Sumário
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Capa
Folha de rosto
Sumário
Dedicatória
Epígrafe
A pele
1. 1.
2. 2.
3. 3.
7. O avesso
1. 1.
2. 2.
3. 3.
4. 4.
5. 5.
6. 6.
7. 7.
8. 8.
9. 9.
10. 10.
11. 11.
12. 12.
13. 13.
14. 14.
8. De volta a São Petersburgo
1. 1.
2. 2.
3. 3.
4. 4.
5. 5.
9. A barca
1. 1.
2. 2.
3. 3.
4. 4.
5. 5.
6. 6.
7. 7.
8. 8.
9. 9.
10. 10.
11. 11.
10. Agradecimentos
11. Sobre o autor
12. Créditos
Landmarks
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
Cover
Body Matter
Dedication
Epigraph
Table of Contents
Acknowledgments
Copyright Page
Para João, meu filho
Quem está aí?
Bernardo, Hamlet
a pele
1.
Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim.
Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você
partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de
presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será
sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade,
você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas.
No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera. Há nos objetos memórias de você, mas
parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio,
esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te recupero. É com eles
que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar. Talvez eu deseje chegar a algum tipo
de verdade. Não como um ponto de chegada. Mas como um percurso que vasculhe os ambientes e dê
início a um quebra-cabeça, um quebra-cabeça que começa atrás da porta da sala, onde encontro um
alguidar de argila alaranjada. E, dentro dele, uma pedra, um ocutá, enrolada em guias de cores
vermelhas, verdes e brancas, um orixá. Observo-a com cuidado. É assim que se adentra numa vida
que já se foi. Tiro o ocutá do alguidar. Lembro o dia em que você me disse que sua cabeça era de
Ogum, e que isso era ter sorte, porque Ogum era o único orixá que sabia lidar com os abismos. Lembro
que foi de sua boca que escutei pela primeira vez a palavra “abismo”. Há palavras que guardamos na
infância porque nos confortam. Lembro agora do que minha tia Luara havia me dito para fazer quando
encontrasse o seu Ogum. Enrole-o num pano, segure-o entre as mãos e leve-o para o rio, ela me
disse. No entanto, antes de sair, vou ao seu quarto, observo da porta: há roupas espalhadas, outras
jogadas dentro do armário. Sobre a mesa, há canetas sem tinta, meias sem par misturadas a notas de
supermercado. Há cadernos e papéis. Há pastas com provas e redações dos seus alunos. Teu caos
me comove. Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que
você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você.
Os objetos serão o teu fantasma a me visitar.
2.
Você caminha até o fundo da sala onde está o aluno que levantou a mão e, ao se aproximar, ele diz
que precisa sair. Você percebe que o rapaz não parece bem. Ele está pálido e com os olhos vermelhos.
A turma está em silêncio, alguns atentos aguardando a reação do professor. No entanto, antes mesmo
que você pense em dizer algo, o menino projeta o corpo para a frente e vomita em cima de você. Agora
a turma inteira olha na sua direção. Alguns riem. O rapaz tosse e ainda vomita mais um pouco. É o seu
segundo ano naquela escola e, dentre muitas coisas vividas ali, naquele dia você aprendeu que,
quando um aluno pálido, com olhos vermelhos, levanta a mão pedindo para sair durante uma prova, é
bom não chegar muito perto e deixá-lo ir. Depois do rapaz ser atendido, você vai até o banheiro,
evitando olhar para a própria camisa, porque não quer identificar que tipo de alimento seu aluno ingeriu
no café da manhã, mesmo que o cheiro nauseabundo lembre algo como café com leite. Nesse
momento, você recorda das vezes em que teve ânsia de vômito na escola. Foram muitas, aliás. O
estômago sempre foi a parte mais sensível do seu corpo. Quando você tinha doze anos, sentiu, pela
primeira vez, aquilo que anos mais tarde você aprenderia a chamar de ansiedade. No início, era
apenas um incômodo, mas logo surgia o suador nas mãos, os tremores, os calafrios e por fim a
náusea. Na sexta série, você teve seu primeiro ataque de ansiedade por causa de um buraquinho no
assoalho e também porque ouviu do professor de ciências que o sol iria explodir dali a alguns tantos
bilhões de anos. Seu corpo estremeceu quando você soube que o fim do mundo era real. Então você
passou semanas sofrendo pela humanidade, pelos astros, pelos planetas e pelo sistema solar. Você
passou a sofrer por aqueles que viriam depois, sofreu antecipado por todas as gerações seguintes. A
morte tomou um contorno cósmico e assombroso para o qual você não estava preparado. Lembrou-se
também do dia em que, aos vinte e um anos, parou na frente do espelho e entendeu que a vida era
caótica e não tinha muito sentido. Você volta. Seus alunos não estão mais fazendo a prova. E ainda
paira o azedume de vômito no ar. Já mandaram chamar alguém da limpeza, mas você sabe que vai
demorar, porque aquela é uma escola pública da periferia de Porto Alegre e há poucos funcionários ali.
Há poucos recursos. Os alunos estão inquietos e tudo que querem é que você cancele a prova. Mas é
preciso ser duro. Você tem trinta anos e precisa mostrar que é um professor experiente e durão. Façam
a prova e aguentem no osso. Se isso aqui fosse um quartel, vocês iriam ver o que é bom pra tosse. Na
verdade, você não consegue ser um professor durão e também nunca serviu no Exército. Aos dezoito
anos você tinha uma úlcera no estômago que te impediu de servir. Você lembra de quando um
sargento mandou você e os outros garotos tirarem a roupa e depois disse para todos vocês ficarem de
quatro, e após instantes vocês se entreolharam e alguns até chegaram a fazer menção de baixar e ficar
de quatro como ele havia mandado, mas logo em seguida vocês ouviram a risada sarcástica do
sargento dizendo que era só uma brincadeira e que era para porem a roupa de volta, porque todos
vocês iam jurar a bandeira. Disse ainda que o Exército precisava de homens fortes e não de
mariquinhas magricelas iguais a vocês. Na época, seu estômago tinha uma ferida de meio centímetro.
Quem nunca teve uma ferida de meio centímetro dentro de si, talvez pense que não seja grande coisa.
Entretanto, você sabia o que era ter uma ferida de meio centímetro, sem ter plano de saúde nem
dinheiro. Na época, você tinha dezoito anos e pesava quarenta e três quilos. Você então lembra da
primeira endoscopia que fez, sem anestesia, num hospital público de Porto Alegre. Te deram um
comprimido que apenas deixou a metade da sua língua dormente. Depois enfiaram pela sua boca um
caninho pouco mais grosso que um canudo, de mais ou menos dez centímetros de comprimento. Você
pensou que ia morrer sufocado. Enquanto seu esôfago era exibido na telinha de um aparelho, você
lembrou as doze horas de jejum que tivera de fazer até te botarem numa maca e te mandarem esperar
por mais duas horas, num corredor. Você estava a ponto de desmaiar e não sabia se de fome ou de
fraqueza, pois sua úlcera não te deixava comer, não te deixava beber e nem dormir. Na época, você
tinha dezoito anos e ainda era virgem. Durante a cerimônia vocês levantaram o braço direito, e
precisavam mantê-lo erguido até que todo o Hino Nacional fosse cantado. No entanto, você parecia
estar mais fraco nesse dia, mais do que nos outros. O sargento passou entre vocês e gritou para
levantarem o braço mais alto, porra, que jurar a bandeira era uma coisa séria e que quem não fizesse
direito ia passar a noite numa cela do quartel. Quando ele diz isso, você lembra que um dia já tinha
sido algemado como um bandido. Isso aos catorze anos, quando você estava num ponto esperando o
ônibus, em Copacabana, para ir encontrar seu padrasto. Foi então que um ônibus parou e dele
desceram alguns moleques que apontaram para você dizendo: foi ele, foi ele. Você não tinha a mínima
ideia do que estava acontecendo, e num impulso decidiu correr e, ao olhar para trás, viu um monte de
gente correndo atrás de você. E por instinto de sobrevivência você entrou numa galeria de lojas, na rua
Barata Ribeiro. Você entrou no primeiro lugar aberto que encontrou: uma igreja evangélica Assembleia
de Deus. Aos trinta anos você até pensou que deveria ter se tornado pastor para retribuir sua salvação.
Você entrou e se escondeu atrás de um dos bancos. A igreja estava vazia. Ficou ali, quieto, esperando,
escutando a própria respiração. Mas então ouviu gritos: ele tá aqui, ele tá aqui. E de repente a igreja foi
invadida por sabe-se lá quantos daqueles moleques sedentos por vingança. Um deles te achou e te
apontou. Em instantes vieram todos para cima de você. Socos e chutes na cabeça, na barriga e no
rosto, até você começar a sentir o gosto enjoativo do sangue. Você não ofereceu nenhuma resistência,
apenas se colocou em posição fetal e tentou dizer: eu não fiz nada. Depois começou a perder os
sentidos. Então alguém sacou uma arma e apontou para a sua cabeça, você ainda pode ouvir um deles
gritando: nós vamo te passar, neguim, tu vai morrê agora, neguim. No entanto, antes que te matassem,
porque não era ali que você morreria, você foi milagrosamente salvo por um dos pastores da igreja. Ele
interveio dizendo: pelo amor de Deus, gente, em nome de Jesus, respeitem a casa do Senhor, vocês
não vão matar ninguém aqui dentro. E, por algum outro milagre, aqueles moleques todos pararam de te
bater e se afastaram. A igreja foi esvaziada. Você não chorou porque não teve tempo para isso. Você
apenas sentia uma enorme dor na cabeça e percebia que um de seus dentes da frente estava mole,
sabia que poderia perdê-lo e por isso evitava passar a ponta da língua nele. Você foi levado algemado
para uma delegacia. Foi a primeira vez que você sentiu o ferro frio de uma algema nos pulsos. Ao seu
redor, pessoas te xingavam e te chamavam de ladrão e ainda diziam que daquela você não escaparia.
Somente na delegacia as coisas foram esclarecidas: você havia sido confundido com um bandido.
(Acharam que você tinha roubado o boné de um daqueles moleques.) E ser confundido com bandido
vai fazer parte da sua trajetória. E você vai custar a compreender por que essas coisas acontecem.
Finalmente o Hino Nacional terminou e seu braço pôde descansar. Você não via a hora de voltar para
casa. Acontece que não tinha dinheiro para voltar para casa. Sabia apenas que teria de passar por
baixo da catraca do ônibus. Mas não, você não ia fazer isso. Você estava com dezoito anos, pesava
quarenta e três quilos, tinha uma úlcera no estômago, mas ainda tinha dignidade. Você vai entrar e
sentar no fundo do ônibus. Quando chegar o mais próximo da sua casa, você vai levantar e descer
correndo, sem pagar. O sinal da saída toca. Os alunos levantam e te entregam a prova. Você não está
bem. Após alguns períodos e um vômito na camisa, você só quer ir para casa, tomar um banho e
descansar. Mas você não pode fazer isso, porque tem mais dez períodos de cinquenta minutos pela
frente. Você se transformou numa máquina de dar aulas. Numa máquina de dar explicações. Numa
máquina de ei, já pedi silêncio. Numa máquina de ei, preste atenção. Uma máquina de não pode ir ao
banheiro agora. Numa máquina de paciência para não espancar aqueles alunos que não querem saber
nada de orações subordinadas. Você também não quer saber de orações subordinadas. Mas escola foi
feita para isso. Foi feita para aborrecer os alunos. E você sabe que é parte dessa chateação. A cada
turma que você entra, a cada hora gasta da sua vida, você vai sentindo que está no lugar errado. Você
precisa ser honesto consigo mesmo: você não sabe como se tornou professor. A maioria das coisas
importantes na sua vida parecem ter acontecido alheias a sua vontade. Você mal se lembra do
vestibular que fez para o curso de letras, na única universidade que você conseguiria pagar. E você só
frequentou uma faculdade porque trabalhou como office boy durante um ano num escritório de
advocacia, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Lembra o dia em que um dos sócios foi
entrevistá-lo para a vaga, você tinha dezenove anos. Ele se chamava Bruno Fragoso. Tinha quarenta e
dois anos. Era um homem baixo, calvo, de rosto angulado e, embora não fosse fumante, tinha voz
rouca de fumante. Ele te fez esperar por quarenta minutos, porque queria parecer ocupado e
importante, no entanto, anos mais tarde, você descobriria que ele, na verdade, ficava na frente do
computador jogando paciência ou vendo pornografia. Depois do tempo de espera, Bruno apareceu,
apertou sua mão, sentou-se na sua frente e ficou te observando. Você tinha dezenove anos mas ainda
não sabia muita coisa sobre autoestima, nem sobre se valorizar e essas coisas necessárias para
manter a sanidade, por isso você não conseguia olhar por muito tempo nos olhos dele. Bruno percebeu
isso. Você era tudo que ele precisava. Você era uma presa fácil. Assim, com total domínio da situação,
Bruno disse, com muita naturalidade, que não gostava de negros. Você levantou os olhos. Bruno não
se intimidou e repetiu a frase: não gosto de negros. Talvez ele esperasse alguma reação sua. Mas
nada aconteceu. Você permaneceu imóvel. Depois, Bruno se ajeitou melhor na cadeira e justificou: não
gosto porque, quando eu tinha um sítio em Garibaldi, um casal de negros, que trabalhavam para mim
como caseiros, me roubou. Levaram tudo que eu tinha na minha casa. Desde então, não confio mais
em negros. Até aquele momento você nunca havia sofrido racismo, assim, tão descaradamente, não
que você se lembre. Mas você não se chocou, pois uma espécie de inércia tomou conta do seu corpo,
você não sabia reagir. Na época, você nem sabia muito bem o que significava ser negro. Não havia
discutido nada sobre racismo, nada sobre negritude, nada sobre nada. Naquele momento você era
apenas um corpo negro. Mas no fundo sabia que estava diante de um escroto. Mesmo assim você não
reagiu. Bruno seguiu com a entrevista, disse que ia te dar uma chance, porque achava que podia te
salvar das drogas, mesmo que você nunca tivesse experimentado drogas. Ele também queria te salvar
das armas e da violência. Bruno ainda acreditava que, se todo empresário fizesse sua parte, o Brasil já
teria tomado jeito. Se alguém te perguntasse como você tinha sobrevivido até ali, com tantas chances
que a vida tivera para te matar, provavelmente você pensaria que tudo não havia passado de um mero
acaso, o mesmo acaso que um dia tinha levado sua mãe, caixa de um supermercado em Bangu, no
Rio de Janeiro, no ano de mil novecentos e setenta, a se apaixonar por seu pai, fiscal do mesmo
supermercado. Sua mãe um dia te disse que se apaixonou por seu pai porque ele era parecido com o
jogador Rivelino. Aquele bigode preto, grosso e bem cuidado. Aquele sorriso tímido e aqueles olhos de
quem está sempre pedindo alguma coisa. Ele era um homem de poucas palavras e sua mãe gostava
de homens de poucas palavras. Um acaso os aproximou e a atração fez com que sua mãe encontrasse
a coragem suficiente para quebrar as regras conservadoras da época e, ela mesma, convidasse seu
pai para sair e tomar uma cerveja. Mas seu pai não bebia, seu único vício era o cigarro. Sua mãe tinha
vinte e dois anos e ainda era virgem. Quando disse isso ao seu pai, ele ficou olhando para ela como
quem dizia que aquilo era impossível, que aquilo não podia ser. No entanto, sua mãe, ofendida, afirmou
que era virgem. Seu pai desconfiou, depois riu e bebeu um gole de Sukita. Pôs o copo na mesa e olhou
para ela com malícia e desejo. Pensou que havia tirado a sorte grande. Ele quis contar, dias depois,
para o Amauri, que trabalhava na seção de hortifrúti, que sua mãe era virgem ainda, que ele tinha se
dado bem, vejam só, uma virgenzinha nos dias de hoje. Mas, no fim, seu pai preferiu guardar aquele
segredo para si. Não era um homem de partilhar a intimidade. O namoro começou rapidamente e você
vai nascer dali a um ano. Em poucos meses eles se casaram e foram morar num sobradinho, na Lapa.
Mas, antes do casamento, foram até a casa da Mãe Teresa de Iemanjá. Uma mãe de santo do seu pai.
Foram pedir a bênção dos orixás. No entanto, quem os recebeu foi o exu Zé Pelintra. Vossumcês,
mizifio, vão ter um fio de Ogum. A guerra vai fazer parte da vida dele, Mizifio. E ele riu. Gargalhou. Na
noite em que sua mãe se deitou com seu pai, na noite em que você foi gerado, os dois estavam em
completa sintonia, era como se todos os planetas estivessem alinhados para eles. Estavam
apaixonados, sentiam que algo importante iria acontecer com a vida deles, nada tinha o poder de detêlos. Bruno Fragoso dirigia o escritório com a irmã. Depois que você foi admitido, você percebeu que
quem mandava mesmo no escritório era o Bruno. Isso vai fazer toda a diferença nos próximos meses
em que você vai trabalhar ali. Nesse período, você ganhou peso, sua úlcera fechou e não havia mais
uma ferida aberta no seu estômago, mas às vezes, quando você chora, quando lembra que pode
chorar, você tem a sensação de que aquela ferida de meio centímetro sempre esteve dentro de você,
desde o momento em que nasceu até a sua vida adulta. Bruno Fragoso era branco, rico, gostava de
mulheres bonitas e carros importados, todo tipo de clichê possível para um homem branco e rico. O teu
colega e amigo de infância, o Juarez, disse uma vez que ele era um babaca. E, depois de ouvir aquilo,
sempre que vocês queriam falar do chefe, vocês usavam a palavra “babaca”. Juarez era branco, vindo
do interior. Depois de terminar o ensino fundamental, tinha vindo tentar a vida em Porto Alegre e
custara a conseguir o emprego naquele escritório. Vocês se conheceram na Escola Estadual
Monsenhor Leopoldo Hoffmann, no período noturno. Você tinha dezessete, e o Juarez quinze. Ele veio
para a capital, deixando a vida pacata do município de Sertãozinho do Sul, porque não queria ser igual
ao pai, queria estudar e sair de lá. Sua família era branca, a maioria das pessoas daquele lugar eram
brancas, mas depois da morte da mãe do Juarez, poucos meses depois, o pai dele resolveu casar com
uma bugra (como eles na cidade se referiam aos descendentes de índios). E foi aí que a família de
Juarez descobriu que preconceito existia. Na cidade, ninguém entendia por que o pai de Juarez havia
se casado com uma bugra, pois os indígenas e seus descendentes eram malvistos. Juarez e seus
irmãos vieram embora porque achavam aquela cidade mesquinha demais para eles. Além disso, a
pobreza sempre os espreitava. Sozinhos, e com o pouco de dinheiro que conseguiram juntar capinando
pátio alheio, saíram de Sertãozinho do Sul. Ao chegarem na capital, eles não conseguiram logo um
emprego. O dinheiro que trouxeram do interior terminou rápido. E, para piorar, a convivência entre os
irmãos não era boa, principalmente depois que Juarez descobriu que Júlio, o irmão mais velho, tinha
começado a vender drogas. Certo dia, eles discutiram, Juarez disse que não foi pra isso que a gente
veio pra Porto Alegre, não foi pra isso. E se o pai descobre uma merda dessas. O irmão mais velho
disse para ele não se meter, que só estava tentando sobreviver. E foi nesse dia que o Juarez viu uma
arma pela primeira vez na vida. Um revólver trinta e oito. E ele estava na cintura do irmão. Juarez
custou a crer naquilo. Mas Júlio minimizou a situação. Ei, guri, isso aqui é só pra me defender, certo?
Não te preocupa. Nunca vou usar isso, ele disse, exibindo a arma. Tu sabe que passar a vida na
miséria é foda. Tu sabe muito bem o que a gente teve que aguentar naquele fim de mundo, e eu não
vou passar por isso de novo, mano. Não vou ficar aqui passando fome, tá ligado? Ao escutar aquilo,
Juarez até se sentiu mal por ter condenado o irmão daquela forma. Afinal, ele sabia o que era passar
fome. Talvez Júlio tivesse razão. Voltar a ser miserável, voltar a não ter o que comer, a não ter o que
vestir, não, isso não. Em algumas semanas, Juarez foi convencido e começou a vender drogas junto
com o irmão. Quando você sai da escola, tem a sensação de que fracassou novamente com os alunos.
O menino que vomitou em você ficou bem. Mas você não. Ir para casa é uma das poucas coisas que te
dão prazer ultimamente. Você também deixou de ir ao terreiro da Mãe Teresa de Iemanjá. Primeiro, a
desculpa foi falta de tempo, depois você se acomodou, e a única coisa que você preservava de sua fé
era o seu Ogum, simbolizado num ocutá, que você punha atrás da porta. Ao chegar, abre a geladeira e
lá dentro não há nada além de uma garrafa de água e sachês de mostarda. Sobras de um
cheesebúrguer que você pediu ontem. Precisa ir ao supermercado. Você continua olhando para a
geladeira e lembra que agora aquele espaço vazio é uma opção sua, porque teve preguiça de ir ao
supermercado, enfrentar fila e tudo mais. Hoje você tem um pouco mais de dinheiro, mas não tem
paciência. Você volta a lembrar do Juarez quando também tinha a geladeira vazia. Na época seu amigo
já havia terminado o ensino médio e começara a trabalhar numa rede de supermercados como
empacotador. Doze horas por dia. Ganhava pouco. Muito pouco, só o suficiente para pagar um
quartinho que dividia com outro rapaz. Um dia, você e o Juarez foram a uma danceteria. Ele disse a
você que estava preocupado com o irmão vendendo drogas. E que ele tinha medo de continuar
naquela vida. Não te contou que também havia começado a vender drogas. Aquela era a danceteria
preferida de vocês. Tocava muita coisa: charme, rap e funk. Tim Maia e Racionais MC’s eram o ponto
alto da festa. Vocês treinavam os passinhos de dança em casa, para chegar lá e impressionar as
garotas. Na época, vocês sabiam que só teriam chance com elas se soubessem dançar. Ao som do
“Rap da diferença” (“Qual a diferença entre o charme e o funk…”), vocês começavam a circular pelo
salão atrás das meninas. Mas acontece que vocês nunca eram bem-sucedidos. Vocês eram magros
demais, feios demais. Então, para compensar, vocês rebolavam, suavam e nunca erravam os
passinhos. Mesmo assim vocês não tinham chance. Faltava em vocês o carisma dos pegadores. As
garotas simplesmente não olhavam para vocês. A noite avançava, e você e o Juarez iam embora sem
ter ficado com ninguém. E foi assim durante quase toda a adolescência. Na saída das danceterias, já
ao amanhecer, vocês ainda tinham de escolher entre comer um cachorro-quente e pegar um ônibus
para ir para casa. Mas a fome era maior. Vocês então voltavam a pé para casa e dividiam um cachorroquente. Vocês eram jovens, portanto uma caminhada de cinquenta minutos, após uma noite correndo
atrás das meninas e executando passinhos, não era grande coisa. Quando você chegava, sua mãe
abria a porta, dizia que não tinha dormido porque havia passado a noite inteira preocupada, que a
cidade de Porto Alegre estava ficando muito violenta. Você a escutava, com paciência, mas tudo que
você queria era deitar na sua cama, se masturbar e dormir. E era isso que você fazia. Aliás, você
descobriu a masturbação por volta dos dez anos, e desde então aprendeu o quanto ela te fazia bem,
em determinados momentos. Aos dez anos você ainda não ejaculava, mas, nas primeiras vezes que se
masturbou, você não fazia ideia de que essa prática seria a sua companheira de solidão. Depois de se
masturbar pensando nas garotas que você tinha acabado de ver e não te deram a mínima, uma
espécie de vazio seguido de sonolência e lassidão tomava conta do seu corpo. Agora, passados tantos
anos da sua adolescência, toda vez que você acorda e põe a mão ao lado na sua cama, você se
pergunta se não deveria ter insistido com Elisa. Se não deveria tê-la perdoado. Mas não, você se
tornou orgulhoso demais. Você tem cinquenta e dois anos e não sabe mais perdoar. Você levanta, é
sábado, dia ensolarado. Vai dar uma volta pelas ruas de Porto Alegre. Você põe os fones de ouvido e
sai escutando “Abundantemente morte”, do Luiz Melodia.
3.
Às vezes, você se sentia intrigado por ter se casado com a minha mãe. Certa vez uma amiga em
comum sentenciou sobre a união de vocês: o que começa mal termina mal. Era um lugar-comum. Mas
havia nesse clichê toda a verdade desse mundo. Mesmo passados tantos anos você não compreendia
como resolvera juntar sua vida com a dela. Desde o início, nunca foram compatíveis. Talvez eu esteja
simplificando as coisas. A verdade é que vocês não se amavam o suficiente para suportarem os seus
fantasmas. Vocês eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com seus cacos. Cada um
buscando uma escora. O amor como muleta. Naquele momento, a vida já havia tirado tanto, que vocês
achavam injusto que o amor não pudesse servir como amparo. Acontece que, em vez de buscarem
algo que pudesse reconstituir os afetos, vocês resolveram se cortar com o que restou. Laceraram um
ao outro porque, a certa altura da vida, as pessoas perdem a capacidade de amar. Quando minha mãe
te viu pela primeira vez, ela achou que você fosse um rapaz tímido, magro e sem graça. Na verdade,
você era mesmo um rapaz tímido, magro e sem graça. Você não falava muito. Não chamava atenção.
Era inteligente, mas poucos sabiam disso. Entretanto, quando você começou a namorar a Suellen, uma
moça loira, de classe média, vinda de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, minha mãe passou a
te notar. Não só ela, mas muita gente. Ninguém entendia muito bem como aquele namoro aconteceu.
Em pouco tempo você e a Suellen passaram a ser o assunto dos corredores daquela pequena
faculdade particular em Porto Alegre. O centro das atenções. E por um único e simples motivo: você
era negro e ela era branca. Não que outros casais iguais a vocês, em meados da década de mil
novecentos e noventa, já não existissem, mas ainda assim vocês chamavam atenção. Alguns
comentários racistas nunca chegaram diretamente a você, mas eles aconteciam a sua revelia. Na
verdade, Suellen foi a segunda namorada branca que você teve. Então, de certo modo, você já sabia
lidar com essa situação, porque, antes da Suellen, você teve a Juliana. Uma moça ruiva, de dezenove
anos, moradora de Gravataí. Vocês se conheceram numa festa, como aquelas a que você e o seu
amigo Juarez costumavam ir. Foi com Juliana que você começou a desconfiar da sua situação como
homem negro no sul do país. Foi caminhando de mãos dadas com ela, pela rua da Praia, no centro de
Porto Alegre, que você começou a notar os olhares, às vezes acompanhados de piadas racistas.
Vendedores ambulantes dizendo, à boca pequena, que ela só poderia estar com você por dinheiro.
Pois uma branquinha daquelas com um neguinho desses, ha ha, não, não podia ser. Entretanto, no
começo, você e a Juliana não falavam sobre isso. Pois esse assunto ainda não importava. Vocês até
chegaram a achar que o racismo não tinha nada a ver com o amor. O afeto transcende a cor da pele,
vocês pensavam. No entanto, naquele mesmo ano em que o Plano Real entrou em vigor e você pôde,
pela primeira vez, ver que moedas tinham algum valor de compra, que as maquininhas de remarcar
preços nas prateleiras dos supermercados sossegaram, você conheceu o professor Oliveira. Será com
ele que você tomará consciência de si e do mundo branco em que está inserido. Oliveira era poeta e
professor de literatura. Usava cabelo black power. Barba grande. Você ficou impressionado com aquele
professor negro que falava de Shakespeare e Ogum com a mesma intensidade e beleza. A partir dali,
sua vida não seria mais a mesma. Mas, enquanto isso, você e a Juliana partilhavam da mesma visão
de mundo. Acreditavam que raças não existiam e que a humanidade era a única coisa que havia. Na
primeira vez que ouviu falar em consciência negra, você não compreendia que a sociedade se
importava mais com a sua cor do que com o seu caráter. E, quando você foi apresentado à família de
Juliana, quando naquele almoço de domingo o tio dela de cinquenta e quatro anos, o Sinval, um
motorista de Kombi escolar, te chamou de negão, você não se importou. Não se importou porque aquilo
significava algum tipo de intimidade, e você, enfim, estava sendo aceito pela família branca da sua
namorada. Acontece que, em pouco tempo, você não só passou a ser o negão da família, como
também passou a ser uma espécie de para-raios de todas as imagens estereotipadas sobre os negros:
pois disseram que você era mais resistente à dor, disseram que a pele negra custa a envelhecer, que
você deveria saber sambar, que deveria gostar de pagode, que devia jogar bem futebol, que os negros
são bons no atletismo. Você não corre? Que os negros são ruins como nadadores, já viu algum negro
ganhar medalha olímpica na natação? Agora, olhem lá nas corridas. Vocês ganham tudo. É porque
desde cedo aprendem a correr dos leões na África, não vê como aqueles quenianos sempre ganham a
São Silvestre? Enquanto isso, a Juliana, por sua vez, era bombardeada pelas primas e amigas que
nunca tiveram um namorado negro: e então, como ele é? Tem pegada mesmo, como dizem dos
negros? E o pau dele? É grande? É verdade que eles são insaciáveis? Qual o cheiro dele? Juliana
ficava incomodada mesmo querendo parecer natural. Não queria falar sobre aquilo, não daquela forma.
Em poucos meses vocês perceberam que a cor da pele era algo importante e que não poderia mais ser
ignorado no relacionamento de vocês. Não demorou muito para que Juliana começasse a te chamar
carinhosamente de meu nego e você começasse a chamá-la carinhosamente de minha branquinha. E,
às vezes, depois de terem feito amor, vocês punham o braço um ao lado do outro e contemplavam a
diferença de cor. Achavam bonita aquela mistura e, de maneira muito hipotética, vocês imaginavam
como seria um filho de vocês, pensavam na aparência dele, no tipo de cabelo e no tom de pele.
Pensavam que iriam ensiná-lo a não se preocupar com isso. Iriam educá-lo sem preconceitos. Brancos
e negros são iguais, e isso é que importa. Somos todos seres humanos, iriam dizer a ele. Depois,
vocês se beijavam e acreditavam que eram boas pessoas. E então, ao caminhar pela rua, vocês
prestavam mais atenção nos olhos das pessoas que passavam, e notavam que elas se incomodavam.
Mas vocês não. Vocês até gostavam daquilo. Vocês estavam juntos desafiando a sociedade hipócrita.
Quando você entrava sozinho numa loja e recebia um tratamento frio e desconfiado por ser negro, se
dava conta de que, quando Juliana entrava e te beijava, os vendedores te tratavam melhor. Uma
mulher branca com um negro, ele deve ser um bom homem. E por algum tempo você passou a gostar
disso também. A presença de Juliana te dava uma espécie de salvo-conduto em certos ambientes.
Porque, quando você estava com ela, você não era qualquer negro diante dos outros. Você era
especial. E não demorou muito para que aquela história de raça fosse para a cama junto com vocês.
Pois a diferença de cor que antes era algo bonito, delicado e político, agora passou a excitá-los. Um
conjunto de discursos raciais foi rapidamente transformado em erotismo. Vem, minha branquinha. Vem,
meu negão. Chupa a tua branquinha. Chupa o teu nego. Adoro a tua pele branquinha. Adoro a tua
pele, meu nego. Adoro tua boceta branca. Adoro teu pau preto. E de repente vocês gozavam. E dali
para a frente será sempre assim que irão gozar. Então, sorrateiramente a raça ocupou um espaço em
suas vidas e vocês nem perceberam. Não havia mais volta. O amor estava condicionado e mediado
pela raça. O afeto e o desejo, dependentes de mais ou menos melanina. Em seguida, o namoro de
vocês evoluiu para uma aliança de compromisso. Assim, os almoços na casa da avó de Juliana com os
tios e primos dela começaram a ficar ainda mais frequentes. A intimidade com o negão da família
aumentou. As piadas sobre negros agora eram contadas sem nenhum pudor. Eles te tornaram
cúmplice. No início você ria, porque queria continuar agradando e mostrar que era superior a tudo
aquilo, mas, aos poucos, você ia sentindo que não queria mais ouvir certas coisas. E, às vezes, quando
se sentia mal com algum comentário, você se afastava. Procurava um canto qualquer onde pudesse se
isolar. Um dia, o tio Sinval, percebendo o teu incômodo, passou a mão numa latinha de Brahma e foi ao
seu encontro, te ofereceu cerveja e perguntou se você ficara ofendido com alguma coisa, se sim, que
não ficasse, porque aquilo era só uma piada. Só uma brincadeira. Em breve tu vai se casar com a
minha sobrinha, vai ser da família. Tu não tem piadas sobre brancos? A melhor defesa é o ataque, filho.
Tu deve saber alguma sobre brancos, não sabe? Diz aí. Ele esperou alguma reação sua. Mas você não
respondeu. Apenas aceitou a latinha de Brahma e sorriu constrangido, depois olhou para a Juliana, que
estava sentada com a mãe e as tias. Elas riam e naquele momento você quase acreditou que era você
o motivo do riso delas. O tio Sinval passou o braço sobre os teus ombros e te levou de volta para o
grupo. Aquilo era intimidade, você pensou. Quando Juliana foi apresentada a sua família, não a
trataram muito bem. Exceto a sua mãe, que ficou olhando para aquela moça muito branca e já
vislumbrando um neto mais clarinho, com o cabelo bom e traços mais finos. Livre de preconceitos, ela
pensava. Mas tuas irmãs, principalmente a Luara, teve implicância com ela. Com tanta mulher negra
por aí, por que meu irmão vai se juntar com uma branquela sem graça dessas?, ela pensou. E, sempre
que podia, Luara dizia algo sobre os resquícios da escravidão, sobre as dificuldades de conseguir
emprego por causa da cor e sobre como os brancos eram racistas em Porto Alegre, isso sem falar no
interior do estado. Mas Juliana não parecia incomodada, porque não pensava que se enquadrasse
naquele discurso da cunhada, afinal ela estava namorando um homem negro, tinha um compromisso
com um homem negro e isso já bastava para que fosse absolvida de qualquer racismo, ela pensava.
Luara era dois anos mais nova que você, entretanto sempre pareceu mais madura. Ela nunca teve um
namorado branco. Na verdade, poucos homens brancos olhavam para ela. E, quando percebeu que
isso era devido a sua pele retinta, quando notou que os homens brancos não gostavam do cabelo dela,
quando entendeu que ela só servia como fetiche sexual, Luara passou a rebater o mundo branco
sempre que podia. E você só foi entender de fato a situação de sua irmã quando você conheceu o
professor Oliveira. Na época, você se preparava para prestar o vestibular, graças a uma ONG que
mantinha um cursinho para pessoas negras numa igreja. Naquele momento, você não sabia bem o que
queria fazer. Na verdade, você estava perdido, porque, até ali, a vida não passava de um amontoado
de obstáculos que você tinha de superar. Resistir fazia parte da sua vida e você nunca havia se
questionado por que as coisas eram assim. Nunca se questionou por que era pobre, nunca se
questionou por que vivia sem pai. Nunca se perguntou por que a polícia o abordava na rua com tanta
frequência. A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela. Mas, quando o
professor Oliveira contou para sua turma sobre Malcolm X, quando vocês conversaram sobre Martin
Luther King, quando pela primeira vez você ouviu a palavra “negritude”, o seu entendimento sobre a
vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava.
