Alteridade, rastros, discursos
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Alteridade, rastros, discursos - Maria Constança Peres Pissarra
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
Editora da PUC-SP
Direção:
Thiago Pacheco Ferreira
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Carla Teresa Martins Romar
Ivo Assad Ibri
José Agnaldo Gomes
José Rodolpho Perazzolo
Lucia Maria Machado Bógus
Maria Elizabeth Bianconcini Trindade Morato Pinto de Almeida
Rosa Maria Marques
Saddo Ag Almouloud
Thiago Pacheco Ferreira (Diretor da Educ)
Frontispício© 2021 Maria Constança Peres Pissarra. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Alteridade, rastros, discursos / org. Maria Constança Peres Pissarra. - São Paulo : EDUC, 2021.
Bibliografia
Apoio: PIPEq
1. Recurso on-line: ePub
ISBN 978-65-87387-46-8
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
1. Identidade étnica. 2. Racismo. 3. Resistência ao governo. 4. Multiculturalismo. 5. Poder (Ciências sociais). 6. Direitos humanos. 7. Globalização. I. Pissarra, Maria Constança Peres. II. Título..
CDD 305.8
Bibliotecária: Carmen Prates Valls – CRB 8A./556
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Thiago Pacheco Ferreira
Produção Editorial
Sonia Montone
Revisão
Simone Cere
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Waldir Alves
Imagem: Pixabay
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do e-book
Waldir Alves
Revisão técnica do e-book
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
PRÓLOGO
O contexto contemporâneo torna cada vez mais problemático o uso de palavras como democracia, liberdade, tolerância, alteridade. Mesmo os discursos que tratam desses temas são objeto de descrédito crescente. É em nome da liberdade de ir e vir que os negacionistas se opõem às medidas sanitárias restritivas e se permitem contaminar os demais. É sob o manto da preservação da democracia e da ordem pública que o aparato policial ou militar se vê no direito de golpear e sufocar um homem negro. Quanto mais se vocifera em nome da democracia e da liberdade, tanto mais brutalmente os governantes burlam as leis, contestam o resultado de eleições, reiteram a supremacia branca, o racismo estrutural, o patriarcado, o descarte ostensivo dos vulneráveis, das minorias, dos outros
e outras
.
Não à toa, o pensamento se vê desarmado diante de panorama tão paradoxal, em que as palavras já não valem nada, os argumentos parecem restos caducos de um mundo ultrapassado, e doravante o que decide é a quantidade de emojis, a qualidade dos algoritmos, a minúscula plutocracia financeira e o aparato policial-militar. O destino do planeta, do aquecimento global à distribuição de renda, do conteúdo da educação ao da cultura, já não está nas mãos, se é que algum dia esteve, da maioria da população, dos cidadãos, das gentes, do que Agamben chamou de qualquer um
.
E, no entanto, não pode o pensamento deixar de pensar justamente nisto: a força da alteridade, a resistência aos poderes, o valor das palavras e do pensamento, os rastros do que nos poderia indicar saídas.
Coube a Maria Constança Peres Pissarra, organizadora e editora desta coletânea belamente intitulada Alteridade, rastros, discursos, o mérito de haver convidado um leque plural de autoras e autores para tratar, cada um a seu modo, das questões mencionadas. Em um contexto neofascista, não há como fazer a economia da pergunta formulada por La Boétie há séculos. Por que os homens desejam sua própria servidão? Em nossos termos, atuais: como os regimes neofascistas obtêm o assentimento, para não dizer a adesão, da população, que é, ela mesma, a primeira vítima da barbárie necropolítica, e engolfam a própria ideia de alteridade?
Os ensaios aqui reunidos, na sua maioria, abordam objetos singulares. O poder sobre o corpo – mas também a potência do corpo – no campo da dança; a resistência do candomblé perante os mecanismos neocoloniais; a expressão das minorias indígenas ou afro-brasileiras no sistema da arte que fez de tudo para apagá-la; a margem de liberdade que os totalitarismos tentam abocanhar; a questão da tolerância no campo jurídico, o problema dos territórios existenciais numa filosofia da diferença, etc. Vamos de La Boétie a Foucault e Lefort, de Benjamin a Hannah Arendt, de Exu a Heidegger, de Locke a Deleuze e Guattari. Tal diversidade já revela a que ponto o contexto pede ferramentas variadas, não apenas para analisar as novas modalidades de exercício do poder que balizam a democracia, a liberdade, a tolerância, mas sobretudo as resistências que infletem tal exercício e abrem caminho para uma discursividade alternativa, abrindo-nos para o campo das alteridades.
