Chapter Text
LXIX
SPACE INVADERS SCORE
SOB — 195,448
DFL — 153,560
RSB — 130,934
JFP — 127,563
BVC — 120,974
Aquele sábado do início de agosto de 1993 estava bastante agitado no fliperama do shopping. Não só os pais aproveitavam para deixar seus filhos se divertirem nas máquinas, mas também havia rumores de que o infame RSB estava pronto para ultrapassar o recorde do DFL do Space Invaders.
Aquele arcade era um clássico, estava na loja há mais de dezoito anos e guardava os escores de todo esse tempo. Ninguém conseguiu bater o primeiro da lista, um tal de SOB que jogou por anos a fio entre 79 e 81, sumindo logo em seguida. Porém, todos conheciam DFL — ou Danny, para os chegados, que estava no meio dos vinte anos e que era bem famosinho por ter uma banda.
A cada vez que o sino da loja ressoava, todos olhavam para a entrada, esperando que fosse RSB. Até mesmo Joe, o atendente que vendia as fichinhas, estava nervoso. Ele não se lembrava muito bem quem exatamente era RSB, até porque muita gente passava por ali, então esperou uma comoção geral para identificar ele… ou ela.
Não demorou para que ele chegasse. O sininho tocou pela milésima vez e um garoto carregando um skate em uma mão e um walkman na outra fez todas as risadas e conversas do fliperama desaparecer, deixando o ambiente ser preenchido pelos sons eletrônicos das máquinas. Ele estava acompanhado de uma garota, cujo pescoço tinha tantas correntes prateadas que os olhos de Joe doeram.
RSB apoiou o skate no ombro e encaixou o walkman no cós da calça jeans preta ao se aproximar do balcão. Ele possuía cabelos negros e impecavelmente rebeldes, a franja estava jogada para cima e era marcada com o arco do fone. Seus olhos eram de um cinza profundo salpicado de azul, o nariz pontilhado por sardas. A barba fina e rala que nascia em seu queixo denunciava que ele era menor de idade.
Ainda assim, RSB era mais alto do que Joe e era um pouco intimidador ser perscrutado por aquele garoto esguio, cujas feições estavam naturalmente cobertas de arrogância. Desceu o headfone para o pescoço.
— Uma ficha pro Space Invaders. — Ele murmurou, suspirando como se estivesse entediado.
— Só uma ficha? — A garota franziu a testa, apoiando-se no balcão.
— Só uma ficha. — Ele confirmou, os lábios desenhando um sorriso petulante.
— Estamos vendendo no mínimo três fichas hoje… — Joe disse, as moedas do caixa tilintando quando abriu a gaveta.
— Três fichas, então. — RSB contorceu a boca em desgosto, enfiando a mão no bolso da calça. Joe notou que ele usava luvas de couro sem dedos.
— Vão ser sessenta pences. — Joe observou RSB tirar as moedas do bolso e contá-las lentamente.
— Não é mais fácil você dar uma libra e ele te devolve quarenta pences? — A garota balançava a perna, impaciente. Ela possuía um sotaque forte e provavelmente era estrangeira.
— Para quê, se eu tenho trocado?! — Ele estendeu o pagamento para Joe. — Quer ficar com as duas outras fichas?
— Se prepara para perder no Street Fighter! — A garota pegou as fichas e enfiou-as no bolso do short.
— Não pretendo jogar nada além de Space Invaders hoje, Lua. — Ele revirou os olhos.
Quando RSB se virou e começou a caminhada confiante para a Space Invaders, os sons dos jogos se findaram, todos os olhares voltados nele. Era como se ele fosse uma celebridade no meio do grupo de jovens e até mesmo alguns dos garotos mais velhos demonstraram respeito.
Lua deu um risinho esnobe, passando os dedos em suas correntes do pescoço ao apoiar-se no pinball do Star Wars em paralelo ao Space Invaders, afastando os garotos que jogavam ali.
RSB parou na frente da máquina e jogou sua ficha para cima, pegando-a no ar em um gesto determinado. Algumas meninas suspiraram. Ele deixou o skate no chão e tocou na ranhura com o indicador antes de inserir a ficha. O som do jogo começou e, instantaneamente, uma multidão se formou atrás dele. Era como se o resto do fliperama não importasse, todos os olhares fixos na tela à sua frente.
À medida que os alienígenas desciam, ele manobrava com uma habilidade quase instintiva, um tique o fazia esticar a boca toda vez que ele atirava, antecipando o movimento dos invasores e derrotando-os coluna por coluna, numa precisão e estratégia calculadas.
A pontuação não parava de subir e a excitação da plateia aumentava a cada nível que ele completava. Vez ou outra alguém gritava incentivos e sussurros excitados ondulavam entre a aglomeração toda vez que RSB usava de técnicas controversas e meticulosas.
— Quer água? — Lua perguntou, de braços cruzados.
RSB, cujos olhos sequer desviaram para ela, apenas negou com um leve aceno de cabeça. Os alienígenas jogavam uma luz branca no cinza de seus olhos, transformando-os em platina.
A primeira hora passou rápido. Ninguém percebeu que mais uma pessoa entrou no fliperama, uma jovem de cabelos platinados e roupas que remetiam ao século passado, o que fez Joe crer que era algum tipo de fantasia. Ela usava óculos escuros e esticou a cabeça para procurar pelos amigos no meio da multidão, costurando-os até alcançar RSB e Lua.
— Está atrasada. — Ele murmurou com grosseria, sem tirar os olhos da tela.
