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REVISTA DE Revistu de História 135 RICHE, Pierre. Petite vie de Saint Grégo 1995, 141p. A memória coletiva, é uma das importantes instâncias em que se realiza o processo de elaboração histórica. Nela a Idade Média ficou indelevelmente marcada como Idade das Trevas, pouco mais que frestas de sombra despontando das ruínas iluminadas da cultura latina. Embora toda a Idade Média tenha sido vítima deste preconceito antigo, seus momentos iniciais foram mais marcadamente atingidos por ele. Momentos, por isso mesmo, muito tempo relevados como palco de um espetáculo de destruição e ausência. A despeito deste painel ainda cm vigor no senso comum, em nosso século os estudos historiográficos revalorizaram de maneira importante o período em que a Antigüidade e a Idade Média se inlerseccionam. Esta revalorização deu-se à custa sobretudo do questionamento das fontes cristãs tradicionais e daquelas produzidas pela aristocracia latina que nos legaram, deste momento de mutação da civilização antiga, imagens irremediavelmente distorcidas por suas convicções políticas e religiosas particulares. Uma das aquisições interpretativas foi a atribuição de colorações menos dramáticas aos eventos destruidores que acompanharam a entrada das hostes migratórias germânicas em território ocidental, em favor da valorização das amplas mutações internas pelas quais passou a cultura romana ao longo dos seus quatro últimos séculos na explicação das razões da fragilidade imperial diante do perigo externo. 2°semestre de ¡996 Le Grand (540-604). Paris, Desclée de Brouwer, A despeito de suas pequenas dimensões, a biografia que Pierre Riché dedica a São Gregório Magno ilustra bem a vivência efetiva que os homens, na curta temporalidade de suas existências, tiveram deste tempo de mudanças. Sua personagem prestase perfeitamente a isso, sintetizando em sua trajetória as ambigüidades do homem cívico que, ao mesmo tempo, deseja fugir ao mundo. Nela conciliamse contradições e sínteses do período. Processo ilustrado pelo autor de maneira simples e direta já em seu plano de redação, cujos capítulos sintetizam a passagem de Gregório das funções da vida pública cívica para a atuação publica eclesiástica. Processo no qual se dá o deslizamento do poder de uma instituição para outra, até a inversão das tutelas entre Igreja e Estado com o estabelecimento de pactos com reis germânicos. Passando pelo Gregório prefeito da cidade de Roma, monge, bispo, arcebispo, patriarca do ocidente, papa, profeta, conversor, primeiro papa europeu e santo da Cristandade, o autor mostra como as duas experiências se conciliam de forma não traumática à luz do contexto de então, e de como a síntese de um novo tipo humano já estava adiantada por ocasião das investidas germânicas. As pequenas dimensões da obra de Riché, talvez respondam por uma de suas principais deficiências. O autor cede ao descritivo em detrimento do explicativo. A estrutura dos capítulos de sua obra novamente serve-nos como ilustração. As diferentes 182 Néri de Almeida Souza / Revista de História 135 (1996). 181-186 faceias do papel público de Gregório são abordadas com equivalência quase métrica. Cada aspecto recebe um capítulo com praticamente o mesmo número de páginas. Se esta opção do autor preserva para o leitor uma curiosidade interpretativa saudável, por outro lado deixa sem aproveitamento o sentido histórico de muitos elementos descritos. Assim, o texto carece da opção por um eixo explicativo que contorne a narrativa linear e dê um sentido à mesma. O autor se limita a fixar a transformação já apontada na natureza da liderança pública, mas explora pouco suas ambigüidades e os germens de sua dissolução. Apesar da atuação pública extensa do santo, a faceta dele como um homem que foge do mundo fica obscurecida. Mesmo quando embrenha seus projetos no mundo, este monge contrariado pelas funções públicas, age no sentido de superá-lo. Evangeliza porque almeja um mundo idealizado, para muito além do seu próprio. Gregório administra o fim do mundo. Respeita, porém deplora as exigências do mundo cívico. Riché não explora as nuances, valoriza sem retoques a face de homem público do santo num momento em que a noção declina dentro de Roma. Age como se a contrariedade de Gregório pouco interferisse no sentido público de sua obra. Mais que administrador de um patrimônio físico e institucional, o santo é um administrador do patrimônio humano e de sua preparação para a Parusia. Diante da consciência de sua indispensável atuação no reordenamento público este atua em dois sentidos conflitantes, procurando revalorizar as instituições antigas c buscando a fuga do mundo. Neste contexto, a memória e a experiência de ordem anterior não são suficientes para sua adoção como padrão de reordenamento, denotando uma efetiva transformação no concepção de ordem pública. A conversão de Gregório à vida monástica é vista por Riché como um novo período na vida do aristocrata romano. Talvez fosse melhor mostrar como o romano e o monge se encontram. Como as ansi- edades de um desaguam na realização do outro. Como mais que perturbações sociais e religiosas, esta opção de vida