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A licenciatura em Solicitadoria em Portugal: trajetória e perspetiva de futuro

2022, XVI ENESOL - Encontro Nacional de Estudantes de Solicitadoria

Comunicação apresentada no XVI ENESOL - Encontro Nacional de Estudantes de Solicitadoria, ocorrida no dia 28 de maio de 2022, no Instituto Politécnico de Beja, sobre a consolidação da relevância social, do status e do poder de influência dos(as) licenciados(as) em Solicitadoria em Portugal.

A licenciatura em Solicitadoria em Portugal Trajetória e perspetivas de futuro Começo por cumprimentar e agradecer o convite dirigido pela comissão organizadora do XVI Encontro Nacional de Estudantes de Solicitadoria que, através desta iniciativa, revela que a Solicitadoria está bem viva em Portugal e que o seu futuro também está garantido, porque este evento foi organizado por alunos (e ex-alunos) que revelaram uma enorme disciplina de trabalho e capacidade de planeamento e organização, características essenciais em futuros profissionais de excelência, o que me enche de orgulho como Professor desta Casa. Cumprimento também todas as Senhoras e os Senhores Oradores, um painel de luxo, o que representa uma honra, para mim, poder estar aqui hoje, na qualidade de orador e alguém que está sempre disponível para aprender. Cumprimento, por fim, todos aqueles que quiseram associar-se a esta iniciativa: o senhor diretor do curso de solicitadoria do IPBeja, caros professores, distintos e queridos colegas, ex-alunos, alunos, funcionários e um cumprimento especial aos alunos de Solicitadoria de outras latitudes do nosso Portugal. Sejam bem-vindos ao Alentejo e, em particular, à cidade de Beja. *** A mim, foi-me pedido que apresentasse um enquadramento geral ao tema da Mesa, tendo em consideração, desde logo, o meu modesto manual lançado em 2018 sobre as profissões (para)jurídicas, onde apresentei alguns dos desafios e questões polémicas das profissões jurídicas, em particular quando pensamos no universo da solicitadoria (algumas das quais pretendemos abordar hoje). O nosso posicionamento estratégico, enquanto professor do curso de licenciatura em solicitadoria do IPBeja desde a 1.ª edição (2010-2011), permitiu-nos consolidar uma visão sobre a evolução da Solicitadoria em Portugal. Um ramo do conhecimento e uma profissão que, alguns anos atrás, era pouco reconhecida pela sociedade e que gerava ainda muita estranheza, desde logo sobre o alcance do seu mandato. Os próprios alunos perguntavam-me frequentemente, com alguma incerteza do futuro: professor, o que posso fazer, no fim do curso, com esta licenciatura? Um desconhecimento injustificável quando, segundo os registos da OSAE, a primeira menção com referência à profissão de Solicitador surge no século XII, em 1174, com o nome vozeiro mas que, em Portugal, ganhou particular projeção a partir do ano de 2000. A certa altura na história, os solicitadores tinham o mesmo status que os advogados e os magistrados. Mas o século XX contribuiu fortemente para uma especialização, com base nas áreas científicas (o surgimento dos especialistas ignorantes, segundo Boaventura Sousa Santos) e o surgimento de Ordens profissionais cada vez mais limitadoras no acesso às profissões, sobretudo no pós-25 de abril, com a massificação do ensino. Mas os tempos são de mudança para a solicitadoria. Em particular desde o início do século XXI. Foi em julho de 2000 que se publicou o n.