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Representações da Argentina imperialista – o antiperonismo na imprensa
e na diplomacia brasileiras (1946-1950)
Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos1
Iuri Cavlak2
Resumo: O artigo analisa representações negativas a respeito da Argentina peronista
difundidas na segunda metade da década de 1940, especialmente as produzidas pela
imprensa e pela diplomacia brasileiras. No primeiro caso, são investigadas
principalmente as reportagens veiculadas pela revista ilustrada O Cruzeiro. Em relação
à diplomacia, foram examinados os ofícios produzidos pela Embaixada brasileira
naquele país. A leitura dessas fontes, que possuem especificidades, destaca uma
característica semelhante: a construção frequente de imagens a respeito de um vizinho
imperialista que, inspirado pelo nazifascismo, preparava-se para a guerra com objetivo
de reconstruir as fronteiras do vice-reinado do Rio da Prata, que existiu no período
colonial. Interessa aqui compreender e questionar tais representações à luz da
historiografia e do contexto político do Cone Sul e do mundo, que havia recentemente
passado pela débacle das experiências políticas nazifascistas na Europa e vivenciava os
primeiros anos da Guerra Fria.
Palavras-chave: Antiperonismo; Imprensa; Diplomacia.
Representations of the imperialist Argentina – the anti-Peronism in the
Brazilian press and diplomacy (1946-1950)
Abstract: The article analyzes some negative representations about Peronist Argentina
spread in the second half of the 1940s, especially those produced by Brazilian press and
diplomacy. In the first case, we investigate especially the reports conveyed by the
illustrated magazine O Cruzeiro. In relation to diplomacy, we examined the offices
produced by the Brazilian Embassy in that country. The reading of these sources, which
have specificities, highlights a similar characteristic: the frequent construction of images
about an imperialist neighbor who, inspired by Nazi-fascism, was preparing for the war
with the objective of rebuilding the borders of the Vice-Reign of Rio da Prata, which
existed in the colonial period. Here we are interested in understanding and questioning
1
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Instituto Federal de
Minas Gerais (IFMG), campus Ouro Branco. O presente artigo desenvolve reflexões oriundas da tese de
doutorado, que teve orientação da Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato. E-mail do autor:
rodolpho.santos@ifmg.edu.br
2
Doutor em História pena Unesp de Assis. Professor do Colegiado de História da Universidade Federal
do Amapá (UNIFAP). O artigo desenvolve algumas reflexões de minha tese de doutorado, orientada pelo
Prof. José Luís Beired. Email do autor: iuricavlak@yahoo.com.br
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such representations in light of the historiography and political context of the Southern
Cone and the world, which had recently undergone the debacle of Nazi-fascist political
experiences in Europe and was experiencing the early years of the Cold War.
Key Words: Anti-Peronism; Press; Diplomacy.
Artigo recebido em: 31/10/2016
Artigo aprovado para publicação em: 09/02/2017
Introdução
Este artigo analisa as representações negativas a respeito da política externa
argentina entre os anos 1946 a 1950, período em que o país foi governado pelo coronel
Juan Domingo Perón (1895-1974). Concentra-se em examinar fontes históricas
produzidas por dois grupos sociais bastante diferentes – jornalistas e diplomatas
brasileiros. Curiosamente, esses dois setores tenderam a idealizar seu trabalho como
algo acima das paixões político-partidárias e que se realiza em nome do bem comum.
Tal discurso não se sustenta no caso analisado, como se buscará demonstrar.
Parte dos estudos acadêmicos recentes coincide ao apontar que a política externa
peronista não foi expansionista. Sua estratégia consistia, nas palavras de Moniz
Bandeira (2010, p. 242), mais em “ganhar simpatia e respeito [do que] antagonizar ou
agredir os países vizinhos”. De acordo com o sociólogo argentino José Paradiso (2002,
p. 566), artigos escritos por Perón mostram que ele realmente acreditava na integração
entre os países sul-americanos para garantir ganhos econômicos mútuos e
contrabalançar a influência dos Estados Unidos. Desse modo, suas ideias passariam
longe do objetivo de reconstruir as fronteiras do Vice-Reinado do Rio da Prata, colônia
espanhola que durante o período colonial tivera Buenos Aires como capital.
Se a Argentina peronista não liderou conflitos armados para expandir seus
domínios, por que a preocupação em relação ao imperialismo da Casa Rosada foi
constante em diversos meios de comunicação e nos documentos diplomáticos
brasileiros do período? Essa é uma questão que tentaremos responder nas páginas
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seguintes. As fontes levantadas ajudam a compreender os desencontros diplomáticos
das duas nações naqueles anos. Parte-se do pressuposto de que, de formas distintas,
tanto a diplomacia quanto a grande imprensa contribuíram para que nesse momento o
medo de um ataque argentino prevalecesse sobre perspectivas de acordos de
cooperação.
Vale destacar que estudos sobre o antiperonismo vêm ganhando fôlego na
historiografia argentina nas últimas décadas.3 No entanto, ainda são poucos os trabalhos
que tratam dessa questão envolvendo países vizinhos, como o Brasil.4 Esse objeto de
estudo relativamente recente pode trazer novas perspectivas às análises das relações
internacionais e da história política envolvendo os dois países.
Antes da análise das fontes, cabe esclarecer alguns aspectos históricos
importantes daquele momento. Em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, um golpe
de Estado na Argentina levou ao poder militares de viés nacionalista, anticomunista e
ultracatólico. Entre os oficiais do Grupo de Oficiales Unidos ou Grupo Obra de
Unificación (GOU), destacou-se o coronel Juan Domingo Perón que aos poucos
acumulou os cargos de vice-presidente, Ministro da Guerra e Secretário do Trabalho.
(TORRE, 2012)
Foi nessa última atividade que Perón começou a construir uma aliança com as
classes trabalhadoras por meio da Confederación General del Trabajo (CGT).
Estabeleceu, entre outras medidas, férias remuneradas, indenização por acidentes de
trabalho e o aguinaldo, remuneração extra no final do ano (equivalente ao 13º salário no
Brasil). Entretanto, enfrentou forte oposição de entidades patronais poderosas como a
Unión Industrial Argentina (UIA) e a Sociedad Rural Argentina (SRA). Foi alvo, ainda,
de agremiações e partidos liberais, vinculados à classe média e a estudantes
universitários, que combatiam a ditadura do GOU e a associavam ao nazifascismo.
3
Podem ser citados: SPINELLI, María Estela. Los vencedores vencidos. El antiperonismo y la
“revolución libertadora”. Buenos Aires, Biblos, 2005; NÁLLIN, Jorge A. Las raíces del antiperonismo.
Orígenes históricos e ideológicos. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2014; SEBASTIANI, Marcela
García. Los antiperonistas en la Argentina peronista. Radicales y socialistas en la política argentina entre
1943 y 1951. Buenos Aires, Prometeo Libros, 2005.
4
Pode-se citar: SAAVEDRA, Marisol. Peronismo y antiperonismo en Chile y Brasil. Todo es Historia, nº
369, abril de 1998, p. 8-34; BOHOSLAVSKY, Ernesto. Antivarguismo y antiperonismo (1943-1955):
similitudes, diferencias y vínculos. Anuario digital (Esc. Historia, F., H. y A. de la UNR), Universidad
Nacional de Rosário, no. 24, 2012, p. 73-97.
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Neutra durante a maior parte da Segunda Guerra Mundial, a Argentina declarara guerra
ao Eixo apenas um mês antes do suicídio de Hitler e da rendição alemã.
Com o final do conflito, a pressão pela redemocratização se avolumou e, após
um período interno bastante tenso, eleições presidenciais foram marcadas para fevereiro
de 1946. Durante a campanha, Perón, que atingira considerável popularidade, articulou
uma coligação que teve como base a CGT, o Exército, a Igreja Católica e grupos
conservadores nacionalistas que apoiaram o recém-criado Partido Laborista (PL). A
oposição, que lançou José Tamborini, foi apoiada por diversos partidos (incluindo o
radical, o socialista e o comunista) e entidades patronais. Tratava-se de uma aliança
eleitoral ampla, intitulada Unión Democrática, que enfatizava em seus discursos a luta
pela democracia e contra o autoritarismo do regime de 1943, do qual Perón era
apontado como grande herdeiro.
Em um conhecido episódio ocorrido dias antes do pleito, Spruille Braden,
embaixador dos Estados Unidos na Argentina, ajudou a divulgar amplamente o “Libro
Azul”, um relatório detalhado com documentos que vinculavam Perón e pessoas
próximas a ele ao nazismo durante a guerra. A interferência dos Estados Unidos no
processo político argentino foi habilmente utilizada por Perón, que argumentou que seus
concorrentes eram grandes oligarcas e títeres da potência capitalista. Invocando a
necessidade de defender a pátria contra o imperialismo, ele lançou o “Libro Azul y
Blanco” (cores da bandeira argentina), com documentos que negavam suas ligações
com os alemães. E pediu ironicamente aos eleitores que escolhessem nas urnas entre
“Braden ou Perón”. (CAPELATO, 2008, p. 269) O slogan antiimperialista funcionou.
Em fevereiro de 1946, ocorreram eleições num clima de relativa tranquilidade e respeito
às instituições democráticas. Perón foi eleito com pouco mais de 52% dos votos.
No Brasil, Getúlio Vargas dera início à transição democrática em maio de 1945.
Havia forte insatisfação de diversos setores sociais e das Forças Armadas com o
autoritarismo do Estado Novo instaurado desde 1937. Além disso, a vitória dos Aliados
fortaleceu a propagação das democracias liberais. Nesse contexto, o surgimento do
movimento queremista, que reivindicava uma Constituinte com a participação do
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presidente gaúcho, tornou-se uma preocupação para os antivarguistas, pois poderia
significar a continuidade do regime.
Em 29 de outubro, porém, o Estado Novo foi derrubado pelas Forças Armadas.
Semanas depois, o general Eurico Gaspar Dutra, um militar de viés mais conservador do
que Vargas, foi eleito democraticamente para um mandato de cinco anos (1946-1951).
Nesse período, 143 sindicatos sofreram intervenções do governo e houve forte
alinhamento diplomático com os Estados Unidos no início da Guerra Fria. Em 1947, o
Tribunal Superior Eleitoral cassou o registro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e,
no ano seguinte, todos os parlamentares vermelhos perderam seus mandatos.
