Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais
Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Recursos e Patrimônios
MATÉRIA E FORMA NAS POLÍTICAS DA
AGROBIODIVERSIDADE
Guilherme Moura Fagundes
Brasília, 2014
1
Las Ciencias Naturales, de Juan Gatti.
2
Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais
Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Dissertação de mestrado:
Recursos e Patrimônios
MATÉRIA E FORMA NAS POLÍTICAS DA
AGROBIODIVERSIDADE
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Departamento de Antropologia da
Universidade de Brasília.
Banca examinadora:
_____________________________________________
Dr. Carlos Emanuel Sautchuk (orientador) – DAN/UnB
Dr. Mauro Willian Barbosa de Almeida – IFCH/Unicamp
Drª. Marcela Stockler Coelho de Souza – DAN/UnB
Dr. Luis Abraham Cayón Durán (Suplente) – DAN/UnB
_______________________________________________
Guilherme Moura Fagundes
Brasília, março de 2014
3
Às façanhas de minha mãe, Maria de Lourdes, e de meu pai,
Luiz Roberto, que conjugam de maneira tão singular o
samba de Benito de Paula com o rap dos Racionais.
[...]
Para Mari, com muito amor adoçado pelos cacaus do quintal
de dona Adelina.
4
Agradecimentos
Agradeço em primeiro lugar à minha família: pai, mãe, irmão, mas também avós, avôs,
tios e tias bilaterais. Sem eles eu não teria me transformado nesta aberração estatística
que agora goza do título de mestre em Antropologia Social. Eles sabem do que eu estou
falando.
Agradeço aos moradores da Casa do Estudante Universitário da UnB (CEU) pelas lutas,
por vezes inglórias, mas sem as quais a vida seria muito razoável. Em especial, e com
muito afeto, ao Olavo, à Leti, à Fabi. Ainda na CEU, mas muito maior do que ela, devo
prestar minha singela homenagem aos/às intelectuais do grupo de estudo teórico e de
práxis política Episteria. Sem a reciprocidade de Antônio, Aia, Meryver, Leti, Dayana,
Abayomi, Paulo, Luana, Mari, dentre outros e outras que passaram pelo grupo, muito
dos meus atrevimentos interdisciplinares certamente sequer teriam tido início.
Devo muito também a dois orientadores e, mais do que isso, grandes amigos das
moradas filosóficas: Hilan Bensusan e Tomás Cardoso são os meus segredos guardados
a sete chaves. Com o Tomás, reaprendi a respeitar o tempo do pensamento; com o
Hilan, a erótica se transformou na errática da alagmática.
No Departamento de Antropologia da UnB (PPGAS), agradeço aos professores e
professoras que me possibilitaram uma formação sem igual e que espero corresponder
à altura. Nomeio aqui aqueles e aquelas com os quais eu tive o privilégio de
experimentar a antropologia: Guilherme Sá, Mariza Peirano, Soraya Fleicher, Andrea
Lobo, Wilson Trajano, Carlos Sautchuk, Carla Teixeira, Antonádia Borges e Marcela
Coelho. Fundamentais também foram os auxílios prestados pelos funcionários da casa:
Rosa, Cris, Paulo, Jorge, Idamar e Adriana.
À professora Marcela, juntamente com o professor Mauro Almeida (Unicamp),
também agradeço por terem aceitado compor minha banca. Com críticas árduas e
comentários perspicazes os dois possibilitaram que o evento fosse, de fato, uma defesa.
Algo que, para mim, é de fundamental importância não apenas à minha trajetória
5
acadêmica, mas também para o desenvolvimento do conhecimento científico num
sentido amplo.
No tocante à pesquisa, devo agradecer pela acolhida cordial que me foi oferecida no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Minhas idas ao
Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI) não teriam sido tão proveitosas e
agradáveis sem os cuidados e atenção dispensada por Desirée Tozi, Ellen Krohn, João
Pimenta e demais técnicos e funcionários da instituição. Ainda no perímetro do
patrimônio imaterial, agradeço profundamente à pesquisadora Laure Emperaire, que
me concedeu uma tarde para uma conversa agradável e muito elucidativa sobre o
projeto Pacta. Já no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen) minha
convivência foi pontual, mas não menos importante para o desenvolvimento da
pesquisa. Agradeço, em particular, ao servidor da casa Fernando que, seja pelos e-mails
trocados ou pelas conversas pessoais, sempre se colocou plenamente à minha
disposição para o acesso às atas, transcrições e demais informações solicitadas. Muito
obrigado.
