Queixas, Denúncias e Conciliações: Um Estudo sobre a Violência de Gênero
De Antônia Eudivânia de Oliveira Silva, Francisca Maria da Silva Barbosa, Tatiane Bantim da Cruz e Iara Maria de Araújo
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Queixas, Denúncias e Conciliações - Antônia Eudivânia de Oliveira Silva
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS:DIVERSIDADE DE GÊNERO, SEXUAL, ÉTNICO-RACIAL E INCLUSÃO SOCIAL
No dia que for possível à mulher amar-se em sua força e não em sua fraqueza; não para fugir de si mesma, mas para se encontrar; não para se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia então o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal.
Simone de Beauvoir
(no livro Todos os homens são mortais)
APRESENTAÇÃO
O livro Queixas, denúncias e conciliações: um estudo sobre a violência de gênero apresenta os resultados de pesquisas desenvolvidas sobre violência de gênero no Cariri cearense a partir de 2009, abordando especificamente as características principais dessa forma de violência, o perfil de denunciantes e acusados, os tipos de queixas, o sofrimento e adoecimento vivenciado pelas mulheres, o contexto no qual a violência se expressa e as relações familiares. Analisamos o uso e a apropriação que mulheres em situação de violência fazem dos equipamentos públicos de combate à violência e compreendemos, a partir das suas falas, os fatores desencadeantes da violência de gênero. Analisamos também a ação das Deams de Crato e Juazeiro do Norte, nas fases de atendimento, acolhimento, orientação e procedimentos. O foco deste livro é a violência no âmbito das relações conjugais e as tensões envolvendo agressões e afetos. A intenção é compreender os motivos e sentimentos que movem a ação dessas mulheres quando não querem a criminalização do agressor.
A pesquisa, estudos e debates que resultaram neste livro foram abrigados no laboratório de estudos e pesquisas sobre gênero, educação, sexualidades e diferenças (Legrar), na Universidade Regional do Cariri (Urca), espaço profícuo para as discussões e problematizações sobre o tema, congregando pesquisadores e estudantes.
Aproveitamos para agradecer aos interlocutores desse trabalho, nos vários encontros e debates que as autoras apresentaram, a Universidade Regional do Cariri (Urca), a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), as Deams, os Movimentos Sociais Organizados do Cariri, e às mulheres que se dispuseram a nos contar suas histórias, seus medos e suas dores.
Esperamos que este livro possa contribuir no complexo debate sobre violência de gênero e suas múltiplas faces, e que seja um lembrete de que existe uma luta latente, com um longo caminho ainda a ser percorrido.
Sumário
INTRODUÇÃO
1
PESQUISANDO VIOLÊNCIA DE GÊNERO: RELATOS DE UMA TRAJETÓRIA DE CAMPO
1.1 OS CAMINHOS DA PESQUISA
1.2 A ENTRADA NAS DELEGACIAS
1.3 ENTREVISTANDO MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
2
AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA
2.1 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO
3
AS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES: UMA RESPOSTA À IMPUNIDADE?
3.1 O SURGIMENTO DAS DELEGACIAS: CONTEXTO HISTÓRICO
3.2 REPERCUSSÃO E ATUAÇÃO DAS DEAMS
3.3 AÇÃO DAS DELEGACIAS APÓS A LEI MARIA DA PENHA
3.4 O COTIDIANO E AS AÇÕES DAS DEAMS DE CRATO E JUAZEIRO DO NORTE
3.5 A CONCILIAÇÃO
3.6 ENTRE PRINCÍPIOS E CONFLITOS: A AÇÃO DA MEDIAÇÃO
4
A VIOLÊNCIA DE GÊNERO: O FOCO NO CARIRI CEARENSE
4.1 A VIOLÊNCIA DENUNCIADA
4.2 QUEM SÃO ESSAS MULHERES E QUEM COMETE ESSES ATOS AGRESSIVOS?
4.3 O QUE AS MULHERES BUSCAM AO PROCURAR UMA DEAM?
5
VIDAS CONTADAS: TRAJETÓRIAS DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
6
MULHERES SILENCIADAS PELA VIOLÊNCIA? HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIAS E ENFRENTAMENTOS
6.1 A CONVIVÊNCIA COM A VIOLÊNCIA: PACIÊNCIA, RESISTÊNCIAS, SILÊNCIOS
6.2 DROGAS, CIÚMES E DESCONFIANÇAS
6.3 SOFRIMENTO, ADOECIMENTO, VERGONHA
6.4 CORPO E VIOLÊNCIA: OS LIMITES E AS MARCAS TOLERADAS
6.5 OS ENFRENTAMENTOS
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
SITES
INTRODUÇÃO
Nas últimas três décadas, na sociedade brasileira, presenciamos mudanças e conquistas de direitos das mulheres envolvendo as instâncias públicas e privadas. O acesso à educação permitiu à mulher, no contexto atual, atingir níveis de escolarização maior que os homens, condição para o exercício de funções fora de casa, com mais intensidade a cada dia. Podemos dizer que elas conquistaram o espaço público, sem dúvida, resultado da organização e da luta de mulheres em conselhos, frentes, organizações e movimentos distintos, e contextos também diversos. A condição social pública de mulheres em todo o país ganha novos contornos e novas possibilidades. Muitas demandas feministas passaram a incorporar a agenda política do país, ocupando o campo institucional.
