Hermenêutica e formação (Bildung): a perspectiva de Gadamer
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Sobre este e-book
"A definição clássica de hermenêutica é a arte de interpretar textos. Esta arte sempre esteve ligada à interpretação de textos sagrados ou jurídicos de forma técnica e literal. Em Gadamer a hermenêutica torna-se filosófica e não desconsidera o espaço e a história relacionados à compreensão. Este livro estabelece uma conexão entre a hermenêutica de Gadamer, sua proposta dialógica de linguagem como pensamento que considera a tradição e os preconceitos, e o problema da formação. Lança perguntas no presente sobre os rumos e as consequências de se privilegiar uma formação eminentemente tecnicista."
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Hermenêutica e formação (Bildung) - Rui Guilherme Mangas de Souza
1. INTRODUÇÃO
A formação é um tema fundamental em nossos dias. A importância se deve às tendências e direcionamentos que a formação tem tomado nas últimas décadas em nível global. Tornou-se patente que cada vez mais se conforma e torna-se preponderante um tipo de qualificação que prioriza um direcionamento especializante, do tipo técnico-científico, para a formação dos jovens. É nítido que se consolidou um padrão de formação que prioriza o atendimento de demandas do mercado e desprestigia outros modelos, de caráter não-técnico, que valorizam um outro tipo de linguagem. Um tipo que se alinha com uma valorização mais plena do que se entende por saber. Tal postura, tem a ver com um tipo de filosofia denominada hermenêutica, que repensa a linguagem e a interpretação como não desligadas da condição histórica e das vivências sociais.
A presente pesquisa parte da filosofia hermenêutica de Hans-Georg-Gadamer (1900-2002) para lançar um questionamento sobre o tipo de formação (Bildung¹) que se delineia em nossos dias, e a possibilidade alternativa a esse modelo.
Para que formar? Para atender às demandas do mercado? Face às tendências de uniformização da linguagem, esta pergunta se apresenta como premente. O que está por trás e quais as consequências de se desqualificar um tipo de formação que não atende, de forma imediata, os interesses mercadológicos, e que não se adequa com um tipo de qualificação do tipo especializado? Parece que o tipo de formação ligada às humanidades, e plural, no sentido de desenvolver percepções para além da subjetividade moderna, não se encaixa no modelo convencional de cientificidade objetiva.
A proposta de Gadamer sugere a desconstrução dos paradigmas que sustentam a instrumentalização da linguagem. A crítica direcionada à filosofia moderna é contra o empobrecimento da compreensão, por entender que esta se dá ontologicamente, e, portanto, é anterior à questão da reflexão e do entendimento. A crítica de Gadamer ao Iluminismo e à mecanização do pensamento apresenta-se como uma forte manifestação de resistência à uniformização do pensamento da atualidade.
Este trabalho pretende estabelecer uma conexão entre a hermenêutica de Gadamer, sua proposta dialógica de linguagem, como pensamento que considera a tradição e os preconceitos, para lançar perguntas no presente sobre os rumos que o conceito de formação tem tomado em nossa civilização.
Através dos pressupostos da hermenêutica filosófica, pretende-se repensar a questão da formação. Ela traz consigo uma oportunidade de ampliarmos esse debate, tendo como pano de fundo a questão da modernidade e da centralidade do sujeito como produtor de saberes. De como a reflexão, e o próprio pensamento, pode ser mais plural e menos dogmático se estiver aberta ao diálogo como acontecimento. Um diálogo que transcende os pontos de vista subjetivos dos interlocutores no processo de conhecimento, quando a linguagem se dá como pergunta e resposta e deixa de ter um caráter instrumental. Nessa dinâmica, avalia-se os argumentos e contra-argumentos que os parceiros do diálogo apresentam com vistas a um consenso possível que não precisa ser definitivo.
Pretendemos expor que através dessa abertura, a linguagem na forma de diálogo se aproxima mais de uma formação cidadã, que possa atender ao pluralismo de concepções de mundo que caracteriza a sociedade.
