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Anais da Ilha Terceira/I/XXIII

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Logo que El-Rei D. Filipe se achou em posse pacífica do Reino de Portugal, desbaratado inteiramente o seu rival D. António, de quem se não sabia, por mais instâncias que se fizessem[1], cuidou primeiro da sua aclamação e do reconhecimento do Príncipe D. Diogo, seu filho; e concluído este acto com as cerimónias ordinárias do país, abriu a Junta dos Estados a 17 de Abril de 1581. Publicada a amnistia, viram os Portugueses, com grande mágoa, que, além de não ser geral, abrangia muitas cláusulas artificiosas. E não obstante o queixarem-se disto, recusou El-Rei abertamente mudá-las, dizendo que nunca perdoaria a D. António e ao conde de Vimioso, ao Bispo da Guarda, e a outros em número de 52 pessoas. A respeito das outras graças requeridas pelos nossos procuradores[2], mui poucas concedeu, negando umas abertamente, e respondendo a outras com duvidosas esperanças; do que não tanto a ele como a seus ministros se imputou a culpa.

Desfeita a Junta dos Estados, partiu El-Rei Filipe para Lisboa e chegando a Almada[3], soube da má disposição em que estava a ilha Terceira a seu respeito; porquanto, como fica dito, havia recusado aceitar Ambrósio de Aguiar Coutinho que lhe fora enviado por governador. Em consequência do que ordenou logo uma armada suficiente[4] com ordem de se assegurar da ilha de S. Miguel e para conservar seus moradores na obediência e escoltar as embarcações das Índias; e despachou esta armada sob o comando de D. Pedro de Valdez, sem que o autorizasse a intentar coisa alguma contra a ilha inimiga e suas anexas até lhe enviar maiores forças, como as circunstâncias o pedissem; outrossim lhe entregou cartas para o governo de Angra e instruções particulares em favor dos moradores da terra, para que em boa paz se reduzissem à sua obediência.

Com tal ordem a este fim somente limitada, partia D. Pedro de Valdez em volta pela ilha de Santa Maria; e já entrada a primavera, saiu do porto dela com sete naus grandes e mil soldados nelas[5], afora muita fidalguia que se embarcou e muita mais gente de mar; e chegando à ilha de S. Miguel, onde governava Ambrósio de Aguiar Coutinho, por sua ordem trouxe consigo um seu primo, chamado D. João Valdez, mestre-de-campo e grande cavaleiro; e com esta armada veio sobre a Terceira.

Ao amanhecer do dia 5 de Julho apareceu esta armada à vista de Angra, da parte de leste, contando-se nela oito galeões, um pataxo e uma caravela alfamista, que vinha por mexeriqueira. Mui diversos foram os efeitos de temor e alegria, que isto causou aos seguidores dos dois bandos em que se achava dividida a Terceira; porquanto, o partido que seguia a voz de El-Rei D. António esperava que fosse o socorro de França e Inglaterra, há muito prometido; e o que seguia a parte de El-Rei Filipe, esperava e queria fosse já a esquadra para sujeitar a ilha ao seu domínio. E ainda que os primeiros tivessem razão de presumir que fosse armada inimiga, lhes parecia tão pequena que lhes não dava maior cuidado; além de esperarem o triunfo, confiados na justiça da sua causa[6].

Em breve houve o desengano destes diversos pareceres. A armada sem lançar ferro, atravessou defronte do porto, e começou a disparar artilharia contra a cidade, e todo aquele dia velejou em frente a ela; e porque não havia ainda a fortaleza de Santo António, saíram os batéis em popa das naus, de noite, com soldados para de madrugada, ao abrigo da montanha do Brasil apreenderem algum barco de pesca, que os informasse do estado da ilha: e assim o conseguiram à terceira noite, tomando um e falando com a gente dele a bordo da nau capitânia, de onde Valdez mandou dizer ao governador Ciprião do Figueiredo, e aos mais da governança da terra, que se entregassem à obediência de El-Rei Filipe que este estava pronto a perdoar-lhes o crime de rebelião, e que ainda lhes faria outras mercês de grande conveniência para todos eles; e que se o não fizessem assim como deviam, ele general lançaria em terra mil soldados e à força de armas tomaria a ilha, sem dar quartel a ninguém.

