FICHA TÉCNICA
Título: História da Construção – Arquiteturas e Técnicas Construtivas
Coordenação: Arnaldo Sousa Melo, Maria do Carmo Ribeiro
Imagem da capa: Bibliothèque Royale de Bruxelles, Chroniques de Hainaut, ms 9242, folio 232
Edição: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória»
LAMOP – Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris (Université de Paris 1 et CNRS)
Apoios: UAUM – Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho
ISISE – Instituto para a Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia
SAHC – Mestrado Erasmus Mundus em Análise Estrutural de Monumentos e Construções Históricas
FACC – Fundo de Apoio à Comunidade Cientíica – Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Design gráico: Helena Lobo www.hldesign.pt
ISBN: 978-989-8612-08-3
Depósito Legal: 366514/13
Composição, impressão e acabamento: Candeias Artes Gráicas – Braga
Braga, Novembro 2013
O CITCEM é inanciado por Fundos Nacionais através da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito
do projeto PEst-OE/HIS/UI4059/2011
SUMÁRIO
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro
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Présentation . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro
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El Foro de Segobriga y la formación de la arquitectura imperial
en la Hispania Romana: entre innovación y continuidades . . . . . . . . . .
Ricardo Mar e Patrizio Pensabene
A construção do teatro romano de Bracara Augusta . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Manuela Martins, Ricardo Mar, Jorge Ribeiro e Fernanda Magalhães
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41
Os processos construtivos da edilícia privada em Bracara Augusta:
o caso da domus das Carvalheiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Jorge Ribeiro e Manuela Martins
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L’emploi de l’opus craticium dans le sud-ouest de la Gaule Antique
– le “pan de bois” dans l’Antiquité du sud de la Gaule . . . . . . . . . . . . . .
Christian Darles, Magali Cabarrou e Catherine Viers
99
Il reimpiego nelle cripte del XII secolo in Tuscia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Daniela Esposito e Patrizio Pensabene
Arquitectura y técnicas constructivas en la miniatura castellana
del siglo XIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Rafael Cómez Ramos
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Construire dans les campagnes bourguignonnes au XIVe siècle:
approche géo-archéologique des savoirs et savoir-faire des maçons
dans la seigneurie de l’abbaye de Saint-Seine . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Patrice Beck, Jean-Pierre Garcia e Marion Foucher
Charpentes médiévales en Provence: traces archéologiques et techniques
de construction . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Émilien Bouticourt
Dos abrigos da pré-história aos edifícios de madeira do século XXI . . . . .
Paulo B. Lourenço e Jorge M. Branco
O processo construtivo dos paços régios medievais portugueses
nos séculos XV-XVI: O Paço Real de Sintra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro
A construção monástica no Portugal medievo: algumas relexões . . . . . . . .
Saúl António Gomes
A casa rural comum no Norte de Portugal nos inais da Idade Média.
Subsídios para o seu estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Manuel Sílvio Conde
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179
199
213
245
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Droits et techniques constructives. Une mise au point historique . . . . . . . .
Robert Carvais
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A arte de construir. Artefactos, linguagem e literatura técnica . . . . . . . . . . .
João Mascarenhas Mateus
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A ARTE DE CONSTRUIR. ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
A ARTE DE CONSTRUIR.
ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA
TÉCNICA
JOÃO MASCARENHAS MATEUS1
INTRODUÇÃO
A literatura técnica europeia publicada até ao início do século XX, constitui
uma fonte inesgotável de investigação das antigas culturas construtivas baseadas
em alvenarias de cal. Com a imposição da hegemonia industrial dos sistemas construtivos do aço e do betão armado, a linguagem da construção tradicional sofreu
grandes transformações e partes do seu léxico e da sua gramática icaram adormecidas nos tratados e manuais que até então serviam à formação dos construtores.
Para compreender as intenções e os métodos de construção das antigas alvenarias
é útil entender de novo estes termos e vocábulos hoje em desuso. A revisitação da literatura técnica oferece algumas chaves para identiicar tendências europeias comuns
a diversos países relativas às principais fases de realização destas construções.
A presente pesquisa foi estimulada pelo projecto “Glossario dell’Edilizia Romana tra Rinascimento e Barocco”. Apesar desta análise se focalizar nos séculos
XVIII e XIX, constata-se que muita terminologia da ‘arte de construir’ dessa época,
procedia de uma tradição secular que conseguiu subsistir e atravessar todo o período de optimização de processos construtivos3.
