FORUM 19. Jan. 1996. Pág. 117• 132
Verso una Teologia de la Pittura
"O espaço não é outra coisa senão a subtilíssima
luz" - Proclo (citado por Erwin Panofsky).
Por várias vezes já foi recordada a expressão de Luca Giordano, citada por
Palomino, segundo a qual, diante de "Las Meninas", o napolitano (1632-1705)
teria exclamado, em finais do século que foi de ambos, "Questa ê una teologia
de la pittura".
Giordano nasceu no ano em que Velázquez completara já trinta e três anos.
Oriundo de Nápoles, o pintor, que ficou conhecido por Luca fa presto pelos
seus hábitos de rapidez na execução e pela variedade de estilos e de géneros
que cultivou, foi discípulo de Ribera - Velázquez chegou, de resto, a visitá-lo
na primeira das suas viagens a Itália - e tendo pintado alguns tectos no
Pallazo Medici-Riccardi, em Florença, ganhou fama que lhe terá valido o
convite para pintar os tectos do Escorial que os especialistas considera a sua
obra-prima.
O facto de se ter detido diante de "Las Meninas" não seria em si mesmo da
maior relevância (quantos outros grandes artistas não se postaram já diante
desta obra, e quantos não a glosaram, mesmo no nosso século?), não fosse
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Bernardo Pinto de Almeida
ele ter sido um dos principais pintores napolitanos do século XVII, e ter
escolhido a estranha expressão teologia para designar uma pintura.
Isto numa época em que o génio de Velázquez, apesar de todo o reconhecimento dos seus contemporâneos, amplamente testemunhado por documentos da época, não tinha ainda ganho a notoriedade que hoje lhe consignamos.
reconhecendo-o como um dos maiores mestres da arte ocidental de todas as
épocas.
Giordano, que viajara por Itália - de Nápoles para Roma e daí para Veneza
e depois para Florença-, frequentando os mais conhecidos artistas do seu
tempo, ele próprio reconhecido (e por vezes menos estimado) pela sua
rapidez e prolixidade no ofício de pintar, era naturalmente um bom conhecedor da arte e dos artistas seus contemporâneos. Conhecendo-os de perto,
não teria necessidade de se dar ao fácil elogio, tanto mais que era já grande
a sua fama em Espanha - o que se atesta pela grande quantidade de
encomendas que obteve - e a sua enigmática exclamação diante da obra
referida diz-nos não apenas da sua admiração como, sobretudo, nos dá
notícia de uma primeira vez, de um momento inaugural em que este quadro
foi entendido como um sistema ou como uma obra sistemática.
É neste sentido de obra-sistema, de resto, que Leo Steineberg a entendeu
também, quando escreveu que "para fechar o sistema, resta ao observador
contar com a sua própria presença; quer dizer, a consciência individual que
saúda o quadro ao lado do rei e da rainha. ( ... ) Assim como a presença real
se olha a partir do interior do quadro para inspirar uma pintura, também o
observador vê o quadro oculto engendrar a sua imagem especular que por
sua vez é garantida pela presença do par real. O pintor apresenta-nos o real,
o reflectido e o pintado como três estados independentes, três modalidades
do visível que se produzem e se sucedem uma à outra num circulo perpétuo,
a realidade, a ilusão e a réplica que a arte leva a cabo. movem-se numa
circulação incessante.
Mas nada disso funciona se cada um não aceitar participar. (. . .) Somos
espelhos colocados frente a frente, eus polarizados, reflectindo cada um a
consciência do outro, num movimento sem fim; partilhando uma infinidade
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que não é espacial, mas psicológica: uma infinidade que não está presente no
mundo exterior, mas na mente que conhece e se sabe conhecida. O espelho
de "Las Meninas·•é justamente o seu emblema central, um signo do todo. "Las
Meninas " é, em si mesma, uma completa metáfora, um espelho da consciên-
cia" 1•
Tal é o sentido do termo que empregou Giordano - talvez sem o suspeitar
sequer - na sua forma precisa, quase exemplar. O termo "teologia" aplicado
à obra de Velázquez, merecerá talvez, por estas razões, que sobre ele nos
detenhamos um pouco mais atentamente.
