Saudades Eternas: Fotografia entre a morte e a sobrevida
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Saudades Eternas - Michel de Oliveira
REFERÊNCIAS
Prefácio
A densidade do conteúdo e a poesia da forma
Até os anos 1980, no Brasil, quem se propusesse a estudar, pesquisar ou produzir algum trabalho acadêmico sobre fotografia, fatalmente recorreria – e citaria – aos quatro títulos disponíveis no mercado e nas bibliotecas das universidades: A câmara clara, de Roland Barthes; Fotografia e sociedade, de Gisèle Freund; Sobre fotografia, de Susan Sontag, e Pequena história da fotografia, de Walter Benjamin. Esses títulos são considerados clássicos
e, até hoje, importantes bases de consulta para novos estudos em fotografia. Porém, com o final do regime militar, em 1985, o universo de consulta foi ampliado, pois ficou muito mais fácil a importação de títulos estrangeiros e a publicação de autores brasileiros ou de traduções em língua portuguesa.
Como havia uma demanda reprimida, a partir dos anos 1990, ocorreu uma multiplicação exponencial de títulos relacionados ou especificamente voltados à fotografia. No início da segunda década dos anos 2000, havia – e continua havendo – tantos títulos disponíveis que alguns estudiosos da área chegaram a pensar que não teria mais nada a se estudar sobre fotografia. Ledo engano. A fotografia é um universo particular e fascinante, quanto mais se estuda, mais se percebe que ainda há muito por estudar.
Nesse cenário e nesse tempo, par e passo com os pesquisadores dedicados, comprometidos com os rigores metodológicos e com a geração de novos conhecimentos, floresceram também os pesquisadores de ocasião, mais preocupados com a obtenção de títulos acadêmicos que com os avanços do pensamento. Estes, os pesquisadores acomodados
, tornam-se potenciais reprodutores de conhecimentos anteriores e pouco contribuem à soma de novos saberes, processo característico da ciência.
A composição – para usar um termo fotográfico – desse cenário é importante para destacar a importância e o ineditismo do trabalho Saudades eternas: fotografia entre a morte e a sobrevida, de Michel de Oliveira. Vou usar importância e ineditismo como dois substantivos independentes, mas complementares. Importância significa destaque em uma escala comparativa
. Nesse sentido, a discussão que o autor trava sobre fotografia e memória, transitando com autoridade e desenvoltura no diálogo com outros autores, para abordar a fotografia como artefato da memória e como mediadora da dialética da lembrança e do esquecimento, sustentação necessária para falar de imagens para lembrar e de imagens para esquecer, está muito acima da média. Em outras palavras, é um destaque na escala comparativa.
Ineditismo significa uma qualidade do que é inédito
, ou seja, ainda não publicado, mesmo que, vez ou outra, já tenha sido comentado. Michel de Oliveira se propôs a pesquisar como as fotografias de família motivam a oralidade e como retratos de entes queridos já falecidos são artefatos de culto à memória, a suscitar saudades e recordações afetivas que lhes garantem uma sobrevida memorial
. Óbvio que o autor não foi o primeiro a discutir essa temática, mas a metodologia e os resultados obtidos são inéditos. Ele utilizou a proposta metodológica da fotografia como disparadora do gatilho da memória, em seus entrevistados, explorando sua potencialidade como auxiliar na evocação de recordações afetivas.
Com a pesquisa, o autor ampliou a discussão e redimensionou a significação da fotografia dos álbuns e das lápides do cemitério, abordando-as como artefatos de superação simbólica da morte, mas atento à sua dimensão dialética, pois, adverte: ao mesmo tempo em que a fotografia afugenta o espectro da morte, sugerindo uma eternidade imagética aprisionada na superfície bidimensional, é também uma lembrança permanente da ausência
.
Outro ponto positivo do trabalho é a leveza e a fluência do texto. Com objetividade e destacável capacidade de síntese, o autor suaviza a densidade do conteúdo em uma narração envolvente, não raro, utilizando com maestria a liberdade poética na abordagem de conceitos e na construção de conteúdos inerentes a um dos processos mais dolorosos do ser humano, o de conviver com a perda de entes queridos.