Investigador sénior. CES – Universidade de Coimbra. Email: joao.m.mateus@ces.uc.pt
O projecto resulta da colaboração entre a Cátedra de Arquitetura da Faculdade de Engenharia
da Universidade de Roma Tor Vergata e a Biblioteca Hertziana, Instituto Max Planck para a História
da Arte, em Roma (Hermann Schlimme). Em 2009 apresentei por convite a comunicação “L’arte delle
murature – termini e letteratura tecnica europea fra settecento e ottocento, no III Convegno “Nella Dimora del Cardinale, del Principe e del Mecenate: Le parole del cantiere” organizado por este projecto.
3 Para a participação nesse projecto, para além de diversos tratados italianos, foi então utilizado
1
2
307
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO – ARQUITETURAS E TÉCNICAS CONSTRUTIVAS
Para o presente texto, para além dos tratados e manuais de referência portugueses foi utilizado o Dicionário Técnico e Histórico de Francisco Assis Rodrigues,
publicado em Lisboa em 1876, de forma a realizar um levantamento lexical a partir
de uma compilação temática de vocábulos portugueses.
ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
Para o estudo da história da linguagem prática das actividades construtivas, os
conceitos de artefacto e de linguagem constituem ferramentas de análise particularmente úteis.
Artefactos – no seu signiicado primário de objectos funcionais resultantes da
actividade produtiva do Homem e entidades dependentes do intelecto (Margolis
& Laurence, 2006, 10) – podem ser classiicados em dependentes ou independentes consoante sejam transportáveis ou dependerem de um substrato ou fundação
(Simons 1987: 310). Aplicada à actividade construtiva das alvenarias de cal, esta
divisão poderia justiicar uma primeira distinção entre dois grandes grupos de
artefactos: o dos blocos/argamassas/máquinas e ferramentas e outro grupo em que
se incluiriam os edifícios ou as construções em sentido lato.
Em contraste com os “naturfactos”, em que as modiicações de um elemento
natural são feitas sem a adição de novos materiais, a maioria dos artefactos tecnológicos são obtidos por acções sucessivas de extracção, remoção, transformação,
conformação e ensamblamento seguindo os princípios de “redução” e de “conjunção” (Oswalt 1976, 170). Se transpostos a um edifício em alvenaria, estes princípios
explicariam as fases posteriores à da concepção e projecto como uma sucessão de
acções produtivas baseadas na conjunção de processos de redução, organizadas
sequencialmente: – extracção de materiais, – produção de blocos e argamassas,
– ensamblamento de blocos e argamassas, – aplicação de revestimentos, – coberturas e protecções duráveis (Mascarenhas-Mateus 2002: 66-67). Por esta razão, o
estudo do léxico, da morfologia e das gramáticas usadas na execução das construções deve ser dividido numa primeira instância, na análise da terminologia usada
em cada uma das fases construtivas.
Se ampliarmos o conceito de artefacto, é possível igualmente airmar que uma
determinada linguagem é um artefacto, sempre que as palavras que a conformam
tenham sido criadas ou sejam utilizadas para um im determinado.
A linguagem não deve ser vista como um veículo passivo de transmissão de
informação mas como geradora do espaço mental ou da noosfera de um indivíduo,
como caso de estudo o Capitolato Generale che Regola tutti appalti di Opere e Forniture di Materiali
di Costruzione Stradali per Conto del Comune di Roma, publicado em 1909 em 3 volumes.
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A ARTE DE CONSTRUIR. ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
de uma comunidade ou de uma cultura, nos quais se desenvolvem as interacções
entre os indivíduos e a manipulação dos recursos naturais. Existe igualmente uma
forte relação entre os modos em que o mundo visual é criado e as maneiras em
como a linguagem é usada para criar espaços mentais. A cada forma de vida,
a cada cultura e a cada actividade humana corresponde um jogo de linguagem,
ou seja uma certa forma de usar a linguagem segundo regras que determinam o
signiicado das palavras (Wittgesntein 1996, 56). A função ou uso de um objecto
é determinante para o signiicado da palavra que o denomina. Não existe uma
relação directa entre o signiicado de uma palavra e o objecto ou a acção a que
essa palavra se refere. O signiicado de uma palavra reside no seu uso semântico
(Auroux 2004, 257-259).
