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Usos sociais do patrimonio cultural

2012, Educação, Identidades e Patrimônio.

USOS*SOCIAIS*DO* PATRIMÔNIO*CULTURAL Eduardo!Romero!de!Oliveira * O$problema$dos$lugares$da$memória Discutir& os& usos& sociais& do& patrimônio& cultural,& a& nosso& ver,& exige& partir& de& uma& consideração& dos& fundamentos& da& História,& dos& conceitos&utilizados&para&conceber&o&que&seja&o&bem&cultural.&Não&se& trata& aqui& de& fazer& um& levantamento& bibliográfico& sobre& o& tema& na& historiografia&atual,&mas&de&apresentar&algumas&diretrizes&que&marcam& este&campo&de&investigações.&Em&seguida,&poderemos&nos&ater&em&alF guns& exemplos& sobre& preservação& e& bens& patrimoniais& no& Estado& de& São&Paulo,&a&partir&da&experiência&do&órgão&estadual&de&preservação,&o& Conselho&de&Defesa&do&Patrimônio&Histórico,&Arqueológico,&Artístico& e&Turístico&do&Estado&de&São&Paulo&(CONDEPHAAT).&E,&associado&a& outros&exemplos&sobre&ações&de&preservação&e&sua&relação&com&a&soF ciedade&civil,&poderemos&fazer&avançar&algumas&implicações&teóricas& relativas&as&condições&atuais&de&uso&do&patrimônio. *&Possui&graduação&em&História&pela&Universidade&Estadual&de&Campinas&(1990),&mestrado&em& História&Social&pela&Universidade&de&São&Paulo&(1995)&e&doutorado&em&Filosofia&pela&UniversidaF de&de&São&Paulo&(2003).&Atualmente&é&professor&da&Universidade&Estadual&Paulista&Júlio&de&MesF quita&Filho&e&pesquisador&de&temas&relativos&a&história&cultural,&patrimônio&e&memória.&A&realização& desse&trabalho&teve&apoio&da&FAPESP.&EFmail:&romero_eduardo@ig.com.br. 97 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO Do&ponto&de&vista&dos&fundamentos&teóricos,&identificamos&uma& primeira& diretriz& que& tem& sido& a& de& considerar& o& bem& cultural& como& um&“lugar&de&memória”,&conforme&expressão&cunhada&por&Pierre&Nora& (1989).&Nora&resume&com&ela&um&processo&social,&uma&mudança&ocorF rida&na&sociedade&francesa&na&virada&do&século&XVIII,&sobre&a&sua&reF lação&com&o&passado.&Nora&afirma&que&se&encerrou&então&uma&tradição& de&memória,&de&uma&sociedadeFmemória.&Houve&também&o&surgimenF to& de& uma& consciência& histórica_& isto& é,& de& um& retorno& reflexivo& da& história&sobre&ela&mesma.&De&modo&que,&ao&invés&da&“memória&das&ceF lebrações”,&temos&o&estudo&das&celebrações&(NORA,&1989).&A&história,& enquanto&um&conhecimento&moderno&da&sociedade,&constituiFse&pela& dissolução& crítica& da& memória_& em& contrapartida,& também& partilha& e& estimula& este& fluxo& crescente& por& demanda& de& memória,& assim& com& explica&e&mantém&os&lugares*depositários*de*memória&(NORA,&1983). Uma& segunda& diretriz,& decorrente& da& anterior,& é& a& que& conceF be& a& história& também& como& produtora& de& conhecimento& dos& lugares& da& memória& coletiva.& Cabe& observar& que,& durante& o& século& XIX,& os& objetos&teriam&adquirido&a&qualidade&de&dar&um&tipo&de&existência&ao& passado&(CHASTEL,&1989).&Um&conjunto&de&novas&práticas&foram&se& instituindo&em&torno&daqueles&“objetos&antigos”.&O&monumento,&que& até& meados& do& século& XVIII,& era& o& objeto& privilegiado& dos& artistas& como&modelo&estético&a&estudar&(na&arquitetura&e&na&escultura),&adquiF riu&também&a&condição&de&ser&protegido&como&monumento&da&nação& (CHOAY,&2006)&e&é&alçado&à&condição&de&modelo&estético&e&histórico,& de& obra& nacional,& cuja& exposição& deveria& ser& franqueada& ao& público& para& servir& a& instrução& da& nação& (CHOAY,& 2006,& p.& 101).& Também& estava&associado&à&revisão&de&um&antigo&colecionismo,&a&um&culto&pela& antiguidade.&Alguns&gabinetes&de&curiosidade&do&Setecentos&estava&asF sociados&às&tentativas&de&conceber&um&theatro*mundi,&reunindo&relíF quias,&esqueletos&de&animais&ou&peças&geológicas,&numa&perspectiva& 98 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL cosmogônica_&outros&reuniam&plantas,&minerais&ou&animais&para&estuF dos&de&fármacos&(SCHAER,&1997).&No&momento&em&que&o&naturalista& Carl& Lineu,& em& 1735,& publica& seu& estudo& da& classificação& dos& seres& vivos,&o&Gabinete&tornouFse&o&local&por&excelência&de&classificação&e& conhecimento&das&espécies&(POSSAS,&2005).&A&coleção&deve&dar&a&ver& a&ordem&natural&do&mundo,&o&concreto&deve&representar&o&abstrato.&Se& essa&perspectiva&se&intensifica&para&as&coleções&de&história&natural,&os& museu&históricos&e&artísticos&deveriam&dar&a&ver&o&passado&da&nação.& Nesse&contexto,&surge,&na&França&revolucionária,&o&Musée*des*Monu> ments*Français*onde&os&“mortos&em&seus&túmulos&[...]&tornavam&toF dos&os&tempos&contemporâneos”&(MICHELET&apud&POULOT,&2003).& Nessa&linha&de&entendimento,&se&pode&pensar&no&status&que&os&objetos& culturais&irão&adquirir&no&decorrer&do&século&XX:&serão&tomados&como& documentos.&Isto&significa,&por&um&lado,&entender&que&os&bens&proteF gidos& acabem& por& constituir,& seja& pelos& critérios& de& sua& seleção& seja& pelo&conjunto&expositivo&que&formam,&discursos*de*memórias.&E,&por& outro,&coloca&a&pertinência&de&uma&linha&de&pesquisa&denominada&His> tória*do*patrimônio,&que&se&dedica&a&estudar&e&explicar&as&instituições& e&os&valores&dos&bens&culturais&materiais&e&imateriais. Daí& se& pode& observar,& enquanto& uma& terceira& diretriz,& a& preF domínio&de&conceitos&pautados&pela&racionalidade.&DestaqueFse&que& seu& reconhecimento& de& objetos& adjetivados& por& “patrimoniais”& foi& simultaneamente& de& instituição& social& (com& o& surgimento& das& insF tituições& patrimoniais& e& dinâmicas& sociais& associadas)& e& de& produF ção&de&saber&(aparecimento&de&discussões&teóricas&sobre&o&conceito& de& monumento& histórico).& Inicialmente,& se& tratava& de& discutir& conF dições& técnicas& de& restauração.& DiscorriaFse& sobre& as& condições& de& recompor& o& projeto& original& do& monumento,& conforme& defendido& por&VioletFleFDuc_&ou,&contrariamente,&argumentavaFse&pela&recusa& de&intervenções&para&a&manutenção&do&espírito&do&artista,&conforme& 99 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO John& Ruskin& (CHOAY,& 2006,& p.