A universidade, a ciência e o combate ao
racismo
Marcelo Knobel e Néri de Barros Almeida
A diversidade de mentes, culturas e experiências é o caminho mais rápido para
chegarmos às respostas para os desafios gigantescos que a humanidade enfrenta
Machado de Assis, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Francisco José do
Nascimento, Antonieta de Barros, Ruth Rocha, Pixinguinha, Milton Nascimento,
Cartola, Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Elza Soares, Milton Santos,
Zezé Motta: são nomes que despertam admiração e respeito. O reconhecimento
à luta valorosa que travaram e ao talento imenso ao qual é impossível deixar de
prestar tributo, no entanto, tardam em se traduzir em reconhecimento a uma
parcela do povo brasileiro que tem seus direitos fundamentais violados pelo
escravismo supostamente desaparecido há mais de um século. É reconhecida a
relação entre esses (e tantos outros) negros talentosos de nosso país, mas
geralmente não se admite que sua memória da brasilidade é negra, e que a
condição de negro no Brasil informa sua arte e sua ciência. Esse é um dos fatos
que testemunham que há algo que se interpõe entre os negros e seus direitos.
Esse algo se chama “racismo”.
Muitas pessoas acreditam ver o racismo apenas em quadros grotescos, como
aqueles apresentados por países de escancarado apartheid. É importante notar,
porém, que o racismo também se manifesta por meio do apagamento daquilo
que não se admite existir. Isso se aplica primeiramente à identidade e se alastra
pelos direitos, pelo não reconhecimento de sua efetiva inacessibilidade para a
maioria do povo brasileiro. Por que trazer à superfície tais questões? Porque
ignorá-las tem reproduzido a desigualdade.
Em 21 de março, a comunidade negra mundial rememora um evento trágico
acontecido em 1960 na África do Sul, do qual nasceu o “Dia Internacional Contra
a Discriminação Racial”, criado em 1966 pela Organização das Nações Unidas.
Uma multidão desarmada de 20 mil pessoas, que lutava por direitos, foi contida
por tiros de metralhadora que resultaram em 69 mortos e cerca de 180 feridos. A
mesma violência se verifica no Brasil, diluída, porém indisfarçável. Segundo o
Atlas da Violência de 2017, dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem
vítimas de homicídios, os negros representam 78,9%. De acordo com o
Ministério Público do Trabalho, pretos e pardos enfrentam mais dificuldades na
progressão da carreira, na igualdade salarial e são mais vulneráveis ao assédio
moral. O relatório “A distância que nos une – Um retrato das Desigualdades
Brasileiras”, da ONG britânica Oxfam, baseado em dados do Ipea (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada) e da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios), aponta que 67% dos negros no Brasil estão entre os que recebem até
1,5 salário mínimo, enquanto, entre os brancos, esse índice é de 45%.
O Massacre de Sharpeville, como ficou conhecido o episódio mencionado acima,
nos lembra da luta que levou ao final do apartheid e ao governo de Nelson
Mandela na África do Sul. A morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares —
a vila fortificada que, por mais de um século, abrigou uma sociedade de homens
que por si mesmos se emanciparam da escravidão — empresta sua memória ao
Dia da Consciência Negra. A despeito da grandeza e do papel precursor de lutas
emancipatórias, esse episódio resiste a se estabelecer como parte viva de nossa
memória coletiva. Por que lutas como essa, de justiça tão evidente, não mudam
definitivamente a consciência e as ações de uma parcela significativa da
sociedade? Porque um sistema de valores vasto e antigo briga com as percepções
de cada um de nós. Portanto, a derrota do racismo reside em cada sujeito e ela
começa com a constatação de que os erros do passado nos fazem errar hoje, e
que eles não são compatíveis com a visão que queremos ter de nós mesmos, nem
com o mundo pacífico e justo com o qual teimamos em sonhar. Por enquanto,
em sonhar apenas...
A universidade deve estar aberta para discutir a reconfiguração dos
saberes em uma lógica inclusiva, e a comunidade que luta por
inclusão precisa estar preparada para aceitar os fatos da ciência
Vencidos no século 18 os desafios jurídicos para o reconhecimento da igualdade
e da liberdade, ainda não exigimos — portanto, não permitimos — que os negros
tenham acesso aos direitos sociais, econômicos e culturais. Os fatos continuam a
trair os compromissos e as ideias que orgulhosamente apontamos como berço da
modernidade. Nesse contexto, a modernidade exibe toda a contradição de que é
constituída, alertando-nos para o fato de que, diante desse cenário, é preciso
fazer escolhas. A pergunta fundamental, portanto, é: que escolhas temos feito?
Temos escolhido a igualdade e a liberdade para todos, ou apenas para nós
mesmos? Em um mundo em que a humanidade de todos não é
intransigentemente protegida, o respeito à humanidade de qualquer um está de
fato assegurado?
