Marília Hernandes Jardim
PUC-SP/COS/CPS
O Parque é na Rua: A (in)visibilidade da ocupação do Parque Augusta
Tudo começou na manhã da véspera de Natal de 2013, quando os paulistanos despertaram com a publicação
no diário oficial1, a respeito da tão esperada aprovação do Projeto de Lei no. 345/06, que previa a criação do
Parque Municipal Augusta. A princípio, foi desta forma que a população da cidade (sobretudo aquela
envolvida há anos na luta pelo espaço) recebeu a informação: nas redes sociais, milhares de pessoas
compartilharam o print screen da página web Imprensa Oficial, que foi depois replicada em diversas outras
versões que ganharam cores e ilustrações. Parecia que a manhã de Natal fora adiantada, e o prefeito
escolhera nos dar, na véspera, um presente para São Paulo e sua população: a criação de um parque público
na última área verde do centro da cidade.
O Natal, no entanto, passou, e no dia 26/12/13, a mando das agora proprietárias do terreno, as construtoras
Setin e Cyrella, os portões do “Parque” amanheceram trancados, e assim permanecem até o presente (Junho
de 2014). A ação de fechamento e “proteção” do terreno contou com o apoio da Polícia Militar do Estado de
São Paulo (PMSP), e não foi comentado pelas instâncias do poder administrativo responsáveis.
Figura 1. Print Screen da Lei No. 15.1941, de 24 de Dezembro de 2013, páginas 1 e 3. Fonte: Imprensa Oficial.
A primeira reflexão cabível, antes das inevitáveis demonizações dos poderes e corporações envolvidos nesta
trama, é a pura e simples leitura atenta da publicação da lei (figura 1), passada a empolgação momentânea de
sua aprovação. Neste segundo olhar, é possível perceber claramente que, em verdade, tal lei pouco promete,
sobretudo no que toca uma das questões mais cruciais do problema acerca do terreno, que é aquela da
1 Disponível em: http://www.imprensaoficial.com.br/
desapropriação, dos tombamentos, do decreto de utilidade pública e da polêmica construção de edifícios na
área “livre” do terreno 2.
Por exemplo, no artigo 4o., é decretado que a execução da lei deverá ocorrer por dotação orçamentária
própria, mas foi declarado pelo mesmo prefeito, em diversas ocasiões3 , que não há uma verba para tal
emprendimento – ou seja, a dotação orçamentária para a execução desta lei é, segundo o discurso do próprio
prefeito, inexistente. Apesar de ser cedo para concluir qualquer coisa neste trabalho, esta primeira
constatação pode, desde já, ser interpretada como um fortalecimento do poder das incorporadoras sobre o
terreno: se não há verba pública para sua execução, fica pressuposto no artigo 4o. que o parque deverá ser
realizado com verba da iniciativa privada, reforçando a vontade das construtoras de utilizar metade do
terreno para a construção das três torres planejadas4 e a entrega do parque administrado, evidentemente, pela
iniciativa privada.
Tal contradição alia-se à não menção de que o “Parque Municipal Augusta” deva ser um parque público, e
igualmente não toca nas questões numéricas tão cruciais nesta disputa, do quanto do terreno deve ser
utilizado em sua implementação – se o terreno completo, ou apenas a área verde – e tampouco, caso a lei
preveja apenas o uso da área verde, que destino deve ser dado à metade mais polêmica do terreno, que é
aquela onde se poderia construir ou o Parque, ou as Torres. Em outras palavras, a lei é feita de brechas no
que toca tanto a destinação do terreno (ou não) para o empreendimento imobiliário, ou a respeito dos termos
originais da escritura do terreno no qual encontra-se a reserva: aquele da passagem livre da área verde5, bem
como a asfixiada polêmica da possível vigência do decreto de utilidade pública do local, que impediria a
construção de um empreendimento privado ali, uma vez que o decreto, emitido na gestão do prefeito
Gilberto Kassab, obriga a destinação da área para um equipamento de utilidade pública – como seria o
Parque, mas poderia ser, igualmente, um museu, uma escola pública, etc.
Independente de a aprovação da lei ter sido ou não um desesperado ato em busca de popularidade, como foi
acusado o prefeito nas redes sociais e em alguns blogs, é preocupante que, após ter se manifestado e
decretado a autorização da criação do Parque pelo poder executivo (e não sua criação, o que, como vimos, é
bastante diferente), o prefeito permaneça, até hoje (dia 18/06/14) em silêncio quanto ao trancamento dos
portões. Este silêncio é reiterado pelo silêncio das mídias impressas, digitais e televisivas. A população, no
entanto, não silenciou: em face às medidas sorrateiras, tomadas na calada da noite, o povo respondeu ao
trancamento dos portões com protestos pacíficos – tão pacíficos que não “precisaram” ser noticiados – e
permanece ocupando os espaços do entorno do terreno, agora vazio e bloqueado, com atividades de diversas
naturezas. É desta resposta da população, em oposição aos esforços das mídias e dos poderes administrativo
e imobiliário em calar o movimento, que este trabalho busca dar conta. Que conflitos entre destinadores
encontram-se presentificados nesta disputa por um terreno de menos de um quarteirão, mas ao mesmo tempo
de altíssimo valor econômico e especulativo? Em outras palavras: porque a este pequeno espaço, metade
verde metade cinza, foi atribuído tanto valor, seja ele de ordem econômica, do capital, ou afetiva, política? E
ainda: em que medida este polêmico quadrado, localizado no coração de São Paulo, contém em si disputas e
questões que fazem ver o conflito entre destinadores que se dá no todo da Metrópole?
É possível, como argumentam muitos, classificar este Parque como uma exigência de moradores, uma
“microcomunidade”, que não têm do que reclamar, ou como um clamor por desperdício de recursos que
poderiam ser melhor aproveitados, na criação de creches e escolas, como argumenta Antônio Setin 6. Ou, é
possível encarar a disputa por este espaço como a denúncia de um problema real que assola a Metrópole
paulistana nos últimos anos, e que envolve a radical verticalização de sua arquitetura, aliada à desenfreada
privatização de seus espaços públicos, em nome das corporações imobiliárias. Optaremos aqui pela segunda
abordagem, pois, mais do que defender ou atacar partidos e sujeitos políticos ou corporativos, nosso objetivo
é atentar para a crise das interações humanas que a especulação imboliária tem causado na cidade de São
Paulo, sobretudo em seu centro, que tornou-se palco de disputas que, quando vencidas pelas incorporadoras,
tem como consequência uma quase imediata gentrificação, que segue violentos eventos de reintegrações de
posse, de ações higienistas, de incêncios e demolições ilegais (e porque não dizer, criminosos).
2 Cf. M. Jardim, “Privado-Público: o termo complexo da utopia do Parque Augusta” in: Caderno de Discussão do Centro de
Pesquisas Sociossemióticas no. 19, CPS, São Paulo, 2013.
3 Estadão, São Paulo, 16 Novembro 2013 - 17h28 disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,haddad-desiste-deprojeto-de-parques-de-kassab,1097419
4 Folha de S. Paulo, Cotidiano, 06/04/2014 – 03h50 disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1436598parque-augusta-pode-abrir-em-meio-a-obras-de-empreendimento-imobiliario.shtml
5 Casa Abril, Bem Estar, 26 de Agosto de 2013 disponível em: http://casa.abril.com.br/materia/moradores-tentam-salvar-parqueaugusta-no-centro-de-sp
6 Folha de S. Paulo, Imóveis, 9 de Junho de 2014, 14H52, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/imoveis/138185-parqueprivado.shtml
Esta crise não existe apenas no âmbito arquitetônico, mas fere substancialmente o que poderia ser chamado
de uma “lógica da sustentabilidade”, correndo na direção oposta. Ao invés de reaproveitar espaços, em nome
do lucro, as grandes incorporadoras reescrevem a cidade pelo apagamento, destruindo espaços já existentes e
construídos para reconstruir, do zero, uma nova São Paulo de vidros espelhados, de arranha-céus, de grades e
de estacionamentos. Esta reescritura forçada e desenfreada acontece de comum acordo com o poder
administrativo, que fecha os olhos para os interesses e demandas da população, alegando sempre falta de
recursos financeiros, ou pior, a “necessidade” de delegação dos espaços ao setor privado. O poder
administrativo igualmente fecha os olhos para o não cumprimento de contrapartidas exigidas dos mesmos
empreendimentos – melhorias no trânsito, nas instalações elétricas, de gás e de esgoto, bem como a criação
de espaços que beneficiem a população local que, é entendido, será lesada pelo aumento da circulação de
pessoas e do trânsito das regiões que passarão a abrigar mega empreendimentos como altíssimas torres
residenciais, centros comerciais ou shoppings.