No entanto os avanços parecem não se efetivar com a mesma força em todos os espaços sociais. No mundo doméstico persistem as assimetrias de gênero que informam, muitas vezes, de forma rígida, lugares e papéis sociais associando as mulheres à família, a manutenção da casa e cuidado com os filhos. A naturalização das diferenças de gênero fundadas em estereótipos e preconceitos e as relações de poder e hierarquias de gênero, nesse espaço social, servem como elementos que banalizam e justificam a violência contra as mulheres em suas várias tipologias, até sua forma mais radical, o feminicídio.
No campo das relações de gênero, cada vez mais estudos avançam com constructos teóricos decisivos para dessencialização dos corpos. Os escritos de Butler¹ são exemplos disso, com foco nos modos como a cultura regula as disposições afetivas por meio de um enquadramento seletivo e diferenciado da violência. Aqui, tencionamos a afirmação de Machado (2002) de que a tônica capaz de mobilizar as opiniões foi sempre a radicalização dos poderes masculinos, entendidos, nesse caso, como a decisão de vida e morte das mulheres, com as teorizações de Butler (2015), que, ao responder o que é uma vida, diz-nos que o ‘ser’ da vida é construído por meios seletivos e, como resultado dessa compreensão, não podemos fazer referência a esse ‘ser’ fora das operações e mecanismos de poder que produzem o que é a vida e quais vidas merecem ser vividas.
Desse modo, deparamo-nos com sujeitos que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há vidas que dificilmente serão reconhecidas como vidas. Esse processo produzirá o que Butler chama de vidas precárias
. Essas são as formas de manutenção da vida e dependem fundamentalmente das condições sociais e políticas, o que significa que a vida deve ser sustentada pelo que está fora de si. Assim, a vida de mulheres, por tanto tempo alijadas dos espaços de construção de poder, depende de como elas são e serão interpeladas no contexto da vida.
Para a autora, os sujeitos são constituídos mediante normas que, quando repetidas, produzem e deslocam os termos pelos quais os sujeitos são reconhecidos. Nessa economia dos sujeitos concretos, os corpos femininos configuram-se como uma prática discursiva contínua, aberta a intervenções e ressignificações (BUTLER, 2010), mesmo quando o gênero parece cristalizado em suas relações como nos contextos das Deams.
Os números produzidos por diversas instituições de pesquisa na última década nos mostram a relevância de se problematizar essas questões. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 30% das mulheres nas Américas já sofreram violência física e/ou sexual praticada pelo companheiro, enquanto 11% sofreram violência sexual praticada por um agressor que não era o parceiro.
O Mapa da violência 2015 - Homicídio de mulheres no Brasil (WAISELFISZ, 2015), um dos estudos mais recentes sobre a violência contra a mulher, coloca o Brasil na quinta posição entre 83 países, referente aos homicídios cometidos contra as mulheres. Esse quadro se intensifica ao focarmos nos dados apresentados no período de 2003 a 2013. O Nordeste teve crescimento da taxa de homicídios entre mulheres de 79,3%, ocupando o primeiro lugar entre as regiões brasileiras; em segundo lugar ficou a região norte, com um crescimento no mesmo período de 53,7%. O estado do Ceará estava, em 2013, na oitava posição no ranking nacional e a terceira posição na região Nordeste e, em 2015, fica em terceiro lugar, com aumento de ocorrências registradas de 96,1%.
Os números não têm sido favoráveis com o passar dos anos. De acordo com o Instituto Maria da Penha (2018), o assassinato de mulheres cresceu no Ceará de forma alarmante nos últimos dois anos. Em 2017, o período de janeiro-junho contabilizou 122 assassinatos contra mulheres. Em 2018, o mesmo período já marca 229 assassinatos de mulheres, o que nos dá um aumento de 91% em registros de mortes de mulheres. No Cariri, esse aumento também é registrado, sendo, em 2016, 25 assassinatos de mulheres; em 2017, o ano fechou com 28 mortes, e dessas, 12 foram registradas só em Juazeiro, cinco em Crato e três em Barbalha; os outros oito registros dividem-se entre as cidades de Missão Velha, Caririaçu, Mauriti, Jati, Brejo Santo e Farias Brito. Em 2018, só nos dois primeiros meses do ano, as delegacias do Cariri registraram quatro assassinatos de mulheres, em comparação a um assassinato no mesmo período do ano passado. Os números continuam a crescer, e no momento da escrita deste texto, o Cariri já somava sete assassinatos.