Sou profundamente grato aos colegas da pós-graduação que comigo habitaram a
Katacumba, especialmente aos da minha sala: Márcio, Hugo, Paique, Ana Cândida,
Caio, Wellington, Ariel; mas também ao Rafael (Rafa), Raoni da Rosa, Eduardo Nunes
(Du), Sandro, Júlia Brussi, Renato Aquino, Júlia Sakamoto, Bruner, Graciela, Fabiano
Souto, Fabiano Bachelany, Lediane, Bruno Goulart, Martiniano, Thiago Novaes, Raoni
Giraldin, Yoko, Rodrigo Rocha, Rodrigo Pádua, Mariana, Potyguara, Isabel, dentre
vários outros que agora me fogem a lembrança.
À minha turma de mestrado devo riquíssimas discussões e debates acalorados. Esta
dissertação não deixa de ter contribuições significativas da Paloma, Talita, Cassiane,
Raysa, Igor, Carlos, Janete, Francisco (Chico), Cassiane, Wellington Alexandre.
Agradeço ainda à Maira, Mariana (Nana), Luíza Molina, Ester, Juliano Lagoas, Natália
Maria, Rafael Rodrigues, Lucas Farage, Diogo Torres, Pedro Menezes, Bernardo de
Almeida, Bruno Calixto, Cláudio Dantas, Saulo Pequeno, Daniela Barros, Fernando
González que, de maneira mais ou menos intensa, também têm suas marcas neste
texto.
6
Outro coletivo muito importante na minha formação foi o Laboratório de Antropologia
da Ciência e da Técnica (LACT), coordenado pelos professores Guilherme Sá e Carlos
Sautchuk, o qual eu tive o privilégio de compô-lo desde sua gestação e acompanhar seu
desenvolvimento. Agradeço ainda, particularmente, aos integrantes do projeto
“Transformações técnicas em perspectivas locais: etnografia comparada de relações
entre humanos e não humanos” (CNPQ, 2013-2014), coordenado pelo prof. Carlos, do
qual também fazem parte Lucas Mendonça, Fabiano Bachelany, Julia Brussi, Simone
Soares, Eduardo Dideus e Pedro Stoeckli. O nosso seminário intensivo realizado na
RPPN Linda Serra dos Topázios, localizada na cidade de Cristalina-GO, foi decisivo
para o fechamento da dissertação.
O meu orientador, Carlos Sauthuk, mereceria uma página à parte neste momento de
agradecimentos. Sua sobriedade intelectual e precisão tutorial são para mim motivos
de grande inspiração que extrapolam o ofício do antropólogo. Em tempos de
produtivismo acadêmico e supervalorização da pesquisa, Carlos me provou ser possível
apostar numa relação honesta de orientação no sentido estrito do termo, permitindome predicá-lo de um título que para mim é de grande valia: o de professor. Espero ter
correspondido à sua altura.
Por fim, todos precisam saber que esta dissertação não seria possível sem o apoio
incondicional e afetos de toda parte da minha grande companheira intelectual e de
vida, Mariana. Com Mari, a felicidade é “...uma casinha, simplesinha, com ger}nios em
flor na janela; uma rede de malha branquinha e nós dois a sonhar dentro dela”. Bendito
foi o dia em que dissemos sim um para o outro.
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RESUMO
A dissertação empreende uma comparação entre duas políticas públicas que regulam e
promovem a agrobiodiversidade (biodiversidade agrícola) no Brasil a partir de lógicas
distintas. A primeira delas, operada no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
(CGEN), alicerça a agrobiodiversidade no domínio dos recursos fitogenéticos, remetendo-a
à biologia neo-darwinista e operacionalizando as relações entre humanos e plantas
cultivadas a partir do estabelecimento de suas “propriedades características” e
“comunidades locais”. Já a segunda, desenvolvida no âmbito do Instituto do Patrimônio
Histórico Artístico Nacional (IPHAN), codifica as interações entre humanos e plantas
cultivadas como partes integrantes de “sistemas agrícolas”, sob a égide do patrimônio
cultural imaterial. Nesta segunda, os componentes da agrobiodiversidade são encarados
desde uma perspectiva avessa à atomização, o que implica na objetivação dos processos
constitutivos destas interações. Apesar das distinções, ambas as lógicas, todavia, lidam com
uma tensão entre as dimensões materiais e imateriais que compõem as operações de feitura
da agrobiodiversidade. Além de apresentar as diferentes soluções formuladas pelas duas
políticas para habitar esta tensão, a discussão também é permeada por reflexões sobre o
esquema hilemórfico (matéria/forma) que caracteriza o repertório ocidental de
estabilização de seres (humanos e não-humanos).