O poder administrativo que fecha os olhos para as questões acerca do Parque Augusta é o mesmo que ignora
os edifícios devedores de IPTU – exceto quando estes são ocupados por sem tetos que reformam, com seus
próprios recursos, os mesmos edifícios, que passam a ser reclamados por seus proprietários – ou a crise do
transporte público. Entre outras coisas, é por isso que se pode afirmar que o objeto deste artigo é menos uma
abordagem do Parque Augusta, e mais o esclarecimento desta oposição entre Espaço Público e Espaço
Privado, que é tão bem presentificada por este pequeno, porém valioso terreno no centro de São Paulo.
Porque, a partir deste espaço de 24 mil metros quadrados, é possível entender grande parte das relações de
poder que têm como palco o terreno de 1.523 quilômetros quadrados, que é a Metrópole.
Você Praça, acho graça. Você Prédio, acho tédio.
Para abordar os diversos poderes envolvidos na disputa pelo terreno (e pela Metrópole), é preciso abordar,
primeiramente, do que cada um deles é emblema. Mais do que um parque e um prédio (na verdade, três
prédios), aqueles que lutam pelo Parque Augusta podem ser considerados como defensores dos espaços
públicos – uma vez que uma das demandas dos movimentos pelo Parque é que ele permaneça
completamente público – enquanto que as incorporadoras presentificam a luta pelos espaços privados. Os
ativistas lutam por um espaço público, de acesso garantido a todos, moradores ou não do bairro, enquanto
que os empreendedores imobiliários pretendem construir cada vez mais espaços fechados, da lógica da
exclusão, nos quais apenas aqueles que possuem recursos para comprá-los possam circular. É possível,
portanto, afirmar que aqueles que lutam pelo Parque engajam-se em uma luta por um espaço para todos, ao
passo que os defensores da construção de um empreendimento identificam-se com o modelo de cidade para
alguns.
Esta oposição, como analisado no primeiro artigo publicado a respeito deste espaço 7, abriga em sua área uma
oposição entre verde e cinza, que é metonímica da região na qual encontra-se inscrito, que por sua vez é
metonímica da cidade como um todo. Trata-se de uma oposição cromática entre verde e cinza: o verde da
reserva, e o cinza do estacionamento, que é englobada pela oposição entre o verde da reserva e a massa cinza
do bairro, que por sua vez é englobada pela oposição entre os poucos pontos verdes que resistem na
metrópole, em oposição à massa cinza dos edifícios de São Paulo (figura 2). Na figura planar da visão de
satélite, esta oposição é dada sobretudo pelo formante cromático 8, mas igualmente no eidético da cidade há
uma oposição entre linhas curvas/irregulares, homolagadas à cor verde, e linhas retas/regulares,
homologadas ao cinza.
7 M. Jardim Op. cit.
8 J.M. Floch, Petites Mytologies de l’oeil et de l’esprit, 1985.
Figura 2. No alto à esquerda: visão de satélite da reserva do Parque Augusta e do Estacionamento que funcionava no
local até o final de 2013. No alto à direita: Relação da reserva do Parque com os arredores, confirmando a carência de
áreas verdes no Centro de São Paulo. Abaixo: visão de satélite da região central de São Paulo reforça a invisibilidade
do verde na Metrópole, em oposição à abundância do cinza dos espaços construídos. Fonte: Google Maps.
Para perceber a figura da expressão espacial que se impõe neste local com mais força, no entanto, é preciso
sair da perspectiva do alto, e analisar a imagem em três dimensões para perceber a importância da oposição
eidética e topológica que será reiterada não apenas no espaço do Parque, mas em São Paulo como um todo:
aquela da horizontalidade vs. verticalidade.
Não é exagero afirmar que toda a massa cinza, presentificada pelas três figuras acima, é vertical: há mais de
uma década, as antigas construções mais horizontais da cidade, sobretudo em seu centro e arredores, têm
sido substituídas por construções mais verticalizadas: edifícios cada vez mais altos, que visam resolver a
suposta crise espacial da cidade pela compra de terrenos, demolindo e reconstruindo moradias não mais lado
a lado, mas empilhadas. Este movimento não se limita às residências, mas atinge igualmente o comércio de
rua: as casas térreas, ou de no máximo dois andares, têm sido reescritas nos grandes centros comerciais e
shoppings centers, que igualmente apagam a horizontalidade das compras inscrevendo-as na lógica do
empilhamento, em um grande desnível, que elimina a relação entre as lojas de diferentes naturezas,
separando-as e, consequentemente, separando aqueles que nelas consomem.
Este apagamento da horizontalidade do comércio também é responsável por um apagamento da diversidade:
ao invés de fazer compras na feira, de barraca em barraca, ou nas pequenas mercearias e comércios de rua,
especializados em um só tipo ou grupo de produtos, o paulistano passou a fazer compras nos hipermercados
que oferecem, em um mesmo e único espaço, uma maior variedade de itens. Estes espaços passaram a
oferecer até mesmo utensílios de cozinha, louça, artigos de cama, mesa e banho, de vestuário,
eletrodomésticos, ferramentas. A verticalidade é prática: reúne em um único espaço, muitas vezes
hierarquizado – os artigos mais básicos, de alimentação, no piso baixo, e os bens consumíveis de maior valor
econômico no alto – todas as necessidades de um consumidor. Eles também oferecem estacionamento, o que
minimiza o contato do consumidor com a rua: é possível chegar em seu carro, deixá-lo no subsolo, tomar um
elevador ou escada interna e reaparecer já no interior da loja, fazer suas compras, retornar ao veículo, que
por sua vez será novamente estacionado no subsolo do prédio de apartamentos, onde um elevador interno
será utilizado para se ter acesso imediato e direto à residência.
Em outras palavras, a tão apreciada praticidade da lógica vertical da cidade proporciona uma minimização da
sociabilidade, no sentido de que diminui o contato com a própria cidade. Ela favorece uma extensão quase
que infinita do conforto do privado: o automóvel aparece como um prolongamento do apartamento privativo,
que serve de ponte entre outros espaços privados, como o shopping center, que nada mais é que uma outra
forma do hipermercado, ou ao edifício de escritórios, que é acessado da mesma forma, pela garagem no
subsolo. Quanto mais espaços forem construídos dentro deste modelo, portanto, mais será perpetuada esta
lógica dos locais privativos, ilhados, exclusivos – no sentido da exclusão – interligados não por uma malha
eficiente de transporte público, ou por ciclovias, ou vias por onde se possa caminhar, mas pelo automóvel.
Ao mesmo tempo, se este modelo de urbanização se espalhar ainda mais, aqueles que vivem, de fato, no
domínio do público – morando em casas horizontais, deslocando-se a pé ou com o sistema público de
transporte, e utilizando parques e praças como áreas de lazer e sociabilidade – estarão cada vez mais
excluídos da cidade, pois ela deixará de oferecer espaços e serviços que contemplem estas práticas de vida.
Por outro lado, em uma lógica horizontal, seja de morar, seja do comércio, a sociabilidade é levada ao
máximo, uma vez que é impossível deslocar-se sem estar em con-tato com os outros habitantes da cidade. Ao
caminhar, frequentar uma praça ou parque, fazer as compras na feira, deslocar-se utilizando ônibus ou metrô,
os habitantes da cidade encontram-se em co-presença, utilizando juntos o espaço da cidade. Este utilizar
junto promove uma maior percepção da ligação entre todos os habitantes da cidade: ao precisar fazer suas
compras em várias lojas, é possível contemplar diferentes pequenos empreendedores – e não uma única
coorporação, detentora do monopólio de venda de diversas categorias de produtos – e com menor custo. Ao
utilizar o transporte público, economiza-se tempo que pode ser revertido em outras formas de sociabilidade,
como o uso dos equipamentos públicos de lazer, nos quais, por sua vez, outras oportunidades de
sociabilização encontram-se disponíveis, por meio de atividades gratuítas, ou simplesmente a fruição da área
verde e das práticas que ali desenrolam-se.
É possível apreender, portanto, que a oposição entre horizontalidade e verticalidade desenrola-se, ao mesmo
tempo, em uma oposição entre prática e uso9 do espaço. Se a verticalidade extremamente equipada,
tecnológica e eficiente, está para um uso pressuposto, programado, ou quase que didático de um espaço, a
horizontalidade clama pela prática, pela transformação do sentido através do que se faz neste espaço,
atribuindo a ele novos usos, novos significados. De acordo com os postulados de Landowski 10, portanto, uma
primeira reflexão apontaria a verticalidade como produtora da interação por programação, uma vez que
aquilo que é privado exalta a eficiência dos papéis temáticos dos espaços e dos sujeitos que nele circulam,
produzindo um menor risco da interação – a segurança é, justamente, um dos principais advogados da
verticalização da Metrópole. Por outro lado, a horizontalidade se colocaria em relação de contradição, de
uma não-continuidade da programação, ou da interação por ajustamento, dada pela prática dos espaços e do
contato entre sujeitos, e entre sujeitos e espaço, que torna-se igualmente um importantíssimo sujeito da
interação. Em horizontalidade, é possível promover a igualdade entre os sujeitos que o ajustamento
demanda: é a negação da hierarquia espacial da verticalização.
