Polícia e Sociologia: Estudos sobre Poder e Normalização
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Polícia e Sociologia - Fábio Gomes de França
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
Prefácio
Quando terminei a leitura deste livro não pude resistir à emoção que os grandes dramas humanos suscitam. Por um lado, a empatia com o autor, Fábio Gomes de França, capitão da Polícia Militar do Estado da Paraíba, doutor em sociologia, e a admiração por sua coragem cívica, honestidade intelectual, sensibilidade analítica, acuidade crítica e autocrítica, seu compromisso com o conhecimento e com o engajamento ético, privilegiando a sociedade, a democracia, a justiça e os direitos humanos, resistindo aos atrativos fáceis das veleidades corporativistas. Por outro lado, o mergulho no universo em que colidem sofrimento e satisfação, humilhação e orgulho, angústia e gratificação, respeito ao Outro e brutalidade, valorização da independência e o sentimento do dever profissional, preservação de valores universais e fidelidade institucional, hierarquia e individualidade autônoma, disciplina e liberdade de consciência.
Creia, prezada leitora, caro leitor, não só na dramaturgia clássica os heróis estremecem entre a virtude e o destino, a vida e a morte, a conquista e o risco, o amor e o ódio, o sacrifício e o medo, a grandeza e a prepotência, a generosidade altruísta e a glória vã, a honra e o poder. Esse embate subjetivo de titãs também anima as páginas da sociologia, em seus estudos empíricos relevantes, devotados a devassar fenômenos complexos e contraditórios, que atravessam as mais diversas dimensões do humano e da vida coletiva. Pois esse é, aqui, o caso. Ser policial militar não é o mesmo que ser funcionário burocrático do Estado, embora se trate da prestação de um serviço público. A tarefa é imensamente desafiadora, requer muito do corpo e da mente, e, no limite, expõe o agente a ameaças extremas. A dificuldade nem sempre é diretamente proporcional à força empenhada, porque, por vezes, a energia exigida é maior quando é menor a aplicação da força. Energia metabolizada, dirigida a habilidades para as quais a maturidade psicológica e a autoridade se manifestem em palavras, linguagem gestual, sensibilidade para circunstâncias singulares, intervenções sutis, capacidade de desarmar os espíritos, preventivamente. O trabalho policial envolve grande responsabilidade, porque inclui o direito, eventualmente o dever, de recorrer a meios de coerção, exercendo discricionariamente o poder delegado pelo Estado. Para que a discricionariedade não se confunda com arbítrio, impõe-se desenvolver senso crítico e interpretativo, típico do juízo de um magistrado equilibrado e de um cidadão idealmente orientado pelo bem comum e pela equidade, por convicções republicanas, nos marcos do Estado democrático de direito – compatíveis, segundo a Constituição Federal, com os direitos humanos. A prática hermenêutica implicada no fazer policial alimenta-se de saber multidisciplinar, no qual se conjugam antropologia, psicologia, sociologia, serviço social e politologia, além do direito – que está, portanto, longe de ser a única referência ou mesmo a mais importante para a formação de um(a) policial, ao contrário do que supõe nossa tradição bacharelesca. Justamente por lhe caber decidir, legitimamente, usando armas em nome do Estado, é que essa liberdade tem de cercar-se ao máximo de cautelas e prudência, de todo o conhecimento acumulado e de experiência – não basta o que se aprende na escola. A formação é fundamental, porém a troca horizontal nas ruas complementará e transformará, para o bem e para o mal, o que a educação formal houver forjado. Por isso, a tendência é que os padrões se reproduzam nas gerações profissionais subsequentes. A correção de desvios não se fará somente nas escolas que formam praças e oficiais.
Se a complexidade das tarefas e o grau elevado de exigência ética pesam tanto sobre cada profissional de polícia, estressando todo agente, o que dizer da subtração de liberdade provocada pelo deficit de individualidade que se verifica na Polícia Militar? Como enfrentar o desafio ético, cognitivo, hermenêutico, sem liberdade? Como responder ao dilema, quando se é obrigado a escolher, a decidir, a avaliar, em contextos críticos e extremos, sem que se possa, efetivamente, escolher, decidir e avaliar? Quando se é reduzido à máquina que cumpre ordens? Essa redução da subjetividade vale para a guerra, e talvez facilite a missão, inclusive psicologicamente. Afinal, matar alguém, em certa medida, deixa de ser ato do sujeito, porque o lugar do sujeito desloca-se para o espaço coletivo da hierarquia e da corporação. A responsabilidade dilui-se, compartilha-se, terceiriza-se. Mas Polícia não é Exército, nem mesmo a Polícia Militar. Sua função não é fazer a guerra, mas garantir direitos a serviço da cidadania. Como, então, compatibilizar a natureza militar com a função de polícia? Como compatibilizar a delegação de tamanha responsabilidade ao profissional na ponta com a subtração da individualidade e o deficit de autonomia?