Tão reiteradas promessas e ameaças do Castelhano pareciam fraqueza e pusilanimidade e como tais não sortiram outro efeito mais do que o escárnio. Os terceirenses, além de um pequeno número, não queriam género algum de conciliação que expressamente lhes não fosse determinado por El-Rei D. António, a quem mui cordialmente abraçavam e tinham jurado obedecer até por ele derramarem a última gota de sangue. Com esta heróica resolução conheceu Valdez que a ilha se não rendia, tratando por ora somente de participar a El-Rei seu amo estas coisas, e no entretanto pairava sobre a vela nestas águas, esperando disposições ulteriores.

Apenas El-Rei Filipe soube o estado da ilha Terceira e suas dependentes, e que, excepto as de S. Miguel e Santa Maria, todas as demais constantemente rejeitaram aceitar o governador que lhes mandara, sem perder tempo alguma fez preparar e guarnecer algumas embarcações de todo o necessário para conquistar essas ilhas, e incumbiu o comando desta armada no mestre-de-campo D. Lopo de Figueiroa, a quem imediatamente fez partir para que, incorporando-se com o sobredito D. Pedro Valdez, as batessem e conquistassem.

Porém quando este soube que D. Lopo de Figueiroa andava no mar, e vinha ajuntar-se com ele, e que estava de mais a mais nomeado primeiro comandante, cheio daquele ciúme que parece inato entre os homens desta profissão, persuadindo-o de uma parte o mencionado seu primo D. João de Valdez a não perder ocasião de se assinalar com tão provável vitória, e da outra parte aguilhoado pelo estímulo da ambição, que mal sofria partilha da glória que ele estava persuadido poder ganhar desta vez sem favor aliado; por estas razões todas, mudou de intento e resolveu fazer desembarque em um posto onde algumas vezes, de noite e de dia, saíam a terra os seus soldados e tomavam algumas frutas e falavam com os portugueses, sem que estes os impedissem, nem fizessem caso deles as guardas que ali estavam por instância (como se entendia) dos que seguiam a voz à El-Rei Filipe que andavam retirados às montanhas.

Assim pensou Valdez terminar este importantíssimo negócio: lançar em terra gente que se ajuntasse com eles, e acometer a cidade, tomando-a, e fortificando-se na ilha até que chegasse D. Lopo de Figueiroa, que não podia tardar muito; e neste árduo projecto se empenhou o general Valdez, dando ordens e preparando-se para o dia seguinte.

Em todas as pontas que descobriam ao mar, assim de dia como de noite, nos portos, calhetas, praias ou pedras em que parecia que o inimigo podia desembarcar, se haviam posto vigias na forma do regimente da milícia[7], e feito trincheiras, assestando-se em alguns lugares, ainda que poucos, algumas peças de artilharia de ferro; e por isso no dia 24 de Julho pela manhã; mandou o governador Ciprião do Figueiredo sair da cidade o licenciado Domingos Onsel (havia então o inimigo feito alguns movimentos, pelos quais se entendeu queria lançar gente em terra), com 20 soldados arcabuzeiros, e com 10 piqueiros a fim de que, incorporando-se com a gente da freguesia de Santo António do Porto Judeu[8], defendessem o porto daquela freguesia e a costa da Casa da Salga[9], que era o lugar frequentado pelos castelhanos em os dias antecedentes. Com esta força julgava o governador e seus capitães, bem guarnecido este ponto.

Tal era o desprezo com que os terceirenses esperavam o desembarque do inimigo, que este pequeno destacamento lhes parecia uma força mui superior, e capaz da competir com toda a gente daquela armada; mas o tempo lhes mostrou a inexactidão e imprudência deste seu parecer.