Não há poder sem resistência, dizia Foucault. Mas se os poderes estão por toda parte, também a resistência encontra-se virtualmente em qualquer lugar – nas artes, no direito, na filosofia, nos agenciamentos técnicos, na comunicação. Dado o caráter mais difuso e onipresente do poder nas últimas décadas, e seu modo sempre novo (ele é inventivo!) de penetrar nos corpos e almas, de incidir sobre a materialidade do mundo e o inconsciente, a linguagem e os afetos, a análise de tais mecanismos e de seu avesso – contrapoderes, contracondutas, insurgências, linhas de fuga – se tornou um desafio dos mais complexos – refratário a qualquer simplificação ou totalização.
Portanto, não há porta privilegiada para acessar o que move essa máquina-mundo – em vão procuramos a casa das máquinas
central. Daí por que as várias entradas respondem à necessidade de ampliar o leque de esferas, de revisitar autores de várias linhagens, de revitalizar os conceitos, de cavar e continuar cavando, na sutileza, nos microcosmos, nos bolsões invisíveis, os signos da alteridade.
Ao final desse trajeto, tudo continua em aberto. A tarefa do pensamento político continua sendo a mais extrema, longe das torres de marfim, das abstrações celestes, da mesmidade – corajosamente mergulhada na textura do presente, nas suas diferenças e na potência do novo. Nietzsche já definia nessa dimensão paradoxal a aposta da filosofia: pensar no presente, contra o presente, em favor, esperemos, de um futuro que virá.
Peter Pál Pelbart
Professor no Departamento de Filosofia e no Núcleo de Estudos da Subjetividade do Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. Estudioso da obra de Gilles Deleuze, traduziu para o português Conversações, Crítica e Clínica e parte de Mil Platôs.
Apresentação
Reconhecer que não se está sozinho no lugar onde se vive significa, a um só tempo, admitir que talvez o outro ali tenha precedência e abrir-se para uma ética da proximidade e para uma política de coabitação, segundo Donatella De Cesare.
A extensão e atualidade que apresenta essa discussão nos desafia a refletir sobre a questão da tolerância e seus desdobramentos, tais como suas exigências de pluralismo nas sociedades contemporâneas. Nestas, cada vez mais, os países relutam em relação à possibilidade de acolher os seus outros – quaisquer que sejam eles –, e, é importante destacar, essa não é apenas uma questão europeia. Ante as questões éticas e políticas aí presentes, na maior parte das vezes, a perplexidade é a única reação diante da total falta de solidariedade de um comportamento excludente, sem respeito à liberdade, à diferença e à possibilidade do copertencimento.
Se, de um lado, hoje, a noção de Estado-Nação não responde mais às dificuldades da justiça global, de outro, o direito internacional por não ter poder coercitivo, também não consegue resolvê-las – e, pior, talvez até mesmo a defesa dos direitos humanos não faça mais sentido em um momento em que reaparecem os nacionalismos e o populismo ameaça o discurso democrático. O outro, o estrangeiro, o imigrante, na sua diversidade rechaçada, provoca
a hostilidade que o recusa. Por outro lado, é fundamental indagar como conciliar a noção de um Estado neutro, defensor do respeito a cada um e da igualdade de todos, com as exigências seja da liberdade religiosa, seja dos direitos das minorias, bem como da promoção de um pluralismo voltado para o bem de todos em uma época de globalização.
A proposta deste livro em forma de coletânea – Alteridade, rastros, discursos – é refletir sobre questões contemporâneas fundamentais – alteridade, racismo, tolerância, multiculturalismo, refugiados, direitos humanos, poder – enquanto conceitos interdependentes e impossíveis de serem pensados de forma isolada. Requerem uma reflexão em rede pela complexidade e tensões que encerram, e cada um deles traz um amplo debate.
Os autores aqui reunidos pertencem a diferentes áreas do saber e trazem olhares diversos sobre uma temática por si só interdisciplinar. Além de professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) dos cursos de Artes (Cauê Alves, Ana Teixeira), de Filosofia (Dulce Mára Critelli, Maria Constança Peres Pissarra, Sônia Campaner Miguel Ferrari, Yolanda Glória Gamboa Muñoz) e de Direito (Lucineia Rosa dos Santos, Pietro Alarcón), também integram o conjunto dos autores do e-book professores de outras instituições de ensino, tais como Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pertencentes aos departamentos de Filosofia (Alice Lino Lecci, Jacira de Freitas) e ao Programa de Cultura e Sociedade (Flávio Luiz de Castro Freitas, Luciano da Silva Façanha, Zilmara de Jesus Viana de Carvalho).