Palavras-chave: Antropologia; Agrobiodiversidade; Recursos fitogenéticos; Domesticação;
Patrimônio imaterial; Sistemas agrícolas; Hilemorfismo
8
ABSTRACT
The dissertation undertakes a comparison between two public policies that regulate and
promote agrobiodiversity (agricultural biodiversity) in Brazil and are built around distinct
rationales. The first, operated on the Board of Management of Genetic Patrimony (CGEN),
hinges agrobiodiversity on the realm of phytogenetic resources, relating it to the neodarwinist biology and conceiving the relations between humans and cultivated plants as
deriving from the stablishment of their “characteristic properties” and “local
communities”. As for the second, developed in the scope of the Institute of National
Historical and Artistic Heritage (IPHAN), it codifies the interactions between humans and
cultivated plants as a feature of the “agricultural systems”, under the aegis of immaterial
cultural heritage. On the latter the compounds of agrobiodiversity are faced from a
perspective averse to atomization, which implies in the objectification of the processes
that constitute these interactions. Despite the distinctions, both rationales, however, deal
with the tension between the material and immaterial dimensions that comprise the
operations of making agrobiodiversity. Besides presenting the different solutions
formulated by both policies to dwell in this tension, the discussion is also pervaded by
reflections on the hylemorphic scheme (matter/form), which characterises the western
repertoire of stabilising beings (humans and non-humans).
Key words: Anthropology; Agrobiodiversity; Phytogenetic resources; Domestication;
Immaterial heritage; Agricultural systems; Hylemorphism
9
Pour nous résumer, la notion de matière apparaît comme un
principe vivant, et, malgré ce qu'on croit généralement,
pour Aristote, c´est un corps vivant. Ces formes sont bien
imprécises, mais guère plus que nos propres conceptions de
la matière.
Marcel Mauss. Conceptions qui ont précédé la notion de
matière
(...) a coisa é, de um lado, matéria e, de outro, forma, e uma
é potência enquanto a outra é ato.
Aristóteles. Metafísica
Les propriétés ne sont pas substantielles mais relationnelles;
elles n'existent que par l'interruption d'un devenir.
Gilbert Simondon. L’individuation à la lumière des notions
de forme et d’information
10
SUMÁRIO
Introdução, 12
Agrobiodiversidade: recursos e patrimônios, 16
Percursos e escolhas metodológicas, 30
Capítulo 1 – Agrobiodiversidade sob a lógica dos recursos fitogenéticos, 36
Do ex situ ao on farm, 37
Legislação dos recursos fitogenéticos, 41
O DPG e o CGEN, 48
Estabilizando produtos da agrobiodiversidade:
a) Conhecimento intrínseco e conhecimento associado, 56
b) Cultivo e domesticação, 63
Operando linhas de corte:
c) O coco-anão e as “propriedades características”, 72
d) A goiabeira-serrana e as “comunidades locais”, 79
Considerações parciais: dos processos aos produtos, 90
Capítulo 2 – Agrobiodiversidade sob a lógica dos patrimônios imateriais, 95
Do tombamento ao registro, 96
Legislação dos patrimônios imateriais, 100
O IPHAN e o DPI, 105
Estabilizando processos da agrobiodiversidade:
a) De recurso a patrimônio, 112
b) Objetos e sistemas, 118
Operando redes de associação:
c) Os arranjos do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, 131
d) Elementos estruturantes e redes de parentesco, 143
Considerações parciais: das formas às forças, 154
Capítulo 3 - Recursos e Patrimônios: perspectivas comparadas, 157
Variações hilemórficas, 158
Concebendo: matéria e forma, 162
Estabilizando: atos e relações, 170
Operando: produtos e processos, 176
Considerações finais, 180
Fontes documentais, 186
Referências bibliográficas, 188
11
SIGLAS E ABREVIAÇÕES
ABA - Associação Brasileira de Antropologia
ACIMRN – Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro
APIWTXA - Associação Ashaninka do Rio Amônia
CDB – Convenção Sobre Diversidade Biológica
CDS – Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília
CEBDS - Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável
CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
CGIAR – Grupo Consultivo para a Pesquisa Agrícola Internacional
CNFCP - Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNRS - Centre National de la Recherche Cientifique França
CNUMA – Conferência
Desenvolvimento
das
Nações
Unidas sobre
o Meio
Ambiente e
o
COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
CONABIO - Comissão Nacional da Biodiversidade
CONAQ - Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
CONJUR – Consultoria Jurídica do Ministério do Meio Ambiente
COP - Conferência das Partes
CT – Câmara Temática (CGEN)
CTA – Conhecimento Tradicional Associado (CGEN)
CTCTA – Câmara Temática de Conhecimento Tradicional Associado (CGEN)
DPI – Departamento de Patrimônio Imaterial (IPHAN)
DPG – Departamento de Patrimônio Genético (CGEN)
EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FAO - Food and Agriculture Organization of United Nation
FBOMS - Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável
12
FCP - Fundação Cultural Palmares
FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz
FOIRN - Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
GT – Grupo de Trabalho
GTPI – Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis
IEC – Instituto Evandro Chagas
INBRAPI - Instituto Indígena para Propriedade Intelectual
INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
INPI - Instituto Nacional de Propriedade Industrial
INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional
IRD – Institut de Recherche pour le Développement, França
ISA - Instituto Sócioambiental
JBRJ - Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro
MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
MCTI - Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
MD - Ministério da Defesa
MDIC - Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
MinC - Ministério da Cultura
MJ - Ministério da Justiça
MMA - Ministério do Meio Ambiente
MP – Medida Provisória
MPF - Ministério Público Federal
MRE - Ministério das Relações Exteriores
MS - Ministério da Saúde
PACTA – Projeto Populações tradicionais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos
Tradicionais na Amazônia
13
PG – Patrimônio Genético
PPI – Política do Patrimônio Imaterial
PROTER - Programa da Terra Assessoria, Pesquisa e Educação Popular no Meio Rural
SECEX – Secretaria Executiva
SAT-RN – Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro
STS – Science and Technology Studies
TIRFAA - Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e
Agricultura
UnB – Universidade de Brasília
UNICAMP – Universidade de Campinas
USP – Universidade de São Paulo
14
Introdução
15
Agrobiodiversidade: recursos e patrimônios
“(...) um problema tem sempre a solução que merece
segundo o modo como é colocado e o campo simbólico
de que dispomos para colocá-lo.”
