A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
ARTIGO
A democracia, face política da globalização?
FERNANDO DE SOUSA *
Rev. Bras. Polít. Int. 49 (1): 5-24 [2006]
O mundo pós-Guerra Fria, ou melhor, o mundo após a extinção do bloco
soviético (1989-1991), ultrapassada a velha rivalidade bipolar e a lógica política,
económica e social que lhe estava subjacente, celebrou uma nova era baseada
nos princípios do desenvolvimento e cooperação, enquanto fundamento de
uma nova ordem mundial. Parecia estar aberto o caminho para a difusão dos
valores e ideais democráticos, acelerada pelos progressos tecnológicos da
informação, tanto mais facilitada quando, afundado o socialismo de Estado,
parecia não existir qualquer outro modelo alternativo para a humanidade.
Contudo, não tardou que este optimismo, inspirado na recuperação do
idealismo característico das épocas pós-conflituosas, desse lugar a um conjunto
de realidades bem mais duras, marcadas por tensões, violações de regras e
direitos fundamentais, pelo eclodir de conflitos violentos, vincadamente étniconacionalistas, em grande parte de natureza supra-estatal, e ainda, pelo
recrudescimento dos movimentos e acções terroristas, desvanecendo-se, assim,
o sonho de uma nova ordem pautada pelos princípios da democracia, da paz e
da cooperação.
Os desafios à construção democrática após o final da Guerra Fria e num
período de crescente globalização são inúmeros. Atravessando fronteiras,
cruzando ideologias e ultrapassando particularismos, a democratização contém
amplas potencialidades, mesmo defrontando-se com inúmeras limitações. Diz
respeito a uma multiplicidade de aspectos, incluindo, verticalmente, os vários
níveis de organização social e política, desde as autoridades nacionais, locais e
regionais até à sociedade civil, e horizontalmente abrangendo aspectos políticoideológicos, económicos, sociais e culturais. É da interligação destas duas
dimensões, e da forma como estes factores se conjugam na formação da vida
*
Professor catedrático da Universidade Lusíada do Porto, Portugal (fernandosousa@por.ulusiada.pt)
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REVISTA BRASILEIRA
DE
Introdução
POLÍTICA INTERNACIONAL
Is Democracy the Political Face of Globalization?
FERNANDO DE SOUSA
em comunidade, que podemos entender a complexidade dos desafios da
democratização no mundo pós-Guerra Fria.
Partindo da análise do conceito de “democracia”, tantas vezes suscitando
interpretações distorcidas e aplicações inadequadas, e do conceito de
“globalização”, cuja definição está longe de suscitar consensos, propomo-nos a
analisar os desafios da democratização no mundo pós-Guerra Fria, num contexto
de crescente globalização, olhando as profundas alterações no cenário mundial
resultantes do fim do sistema bipolar e da afirmação de um mundo cada vez
mais permeável às mutações no sistema internacional, questionando processos
e sugerindo alternativas.
Uma leitura histórica do conceito de democracia
Ao longo da história, os desafios da democratização têm caminhado par a
par com as diferentes interpretações e valorações conferidas ao próprio
entendimento de democracia. Literalmente significando “o governo (kracia)
do povo (demos)”, assumiu, em diferentes momentos e contextos, significados
tão díspares que, em circunstâncias próprias, parece mesmo ilustrar realidades
contrárias à sua simples formulação original.
Surgiu nas cidades-Estado da Grécia antiga, como um modelo de
governação, onde todas as decisões fundamentais à vida em comunidade eram
tomadas em assembleia popular, reunindo todos os cidadãos, que participavam,
deste modo, na vida política da polis. Contudo, apenas uma percentagem
diminuta da população tinha o estatuto de cidadão, uma vez que os escravos,
que constituíam a maioria da população, as mulheres e os estrangeiros não
gozavam de direitos políticos. Uma forma directa mas restritiva de participação
popular, que, logo na sua génese, apesar de todas as virtudes, surgiu quase
como antítese do ideal democrático.
Será, no entanto, já nos séculos XVII e XVIII, que o modelo democrático
veio a conhecer desenvolvimentos determinantes. Partindo de uma reacção aos
abusos de poder num contexto político caracterizado por governos autoritários,
assentou nos princípios individualistas centrais ao liberalismo europeu,
defendendo a existência de direitos naturais indissociáveis da própria existência
humana, e que se sobrepõem aos desígnios de qualquer autoridade ou poder
instituído. Com raiz nas ideias progressistas desenvolvidas por John Locke,
Jean Jacques Rousseau e Montesquieu, entre muitos outros, a mudança
consubstanciou-se nas Revoluções Inglesa (1688-1689), Americana (1776) e
Francesa (1789). Como reacção ao período conturbado e de transformação
profunda então vivido, na viragem do século XVIII para o século XIX, Alexis
de Tocqueville irá definir a democracia como a conjugação de liberdade e
igualdade, exigindo limites à actuação do Estado e maior participação dos
cidadãos no exercício do poder político.
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Aliado aos avanços tecnológicos da Revolução Industrial iniciada na
Inglaterra, em finais de Setecentos, os ideais políticos ligados aos princípios
democráticos entraram numa fase de clara afirmação. Devido às dificuldades
sociais emergentes na Europa industrializada do século XIX, as ideias socialistas
vão ganhar forma e voz. Partindo do princípio da igualdade social, irão
impulsionar um novo entendimento de democracia, imbuída, não apenas pelos
princípios liberais e burgueses, como até então, mas plasmada numa versão
marxista e proletária – que estará na base do desenvolvimento das democracias
populares na Europa após a Segunda Guerra Mundial, à luz do modelo soviético
implantado sobre a velha Rússia czarista, em 1917.
Neste contexto, registe-se a célebre máxima do presidente norte-americano,
Abraham Lincoln, em Gettysburg, em 1864, num cenário de guerra civil,
defendendo o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, a partir da qual as
propostas de conceptualização de democracia assumiram tantas formas que,
por vezes, o conceito parece perder significado.