Foi com o professor Oliveira que você descobriu que as raças não existiam. Numa única aula você
aprendeu que a raça era uma mentira. Que a sua cor era uma invenção cruel e orquestrada pelos
europeus. Descobriu que a escravidão negra foi sustentada por discursos racistas a partir do século
XVIII. Ouviu o professor Oliveira falar sobre como tudo isso tinha começado. Anotou quando ele
escreveu no quadro alguns nomes, como, por exemplo, o de Lineu, um botânico sueco que começou a
dividir a humanidade em raças de acordo com a origem e a cor da pele: os europeus, os americanos,
os asiáticos, os africanos e os malaios. Você anotou tudo porque estava estupefato. O conhecimento
nunca o havia atingido daquela forma. Depois você anotou outro nome: Johann Blumenbach, um
zoólogo alemão que seria o primeiro a atribuir cor à humanidade, e que, nos seus estudos, em meados
do século XVIII, dividiu os seres humanos em brancos, vermelhos, amarelos, marrons e pretos. Você
continua com suas anotações, ninguém interrompe a exposição do professor, alguns porque estão
quase dormindo e talvez não se importem com essa história de raça; mas outros, como você, porque
estão realmente interessados. Oliveira anota mais um nome no quadro e diz para jamais esquecerem
dele: Arthur de Gobineau, o pai do racismo, ele completa. Foi este sujeito aqui quem aproximou o
conceito de raça do discurso político. Não esqueçam dele, ele repetiu. Foi Arthur de Gobineau quem
afirmou que as raças protagonizaram as lutas pelo poder e que, portanto, haveria raças inferiores e
raças superiores. Depois dele, outros estudiosos da raça vieram e agregaram mais valores científicos
para comprovar que os negros pertenciam a uma raça menor. Então, o professor Oliveira projetou um
crânio na lousa e perguntou se era possível definir o caráter de uma pessoa apenas olhando para
aquela imagem. Se podiam dizer se se tratava de uma pessoa mais ou menos inteligente. Ninguém
disse nada, porque não queriam desapontá-lo com alguma resposta idiota. Então, o próprio professor
Oliveira respondeu: é claro que não podemos. Mas as teorias racistas dos séculos dezoito e dezenove
acreditavam que sim. Entretanto, do ponto de vista científico, seria um absurdo, um engodo, um
embuste, ele dizia. E você gostava quando o professor Oliveira dizia palavras difíceis, pois anotava
todas elas para mais tarde procurar seus significados. Seria um absurdo, continuava ele, porque a
comprovação daquelas teorias era completamente arbitrária. Eram teorias que serviam apenas para
fortalecer e sustentar o discurso racista da escravidão. E, ao ouvir tudo aquilo, você não via a hora de
encontrar com a sua namorada Juliana e poder dizer a ela tudo que havia descoberto na aula. Naquele
dia você saiu do cursinho como se tivesse descoberto o segredo da vida. E dois dias depois, quando se
encontrou com Juliana, você falou atropeladamente o que lembrava daquela aula, que para você tinha
sido espetacular. Juliana ficou feliz por você. E, sempre que podia, você citava o professor Oliveira.
Sempre que podia, imitava até o seu modo de falar, o professor Oliveira virou um modelo para você. No
entanto, sem que você percebesse, Juliana passou a comentar menos o assunto. Na verdade,
passadas algumas semanas, ela começou a ficar incomodada com toda aquela história de raça,
preconceito e negritude. Por vezes, ela chegou a pensar que o professor Oliveira não passava de um
fanático e que você estava indo para o mesmo caminho. Mas ela não te disse nada de início, porque
não tinha coragem e não queria te magoar. Então, sempre que podia, Juliana mudava repentinamente
de assunto. Além disso, os almoços de domingo na casa da avó dela tornaram-se cada vez mais
difíceis para você, não que os parentes de Juliana tivessem aumentado as piadas e comentários
racistas que faziam, mas é que agora você começara a ter um pouco mais de consciência. Então, certo
dia, ao saírem dali, você disse à Juliana que preferia parar de ir àqueles almoços. Ela te perguntou o
porquê, e você respondeu que não queria mais ouvir aquele bando de racistas te chamando de negão
toda hora, e que você tinha um nome e talvez eles nem soubessem que seu nome era Henrique.
Juliana não disse nada. Preferiu ficar quieta, porque não queria brigar. Ela estava magoada com o que
você tinha dito dos tios. Eles não são racistas, só não estudaram o que você estudou. Mas, quando
vocês estavam no ônibus, voltando para Porto Alegre, Juliana disse que estava triste com seu jeito, que
você tinha mudado e que já não sabia brincar. Agora você levava tudo muito a sério. Agora para você
tudo era racismo. Você não era assim. Será que não podemos ser como antes? Ao escutar aquilo, você
não sabia muito bem como reagir. Você estava com raiva. Não acreditava no que estava ouvindo.
Queria ser ponderado, mas você tinha apenas dezenove anos e não sabia ser ponderado. Vocês
chegaram ao interior do labirinto afetivo. O mesmo que você enfrentará toda vez que se relacionar com
mulheres brancas. Antes de descer do ônibus, você a chamou de egoísta, disse que ela não estava
nem um pouco preocupada com você e com o jeito que os parentes dela o tratavam. Juliana tentava
ser ponderada e até carinhosa. Ela te chamou de meu nego. Num rompante, você a proibiu de chamálo assim. Não sou teu negro. Não sou teu preto. Meu nome é Henrique. Juliana pediu para você não
gritar, disse que não precisava fazer escândalo. Acontece que você já não se importava com o que iam
pensar de vocês. Então, Juliana começou a chorar e você desistiu de descer do ônibus. Você sentia
raiva porque não queria que ela chorasse. Vocês não deveriam brigar por causa daquilo. Você é um
grosso, ela disse. Bem que me falaram que você só pensa em si mesmo. Você é que é um egoísta
aqui. Você acha que só você é quem sofre com isso? Você acha que não me magoa quando as
pessoas perguntam por que estou contigo? E você disse: a diferença é que você pode escolher ter um
problema como eu. Não posso arrancar minha pele preta. Você contou para suas amigas como é ter
um namorado negro? Já contou como foi sua transa com um cara negro? Juliana disse que ia embora,
que aquilo já era demais, que não precisava escutar mais nada. Ela apertou a campainha para descer.
Você seguiu sozinho no ônibus. Após esse episódio, não demorou muito para que o namoro fosse por
água abaixo. Dias depois, ela te ligou e disse que não deveriam mais se ver, e então você a chamou
novamente de egoísta e ela te chamou de imbecil e preconceituoso que não gostava dos brancos, e
bem que os parentes dela tinham razão de não se meterem com gente igual a você, e em seguida
bateu o telefone na sua cara. Naquele dia, você chorou, porque, apesar de tudo, ainda a amava, e por
meses você cogitou ligar e pedir desculpas e reconhecer que talvez você tivesse exagerado, que talvez
você tivesse levado aquela história de raça a sério demais, mas isso não aconteceu. Vocês nunca mais
se viram. Então, quando você começou a se relacionar com a Suellen dois anos depois, naquela
pequena faculdade em Porto Alegre, você já tinha uma certa experiência afetiva com mulheres
brancas. Você não cairia novamente nas mesmas armadilhas. No entanto, ao contrário do que
acontecia com a Juliana, você não gostava da Suellen. E talvez isso tenha facilitado as coisas com
minha mãe.
o avesso
1.
Quando nasci, o médico disse que eu demorei para chorar. Minha mãe ficou preocupada, mas logo
em seguida soltei um grito de vida e me colocaram nos braços dela, e nem de longe ela parecia aquela
mulher desesperada, de horas antes, no táxi, dizendo: ele vai nascer aqui dentro, moço, vai mais
rápido. A avenida Protásio Alves, em Porto Alegre, nunca foi tão longa. Minha mãe iria me parir, mesmo
que a situação de vocês estivesse conturbada. Mesmo que em algum momento ela tivesse se
arrependido da gravidez. Mas a gente nasce porque tem que nascer. Assim é. E, três dias depois do
parto, nós fomos para casa. Você estava confuso com meu nascimento. Na verdade, minha mãe
também. Incrível o poder que uma criança tem de encerrar e depois iniciar fases na vida dos adultos.
Na época em que fui concebido, vocês estavam separados. No entanto, após uma recaída e uma noite
de pedidos de desculpa, uma noite de recuperação dos afetos, o estrago foi feito. E de repente, de uma
hora para outra, vocês tinham um elo: um pedaço de gente, uma espécie de girino, com batidas
apressadas do coração, que agora habitava o útero da minha mãe. Eu era uma força gravitacional
capaz de mantê-los atados. Sei que no início você pensou em nos deixar. Fugir de tudo. Acho que, no
seu lugar, eu teria fugido. Mas nós sabemos que não se foge assim. Eu tenho vinte e dois anos e sei
pouco sobre a vida, mas talvez o suficiente para constatar que a fuga, nesses casos, serve apenas
para os indiferentes, para os que não sentem remorso. Acontece que você construiu uma culpa do
tamanho do Everest. Foi a culpa que o prendeu a minha mãe. Desde o início foi assim. Li recentemente
que as relações afetivas são formadas por duas categorias: dos egoístas e dos doadores. Você era um
doador nato. Minha mãe era uma egoísta nata. E ela percebeu isso rapidamente, já no início da
faculdade onde vocês se conheceram. Ela logo percebeu que você cedia fácil a qualquer tipo de
chantagem emocional. Essa foi sua principal arma. Não a condeno por isso. A infância nos fornece
certas mágoas e é com elas que lutamos. Minha mãe foi adotada aos doze anos porque seus pais
faleceram cedo. A mãe dela morreu atropelada. E tudo que sei é que ela estava bêbada, às três da
manhã, caminhando no meio-fio de uma rua, na Cidade Baixa, em Porto Alegre. E isso é tudo. O pai
morreu meses depois, de um ataque fulminante no coração, aos quarenta anos, numa rua qualquer do
centro de Porto Alegre. Isso é tudo, minha mãe dizia, e já trocava de assunto. Então, aos dez anos,
minha mãe estava órfã, tinha três irmãos mais novos e todos estavam sós no mundo. Uma tia cogitou
levá-los a um abrigo para serem adotados. Eu não tenho condições de criar tantas crianças. Minha
irmã era uma louca. Onde já se viu fazer tantos filhos com um homem desses. O Chico bebia demais.
Batia nela. Ela batia nele. Os dois bebiam muito. Os dois estavam se destruindo. Até achei que um dia
eles iam se matar. Mas a vida foi mais rápida. Acho que foi melhor assim. Mas, olhem, vocês não
podem ficar nessa quitinete, viu? Já tem gente demais aqui. Você me entende, Marthinha? Você que é
mais velha precisa entender. A tia não quer o mal de vocês. Mas aqui não tem lugar. Hoje vocês podem
ficar. O Beto dorme no beliche com o Régis, porque são os menorzinhos. O Rodrigo vai ali para o chão
com o Thiago. Você que já é mocinha dorme na cama comigo e a Laura. Hoje damos esse jeito. Mas é
só essa noite, viu? Você entende, né, minha filha? Não é que a tia não goste de vocês. Mas não tenho
condições, entende? Minha mãe entendeu, porque não havia muito que fazer. Na verdade, na infância
quase nunca há o que fazer. Então eles passaram a noite naquela quitinete. Apertados, ofendidos e
machucados. No entanto, por medo ou por culpa, a tia Julieta os deixou ficar por mais uns dias, na
verdade por algumas semanas, e depois por meses. A situação piorou porque, com a chegada do
inverno em Porto Alegre, era preciso usar roupas e sapatos mais quentes e, consequentemente, mais
caros. A tia Julieta era empregada doméstica e fazia sempre o possível para ninguém passar fome.
Levantar às seis da manhã tornava o frio mais cruel. No entanto, as coisas iriam mudar em breve. Pois
nesse tempo Madalena, uma amiga de infância da tia Julieta, estava em Porto Alegre. A vida da minha
mãe está prestes a sofrer um novo revés. Madalena. Esse é o nome de quem irá salvá-la por algum
tempo. No aniversário de um dos irmãos de minha mãe, Madalena olhou para ela. Observou-a sentada
num canto, brincando sozinha, com uma boneca quebrada. Minha mãe era uma criança naturalmente
triste e solitária. Os olhos grandes e pretos dela davam uma dimensão maior a sua tristeza. Madalena
sentiu uma mistura de pena e afeto materno. Ela já tinha uma filha da mesma idade, chamada Flora.
Durante a festa, Madalena fixou os olhos na minha mãe. Depois, ao voltar para casa, pensou que seria
bom para a filha ter uma companhia da mesma idade. Madalena havia passado num concurso público
em outro estado. Então, aos doze anos, minha mãe foi adotada por Madalena. Não foi uma adoção
oficial. Minha mãe foi praticamente obrigada pela tia Julieta a ir embora com Madalena. Viver com os
irmãos amontoados não era mais possível. Então, poucos meses depois, mudaram-se para Santa
Catarina. E assim, embora sentisse falta dos irmãos mais novos, um mundo novo se abriu para minha
mãe. Foram morar no Morro das Pedras, próximo ao mar. No fim da década de mil novecentos e
oitenta, muitos terrenos, que hoje são reservas naturais em Santa Catarina, eram vendidos a preço de
banana. Madalena conseguiu comprar uma casinha, que elas apelidaram, singelamente, de Ranchinho.
O Ranchinho se reduzia a uma única peça de pouco mais de trinta metros quadrados, de madeira.
Telhado de zinco. Havia apenas duas janelas, um beliche e uma cama de solteiro. Como ainda não
tinham geladeira, tiveram de improvisar uma caixa de isopor com gelo. O banheiro ficava na parte de
fora, numa casinha aonde minha mãe tinha medo de ir à noite. Então Madalena providenciou um
penico para ela. Era tudo muito simples e rústico, mas nada que lembrasse miséria ou pobreza.
Tratava-se de outro modo de viver. O Ranchinho estava encravado no meio do morro. Mata densa e
semifechada. Ir para lá foi a maneira que Madalena encontrou de dar uma vida melhor a si mesma e às
meninas, o custo de vida era mais baixo e elas ficariam mais perto da natureza, longe da violência da
cidade grande, ela pensou. Madalena acreditava que estava tomando a melhor decisão. E dali para a
frente elas teriam de conviver com lagartos, sapos, cobras, bugios, tucanos e mosquitos. Logo, minha
mãe iria descobrir que no inferno deve haver mosquitos, pois, durante metade da adolescência, sua
pele terá um eterno perfume de repelentes naturais. O seu corpo eternamente besuntado com uma
mistura de óleo e álcool e outras coisas que Madalena fazia e as obrigava a usar. No entanto, aqueles
mosquitos selvagens não se intimidavam com qualquer coisa, pois, se por acaso alguém se
esquecesse de cobrir qualquer partezinha do corpo, eles certamente encontrariam essa mesma
partezinha e atacariam. O fato é que elas estavam a quarenta quilômetros da capital, Florianópolis, e
nada no morro era fácil. Subir e descer para pegar água da cachoeira. Decidir aonde ir e quando ir.
Eram grandes exercícios mentais e físicos. O posto de saúde também era longe e não havia energia
elétrica. E à noite, em meio à escuridão, quando estava deitada, minha mãe sentia medo por estar
longe de seus irmãos. Além disso, seu pai estava morto. Sua mãe estava morta e as lembranças dela a
atacavam quase todos os dias, a conta-gotas, como pequenas marteladas no coração. Lembranças
que a magoavam profundamente. Essa falta será uma barreira intransponível em sua vida. Pois minha
mãe irá crescer e dentro dela um poço irá nascer. E, no fundo dele, a única coisa que realmente a
incomodará para sempre: a falta. A falta será a companheira. Entretanto, quando minha mãe levantava
os olhos e percebia a vista, quando pela manhã, lá de cima do morro, olhava para o mar, seu corpo era
invadido por uma espécie de plenitude. Algo que ela ainda não havia experimentado. O mar como
remédio. É com ele que minha mãe irá conversar pelos próximos anos. A proximidade com o mar será
uma condição para seguir, embora ela não soubesse. O som das ondas ecoaria dentro dela e, às
vezes, como que por milagre ou coincidência, aquele poço inabitado, dentro dela, era invadido pelo mar
e a falta ficava submersa por um breve momento. E era assim que minha mãe se salvava. Madalena
era professora de sociologia. Mas não gostava de dar aulas. Gostava de ler, de pensar a sociedade,
gostava de dissertar sobre Marx, sobre Durkheim. Mas não de dar aulas. Mesmo assim ela ia para a
escola. Precisava se manter. Escolheu isso para a própria vida. Nunca quis depender de ninguém. No
dia em que se deitou com o pai de Flora, ela foi clara com ele: quero engravidar esta noite. Não me
leve a mal. Gosto de você, mas não acho que você seria um bom pai. Portanto, você não precisa se
preocupar. Não quero que você assuma nada. Rubão, como era chamado, achou estranha uma
conversa daquelas na primeira noite que dormiram juntos. Na verdade, Madalena apenas antecipou o
que vinha pela frente: Rubão era uma espécie de guru da turma do Morro das Pedras. Bonito e
inteligente. O corpo esguio, os cabelos compridos e a barba por fazer. Todas as mulheres queriam o
Rubão. Os pais dele tinham negócios com empreiteiras em São Paulo. Rubão não chegava a ser rico.
Mas não tinha problemas com dinheiro e ainda mantinha a imagem de rapaz rebelde que não queria
depender dos pais. Rubão lia Osho e Dalai Lama. Não gostava de Nietzsche. Meditava como ninguém.
Vendia artesanato. Era bom de cama, diziam. Sabia de horóscopos. Fazia mapa astral e numerologia.
Jogava tarô. Lia Caio Fernando Abreu. Escutava Beatles, mas achava que não eram melhores que a
Tropicália. Além disso, Rubão vendia a ideia de amor livre. Tinha trinta e seis anos e nunca havia tido
um relacionamento mais sério com alguém. Praticava biodança. As drogas e o sexo eram fáceis para
ele. Portanto, com todos esses requisitos, Madalena sabia que ele seria incapaz de exercer a função
paterna. Além do mais, ela não se achava bonita. Não gostava do próprio corpo. Achava seus peitos
grandes demais. Na praia, usava maiô para tapar o máximo possível de sua barriga. Tinha medo de
fumar muita maconha. Dava uns pegas mais para acompanhar a turma do que por prazer. Tinha medo
de perder o controle. E talvez por isso tenha achado que jamais teria outra chance com o Rubão.
Assim, para convencê-lo a se deitar com ela, e para que ele a achasse especial, ela geraria um filho
dele. Madalena fez a proposta. Rubão aceitou porque já tinha feito isso com outras mulheres. Conta-se
que metade das crianças daquele morro eram dele. Talvez fosse exagero. Talvez fosse mentira. O fato
é que eles se deitaram naquela noite. E foi a única vez, mas o suficiente para ela engravidar de Flora.
O pai ausente será algo que minha mãe e Flora terão em comum. Entretanto, essa não será a razão
pela qual elas se tornarão amigas.
2.
Enquanto investigo suas coisas, encontro uma foto. Eu, você e minha mãe. É uma imagem comum:
estávamos numa praça, não havia data, eu devia ter uns dois anos. Era um dia frio, pois estávamos de
touca e cachecol. Você e minha mãe sorriam. Eu não. Desde pequeno me recuso a sorrir sem vontade.
E, olhando aquela imagem, me dei conta de que tudo que vocês eram, poderia estar resumido naquela
foto; não tudo, mas algo importante. Naquele dia, você pensou que pudesse voltar a ser feliz com a
minha mãe. Chegou a pensar que poderíamos voltar a ser como éramos. Talvez você achasse que
seria até aceitável, e menos vergonhoso, deixar minha mãe, mas não abandonar um filho, com tão
pouca idade. Isso era pura covardia, você pensou. Não só pensou, como também ouviu do seu
terapeuta na época: veja, Henrique, o abandono é algo da maior crueldade que um ser humano pode
causar ao outro. Fazer isso com um filho tão pequeno me parece mais cruel ainda. Os danos para
quem fica podem durar anos. Por isso, aceite minha sugestão; aguente firme. Numa vida a dois alguém
sempre segura mais as pontas. Casamento é assim mesmo. Lembre-se que é ao lado de outra pessoa
que aprendemos a nos conhecer. Por isso, aguente firme. Compreenda que sua esposa age assim
porque teve uma vida difícil. Perdeu os pais muito cedo. Ela tem uma insegurança crônica, mas com o
tempo isso passa. Vocês são jovens ainda. Há uma longa estrada pela frente. Tenha um pouco de
empatia. Casamento é isso: um jogo de frescobol, o importante é não deixar a bola cair; se ela te jogar
uma bola enviesada, devolva da melhor forma possível, ele completou. Mas acontece que você não
sabia jogar frescobol e também não queria manter bola nenhuma no ar. Você se sentia um fracassado
por não conseguir mais amar minha mãe. Um fracassado por não querer mais levar aquilo adiante.
Além disso, você não sabia ir embora. A gente tem sempre que descobrir de onde vem a culpa, porque
é assim que a gente aprende a partir, você pensaria tempos mais tarde. Por outro lado, minha mãe
também estava arrependida de ter depositado sonhos e planos em você. Também se sentia culpada.
Estava arrependida de ter engravidado. Na verdade, depois que ela viera para Porto Alegre, ela não
pensava mais em ser mãe. Essa possibilidade não passava mais por sua cabeça. Ela não tinha
afinidade com crianças. Estudou letras, mas preferiu não dar aulas. Quando vocês casaram, ter filhos
se tornou ainda mais distante. Não que no início vocês não estivessem apaixonados, estavam, mas a
convivência rapidamente trouxe à tona todos os fantasmas que os atormentavam até ali. Para piorar,
minha mãe achava que você estivesse sempre a um passo de traí-la. Era uma paranoia que ela
carregava depois de casar. Na verdade, uma insegurança que foi sendo construída, paulatinamente.
Assim, todos os dias ela pedia um relatório da sua vida. E você dava o relatório da sua vida: com quem
você tinha estado, com quem você tinha conversado, com quem você tinha encontrado casualmente na
rua. Embora você contasse tudo que conseguisse lembrar, minha mãe nunca estava satisfeita. A
primeira briga feia de vocês aconteceu ainda na faculdade, quando você terminou seu namoro com a
Suellen para ficar com a minha mãe. Mas você e a Suellen ainda eram colegas de uma disciplina e um
dia, quando minha mãe viu vocês dois conversando sobre algum assunto da aula, ela teve um surto.
Foi a primeira vez que você a viu gritar daquele jeito. Ela disse que não queria te ver conversando com
aquela vadia. E você respondeu que não tinha nada de mais, que vocês eram apenas colegas. Mas no
fim de toda a discussão você fez o que ela disse. Fez porque na sua cabeça ela estava certa. Na sua
cabeça o namoro significava abrir mão dos outros para ficar apenas com ela. Então você abriu mão dos
seus amigos, colegas e parentes. E você fez isso porque gostou da ideia de ser tudo que importava na
vida dela. Minha mãe também não se importava de abrir mão das outras pessoas. Vocês se
transformaram numa ilha. Você aceitou facilmente que o amor não era querer que a outra pessoa fosse
feliz, mas que ela se apagasse por você, se anulasse por você. Você aceitou a barganha: ser o centro
do mundo de alguém. Aceitou porque, talvez, você nunca tenha tido um afeto tão amplo. Nunca tenha
tido alguém que te aceitasse por inteiro como minha mãe aceitou, sem restrições, sem limites. Sua
carência o deixava vulnerável, porque até ali sua vida havia sido um desfile de abismos, um grande
catálogo de perdas. E agora você tinha, diante de si, um amor, um amor perfeito, que se aproximava de
uma vida uterina. No entanto, havia um preço a pagar: não podia ter contato com ex-namoradas,
conversas com colegas mulheres da faculdade, conversas com colegas mulheres do trabalho. Seus
bolsos eram vistoriados metodicamente todos os dias sem que você soubesse. Quando vocês saíam
juntos, os teus olhos não poderiam desviar para os lados sob o risco de você ser acusado de estar
paquerando alguém. Acontece que, poucos meses depois de casados, você se cansou dessas
restrições. Numa noite, ao voltarem de carona com sua cunhada de um jantar em família, vocês
estavam no banco de trás, junto com uma conhecida que também pegava carona. No meio do
caminho, minha mãe, sem mais nem menos, disse que queria descer do carro. Ninguém entendeu o
porquê, pois eram três da madrugada e vocês estavam em plena avenida Ipiranga. Então, ela repetiu
pausadamente: pa-ra-a-por-ra-des-se-car-ro. O carro parou e vocês dois desceram. Minha mãe
começou a te xingar no meio da rua, dizendo que sabia muito bem o que estava acontecendo naquele
carro, seu filho da puta. Pensa que eu não vi vocês se olhando, pensa que sou idiota, que não vi vocês
durante o jantar, hein? Você tenta manter a calma e diz que não estava olhando para ninguém, que
aquilo era uma doença, que você estava cansado. Ao chegarem em casa, a discussão continuou.
Palavras rudes foram ditas com paixão e violência. Foi a primeira vez que vocês experimentaram o
inferno casados. E também foi a primeira vez que você saiu de casa. Na época, eu ainda não era
nascido, vocês não tinham nenhum vínculo além de si próprios, e talvez isso tenha facilitado a sua
decisão de ir embora. Mas, antes, você passou a noite na sala pensando que aquele casamento tinha
sido um grande erro. Um tipo de erro cujas consequências temos de carregar para sempre, você
pensou um dia. Enquanto isso, minha mãe passou a noite no quarto chorando, e até cogitou a ideia de
que aquilo poderia ter sido um exagero, que quem sabe você estava sendo sincero e não tinha, de fato,
olhado para ninguém. No entanto, mesmo que fosse verdade, minha mãe jamais te pediria desculpas.
Porque para ela era bom que você tivesse receio de traí-la. Era bom que você soubesse do que ela era
capaz. Talvez nem minha mãe soubesse explicar como chegara naquilo. Como chegara naquele
estágio de insegurança. Na manhã seguinte, quando você saiu sem dizer nada, quando pegou suas
coisas e foi para a casa do seu amigo de infância, o Juarez, contar o que tinha acontecido, ela achou
que você voltaria logo. Três dias depois ela te ligou aos prantos e disse que vocês precisavam
conversar, que aquilo não era vida, que não podiam brigar assim, com tão poucos meses de
casamento. Que ela estava disposta a mudar. Que ela seria capaz de fazer qualquer coisa. E você
concordou, porque no fundo você gostava do ciúme dela, melhor, gostava de quando ela perdia a
própria dignidade e implorava para você voltar. Além disso, naqueles dias de reflexão em que estavam
separados, você aceitou que a vida a dois não era fácil mesmo. Que, enfim, era preciso crescer. Ser
maduro. Mas você estava longe de se tornar maduro. Quando você voltou, após a primeira briga,
minha mãe pensou em ter um filho. Como uma espécie de segurança contra a solidão. Uma armadilha
que passou a fazer casa em seu peito. Não que isso fosse consciente, mas a maternidade se
apresentou para ela como uma forma de se igualar a outras mulheres da sua idade. Ela olhava para os
lados, para a vida de suas amigas casadas e com filhos, e elas pareciam sempre felizes, então minha
mãe pensou que talvez fosse isso que faltava na vida de vocês. Tornar-se mãe, dali em diante, passou
a ser uma obrigação, como se ela precisasse se completar como mulher.
3.
No início, ao contrário do que se esperava, minha mãe e Flora não se deram bem. Falavam pouco
uma com a outra. Mesmo naquele espaço exíguo do Ranchinho. Mesmo sem TV e sem nenhum outro
atrativo em casa, na hora de brincar cada uma procurava um canto. Cada uma com a sua boneca.
Assim, quando ficavam sozinhas, na parte da tarde, porque Madalena precisava dar aulas, minha mãe
passou a conhecer melhor a personalidade de Flora. Seus gênios não eram compatíveis. Houve um dia
em que Flora escondeu a boneca da minha mãe e a fez procurar pelo Ranchinho e depois pelo quintal
inteiro. E, quando minha mãe começou a chorar, Flora apareceu com a boneca e a jogou no chão, junto
aos seus pés. Ao ver aquilo, minha mãe sentiu uma dor insuportável, pois aquela boneca de plástico
era a coisa mais preciosa que tinha. Minha mãe secou o rosto com as costas da mão, juntou a boneca
e percebeu que uma das pernas havia sido arrancada. Flora apontou para a direção da Leka. Leka era
uma pastora-alemã que àquela altura já mastigava a perna da boneca. Então, como que por instinto,
minha mãe avançou para cima de Flora perguntando por que ela havia feito aquilo. Flora agarrou-a
pelos cabelos e logo as duas rolaram pelo chão. Em instantes, estavam separadas, cada uma
segurando um chumaço de cabelo da outra. Meia hora depois, quando Madalena chegou e viu o rosto
e os braços lanhados das meninas, perguntou o que tinha acontecido. Flora se apressou em dizer que
minha mãe havia batido nela e isso era todo dia, que ela já não suportava mais e que minha mãe tinha
que ir embora daquela casa. Minha mãe disse que era mentira e que foi a Flora quem roubou sua
boneca, arrancou uma perna e ainda deu para a Leka comer. Madalena ouviu as reclamações, tentou
ter paciência, mas estava cansada porque tivera um dia muito difícil com alunos que não queriam saber
de nada. Sua cabeça estava cheia de crianças mal-educadas. Estava cansada das queixas e dos
gritos. Cansada de ter que fazer tudo sozinha. Sonhava apenas chegar em casa e ter um pouco de
paz. Então, num impulso, pegou as duas com força pelo braço e as levou para o quintal e disse: não
quero saber o que aconteceu aqui. Entendam uma coisa: agora vocês são irmãs e vão ter que se dar
bem. Vocês vão ficar aqui fora até pedirem desculpas e se darem um abraço. Madalena entrou e
fechou a porta do Ranchinho. As duas ficaram soluçando, uma de frente para a outra. Depois cada
uma procurou um canto do pátio. O tempo passou, e as duas eram orgulhosas demais para pedir
desculpas, e mesmo quando ouviram a primeira trovoada e se assustaram, mesmo que tivessem
cogitado acabar com aquilo através de um abraço, elas permaneceram cada uma em seu lugar. Era
como se seus universos particulares faiscassem ao se aproximarem. Da janela, Madalena as
observava. A chuva começou a cair devagar para logo em seguida desabar com força. Ainda assim,
Madalena não mandou as meninas entrarem. Era uma queda de braço entre as três. Elas sabiam que
alguém teria de abrir mão do próprio orgulho e isso talvez ditasse o rumo daquela convivência. Então,
quando anoiteceu e o tempo ficou mais frio, Madalena viu que era ela quem teria de ceder. Pegou duas
toalhas, abriu a porta do Ranchinho e trouxe as meninas para dentro. Elas não disseram nada. Apenas
se secaram, depois sentaram-se à mesa para jantar. O silêncio entre as três só foi quebrado pelos
espirros de minha mãe. Enquanto comiam, Madalena as observava e pensava por que tinha feito
aquilo. Por que teve uma filha e ainda foi adotar outra? Assim, por breves momentos, arrependia-se da
maternidade. Deitaram-se após o jantar e, naquela mesma noite, minha mãe quase morreu. Teve uma
febre baixa que rapidamente aumentou e passou dos quarenta graus. Chovia muito, e elas não tinham
telefone. Madalena deu uma aspirina para a minha mãe e colocou um pano frio na sua testa. Flora
ficou preocupada com a situação. E foi então que minha mãe teve a primeira convulsão, porque a febre
certamente já havia ultrapassado os limites aceitáveis do corpo. E, quando a convulsão passou,
Madalena disse a Flora que fosse pedir ajuda na casa de uma vizinha. Flora abriu a porta e correu
como se a sua própria vida estivesse em jogo. Ao chegarem no hospital, minha mãe foi levada para a
emergência, onde um médico disse que não sabia se ela conseguiria sobreviver. Ao ouvir aquilo,
Madalena ficou assustada, horrorizada com a ideia de perdê-la. Se isso viesse a ocorrer, a culpa seria
dela, só dela. Pois, ao querer apenas dar uma lição nas meninas, acabou agindo como uma criança.
No entanto, minha mãe se curou logo, e depois daquele susto as coisas mudaram entre elas. Madalena
e as meninas perceberam que precisavam se ajudar. Meses depois, minha mãe e Flora ainda não se
tratavam como irmãs, mas as implicâncias cessaram aos poucos. As duas compreenderam que tinham
de conviver, que não havia outro jeito. Com isso, passaram a prestar mais atenção uma na outra.
Então, num dia em que estavam sentadas na praia, Flora olhou para minha mãe e perguntou, talvez
sem maldade, por que a pele dela era mais escura. E foi a primeira vez que alguém falou da cor da sua
pele. No início, minha mãe não se importou. Mas, na hora em que Madalena foi questionada por minha
mãe a respeito daquilo, ela não soube o que dizer. Talvez nunca tivesse pensado numa coisa assim.
Em seguida, disse apenas que a mãe e o pai dela eram negros e que por isso tinha essa cor. Minha
mãe fez um movimento afirmativo com a cabeça. Madalena achou que era pouco, e completou dizendo
que a cor dela não significava nada. Que cada pessoa é uma pessoa e nunca deixe te diminuírem
porque você é negra, ela disse. Minha mãe, a princípio, não entendeu por que ela falara aquilo com
tanta ênfase e passou dias pensando naquela palavra: “negra”. Antes, ela era Martha ou Marthinha.
Agora, depois de uma simples pergunta, ela passara a ser Martha e negra. A pele fora nomeada, a
existência ganhara sobrenome. Além disso, com a chegada do verão, sua pele escurecia mais ainda,
devido à exposição ao sol. Era o tempo em que as praias se enchiam de turistas. Minha mãe estava
com treze anos quando escutou um homem que tinha idade para ser seu avô dizer que ela era uma
mulatinha muito gostosa. E, ao ouvir aquilo, minha mãe se assustou, porque jamais tinha sido chamada
assim. Achou nojento, nunca tinha pensado que seu corpo e sua pele pudessem atrair a atenção dos
homens daquela forma. E, assim, ela ganhava outro adjetivo que carregaria pelo resto da vida:
“mulatinha”. E nessa época ela percebeu que seus seios ganharam massa, suas pernas e bunda
também, como se uma espécie de fermento fizesse seu corpo crescer alheio a sua vontade, e minha
mãe não sabia muito bem o que fazer. Então, ela passou a se cobrir do jeito que podia. Imitava
Madalena, ao usar maiô. Tinha vergonha de que outro velho ou mesmo um menino dissesse algo a
respeito do seu corpo. Por isso, no verão, Flora e minha mãe preferiam a cachoeira, que era mais
vazia. Flora sempre quisera ir até a nascente do rio. Mas aquele trajeto era proibido para elas, porque
chegar lá era perigoso, dizia Madalena. As pedras eram mais altas e o limo as deixava escorregadias.