Enquanto isso, a Argentina peronista passou a se opor cada vez mais ao sistema
geopolítico sob a tutela estadunidense. Embora anticomunista, Perón restabeleceu
relações diplomáticas com a União Soviética apenas alguns dias depois de chegar à
Presidência. Ele declarou em 1947 a “Terceira posição” da Argentina em relação à
Guerra Fria. Buscaria, sobretudo no nível do discurso, mostrar distanciamento em
relação à política tanto dos Estados Unidos quanto da União Soviética.5
O país possuía então muitas reservas, acumuladas em decorrência dos saldos
comerciais positivos obtidos durante a guerra. Esses recursos financiaram a política
peronista de distribuição de renda e de forte intervenção do Estado na economia, que
incluiu a nacionalização de ferrovias e de serviços, como o fornecimento de energia
elétrica, telefonia e gás. Houve aumento do poder de compra dos trabalhadores, o que
gerou grande entusiasmo de parte da população. Aproveitando-se do bom momento, o
peronismo liderou uma ampla reforma da Constituição em 1949 que incorporou direitos
sociais e garantiu a Perón ilimitadas tentativas de reeleição.
Segundo José Paradiso (2002, p. 528-529), o final da guerra trouxera facetas
contraditórias à Argentina. De um lado, o país acumulara grande saldo comercial ao
abastecer nações em conflito; de outro, havia ficado praticamente isolada da
5
Ao contrário do Brasil, o Partido Comunista argentino não foi proscrito em nenhum momento. Isso não
evitou que os comunistas argentinos, bem como partidários de outras agremiações, sofressem com
perseguições, prisões dos seus correligionários e fechamento de alguns de seus jornais. Tal qual Vargas,
Perón fez uso do imaginário anticomunista em vários momentos. Costumava lembrar aos empresários que
as medidas de cunho social tomadas pelo Estado eram a melhor forma de evitar a repetição dos
acontecimentos russos de 1917.
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comunidade internacional. Por ter declarado guerra ao Eixo apenas em março de 1945 e
ter se oposto continuamente aos interesses dos Estados Unidos, o governo argentino
“não podia livrar-se facilmente do peso que supunha ser visto como herdeiro de um
regime militar pró-fascista”.
Colaborou para essa imagem a ampla e bem articulada estrutura de propaganda
peronista, que incluía controle sobre grande número de meios de comunicação. Os
jornais críticos ao governo sofreram duramente com restrições de papel, processos
judiciais e outras formas de intimidação e intervenção. Nas rádios, havia a
obrigatoriedade de transmissão diária dos discursos do casal presidencial em um
boletim de trinta minutos. Além disso, o regime incorporou, direta ou indiretamente, 23
jornais e 19 estações de rádio. De acordo com a historiadora Maria Helena Capelato
(2008, p. 76-77 e 95), os organizadores da propaganda peronista foram atentos
observadores da política de propaganda nazifascista e adotaram os métodos de
persuasão usados na Alemanha e na Itália, adaptando-os. Durante o primeiro mandato
(1946-1951), houve grande fortalecimento do Poder Executivo e limitação das
liberdades políticas que resultaram na prisão de opositores e censura aos meios de
comunicação.
Para romper o relativo isolamento diplomático, a política externa argentina
adotou uma postura bastante ativa e pragmática, que culminou, até o ano de 1950, na
assinatura de mais de 120 acordos comerciais com diversas nações, muitas delas da
América do Sul. (CAVLAK, 2008, p. 24)
Enquanto o general Eurico Gaspar Dutra esteve na presidência, a diplomacia
argentina tentou, em inúmeras ocasiões, uma aproximação maior com o Brasil, seu
terceiro maior parceiro comercial. O resultado, no entanto, ficou aquém do esperado.
Ainda que Dutra, Perón e Evita tenham se encontrado em Uruguaiana-RS em 1947, não
existiram grandes avanços em termos diplomáticos e políticos no sentido de
estreitamento de laços entre os dois países. A política externa dutrista, ao incorporar
diretrizes de Washington, adotou uma postura de obstrução à integração regional que
dificultou o fechamento de acordos de cooperação. (CAVLAK, 2008, p. 56-57) Além
disso, tais iniciativas eram fortemente rejeitadas por parte da imprensa brasileira, pelo
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principal partido antivarguista, a União Democrática Nacional (UDN), e por um setor
do próprio Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), órgão com quadros de
coloração política geralmente conservadora e que não viam com bons olhos a
experiência social peronista.
Ciente de que lhe atribuíam intuitos beligerantes, Perón promoveu, a partir de
1947, uma intensa campanha pela paz em vários países. Esta se deu especialmente a
partir da divulgação de uma série de artigos em que o líder argentino defendia que o
justicialismo poderia ser uma opção diante do enfrentamento entre capitalismo e
comunismo. Perón afirmava que o segundo era efeito do primeiro e que a Argentina
havia superado ambos por meio de uma terceira via pacifista, o justicialismo. Ainda que
tal campanha tenha conseguido considerável alcance, nas palavras de José Paradiso
(2002, p. 537-538), “ela não era suficiente para neutralizar os efeitos do preconceito
antiargentino e tampouco foi possível impedir que tal iniciativa fosse interpretada como
parte de um propósito propagandístico menos interessado do que o que lhe atribuía seus
inspiradores”. Assim, apesar dos esforços de propaganda pacifista e de não ter
mobilizado tropas para nenhum conflito, a representação do regime peronista como
intrinsecamente bélico permaneceu forte por muitos anos.
O imperialismo justicialista representado na imprensa
A imprensa brasileira é contrária ao nosso país. Apesar disso, acredito que é
possível fazer um trabalho eficaz de aproximação, pelo menos com os seus
mais competentes representantes. A exceção fica por conta, em forma radical
e permanente, de dois setores perfeitamente identificados do jornalismo local:
a cadeia dos Diários Associados (Assis Chateaubriand) e Tribuna da
Imprensa (Carlos Lacerda). (...) A importância de ambas as empresas sobre a
política externa está no fato de que, por pressão ideológica, conseguem
influenciar outros jornais a atacar assuntos argentinos, difundindo o espírito
característico da oposição que logo transcende o resto das esferas
governamentais. (Nota secreta da Embaixada argentina no. 888 de
27/07/1954 apud ALMEIDA, 2005, p. 149-150)
Esse trecho integra uma nota secreta produzida pela embaixada argentina no Rio
de Janeiro. Apesar de tratar de um período posterior ao analisado aqui, pode-se imaginar
que a situação entre 1946 e 1950 fosse semelhante.
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Amplamente majoritária em termos de leitores, a grande parte da imprensa foi
crítica, na maioria das vezes, ao peronismo. Sob forte influência das agências de
notícias internacionais6, seus argumentos estiveram com frequência vinculados
principalmente à defesa dos direitos individuais, em especial da liberdade de expressão.
Inúmeras reportagens, editoriais e charges foram veiculados para denunciar o crescente
autoritarismo do justicialismo. Sob tal prisma, esses meios de comunicação se
colocavam como paladinos do liberalismo. Ao mesmo tempo, porém, a análise dessas
fontes mostra, de modo geral, uma profunda rejeição à participação popular mais ampla
e à extensão dos direitos sociais. Insistentemente, as medidas trabalhistas do governo
argentino foram descritas como mera demagogia, o que mostra a postura conservadora
de tais meios de comunicação. Resulta desses aspectos a definição, aparentemente
contraditória, de uma imprensa liberal-conservadora.7 Nela, a defesa apaixonada da
democracia e da liberdade de expressão convivia ambiguamente com uma forte rejeição
às escolhas e demandas dos setores desfavorecidos da sociedade.
Diante da impossibilidade de analisar essa imprensa como um todo, foi eleito
como objeto de pesquisa um órgão que, conforme a fonte diplomática acima, era
bastante representativo do antiperonismo no Brasil: a revista semanal ilustrada O
Cruzeiro (1928-1975). Pertencente ao poderoso empresário da comunicação Assis
Chateaubriand (1892-1968), esse periódico, especializado nas reportagens fotográficas
(ou fotorreportagens), possuía, na década de 1940, a maior tiragem do país no seu
segmento.8
Suas posições políticas, muitas vezes, oscilaram ao sabor dos interesses de seu
temido proprietário, que construiu um enorme conglomerado de empresas jornalísticas,
6
Vale destacar aqui o trabalho do historiador Marcelo Fernando Gonzalez da Costa (2004), que fez uma
análise da repercussão da política externa do primeiro mandato de Perón (1946-1952) em dois jornais
conservadores de Porto Alegre, o Correio da Manhã e o Diário de Notícias. De acordo com ele, os
periódicos porto-alegrenses, com frequência, preferiram reproduzir notícias profundamente antiperonistas
transmitidas pelas agências de notícias norte-americanas. Esses jornais contavam com poucos
comentaristas políticos e quase não destacavam jornalistas para cobrir o país vizinho. Dessa forma,
assumiram implicitamente muitas vezes o ponto de vista geopolítico dos Estados Unidos.
7
O termo liberal-conservador foi utilizado também para definir as posições do principal partido
antivarguista do período, a UDN (União Democrática Nacional). Ver BENEVIDES, 1981.
8
Ainda que não houvesse verificação independente, O Cruzeiro chegou a bater a marca de 720 mil
exemplares semanais em 1954, número espantoso considerando que a população brasileira era de pouco
mais de cinquenta milhões de pessoas no início da década de 1950.
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os Diários Associados. Em 1945, por exemplo, Assis Chateaubriand apoiou a
redemocratização e a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes (UDN). Com a vitória
de Eurico Gaspar Dutra (PSD), porém, passou a respaldar, em linhas gerais, o novo
governo (1946-1951). Em 1950, ele voltou a apoiar a nova tentativa frustrada de
Eduardo Gomes. Não é de se estranhar, portanto, que, após o suicídio de Vargas (1954),
carros de reportagem dos Diários Associados tenham sido atacados por populares e que,
em Porto Alegre, dois de seus prédios tenham sido consumidos pelas chamas. Anos
depois, a revista viria a se notabilizar pelo apoio explícito ao golpe militar de 1964.9 Em
depoimento, José Medeiros, fotógrafo da publicação entre 1946 e 1962, assim definiu a
posição ideológica do magazine:
Era acima de tudo uma revista de direita, feita para a classe média consumir.
