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PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DO CRIME DE LESA PÁTRIA DE TEMER: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018

2018, OKARA: Geografia em debate

A quebra das regras democráticas que culminaram na impostura de Michel Temer à presidência da república é analisada a partir de um fator gerador, o contexto de oportunidade de classe para os grandes invasores das terras públicas no Brasil. Embora a desenvoltura dos latifundiários travestidos de capitalistas e vice versa não seja tratada como uma novidade, depreende-se que a sua intensificação ao longo dos governos do Partido dos Trabalhadores resultou de uma opção política orientada para a renúncia às transformações estruturais ante a perspectiva de mediação de conflitos inconciliáveis como o são aqueles que opõem saqueadores do bem comum ao restante da sociedade. Os decretos que liquidam a grilagem premiando os grileiros são o ponto culminante da gestão territorial temerária do Estado que, ao invés de coibi-la, a vem favorecendo desde a instauração dos marcos introdutórios do regime de propriedade privada. O critério da compra em hasta pública como condição para a obtenção das terr...

Revista OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018. ISSN: 1982-3878 João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DO CRIME DE LESA PÁTRIA DE TEMER: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 Eliane Tomiasi Paulino Universidade Estadual de Londrina Resumo A quebra das regras democráticas que culminaram na impostura de Michel Temer à presidência da república é analisada a partir de um fator gerador, o contexto de oportunidade de classe para os grandes invasores das terras públicas no Brasil. Embora a desenvoltura dos latifundiários travestidos de capitalistas e vice versa não seja tratada como uma novidade, depreende-se que a sua intensificação ao longo dos governos do Partido dos Trabalhadores resultou de uma opção política orientada para a renúncia às transformações estruturais ante a perspectiva de mediação de conflitos inconciliáveis como o são aqueles que opõem saqueadores do bem comum ao restante da sociedade. Os decretos que liquidam a grilagem premiando os grileiros são o ponto culminante da gestão territorial temerária do Estado que, ao invés de coibi-la, a vem favorecendo desde a instauração dos marcos introdutórios do regime de propriedade privada. O critério da compra em hasta pública como condição para a obtenção das terras públicas simultaneamente à proibição das posses foram a maneira de bloquear de fato os acessos potencialmente incompatíveis com o monopólio de classe, mas os bloqueios de direito graças aos atos de Temer são entendidos como ônus de longa duração que mais cedo ou mais tarde terão que ser confrontados pela sociedade. Palavras-chave: Golpe; Decretos; Terra pública. NOT TO MENTION THAT I DID NOT SPEAK OF THE CRIME OF THE HOMELAND OF TEMER: decrees 9,309, 9,310 and 9,311/2018 Abstract Culminating in the imposture of Michel Temer as president of the republic, one analyzes the breaking of democratic rules from a generating factor: the context of class opportunity for big invaders of public lands in Brazil. Though the resourcefulness of landowners disguised as capitalists - and vice versa - is not addressed as a novelty, one understands that its intensification during the years of the Brazilian Workers’ Party's government resulted in an policy option that OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 276 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 waivers structural transformations at the prospect of mediating incompatible conflicts, such as those that oppose looters of common property from the rest of society. Decrees rewarding trespassers by liquidating their appropriation of land by means of forged deeds are the heyday of a harsh territorial management by a State that, rather than restraining, has favoured such acts with the institution of the so-called introductory landmarks of the private property regime. Simultaneously with the prohibition of possessions, the criterion of judicial sale as a condition for obtaining public lands was an actual way to prevent access potentially incompatible with class monopoly, but the blocking of rights resulting from president Temer's actions are regarded as a long-lasting burden that sooner or later shall be confronted by the Brazilian society. Key-words: Coup d'etat; Decrees; Public land. INTRODUÇÃO Quisera eu falar de flores, no sentido da prevalência do direito de viver num momento histórico em que as semeaduras são promissoras a ponto de nos investir da esperança nas colheitas boas. As flores as precedem e são elas que vão ceder passagem aos frutos. Eis o sentido da canção que embalou a resistência a um tempo árido, pouco distante e tão precocemente reincidente. Falar de flores é, de certo modo, uma imposição a quem tem como função pública construir saberes, porque sem ser adepto do belo, no sentido do maior desafio humano que é o de ampliar as possibilidades de um mundo melhor, não há qualquer relevância no que se dissemina como se fecundo fosse. Mas fazê-lo em meio à decrepitude exige uma perspectiva de tempo mais alargada do que o imediatismo de uma vida ou, quiçá, de algumas gerações. Os jovens, nossos mais numerosos interlocutores, precisam tanto quanto nos foi necessário, de um horizonte para levar adiante o desafio ético de jamais renunciar à missão de colocar o tijolo diário no muro da civilização. Essa é a guerra para a qual deve servir a Geografia, como estava convicto Lacoste (1998), mas