Deleuze, Gilles. 1972. Em que se pode reconhecer o
estruturalismo?
Esta pesquisa partiu de uma indagação pontual, ainda que um tanto quanto
ambiciosa: que tipo de operações agrícolas promovem a diversificação das plantas
cultivadas e como, no cenário contemporâneo, atuam as políticas públicas brasileiras
que objetivam estas operações? Motivado por tais questões, ao longo dos dois anos do
mestrado busquei me aproximar tanto da literatura científica quanto das instituições
da burocracia federal que lidam com as interações entre humanos e plantas cultivadas.
Em meio às disciplinas e demais afazeres que perpassam a vida do mestrando, reservei
meu tempo disponível para ler artigos, livros, relatórios governamentais e nãogovernamentais, assistir documentários, bem como participar de cursos e eventos no
intuito de ir me habituando ao universo no qual a temática se insere. Neste trajeto,
novas perguntas foram surgindo e outras foram guardadas para trabalhos futuros.
Ainda assim, de maneira geral, a preocupação em torno da diversificação das plantas
cultivadas se manteve.
Um dos cursos que participei foi realizado pela Embrapa Recursos Genéticos e
Biotecnologia (Cenargen), intitulado “Evolução e sua Interface com os Recursos
Genéticos”. Nele, eu era o único antropólogo participante e, como pode acontecer, esta
intrusão inusitada motivou a curiosidade dos demais pesquisadores. Afinal, por que
um antropólogo estaria interessado em tópicos como “domesticaç~o de plantas
cultivadas”, “história do pensamento evolutivo”, “Darwin e a evoluç~o”, dentre outros
explorados nas mesas de discussão? Indagado diretamente por um dos pesquisadores,
respondi que estava particularmente interessado em entender como que operam os
processos de diversificação das plantas cultivadas tendo como referência, à época, a
infinidade de variedades de mandioca (Manihot esculenta) presente na Amazônia
16
indígena.
Após
ouvir
pacientemente
minha
explanação
sobre
as
supostas
correspondências entre a incorporação do afim no parentesco dravidiano amazônico e
a incorporação das mandiocas oriundas de reprodução sexuada nos roçados indígenas,
o pesquisador resumiu minhas inquietações numa única sentença: “Ah, você est|
interessado na agrobiodiversidade da mandioca?”.
Meditei por alguns segundos e respondi que sim; mesmo sem saber ao certo o
que ele queria dizer com este conceito. Uma vez tendo concordado com sua síntese, o
pesquisador prosseguiu sua lição, desta vez me precavendo de que eu deveria ter em
mente que o conceito de agrobiodiversidade engloba outros elementos da diversidade
agrícola. Além das plantas cultivadas, eu deveria me atentar aos espaços cultivados, à
diversidade subterrânea e microbriana, aos modos de produção e uso da terra, às
espécies não cultivadas que estabelecem relações simbióticas com a mandioca e uma
extensa rede de correlações mais amplas. Fora isso, eu deveria ainda entender as
políticas nacionais e internacionais de proteção dos recursos fitogenéticos, os
mecanismos de direitos autorais associados ao registro de novos cultivares1 e os
acordos internacionais em torno dos bancos de germoplasma.
O que de início era apenas um deleite intelectual de minha parte em cruzar as
fronteiras tênues que demarcam a divis~o ocidental entre as ciências da “natureza” e as
ciências da “cultura”2, passou a ser concebido como um empreendimento de relevância
também
no
âmbito
político.