O texto O Candomblé Ketu na conformação da resistência política e da identidade brasileira
, de Alice Lino Lecci, trata da repressão imposta pelo Estado brasileiro às religiões de matriz africana, em especial ao Candomblé Ketu. Essa religião expressiva da espiritualidade iorubá, por meio das artes próprias de seus ritos a expressar um conhecimento, tem uma função estético-educadora. Ao mesmo tempo, trata-se de alcançar sua ancestralidade africana e desenvolver uma autoestima necessária ao enfrentamento da presença do racismo na sociedade brasileira, pré-requisito da resistência política à ordem hegemônica.
Em seu texto "Dança, corpo e relação de poder: etiqueta como regra de conduta", Ana Teixeira aborda a etiqueta como regra de conduta, ou seja, como uma sistematização organizada pela corte do Rei Sol para melhor domar o corpo social e suas relações de poder. Instrumento de dominação por excelência, a etiqueta organiza e disciplina para melhor dominar, ou seja, para melhor servir ao poder incluindo e excluindo.
Em "O debate étnico-racial nas exposições de arte", Cauê Alves discute como tem sido elaborado o debate étnico-racial e a miscigenação nas últimas mostras organizadas em São Paulo. Destaca em especial a mostra Histórias Mestiças, realizada em 2014 no Instituto Tomie Ohtake, e a reflexão por ela proposta de discutir o racismo estrutural e a violência institucional contra os negros no Brasil.
O texto A era do isolamento
, de Dulce Critelli, propõe trazer uma reflexão sobre a atualização do governo totalitário em nossos dias. Recorrendo à interpretação de Hannah Arendt como paradigma epistemológico, o artigo dialoga com autores contemporâneos que também se preocupam com o que se tem chamado de a morte ou a destruição das democracias hoje. Na inevitável comparação entre o acontecimento dos regimes totalitários de Hitler e Stalin com as ocorrências totalitárias de nossos dias, temas estruturais ressurgem em acontecimentos concretos, exigindo novas interpretações. Entre eles, o sentido do humano e a sua superfluidade, a ressignificação do real e de verdade, a experiência da política e da vida conjunta, as finalidades dos regimes antidemocráticos anteriores e atuais em face dos novos meios tecnológicos e digitais... Enfim, A era do isolamento
quer repensar o sentido da condição humana e da política, diante do recrudescimento das forças e formas totalitárias de governos atuais.
"Algumas considerações sobre o conceito de territórios existenciais em Guattari: entre As três ecologias e Caosmose", de Flávio Luiz de Castro Freitas (UFMA), Luciano da Silva Façanha (UFMA), Zilmara de Jesus Viana de Carvalho (UFMA), trata do conceito de produção da subjetividade a partir do livro Caosmose – um novo paradigma estético, de Félix Guattari. Para responder a indagação proposta, os autores exploram o significado da produção da subjetividade a partir de noções como território existencial e alteridade subjetiva, destruição de fronteiras e limites.
Em Novas formas de controle social: os desafios da democracia do século XXI
, Jacira de Freitas parte de a Ideologia da Sociedade Industrial – O Homem Unidimensional (One Dimensional Man), de Herbert Marcuse, para refletir sobre os desafios da democracia ante o aumento do autoritarismo e suas práticas ameaçadoras e promotoras do medo e do ódio, para melhor sujeitar uma coletividade. Para a autora, a essa reflexão é necessário acrescentar a indagação sobre forças visíveis ou não que agem à margem das instituições sociais.
Em A globalização e as repercussões jurídicas decorrentes dos direitos humanos
, Lucineia Rosa dos Santos aborda a globalização e as repercussões jurídicas dela decorrentes sobre os direitos humanos. Para a autora, não se pode analisar os efeitos da globalização apenas da perspectiva econômica, mas também social, política e cultural, bem como as repercussões sobre o conceito de cidadania.
Em Entre ele e nós
, Maria Constança Peres Pissarra argumenta que, muito embora o racismo não mais seja aceitável, a presença da possibilidade da discriminação permanente e violenta continua a negar o direito à cidadania de muitos e o direito à dignidade humana. A diferença tornou-se desigualdade irreconciliável, dificultando o diálogo da hospitalidade e do cuidado. O racismo não desapareceu. Refletir sobre a atualidade de sua presença em pleno século XXI é o propósito deste texto.