— Eu sei, desculpa, meu irmão acabou demorando demais e…
— Vai ficar me devendo essa, Mims. — RSB a cortou, alheio aos olhares desgostosos que as outras garotas em volta lançavam à ela.
— Vem pra cá e para de atrapalhar ele, Mimi. — Lua passou o braço no pescoço de Mimi e a puxou até o pinball, descansando o rosto no ombro dela.
A diferença entre Lua e Mimi era gritante. Primeiro, os cabelos: os de Lua eram tão negros quanto os de Mimi eram brancos. Depois a tez; a primeira era retinta, a segunda alva. Uma das coisas que compartilhavam era a estatura mediana e o biotipo.
— Já está chegando nos cem?! — Mimi perguntou, baixinho, para a amiga.
Lua abriu um sorrisinho orgulhoso.
— Cem mil. — Ela corrigiu, entremeando os dedos nos cabelos claros da amiga.
Mimi assentiu, cruzando os braços e balançando a perna sem parar. Trajava uma camiseta branca de babado na gola e mangas bufantes, o que a fazia chamar bastante atenção no fliperama, embora todos os olhares estivessem focados em RSB.
— É, acho que vou pegar água para ele… — Lua murmurou, desvencilhando-se de Mimi e caminhando até a cantina para comprar uma garrafa.
RSB movia efusivamente a mão no joystick e no botão de atirar, alheio à torcida às suas costas, como se fosse um movimento mecânico. Mimi suspirou bem alto, mordendo as bochechas internamente, uma mão segurando a moldura dos óculos e a outra apoiada no pinball.
— O quê? — RSB perfurou o silêncio, ainda com o olhar no jogo.
Mimi abriu e fechou a boca várias vezes antes de falar.
— Você leu o Profeta hoje? — Ela tentou não exprimir nervosismo na voz e foi o suficiente para que RSB desviasse o olhar do jogo por um milésimo antes de voltar a se concentrar.
— Por que você está usando óculos escuros no fliperama? — Ele devolveu, os músculos de seus maxilares proeminentes sobressaindo-se ao cerrar a mandíbula.
— Estou com dor de cabeça. — Mimi sussurrou, fingindo olhar para Lua do outro lado do ambiente.
RSB não pareceu dar muita importância para o que ela disse. Não até que o escore do jogo batesse os 155 mil pontos e a comemoração entre os espectadores começasse. Não deu nem tempo de Lua chegar com sua água, porque ele estendeu a mão na direção de Mimi tão rápido quanto uma cobra dando o bote, tirando os óculos do rosto dela num átimo.
Ela se encolheu, tentando esconder a escoriação roxa na pálpebra, arregalando os olhos e virando o rosto, envergonhada. RSB não teve tempo para discutir, pois seu público logo o rodeou para lhe dar congratulações enquanto seu escore ultrapassava o de DFL, tomando o segundo lugar do placar geral. Ele não poderia se importar menos, irritando-se bastante com os papéis de telefone que recebia das garotas e os tapinhas dos garotos.
RSB teve de atravessar todo mundo até, finalmente, encontrar Mimi. Não precisava encará-la para saber que estava lacrimejando, tampouco dizer qualquer coisa para que ela entrasse na defensiva.
— Eu caí! — Ela se justificou, tentando tomar os óculos de RSB. Ele era mais alto, de modo que apenas levantou a mão, o cinza de seus olhos tornando-se duas adagas afiadas.
— Você realmente acha que essa mentira vai colar comigo, Victoria?! — RSB sussurrou, mágoa permeando sua voz. — Qual daqueles merdinhas fez isso com você, hã? — Ele colocou as mãos na cintura.
— Sério? Eu fiz de tudo para vim te ver hoje e você…
— Fez de tudo?! Você chegou atrasada! — RSB a interrompeu com agressividade. Victoria semicerrou os olhos, recuando. — Quem fez isso?
Ela bufou um riso. Não era uma demonstração de bom humor. O caramelo de seus olhos brilhou de raiva.
— Sabia que eu não devia ter vindo até aqui… — Victoria girou nos calcanhares, mas não conseguiu prosseguir, pois Lua estava em seu caminho.
— O que foi? — Ela entregou a garrafa para RSB, perscrutando a amiga ao cruzar os braços. — O que houve com o seu olho?
RSB bebeu a água apertando a garrafa em estalos altos, até que o plástico ficasse todo amassado. Jogou-a no lixo com mais força que o necessário.
— Fala para ela, Victoria. — RSB acenou com a cabeça na direção de Lua, um sorriso amargo pincelando seus lábios.
Victoria revirou os olhos, curvando a boca em um desprezo estampado. Tomou os óculos de sol de RSB com brutalidade, secando o canto dos olhos com o dorso das mãos.
— Mimi… — Ele sussurrou, suspirando ao se aproximar.
— Você sabe que pode contar com a gente, Mims. — Lua abriu os braços para que pudesse abraçar Victoria, mas ela murchou, balançando negativamente a cabeça. — O que aconteceu?
— Nada, eu só caí! — Ela insistiu, o que fez RSB soltar o ar em irritação e Lua dar um sorriso resignado.
— Por que você não confia na gente? Somos seus amigos! — Ele aumentou o tom de voz, sobressaindo-se aos bleeps e bloops das máquinas. Seu coração parecia querer saltar do peito, irritado.
Victoria foi endireitando as costas lentamente, a expressão enrijecendo-se aos poucos. Os olhos, antes assustados, incendiaram-se em raiva.
— Eu sabia que não deveria ter vindo! — Ela lançou um olhar escrutinador aos dois antes de colocar seu óculos e se dirigir para a saída a passos largos.
