Revista OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018. ISSN: 1982-3878
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br
PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DO CRIME
DE LESA PÁTRIA DE TEMER: os Decretos
9.309, 9.310 e 9.311/2018
Eliane Tomiasi Paulino
Universidade Estadual de Londrina
Resumo
A quebra das regras democráticas que culminaram na impostura de Michel Temer
à presidência da república é analisada a partir de um fator gerador, o contexto de
oportunidade de classe para os grandes invasores das terras públicas no Brasil.
Embora a desenvoltura dos latifundiários travestidos de capitalistas e vice versa
não seja tratada como uma novidade, depreende-se que a sua intensificação ao
longo dos governos do Partido dos Trabalhadores resultou de uma opção política
orientada para a renúncia às transformações estruturais ante a perspectiva de
mediação de conflitos inconciliáveis como o são aqueles que opõem saqueadores
do bem comum ao restante da sociedade. Os decretos que liquidam a grilagem
premiando os grileiros são o ponto culminante da gestão territorial temerária do
Estado que, ao invés de coibi-la, a vem favorecendo desde a instauração dos
marcos introdutórios do regime de propriedade privada. O critério da compra em
hasta pública como condição para a obtenção das terras públicas
simultaneamente à proibição das posses foram a maneira de bloquear de fato os
acessos potencialmente incompatíveis com o monopólio de classe, mas os
bloqueios de direito graças aos atos de Temer são entendidos como ônus de longa
duração que mais cedo ou mais tarde terão que ser confrontados pela sociedade.
Palavras-chave: Golpe; Decretos; Terra pública.
NOT TO MENTION THAT I DID NOT SPEAK OF THE
CRIME OF THE HOMELAND OF TEMER: decrees
9,309, 9,310 and 9,311/2018
Abstract
Culminating in the imposture of Michel Temer as president of the republic, one
analyzes the breaking of democratic rules from a generating factor: the context of
class opportunity for big invaders of public lands in Brazil. Though the
resourcefulness of landowners disguised as capitalists - and vice versa - is not
addressed as a novelty, one understands that its intensification during the years
of the Brazilian Workers’ Party's government resulted in an policy option that
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waivers structural transformations at the prospect of mediating incompatible
conflicts, such as those that oppose looters of common property from the rest of
society. Decrees rewarding trespassers by liquidating their appropriation of land
by means of forged deeds are the heyday of a harsh territorial management by a
State that, rather than restraining, has favoured such acts with the institution of
the so-called introductory landmarks of the private property regime.
Simultaneously with the prohibition of possessions, the criterion of judicial sale as
a condition for obtaining public lands was an actual way to prevent access
potentially incompatible with class monopoly, but the blocking of rights resulting
from president Temer's actions are regarded as a long-lasting burden that sooner
or later shall be confronted by the Brazilian society.
Key-words: Coup d'etat; Decrees; Public land.
INTRODUÇÃO
Quisera eu falar de flores, no sentido da prevalência do direito de viver num
momento histórico em que as semeaduras são promissoras a ponto de nos
investir da esperança nas colheitas boas. As flores as precedem e são elas que vão
ceder passagem aos frutos. Eis o sentido da canção que embalou a resistência a
um tempo árido, pouco distante e tão precocemente reincidente.
Falar de flores é, de certo modo, uma imposição a quem tem como função pública
construir saberes, porque sem ser adepto do belo, no sentido do maior desafio
humano que é o de ampliar as possibilidades de um mundo melhor, não há
qualquer relevância no que se dissemina como se fecundo fosse.
Mas fazê-lo em meio à decrepitude exige uma perspectiva de tempo mais
alargada do que o imediatismo de uma vida ou, quiçá, de algumas gerações. Os
jovens, nossos mais numerosos interlocutores, precisam tanto quanto nos foi
necessário, de um horizonte para levar adiante o desafio ético de jamais renunciar
à missão de colocar o tijolo diário no muro da civilização.
Essa é a guerra para a qual deve servir a Geografia, como estava convicto Lacoste
(1998), mas o tempo cíclico e propício à barbárie que novamente se insinua é o da
disposição ao ódio e à intolerância. Nesse caso, para poupar animosidades
estéreis com os que vivem do e para o esforço intelectual mínimo, há que se fazer
uma observação prévia, extensiva também aos que atualmente se submetem à
condição de caçadores de ideólogos na academia, assim como no passado houve
os que se prestaram à condição de capitães do mato e de detratores de bruxas.
Este não é um texto ideológico. Por mais que pareça desnecessário afirma-lo,
equívocos rasos também estão na ordem do dia: ideologia tem a ver com os
sistemas de representação para a manutenção da ordem estabelecida, à qual
procuramos repudiar porque as evidências que a realidade oferece não convida à
omissão. A hipocrisia vive da neutralidade pretensiosa que, aliás, autoriza rotular
de apologia ideológica tudo que destoe das verdades ditas objetivas que se
encontram em alta nas tribunas, tribunais, casernas, impérios midiáticos e redes
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sociais. Há tempos não se via tamanha eficácia dos argumentos de autoridade
conforme denunciava Abramo (2003).
