa Sem Fronteiras, Globo News
Introdução: objetos e não objetos deste capítulo
Sobre o caminho que norteou esta análise
O objeto de estudo
Da análise do objeto
Discussão
Considerações finais
Referências
PARTE II
Olhares breves e nem tão breves
Farra do búfalo?
Considerações sobre o impacto da exibição de animais no programa Bom Dia e Cia (SBT), na formação de valores que envolvem a relação animais-humanos em crianças
I Introdução
II Sobre as brincadeiras
III Das brincadeiras
com animais
IV Considerações pedagógicas sobre as brincadeiras
V Considerações finais
Globo News promove touradas
Jornalismo especista
A cadela Diesel: vítima da civilização
Referências
Búfalo Bill
Brasil
Referências
Vaquejada na TV: O discurso especista e opressor de Fernando Gabeira
Gabeira revela seu desprezo pelos animais ao defender matança de javalis
Referências
Churrasco de jegue e apologia à Festa do Peão de Barretos
Folha de São Paulo promove visão especista e errada sobre testes em animais
PARTE III
Um pouquinho de cinema e vegetarianismo
Avatar não é o patamar: uma reflexão (também) abolicionista
Referências
O enredo especista das Aventuras de Pi
Referência
Algumas considerações sobre a matéria Vegetarianos fazem mal ao meio ambiente
, publicada na revista Galileu, em setembro de 2010
Mídia dardeja (contra) o vegetarianismo
Referências
Media Watch: Folha de São Paulo promove antialérgico
PARTE IV
Fragmentos
Fragmentos: Textos enviados ao Painel do Leitor, da Folha de São Paulo
EPÍLOGO
Introdução
Vivemos numa época de intensa instrumentalização da vida. A natureza se transformou numa espécie de fábrica de onde os recursos naturais são extraídos para alimentar sistemas produtivos e hábitos de consumo imensamente impactantes. Sob a lente sistêmica, o especismo encontra-se no epicentro de diversos problemas de monta que se espraiam hoje pelo planeta, sobretudo nos domínios ambiental e ético.
As reflexões deste livro nasceram de uma inconformidade em aceitar como destino um futuro sombrio, decorrente desses impactos negativos, e de uma aposta no potencial transformador da informação na formação de valores no sentido lato. Há uma relação dialética entre formação e informação: conteúdos apenas informativos
também formam.
As pesquisas e análises feitas aqui mostram que a mídia, em geral, promove e legitima valores avessos a uma ética correta no que tange à nossa relação com os outros animais. Isso acontece porque o especismo e o valor unicamente instrumental dos animais são reforçados, e até banalizados via conteúdos latentes e explícitos.
Não existe imparcialidade na comunicação. Isso pode se concretizar de várias formas. Uma delas é silenciar, ou apresentar de forma incipiente, elementos cruciais acerca de um tema. Esse apagamento
pode ter desdobramentos contundentes, principalmente quando há questões morais subjacentes. Outra maneira de fomentar a parcialidade é explorar temas digressivos aos contextos em pauta, bem como tratar quesitos que demandam ponderações de ordem ética exclusivamente sob suas dimensões técnicas e/ou legais, por exemplo.
Essas dificuldades são inerentes aos processos de informar e educar. Ademais, a cultura ocidental é essencialmente cientificista, e a ciência hegemônica é marcada por uma visão fragmentada e instrumental, e também pelo especismo. Os profissionais da mídia têm ainda outros obstáculos a enfrentar, como o fato de os meios de comunicação serem frequentemente reféns de anunciantes e seus respectivos grupos de poder.
Contudo, no que toca a esses profissionais, há uma necessidade premente de mudanças em sua formação, uma vez que a presença de valores especistas é algo que não condiz com o ideal de isenção de valores propugnado pela maioria dos discursos sobre o conteúdo de matérias jornalísticas.
O conceito de especismo é recorrente neste livro. Por ser uma coletânea de textos independentes, desculpo-me, desde já, pela repetição de argumentos e ideias centrais. Isso, porém, também garante a independência dos textos.
A palavra animal
será usada aqui para se referir aos animais não humanos. Farei uso, outrossim, das expressões (bem mais adequadas) animais humanos e animais não humanos. As palavras são muito mais do que uma mera forma de expressão: a escolha de algumas e a exclusão de outras nos remete à própria essência do pensamento que originou o discurso, pois elas são a cristalização desse pensamento. A construção de uma nova relação entre nós e os outros animais implica pensar, sentir, agir, e se expressar de forma diferente a respeito deles. Vale lembrar, contudo, que mesmo os termos animais humanos e não humanos expressam, ainda, um pensamento dicotômico e um modo de pensar descontínuo e fragmentado.
Esta publicação foi organizada da seguinte forma: a primeira parte consiste em um bloco mais teórico que reúne uma adaptação de um capítulo de livro, e dois estudos de caso publicados originalmente na Revista Brasileira de Direito Animal; na segunda parte estão algumas reflexões mais concisas sobre o especismo na mídia, em geral; na terceira parte há dois textos que abordam o especismo no cinema, e três outros que tratam de uma forma indireta de especismo: aquela que concerne às dietas. A maioria dos textos da segunda e terceira partes foram publicados na Agência de Notícias de Direitos Animais (Anda), na época em que tinha a coluna Tao do Bicho (e antes de alguns ataques de hackers que resultam no extravio de matérias). Todos os textos foram revistos e atualizados. Finalmente, há um punhado de textos tão curtos que chamei de fragmentos
. São eles comentários brevíssimos, de até 500 caracteres com espaço, enviados ao Painel do Leitor da Folha de São Paulo. Alguns desses fragmentos foram publicados, outros não.
Peço, por último, que relevem em meus escritos algumas passagens nas quais não consegui burilar minha selvageria
, como dizia em tom jocoso meu orientador no mestrado, o professor Carlos Walter Porto Gonçalves. Essa fúria teórica inconveniente, e quiçá exagerada é, e sempre foi, contudo, o motor das paixões que movem minha luta pelos direitos animais.
PARTE I
Fundamentos Antiespecistas: estudos de casos
Capítulo I
É o especismo, estúpido! Abolicionismo Animal, Ambientalismo, e Meios
de Comunicação de Massa¹
I Introdução
Vivemos numa época de intensa instrumentalização da vida. O paradigma ainda dominante no mundo ajudou a tecer um conceito de natureza em que esta deixa de ser uma entidade viva, para tomar-se um conjunto de recursos para a espécie humana. É por essa razão que floresce de forma diferenciada um dos três pilares que caracterizam a sustentabilidade: o econômico, em sua versão supostamente verde. Nascem os mercados de commodities ambientais — como o de carbono — e o de Pagamento por Serviços Ambientais² (PSA), sendo a discussão sobre o clima, via mercado de carbono, um exemplo emblemático (Brügger, 2019).
Embora a questão climática seja mesmo um problema a ser enfrentado, há outras questões associadas ao chamado Antropoceno (Lewis; Maslin, 2015) igualmente graves ou mais. O exemplo mais elementar é a extensiva destruição e degradação de habitats no planeta, principal causa de perda de biodiversidade, e dados recentes indicam que o quadro é muito mais preocupante do que se imagina: as populações de espécies de animais vertebrados diminuíram em abundância