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Ensino e Geografia
O uso de jogos e filmes no ensino de geografia: um estudo de caso com alunos do 3º ano do ensino
médio
The use of games and movies in geography education: a case study with students of the 3rd year of
high school
Eduardo Donizeti Girotto*
David Augusto Santos**
Resumo:
: Neste trabalho, apresentamos os resultados do projeto A construção do raciocínio geográfico na
escola pública, em parceria com o Laboratório de Ensino de Geografia e Material Didático (LEMADI), do Departamento de Geografia da USP. No estudo de caso desenvolvido com alunos
do 3º ano do Ensino Médio em uma escola municipal de São Caetano do Sul, foi proposta a
interpretação de filmes e jogos a partir de conceitos geográficos, buscando articular os contextos dos filmes e jogos com os conteúdos vinculados a geografia, principalmente relacionados
à regionalização do espaço mundial. A partir do estudo foi possível perceber que os jogos e os
filmes podem ser importantes mediações pedagógicas no processo de ensino-aprendizagem em
geografia e para a construção do raciocínio geográfico.
Abstract:
*Universidade de São Paulo,
SP, Brasil
egirotto@usp.br
**Prefeitura de São Caetano
do Sul , SP, Brasil
davidaugusto295@gmail.com
Palavras-chave:
Ensino Médio;
In this work, we present the results of the project The construction of the geoGeopolítica;
graphic reasoning in the public school, in partnership with the Laboratory of
Raciocínio Geográfico;
Teaching Geography and Didactic Material (LEMADI), Department of GeJogos,
ography of USP. In the case study developed with students of the 3rd year of
Filmes.
high school in a municipal school of São Caetano do Sul, it was proposed the
interpretation of movies and games based on geographic concepts, seeking to
Keywords:
articulate the contexts of movies and games with content linked to Geography,
High School;
mainly related to the regionalization of the world space. From the study it was
Geopolitics,
possible to perceive that games and films can be important pedagogical mediaGeographic
Reasoning;
tions in the teaching-learning process in geography and for the construction of
Games;
the geographic reasoning.
Movies.
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INTRODUÇÃO
de jogos e filmes no ensino de geografia vem
O uso
sendo facilitado, nos últimos anos, pelo desenvolvimento e divulgação de novos recursos tecnológicos,
principalmente sites e canais de vídeos na internet, bem
como pela ampliação (ainda que em escala muito reduzida e de forma bastante desigual) da infraestrutura tecnológica de algumas escolas públicas no país. Em nossa
experiência, partimos do pressuposto de que a utilização
destes recursos no ensino de geografia pode contribuir
para a ressignificação dos mesmos, vistos que eles estão
presentes no cotidiano de muitos alunos e alunas. Além
disso, carregam e divulgam visões geográficas de mundo, em diferentes escalas de representação, repletas de
interesses, intencionalidades e estratégias que precisam
ser desvendadas e compreendidas, principalmente em
um mundo no qual os diferentes meios de comunicação
encontram-se concentrados e diretamente vinculados ao
poder econômico e político (ARBEX, 2001).
Sendo assim, o presente artigo busca apresentar
e analisar uma experiência didática envolvendo a utilização de jogos e filmes no processo de ensino-aprendizagem em geografia. Tal experiência foi desenvolvida com
11 turmas do Ensino Médio de uma escola pública de
São Caetano do Sul e teve duração de um trimestre letivo e teve como principal objetivo possibilitar aos alunos
e alunas, a partir da interpretação geográfica de filmes e
jogos, a compreensão da visão geopolítica presente nos
mesmos, estabelecendo relação com a ordem mundial
contemporânea. Além disso, buscou compreender, a
partir das análises produzidas pelos estudantes, as diferentes formas como os mesmos expressam raciocínios
geográficos com os quais se apropriam e interpretam o
mundo em que vivem em diferentes escalas geográficas.
Em nossa perspectiva, entender e problematizar os diferentes raciocínios geográficos construídos pelos alunos
e alunas é elemento fundamental para avançarmos na
construção de processos didáticos de ensino de geografia
que dialoguem profundamente com os anseios, perspectivas e concepções dos sujeitos da educação.
Para a apresentação de tal experiência, organizamos este artigo da seguinte forma: primeiramente,
realizamos uma breve discussão teórica sobre a geopolítica e a construção do raciocínio geográfico na educação
básica, retomando autores, perspectivas e interpretações
sobre o tema. Após isso, descrevemos a experiência didática desenvolvida, analisando os resultados alcançados,
utilizando-nos dos textos, reflexões e representações
cartográficas produzidas pelos alunos e alunas. Por fim
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apresentamos algumas considerações acerca das dificuldades, limites e possibilidades da experiência, principalmente no que se refere a construção de ações didáticas
no ensino de geografia que, rompendo com o conteudismo, possibilitem o desenvolvimento de raciocínios
geográficos.
Esperamos, com a partilha dessa experiência,
contribuirmos na busca da construção de um ensino de
geografia que seja capaz de possibilitar aos alunos uma
compreensão crítica e transformadora do mundo em
que vivemos.
O RACIOCÍNIO GEOGRÁFICO E O
ENSINO DE GEOGRAFIA: DISCUSSÕES
PRELIMINARES.
Em nossas pesquisas sobre a formação docente
e o ensino de geografia, temos apresentado discussões
buscando problematizar a lógica que tem, historicamente, posto os conteúdos no centro dos currículos (prescritos e ativos) de geografia da educação básica. Trata-se,
no caso brasileiro, de tradição que remonta ao aparecimento da disciplina de geografia na escola básica e que
tem como referência a obra Corografia Brasílica (1817)
de Aires de Casal que, durante quase todo o século
XIX, norteou o ensino desta disciplina. A crítica a esta
concepção conteudista também é antiga e pode ser encontrada, como demonstramos em pesquisas anteriores
(GIROTTO & MORMUL, 2016), nas obras de Carlos
Miguel Delgado de Carvalho (1944; 1945), Aroldo de
Azevedo (1935; 1946), Pierre Monbeig (1935), Maria
da Conceição Vicente de Carvalho (1935), entre outros.