Estas primeiras reflexões desconsideram, no entanto, um ponto crucial: a própria cidade. Antes de analisar o
que poderia ser um papel temático 11 da cidade, é necessário buscar, em suas definições, o que é uma cidade –
9 E. Landowski “Avoir prise, donner prise”, In: Actes Semiotiques n. 112, 2009. Disponível em: http://epublications.unilim.fr/revues/
as/2852
10 E. Landowski “Les interactions risquées”, Limoges, Presses Universitaire de Limoges, 2005.
11 Ibid.; A.J. Greimas, J. Courtés “Dicionário de Semiótica”, São Paulo, Contexto, 2012.
ou qual seria o uso pressuposto12 do objeto cujo nom d’usage13 é “cidade”. De acordo com uma das
definições da língua portuguesa, do dicionário Caudas Aulete, a cidade é “[...] nome comum às povoações de
maior importância e grandeza”14. Nenhuma menção é feita, neste dicionário, aos espaços físicos: a cidade é
feita das pessoas que nela vivem – as povoações – e que a constituem. Semelhante é a definição do
dicionário Houaiss, onde encontramos: “[...] aglomeração humana localizada numa área geográfica
circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a atividades culturais,
mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração direta do solo [...]”15. Apesar
de mencionar os diversos usos do espaço cidade, o Houaiss enfatiza a importância do caráter humano de uma
cidade. Já para o dicionário francês Le Robert, a definição de cité nos traz “[...] groupe d’immeubles ayant
une unité”16, enquanto que para o dicionário inglês Oxford, city pode ser definida como “a town with special
rights given by a king or queen and usu containing a cathedral [...] 3. all the people living in a city [...]” 17.
Tais definições nos apontam interessantes conceitos sobre o que é uma cidade, que por vezes reforçam a
definição do português: a cidade não é feita apenas de imóveis, de prédios, mas da unidade (ou da
proximidade) entre eles. Ou ainda, mais que os espaços físicos, uma cidade é o povo que nela vive. Apesar
de os termos “sociabilidade” e “união” não encontrarem-se enunciados, as definições pressupõem que a
cidade é formada mais pelas relações entre as pessoas do que por suas edificações.
A partir destas reflexões, seria possível postular que a função do objeto cidade é aquela de promover uma
unidade entre os sujeitos que a constituem, seu povo. Outro valor pressuposto nas definições, portanto, é
aquele da coletividade: os sujeitos que habitam uma cidade vivem nela juntos, e é esta união entre os
indivíduos, que coexistem em um mesmo espaço físico ao mesmo tempo, que confere a um dado lugar o
estatuto de cidade. Caso estas relações fossem completamente suprimidas, seria possível permanecer
nomeando tais espaços como cidades?
É preciso rever, portanto, a importância atribuída à não-sociabilidade – e à consequente “segurança” – na
lógica da verticalização das práticas de vida. Pois, se tal forma de habitar/trabalhar/consumir em uma cidade
é euforizada pela segurança que confere ao indivíduo, ela, por outro lado, põe em risco o próprio conceito de
cidade, uma vez que ela diminui (ou mesmo suprime totalmente) a sociabilidade entre os diferentes sujeitos,
que é justamente formadora da cidade. Portanto, é possível afirmar que, por meio da busca da segurança, a
verticalidade impõe à cidade uma interação de altíssimo risco, da ordem da descontinuidade (da inter-relação
e do contato entre os sujeitos), ou do acidente18.
É neste sentido que a graciosa rima – “você praça, acho graça. você prédio, acho tédio” – que aparece nos
muros e tapumes de terrenos que abrigarão empreendimentos, traduz tão bem os riscos envolvidos na
verticalização de uma cidade. O tédio do prédio presentifica a ausência de sociabilidade e de troca entre os
sujeitos, que só pode se dar na horizontalidade da praça, do espaço de fato público. A “graça”, portanto, é o
risco: o risco dos encontros, das inter-ações que se tornam possíveis quando todos os sujeitos encontram-se
no mesmo nível de um espaço. O tédio reenvia igualmente ao uso pressuposto de um espaço, da ação
limitada imposta pela verticalidade, ao passo que a graça é a possibilidade de que um espaço seja, ao
contrário, praticado, que seu sentido seja transformado, que novos usos sejam a ele atribuídos por meio das
ações ali desenvolvidas, pelos encontros, pelo con-tato.
Verticalidade e Horizontalidade nas Paisagens Verdes de São Paulo
No artigo “Tipologia espacial a partir de quinze parques de São Paulo”19, desenvolvemos uma categorização
das paisagens verdes de São Paulo a partir da hierarquização espacial atribuída a estes espaços em seu
projeto paisagístico original. Analisando estas hierarquias a partir dos postulados de Manar Hammad20 ,
percebemos que a construção dos primeiros parques de São Paulo levava em consideração uma valorização
eufórica da centralidade dos espaços, que pode ser relacionada à própria centralidade a partir da qual São
12 E. Landowski, “Avoir prise, donner prise” op. cit.
13 Ibid.
14 Caudas Aulete Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, vol 1. Rio de Janeiro, Delta S. A., 1958.
15 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009 (grifo nosso).
16 “grupo de imóveis que possuem uma unidade”, trad. nossa, Le Robert de poche 2009, édition mise à jour. Paris, Dictionnaires LE
ROBERT - SEJER, 2008..
17 “um município com direitos especiais concedidos por um rei ou rainha e geralmente contendo uma catedral/ todas as pessoas que
vivem em uma cidade”, trad. nossa, OXFORD Advanced Learner’s Dicionary. Oxford, Oxford University Press, 1995.
18 E. Landowski, “Les Interactions Risquées”, op. cit.
19 K. Thrall, M. Jardim, “Tipologia espacial a partir de quinze parques de São Paulo” in: Caderno de Discussão do Centro de
Pesquisas Sociossemióticas, n. 19, CPS, São Paulo, 2013.
20 M. Hammad, “Expressão espacial da enunciação”, São Paulo, Edições CPS, 2005.
Paulo foi construída. Tal categorização nos revela que a região do Parque Augusta, portanto, encontra-se em
uma área outrora privilegiada hierarquicamente. Ao mesmo tempo, a posterior periferização dos espaços
destes parques mais antigos, como é o caso do Jardim da Luz 21, pode igualmente ser relacionada à
periferização sofrida pela Metrópole, após os processos de degradação de seu centro histórico o qual, no
entanto, tornou-se atualmente um palco de grandes disputas por parte do setor imobiliário. Este movimento é
igualmente percebido em Paisagens Verdes como o Parque Tenente Siqueira Campos, no qual diversas
atividades e intervenções em seus espaços procuram retornar ao seu projeto original, e por meio destas ações,
recuperar sua centralidade eufórica22 . A recente especulação imobiliária do centro, acompanhada de ações
higienistas e de reintegrações de posse na Luz e na “Cracolândia”23 , são claros sinais de que busca-se
reconquistar o investimento de valores eufóricos no centro de São Paulo, tornando-o atrativo para o setor
imobiliário e, consequentemente, provocando uma forte gentrificação de seus espaços.
Na tipologia desenvolvida24, esta disputa entre centralização e periferização aparece compondo a constelação
da prudência25 , composta pelas interações por Programação e Manipulação. Se esta centralidade aparece
como papel temático, tanto da paisagem verde como da cidade, a periferização com intuito de recuperação da
centralidade aparece investida de uma série de contratos, próprios do regime de Manipulação, nos quais um
complexo jogo entre destinadores é formado. As relações das quais falamos até agora, de horizontalidade e
verticalidade, aparecem compondo a constelação oposta, da Aventura26, formada pelos regimes de
Ajustamento e Acidente. Os valores em circulação na disputa pelo Parque Augusta não são, portanto, da
ordem das interações de risco mínimo, mas sim dos maiores riscos da interação, seja entre os sujeitos
humanos ou entre eles e os sujeitos espaciais, que são os lugares da Metrópole.