Marchou com efeito o licenciado Onsel da cidade de Angra com a sua gente bem armada e guarnecida das munições e dos víveres necessários[10]; porém, chegando ao Porto Judeu, achou tal disposição no ânimo da gente e natural defesa da costa, que, sem embargo de estar quase toda descoberta, julgou poder, e sem receio, dispensar os dez piqueiros, os quais, sem a menor hesitação, remeteu para a cidade; procedimento que lhe foi estranhado pelo governador, que, não querendo confiar negócio de tanta importância neste capitão que ostentava tamanha valentia antes de ver o inimigo em campo, imediatamente lhe mandou um reforço de alguns homens de pé e de cavalo, entre os quais se contaram os nobres Martim Simão de Faria, António de Ornelas Gusmão, Manuel Pires Teixeira, Manuel Gonçalves Salvago, ou Salgado, Pantaleão Toledo, o licenciado Domingos Fernandes, e André Fernandes de Seia, os quais todos, em conselho com Domingos Onsel, deliberaram que cada um deles iria naquela noite de guarda para o ponto que lhe era assinado, com quatro soldados arcabuzeiros, entrando além destes a gente da freguesia. Desta forma se repartiram pelas estâncias, desde o Forte do Porto até à extremidade onde estava o poço, na baía da Salga; mui pouca gente na verdade para guarnecer espaço tão grande, que não seria menos de um quarto de légua.

Chegando finalmente a madrugada do dia de São Tiago, que segundo o antigo calendário era a 25 de Julho, achando-se o mar pacífico e o vento favorável, mandou o general D. Pedro de Valdez embarcar nas lanchas e no batel do Faial, que tomara com o director[11] desta expedição, a primeira coluna do seu exército, constante de 200 homens bem armados, e com algumas peças de artilharia, e os fez conduzir ao lugar já conhecido, chamado Casa da Salga, abaixo da vila de S. Sebastião uma milha, distante da cidade de Angra légua e meia, e outro tanto da vila da Praia; em cujo lugar existia uma larga e profunda baía, em que podia comodamente fundear a armada, e uma costa fácil para desembarcar a sua gente, e se estender no vasto e plano campo que lhe está adjacente, desde o Pico de Garcia Ramos, até ao centro da baía, onde começa a subir a estrada para a dita vila de S. Sebastião.

Ainda não era dia claro, quando a vigia que estava na Ponta dos Coelhos, que é a mais amarada[12], deu sinal do inimigo estar próximo e recebendo as surriadas de artilharia que ele ousadamente lhe enviou; e fazendo o sinal acordado, começou o rebate no sino da igreja paroquial de Santo António[13], na qual era vigário Pedro Pereira.

Logo aqueles a quem pertencia o posto da Salga, para onde o inimigo remava, se prepararam à defesa; porém, vendo aproximar tão grande força, apenas descarregaram as armas, abandonaram tudo e se puseram em retirada, até encontrarem o capitão Domingos Onsel, que já avançava com a maior rapidez para disputar o passo ao inimigo. Porém já foi tarde; porque os Castelhanos, não achando resistência, tinham desembarcado muito a seu salvo, e entrado por terra dentro, levando à sua frente o bravo mestre-de-campo D. João de Valdez, e os esforçados cabos do guerra D. João de Bazán, sobrinho do marquês de Santa Cruz, e o sobrinho do conde de Alba, e bem assim outros capitães de grande experiência; e o havendo tomado as trincheiras, e ganhado a artilharia que nelas estava, com a mesma se defendiam e carregavam os nossos. E enquanto a vanguarda dos castelhanos avançava, e se estendia no campo plano, a retaguarda protegia o desembarque da gente que voltava de bordo da armada sem perigo, pela distância em que se achavam os nossos, entretidos na escaramuça, e seriam 50 soldados portugueses[14].

Continuando desta forma a batalha chegou a gente da vila de S. Sebastião, capitaneada por Baltasar Afonso Leonardes: neste tempo vinham os batéis das naus, e as barcas carregadas com outros 200 soldados, armas de fogo e feixes de dardos; de forma que sendo já dia claro podiam estar em terra 400 homens, gente muito ilustre, e soldados velhos, que de certo eram para temer; e sua ordem e esforço era de grandes soldados[15]. De toda aquela grande planície, que se diz o Vale[16], estava senhor o castelhano, e os portugueses lhe ficavam iminentes sobre as colinas que estão da parte de nascente, aonde se achava, e ainda existe, a quinta[17], ou casa, de Bartolomeu Lourenço, lavrador abastado, que nela vivia com sua mulher Brianda Pereira, moça nobre e assaz formosa, da qual tinha filhos. Parece que a sua beleza fora nos dias antecedentes objecto da curiosidade dos castelhanos, porque foi o primeiro despojo que eles quiseram saquear de sua casa. Felizmente pode esta nova Lucrécia escapar-se às mãos dos soberbos Tarquínios que a pretendiam, e já levavam prisioneiro ao marido, a quem haviam ferido gravemente[18], e a um filho; e achando-se já senhores da casa, e de tudo que nele havia, saqueavam, destruíam e convulsavam à sua vontade todos os móveis, chegando finalmente ao excesso de largarem fogo aos frescais de trigo que estavam na eira.