Enquanto que na forma tradicional de democracia liberal, que nos é mais
familiar, se valoriza o “governo do povo”, pela procura do equilíbrio entre o
princípio de limitação governativa e do consentimento popular, procurando,
com base na condução de processos eleitorais competitivos e regulares, e num
princípio de igualdade política, garantir liberdade e protecção aos cidadãos
contra um poder opressivo, na forma mais radical de democracia totalitária, a
valorização centra-se no princípio do “governo para o povo”. Este último tipo
de democracia assenta no entendimento de que só um líder carismático e
ditador absoluto pode consubstanciar e articular os verdadeiros interesses do
povo. Deste modo, apesar das democracias totalitárias, na sua génese,
constituírem um desvio claro à noção convencional de governo democrático, a
sua existência demonstra a tensão entre “governo do povo” ou “governo pelo
povo”, que promove a participação popular, seja de forma directa ou indirecta,
e de “governo para o povo”, que se diz sempre no interesse da população, e que
sustentou os regimes fascistas e comunistas do século XX.
A amplitude do conceito é também revelada nas diferentes visões que
suscita, enquadrando-se no debate contemporâneo quanto à forma mais
desejável de democracia. Este envolve questões relativas aos benefícios reais da
democracia, ao facto de ela assegurar efectivamente uma dispersão genuína e
saudável do poder político, e às interrogações relativas à possibilidade de
coexistência efectiva entre igualdade política e desigualdade económica.
Questões que sugerem diferentes perspectivas na procura de respostas e
explicações para os desafios da democratização.
A uma perspectiva pluralista assente numa multiplicidade de interesses e
grupos na sociedade capazes de articularem as suas visões de forma livre, com vista
a garantir resposta popular e responsabilidade pública no sistema democrático
liberal, opõe-se a visão elitista que acentua a tendência para o poder se concentrar
POLÍTICA INTERNACIONAL
A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
FERNANDO DE SOUSA
nas mãos de uma minoria privilegiada – a elite – capaz de controlar e manipular
as massas. Uma reacção à sociedade sem classes, com igualdade política,
defendida pelos marxistas, preocupados com a tensão existente entre democracia
e capitalismo, revelada na contradição do princípio de igualdade política
proclamado pela democracia liberal, e na desigualdade económica resultante
do capitalismo. A complementar estas perspectivas, o corporativismo enfatiza
o papel dos organismos não governamentais na intermediação entre o público
e o Estado, considerando o facto de existirem interesses organizados na
sociedade, com acesso privilegiado à formulação de políticas sectoriais.
A acentuação de determinados aspectos nestas diferentes perspectivas
demonstra as dificuldades em encontrar uma definição consensual, ao mesmo
tempo que revela as fragilidades associadas à própria operacionalização do
conceito, assumido, por exemplo, na possível estagnação política, em resultado
do eventual aumento de poder de grupos de interesse e económicos decorrentes
da concepção pluralista, ou do facto do público poder revelar desinteresse
num sistema democrático elitista, onde a efectiva participação popular se pode
resumir à escolha eleitoral.
Ao presente, a democracia, para além dos clássicos valores da igualdade e
liberdade, está ligada também às questões da segurança e direitos humanos,
enquanto princípios e bases fundamentais das sociedades contemporâneas.
Contudo, os diferentes modelos de democratização, como por exemplo o modelo
ocidental em contraposição ao islâmico, têm revelado as diferentes vias
existentes, tal como a formulação ambígua de certas expressões – “democracia
controlada” ou “democracia incompleta” – a traduzir as dificuldades de
operacionalização do conceito e a revelar a complexidade da realização e
consolidação democráticas, e mais ainda, da sua avaliação.
Não existe, pois, um conceito unificado e completo de democracia, do
mesmo modo que o modelo democrático não deve ser entendido como um
modelo perfeito e acabado. As diferentes conceptualizações do termo e as
disparidades encontradas na sua materialização prática são resultado dos
desenvolvimentos político-sociais e económicos decorrentes da história e das
conjunturas nacional e global, uma vez que o próprio curso do tempo moldou
os regimes democráticos existentes, na procura de novas soluções e alternativas
para os inúmeros desafios e constantes mutações do sistema internacional.
A forma como a democracia funciona na prática é, então, diversa,
resultando num conceito abraçado por diferentes regimes políticos, sujeito a
interpretações distintas e com alcance variável. Contudo, o modelo mais próximo
da génese do conceito refere-se ao “governo do povo”. Assim, entendemos
“democracia como uma forma de Governo assente no consentimento popular,
permitindo aos cidadãos participar nas decisões políticas ou eleger
representantes nos órgãos governamentais”. Num regime democrático, o poder
encontra-se limitado, a alternância governativa está eleitoralmente assegurada,
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A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
os governados mantêm todos os seus direitos cívicos perante os governantes, a
liberdade é respeitada e a competitividade política está sempre presente. Será
a partir deste entendimento do conceito – designado correntemente como
democracia liberal – que analisaremos os principais desafios da democratização
no mundo pós-Guerra Fria.
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O conceito de globalização, de origem anglo-saxónica, forjado nas escolas
de gestão americanas e sinónimo, em França, de mundialização, serviu para
traduzir o extraordinário desenvolvimento das relações económicas em nível
mundial, a partir dos anos 80 – inicialmente, a palavra teve apenas uma feição
económica, designando, na expressão de Levitt, “a convergência de mercados
do mundo inteiro”, “um movimento complexo de abertura de fronteiras
económicas e de desregulamentação, que permitiu às actividades económicas
capitalistas estender o seu campo de acção ao conjunto do planeta”.
O desmoronamento do bloco soviético e o aparente triunfo planetário do
modelo liberal no início dos anos 90, acompanhados do desenvolvimento das
novas tecnologias de comunicação e informação, deram a esta noção uma
validade histórica. A globalização constituiu, assim, uma nova etapa na evolução
do capitalismo industrial, sucedendo à internacionalização das firmas e capitais.
