Formação e atuação da rede de comissários
do Santo Ofício em Minas colonial 1
The making and the actions of the Holy Inquisition
Commissioners’ network in Colonial Minas Gerais
Aldair Carlos Rodrigues*
R
A
Focalizando a atuação dos agentes inquisitoriais, este artigo busca esclarecer
como a Inquisição portuguesa se relacionou com a estrutura eclesiástica de
Minas colonial. A análise se concentra
na formação e na atuação da rede de comissários do Santo Ofício na Capitania
do ouro. Qual era o perfil desses agentes? Como eles eram recrutados entre a
hierarquia eclesiástica local? Que papel
eles desempenhavam na ação inquisitorial ocorrida na capitania mineradora?
De que forma atuavam? Qual a relação
entre a inserção dos comissários nas estruturas eclesiásticas locais e as atividades inquisitoriais desempenhadas por
esses agentes?
Palavras-chave: Inquisição portuguesa;
Minas colonial; agentes inquisitoriais.
Through the study of the action of the
inquisition commissioners, this article
seeks to reveal the relations between the
Portuguese Inquisition and the ecclesiastical structure of the Minas Gerais
State Captaincy in the colonial period.
The focus of the analysis will be the
making and the action of the network of
Holy Inquisition commissioners in the
gold Captaincy. What was the profile of
these commissioners? How were they
recruited from the local ecclesiastical
hierarchy? What was the role assigned
to them in the inquisitional action that
took place in Minas Gerais? How did
they act? What was the relationship between the introduction of the commissioners into the local ecclesiastical
structures and the commissioners’ inquisitorial activities?
Keywords: Portuguese Inquisition; Colonial Minas; Inquisitorial officials.
* Historiador (UFOP), Mestre e doutorando em História Social (FFLCH/USP), bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – Av. Prof. Mello Moraes,
1235, Bloco C, ap. 602 – Butantã. 05508-030 São Paulo – SP – Brasil. aldairr@yahoo.com.br.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57, p. 145-164 - 2009
Aldair Carlos Rodrigues
A M:
Diferentemente do que ocorrera nas colônias espanholas, no Brasil não
existiu uma sede do Tribunal do Santo Ofício, apesar da malograda tentativa
do seu estabelecimento no período filipino. Com efeito, a Colônia ficou sob a
égide da Inquisição de Lisboa, que exercia jurisdição também sobre outras
partes do Império luso: as Ilhas Atlânticas, Norte e porção ocidental da África. O único Tribunal instalado no Ultramar português foi o de Goa.2
Apesar de nunca ter tido uma sede na Colônia, a Inquisição portuguesa
agiu aqui por meio de diversas estratégias, que variaram no tempo e no espaço. As visitações, a colaboração dos bispos e das ordens regulares (sobretudo
a Companhia de Jesus), a justiça eclesiástica e uma rede de agentes, composta
principalmente por comissários e familiares, foram os principais mecanismos
utilizados pelo Santo Ofício para atingir o Brasil.
No final do século XVI, a Inquisição passou a enviar visitações à América
portuguesa. Realizada pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça entre
1591 e 1595, a primeira delas atingiu as capitanias da Bahia, Pernambuco e
Paraíba. A Bahia seria novamente visitada entre 1618 e 1621 por Marcos Teixeira. Ainda na década de 1620, embora a documentação seja mais escassa,
temos notícia duma outra Visitação que percorreu o Brasil, passando pelo
Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santos e São Paulo. No caso desta última, apesar de várias denúncias recebidas, apenas uma pessoa foi processada, Izabel
Mendes, acusada de Judaísmo.3
As visitações ocorridas no Brasil durante o final do século XVI e início
do XVII integram um contexto maior em que outras áreas do lado atlântico
do Império foram também visitadas: Açores em 1575-1576, Açores e Madeira
em 1591-1593 e 1618-1619, Angola em 1561-1562, 1589-1591 e 1596-1598.
Essa estratégia de ação do Santo Ofício através das visitações foi utilizada sobretudo no século XVI e na primeira metade da centúria seguinte. A partir
desse período as visitações entram em decadência. Sobre essa matéria, concordamos com Bethencourt, para quem a Visitação do Santo Ofício ao Estado
do Grão-Pará, ocorrida entre 1763-1769, foi “excepcional sob todos os pontos
de vista”.4
Concomitante ao declínio das visitações, notamos um crescimento do
número das habilitações de agentes inquisitoriais expedidas pelo Santo Ofício, cujo ápice foi atingido no século XVIII. Isso significa que a Inquisição foi
mudando sua estratégia, passando a se apoiar cada vez mais na rede de agen146
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
tes próprios composta principalmente por comissários, notários, qualificadores e familiares. Essa expansão da hierarquia inquisitorial pode ser observada
na Tabela 1, cujos dados excluem os familiares — dos quais não trataremos
por ora —, mas adiantamos que a difusão de sua rede seguiu a mesma tendência geral verificada para os outros agentes.
Tabela 1 – Expansão dos quadros burocráticos inquisitoriais
Período
Deputados e
Inquisidores
Qualificadores
Não
especificados
–
38
47
–
Comissários Notários
1580-1620
132
1621-1670
297
–
117
110
–
1671-1720
637
14
94
287
33
1721-1770
1.011
404
119
419
20
1771-1820
484
189
62
62
1
Fonte: TORRES, José Veiga. Da repressão à promoção social: a Inquisição como instância
legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. Revista Crítica de Ciências Sociais, v.40,
out. 1994, p.105-135. p.130.
A atuação do Santo Ofício em Minas Gerais, cujo povoamento e colonização ocorreu no Setecentos, se insere nesse contexto de desaparecimento há
muito tempo das visitações inquisitoriais e crescimento da rede de agentes do
Santo Ofício. A engrenagem inquisitorial que permitiu a atuação do Tribunal
de Lisboa na Capitania era composta por três grupos de agentes: os comissários, os notários e os familiares. Além dessa rede — e integrada a ela — foi
relevante a complexa articulação ocorrida entre as instâncias da justiça eclesiástica existentes na Capitania e o Santo Ofício.
