Copyright © 1998, 2016 por Divulgadora Bueno & Bueno, S.S
Vinhetas das páginas 1 e 71 © Roque Gameiro, reproduzidas do livro História da
Colonização Portuguesa no Brasil (Litografia Nacional, Porto, 1926).
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores.
A primeira edição desta obra teve consultoria técnica de Ronaldo Vainfas,
professor titular de História Moderna da UFF (Universidade Federal Fluminense).
revisão: Ana Grillo e Luis Américo Costa
projeto gráfico: Ana Adams
diagramação: Raquel Alberti
mapas: Adams Design
capa: Ana Paula Daudt Brandão
imagens de capa: ilustração: “A cruz Juan Hernandez”, óleo de Antônio
Parreiras (1860-1937), 130 x 196 cm, 1927. Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do
Rio de Janeiro – Funarj, Museu Antônio Parreiras, Niterói (RJ). Fundo: Triff/
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adaptação para e-book: Marcelo Morais
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B941n
Bueno, Eduardo, 195
Náufragos, trafican
e degredados [recur
eletrônico] / Eduar
Bueno. – 1. ed.- Rio
Janeiro: Estação Bra
2016.
recurso
digital
(Brasilis;
Sequência de: A viag
descobrimento
Continua
Capitães do Brasil
co
Formato: ePub
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de
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Inclui bibliografia
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ISBN
978-85-560
005-9 (recurso eletrônic
1. Brasil – História
Período pré-colonizad
1501-1532. 2. Livr
eletrônicos. I. Título.
Série.
1631715
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CDD:
CDU:
AS DÉCADAS ESQUECIDAS
ue homens eram aqueles? Como haviam chegado àquelas praias remotas e
de que maneira tinham sido capazes de sobreviver ali por tantos anos? Qual o
processo que os transformou de meros náufragos – ou degredados – em figuraschave na ocupação e colonização do Brasil? Passados cinco séculos de uma
espantosa aventura, desenrolada ao longo de vastas porções do litoral brasileiro, as
respostas ainda não são conclusivas. As dúvidas apenas aumentam o fascínio em
torno do período mais nebuloso na história da exploração e conquista do país.
Q
O que se pode afirmar com certeza é que a partir de 1525, quando os europeus
começaram a desembarcar com mais frequência no Brasil, encontraram uma
galeria de personagens enigmáticos. Eram homens brancos que viviam entre os
nativos: alguns tinham sobrevivido ao naufrágio de seus navios, outros haviam
desertado deles. Muitos haviam cometido algum crime em Portugal e foram
condenados ao degredo no Brasil, outros tiveram a audácia de discordar de seus
capitães e acabaram desterrados. Vários estavam casados com as filhas dos
principais chefes indígenas, exerciam papel preponderante na tribo, conheciam suas
trilhas, seus usos e costumes, e intermediavam as negociações entre várias nações
indígenas e eventuais representantes de potências europeias. Sua presença em pontos
estratégicos do litoral seria decisiva para os rumos do futuro país.
Tal galeria não se limita a nomes mais conhecidos, como o mitológico
Caramuru, responsável indireto pela fundação de Salvador, ou João Ramalho,
virtual fundador da cidade de São Paulo. Tão importante quanto eles foi, por
exemplo, o misterioso Bacharel de Cananeia, primeiro grande traficante de escravos
do Brasil e do qual nem mesmo o verdadeiro nome se conhece. Mas há vários
outros, cuja trajetória é ainda mais obscura e marcante. O que dizer do intrépido
Aleixo Garcia, que em 1524 marchou de Santa Catarina, com um exército particular
de dois mil índios Guarani, para atacar as cidades limítrofes do Império Inca, a
mais de dois mil quilômetros dali? E de seus companheiros Henrique Montes e
Melchior Ramires – desertores e polígamos –, que, ainda assim, acabariam sendo
recebidos na corte pelos reis de Portugal e Espanha, transformando-se nos homens
mais importantes dos primórdios da exploração do rio da Prata e do litoral sul do
Brasil?
A lista de personagens assombrosos dos 30 primeiros anos da colônia não se
encerra com eles. Resta ainda João Lopes de Carvalho, piloto português que foi
desterrado no Rio em 1511 e, após ser recolhido pelos espanhóis, retornou ao Brasil
em 1519 como piloto de Fernão de Magalhães, apenas para, dois anos mais tarde,
morrer em Bornéu, na Ásia, onde se achava em companhia de seu filho, um garoto
indígena de 9 anos nascido no Rio de Janeiro. E o que pensar do grumete Francisco
del Puerto, que viveu 14 anos entre os nativos do Prata e depois traiu os europeus que
o recolheram, abrindo o portão de um forte à noite para permitir que espanhóis e
portugueses fossem massacrados pelos indígenas?
E esses são apenas alguns dos protagonistas dos 30 primeiros anos do Brasil – as
três décadas perdidas. Sua história pessoal, e a própria história de sua época, pode
ser reconstruída a partir de cartas, diários de bordo, relatos de viagem e referências
esparsas encontradas em arquivos estrangeiros. A ausência de documentos oficiais
tem dificultado a pesquisa sobre essa época e, na maior parte dos livros sobre a
história do Brasil, o período que vai de 1500 a 1531 se reduz, em geral, a dois
parágrafos.
As viagens dos espanhóis Vicente Yañez Pinzón e Diego de Lepe – que se
anteciparam a Cabral em alguns meses – também têm sido virtualmente ignoradas
pela historiografia oficial. Mas foram elas as primeiras missões exploratórias a
aportar nas praias do que viria a ser o Brasil. Pouco mais tarde, a partir de 1504,
chegaram os franceses. Embora tenham disputado arduamente com os portugueses,
durante mais de 20 anos, o domínio da costa brasileira, a história oficial também
tem dedicado pouca atenção a esses episódios – ao contrário, por exemplo, do que
acontece com a bem documentada aventura da França Antártica, quando os
franceses invadiram o Rio de Janeiro, em 1555, sob o comando de Villegaignon.
Na verdade, é como se, depois de um hiato de 30 anos, a história do Brasil só se
iniciasse de fato com a chegada da “missão colonizadora” de Martim Afonso de
Sousa, em 1531. Mas também aí persistem os mitos historiográficos. Afinal, ao
contrário do que a maior parte dos textos afirma, Martim Afonso não veio fundar
cidades ou iniciar a colonização do Brasil. Sua principal missão era, como se verá,
explorar o rio da Prata – tido como a porta de entrada para as extraordinárias
riquezas do Império Inca.
Este livro pretende contar a história das primeiras expedições ao Brasil e
reconstituir a trajetória pessoal de náufragos e degredados, cujo relato encheu de
ambição e de esperança a cabeça dos reis de Portugal e Espanha e determinou a
ocupação do litoral sul do Brasil. Pretende recuperar também, na medida do
possível, a vida cotidiana nas comunidades fundadas por alguns desses mesmos
náufragos e degredados na ilha de Santa Catarina e em Cananeia; a história das
primeiras expedições dos franceses à América e o dia a dia dos traficantes de paubrasil, então chamados “entrelopos”. O papel desempenhado por esses homens tem
sido frequentemente ignorado e permanece à margem da história oficial. Embora
vivessem para além dos limites, para além da lei e para aquém da ética, eles podem
ser considerados os primeiros brasileiros – no sentido literal da palavra, como se
verá.
Sem a perseverança, o esforço e a ambição desse elenco de personagens
extraordinários, o destino do Brasil ao longo de suas três primeiras décadas teria
sido inteiramente diferente. Afinal, foi durante esses anos turvos que o futuro país não
só começou a estabelecer sua atual configuração territorial – expandindo-se para
além dos exíguos limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas – como forjou uma
parte considerável de seu imaginário histórico. Mais do que isso: durante as três
décadas esquecidas, o Brasil adquiriu seu nome, ajudou a batizar a América e, de
certa forma, serviu até de modelo para A Utopia, de Thomas Morus.
Mesmo assim, a história empolgante desses anos perdidos não tem sido vista
como um processo orgânico e coerente, nem narrada com os detalhes e a
dramaticidade que a trajetória individual dos homens que a forjaram parece exigir e
impor.
Quase 500 anos depois, náufragos, traficantes e degredados ainda não
recuperaram seu lugar na história. É hora de fazê-lo.
Nota do autor
As palavras grafadas em itálico ao longo do texto remetem
o leitor às informações contidas nos boxes laterais.
I
OS ESPANHÓIS DESCOBREM O BRASIL
praia estava deserta. Não havia ninguém ao longo da enseada nem nas
Adensas
matas que a cercavam. A areia, porém, se encontrava repleta de
pegadas, num sinal claro de que a terra era habitada. Tal evidência não impediu que
os marujos recém-desembarcados gravassem seus nomes e os de seus navios nas
árvores e nas rochas costeiras e, a seguir, imprimissem o dia, o mês e o ano de seu
desembarque, tomando posse daquele território em nome da Coroa de Castela.
Era 26 de janeiro de 1500 e os homens comandados pelo capitão Vicente Yáñez
Pinzón tinham acabado de descobrir o Brasil.
Embora polêmica, a afirmação se baseia em fontes primárias e em pesquisas
confiáveis. A viagem de Pinzón foi bem documentada, e cronistas do século XVI se
referem a ela em detalhes. Passados cinco séculos, porém, o local no qual os navios
de Pinzón aportaram ainda divide os historiadores. Para alguns pesquisadores
portugueses, os espanhóis teriam desembarcado ao norte do cabo Orange, atual
fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. Mas, para seus rivais castelhanos – que
se basearam no depoimento do próprio Pinzón –, o desembarque se deu no cabo de
Santo Agostinho, em Pernambuco.
Foi apenas em 1975 que o então capitão de mar e guerra e, mais tarde, contraalmirante Max Justo Guedes, à época diretor do Serviço de Documentação Geral da
Marinha Brasileira, estabeleceu, de maneira irrefutável, que Pinzón e seus homens
chegaram à ponta de Mucuripe, hoje incorporada à área urbana da cidade de
Fortaleza, capital do Ceará – e a meio caminho entre o cabo Orange e o de Santo
Agostinho (veja mapa mais adiante).
Max Justo Guedes se baseou nos documentos originais que descrevem a jornada
1
de Pinzón, na polêmica judicial que se seguiu à viagem e, acima de tudo, em um
mapa feito em 1501 pelo cosmógrafo Juan de la Cosa.
Graças ao depoimento dos cronistas da expedição,
sabe-se que a terra surgira à frente de Pinzón e de seus
homens poucas horas antes do desembarque. Era uma
longa ponta, alta e verdejante, que entrava mar
adentro, como um dedo, cercada de dunas de areia
muito alva e resplandecente. Os marinheiros a
avistaram com satisfação e alívio, já que, poucos dias
antes, em alto-mar, a expedição passara por
momentos terríveis: as quatro caravelas haviam
Na
Barra
Tribunais
dos
As
chamadas
Probanzas del Fiscal foram
o pleito judicial que Diego
Colombo,
filho
de
Cristóvão
Colombo,
moveu contra a Coroa de
Castela para assegurar os
enfrentado uma tempestade que se prolongara por uma
semana. Quando muitos dos homens a bordo já
consideravam aquela viagem sem volta, o sol brilhou
outra vez. As águas do mar se tornaram turvas,
coalhadas de plantas marinhas e de areia em
suspensão, sinal de que eles estavam se aproximando
da terra.
direitos do pai. Todos os
navegadores
que
participaram da descoberta
da América foram ouvidos
e prestaram depoimentos
juramentados.
As
audiências se iniciaram na
Pouco antes das 10 horas da manhã do dia 26 de ilha de São Domingos, no
janeiro de 1500, montado na gávea, no alto do mastro Caribe, em dezembro de
de uma das caravelas, um marinheiro avistou os 1512 e se encerraram em
contornos azul-esverdeados do que parecia ser um agosto de 1515, em
na
Espanha.
grande cabo. Uma sonda foi lançada e indicou 16 Sevilha,
braças (ou 28 metros) de profundidade. As Tanto Pinzón quanto os
embarcações avançaram com cuidado, ancorando a principais capitães de sua
foram
ouvidos
cerca de 10 quilômetros da vasta enseada de águas frota
cálidas e verdosas. Alguns botes foram enviados a durante o julgamento. Em
terra e a cerimônia de posse foi realizada seu depoimento, Pinzón
afirmou
que
havia
imediatamente.
O chefe da missão, Vicente Pinzón, era um aportado no cabo de Santo
navegador experiente. Oito anos antes de desembarcar Agostinho, em Pernambuco
no Brasil, ele tinha acompanhado Cristóvão Colombo – mas provavelmente se
na gloriosa viagem que, a 12 de outubro de 1492, os equivocou, ou mentiu.
conduzira a certas ilhas misteriosas, repletas de árvores e de “gente nua (…) de
2
corpos bonitos e cara muito boa (…) mansos e pacíficos”. Embora tal arquipélago
na verdade ficasse no mar do Caribe, tanto Colombo como Pinzón concluíram de
imediato que haviam chegado ao litoral oriental da Ásia.
Apesar de em janeiro de 1500 essa tese parecer cada
vez menos provável, Colombo e o próprio Pinzón
continuavam acreditando que as terras que tinham
descoberto em 12 de outubro de 1492 eram parte de
Cipango (o Japão de Marco Polo) e que eles haviam
encontrado o caminho marítimo que conduzia da
Europa para a Ásia pela rota do poente. Mas o fato é
que quase uma década se passara desde então e as
opulentas cidades do Oriente, com suas sedas e suas
especiarias, ainda não haviam sido encontradas nem
por Colombo nem por nenhum de seus seguidores. Por
Nascido
em
1460,
isso, nos primeiros anos do século XVI vastas
extensões do oceano Atlântico continuavam sendo
percorridas pelos espanhóis em busca de uma terra que
não estava lá.
Dessa vez, Pinzón havia financiado a expedição do
próprio bolso. Com o dinheiro que recebera como
prêmio pela descoberta de 1492, ele armou quatro
caravelas e contratou cerca de 150 homens, entre os
quais seus sobrinhos Arias Pérez e Diogo Fernández,
mais os pilotos Juan de Umbria, Juan de Xerez e Juan
Quintero – veteranos das três primeiras viagens de
Colombo. No dia 18 de novembro de 1499, a frota
zarpou em direção às ilhas Canárias, localizadas diante
da costa ocidental da África.
Antes do Natal de 1499, as quatro caravelas já
aportavam em Santiago, uma das ilhas do
arquipélago de Cabo Verde, na qual permaneceriam
ancoradas por cerca de três semanas. Então, no dia 13
de janeiro de 1500, Pinzón partiu rumo ao sudoeste,
em direção às novas terras que o próprio Colombo e
Alonso de Hojeda tinham descoberto havia pouco mais
de um ano e que ficavam ao sul das ilhas do Caribe,
achadas em 1492. Como seus dois antecessores, Pinzón
também esperava chegar às porções continentais da
Ásia.
Nos oito dias seguintes
à partida de Santiago,
tudo correu bem e os
ventos
alísios
empurraram os navios
de Pinzón no rumo
desejado. Mas a 21
de janeiro, assim que a
frota cruzou o equador e
a estrela Polar – um
símbolo universal de
localização
para
os
O mapa a seguir
representa a rota de Pinzón
segundo três interpretações.
A primeira indica sua
chegada ao cabo Orange.
Essa tese foi defendida pelo
historiador luso Duarte
Leite, em 1926. A segunda,
estabelecida por Justo
Guedes, marca sua chegada
ao Ceará e é a mais
provável. A terceira o
Vicente Yáñez Pinzón
(acima) era nativo de
Palos, um dos principais
portos do sul da Espanha.
Lá mesmo, por volta de
1489,
ele
conhecera
Cristóvão Colombo. Junto
com seus irmãos, Martin
Alonso e Francisco, Vicente
não
apenas
aceitou
participar da viagem de
alto risco que Colombo
havia convencido os reis
Fernando e Isabel, de
Aragão e Castela, a
financiar como bancou,
junto com os irmãos, um
oitavo dos custos da
expedição. Escalado para
ser o capitão da caravela
Niña, Vicente também se
tornou
o
maior
responsável
pelo
recrutamento
da
tripulação: foi ele quem
convenceu os relutantes
marujos de Palos a seguir
uma rota que até então
jamais
havia
sido
percorrida. Ao contrário de
Francisco e Martin (que
morreu poucos dias após o
retorno à Espanha, em
1493, já rompido com
Colombo),
Vicente
permaneceria
fiel
ao
almirante genovês até a
navegantes – “afogou-se” conduz até o cabo de Santo morte dele, em maio de
no
horizonte
norte, Agostinho (PE) e baseia-se 1506.
“nasceu uma terrível nas afirmativas feitas pelo
tempestade de ondas e próprio Pinzón em 1515.
3
turbilhões de vento”. Por
uma semana, vagalhões enormes e os ventos uivantes que os acompanhavam quase
fizeram soçobrar as caravelas. Elas só conseguiram “seguir seu caminho com
4
grande perigo”.
Ironicamente, o mau tempo acabaria permitindo a Pinzón realizar uma das mais
rápidas travessias entre Cabo Verde e o Brasil. Suas caravelas gastaram apenas 13
dias para cobrir uma distância de 1.400 milhas náuticas (ou cerca de 2.390
quilômetros) – trajeto que custaria cerca de um mês de viagem a quase todas as
expedições subsequentes, entre as quais a comandada pelo português Pedro Álvares
Cabral. E então, na manhã de 26 de janeiro de 1500, vencidos todos os perigos do
mar, Pinzón e seus homens desembarcaram em um cabo.
Eles o chamaram de “Santa Maria de la Consolación”. Era a ponta do Mucuripe,
no Ceará.
Ali, Pinzón permaneceu apenas um dia ou dois. Durante a noite, após o
desembarque, seus homens tinham visto grandes fogueiras ardendo a distância, na
costa que se estendia em direção ao noroeste. Na
manhã de 27 (ou 28) de janeiro, a frota zarpou
naquela direção. Depois de navegar pouco mais de 100
quilômetros, os navios chegaram à foz de um rio tão
belo que Pinzón o batizou com o nome de rio Formoso.
Provavelmente era o atual rio Curu, 120 quilômetros
ao norte de Fortaleza.
Na gravura acima, uma
Na praia, às margens do rio, havia cerca de 40
nativos. Os espanhóis desembarcaram em quatro versão romanceada do
escaleres e tentaram estabelecer contato com eles. Mas confronto entre os homens
guizos, colares de contas e espelhos não foram capazes de Pinzón e os Potiguar, às
de atraí-los e os indígenas mantiveram distância. De margens do rio Curu, no
repente, um deles lançou à areia um objeto dourado: Ceará, publicada por autor
era “uma vara”, diz um dos cronistas da expedição, ou anônimo em 1886.
5
uma “barra de dois palmos”, de acordo com outro. Quando um dos marujos
adiantou-se e se agachou para apanhá-la, os nativos se jogaram sobre ele. Armado
de espada e escudo, o marinheiro lutou para se defender, mas foi morto por um
golpe de tacape desferido pelas costas. Um conflito violento eclodiu então entre cerca
de 20 espanhóis e os 40 nativos.
Em outubro de 1500, menos de um mês após ter retornado à Espanha, Pinzón
manteve um encontro com o sacerdote, militar e historiador italiano Piero Martir de
6
Anghiera – que veio a se tornar o principal cronista daquela viagem. Durante uma
tarde inteira, Pinzón contou a ele o que teria se passado às margens do rio Curu. Eis
a narrativa do capitão, conforme redigida por Anghiera:
“Dentro do rio, aqueles homens belicosos cercam o bote, avançam
temerariamente e agarram da margem o corpo dos escaleres. São trucidados a lança
e a espada como ovelhas, porque estavam nus. Nem assim se retiram. Arrebatam
do poder dos nossos um barco, depois de trespassado e morto com uma seta o seu
mestre; os outros puderam safar-se. Para concluir em breves palavras [pois tão
ansiosamente me fazes ver que te retiras]: mataram oito dos nossos com setas e
dardos e mal houve um que não recebesse alguma ferida. Se suas setas tivessem sido
ervadas [envenenadas], nenhum dos nossos teria conservado a existência.”
Esse primeiro encontro entre espanhóis e indígenas no Brasil é surpreendente e em
tudo desigual àquele que, três meses mais tarde, aguardaria os portugueses, na
Bahia. A explicação é simples: enquanto Cabral e seus homens encontraram-se com
os Tupiniquim e estabeleceram com eles uma relação pacífica, os marujos de Pinzón
desembarcaram no território dos Potiguar e podem tê-los provocado.
Os Potiguar – “comedores de camarão”, em tupi – eram cerca de 90 mil. Seu
território se estendia desde o rio Acaraú (100 quilômetros ao norte do Curu) até a
altura da atual cidade de João Pessoa (uns 600 quilômetros mais ao sul). Embora
7
os Potiguar fossem agressivos, alguns historiadores acham que Pinzón não contou
toda a verdade sobre o episódio. O fato de ele, pouco mais tarde, ter capturado 36
nativos para vendê-los como escravos na Espanha parece indicar que, naquele
primeiro encontro, os espanhóis teriam tentado prender alguns indígenas – e foram
rechaçados por eles.
O fato é que, após o embate às margens do rio Curu, Pinzón e seus homens
decidiram partir, seguindo a linha da costa, rumo ao noroeste. No dia seguinte ao
combate, vislumbraram outro acidente geográfico do litoral brasileiro. Era uma
ponta arenosa, tão formosa e bem-feita que se assemelhava a “um vermelho bico de
8
cisne mergulhando no oceano”. Decidiram chamá-la de “Rostro Hermoso” (ou
“Face Linda”). Tratava-se da ponta de Jericoacoara – cuja beleza hoje atrai turistas
de todo o mundo. Ali, Pinzón mandou fincar uma cruz com os brasões da Coroa de
Castela e seguiu em frente, acompanhando os caprichosos contornos do litoral.
Alguns dias mais tarde, outro capitão espanhol, Diego de Lepe, encontrou essa cruz.
Poucas semanas depois, Lepe cruzaria com a frota de Vicente Pinzón, sem vê-la.
Nos primeiros dias de fevereiro de 1500, a 40 léguas (cerca de 240 quilômetros) a
nordeste da ponta de Jericoacoara, os homens de Pinzón viveriam a mais
surpreendente experiência de sua viagem. Ela se iniciou quando eles escutaram um
estrondo contínuo e inquietante. A seguir, seus navios foram agitados por correntes
fortíssimas. Então os marujos perceberam que as águas pelas quais navegavam já
não eram salgadas: os baldes jogados do convés voltavam cheios de água doce.
Pela primeira vez na história, os europeus deparavam com o fenômeno que os
indígenas chamavam de pororoca (“estrondo”, em Tupi-Guarani). Era o majestoso
encontro das águas do rio Amazonas com as águas do oceano Atlântico.
Vencendo a maré e balançando sobre ondas de quase dois metros, Pinzón seguiu
em frente e logo chegou à imensa foz de um rio, “uma boca que saía no mar 15
9
léguas (cerca de 90 quilômetros), com grandíssimo ímpeto”. Os espanhóis
concluíram que um curso d’água tão monumental só poderia “nascer em vastos
10
montes” e que necessariamente precisaria percorrer uma enorme distância antes de
se tornar poderoso a ponto de “adoçar” o mar. Tiveram então a certeza de que a
terra que ele banhava deveria ser parte de um continente: a Ásia, julgaram eles.
Aquele “mar doce” estava coalhado de ilhas – algumas enormes; todas “felizes
pela fertilidade do solo”; a maioria “habitada de gente mansa e sociável, mas pouco
úteis para os nossos porque não possuem produtos desejáveis, a saber: ouro e
11
pedrarias”. A frota de Pinzón estava na baía de Marajó. Os nativos chamavam a
região de Mariatambal. Pinzón manteve o nome, mas batizou aquele imenso curso
d’água de Santa Maria de la Mar Dulce. Tinha acabado de descobrir o maior rio do
planeta – o mesmo que, 40 anos mais tarde, seria chamado de Amazonas pelo
primeiro explorador que o navegou da nascente à foz, o também espanhol Francisco
de Orellana.
Pinzón decidiu explorar o interior da região, que julgava ser “a Índia além do
12
Ganges, nas proximidades da grande cidade de Catai (a China)”. Seus navios
subiram o curso do rio imenso, avançando contra a corrente e percorrendo cerca de
50 léguas (aproximadamente 300 quilômetros) com muita dificuldade. As margens
eram densamente habitadas e repletas de aldeias. Havia árvores tão grandes “que
13
um cordão de 16 homens unidos pelas mãos não era capaz de abraçá-las”. Os
animais eram todos desconhecidos e pareciam monstruosos. Um deles, um enorme
sariguê (espécie de gambá), foi levado para a Espanha, aonde chegou morto, mas
14
seu corpo, “bem conservado, causou a admiração de quantos o viram”.
A exploração se prolongou por duas semanas. À noite, quando os navios
ancoravam, da floresta ecoavam ruídos assustadores. Durante o dia, milhares de
pássaros enchiam o ar com o trinado maravilhoso de seu canto. “Para não retornar
sem ganho”, conta Anghiera, “[Pinzón] levou daí 36 escravos, pois outra coisa não
achou”, embora, a cada novo encontro, os nativos lhe assegurassem que “dentro da
terra havia grande quantidade de ouro” – ou pelo menos foi isso que os espanhóis
entenderam dos sinais que os indígenas lhes faziam.
AS JORNADAS DE LEPE E DE HOJEDA
Enquanto os navios de Vicente Pinzón se encontravam navegando pelas águas
escuras do Amazonas, uma outra expedição espanhola cruzou ao largo da baía de
Marajó. Era uma frota de três caravelas, chefiada por Diego de Lepe – que, por
coincidência ainda maior, era parente de Pinzón.
Lepe também partira de Palos, no início de dezembro de 1499. Como seu primo,
ele zarpou em direção às Canárias e, a seguir, ancorou na ilha do Fogo, uma das dez
que constituem o arquipélago de Cabo Verde, localizado defronte à costa do Senegal,
na África. Dali, partiu rumo ao sudoeste, decidido a seguir a rota que Cristóvão
Colombo descobrira em sua terceira viagem à América, em maio de 1498, e que já
fora singrada pela expedição de Alonso de Hojeda e pela própria frota de Pinzón.
Como os que tinham partido antes dele, Lepe também pretendia chegar aos fabulosos
reinos de Cipango e Catai.
Ao cabo de 20 dias de navegação oceânica, Diego de Lepe avistou terra. Como
restam pouquíssimas fontes para a reconstituição de sua viagem, não se sabe ao certo
em que ponto da costa brasileira seus navios aportaram, no início de fevereiro de
1500. Alguns historiadores acham que foi no cabo de Santo Agostinho, em
Pernambuco. Outros afirmam que foi no cabo de São Roque, o ponto da costa
brasileira geograficamente mais próximo da África, localizado a uns 100
15
quilômetros ao norte da atual cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Dali, Lepe
teria seguido em direção ao sul, mas, ao perceber que a costa se inclinava em direção
ao sudoeste, fez a volta e partiu para o norte, seguindo a mesma rota que Pinzón
percorrera um mês antes.
Quando a frota chegou à baía de Marajó, Lepe
deparou com aldeias fumegantes e nativos enfurecidos.
Provavelmente era o resultado da recente passagem de
seu primo Pinzón por ali. Mas disso Diego de Lepe não
pôde obter notícia, já que, a cada desembarque, os
indígenas atacavam seus homens com redobrada
ferocidade. Certa ocasião, segundo a narrativa do frei
Bartolomeu de las Casas, 11 tripulantes da frota foram
surpreendidos quando enchiam barris com água de um
córrego e mortos numa praia baixa e lamacenta.
Depois de capturar 20 escravos, provavelmente em
algum lugar da costa hoje pertencente ao Maranhão,
Lepe seguiu rumo às ilhas do Caribe, onde os espanhóis
já haviam estabelecido alguns vilarejos. Durante esse
percurso, feito em abril de 1500, Diego de Lepe se
tornou o descobridor de toda a faixa litorânea que vai
do cabo Norte, no atual Amapá, à foz do Oiapoque, o
rio que hoje delimita a fronteira entre o Brasil e a
Guiana Francesa.
A Viagem de Lepe
Apenas
três
fontes
originais se referem à
viagem de Diego de Lepe à
América. São elas: uma
carta que os Reis Católicos,
Fernando
e
Isabel,
enviaram ao bispo de
Córdoba, Juan Rodrigues
de Fonseca, em 15 de
novembro de 1500; a
narrativa da viagem feita
pelo
historiador
frei
Bartolomé de las Casas; e
as menções feitas à
expedição
durante
o
processo judicial chamado
de Probanzas del Fiscal, já
citado.
O trecho seguinte do litoral – aquele que se estende
do Oiapoque ao rio Corantijn (na atual fronteira entre o Suriname e a Guiana) –
havia sido descoberto menos de um ano antes pelo espanhol Alonso de Hojeda, que
navegara por ali em companhia do piloto e cartógrafo Juan de la Cosa e de um
cosmógrafo florentino chamado… Américo Vespúcio. A presença de Vespúcio e de
Juan de la Cosa nessa viagem a vincula à história do Brasil. Vale a pena, portanto,
recordá-la. Para isso, contudo, é aconselhável recuar um pouco no tempo e
averiguar o papel até então desempenhado por Hojeda na trama dos
descobrimentos.
Alonso de Hojeda (ou Ojeda), jovem e temerário fidalgo, era o típico
conquistador espanhol. “Alto e atraente”, dizem que ele despertava “a atenção tanto
de mulheres quanto de homens”. Mas, além de corajoso e destemido, era também
16
homem “ganancioso, rude e extremamente cruel”.
Depois de participar, desde
muito jovem, da luta pela reconquista cristã da Península Ibérica, ele se tornara um
dos favoritos da rainha Isabel, mulher do rei D. Fernando. Diz a lenda que a
soberana teria ficado impressionada com as piruetas que o jovem fidalgo fora capaz
de realizar, pendurado em uma viga suspensa na Giralda, uma torre de mais de 50
metros no centro de Sevilha.
Fato ou ficção, a verdade é que Alonso de Hojeda se tornou também um
protegido de D. Juan Rodrigues de Fonseca, bispo de Córdoba e responsável por
todos “os negócios da Índia”. Foi provavelmente para agradar aos dois principais
admiradores de Hojeda – a rainha e o bispo – que Colombo o escolheu como capitão
de uma das caravelas que fariam parte de sua segunda viagem à América. O
almirante teria o resto da vida para lamentar a decisão.
De fato, em setembro de 1493, Colombo e Hojeda partiram da Espanha a bordo
de uma armada imponente, com 17 navios e 1.200 tripulantes. Embora eles tenham
descoberto as ilhas de Porto Rico, Jamaica e Hispaniola (hoje dividida entre Haiti e
República Dominicana), a viagem foi um fiasco. Após cometer uma série de
atrocidades contra os nativos, Hojeda fugiu para Cuba sem comunicar ao almirante.
De lá, retornou para a Espanha. Ao chegar à Europa, conseguiu se livrar de todas as
punições, não só por suas relações na corte, mas também porque Colombo – que já
se revelara péssimo administrador – estava caindo em desgraça com os Reis
Católicos. Desse modo, suas acusações contra desertores como Hojeda foram
solenemente ignoradas.
Ainda assim, em 1498, cinco anos após os desastrados episódios que marcaram
essa segunda expedição ao Caribe, Colombo conseguiu obter financiamento para
uma terceira tentativa de encontrar, a oeste da Europa, as ricas cidades do Oriente –
as mesmas que Marco Polo havia visitado e descrito dois séculos antes.
Ocorre que, apenas três dias antes de Colombo
Abaixo, retrato do Rei
zarpar de Sevilha, Vasco da Gama tinha chegado à Católico D. Fernando, de
Índia – embora disso, naquele momento, nem
Cristóvão nem ninguém na Europa tivesse notícia.
Com efeito, em 27 de maio de 1498 os portugueses
haviam sido capazes de concretizar um sonho
acalentado por quase um século: após contornar a
África e cruzar o oceano Índico, Gama tinha
descoberto a rota que conduzia da Europa ao reino das
especiarias pelo único caminho marítimo possível.
Aragão, marido da rainha
D. Isabel, de Castela, e,
junto com a esposa,
principal financiador das
viagens de Colombo.
Na verdade, fora apenas porque ficara sabendo que
seu genro, o rei D. Manoel, de Portugal, havia enviado
aquelas três caravelas comandadas por Vasco da
Gama com a missão de atingir a Índia por mar – e
porque soubera também que o rei da Inglaterra,
Henrique VII, tinha acabado de contratar o genovês
Giovanni Caboto para que ele tentasse descobrir um
caminho marítimo para a China através do mar do
Norte – que D. Fernando havia decidido dar uma nova
(e supostamente última) chance para Colombo.
Ao partir de Sevilha, em 30 de maio de 1498, Colombo decidiu mudar de tática,
alterando radicalmente a rota que havia percorrido em suas viagens anteriores.
Seguiu direto até as Canárias, mas aí, ao invés de guinar para oeste, no rumo dos
ventos alísios – rota que o conduziria novamente ao Caribe –, o almirante preferiu
descer ao longo do litoral africano e seguiu até o arquipélago de Cabo Verde. Só
então guinou para o poente, cruzando o Atlântico em latitudes mais próximas da
linha do equador (veja a rota das quatro viagens de Colombo a seguir).
De acordo com o historiador americano Samuel
Eliot Morison (1887-1976), ao escolher essa rota, o
descobridor da América estaria, na verdade, disposto a
comprovar uma informação que o rei D. João II, de
Portugal (morto em 1495), teria lhe dado em 1493: a
de que ao sul das ilhas do Caribe, que o próprio
Colombo havia descoberto um ano antes, existia um
continente.
O mapa a seguir mostra
a rota seguida por
Colombo em suas quatro
viagens à América. Na
terceira delas, ao chegar às
Canárias, o almirante
decidiu “descer” até as ilhas
de Cabo Verde e só então
Fosse assim ou não, o fato é que, ao meio-dia de 31 guinar para oeste. Essa
de julho de 1498, Cristóvão Colombo se tornou (sem o rota
guarda
certas
saber) o descobridor oficial da América do Sul. semelhanças
com
o
Embora cinco anos antes ele tivesse obrigado seus caminho marítimo seguido
homens a jurar, sob terríveis ameaças, que a ilha de
Cuba era terra firme, a verdade é que só naquele
momento o almirante estava enfim aportando em
extensões continentais.
por Vasco da Gama, cerca
de um ano antes. Isso
parece ser o indicativo de
que Colombo de fato
estava
seguindo
os
conselhos que lhe teriam
sido dados pelo rei D. João
II, de Portugal.
Mais uma vez, porém, a primeira terra avistada era apenas uma ilha. Colombo
batizou-a de Trinidad – nome que se mantém até hoje. Logo a seguir, a pequena
frota (constituída por uma nau e duas caravelas, tão diferente da portentosa esquadra
com 17 embarcações que ele orgulhosamente comandara em sua segunda viagem,
entre setembro de 1493 e junho de 1496) chegou ao golfo de Pária, na costa da atual
Venezuela.
Colombo cruzou então pelo delta do rio Orenoco e navegou ao longo do litoral da
Venezuela, passando por uma grande ilha que chamou de Margarita. Em seguida, o
almirante guinou para o norte, voltando a singrar, pela terceira vez em sua vida, as
águas translúcidas do Caribe.
Apesar de os indígenas de Pária assegurarem que a região era rica em pérolas,
Colombo não explorou a terra firme. Ao rei D. Fernando ele justificou essa atitude
com duas explicações: primeiro, seus navios seriam “grandes demais para
17
aproximar-se da costa”. De fato, as duas caravelas
utilizadas naquela viagem tinham, respectivamente,
100 e 70 toneladas de arqueação. Seu calado era,
portanto, bem maior do que o das caravelas “boas
para descobrir” usadas pelos portugueses em
explorações costeiras (que, em geral, tinham entre 25 e
40 toneladas). Além disso, o almirante estava “com os
olhos quase perdidos por não dormir, devido às longas
18
vigílias que havia tido”.
Em 18 de outubro de
Cristóvão
Colombo
1498, a nau capitânia da
acorrentado
frota de Colombo partiu retornando
da
ilha
de
São para a Espanha, depois de
Domingos, no Caribe, ser destituído de seus
em direção à Espanha, cargos na América.
para comunicar as novas descobertas. O próprio
Colombo permaneceria por mais dois anos no Caribe
(de onde só retornaria em outubro de 1500,
acorrentado e destituído de seus cargos). Em dezembro
de 1498, quando a capitânia chegou a Sevilha, as
A Rainha Católica Isabel, notícias sobre as pérolas do golfo de Pária se
de Castela, que era espalharam pelo reino. Vários aventureiros se
contrária à escravização dispuseram a verificar a veracidade daquelas
dos nativos do Novo informações. Quem primeiro obteve licença real para
Mundo. explorar a região – concedida pelo bispo Fonseca e
sancionada pela rainha Isabel – foi justamente… o belo
e inescrupuloso Alonso de Hojeda, o desafeto de Colombo.
Assim, em 18 de maio de 1499, financiado por banqueiros e mercadores de
Sevilha, e acompanhado pelo cosmógrafo Juan de la Cosa e pelo florentino Américo
Vespúcio (que talvez também tenha ajudado a financiar a expedição), Hojeda partiu
de Cádiz com três caravelas. A tripulação era formada “pelos homens mais
19
brutais” que Hojeda pudera recrutar – de tal forma que o historiador Samuel E.
Morison chamou a frota de “uma esquadra semipirata”. De fato, na viagem de ida,
Hojeda vendeu armas e pólvora para os árabes no porto de Safi, no Marrocos;
tomou uma caravela portuguesa que navegava ao longo da costa africana,
incorporando-a à sua frota; e saqueou a casa da filha da amante de Colombo, Doña
Beatriz de Pereza y Bobadilla, nas Canárias.
Em fins de junho de 1499, após cruzar o Atlântico,
a expedição avistou terra. Provavelmente era o litoral
das Guianas. Seguindo rumo ao noroeste, Hojeda
cruzou pelo soberbo delta do Orenoco e, como
Colombo antes dele, se espantou com o volume d’água
que esse rio jogava contra o mar – fenômeno muito
similar à pororoca provocada pelo Amazonas e que
Pinzón vislumbraria seis meses mais tarde. Ali, de
fato, Hojeda obteve algumas pérolas, mas logo se
incompatibilizou com os indígenas, depois que eles se
recusaram a fornecer alimentos para a sua tripulação;
20 nativos – provavelmente os chefes – foram passados
a fio de espada em frente à tribo estarrecida.
Em seguida, a frota de Hojeda penetrou no golfo de
Pária, que Colombo descobrira um ano antes, passou
pela ilha Margarita e, a seguir, descobriu as atuais
Bonaire e Curaçao, entrando no golfo de Maracaibo.
Dentro dessa ampla baía, os espanhóis viram uma
aldeia erguida sobre palafitas. Hojeda chamou-a de
Venezuela, ou “pequena Veneza”. Sem saber, estava
batizando um futuro país.
Em fins de maio de 1500, depois de inúmeros
ataques a aldeias localizadas em várias ilhas do Caribe
(e quando a esquadra de Cabral já havia deixado
Porto Seguro, zarpando em direção à Índia) a frota de
Hojeda iniciou seu retorno à Espanha. Levava 232
escravos a bordo – embora a rainha Isabel, convencida
da inalienável “liberdade natural” dos nativos, tivesse
proibido terminantemente a escravização dos
habitantes das terras recém-descobertas.
Pelos curiosos meandros da História, essa viagem
de Alonso de Hojeda acabaria estabelecendo uma
estreita e peculiar relação com a história do Brasil.
Começando pelo fim: em 1854, Francisco Adolfo de
Varnhagen (1816-1878), um dos mais profícuos
historiadores brasileiros, defendeu a tese (e a ela se
A Viúva Negra
Foi no dia 2 de
setembro de 1492, quando
chegou à ilha de Gomera,
uma das Canárias, durante
a viagem que o levaria a
descobrir a América, que
Cristóvão
Colombo
conheceu Doña Beatriz de
Pereza y Bobadilla, viúva
do antigo governador de
Gomera. Segundo o relato
de
alguns
de
seus
marinheiros,
Colombo
teria se interessado por ela.
Em 2 de outubro do ano
seguinte, ao retornar do
Caribe, Colombo tornou a
aportar em Gomera, para
rever Doña Beatriz. Em
maio de 1498, Colombo
voltaria a Gomera para se
encontrar com a amante.
Mas o caso terminou
abruptamente quando o
almirante soube que, pouco
antes, Beatriz mandara
enforcar um homem que
espalhara o boato de que
ela e Colombo tinham um
caso. O corpo desse
homem ficara exposto na
frente do castelo de Doña
Beatriz até apodrecer. Mais
tarde, ela se casou com D.
Alonso de Lugo, capitão da
manteve fiel até a morte) de que Hojeda fora o
primeiro europeu a chegar às terras que hoje pertencem
ao Brasil. Tese essa que, na época, teve, como é fácil
supor, grande impacto e repercussão nos círculos
acadêmicos e no meio intelectual.
Gran Canária, tido como
um homem tão cruel
quanto ela mesma. A filha
de Doña Beatriz se
chamava Inés de Pereza e
vivia na ilha de Lanzarote,
uma das Canárias. Ao
saquear a casa dela,
Hojeda teria obtido uma
fortuna em joias. Esses
casos foram narrados por
Samuel E. Morison.
De
acordo
com
Varnhagen, um mês
após partir das Canárias,
Hojeda teria aportado
não nas Guianas, mas
quase
dois
mil
quilômetros mais ao sul,
no delta do rio Assu, no
atual Rio Grande do
Norte, quase na fronteira
com o Ceará, e só então
Juan de la Cosa,
seguido até a Venezuela.
Ocorre que Varnhagen companheiro de Colombo
foi induzido ao erro pela na descoberta da América e
carta
que
Américo cartógrafo que fez o
Vespúcio redigiu em primeiro mapa no qual foi
Sevilha, em 18 de julho representado um trecho do
de 1500, e enviou para litoral do Brasil, então
Lorenzo di Pierfrancesco ainda identificado como
de Médici, narrando sua uma ilha.
atribulada jornada em
companhia de Hojeda (cujo nome não citou uma única vez, dando a entender que ele
próprio chefiara a missão). Mas Vespúcio ou mentiu, ou se equivocou nas medições
astronômicas, errando em cerca de dez graus a latitude das terras então visitadas.
Sabe-se hoje que a expedição de Hojeda e Vespúcio com certeza não esteve ao sul das
Guianas.
De todo modo, a própria presença de Américo Vespúcio na frota de Hojeda é o
segundo ponto em comum entre essa viagem e a história do Brasil. Afinal, menos de
um ano após seu retorno à Espanha, Vespúcio passaria a servir o rei de Portugal,
partindo para uma nova expedição – quando, então, de fato viria ao Brasil. Por fim,
foi também depois de acompanhar Hojeda em 1498 que o piloto e cartógrafo Juan
de la Cosa produziu o primeiro mapa a representar a América – e também o
primeiro no qual aparece um trecho do litoral brasileiro.
Companheiro de Colombo em suas duas primeiras viagens, em 1492 e 1493,
Juan de la Cosa foi recrutado, ou se alistou, na expedição de Hojeda. Nascido em
Biscaia, na Espanha, em 1460, era um navegador com larga experiência. Na
viagem que culminara com o descobrimento da América, em 1492, havia sido o
capitão (e, segundo alguns historiadores, era o proprietário) da nau Santa Maria, na
qual viajou o próprio Colombo e que naufragou no Caribe. Nos documentos
relativos à expedição subsequente, realizada já no ano seguinte, 1493, La Cosa surge
nos documentos identificado apenas como “mestre na arte de fazer cartas de marear”.
E foi justamente com essa qualificação que seu nome acabou se vinculando à história
do Brasil.
Com efeito, ao retornar a Sevilha, em maio de 1500, ele começou a fazer o mapa
que entraria para a história da cartografia mundial. Em junho, quando a carta já
estava sendo desenhada, La Cosa ficou sabendo que uma expedição portuguesa,
comandada por Pedro Álvares Cabral, havia descoberto “uma ilha’’ no Atlântico,
o
mais ou menos a 15 de latitude sul. Tal informação havia chegado à Europa
através da caravela de Gaspar de Lemos, que Cabral mandara retornar a Portugal
com a notícia do descobrimento. De imediato, La Cosa tratou de incluir essa suposta
“ilha” em sua obra.
No último dia de setembro de 1500, depois de ter deixado o Amazonas e seguido
para o Caribe, Vicente Pinzón também retornara à Espanha. Há indícios de que, ao
chegar a Sevilha, Pinzón se encontrou com Juan de la Cosa na primeira semana de
outubro, quando o mapa já estava quase pronto. Ao final do mês, La Cosa partiria
novamente para o mar. Antes de zarpar, porém, teve tempo de acrescentar à sua
obra o trecho que representa a costa brasileira, desde o Ceará até o Amapá – trecho
esse que lhe fora descrito por Pinzón.
O mapa de Juan de la Cosa se tornaria a principal
prova de que Pinzón foi o primeiro navegador europeu
a desembarcar oficialmente em terras hoje brasileiras,
embora, até os estudos pioneiros de Max Justo Guedes
(1927-2011), concluídos em 1975, fosse bastante difícil
precisar exatamente onde. O próprio mapa tem uma
trajetória atribulada: desapareceu no final do século
XVI e só foi reencontrado em 1828, quando um
diplomata holandês, o barão de Walckenaer, o
adquiriu de um antiquário parisiense. Em 1832,
A seguir, a reprodução
do trabalho feito por Max
Justo Guedes, do Serviço
Geral de Documentação da
Marinha Brasileira, no
qual ele justapõe os
contornos do mapa de
Juan de la Cosa aos
contornos de um mapa
atualizado
do
litoral
Alexander von Humboldt estudou o mapa na própria
biblioteca de Walckenaer e divulgou sua existência ao
mundo científico. Em 1853, o Museu Naval de Madri
conseguiu adquirir a obra de La Cosa e a incorporou
ao seu acervo, do qual faz parte até hoje.
brasileiro. Foi baseado
nessa justaposição que
Justo Guedes pôde concluir
que Vicente Pinzón aportou
na ponta de Mucuripe, no
Ceará, tornando-se, assim,
o primeiro navegador
europeu a desembarcar
oficialmente no Brasil.
Foi lá, no ano seguinte, que Varnhagen o examinou e concluiu que Alonso de
Hojeda estivera no Brasil em junho de 1499, seis meses antes de Pinzón e nove antes
de Cabral. Mas seus estudos – que, mais do que no mapa de La Cosa, se
fundamentaram no relato feito por Américo Vespúcio – estavam equivocados.
Atualmente está provado que Hojeda não esteve em território brasileiro.