Este é um ensaio cuja pretensão é contribuir para a utopia. Segundo Mannheim
(1999), a utopia se contrapõe à ideologia precisamente por evocar a ruptura e a
subversão à ordem burguesa. Ela requer o diálogo com a realidade objetiva, como
forma de expor os consensos forjados nas profundezas da ignorância civilizatória
simulada ou inocente, mas necessariamente útil à perpetuação da dominação e
controle. Ideologia e utopia são, portanto, testemunhas siamesas das disposições
presentes frente o futuro.
Isso tem a ver com o método. É o método que nos autoriza a trabalhar com a
perspectiva de abundância como sinônimo de vida e não de dividendos mal
rateados. Pelo método, ceifadores se apartam e se distinguem dos bonipatresi do
devir, por isso nunca é demais pensar o campo para além da ideologia do
progresso e o campesinato para além das interpretações de classe que
pavimentaram o caminho da barbárie não apenas como representação invertida,
mas como realidade objetiva. Pois como ensina Shanin (2008, p. 23) “as mudanças
não decorrem apenas do uso de armas, de fatores econômicos e disputas
políticas, elas se realizam também por meio do constante avanço do
conhecimento, porque a verdade tem uma capacidade revolucionária para
transformar sociedades”.
Neste sentido, o dossiê “O Governo Michel Temer e a Questão Agrária” veio em
hora oportuna, pois do mesmo modo que há peças que o tempo se encarrega de
desgastar e os governos para os mortos tratam de restaurar neste museu de
grandes novidadesii, há também espaço alargado para a recusa à ideologia. Esse é
o fundamento da resistência que move a história.
Neste texto nos ocuparemos das estratégias discricionárias que por força de três
decretos, emanados de uma Lei, alcançaram o feito de varrer simultaneamente a
invasão de terras e também a reforma agrária. Trata-los à luz da
inconstitucionalidade não traduz a complexidade dos elementos que os explicam,
porque todo Estado de Exceção é o resultado de um acúmulo das violações
constitucionais. Isso não ocorre da noite para o dia e envolve, além do apoio de
fração representativa da sociedade, os poderes executivo, legislativo e judiciário,
sem distinção ou hierarquias precisas.
Por tais razões, não se poderá atribuir as proposições ali contidas exclusivamente
ao atual Presidente da República, que chegou a esse posto porque o pacto
democrático já estava comprometido. Especificamente em relação ao conteúdo
sobre os quais nos debruçaremos, o Governo do Partido do Trabalhadores o
gestou dia após dia e só o fez em nome das alianças estabelecidas desde a
composição da chapa que conduziria Luís Inácio Lula da Silva ao poder.
Desde 2003, numerosos estudos vinham revelando a gestão temerária da questão
agrária pelo governo e as implicações em termos de terra e território, não tendo
sido poucas as baixas nos quadros políticos e de intelectuais efetivamente
comprometidos com as reformas estruturais que o povo brasileiro havia aprovado
nas urnas. Mais uma evidência que no horizonte da sociedade de classes não há
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espaço para capitulações e o desfecho dos fatos o comprova: a avidez pela
acumulação ampliada não comporta escrúpulos. De qualquer modo, mirar o
passado somente faz sentido naquilo que puder auxiliar na caminhada rumo ao
horizonte da justiça e da liberdade, conforme dito em verso, prosa e clamor.
Antecedentes do saque de lesa pátria
No dia 15 de março de 2018 três decretos presidenciais viriam coroar uma das
mais espetaculares vitórias de classe da era republicana: a ampla e definitiva
titulação das terras invadidas. O conteúdo não tem nada de novo, até porque
trata-se do esquartejamento da Lei 13.465, sancionada em 11 de julho de 2017,
não obstante algumas inovações táticas.
Seus trâmites mostram como no intervalo entre a propositura e a publicação
destes decretos, o assalto de classe ao bem comum avançou em ousadia e
desprendimento de travas legais. A Lei em questão resultou da Medida Provisória
759 cuja súmula era a seguinte:
Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a
liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma
agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da
Amazônia Legal, institui mecanismos para aprimorar a
eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da
União, e dá outras providências.
Embora o expediente de Medidas Provisórias seja uma constante na história
recente do Brasil, do ponto de vista constitucional uma Medida Provisória se
justifica tão somente em situações de urgência, cabendo ao parlamento sua
análise para a devida conversão em Lei. Até mesmo a data da sanção desta MP,
22 de dezembro, é por demais sugestiva, pois frequentemente somente fins
obscuros tem feito os políticos se disporem ao trabalho às vésperas do natal. A
distração geral nesta época do ano e a prolongada paralisação dos tribunais e das
rotinas legislativas favorecem sobremaneira as artimanhas regimentais contrárias
ao interesse público.
Não obstante, a manobra foi objeto de atenção da Procuradoria Geral da
República, mais precisamente do Grupo de Trabalho Terras Públicas, da Câmara
de Coordenação e Revisão, cuja função é subsidiar os trabalhos do Ministério
Público Federal na fiscalização dos atos administrativos referentes à ocupação
fundiária e gestão das terras públicas.
Em janeiro de 2017 a Procuradoria Geral da República já havia elaborado uma
nota técnica com 32 páginas de apontamentos sobre as inconstitucionalidades da
MP (PGR 2017, p. 2, 3), ante as justificativas inaplicáveis ao enquadramento de
urgência e a estratégia jabuti, um golpe aplicado por legisladores para incluir
adendos indevidos em projetos de Lei ou Medidas Provisórias.