Sob o ponto de vista económico, a noção de globalização integra três
fenómenos diferentes: o primeiro é o do desenvolvimento rápido dos mercados
financeiros mundiais a partir dos finais dos anos 70, estimulados pela
desregulamentação dos mercados financeiros e pelo aparecimento de novas
tecnologias de informação; o segundo fenómeno é o da mundialização das
actividades das empresas, tanto do sector manufactureiro como dos serviços; e
o terceiro, de natureza ecológica, traduzindo uma inquietude geral que se
desenvolveu a partir dos finais dos anos 80. Estes três fenómenos estão na
origem do sentimento de que os poderes públicos não podem controlar o
funcionamento da economia e dos mercados, num mundo onde reina a
incerteza, a instabilidade real ou latente.
Falar de globalização é evocar a dominação do sistema capitalista sobre o
espaço mundial, fenómeno que se inscreve numa tendência de submissão
progressiva de todos os espaços físicos e sociais à lei do capital, à lei da
acumulação contínua que é a finalidade suprema do sistema capitalista.
Segundo a OCDE, a globalização desenvolveu-se em várias fases, a última
das quais, a da globalização, corresponde à instalação de verdadeiras redes
planetárias, graças aos progressos da tecnologia e dos serviços. Os Estados
tornaram-se cada vez mais interdependentes, prisioneiros do “sistema-mundo”.
Com efeito, depressa, o vocábulo “globalização” passou a ser entendido
como uma realidade mais ampla e complexa, que vai muito para além da
POLÍTICA INTERNACIONAL
Uma análise crítica do conceito de globalização
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dimensão económica, passando a abranger também a ciência e tecnologia, e as
relações sociais, políticas e culturais. A globalização assume, deste modo, um
significado muito mais amplo, a traduzir as transformações económicas, sociais,
culturais e políticas do mundo presente, “a multiplicidade de ligações e
interconexões entre os Estados e as sociedades que caracterizam o sistema
mundial ao presente” (Anthony McGraw e Paul Lewis). Assim se compreende
que as características da globalização incluam “a internacionalização da
produção, a nova divisão internacional do trabalho, nos movimentos migratórios
de sul para norte, um novo ambiente competitivo que acelera estes processos e
a internacionalização do Estado, transformados em agências do mundo
globalizado” (Robert Cox).
Entendida nos países em vias de desenvolvimento, e nos muçulmanos
em particular, como uma espécie de neocolonialismo – “globalização é o que
nós no Terceiro Mundo, durante séculos, chamamos colonização” (Martin Khor)
–, como o domínio do Ocidente sobre o resto do mundo (Anthony Giddens),
a globalização não é sinónimo de americanização, nem de homogeneização,
quer sob o ponto de vista social, quer sob o ponto económico ou cultural.
Torna-se evidente que os Estados Unidos da América são determinantes na
globalização económica – o maior mercado de capitais –, militar – é a única
potência capaz de intervir em qualquer parte do mundo –, social – é o centro
da “cultura popular” – e ambiental – são o país mais poluente do mundo e
sem a sua concordância, as decisões em política ambiental obterão sempre
resultados limitados. Sendo um dos principais impulsionadores e beneficiários
da globalização contemporânea, os Estados Unidos não são capazes, porém, e
sê-lo-ão cada vez menos, de a controlar. O Grande Satã dos fundamentalistas
islâmicos nem é Satã e menos ainda é grande – a intervenção da Reserva Federal
de Nova Iorque, em 1997, para evitar o colapso de um fundo de investimento;
as destruições levadas a cabo em 2001 nas cidades de Nova Iorque e
Washington; a proliferação da droga e a lavagem de dinheiro no seu território;
e recentemente o furacão Katrina, que devastou boa parte do território
americano com uma violência, que teve tanto uma inaudita quanto
inoperacional resposta da administração americana, revela que os Estados
Unidos não estão imunes às crises financeiras mundiais, ao terrorismo
internacional, ao narcotráfico e ao aquecimento global do planeta, para o qual
contribuem determinantemente, nem estão preparados para dar uma resposta
adequada e unilateral a tais fenómenos.
A globalização é americanocêntrica, uma vez que grande parte da revolução
da informação e boa parte do conteúdo das redes de informação global são
provenientes dos Estados Unidos, aumentando o seu soft power, o poder suave
(Nye).
Mas nenhum Estado, incluindo os Estados Unidos, está imune aos efeitos
da globalização, a qual, a longo prazo, irá reduzir a intensidade do domínio
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A democratização, enquanto tarefa complexa – envolvendo aspectos como
o respeito pelo Estado de direito e pelas questões dos direitos humanos, eleições
livres reconhecidas internacionalmente, maior descentralização administrativa,
acesso à educação e o multipartidarismo –, é empreendida por uma variedade
de actores, estaduais e não estaduais, ultrapassando fronteiras nacionais. No
contexto da globalização, os processos de construção democrática são afectados
por um conjunto variado de factores. Entendida como um processo
multifacetado, que envolve forças globais, nacionais, regionais e locais que
interagem e se influenciam reciprocamente numa multiplicidade de aspectos
– princípios internacionais do direito, know-how das organizações
internacionais, interdependência económica global –, a globalização tem
consequências visíveis nos processos de construção e consolidação democrática,
ora constituindo um factor da sua promoção, ora um elemento de fragmentação.
Os efeitos da globalização têm sido, pois, díspares, ora promovendo valores
democrático-liberais, estabilidade e crescente interdependência, ora sugerindo
fragmentação, traduzida na recusa de alinhamento com o modelo ocidental de
democracia liberal e na preservação de práticas políticas, económicas ou sociais
genericamente descritas como não-democráticas. Neste contexto, a relação entre
forças globais e nacionais assume particular relevância, demonstrando o modo
como os Estados, enquanto entidades singulares no processo global, podem
constituir um entrave à difusão e consolidação da democratização. No entanto,
apesar de eventualmente poderem optar por uma posição fechada face a estes
processos, dificilmente as forças nacionais conseguem alienar-se do processo
geral de globalização e do seu impacto e consequências, demonstrando que
uma contextualização territorializada de democracia não consegue permanecer
imune aos fluxos transnacionais promovidos pela globalização. As sanções da
comunidade internacional, no plano económico e político, aos regimes
ditatoriais, continuam a ser um importante instrumento de fragilização, erosão
e desligitimação dos regimes ditatoriais.