Afinal,
como
insistem
os
defensores
da
agrobiodiversidade, além dela ser “positiva para a humanidade e para o planeta terra”
(Soares da Silveira, 2010: 197), possibilitando a manutenção da variabilidade genotípica
e ambiental bem como ajudando a controlar o “aquecimento global”, a
agrobiodiversidade ainda é tida como estando sendo “ameaçada” – e para isso,
contextualiza Soares da Silveira (2010: 198), “existe o calculo do risco, a probabilidade
da perda, a possibilidade de extinç~o”.
Derivado da junç~o das palavras inglesas “cultivated” e “variety”, o conceito de cultivar é utilizado nos
fóruns de biotecnologia vegetal remetendo à variedade de qualquer gênero ou espécie cultivada que,
uma vez efeito do processo de seleção e melhoramento genético, seja passível de distinção por nome
próprio e homogeneidade estável (ver, Emperaire, 2005).
2
Ao longo da dissertaç~o os conceitos de “natureza” e “cultura” aparecer~o sem o auxílio das aspas, por
uma questão de economia textual. O que não implica que estes termos deixem de ser justamente objetos
da etnografia.
1
17
É comum que esta ameaça seja associada { noç~o de “eros~o”. Definida em seu
sentido stricto, etimologicamente associado ao léxico da geologia, erosão condiz com
“aç~o de corroer, roer, gastar”. Porém, nas últimas décadas a noção tem sido acionada
na arena conservacionista para predicar a perda de variabilidade genética de espécies
animais e vegetais: “eros~o genética”, como se convencionou chamar. Além disso, em
se tratando da agrobiodiversidade e das plantas cultivadas, outra predicaç~o, a “eros~o
cultural”, passa a também ser acionada para qualificar a “erosion of rural values closely
linked with out-migration and loss of youth, overexplotation of resources and
declining productivity, and imports of exotic domesticated cultivars leading to severe
genetic erosion and loss of local knowledge systems” (FAO, 2011: 10). Uma vez estando
ameaçada em suas dimensões “genéticas” e “culturais”, faz-se oportuno que
agrobiodiversidade seja pesquisada não apenas por cientistas da vida como também
pelos pesquisadores da cultura: “Que bom que também tem antropólogos interessados
nestas questões”, dizia-me o pesquisador da Embrapa...
A partir da atração por este novo conceito, outras perguntas, e novas
formulações, passaram a fazer parte da minha agenda de pesquisa. Em especial,
perguntava-me, dado que as plantas cultivadas não se permitem serem reduzidas nem
à ciência, nem à política, compondo uma extensa rede de associações científicas e
políticas, como as práticas estatais brasileiras estariam delimitando suas fronteiras?
Sob a ótica da “cultura”, correndo o risco de semiotizar as interações concretas entre
humanos e vegetais? Ou então sob o prisma da biologia e assim podendo desconsiderar
os aspectos simbólicos constitutivos destas interações? Para minha surpresa, nenhum
destes dois caminhos são acionados de maneira tão oclusiva nas políticas da
agrobiodiversidade. Longe disso, me deparei com um universo conceitual muito mais
sofisticado, obrigando-me a evitar logo de princípio qualquer tentativa reducionista
que só se prestaria a acentuar a divis~o entre as “duas culturas” científicas (Snow,
1995). Para além destes reducionismos, seja naturalista ou culturalista, o pesquisador
que estiver interessado na diversificação das plantas cultivadas, se dispondo a adentrar
na malha semântica associada ao conceito de agrobiodiversidade, certamente se
deparará, como eu me deparei, com uma condição dual.
18
Ao invés de simplesmente constatar ou, o que seria ainda menos vantajoso,
tratar esta dualidade como uma contradição, pareceu-me mais oportuno seguir seus
arranjos e explicitar suas premissas. Tal escolha metodológica me possibilitou
considerar esta dualidade como sendo uma derivação da tensão matéria/forma, em
meio à qual, de um lado, as plantas cultivadas são encaradas como objetos biológicos,
vivos e de substrato natural, e, de outro, como objetos culturais, associados às escolhas
humanas e dependentes de seus cuidados. Enquanto matéria, as plantas cultivadas são
tomadas como seres vivos, com linhagens evolutivas próprias e características
morfológicas (mais ou menos) adquiridas desde a dita revolução neolítica. Enquanto
forma, por seu turno, as mesmas são associadas às informações providas por
populações humanas através das práticas de cultivo, dos critérios de seleção e dos
processos culturais de nomeação. Para todos os efeitos, o importante é que, ao
contrário do reducionismo estanque entre natureza e cultura, matéria e forma são,
antes, duas dimensões de uma mesma substância. E parece ser justamente na
complementaridade destas duas dimensões que se situa a singularidade das plantas
cultivadas no modo como elas são dispostas pelo pensamento contemporâneo.