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No caso em questão, a legalização da grilagem veio como solução à suspenção da
política de reforma agrária devido a uma medida cautelar impetrada pelo Tribunal
de Contas da União (representação TC 000.517/2016-0) pouco antes de Michel
Temer assumir o governo. Seu conteúdo encontra-se sumarizado nos seguintes
termos:
Indícios de irregularidades na seleção de beneficiários do
programa nacional de reforma agrária. Indícios de
irregularidades na situação ocupacional dos lotes de reforma
agrária. Oitiva prévia. Não afastamento dos requisitos
ensejadores da cautelar pleiteada. Suspenção cautelar dos
processos de seleção e assentamento de novos beneficiários.
Suspensão de novos pagamentos e remissões dos créditos de
reforma agrária. Suspensão do acesso a outros benefícios e
políticas públicas atrelados aos benefícios da reforma agrária.
Escopo da cautelar com atingimento unicamente dos
beneficiários apontados como irregulares. Possibilidade de
reversão da cautelar pelo próprio beneficiário junto ao Incra,
mediante comprovação da regularidade de sua situação
ocupacional. (TCU, 2016, p. 1).
Baseado no descritivo de 15 situações passíveis de imputação de ilegalidade, o
documento não só chega a estimativa de que haveria 591.415 famílias em
situação irregular, como por meio de um cálculo sobre o que é denominado de
custos de oportunidade sobre as terras pretensamente ocupadas irregularmente
pelos assentados, anuncia que tais famílias provocaram um prejuízo de 41 bilhões
ao governo federal (TCU, 2016, p. 17).
O método da generalização a partir de situações pontuais permite ao TCU
construir a peça a partir de suposições espetaculares, como a de que a reforma
agrária promove a extorsão do Estado em favor dos ricos. Sinais exteriores de
riqueza identificados pelo registro de propriedade de cinco automóveis de alto
luxo em nome de assentados (TCU, 2016, p.11) foram evocados para justificar a
suspeição sobre mais de meio milhão de famílias camponesas.
Obviamente isso só poderia emergir dos exercícios mentais daqueles que
provavelmente jamais pisaram num assentamento e sequer se deram ao trabalho
de conhecer os dados oficiais, ou se recusaram a fazê-lo porque os dados
públicos, com todas as suas limitações, revelam tendências perturbadoras aos
discursos e práticas dessa estirpe. A destruição da metodologia historicamente
utilizada nos Censos Agropecuários e que irá ficar explícita na próxima apuração o
comprova. Fica aos adeptos da imobilidade confortável o consolo da dúvida sobre
a idoneidade de tais medidas.
Apesar das omissões deste mesmo TCU, que no âmbito administrativo não adotou
qualquer procedimento similar contra a legalização da grilagem, cujos prejuízos
aos cofres públicos estão sinalizados mais a frente, a MP 759 prosseguiu o curso
legislativo alheia aos óbices do Ministério Público. Em quatro meses a Câmara dos
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Deputados fez o necessário para agilizar os procedimentos, apreciar, aprovar e
enviá-la ao Senado, não sem a incorporação de 732 emendas e da mudança para
o status de Projeto de Lei de Conversão (BRASIL, 2017, p. 1).
Sob a forma de Lei devidamente sancionada por Michel Temer em julho de 2017,
seguiu desafiando o Estado de Direito. Em agosto do mesmo ano, o então
Procurador Geral da República Rodrigo Janot impetrou a primeira Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 5771, 2017, p. 2-4), na qual se lê:
A Lei 13.465/2017, além de ser fruto de medida provisória
destituída dos requisitos constitucionais de relevância e
urgência, afronta múltiplos princípios e regras constitucionais,
como o direito a moradia, o direito a propriedade e o
cumprimento de sua função social, a proteção do ambiente, a
política de desenvolvimento urbano, o dever de compatibilizar
a destinação de terras públicas e devolutas com a política
agrícola e o plano nacional de reforma agrária, os objetivos
fundamentais da República, a proibição de retrocesso, o
mínimo existencial e o princípio da proporcionalidade, a
competência
constitucionalmente
reservada
a
lei
complementar, a competência da União para legislar sobre
Direito Processual Civil, a previsão de que o pagamento de
indenizações da reforma agrária será em títulos da dívida
agrária, a exigência de participação popular no planejamento
municipal e as regras constitucionais do usucapião especial
urbano e rural.
Posteriormente, duas outras ADIs foram impetradas: uma pelo Instituto dos
Arquitetos do Brasil (ADI 5883, 2018), tratando especificamente da
inconstitucionalidade relativa à regularização fundiária urbana, igualmente
devastadora, e a impetrada pelo Partido dos Trabalhadores (ADI 5779, 2017, p.
10) que nos interessa mais de perto, a começar pela justificativa contida na
proposição:
Com relação à regularização fundiária rural a Lei 13.465, de
2017, dissocia a destinação de terras públicas e devolutas da
política agrícola do plano nacional de reforma agrária, previsto
no artigo 184 da Constituição Federal. Em síntese, ao permitir
o acesso indiscriminado, sem requisitos prévios, à terra
pública, a lei combatida garante o acesso às pessoas de alta
renda e proprietários de grandes faixas de terra, a Lei ignora
os princípios centrais da reforma agrária, da justiça social,
ampliando a desigualdade e se afastando do quanto previsto
nos objetivos da República.