A linguagem usada pelos antigos construtores, antes da cientiicização e normalização de muita da terminologia técnica resulta pois de jogos de linguagem que
aparentemente se poderiam designar de metáforas, metonímias ou da combinação
de vocábulos associados a outras actividades humanas. As categorias mentais próximas dos sentidos mais básicos como a cor, a forma, a semelhança visual, táctil
ou olfactiva, as analogias com o corpo ou com o gesto ajudam, de forma subjectiva à construção das categorias linguísticas. Dependentes das conjunturas sociais,
económicas e culturais, os vocábulos da tecnicidade4 utilizados pelos antigos construtores resultam de processos relacionais de construção linguística, de intenções
constitutivas de ideias (Havelange 2005).
LITERATURA TÉCNICA E LINGUAGEM DAS
ALVENARIAS TRADICIONAIS
Tendo em consideração a complexidade da formação dos jogos de linguagem
próprios de uma cultura, é possível passar à identiicação de algumas particularidades da linguagem das culturas construtivas das alvenarias de cal.
Os textos de Arquitectura e Construções publicados a partir da invenção da
Imprensa implicaram sempre a utilização de uma linguagem técnica que relectia
o conhecimento teórico e prático dos autores, assim como a cultura e o período
em que eles viveram.
É vasta a lista de grandes tratados e manuais de difusão europeia publicados
em variadas línguas das quais foram analisados exemplares em italiano, francês,
espanhol, inglês e português. Esta literatura técnica europeia inclui cursos e lições,
livros de estereotomia, obras sobre a mecânica dos arcos e das abóbadas, o fabrico
4 “Tecnicidade” como sistema autónomo no sentido dado por Stiegler e Derrida. Distinto de
“técnica” considerada na acepção construtivista de simples “razão instrumental”.
309
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO – ARQUITETURAS E TÉCNICAS CONSTRUTIVAS
de blocos e argamassas, acabamentos, livros sobre durabilidade e ainda periódicos,
normas e cadernos de encargos.
A leitura destas obras permite constatar que durante os séculos XVIII e XIX
a arte de construir em alvenarias, empregou sobretudo uma linguagem própria
das práticas ancestrais todavia sem grandes pretensões de cientiicidade, a não ser
alguns estudos pontuais limitados ao âmbito académico. Mais próxima, portanto,
de uma linguagem natural do que de uma linguagem cientíica destinada a ser
compreendida a nível universal ou global, mas que não deixou de constituir um
instrumento de discussão entre teóricos, como é possível constatar pela sua profusa
utilização em tratados e literatura especializada em construção.
Com o Iluminismo e até ao início do século XX, assiste-se a uma explicação
metódica de materiais e processos à luz do conhecimento e das leis das novas ciências. Esta estandardização positivista acabou por relegar as alvenarias a um segundo
plano com o advento das estruturas metálicas e do betão armado. Estes novos
sistemas construtivos de dimensionamento e produção optimizados não apenas
estabeleceram indústrias inovadoras como também terminaram por criar novos
processos de distinção entre classes de protagonistas nas actividades da construção.
Com o objectivo de eliminar arcaísmos, regionalismos, plebeísmos e anibologias,
a cientiicização da linguagem técnica conduziu ao empobrecimento da poética, do
simbolismo e da humanidade visceral própria dos antigos construtores.
A inluência da industrialização na substituição de vocábulos associados a práticas artesanais ou pouco industrializadas foi um processo que ocorreu nesse período
extremamente curto e limitado, se comparado com os milénios de construção tradicional. Por essa razão, a terminologia da construção de alvenarias, fruto de séculos
de aperfeiçoamentos e envolta numa aura de hermetismo próprio das actividades
corporativistas resistiu e coexistiu com léxicos que com a optimização tecnológica
dos processos de produção foram sendo introduzidos paulatinamente na literatura
técnica dos séculos XVIII e XIX.
A linguagem dos antigos construtores usava vocábulos relacionados com outros
campos semânticos5 próprios de outras actividades humanas. A manufactura das
alvenarias era mentalmente incorporada pelas várias classes de artíicies de forma
intuitiva. Eles possuíam a sensibilidade necessária para saber quando e como corrigir as receitas empíricas, adaptando-as às características dos materiais disponíveis,
às condicionantes ambientais ou ao tipo de construções a realizar.