A ocupação de cada um dos postos da hierarquia inquisitorial exigia requisitos específicos, e cada um dos grupos de agentes possuía um perfil. Os
familiares, por exemplo, não precisavam ser eclesiásticos, bastava terem limpeza de sangue, saber ler e escrever e ter algum recurso. Além disso, o número
de componentes das redes variava de acordo com as funções de cada cargo.
Levantamentos realizados nos livros de provisões da Inquisição de Lisboa revelam que a capitania de Minas, ao longo do século XVIII, contou com 457
familiares, 22 comissários e 8 notários.5 Nos limites deste artigo, tais variações
e especificidades impedem a realização de um estudo sistemático para cada
um desses grupos de oficiais do Santo Ofício. Portanto, o enfoque deste trabalho recairá sobre os comissários presentes em Minas: seu recrutamento, perfil
Junho de 2009
147
Aldair Carlos Rodrigues
e atuação. Essas problemáticas serão desenvolvidas, em diferentes momentos
da análise, pelo viés da inserção dos comissários nas estruturas eclesiásticas
locais.
O recorte adotado neste texto se justifica também pela posição chave que
os comissários desempenhavam na Colônia. Na capitania do ouro, atuando de
diversas maneiras, esses agentes constituíram um mecanismo fundamental para o funcionamento da engrenagem inquisitorial, pois eles eram a autoridade
inquisitorial máxima na Colônia e acabavam desempenhando funções catalisadoras nas regiões em que atuavam. Na hierarquia dos oficiais da Inquisição,
os comissários se subordinavam diretamente aos Inquisidores de Lisboa.
Esclarecer as questões em xeque neste artigo é um passo importante para
o conhecimento do aspecto institucional da atuação do Santo Ofício em Minas Gerais, tema ainda carente de estudos sistemáticos na historiografia brasileira.
E I:
M
Além das qualidades exigidas para todos os postos inquisitoriais — ser
cristão-velho, sem ascendente condenado pela Inquisição, ter bons costumes
—, a ocupação do cargo de comissário tinha como requisitos que os candidatos fossem “pessoas eclesiásticas, de prudência e virtude conhecida, e achandose letrados serão preferidos”. Era dada preferência aos que fossem letrados. As
principais funções desses agentes eram ouvir testemunhas nos processos de
réus, realizar contraditas, coletar depoimentos nos expedientes de habilitação
de agentes inquisitoriais, fazer prisões e organizar a condução dos presos e vigiar os condenados que cumprissem pena de degredo nas áreas de sua atuação.
Como os comissários não atuavam na sede dos tribunais inquisitoriais e acumulavam o cargo com outras atividades desempenhadas na qualidade de eclesiásticos, eles integravam o grupo de agentes inquisitoriais que não recebiam
um salário fixo da Inquisição: ganhavam seis tostões por dia de trabalho.6
No contexto de expansão de toda a hierarquia de agentes inquisitoriais
mostrado na Tabela 1, a rede de comissários do Santo Ofício começou a ganhar fôlego nas últimas décadas do século XVII. O seu ápice foi atingido no
século XVIII, quando alcançou a cifra de 1.011 habilitações no período que
148
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
vai de 1721 a 1770, um aumento de 374 agentes em relação aos cinquenta
anos anteriores (quando eram 637).
De maneira geral, pouco se sabe sobre a rede de comissários presentes e
atuantes na América portuguesa. Luiz Mott tem sido pioneiro ao chamar
atenção para a necessidade de se estudar esse aspecto da ação inquisitorial
ocorrida na Colônia.7
Até o momento, contamos com dados de alcance regional sobre as redes
de comissários. Em um levantamento incompleto, Sônia Siqueira encontrou
80 comissários para as capitanias de Bahia e Pernambuco, distribuídos da seguinte forma: 8 no século XVII, sendo 6 para a Bahia e 2 para Pernambuco; 67
no século XVIII, sendo 36 para a primeira e 31 para a última, e 5 no século
XIX, dois deles para a Bahia e 3 para Pernambuco. Já Wadsworth, num estudo exaustivo para Pernambuco, entre 1611 e 1820, encontrou 68 comissários,
além de 62 notários e 14 qualificadores.8
No caso da Capitania de Minas Gerais, Wadsworth cita a existência de 13
comissários. Porém, pesquisando em diversas fontes, sobretudo nos Livros
dos Termos de Provisões e Juramentos da Inquisição de Lisboa, encontramos
23, cuja distribuição por comarcas era a seguinte: Vila Rica — que abrigava
Mariana, a sede do Bispado —, 13; Rio das Velhas, 5; Rio das Mortes, 3 e, por
último, Serro do Frio, 1. A evolução dessa rede por período, comarca e freguesia pode ser observada no Quadro 1.
Para além do desenvolvimento econômico e social da região, a montagem da rede de comissários em Minas está ligada à estruturação da instituição
eclesiástica no território da Capitania pós-1745-1748. Essa constatação pode
ser explicada se considerarmos que um dos requisitos para a ocupação do
cargo de comissário era o candidato ser eclesiástico e, nessa qualidade, geralmente possuir algum benefício (até onde sabemos, 14 dos comissários da Capitania tinham benefício). Dos 22 habilitados, 16 tiveram suas patentes expedidas depois da criação do Bispado de Mariana — ocorrida em 1745-1748.
Esse evento atraiu para Minas um clero mais bem formado, mais ambicioso
por subir na carreira e assentado em benefícios eclesiásticos.