Na literatura brasileira associada ao assunto os desdobramentos desta tesão são
disseminados. Em um artigo seminal publicado na Suma Etnológica Brasileira, Carl O.
Sauer conceitua as plantas cultivadas no universo ameríndio como “artefatos vivos,
testemunho das origens das culturas americanas e da sua difus~o” (1987: 59, grifo
meu). Mais recentemente, Juliana Santilli (2009), em seu compêndio de referência
fundamental para o estudo das políticas públicas da agrobiodiversidade, insiste na
retórica segundo a qual a diversificaç~o das plantas cultivadas “resulta tanto de fatores
naturais quanto culturais” (2009: 95), de modo que sua proteç~o deve abranger “duas
faces”: “material (agroecossistemas e plantas cultivadas) e imaterial (saberes agrícolas)”
(2009: 384). Já em uma edição da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
dedicada ao tema “patrimônio imaterial e biodiversidade”, a etnobióloga Laure
Emperaire segue a chave conceitual similar a Sauer e Santilli, ao definir as plantas
cultivadas como “objetos biológicos que atendem a critérios culturais de produç~o, de
denominação e de circulação, em constante interação com as sociedades e os
indivíduos que os produzem e modelam” (Emperaire, 2005:31, grifo meu). Ainda nesta
19
coletânea, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha endossa o coro dos que
sublinham
os
componentes
materiais
e
imateriais
das
plantas
cultivadas,
acrescentando que “o imaterial n~o consiste em objetos, mas sim na virtualidade de
objetos, sua concepção, seu plano, o saber sobre eles” (Carneiro da Cunha, 2005: 19,
grifo meu).
Neste apanhado de citações é notória a preocupação das autoras em distinguir
as duas dimensões da tensão constitutiva acima exposta. Em se tratando do
enquadramento da agrobiodiversidade no âmbito das políticas públicas, pude
constatar que a mesma tensão presente na literatura acadêmica fora também
exportada para o aparato burocrático brasileiro que trata da temática. A começar pelo
fato de que as políticas da agrobiodiversidade têm sido acolhidas por dois fóruns
principais do poder executivo nacional – a saber: o Departamento do Patrimônio
Genético (DPG), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), e o
Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI), vinculado ao Ministério da Cultura
(Minc). Ambos, apesar das inúmeras distinções operacionais e conceituais, se
conectam ao abordar tanto os componentes materiais quanto imateriais associados às
interações entre os humanos e as plantas cultivadas.
No primeiro destes dois fóruns burocráticos, tais interações têm sido analisadas
no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), sob a alçada da Medida
Provisória nº 2.186-16/2001 que regulamenta a política de acesso aos recursos
fitogenéticos e conhecimentos tradicionais associados. Já no segundo, o componente
intangível dos engajamentos humanos-plantas tem sido acolhido pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a partir do Decreto nº 3.551/2000,
sob a égide do registro dos saberes imateriais que compõem o patrimônio cultural
nacional. No primeiro há uma demanda em se estabilizar os produtos e as propriedades
destas interações; no segundo, de maneira simetricamente inversa, há o imperativo de
se “conservar virtualidades, ou seja, o imaterial é conservar processos” (Carneiro da
Cunha, 2009: 19). O aspecto mais significativo, entretanto, é que ambos preservam o
que poderíamos chamar de uma tensão matéria/forma originária: na lógica dos
recursos h| tanto a necessidade de se estabilizar as “propriedades características” das
plantas cultivadas quanto os “conhecimentos tradicionais” a elas associados; na lógica
20
do patrimônio h| tanto “saberes imateriais” a serem registrados quanto “matériasprimas” a serem asseguradas para que a reprodutibilidade cultural do bem seja
garantida. A rigor, portanto, podemos depreender que, a partir da década de 2000, o
esforço da literatura em marcar as duas dimensões das plantas cultivadas tem gozado
relativo sucesso no interior da burocracia federal brasileira.
Não obstante, no que condiz à política dos recursos genéticos e dos
conhecimentos tradicionais associados, Santilli lembra que, apesar a MP nº 2.18616/2001 se aplicar tanto às plantas cultivadas quanto às selvagens, seu regime de acesso
e repartiç~o de benefícios “foi concebido principalmente para os recursos genéticos
silvestres (...) sem considerar as especificidades dos recursos fitogenéticos utilizados
para alimentaç~o e agricultura” (2009: 273). Estas especificidades das plantas cultivadas
estão expressas no que a autora chama de a natureza especial da biodiversidade
agrícola, a saber: “qualquer variedade agrícola local é o resultado de atividades de
seleç~o e melhoramento desenvolvidas ao longo de muitas gerações de agricultores”
(2009: 283). Diante destas especificidades, as plantas cultivadas colocam pelo menos
dois problemas à lógica dos recursos genéticos: (a) como estabilizar as variedades
cultivadas de modo a definir seus centros de domesticação e, com isso, outorgar seu
país de origem? Além disso, (b) como definir os agricultores tidos como provedores,
uma vez que os “conhecimentos tradicionais associados” às plantas cultivadas são
compartilhados por diversas comunidades locais? Em resumo: como delimitar e
localizar as propriedades humanas e vegetais que resultam destes engajamentos
agrícolas?