Campo semântico é aqui entendido como conjunto de palavras ou elementos signiicantes com
signiicados relacionados. As relações de ordem entre campos semânticos podem ser ramiicantes (por
meronímia ou por hiponímia) ou lineares. Uma alteração semântica pode consistir na ampliicação
do uso de uma palavra a outros conceitos similares.
5
310
A ARTE DE CONSTRUIR. ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
O LÉXICO DAS PRINCIPAIS FASES CONSTRUTIVAS
DAS ALVENARIAS
Como referido anteriormente a análise da construção (produção) dos edifícios
(artefactos) em alvenaria requere o estudo das suas diversas acções produtivas de
conjunção e redução: 1 – concepção e projecto; 2 – extracção e processamento de
materiais; 3 – montagem e execução e 4 – revestimentos e protecção.
Para a primeira fase foram encontrados no Diccionario de Francisco Assis Rodrigues, vocábulos na sua maioria pertencentes à anatomia humana, como campo
semântico dominante. Em número residual foram igualmente identiicadas algumas
palavras provenientes da botânica, da zoologia, da actividade têxtil e do vestuário.
Representam-se na tabela 1:
tabela 1. Vocábulos usados na fase de concepção e projecto.
campos semânticos
dominantes
Fig. 1
anatomia
medidas: braça, côvado, palmo, pé, passo, polegada, petipé
descrição do edifício em planta: membros da planta, corpo central,
corpos lateral, braço da nave, cabeceira, pé da nave, corpo saliente,
boca da chaminé, garganta da chaminé
descrição do edifício em fachada: membro da fachada, frontaria,
lanco, dentilhão ou espera, bossagem, nembro ou nembo, ombreira
da porta, jamba de porta, parapeito, peitoril, friso, frontão, tímpano,
óculo, olho de boi, olho da voluta, carranca, coroamento
estrutura geral: esqueleto de alvenaria, ossada, carcaça, sapata, pegão,
esporão
estrutura de arcos e abóbadas e seus suportes: pé-direito, tronco da
coluna, nervura, costela, cabeça do arco, cotovelo do arco, extradorso,
intradorso, rim da abóbada, sovaco do arco ou da abóbada, orelha do
arco, luz do arco, arco cego, avoamento da abóbada
cornijas e capitéis: gola, dentículo, friso
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HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO – ARQUITETURAS E TÉCNICAS CONSTRUTIVAS
botânica e zoologia
arcos e abóbadas: talo da coluna, nascimento do arco, ramo de arco,
ramo de ogiva, avoamento da abóbada, abóbada de caracol
partes de abóbadas: alvéolo, gomo, penacho
Suportes em consola: cachorros, cahorrada
têxtil
e costura
paredes e abóbadas: pano ou cortina de alvenaria, costura de
alvenarias, abas, laçaria
Formas de abóbadas: Abóbadas de barrete de clérigo, em leque, de asa
de cesto, de berço
A máxima atribuída a Protágoras do “homem como medida de todas coisas”
relecte a utilização das proporções do corpo humano para unidades de medida.
Uma prática que atravessou milénios e que na Europa continental só com o estabelecimento do metro, foi relegada a um segundo plano.
Um edifício é construído por um “esqueleto” estrutural, preenchido por maciços de enchimento (a “carne”) e revestido por uma “pele. A divisão de um edifício
em “corpos” e “membros” serve de ponte de comunicação entre o projectista e o
executante da construção.
No que se refere ao funcionamento estrutural dos elementos de cobertura de
espaços e dos seus suportes, vocábulos relacionados com os membros resistentes
do corpo humano ou a constituição de uma planta, servem para explicar visual e
intuitivamente a distribuição de cargas ao longo dos maciços murários, desde as
zonas mais elevadas dos edifícios até às fundações. Para as cornijas e capitéis, reservam-se nomes de órgãos relacionados com a cabeça. Para as zonas de suporte,
palavras relacionadas com o tronco, os braços e as pernas. Até chegar às fundações,
aos pés e às “sapatas”.
Vocábulos emprestados ao campo dos têxteis e do vestuário servem à descrição
das zonas de enchimento ou de revestimento.
Na segunda fase, a relativa à extracção das matérias-primas e a preparação dos
blocos e das argamassas, os campos semânticos dominantes são distintos.