No território minerador, as Ordens Regulares foram proibidas de se estabelecerem oficialmente, sendo alvo de uma política da Coroa que cerceava a
sua presença e atuação na região.9 Dada a fraca presença oficial dos clérigos
regulares em Minas — no sentido de “sedentarizados” institucionalmente, de
modo que a Inquisição pudesse neles se apoiar —, os comissários só poderiam
ser recrutados entre os membros da hierarquia eclesiástica secular.
Junho de 2009
149
Aldair Carlos Rodrigues
Quadro 1 – Habilitação de comissários
do Santo Ofício em Minas (século XVIII)
Ano
Comarca (secular)
Freguesia
1724
Vila Rica
Mariana
1726
Rio das Velhas
Morro Grande
1729
Rio das Velhas
Rio das Pedras
1730
Vila Rica
Vila Rica
1733
Rio das Velhas
Raposos
1733
Vila Rica
Mariana
1747
Vila Rica
Mariana
1748
Vila Rica
Vila Rica
1749
Rio das Velhas
Sabará
1749
Vila Rica
Mariana
1752
Rio das Mortes
Piedade da Borda do Campo
1752
Rio das Velhas
Vila Nova da Rainha
1754
Vila Rica
Sumidouro
1758
Vila Rica
Mariana
1758
Serro Frio
Vila do Príncipe
1760
Rio das Mortes
São João Del Rei
1763
Vila Rica
Furquim
1765
Vila Rica
Vila Rica
1766
Vila Rica
Mariana
1766
Rio das Mortes
Prados
1769
Vila Rica
Vila Rica
1798
Vila Rica
Mariana
Fonte: IANTT, HSO; IL, Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv. 104-123. Este
quadro leva em conta os dados referentes ao momento de conclusão da habilitação dos
comissários.
Com exceção de Minas, nas outras regiões sob sua jurisdição a Inquisição eventualmente se apoiava no clero das Ordens Regulares, sobretudo nos
padres da Companhia de Jesus. Esse fato pode ser facilmente verificado se
150
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
observarmos os destinatários das correspondências do Santo Ofício dirigidas
à Colônia. No Rio de Janeiro, por exemplo, várias comissões eram enviadas
ao comissário Estevão Gandolfe, membro da Companhia de Jesus.10 Em São
Paulo, os reitores do Colégio dos Jesuítas também se faziam de comissários da
Inquisição. Eles eram encarregados de executar diligências mesmo que não
tivessem se habilitado formalmente como agentes inquisitoriais.11
Segundo Feitler, no Nordeste, entre 1702 e 1729, os jesuítas foram os
correspondentes privilegiados dos inquisidores nas regiões de Pernambuco e
Paraíba, apesar de o Tribunal já contar com a participação de agentes próprios na ação inquisitorial que ali se desenrolava. Essa relação já vinha desde
o período da Sé Vacante de Olinda (1693-1697), quando o reitor do Colégio
dos Jesuítas, Felipe Coelho, era o principal destinatário das correspondências
que a Inquisição endereçava àquela região.12
Na África, a partir do século XVII, Filipa Ribeiro da Silva encontrou colaboradores da Inquisição entre os franciscanos nas regiões de Cabo Verde e
da Guiné e, no caso de São Tomé e Príncipe, capuchinhos italianos e agostinhos descalços.13 Tanto na África Ocidental como na América portuguesa —
mesmo que não fosse de forma prioritária e variasse de acordo com o contexto — havia uma relação entre os regulares, a estrutura eclesiástica e o Santo
Ofício.
Em Minas não havia essa relação, por isso a criação do Bispado e a decorrente atração de um clero mais bem qualificado para a Capitania teve influência no recrutamento da rede de comissários e na ação inquisitorial ocorrida
na região.
Ao analisar a inserção dos comissários no espaço eclesiástico da capitania mineradora, notamos que eles se situavam numa hierarquia, tanto no momento da habilitação como — nos casos para os quais dispomos de informações — nos cargos que iam ocupando ao longo de suas carreiras. Alguns
acumulam postos dentro do Cabido, outros atingem a colocação máxima do
Juízo Eclesiástico — vigário-geral —, e havia também os que não passavam de
simples vigários ou párocos.
Junho de 2009
151
Aldair Carlos Rodrigues
Quadro 2 – Cargos ocupados pelos comissários
na esfera eclesiástica (por ano de habilitação)
Nome
Ano de
habilitação
Formação
universitária
Cargos ocupados
no momento e depois
da habilitação
Francisco Ribeiro
Barbas
1724
Vigário da Vara de Ribeirão
do Carmo
José Pinto da Mota
1726
Vigário Encomendado
João Soares Brandão
1729
Vigário Colado
Manuel Freire Batalha
1730
José Matias de Gouveia
1733
Vigário Colado
Jose Simões
1733
Vigário Colado
Geraldo José de
Abranches
1747
Bacharel em
Cânones
Vigário-geral, Provisor,
comissário geral da bula
da Santa Cruzada
Felix Simões de Paiva
1748
Bacharel em
Cânones
Comissário da Bula da Cruzada,
Vigário da Vara de Vila Rica,
Visitador Episcopal
Bacharel em
Cânones
Visitador Episcopal,
Mestre-Escola no RJ (1742),
Deão no RJ (1756)
Inácio Correia de Sá
1749
Bacharel em
Cânones
Vigário da Vara de Vila Rica,
Procurador e Governador do
Bispado, Vigário Capitular,
Vigário-geral, cônego Doutoral,
Tesoureiro-mor
Lourenço José de
Queiroz Coimbra
1749
Bacharel em
Cânones
Vigário Colado, Procurador e
Governador do Bispado,
Visitador Episcopal
Feliciano Pita de Castro
1752
Henrique Pereira
1752
Bacharel em
Cânones
Vigário
Manoel Nunes de Souza
1754
Bacharel em
Cânones
Vigário
Manoel Cardoso Frasão
Castelo Branco
1758
Bacharel em
Cânones
Vigário da Vara do Serro Frio,
Vigário da Vara de Vila Rica,
Arcipreste e Vigário-geral
Vigário colado
continua
152
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
continuação
1758
Bacharel em
Cânones
Cônego e Tesoureiro-mor,
Vigário-geral, Governador do
Bispado, Reitor do Seminário
de Mariana, Visitador Episcopal
Jose Sobral e Souza
1760
Bacharel em
Cânones
Vigário da Vara de São João
Del Rei
João de Sá e
Vasconcelos
1763
Nicolau Gomes Xavier
1765
Teodoro Ferreira
Jacome
João Roiz Cordeiro
1766
Manoel Martins de
Carvalho
1766
João de Oliveira
Guimarães
1769
Manuel Arcúsio
Nunam Pereira
1798
Vigário Colado
Vigário
Bacharel em
Cânones
Cônego Magistral
Vigário Colado
Bacharel em
Cânones
Vigário Colado
Cônego prebendado
Fonte: IANTT, HSO; IANTT, IL, Provisões de nomeação e termos de juramentos (livros 104123). Sobre os cargos na hierarquia, a informação consta em: TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese
de Mariana: subsídios para sua História. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953. v.I; CHIZOTI,
Geraldo. O Cabido de Mariana (1747-1820). Franca, 1984. Dissertação (Mestrado) – Unesp.