Muitas vezes havia reportagens sobre a fome, a repressão, resultado de
interesses particulares de alguns de nós. Eram publicadas porque, em
realidade, aquilo era uma bagunça incrível, não tinha um controle
organizado. (MEDEIROS apud CARVALHO, 2001, p. 167)
A respeito do governo peronista, Chateaubriand teve uma postura de constante e
profunda crítica, a ponto de um informe não assinado da embaixada argentina no Rio de
Janeiro afirmar que ele nutria verdadeiro ódio pelo país. (Informe secreto apud
ALMEIDA, 2005, p. 150) Para essa atitude, podem ter pesado tanto questões
ideológicas quanto financeiras. Vale destacar, especialmente, a proibição da revista na
Argentina durante o peronismo. Sabe-se que, mesmo em língua portuguesa, O Cruzeiro
possuía uma tiragem considerável no país vizinho. (ACCIOLY, 1998, p. 159) Em uma
reportagem de 1952, podia-se ler:
O CRUZEIRO, desde as nossas primeiras reportagens, passou a ser uma das
revistas condenadas a não atravessar as fronteiras da Argentina. Muitos
turistas passaram momentos desagradáveis e tiveram os seus exemplares
desta publicação rasgados e atirados fora. Há pouco tempo, as revistas norteamericanas saíram do índex, mas esta continuou. (NASSER, O Cruzeiro,
13/09/1952, p. 11)
Chateaubriand escreveu algumas vezes sobre o peronismo. Em uma dessas
ocasiões, um texto de 1949, responsabilizou Perón pela crise econômica que se
9
CAZARIN, E. A.; MENEZES, E. S. A mídia e o golpe de 1964: revista O Cruzeiro como aliada do
discurso das forças militares. Conexão Letras, v. 9, 2014, p. 111-122.
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avizinhava na Argentina e, num grande mosaico ideológico, comparou-o a Hitler,
Mussolini e Juan Manuel de Rosas. Ele escreveu:
Com um paroxismo de linguagem hitlerista ou mussoliniana, o ditador
argentino tenta reproduzir o fenômeno dos seus dois colegas europeus, que
pagaram com a vida as próprias tropelias, perpetradas com o nome de duas
grandes comunidades civilizadas. E também Rosas aparece timidamente na
fimbria do horizonte iluminado de uma luz baça de querosene, as profecias
ingênuas do chefe do executivo do Prata e seus sequazes. O general Perón
esquece que chegou atrasado. O último expresso de Berlim partiu e ele
esqueceu de tomá-lo. Assediam-no em 1949, os roteiros de totalitarismo
nazista que levariam a Alemanha à perdição ontem e à servidão política hoje.
Está enfrentando o presidente argentino uma era que não é mais a sua,
olvidando que a multidão de imponderáveis, que construíram a grandeza
efêmera do tirano alemão foi a mesma que o levou a ruína. Com o grosseiro
conteúdo ideológico de uma eloquência frenética o que o general Perón
revive é uma instituição muito nossa conhecida e que é o irredutível
caudilhismo americano. (CHATEAUBRIAND, O Jornal, 27/02/1949, p. 4)
De acordo com documento da embaixada argentina, a visão de Chateaubriand
decorria, em parte, da defesa apaixonada que ele costumava fazer dos Estados Unidos e
da presença do capital estrangeiro na economia brasileira. Ademais, seus negócios
dependeriam bastante dos acordos publicitários firmados com grandes empresas
multinacionais estadunidenses. (Informe secreto apud ALMEIDA, 2005, p. 87)
De acordo com levantamento realizado nesta pesquisa, O Cruzeiro publicou pelo
menos 71 reportagens, crônicas e notas sobre a situação argentina entre 1946 e 1950.
Considerando a totalidade de exemplares produzidos no período, em mais de um quarto
deles Perón e sua atuação tiveram destaque. Esse número parece sintomático da intensa
cobertura em torno do tema.
Nesse material, vale destacar as fotorreportagens profundamente antiperonistas
assinadas por David Nasser, o repórter mais conhecido da redação de O Cruzeiro. É
possível que algumas razões tenham contribuído para isso. A primeira delas foi seu
notório posicionamento político conservador.10 Além disso, ele alegava ter sofrido os
efeitos da censura peronista. Em sua vida, Nasser fez carreira paralela como compositor
10
Crítico de Vargas e dos trabalhistas, Nasser era próximo de Carlos Lacerda e de outros nomes de
destaque da direita brasileira. Embora não tenha se arriscado na televisão e tampouco na política
institucionalizada, ele circulou livremente entre aqueles que apoiaram o golpe militar de 1964. Ver
MORAES, Letícia Nunes de Góes. David Nasser e a conspiração de 1964. Revista Tempo Brasileiro, Rio
de Janeiro, 158: 137/162, jul.-set., 2004.
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e foi autor de músicas que se tornaram muito famosas, como “Canta, Brasil!”, “Nêga do
cabelo duro” e “Adeus ano velho”. (MORAES, 2007, p. 30-35) Em 1954, Nelson
Gonçalves gravou o tango “Carlos Gardel”, escrito por Nasser em parceria com
Herivelto Martins. Apesar do enorme sucesso no Brasil, a canção não pôde ser
reproduzida nem regravada na Argentina. O motivo, alega uma nota da época (O
Cruzeiro, 19/06/1954, p. 58), seria retaliação às suas reportagens antiperonistas. A letra
do tango não faz qualquer alusão à política justicialista.
Curiosamente, as primeiras fotorreportagens de O Cruzeiro não foram tão
críticas ao regime. Em “A mulher de Perón” (NASSER, O Cruzeiro, 01/06/1946, p. 616), a revista destacou principalmente o romance dos cônjuges da Casa Rosada. Há
nessa primeira reportagem certa dissociação entre o discurso textual e o imagético. Em
que pese as críticas do texto à ditadura do GOU, observadas apenas as fotos e as
legendas a reportagem soa apologética ao peronismo. Nas imagens, Evita aparece
glamorosamente bem vestida e com um sorriso educado, tal qual uma jovem atriz de
Hollywood.
Apesar de algumas críticas feitas ao regime, confirma-se a impressão do
historiador Marcelo Gonzalez da Costa (2004, p. 113) que viu em Perón e Evita,
especialmente nessa fase, um “bom produto jornalístico, o que demonstra a proliferação
de notícias e as manchetes contendo seus nomes”. Com grandes reservas financeiras e
enorme apoio popular, o governo argentino chamava atenção por sua rebeldia em
relação aos Estados Unidos e por ter uma mulher considerada bonita dividindo
informalmente a condução do país.
Em 1947, ao cobrir o encontro entre Dutra, Perón e Evita para a inauguração de
uma ponte em Uruguaiana, o jornalista Geraldo de Freitas (O Cruzeiro, 14/06/1947, p.
56-62) destacou o bom clima do evento, malgrado este não ter sido mais do que uma
“simples cerimônia inaugural” sem “as esperadas e sensacionais declarações dos três
presidentes [sic], em conjunto, a respeito da política internacional”. Ainda assim, ele
escreveu em tom otimista: “Felizmente nas Américas não desceu sobre os corações,
como capas de chumbo, a desconfiança e o medo, que erguem fortalezas nas fronteiras,
ao invés de estradas e pontes”.
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Ao longo dos anos, porém, a abordagem de O Cruzeiro começou a mudar
profundamente. A partir de 1948, nenhuma matéria relativamente positiva sobre a
experiência política justicialista foi mais publicada. Nessa segunda fase, caudilho foi
uma palavra empregada com bastante frequência para designar o presidente platino.
Dessa forma, buscava-se relacioná-lo a uma suposta condição intrinsecamente
autoritária da América Latina.
No entanto, houve certa especificidade nas representações a respeito do
peronismo e esta passou principalmente por sua associação com o nazismo. Mais do que
o termo caudilho, outros adjetivos foram utilizados para descrever o governo platino,
que foi chamado inúmeras vezes de “totalitário” e “hitlerista”. Foi o que comentou
David Nasser:
O general Perón não é um simples caudilho para uso interno [...] o atual
regime da Argentina é tipicamente militarista e tem como programa os
mesmos sonhos expansionistas que definiram o regime hitlerista. (O
Cruzeiro, 30/09/1950, p. 26)
A representação não era exatamente nova. Durante a guerra, antifascistas
argentinos já associavam continuamente o regime do GOU, integrado por Perón, ao
Terceiro Reich. O golpe militar de 1943 abrira espaço para a atuação da direita
nacionalista e dera início a uma nova onda antissemita no país. Apoiadores do novo
regime, como a Alianza Libertadora Nacional (ALN), passaram a realizar ataques
armados a indivíduos e instituições judias e comunistas. Não é coincidência, portanto,
que, durante a campanha presidencial de 1946, a breve Unión Democrática, grupo de
oposição à chapa encabeçada por Perón, tenha tido como lema principal “Pela liberdade,
contra o nazismo”. (CAPELATO, 2008, p. 268)
Durante a campanha, o Partido Laborista e o próprio Perón condenaram
repetidas vezes os ataques antissemitas. Embora tenha conseguido poucos votos entre a
comunidade hebreia, o apoio desse grupo cresceu ao longo dos seus anos de governo.
Como registra Paradiso, a pragmática política peronista buscou compensações que
pudessem evitar a rejeição da comunidade judia. Segundo ele,
A Argentina foi um dos países que recebeu maior quantidade de refugiados
dessa origem, foi um dos primeiros a reconhecer o Estado de Israel [...] e
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houve numerosas personalidades judias no governo e entre os simpatizantes
da força política que o sustentava. (PARADISO, 2002, p. 545)
Isso não evitou que, nas páginas de O Cruzeiro, palavras como terror, medo e
horror fossem bastante utilizadas para definir um regime que vigiaria constantemente
seus opositores. Curiosamente, a população argentina foi poupada das críticas e quase
sempre recebeu adjetivos positivos, como “grande”, “bravo” e “amigo”. Nessa chave
interpretativa, nossos vizinhos não eram vistos como agentes políticos, mas como
vítimas de um grande mal que impunha o silêncio absoluto, tal qual um “campo de
concentração”.