ENTRAM EM CENA OS PORTUGUESES
De qualquer forma, tudo isso não foi mais do que
um mero prelúdio. Afinal, embora de fato tenham
precedido Cabral em cerca de três meses, as expedições
de Pinzón e de Diego de Lepe não tiveram, como bem
se sabe, consequências práticas para a história do
Brasil. Em primeiro lugar, Pinzón e Lepe estavam
A seguir, reprodução
parcial do mapa de Juan
de la Cosa, o primeiro a
representar a América. As
bandeiras com uma cruz
representam os territórios
pertencentes à Espanha e as
seguindo a nova rota aberta por Cristóvão Colombo
em busca de Cipango e de Catai – e o próprio Colombo
(de acordo com Samuel E. Morison, seu mais
respeitável biógrafo) só seguira esse novo caminho
graças às informações que lhe dera o rei D. João II, de
Portugal.
bandeiras
com
um
quadrado
ao
centro
mostram as possessões
portuguesas.
As
duas
pequenas ilhas no meio do
Atlântico representam o
território avistado por
Pedro Álvares Cabral em
22 de abril de 1500.
Além disso, a costa visitada por Pinzón e por Lepe – um litoral baixo e
lamacento, percorrido por tribos ferozes e banhado por correntes marítimas
contrárias e perigosas – era de tal forma agreste que permaneceria inexplorada até o
começo do século XVII, só sendo conquistada, e a muito custo, pelos portugueses
Pero de Sousa e Martim Soares Moreno a partir de 1604. E por via terrestre.
E, de todo modo – soubesse ou não o rei D. João II da existência de uma “nova
parte do mundo” sobre a qual teria comentado com Colombo –, o certo é que, no
segundo semestre de 1497, quando navegava em direção à Índia, Vasco da Gama já
pressentira, ele próprio, a existência dessas mesmas terras. Com efeito, no dia 22 de
agosto daquele ano, depois de zarpar das ilhas de Cabo Verde, rumo à Índia, Gama
e seus homens avistaram, em pleno mar, aves marinhas voando “muito rijas, como
20
aves que iam para terra”. Gama não pôde, nem quis, desviar sua rota para seguilas, mas a aparição foi registrada no seu diário de bordo. Naquele momento, os
navegadores portugueses estavam interessados na verdadeira Índia – que eles
sabiam que ficava a leste, para além do oceano Atlântico, depois do cabo da Boa
Esperança –, e não nas terras que Colombo descobrira a oeste.
Mas, em junho de 1499, logo que Vasco da Gama retornou a Lisboa com a
notícia longamente aguardada de que a Índia podia ser alcançada por mar, o rei de
Portugal, D. Manoel, sucessor de D. João II, tratou de organizar o envio de uma
nova expedição para o fabuloso reino das especiarias. Em sua jornada de ida, essa
expedição poderia explorar também a margem ocidental do Atlântico, cuja posse
Portugal assegurara desde o Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494.
Assim, em 9 de março de 1500, oito meses após o retorno de Gama a Portugal –
e enquanto Vicente Pinzón e Diego de Lepe já navegavam pelos limites setentrionais
da América do Sul –, uma frota imponente, formada por dez naus e três caravelas,
zarpou de Lisboa, com 1.500 homens a bordo. Sob o comando de Pedro Álvares
Cabral, essa armada fora incumbida da missão de instalar uma feitoria em Calicute,
na costa ocidental da Índia. Lá, deveria obter – pela diplomacia ou pelas armas – o
monopólio do comércio de pimenta e canela, que, até então, se mantinha nas mãos
de mercadores árabes. Esse era o objetivo primordial da missão comandada por
Cabral.
Porém, antes de partir, Cabral manteve vários encontros com Vasco da Gama.
O descobridor da Índia redigiu instruções náuticas detalhadas para o futuro
descobridor do Brasil. Esse documento – que Cabral levou consigo a bordo –
sobreviveu aos séculos e o rascunho dele está preservado na torre do Tombo, em
21
Lisboa. Seguindo tais indicações, a frota de Cabral zarpou de Lisboa em direção à
Índia pela rota que Gama e, antes dele, Bartolomeu Dias, tinham estabelecido.
Depois de 44 dias de viagem, no entardecer de 22 de abril de 1500 – quando a
frota, por motivo nunca plenamente compreendido, se encontrava muito mais a oeste
do que o necessário para contornar o cabo da Boa Esperança (a última ponta da
África) –, Cabral e seus homens vislumbraram um morro alto e redondo, que
batizaram de monte Pascoal. Esse morro fica no sul da Bahia. Foi a descoberta
oficial do Brasil pelos portugueses. Os fatos e desdobramentos da jornada de Cabral
estão narrados em detalhes no livro A viagem do descobrimento, primeiro volume da
Coleção Brasilis.
Durante os dez dias seguintes, a frota de Cabral permaneceu ancorada em uma
esplêndida enseada tropical, hoje chamada baía
Cabrália, uns 20 quilômetros ao norte da atual Porto
Seguro, reconhecendo o novo território. Durante esse
tempo, manteve pacífica convivência com os nativos.
Os indígenas com os quais os homens de Cabral
fizeram contato eram os Tupiniquim – tribo tupi com a
qual mantiveram um relacionamento bem mais
amistoso do que aquele de Pinzón e Lepe com os
Potiguar.
No dia 2 de maio, deixando em terra dois
degredados (e dois grumetes que desertaram), Cabral
partiu para a Índia. Na mesma manhã, a naveta de
mantimentos (esvaziada de seu conteúdo) seguiu para
Vasco da Gama, o
Lisboa, sob o comando de Gaspar de Lemos, levando a
descobridor do caminho
bordo cerca de 20 cartas (entre as quais a célebre
marítimo para as Índias.
missiva de Pero Vaz de Caminha) nas quais Cabral,
seus capitães e os escrivães da armada narravam a descoberta para o rei D. Manoel.
Enquanto a frota de Cabral navegava para o sul (seguindo o litoral possivelmente
até a altura de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, antes de guinar para sudeste, em direção
ao cabo da Boa Esperança, e daí para a Índia), a naveta de Gaspar de Lemos
avançava em direção ao noroeste, acompanhando a costa brasileira provavelmente
até o cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte – já que este acidente geográfico
também aparece no mapa de La Cosa.
Em junho de 1500, a naveta de Lemos aportou em Lisboa. A bordo, além das
cartas, de vários papagaios e alguns macacos, de amostras minerais de pouco valor
e de toras de pau-brasil, o navio levava um índio (que Lemos provavelmente
capturara após ter se separado de Cabral, já que o comandante fora terminantemente
contrário ao aprisionamento de nativos). O primeiro indígena brasileiro a
desembarcar em Portugal causou espanto na corte. Ele foi “recebido com alegria do
Rei e do Reino. Não se cansavam os grandes e pequenos de ver e ouvir o gesto, a
falla, os meneos daquelle novo indivíduo da geração humana”, de acordo com o que
22
escreveu o padre Simão de Vasconcelos, em 1658, sem citar suas fontes.
D. Manoel e seus assessores atribuíram a descoberta de Cabral a “um milagre” e
logo imaginaram que a nova terra seria “mui conveniente e necessária à navegação
da Índia”, já que ali Cabral “corrigiu suas naus e tomou água” – embora, “pelo
23
grande caminho que tinha para andar”, não pudesse explorar o território virgem.
De fato, tudo parecia indicar que o Brasil seria a escala ideal em meio à longa
viagem oceânica até a Índia. Tanto que a frota seguinte que D. Manoel enviou para o
Oriente partiu de Portugal com instruções específicas para fazer pouso no Brasil.
Essa expedição – a terceira que chegaria a Calicute, após as de Gama e Cabral –
zarpou de Lisboa em 10 de março de 1501, um ano e um dia após a partida de
Cabral. A viagem foi financiada pelo banqueiro florentino Bartolomeu Marchioni,
que vivia em Lisboa e já havia arcado com boa parte das despesas da frota de
Cabral. Outro banqueiro florentino, Girolamo Sernige, financiara a viagem de
Vasco da Gama em 1497.
Composta por três naus e uma caravela, a terceira
frota da Índia era comandada pelo fidalgo João da
Nova. Àquela altura, embora já tivesse sido informado
da descoberta do Brasil, o rei D. Manoel ainda não
tinha notícia alguma do que sucedera com Cabral –
nem mesmo se ele tinha conseguido chegar ao Oriente.
Mas, naquele momento, Cabral não apenas chegara à
Índia como já havia até iniciado a viagem de retorno.
Reprodução seiscentista
Em abril de 1501 – enquanto os navios de Cabral se da nau a bordo da qual
preparavam para dobrar o cabo da Boa Esperança, João da Nova seguiu para
deixando para trás o oceano Índico e voltando a a Índia em março de 1501,
singrar o Atlântico –, João da Nova avistava o cabo de fazendo escala no Brasil
Santo Agostinho, em Pernambuco. Depois de Pinzón, em abril.
Lepe e Cabral, João da Nova se tornava, assim, o
quarto navegador europeu a percorrer o Nordeste brasileiro em um período de
menos de 15 meses.
Nada se sabe sobre sua permanência no Brasil, que deve ter sido muito breve:
apenas o tempo suficiente para reabastecer os navios com água fresca e víveres e
limpar os cascos. Nos anos seguintes, porém, os portugueses concluiriam que o
Brasil não era tão “conveniente e necessário para a navegação da Índia” quanto o rei
e seus assessores de início haviam suposto.
E então, por cerca de 30 anos, aquele vasto território seria virtualmente
abandonado pela Coroa portuguesa, sendo arrendado para a iniciativa privada e se
tornando uma espécie de imensa fazenda extrativista de pau-brasil.
Iriam se iniciar as três décadas menos documentadas e mais desconhecidas da
história do Brasil.
II
VESPÚCIO E O BATISMO DA AMÉRICA
do Brasil começou a ser traçado dois meses após a partida de João
Oda destino
Nova para a Índia, quando D. Manoel armou uma nova expedição com o
objetivo único de explorar o território que Cabral avistara um ano antes e averiguar
que riquezas ele porventura possuiria. No dia 10 de maio de 1501, uma frota de três
caravelas, comandada por Gonçalo Coelho, zarpou de Lisboa em direção ao Brasil.
A bordo de um dos navios seguia o florentino Américo Vespúcio – a quem se deve o
único relato existente dessa viagem. Vespúcio, que até poucas semanas antes servia
aos Reis Católicos, Fernando e Isabel, de Aragão e Castela, fora recentemente
contratado pela Coroa portuguesa, provavelmente por recomendação de seu
conterrâneo, o banqueiro Bartolomeu Marchioni.
Amigo de reis, ministros, embaixadores e banqueiros, tendo convivido com os
maiores artistas de seu tempo (e da própria história da humanidade) Américo
Vespúcio era rico e culto, mas acabaria se revelando também homem presunçoso,
muitas vezes arrogante e capaz de sonegar informações relativas às suas viagens,
além de ser conivente com falsificações e versões apócrifas de suas cartas, com o
1
objetivo explícito de “obter alguma fama após a morte”. E tal objetivo Vespúcio
seria capaz de atingir em proporções muito maiores e impactantes do que ele jamais
poderia supor.
Nascido em Ognissanti, um bairro de Florença, em 9 de março de 1454,
Vespúcio era o terceiro filho de Anastácio Vespúcio (Vespucci, em italiano) e Lisa di
Mini. Sua família era de classe alta e dela faziam parte um embaixador, um bispo e
um banqueiro – todos amigos dos poderosos Médici, a família que levara Florença
ao apogeu político e financeiro.
Na infância, Vespúcio estudou no Convento de São Marco, em Florença, sob
supervisão direta de seu tio, o frade dominicano Giorgio Antonio Vespúcio. Típico
homem do Renascimento, sábio helenista e latinista, frade Giorgio também foi o
professor particular de Piero Soderini – nobre que iria se tornar o gonfaloneiro (um
dos principais mandatários) da República de Florença e que, desde os bancos da
escola, era amigo íntimo de Vespúcio.
Aos 17 anos, em 1471, Américo começou a
trabalhar como contador na casa comercial e bancária
de Lorenzo di Pierfrancesco de Médici. Embora entre
1478 e 1480 Américo tivesse sido secretário de seu tio,
Guidantonio Vespúcio, que era embaixador de
Embora nascido em
berço de ouro, Américo
Vespúcio seria, de início,
conhecido apenas como
parente
de
Simonetta
Florença em Paris, junto à corte de Luís XII (que
Américo conheceu pessoalmente), seu trabalho no
banco dos Médici era basicamente burocrático. Em
1491, após 20 anos de serviços tediosos, Vespúcio foi
enviado para Sevilha, na Espanha, para ser um dos
executivos da empresa dirigida por Juanoto Berardi,
sócio dos Médici.
Vespúcio, a belíssima
adolescente que serviu de
modelo para o quadro O
Nascimento de Vênus (a
seguir),
pintado
por
Botticelli em 1484. Há
indícios de que o próprio
Lorenzo de Médici fosse
apaixonado por Simonetta.
Foi após sua chegada à Espanha, em 1491, que Vespúcio começou a se tornar
um dos personagens mais controversos da história dos descobrimentos. Ele tinha
quase 40 anos de idade. Seu novo patrão, o banqueiro e armador Juanoto Berardi,
era um dos principais financiadores das viagens marítimas patrocinadas pelos Reis
Católicos. Berardi possivelmente foi o responsável pela armação da esquadra com a
qual Colombo descobriu a América em 1492. No ano seguinte, se tornou agente e
procurador dos negócios de Colombo junto à corte espanhola.
Foi nessa condição que, em abril de 1495, Berardi se comprometeu a entregar aos
reis Fernando e Isabel 12 navios – entre os quais a nau e as duas caravelas com as
quais Cristóvão Colombo faria sua terceira viagem ao Novo Mundo, prevista para o
início de 1497. Mas Berardi morreu em dezembro de 1495, e a pesada
responsabilidade de entregar uma dúzia de embarcações recaiu sobre Vespúcio. Só
no início de 1498 Américo conseguiu aprontar os navios – tornando-se, dessa forma,
amigo de Colombo.
Em maio de 1498, Cristóvão Colombo partiu da
Espanha e, dois meses depois, chegou pela primeira vez
à América do Sul. Um ano depois, o próprio Vespúcio
decidiu se fazer ao mar. Numa carta posterior, ele iria
revelar que estava cansado de notas cambiais e de
trâmites burocráticos. Aos 45 anos, achava que novos
ares e um pouco de aventura lhe fariam bem. Por isso,
embarcou na frota comandada pelo truculento Alonso
de Hojeda e zarpou de Cádiz em 18 de maio de 1499.
Daquele dia em diante, novos ares e aventura não mais
lhe fariam falta.
Aparentemente, Vespúcio horrorizou-se com a
brutalidade de Hojeda e decidiu se separar da
expedição. Desembarcou na ilha Hispaniola (hoje
Haiti/Santo Domingo), no Caribe, após ter visitado o
golfo de Pária e o litoral da Venezuela. A bordo de
outro navio, retornou à Espanha, aonde chegou nos
primeiros dias de junho de 1500, antecipando-se em
um mês ao retorno de Hojeda.
No dia 18 de julho de 1500, em Sevilha, Vespúcio
redigiu uma carta de 15 páginas endereçada a seu
patrão, Lorenzo de Médici. Nela, narrou
minuciosamente sua viagem, omitindo o nome de
Hojeda e se auto-intitulando o comandante da
expedição. Era a primeira das várias cartas e dos
muitos exageros que, em breve, fariam a fama de
2
Vespúcio.
Em fins de 1500, uma cópia dessa correspondência
parece ter chegado ao rei D. Manoel, de Portugal,
talvez por intermédio do banqueiro Bartolomeu
Marchioni. Em janeiro de 1501, D. Manoel enviou a
Sevilha o florentino Giuliano del Giocondo, funcionário
graduado de Marchioni, com a missão de contratar
Vespúcio.
É provável que o orgulhoso D. Manoel estivesse tão
Simonetta Vespúcio foi
eleita “Rainha da Beleza”
de Florença em 1471. Ela
morreu de tuberculose em
1476, aos 23 anos. O
pintor Piero de Cosimo a
retratou, de memória, anos
depois, e pôs uma serpente
em seu pescoço para
simbolizar a doença que a
vitimara (acima). Na
mesma época, outro pintor,
Domenico
Ghirlandaio,
retratou Vespúcio (abaixo)
como figurante do quadro
Madonna
della
Misericordia. Este é o único
retrato
autêntico
de
Vespúcio.
interessado em requisitar os serviços de Vespúcio pelo
fato de que, naquele momento, havia grande carência
de navegadores experientes em Portugal. Quase todos
se encontravam envolvidos em outras missões: Cabral
ainda estava em alto-mar, retornando da Índia, para
onde João da Nova acabara de zarpar. Dali a poucos
dias, Gaspar Corte Real partiria outra vez em direção à
América do Norte, deixando Lisboa em 20 de maio de
1501 para seguir a mesma rota que, um ano antes, já
o levara ao litoral do Canadá. Vasco da Gama –
condecorado como Almirante das Índias – se
preparava para retornar ao Oriente, chefiando a chamada “Esquadra da Vingança”,
que iria zarpar de Lisboa em 15 de fevereiro de 1502. E o grande Bartolomeu Dias,
que em 1488 fora o primeiro navegador a dobrar o cabo da Boa Esperança, estava
morto – embora disso D. Manoel ainda não tivesse conhecimento.
Américo Vespúcio chegou a Lisboa em fevereiro de 1501. Manteve um breve
contato com o rei D. Manoel e, na segunda semana de maio, partiu para o Brasil.
Essa viagem não só eternizaria seu nome como iria provocar uma grande revolução
nos conceitos geográficos da Europa.
INTERLÚDIO EM BEZEGUICHE
Com Vespúcio a bordo – provavelmente como cosmógrafo ou, talvez, como
piloto – a esquadra comandada por Gonçalo Coelho zarpou rumo às Canárias.
Dali, seguiu em direção à baía de Bezeguiche (hoje Dacar), em frente ao arquipélago
de Cabo Verde, na África, aonde chegou no dia 2 de junho. Lá, a frota deparou com
o navio de Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias, que, um ano antes, se
desgarrara da armada de Cabral, fora parar na Etiópia e agora estava retornando
para Portugal com apenas seis homens a bordo. No dia seguinte, por uma
extraordinária coincidência, também chegavam àquele mesmo porto africano,
vindos de Calicute, dois navios da esquadra de Cabral. Durante 13 dias, as
tripulações desses seis navios portugueses permaneceram em Bezeguiche, no Senegal.
Os homens de Cabral e de Diogo Dias descansavam das fadigas do mar, enquanto
os de Gonçalo Coelho abasteciam os navios de água e lenha para a viagem ao
Brasil. Ao longo de duas semanas, os capitães puderam trocar muitas informações.
As notícias que compartilharam lhes deram a certeza de que as terras descobertas
na margem oeste do Atlântico deviam fazer parte de um continente. Afinal, em abril
de 1500, ao mesmo tempo que Cabral descobria o território que hoje constitui o
Brasil, Gaspar Corte Real percorrera as vastidões geladas do Canadá. Pouco antes
disso, em companhia de Hojeda, Américo Vespúcio estivera nas Guianas, na
Venezuela e no Caribe. Não restavam dúvidas de que aquela vasta extensão de terra
o
o
– que se prolongava desde 45 de latitude norte até pelo menos 15 de latitude sul –
deveria estar interligada. Começou a nascer o conceito de um Novo Mundo: as terras
que Colombo fora o primeiro a vislumbrar em 1492 não eram a Ásia, mas um
novo e desconhecido continente (veja boxe lateral adiante).
Para Vespúcio, porém, mais importante do que essa nova visão da geografia
planetária – da qual ele se aproveitaria amplamente – foi o fato de que, durante
aqueles dias memoráveis em Bezeguiche, ele pôde obter também informações
detalhadas sobre a Índia e seu rico comércio de especiarias. Embora agora
trabalhasse para o rei D. Manoel, Vespúcio se mantinha extremamente leal ao seu
patrão original, Lorenzo de Médici. E nada interessava mais aos Médici e a Florença
do que o comércio de pimenta e canela – cujo monopólio estava nas mãos de
Veneza, eterna rival e única república europeia que podia negociar diretamente com
os turcos de Constantinopla (obtendo, assim, lucros extraordinários com a
distribuição das especiarias para o resto da Europa). Fora justamente esse o motivo
que levara os banqueiros florentinos e genoveses a financiar as expedições
ultramarinas dos portugueses, cujo objetivo era atingir a Índia por mar e furar o
bloqueio estabelecido pela aliança entre turcos e venezianos.
Vespúcio obteve informações preciosas não da boca
dos capitães portugueses, mas através de um dos mais
intrigantes personagens da história dos descobrimentos:
Gaspar da Gama, também conhecido como Gaspar
da Índia. Judeu polonês de caráter errante, Gaspar
vivera por anos em Alexandria, no Egito, tendo
chegado à Índia por volta de 1470. Em setembro de
1498, ao visitar um dos navios de Vasco da Gama –
quando eles estavam ancorados na ilha de Angediva,
próxima a Calicute –, foi considerado um espião a
serviço dos mercadores árabes e acabou capturado
pelos portugueses. Levado para Lisboa, converteu-se ao
cristianismo, adotou o sobrenome de seu poderoso
padrinho de batismo e passou a circular com
desenvoltura pela corte de D. Manoel. Em março de
1500, embarcou como intérprete na frota de Cabral –
com o qual estava, agora, retornando da Índia.
Depois de longas conversações com Gaspar da
A Quarta Parte do
Mundo
Foi
o
historiador
Capistrano
de
Abreu
(1853-1927) o primeiro a
perceber as extraordinárias
repercussões do encontro
entre Vespúcio e a frota de
Cabral em Bezeguiche. Em
1900, em seu admirável
livro O descobrimento do
Brasil pelos portugueses,
Capistrano dedicou um
capítulo inteiro a esse
encontro e às suas
consequências. De acordo
com o historiador cearense,
foi graças às informações
obtidas em Bezeguiche que
Vespúcio pôde concluir que
as novas terras descobertas
por Colombo não eram a
Ásia, mas sim parte de um
continente. Foi por isso
que, ao retornar à Europa,
A PRIMEIRA EXPLORAÇÃO OFICIAL DO
Américo Vespúcio lançou a
BRASIL
tese de que estivera em um
Por mais de dois meses, os navios de Gonçalo “novo mundo”.
Coelho enfrentaram primeiro as enervantes calmarias
equatoriais do Atlântico e, depois, “o pior tempo que jamais um viajante
4
experimentou, com muitos aguaceiros, turbilhões e tempestades”. A tormenta durou
mais de dez dias. Então, a 17 de agosto de 1501, quando comida, lenha e água
começavam a escassear, a expedição avistou terra. A frota levara 67 dias para fazer
o mesmo trajeto que, um ano e meio antes, Pinzón percorrera em apenas 13.
Gama, Vespúcio escreveu uma carta de cerca de dez
páginas para Lorenzo de Médici. Datou-a em 14 de
junho de 1501 e, por um dos navios da frota de Cabral,
a enviou para Portugal, de onde ela foi remetida para
Florença. No dia seguinte, 15 de junho, enquanto
Cabral zarpava para Lisboa, a frota de Gonçalo
3
Coelho partia para o Brasil.
Apesar de Vespúcio afirmar que as três caravelas ancoraram num lugar
o
localizado a 5 de latitude sul – o que remete à foz do rio Mossoró, na praia de
Areias Alvas, quase na divisa entre Rio Grande do Norte e Ceará –, o local mais
provável do desembarque parece ter sido a praia dos Marcos, no Rio Grande do
5
Norte, cerca de 150 quilômetros ao sul de Areias Alvas.
Ao desembarcar nessa praia de ondas fortes e areia fofa, os portugueses não
viram ninguém. Mas, na manhã do dia seguinte, enquanto os marinheiros enchiam
os tonéis de água fresca, colhiam palmitos e cortavam lenha, um grupo de indígenas
surgiu no alto de um pequeno morro, próximo à praia. Embora os marujos lhes
oferecessem guizos e espelhos, os nativos se recusaram a manter qualquer contato –
exatamente como haviam feito os Potiguar encontrados por Pinzón. No dia 19 de
agosto, dois marinheiros obtiveram permissão para descer a terra, penetrar na mata
e negociar com os nativos. Gonçalo Coelho se comprometeu a aguardá-los durante
cinco dias.
Seis dias se passaram e nenhum dos homens retornou aos navios. Então, na
manhã de 24 de agosto – quando a frota já se encontrava ancorada havia uma
semana – a praia se encheu de mulheres. Gonçalo Coelho enviou a terra dois batéis
com alguns homens a bordo. Um grumete desembarcou e foi logo cercado pelas
nativas, que “o apalpavam e o examinavam com grande curiosidade”. Quando ele
estava no meio delas, uma mulher desceu do monte com um tacape nas mãos,
aproximou-se do jovem marinheiro e, pelas costas, lhe desferiu um golpe na nuca.
“Então”, diz Vespúcio, “as outras mulheres
imediatamente o arrastaram pelos pés para o monte,
ao mesmo tempo que os homens, que estavam
escondidos, se precipitavam para a praia armados de
arcos, crivando-nos de setas, pondo em tal confusão a
nossa gente, que estava com os batéis encalhados na
areia, que ninguém acertava lançar mão das armas,
devido às flechas que choviam sobre os barcos.
Disparamos quatro tiros de bombarda, que não
acertaram, mas cujo estrondo os fez fugir para o
monte, onde já estavam as mulheres despedaçando o
cristão e, enquanto o assavam numa grande fogueira,
mostravam-nos seus membros decepados, devorandoos, enquanto os homens faziam sinais, dando a
entender que tinham morto e devorado os outros dois
cristãos.”
Esse trecho – incluído na famosa Lettera que
Vespúcio escreveria em Lisboa em 4 de setembro de
1504, enviando-a para seu amigo de infância Piero
Soderini, um dos principais mandatários de Florença –
se constituiria na primeira descrição da antropofagia
dos nativos da América na qual a vítima era um
europeu. Como é fácil supor, a narrativa causou
profundo impacto na Europa e transformou a carta
num grande sucesso editorial.
Apesar da indignação de seus subordinados – entre
eles Vespúcio –, Gonçalo Coelho não permitiu
retaliações aos indígenas e determinou que a frota
zarpasse imediatamente, dando continuidade à
exploração da costa em direção ao sul. Com o
calendário litúrgico nas mãos, a expedição foi
batizando todos os acidentes geográficos do litoral
brasileiro pelos quais cruzou. O primeiro deles foi o
cabo de Santo Agostinho, próximo ao Recife, avistado
em 28 de agosto, dia consagrado a esse santo. Em 4 de
Embora
várias
incorreções geográficas e
alguns exageros tenham
sido
encontrados
nas
cartas de Vespúcio, o
episódio do “banquete
antropofágico”, do qual foi
vítima um dos marinheiros
de seu navio, foi, ao que
tudo
indica,
verídico.
Afinal, o caso serviu para
ilustrar o mapa conhecido
como Kunstman II, feito
em 1503 (ou início de
1504). Como a carta na
qual Vespúcio descreve o
episódio só foi escrita em
agosto de 1504, o mapa
não pode ter se baseado
nas
informações
de
Vespúcio. Para fazer a
gravura
reproduzida
abaixo,
o
cartógrafo
anônimo que desenhou o
mapa deve ter sido
informado da morte e
deglutição do marujo por
outro
membro
da
expedição – o que é uma
garantia a mais da
veracidade do caso.
outubro de 1501, a expedição chegou à foz de um
grande rio, que, pelo mesmo motivo, batizou de São
Francisco. Ali, na atual fronteira entre os estados de
Sergipe e Alagoas, os navios teriam permanecido
ancorados por quase um mês, sem que até hoje se
possa saber o motivo de uma parada tão longa.
Deixando o São Francisco para trás em fins de
outubro, em companhia de três indígenas que
decidiram juntar-se à expedição, a frota de Gonçalo
o
Coelho chegou, em 1 de novembro de 1501, à baía
que batizou de Todos os Santos. Lá, os marinheiros
estabeleceram relações amistosas com os nativos. O
próprio Vespúcio diria mais tarde, em uma de suas
cartas, que, durante essa estadia, havia “comido e
dormido durante 27 dias” com “os naturais da terra”.
Antes de partir, os portugueses compraram dez cativos
que os nativos estavam se preparando para matar e
comer em ritual antropofágico. Na volta à Europa, os
venderam como escravos.
A próxima parada da frota foi na baía Cabrália,
próxima a Porto Seguro, onde, um ano e oito meses
antes, o Brasil fora avistado pela primeira vez pelos
portugueses. Na praia, assinalada com uma cruz,
Gonçalo Coelho recolheu os dois degredados que
haviam sido deixados por Cabral. Durante quase dois
anos, os Tupiniquim os haviam tratado como
hóspedes. De um desses homens, Afonso Ribeiro,
Vespúcio iria obter uma descrição detalhada da vida
cotidiana e dos hábitos dos nativos do Brasil. Tal
depoimento, somado à sua experiência pessoal, lhe
serviria de base para a redação de duas cartas.
Em Porto Seguro, naquele início de dezembro, a
frota de Gonçalo Coelho também recolheu toras de
pau-brasil – a árvore que, em breve, iria definir o
nome e o futuro daquele território. Seguindo sua
jornada para o sul, as três caravelas chegaram a um
local esplendoroso no primeiro dia de 1502. Era uma
O Juramento
Degredado
do
Ao retornar a Portugal,
a bordo de um dos navios
da expedição de Gonçalo
Coelho, Afonso Ribeiro e o
outro degredado (cujo
nome
se
desconhece)
prestaram um depoimento
juramentado perante o
tabelião
Valentim
Fernandes. O documento,
conhecido
como
Ato
Notarial de Valentim
Fernandes, datado de 20 de
maio de 1503, guarda
várias semelhanças com a
carta Mundus Novus, que
Vespúcio redigiria mais
tarde, o que permite supor
que o florentino também se
baseou no depoimento de
Ribeiro para fazer sua
vívida
descrição
dos
costumes dos indígenas do
Brasil, embora ele próprio
assegure ter vivido 27 dias
entre eles. De todo modo,
Vespúcio raramente citava
suas fontes.
Valentim
Fernandes,
alemão da Morávia, era
autor, editor, impressor,
tradutor e tabelião público
que vivia em Lisboa e fora
escudeiro da rainha D.
Leonor, mulher do rei D.
João II e irmã do rei D.
Cinco dias depois de Manoel. O documento
redigido
por
avistar o Rio de Janeiro, original
a frota ancorou em outra Fernandes se perdeu e só
bela enseada. Como 6 de ficou conhecido a partir da
janeiro é dia de Reis, cópia feita em 1504 pelo
batizou-a de Angra dos clérigo alemão Líbero
Reis, nome que até hoje se Wigenhoist, que vivia em
mantém.
Os
dias Colônia.
estavam quentes, o mar
tranquilo e chuvas eventuais refrescavam os homens e
realçavam os perfumes exalados pela mata. “Algumas
vezes me extasiei com os odores das árvores e das
flores e com os sabores dessas frutas e raízes, tanto que
pensava comigo estar perto do Paraíso Terrestre”,
escreveu Vespúcio. “E o que direi da quantidade de
pássaros, das cores das suas plumagens e cantos,
quantos são e de quanta beleza? Não quero me estender
6
nisto, pois duvido que me deem crédito.”
Em fins de janeiro, as caravelas entraram em uma
baía ao fundo da qual existia uma ilha, baixa e
recoberta por mata muito fechada. Por motivo ainda
desconhecido, tal ilha foi chamada de Cananeia,
rompendo com o esquema de batizar os acidentes
geográficos com o nome dos dias santos. Durante essa
passagem por Cananeia no verão de 1502, Gonçalo
Coelho teria abandonado ali o mais enigmático
degredado da história do Brasil: o homem que, 25
anos mais tarde, ao ser encontrado pela expedição do
espanhol Diego Garcia, passaria a ser conhecido como
o Bacharel de Cananeia (e cuja vida atribulada será
ampla “boca de mar”, cercada de vastas montanhas
recobertas de mata luxuriante. Julgando se tratar da foz
de um rio, os exploradores batizaram o lugar com o
nome de Rio de Janeiro. Um ano mais tarde, em sua
segunda viagem ao Brasil, Vespúcio voltaria ao local –
que os nativos chamavam de Guanabara – e ficou tão
extasiado com sua beleza quanto da primeira vez.
Santos Nomes
Quem primeiro propôs a
tese de que a expedição de
Gonçalo Coelho batizou os
acidentes geográficos com o
nome do santo do dia foi
Francisco de Varnhagen,
em 1854. Alguns
historiadores discordam
dessa teoria, que só seria
factível se os navios de
Coelho tivessem
permanecido ancorados
por um mês na foz do rio
São Francisco – sem
motivo aparente para
pausa tão longa. De todo
modo, nenhum desses
historiadores propôs uma
explicação mais engenhosa
para justificar a
nomenclatura da costa.
Quanto à origem do nome
“Cananeia”, a tese mais
provável é a de que algum
integrante da expedição de
Gonçalo Coelho tivesse
acompanhado Vasco da
Gama à Índia em 1498 e,
julgando que a ilha,
avistada em 27 de janeiro
de 1502, no litoral sul de
São Paulo, era de tal forma
semelhante à região de
Cananor (próxima a
Calicute, na Índia), sugeriu
que ela fosse batizada com
nome que fizesse referência
a essa similaridade. Outra
tese é de que Cananeia só
teria sido batizada por
Martim Afonso de Sousa
em 1531, em homenagem à
índia Caniné, uma nativa
que se tornara concubina
do grande capitão.
narrada mais adiante, no capítulo V).
Cananeia, localizada no litoral sul de São Paulo,
iria se tornar um dos locais mais importantes do Brasil
na primeira metade do século XVI, e não apenas por
causa da presença do Bacharel. Afinal, era exatamente
ali que passava a linha estabelecida pelo Tratado de
Tordesilhas – embora isso os portugueses ainda não
soubessem.
Mas, com certeza, os integrantes da expedição de
Gonçalo Coelho já tinham notado que, a partir de
Cabo Frio (uns 200 quilômetros ao norte da cidade do
Rio de Janeiro), a costa brasileira começava a se
inclinar nitidamente para sudoeste. Esse recuo em
direção ao poente deve ter sido observado com
preocupação, pois deixava claro que – de acordo com
as estipulações de Tordesilhas – aquele vasto território
não estaria dentro das possessões da Coroa lusa, mas na zona pertencente à
Espanha.
Ao zarpar de Cananeia, em 15 de fevereiro de 1502, com água, mantimentos e
lenha suficientes para seis meses de navegação, Gonçalo Coelho e seus comandados
pareciam estar conscientes desse fato. Tanto é que, embora seguisse navegando para
o sul, a frota foi se afastando do litoral, guinando para leste – em direção à África.
Mas a rota seguida a partir de então continua sendo um mistério. Segundo Vespúcio,
ao distanciar-se da costa, as caravelas navegaram para sudeste por 49 dias,
percorrendo mais de cinco mil quilômetros em alto-mar, sem avistar terra.
Então, a 3 de abril de 1502, despencou uma terrível tempestade austral. Os
marinheiros tiveram que arriar rapidamente todas as velas. Com os mastros nus, as
caravelas balançaram sobre vagalhões funestos durante 72 intermináveis horas. Os
ventos eram gélidos e as noites, muito longas. Segundo Vespúcio, em 6 de abril a
escuridão perdurou por 15 horas. A essa altura, a frota estava em meio ao oceano
o
Atlântico, a 53 de latitude sul – equivalente à localização da atual cidade de Punta
Arenas, na Patagônia chilena, nos confins do continente americano.
Na manhã de 7 de abril, em meio a um nevoeiro denso, a expedição julgou ter
visto terra. “Era uma costa brava”, escreveu Vespúcio, “e nela não avistamos porto
nem gente. Mas era tanto o frio que ninguém da frota o podia remediar nem
suportá-lo, de modo que, vendo-nos em tanto perigo e tormenta que não
enxergavam os navios uns aos outros, pelo grande mar que fazia e pela grande
cerração, decidimos partir sem demora a caminho de Portugal.”
No mapa acima, as rotas das duas viagens de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio
ao Brasil.
Não se sabe que terra é essa que Vespúcio disse ter avistado. Alguns historiadores
o
supõem que fossem as ilhas Geórgias do Sul, que ficam a 54 de latitude sul, uns mil
quilômetros a leste das Malvinas. O mais provável, porém, é que Vespúcio e seus
homens tenham avistado apenas um iceberg. De fato, naquelas latitudes flutuam
imensos blocos de gelo, em cima dos quais pousam albatrozes e gaivotas,
ressaltando a impressão de que se trata de ilhas.
De todo modo, a esquadra logo guinou para
nordeste. Depois de navegar por pouco mais de um
mês, os navios chegaram a Serra Leoa, na costa
ocidental da África, no dia 10 de maio de 1502 – um
ano exato após a partida de Lisboa. Depois de 15 dias
nesse porto africano – onde uma das caravelas,
infestada pelo caruncho (inseto similar ao cupim), foi
queimada –, os dois navios restantes partiram para os
Açores. No dia 22 de julho de 1502, a primeira
expedição enviada ao Brasil enfim entrava no porto de
Lisboa. Depois de 14 meses de viagem, as notícias que
ela trazia eram decepcionantes: na terra descoberta por
Cabral, nem ouro nem especiarias haviam sido
encontrados. A Coroa logo encontraria uma outra
maneira de explorar aquele vasto território ocidental.
A FARSA DE MUNDUS NOVUS
Acima, a reprodução da
folha de rosto da primeira
edição francesa da carta
Mundus Novus, publicada
em latim, em Paris, em
1506, pelo editor Jean
Lambert.
No início de agosto de 1502, uns dez dias após ter
desembarcado em Lisboa, Américo Vespúcio tornou a escrever para Lorenzo de
Médici narrando os acontecimentos relativos à viagem que fizera sob o comando de
Gonçalo Coelho (cujo nome, como de hábito, não citou uma única vez). A carta, de
apenas cinco páginas, estava repleta de insinuações sobre a natureza paradisíaca das
terras recém-visitadas e fazia uma descrição vivaz, mas comedida, dos espantosos
costumes de seus habitantes nativos. Fluente e elegante, a narrativa há de ter entretido
o refinado patrão de Vespúcio. Depois de circular entre os Médici, a carta foi
arquivada no Códice Strozziano, na biblioteca de Florença, e lá permaneceu esquecida
7
por quase três séculos.
Em agosto de 1504, porém, um dos primeiros
grandes sucessos da história da literatura começou a
ser vendido nas feiras e praças de Augsburgo, na
Alemanha – e, logo a seguir, nos mercados e nas
portas das igrejas de Paris e de Amsterdã, de Roma, de
A ilustração a seguir é a
primeira
gravura
produzida na Europa para
representar os indígenas do
Brasil. Trata-se de uma
Sevilha e até de Praga. Era um panfleto de 15 páginas,
escrito em latim, incrementado por algumas ilustrações
e com um título bastante sugestivo: Mundus Novus.
Seu autor chamava-se Américo Vespúcio. A narrativa
vinha em forma de carta e seu destinatário era Lorenzo
di Pierfrancesco de Médici.
O texto de Mundus Novus se concentrava nos
aspectos mais sensacionalistas da viagem de Vespúcio.
A vida sexual dos indígenas era narrada com profusão
de detalhes libidinosos; os rituais tétricos do banquete
antropofágico vinham descritos com perturbadora
minúcia. Em cada parágrafo havia a evidente
preocupação de ressaltar a exuberância daquela parte
do mundo, a estranheza de seus animais, o tamanho
descomunal de suas árvores, a lascívia e a crueldade de
seus habitantes humanos.
xilogravura feita pelo
gravador alemão Johann
Froschauer para ilustrar a
primeira edição da carta
Mundus Novus, publicada
em Augsburgo em 1504. A
imagem
pertence
ao
arquivo da Biblioteca
Pública de Nova York. Ao
mostrar pedaços de corpos
humanos pendurados em
uma árvore e um nativo
devorando o braço de uma
vítima,
essa
imagem
causou profundo impacto
na Europa. Ao fundo,
veem-se dois navios dos
viajantes portugueses.
O grande interesse que a recente descoberta das novas terras despertava na
Europa somado ao tom escandaloso da narrativa transformaram Mundus Novus
num sucesso editorial instantâneo. Só no ano de seu lançamento, a carta atribuída a
Vespúcio teve 12 edições consecutivas, totalizando cerca de quatro mil exemplares
vendidos – números impressionantes para o século XVI. Antes do fim de 1505, o
livro já havia sido traduzido para o alemão, o francês, o italiano, o holandês, o
espanhol e o tcheco. Cada edição era enriquecida por novas ilustrações
encomendadas pelos editores. As primeiras imagens da América publicadas na
Europa foram as gravuras feitas para estimular a vendagem do panfleto assinado
por Vespúcio.
E, no entanto, Mundus Novus era uma falsificação feita a partir da carta escrita
em Lisboa, em agosto de 1502. A mera comparação entre a narrativa original e o
livreto posto à venda em toda a Europa deixa claro que Mundus Novus era uma
versão exagerada da carta sóbria e acurada que Vespúcio enviara para Lorenzo de
Médici. Escrita em latim vulgar, repleta de contradições geográficas e de erros
náuticos primários, Mundus Novus fora publicada com o objetivo de atingir um
público interessado em obter informações sobre um mundo misterioso e até então
desconhecido. Um novo mundo.
Até que ponto Vespúcio esteve diretamente envolvido com a fraude é uma questão
que jamais foi e provavelmente nunca será elucidada. Mas, como ele estava vivo
durante o auge do sucesso do livreto, pode-se supor que tenha sido no mínimo
omisso, se não de todo conivente, com os exageros publicados em seu nome – os
quais jamais desmentiu. Como foi justamente a partir do sucesso de Mundus Novus
que o nome de Vespúcio começou a se tornar conhecido em toda a Europa letrada, é
pouco provável que os exageros lhe tenham desagradado.
Ainda assim, apesar de Mundus Novus ter ajudado a propagar a ideia de que as
terras descobertas por Colombo não eram parte da Ásia, mas um novo continente,
não foi essa a carta que acabou fazendo com que o “Novo Mundo” fosse batizado
com o nome de Américo Vespúcio. Dois anos e uma nova viagem ao Brasil ainda
seriam necessários antes que Vespúcio atingisse plenamente seu objetivo de “obter
8
alguma fama após a morte”.
O NOVO MUNDO GANHA UM NOVO NOME
De fato, no dia 10 de junho de 1503, 11 meses depois de ter retornado a Portugal,
Américo Vespúcio voltou a partir para o Brasil – e outra vez em companhia de
Gonçalo Coelho, o comandante com o qual ele havia rompido. A frota era formada
por seis caravelas e levava como pilotos João Lopes Carvalho e João de Lisboa,
homens que, mais tarde, iriam desempenhar, como se verá, papel importante na
história do Brasil. Zarpando de Lisboa, os seis navios seguiram direto para
Santiago, uma das ilhas de Cabo Verde, escala normal de quase todas as expedições.
Dali, por determinação de Gonçalo Coelho, a frota navegou para sudeste, em
direção a Serra Leoa, para escapar das calmarias equatoriais do Atlântico (nas
quais, um ano antes, a expedição anterior ficara retida por quase dois meses).
Embora duramente criticada por Vespúcio, a tática deu certo, pois no dia 10 de
agosto de 1503, menos de um mês depois de zarpar de Serra Leoa rumo ao Brasil,
os navios depararam com uma ilha, “coisa de grande altura no meio do mar,
9
verdadeira maravilha da natureza”. Tal ilha foi então batizada de São Lourenço.
No ano seguinte, porém, passaria a ser chamada de Fernando de Noronha – em
homenagem ao chefe do consórcio que havia arrendado o Brasil, obtendo o
monopólio do comércio de pau-brasil, e que havia financiado a expedição.
Ao se aproximar da ilha, o navio de Gonçalo
Coelho teria se chocado contra um banco de recifes e
encalhado, de acordo com Vespúcio. A tripulação se
salvou, mas a caravela não. Então, após transferir
cerca de 20 sobreviventes para o navio onde estava
Vespúcio (do qual ele próprio seria o capitão) Coelho
ordenou que Américo fosse procurar um “bom porto”
na ilha – onde, mais tarde, a frota deveria se
reencontrar, assim que Coelho tivesse recuperado o que
ainda fosse possível salvar do navio.
Por uma semana Vespúcio garante ter permanecido
ancorado sozinho em Fernando de Noronha – que ele
descreveu como sendo “farta de água fresca e doce, com
infinitas árvores, cheia de aves marinhas e terrestres,
inumeráveis e tão familiares que se deixavam sem
medo apanhar à mão, com duas léguas
(aproximadamente 12 quilômetros) de comprimento e
uma (6 quilômetros) de largura, em que efetivamente
10
nenhum homem estivera ou hábitara”. Só no oitavo
dia uma das caravelas da frota chegou ao porto que
Vespúcio encontrara – e ainda assim apenas para
informar que Gonçalo Coelho e os outros três navios já
haviam zarpado em direção ao litoral do Brasil.
Vespúcio diz ter partido então no mesmo rumo,
indignado por ter sido deixado para trás e sentindo-se
O Naufrágio
Em 1987 as sociedades
privadas Una Cultural,
presidida pelo historiador e
arqueólogo
Márcio
Werneck da Cunha, e
Águas Claras Produções
Submarinas, presidida pelo
mergulhador
Randal
Fonseca, se associaram
para iniciar as pesquisas
subaquáticas em busca dos
vestígios da caravela de
Gonçalo
Coelho,
que
naufragou
nas
proximidades da ilha de
Fernando de Noronha no
dia 10 de agosto de 1503.
Em
1992,
o
então
presidente Fernando Collor
se interessou pelo projeto e
os
pesquisadores
obtiveram
licença
do
Ibama e do Instituto
Brasileiro do Patrimônio
ludibriado pelo capitão-mor. Quatro dias mais tarde,
chegou ao cabo de Santo Agostinho, na atual costa de
Pernambuco. Dali, seguiu costeando o litoral até
entrar, 17 dias mais tarde, na baía de Todos os Santos,
que ele e Gonçalo Coelho haviam descoberto um ano
antes e onde, supostamente, toda a frota deveria se
reencontrar. “Mas esperamos ali bem dois meses e
quatro dias e nada aconteceu”, relatou Vespúcio.
Então, julgando que os demais navios haviam se
perdido “pela soberba e loucura de nosso capitão”, o
florentino decidiu assumir o comando da expedição e
dar continuidade à missão da qual ela fora incumbida,
“porque a ordem que recebêramos do rei era seguir o
rumo da navegação precedente, qualquer que fosse o
perigo que houvesse”. Assim, em fins de novembro de
1503, as duas caravelas zarparam para o sul,
navegando cerca de 260 léguas, ou aproximadamente
1.600 quilômetros.
Em maio de 1504 chegaram a Cabo Frio, no atual
estado do Rio de Janeiro.
Ali
a
expedição
permaneceu durante cinco
meses, “erguendo uma
fortaleza e carregando os
navios
com
pau11
Apesar de
brasil”.
Vespúcio ter usado o
termo
“fortaleza”,
tratava-se apenas de uma
feitoria: simples paliçada
erguida em torno de um
casebre e de algumas
roças. Foi o primeiro
estabelecimento lusitano
no Brasil – um posto
avançado da civilização
europeia em meio à
A Feitoria
A imagem abaixo, feita
pelo ilustrador Belmonte
em 1954, representa as
primeiras feitorias erguidas
pelos
portugueses
no
Brasil.