& 153F154).& Em& 1905,& o& historiador& de&arte&Alois&Riëgl&publica&um&texto&crítico&em&que&estabelece&uma& tipologia&do&monumento&em&função&da&distinção&de&valores&(RIËGL,& 2006).&Sob&essa&perspectiva&da&crítica&dos&monumentos&como&estudo& das&valorações,&podeFse&compreender&as&propostas&de&proteção&legal& nas&primeiras&cartas&patrimoniais&internacionais,&que&são&fundamenF tadas&em&valores&estéticos&ou&históricos&(Carta&de&Atenas,&1934)&ou& de& antiguidade& (Carta& de& Veneza,& 1964)& (IPHAN,& 2011).& TrataFse,& de&toda&forma,&de&valores&cognitivos&advindos&da&Arquitetura&ou&da& História.&O&que&se&verá&nas&últimas&décadas&é&a&ascensão&de&valores& de&memória,&onde&há&uma&relação&entre&sujeito&e&lugar&que&se&reflete& no&sentimento*de*pertencimento.&De&modo&que,&ao&invés&do&foco&na& racionalidade,&talvez&seja&mais&pertinente&falar&em&inteligibilidade_& isto& é,& no& que& é& passível& de& conhecimento,& não& somente& racional,& mas&também&sensorial&e&afetivo. Em&função&dessas&três&diretrizes&citadas,&vemos&a&possibilidade& de&entender&essa&história&das&instituições&patrimoniais,&do&reconheciF mento&dos&objetos&patrimoniais&como&a&constituição&de&uma&temporaF lidade,&em&busca&da&inteligibilidade*do*“patrimonial”,&de&modo&que&o& objeto&patrimonial&não&seja&um&dado,&mas&um&campo&de&conhecimenF to.&Assim,&por&exemplo,&seria&possível&compreender&o&reconhecimento& do& objeto& patrimonial& e& de& suas& formas& de& proteção& legal,& tanto& na& perspectiva& dos& agentes& sociais& envolvidos,& quanto& pela& formulação& de&valores&que&fundamentam&pareceres&técnicos,&bem&como&ações&de& preservação&e&de&defesa&dos&objetos&e&edifícios.&Aqui&os&estudos&paF trimoniais& podem& se& dedicar& a& esclarecer& um& constante& processo* de* significação*–*ressignificação*social.&Isto&implica&em&tomar&a&comF preensão&da&historicidade&do&bem&cultural&como&explicação&das&dinâF micas&de&sentidos&e&valoração&que&constituem&o&“objeto&patrimonial”.& A&cultura&como&um&direito. 100 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL Há&outro&aspecto&que&gostaríamos&de&destacar,&como&um&comF ponente&que&consideramos&fundamental&dentro&da&linha&de&investigaF ção&dos&estudos&patrimoniais:&a&sua&dimensão*política.&Nessa&socieF dade&contemporânea&em&que&a&memória&é&celebrada,&essa&se&tornou&o& lugar& privilegiado& para& materializar& a& “comunidade& imaginada”,& de& busca&de&uma&legitimidade&política&(ANDERSON,&2008).&Se&a&festa&é& reminiscência,&repetição&do&passado,&tal&como&afirma&Mona&Ozouf&soF bre&as&festas&revolucionárias&francesas&(1979,&p.&217),&ela&é,&portanto,& promotora&de&uma&memória.&Contudo,&a&memória&que&revive&é&uma& história&remanipulada,&reprimida.&Talvez&se&possa&entender&o&entrelaF çamento&da&cultura&e&da&política&nos&estudos&históricos,&tal&como&as& festas&revolucionárias&e,&por&isso,&se&possa&conceber&essa&história&da& institucionalização&do&patrimônio&cultural&como&permeada&pelo&esforF ço&de&afirmar&uma&unidade&e&uma&memória&legitimadora. LembremoFnos&que&a&Declaração*dos*Direitos*do*Homem&da& ONU& (1948)& está& fundamentada& na& noção& de& que& a& humanidade& é& sujeito&de&direito.&Essa&Carta&enumera,&dentre&os&direitos&do&Homem,& a&instrução&e&educação&como&bens&necessários&(art.&22).&SubentendeF Fse&aqui&a&ideia&de&direitos&culturais&admitidos&como&universais.&A& argumentação& da& cultura& moderna& como& produto& da& Humanidade& encontrava& respaldo& em& movimentos& sociais& e& discussões& teóricas& daquele&momento.&De&um&lado,&havia&o&reconhecimento&político&de& um&sujeito&de&direitos&nos&movimentos&sociais&da&década&de&1960,& que& questionam& o& colonialismo& (capitaneada& por& negros& americaF nos,& jovens& franceses,& mulheres& e& homossexuais).& De& outro,& havia& a&ascensão&de&estudos&teóricos&que&destacam&a&comunicação&como& fundadora&de&um&sujeito&de&conhecimento&estético&e&cientifico,&como& se&apresenta&nos&estudos&críticos&da&indústria&cultural&(ECO,&1987)& ou& a& racionalidade& instrumental& da& sociedade& industrial& moderna& (HABERMAN,& 1980).& Nesse& contexto& é& que& podemos& entender& o& 101 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO preâmbulo&da&Carta&de&Veneza&(1964),&onde&se&afirma&que&“as&pesF soas&estão&se&tornando&mais&e&mais&conscientes&da&unidade&dos&vaF lores&humanos&e&olham&os&monumentos&antigos&como&uma&herança& comum”.&PressupõeFse&um&vínculo&entre&os&monumentos&históricos& e&artísticos&e&uma&ideia&de&unidade&do&ser&humano. Em&função&destes&elementos,&entre&outros,&é&possível&reconheF cer& a& promoção& da& noção& de& uma& cidadania& universal:& de& direitos& universais&e&civis_&de&direitos&políticos&(liberdade,&igualdade,&repreF sentação)&e&econômicos&(propriedade,&de&troca).&Ainda&que,&em&tese,& a&cidadania&só&possa&ser&sustentada&enquanto&direito&de&um&Estado& soberano,&houve&um&aumento&de&instituições&supranacionais&depois& que& a& experiência& da& Segunda& Grande& Guerra& demonstrou& que& um& Estado&soberano&não&é&garantia&suficiente&da&integridade&e&respeito& aos&seus&cidadãos.&Esta&ampliação&dos&direitos&universais,&e&dos&órF gãos&internacionais,&repercutiu&numa&ampliação&nas&discussões&soF bre&o&patrimônio&cultural. PodeFse&fazer&um&histórico&das&cartas&patrimoniais&internacioF nais,&desde&a&Convenção&de&Haia&sobre&conduta&de&guerra&(1899)&até& o&Pacto&Roerich&(1935)&pela&proteção&de&monumentos&históricos&(SILF VA,& 2003,& p.& 47F55),& enquanto& declarações& de& direito& internacional& interestatais&ou&de&direito&de&organizações&internacionais&que&se&atêm& aos&objetos&em&si.&A&criação&da&UNESCO&dáFse&sob&a&aura&do&sujeito& universal&de&direitos:&a&Humanidade.&Nessa&perspectiva,&a&Convenção* sobre* o* Patrimônio* Mundial& (1972)& faz& a& defesa& de& um& patrimônio& a& ser& preservado,& definido& no& que& seja& seu& caráter& cultural& ou& natuF ral&(segundo&ideias&vagas&e&tradicionais&de&folclore&e&excepcionalidaF de).&A&Convenção&sustenta&a&legitimidade&da&reivindicação&no&valor& universal&da&cultura.