No interim, os soldados da armada, senhores do mar, com os barcos e batéis, desembarcaram em terra o resto do exército, composto de 1 000 soldados de peleja, entrincheirando-se com o mesmo general D. Pedro de Valdez; e se puseram em tal ordem e conceito, que pareciam quatro mil homens.

Brianda Pereira, com ânimo verdadeiramente varonil, que muito realçava a sua formosura, persuadia os portugueses para que vigorosamente pelejassem e se defendessem; empregando além disto todos os argumentos que a qualidade de esposa e de mãe lhe subministravam. E assim atraía ao seu partido outras mulheres, que, promiscuamente com os homens, disputavam com mão armada o passo ao inimigo comum[19], resolutas a lhe vender bem caras suas honras e vidas; o que fariam certamente por mais tempo, a não serem retiradas e recolhidas na ermida de S. João, que distava um pouco acima do lugar onde se deu o combate, e já dentro na vila de S. Sebastião. Não foi esta a única vez que na ilha Terceira se viu este exemplo de valor e de coragem, muito acima do que se podia esperar do sexo feminino.

Seriam nove horas do dia quando da cidade e da vila da Praia chegaram as companhias de ordenanças, cujos capitães eram em Angra (capitães velhos) Sebastião do Canto, Pedro Cota da Malha, o Moço, Bernardo de Távora, Gaspar Cavio de Barros, Francisco Dias Santiago; na Praia Gaspar Camelo do Rego, e Simão de Andrade Machado; na vila de São Sebastião eram Baltasar Afonso (com atribuições de capitão-mor nesta jurisdição), e André Gato, o Velho, capitão da companhia do Porto Judeu[20], e com os franceses da nau de António Eschalim, e gente das Ilhas de Baixo, que já estava na ilha, seriam ao todo seis mil homens de peleja.

Nesta mesma ocasião chegou o capitão Artur de Azevedo de Andrade com uma peça de artilharia, e marchando ao longo do mar, intentava com ela desbaratar o campo do inimigo; e sem dúvida lhe faria muito dano se os castelhanos, arremetendo contra ele lha não tirassem das mãos, como tiraram, pondo-o em vergonhosa fuga. Então arrastando-a para o seu campo começaram alegremente a cantar a vitória, com a qual já contavam, não só pela disciplina com que se conservavam e combatiam, senão ainda pela vantajosa posição e melhor fortificação das trincheiras, tendo segura a retaguarda pelo favor das caravelas da armada, que com artilharia grossa, e bordejando na baía de uma e outra parte, varriam as colunas e campos adjacentes.

Era meio-dia, e ao campo dos castelhanos não se havia passado português algum, como eles esperavam, ou porque estivessem presos os principais cabeças ou retirados nas montanhas, ou porque vissem a perda inevitável de Valdez e a sua temerária ousadia. Então, vendo ele quão pouco devia esperar do seu partido em terra, o ardor com que os portugueses e toda a gente pelejava, e a mortandade que já havia nos seus, achou acertado retirar-se a bordo da sua nau, como efectivamente fez. Dizem que chegando ali lhe dissera o piloto Henrique de Amores, natural desta ilha: — Fez vossa mercê bem em se recolher, porque toda a gente que lá está, corre muito risco tornar-se a embarcar. E o general lhe deu a entender como estava arrependido de ter feito o desembarque, sem a ele ser obrigado; porém era muito tarde para lhe valer o arrependimento.

Continuando a peleja de parte a parte com o maior calor, conta-se por mui rara a animosidade e valentia de Gonçalo Anes Machado, ancião de mais de 60 anos, que vendo lhe matavam um filho, a natureza de pai não lhe dava menos direito do que dera à heroína Brianda Pereira, investiu com uma lança nas mãos por meio de um esquadrão de mais de 50 castelhanos, e nele fez uma carniçaria espantosa até cair de costas; e nesta posição foi visto pelejando por algum tempo que viveu. Este valoroso combatente era morador na vila de S. Sebastião, e da linhagem de Gaspar Gonçalves Machado, da Ribeira Seca, de quem temos falado, o mais valente cavaleiro de África, conforme diz o Padre Cordeiro na História Insulana.