o tempo cíclico e propício à barbárie que novamente se insinua é o da disposição ao ódio e à intolerância. Nesse caso, para poupar animosidades estéreis com os que vivem do e para o esforço intelectual mínimo, há que se fazer uma observação prévia, extensiva também aos que atualmente se submetem à condição de caçadores de ideólogos na academia, assim como no passado houve os que se prestaram à condição de capitães do mato e de detratores de bruxas. Este não é um texto ideológico. Por mais que pareça desnecessário afirma-lo, equívocos rasos também estão na ordem do dia: ideologia tem a ver com os sistemas de representação para a manutenção da ordem estabelecida, à qual procuramos repudiar porque as evidências que a realidade oferece não convida à omissão. A hipocrisia vive da neutralidade pretensiosa que, aliás, autoriza rotular de apologia ideológica tudo que destoe das verdades ditas objetivas que se encontram em alta nas tribunas, tribunais, casernas, impérios midiáticos e redes OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 277 PAULINO, E. T. sociais. Há tempos não se via tamanha eficácia dos argumentos de autoridade conforme denunciava Abramo (2003). Este é um ensaio cuja pretensão é contribuir para a utopia. Segundo Mannheim (1999), a utopia se contrapõe à ideologia precisamente por evocar a ruptura e a subversão à ordem burguesa. Ela requer o diálogo com a realidade objetiva, como forma de expor os consensos forjados nas profundezas da ignorância civilizatória simulada ou inocente, mas necessariamente útil à perpetuação da dominação e controle. Ideologia e utopia são, portanto, testemunhas siamesas das disposições presentes frente o futuro. Isso tem a ver com o método. É o método que nos autoriza a trabalhar com a perspectiva de abundância como sinônimo de vida e não de dividendos mal rateados. Pelo método, ceifadores se apartam e se distinguem dos bonipatresi do devir, por isso nunca é demais pensar o campo para além da ideologia do progresso e o campesinato para além das interpretações de classe que pavimentaram o caminho da barbárie não apenas como representação invertida, mas como realidade objetiva. Pois como ensina Shanin (2008, p. 23) “as mudanças não decorrem apenas do uso de armas, de fatores econômicos e disputas políticas, elas se realizam também por meio do constante avanço do conhecimento, porque a verdade tem uma capacidade revolucionária para transformar sociedades”. Neste sentido, o dossiê “O Governo Michel Temer e a Questão Agrária” veio em hora oportuna, pois do mesmo modo que há peças que o tempo se encarrega de desgastar e os governos para os mortos tratam de restaurar neste museu de grandes novidadesii, há também espaço alargado para a recusa à ideologia. Esse é o fundamento da resistência que move a história. Neste texto nos ocuparemos das estratégias discricionárias que por força de três decretos, emanados de uma Lei, alcançaram o feito de varrer simultaneamente a invasão de terras e também a reforma agrária. Trata-los à luz da inconstitucionalidade não traduz a complexidade dos elementos que os explicam, porque todo Estado de Exceção é o resultado de um acúmulo das violações constitucionais. Isso não ocorre da noite para o dia e envolve, além do apoio de fração representativa da sociedade, os poderes executivo, legislativo e judiciário, sem distinção ou hierarquias precisas. Por tais razões, não se poderá atribuir as proposições ali contidas exclusivamente ao atual Presidente da República, que chegou a esse posto porque o pacto democrático já estava comprometido. Especificamente em relação ao conteúdo sobre os quais nos debruçaremos, o Governo do Partido do Trabalhadores o gestou dia após dia e só o fez em nome das alianças estabelecidas desde a composição da chapa que conduziria Luís Inácio Lula da Silva ao poder. Desde 2003, numerosos estudos vinham revelando a gestão temerária da questão agrária pelo governo e as implicações em termos de terra e território, não tendo sido poucas as baixas nos quadros políticos e de intelectuais efetivamente comprometidos com as reformas estruturais que o povo brasileiro havia aprovado nas urnas. Mais uma evidência que no horizonte da sociedade de classes não há OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 278 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 espaço para capitulações e o desfecho dos fatos o comprova: a avidez pela acumulação ampliada não comporta escrúpulos. De qualquer modo, mirar o passado somente faz sentido naquilo que puder auxiliar na caminhada rumo ao horizonte da justiça e da liberdade, conforme dito em verso, prosa e clamor. Antecedentes do saque de lesa pátria No dia 15 de março de 2018 três decretos presidenciais viriam coroar uma das mais espetaculares vitórias de classe da era republicana: a ampla e definitiva titulação das terras invadidas. O conteúdo não tem nada de novo, até porque trata-se do esquartejamento da Lei 13.465, sancionada em 11 de julho de 2017, não obstante algumas inovações táticas. Seus trâmites mostram como no intervalo entre a propositura e a publicação destes decretos, o assalto de classe ao bem comum avançou em ousadia e desprendimento de travas legais. A Lei em questão resultou da Medida Provisória 759 cuja súmula era a seguinte: Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União, e dá outras providências. Embora o expediente de Medidas Provisórias seja uma constante na história recente do Brasil, do ponto de vista constitucional uma Medida Provisória se justifica tão somente em situações de urgência, cabendo ao parlamento sua análise para a devida conversão em Lei. Até mesmo