&Cartas&patrimoniais&seguintes&vão&ratificar,&por& um&lado,&a&ideia&de&identidade,&de&reconhecimento&de&grupo&social&e& proteção&das&suas&expressões&culturais.&É&o&que&se&dá&na&Declaração& 102 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL de&Políticas&Culturais&(UNESCO,&1985),&segundo&a&qual&as&políticas& culturais&dos&Estados&devem&ser&pautadas&pelas&ideias&de&identidade& cultural,&pelos&vínculos&entre&cultura&e&desenvolvimento,&entre&cultura& e&democracia.&O&fundamento&de&valor&universal&da&cultura&pode&e&deve& ser&articulado&com&a&promoção&econômica&e&política.&Por&outro&lado,& a&Declaração&sobre&a&diversidade&Cultural&(2001)&e&a&Convenção&para& a& Salvaguarda& do& Patrimônio& Cultural& Imaterial& (UNESCO,& 2003)& vêm&indicar&o&caráter&multifacetado&dessa&Humanidade&pela&alegação& de& diversidade& cultural.& O& que& se& observa,& enfim,& é& que& a& noção& de& patrimônio&cultural,&dentro&das&cartas&patrimoniais&do&UNESCO&dos& últimos&30&anos,&está&fundamentada:&no&pressuposto&da&universalidade& dos& direitos& humanos_& no& contexto& do& surgimento& de& convenções& e& organismos&internacionais_& e& no&reconhecimento& da&identidade&e& diF versidade&cultural&(enquanto&elementos&constituintes&da&universalidaF de&do&Homem).&Enfim,&posto&que&a&Humanidade&produziu&e&produz& cultura,&o&caráter&extemporâneo&e&uniforme&daquela&é&ratificado&pela& preservação& dos& exemplares& (materiais& e& imateriais)& dessa.& O& recoF nhecimento&de&um&objeto,&edifício&ou&modo&de&vida&como&patrimônio& cultural& é,& consequentemente,& a& expressão& concreta& dessa& abstração& denominada&Humanidade. Cabe& uma& última& observação& aqui.& Colocamos& em& destaque& a& declaração& de& defesa& do& patrimônio& cultural,& expressa& na& Constitui> ção*de*1988,&que&foi&pautada&pela&defesa&da&democracia&considerada& um&valor&fundante&da&sociedade&brasileira&naquele&momento.&O&texF to& declara,& no& artigo& 215,& o& “pleno& exercício& dos& direitos& culturais”& e&estabelece&que&o&patrimônio&cultural&se&constitui&por&“referência&à& identidade,&ação&e&memória&dos&diferentes&grupos&formadores&da&soF ciedade&brasileira”&(BRASIL,&1988).&Assim,&estão&elencados&no&texto& constitucional:&o&direito&cultural_&a&afirmação&de&identidade&dos&difeF rentes&grupos&culturais&(constituinte&da&unidade&nacional)_&e&o&desenF 103 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO volvimento& cultural& e& socioeconômico& como& fator& de& bemFestar& da& população&nacional.&Além&disso,&fica&clara&no&texto&a&ideia&da&demoF cratização&do&patrimônio,&tanto&pelo&direito&à&memória&e&cultura&dos& grupos&sociais&(que&o&Estado&deve&apoiar,&incentivar&e&difundir)&(art.& 215),&quanto&pelo&direito&de&ação&popular&para&proteção&do&patrimônio& histórico& e& cultural& (art.& 5,& inciso& LXXIII).& Portanto,& “o& Estado& não& deve&ser&o&único&ator&social&a&se&envolver&na&preservação&do&patrimôF nio&cultural&de&uma&sociedade”&(FONSECA,&2005,&p.&75).&Enfim,&o& patrimônio&cultural&é&definido&como&derivado&de&um&direto&à&memória& exercido&pelo&cidadão&e&não&apenas&pelo&Estado. A$preservação$como$busca$da$integridade$física$e$cultural No&caso&brasileiro,&tratar&dos&usos&do&patrimônio&cultural&pasF sa& por& uma& primeira& e& rápida& consideração& sobre& as& instituições& de& preservação.& No& âmbito& federal,& a& institucionalização& e& proteção& ao& patrimônio&monumental&iniciaFse&na&década&de&1930,&com&a&criação& do&Curso&de&Museus&(1932)&e,&depois,&da&Inspetoria&dos&Monumentos& Nacionais&(1934),&no&âmbito&do&Museu&Histórico&Nacional&(NASCIF MENTO_&CHAGAS,&2006,&p.&37).&Simultaneamente,&a&proteção&volF taFse&para&monumentos&representativos&da&história&política&nacional,& com& a& lei& de& preservação& da& cidade& de& Ouro& Preto& (1933)& (IPHAN,& 2006).&No&início&do&Estado&Novo,&houve&a&constituição&do&Serviço&do& Patrimônio&Histórico&e&Artístico&Nacional&(1937),&com&a&regulação&da& proteção&legal&através&do&instituto&do&tombamento&(Dec.&25,&de&30&de& novembro&de&1937).&Esse&órgão&foi&dirigido,&de&1937&a&1967,&por&RoF drigo&de&Melo&Franco&de&Andrade,&sob&a&perspectiva&do&valor&estético,& privilegiando&a&preservação&de&exemplares&monumentais&que&compuF sessem&o&quadro&de&uma&história&da&arte&brasileira&(FONSECA,&2005,& p.&114F116).&De&destaque,&cabe&apontar&a&criação&do&Centro&Nacional& 104 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL de&Referência&Cultural&(1975),&sob&a&direção&de&Aloísio&Magalhães,& como&um&momento&de&alteração&conceitual,&que&pensa&a&preservação& em& termos& de& referências& culturais,& “inseridas& na& dinâmica& viva& do& cotidiano”&e&promotora&do&desenvolvimento&econômico&adequado&às& condições&locais&(FONSECA,&2005,&p.&150F151).&Essa&concepção&será& trazida& para& dentro& do& órgão& federal& no& momento& da& reestruturação& administrativa&do&órgão&federal,&cujas&funções&foram&dividias&entre&a& Secretaria&do&Patrimônio&Histórico&e&Artístico&Nacional&e&a&Fundação& Nacional& PróFMemória& (1979)& e& cuja& coordenação& coube& a& Aloísio& Magalhães& (FONSECA,& 2005).& Nessa& nova& perspectiva,& concebeFse& uma& alternativa& a& proteção& do& patrimônio,& considerandoFse& o& valor& cultural& e& o& valor& econômico.& Contudo,& mantinhaFse,& nos& dois& moF mentos,&o&caráter&monumental&da&nação,&materializado&nos&bens&proF tegidos& contra& a& ruína& e& a& perda.& Rodrigo&Andrade& e&Aloísio& MagaF lhães& estão& envolvidos& na& proteção& de& objetos,& edifícios& e& obras& de& arte&(erudita&ou&popular)&que&guardariam&a&aura&da&cultura&brasileira,& una&e&autêntica&(GONÇALVES,&2002,&p.&56F58). No&caso&do&Estado&de&São&Paulo,&a&proteção&do&patrimônio&tem& seu&primeiro&marco&na&proposta&de&Mario&de&Andrade&na&direção&do& Departamento& de& Cultura& do& município& de& São& Paulo& (1934),& numa& perspectiva& de& levantamento& etnográfico& de& cultura& (RAFFAINI,& 2001).&Temos,& ainda,& o& projeto& de& Paulo& Duarte,& em& 1936,& de& orgaF nização& do& departamento& de& patrimônio.