° 1 da Revista Sollicitare, como forma de marcar as alterações ocorridas com o novo Estatuto de 1999 e, em outubro de 2000, realizou-se o I Congresso dos Solicitadores em Lisboa presidido pelo Presidente da República, e com a presença dos Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, do ministro da Justiça e dos Bastonários das Ordens profissionais. Assim, temos verificado, paulatinamente, diversas conquistas e uma progressiva consolidação desta área de conhecimento, mas também um crescendo do status dos seus diplomados no século XXI. Assim, o solicitador possui conhecimentos jurídicos suficientes que permitem exercer funções nos mais diversos domínios, como o exercício autónomo ou através da constituição de uma sociedade de solicitadores; agente de Execução, assessor jurídico; inspetor da Polícia Judiciária; Banca e Seguros, Administração Pública (Central e Local); contencioso de empresas; mediação na área da família, penal, e nos Julgados de Paz; direção de Departamento Jurídico e de Recursos Humanos de Empresas; secretário de sociedades comerciais; entre outros setores. Mas ainda persistem algumas confusões e alguns obstáculos ou entraves no acesso a determinadas profissões que, no nosso entendimento, se devem à nomenclatura do próprio curso de solicitadoria, o que impede que os solicitadores se assumam como juristas de pleno direito; dificultando o acesso a profissões jurídicas como, por exemplo, a de notário ou magistrado. A solicitadoria nem sequer se confunde como uma profissão parajurídica, i.e., aquele conjunto de profissões cujo mandato/exercício assenta no Direito, mas que não exige profissionais licenciados em Direito. A solicitadoria é, obviamente, uma profissão jurídica, porque o seu mandato e o próprio curso de solicitadoria assentam, totalmente, em unidades curriculares jurídicas (tirando duas ou três disciplinas não jurídicas, como também acontece no curso de Direito). A interpretação é que o curso de Solicitadoria, no âmbito de concursos públicos, em que se exija a licenciatura em Direito, deve ser entendido como adequado, já que se trata de um curso superior jurídico que permite o acesso à profissão de Solicitador e Agente de Execução, com a dignidade de profissão judiciária1. É isso que é defendido publicamente por profissionais da área2. Acresce que, para o exercício dos mandatos de Solicitador e Agente de Execução, é requerido o diploma de licenciatura em Solicitadoria ou em Direito; o que significa que, estes dois cursos jurídicos encontram-se em pé de igualdade, no que se refere às competências teóricas necessárias para o cabal desempenho destes mandatos jurídicos. A caracterização das profissões jurídicas em Portugal não é pacífica. Em diversas fontes abertas encontramos propostas díspares no sentido de apresentar o universo que congrega as profissões jurídicas (como acontece com o caso da PJ). 1 Cfr. Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário. BANDEIRA, Gonçalo S. de Melo (2015), “Concursos: é a Solicitadoria equivalente a Direito?” in jornal Diário do Minho, 22, 27.03.2015, Braga: Diário do Minho. 2 Mas a solicitadoria surge sempre enquadrada como profissão jurídica. Estes entraves levaram-me, na minha obra de 2018, a propor – diria antes, a suscitar uma provocação – sobre as vantagens de vermos alterada a designação do curso de solicitadoria – para curso de Direito, neste caso, politécnico com apenas 180 ECTS (o que não é pacífico, bem sabemos, mas é apenas uma ideia para reflexão – e estamos no sítio certo para essa reflexão porque uma universidade deve representar um espaço de liberdade). Assim, em vez de nos focarmos na designação do curso, devíamos focarmo-nos no n.º de créditos e nas competências jurídicas. Uma licenciatura politécnica em Direito, de 3 anos letivos (180 ECTS) obrigaria, eventualmente, a frequentar mais um ano universitário para ficar com uma licenciatura de 240 ECTS ou somente um mestrado em Direito para aceder a diversas profissões jurídicas. Se a licenciatura em Solicitadoria representa um 1.º ciclo de estudos jurídicos, não será mais coerente passar a designar-se como licenciatura em Direito com 180 ECTS (6 semestres curriculares)3, distinguindo-se do 1.