O século XVII, como se sabe, depois de um surto neo-platónico 2 nos seus
inícios, havia revalorizado os pensamentos de Aristóteles e de S. Tomás,
formulando os princípios de uma Nova Escolástica.
Ora o termo "teologia" reaparecera justamente alguns séculos antes no
vocabulário filosófico, mais precisamente no século XII, e pela voz de
Abelardo, como designando um novo campo de reflexão de índole
lógico-especulativa quanto ao conhecimento que os homens podiam ter de
Deus. e inscrevendo a marca de uma separação entre o saber sagrado e o
saber profano.
Esta nova significação que se lhe atribuía, vinha pois instituir o ponto de
partida para um outro modelo de reflexão que se substituía progressivamente
ao plano do simples comentário sobre Deus pelos filósofos, que era como se
havia delimitado, até então, o entendimento da palavra teologia.
A teologia abelardiana e, depois. aquiniana, configurou portanto. de então em
diante, a medida do alcance de um "saber" sobre Deus que se passava a
organizar a partir de uma metodologia própria, a dialética, e que elegia o
estudo das Sagradas Escrituras como seu objecto, procurando, a partir do
Texto Sagrado, estabelecer as linhas de uma especulação racional que
ultrapassava em ambição o plano do simples comentário ou o da glosa.
S. Tomás de Aquino, continuando a desenvolver a tese proposta por Abelardo,
ao recuperar um modelo interpretativo baseado na releitura do pensamento
de Aristóteles, assumiu precisamente que se o fundamento de qualquer
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ciência consistia no estabelecimento dos chamados principias primeiros,
também a teologia, enquanto Ciência de Deus, deveria formular os seus
próprios primeiros princípios, e que estes se poderiam tomar a partir da ideia
de Revelação. Um teólogo do nosso século, reconhecido estudioso do
pensamento de S. Tomás, M. O. Chenu, escreveu a este respeito que ''pela
introdução da epistemologia aristotélica, tinha-se constituído no século XIII,
numa reflexão explícita, a teologia como ciência" 3 .
Ora aquilo que gostaria de propor aqui é que a tarefa de Velázquez, a sua
incansável tarefa, desenvolvida na mais árdua solidão com um cuidado
meditativo e fleumático - que de resto já através de certas cartas de Filipe IV
se pode testemunhar -, prende-se justamente com algo desta mesma ordem:
a tentativa de formular, através da pintura, uma ordem de construção e de
sistematização de tipo científico, a partir do estabelecimento daquilo que
também se poderia designar como os princípios primeiros da pintura.
Por isso talvez se tenha sempre recatado de muito pintar - a sua obra, apesar
de tudo, é relativamente exígua -, ou de se exercer ta presto, como o seu
jovem admirador Giordano.
•••
Velázquez trabalhava lentamente. Tal parece ser, de resto, uma das possíveis constatações a tirar dessa imagem de pincel pintado que se suspende no
gesto suspenso com que se pintou pintor.
Tudo, na sua obra, indica uma distância - uma distância que não tem em si
qualquer vestígio de desdém ou de crítica -, mas que antes se fi xa sobre os
objectos do mundo revertendo-os constantemente no idioma da pintura.
Velázquez procurou com argúcia, ou com sageza, esse idioma, a sua
gramática, à maneira quase de um teólogo.
Vejamos porém agora uma outra anotação que nos permitirá avançar ainda
um pouco mais nesta perspectiva. Continuando a seguir Chenu nos seus
passos, podemos ver que mais adiante na mesma obra escreveu este autor:
"O teólogo não conduz o seu olhar sobre as coisas, sobre as realidades
perceptíveis à experiência, sensível ou espiritual, mas sobre palavras, frases,
Verso una Teologia de la Pittura
escritos: a sua curiosidade não se renova pela descoberta de novos objectos,
mas pela leitura ainda e sempre retomada dos textos"• .