Eram
estabelecimentos bastante
simples, cercados por uma
paliçada de madeira.
Em
1986
os
historiadores
Márcio
Werneck da Cunha e
Penha da Silva Leite
encontraram a base de
uma muralha de pedra em
Cultural para vasculharem
as profundezas marinhas
em busca dos vestígios do
mais antigo naufrágio de
navio europeu ocorrido em
território brasileiro. De
acordo
com
as
investigações de Werneck e
Fonseca, o naufrágio teria
ocorrido nas cercanias dos
recifes
atualmente
chamados de Espigões,
próximos à ilha dos Sinos
(abaixo). Uma camada de
dez metros de calcário deve
recobrir o que restou do
navio.
Cabo Frio que julgaram ser
vestígios da feitoria de
Vespúcio, que teria, assim,
pelo menos os alicerces
feitos de rocha. Ainda não
está comprovado que se
trata das ruínas do mais
antigo
estabelecimento
europeu fundado no Brasil,
mas, de qualquer modo,
Werneck e Silva Leite
conseguiram que o local
É possível que, no fosse registrado junto à
período em que Vespúcio Divisão de Proteção Legal
estava em Cabo Frio, seu do Instituto Brasileiro do
Cultural
desafeto, Gonçalo Coelho, Patrimônio
estivesse
poucos (IBPC).
quilômetros mais ao sul,
fundeado na baía de
Guanabara.
Lá,
o
comandante da frota
também teria decidido
construir uma feitoria, já
que, a partir de 1504, a
expressão “carioca” – que
em tupi significa “casa de
branco” – passaria a ser
associada à baía de
Guanabara.
Esse
estabelecimento teria destino mais auspicioso do que a feitoria de Vespúcio: ele
sobreviveu até 1517, quando o navegante Cristóvão Jaques decidiu transferi-lo para
a ilha de Itamaracá, em Pernambuco.
floresta tropical. Segundo
o relato de Vespúcio, 24
homens foram deixados
ali, presumivelmente os
integrantes da caravela de
Gonçalo Coelho que
Vespúcio recolhera em
Fernando de Noronha.
Com eles ficaram 12
bombardas
e
mantimentos para seis
meses.
Mas não existem provas definitivas de que a chamada “Carioca” tenha sido de
fato erguida por Gonçalo Coelho. Alguns historiadores, em especial Fernando
Lourenço Fernandes, acreditam que a feitoria de Coelho na verdade ficava na ilha do
Gato, hoje ilha do Governador, no fundo da baía de Guanabara e então habitada
pelos Temiminó, inimigos dos Tamoio, que ocupavam o restante da baía e logo se
tornariam inimigos dos portugueses e aliados dos franceses.
Enquanto o rancho fortificado de Cabo Frio estava sendo construído, Vespúcio
organizou uma expedição para explorar a região. Com uma tropa de 30 homens, ele
percorreu 40 léguas (uns 250 quilômetros), provavelmente pelo vale do rio São João,
até deparar com a barreira da serra dos Órgãos. A marcha durou cerca de um mês.
Foi a primeira incursão dos europeus pelo interior do Brasil – mas, além de “broncas
12
tribos nômades” vivendo em meio a uma natureza exuberante, Vespúcio não
encontrou nada de valor. Então, julgando ter “pacificado toda a gente daquela
13
terra”, retornou ao porto onde seus navios estavam ancorados. Deixando para
trás o primeiro povoado habitado por europeus no Brasil, ele partiu de volta para
Portugal em abril de 1504.
A LETTERA
Publicada na forma de
um livreto, a Lettera – cuja
folha de rosto está
reproduzida na gravura
abaixo – foi posta à venda
em Florença no dia 9 de
julho de 1506. Era um
folhetim de 32 páginas,
escrito em italiano, com 25
centímetros de largura por
40 centímetros de altura. O
livreto foi impresso por
Gian Stefano di Pavia a
pedido do livreiro Piero
Paccini. Mas, na Itália, as
vendas foram um fracasso:
Ironicamente, a carta que eternizou o nome de apenas cerca de 400
foram
Vespúcio seria também responsável por uma exemplares
avalanche de críticas ao seu comportamento – pelo comercializados e a carta
menos nos círculos eruditos. Afinal, alguns anos após a nunca passou da primeira
morte de Vespúcio, a análise detalhada da Lettera faria edição.
com que ele passasse a ser acusado de charlatão. O
manuscrito original da carta para Soderini nunca foi
encontrado. O texto mais próximo da versão original é
o folhetim chamado Lettera di Amerigo Vespucci delle
Em 18 de junho – um ano e oito dias depois de ter
deixado Lisboa –, Américo Vespúcio estava de volta à
Europa. Como de hábito, tratou de escrever para os
nobres florentinos relatando suas experiências no alémmar. Dessa vez, o destinatário da carta era Piero
Soderini, um dos mandatários de Florença e amigo de
infância de Vespúcio. A correspondência, datada de 4
de setembro de 1504, ficaria conhecida como Lettera a
Soderini, ou simplesmente Lettera. Dois anos mais
tarde, ao ser publicada em forma de folhetim, ela
desfrutaria de um sucesso ainda maior do que o de
Mundus Novus. Seu êxito foi tão extraordinário que as
terras descobertas por Colombo, e por outros
exploradores que o seguiram, passaram a ser
chamadas de América.
isole nuovamente trovate in quatro suoi viaggi (“Carta
de Américo Vespúcio sobre as ilhas recentemente
achadas em suas quatro viagens”). Desde o título, o
livreto fora escrito para provar que Vespúcio havia
feito não três, mas quatro viagens ao Novo Mundo.
O mais desconcertante é que a “nova” viagem
descrita pela Lettera teria sido feita antes das três
expedições nas quais a presença de Vespúcio está
comprovada por uma série de documentos (ou seja: a viagem com Alonso de
Hojeda em 1499 e as duas expedições com Gonçalo Coelho, em 1501 e 1503). De
acordo com a Lettera, Vespúcio teria partido de Cádiz em maio de 1497 e, após
navegar por 18 meses, descobrira os litorais de Honduras, México, parte da planície
de Yucatan e o sul da Flórida. Ao retornar para a Espanha, em outubro de 1498,
teria se tornado, assim, o primeiro europeu a percorrer vastas extensões da América
Central e da América do Norte.
Mas hoje está provado que tal viagem nunca se realizou, já que nenhum outro
documento e nenhum outro cronista se refere a ela. Américo Vespúcio – ou alguém
interessado em glorificar seu nome e enriquecer com a venda dos panfletos que
narravam tantas peripécias – simplesmente a inventou, misturando informações
tiradas dos diários de Colombo, do livro de Marco Polo e de outras cartas do
próprio Vespúcio. Ao contrário de Mundus Novus, porém, as mentiras publicadas
na Lettera eram tão flagrantes que a farsa parecia destinada ao fracasso. Tanto é que
o folhetim publicado em Florença em julho de 1506 vendeu pouco e não passou da
14
primeira edição. No resto da Europa, porém, aconteceria exatamente o contrário.
Tudo começou na França. Em fins de 1505, surgira no vilarejo de Saint-Dié, na
região dos Vosges, entre Nancy e Estrasburgo, uma pequena academia de eruditos
chamada Ginásio Vosgense. Influenciado pelo espírito do Renascimento e contando
com o generoso patrocínio do mecenas Renato II, duque de Lorena, um grupo de
intelectuais, liderado por um certo Vautrin Lud, decidiu se dedicar ao estudo das
questões cosmográficas e das descobertas ultramarinas que tanto empolgavam os
humanistas da Europa. Desse grupo fazia parte o matemático, cosmógrafo e
desenhista Martin Waldessemüller.
Aproveitando-se das novas técnicas de impressão –
O
geógrafo
grego
inventadas por Johann Gutenberg em 1455 – e do
Cláudio Ptolomeu (c.90sucesso que as obras geográficas, especialmente os
164), autor do livro
mapas e o livro escrito pelo grego Ptolomeu no início Geografia, é considerado o
da era cristã (veja boxe ao lado) estavam obtendo na
Europa, o Ginásio Vosgense passou a publicar relatos
de viagem. Uma de suas primeiras obras foi
justamente uma versão em latim da Lettera a Soderini,
lançada com o título de Quatuor Americi Vespucci
Navigationes (“As quatro navegações de Américo
Vespúcio”). Traduzido do italiano por Jean Basin, com
introdução de Mathias Ringmann e mais de dez
ilustrações, o livro, lançado em 25 de abril de 1507, foi
um sucesso instantâneo. Só no ano de seu lançamento,
foi reeditado sete vezes. Em 1508, foram 12 as
reedições. Quase dez mil exemplares seriam vendidos
na Europa.
Mas não foi só. Para acompanhar essa versão
latina da Lettera, o Ginásio Vosgense resolveu publicar
também, no mesmo volume, uma Introdução à
Cosmografia de Ptolomeu. Embora as novas
descobertas feitas por portugueses e espanhóis
estivessem derrubando quase todas as teorias desse
geógrafo grego que vivera no século I, a obra de
Cláudio Ptolomeu, ironicamente, estava em alta. Desde
o advento da imprensa, o florescente mercado editorial
europeu fora inundado pela publicação de dezenas de
edições de livros de geografia clássica. Os 27 mapas
que Cláudio Ptolomeu fizera séculos antes – embora
ultrapassados – se tornaram um anacronismo
rentável.
Por iniciativa do jovem cosmógrafo Martin
Waldessemüller, o Ginásio Vosgense decidiu “revisar e
ampliar” a obra de Ptolomeu, tendo como base as
“descobertas” feitas por Vespúcio. E assim, em um
texto que se tornaria profético, Waldessemüller
escreveu: “Agora que uma outra parte do mundo, a
quarta, foi descoberta por Americum Vesputium, de
nada sei que nos possa impedir de denominá-la, de
direito, Amerigem, ou América, isto é, a terra de
Americus, em honra de seu descobridor, um homem
fundador dessa ciência.
Durante 14 séculos suas
concepções da realidade
geográfica do mundo foram
consideradas inatacáveis –
e eram defendidas inclusive
pela Igreja. No início do
século XVI, as descobertas
ultramarinas
dos
portugueses
e
dos
espanhóis começaram a
derrubar as teses arcaicas
de Ptolomeu. Ironicamente,
sua obra estava no auge da
popularidade, pois, desde o
advento
da
imprensa
(inventada em 1455 por
Johann Gutenberg), o livro
e os mapas de Ptolomeu
tinham se transformado
numa das maiores fontes
de renda dos editores e
tipógrafos europeus. Uma
das primeiras revisões
críticas da obra do pai da
Geografia foi justamente a
feita
por
Martin
Waldessemüller.
sagaz, já que tanto a Ásia como a Europa receberam
nomes de mulheres.”
Em um dos mapas que fez para acompanhar o
livreto de 52 páginas, Waldessemüller usou pela
primeira vez a palavra “América”, colocando-a sobre
o território que representa o Brasil, na mesma latitude
em que se localiza Porto Seguro (veja esse mapa logo
adiante). O novo continente estava batizado.
Cristóvão Colombo morrera quase que exatamente
um ano antes, em 20 de maio de 1506, amargurado e
na miséria. Os eruditos de Saint-Dié não ignoravam suas descobertas. Mas, até pelo
menos 1514, muitos geógrafos – Waldessemüller entre eles – acreditavam que as
ilhas achadas por Colombo em outubro de 1492 de fato eram os limites ocidentais
da Ásia, enquanto que a América do Sul (supostamente descoberta por Vespúcio na
viagem de 1497 e de fato explorada por ele próprio entre 1501 e 1504) seria um
continente autônomo, totalmente separado delas ou, quando muito, interligado ao
arquipélago por um istmo. Foi só depois da descoberta do oceano Pacífico, feita por
Vasco Nuñez de Balboa em setembro de 1513, que os cartógrafos do século XVI
passaram a ter uma ideia um pouco mais próxima da realidade. E somente após o
descobrimento do estreito de Magalhães, em 1519, o quadro geográfico iria adquirir
molduras mais definidas.
Em fins de 1513, cedendo às pressões da Coroa castelhana, Martin
Waldessemüller retirou sua proposta de batismo. Chegou a sugerir que o Novo
Mundo fosse chamado de Colômbia. Mas era tarde demais: as múltiplas
ressonâncias da palavra América caíram no gosto popular. Em 1516, até o genial
Leonardo da Vinci passaria a utilizar esse nome, colocando-o em um mapa que
preparou a pedido da poderosa família Médici.
Mapa de Waldessemüller, feito em 1506, no qual o nome “América” aparece pela
primeira vez.
Vinte anos mais tarde, quando ficou claro que Vespúcio – ou alguém agindo em
seu nome, com ou sem conhecimento dele – havia forjado a viagem de 1497, o nome
“América” começava a se popularizar na Europa, tendo sido adotado até por
cartógrafos portugueses e, embora com muita relutância, aceito até pelos espanhóis.
Dessa forma, a “quarta parte do mundo” acabou sendo batizada com o nome de um
homem que não fora o seu descobridor. De acordo com um texto escrito em 1900
pelo historiador brasileiro Capistrano de Abreu, “a falsidade e a galanteria” foram
“pavoneadas pela imprensa e, por força delas, temos hoje o nome de americanos”.
A UTOPIA
Por volta de 1510, um exemplar da tradução da Lettera feita pelo Ginásio
Vosgense foi parar nas mãos do reverendo inglês Thomas Morus. Entusiasmado
com a leitura das Quatro viagens, Morus então escreveu seu clássico A Utopia,
lançado na Basileia, na Suíça, em latim, em 1516, com a obra sendo editada por
ninguém menos que Erasmo de Roterdã. O livro se tornou de imediato um dos
clássicos do pensamento humanista e foi dos primeiros a fazer a idealização da
América, servindo-se dela como contraponto para uma visão crítica da velha
Europa. O Novo Mundo ofereceria, dessa forma, a chance de um recomeço, no qual
supostamente não seriam repetidos os erros do passado.
O herói da Utopia é um velho marujo português,
Rafael Hitlodeu (ou Hythlodaeus – “contador de
histórias”, em grego), que, “jovem ainda, abandonou
sua fortuna e, devorado pela paixão de correr o
mundo, juntou-se a Américo Vespúcio nas três últimas
de suas quatro viagens, cujo relato hoje se lê em quase
todo lugar”. Embora fiel companheiro de Vespúcio, ao
final da expedição Hitlodeu pediu permissão ao capitão
e decidiu que “não retornaria à Europa com ele”, pois
resolvera ficar junto com “os 24 homens que foram
deixados em uma fortaleza, nos confins do Novo
15
Mundo”.
Por algum tempo, Hitlodeu viveu na feitoria criada
por Vespúcio próximo ao Rio de Janeiro. Mas então ele
e cinco companheiros decidiram percorrer o mundo.
Primeiro, viajaram para o Oriente, dobrando o cabo
da Boa Esperança, tendo alcançado até a Taprobana
(as opiniões diferem se se tratava do Ceilão ou de
Sumatra, próximo de Málaca). Mas, desiludidos com
o que viram lá, empreenderam a viagem de volta,
outra vez em direção ao Novo Mundo. Após uma série
de desventuras, acabaram chegando à ilha de Utopia –
um mundo igualitário, onde os nativos viviam em
perfeita harmonia política, social e ecológica.
As indicações dadas por Morus sobre a localização
de Utopia permitem supor que ele se baseou na ilha de
Fernando de Noronha, descoberta por Vespúcio na
mesma viagem na qual ele fundou a feitoria. Na vida
Thomas Morus nasceu
em Londres em 1478. Fez
seus estudos em Oxford e
lá, em 1497, conheceu
Erasmo de Roterdã. Em
1514, depois da ascensão
de Henrique VIII, passou a
fazer parte do Conselho
Real. Em 1532, quando o
rei abjurou o catolicismo,
Morus, então ligado à
Igreja Romana, pediu
demissão do cargo de
Grande Chanceler, que
ocupava desde 1532. No
ano
seguinte,
ofendeu
mortalmente a rainha Ana
Bolena, recusando-se a
assistir à sua coroação e a
jurar-lhe fidelidade. Foi
condenado à morte por
crime de alta traição, preso
na torre de Londres e
decapitado em 1535.
real, porém, o destino dos 24 homens deixados por
Américo Vespúcio em Cabo Frio nada teve de utópico:
eles foram trucidados pelos índios, “por causa dos
16
conflitos havidos entre eles”.
III
A TERRA DO BRASIL
pesar dos exageros e incorreções, a Lettera de Américo Vespúcio para Piero
ASoderini
com certeza continha várias passagens verídicas. Uma delas é o
trecho no qual, referindo-se ao final de sua primeira viagem ao Brasil, realizada
entre maio de 1501 e julho de 1502, Vespúcio afirma: “Nessa costa não vimos coisa
de proveito, exceto uma infinidade de árvores de pau-brasil (…) e já tendo estado na
viagem bem dez meses, e visto que nessa terra não encontrávamos coisa de metal
algum, acordamos nos despedirmos dela.”
Deve ter sido exatamente esse o teor do relatório que Vespúcio entregou para o rei
D. Manoel, em julho de 1502, logo após desembarcar em Lisboa, ao final de sua
primeira viagem sob bandeira portuguesa. O diagnóstico de Vespúcio selou o destino
do Brasil pelas duas décadas seguintes. Afinal, no mesmo instante em que era
informado pelo florentino da inexistência de metais e de especiarias no território
descoberto por Cabral, D. Manoel já vinha concentrando todos os seus esforços na
busca pelas extraordinárias riquezas do Oriente.
Estímulo para isso não lhe faltava: ainda em julho de 1501, um ano antes de ler o
relatório de Vespúcio sobre as diminutas potencialidades comerciais do Brasil, o
monarca havia recebido o próprio Pedro Álvares em audiência na corte. Retornando
da Índia, o descobridor do Brasil trazia três caravelas repletas de pimenta, gengibre,
noz-moscada, almíscar, açafrão, sândalo, âmbar, seda e porcelanas, além de alguns
diamantes, pérolas e rubis. Nove das 13 embarcações com as quais Cabral partira
de Lisboa em março de 1500 haviam naufragado, e mil homens estavam mortos –
a maioria nos naufrágios, outros em combate contra mercadores árabes, na Índia.
Ainda assim, o valor das mercadorias obtidas por Cabral foi duas vezes maior do
que os gastos com a expedição.
Era normal, portanto, que D. Manoel voltasse sua atenção e todos os seus
esforços para a conquista da Índia. Como a Coroa não possuía recursos financeiros
nem humanos para atuar em duas frentes (ou três, já que as feitorias estabelecidas ao
longo da costa ocidental da África continuavam ativas), o rei decidiu arrendar para
a iniciativa privada a exploração das terras encontradas na margem ocidental do
oceano Atlântico. Assim, no segundo semestre de 1502 D. Manoel assinou um
“contrato de arrendamento” do Brasil com um consórcio de ricos mercadores
lusitanos. Esse contrato determinava as condições sob as quais deveria ser explorado
comercialmente o vasto território do qual Vespúcio tinha acabado de retornar.
Foi uma solução engenhosa, mas não original. Em novembro de 1469, o rei
Afonso V, um dos antecessores de D. Manoel, havia tomado decisão semelhante.
Mais interessado na África do Norte do que na distante África negra, aquele
monarca firmara um contrato com um certo Fernão Gomes, abastado comerciante
de Lisboa, passando-lhe a responsabilidade de organizar todas as viagens ao longo
do litoral africano. Em troca do monopólio do comércio de pimenta-malagueta (e
da possibilidade de traficar também ouro, marfim e escravos vindos da Guiné),
Fernão Gomes era obrigado a descobrir 100 léguas (ou cerca de 600 quilômetros) de
costa por ano durante cinco anos, e a entregar ao rei uma renda anual de 200 mil
reais. O prazo foi depois aumentado para seis anos.
A decisão de D. Manoel de fazer um contrato semelhante com um consórcio de
comerciantes liderado por Fernando de Noronha viria a ter enorme repercussão no
primeiro quarto de século da história do Brasil. Ainda assim, nem um único
documento relativo a essa resolução foi encontrado nos arquivos portugueses. Os
termos da negociação só se tornaram conhecidos graças a uma carta escrita por um
agente italiano.
Em 3 de outubro de 1502, Pietro Rondinelli, comerciante florentino residente em
Sevilha, enviou para o governo de Florença uma correspondência na qual dizia:
“Américo Vespúcio estará aqui dentro em poucos dias, o qual suportou bastantes
fadigas e teve pouco proveito, pois merecia mais do que o ordinário; e o rei de
Portugal arrendou a terra que ele descobriu [sic] a certos cristãos-novos, que são
obrigados a mandar todos os anos seis navios e descobrir 300 léguas [cerca de 1.800
quilômetros] anualmente, e a fazer uma fortaleza no território descoberto e mantê-la
nos ditos três anos. No primeiro ano, nada pagam à Coroa. No segundo, pagam
1/6 [do valor total da mercadoria] e no terceiro, 1/4 e fazem conta de trazer pau1
brasil e escravos e talvez achem coisa de proveito.”
Como muitos dos negociantes de Florença, a família
Rondinelli era ligada à fiação, tecelagem e tingimento
de tecidos. E a informação de que a exploração do paubrasil fora concedida a um conhecido grupo de
cristãos-novos portugueses era uma notícia importante
para a indústria têxtil – que, naqueles dias, já se
tornara o motor do desenvolvimento geral da
economia europeia.
Os Cristãos-Novos
Eram chamados de
cristãos-novos os judeus
convertidos ao cristianismo
por força de decretos reais,
assinados em Portugal a
partir
de
1497.
Posteriormente, várias leis
No final do século XV, graças ao Renascimento, as
e alvarás regulavam – ou
populações urbanas da Europa tinham enfim
suprimiam, de acordo com
redescoberto os requintes da moda. O despojamento
o momento histórico – a
medieval ficara distante. Em todas as camadas sociais,
proteção a esse grupo de
os trajes passaram a distinguir cada vez mais o sexo e
a personalidade dos usuários. Os homens
abandonaram as vestes de sarja em favor das meias
colantes, da túnica e do colarinho pregueado. Entre
ambos os sexos difundiu-se a paixão pelos tecidos
bonitos, e os panos pesados deram lugar às sedas e ao
veludo. E, o mais importante: a púrpura deixou de ser
uma cor exclusiva de reis e autoridades eclesiásticas
para entrar definitivamente na moda.
recém-convertidos.
O
termo “cristão-novo” não
era usual no vocabulário
cotidiano: a palavra mais
designava uma fórmula
jurídica do que outra coisa
qualquer. Na prática, eram
chamados de “conversos”,
“batizados
em
pé”,
Desde o século XI, a Europa estava familiarizada “marranos”, “anussins” ou
com o pau-brasil, embora de uma espécie diferente “gente nação”.
daquela encontrada no Brasil. Nativa de Sumatra, a
árvore – chamada, em malaio, de “sapang” (do sânscrito “patanga” ou “vermelho”)
– era exportada para a Índia desde tempos imemoriais. Dali, os mercadores árabes
a levavam para o Egito, pela via do mar Vermelho. Usado desde a aurora da era
cristã para tingir as sedas e os linhos trajados pelos nobres do Oriente, o pó de
sapang concedia a esses tecidos “um suntuoso tom carmesim ou purpúreo”. Após a
penetração dos cruzados na Palestina, a Europa ficou conhecendo várias substâncias
tintoriais do Oriente – e nenhuma lhe agradou mais do que o “brasil”.
As primeiras referências à chegada desse produto à Europa datam de 1085,
quando o desembarque de uma “kerka de bersil” (ou “uma carga de bersil”) foi
registrado nas alfândegas de Saint-Omer, na França. Pouco mais tarde, o termo
francês evoluiu para “brezil”. Junto com a França, a Itália logo se tornaria uma
grande consumidora de pau-brasil e registros desse comércio puderam ser
encontrados nos arquivos das alfândegas de Ferrara (em 1193), Módena (1221) e
Gênova (1243). Na Itália, a árvore passou a se chamar “bracire”, ou “brazili” e,
mais tarde, “verzino” – que foi o termo empregado por Vespúcio na Lettera a
Soderini. Com o nome de brasil, o “pau-de-tinta” já chegara à Espanha e a Portugal
2
por volta de 1220.
Cristóvão Colombo foi o primeiro a vislumbrar árvores de pau-brasil em meio
às florestas do Caribe, e registrou sua existência na carta que enviou aos Reis
Católicos em 1495. Em 1498, em sua terceira viagem à América, Colombo chegou
a recolher 20 quintais (pouco mais de uma tonelada) da madeira nas matas do golfo
de Pária, na Venezuela, e os levou para Sevilha. Em janeiro de 1500, Pinzón
carregou seus navios com 350 quintais (ou 21 toneladas) de pau-brasil, recolhidos
nas praias do Nordeste do Brasil, ou talvez na região de Pária. Poucos meses mais
tarde, junto com as cartas que anunciavam a descoberta da ilha de Vera Cruz,
Gaspar de Lemos levava para Portugal as primeiras toras da árvore que, em breve,
acabaria misturando seu nome ao vasto território onde Cabral havia aportado em
meio à sua jornada para a Índia.
Os especialistas europeus em corantes naturais logo perceberam que o pau-brasil
nativo da América do Sul (cujo nome científico viria a ser Caesalpinia echinata) não
era tão eficiente quanto o similar oriental (a Caesalpinia sappan). De todo modo,
com as rotas comerciais com o Oriente bloqueadas desde 1453 (devido à tomada de
Constantinopla pelos turcos), a variedade oriental do pau-brasil se tornara produto
caríssimo. A descoberta de uma espécie equivalente no Ocidente foi saudada com
entusiasmo.
As toras de pau-brasil, levadas para Lisboa, eram
reembarcadas para Amsterdã para serem reduzidas a
pó. O pó – usado para tingir os tecidos – era revendido
na França e na Itália. A exaustiva tarefa de cortar e
raspar a duríssima madeira até transformá-la em pó
grosso era dada a prisioneiros, e essa indústria tornouse virtualmente um monopólio do governo holandês.
Dois prisioneiros, trabalhando ao longo de um dia
inteiro, produziam 27 quilos de pó por jornada.
Apesar de sua utilidade e da demanda, o pau-brasil
trazido da América do Sul valia bem menos do que,
por exemplo, a pimenta importada da Índia. Um
quintal (60 quilos) de pau-brasil era vendido em
Lisboa, no início do século XVI, por cerca de 2,5
ducados. Um quintal de pimenta podia ser
comercializado em Portugal, nessa mesma época, por
mais de 30 ducados. Além disso, embora a Índia
ficasse muito mais longe da Europa que o Brasil e a
navegação até lá fosse muito mais perigosa, era bem
mais fácil obter e transportar pimenta do que carregar
e transportar para Lisboa o duríssimo pau-brasil –
mesmo que, para isso, os europeus sempre tenham
contado com a ajuda dos nativos.
De todo modo, Fernando de Noronha logo percebeu
as possibilidades que o negócio lhe abria, especialmente
porque o rei se comprometera a proibir a importação
do pau-brasil do Oriente, garantindo a Noronha e a
O Peso do Dinheiro
O ducado era uma
moeda de ouro utilizada
por vários países da
Europa, cunhada pela
primeira vez em Veneza
por volta de 1280. Do
século XIII ao século XVII,
foi a principal moeda de
referência e de câmbio na
Europa – uma espécie de
dólar nos dias de hoje. Um
ducado valia 3,5 gramas
de ouro. Em Portugal, além
do ducado, havia várias
moedas em circulação. A
principal delas era o
cruzado (abaixo), criado
em 1489 pelo rei Afonso V.
Embora o cruzado fosse a
moeda circulante, a moeda
de conta e de referência dos
lusos continuou sendo o
real, criado pelo rei D.
João I em 1398. Um
cruzado valia 400 reais.
Além dos cruzados – e dos
seus sócios o monopólio do “trato do pau-de-tinta”. As
vantagens mútuas da transação ficam claras numa
carta escrita em 1506 por um comerciante italiano que
vivia em Lisboa, um tal Lunardo de Cha Masser. Eis a
carta:
“De há três anos para cá, foi descoberta uma terra
nova da qual se traz todos os anos 20 mil quintais [ou
1.200 toneladas] de brasil, o qual é tirado de uma
árvore grossa que é muito pesada; mas que não tinge
com a perfeição em que o faz o nosso do Levante [do
Oriente]. Não obstante, despacha-se muito do referido
brasil para Flandres, e para Castela e Itália e muitos
outros lugares; o qual vale 2,5 ducados o quintal. O
referido brasil foi concedido a Fernão de Loronha,
cristão-novo, durante dez anos por este Sereníssimo rei,
por quatro mil ducados ao ano; o qual Fernão de
Loronha manda em viagem todos os anos à dita Terra
Nova os seus navios e homens, a expensas suas, com a
condição que este Sereníssimo rei proíba que daqui em
diante se extraia da Índia. O qual brasil em Lisboa lhe
fica com todas as despesas por meio ducado o quintal;
3
na qual terra há bosques inteiros deste brasil.”
Da relação de Cha Masser conclui-se que o grupo
liderado por Fernando de Noronha gastava dez mil
ducados por ano para trazer 20 mil quintais de paubrasil para Lisboa. Uma vez em Portugal, o produto
lhes rendia 25 mil ducados, dos quais quatro mil
deviam ser pagos ao rei. O lucro líquido anual era,
portanto, de 11 mil ducados.
escudos criados pelo rei D.
Duarte em 1435 e dos
justos e espadins de D.
João II –, também
circulavam em Portugal
moedas
cunhadas
na
Espanha, como a onça
(que valia 14 reais) e,
especialmente, o maravedi,
antiga moeda árabe (que
valia 27 reais; um ducado
era
igual
a
375
maravedis).
Loronha
Noronha?
ou
Nos documentos do
século XVI, Fernando de
Noronha é chamado de
Fernão de Loronha – e
provavelmente esse era o
O DONO DO BRASIL
seu verdadeiro nome.
Tanto Pietro Rondinelli quanto Lunardo de Cha Jamais ficou provado que
Masser se referem a Fernando de Noronha e a seus ele tivesse ascendência
sócios como sendo cristãos-novos – ou seja, como bem judaica. O que parece certo
se sabe, judeus recém-convertidos ao cristianismo. é que, embora tenha
Pesquisas genealógicas realizadas sobre o homem que chegado a Portugal vinda
arrendou o Brasil, no entanto, nunca chegaram a ser da região das Astúrias, na
conclusivas.
A primeira referência a Fernão de Loronha nos
arquivos portugueses surge em uma “carta de quitação
de débitos”, assinada por D. Manoel em 26 de março
de 1498, na qual o monarca se refere a ele como
“tratador das nossas moradias” (o comerciante
responsável pelo abastecimento das despensas reais)
durante os anos de 1494-96. No mesmo ano da carta
que declarou Loronha livre de dívidas com a Coroa, ele
foi feito cidadão de Lisboa, com direito a “todas as
graças, privilégios, honras, liberdades e franquezas que
4
têm e gozam todos os cidadãos da referida cidade”.
Espanha, a família de
Loronha era originária da
Inglaterra
–
muito
possivelmente da região de
Lotheringen, na fronteira
com a Escócia, de onde
procederia
o
nome
“Loronha”, que, com o
passar dos anos, por erro
na leitura e redação de
documentos,
tornou-se
Noronha.
Antes de 1500, Loronha estivera diretamente envolvido com o comércio de
pimenta-malagueta, sendo, junto com o banqueiro florentino Bartolomeu Marchioni
(com o qual mais tarde se associaria), um dos principais negociantes desse produto
em Portugal. Depois da descoberta do caminho marítimo para as Índias, em 1498,
Fernão de Loronha se tornou também armador, enviando, por conta própria,
algumas naus à Índia. Um dos navios que fez parte da frota de João da Nova, que
partiu para a Índia em 1501 e fez escala no Brasil, foi armado por ele.
Em 16 de janeiro de 1504, Fernando de Noronha se tornou donatário de uma
bela ilha localizada no meio do oceano Atlântico. Tal ilha provavelmente fora
descoberta em 1502 e batizada de ilha da Quaresma. Redescoberta no ano seguinte
por Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio, foi chamada de ilha de São Lourenço (por
ter sido avistada a 10 de agosto, dia consagrado a esse santo). Ao ser doada pelo rei
a Fernando de Noronha, a ilha se tornaria a primeira capitania hereditária do Brasil
– e logo passaria a ser conhecida pelo nome do donatário. Até meados do século
XVII, esse território insular seguiu sob a posse dos descendentes de Fernando de
Noronha.
Pouco depois de ter recebido a ilha, Noronha, de acordo com alguns
historiadores, pensou em transferir a sede de sua rede internacional de negócios de
Lisboa para Londres. Tanto é que, em 26 de agosto de 1506, o rei D. Manoel assinou
um alvará no qual lhe recusou licença para usar o brasão que lhe fora recentemente
concedido pelo monarca inglês Henrique VII. Para essa suposta decisão de Noronha
pode ter contribuído o recrudescimento dos sentimentos antis-semitas em Portugal, já
que, em abril de 1506, muitos cristãos-novos foram trucidados em Lisboa “pela
5
plebe excitada pelos frades dominicanos”.
De todo modo, em 1524 Fernando de Noronha
ainda morava em Lisboa, na rua Nova dos
Mercadores, a mais refinada da cidade. E, em 28 de
junho daquele ano, o rei D. João III, sucessor de D.
Manoel, o fez fidalgo de armas e lhe mandou dar um
brasão especial, mais requintado do que o brasão
inglês que Noronha fora impedido de usar quase duas
décadas antes. Por essa época, é provável que Fernando
de Noronha também já estivesse associado à família
Acima, o brasão de
alemã Függer, uma das mais ricas da Europa e de armas
concedido
a
cujos interesses ele seria representante em Portugal.
Fernando de Noronha pelo
Embora certos historiadores afirmem que Fernando rei D. João III, em junho
de Noronha teria vindo ao Brasil como comandante da de 1524, em substituição
primeira expedição enviada sob as estipulações do ao brasão que lhe fora
contrato firmado em 1502, essa possibilidade é de todo dado pelo monarca inglês
improvável. Homem tão influente e rico não iria se Henrique VII, e que
expor aos perigos do mar e às agruras de uma viagem Noronha
tinha
sido
oceânica. De qualquer forma, mesmo após o impedido de usar enquanto
encerramento do contrato original (que durou de vivesse em Portugal.
agosto ou setembro de 1502 a setembro de 1505 e, ao
que tudo indica, de imediato foi renovado por mais três anos), Noronha seguiu
ligado ao “trato do pau-de-tinta”. Seus navios continuaram a ser enviados ao Brasil
pelo menos até 1511. Em 1513, sabe-se que o monopólio do pau-brasil estava nas
6
mãos de um tal Jorge Lopes Bixorda, “armador e capitão de navios”.
O PAU-DE-TINTA
No Brasil, o pau-brasil crescia quase que
exclusivamente entre o Rio Grande do Norte e o Rio de
Janeiro, na planície costeira, em meio à exuberância da
Mata Atlântica. Havia três pontos específicos da costa
onde as árvores se concentravam em maior
quantidade: entre o Rio de Janeiro e Cabo Frio; ao sul
da Bahia, nos arredores de Porto Seguro; e em
Pernambuco, nas proximidades da ilha de Itamaracá
(de onde provinha a madeira de melhor qualidade, o
chamado “brasil fino”). Justamente por isso, aí seriam
fundadas as primeiras feitorias.
Embora
tenha
se
tornado a principal e quase
única fonte de renda que
Portugal encontrou no
Brasil, o pau-brasil não foi
estudado nem classificado
pelos
portugueses.
O
primeiro estudo científico
sobre a
árvore foi
realizado em 1648 pelos
botânicos Willem Piso e
George
Marcgrav
na
monumental
Historia
Naturalis Brasilae, feita
sob os auspícios do conde
Maurício de Nassau, obra
na qual foi publicada a
primeira
ilustração
botânica do pau-brasil
(abaixo). A planta foi
classificada em 1789 pelo
grande botânico Lamarck,
que
a
chamou
de
A experiência ensinou aos portugueses (e aos Caesalpinia echinata. O
franceses, que os seguiriam de imediato) que, para fins gênero “Caesalpinia” fora
de tinturaria, o pau-brasil deveria ser derrubado, criado em homenagem ao
durante o inverno, nos dias de lua nova, enquanto que, botânico e médico do papa
VIII
André
no verão, o corte mais propício era durante a lua Clemente
e
a
crescente. Essa, no entanto, parece ter sido a única regra Cesalpino,
“echinata”
seguida para o abate da árvore. A exploração do “pau- denominação
de-tinta” foi feita num ritmo tão feroz que, ao longo de provém do étimo grego
todo o século XVI, portugueses e franceses levaram, em “ouriço” e se refere aos
média, oito mil toneladas da madeira por ano para a espinhos abundantes do
pau-brasil.
Europa.
A árvore de pau-brasil era frondosa, com folhas de
um verde-acinzentado quase metálico e belas flores
amarelas. Havia exemplares extraordinários, tão
grossos que três homens não podiam abraçá-los. O
tronco vermelho ferruginoso chegava a ter, algumas
vezes, 30 metros, embora a altura média fosse de 20
metros. Os índios a chamavam de ibirapitanga – ou
“pau vermelho”. Eles o conheciam há séculos e usavam
sua madeira dura para fazer arcos e sua tinta para
tingir de vermelho penas brancas. Era uma árvore
sagrada.
Só no primeiro século de exploração, cerca de dois
milhões de árvores foram derrubadas – uma espantosa
média de 20 mil por ano, ou quase 50 por dia. Cada
navio levava cerca de cinco mil toras por viagem. Em
1550, segundo o pastor francês Jean de Lery, em um
único depósito, pertencente aos contrabandistas
franceses no Rio de Janeiro, havia 100 mil toras de
pau-brasil estocadas. Não é de se estranhar, portanto,
que, já em 1558, as melhores árvores só pudessem ser
7
encontradas a mais de 20 quilômetros da costa.
Em 1605, a Coroa, alarmada com os relatórios que
informavam que, se o corte indiscriminado prosseguisse, “as madeiras virão a
8
acabar e se perder de todo”, passou a controlar a extração e até espalhou alguns
guardas-florestais nas zonas onde a extração era mais comum. Mas a árvore estava
virtualmente extinta.
Embora o comércio de pau-brasil fosse estimulado
por portugueses e franceses, quem derrubava,
descascava, atorava e transportava os troncos do paude-tinta eram os indígenas que viviam ao longo da
costa brasileira, especialmente os Tabajara, os
Tupiniquim e os Tupinambá (além dos Potiguar, mas,
nesse caso, praticamente só quando se tratava de
negociar com os franceses). O desempenho e o esforço
dos índios foi bem resumido por Jean de Lery, que
viveu no Rio de Janeiro entre novembro de 1556 e
março de 1557, durante a desastrada experiência da
França Antártica. Em seu livro Viagem à Terra do
Brasil, publicado em 1578, o calvinista Lery escreveu:
“Quanto ao meio de carregar essa mercadoria [o
pau-brasil], direi que tanto por causa da dureza, e
consequente dificuldade em derrubá-la, como por não
existirem […] animais para transportá-la, é ela
arrastada por meio de muitos homens; e se os
estrangeiros que por aí viajam não fossem ajudados
pelos selvagens, não poderiam sequer em um ano
carregar um navio de tamanho médio. Os selvagens,
em troca de algumas roupas, chapéus, facas,
machados […] cortam, serram, racham, atoram e
desbastam o pau-brasil, transportando nos ombros
nus às vezes de duas a três léguas [de 13 a 20
quilômetros] por sítios escabrosos, até a costa junto aos
navios ancorados, onde os marinheiros o recebem.”
O impacto que as
ferramentas
de
metal
causaram na vida dos
indígenas pode ser medido
pelas consequências que
elas tiveram no próprio
comércio do pau-brasil:
enquanto com seus antigos
machados de pedra os
nativos levavam cerca de
três horas para derrubar
um pé de pau-brasil, com
machado de ferro o mesmo
serviço podia ser feito em
pouco mais de 15 minutos,
de acordo com estudos
feitos por Herman von
Ihering em 1894. A
gravura abaixo é do livro
Viagem à Terra do Brasil,
de Jean de Lery, publicado
em 1578.
Bastaram uns poucos anos para que os indígenas percebessem o que os europeus
queriam no Brasil, fossem eles portugueses ou franceses. Para os índios, a princípio,
era indiferente que lusos e franceses fossem inimigos mútuos e disputassem entre si o
comércio do pau-brasil e até a própria posse do Brasil. As alianças entre estrangeiros
e indígenas só começariam a se formar depois, quando os nativos tiveram a
oportunidade de distinguir claramente entre os “perós” – como eles chamavam os
portugueses de pele e cabelos morenos – e os “mair”, apelido dado aos louros
9
franceses vindos, boa parte deles, da Normandia ou da Bretanha.
De início, os nativos ficaram encantados com as bugigangas que os europeus lhes
ofereceram como “resgate”: espelhos, avelórios (vidrilhos), contas, pentes, cascavéis
(guizos) e pedaços de pano. Assim que a novidade passou, lusos e franceses tiveram
que substituir essas quinquilharias baratas por ferramentas de metal (tesouras,
anzóis, facas e machados). Então, de um momento para outro, as tribos tupis do
litoral brasileiro saíram da Idade da Pedra para ingressar na Idade do Ferro. Foi
uma revolução instantânea.
Além dos machados, os anzóis tornaram a pesca mais fácil e as facas se
revelaram um grande aliado contra os perigos e desconfortos da floresta. Ansiosos
por obter os cobiçados objetos de metal, os nativos muitas vezes se antecipavam à
chegada dos portugueses (ou à dos franceses), abatendo várias centenas de árvores.
Divididas em toras de 1,5 metro de comprimento e cerca de 30 quilos cada, elas
ficavam estocadas em pontos estratégicos. A cada ano, os indígenas eram obrigados
a ir mais longe, mata adentro, em busca de bons exemplares de pau-brasil, que,
antes de 1501, cresciam praticamente no limite da praia. Além da imprevidência e
da ganância dos próprios nativos, as queimadas que eles faziam para desbastar a
mata ajudaram a reduzir consideravelmente o número de exemplares de pau-brasil.
Atualmente, a árvore cujo nome foi usado para batizar o Brasil sobrevive
praticamente apenas em reservas florestais e jardins botânicos e só lentamente
começa a ser reintroduzida em seu ambiente natural.
AS FEITORIAS
Por volta de janeiro ou fevereiro de cada ano, as toras de pau-brasil, derrubadas
pelos índios ao longo de vários meses, eram levadas para as feitorias construídas no
litoral pelos portugueses. Tais feitorias em nada lembravam os entrepostos
comerciais que os lusos tinham começado a fundar em 1448 na ilha de Arguim, no
litoral da Mauritânia, na África, e que depois se estenderiam por toda a costa
ocidental da África, pela costa do Malabar, na Índia, e, mais tarde, chegariam até os
distantes Japão e China. No Brasil, elas eram como aquela que Américo Vespúcio
fundou em Cabo Frio: um mero galpão de madeira cercado por uma paliçada de
toras pontiagudas, tendo por mobília somente arcas e caixotes, e onde, ao longo do
ano inteiro, ficavam apenas três ou quatro homens.
Em 1519, havia quatro feitorias no Brasil: as de Cabo Frio e do Rio de Janeiro,
uma em Pernambuco e outra na Bahia. Dois desses quatro postos avançados do
império português no Brasil ficavam em ilhas: na ilha Comprida, em Cabo Frio, e
na de Itamaracá, em Pernambuco. Já a feitoria do Rio de Janeiro – cuja história é
nebulosa – teria sido fundada por Gonçalo Coelho em 1504 e alguns historiadores
acham que ela se erguia entre as atuais praias do Flamengo e da Glória, junto à foz
do riacho chamado Carioca. Mas ela provavelmente também ficava numa ilha: a
ilha do Gato (hoje do Governador), no fundo da baía de Guanabara.
A vida cotidiana dos homens deixados um ano inteiro (e às vezes até por mais
tempo) nessas feitorias era monótona. O regimento ao qual eles deveriam se
submeter deixava claro que seus contatos com os nativos e com o território selvagem
que os cercava deveriam se restringir ao estritamente necessário. Um dos únicos
divertimentos do escrivão e de seus poucos auxiliares durante seu solitário
engajamento nos trópicos era ensinar os papagaios a falar.
De fato, junto com o pau-brasil – e com alguns macacos e saguis e a pele de
certos felinos –, essas aves eram o principal produto de exportação do Brasil. O
impacto que esses animais falantes e de plumagem exuberante provocaram – a
princípio na corte, em Lisboa, e depois em boa parte da Europa Ocidental – foi tal
que, de 1502 a 1505, o Brasil foi chamado de Terra dos Papagaios.
Por volta de fins de abril e princípios de maio de cada ano, as naus – que
zarpavam de Lisboa em fins de fevereiro ou início de março, para melhor aproveitar
as correntes e os ventos – chegavam para recolher o pau-brasil estocado nas três ou
quatro feitorias espalhadas pelo imenso litoral do Brasil. Os homens engajados no
tráfico de pau-brasil eram chamados de brasileiros – “do mesmo modo que se dizem
baleeiros os que vão à pesca das baleias, e que se denominavam negreiros os que se
ocupavam do tráfico de africanos, e que algum dia se disseram pimenteiros os que
andavam traficando pimenta”, conforme escreveu Francisco de Varnhagen em 1854.
O nome dado a esses traficantes de pau-brasil acabaria se estendendo a todos os
nascidos no futuro país. Ainda de acordo com Varnhagen, se as regras gramaticais
tivessem sido corretamente aplicadas, os nativos do Brasil deveriam se chamar
brasilienses.
A NAU BRETOA
O dia a dia dos primeiros “brasileiros” pode ser minuciosamente reconstituído
graças a um documento de 14 páginas chamado Livro da Viagem e Regimento da
Nau Bretoa. Embora seja um texto árido e estritamente burocrático, sua leitura
atenta permite obter detalhes saborosos sobre como se dava o então chamado “trato
do pau-brasil” pelos portugueses no início da segunda década da presença europeia
no Brasil.
A Bretoa – assim chamada por ter sido construída nos estaleiros da Bretanha, no
norte da França – pertencia a um consórcio de mercadores formado por Fernando de
Noronha, pelo banqueiro florentino Bartolomeu Marchioni, pelo sobrinho dele,
Benedeto Moreli, e por um certo Francisco Martins, todos com certeza sujeitos
endinheirados, embora nenhum deles pudesse ser comparado a Marchioni, que era o
homem mais rico de Portugal.
A tripulação da Bretoa era constituída por 36 homens. O capitão, um Cristóvão
Pires, também devia ser homem de posses, pois o regimento indica que ele morava
na rua Nova dos Mercadores, no coração de Lisboa e sem dúvida a mais nobre da
capital. Os demais oficiais da nau eram o escrivão Duarte Fernandes, o mestre de
navegação Fernão Vaz e o piloto João Lopes de Carvalho, que já estivera no Brasil
em 1503-4, como piloto de uma das caravelas da expedição de Gonçalo Coelho e
Américo Vespúcio. Carvalho acabaria se tornando a figura-chave da viagem da
Bretoa. Treze marinheiros, 14 grumetes e quatro pajens completavam a tripulação.