Pietro Alarcon, em Fundamentos constitucionais da tolerância: limites e condições jurídicas da atitude tolerante no quadro atual do Brasil
, aborda o princípio da tolerância presente na Constituição de 1988 como fundamental ao desenvolvimento das relações na sociedade brasileira. Para tanto, o autor examina diferentes manifestações conservadoras contemporâneas e indaga como alguns mecanismos jurídicos colaboram para a consolidação da democracia e das liberdades públicas.
O capítulo Chica da Silva: escrava ou rainha no Brasil colônia?
, de Sônia Campaner Miguel Ferrari, discute a noção de identidade na colônia a partir do estudo do caso de Chica da Silva, para tentar compreender quais as relações ali estabelecidas entre o indivíduo, o contexto histórico e o pensamento iluminista da época, para melhor compreender a vida das mulheres naquele período.
Em Um esquema discursivo da atualidade à luz de determinados procedimentos filosóficos
, Yolanda Gloria Gamboa Muños analisa alguns procedimentos a partir do pensamento de três filósofos contemporâneos: Nietzsche, Foucault e Veyne. A autora faz uma aproximação com as categorias de crítica e resistência negativa, bem como com as divisões identitárias em vigência nos discursos políticos contemporâneos.
Agradeço à Professora Sonia Campaner a colaboração na seleção das autoras e autores.
Maria Constança Peres Pissarra
Organizadora
SUMÁRIO
Capítulo 1
O Candomblé Ketu na conformação da resistência política e da identidade brasileira
Alice Lino Lecci
Capítulo 2
Dança, corpo e relação de poder: etiqueta como regra de conduta
Ana Teixeira
Capítulo 3
O debate afro-brasileiro em museus e exposições de arte
Cauê Alves
Capítulo 4
A era do isolamento
Dulce Critelli
Capítulo 5
Algumas considerações sobre o conceito de territórios existenciais em Guattari: entre As três ecologias e Caosmose
Flávio Luiz de Castro Freitas
Luciano da Silva Façanha
Zilmara de Jesus Viana de Carvalho
Capítulo 6
Novas formas de controle social: os desafios da democracia do século XXI
Jacira de Freitas
Capítulo 7
Globalização e as repercussões jurídicas decorrentes dos direitos humanos
Lucineia Rosa dos Santos
Capítulo 8
Entre eles e nós
Maria Constança Peres Pissarra
Capítulo 9
Fundamentos constitucionais da tolerância: limites e condições jurídicas da atitude tolerante no quadro atual do Brasil
Pietro Alarcón
Capítulo 10
Chica da Silva: escrava e rainha no Brasil Colônia
Sônia Campaner Miguel Ferrari
Capítulo 11
Um esquema discursivo da atualidade à luz de determinados procedimentos filosóficos
Yolanda Gloria Gamboa Muñoz
Sobre os autores
Capítulo 1
O Candomblé Ketu na conformação da resistência política e da identidade brasileira
Alice Lino Lecci
A repressão ao Candomblé Ketu e a sua expressão de resistência
O Candomblé Ketu, em especial o Ilê Erô Opará Ofá Odé Asé Jaynã, visitado nesta pesquisa, constitui-se a partir da confluência entre os valores, práticas e saberes relativos à espiritualidade africana e a dos habitantes originários da floresta: os indígenas, os ditos caboclos de pena, além dos boiadeiros, também nascidos em terras brasileiras e cultuados na festa do caboclo. Com isso, não se pretende afirmar que essa religião compreende toda a complexidade existencial desses modos distintos da percepção de si, do outro e da realidade em seu entorno, manifestos em numerosas etnias, africanas e indígenas; contudo, é evidente, em relatos da ìyálòrìsà Márcia Cristina de Jesus Moura e do bàbálòrìsà Fábio de Jesus Moura e na literatura referente ao tema, a presença dos Òrìsà, as divindades africanas da cultura iorubá, e a dos Caboclos, entidades indígenas.
Nesse entroncamento cultural, erguem-se os ritos relativos ao transe do Candomblé, de modo a adorar os Òrìsà e Caboclos, como em um rompante em detrimento da violência dirigida a esses grupos étnicos em meio às relações sociais no Brasil. Na República, a repressão ao Candomblé é institucionalizada mediante o Código Penal de 1890, cujo artigo 157 determina a proibição relativa ao espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública
. Ademais, o artigo seguinte apresentaria a proibição relativa a ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo assim, o ofício do denominado curandeiro
.