Uma formação fora dos padrões de adequação a uma subjetividade determinista, pressupõe uma predisposição para se pensar intersubjetivamente, como um sujeito que se entende em processo de formação pela história e pela sociedade. Nesse novo paradigma, repensa-se a escola como reprodutora de doutrinas e dogmas da sociedade, para uma concepção formativa aberta para uma racionalidade hermenêutica, que respeita a alteridade e conjectura uma possibilidade de formação baseada numa consciência que se constrói levando em consideração as experiências históricas e sociais; além de se manter aberta para a educação não-formal.
Quais os pressupostos filosóficos ligados à objetividade da linguagem técnico-científica que na modernidade, favorecem um tipo específico de formação curricular voltada para a especialização e aos anseios do mercado em nossos dias? Para tentar responder a essa questão, pretende-se, através de uma pesquisa qualitativa bibliográfica, buscar respostas na principal obra de Gadamer, Verdade e Método, tomos I e II, além de textos posteriores relacionados à educação, como Educação é Educar-se.
A pesquisa também deve se orientar pelas obras de seu discípulo e intérprete Hans-Georg Flickinger (1944), e outros autores, sobretudo os vinculados à pesquisa hermenêutica no estado do Rio Grande do Sul, lugar no Brasil onde se tem desenvolvido importantes contribuições nessa área.
A presente pesquisa pretende ser uma contribuição a mais no debate educacional contemporâneo, relacionando o pensamento crítico da hermenêutica filosófica com o posicionamento preponderantemente técnico, metódico e objetivista na área educacional em nossos dias.
1 Esta palavra alemã não tem uma tradução exata para o português; significa cultura
, educação
e "formação. Gadamer utiliza o termo para descrever um processo de compreensão que remonta ao humanismo pré-moderno.
PRIMEIRO CAPÍTULO
2. RAZÃO E SUBJETIVIDADE
Abordaremos a maneira como os modernos, Immanuel Kant (1724-1804) e Georg W. F. Hegel (1770-1831) desenvolveram a noção de consciência subjetiva dominante, que se tornaria o fundamento guia para todo procedimento que se pretendesse científico, tornando-se o modelo mais aceito de proposição de verdade. Como veremos adiante, esta noção seria problematizada pela escola histórica, por não satisfazer os critérios metodológicos das ciências do espírito.
Os medievais reuniram-se em torno de uma teologia comum, que pôs Deus como princípio e fundamento do qual derivam todas as coisas. Kant e Hegel elegeram um novo fundamento. Este será o sujeito detentor de razão lógica.
Para Kant, a razão humana não pode conhecer nada que exceda o campo da experiência. Ele não reconhece a metafísica² como uma ciência rigorosa como a matemática e a física. Porém, a razão deveria superar os limites do mundo sensível, se quisesse alcançar o incondicionado e superar as contingências do mundo. Kant se esforçará em demonstrar que a razão pura, em sua estrutura interna possui formas apriorísticas que possuem caráter universal e necessário. Por formas a priori devem entender-se os quadros universais e necessários através dos quais o espírito humano percebe o mundo
(PASCAL, 1999, p. 40). Nas palavras do filósofo:
Denomino puras (em sentido transcendental) todas as representações em que não for encontrado nada pertencente à sensação. Consequentemente, a forma pura de intuições sensíveis em geral, a qual todo o múltiplo dos fenômenos é intuído em certas relações, será encontrada a priori na mente. (KANT, 1987, p. 33).
Ele defende a tese de que a razão pura pode justificar suas pretensões de um conhecimento anterior à experiência, tais como demostraram a matemática e a física pura, porque seus princípios estão apoiados em leis da natureza universais e necessárias, e por isso derivam de uma fonte racional. O conhecimento do tipo transcendental (conceitos a priori de objetos em geral) é uma ação do entendimento que designaremos com o nome geral de síntese para, mediante isso, ao mesmo tempo observar que não podemos nos representar nada ligado no objeto sem o termos ligado antes
(KANT, 1987, p. 80)
Apesar da crítica que Kant faz à metafísica tradicional, as categorias e conceitos transcendentais (lógicos) são condições sem às quais torna-se impossível conhecer. Intuições sem conceito são cegas
(KANT,1987, p.