Se temos em mente o respeito à Constituição, aos direitos humanos e ao Estado democrático de Direito, se concebemos a polícia como uma instituição indispensável à democracia, porque comprometida com a defesa dos direitos, como reconhecer a adequação de uma instituição policial militarizada, isto é, regida pelo princípio da hierarquia, aquela hierarquia que suprime a independência dos sujeitos? Além disso, como aceitar que instituições policiais atuem com viés de cor ou raça, classe e território, afirmando-se antes como instrumentos de dominação social do que como meios a serviço da cidadania, especialmente dos indivíduos e grupos vulneráveis?
Conduzido por interrogações dessa ordem, Fábio França, sociólogo, questiona Fábio França, capitão. E vai mais longe, dialogando com o marxismo de Althusser e a genealogia de Foucault, pergunta, tacitamente, se haveria caminhos para salvar a função coercitiva do Estado – função que lhe é intrínseca ou não seria Estado – do autoritarismo com viés de classe. A indagação é decisiva, uma vez que, concluindo-se que não seria possível uma polícia liberta do papel de veículo de dominação, nada mais restaria a fazer, senão esperar a revolução que liquidasse a própria estrutura de classes. Nenhum esforço de mudança menos totalizante faria sentido. Nenhuma reforma seria viável ou sequer desejável. O destino do reformador seria o reconhecimento da própria impotência e a rendição ao imobilismo cético. Paradoxalmente, a postura mais radical conduziria à apatia, cúmplice do status quo. Não seria a primeira vez. Mas conformismo e renúncia não combinam com a prosa e o empenho analítico de Fábio, capitão e sociólogo. As duas almas do autor se unem na expectativa – ou mesmo na esperança – de que a crítica abra horizontes de transformação, é o que deduzo do tour de force de Polícia e Sociologia. Um livro não poderia ser o réquiem para uma biografia profissional ainda jovem – policial e intelectual, mais do que promissores, plenos. Um livro seria, antes e melhor, e é este o caso, um mapa e uma bússola para novas trilhas e sendas, para as veredas futuras de uma grande nação, a construir-se, depois da noite em que mergulhamos, no próximo alvorecer democrático.
Luiz Eduardo Soares
Antropólogo e cientista político, ex-secretário nacional de Segurança Pública
APRESENTAÇÃO
A vida acadêmica ou, simplesmente, o exercício da atividade intelectual não institucionalizado (aquele realizado sem vínculos a universidades ou Centros de Pesquisa) diz respeito a um acúmulo específico de capitais simbólicos. Essa acumulação condiciona uma dimensão ética multivariada se nos propomos a pensar qual seria o objetivo ou papel do intelectual, estudioso ou pesquisador quando se coloca a refletir abstratamente, por meio de argumentos lógicos e conceituais, sobre os fenômenos sociais (no caso das ciências humanas e sociais). Isso porque o final de uma argumentação científica por meio de achados de pesquisa pode ser interpretado como um ganho intelectual para a dimensão pessoal do próprio autor, dotando-lhe de certa notoriedade entre pares e certos segmentos sociais, mas também pode ser visto como um conhecimento de utilidade pública (quando professores/pesquisadores universitários divulgam suas pesquisas em congressos, lançam livros ou publicam artigos em periódicos acadêmicos, ou, ainda, quando a imprensa divulga dados de pesquisa para levantar críticas às ações governamentais e, por outro lado, agências governamentais propõem políticas públicas à sociedade como um todo).
É nesse caminho que me incluo, na tentativa de construir certo lugar, assim como outros pesquisadores que, de alguma forma, contribuíram engrandecendo a perspectiva científica em áreas como a Sociologia da Violência, Criminologia, Direitos Humanos, áreas com as quais me identifico para exercer o mister da produção intelectual.
No caso desta obra, trata-se de uma coletânea de textos de influência, digamos assim, com mais força do campo sociológico, já que minha carreira acadêmica foi iniciada no mestrado em Sociologia (entre os anos de 2010-2012) e desdobrou-se no doutorado na mesma disciplina acadêmica (entre os anos de 2012-2014), e foi enriquecida com um estágio pós-doutoral com atividades voltadas para pesquisa, ensino e estudos na área dos Direitos Humanos (entre os anos de ٢٠١٧-٢٠١٨). Essa minha incipiente biografia acadêmica ocorreu na íntegra na Universidade Federal da Paraíba.
De toda forma, imbuído das reflexões construídas ao longo da pós-graduação e dos diversos trabalhos publicados em livros, periódicos e apresentações em congressos sobre Segurança Pública, com mais especificidade sobre as Polícias Militares e a formação de seus agentes, acabei por privilegiar como lócus de minhas construções conceituais no campo sociológico os dilemas que envolvem aspectos de uma instituição da qual faço parte. A partir dos anos 2000, com mais ênfase, policiais militares passaram a estudar suas organizações sem privilegiar o olhar protecionista e o lugar de nativo que ocupam, o que revelou uma série de trabalhos que contribuíram para enriquecer a Sociologia da Violência e, por que não dizer, a Sociologia das Polícias Militares.