— Victoria! — RSB fez menção de impedi-la, mas um grupo de garotas eriçadas obstruiu seu caminho. — Mimi!
Lua deu de ombros, prendendo os cabelos em um rabo de cavalo ao olhar com desdém para as tietes que tentavam puxar assunto com RSB. Enxotou todas elas enquanto procuravam por Victoria, deixando o fliperama e percorrendo o segundo andar do shopping com o olhar, mas ela sumiu.
— É… parabéns. — Ela fingiu animação, balançando RSB pelos ombros. — Agora só falta bater o recorde do tal do SOB…
RSB suspirou, apertando os lábios finos em uma linha. Passou a mão nos cabelos negros e curtos, ajeitando sua franja e encarou o próprio reflexo em uma vitrine. Apesar da vitória, sentia-se um perdedor. Jogou o skate no chão.
— Você foi meio desnecessário lá dentro. — Lua comentou despretensiosamente, segurando a ponta do skate ao apoiar-se no peitoril do mezanino. — Não precisava… disso tudo.
— Não é a primeira vez, Luana. — Ele usou o nome todo dela, como se ela não entendesse a gravidade dos fatos.
— É só… não acho que seja fácil para ela. — A garota rebateu na mesma aspereza.
— Não disse que achava isso. Eu só… por que ela fica mentindo? Está na cara que…
— Se fosse você na mesma situação, contaria? — Luana o cortou, umedecendo os lábios carnudos.
RSB meneou a cabeça, apoiando um pé no skate ao empurrá-lo para frente e para trás.
— Não sei. Nunca passei por isso. — Ele admitiu, enfiando as mãos nos bolsos da calça jeans.
— É, pois é. — Lua deu um sorriso convencido, o que fez RSB chacoalhar os ombros com indiferença. — Por que você está tão explosivo? Não te vi assim antes… é porque leu o Profeta de hoje?
— Quê? — RSB sentiu as bochechas esquentarem, desviando o olhar para o andar de baixo. — Não, por que vocês estão me perguntando isso? O que tem demais no Profeta?
— Se não é por causa do jornal, então por que está agindo desse jeito? — Luana ignorou a última pergunta, batucando suas unhas no corrimão de ferro.
— Desse jeito como?! — RSB cerrou os lábios, desconcertado.
Luana o encarou por longos segundos, estreitando o olhar como se tentasse ler algo em suas entrelinhas. Ela deu de ombros, olhou os pingentes de suas correntes casualmente e soltou o ar bem devagar, observando os transeuntes em volta. RSB estalou a língua.
— Fala logo, Lua. — Ele lhe deu uma cotovelada.
— Você está afim dela, não está?! — Luana abriu um sorriso zombeteiro.
— O quê? Não! — RSB respondeu, a voz mais fina do que o normal, o rosto ficando rubro. — De onde você tirou isso?!
— Pelas bolas de Merlin, você gosta dela! — Ela colocou a mão na boca de forma teatral, agarrando seu ombro em seguida. — Desde quando?
— Eu não… não… não gosto dela! — RSB respondeu, afetado com a ideia estapafúrdia da amiga, chacoalhando-se até se soltar.
— Desde quando? — Luana insistiu, apoiando os cotovelos no corrimão, diversão pincelando sua expressão.
— Ah, velho, não inventa… — Ele subiu em seu skate, impulsionando-se para frente.
— Vai fugir?! — Ela provocou, colocando as mãos na cintura.
RSB nem se deu o trabalho de olhar para ela, levantando o dedo médio ao manobrar entre os consumidores. Um segurança rapidamente começou a persegui-lo, gritando que era proibido andar de skate dentro do shopping.
Ele sequer deu ouvidos, colocando os fones e dando play no walkman.
[Música: Rainbow — Do You Close Your Eyes]
— Regulus Black está apaixonado! — Luana cantarolou, antes de dar uma longa gargalhada.
Mystery to me is something I can't see
But I see you very well
You slinky, cool, nobody's fool
But there's something inside I can tell
Regulus ganhou velocidade, tecendo habilmente entre as pessoas e obstáculos. Seu equilíbrio era perfeito, os seguranças em seu encalço ficavam cada vez mais para trás. Várias pessoas soltavam risinhos, outras desaprovavam. Regulus não parecia ligar. Com um sorriso travesso nos lábios, ele se aproximou da saída, aproveitando que as portas automáticas estavam abertas.
I know a poor man, a rich man
I know I can talk to a king
But nobody here is gonna tell me
I can't find out one thing
Encarou seu último obstáculo: uma longa escadaria com um corrimão perfeito para uma manobra. Sem diminuir a velocidade, ele alinhou seu skate com o corrimão e, numa precisão inumana, fez um grind descendo toda a extensão da escada. A manobra foi executada com tanta destreza que arrancou aplausos de quem assistia.
Ao aterrissar, ele foi atingido pelo mormaço do lado de fora do shopping. O calor não era só insuportável, mas o sol parecia determinado em escaldar todo mundo ali. Ele freou, ajustou os fones de ouvido e voltou a se impulsionar.
I see your glow around you
Open your arms
'Cause I'm walking to you, coming straight or through
Maybe I'm wrong but I know it won't take long to see
Regulus se impeliu com o skate ainda preso aos seus pés sem o auxílio das mãos, saltando o meio-fio para atravessar a rua vazia, repetindo o movimento para prosseguir na calçada do outro lado. Apesar da velocidade, o calor era dificilmente afastado, pois o vento estava tão abafado que mal fazia diferença.