Por sua vez, no tocante à política do patrimônio imaterial nacional, as plantas
cultivadas e a agrobiodiversidade de maneira geral também despertam inquietações.
Em especial, por não se restringir ao interesse na catalogação de um conjunto de
variedades agrícolas, mas por buscar correlacionar saberes, práticas e trocas, o registro
da agrobiodiversidade enquanto patrimônio imaterial demanda novas abordagens, a
partir das quais “(se) permitiria limitar a atomizaç~o das demandas e insistiria sobre o
caráter dinâmico dos processos, as atualizações e inovações em curso, bem como o seu
car|ter coletivo” (Emperaire et al, 2013). Ao buscar ampliar a concepção de patrimônio
material, visando se situar “para além da pedra e cal” (Londres, 2003) e, com isso,
21
englobar o predicado “cultural” da agricultura, a lógica do patrimônio imaterial acaba
por demandar soluções metodológicas para habitar a tensão entre as dimensões
materiais e imateriais constitutivas da agrobiodiversidade. Como lembra Coelho de
Souza (2010), “os instrumentos imaginados para essa proteç~o, portanto, o s~o tendo
em vista esse projeto mesmo, que é o de “superar” a própria dicotomia entre o material
e o imaterial” (2010: 150). Isto posto, é lançada a seguinte quest~o: como objetivar os
processos que garantem a produção da agrobiodiversidade sem redundar na
atomização dos produtos que resultam destas interações?
Assim sendo, os gestores responsáveis pela implementação destas políticas se
vêem ante o desafio de criar mecanismos de estabilização (e separação) dos produtos e
dos processos da agrobiodiversidade para que as práticas de mobilização política se
tornem distintas, ainda que complementares. Uma questão, portanto, que associa estas
duas agendas administrativas é a seguinte: como estabilizar as dimensões materiais e
imateriais da agrobiodiversidade para que a política de proteção dos recursos genéticos e
a política de registro dos patrimônios culturais consigam, respectivamente, manusear
seus produtos e seus processos? Além de seguir os caminhos e as soluções distintas
formuladas no CGEN e no IPHAN para responder a esta questão, a dissertação buscará
ainda objetivar3 o esquema metafísico (matéria/forma) partilhado por estas duas
políticas4.
As noções de “objetivaç~o” e “objetificaç~o” permeiam a dissertaç~o e faz-se pertinente pontuar a
maneira como as utilizamos. No âmbito da antropologia, Roy Wagner talvez seja o autor que mais tenha
se dedicado a pensá-las. Com Wagner, o conceito de “objetificaç~o” condiz ao efeito necessário a todos e
quaisquer atos de tradução de associações de um contexto simbólico a outro. Nesse sentido, seu
emprego do termo “objetificar” é, em suas palavras, “um tanto fenomenológico e se assemelha ao uso do
termo ‘objetivar’” (Wagner, 2010: 86). Sem me aprofundar nos desdobramentos que estes conceitos
assumem na teoria da obviaç~o do autor, com suas tipificações em “invenções” e “contra-invenções”,
“inatas” e “convencionalizadas”, restrinjo-me aqui ao seu aspecto positivo e necessário às condições de
conhecimento. Fora isso, desta vez partindo de Simondon (1958), vale a pena acrescentar que o
tratamento das duas noções enquanto sinônimos é pertinente a um esquema de pensamento que
concebe os processos de individuação a partir de um engendramento entre matéria e forma, isto é, para
o filósofo apenas no hilemorfismo a reificação em objeto (objetificação) é condição necessária para a
objetivação (tornar objetivo) dos seres. Essa assertiva será melhor desenvolvida no terceiro capítulo da
dissertação.
4
É certo que outras saídas analíticas seriam perfeitamente possíveis, tais como, restringindo-nos às já
consagradas, as relações e disjunções entre o saber científico e os saberes tradicionais (Little, 2010;
Carneiro da Cunha, 2009b), o enquadramento dos conceitos de “comunidade local” e “populações
tradicionais” pelo aparato burocr|tico da cultura e do meio-ambiente (Barreto Filho, 2006; Carneiro da
Cunha & Almeida, 2009), as traduções das noções de “cultura” e “natureza” nas redes sóciotécnicas dos
projetos da agrobiodiversidade (Soares da Silveira, 2012), dentre outras. Não obstante, em face das
3
22
Como diz Bruno Latour (2006: 272), fazer política entre os modernos consiste
num ato de compor um mundo bicameral onde, de um lado, teríamos as políticas da
razão voltadas aos não-humanos e, de outro, as razões políticas dirigidas aos humanos.