A horizontalidade, assim, não é um valor programado, ou um papel temático da cidade: apenas sua
centralidade o é, uma vez que, como reforçam as definições dos dicionários, as cidades são aglomerações,
povoamentos de um dado espaço, nos quais vivem as pessoas. Estas aglomerações precisam de produtos e
serviços para existirem: habitação, comércio, espaços de lazer e cultura. Se as cidades são construídas a
partir de um centro – onde, no modelo de cidade europeia no qual São Paulo foi construída, geralmente é
construída uma catedral – e desenvolvem-se em torno dele, é natural que a maior oferta de serviços e
equipamentos de cultura e lazer concentre-se em torno deste centro, ocasionando uma maior valorização,
dentro da lógica capitalista, das moradias instaladas neste espaço. Esta centralidade é um ponto chave das
disputas pelos últimos terrenos construíveis do centro de São Paulo: após algumas décadas de periferização,
da valorização de condomínios afastados do centro, a nova realidade da Metrópole, sobretudo e
principalmente seu trânsito caótico, fizeram valorizar novamente o habitar seu centro, onde há uma malha de
transporte público razoável, bem como grande parte das oportunidades de trabalho. Morar no centro voltou a
significar estar próximo ao transporte, ao trabalho e, consequentemente, economizar tempo para usufruir os
espaços de lazer e cultura que, igualmente, concentram-se neste espaço. Tal privilégio, no entanto, não é para
todos: as medidas higienistas, a “limpeza” do centro tornou-o um lugar valorizadíssimo, principalmente
porque, após a corrida imobiliária, as condições de moradia mudaram. No lugar dos prédios antigos – e todos
os “problemas” que eles possuem: ausência de elevadores e de vagas na garagem, ausência de áreas de lazer,
plantas inconvenientes, problemas de instalações elétricas, de água e de gás – o morador poderá agora
habitar em arranha-céus moderníssimos, convenientes, com vaga na garagem, com segurança. E se for nas
torres que Setin e Cyrella pretendem edificar no terreno do Parque Augusta, este habitar ainda contará com
um maravilhoso diferencial: uma reserva de Mata Atlântica ao fundo, administrada pelo próprio
condomínio...
É neste “novo” cenário, portanto, que inscreve-se a disputa. Não se trata da oposição entre centralidade,
típica dos espaços antigos da Metrópole, e a verticalidade dos espaços modernos, mas da passagem da
horizontalidade, identificada com a interação por ajustamento 27, à verticalidade, identificada ao regime do
acidente 28.
Na lógica da elipse das interações de Landowski, ajustamento e programação aparecem em uma relação de
contradição, ou seja, o ajustamento é a negação da programação. Da mesma forma, a horizontalidade que
buscamos postular como uma ausência de hierarquias não é a negação da verticalidade, mas da centralidade.
21 K. Thrall, M. Jardim, Op. cit.
22 Ibid.
23 Cf. Arquitetura da Gentrificação, disponível em: http://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/
24 K. Thrall, M. Jardim, op. cit.
25 E. Landowski, “Les interactions risquées”, op. cit.
26 Ibid.
27 K. Thrall, M. Jardim, op. cit.
28 Ibid.
A organização em torno do centro é topohierárquica, mas a horizontalidade é democrática, acessível,
inclusiva. Ela é produtora de ajustamentos, uma vez que propicia a igualdade entre os sujeitos, que não é
própria da centralidade, que por sua vez espera dos sujeitos uma ação de acordo com seus papéis temáticos,
cada um seu lugar, em sua função. Desta forma, é possível afirmar que, ainda que topologicamente a
centralidade localize-se em um terreno horizontal, ela não é dotada de horizontalidade, no sentido da
verticalização hierárquica da qual a centralidade é propositora. Transpondo a tipologia desenvolvida a partir
dos Parques para os espaços da Metrópole como um todo, é possível concluir preliminarmente que as dêixis
da Prudência e da Aventura passarão a abrigar não mais apenas a passagem de uma posição à outra, mas
conjuntos que combinam-se nos modelos de cidade.
Exclusão (uso)
Tradicional
(centralidade)
Inovador
(verticalização)
Cidade do Passado
Prudência
Cidade do Futuro
Aventura
(periferização)
(horizontalidade)
Ultrapassado
Irreverente
Inclusão (prática)
Figura 3. Elipse dos regimes de espaço da Metrópole.
A disputa pelo terreno que abriga o Parque Augusta, portanto, inscreve-se em uma lógica da passagem de
São Paulo de Cidade do Passado – dotada de uma histórica centralidade eufórica – à São Paulo do Futuro –
verticalizada, privatizada, duas formas da Metrópole identificadas pela oposição de base da elipse acima
(figura 3). O caminho traçado é inclusive cronológico, histórico, no que toca a questão: o terreno, localizado
na confluência das ruas Caio Prado, Augusta e Marquês de Paranaguá, encontra-se na proximidade do centro
histórico – a centralidade eufórica de São Paulo – e ainda abriga em seus espaços as ruínas do colégio Des
Oiseaux, construído na década de 1900 29. Com o aumento do número de habitantes da área central, o local
então “degradado” perde sua centralidade eufórica, que é substituída por uma maior horizontalidade, que
proporciona uma convivência mais próxima entre os sujeitos que ali vivem, trabalham, praticam seu lazer; o
“cidadão de bem” passa a conviver em con-tato com prostitutas, viciados, artistas de rua, e, ao mesmo
tempo, a instalação de equipamentos de cultura, em conjunto com um desenvolvimento da vida noturna,
transformam a região central do Baixo Augusta um palco de constantes ajustamentos. Aos poucos, este lugar
torna-se um polo atrativo até mesmo das classes mais privilegiadas, que frequentam a vida noturna da antiga
Roosevelt, seus bares, teatros e casas noturnas. A Augusta retoma sua importância na cena urbana de São
Paulo, mas não mais como rua do comércio de luxo: ela passa a ser conhecida como a rua onde todos os
gêneros musicais convivem, onde é possível começar a noite em um bar de samba, na Roosevelt, passar a
uma casa noturna de rock ou de eletrônico, terminar em um show na Praça da República, e, quem sabe, um
after-hours em um clube gay nas imediações do Edifício Copan. A Augusta é a rua de todos, de todas as
tribos, todos os gêneros, da convivência não hierárquica das diversas classes sociais. Na Augusta, interações
consideradas impossíveis em outros espaços ocorrem normalmente: ricos e pobres, heteros e queers,
boyzinhos e traficantes, “boas moças” e prostitutas não apenas convivem pacificamente, mas inter-agem,
pedem isqueiros e cigarros, comentam o movimento, trocam informações, compartilham o espaço da rua e da
calçada – e não apenas o lugar privativo dos bares e casas noturnas. Os locais fechados extrapolam seus
limites e adentram o espaço público, que é o mais interessante da rua, onde os fumantes (e seus
29 Estadão, Acervo, 19 de agosto de 2013, 16h42, disponível em: http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,parque-na-augustaum-impasse-de-40-anos,9208,0.htm
acompanhantes) dos diversos estabelecimentos se reúnem, transformando estes espaços externos em locais
de maior sociabilidade que seu próprio interior.
Este período áureo de uma rua propriamente horizontal, promotora do ajustamento – apesar de,
topologicamente, a Augusta estar localizada em um declieve – após abrigar um excesso de frequentadores de
seus espaços culturais e de lazer extremamente democráticos, começa a ser valorizada. São as medidas
higienistas na Cracolândia, o Projeto Nova Luz e o Projeto Nova Augusta que começam a limpar o centro e a
torná-lo atrativo para o crescente mercado imobiliário. Os primeiros tapumes começam a surgir e, com eles,
a Nova Roosevelt e a remoção, via gentrificação, dos “inferninhos” – termo utilizado para nomear as casas
noturnas do Baixo Centro. A vida cultural e noturna é empurrada cada vez mais para baixo, até terminar na
Caio Prado, bem na esquina do Parque Augusta, onde alguns bares e teatros ainda resistem, mas por pouco
tempo: seja com a construção do Parque, seja com a construção dos empreendimentos, a região será
invariavelmente valorizada e enobrecida, o que obrigará os espaços que ainda permanecem emblemas de
uma horizontalidade a mudarem-se para onde o aluguel for mais barato (que foi justamente o atrativo para
que estes locais se instalassem nas imediações da então degradada e perigosa região central).
Esta reescritura da horizontalidade do centro em verticalidade é uma reescritura que começa no plano da
expressão, na transformação plástica do espaço: a arquitetura antiga é literalmente demolida, apagada, e o
traço plástico que marca a passagem entre os dois termos é aquele do tapume. A resistência e a revolta contra
esta passagem serão exaustivamente marcadas nestes espaços de transição: “Ver A Cidade”, “Você praça,
acho graça. Você prédio, acho tédio.”, grafitis e pixações de diversas palavras de ordem contra a
verticalização. No plano do conteúdo, porém, o grito é contra a privatização do espaço: não é o prédio,
enquanto objeto plástico, que incomoda, mas a transformação de terrenos que poderiam abrigar espaços
públicos em espaços privados, presentificados pelo empilhamento de residências ou escritórios, que trarão
com eles mais trânsito, mais carros, mais grades.
O movimento oposto a este é, por outro lado, cada vez mais reivindicado, e não apenas no Brasil: não
queremos mais prédios, mais shoppings, queremos mais praças, mais parques. Em outros termos: não
queremos mais o privado, queremos o público. Alguns advogam que aqueles que são a favor do parque e
contra o prédio são, de fato, contra o progresso. Nossa análise, no entanto, revela que ambas as direções –
vertical ou horizontal – pertencem ao futuro, a um desenvolvimento de cidade em um modelo mais adequado
às novas demandas de seus habitantes.