Sua cabeça estava a mil. Não fazia sentido algum o que Luana lhe disse, ele não estava apaixonado por Mimi. Ela era sua melhor amiga de infância, sua vizinha de porta, sabia muito bem que ela achava Cedrico Diggory e até mesmo Harry Potter — dando ênfase nos olhos verdes dele.
Do you close your eyes
Do you close your eyes
Do you close your eyes
When you're making love? Yeah, yeah
Making sweet love to me, yeah
Não que Regulus sentisse ciúmes disso, ele claramente não sentia nenhuma pontada fervente no coração e suor nas mãos toda vez que ela mencionava os garotos que era afim, tampouco costumava chutar o jogo de bexigas das meninas do segundo ano ao sair pelo pátio da torre do relógio depois da tagarelação dela.
Mimi era sua melhor amiga, assim como Luana, era completamente normal que ele gostasse dela, mas era só isso… gostar. Como amiga.
Não era?!
The logical trend is that I'll know in the end
The things that make you smile
To right from the start, I'll take an aim at your heart
And know that all the while
Ele suspirou, flexionando os joelhos ao se aproximar de um banco de praça, preparando-se para um movimento mais radical. Com um impulso preciso, ele saltou e girou o skate no ar em um kickflip perfeito, antes de aterrissar com habilidade e continuar seu trajeto sem perder o ritmo.
I know a rich man, a poor man
I know I can talk to a king, yeah
So nobody here is gonna make me believe
I can't find out one thing
A música em seus ouvidos era seu combustível e ele particularmente era muito fã de Rainbow. Segundo seu tio Remus, ouvia desde que era um bebezinho e nunca parou de escutar. Possuía todas as fitas deles, inclusive um lançamento bem raro que herdou dos pais.
I see your glow around you
Open your arms
'Cause I'm coming, running, straight or through
I could be wrong but I know it won't take long to see
O verão em Londres sempre foi quente, mas aquele dia estava quase insuportável. Regulus sentia os filetes de suor descendo atrás de sua orelha e pela nuca, arrependendo-se de usar uma calça jeans. Deveria ter saído de short, mas ele preferia estilo ao conforto. Circundou com o skate uma fonte cheia de crianças brincando e prosseguiu até um cruzamento, onde ele segurou seu skate e esperou que o sinal abrisse para atravessar a rua.
Seu tio Remus não morava muito longe do shopping, na verdade a casa onde ele vivia também era sua, embora ainda resida com os tios em uma casa mais afastada do centro de Londres. Já a morada de Remus era bem próxima do centro, um achado na verdade.
Do you close your eyes
Do you close your eyes
Do you close your eyes
When you're making love?
Regulus não demorou a chegar, freando e segurando o skate ao subir as escadas da entrada. Tocou a campainha algumas vezes, ofegante e com o sol queimando sua nuca. Colocou os fones no pescoço e pausou a fita antes que a Stargazer começasse.
— Tio?! — Ele chamou, tentando enxergar algo pelo vidro da porta, mas não conseguia ver nada.
Olhou para os dois lados da rua, se abaixou, pegou a chave debaixo do vaso de glicínias e abriu a porta, entrando sem cerimônia. Bateu os tênis no tapete de entrada e atravessou o vestíbulo, sendo recebido pelo ar refrescante de dentro.
Regulus deixou o skate num canto e esticou o pescoço para a cozinha, encontrando-a vazia. Bebeu bastante água gelada e caminhou até a sala, passando os dedos suados pela capa preta que cobria o piano de cauda. Seu olhar percorreu o console da lareira, o trio de sofás em volta da mesa da televisão e o corredor que dava para os quartos.
— Tio?! — Ele chamou, mais uma vez.
Não houve resposta. Estava sozinho.
Regulus passou as mãos sujas pelas portas dos quartos, empurrando devagarinho a do último: um estúdio empoeirado e abandonado. Alguns itens ainda estavam ali, como os tons de bateria e os sintetizadores mais afastados. Um amplificador desmontado ficava logo ao lado de um quadro quebrado com a capa do primeiro álbum do Toto e um boneco de gatinho desgastado e encardido estava jogado em um canto.
Ele fechou a porta, olhando para o relógio. Quase quatro da tarde. Remus já deveria ter chegado. Regulus respirou fundo, secando o suor da testa com o dorso da mão. Impaciente, deu alguns passos para trás e abriu a porta de outro quarto: onde uma enorme cama de casal possuía algumas roupas jogadas em cima dela.
Ficou desse jeito há doze anos e Regulus se surpreendia em sempre encontrá-lo do mesmo jeito: a jaqueta de couro de dragão continuava brilhante e limpa sobre o cobertor, assim como os óculos aviador. Seu olhar percorreu o aparador do canto, onde vários retratos se moviam de forma perturbadora.
Regulus suspirou, entrou no banheiro e jogou água no rosto. Observou seu próprio reflexo no espelho, no nariz cheio de sardas, nos olhos cinza-azulados, nos cabelos bagunçados pelo exercício. Havia uma vermelhidão em suas bochechas e certamente as queimou na exposição do sol que sofreu até chegar ali.
Secou o rosto e abriu a gaveta do armário, encontrando um creme vencido há anos. Abriu-o e cheirou, o aroma suave de baunilha invadindo suas narinas. Deu um sorrisinho antes de guardá-lo. Ele queria muito sair do quarto e deixar tudo para trás, afinal seu tio sempre pediu para que não mexesse em nada dali.
Mas Remus não estava em casa.