a data da sanção desta MP, 22 de dezembro, é por demais sugestiva, pois frequentemente somente fins obscuros tem feito os políticos se disporem ao trabalho às vésperas do natal. A distração geral nesta época do ano e a prolongada paralisação dos tribunais e das rotinas legislativas favorecem sobremaneira as artimanhas regimentais contrárias ao interesse público. Não obstante, a manobra foi objeto de atenção da Procuradoria Geral da República, mais precisamente do Grupo de Trabalho Terras Públicas, da Câmara de Coordenação e Revisão, cuja função é subsidiar os trabalhos do Ministério Público Federal na fiscalização dos atos administrativos referentes à ocupação fundiária e gestão das terras públicas. Em janeiro de 2017 a Procuradoria Geral da República já havia elaborado uma nota técnica com 32 páginas de apontamentos sobre as inconstitucionalidades da MP (PGR 2017, p. 2, 3), ante as justificativas inaplicáveis ao enquadramento de urgência e a estratégia jabuti, um golpe aplicado por legisladores para incluir adendos indevidos em projetos de Lei ou Medidas Provisórias. OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 279 PAULINO, E. T. No caso em questão, a legalização da grilagem veio como solução à suspenção da política de reforma agrária devido a uma medida cautelar impetrada pelo Tribunal de Contas da União (representação TC 000.517/2016-0) pouco antes de Michel Temer assumir o governo. Seu conteúdo encontra-se sumarizado nos seguintes termos: Indícios de irregularidades na seleção de beneficiários do programa nacional de reforma agrária. Indícios de irregularidades na situação ocupacional dos lotes de reforma agrária. Oitiva prévia. Não afastamento dos requisitos ensejadores da cautelar pleiteada. Suspenção cautelar dos processos de seleção e assentamento de novos beneficiários. Suspensão de novos pagamentos e remissões dos créditos de reforma agrária. Suspensão do acesso a outros benefícios e políticas públicas atrelados aos benefícios da reforma agrária. Escopo da cautelar com atingimento unicamente dos beneficiários apontados como irregulares. Possibilidade de reversão da cautelar pelo próprio beneficiário junto ao Incra, mediante comprovação da regularidade de sua situação ocupacional. (TCU, 2016, p. 1). Baseado no descritivo de 15 situações passíveis de imputação de ilegalidade, o documento não só chega a estimativa de que haveria 591.415 famílias em situação irregular, como por meio de um cálculo sobre o que é denominado de custos de oportunidade sobre as terras pretensamente ocupadas irregularmente pelos assentados, anuncia que tais famílias provocaram um prejuízo de 41 bilhões ao governo federal (TCU, 2016, p. 17). O método da generalização a partir de situações pontuais permite ao TCU construir a peça a partir de suposições espetaculares, como a de que a reforma agrária promove a extorsão do Estado em favor dos ricos. Sinais exteriores de riqueza identificados pelo registro de propriedade de cinco automóveis de alto luxo em nome de assentados (TCU, 2016, p.11) foram evocados para justificar a suspeição sobre mais de meio milhão de famílias camponesas. Obviamente isso só poderia emergir dos exercícios mentais daqueles que provavelmente jamais pisaram num assentamento e sequer se deram ao trabalho de conhecer os dados oficiais, ou se recusaram a fazê-lo porque os dados públicos, com todas as suas limitações, revelam tendências perturbadoras aos discursos e práticas dessa estirpe. A destruição da metodologia historicamente utilizada nos Censos Agropecuários e que irá ficar explícita na próxima apuração o comprova. Fica aos adeptos da imobilidade confortável o consolo da dúvida sobre a idoneidade de tais medidas. Apesar das omissões deste mesmo TCU, que no âmbito administrativo não adotou qualquer procedimento similar contra a legalização da grilagem, cujos prejuízos aos cofres públicos estão sinalizados mais a frente, a MP 759 prosseguiu o curso legislativo alheia aos óbices do Ministério Público. Em quatro meses a Câmara dos OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 280 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 Deputados fez o necessário para agilizar os procedimentos, apreciar, aprovar e enviá-la ao Senado, não sem a incorporação de 732 emendas e da mudança para o status de Projeto de Lei de Conversão (BRASIL, 2017, p. 1). Sob a forma de Lei devidamente sancionada por Michel Temer em julho de 2017, seguiu desafiando o Estado de Direito. Em agosto do mesmo ano, o então Procurador Geral da República Rodrigo Janot impetrou a primeira Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5771, 2017, p. 2-4), na qual se lê: A Lei 13.465/2017, além de ser fruto de medida provisória destituída dos requisitos constitucionais de relevância e urgência, afronta múltiplos princípios e regras constitucionais, como o direito a moradia, o direito a propriedade e o cumprimento de sua função social, a proteção do ambiente, a política de desenvolvimento urbano, o dever de compatibilizar a destinação de terras públicas e devolutas com a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária, os objetivos fundamentais da República, a proibição de retrocesso, o mínimo existencial e o princípio da proporcionalidade, a competência constitucionalmente reservada a lei complementar, a competência da União para legislar sobre Direito Processual Civil, a previsão de que o pagamento de indenizações da reforma agrária será em títulos da dívida agrária, a exigência de participação popular no planejamento municipal e as regras constitucionais do usucapião especial urbano e rural. Posteriormente, duas outras ADIs