No Código Penal de 1940, no artigo 284, mantém-se a proibição relativa à prática do curandeirismo, ou seja, I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III – fazendo diagnósticos
. Como se observa, de acordo com essas leis, ainda haveria a possibilidade de restrição às práticas do Candomblé Ketu, pois preveem a cura, os ditos ebós, conforme nos explica a ìyálòrìsà Márcia Cristina de Jesus Moura:
Vamos começar pelo vício: tem muita gente que às vezes eles bebem porque tem as entidades que são os zombeteiros, tem um espírito ruim. Tem um ancestral dele lá que morreu, um espírito do pai, um egun, que nós chamamos hoje, que acompanha essa pessoa e leva ele à fraqueza, que ele se torna um viciado. Então, [...] tem os ebós, porque para cada coisa tem uma sugestão de ebós. Tem ebós para saúde, de vícios. Tem ebós, como se diz, Deus o livre guarde, um da família morre, aí aquela pessoa tem que se limpar, tem que tirar um ebó, então, é outro ebó específico, é diferente. E também tem os boris, que a gente dá, que a gente faz, recolhe, dá um bori, que chama bori de saúde, [...] tem comidas que você serve para Omolu pra saúde [...] o ebó é preparado pra limpar o filho, mas também com as rezas do Orixá entendeu? [...] Tem uns que canta pra Exú, outros canta pra Oxum, canta pra Iemanjá, canta pra Oxalá. (Entrevista em set. 2019)
Dito isso, será somente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no seu artigo quinto, que tal prática religiosa será permitida pelo Estado nos seguintes incisos:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Diante das violentas e incessantes repressões e perseguições ao Candomblé pelo Estado, durante a escravatura e posteriormente na República, seus praticantes compreenderam, de forma astuciosa, que, para a permanência dessas práticas espirituais em meio à cultura brasileira, elas deveriam apresentar alguma semelhança com o catolicismo, a religião autorizada no Brasil. Disso, surge a necessidade de tracejar uma relação de equivalência entre os Deuses africanos e os Santos católicos como um modo de permanência do Candomblé, que estaria intrinsecamente ligado à resistência/sobrevivência dos seus praticantes, dado o conforto espiritual e a autoestima que essa religião traria.
Lembremo-nos, em acordo com Kabenguele Munanga (2000), que os africanos eram batizados antes mesmo de cruzarem o Atlântico, em capelas instaladas nas embarcações. A pretensão era de arrancar-lhes seus deuses às pressas, com o propósito de extirpar-lhes a própria percepção de si e de mundo. Antes disso, a evangelização dos negros principiara na África um século ou dois antes do povoamento do Brasil, e alguns espíritos daomeanos ou de negros do Congo já tinham sido identificados com os santos católicos
(Bastide, 1971, p. 361).
No contexto hebraico e cristão, utilizou-se do mito bíblico de Cam, filho de Noé, para justificar a servidão dos povos africanos, ou seja, embora o texto não faça nenhuma referência explícita ao pertencimento étnico-racial, tais povos teriam sido amaldiçoados por Noé por serem considerados os descendentes degenerados de Canaã, filho de Cam: Maldito seja Canaã! Escravo de escravos será para os seus irmãos
(Gênesis, 9:25). Canaã e seus descendentes sofreriam, então, a servidão, devido ao fato de seu pai Cam ter ultrajado Noé ao vê-lo nu e embriagado em sua tenda. Para Munanga (2012, p. 29),
na simbologia de cores da civilização europeia, a cor preta representa uma mancha moral e física, a morte e a corrupção, enquanto a branca remete à vida e à pureza. Nessa ordem de ideias, a Igreja Católica fez do preto a representação do pecado e da maldição divina. Por isso, nas colônias ocidentais da África, mostrou-se sempre Deus como um branco velho de barba, e o Diabo um moleque preto com chifrinhos e rabinho.
Em acordo com Munanga (2019) e Roger Bastide (1971), a presença da religião católica no Candomblé materializa-se como um simulacro, na equiparação superficial e conscientemente dissimulada entre os deuses africanos e os santos católicos. À medida que os africanos escravizados foram tomando conhecimento de certos elementos inerentes à estrutura básica do catolicismo, como a existência terrena dos santos canonizados, suas funções nas supostas curas e proteções junto a determinadas atividades humanas, assim como ocorreria em alguma medida com os Òrìsà, buscaram-se similitudes a serem manipuladas a fim de preservarem a cultura iorubá.
No entanto, a distinção é evidente justamente no que se refere à canonização dos santos pelos católicos, já que os deuses africanos se manifestariam nos corpos dos seus cultuadores, os Elégún, que receberiam em contrapartida alguma proteção e disciplina. Nos rituais do Candomblé de Ketu, a partir da música entoada na