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A precisão da interpretação dispensa ressalvas, do mesmo modo que não há
dúvida alguma em relação à pertinência da ADI. O problema é que foi justamente
o PT que a instaurou, por meio do Programa Terra Legal. Em nome da proteção
jurídica aos posseiros da Amazônia, Lula sancionou a Lei 11.952/2009, cujo teor
difere apenas pontualmente do que está aqui em questão. Vejamos um excerto
da ADI impetrada na ocasião pela Procuradora Geral da República, Debora
Macedo Duprat de Brito Pereira:
A Lei 11.952/2009, que resultou da conversão da MP
458/2009, ‘dispõe sobre a regularização fundiária das
ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União,
no âmbito da Amazônia Legal’. O referente ato normativo
prevê, dentre outras medidas, a transferência de propriedade
fundiária ou a concessão de direito real de uso, de terras
rurais da União de até 1.500 hectares para pessoas físicas
brasileiras [...]. De acordo com dados do Governo Federal, as
áreas destinadas à regularização fundiária representam cerca
de 67 milhões de hectares, o que corresponde à
aproximadamente 13,42% de toda a Amazônia Legal. Trata-se,
portanto, de uma imensidão de terras públicas [...] superior ao
território de países como a França, a Espanha e a Alemanha
[...]. Portanto, foi legalmente autorizada a apropriação privada
de valiosíssimo patrimônio público [...] instituindo privilégios
injustificáveis em favor de grileiros que, no passado, se
apropriaram ilicitamente de vastas extensões de terra pública.
Estas grilagens frequentemente envolveram emprego extremo
de violência, uso de trabalho escravo e degradação, em
grande escala, do meio ambiente [...]. Além da ofensa à
igualdade, verifica-se um nítido desvio de poder legislativo, já
que não se vislumbra na diferenciação adotada qualquer
resquício de interesse público, mas apenas o indisfarçado
propósito de favorecer os mais poderosos, abrindo espaço
para que pratiquem especulação imobiliária ao abrigo da lei.
Eles poderão obter lucro extraordinário com o ‘negócio’, pois
receberão as terras públicas, sem licitação, em condições
econômicas extremamente favoráveis e poderão revende-las
pouco tempo depois, a preço de mercado, locupletando-se às
custas do Erário. (ADI 4269, 2009, p. 2-3, 14)
Como a história que se repete, primeiro como tragédia e segundo como farsa, a
batalha jurídica da qual essa ADI é parte e, tampouco a luta política contra a
barbárie agrária, não foi suficiente para confrontar os apetites do latifúndio que o
governo de Lula procurou saciar.
O saldo pode ser contado de diversas maneiras, como em vidas eliminadas, em
florestas abatidas, mas também no oportunismo de classe tão logo foram dadas
as condições concretas de encurtar o caminho para o saque ao patrimônio público
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e aumentar as suas proporções, a julgar pela movimentação da bancada ruralista
pelo impeachment de Dilma Rousseff.
As vésperas da instauração do referido processo, a Frente Parlamentar
Agropecuária (FPA) se reuniu com o então vice presidente Michel Temer para lhe
emprestar apoio na investida pelo cargo presidencial, momento em que foi
tornada pública a denominada Pauta Positiva. Trata-se de um documento de sete
páginas que sintetiza, com metas adicionais, uma publicação que já havia
circulado em eleições presidenciais anteriores. Dentre as 37 associações de classe
que assinam o documento, algumas sequer tem vínculo com o setor primário,
prova de que o golpe foi orquestrado por uma coalizão reveladora de como opera
a lógica do capitalismo rentista (MARTINS, 1994).
A publicidade ao rompimento com o governo de Dilma Rousseff veio embalada
pela justificativa de que a política do PT estava “eivada de ideologias contrárias ao
setor” (FPA, 2016, p. 1). Tal falácia se desvela no generoso aporte creditício que
Dilma Roussef havia acabado de conceder aos ruralistas, estratégia que, aliás, foi a
tônica do PT, pois no compasso dos aumentos substanciais dos recursos para a
agricultura, aumentou também a assimetria entre os capitalistas e a agricultura
familiar. Seu último plano safra destinou apenas 12,7% para os camponeses
(MAPA, 2017), enquanto no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, mais
precisamente no Plano Safra 2001/2002, a proporção fora de 21,1% (BIANCHINI,
2015, p. 107).
Não foram apenas os ruralistas que fizeram acusações falsas e seguem omitindo a
verdade sobre a proporção dos investimentos e destinação dos recursos públicos.
Mais do que os pobres, o empresariado desfrutou de benesses fiscais e creditícias
como nunca e a classe média experimentou uma ampliação no poder de compra
sem precedentes.