Saudades eternas: fotografia entre a morte e a sobrevida, pela consistência da discussão teórica sobre fotografia e memória, pelo estudo de caso – a sobrevida memorial dos entes falecidos em fotografias –, pelo ineditismo do uso da proposta metodológica e dos resultados obtidos e pela capacidade de síntese e poesia de sua escrita, com certeza, irá se tornar leitura referencial para os amantes e para os pesquisadores da fotografia. Boa leitura!
Prof. Dr. Paulo César Boni
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
APRESENTAÇÃO
Foi durante uma visita ao Cemitério Santa Isabel, em Aracaju, no ano de 2009, que despontou o questionamento: por qual motivo colocam retratos nas lápides? Estava no terceiro ano da graduação em Comunicação Social e ainda não tinha consciência, mas aquela indagação era a semente do problema de pesquisa que resultaria neste livro.
A inquietação provocada pela curiosidade de ver os rostos nos retratos de porcelana impulsionou os primeiros passos de um estudo inicialmente espontâneo, com a leitura de artigos e livros, que se desdobrou e amadureceu até se tornar a proposta que me rendeu o título de mestre em Comunicação.
Nesse percurso de mais de seis anos, dois deles voltados ao mestrado – quando pude dedicar tempo exclusivo à pesquisa –, busquei pistas para esboçar uma resposta àquela questão inicial, que se complexificou, saiu dos limites do cemitério e adentrou a vida doméstica, com os cenários íntimos marcados pela presença de retratos de várias gerações, expostos nos porta-retratos ou preservados cuidadosamente em brochuras encadernadas e caixas de sapato.
Durante a pesquisa, foi possível perceber que as fotografias dos entes queridos fazem parte da complexa tessitura que envolve, entre outros aspectos, a preservação da memória familiar, a mobilização dos afetos – com destaque para a saudade –, a narração das histórias de vida, a força evocativa da imagem fotográfica como artefato da cultura material. Além de buscar afastar o medo primordial da morte, por meio da preservação simbólica dos que amamos nas fotografias, tomadas como duplos imagéticos, a tentar barrar a ação do tempo.
A fim de compreender como a complexa trama memorativa se apresenta nas vivências do dia a dia, busquei nas histórias de velhos¹ os indícios conceituais apresentados pelos teóricos e pensadores. Tentativa de alinhar o rigor científico à experiência cotidiana, permeada por saberes muitas vezes ignorados no ambiente acadêmico (ver procedimentos da pesquisa no Anexo I).
A justaposição desses conhecimentos distintos e complementares influenciou diretamente na organização do livro. Os capítulos de discussão teórica são antecedidos pelos relatos dos entrevistados, a fim de apresentar os fios que compõem a complexa trama que envolve fotografia, memória e o emaranhado de diversos sentimentos, entrecruzados nas narrativas dos entrevistados, suscitadas pelos retratos daqueles que já se foram.
Esta breve apresentação tem como propósito mostrar qual foi o ponto de partida deste percurso, a fim de convidar você, leitora ou leitor, para ser mais uma voz presente na discussão, expandindo-a para além dos limites do texto.
Antes de prosseguir a leitura, uma sugestão: pegue uma fotografia, preferencialmente revelada no papel, de algum ente querido que tenha partido. Olhe atentamente para os detalhes e deixe que emoções e lembranças venham à tona. Se possível, mostre o retrato a algum familiar próximo e perceba quais recordações suscita. Ao fazer esse exercício, deixará de ser apenas leitor para se tornar coadjuvante deste estudo, acrescentando considerações pessoais ao processo analisado.
Michel de Oliveira
¹ O vocábulo é adotado aqui em sua acepção primária: como referência à velhice, afastando-se do uso atual que arraigou um sentido pejorativo à palavra, utilizada para qualificar o que perdeu valor de uso. Essa escolha tem como base o trabalho de Bosi (1994), no livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, no qual o termo é citado sem preconceitos linguísticos.