deriva das próprias mudanças do modo de vida romano que vinham se manifestando desde o século II. Os sentidos aparentemente conflitantes se resolvem nos lamentos constantes do monge e em sua paixão pela obra de conversão que na verdade, contraditoriamente, estimula sua atuação secular. Na prática porém este pessimismo escatológico levou, pela primeira vez, ao estabelecimento de relações sólidas entre a península Itálica e o norte do continente, articulando toda a região. Mas se os pés de Gregório parecem dividir-se entre a terra e a eternidade era nesta porém que ele desejava unicamente estar e era para lá que pretendia conduzir seu rebanho: "Aspiro a um Além que nüo conhece o inverno desta terra, terra estrangeira...Simples caminho de nossa peregrinação... Deserto... Aqui em baixo não é a verdadeira vida, é sombra somenle"(p. 116). É também o santo de saúde precária que em carta a Rust ici ana confessa: "toda minha consolação esta na espera da morte" (p. 115). Nos últimos anos a historiografia tem manifestado o desejo de retorno a objetos e abordagens tradicionais colocados em segundo plano pelo entusiasmo das aquisições historiográficas sobretudo dos anos setenta e início dos anos oitenta. A história política e a biografia se beneficiaram desta recuperação, que no entanto não foi uma simples retomada mas uma renovação. Proscrita e olhada com desconfiança, como sujeita a resvalar para a defesa de um individualismo extremo e para uma visão personalista, heróica e romântica da história, a biografia retorna em trabalhos como o de Pierre Riché como fruto do encontro entre o indivíduo, sua obra e sua época. Biografia histórica no sentido moderno do termo, a obra de Riché mostra a "significação histórica geral de uma vida individual", recuperando o papel histórico do acaso, do evento, bem como Néri de Almeida Souza /Revista de Historia 135 (1996), ¡81-186 as razões dos encadeamentos cronológicos (LE GOFF, J.. "Comment écrire une biographie historique aujourd'hui?", Le Débat, 53, 1989, pp.48-53), por décadas deixados de lado em favor de uma história coletiva e de longa duração. A obra recupera a riqueza do contexto e a personalidade marcante de Gregório na encruzilhada entre sua atuação no mundo, e suas aspirações espirituais particulares. Indivíduo de excepcionalidade bem documentada na história coletiva de seu tempo, as opções de Gregório justificam-se pelas pressões conjuntas do contexto histórico imediato e de suas convicções pessoais. Mais que uma análise aprofundada do período, a biografia de Gregório Magno é um apanhado geral e estimulante. A erudição do autor, seu cuidado em apresentar trechos de fontes no corpo de sua redação e em anexo, bem como a amplitude de suas considerações, fazem desta obra introdutória uma importante fonte de orientações para a exploração histórica da passagem entre os séculos V e VI. A despeito da opção do autor em não avançar no aspecto interpretativo, a biografia produzida constitui uma boa introdução à complexidade das relações entre religião cristã e política no período. Fato valorizado em primeiro plano na hagiografía medieval de Gregório. Apesar do fundo maravilhoso da vida do santo, seu plano se desenvolve colocando em destaque a atuação política do bispo nas mais diferentes esferas de poder de sua época, da assistência aos pobres (no caso, a população indigente de Roma e os monges), aos contatos com a diplomacia bizantina e com os reis germânicos. Poder porém, vinculado à atuação religiosa e à ilustração de sua excelência sobre as demais instâncias de mando. Embora nunca tenha questionado ou se sobreposto voluntariamente à autoridade imperial, Gregório ocupa com naturalidade o espaço político deixado pelo império no ocidente e posteriormente sugere aos reis germânicos que abracem a tarefa de disciplinar a atuação do clero local. Por outro lado, o santo tam- 1 83 bém cataliza esta autoridade a favor de sua obra de extensão do cristianismo. Gregório concebe o rei, da mesma forma que o abade, como uma figura de caráter religioso incumbida de corrigir aquilo que é contrário a Deus e de construir a salvação do povo. Este ministério real (pp.101-102) conjugado à natureza sagrada da autoridade do líder guerreiro germânico se tornará ponto de longos conflitos entre a autoridade aristocrática e eclesiástica na Época Feudal, ambas fundamentadas em uma concepção politico-religiosa de suas atribuições. A despeito de na década de vinte Marc Bloch ter dedicado o seu Os reis taumaturgos (São Paulo, Companhia das Letras, 1993) a esta faceta mista do poder real, apenas recentemente com a recuperação da história política, se voltou a dar atenção monográfica considerável à questão. Embora a opção metodológica de Riché, aproxime seu texto mais das interpretações políticas tradicionais, este também deixa abertas ao leitor oportunidades para aventurar-se em uma reflexão mais ampla. Outro aspecto instigante da vida de Gregório presente no relato de Riché, é o impulso evangelizador dos "bárbaros" saído desta mente de formação aristocrática. Este evento é profundamente ilustrativo das mudanças culturais em ambiente urbano e da amplitude da fusão cultural com o cristianismo. Por