Os aloramentos de pedra natural são vistos como ‘seres adormecidos’ que aloram à superfície dos solos, cobertos de uma pele ou de uma casca, com veios determinados pela orientação do seu leito de jazida. Para a classiicação granulométrica
dos inertes são comuns expressões como as usadas por Quatremère de Quincy,
Delaistre ou Sganzin referentes a cascalhos com tamanho de ovos de pombo ou
de ovos de galinha.
312
A ARTE DE CONSTRUIR. ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
Tabela 2. Vocábulos usados na fase de produção de blocos e argamassas
Campos semânticos
dominantes
Fig. 2
Agricultura e Anatomia
na pedreira: leito, aloramento, sebe, casca, veios, cegar, orelhas
dos blocos
agricultura
na barreira: cava de argila
culinária
no telheiro e no forno cerâmico: argila gorda, argila magra, pasta,
amassar, enformar, cozer, enfornar, desenfornar
no amassadouro: cal viva, cal morta, cal gorda, cal magra amassar,
massame
Na barreira, o que se extrai é uma terra e por isso o léxico empregado é o que
se usa na agricultura. É no entanto uma terra viva que deve ser processada antes
de servir à moldagem dos blocos. Por isso, nos textos italianos, é comum encontrar
referências à “coltivazione d’una cava d’argilla” e de argila deixada a “stagionare”
(a curar como o queijo).
Para o fabrico de tijolos e telhas, vocábulos de culinária associados à amassadura e cozedura do pão são os mais frequentes. Rondelet fala mesmo de “pães de
argila”. E o mesmo se aplica no amassadouro em que se preparam as argamassas.
Refere-se a cal forte (Scamozzi), explica-se como deixar a cal a curar ou a macerar
(Rondelet, Napoli) ou a destemperar (Milizia).
Na terceira fase do processo construtivo, o campo semântico das palavras oferecidas pelo Diccionario de Francisco Assis Rodrigues, é de novo distinto (tabela
3).
313
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO – ARQUITETURAS E TÉCNICAS CONSTRUTIVAS
Tabela 3. Vocábulos usados na fase de montagem das alvenarias
Campo semântico
dominante
Fig. 3
zoologia
máquinas de elevação e transporte: cábrea, cabrilha, cabrestante,
falcão, macaco, zorra, moitão, articulação, joelho, rótula, patas,
freios, maxilas
obras provisórias de carpintaria: cavalete, burro
Ferramentas e acessórios: serras de dentes de papagaio, língua-degato, lingueta, bico, bico de asno, dente de lobo (brunidor), pé-decabra, martelos de unhas e orelhas.
peças de ligação: gatos, caudas de andorinha, machos
Às máquinas de elevação e transporte são dados sobretudo nomes de animais de
forte compleição ou de “carácter persistente” que têm “articulações, joelhos, rótulas,
patas, freios e maxilas”. As obras provisórias são também auxiliadas por construções
com nomes de animais. As ferramentas, acessórios e peças de ligação são apelidados
com nomes de animais mais pequenos mas com capacidades anatómicas especiais
que podem ajudar o homem no seu labor quotidiano.
No que se refere à montagem dos blocos com as argamassas (tabela 4), o Diccionario de Assis Rodrigues não oferece nenhuma referência particular. No entanto,
outras línguas empregam jogos de linguagem bem deinidos para esta operação.
Em italiano, as alvenarias são montadas “a sacco” e os tijolos colocados sobre “leitos” de argamassa. Os tijolos são colocados “in foglio”, “in coltello” ou “a sorelle”
(emparelhados como irmãs). Em inglês, consoante a colocação da face maior ou da
face menor de um tijolo sobre o leito de argamassa, assim se denomina um tijolo
“sailor” ou um tijolo “soldier”. Em francês as pedras são colocadas “en dame” ou
em “corbeau” (Montclos 1972).
Terminada a montagem dos blocos e das argamassas com a execução dos maciços portantes, dos arcos e das abóbadas, a variedade de campos semânticos volta
a mudar e diversiica-se consideravelmente.