Regulus se despiu, enfiou-se no chuveiro e deixou a água fria varrer o suor de seu corpo, dedilhando os inúmeros cosméticos bruxos antes de escolher um com aparência estranha e cheiro nada convencional. Desistiu ao perceber que a maioria já havia passado da validade, afinal, qual foi a última vez que foram usados? Doze anos?!
Saiu do banho e molhou o banheiro todo ao procurar uma toalha, enrolando-se nela logo depois. Abriu as gavetas e encontrou uma blusa do David Bowie toda desbotada, vestindo-a junto com uma calça jeans cheia de correntes que lhe serviu perfeitamente, como se fosse feita para ele, embora não o pertencesse. Pegou seu relógio do bolso da outra calça e transferiu para a atual.
Regulus deixou os cabelos molhados e penteou a franja para o lado, do jeito que fazia as garotas do quarto ano suspirarem. Será que Mimi gostava de seu cabelo assim? Ele revirou os olhos para o próprio pensamento, juntando as roupas sujas debaixo do braço e jogando-as dentro de uma sacola antes de se esparramar no sofá do tio.
Ele esticou o braço na direção da mesinha de centro, tentando alcançar o controle da televisão. Mas havia um exemplar do Profeta Diário no caminho e ele não pôde impedir de encarar a enorme foto na primeira página: um homem de rosto encovado e cabelos longos e embaraçados piscou devagarinho para Regulus.
BLACK FUGIU!
Sirius Black, provavelmente o condenado de pior fama já preso na fortaleza de Azkaban, fugiu. A informação foi confirmada hoje pelo Ministério da Magia. “Estamos fazendo todo o possível para recapturar Black”, disse o Ministro da Magia, Cornelius Fudge, ouvido esta manhã, “e pedimos à comunidade mágica que se mantenha calma.” Fudge tem sido criticado por alguns membros da Federação Internacional de Bruxos por ter comunicado a crise ao primeiro-ministro dos trouxas.
“Bem, na realidade, eu tinha que fazer isso ou vocês não sabem?”, comentou Fudge, irritado. “Black é doido. É um perigo para qualquer pessoa que o aborreça, seja bruxo ou trouxa. O primeiro-ministro me garantiu que não revelará a verdadeira identidade de Black. E vamos admitir – quem iria acreditar se ele revelasse?” Enquanto os trouxas foram informados apenas de que Black está armado (com uma espécie de varinha de metal que os trouxas usam para se matar uns aos outros), a comunidade mágica vive no temor de um massacre como o que ocorreu há doze anos, quando Black matou treze pessoas com um único feitiço.
Ficou difícil engolir quando os olhos de Sirius pareciam perscrutar Regulus com intensidade. Ele arfou, como se acabasse de fazer um longo exercício e virou o rosto de uma vez. O coração batia dolorosamente no peito. Memórias suaves ecoaram em sua mente, arrepiando seu corpo inteiro.
Regulus não percebeu estar chorando, muito menos que o ar lhe faltava, a respiração entalando na garganta. Ele se levantou, os músculos de seu corpo ficando rígidos. Seu olhar imediatamente buscou a cordinha que puxava a escada do sótão. Seus dedos formigaram, os batimentos descompassando. Fitou a porta de casa, depois o corredor, o conflito em seu interior rebatendo-se com violência. Então, ele se deixou levar por seus impulsos e foi até o corredor, puxando a cordinha que desdobrou a escada.
O único lugar em que Regulus era terminantemente proibido de ir. O sótão. Ele nunca foi de desrespeitar as regras da família, embora fazer isso em Hogwarts fosse bastante divertido. Ele segurou com as duas mãos na escada, encarando o próprio Sinete na esquerda. Era uma herança genética, bem parecida com uma tatuagem: duas cobras se entrelaçando ao formar o símbolo do infinito, uma mordendo a cauda da outra em um círculo.
Subiu e foi atingido imediatamente pelo cheiro de poeira. Tirou sua varinha do bolso e usou Lumos para iluminar o cômodo de teto triangular e cheio de teias de aranha. Havia várias caixas ali, algumas com nomes, outras sem. Regulus fez uma careta e rastejou até a mais próxima, onde o nome Scarlett estava escrito bem grande em uma fita.
Regulus abriu a caixa, espirrando com o aroma pungente do mofo que subiu. Uma centena de discos de vinis estavam guardados ali, junto com um monte de miscelâneas. Dedilhou uma pilha do que pareciam ser polaroids, virando-as.
A primeira retratava uma mulher de cabelos pretos e olhos azuis abraçada com um enorme cachorro preto. Era uma imagem que se movia e a mulher virou o rosto fazendo uma careta ao receber uma lambida. Regulus pegou-se sorrindo consigo mesmo ao acariciar o rosto daquela moça, seus batimentos se acalmando e a raiva que sentia se arrefecendo por uma nostalgia que não sabia o que era.
Só sabia que era bom, porque agora ele chorava novamente, mas por um motivo completamente diferente. Virou a fotografia, onde uma letra emaranhada dizia: Scarlett e Almofadinhas, verão de 78.
Regulus deslizou o dedo no nome de Scarlett, guardando aquela foto no bolso. Pegou a próxima.
Scarlett era segurada no colo de um homem alto e barbudo, com cabelos negros que iam até os ombros e os braços e o peitoral cobertos de tatuagens. O vento empurrava os cabelos dele e ele usava os óculos que Regulus viu em cima da cama mais cedo. O homem se inclinava e beijava apaixonadamente Scarlett, cujos braços enlaçavam seu pescoço e as pernas se esticavam com o contato. Estavam numa praia. Eles sorriam. A foto repetia o beijo sem parar.