A nau partiu de Lisboa em 22 de fevereiro de 1511, um sábado. Em geral, os
navios zarpavam de Portugal nos fins de semana para que os familiares pudessem
acompanhar a partida e se despedir – muitas vezes para sempre – dos parentes que
embarcavam.
Só no dia 12 de março, em alto-mar, o capitão leu as ordens que recebera em
Lisboa e as comunicou aos subalternos. De acordo com elas, a Bretoa deveria
dirigir-se “o mais direta e rapidamente possível” à costa brasileira, onde sua missão
era “obter a maior carga de pau-brasil de boa qualidade, com a menor despesa
possível”.
No dia 6 de abril de 1511, a tripulação da Bretoa
vislumbrou a foz do rio São Francisco, na divisa dos
atuais estados de Sergipe e Alagoas. Onze dias mais
tarde, a 17 de abril, o navio fundeava na baía de Todos
os Santos, onde permaneceria por 27 dias. Aquela era
uma escala habitual e o próprio Vespúcio, como já se
viu, também havia passado “dois meses e quatro dias”
ali em 1503. E um ou dois anos antes da chegada da
Bretoa, nas cercanias daquela belíssima baía
Descoberto em 1844,
naufragara o homem que os nativos iriam batizar de
nos arquivos da torre do
Caramuru e que lá viveria por cerca de 50 anos.
Tombo, em Lisboa, por
Foi durante aquela estada da Bretoa na Bahia que
Francisco
Adolfo
de
ocorreu um incidente, considerado “gravíssimo” pelos
Varnhagen e publicado
oficiais: no dia 5 de maio, o escrivão Duarte Fernandes
pela primeira vez por ele
deu pela falta de alguns machados e machadinhas. Eles
em 1854, na primeira
haviam sido roubados por um ou mais tripulantes e
edição de sua monumental
usados no comércio ilegal de aves, penas e macacos
História Geral do Brasil, o
com os Tupinambá.
Livro da Viagem e
Para investigar o roubo, o capitão incumbiu o Regimento da Nau Bretoa
próprio escrivão e um certo João de Braga, que não tem
14
páginas
fazia parte da relação original de tripulantes da Bretoa. manuscritas, redigidas e
Braga era o encarregado da feitoria então existente na assinadas pelo escrivão do
baía de Todos os Santos, fundada não se sabe quando navio, Duarte Fernandes.
nem por quem. Sem que o caso tivesse sido esclarecido,
a Bretoa zarpou da Bahia em 12 de maio de 1511 levando João de Braga,
possivelmente porque ele estava encarregado de descobrir quem roubara as
ferramentas e também porque seria transferido para a feitoria de Cabo Frio.
No dia 26 de maio, a Bretoa ancorou na ilha Comprida, onde possivelmente se
erguia a mais antiga feitoria do Brasil, fundada por Vespúcio em 1504. Os
tripulantes começaram a carregar o navio em 12 de junho. Ao longo de 15 dias de
trabalho, eles transportaram uma média de 330 toras diárias – o equivalente a oito
toneladas.
Como, dos 36 tripulantes, seis eram oficiais, quatro eram seus pajens (ou criados
pessoais) e 13 eram marujos (que, de acordo com uma longa tradição, se
recusavam a fazer qualquer outro serviço que não pertencesse às funções ligadas à
condução e manutenção do navio), o carregamento do pau-brasil foi realizado pelos
14 grumetes. Em jornadas de dez horas de trabalho, cada um carregou cerca de 24
toras por dia – média de uma tora de 30 quilos a cada 25 minutos. O total atingido
pela carga da Bretoa foi de 5.008 toras, cujo peso ultrapassava as 100 toneladas.
A leitura do regimento da nau Bretoa – que pretendia regular cada passo de seus
tripulantes – revela que o navio era uma espécie de quartel flutuante cuja única
missão além-mar era a obtenção do maior lucro no menor tempo possível. Em tese,
não havia nada de aventuresco na vida dos primeiros “brasileiros”. Praticamente
tudo lhes era vetado. Não podiam ultrapassar os limites da feitoria. Não podiam
visitar terra firme. Não podiam falar e muito menos negociar com os indígenas.
Não podiam pernoitar fora da nau. E não podiam sequer praguejar: aqueles que
“arrenegassem” de Deus, da Virgem ou dos santos seriam multados em três mil
reais e passariam um tempo na cadeia na volta a Portugal. Os rigores da lei
parecem indicar quão movimentado era o dia a dia dos recolhedores de pau-brasil e
revela as “infrações” que mais cometiam: praguejavam, dormiam com as nativas,
comerciavam com os índios, fugiam da feitoria, ou do navio, e iam para terra.
De todo modo, os oficiais também estavam submetidos a ordens estritas. Tudo
que entrasse ou saísse do navio tinha que ser minuciosamente anotado pelo escrivão
– até as agulhas. Tudo era numerado: as peças de “resgate” (facas, anzóis e
machados), que saíam do navio diretamente para as mãos do feitor, e as toras que
nele entravam. Eis um trecho do regimento: “Todos os paus do dito brasil que se
carregarem na dita nau entrarão nela e se arrumarão perante vós e perante vosso
escrivão, que os assentará com boa-fé em seu livro, de tal forma que não possa
haver nisso nenhum erro e a arrumação deles [os paus], a mandareis fazer de tal
modo que possa trazer a dita nau a maior soma que puder, sem vir coisa alguma
dela de vazio.”
Qualquer demora inexplicada ou escala desnecessária custaria ao capitão o seu
ordenado e alguns dias na prisão. Além de supervisionar o embarque da carga, os
oficiais tinham uma outra responsabilidade: deveriam evitar a qualquer custo a
deserção e a fuga dos marinheiros ou grumetes. É o que fica claro no seguinte trecho
do regimento: “Vos lembrareis de terdes grande vigia na gente que vos acompanha,
de maneira que não se possa na dita terra se lançar nem ficar nenhum deles, como
algumas vezes já fizeram, o que é coisa muito odiosa ao comércio e ao serviço do
dito Rei.” Dessa determinação – e do fato de dois grumetes terem desertado da
armada de Cabral – é lícito supor que um significativo número de marinheiros fugia
das naus e procurava abrigo junto aos indígenas.
A única brecha num regulamento de resto extremamente restritivo era a
possibilidade, aberta a todos os tripulantes, de trazer para Portugal animais silvestres
do Brasil – especialmente papagaios, macacos e felinos de pequeno porte, como
jaguatiricas, todos muitíssimo apreciados como animais de estimação e, portanto,
bastante valiosos tanto em Portugal quanto na França. A negociação para obter tais
animais, no entanto, deveria ser feita exclusivamente por intermédio do feitor e nunca
diretamente com os índios.
Os “brasileiros” da nau Bretoa se serviram amplamente da única chance de obter
algum lucro pessoal com sua árdua jornada: mais de 60 animais foram levados
para Lisboa, entre eles 15 papagaios, 12 felinos e seis macacos, além de saguis e
tuins. Só um certo Jurami, criado de Bartolomeu Marchioni, adquiriu oito
papagaios, sete felinos e cinco macacos. Nesse caso, porém, deve tê-los comprado
não para si, mas para o patrão. Ao todo, esses animais foram avaliados em oito
mil reais, valor sobre o qual o escrivão recolheu “um quinto”, referente aos impostos
régios.
O regulamento da Bretoa também proibia expressamente que se desse “carona”
aos indígenas, especificando que, por mais que eles insistissem, nenhum deveria ser
levado para Portugal. O motivo para tal proibição, explicado pelo próprio
regulamento, é bastante curioso. Como muitos dos nativos que decidiam embarcar
por livre e espontânea vontade para Portugal acabavam morrendo a bordo dos
navios ou na Europa, e como os poucos que lá chegavam raramente retornavam,
seus parentes julgavam que os portugueses “os haviam comido, conforme era
costume entre eles próprios”.
É interessante contrapor esse detalhe a outro documento da época, a Nova Gazeta
da Terra do Brasil, na qual se afirma que, muitas vezes, era difícil conter o ímpeto
dos nativos, “dispostos a embarcar de qualquer maneira, pois achavam que iam
para a Terra da Promissão”.
Embora o regimento também especificasse que “nenhum mal ou dano” deveria
ser “cometido contra os naturais da terra”, a nau Bretoa levou 36 escravos para
Lisboa – número igual ao da tripulação original do navio. Eram 26 mulheres e dez
homens. Só o capitão Cristóvão Pires adquiriu “dois moços e três moças, além de
10
O despenseiro
uma moça, que levou por encomenda de Francisco Gomes”.
Jurami, criado do banqueiro Marchioni, comprou “um homem e quatro moças” –
não para si, mas para o patrão. O fato de os tripulantes da Bretoa terem “resgatado”
quase o triplo de “moças” em relação ao total de homens levou pelo menos dois
historiadores a concluir que tais escravas eram utilizadas “basicamente como objetos
11
sexuais”.
Em princípios de agosto, a nau Bretoa zarpou de Cabo Frio, e no dia 11 de
outubro de 1511 ancorou em Lisboa. A viagem durara exatos oito meses e, apenas
com o pau-brasil, o lucro de Fernando de Noronha, Bartolomeu Marchioni e seus
dois sócios chegou a quatro mil ducados.
Antes da partida para Portugal, porém, o feitor João de Braga e o escrivão
Duarte Fernandes concluíram que os culpados pelo roubo das machadinhas e
cunhas, ocorrido três meses antes na baía de Todos os Santos, eram o piloto João
Lopes de Carvalho e um certo Pedro Annes, marinheiro. Embora jurassem
inocência, ambos ficaram desterrados no Brasil.
É provável que João de Braga também tenha permanecido em Cabo Frio, em
substituição ao feitor anterior, que retornou com a Bretoa para a Europa depois de
uma permanência de quatro ou cinco anos no Brasil. Alguns anos depois, João
Lopes de Carvalho e Pedro Annes seriam encontrados, por outra expedição, no Rio
de Janeiro.
Com efeito, poucos meses depois do desterro, Carvalho e Annes fugiram do Cabo
Frio e se instalaram no Rio, não se sabe se na feitoria lá existente ou se em alguma
das muitas aldeias espalhadas pelo entorno da baía de Guanabara – muito
provavelmente em uma aldeia, pois, como se verá, a partir dali, eles viriam a
desempenhar um papel importante na história das viagens marítimas e da
exploração do litoral brasileiro, e nesse momento sua ligação pregressa com os
nativos ficaria evidente.
O NOME DO BRASIL
Por causa do crescente número de navios que, como a nau Bretoa, vinham, todos
os anos, recolher sua carga de “pau-de-tinta”, o território que, em 1500, Pedro
Álvares Cabral batizara de Ilha de Vera Cruz (e, logo a seguir, Terra de Vera Cruz
e, pouco depois, Terra de Santa Cruz) iria se tornar, a partir de 1510, conhecido
quase que exclusivamente por “Terra do Brasil”, depois de ter sido também “Terra
dos Papagaios”.
Ainda assim, embora essa quarta designação tenha se consagrado, não há como
comprovar que o Brasil tenha adquirido seu nome por causa do pau-brasil – ou,
pelo menos, exclusivamente por isso. Afinal, apesar de os livros didáticos e o senso
comum estabelecerem uma relação direta entre o nome do país e o nome da árvore,
a origem da palavra “brasil” é misteriosa e repleta de ressonâncias. Há mais de 20
interpretações sobre a origem do étimo, e as discussões ainda parecem estar longe do
fim.
O certo é que a palavra “brasil” é muito mais antiga do que o costume de utilizar
o “pau-de-tinta” para colorir tecidos. Mais certo ainda é que a lenda e a cartografia
antigas assinalavam, em meio às névoas do mar Tenebroso (como era conhecido o
oceano Atlântico), a existência de uma ilha mitológica chamada Hy Brazil. Uma
ilha móvel, “ressonante de sinos sobre o velho mar”, e que se afastava dos
navegantes assim que eles se aproximavam dela.
Apesar do emaranhado na selva de palavras, o mais provável é que “brasil”
provenha do francês “bersil”, mais tarde “brésil”, cujo significado mais provável é, de
fato, “brasa”. Por outro lado, também é certo que “brasil” advém do celta “bress”,
origem do inglês “to bless” (abençoar) – e que esse termo foi usado para batizar a
ilha da Bem-Aventurança, a lendária Hy Brazil, que teria sido descoberta no ano de
565 pelo monge irlandês São Brandão.
O que pode ter acontecido, no alvorecer do século XVI, é que dois “brasis”, de
origem e significado distintos, se fundiram para nomear um novo e auspicioso
território – a Terra do Pau-Brasil, que também poderia ter sido a Ilha da Bem12
Aventurança.
IV
LA TERRE DU BRÉSIL
oa como uma coincidência quase constrangedora o fato de se chamar
SBretoa
a nau portuguesa graças à qual os detalhes relativos ao comércio de
pau-brasil se tornaram conhecidos. Afinal, o navio recebera esse nome por ter sido
construído em um estaleiro da Bretanha, no noroeste da França. E a indústria naval
da Bretanha não apenas nascera com o prestimoso auxílio de mestres e carpinteiros
portugueses como seria justamente a partir dali, e da vizinha Normandia, em
especial dos portos de Rouen e Dieppe, que iriam zarpar os traficantes e
contrabandistas de pau-brasil que, durante mais de três décadas, assolaram o litoral
brasileiro. A ação desses homens – então chamados “entrelopos” (do inglês
interloper) – não só causou grandes prejuízos financeiros a Portugal como levaria a
França a contestar juridicamente e ameaçar na prática a soberania portuguesa sobre
o Brasil.
Apesar de menos documentada que a dos “brasileiros” vindos de Portugal, a vida
dos entrelopos franceses também pode ser reconstituída com alguma precisão.
Embora restem apenas relatos esparsos – e nenhum deles de próprio punho –, não
há dúvidas de que o cotidiano desses contrabandistas era bem mais aventuresco do
que o dos feitores lusos. Talvez a própria aura de ilegalidade que cercava a operação
– e o fato de ela estar, a princípio, ligada exclusivamente à iniciativa privada –
concedesse aos franceses um grau de liberdade bem maior.
O fato é que, impossibilitados de fundar feitorias – que se tornariam alvo fácil
para as expedições guarda-costas dos portugueses –, os franceses se limitavam a
largar, em pontos estratégicos da costa, onde havia pau-brasil de melhor qualidade,
alguns “contratantes” e intérpretes. Muitos deles, em sua maioria normandos,
obtinham permissão para viver nas aldeias indígenas e acabavam estabelecendo
com os nativos uma ligação de mútua cumplicidade. Alguns, segundo o depoimento
dos cronistas Jean de Lery e André Thevet, se identificavam tanto com as
peculiaridades da vida selvagem que acabavam por “adotar todos os costumes dos
1
índios, chegando até à abominação de comer carne humana”. Havia intérpretes que
se dispunham mesmo a usar enfeites e adereços indígenas, furando os lábios,
raspando os pelos do corpo e se transformando em autênticos “índios louros”.
Não só pela via desses “índios brancos”, mas também porque, ao contrário do
que ocorria com os portugueses, eles não estavam interessados em capturar escravos,
os franceses foram capazes de estabelecer laços estreitos com várias nações indígenas
do litoral brasileiro, nominadamente a Potiguar, a Tabajara e a Tamoio. A lealdade
de alguns grupos nativos a esses seus “parentes” europeus seria de grande valia aos
franceses quando, anos mais tarde, na baía de Guanabara, eles travaram com os
portugueses (e seus aliados indígenas Tupiniquim e Temiminó) a luta decisiva pela
posse do Brasil.
OS NAVEGANTES DO MAR DO NORTE
A Normandia e a Bretanha possuíam uma longa tradição náutica, incrementada
a partir de 1438, quando alguns mestres e carpinteiros portugueses foram
contratados por armadores normandos para ajudar na construção de barcas e
barinéis (os navios que antecederam as caravelas e naus dos séculos XV e XVI). Tais
embarcações eram utilizadas na pesca de arenque no mar do Norte.
No início do século XVI, as cidades de Dieppe e Rouen se consolidaram como os
maiores polos da indústria têxtil da França. Suas tecelagens estavam entre as
maiores e mais eficientes da Europa, e os bonnetries (chapéus e gorros) de Rouen
eram famosos em todo o continente. Apesar da inimizade ancestral, os ingleses
preferiam a moda francesa à sua própria e até os nobres de Florença e de Gênova
vestiam capotes de lã e chapéus de feltro feitos na Normandia. Estava se iniciando o
período em que, por mais guerras em que se envolvesse, a França continuaria
ditando os modos e a moda até mesmo para seus inimigos.
Foi assim que, na virada do século XV para o XVI, uma explosiva equação se
articulou nos portos de Rouen e Dieppe. Ela misturava uma longa tradição de
pirataria com a intensa demanda por corantes naturais provocada pela indústria
têxtil local. A esses dois fatores juntava-se o fato de que tanto a Inglaterra quanto a
França se recusavam a aceitar a validade jurídica do Tratado de Tordesilhas – a
partilha planetária feita em 1494 entre Portugal e Espanha, com bênção papal.
Portanto, quando se soube, na França, que um
vasto território havia sido encontrado por Portugal na
margem oeste do oceano Atlântico e que essa região
era uma fonte quase inesgotável de pau-brasil, a
informação funcionou como fermento para que os três
ingredientes relacionados acima resultassem numa
única ação lógica: os franceses decidiram enviar seus
navios para o Brasil. Embora nenhuma das viagens
fosse “oficial”, é evidente que a Coroa francesa
estimulava o assédio “ilegal” de seus súditos às regiões
tropicais do que viria a ser a América do Sul.
A Normandia, mais
especificamente a região do
Pays
de
Caux,
foi
agraciada com excelentes e
profundos
portos
marítimos, em especial os
de Dieppe (que quer dizer
“profundo” em francês),
Honfleur, Fécamp e Le
Havre,
além
do
movimentado porto fluvial
de Rouen, às margens do
rio Sena. Na vizinha
Bretanha, a natureza foi
mais avara e todos os
portos da região eram
perigosíssimos devido à
pouca profundidade e ao
seu fundo rochoso. Por
causa dessas dificuldades,
os bretões se tornaram
marinheiros hábeis e sua
fama se espalhou pela
Europa.
A VIAGEM DE GONNEVILLE
Na verdade, a conexão marítima entre a França e o Brasil se iniciara quase que
imediatamente após a descoberta feita por Cabral. Graças à viagem de
Pedr’Álvares, tanto os tecelões quanto os armadores da Bretanha e da Normandia
ficaram sabendo, já desde 1504, da existência de uma região que, além de rica em
pau-brasil, era imensa, desprotegida e muito mais próxima dos portos franceses do
que a Índia ou Sumatra. O responsável pela divulgação dessa notícia teria sido um
certo Binot Paulmier de Gonneville.
Binot Paulmier, nascido em Gonneville, vilarejo a 4 quilômetros da paróquia de
Honfleur, era um burguês de natureza inquieta e aventureira. Por coincidência, ele e
mais dois companheiros, Jean L’Anglois e Pierre le Carpintier, estavam em Lisboa
em julho de 1501, quando Cabral retornou de Calicute para Portugal com três naus
carregadas de joias e especiarias. A cidade havia preparado uma grande festa para
2
saudar o retorno de Cabral – celebração que Binot provavelmente presenciou.
Possivelmente, foi o impacto da cena que levou Gonneville a elaborar o ousado
plano de também chegar à Índia.
Embora um alvará do rei D. Manoel proibisse, sob a dureza da lei, que
mareantes lusos servissem a outras nações, Paulmier e seus companheiros
contrataram, nas tavernas portuárias de Lisboa, dois ex-integrantes da frota de
Vasco da Gama – Bastião de Moura e Diogo Coutinho – e os convenceram a partir
numa viagem para o Oriente.
De volta a Honfleur, Binot obteve financiamento de seis ricos mercadores locais.
Como Dieppe e Rouen, Honfleur era um porto de intensa movimentação, localizado
na foz do rio Sena e fronteiro ao canal da Mancha. Foi ali que Gonneville armou um
navio de 120 toneladas, L’Espoir (“A Esperança”), e conseguiu arregimentar 60
marujos.
Com víveres suficientes para dois anos e várias mercadorias para permuta,
L’Espoir zarpou de Honfleur no dia 24 de junho de 1503 (apenas duas semanas
depois de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio terem partido de Lisboa em sua
segunda viagem ao Brasil, e já tarde demais para aproveitar os melhores ventos e
correntes). Orientado pelos “traidores” Bastião de Moura e Diogo Coutinho, o navio
de Gonneville seguiu a rota tradicional descoberta pelos portugueses. Ancorou nas
ilhas Canárias no dia 12 de julho e no dia 30 do mesmo mês chegou a Cabo Verde
(de onde a frota de Coelho e Vespúcio zarpara no dia 10).
Depois de nove dias nesse porto africano, L’Espoir partiu em sua solitária viagem
pelo Atlântico, ainda chamado de “mar-oceano”. Esse era um fato muito raro: as
frotas em geral eram compostas por pelo menos três embarcações, e desde 1434 os
portugueses não se aventuravam em jornadas atlânticas feitas em um só navio.
Retido nas calmarias equatoriais, L’Espoir só cruzou a linha do equador no dia 12 de
setembro. Desencadeou-se então uma tempestade que se prolongou por mais de dez
dias. Quando o tempo enfim amainou, Bastião de Moura e Diogo Coutinho não
foram capazes de dizer onde o navio se encontrava.
Por 40 dias, L’Espoir navegou sem rumo, como se estivesse à deriva. O escorbuto
– o apavorante “mal do mar”, causado pela carência de vitamina C, encontrada em
frutas e legumes (ausentes na dieta de bordo) – abateu-se sobre a tripulação e, de
imediato, vitimou seis tripulantes. A 9 de novembro, quando a situação já era
desesperadora, os marinheiros avistaram um emaranhado de algas e plantas
marinhas – sinal claro de que a terra estava próxima. De fato, no dia seguinte, eles
depararam com uma ilha solitária em meio ao Atlântico. Dois anos mais tarde,
essa mesma ilha seria redescoberta por um capitão português, Tristão da Cunha, e
o
receberia seu nome. Sua localização é 37 15’ de latitude sul – na altura da atual
cidade de Mar del Plata, na Argentina (veja mapa logo adiante). Ali, Paulmier
parece ter desistido do sonho de ir à Índia, guinando bruscamente para noroeste. A
explicação mais plausível para esse desvio de rota é o fato de que, impossibilitado de
seguir para o Oriente, Gonneville teria decidido alcançar as terras que Cabral
descobrira em 1500.
Mas quase dois meses ainda seriam necessários até Gonneville vislumbrar
3
montanhas verdejantes e aportar às margens de “um rio semelhante ao Orne”, rio
esse que deságua no canal da Mancha depois de cruzar a cidade de Caen, na
Normandia. Era o dia 5 de janeiro de 1504, e o capitão normando Binot Paulmier
se tornava o primeiro europeu a tocar em solo brasileiro ao sul da ilha de Cananeia
(que Vespúcio e Coelho haviam descoberto dois anos antes, em janeiro de 1502).
Convencionou-se que o “rio semelhante ao Orne” é a atual baía de Babitonga, o
vasto estuário do rio Palmital localizado junto à ilha de São Francisco do Sul, no
litoral norte de Santa Catarina, na atual fronteira com o Paraná, embora na verdade
não existam provas concretas de que o desembarque tenha de fato se dado ali.
Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil, realizada entre junho de 1503 e maio
de 1505.
De todo modo, bem recebidos pelos índios, os franceses permaneceram seis meses
ancorados lá. Os nativos se revelaram pacíficos. O líder local se chamava Arosca e
ordenou que seus guerreiros suprissem os mareantes de carne de veado, frutas e
pinhões. Arosca era um Carijó, tribo Guarani que, anos mais tarde, os jesuítas
portugueses definiriam como “o melhor gentio de costa” e que os moradores de São
Vicente escravizaram em larga escala.
Em 3 de julho de 1504, com o L’Espoir carregado de peles e penas, Binot de
Paulmier resolveu retornar para a Europa. Os normandos haviam permanecido seis
meses em companhia dos nativos sem que entre eles irrompesse nenhum conflito.
Impressionado com a artilharia dos franceses – e convicto de que aqueles homens
estranhos eram “anjos do céu” –, Arosca decidiu enviar para a França seu filho e
herdeiro, o “príncipe” Essomeriq, um garoto de apenas 13 anos. Em companhia de
seu tutor, que se chamava Namoa, Essomeriq partiu para Honfleur com a missão
de “aprender a fazer canhões”, com os quais o ardiloso Arosca sonhava esmagar
seus vizinhos e inimigos tradicionais, os Tupiniquim do litoral de São Paulo, futuros
aliados dos portugueses e membros do mesmo grupo étnico que também vivia no
litoral sul da Bahia.
A viagem de volta foi uma jornada de danação. Enfrentando as tormentas do
inverno meridional, L’Espoir avançou ao longo da costa brasileira. As febres
tropicais e o escorbuto dizimaram a tripulação. Até Essomeriq e Namoa foram
acometidos pela doença. Namoa morreu. Julgando que o jovem príncipe também
não fosse sobreviver, Binot Paulmier decidiu cristianizá-lo – e o batizou com o
próprio nome. Mas o jovem e saudável Essomeriq se curou.
No dia 10 de outubro de 1504, Gonneville resolveu desembarcar para reabastecer
o navio e descansar das fadigas do mar. Mas escolheu o lugar errado: ancorou
numa praia habitada por selvagens ferozes e antropófagos. O L’Espoir
provavelmente estava próximo à foz do rio Paraíba do Sul, na atual divisa entre os
estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo – território dos temíveis Goitacá (ou
Waitaka), “tapuias” do grupo Jê, tidos como a mais agressiva dentre todas as nações
do litoral brasileiro. Intrépidos pescadores de tubarão e canibais inveterados, os
Goitacá puseram em fuga os alquebrados marujos de Gonneville.
Dez dias mais tarde, L’Espoir chegou à baía de Todos os Santos, onde seus
tripulantes foram bem recebidos pelos Tupiniquim. Lá, os franceses puderam
descansar e abastecer o navio com uma preciosa carga de pau-brasil. Então, na
véspera do Natal de 1504, Gonneville zarpou pela terceira vez rumo à França. No
dia 10 de fevereiro de 1505, cruzou o equador, dessa vez em direção ao norte. Em 9
de março, aportou nos Açores.
Dois meses mais tarde, em 7 de maio, Gonneville estava a apenas 150
quilômetros de casa. Mas, quando o L’Espoir cruzava ao largo de Jersey, uma das
ilhas do canal da Mancha, o navio foi atacado primeiro por um pirata inglês, do
qual se livrou apenas para deparar com um pirata bretão. Sem alternativa,
Paulmier preferiu jogar o L’Espoir contra os recifes; seus marinheiros nadaram para
terra, lutando para encontrar refúgio antes que fossem mortos pelos piratas.
Em 20 de maio de 1505, 28 homens famintos e esfarrapados entravam a pé em
Honfleur. Eram os únicos sobreviventes da expedição de Binot Paulmier, entre os
quais se incluíam ele próprio e seu afilhado, o jovem “príncipe” Carijó Essomeriq.
Toda a carga do L’Espoir afundara ou fora saqueada e a Binot Paulmier restou
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apenas o frágil expediente de denunciar a violência dos piratas às autoridades locais.
Vendo-se, assim, impossibilitado de cumprir a promessa de levar Essomeriq de
volta ao pai, Binot de Paulmier decidiu casá-lo com sua própria filha, Marie Moulin,
e o fez herdeiro de todas as suas propriedades. Por mais de meio século, Essomeriq
viveu em Honfleur, onde se tornou um cidadão conhecido e respeitado, com muitos
filhos, netos e bisnetos. O príncipe indígena morreu em 1583, aos 94 anos. Em 1658,
um de seus descendentes, Jean Paulmier, tornou-se abade e escreveu um livro,
dedicado ao papa Alexandre VII, solicitando que se enviassem missionários ao sul
do Brasil. Mas, então, os Carijó já estavam quase extintos, escravizados por
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bandeirantes e mamelucos de São Paulo.
Embora a viagem de Binot Paulmier de Gonneville
tenha se configurado um fracasso comercial, ela parece
ter alertado definitivamente os normandos para a
existência do Brasil – um território amplo demais para
que os portugueses pudessem controlar e no qual a
madeira corante que tanto interessava à indústria têxtil
da Normandia podia ser recolhida com facilidade. Não
se sabe quantos navios normandos e bretões seguiram
a rota aberta por Gonneville, mas com certeza foram
dezenas. Raro é o relato feito por expedições
portuguesas subsequentes no qual não se mencione a
Giovanni Verrazzano
presença de pelo menos uma nau francesa avistada em
nasceu em 1485, num
algum ponto do litoral brasileiro.
castelo a cerca de 50
AS VIAGENS DOS IRMÃOS VERRAZZANO
quilômetros de Florença,
Por volta de 1524, os marinheiros normandos já na Toscana, Itália. Era de
haviam reconhecido (e ajudado a cartografar) origem nobre e foi criado
praticamente toda a costa brasileira do Maranhão ao dentro do espírito do
Rio de Janeiro, embora suas expedições continuassem humanismo renascentista,
sendo esparsas. A ligação marítima entre Honfleur- como seu conterrâneo e
Dieppe-Rouen e o Brasil parece ter se tornado mais
intensa e rotineira a partir das viagens dos irmãos
Giovanni e Girolamo Verrazzano. Italianos originários
da Toscana, os Verrazzano se estabeleceram em
Dieppe e viajavam sob bandeira francesa. Em sua
primeira jornada, realizada em 1522, eles se tornaram
os primeiros navegadores europeus a chegar à ilha de
Manhattan, onde hoje se ergue Nova York.
Em julho de 1526, os irmãos partiram de Dieppe
com duas naus e dois galeões – dessa vez dispostos a
chegar às Molucas, na Malásia. Foi uma viagem
atribulada, repleta de naufrágios e tragédias. No
caminho de volta, sem ter conseguido atingir seu
objetivo (embora tenham vencido o cabo da Boa
Esperança e chegado até Sumatra), os Verrazzano
tocaram pela primeira vez o litoral do Brasil,
provavelmente em Pernambuco. Ali, encheram de
pau-brasil o porão da única nau que lhes restava. A
valiosa carga pagou as despesas daquela triste jornada.
contemporâneo
Américo
Vespúcio. Junto com seu
irmão Girolamo, Giovanni
se mudou para Dieppe por
volta de 1506. Lá, passou
a navegar nos navios
pertencentes ao banqueiro e
comerciante Jean Ango.
Sua morte provavelmente
ocorreu na ilha de
Guadalupe,
possessão
francesa no mar do Caribe.
Segundo o relato de seu
irmão
Girolamo,
testemunha ocular da cena,
os
índios
Caribe
devoraram “partes ainda
trêmulas” do corpo do
navegador. O busto acima
pertence ao acervo da
National Gallery of Art, de
Washington, D.C., EUA.
Em maio de 1528, os irmãos tornaram a partir de
Dieppe. Em julho, quando sua frota estava em uma
ilha do Caribe, Giovanni foi morto e devorado por
antropófagos diante do irmão e da horrorizada tripulação. Ainda assim, Girolamo
prosseguiu em direção a Pernambuco, onde obteve novo carregamento de paubrasil. No ano seguinte, o mesmo Girolamo viria ainda outra vez ao Brasil,
abarrotando três naus com o “pau-de-tinta” – que os normandos chamavam de
“bois rouge” (“madeira vermelha” em francês) ou de “arabutan” (palavra de origem
tupi).
Foram as viagens de Girolamo Verrazzano que estabeleceram a rota ideal e os
métodos de coleta de pau-brasil para as expedições seguintes dos franceses, cada vez
mais frequentes a partir de então. Também é provável que tenha sido esse navegante
toscano quem inaugurou o costume de deixar “intérpretes” normandos para viver
entre os indígenas do Brasil e recolher as cargas de “bois rouge”.
Ao retornar ao local onde haviam deixado seus intermediários, os franceses
disparavam dois tiros de canhão anunciando sua chegada. Então o “intérprete” (que,
como os feitores lusos, também se especializava em ensinar os papagaios a falar)
vinha para a praia e os índios iniciavam o carregamento de pau-brasil. Como os
portugueses, os franceses também pagavam os nativos
com quinquilharias, espelhos e machados.
A presença desses traficantes no litoral brasileiro
tornou-se tão comum que muitos acidentes foram
batizados com nomes como Porto Velho dos Franceses
e Porto Novo dos Franceses (ambos no Rio Grande do
Norte), rio dos Franceses (na Paraíba), baía dos
Franceses (em Pernambuco), boqueirão dos Franceses
(em Porto Seguro) ou praia do Francês (próxima à
atual Maceió, em Alagoas). Outro ponto no qual os
navios normandos ancoravam com muita frequência
era a praia de Búzios, no Rio Grande do Norte, cerca
de 25 quilômetros ao sul de Natal.
O pau-brasil recolhido pelos entrelopos era vendido
em Rouen por 1,2 ducado o quintal, a metade do preço
praticado pelo grupo liderado por Fernando de
Noronha (que era de 2,5 ducados o quintal). É natural,
portanto, que as viagens dos traficantes franceses
tenham causado grandes prejuízos financeiros a
Portugal,
diminuindo
consideravelmente
sua
exportação de pau-brasil para a França.
A ilustração abaixo
representa um marinheiro
normando perambulando
pelo porto de Honfleur,
logo após chegar do Brasil,
em companhia de seu
papagaio. A cena era
bastante
comum
na
Normandia durante a
terceira década do século
XVI,
quando
muitos
animais
e
indígenas
brasileiros podiam ser
encontrados nos portos do
norte da França e até em
Paris.
O IMPÉRIO DE JEAN ANGO
Entre os homens que financiaram as expedições dos
irmãos Verrazzano – e inúmeras outras que vieram
depois – estava um personagem que iria criar vínculos
cada vez mais estreitos com o Brasil. Era o mercador e
banqueiro Jean Ango, futuro visconde de Dieppe.
Protegido do cardeal d’Amboise – figura de grande importância na corte de Luís XII
–, Ango (pronuncia-se Angô) financiara as primeiras expedições francesas à
América do Norte. Patrocinou também as viagens de Jacques Cartier, fundador de
Québec e da Nova França, no Canadá – território que, por duas décadas, foi quase
propriedade privada do chamado “sindicato Ango”.
Os negócios de Jean Ango se estendiam das ilhas Britânicas à Turquia. A família
tinha entrepostos na Itália, em Chipre, na Grécia e nos Países Baixos. Sua frota
possuía mais de 50 navios, navegando sob bandeira própria. Nessa bandeira, Ango
mandara colocar a lua crescente, símbolo dos países árabes, com os quais mantinha
lucrativas ligações comerciais. A partir de 1510, os navios de Ango se dedicaram
também à pirataria (ou “corso”) contra os navios
portugueses, obtendo, entre 1515 e 1540, lucros
6
superiores a um milhão de cruzados.
A foto abaixo, extraída
do livro O Índio Brasileiro
e a Revolução Francesa, de
Jean Ango se tornou também o principal Afonso Arinos de Mello
incentivador da ocupação francesa do Brasil. A Franco, mostra o castelo de
maioria dos navios que vinham recolher pau-brasil em Jean Ango em Varengeville,
Pernambuco, no Rio Grande do Norte e na Paraíba no norte da França. O
pertencia a ele. Entre 1525 e 1530, Ango ganhou tanto castelo ainda existe e está
dinheiro com o tráfico de “bois rouge” que mandou aberto a visitação pública.
construir em Dieppe uma belíssima mansão, toda feita
em jacarandá e pau-brasil. Essa casa, palco de festas
memoráveis frequentadas por príncipes e reis, por
bispos e ministros (entre os quais o rei da França,
Francisco I, e os príncipes da família Médici), vivia
repleta de indígenas e de animais vindos do Brasil. Eles
circulavam livremente pelo pátio interno, entre
chafarizes e jardins.
Mas Jean Ango não morava nessa mansão. Ele
vivia em um esplêndido castelo em Varengeville,
pequeno povoado entre Rouen e Dieppe (foto anterior).
Uma ala do Château de Varengeville fora decorada com motivos ornamentais
inspirados pelo rendoso tráfico do pau-brasil. O palácio de Ango, bombardeado
pelos ingleses em 1694, foi restaurado no século XIX e ainda pode ser visitado.
O TESTAMENTO DE ADÃO
O crescente assédio francês ao Brasil – de início, fruto da iniciativa privada –
começara a se tornar, pelo menos a partir de 1524, política oficial, estimulada pelo
rei da França, Francisco I d’Angoulême, que assumira o trono em 1515. Como seu
antecessor, Luís XII, Francisco I não aceitava as estipulações do Tratado de
Tordesilhas, o acordo que em 1494 não só dividira o mundo entre Portugal e Castela
como também tornara o Atlântico um oceano fechado (mare clausum) a outros
países. A França decidiu desafiar os “direitos adquiridos” das Coroas ibéricas sobre o
Novo Mundo e lutar pela “liberdade dos mares” (mare liberum).
Houve poucos conflitos “oficiais” entre Portugal e
O tráfico entre a
França durante o reinado de Luís XII (1498-1515), já Normandia e o Brasil se
que as relações entre as duas Coroas se mantiveram tornou tão rendoso que,
estáveis. Embora os portugueses assegurassem que um por volta de 1550, chegou
número “passante de 300 navios” seus – cujo valor era
superior a um milhão de cruzados – tivessem sido
capturados pelos corsários franceses ao longo de duas
décadas, o rei D. Manoel sabia que seus súditos eram
atacados por indivíduos fora da lei. Sua preocupação
tornou-se muito maior quando ele percebeu que
Francisco I parecia decidido a incentivar essas ações.
Ao assumir o trono, Francisco I tentara uma
aliança com Portugal, oferecendo a D. Manoel a mão
de sua filha, a princesa Carlota. Mas a infanta morreu
prematuramente e, a princípio, a aparente neutralidade
de Portugal pareceu ser o bastante para o monarca
francês. Mas, disposto a atacar as possessões de Carlos
V em todos os quadrantes do globo, Francisco I logo
decidiu afrontar também as determinações do Tratado
de Tordesilhas. Ao justificar sua atitude, em uma carta
a um diplomata espanhol, o rei francês faria o mais
ousado e mordaz dos comentários sobre o tratado. “O
sol brilha para mim como para todos”, disse ele.
“Gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que
7
me excluiu da partilha do mundo.”
a ser construída em Rouen
uma esplêndida estalagem
chamada L’Isle du Brésil
(A Ilha do Brasil). O
prédio foi derrubado em
1867, mas dois dos
belíssimos entalhes que o
decoravam
foram
preservados e estão no
Museu Marítimo de Rouen
(a seguir). Com cerca de 2
metros de comprimento por
50 centímetros de largura e
6 centímetros de espessura,
esses painéis – que
originalmente
eram
coloridos – mostram os
índios brasileiros cortando
o pau-brasil e levando
suas toras nos ombros até
as naus francesas.
Em 1524, após o sucesso da segunda viagem dos irmãos Verrazzano ao Brasil,
precisando de cada vez mais dinheiro e em íntima associação com Jean Ango (cujos
navios e tripulantes lhe eram de grande valia na guerra contra Carlos V), Francisco I
concluiu que, entre a dúbia neutralidade de Portugal e as riquezas que poderia obter
no Brasil, a segunda opção lhe era bem mais vantajosa. E assim, virtualmente,
oficializou o assédio à “terre du brésil”, rompendo todos os acordos de paz e tratados
diplomáticos que firmara com Portugal. A crescente audácia dos franceses logo
obrigaria a Coroa lusitana a agir.
O GUARDA-COSTAS CRISTÓVÃO JAQUES
Em fevereiro de 1526, o embaixador português na
França, João da Silveira, escreveu uma carta
alarmante para o rei D. João III (filho e sucessor de D.
Manoel que subira ao trono após a morte do pai em
1521). Silveira alertou o monarca para o fato de que
dez navios de corsários franceses estavam se
preparando para zarpar de Honfleur. Vários deles se
dirigiriam ao Brasil. D. João III resolveu agir com
rapidez e rigor. Em fins de 1526 (ou início de 1527), ele
enviou a terceira expedição guarda-costas ao Brasil.
Mais uma vez, ela seria chefiada pelo fidalgo Cristóvão
Jaques – que já estivera no Brasil em 1516 e em 1521,
como se verá nos capítulos V e VI.
Por muitos anos, julgou-se que Jaques fosse de
origem francesa (por causa da grafia do nome) – o que
tornaria sua vigorosa ação contra os entrelopos
normandos ainda mais peculiar. Mas pesquisas
genealógicas realizadas em 1924 por Esteves Pereira
provaram que ele era de origem espanhola: os Jaques
eram originários do reino de Aragão e seu nome
provinha das vizinhas montanhas de Jaca.
Francisco I, que passou
à História como o primeiro
dos reis absolutistas, subiu
ao trono em 1515. No ano
seguinte, com a morte de
Fernando de Aragão, o
trono da Espanha foi
ocupado por um de seus
netos, o arquiduque da
Áustria, Carlos I. Em
1519, Carlos I, aclamado
imperador, passou a se
chamar Carlos V e se
tornou senhor de amplos
territórios, que incluíam a
Espanha e suas colônias na
América,
Flandres,
a
Áustria, a Alemanha e
parte da Itália. Com as
fronteiras ameaçadas pelo
crescente poderio da Casa
da Áustria, Francisco I
decidiu agir. Em 1521,
atacou Milão e deflagrou a
guerra contra Carlos V.
Concessionário do comércio de pau-brasil de 1516 a
1522, Cristóvão Jaques foi nomeado “governador das
partes do Brasil” em fins de 1526. No início do ano
seguinte, partiu de Portugal para combater os franceses
com quatro caravelas e uma nau. Uma de suas
caravelas seguiu para a Guiné e os demais navios
chegaram a Pernambuco em maio de 1527. Ao
aportar na feitoria que ele próprio havia fundado em
1516 na ilha de Itamacará, Jaques soube que quatro
navios franceses estavam carregando pau-brasil na
baía de Todos os Santos. Quem lhe deu a informação
foi um ilustre e infeliz náufrago espanhol, D. Rodrigo
de Acuña. Jaques dirigiu-se de imediato para a Bahia,
disposto a atacar os invasores. Ao chegar lá, descobriu
que um dos navios inimigos era justamente a caravela que ele tinha enviado para a
Guiné. O barco fora capturado pelos franceses, que haviam “deitado ao mar” toda a
tripulação.
O combate entre Jaques e os traficantes franceses foi travado em fins de junho de
1527 e se prolongou por um dia inteiro. Foi uma luta violentíssima. Houve dezenas
de vítimas, mais de cem, provavelmente. Um ano depois, alguns sobreviventes
franceses conseguiram retornar à França, onde fizeram um dramático relato do
episódio para o rei Francisco I. Em seu depoimento, eles disseram:
“Depois de afundados os nossos navios, alguns de nossos súditos se saíram à
terra e se meteram nas mãos dos selvagens. Antes, outros dos nossos súditos se
meteram nas mãos e mercê dos ditos portugueses, esperando ser deles melhor
tratados, porém eles, os ditos portugueses, enforcaram alguns dos nossos súditos e
outros meteram e enterraram até os ombros e o rosto e depois os martirizaram
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cruelmente a setadas e tiros de espingarda.”
Informado das brutalidades cometidas por Jaques, o rei Francisco I se indignou.
Em setembro de 1528, enviou uma carta veemente ao rei de Portugal, D. João III.
Um embaixador francês, Glyas Hellie, partiu de Paris para entregar a carta e
apresentar protestos formais. Durante nove semanas, D. João III negociou com os
franceses, mas não fez concessões. Em fins de outubro de 1528, porém, D. João III
decidiu destituir Cristóvão Jaques do cargo de governador do Brasil e determinar seu
imediato regresso a Portugal. Os requintes de crueldade com os quais Jaques tratara
os franceses na Bahia acabariam fazendo com que ele caísse em desgraça na corte.
Em outubro de 1529, quando 25 dos franceses capturados por Jaques
continuavam presos em Lisboa – condenados à morte –, Francisco I enviou a
Portugal um novo embaixador, Pierre de Lagarde. O objetivo dessa missão
diplomática era não só obter a libertação dos cativos como também pedir um
empréstimo de 400 mil cruzados a D. João III. Francisco I queria o dinheiro para
uma causa dramática: em fins de 1525, derrotado na Itália, ele fora forçado a deixar
seus filhos como reféns das tropas de Carlos V. O imperador exigia 400 mil
cruzados de resgate.
Quando o embaixador Lagarde chegou a Portugal, encontrou um reino em
dificuldades financeiras: em abril de 1529, D. João III comprara da Espanha as
ilhas Molucas (na Indonésia) por 350 mil ducados. Ainda assim, o rei vislumbrou
no episódio uma chance de solucionar os conflitos com a França. Primeiro, libertou
os prisioneiros. Depois, ofereceu 100 mil cruzados a Francisco I, afirmando que, na
verdade, estava dando os 400 mil pedidos: os restantes 300 mil, disse D. João III,
deveriam ser descontados dos prejuízos causados pela ação dos franceses no Brasil.
Francisco I aceitou a proposta. Assim, em janeiro de 1530 um acordo foi firmado
entre as duas Coroas. Através dele, o próprio almirante Philippe Chabot,
comandante-chefe da marinha francesa, ficou encarregado de reprimir a ação dos
piratas normandos, ganhando, para isso, uma quantia extra, paga por D. João III.
Mas a questão ainda não estava encerrada. Um mês após a assinatura do
tratado, os portugueses capturaram um galeão e uma barca pertencentes a Jean
Ango. Embora as duas embarcações estivessem em águas territoriais portuguesas, e
cheias de mercadorias saqueadas de navios lusos, Ango se indignou e exigiu
indenização. Chegou a afirmar que iria declarar ele próprio guerra a Portugal e
anunciou que seus navios bloqueariam o porto de Lisboa.
Embora tais afirmações pudessem soar como bravata, o fato é que Jean Ango
obteve de Francisco I uma “carta de corso”, ou seja, uma autorização legal para
atacar navios portugueses e saqueá-los até obter butim equivalente a 200 mil
cruzados. Dessa forma, Francisco I simplesmente ignorou o acordo que firmara com
Portugal. O caso só foi resolvido em 15 de agosto de 1531, quando D. João III
comprou a “carta de corso” do próprio Ango, enviando emissários à França e
pagando 60 mil francos (equivalentes a 100 mil cruzados) pela “carta”. Só então os
homens e os navios de Ango pararam de atacar os lusos e suspenderam o assédio ao
Brasil.
Abandonado pelos amigos mais influentes e
assediado pelos credores, Jean Ango morreu quase na
miséria, em 1551. Foi enterrado na igreja de SaintJacques, em Dieppe, sob lápide decorada com figuras
dos índios brasileiros.