º ciclo de estudos em Direito que obriga à obtenção de 240 ECTS (8 semestres)4? Por um lado, acabavam-se os equívocos quanto ao que se trata e o alcance de um curso de Solicitadoria; e, por outro lado, permitia-se o acesso a determinadas profissões reservadas a diplomados em Direito. Poderão, em resposta, questionar: um curso jurídico de 3 anos (quando todos os cursos de Direito são de 4 anos)? Bom, por isso, é que seria uma licenciatura politécnica. Esse seria o fator diferenciador. Acresce que não seria algo de novo. 3 E cumprindo os requisitos legais impostos pela A3ES. Até ao ano letivo de 2015-2016 existia uma licenciatura em Direito (UAL) cuja duração normal era de 6 semestres (180 ECTS). Mas, a partir de 2016-2017, os 1.ºs ciclos de estudos em Direito existentes em Portugal passaram a ter, sem exceções, uma estrutura com uma duração normal de 8 semestres (240 ECTS). 4 A UAL, como todos sabem, teve, até ao ano letivo de 2015-2016, uma licenciatura em Direito com uma duração de 3 anos. Quantos juristas, advogados e magistrados formou a UAL com essa licenciatura de três anos (que foi – e continua a ser – muito procurada por ex-alunos do IPBeja)? E o que dizer da possibilidade de um cidadão ser advogado sem, contudo, ser licenciado em Direito? Sabiam que isso acontece neste momento? Que temos advogados a exercer sem o título de licenciado em Direito? No nosso entendimento, a maior fragilidade no curriculum do curso de Solicitadoria, e que dificulta o acesso à magistratura e à advocacia, diz respeito às matérias lecionadas no domínio do Direito Criminal. Na verdade, ao contrário do curso de Direito em que encontramos uma abordagem aturada do Direito Penal substantivo e processual, assente nas unidades curriculares de Direito Penal I, II e III, Direito Processual Penal I e II e Direito das Contraordenações; nos cursos de Solicitadoria estes ramos do conhecimento jurídico resumem-se, normalmente, a uma ou duas unidades curriculares; o que podia ser complementado com a frequência de um 2.º ciclo de estudos em Direito Penal. Muitos dos nossos ex-alunos costumam ter equivalência à UC de Direito Penal I; mas depois têm ainda de frequentar as restantes UCs jurídico-criminais. Vejamos, agora, o exemplo do acesso ao CEJ – um dos aspetos polémicos: Atualmente, existem duas vias de acesso (algo que tem variado nos últimos anos): A) O acesso pela via da habilitação académica: - Licenciados pré-Bolonha com 5 anos - Ou menos de 5 anos complementados com mestrado ou doutoramento em Direito - 3 provas escritas de 3 horas cada (direito civil/processo civil/comercial); direito penal/direito processual penal; e um exame de temas culturais, sociais ou económicos) - e 4 provas orais sobre temas distintos. B) O acesso pela via da experiência profissional: - Licenciados pré-Bolonha com 5 anos - Ou menos de 5 anos complementados com mestrado ou doutoramento em Direito - Experiência profissional forense ou outras áreas conexas, relevantes para as funções de magistrado, de duração não inferior a 5 anos; - 1 prova escrita de 4 horas – redacção de uma decisão com base em peças processuais, em matéria cível ou penal. - 1 prova oral. No caso da via da experiência profissional, ou mesmo da via da habilitação académica, porque não permitir que alguém licenciado em Solicitadoria com um mestrado em Direito, possa realizar as provas de acesso ao CEJ? Será assim tão descabido? Houve tempos em que: - um doutor em Direito tinha entrada direta no CEJ; - ou o grau de mestre não tinha de ser em Direito, para fomentar uma visão multidisciplinar por parte dos magistrados; - ou bastava a licenciatura em Direito (mesmo que fosse de Bolonha), sem a necessidade de mestrado, para quem concorresse pela via profissional. Já existiram, como sabemos, diversas variações no acesso. O que falta, caros alunos, é, acima de tudo, uma maior capacidade de influenciar quem tem o poder de decidir porque o Conhecimento, esse, já existe. E isso, só se consegue se começarmos a mudança dentro dos cursos de solicitadoria. É preciso que todo o corpo docente esteja focado em reforçar os três Saberes: o Saber Saber, o Saber Estar e o Saber Ser. O que significa que é fundamental uma maior magistratura de influência. Porque estamos a falar de