outro lado, serve de introdução à reflexão sobre uma importante questão para o entendimento destes primeiros séculos do cristianismo: a história de seu contato com culturas rurais que fracamente ou em nada haviam sido influenciadas pelo processo de romanização. Novamente o confronto com as convicções do senso comum são preciosas. A plasticidade da Igreja orientada por Gregório é gigantesca. A percepção sensível das diferenças impulsiona uma ação que concilia o esforço por uma cristianização mais eficiente e de longo prazo. Ao lado da vida religiosa espiritualizada preconizada para si mesmo, Gregório desenvolve extrema tolerância com as ne- 184 Néri de Almeida Souza / Revista de História 135(1996), I8/-186 cessidades concretas da religiosidade dos homens comuns. Dessa forma o fosso entre leigos e religiosos se aprofunda, mas mantém ligações por meio da heterogeneidade crescente dos novos vocacionados e pela intenção consciente de conciliar com o cristianismo formas a princípio incompatíveis com ele. Entre os clérigos, Gregório preocupa-se com a manutenção da ortodoxia atuando, nas palavras do próprio santo, como "um médico de almas que cura os abcessos com doçura, apalpando as partes doentes antes de operar" (p.50), propondo sua instrução sobretudo a dos padres - e a garantia de sua presença em cada paróquia, realizando os ritos com disciplina e regularidade. Para os leigos ignorantes do cristianismo, o papa defende a tolerância. Diferentemente de bispos contemporâneos, como aqueles da Espanha visigótica, propõe a convivência com uma primeira geração de fé duvidosa a fim de promover a fé verdadeira das gerações seguintes (p.52). Preconiza a doçura e a pregação nutrida nas escrituras. Pelos leigos, em sua grande maioria iletrados, condena a iconoclastia afirmando que "A imagem é útil na Igreja a fim de que aqueles que ignoram as letras possam ao menos, contemplando os muros, aprender o que não podem 1er nos livros" pois "Uma coisa é adorar a imagem, uma outra é, pela história representada sobre a imagem, saber o que se deve adorar"(p.53). A revelia de muitos que consideram a hagiografía uma obra "popular", indigna de um letrado, dedica-sc a cia nos Diálogos para através dos exemplos de vidas santas, atingir a sensibilidade de descrentes c fiéis. Gregório procura agir na Cristandade de alto a baixo. Na verdade o religioso é em todos os aspectos um conciliador. Isso pode ser constatado em sua defesa da autonomia bispai, nos esforços para a harmonização das relações entre a Igreja ocidental e os reis germânicos, em sua tolerância para com os diferentes procedimentos sociais e litúrgicos existentes entre os cristãos etc. E o próprio santo quem melhor traduz o espírito desses procedimentos conciliatórios em carta de orientação a Agostinho de Cantorbery após sua conversão da Inglaterra: "Em nossos dias a Santa Igreja corrige certas faltas por zelo, tolera outras por mansidão, fecha os olhos sobre outras por sabedoria e as suporta e oculta, de forma que, suportando-as freqüentemente reprime o mal ao qual se opõe" (p.76). Em carta ao abade Melitus confrontado com práticas pouco compatíveis com o cristianismo, aconselha a manutenção dos templos; a destruição de ídolos e sua substituição por relíquias, exortando-o à tolerância para com os banquetes religiosos e encorajando a transformação das festas pagãs em festas cristãs. Contestando tese antiga, Riché mostra que Gregório não foi o ignorante da cultura clássica que por vezes viram nele (p.15), mas um homem que viveu sua adaptação a um novo contexto c a operacionalizou. Homem de seu tempo que recusa o aspecto secular desta sabedoria, c interpõe a Bíblia "que transcende toda ciência c doutrina" (p.23), à cultura erudita clássica, edificando o que o autor chama de "cultura bíblica" (p.28). Em seus Diálogos saúda a "douta ignorância" e nas Moraita in Job exorta o pregador a adaptar sua linguagem aos ouvintes: "É proibido oferecer um discurso forte aos fracos para evitar que ouvindo o inaprcensível não sejam esmagados sob as palavras que deviam aliviá-los" (112). A biografia de Pierre Riché representa para o grande público uma rica introdução à vida de uma personagem pouco conhecida dele e a uma época obscurecida por antigos preconceitos. Para os historiadores, comumente mais fascinados pela Idade Média Central, reitera a importância deste momento como origem de questões referentes à história política e religiosa do ocidente, que tiveram implicações de longa duração. Os escritos de Gregório Magno conheceram um período de grande difusão no meio laico a partir do século XIII em versões para francês, italiano e espanhol. O conhecido Néri de Almeida Souza / Revista de Histâria 135(1996), anticlericalismo dos séculos seguintes à Idade Média e que ainda marca nossa experiência histórica, não pode deixar na sombra a real amplitude desta personagem e de tantas outras similares. É o pró- 181-186 185 prio Riché quem constata a necessidade de elaboração de uma obra de maior porte capaz de conter a grandeza histórica deste que foi um dos fundadores da cultura ocidental. Néri de Almeida Souza Professora de história medieva! da UNESP-Franca Doutoranda no DH/FFLCH - USP