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Democracia e globalização
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americano. Em suma, nada no mundo pode ser feito sem os Estados Unidos,
mas há muito pouco que os Estados Unidos possam fazer sozinhos (Dominique
Moisi). A interdependência constitui, efectivamente, uma variável determinante
e crescente do mundo globalizado.
A globalização ajudou a reforçar o fundamentalismo, a fortalecer as redes
terroristas e, sobretudo, tem contribuído para agravar as desigualdades entre
os países ricos e os países pobres e dentro dos próprios países, embora o movimento
não seja linear nem geral – a desigualdade dentro dos países, por exemplo, é
mais consequência da sua governação e da corrupção que da globalização. Será
que a globalização também contribuiu para o alargamento da democracia?
POLÍTICA INTERNACIONAL
A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
FERNANDO DE SOUSA
Para que a globalização seja efectivamente um mecanismo de promoção
da democratização, o conceito tradicional de “democracia do povo” tem de ser
alargado para além das fronteiras territoriais, no sentido em que, face às forças
globais, esta relação não se possa restringir à dualidade população-Estado
incluída no entendimento tradicional do termo. Nesta perspectiva, a
globalização já teve como efeito a elaboração de políticas supra-estatais, que
ultrapassam em larga medida as jurisdições nacionais, demonstrando esta
necessidade de abertura a uma compreensão mais ampla.
Para além do Estado nacional, onde é possível a legitimidade democrática
no seio da comunidade política, por meio da expressão da vontade popular, a
definição de uma comunidade supranacional democrática tem sido complexa.
Neste contexto de desnacionalização, as organizações internacionais permitem
reflectir decisões políticas restritas no contexto de decisão global, procurando
reforçar as comunidades políticas no contexto global. Podem por isso constituir
veículos de promoção da democratização, pelo seu papel regulador e de
governação a nível supranacional, enquanto respeitando e reflectindo princípios
democráticos e de promoção social e económica.
As organizações internacionais têm sido instrumentos fundamentais de
estabilidade, por meio de actividades de monitorização, assistência aos processos
reformistas e apoio jurídico-legal à democratização. O carácter multidimensional
das suas abordagens, incluindo aspectos políticos, jurídicos, económicos, sociais
e culturais da vida de um Estado, tem fornecido um enquadramento seguro
para o desenvolvimento e para a democratização, por exemplo, na implementação
de programas de reforma do sistema judicial ou na adopção de nova legislação
de cariz liberal. A sua actuação ao nível, quer da sociedade civil, quer das
entidades governativas responsáveis, tem permitido uma abordagem integrada
e uma resposta mais eficaz aos desafios da democratização. Além do mais, pelo
facto de implicarem a partilha de regras e objectivos comuns, sugerem um
nível aprofundado de interacção entre os seus membros, promovendo princípios
de cooperação e complementaridade.
Contudo, o sucesso dos processos de democratização num contexto global
depende em grande medida do compromisso das autoridades nacionais, bem
como do próprio funcionamento das instituições que promovem aqueles. A
implementação efectiva de princípios e práticas democráticas não pode ser
desvinculada da actividade legislativa e governativa, enquanto definidora das
linhas de orientação de qualquer processo de reforma. A não cooperação por
parte das entidades nacionais, quer ao nível decisório, quer ao nível da população
civil, poderá simplesmente anular o fracasso de qualquer tentativa de
enraizamento dos processos democráticos. Por outro lado, o compromisso
aparente para com a democratização, na realidade não constituindo objectivo
a implementar, poderá servir de cobertura a práticas menos democráticas, de
forma a evitar o criticismo da sociedade internacional.
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Além do mais, a própria representatividade e funcionamento das
instituições globais nem sempre revela os traços da democracia – constituindo
a União Europeia uma das raras instituições internacionais onde existe uma
assembleia eleita popularmente. E o que é democracia no seio destes
organismos? A igualdade plena dos Estados? Que dizer, da intervenção directa
norte-americana no Iraque, com apoio de alguns Estados, sem uma resolução
do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas que a legitimasse?
Não será a “exigência” democrática por si só, uma “imposição” pouco
democrática? Além do mais, muitas decisões tomadas no contexto das
organizações internacionais têm efeitos globais, como, por exemplo, as
adoptadas nas reuniões do G8 ou mesmo da Organização dos Países Produtores
e Exportadores de Petróleo (Opep), apesar de apenas um reduzido número de
Estados aí ter representação. Não se verifica, por vezes, uma sub-representação
ou secundarização de numerosos Estados nas Organizações Internacionais,
nomeadamente nas instituições financeiras como o FMI controlado pelos
Estados Unidos? E por outro lado, será que países como a Índia, o Japão, a
Alemanha e mesmo o Brasil, podem continuar excluídos do Conselho de
Segurança das Nações Unidas?
O processo de globalização tem conduzido a uma grande interdependência
nas relações internacionais, sendo muitas vezes responsabilizado pela difusão
dos princípios liberais e da economia de mercado, a par com os princípios
democráticos, donde tem resultado uma adesão crescente às práticas
democráticas liberais. Mas se por um lado o processo parece reflectir uma
tendência para adesão a princípios de governação mais democráticos e, por
isso, mais justos, transparentes, e participativos, por outro lado, tem sido
entendido pelos críticos como um processo de hegemonia neo-imperialista
liderado pelos Estados Unidos. Estes, atrás de uma cortina democrata-liberal,
visariam impor as suas visões e práticas político-económicas, procurando
aumentar a sua influência sobre os processos políticos mundiais – o debate
entre os defensores das políticas intervencionistas norte-americanas e os críticos
da sua hegemonia permanece tão polémico como as discussões sobre as
vantagens e desvantagens da globalização.