uma profissão cujo desempenho depende da imagem que é projetada junto das pessoas, dos cidadãos, das instituições e do poder político, e que, por isso, devemos dar maior atenção à Ética, a Deontologia e, acima de tudo, a conjugação do Saber Saber, o Saber Estar e o Saber Ser (o caso, com a devida vénia, do Senhor Dr. Francisco Cravo). Ainda esta semana, o presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, o Senhor Dr. João Massano, veio defender, ao Observador (de 21 de maio), que o papel dos advogados deve ser “estar sempre ao lado do cidadão, a lutar todos os dias para que a sociedade valorize o papel social dos advogados”; e que “é indispensável uma união da classe. Devemos terminar as divisões entre nós. Não existem advogados de prática individual, não existem advogados de apoio judiciário, não existem advogados das sociedades, não existem advogados das empresas, etc. Existem Advogadas e Advogados”. Falta, no nosso entendimento, consolidar esta união e este espírito na solicitadoria. Mas já existem diversos sinais da OSAE no sentido de reforçar o prestígio, a elevação e o papel social dos solicitadores. Veja-se, por exemplo, o trabalho desenvolvido no âmbito das redes sociais e, mais recentemente, no dia 25 de maio de 2022, a OSAE realizou uma parceria com a RTP, abrindo portas para um consultório jurídico no programa “A Nossa Tarde”. Tudo isto é essencial. Mas também precisamos, desde logo nas nossas escolas superiores, investir cada vez mais na ambição, no formalismo, na atitude, no equilíbrio, na moderação, na pontualidade e na elevação no trato), em síntese: no Saber Saber, mas também no Saber Ser e Saber Estar. A sociedade nunca precisou tanto de acreditar em valores como hoje… quando parece que vivemos no relativismo e um verdadeiro retrocesso civilizacional. Não é por acaso que, noutros tempos (mas ainda hoje), qualquer aluno de Direito se distinguia dos demais. Desde logo pela forma como se vestia e comunicava. Porque, na verdade, um Aluno de Direito, era (e é ainda em algumas universidades) preparado para o futuro próximo, onde existe um papel esperado, isto é, uma atitude e um comportamento alinhados com os diversos universos profissionais jurídicos, extremamente formais, por um lado, mas também que estão fortemente dependentes da imagem que projetam junto dos cidadãos. Um solicitador sem ética, sem princípios, sem disciplina de trabalho, que não sabe tratar adequadamente quem o procura, é alguém que está condenado ao fracasso. É assim em todas as profissões. Mas há profissões, sobretudo as liberais, que dependem mais da imagem que conseguem projetar junto das pessoas, dos cidadãos, dos potenciais clientes. Na licenciatura em Solicitadoria do IPBeja, num total de 180 ECTS, existe uma UC de 5 ECTS de Ética e Deontologia Profissional que é lecionada no 2.º ano curricular. É uma das UCs com menos créditos no curso. Algo transversal em quase todos os cursos de solicitadoria. Mas também sabemos que não é uma única UC que resolve este problema. Tem de existir, como já referi, um alinhamento de todo o corpo docente na consolidação dos três Saberes; algo que sempre foi uma marca distintiva nos cursos e nos alunos de Direito (ainda hoje somos um pouco chatos com dresscode nas provas orais... mas durante o semestre é quase tudo permitido). Não é assim que preparamos futuros profissionais de excelência, futuros líderes, futuros políticos e futuros influencers da governança da justiça. Mais status significa mais poder de influência. Termino, renovando os meus agradecimentos pelo convite que me foi dirigido e desejando que a vida me dê saúde para poder continuar a testemunhar e, porventura, contribuir, para aquilo que irá seguramente acontecer na próxima década: a consolidação da relevância social, do status e do poder de influência dos licenciados e das licenciadas em Solicitadoria em Portugal. Mas sempre orientados pela luz da Ética. Disse. Beja, ENESOL, 28 de maio de 2022 Nuno Poiares