& Projeto& pautado& pelo& arguF mento&do&“crime&contra&o&patrimônio”,&dos&remanescentes&materiais& da& história& bandeirante& ameaçados& pela& ordem& social& urbana& (ROF DRIGUES,& 2000,& p.& 32F36).& Posteriormente,& durante& o& governo& de& Jânio& Quadros,& em& 1957,& haverá& a& instalação& dos& museus& históricos& e&pedagógicos&em&municípios&paulistas.&É&uma&proposta&de&pensar&os& museus&como&suplementares&à&escola.&Estes&museus&municipais&irão& privilegiar&o&caráter&local&e&serão&ecléticos,&com&objetos&eleitos&pelo& 105 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO valor&local.&Serão&criados&também&os&museus&nacionais,&dedicados&à& preservação&de&objetos&de&valor&histórico&ou&artístico&(popular&ou&eruF dito).&O&Conselho&de&Defesa&do&Patrimônio&Histórico,&Arqueológico,& Artístico& e& Turístico& do& Estado& de& São& Paulo& (CONDEPHAAT)& foi& criado&em&1968,&a&partir&de&um&esforço&de&uma&elite&intelectualizada& de&São&Paulo&que&tomava&a&proteção&do&patrimônio&com&uma&“missão& civilizadora”&(RODRIGUES,&2000,&p.&41):&a&proteção&do&patrimônio& como&função&exclusiva&do&Estado&e&dedicada&a&reafirmar&a&identidade& bandeirante.& Nos& primeiros& dez& anos,& os& processos& de& tombamento& são& pautados& na& linha& tradicional& da& valoração& do& excepcional& e& do& estético,&isto&é,&do&monumental. Enfim,&o&campo&da&preservação&do&patrimônio&históricoFartístico& é&entendido&como&responsabilidade&do&Estado&para&ações&de&divulgação& e&coletivização&do&saber&e&para&fins&de&“alfabetização”&cívica,&propósito& que&se&identifica,&ainda,&no&Compromisso&de&Brasília,&em&1970&(IPHAN,& 2011).&Em&conclusão,&até&os&anos&1970,&tanto&na&esfera&federal&quando& estadual,&as&políticas&de&patrimônio&permanecem&na&esfera&pública. Desde& meados& 1976,& contudo,& com& o& envolvimento& do& CONF DEPHAAT&no&Programa&de&Revitalização&do&Patrimônio&Ambiental& Urbano&do&governo&estadual,&o&órgão&foi&incluído&numa&proposta&calF cada&em&novas&ideias&sobre&gestão&urbana,&de&conservação&integrada& e&proteção&do&meio&ambiente,&decorrente&de&uma&proposta&política&de& planejamento&urbano&do&governo&estadual.&Este&projeto&tocava&em&teF mas&sobre&o&patrimônio&cultura,&que&haviam&sido&levantados&em&outros& documentos&da&época.&É&o&caso&da&questão&da&preservação&ambiental,& tratada&na&Declaração&de&Estocolmo&(1972)&ou,&ainda,&do&Manifesto& de&Amsterdã&(1975),&que&se&baseia,&entre&outras,&na&ideia&de&conserF vação&integrada,&resultado&da&ação&conjugada&das&técnicas&de&restauF ração& e& da& pesquisa& de& funções& apropriadas& (RODRIGUES,& 2000,& p.& 82F93).& Em& função& disso,& técnicos& e& conselheiros& envolveramFse& 106 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL numa& discussão& sobre& política& de& preservação,& procurando& definir& uma&concepçãoFchave&dessa&política:&o&patrimônio&ambiental&urbano.& Dentre& as& concepções& formuladas,& cabe& destacar& duas.& Para& Carlos& Lemos,&preservação&abrange&os&diversos&bens&culturais&(além&dos&moF numentos& e& bens& excepcionais)& com& representatividade& no& contexto& urbano,&o&que&resultaria&numa&ampliação&do&universo&de&bens&a&serem& inventariados&pelos&técnicos&do&órgão.&Em&contrapartida,&para&UlpiaF no&Meneses,&o&patrimônio&deveria&ser&considerado&em&relação&a&um& “sistema&de&objetos&socialmente&apropriado,&percebidos&como&capaF zes&de&alimentar&representações&do&ambiente&urbano”&(SÃO&PAULO,& 1979&apud&RODRIGUES,&2000,&p.&91).&Nestes&termos,&o&conceito&de& patrimônio& ambiental& urbano& procurava& “compor& o& quadro& material& que&dá&suporte&à&memória&e&permite&preservar&o&meio&ambiente”.&De& acordo&com&essa&perspectiva,&havia&a&necessidade&de&considerar&quais& e&como&edificações&e&objetos&deveriam&ser&valorados&enquanto&repreF sentativos&da&cidade.&O&inventário&produzido&seguindo&essa&conceituF ação&colocava&em&questão&tanto&a&autoridade&dos&técnicos&quanto&os& critérios&tradicionais&de&reconhecimento.&ContrapunhaFse&à&percepção& da& preservação& de& monumentos& isolados& por& seu& valor& históricoFarF quitetônico.&Diferentemente,&essa&definição&de&patrimônio&ambiental& urbano&afirmava&a&preservação&de&conjuntos&de&bens&concebidos&e/ou& percebidos&em&função&de&representações&de&cidade.&Esse&debate&resulF tou& em& concepções& mais& alargadas& de& patrimônio& cultural& e,& conseF quentemente,&incluiu&o&patrimônio&ferroviário&paulista.&Contudo,&teria& sido&parcialmente&absorvida&na&prática&do&CONDEPHAAT,&conforme& observa& Marly& Rodrigues& (2006),& o& que& explicaria& a& apreciação& do& bem&ferroviário&em&vários&processos&acima&citados&em&função&do&vaF lor&históricoFarquitetônico. Enquanto& exemplo& dessa& distensão& conceitual,& enquadraFse& o& tombamento& do& Complexo& Ferroviário& de& Paranapiacaba,& em& Santo& 107 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO André&(CONDEPHAAT,&1982).&Uma&grande&mobilização&de&entidaF des&profissionais,&associações&civis,&órgãos&públicos,&secretarias&muF nicipais&e&a&Rede&Ferroviária&Federal,&que&ocorreu&entre&1981&e&1983,& antecedeu&a&abertura&do&processo&de&tombamento,&em&1983&(RODRIF GUES,&2006).&Portanto,&por&um&lado,&assumiaFse&a&representatividade& atribuída&pela&memória&social,&por&outro,&o&parecer&técnico&de&tombaF mento&considerou&tanto&a&vila&ferroviária&de&Paranapiacaba&por&suas& características& arquitetônicas& de& origens& inglesas,& quanto& o& sistema& funicular&de&subida&das&composições&e&a&paisagem&envoltória&repreF sentativa&do&conjunto&serrano&da&Serra&do&Mar,&com&sua&flora&e&fauna,& além&das&nascentes&do&Rio&Grande.&Assim,&o&Complexo&foi&tombado& não&apenas&como&um&bem&cultural&de&interesse&histórico&e&arquitetôniF coFurbanístico,&mas&também&ambiental&e&tecnológico&–&em&consonânF cia&com&as&novas&concepções&de&patrimônio&ambiental&urbano. Nos&anos&1970&e&1980,&houve&portanto&uma&revisão&da&prática& patrimonialista& (CONDEPHAAT),& que& pode& ser& identificada& nestes& dois&aspectos:&inclusão&da&noção&de&patrimônio&ambiental&urbano&(a& cidade& como& produto& da& cultura)& (MENESES,& 1978)& e& a& discussão& sobre&a&preservação&ambiental&(vide&o&tombamento&da&Serra&do&Mar&e& Paranapiacaba,&1979). Em& vários& processos& de& tombamento,& abertos& na& década& de& 1980,&percebemos&a&proteção&de&edificações&que&denotam&a&inclusão& de&uma&noção&de&cultural&marcada&pelo&cotidiano.