As fontes mostram que essa representação estava fortemente relacionada ao
passado recente. Durante a Segunda Guerra, a Argentina manteve-se neutra por longos
anos e declarou guerra ao Eixo apenas poucos meses antes do final da guerra.11 Além
disso, o regime implantado por meio de um golpe em 1943 era apoiado por elementos
ultranacionalistas e germanófilos. Com o fim do conflito, o país foi continuamente
acusado de receber refugiados nazistas. Em uma reportagem da época, pode-se ler que
“o melhor, ou o pior, do nazismo no mundo se encontra atualmente na Argentina,
colaborando abertamente com o seu governo”. (GUIMARÃES, O Cruzeiro,
01/04/1950, p. 48)
Desde os anos 1940, a forte propaganda antiperonista inflou números e criou
algumas lendas em torno da ligação do justicialismo com o nazismo. Pouco se
comentou que também sabiam desse tipo de imigração a Igreja Católica e a inteligência
estadunidense e inglesa, que auxiliaram na criação de algumas rotas de fuga e buscaram
‘desnazificar’ a Alemanha e impedir técnicos nazistas de imigrar para a União
Soviética. (CAVLAK, 2015)
11
Essa postura, usada por alguns para apontar o vínculo entre peronismo e nazismo, deve ser
compreendida em perspectiva histórica. Segundo Ranaan Rein (2015), a diplomacia platina possuía uma
tradição em relação a essa posição que já fora adotada durante a Primeira Guerra e era apoiada por boa
parte da população. Além disso, a Casa Rosada vinha manifestando resistências ao alinhamento
geopolítico aos Estados Unidos em conferências pan-americanas desde o século XIX. Durante a guerra, a
neutralidade fora fundamental para manter o abastecimento de trigo e carne à Grã-Bretanha, já que os
navios argentinos eram menos atacados pelos submarinos nazistas. Por fim, é importante notar que a
postura não beligerante foi mantida sucessivamente por quatro presidentes da República, sendo dois
militares e dois civis. Ou seja, não foi idealizada e tampouco iniciada por Perón.
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Segundo estimativa do historiador alemão Holger Mending, cerca de 80 mil
alemães e austríacos chegaram à Argentina durante os anos peronistas (1946-1955).
Calcula-se que três quartos deles mudaram-se em seguida para outros lugares,
principalmente na América do Sul, ou retornaram à Europa. Aproximadamente 19 mil
teriam se estabelecido definitivamente e se misturado à colônia alemã no país que já
contava com cerca de 250 mil pessoas. (REIN, 2015)
Para o historiador israelense Ranaan Rein (2015), a chegada de refugiados
nazistas na Argentina do pós-guerra deve ser compreendida levando-se em conta uma
série de fatores. Em primeiro lugar, o país buscou, como muitos outros, atrair mão de
obra qualificada dos países do Eixo, incluindo oficiais nazistas, que pudessem colaborar
na industrialização, na modernização das Forças Armadas e no seu fracassado programa
nuclear. No entanto, a política de vistos nem sempre foi dirigida pelo governo de modo
claro e coerente, existindo numerosas autorizações expedidas por funcionários da
imigração e cônsules que seguiram critérios diversos ou foram subornados. Também
grande foi o número dos que chegaram com documentos falsos, obtidos junto à
hierarquia da Igreja Católica e da Cruz Vermelha. Por fim, havia considerável
receptividade em relação aos imigrantes do norte da Europa por parte das elites
argentinas que desde o século XIX apontavam sua chegada como uma maneira de
“melhorar” a população do país.
Mesmo depois da queda do peronismo, as relações do regime com o nazismo
foram retomadas inúmeras vezes, com acusações insistentes por parte dos antiperonistas
em relação a isso. Em 1999, uma comissão criada pelo governo Menem e composta por
representantes do governo, diplomatas e historiadores argentinos e estrangeiros concluiu
que entraram na Argentina depois de 1945, no mínimo, 180 criminosos de guerra. O
número pode ser maior, mas essa foi a quantia que pôde ser comprovada pelos
documentos levantados em diversos arquivos pela CEANA (Comisión para el
Esclarecimiento de las Actividades del Nazismo en la Argentina).
Em seu informe final, a comissão indicou que tal processo imigratório era de
conhecimento do governo Perón. No entanto, não existem sinais de que as autoridades
argentinas tenham criado um programa específico para estimular intencionalmente a
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entrada de criminosos de guerra. Imperava na época o interesse em atrair técnicos que
possibilitassem o desenvolvimento industrial e militar do país, ignorando a posição dos
imigrantes na antiga hierarquia dos países do Eixo. Também colaborou para tal
imigração o “clima receptivo” da política local, que combinava influências da imigração
italiana e alemã, a existência de admiradores do fascismo e fortes sentimentos
anticomunistas existentes na sociedade antes e depois da queda do Terceiro Reich.
Na década de 1940, porém, parecia natural aos opositores pensar que, se Perón
seguia os passos de Hitler, também faria guerras para expandir seu domínio. Com base
em tal perspectiva, sua política externa beligerante seria consequência de uma política
interna totalitária. Esse desdobramento da argumentação antiperonista é bastante
evidente nas fontes.
David Nasser, por exemplo, apresentou um controvertido discurso de 1943
atribuído ao líder platino. O documento, fartamente citado em diversos escritos
antiperonistas, é descrito como “sensacional”. Nele, há fartos elogios à Alemanha (“A
luta de Hitler na paz e na guerra nos servirá de guia”) e trechos com planos explícitos
para dominar a região:
Temos já o Paraguai; teremos a Bolívia e o Chile. Com a Argentina,
Paraguai, Bolívia e Chile fácil será apoderar-se do Uruguai. Imediatamente,
as cinco nações unidas atrairão facilmente o Brasil, devido a sua forma de
governo [Estado Novo]. Caindo o Brasil, o continente sul-americano será
nosso. Nosso domínio será uma realidade, realidade grandiosa, sem
precedentes, nascida do gênio político e do heroísmo do Exército Argentino.
(PERÓN apud NASSER, O Cruzeiro, 12/02/1949, p. 14)
Esse discurso, cuja autoria ainda é discutida pela historiografia (DEVOTO,
2005, p. 54), foi reiteradamente citado como prova das intenções militaristas do governo
argentino em diversos meios de comunicação brasileiros. Nasser, como outros, não
informou a fonte do documento. A possibilidade de fraude tampouco foi aventada por
esses periódicos.
Deixando de lado os boatos, em que aspectos concretos parte da imprensa se
baseou para promover tal imagem do governo peronista como intrinsecamente
imperialista? A resposta parece estar relacionada a, pelo menos, três aspectos: o
investimento nas Forças Armadas promovido por Perón, a valorização da memória de
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Juan Manuel de Rosas por aliados do regime e a divulgação de propaganda
peronista no Brasil por meio de consulados e da embaixada no Rio de Janeiro.
Principalmente em seu primeiro mandato, o presidente argentino
aumentou consideravelmente os gastos com as Forças Armadas, uma de suas
bases de apoio político. Buscava, dessa forma, cativar a caserna e diminuir a
desvantagem de equipamentos em relação ao Brasil, que recebera apoio técnico
dos estadunidenses durante a Segunda Guerra.
Críticas sobre o suposto encaminhamento do regime para a guerra
partiram com frequência da oposição existente dentro da própria Argentina. Nas
páginas de O Cruzeiro, por exemplo, Agustín Rodriguez Araya, deputado
radical12 exilado no Uruguai, condenou “a desenfreada corrida armamentista da
Argentina” promovida pelo governo peronista, que desejaria “arrastar o país para
um abismo que na certa reduzirá a Argentina ao mesmo estado dos países que
fizeram a guerra na Europa”. (GUIMARÃES, O Cruzeiro, 01/04/1950, p. 52)
Comentários como esses chegaram aos poucos ao Brasil e acabaram
adquirindo traços próprios. É o que mostra um relatório reservado produzido em
dezembro de 1948 pelo então deputado federal (UDN-AL) Arnon de Mello
(1911-1983). Ele foi à Argentina, entrevistou diplomatas e políticos
oposicionistas e passou a acusar o regime justicialista de preparar uma guerra
contra o Brasil. Com palavras muito parecidas com as de Araya, sua
argumentação tinha como mote a ideia de que Perón buscava reviver a atuação
imperialista de Juan Manuel de Rosas (1793-1877). A partir de então, essa
associação tornou-se cada vez mais constante nos discursos dos políticos
udenistas brasileiros.13
12
Radical no sentido de pertencer à União Cívica Radical, partido de oposição ao peronismo.
A propósito, Rosas é um personagem que há muito alimenta paixões na historiografia e no mundo
político argentino. Entre 1829 e 1832 e entre 1835 e 1852, ele foi governador de Buenos Aires e liderou
despoticamente a Confederação Argentina, forma política adotada naquele momento na região. Desde os
escritos de Sarmiento, Alberdi e Mitre, exilados por conta das perseguições do regime rosista, parte da
historiografia argentina tendeu a destacar seu extremo autoritarismo. Durante o período peronista, muitos
diários opositores buscaram associar o líder justicialista ao caudilhismo e à barbárie de Rosas. No Brasil,
porém, a imagem de Rosas ganhou um sentido um pouco diferente do adotado comumente pela oposição
argentina. Mais do que seu autoritarismo interno, destacou-se sobretudo sua política externa, tida como
imperialista.
13
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Esse resgate negativo da figura de Rosas não parece gratuito. Era de seu
conhecimento a existência de intelectuais apoiadores do regime que, ainda que
minoritários, glorificavam Rosas e defendiam o domínio argentino da região. Arnon de
Mello (1949, p. 31) mencionou o fortalecimento do Instituto Juan Manuel de Rosas,
antro dos intelectuais da direita nacionalista, e as palestras de Lúcio Manuel Moreno
Quintana, professor universitário e ex-embaixador bastante influente, que estavam a
difundir a ideia da reconstrução do Vice-Reino do Rio da Prata. Em seu retrato da
Argentina justicialista, Arnon de Mello (1949, p. 33-34) escreveu: “[...] nunca, como
agora, se glorificou tanto a Rosas na Argentina [...] Todos os cultores de Rosas estão em
postos-chave do governo e do Partido Peronista. O movimento apaixona o Exército”.
Embora exagerada, a descrição possui algo de realidade. De acordo com José
Luis Beired (2001), havia desde os anos de 1920 intelectuais da direita nacionalista que
defendiam o projeto da “Grande Argentina”. Antiliberais, católicos e defensores da
interferência militar no mundo político, apoiaram e receberam apoio da Alemanha
nazista. De acordo com Beired (2001, p. 314), “embora não tivessem participado do
golpe de 1943, [...] o consideravam como algo que também lhes pertencia”. Tanto que
alguns participaram do governo do GOU por meio de cargos importantes nas áreas
cultural e educacional. Em uma ótica revisionista, esses intelectuais consideravam o
rosismo o período áureo do país por ter preservado tradições do período colonial, como
o catolicismo e o hispanismo. Nessa perspectiva, a partir da derrota em Monte Caseros
(1852), a nação teria entrado em um ciclo de decadência ao adotar de forma sistemática
o liberalismo político e econômico. A situação poderia ser solucionada, porém, com a
ascensão de um “caudilho moderno” que retomasse antigos valores e restaurasse o
território do Vice-Reinado do Rio da Prata. (BEIRED, 2001, p. 318) Malgrado esses
intelectuais dispusessem de pouco capital político efetivo, eles buscaram reinterpretar o
passado de modo a justificar a intervenção militar argentina em países latinoamericanos.