Assim também, parafraseando, se poderia dizer de Velázquez que o pintor
não lançou o seu olhar sobre realidades perceptíveis à experiência sensível
ou espiritual, ou melhor, que não se ficou por elas, como não se deteve na
descoberta de novos objectos, mas inclinou-se antes sobre palavras, frases,
escritos. Recordem-se as leituras e discussões em torno de Platão e do
neo-platonismo que se sabe eram prática corrente no atelier sevilhano de
Pacheco, sogro do artista, onde este fez a sua aprendizagem.
Julián Gál lego escreveu: "Não é que desdenhem a teoria imitativa ou naturalista tirada de Aristóteles, mas sujeitam-na à expressão da ldeia" 5• Mas não
se tratava apenas de pensar em torno dessas formas discursivas como,
sobretudo, de reflectir sobre obras da própria história da pintura - e tal terá
sido o sentido maior das suas deslocações a Itália onde não se cansou de
visitar colecções e artistas.
Do mesmo modo aliás se entenderá a presença, na parede ao fundo da sala
de "Las Meninas", de "reproduções" de obras de, entre outros, Rubens,
Jordaens e Martinez dei Maso, curiosamente genro de Velázquez que assim
introduzia uma referência familiar própria 6 .
Dito de outro modo, todos estes elementos aparentemente díspares poderão
servir para demonstrar a preocupação do artista em operar a partir de dados
que reflectiam justamente sobre aquilo que, na pintura, se lhe afigurava como
possibilidade de construção de um sistema, o que pressupunha o entendimento da pintura como uma linguagem.
Por isso "Las Meninas" nos aparece como uma fulgurante construcão linguística, um sistema em que cada signo reenvia para um outro, entre si se
referenciando, numa totalidade fechada - de onde também, e retomando os
incontornáveis princípios de Wollflin 7 , que a sua não corresponda exactamente a uma forma barroca, como o pretendem alguns autores e em particular
Maravall ª -, idêntica na sua objectualidade a um sistema de prosa e capaz,
por essa mesma razão , de traduzir na sua própria linguagem aquilo que,
noutro lugar, designei como a prosa do mundo 9 .
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Trata-se sobretudo de transformar a pintura num instrumento de revelação do
visível. E não sendo o visível, conforme seria decorrente das teorias
neo-platónicas, tão só aquilo que se dá a ver mas antes algo que está aquém
ou além da "superfície das coisas'' ou, dito de outro modo, não sendo as
coisas, na sua imediatidade, senão aparências - sombras ou cópias infieis de
uma realidade intangível -, tornar visível, para retomar a muito bela expressão de Paul Klee, outro pintor de tradição platónica, e sobretudo através da
pintura, constituiria então uma operacão de sistematização de uma ordem
(perfeita) das representações que não se deveria já apenas referir directamente às próprias coisas, mas antes a uma suspeitada essência dessas
mesmas coisas.
Ramón Gaya disse que "Velázquez não acredita na cor; mas, claro, posto a
invocar a verdade, a verdade da realidade, quis que esta acudisse completa,
inclusive com as suas máscaras de luz, com as suas figurações, com as suas
mentiras luminosas. (. . .) Velázquez desconfia da cor, mas acolhe-a, acolhe-a
caritativamente, quer dizer, sem debilidade, sem voluptuosidade" 'º·
Ou seja, ele terá procurado, retomando a fórmula de Foucault, representar a
representação na medida em que procurou representar não as coisas nelas
mesmas, realidade em que parece não acreditar, mas antes as coisas
enquanto meras representações, "essa rara inclinação sua a não ser obra, a
não ser corpórea ", nas enigmáticas palavras de Gaya ' 1•
Ou então, dito de outro modo, tornar visível aquilo em que as próprias coisas
são já representação de algo que não está nelas senão como vestígio ou
sombra de uma realidade mais essencial: tomar visível, eis no que consistiria,
resumindo então, a tarefa da representação, segundo Velázquez.