&É&o&caso&do&proF cesso&da&Vila&Itororó,&projetada&pelo&mestre&português&Francisco&de& Castro&(1982),&e&do&Mercado&Municipal&de&Campinas&(1982),&do&arF quiteto&Ramos&de&Azevedo&–&ainda&que&seja&justificado&como&inserido& na&obra&do&arquiteto,&o&processo&considera&um&exemplar&de&uso&não& nobre.&Teremos&também&a&interação&das&mobilizações&sociais&com&a& ação&preservacionista.&Caso&da&mobilização&popular&em&torno&da&emiF nente&derrubada&do&Edifício&do&Instituto&Caetano&de&Campos&(Praça& 108 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL da&República,&São&Paulo),&em&1975,&quando&das&obras&de&construção& da&estação&de&metrô&que&ameaçavam&destruir&o&edifício.&Essa&campaF nha&mobilizou&a&cidade,&através&dos&jornais&e&revistas,&e&contou&com& participação& da&Associação& de& exFalunos& do& Instituto,& presidida& por& Roberto& Carvalhosa.&A& mobilização& social& resultou& no& tombamento& no&prédio,&em&1976&(RODRIGUES,&2001,&p.&89).&O&mesmo&ocorreu& em&relação&à&Estação&Ferroviária&da&Companhia&Paulista&(Campinas,& SP),&1978F1982,&com&um&pedido&de&tombamento&aberto&em&outubro&de& 1978&por&solicitação&pública&de&cidadãos,&intelectuais&e&interessados& na&preservação&ferroviária,&tendo&anexo&o&abaixo&assinado.&Nos&anos& seguintes,&o&caso&mais&notório&será&o&da&Vila&de&Paranapiacaba&(Santo& André).&Não&por&acaso,&neste&período,&é&constituída&a&Associação&BraF sileira&de&Preservação&Ferroviária&(1977),&que&funda&o&Museu&FerroviF ário&e&a&Viação&Férrea&CampinasFJaguariúna,&em&1984,&com&a&implanF tação&de&um&trem&turístico&entre&as&duas&cidades,&utilizando&estações& e&um&pequeno&trecho&da&antiga&linha&da&Companhia&Mogiana.&O&tema& do&patrimônio&ferroviário&ganha&destaque,&entre&outros,&com&a&particiF pação&ativa&de&exFfuncionários&da&empresas&férreas&paulistas.&Então,& uma&grande&mobilização&de&entidades&profissionais,&associações&civis,& órgãos&públicos,&secretarias&municipais&e&a&Rede&Ferroviária&Federal& ocorreu& entre& 1981& e& 1983,& antecedendo& a& abertura& do& processo& de& tombamento,& em& 1983.& Num& último& exemplo& da& mobilização& social& na& solicitação& de& ações& de& tombamento,& temos& o& restauro& da& Igreja& Matriz&de&Santo&Antonio&(Santa&Bárbara,&MG),&ocorrido&entre&1997&e& 2003,&em&que&a&comunidade&captou&recursos&para&obras&(MACHADO,& 2008).&Todos&estes&exemplos&chamam&a&atenção&para&o&fato&de&que,& com&a&mobilização&social,&durante&os&anos&1980,&alguns&grupos&sociais& começam&a&reivindicar&o&instrumento&de&tombamento&como&meio&de& preservação&de&bens&que&julgam&relevantes&(baseados&em&outros&tipos& de& patrimônio& ou& em& outros& valores,& como& afetivo).& Por& outro& lado,& 109 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO houve&uma&mudança&conceitual,&ainda&que&não&totalmente&inovadora,& nos&fundamentos&técnicos&que&instrumentalizavam&o&processo&de&tomF bamento&nos&órgãos.&Daí&se&pôde&atentar&para&o&caráter&dinâmico&da& proteção,&tanto&na&sua&valoração,&quanto&no&deslocamento&da&manuF tenção&da&integridade&física,&para&a&garantia&dos&usos&contemporâneos& (RODRIGUES,&2001,&p.&218). A$inserção$da$sociedade$civil$nas$políticas$e$instituições$de$ preservação Além&de&atentarmos&para&a&entrada&da&sociedade&civil&brasileira& nas&ações&dos&órgãos&de&preservação,&devemos&também&considerar&as& diversas&relações&que&começam&a&se&concretizar&com&respeito&à&realizaF ção&de&ações&preservacionistas.&Neste&sentido,&tomaremos&três&exemplos& paulistas:&o&levantamento&patrimonial&do&CONDEPHAAT&em&Santana& de&Parnaíba,&no&início&dos&anos&1980_&a&restauração&e&funcionamento&do& Conjunto&Kaigai*Kogyo*Kabushiki*Kaisha&(KKKK),&em&Registro_&e&a& transferência&para&o&poder&público&da&gestão&de&um&museu&de&empresa& férrea,&o&Museu&da&Companhia&Paulista,&em&Jundiaí. Em& primeiro& lugar,& citemos& a& pesquisa& coordenada& por& José& Guilherme&C.&Magnani&em&Santana&de&Parnaíba,&a&pedido&do&CONF DEPHAAT,&em&1984.&A&cidade&tem&um&acervo&arquitetônico&de&destaF que,&mas&havia&dificuldades&de&fiscalização&e&implantação&de&medidas& de&proteção.&EsperavaFse&subsidiar&ações&do&órgão&com&os&resultados& obtidos& pela& pesquisa& (MAGNANI,& 2007).& ChegouFse& a& um& levanF tamento& do& universo& simbólico& local,& identificando& uma& divisão& da& população&entre&“os&de&dentro”&(moradores&mais&antigos),&“os&de&fora”& (novos&moradores).&PercebeuFse&a&existência&de&visões&diferenciadas& e&fragmentadas&dos&bens&que&estavam&sob&proteção&legal:&“memórias& das&famílias”&X&“passado&colonial”.&Assim,&identificouFse&uma&distriF 110 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL buição&singular&do&espaço&da&cidade:&havia&o&espaço*público&da&cidaF de&se&apresentava&como&cenário&de&festas&locais&e&religiosas&(como&a& Festa&de&Sant’Anna,&ou&do&Carnaval),&em&contraposição&a&um&espaço* privado&das&famílias.&Este&universo&simbólico&conflitava&com&as&ações& do& CONDEPHAAT,& em& que& a& identificação& e& preservação& eram& reF gulamentadas& pelos& critérios& da& história& da& arquitetura& e& da& história& nacional.&A& pesquisa& apontou& no& sentido& de& estimularFse& a& presença& do&órgão&de&preservação&nas&festas,&como&um&modo&de&integração&e& de&criarFse&um&centro&de&memória&atuando&na&preservação&da&história& local.& Haveria& aqui& uma& direção& no& sentido& de& “ligar& os& fragmentos& particulares&com&os&processos&amplos”&(MAGNANI,&2007,&p.&322). Outro& exemplo& a& considerar& em& relação& à& interação& da& socieF dade&civil&e&às&ações&de&preservação&é&o&Conjunto&Kaigai*Kogyo*Ka> bushiki*Kaisha&(KKKK).&TrataFse&de&um&sítio&histórico&em&Registro& (SP),&que&foi&criado&para&resgatar&e&preservar&a&história&da&imigração& japonesa&na&região.&Registro&era&uma&colônia&de&imigrantes&japoneses& e&fazia&parte&de&um&conjunto&de&mais&duas&colônias,&a&colônia&Katsura,& situada&no&município&de&Jipovura,&e&a&colônia&Sete&Barras,&na&região& do&Vale&do&Ribeira.