A relação entre o desenvolvimento da rede de comissários e a criação do
Bispado de Mariana pode ser constatada também com base na análise dos
registros das correspondências enviadas pela Inquisição às Minas — que abarcam todo o século XVIII, exceto a década de 1770. Quando analisamos a data
de envio das diligências, notamos que antes de 1745-1748 quase não houve
comissão encaminhada aos comissários e aos outros clérigos residentes na
Capitania.14 Do total de 122 registros, apenas em 14 encontramos correspondências enviadas para a Capitania antes da entrada de Dom Frei Manuel da
Cruz na Sé de Mariana.
Quanto aos destinatários das correspondências, a análise revela que a
tendência era a Inquisição dar prioridade aos comissários de melhor formação — geralmente preferindo os bacharéis em cânones —, que ocupavam os
postos mais elevados na hierarquia eclesiástica da Capitania. No cômputo geral de 122 registros de correspondências enviadas às Minas, abarcando o século XVIII, os comissários foram os destinatários de 102 delas. Destacando
esse grupo, observamos que Inácio Correia de Sá — bacharel em cânones que
Junho de 2009
153
Aldair Carlos Rodrigues
ocupou, ao longo de sua carreira, o posto de vigário da vara de Vila Rica, cônego da Sé de Mariana, vigário-geral e tesoureiro-mor — foi o que mais contou com a confiança dos inquisidores, pois a ele foram encaminhadas 25 diligências, entre 1754 e 1768.
Além dos cargos já citados, Inácio Correia de Sá exerceu ainda um papel
importante quando tomou posse como procurador do novo Bispo de Mariana, Dom Frei Domingos da Encarnação Pontevel, em 29 de agosto de 1779. O
comissário governou o Bispado até 25 de fevereiro de 1780, data em que o
prelado — de quem ele era procurador — chegou para tomar posse na Sé de
Mariana.15 O fato de Inácio Correia de Sá ter uma boa formação acadêmica
— bacharel em cânones — e ter ocupado cargos chave na hierarquia eclesiástica do Bispado teve influência direta no número de comissões que a Inquisição lhe enviou.
Além da importância dada pela Inquisição aos indivíduos que ocupavam
o topo da hierarquia eclesiástica local, certamente havia um interesse por parte do alto clero da Capitania em servir à Inquisição. Ser agente do Santo Ofício era uma forma de se obter prestígio e, além disso, poder ascender na própria hierarquia clerical, ou até mesmo na inquisitorial. No caso daqueles que
tinham ambição de ascender nos quadros da Igreja, ter serviços prestados ao
Santo Ofício no curriculum poderia ser um elemento importante para a concretização de seus anseios.
O segundo comissário de Minas para quem mais os inquisidores encaminharam diligências (16, entre 1751 e 1781) foi Lourenço José de Queiroz
Coimbra que, assim como Inácio Correia de Sá, era bacharel em cânones. De
origem minhota, veio para o Rio de Janeiro em 1734 e, com apenas 23 anos,
D. Frei de Guadalupe o fez vigário colado de Sabará. Em 1748, no ano da instalação do Bispado de Mariana, Coimbra exerceu papel fundamental ao governar interinamente a nova Diocese por nove meses, preparando a chegada
de Dom Frei Manuel da Cruz. Segundo Raimundo Trindade, Coimbra partira
de Sabará em 25 de fevereiro de 1748 e chegou a Mariana no dia 27, “seguido
de mais de mil cavaleiros, do ouvidor de sua comarca e de numeroso Clero,
gente luzida que, vestida de gala, em vistosa tropa, o acompanhou à Cidade”.
Ao regressar para Sabará, de onde havia saído como vigário colado, voltava,
nomeado pelo novo bispo, como vigário da vara — ocupação geralmente re154
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
servada a clérigos bacharéis em cânones — daquela Comarca eclesiástica, onde residiria até sua morte.16
Além dos dois comissários referidos, destinatários de boa parte das correspondências dirigidas às Minas, outros 14 — num universo de 22 — foram
incumbidos de realizar diligências para a Inquisição de Lisboa. Manuel Freire
Batalha — bacharel em cânones e com experiência de visitador episcopal —,
entre 1732 e 1741, foi encarregado de 12 diligências. O bacharel em cânones
Félix Simões de Paiva — que tinha experiência precedente no cargo de provisor e vigário-geral em Mazagão, vigário da vara em Vila Rica e visitador episcopal —, foi responsável, entre 1748 e 1758, por 12 diligências. Teodoro Ferreira Jacome, também bacharel em cânones, entre 1760 e 1764, foi responsável
por 6 comissões. Este, além dos cargos no cabido de Mariana, tinha sido visitador episcopal e promotor eclesiástico da vigaria da vara de Vila Rica. O bacharel em cânones José Sobral, entre 1761 e 1766, ficou com 6 diligências;
Geraldo José de Abranches, entre 1749 e 1753, recebeu 6 comissões; Nicolau
Gomes Xavier, entre 1795 e 1801, ficou com 5; Feliciano Pita de Castro, entre
1754 e 1764, 5. Quanto a outro grupo de 5 comissários, geralmente com baixa
formação e sem cargos importantes, foi encaminhada apenas 1 correspondência para cada um.