O final da Guerra Fria e o desmoronamento do bloco do leste são parte
deste processo global. Para além das dificuldades e insuficiências inerentes ao
próprio funcionamento do regime de Moscovo, a expressão cada vez mais clara
de movimentos supranacionais em defesa dos direitos e liberdades fundamentais,
por exemplo, constituiu um vector fundamental para a queda do regime soviético
e para o início dos processos de transição em muitas das repúblicas da antiga
União Soviética, bem como nos Estados da Europa central e do leste, até então
na área da sua influência. A Conferência para a Segurança e Cooperação na
Europa (CSCE), como instrumento político que ao longo dos anos de Guerra
Fria, procurou apaziguar tensões através da promoção de diálogo e acabou por
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dar voz e corpo às aspirações de maiores liberdades e garantias, fazendo também
ela parte do processo de transformação que veio a revelar-se unidireccional e
culminou com a queda da União Soviética.
Cedo os novos países independentes puseram em marcha processos de
transição, voltando-se para o Ocidente como modelo de desenvolvimento a
seguir. A realização de eleições livres multipartidárias constituiu um primeiro
sinal do esforço de democratização, em alguns casos com numerosos partidos
a concurso nos processos de escrutínio. O respeito pelos direitos humanos e
liberdades fundamentais tornou-se também sinal da mudança, juntamente
com o fortalecimento da sociedade civil e dos princípios do Estado de direito.
Contudo, não sem grandes dificuldades. As mudanças de fundo implícitas nestes
processos têm-se revelado difíceis, morosas e exigentes a vários níveis, com
expressão no descontentamento generalizado de muitas destas populações, face
aos sacrifícios exigidos e ao parco retorno material. E, nalguns países, as redes
mafiosas parecem mais fortes que o respeito pelo direito e pelos compromissos
democráticos, a revelar a fraqueza do Estado e da sociedade civil.
O regresso de governos comunistas ao poder em vários países do leste
demonstrou as dificuldades existentes e o descontentamento das populações,
não significando, no entanto, um retrocesso na adesão aos princípios democráticos,
que permanecem, de modo geral, como um objectivo a prosseguir. Mas os
desafios são muitos, bem como os elementos de oposição e resistência ao avanço
dos processos de democratização – o desejo de retenção de privilégios e a ameaça
de perda de poder têm-se revelado um forte impedimento à progressão da
democratização em alguns países, de que o caso da Bielorrússia constitui um
exemplo flagrante.
Por outro lado, o recurso a princípios mais autoritários, sob desígnios
democráticos, é prática corrente na Federação Russa, onde o presidente Vladimir
Putin tem adoptado medidas bastante restritivas justificadas pela necessidade
de garantir a ordem necessária à coroação dos princípios democráticos. Há
exemplos reveladores do modo como estruturas centralizadas de um poder
autoritário violam os princípios democráticos, sob o pretexto do
desenvolvimento económico e da questão da segurança nacional para a
manutenção do poder. Interpretações distorcidas de um conceito demasiado
amplo.
As dificuldades na tradução dos princípios em acções concretas
A Teoria da Paz Democrática defende que as democracias consolidadas
que partilham regras de actuação e organização não se envolvem em conflito
entre si. Com raízes na tradição kantiana, actualizada na versão universal de
Fukuyama, os postulados centrais da teoria referem-se à partilha de normas
num contexto de competição política e resolução pacífica de diferendos, que
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se estende para além das fronteiras estaduais. Contudo, estas normas não têm
evitado o envolvimento de Estados democráticos em guerras de feição neocolonialista ou em conflitos de duvidosa legalidade contra regimes autoritários,
para além do seu envolvimento em actividades menos claras entre si, recorrendo
por vezes ao uso da acção coerciva de carácter militar ou das sanções económicas.
E, muito menos, têm impedido que o processo de democratização nos regimes
em mutação ou transição, limite, por si só, os riscos da guerra.
Defendendo a contribuição das organizações internacionais na construção
da paz democrática, esta teoria entende a democratização como um instrumento
necessário para o alargamento da área de paz e estabilidade a nível global.
Uma vez que os governos democráticos são directamente responsáveis perante
uma comunidade civil, e as populações, de um modo geral, são adversos ao
uso de violência na resolução de conflitos, as democracias são promotoras da
paz. Contudo, como Samuel Huntington afirma, “the democratic peace argument
is valid as far as it goes, but may not go all that far”. Os exemplos da história
questionam esta abordagem, com intervenções de carácter colonial e neoimperialista, apoio a regimes não-democráticos e uso de técnicas nãodemocráticas na promoção de interesses nacionais, em particular de carácter
económico. Um mundo mais democrático poderá, então, não significar um
mundo mais pacífico?
Aqui, a relação entre o Ocidente e o Islão, ou a forma como os países
democráticos ocidentais se têm envolvido nos processos de transformação
política na África ou na América Latina são relevantes. Diferentes pesos e
medidas para situações similares têm gerado reacções de descontentamento e
mesmo actos violentos da parte de alguns grupos. Os atentados de 11 de
Setembro em Nova Iorque e Washington e a crescente onda de tensão expressa
na sucessão de ataques terroristas em várias partes do mundo, demonstra o
desprezo contra a imposição do modelo ocidental democrático-liberal, enquanto
reflexo de práticas neo-imperialistas de controlo e influência. Podemos então
questionar se estas diferentes dimensões do processo de democratização no
contexto de globalização demonstram uma tendência para consolidação dos
processos ou, ao invés, para uma crescente fragmentação do sistema
internacional. A resposta não é simples, uma vez que se pode demonstrar a
existência paralela das duas tendências, com as implicações que daí advêm.