Regulus engasgou com a própria saliva, como se acabasse de receber um soco. Seus dedos apertaram a moldura da imagem com tanta força que os nós ficaram brancos. Ele girou a fotografia. Scarius, verão de 78, Brighton.
Subitamente, o lugar ficou abafado e apertado demais. Regulus levantou a cabeça, batendo-a no teto em um estrondo. Poeira caiu em seus olhos e ele balançou o rosto, recuando, tateando o chão até encontrar a escada. Desceu ao ofegar desesperadamente por ar, passando a mão na roupa a fim de se livrar da sujeira.
Precisava de outro banho.
Regulus espirrou e tossiu, correndo de volta para o banheiro ao jogar água novamente no rosto. Não percebeu ter trago os retratos consigo, encarando-o no reflexo do espelho em cima do balcão.
O som de porta abrindo fez seu coração bater mais forte do que já batia, as emoções díspares o deixando atônito. Regulus pegou as polaroids e caminhou, lentamente, até a sala. A cabeça fervendo em mil suposições.
— Reg? Já chegou?! — Remus colocava um bocado de sacolas na cozinha, passando para a sala com um sorriso no rosto. — Como foi no fliperama?
A resposta de Regulus foi jogar a fotografia em cima do jornal de Sirius Black.
O sorriso no rosto acinzentado de Remus morreu, a pouca cor fugiu e seus olhos escuros se arregalaram ligeiramente enquanto ele se aproximava da mesa e fitava o retrato e o jornal.
— Eles se amavam! — Regulus deixou a ira tomar conta de sua voz. — Todos esses anos, você mentiu para mim!
— Você subiu no sótão?! — Remus não escondeu o tom acusatório, olhando para o corredor, a expressão assustando-se ao ver a escada aberta.
— Não tente mudar de assunto! — Regulus rugiu, a raiva atingindo-o de uma vez, ofuscando sua polidez e fazendo-o chorar de novo. — Por que você mentiu?!
— Eu não… — Remus respirou muito, mas muito fundo. Massageou as têmporas. — Regulus… nós podemos não fazer isso hoje? A lua…
— Por Merlin, tio, você mentiu para mim a minha vida inteira e quer que eu espere a fase da lua para você decidir me contar a verdade?! — Ele resfolegou, gesticulando com impaciência.
— Reg, por favor… eu… — Remus soltou todo o ar dos pulmões, coçando a barba grisalha do queixo. — Eu fui contratado. Vou te dar aulas…
— Ela morreu. E ainda assim… ainda assim você não quer falar dela. Meu tio Orfy não quer falar dela. Nem o Nate quer falar dela. Mas eu quero… eu tenho esse direito! — Regulus esfregou os olhos, tentando impedir as lágrimas de ferroar seus olhos. — Por quê?!
— Reg…
— Não é possível que tudo o que ela fez da vida foi ser uma Comensal! — Regulus prosseguiu, fungando. — Por que você não me falou a verdade?! O que aconteceu entre eles?
— Reg… a Scarlett e o Sirius, eles… — O lábio inferior de Remus tremeu. Ele fazia um esforço homérico para não chorar também, percorrendo suas cicatrizes do rosto com o indicador ao tentar explicar para o sobrinho algo que nem ele compreendia.
Regulus esperou. Remus não continuou, limitando-se a apenas suspirar e afundar o rosto nas mãos.
— Você entrou no quarto dele. — Remus murmurou, depois de um longo intervalo silencioso, sem ousar olhá-lo.
Regulus deu uma risada ácida, enfiando a foto no bolso antes de apontar o dedo no rosto do tio.
— Você é inacreditável, Lupin! — Ele cuspiu, antes de dar passos largos até seu skate. Agarrou-o com raiva, pegou sua sacola de roupas e olhou para Remus uma última vez. — Eu achei… — Puxou ar, sentia-se sufocado. — que você, mais do que ninguém, me falaria a verdade. Você foi amigo deles, tio. Eu… eu me lembro dele. Eu era novo, mas eu me lembro dele. Ele cantava para mim, é por isso que eu amo tanto Rainbow, porque ele…
— Regulus… ele nos traiu. Os dois nos traíram. Os McKinnon e os Potter…
— Pelo amor de Merlin, será que dá para você enxergar além disso?! — Regulus urrou, as lágrimas queimando suas bochechas. — Quer saber? Vai se foder! — Ele sibilou, enfiando a mão no pó de flu do console da lareira.
— Regulus! — Seu tio o repreendeu, embora parecesse mais uma súplica.
Ele não ficou para ouvir o que Remus tinha para dizer. Não é como se ele fosse lhe contar algo, de qualquer forma. Regulus se enfiou na lareira e deixou as chamas esmeraldas lamberem seu corpo e ele ressurgiu em sua casa, dando de cara com seu tio Orfeu lendo o jornal em sua poltrona da sala.
— Reg? — Ele fechou o jornal de uma vez, como se temesse que o sobrinho visse a manchete. — Já voltou? Achei que fosse jantar com o Remus…
— Não… não vou jantar com ele. — Regulus murmurou com amargura, soltando o skate no chão e se impulsionando em cima dele até seu quarto.
— Ei, o que conversamos sobre skate dentro de casa?! — Orfeu gritou, mas foi prontamente ignorado. — Regulus Sirius Black! — Ele o chamou.
— Me deixe em paz! — Regulus berrou, jogando suas roupas com raiva no cesto. Pescou suas luvas e as calçou. Olhou de soslaio para a porta do quarto quando ela foi aberta pelo tio.