Acontece que as meninas estavam crescendo e o Ranchinho, o quintal e o Morro das Pedras se
tornaram pequenos demais para elas. E naquela tarde decidiram conhecer a nascente da cachoeira,
ignorando os avisos de Madalena. Na verdade, não sabiam se conseguiriam, mas queriam ver até
onde poderiam ir. Chegava a fase de testar os limites impostos pelos adultos. No começo da subida,
costeando a cachoeira, elas não encontraram grandes problemas, até acharam que Madalena havia
mentido sobre a dificuldade de chegar à nascente. No entanto, conforme avançavam, de fato surgiam
pedras maiores. Elas se agarravam como podiam, pois não tinham nenhum equipamento que pudesse
auxiliá-las. Em certo momento do percurso, Flora escorregou e, ao cair, arranhou o cotovelo. Minha
mãe disse que até ali estava bom para ela. Que já poderiam voltar. Mas Flora respondeu que para ela
ainda não. Você é uma medrosa mesmo, disse Flora, e seguiu adiante. Minha mãe, para não
demonstrar medo, também continuou. Quase uma hora depois, após subidas, descidas, pedras, galhos
e árvores pelo caminho, elas chegaram próximo à nascente. Mas antes tinham de passar por uma
parede de pedra. Era perigoso porque de um lado havia a cachoeira e do outro um precipício. Elas
olharam para baixo e viram a altura em que estavam. Só então Flora sentiu medo. No entanto, ela
pensou que não chegara até ali para nada. Agora faltava apenas superar aquele pequeno trecho perto
do abismo. Minha mãe disse que Flora poderia chamá-la do que quisesse, mas que não passaria dali e
que, se ela queria se matar por causa de uma coisa besta daquela, o problema era dela. Minha mãe
ainda disse que estava voltando para casa. Flora deu de ombros e optou por seguir em frente. Foi na
direção do precipício. Subia com certa dificuldade, mas prosseguia. Minha mãe sentou-se numa pedra
e ficou observando com aflição. Ao começar a fazer a volta na parede de pedra e ficar de frente para o
abismo, Flora percebeu que qualquer movimento em falso poderia ser fatal. Portanto, ela se movia
devagar e com cuidado. E lentamente minha mãe deixou de ver Flora. Ela se levantou e se posicionou
o mais próximo possível do abismo. Mas não conseguia mais vê-la. Então ela voltou a sentar-se na
pedra. Assim que levantou a cabeça, escutou um grito de Flora, seguido de um silêncio. Minha mãe
voltou a se aproximar do precipício. Chamou por Flora. Ela não respondeu. O sol já começava a se pôr.
Minha mãe a chamou novamente. Nada. Então, uma coragem desatinada fez com que ela se
arriscasse também. O abismo a assustava, mas agora o medo não poderia impedi-la. Minha mãe
precisava ir adiante. Novamente chamou por Flora. Outro silêncio. Só se ouvia o barulho do rio e de
algumas aves que passavam em bandos. No entanto, quando resvalou por uma pedra e quase caiu,
minha mãe percebeu que não poderia seguir. Não posso continuar, ela disse a si mesma. Desceu da
pedra e com os olhos cheios d’água gritou mais uma vez o nome de Flora. Nenhuma resposta. O
silêncio a mortificava. Minha mãe já começava a pensar no pior: que ela tivesse caído e pudesse estar
morta por causa da queda. Esse pensamento percorreu seu corpo e uma dor insuportável quase a fez
vomitar. Então, ela resolveu sair em busca de ajuda. Acontece que ninguém morava perto daquela
parte do morro. Ela teve que fazer o caminho de volta e às vezes parava, pensando ter escutado a voz
de Flora pedindo socorro. Mas não era. Enquanto a noite avançava, o que dificultava ainda mais a
descida, a imagem de Flora caída e morta se apresentava com tanta nitidez em sua cabeça que minha
mãe quase acreditou tê-la visto assim. Quando chegou em casa, ofegante e desesperada, ela teve que
se acalmar para contar a Madalena o que havia acontecido. Sem dar nenhum tipo de sermão, porque
aquela não era hora, Madalena chamou a vizinha Lorena e o marido dela, o Oscar. No caminho,
chamaram mais alguns vizinhos, porque se deram conta de que a situação poderia ser grave. Alguém
sugeriu que chamassem os bombeiros, talvez ela precisasse ser resgatada de alguma parte de difícil
acesso. No entanto, Madalena não quis fazer isso, porque chamar os bombeiros seria admitir que o
pior poderia ter acontecido. Seria admitir que ela havia falhado. Ela queria crer que Flora apenas tinha
se perdido e que logo seria encontrada. Àquela altura, minha mãe já não chorava, porque o fato de
estar ao lado de Madalena amenizou seu desespero. Sua coragem a contagiava. Conforme
avançavam, Madalena tentava se convencer de que Flora estava bem e que nada de mais havia
acontecido, ela repetia a si mesma que Flora só estava perdida. Só isso. Entretanto, o sentimento de
culpa chegou, Madalena passou a se cobrar: que tipo de mãe era ela, que tipo de mãe ela era que
deixava as filhas irem sozinhas a uma cachoeira daquelas? Que tipo de educação tinha dado àquelas
meninas, que não sabiam reconhecer os limites? Os filhos são uma invenção desatinada e sem
sentido. Deveria haver alguém que nos dissesse com firmeza: não faça isso, não faça isso com a sua
vida. Mas, antes que ela continuasse a se culpar, Oscar, o marido de Lorena, encontrou Flora. Trazia-a
no colo. Embora estivesse com o joelho sangrando, a menina estava bem. Só não conseguia ficar de
pé. Talvez tivesse fraturado o joelho. Madalena a abraçou e disse: graças a Deus, graças a Deus.
Minha mãe fez o mesmo. E talvez ali, naquele abraço mútuo, elas enfim tenham entendido que eram
uma família. Flora disse que, ao terminar de fazer o contorno na pedra, escorregara e caíra no rio. Na
tentativa de sair dali, torceu o joelho. Então seguiu com dificuldade para o outro lado do morro, até que,
não conseguindo mais caminhar, parou e esperou ajuda. Foi quando Oscar a encontrou. Dias depois,
ao observar a filha na cama, com a perna engessada, Madalena lembrou das outras horas de aflição
que já havia passado com as meninas. Daria para fazer uma lista extensa de acidentes, imprevistos e
doenças. Então ela começou a relembrar o que tinha se abatido sobre aquelas meninas, e pensou
também como aquelas coisas poderiam tê-las matado, ou ter deixado alguma sequela, quando, por
exemplo, minha mãe inventou de correr de pés descalços, no meio da rua, e um caco de vidro rasgou
seu dedão e ela teve de levar cinco pontos. Sem falar da vez em que Flora, aos sete anos, inventou de
brincar sozinha no balanço da praça e deu impulsos tão fortes que foi arremessada, batendo com o
rosto no chão e abrindo o supercílio, ou então quando as duas foram picadas por abelhas e ficaram tão
inchadas que Madalena achou que elas morreriam. Dias mais tarde, ao se dar conta de toda a
dificuldade que ela passava com as meninas, Madalena relutou em aceitar que estava arrependida por
ter dito que jamais precisaria de Rubão. Mas pensou também que aquela proposta era injusta. Então
era isso? Pensou: ele faz uma filha e nem sequer pergunta por ela todos esses anos? E ainda sai por
aí recitando Dalai Lama como se fosse um ser humano sensível e perfeito. Não, aquilo estava errado.
Rubão na verdade era um grande filho da puta. E Madalena repetiu algumas vezes o xingamento filho
da puta até chamar a atenção de Flora e de minha mãe. Ela pediu desculpas. Além disso, se sentia
culpada ao ter que mentir para a filha toda vez que ela perguntava sobre o pai. Um dia largou o pano
de prato sobre a mesa e disse para as meninas que já voltava. Madalena seguiu dizendo para si que
aquilo era muito injusto. Não estava certo. Uma proposta daquelas, feita por uma quase adolescente
ingênua e irresponsável, não poderia valer para a vida toda. Mesmo estando acima do peso, Madalena
subiu o morro com rapidez, embora alguns trechos fossem mais íngremes e a mata se fechasse mais
conforme ela avançava. Não conseguia elaborar muito bem o que ia dizer. Poucas vezes na vida era
tomada por impulsos. Talvez dissesse apenas que achava aquilo injusto, só isso, e que ia contar tudo a
Flora e que ele, como pai, teria certa obrigação com ela. Não pensava apenas em dinheiro, mas em um
pouco de atenção, de responsabilidade e de afeto. Ajudá-la na educação e nas noites em que a menina
estivesse doente, com febre. No entanto, ao chegar próximo da casa, Madalena pensou melhor. Não
teria coragem para tanto. Sentou-se numa pedra, descansou e, depois de se certificar de que estava
só, chorou. E ali, naquele momento, Madalena desistia de Rubão. Desistia de torná-lo pai de sua filha.
Desistia para sempre. Voltou para casa disposta a esquecer aquilo. Julgou-se até imatura. Ao chegar,
as meninas estavam brincando juntas. Madalena perguntou se não queriam ir até a praia com ela.
Minha mãe estranhou, porque, embora morassem perto do mar, não era comum um convite daqueles
assim, antes do almoço, sem planejamento. Flora, ainda com a perna engessada, se apoiava em
Madalena e em minha mãe. Enquanto desciam o morro e se aproximavam da praia, Flora perguntou
aonde a mãe havia ido. Fui resolver uma coisa, ela respondeu. E conseguiu, mãe? Consegui, ela disse,
com certa ternura. Naquele dia não entraram no mar. Apenas sentaram-se de frente para ele. Elas não
sabiam, mas aquela cena se repetiria algumas vezes nos anos seguintes. Escutariam as ondas
quebrando na praia e não teriam necessidade de dizer nada.
4.
Certa vez, quando eu tinha nove anos, você me perguntou quem era Deus. Lembro que estávamos
caminhando pela rua, procurando uma sombra para descansar. Estava quente, um calor que não era
insuportável mas que nos incomodava. Então, quando encontramos um banco embaixo de uma árvore,
você olhou para algumas pombas que ciscavam por ali, naquela praça malcuidada, e me perguntou:
Pedro, você sabe quem é Deus? E eu não fazia a mínima ideia do que tinha te feito perguntar uma
coisa daquelas para um menino de nove anos. Lembro que recém havia terminado de ler um livro
sobre vampiros, lendas e histórias de terror. Então, quando você me perguntou quem era Deus, pensei
em dizer: não sei. Acontece que você detestava que eu dissesse não sei, você dizia: filho, nunca
podemos saber de tudo, mas, olhe, não responda não sei. Diga então que precisa pensar, que precisa
de tempo. No entanto, naquele dia, eu não queria pensar. Estava quente e eu só tinha nove anos. Mas
eu lembrei do meu livro sobre lendas de terror e respondi que achava que Deus era um fantasma que
morava no céu. E, quando eu disse isso, você me olhou com certo espanto, e vi seu rosto se iluminar
com alegria. Como se eu tivesse dito a coisa mais importante do mundo. Talvez hoje eu compreenda
por que você ficou comovido com aquela resposta. Conforme fui crescendo, suas perguntas foram
ficando mais complexas. E confesso que às vezes eu não queria ser profundo. Eu queria apenas
brincar e ser como os outros filhos eram com seus pais. No entanto, agora eu sei que você estava me
preparando. Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado
quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse.
Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e
determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que
suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar
algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu,
isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.
Lembro que você fazia um grande esforço para ser entendido por mim. Eu era pequeno e talvez não
tenha compreendido bem o que você queria dizer, mas, a julgar pela água nos seus olhos, me pareceu
importante.
5.
Vitinho era o único filho de dona Maria e do seu Armindo, um dos moradores mais antigos do Morro
das Pedras. Eram pais idosos. E Vítor, ou Vitinho, completara dezessete anos no mês anterior. O rapaz
não gostava de estudar, mas era trabalhador, diziam. Acordava cedo e ajudava no armazém do pai.
Quando minha mãe e Flora começaram a frequentar sozinhas a praça nas tardes de domingo, pois
essa era a principal atração do local, talvez a única diversão, Vitinho e minha mãe se olharam. Sempre
que o via passar, minha mãe fingia que não o conhecia; na verdade eles se conheciam, mas não se
falavam. Era um tipo de pessoa que vemos por aí, a respeito da qual sabemos algo, mas com quem,
por algum motivo, não falamos. Nesse tempo, minha mãe preferia ficar conversando com Lúcia, que
tinha dezessete anos e que em pouco tempo se tornou a sua melhor amiga. Lúcia era muito divertida e
debochada. Já havia namorado alguns meninos do morro e não era mais virgem. Não tinha receio de
mostrar o corpo; quando minha mãe menstruou pela primeira vez, foi Lúcia quem a acalmou e lhe disse
que seria assim todos os meses; mesmo que Madalena já tivesse dito isso a ela, foi Lúcia que a deixou
mais tranquila. A verdade é que a vida no morro às vezes entrava num estado de tédio e num marasmo
terrível, o que obrigava os adolescentes daquele lugar a procurar algum tipo de diversão. Alguns iam
nadar no rio, outros na cachoeira, e havia ainda os que buscavam diversão num baseado ou em
cocaína. Caso de Vitinho e outros moleques. Minha mãe fumou o primeiro cigarro com Lúcia e nesse
dia, quando chegou em casa, Madalena sentiu nela o cheiro nauseabundo dos fumantes. Ao ser
questionada, minha mãe disse que Madalena não tinha nada que ver com a vida dela. A partir daí,
Madalena começou a proferir uma série de clichês que os adultos costumam dizer quando querem
colocar os adolescentes em seu devido lugar, que, enquanto estiver embaixo do meu teto, você vai ter
que seguir minhas regras, que quem manda aqui ainda sou eu e só quando você se sustentar, quando
você pagar as tuas contas, aí sim você vai poder fumar quantos cigarros quiser. E então, após o
discurso, minha mãe saiu do Ranchinho batendo porta, mesmo com os gritos de volta aqui de
Madalena. Mais tarde, quando minha mãe e Flora estavam a sós, Flora disse que minha mãe era muito
burra por não conseguir disfarçar o cheiro de cigarro. Você sabe que ela é chata com essas coisas.
Minha mãe respondeu que não estava preocupada em esconder nada, estava era cansada daquele fim
de mundo. Precisava de mais, precisava estudar, pensar numa faculdade. Eu também quero ir embora,
disse Flora, mas não sei como. Não temos dinheiro para nada. Nossa mãe vive naquela escola se
matando e nunca conseguimos melhorar nossa vida. Nós não temos nem onde trabalhar nesse lugar.
As duas olhavam para o futuro, mas não havia futuro. As perspectivas eram sempre estilhaçadas pela
realidade. No entanto, enquanto as coisas não aconteciam, minha mãe buscava ocupação na
companhia de Lúcia. Foi com ela que minha mãe experimentou maconha. Na primeira vez não sentiu
nada. Nenhum barato, como disseram que ia sentir. As duas deram boas risadas, disseram algumas
bobagens, nada mais que isso. Mas, na segunda vez, minha mãe bebeu um pouco de vodca, e nesse
dia ela passou mal e quase desmaiou, mas Lúcia a levou para sua casa e, depois de vomitar, elas
riram. E, quando minha mãe chegava tarde, as discussões com Madalena aconteciam. Em função
disso, minha mãe passou a ficar o mínimo possível no Ranchinho. Outro dia, a caminho da praça
principal que ficava ao pé do morro, minha mãe passou novamente pelo Vítor e ele então teve coragem
de ir falar com ela. Estava nervoso, mas seguiu adiante e disse que sempre a via passar e que tinha
vontade de conversar com ela. Minha mãe respondeu que também queria conversar com ele, mas a
verdade é que ali, naquele momento, os dois não tinham muito assunto, porque ambos pareciam
tímidos. Ainda assim, Vítor aproveitou sua onda de coragem e disse que mais tarde ele e os amigos
iam fazer um luau na prainha e que, se ela quisesse aparecer por lá, seria muito bom. Minha mãe disse
que ia ver. Os dois se despediram e minha mãe guardou para si um sorriso no canto da boca. E ainda
no caminho minha mãe passou na casa de Lúcia e contou a ela sobre a conversa com Vitinho. Lúcia
disse que, embora o achasse um pouco sem graça, ele até que era bonitinho. Então elas riram. À noite
elas foram ao luau. Minha mãe estava muito bonita num vestido branco tricotado. Vítor ficou até um
pouco embasbacado assim que a viu chegar. Entretanto, antes disso minha mãe havia recebido
instruções de Lúcia de como lidar com rapazes. Era infalível, ela dizia: primeiro não deixe que ele
perceba que você está muito interessada, segurança demais faz os meninos ficarem muito babacas.
Mas, por outro lado, não deixe ele sair do seu campo de visão. E, quando ele vier falar com você, não
se mostre assim tão disponível, não dê muito assunto, diga que vai ali falar com um amigo seu e que
depois vocês se falam, e o mais importante: não fique com ele no início da festa. Deixa a coisa rolar
mais para o fim. Ele precisa sentir que você está sendo disputada. Nesse momento, minha mãe
interrompeu: mas ninguém está me disputando com ele. E Lúcia disse: não se preocupe com esse
detalhe, queridinha, ele não precisa saber disso. Mas, mesmo com todas aquelas instruções, o fato é
que minha mãe não conseguiu fazer nada daquilo, porque ela era nova demais para jogos complexos
de aproximação, então, após dez minutos de músicas e hits do momento, minha mãe e Vitinho já
estavam muito à vontade um com o outro. E não demorou muito para que vários assuntos surgissem
espontaneamente. Falavam da escola, dos professores, da vida no morro e, antes da metade da festa,
eles se beijaram. A partir daquele dia, tudo mudou para minha mãe. O começo do namoro com Vitinho
fez com que ela, de certo modo, se apaziguasse com o Morro das Pedras. Era como se uma nova
forma de viver ali se apresentasse. Aquele namoro pareceu definitivo desde o início. Tinham as
mesmas opiniões, o mesmo gosto musical, riam das mesmas coisas. Os pais de Vitinho incentivaram o
namoro, porque viam em minha mãe uma boa pessoa, que, embora fosse pretinha, era bonita e
poderia até dar netos bonitos, eles pensaram. Madalena viu aquele namoro repentino com
desconfiança, mas após algumas semanas ela também incentivou, afinal minha mãe já era uma
adolescente e a hora para isso havia chegado. Por outro lado, Madalena sentia-se sozinha. As coisas
tinham perdido o sentido, porque as meninas cresceram e já não dependiam tanto dela. Pensou que
deveria voltar a estudar, mas não tinha ânimo para tanto. Olhou para si. E se perguntou se tudo que
tinha vivido era aquilo mesmo. Enquanto isso, o namoro de minha mãe e Vitinho ganhava tal força que
um dia eles até falaram em casamento, e por conta disso minha mãe se afastou de sua melhor amiga,
Lúcia. E, após algum tempo, elas deixaram de se ver. Minha mãe e Vitinho demoraram quase seis
meses para transar. Por vários motivos, mas o principal deles era que não havia um lugar próprio para
isso. Minha mãe jamais conseguiria transar no Ranchinho enquanto Madalena trabalhava. Achava que
seria um desrespeito com ela. E também não queria correr o risco de ser dedurada por Flora. Na casa
de Vitinho nem pensar, porque a residência ficava nos fundos do armazém e era sempre um entra e sai
de gente e eles nunca conseguiam ficar a sós por muito tempo. Além disso, minha mãe era virgem e
não queria que aquele momento fosse num lugar qualquer. Vitinho não a pressionava quanto a isso.
Não falavam de sexo abertamente. Mas, quando se beijavam, minha mãe sentia o volume crescer na
bermuda dele e ele apertava a sua bunda. A primeira vez aconteceu numa tarde, na casa do Rodolfo,
um amigo de Vitinho. A casa não estava completamente vazia, pois Rodolfo morava com a avó de
oitenta e três anos. Além de ser surda de um ouvido, ela não podia se locomover com facilidade.
Passava o dia no quarto assistindo TV no último volume. Então, certa vez, Vitinho perguntou se
poderiam passar a tarde juntos, naquelas condições. Minha mãe aceitou. Vitinho não disse, mas estava
subentendido que eles iam transar naquele dia. Rodolfo deu a chave da casa para Vitinho e eles
chegaram lá por volta das duas horas da tarde. Foram para o quarto ao lado de onde a avó de Rodolfo
estava. Dali dava para ouvir a vinheta do programa Vale a Pena Ver de Novo. De início, minha mãe
ficou incomodada com a ideia de que iam transar sabendo que havia uma velha no quarto ao lado. Só
ficou um pouco mais à vontade depois que se beijaram. Após algumas carícias, eles tiraram um a
roupa do outro. Vitinho estava afoito, minha mãe queria, mas não foi tão bom quanto ela imaginava. Na
verdade, ficou um pouco desapontada, porque foi tudo rápido demais. Quando terminaram, minha mãe
sangrou um pouco, no entanto Vitinho já tinha pensado nisso, e levou uma toalha para cobrir o lençol,
pois uma pequena auréola amarronzada ficou como marca do ato deles. Minha mãe não confiou em
Vitinho quando ele disse que não a engravidaria, que ele sabia como se prevenir. Minha mãe tinha
muito medo da gravidez. Preferia morrer a ter um filho naquele momento da vida. Ela sempre lembrava
de uma prima mais velha que engravidara depois que, segundo ela, a camisinha estourou. Desde
então, minha mãe desconfiava que aquele pedaço de borracha besuntado de lubrificante poderia ser
eficaz, por isso ela jamais relaxava totalmente quando transavam. Creio que minha mãe só tenha
conhecido o orgasmo quando namorou o José Luiz, anos mais tarde. Meses depois ela começou a
tomar anticoncepcional. Além disso, durante o namoro com Vitinho, eles tiveram que se conformar com
a falta de opção para ter mais intimidade, e talvez isso tenha acelerado a vontade que tinham de casar.
6.
Um dia você recebeu a notícia da morte do seu pai. Mas você não sabia bem como reagir. Pois você
não conviveu com ele. Seu pai sempre foi um completo estranho. A verdade é que o tempo passou e
você ainda não sabe bem como lidar com isso. Então, você pediu licença na escola e viajou para o Rio
de Janeiro. Você passou quase vinte e quatro horas no ônibus. A passagem aérea era muito cara para
o seu bolso. O dia estava ensolarado e triste. Você não sabia se chegaria a tempo para o enterro. Na
verdade, você não queria ir. Mas aproveitou a situação para dar um tempo na escola. No caminho,
enquanto olhava para a paisagem, colocou os fones e escutou “Aculturado”, do Itamar Assumpção,
depois ouviu “Ao que vai nascer”, do Milton. Passou o resto da viagem pondo essas duas músicas no
repeat. Ao chegar, você ligou para a sua meia-irmã Isabel. Foi um telefonema estranho, pois vocês não
eram próximos, mas a morte parecia estar forçando alguma intimidade. Vocês eram irmãos apenas por
parte de pai. Já levaram o pai para o cemitério, ela disse. Isabel tinha uma voz cansada. Você não
sabia se por ter tido de tomar todas as providências para o enterro ou porque estava mesmo cansada
da vida. Isabel te deu informações para chegar ao cemitério. Seu pai morreu com setenta e cinco anos.
E depois disso, depois da morte dele, foi na sua morte que você passou a pensar. Você tinha um ano
de idade quando seu pai sumiu no mundo. Sua mãe se viu obrigada a dar um jeito. E você cresceu
vendo a sua mãe dar um jeito nas coisas. Não havia tempo para lamentações. Aos quatro anos de
idade você ainda não sabia o que era superação e que essa seria uma condição permanente de
sobrevivência. Anos a fio, suportar a pobreza, o racismo e a ausência paterna foi uma espécie de
sinônimo da vida. Sempre que chega em casa, com a pasta cheia de provas e trabalhos para corrigir,
pensa que poderia ter feito outra coisa da vida. Lembra do momento em que pensou em ser arquiteto.
Sonhou uma vida diferente. Uma vida mais confortável, menos atribulada e hostil. Então você abre a
geladeira e ela está vazia novamente. Você vai tomar banho. A água quente no corpo, mesmo em dias
de calor, o faz se aprofundar em si mesmo. Suas primeiras lembranças da infância têm a ver com
banhos. Lembra da sua mãe te orientando embaixo do chuveiro. Que você já está grandinho, que
precisa saber lavar direito seu pinto, sua bunda e atrás da orelha. Você ri, pois sua mãe tinha um jeito
engraçado de falar essas coisas. E em breve você se dará conta de que rir não será uma tarefa muito
fácil. Chorar também não é uma ação que você poderá exercer com frequência. Muito cedo aprenderá
que o seu pranto vai enfraquecer sua mãe. Então você vai evitar. Vai chorar para dentro. Você e sua
mãe viverão numa espécie de solidão mútua. No início da sua vida, ela será obrigada a te deixar numa
creche, porque arrumou emprego numa padaria. Vocês têm de acordar às cinco da manhã. No primeiro
dia de creche você lembra da sua mãe olhando para você com tristeza. Talvez ela não estivesse triste,
mas é assim que você lembra. Entretanto, dias depois você descobrirá a dor. Não que já não soubesse
da sua existência. Aos quatro anos, a única memória da dor mais pungente que você carregava era a
das cólicas. No entanto, haverá um dia em que a dor dura e lancinante encontrará seu corpo frágil. E,
logo que você aprender a andar, há grandes possibilidades de que isso ocorra com frequência. Na
primeira infância, as experiências com a dor pareciam não ficar tão marcadas em sua mente. Não que
você lembre. Então, quando você corre, quando você pula, quando você brinca, você não tem medo. E
às vezes, na vida adulta, você sonhava em recuperar aquele sentimento ingênuo, sem fobias e sem
receio. Mas com o passar do tempo tinha a impressão de que as possibilidades de sentir dor iam se
ampliando e limitando sua liberdade. Viver passou a ser uma questão de evitar a dor a qualquer custo.
Numa espécie de encarceramento voluntário, você vai sendo acossado dia após dia pelo medo do
desconforto. No entanto, aos quatro anos, quando prenderam seus dedos numa porta, você encontrou
a dor física e aguda. Talvez não seja possível dizer que sua fobia de dor tenha começado ali. Mas foi
aos quatro anos que você tomou consciência plena dela. Tomou consciência da trajetória da dor: da
demora em senti-la depois do ato traumático, porque a dor nunca é instantânea. A dor ressoa. Pulsa no
ritmo agudo dos batimentos cardíacos. Toda a sua vida se resume naquele pedaço do seu corpo que
agora grita. Na hora você não sabia, mas mais adiante saberá que aquela dor foi provocada. Saberá
que as professoras da creche prenderam seus dedos na porta apenas por maldade. Queriam ver até
onde você aguentava. E no fim, também mais adiante, encontrará pessoas dispostas a saber até onde
você vai. Até onde você suporta. Durante o velório do seu pai, você evitou o quanto pôde chegar perto
do caixão. Aquilo não era um acerto de contas entre você e o pai morto. Mas, diferente de mim, você
não terá de enfrentar os objetos. Não vai entrar na casa de um pai falecido. Não terá de remontar
nenhum quebra-cabeça sentimental. A última vez que você viu seu pai, você tinha um ano de idade.
Um ano. E é isso que você balbucia ao se aproximar do defunto. Você o olhou com o canto do olho e
continuou a repetir: um ano de idade. Depois que seu pai foi embora. Depois que seus dedos foram
prensados na porta. Depois que as professoras da creche te negaram comida. Um ano de idade, foi a
única frase que você conseguiu dizer diante do pai morto. É assim que você vai se curar da culpa.
Apesar de tudo, ainda há a culpa. A culpa que você carregava por não sentir nada diante do caixão do
próprio pai. Sua indiferença é assustadoramente normal. Sua irmã estava chorando. Mas você não.
Você era indiferente. Embora fizesse um esforço para se mostrar compadecido. No entanto, sua
tentativa esbarrava na normalidade da morte. Convenhamos: você estava diante de um desconhecido.
Nenhum parentesco de sangue seria capaz de comovê-lo. Minutos depois entrou no local uma senhora
gorda. Ela se aproximou da sua irmã e disse que sentia muito. Elas se abraçaram. Depois a mulher se
aproximou de você. E você não queria abraçá-la. Na verdade, não queria abraçar ninguém. Mas você
não teve saída. Em minutos, você já estava sentindo o perfume adocicado, aliado à mão dela no seu
rosto e à voz misericordiosa dizendo: força, meu filho. Após o enterro, sua irmã Isabel te apresentou
para a sua sobrinha, a Letícia, que você só conhecia por fotos. Vocês se cumprimentaram. Sua
sobrinha olhava para você com curiosidade. Isabel não era nada parecida com você, mas o rosto da
sua sobrinha lembrava o meu rosto, você pensa. Letícia tinha treze anos e um olhar vivo, mesmo com a
morte do avô. Isabel insiste que você poderia ficar em sua casa se quisesse, é um pouco longe, mas é
sossegado, ela disse. No início, você pensou em recusar, porque tinha feito uma reserva num hotel, no
Catete. E também porque tinha dificuldade de se relacionar com pessoas estranhas. Pois, embora
fosse professor, embora tivesse de lidar com muitas pessoas todos os dias, nos momentos fora do
ambiente escolar você se sentia deslocado. Você cancelou a reserva no hotel. Sua irmã morava em
Campo Grande. A viagem seria longa. Mas você não se importou com isso. Vocês pegaram um ônibus
com ar condicionado. Isso amenizava seu cansaço e o calor. As paisagens diferentes sempre o
assustaram. Mas estranhamente você parecia estar familiarizado com aquele cenário. Como se já
tivesse estado ali, naquela mesma situação. Sua irmã perguntou como era o clima no Sul durante o
verão. Você disse que era bastante quente. A conversa não evoluía. Vocês estavam apenas
preparando o terreno para falar de coisas mais graves. Sua sobrinha lembrava até o meu jeito de falar,
você pensou. Cada vez que ela te olhava, você se lembrava de mim com nitidez. Em dado momento,
você pegou uma foto minha da carteira e mostrou para sua irmã. Ela elogiou. Eles são mesmo
parecidos, ela disse. Vocês sorriram. Nesse momento da sua vida, eu estava com sete anos e ainda
não entendia como as coisas funcionavam. Compreender as ações dos pais leva anos, às vezes a vida
inteira. Então, você perguntou como tudo acontecera, como seu pai morrera. Isabel disse que ele já
estava hospitalizado havia um mês. Estava sofrendo com aquelas sondas e todos aqueles aparelhos
que feriam seu corpo frágil. Sua irmã se comoveu um pouco, e você não sabe o que fazer quando
alguém sofre na sua frente. Naquela noite, você recebeu a ligação de Elisa. Ela disse que sentia muito
pelo seu pai. Você respondeu que estava tudo bem. Que, na verdade, você tinha viajado mais para ver
sua irmã, após tanto tempo. Disse também que num enterro as coisas são sempre muito tristes, mas
que ela não se preocupasse, que você estava bem e que em breve voltaria.
7.
Quando você e minha mãe foram morar juntos, vocês jamais imaginaram que as coisas fossem
acabar como acabaram. Você ignorou todos os sinais de que aquilo não iria terminar bem. E eu não o
culpo. Também não culpo minha mãe, mas para mim ainda é difícil entender por que me deixaram vir
ao mundo numa situação como aquela em que vocês se encontravam. Compreendo que o fato de eu
estar aqui aconteceu graças às suas decisões. Principalmente depois que minha mãe saiu do
ginecologista assustada com o que ele dissera sobre a história do relógio biológico. Trinta e cinco anos
é uma idade crucial, ele disse. Já começa a correr certos riscos, e ninguém aqui quer ter uma criança
com alguma doença oriunda de uma gravidez tardia, ele completou. Então, se você pretende ser mãe,
o momento é agora. Fale com seu marido. Os filhos são uma bênção e sempre fazem bem ao
casamento. Minha mãe olhou para ele e teve vontade de chorar, porque vocês não tinham as mínimas
condições de terem um filho. Vocês só sabiam lidar com os afetos na precariedade. Vocês não eram
equilibrados o suficiente. Vocês eram equilibristas. A corda bamba como terreno dos afetos. Na época,
você já tinha saído de casa pelo menos duas vezes. Mas você sempre voltava, porque, como já disse,
você não sabia ir embora. E depois da volta, por algum tempo, ficava tudo bem. No entanto, quando
minha mãe jogou uma cadeira em você, após uma discussão, você viu que aquilo já tinha ido longe
demais. Então você saiu de casa. Parecia definitivo. E essa foi a primeira vez que vocês passaram
mais tempo separados. Foram pouco mais de três meses. Nesse período, você saiu transando com
uma ex-colega sua do ensino médio, que você encontrou por acaso, na rua, a Márcia. Enquanto isso,
minha mãe passou a transar com um colega dela de trabalho, o Eliseu, na empresa de traduções.
Fazia algum tempo que o Eliseu olhava para ela, e minha mãe às vezes retribuía. No entanto, a cada
transa, vocês se sentiam vazios e tristes. Como se pelo sexo vocês tentassem se curar do casamento
fracassado. Então, quatro meses depois, vocês se ligaram e disseram coisas bonitas, cheias de
lugares-comuns, sobre o amor e a saudade. Não demorou muito para que vocês se reencontrassem. E,
assim que vocês se olharam, perceberam que muita coisa já havia se perdido. Mesmo assim vocês
insistiram. Você não sabe precisar exatamente como vocês acabaram voltando, no entanto vocês
sabiam que o sexo também era um elemento forte. Não que transar fosse a coisa mais importante num
casamento, na verdade tinha, claro, a sua importância, você pensava. Mas é que o sexo para vocês
nunca foi um problema. Vocês nunca pararam de transar enquanto estavam juntos. Mesmo nos piores
momentos, mesmo quando sabiam que o casamento estava na corda bamba, vocês iam para a cama.
E talvez isso não fosse algo comum entre casais, que, após certo tempo juntos, vão perdendo a
vontade de fazer sexo. E a perda do desejo acontece por muitos motivos, ou porque trabalham muito,
dormem tarde e acordam cedo, ou porque simplesmente o corpo do outro não interessa mais. E às
vezes você pensava que devia haver casais que já não transavam havia muito tempo. Mas que
continuavam juntos, e eram gentis um com o outro. E pegavam na mão um do outro antes de dormir, e
conseguiam preservar uma certa ternura nos olhos quando um observava o outro dormindo. E não há
tristeza nisso, você pensava. Mas acontece que com vocês era diferente. Parecia que o desejo nunca
arrefecia. E por isso a volta sempre era boa, porque vocês passavam a acreditar que poderiam ser
felizes novamente. E era dentro do sexo que vocês tentavam assegurar que os fatores externos não
pudessem interferir na vida de vocês. E então, sempre que o impulso de largar tudo vinha, você
ponderava as coisas. Tentava encontrar qualidades na vida com minha mãe. Certamente, além do
sexo, o fato de ambos serem negros era um dos elementos que pesavam nessa balança. Pois, a
princípio, a cor da pele não deveria ser um problema; afinal, quando vocês saíam na rua, isso não era
um incômodo, pois, quando vocês entravam numa loja ou num restaurante, ninguém olhava para vocês
com curiosidade ou espanto. Vocês faziam parte do mesmo grupo racial, e isso tranquiliza as pessoas.
A inserção da minha mãe na sua família foi bem mais fácil do que você tinha imaginado. Embora a
minha avó tenha desconfiado dela, mesmo ela sendo da raça, apenas pelo modo como a minha mãe te
olhava e te dava ordens, e pelo modo como você acatava e tentava fazer suas vontades. Mas, tirando
isso, a pele não era um problema. Às vezes, você olhava para os casais brancos andando pela rua,
felizes, de mãos dadas, e pensava se eles, em algum momento da vida, se perguntaram por que seus
parceiros eram brancos e não negros. Talvez isso jamais tenha sido um problema para as pessoas
brancas, você pensou. Acontece que minha mãe foi criada numa família de pessoas não negras, o que
a fez ter outra visão sobre o racismo; aliás, para ela o racismo se fortalecia justamente quando
começávamos a falar sobre ele, que isso era uma coisa que já deveria ter sido superada. E falar sobre
a cor da pele só fortalecia o preconceito. E foi nesse ponto que o discurso racial entrou na vida de
vocês como mais um problema. No início, você tentou argumentar dizendo que ser um casal negro em
Porto Alegre, nessa cidade que é a mais racista do país, não era fácil. E minha mãe dizia que você era
muito dramático e até quando a gente vai ficar se lamentando? A vida é assim, Henrique, lide com isso.