foram impetradas: uma pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (ADI 5883, 2018), tratando especificamente da inconstitucionalidade relativa à regularização fundiária urbana, igualmente devastadora, e a impetrada pelo Partido dos Trabalhadores (ADI 5779, 2017, p. 10) que nos interessa mais de perto, a começar pela justificativa contida na proposição: Com relação à regularização fundiária rural a Lei 13.465, de 2017, dissocia a destinação de terras públicas e devolutas da política agrícola do plano nacional de reforma agrária, previsto no artigo 184 da Constituição Federal. Em síntese, ao permitir o acesso indiscriminado, sem requisitos prévios, à terra pública, a lei combatida garante o acesso às pessoas de alta renda e proprietários de grandes faixas de terra, a Lei ignora os princípios centrais da reforma agrária, da justiça social, ampliando a desigualdade e se afastando do quanto previsto nos objetivos da República. OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 281 PAULINO, E. T. A precisão da interpretação dispensa ressalvas, do mesmo modo que não há dúvida alguma em relação à pertinência da ADI. O problema é que foi justamente o PT que a instaurou, por meio do Programa Terra Legal. Em nome da proteção jurídica aos posseiros da Amazônia, Lula sancionou a Lei 11.952/2009, cujo teor difere apenas pontualmente do que está aqui em questão. Vejamos um excerto da ADI impetrada na ocasião pela Procuradora Geral da República, Debora Macedo Duprat de Brito Pereira: A Lei 11.952/2009, que resultou da conversão da MP 458/2009, ‘dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal’. O referente ato normativo prevê, dentre outras medidas, a transferência de propriedade fundiária ou a concessão de direito real de uso, de terras rurais da União de até 1.500 hectares para pessoas físicas brasileiras [...]. De acordo com dados do Governo Federal, as áreas destinadas à regularização fundiária representam cerca de 67 milhões de hectares, o que corresponde à aproximadamente 13,42% de toda a Amazônia Legal. Trata-se, portanto, de uma imensidão de terras públicas [...] superior ao território de países como a França, a Espanha e a Alemanha [...]. Portanto, foi legalmente autorizada a apropriação privada de valiosíssimo patrimônio público [...] instituindo privilégios injustificáveis em favor de grileiros que, no passado, se apropriaram ilicitamente de vastas extensões de terra pública. Estas grilagens frequentemente envolveram emprego extremo de violência, uso de trabalho escravo e degradação, em grande escala, do meio ambiente [...]. Além da ofensa à igualdade, verifica-se um nítido desvio de poder legislativo, já que não se vislumbra na diferenciação adotada qualquer resquício de interesse público, mas apenas o indisfarçado propósito de favorecer os mais poderosos, abrindo espaço para que pratiquem especulação imobiliária ao abrigo da lei. Eles poderão obter lucro extraordinário com o ‘negócio’, pois receberão as terras públicas, sem licitação, em condições econômicas extremamente favoráveis e poderão revende-las pouco tempo depois, a preço de mercado, locupletando-se às custas do Erário. (ADI 4269, 2009, p. 2-3, 14) Como a história que se repete, primeiro como tragédia e segundo como farsa, a batalha jurídica da qual essa ADI é parte e, tampouco a luta política contra a barbárie agrária, não foi suficiente para confrontar os apetites do latifúndio que o governo de Lula procurou saciar. O saldo pode ser contado de diversas maneiras, como em vidas eliminadas, em florestas abatidas, mas também no oportunismo de classe tão logo foram dadas as condições concretas de encurtar o caminho para o saque ao patrimônio público OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 282 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 e aumentar as suas proporções, a julgar pela movimentação da bancada ruralista pelo impeachment de Dilma Rousseff. As vésperas da instauração do referido processo, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) se reuniu com o então vice presidente Michel Temer para lhe emprestar apoio na investida pelo cargo presidencial, momento em que foi tornada pública a denominada Pauta Positiva. Trata-se de um documento de sete páginas que sintetiza, com metas adicionais, uma publicação que já havia circulado em eleições presidenciais anteriores. Dentre as 37 associações de classe que assinam o documento, algumas sequer tem vínculo com o setor primário, prova de que o golpe foi orquestrado por uma coalizão reveladora de como opera a lógica do capitalismo rentista (MARTINS, 1994). A publicidade ao rompimento com o governo de Dilma Rousseff veio embalada pela justificativa de que a política do PT estava “eivada de ideologias contrárias ao setor” (FPA, 2016, p. 1). Tal falácia se desvela no generoso aporte creditício que Dilma Roussef havia acabado de conceder aos ruralistas, estratégia que, aliás, foi a tônica do PT, pois no compasso dos aumentos substanciais dos recursos para a agricultura, aumentou também a assimetria entre os capitalistas e a agricultura familiar. Seu último plano safra destinou apenas 12,7% para os camponeses (MAPA, 2017), enquanto no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, mais precisamente no Plano Safra 2001/2002, a proporção fora de 21,1% (BIANCHINI, 2015, p. 107). Não foram apenas os ruralistas que fizeram acusações falsas e seguem omitindo a verdade sobre a proporção dos investimentos e destinação dos recursos públicos. Mais do que os pobres, o empresariado desfrutou de benesses fiscais e creditícias como nunca e a classe média experimentou uma ampliação