O impasse, portanto, inscreve-se em uma bifurcação de duas formas de “cidade do futuro”: uma que
privilegia, pela verticalidade, uma hierarquização dos espaços, na qual o alto é valorizado tanto quanto o
centro era valorizado, no modelo antigo de urbanização – e a prova disso é o aumento progressivo dos preços
dos empreendimentos, do primeiro ao último andar; o outro, por sua vez, que procura uma otimização dos
espaços em equipamentos de fato públicos, coletivos, que promovem a supressão das topohierarquias do
espaço e, através dela, uma maior convivência entre os diferentes atores que habitam o e no espaço.
Em outras palavras: se um dos modelos procura, pela otimização da convivência, reforçar os elementos que
constituem uma cidade; o outro busca, ao contrário, um desentrelaçamento dos programas narrativos dos
habitantes, que põe em risco a unidade entre as pessoas e imóveis, caminhando para o acidente, para a
ruptura com a cidade.
Capital imobiliário, (des)informação, revolta
Mas como dizíamos, no dia 26/12/13 os frequentadores do Parque Augusta tiveram sua passagem obstruída,
fato que não apenas vai contra os termos da escritura do terreno 30, como ocorreu após dois importantes
marcos históricos do mesmo: a oficialização da venda para as incorporadoras Setin e Cyrella, e a aprovação
da lei No 15.941, do Prefeito Fernando Haddad, que autoriza a construção do Parque Municipal Augusta. É
menos surpreendente o corrido em si, do que o silêncio das mídias oficiais – os jornais de papel, virtuais e
televisivos – que se opõe ao grito das mídias ditas “alternativas”, ou as redes sociais, sobretudo o facebook.
Foi por meio destas mesmas mídias, que carregam em si o estigma de não serem “jornalismo”, que as
diversas ocupações do espaço – o chamado “Festival Parque Augusta” – foram articuladas, bem como as
assembléias deliberativas que visavam discutir os rumos do que os ativistas denominavam “auto-gestão” do
Parque. Também foi por meio destas mesmas desqualificadas mídias que as revoluções da primavera árabe
foram articuladas, bem como as importantes manifestações de Junho de 2013, que tomaram as ruas de todo o
Brasil, pela diminuição das tarifas de ônibus. O crescente poder destes meios alternativos de informação é
devido sobretudo a um fator: o silêncio das mídias tradicionais, ou a distorção dos fatos por elas narrados.
É em meio a este silêncio, da invisibilidade mediática de importantes ocorrências, que surge uma fortíssima
revolta, primeiro na internet, depois ganhando força no “plano físico”. No caso específico do Parque
Augusta, a revolta ganhou força e materializou-se na ocupação do entorno do Parque por semanas a fio,
30 Ibid.
reivindicando a reabertura de seus portões. A demanda nada tem de extraordinária ou de difícil de cumprir: o
que pediam estes manifestantes era apenas que fossem cumpridas tanto as leis de tombamento do terreno,
como as condições previstas em sua escritura (a livre passagem para a área verde, que deveria permanecer
pública e de livre acesso, cláusula semelhante à escritura do terreno no qual encontra-se construído o MASP,
cujo vão livre é tombado e deve permanecer aberto, sem obstruir a paisagem). Mas a justiça, o poder
administrativo e as mídias fecharam os olhos para esta ocorrência, e suas últimas manifestações sobre o
terreno foram nos dias 11 de Janeiro 2014 31 e 6 de Abril de 2014, para dar voz às construtoras, que
expuseram os projetos possíveis para o uso do terreno, alardeando a realização de uma ou outra versão do
empreendimento como mera questão de tempo 32. Após estes pronunciamentos, o que se passou ali seguiu
ignorado pelas mídias oficiais e por aquilo o que é chamado de “poder público”, a administração da cidade,
que neste conflito (e tantos outros) tomou o lado do interesse privado das incorporadoras.
Abrem-se, neste cenário, alguns questionamentos. O primeiro, é acerca da falta de vontade das mídias em
noticiar um evento tão importante: a transformação de um terreno público, tombado pelo Concresp, que
abriga uma reserva de mata atlântica, última área permeável do centro de São Paulo, igualmente protegida
por um decreto de utilidade pública, em um empreendimento extremamente lucrativo, que piorará o trânsito
da região e, muito provavelmente, não cumprirá com as contrapartidas de melhorias exigidas, como
geralmente ocorre nestas situações, a exemplo dos escândalos ocorridos na época da abertura do Shopping
JK Iguatemi33 . O segundo, mais complexo, refere-se à dificuldade do poder administrativo em ceder uma
área para o povo – e, relembrando as definições dos dicionários, o povo é a cidade – que é oposta à
facilidade em ceder os mesmos espaços para a administração por parte da iniciativa privada.
Como dito, a primeira resposta é quase óbvia: atualmente, os maiores patrocinadores da mídia impressa são
as incorporadoras, cujos anúncios de empreendimentos ocupam grande parte das versões impressa e virtual
dos jornais, em páginas inteiras ou até mesmo duplas, em cores, e contando com perspectivas do
empreendimento que ainda não foi construído e plantas ilustrativas dos “devires apartamentos”. Parece
natural, portanto que os jornais não queiram confusão com aqueles que os sustentam – no caso, as mesmas
empresas que disputam não apenas este, mas muitos outros terrenos em situação semelhante, como é o caso
da reserva ambiental ao lado do Parque Burle Marx, no Panamby34 ou o terreno onde localizava-se o
igualmente tombado casarão Matarazzo. Tais incorporadoras, no entanto, não são patrocinadoras apenas dos
jornais: seu capital está intimamente entrelaçado com o destino da cidade, não apenas no poder de
construção ou desconstrução de seus espaços, mas começa a definir os rumos da metrópole desde as eleições.
E é aí que começamos a responder à segunda questão colocada.
Segundo um levantamento realizado pelo projeto Arquitetura da Gentrificação, mais de 57% da verba de
campanhas eleitorais vem do setor imobiliário, por meio de doações diretas ou indiretas35. Estas informações
dificilmente vêm à tona nos jornais impressos, telejornais e revistas de maior circulação – não por acaso, os
veículos utilizados como fonte única de informação pela maioria dos cidadãos – e limitam-se a uma
exposição diminuta nas mídias sociais e alternativas, como fanpages no facebook, twitter e blogs. Estes
dados, quando analisados em conjunto, ajudam a reconstruir a complexa rede de trocas de favores e
interesses na qual inscreve-se o destino do Parque Augusta e dos outros sessenta e quatro terrenos que
possuem Decretos de Utilidade Pública (DUP) pendentes, e que não serão desapropriados pela prefeitura,
muito provavelmente tornando-se empreendimentos imboliários36.
Para lucrar, as incorporadoras precisam de terrenos públicos – que muitas vezes são tombados, possuem
DUPs, ou já abrigam alguma construção protegida por alguma instância. Para ter acesso aos terrenos,
precisam da autorização do poder administrativo. Por isso, os investimentos, para que seus empreendimentos
se tornem possíveis, começam na eleições, ajudando a eleger deputados, vereadores, prefeitos, governadores
que atendam às mesmas demandas por interesses privados quando eleitos. Uma vez que o ciclo se completa,
as mídias – igualmente patrocinadas pelo setor, ou por poderosas famílias que possuem interesses ligados a
ele – tentam fazer o mínimo o possível de estardalhaço acerca de manifestações, ocupações, demandas
31 Folha de S. Paulo, Imóveis, 12/01/2014, 01h30, disponível em: http://classificados.folha.uol.com.br/imoveis/2014/01/1396279construtora-promete-fazer-parque-augusta-para-conseguir-erguer-predios-no-local.shtml
32 Folha de S. Paulo, Cotidiano, 06/04/2014, 03h50, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1436598parque-augusta-pode-abrir-em-meio-a-obras-de-empreendimento-imobiliario.shtml
33 Época São Paulo, Imóvel, Morar, Reportagem – 27/05/2012, disponível em: http://epocasaopaulo.globo.com/morar/shopping-jkiguatemi-de-portas-fechadas/
34 Estadão, Notícias – 09.03.2014, 02:07, disponível em: http://m.estadao.com.br/noticias/saopaulo,empreendimentos-ameacamemparedar-parque-burle-marx-e-cortar-5-mil-arvores-,1138788,0.htm
35 S. Duran e F. Muriana, “Doações de campanha e a cultura do segredo”, disponível em: http://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/
doacoes-de-campanha-e-a-cultura-do-segredo/ acessado em: 26/11/2013.
36 Estadão Notícias, 16/11/2013 - 17h28, disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,haddad-desiste-de-projeto-deparques-de-kassab,1097419,0.htm acessado em: 26/11/2013.
populares, para que ações como a remoção de árvores raras nas reservas do Panamby aconteçam na calada da
noite, e que sejam percebidas apenas quando for “tarde demais”. Ao mesmo tempo, a mídia constantemente
contrapõe a insatisfação popular – quando esta torna-se tão gritante que é necessário noticiá-la, ao menos um
pouquinho – aos benefícios proporcionados pela iniciativa privada no “cuidado” dos espaços públicos.