Temos que olhar para a frente. O movimento negro nunca fez nada por mim. O movimento negro acha
que tudo se resume à cor da pele. Se esquecem que ser um homem negro é muito diferente de ser
uma mulher negra. E às vezes vocês, por serem homens negros, acham que está tudo resolvido, que
estamos sempre no mesmo barco e que o racismo justifica todas as merdas que vocês fazem com as
mulheres. Além disso, eu queria saber onde o movimento negro estava quando me assediavam na
praia quando eu tinha treze anos. Onde o movimento negro estava quando não impediu que minha
mãe morresse bêbada na rua. Eu queria saber por que ninguém se importou com ela, nem com os
filhos dela. Minha mãe bebia para se proteger da realidade. Ela era uma mulher negra, na década de
oitenta, com quatro filhos para criar. Era o mundo contra ela e contra nós. Ela era uma presa fácil,
entende? Porque a gente, às vezes, cansa de suportar. E quem a manteve de pé até que pudéssemos
sobreviver não foi o discurso do movimento negro, mas as garrafas de cerveja e cachaça que ela
conseguia beber. Eu não quero dizer que essa história de negritude não tenha importância, não é isso,
mas esse tipo de movimento coloca todos nós no mesmo balaio. Os negros são diferentes. Nós não
somos iguais. Você a ouvia e pensava que talvez minha mãe tivesse razão. Entretanto, você não podia
concordar com tudo, pois você achava que minha mãe estava individualizando uma questão que era,
em sua raiz, um problema de ordem estrutural. Mesmo assim, mesmo com os argumentos postos,
vocês não se entendiam, e sempre que vocês saíam, para ir ao cinema ou a um parque, você
observava que vocês eram os únicos negros do lugar, o que deixava minha mãe irritada, pois ela dizia
que tal constatação não nos levava a nada, o teatro não vai ser melhor, nem o filme vai ser melhor se
houver ou não pessoas negras aqui. E agora era você que se irritava profundamente com um discurso
desses. Então as saídas de vocês logo se transformavam num inferno. E quando voltaram para casa,
depois da última briga que tiveram, vocês decidiram duas coisas:
1. não tocar em assuntos sobre raça;
2. e que iam fazer terapia de casal.
8.
Minha mãe se casou com o Vítor, mas eles não se casaram de maneira formal. Apenas decidiram ir
morar juntos, porque, como eu disse, foi o modo que eles encontraram para ter mais intimidade. Na
verdade, eles foram morar nos fundos do armazém, ao lado da casa dos pais de Vitinho. Uma casa
pequena de madeira, com um fogão de quatro bocas, um sofá de dois lugares e no quarto uma cama
de casal. Era o suficiente. Ter pouco era um incentivo para construírem juntos alguma coisa. Tudo era
novo, mesmo que aquele lugar fosse sempre o mesmo. O casamento deu outro significado à vida de
minha mãe. No início, fizeram muitos planos, queriam sair dali um dia. Morar em Florianópolis. Queriam
ter uma família. Quero ter três filhos, disse Vítor. Minha mãe ria e sentia-se amada. Além disso, a
possibilidade de ter filhos também os excitava. Faziam amor quase todos os dias da semana. Vitinho
gozava dizendo que queria engravidá-la. E minha mãe respondia: me engravida, me engravida.
Acontece que minha mãe tomava anticoncepcional, porque, apesar da excitação, apesar do desejo da
maternidade, achava que ainda não era o momento, e também porque no fundo tinha medo. Além
disso, queria ter a própria casa, quem sabe fazer uma faculdade. No entanto, Vítor disse que não
queria demorar muito para ser pai, queria logo formar a própria família. E minha mãe sorria e pensava
que aquilo era amor. E houve um dia em que dona Maria, a sogra, veio conversar com minha mãe.
Bateu na porta e pediu para sentar um pouco. Tomaram café com biscoito. Dona Maria disse que
estava feliz de ter minha mãe morando com eles, que a via como uma filha, mas que elas tinham de
combinar algumas coisas, como, por exemplo, as tarefas da casa. Minha mãe respondeu que sempre
fazia tudo enquanto o Vitinho trabalhava no armazém com o seu Armindo. Dona Maria não esperou que
ela terminasse e foi mais direta: não estou falando só da casa de vocês, estou falando de tudo, e fez
um gesto largo com um dos braços. Agora você é da família e isso significa que pode ajudar a manter a
casa dos seus sogros limpa também. Uma moreninha forte igual a você pode ajudar bastante. E minha
mãe respondeu que tudo bem, que ela se sentia mesmo da família, e a dona Maria lhe agradeceu
dizendo que elas iam se dar muito bem. E, quando o Vitinho chegava do armazém e sentava-se à
mesa, a comida já estava pronta. Depois tomavam banho e faziam amor. Foi assim por alguns meses.
Certa vez, dona Maria chamou-lhes a atenção por causa dos barulhos noturnos e disse que ali era uma
casa de respeito e não um puteiro, que, se minha mãe estava acostumada a gritar daquele jeito quando
andava perdida por aí, que ali tinha que respeitar, porque eles eram cristãos, iam à igreja e zelavam
pela moral. Já tinha ouvido que as pretas eram assim, mas assim já é demais, comentou dona Maria
com o marido certa vez, antes de irem dormir. Minha mãe aceitou aquilo em silêncio porque estava
constrangida ou porque ainda não tinha o ímpeto de reagir, no entanto, à noite, quando estavam
deitados depois de terem feito amor praticamente em silêncio, minha mãe reclamou para o Vitinho. Ele
a escutou atento, em seguida riu para minimizar a situação, e disse que a mãe dele tinha certa razão,
porque afinal eles estavam no terreno da casa dela e, portanto, tinham de seguir as regras. Minha mãe
pensou em discutir, porém achou melhor se calar. Passados alguns meses, não demorou muito para
que a rotina de casada começasse a incomodar minha mãe:
6h30: fazia o café para o seu Armindo e o Vitinho, que abriam o armazém às 7h30;
8h30: alimentava as galinhas e um casal de gansos dos quais ela morria de medo;
10h: preparava um lanche e levava para o Vitinho;
10h30: varria a casa de dona Maria, o pátio e depois a própria casa;
11h: dona Maria e minha mãe começavam o almoço. Às vezes, elas iam à feira, que acontecia duas
vezes por semana. E minha mãe era sempre quem carregava as compras, porque dona Maria
argumentava que sofria da coluna e não podia carregar nada. Argumento que só mais tarde minha mãe
saberia ser mentira. E, diante do mesmo argumento da dor na coluna, minha mãe fazia o almoço.
Embora ela sempre fosse péssima cozinheira;
14h: lavava a louça, secava e depois ia para os fundos da casa e lia alguma revista de fofocas;
15h: preparava outro lanche para o Vitinho;
16h: dona Maria saía para conversar com as amigas e pedia para minha mãe limpar o banheiro ou
passar cera no chão;
18h: preparava o café da tarde para o sogro e o Vitinho;
20h: o armazém fechava e minha mãe tinha que pôr a mesa para o jantar;
22h: minha mãe lavava a louça;
23h: tomava banho e já não faziam amor durante a semana.
Certo dia minha mãe disse ao Vitinho que eles tinham de mudar dali porque ela queria ter a casa
dela. Mas essa aqui é a nossa casa, ele respondeu. Minha mãe disse que, para ela, não era, e que a
dona Maria a tratava como uma empregada. Não exagera, amorzinho, ele disse a abraçando e
acariciando suas pernas. Minha mãe se afastou e disse que estava falando sério: eu quero sair daqui e
logo. Vitinho percebeu que minha mãe não estava brincando e respondeu apenas que ia ver aquilo,
mas que não queria problemas em casa. Vocês têm que se dar bem, eu e o pai passamos o dia no
armazém e no fim do dia a gente só quer paz. A gente só quer voltar e encontrar as coisas em ordem.
Minha mãe não concordava com aquilo. Depois disso eles vão para a cama um emburrado com o
outro. No fim de semana minha mãe fez uma visita a Flora e Madalena. E então soube das novidades,
que a família de Rubão estava no Morro das Pedras. E que parecia que eles iam passar um tempo por
ali. Madalena trouxe um café, depois olhou para minha mãe e disse que ela aparentava estar um pouco
abatida. Está tudo bem com você e o Vítor? Minha mãe disse que sim, que só se sentia um pouco
cansada porque vinha ajudando a dona Maria nos afazeres da casa. Que tipo de afazeres?, ela
perguntou. Minha mãe respondeu que não era nada de mais e quis mudar de assunto. Madalena olhou
para ela, desconfiada, mas preferiu não insistir.
9.
Para quem nunca fez terapia de casal, uma situação dessas pode parecer um tanto cômica. Pelo
menos para você pareceu que era. Na verdade, você praticamente foi obrigado pela minha mãe a ir
para o consultório da terapeuta dela. A Jane. É importante dizer que meses antes daquela sessão de
terapia de casal, quando você e minha mãe estavam caminhando pelo centro da praia de Torres,
entraram num bar para tomar uma cerveja e viram, no fundo desse mesmo bar, uma mulher bêbada,
xingando o garçom porque ele havia errado a dose de uísque. Vocês logo reconheceram aquela
mulher: era a Jane, a terapeuta da minha mãe. Quando Jane os viu, gritou lá do fundo o nome da
minha mãe e disse que estava muito feliz em vê-la ali. Que coincidência linda essa, ela repetiu. Minha
mãe ficou constrangida. Você também. Nenhum de vocês dois queria ver o próprio terapeuta num
estado daqueles, porque o paciente sempre acha que os terapeutas são pessoas boas e sensatas, que
não bebem e não dão vexames em bares. E era diante da Jane que vocês estavam agora. Além dela,
estava o teu terapeuta, o Reinaldo. Quando minha mãe propôs esse tipo de terapia, vocês e os seus
respectivos psicanalistas na mesma sala, você achou estranho, e nem imaginava que uma modalidade
dessa existia. E, mesmo desconfiado, você aceitou, porque parecia ser a última chance de vocês se
entenderem. Vocês foram recebidos pela Jane, ela estava com um perfume que te deixou levemente
enjoado. Vocês entraram numa sala sóbria demais por causa dos móveis escuros e também devido às
paredes com estantes de livros. Vocês sentaram um ao lado do outro, em poltronas muito confortáveis.
Você estava com trinta e dois anos, mas por algum motivo, ali, você lembrou quando fora chamado na
secretaria da sua escola. Você estava na sexta série e tinha doze anos. Sentou-se diante do diretor e
da supervisora e eles queriam saber por que você tinha começado a gritar feito um doido na aula de
ciências, você assustou todo mundo, sabia? E você até quis dizer que na noite anterior seu tio, o Zé
Carlos, quase tinha matado a sua tia com um tiro, mas ele atirou no chão e ficou aquela marca no
assoalho. E então, para piorar as coisas, veio o professor de ciências e disse que a porra do sol ia
explodir. Mas, como sempre, você se calou. Eles acharam que você passava fome, porque era magro
demais. Então a supervisora da escola te trouxe umas bolachas Maria e um copo de leite com alguma
coisa que lembrava sabor de morango. Pessoas brancas nunca pensam que um menino negro e pobre
possa ter outros problemas além da fome e das drogas. Eles te perguntaram o que estava
acontecendo. Você não respondeu. Você se guardou. Escondeu o tumulto vital que eles nunca iriam
compreender. Quando a sessão começou, os dois terapeutas cruzaram as pernas ao mesmo tempo.
Você achou aquilo engraçado. Mas não riu. Minha mãe, por sua vez, estava esperançosa, pensava que
vocês sairiam dali resolvidos. Apostou todas as fichas naquela sessão. Na verdade, vocês não sabiam
como deixaram que as coisas chegassem àquele ponto. Não sabiam como chegaram àquela situação
em que não foram capazes de resolver as coisas entre si. Após um breve silêncio, Jane começou: bem,
amigos, quero que saibam que estamos aqui para ajudá-los. E que o fato de estarem aqui já demonstra
que vocês ainda desejam estar juntos. Demonstra também que acreditam no amor que vocês têm um
pelo outro. Por isso estamos aqui. A gente sabe que a comunicação é mesmo muito difícil, às vezes. E,
antes que ela terminasse, você a interrompeu dizendo que não devia ser difícil. O que não deve ser
difícil?, Jane perguntou. A comunicação, você respondeu. Jane não gostou do seu jeito. Soou
arrogante. Mas ela seguiu: a comunicação entre as pessoas nunca foi fácil. A Martha me relatou sobre
a tua dificuldade de se abrir. De se colocar. De falar sobre os teus sentimentos. Então você pediu a
palavra novamente, levantando a mão, da mesma forma como seus alunos faziam quando queriam
apenas tumultuar a aula; temos um problema aqui, você disse, a senhora não pode dizer que me
conhece. Conhece apenas o ponto de vista da minha esposa em relação a mim. Ela respondeu com
certa aspereza: eu não disse que te conhecia, Henrique. Não disse diretamente, mas disse, você
respondeu com calma, porque queria parecer superior a tudo aquilo. Silêncio constrangedor. Reinaldo
tomou a palavra. Olha, Henrique, nós sempre pensamos no lado negativo quando estamos em crise.
Ficamos agressivos, até. E isso é normal. Mas veja, ele disse descruzando as pernas, a crise é o
melhor momento das nossas vidas, porque é quando nos reavaliamos, quando fazemos uma
autocrítica. E o melhor disso é que, quando a crise passa, tudo fica melhor. São as crises que nos
levam adiante. Portanto, gostaria de propor um exercício a vocês: quero que pensem no momento em
que vocês se conheceram. Pensem naquilo que os fez se apaixonarem um pelo outro. Pensem um
pouco e digam. Verbalizem. Esse é o momento de resgatar o que vocês perderam. Você achou aquilo
tão ridículo que não via nenhuma possibilidade de dizer algo. Quer dizer que vocês querem que eu
passe por cima de tudo que aconteceu e fique aqui relembrando a porra de um passado, você pensou.
Mas você não disse nada, apenas ficou remoendo as coisas dentro de si. Por breves instantes o
silêncio dominou novamente a sala. Enquanto isso, você observava os terapeutas. E pensou que eles
não sabiam nada de vocês. Não conheciam o tumulto vital de vocês. Eles eram brancos. Vieram de
uma classe média. E tinham uma visão limitada do mundo. Não perceberam o que estava acontecendo
ali. Eles não faziam a mínima ideia de que a metade dos seus problemas estava contida na cor da pele,
você pensou. Não diretamente, mas lá no fundo. Você sabia que tudo isso era mais complexo do que
eles imaginavam. A psicanálise tinha cor e ela era branca, você pensou. E definitivamente havia coisas
que escapavam a Freud. Você só queria ser honesto consigo, porque nunca sabemos se somos
suficientemente bons ou quando somos incapazes de fazer algo, não pela nossa cor, mas porque
simplesmente não conseguimos fazer, você pensava. E ninguém nunca te diz que você pode fracassar.
Que está tudo bem se você cometer um erro. O mundo seguirá. Fique tranquilo. Nada de mais vai
acontecer. Quando uma pessoa branca nos elogia, nunca saberemos se aquilo é sincero, ou apenas
uma espécie de piedade, ou para não se sentir culpada, ou mesmo para não ser acusada de racismo.
Não sabemos avaliar nosso fracasso. Porque é tentador atribuir todas as nossas fraquezas e nossas
falhas ao racismo. E, para não cair nessa armadilha, você precisa tirar forças sabe-se lá de onde e
construir dentro de si uma espécie de balança ética, e não sei explicar bem como uma porra dessas
funciona, entende? Porque você passa a vida escutando que, apesar de tudo, você tem de aguentar.
Você passa uma boa parte da vida apanhando e ainda te dizem que você não pode fazer certas coisas.
Que você não é capaz. E para sobreviver, porque é assim que você vê a vida: um tumulto vital com o
qual você tem de lidar apesar da cor da sua pele. Você não só mostra que é capaz, como também
precisa mostrar que é sempre melhor. E quando você falha, quando você cai, você precisa abrir mão
da autopiedade, mesmo que seja a sua única bengala, mesmo que haja um mundo nefasto ao seu
redor, é preciso ser honesto com seus afetos. Mas isso dói. E às vezes não se quer ter essa coragem.
E ainda assim, por mais que você seja sincero consigo, por mais que você derrube as ilusões, sobrará
sempre aquela dúvida sobre suas reais capacidades. E essa é a perversidade do racismo. Porque ele
simplesmente te impede de visitar os próprios infernos. Sim, Freud nos escapa, você pensava. Minha
mãe foi a primeira a falar: quando vi o Henrique, não achei muita graça nele. Porque ele era muito
tímido. Eu jamais gostei de pessoas muito tímidas. Foi uma amiga minha, a Anne, que nos apresentou.
E quando eu escutei a voz dele, assim pausada e grave, quando vi o quanto era gentil, achei que
devíamos nos conhecer mais. E então passei a admirá-lo. Nesse momento minha mãe arriscou te olhar
com o canto do olho. Mas você seguiu firme. Não esboçou nenhuma reação. Jane pediu que ela
continuasse, fazendo uma cara de vamos-continue-coragem. Minha mãe disse ainda que, no início,
vocês faziam planos e tudo parecia mais fácil. Depois ficou em silêncio porque não conseguia ir mais
adiante. Jane segurou a mão de minha mãe e disse: muito bem, como um adulto que cumprimenta
uma criança depois de ela ter feito algo positivo. Então, foi a vez de Reinaldo pedir que você falasse
alguma coisa. Você disse que não queria dizer nada, porque simplesmente não tinha nada a dizer.
Você sabia que, de certo modo, estava sendo infantil. E então, de repente, minha mãe começou a
chorar e disse que queria ir embora. Ela te acusou de ser egoísta e imaturo, disse que não fora com
aquela pessoa que ela havia se casado. A essa altura, a Jane ofereceu um lenço para ela. Você se
sentiu culpado vendo aquela cena e foi desfazendo a sua cara irônica, e começou a buscar alguma
imagem positiva para dizer algo naquela sala, mas as únicas coisas que vinham a sua cabeça eram as
brigas, as discussões e os ciúmes. O dia em que fomos para o Rio, você disse, assim, de impulso, sem
saber aonde ia dar aquilo. Quando fomos ao Rio de Janeiro. E estávamos em Copacabana, sentados
no calçadão, olhando para o mar, a Martha e eu. Senti que aquela situação era uma espécie de
paraíso. Porque eu gostava de ser eu. Eu gostava porque eu tinha a Martha ao meu lado. E acho que,
quando gostamos de ser quem somos, é um sinal de felicidade. Depois que você disse isso, Jane
pareceu comovida. Reinaldo também. Mas você não. Você não conseguia se comover com nada.
Contou aquilo apenas porque queria sair logo daquele lugar. Não conseguia mais ser honesto com
eles. Talvez nem consigo mesmo. Você queria apenas sair. Só isso. Minha mãe também quis ir embora,
mas embora com você. Para casa. Ela queria retomar a vida e ter um filho. Talvez todos naquela sala
de fato acreditassem que aquilo poderia funcionar. Talvez todos ali tivessem boas intenções. Menos
você. Você não queria que nada daquilo desse certo. Para você, o fim já havia chegado. Após a crise
de choro da minha mãe, você achou que também deveria chorar para demonstrar um pouco de
humanidade. Então você chorou, e nem sabia bem por quê; na verdade sabia: você estava com os
olhos cheios d’água porque tinha lembrado da primeira vez em que foi a um terapeuta, depois de ter
tido um ataque de ansiedade por causa da história da explosão do sol e daquela maldita marca de tiro
no assoalho na casa da sua avó. Quem te levou foi sua mãe. Disse que sempre desconfiou que você
tivesse autismo, porque nunca foi de falar muito, você era quieto demais e às vezes ficava parado por
muito tempo olhando a esmo para o céu e sua mãe se preocupava porque achava que aquilo era
algum tipo de problema grave que você tinha na cabeça. E lembrou que a partir daquele momento você
sempre achou que fosse autista, mesmo sem saber bem o que isso significava. Você apenas pensou
que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar
calado, que toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que
o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu
desde a infância: não chame a atenção dos brancos. Não fale alto em certos lugares, as pessoas se
assustam quando um rapaz negro fala alto. Não ande por muito tempo atrás de uma pessoa branca, na
rua. Não faça nenhum tipo de movimento brusco quando um policial te abordar. Nunca saia sem
documentos. Não ande com quem não presta. Não seja um vagabundo, tenha sempre um emprego.
Tudo isso passara anos reverberando em você. Como uma espécie de mantra. Um manual de
sobrevivência. Quando o seu pensamento voltou para a sala, minha mãe e os terapeutas estavam te
olhando. Queriam saber de vocês o que podiam fazer de concreto para reatar o casamento. Jane disse
que foi uma conversa muito produtiva e que vocês alcançaram a meta. E, ao ouvir aquilo, você teve
vontade de mandar tudo à merda, porque aquela conversa mais parecia uma reunião empresarial, com
seus escopos, estratégias, pareceres, gráficos e curvas ascendentes de sempre. Mas acontece que
você e minha mãe estavam fragilizados. Não queriam estender mais a situação. No final, vocês
prometem ir juntos para casa e conversar mais um pouco. No entanto, durante a volta, no táxi, vocês
permaneceram em silêncio. Nada do que vinha a sua cabeça era bom para ser dito. Vocês estavam
num campo minado. Qualquer palavra poderia explodir. Mesmo assim você tentou: sugestões para
jantar?, você perguntou. Minha mãe não respondeu de imediato, apenas olhou de volta para a janela.
Ainda estava com os olhos cheios d’água. Depois de alguns instantes, ela se virou e perguntou se era
só aquilo que você tinha para dizer. Se era a única coisa que você tinha a dizer. Sim, você respondeu
com tranquilidade. Acontece que, sem querer, a sua resposta seca soou como um deboche para minha
mãe. Mas você não estava sendo debochado, nem irônico, apenas respondera de forma direta. Então é
só isso que te preocupa? O que vamos comer?, perguntou minha mãe, decepcionada. Você respirou
fundo e disse que não, que havia milhares de outras coisas que o preocupavam, que você só estava
tentando quebrar o gelo. Ficaram em silêncio novamente. Passaram o resto do caminho calados.
Quando vocês chegaram ao prédio, você disse a ela que não ia subir. Minha mãe perguntou: por que
isso agora, Henrique, nós fomos até a terapia, dissemos um monte de coisas. Eu me expus. Falei tudo
que me machucava, as coisas que me doíam e que são difíceis para mim, porque achei que
precisávamos disso. E agora você vai dar uma de criança mimada, dizendo que não vai subir? Vocês
caminharam mais um pouco e pararam no portão. Minha mãe te olhou, então você não vai subir
mesmo, não é? Você não respondeu. Foi o suficiente para que minha mãe começasse a gritar te
chamando de filho da puta, é isso que você é, um grande filho da puta. Eu fiz tudo por nós, tudo. Eu
abri mão de mim, da minha vida, dos meus sonhos. Me sinto tão arrependida de ter casado com você,
Henrique, tão arrependida. Você não suportou ser xingado daquela forma e respondeu que filha da
puta era ela. Controladora, insegura, que achava que tudo girava em torno de si. Você acha que pode
fazer tudo, que pode dizer qualquer coisa só porque sofreu na vida. A vida passa por cima de todo
mundo, Martha, você gritou. Pare de tentar parecer inteligente, e equilibrado, coisa que você não é,
nem nunca foi. Minha mãe queria te atingir de alguma forma. Ela queria te machucar. Ela sabia que
questionar sua inteligência e o seu bom senso te desestabiliza. Eu quero que você suma daqui.
Acabou, Henrique, não quero mais saber de nada. Eu tentei tudo. Tudo. E você nunca se esforçou para
dar certo. Fui sempre eu quem tentou consertar as coisas. Fui eu que segurei a merda desse
casamento pela gola e não deixei ele morrer. Vai, vai embora. Depois de ouvir isso, você desistiu da
discussão. Para você, não havia mais nada a ser dito. Você apenas deu as costas a ela e saiu. Virou a
esquina. Sair assim pareceu ter sido a melhor das decisões. Mas você estava enganado, porque,
quando olhou para trás, viu minha mãe caminhando apressadamente atrás de você. Ela te chamava,
na verdade ela gritava: volta aqui, Henrique. Você não pode sair assim. Volta aqui, seu covarde, ela
gritava. A rua estava cheia, as pessoas olhavam para vocês com desaprovação, outros com pena,
porque achavam que vocês eram dois loucos. Vocês eram um casal de negros gritando pela rua. Isso
causa um efeito no imaginário das pessoas, ou confirma aquilo que elas pensam de pessoas negras:
são escandalosos, barraqueiros e mal-educados. Mesmo com a minha mãe berrando a plenos
pulmões, você não parou, continuou caminhando. Apertou o passo. Você queria fugir. No entanto, sem
que você percebesse, minha mãe começou a correr e em poucos minutos ela te alcançou e te segurou
pelo braço, você tentou se desvencilhar. A cena era altamente patética, mas vocês não se davam conta
disso. Vocês estavam no fundo do poço da relação. Quando você tentou tirar a mão dela do seu braço,
vocês ficaram perigosamente próximos da avenida. Os carros buzinavam. Vocês chegaram a invadir
uma faixa da rua. Por fim, vocês se afastaram. Estavam ofegantes, estavam ofendidos e humilhados.
Você percebeu que não poderia ir embora. Não assim. Você tentava pôr a cabeça no lugar. Minha mãe
sentou no meio-fio. Nem se importava que os carros estivessem passando a centímetros dela. Foi
nesse momento que você lembrou do seu amigo Francisco. Na verdade, foi a história do Francisco que
influenciou no meu nascimento, de alguma forma. Francisco foi casado por quinze anos. Um dia
decidiu se separar da esposa, a Roberta, porque se apaixonou por uma ex-aluna, a Mariana, que tinha
dezenove anos. Era bonita, tinha muita vida e muita admiração pelo Francisco. Admiração por um
homem de quarenta e três anos. A separação não chegou a ser traumática, mas foi dolorida. Francisco
era professor de literatura e português. Basta dizer apenas que aquele encontro foi, de certo modo,
fulminante. Em todos os sentidos. Francisco nunca havia traído a esposa. Mas, quando ele reconheceu
a Mariana na rua e se cumprimentaram, eles conversaram por mais de uma hora. E ela disse que
gostava muito das aulas dele e que sentia saudades daquele tempo. E ele mentiu dizendo que também
sentia saudades, mentiu porque não lembrava muito bem daquela turma do segundo grau. O fato é que
os dois trocaram telefones e e-mails. E daí a começarem a se encontrar, e depois a transar, a ponto de
ela dizer que sentia algo muito forte por ele e ele dizer que sentia algo muito forte por ela, não se soube
exatamente quanto tempo passou, mas tudo foi muito rápido. Questão de meses. No dia em que
Francisco foi embora de casa, ele não mediu as palavras, disse apenas que havia se apaixonado por
alguém. Não houve discussão, apenas muita tristeza e um marejar de olhos. Havia em Roberta um
profundo ressentimento, ainda mais quando ela descobriu que Mariana tinha a metade de sua idade,
mesmo assim ela manteve a dignidade. Em poucas semanas, Francisco e Mariana foram morar juntos.
Os amigos de Francisco, inclusive você, o alertaram sobre aquela pressa de casar. Vocês, os amigos
de Francisco, que estavam acompanhando de fora, logo perceberam que a Mariana era bastante
impulsiva. Fazia muita coisa sem pensar nas consequências. E não demorou muito para que aquela
rotina se transformasse num martírio. Em poucas semanas eles descobriram o inferno. Ela tomava
remédios psiquiátricos com bebidas alcoólicas. Passaram a discutir todos os dias, porque Francisco
dizia que ela era muito irresponsável, ela respondia: quem mandou se envolver com uma mocinha ha,
ha?, e ria com um copo de uísque na mão. Depois vamos falar quem é o irresponsável aqui, ela
continuava, vamos falar quem é afinal o louco aqui, porque foi você quem largou sua esposinha, jogou
tudo para o alto, seus anos de casamento, lembra? Às vezes, a briga terminava na cama. Algo intenso
e violento como Francisco jamais experimentara. Assim, como numa espécie de redemoinho, eles eram
atraídos para um epicentro trágico. Pois, certa noite, após mais uma discussão violenta, Francisco saiu
do apartamento dizendo que não voltaria nunca mais. Nunca mais, ele repetiu. Ela não acreditou.
Francisco passou três dias fora de casa, perambulando pela casa de amigos, inclusive a sua, por isso
você tomou conhecimento de todos os detalhes da sua aventura. No quarto dia ele ligou para Mariana
e ela não atendeu. Ligou para o celular, mas apenas chamava e depois caía na caixa postal. No quinto
dia ele foi ao apartamento. Tocou a campainha. Nada. Ele não tinha a chave. Foi até a portaria e
perguntou ao porteiro se a tinha visto, ele respondeu que fazia tempo que não a via. Francisco então
ligou para os familiares, para os amigos dela, e ninguém sabia de Mariana. Foi à delegacia. E, quando
os policiais foram com ele até o apartamento e arrombaram a porta, Francisco viu a casa do mesmo
jeito que ele havia deixado, o mesmo copo sujo com o batom dela, as baganas de cigarro, uma
camiseta dele no sofá. E, ao chegarem ao quarto, a cena trágica se completou: Mariana caída no chão.
Constataram que estava morta já havia alguns dias. Na autópsia, eles foram mais precisos. Ela havia
morrido na mesma noite em que Francisco deixara o apartamento. Dali em diante foram meses de
sofrimento e angústia causados pela culpa. E, quando você olhou para minha mãe, ali, sentada
naquela calçada, você pensou no seu amigo e teve medo de que as coisas pudessem se repetir com
vocês, não que minha mãe tivesse tendências suicidas, mas vocês estavam tão desorientados e tristes
que você pensou que, se talvez algo parecido ocorresse, não seria um absurdo, por isso você decidiu
se aproximar da minha mãe, sentou ao lado dela, e também não se importou que os carros passassem
rentes a vocês. Então, você passou seu braço por cima dos ombros dela e disse: vamos para casa. E
minha mãe te olhou com ternura e tristeza. Vocês se levantaram. Foram caminhando em silêncio. Não
mais um silêncio apático, mas um que os confortava. Vocês estavam regressando do inferno. E quando
chegaram em casa, ainda na sala, vocês tiraram a roupa e fizeram amor. Naquela noite, um tumulto de
sensações misturadas ao desejo que vocês ainda sentiam um pelo outro, embora estivessem
lacerados e doídos, tomou conta de vocês.
10.
Quando você chegou a Porto Alegre, em meados dos anos mil novecentos e oitenta, não imaginou
que aquela seria a sua cidade por toda a vida. Era inverno, e até então você nunca tinha sentido um
frio daqueles, um frio de sair vapor da boca. De sentir os lábios secos e de ter de usar touca na cabeça.
No início, você até achou divertido um negócio daqueles. Não fazia ideia do que vinha pela frente. Não
fazia ideia do que era o auge do inverno numa cidade úmida como Porto Alegre. Enquanto o táxi os
levava para a casa de sua avó, você e suas irmãs estavam admirados com aquela cidade. E, quando
vocês passaram por um cavalo puxando uma carroça entre carros e ônibus, vocês deram um grito de
surpresa. Subiram a avenida Protásio Alves, passaram pela rua Cristiano Fischer e, em seguida, vocês
chegaram à casa da sua avó Julieta, na Vila Bom Jesus, um bairro grande de Porto Alegre. Na época,
também era um dos mais violentos. E você sentiu isso na pele logo nos primeiros dias, quando você e
suas irmãs foram brincar na frente de casa, com uma bola de futebol que você tinha recém ganhado, e
nem perceberam quando um bando de garotos, um pouco mais velhos que você, se aproximou. Um
deles, antes de chegar mais perto, baixou e juntou uma pedra, e outro, mais atrás, juntou um pedaço
de pau. E de repente vocês estavam cercados. Um deles mandou você entregar a bola sob a ameaça
de levar uma pedrada na cabeça. Você até pensou em resistir, mas você só tinha doze anos. Então
você apenas fez o que tinha de fazer: entregou a bola. Antes de irem embora, você levou um empurrão
e caiu sentado. Suas irmãs gritaram por socorro e então o mais velho mandou elas calarem a boca,
suas neguinhas de merda, e eles as empurraram também. Ali você descobriu que a sua vida e a vida
de suas irmãs não seriam fáceis naquele lugar. Além disso, a violência não se resumia apenas à rua,
ela estava também dentro da casa da sua avó. A começar pelo cachorro. Chamava-se Urso. Não era
difícil entender por que ele tinha um nome desses, pois se tratava de um rottweiler agressivo que
parecia estar sempre com raiva da vida. Passava dia e noite acorrentado e só quem podia com ele era
a sua avó. Única pessoa que chegava perto dele. Você e suas irmãs morriam de medo. Entretanto,
como eu disse, a violência não parava por aí, já que a sua mãe e a sua avó nunca se deram bem. E,
depois que vocês voltaram do Rio de Janeiro com uma mão na frente e outra atrás, as coisas pioraram.
Sua mãe foi morar no Rio de Janeiro aos dezesseis anos, depois de ter brigado com a sua avó; ficaram
mais de dez anos sem se falar. Então, quando o seu pai os abandonou, sua mãe não teve como
continuar no Rio e teve que voltar para a casa da mãe. Assim, não havia um dia em que elas não
discutissem, a sua avó gostava muito de humilhar sua mãe porque ela estava desempregada, e
também porque ela era mais jovem e porque havia homens que a desejavam apesar de ela ter três
filhos. E nos fins de semana você e suas irmãs presenciavam o que havia de pior naquela família. Tudo
começava com a chegada dos seus primos, tios e tias. A preparação do churrasco. A caipirinha. A
cerveja e o som na vitrola tocando partido-alto. Na hora do almoço era uma grande bagunça. Não havia
lugar para todos na mesa. Cada um tinha que procurar um lugar para sentar com o prato no colo e
farofa no canto da boca. E você sempre ficou de fora de toda aquela confusão. Você se guardava. Não
conseguia fazer parte de tudo aquilo. Nem daquela gritaria, nem daquela muvuca. Você apenas se
guardava. A não ser quando a sua prima Violeta te puxava para o quarto, depois do almoço, e fazia
você beijar ela na boca. A prima Violeta tinha treze anos. E você tinha doze. Você lembra da primeira
vez que a beijou e teve vontade de vomitar cada vez que sentia a língua dela entrando na sua boca.