no poder de compra sem precedentes. Para escapar à subjetividade para compreender os fundamentos do ódio aparentemente inexplicável e que, ao invés de ter sido aplacado tão logo consumada a nova ordem, segue sua escalada ascendente, nada como voltar aos anais da história: Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Tinham ‘salvo’ a sociedade dos ‘inimigos da sociedade. Tinham dado como senhas a seus exércitos as palavras de ordem da velha sociedade – ‘propriedade, família, religião, ordem - e proclamado aos cruzados da contra-revolução: ‘sob este signo vencerás’. A partir desse instante, tão logo um dos numerosos partidos que se haviam congregado sob esse signo contra os insurretos de junho tenta assenhorear-se do campo de batalha revolucionário em seu próprio interesse de classe, sucumbe ante o grito: ‘Propriedade, família religião, ordem’. A sociedade é salva tantas vezes quantas se contrai o círculo de OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 283 PAULINO, E. T. seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe ao mais amplo. (MARX, 2011, p. 10. Grifos do autor). Fica a critério do leitor julgar a atualidade dos fatos transcritos, inclusive porque neste momento encontra-se na cadeia o líder máximo do movimento que desencadearia situação não muito diferente no Brasil. Ademais, não há evidências seguras sobre qual será o desfecho de tudo isso, porque o pretenso crime que o encarcerou é desprezível se comparado aos daqueles que atualmente comandam o país, segundo os mesmos parâmetros de provas e enquadramentos jurídicos. Para além de suposições, cabendo à justiça o seu enfrentamento e ao tempo a sentença dos fatos, é oportuno tratar dos crimes de lesa pátria que ora nos ocupa, sobre os quais não haverá reversão em curto e médio prazo, restando ao povo brasileiro construir a ousadia do sonho de reconstrução do país a partir dos escombros que restarão. Os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 no contexto da ruptura dos princípios constitucionais A desordem fundiária no Brasil não resulta da incapacidade do Estado em assumir a gestão territorial como tarefa primordial, muito pelo contrário. Ela expressa o eficiente projeto de classe para o qual a aplicação discricionária dos instrumentos legais do ordenamento público pode ser conduzido segundo a dinâmica das contradições geradas em seu bojo. A Lei 13.465/2017 foi a coroação, pelo Poder Legislativo, da burla do Presidente da República aos mecanismos constitucionais que as Medidas Provisórias impõem. Não custa lembrar que o contexto da sua proposição ainda era aquele em que o poder das forças explicitamente reacionárias não estava suficientemente dimensionado. Conquanto o êxito do golpe parlamentar, restava ainda uma dose necessária de dissimulação ante a sociedade brasileira, pois a interrupção das conquistas sociais poderia gerar situações trabalhosas, do ponto de vista do controle, sem falar na prudência oportuna no plano geopolítico, pois a quebra das regras democráticas costuma trazer constrangimentos diplomáticos no plano internacional. Confirmado o céu de brigadeiro no voo rumo ao passado, para o qual a fragilização da capacidade de confrontação cidadã foi determinante, era chegada a ora de regulamentação da Lei em questão. Assim surgiram os decretos 9.309, 9.310 e 9.311, cada qual com um objetivo diverso mas que, em termos práticos e pela ordem, seriam: 10: titulação de todos os imóveis rurais grilados no país; 20: regularização do legado urbano da grilagem; 30: implosão da gestão territorial consoante aos princípios da função social da terra. OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 284 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 Em face da abrangência e natureza do Decreto 9.310, que trata especificamente da titulação do solo urbano, nos furtaremos à sua análise, interessando-nos a correlação do imbróglio ali verificado à dinâmica imposta pelo latifúndio, pois a cidade é a expressão adensada das acessibilidades cujo ponto de partida é a divisão do solo. De acordo com Oliveira (2003), no Brasil o capitalismo tem pés de barro, ou seja, não se sustenta enquanto tal, pois o ato instaurador do direito de propriedade, a compra, não existiu. Em regra, a cadeia dominial sobre a qual os títulos válidos estão vinculados foi objeto de fraude, seja ela documental, processada nos cartórios, seja ela administrativa, levada a cabo pelo poder executivo. No período republicano, não há registros de cidades fundadas em áreas compradas em leilão por quem quer que seja, como expressamente determinado pela Lei de Terras. Oportunamente, Silva (1996) revela a inconsistência da vinculação entre o monopólio fundiário presente e a herança do regime sesmarial, ao mostrar que a produção do território, proporcionalmente falando, foi uma empreitada muito mais oligárquico-republicana do que colonial, pois a fração anteriormente incorporada estava restrita a parcos núcleos interioranos dispersos, somados ao povoamento mais denso na área costeira. Portanto, a obstrução ao florescimento de um povoamento orientado pela função social da terra configura-se pelo que Marés (2003) denomina de transição do império do latifúndio para a república do latifúndio, em virtude de as estruturas fundamentais que deram suporte ao primeiro terem sido aprimoradas, ao invés de terem sido suplantadas hodiernamente. Não por acaso, a prática recorrente das negociações e acordos escusos de governantes prosperou segundo as conveniências de ocasião, resultando na progressiva dilapidação do patrimônio devoluto. O Norte do Paraná, tal qual está representado no mapa, é