&Nessa&colônia,&construiuFse&uma&agricultura&forF te,& integrando& o& povo& ribeirinho,& transformando& o& município& numa& referência& da& imigração& japonesa.& Esse& conjunto& de&colônias& é& mais& conhecido&como&Colônia&Iguape.&Segundo&a&Comissão&de&Elaboração& da&História&dos&80&anos&da&Imigração&Japonesa&no&Brasil&(1992),&foi&a& primeira&a&ser&formada&por&japoneses&e&também&a&primeira&a&ser&fundaF da&por&capital&privado&nipônico&no&Brasil.&A&Kaigai*Kogyo*Kabushiki* Kaisha&(Companhia&Ultramarina&de&Desenvolvimento)&foi&a&empresa& responsável&pela&implantação&da&colônia,&por&sua&administração&e&peF las&indústrias&agrícolas&–&particularmente&o&cultivo&e&beneficiamento& de&arroz_&daí&o&sítio&histórico&ser&conhecido&como&Conjunto&KKKK.& O&conjunto&foi&tombado&pelo&CONDEPHAAT&no&início&de&1987,&que& 111 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO incluiu&o&conjunto&arquitetônico&(escritórios&e&armazéns&da&produção& agrícola&de&uma&colônia&japonesa,&que&funcionou&de&1922&a&1939)&e& uma& área& natural& no& seu& entorno.& O& projeto& de& recuperação& do& conF junto&edificado&foi&elaborado&por&Francisco&Fanucci&e&Marcelo&Ferraz& e& realizado& entre& 1995& e& 2001& (SEGAWA_& FANUCCI_& FERRAZ,& p.& 24F26).&O&conjunto&também&recebeu&várias&obras&de&artistas&japoneses& (como&a&obra&Guaracuí,&de&Tomie&Ohtake),&que&foram&instaladas&em& vários&dos&seus&espaços.&Um&museu&histórico&denominado&“Memorial& da&Imigração&Japonesa”&foi&instalado&no&edifício&destinado&ao&benefiF ciamento&de&arroz,&dentro&do&conjunto&arquitetônico&da&antiga&empreF sa&cujo&acervo&foi&composto&por&doações&de&famílias&nipoFbrasileiras,& descendentes&de&imigrantes,&de&objetos,&documentos,&mapas&e&livros.& O&Conjunto&é&composto,&ainda,&por&um&complexo&de&edificações,&denF tre&elas,&o&Memorial,&o&anfiteatro&e&salas.&Há&uma&ampla&área&externa,& que& se& tornou& um& importante& local& de& lazer& para& a& população& após& passar& pelo& processo& de& recuperação& e& reestruturação.& A& gestão& do& conjunto&cabe&à&prefeitura&municipal,&sendo&que&o&Memorial&está&sob& a&direção&da&Associação&Cultural&NipoFBrasileira&de&Registro,&pois&lhe& coube&a&responsabilidade&pelo&acervo&proveniente&das&doações. Em& relação& ao& seu& estado& de& preservação,& apesar& de&ter& sido& totalmente& restaurado,& em& 2002,& em& pouco& mais& de& cinco& anos& já& apresentava& problemas& de& manutenção& da& edificação& tombada.& O& Memorial&da&Imigração&Japonesa&de&Registro&está&localizado&dentro& do&Conjunto&KKKK&e,&segundo&o&atual&Diretor,&tem&como&objetivo& o&“espírito&de&registrar&para&futuras&gerações”&(SUDA,&2007).&Uma& monitora&do&Museu&complementa&que&a&exposição&tem&como&objetiF vo&passar&para&o&visitante&“a&visão&dos&imigrantes&quando&chegaram& ao& Brasil,& a& reação& deles,& como& era& antigamente,& como& está& hoje”.& Cabe&explicar&como&essa&visão&é&construída&pelo&museu&e&a&sua&relaF ção&com&a&comunidade. 112 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL Foi& constatado& que& o& Complexo& passava& por& dificuldades& de& gestão,&que&envolviam&desde&a&manutenção&física&até&a&realização&de& atividades&de&monitoria&educativa&no&Memorial&(SUDA,&2007).&Além& disso,& por& meio& de& estudo& dos& visitantes& do& Memorial,& observouFse& que& os& objetos& expostos& eram& reconhecidos& como& de& valor& cultural& e& referentes& a& uma& história& local& (da& empresa,& dos& imigrantes& japoF neses&e&da&cidade&de&Registro).&As&ações&de&preservação&(doações&de& objetos,&manutenção&pela&Associação&NipoFBrasileira)&ultrapassaram& o&grupo&imigrante&e&seus&descendentes,&chegando&a&atingir&outras&pesF soas&da&cidade.&Tanto&os&descendentes&quanto&o&público&em&geral,&ao& visitarem& o& Memorial,& reconhecem& a& importância& dessas& ações& para& a&preservação&de&uma&história&da&comunidade&nipônica&de&Registro.& Duas&festividades&tradicionais&japonesas&são&realizadas&na&parte&exterF na&do&Conjunto,&o&Obon*Odori&e&Tooro*Nagashi,&que&são&prestigiadas& pela&população&local.&Fica&claro&também&que&Conjunto&KKKK,&além& do&valor&histórico&e&cultural,&representa&para&os&visitantes&tanto&locais& e&para&os&turistas&um&lugar&de&lazer&e&passeio.&E&disso&resulta&respeito& e&admiração&pelo&local&e&pela&cidade. Outro& caso& emblemático,& agora& sob& a& perspectiva& da& relação& entre& os& órgãos& públicos& de& preservação,& é& o& dos& prédios& da& antiga& oficina&da&Companhia&Paulista,&em&Jundiaí.&Neles&encontraFse,&hoje,& o&do&Museu&da&Companhia&Paulista,&em&Jundiaí.&O&Museu&havia&sido& inaugurado& em& 1979,& subordinado& à& FEPASA,& como& Museu& FerroF viário& Barão& de& Mauá& (FEPASA,& s.d).& No& início& dos& anos& 1990,& a& empresa&propôs&desmembrar&este&museu&em&cinco&outros,&cada&qual& especializado&em&uma&das&empresas&que&originaram&a&FEPASA&(Cia.& Paulista&de&E.F.,&Cia.&Mogiana&de&E.F.,&E.F.&Sorocabana,&E.F.&São&PauF loFMinas,&E.F.&Araraquara),&Dos&cinco,&apenas&os&museus&de&Jundiaí&e& Sorocabana&vieram&a&ser&implantados&ate&fins&dos&anos&1990&(ANTP,& 1999).& Por& conta& disso,& a& instituição& reabriu,& em& 14/05/1995,& como& 113 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO Museu&da&Companhia&Paulista.&Em&maio&de&1998,&todo&o&patrimônio& da& FEPASA& foi& incorporado& à& Rede& Ferroviária& Federal& S/A& (RFFF SA),&como&parte&do&processo&de&desestatização&das&empresas&públicas& férreas& no& país,& iniciado& anos& antes.& Um& contrato& de& comodato& foi& assinado&entre&a&CPA&e&a&Secretaria&do&Estado&da&Cultura,&em&27&de& setembro&de&1999,&pelo&período&de&dois&anos.&O&Museu&esteve,&desse& período&em&diante&até&2001,&sob&a&responsabilidade&da&Secretaria&de& Cultura,& dentro& do& programa& de& Recuperação& de& Bens& Culturais& do& Governo&do&Estado&de&São&Paulo. Desde&a&época&em&que&estava&sob&a&administração&da&FEPASA,& o&Museu&era&gerido&pelo&Coordenador&do&Núcleo&de&Jundiaí&(responF sável& geral& da& área& de& oficinas),& Edmar& de& Stefano,& que& se& manteve& nesse&cargo&após&a&incorporação&à&RFFSA.