Não menos valor e sangue frio mostrou outro velho, por nome António Gonçalves, o qual, depois de empregar muitas balas no inimigo, achando-se entrincheirado, o provocava um castelhano com palavras desonestas, dizendo-lhe que naquele dia lhe faria mau uso de sua mulher[21]: cuidou então o bom velho de vingar a afronta ao maior preço, e disse aos que estavam junto dele: — Tende-me tento naquele castelhano. E apenas ele descobriu a cabeça, vindo também ao mesmo tempo com o arcabuz ao rosto para lho disparar, o nosso velho desfechou com ele e o lançou de costas, dizendo em alta voz: — António Gonçalves depois de velho cavalheiro, e minha mulher velha, me queríeis enxovalhar?! Não cumprireis já o vosso danado intento!

É bem notório quanto os nossos antigos se pejavam de semelhantes expressões, chegando a armar-se, e a empreender os duelos mais arriscados, para tomarem vingança daqueles que por tais meios os insultavam; e os castelhanos neste dia não souberam desprezar tão ridícula maneira de atacar os combatentes portugueses, dando-lhe que sentir nestas palavras.

Sendo já depois de meio-dia, estavam mortos dezassete portugueses[22], e sem embargo de que a gente da ilha era muito superior em número aos castelhanos[23], estes, pela do boa ordem e valor com que pelejavam, punham em muita dúvida o resultado da acção.

Neste conflito se achava Frei Pedro[24], religioso de Santo Agostinho de Angra (também os frades nesta ilha, como em outras partes, se intrometiam nas coisas da guerra), correndo e batalhando a cavalo com uma espada na mão; este pois vendo o risco em que se achavam os portugueses, aconselhou ao governador Ciprião do Figueiredo, que lançasse grande quantidade de gado vaccum, e o espantassem sobre o inimigo com aguilhão e fogo dos arcabuzes, porque facilmente o desordenariam, e serviria de reparo aos portugueses, que atrás dele acabariam o conflito, desbaratando totalmente o exército dos castelhanos.

Como a ilha foi sempre muito abundante de gado desta espécie, em breve tempo trouxeram os portugueses tanto ou mais do que era o número dos inimigos, e chegado que foi, o puseram em ordem, espalhado de forma que tomasse a largura e tamanho do campo dos castelhanos. Então um dos seus capitães, vendo o estratagema de que se usava contra eles, já descorçoado, disse: — Vien con ganado, gañados somos!

E assim foi, porque os castelhanos se achavam cansados da escaramuça, sem pólvora nem bala e neste tempo pensaram em se embarcar; porém tarde, porque, carregando os portugueses com muito ímpeto atrás do gado, os investiram de tal sorte e com tal fúria, por verem a mortandade e hostilidades que lhe fizeram, talando e queimando os seus campos, que em breve tempo os derrotaram; e quando chegaram os que iam na retaguarda, já não acharam encontro algum, nem a quem matassem, sem que aproveitasse aos castelhanos a retirada para a borda de água, porque ali mesmo desumanamente os matavam; nem ainda aos que se rendiam vivos perdoavam; antes a D. Juan de Bazán, sobrinho do marquês de Santa Cruz (veja-se Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 26) e a outro sobrinho do duque de Alba, tiraram as vidas a sangue frio, e o mesmo fizeram ao mestre-de-campo Valdez, e a muita fidalguia de Castela, que ali se achou[25].

Muitos se lançaram ao mar, e como estavam armados, facilmente iam ao fundo; outros, querendo largar as armas, não o podiam fazer tão depressa que os não matassem, sem que os barcos e batéis se pudessem aproximar, pelo muito fogo que de terra se lhes fazia.

No entretanto o general Valdez a bordo da armada, amainando as velas, e pondo as bandeiras e estandartes à colha, manifestava o maior sentimento e tristeza que se podia imaginar; e em tanto desalento o colocara a má fortuna, que, suposto os portugueses andassem ao longo do mar engolfados nos despojos, nem por isso ele se atrevia a disparar contra eles alguma artilharia, como fizera durante o combate, porquanto o vento se lhe fez contrário, e engrossou sobremaneira o mar, servindo de sepultura aos muitos que dele se confiaram.