um bom exemplo, pois em 1924 o governo federal simplesmente o doou para uma empresa inglesa. Essa fração territorial correspondente a uma terça parte do território dinamarquês foi forjada em cima de possessões do campesinato expulso anteriormente pela frente pioneira, sobre o despojo do território Kaingang, hoje confinado em reservas diminutas e também da nação Xetá, cujo genocídio motivado pelo interesse nas terras foi de tal ordem que atualmente restam apenas sete indígenas (QUEM, 2018). Em nome da necessidade de aumentar os investimentos públicos para a dinamização da economia e consequente reversão tributária, frente à suposta incapacidade de realizar a divisão dos lotes e a dotação mínima de infraestrutura de circulação e suporte, o Estado transferiu o solo e sua gestão aos ingleses, na forma de concessão. Na prática, lhes foi outorgado o direito de vender as terras dos brasileiros a eles próprios. Até a designação da medida é suficiente para dirimir eventuais dúvidas: projeto de colonização. Ocorre que o termo colonização é um distrator para a prática da invasão, por meio de uma inversão linguística extraordinária: travestir barbárie de civilização. Seja para estrangeiros, seja para nacionais, o fato é que a república do latifúndio foi dilapidando o patrimônio devoluto na exata medida das relações OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 285 PAULINO, E. T. espúrias entre sustentação política e favorecimento econômico, conforme elucidou Faoro (2008). A ineficácia administrativa combinada com a negligência jurídica é parte do modus operandi de apropriação das terras públicas segundo a lógica do monopólio que, desde os albores da república e sem exceção, vem projetando as figuras econômica e politicamente mais proeminentes onde quer que seja. Assim os concessionários e os grileiros começaram e continuam acedendo às glebas e expulsando quem quer que seja um obstáculo para a apropriação ilícita. Não por acaso, na borda fronteiriça as cidades nascem como “patrimônios”, ou seja, núcleos agregadores dos negócios indispensáveis à fixação de uma população. Ocorre que cada vez mais a produção de cidades integral ou parcialmente ilegais foi se tornando incompatível com as operações mercantis respaldadas em fidúcia imobiliária, seja o comércio de imóveis ou quaisquer operações que os exigem como garantia. É a necessidade da denominada segurança jurídica para o mercado que explica o Decreto 9.310, já que uma parte substancial das terras urbanas não possuem matrículas que permitam o registro dos terrenos negociados ao ritmo da expansão dos perímetros urbanos. Os sinais da indissociabilidade entre campo e cidade e do esbulho fundiário de norte a sul são muitos, mas Porto Velho, a capital de Rondônia, é um bom exemplo: originada da concessão prêmio para a construção da Ferrovia Madeira Mamoré, tem como fundador Percival Farquhar, o capitalista pivô da Guerra do Contestado, o enfrentamento campesino mais sangrento da história do Brasil. Atualmente com mais de 500 mil habitantes, esta cidade está forjada sobre terras sem matrícula dominial em vista do acúmulo de operações ilegais com terras públicas, de modo que não há como registrar muitos imóveis urbanos, inclusive aqueles comprados de boa fé. Nos últimos anos, várias tentativas de regularização fundiária foram adotadas, com resultados ainda tímidos ante a magnitude do problema (TAMBORIL; SILVA, 2016). Aqui estamos tratando do intervalo de um século em que tais situações foram possíveis, do mesmo modo que somente nos três governos conclusos do Partido dos Trabalhadores (2003 a 2014), nada menos que 263.443.449 hectares, ou seja, praticamente um terço do território brasileiro foi incorporado aos imóveis rurais (PAULINO, 2017, p. 140). Este é um indício de que a possibilidade de legalização potencializou a grilagem, pois obviamente uma parte destas terras já havia sido apropriada anteriormente, não aparecendo nos registros porque a explicitação do crime não era promissora. Quanto ao Decreto 9.309, cabe destaque àquilo em que se distingue da Lei da Grilagem estatuída por Lula em 2009 (Lei 11.952), já que sua função é regulamentar as pretensões ampliadas das disposições já sancionadas: a abrangência é uma delas já que, doravante, a obtenção do título de propriedade aplica-se ao território nacional, e não mais à Amazônia Legal, como anteriormente. Do ponto de vista do tamanho do prêmio, além de os grileiros terem ganho o direito à propriedade de 1.000 hectares adicionais, doravante todo e qualquer OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 286 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 imóvel grilado terá 2.500 hectares legalizáveis. Como condicionante, apenas a vaga menção à necessidade de desocupação da parte excedente, sem previsão de como e quando isso ocorrerá e sem imputação de qualquer ônus penal ou civil. Esse reconhecimento implícito da licitude das grandes invasões, em si grave, expõe a tragédia reservada a um país refém do latifúndio, quando cotejado a mudanças legais propostas simultaneamente: dois dias antes da publicação do Decreto em questão, fora acatado o regime de urgência para votação em plenário do Projeto de Lei 9.604/2018. Caso seja aprovado, será acrescentado um inciso na Lei 13.260/2016 que implicará em nada menos que a eliminação do direito à organização de movimentos sociais, definindo-se como crime quando motivada pela intenção de ocupação de imóveis urbanos ou rurais. A prática passará a ser tipificada como ato terrorista com agravantes capazes de elevar a pena para 30 anos de reclusão. Estratégias de classe dessa natureza não são exclusividade tupiniquim e tampouco novidade na história, senão vejamos: [...] mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia no gozo delas, se encontra livre de interferência por parte dos direitos iguais das outras classes. Onde são vedadas inteiramente essas liberdades ‘aos outros’ ou permitido o seu gozo sob condições que não passam de armadilhas policiais, isto é feito sempre apenas no interesse da ‘segurança pública’, isto é, da segurança da burguesia, como prescreve a Constituição [...]. Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado e impedida apenas a sua realização efetiva - de acordo com a lei, naturalmente - a existência constitucional da liberdade permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existência na vida real. (MARX, 2011, p. 14) Outros aspectos são igualmente relevantes no Decreto Lei, a começar pela flexibilização do critério para caracterização do princípio da cultura efetiva como forma de reconhecimento do direito de propriedade: doravante é suficiente auferir renda proveniente dos serviços ambientais. Logo, áreas intocadas e eventualmente nem sequer conquistadas pela força, se burocraticamente caracterizadas como posses mansas e pacíficas, cairão em domínio privado. Por fim e não menos relevante são as condições de imissão do título de propriedade para as terras griladas, agora submetidas à mesma tabela de preços cobrada dos beneficiários da política de assentamentos. Os valores da terra nua são definidos pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) a partir dos preços pagos pelas terras desapropriadas para fins de reforma agrária. Detalhe: a conta deriva da média simples dos últimos 20 anos e por município, caso tenha OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 287 PAULINO, E. T. havido negociações. Em caso negativo, recairá um preço regional, cujos valores em vigor são os constantes na figura a seguir, acrescidos de 33%. Figura 1: Valor mínimo da terra nua segundo o critério de regiões rurais (R$) Fonte: INCRA (2017, p. 10). Aquilo que no passado foi empregado pelo Estado em desfavor dos beneficiários da política pública de reordenamento territorial, ou seja, a compra das piores terras, seja em termos de localização, topografia, fertilidade e conservação, isso sem falar na origem duvidosa dos títulos, explica apenas parcialmente valores tão ínfimos. O fato é que a média simples num contexto de recuo no ritmo de implantação de assentamentos faz com que o pico de valorização ocorrido no período aqui considerado seja expressivamente expurgado do cálculo. Não bastasse valores tão irrisórios, considerando os preços de mercado, há compensações adicionais: os médios e grandes grilos pagarão entre 30 e 50% dos valores constantes na tabela, isso se a opção for pelo pagamento pelo prazo de 20 anos, com 3 anos de carência a contar da data da emissão do título. Caso o requerente opte pelo pagamento à vista, terá direito a um desconto adicional de 20% e 180 dias para fazê-lo. OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 288 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os fatos aqui analisados permitem vislumbrar como o alinhamento de classes subsumido na criminalização de uma pretensa ideologia faz com que os hipócritas, apoiados pelos inocentes úteis, lhe deem a devida materialidade sob o manto e o mando das leis. Em nome da segurança jurídica para os pobres, sejam eles camponeses ou trabalhadores urbanos das periferias, estão sendo removidos os testemunhos legais do crime de lesa pátria, a pilhagem do patrimônio público, ao mesmo tempo em que se ajustam os requisitos básicos para a consumação do ordenamento territorial regido pelo mercado. Adicionalmente, todos os que são muito mais vítimas das invasões do que propriamente agentes do esbulho fundiário rural e urbano encontram-se agora ameaçados pela privação dos mais elementares direitos, que é o da vida, o da organização e o da liberdade, sem que o ruído de panelas o anuncie. A liquidação do patrimônio público prevista pelos Decretos 9.309, 9.310 e 9.311 recém instituídos chega às raias do inimaginável. A não ser que haja interdições judiciais futuras, grileiros de áreas rurais da região metropolitana de São Paulo poderão obter os títulos de propriedade ao preço referencial de R$ 1,00 por m2, ao qual ainda deve ser aplicado os descontos mencionados, o que reduzirá a centavos o preço do m2 na zona mais adensada do Brasil, pois nas regiões metropolitanas o mercado de terras trabalha com a medida miúda, nunca em hectares, como o faz o INCRA. Na região metropolitana de Curitiba, as invasões sobre áreas públicas serão repassadas aos grileiros ao preço referencial atualmente estimado em R$ 0,08 o m2, aplicando-se igualmente os descontos previstos. (INCRA, 2017, p. 8) O caso de Brasília, capital da república, merece um destaque à parte, pois em virtude das sucessivas e superpostas ações de grilagem, as zonas onde estão os ricos, tanto quanto onde vivem os pobres, até estes decretos não eram passíveis de titulação. Vale lembrar que o imbróglio fundiário regido por legislação anterior teve desfechos notáveis, como a condenação do Fundador da Companhia Aérea Gol no ano passado, afora sentenças menores envolvendo diversos políticos, dentre os quais dois governadores. Cerca de meio milhão de habitantes do DF já vivem em condomínios irregulares, sob a sombra da ilegalidade. [...] como solução para a questão fundiária, cabe a proposta de desestímulo real da atividade loteadora. Tal intento deve ser atingido através da adoção de uma estratégia que privilegie a punição patrimonial do parcelador e