A PEREGRINA
Apesar de João III ter comprado a “carta de corso”
(também chamada “carta de marca”) de Jean Ango e
assinado um acordo com Francisco I, nem assim a
ação de outros contrabandistas franceses cessou. Tanto
é que, em setembro de 1531, os portugueses
capturaram, em frente à cidade de Málaga, na
Espanha, próximo ao estreito de Gibraltar, no
Mediterrâneo, a nau La Pèlerine. A Peregrina retornava
do Brasil com o porão cheio de pau-brasil e outras
mercadorias. A nau foi avistada por acaso por um
navio português que partira de Lisboa para levar o
bispo D. Martinho a Roma, onde ele iria tratar do
estabelecimento do Tribunal da Inquisição em
Por não concordarem
com os direitos que
Portugal obtivera através
do Tratado de Tordesilhas,
os franceses instauraram
um processo judicial contra
a corte de Lisboa após a
apreensão da nau A
Peregrina. Graças aos
registros desse tribunal é
que os detalhes do episódio
se tornaram conhecidos. O
fato de A Peregrina
transportar em seus porões
a espantosa quantidade de
três mil peles de onça levou
o historiador americano
Dean Warren a dedicar ao
tema duas páginas de seu
Portugal.
A Peregrina havia zarpado de Marselha para o
Brasil em dezembro de 1530, com 120 homens, 18
canhões, munição e material de construção a bordo.
Um dos armadores da nau era o barão de Saint
Blancard, comandante da esquadra francesa do
Mediterrâneo. A missão, “militar, comercial, agrícola e
9
feitorial”, partiu com a aprovação de Francisco I,
apesar de ele ter assinado o tratado com D. João.
Em março de 1531, A Peregrina chegou à feitoria
que Cristóvão Jaques havia fundado em 1516 na ilha
de Itamaracá, no litoral de Pernambuco. O feitor
Diogo Dias, cinco portugueses e dezenas de índios
aliados resistiram dois dias ao ataque dos franceses.
Devido à desproporção de forças, foram forçados a se
render e celebraram a paz com os inimigos. Mediante o
pagamento de 400 ducados, chegaram a ajudá-los a
construir uma fortaleza, feita para substituir a feitoria
destruída pela artilharia francesa. Durante três meses,
os entrelopos permaneceram instalados em seu novo
fortim.
livro A Ferro e Fogo
(sobre a devastação da
Mata
Atlântica),
especulando
sobre
o
impacto causado por tal
mortandade não só no
meio ambiente, mas nos
próprios
costumes
indígenas. Abaixo, retrato
do rei da França Francisco
I, que rompeu todos os
acordos diplomáticos que
fez com Portugal.
Em junho de 1531, deixando 70 homens no forte, os
franceses partiram de Itamaracá. Dois meses mais
tarde, foram capturados em Málaga. Nos porões de A
Peregrina os lusos apreenderam cinco mil quintais (ou cerca de 15 mil toras,
equivalentes a 300 toneladas) de pau-brasil, três mil peles de onça, 600 papagaios e
300 quintais (1,8 tonelada) de algodão, além de óleos medicinais, pimenta, sementes
de algodão e amostras minerais. Ao todo, para fins de indenização, o valor da carga
foi calculado pelos franceses em 62 mil ducados.
O preço das mercadorias foi visivelmente aumentado, já que, por cada quintal de
pau-brasil, os contrabandistas exigiram oito ducados (o triplo do valor de mercado e
cinco vezes mais do que o preço praticado por eles mesmos). O valor de cada
papagaio foi calculado em seis ducados e cada pele de onça valeria três ducados.
Esses números fornecem dados elucidativos para a compreensão das dimensões que
o tráfico ilegal entre o Brasil e a França atingira na terceira década do século XVI – e
do profundo impacto que ele teria sobre certas espécies de árvores e animais.
A compra da “carta de corso” de Jean Ango, a captura de A Peregrina e a
subsequente destruição do fortim de Itamaracá por Pero Lopes de Sousa, em
novembro de 1532, marcaram o fim do primeiro período de assédio dos franceses
ao Brasil. Três décadas e meia ainda seriam necessárias antes que a França voltasse
outra vez seus olhos para o Brasil – e, então, invadisse oficialmente o país em 1555,
quando o navegador Nicolas Villegaignon fundou, no Rio de Janeiro, com o apoio
do rei francês Henrique II, o enclave que seria chamado de França Antártica e que os
portugueses precisariam de dez anos para destruir, enfim, acabando com a ameaça
que os franceses representavam para os seus interesses no Brasil.
V
O RIO DAS GRANDES RIQUEZAS
o contrário da França, a Espanha evidentemente concordava com as
Aestipulações
do Tratado de Tordesilhas. Afinal, a partilha do mundo, feita em
1494 com bênção papal, fora assinada de comum acordo entre Portugal e Espanha
– e evitara, naquele momento, a guerra iminente entre as duas Coroas. Porém, como
nenhum cosmógrafo era capaz de demarcar com precisão o local pelo qual passava
a linha divisória estabelecida pelo tratado (e como a própria realidade geográfica da
América permaneceria envolta em contornos nebulosos pelo menos até a descoberta
do estreito de Magalhães, em 1519), os dois reinos ainda travariam muitos conflitos
diplomáticos até que a situação se apaziguasse.
Os choques entre as Coroas ibéricas eram aumentados pelo fato de que reinava na
Espanha grande confusão com relação à natureza da região que se estendia desde o
cabo de Santo Agostinho (em Pernambuco) até Pária (na Venezuela) – zona que
fora, toda ela, descoberta e explorada a partir de 1498 pelas expedições espanholas
comandadas por Cristóvão Colombo, Alonso de Hojeda, Vicente Pinzón e Diego de
Lepe.
Castela estava convencida de que toda essa área, que ficava ao sul do mar do
Caribe, lhe pertencia por direito. Os espanhóis acreditavam também que o território
que Cabral havia descoberto ao sul do cabo de Santo Agostinho era apenas uma
ilha. Sobre os limites de Tordesilhas nas porções meridionais do que viria a ser o
Brasil, o desconhecimento era ainda maior – na verdade, talvez fosse total, e, nesse
caso, por parte das duas Coroas.
Mas Castela logo obteria novas informações sobre o território do Brasil. Afinal,
no dia 5 de fevereiro de 1505 retornava para Sevilha o homem que mais conhecia a
região que Cabral havia avistado em abril de 1500 e que ele próprio já havia
explorado duas vezes: o florentino Américo Vespúcio.
Poucos dias antes, Vespúcio fora demitido pelo rei D. Manoel – ou talvez tenha se
demitido… A carta escrita pelo mercador Piero Rondinelli (a mesma graças à qual
o contrato entre D. Manoel e Fernando de Noronha ficou conhecido) afirmava, já em
1502, que Américo se julgava “mal pago” e estava insatisfeito com o tratamento que
lhe era dispensado pelo rei de Portugal. Alguns historiadores, contudo, acham que foi
o retorno de Gonçalo Coelho (que teria chegado a Portugal em janeiro de 1505, seis
meses após o retorno de Vespúcio) que na verdade precipitou a demissão do
florentino. Cabe lembrar que os dois haviam brigado durante sua segunda viagem
conjunta ao Brasil e seus desencontros – primeiro na ilha de Fernando de Noronha e
depois na Bahia – podem ter sido provocados por Vespúcio, embora em suas cartas
o florentino afirme o contrário. Na verdade, até hoje não se sabe quem abandonou
quem.
De todo modo, Américo Vespúcio não só deixou Portugal como, em 24 de abril
de 1505, naturalizou-se castelhano. Logo a seguir, informou ao rei D. Fernando que
o Brasil não era uma ilha, mas parte de um vasto continente, que se estendia desde o
golfo de Pária, na Venezuela, até pelo menos Cananeia, no litoral sul do atual estado
de São Paulo.
Ainda mais importante é que Vespúcio estava convencido da existência de um
estreito, que se localizaria no meio ou ao fim dessa massa continental. Essa suposta
passagem marítima para a Ásia conduziria a Málaca e às ilhas Molucas, território
que ficava a leste da Índia e era tido como o lugar no qual “nasciam todas
especiarias”. E o melhor é que Vespúcio averiguara que, a partir de Cabo Frio, a
costa brasileira inclinava-se resolutamente para oeste. O suposto estreito, portanto,
haveria de se localizar em território pertencente à Espanha. Com tal opinião
concordavam os maiores navegadores espanhóis de seu tempo, Vicente Yañez
Pinzón e Juan de la Cosa.
Em 7 de novembro de 1507, o rei D. Fernando convocou Vespúcio e Juan de la
Cosa para irem a Burgos, no norte da Espanha. Lá já estavam D. Juan Rodrigues de
Fonseca, bispo de Córdoba e responsável por todos “os negócios das Índias”, e os
pilotos Vicente Pinzón e João Dias de Solis. Solis era um navegador português que
um ano antes fugira de Portugal (onde havia sido condenado pelo assassinato da
mulher) e que, tal como Vespúcio, também se naturalizara castelhano.
Embora fossem o mais estrito segredo de Estado, as três principais decisões
tomadas pela chamada Junta de Burgos logo ficaram conhecidas em Portugal,
graças a uma eficiente rede de espionagem. A primeira delas foi a nomeação de
Américo Vespúcio para o cargo de piloto-maior da Espanha. Ele assumiu o posto
em 22 de março de 1508, com um salário anual de 50 mil maravedis (veja sobre os
valores monetários em “O Poder e o Valor das Moedas“). A partir de então, nenhum
navegador poderia exercer sua profissão sem antes ser examinado por Vespúcio e
receber dele uma carta de habilitação.
A segunda decisão foi a de enviar uma expedição conjunta, comandada por
Pinzón e Solis, para averiguar em que lugar do litoral sul do Brasil passava a linha
de Tordesilhas. Por fim, ficou decidido também que Juan de la Cosa deveria partir
para o Caribe em busca de uma passagem para o suposto “mar do Sul” – o oceano
que, em tese, banharia a costa oeste da América e conduziria às desejadas ilhas
Molucas. Ambas as viagens se concretizaram, embora, como se verá, sem
resultados práticos.
Com efeito, Vicente Pinzón e Juan Díaz de Solís partiram rumo ao Brasil já no
dia 23 de maio de 1508. Em fins de junho, tocaram o cabo de Santo Agostinho, em
Pernambuco. É provável que tenha sido essa visita de Pinzón ao cabo que ainda hoje
leve vários historiadores a julgar que ele também teria estado ali em janeiro de 1500,
o que não ocorreu. De Pernambuco, supõe-se que a expedição conjunta tenha
perlustrado a costa do Brasil até a altura de Cabo Frio. Sem terem encontrado uma
passagem marítima para o oeste e já rompidos um
com o outro em função de disputas surgidas durante a
viagem, Pinzón e Solís retornaram à Espanha. Em 14
de novembro de 1509, com os navios repletos de paubrasil, eles aportaram em Sevilha.
Considerado responsável pela briga que eclodira
durante a viagem, Solís foi imediatamente enviado
para a prisão. Já Pinzón, embora satisfeito com a
punição do rival, decidiu que, após tantas agruras
vividas no mar, era hora de se aposentar. Cinco anos
depois, em 1514, o primeiro navegador europeu a ter
chegado ao Brasil morria quase esquecido em sua
cidade natal, Palos, sem jamais ter voltado a navegar e
antes de usufruir as honrarias e o brasão de armas que
o imperador Carlos V concedeu não só a ele, mas a
toda a família Pinzón por seu papel na descoberta e
exploração da América.
Acima, retrato do bispo
Juan de Fonseca, chefe do
Conselho das Índias e
principal responsável pela
coordenação das viagens
enviadas pelos espanhóis
ao Novo Mundo.
Tão logo soube que a expedição Pinzón-Solís havia
percorrido a costa do Brasil, D. Manoel enviou protestos formais ao rei D. Fernando,
deixando mais tenso o clima entre as duas Coroas. Mas em breve as coisas iriam
piorar ainda mais.
No dia 9 de junho de 1509, cerca de um ano depois de Solís e Pinzón terem
zarpado em sua viagem conjunta, Juan de la Cosa partiu para o Caribe – e
novamente em companhia de Alonzo de Hojeda, com o qual ele já havia viajado em
1499. Sempre bem relacionado na corte, Hojeda, apesar de todos os desmandos que
cometera, fora designado pelo bispo Fonseca como governador da região do Darien
(o istmo que faz a ponte entre a América Central e a América do Sul, nos atuais
Panamá e Colômbia).
No dia 22 de fevereiro de 1510, os nativos atacaram Cartagena, na Colômbia, o
povoado que Hojeda e La Cosa tinham fundado. Dos 70 espanhóis que estavam no
vilarejo naquele momento, 69 foram mortos – entre eles o veterano Juan de la Cosa,
então com 60 anos. Quando o único sobrevivente do massacre foi resgatado, ele
relatou que La Cosa morrera de forma horrível. De fato, quando o corpo do homem
que havia sido companheiro de Colombo na descoberta da América, que viajara
com Vespúcio e fizera o primeiro mapa a representar o Brasil foi encontrado, estava
inteiramente desfigurado e inchado, recoberto de flechas envenenadas e de espantosas
chagas vermelhas.
Em 22 de fevereiro de 1512, exatos dois anos após a morte de La Cosa, morria
em Sevilha, serenamente e em sua própria cama, Américo Vespúcio – o homem
cujo nome tinha sido usado para batizar o Novo Mundo.
Com Vespúcio e La Cosa mortos e Pinzón aposentado, o rei D. Fernando
nomeou, a 22 de março de 1512, Juan Díaz de Solís piloto-maior da Espanha. Solís
fora solto em dezembro de 1511 e ainda recebera uma indenização de 37 mil
maravedis, já que sua prisão foi considerada injusta. Seu salário passou a ser de 50
mil maravedis (dos quais deveria ser descontada uma pensão de dez mil maravedis
que seria anualmente paga à viúva de Vespúcio, Maria Cerezo).
O “mar do Sul” seria finalmente avistado no dia 25 de setembro de 1513. Depois
de uma jornada épica, Vasco Núñez de Balboa cruzou as montanhas e selvas do
Panamá e enfim vislumbrou o oceano que banhava a costa oeste da América. De
posse dessa informação – que a deixava com ampla vantagem sobre Portugal na
corrida em busca desse território desconhecido –, a Coroa castelhana decretou que
qualquer navio português encontrado navegando pelo Caribe fosse capturado e seus
tripulantes imediatamente presos.
Menos de um ano depois, o capitão luso Estevão Fróis e sua tripulação se
tornariam as primeiras vítimas dessa decisão. Mas a descoberta que a expedição de
Fróis fizera pouco antes era, de certa forma, tão importante quanto o achado de
Balboa – e teria profundo efeito na história das viagens de exploração enviadas ao
sul do Brasil pelas duas décadas seguintes.
O RIO DO MACHADO DE PRATA
Estevão Fróis havia partido de Portugal nos primeiros meses de 1514 com duas
caravelas. O capitão do outro navio era João de Lisboa, um dos maiores
navegadores portugueses de seu tempo, veterano da viagem de Vasco da Gama à
Índia, em 1497, e piloto da expedição de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio em
1503. A viagem de Fróis e Lisboa é a única missão exploratória enviada pelos
portugueses ao Brasil entre 1503 e 1514 da qual se tem notícia. Mas, como ela só
ficou conhecida por uma casualidade, é bem possível que tenha havido outras.
Não se sabe qual era o objetivo da jornada comandada por João de Lisboa e
Estevão Fróis. O mais provável é que eles também tivessem sido incumbidos de
descobrir onde terminava o continente americano e averiguar a existência do suposto
estreito que conduziria ao misterioso oceano recém-descoberto pelos espanhóis.
A expedição fora financiada por D. Nuno Manoel e por Cristóvão de Haro.
Cristóvão de Haro era um rico negociante belga, natural da Antuérpia, que vivia em
Lisboa desde 1500 e já enviara frotas à Guiné e à Índia. Com duas caravelas e cerca
de 70 tripulantes, os capitães Lisboa e Fróis partiram em fevereiro de 1514.
Rumaram direto para o sul do Brasil e logo chegaram a Cananeia, descoberta havia
uma década por Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio (e que, passados mais de dez
anos, ainda se mantinha como o ponto extremo sul das viagens dos portugueses ao
Brasil). A seguir, cruzaram pela ilha de São Francisco do Sul, em Santa Catarina,
onde Binot Paulmier de Gonneville estivera dez anos antes.
Dali para o sul, todo o território era desconhecido.
A costa com a qual Fróis e Lisboa então depararam
era inóspita, desprovida de portos naturais, com águas
frias e escuras. Eles estavam no litoral do atual Rio
Grande do Sul, justo onde se inicia o maior trecho de
costa retilínea do planeta. De fato, de Laguna (em
Santa Catarina) a Punta del Este (no Uruguai) não
existe uma só baía ou ancoradouro natural. Essa costa,
com 660 quilômetros de extensão, é toda baixa e batida
pelos ventos. Um trecho terrível para qualquer
navegador e cuja inclemência atrasaria em dois séculos
o início de sua colonização.
Em julho de 1514, Fróis e Lisboa chegaram ao que
parecia ser a boca do tão procurado estreito. A
primeira coisa que eles avistaram foi um cabo, então
batizado de Santa Maria (nome que ainda se mantém).
o
A expedição estava a 35 de latitude sul, diante do
atual balneário de Punta del Este, no hoje Uruguai. E
tinha simplesmente acabado de descobrir a foz do rio
da Prata – que logo se tornaria um dos locais mais
importantes da América e cuja conquista iria virar
uma obsessão tanto para Portugal quanto para a
Espanha.
Fróis e Lisboa entraram no estuário, navegando 50
Irmãos Colaços
D. Nuno era filho de
um bispo, D. João Manoel,
com uma certa Justa
Rodrigues, mulher solteira.
Quando o futuro rei D.
Manoel nasceu, em maio
de
1469,
não
foi
amamentado por sua mãe,
a rainha, mas exatamente
por Justa Rodrigues – que
acabara de dar à luz D.
Nuno. D. Manoel e D.
Nuno foram, portanto,
irmãos
colaços.
Eles
cresceram juntos na corte e
se
tornaram
grandes
amigos. Ao assumir o
trono em 1498, D. Manoel
legitimou D. Nuno (que,
por ser filho de um bispo,
era ilegítimo, um bastardo
portanto) e o tornou
guarda-mor do reino, com
direito a um alto salário
léguas (cerca de 300 quilômetros) por águas barrentas anual.
e fluviais em direção ao misterioso interior do
continente. Ao chegar às proximidades do local onde hoje fica Buenos Aires, a
expedição foi detida pelo mau tempo. As tempestades do inverno meridional e o
gélido e uivante vento sudoeste (que os gaúchos hoje chamam de minuano)
impediram as caravelas de seguir adiante. Mas o que Lisboa e Estevão Fróis
descobriram já era espantoso o suficiente.
A primeira coisa que os exploradores notaram ao desembarcar foi que os índios
falavam uma língua muito diferente daquela utilizada por quase todas as tribos da
costa do Brasil. Além disso, ao contrário dos desnudos nativos brasileiros, esses
indígenas se cobriam com peles “de leão, lince e leopardo, de cheiro
1
extraordinariamente agradável”. Tais peles (que, na verdade, eram de guanaco), os
nativos as jogavam sobre o corpo nu, com o pelo para dentro, amarrando-as “com
cintas de um palmo de largura” (eram os chiripás, que ainda fazem parte da
indumentária dos gaúchos platinos). Eram homens altos, de longos cabelos negros e
“corredios”. A João de Lisboa pareceram ser “gente de índole honrada, sem vício, de
muito boa e livre condição, sem leis nem rei”.
Aquele era o primeiro encontro entre os europeus e os Charrua, aguerridos e
indômitos nativos do Pampa, que caçavam emas com boleadeiras e viviam em
tendas de couro. O que realmente interessava, porém, eram as notícias que esses
índios deram para os portugueses. No interior daquela região, garantiam os
Charrua, existiam “grandes montanhas onde a neve nunca desaparece”. Nos
arredores delas vivia “um povo serrano, que possui muitíssimo ouro batido, usado à
2
moda de armadura, na frente e ao peito”. A região toda era muito rica em prata,
ouro, cobre e estanho. Para provar o que diziam, os Charrua mostraram aos
portugueses (e depois lhes venderam) um machado de prata “igual aos machados de
pedra que eles carregavam”.
Foi a primeira vez que os europeus ouviram falar do Peru e de seus habitantes, os
ricos e poderosos incas. Em breve, encontrar esse povo e conquistar seu território se
tornaria uma obsessão que por 20 anos traria várias expedições ao sul da América e
reclamaria muitas vidas antes de se revelar… uma espantosa realidade.
Estevão Fróis e João de Lisboa batizaram aquele grande rio com o nome de Santa
Maria. Mas como, ao retornarem para Portugal, seus marinheiros trataram de
espalhar as extraordinárias notícias dadas pelos Charrua, o majestoso curso d’água
daquelas misteriosas latitudes meridionais passou a ser chamado com o nome que
mantém até hoje: rio da Prata – a estrada fluvial que conduziria a um reino
fabulosamente rico. O machado de prata, levado para Portugal, foi dado ao rei D.
Manoel como prova da existência de metais preciosos naquela região inexplorada.
Além das riquezas cuja existência foi revelada pelos Charrua, Fróis e João de
Lisboa concluíram também que aquele rio deveria conduzir à costa oeste da América
e que seria o caminho natural para as riquezas das Molucas.
NOTÍCIAS DA TERRA DO BRASIL
Na viagem de volta, os dois navios se separaram. Fróis ficou mais algum tempo
na região do Prata, carregando sua caravela com aquelas “tão preciosas peles de
animais silvestres, de magnífico forro, grossas como as da zibelina e alvas como as
3
de marta”, enquanto João de Lisboa seguia para a feitoria do Rio de Janeiro. Ali,
Lisboa encheu o navio de pau-brasil e partiu para Portugal no início de agosto. No
dia 12 de outubro de 1514, sem suprimentos, sua caravela ancorou na ilha da
Madeira, já próximo à Europa.
Nessa ilha, que os portugueses tinham descoberto e colonizado quase um século
antes, João de Lisboa encontrou-se com um agente comercial que vivia lá. Esse
homem era o representante local dos negócios da família Függer, a mais rica da
Europa. Lisboa fez um relato sucinto da expedição, que foi transcrito pelo
comerciante e, a seguir, enviado para a sede do império mercantil dos Függer, na
Antuérpia.
Com o nome de Newen Zeytung aus Presilg Landt – ou Nova Gazeta da Terra do
Brasil –, o folheto logo seria reproduzido e enviado aos principais executivos e
acionistas da empresa. Segundo o depoimento do agente dos Függer, além de ter
descoberto “a porta de entrada para uma região muito rica”, o navio de João de
Lisboa chegara à ilha da Madeira com o convés “cheio de escravos, rapazes e
moças”. Esses nativos, de acordo com o relatório, “pouco custaram aos portugueses,
pois na maior parte lhes foram dados por livre vontade, porque o povo de lá pensa
que seus filhos vão para a Terra da Promissão”.
Enquanto João de Lisboa falava mais do que devia
na ilha da Madeira, relatando sua expedição a um
mero agente comercial, Estevão Fróis vivia um destino
dramático. Depois de deixar o rio da Prata em fins de
julho de 1514, Fróis chegou ao litoral do Rio Grande
do Norte com o navio avariado. Quando quis
desembarcar para consertá-lo, foi atacado pelos
indígenas. O mais surpreendente é que os nativos eram
liderados por um certo Pedro Galego, náufrago ou
degredado que tinha “os beiços furados e que andava,
havia muito tempo, em companhia dos índios
Potiguar”. Pedro Galego ficaria conhecido como “o
4
espanhol que se fizera botocudo”. Anos antes, ele já
tinha sido visto pelo português Diogo Pais.
Impedido de consertar o leme, Estevão Fróis acabou
sendo empurrado pelas fortes correntes da chamada
costa leste-oeste (o trecho que vai do Rio Grande do
Norte ao atual Amapá e que os portugueses
praticamente ainda não conheciam, justamente pelas
dificuldades de se navegar por ali em embarcações
movidas a vela). E, assim, seu navio foi parar na ilha
de Porto Rico, no Caribe, em pleno território espanhol.
Ali, em função das novas determinações do rei de
Castela, Fróis e seus tripulantes foram presos e
conduzidos a ferros para a ilha de Santo Domingo.
5
Apesar de “submetido a suplícios e tormentos”, Fróis
não revelou nada sobre a descoberta do rio da Prata.
De todo modo, os espanhóis estavam dispostos a
enforcá-lo, nem que fosse para se vingar da recente
execução de Diego de Lepe, o primo de Pinzón que 14
anos antes estivera no Brasil e fora recentemente
capturado pelos portugueses na Guiné e enforcado por
determinação do rei D. Manoel.
Em 1895 uma cópia
manuscrita da Newen
Zeytung aus Presilg Landt
(cuja
capa
está
reproduzida na ilustração
acima) foi encontrada nos
Arquivos dos Príncipes e
Condes de Függer, em
Augsburgo, na Alemanha.
Seu
descobridor,
o
historiador
Konrad
Haebler,
publicou-a
imediatamente.
Redigido
em alemão gótico do século
XVI, o folheto original
tinha 15 centímetros por 20
centímetros
e
apenas
quatro páginas. Mas sua
importância historiográfica
foi enorme. Estudado,
pouco
depois,
por
Francisco de Varnhagen e
por
Alexander
von
Humbolt, o documento
provou que o rio da Prata
havia sido descoberto pelos
portugueses, e não pela
expedição
espanhola
comandada em 1516 por
Juan Díaz de Solís, como
se julgara até então.
Por dois anos, Fróis e 11 marinheiros
permaneceram encarcerados no Caribe, sob constante
ameaça de execução. Em setembro de 1516, eles foram
enviados para Sevilha e, seis meses mais tarde,
acabariam sendo trocados por nove reféns espanhóis
que Cristóvão Jaques havia prendido na ilha de Santa
Catarina, no litoral sul do Brasil. Esses nove
prisioneiros espanhóis capturados por Jaques eram integrantes de uma expedição
enviada ao Prata sob o comando de Juan Díaz de Solís.
A EXPEDIÇÃO DE SOLÍS AO PRATA
Embora Estevão Fróis não tenha revelado nada a seus captores, as notícias sobre
a descoberta do rio da Prata e da possível passagem marítimo-fluvial para as
Molucas logo chegaram à Espanha, possivelmente através da Nova Gazeta da Terra
do Brasil.
É provável que o panfleto redigido na ilha da Madeira tenha sido enviado para
Castela por Cristóvão de Haro, que era natural da Antuérpia, mantinha estreitas
ligações comerciais com a família Függer e fora um dos financiadores da viagem de
Fróis e João de Lisboa. Ele estava indignado com o rei D. Manoel, pois sete caravelas
suas teriam sido roubadas por um feitor português na Guiné e Haro e seus sócios
exigiam indenização. Em 1516, logo depois de D. Manoel ter decidido que não lhe
pagaria nada, Haro resolveu transferir seus escritórios de Lisboa para Sevilha,
abandonando de vez Portugal.
Quando ficou claro que o grande rio que Fróis e João de Lisboa haviam
descoberto em julho de 1514 ficava em uma região ao sul de Cananeia – e, portanto,
nos domínios legais de Castela –, o rei D. Fernando determinou que Juan Díaz de
Solís partisse para explorar aquela região, bem como descobrir se as Molucas
ficavam no hemisfério espanhol.
Embora ocupasse o cargo de piloto-maior da Espanha, Solís era um homem de
reputação sombria. Acusado de ter matado a própria mulher, ele fugira
espetacularmente de Lisboa, em abril de 1506 (leia nota lateral a seguir). Juan Díaz
de Solís reapareceu em Lepe, próximo a Sevilha, no início de 1507. Ele era um
navegador experiente, que estivera várias vezes na Guiné, fora para a Índia
(provavelmente na frota de Gama) e talvez tivesse mesmo vindo ao Brasil como
piloto de Gonçalo Coelho e Vespúcio em 1503.
Quando se soube em Portugal que Solís tinha sido
contratado por Castela, D. Manoel se indignou e
escreveu para o rei D. Fernando exigindo que o piloto –
“banido e homiziado de meus reinos por delitos que o
6
obrigam à pena de morte” – fosse imediatamente
extraditado. Mas Juan Díaz de Solís já se naturalizara
castelhano e ocupava o cargo de piloto-maior, o mais
alto entre os navegadores espanhóis. D. Fernando,
portanto, ignorou o pedido da Coroa portuguesa.
No dia 5 de abril de
1506, quando a frota
comandada por Tristão da
Cunha se preparava para
zarpar para a Índia, a
partida teve que ser adiada
porque Juan Díaz de Solís,
que era o piloto de uma
das naus, simplesmente
D. Manoel ainda mandou que seu embaixador na não apareceu no porto.
o
indignado
Espanha, João Mendes de Vasconcelos, tentasse Quando
subornar Solís e o persuadisse a voltar a Portugal. Mas Tristão da Cunha mandou
não houve acordo. Esse episódio revela o valor procurar o retardatário em
os
marinheiros
estratégico que o saber dos pilotos tinha para os reis casa,
ibéricos e mostra a relação entre conhecimento enviados
até
lá
geográfico e os ciclos econômicos, a ponto de uma descobriram que Solís
deserção quase levar as Coroas a um conflito.
havia matado sua mulher
No dia 8 de outubro de 1515, Juan Díaz de Solís na noite anterior e estava
partiu do porto de Lepe com duas caravelas, 70 desaparecido.
tripulantes e mantimentos para dois anos e meio de
viagem. Sua missão era penetrar no estuário que Fróis
e João de Lisboa tinham descoberto um ano antes,
explorar suas riquezas e averiguar se, porventura, ele
conduziria até Málaca (na Malásia) e às Molucas.
Uma vez em Málaca (que os portugueses tinham
descoberto em 1508 e conquistado em 1511), Solís
deveria fazer as medições astronômicas e verificar se “o
berço de todas as especiarias” porventura também não
se localizava dentro do território que pertencia à
Espanha.
Em Portugal, por causa
da fama de beberrão e
violento,
Solís
era
conhecido pelo apelido de
Bofes de Bagaço. “Essa
alcunha lhe fora dada
porque,
usando
frequentemente
como
bebida a aguardente que se
extrai do bagaço das uvas,
seu
hálito
dava
a
impressão de que os
pulmões (ou bofes) eram
cheios de bagaço”, escreveu
o historiador Rodolfo
Garcia.
Abaixo,
a
assinatura de Solís, de
quem não existem imagens
conhecidas.
A frota de Solís seguiu a rota tradicional: ancorou
nas Canárias e dali seguiu para o cabo de Santo
Agostinho, passando por Cabo Frio, pelo Rio de
Janeiro e por Cananeia antes de aportar na ilha de
Santa Catarina, de onde zarpou em direção ao Prata.
Em janeiro de 1516, as caravelas de Solís chegaram à
foz do imenso rio que ele rebatizou de “mar Dulce”
(como Pinzón chamara o Amazonas, 15 anos antes).
Ainda hoje, historiadores espanhóis seguem afirmando
que essa foi a verdadeira descoberta do rio da Prata –
refutando não apenas a viagem anterior de Estevão
Fróis e João de Lisboa como negando também que Solís fosse português naturalizado
castelhano.
De todo modo, a expedição tratou de explorar a região. “Foram sempre
costeando a terra”, contou o cronista Herrera, “descobrindo montanhas e outros
grandes penhascos, vendo gente nas ribeiras; e nestas margens do rio da Prata
descobriam muitas casas de índios, e gente que com muita atenção estava vendo
passar o navio, e com sinais ofereciam o que tinham pondo-o no chão. Juan Díaz de
Solís quis ver que gente era aquela e tomar algum homem para trazer a Castela.
Saiu em terra com tantos homens quantos podiam caber em um escaler. Os índios,
que tinham emboscado muitos flecheiros, quando viram os castelhanos longe do
7
navio, os cercaram e os mataram.”
Não foi só: “Tomando às costas os mortos”, prossegue Antônio de Herrera, “os
índios se afastaram da margem, até onde os navios os podiam ver, e cortando as
cabeças, braços e pés, assaram os corpos inteiros e os comeram. Este foi o fim
trágico que teve João Dias de Solis.”
Foz do rio da Prata, com a localização da ilha Martin Garcia, onde Juan Solís foi
morto.
Ainda hoje uma controvérsia paira sobre o assunto: os Charrua, senhores da
região onde se deu a morte de Solís, não praticavam a antropofagia, ao contrário
dos Tupi da costa do Brasil. De todo modo, os indígenas pouparam um dos homens
que desembarcara em companhia do desafortunado capitão. Era o grumete mais
tarde conhecido como Francisco del Puerto, um menino de 14 ou 15 anos. Solís e
seus homens provavelmente foram massacrados na ilha hoje chamada de Martin
Garcia, onde o rio Uruguai deságua no Prata. Mas dificilmente terão sido comidos
pelos guerreiros que os abateram.
Como quer que tenha sido, depois de presenciar o massacre de seu capitão, os
homens de Juan Díaz de Solís acharam mais prudente retornar à Espanha. Partiram
imediatamente do Prata rumo ao litoral do Brasil. Mas então uma tempestade
separou as duas caravelas.
O navio comandado por Francisco Torres, cunhado de Solís (que voltara a casar
na Espanha), chegou à feitoria que os portugueses haviam fundado uma década
antes no Rio de Janeiro. Mesmo sabendo que estava em território luso, Torres
carregou seu navio de pau-brasil. Recolheu também o piloto João Lopes de Carvalho
e o marinheiro Pedro Annes – que, quatro anos antes, haviam sido deixados em
Cabo Frio como desterrados, em punição pelo roubo das ferramentas da nau Bretoa.
Nessa época, o nome “Rio de Janeiro” – dado por Vespúcio em 1502 – ainda não
se tornara usual e o local era conhecido como baía dos Inocentes, pois Carvalho e
Annes afirmavam que não eram culpados do furto. Os dois desterrados seguiram
com Torres de volta à Europa. Chegaram a Sevilha no dia 4 de setembro de 1516.
Enquanto Francisco Torres estava no Rio de Janeiro, a outra caravela da
expedição de Solís passava dificuldades no litoral sul do Brasil. Com o leme
avariado, o navio tentou entrar na baía sul da ilha de Santa Catarina e afundou em
frente à praia ainda hoje e por isso mesmo chamada de Naufragados. Não se sabe
ao certo quantos homens se salvaram: talvez 18, talvez apenas 11. O certo é que
alguns dos sobreviventes viveriam por mais de 15 anos ali, entre os Carijó. Alguns
deles iriam, como se verá, desempenhar um papel preponderante na exploração do
rio da Prata e na própria colonização do extremo sul do Brasil.
A PRIMEIRA EXPEDIÇÃO DE CRISTÓVÃO JAQUES
Quando se soube em Portugal que o rei D. Fernando, de Castela, tinha autorizado
a partida da expedição de Juan Díaz de Solís ao Prata, houve profunda consternação
em Lisboa. O rei D. Manoel de imediato determinou o envio de uma expedição
guarda-costas ao Brasil. Para chefiá-la, escolheu o fidalgo Cristóvão Jaques, tido
como homem de ações ríspidas e eventualmente cruéis.
A expedição de Solís teria ainda uma outra, curiosa e importante consequência
para a história do Brasil: como julgou que Solís teria sido incumbido de iniciar a
colonização das terras da América do Sul que ficavam sob jurisdição da Espanha, o
rei D. Manoel, de Portugal, decidiu, pela primeira vez desde a descoberta de Cabral,
enviar colonos para o Brasil.
De fato, por meio de um alvará assinado em julho de 1516, o monarca
determinou que se dessem “machados e enxadas e toda a mais ferramenta às pessoas
8
que fossem povoar o Brasil”. Mas o projeto não deu certo. Isso porque, segundo o
fidalgo João de Melo Câmara, muitos dos colonos embarcados com Cristóvão
Jaques eram “homens que estimam tão pouco o serviço de Vossa Alteza e suas
honras, que [depois de desembarcar] se contentam com terem quatro índias por
9
mancebas e comerem mantimentos da terra”.
Embora restem pouquíssimos documentos para a reconstituição da primeira
viagem de Cristóvão Jaques ao Brasil, é provável que ele tenha partido de Lisboa em
21 de agosto de 1516. A frota era composta por três naus e levava cerca de 300
tripulantes; entre eles, como se viu, os primeiros colonos que vieram para o Brasil.
Mas a missão de Jaques não era apenas defensiva e colonizadora. Pouco antes de
partir, ele fora nomeado “comissário do pau-brasil” – ou seja, era o responsável por
toda a organização do comércio da madeira corante, empreendimento que a Coroa
deixara de privatizar e assumira para si a partir de 1515.
Por isso, Cristóvão Jaques navegou diretamente para a feitoria de Cabo Frio, que
Américo Vespúcio havia fundado em 1504. Ao chegar lá, encontrou o
estabelecimento abandonado: o feitor João de Braga, que havia sido deixado ali em
1511 pela nau Bretoa, havia seguido os desterrados João Lopes de Carvalho e Pedro
Annes e se mudara para a baía dos Inocentes, no Rio de Janeiro.
Jaques então zarpou em busca da feitoria carioca, fundada por Gonçalo Coelho.
Ao chegar ao Rio, em outubro de 1516, foi informado por João de Braga que a
caravela do espanhol Francisco Torres tinha acabado de partir rumo a Sevilha –
com o porão abarrotado de pau-brasil roubado aos portugueses e ainda levando
consigo os dois desterrados, João Lopes de Carvalho e Pedro Annes. Braga disse
também que a segunda caravela que fazia parte da expedição de Solís estava
“atrasada” e ainda não passara pelo Rio. Disposto a interceptar os intrusos
castelhanos, Jaques partiu para o sul.
Ao aportar na ilha de Santa Catarina, ele soube que o navio que procurava havia
naufragado ali um mês antes. Jaques então desembarcou e logo conseguiu capturar
sete dos 11 náufragos. Esses homens tinham se refugiado entre os pacíficos Carijó,
habitantes da ilha e das suas vizinhanças. Com os espanhóis presos, Jaques retornou
para a feitoria do Rio. Ali, carregou uma de suas naus com pau-brasil e a enviou
para Lisboa, com os sete prisioneiros a bordo, enquanto ele próprio permanecia no
Brasil.
Em 22 de abril de 1517, após uma sinuosa negociação diplomática, os sete
náufragos de Solís acabaram sendo trocados por Estevão Fróis e seus 11
marinheiros, que, como já se viu, estavam presos havia três anos. Embora o acordo
tenha libertado Fróis de uma situação aflitiva e potencialmente letal, Cristóvão Jaques
parece ter se indignado com o desfecho da negociação. Quando soube que os homens
que ele capturara tinham sido libertados. ficou com a sensação de que os havia
livrado “do desterro entre selvagens e lhes fornecido passagem grátis para a
10
civilização”. Jaques jamais voltaria a recolher os náufragos que encontrou no
Brasil e no Prata.
Enquanto as Coroas de Portugal e Castela articulavam a troca de prisioneiros,
Cristóvão Jaques continuava no Brasil. Sua primeira decisão foi transferir a feitoria
do Rio de Janeiro para Pernambuco. Até então, a principal vantagem da feitoria
carioca residia no fato de sua localização ser desconhecida dos franceses e dos
espanhóis. O abuso cometido por Francisco Torres mostrou que o segredo fora
desvendado. Não havia mais sentido em manter um posto de recolhimento de paubrasil em local que exigia dois meses a mais de viagem desde a Europa. Além da
distância entre Pernambuco e Portugal ser bem mais curta, o pau-brasil obtido no
Nordeste brasileiro era de melhor qualidade do que o do Rio de Janeiro, pois estava
11
“claro que tal pau é produzido pela quentura do sol”.
Por isso, em 1517 Cristóvão Jaques fundou uma feitoria na ilha de Itamaracá.
Documentos provam que, durante os quase três anos em que ficou no Brasil, Jaques
enviou cargas anuais de pau-brasil para Portugal. No dia 9 de maio de 1519, ele
próprio retornou a Lisboa.
O ESTREITO DE MAGALHÃES
Quatro meses depois do retorno de Cristóvão Jaques a Lisboa, zarpava de Sevilha
aquela que estava destinada a se tornar a mais longa expedição marítima realizada
até então na história da humanidade. Sua missão era descobrir o estreito que
permitiria ligação entre o Atlântico e o misterioso oceano que banhava a costa oeste
da América, cuja existência já era conhecida desde 1513. Embora partisse sob
bandeira castelhana, a expedição fora planejada por três dissidentes portugueses. Um
de seus principais pilotos também era um lusitano que alimentava profundos
ressentimentos contra Portugal. Por fim, o financiador da viagem igualmente estava
rompido com o rei D. Manoel e pretendia vingar-se dele auxiliando a Coroa de
Castela.
Os três idealizadores da expedição eram o navegador Fernão de Magalhães, o
cosmógrafo Rui Faleiro e o fidalgo Duarte Barbosa. O piloto chamava-se João
Lopes de Carvalho e o homem que arcou com a maior parte das despesas atendia
pelo nome de Cristóvão de Haro. Juntos, esses homens seriam responsáveis por uma
das maiores descobertas da história das explorações. E causariam grandes prejuízos
e transtornos a Portugal.
A partir de 1514, após inúmeros serviços prestados
a Portugal, Magalhães passara a lutar por um
aumento de soldo; seria uma espécie de indenização por
ferimento recebido em campo de batalha, no Marrocos.
Ao mesmo tempo, ele estava convencido de que a
cidade de Málaca, na Malásia – de cuja conquista ele
Fernão de Magalhães
cresceu na corte do rei D.
João II, como pajem da
rainha, D. Leonor. O
sucessor de D. João II, o
rei D. Manoel, era irmão
participara, em 1511 –, poderia ser mais facilmente
alcançada caso os portugueses seguissem a ideia
original de Colombo – ou seja, se navegassem para
oeste. Nesse ponto, era apoiado por um amigo pessoal,
o cosmógrafo Rui Faleiro. Enquanto aguardava uma
audiência com o rei, Magalhães concluiu – junto com
Faleiro – que Málaca (e as adjacentes ilhas Molucas)
provavelmente se localizava no hemisfério espanhol.
No outono de 1517, depois de longa e infrutífera
espera, Magalhães foi informado de que D. Manoel
não só não iria enviá-lo em uma viagem para
alcançar Málaca pela rota do oeste como também não
lhe concederia aumento no soldo. Humilhado e
ofendido, Magalhães decidiu abandonar Portugal. No
dia 20 de outubro de 1517, ele e Rui Faleiro chegaram
a Sevilha para apresentar seu projeto aos rivais
castelhanos. Na Espanha, foram recebidos por Duarte
Barbosa, um fidalgo, geógrafo e linguista português
que Magalhães conhecera na Índia anos antes e que
também desertara para Castela. Barbosa apresentou
Magalhães ao bispo Juan da Fonseca, principal
executivo dos projetos ultramarinos da Coroa
espanhola.
Depois de inúmeras reuniões, avanços, recuos e
adiamentos, o mercador Cristóvão de Haro decidiu
financiar o projeto. Haro chegara a Sevilha um ano
antes de Magalhães, depois de também haver rompido
com D. Manoel. Na Espanha, ele estreitara seus
vínculos com Jakob Függer II, conhecido como Jakob,
o Rico – que, de fato, era o homem mais rico da
Europa e vivia em Augsburgo, na Alemanha. Como
representante dos Függer junto à corte espanhola, Haro
multiplicara a própria fortuna.
de D. Leonor e conhecia
Magalhães desde criança.
Em 1500, aos 20 anos de
idade, Magalhães fez sua
primeira viagem para a
Índia, na frota de João da
Nova (com direito a uma
escala no Brasil). Em
1505, retornou para o
Oriente em companhia de
D. Francisco de Almeida.
Tomou parte na descoberta
de Málaca, na Malásia,
sob o comando de Diogo
de Serqueira, em 1508, e
ajudou a conquistar aquele
entreposto comercial em
1511, junto com Afonso de
Albuquerque. Em 1513,
participou do ataque a
Azamor, no Marrocos. Lá,
foi ferido em uma perna.
Ficou manco para o resto
da vida. Abaixo, retrato de
Magalhães feito em 1519.
Haro concordou em bancar três quartos das
despesas totais com a armação da frota – calculadas
em 8.751.125 maravedis – depois que Magalhães lhe assegurou ter visto, na corte de
Lisboa, “um mapa que revelava a exata localização do estreito que conduzia às
Molucas”. Esse mapa fora feito pelo geógrafo alemão Johannes Schöner em 1515,
baseado nas descobertas da expedição de Estevão Fróis e João de Lisboa ao Prata.
Com quatro naus, uma caravela e 265 homens a
bordo, Magalhães e Duarte Barbosa partiram do porto
de Sanlúcar em 20 de setembro de 1519. Na noite
anterior, Rui Faleiro fora destituído do cargo de
cosmógrafo, pois havia suspeitas de que enlouquecera.
João Lopes de Carvalho, o desterrado da nau Bretoa
que vivia na Espanha havia três anos (para onde,
convém lembrar, fora levado por Francisco Torres,
capitão de uma das caravelas da expedição de Solís),
acabou se tornando piloto da nau capitânia Trinidad,
na qual viajava Magalhães. Seis dias após a partida, a
frota ancorou em Tenerife, nas Canárias, onde
Magalhães foi informado de que três de seus capitães
12
pretendiam assassiná-lo “porque ele era português”.
Magalhães redobrou a vigilância.
Baseado
nas
informações da Newen
Zeytung aus Presilg Landt
e na recente descoberta do
mar do Sul por Vasco de
Balboa,
um
geógrafo
alemão, Johannes Schöner
(1477-1547), fez, em 1515,
um globo terrestre no qual
desenhou o limite sul da
América e o misterioso
oceano que banhava sua
costa oeste. Inspirado nesse
globo,
Fernão
de
Magalhães empreenderia
A 29 de novembro, a frota avistou o cabo de Santo sua gloriosa e trágica
Agostinho. Mas, como o piloto João de Carvalho viagem.
soubera que Cristóvão Jaques havia fundado uma
feitoria nas proximidades daquele ponto estratégico, ele
sugeriu ao capitão-mor que os navios seguissem direto
para a baía dos Inocentes – atual Guanabara, onde ele
havia vivido por cinco anos. Magalhães concordou. E
assim, ao entardecer de 13 de dezembro, lá estava
Carvalho de volta ao seu antigo lar, no timão da
Trinidad.
No instante em que entraram na Guanabara, os navios foram cercados por
centenas de nativos. Muitos vinham em suas canoas, outros tantos a nado. Várias
mulheres subiram a bordo. “Todas elas estavam nuas, eram muito jovens e se
ofereciam aos marujos em troca de facas alemãs da pior qualidade”, escreveu o
nobre aventureiro italiano Francisco Antonio Pigafetta, que se tornou um dos poucos
sobreviventes e o principal cronista da viagem. Na véspera do Natal de 1519,
Pigafetta disse ter visto uma das nativas, “das mais bonitas”, subir a bordo “em
busca de um companheiro. Mas ao ver um prego do tamanho de um dedo, e
julgando que ninguém a observava, enfiou-o rapidamente entre os dois lábios da
13
vagina e jogou-se de volta ao mar”.
No dia seguinte à chegada da frota, João Lopes de
Carvalho pediu permissão para desembarcar. Aquela
parada no Rio de Janeiro tinha um significado muito
especial para ele. No final da tarde, Carvalhinho, como
era mais comhecido, voltou ao navio para apresentar a
Magalhães a nativa que tomara por esposa durante
seus anos de exílio no trópico. Junto com ela estava um
garoto de 7 anos. Era o filho que João Lopes deixara
para trás em 1516 e agora estava de volta ao colo do
Francisco
Antonio
pai.