&Inserido&num&conjunto&de& oficinas&desativadas,&que&servia&de&estoque&de&peças&e&documentação,& sob&a&administração&de&uma&empresa&extinta,&o&Museu&se&via&à&deriva.& A&manutenção&do&acervo&e&das&atividades&do&museu&ficou&ao&encargo& desse&único&funcionário&(STEFANO,&2000).&Além&dos&problemas&adF vindos& dessa& situação,& e& também& por& falta& de& pagamento,& ele& acabou& por& demitirFse& em& novembro& de& 2001.& O& Museu& é& assumido& por& exF Fferroviários&em&dezembro&de&2000,&por&meio&da&criação&da&Associação& de&Preservação&da&Memória&da&Companhia&Paulista,&entidade&sem&fins& lucrativos,&sob&a&presidência&de&Eusébio&Pereira&dos&Santos,&para&“o&resF gate&e&preservação&da&memória&da&Cia.&Paulista”&(PROJETO...,&2001).& Essa&Associação&desenvolveu&diversos&projetos&naquele&ano,&inclusive& um&projeto&de&restauro&de&vagão&pantográfico&(PROJETO...,&s.d.).&OuF tras& ações& foram& propostas& neste& mesmo& ano& por& instituições& civis& e& particulares&à&Secretaria&do&Estado&de&Cultura:&um&projeto&de&ocupação& cultural&e&convênios&com&instituições&de&ensino&(PROPOSTA...,&2000).& Além&disso,&por&iniciativa&dessa&Secretaria,&foram&feitas&avaliações,&em& 2001,&do&estado&de&conservação&dos&bens&e&documentação&depositados& 114 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL na&área&das&Oficinas&(CRUZ,&2001_&SOBRINHO,&2001). No&início&de&2001,&a&prefeitura&adquiriu&os&prédios&da&oficina&e& assumiu&também&a&administração&precária&do&Museu.&O&conjunto&de& prédios&foi&comprado&do&Governo&do&Estado&de&São&Paulo&pela&PrefeiF tura&Municipal&de&Jundiaí,&no&início&de&2001,&com&recursos&oriundos& em&grande&parte&da&Secretaria&municipal&da&Educação,&mas&também& da&Secretaria&municipal&de&Cultura.&Por&conta&disso,&a&atual&gestão&dos& edifícios&se&dá&compartilhada&pelas&duas&Secretarias,&em&que&o&peso& da&decisão&se&dá&conforme&o&valor&desembolsado&para&a&compra,&fato& que&tem&gerado&conflitos&na&gestão&do&Complexo&Cultural&FEPASA,& como&passou&a&ser&denominado.&Outro&conflito&passou&a&existir&entre& a&nova&gestão&municipal&e&a&Associação&de&Preservação&da&Memória& da&Companhia&Paulista.&A&Associação&foi&obrigada&a&sair&do&local&e&a& interromper&suas&ações.&Passou&para&um&prédio&anexo&ao&Complexo&e,& nos&últimos&anos,&produz&publicações&de&difusão&da&memória&oral&de& exFferroviários. Simultaneamente,& em& fevereiro& de& 2002,& cessaram& os& estudos& do&governo&do&Estado&de&São&Paulo&para&gestão&e&preservação&destes& edifícios,& dos& objetos& e& documentos& das& empresas& férreas& que& estaF vam& depositados& nos& galpões& das& oficinas& em& Jundiaí.& Em& 2004,& o& acervo& documental& foi& transferido& para& outros& galpões& no& bairro& do& Bom&Retiro,&em&São&Paulo,&sob&a&responsabilidade&da&Inventariança& da& RFFSA& –& Unidade& Regional& de& São& Paulo,& mas& o& acervo& de& obF jetos& do& Museu& Ferroviário& e& o& acervo& bibliográfico,& documental& e& cartográfico&que&compõe&a&biblioteca&do&Museu&ficaram&no&local.&A& direção&do&museu&foi&assumida&pela&prefeitura&municipal,&que&procuF rou&manter&o&seu&funcionamento,&mas&não&realizou&investimentos.&O& conjunto&edificado&está&sob&proteção&legal&do&IPHAN,&desde&2004,&e& do& CONDEPHAAT,& desde& 2010.& O& acervo& de& bens& móveis& e& docuF mental&do&Museu,&sendo&parte&da&massa&falida&da&RFFSA,&está&sendo& 115 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO inventariado& para& receber& proteção& legal& por& parte& do& IPHAN& e& lhe& cabe,&portanto,&a&responsabilidade&de&fiscalização&(RFFSA,&2009).&No& início& de& 2011,& em& função& de& deliberação& do& Ministério& Público,& a& Inventariança& da& RFFSA& transfere& o& acervo& documental& depositado& no&Museu&para&a&responsabilidade&do&Arquivo&Nacional&e&do&Arquivo& Público& do& Estado& de& São& Paulo,& enquanto& que& os& objetos& ainda& se& encontram&no&Museu.&Essas&transferências&de&bens&e&responsabilidade& não&se&fizeram&de&modo&tranquilo_&houve&com&vários&questionamentos& jurídicos&seja&por&parte&da&Inventariança,&seja&por&parte&do&IPHAN,&em& relação&às&reformas&de&prédios,&à&manutenção&do&acervo&do&museu&ou& à&cessão&de&espaços&por&parte&da&prefeitura. ObservaFse,&enfim,&uma&descontinuidade&das&propostas&de&preF servação,& que& resulta& em& projetos& díspares,& contraditórios& entre& si,& quando& não& inconsistentes,& alguns& deles,& nos& seus& fundamentos.& O& resultado&final,&apesar&de&supormos&tratarFse&de&esforços&sinceros&isoF ladamente,&foi&a&degradação&dos&bens&que&se&pretendia&preservar.&Ao& mesmo&tempo,&percebeFse&que,&principalmente&no&âmbito&local,&havia& uma&disputa&política&pela&responsabilidade&moral&de&preservar,&conF sequentemente,& pela& legitimidade& em& definir& (na& seleção& de& objetos& a& forma& interpretativa)& a& memória& local& da& ferrovia.& No& âmbito& das& instituições&federais,&há&conflitos&sobre&a&responsabilidade&legal&pela& preservação,&com&implicações&tanto&na&questão&dos&limites&da&autoriF dade&técnica&entre&os&órgãos&de&preservação,&quanto&na&dinâmica&do& processo&de&liquidação&entre&os&que&compõem&a&Inventariança. Considerações$finais Cabem&aqui&algumas&considerações&finais,&que&permitem&retoF mar&conceitos&e&exemplos&expostos&acima.&Em&primeiro&lugar,&cabe& refletir&sobre&as&diretrizes&do&que&se&deve&preservar.&Cabe&reconhecer& 116 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL que&o&bem&cultural&se&apresenta&como&um&objeto&de&poder,&que&envolF ve&luta&pela&dominação&e&manifestação&da&memória&(LE&GOFF,&2008).& Essa&disputa&pode&ser&identificada&nas&diferentes&valorações&que&enF volvem& o& reconhecimento& um& edifício,& objeto& ou& prática& como& um& bem&cultural.&Uma&valoração&sempre&presente&nas&situações&relativas& à&preservação&patrimonial&é&aquela&em&que&o&bem&é&tomado&pelo&seu& valor&econômico,&isto&é,&envolve&um&valor&imobiliário&e&uso&turístico.& Daí& as& contingências& de& disputas& e& propostas& de& reutilização& de& um& edifício&ou&conjunto&deles,&como&foi&o&caso&do&projeto&Monumenta,& para& a& região& da& Luz& (cf.