Apesar da crítica tecida por estes autores há mais de um
século, ainda é predominante esta lógica curricular que
coloca os conteúdos como finalidade principal no ensino de geografia, fazendo com que professores e alunos
tenham que se desdobrar para conseguirem abordar todas as temáticas exploradas nesta disciplina nos anos do
Ensino Fundamental e Médio.
Não é o escopo deste artigo discutir as razões (que
são inúmeras) da reprodução desta lógica curricular. O
que nos interessa é pensar em alternativas para a mesma,
uma vez que entendemos ser fundamental a construção
de um conhecimento geográfico que possibilite aos estudantes um melhor entendimento do mundo em que
vivem, em suas mais diferentes escalas de representação.
Neste sentido, temos trabalhado com o conceito de raciocínio geográfico como centro do ensino de Geografia na Educação Básica. Em linhas gerais, o raciocínio
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geográfico pode ser concebido como a capacidade de
estabelecer relações espaço-temporais entre fenômenos
e processos, em diferentes escalas geográficas. Trata-se,
portanto, de compreender a dimensão espacial dos fenômenos, questionando-os acerca de suas localizações,
distribuições, correlações.
Como mostramos em pesquisas anteriores (GIROTTO & SANTOS, 2011), trata-se de processo que
precede a institucionalização da Geografia enquanto ciência moderna ocorrida no final do século XIX, a partir
das obras de Kant, Humboldt, Ritter, Ratzel e La Blache. Encontra-se, no limite, na compreensão da condição espacial do sujeito social. Esta condição pressupõe
entender que todo fenômeno para existir precisa estar
localizado e que esta localização é sempre relativa. No
entanto, a condição espacial nem sempre é evidente em
nossa compreensão do mundo. Muitas vezes, passamos
ao largo do entendimento de que as localizações não são
frutos do acaso, mas produzidas socialmente, a partir
das diferentes formas de apropriação da sociedade em
relação a natureza, mediadas pelo trabalho. A pergunta
“por que aqui e não em outro lugar?” não está entre as
primeiras que fazemos no processo de entendimento da
realidade e com isso vamos ocultando esta condição que
importa cada vez mais no processo de reprodução da
sociedade contemporânea.
No decorrer da história do pensamento geográfico, esta condição espacial esteve no centro das preocupações dos principais autores, tanto no que se refere aos
conhecimentos ditos acadêmicos-universitários, quanto
aqueles relacionados a geografia escolar. Se tomarmos
como exemplo a obra de Delgado de Carvalho (1944;
1945), temos uma ampla preocupação em afirmar a
condição espacial dos fenômenos estudados no campo
da Geografia Moderna em contraposição a outros campos científicos. Para Delgado, todo pesquisador tem
como objeto de investigação a realidade. O que vai se
alterando entre cada um dos campos científicos é o que
destacamos na interpretação de determinada realidade.
Segundo o autor, a especificidade do conhecimento geográfico está na capacidade de localizarmos o fenômeno,
entendendo sua distribuição (e, neste sentido, a relatividade de cada localização) e estabelecendo correlações
com fenômenos em outras escalas geográficas. Estes
três elementos (localização, distribuição e correlação) se
constituiriam, portanto, para Delgado de Carvalho, os
princípios que deveriam nortear a investigação geográfica da realidade.
No entanto, um dos elementos que Delgado de
Carvalho não aborda em sua obra e assim o faz muito como consequência de sua posição epistemológica e
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política da Geografia, é que esta condição espacial dos
fenômenos da realidade é ocultada pela apropriação dos
diferentes agentes do capital (empresas, Estados, órgãos
transnacionais), que passam a redefinir as localizações e
distribuições a partir dos interesses de ampliação dos lucros e de controle territorial. Muitas vezes agem apresentando como “naturais” esses processos de reconfiguração
territorial, mediadas pelo discurso do espaço como palco das ações humanos. Um dos principais autores que
apontou para a necessidade de entendermos como os
Estados e as grandes firmas nacionais, internacionais e
transnacionais produzem as localizações e distribuições
dos fenômenos da realidade a partir de seus próprios
interesses foi Yves Lacoste (1993) em seu célebre livro.
Nele, o autor analisa como estas estratégias espaciais têm
sido ocultadas da maioria da população a partir de ações
que têm no ensino de geografia (na escola básica e na
universidade) lugares de realização. É neste contexto que
o autor aponta a existência de duas geografias: a primeira, a geografia dos professores, que se apresenta para a
maior parte da população como um saber desinteressado, sem aplicação na realidade e que tem sido a forma
principal pela qual o saber geográfica se realiza na escola
e na universidade; do outro, a geografia dos estados-maiores, saber estratégico e por isso restrito a determinados grupos, que dele se apropriam para a reprodução
de seus próprios interesses e privilégios.
Ao denunciar em sua obra esta dualidade da Geografia, Lacoste também anuncia o potencial de um saber
geográfico apropriado pela população enquanto importante elemento na (re)significação da luta cotidiana e na
construção, portanto, de uma consciência espacial, capaz de trazer à tona a condição espacial dos fenômenos
da realidade e da apropriação que tem sido feito da mesma pelos agentes da geografia dos Estado-Maiores. Se,
de um lado, a Geografia tem servido para fazer a guerra,
como demonstram inúmeros exemplos do passado e do
presente, possui também o potencial de contribuir em
um melhor entendimento da dimensão geográfica da
realidade. Tal entendimento, por sua vez, é fundamental para que os sujeitos sociais compreendam e transformem a realidade em que vivem, reconhecendo-se como
sujeitos da produção da espacialidade.
Este movimento produzido na obra de Lacoste
teve diferentes repercussões em todo o mundo, com importantes ações epistemológicas e políticas também no
Brasil, tanto na geografia que se ensina-pesquisa na universidade, quanto na escola. As décadas de 1970 e 1980
foram, assim, profícuas para o pensamento geográfico,
com uma ampla produção que contribuiu no entendimento da condição espacial dos fenômenos da realidade.