Para escapar à subjetividade para compreender os fundamentos do ódio
aparentemente inexplicável e que, ao invés de ter sido aplacado tão logo
consumada a nova ordem, segue sua escalada ascendente, nada como voltar aos
anais da história:
Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se
haviam congregado no partido da ordem, contra a classe
proletária, considerada como o partido da anarquia, do
socialismo, do comunismo. Tinham ‘salvo’ a sociedade dos
‘inimigos da sociedade. Tinham dado como senhas a seus
exércitos as palavras de ordem da velha sociedade –
‘propriedade, família, religião, ordem - e proclamado aos
cruzados da contra-revolução: ‘sob este signo vencerás’. A
partir desse instante, tão logo um dos numerosos partidos que
se haviam congregado sob esse signo contra os insurretos de
junho tenta assenhorear-se do campo de batalha
revolucionário em seu próprio interesse de classe, sucumbe
ante o grito: ‘Propriedade, família religião, ordem’. A
sociedade é salva tantas vezes quantas se contrai o círculo de
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seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe ao
mais amplo. (MARX, 2011, p. 10. Grifos do autor).
Fica a critério do leitor julgar a atualidade dos fatos transcritos, inclusive porque
neste momento encontra-se na cadeia o líder máximo do movimento que
desencadearia situação não muito diferente no Brasil. Ademais, não há evidências
seguras sobre qual será o desfecho de tudo isso, porque o pretenso crime que o
encarcerou é desprezível se comparado aos daqueles que atualmente comandam
o país, segundo os mesmos parâmetros de provas e enquadramentos jurídicos.
Para além de suposições, cabendo à justiça o seu enfrentamento e ao tempo a
sentença dos fatos, é oportuno tratar dos crimes de lesa pátria que ora nos ocupa,
sobre os quais não haverá reversão em curto e médio prazo, restando ao povo
brasileiro construir a ousadia do sonho de reconstrução do país a partir dos
escombros que restarão.
Os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 no contexto da ruptura dos princípios
constitucionais
A desordem fundiária no Brasil não resulta da incapacidade do Estado em assumir
a gestão territorial como tarefa primordial, muito pelo contrário. Ela expressa o
eficiente projeto de classe para o qual a aplicação discricionária dos instrumentos
legais do ordenamento público pode ser conduzido segundo a dinâmica das
contradições geradas em seu bojo.
A Lei 13.465/2017 foi a coroação, pelo Poder Legislativo, da burla do Presidente
da República aos mecanismos constitucionais que as Medidas Provisórias
impõem. Não custa lembrar que o contexto da sua proposição ainda era aquele
em que o poder das forças explicitamente reacionárias não estava
suficientemente dimensionado. Conquanto o êxito do golpe parlamentar, restava
ainda uma dose necessária de dissimulação ante a sociedade brasileira, pois a
interrupção das conquistas sociais poderia gerar situações trabalhosas, do ponto
de vista do controle, sem falar na prudência oportuna no plano geopolítico, pois a
quebra das regras democráticas costuma trazer constrangimentos diplomáticos
no plano internacional.
Confirmado o céu de brigadeiro no voo rumo ao passado, para o qual a
fragilização da capacidade de confrontação cidadã foi determinante, era chegada
a ora de regulamentação da Lei em questão. Assim surgiram os decretos 9.309,
9.310 e 9.311, cada qual com um objetivo diverso mas que, em termos práticos e
pela ordem, seriam:
10: titulação de todos os imóveis rurais grilados no país;
20: regularização do legado urbano da grilagem;
30: implosão da gestão territorial consoante aos princípios da função social da
terra.
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Em face da abrangência e natureza do Decreto 9.310, que trata especificamente
da titulação do solo urbano, nos furtaremos à sua análise, interessando-nos a
correlação do imbróglio ali verificado à dinâmica imposta pelo latifúndio, pois a
cidade é a expressão adensada das acessibilidades cujo ponto de partida é a
divisão do solo.
De acordo com Oliveira (2003), no Brasil o capitalismo tem pés de barro, ou seja,
não se sustenta enquanto tal, pois o ato instaurador do direito de propriedade, a
compra, não existiu. Em regra, a cadeia dominial sobre a qual os títulos válidos
estão vinculados foi objeto de fraude, seja ela documental, processada nos
cartórios, seja ela administrativa, levada a cabo pelo poder executivo. No período
republicano, não há registros de cidades fundadas em áreas compradas em leilão
por quem quer que seja, como expressamente determinado pela Lei de Terras.
Oportunamente, Silva (1996) revela a inconsistência da vinculação entre o
monopólio fundiário presente e a herança do regime sesmarial, ao mostrar que a
produção do território, proporcionalmente falando, foi uma empreitada muito
mais oligárquico-republicana do que colonial, pois a fração anteriormente
incorporada estava restrita a parcos núcleos interioranos dispersos, somados ao
povoamento mais denso na área costeira.
Portanto, a obstrução ao florescimento de um povoamento orientado pela função
social da terra configura-se pelo que Marés (2003) denomina de transição do
império do latifúndio para a república do latifúndio, em virtude de as estruturas
fundamentais que deram suporte ao primeiro terem sido aprimoradas, ao invés
de terem sido suplantadas hodiernamente. Não por acaso, a prática recorrente
das negociações e acordos escusos de governantes prosperou segundo as
conveniências de ocasião, resultando na progressiva dilapidação do patrimônio
devoluto.
O Norte do Paraná, tal qual está representado no mapa, é um bom exemplo, pois
em 1924 o governo federal simplesmente o doou para uma empresa inglesa. Essa
fração territorial correspondente a uma terça parte do território dinamarquês foi
forjada em cima de possessões do campesinato expulso anteriormente pela
frente pioneira, sobre o despojo do território Kaingang, hoje confinado em
reservas diminutas e também da nação Xetá, cujo genocídio motivado pelo
interesse nas terras foi de tal ordem que atualmente restam apenas sete
indígenas (QUEM, 2018).