Você não entendia por que um beijo tinha que ser daquele jeito. Depois ela mandava você baixar a
bermuda porque queria beijar o seu pinto e você dizia que não queria, e a prima Violeta te ameaçava
dizendo que podia inventar uma série de coisas a seu respeito. E, se havia uma coisa que a sua prima
Violeta sabia fazer, era inventar coisas para os adultos. Histórias tão convincentes que ninguém
duvidava, como, por exemplo, a vez em que ela mesma botou fogo na casinha do Urso e disse que
havia sido o primo Leo, que na época tinha só nove anos. E, para ninguém duvidar da autoria, Violeta
deu um jeito de colocar uma caixinha de fósforos no bolso da calça dele sem que ninguém percebesse,
e você ficou pasmo quando ouviu ela afirmar que viu o primo Leo botando fogo na casa do Urso e
vocês podem olhar os bolsos dele que vão encontrar os fósforos, ela disse. E você nem sabe dizer por
quanto tempo o primo Leo apanhou da mãe, do pai e também da avó Julieta. Então, toda vez que ela te
levava para o quarto, você já sabia que não podia dizer não para ela. E teve um dia que a prima Violeta
pediu para você beijar a periquita dela. E você beijou. Desajeitado, ajoelhou-se, baixou a calcinha dela
e deu um selinho, mas não tinha a mínima noção do que estava acontecendo ali. E, depois disso,
vocês saíram do quarto e foram para o pátio brincar de implicar com o Urso. E sempre após o almoço,
quando todos, ou quase todos, estavam bêbados, era que a gritaria começava. Em pouco tempo
surgiam as acusações, as cobranças, e você nunca entendia bem por que discutiam tanto. Entretanto,
no dia em que você conheceu o Zé Carlos, um dos irmãos da sua mãe, percebeu que as coisas
sempre podiam piorar. O tio Zé Carlos era da Polícia Civil e fazia questão de que todos soubessem
disso, pois, sempre que chegava, ele tirava a arma da cintura e a colocava em cima da estante e dizia:
crianças, não mexam nisso, entenderam? E você lembra muito bem quando seu tio estava presente e
todas as atenções tinham de estar voltadas para ele. Sua avó tinha um grande orgulho. Era sem dúvida
o filho preferido. Zé Carlos se gabava de haver matado um vagabundo, como ele mesmo dizia, que
tentou assaltá-lo certa vez. Mesmo que a investigação do caso tivesse apontado indícios de que não
houve assalto e que seu tio, na verdade, estava envolvido com tráfico de armas e drogas, isso nunca
foi provado, porque seu tio conhecia certas pessoas da polícia e isso facilitou o arquivamento do
processo; então, ele sempre repetia a mesma história de que havia sido assaltado. O fato é que,
quando ele estava por perto, quando o fim de semana chegava, seu estômago doía e você só tinha
doze anos para sentir dores assim. Mas a dor era algo com que você teve de se acostumar, desde o
momento em que tomou consciência dela, naquela creche, ao prenderem seus dedos numa porta. E
você nunca poderá esquecer aquele fim de semana em que a tia Sônia, mulher do seu tio Zé Carlos,
descobriu que ele tinha uma amante. Era domingo, e logo depois do almoço os dois começaram um
grande bate-boca. E de repente, lá pelas tantas, a tia Sônia foi até a cozinha e pegou uma faca,
daquelas de cortar carne de churrasco, e dizia que ia matá-lo, seu filho da puta, que eu sei que você tá
me traindo com aquela piranha branca. Você acha que sou idiota? O cabelo loiro dela não é melhor que
o meu, seu babaca. Então, você viu também quando seu tio pegou a arma de cima da estante e
apontou para ela. E a essa altura todo mundo já havia saído correndo da sala, menos você, porque a
violência sempre te paralisou. E você presenciou quando seu tio Zé Carlos apertou o gatilho. E você
fechou os olhos e pôs as mãos nos ouvidos e ficou gritando: para, para, para, eu não quero mais isso,
chega, chega, chega. Após o estampido você abriu os olhos e viu seu tio dizer: não aconteceu nada,
porra, para de gritar, guri. E logo depois viu sua tia largar a faca e ir se agachando num canto como se
fosse uma criança, e talvez ela fosse mesmo uma criança naquele momento, porque sempre nos
tornamos infantis diante do desespero e da humilhação. Ao lado dela você observou que havia um
buraquinho no chão, no lugar por onde a bala passou. A Brigada Militar veio quando os vizinhos
chamaram. Mas seu tio, como eu disse, era da Polícia Civil, então tudo ficou certo, e ele alegou que
tinha sido só um mal-entendido familiar, uma briguinha entre marido e mulher, ele disse. E no dia
seguinte, quando você acordou, sentou na sala e viu aquele buraquinho da bala no assoalho, você
ficou paralisado novamente, mesmo com sua mãe dizendo para ir logo porque você ia se atrasar para a
escola. E você teve que ir para a escola sem café da manhã, porque não conseguia comer, você não
tinha fome. E, ao chegar à primeira aula, a professora de matemática fez a chamada, mas você não
respondeu, pois sua cabeça ainda estava naquele buraquinho no assoalho, sua cabeça ainda
repercutia os ecos dos gritos da noite anterior, dos gritos da sua tia, das ameaças do seu tio e dos
latidos do Urso. Então a professora de matemática te chamou novamente e alguém te cutucou, e você
respondeu presente como se fosse um robô. Na hora do recreio você ainda não tinha fome, mas seu
estômago doía. E na aula seguinte, na de ciências, aliás, a aula que você mais gostava, você teve o
primeiro ataque de ansiedade, depois de ouvir do professor que o sol ia explodir um dia. E você não
sabia mais o que era pior: o buraquinho no assoalho ou a explosão do sol.
11.
Na primeira vez que o Vitinho chegou em casa alterado, falando alto, o nariz fungando, minha mãe
não sabia que aquilo era apenas o começo de outro inferno. Naquela noite, quando Vitinho voltou já de
madrugada e minha mãe perguntou por onde ele tinha andado, ele soltou um não te interessa, porra,
que ele podia fazer o que quisesse, e não me enche o saco, já não basta meu pai que passa o dia me
aporrinhando no armazém. E, quando ele disse isso, minha mãe se calou, não estava reconhecendo o
Vitinho. Após alguns minutos ela tomou coragem e perguntou: por que você está falando desse jeito
comigo, Vítor, o que foi que houve? Não houve nada, porra, ele gritou. Depois, pegando uma lata de
cerveja, ele deu uma boa olhada na minha mãe e perguntou onde ela havia aprendido aquilo.
Aprendido o quê?, ela quis saber. Aprendido a trepar como uma puta, ele disse. Porque nunca vi uma
moça virgem gemer daquele jeito na cama, mexer daquele jeito, onde você aprendeu isso, sua
piranha?, ele perguntava com os olhos estalados. Meu pai bem que me avisou que as pretas não
prestam. Ao ouvir isso, minha mãe levantou os olhos e disse que aquilo já era demais, disse que ia
embora. Foi então que o Vítor segurou-a com força pelos cabelos. Minha mãe tentou se desvencilhar. E
pela primeira vez minha mãe levou um tapa no rosto. Vítor seguiu gritando com ela: olha o que você
me obriga a fazer. Nesse momento, alguém bateu na porta. Então, ela baixou a cabeça e foi para a
cozinha chorando. Vitinho foi atrás dela, pensou em pegá-la à força, colocá-la em cima da cama, abrir
suas pernas e penetrá-la, porque ele tinha direito de fazer o que quisesse, mas no meio do caminho ele
desistiu, porque as batidas na porta eram insistentes. Do outro lado, no pátio, dona Maria perguntava
se estava tudo bem. Vítor respondeu que sim, vai dormir, mãe, tá tudo certo. Depois ele voltou para o
quarto, deitou de bruços na cama e dormiu. Minha mãe passou a madrugada na sala. Sentada, ainda
tentando entender o que tinha acontecido. Quando Vitinho acordou, atrasado para começar a trabalhar,
ele foi até a sala, parecia sem jeito. Disse bom-dia para minha mãe. Ela não respondeu o bom-dia dele
e disse apenas: Vítor, eu vou embora. Vou arrumar minhas coisas e vou embora. Vítor sentou-se ao
lado dela. Minha mãe levantou imediatamente e disse para ele não chegar perto. Eu não sabia que
você se drogava dessa maneira. Em seguida, ela parou perto da janela e continuou: por que você não
me contou? Vítor ficou em silêncio, depois, de olhos baixos, apenas murmurou: eu ia te contar, mas
não consegui. Tem muito tempo que eu não saio com os meus amigos. Eles tinham uma carreira, eu só
dei um teco e tomei uma cerveja, foi só isso. Minha mãe mal conseguia olhar para ele. Ninguém havia
dito a ela o que deveria fazer numa situação assim. Nunca tinha passado pela cabeça dela que um
casamento poderia ter um problema como aquele. E a única frase que havia em sua mente era: vou
embora daqui. Mas Vitinho não tinha limites quando pedia desculpas. Ajoelhou-se e pediu perdão, meu
amor. Eu juro por Deus que não faço mais. E naquele eu-juro-que-não-faço-mais minha mãe foi
convencida de que aquilo não aconteceria de novo. Mesmo que minha mãe se sentisse enganada, a
vontade de permanecer era mais forte que ela. Minha mãe fora engolida pelo matrimônio. Mas, para
que ficasse claro que ela havia ficado desapontada com ele, ela o fez dormir na sala por três dias.
Comunicava-se com ele apenas por monossílabos. Até que no quarto dia eles se deitaram e fizeram
amor, e naquela noite minha mãe não se importou em gemer alto, mesmo que Vitinho tentasse tapar a
sua boca, o que deixava minha mãe mais excitada. Nos dias que se seguiram, Vítor pareceu entrar na
linha. Tratou minha mãe com atenção e gentileza. E assim, aos poucos, ele voltava a ser o Vítor que
ela conhecera. Tudo parecia estar se encaminhando. Mas às vezes, quando minha mãe voltava do
mercado, carregando sacolas, pela beira da praia e olhava para o mar, ela sentia receio de que as
coisas na vida dela terminassem daquele jeito. Tinha medo de terminar ali naquele lugar. Também tinha
medo das drogas, das bebidas alcoólicas, tinha receio de acabar sendo atropelada numa rua qualquer,
como a mãe fora. Tinha medo da pobreza. Ter filhos para ela não significava gerar a vida, ter filhos para
minha mãe era como gerar espólios, porque era assim que ela sempre se sentia. Ter filhos era para ela
uma espécie de arqueologia da pobreza. E todo esse sentimento aumentava quando tinha de voltar
para casa, e tinha de lidar com a sogra e com a apreensão de que Vítor voltasse drogado novamente.
Um dia, sem que Madalena soubesse, ela teve uma conversa com Flora sobre o que ocorrera com ela
e o Vítor semanas antes. Flora disse que aquilo era um absurdo, que ela não podia continuar naquela
casa com ele. Ele é perigoso, ela disse. Você tem que sair de lá. Minha mãe encheu os olhos d’água e
murmurou: não posso. Ele me prometeu que nunca mais faria isso, ele está cumprindo com a palavra.
Vou dar uma chance pra ele. Flora a abraçou e disse que, se ele levantasse a mão para ela, que ela
chamasse a polícia. Este lugar está se tornando um barril de pólvora. A gente não tem o que fazer
nesse fim de mundo, a gente não tem pra onde ir, disse Flora.
12.
Conheci Saharienne pouco depois de entrar na faculdade de arquitetura. Tive alguma dificuldade em
fazer amizades ali. A primeira pessoa com quem conversei e que depois se tornou meu amigo foi o
Mauro. Éramos poucos os negros no curso. Então, quando nos vimos, creio que a vontade de
pertencer a um grupo influenciou nossa aproximação. Mauro morava na cidade de Alvorada, no bairro
Jardim Porto Alegre. Assim como eu, havia entrado na faculdade pelo sistema de cotas. Mauro tinha a
pele mais escura que a minha. Suas histórias sobre abordagem policial, perseguição por seguranças
em lojas, ou mesmo sobre senhoras que recolhiam suas bolsas quando o viam por perto, acabaram
nos aproximando também. Foi através do Mauro que conheci Saharienne. Lembro do dia em que o
Diretório Acadêmico dos Estudantes promoveu no campus um debate sobre racismo estrutural. E,
quando sentei ao lado de Saharienne, eu não podia imaginar que aquela guria que estava todo o tempo
ao meu lado seria, tempos depois, objeto de um sentimento com que eu não saberia lidar. Em
determinado momento, ela pediu a palavra e disse coisas duras e contundentes sobre a condição das
mulheres negras na sociedade, sobre os processos de aceitação do próprio corpo, do próprio cabelo,
fiquei pasmo com o jeito dela de falar, era como se cada palavra e expressão estivessem todas no
lugar. Saharienne manejava a palavra e os gestos com tanta desenvoltura que ninguém dispersava.
Depois que a discussão acabou, fomos apresentados por Mauro. Nos cumprimentamos com dois
beijinhos na face e fomos para a Lancheria do Parque, na avenida Osvaldo Aranha. Na mesa estavam
o Luís Fernando, o Jorge Carrero, a Aline Almeida, o Mauro e a Saharienne. Tomamos algumas
cervejas, e Saharienne era sempre a mais falante. Eu também costumo ser falante, mas eu queria
escutá-la, porque tudo que ela dizia era inteligente. E depois, por algum motivo, começamos a falar
sobre filmes e ela nos perguntou se já tínhamos visto Os incompreendidos, do Truffaut. Todo mundo
disse que sim, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Eu tive vergonha de dizer que não tinha
visto, então menti que também havia assistido, porque eu queria que ela prestasse atenção em mim.
Mas minha resposta não fez diferença, porque ela continuou falando comigo com a mesma intensidade
com que falava com os outros. E com o passar do tempo comecei a lutar pela atenção dela, tentava
dizer coisas interessantes, mas não conseguia. Eu não sabia ser interessante. Sentia que não havia
nenhuma vontade dela de me conhecer, de saber coisas a meu respeito. Não que ela fosse
egocêntrica. Não era isso. Era porque talvez eu não fizesse o tipo dela. Ou talvez porque a mesa
estivesse cheia. Mesmo assim eu queria ser o tipo dela. Por isso, assim que cheguei na Casa dos
Estudantes, fui correndo para a internet tentar baixar Os incompreendidos. Lembro que você havia me
falado desse filme, mas nunca te dei atenção. Você disse que chorava toda vez que via. E eu achava
um exagero, porque sempre achei um exagero as pessoas se comoverem com filmes. Eu acho que a
literatura já me fez chorar uma ou duas vezes. Mas os filmes, não. No entanto, quando vi a cena final,
em que Antoine Doinel foge do internato, eu chorei um pouco. Naquela sequência dele correndo por
uma estrada, depois entre árvores e arbustos até chegar à praia deserta, num dia cinzento e triste, e
enfim molhar os pés no mar, como se ali houvesse uma espécie de redenção a sua espera, e em
seguida a câmera fechando em seu rosto, e depois a imagem congelando repentinamente. Naquela
noite pensei em te ligar, para te contar minhas impressões sobre o filme e também perguntar se você
tinha mais coisas para me dizer, porque, além de estar comovido, eu queria impressionar Saharienne.
Mas já era tarde e você sempre reclamava que dormia pouco. No dia seguinte, quando cheguei na
faculdade, fui até o bar. Quando entrei, vi que Saharienne estava sentada numa mesa mais ao fundo.
Depois que peguei um sanduíche, sentei ao seu lado. Ela se surpreendeu um pouco com a minha
chegada. Depois sorriu. Assisti novamente Os incompreendidos, por sua causa, eu disse. Então, foi a
primeira vez que ela me olhou de verdade. Aproveitei a oportunidade e a atenção que ela me dava e
disse tudo que havia sentido ao rever o filme. Saharienne partilhava das mesmas impressões. Eu
percebia que ali havia algo que começava a nascer entre nós, ou pelo menos na minha cabeça era isso
que estava acontecendo. No entanto, fomos interrompidos por uma colega dela. Ao se verem, as duas
gritaram e se abraçaram. E disseram coisas do tipo eu-não-acredito-que-você-está-aqui. E se
abraçaram novamente. Depois começaram a conversar sobre algum assunto do qual eu não fazia
ideia. Fiz cara de quem estava empolgado com aquele encontro. Na verdade eu não estava, esperei
alguns minutos e levantei para ensaiar uma despedida. Então Saharienne se virou e me apresentou
para a amiga, chamava-se Luciana. Voltei a sentar. Sentamos todos. Conversamos sobre as cadeiras
que íamos fazer naquele semestre. Na verdade, eu queria apenas que a amiga dela fosse embora,
porque era sexta-feira e queria ter coragem de convidar Saharienne para ir ao cinema no fim de
semana. Mas ela não dava sinais de que sairia dali tão cedo. Olhei para o relógio, e eu precisava ir
para minha aula, que já havia começado fazia uns quinze minutos. Mas achei que valeria a pena
esperar. Então, quarenta minutos depois, a amiga dela disse que estava atrasada para a aula.
Saharienne disse que não tinha mais aula naquele dia, que estava indo embora, então as duas olharam
para mim e eu disse que também não tinha mais aula. Então nos levantamos os três e nos dirigimos à
saída do bar. Saharienne se despediu da amiga. Depois eu e Saharienne fomos para a parada. Não
pegávamos o mesmo ônibus, mas mesmo assim continuei indo com ela. Chuviscava um pouco,
estávamos sem guarda-chuva, o que nos obrigava a caminhar com pressa. E eu não queria ter pressa.
Queria ficar mais um pouco com ela. Quando chegamos, a fila estava grande. E era o momento de nos
despedirmos. Então tomei coragem e perguntei se ela gostaria de ir ao cinema no fim de semana. Ela
sorriu e disse que talvez, porque tinha muita coisa para estudar, mas, ainda assim, me deu seu número
de celular e pediu para eu mandar uma mensagem. Depois nos demos um breve abraço, e foi o
suficiente para eu sentir o perfume dela. Vi Saharienne entrar no ônibus. No caminho para casa, no
ônibus, fiquei tentando resgatar a lembrança do cheiro dela. Sentado, tive uma ereção e me assustei,
porque só a lembrança do cheiro tinha me deixado excitado, então coloquei minha pasta no colo com
medo de que alguém percebesse. Ao chegar em casa, fiquei pensando se Saharienne tinha namorado.
Não sei se ela teria dito um “talvez” para mim se estivesse com alguém. Mas depois pensei que quem
sabe esse “talvez” fosse justamente por ela ter um namorado. No dia seguinte, mandei uma mensagem
para ela, por volta das onze da manhã. Saharienne não me respondeu na hora. O que me fez ficar
olhando o celular de cinco em cinco minutos. Só recebi sua mensagem às duas e meia, bem quando
eu já havia desistido da possibilidade de encontrá-la. Dizia que queria ir ao cinema, e que eu poderia
passar na casa dela. Me deu o endereço. Fiquei lendo aquela mensagem muitas vezes. Eu queria ter
dado um grito naquele momento, mas o João, meu colega de quarto, estava dormindo. Eu mal
acreditava que ela havia dito sim para mim e ainda por cima tinha dado o endereço da casa dela.
Marcamos às dezessete horas, nossa sessão era às dezoito. O prédio ficava na rua Santana.
Saharienne morava com os pais. Toquei o interfone. Uma voz feminina atendeu e não era a de
Saharienne. Disse um pode-subir. O portão se abriu. Me olhei no espelho do elevador. Não me achei
bonito, na verdade eu nunca me achei bonito. Quando cheguei no andar de Saharienne, a porta do seu
apartamento estava aberta, e eu fui surpreendido por um labrador que quase me derrubou, e creio que
até ali eu nunca tinha percebido quanta baba um cachorro pode produzir nem como pode caber tanta
língua em sua boca. Atrás dele veio a mãe de Saharienne, se chamava Sônia. Pediu desculpas,
dizendo que ele, o Thor, não podia ver visita que ficava daquele jeito, a Sara (era o modo como eles a
chamavam em casa) já estava vindo. Pode entrar, ela disse. Então você é o Pedro, né? Respondi que
sim. Ela perguntou se eu queria comer alguma coisa, agradeci e disse que não. Fique à vontade, ela
disse. O apartamento era grande. Espaçoso. De bom gosto. Enquanto eu observava a casa, o pai de
Saharienne apareceu, muito sorridente e bem-humorado, chamava-se Cláudio. Apertou minha mão
com entusiasmo e perguntou que filme íamos ver. Eu disse o título, mas errei, porque talvez estivesse
nervoso. Os dois sentaram comigo na sala. Foram amáveis e pareciam ser boas pessoas. Antes de
sairmos, os pais de Saharienne disseram para eu voltar quando quisesse. Eu agradeci e disse que
voltaria. Saharienne não esboçou nenhuma reação. Na porta do elevador, ainda pude escutar os latidos
do Thor. O filme não era dos melhores, pelo menos para mim. Na verdade, achei muito ruim mesmo.
Sentamos no meio do cinema, embora eu gostasse de ficar mais na frente. Antes de entrarmos,
perguntei a Saharienne se ela queria comer alguma coisa. Ela disse que não, mas que, se eu quisesse,
que ficasse à vontade. Não gosto de comer no cinema. Acho que é falta de respeito com o diretor e os
atores. Os filmes que eu gosto de ver não combinam com pipoca e refrigerante, ela disse. Eu me senti
um idiota, porque nunca tinha pensado sobre aquilo. Enquanto o filme não começava, Saharienne me
perguntou sobre meus pais. Pensei que fosse um bom sinal, uma pergunta daquelas, ela estava
interessada em mim. Disse que você era professor de língua portuguesa e que minha mãe era
tradutora e revisora. Disse também que fazia algumas semanas que eu e você não conversávamos,
porque você estava sempre muito ocupado com provas e trabalhos para corrigir, e que minha relação
com minha mãe não era muito tranquila. Saharienne perguntou por quê, que problemas eu tinha com a
minha mãe. Na verdade, eu não queria falar disso, queria tocar em outros assuntos, como, por
exemplo, perguntar se ela estava namorando. Mas acabei resumindo os problemas com minha mãe
dizendo que ela era uma pessoa difícil de conviver e que costumava espantar todas as minhas
pretendentes a namorada. Na verdade, não sei dizer em que momento minha mãe mudou. Não sei
dizer em que momento ela deixou de ser aquela menina que fora morar em Santa Catarina e se tornara
tão reativa com a vida. E por mais que investigue a trajetória dela, por mais que pergunte aos outros,
por mais que eu tenha passado a maior parte da vida ao lado dela, minha mãe ainda é um mistério
para mim. E isso às vezes me dói, porque não compreendê-la me parece injusto. Mas não há justiça no
amor, você me disse certa vez. Depois, em casa, fiquei me condenando, não deveria ter dito um
negócio daqueles para Saharienne, afinal quem quer ter problemas com uma sogra possessiva e
controladora? Em seguida mudamos de assunto e começamos a falar sobre filmes clássicos. Agora já
me sentia um pouco mais à vontade e confiante para dizer que não tinha visto nada do Wim Wenders,
nem do Spike Lee, muito menos do Akira Kurosawa. Quando o filme começou, fiquei olhando para
Saharienne com o canto do olho, também fiquei observando a distância entre os nossos braços. Passei
o filme todo esperando um momento para tocar nela, que parecesse ser por acaso. Mas não consegui
ir adiante. Isso se deve à minha timidez ou também ao medo de ser repelido. Assim, como você, eu
também não tinha sorte com as garotas na juventude. Então comecei a fazer contas: ora, nos
conhecemos há pouco tempo e já fui na casa dela, conheci os pais e o labrador lambedor de visitas.
Acho que estamos tendo alguma coisa aqui, pensei. O fato é que o filme terminou e não encostei nela.
Saharienne também não parecia disposta a ter qualquer contato físico comigo, ou quem sabe eu
estivesse enganado, quem sabe ela fosse tímida, pensei. Quando saímos do cinema, perguntei se
podíamos comer alguma coisa. Saharienne disse que preferia ir para casa, porque precisava estudar
para uma prova. Fiquei bastante desapontado com aquela recusa, pensei que talvez eu não fizesse
seu tipo. Fomos caminhando até chegar em frente ao prédio dela. A despedida foi mais rápida do que
eu esperava, ela me deu um abraço e um beijo no rosto e disse que foi legal ter ido ao cinema. Em
seguida, entrou no elevador e eu fui para casa. No caminho, não sabia se ficava feliz ou decepcionado
com o encontro. Na verdade, eu nunca fui bom em saber quando uma garota estava a fim de mim.
Perdi minha virgindade aos dezessete anos com uma colega de escola. Ela se chamava Tamires e
tinha quinze anos. Era negra, de cabelo curto, e seus olhos eram grandes. Não sei bem quando um
menino de fato perde a virgindade, se quando a gente penetra uma garota, ou se já vale quando você é
chupado. O fato é que, no dia em que perdi minha virgindade, foi um tanto esquisito, porque eu nunca
tinha usado camisinha, na verdade eu já havia usado apenas para me masturbar quando não queria
sujar a mão. Então eu e a Tamires nos deitamos na minha cama, aproveitando que minha mãe estava
no trabalho. Naquele dia, tínhamos aula de educação física à tarde na escola, mas matamos aula para
podermos transar. O que nos pareceu bastante justo. Nós não chegamos a tirar completamente a
roupa porque tínhamos vergonha do nosso corpo. A Tamires achava que tinha os seios grandes
demais, então durante toda a transa ela usou uma blusa e sempre a puxava para baixo, com receio de
que eu visse os seus seios. Eu também continuei de camiseta, porque achava meu corpo muito magro
e não queria que ela reparasse na saliência dos meus ossos. E também porque eu não tinha muito pelo
embaixo do braço. E na minha cabeça ser homem era ter muitos pelos no sovaco. Começamos a nos
beijar e a passar a mão um no corpo do outro. Então, quando senti que eu estava suficientemente
excitado e ela suficientemente excitada, estiquei a mão e peguei a camisinha. Tentei abrir o pacotinho
com a mão, mas a embalagem não facilitou; além disso, eu não conseguia fazer as duas coisas ao
mesmo tempo: beijar a Tamires e abrir a camisinha. Então, meio que a gente desistiu de sermos
sensuais e nos empenhamos em livrar a camisinha daquele pacote escorregadio. Primeiro a Tamires
tentou com o dente, mas só conseguiu arrancar um pedacinho. Em seguida foi a minha vez, fui mais
incisivo e rasguei a embalagem de fora a fora. Depois de vencermos essa etapa, passei para a tarefa
seguinte: me dedicar a manter o pau duro tempo suficiente para desenrolar aquela borracha, que
teimava em ir para lá e para cá, tudo isso sob o olhar paciente da Tamires, que àquela altura já devia
estar pensando que a aula de educação física era bem mais interessante. Quando finalmente encaixei
a camisinha, começamos a nos beijar, e logo em seguida eu a penetrei, e ela deu um único gemido.
Nossa transa não durou mais que cinco minutos, porque gozei muito rápido, tão rápido que, quando
parei de gemer, a Tamires estava de olhos bem abertos, perguntando se já tinha acabado, eu disse que
sim. Ela disse: nossa, mas nem deu tempo de sentir muita coisa. E eu fiquei um pouco ofendido,
porque juro que senti muita coisa. Para mim tinha sido uma grande tarde de sexo. E, na minha cabeça,
ela também deveria estar sentindo o mesmo. O fato é que, depois daquilo, voltamos para a escola e
jogamos vôlei por toda a tarde na aula de educação física, como se nada tivesse acontecido. Depois
daquele dia, a Tamires passou a me evitar, e nunca mais nos falamos. Mas, passados alguns anos, eu
já me sentia um pouco mais experiente, e pensava que Saharienne também fosse, pois ela era dois
anos mais velha que eu. Num outro dia, fomos ao cinema de novo. Vimos Acossado, do Godard, na
Casa de Cultura Mario Quintana, pois era o único lugar que exibia uns clássicos de vez em quando.
Durante a sessão, fiz um grande esforço para gostar do filme, mas é que talvez seja uma coisa minha
não conseguir gostar daquilo que não entendo. Quando saímos, Saharienne estava empolgada falando
de coisas complexas sobre o filme, que iria fazer mais aulas de francês só para poder assistir aos
filmes do Truffaut e do Godard sem legendas. Porque eu acho que somos mais livres sem as legendas
no pé da tela. Os nossos olhos precisam de liberdade, ela disse. E eu seguia balançando a cabeça,
fingindo que estava conectado com tudo que ela dizia. Acho que Saharienne era ampla demais para
mim e talvez eu não estivesse preparado para ela. Então, para tentar mudar um pouco de assunto, fiz
uma observação que você sempre costumava fazer quando ia a determinados lugares, a de que havia
poucos negros no cinema. Saharienne concordou, disse que os espaços culturais de Porto Alegre
nunca foram atrativos para o público negro. Perguntei por quê, e ela respondeu que talvez os negros
não se sentissem à vontade em entrar em determinados espaços, quando como, por exemplo, uma
mulher negra decide entrar numa loja voltada para a classe média alta. Essa mulher só vai entrar se ela
puder comprar alguma coisa lá dentro, entende? Ou seja, ela não pode se dar o luxo de simplesmente
entrar, olhar e sair. Mas por quê?, perguntei. Porque ela simplesmente não pode. Porque é como se ela
estivesse confirmando o estereótipo de que pessoas negras não têm grana. E, mesmo que elas não
tenham, quando entram numa loja como essa, é preciso que mostrem que elas também podem
comprar ali. Isso talvez possa parecer bobo, mas acho que se conecta com a sua pergunta. Não há
negros no cinema porque talvez eles carreguem consigo o sentimento de terem de assistir um filme
burguês branco e não gostarem, assim como você. Como eu?, perguntei. Como assim? Acha que não
gostei? Acho, ela respondeu. Estou brincando, disse ela em seguida. Mas não acho que nós, negros,
devemos nos encerrar em guetos. Meus pais sempre me disseram isso. Nós podemos ter acesso a
qualquer conteúdo. Mas a gente nunca pode esquecer de onde viemos, entende? Você já leu os
poemas de Oliveira Silveira?, ela perguntou. Eu disse que sim, que você era um leitor dele e que ele
também havia sido seu professor. Saharienne sorriu e disse que você era uma pessoa de sorte. Disse
também que o Oliveira era um desses poetas que nos lembram de onde nós viemos, não para nos
prendermos num passado, mas para nos libertarmos no presente. Eu disse: Saharienne, você é tão
bonita dizendo tudo isso. Saharienne sorriu e me convidou para jantar na casa dela, na verdade ela me
convidou por pura insistência dos pais. Eles gostaram muito de mim. E eu também gostara deles. E no
jantar comemos um penne com molho de gorgonzola com pera. Tomamos um vinho português e depois
brincamos de adivinhar títulos de filmes através de mímica. Mais tarde o pai de Saharienne me chamou
para me mostrar uns vinis. Escutamos Miles Davis. Depois foi a vez do Pérola negra, do Luiz Melodia.
Eu disse a ele que você também gostava daquele vinil. E assim, em pouco tempo, passei a frequentar
a casa deles pelo menos duas ou três vezes por semana. O que para mim era muito agradável, mas,
por outro lado, a minha situação com Saharienne estava me deixando angustiado. Porque até ali a
gente ainda não tinha tido nada; eu sentia que ela gostava da minha companhia, gostava de fazer
coisas comigo. Mas nós nunca conseguíamos ultrapassar a barreira da amizade. E eu não podia mais
fingir que não sentia nada além. Foi então que te liguei e marcamos um almoço no centro de Porto
Alegre, naquele restaurante aonde você gostava de ir na rua dos Andradas. Eu juro que, se soubesse
que você morreria dias depois, eu não teria te enchido com coisas tão egoístas, pois eu queria que
você me ajudasse com a Saharienne. Assim, depois de te ouvir falar dos teus alunos, de que você
estava cansado, que já não conseguia ler nada que gostava, que se sentia cansado e frustrado com o
ensino, eu esperei um pouco e te perguntei: pai, como a gente sabe se alguém que está próximo de
nós quer amizade ou algo mais? Lembro que você me olhou e depois sorriu. Ora, isso é fácil, Pedro:
pergunte para a pessoa. Nós rimos. Deveria ser fácil, você continuou, mas eu sei que não é. Em
seguida, você terminou de tomar um copo de coca-cola e disse: pelo jeito que você fala dela, a
Saharienne é uma guria inteligente, então creio que é por aí que você vai fisgá-la. Você já leu O jogo da
amarelinha, do Cortázar? Não precisa ler tudo. Comece pelo capítulo 7. Depois dê para ela. Você diz
comprar o livro?, perguntei. Não, comprar não, ele disse. Não agora, isso soaria impessoal. Eu te
empresto e você copia o capítulo à mão, numa folha, e depois dá para ela. Ela vai entender. Fiquei
desconfiado, com um conselho daqueles. Mas você era o meu pai e, de certa forma, conhecia a vida
mais do que eu. Fomos para o teu apartamento e você me emprestou o livro. Depois de ler o primeiro
parágrafo, não sabia o que pensar. Eu disse que a literatura me fez chorar duas ou três vezes. Essa foi
uma delas. Resoluto, peguei uma folha pautada e comecei a copiar o capítulo para Saharienne. Iria
entregar para ela naquela mesma noite. Então, quando cheguei para jantar, Saharienne ainda não
estava em casa, naquele dia tinha aula de inglês até um pouco mais tarde. Eu estava feliz, porque algo
me dizia que as coisas se resolveriam finalmente entre mim e a Saharienne. A mesa já estava posta
para o jantar quando ela chegou acompanhada de um rapaz chamado Mohammed. Era um rapaz
mestiço. Parecia um pouco mais velho que ela. Saharienne nos apresentou dizendo o nome dele e que
ele era francês, que estava fazendo intercâmbio na Universidade Federal, estudando teoria literária.
Saharienne falava dele com admiração e orgulho, coisa que eu nunca tinha visto ela fazer comigo.
Então logo pensei que eu estava mesmo fodido, porque o Mohammed era bonito, interessante e
inteligente. Em poucos minutos deu para notar que ele era gente boa. Falava bem português porque o
pai era brasileiro; a mãe era francesa. Não soava arrogante. Depois de meia hora, eles pediram
desculpas, mas não iam poder ficar para o jantar porque eles iam ver uma peça de teatro e já estavam
atrasados. Saharienne só passara para pegar um casaco. Ela se despediu de mim com um abraço sem
graça. Cumprimentei Mohammed. Quando os dois saíram, eu discretamente pus a mão no bolso e
amassei a carta com o capítulo do Cortázar. Os pais de Saharienne, embora não tivessem percebido
minha tristeza, perguntaram se eu não queria ficar para ver um filme com eles. Eu pensei que aquilo já
era humilhação demais, mas depois pensei melhor, e seria ruim voltar para casa naquele clima. Eu
precisava de um pouco de carinho. Pensei em ir para a casa da minha mãe, mas eu não poderia contar
nada daquilo para ela. E você certamente não teria tempo para mim. Então, perguntei a eles que filme
iriam assistir. Estrela solitária, do Wim Wenders, eles disseram. Sentei no meio dos dois segurando
uma bacia de pipoca.
13.
Sei que para minha mãe deve ter sido difícil sair da casa da família do Vitinho e ainda ter de voltar
para a casa da Madalena. O casamento tinha durado pouco mais de um ano. Vítor se tornou mais
agressivo, além disso já não conseguia ir trabalhar. Os pais tinham medo dele. No dia em que minha
mãe resolveu ir embora, ela teve de esperar ele dormir e, machucada, pegou poucas coisas, não disse
nada aos sogros. Saiu como uma fugitiva. Quando bateu na porta da Madalena, ela a acolheu sem
perguntar nada. Minha mãe chorou muito naquele dia, e naquele mesmo dia Vítor apareceu na frente
da casa gritando por ela, ameaçou dizendo que ela ia se arrepender de ter ido embora, que aquilo não
ia ficar assim e que era isso que dava se envolver com uma preta. Madalena teve de chamar a polícia.
Dias depois, minha mãe se mudou para Porto Alegre às pressas. Voltou para a cidade que parecia não
gostar dela. Pois os pais haviam sucumbido naquela mesma cidade. O regresso às ruas de Porto
Alegre soava como mais uma agressão. Ela teve de voltar para a casa de sua tia. E agora, já na vida
adulta, minha mãe percebia como se tornara estrangeira. Minha mãe não tinha lugar. E era como se a
cidade só pudesse ensiná-la a ser sozinha. Não que ela já não soubesse a gramática da solidão.
Sabia, mas as coisas a sua volta faziam-na lembrar de sua mãe e de seu pai com tanta nitidez que
poderia jurar que o asfalto de cada rua, que as esquinas, as calçadas e as pessoas a magoavam
profundamente. Meses depois, minha mãe começou a frequentar um cursinho pré-vestibular graças a
uma bolsa de estudos. Dois anos depois ela entrou numa pequena faculdade de Porto Alegre.