101
Neste entendimento, o diálogo com a condição concreta
da realidade e com o movimento da totalidade social se
consolidou no campo científico da Geografia, em um
intenso processo de renovação teórica-metodológica na
qual os principais conceitos geográficos foram resignificados a luz de outros fundamentos metódicos, em especial, a dialética materialista-histórica.
No livro A condição espacial (2011), Carlos discute o conceito de condição espacial no interior do movimento de produção da totalidade social no modo de
produção capitalista. Para a autora.
A ideia de condição, que dá título ao livro, aponta a preocupação de pensar o fundamento da análise espacial do movimento – realizada pela Geografia -, localizando os movimentos da
produção espacial como momento necessário da reprodução do
humano (e do seu mundo). Essa condução torna possível uma
primeira aproximação: a produção do espaço apareceria como
imanente à produção social no contexto da constituição da civilização. O ato de produzir é o ato de produzir o espaço – isto
é, a produção do espaço faz parte da produção das condições
materiais objetivas da produção da história humana. Portanto,
o espaço como momento da produção social encontra seu fundamento na construção / constituição da sociedade ao longo do
processo histórico como constitutivo da humanidade do homem (CARLOS, 2011, p. 17)
Concordamos com a perspectiva da autora e
pensarmos ser fundamental compreender a condição
espacial como fundamental na constituição dos sujeitos
sociais e no próprio movimento da produção da totalidade social que, no presente momento, tem como agentes hegemônicos as grandes firmas transnacionais que
atuam em diferentes seguimentos. No entanto, a objetividade da condição espacial como necessária a existência
de objetos, sujeitos e ações não significa, diretamente, a
consciência desta condição. E este é, em nossa perspectiva, um dos principais desafios do ensino de geografia
na atualidade: possibilitar processos que levem os estudantes a construírem a consciência da condição espacial
de si mesmos e dos processos que constroem a totalidade
social. Em nossa perspectiva, o desenvolvimento do raciocínio geográfico é um processo cognitivos necessários
para a construção desta consciência.
Tal desafio se torna ainda maior quando verificamos as implicações que período técnico-científico-informacional, conforme as proposições de Santos (2014),
traz à forma como nos relacionamos com a realidade
e os outros sujeitos sociais. Com a ampliação da densidade técnica do território, através da implantação de
diferentes redes de fixos (estradas, redes de fibra óptica, aeroportos, entre outros) e de fluxos (de pessoas, em
mercadorias, informações, capitais) a relação que cada
sujeito social passa a ter com a realidade é cada vez mais
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mediada por estes diferentes objetos, formando uma
efetiva tecnosfera. No entanto, como aponta Santos,
tais objetos não podem ser tomados como neutros, desprovidos de estratégias e intencionalidades. Cada nova
mudança técnica do território pressupõe outras formas
de uso que estão definidas pelos agentes hegemônicos
da geopolítica mundial. Portanto, a relação entre Tecnosfera e Psicosfera é uma das mais importantes para o
entendimento do mundo atual:
Tecnosfera e psicosfera são redutíveis uma à outra. O meio geográfico atual, graças ao seu conteúdo em técnica e ciência, condiciona os novos comportamentos humanos, e estes, por sua
vez, aceleram a necessidade da utilização de recursos técnicos
que constituem a base operacional de novos automatismos sociais. Tecnosfera e psicosfera são os dois pilares com os quais o
meio científico-técnico introduz a racionalidade, a irracionalidade e a contrarracionalidade, no próprio conteúdo do território (SANTOS, 2014, p. 256)
Tais objetos técnicos, científicos e informacionais estão presentes, de forma desigual, no cotidiano dos estudantes da educação básica no Brasil e são,
portanto, mediações com as quais se relacionam com
a realidade. Tal contexto nos aponta para a necessidade
de, na construção de ações didáticas para o ensino de
geografia, levar em consideração as representações que
tais estudantes têm sobre tais objetivos, bem como os
usos que fazem do mesmo. É nesta perspectiva que surge a proposta de utilizar os jogos eletrônicos e filmes
como mediações para a construção do raciocínio geográfico. Como objetos técnicos, científicos e informacionais, possuem intencionalidades que só podem ser
compreendidos em uma ampla leitura geopolítica do
mundo atual. Segundo Santos, um dos principais elementos diferenciadores do período atual é a existência
de uma unicidade técnica, em que “[...] quanto mais
tecnicamente contemporâneos são os objetos, mais eles
se subordinam às lógicas globais. Agora, torna-se mais
nítida a associação entre objetos modernos e atores hegemônicos” (SANTOS, 2014, p. 240).
Neste sentido, os objetos com os quais os estudantes se relacionam diariamente, dentre os quais filmes
e jogos eletrônicos, representam a presença do mundo
no lugar, mediada também pelas outras escalas geográficas (regional, nacional, etc.). Como tal, difundem
discursos, ideologias, visões de mundo que interessam,
sobremaneira, os atores hegemônicos que os produziram. Dessa forma, pensar os jogos eletrônicos e os filmes
como mediação na construção do raciocínio geográfico
tem como principal objetivo construir uma proposta
de ensino de geografia que tenho como ponto de partida e chegada a prática social cotidiana dos estudantes.
102
Significa, portanto, um exercício no qual os conteúdos,
linguagens e conceitos da geografia são apresentados aos
estudantes como mediações necessária para reflexão e a
construção de uma leitura de mundo que ressignifique a
forma como os estudantes vivem e constroem a realidade.
Tal perspectiva vai ao encontro dos debates que
há algumas décadas ganharam força no campo das pesquisas e ações sobre ensino de geografia e formação de
professores com vistas a transformar os princípios e práticas do mesmo, articulando os debates sobre a renovação teórico-metodológico deste campo disciplinar com
a realidade e os desafios da escola pública no país. Foram
anos profícuos de debates curriculares e de construções
coletivas que colocaram em discussão a geografia que se
ensina e pesquisa, na escola e na universidade.