Em nome da necessidade de aumentar os investimentos públicos para a
dinamização da economia e consequente reversão tributária, frente à suposta
incapacidade de realizar a divisão dos lotes e a dotação mínima de infraestrutura
de circulação e suporte, o Estado transferiu o solo e sua gestão aos ingleses, na
forma de concessão. Na prática, lhes foi outorgado o direito de vender as terras
dos brasileiros a eles próprios.
Até a designação da medida é suficiente para dirimir eventuais dúvidas: projeto
de colonização. Ocorre que o termo colonização é um distrator para a prática da
invasão, por meio de uma inversão linguística extraordinária: travestir barbárie de
civilização. Seja para estrangeiros, seja para nacionais, o fato é que a república do
latifúndio foi dilapidando o patrimônio devoluto na exata medida das relações
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espúrias entre sustentação política e favorecimento econômico, conforme
elucidou Faoro (2008).
A ineficácia administrativa combinada com a negligência jurídica é parte do
modus operandi de apropriação das terras públicas segundo a lógica do
monopólio que, desde os albores da república e sem exceção, vem projetando as
figuras econômica e politicamente mais proeminentes onde quer que seja. Assim
os concessionários e os grileiros começaram e continuam acedendo às glebas e
expulsando quem quer que seja um obstáculo para a apropriação ilícita. Não por
acaso, na borda fronteiriça as cidades nascem como “patrimônios”, ou seja,
núcleos agregadores dos negócios indispensáveis à fixação de uma população.
Ocorre que cada vez mais a produção de cidades integral ou parcialmente ilegais
foi se tornando incompatível com as operações mercantis respaldadas em fidúcia
imobiliária, seja o comércio de imóveis ou quaisquer operações que os exigem
como garantia. É a necessidade da denominada segurança jurídica para o
mercado que explica o Decreto 9.310, já que uma parte substancial das terras
urbanas não possuem matrículas que permitam o registro dos terrenos
negociados ao ritmo da expansão dos perímetros urbanos.
Os sinais da indissociabilidade entre campo e cidade e do esbulho fundiário de
norte a sul são muitos, mas Porto Velho, a capital de Rondônia, é um bom
exemplo: originada da concessão prêmio para a construção da Ferrovia Madeira
Mamoré, tem como fundador Percival Farquhar, o capitalista pivô da Guerra do
Contestado, o enfrentamento campesino mais sangrento da história do Brasil.
Atualmente com mais de 500 mil habitantes, esta cidade está forjada sobre terras
sem matrícula dominial em vista do acúmulo de operações ilegais com terras
públicas, de modo que não há como registrar muitos imóveis urbanos, inclusive
aqueles comprados de boa fé. Nos últimos anos, várias tentativas de regularização
fundiária foram adotadas, com resultados ainda tímidos ante a magnitude do
problema (TAMBORIL; SILVA, 2016).
Aqui estamos tratando do intervalo de um século em que tais situações foram
possíveis, do mesmo modo que somente nos três governos conclusos do Partido
dos Trabalhadores (2003 a 2014), nada menos que 263.443.449 hectares, ou seja,
praticamente um terço do território brasileiro foi incorporado aos imóveis rurais
(PAULINO, 2017, p. 140). Este é um indício de que a possibilidade de legalização
potencializou a grilagem, pois obviamente uma parte destas terras já havia sido
apropriada anteriormente, não aparecendo nos registros porque a explicitação do
crime não era promissora.
Quanto ao Decreto 9.309, cabe destaque àquilo em que se distingue da Lei da
Grilagem estatuída por Lula em 2009 (Lei 11.952), já que sua função é
regulamentar as pretensões ampliadas das disposições já sancionadas: a
abrangência é uma delas já que, doravante, a obtenção do título de propriedade
aplica-se ao território nacional, e não mais à Amazônia Legal, como
anteriormente.
Do ponto de vista do tamanho do prêmio, além de os grileiros terem ganho o
direito à propriedade de 1.000 hectares adicionais, doravante todo e qualquer
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Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018
imóvel grilado terá 2.500 hectares legalizáveis. Como condicionante, apenas a
vaga menção à necessidade de desocupação da parte excedente, sem previsão de
como e quando isso ocorrerá e sem imputação de qualquer ônus penal ou civil.
Esse reconhecimento implícito da licitude das grandes invasões, em si grave,
expõe a tragédia reservada a um país refém do latifúndio, quando cotejado a
mudanças legais propostas simultaneamente: dois dias antes da publicação do
Decreto em questão, fora acatado o regime de urgência para votação em plenário
do Projeto de Lei 9.604/2018.
Caso seja aprovado, será acrescentado um inciso na Lei 13.260/2016 que
implicará em nada menos que a eliminação do direito à organização de
movimentos sociais, definindo-se como crime quando motivada pela intenção de
ocupação de imóveis urbanos ou rurais. A prática passará a ser tipificada como
ato terrorista com agravantes capazes de elevar a pena para 30 anos de reclusão.