Percursos narrativos
Se no plano da manifestação, ou no nível discursivo 37, estes conflitos aparecem por meio da oposição
plástica horizontal vs. vertical, que no plano do conteúdo poder ser homologada à oposição público vs.
privado, no nível narrativo 38 estas categorias/figuras discursivas desmembram-se em complexos percursos de
diversos atores, entrelaçados em sua raíz a um interesse comum: aquele do capital. Do lado dos “mocinhos”,
que lutam pela horizontalidade, pela mobilidade urbana, pela democratização da cidade, há o desejo de
conscientização da importância dos espaços públicos da Metrópole, e de que eles continuem com acesso
público garantido. Do outro lado, a pressa em reconstruir São Paulo dentro de um modelo vertical de
megalópole, encontram-se todos aqueles movidos pelos recursos financeiros: políticos, mídia,
incorporadoras... e o povo.
Tratam-se, portanto, de ao menos dois percursos narrativos distintos, com dois objetos de valor igualmente
distintos: um deles é o usufruto da cidade pública, o outro é o dinheiro. Ambos os atores encontram-se em
estados de privação dos valores com os quais buscam encontrar-se conjuntos: ainda que São Paulo possua
uma diversidade de atividades gratuitas, áreas de lazer públicas – mas muitas delas já administradas, ao
menos parcialmente, pela iniciativa privada – estes serviços encontram-se concentrados no centro e nas áreas
de maior renda – justamente aquelas que busca-se “higienizar” – e tampouco são suficientes para atender
nossos mais de 10 milhões de habitantes. Do lado do capital, por sua vez, ainda que as incorporadoras já
possuam “um pouco” de seu objeto de valor, há sempre mais terrenos a perseguir, mais imóveis a construir,
mais lucro a obter. Da mesma forma, políticos e mídia perseguem se não mais lucro, ao menos um maior
prestígio na opinião popular, que pode, grosso modo, ser comprado com recursos financeiros.
É neste ponto que o povo, ou ao menos uma parte dele, posiciona-se do outro lado da disputa: ainda que seja
uma parcela mínima, a população proprietária de imóveis pode ser beneficiada por este sistema. O jogo da
especulação, da compra de terrenos e de construção de imóveis acaba por valorizar não apenas esta ou aquela
região, mas os imóveis de São Paulo no geral. O mercado está inflado, e algumas áreas quintuplicaram o
valor do metro quadrado em apenas dez anos. Ou seja: para quem já tinha um imóvel, ele se tornou um ótimo
negócio de locação ou de venda. Alguns privilegiados, que possuem mais de um imóvel – um para morar,
outro para locar e “ter lucro” – optam por mantê-los fechados e vazios, esperando que valorizem ainda mais,
para só então locar ou vender. Os que não possuem, por outro lado, esforçam-se cada vez mais (ou ao menos
sonham) para conseguir comprar, pois há uma promessa de valorização que parece infinita: pode ser um
sacrifício despender R$400.000 ou mais por uma kitchenette, mas existe a possibilidade de que ela venha a
valer mais ainda um dia, e então será possível vendê-la e adquirir um imóvel melhor, e assim
sucessivamente.
Em outras palavras, a valorização do mercado proporciona que uma parcela da população – muito pequena,
repito – se beneficie deste sistema, e gera a esperança, em outros tantos, de que eles também possam vir a
fazer parte deste restrito jogo. E como dissemos no começo desta exposição, o modelo verticalizado do
prédio e do automóvel promove uma falsa sensação de segurança do indivíduo. Une-se o útil ao agradável: o
sonho do apartamento na zona oeste, com terraço gourmet, e do carro do ano na garagem, somam-se à
possibilidade de lucrar com o imóvel no futuro, colocando este indivíduo conjunto a dois de seus objetos de
valor simultaneamente: o imóvel e o capital.
A histeria da compra é agravada pelas faixas fixadas sobre os outdoors, instalados nos tapumes que ocultam
não um imóvel, mas um buraco, um vazio: “100% vendido”, “Últimas unidades”. Trata-se do mecanismo de
manipulação por intimidação, como postulado por Landowski39: “compre-me logo, ou você ficará sem
mim”. Todo o investimento semântico encontra-se inscrito no objeto, o imóvel – que nos anúncios é muito
mais que paredes de concreto, arranjadas em milhares de unidades idênticas, mas sim a possibilidade de
lares, onde uma vida perfeita pode ser construída do zero – e o simulacro criado do enunciatário, o
comprador, é aquele do sujeito vazio de competências, a menos, evidentemente, que consiga a façanha de
adquirí-lo. Sem uma churrasqueira, uma cozinha americana e três vagas na garagem, o sujeito nada pode. E
quando ele finalmente encontrar-se conjunto a estes valores, ainda que assolado por uma dívida de um
financiamento em quinze anos ou mais, um novo panfleto, uma nova promessa aparecerá pela janela do
carro, pelo correio, por e-mail ou sms. Sua cozinha com churrasqueira e as três vagas não são mais
37 A. J. Greimas, J. Courtés, op. cit.
38 Ibid.
39 E. Landowski, “Les interactions risquées”, op. cit.
suficientes: é preciso estar conjunto com uma suíte extra, e quatro vagas na garagem, talvez. E assim
sucessivamente, o ciclo recomeça, e a máquina continua girando.
É possível identificar, portanto, que o imóvel é uma manifestação que presentifica valores aos quais diversos
atores buscam estar conjuntos: o imóvel que será comprado é a atualização do imóvel que a construtora
buscava construir, e serve de instrumento de troca e mediação das interações entre os vários sujeitos que
compõe este imbricado cenário. Por outro lado, o imóvel também presentifica o valor monetário, do capital,
ao qual busca-se igualmente estar conjunto: desta vez trata-se do imóvel novo que pode ser vendido pela
primeira vez, no lançamento, ou do imóvel adquirido que pode ter valor de locação ou de revenda. O próprio
ato de construção é presentificador deste valor, uma vez que grande parte dos lucros das incorporadoras
ocorrem não no lançamento, mas no processo de edificação – o que justificaria, em partes, o fato de
incorporadoras que possuem bilhões de reais em imóveis novos encalhados40 continuarem em busca de
novos terrenos para novos empreendimentos. O ato de construção está igualmente ligado a um outro tipo de
capital, que é aquele dos salários pagos aos trabalhadores que participam das diversas etapas de realização do
imóvel: arquitetos, mestres de obras, construtores, decoradores, corretores, que é usado como argumento
pelas mídias e governantes, no sentido de euforizar o recente boom imobiliário como gerador de empregos.
Figura 4. Simulação do impacto provocado na paisagem do Baixo Augusta pelas duas possibilidades do terreno: no
alto, o primeiro projeto apresentado pelas incorporadoras Setin e Cyrella, que previa a construção de duas torres na
frente do terreno; abaixo, o uso da totalidade do espaço para a criação do Parque Municipal Augusta. Fonte: Aliados
Do Parque Augusta.
40 Folha de S. Paulo – Mercado 17/09/2013 – 12h02, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/09/1343130-saopaulo-tem-r-116-bilhoes-de-imoveis-prontos-encalhados.shtml acessado em: 26/11/2013.
Este capital, que manifesta-se em forma de imóvel, é um objeto de valor muito apelativo, uma vez que ligase a valores profundos no plano social, tanto de pertencimento – ser admirado por sua casa – quanto de
segurança, que pode ser financeira – possuir uma “casa própria” – ou a própria segurança do abrigo,
sobretudo se for no alto, protegido por grades e outros mecanismos de isolamento. É o querer estar em
conjunção com estes valores tão básicos em uma sociedade que permite, por um lado, que o povo se
identifique com os atores que encontram-se do lado mais lucrativo, e através desta identificação, que as
disputas continuem ocorrendo. Nesta identificação, delineia-se um importante conflito, cuja principal
consequência é a transformação do estatuto do sujeito “povo”, que ao invés de procurar posicionar-se
enquanto destinador da cidade horizontal – por meio do voto, de manifestações, de cartas aos jornais, de
reivindicações de serviços públicos – para tornar-se um destinatário do poder imobiliário e,
consequentemente, um destinador da cidade vertical, privatizada.
Verticalidade e Horizontalidade no imaginário popular
Através do estudo apresentado até então, percebemos que além do conflito entre atores que presentificam os
diferentes poderes que participam da luta por este ou aquele modelo de cidade, existe um conflito que move
toda a máquina, que é aquele que ocorre no ator que é protagonista deste programa narrativo: a população.
Longe de estar investido de um simples papel de destinatário, a população é destinadora em todos os
momentos do percurso narrativo. Ela é destinador manipulador, aquele que firma o contrato, e destinador
julgador, aquele que sanciona; ela é igualmente destinador individual, que age em nome de si, e destinador
social, que age em nome do grupo 41.