314
A ARTE DE CONSTRUIR. ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
Tabela 4. Vocábulos usados na fase dos revestimentos, acabamentos e manutenção
Campos semânticos dominantes
Fig. 4
costura e vestuário
Formas das coberturas: coruchéu, em agulha, de tesoura, chapéu
de trapeira, manto de telhas
zoologia
estrutura de telhados: asna, perna da asna, boneca, crista do telhado
Anatomia, Zoologia e Botânica
detalhes de protecção: pestana das chapas de chumbo, lacrimal,
aba do telhado
realização de rebocos e estuques: encrespar, alcachofrar
tratamento inal das superfícies: descascar, arranhar, acerejar, adamascar, amaciar, esbarbar, esgraiar
Costura
trabalhos de manutenção: alegrar as fendas, avivar as arestas, coser
e descoser as alvenarias
Zoologia
ornamentação: bico de mocho, denteado, franjado, frisado, madeixa, penacho
Botânica
lorão, folha, folhagem, grinalda, junquilho, lambrequim, palmas,
pérolas oliva, pinha, óvalo, caracol, talos, carambanos (cul.)
Tímia/Psicologia
pintura: Temperar a pintura, atormentar as cores, avivar as cores,
cores gaias, cores inimigas
A geometria das coberturas têm a ver sobretudo com formas de chapéus e com
vocábulos comuns ao campo do vestuário e dos têxteis.
A denominação das estruturas de madeira dos telhados é conseguida com nomes de animais. A asna em português, a “incavallatura ou a “capriata” em italiano.
Os seus membros secundários são “habitados” por bonecas, em português, ou por
“monacos” (monges) ou “ometti” (pequenos homens), em italiano.
Os edifícios são coroados e capeados. As chapas ou placas de capeamento constituem as “pestanas” das construções.
315
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO – ARQUITETURAS E TÉCNICAS CONSTRUTIVAS
O acabamento dos revestimentos ou da “pele” dos edifícios é realizado de forma
a obter superfícies rugosas como os cabelos encrespados ou as alcachofras ou, pelo
contrário, superfícies lisas e macias como as cerejas, os damascos, sem o picar da
barba.
Em português, os degraus das escadas são revestidos com cobertores e espelhos. Em francês, os degraus têm um “nez” (nariz). Em italiano, os degraus têm
“bocchette” (bocas) e “cigli (pestanas).
Os ornamentos podem encontrar inspiração em detalhes zoomóricos ou itomóricos e por im as cores das pinturas servem a melhorar ou a acentuar um
determinado estado de ânimo.
CONCLUSÕES
Os resultados apresentados não resultam de uma pesquisa exaustiva e completa dos vocábulos nos países mencionados e em todas épocas. O levantamento e a
identiicação sistemática e metódica de todos os léxicos possíveis implicariam um
projecto de investigação de grande folego.
Apesar do carácter exploratório da presente pesquisa e do número limitado de
fontes utilizadas, é possível detectar, provisoriamente e no caso das línguas latinas,
a existência de campos semânticos dominantes para cada momento do processo
produtivo, usados pelos antigos construtores de alvenarias.
Assim, na fase de desenho e concepção constata-se a predominância de termos
próprios da anatomia humana para descrever as principais partes do edifício que
se projetava.
A terminologia das fases que se seguiam (preparação de blocos e argamassas,
montagem de blocos e argamassas, revestimentos, protecção e manutenção) era
determinada pelas analogias pertencentes a campos semânticos usados predominantemente pelas diversas artes e instrumentos associadas à construção. Assim na
extracção dos blocos de pedra e do barro para os tijolos, tratava-se em parte de
trabalhar os materiais da terra e por isso usavam-se termos emprestados à agricultura. Para a preparação das argilas a cozer e das argamassas, o imaginário lexical
tinha muito que ver com a culinária.
Na execução propriamente dita das alvenarias, os construtores imaginavam-se ‘ajudados’ ou ‘auxiliados’ por grandes animais materializados pelas máquinas de elevação
e por outros mais pequenos, materializados pelas ferramentas e utensílios. Nos acabamentos, a terminologia encontrava inspiração na anatomia, na zoologia e na botânica.
A ornamentação era praticularmente dominada pela botânica e pela zoologia.
Para além das diferenças entre línguas latinas é igualmente possível começar
a inferir diferenças ‘psicológicas’ entre os campos semânticos usados por línguas
316
A ARTE DE CONSTRUIR. ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
latinas e línguas não latinas para uma mesma actividade, como é o caso do assentamento dos tijolos.
Estudar a História da Construção consiste em nos colocarmos na posição dos
antigos construtores e em tentar reconstruir a sua maneira de pensar. Entender
como é que eles se referiam a cada material, a cada operação e qual era o seu
imaginário expressivo. Conhecer o léxico, o vocabulário ou a terminologia que os
antigos construtores davam a cada ferramenta, a cada material ou a cada operação
do processo produtivo signiica aproximar-nos daquilo com que se ocupavam quotidianamente, com a sua métis, ou seja com a sua estratégia relacional, em relação
a outras actividades humanas e à natureza, na sua essência.