No Brasil, os negros sempre lutaram. Não tiveram outra escolha. Apenas
recentemente, porém, o protagonismo que tiveram na própria luta passou a ser
reconhecido. Temos a honra de fazer parte de uma das universidades que
lideraram essa mudança, resgatando na escrita da história o papel do negro em
sua própria emancipação. Vimos, nas últimas décadas, a luta secular do povo
negro dar passos coletivos largos e firmes. Por seu próprio mérito, a organização
da comunidade negra se tornou mais ampla, densa e complexa, e a luta pelos
direitos foi incorporada ao cotidiano da vida social do país. E é evidente para
todos que não há sinais de que vá recuar, apesar do momento político que
vivemos. O acesso à educação teve, e continua tendo, um papel importante nessa
conquista. As universidades acordaram tarde e precisam recuperar o tempo
perdido.
Na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que em 2019 realizou o seu
primeiro vestibular com cotas étnico-raciais, a discussão de políticas inclusivas
introduziu uma reflexão que nos transformou e continua transformando, e
temos convicção que essa mudança está se dando para melhor.
A Unicamp está ciente de que o lugar que ora se devolve à diversidade, buscando
refletir a riqueza da complexidade do povo brasileiro, resultará em um impacto
decisivo na ampliação dos processos criativos fundamentais à inovação científica
e tecnológica. E talvez nunca na história da humanidade tenhamos precisado
realizar mudanças tão radicais em tempo tão exíguo.
Podemos dizer que o papel social da universidade pública saiu fortalecido da
implementação das cotas étnico-raciais, não apenas porque recebemos hoje
ingressantes que são mais representativos do perfil de toda a sociedade
brasileira, mas também porque novos temas, perguntas e experiências fluem em
nossa direção. Em sequência a isso, fica assegurado também um retorno mais
amplo e rápido para a sociedade dos benefícios daquilo que fazemos pela saúde,
pela educação, pelo trabalho decente, pela infância e por todas as demais frentes
envolvidas na promoção e defesa dos direitos fundamentais firmados no artigo
5º da Constituição Federal.
A universidade hoje está mais preparada para um mundo que se depara com
desafios gigantescos, dos quais a violência, a emergência climática e o
esgotamento dos recursos naturais são os mais graves e urgentes. Frente aos
fatos da crise global, uma elite do consumo irrefletido e da economia sem
amanhã prefere se refugiar no anti-intelectualismo e no antidemocratismo,
exibindo sua inadequação ao tempo presente. A comunidade científica tem
apontado que as respostas precisam romper com o modelo de desenvolvimento
em vigor, ambientalmente insustentável e socialmente excludente. Cabe aos
cientistas colocarem sua inteligência à procura de soluções. E, sem dúvida, a
diversidade de mentes, culturas e experiências é o caminho mais rápido para
chegarmos às respostas de que a humanidade precisa. A universidade deve,
assim, estar aberta para discutir a reconfiguração dos saberes em uma lógica
inclusiva, e a comunidade que luta por inclusão precisa estar preparada para
aceitar os fatos da ciência que têm validade universal e de cujo conhecimento
toda a humanidade deve se tornar beneficiária.
Caberá aos jovens uma tarefa difícil. Cabe à nossa geração deixar portas abertas
para a revolução científico-tecnológica inclusiva que terão de realizar. Nessa
trajetória, a comunidade negra tem muito a nos ensinar. Sua luta por igualdade e
liberdade aponta o caminho que teremos de trilhar para resolvermos nossos
problemas de forma pacífica, construtiva e democrática. Sua confiança diante de
obstáculos imensos é um exemplo, nos mostra o sentido da luta e nos ajuda a
reaprender o valor da liberdade.
O mundo está mudando. Por isso mesmo têm tido relevo em nossos dias reações
que negam essas mudanças e tentam distorcer seu sentido, roubando delas o que
têm de justo, digno e verdadeiro. Assim, de maneira perversa, o preconceito
pode deturpar a reivindicação de justiça, negando fatos relativos às vidas de
pessoas do passado e do presente. O negacionismo fere o direito à memória e ao
reconhecimento histórico daqueles que nunca foram plenamente reconhecidos.
Frente às adversidades, o que devem temer os jovens que amam e respeitam a
humanidade? Mario Benedetti colocou-se essa questão em um livro que celebra
a memória humana face ao infortúnio do exílio, e podemos aqui considerar a
condição da população negra como um longo exílio, primeiro da África ancestral,
depois na própria pátria e sociedade que reconheceram suas. Diz o escritor
uruguaio: “Às vezes os jovens têm uma coragem à prova de bala e, no entanto,
não possuem um ânimo à prova de desencantos. Se pelo menos eu e outros
veteranos pudéssemos convencê-los de que sua obrigação é só a de continuarem
jovens. Não envelhecer de saudade, de tédio ou de rancor, mas continuar jovens,
para que na hora da volta, voltem como jovens...”
Marcelo Knobel é reitor da Universidade Estadual de Campinas.
Néri de Barros Almeida é diretora executiva de Direitos Humanos da
Universidade Estadual de Campinas.