Ciente da controvérsia que cercava a figura de Rosas, a propaganda oficial
justicialista negou-se prudentemente a associá-lo a Perón. Preferiu promover a figura de
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Sarmiento, por exemplo. (CAPELATO, 2008, p. 258) Obras públicas e ferrovias
nacionalizadas foram batizadas com nomes de vários presidentes, mas evitou-se usar o
nome de Rosas, tão alvejado pela oposição.
A cautela do governo, porém, não impediu que a imagem de Rosas fosse
constantemente utilizada pelos antiperonistas brasileiros. Aqui, no entanto, Rosas foi
lido segundo uma chave diferente, na qual se explorava muito mais seu imperialismo do
que seu autoritarismo em termos de política interna.
O relatório reservado do deputado udenista Arnon de Mello é especialmente
importante, pois, apenas dois meses após ficar pronto, David Nasser assinou uma
reportagem com conteúdo bastante similar. Ainda que não o cite diretamente, a
similaridade de ideias parece indicar a proximidade entre líderes da UDN e veículos de
comunicação como O Cruzeiro.14 Em Bancarrota argentina, Nasser (O Cruzeiro,
12/02/1949, p. 24) destacou o imperialismo do regime peronista inspirado em ideias
nazistas. Com base em técnicas fascistas, Perón estaria transformando o país em um
“grande circo” ao fomentar “o servilismo, a idolatria e o fanatismo entre as massas”. Em
outra reportagem semelhante, afirmou:
O governo argentino, que não exprime o pensamento do povo de sua terra,
prepara-se para uma aventura bélica, construindo apressadamente fábricas de
aviões e outras armas, estudando o preparo da bomba atômica e rasgando
estradas estratégicas na fronteira do Brasil. Como se sabe que toda a válvula
de escape de uma ditadura é a ação militar contra outra nação, o Brasil deve
estar preparado. Somos partidários de uma política de fraternidade e de
excelente vizinhança, mas é nosso dever advertir o povo, o Exército e o
Governo do Brasil contra o excesso de boa-fé. Se a Argentina se arma, não
será para combater na Coréia. Todas as nações têm o dever de se inquietarem
e exigirem explicações quando os seus vizinhos se armam até os dentes.
(NASSER, O Cruzeiro, 07/10/1950, p. 20)
Em consonância com a representação de um líder expansionista, Perón
foi apontado continuamente como o grande causador de distúrbios na região ao
apoiar políticos e governos sul-americanos simpáticos à Argentina. Nas palavras
de Arnon de Mello (1949, p. 42), “sabe-se que os movimentos armados, as
14
Conforme várias fontes, Nasser tinha boa entrada no circuito político da capital federal, cidade na qual
vivia e onde a revista era produzida. Ver: MORAES, 2004.
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conspirações e agitações verificadas na Bolívia, Peru, Venezuela, Chile, Paraguai e
Uruguai foram de inspiração argentina”.
No campo das relações econômicas, a abordagem não foi diferente. “Tratados
comerciais nitidamente imperialistas” foi como David Nasser (O Cruzeiro, 18/03/1950,
p. 32) definiu em 1950 os acertos feitos entre Buenos Aires e La Paz. A dependência do
Brasil em relação ao principal produto platino foi caracterizada por ele como “o jugo
argentino do trigo”. (NASSER, O Cruzeiro, 29/05/1948, p. 16)
Também parece ter contribuído bastante para essa imagem beligerante da
Argentina a propaganda justicialista promovida a partir das próprias embaixadas e dos
consulados argentinos. Trata-se de um tema muito pouco abordado pela historiografia,
mas abundante nas fontes impressas. De acordo com o sociólogo argentino José
Paradiso, tal propaganda era intencional e baseava-se numa concepção de Perón, de que,
para além dos acordos com governos, era necessária uma ação orientada com os povos
latino-americanos, “em cujo seio se procurava semear a ideia integracionista partindo da
premissa de que eram [eles] os que realmente podiam impulsioná-la, impondo-se a
conveniências setoriais ante as quais as autoridades costumavam sucumbir”.
(PARADISO, 2002, p. 570)
No caso do Brasil, a divulgação dos ideais justicialistas foi condenada
frequentemente como interferência platina nos assuntos internos do país. Para alguns
meios de comunicação brasileiros, a propaganda peronista seria uma forma de
infiltração ideológica. As reportagens de O Cruzeiro sobre o assunto estiveram
relacionadas a pelo menos quatro aspectos dessa questão: caravanas de estudantes e
trabalhadores para Buenos Aires, jornais supostamente financiados pelo regime,
propaganda peronista no meio sindical e aproximação com políticos trabalhistas.
A respeito das caravanas, principalmente de universitários brasileiros, David
Nasser afirmou que elas eram “recebidas de maneira estranhamente carinhosa” por
Perón, que, além de financiar toda a viagem, encontrava-se pessoalmente com eles com
bastante frequência. Nessas ocasiões, os alunos recebiam folhetos e livros sobre a
doutrina justicialista, “camuflados de material de divulgação turística”. Para ele, tais
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gentilezas faziam parte de um plano bem arquitetado. Explica Nasser (O Cruzeiro,
07/05/1949, p. 28 e 78):
Existe, paralelamente, um movimento bem coordenado de propaganda, de
formação de um exército de simpatizantes dentro das fronteiras do Brasil.
Para a tomada de corações, em nada difere o plano de Perón do executado
por Hitler antes da segunda guerra. Todas as caravanas brasileiras, sejam de
estudantes ou de bancários, de oficiais de justiça ou de agricultores, passam a
ser imediatamente consideradas hóspedes oficiais e recebem um tratamento
especial. Os presentes cativam os visitantes e além dos souvenirs, acumulamse nos quartos de hotéis, roupas e objetos de uso pessoal. Os rapazes são
levados a casas de ruidosa alegria, onde podem sentir a Buenos Aires
amorosa e sensual, guardando da Argentina e especialmente de Perón, as
mais agradáveis lembranças.
O assunto interessava a opinião pública nacional.15 Nas páginas de O Cruzeiro,
Vera Pacheco Jordão (09/07/1949, p. 3) destacou o assunto em uma crônica sobre a
visita de professoras primárias à capital portenha. Lembrou a temerária interferência do
regime argentino no ensino superior, que até aquele momento teria levado mais de mil e
trezentos professores a serem demitidos ou se autoexonerado em protesto contra seu
autoritarismo. Escreveu a cronista:
Acabamos de sair do regime ditatorial que deixou profundas marcas em
nosso povo, sobretudo na mocidade que cresceu ignorando os moldes
democráticos. [...]. Ao apreciar o progresso argentino, o alto nível de vida em
Buenos Aires, a excelente instalação das escolas, saberão os nossos jovens
distinguir entre aquilo que é construção secular do povo argentino e de
grandes estadistas, e a contribuição do governo peronista que se arroga todas
as realizações? Mais ainda, saberão isolar o espírito e a letra [sic],
discernindo a base falsa sob as aparências brilhantes, a deturpação do espírito
escravizado, a negação da cultura avassalada pela política?
Só podemos deixar aqui esta advertência, para que abra os olhos daqueles
que, demasiado prontos em admirar, queiram trazer de alheias terras
sugestões aparentemente benfazejas mas contaminadas por um vírus
indesejável.
Em relação aos periódicos, Nasser (O Cruzeiro, 07/05/1949, p. 28) apontou, em
reportagem intitulada Espionagem de Perón no Brasil – Documento revelador, a
existência de pelo menos dois jornais cariocas de baixa circulação supostamente
subvencionados pelo governo platino. Embora não cite os títulos, sabe-se que um deles
15
Arnon de Mello (1949, p. 55) citou-o em seu relatório. De acordo com ele, Buenos Aires recebera
apenas em julho de 1948 cerca de seiscentos estudantes brasileiros, a maioria secundaristas, em viagem
patrocinada. Grupos de escreventes da justiça e bancários também teriam assistido a palestras com Perón.
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era O Mundo, de propriedade do empresário Geraldo Rocha, tido como um dos
“maiores amigos de Perón no Brasil”. (NASSER, O Cruzeiro, 12/02/1949, p. 13) Em
consonância com a tese da infiltração justicialista, os jornais e jornalistas favoráveis ao
governo argentino foram considerados “ponta de lança” do peronismo no Brasil e
chamados “lavais mulatos e caboclos” (NASSER, O Cruzeiro, 07/05/1949, p. 28 e 78) e
“lavais indígenas” (NASSER, O Cruzeiro, 30/09/1950, p. 25), em uma referência ao
político francês Pierre Laval16. Sobre a atuação desses meios de comunicação, Nasser
afirmou que estariam propositalmente promovendo a discórdia na vida política nacional
para enfraquecer o país. Ele escreveu:
[...] Os peronistas estão fazendo no Brasil, contra as classes armadas, o
parlamento, os homens públicos e os industriais, o mesmo, exatamente o
mesmo, que fizeram os alemães na França; minando a confiança popular
contra as forças vivas da nação, aquelas que poderiam fazer frente, de pronto,
às ameaças externas. (NASSER, O Cruzeiro, 30/09/1950, p. 46)
Já o jornalista Arlindo Silva, em reportagem intitulada Ponta de lança dos
descamisados, acusou o serviço diplomático argentino de distribuir aos sindicatos de
trabalhadores de São Paulo livretos laudatórios ao peronismo, publicados em língua
portuguesa. Para comprovar a acusação, a matéria foi recheada com fotografias dos
folhetos entregues aos sindicatos, alguns já com o carimbo das instituições que os
receberam. De acordo com Arlindo Silva, a escolha da capital paulista por parte do
governo peronista estaria relacionada à existência de grande número de operários
industriais naquela cidade. O jornalista comentou que “a tática adotada por ele [Perón]
era a mesma que nós brasileiros já tivemos a desgraça de conhecer, e que é o ludibrio
das massas por meio de concessões que se afiguram como grandes conquistas das
mesmas”. (SILVA, O Cruzeiro, 31/01/1948, p. 38) Em uma legenda, a crítica ao
varguismo apareceu de forma bem mais explícita: “Alguns [livretos] são escritos em
castelhano, outros em português [...] e trazem expressões vagas, de sentido dúbio,
lembrando os discursos do ex-ditador Vargas”. (Idem, p. 37)
16
Tido como símbolo de traição, o político francês Pierre Laval (1883-1945) foi executado após
condenação por alta traição e colaboração com os nazistas no período em que foi primeiro-ministro do
governo de Vichy.