Estratégias de classe dessa natureza não são exclusividade tupiniquim e tampouco
novidade na história, senão vejamos:
[...] mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos
amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram
regulamentadas de tal maneira que a burguesia no gozo delas,
se encontra livre de interferência por parte dos direitos iguais
das outras classes. Onde são vedadas inteiramente essas
liberdades ‘aos outros’ ou permitido o seu gozo sob condições
que não passam de armadilhas policiais, isto é feito sempre
apenas no interesse da ‘segurança pública’, isto é, da
segurança da burguesia, como prescreve a Constituição [...].
Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado e
impedida apenas a sua realização efetiva - de acordo com a
lei, naturalmente - a existência constitucional da liberdade
permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os
golpes assestados contra sua existência na vida real. (MARX,
2011, p. 14)
Outros aspectos são igualmente relevantes no Decreto Lei, a começar pela
flexibilização do critério para caracterização do princípio da cultura efetiva como
forma de reconhecimento do direito de propriedade: doravante é suficiente
auferir renda proveniente dos serviços ambientais. Logo, áreas intocadas e
eventualmente nem sequer conquistadas pela força, se burocraticamente
caracterizadas como posses mansas e pacíficas, cairão em domínio privado.
Por fim e não menos relevante são as condições de imissão do título de
propriedade para as terras griladas, agora submetidas à mesma tabela de preços
cobrada dos beneficiários da política de assentamentos. Os valores da terra nua
são definidos pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) a partir dos
preços pagos pelas terras desapropriadas para fins de reforma agrária. Detalhe: a
conta deriva da média simples dos últimos 20 anos e por município, caso tenha
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PAULINO, E. T.
havido negociações. Em caso negativo, recairá um preço regional, cujos valores
em vigor são os constantes na figura a seguir, acrescidos de 33%.
Figura 1: Valor mínimo da terra nua segundo o critério de regiões rurais (R$)
Fonte: INCRA (2017, p. 10).
Aquilo que no passado foi empregado pelo Estado em desfavor dos beneficiários
da política pública de reordenamento territorial, ou seja, a compra das piores
terras, seja em termos de localização, topografia, fertilidade e conservação, isso
sem falar na origem duvidosa dos títulos, explica apenas parcialmente valores tão
ínfimos. O fato é que a média simples num contexto de recuo no ritmo de
implantação de assentamentos faz com que o pico de valorização ocorrido no
período aqui considerado seja expressivamente expurgado do cálculo.
Não bastasse valores tão irrisórios, considerando os preços de mercado, há
compensações adicionais: os médios e grandes grilos pagarão entre 30 e 50% dos
valores constantes na tabela, isso se a opção for pelo pagamento pelo prazo de 20
anos, com 3 anos de carência a contar da data da emissão do título. Caso o
requerente opte pelo pagamento à vista, terá direito a um desconto adicional de
20% e 180 dias para fazê-lo.
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Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os fatos aqui analisados permitem vislumbrar como o alinhamento de classes
subsumido na criminalização de uma pretensa ideologia faz com que os
hipócritas, apoiados pelos inocentes úteis, lhe deem a devida materialidade sob o
manto e o mando das leis.
Em nome da segurança jurídica para os pobres, sejam eles camponeses ou
trabalhadores urbanos das periferias, estão sendo removidos os testemunhos
legais do crime de lesa pátria, a pilhagem do patrimônio público, ao mesmo
tempo em que se ajustam os requisitos básicos para a consumação do
ordenamento territorial regido pelo mercado. Adicionalmente, todos os que são
muito mais vítimas das invasões do que propriamente agentes do esbulho
fundiário rural e urbano encontram-se agora ameaçados pela privação dos mais
elementares direitos, que é o da vida, o da organização e o da liberdade, sem que
o ruído de panelas o anuncie.
A liquidação do patrimônio público prevista pelos Decretos 9.309, 9.310 e 9.311
recém instituídos chega às raias do inimaginável. A não ser que haja interdições
judiciais futuras, grileiros de áreas rurais da região metropolitana de São Paulo
poderão obter os títulos de propriedade ao preço referencial de R$ 1,00 por m2,
ao qual ainda deve ser aplicado os descontos mencionados, o que reduzirá a
centavos o preço do m2 na zona mais adensada do Brasil, pois nas regiões
metropolitanas o mercado de terras trabalha com a medida miúda, nunca em
hectares, como o faz o INCRA. Na região metropolitana de Curitiba, as invasões
sobre áreas públicas serão repassadas aos grileiros ao preço referencial
atualmente estimado em R$ 0,08 o m2, aplicando-se igualmente os descontos
previstos. (INCRA, 2017, p. 8)
O caso de Brasília, capital da república, merece um destaque à parte, pois em
virtude das sucessivas e superpostas ações de grilagem, as zonas onde estão os
ricos, tanto quanto onde vivem os pobres, até estes decretos não eram passíveis
de titulação. Vale lembrar que o imbróglio fundiário regido por legislação anterior
teve desfechos notáveis, como a condenação do Fundador da Companhia Aérea
Gol no ano passado, afora sentenças menores envolvendo diversos políticos,
dentre os quais dois governadores.
Cerca de meio milhão de habitantes do DF já vivem em
condomínios irregulares, sob a sombra da ilegalidade.