Factores de consolidação e fragmentação combinam-se no processo de
democratização pós-Guerra Fria, processo este enquadrado na globalização,
como força também impulsionadora e simultaneamente limitadora. O desejo
de participação nos processos económicos internacionais como factor de
progresso e desenvolvimento das economias tem-se revelado como elemento
motor de ambos os processos de democratização e globalização. Mas a
submissão de valores sociais e culturais a estes mesmos processos tem-se
afirmado, por seu turno, difícil, em virtude de uma certa homogeneização e
POLÍTICA INTERNACIONAL
A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
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absorção de identidades nacionais ou regionais, inaceitáveis para muitos grupos
sociais. Os movimentos anti-globalização têm aqui um papel relevante,
chamando a atenção para os perigos de uma globalização sem regras. Centrandose na dimensão da igualdade inerente ao conceito de democracia, apelam a
uma globalização mais altruísta e solidária, onde os países ricos disponham
dos meios necessários à concretização de projectos de desenvolvimento dos
países menos favorecidos, de modo a diminuir o fosso entre ricos e pobres. A
igualdade social e política constituem os princípios chave subjacentes a estes
movimentos, com base nos quais defendem a democratização das relações
globais.
As reacções ao processo global podem ter reflexo directo na democratização,
através da afirmação de poderes autoritários limitadores dos princípios de
participação e escolha, característicos da democracia, afirmando-se como
regimes contra um processo oculto de imposição de uma forma mundial de
governação assente nos princípios democrático-liberais. É o caso, entre outros,
dos regimes islâmicos que combatem a ordem mundial promovida pelo
Ocidente e liderada pelos Estados Unidos.
A tradição islâmica funde num único sistema, o político, o legal e o
espiritual, traduzindo uma visão da vida em comunidade claramente distinta
da visão secular dos Estados ocidentais. Nesta amálgama de princípios que
estruturam a vida política nos regimes islâmicos, a centralização do poder é
uma característica fundamental para a manutenção da lei e ordem. À luz dos
princípios democráticos liberais proclamados no Ocidente, podemos
caracterizar estes regimes como pouco democráticos. As liberdades políticas e
cívicas são muito limitadas e a participação popular extremamente restrita.
Num entendimento amplo de democracia, questões de direitos humanos e de
respeito pelas liberdades fundamentais são, também, frágeis. E o papel das
mulheres nestas sociedades, elemento incontornável para a compreensão da
sua mundividência, revela-se inaceitável.
As vivências políticas, sociais, culturais e económicas dos mundos árabe e
ocidental demonstram o seguimento de caminhos distintos, revelados de forma
pragmática na estruturação da vida em sociedade em cada um destes mundos.
Pontos de partida distintos, com pontos de chegada tão diferentes quanto os
regimes por eles abraçados.
A intervenção armada norte-americana no Iraque, em 2003, sem a
aprovação prévia de uma resolução nesse sentido, no seio do Conselho de
Segurança das Nações Unidas, logo, sem a legitimação internacional, visava o
desmantelamento da produção industrial de armamento nuclear no país, vista
como ameaça à segurança e estabilidade internacionais. Além do mais, visava o
derrube do regime despótico de Saddam Hussein, regime esse que desenvolvia
um terrorismo de Estado, e a reposição em seu lugar de um novo governo de
orientação democrática, similar, tanto quanto possível, aos governos ocidentais.
16
Democratizar a globalização?
Globalização e democratização podem ser entendidos, assim, como
processos complementares, revelando cooperação e competição, promovendo
avanços em conjunto e retrocessos pelas contradições inerentes à própria
conceptualização e interpretação dos termos. Deste modo, os processos
democráticos, quer a nível local, nacional ou global, necessitam de
acompanhamento constante, pois práticas não-democráticas são recorrentes.
Será, assim, possível democratizar a globalização?
Um processo desta ordem teria de abranger um conjunto alargado de
aspectos, já que os processos de construção democrática não estão confinados
aos limites territoriais de um Estado, ultrapassando fronteiras e desenrolando17
DE
REVISTA BRASILEIRA
Os líderes árabes eleitos têm reportado a ausência de democracia nos seus
países ao enraizamento sociocultural e histórico que envolve as sociedades
islâmicas, à interferência estrangeira como motivando ainda mais a afirmação
de um poder autoritário, ou à complexidade do Islão plural, nostálgico, por
razões que agora não importa analisar, da charia. Mas talvez a verdadeira razão
seja mais simples e se encontre na recusa e receio dos líderes locais face a uma
eventual perda de poder.
A democracia não é certamente o modelo último e final, traduzindo o
ideal supremo de organização política e social. Mas muitos dos princípios
ditos democráticos correspondem ao respeito por valores, liberdades e direitos
fundamentais da existência humana. A questão do Ocidente versus mundo
islâmico ultrapassa, no entanto, em grande medida, estes aspectos. Desígnios
económicos e interesses geoestratégicos de controlo da produção e rotas de
distribuição do petróleo, e que pautaram, em parte, a acção de Washington,
levantam interrogações sobre intervenção e imposição, bem como de saber-se
até onde poderá ou deverá ir o esforço de democratização. Até que ponto este
ultrapassa princípios de legitimidade internacional, traduzindo ele mesmo
práticas pouco democráticas? Será que o Estado islâmico constitui no mundo
político de hoje, “a única alternativa sistémica” à democracia, como pretende
Larry Diamond?
Questões que permanecem em aberto, revelando o debate tradicional
entre uma visão mais institucionalista das relações internacionais, que promove
a integração de esforços no âmbito de instituições plurais, e uma perspectiva
mais realista, onde os interesses nacionais se sobrepõem ao interesse colectivo,
como a intervenção americana no Iraque parece evidenciar.
Perante estas ameaças e desafios, democratização e globalização assumemse no contexto actual como processos fundamentais na formulação de uma
nova ordem internacional. A questão que neste contexto se impõe é a seguinte:
como democratizar a globalização?
POLÍTICA INTERNACIONAL
A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
FERNANDO DE SOUSA
se num contexto global, ao qual poderão ir buscar apoio, ou pelo contrário,
nele encontrar obstáculos.
A democratização da globalização regista, em paralelo, um activo e um
passivo que importa abordar.
Não podemos ignorar que a globalização que se fez sentir nas últimas
duas décadas foi acompanhada por um extraordinário crescimento (e reforma)
de estruturas e organizações institucionalizadas, assim como de redes de
mobilização política com o objectivo de vigiar e regular actividades
supranacionais e até de “governação mundial”.