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A propósito, quando questionado sobre a propaganda em outros países, Perón
costumava afirmar que se o justicialismo ultrapassava as fronteiras isso não era culpa
dos peronistas, pois as fronteiras não representam cercas para as ideias. (PARADISO,
2002, p. 537-538) Em outra ocasião, ele admitiu o uso da propaganda como arma de sua
política externa e justificou-se ao afirmar que “não é possível empregar a resignação
como única defesa aos ataques que se recebe”. (SAAVEDRA, 1998, p. 10) A muitos
políticos e jornalistas brasileiros, tudo isso parecia muito suspeito.
Ao fazer uma intensa campanha de propaganda do peronismo, a Argentina
acabava por passar a imagem de que, mais do que impulsionar a integração sulamericana, o país buscava conduzir o processo. Indiretamente, essa política de
divulgação ajudou a fortalecer a representação de Perón como revivescência de Juan
Manuel de Rosas. Essa é a conclusão da historiadora argentina Marisol Saavedra. De
acordo com ela (1998, p. 9), a difusão do justicialismo no exterior, exitosa em certo
sentido, contribuiu também para “aumentar os receios e desconfianças que já existiam
em boa parte dos chilenos e brasileiros”.
O imaginário antiperonista começou a se alterar no Brasil, principalmente nos
anos finais da década de 1940, quando passaram a ser publicadas notícias
desencontradas a respeito de ligações entre peronistas e membros do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Como era de se esperar, essas denúncias se intensificaram à medida
que se aproximavam as eleições presidenciais de 1950, com a participação de Getúlio
Vargas. Em 1949, Nasser escreveu:
Uma aliança secreta é entabolada [sic] entre Perón, Luis Carlos Prestes e
Getúlio. Fala-se numa linha telefônica direta entre S. Borja e Buenos Aires.
Dos Estados Unidos vem uma informação que anuncia a visita “confidencial”
do Sr. Getúlio Vargas a Juan Perón, em plena cidade de Buenos Aires.
(NASSER, 12/02/1949, p. 16)
Não é de estranhar, portanto, que duas reportagens profundamente condenatórias
ao justicialismo tenham sido publicadas justamente às vésperas do pleito, que se
realizou em 03 de outubro de 1950. Na ocasião, Nasser (O Cruzeiro, 30/09/1950, p. 26)
comparou o peronismo a “um foco de moléstia infecciosa e maligna”. Na conclusão da
reportagem, pode-se ler:
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O governo argentino prestigiou a campanha do Sr. Getúlio Vargas no Brasil.
Como provas materiais está a mudança de atitude e de ponto de vista de um
jornal peronista do Rio, que passou do ataque ao elogio ao ex-ditador
brasileiro. Existem indícios de que Perón forneceu vinte mil contos ao PTB
para a campanha sucessória. Isto significa nada mais, nada menos, que a
Argentina, com a eleição de SEU candidato à presidência deste país, terá em
sua órbita mais uma nação americana. (NASSER, O Cruzeiro, 30/09/1950, p.
20)
Principalmente após a eleição de Getúlio Vargas em 1950, o regime platino
passou a ser descrito como uma ameaça à democracia brasileira. A partir de notícias
desencontradas, difundiu-se a noção de que, por meio de doações a campanhas
eleitorais, treinamento militar e apoio armado, os peronistas estariam dispostos a ajudar
os trabalhistas a criar no Brasil um regime semelhante ao justicialismo. Ou seja, para
uma parte dos jornais e revistas, o regime argentino continuou representando um perigo.
No entanto, não se esperava mais que Perón atacasse militarmente o Brasil governado
por Vargas, um político que o chefe da Casa Rosada havia repetidamente elogiado. A
ameaça agora seria a possível aliança entre os dois presidentes. Esse importante capítulo
da história, no entanto, ultrapassa os interesses deste artigo.
Aparentemente distanciadas, a imprensa brasileira e a Embaixada Brasileira em
Buenos Aires coincidiram naquele período no sentido de apontar o peronismo enquanto
mal a ser combatido. Como se verá adiante, nosso aparato diplomático desde Buenos
Aires também desenhou o regime político argentino como bastante prejudicial aos
interesses nacionais.
Por meio dos ofícios enviados pela Embaixada, pode-se constatar uma visão de
mundo que não só formatava a maioria das informações, de modo a recomendar o
afastamento do governo Dutra em relação ao vizinho, como retroalimentava a própria
maneira de encarar as relações políticas internas da Argentina. Assim, uma “diplomacia
da obstrução” pairou no horizonte e, aliada às visões da imprensa estudadas acima,
colaborou para o afastamento do peronismo em relação ao Brasil.
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O imperialismo justicialista na documentação diplomática
A Argentina, diferentemente do Brasil, emergiu da Segunda Guerra Mundial
com sérios problemas de relacionamento com os Estados Unidos. Mais que isso, sua
política interna se caracterizou enquanto antítese do que estava acontecendo em nosso
país. Na Argentina, a experiência peronista iniciou-se acentuadamente pautada pela
intervenção do Estado na economia, por uma política comercial protecionista, com a
classe trabalhadora mobilizada pelos sindicatos oficiais e um braço político de
expressão, o Partido Laborista.
Até o ano de 1950, a Embaixada Brasileira em Buenos Aires percebeu a
Argentina como um país forte internamente e de posse de veleidades expansionistas em
relação aos demais países da América do Sul, no contraponto à ordem internacional
endossada pelos Estados Unidos. Ao Brasil do governo Dutra, coube proteger o sistema
interamericano da força peronista, assumindo o papel de representante do liberalismo
norte-americano na esfera da economia política das relações internacionais no
subcontinente.
Pelos informes17 que a Embaixada Brasileira em Buenos Aires enviara ao
Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, pode-se perceber mais
detidamente os motivos do afastamento diplomático do Brasil. Todavia, antes da análise
dessa documentação, são necessárias algumas considerações a respeito da política
varguista e posteriormente dutrista em relação ao corpo diplomático relativo à
Argentina.
Em outubro de 1945, João Batista Lusardo era o embaixador brasileiro em
Buenos Aires. Com o aumento do tensionamento político no país, Perón, que então
acumulava os cargos de vice-presidente da República, Ministro do Trabalho e
Previdência e Ministro da Guerra, recebeu ordem de prisão. Amigo de Lusardo, o líder
argentino foi surpreendido pela proposta do diplomata brasileiro, que ofereceu asilo e
proteção sem consultar o Itamaraty e o governo Vargas. Embora decidisse pela recusa,
17
Escolhemos os ofícios – em lugar de telegramas, cartas telegramas e outros tipos de documentos – por
conta de sua abrangência em relação às análises da realidade argentina.
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até por talvez antever os desdobramentos populares que sua prisão acarretaria, Perón
jamais esqueceu esse gesto, prometendo a Lusardo uma lealdade assertiva, que de fato
se mostrou concreta no decorrer dos anos. (CARNEIRO, 1978, p. 291)
Mesmo antes de firmar esse vínculo com o futuro presidente argentino, João
Batista Lusardo já era conhecido na imprensa portenha como um “embaixador
peronista”. Era igualmente amigo de Getúlio, homem ativo da Revolução de 1930,
gaúcho e com longos serviços prestados tanto na Embaixada Brasileira no Uruguai
quanto na Embaixada Brasileira na Argentina. Ou seja, acompanhara de perto a
ascensão de Perón, com sinais claros de admiração e simpatia. De todos os
embaixadores estrangeiros lotados em Buenos Aires, possivelmente foi o que mais
desenvolveu intimidade e relações fraternas com a alta cúpula.
Mesmo sabendo disso, o presidente Dutra manteve Lusardo no cargo até
fevereiro de 1947, quando o substituiu por Ciro de Freitas Valle, um quadro mais
técnico e menos envolvido com a política partidária. Na ocasião, Lusardo reassumiu seu
mandato de deputado federal pelo PTB do Rio Grande do Sul. Ele retornaria à
embaixada em Buenos Aires após a vitória de Getúlio nas eleições presidenciais
brasileiras de 1950.
Ocorre que, para o cargo de Ministro das Relações Exteriores, o novo governo
de Dutra nomeou lideranças afeitas a um relacionamento de baixo perfil com a
Argentina peronista, e de grande parceria respectivamente com os Estados Unidos,
como João Neves da Fontoura e Raul Fernandes. Amado Luis Cervo caracterizou esse
momento da diplomacia brasileira como “diplomacia da obstrução”:
A documentação diplomática permite concluir que a política exterior do
governo Dutra com relação à Argentina de Perón orientava-se pelos seguintes
parâmetros de pensamento e ação: repulsa à ideia de integração regional,
minguado esforço para contrabalançar a presença argentina nos países do
Cone Sul e apoio à boa inserção da Argentina na comunidade pan-americana,
sem melindrar o governo dos Estados Unidos. Com o tempo, essa política
exterior tenderia ao confronto, por meio do que convencionamos chamar
diplomacia da obstrução. Por seu lado, Perón buscava decididamente a
cooperação bilateral e regional de modo, se possível, a criar um bloco de
países que promovesse coletivamente o desenvolvimento e resistisse, na
medida do necessário, à dominação econômica e política dos Estados Unidos
sobre a América Latina. (CERVO, 2001, p. 157)
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Assim, o contexto aberto no Cone Sul após a Segunda Guerra Mundial foi se
construindo através de uma díade, qual seja, a Argentina aprofundando internamente as
reformas trabalhistas e, externamente, opondo-se ao posicionamento norte-americano, e
o Brasil apontando para a direção contrária, com o governo Dutra intervindo e fechando
sindicatos, implementando uma política liberal para investimentos privados e,
externamente, rompendo com a URSS e situando-se ao lado de Washington.
Os primeiros ofícios enviados desde Buenos Aires para o Ministério das
Relações Exteriores no Rio de Janeiro foram, em sua maioria, de elogios e vaticínios de
um futuro próspero para o peronismo. Destacamos aqui todos os assinados por Lusardo,
indicando quando o responsável for outro funcionário de embaixada. Em fevereiro de
1946, analisando o desempenho da economia argentina no ano anterior, este assim
explanava:
Com as tendências determinadas pelo período bélico: grandes saldos
positivos na balança comercial, plena atividade nos setores industriais e
comerciais internos e, na ordem monetária, uma aparente acumulação de ouro
e divisas no exterior e novos incrementos nos meios de pagamento. (Ofício n.