Daí que, na sua pintura, e mais em particular em "Las Meninas•, afinal um
quadro aparentemente tão troppo vero como o célebre e celebrado retrato de
Inocêncio X, tudo nos apareça recoberto de uma espectralidade, de uma
espécie de velatura, de uma atmosfera sem peso em que tempo e espaço se
confundem na dimensão terceira de uma quase identidade.
Uma identidade que vem dessa pura suspensão do tempo e do espaço, em
que alguns signos se podem detectar. Assim, a mão do pintor, qual maestro,
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que se suspende no acto de pintar, num enigmático gesto que instaura um
campo indefinido, acontecendo algures entre a hesitação e o repouso; assim,
o fidalgo Nieto Velázquez, seu homónimo, que ao fundo do quadro entra e sai
de cena ao mesmo tempo numa "oscilação imóvel", como lhe chamou
Foucault; assim, ainda, essa quase petrificação das personagens do quadro,
que parecem ter interrompido subitamente o seu murmúrio para se fixa rem
cristalizadas e silenciosas senão emudecidas num espaço de além-cena que,
mais do que qualquer outro, o olhar sereno do pintor designa, paradoxalmente
atento e distraído ao mesmo tempo.
Jonathan Brown pôde escrever: "Ao reproduzir fielmente as linhas principais
da sala em "Las Meninas" e em tal escala, Velázquez conseguiu fundir o
espaço real diante do plano da pintura com o espaço ilusionista representado
no seu interior. Esse espaço projectivo resultante estava destinado a Filipe e
Mariana, cuja presença implícita adquiria, assim, uma nova dimensão. Ao
fazer plausível a ilusão da sua presença, por outro lado, Velázquez conseguia
outro tanto tradicional a favor da pintura: o seu poder de conferir a imortalidade. A reincarnação incessante de Filipe e Mariana, proporciona-lhes uma
existência livre dos estragos do tempo e, o que era mais importante para os
objectivos de Velázquez, ficava garantida a presença dos monarcas como
testemunhas perpétuas de uma arte digna de reis, precisamente em função
dessa sua presença (... ). Se a tela que está diante de Velázquez fosse
realmente "Las Meninas" ter/amos diante de nós um soberbo conceito que
aprofundaria o significado da pintura: o rei e a rainha seriam testemunhas na
criação da própria obra de arte que declara a nobreza conferida por si mesmos
sobre a arte da pintura • ' 2 •
A figura do artista apresenta-se pois como que cheia dessa serenidade que
suspeitamos haverá de ser própria do teólogo quando interroga o texto, ou
aquilo que no texto é cifra , para melhor o decifrar através de um outro texto.
E aquilo que o pintor-teólogo ou pintor-filósofo vê, aquilo que decifra para
além do imediato visível, será não apenas a possibilidade de fundar a pintura
enquanto sistema de signos que entre si se referem , mas também como o
lugar por excelência de inscrição de uma nova subjectividade até então
ausente dos caminhos da pintura.
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Esta subjectividade configura-se, por um lado, na presença tutelar do próprio
artista como personagem soberana no interior do quadro, assumindo numa
espécie de "nominalismo pictórico" e numa "pintura na primeira pessoa"
(segundo as expressões de Maravall ' 3 os contornos de um pingo, ergo sum,
que arrasta para o interior da própria história das formas uma modalidade
reflexiva que pairava já nas formas do pensamento. Recorde-se que Descartes publicou o seu Discurso do método em 1633 e que o quadro data de 1656
e que portanto, mesmo que o artista não tenha tido conhecimento directo
desta obra fundamental, interessando-se, como se sabe, pelas obras de
reflexão e possuidor de uma rica biblioteca, não é impossível e é mesmo
provável que da obra de Descartes tenha tido conhecimento nas discussões
da culta corte espanhola, que se sabe frequentava, senão durante suas
deslocações a Itália.