No contexto atual, são inúmeras as pesquisas que
apontam para a necessidade de construir práticas de
educação geográfica que, dialogando com as representações dos alunos e alunas possibilitem o entendimento da
condição espacial dos fenômenos, reforçando os princípios da localização, da distribuição e correlação, articulados com as dinâmicas do mundo contemporâneo
em suas diferentes escalas de produção. Autoras como
Callai (1991), Cavalcanti (2001), Ponstuschka (2000),
Castellar (1999), apesar de suas diferenças teóricas e metodológicas, avançaram na discussão, contribuindo com
o debate tanto na universidade quanto na escola pública. Ao mesmo tempo, temos visto avançar uma série de
políticas curriculares que buscam reforçar o conteudismo, através de proposições que difundem uma geografia
estática e que retiram a autonomia da escola, dos professores e dos alunos para, em diálogo, construírem e
definirem suas ações didáticas.
Frente a este contexto, faz-se necessário que os
sujeitos da escola e da universidade se aproximem com
o intuito de, em um diálogo cada vez mais horizontal,
construam proposições didáticas que visem a elaboração
de métodos e processos de ensino-aprendizagem em geografia significativos para todos os sujeitos da educação.
Com o objetivo de enfrentar este desafio, temos desenvolvido, desde 2015, uma articulação entre o Laboratório de Ensino e Material Didático da Universidade de
São Paulo e a Escola Municipal de Educação Professora
Alcina Dantas Feijão, de São Caetano do Sul com vistas
a produção e reflexão de materiais e processos didáticos
no ensino de geografia que possibilitem aos estudantes
a construção de raciocínios geográficos a partir da apropriação de conteúdos, conceitos e linguagens próprias
desta disciplina. A experiência didática que analisamos
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neste artigo é resultado desta articulação.
Portanto, é a partir deste pressuposto teórico-metodológicos que construímos e desenvolvemos a experiência didática do uso de filmes e jogos no ensino de
Geografia. No próximo item do artigo, apresentamos
e discutimos os principais resultados alcançados com o
desenvolvimento da proposta, problematizando-os com
as discussões teóricas e metodológicas presentes na primeira parte deste trabalho.
FILMES E JOGOS COMO MEDIAÇÃO NA
CONSTRUÇÃO DO RACIOCÍNIO GEOGRÁFICO
Como dissemos, a construção do raciocínio geográfico pressupõe, por parte dos alunos, além do domínio de certos conteúdos, conceitos e linguagens, o desenvolvimento de algumas habilidades, dentre as quais
observar, localizar, orientar-se, interpretar, relacionar,
tendo como fundamento a dimensão geográfica dos fenômenos. Estabelecendo um diálogo com a concepção
socioconstrutivista de ensino, concebemos a aprendizagem como um processo que envolve diferentes momentos. Não se trata de mera transmissão de conhecimentos
que vão do professor aos alunos, mas necessita de postura ativa dos mesmos, no sentido de reconstruir, confrontar, ressignificar as informações, dados, conhecimentos.
Nesta ação, os alunos dialogam com os conhecimentos
e experiências que já possuem sobre o assunto a partir
da mediação, feita pelo professor, através de símbolos,
signos e instrumentos.
Neste processo, os filmes e jogos podem ser concebidos como objetos técnicos-científico-informacionais, carregados de signos, símbolos e significados, a
serem utilizados na mediação do ensino-aprendizagem
em geografia. Por fazerem parte do cotidiano dos alunos
e possuírem uma linguagem ampla, diversa e plural têm,
de início, uma potencialidade a ser explorada no ensino
de geografia.
Vale ressaltar, porém, que tais instrumentos, por
si só, não podem ser concebidos como os principais responsáveis na construção do raciocínio geográfico pelos
alunos. O papel do professor na construção de estratégias didáticas para o uso dos mesmos é de fundamental
importância, sendo que tal planejamento deve ter como
norte os objetivos que se busca alcançar no ensino de
geografia em determinada série / ano / ciclo, em um
processo constante de reflexão. Neste sentido, a utilização de jogos e filmes como recursos para a mediação
do processo de ensino-aprendizagem em geografia surge
como importante alternativa didática que pode contri-
103
buir com professores e alunos para a construção do raciocínio geográfico.
A experiência didática utilizando jogos e filmes
no ensino de geografia foi desenvolvida, como dissemos,
em uma escola pública municipal de São Caetano do
Sul, na região metropolitana de São Paulo, a partir do
projeto “A construção do raciocínio geográfico na escola
pública”, em parceria com o Laboratório de Ensino de
Geografia e Material Didático (LEMADI), do Departamento de Geografia da USP. O principal objeto deste
projeto é aproximar os sujeitos da escola pública e da
universidade a partir do desafio de construir ações didáticas para o ensino de geografia, bem como refletir
sobre os seus resultados, criando assim um constante
processo de reflexão sobre e na ação, essencial, em nossa
perspectiva, para a formação continuada de proposta.
A proposta foi realizada com 11 turmas do 3º ano do
Ensino Médio, resultando em um total de 330 alunos
participantes.
A proposta, construída a partir dos trabalhos e
perspectivas desenvolvidas pelo professor de geografia
responsável pelas turmas do 3º ano do Ensino Médio da
referida escola, consistia que os alunos, em grupos, escolhessem um jogo ou filme e fizessem uma análise da visão geopolítica do mesmo e foi apresentada no início do
trimestre para que os discentes pudessem ter um tempo
maior para a construção de uma análise mais aprofundada dos materiais. A ideia também foi que, com o decorrer do trimestre e as discussões em aula, os alunos e
alunas conseguissem associar os conteúdos da geografia
com a análise dos jogos e filmes.
Foi dada total liberdade para que os discentes fizessem a escolha dos materiais. Em relação a análise, foi
entregue aos alunos um roteiro com questões e conceitos
norteadores que contribuíssem para que os mesmos pudessem aprofundar a compreensão e interpretação dos
materiais. Para que os alunos pudessem compreender
melhor como deveria ser feito tal análise, foram apresentadas algumas sugestões de jogos e filmes. Um dos
jogos mostrados como exemplo foi Call of Duty, produzido pela empresa Microsoft para o console Xbox 360
e que retrata episódios tanto de guerras históricas (como
a 2º Guerra Mundial), como apresenta situações hipotéticas de conflitos. No 4º jogo da série, o conflito envolve
dois grupos de inteligência militar (um dos EUA e um
da Inglaterra) que combatem um déspota do Oriente
Médio e seu aliado do Leste Europeu. A missão dos dois
grupos de inteligência é impedir que tal déspota tenha
acesso a um antigo arsenal nuclear no Leste Europeu e
com isso inicie um conflito com proporções mundiais.