211, de 25 de fevereiro de 1946. Do Embaixador João Batista Lusardo para o
Exc. Ministro João Neves da Fontoura.)
A estatização do Banco Central argentino foi uma medida de maior importância
no sentido da subordinação da iniciativa privada ao novo tipo de gestão do aparelho de
Estado que se estava construindo. Na visão da Embaixada, essa medida significou “o
maior transcendente ato de centralização política”, bem como “a constituição do maior
controle de ordem econômica que poderia criar neste país”. (Ofício n. 244, de 26 de
março de 1946)
A Embaixada enfatizou como a vitória de Perón e a hegemonização do
parlamento argentino por sindicalistas, a imensa maioria sem experiência com a
atividade da política institucional, poderiam afetar as relações diplomáticas entre ambos
os países. Sublinhou a possibilidade de novos desdobramentos dos atritos entre Estados
Unidos e Argentina:
A República Argentina, que não participou da Guerra ao lado das nações
unidas, tem orientado o escoamento dos produtos nobres de sua exportação
para os países que lhe pode dar, em troca, artigos e produtos de que
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urgentemente necessita [...] Pode a República Argentina privar o Brasil do
trigo que dispõe para, com ele, alimentar as populações europeias? Interessa
à República Argentina deixar de abastecer os países seus vizinhos e, alguns,
até dependentes dela geograficamente, para mandar os seus produtos mais
além de suas fronteiras? (Ofício n. 252, de 04 de abril de 1946. Do
Embaixador João Batista Lusardo para o Exc. Ministro João Neves da
Fontoura)
A Embaixada ficou atenta para o fechamento interno do regime peronista em
relação aos canais institucionais de expressão das vozes oposicionistas. Numa
conferência realizada na Confederação Geral do Trabalho, Perón afirmou que não havia
espaço dentro da nova Argentina para quem não fosse “criollo”, acrescentando que,
“uma vez nos opusemos contra um imperialismo, nos oporemos também a outro, se
necessário”. (Ofício n. 393, mês econômico-financeiro-comercial, n. 7)
Juntamente com esses ofícios descritivos, podemos notar insinuações do
peronismo para alianças na esfera econômica e política com o Brasil. Pelos recortes de
jornais anexados aos ofícios, vislumbravam-se várias falas do presidente argentino em
relação a uma aliança no Cone Sul, que se chamaria Pacto ABC (de Argentina, Brasil e
Chile, tal como ensaiado na década de 1910 para dirimir tensões advindas do contexto
anterior à Primeira Guerra Mundial na região). Lusardo se mostrava cauteloso nos
comentários, recebendo em troca silêncio do Rio de Janeiro. Para Amado Cervo:
Enquanto esteve sob direção de Raul Fernandes, João Neves da Fontoura e
Vicente Rao, o Itamaraty fazia na América do Sul o trabalho que a própria
diplomacia americana se negou a executar, de torpedear a ação da Argentina
de Perón, pensando assim agradar ao Departamento de Estado, quando lhe
convinha, por todos os títulos, acompanhar a ação integracionista proposta
por Perón, depurando-a – o que estava em condições de alcançar – de seu
caráter hostil à potência hegemônica no hemisfério. (CERVO, 2001, p. 178179)
No final de 1946, a Embaixada Brasileira em Buenos Aires remeteu ao Rio de
Janeiro um oficio tentando definir o que era o peronismo. Dizia tratar-se de uma clara
hipertrofia do Estado aos moldes do nazismo e do fascismo. No caso, até pior porquanto
misturado ao “caudilhismo”, governo de um homem só chefiando “um aglomerado
humano cuja passividade outorga a centralização individual do poder”. (Ofício n. 483,
de setembro de 1946) Seguindo nessa toada, dizia-se que
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A excepcional situação geográfica de Buenos Aires favorece, numa espécie
de reimplantação do Vice Reinado do Rio da Prata, em domínio econômico,
como recordei em estudos anteriores, e pressão política da Argentina sobre os
povos vizinhos e, até certo ponto, seus tributários. (Ofício n. 483, de
setembro de 1946. Ofício da lavra do primeiro secretário da Embaixada,
Osvaldo Furst)
Sobre o poder bélico, sempre uma preocupação brasileira, assegurava:
Começa agora a grande campanha do que chama a entrada do país na era
aeronáutica, comprando aviões, criando e estimulando companhias, fazendo
pilotos e técnicos, projetando o aeródromo de Eceizer, que será monumental
e um dos primeiros do mundo, rasgando estradas de rodagem entre todos os
campos de aviação, escolas e bares, conquistando na paz a experiência da
guerra que não fez. Todo seu enorme dinheiro é para adquirir maquinaria
destinada à grande industrialização do país, armamentos e material bélico em
geral para a marinha e para o Exército, navios mercantes, aviões comerciais,
tudo, enfim, que ateste grandeza e prestígio. (Ofício n. 483, de setembro de
1946. Ofício da lavra do primeiro secretário da Embaixada, Osvaldo Furst)
Forçoso destacar aqui novamente como o contexto descrito estava em
dissonância com o governo de Eurico Gaspar Dutra, contribuindo para desinteligências
diplomáticas. Na opinião do Ministro da Fazenda brasileiro, Pedro Luís Correia e
Castro, por exemplo, o Brasil era e permaneceria “um país essencialmente agrícola”.
(ALBUQUERQUE, 1996, p. 186) Na falta de uma política econômica de proteção
aduaneira e utilização de divisas para a industrialização, o Brasil se enfraquecia
economicamente justamente num momento de ascensão platina.
Para a Embaixada Brasileira em Buenos Aires, os objetivos da Argentina
peronista eram claros:
Qualquer que seja a atividade internacional da Argentina, o seu objetivo é o
Brasil [...] As forças que a Argentina pode usar, direta ou indiretamente
contra o Brasil, seguramente usará [...] Desde que o General Perón assumiu o
governo, a 4 de junho, o Brasil não recebeu um só quilo de trigo da
Argentina. Os apelos do Brasil, raciocinemos claro, chegaram ao desespero,
pois a falta do cereal gerava, à margem do problema econômico, a questão
social, provocando desentendimentos gerais e evidentemente a sublevação
das massas incitadas pela propaganda comunista. Neste trágico momento
para o Brasil, a Argentina se mostrou irredutível. Esse fato confirma, a
República Argentina tem interesse em que haja pobreza e descontentamento
no Brasil. Enfraquecidas as fontes de produção no Brasil, deprimida pela
fome a maior parte de sua população, minado seu trabalhador pela
propaganda comunista, o Brasil entraria em fase de desanimo e desgraça, na
proporção inversa da riqueza, do bem estar e da projeção internacional da
Argentina. (Ofício “secreto”, de 16 de outubro de 1946. Ofício da lavra do
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primeiro secretário da Embaixada, Osvaldo Furst , para Samuel de Souza
Leão Gracie)
Esses documentos desabonadores para o governo argentino eram assinados por
Osvaldo Furst, primeiro secretário da embaixada e extremamente crítico ao peronismo.
Uma perspectiva bastante diferente de Lusardo, não obstante em sintonia com a opinião
da classe dirigente brasileira naquele momento. Na verdade, não interessava a Perón o
conflito com o Brasil, tampouco “sublevações das massas instigadas por comunistas” ou
a “depressão pela fome”. Entendemos que essa leitura de Furst, claramente diferente de
Lusardo, denotava uma estrutura de pensamento para com a Argentina semelhante aos
jornais aqui analisados, ou seja, a caracterização de um governo nacional-reformista
como imperialista e subversor da ordem.
No início de 1947, a Embaixada Brasileira vaticinava como seria o futuro
imediato da Argentina:
Industrialização, produção e comércio, esse é o triângulo a partir de 1 de
janeiro próximo, mesmo com o plano quinquenal ainda sob dependência de
aprovação do legislativo, que fará girar em torno de si toda a atividade
argentina. O ano de 1947 será para a República Argentina cheia de recursos
da terra, de meios em dinheiro, em títulos e em créditos, de audácia e anseio
de crescer, um ano de evidente prosperidade. (Ofício n. 17, de 14 de janeiro
de 1947. De Ciro de Freitas Valle para Raul Fernandes)
Um país fechado politicamente e desfrutando de uma prosperidade ímpar,
voltado em sua maioria para o fortalecimento econômico e militar. Essa parecia ser a
sugestão do aparato diplomático brasileiro. Os militares argentinos seriam os mais bem
capacitados do subcontinente, sobretudo a Aeronáutica, “talvez a mais eficiente e
poderosa da América Latina”. (Ofício n. 17, de 14 de janeiro de 1947. Ciro de Freitas
Valle para Raul Fernandes) Em um dos últimos ofícios de janeiro de 1947, após analisar
aspectos da economia argentina, a Embaixada Brasileira destacou em letras garrafais
que
em
pouco
tempo
a
Argentina
se
transformaria
“NO
PAÍS
MAIS
INDUSTRIALIZADO DA AMÉRICA DO SUL”. (Ofício n. 41, de 30 de janeiro de
1947) Também se tratava da conquista dos vizinhos pela diplomacia platina:
Não é mistério para ninguém que a orientação da política argentina, na esfera
internacional, foi sempre de chamar para si uma espécie de tutela do maior
número de nações vizinhas, de modo a aparecer, nas conferências
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americanas, escudadas por essas. (Ofício n. 96, de 13 de março de 1947. De
Ciro de Freitas Valle para Raul Fernandes)
Ao comentar o que seria a tradição argentina na política internacional, a
Embaixada castigava:
Há, porventura, quem dê notícias lógicas da “tradição argentina”, além do
que se manifesta no enlouquecido nacionalismo [...] Será tradição aprovar as
convenções interamericanas e não as ratificar? Tentar a hegemonia material
para chegar através dela à hegemonia política na América Latina? [...]
Tradição envolve fidelidade a um sistema jurídico, político ou religioso. Nas
práticas internacionais, a Argentina, país cuja formação só agora se
consolida, não expressou fé a qualquer sistema. Assina e renega, aprova e
não ratifica. Pacifista, arma-se. Bom vizinho, não teve solidariedade com o
Brasil em qualquer dos momentos graves para esse. Árbitro, foi o que lucrou,
sem riscos, na Guerra do Chaco. É isso tradição? (Ofício n. 101, de 18 de
março de 1947. De Ciro de Freitas Valle para Raul Fernandes)
O Embaixador Ciro de Freitas Valle, responsável por esses ofícios, fora descrito
por Lusardo como “udenista até a medula, sinônimo de antigetulismo e antiperonismo”.