O destino mais frequente das correspondências, cujo conteúdo se referia,
em geral, à execução de diligências, era a sede do Bispado, seguida da Comarca de Sabará, Vila Rica e São João Del Rei. Se em Mariana as diligências eram
encaminhadas sobretudo aos comissários com postos no Cabido ou na justiça
eclesiástica, fora da sede episcopal era dada preferência aos comissários que
ocupavam os postos de vigário da vara, caso, por exemplo, de Sabará e São
João Del Rei.
Outros dois “assuntos” eram responsáveis pelo fluxo das correspondências entre a Inquisição e as autoridades eclesiásticas de Minas. Primeiramente,
temos a demanda por habilitação de familiares do Santo Ofício e, depois, o
funcionamento da engrenagem que havia gerado denúncias e sumários cujos
desdobramentos resultaram em investigações e mandados diversos para apuração dos casos. Veja-se o universo de 110 registros de correspondências referentes a Minas, na Tabela 2.
Junho de 2009
155
Aldair Carlos Rodrigues
156
Tabela 2 – Assunto das correspondências enviadas a Minas
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Período
Habilitação
de Familiar
Ordem
de prisão
Ordem
de
soltura
Instruções
a agentes
Investigação /
Sumários
Repreensão a
agentes
Carta ao
Cabido
Envio
de editais
da fé
Total
1731-1740
9
4
0
0
4
0
0
1
18
1741-1750
8
3
0
0
3
0
0
0
14
1751-1760
25
7
1
1
10
1
0
0
45
1761-1770
32
1
2
0
10
3
2
0
50
1771-1780
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1781-1790
0
0
0
0
2
0
0
0
2
1791-1800
3
2
1
0
13
0
0
0
19
1801-1810
0
1
0
0
0
0
0
0
1
Total Geral
77
18
4
1
42
4
2
1
Fonte: IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livros 19-24.
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
Um importante dado a ser observado na Tabela 2 é a coincidência entre as
diligências tocantes a “habilitação de familiares” e a “investigação/sumários”
concentrados entre as décadas de 1750 e 1770. José Veiga Torres afirma que a
expansão do quadro de comissários, bem como de outros cargos da Inquisição
portuguesa, visava acompanhar a demanda por habilitações ao cargo de familiar do Santo Ofício. Os comissários exerceriam atividades relacionadas à burocracia da habilitação, sobretudo os interrogatórios. Essa constatação corroboraria a tese do autor de que a Inquisição deixou a repressão para trabalhar
sobretudo na promoção social a partir das últimas décadas do século XVII.
No tocante à repressão, o autor se baseou na queda do número de sentenciados, e, quanto à promoção social, ancorou-se no extraordinário aumento do número de Familiaturas. No caso de Minas, a evolução da rede de comissários acompanhou, de modo geral, a tendência observada para Portugal
continental e o Império. A maior parte dos registros de correspondências endereçadas à Capitania é relativa à habilitação de familiares, portanto, a formação da rede de comissários acompanhou a evolução da rede de familiares.
Além disso, o número de diligências referentes a mandados de prisão, sumários, contraditas, investigações e inquéritos, de modo geral, concentra-se também entre as décadas de 1750 e 1770.
Portanto, no caso de Minas, os comissários não estavam apenas atuando
nas habilitações ao cargo de familiar, embora essa fosse a atividade que mais
exercessem em nome da Inquisição. O período em que os comissários da Capitania mais se ocuparam da habilitação de familiares do Santo Ofício foi
também aquele em que mais exerceram atividades relativas à ação repressiva
do Tribunal.
C :
M F B
As primeiras informações disponíveis sobre a atuação dos comissários
em Minas datam da década de 1730. Antes desse período, conforme vimos na
Tabela 2, nenhuma correspondência endereçada à Capitania foi encontrada
no Registro Geral do Expediente. Nos Cadernos do Promotor — importante
conjunto documental que funcionava como um depositário de denúncias e
sumários de uma grande variedade de delitos —, as informações acerca da
atuação inquisitorial na Capitania mineradora também são muito escassas
para os vinte primeiros anos do Setecentos.
Junho de 2009
157
Aldair Carlos Rodrigues
Na década de 1730, encontramos Manuel Freire Batalha, cuja residência
ficava na Cabeça da Capitania, atuando como o principal comissário de Minas. Era bacharel formado em cânones e se habilitou ao cargo de agente da
Inquisição em 1730, quando atuava como pároco em Vila Rica. Batalha era
bastante ativo na região, tanto que foi visitador diocesano um ano antes de
sua habilitação e também em 1730, quando já era comissário, tendo percorrido várias freguesias da Comarca do Rio das Mortes e de Vila Rica.17
Manuel Freire Batalha foi um esteio importante para a ação inquisitorial
nas Minas durante a década de 1730, período em que os habitantes da Capitania processados pela Inquisição, cristãos-novos em sua maioria, receberam
duras penas.18 Nos 14 registros das correspondências enviadas pela Inquisição
de Lisboa às Minas antes da criação do Bispado de Mariana consta que Batalha foi o destinatário de 12 delas.19 José Simões, comissário e vigário da vara
de Mariana, foi incumbido das outras duas diligências.