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Simons, P., Dement C. “Aspects of the Mereology of Artifacts”, in Poli R., Simons P. (eds.), Formal Ontology, Dordrecht, Boston, London, Kluwer Academic Publishers:1996, 255-276.
317
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO – ARQUITETURAS E TÉCNICAS CONSTRUTIVAS
Sylvain A., Deschamps J., Kouloughi D., La philosophie du langage, Paris, PUF, 2004.
Wittgenstein L., Cahier bleu (1958), Paris, Gallimard, 1996.
FONTES DA TRATADÍSTICA
Assis Rodrigues F., Diccionario Technico e Historico de Pintura, Esculptura, Architectura e
Gravura, Lisboa, Imprensa Nacional, 1876.
De Cesare F., La scienza dell’architettura applicata alla costruzione, alla distribuzione, alla
decorazione degli ediici civili (2ª ed. diversamente ordinata e corredata di nuove dottrine), Napoli, Giovanni Pellizzone e Tip. Agrelli, 1855-1856.
Delaistre J.-R., La Science de l’Ingénieur, Lyon, Imprimerie Brunet, 1825.
Milizia F., Principj di architettura civile, Stamperia di Francesco Majocchi, 1781.
Quatremère de Quincy A.-C., Encyclopédie méthodique: Architecture, Paris, Panckoucke
– Vve Agasse, 1788-1825.
Roma Comune di, Capitolato Generale che regola tutti gli appalti di opere e forniture di
materiali da Costruzione e Stradali per conto del Comune di Roma, Roma, Tipograia
Cooperativa Sociale, 1909.
Rondelet J.-B., Traité théorique et pratique de l’art de bâtir, Paris, chez l’auteur, Enclos du
panthéon, 1802-1817.
Scamozzi V., L’idea dell’architettura universale, Venezia, presso l’autore, 1615.
Sganzin J. M., Programme ou Résumé des Leçons d’un Cours de Constructions, Paris,
Bernard, 1806.
Valadier G., L’architettura pratica dettata nella Scuola e Cattedra dell’insigne Accademia di
S. Luca…, Roma, Società Tipograia, 1828-1839.
ORIGEM DAS FIGURAS
Figuras 1 – prancha da obra L’Architetto Prattico de Giovanni Amico, publicado em Palermo
na Stamperia de Giovanni Battista Aiccardo, em 1726 (libro primo, p. 185)
Figuras 2 e 3 – idem (libro primo p. 72)
Figura 4 – detalhe de uma prancha de Castelli e ponti di maestro Niccola Zabaglia impresso
em Roma, na Stamperia di Nicollò e Marco Paglianini em 1743.
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A ARTE DE CONSTRUIR. ARTEFACTOS, LINGUAGEM E LITERATURA TÉCNICA
reSumo:
O estudo das antigas culturas construtivas com alvenarias de cal encontra na literatura técnica
europeia publicada nos séculos XVIII e XIX, uma fonte inesgotável de informação que permite reconstituir o imaginário gestual e linguístico de projectistas e executantes. A terminologia
especializada que era usada na obra e no diálogo entre teóricos e práticos inspirava-se em diversos campos semânticos, em união íntima com a sábia manipulação milenar da natureza. O
texto pretende apresentar os resultados preliminares de uma investigação destinada a identiicar
padrões linguísticos europeus comuns na arte de construir dos séculos XVIII e XIX, a partir da
literatura técnica publicada nessa época.
palavras-chave: Linguagem, construção, tecnologia, ciência, história.
abStract: he study of ancient cultures of building based on limestone masonry inds a great source of
information in the European technical literature published during the eighteenth and nineteenth
centuries. his knowledge makes it possible to reconstruct the physical and linguistic world of
designers and builders. he specialized terminology used on site in dialogues between theorists
and practicians was inspired in diferent semantic ields intimately linked to an ancient and sage
manipulation of nature. his paper aims to present the preliminary results of a study focusing
on the identiication of common European linguistic patterns employed in the art of building in
the eighteenth and nineteenth centuries, using the technical literature published at that time as
reference.
Keywords: Language, construction, technology, science, history.
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