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A situação apresentada pelo jogo permite problematizar uma série de elementos fundamentais para se
compreender a nova ordem mundial. Entre eles, destacam-se: o fim da URSS e o destino do seu arsenal nuclear; a visão dos EUA sobre os países e a população do
Oriente Médio; as novas estratégias de guerra. É possível
fazer relação com os principais conflitos do mundo atual, seus agentes e processos, utilizando-se de reportagens,
tabelas, mapas e gráficos para construir paralelos entre a
representação dada pelo jogo e aquela apresentada pelos outros materiais. Além disso, a própria produção do
jogo pode ser alvo de problematização, uma vez que representa a atuação de uma importante empresa transnacional responsável pelas principais ações de configuração
do atual período técnico-científico-informacional.
Outro exemplo de jogo sugerido foi Resident
Evil, da Capcom. Tal série, também disponível em filmes, conta a história de um acidente envolvendo experiências com um vírus chamado T, desenvolvido por
uma gigantesca corporação mundial (a Umbrella). Tal
empresa desenvolvia, secretamente, armas químicas e
biológicas, tendo como principais compradores governos do mundo todo. Após o acidente com o T-vírus, a
população de Raccon City (cidade onde está localizada
a Umbrella) é contaminada, transformando-se em zumbis. Em pouco tempo, a contaminação se alastra e atinge
diferentes países. Enquanto um grupo contratado pela
Umbrella tenta controlar a contaminação e o vazamento
da informação sobre a mesma, outro grupo investiga as
causas daquela contaminação e aos poucos vão descobrindo uma rede complexa de relações que envolvem
diferentes empresas, governos e países.
Os dois últimos episódios da série (5 e 6),
disponíveis para os consoles Xbox 360 e Playstation 3
trazem novos elementos para a história. O 5º se passa
na África, onde a Umbrella, em associação com grupos locais, produz uma variedade do T-vírus. Já no 6º,
nos deparamos uma estratégia do Secretário de Defesa
dos EUA que ordena um falso ataque terrorista contra
a China com o intuito de justificar a sua permanência
no poder e obter “carta branca” para realizar aquilo que
deseja.
O jogo possibilita discutir as causas e consequências das guerras biológicas e químicas, associando-as a episódios recentes como o ocorrido na Síria em
2013. Outro ponto importante é a discussão sobre a
visão que os jogos trazem sobre o continente africano
e a China, bem como o porquê da escola destes lugares
para o cenário do jogo. É possível discutir o crescimento
do mercado de jogos eletrônicos nos países emergentes,
104
principalmente os BRICs, o que resulta, inclusive, no
aparecimento de um número cada vez maior de jogos
legendados e até falados em português no mercado brasileiro.
Em relação aos filmes, foi apresentado como
exemplo Senhor das Armas (2005), dirigido por Andrew Niccol e que retrata a vida de um traficante de
arma que vê, no colapso da União Soviética, uma excelente oportunidade de ampliar os seus negócios. No
filme, é possível abordar e discutir o papel da indústria
armamentista na configuração geopolítica mundial,
principalmente no fomento de conflitos entre nações,
com o intuito de manter uma constante demanda para
suas mercadorias. Além disso, em diversos momentos
do filme, é possível discutir a relação de diferentes governos com as grandes corporações do setor de produção
de armas, ficando evidente como determinados órgãos
internacionais, em especial, o Conselho de Segurança da
ONU, estão, ao todo momento, sendo pautados pelos
interesses desta indústria.
Dessa forma, os exemplos acima ajudaram os
alunos a compreenderem melhor a atividade que deveria ser desenvolvida. Para que os mesmos pudessem
aprofundar a interpretação teórica dos jogos e filmes,
durante o trimestre foram trabalhados alguns conceitos
importantes tanto da geografia quanto da geopolítica,
entre eles Heartland, Espaço Vital, território, territorialidade, Área Pivot, Estado Tampão, Hegemonia sendo
que os mesmos foram utilizados na interpretação de diferentes conflitos ocorridos na velha e da nova ordem
mundial. Em cada aula, buscou-se que os alunos articulassem tais conceitos com os materiais que estavam analisando, bem como a geopolítica do mundo contemporâneo. Para a construção destes conceitos, partimos do
pressuposto apresentado por Cavalcanti (2001, p.148):
“é do confronto dessa dimensão do vivido com o concebido socialmente – os conceitos científicos – que se tem
a possibilidade de reelaboração e maior compreensão do
vivido, pela internalização consciente do concebido”.
O objetivo era que os alunos e alunas, a partir de suas experiências espaciais e da análise e reflexão
dos jogos e filmes por eles escolhidos, construíssem estes
conceitos, problematizando e interpretando situações
cotidianas e ressignificando a relação que possuem com
estes objetos técnicos. O intuito era possibilitar aos alunos a compreensão de que a geografia e geopolítica estão
presentes nas diferentes dimensões e escalas espaço-temporais, e não apenas nos conflitos entre países. E que,
portanto, a compreensão destas diferentes dimensões se
configuraria como processo essencial para o desenvolvi-
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mento do raciocínio geográfico e da consciência espacial.
No final do trimestre, os alunos apresentaram os
resultados das análises feitas de duas formas. Primeiramente, a partir de seminários-debates, nos quais, com o
auxílio de recursos audiovisuais discutiram o jogo / filme
escolhidos, socializando as análises feitas com os demais
alunos. Em um segundo momento, entregaram uma
análise escrita dos materiais, tendo como foco principal
discutir a visão geopolítica difundida pelos mesmos.
No relato que se segue de um dos grupos de alunos e alunas, temos as percepções sobre as territorialidades representadas no jogo Call of Duty: Black Ops II.