(CARNEIRO, 1978, p. 319) E com a UDN em evidência no cenário nacional,
percebemos a concatenação tanto no exterior quanto no país de uma política clara de
defenestração do peronismo.
Daí, o assunto seguiu para a dominação de tecnologia atômica, então o maior
temor de todos os ligados ao crescimento da capacidade de destruição de um país sobre
o outro:
Três medidas do Congresso Nacional Argentino, destinadas a proporcionar
fundos, equipamentos e técnicos para o programa de investigação atômica,
foram classificadas recentemente como “legislação militar secreta” [...]
aplicou-se lhes a cláusula do plano quinquenal que tornam “secretos e
ilimitados” os gastos da defesa nacional. O primeiro parágrafo da lei que
institui o “centro atômico” do Ministério da Guerra da Argentina “reclama” a
colaboração de todos os laboratórios do país em que já se realizam
investigações cientificas com relação à energia atômica. (Ofício n. 67 e 118,
de 28 de fevereiro e 31 de março de 1947. De Ciro de Freitas Valle para Raul
Fernandes)
Em outro relatório, destacou-se a seguinte passagem: “Se há, pois, na América
do Sul, indústria de guerra preparada, com direção consciente e autônoma, é a da
República Argentina”. (Ofício do mês militar-naval-aéreo, n. 7)
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Na prática, por informações da própria Embaixada, o regime argentino foi
estabelecendo diretrizes de entendimento com o Brasil. No plano simbólico, várias
escolas públicas importantes de Buenos Aires haviam sido rebatizadas em homenagem
a heróis brasileiros:
José Bonifácio de Andrada e Silva, Duque de Caxias, Quintino Bocaiúva,
Osvaldo Cruz e Rui Barbosa [...] ao lado de José de San Martin, Bernardino
Rivadavia, Justo José de Urquiza, Estrada, Florêncio Amighino, Bartolomé
Mitre, etc, isto é, na mais honrosa companhia que os filhos deste país
poderiam proporcionar ao Brasil. (Ofício n. 283, de 22 de abril de 1946. De
João Batista Lusardo para João Neves da Fontoura)
Em 1947, o maior esforço do pessoal diplomático argentino recaiu na
organização de um encontro entre os presidentes Perón e Dutra na fronteira entre
Uruguaiana e Passos de Los Libres. Nessa ocasião, os peronistas solicitaram uma longa
lista de atividades, que incluiria alongamento de linhas de créditos, aumento do fluxo
comercial, criação de novos intercâmbios de mercadorias, protocolos culturais, ou seja,
vários dias de discussões e acertos, com presença maciça de políticos, sindicalistas e
populares, auxiliados por uma gigantesca comitiva de imprensa. A cereja do bolo seria
um discurso em conjunto e a assinatura de um tratado político que indicaria a liderança
compartilhada de Brasil e Argentina nos problemas internacionais da região.
Naturalmente, todo esse esforço foi debelado pela diplomacia brasileira, que
categoricamente tergiversou todas essas iniciativas e se limitou ao básico de praxe,
negando, por ordens expressas de Dutra, qualquer palavra a respeito de “blocos políticos
ou comerciais”. Ciro de Freitas Valle assim se expressou a respeito do encontro:
Imediatamente, de acordo com as ordens de vossa excelência (o Ministro das
Relações Exteriores do Brasil, Raul Fernandes – nota do autor), encarei a
questão de limitar-se o encontro a um dia, de manhã a noite [...] O encontro
seria simbólico e os presidentes pouco teriam a dizer-se. (Ofício n. 142, de 17
de abril de 1947. De Ciro de Freitas Valle para Raul Fernandes)
No mesmo ofício, Valle assinalou que havia pedido ao chanceler argentino
“pouca oratória” e que “só os presidentes falassem”.
Em meio aos insucessos argentinos de aproximação com os brasileiros, Perón
subiu o tom na sua política internacional e, no segundo semestre de 1947, decretou que
seu país assumiria uma Terceira Posição em política externa, não alinhada nem aos
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norte-americanos e nem aos soviéticos. Com a Guerra Fria já se desenvolvendo no
horizonte, mais os tratados comerciais e políticos que Buenos Aires lograra fechar com
os países do entorno regional – com exceção do Brasil –, potencializou-se a repercussão
negativa dessa iniciativa junto ao governo brasileiro.
Vale destacar que naquele momento os EUA haviam proibido a utilização de
recursos disponibilizados aos europeus para comprarem produtos argentinos. A
Argentina então se direcionava para Moscou e a zona de influência soviética no mesmo
período em que o Brasil de Dutra cassava os comunistas e rompia de maneira unilateral
as relações diplomáticas com a URSS.
Assim sendo, foi nessa toada de afastamento e marginalização que seguiram os
diversos ofícios de Buenos Aires para o Brasil até em torno de 1949, destacando quase
sempre o caráter agressivo e de perfídia do governo peronista, inviabilizando qualquer
tipo de acordo mais profundo que pudesse ser concretizado naquele momento.
Considerações finais
Apesar da insistência da diplomacia argentina, o Brasil evitou acordos
diplomáticos substanciais no período e manteve seu alinhamento geopolítico com os
Estados Unidos. Ao que tudo indica, colaboraram para isso não apenas a intensa
propaganda antiperonista promovida pelas oposições argentinas, pela diplomacia
estadunidense e as agências de notícias internacionais, mas também a atuação de uma
parte dos jornalistas e de diplomatas brasileiros, evidenciada nas fontes históricas
destacadas nas páginas anteriores.
Ainda que a Argentina não tenha entrado em conflito armado com nenhum país
durante os anos de 1946 a 1950, esses setores trataram de difundir continuamente a
imagem de que o regime justicialista era simpático ao Terceiro Reich e que
naturalmente imitaria seus propósitos expansionistas. Nesse sentido, difundiram-se
muitas acusações de ligações secretas do peronismo com o nazismo, denúncia
reverberada pela diplomacia e pelas agências de notícias norte-americanas.
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Tendo em vista a historiografia recente, é importante colocar tais afirmações em
perspectiva. Se por um lado o governo argentino não se preocupou em identificar nem
impedir a entrada de criminosos de guerra nazistas, há que se ter em conta que, por
outro lado, nunca houve um programa deliberado de atração ou proteção desse grupo
específico, composto em muitos casos por imigrantes que chegaram ao país com
passaportes falsos e misturando-se à multidão de refugiados de guerra. O apoio de uma
parte da comunidade judaica ao governo justicialista, como apontado por Raanan Rein,
é mais um aspecto que mostra que a realidade era bem mais complexa do que aquela
difundida nas fontes analisadas. (REIN, 2015)
Além dos boatos, tão comuns em guerras de propaganda, colaboraram para a
imagem da Argentina imperialista fatores concretos indicados tanto nos jornais como
nos ofícios diplomáticos brasileiros do período. Apontava-se com preocupação o alto
investimento platino nas Forças Armadas, a valorização da memória de Juan Manuel de
Rosas por grupos de extrema-direita que respaldaram inicialmente o justicialismo e a
divulgação de propaganda peronista dentro do Brasil. Esta estaria ocorrendo por meio
de caravanas de estudantes e trabalhadores financiadas pela Casa Rosada, de jornais
brasileiros subsidiados pelo regime, de livros com explícito conteúdo ideológico
distribuídos no meio sindical e da aproximação silenciosa com políticos do PTB.
A última acusação, a de uma aliança secreta entre peronistas e petebistas para
estabelecer uma república sindicalista no Brasil, foi muito mais frequente a partir do ano
de 1950, quando Vargas, político que Perón disse repetidas vezes admirar, venceu as
eleições presidenciais.
Como pano de fundo de todas essas representações negativas, é possível detectar
entre os setores sociais analisados certa rejeição ideológica mais ampla àqueles regimes
latino-americanos nacionalistas apoiados pelas massas e que, em determinados
momentos, assumiram formas autoritárias.18 Críticos de Vargas, considerado um líder
autoritário e demagogo, muitos jornalistas e diplomatas brasileiros viam o peronismo
18
Para ficar em apenas um exemplo, um dos embaixadores brasileiros em Buenos Aires (1947-1948),
Ciro de Freitas Valle, afirmou que Perón errava ao pagar altos salários a peões que “imaginam serem
explorados” e que os trabalhadores argentinos recebiam “talvez mais do que necessitam” para viver.
(CAVLAK, 2008, p. 118)
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como um regime inspirado no Estado Novo getulista. Não se pode deixar de levar isso
em conta.
Por fim, vale destacar que o momentâneo descompasso entre a situação política
e econômica dos dois países conspirou para o afastamento. O Brasil de Dutra tendeu
para o liberalismo na economia e o conservadorismo na política com o governo federal
intervindo em sindicatos, rompendo relações com a URSS e empastelando movimentos
radicais. Em termos de política externa, seu resultado foi, na expressão de Gerson
Moura (1990), um “alinhamento sem recompensa” aos Estados Unidos. Já a Argentina
de Perón, sobretudo naquela segunda metade dos anos 1940, apostou em uma série de
estatizações e na criação de direitos sociais amparados na ótima situação econômica da
nação no pós-guerra. O justicialismo trouxe mudanças políticas profundas, como o voto
feminino, a intensa participação sindical e uma diplomacia não alinhada às
superpotências. Tais mudanças ocorreram, não se pode esquecer, em um contexto cada
vez mais autoritário.
Enquanto a política externa peronista tentou romper o isolamento imposto pelos
norte-americanos, construindo novos parceiros e inserções, a “diplomacia da obstrução”
promovida pelo Brasil boicotou tal seara e bloqueou todas as iniciativas que pudessem
questionar o status quo internacional no entorno regional.
As visões negativas produzidas pela grande imprensa e pela diplomacia foram
expressões desse descompasso, potencializado por rixas históricas e desconfianças de
longa data. Assim, os atores sociais analisados foram, cada um a sua maneira,
expressões de uma conjuntura nacional que caminhou em sentido contrário ao do nosso
principal vizinho.
As representações analisadas ao longo do trabalho tornaram-se tão fortes e
arraigadas que, mesmo nos anos 1950, numa nova conjuntura com Vargas de volta ao
poder, foi sobremaneira difícil ultrapassar as desconfianças em nome de eventuais
interesses coletivos para ambos os países.
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Fontes documentais
FREITAS, Geraldo de; REGATO, Angelo. Novas pontes ligam a América. O Cruzeiro,
Rio de Janeiro, 14 de junho de 1947, p. 56-62.
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