14.
Eu ainda não tinha completado um ano de idade quando vocês se separaram. No entanto, durante a
gravidez, vocês tiveram a melhor fase da vida de vocês juntos. Você foi muito atencioso com ela e
minha mãe foi muito amorosa. Vocês sempre iam juntos ao pré-natal. Você prestava atenção em tudo
que o obstetra dizia. Vocês se comoveram quando viram a primeira imagem no aparelho de ultrassom.
Quando minha mãe completou quatro meses de gestação, vocês foram juntos fazer o exame de
translucência nucal, o exame que verifica as possibilidades de má-formação genética. Vocês foram
apreensivos buscar o resultado, porque minha mãe já tinha trinta e cinco anos e os riscos aumentavam.
Naquele dia, vocês comemoraram, porque eu era um bebê saudável. Eu devia ter nascido de parto
normal, mas acontece que minha mãe não teve a dilatação necessária, e depois de quatro horas de
espera o obstetra resolveu que era melhor fazer uma cesárea. Você poderia ter ficado na sala de parto,
disse para minha mãe que iria até filmar meu nascimento, mas você não conseguiu porque estava
ansioso demais e preferiu ficar do lado de fora, aguardando. Eu já nasci abrindo os olhos, mesmo
tendo dificuldade para chorar. Eles me colocaram nos braços da minha mãe e depois me levaram para
o berçário. Quando você me viu, você teve vontade de chorar, mas não conseguiu, porque estava
atordoado. Então as enfermeiras te ensinaram a trocar minhas fraldas e a dar banho. Mas foi naquela
mesma noite que as coisas entre vocês mudaram. Toda a harmonia que havia durante a gravidez se
desfez. Assim que minha mãe foi para o quarto comigo, ela te xingou, dizendo que minha fralda estava
frouxa, você disse que estava nervoso, devia ter sido por isso. Minha mãe estava irritada porque não
conseguia me amamentar. Minha boca escapava do seio e eu permanecia chorando e você dizia:
calma, daqui a pouco ele se acostuma. Minha mãe te olhou com mais irritação ainda e perguntou se
você ia continuar ali parado, se não ia fazer nada, vai atrás de uma enfermeira, diz que meu filho vai
morrer se não começar a mamar logo. Você foi atrás de uma enfermeira, mesmo sabendo que as
atitudes da minha mãe eram desmedidas. Naqueles dois dias que passaram no hospital, você
experimentou o início do inferno. Quando vocês foram para casa de táxi, minha mãe reclamou dizendo
que tinha pensado que àquela altura da vida ela já teria ao menos um carro, nunca tinha pensado que
teria de sair de um hospital com um filho nos braços e entrar num táxi. Ao chegarem em casa comigo,
vocês não sabiam bem o que fazer, e minha mãe não permitia que você me pegasse no colo, porque
ela dizia que era bem capaz de você derrubar o próprio filho no chão, você que não sabia nem trocar
uma fralda. Você não sabe nada, Henrique. Quando as visitas iam até a casa de vocês para me
conhecer, minha mãe obrigava todas a lavar as mãos, mesmo que não fossem me pegar no colo. E,
quando ela desconfiava que alguém estivesse com o nariz fungando ou com uma tosse alérgica, ela
oferecia uma máscara e não permitia que a pessoa chegasse perto de mim. A madrinha dela, a Juracy,
que já tinha seus setenta e sete anos e fora com muita dificuldade até a casa de vocês, foi impedida de
me ver porque chegou às sete horas da noite, eu estava dormindo, e ninguém podia interromper meu
sono. Mas eu só quero dar uma olhadinha nele, falou a Juracy. Minha mãe foi ríspida com ela, dizendo
que ninguém ia acordar o Pedrinho só porque alguém queria vê-lo. Sua madrinha ficou mais um pouco,
depois se despediu e saiu sem me ver e com lágrimas nos olhos. Meses depois Juracy morreu de
pneumonia. Minha mãe não foi ao enterro. Ficou indiferente, como se a maternidade apagasse o
mundo para ela. No dia em que a tua família foi fazer uma visita, ela também não deixou que me
vissem, usando a mesma desculpa, de que eu não podia ser acordado. No dia seguinte, tua mãe ligou
e disse: filho, você não pode deixar isso acontecer, você não pode deixar a Martha agir assim, ela não
pode tratar as pessoas desse modo. Você amenizou dizendo apenas que minha mãe estava passando
por uma adaptação. No entanto, você sabia que a coisa estava ficando mais séria. Você só conseguiu
sair de casa sozinho comigo quando completei três meses, definitivamente minha mãe não confiava em
você, mesmo que você se esforçasse para agradá-la em tudo, mesmo que você fizesse tudo certo;
minha mãe havia criado um instinto protetor que lembrava o de uma leoa com seus filhotes. Acontece
que os meses foram passando e o comportamento de superproteção dela se exacerbou. Então,
quando vocês me colocaram numa creche, minha mãe vivia falando mal das professoras, que elas não
sabiam cuidar de mim, e você nunca esqueceu do dia em que ela chegou para me pegar e viu minha
roupa manchada de chocolate, porque ela queria saber que mancha era aquela, e por que estão dando
chocolate para o meu filho?, e não adiantou as professoras dizerem que aquilo era uma mancha de
tinta porque ele estava fazendo uma atividade. Quando completei oito meses, a situação de vocês
estava insustentável, porque agora, além de me superproteger, minha mãe voltara a desconfiar que
você a estivesse traindo. Na verdade, desde que eu nasci, vocês não faziam mais sexo. Nos primeiros
meses vocês estavam cansados demais, porque dormiam pouco e eu chorava muito, mas depois,
quando as semanas avançaram e já estavam mais descansados, vocês seguiram como companheiros
e sem sexo. Minha mãe parecia não ter mais nenhuma atração por você. Ela se desdobrava nos
afazeres da maternidade, e eu, ainda que involuntariamente, transformava minha mãe numa escrava.
Tornava-a refém do meu choro e de minhas vontades. Eu era o centro do mundo dela. Com oito meses
sem sexo, você já não aguentava mais a masturbação. Parecia que, quanto mais se masturbava, mais
vontade você tinha. Então você passou a olhar mais para os lados, olhava para suas colegas
professoras, para suas amigas solteiras. Mas nada, nada de concreto, nenhuma possibilidade. Então,
certo dia, na volta do trabalho, alguém na rua te entregou um panfleto em que se lia “Gávea”. Tratavase de uma boate. E você prestou atenção no que estava escrito no final do panfleto: “venha conhecer
as gatas mais quentes da cidade”. Você amassou o papel e pôs no bolso e foi para casa. E, logo ao
chegar, vocês discutiram sobre alguma coisa que você não lembra, pois vocês já haviam entrado numa
espiral de discussões. E, ao se deitar, você pensou na possibilidade de transar com uma mulher
qualquer, com uma desconhecida. E isso te fez ter ereções; além do mais, a frase “venha conhecer as
gatas mais quentes da cidade” não te saía da cabeça. Às vezes, você acordava de madrugada depois
de um sonho erótico com uma dessas gatas. E foi aí que você pensou que as coisas estavam indo por
água abaixo. Você precisava sair de casa. Deixar tudo. Deixar de lado aquele Everest de culpa. Você
sabia que estava sendo egoísta. Então, naquela madrugada você tomou a decisão: ao amanhecer,
você ia dizer a minha mãe que iria embora, mesmo sabendo que ela seria violenta, que te faria
ofensas, que diria coisas terríveis. Mesmo sabendo que os médicos tinham diagnosticado um certo
grau de depressão pós-parto nela. Por outro lado, você se sentia fracassado por não conseguir mais
amá-la, nem estava disposto a levar mais nada adiante, e talvez, além da culpa, o que te impedisse de
sair de vez fosse a sua própria relação com seu pai, que também fora embora quando você tinha
menos de um ano. Você não queria repetir a história. Não queria que eu entrasse para as estatísticas
de filhos criados sem pai. Entretanto, a vida de vocês estava insustentável, como eu disse, e era você
quem devia sair. Mas, quando amanhecia, quando o dia começava, quando você levantava e me
olhava no berço, dormindo ainda, tão inocente e tranquilo, quando, ao passar pelo quarto novamente,
via minha mãe também dormindo, você sentia que aquela aparente normalidade poderia nos salvar ou
mesmo apenas retardar o fim. Mas você sabia que era uma ilusão, uma espécie de acordo com a
covardia. Então, dias depois, vocês tiveram outra discussão porque minha mãe encontrou no seu bolso
aquele panfleto amassado escrito “Gávea” e foi até a cozinha e pegou uma faca e te apontou dizendo
que ia te matar, seu filho da puta, e eu comecei a chorar no berço. E não adiantou você dizer que ainda
não tinha ido procurar as gatas mais quentes da cidade; então, para não ter que entrar numa luta
corporal com minha mãe, você teve que se trancar no banheiro. E passou algum tempo ouvindo seus
gritos e as batidas na porta. E você pôs as mãos nos ouvidos e tentou se controlar para não abrir
aquela porta e fazer uma besteira. Você ficou por uma hora trancado lá dentro. Enquanto isso, minha
mãe sentou ao lado do meu berço, deixou a faca cair no chão e começou a chorar. Você escutou os
soluços dela e também quando ela foi me pegar no colo porque eu não parava de chorar. Escutou
quando ela bateu a porta do quarto. Nesse momento, você aproveitou e abriu a porta do banheiro,
olhou para o corredor. Foi até a sala, pegou sua mochila com o que tinha dentro. Girou a chave
silenciosamente. E, ao sair, teve o cuidado de não bater a porta com força. Você parecia um fugitivo.
Você era um fugitivo. Era uma noite triste. Pois estava indo embora e não ia mais voltar. A partir dali,
tudo que aconteceu na vida de vocês resultou num repertório de mágoas. Numa separação ninguém
vence, mas vocês não sabiam disso. No dia seguinte àquele em que você foi embora, minha mãe me
deixou na creche. Depois do trabalho, ela voltou para casa, foi até o álbum de fotografias de vocês,
olhou-as por um breve momento e, em seguida, rasgou-as. Depois colocou os pedaços na pia da
cozinha e ateou fogo. Em seguida, foi até a sala e sentou-se no sofá, chorando e se perguntando por
que tudo tinha chegado ao fim daquele jeito. Como era possível você ter abandonado um amor cheio
de dedicação, como era possível você não ter resistido a uma pequena tormenta. Você era um fraco.
Sempre foi um fraco, ela dizia. Então, nos meses seguintes, minha mãe impôs uma série de barreiras
para te impedir de me ver. Ela queria te punir de alguma forma por você não ter aguentado o tranco.
Por ter sido um covarde, por ter deixado que o amor de vocês caísse numa vala, por ela ter feito de
tudo pelo casamento e você, com a sua apatia, ter desistido de tudo, desistido daquele amor que ela
estava disposta a continuar oferecendo. As brigas judiciais entre vocês duraram anos, entre pagamento
de pensão e regulamentação de visitas. Tudo passou a ser motivo para discussões. Vocês estavam
ressentidos um com o outro porque fracassaram. E era difícil aceitar. No entanto, o amor regenera
quase tudo. Por isso, após algum tempo assisti ao desfile de namorados e namoradas de vocês. Mas
eu sempre estava lá, como prova de que um dia vocês se amaram. E isso os irritava às vezes. Depois
que isso tudo passou e eu cresci, tanto você quanto a minha mãe tiveram dificuldades em outros
envolvimentos afetivos. Cada um a seu modo percebeu que o motivo das dificuldades de vocês nos
relacionamentos seguintes era o fato de vocês não saberem lidar com seus fantasmas. No meio disso
tudo estava eu e, sem que percebesse, eu tentava equilibrar meus afetos, porque não queria
desapontá-los, pois muito cedo eu aprendi que vocês dois eram boas pessoas. Vocês só estavam
perdidos. Embora eu tenha tido problemas com você em função do seu afastamento, às vezes. Quando
você passava semanas sem me procurar, quando estavam separados, e, na época, eu não entendia
que isso acontecia também para não ter que se incomodar com minha mãe, ou quando você queria me
ensinar certas coisas cedo demais, como, por exemplo, no dia em que você me perguntou que cor eu
tinha e foi a primeira vez que eu olhei para os meus braços e vi que tínhamos quase a mesma cor, eu
era pequeno, mas eu disse que não sabia que cor era aquela. E você me disse que eu era negro. Mas
eu não fazia ideia do que aquilo significava, então você me deu uma aula sobre racismo. Mesmo que
para mim fosse difícil compreender. Mesmo que aquela história sobre a cor fosse muito abstrata para
mim. E ainda havia vezes em que você ia me buscar e eu queria apenas brincar de correr, de jogar
bola, mas na maioria das vezes você me levava para uma livraria ou biblioteca. E era bom no início,
porque eu gostava de estar com você de qualquer modo, e às vezes você me trazia um livro, admirado
com alguma frase, e eu fazia esforço para mostrar interesse. E então, de repente, você se voltava para
o livro e esquecia de mim. E por vezes eu sentia inveja daqueles livros todos, que você lia com tanta
atenção. Com minha mãe as coisas eram diferentes, porque, enquanto eu tinha de lutar para me
aproximar de você, eu tinha de lutar para me afastar dela. Porque, depois que vocês se separaram,
acho que minha mãe, de algum modo, me sufocou ainda mais, e hoje entendo o quanto ela me queria
sempre por perto, e às vezes ela me olhava e dizia com certo orgulho e saudade que eu estava muito
parecido com você, mas sei que ela também tentava manipular meus afetos, por exemplo, quando dizia
que eu tinha um pai que não se importava comigo, mas isso dependia do humor dela, pois havia dias
em que ela te elogiava dizendo que você era um professor dedicado. A primeira vez que apareci com
uma garota em casa, ela surtou. Nunca tinha visto ela tratar tão mal uma pessoa. Depois disse que,
apesar de eu ter dezesseis anos, eu tinha de estudar; que ficar com aquelas gurias perdidas não ia me
levar a lugar nenhum. Acho que o afeto da minha mãe me fez esconder as coisas, porque nunca disse
a ela sobre a primeira vez que fumei maconha, embora eu soubesse que ela e você fumaram por
algum tempo. Nunca disse nada a ela sobre o dia em que perdi minha virgindade, nunca disse nada a
ela sobre a Saharienne.
de volta a são petersburgo
1.
Você simplesmente não sabe como sobreviveu à escola, primeiro como aluno, depois como
professor. Não sabe como aguentou todas aquelas situações constrangedoras e violentas que a escola
proporciona a todos que fazem parte dela. Entretanto, nesse mundo escolar havia uma hierarquia de
chateações. Para você, a reunião com os pais estava no topo, nada se comparava às horas perdidas
com aquilo. Os atendimentos aconteciam pelo menos quatro ou cinco vezes por ano. A reunião com
pais é quando você abre a porta de um manicômio, você dizia. É quando você se torna uma espécie de
psicólogo ou psiquiatra, não dos alunos, mas dos pais. Talvez por eu ter acompanhado tudo isso,
nunca cogitei me tornar professor. Ver você sempre preocupado em corrigir provas, redações,
reclamando da burocracia escolar, reclamando dos alunos mal-educados, reclamando da falta de
estrutura dos colégios, reclamando da reunião com pais, de fato me afastou de qualquer possibilidade
de entrar numa sala de aula na condição de professor. Os pais sempre têm problemas que geralmente
não têm nada a ver com a situação do filho na escola, você dizia. Em poucos anos de docência você
percebeu que os pais dos seus alunos eram loucos. Não todos, você ponderava, mas grande parte
deles. Você não vai esquecer nunca quando uma mãe sentou na sua frente com o filho dela. Era um
aluno do primeiro ano do segundo grau. A mulher era loira, magra e tinha os olhos um pouco abatidos.
Alguns pais levavam um susto quando te conheciam, porque na época ainda era raro haver
professores negros em escolas no sul do país. O menino se chamava João Felipe, era muito branco,
magro e tinha sardas na cara. Tinha os olhos vermelhos parecidos com os de quem acabou de chorar.
Você olhou para os dois e não sabia bem como começar aquela conversa, até porque você lembrava
vagamente daquele moleque cheio de sardas. Ele era seu aluno, no entanto João Felipe era do tipo
que não abria a boca, não incomodava, não chamava atenção na aula, ele simplesmente estava lá,
vegetando na sua sala. E isso era um problema. Na época você tinha cerca de trezentos alunos. Era
compreensível que não se lembrasse de alguns deles. A mãe do João Felipe tomou a iniciativa e
perguntou como ele estava na sua disciplina. Você olhou para uma planilha na sua frente, na verdade
tratava-se de um amontoado de rabiscos, rasuras e esboços com números que você julgava serem
notas misturadas aos nomes de alunos. Então, enquanto fingia pesquisar na sua planilha, você tentava
puxar pela memória, mas não fazia ideia de como aquele aluno estava na sua disciplina, e a única
coisa que você conseguiu dizer foi que ele não ia muito bem (pois seu raciocínio era o seguinte: se os
dois estavam ali na sua frente, era porque o guri não devia estar muito bem de notas). Acontece que
seu comentário foi o suficiente para que a mãe do João Felipe olhasse para ele e começasse a gritar
dizendo: eu sabia, eu sabia. Eu não te disse que tu tem que estudar, guri? Quer ser o quê, na vida?
Faxineiro? Catador de lixo? Quem não estuda não é ninguém, sabia? Fala pra ele, professor, dizia ela
te olhando com gravidade, o que acontece com quem não estuda. E você não sabia o que dizer, queria
apenas lembrar a ela que não havia nada de errado em ser lixeiro ou faxineiro. Mas, quando você
pensou em falar alguma coisa, surgiu na porta um homem ruivo, forte, para não dizer gordo, alto e
também com sardas na cara. Era o pai do João Felipe. Ele rapidamente se uniu à mãe nos
xingamentos ao menino, que a essa altura estava afundado na cadeira, mais vermelho que um
pimentão. E o homem começou a espancar o João Felipe na sua frente dizendo: eu não falei, e batia
nele, que era pra tu estudar, e batia, e deixar de vadiar, que, se eu tiver que vir aqui na escola de novo,
e não parava de bater, se eu tiver que ouvir reclamação tua, tu já sabe. A essa altura você estava
paralisado. Você pensou em encaminhar o ocorrido para a direção da escola. Mas você percebeu que
a escola em que você estava tinha problemas demais, portanto, por mais que fosse grave um pai bater
no filho porque ele supostamente não estudou, esse parecia ser o menor dos problemas. Depois
daquilo eles se levantaram, não sem antes ouvir do João Felipe que se comprometeria a estudar. E
você se sentiu culpado por não saber nada do seu aluno e ainda provocar uma surra nele. Teve
também as vezes em que você atendeu a mãe da Maria Vitória. Tratava-se de uma boa aluna,
esforçada e gentil. No entanto, quando a mãe dela vinha conversar com os professores, todo mundo
tentava fugir. Porque, sempre que começava a falar, ela não tinha limites. Passava mais de quarenta
minutos num monólogo e, mesmo que você tentasse interrompê-la, ela dava um jeito de seguir falando
da casa dela, do trabalho dela, depois da sua infância e de como ela era na escola, que hoje está tudo
diferente, no meu tempo o professor enchia o quadro e a gente copiava tudo, não tinha isso de não
fazer nada, eu até ganhei uma distinção de melhor aluna do ginásio, porque eu copiava tudo e gostava
muito de estudar química. O professor Gervásio era o mais durão na época, a gente tinha medo dele, e
eu acho que hoje falta isso, professor, os alunos não têm mais medo dos professores, por isso a escola
está desse jeito. Eu lembro que minha mãe nunca admitia que eu chegasse em casa com nota baixa,
minha mãe era uma mulher braba, e sabe, professor, eu não tive pai, porque ele morreu quando eu
tinha seis anos, minha mãe era quem cuidava de tudo, lutou muito para nos criar, a gente nunca
passou fome, professor, mas a gente teve dificuldades e, quando tinha pouca comida, minha mãe
costumava fazer uma sopa de couve com feijão, o senhor já comeu sopa de couve com feijão? A essa
altura, obviamente a sua cabeça já estava em outro lugar, e, mesmo que você respondesse qualquer
coisa, não faria diferença, justamente porque sua resposta não interessava, ela apenas queria falar. Na
verdade, após anos de magistério, a escola transformou você num indiferente. Com o passar do tempo
o desencanto tomou conta da sua vida. A escola e os anos de prática docente te transformaram num
operário. Anos e anos acreditando que você estava fazendo algo de significativo, mas vieram outros
anos e anos e soterraram suas expectativas. A precariedade da escola venceu, e você estava cansado.
2.
No seu último ano de vida você começou a trabalhar numa escola à noite. Suas turmas eram do EJA,
Educação de Jovens e Adultos. Você tinha duas turmas, que correspondiam à sétima e à oitava série
do ensino fundamental. Ao longo dos anos o perfil de alunos do EJA foi se modificando. Antes os alunos
eram mais velhos e haviam parado de estudar por algum motivo e depois, já na maturidade, voltavam
para a sala de aula. Mas agora, não. Agora a maioria dos alunos eram adolescentes que não deram
certo no turno do dia. São os refugos. Os que não se enquadram. Os repetentes. Os que ninguém quer
por perto. Os mal-educados. Todos colocados numa sala. Todos com uma enorme tarja na testa: os
fracassados, você pensava. Tratava-se, portanto, de uma bomba-relógio, pois, ao se verem na mesma
sala, eles se reconheciam como fracassados e já sabiam por que estavam juntos. Ora, ora, vejam só:
somos os piores na mesma sala. Agora eles vão ver como somos os piores mesmo. Quando você
entrou pela primeira vez na turma T1 e deu boa-noite, ninguém percebeu sua presença, na verdade
eles perceberam mas fizeram questão de te ignorar. Você então foi para a frente do quadro e pediu
atenção para começar a aula. No entanto, muitos estavam virados para o lado, para a janela ou para
trás. Nesse momento, você se lembrou de um amigo professor que, certa vez, quando uma turma não
lhe dava a mínima atenção, não teve dúvidas, deu um soco na mesa com tamanha força que a quebrou
no meio. Os alunos assistiram aquilo com perplexidade. E você ficou imaginando a cena: os alunos de
olhos arregalados olhando para ele, porque nunca se espera de um professor uma atitude dessas.
Nunca se espera que um professor tenha um acesso de fúria e saia quebrando as coisas. Mas você
não era assim, por mais que estivesse cansado de tudo aquilo, por mais que estivesse passando pela
sua cabeça dar um soco na mesa, no quadro, ou mesmo pegar um daqueles moleques pela gola e
dizer: escuta aqui, seu merda. Você ainda acreditava que as coisas não deviam ser resolvidas assim.
Naquele dia você teve muita dificuldade para chamar a atenção deles. Você tentou de tudo, tentou
conversar e dizer a eles que estava ali na frente e que precisava começar a aula. Alguns poucos te
olharam. Ih! olha lá, pessoal, o professor quer começar a aula, gente, vamos ficar quietos. Eles
estavam debochando de você. Você tinha de manter a lucidez para se dar conta de que eles não
estavam debochando exatamente de você, mas da escola. Porque você não era o professor apenas.
Você era um professor da escola. Mesmo assim, por alguns instantes você conseguiu a atenção deles.
Então, ao virar as costas para escrever seu nome no quadro, você escutou um estrondo vindo do fundo
da sala. Uma cadeira tinha atravessado a sala voando. E de repente, numa fração de segundo, dois
alunos iniciaram uma briga com socos e pontapés. À tarde você já havia enfrentado dois alunos
briguentos. E agora novamente. Mas ali, à noite, a coisa era mais séria. Porque havia suspeitas de que
alguns estivessem envolvidos com tráfico de drogas. Podiam estar armados, inclusive. A briga
continuou e ninguém os separava. Os ruídos dos socos, fortes e secos, te impressionaram. Até que
alguns colegas decidiram separá-los. Na verdade, você não sabia bem o que estava acontecendo.
Parecia até uma briga generalizada. Classes e cadeiras foram arrastadas. E você, além de tudo, tinha
de se cuidar para não ser atingido. Em seguida, o porteiro do colégio chegou e mandou todo mundo
parar. O seu Raimundo era a única pessoa que os alunos respeitavam, porque ele conhecia todo
mundo, tinha se criado na vila, vira muita gente ali crescer. Depois que a confusão acabou, os dois
alunos que tinham começado a briga foram levados para fora da sala. Quando você voltou, o clima
estava pesado. A aula foi tensa durante todo o tempo. Muitas gargalhadas, deboches e provocações.
Você mal começou a falar e não conseguia continuar, você pensava qual seria a melhor forma de
chamar a atenção deles. Você havia planejado uma aula sobre poesia. Mesmo não havendo clima
nenhum para poesia, você escreveu um nome no quadro: José. Poema do Drummond. Antes de lê-lo,
você perguntou a eles se gostavam de poesia. Apenas três ou quatro da frente prestavam atenção em
você. Outros estavam mais interessados em falar da briga. Você não queria perdê-los. Você mostrava
fotos do Carlos Drummond para eles, no livro didático. Ih! olha lá, pessoal, o professor tá mostrando um
velho careca lá na foto. Eles riam. Queriam te fazer de bobo. Você seguiu adiante e perguntou a um
deles se conhecia o velho careca da foto. Ninguém te respondeu, alguns viraram as costas. Você
pensou então em ir até o fundo da sala, bater de frente com eles e dizer: escutem aqui, vocês não têm
esse direito de faltar com o respeito comigo. Estou aqui para dar minha aula. E é só. No entanto, você
não podia fazer isso. Não podia bater de frente. Você sabia que havia três ou quatro alunos que
estavam te ouvindo. Era pouco para quem queria fazer algo naquela turma. Você tinha de admitir: sua
aula foi um fracasso. Você desistiu. Pediu apenas que copiassem o poema no caderno. Mas ninguém
copiou nada, nem mesmo aqueles três ou quatro que te ouviam.
3.
Você não imaginou que, passados dois anos de convivência com a Elisa, sua colega de escola e
professora de inglês, vocês acabariam juntos. Elisa era o que alguns chamariam de mestiça, os olhos
pretos, o corpo magro. Quando tudo começou, Elisa era casada. Vocês costumavam conversar de vez
em quando na sala dos professores. Você nunca imaginou que ela seria a última mulher que você iria
amar antes de morrer. Quando se começa um relacionamento, nunca se imagina que aquilo pode
acabar por causa da morte, você pensava. Entra-se de cabeça, ou se deixa o corpo meio fora e meio
dentro. Com Elisa você foi de cabeça. Elisa tinha cinquenta e cinco anos, era casada fazia vinte, tinha
dois filhos adultos. Ela nunca havia traído o marido. Isso você jamais quis saber se era ou não verdade.
Para você isso não interessava. Vocês começaram a sair depois que ela te deu uma carona até sua
casa, após uma confraternização entre os professores. Ao chegarem na frente do seu prédio, Elisa
desliga o motor do carro e vocês ficam conversando sobre a turma dos bagunceiros, sobre os alunos
inteligentes; sobre a sua vontade de aprender inglês e ela diz que podia te dar aulas particulares a
preços módicos; sobre você sentir preguiça de estudar uma língua e ela diz que tem técnicas para
incentivar alunos preguiçosos; sobre você se sentir sozinho às vezes na escola por ser um dos poucos
professores negros e ela diz que não sabia como se definir, pois é branca demais para os movimentos
negros e escura demais para quem vive no sul do país. Sobre você estar cansado do sul do país e ela
concorda com você; sobre você voltar a reclamar da solidão e ela se sente frustrada com o casamento
de tantos anos; sobre você entender o que ela sente porque para você o casamento tinha sido um
trauma do qual ainda não tinha conseguido se recuperar e que talvez por isso nunca mais tivesse
casado; sobre o marido dela não a tocar há muito tempo e você achar aquilo um absurdo, como
alguém podia deixar de tocar uma mulher daquelas; sobre ela achar que você está apenas tentando
ser gentil e você afirmar que é verdade; sobre ela estar triste porque os filhos tinham crescido e em
breve sairiam de casa, e ficariam ela e o marido, e tudo seria mais difícil e você novamente entender o
que ela sente e dizer que um casamento que dura tantos anos traz sempre essa sensação de
frustração, que a consciência da passagem do tempo parece ser mais cruel e aterradora, porque
envelhecer juntos não é tão bonito como se imagina; sobre ela te achar inteligente e ponderado, além
de bonito, e você a achar bonita também, inteligente e boa professora, porque os alunos gostam das
aulas dela; sobre ela precisar ir porque já está ficando tarde, embora o marido há muito tempo já não
se importe com a hora que ela chega ou com a hora que ela sai e ela nem saiba ao certo por que ainda
não o traiu, mesmo sabendo que ele já deu as escapadas dele; sobre você achar que talvez ela
carregue certos princípios de lealdade que são difíceis de encontrar hoje em dia; sobre ela estar
cansada dos princípios e achar que há muito já deveria ter mandado esse papo de fidelidade para a
puta que pariu; sobre você achar que ela fica sexy dizendo palavrões, e como se diz puta que pariu em
inglês, e ela rir e dizer puta que pariu em inglês, e você convidá-la para subir e conversar mais um
pouco, porque é sexta-feira e as sextas são para isso, e ela hesitar um pouco mas acabar subindo. Ao
chegarem ao seu apartamento, você avisa que está tudo bagunçado, ela diz que já esperava por isso,
que você tinha cara de ser bagunceiro. Elisa te pergunta onde fica o banheiro. Você diz que é a
segunda porta à direita. Depois diz que vai servir uma taça de vinho para ela, ela agradece e fecha a
porta. Minutos depois ela reaparece. Você alcança a taça. Elisa diz que não deveria, porque está de
carro e precisa voltar para casa, você diz que meia taça não fará mal algum. Depois vocês sentam no
sofá e falam sobre literatura, e ela diz os livros que mais gostou, e você concorda com ela, e vocês
fazem piadas e riem de coisas bobas, e você põe a mão no cabelo dela, e ela te olha com vontade de
dar um beijo. Ali no sofá mesmo vocês iniciam as carícias. Você sente o perfume no pescoço dela, ela
põe a mão na sua nuca. No entanto, quando você começa a desabotoar a camisa dela, Elisa segura
sua mão e diz que deveriam parar ali. Você fica confuso, acha que fez algo errado e se desculpa. Elisa
diz que você não deve se desculpar, porque não fez nada de errado, mas que ela precisa te contar algo
antes. Eu já sei que você é casada, não me importo. Ela diz que também não se importa com isso. O
motivo é outro, ela completa. Qual?, você pergunta. Por alguns momentos ela te olha como quem
avalia se aquela é a melhor situação para te contar. Então, ela levanta, se afasta um pouco de você,
abre a camisa e tira o sutiã. E você olha para a cicatriz dela, para o seu seio mutilado. Faz um grande
esforço para não se mostrar surpreso. Depois diz que para você ela continua linda. Então ela te olha
com afeto, vocês se abraçam e se beijam, em seguida você beija o seio dela e depois a cicatriz. Vocês
fazem sexo por algum tempo. Depois, exaustos, Elisa, abraçada em você, diz que precisa muito
daquilo, que, desde que tinha retirado a mama, o marido não a tocava. E que, apesar disso, ela sabe
que ele ainda a ama, mas que perdeu o interesse no corpo dela. Durante a quimioterapia ele foi um
bom companheiro, acho que, se não fosse por ele, eu teria sucumbido, ela diz. Elisa se comove um
pouco. Você também está comovido, mas não demonstra, pois não se pode desmoronar quando
alguém te conta uma coisa dessas, você pensa. Ela continua, porque sente que você pode ouvir aquilo,
e diz que a dor tinha sido severa demais com ela. A dor é sempre impositiva, ela diz. Às vezes, no meio
do tratamento eu pensava em desistir, pensando que a cada sessão de quimio eu teria de parar.
Desistir de mim, porque eu imaginava que essa era a função da dor: nos convencer a desistir, entregar
os pontos. Mas aí vinha o Cláudio, meu marido, e dizia que a dor precisava ser ignorada. E então eu
me obrigava a dizer a mim mesma que a dor não era grande coisa. Não caia nessa, eu me dizia. E por
algum tempo acreditei nisso, sabe, eu acreditava que a dor estava só na minha cabeça, que a gente
podia tomar as rédeas, deixar ela lá num canto e tocar a vida para a frente. O desafio não era esquecer
a dor, mas conviver com ela. No entanto, depois de algum tempo, quando ela vinha de maneira cavalar,
quando ela passava por cima do meu mantra, altiva e violenta, quando ela pisava na minha dignidade e
me humilhava, eu pensava em desistir. A dor te infantiliza porque te torna dependente dos outros,
dependente para as coisas mais básicas, ela diz. Eu tinha medo do que eu estava me tornando. Eu
tinha medo de mim no futuro. Depois, Elisa te olhou com os olhos cheios d’água e te pediu desculpas,
que aquilo não era assunto para um primeiro encontro. E você disse que estava tudo bem para você,
então vocês se abraçaram e se beijaram e a lágrima dela se misturou à pele do seu rosto, e de alguma
forma a tristeza os excitou, e então ela abriu as pernas e você entrou novamente, ela soltou um gritinho
de prazer e pediu para você fazer com mais força, e ir mais fundo. E foi isso que você fez, ao mesmo
tempo que beijava o rosto dela. Em pouco tempo vocês gozaram e depois adormeceram um pouco. O
dia já estava amanhecendo, ela disse que precisava ir embora. Você pediu para ela ficar, tomar o café
da manhã pelo menos. Ela disse que não, que aquilo já era muita intimidade para uma noite só. Você
sorriu. Além disso, ainda sou casada, lembra? Devo alguma satisfação ainda. Vocês se beijaram, se
abraçaram. Enquanto se vestia, ela olhou para você e disse que para ela estava tudo bem se você não
quisesse mais sair com ela, que na escola tudo continuaria da mesma forma, que ela iria entender,
porque afinal eu sou casada, estou me aproximando da velhice e ainda por cima não tenho uma das
tetas. E você disse brincando que aquela havia sido a maneira mais criativa de alguém te dar um pé na
bunda. Vocês riram. Depois você desceu com ela até a portaria do prédio, e se despediram com um
abraço.
4.
Na manhã do dia vinte e um de agosto de dois mil e dezesseis, você foi abordado pela polícia. Você
estava na frente do seu prédio esperando uma carona para ir trabalhar. Você tinha cinquenta anos e
não pensava que ainda teria de passar por isso. Enquanto você conferia a hora no seu relógio, dois
policiais, em motocicletas, da Brigada Militar se aproximaram de você e perguntaram o que fazia ali
parado. Você demorou alguns segundos para responder, na verdade queria se recusar a responder,
pensou em confrontá-los, perguntar por que estava sendo abordado, mesmo que já soubesse a
resposta. Você estava cansado daquilo. Cansado de ter que dar explicações para a polícia. Por fim,
você acabou respondendo que estava ali parado numa esquina esperando uma carona para ir
trabalhar. Os policiais te deram uma boa olhada; poucas vezes na vida você se preocupou com suas
roupas, em se vestir bem. Um deles te perguntou onde você trabalhava. Numa escola. Sou professor,
você respondeu. Depois, educadamente, eles te solicitaram os documentos e te perguntaram onde
você morava e se era usuário de drogas. Além disso, você teve de ouvir a sua própria descrição
através de uma voz feminina vinda da central policial: o suspeito é negro, natural do Rio de Janeiro,
estatura mediana, casaco preto. Se já revistou, pode liberar, ele tá limpo. Mas acontece que o policial
não te revistou. Eles estavam convencidos de que você não era uma ameaça para a sociedade. Eles
sorriram, te desejaram um bom dia, subiram em suas motos e foram embora. Você ficou ali na esquina,
parado, ainda sob o olhar de gente desconfiada. Porque um suspeito é sempre um suspeito, mesmo
que a polícia te libere e te diga bom-dia e tenha-um-bom-trabalho. Você, aos cinquenta anos, continuou
sendo um suspeito. Quando você entrou no carro, Ângela, a professora que costumava te dar carona,
perguntou se estava tudo bem, pois sua cara não era das melhores. Você disse que sim, que estava
tudo bem. Mas não estava. No caminho para a escola você inevitavelmente foi lembrando de algumas
abordagens policiais que sofrera na vida.