Mas a presença dessa nova concepção da subjectividade encontramo-la, por
outro lado, na referência ainda, e como já o defendi noutro lugar, a uma
modalidade de comportamento que o aproxima das concepções maneiristas
de um Baltazar Gracian 1• , e onde se inscrevem, para além dos modelos de
uma nova subjectividade, também aqueles que decorrem de uma outra
concepção da própria historicidade e, correlativamente, do lugar do sujeito na
história.
Dir-se-ia então que, marcado embora por concepções neo-platónicas que lhe
haveriam de chegar, como já referi, dos anos já longínquos da sua aprendizagem sevilhana no atelier culto do seu sogro, Velázquez tentava, ao mesmo
tempo, forjar o desenho de uma nova racionalidade que decorria de uma
dupla reflexão em torno do problema do sujeito e do problema da história, na
tentativa de os conjugar através do seu instrumento por excelência, o da
representação.
O sujeito torna-se histórico justamente na medida em que, sendo embora
portador de uma subjectividade própria, pessoal, se passa a compreender e
a reflecti r num contexto progressivamente mais alargado que ultrapassa o
mero âmbito do familiar e mesmo do comunitário próximo - o da aldeia, o da
cidade-, para se inserir cada vez mais na esfera ampliada do político. No caso
do nosso artista, essa esfera delimita-se muito claramente: é a da corte.
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Esse contexto é pois, ao mesmo tempo, histórico e subjectivo, ou seja, lugar
de cruzamento do fluxo de uma experiência pessoal (ou autora!, como aqui
começa já a tornar-se muito claro) com o campo mais vasto de uma
historicidade.
Explico-me: na medida em que cada sujeito é , doravante, portador de uma
história-pessoal, que se inscreve no campo mais vasto de uma história geral
ou de uma política, relativizam-se essas noções e funda-se um novo paradigma
na compreensão de um e do outro elemento, inaugurando-se aquilo a que
propriamente se poderia chamar uma história das subjectividades.
"Las Meninas" testemunha afinal disto tudo. Se o pintor aí aparece figurado
como sujeito por excelência, tal só pode ocorrer porque a sua própria história
se cruza, se entrosa, se funde , com a história mais geral da corte espanhola,
onde ele próprio assume os contornos de personagem. Daí que não se possa
também estranhar o progressivo interesse do pintor, que os vários biógrafos
atestam, de fazer crescer a sua influência e o seu estatuto social no interior
da corte de Filipe 15 •
O sujeito torna-se, assim, sujeito histórico e portador de um sentido e de um
desejo de históri a, deslocando-se do espaço por assim dizer cinzento do
anonimato do ofício para o lugar identificável da cena da história onde se
destaca, na sua nova posição, histórica e social, de artista ' 6 •
Nesta nova concepção, muito claramente se assiste à instauração de um
outro princípio que, de momento, se deixará por aqui apenas apontado, a
saber, o de um novo espaço mental em que a consciência da história
progressivamente vai ganhando o desenho, que os séculos imediatos irão
consagrar, de uma consciência da cultura, que por essência se dicotomiza em
relacão à natureza.
Tal será também, assim me quer parecer, o sentido mais profundo do espaco
fechado tal como aparece representado em "Las Meninas". Sala vasta em que
a luz penetra sem se entender exactamente de onde chega, em que todas as
personagens são humanas - de facto , mesmo o cão deitado nos aparece
imbuído de uma domesticidade que como que o humaniza - e todo o quadro,
construído embora segundo o modelo perspéctico albertiano, aparece limita•
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do, interrompido por uma parede que inibe a profundidade de campo infinita.
E se uma porta se abre ainda no fundo, essa porta é cega, está lá justamente
para acentuar. para sublinhar, para reforçar a clausura desse mesmo espaço.