Conclui-se que Call of Duty: Black Ops II é um jogo que aborda temas sobre a Guerra Fria, uma segunda Guerra Fria hipotética, e uma possível Terceira Guerra Mundial, também hipotética. Observa-se que, novamente, os Estados Unidos da América
“salva o mundo” de um “terrorista” que tenta acabar com a sua
soberania mundial. Observa-se também que, um único soldado
americano é capaz de escolher o destino do terrorista sem levar
um arranhão sequer e “salvar o mundo”. (Análise geopolítica
feita por um grupo de alunos do 3º Ano B)
Na interpretação construída pelo grupo, é possível verificar como os mesmos vão compreendendo
a visão estratégica de mundo difundido pelo jogo. A
ideia de uma superpotência, capaz de derrotar todos os
seus inimigos sem sofrer grandes consequências está no
centro da dinâmica do jogo e permite que os alunos e
alunas estabeleçam correlações com situações muito semelhantes com a dinâmica geopolítica contemporânea.
A atuação dos EUA como potência hegemônica após o
fim da Guerra Fria e todas as suas consequências para a
dinâmica da ordem mundial puderam ser amplamente
discutidos com as problematizações trazidas pelo grupo
durante os seminários.
Da mesma forma, o grupo aprofundou a discussão sobre a visão preconceituosa com a qual o jogo
apresenta as populações do Oriente Médio, vistas quase
como sinônimos de terroristas. Tal visão se constrói na
narrativa do jogo, na caracterização dos personagens, na
definição dos heróis e dos inimigos e sem uma ampla
problematização corre-se o risco de reproduzir uma concepção de mundo, repleta de intencionalidades, como
“natural”. Para que pudéssemos ampliar esta discussão,
foram apresentados aos alunos recortes de jornais e trechos de reportagens televisivas que dialogavam diretamente com esta visão preconceituosa em relação tanto
ao mundo árabe quanto a comunidade islâmica. Na discussão, foi possível perceber que em diferentes outros
jogos e filmes esta visão está bastante presente, o que nos
levou a aprofundar o debate sobre os agentes responsá-
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veis pela mesma e sua intencionalidade.
Para tanto, foi fundamental retomar o conceito
de unicidade técnica proposta por Santos (2014), problematizando assim o alto grau de concentração dos
agentes responsáveis pelos fixos e fluxos do atual período
técnico-científico-informacional. Como aponta o autor:
“[...] pode-se falar de unicidade técnica pelo fato de que
os sistemas técnicos hegemônicos são cada vez mais integrados, formando conjuntos de instrumentos que operam de forma conexa” (p.194). Não se trata, portanto,
de um mero acaso, mas daquilo que o autor denomina
de convergência de momentos. Por isso, a compreensão
da recorrência desta visão de mundo passa, necessariamente, pelo entendimento da forma como se organiza
espaço-temporalmente os principais agentes econômicos do período atual, dentre os quais, os grandes monopólios midiáticos, como aponta Arbex Jr. (2001) e
como isto está presente, também, na indústria de jogos
e filmes.
Outro exemplo de jogo escolhido pelos alunos foi
Medal of Honor: Battlefild 3 que abandona a temática
de Guerra Fria e dá oportunidade ao jogador participar
de conflitos armados mais recentes, como as missões que
acontecem no Afeganistão e apresentam como protagonistas soldados do exército dos EUA, como pode ser observado na imagem 1 produzida pelos alunos e alunas de
um grupo do 3º ano G:
O jogo Medal of Honor BF3 envolve a discussão
sobre relação entre a geopolítica e a apropriação dos elementos da natureza como parte estratégica do território
para avançar nas missões do jogo, conforme é destacado
na análise feita pelo grupo de alunos e alunas:
O jogo mostrou a visão estadunidense da guerra contra os “terroristas”, o desenvolvimento das armas e as técnicas de invasão.
A realidade retratada faz com que entendamos as dificuldades
dos soldados norte-americanos na invasão contra o Talibã,
como por exemplo: relevo com dobramentos modernos e o
clima. Armas usadas representaram a desigualdade no desenvolvimento armamentista entre as forças de cada lado. (Análise
geopolítica feita por um grupo de alunos do 3º Ano G)
Neste relato, aparecem duas questões fundamentais para o entendimento da dinâmica da regionalização do espaço mundial contemporâneo. De um lado,
o conhecimento territorial como elemento estratégico
Imagem 1: É possível observar no mapa a movimentação das tropas americanas e dos terroristas pertencentes ao grupo talibã em Musa Qala,
Afeganistão. É um território de intenso combate entre tropas americanas e o Talibã. O jogo se passa em vários lugares no interior do território do
Afeganistão, e sempre tem-se disponível um mapa da região em que você está.
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nas disputas geopolíticas, seja no Afeganistão, no Iraque,
na Síria. Do outro, o papel da indústria armamentista
no controle dos conflitos e de suas estratégias. Durante
a apresentação do grupo, foi possível discutir sobre o tamanho desta indústria, seus interesses e representantes,
estabelecendo, inclusive, relações com a realidade brasileira a partir da discussão sobre o papel desempenhado
no Congresso Nacional pela indústria de armas (a chamada “bancada da bala”). No caso específico deste jogo,
foi possível perceber que a dinâmica de jogabilidade
possibilitou aos estudantes um maior entendimento dos
diferentes processos de apropriação da natureza feito pelos diferentes exércitos e grupos nos conflitos. Ao terem
que produzir estratégias territoriais para avançarem nas
diferentes etapas do jogo, os estudantes, em seus relatos,
demonstraram a construção de raciocínios geográficos
com o intuito de “saber pensar o espaço” (LACOSTE,
1976).
Neste jogo, também foi proposto uma reflexão aos estudantes: por que não é dado aos jogadores a
possibilidade de escolher com qual equipe quer jogar?
Como seria o jogo visto a partir do olhar dos afegãos?
Na discussão construída, foi possível retomar o debate
sobre a relação entre tecnosfera e psicosfera, demons-
trando, assim, a intencionalidade que vem acompanhada de cada objeto técnico-científico e informacional.
Portanto, as opções de jogabilidade definidas não serão
apenas decisões técnicas, mas diretamente relacionadas
a visão de mundo que se quer difundir a partir do jogo.