Fotografia: Gisele Koch
Aparecida Westin nasceu em Sales Oliveira, interior de São Paulo, em 17 de outubro de 1942. Chegou a Londrina em 1949, com toda a família, que foi atraída pelo progresso do café. Nós mudamos para cá amassando barro
, relembrou. A mãe faleceu aos 42 anos, quando Aparecida tinha apenas sete, motivo pelo qual teve que assumir os afazeres de casa ainda menina. Fiz muita coisa e não fiz nada
, contou, referindo-se à lida doméstica.
Casou-se com João Batista Westin, descendente de austríacos e também natural do interior de São Paulo, com quem teve três filhos. O esposo faleceu em 2013, em decorrência de complicações cardíacas. Desde então, Aparecida vai ao Cemitério São Pedro visitar o túmulo do falecido, sempre acompanhada da filha, Weda Westin.
A entrevista foi realizada na sala de estar da casa de dona Aparecida, na tarde do dia 22 de julho de 2015. Weda acompanhou a mãe, auxiliando com os álbuns de família e as fotografias dos porta-retratos, o que facilitava a rememoração. Durante a conversa, Aparecida recordou momentos da infância e dos anos de casamento, sempre com forte senso de preservação da intimidade:
Nunca trabalhei fora. A rotina da casa não era ruim não... Não, eu gostava... Eu ficava em casa, cuidava de todo mundo, lavava roupa pra todo mundo, fazia roupa pra todo mundo. Todo mundo que chegava na hora tinha comidinha quentinha, a roupinha prontinha pra ir à escola todo dia. Não era ruim não.
Eu fui criada desse jeito. Desde que a minha mãe morreu, eu fiquei com meu pai e com meus irmãos e já fazia comida desde pequenininha. Então nunca estranhei. E faço até hoje, a qualquer hora do dia e da noite que precisar estou fazendo comida.
Minha família mudou de São Paulo pra Londrina pra produzir, melhorar de vida. Viemos colher café. Todo mundo veio. E colheram bastante café, produziram. E ganharam um bom dinheirinho. Meu pai, meus irmãos, a minha irmã já era casada. Veio todo mundo. Os que estão vivos continuam todos por aqui pela região de Londrina.
***
A minha mãe fez muita falta, porque quando ela morreu eu era criança. Fez muita falta pra mim na minha adolescência. Hora nenhuma eu queria que ela fosse, pois eu ia tá precisando dela. Assim que nem os meus... A qualquer hora. Eles estão com cinquenta anos e ainda precisando de mim. Se ela estivesse aqui, até hoje eu estaria precisando dela.
Não esqueço nunca dela. Nenhum dia, nenhuma noite... posso acordar, dormir, que eu lembro sempre. A feição dela... e dela a gente não tem foto. Pra lembrar só a memória mesmo. É, a memória...
Ela morreu muito nova. Morreu com 42 anos. Às vezes quando vejo alguma moça morena passar eu penso: ela parecia com a minha mãe. E ela não deixou nenhuma foto. Naquele tempo, na roça, ninguém ia atrás de tirar foto. Nem pra documento não se tirava. Do meu pai, a única foto que tem está com a minha irmã, uma fotinho pra documento. Do casamento deles não tem foto. Eu tenho minha foto do casamento, mas dos meus pais eu nunca vi.
Aqui em casa a gente tem um acervo muito grande de fotos. Da época da formação de Londrina. Fotos que contam nossa história: os filhos criança, muitos amigos que a gente conheceu. Agora, perdeu o valor, não se usa mais tirar uma foto e dar de presente. Antes tinha uma troca. Eu tenho foto das minhas amigas de quando eu tinha 15... 16 anos... Agora não. Antes fazia 10 ou 12 fotos e distribuía entre os amigos, mandava até pro interior de São Paulo, pros parentes. Agora não tem mais isso.
Ao ser questionada sobre o motivo de ela e a filha irem fazer visitas regulares ao túmulo do esposo, dona Aparecida comentou:
Vamos sempre ao cemitério. Pra mim representa que eu vou ver ele. Acho importante manter a tradição. A gente gosta de ir lá limpar. Coloca uma florzinha. Reza. Conversa um pouquinho com ele. Comenta o que é que está acontecendo dentro de casa.
Eu sei que ele não