A passagem da Allegorese à Transposição dos Mitos e Mistérios em Platão
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A passagem da Allegorese à Transposição dos Mitos e Mistérios em Platão - Rummenigge Santos da Silva
1 ALEGORISMO: UMA INTRODUÇÃO DISCURSIVA
O estudo em torno da alegoria e da interpretação alegórica é vasto e tem estado em constante desenvolvimento sobretudo a partir do final do século XIX. O termo alegoria, que está relacionado tanto a maneira de se ocultar ou relacionar uma determinada informação com outra ¹, como a maneira de se decodificar uma informação, pode ser encontrado em diversos exemplos na antiguidade grega, contudo, muitos deles a partir de outros conceitos que trazem uma função similar ². É a partir desses conceitos similares que podemos falar genericamente em alegoria
no período Arcaico e Clássico, uma vez que o termo só apareceu em meados do período Helenístico.
Essa pluralidade de nomenclaturas, que normalmente é designada genericamente como alegoria, deve ser entendida a partir de dois modos básicos: o expressivo e o interpretativo. No primeiro caso, temos a alegoria como uma figura de linguagem, isto é, uma ferramenta linguística capaz de codificar informações em um texto. Já no segundo caso, a alegoria tem função exegética e trabalha naquilo que entendemos por crítica literária, decodificando as informações deixadas.
Nossa análise versará mais sobre esse segundo modo da alegoria, por ser ele alvo da crítica platônica em alguns momentos, mas sobretudo por sua similaridade com o modelo mítico-transpositivo empregado por Platão em muitos de seus textos; o que nos permitirá comparar esse modo interpretativo, com o utilizado pelo filósofo em muitos de seus diálogos.
Dito isso, de acordo com a tradição exegética, temos dois caminhos possíveis que nos ajudam a entender a alegoria e a sua interpretação: o sensus litteralis (historia, verbum) e o sensus allegoricus (sensus translatus). No primeiro deles, o significado é entendido sem o auxílio da reflexão, isto é, um significado dado imediatamente. Neste caso existe a interpretação; todavia por se adequar de tal forma ao que se espera do entendimento, esta não se mostra como tal³. Já o sensus allegoricus requer uma reflexão, pois ao texto deverá ser posto um discurso diferente do literal, como a própria etimologia da palavra alegoria (allos = outro
e agoreuō = falar em público
) nos mostra. A partir disso, fica claro que o sensus allegoricus (sentido alegórico
) possui um significado dado mediatamente ao discurso/palavra, tomando tanto a alegoria, como a sua interpretação, um caminho diferente do discurso direto e da interpretação convencional⁴.
Especificando um pouco mais o sentido alegórico, podemos citar dois caminhos para o entendimento conceitual desse fenômeno, segundo as palavras de Morton Bloomfield: a alegoria como histórica e ahistorical
⁵. No primeiro caso, isto é, na alegoria histórica, há a tendência de se resgatar o sentido original do texto⁶. Já no segundo caso, a alegoria não-histórica abre caminho a um significado mais derivado em relação ao texto original, podendo ser este psicológico, ético, mítico, religioso, etc. Esta forma de interpretação é a mais antiga e proporciona uma visão mais rica do texto, a partir dos diversos caminhos que ele pode vir a tomar nas mãos dos seus intérpretes.
Um dado importante que precisamos antecipar reside no fato de que a escrita alegórica é facilmente relacionada às religiões de mistério⁷ e à poesia como um todo, mas também à retórica, bem como ao meio filosófico que ainda possuía muitos elementos míticos e místicos entrelaçados com suas doutrinas. Por sua vez, a decodificação ou interpretação das informações ocultas está relacionada a um apelo ou autoridade sapiencial, seja no próprio ambiente da poesia, como entre os rapsodos, por exemplo, seja nas manifestações racionais, isto é, entre os sofistas, historiadores, gramáticos, filósofos, etc.