A primeira referência a Minas no registro das correspondências aparece
no ano de 1732 em carta enviada ao comissário do Rio, Lourenço de Valadares Vieira. Nesta, ordenava-se o envio do retrato de Miguel de Mendonça
Valladolid, condenado à pena capital pela Inquisição, para que fosse “posto
na freguesia onde era morador sobre a portada da Igreja da parte de dentro”.
Embora não tenha sido explicitado o destinatário da diligência, tudo indica
que ela fora enviada a Manuel Freire Batalha.20
Em setembro de 1732 encontramos outra correspondência referente a
Minas, desta vez especificando que era destinada ao “comissário das Minas
Gerais ou alguma pessoa de confiança”. Na diligência havia três mandados de
prisão, com sequestro de bens, referentes a Manoel Gomes de Carvalho, Manoel de Matos Dias e Manoel da Costa Ribeiro. Além disso, trazia o retrato de
Diogo Correa do Vale, condenado à pena capital pela Inquisição, para que
fosse colocado “na Igreja principal das Minas de Ouro Preto em cima da porta da parte de dentro”. Junto da comissão, iam também os interrogatórios da
habilitação de João Moreira de Carvalho ao cargo de familiar do Santo Ofício.21 É muito provável que Batalha tenha sido o responsável por essas diligências, já que era o único comissário residente em Vila Rica naquele momento.
Em 30 de outubro de 1733, outra correspondência com destino às Minas
foi registrada, ficando agora explícito que o destinatário era o comissário Manuel Freire Batalha. Nesta, eram remetidos dez mandados de prisão, além de
comissão para ratificar testemunhas do sumário que tinha sido enviado por
aquele comissário ao Tribunal de Lisboa contra João de Moraes Leitão, acusa158
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
do de ter confessado sem ordens. Novamente, eram enviadas diligências relacionadas a habilitações de familiares.22
Em resposta a essa comissão, Batalha escreveu à Inquisição, no ano seguinte, uma longa carta de oito fólios, na qual oferece um panorama geral da
ação inquisitorial nas Minas até aquele momento, terras onde, em sua opinião, “soava de mui longe a voz do Santo Ofício”.23
Além da carta de seu punho, o comissário remeteu em anexo uma lista
elaborada pelo tesoureiro do Fisco Real, contendo o nome de 16 réus das Minas, quase todos cristãos-novos, que haviam sido presos e tiveram seus bens
confiscados, cujo valor líquido total somava 21:892$775 (21 contos, 892 mil e
775 réis), uma verdadeira fortuna.
Na referida carta, além de tratar de problemas relacionados ao juízo do
fisco e aos familiares do Santo Ofício, o comissário dava conta de prisões ordenadas pela Inquisição e réus a serem enviados ao Santo Ofício, como, por
exemplo, Ana do Vale, Helena do Vale e João de Morais Leitão. Em um dos
inúmeros parágrafos, o comissário especificamente reclamava de sua baixa
remuneração diante dos altos custos dos mantimentos e da vida nas Minas,
argumentando a respeito:
só por exemplo (por não irmos mais longe; pois não o estamos ainda da quaresma) basta dizer a V Em.a que sendo os regalos dela um pouco de bacalhau, que
mais ofende o olfato, do que lisonjeia o paladar custam tanto duas libras só dele,
como pode custar uma arroba da mais singular da nossa Corte, um frasco de
azeite dezoito tostões, um de vinagre o mesmo, um de vinho outro tanto, um
alqueire de milho doze, ou quinze tostões, quando barato, que custa seis vinténs
dentro em Lisboa, um de farinha, que é o pão comum, dezoito e vinte e mais, um
pão como o de dez[r] do Reino oito vinténs, umas casas, e não das de melhores
cômodos duas, três e quatro moedas cada mês...
Depois da reclamação, o comissário informava aos inquisidores sobre os
seus esforços para executar os vários mandados da Inquisição que paravam
em suas mãos. Sobre isso, ele escrevia: “estou conservando correspondências
por todos estes sertões com as pessoas em que considero inteligência para
qualquer emprego”. Uma das pessoas em questão era o superintendente das
Minas Novas, região na qual se encontravam alguns refugiados da Inquisição.
Além do superintendente, Batalha informou que mantinha correspondência
com os “Goiazes”, onde alguns acusados haviam se refugiado.
Em sua carta, Batalha relatava aos inquisidores a dificuldade de se cumJunho de 2009
159
Aldair Carlos Rodrigues
prirem todas as diligências dada a dispersão dos réus pelas Minas, afirmando
que “outros se acham mortos e outros tão penetrados em os sertões que é
quase impraticável dar lhe alcance”.
Ao final da carta, o comissário aborda a questão da via pela qual as correspondências e notícias sobre a Inquisição chegavam à capitania mineradora. Ele pedia ao Tribunal que as cartas e mandados de prisão passassem a ser
enviados por meio das bolsas da Secretaria de Estado com os “pregos de El
Rei, que vêm para o governador das Minas, porque estes os trazem de fora da
barra os capitães do Rio, que já tem próprio a espera e são os primeiros que
partem”.
O argumento para que as correspondências viessem por tal via era que,
do contrário, chegavam às Minas 10 ou 12 dias depois de chegarem as primeiras cartas vindas na frota recém-aportada no Rio de Janeiro. Estas, que chegavam primeiro, traziam as listas e relatos dos autos de fé “ou notícias, que
põem de acordo aos cúmplices para se retirarem”. Chegando, então, as notícias da possibilidade da perseguição que o Santo Ofício lhes movia, os réus e
acusados tinham mais tempo para fugir, já que as cartas da Inquisição ao comissário não eram as primeiras a chegar às Minas.
Foi o que aconteceu com o denunciado João Roiz Mesquita que, vindo
do Serro um dia antes de as cartas chegarem às mãos de Manuel Freire Batalha, fugiu para o Rio de Janeiro “com bastante cabedal”, segundo informava o
comissário.