Seu papel de destinador manipulador encontra-se no momento do voto, da eleição de candidatos para compor
as diversas bancadas do poder municipal, estadual e federal; neste mesmo momento, ela é igualmente um
destinador sancionador, quando pode escolher trocar de partido ou reeleger os mesmos candidatos, mas
igualmente ela sanciona, positiva ou negativamente, ao emitir opiniões sobre os candidatos, ao compartilhar
informações sobre este ou aquele político/partido. Neste aspecto, delineia-se a primeira questão que permite
que tais conflitos desenrolem-se da forma como temos acompanhado: a população crê-se destinatária. Seja
no descaso na eleição de seus representantes, seja ao abrir mão do papel de sancionador – com as famosas
frases vazias, como “Isso é Brasil!”, ou o ato de “eleger o menos pior” – o povo destitui-se de seu papel de
destinador e permite que aqueles a quem foi delegado o papel de administrador assumam as rédeas da
cidade, acreditando que o papel do governante é simplesmente fazer – quando na verdade o governante é
pago, inclusive com o dinheiro da própria população, para agir de acordo com os interesses daqueles que os
elegeram, e não o contrário.
Ao abrir mão deste papel de destinador manipulador e sancionador, a população permite que outros
destinadores manipuladores e sancionadores – as grandes corporações – assumam o papel de fazer-fazer a
administração em sua totalidade, submetendo o todo da cidade aos seus próprios interesses. O quadro é
agravado quando os poucos cidadãos – aqueles que lutam para fazer valer o contrato original da democracia,
que é aquele da soberania do povo42 – têm sua luta deslegitimada pelo próprio povo, que atribui aos ativistas
os rótulos de desordeiros, vagabundos, vândalos. Neste gesto, a população que se auto-atribui o papel de
destinatária acaba por identificar-se duplamente com os destinadores da verticalização: no sentido do objeto
de valor capital, como analisado no item anterior, e no sentido da ordem e da segurança que estes atores
parecem presentificar, como analisado no terceiro item, e que opõe-se às manifestações e outras formas de
desordem promovidas pelos ativistas.
É neste ponto que os papéis de destinador individual e social confundem-se: por um lado, é indescutível que
uma praça ou parque pode ser bom para todos. Mas os argumentos do ator da privatização são fortes, e
manipulam o sujeito população em seu íntimo. “Um parque no Baixo Augusta provavelmente se tornará um
reduto de tráfico e uso de entorpecentes. Mas se estiver ao lado de um empreendimento, e administrado pela
iniciativa privada (e aqui insere-se o pensamento já difundido, de que o poder administrativo não tem
competência para cuidar das áreas públicas), isso não vai acontecer, pois haverá segurança privada”. A
questão da segurança individual, novamente, oblitera qualquer possibilidade de ação em nome do coletivo.
Ao mesmo tempo, somos doutrinados desde pequenos a não confiar em políticos, e a saber que esta
incompetência do poder administrativo é inerente a ele. A palavra “público” gera pavor, sobretudo nas
classes mais altas, porque a este termo vem associadas todas as desgraças, ocasionadas por esta falta de
competência na gestão de uma cidade: sujeira, falta de manutenção, desvio de verba, corrupção. Assim como
nos anos 1990, no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a privatização de todo o patrimônio
nacional foi alardeada como a solução para a incompetência do “poder público” em cuidar de suas
41 A.J. Greimas, J. Courtés, op. cit.
42 Dicionário Caudas Aulete, vol. 2, Delta, Rio de Janeiro, 1958.
companhias, hoje a privatização dos espaços da cidade de São Paulo é alardeada como “única solução” para
que nossas praças, parques, e até mesmo ruas sejam bem administradas.
Não falo apenas das “ruas particulares” – regulamentadas pelo Decreto Municipal no. 48.638, do ex prefeito
Gilberto Kassab – mas de iniciativas mais sutis, que admiramos e reverenciamos como algo bom para a
cidade: as praças e canteiros cuidados pelos bancos, a ciclo-faixa de lazer do Bradesco, as bicicletas de
aluguel do Itaú.
Muito foi dito pelos profissionais do branding e do marketing que, se o serviço é de graça, o produto
vendido provavelmente é você. No caso da privatização dos espaços públicos de São Paulo, isto não poderia
ser mais verdadeiro. Ao fruir – e sancionar positivamente – a gratuidade de um espaço público administrado
pela iniciativa privada, a sanção inversa é pressuposta: se eu considero que o Bradesco é competente para
conduzir o trânsito de bicicletas ao longo de um percurso de 120,4 km de ciclo-faixa43, eu pressuponho que o
poder administrativo não o é. E quando o próprio poder alardeia sua falta de competência – por exemplo,
quando o Prefeito Fernando Haddad afirma, em entrevista às mídias tradicionais, que não possui verba para a
desapropriação do terreno da Augusta e dos outros sessenta e quatro terrenos, atualmente protegidos por
DUPs44 , ou seja, quando ele diz que não possui a competência modal do poder45 – traça-se uma
pressuposição mútua da competência do setor privado e da incompetência da administração, que sela o
acordo fiduciário e veridictório dos benefícios da iniciativa privada. Esta encenação se completa apenas com
a sanção do mais importante destinador: a população. Ao sancionar negativamente a administração pública, é
quase automática a sanção positiva da administração do setor privado, que é investida de valores eufóricos,
opostos à disforia de tudo aquilo o que é público – e portanto corrupto, sujo, desorganizado. O produto a
venda, portanto, é a opinião popular: se ela é positiva, significa maior poder e prestígio conferido à iniciativa
privada e, logo, a possibilidade de controlar cada vez mais áreas da cidade, outrora de fato públicas.
A invisibilidade da auto-gestão do Parque Augusta
Mas o que aconteceria no entanto se a população, munida apenas de suas tesouras, lixeiras e de
financiamento coletivo, resolvesse fazer o mesmo que as grandes corporações fazem? Tal pergunta encontrase já respondida: este espaço seria tomado, trancado, os ativistas ameaçados e criminalizados; todas estas
etapas ocorreriam com o apoio do poder administrativo e da polícia militar, e esta notícia jamais seria lida
nos jornais.
A resposta causa confusão, sobretudo quando é feito o exercício de raciocínio que leva à conclusão de que
aquele espaço, protegido por diversos órgãos de tombamento e por um decreto de utilidade pública, pertence
ao povo. O povo paga impostos por aquela rua e, por isso, é dono dela, em conjunto com os outros 11
milhões de habitantes desta cidade. Este mesmo povo elegeu um poder administrativo, que deve agir como
representante de seus interesses – no caso, como é pedido por diversos movimentos e há quase uma década,
que se faça ali um parque público – mas infelizmente não o faz. Em seu último esforço desesperado, a
população local decide que nada quer de seus representantes, exceto o direito de utilizar uma área que, em
sua escritura, é destinada à realização de uma área pública, e o direito de cuidar ela mesma desta área, sem
pedir recursos à prefeitura para isto, fazendo o exercício da cada vez mais popular “democracia direta”.
Em termos semióticos, este movimento pode ser lido como manifestação da retomada da população de seu
papel de destinadora: ela não apenas sanciona negativamente seus representantes, que falharam em atender
aos interesses manifestados quando foi firmado o acordo de manipulação, como destitui os mesmos
representantes de seu papel, posicionando-se novamente como destinador de um dado espaço. No sentido da
manutenção do acordo democrático, este movimento em prol do Parque Augusta é exemplar, e deveria ser
imitado por outros grupos paulistanos que sentem-se lesados, de forma semelhante, pela má conduta de seus
representantes.
No entando, ao contrário do acordo firmado entre poder administrativo e iniciativa privada – onde é aceito, e
até mesmo esperado que a administração admita-se incompetente e delegue suas obrigações ao setor
corporativo – este posicionamento do destinador população fere profundamente os interesses do primeiro
acordo mencionado. Ou seja: ao admitir-se incompetente diante do povo e permitir que o mesmo retome seu
estatuto de destinador, o poder administrativo vigente encontra-se localizado em uma posição de risco
iminente de sua própria extinção, afinal, ao admitir-se incompetente perante o povo que o elegeu, sua razão
de existir é profundamente questionada.
Se faz necessário, portanto, que todos os outros poderes unam-se e coloquem-se contra o povo, inclusive o
poder administrativo, que “toma” o parque da população e é conivente com seu trancamento. É a única
43 Cf. Ciclofaixa Cidade de São Paulo, disponível em: http://www.ciclofaixa.com.br/o-projeto/
44 Estadão, São Paulo, 16 Novembro 2013, 17h28, disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,haddad-desiste-deprojeto-de-parques-de-kassab,1097419
45 A.J. Greimas, “Du Sens II”, Paris, Seuil,1983.
forma de dar manutenção aos poderes vigentes: criminalizar o ativismo, colocando os “vagabundos” em seu
lugar, desmentindo a legitimidade dos interesses por eles defendidos, e perpetuando a máquina da
verticalização que move a cidade de São Paulo. No artigo “Privado-Público: o termo complexo da utopia do
Parque Augusta”46, concluímos que os valores ainda virtualizados no espaço do terreno da Augusta eram
articulados a partir de uma oposição de base entre público e privado. O decorrer dos fatos desde Novembro
de 2013 nos mostra que tal oposição continua sendo verdadeira, e pode ser transposta para uma oposição que
homologa os mesmos valores aos atores do discurso que discutimos até agora.