Sob este aspecto, podemos dizer até que a globalização não se encontra
fora de regulação e controle. A prevalência dos direitos humanos sobre a
soberania, a demonstrar que esta é cada vez menos garantia da legitimidade
dos Estados no Direito Internacional; a internacionalização das questões da
segurança, nomeadamente no que diz respeito à contenção das armas de
destruição maciça (nucleares, químicas e bacteriológicas); a regulação cada vez
mais apertada dos mercados financeiros globais; os novos movimentos socioambientais em defesa da paz, dos direitos das mulheres, das minorias, etc. –,
desafiando a autoridade do Estado, mobilizando grupos de solidariedade e de
resistência; eis alguns dos exemplos que podemos aduzir enquanto factores
construtivos de um sentido de pertença, de interesses e de consciência comum,
de “comunidade global”, os quais, longe de anularem a responsabilidade dos
Estados em múltiplos aspectos de cariz local ou regional, são a prova de que
estes não estão em condições de resolver certos problemas – segurança,
ambiente, saúde pública e regulação económica – que necessitam de novos
enquadramentos institucionais globais.
Contudo, embora o processo de globalização tenha unificado fisicamente
o globo, a verdade é que não engendrou ainda a comunidade mundial, de que
a legitimidade de uma governação democrática global depende.
A fragmentação do mundo em nações, regiões e culturas constitui um
entrave à afirmação de uma política democrática global. A “via asiática” da
democracia, as “tradições democráticas” indígenas na África, as novas formas
de fundamentalismo, os crescentes nacionalismos, as desigualdades globais da
mais diversa natureza reforçam as divisões culturais e a fragmentação mundial,
favorecendo políticas autoritárias ou ditatoriais, minando as bases de um
entendimento comum de democracia enquanto ética global.
Mas as grandes potências também não têm contribuído para a
democratização da globalização, quando pretendem reformar a governação
global, pensando apenas nos Estados mais poderosos, e não nos mais populosos
ou mais representativos de certas regiões ou civilizações, como se pretende,
por exemplo, na reforma das Nações Unidas. Ou quando se eximem às suas
obrigações internacionais, afastando-se dos esforços de manutenção de paz das
Nações Unidas, reduzindo a ajuda externa aos países não desenvolvidos, retendo
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DE
REVISTA BRASILEIRA
as contribuições a que são obrigados para a ONU e outras agências internacionais
ou, pura e simplesmente, como fizeram os Estados Unidos, não ratificando
tratados ou convenções de alcance global como o Protocolo de Quioto ou o
Tribunal Penal Internacional.
A globalização tem-se assumido em muitas circunstâncias como um
processo liderado pelos Estados Unidos e respondendo directamente às suas
preocupações, desejos e interesses, erigindo a democratização política, os direitos
humanos e as reformas económicas como uma exigência à sua assistência. Nesta
perspectiva, a globalização não é entendida como um processo democrático.
Para que esta situação possa de alguma forma ser contornada, uma participação
mais activa dos vários intervenientes neste processo, de forma directa ou
indirecta, é desejável.
A existência de Estados imaturos, incompletos ou marginalizados, a
resistência dos poderes do passado, ainda não ultrapassados, assim como os
crescentes problemas sociais e económicos, decorrentes de uma conjuntura
global desfavorável, não têm contribuído para aprofundar esta via. A globalização
abre novas perspectivas e oportunidades, mas acarreta também problemas e
dificuldades, em particular, desigualdade económica, que têm reforçado os
movimentos de contestação a um processo que dizem injusto e ao serviço dos
países capitalistas industrializados. Parte do processo mais amplo da
globalização, a transição para o modelo democrático e, acima de tudo, a sua
implementação efectiva, têm questionado a própria dimensão democrática da
mundialização.
A democratização da globalização pode ser reforçada através de vários
meios, incluindo consultas directas às populações sobre questões globais que
afectam o seu quotidiano e as suas vivências, procurando desse modo reduzir o
deficit democrático da globalização. Um maior envolvimento dos governos locais
nos processos globais, como forma de intensificar a voz das populações no
contexto da globalização; a exigência de uma maior transparência na governação
supranacional através de uma representação popular acrescida na forma de
assembleias e da sua efectiva participação nos processos de decisão
transnacionais; e a valorização e reconhecimento de uma maior democratização
da sociedade civil como factor de promoção de estabilidade e desenvolvimento
– eis alguns dos instrumentos que poderão reforçar a democratização da
globalização. Da consolidação de um envolvimento mais alargado de actores e
estruturas neste processo global poderão, então, resultar maiores benefícios.
Recentrar e recontextualizar os processos globais em curso, estabelecer
novas formas de vida pública e novas maneiras de debater os problemas
mundiais, gerir os bens comuns da humanidade, enfim, democratizar e
civilizar a globalização é e continuará a ser um desafio extraordinário sob o
ponto de vista intelectual, institucional e normativo para as comunidades
políticas.
POLÍTICA INTERNACIONAL
A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
FERNANDO DE SOUSA
Conclusão
O processo de construção democrática e a sua extensão a vastas áreas do
globo tem sido pautado por avanços e recuos, não se revelando um caminho
linear, contínuo e rápido. Envolvendo diferentes dimensões, actores e factores,
têm implicações fundamentais a nível estrutural. Por isso, os resultados dos
processos de democratização só poderão ser avaliados a longo prazo. Enquanto
uma intervenção armada para depor um regime político autoritário pode durar
um dia ou ser uma questão de semanas, a consolidação de um regime
democrático, em todas as suas dimensões, pode demorar décadas.
Incluindo uma enorme variedade de aspectos que permitem de algum
modo a avaliação do nível democrático de uma sociedade, a questão do respeito
pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, de um modo especial, temse assumido como um elemento evidente da realização democrática. Mas muitos
outros aspectos fazem também parte desta valoração, incluindo a realização de
eleições multipartidárias livres, a existência de uma sociedade civil, ou uma
estrutura organizada e um funcionamento dos meios de comunicação social.