dos compradores dos lotes. A desapropriação sem indenização das áreas invadidas será a justa medida para desestimular a invasão de terras. A perda da propriedade através da OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 289 PAULINO, E. T. desapropriação sem indenização tem o caráter punitivo, em razão dos malefícios que os invasores causaram e por não cumprirem sua função social da propriedade. (SILVA, 2006, p. 14). Não obstante essa interpretação, respaldada na análise da Constituição e do Código Civil Brasileiro, os invasores das áreas tipificáveis como rurais nas periferias pobres, mas também nas zonas nobres do que o INCRA denomina como Região Rural da Metrópole Nacional de Brasília, serão premiados com o título de propriedade mediante o desembolso de um preço referencial de R$ 0,28 centavos por m2, sobre os quais também recairão os descontos que poderão reduzi-lo em mais da metade (INCRA, 2017, p. 8). Em Anapu, os grileiros que assassinaram Dorothy Stang serão conduzidos à condição legal de proprietários ao preço médio referencial de R$ 672,00 por hectare, logicamente ilesos aos crimes relativos à prática. Em Eldorado dos Carajás, local do massacre camponês que motivou a instituição do Dia Mundial das Lutas Campesinas, o preço referencial médio por hectare está estipulado em R$ 1.274,00. Em Pau d’Arco, onde mandantes impunes da Polícia Militar que há um ano assassinou impunemente 10 camponeses, terão o direito à propriedade ao valor referencial de R$ 1.274,00 em média pelo hectare subtraído do patrimônio público e reivindicado pelos que tombaram pelo que era seu de direito, como determina a Constituição Federal. Em todos os casos, recaem os descontos previstos anteriormente mencionados. (INCRA, 2017, p. 14). A assimetria dispensada às classes atingidas pela regularização fundiária não admite desdém: por força do Decreto 9.311, que trata especificamente do público da reforma agrária, o pagamento pela terra foi tornado compulsório a todos cujos lotes tenham mais que um módulo fiscal, mesmo que o Estado não tenha cumprido o plano de investimentos definidos em lei. Para o Estado de Temer, assentados e grileiros se distinguem apenas em frações de taxas referenciais para pagamento de valores da terra nua e de juros para o pagamento a prazo, mas o limite para a regularização fundiária está estipulado em 6% ao ano. Quando da publicação dos Decretos, os juros do cheque especial do Banco do Brasil estavam fixados em aproximadamente 312% ao ano e na Caixa Econômica Federal, o mais público dos bancos, praticava-se uma taxa anual de mais de 311%. (LAPORTA, 2018). As consequências da titulação da grilagem combinada com a liquidação do princípio da função social como fundamento da política agrária são previsíveis: os camponeses e os trabalhadores urbanos serão ainda mais alijados do acesso à terra em vista do fortalecimento do mercado imobiliário. Essa situação será potencializada nos assentamentos implantados pelos governos petistas cuja estratégia foi a compra de terras e não a desapropriação: enquanto na ocasião essa prática se constituiu em ato lesivo aos cofres públicos, pois a compra foi muito mais onerosa do que o seria a desapropriação nos termos da OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 290 Para não dizer que não falei do crime de lesa pátria de Temer: os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 legislação em vigor, agora vai punir os assentados, pois são exatamente nestes municípios que os valores referenciais são os mais altos da tabela. Aquilo que é uma pechincha para os grileiros e capitalistas ávidos por aumentar o patrimônio, não o será para as vítimas da titulação compulsória, cujo desafio até o momento fora o de sobreviver à política que, não raro, destinou-lhe as piores terras e o abandono à própria sorte. Atente-se para a violência adicional que consiste na revogação dos dispositivos que garantiam o mínimo de compromisso do Estado para com a dotação de infraestrutura indispensável para a viabilização econômica das famílias, como estradas, energia elétrica e disponibilização de crédito inicial para instalação. Essa pode ser a pá de cal na reforma agrária enquanto política e enquanto legado. Diferentemente dos grileiros, para os quais não há qualquer condicionante econômica para requerer o título de propriedade, somente poderão se inscrever nos eventuais processos de seleção para projetos de assentamento as famílias comprovadamente vinculadas ao trabalho no campo e cuja renda proveniente de atividade não agrícola seja de até um salário mínimo mensal per capita. Tamanhas afrontas à Constituição e à isonomia convidam a investir na utopia, pois Ella está en el horizonte - dice Fernando Birri. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar. Eduardo Galeano** Pesquisa apoiada financeiramente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, processo 308147/2016-2, vigência: janeiro de 2017 a dezembro de 2019. REFERÊNCIAS ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Perseu Abramo, 2003. ADI 4269. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Brasília, 09 jul. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4269&class e=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 04 jun. 2017. ADI 5771. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Brasília, 31 ago. 2017. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/ADI5771regularizaofundiria.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2018. OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, p. 275-292, 2018 291 PAULINO, E. T. ADI 5787. 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