Em Platão, podemos identificar essas duas principais características da alegoria (escrita e exegética) e acreditamos que por essa via deverá ser possível entender sua relação com algumas manifestações religiosas, principalmente as de mistério, que parece não se voltar a um propósito religioso e esotérico, tampouco parece ser um esforço de interpretação de tais assuntos. Contudo, antes de abordarmos a presença da alegoria e da interpretação alegórica em Platão, e suas implicações, precisaremos voltar ao nosso assunto e abordar o desenvolvimento desse tema e a contribuição dada por alguns estudiosos.
A partir do testemunho de um escoliasta de Homero, Teágenes de Régio é considerado por muitos comentadores como o primeiro intérprete alegórico, por utilizar-se dessa ferramenta crítica para defender os deuses homéricos contra os ataques de blasfêmia⁸. J. Tate, no entanto, em dois artigos dos anos de 1927 e 1934 intitulados, respectivamente, The beginnings of Greek allegory e On the history of allegorism problematizou o estudo sobre o tema da interpretação alegórica antiga. Para este autor, ao contrário do que se dizia, nem o escoliasta parece afirmar que Teágenes fora o primeiro alegorista
⁹ (mas sim como o primeiro a utilizar a alegoria defensiva
), nem que a alegoria
se resumia em um modo de defender determinados escritos aparentemente blasfêmicos¹⁰.
Seguindo esse caminho, no artigo de 1934, Tate nos apresenta dois problemas a serem resolvidos: (I) de que o desejo dos alegoristas
do séc. V a. C. em diante não era meramente o de defender Homero e Hesíodo dos ataques de imoralidade, embora tenha existido tal desejo; e (II), que a alegoria
antiga não poderia ser vista como negativa, isto é, defensiva, e sim positiva ou exegética¹¹.
Sendo assim, de acordo com Tate, o início da alegoria
, ao contrário do que até então se pensara, não se deu pela defesa contra os ataques de imoralidade atribuídos a Homero e Hesíodo¹², mas sim por certa dependência ou admiração dos primeiros filósofos em relação a esses poetas. O argumento segundo o qual a crítica está assentada é bastante simples. A notoriedade e a fama da tradição homérica e hesiódica (e, sobretudo, o esforço deste em ser mais didático do que aquele), impulsionou os primeiros filósofos a uma "competing", como diz Tate (1934, p. 105) com esses dois poetas. Como não era possível ignorar ou substituir seus ensinamentos, a autoridade (divina, inclusive) dessas personagens deveria ser posta à prova, sendo, então, criticados os seus ensinamentos por meio de uma lógica discursiva.
No entanto, a despeito desses rompantes críticos, a admiração e a forte presença de Homero e Hesíodo continuaram. Tate explica que o movimento alegórico
antigo não surgiu como uma resposta a esses ataques, mas como o resultado da admiração e da permanência dos ensinamentos dos poetas, mesclados às novas concepções do saber. A metáfora é clara: Assim, Homero e Hesíodo foram um dos ossos sobre os quais a filosofia grega cortou seus dentes infantis
(TATE, 1934, p. 107)¹³.
Paralelamente ao crescimento das interpretações alegóricas de Homero, temos o crescimento do uso consciente da linguagem mítica para expressar teorias filosóficas. Segundo Tate, foi o intenso estudo e a forte admiração por esses poetas, que fizeram com que os filósofos vissem naquelas obras uma expressão divina, um significado mais profundo em seus versos: E foi porque viram significados tão mais profundos que adaptaram os mitos às necessidades de sua própria visão de mundo, de modo a torná-los, por excisão, combinação e adição, símbolos mais satisfatórios do processo cósmico
(TATE, 1934, p. 107). Esta afirmação sobre a interpretação alegórica é, para nós, uma das fontes mais importantes sobre a aproximação entre a allegorese e a transposição, como veremos mais à frente.