Outro jogo escolhido pelos alunos foi o League
of Legends (também conhecido por LoL). É um MOBA
e tem como objetivo central atacar o Nexus (torres que
os jogadores devem atingir durante a partida). Os alunos e alunas tiveram o desafio de fazer uma análise do
jogo a partir do contexto da Guerra Fria, conteúdo também trabalhado durante o trimestre. A representação a
seguir, produzida por um grupo de alunos e alunas do 3º
ano E, apresenta os resultados da análise da relação entre
o jogo e o contexto da Guerra Fria:
Na representação, é possível identificar uma hierarquia dos principais conflitos envolvendo as duas superpotências durante a Guerra Fria. Nas extremidades,
temos os conflitos indiretos, como as guerras da Coréia
e do Vietnã, no qual não houve o enfrentamento efetivo
entre EUA e URSS. No centro, há a representação da
crise dos mísseis, principal momento de confronto aberto entre as duas potências e que colocou em evidência o
risco de Guerra Nuclear representado pela Guerra Fria.
Imagem 2: Summoner’s Rift é o principal mapa do jogo, composto por três linhas com quatro áreas denominadas Jungle (Floresta), onde se localizam
os monstros neutros, e o Rio que divide o mapa entre Azul e Roxo. Neste exemplo o grupo de alunos fizeram uma correlação com 3 acontecimentos
da Guerra Fria (Top lane- Guerra da Coreia; Mid lane- Crise dos misseis; Bot lane- Guerra do Vietnã).
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No relato apresentado pelo grupo, destacam-se
mais algumas correlações do jogo com os contextos geopolíticos na Guerra Fria.
Levando em consideração que os jogadores profissionais (pró-players) em sua maioria afirmam que é melhor defender bem
e se proteger, do que meramente atacar ou se arriscar, a Guerra
Fria caracterizada pela bipolaridade ideológica em que representa uma área geográfica a ser dominada ou defendida estaria relacionada com o Nexus (estrutura principal), no sentido de égide.
Como neste período de conflito ideológico entre o capitalismo
e o socialismo (EUA x URSS) observamos mais um jogo de
ideias do que um confronto efetivo das armas nucleares hipoteticamente desenvolvidas. Assim no LoL o confronto acontece,
porém cada campeão segue uma ideologia própria e influenciada por uma espécie de governo (influência maior). Nos anos de
bipolaridade, houve altos investimentos em armamento, contudo não se constatou este embate de forma direta. Relacionar
esta característica do período com o jogo seria o investimentos
na Building (conjunto de itens) e nas Runas através de pontos
adquiridos pelas partidas, ou seja, com o objetivo de sobreviver
mais tempo que o adversário. (Análise geopolítica feita por um
grupo de alunos do 3º Ano E)
Neste relato, é possível perceber um interessante
processo de conceitualização desenvolvido pelos alunos e alunas que passam a nomear a realidade do jogo
a partir dos conteúdos, conceitos e contextos construídos durante as aulas de Geografia. Trata-se, portanto,
de um processo de ressignificação do cotidiano, que os
leva a vivenciar a experiência do jogo a partir de outras perspectivas, estabelecendo outras relações com os
conteúdos. Isso se torna mais claro quando percebemos
que, para cada termo próprio do jogo, os estudantes
constroem uma correlação com a realidade estudada e
com isso vão construindo novos significados tanto para
o jogo quanto para os conteúdos, reforçando a lógica de
um ensino de geografia em diálogo permanente com a
vida cotidiana.
Como dissemos, foi dada também a opção para
que os alunos e alunas construíssem a análise geopolítica a partir de filmes. Entre os escolhidos, destacou-se
“Capitão América: O Primeiro Vingador” (filme estadunidense de 2011, baseado no personagem Capitão América, da Marvel Comics). A história se passa na época da
2ª Guerra Mundial na qual um soldado do exército dos
Estados Unidos, Steve Rogers, se torna cobaia de uma
experiência científica que acaba por modificar sua forma
física, tornando-o a principal arma do exército estadunidense na luta contra o exército nazista. A seguir temos o
relato de um grupo de alunos e alunas acerca da análise
geopolítica do filme:
A Geoestratégia de Capitão América se torna explícita no momento em que Steve analisa o mapa que o exército da Alemanha
demarcou para atacar os Estados Unidos. Capitão América está
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na Alemanha para libertar alguns soldados, que irão se alinhar
ao exército americano. Esses soldados são de vários países, por
isso, entende-se a influência que os Estados Unidos têm nos
outros países, a partir do momento que Steve chama-os para
entrar na Guerra ao seu lado. (Análise geopolítica feita por um
grupo de alunos do 3º Ano D)
O filme trata de um conflito histórico a partir de
uma abordagem ficcional. Tal abordagem, na percepção
dos estudantes, tem como principal objetivo difundir
uma visão acerca da participação dos Estados Unidos no
conflito, apresentados como defensores da democracia
e da liberdade em detrimento dos alemães, dominados
pelo autoritarismo e pela violência nazista. No seminário, os estudantes estabeleceram também a relação entre
o filme e o contexto de criação do personagem Capitão
América, discutindo o papel desempenhado pela indústria dos quadrinhos no processo de difusão de uma visão
geopolítica de mundo entre os jovens, tanto no contexto
da 2º Guerra Mundial quanto no mundo atual.
Outro elemento de destaque no trecho apresentado anteriormente diz respeito ao reconhecimento da
cartografia como instrumento e linguagem estratégica
na ação geopolítica. Ter acesso ao mapa produzido pelos alemães possibilitaria ao exército dos Estados Unidos
informações privilegiadas que poderiam definir os rumos do conflito. Neste momento, foi possível ampliar o
debate com os estudantes sobre as mudanças ocorridas
na cartografia nas últimas décadas e o papel que a mesma tem desempenhado nos conflitos atuais e na vida
cotidiana, mediando as nossas relações mais próximas
com o território, através de aplicativos que se utilizam
da geolocalização.