O que não obstante, mandou o general Ciprião de Figueiredo publicar com pena de morte, que todos se retirassem a cima, e deixassem os despojos inimigos. Escapariam a nado pouco mais de 50 soldados, e o mar desde a costa até a bordo da armada estava tinto de sangue, oferecendo uma horrorosa perspectiva a toda a gente nobre e de entendimento — citada Relação, no capítulo 20 — que se puderam dar vida a todos depois de vencidos o fizeram; mas não podiam com a muita gente do povo.

Morreram de terra somente 17 homens; houve muitos feridos e queimados. Alguns elevam o número dos mortos a pouco menos de 30, António de Herrera é desta opinião; e suposto dizer que dos castelhanos morreram 400 somente, este número não é exacto, pelo que temas visto em diferentes relações, que, dando o desembarque de mil homens para cima, dizem que só destes escapariam a nado 50, ou pouco mais.

Por meio desta vitória, não só os portugueses recobraram a artilharia que os castelhanos lhes tinham tomado ao entrar da ilha, mas também a que trouxeram, riquíssimas armas com que vinham, bandeiras e caixas, e em fim tudo o que tinham roubado na terra. No dia 26 de Julho, em que a igreja celebrava a festa da gloriosa Santa Ana, fizeram-se na cidade muitas festas, e procissão em acção de graças, pela vitória alcançada com perda de tão pouca gente. E segundo o mesmo Herrera, se nesta parte merece crédito, por ser o único onde achámos esta notícia, voltaram ao campo da batalha todos os moradores, homens e mulheres e meninos, e todas as ordens religiosas, excepto os Jesuítas, para verem os mortos, em torno dos quais dançaram no som de instrumentos, depois de se terem dado aos últimos excessos, que lhes inspirava o contentamento de se verem vitoriosos. Nesta ocasião se diz que um Matias Dias, de alcunha o Pilatos, que não devia ter nome em uma obra destinada a honrar os terceirenses, sacara o coração do corpo de um espanhol e o comera às dentadas[26]. Verdade ou mentira, o certo é que El-Rei D. Filipe não esqueceu[27], o que ao cruel agressor, que disto se gabara, custou depois a própria vida.

Finalmente o governador Figueiredo, depois de sepultados em uma grande vala os corpos[28] que fez conduzir em carros, entrou na vila de S. Sebastião triunfante[29], arrastando as bandeiras do inimigo, e pouco depois passou à cidade de Angra, onde era esperado com muitas demonstrações de alegria.

Triste experiência foi este do general D. Pedro de Valdez, que teve a grande mortificação de ver tamanho destroço, e que lhe não escapasse um só homem de mil que desembarcara[30]. Mas não devemos louvar os grandes excessos a que os terceirenses se abandonaram nesta ocasião, e que poriam uma mancha eterna na glória deste dia, se não fossem perpetrados por gentes do comum, e sem o conhecimento, e menos a condescendência, dos chefes, e dos homens honrados que se acharam na acção.