Vê-se nessa adaptação dos mitos um novo ponto de vista, um aspecto contínuo da interpretação alegórica que se insere dentro da memória cultural como um agente da consciência histórica. Todavia, vale ressaltar aqui a proximidade desse papel com aquele atribuído à transposição platônica. Este conceito, pelo seu próprio desenvolvimento, está quase sempre relacionado ao uso que Platão fez dos mistérios em sua filosofia, e que, trazendo à tona essa memória, nos possibilitou grandes exemplos dessas manifestações religiosas, embora um tanto modificadas pela intenção na qual foram tomadas. Mesmo que a distinção entre interpretação alegórica e transposição pareça algo bem claro – uma vez que esta não tenha uma função interpretativa direcionada ao objeto interpretado, muito embora crie, de certo modo, figuras e intenções alegóricas novas –, é interessante notarmos a convergência de ambas nesse papel da consciência histórica, bem como na forma pela qual Tate aborda o problema da alegoria positiva
.
Vale, também, ressaltar aqui a contribuição de Kurz (2009, pp. 44-45) a respeito do papel da alegoria – e por extensão da interpretação alegórica – dentro da memória de uma cultura¹⁴. Segundo o autor, a alegoria cria espaços de recordação
. Por meio dessa consciência histórica, a alegoria é capaz de gerar uma continuidade do passado em algo novo, atualizado. Por meio disso, a memória do passado se renova a cada tentativa de interpretação, tomando o velho como o novo e o novo como o velho
("indem sie Altes als Neues erzählt und Neues als Altes")¹⁵.
Este ponto da discussão responde também à segunda questão apresentada por Tate, isto é, a da visão negativa da alegoria
. Tate não excluiu que de fato tenha existido uma preocupação defensiva; porém esta não compreendeu todo o movimento que é muito mais exegético ou positivo, como ele denomina, do que negativo ou defensivo. Segundo ele, a função defensiva é subordinada à positiva, pois esta é muito mais abundante, desde Metrodoro de Lâmpsaco em diante, que se preocupou não só com as partes ofensivas (ou imorais) da poesia, mas muito mais com as inofensivas
(TATE, 1934, p. 108).
O que podemos tirar do estudo realizado por Tate é um provável caminho que nos leva a intenção dos primeiros intérpretes alegóricos sendo tangidos por uma crítica literária, bem como um vislumbre do conceito de transposição entrelaçado ao conceito de interpretação alegórica. Parte-se, então, do pressuposto de que em Homero e em Hesiodo já existia uma escrita alegórica ou que, ao menos, deles se poderia extrair um conteúdo para além do poético¹⁶. Para o autor, a tentativa de extrair desses poetas uma significação filosófica, ética, etc, é mais própria à interpretação alegórica antiga, do que aquela que afirma um caráter defensivo ou negativo, na expressão do autor.
Como veremos de forma detalhada mais adiante, essa visão da poesia homérica e hesiódica como uma expressão filosófica e ética, por exemplo, parece ter sido bastante comum em alguns meios interpretativos. Um caso particular merece menção. Nas Alegorias de Homero, do escritor Heráclito, é dito que Homero deveria ser encarado como um filósofo, uma vez que, ao contrário dessa visão ser o resultado de uma mera tentativa de extrair um conteúdo para além do poético, característica da interpretação alegórica, ele acredita que o poeta teve de fato a intenção de as escrever¹⁷.
O extrair um conteúdo para além do poético
aponta para uma visão abrangente da interpretação alegórica. Este caminho foi muito bem desenhado por Jean Pépin em seu Mythe et Allégorie de 1958. Neste sentido, a visão alegórica pode ser histórica ou conhecida também como evemerismo (pp. 49-50, 57), física (pp. 50, 57), moral, metafísica (ambas na p. 50), psicanalítica (pp. 50-51)¹⁸, dentre outras.