Pigafetta (acima) nasceu e
Um dia depois do Natal de 1519, quando a armada morreu em Vicenza (1491de Magalhães deixou o Rio, a nau Trinidad tinha um 1534). Era de família
novo tripulante: era o garoto Higito, mais conhecido nobre,
originária
da
como “Niñito de Juan, el Piloto”. Um ano e meio mais Toscana.
Chegou
à
tarde, logo após a morte de Magalhães, Niñito e o pai Espanha em 1519, como
seriam protagonistas de um dos destinos mais acompanhante
do
inusitados e um dos episódios mais dramáticos da monsenhor
Francisco
história das viagens exploratórias.
Chiericato, embaixador da
No dia 11 de janeiro de 1520, 15 dias após deixar a corte de Roma junto a
V.
Ao
ser
Guanabara, Magalhães chegou ao rio da Prata – que Carlos
fica a 35 graus de latitude sul, exatamente como informado de que a
mostrava o globo de Johannes Schöner e como haviam expedição de Magalhães
relatado tanto João de Lisboa como Juan Díaz de Solís. iria partir para as
Após explorar aquele vasto estuário por mais de um Molucas, pediu permissão
mês, Magalhães, embora tenha obtido dos nativos ao embaixador e ao
“uma taça de prata”, voltou para o Atlântico e seguiu imperador Carlos V para
para o sul, pois concluiu que o estreito que ele tomar parte na viagem.
Pigaffeta embarcou na nau
procurava não era ali.
No dia 27 de novembro de 1520 – após terrível Trinidad e foi um dos 18
viagem de quase um ano através de um sinuoso únicos sobreviventes da
labirinto de ilhas e montanhas geladas e depois de terrível jornada – a
vencer a fome e o frio e debelar dois motins –, primeira que conseguiu dar
Magalhães pôde enfim vislumbrar as águas a volta ao mundo. Por
translúcidas de um oceano imenso. Ele o chamou de volta de 1524, enviou seu
Pacífico. Tendo cruzado pela passagem que ficaria diário para a rainha da
França, Luísa de Sabóia,
conhecida como estreito de Magalhães – e realizado mãe de Francisco I, que o
uma das maiores façanhas náuticas da História –, publicou em francês em
Magalhães batizou assim o oceano que ocupa quase 1531.
metade do planeta, o mesmo que Vasco Núñez de
Balboa havia avistado em setembro de 1513 e chamado de Mar del Sur.
A jornada através das vastidões do Pacífico foi tão medonha quanto a navegação
através do estreito. Por quase três meses, colhidos por uma calmaria exasperante, os
navios de Magalhães avançaram lentamente, sem avistar terra. Os homens tiveram
que comer a sola dos próprios sapatos e um rato era uma iguaria que valia dois
ducados. Então, a 13 de março de 1521, a expedição de Magalhães enfim chegou às
atuais Filipinas, muito próximas às Molucas.
No dia 27 de abril, após um ano e meio no mar, a milhares de quilômetros de
casa e a apenas 200 quilômetros da fonte das especiarias, que eram as Molucas,
Magalhães morreu tragicamente. Na ilha de Cebu, uma das Filipinas, ele se envolveu
num conflito corriqueiro entre dois rajás. Para agradar seu anfitrião, o rajá Zula,
Magalhães atacou o rajá Lapu-Lapu. Na minúscula ilha de Mactan, ele acabaria
sendo morto pelo próprio Lapu-Lapu, sucumbindo quando estava prestes a alcançar
a “terra prometida” de todas as especiarias.
Depois de inúmeras ameaças de motim, assassinatos, torturas e mortes dentre os
próprios sobreviventes da frota, João Lopes de Carvalho acabou se tornando capitão
da nau Trinidad, enquanto um seu rival e inimigo de morte, Sebastião Elcano,
assumia o comando da Victoria – estes eram os dois únicos navios restantes.
Embora a presença de mulheres a bordo fosse proibida, Carvalhinho conseguiu
manter um harém particular com três nativas “extraordinariamente belas” que
haviam sido capturadas, junto com outros 16 prisioneiros, num sultanato na ilha de
Bornéu, durante as escaramuças cada vez mais frequentes daquela viagem. Ocorre
que vários marinheiros também foram presos pelos nativos, e dentre eles o filho
brasileiro de Carvalho, Niñito. Os eventos são confusos e nunca foram, nem serão,
esclarecidos, mas o fato é que nunca mais se ouviu falar de Niñito, que teria
permanecido prisioneiro de um rajá local, chamado Siripada, ao passo que
Carvalhinho morreria a bordo da nau Trinidad em 14 de fevereiro de 1521, de
“causas desconhecidas”, embora se suspeite que tenha sido envenenado por algum de
seus inúmeros desafetos.
Com apenas 18 homens a bordo, a nau Victoria, um dos navios da frota de
Magalhães, chegou a Sevilha em 8 de setembro de 1522, exatos dois anos após a
partida. Seu capitão, o espanhol Sebastião Elcano, se tornou o primeiro homem a
dar a volta ao mundo, e o português Fernão de Magalhães, embora morto, iria virar
um herói castelhano.
Apesar da perda de quatro navios e da morte de 247 homens, a expedição deu
lucro para seu financiador, Cristóvão de Haro. A Victoria trazia 520 quintais de
cravo, além de grande quantidade de canela e noz-moscada. Só essas 25 toneladas de
cravo foram vendidas por 7.888.634 maravedis. Para a Coroa castelhana, porém –
além da notícia de que nos confins da América do Sul havia um estreito que conduzia
ao Oriente –, o melhor foi saber que Málaca e as Molucas de fato ficavam dentro da
zona espanhola da demarcação.
A SEGUNDA VIAGEM DE CRISTÓVÃO JAQUES
Em novembro de 1521, enquanto os navios da frota de Magalhães estavam
chegando à ilha de Tidore, a mais rica das Molucas, Cristóvão Jaques partia de
Lisboa para sua segunda viagem ao Brasil. Dessa vez, sua missão era explorar o
grande estuário que Estevão Fróis e João de Lisboa haviam descoberto sete anos
antes e no qual Juan Díaz de Solís morrera de forma tão trágica, em janeiro de 1516.
Com apenas duas caravelas e 60 homens, Jaques zarpou de Portugal direto para a
ilha de Santa Catarina. Ao chegar ali, recolheu um dos náufragos de Solís que ele
não tinha conseguido capturar em setembro de 1516. Esse homem era português e se
chamava Melchior Ramires. Durante os últimos cinco anos, junto com outros seis
náufragos (provavelmente também do navio de Solís), Ramires tinha vivido entre os
índios Carijó, no lugar que ficaria conhecido como porto dos Patos.
Melchior Ramires não apenas estivera com Solís no rio da Prata como, durante
sua longa estada em Santa Catarina, tinha recebido dos Carijó a confirmação de que
aquele rio de fato conduzia ao reino de um povo riquíssimo, que vivia em grandes
montanhas nevadas. Tal informação era de fato impressionante: afinal, duas tribos
inteiramente distintas (os Charrua e os Carijó), vivendo a mais de 1.500 quilômetros
uma da outra (os Charrua na foz do rio da Prata e os Carijó em Santa Catarina),
eram capazes de repetir uma história absolutamente igual. Foi a similaridade entre
os dois relatos que deu a Melchior Ramires, e aos demais náufragos de Solís, a
convicção de que o tal povo riquíssimo que vivia nas nevadas montanhas do oeste
devia de fato existir.
Para escapar dos castigos normalmente impostos pelo duro Cristóvão Jaques aos
inimigos (ou desertores) de Portugal – ou, talvez, para confirmar ele próprio a
veracidade das informações que recebera dos índios –, Melchior Ramires concordou
em acompanhar a expedição como guia. E assim, no verão de 1522, depois de terem
zarpado de Santa Catarina, as duas caravelas lusas entraram no Prata, navegando
mais de 200 quilômetros rio acima.
Em meados de janeiro, a frota de Jaques chegou à ilha de São Gabriel, na
margem esquerda do Prata, em frente à atual cidade de Colônia do Sacramento e
próxima ao local onde Juan Díaz de Solís fora morto. Ali, vivendo entre os índios,
Jaques encontrou o grumete Francisco del Puerto, único sobrevivente do massacre
que vitimara Solís. Francisco, então com 19 anos, confirmou as notícias que os
Charrua já haviam dado para João de Lisboa e Estevão Fróis em 1514 e que os
Carijó tinham reforçado para Melchior Ramires.
De acordo com as informações que Francisco del Puerto recolhera dos nativos ao
longo de seis anos de convivência, existia a oeste dali uma serra da Prata: uma
enorme montanha formada quase que exclusivamente desse metal precioso. Esse
território era controlado por um poderoso Rei Branco, que vivia cercado de luxos
inimagináveis e protegido por um exército bem armado e bem treinado.
Segundo os nativos, o melhor caminho até a serra
da Prata e os riquíssimos domínios do Rei Branco era
através do rio Paraná. O Paraná também desemboca
no Prata, mas, ao contrário do vizinho rio Uruguai, o
faz através dos meandros lamacentos de um complexo
14
delta “que tem 22 bocas”. Com a certeza de que seria
arriscado demais subir delta tão sinuoso com suas
caravelas, Jaques deixou-as ancoradas na ilha de São
Gabriel e entrou no Paraná com dois batéis,
acompanhado por cerca de 20 homens.
Cristóvão Jaques descobriu então um território de
extraordinárias riquezas naturais. O rio Paraná era
O rei D. Manoel, o
repleto de peixes, e suas margens, planas e recobertas Venturoso, protetor de
de campos e matas, eram percorridas por “uma Cristóvão Jaques, morreu
infinidade” de avestruzes, veados, jaguares, lobos, em dezembro de 1521.
raposas e “umas ovelhas selvagens, parecidas com
15
camelos”. Essas “ovelhas” eram, na verdade, guanacos. Jaques subiu o Paraná
por 23 léguas (cerca de 140 quilômetros), até as proximidades da atual cidade de
Rosário, na Argentina. Ali, os índios lhe deram “pedaços de prata e de cobre e
16
algumas pedras com veios de ouro”. Mas asseguraram que a serra da Prata e o
território do suposto Rei Branco ficavam 300 léguas (1.800 quilômetros) rio acima,
no topo das montanhas recobertas por neves eternas.
Sabendo que não poderia percorrer tal distância em simples batéis – meros barcos
a remo, como eram –, Cristóvão Jaques retornou a suas caravelas e partiu de volta
para Portugal em abril de 1522 disposto a organizar uma nova expedição. Ainda
irritado com a troca dos náufragos de Solís pelos portugueses que tinham sido presos
em Porto Rico – e decidido a cumprir a promessa de não levar outros náufragos de
volta para a Europa –, ele simplesmente abandonou Francisco del Puerto entre os
nativos da ilha de São Gabriel, assim como tratou de deixar Melchior Ramires no
porto dos Patos, em Santa Catarina. A seguir, partiu para a feitoria que fundara seis
anos antes na ilha de Itamaracá e ali, após carregar as caravelas com pau-brasil,
deixou desterrado o piloto Jorge Gomes, com o qual tivera uma áspera discussão
sobre questões náuticas.
Se soubesse o papel que a história reservava para aqueles três homens, é bem
provável que Cristóvão Jaques não os tivesse deixado no Brasil.
Como quer que seja, ao chegar a Lisboa, no segundo semestre de 1522, Jaques
ficou sabendo que seu protetor, o rei D. Manoel, havia morrido no dia 21 de
dezembro do ano anterior. Viu-se, assim, privado de um canal direto com o
soberano. D. João III, filho e sucessor de D. Manoel, não só demorou meses para
receber Jaques na corte como também não aprovou o envio de uma nova expedição
para subir o rio Paraná e descobrir a serra da Prata.
Depois de três anos de espera, Jaques, indignado, resolveu ceder ao assédio do
embaixador castelhano em Lisboa, Juan de Zuñiga. Em troca de 50 mil maravedis,
ele disse que revelaria a Castela tudo sobre “um maravilhoso rio de água doce, largo
17
de 14 léguas na embocadura, e muito rico em prata, ouro e cobre”.
Ao embaixador logo pareceu que tal rio (que era o Paraná, e não propriamente o
Prata) ficava em terras de Castela. A suspeita se confirmou quando Jaques foi
“dissimuladamente e com muito medo” à pousada na qual Zuñiga marcara o
encontro. Embora não tenha havido acordo entre o embaixador e o navegador, foi
graças à carta que Juan de Zuñiga enviou ao imperador Carlos V, em 24 de julho de
1524, relatando esse encontro que a jornada de Jaques ao Prata e ao Paraná pôde ser
conhecida.
A carta de Zuñiga foi descoberta em 1897 no arquivo de Simancas, na Espanha,
desvendando assim mais uma espantosa trama na história da exploração e
conquista da América que, de outra forma, sequer teria sido revelada. A sequência de
fatos quase inacreditáveis que iriam se passar na região do Prata e no litoral sul do
Brasil, no entanto, estava apenas iniciando.
Quando o rei D.
Fernando morreu, em
1516, foi sucedido por seu
neto, Carlos I, da Casa da
Áustria e herdeiro dos
Habsburgos. Ao chegar à
Espanha em 1517, Carlos
não falava castelhano e
rodeou-se de conselheiros
estrangeiros. Em 28 de
junho de 1519, ele se
tornou Carlos V, sendo
eleito imperador do Sacro
Império
RomanoGermânico.
Embora
governasse a Espanha,
passava mais tempo na
Alemanha. Em 1556, ele
abdicou em favor de seu
filho Felipe II. No ano
seguinte, recolheu-se a um
mosteiro, onde morreu em
1558.
VI
FABULOSA JORNADA À SERRA DA PRATA
1524, enquanto Cristóvão Jaques mantinha um encontro clandestino,
E“emmuma
pousada”, com o embaixador de uma potência rival, o náufrago
Melchior Ramires seguia vivendo no porto dos Patos, em Santa Catarina. Se o
ríspido capitão pretendeu castigá-lo mantendo-o no desterro, a punição não parece
ter surtido o efeito desejado. Evidências permitem supor que a vida de Ramires e de
seus companheiros de exílio estava próxima do idílico. Não apenas isso: em breve,
aqueles homens iriam desempenhar um papel-chave na história da exploração
europeia da América e o próprio Ramires seria recebido por D. João III, o mesmo
rei que se recusara a conceder audiência a Cristóvão Jaques.
Além de Melchior Ramires, são conhecidos os nomes de outros três náufragos de
Solís. Eram eles Aleixo Garcia, Henrique Montes e um “mulato” chamado Francisco
Pacheco. Não se sabe ao certo quantos tripulantes de Solís sobreviveram ao
naufrágio de fevereiro de 1516 – além dos quatro citados e dos sete que Jaques
capturara em agosto daquele ano. Sabe-se, isso sim, que ao retornar a Santa
Catarina, em 1521, Jaques encontrou nove europeus vivendo no porto dos Patos.
Mas talvez nem todos fossem náufragos. Afinal, ao passar pela ilha de Santa
Catarina na viagem de ida para o Prata, no verão de 1516, Solís batizara a atual
praia de Naufragados de “baía dos Perdidos”. O nome foi escolhido porque ali Solís
deparara com alguns “homens brancos, desterrados por causa de suas
1
malfeitorias”.
De qualquer forma, o acaso do naufrágio – ou o rigor do desterro – que levara
aqueles homens a, subitamente, se encontrarem isolados da civilização numa remota
ilha do litoral sul do Brasil iria adquirir extraordinária importância para a história
da conquista da América do Sul. Fosse porque aquela era uma costa pouco
percorrida e raramente visitada por outros navios europeus, fosse pelas condições
favoráveis que eles logo passariam a desfrutar graças às boas relações que
estabeleceram com os nativos, o fato é que os náufragos de Solís passariam dez
longos anos em seu exílio nos trópicos. Durante esse período, eles concluíram que as
notícias relativas ao Rei Branco e à fabulosa serra da Prata só poderiam ser
verdadeiras, uma vez que todas as tribos da região repetiam as mesmas informações
com os mesmos detalhes.
A princípio, os sobreviventes da expedição de Solís trataram de investigar por si
próprios a veracidade da lenda. Depois, se empenharam em transmiti-la para todos
os navegantes que, a partir de 1526, começaram a aportar em Santa Catarina. Os
episódios daí decorrentes – hoje virtualmente ignorados pela historiografia oficial –
iriam se tornar alguns dos acontecimentos mais importantes das três primeiras
décadas da história do Brasil.
Inflamados pelas informações dadas pelos náufragos de Solís, portugueses e
espanhóis iriam se empenhar na conquista do rio da Prata – considerado a “porta de
entrada” para as riquezas de que falavam os indígenas. Por isso, as atenções das
Coroas de Portugal e Espanha se voltariam para o litoral sul-brasileiro – e isso duas
décadas antes que a colonização do Nordeste e o ciclo do açúcar se iniciassem com
sucesso, incorporando, enfim, o Brasil ao jogo planetário das trocas mercantis.
Em 1517, um ano após o naufrágio, os homens de Solís – que a princípio tinham
se instalado na ponta sul da ilha de Santa Catarina – deixaram a baía dos Perdidos e
se transferiram para o continente, estabelecendo-se no lugar que ficaria conhecido
como porto dos Patos. O porto dos (índios) patos ficava na baixada do rio
Maciambu, entre as atuais enseada do Brito e praia da Pinheira, quase em frente à
ponta sul da ilha (veja o mapa a seguir).
Em novembro de 1521, ali viviam nove europeus,
cada um deles em companhia de três ou quatro
nativas. Todos tinham seus próprios escravos e
mantinham boas relações com os chefes locais. O mar
lhes fornecia tainhas, garoupas e mariscos em
profusão. Suas mulheres plantavam mandioca e
colhiam pitangas, butiás e goiabas. Os guerreiros
Carijó os supriam de carne de anta e de veado e de
perdizes e marrecos. A abundância dessas aves era tal
que faria com que os Carijó ficassem conhecidos como
“índios patos”. Embora impedidos de retornar à
Europa, os náufragos de Solís serviam-se dos cedros e
perobas das matas de Santa Catarina para construir
seus próprios barcos (os bergantins). Com os índios
aos remos, navegavam ao longo da costa sul do
Brasil, de Laguna até São Vicente, em São Paulo.
Várias vezes fizeram o percurso até Cananeia, onde
2
vivia um grupo de degredados espanhóis. Altivos
capitães europeus logo iriam depender das informações
dadas por esses homens.
O PEABIRU
Em 1663, o padre
jesuíta
Simão
de
Vasconcelos descreveu a
baixada do Maciambu,
onde ficava o porto dos
Patos. Seu relato: “É uma
formosa enseada, coberta
de arvoredo, retalhada de
correntes
de
águas,
povoada de feras somente,
e tem tanta quantidade de
veados que parece o campo
de caça de um rei; e se não
forem os tigres que os
comem, serão infinitos.
Parece um viveiro de peixe
e marisco para todo o
tempo e de toda a sorte.
Daqui foi levado o casco
de ostra no qual um
capitão de São Vicente
mandou lavar os pés de
No verão de 1524 Aleixo Garcia partiu do porto um bispo em lugar de
dos Patos para realizar uma das mais extraordinárias bacia.”
jornadas da história do Brasil. Não se sabe quem ele
era, nem onde ou quando nasceu. Sabe-se apenas que
era português e que devia ser um sujeito
tremendamente arrojado. Depois de viver durante oito
anos entre os índios patos, Garcia estava familiarizado
com as histórias referentes à serra da Prata e ao
poderoso Rei Branco. A coerência entre os relatos feitos
por nativos de várias e diferentes tribos o convencera de
que – embora mirabolante – a história deveria ser
verdadeira. Ele decidiu investigá-la pessoalmente.
Aleixo Garcia arregimentou um exército formado
por dois mil índios flecheiros (Carijó, em sua maioria)
e partiu para sua assombrosa jornada em direção ao Peru e às fabulosas riquezas do
Império Inca. Junto com o grupo, seguiu o mulato Francisco Pacheco. Do porto dos
Patos, a tropa de Garcia se dirigiu, provavelmente por mar, a bordo de bergantins e
longas canoas indígenas, até a foz do rio Itapocu, considerado “a porta de entrada do
sertão”. O Itapocu, que mantém o mesmo nome, fica próximo à atual praia de
Piçarras, cerca de 20 quilômetros ao norte do Balneário Camboriú. Seguindo pela
margem esquerda do Itapocu, o grupo penetrou no continente e deu início à caça ao
tesouro.
Guiado pelos nativos, Aleixo Garcia venceu a serra
do Mar e chegou a uma trilha indígena bem
demarcada, que percorria as nascentes do rio Iguaçu,
numa região de campos planos, repletos de araucárias,
e de cuja existência ele já fora informado. Por essa
trilha, ele pretendia seguir até o Paraguai. Tal caminho
A Estrada Selvagem
3
era chamado pelos Tupi-Guarani de Peabiru.
Depois da jornada de
Não se tratava de uma mera vereda na mata: era Aleixo Garcia, o Peabiru se
um
caminho
quase uma estrada “larga de oito palmos (1,60 metro), tornou
com mais de 200 léguas (ou 1.200 quilômetros) de bastante conhecido e muito
comprido”, sinalizada “por certa erva muito miúda percorrido. Por ele seguiria,
que, dos dois lados, crescia até quase meia vara (60 em 1531, a malfadada
centímetros), e ainda quando se queimassem os expedição de Pero Lobo,
campos, sempre nascia aquela erva e do mesmo um dos capitães de Martim
Afonso de Sousa. Por ali
passaram Alvar Nuñes
Cabeza de Vaca em 1541 e
Ulrich Schmidel em 1553.
Jesuítas
como
Pedro
Lozano e Ruiz de Montoya
também o percorreram em
suas missões de catequese
aos Guarani. Um século
mais tarde, seria também
pela via do Peabiru que
Raposo Tavares e outros
bandeirantes
paulistas
seguiriam para realizar
seus devastadores ataques
às missões do Guairá, no
atual estado do Paraná. O
mapa anterior mostra a
Alimentando-se basicamente de mel silvestre, rota seguida por Aleixo
palmitos, milho e farinha de pinhão, a grande tropa de Garcia. O restante do
Aleixo Garcia levou cerca de quatro meses para vencer percurso pode ser visto no
a distância de cerca de mil quilômetros entre Santa segundo mapa a seguir. A
Catarina e o sítio da futura cidade de Assunção. A imagem acima mostra o
partir dali, é provável que tenha seguido por via fluvial, alemão Ulrich Schmidel
subindo o rio Pilcomayo até suas nascentes, nos percorrendo o Peabiru em
contrafortes dos Andes.
1553, montado em sua
Chegando até a atual província de Chuquisaca, no lhama e acompanhado de
sudeste da Bolívia, próximo da atual Santa Cruz de la seus guias.
Sierra, Aleixo Garcia e seus dois mil Guarani
atacaram os postos fronteiriços do Império Inca, localizados nas cercanias da atual
cidade de Sucre. Garcia deve ter estado a menos de 150 quilômetros de Potosí, a
fabulosa montanha de mais de 600 metros de altura, quase que inteiramente de prata
pura, e local que dera origem à legenda da serra da Prata. O Rei Branco também
5
existia: era o Inca Huayna Capac, que vivia em Cuzco, a capital imperial,
localizada 600 quilômetros ao norte de Sucre.
4
modo”.
O Peabiru podia ser alcançado tanto a partir da foz
do Itapocu quanto de Cananeia, de São Vicente e de
São Paulo. Em algum lugar do planalto sul-brasileiro,
nas proximidades da atual cidade de Ponta Grossa
(PR), essas trilhas e ramais se juntavam ao Peabiru e,
cruzando pelas nascentes dos rios Tibaji, Ivaí e Piquiri,
seguiam pela margem direita do rio Iguaçu até sua foz,
no rio Paraná. Cruzando o Paraná, o Peabiru
conduzia até o rio Paraguai e acabava na confluência
desse rio com o rio Pilcomayo, no local onde seria
fundada, mais tarde, a capital do Paraguai, Assunção.
A grande área pantanosa do Chaco impedia que o
Peabiru se unisse à rede viária construída pelos incas,
com estradas pavimentadas, pontes pênseis, pedágio e
postos de inspeção.
O exército de flecheiros comandado por Aleixo Garcia atacou com ardor os
vilarejos localizados nos arredores de Sucre e Potosí. Após encher cestos com taças de
prata, peitorais de ouro e objetos de estanho, o grupo de guerrilheiros bateu em
retirada, iniciando sua jornada de regresso a Santa Catarina. Mas, ao chegar às
margens do rio Paraguai, a tropa foi atacada pelos temíveis Payaguá – índios
extremamente ferozes que, dois séculos mais tarde, ficariam conhecidos como os
“piratas do rio Paraguai”, aterrorizando os viajantes das monções (como eram
chamados os comboios fluviais dos bandeirantes que, a partir de 1720, partiam de
São Paulo para Cuiabá). Entre as centenas de mortos estava o próprio Aleixo
Garcia.
Em fins de 1525, uns poucos sobreviventes da aventura de Aleixo Garcia
conseguiram chegar ao porto dos Patos, mais mortos do que vivos. Entre eles estava
o mulato Francisco Pacheco, um dos náufragos de Solís. Como prova da
extraordinária (embora malsucedida) façanha, Pacheco mostrou a Melchior
Ramires e a Henrique Montes algumas peças de prata e ouro saqueadas aos incas
em Chuquisaca e fez um relato detalhado da expedição.
A partir de então, a febre de riquezas tomou conta daqueles dois companheiros de
Aleixo Garcia que não haviam se arriscado a segui-lo na louca jornada até os
Andes. Henrique Montes e Melchior Ramires logo iriam contagiar todos os viajantes
europeus com os quais cruzaram a partir de então. Por intermédio deles, as notícias
sobre a serra da Prata e o Rei Branco também iriam chegar aos ouvidos dos reis de
Portugal e Espanha – e se tornariam a força motriz que impulsionou a exploração
do rio da Prata e a ocupação do litoral sul do Brasil.
CABOTO, ACUÑA E GARCIA NO PORTO DOS PATOS
Em fins de outubro de 1526, um ano depois da morte de Aleixo Garcia, chegava
à ilha de Santa Catarina o navegador veneziano Sebastião Caboto. Assim que ele
ancorou, a primeira pessoa a subir a bordo de sua nau foi justamente Henrique
Montes. E o relato que ele tratou de fazer impressionou todos os que o escutaram.
De fato, ao se encontrar com Caboto e com os capitães da frota, Henrique Montes
assegurou que, caso lhe dessem ouvidos, “nunca os homens de uma armada seriam
tão afortunados”, pois “havia tanto ouro e tanta prata no rio de Solís que todos
6
ficariam ricos, e tão rico seria o pajem como o marinheiro”. De acordo com o
depoimento de uma das testemunhas daquele encontro, “a alegria que tinha o dito
Henrique Montes era tanta que, quando aquilo dizia, mostrando as contas de ouro,
7
chorava”. Como não é difícil supor, o entusiasmo de Henrique Montes contagiou
toda a tripulação de Caboto.
Por ironia, Sebastião Caboto só havia chegado ao
porto dos Patos porque fora conduzido até lá por um
dissidente português – o piloto Jorge Gomes, o homem
que Cristóvão Jaques deixara desterrado na feitoria de
Itamaracá em 1522. Os fabulosos relatos sobre as
riquezas do rio da Prata feitos primeiro por Jorge
Gomes e, depois, por Henrique Montes fariam com que
Caboto simplesmente desistisse de sua missão original,
que era seguir da Espanha para as ilhas Molucas via
estreito de Magalhães.
O veneziano Sebastião
Caboto era filho do grande
navegador
Giovanni
Caboto, o homem que, sob
bandeira inglesa, tinha
percorrido vastas extensões
da América do Norte em
1497 e em 1498. Sebastião
acompanhara o pai em sua
segunda viagem. Depois da
morte de Giovanni – cuja
Em fins de 1525, o novo piloto-maior de Castela foi
terceira
expedição
se
incumbido de partir em direção às Molucas seguindo a
perdeu nos icebergs da
rota aberta pela expedição de Fernão de Magalhães. Na
costa norte do Canadá – e
mesma viagem, Caboto deveria tentar atingir também
das
subsequentes
Catai (a China) e Cipango (o Japão), além de procurar
discussões entre Sebastião e
pelos reinos mitológicos de Tarsis e Ofir – territórios
o rei Henrique VII,
No início de 1518, dois anos após a trágica morte
do piloto-maior Juan Díaz de Solís no rio da Prata,
Caboto fora escolhido para substituí-lo. Seduzido por
um salário de 125 mil maravedis – mais do que o
dobro do de Solís –, Caboto deixou Veneza e se
transferiu para
Sevilha. Desses formidáveis
rendimentos anuais deveriam ser descontados os dez
mil maravedis referentes à pensão da viúva de
Américo Vespúcio. Homem de caráter dúbio, Caboto
jamais pagou o que devia.
bíblicos nos quais se encontrariam as riquezas do rei relativas ao pagamento de
Salomão e cuja existência ainda era considerada uma uma pensão vitalícia,
realidade.
Caboto retornou para
Com três naus e 150 tripulantes, Sebastião Caboto Veneza. Lá, não conseguiu
zarpou da Espanha no dia 3 de abril de 1526. Seguiu a convencer o Conselho dos
rota tradicional: ancorou nas Canárias, fez escala em Dez de que a sereníssima
de
Veneza
Cabo Verde e no dia 3 de junho de 1526 chegou ao república
cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. Quando os também deveria tomar
na
corrida
navios se aproximavam da costa brasileira à procura parte
de um rio para se abastecer de água doce, uma canoa ultramarina. Então, em
indígena se acercou de uma das naus. A bordo dessa 1518, Caboto decidiu se
8
piroga, junto com os nativos, “vinha um cristão”. Ele mudar para a Espanha.
subiu a bordo e se apresentou a Caboto: era Jorge Gomes, o piloto português que
acompanhara Cristóvão Jaques ao Prata e subira o rio Paraná em 1521, sendo
depois abandonado por ele na feitoria de Itamaracá. Gomes encheu a mente de
Caboto com histórias sobre as inesgotáveis riquezas do Prata.
Retido pelo mau tempo e pelas correntes contrárias da costa leste-oeste (que quase
o empurraram para o Caribe, como acontecera com Estevão Fróis 11 anos antes),
Caboto só conseguiu partir de Pernambuco em setembro de 1526, depois de uma
permanência de três meses no Nordeste brasileiro. Provavelmente ele já desistira de
chegar às Molucas e estava decidido a explorar o Prata. De todo modo, se tal decisão
ainda não fora tomada, ela certamente o seria no dia 28 de outubro de 1526,
quando, por indicação de Jorge Gomes, Caboto chegou ao porto dos Patos. Foi ali
que o taciturno capitão veneziano se encontrou com o entusiástico Henrique Montes.
Poucos dias depois da conversa entre Montes e Caboto, um outro náufrago de
Solís chegava ao porto dos Patos, vindo do sul, a bordo de um bergantim e
acompanhado por meia dúzia de indígenas. Era Melchior Ramires, que, cinco anos
antes, também acompanhara Cristóvão Jaques ao Prata e ao Paraná. Com detalhes
ainda mais tentadores, Ramires confirmou as notícias dadas por Henrique Montes
relativas à expedição de Aleixo Garcia e às extraordinárias riquezas do rio que seria
a via natural de penetração até o local onde o próprio Garcia recolhera as taças de
prata e os peitorais de ouro.
Àquela altura, Ramires não estava mais vivendo no porto dos Patos. Ele havia se
transferido para o sul de Santa Catarina e estava morando no local chamado de
porto de Don Rodrigo. O porto de Don Rodrigo ficava uns 60 quilômetros ao sul do
porto dos Patos, provavelmente na atual praia de Imbituba (embora alguns
pesquisadores achem que ficava em Laguna, o que também é possível). O local
recebera esse nome porque, três meses antes do desembarque de Caboto, o capitão
9
espanhol D. Rodrigo de Acuña chegara ali “meio desarvorado e faminto”, com seu
navio com as velas rasgadas e os mastros rachados.
OS TORMENTOS DE D. RODRIGO
D. Rodrigo era capitão de um dos navios da frota comandada por Jofre de
Loyasa, que partira de Sevilha no dia 25 de julho de 1525, nove meses antes de
Caboto, e com a mesma missão: chegar às Molucas via estreito de Magalhães. Mas,
ao se aproximar da entrada do terrível estreito, em pleno inverno austral, a frota de
Loyasa foi varrida de volta para o litoral brasileiro. O navio de D. Rodrigo se
desgarrou dos demais e foi dar no porto dos Patos.
Ao desembarcar, em agosto de 1526, D. Rodrigo horrorizou-se com a
promiscuidade dos náufragos de Solís. Encontrou-os “amancebados com muitas
10
negras” (como então eram chamadas as nativas) e com uma vasta prole de
crianças mestiças. O máximo que o casto D. Rodrigo pôde fazer foi mandar o
capelão de seu navio batizar a meninada.
O efeito das conversas de Henrique Montes, Melchior Ramires e Francisco
Pacheco sobre os tripulantes do navio de D. Rodrigo parece ter sido mais profundo
do que o do batismo sobre as crianças. De acordo com o relato de D. Rodrigo, após
ouvir as notícias sobre as riquezas do Prata e ver de que maneira viviam os
náufragos de Solís, “a metade dos meus homens pensava em abandonar a nau, para
11
ficarem todos ali, transformados em selvagens”.
De fato, foram 32 os homens da nau de D. Rodrigo Acuña que desertaram. Com
apenas metade da tripulação, ele se apressou em se retirar do porto dos Patos e,
dirigindo-se um pouco mais para o sul, instalou-se por uns meses em Imbituba (ou
Laguna), onde consertou o navio o melhor que pôde e, assim que possível, zarpou
em direção ao norte do Brasil. Mas seus problemas estavam apenas começando.
Ao chegar à Bahia, nove dos 30 homens restantes foram devorados por índios
antropófagos e, logo a seguir, seu navio foi atacado por um galeão francês que
negociava pau-brasil com aqueles nativos. Durante esse ataque, sua própria
tripulação o abandonou, fugindo com a nau, enquanto o pobre D. Rodrigo – que
negociava uma trégua com os franceses – foi deixado para trás, com apenas oito
marinheiros, em um batel (ou escaler). Depois de 20 dias remando pelo litoral
nordeste do Brasil, o infeliz capitão conseguiu chegar, “perdido, descalço e desnudo
12
como um selvagem”, à feitoria de Itamaracá, na qual acabara de desembarcar
Cristóvão Jaques.
Embora tenha sido D. Rodrigo quem alertou Jaques para a presença dos
entrelopos franceses na Bahia, o pagamento que ele recebeu em troca foi o
confinamento por 18 meses na feitoria de Pernambuco.
Meses mais tarde, quando Caboto chegou ao porto
dos Patos, Melchior Ramires estava vivendo no porto
de D. Rodrigo em companhia de 15 dos 32 desertores
de D. Rodrigo de Acuña. Os demais haviam se
mudado para Cananeia, onde moravam alguns
degredados. Assim que soube da chegada da frota de
Caboto, Ramires pegou seu bergantim e seus índios e se
dirigiu para o porto dos Patos. Foi depois de conversar
longamente com Henrique Montes e Melchior Ramires
que Caboto – do alto de sua condição de piloto-maior
da Espanha – decidiu trocar definitivamente o objetivo
inicial de sua missão: em vez das Molucas, ele iria
explorar o Prata e o Paraná.
Henrique Montes foi contratado para ser o
“provedor da armada”, ou seja, o responsável pelo
abastecimento dos navios. Além dele, um certo
Durango, desertor da nau de D. Rodrigo, adquiriu dos
índios “398 galinhas”. Eram os patos que, a partir de
então, emprestariam seu nome aos Carijó.
Henrique
Montes
deixou
“uma
contabilidade” de seus
serviços como “provedor”
da armada de Caboto: em
troca de alguns anzóis,
espelhos,
contas
e
ferramentas de metal, ele
obteve dos Carijó a carne
de “293 veados e 194
antas, mel em favos,
muitos feixes de milho, 40
cestos de inhame, um lote
de ostras e botas [jarros]
de
cauí
[a
bebida
fermentada dos índios,
usada
em beberagens
cerimoniais]”, além de
centenas de palmitos “para
salada na mesa de sua
mercê”.
Informado de que não poderia subir o rio Paraná
em suas naus, Caboto encarregou Melchior Ramires da
construção de um bergantim. Bergantins eram
Abaixo,
gravura
pequenos barcos a vela e a remo, esguios e velozes, seiscentista representando
com cerca de 10 metros de comprimento, dois mastros os Carijó.
de galé e oito a dez bancos para os remadores. Em
cedro e peroba, o navio foi construído pelos índios, sob
supervisão de Ramires.
Com o bergantim desmontado e acondicionado no
porão de uma das naus, e com Melchior Ramires e
Henrique Montes incorporados à tripulação, Sebastião
Caboto partiu em direção ao “rio maravilhoso” em 15
de fevereiro de 1527. Pouco antes, em homenagem à
sua mulher, Catalina Medrano, ele batizou a ilha em frente da qual estivera durante
quase quatro meses com o nome de “Santa Catalina”. No porto dos Patos, Caboto
deixou desterrado o capitão Francisco de Rojas. Rojas fora terminantemente
contrário à mudança de planos e achava que Caboto, mesmo sendo piloto-maior,
não tinha o direito de desistir da missão para a qual o próprio rei da Espanha o
designara.
SEBASTIÃO CABOTO NO RIO DA PRATA
Em fins de março de 1527, Caboto entrou no vasto estuário do Prata. Navegou
cerca de 300 quilômetros rio acima. Penetrou no rio Uruguai e ancorou nas
proximidades da atual cidade de Carmelo, que ele batizou de São Lázaro (veja mapa
a seguir). Era ali que então vivia Francisco del Puerto, o grumete que sobrevivera ao
massacre de Solís e depois acompanhara Cristóvão Jaques Paraná acima. O jovem
Francisco – que havia mais de dez anos estava vivendo entre os Charrua – confirmou
a Sebastião Caboto o que Jorge Gomes e Melchior Ramires já haviam dito: o melhor
caminho para chegar à serra da Prata era subindo o rio Paraná.
Deixando dois de seus navios e uma guarnição em
São Lázaro, Caboto ordenou que o bergantim fosse
montado e, no dia 8 de maio, com esse navio e uma
caravela, acompanhado por Francisco del Puerto,
Melchior Ramires, Henriques Montes, Jorge Gomes e
outros 80 homens, ele ingressou por uma das bocas do
Na gravura acima, um
rio Paraná. Subindo o rio por mais de 300 bergantim.
quilômetros, Caboto fundou um pequeno forte, Sancti
Spiritus, na confluência do Paraná com um de seus afluentes, o Carcarañá, um
pouco acima do local no qual Cristóvão Jaques suspendera sua exploração cinco
anos antes. Sancti Spiritus, com suas paredes de taipa e telhado de palha, ficava entre
as atuais cidades de Rosário e Santa Fé. Ali, Caboto e seus homens permaneceram
durante sete meses.
Mapa da bacia do rio da Prata, mostrando os fortes construídos por Caboto e a
rota do Peabiru.
No dia 23 de dezembro de 1527, a bordo do bergantim, também batizado de
Santa Catalina, 25 homens – entre os quais Caboto, Ramires, Montes, Jorge Gomes
e Francisco del Puerto – partiram para explorar o Paraná. Foi uma jornada terrível
por um labirinto de ilhas, com correntes contrárias, sob o calor de um verão
escaldante, com pouca comida, índios hostis, mosquitos aos milhões e febres
palustres. Caboto subiu o Paraná até sua confluência com o rio Paraguai. No
encontro entre os dois rios, optou por seguir Paraguai acima.
Mas, infelizmente para ele, avançou menos de 200 quilômetros por esse rio,
devido às fortes correntes, e resolveu dar meia-volta antes de ter chegado à foz do
Pilcomayo, o rio que o teria conduzido à “sierra de la Plata”. Assim, descendo o
Paraguai, ele entrou novamente no Paraná e o seguiu por cerca de 200 quilômetros,
até as proximidades da atual cidade de Posadas, na Argentina. Ali, fundou um novo
fortim, chamado de Santa Ana (veja mapa anterior). Quatro meses haviam se
passado desde que o bergantim partira de Sancti Spiritus – e nada fora encontrado.
Ao visitar o fortim de Santa Ana, um chefe indígena amistoso chamado
Yaguarón informou a Caboto que o verdadeiro caminho para a serra da Prata era
pelo rio Paraguai. Caboto então deixou alguns homens em Santa Ana e desceu o
Paraná, disposto a subir novamente o Paraguai. Entre os homens deixados no
fortim estava Francisco del Puerto. Mais tarde, certa noite, esse grumete – que vivera
quase a metade de sua vida entre os índios – teria aberto o portão da paliçada,
permitindo que os nativos matassem os espanhóis. Francisco del Puerto ficou
vivendo entre os indígenas e nunca mais se ouviu falar dele. Entre os mortos no
fortim de Santa Ana estava o desafortunado Jorge Gomes – um destino inglório
para o piloto que fora desterrado em Itamaracá.
Em 7 de maio de 1528, três dias depois de ter partido de Santa Ana, quando
descia o Paraná e já se encontrava a cerca de 70 quilômetros da confluência com o
Paraguai, Sebastião Caboto deparou com uma cena simplesmente inacreditável: viu
dois bergantins com bandeira de Castela subindo o rio. Caboto não tinha a menor
ideia de quem poderia estar a bordo deles. Como ele logo descobriria, o chefe dos
bergantins era o capitão Diego Garcia de Moguer.
Apesar do nome (Moguer é uma cidade da Espanha), Diego Garcia era um
experiente piloto português que provavelmente havia acompanhado a expedição de
Solís ao Prata em 1515. Mais tarde, como tantos portugueses antes e depois dele,
desertou para a Espanha. Em setembro de 1526, Garcia fora nomeado capitãogeneral de uma armada financiada por Cristóvão de Haro. O objetivo da diminuta
frota, constituída por apenas uma nau e um galeão e com uma tripulação de 100
homens, também era atingir as Molucas.
O motivo pelo qual três expedições (a de Jofre Loyasa, da qual fazia parte D.
Rodrigo de Acuña, a de Caboto e a do próprio Diego Garcia) haviam partido da
Espanha quase simultaneamente e com o mesmo objetivo pode ser explicado pelo
fato de que a Coroa de Castela estava decidida a estabelecer sua soberania sobre as
ilhas Molucas e a cidade de Málaca o mais clara e rapidamente possível.
As Molucas eram as ilhas que produziam as especiarias. Enviadas dali para a
cidade de Málaca, elas abasteciam a Índia e faziam a riqueza dos mercadores
árabes. Os portugueses tinham chegado ao sudeste da Ásia em 1508 e conquistado
Málaca em 1511. Mas em 1522 a expedição de Magalhães voltara das Molucas com
provas de que a região ficava dentro da demarcação espanhola.
As medições feitas pelos pilotos de Castela não foram aceitas em Portugal. Por
isso, em maio de 1524 três cosmógrafos espanhóis e três portugueses, mais três
pilotos e três “letrados” de cada país, se reuniram em Badajoz, na Espanha, para
tentar definir por onde afinal correria a linha de Tordesilhas ao redor do globo.
Muito mais do que o ponto do litoral brasileiro pelo qual passaria esse limite, o que
realmente interessava, naquele momento, era a localização da linha no Oriente.
Como a conferência resultou em impasse, Castela decidiu ocupar militarmente e o
mais rápido possível as Molucas,“o berço das especiarias”.
O MISTERIOSO BACHAREL DE CANANEIA
Diego Garcia partira de Palos em 15 de agosto de 1527 (quando Caboto já
estava há dois meses no fortim de Sancti Spiritus). Ao contrário de Loyasa e de
Caboto, ele fora autorizado pelo bispo Juan de Fonseca a explorar também o Prata –
possivelmente porque já estivera lá. Depois de se abastecer nas Canárias, os navios
de Garcia seguiram para São Vicente, no litoral sul de São Paulo. Após breve escala
nesse ponto estratégico (que logo ficaria conhecido como porto dos Escravos), Diego
Garcia partiu para Cananeia, onde chegou no dia 15 de janeiro de 1528.
Nessa ilha, no mesmo dia ou no seguinte, Diego Garcia encontrou um dos
personagens mais sombrios e enigmáticos da história do Brasil – o homem a quem
ele chamou de Bacharel de Cananeia.
Não se sabe quem esse homem era, nem como ou quando havia chegado ao
Brasil. Sabe-se, isso sim, que se tornara uma espécie de Rei Branco vivendo entre os
índios; que tinha pelo menos seis mulheres, mais de 200 escravos e mais de mil
guerreiros dispostos a lutar por ele; que era temido e respeitado por todas as tribos
costeiras desde São Paulo até Laguna; e que não havia quem ousasse desafiar o seu
poder. O Bacharel de Cananeia era o virtual senhor do litoral sul do Brasil. Quase
tudo mais que se pode dizer sobre ele são meras conjecturas.
O Bacharel não era um náufrago, como Henrique
13
Montes ou Melchior Ramires. Não fora desterrado,
como Jorge Gomes. Não estava perdido, como D.
Rodrigo de Acuña. O Bacharel de Cananeia era um
degredado. Mas não um degredado como Afonso
Ribeiro – o homem que fora deixado por Cabral em
Porto Seguro em 1500 e recolhido por Vespúcio em
1502. Ao contrário de Ribeiro, o Bacharel não quis se
aproveitar das determinações do rei D. Manoel, de
Um falastrão
Apesar de o nome do
mais misterioso degredado
da história do Brasil não
ser conhecido com certeza,
sabe-se que o Bacharel de
Cananeia não era um
“bacharel” no sentido usual
do termo, ou seja, “um
acordo com as quais qualquer degredado que
retornasse a Portugal com informações sobre o Brasil
não apenas seria absolvido de seu crime como
receberia uma gratificação de 500 ducados.
indivíduo formado em
alguma
faculdade”.
Embora no século XVI a
palavra já fosse usada
basicamente para indicar
aqueles que cursavam a
universidade, em sentido
figurado
ela
também
significava “individuo que
habla mucho y fuera de
propósito y de tiempo”, de
acordo com o Diccionario
de la Lengua Castellana
editado pela Academia
Española em 1516.
No Brasil, o Bacharel de Cananeia encontrara uma
ocupação muito mais lucrativa do que meros 500
ducados. Ele se tornou o primeiro e um dos maiores
traficantes de escravos do sul do Brasil – capaz de
negociar cerca de mil cativos por vez. Foi o Bacharel
quem inaugurou, em grande escala, a prática que se
tornaria a principal atividade dos futuros colonos de
São Vicente e a primeira fonte de renda da cidade de
São Paulo: a escravização dos índios Carijó. As
vantagens e o poder que obtinha com o tráfico eram
tão evidentes que ele jamais parece ter aventado a
possibilidade de retornar a Portugal. Ainda assim,
apesar de seu papel preponderante nos 30 primeiros anos da história do Brasil, sua
real identidade permanece envolta em mistério.