— O que aconteceu, Reggie?! — Ele se apoiou no batente, o rosto coberto de preocupação. Os cabelos castanhos escuros presos em um rabo de cavalo mal feito. — É por causa do jornal? Por causa… do Sirius?
Regulus passou o braço no rosto, desejando fincar as unhas nas bochechas e arrancar a carne até que ele parasse de sentir aquela dor fervente no peito. Olhou para Orfeu, tentando ocultar tudo o que sentia.
Tirou a foto do bolso e a levantou para o tio. Orfeu ficou lívido, os olhos verdes desviaram-se no mesmo instante para o teto e ele se retraiu.
— Essa não era ela, Reg. — Orfeu sussurrou com tanta mágoa que o peito de Regulus solapou.
— Eles se amaram.
— Scarlett amava Regulus. — Ele foi rápido em corrigi-lo, terror vibrando suas cordas vocais. — Não Sirius.
— Eles pareciam felizes nessa foto.
— Ah, Reg, ela sabia muito bem fingir o que queria. Era dissimulada… era… — Os dedos de Orfeu infiltraram-se na manga comprida de sua camiseta, acariciando as cicatrizes de queimadura que ele possuía. — foi culpa dela. Ela não era uma boa pessoa. A única coisa boa que ela fez… foi você.
Regulus balançou a cabeça.
— Não acredito em você. Mentiu para mim junto com o Remus todos esses anos, quem garante que não está mentindo agora também?! — Ele bufou, empurrando o tio de sua frente para deixar o quarto. — Você, Nate, Remus… três mentirosos do cacete!
— Reggie… — Orfeu murmurou, comprimindo os olhos quando o garoto saiu da casa e bateu a porta bem forte.
Regulus desceu as escadas de sua residência, sentando-se no peitoril de concreto. Abraçou as pernas e apoiou o queixo nos joelhos, rebobinando sua fita do Rainbow, afastando as palavras de Orfeu, repetindo a si mesmo que era tudo mentira.
Não queria acreditar nisso. Sua mãe não era um monstro, não queria que ela fosse, não quando todo mundo já lhe dizia isso. Já não bastasse os imbecis da Sonserina parabenizá-lo por ser filho de Comensais, pela morte dos McKinnon e pela morte dos Potter…
Secou as últimas lágrimas remanescentes observando o sol descer por entre as casas, mergulhando no horizonte e deixando um rastro de sombras esquálidas. Sua cabeça doía, os olhos ardiam, o peito fumaçava. Tirou a foto do bolso, esfregando o dedo no rosto de Scarlett, a vontade de chorar ameaçando voltar.
Engoliu-a ao ver um grupo de cabeleiras brancas se aproximando, tentando esconder o vestígio de choro do rosto quando Victoria subiu as escadas ao lado de seus irmãos: Vinny, o mais velho, Vin, o do meio, e o gêmeo de Victoria, Victor. Todos da Sonserina, como Regulus. Os conhecia a vida inteira, embora não gostasse nem um pouco dos mais velhos.
— E aí, Reg? — Vinny deu um sorrisinho soberbo. Regulus encarou o punho dele, buscando algo que o incriminasse.
— Fala, Vinny. — Regulus respondeu com naturalidade, cumprimentando-o com uma batida de mãos. Vin foi o próximo, também nada.
Victor lhe deu um aceno e Victoria ficou, observando o trio entrar na porta logo ao lado da de Regulus, a casa deles era geminada.
— O que aconteceu? — Ela não escondeu a preocupação no tom de voz, tocando seu ombro com leveza. Regulus encarou os dedos finos e as unhas longas antes de erguer o olhar até ela, para o rosto que fazia seu coração derreter em milhões de pedacinhos, para o hematoma que fazia seu peito virar lava.
Victoria possuía a beleza intrínseca dos puro-sangue, da delicadeza das sobrancelhas ao nariz pontudo, do queixo fino aos lábios em formato de coração. Avermelhados e aveludados. Convidativos. Regulus engoliu em seco, sentindo-se um tolo.
— Nada. — Ele mentiu, desviando o olhar para a rua sem carros.
— Você leu o Profeta. — Ela assumiu, debruçando-se no peitoril à sua frente. — Olha, Reg… se você quiser…
— Tá tudo bem. — Regulus se sobressaiu à voz dela, fingindo estar ocupado demais com seu walkman para fitá-la. — Só precisava de um ar.
— Achei que você fosse jantar com o seu tio Lupin. — Ela continuou. As luzes dos postes acenderam, jogando sombras nos olhos de Victoria, transformando-os em castanho.
— Eu ia. — Foi tudo o que Regulus disse.
Os dedos de Victoria em seu ombro escorregaram lentamente até seu joelho, obrigando-o a encará-la quando ela segurou seu queixo.
— Reg…
— Você vai me contar a verdade? — Regulus não escondeu a estupidez no tom.
Victoria suspirou, lambeu os lábios e lhe deu dois tapinhas no ombro.
— Você sabe que não posso. — Ela murmurou, lançando um olhar temeroso para a porta de sua casa. — De qualquer forma…
— Só vai, Victoria. Me deixe em paz. — Regulus replicou, ríspido. Arrependeu-se logo depois, tudo o que queria era ter Victoria ao seu lado. Mas se ela não iria lhe contar a verdade, então ele também não contaria. Nem mesmo ela aplacaria o vazio que abarcava seu peito. Era um sentimento que o acompanhava desde que era pequeno, não mudaria agora que Sirius estava foragido.