Porta que dá sobre outro espaço do qual nada conhecemos senão que pode
ser atravessado por outra personagem, no caso um fidalgo com funções
identificadas na corte, que está ali para assinalar a função de uma passagem.
Passagem que, em termos de história da pintura, é justamente a da representação da natureza à representação da pintura. Que doravante se entenderá
cenograficamente como lugar de uma cena, isto é, de um código, ou seja, de
uma linguagem, e que não se poderá representar senão como cenário onde
a história se inscreve sujeita às regras ou às maneiras de um jogo previamente codificado nos manuais da cortesia, da linguagem da corte.
Cenário pois - do mesmo modo que um jardim assinala sempre e antes do
mais um modo de organização humanizada de um espaço que antes era
natural - que por essa razão mesma se opõe a uma ideia da natureza que se
consubstanciara na história das formas a partir do Renascimento. Cenário
então da cu ltura, por oposição à natura.
Valeria a pena evocar aqui as palavras de Panofsky quando escreveu que •a
perspectiva é por natureza uma arma de dois gumes; por um lado oferece aos
corpos o lugarpara se despregarem plasticamente e moverem-se mimicamente
mas, por outro, oferece à luz a possibilidade de estender-se no espaço e diluir
os corpos pictoricamente; procura uma distância entre os homens e as coisas
(. .. ) mas suprime de novo esta distância porquanto absorve de alguma
maneira no olho do homem o mundo das coisas existentes com autonomia
face a ele (. .. ) Assim, a história da perspecliva pode, com igual direito, ser
concebida como um trunfo do distanciante e objectivante sentido da realidade, ou como um triunfo da vontade de poder humana de anular as
distâncias; ou então como a consolidação e sistematização do mundo externo;
ou, finalmente, como a expansão da esfera do eu" 11•
Assim, se todo o esforço da construção da teologia como ciência havia sido
erguido em função dos critérios de uma racionalidade emergente referida ao
estudo não apenas do Texto Sagrado como sobretudo das próprias possibi·
Verso una Teologia de la Pittura
!idades docohecimento, aquilo a que se assiste na obra referida de Velázquez,
creio, é também a uma tentativa consciente de instrumentalizar a pintura
como meio e ao mesmo tempo como veículo de comunicação do próprio
conhecimento, através de uma sistemática racionalização inscrita no modo
de construção do seu espaço interior. Daí pois a pertinência - que aqui se
entenderá também em sentido linguístico - da expressão empregue por
Giordano.
Se as coisas são representações - de um mundo ideal, de uma realidade
intangível, numa palavra, de essências - , então a verdade dessas coisas
deverá buscar-se através de uma outra representação que as apresente, que
as presentifique, na sua estrita condição de cópias. E que, por ser ela mesma
representação , será talvez mais verdadeira do que as próprias coisas,
aproximando-se mais desse ideal - ou desse conhecimento - do que das
próprias coisas que reporta .
Por essa razão também tudo o que nesta obra nos aparece imbuído de uma
ambiência espectral nos parece ao mesmo tempo animado de um movimento
em direcção à virtualização daquilo que se representa .
E, neste aspecto, o que desde logo nos aparece como o mais acabado e
perfeito exemplo desse processo de sistemática virtual ização, será justamente a própria representação virtual dos reis de Espanha.
Aparecem estes como que fixados numa imagem especular, sem consistência nem profundidade ou, melhor, num espaço virtual em que a profundidade
é invertida ao ser como que devolvida ao espaço exterior da própria representação. Devolvida a um lugar que jamais poderá ser reocupado pelos seus
protagonistas primeiros que, através desse gesto, se realizam - no sentido
em que se actualizam - no lugar do espectador.