Notas

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  1. António de Herrera, no Livro 11.º, capítulo 5.º, diz: No se sabia de D. António, aunque se habia puesto talla, y por muchas diligencias que los Castellanos hazian, porque disfarçado con habito vil passava algunas veses por medio de los que lo buscavan.
  2. O citado Herrera relata o conteúdo do memorial apresentado a El-Rei Católico pelos nossos procuradores, sem obterem resultado favorável a respeito das coisas principais que nele se pediam; diz assim: las quales se respondio en la margen con dudosa esperanza. E os demais pedidos se indeferiu: de las quales cosas no se concedio ninguna, y muchos no culpavan al Rey, ni a la injusticia de lo que pedian, sino a los privados que governavan.
  3. Entrou El-Rei em Lisboa em dia de S. Pedro, e foi recebido sumptuosamente. O doutor Heitor de Pina, em nome da cidade lhe dirigiu uma eloquente fala, concluindo nela, que aquela cidade havia sido a primeira a derramar sangue em seu serviço; aludindo à morte do respeitável ancião Fernão de Pina Marecos, de quem fizemos menção no ano de 1570, na qualidade de corregedor desta comarca.
  4. O citado Herrera diz: con una rasonable armada; e Mr. de La Clède afirma serem quatro embarcações. O Padre Cordeiro, alegando o Dr. Frutuoso, diz que D. Pedro de Valdez saiu do porto de Santa Maria com sete naus grandes. Provavelmente seria toda a armada que trouxe de Portugal; e as mais embarcações viriam da ilha de S. Miguel, porque o Padre Maldonado diz que no dia 15 de Julho apareceram defronte da ilha dez embarcações, a saber oito galeões, um pataxo e uma caravela.
  5. Veja-se a História Insulana, Livro 6.º, capítulo 26.
  6. Na verdade os terceirenses mostraram nesta questão serem melhores patriotas do que juristas; viram no Prior do Crato um português, e em D. Filipe um espanhol.
  7. Deste regimento já tratámos no ano de 1561, onde se pode ver no Documento NN.
  8. A freguesia de Santo António do Porto Judeu está situada ao sul, na beira-mar pela maior parte; estende-se desde o marco da Feteira até à Canada das Ladeiras, em linha recta ao pico de Garcia Ramos, hoje chamado de Pedro Vieira; e desde aqui para o nascente começa o campo da Salga, já pertença da paróquia de S. Sebastião. Consta hoje aquela freguesia de 325 fogos, com 1400 habitantes pouco mais ou menos. No ano de 1716, em que escrevia o Padre Cordeiro, havia somente nela 114 fogos; e no ano de 1646 achámos em um Livro de Finta, que está na Câmara de S. Sebastião, o haverem ali somente 50 fogos; e do alvará por onde se regularam as côngruas dos párocos no ano de 1568, consta assinarem 20$000 réis somente ao desta freguesia por ter menos de 100 vizinhos; e provavelmente no ano de 1580 não teria mais de 90: sendo certo que nem todos estes seriam capazes de pegar em armas, teria alistados, quando muito, 60 homens, dos quais era capitão André Gato, o Velho.
  9. Em vários papéis da capela de André Gomes, e no arquivo da Câmara de S. Sebastião, acho que muito antes da data de 1580, em que foi o combate neste lugar, já se denominava assim e não se lhe deu este apelido pelos muitos corpos de castelhanos que ali se sepultaram, ou salgaram, como erradamente escreveram alguns, e anda na boca do vulgo.
  10. Mandou vir biscoito e uma rês — diz a relação citada — e uma pipa de vinho, para comerem e beberem.
  11. A história negou o nome a este homem da ilha do Faial, que fez fácil a entrada da ilha e por onde o exército havia de saltar (veja-se o Padre António Cordeiro, a página 361).
  12. Esta ponta é a primeira que se encontra para a parte de leste, depois do Forte de Santo António, e nela estava uma peça de ferro. Pouco depois se fez ali um forte; mas hoje só mostra pequenos vestígios do que foi. Chamou-se Ponta dos Coelhos, por estar na propriedade dos filhos de João Coelho, um dos companheiros do capitão Bruges, que ali habitaram, como temos dito.
  13. O sino da igreja de Santo António devia ser um dos destinados para este fim, porque com os sinos se dava sinal e rebate, na forma do citado regimento das vigias, datado de 19 de Março de 1566, artigo 12 (Documento NN). Era então vigário nesta igreja, o segundo que achamos ali houve, Pedro Pereira, o qual substituiu a Pantaleão Estaço.
  14. Diz a citado relação que sigo: E estes (os Castelhanos) se entrincheiraram logo o melhor que puderam e outros às arcabuzadas com os da terra, que poderiam ser 50 soldados.
  15. Citada Relação, capítulo 18.