Embora fosse analfabeto, ao retornar à Espanha, o capitão Diego Garcia ditou
uma Memória de la Navegación, na qual fez um relato detalhado de sua viagem
(redigido basicamente para atacar Caboto). Referindo-se ao dia 15 de janeiro de
1528, Garcia diria apenas ter encontrado “um bacharel português que vive ali faz
bem 30 anos e tem muitos genros”. Num trecho posterior de seu relato, Garcia citou
o nome do Bacharel. Mas “os estragos feitos pelos anos e a incúria dos homens que
14
deveriam cuidar do documento” acabaram fazendo com que o papel se rasgasse
justamente no ponto em que o nome do primeiro grande senhor de escravos do Brasil
estava registrado.
Apesar de o historiador Rui Diaz Gusmán ter afirmado, em sua obra clássica La
Argentina, escrita em 1612, que o Bacharel se chamava Duarte Peres (ou Pires),
documentos datados de 1540 e 1542 e descobertos em 1954 por Ernest Young
permitem supor que seu verdadeiro nome era Cosme Fernandes Pessoa. O Bacharel
seria, assim, o misterioso “mestre Cosme” encontrado, mais tarde, por outros
viajantes em São Vicente e em Cananeia. Segundo Francisco de Varnhagen, o
Bacharel fora deixado em Cananeia pela expedição de Gonçalo Coelho e Américo
Vespúcio em 1502 (o que corresponderia aos aproximados 30 anos aos quais se
referiu Diego Garcia).
Apesar de português, o Bacharel iria estreitar progressivamente seus laços com
desertores e exploradores espanhóis, aos quais forneceria não apenas escravos, mas
bergantins, víveres e mulheres. Ele parecia estar consciente de que Cananeia ficava
dentro das possessões castelhanas no litoral brasileiro – como de fato estava.
Um dos muitos “genros” do Bacharel de Cananeia era Gonçalo da Costa (ou
Acosta), também português e que estava vivendo desterrado no sul do Brasil havia
cerca de 20 anos. Naquele 15 de janeiro de 1528, Gonçalo da Costa começaria a
desempenhar um papel fundamental na exploração do Prata e do Paraguai. Ele e o
Bacharel prometeram fornecer 800 escravos a Diego Garcia em um período de um
mês. Em troca desses cativos, Garcia se comprometeu a levar Acosta de volta para a
Europa. Mas esse não foi o único negócio de que trataram o viajante espanhol e os
degredados “brasileiros” em Cananeia.
O CONFLITO ENTRE CABOTO E GARCIA
Informado de que não poderia subir o rio Paraná a bordo de sua nau nem de seu
galeão, Diego Garcia comprou o bergantim que pertencia a Gonçalo da Costa (o
barco com o qual ele e seu sogro, o Bacharel, costumavam recolher escravos ao
longo da costa e que já os conduzira algumas vezes ao porto dos Patos). Com a
embarcação desmontada e Acosta a bordo, Garcia partiu para o Prata, aonde
chegou em fevereiro de 1528. No fim do mês, na ilha de São Gabriel, em frente à
atual Colônia do Sacramento, ele ancorou, montou o bergantim e subiu o rio
Paraná. Cerca de 600 quilômetros adiante, deu de frente com o bergantim de
Sebastião Caboto, que descia o mesmo rio. Era o dia 7 de maio de 1528.
Foi um encontro constrangedor para os dois capitães. Mais do que isso, foi o
início de uma relação conflituosa que iria perdurar por três anos e que os levaria a se
enfrentar nos tribunais da Espanha. De início, Garcia tentou forçar Caboto a desistir
de suas explorações no Prata – já que ele não fora autorizado a realizá-las. Mas,
apoiando-se em sua posição hierárquica superior e no fato de já estar na região
havia mais de um ano – e, acima de tudo, respaldado pela superioridade numérica
de seus homens e armas –, Caboto acabou conseguindo se impor a Garcia.
Primeiro, impediu-o de continuar subindo o rio Paraná. Em seguida, obrigou-o
a retornar com ele ao forte de Sancti Spiritus. Por fim, mandou roubar as velas de
seu bergantim. Ao fazê-lo, Caboto involuntariamente salvou Diego Garcia de ser
morto pelos índios sublevados, que, com a cooperação de Francisco del Puerto,
haviam massacrado a guarnição que Caboto deixara no fortim de Santa Ana, às
margens do rio Paraná, em território hoje argentino.
Depois de alguns meses como prisioneiro virtual de Caboto no forte de Sancti
Spiritus, Diego Garcia relutantemente concordou em unir-se a ele e ajudá-lo a
explorar o Alto Paraná e o Paraguai. Assim, os dois capitães ordenaram a
construção de sete bergantins e, em dezembro de 1528, zarparam rio acima. Alguns
meses antes, uma das naus de Caboto e o galeão de Garcia tinham sido enviados de
volta à Espanha em busca de reforços e víveres. Por quase um ano, Caboto e Garcia
navegaram muitas léguas rio acima – na contracorrente, portanto –, explorando,
sem sucesso, o Paraguai, o Paraná e seus tributários (sem entrarem no Pilcomayo).
Os índios, as febres e a fome os atacaram incessantemente. Em setembro de 1529,
esgotado e faminto, Diogo Garcia desistiu da empresa. Um mês mais tarde, Caboto
fez o mesmo.
Em novembro de 1529, Diego Garcia retornou ao
porto dos Patos. Lá, ele recolheu o capitão Francisco de
Rojas, que Caboto deixara desterrado ali em fevereiro
de 1527. Então, seguiu para Cananeia, onde
permaneceu por vários meses como hóspede do
Bacharel e do genro dele, Gonçalo da Costa,
desfrutando seus escravos e suas mulheres. Em junho
de 1530, zarpou para a Espanha, levando consigo não
só Francisco de Rojas (para usá-lo como testemunha
no processo que iria abrir contra Caboto), mas
também o mulato Francisco Pacheco (náufrago de
Solís e companheiro de Aleixo Garcia na
extraordinária jornada pelo Peabiru) e o próprio
Gonçalo da Costa. Este último levou consigo duas de
suas mulheres, quatro filhos e sete filhas. Pacheco e
Costa pagaram por suas passagens fornecendo a Diego
Garcia oito e 15 escravos, respectivamente. Em 2 de
agosto de 1530, Garcia aportou em Sevilha, com um
total de 70 escravos a bordo – único resultado de seus
três anos de viagem. No dia 16 do mesmo mês,
apresentou queixa formal contra Caboto.
O Destino de Caboto
Sebastião
Caboto
desembarcou em Sevilha
em 22 de julho de 1530
(dez dias antes de Diego
Garcia). Trazia apenas 28
sobreviventes – e cerca de
60 escravos. O processo
instaurado contra ele por
Diego Garcia foi rápido e,
em março de 1532, Caboto
foi condenado a pagar 100
mil maravedis de multas e
indenizações ao rei e ao
próprio
Garcia.
Foi
também condenado a um
exílio de quatro anos em
Orã, na Argélia. Poucos
dias depois de a sentença
ter
sido
promulgada,
porém, o imperador Carlos
Em maio de 1530, Sebastião Caboto também V – que passava a maior
chegou a Cananeia, lá encontrando Diego Garcia bem parte do tempo na
instalado nos domínios do Bacharel. Quando soube Alemanha – chegou a
que seu rival levaria Francisco de Rojas para a Sevilha e indultou Caboto.
Espanha, tentou forçar o capitão que punira com o O
veneziano
foi
desterro a embarcar em seu próprio navio. Rojas, reconduzido ao cargo de
temendo ser assassinado, se recusou. No dia 28 de
maio, Caboto zarpou para a Espanha. A bordo,
seguiam Melchior Ramires e Henrique Montes, que
haviam se mantido fiéis a Caboto ao longo daqueles
três anos de explorações infrutíferas. Henrique Montes
embarcou para a Europa levando consigo três de suas
mulheres indígenas.
piloto-maior da Espanha e
recebeu o soldo que fora
suspenso. Pelos 12 anos
seguintes, viveu em Sevilha,
mudando-se em 1548 para
a Inglaterra, onde morreu
logo a seguir.
A chegada na Espanha dos polígamos Gonçalo da
Costa e Henrique Montes iria causar furor nas duas Coroas ibéricas – mas suas
mulheres não tiveram nada a ver com isso. O que realmente interessava eram as
fabulosas informações que eles detinham sobre a “sierra de la Plata”. Essas notícias
eram tão vivazes e intensas que, pouco antes, já tinham sido capazes de arrefecer o
interesse da Espanha pelas ilhas Molucas. Como logo se verá, elas também haviam
despertado cobiça vertiginosa em Portugal.
Nos primeiros dias de outubro de 1528, a nau que Caboto enviara do Prata para
a Espanha em busca de reforços havia aportado em Lisboa. Seu capitão era o inglês
Roger Barlow (homem de confiança do negociante Robert Thorne, um dos
financiadores de Caboto). Durante os dias em que permaneceu em Portugal, Barlow
se encontrou com o embaixador da Espanha, Lope Hurtado. No dia 19 de outubro
de 1528, Hurtado escreveu uma carta bombástica para o imperador Carlos V, na
qual dizia que, se fossem verdadeiros “os maravilhosos descobrimentos” feitos pelos
homens de Caboto, “indubitavelmente Vossa Majestade Imperial não necessitará
15
mais da canela ou da pimenta, porque terá mais ouro e prata do que necessita”.
A carta foi levada a sério na Espanha. Tanto que, em 22 de abril de 1529, os
emissários de Carlos V assinaram com representantes do rei D. João III de Portugal
o Tratado de Saragoça, mediante o qual, em troca de 350 mil ducados, a Espanha
abria mão do direito de explorar as Molucas, cedendo o “berço de todas as
especiarias” a seus rivais lusos. Uma cláusula do tratado estabelecia que a Espanha
deveria devolver o dinheiro caso, no futuro, ficasse provado que as ilhas não estavam
dentro da sua jurisdição.
O Tratado de Saragoça solucionou o conflito entre as duas Coroas no Oriente.
Mas, em breve, a luta diplomática iria se transferir para a região do rio da Prata.
VII
A EXPEDIÇÃO DE MARTIM AFONSO
chegada do degredado Gonçalo da Costa e dos náufragos Melchior
ARamires
e Henrique Montes à Espanha causou profundo impacto e dissabor
em Portugal. Afinal, embora fossem homens de baixa condição social, eles eram
portadores de notícias tão extraordinárias que chegaram mesmo a ser recebidos em
audiência na corte – e por ninguém menos que o próprio imperador Carlos V.
Apesar de envolvido na guerra contra Francisco I da França, Carlos V encontrou
tempo para escutar pessoalmente os fabulosos relatos sobre a serra da Prata e o Rei
Branco. E tratou de iniciar o planejamento para uma grande expedição cujo objetivo
era a fundação de uma cidade castelhana na boca do estuário do Prata. Comandada
– e financiada – pelo fidalgo Pedro de Mendoza, essa expedição de fato zarpou de
Sevilha em fins de 1534, e nela Gonçalo da Costa e Melchior Ramires ocupavam
cargos da mais alta importância.
Mas a guerra contra os franceses atrasou os esforços dos espanhóis: quatro anos
antes, em 1530, o rei D. João III já havia enviado uma nova frota portuguesa para
explorar o Prata. Ela era comandada por Martim Afonso de Sousa e levava, como
“provedor da armada”, Henrique Montes e, como “língua da terra” (intérprete),
Pedro Annes (marinheiro da nau Bretoa que, 20 anos antes, acusado de roubo, fora
desterrado no Rio com João Lopes de Carvalho).
Antes mesmo que as notícias sobre o julgamento de Caboto chegassem a
Portugal, o rei D. João III já sabia tudo sobre a viagem dele ao Prata. Afinal, o
piloto da caravela de Roger Barlow – que havia ancorado em Lisboa antes de chegar
a Sevilha para pedir reforços para Caboto – era o português Rodrigo Álvares. Fora
ele quem divulgara as notícias “sobre as costas do ouro e da prata entre os homens
do mar do porto de Lisboa, que não tardaram a fazê-las chegar aos ouvidos do
1
rei”.
Por isso, quando D. João III soube da chegada a Sevilha do degredado Gonçalo
da Costa e do náufrago Henrique de Montes – ambos portugueses –, tentou atraí-los
a Lisboa. O primeiro a ser chamado foi Gonçalo de Costa. Por volta de outubro de
1530, o rei enviou seus agentes a Sevilha com a missão de levarem o ex-degredado
para Portugal. Quando Gonçalo da Costa chegou a Lisboa, foi de imediato
conduzido à corte. Depois de 20 anos de exílio, lá estava o caçador de escravos, genro
do misterioso Bacharel de Cananeia, em frente ao seu soberano. E quem precisava
dele era o monarca…
Apesar das promessas do rei – que “lhe perguntou coisas sobre o rio de Solís, que
2
os portugueses chamam da Prata” –, Gonçalo fugiu de Lisboa, “porque, como não
lhe deixaram retornar a Sevilha para pegar mulher e filhos, teve medo que o
detivessem e deixou o reino sem que ninguém soubesse e sem se despedir de Sua
3
Alteza”. O assédio ao ex-degredado e seus desdobramentos ficaram conhecidos
porque, em 17 de fevereiro de 1531, a imperatriz D. Isabel, mulher de Carlos V,
escreveu ao seu embaixador em Lisboa, Lope de Mendoza, ordenando-lhe que
descobrisse tudo sobre a expedição que D. João III “pretendia enviar ao Prata”.
De fato, durante sua breve estada em Portugal, Gonçalo da Costa soubera que D.
João estava preparando o envio da frota de Martim Afonso de Sousa. Conforme a
imperatriz diria a seu embaixador, Gonçalo da Costa também “suspeitou que a dita
expedição vai partir com dois ou três fins: expulsar os franceses da costa do Brasil,
explorar o rio Marañón, que diziam ficar em sua demarcação, e fazer algumas
fortalezas nos portos – como o porto de São Vicente –, pois levam muita artilharia
grossa e porque, deste porto, que também fica na sua demarcação, pensam em
4
entrar por terra ao rio da Prata”.
Quando a carta de D. Isabel chegou a Lope Hurtado de Mendoza, a armada de
Martim Afonso já estava no Rio de Janeiro. Tinha partido de Lisboa no dia 3 de
dezembro de 1530, com um galeão, duas naus, duas caravelas e 400 homens a
bordo. Seus objetivos estratégicos eram exatamente aqueles que Gonçalo da Costa
informara à imperatriz: punir os franceses, explorar o rio Marañón (como se
chamava então o Amazonas, avistado por Pinzón 30 anos antes) e fundar uma
fortaleza em São Vicente. O propósito primordial da missão, porém – e muito mais
importante do que os demais –, era a exploração do rio da Prata.
Por isso, um dos tripulantes mais importantes da armada era o português
Henrique Montes. Ao contrário de Gonçalo da Costa, Montes aceitara as “mercês” de
D. João III e fugira para Portugal com uma de suas mulheres (as outras duas
ficaram na Espanha). Em 16 de novembro Montes foi feito “cavaleiro da Casa Real”
5
e nomeado “provedor da armada de Martim Afonso, quer no mar, quer na terra”.
Um destino surpreendente e de todo glorioso para um ex-náufrago.
Quatro dias depois da nomeação de Henrique Montes, foi a vez de Martim
Afonso de Sousa receber cartas reais que lhe conferiam “grandes poderes”. Feito
capitão-mor da armada, Martim Afonso poderia doar terras em sesmarias e criar e
nomear tabeliães e oficiais de justiça. Tinha também poder de vida e morte sobre
aqueles que o acompanhavam, com exceção dos fidalgos, que deveriam, em caso de
problemas, ser julgados no reino. Martim Afonso fora incumbido de levar a lei e a
ordem para o vasto território que permanecia ocupado apenas por náufragos
espanhóis, traficantes franceses e degredados portugueses, que “viviam de acordo
6
com a lei natural”, cercados de muitas mulheres e escravos nativos.
As circunstâncias excepcionais que cercaram a expedição de Martim Afonso
levaram alguns historiadores a afirmar que ele partia com a missão de colonizar o
Brasil. Antes dessa viagem, D. João III já vetara dois projetos colonizadores,
apresentados por Cristóvão Jaques e João Melo da Câmara, irmão do donatário da
ilha de São Miguel, nos Açores. Em 1529, Jaques propusera ao rei levar, à própria
custa, mil colonos para o Brasil. O projeto foi recusado, pois o rei considerava
Jaques um homem autoritário e independente demais. Melo, por seu turno, se
comprometera a enviar, sem ônus para a Coroa, “dois mil homens de muita
sustância que podem levar consigo cavalos e gados e todas as coisas necessárias para
7
o frutificamento da terra”. Mas D. João III também ignorou essa proposta. Na
verdade, não há indícios de que o rei estivesse interessado em povoar o Brasil antes
de 1532. Como seus antecessores, ele também preferia ocupar a Índia.
Ao escolher Martim Afonso, seu amigo de infância
(leia texto lateral a seguir), o verdadeiro objetivo de D.
João III não era o de dar início ao povoamento do
Brasil. O que o monarca de fato pretendia – além de
combater o abuso dos traficantes franceses e explorar o
Amazonas – era se apoderar da foz do grande rio que,
segundo todas as evidências, conduziria à fabulosa
serra da Prata e aos misteriosos e opulentos domínios
8
do Rei Branco.
Com isso sonhavam também os 400 homens que
embarcaram com Martim Afonso. É o que se pode
deduzir da carta que o embaixador Lope de Mendoza
enviou em resposta à imperatriz D. Isabel, na qual ele
afirma que os tripulantes que partiram na frota o
fizeram, quase todos, voluntariamente, “por vontade
9
própria e sem salário”. Frei Gaspar da Madre de
Deus confirma a notícia ao afirmar que “famílias
inteiras” acompanharam a expedição: “Vão para o rio
da Prata! E bastava escutar essa voz para que não
faltasse quem quisesse alistar-se”, escreveu o frade em
Memória para a História da Capitania de São
O Amigo do Rei
Martim Afonso de
Sousa nasceu na Vila
Viçosa, em 1500, pouco
depois de Cabral ter
descoberto o Brasil. Era
cavaleiro de alta linhagem.
Por parte de pai, descendia
de
Martim
Afonso
Chichorro, filho bastardo
do rei Afonso III, e seu avô
materno fora mestre-sala
do rei Afonso V. Martim
Afonso passou a infância
na corte, onde conviveu
com o futuro rei D. João
III. Quando este assumiu o
trono em 1521, convocou
Martim Afonso para fazer
parte do Conselho Real.
Além de treinado na arte
10
Vicente.
Martim Afonso partiu de Lisboa em 3 de dezembro
de 1530. Avistou o cabo de Santo Agostinho em fins de
janeiro de 1531. Num sinal evidente de que os franceses
continuavam ignorando o acordo firmado entre D.
João III e Francisco I, a expedição deparou, já em seu
primeiro dia no Brasil, com um navio normando
carregando pau-brasil. Martim Afonso tratou de
combatê-lo de imediato. Os entrelopos foram
capturados e informaram que havia outros navios
franceses ao sul do cabo de Santo Agostinho,
possivelmente na ilha de Santo Aleixo, a uns 30
quilômetros dali.
da guerra, Martim Afonso
era também um homem de
letras, discípulo do grande
matemático
português
Pedro Nunes, que foi seu
professor na juventude.
Para lá rumou Pero Lopes de Sousa, irmão de
Martim Afonso e redator do diário de bordo no qual
foram registrados todos os acontecimentos da viagem
(leia nota lateral a seguir). Pero Lopes enfrentou os
franceses, que resistiram até lhes acabar a pólvora. Depois da rendição dos inimigos,
Pero Lopes capturou suas duas naus, toda a sua artilharia e um grande
carregamento de pau-brasil. O irmão de Martim Afonso então retornou para as
proximidades da ilha de Itamaracá, uns 40 quilômetros ao norte do Recife. Deixou
11
seus feridos instalados “numa casa de feitoria que ali havia”: era o estabelecimento
que Cristóvão Jaques fundara 15 anos antes. Foi ali que Pero Lopes e Martim Afonso
se reencontraram, dias mais tarde. Todos esses acontecimentos se deram no início de
fevereiro de 1531.
Logo a seguir, a frota se dividiu em três para melhor cumprir sua missão. Sob o
comando do capitão Diogo Leite, as caravelas Rosa e Princesa foram enviadas para
o norte, com a missão de explorar o rio Marañón, que Pinzón descobrira e
percorrera exatos 31 anos antes. Uma das naus capturadas aos franceses partiu para
Portugal, carregada com 70 toneladas de pau-brasil e 30 prisioneiros normandos. O
restante da expedição – duas naus e um galeão, sob a chefia de Martim Afonso e
Pero Lopes – zarpou em direção ao rio da Prata, seu objetivo primordial.
Em fins de março, enquanto os irmãos Sousa ainda estavam na Bahia, Diogo
Leite chegou até a baía de Gurupi, atual divisa do Maranhão com o Pará. Devido ao
mau tempo, ele não conseguiu explorar o rio Amazonas. Foi forçado a retornar a
Lisboa sem ter cumprido sua importante missão e sem tomar posse do Amazonas.
O CARAMURU
No dia 13 de março de 1531, os navios de Martim
Afonso chegaram à baía de Todos os Santos, local já
bem conhecido pelos portugueses desde que a expedição
de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio lá chegara, 30
anos antes. Ali, a expedição encontrou um náufrago
que vivia há mais de duas décadas no Brasil. Os índios
o chamavam de Caramuru e ele iria se tornar uma
figura-chave na história colonial do Brasil. O
Caramuru estava casado com a índia Paraguaçu –
O Diário de Bordo
com a qual tinha vários filhos. Paraguaçu era filha do
A fonte primordial para
principal chefe guerreiro da região e, graças ao
reconstituição
da
casamento, Caramuru havia adquirido posição a
expedição
de Martim
proeminente entre os Tupinambá da Bahia.
Afonso de Sousa foi
O lugar de destaque e
Por influência do poema
o
respeito
dos de Santa Rita Durão, redigida por seu irmão e se
Diário
da
Tupinambá
por durante muitos anos se chama
Caramuru se manteriam acreditou que Paraguaçu Navegação de Pero Lopes
por muito tempo. Tanto é fora batizada de Catarina de Sousa.
O documento original se
que, 18 anos mais tarde, em homenagem à rainha
foi graças à sua presença da França, esposa do rei perdeu, mas em 1839 o
– e às boas relações que Henrique II – que, segundo historiador Francisco de
ele mantinha com os a lenda, teria sido inclusive Varnhagem, então com 23
descobriu,
na
nativos – que Tomé de a madrinha do casamento. anos,
Sousa,
o
primeiro Uma década antes de Biblioteca do Palácio Real
governador-geral
do Santa Rita Durão, porém, da Ajuda, em Lisboa, uma
Brasil, decidiu se instalar o historiador e frade cópia do Diário. Embora
justamente na Bahia e franciscano Antônio de incompleto e malcuidado, o
fundar ali, em maio de Santa Maria Jaboatão documento – um códice
1549, a primeira capital tentara provar que o nome com 41 páginas, repleto de
anotações e emendas feitas
do Brasil, Salvador.
cristão dado a Paraguaçu
Não
se
sabe era, na verdade, uma por várias mãos – era
autêntico e se revelou um
exatamente quando o homenagem à
rainha
navio do Caramuru Catarina de Portugal, tesouro historiográfico.
naufragou na Bahia. De mulher de D. João III. No
acordo com seu próprio entanto,
documentos
relato, o naufrágio se encontrados no Canadá,
dera em 1509 ou 1510.
Aparentemente, apenas
ele sobreviveu ao desastre
que vitimou toda a
tripulação. Os fatos que
se seguiram ao naufrágio
seriam envoltos em lenda
depois que frei José de
Santa
Rita
Durão
escreveu o poema épico
Caramuru, em 1781.
Muitas das informações
referentes à vida e à
narrativa do misterioso
náufrago foram extraídas
dessa obra de ficção e, a
partir de então – e até
hoje –, tratadas como
fatos históricos.
no século XX, e citados
pelo historiador J. F. de
Almeida
Prado
comprovam
que
a
verdadeira madrinha de
Paraguaçu foi Catarina des
Granhes,
mulher
de
Jacques Cartier, fundador
de Québec e da Nova
França, no Canadá.
Abaixo, retrato de
Caramuru, feito em 1838.
O
Caramuru
se
chamava Diogo Álvares
Correia e nascera em
Viana do Castelo, norte de Portugal. A própria origem do apelido foi romantizada
por Santa Rita Durão. Segundo o frade, “Caramuru” queria dizer “Dragão Saído do
Mar” ou “Homem do Trovão”. O real significado da palavra, porém, parece ser
“moreia”, espécie de enguia – peixe-elétrico que dá “choque”. Ao ser visto pelos
nativos, entre as rochas, após o naufrágio, Diogo Correia teria disparado seu
mosquete para o ar, apavorando os indígenas. “Como a moreia é um peixe
comprido e fino como a espingarda e faz estremecer e fere, assim os nativos
batizaram seu portador”, escreveu o historiador Francisco de Varnhagen em 1854.
Outros pesquisadores, porém, acham que a palavra provém de “caray-muru”, que
significa “homem branco molhado”.
Antes da chegada de Martim Afonso, Caramuru já socorrera espanhóis e
franceses e até tinha sido levado para a França, onde se casou oficialmente com
Paraguaçu, batizada de Catarina, em homenagem à madrinha, Catarina des
Granhes, mulher do navegador Jacques Cartier (leia nota lateral anterior). Cinco
anos após o encontro com Martim Afonso, Caramuru testemunharia o desembarque
do primeiro donatário da capitania da Bahia, Francisco Pereira Coutinho.
Apesar de seu poder e de sua amizade com os nativos, Caramuru não conseguiu
impedir a revolta dos Tupinambá contra os colonos escravagistas que vieram com
Francisco Pereira Coutinho – talvez até a tenha incentivado. O fato é que um conflito
violento eclodiu por volta de 1545 –, e nele foi morto o próprio donatário. Quatro
anos mais tarde, Caramuru prestaria auxílio ao governador Tomé de Sousa, de
1549 até 1553. Ele morreu com quase 70 anos, em 5 de outubro de 1557.
Em meados de março de 1531, depois de considerar as nativas da Bahia “tão
12
formosas quanto as mais belas moças da Rua Nova, de Lisboa”, Martim Afonso
partiu para o Rio de Janeiro. Na bela Guanabara, decidiu descansar a tropa e
consertar os navios. Na atual praia do Flamengo, fundou uma pequena vila, cercada
por uma paliçada, com “uma casa forte”, uma ferraria e um estaleiro. Ali, enquanto
Henrique Montes era encarregado de obter mantimentos para a viagem ao rio da
Prata – suficientes para 300 homens durante um ano –, o capitão ordenou a
construção de dois bergantins de 15 bancos cada um.
Durante os quatro meses em que a expedição esteve no Rio, Martim Afonso
repetiu o que Américo Vespúcio fizera três décadas antes: enviou quatro homens em
missão de reconhecimento ao sertão. Passados 31 anos da descoberta do Brasil,
aquela era a segunda incursão oficial ao interior do território. Por três décadas os
portugueses tinham “negligenciado o interior daquelas terras, contentando-se de as
13
andar arranhando ao longo do mar, como caranguejos”, para citar a frase que
frei Vicente do Salvador escreveu em 1627.
Por dois meses, os homens de Martim Afonso percorreram 115 léguas (ou 700
quilômetros) – 65 das quais por montanhas imponentes e 50 por um grande platô
descampado. Na volta, trouxeram um “grande rei”, senhor de toda aquela região,
que veio com “grandes pedaços de cristal e a notícia de que no rio Paraguai havia
14
muito ouro e prata”. Segundo o historiador Capistrano de Abreu, os homens de
Martim Afonso subiram a serra da Mantiqueira e chegaram a São Paulo. E, de
acordo com o historiador luso Jaime Cortesão, esse “grande senhor” era Tibiriçá,
cacique de Piratininga, a aldeia que daria origem à cidade de São Paulo, e sogro do
soturno degredado João Ramalho, que Martim Afonso iria encontrar alguns meses
mais tarde.
A TRÁGICA JORNADA DE PERO LOBO
o
No dia 1 de agosto de 1531, após quatro meses no Rio de Janeiro, a frota de
Martim Afonso partiu para o sul. No dia 12, ancorou em frente à ilha de Cananeia,
que Pedro Annes e Henrique de Montes com certeza já conheciam. Annes, “língua da
terra”, foi enviado a terra, num batel, para fazer contato com os nativos. Cinco dias
mais tarde, retornou trazendo consigo o misterioso Bacharel de Cananeia, um dos
muitos genros dele, chamado Francisco de Chaves, e mais “cinco ou seis
castelhanos”. Esses homens eram os desertores da nau de D. Rodrigo de Acuña que,
fazia sete anos, viviam nos domínios do Bacharel.
Pero Lopes de Sousa, autor do Diário da expedição, não citou o nome do
Bacharel, que, assim, permanece sem confirmação. Disse apenas que ele vivia
“degredado ali havia 30 anos”. Martim Afonso estabeleceu boas relações com o
autêntico senhor daquelas terras. Tanto que lhe doou uma sesmaria, embora o
Bacharel nunca tenha podido legalizá-la e permanecesse vivendo à margem da lei.
Dos homens que subiram a bordo naquele dia, quem mais falou foi Francisco de
Chaves. Ele garantiu que, se lhe dessem homens suficientes, “voltaria para aquele
porto, no espaço de dez meses, com 400 escravos carregados de ouro e prata”. A
proposta entusiasmou Martim Afonso.
o
No dia 1 de setembro de 1531, Francisco de Chaves entrava pela selva,
acompanhado pelo capitão Pero Lobo e por mais 40 besteiros e 40 espingardeiros. A
tropa pretendia atacar as aldeias limítrofes do Império Inca, localizadas dois mil
quilômetros a oeste dali. Era uma reprise da aventura de Aleixo Garcia, realizada
sete anos antes. Embora Francisco de Chaves e Pero Lobo não pudessem suspeitar,
seu destino seria igual ao de seu antecessor.
Liderado por Chaves, o exército de Pero Lobo partiu de Cananeia por um dos
ramais que conduziam ao Peabiru. Então cruzou o rio Iguaçu pouco acima de sua
estrondosa foz e entrou no território dos temíveis Payaguá. Os indígenas impediram
o avanço da tropa e depois a atraíram para campo raso, onde Pero Lobo foi morto.
“Com esse revés”, conta o historiador Sérgio Buarque de Holanda, “sentiram-se tão
desarvorados os expedicionários sobreviventes que deliberaram retroceder. Tornando
ao rio Paraná, receberam-nos os índios da região com fingidas mostras de amizade,
propondo-se dar-lhes passagem em suas canoas. Para esse efeito, trouxeram-nas
furadas, mal tapadas de barro as fendas e aberturas. De sorte que, já no meio do rio,
retiraram o barro, com o que se alagaram as canoas e, assim, dos portugueses, os
mais se afogaram ao peso das armas que levavam, e alguns que apanharam vivos
mataram-nos a flechadas e nenhum sobrou. Fora-lhes possível o estratagema por
serem aqueles índios grandes nadadores e não haver o que lhes estorvasse os
movimentos, pois que andavam nus. Com a malícia e traição de que se valeram
nesse caso, terminou tristemente a jornada daqueles portugueses, da qual pode-se
dizer foi, cronologicamente, a primeira entrada paulista da qual existe
15
documentação.”
Enquanto a expedição de Pero Lobo partia para seu trágico destino na selva,
Martim Afonso e Pero Lopes zarparam rumo ao Prata. O litoral era todo conhecido
por Pedro Annes e Henrique Montes. Mas não foi uma jornada fácil. Na ida, um dos
bergantins fez escala na ilha de Santa Catarina e lá encontrou 15 castelhanos. Eles
confirmaram a notícia de que “havia muito ouro e prata sertão adentro e traziam
16
mostras do que diziam”. A seguir, navegando pela costa do Rio Grande do Sul e
do Uruguai, Martim Afonso e Pero Lopes tiveram grandes dificuldades.
Segundo o próprio Martim Afonso, ele passou “por muitas tormentas, até por
derradeiro me dar uma tão grande que se perdeu a nau em que eu ia e escapei em
17
uma tábua”. Esse naufrágio se deu no dia 21 de outubro de 1531, na entrada do
estuário do Prata, próximo a Punta del Este. O capitão-mor só se salvou por ser
bom nadador. Embora tenham pescado “18 mil peixes em um só dia, entre corvinas
18
e anchovas”, os lusos tinham perdido quase todos os mantimentos que Henrique
Montes obtivera no Rio de Janeiro. Por isso – e pelo mau estado das naus e pelos
fortes temporais de verão –, Martim Afonso foi forçado a desistir de explorar o rio
da Prata.
Ainda assim, enviou Pero Lopes com 30 homens num bergantim rio Paraná
acima, sob a orientação de Henrique Montes. Não se sabe até onde Pero Lopes
avançou, mas provavelmente não passou da foz do rio Carcarañá, onde Caboto
fundara o forte Sancti Spiritus cinco anos antes. Ali, apesar de saber que estava em
território espanhol, Pero Lopes fincou marcos – então chamados “padrões” – com
inscrições em português, tomando posse da terra em nome do rei D. João III.
Os marcos colocados por Pero Lopes de Sousa dariam origem a uma polêmica
secular entre Portugal e Castela, travada em torno da posse do rio da Prata. Os
portugueses – até então ferozes defensores do Tratado de Tordesilhas – passaram a
advogar a tese de “posse por achado”, baseados no fato de o rio da Prata ter sido
descoberto em 1514 por João de Lisboa e Estevão Fróis. Tal decisão equivalia a
rasgar o Tratado de Tordesilhas, mas foi a ela que Portugal se agarrou. A questão
diplomática eclodiria com estrondo 150 anos mais tarde, em 1680, quando os lusos
fundaram a Colônia do Sacramento na margem esquerda do Prata, em frente a
Buenos Aires.
o
No dia 1 de dezembro, Pero Lopes e seus homens decidiram descer o Paraná e
retornar para a foz do estuário, onde Martim Afonso e os demais integrantes da
expedição os aguardavam. No primeiro dia de 1532, toda a frota partiu de volta
para o Brasil, chegando a Cananeia no dia 16 de janeiro. Cinco dias mais tarde,
transferiram-se para São Vicente, local combinado para o reencontro com a tropa de
Pero Lobo. Mas a expedição já fora trucidada pelos nativos.
Por um ano e três meses Martim Afonso permaneceu em São Vicente e acabou
fundando ali a primeira cidade portuguesa no Brasil. Alguns historiadores, no
entanto, afirmam que essa não teria sido uma decisão formal. Foi basicamente com
a intenção de dar continuidade à exploração das riquezas do Prata que cerca de 250
integrantes da expedição de Martim Afonso simplesmente se deixaram ficar em São
19
Vicente, “mais como hóspedes do que como colonizadores”.
O PATRIARCA DOS MAMELUCOS
Outros motivos podem ter contribuído para que vários homens de Martim
Afonso decidissem se estabelecer em São Vicente. Um deles pode ser deduzido de
uma carta escrita em 1554 pelo padre José de Anchieta. Além de buscar fortuna fácil
em terra virgem, na qual não havia “nem lei nem rei” e onde abundavam “a caça, a
pesca e os frutos silvestres”, os colonos portugueses também depararam com nativas
“que andam nuas e não sabem negar-se a ninguém, mas ainda elas mesmas
assediam e importunam os homens, metendo-se com eles nas redes, pois consideram
20
uma honra dormir com cristãos”.
Outro fato, de natureza mais prática, influiu na decisão dos colonos de se
deixarem ficar em São Vicente. Além de ser considerado “a porta de entrada para o
sertão” e o caminho natural para a serra da Prata, o local já era conhecido como
“porto dos Escravos” – sede de um incipiente tráfico de cativos indígenas. Quem dera
início, ali, a essa lucrativa atividade fora uma figura insólita que atendia pelo nome
de João Ramalho.
Não se sabe se João Ramalho era náufrago ou degredado. Sabe-se apenas que
estava no Brasil desde pelo menos 1508. Como Caramuru, Ramalho se tornara
genro do maior líder guerreiro da região. De fato, entre suas muitas concubinas, a
principal era Bartira, ou M’boy (“Flor de Árvore”, em tupi), filha de Tibiriçá, chefe
dos Guaianá e futuro aliado dos portugueses.
Martim Afonso e João Ramalho se encontraram no verão de 1532, em São
Vicente. Mas Ramalho não vivia à beira-mar: havia pelo menos duas décadas, ele se
instalara no topo do planalto, acima da serra do Mar, nas proximidades da atual
cidade de Santo André, a cerca de 100 quilômetros da costa. Dali ele dirigia o tráfico
de escravos do interior para o litoral. Foi Ramalho quem conduziu Martim Afonso
serra acima, pela trilha escabrosa do Paranapiacaba (“lugar do qual se vê o mar”),
caminho cujo traçado era similar ao da atual via
Anchieta, a estrada que liga Santos a São Paulo.
Ramalho era o senhor de todo aquele vasto e ainda
desconhecido território, onde, por causa dele, os
portugueses iriam se instalar poucos anos mais tarde.
Abaixo,
retrato
romantizado
de João
Ramalho e um de seus
muitos filhos, feito em 1954
por J. Wasth Rodrigues
Existem várias lendas em torno dessa figura por encomenda do Museu
enigmática. O que se pode dizer com certeza é que João Paulista.
Ramalho era venerado, temido e respeitado pelos
nativos. De acordo com depoimentos posteriores, ele
podia “arregimentar cinco mil índios, enquanto o rei de
Portugal só ajuntaria dois mil”. O cálculo foi feito pelo
aventureiro alemão Ulrich Schmidel, que em 1553
trilhou o Peabiru desde Assunção, no Paraguai, até
São Vicente. Ao passar por Santo André, achou-a com
o “aspecto de um covil de bandidos” e ficou aliviado ao
saber que “Johanes Reimelle” não estava lá, mas no
21
sertão, escravizando índios.
Se João Ramalho infundia terror em homens como
Schmidel, é fácil supor o que acharam dele os jesuítas
que chegaram em seguida. Em carta escrita em agosto
de 1553, o padre Nóbrega diria que a vida de Ramalho
era “uma petra scandali para nós (…) Tem muitas
mulheres e ele e seus filhos andam com as irmãs [de
suas esposas] e têm filhos delas. Vão à guerra com os índios e suas festas são de
índios, e assim vivem, andando nus como os mesmos índios”.
Apesar das declarações de Nóbrega, Ramalho não havia virado índio. Tornouse, isso sim, o patriarca dos mamelucos, o primeiro branco do Brasil a gerar uma
dezena de filhos mestiços – os mesmos que, anos mais tarde, iriam compor o grosso
do contingente das bandeiras paulistas e que revelariam violência inigualável na
escravização dos indígenas do sertão.
O fato de João Ramalho viver “amancebado” com Bartira levaria o jesuíta
Simão de Lucena a excomungá-lo em 1550. Mas, em 1553, Nóbrega percebeu que
seria impossível levar adiante a obra de catequese sem o aval de Ramalho e passou a
se empenhar pessoalmente para que ele casasse com Bartira. O casamento enfim se
realizou e Bartira foi batizada com o nome de Isabel. Em julho de 1553, o
governador-geral Tomé de Sousa nomeou Ramalho capitão-mor da vila de Santo
André. Ao escrever para o rei, Sousa diria que Ramalho tinha “tantos filhos, netos e
bisnetos que não ouso dizer a Vossa Alteza. Ele tem mais de 70 anos, mas caminha
nove léguas [cerca de 54 quilômetros] antes de jantar e não tem um só fio branco na
22
cabeça nem no rosto”.
Em 1560, por ordem de Mem de Sá, terceiro governador-geral, Ramalho se
transferiu de Santo André para São Paulo – e, dois anos depois, salvou a cidade de
um ataque dos Carijó. Em 1564, recusou o cargo de vereador. Quatro anos depois, o
jesuíta Baltasar Fernandes diria que Ramalho tinha “quase 100 anos, estando entre
os índios e vivendo não sei de que maneira, e não querendo nada de nossa ajuda nem
mistérios”. Fernandes relatou também um acidente sofrido pelo patriarca em
andanças pelo sertão, afirmando que “sua hora cedo virá”.
Mas João Ramalho só morreu em 1580, com mais de 95 anos de idade. Graças
a sua liderança e aliança com os índios, graças ao seu conhecimento das trilhas que
percorriam o planalto e graças ao rendoso tráfico de escravos que ele inaugurara,
São Vicente e São Paulo acabaram se tornando as mais importantes vilas do sul do
Brasil.
O processo de inserção de João Ramalho na história do Brasil se iniciou depois de
seu encontro com Martim Afonso, no verão de 1532. As relações entre o capitãomor e o patriarca dos mamelucos foram frutíferas e respeitosas. Há indícios de que
Martim Afonso conversava, negociava e se aconselhava constantemente com João
Ramalho.
Tempo para isso não lhe faltou, pois Martim Afonso permaneceu em São Vicente
até maio de 1533. Completados 18 meses desde a partida de Pero Lobo, o capitãomor desistiu de esperá-lo e partiu para Portugal, não sem antes fazer de João
Ramalho “guarda-mor da Borda do Campo” e determinar que só ele poderia
“resgatar” (negociar) com os índios. Como o Bacharel de Cananeia, Ramalho
também recebeu vasta sesmaria.
Durante o ano e meio que ficou em São Vicente, Martim Afonso não organizou
uma nova expedição ao rio da Prata por vários motivos. Primeiro, ele tinha
esperanças que Pero Lobo e Francisco de Chaves voltassem de sua viagem “com 400
escravos carregados de ouro e prata”. Depois, fora convencido pelo próprio João
Ramalho de que o caminho terrestre até o Peru era menos exigente do que a jornada
fluvial rio Paraná acima. Além disso, o tempo estivera horrível: por meses a fio
choveu em São Vicente.
Em maio de 1532, um ano antes de partir, Martim Afonso enviara seu irmão
Pero Lopes para o Nordeste do Brasil. Após uma escala no Rio e outra na Bahia
(onde desertaram três marujos), Pero Lopes chegou a Pernambuco no dia 4 de
agosto. Lá, encontrou a feitoria de Cristóvão Jaques (onde, em fevereiro de 1531, ele
próprio havia deixado seus feridos convalescendo) ocupada por 70 franceses. Esses
homens tinham sido deixados ali pela nau A Peregrina. Por 18 dias, Pero Lopes os
combateu ferozmente. Matou seis e prendeu 64, dos quais mandou enforcar 20. Após
reconstruir e armar a feitoria, zarpou para Portugal, onde chegou no início de 1533,
23
com mais de 40 prisioneiros.
Em agosto de 1533, seis meses após o retorno de Pero Lopes, Martim Afonso
aportava em Lisboa. Poucas semanas mais tarde, chegavam a Portugal as notícias
mais desalentadoras possíveis para os lusos e para os dois irmãos que tinham
tentado conquistar a serra da Prata. Em árduo contraste com o destino inglório da
excursão de Pero Lobo, um bando de aventureiros espanhóis, liderado por um excriador de porcos chamado Francisco Pizarro, acabara de realizar “a mais
24
extraordinária façanha da história da conquista do Novo Mundo”. Em novembro
de 1532, com 153 homens e 27 cavalos, Pizarro havia descoberto e fora capaz de
conquistar o império do lendário Rei Branco – que, então, era o Inca Atahualpa,
filho de Huayna Capac.
25
O “feitiço do Peru” paralisou toda a atividade exploratória e colonizadora dos
portugueses (e dos espanhóis) na “costa do ouro e da prata”, como era chamado,
então, o litoral que vai de Cananeia até a foz do rio da Prata. Esse efeito estagnador
se tornaria ainda mais completo depois de 1545, quando os espanhóis descobriram
também a “sierra de la Plata”. Como o próprio Rei Branco, esse lugar lendário, ao
qual se referiam os índios do sul de São Paulo, de Santa Catarina e das margens do
Prata, existia de fato: era o cerro de Potosí, montanha de 600 metros de altura, quase
toda de prata pura e da qual os conquistadores extraíram seis mil metros cúbicos do
metal – fortuna que causou grande impacto na economia europeia.
Até o fim da primeira metade do século XVI, no entanto, nem os próprios
espanhóis tinham plena consciência dos entornos geográficos de suas descobertas. Foi
apenas em 1549 que, partindo de Assunção, o capitão espanhol Domingo de Irala
chegou a Chuquisaca, na Bolívia (onde Aleixo Garcia estivera 25 anos antes), e pôde
concluir, então, que o Rei Branco das lendas indígenas era o Inca e que a “sierra de la
Plata” era Potosí.
A conquista do Peru e a descoberta de Potosí fizeram com que “o caminho
terrestre que conduzia do litoral atlântico ao Paraguai (o Peabiru) perdesse todo o
seu valor, o Prata fosse esquecido pelo colonizador e desprezado por seus sequazes e a
vida platense se recolhesse sobre si mesma”, como escreveu o historiador paulista
Caio Prado Jr.
26
Decepcionados por não terem conseguido conquistar o império do Rei Branco,
Martim Afonso de Sousa e seu irmão Pero Lopes jamais retornaram ao Brasil,
voltando todas as suas ações e atenções para a conquista e o comércio com a Índia e
deixando abandonadas as capitanias hereditárias que o rei D. João III decidira lhes
dar logo após ambos terem retornado para Lisboa.
De fato, enquanto Martim Afonso e Pero Lopes ainda estavam no Brasil, o rei D.
João III – alarmado pela captura da nau francesa A Peregrina e firmemente
aconselhado por seus assessores – decidiu, enfim, iniciar a ocupação e colonização do
Brasil. Para fazê-lo, dividiu a colônia em 12 capitanias hereditárias e as repartiu
entre membros da burocracia estatal.
Martim Afonso e Pero Lopes ganharam seus lotes. Martim Afonso se tornou
dono de São Vicente e do Rio de Janeiro. Pero Lopes recebeu um lote vizinho a São
Vicente e outro mais ao sul, que se estendia desde a ilha do Mel, no Paraná, até
Laguna, em Santa Catarina. Como prêmio por sua luta contra os franceses, Pero
Lopes foi agraciado com um terceiro lote em Itamaracá, em Pernambuco.
Mas o Brasil jamais voltou a interessar os dois irmãos. Pero Lopes morreu num
naufrágio, em 1539, quando retornava da Índia, onde cometeu grandes atrocidades
contra árabes e hindus. Quanto a Martim Afonso, em suas memórias, redigidas em
1557, ele citaria o Brasil uma única vez, e apenas para dizer que, aqui, gastara “perto
27
de três anos, passando muitos trabalhos, muitas fomes e muitas tormentas”.
A criação das capitanias hereditárias não ajudou a modificar o panorama
desolador que se abatera sobre o Brasil após a descoberta do Peru. Em Portugal se
espalhara, nessa mesma época, a tese de que “o ouro, prata, pedras preciosas são
28
somente para os castelhanos e que para eles os reservou Deus”. Um espanhol se
encarregaria de debochar dos portugueses afirmando que “as melhores minas do
29
Brasil são capturar e matar [índios] tapuias”.
Um poeta luso o ecoou,
30
assegurando que tudo de bom estava “para além do Brasil”.