Virtualizados os reis num espelho, estes ganham o estatuto de um símbolo no
qual se poderá rever então o espectador em situação de definitiva pertença
a uma outra realidade que passa a ser aparência ou sombra, senão mesmo
projecção de uma realidade superior, simbólica e intangível, que sobre o
mesmo espectador dimana com a sua carga de espectral essencialidade.
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•••
A propósito de Cristo escreveu ainda Chenu que. "tenha ele que pensar Deus,
o homem pensá-lo-á humanamente, quer dizer segundo o processo do seu
discurso• 18 • Esse "processo do discurso" ou, melhor, esse estatuto de uma
discursividade, leia-se de construção de um modelo linguístico ou, mais
simplesmente, de uma linguagem, parec,e ser justamente aquilo que Velázquez
procurou instituir no próprio "interior'' da pintura. Da sua pintura.
Nesse sentido vai, de resto, uma outra breve meditação, feita ao seu gosto
paradoxal, de Ramon Gaya: "Para Velázquez, a realidade, o corpo da
realidade, é algo imprescindível, mas também sem muita importância, ou
seía, é algo que sendo absolutamente imprescindível, não é decisivo; o
decisivo estará dentro, encerrado dentro, transparentando-se. Velázquez
pinta essa transparência; de aí que a realidade que acaba por nos apresentar
- tão verídica - não seja propiamente realista, quer dizer, corpórea, pesada,
avultada , mas imprecisa, indecisa, insegura, móvel, quase precária,
atrever-me-ei a dizer. A realidade nas telas de Velázquez é como uma
realidade de fumo, esfumada, nebulosa, de/gadíssima. (... ) A sua pintura, ou
o que irremediavelmente resta de pintura na sua obra - esta também
irremediável - não é nunca um canto adulador, exaltador da realidade, mas
a clara, calma, alta homenagem a um vivido centro misterioso que a realidade
transporta em si mas que não é ela" ' 9 •
Assim de resto se poderá melhor entender esse processo de quase
das-realização numa dimensão espectral que parece testemunhar-se nesse
admirável Cristo que pintou, em que à solidez e à espessura de um corpo, à
sua corporeidade, parece querer substituir-se, através de um movimento que
lhe é quase interior, uma descorporização, uma espectralização, a passagem
para uma fixação fantasmática, virtual, de um quase devir-a/ma.
Marmóreo contra uma noite escuríssima e ancestral - nunca talvez o jogo dos
contrastes entre claro-escuro terá sido tão radicalmente utilizado até então
-, situado embora ao nível de um plano de terra, o Cristo velazquenho é
testemunha, no seu próprio corpo, ou no que dele resta, de uma passagem de
um estado a outro, de uma quase cristalização da própria transparência.
Verso una Teologia de la Pittura
Ou seja, de um processo progressivo de virtualização e de descorporização
ou de transparentização rumo a uma realidade nebulosa e delgadíssima.
Quer dizer, quase sem espessura, essencial. Caminhando em direcção aquilo
que Duchamp terá pretendido designar através do termo infra-mince.
Curiosamente, aqui não é o espaço que se toma transparente, como no
espaço já quase renascentista de um Duccio, por exemplo 20 • Pelo contrário,
o espaço toma-se quase opaco, sem profundidade, ou então com a profundidade ilimitada de um buraco negro, sem fim, noite de todas as noites. O corpo,
esse toma-se, por contraste contra o fundo de espesso negrume dessa noite,
elemento quase transparente na sua lividez que é sinal da sua transfiguração
anunciada.
Assim também nas personagens de "Las Meninas". Não porque haja uma
"regressão histórica" na forma de representar o espaço, mas antes, e como
atrás tentei demonstrar, porque há quase uma negação desse mesmo espaço
em função de uma outra e nova necessidade. A necessidade de inserir,
através do artifício de um contraste com a sua opacidade material , a transparência dos próprios corpos enquanto portadores de um conhecimento que,
sendo racional, não pode deixar de ser, por isso mesmo e ao mesmo tempo,
subjectivo e histórico.