  16. Na endireitura da baía da Salga, até ao caminho que vai para a vila, haverá meia légua de campo plano; o mais até à povoação poderá ser um quarto de légua, quando muito.
  17. Esta propriedade pertencia à capela de André Gomes e Maria de Morais, de que era administrador Luiz Valadão, casado com D. Beatriz de Távora, filho de Francisco Gonçalves de Távora, o primeiro deste apelido, e que veio da ilha da Madeira com seu irmão Bernardo de Távora, de quem temos falado. Alguns anos depois um devoto desta família, que se diz ser Mateus de Távora, edificou ali a ermida do Senhor Bom Jesus, em cumprimento do voto feito no dia deste combate. É hoje actual administrador desta capela Luiz Merens de Távora.
  18. Faleceu muitos anos depois, com testamento.
  19. Lê-se na citada Relação: — Havia mulheres com armas nas mãos que se não tiravam de longo de seus maridos a pelejar, e outras que não tinham maridos....
  20. Já dissemos no Capítulo II que o capitão-mor Ciprião do Figueiredo fizera capitães da gente de pé da cidade a Artur de Azevedo de Andrade, João Lopes Fagundes, Manuel de Barcelos Machado, e Cristóvão Borges da Costa; e capitão dos aventureiros a Gaspar Cavio de Barros; e da companhia dos 80 jurados a Francisco Dias Santiago, dos quais a maior parte serviam no ano de 1571, como se manifesta da provisão (Documento N*). Também pelo Documento C* achámos que no ano de 1566 se fizeram na Praia três esquadrões da gente de pé, aos quais se nomearam oficiais, e lhes foram dados por capitães Simão de Andrade, João de Escobar, e Jorge Furtado. Vemos pelo auto de juramento, feito na Câmara da mesma vila em 17 de Agosto de 1580, de que fizemos menção, serem naquela data capitães dela Gaspar Camelo do Rego e Simão de Andrade Machado; mas não achámos em parte alguma que fossem antigos e valentes capitães dos Praienses no combate da Salga, os seguintes: — Sebastião do Canto, Bernardo de Távora, Pedro Cota da Malha, Francisco Dias — que todos se acham relacionados na Memória Histórica do Terramoto de 15 de Junho de 1841, que assolou a dita vila, feita por Félix José da Costa Júnior, a página 6, nota 2. O mesmo seguiu o Padre Jerónimo Emiliano de Andrade, na segunda parte da sua Topografia, a página 120; e não é possível descobrirmos em que autoridade se fundam ambos estes escritores para assim o publicarem. Certamente que ambos foram mal informados. Nenhum dos referidos serviu de capitão da gente da Praia, antes sempre viveram em Angra, onde suposto ocupassem os cargos da governança, serviram os da milícia. Assim fica manifesto o equívoco, pois que os ditos chamados capitães da Praia, só tiveram parte na batalha da Salga, como capitães de Angra.
  21. Velho, — são as palavras — hoje vos hei-de fazer cabrão. O autor da citada Relação refere no capítulo 19, que os castelhanos provocavam os portugueses à vingança com estas palavras: — Carajo Portugueses dejarbos andar, que hoy habeis ser muchos cabrones!
  22. No número dos mortos contamos Sebastião Coelho, bravo oficial da companhia dos Altares, o referido Gonçalo Anes, e André Gonçalves Machado, escrivão dos órfãos na vila de S. Sebastião. E como não existem os livros dos óbitos nas paróquias desta vila e do Porto Judeu, todos os mais se ignoram.
  23. Habia juntado eI Gobernador mas de dos mil hombres (Herrera, Livro 10, capítulo 19.
  24. Veja-se o que dissemos deste religioso no ano de 1579.
  25. Se acreditarmos o que desta carniçaria conta o citado Herrera, cometeram-se ali as maiores barbaridades: — ... pues en los cuerpos medio vivos — diz ele — dentro del agua executaván su yra, muriran quatrocientos Castellanos, e menos de treynta Portuguezes,....
  26. Outros dizem, que ele se gabara de ter comido assados os fígados do castelhano.
  27. Não esqueceu, porque no alvará de perdão, que adiante copiaremos, fez excepção deste delinquente.
  28. Foi tão grande a mortandade (diz Maldonado) que, por não convir ficarem por enterrar, mandaram apenar todos os carros da jurisdição da Praia, e nos fundões onde se achava abertura para fazerem poços, foram os corpos sepultados em confusão, por se não distinguirem uns dos outros. Não podemos ajuizar, nem há quem hoje conserve a tradição do local deste cofre de mortes.
  29. Desde este dia fazem-se nesta vila até hoje festas públicas, em memória da referida batalha. Veja-se o que dissemos na Primeira Época, capítulo V.
  30. Diz a citada Relação que escaparam vivos dois soldados, que depois se acharam escondidos, e um moço que se meteu entre os da terra falando com eles português.