O trauma era tal que, em 1549, fracassado o projeto das capitanias hereditárias,
Tomé de Sousa, primeiro governador-geral e primo-irmão de Martim Afonso de
31
Sousa, veio para o Brasil ainda disposto a transformá-lo em “um outro Peru” –
milagre que ele evidentemente não pôde concretizar. Meio século havia se passado
desde a descoberta de Cabral e o Brasil continuava dependendo das ações de
náufragos como Caramuru e de degredados como João Ramalho, enquanto o
principal, e quase único, negócio dos colonos instalados no seu litoral continuava
sendo a escravização dos nativos, comércio incrementado pelo obscuro Bacharel de
Cananeia, ao mesmo tempo que os traficantes franceses de pau-brasil seguiam com
sua atividade em largas porções do litoral.
Náufragos, traficantes e degredados seguiam definindo o destino ainda incerto do
vasto território cuja exploração havia ajudado a desvendar e batizar “a quarta parte
do mundo”.
O PODER E O VALOR DAS MOEDAS
Embora alguns estudiosos queiram atribuir a
origem da palavra “moeda” aos fenícios, povo que deu
origem ao mercantilismo internacional, o mais
provável é que o étimo provenha do latim “moneta” –
uma referência ao lugar onde os romanos cunhavam
suas moedas: o templo de Juno Moneta. O uso e a
cunhagem de moedas, no entanto, era costume anterior
ao apogeu de Roma e remonta ao século VIII a.C. O
rei Creso, da Lídia, teria sido o primeiro a usar o ouro
para cunhar suas moedas. No século III da era cristã,
o ouro – devido à escassez e ao valor – caiu em desuso.
Mas, no século XII, o costume de utilizar o metal foi
ressuscitado pelas moedas comerciais das repúblicas
italianas de Veneza e Florença. Em 1283, o doge
Giovanni Dandolo (1280-1289) cunhou em ouro a
moeda chamada “zecchino” (de Zecca: Casa da
Moeda). O zecchino – chamado “sequim” em Portugal
– tinha 3,5 gramas de ouro e trazia a seguinte inscrição em latim: Sit Tibi, Christe,
Datus Quem Tu Regis, Iste Ducatus, que quer dizer: “Seja a Ti, Cristo, dedicado este
Ducado” (“Ducado”, nesse caso, era a própria nação que cunhara a moeda). Por
causa disso, o zecchino ficou conhecido como ducado. Durante cinco séculos, a
moeda manteve o valor equivalente ao seu peso em ouro: 3,5 gramas.
Na Europa do século XVI, os preços eram praticados em ducados. Por exemplo:
um quintal (ou 60 quilos) de pimenta valia cerca de 35 ducados e um quintal de paubrasil, 2,5 ducados (8,75 gramas de ouro). Uma nau valia aproximadamente mil
ducados (ou 3,5 quilos de ouro) e uma arroba (ou 15 quilos) de açúcar, meio
ducado. Conforme dito neste livro, Portugal pagou à Espanha 350 mil ducados (ou
100 quilos de ouro) pela posse das ilhas Molucas.
O ducado circulava em Portugal, mas a principal moeda da nação era o cruzado.
Vinte e cinco cruzados valiam um ducado. Embora a moeda circulante fosse o
cruzado, a moeda de conta em Portugal era o real (cujo plural, até 1580, era reais, e
não réis, como seria a partir de então) – que não circulava mais desde fins do século
XV. Um cruzado valia 400 reais. Uma nau valia 25 mil cruzados e a sua artilharia
equivalia a dez mil cruzados. Um escravo negro valia cerca de três mil cruzados e
um nativo do Novo Mundo, mil cruzados. A manutenção de um pelotão de 150
soldados durante um ano, em Angola, na África, custava 7.500 cruzados em 1536.
Um serralheiro ganhava 175 cruzados por ano; um
ferreiro, 150, e um condutor de carroças, 25 cruzados
anuais.
Havia muitas moedas em circulação em Castela –
entre elas a dobra, a onça, o dobrão e o peso. Mas a
principal moeda de conta era o maravedi (ou
morabitino, maravedim ou ainda amaravidil), de
origem árabe, cujo nome remete à dinastia dos
Almorávidas, que reinou na Espanha. Os Reis
Católicos Fernando e Isabel desvalorizaram 18 vezes o
maravedi. Ainda assim, 375 maravedis equivaliam a
um ducado. Um maravedi valia 27 reais e um quintal
de pau-brasil era vendido, em 1504, por 1.865
maravedis.
NOTAS
PARTE I
1 – Vários historiadores do século XVI se referem à viagem de Pinzón ao Brasil.
O principal deles é Pietro Martir de Anghiera, autor da obra De Orbe Novo Decades
Octo (As Oito Décadas do Novo Mundo). A I Década, que inclui o relato da viagem
de Pinzón, foi escrita em 1501, publicada em 1511 e ampliada em 1516. Anghiera
(1459-1526) era um sacerdote, militar e diplomata milanês, que desde 1488 vivia na
Espanha e trabalhava para os Reis Católicos. Mais tarde, foi membro do Conselho
das Índias. Seu relato sobre a viagem de Pinzón se baseou em uma entrevista feita
com o próprio navegador, em outubro de 1500. Na segunda metade do século XVI,
os historiadores padre Bartolomé de las Casas, Gonzalo Fernandez de Oviedo e
Antonio de Herrera também descreveram a jornada de Vicente Pinzón, mas o
fizeram baseados no depoimento de Anghiera.
2 – “mansos e pacíficos”: citação do Diário de Cristóvão Colombo. O Diário de
Colombo foi escrito pelo frei Bartolomé de las Casas, baseado nas cartas e nas
anotações do próprio navegador, com quem Las Casas conviveu pessoalmente.
Existem muitas edições e traduções do Diário. A melhor foi feita pelo historiador
espanhol Carlos Sanz e publicada pela Biblioteca Nacional de Madri em 1962. Existe
uma edição em português, publicada pela L&PM (Porto Alegre, 1985).
3 – “turbilhões de vento”: citação da narrativa de Pietro Martir de Anghiera, cujo
trecho relativo à viagem de Vicente Yáñez Pinzón foi parcialmente reproduzido pelo
professor Duarte Leite em seu artigo “Os Falsos Precursores de Álvares Cabral”
(citado na Bibliografia).
4 – “grande perigo”: mesma fonte citada na nota 3.
5 – “vara” ou “barra de dois palmos”: existem duas versões da narrativa de
Pietro de Anghiera sobre a viagem de Pinzón. A primeira, escrita em 1501, foi feita
pelo próprio Anghiera. A segunda, publicada em 1511, foi revisada e ampliada por
Angelo Trevisan, chanceler da embaixada de Veneza na Espanha, a quem Anghiera
confiou os originais. Na primeira versão, Anghiera descreve como “vara” o objeto
dourado que os nativos teriam jogado à frente dos marinheiros de Pinzón. Na versão
de Trevisan, esse objeto se transforma em “uma barra de dois palmos” (de
comprimento). O prof. Duarte Leite publicou as duas versões na obra citada na nota
3.
6 – Pietro Martir nasceu em Anghiera, nos arredores de Milão, em 1459. Mudouse em 1488 para a Espanha, onde se tornou protonotário apostólico e membro do
Conselho das Índias. Em setembro de 1501, foi enviado para o Egito, como
embaixador dos Reis Católicos junto ao sultão do Cairo. Retornou para a Europa
em 1506. Morreu em Sevilha em 1526.
7 – Pelo menos três historiadores acham que os Potiguar jamais atacariam os
europeus sem motivo. São eles: o inglês Robert Southey, em sua História do Brasil
(publicada em 1810), Cândido Zeferino (no livro Brasil, Cia. Editora Nacional,
1900) e o prof. Duarte Leite, no artigo citado na nota 3.
8 – “vermelho bico de cisne mergulhando no oceano”: citação de Francisco de
Varnhagen, que visitou Jericoacoara em 1861 e se encantou com a beleza do lugar,
que identificou como o “Rostro Hermoso” de Pinzón.
9 a 14 – citações da narrativa de Pietro Martir de Anghiera.
15 – Frei Bartolomé de las Casas, principal cronista da viagem de Diego de Lepe,
afirma que ele chegou ao cabo de Santo Agostinho. Samuel Morison e Max Justo
Guedes acham que Lepe aportou no cabo de São Roque.
16 – “alto e atraente” e “extremamente cruel”: citações de Samuel Elliot Morison
em The European Discovery of America - Southern Voyages.
17 – “aproximar-se da costa”: carta de Colombo aos Reis Católicos, trecho
reproduzido por Max Justo Guedes no artigo “As Primeiras Expedições de
Reconhecimento da Costa Brasileira”, publicado no vol. I da História Naval
Brasileira (citado na Bibliografia).
18 – “vigílias que havia tido”: idem nota 17 acima.
19 – “mais brutais”: citação de Samuel E. Morison, idem nota 15.
20 – “como aves que iam para terra”: citação do Diário da Descoberta da Índia,
narrativa da viagem de Vasco da Gama escrita pelo marinheiro Álvaro Velho
(publicado pela Editora Objetiva, 1998).
21 – As Instruções de Vasco da Gama para a Viagem de Cabral foram vertidas
em português atual por A. Fontoura da Costa e publicadas por T. O. Marcondes de
Souza em O Descobrimento do Brasil (citado na Bibliografia).
22 – “novo indivíduo da geração humana”: citação de Simão de Vasconcelos em
Notícias Curiosas e Necessárias das Coisas do Brasil, publicado originalmente em
1658.
23 – “grande caminho que tinha para andar”: citação da carta de D. Manoel aos
Reis Católicos, reproduzida no vol. II da História da Colonização Portuguesa do
Brasil.
PARTE II
1 – “fama após a morte”: citação da carta que Vespúcio enviou de Lisboa para
Lourenço de Pierfrancesco de Médici em agosto de 1502. O original dessa carta, que
deu origem ao panfleto Mundus Novus, está no chamado Códice Strozziano 318, da
Biblioteca Nacional de Florença. A íntegra da carta foi publicada por T. O.
Marcondes de Souza em Amerigo Vespucci e Suas Viagens (veja Bibliografia).
2 – Da carta que Vespúcio escreveu em Sevilha em 18 de junho de 1500 e enviou
para Lourenço de Médici existe apenas a cópia arquivada no Códice Riccardiano
1910. Esse Códice está na Biblioteca Riccardiana de Florença, que pertenceu ao
marquês Riccardi. O códice foi organizado em 1514 por Piero Vaglienti e reúne
cópias de 33 cartas de viagem redigidas pelos próprios viajantes ou por seus
financiadores. Além de três cartas de Vespúcio, o códice possui também cópias de
cartas escritas por Bartolomeu Marchioni, Girolamo Sernige e Piero Rondinelli. A
referida carta de Vespúcio foi publicada pela primeira vez em 1745, por Angelo
Bandini.
3 – A cópia da carta que Vespúcio enviou de Cabo Verde para Lorenzo de Médici
também está no Códice Riccardiano 1910. Foi publicada pela primeira vez pelo
conde Baldelli Bonn, em 1827.
4 – “turbilhões e tempestades”: citação de uma carta sem data que Vespúcio
também enviou para Lorenzo de Médici. A cópia dessa carta também está no Códice
Strozziano 318, da Biblioteca Nacional de Florença.
5 – Max Justo Guedes é o principal defensor da tese de que a frota de Vespúcio
ancorou na atual praia de Areias Alvas. Os argumentos de Justo Guedes –
navegador experiente – são sólidos e respeitáveis. Vários outros historiadores, no
entanto, acham que o desembarque de Vespúcio se deu na praia dos Marcos. O
principal defensor dessa tese é Moacir Soares Pereira, autor de A Navegação de 1501
ao Brasil e Américo Vespúcio.
6 – “duvido que me deem crédito”: citação da carta Mundus Novus. Essa é apenas
uma das várias insinuações de Vespúcio de que o Brasil era um local paradisíaco.
Noutro trecho da mesma carta, Vespúcio afirma taxativamente: “Em verdade, se o
paraíso terrestre está localizado em alguma parte da terra, julgo que não dista muito
dessa região.”
7 – Conforme dito na nota 4, o Códice Strozziano 318 é um conjunto de
documentos que pertence ao acervo da Biblioteca Nacional de Florença.
8 a 11 – citações de cartas de Vespúcio.
12 – “broncas tribos nômades”: citação de Capistrano de Abreu, no livro O
Descobrimento do Brasil.
13 – “gente daquela terra”: citação da Lettera a Soderini.
14 – As informações sobre a vendagem das cartas de Vespúcio foram obtidas no
livro Amerigo Vespucci e Suas Viagens, de Marcondes de Souza.
15 – Citações de A Utopia, de Thomas Morus, tradução de Paulo Neves, edição
da L&PM (Porto Alegre, 1998).
16 – “desordens havidas entre eles”: citação de Islario General de Todas las Islas
del Mundo, de Alonso de Santa Cruz. Santa Cruz foi o cosmógrafo da expedição de
Sebastião Caboto que chegou ao Brasil em 1526. Seu livro, descoberto e publicado
por Francisco de Varnhagen em 1865, foi escrito em 1527 e é o primeiro a fazer
referência ao destino dos 24 homens deixados por Vespúcio em Cabo Frio. Santa
Cruz não cita suas fontes.
PARTE III
1 – Uma cópia do original da carta de Pietro Rondinelli foi feita por Piero
Vaglienti em 1514 e acrescentada ao Códice Riccardiano 1910, da Biblioteca
Riccardiana de Florença. Desde fins do século XIX, quando foi encontrada a cópia
feita por Vaglienti, a carta de Rondinelli tem sido reproduzida em muitos livros sobre
a história do Brasil.
2 – Informações citadas por A. L. Pereira Ferraz em Terra da Ibirapitanga e por
Bernardino José de Sousa em O Pau-brasil na História Nacional (veja Bibliografia).
3 – A Relazione di Lunardo da Cha Masser foi reproduzida pela primeira vez por
Próspero Peragallo no livro Quarto Centenário da Descoberta da América, publicado
em 1892 pela Academia de Ciências de Lisboa. Desde então, tem sido citada e
reproduzida em vários outros livros.
4 – A “Confirmação a Fernão de Loronha do privilégio de cidadão de Lisboa” foi
publicada no Livro 4, folha 58, da Chancelaria de D. Manoel e reproduzida por
Antônio Baião no capítulo “O Comércio do Pau-brasil”, em História da Colonização
Portuguesa do Brasil.
5 – Conforme Antônio Baião no artigo citado na nota 4. O texto original de
Baião se refere “aos sucessos ferozes de abril de 1506, em que cerca de dois mil judeus
foram trucidados pela plebe excitada pelos dominicanos”. O número de vítimas
parece um tanto exagerado e, a rigor, desde 1497 não havia mais “judeus” em
Portugal: todos os que ficaram no país passaram a ser “cristãos-novos”.
6 – A descoberta de que o “contrato de arrendamento” do pau-brasil foi parar nas
mãos do “armador e capitão de navios” Lopes Bixorda foi quase casual. Bixorda
aparece citado como arrendatário num texto do cronista real Damião de Góis, no
qual o autor da Crônica do Sereníssimo Rei D. Manoel se refere aos três nativos que
um dos navios de Bixorda levaram do Brasil a Portugal e “que causaram
admiração a todos pela excelente pontaria de seus arcos”. No texto, Góis diz que os
“arcos eram de pau-brasil e as flechas de canas empenadas com penas de papagaio,
as pontas são de pau e de osso de pescado, tão fortes que passam com elas uma
tábua”. De acordo com Góis, os “selvagens eram bem dispostos, estavam vestidos de
penas e falaram com o rei, por intermédio de um intérprete”. Os nativos dispararam
contra alvos móveis “que desciam o rio que por perto passava”.
7 – A informação de que em 1558 as melhores árvores de pau-brasil só podiam
ser encontradas “a mais de 20 quilômetros da costa” é do pastor Jean de Lery e
aparece no seu livro Viagem à Terra do Brasil.
8 – A regulamentação coibindo o corte de pau-brasil e criando o cargo de
guarda-florestal foi assinada por Filipe III em 12 de dezembro de 1605. A decisão,
portanto, se deu durante o período da União Ibérica e não foi iniciativa de
portugueses, mas de espanhóis. A íntegra do documento é citada por A. L. Pereira
Ferraz em Terra da Ibirapitanga e comentada por Warren Dean em A Ferro e Fogo.
9 – A origem e o significado das palavras “mair” e “peró” continuam
controversos e ainda não foram claramente definidos. De acordo com Teodoro
Sampaio, o mais emérito tupinólogo, “mair” provém do vocábulo “mbae-ira”, que
significa “homem que mora longe, apartado, solitário”. Os Guarani do Paraguai
chamavam os espanhóis de “mbaí”, apelido muito similar e com o mesmo
significado de “mair”. Alguns indígenas do Brasil também chamavam os franceses
de “ajurujuba”, que significaria “papagaio amarelo” – “por serem louros e estarem
sempre a falar”, de acordo com Carlos Sarthou em Passado e Presente da Baía de
Guanabara (Ed. Bastos, Rio, 1964). Com relação ao termo “peró” a polêmica é bem
maior. O inglês Robert Southey afirmou, em 1789, que o termo provinha do
espanhol “perro” (“cão”) e exprimia o ódio que os selvagens do Brasil sentiam dos
portugueses. Sua explicação foi rejeitada por muitos historiadores brasileiros e
portugueses. De acordo com Estevão Pinto, em Os Indígenas do Nordeste (Cia. Edit.
Nacional, SP, 1935), o nome teria surgido porque “muitos nativos pensavam que
todos os portugueses se chamavam Pedro, ou Pero”. Segundo Oswaldo Orico, em
Mitos Ameríndios (São Paulo Editora, Rio, 1930), o termo seria originário da
expressão “pero” (espanholismo que significa “mas”), palavra que os portugueses
falariam constantemente. Por fim, Carlos Sarthou, no livro citado acima, diz que
“pero” talvez fosse “uma deturpação da palavra feroz”.
10 – De acordo com o Regimento da Nau Bretoa, “a moça” que o capitão
Cristóvão Pires levou para ser escrava de Francisco Gomes se chamava Bu-y-syde,
nome que alguns autores já traduziram por “Brígida”. Nada se sabe sobre o destino
dela nem dos demais escravos levados pela Bretoa.
11 – Segundo escreveu o brasilianista americano Warren Dean no livro A Ferro e
Fogo, os escravos “eram vistos como curiosidades, exotismo, e serviam para
exibição ou venda a nobres, como macacos ou papagaios, embora fossem
apreciados também como objetos sexuais”. No livro O Índio Brasileiro e a
Revolução Francesa, analisando especificamente o episódio da nau Bretoa, Afonso
Arinos de Mello Franco afirmou: “Os serviços que poderiam prestar as jovens
tamoias, tanto na travessia, como na terra, pareciam, decerto, aos navegantes, dados
aos amores ancilares, mais proveitosos do que quaisquer outros.”
12 – As melhores análises sobre a origem e os múltiplos significados da palavra
Brasil foram feitas por A. L. Pereira Ferraz no livro citado nas notas 2 e 8, e por
Gustavo Barroso em O Brasil na Lenda e na Cartografia Antigas (Cia. Editora
Nacional, SP, 1938). A melhor fonte sobre a mitológica viagem de São Brandão é
The European Discovery of America - The Northern Voyages, de Samuel E. Morison.
PARTE IV
1 – “comer carne humana”: citação de Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry
(veja Bibliografia).
2 – Na verdade, não se pode afirmar com certeza qual a festa que Binot Paulmier
presenciou em Lisboa: se aquela feita para saudar o retorno de Vasco da Gama a
Portugal em agosto de 1499 ou se a celebração pela volta de Cabral da Índia, em
julho de 1501. Paulmier parece ter vivido em Lisboa de 1498 a fins de 1501 e,
portanto, poderia ter assistido às duas celebrações, cuja grandiosidade paralisou
Lisboa.
3 – “semelhante ao Orne”: citação do relato original de Binot Paulmier de
Gonneville (veja Bibliografia).
4 – O protesto que Binot de Gonneville fez na justiça contra os piratas foi
descoberto em 1867 pelo historiador francês Pierre Margry. Margry foi o primeiro a
sugerir que a “Terra de Gonneville” – que outros historiadores tinham, até então,
identificado com as mais variadas partes do globo – era o Brasil. Atualmente, o
assunto é tema pacífico.
5 – O livro do abade Jean Paulmier se chamava Mémoires touchant
l’établissement d’une mission. A introdução, dedicada ao papa Alexandre VII, tinha
18 páginas.
6 – “um milhão de cruzados”: informação de Fernando Palha no livro A Carta de
Marca de João Ango (Lisboa, 1883).
7 – “partilha do mundo”: a declaração de Francisco I sobre o Tratado de
Tordesilhas foi citada pelo cardeal de Toledo em carta escrita em 27 de janeiro de
1541 e enviada ao imperador Carlos V. O original está no Arquivo de Simancas,
em Sevilha, na Espanha.
8 – “tiros de espingarda”: o depoimento dos sobreviventes franceses aparece na
carta que Francisco I escreveu em 6 de setembro de 1528 e enviou a seu embaixador
em Portugal, Glyas Hellie. Uma cópia dessa carta está arquivada na torre do
Tombo. O documento foi reproduzido na íntegra no volume III da Hist. da Col.
Port. do Brasil.
9 – “agrícola e feitorial”: citação de Antônio Baião e C. Malheiro Dias em “A
Expedição de Cristóvão Jaques”, em Hist. da Col. Port. do Brasil.
PARTE V
1 a 3 – citações da “Nova Gazeta da Terra do Brasil”, documento publicado na
íntegra no vol. II da História da Colonização Portuguesa do Brasil.
4 – “que se fizera botocudo”: citação de Francisco Adolfo de Varnhagen em
História Geral do Brasil. De acordo com o historiador, Pero Gallego seria o mesmo
homem citado por Gabriel Soares em seu Tratado Descritivo do Brasil, escrito em
1570. Nesse livro, Soares diz: “Em 1504, neste rio Grande [do Norte] achou Diogo
Paes de Pernambuco, língua do gentio, um castelhano entre os Potiguar, com os
beiços furados como eles, entre os quais andava havia muito tempo.”
5 – “suplícios e tormentos”: citações da carta que Estevão Fróis escreveu para o rei
D. Manoel da ilha de Santo Domingo em 30 de julho de 1514. O documento foi
arquivado por Damião de Góis no chamado “Corpo Cronológico” da torre do
Tombo, onde Varnhagen o encontrou em 1851.
6 – “pena de morte”: a carta de D. Manoel a D. Fernando, escrita em 20 de
setembro de 1514, foi descoberta e publicada pelo historiador chileno José Toríbio
Medina no livro Juan Díaz de Solís (2 vol., Santiago, 1908).
7 – “os cercaram e os mataram”: citação de Antonio de Herrera em Historia
General de los Hechos de los Castellanos em las Islas y Tierra Firme del Mar Oceano,
cuja primeira edição completa só foi publicada em Madri em 1726. O trecho citado
foi publicado na II Década, livro I.
8 – “povoar o Brasil”: o alvará do rei D. Manoel foi citado por Varnhagen na
pág. 95 do vol. I de sua História Geral do Brasil. Ele não indicou onde estava o
original e tal alvará não foi encontrado por outros historiadores.
9 – “mantimentos da terra”: citação da carta que João Melo da Câmara escreveu
para o rei D. João III em 1529 (sem data ou indicação da procedência). Essa carta
foi descoberta por Sousa Viterbo no Arquivo Nacional de Cartas dos Governadores
nos Lugares d’África e de outras pessoas para el Rei e publicada por ele em
Trabalhos Náuticos dos Portugueses nos séculos XVI e XVII (Lisboa, 1898). Está
reproduzida na íntegra no vol. III da História da Colonização Portuguesa do Brasil.
10 – “passagem grátis para a civilização”: citação de Rolando Laguarda Trías no
artigo “Cristóvão Jaques e as Armadas Guarda-costas”, capítulo 5 do vol. I da
História Naval Brasileira.
11 – “quentura do sol”: citação de Pero Magalhães Gandavo em Tratado da
Terra do Brasil, livro escrito por volta de 1576.
12 – “era português”: citação de Samuel E. Morison em The European Discovery
of America - The Southern Voyages.
13 – “de volta ao mar”: citação de Primeira Viagem ao Redor do Mundo, diário
escrito por Francisco Pigafetta (L&PM, Porto Alegre, 1985).
14 a 16 – citações de Islario General de Todas las Islas del Mundo, de Alonso de
Santa Cruz. Santa Cruz foi o cosmógrafo da expedição de Sebastião Caboto e se
tornou o principal cronista da viagem.
17 – “rico em prata, ouro e cobre”: citação da carta que o embaixador castelhano
Juan de Zuñiga escreveu, de Lisboa, em 24 de junho de 1524, e enviou para o
imperador Carlos V. O original se encontra no Arquivo de Simancas, em Sevilha.
PARTE VI
1 – “por causa de suas malfeitorias”: citação de Rolando Laguarda Trias no
artigo “Cristóvão Jaques e as Armadas Guarda-costas”, capítulo 5 do vol. I da
História Naval Brasileira. Trias acrescenta: “[daí] se conclui que o termo ‘perdidos’
não significa, nesse caso, náufragos, mas sim perdulários e delinquentes, por
oposição aos ‘inocentes’ do Rio de Janeiro”.
2 – A vida cotidiana dos náufragos pode ser razoavelmente reconstituída a partir
das cartas de Luiz Ramirez e D. Rodrigo de Acuña, que serão citadas a seguir. Os
historiadores Jaime Cortesão e Sérgio Buarque de Holanda também fornecem
indícios para essa reconstituição, respectivamente nos livros A Fundação de São
Paulo – Capital Geográfica do Brasil e Visão do Paraíso.
3 – A principal fonte para a reconstituição da jornada de Aleixo Garcia continua
sendo o livro La Argentina, escrito por Rui Diaz de Guzmán. As outras fontes são:
Historia de Santa Cruz de la Sierra, de Enrique Gandia, 1935, El Alma de la Raza, de
Manuel Domingues (Assunção, 1908) e The Guarani Invasion of Inca Empire, de E.
Nordenskjold, publicado pela The Geographical Review, vol. IV (Nova York, 1917).
4 – “aquela erva e do mesmo modo”: citação de Conquista Espiritual Feita pelos
Religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paranea, Uruguai e
Tape, do padre Antônio Ruiz de Montoya (Martins Livreiro, Porto Alegre, 1985).
5 – Huayna Capac era filho de um dos maiores imperadores incas de todos os
tempos, Tupac Inca Yupanqui. Com a morte do pai, ele assumiu o trono no final do
século XV. Honrando a herança do pai, se tornou um dos maiores soberanos incas,
ampliando o império e a extraordinária rede viária que unia todo o seu território.
Huayna Capac teve muitos filhos. Por direito, o herdeiro do trono seria Huascar,
mas Manco Capac e Atahualpa, filhos de Huayna Capac com concubinas reais,
também entraram na linha sucessória. Após a morte de Huayna Capac, ocorrida
provavelmente nos últimos dias de 1525, houve uma guerra civil entre os três filhos
do Inca. Atahualpa acabou assumindo o trono em 1532, quando os conquistadores
espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, já se aproximavam de Cuzco.
6 e 7 – citações da carta de Luis Ramirez, tripulante da nau de Caboto, escrita em
10 de julho de 1528 e publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, vol. 10.
8 a 12 – citações extraídas de duas cartas de D. Rodrigo de Acuña, dirigidas,
respectivamente, ao bispo de Osma, a 15 de junho de 1527, e a D. João III, a 20 de
abril de 1528, as duas da feitoria de Pernambuco, publicadas, ambas, no vol. III de
História da Colonização Portuguesa do Brasil.
13 – “desterrado”: embora o termo também possa ser usado para definir os
homens condenados ao degredo, a palavra “desterrado”, no contexto do século XVI,
se aplicava mais aos marinheiros forçados por seus superiores a desembarcar do
navio e permanecer em terra, sem poderem seguir viagem.
14 – “cuidar do documento”: citação de J. F. de Almeida Prado em Primeiros
Povoadores do Brasil.
15 – A carta do embaixador Lope Hurtado de Mendoza a Carlos V foi publicada
por R. Gayangos em Calendar of Spanish States Paper e citada por Jaime Cortesão
em A Fundação de São Paulo - Capital Geográfica do Brasil.
PARTE VII
1 – “aos ouvidos do rei”: citação de A Fundação de São Paulo - Capital Geográfica
do Brasil, de Jaime Cortesão (veja Bibliografia).
2 a 4 – A carta da imperatriz D. Isabel ao embaixador Lope Hurtado de
Mendoza foi descoberta e publicada pelo historiador chileno Jose Toríbio de Medina
em seu livro El Veneziano Sebastión Caboto al servício de España (Santiago do Chile,
1908).
5 – O documento nomeando Henrique Montes “cavaleiro real” e “provedor da
armada” foi publicado por Jordão de Freitas no artigo “A Expedição de Martim
Afonso de Sousa”, em História da Colonização Portuguesa do Brasil.
6 – “de acordo com a lei natural”: expressão citada inúmeras vezes nas cartas
escritas pelos primeiros jesuítas a chegar ao Brasil.
7 – “frutificamento da terra”: a carta de João Melo da Câmara foi descoberta e
publicada pelo historiador português Sousa Viterbo em 1868, em Trabalhos
Náuticos dos Portugueses, e reproduzida por Antônio Baião e Carlos Malheiros Dias
no artigo “A Expedição de Cristóvão Jaques”, em História da Colonização
Portuguesa do Brasil, conforme já dito na nota 9 da parte V.
8 – A tese de que a expedição de Martim Afonso de Sousa não pretendia colonizar
o Brasil mas explorar e conquistar o rio da Prata, é do historiador paulista Mário
Neme e foi brilhantemente defendida por ele em Notas de Revisão da História de São
Paulo (veja Bibliografia).
9 – “vontade própria e sem salário”: citação de Mário Neme, em Notas de
Revisão da História de São Paulo.
10 – Gaspar da Madre de Deus (1714-1800) era frade beneditino e publicou sua
Memória para a História da Capitania de São Vicente em 1797.
11 e 12 – citações do Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa.
13 – História do Brasil, de frei Vicente do Salvador (1564-1636?).
14 – citação de Capistrano de Abreu, em O Descobrimento do Brasil.
15 – citação de Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda.
16 – citação da Rev. Inst. Geogr. Bras., vol. XXIV, pág. 66.
17 e 18 – citações do Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa.
19 – citação de Mário Neme, em Notas de Revisão da História de São Paulo,
repetindo uma frase do padre José de Anchieta.
20 – citação do padre José de Anchieta, que aparece em Cartas, Informações,
Fragmentos Históricos e Sermões (da Academia Brasileira de Letras, Rio, 1935).
21 – citação de Urich Schmedel em Viajes al Rio de la Plata y Paraguay (Emece,
Buenos Aires, 1942).
22 – “fio branco na cabeça nem no rosto”: carta de Tomé de Sousa ao rei D. João
III, citada por Jaime Cortesão em A Fundação de São Paulo.
23 – informações de Jordão de Freitas, no artigo “A Expedição de Martim Afonso
de Sousa”, em História da Colonização Portuguesa do Brasil.
24 e 25 – citações de Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda.
26 – citação de Caio Prado Júnior, em Evolução Política do Brasil e Outros
Estudos (SP, 1953).
27 – citação de Memórias de Martim Afonso de Sousa (veja Bibliografia).
28 – “para eles os reservou Deus”: citação de Diálogos das Grandezas do Brasil,
obra atribuída a Ambrósio Fernandes Brandão.
29 – citado por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso.
30 – “para além do Brasil”: trecho da peça Farsa dos Almocreves, escrita por Gil
Vicente em 1526 e citada por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso.
31 – “um outro Peru”: citação de Sérgio Buarque de Holanda em Visão do
Paraíso.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
Embora de fato sejam as décadas menos documentadas e mais desconhecidas da
história do Brasil, existem centenas de livros e inúmeras fontes primárias relativas ao
período que se estende de 1500 a 1531. Cerca de 200 títulos e 80 documentos foram
consultados para a elaboração de Náufragos, Traficantes e Degredados. A fonte mais
utilizada ao longo de todo o livro foram os três volumes da monumental História da
Colonização Portuguesa do Brasil, editada por Carlos Malheiro Dias (Litografia
Nacional, Porto, 1926). As demais fontes serão citadas por capítulos.
As principais fontes para a redação do capítulo “Os Espanhóis Descobrem o
Brasil” foram o extraordinário artigo de Max Justo Guedes “As Primeiras
Expedições de Reconhecimento da Costa Brasileira”, capítulo 4 do vol. I da História
Naval Brasileira, editada pelo próprio Justo Guedes (Ministério da Marinha, Rio,
1975) e o artigo “Os Falsos Precursores de Cabral”, do prof. Duarte Leite, publicado
no vol. I da citada História da Colonização Portuguesa do Brasil. O livro de Pietro
Martir de Anghiera foi consultado apenas a partir das amplas citações feitas no
artigo do prof. Duarte Leite. A principal fonte para a viagem de Alonso de Hojeda foi
o saboroso The European Discovery of America - The Southern Voyages, de Samuel
Eliot Morison (Oxford University Press, NY, 1974). Do mesmo autor, foi
consultada a melhor biografia de Cristóvão Colombo, Admiral of the Ocean Sea
(Oxford Univ. Press, 1976). Outra boa biografia de Colombo, menos exata mas
bem escrita, é Vida del Almirante D. Cristobal Colón, de Washington Irving
(Ediciones Istmo, Madri, 1992). Sobre Vasco da Gama, a principal fonte foi o diário
de Álvaro Velho, A Descoberta da Índia (Objetiva, Rio, 1998). A bibliografia sobre
o descobrimento do Brasil pode ser consultada em A viagem do descobrimento, de
Eduardo Bueno, primeiro volume da Coleção Brasilis (Estação Brasil, Rio, 2016).
Existem inúmeros títulos sobre Américo Vespúcio e suas viagens ao Novo
Mundo. As principais fontes utilizadas no capítulo “Vespúcio e o Batismo da
América” foram: Amerigo Vespucci e suas Viagens, de Thomaz Oscar Marcondes de
Souza (Universidade de São Paulo, 1949), que reproduz a íntegra de todas as cartas
do florentino, O Brasil de Américo Vespúcio, de Riccardo Fontana (Editora UnB,
Brasília, 1994), e A Navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio, de Moacyr
Soares Pereira (Asa, Rio, 1984). A melhor biografia de Vespúcio continua sendo
Amerigo Vespucci, obra em dois volumes, fartamente ilustrados, de Alberto
Magnaghi (Roma, 1924). Sobre a questão do batismo da América, a fonte mais
bem documentada é America la bien llamada, de Roberto Levillier (Prensa Nacional,
Buenos Aires, 1948). Southern Voyages, de Morison, traz ampla bibliografia sobre
Vespúcio.
Sobre o pau-brasil, tema do capítulo “A Terra do Brasil”, os melhores livros são:
O Pau-brasil na História Nacional, de Bernardino José de Sousa, volume 162 da
coleção Brasiliana (Cia. Edit. Nacional, SP, 1978), e Terra da Ibirapitanga, de A. L.
Pereira Ferraz (Imprensa Nacional, Rio, 1939). A essas fontes básicas é preciso
somar o artigo “O Comércio do Pau-brasil”, de Antônio Baião, publicado no vol. II
da História da Colonização Portuguesa do Brasil, e o capítulo “A Segunda Leva de
Invasores Humanos”, do livro A Ferro e Fogo - A História e a Devastação da Mata
Atlântica Brasileira, de Warren Dean (Cia. das Letras, SP, 1997). Também foi
consultado aquele que, embora se atenha a aspectos econômicos, talvez seja o melhor
livro já escrito sobre o período que vai de 1500 a 1531, Do Escambo à Escravidão,
do brasilianista Alexander Marchand (Cia. Editora Nacional, SP, 1980). Outra fonte
foi o capítulo “Aproveitamento Econômico das Terras de Santa Cruz”, do livro
História Econômica do Brasil, de Roberto Simonsen (Cia. Editora Nacional, SP,
1978). Sobre a questão do nome do Brasil, ver nota 12 da parte III.
As principais fontes para a redação do capítulo “La Terre du Brésil” foram o livro
clássico de Jean de Léry Viagem à Terra do Brasil, na tradução de Sérgio Milliet
(Biblioteca do Exército Editora, Rio, 1961) e o controverso D. João III e os
Franceses, de J. Gomes de Carvalho (Lisboa, 1919), com muitos equívocos mas com
transcrição de inúmeras fontes documentais. A melhor análise da viagem de
Gonneville foi feita por Leila Perroni Moisés em Vinte Luas (Cia. das Letras, 1992).
Também foi consultada a edição do texto original de Gonneville que a mesma
autora preparou para a editora francesa Chandeigne (Paris, 1995). Sobre os
primórdios da navegação na Normandia e Bretanha, a principal fonte foi o livro de
Samuel E. Morison, já citado, utilizado também para reconstituir as viagens dos
irmãos Verrazzano ao Brasil, tema virtualmente ignorado pela historiografia
nacional. A melhor biografia de Jean Ango é Ango et ses pilotes, de Eugène Guérin
(Gallimard, Paris, 1900). Outras fontes sobre o papel de Ango e sua relação com o
Brasil são São Vicente e as Capitanias do Sul do Brasil, de J. F. de Almeida Prado
(col. Brasiliana, vol. 314, Cia. Editora Nacional), que tem cinco capítulos dedicados
ao tema, e o encantador O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, de Afonso
Arinos de Mello Franco (José Olympio, Rio, 1937), também utilizado para a
redação de vários outros trechos deste capítulo. Para os conflitos diplomáticos entre
Portugal e França durante os reinados de D. João III e Francisco I, as duas melhores
fontes são “A Expedição de Cristóvão Jaques”; artigo de Antônio Baião e Carlos
Malheiro Dias publicado no vol. III da História da Colonização Portuguesa do
Brasil, e o artigo “Cristóvão Jaques e as Armadas Guarda-costas”, de Rolando
Laguarda Trias, no vol. I da História Naval Brasileira. Por fim, foi consultado
também The Struggle for Brazil: Portugal and the “French Interlopers”, de Regina
Johnson Tomlinson (MacMillan, NY, 1970).
Para a elaboração do capítulo “O Rio das Grandes Riquezas”, as fontes
primordiais foram o artigo “O Descobrimento do Rio da Prata”, de F. M. Esteves
Pereira, publicado no vol. II da História da Colonização Portuguesa do Brasil, e o
capítulo “Cristóvão Jaques e as Armadas Guarda-costas”, de Rolando Laguarda
Trias, no vol. I da História Naval Brasileira. Sobre a viagem de Fernão de
Magalhães, a principal fonte foi The European Discovery of America - The Southern
Voyages, de Samuel Eliot Morison. O diário de Francisco de Pigafetta foi publicado
no Brasil pela editora L&PM (Porto Alegre, 1985) com o título de Primeira Viagem
ao Redor do Mundo.
O capítulo “Fabulosa Jornada à Serra da Prata” não poderia ter sido escrito sem
a consulta aos livros A Fundação de São Paulo - Capital Geográfica do Brasil, do
historiador português Jaime Cortesão (Livros de Portugal, Rio, 1955), Visão do
Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda (col. Brasiliana, vol. 333, Cia. Editora
Nacional, 1969), e Primeiros Povoadores do Brasil, de J. F. de Almeida Prado (col.
Brasiliana, vol. 37, Cia. Editora Nacional, 1966). Sobre o Peabiru e a jornada de
Aleixo Garcia, as principais fontes estão citadas na nota 3 do capítulo VI. Para as
viagens de Sebastião Caboto e Diego Garcia, as fontes essenciais foram The Southern
Voyages, de Samuel E. Morison, o artigo “A Expedição de Sebastião Caboto”, de
Rolando Laguarda Trias, no vol. I da História Naval Brasileira, e El Veneziano
Sebastion Caboto, de Toríbio Medina (Chile, 1897). Sobre o Bacharel de Cananeia,
as melhores fontes são História de Iguape, de Ernest Young (s.e., SP, 1954),
Capitanias Paulistas, de Benedito Calixto (Duprat, SP, 1927), e as notas de pé de
página feitas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para a História do
Brasil, de Henrich Handelmann (Rio, 1931).
O capítulo “A Expedição de Martim Afonso” foi redigido com base no Diário da
Navegação de Pero Lopes de Sousa (cuja melhor edição foi feita pelo comandante
Eugênio de Castro em 1940) e com o apoio dos artigos de Justo Guedes em História
Naval Brasileira e de Jordão de Freitas em História da Colonização Portuguesa do
Brasil. Outra fonte fundamental foi Notas de Revisão para a História de São Paulo,
de Mário Neme (Anhembi, SP, 1959). Sobre Caramuru, a principal fonte consultada
foi Primeiros Povoadores do Brasil, de J. F. de Almeida Prado, além do confuso
artigo de F. A. Varnhagen “O Caramuru Perante a História Nacional” (Revista do
Inst. Hist. e Geog. Bras., tomo X, 1866). O relato definitivo da jornada de Pero Lobo
foi feito por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso. A análise mais
completa sobre João Ramalho é a de Afonso Taunay em João Ramalho e Santo
André da Borda do Campo (Comisão do IV Centenário de São Paulo, SP, 1953). O
Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil, de Francisco Carvalho Franco
(SP, 1954), foi consultado nos verbetes sobre Aleixo Garcia, Bacharel de Cananeia e
João Ramalho. As Memórias de Martim Afonso de Sousa, que têm apenas dez
páginas, foram publicadas pela Editora Obelisco (SP, 1964).
Algumas fontes gerais, de grande valia, também foram consultadas. O
Descobrimento do Brasil, de Capistrano de Abreu (MEC/Civilização Brasileira, Rio,
1976 – reedição da obra originalmente publicada em 1900), é sempre uma leitura
apaixonante e foi fundamental para a redação de “Interlúdio em Bezeguiche”,
incluído no capítulo II. A vetusta e por vezes árdua História Geral do Brasil, de
Francisco Adolfo de Varnhagen (Melhoramentos, SP, 1978 – reedição da obra
publicada originalmente em 1854), continua sendo a fonte mais documentada para o
estudo do período colonial. Muitos dos documentos originais citados nesse livro
foram descobertos por Varnhagen nos arquivos portugueses. A História do Brasil, de
frei Vicente do Salvador (Itatiaia, BH, 1972 – reedição da obra originalmente
publicada em 1627), também é livro saborosíssimo e uma das melhores fontes para
a reconstituição da vida de Caramuru, cuja mulher, Paraguaçu, frei Vicente conheceu
pessoalmente. Outra antiga e esplêndida história geral do Brasil foi escrita pelo inglês
Robert Southey em 1810. O livro foi reeditado em 1973 (Itatiaia, BH). Trata-se de
uma das únicas fontes que vincula a história das expedições ao Brasil com as
descobertas e explorações feitas pelos espanhóis em outras partes da América Latina.
Fontes mais modernas e igualmente importantes são História Geral da
Civilização Brasileira (Difel, SP, 1960), obra monumental editada sob a
coordenação de Sérgio Buarque de Holanda; O Império Luso-Brasileiro,
coordenação de Harold Johnson e Maria Beatriz Nizza da Silva, volume VI da Nova
História da Expansão Portuguesa (Estampa, Lisboa, 1992); Colonial Brazil, editado
por Leslie Bethell (parte da Cambridge History of Latin America, Cambridge
University Press, NY, 1987), e a bela e eficiente síntese do período colonial feita por
Arno Wehling e Maria José Wehling em Formação do Brasil Colonial (Nova
Fronteira, Rio, 1994). Também foram consultadas as obras de referência Dicionário
da História da Colonização Portuguesa do Brasil, coordenado por M. B. Nizza da
Silva (Verbo, Lisboa, 1994), e Dicionário de História do Brasil, de Moacyr Flores
(PUC/RS, 1996).
Por fim, para a redação da nota relativa aos valores das moedas portuguesas e
de outros países durante o século XVI, as principais fontes consultadas foram a obra
clássica de Frédéric Mauro, Portugal, o Brasil e o Atlântico (Estampa, Lisboa 1989),
e História Econômica do Brasil, de Roberto Simonsen, já citada, além de Terra da
Ibirapitanga, de A. L. Pereira Ferraz, também já citada.
Coleção Brasilis
Com 1 milhão de livros vendidos, a Coleção Brasilis tornou-se um dos maiores
fenômenos editoriais do país entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000.
Agora é relançada pela Estação Brasil em edições revistas e, no caso dos segundo e
terceiro volumes, ampliadas. No segundo livro da série, Náufragos, traficantes e
degredados, você vai entender as primeiras expedições enviadas ao país. Já Capitães
do Brasil, terceiro volume da coleção, apresenta uma visão inteiramente nova sobre
o período das capitanias hereditárias, ao passo que A coroa, a cruz e a espada
desvenda os primórdios do governo e o início da corrupção no Brasil.
Próximos títulos:
SOBRE O AUTOR
© Al Hamdan/ Studio H
Eduardo Bueno é escritor, jornalista, editor e tradutor. Com a coleção Brasilis,
que reúne A viagem do descobrimento, Náufragos, traficantes e degredados, Capitães
do Brasil e A coroa, a cruz e a espada, tornou-se o primeiro autor brasileiro a
emplacar simultaneamente quatro títulos entre os cinco primeiros nas listas de mais
vendidos dos principais jornais e revistas do país.
Eduardo também traduziu 22 livros, sendo o principal deles o clássico On the
Road – Pé na Estrada, de Jack Kerouac, que marcou o desembarque da “literatura
beat” no Brasil, com 30 anos de atraso. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, editou
mais de 200 títulos, de autores brasileiros e estrangeiros, tendo colaborado com
algumas das principais editoras brasileiras.
Como jornalista, trabalhou nos principais veículos de comunicação, entre eles a
Rede Globo, a TV Cultura, a TVE-RS e os jornais O Estado de S. Paulo e Zero
Hora. Já dirigiu e estrelou um programa sobre história do Brasil no Fantástico, da
TV Globo, e foi o primeiro apresentador do History Channel no Brasil. Eduardo
Bueno ganhou dezenas de prêmios, dentre eles o Jabuti, em 1999, e a Ordem do
Mérito Cultural, comenda concedida pelo Ministério da Cultura do governo federal.
Estação Brasil é o ponto de encontro dos leitores que desejam redescobrir o Brasil.
Queremos revisitar e revisar a história, discutir ideias, revelar as nossas belezas e
denunciar as nossas misérias. Os livros da Estação Brasil misturam-se com o
corpo e a alma de nosso país, e apontam para o futuro. E o nosso futuro será tanto
melhor quanto mais e melhor conhecermos o nosso passado e a nós mesmos.
Sumário
Créditos
Introdução – As Décadas Esquecidas
I – Os Espanhóis Descobrem o Brasil
II – Vespúcio e o Batismo da América
III – A Terra do Brasil
IV – La Terre du Brésil
V – O Rio das Grandes Riquezas
VI – Fabulosa Jornada à Serra da Prata
VII – A Expedição de Martim Afonso
Notas
Bibliografia Comentada
Coleção Brasilis
Sobre o autor
Sobre a Estação Brasil