Representantes (Destinadores)
auto-gestão
público
/fazer fazer/
poderes administrativo/privado
privado
/fazer não fazer/
valores socialistas
(cidade pública)
valores liberais
(cidade do capital privado)
/não fazer não fazer/
não-privado
ativistas
/não fazer fazer/
não-público
conservadores
Representados (Destinatários)
Figura 5. Quadrado dos valores em circulação na disputa entre poderes.
Como mostrado no quadrado, todas as posições, exceto aquela do privado de fato, são ocupadas pela
população. Apenas o “privado puro” pode ser ocupado pelos poderes, mas, ainda assim, ele existe apenas em
relação aos demais – assim como, no artigo mencionado47, mostrou-se que o empreendimento privado só
pode existir, naquele terreno, em conjunto com o espaço público. Ambos os eixos combinam-se, formando
uma metaoposição entre Destinadores – sejam os auto-gestores, sejam os demais poderes – e Destinatários –
aqueles que identificam-se com cada um dos termos da oposição de base. De um lado, na relação de
implicação com o público, encontram-se os cidadãos que identificam-se com os valores de fato democráticos
diretos, presentificados pela auto-gestão, e que, apesar de não tomarem parte no exercício da gestão,
encontram-se de acordo com os valores públicos defendidos pelos auto-gestores e, por vezes, participam das
ocupações e manifestações, ainda que sejam de cunho virtual, pelo compartilhamento de informação. De
outro, implicando o termo privado, encontram-se aqueles que concordam com a privatização dos espaços e
identificam-se com os mesmos valores do capital, e igualmente com o modelo privado de cidade.
Da mesma forma, as dêixis positiva e negativa abrigam a união dos dois termos que presentificam os
posicionamentos políticos – independente de partidos ou candidatos específicos. Do lado esquerdo do
quadrado, na dêixis positiva, encontram-se manifestados valores mais socialistas, enquanto que à direita,
concentram-se os valores liberais. Estes valores, por sua vez, são manifestados na luta por uma cidade
pública, ou seja, por uma maior oferta de serviços que podem ser usufruidos pelo coletivo – transporte, áreas
de lazer públicas – ou pela identificação aos valores do capital, ou uma cidade mais privatizada, com uma
maior oferta de equipamentos que auxiliem a individualização – o automóvel, o apartamento.
46 M. Jardim, Op.cit.
47 Ibid.
Considerações Finais
Não são precisas análises detalhadas para concluir que São Paulo encaminha-se, a cada dia mais, para um
modelo de cidade vertical e que privilegia a ocupação de seu território por equipamentos de natureza
privada, e não pública. Basta um breve passeio, a pé ou de carro, sobretudo pelas regiões mais nobres: a
ausência de praças, espaços de descanso, bancos – qualquer lugar que não seja a fachada de residências,
prédios ou comércios, de natureza privada – é alarmante. A cada dia, a cidade perde mais espaços que
poderiam promover a conviência entre seus habitantes, para ganhar mais espaços que promovam que os
tantos programas narrativos que compõem São Paulo passem a tocar-se cada vez menos.
Esta vontade de separar-se dos demais habitantes, mais do que uma simples busca por segurança, revela o
que pode ser lido como um não-querer habitar na coletividade, mas querer isolar-se, preferencialmente nas
unidades mais altas, e cercado de tudo o que é “necessário” para a vida: churrasqueira, terraço, equipamentos
de ginástica e, em alguns casos extremos, até mesmo piscinas particulares, como é comum nas coberturas
dos edifícios. O que não está ao alcance destas ilhas privadas, construídas sobre a cidade que é propriamente
coletiva, pode ser acessado através das extensões deste bunker, como o automóvel e os acessos subterrâneos
a outras ilhas privativas, como os shoppings, os hipermercados e os escritórios. Estes objetos – o carro, o
apartamento, o escritório em um prédio com estacionamento – aparecem investidos de um valor cada vez
maior, principalmente por seu poder de impedir, ou ao menos minimizar o contato com os outros sujeitos da
cidade.
Esta separação promove o acidente, uma vez que é apenas por meio dele que os sujeitos, que supostamente
vivem juntos em um espaço, podem encontrar-se: no assalto, no atropelamento, na colisão do auto-móvel.
Nessas co-incidências de programas, todas investidas de valores disfóricos, é que a cidade se mostra como
um lugar capaz de promover encontros: destituída de seus equipamentos de sociabilidade, a única maneira de
fazer co-incidir programas, que jamais deveriam existir separados, é por meio do choque indesejado de
sujeitos. Por outro lado, estes mesmos acidentes são produzidos pela própria lógica da cidade privativa, na
qual qualquer intervenção do outro no próprio programa narrativo é imediatamente rechaçada: a lentidão do
trânsito, o pedestre que atravessa, o ladrão, o viciado e principalmente o manifestante, todos estes outros
atores são percebidos como anti-sujeitos que buscam somente interferir e atrasar o desenvolvimento pessoal
do habitante, que deseja apenas ir e vir em um isolamento cada vez maior.
Neste isolamento desejado, o poder privado encontra os meios de sustentar-se e de perpetuar sua existência,
através da manifestação do valor da privatização na arquitetura e na ocupação da cidade. Os setores
imobiliário e automotivo fortaleceram e fortalecem-se tanto porque o que eles vendem é, nada mais nada
menos, do que o sonho da maioria dos habitantes da Metrópole: a solidão do próprio espaço privado, em
meio ao caos da coletividade da Metrópole. Abordando a questão desta forma, não surpreende que qualquer
tentativa de mudar o status quo seja imediatamente combatida por aqueles que encontram-se no poder
dominante – mídias, corporações e representantes – e que a população apoie estes mesmos atores. Porque a
coletividade é cada vez mais assustadora, perigosa, e estas “verdades” aparecem inscritas na própria
arquitetura da cidade: calçadas cada vez menores, que sinalizam que por ali não se deve andar, em oposição
às vias cada vez mais largas e hiperlotadas, que mostram que o meio seguro de locomover-se é na proteção
do automóvel. Os problemas de falhas no transporte coletivo, agravados pela iminência de um assalto ou de
um estupro, parecem concordar com o que manifestam as vias e calçadas. A ausência de espaços abertos,
onde se possa simplesmente estar, confirmam que São Paulo é uma cidade onde não se deve estar fora, mas
sempre dentro – do apartamento, do shopping, do carro, e até mesmo dos parques, que possuem portões que,
em um determinado horário, são trancados.
Mas ao mesmo tempo, a demanda pelo direito à cidade, por meio da luta por melhorias nos serviços públicos
e pela defesa de espaços que deveriam pertencer à população, como o Parque Augusta, nos mostra que existe
voz do outro lado: aqueles que entendem que viver na cidade é necessariamente habitar na coletividade, e
que a vida em São Paulo tornou-se insustentável principalmente pela supressão cada vez mais evidente desta
possibilidade de coletividade. Além das ocupações em prol dos Parques, esta mesma luta colocou um milhão
de pessoas nas ruas, não apenas de São Paulo, mas de todo o país, em Junho de 2013 – e foi fortemente
reprimida pela Polícia Militar, sujeito delegado dos Governos Estaduais, mas que aparece como actante que
presentifica a vontade de diversos destinadores, alguns deles, inclusive, pertencentes ao povo. Mais uma vez,
o conflito entre manifestantes – que buscam, ainda que sem saber, o exercício de uma democracia mais direta
– e polícia presentifica o embate entre valores públicos e privados, e ainda as duas concepções de cidade que
este artigo buscou discutir. A força da repressão policial é proporcional ao medo que existe, por parte dos
poderes que ela defende e, portanto, presentifica, de que a população encontre-se em seu estatuto de
destinador, do qual jamais deveria ter sido destituída. A diminuição da força dos movimentos, por sua vez,
igualmente reflete que a fidúcia neste estatuto é ainda pouca, e insuficiente para enfrentar as poderosas
famílias e corporações que ditam as regras do jogo.
É difícil prever que caminho será tomado adiante. O mais provável é que este jogo da verticalização continue
por alguns anos, até que um acidente – seja o tão aguardado dia em que a bolha imobiliária irá estourar, seja
a eleição de representantes mais comprometidos com a coletividade – desvele a insustentabilidade de um
modelo de cidade que suprime as relações entre seus habitantes. Enquanto este dia não chega, porém, é
preciso seguir observando criticamente os acontecimentos, e principalmente, fazendo valer nosso poderoso
papel narrativo, seja o de eleitor, seja o de povo. Sem povo, não há cidade.