Esse quadro exige uma contínua problematização das questões de gênero, motivo pelo qual, ao longo de todo o texto, lançamos mão de compreensões de gênero, poder e violência, que nos permitem questionar as categorias universais de mulher e homem relacionadas a construções conjugadas que associam o poder e dominação ao masculino e obediência e submissão ao feminino. Corroboramos com os argumentos de Scott (1990), de que tanto homens quanto mulheres nem sempre cumprem com rigor as determinações da sociedade ou de suas categorias analíticas. O poder se articula de acordo com o campo de forças, e se mulheres e homens detêm partes de poder, embora de forma desigual, cada um se utiliza de estratégias de poder, dominação e submissão, e essas possibilidades estão sendo mediadas cotidianamente nos Equipamentos públicos que lidam com a problemática da violência de gênero. Atuar sobre as desigualdades de gênero, portanto, é tocar em questões que sustentam a violência de gênero.
As questões que tencionam a violência doméstica e familiar, especificamente a violência conjugal, têm sido alvo de nossos esforços acadêmicos nos últimos dez anos no Cariri cearense. Durante esse tempo, presenciamos a organização de um movimento de mulheres crescer e se fortalecer na região, acompanhando, denunciando, e publicizando casos de violência contra as mulheres e exigindo ações por parte dos poderes públicos.
Desde 1993, ano da criação do Conselho da mulher cratense, o movimento de mulheres na região já se fazia notar pelas suas ações e denúncias, no entanto, uma série de crimes violentos envolvendo mulheres,² no início da década de 2000, foi o estopim que impulsionou a luta de mulheres de forma mais contundente, em prol de aparelhos de combate e repressão à violência contra mulheres.
Quase duas décadas depois, os dados sobre a violência de gênero no Cariri continuam a impactar a população, informando que a luta e o movimento de mulheres não podem arrefecer.
Todos os anos, novos crimes, estupros e violências de todas as formas ganham destaque nos meios de comunicação e movimentos sociais organizados, e a população em geral ocupa as ruas em marchas, atos públicos e protestos.
Os crimes que mais causam indignação são os que o poder e domínio dos homens sobre as mulheres expressam-se em seus corpos sob a forma de mutilação e tortura, ou mesmo a própria eliminação dos corpos, especialmente quando envolve relações interpessoais.
O caso de Rayane Alves Machado ocupou os meios de comunicação e a militância feminista se utilizou da chamada Cadê Rayane?
como uma forma de pressionar a justiça para desvendar o caso. Uma jovem de 24 anos, moradora de um bairro periférico da cidade de Crato que, de acordo com as investigações, foi esfaqueada e morta pelo ex-namorado em março de 2016. Seu corpo foi ocultado e até o momento não foi encontrado.
No momento do fechamento deste texto, no dia 19/08/2018, mais uma mulher foi vítima de feminicídio, na cidade de Crato. Silvany Inácio de Sousa, 26 anos, pedagoga e professora do ensino fundamental, foi assassinada pelo companheiro, com três tiros, na principal praça pública da cidade, aos olhos de crianças e adultos, causando indignação e revolta. No dia seguinte de sua morte, um ato público no local do crime aglutinou mais de duas mil pessoas, com cartazes, flores e velas, que foram depositados no banco em que ocorreu o homicídio. Luto e luta se juntaram nas falas, nos protestos, nos cartazes, nos gestos. Todas as formas de violência contra a mulher foram repudiadas e os alertas foram deixados sobre as relações de dominação que maltratam, oprimem, silenciam e matam.
Se os casos de homicídios, tidos como cruéis ou impactantes chamam a atenção da população e causam repulsa, outras formas de violência que ocorrem nas relações de conjugabilidade, cotidianamente, parecem não causar a mesma indignação pública, seja pela falta de visibilidade ou pela própria naturalização da violência no âmbito privado.
No Brasil, o tema da violência conjugal adquiriu visibilidade, não pela vivência das mulheres e denúncia do controle masculino sobre seus corpos, mas por meio de casos extremos de poder dos homens sobre a vida das mulheres. Esse fato resultou numa percepção de violência conjugal em que o agressor é visto como doente, desviante passional e, portanto, como um evento excepcional na relação homem/mulher. Tal entendimento não toma como foco as relações desiguais de gênero como motor da violência entre parceiros (MORAES; SORJ, 2009).
O livro Queixas, denúncias e conciliações: um estudo sobre a violência de gênero apresenta os resultados de pesquisas desenvolvidas sobre violência de gênero no Cariri cearense a partir de 2009,³ abordando especificamente as características principais dessa forma de violência, o perfil de denunciantes e acusados, os tipos de queixas, o sofrimento e adoecimento vivenciado pelas mulheres, o contexto no qual a violência se expressa e as relações familiares. Analisamos o uso e a apropriação que mulheres em situação de violência fazem dos equipamentos públicos de combate à violência e compreender, a partir das suas falas, os fatores desencadeantes da violência de gênero. Analisamos também a ação das Deams de Crato e Juazeiro do Norte nas fases de atendimento, acolhimento, orientação e procedimentos.
O foco deste livro é a violência no âmbito das relações conjugais e as tensões envolvendo agressões e afetos. A intenção é compreender os motivos e os sentimentos que movem a ação