Essas leituras extraem dos textos antigos conteúdos que conversam com outras disciplinas, mais ou menos próximas. Contudo, por ser demasiadamente extenso tratá-los aqui, citaremos alguns estudos em torno de algumas das principais interpretações alegóricas envolvidas nesse tema. Desse modo, ... segundo a natureza do núcleo doutrinário que se supõe expresso pela aparência pictórica ou narrativa
, a alegoria poderá ser (I) histórica, quando a verdade é um conjunto de eventos humanos. Neste ponto, haveria uma história anterior à mitologia e ... longe de os deuses serem nomes deificados, foram os deuses que se humanizaram para se tornarem reis e heróis
(PÉPIN, 1976, p. 57). (II) A alegoria física, relacionada, sobretudo aos estoicos, consiste na referência a eventos físicos, no lugar daqueles históricos presentes na alegoria anterior. Para esses adeptos, mitologia seria então uma versão religiosa dos fenômenos da natureza
(PÉPIN, 1976, p. 50). Outro tipo de alegoria apresentado por Pépin é a (III) moral. Segundo esta, os deuses da mitologia estariam vinculados à uma característica moral, transformando-os em símbolos de virtudes ou vícios (PÉPIN, 1976, p. 50). O próximo exemplo dado pelo autor é a alegoria (IV) metafísica. Este tipo de alegoria utiliza-se dos mitos para esconder doutrinas filosóficas (PÉPIN, 1976, p. 50). Já as alegorias (V) psicológica e religiosa, são aquelas segundo as quais a expressão mitológica não teria conferido à verdade expressa um caráter religioso, que ela já tinha, mas teria simplesmente efetuado a passagem da religião espiritual a uma religião historiada [historiée]
(PÉPIN, 1976, p. 50). Na alegoria psicanalítica de Freud e Jung, por exemplo, a mitologia teria uma origem psicológica e, se a decodificarmos, encontraremos diversos elementos psíquicos servindo de estrutura (PÉPIN, 1976, pp. 50-52).
Vamos exemplificar algumas das manifestações alegóricas. A abordagem historicista ou evemerista, de Evemero de Messene, autor que deve ter vivido no tempo de Alexandre, o Grande e que escreveu uma obra intitulada Hiera Anagraphē (História Sagrada
)¹⁹, diz que o mito seria uma história distorcida pelo passar do tempo. Essa teoria teve grande importância na hermenêutica²⁰ da época helenística. Segundo ela, os deuses e os heróis da mitologia grega teriam de fato existido; no entanto, não como deuses de verdade, mas sim como homens divinizados por conta de seus feitos²¹. A abordagem racionalista diz que as personagens e os contos fantásticos, tão presentes nos mitos, devem ser encarados racionalmente e não como entes ou acontecimentos reais, e, no que se refere a estes acontecimentos, deve ser por causa de um mal-entendido ou de uma fraude²². Uma outra abordagem é a naturalista ou física. Esta consiste em dizer, grosso modo, que a ideia dos deuses se relaciona com as forças da natureza²³.
Além de uma visão mais abrangente da alegoria, para Pépin esta pressupõe um entendimento dualista da mitologia: um significado aparente e um significado oculto que se revelaria por meio de um exame minucioso; em outras palavras, aquilo que um texto diz e aquilo que ele pode querer dizer²⁴. Com isto ele fez a importante divisão da alegoria que fora então omitida por Tate. Por fatores linguísticos, acredito, Tate apresenta a alegoria apenas como um modo de interpretação sem estabelecer uma distinção²⁵, ao passo que, na língua alemã, por exemplo, há dois termos que especificam melhor a intenção sobre um determinado texto: Allegorie e Allegorese. Pépin designará o primeiro como expression allégorique (expressão alegórica
), isto é, um modo de falar ou de esconder uma mensagem; ao passo que o segundo (que no francês estava começando a ser conhecido como allégorèse²⁶) é designado como interprétation allégorique (interpretação alegórica
), ou seja, o modo de entender a mensagem de acordo com o autor (PÉPIN, 1976, pp. 487-488)²⁷.
Maureen Quilligan defende que a alegoria como um gênero literário só passou a existir nos autores latinos, isto é, seu uso consciente mesclado com intenções retóricas; ao passo que os gregos apenas se dedicaram à alegoria crítica, isto é,