[...] como solução para a questão fundiária, cabe a
proposta de desestímulo real da atividade loteadora. Tal
intento deve ser atingido através da adoção de uma
estratégia que privilegie a punição patrimonial do
parcelador e dos compradores dos lotes. A
desapropriação sem indenização das áreas invadidas
será a justa medida para desestimular a invasão de
terras. A perda da propriedade através da
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PAULINO, E. T.
desapropriação sem indenização tem o caráter punitivo,
em razão dos malefícios que os invasores causaram e
por não cumprirem sua função social da propriedade.
(SILVA, 2006, p. 14).
Não obstante essa interpretação, respaldada na análise da Constituição e do
Código Civil Brasileiro, os invasores das áreas tipificáveis como rurais nas
periferias pobres, mas também nas zonas nobres do que o INCRA denomina como
Região Rural da Metrópole Nacional de Brasília, serão premiados com o título de
propriedade mediante o desembolso de um preço referencial de R$ 0,28 centavos
por m2, sobre os quais também recairão os descontos que poderão reduzi-lo em
mais da metade (INCRA, 2017, p. 8).
Em Anapu, os grileiros que assassinaram Dorothy Stang serão conduzidos à
condição legal de proprietários ao preço médio referencial de R$ 672,00 por
hectare, logicamente ilesos aos crimes relativos à prática. Em Eldorado dos
Carajás, local do massacre camponês que motivou a instituição do Dia Mundial
das Lutas Campesinas, o preço referencial médio por hectare está estipulado em
R$ 1.274,00. Em Pau d’Arco, onde mandantes impunes da Polícia Militar que há
um ano assassinou impunemente 10 camponeses, terão o direito à propriedade
ao valor referencial de R$ 1.274,00 em média pelo hectare subtraído do
patrimônio público e reivindicado pelos que tombaram pelo que era seu de
direito, como determina a Constituição Federal. Em todos os casos, recaem os
descontos previstos anteriormente mencionados. (INCRA, 2017, p. 14).
A assimetria dispensada às classes atingidas pela regularização fundiária não
admite desdém: por força do Decreto 9.311, que trata especificamente do público
da reforma agrária, o pagamento pela terra foi tornado compulsório a todos cujos
lotes tenham mais que um módulo fiscal, mesmo que o Estado não tenha
cumprido o plano de investimentos definidos em lei.
Para o Estado de Temer, assentados e grileiros se distinguem apenas em frações
de taxas referenciais para pagamento de valores da terra nua e de juros para o
pagamento a prazo, mas o limite para a regularização fundiária está estipulado
em 6% ao ano. Quando da publicação dos Decretos, os juros do cheque especial
do Banco do Brasil estavam fixados em aproximadamente 312% ao ano e na Caixa
Econômica Federal, o mais público dos bancos, praticava-se uma taxa anual de
mais de 311%. (LAPORTA, 2018).
As consequências da titulação da grilagem combinada com a liquidação do
princípio da função social como fundamento da política agrária são previsíveis: os
camponeses e os trabalhadores urbanos serão ainda mais alijados do acesso à
terra em vista do fortalecimento do mercado imobiliário.
Essa situação será potencializada nos assentamentos implantados pelos governos
petistas cuja estratégia foi a compra de terras e não a desapropriação: enquanto
na ocasião essa prática se constituiu em ato lesivo aos cofres públicos, pois a
compra foi muito mais onerosa do que o seria a desapropriação nos termos da
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Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018
legislação em vigor, agora vai punir os assentados, pois são exatamente nestes
municípios que os valores referenciais são os mais altos da tabela.
Aquilo que é uma pechincha para os grileiros e capitalistas ávidos por aumentar o
patrimônio, não o será para as vítimas da titulação compulsória, cujo desafio até o
momento fora o de sobreviver à política que, não raro, destinou-lhe as piores
terras e o abandono à própria sorte. Atente-se para a violência adicional que
consiste na revogação dos dispositivos que garantiam o mínimo de compromisso
do Estado para com a dotação de infraestrutura indispensável para a viabilização
econômica das famílias, como estradas, energia elétrica e disponibilização de
crédito inicial para instalação. Essa pode ser a pá de cal na reforma agrária
enquanto política e enquanto legado.
Diferentemente dos grileiros, para os quais não há qualquer condicionante
econômica para requerer o título de propriedade, somente poderão se inscrever
nos eventuais processos de seleção para projetos de assentamento as famílias
comprovadamente vinculadas ao trabalho no campo e cuja renda proveniente de
atividade não agrícola seja de até um salário mínimo mensal per capita. Tamanhas
afrontas à Constituição e à isonomia convidam a investir na utopia, pois
Ella está en el horizonte - dice Fernando Birri. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos.
Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine,
nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía?
Para eso sirve: para caminar.
Eduardo Galeano**
Pesquisa apoiada financeiramente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, processo 308147/2016-2, vigência: janeiro de 2017 a
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Contato com o autor: Eliane Tomiasi Paulino <eliane.tomiasi@uel.br>
Recebido em: 16/12/2017
Aprovado em: 22/07/2018
i Marx (1974) utiliza a expressão para tratar do compromisso de legar às gerações vindouras a terra
melhorada.
ii Parafraseando Ariovaldo Umbelino de Oliveira, que buscou em Cazuza a expressão que parece ser cunhada
sob a medida da questão agrária brasileira.
**
Las palavras andantes, 2001, p. 230.
OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018