& JOSÉ,& 2007),& ao& passo& outra& trata& do& seu& valor&cultural&(MENEZES,&2000),&tal&como&se&procurou&mostrar&nos& exemplos&acima. Assim,&no&conjunto&KKKK,&a&comunidade&japonesa&de&RegisF tro,&muitas&vezes&organizada&através&da&Associação&Cultural&NipoF FBrasileira,& tem& participado& ativamente& no& Conjunto& KKKK& desde& a&composição&do&acervo&do&Memorial&e&a&sua&administração,&até&a& organização&e&realização&de&festividades&de&origem&japonesa&realizaF das&na&parte&externa&do&Conjunto.&Essa&participação&não&se&restrinF ge&apenas&aos&descendentes&dos&imigrantes&japoneses,&mas&abrange& também&grande&parte&da&população&registrense,&visto&que&muitos&dos& visitantes&do&Memorial&e&das&festividades&não&são&nipoFbrasileiros,& e&eles&também&consideram&a&cultura&japonesa&e&o&Conjunto&KKKK& como&parte&da&cidade&e&de&seu&cotidiano.&A&principal&motivação&que& leva&a&comunidade&local&e&turistas&a&visitarem&o&Conjunto&KKKK&é& o&reconhecimento&da&importância&que&esse&sítio&histórico&e&a&cultura& imigrante& japonesa& representam& para& a& cidade& de& Registro& e& para& os&seus&habitantes.&Consequentemente,&o&Conjunto&foi&recuperado&e& se&mantém&em&uso&porque&reconhecido&por&seu&valor&simbólico&de& identidade&cultural,&ou&melhor,&de&uma&identidade&étnica&(relativa&à& origem&japonesa). 117 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO Daí&se&pode&considerar&a&preservação&como&uma&atividade&seF letiva,& tanto& porque& há& agentes& e& critérios& diversos& que& orientam& e& legitimam&a&atribuição&de&valor,&quanto&porque&existem&conflitos&de& interesses& em& jogo& (FONSECA,& 2005).& Neste& sentido,& podeFse& conF siderar& o& Conjunto& da& FEPASA,& onde& fica& o& Museu& da& Companhia& Paulista,&em&Jundiaí.&Nele&observamos&conflitos&políticos$entre&prefeiF tura&e&exFferroviários,&dentro&da&própria&prefeitura,&e&entre&os&órgãos& de&preservação$(municipal&e&federal)&sobre&a&gestão&do&bem&cultural.& Talvez&se&possa&reconhecer,&por&exemplo,&nos&conflitos&entre&os&agenF tes&que&intervêm&nos&edifícios&ou&objetivos&(prefeitura,&Associação&ou& entidades&locais&de&preservação),&uma&disputa&para&ser&o&único&guarF dião&autorizado&de&uma&memória,&isto&é,&para&selecionar&os&objetos&a& preservar&ou&sua&interpretação.&Os&atos&de&preservação&envolvem,&na& maior&parte,&disputas&simbólicas&de&autoridades&políticoFadministratiF vas,&em&alguns&casos,&mas&principalmente&de&disputas&de&legitimidade,& envolvidas&no&reconhecimento&de&valores&ou&de&identidades&depositaF das&num&bem&cultural&(SMITH,&2006). Isto&nos&chama&a&atenção&para&a&questão&do&por&que&preservar.& Preservar&é&manter&a&expressão&material&de&valores&acumulados&soF cialmente.& Na& sociedade& contemporânea,& essa& materialidade& dos& monumentos& históricoFartísticos& foi& compreendida& como& suporte& de&valores,&tanto&valores&tradicionais&(de&antiguidade,&históricos&ou& de& artísticos),& quanto& propriamente& contemporâneos,& como& os& de& novidade&ou&de&uso&(RIEGL,&2006).&De&um&lado,&é&preciso&consiF derar&que&edifícios,&objetos,&documentos&são,&em&verdade,&uma&maF terialidade,& associada& por& isso& aos& monumentos& históricos.& Neles& reconheceFse&também&um&resíduo&de&passado,&seu&vestígio,&e,&por& isso,&desde&há&muito,&eles&adquiriram&um&valor&histórico,&reconheF cidos&como&documento,&testemunho.&Nos&tempos&atuais,&enquanto& documentos,&são&principalmente&suporte&de&informação&(LE&GOFF,& 118 USOS1SOCIAIS1DO1PATRIMÔNIO1CULTURAL 2003).& Por& outro& lado,& é& pertinente& também& dizer& que& a& formulaF ção&da&individualidade&incluiu&os&vínculos&com&um&eu&distante&no& tempo&e&a&ideia&de&nostalgia&como&reFencontro&com&o&familiar.&Em& função& disso,& a& subjetividade& passa& a& demandar& uma& materialidaF de,& na& qual& se& depositam& vínculos& afetivos& ou& uma& continuidade& pessoal,& em& que& os& objetos& adquirem& um& valor& de& pertencimento& (LOWENTHAL,&2009).&É&por&isso&que&alguns&objetos&rituais&poF dem& ser& reconhecidos& como& instrumentos& de& identidade_& que& nos& sítios&históricos&se&reconhece&um&espaço&de&pertença&ou,&ainda,&que& antigas&fábricas&ou&vilas&operárias&seja&possível&identificar&(histoF ricamente& e& afetivamente)& o& cotidiano& e& o& trabalho& (MENESES,& 2000).&Atentamos&para&uma&dupla&alteração:&inclusão&de&novos&teF mas&no&rol&dos&estudos&históricos,&mas&também&da&dimensão&afetiF va,&como&componente&admitido&nas&justificativas&de&preservação.& Reside&aqui&o&potencial&de&reconhecimento&público&da&importância& cultural&de&um&grupo&social:&o&ato&de&preservar&tornaFse&ato&político& de&reconhecimento&de&uma&identidade&social. É&nestes&termos&que&consideramos&a&questão&dos&usos&sociais& nos&casos&acima&citados&ou&nas&noções&apresentadas.&Em&primeiro& lugar,& apresentando& os& novos& conceitos& de& história& e& patrimônio,& chamamos& a& atenção& para& a& atribuição& de& valores& por& meio& dos& objetos& e& das& práticas& patrimoniais.& Em& segundo& lugar,& elencanF do& a& série& de& cartas& patrimoniais& que& ganham& forma& em& organisF mos&internacionais,&observamos&uma&pretensão&universalizante&do& patrimônio&cultural&(vestígio&de&humanidade)&e&de&exercício&políF tico& da& cidadania.& Por& terceiro,& acompanhando& alguns& processos& de& proteção& legal& no& âmbito& do& estadual& paulista,& notamos& que& a& identificação,& preservação& e& reabilitação& do& patrimônio& cultural& apresentamFse& como& um& processo& político& e& cultural& envolvendo& diversos&agentes&sociais:&Estado,&associações&civis,&empresas,&uniF 119 EDUCAÇÃO,1IDENTIDADES1E1PATRIMÔNIO versidades,&dentre&outros.&Isto&nos&faz&pensar&nos&usos&sociais&em& função& da& produção& dos& espaços& em& que& se& quer& intervir& (JOSÉ,& 2007)& e& da& produção& de& sensações& na& reocupação& dos& objetos& e& edifícios.& Por& fim,& cabe& concluir& que& o& patrimônio& cultural& pode& ser&concebido&como&uma&dimensão&material&resultante&de&disputas& pela&legitimidade&de&valores&e&identidades. 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