Apesar de termos localizado somente uma dessas correspondências de
natureza excepcional e de caráter bastante pessoal, em que um comissário das
Minas escreve ao Tribunal de Lisboa dando informações muito diversificadas
e amplas, a mesma carta faz referência a diversas outras, indicando-nos que
havia uma importante troca de correspondências entre a Inquisição e seus
agentes.
Nesse exemplo do comissário Batalha notamos que do lado de lá do
Atlântico vinham mandados para se fazerem diligências diversas, ordens de
prisão, inquéritos, sequestros e confiscos de bens, listas de autos de fé e retratos de réus para serem pendurados nas igrejas das freguesias dos condenados.
Da parte de cá, eram dadas informações ao Tribunal sobre o paradeiro dos
perseguidos, o apoio das autoridades locais na perseguição dos réus, a relação
do Santo Ofício com outras instituições nas Minas, as deficiências da máquina inquisitorial que funcionava na região e sugestões de melhoria.
Dando continuidade ao rastreamento da comunicação do comissário Batalha com a Inquisição de Lisboa, após quase uma década sem registro de
160
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
correspondências dirigidas às Minas, encontramos uma carta, datada de 16 de
janeiro de 1742. Através dela eram remetidos dois mandados de prisão contra
Manoel Pinheiro de Oliveira e o padre Antônio Alves Pegas, além de uma
comissão de investigação contra João de Lemos Saldanha, acusado de bigamia. Verifica-se, nesse ponto, o aumento do número de diligências relacionadas à habilitação de familiares. Na referida correspondência aparecem onze
habilitandos cujos processos estavam em andamento.24
Mas Manuel Freire Batalha não se limitava a executar as ordens que vinham de Lisboa. Nos Cadernos do Promotor, podemos encontrar várias denúncias que foram feitas a ele e encaminhadas ao Santo Ofício, algumas vindas do Tejuco, freguesia distante de Vila Rica. Nessa documentação também
encontramos o comissário Batalha realizando sumários e enviando-os para
Portugal. Em 1742, por exemplo, foi responsável por realizar o sumário contra Domingos Morato, morador na freguesia de Catas Altas, Termo de Mariana, por ter feito desacatos a imagens.25
A partir daquele ano Batalha aparece na documentação inquisitorial
atuando no Rio de Janeiro, e em 1748 o vigário Félix Simões de Paiva já ocupava seu posto de comissário em Vila Rica. O novo comissário recebeu diversas comissões referentes à habilitação de familiares do Santo Ofício e uma
diligência contra o Frei Francisco de Santana.26
Até a criação do Bispado de Mariana, em 1745-1748, Batalha foi, sem dúvida, o comissário mais importante em Minas, e para ele convergia muito do
que ocorria na Capitania, relacionado à Inquisição. Como vimos, até denúncias de freguesias longínquas lhes eram encaminhadas. Essa convergência era
tributária do fato de esse comissário residir na sede administrativa da Capitania. As vias de comunicação, tanto para o que vinha do Reino como para o que
vinha das diversas freguesias de Minas, concorriam para lá. Os locais de entreposto administrativo e entreposto inquisitorial se confundiam em Vila Rica.
Conforme verificamos detalhadamente, e não é demais frisá-lo, após a
criação do Bispado de Mariana os comissários residentes na sede episcopal
foram os que ganharam mais importância na perspectiva do Tribunal lisboeta
no momento do envio de diligências a serem realizadas em Minas. Ocupando
o lugar de cabeça eclesiástica da capitania, os assuntos relacionados à Inquisição agora passaram a convergir para Mariana e com mais intensidade. Uma
das evidências desse fato é que Inácio Correia de Sá, como já foi dito, desde
quando desempenhou a função de cônego do Cabido até quando ocupou o
posto de vigário-geral, foi o comissário para quem a Inquisição mais enviou
correspondências em Minas.
Junho de 2009
161
Aldair Carlos Rodrigues
Se nos registros das correspondências notamos mais os comissários recebendo diligências a serem feitas, nos Cadernos do Promotor podemos verificá-los atuando sobretudo nas denúncias. Nessa documentação, podemos
conferir com mais clareza o grau de envolvimento da população das Minas
com a máquina inquisitorial e a intermediação exercida pelos comissários.
Quando as pessoas, por diversos motivos, sentiam necessidade de fazer
denúncias ao Tribunal do Santo Ofício, recorriam aos comissários. Esta foi a
via mais utilizada por aqueles que foram à Inquisição com o objetivo de delatar.
Luis da Costa Ataíde, por exemplo, procedeu dessa forma quando, em 1770,
denunciou Ana Jorge por cometer desacatos com imagens católicas ao comissário de Mariana, João Roiz Cordeiro. Em 4 de abril de 1776, Rita de Souza,
moradora de Nossa Senhora das Congonhas do Sabará, denunciou José, de nação nagô, ao comissário da freguesia de Raposos, Nicolau Gomes Xavier, por
estar envolvido em práticas supersticiosas com suspeitas de feitiçaria.27
Não era só para denunciar a terceiros que as pessoas procuravam os comissários; também o faziam com o intuito de se autodenunciarem — para
“descarga de suas consciências”. Assim fez Manoel Coelho de Souza, em 1772,
morador na freguesia de Antônio Pereira, quando se denunciou ao comissário João Roiz Cordeiro, por ter procurado benzeduras. Outro que se autodenunciou ao dito comissário foi Francisco, escravo Banguela, em 3 de maio de
1772. Em 1770, o comissário João Roiz Cordeiro também recebeu a autodenúncia da Crioula forra Catarina Maria de Oliveira, moradora da cidade de
Mariana, por praticar superstições.28
Observando, então, esse aspecto das denúncias realizadas espontaneamente, os comissários foram o principal elo através do qual a população dava
respostas à presença da Inquisição em Minas. Como ficou claro nestas páginas, a atuação desses agentes em Minas teve dois momentos: um antes e um
depois da criação do Bispado de Mariana.