1. A primeira vez que você recebeu uma abordagem, você recém havia chegado do Rio de Janeiro e
nem sabia que se tratava de um paredão. Você tinha treze anos e estava jogando futebol numa praça
com seus amigos da escola: o Caminhão, o Juca, o Sadi, o Nego Tinho, o Michael Jackson e o Pão
com Ki-Suco. Nos fins de semana vocês costumavam ir naquela praça do bairro Três Figueiras, uma
zona nobre de Porto Alegre. Vocês até podiam jogar bola na Vila Bom Jesus, mas vocês preferiam
aquele lugar. Um dia, no meio do jogo, uma viatura da polícia parou ao lado do campo. A princípio,
vocês não ligaram, porque vocês não acharam que a coisa era com vocês, no entanto um dos policiais
que saíram da viatura entrou na quadra, mandando a porra da bola parar. Depois gritou para todo
mundo sentar no chão. Vocês se olharam. Vocês já sabiam o que vinha pela frente. O policial pôs a
mão na arma que estava na sua cintura e repetiu, dizendo que não ia falar de novo, caralho, senta logo
aí, porra. Vocês sentaram. O outro policial pegou a bola e a colocou debaixo do braço. Perguntaram
onde vocês moravam. Na Bonja, respondeu o Caminhão. Os policiais se olharam e continuaram o
interrogatório. E por que vocês vêm jogar bola aqui, por que não ficam na vila de vocês? Porque a
gente gosta de jogar aqui, respondeu o Pão com Ki-Suco. Os policiais se olharam novamente, dessa
vez com ironia. Vocês são cheiradores de cola? Ninguém respondeu. Alguém aqui cheira cola, loló?
Você tomou coragem e disse que não, que ninguém ali era cheirador de cola. Depois eles mandaram
todos ficarem de pé e levantarem a camisa. O policial que segurava a bola avisou: a gente tá de olho
em vocês, aqui nesse bairro é lugar de gente direita, se a gente souber que vocês fizeram alguma
coisa errada por aqui, a gente vai atrás de vocês, entenderam? E todos nós balançamos a cabeça
positivamente. Depois o policial pegou a bola e deu balão para o alto. O Pão com Ki-Suco foi atrás
dela. Os policiais entraram no carro e foram embora. Vocês seguiram o jogo sem saber bem o que
tinha acontecido.
2. Quando você fez amizade com o Edmundo, as coisas na escola melhoraram, porque o Edmundo
gostava das mesmas coisas que você. De video game e artes marciais. Edmundo já havia feito dois
anos de judô. Você também queria muito fazer judô, mas sua família não tinha dinheiro para te pagar
umas aulas e o quimono era caro. Além disso, na época sua mãe tinha voltado para o Rio de Janeiro
porque brigou com a sua avó. Você e suas duas irmãs ficaram com ela em Porto Alegre. Você sabia
que as coisas estavam difíceis e por isso seria impossível pedir para sua avó pagar aulas de judô. O
Edmundo te ensinou a contar em japonês até dez, te ensinou os nomes dos golpes em japonês e te
contou sobre a vida do mestre Jigoro Kano, o criador do judô. Então o Edmundo disse que podia te
ensinar uns golpes. Vocês combinaram de fazer isso na casa dele, porque na escola poderia ter uns
babacas debochando de vocês. Edmundo morava no Bom Fim. Edmundo era judeu, na época você
não sabia disso. Para não gastar passagem, você foi a pé da sua casa até a casa dele. Você passou
mais de uma hora caminhando sob o sol, pela avenida Protásio Alves. Ele morava num prédio de dez
andares chamado Village Garden. Ao chegar, você apertou a campainha e esperou. Pessoas
passavam por você na rua e te olhavam. Ninguém respondeu no interfone. Você apertou novamente.
Nada. Decidiu ficar ali na frente do prédio e pensou que ele poderia ter saído com a mãe dele. No
entanto, em minutos surgiu o policial da Brigada Militar ao seu lado dizendo para você circular que ali
não era lugar para pedir coisas. Você disse que não estava ali pedindo nada, que estava indo na casa
de um colega seu de escola. Que escola?, perguntou o policial. Você respondeu, mas ele não
acreditou. Mandou de novo você circular. Você fez o que ele disse. Voltou para casa a pé e sem suas
aulas de judô.
3. Na oitava série você teve uma namoradinha, a Katiane, mas ela não sabia disso. Talvez ela até
desconfiasse, mas vocês nunca tiveram nada. A verdade é que vocês andavam juntos para cima e
para baixo. Se a Katiane fizesse parte de uma pesquisa do IBGE, ela seria considerada parda. Um dia
você até chegou a escrever uma carta anônima para ela declarando todo o seu amor. E na sua cabeça
ela jamais perceberia que aquelas garatujas que você chamava de letra não eram suas. Ela certamente
sabia da sua paixão recolhida, mas não te dizia nada, ou se fazia de desentendida porque ela gostava
de você apenas como amigo e não queria te magoar. A mãe da Katiane era empregada doméstica.
Trabalhava no bairro Boa Vista, onde as casas eram todas enormes e tinham muros muito altos. Um
dia vocês foram até lá. A Katiane entrou, mas você ficou sentado no meio-fio esperando, pois ela disse
que não ia demorar e também que a mãe não gostava de ajuntamento na casa dos patrões dela. Era
meio da tarde de sexta-feira. Então, no início da rua, você viu uma viatura com as sirenes tocando, e
àquela altura da sua vida, aos catorze anos, você já havia aprendido que aquela visão era um
problema, não que você tivesse consciência de que a polícia te abordava porque você era negro, mas
sua experiência já te dizia para se manter longe das viaturas. Então, quando eles pararam na sua
frente, baixaram o vidro do carro, puseram os braços para fora, você pôde ver que dentro da
caminhonete havia mais policiais. Um deles, de óculos escuros, sem sair do carro, perguntou o que
você estava fazendo ali. Você já conhecia aquela pergunta. Então você, ainda sentado, respondeu que
estava esperando uma amiga que morava naquela casa. Eles riram do que você disse. Amiga? De
onde, neguinho?, um deles perguntou. Da minha escola, você disse. Eles desligaram o carro.
Resolveram que precisavam te dar uma geral. Você ficou paralisado ao ver aquele bando de policiais
armados saindo do carro por sua causa. Mas, antes que eles te mandassem levantar, o portão da casa
se abriu e dali saíram a Katiane e a mãe dela. Os policiais deram boa-tarde. A dona Teresinha (mãe da
Katiane) perguntou o que estava acontecendo. Então você se levantou e foi para junto delas. O policial
que até então estava de óculos, tirou-os e disse que estavam fazendo uma patrulha e que receberam
uma notificação feita por um vizinho de que havia um suspeito sentado na calçada, mas vimos agora
que era um engano, sabe como é, a gente tem sempre que averiguar as situações. Eles não te pediram
desculpas, mas era para vocês entenderem que aquilo era um pedido de desculpas. Todos eles
entraram no carro e foram embora. Vocês também foram embora. A mãe da Katiane disse para vocês
tomarem cuidado na rua. Dias depois, quando Teresinha recebeu a filha na casa dos patrões, ela disse
para não te levar mais lá, pois os patrões não gostaram de ver a polícia na porta da casa deles.
4. Você e seu amigo Juarez precisaram voltar a pé para casa após uma noite na danceteria,
novamente vocês tiveram que dividir um cachorro-quente. Novamente vocês não ficaram com ninguém.
Na volta para casa, vocês foram acompanhados por vários outros jovens que também estavam
voltando a pé para casa ou apenas se dirigindo para o centro de Porto Alegre. No meio do viaduto, na
avenida João Pessoa, havia uma barreira policial. Vocês já sabiam o que iria acontecer. Os policiais
estavam com armamento pesado. Estavam parando carros, ônibus e pessoas. As meninas foram
liberadas, os meninos tinham de botar as mãos na cabeça. Vocês tiveram os bolsos de vocês
revistados. Suas identidades foram conferidas. Os policiais cheiraram as mãos de vocês e perguntaram
onde estava a maconha. Vocês disseram que não fumavam maconha. Eles devolveram as carteiras de
identidade a vocês e vocês foram liberados. Ao olharem para trás, vocês viram um rapaz negro levando
um tapa dos policiais, no rosto. Estava amanhecendo e vocês só queriam ir para casa.
5. Um dia você ouviu o professor Oliveira falar sobre um livro, sobre um certo personagem russo,
Raskólnikov. E foi como uma iluminação ouvir o professor lendo aquelas páginas de Crime e castigo.
Você não sabia que aquele seria um livro que te acompanharia até o fim de sua vida. Embora não
entendesse metade das coisas que eram ditas ali, quando você resolveu ler aquela história, você
queria descobrir mais sobre aquele estudante miserável que morava num minúsculo apartamento em
São Petersburgo. Queria saber mais como aquela mente criminosa funcionava. Aquela arqueologia da
culpa te fascinava e por isso você andava com aquele livro-tijolo para cima e para baixo. Ficava feliz
quando pegava algum engarrafamento e podia ficar lendo mais um pouco no ônibus, ou então quando
não tinha muita coisa para fazer no escritório e colocava o livro estrategicamente na gaveta para poder
ler sempre que o Bruno Fragoso não estivesse por perto. E, mesmo quando o ônibus estava lotado,
você dava um jeito de se segurar e continuar lendo. Às vezes alguém se compadecia de você e se
oferecia para segurar sua mochila de modo que você pudesse ter mais equilíbrio. Às vezes também,
quando você ficava até mais tarde no escritório, voltava nos ônibus mais vazios e podia ir sentado. Foi
num desses dias em que você estava na parte de trás do ônibus mergulhado em Raskólnikov que, sem
que você percebesse, surgiu um policial bem na sua frente. Na verdade, eram três ou quatro. Eles
mandaram todos os homens descerem. Era uma blitz. Mas você custou a entender, porque sua cabeça
ainda estava lá em São Petersburgo. O policial pediu com mais ênfase que você descesse do ônibus.
Você obedeceu, estava cansado, estava com preguiça, mas tudo que você queria era terminar o Crime
e castigo. Um rapaz, branco, sentado ao seu lado, também fez menção de levantar para descer do
ônibus, mas o policial disse que ele não precisava descer. Você desceu e foi para a parede ainda
segurando o livro. Ao olhar para o lado, percebeu que havia mais cinco homens negros na parede
sendo revistados e questionados sobre para onde estavam indo, o que faziam da vida. O policial que te
abordou pegou seu livro e, depois de te revistar, perguntou que livro era aquele. Você disse que era um
livro de literatura. Ele folheou o livro, perguntou se era poesia. Você até pensou em dizer que aquilo era
um romance, mas não queria parecer arrogante nem dar uma de sabichão com o policial armado atrás
de você, então você disse que sim, que eram poesias sobre o arrependimento. O policial pareceu ter
gostado. E disse que costumava ir à igreja rezar. É bom os jovens lerem poesias e a Bíblia também.
Você já leu a Bíblia?, ele perguntou. Você disse que sim e acrescentou que o personagem do livro
também virava católico. O policial ficou feliz. Te pediu desculpas pelo incômodo, mas é que era o
trabalho dele, porque Porto Alegre tá cheio de vagabundo, ele disse. Você e os outros homens subiram
no ônibus. O rapaz que não precisou descer, ao ver você chegar, trocou de lugar e foi sentar mais à
frente. O ônibus partiu e você voltou para São Petersburgo.
6. O anúncio dizia que era preciso ter boa aparência. E ler uma frase daquelas significava que aquele
emprego não era para você. “Boa aparência” significava, na maioria das vezes, ser branco. Você já
havia terminado o ensino médio, suas irmãs ainda estavam estudando e sua mãe trabalhava no setor
de serviços gerais do metrô, ganhava muito pouco, portanto você se sentia culpado por não conseguir
um trabalho. Você acordava cedo na segunda-feira e ia para a fila do Sine. Você sempre era
encaminhado para serviços do ramo de alimentícios. Três meses desempregado te fizeram aceitar um
emprego de serviços gerais numa pizzaria. Ali você era uma espécie de faz-tudo: tinha de lavar os
banheiros, varrer o salão antes de chegarem os clientes, lavar a louça. Ou então passava horas
cortando toras e toras de muçarela, de modo que a sua mão chegou a fazer uma ferida nas primeiras
semanas, porque o cabo da faca te machucava. No entanto, em seis meses você se acostumou com
aquela rotina, mesmo depois que você trocou de horário, passou a trabalhar de madrugada, pois dava
mais dinheiro, e na época você só queria ter dinheiro para comprar um bom tênis, um bom boné
importado, comprar a última fita do Racionais, sair nos fins de semana para dançar passinhos, e ajudar
sua mãe com as contas. Você costumava sair da pizzaria por volta das quatro horas da manhã.
Caminhava por uma rua deserta até chegar numa parada de ônibus na avenida Osvaldo Aranha. Você
até tinha medo de ser assaltado, mas na época você tinha apenas vinte e um anos. E essa idade, você
me dizia, não é uma idade para ter medo de nada. Num desses dias, você estava sozinho, esperando o
ônibus corujão chegar. Você estava novamente cansado, com sono. Não via a hora de chegar em casa.
Então você viu as cores vermelhas de uma sirene se aproximarem. Você rezou para não ser abordado
mais uma vez. No entanto, sua reza não funcionou. Eles desceram de arma em punho, não apontaram
para você, apenas mandaram você se virar e pôr as mãos na cabeça, perguntaram para onde você
estava indo. Para casa, você respondeu. Eles abriram sua mochila, vasculharam suas coisas, na
verdade eles viraram a mochila de cabeça para baixo e você ouviu suas coisas todas caírem no chão.
O policial passou o coturno sobre seus pertences, como que procurando alguma coisa. Depois disse
que aquela não era hora de estar na rua, você disse que era trabalhador. O policial mandou você calar
a boca que senão te levo em cana, neguinho. Eles guardaram as armas, entraram no carro e foram
embora. E você ficou ali diante das suas coisas no chão, diante da sua mochila aberta. Era o mês de
junho. As ruas estavam desertas. Fazia frio, mas você não sentia frio por fora, o frio estava dentro.
7. Você nem sabia muito bem o que fazer com seu primeiro salário como assistente administrativo do
escritório de advogados. Bruno Fragoso aprendeu a confiar em você, mesmo você sendo negro, ele
dizia. Era um negro bom. Naquele mês, você ajudou sua mãe com as contas e depois, ao passar
diante da Tevah, comprou uma jaqueta preta reversível. Era uma grande aquisição e você
gradativamente começou a deixar os tênis e os bonés de lado. Passou a usar calças e camisas sociais.
Agora você queria se parecer com os advogados do seu escritório. Certa vez, Bruno Fragoso te deu um
terno que ele não usava mais. Foi a primeira vez que você usou um terno na vida, e um dia, quando
estava entrando no banco, você foi chamado de doutor por uma atendente. Aquilo te fez pensar na sua
aparência, nas suas roupas, nos seus sapatos, no seu cabelo. Como num estalo, percebeu que o modo
como se vestia poderia ser o motivo de haver recebido tantas abordagens policiais durante a vida.
Assim, pelos próximos meses você cuidará da sua aparência, manterá o cabelo sempre bem aparado e
curto, as roupas bem alinhadas e passadas. Além disso, você começaria a frequentar ambientes aonde
nem imaginava que poderia ir, ambientes onde pessoas brancas eram a maioria, ambientes aonde os
advogados costumavam ir. Na primeira balada a que você foi nesse estilo, você não sabia muito bem
como se comportar, para você pareceu muito estranho estar naquele espaço onde as pessoas
pareciam ter saído de um seriado em Malibu, todos ali, loiros, pareciam surfistas vindos dos EUA. A
noite foi melancólica porque ninguém olhou para você, nem mesmo seus colegas do escritório
interagiram. Você foi mais uma ou duas vezes naquele lugar. O fato é que você achou que a roupa e os
locais podiam te proteger de algum modo. Mas isso não era uma regra. Certo dia, antes de você pegar
o ônibus para voltar para casa, você decidiu dar uma volta no Parque Moinhos de Vento, com seu
sapato novo e sua jaqueta reversível das lojas Tevah. O dia estava nublado, e de repente uma chuva
fina começou e, para não se molhar, você começou a correr. Foi nesse momento que você escutou um
ei-ei-para. E, ao olhar para trás, você viu um policial apontando uma arma para você. Você então parou
e pôs as mãos na cabeça, mesmo que ninguém tivesse te pedido isso, mas é que você já tinha
experiência em abordagens. Já conhecia as condutas. Outro policial se aproximou, também de arma
em punho. Eram seis horas da tarde de uma segunda-feira, e apesar da chuva fina o parque estava
cheio. Todos te olhavam, alguns até te reconheciam por te verem ali com frequência e se cutucavam
como que dizendo que já desconfiavam de você por algum motivo. Os policiais continuavam apontando
a arma para você. Depois mandaram você colocar a mochila no chão devagar e sem movimentos
bruscos. Pelo rádio de um deles você escutou que o suspeito vestia uma jaqueta preta mas não era
negro. Logo em seguida eles baixaram as armas. Depois disseram que um banco havia sido assaltado
na rua Vinte e Quatro de Outubro e que um dos bandidos correu para dentro do parque, e que a única
referência que eles tinham era que o assaltante estava usando uma jaqueta preta. Nesse momento,
você deu uma boa olhada a sua volta e percebeu que havia outros homens de jaqueta preta. Os
policiais disseram que você podia ir. Você não percebeu que havia largado sua mochila numa poça
d’água. As pessoas a sua volta ainda te olhavam, algumas com pena, outras com reprovação, outras
se perguntavam por que você não fora preso, por que eles te deixaram livre. No meio do caminho, você
tirou a jaqueta reversível das lojas Tevah e jogou numa lixeira. No dia seguinte, você foi a uma loja
esportiva e comprou, em dez prestações, uma japona do Chicago Bulls e um boné importado de seis
linhas.
5.
Poucas semanas antes de você morrer, a sua vida naquela escola estava um inferno. Você tinha
vinte anos de magistério e nunca pensara que seria derrotado por um bando de adolescentes. No
entanto, naquele dia, os alunos estavam um pouco mais calmos. Talvez fosse a chuva, que caía fina e
devagar. Você sempre teve a impressão de que, quando chovia, o barulho da água deixava os alunos
numa certa letargia. Em dias de chuva os alunos entravam mais calados, alguns entravam molhados e
de mau humor. Outros até te cumprimentavam dizendo: oi, professor. Mesmo assim você ainda tinha
dificuldade para iniciar a aula, tinha dificuldade em conseguir a atenção deles. Nada do que você fazia
ou propunha os atraía. Antes de começar a aula, você percebeu que no fundo da sala havia um rapaz
sentado numa cadeira, virado para a parede. Você sentou, pôs sua pasta em cima da mesa. Fez a
chamada. Depois se levantou, pediu para todos virarem para a frente, alguns te obedeceram, outros se
cutucaram, outros simplesmente te ignoraram. O rapaz do fundo continuou virado para a parede. Então
você o chamou. Na verdade você emitiu um som parecido com um psiu, porque não lembrava o nome
do aluno. O rapaz seguiu virado para a parede. Foi então que você decidiu ir até o fundo da sala.
Enquanto você caminhava, a turma prendia a respiração, eles te acompanhavam com os olhos, e você
sabia que, quando uma turma tinha um comportamento daqueles, era porque algo grave iria acontecer.
Ao chegar perto do rapaz, você o chamou, ele finalmente se virou e você finalmente viu aquilo que não
esperava ver. O rapaz estava enrolando um baseado na sua aula. Você não sabia o que fazer primeiro.
Apenas pensava em puxar pela memória o nome daquele garoto. Depois você se perguntou do que
tinha adiantado ter lido tanta teoria pedagógica na faculdade, se nenhuma delas tinha te dito o que
fazer quando um aluno enrola um baseado na sua aula. A essa altura, todos os alunos estavam
olhando para trás, esperando a sua reação. E quase por um milagre você lembrou o nome do aluno:
John Lennon. Olha, eu não tenho nada a ver com a sua vida, você começou a dizer, mas, se você quer
fazer isso aí, eu prefiro que você faça lá fora, certo? Aqui não é o lugar adequado pra isso, você disse
com calma. John Lennon te olhou. Avaliou a situação. Você não fazia ideia do que poderia vir dali. No
entanto, John Lennon se desculpou dizendo que ia guardar, deixa comigo, ele disse, o que tem pra
fazer, professor? Você se sentiu aliviado, mas não se sentia bem. Você estava cansado. Se você
tivesse um diário sobre todos os anos em que esteve em sala de aula, você teria escrito o seguinte:
“Tenho cinquenta e dois anos e queria estar aposentado. Durante todo esse tempo vi muitos
professores abandonarem o barco. Muitos ficaram pelo caminho, saltaram antes e foram fazer outra
coisa da vida. Mas acontece que existe um certo tipo de professor, um tipo único: aquele que resolve,
ou por ingenuidade ou por imbecilidade, pegar o touro à unha, permanecer na linha de frente. Anos a
fio. Um tipo que se propõe a todos os dias pegar a vida pela gola e sacudi-la. Sei que o mais comum
quando o barco começa a afundar é que as pessoas saltem fora, e isso é justo, mas, escutem, mesmo
que o barco afunde, alguém tem de resistir. E foi o que eu fiz, por vinte anos. Porque alguém tem que
ficar para apagar o quadro, desligar as luzes e fechar a porta”. Mas você não teve tempo para fazer um
diário. Certa vez, uma aluna disse que você falava coisas bonitas e que portanto devia colocar aquilo
num livro. Mas você jamais conseguiria escrever um livro. Você achava que não teria paciência para
tanto, também não teria condições psicológicas. Você não sabia fazer literatura. E, se um dia tentasse,
teria dificuldade em distinguir as coisas, porque não saberia se o que pensava era literatura ou uma
observação precária sobre a vida. Você apenas pensava que, quando se lida com alunos durante vinte
anos, uma linha muito tênue passa a separar a lógica do absurdo. As coisas perdem o sentido, a
cabeça tem de aprender a lidar com isso, você pensava. E essa foi a sua luta. Ver gerações e gerações
de crianças e adolescentes passarem por você, virarem adultos e esquecerem da escola, te tornou, em
última análise, um ser invisível, você pensava. Um ser esquecido entre o quadro e o giz. Na sala de
aula, você desaparece para as pessoas. Todos acham que, se você está ali, tendo de aturar os
desaforos de crianças e adolescentes, é porque você não deu certo na vida. Dar aulas foi o que sobrou
para os perdedores. Mas no fim das contas você sabe que não é bem assim. Ou pelo menos queria
acreditar nisso. Depois que você resolveu o problema do baseado com o John Lennon, os alunos
passaram a prestar um pouco mais de atenção, porque você não gritou com ele, não o mandou sair da
sala, não mandou chamar a direção nem a polícia. Você sabia que estava se arriscando por não tomar
nenhuma atitude mais drástica, mas por outro lado você ganhou um pouco do respeito deles. Na
parada de ônibus, os alunos te cumprimentaram. Em pouco tempo, você passou a ser conhecido como
o professor que não gostava de dar aulas. Porque você não enchia mais o saco dos alunos com a
gramática, nem com a crase, nem com as orações subordinadas. Você mesmo já havia se acostumado
com essa imagem e, de certo modo, isso te fazia bem. Quando o ônibus chegava, os alunos te
deixavam passar na frente. Nesse momento, todos eles eram gentis. Ei, abram caminho, seus idiotas,
não estão vendo que o professor quer passar?, diziam. No percurso, te incomodava saber que aquilo
que os professores se esforçaram para falar durante a aula já se esvaía na mente dos alunos. E ali,
naquele ônibus, olhando para todos eles, você percebia que esta fora sua luta cotidiana, talvez a única
que valesse a pena: fazer a sua voz permanecer na cabeça deles o máximo de tempo possível.
Entretanto, você sempre tivera a impressão de nunca haver conseguido influenciar ninguém. Você
estava com cinquenta e dois anos e tudo que você tinha nas mãos eram os livros, algumas provas e
uma vontade doida de beber algo. Você desceu próximo a um boteco que costumava frequentar. Pediu
uma cerveja. Em seguida pensou em Elisa. E pensar nela o fazia não prestar atenção no sabor da
bebida. Você pensava em Elisa e bebia. Entrava numa espécie de roda-viva. O sabor amargo e a falta
de Elisa. Outra cerveja. Em pouco tempo você estava bêbado. Na embriaguez parecia lidar melhor com
a perda. A dor é amortecida. Era o que te ajudava a voltar para casa. Alto e flutuante. E depois só tinha
tempo para tirar os sapatos antes de deitar na cama. Acordou de ressaca com seu despertador
gritando. Estava frio e chuviscava. Ressaca, frio e chuva: a fórmula perfeita para ligar para a escola e
mentir que estava doente. Mas não. Você levantou, porque não gostava de faltar. No caminho para a
escola sentiu uma espécie de raiva de si mesmo por voltar ao abismo: a falta de Elisa. Mas era assim
mesmo. Você já deveria ter aprendido. Quantas decepções afetivas você já tinha passado na vida,
você se confortava. Resignou-se e tentou compreender o fim novamente. Regressou ao passado.
Analisava as minúcias do relacionamento; as discussões, os silêncios e as mágoas. Não amei certo,
você pensava, e se punia. Mas a vida seguia porque, mesmo quando se ama errado, ainda temos de
viver. O amor não impedia a vida. Continua-se porque os carros não param, homens e mulheres se
levantam e vão trabalhar. Todos os dias. Segue-se, não por bravura ou altivez, mas porque
simplesmente não há o que fazer. E não há aí nenhum ensinamento ou lição a aprender. A não ser
domar a tristeza e aceitar conviver com ela, você pensava. E, mesmo que Elisa continuasse a vir a
seus pensamentos, e nos momentos mais impróprios, você lutava contra eles. Para isso, você
precisava concentrar forças nas suas aulas. E talvez essa fosse a sua última lição antes de deixar o
magistério: não mais influenciar seus alunos, mas se deixar influenciar por eles. Contagiar-se da
ingenuidade deles e perceber com espanto as coisas novamente pela primeira vez. E nas aulas, talvez,
superar a rua em que você e Elisa caminhavam, a padaria em que tomavam café, o caixa eletrônico em
que pegavam dinheiro, o parque no inverno. Tudo ainda ali dentro de você, ainda cambaleando, você
tentando superar numa sala com adolescentes desajustados as sobras de um afeto. Você que um dia
pensou que aos cinquenta e dois anos saberia lidar com o fim das coisas. Mas a dor não escolhe idade
quando quer doer, você pensava. Na parada, enquanto esperava o ônibus, teve vontade de chorar.
Mas você se tornou um homem antigo. E homens antigos não choram em paradas de ônibus. Não por
macheza ou para provar sua virilidade, mas porque não fica bem um homem antigo chorar em público,
você pensava. Depois da escola, na volta para casa, mantinha a cabeça baixa, mas ainda assim não
chorava. Não se podia andar triste pelas ruas do centro de Porto Alegre. As pessoas não aceitavam
isso. A todo momento a mão de alguém tentava te empurrar algo. Uma dor não pode ser interrompida
por um panfleto, você pensava. Você nunca promoveu grandes mudanças em seus alunos, você
pensava. As mudanças foram sempre pequenas e silenciosas. Você nunca se encaixou no perfil
daqueles filmes sentimentais estadunidenses, em que os professores viram o jogo diante das situações
mais adversas e hostis. Não mesmo, você não era desses. No entanto, você admirava quem tentasse
imitá-los. A única coisa que você fez foi tentar mostrar a eles algo que valesse a pena. E foi só. Vinte
anos. Sem medalhas. Sem honrarias. Nada. Você sabia que não havia sido um grande professor. Você
apenas travou durante anos uma guerra particular, mas cumpriu a tarefa. Não abandonou o barco. E
achava que isso já te redimia das aulas ruins que deu. Certa noite você baixou o volume do som,
pegou o telefone pensando em ligar para Elisa, mas hesitou. Sempre hesitava. Mas até quando?
a barca
1.
Ele acorda pela terceira noite seguida às três e meia da madrugada. A garganta seca, ofegante. Põe
a mão ao lado. A esposa está ali, serena. Dormindo. Ele levanta, calça os chinelos. Vai até o banheiro.
Levanta a tampa do vaso. Faz um grande esforço para não mijar fora. Ainda tem muito sono. Depois
vai até a cozinha. Abre a geladeira. Serve-se de água. Enquanto sente o líquido descendo pela
garganta, ele escuta um barulho que vem da área de serviço. Ele, o policial, dilata as pupilas. Apura os
ouvidos. Acha que não foi nada. Mas, logo em seguida, outro barulho. Dessa vez mais forte. Antes de ir
verificar o que está acontecendo na área de serviço, ele vai até o quarto, abre a porta do guarda-roupa.
Pega um revólver trinta e oito. Volta para a cozinha. Antes, passa pelo quarto das crianças. Elas
dormem. Pé ante pé, ele volta armado. Não acende a luz. Em seguida, ele chega à área de serviço.
Observa com cuidado. Não vê nada de anormal, mas ele sente que há algo estranho. E, ao olhar para
fora, identifica um homem negro caminhando sobre o telhado de uma casa na frente do seu prédio. Ele
aperta a arma entre os dedos, sente o cabo do revólver. É certamente um assaltante, ele pensa. Dali
ele pode atirar e acertá-lo com facilidade. No entanto, ele agora percebe que há outro homem no
telhado. Ele começa a ficar nervoso. Os filhos da puta estão assaltando na calada da noite, ele pensa.
Por isso ele ergue o braço e aponta a arma para os dois homens. Está escuro. Mesmo assim ele
aponta. E é nesse momento que ele lembra do motivo de ter ido até ali: o barulho na área de serviço. E
num estalo ele se dá conta: tem gente dentro do apartamento.
2.
O relógio, implacável como sempre, tocou às seis da manhã. E você sabia que não podia continuar
na cama, pois minutos a mais na cama te fariam perder o ônibus, te fariam chegar atrasado, e você
ainda teria de enfrentar uma turma agitada por causa do atraso do professor. Nesse dia, você não
tomou café. O ônibus que você pegava, ia sempre meio vazio no começo, e aos poucos ia ficando
cheio. Sempre as mesmas pessoas. Quietas e resignadas, com a cabeça encostada na janela. Você
também era um resignado. Às vezes, você cochilava e sentia que o mundo inteiro também cochilava.
Era uma ideia infantil, mas as ideias infantis te agradavam, às vezes. Enquanto se aproximava da
escola, ia lembrando do tipo de aula que ia dar. Havia semanas não vinha seguindo o programa da
escola. Porque você estava cansado de seguir o programa. Você entrava na sala dos professores.
Dava bom-dia, mas ninguém te respondia. Estavam com preguiça, sonolentos, tristes ou indignados por
terem de estar ali. Às sete e meia da manhã ninguém tem humor suficiente para dar sequer bom-dia,
você pensava. Exceto o professor de religião, que parecia estar sempre feliz e era o único a responder
o bom-dia. Por outro lado, você detestava excesso de felicidade àquela hora da manhã, soava quase
como um insulto. A essa hora da manhã as pessoas não devem ser felizes, você pensava. Na sala de
aula os alunos já te esperavam. Você entrou. Eram vinte anos entrando numa sala de aula. À noite
você ia para outro colégio. Você sentia que já tinha cumprido sua tarefa como professor. Achava que
tudo que precisava fazer já havia sido feito. Quando você entrou na sala de aula, os alunos estavam do
mesmo jeito: dispersos, sem interesse nenhum em você. Você parecia não se importar mais com isso,
no entanto você passou a prestar atenção no que eles diziam entre si. Um grupo especialmente se
exibia dizendo que fulano matou não sei quem e agora o sicrano vai mandar bala no fulano. Você viu
que eles contavam aquilo por prazer. Você os olhou, a maioria era composta de negros. E você sabia
bem para onde eles estavam se encaminhando. Você deveria ser um exemplo para eles. O único
professor negro da escola, certamente você deveria dar um exemplo, talvez por impulso, culpa, ou
mesmo porque sentia que ainda precisava fazer algo. Você se levantou e foi até o meio da sala, pediu
a atenção de todos com um grito enérgico, por alguns instantes todos eles pararam para te olhar. Era a
tua chance. Você tinha poucos segundos para convencê-los a continuar prestando atenção em você.
Gostaria que vocês ouvissem uma coisa: se querem saber, eu conheço um cara que matou duas
pessoas, você disse, num tom grave e dramático, para que não tivessem dúvidas do que você estava
dizendo. Eles se olharam e não entenderam bem por que você dissera aquilo. Um dos alunos começou
a rir. Mas você seguiu sério. Outro aluno mandou o que estava rindo calar a boca, porra, não tá vendo
que o professor tá falando? Ali você percebeu que os tinha na mão e precisava continuar. Bem, como
eu disse, eu conheço um cara que matou duas pessoas, e tem mais: eu sei o que ele pensou antes de
matar, eu sei o que ele pensou enquanto estava matando, e sei o que ele pensou depois de matar.
Houve um silêncio na sala, até o momento em que alguém disse: ah, professor, ninguém pode saber
um negócio desses. Pois eu garanto que se pode saber, sim, você disse, e posso provar, completou.
Todos eles agora te olhavam, estavam curiosos, desconfiados, não sabiam se acreditavam em você.
Então, você disse a si mesmo: professor, aonde você quer chegar com isso? Até onde isso vai? Eles
estavam prestando atenção. Vou fazer mais, você continuou, vou trazer esse cara aqui pra ele contar
como foi isso. Nesse momento, um dos alunos levantou a mão e perguntou em qual presídio ele tinha
cumprido pena. Você respondeu: ele mesmo vai dizer isso na próxima semana, mas preciso que
ninguém falte. Ninguém vai faltar, professor, garantiu o John Lennon, olhando para a turma com ar
ameaçador. Depois disso, você foi até o quadro e pela primeira vez conseguiu dar uma aula sobre
Drummond. Quando terminou, os alunos disseram que gostaram da sua aula. Você ficou feliz com
aquilo, como se algo na sua vida de professor tivesse sido resgatado.
3.
Ao virar-se, o policial vê um homem negro no meio da cozinha apontando uma arma para ele. Na
área de serviço outro homem entra pela janela e se posiciona atrás dele, na verdade são dois homens
que entram pela janela. Ambos estão armados. Não escondem o rosto. Aliás, parecem fazer questão
de serem vistos pelo policial. Em segundos, a cozinha vai sendo tomada por mais daqueles homens
negros, ele não sabe por onde eles estão entrando. São mais de dez. Estão por todos os lados. Um
dos homens vai na direção dele e diz, próximo ao seu ouvido: não se preocupe. A gente não quer nada
com você. A gente só quer eles. E aponta para os quartos onde dormem os filhos e a esposa. Ele
acorda com o sacolejo da mulher. Ela aperta seu braço e o chama pelo nome. Você teve outro
daqueles pesadelos, não é? Ele não responde. Está ofegante. Suando frio. É a terceira noite seguida
que ele sonha com a mesma coisa: o apartamento sendo invadido por homens negros.