A relevância dos estudos sobre as Polícias Militares em nosso país a partir de recortes teórico-metodológicos das ciências humanas e sociais como a Sociologia deveu-se à busca de uma melhor compreensão desde a formação dos agentes policiais militares às suas atuações em contato com a sociedade devido à herança autoritária que ficou como resquício do período ditatorial. As Polícias Militares, em todos os estados da Federação, assim como no Distrito Federal, são instituições que comportam milhares de integrantes e demonstram ser bem mais complexas do que aparentam aos olhares do senso comum, o que possibilita à visão atenta dos pesquisadores da área um rico universo para a apreensão de múltiplos objetos a serem desnudados, compreendidos, explicados, enfim, objetivamente conceitualizados.
Por isso é que me proponho, neste livro, quando completo dez anos de atividades de pesquisa sobre as Polícias Militares, compilar alguns dos meus escritos que destacam temas importantes que me levaram a refletir as Polícias Militares de outro modo. Gostaria de destacar especialmente algumas categorias que desenvolvi ao longo de meus achados de pesquisa, como a pedagogia do sofrimento
, a sociabilidade estratégica
ou o que chamo de humanização disciplinada
.
Enfim, estudar a relação entre polícia, poder e normalização, com ênfase no processo de humanização e formação policial militar com olhares sociológicos, é exatamente destacar meu lugar de fala e posicionamento sobre os escritos que aqui se encontram, os quais têm a Polícia Militar como objeto singular de apreensão, mas que encontram nas argumentações por mim tecidas, categorias que nos ajudam a compreender as instituições da ordem sob um prisma analítico da Sociologia.
Nesses dez anos de pesquisa, os quais pretendo estender por mais longos anos, eu não poderia deixar de agradecer a presença, em minha vida, de algumas raras pessoas que muito me ajudaram a desenvolver meus argumentos com suas críticas, contraposições, apontamentos e orientações, assim como afinidades, como Jonas do Monte, Adriano de León, Luziana Ramalho, Édson Bertoldo, Fernanda Mendes, Simone Brito, Dorgival Renê, Nayhara Hellena, Tamara Raiza, Jocerlândio Apolinário e Anderson Duarte, pelos quais nutro grande estima para além dos enriquecedores debates, como ponte existencial que me fortalece. Por fim, gostaria imensamente de agradecer ao professor Luiz Eduardo Soares, por ter gentilmente prefaciado esta obra, enriquecendo-a com suas reflexões, tendo-me dado o orgulho de ter algumas de suas palavras tecidas em meu trabalho.
O Autor
Sumário
1
IDEOLOGIA, PODER E O PARADIGMA DA HUMANIZAÇÃO
POLICIAL MILITAR NO BRASIL
1.1 A IDEOLOGIA DA SEGURANÇA CIDADÃ
?
1.2 ESTRATÉGIAS DE PODER E O PARADIGMA DA HUMANIZAÇÃO
POLICIAL MILITAR
2
HUMANIZAÇÃO DISCIPLINADA: A RELAÇÃO SABER-PODER
NA FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR
2.1 O PODER E AS TÉCNICAS DISCIPLINARES NA MODERNIDADE
2.2 OS NOVOS SABERES HUMANIZADORES NA FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR
2.3 O DISCURSO DA HUMANIZAÇÃO POLICIAL COMO ESTRATÉGIA
DE CONTROLE E VIGILÂNCIA
3
O PROCESSO DA HUMANIZAÇÃO POLICIAL MILITARNO BRASIL: CONFLITOS,AVANÇOS
E DESAFIOS
3.1 MILITARES HUMANOS OU HUMANOS MILITARES?
3.2 RESISTÊNCIAS E DESAFIOS PARA A HUMANIZAÇÃO POLICIAL MILITAR
4
O CURRÍCULO CULTURAL E A FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR
5
A PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO E A FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR
5.1 A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE MILITAR
5.2 CORPOS QUE SOFREM, MENTES QUE OBEDECEM
5.3 O ESTÁGIO DE OPERAÇÕES TÁTICAS COM APOIO DE
MOTOCICLETAS
6
HIERARQUIA DA INVISIBILIDADE
: PRECONCEITO E
HOMOFOBIA NA FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR
6.1 A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA VIRILIDADE
6.2 O PAPEL DA VIRILIDADE NA FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR
6.3 SÍNDROME DE ESPARTA
:ENTRE O ORGULHO, A VERGONHA
E O RECONHECIMENTO
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
1
IDEOLOGIA, PODER E O PARADIGMA DA HUMANIZAÇÃO POLICIAL MILITAR NO BRASIL
¹
Podemos considerar como paradigma da humanização policial militar aquele que confere legitimidade à mudança de perspectiva acerca da atuação das Polícias Militares (PMs) em nosso país, ou seja, a ênfase recai no modelo preventivo e não no repressivo. Tal paradigma recobre desde a formação de novos agentes policiais, com abertura, por exemplo, à inserção dos Direitos Humanos como matéria obrigatória e tema transversal nas matrizes curriculares dos cursos para policiais militares, à atuação dos policiais militares nos projetos de policiamento comunitário espalhados praticamente em todo o território nacional. O que se percebe é que o paradigma da humanização policial militar acompanha as mudanças estruturais no campo da Segurança Pública, que também passaram a ter como referência novos discursos, como o de Segurança Cidadã e Segurança Humana.²