NOTAS
Pesquisa realizada com bolsa da Fapesp (08/2004 a 07/2006); do Instituto Cultural Amílcar Martins (09/2006 a 02/2007); e, em Lisboa, entre fevereiro e abril de 2006, com bolsa da
Cátedra Jaime Cortesão/Instituto Camões. Este trabalho foi desenvolvido no âmbito dos
projetos Inquirir da honra: comissários do Santo Ofício e das Ordens Militares em Portugal,
1570-1773 (CIDEHUS, Univ. Évora, PTDC/HAH/64160/2006 – financiado pela FCT) e,
no Brasil, dentro do projeto temático Dimensões do Império Português (Fapesp,
04/10367-0).
1
162
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57
Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial
Cf. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.52. Sobre a tentativa de estabelecimento da Inquisição no Brasil, cf. NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1992. 2.ed. p.108-109; SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a
sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978. p.135-139; FEITLER, Bruno Guilherme. Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil: le Nordeste, XVIIe et XVIIIe siècles. Louvain:
Leuven University Press, 2003. p.64-69.
2
ABREU, Capistrano de (Ed.). Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo
licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia, 1591-1592. São Paulo: Paulo
Prado, 1922; ABREU, Capistrano (Org.). Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do
Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593.
São Paulo: Paulo Prado, 1925; FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUEIRA, Sônia (Org.).
Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos
Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia, 1618-1620, Anais do Museu Paulista, v.XVII, 1963; GARCIA, Rodolfo (Org.). Livro das denunciações que se fizeram na Visitação do Santo Ofício à cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos do estado do
Brasil no ano de 1618. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.49, 1927, p.75-198;
_______. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações de Pernambuco, 1593-1595. São Paulo: Paulo Prado,
1929. Sobre a Visitação nas capitanias do Sul, consultar: GORENSTEIN, Lina. A terceira
Visitação do Santo Oficio às partes do Brasil (século XVII). In: FEITLER, Bruno; LIMA,
Lana Lage da Gama; VAINFAS, Ronaldo (Org.). A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006. p.25-32.
3
4
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições..., 2000, p.215-217.
Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (doravante IANTT), Habilitações do
Santo Ofício (doravante HSO); Inquisição de Lisboa (doravante IL), Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv. 104-123.
5
Todas as informações deste parágrafo em: Dos comissários e escrivães de seu cargo. Reg.
1640, Liv. I, Tit. XI. Regimentos do Santo Ofício (séculos XVI-XVII).
6
MOTT, Luiz. A Inquisição em Sergipe. Aracaju: Score Artes Gráficas, 1987. p.60; _______.
Um nome... em nome do Santo Ofício: o cônego João Calmon, comissário da Inquisição
na Bahia setecentista. Universita, Salvador, n.37, jul.-set. 1986, p.15-32; _______. A Inquisição no Maranhão. Revista Brasileira de História, São Paulo, n.28, v.15.
7
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa..., 1978, p.163; WADSWORTH, James. Agents
of orthodoxy: inquisitional power and prestige in colonial Pernambuco, Brazil. Tese (Doutoramento) – University of Arizona, 2002. p.53.
8
Sobre essa questão, cf. BOSCHI, Caio. “Como filhos de Israel no deserto?” (ou a expulsão
dos eclesiásticos em Minas Gerais na 1ª metade do século XVIII). Vária História, Belo Horizonte, n.21, p.119-141; RESENDE, Renata. Entre a ambição e a salvação das almas: a atuação das Ordens Regulares em Minas Gerais (1694-1759). São Paulo, 2005. Dissertação
9
Junho de 2009
163
Aldair Carlos Rodrigues
(Mestrado) – FFLCH/USP. Renata Resende demonstra como o clero regular se fez presente
em Minas, apesar da política da Coroa que impedia a sua instalação oficial na Capitania.
10
IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 20, fl. 249.
11
Por exemplo, ver: IANTT, IL, Livro 20, Registro Geral do Expediente, fls. 252-252v.
12
FEITLER, Bruno. Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens..., 2003. p.94-99.
SILVA, Filipa Ribeiro da. A Inquisição na Guiné, nas Ilhas de Cabo Verde e São Tomé e
Príncipe. Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Lisboa, v.5, n.6, p.157-173, 2004.
p.159.
13
14
Todas as informações sobre as correspondências constam em: IANTT, IL, Registro Geral
do Expediente, Livros 19-24.
TRINDADE, Cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para sua história.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953. p.151.
15
16
TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana..., 1953, p.78-82.
BOSCHI, Caio César. As Visitas Diocesanas e a Inquisição na Colônia. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v.7, n.14, p.151-184. p.182; TRINDADE, Cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana..., 1953, p.60.
17
Sobre os cristãos-novos em Minas, ver: FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas
Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000; SALVADOR, José Gonçalves. Os
cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro. São Paulo: Pioneira, 1992.
18
IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22. Agradeço a Bruno Feitler por ter
cedido gentilmente a transcrição do registro das correspondências desse livro.
19
20
IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 29v.
21
IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 41.
22
IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 69v.
Todas as informações referentes a essa carta, a partir das quais passamos a falar, em:
IANTT, CGSO, Mç. 4, doc. 12.
23
24
IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 260.
IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 295, fl 245; IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 295, fl.
40v.
25
26
IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 380v.
IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 234; IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl.
273.
27
28
Respectivamente: IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 134. IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 273. Muitos casos de autodenúncia aos comissários podem ser encontrados nos Cadernos do Promotor. Para alguns exemplos, ver, no livro 381, as fls. 132, 156,
219, 221, 324, 325, 384; IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 273.
Artigo recebido em novembro de 2008. Aprovado em fevereiro de 2009.
164
Revista Brasileira de História, vol. 29, nº 57