4.
Quando você morre, quando seu coração para, não importa o que você fez com sua vida, não
importa quantos planos você deixou para trás, quantas pessoas você magoou, quantas te magoaram,
quantas vezes você perdeu ou ganhou. Importa apenas o que você estava fazendo no momento da sua
morte. Então, quando você pôs os pés na escola, os alunos estavam ansiosos te esperando. Eles
queriam saber onde estava o cara que você havia prometido trazer. Não vai dizer que você enganou a
gente?, disse um deles. Você respondeu que não. Que não tinha enganado ninguém. Ao entrar na sala,
você pediu que fizessem uma roda com as mesas e cadeiras; eles obedeceram, porque ainda estavam
confiando em você. Depois, quando todos estavam sentados, você abriu a pasta, tirou umas folhas e
distribuiu para cada um deles. Tratava-se de um texto. Alguns perguntaram o que era aquilo, cadê o
cara, professor? Você respondeu que dali a pouco eles iam começar a entender o que estava
acontecendo. Você então levantou e começou a ler o texto que você distribuíra para os alunos. Eram
trechos de Crime e castigo, do Dostoiévski. Na verdade, você não estava lendo, você estava dizendo
os trechos, porque, naquele dia em que você prometera trazer um assassino de duas pessoas, era em
Raskólnikov que você estava pensando. Então você passou dias de angústia pensando como você iria
levar Crime e castigo para aqueles alunos. Logo eles, “os que não entendem de nada”. “Os
perdedores”. Você não tinha alternativa, tinha de cumprir o prometido. Então você releu Crime e castigo
em casa, selecionou as partes que julgou mais contundentes. Tirou uma cópia. E, depois de reler, você
se pôs a memorizar os trechos. Fez isso porque você não podia simplesmente ler o texto com eles,
você tinha de contar algumas passagens. Dizer algumas palavras com mais ênfase, fazer as pausas
necessárias. Deixar o silêncio falar por si. Afagar o léxico. Olhá-los nos olhos. E realmente parecia que
estava funcionando. A descrição de Dostoiévski os hipnotizava. Entre a narração de uma morte e outra,
podia-se ouvir a respiração dos alunos. Teu cansaço havia sumido, e uma nova sensação de plenitude
começava a tomar conta de você. Você achou que leria quatro páginas, mas acabaram lendo mais de
quarenta nos dias seguintes. Cada aula vocês liam seis a dez páginas. Você se preparava,
dramatizava, às vezes levantava, fazia gestos incisivos, e alguns se assustavam, pareciam
angustiados. Então, no fim de uma aula, um aluno chamado Peterson foi falar com você. Queria saber
qual era o castigo que Raskólnikov teria por cometer aqueles crimes. Peterson morava com dois
irmãos, os pais morreram e quem sustentava a casa era o mais velho. Peterson ainda estava na escola
por um milagre. Há muitas formas e motivos para desistir da escola. Peterson era negro, tinha
dezessete anos. Não conseguia emprego porque tinha que se alistar no Exército. Você agora precisava
tomar cuidado com o que ia dizer. Você disse que Raskólnikov ia ser preso. Peterson te olhou e depois
perguntou se Raskólnikov era uma pessoa real. Você respondeu que não, mas que poderia ter sido.
Vocês passaram a conversar sobre a história enquanto você arrumava suas coisas. Na saída, vocês
foram a pé em direção à parada de ônibus. Se alguém perguntasse, você poderia dizer que estavam
indo para São Petersburgo.
5.
Ele levanta. Vai ao banheiro. Mija ainda ofegante. O pesadelo foi tão real que ele cogita ir até o
guarda-roupa e pegar a arma. Ele lava as mãos, passa uma água no rosto. Em minutos se sente
melhor. Mais calmo. Volta para o quarto, não sem antes passar pelo quarto das crianças. Está tudo
bem, ele pensa. Depois, olha para o relógio. São cinco da manhã. Em meia hora ele vai levantar. Mas
ele não consegue mais dormir. Pensa no dia que terá pela frente. Depois que o cabo Maicon morreu
por causa da merda de um celular, foi identificado como policial pelos assaltantes. Vai para a cozinha e
toma o café. Na sala, liga a TV, assiste ao noticiário. Prefere as notícias sobre violência e a previsão do
tempo. Às seis e quarenta ele sai. Pega o ônibus de farda para não precisar pagar a passagem. Os
passageiros sempre o notam, ele já não liga para isso. Quando chega no batalhão, cumprimenta
primeiro o Teixeira, mais adiante o major Souza. Os cabos Almeida e Matos já estão limpando a barca
(modo como eles chamam a viatura). Hoje novamente eles vão policiar o bairro Bom Jesus. Faz três
semanas que o Batalhão de Operações Especiais, o BOE, tem feito incursões na vila, atrás de
suspeitos. Eles ainda não sabem quem matou o cabo Maicon. O negócio é abordar todos esses
vagabundos, porra, diz o cabo Almeida. A gente vai achar o filho da puta e vai ser hoje. Toda vez que
ele entra na barca e vai para a rua, ele sente um frio na barriga.
6.
Peterson te disse que não conseguia entender por que Raskólnikov tinha se arrependido, ele era um
bandido e bandidos não se arrependem, ele disse, lá na vila, quando um cara mata pra roubar,
ninguém se arrepende. Você disse que talvez não fosse bem assim. Porque as pessoas se
arrependiam, mas ninguém saía por aí gritando que estava se sentindo culpado. Peterson riu. Você
prosseguiu dizendo que Raskólnikov, por um momento, achou que fosse Deus, achou que era
onipotente, achou que a vida daquela senhora e a da irmã dela não valiam nada. E talvez esse tenha
sido o grande erro. Peterson disse que a sua aula tinha sido muito boa. Você ofereceu o livro se ele
quisesse emprestado. Ele agradeceu, mas disse que precisava correr atrás de um trabalho. Você
pensou em insistir, pensou em fazer um discurso sobre aquela história de pão e literatura, que as duas
coisas são importantes, mas não estrague tudo, professor, não exagere. Você deu uma de suas
melhores aulas dos últimos tempos, contenha-se, você pensou. Numa esquina, Peterson se despediu
de você. Enquanto caminhava, você ficava lembrando de cada pedacinho da aula. Então, em
determinado momento, você olhou para o alto e cantarolou como Jards Macalé: a lua é gema de ovo
no copo azul lá do céu.
7.
Ele, o policial, nunca pensa que vai morrer. Na verdade, ninguém ali pensa que vai morrer. Eles
acreditam que são imortais. Porque, se eles não pensarem assim, não saem de casa. Quem dirige a
barca é o cabo Matos. Ele é o melhor na direção. Consegue acelerar o carro de forma brusca e
ostensiva sem perder o controle. A primeira abordagem que fazem é a dois meninos negros. Um deles
usa boné. O outro usa bermudas largas. São nove horas da manhã. O cabo Almeida pergunta o que
eles estão fazendo ali àquela hora. As armas estão apontadas para eles. Enquanto estão com as mãos
na cabeça, o cabo Matos passa um rádio de verificação de documentos. A gente tava indo pra escola,
um dos garotos responde. Cadê a mochila?, ele pergunta. Hoje é dia de passeio, não precisa de
material. Após uma série de perguntas eles comprovam que os meninos não devem nada. Em seguida
os liberam. A segunda abordagem é mais tensa. É um carro. Um Gol. Quatro meliantes. Todos saem do
carro. Todos são revistados, menos o rapaz branco. Na verdade, os policiais perguntam se está tudo
bem com ele. Três negros com um branco num carro. É algo suspeito. Próximo do almoço ele liga para
a esposa. Diz que está tudo bem, que só ligou para saber como ela estava. Desde que acordou
daquele pesadelo pela manhã, ele se sente estranho. A terceira abordagem é feita de arma em punho.
A chegada na vila é mais ostensiva. Enquanto circulam pela vila, Matos comenta: que merda isso,
caralho. A gente ficar aqui procurando o filha da puta que matou o Maicon. Uma coisa que não dá pra
entender, os caras que mais estão na cadeia são os pretos, a gente vai lá e vê que são a maioria. Aí
vêm essas porras de direitos humanos pra nos quebrar. Essa gente não sabe o que a gente passa. Já
se foram três semanas e ainda não achamos o cara. Agora a barca entra no meio da vila. Estão atrás
de qualquer coisa que os leve ao assassino do Maicon. A cada hora que passa, a vontade de vingar a
morte do colega cresce. No fim do dia, eles voltam para o batalhão. Na verdade eles já haviam
ultrapassado o número de abordagens. Ele chega em casa, a mulher e os filhos já estão dormindo. Ele
está cansado, mas tem receio de dormir e ter o mesmo pesadelo. Ele vai para o banho. Tenta relaxar.
Amanhã eles voltarão à vila, mas ele é escalado para outro horário. À noite, as abordagens costumam
ser mais tensas, porque sempre há a possibilidade do confronto. Ele vai para a cama e logo em
seguida adormece. Às três e meia da madrugada sente a garganta seca, ofegante. Põe a mão ao lado.
A esposa está ali, serena. Dormindo. Ele levanta, calça os chinelos. Vai até o banheiro. Levanta a
tampa do vaso. Faz um grande esforço para não mijar fora. Ainda tem muito sono. Depois vai até a
cozinha. Abre a geladeira. Serve-se de água. Enquanto sente o líquido descendo pela garganta, ele
escuta um barulho que vem da área de serviço. Ele dilata as pupilas. Apura os ouvidos.
8.
Agora você planejava levar Kafka, Cervantes, James Baldwin, Virginia Woolf e Toni Morrison para
eles. Depois daquela noite, tudo era possível. Aquilo estava te salvando do abismo. E você nem
percebeu quando os reflexos vermelhos de uma sirene bateram na parede de um prédio próximo a
você. Nem percebeu a aproximação de uma viatura da polícia, e também não percebeu quando eles
pararam o carro ao seu lado. Você só se deu conta do que estava acontecendo quando um deles falou
mais alto e disse para você parar. Era uma abordagem. Sua cabeça ainda estava na sala de aula,
ainda estava em Dostoiévski. Ele gritou para você parar. Gritou para você ir para a parede. Mas você
não escutou ou não quis escutar. Ele e os outros policiais estavam nervosos, era só para ser mais uma
abordagem de rotina. Só isso, vamos, porra, colabora. Mas você não estava se importando mais com a
rotina deles. Ele gritou novamente para você ir para a parede, ele já estava te apontando a arma. Mas
para você já não fazia diferença, porque daquela vez eles não iam estragar tudo. Vocês tinham de estar
lá. Vocês tinham que ver a cara deles quando comecei a ler, vocês tinham que ver o silêncio deles,
vocês tinham que vê-los prestando atenção. Vocês tinham de conhecer o Peterson, tinham de ouvir o
que ele tinha para dizer sobre o livro. Então, você abriu a pasta, ignorando os gritos do policial, os
gritos de larga a pasta, porra. Você ignorou porque agora era a sua vez. Era a sua vez de ditar as
regras. E a regra, agora, era seguir seu movimento, colocando a mão dentro da pasta. O primeiro tiro
pegou no seu ombro, e foi como se você tivesse levado uma pedrada forte. O segundo foi no peito,
dilacerante, uma dor difícil, não tão forte como as outras dores que tocaram seu corpo, mas ainda uma
dor difícil. O terceiro foi dado por ele, pelo policial que vinha tendo pesadelos com homens negros
invadindo a sua casa. Um tiro certeiro na tua cabeça. Os outros vieram simultaneamente. E a última
imagem que você viu, foi a lua-gema-de-ovo-no-copo-azul-lá-do-céu.
9.
Não lembro exatamente quando a morte passou a ser sinônimo de tragédia. Talvez tenha aprendido
com você quando fomos ao enterro do meu padrinho. Eu tinha doze anos e você me ensinou que ir a
um funeral devia seguir certas regras e que a primeira delas era usar preto. No entanto, na época eu
tinha poucas roupas pretas. Então você me emprestou uma camisa social sua, toda escura com
bolinhas brancas. Mesmo que tenha ficado demasiadamente grande no meu corpo, foi assim que fui
àquele enterro. Você ainda disse que vestir preto recuperava a história do luto. Naquele dia, talvez eu
tenha tomado consciência da gravidade do fim. Também prestei atenção nas palavras que foram ditas
aos parentes do falecido. Percebi que, na ânsia de levar conforto, as pessoas acabavam dizendo
coisas descabidas ou exageradas. Lembro que você disse, certa vez, que a morte pode ser
inesperada, mas as palavras não. Que você preferia que as pessoas não dissessem nada ou que
apenas usassem expressões como “meus pêsames” ou “sinto muito”, seguidas de um abraço.
Pareciam palavras vazias. Simples clichês. Mas a morte é um clichê e por isso os lugares-comuns são
permitidos, você me disse. Você também me disse que havia outro elemento importante num enterro: o
pranto. Pois nenhum choro deve ser exagerado. Você detestava excessos. Mesmo que um amigo sinta
uma dor maior, ninguém tem o direito de chorar mais que os familiares. A morte é íntima demais para
caber num espetáculo, você me disse. Em torno da tua sepultura, havia muitas pessoas que eu não
fazia ideia de quem eram. Era uma mistura de todos os tipos que conviveram com você: alunos, pais de
alunos, seus colegas professores, amigos e sua família. Minha mãe não quis ir ao seu enterro. Preferiu
ficar em casa. Na verdade, minha mãe não tinha boas relações com a minha avó, então, para evitar
constrangimentos, preferiu não ir. Suas irmãs estavam num canto mais próximo do seu caixão. Minha
avó estava desolada, calada, e permaneceu ao seu lado o tempo todo. A imprensa estivera no
cemitério mais cedo. Mas ninguém de nós, da família, quis gravar entrevista. Luara, minha tia mais
velha, não chorou em nenhum momento, mas eu sabia que ela estava comovida. Um padre que rezava
na cerimônia perguntou se alguém queria dizer alguma coisa. Todos permaneceram em silêncio,
apenas minha tia mais nova, a Inaê, disse baixinho que não acreditava que aquilo tivesse acontecido,
ainda vejo ele feliz, dizendo que tinha lido um livro, lembro dele contando sobre as aulas. Depois
seguiu-se mais um silêncio e então alguém perguntou se eu queria dizer algumas palavras. E eu
queria, mas não ali, na frente de todos. A dor era minha e eu queria escondê-la. Mas um rapaz jovem,
negro, que se identificou como ex-aluno, pediu para falar: eu queria começar dizendo que eu conheci o
professor Henrique Nunes na sétima série, eu tinha doze anos. E não tenho como medir tudo que ele
fez por mim, tudo que ele fez por inúmeros alunos, tudo que ele me ensinou. Estou arrependido de não
ter dito isso a ele. Quero dizer também que o professor Henrique Nunes não morreu por mera
circunstância da vida, morreu porque era alvo de uma política de Estado. Uma política que persegue e
mata homens negros e mulheres negras há séculos. Nesse momento, o rapaz se comoveu, a voz ficou
embargada e ele disse que não conseguia mais ir adiante. Depois disso, o caixão foi baixado na cova.
Então, alguns de nós jogaram um punhado de terra e disseram cada um uma palavra. Em seguida,
abracei minha tia Luara enquanto víamos as pás jogarem terra sobre o caixão. Era o fim. Saímos em
silêncio. Estávamos todos cansados, chorosos e ofendidos. A morte é sempre uma ofensa. Ela nos
reduz a poeira. Nos reduz a nada, pensei. Caminhávamos para a saída ao mesmo tempo que
deixávamos você para trás. Você estava sozinho. Você e a terra. Como iria ocorrer com todos um dia,
pensei. Na porta do cemitério minha tia perguntou para onde eu iria agora. E aquela pergunta soou tão
difícil para mim, porque eu não sabia como se fazia uma coisa daquelas, digo, eu não sabia como se
regressava às coisas cotidianas. Eu não sabia como entrar novamente na vida. Minha tia percebeu
minha incapacidade de tomar alguma decisão e disse apenas: venha, vamos almoçar. E aquilo me
pareceu a coisa mais sensata a ser dita naquele momento. E era tudo que eu precisava: de alguém
que pudesse me dizer o que fazer. Aquele dia foi o momento das recordações, choros e, às vezes,
algum riso quando alguém dizia coisas engraçadas a respeito de você. À noite, fui para a casa da
minha avó. Na verdade, passei alguns dias com ela. Depois de três dias, voltei ao trabalho e à
faculdade. Era preciso retomar as coisas. Sua morte também fez com que eu me aproximasse mais de
minhas tias. Dias depois, Saharienne me ligou. Marcamos de tomar um café. Mas nunca aconteceu.
Passei a ir mais vezes na casa da minha tia Luara, estar com ela era como se eu pudesse recuperar
um pouco de você. Porque ela me contava coisas sobre a tua infância, coisas que eu não sabia. E isso
me confortava. Um dia fomos almoçar num restaurante. E fiquei observando como as pessoas sempre
olhavam para ela. Era como se sua cor retinta, os cabelos crespos e o corpo acima do peso fizessem
dela sempre uma intrusa. Uma indesejada. E pensei que você nunca tinha me dito nada sobre isso.
Sobre suas irmãs, por terem tido pais diferentes, por serem mais escuras que você, e sobre o que elas
passavam em Porto Alegre, por serem sempre intrusas numa cidade racista como essa, pensei. Olhei
para minha própria pele. E era mais clara que a de meu pai e minha mãe. E talvez por isso eu tivesse
sido parado pela polícia duas vezes até ali. E fiquei pensando na crueldade de tudo aquilo. E tive
vontade de chorar e já não sabia qual era o real motivo, se era por causa de sua morte, se era pelos
olhares daquelas pessoas para minha tia, se era pela descoberta de que as mulheres mais pretas
tinham de lidar com outras situações. Minha tia Luara pediu o cardápio e, enquanto esperávamos a
comida, eu perguntei como ela suportava tudo aquilo. Tudo o quê?, ela perguntou. Tudo isso, de ser
sempre julgada pela cor da pele. Minha tia me olhou com tristeza e disse que a gente se acostuma. A
gente se acostuma com tudo. A gente se acostuma quando você caminha na rua e as pessoas
recolhem as bolsas e mochilas, a gente se acostuma quando os próprios homens preferem as negras
mais claras, a gente se acostuma a ser só. A gente se acostuma a chegar numa entrevista de emprego
e fingir que não percebeu a cara desapontada do entrevistador. Mas não estou reclamando, porque
com o passar dos anos eu aprendi a me defender bem. Aprendi a inventar estratégias de
sobrevivência. Seu pai também teve de inventar estratégias. Mas isso não significa que sejamos
sempre bem-sucedidos. Quero dizer que nós, às vezes, falhamos. E falhar, no nosso caso, pode
resultar num erro fatal. Ainda assim, Pedro, ainda assim a gente segue. O que você tem que
compreender é que os homens negros sofrem suas violências. E que as mulheres negras sofrem
outras. Algumas são parecidas. Mas, veja, somos diferentes. Nem sempre as causas são iguais. Minha
tia dizia tudo aquilo comovida. Triste. E eu a olhei. Sei que deveria tê-la abraçado. Quando o almoço
terminou, pedimos a sobremesa. E ela perguntou como iam meus estudos. Eu respondi que estava
meio devagar. Que muita coisa tinha me tirado a vontade de seguir. Foi então que minha tia pegou na
minha mão e disse: continue, querido, só isso. Continue.
10.
Acho que vocês nunca se preocuparam em organizar uma narrativa para mim. Sei que o tempo foi
passando e o que foi dito por vocês, antes de minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar
os pedaços e inventar uma história. Por isso não estou reconstituindo esta história para você nem para
minha mãe, estou reconstituindo esta história para mim. Preciso arrancar a tua ausência do meu corpo
e transformá-la em vida. Para isso, não me limito ao que vocês me contaram, nem ao que estes objetos
me dizem sobre você. Não acho que devemos lidar apenas com a lógica dos fatos. Prefiro uma
verdade inventada, capaz de me pôr de pé. Eu sei que esta história pode estar apenas na minha
cabeça, mas é ela que me salva. Não gosto da morte. Não gosto de partidas. Mas você me ensinou a
não ter medo da morte. E não gostar do fim é imprescindível quando se pretende algo na vida, você me
disse certa vez. Depois que você morreu, passei meses pensando na minha própria morte. Mesmo com
tão pouca idade, eu pensava na morte, pois você, muito cedo, me deixou consciente da nossa finitude.
E isso é triste, mas eu te agradeço. As pessoas que te mataram ainda estão soltas. E não sei por
quanto tempo elas continuarão livres. Mas elas nunca saberão nada sobre o que você tinha antes da
pele. Jamais saberão o que você carregava para além de uma ameaça. Por isso, sigo recontando a tua
vida, que também é um pouco da minha. Investiguei os teus afetos através dos meus. Eu ainda não sei
o que fazer com essa descoberta. Não sei o que fazer com essa verdade inventada. É inventando que
consigo ser honesto. Sei que ninguém quer morrer da maneira como você morreu. Um fuzilamento.
Sem chances de defesa. Você não teve a mesma chance de Dostoiévski, não é mesmo? Não houve
nenhum salvo-conduto. Nada. Nenhum czar para te salvar. Mas sei que durante a vida você passou por
essas tentativas de fuzilamento. A sua grande obra foi continuar levantando, dia após dia. Apesar de
tudo, você continuou desafiando a possibilidade de morrer. No sul do país, um corpo negro será
sempre um corpo em risco. A sua obra foram seus alunos, mesmo aqueles que nem se lembram de
você. Sua obra foram as suas aulas tristes. Suas aulas sérias, suas aulas apaixonadas. Eu queria ter
morado num pensamento teu. Como uma forma de amor. Um amor entre pais e filhos. Um amor
intelectual, silencioso e delicado. Mas eu tenho a morte de um pai ainda muito próxima. Acho que
inventei uma memória sobre você sem a distância e a maturidade necessárias. Sei disso, mas a minha
ingenuidade é tudo que tenho. Esta história é ainda a história de uma ferida aberta. É uma história para
me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser.
11.
Ninguém me pediu para vir aqui, mas eu precisava. Abro o guarda-roupa e me sinto como um invasor
mexendo em suas intimidades. Intimidades que talvez eu não devesse conhecer. Ainda assim continuo,
porque não sei até onde se pode ir na vida íntima dos pais. Não sei até onde suportamos descobrir
suas fraquezas, maldades e perversões. Me sinto culpado, mas eu preciso continuar. Tiro algumas
camisas do cabide. Olho-as devagar, imaginando você nelas. Coloco-as em cima da cama e lembro do
dia em que fomos almoçar e você estava usando esta mesma camisa azul listrada. Naquele dia, você
estava feliz porque um de seus alunos tinha ido cumprimentá-lo pela aula. Apesar de tudo, você ficava
alegre com tão pouco. Naquele mesmo dia, eu estava tentando falar com você sobre a Saharienne,
mas decidi não atrapalhar sua alegria; além disso, desconfio que já sabia qual seria sua reação: diria
que meu relacionamento com Saharienne era uma coisa passageira. Algo sem importância. Você é
novo, ainda vai se decepcionar muitas vezes. Deixa pra lá, logo você arruma outra namorada. Mesmo
que você tivesse razão, eu queria te contar. Porque eu também queria te ouvir. E os pais também
servem para isso. Mas acho que você não sabia ser pai. Não da forma que eu esperava. Abro uma
gaveta e encontro uma foto da última escola em que você trabalhou. Ficava num bairro periférico de
Porto Alegre. Eu nunca havia ido àquele local. E só conheci o lugar porque você morreu. Foi lá que seu
corpo foi encontrado, estirado no chão com um tiro na cabeça e outros tantos espalhados pelo corpo.
Depois disso, para me consolar e dar sentido às coisas, apostei que um dia iria me recuperar, que eu
poderia voltar a ter uma vida como antes, que ia jogar basquete e continuar meu curso de arquitetura,
mas com o tempo percebi que, após uma tragédia, nada fica como antes. Ainda custo a acreditar que
isso tenha acontecido com você. Eu sei que os negros são os que mais morrem por armas de fogo.
Vemos isso a todo momento na TV, mas a gente nunca acha que isso vai acontecer com a gente. Você
assiste àquelas reportagens com os parentes das vítimas, pessoas negras em bairros periféricos,
chorando, reclamando da violência, do descaso das autoridades, e a gente fica triste e solta um quemerda-quando-isso-vai-acabar, e volta a comer seu prato de arroz com feijão. Então, de uma hora para
outra, assim, sem mais nem menos, é a sua vez de chorar um morto. É a sua vez de conhecer a dor da
perda. E, de repente, estou na frente de uma câmera e de um microfone empunhado por uma repórter
que me pergunta como eu me sinto com essa tragédia. A partir dali, uma nova realidade se impôs e fui
forçado a aceitá-la. Sabia que precisava ser forte e fazer o que tinha de fazer: enterrar um pai e me
consolar. Suportar o luto. Na noite em que você morreu, meu celular tocou à uma hora da manhã. Era
minha tia Luara chorando. Ela me contou o que havia acontecido. Na hora não raciocinei muito bem. A
gente nunca sabe como reagir a algo assim. Me vesti o mais rápido que pude e peguei um táxi. E no
curto trajeto entrei no modo automático, como se eu estivesse indiferente a tudo, nada forte o bastante
para que eu pudesse chamar de emoção. Acho que minha vontade de descobrir como tudo havia
acontecido era maior que meu sofrimento. Há uma sutileza no modo como os efeitos de uma tragédia
passam a nos agredir. Olhei pela janela do carro quando me aproximava do local onde iria ver seu
corpo. Eu não sabia como enfrentaria a situação. Não havia em mim nenhum roteiro sentimental. Nada.
Todas as emoções que se aproximavam pareciam inadequadas e imprecisas. E talvez essa fosse a
verdadeira face dos efeitos daquilo: a normalidade do desconforto. Seu corpo havia sido levado para o
Departamento Médico-Legal de Porto Alegre. Quando estava próximo do local, pensei em ligar para
Saharienne, mas logo em seguida desisti. Preferi não fazer isso, não queria que ela viesse por pena de
mim. Elisa já estava lá quando entrei no saguão do DML. Estava com os olhos vermelhos e tristes. Nos
abraçamos e não dissemos nada. No Departamento, reconheci seu corpo. Havia marcas dos tiros
espalhados. Ao lado do corpo, sua pasta, provavelmente com trabalhos e provas de alunos, além de
um saco plástico com as balas que o mataram. Não pensei que conseguiria me deter tão
detalhadamente sobre seu cadáver. A imagem de um pai falecido também nos mata um pouco, e talvez
isso seja uma espécie de amor. E agora, aqui no seu apartamento, tento de algum modo me consolar.
Lanço mais um olhar sobre suas coisas. Antes de sair, pego o seu alguidar, retiro o ocutá de dentro
dele, enrolo num pano, como minha tia Luara disse para eu fazer. Saio segurando Ogum entre as
mãos. Às vezes, as ruas de Porto Alegre parecem intermináveis, labirínticas até, não porque as
avenidas sejam grandes, mas porque me sinto perdido nelas. Assim como você se sentia. Talvez
“perdido” não seja a melhor palavra. Ao caminhar por Porto Alegre, você se sentia sem lugar. Porque,
toda vez que você saía para caminhar, tinha a impressão de estar invadindo um espaço. Bastava dar
uma olhada em volta para perceber que você não podia pertencer àquilo, mas acontece que você
insistiu. Permaneceu. Porto Alegre era um lugar que você construiu fora de si. Você nunca esteve
dentro dela. E agora caminho por essas mesmas ruas, tenho Ogum em minhas mãos, e ainda me sinto
perdido, mas a palavra continua não sendo essa. Vou em frente, na direção do Guaíba. Tenho Ogum
em minhas mãos porque agora é a minha vez.
Agradecimentos
Agradeço as leituras prévias de Paulo Scott, Luiz Maurício Azevedo, assim como ao meu editor
Emilio Fraia e toda a sua equipe. Um agradecimento especial a Priscila Pasko, a primeira leitora dos
meus escritos, e ao apoio incondicional de minha mãe, Sandra, minha irmã Úrsula e do meu sobrinho
Bryan.
CARLOS MACEDO
JEFERSON TENÓRIO nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado
em Porto Alegre, é doutorando em teoria literária pela PUC-RS. Estreou
na literatura com o romance O beijo na parede (2013), eleito o Livro do
Ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Teve textos adaptados para
o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol. É autor também
do romance Estela sem Deus (2018). O avesso da pele é sua estreia na
Companhia das Letras.
Copyright © 2020 by Jeferson Tenório
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa
Alceu Chiesorin Nunes
Imagem de capa
Antonio Obá, trampolim — banhista, óleo sobre tela, 130 × 110 cm, 2019. Collection De Vleeschouwer-Pieters. Cortesia do artista e de
Mendes Wood dm São Paulo, Bruxelas, Nova York. Reprodução de Bruno Leão.
Preparação
Márcia Copola
Revisão
Marise Leal
Valquíria Della Pozza
ISBN 978-85-5451-779-3
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não
emitem opinião sobre eles.
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ S.A.
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04532-002 — São Paulo — SP
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Pessoas normais
Rooney, Sally
9788554514686
264 páginas
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Uma história única e envolvente sobre dois jovens que devem enfrentar a eletricidade do
primeiro amor em meio às sutilezas das classes sociais e dos problemas familiares. Sally
Rooney é a voz da geração millennial.
Na escola, no interior da Irlanda, Connell e Marianne fingem não se conhecer. Ele é a estrela do time
de futebol, ela é solitária e preza por sua privacidade. Mas a mãe de Connell trabalha como empregada
na casa dos pais de Marianne, e quando o garoto vai buscar a mãe depois do expediente, uma
conexão estranha e indelével cresce entre os dois adolescentes — contudo, um deles está
determinado a esconder a relação.
Um ano depois, ambos estão na universidade, em Dublin. Marianne encontrou seu lugar em um novo
mundo enquanto Connell fica à margem, tímido e inseguro. Ao longo dos anos da graduação, os dois
permanecem próximos, como linhas que se encontram e separam conforme as oportunidades da vida.
Porém, enquanto Marianne se embrenha em um espiral de autodestruição e Connell começa a duvidar
do sentido de suas escolhas, eles precisam entender até que ponto estão dispostos a ir para salvar um
ao outro. Uma história de amor entre duas pessoas que tentam ficar separadas, mas descobrem que
isso pode ser mais difícil do que tinham imaginado.
"O fenômeno literário da década." — The Guardian
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Limiar (Nova edição)
Ribeiro, Sidarta
9788554517847
208 páginas
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Reunião de escritos e reflexões sobre sonhos, drogas, religião, neurociência, política, meio
ambiente e educação, do autor de O oráculo da noite.
Neurocientista de carreira internacional, Sidarta Ribeiro nunca abriu mão de exercer seu papel de
intelectual público. Por mais de uma década assinou uma coluna mensal na revista Mente e cérebro,
além de contribuir até hoje com diversos textos para jornais como Folha de S.Paulo e Estadão.Limiar
reúne os 56 melhores artigos de Ribeiro e volta agora em edição revisada, com escritos recentes e uma
introdução inédita.
Dividido em cinco partes, o livro traz temas recorrentes em sua atuação como pesquisador, professor e
escritor: neurociência, sonhos, drogas, política e educação. Sempre embasado nas mais recentes e
sofisticadas pesquisas científicas, o autor de O oráculo da noite faz análises e provocações sobre
religião, morte e desastres ambientais, além de comentários afiados sobre o posicionamento do
governo brasileiro diante da pandemia de coronavírus.
Contramestre de capoeira e ávido buscador de tradições indígenas e afro-brasileiras, Ribeiro também
aborda a importância dos saberes populares e da ancestralidade para se fazer do mundo um lugar
melhor. E deixa um recado: "Se quisermos sobreviver a nós mesmos, precisaremos abandonar os
hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de distribuir. Já passou da hora
de um upgrade em nosso software".
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Sejamos todos feministas
Adichie, Chimamanda Ngozi
9788543801728
24 páginas
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O que significa ser feminista no século XXI? Por que o feminismo é essencial para libertar homens e
mulheres? Eis as questões que estão no cerne de Sejamos todos feministas, ensaio da premiada
autora de Americanah e Meio sol amarelo. "A questão de gênero é importante em qualquer canto do
mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo.
Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é
assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também
precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente. "Chimamanda Ngozi Adichie ainda se lembra
exatamente da primeira vez em que a chamaram de feminista. Foi durante uma discussão com seu
amigo de infância Okoloma. "Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz dele; era como se dissesse:
'Você apoia o terrorismo!'". Apesar do tom de desaprovação de Okoloma, Adichie abraçou o termo e —
em resposta àqueles que lhe diziam que feministas são infelizes porque nunca se casaram, que são
"anti-africanas", que odeiam homens e maquiagem — começou a se intitular uma "feminista feliz e
africana que não odeia homens, e que gosta de usar batom e salto alto para si mesma, e não para os
homens". Neste ensaio agudo, sagaz e revelador, Adichie parte de sua experiência pessoal de mulher
e nigeriana para pensar o que ainda precisa ser feito de modo que as meninas não anulem mais sua
personalidade para ser como esperam que sejam, e os meninos se sintam livres para crescer sem ter
que se enquadrar nos estereótipos de masculinidade.
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A vida não é útil
Krenak, Ailton
9788554517953
128 páginas
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Em reflexões provocadas pela pandemia de covid-19, o pensador e líder indígena Ailton Krenak
volta a apontar as tendências destrutivas da chamada "civilização": consumismo desenfreado,
devastação ambiental e uma visão estreita e excludente do que é a humanidade.
Um dos mais influentes pensadores da atualidade, Ailton Krenak vem trazendo contribuições
fundamentais para lidarmos com os principais desafios que se apresentam hoje no mundo: a terrível
evolução de uma pandemia, a ascensão de governos de extrema-direita e os danos causados pelo
aquecimento global.
Crítico mordaz à ideia de que a economia não pode parar, Krenak provoca: "Nós poderíamos colocar
todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia
deles. Ninguém come dinheiro". Para o líder indígena, "civilizar-se" não é um destino. Sua crítica se
dirige aos "consumidores do planeta", além de questionar a própria ideia de sustentabilidade, vista por
alguns como panaceia.
Se, em meio à terrível pandemia de covid-19, sentimos que perdemos o chão sob nossos pés, as
palavras de Krenak despontam como os "paraquedas coloridos" descritos em seu livro Ideias para adiar
o fim do mundo, que já vendeu mais de 50 mil cópias no Brasil e está sendo traduzido para o inglês,
francês, espanhol, italiano e alemão.
A vida não é útil reúne cinco textos adaptados de palestras, entrevistas e lives realizadas entre
novembro de 2017 e junho de 2020.
Pesquisa e organização de Rita Carelli.
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O amanhã não está à venda
Krenak, Ailton
9788554517328
12 páginas
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As reflexões de um de nossos maiores pensadores indígenas sobre a pandemia que parou o
mundo.
Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil enfrentam bravamente ameaças que podem leválos à aniquilação total e, diante de condições extremamente adversas, reinventam seu cotidiano e suas
comunidades. Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a reconsiderar seu estilo de vida, o
pensamento de Ailton Krenak emerge com lucidez e pertinência ainda mais impactantes.
Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak questiona a ideia de "volta à normalidade", uma
"normalidade" em que a humanidade quer se divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um
fosso gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades. Depois da terrível experiência pela qual o
mundo está passando, será preciso trabalhar para que haja mudanças profundas e significativas no
modo como vivemos.
"Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o
calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está
vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos
amanhã. Temos de parar de vender o amanhã."
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