Na apresentação do seminário, foi muito interessante perceber como a discussão da visão difundida
a partir do filme fez com que os alunos e alunas estabelecessem inúmeras relações com outros filmes, compreendendo assim o papel da indústria cinematográfica,
principalmente a dos EUA, como importante elemento
estratégico na ordem mundial e como objeto técnico-científico-informacional que só pode ser compreendido
no movimento de produção da totalidade social.
Foram inúmeras as experiências relatadas pelos
estudantes durantes as atividades desenvolvidas neste
trimestre letivo. No entanto, por conta dos limites deste
artigo, não foi possível apresenta-las em sua totalidade.
De qualquer forma, no decorrer da atividade, foi possível perceber como o trabalho com jogos e filmes produz
um efeito de intertextualidade, principalmente com livros e histórias em quadrinhos, fonte de inspiração para
muitos destes jogos e filmes. Neste processo, inúmeras propostas de continuidades da proposta de análise
108
foram trazidas pelos discentes, demonstrando assim as
potencialidades da mediação pedagógica proposta para
o ensino de Geografia. Além disso, a ressignificação do
olhar dos estudantes sobre estes objetos técnico-científicos-informacionais presentes em seu cotidiano e na
mediação com outras escalas espaço-temporais foi um
dos principais avanços obtidos com o desenvolvimento
da atividade. Da neutralidade técnica, tais objetivos passaram a ser concebidos, pelos estudantes, como repletos
de intencionalidade e visões de mundo que remetem aos
interesses hegemônicos dos agentes que os produziram.
E com isso, em nossa perspectiva, os estudantes poderão estabelecer outras relações e práticas sociais com tais
objetivos que continuarão presentes em seu dia-a-dia.
Nestas novas relações, esperamos que a condição espacial destes objetos seja reconhecida pelos estudantes e
que se transformam no caminho de reflexão necessária
para o desenvolvimento do raciocínio geográfico e da
consciência espacial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossa perspectiva, é preciso resgatar o lugar
da criatividade na sala de aula. Em um contexto no qual
avançam mecanismos de controle e burocratização docente, cujos principais efeitos são práticas cada vez menos significativas para professores e alunos, faz-se necessária reafirmar a autonomia da escola e do docente na
proposição, elaboração e execução de materiais e ações
didáticas que possibilitem aos estudantes se apropriarem do mundo atual, em suas diferentes escolas. Para
isso, encontramos no uso de jogos e filmes importantes
elementos de mediação didática para a construção do
raciocínio geográfico.
A partir desta experiência construída, foi possível
verificar uma mudança da relação dos alunos e alunas
com as temáticas de geopolítica no ensino de Geografia.
Neste processo, os discentes passaram a compreender as
diferentes dimensões escalares das estratégias geopolíticas, entendendo, inclusive, o papel dos jogos e filmes
na difusão de certa visão geoestratégia de mundo. Com
isso, é possível perceber um processo de construção do
raciocínio geográfico que pressupõe uma mudança de
olhar a partir da vida cotidiana e que se dá também na
apropriação que os alunos e alunas fazem dos conceitos fundamentais da geografia, como território, região,
espaço, para nomear diferentes fenômenos. Tais conceitos estão expressos tanto nos relatos escritos, quanto nas
apresentações orais realizadas.
Nos trabalhos apresentados foram levantadas as
representações cartográficas dos jogos e filmes direcioGeografia, Ensino & Pesquisa, Vol. 21 (2017), n.3, p. 98-109
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nados para um olhar espacial dentro de uma escala de
análise mundial (a Guerra Fria e Guerra no Afeganistão). Esses resultados foram satisfatórios à medida que
os alunos participaram mais das aulas e começaram a
perceber que os conceitos trabalhados em sala de aula
podem ter uma abordagem que não se restringe ao livro
didático apenas. Em outras palavras, é de grande importância proporcionar situações de aprendizagem que
possa valorizar as referências dos alunos quanto ao uso
dos jogos e filmes.
Em nossa perspectiva, o desenvolvimento do projeto possibilitou aos alunos e alunas pensar a geografia
a partir de diferentes linguagens, presentes no cotidiano
de muitos deles, mas alvo de pouca reflexão geográfica
até o presente momento. Tal reflexão propicia que os
estudantes estabeleçam outras relações com elementos
que continuarão presentes em suas vidas cotidianas. No
entanto, tal relação, para além da dimensão do entretenimento, poderão os ajudar a entender o papel das
diferentes mídias na difusão intencional de determinados valores e visões de mundo. Tal entendimento, em
nossa perspectiva, é fundamental quando pressupomos
um ensino de geografia que tem como principal objetivo
ajudar os estudantes a lerem, compreenderem e transformarem o mundo em que vivem.
Outro elemento a se destacar nesta experiência se
refere a aproximação entre a escola pública e a universidade na proposição de ações e materiais didáticos. Em
dois anos de projeto, foi possível construir um conjunto
de materiais que significam também processos reflexivos de formação continuada e que ajudam na superação
de alguns conflitos que, historicamente, tem marcado
a relação entre estas duas instituições. É fundamental
esta aproximação, uma vez que partimos do pressuposto
de que a formação docente, inicial e continuada, precisa ocorrer no contexto da prática profissional, em um
constante processo de reflexão sob e na prática. A elaboração de materiais e ações didática tem se demonstrado
um importante mediador neste diálogo
De forma geral, com a experiência aqui apresentamos pensamos ter atingido um dos objetivos centrais
na disputa pelo currículo (ARROYO, 2011) no ensino
de geografia na escola pública: estimular as capacidades
de reflexão e criação de cada sujeito envolvido na ação
educativa. Em um momento de profundas ameaças ao
conhecimento geográfico na educação básica, tal constatação é uma das razões pelas quais continuamos a lutar
em defesa da escola pública e por um ensino de geografia cada vez mais significativo para alunos e professores.
109
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ISSN: 2236-4994 DOI: 10.5902/2236499426343
Correspondência do autor:
Eduardo Donizeti Girotto
egirotto@usp.br
David Augusto Santos
davidaugusto295@gmail.com
ARTIGO RECEBIDO EM: 26/03/2017
REVISADO PELO AUTOR EM: 25/10/2017
ACEITO PARA PUBLICAÇÃO EM: 25/10/2017