Trata-se pois, neste quadro, não apenas de elevar o género do retrato , então
menor na escala hierárquica, como assinalou Julián Gállego 21 , a um género
maior, como de o inscrever de um novo valor testimonial em que se reflectem
o ãmbito da instância subjectiva e o da instãncia histórica ou política, como
tentei defender.
Daí de facto que tudo pareça querer indicar que quer na famosa exclamação
de Gaultier - "Ou est donc le tabteau?" - quer na de Giordano já citada, se
tenha como que intuído uma espécie de fio condutor para a "razão de ser'' de
tão solitária obra na história da pintura europeia ou espanhola, não apenas da
sua época.
Mais do que uma pintura, ou do que mais uma pintura, por genial que seja,
esta não é exactamente uma obra de pintura mas antes, mais profundamente,
e como logo o intuiu Luca Giordano no seu tempo, aquilo que propriamente
se poderia designar como uma teologia da pintura, quer dizer, uma obra de
arte total.
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' Cf. Leo Steinberg, •velâzquez' Las meninas", in Octobern.• 19, 1981 , p. 55.
• Cf. nomeadamente Sylvie Deswarte-Rosa, "Neo-platonismo e arte em Portugal" in História
da Arte Portuguesa, vol. li. ed. Círculo de Leitores, Lisboa , 1995. 3 vais., p. 511 e segs.
' Cf. Pierre Chenu , La théologie comme science au Xlllême siécle, ed. Vrin, Paris, 1957. p.
10.
• Idem. p. 16.
Cf. Julian Gállego. Velázquez, ed. Alianza, Madrid, 1994, pp. 18 e segs. De resto, já em
1548 o nosso Francisco de Hollanda, em Da Pintura Antigua. ed. IN/CM, Lisboa, 1984,
escrevera: "A pintura diria eu que era declaração do pensamento em obra ves,vil e
contemplativa, e segundo natureza·. Ora J. A. Maravall. a pp. 24-25, refere justamente
Hollanda e Guevara como autores de possível repercussão sobre Velázquez.
5
• Cf. Fernando Marias, "EI genero de Las Meninas - Los servicios de la família", in VV. AA. ,
Otras Meninas, ed. Siruela, Madrid, 1995, p. 271.
7 Cf. Heinrich Wolflin, Príncipes fondamentaux de l'histoire de /'art, ed. Gerard Monfort.
Paris , 1986.
• José António Maravall. Velázquez y el espírílu de la modernídad, edição Alianza. Madrid,
1987.
• Cf. meu livro O Plano de Imagem - Espaço da representação e lugar do espectador, ed.
Ass írio e Alvim, Lisboa, 1996.
Cf. Ramon Gaya, Vélazquez pajaro solitario, ed. Biblioteca de la Cultura Andalusa,Granada,
1984, p. 31 .
10
" ln idem.
" Cf. J. Brown, On lhe meaning o/ "Las Meninas", lmages and ideas ln seventeenth spanish
painting, ed. Princeton University Press, Princelon, 1978, pp. 120 a 130.
'' Op. Cit.. p. 71 ,
" Cf. Maravali, op. cil. , p. 16.
•• Cf. Julián Gallego, op. cit.
•• Cf. J. A. Maravall, op. cit.. pp. 71 e segs. Para o caso português leia-se o estudo
tundamental de Vítor Serrão, O maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses, ed.
IN/CM , Lisboa, 1983.
" Cf. Erwin Panofsky, La perspecllva como forma s imbolica, edição espanhola , Tusquets
editores. Barcelona, 1985, p. 51.
•• Idem, p.69.
"
1n
20
Cf. Panofsky, op. c it.
21
1n
idem. p.55.
op. CII., p. 30.
Verso una Teología de la Pittura
"As Meninas• Vélasquez, 1656,
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"As Meninas" Vélasquez, 1656.
(Pormenor).
"As Meninas" Vélasquez. 1656.
(Pormenor).