As organizações internacionais, como vimos, têm sido veículos privilegiados
de promoção da expansão democrática, através da partilha de princípios, da
promoção de relações directas entre Estados e sociedades, e do desenvolvimento
e consolidação de instituições democráticas de governo. Princípios que têm
estado subjacentes às actividades de grande número de organizações
internacionais, nomeadamente, quanto aos esforços da União Europeia de
alargamento, com a recente integração de dez novos Estados da Europa do
leste, simbolizando, por um lado, os esforços de construção democrática nestes
Estados, e por outro lado, a contribuição da organização para a consolidação e
desenvolvimento destes mesmos processos de democratização, como realização
essencial dos objectivos de política externa da União.
Nos seus esforços de controlo democrático das Forças Armadas e de
desenvolvimento de cooperação militar, a Organização do Tratado do Atlântico
Norte tem também demonstrado um esforço e contributo para a
democratização, enquanto por exemplo a Organização para a Segurança e
Cooperação na Europa, através da promoção de direitos humanos,
monitorização de processos eleitorais e adopção e adaptação de legislações
nacionais aos princípios internacionais, tem também revelado a contribuição
possível para a expansão democrática.
E não esqueçamos a exigência explícita da União Europeia, quanto às práticas
democráticas e ao respeito pelos direitos humanos, nos novos Estados-membro
e nos aderentes, a qual constitui um importante incentivo para a consolidação
do processo democrático na Europa de leste e da Turquia ao presente.
Mas se os contributos das instituições e organismos internacionais e
transnacionais se têm revelado um factor de integração global, em muitas
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DE
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instâncias estes não têm sido capazes de evitar distorções, traduzidas quer em
práticas pouco coerentes no âmbito destes próprios organismos, quer nos países
de acolhimento das suas acções. Num contexto de globalização, torna-se então
evidente o confronto entre forças de integração e fragmentação, que ora
impulsionando ora criando entraves ao processo de democratização, têm efeitos
profundos no delinear dos contornos democráticos actuais.
Diferentes visões de democracia remetem para diferentes entendimentos
do conceito. A evolução democrática tem demonstrando que o ideal democrático
tem tido uma tradução prática limitada. A globalização tem certamente aberto
novos caminhos e perspectivas, dos quais, o entendimento alargado de
democracia poderá ser um dos resultados evidentes. A “bola de neve” da
democratização, de que Huntington fala a propósito da década de 1990,
continua a rolar. Mas importa perguntar: em que direcção?
Nesta perspectiva, podemos interrogar-nos até que ponto a intervenção
ocidental no Iraque veio reforçar ou fragilizar a ideia de democracia no mundo
árabe? As retiradas da Síria do Líbano e de Israel da faixa de Gaza, as eleições
na Arábia Saudita, Egipto e no próprio Iraque, o estabelecimento do sistema
multipartidário em Marrocos, os tímidos passos ensaiados na Tunísia, Argélia,
Bahrein e mesmo no Iémen, não constituem sinais prometedores de um novo
espírito? Ou, mais do que uma adesão aos princípios de liberdade e democracia,
estamos perante uma estratégia de sobrevivência por parte de regimes
anacrónicos, caducos e corruptos, face à pressão externa e à agitação interna?
E, por outro lado, como interpretar o caos e a violência em que o Iraque continua
mergulhado? Ou a chegada ao poder, no Irão, de um radical, a dar novo fôlego
aos partidários do fundamentalismo islâmico extremista, quando muitos
analistas estavam convencidos de que as forças moderadas, neste país, estavam
a ganhar força e influência? Por outras palavras, como disseminar a democracia
e os direitos humanos no mundo muçulmano, uma das linhas de rumo da
política externa dos EUA, constante do relatório da Estratégia de Segurança
Nacional dos Estados Unidos, em 2002?
A abertura do mundo árabe à democracia não está garantida. As bandeiras
nacionalistas, anti-americanas e anti-globalização, continuam desfraldadas e
intangíveis. Ninguém nos garante que, em eleições livres, de Marrocos à
Indonésia, o poder não seja assumido por fundamentalistas radicais que, sob a
capa da democracia, irão rejeitar, afinal, os valores e princípios em que a
democracia assenta, assim como a globalização, ambas entendidas como
instrumentos de dominação do Ocidente. A chave para o reforço do processo
democrático do Islão vai passar pelo futuro do Iraque e pela constituição de
um Estado palestiniano?
Seja como for, a globalização da democracia, cujos progressos são evidentes
no mundo pós-Guerra Fria, revela-se, apesar de tudo, mais vigorosa que a
democratização da globalização. Até que ponto a primeira irá acabar por
POLÍTICA INTERNACIONAL
A DEMOCRACIA, FACE POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO?
FERNANDO DE SOUSA
influenciar e determinar a segunda? Eis uma interrogação que irá permanecer,
durante muito tempo, como uma questão em aberto.
Recebido em 1º de novembro de 2005
Aprovado em 05 de março de 2006
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Resumo
Neste artigo se visa analisar os novos desafios à democracia, em um contexto de
acentuada globalização, com o fim da Guerra Fria e a ascensão de uma nova ordem
mundial. Assim, faz-se necessário uma redefinição da trajetória conceitual tanto da
democracia, como da globalização, visto que ambas assumem distintos conceitos e
focos nas diferentes épocas e contextos. Busca-se ainda a análise e o questionamento
dos processos atuais de profundas alterações do cenário internacional, tais quais o
fenômeno da globalização da democracia e a democratização da globalização.
Abstract
The article intends to analyze the new challenges of democracy, in a context of stressed
globalization, with the end of the Cold War and the rise of a new world order. Therefore,
a redefinition of the conceptual trajectory of the democracy and also of the globalization
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FERNANDO DE SOUSA
is necessary, because both take on different concepts and focuses in different times and
contexts. Also, we seek an analyzes and a questioning of the recent processes of profound
alterations on the international arena, such as the democracy’s globalization phenomena
and the democratization of globalization.
Palavras-chave:: Democracia – Globalização – Multilateralismo – Ordem Mundial
Key words: Democracy – Globalization – Multilateralism – International Order
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