Ela revirou os lábios em aborrecimento e entrou em sua casa. Regulus deu tapinhas no próprio rosto sentindo-se um imbecil. Se fosse Harry Potter com certeza ela diria!
Um arrepio estranho na nuca o fez sentir estar sendo observado, porém, ao olhar para os dois lados da rua, não viu ninguém. Ouviu uma lata de lixo sendo derrubada ao longe e alguns cachorros latindo, mas nada significativo. Voltou à sua bagunça pessoal, tirando do bolso seu relógio prateado e apertando-o na palma da mão até que doesse.
O irritava bastante o quanto ele e Harry Potter eram comparados. Nunca nem havia falado com o garoto, mas foi impossível que ele e Potter não virassem alvo das fofocas quando a Câmara Secreta foi aberta no ano letivo anterior, tampouco quando Harry era filho de bruxos renomados que lutaram contra Voldemort, já Regulus…
Era filho de dois Comensais da Morte.
No entanto, Regulus e Harry possuíam bastante coisa em comum. Viveu a vida toda com os tios, sendo alvo de boatos maldosos e até mesmo acusado de ser o herdeiro de Salazar. Odiava o quanto acreditavam que ele era cruel por causa da reputação de sua família.
Tirou a foto do bolso e abriu seu relógio, observando sua mãe sentada em uma cadeira, séria, vestida com roupas vitorianas e uma expressão como se estivesse em um enterro. Seu pai, logo atrás dela, a segurava pelo ombro, também sério. Como se estivesse cumprindo uma mera formalidade.
Desviou o olhar para a foto que pegou do sótão, onde sua mãe parecia tão feliz que seu coração se apertava. Expulsou o ar dos pulmões ao acariciar o rosto dela, o pesar atingindo-o com brutalidade.
Regulus e Harry também compartilhavam o padrinho: o fugitivo, assassino e louco Sirius Black.
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Ele era tão, tão, tão pequenino. Seus pés mal davam o polegar de Sirius, as mãozinhas segurando seus dedos desesperadamente, como se procurasse algo para se agarrar. Sirius arfou, ajustando a gola da camiseta, como se fosse ela quem o enforcasse naquele momento e não a sensação vertiginosa que o acometeu.
— S-S-Sirius… Regulus… — Scarlett balbuciou, as digitais ensanguentadas enroscando em seu cotovelo. — Regulus… Sirius… — Ela repetiu, as pupilas dilatadas. — Black.
Sirius sentia o estômago borbulhar quando foi enxotado pelas medibruxas da sala de cirurgia, o coração palpitando no peito ao ter algo tão pequeno e tão frágil aninhado em seu peito. Ele olhou para o tufo negro de cabelos da cabecinha do pequeno Reggie, para a boquinha que se apertava e fazia bolhas de saliva, até alargar-se em um sorriso espalhafatoso.
Nunca quis tanto em sua vida inteira que uma criança fosse sua. Ainda estava tonto com o que acabara de acontecer, a roupa coberta do sangue de Scarlett, o corpo tremendo com o rebote da adrenalina.
— Regulus Sirius, hã? — Ele perguntou para o pequeno bebê, como se ele pudesse entender alguma coisa. Reggie esticou os bracinhos até seus cabelos, enroscando os dedos nele, puxando-os levemente. Assim como sua mãe, Reg possuía um Sinete na mão esquerda. — Gostou do meu cabelo?
Uma gotinha caiu na bochecha de Regulus e Sirius rapidamente a secou. Mal percebeu seus olhos enchendo-se de lágrimas, lavando toda a raiva e amargura que sentia por algo tão doce e inocente quanto um recém nascido.
— O senhor é o pai?! — Uma das enfermeiras trazia uma prancheta nos braços, encarando Sirius ao segurar a pena.
Nunca quis tanto dizer sim a uma pergunta. Tensionou o maxilar, umedecendo os lábios.
— Tio. — Ele a corrigiu, tentando engolir a vontade de dizer o contrário.
— Oh. — A enfermeira arqueou as sobrancelhas, folheando alguns papéis na prancheta. — Sirius Orion Black?
— Isso. — Ele ouviu o pequeno Reggie grunhir, olhando-o com temor. O bebê, no entanto, havia fechado os olhos em um cochilo suave.
— Você é o padrinho da criança. — Ela anotou, estendendo a pena para ele. — Segundo o testamento do seu irmão.
— O quê? — Sirius sentiu-se tonto, as pernas bambearam. — Padrinho?
— Exatamente. A mãe já escolheu o nome? — A enfermeira o encarou, esperando uma resposta.
— Regulus Sirius Black. — Sirius deixou as palavras escaparem dos lábios, atordoado demais para fazer qualquer outra coisa além de se manter em pé e segurar o bebê.
Olhou para Reggie, o peito espiralando em uma centena de sentimentos impróprios. Deveria odiar aquela criança, devia ter ido embora, negado ajuda à Scarlett, devia ter ido para longe da guerra, longe de tudo. Regulus Sirius era o símbolo da traição da mulher que amava e do irmão que odiava. Scarlett era tão perversa que ainda deu o nome dele naquela criança.
Mas então, por que tudo o que subia em seu peito era a vontade de proteger Reggie de tudo, até dele mesmo? Era tão… delicado. Indefeso. Possuía o nariz de Scarlett.
Algo pestilento escaldou seu cerne, a bile queimando sua garganta. Nunca sentiu tanta inveja do irmão quanto naquele instante.
Sirius nunca desejou tanto que aquele filho fosse dele.
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