Para Latour, a composição deste mundo bicameral é munida de dois conjuntos de
práticas diferentes que devem permanecer distintas: as de “traduç~o” e as de
“purificaç~o”. Nas palavras do autor:
“O primeiro conjunto de pr|ticas cria, por ‘traduç~o’, misturas entre
gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura.
O segundo cria, por ‘purificaç~o’, duas zonas ontológicas inteiramente
distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos, de outro.
Sem o primeiro conjunto, as práticas de purificação seriam vazias ou
supérfluas. Sem o segundo, o trabalho de tradução seria freado, limitado
ou mesmo interditado” (Latour, 1994: 16).
Tal como esquematizada por Latour, nesta perspectiva moderna conhecer é
sinônimo de estabilizar, ou seja, só é passível de conhecimento científico e
manipulação política aquilo que é passível de estabilização. Como veremos ao longo da
dissertação, a estabilização das propriedades e dos processos de feitura também é
condição sine qua non para a eficácia de qualquer política (voltada aos humanos e/ou
aos não-humanos) que se assente no esquema matéria/forma. A rigor, a noção de
estabilização é aqui tomada sob o signo das (instituições das) “caixas-pretas”,
provenientes da cibernética e popularizadas nos Science and Technology Studies (STS)
por Latour (200o)5. Nas palavras de Harman, as caixas-pretas se definem como “any
actant so firmly established that we are able to take its interior for granted. The
internal properties of a black box do not count as long as we are concerned only with
its input and output” (2009: 33, grifos meus).
Outra noção que nos acompanhará na objetivação das estabilizações da
agrobiodiversidade, ainda que seu desenvolvimento mais detalhado se dê apenas nas
nossas considerações comparativas finais, é a de “zona obscura”, cunhada pelo filósofo
nossas predileções, investimentos intelectuais anteriores e constatações etnográficas, a tensão
matéria/forma constitui o eixo analítico transversal desta dissertação.
5
Nas palavras do próprio Latour (2000: 14): “A express~o caixa-preta é usada em cibernética sempre que
uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma
caixinha-preta, a respeito da qual n~o é preciso saber nada, sen~o o que nela entra e o que dela sai”.
23
e tecnólogo francês Gilbert Simondon. Inserida no escopo da sua teoria mais ampla
acerca dos processos de individuação, a noção de zona obscura é, para Simondon,
pertinente ao esquema hilemórfico – matéria(hyle)/forma(morphè) – que concebe os
seres a partir da junção entre matéria e forma, encobrindo as operações de
individuação. É certo que este pensamento hilemórfico possibilita rendimentos mais
ou menos satisfatórios na estabilização dos atos que dão forma e da potência da
“matéria-prima”. Entretanto, o que é deixado encoberto são justamente as
virtualidades energéticas pré-invidualizadas – “singular sem ser individual”, poder-se-ia
dizer com Deleuze (2003: 3) – que não se definem pela estabilidade nem pela
instabilidade, mas sim por sua condiç~o “metaest|vel”
6
. Ao contrário do que
possibilita o hilemorfismo, Simondon ressalta que estas singularidades devem ser
consideradas como de caráter essencial para as operações de individuação. Em suas
próprias palavras:
“l'existence, entre forme et matière, d'une zone de dimension moyenne
et intermédiaire - celle des singularités qui sont l' amorce de l' individu
dans l' opération d' individuation - doit sans doute être considéré
comme un caractère essentiel de l'opération d'individuation. C'est au
niveau de ces singularités que se rencontrent matière et forme dans
l'individuation technique, et c'est à ce niveau de réalité que se trouve le
principe d'individuation, sous forme de l'amorce de l'opération
d'individuation(...)” (Simondon, 1958: 60).
No estudo das políticas da agrobiodiversidade aqui proposto, estas duas noções
nos servirão de instrumento analítico para a objetivação de distintos modos de
estabilização da tensão matéria/forma. Ao longo da dissertação esta tensão deverá ser
considerada menos como uma contradição e mais como a atualização de uma
tendência do pensamento hilemórfico de conceber as interações entre humanos e
6
Para Simondon, se a tradição ocidental alcançou resultados satisfatórios no conhecimento dos
indivíduos já individuados, por outro lado as operações de individuação ainda aguardam por serem
descritas e pensadas de maneira adequada. Isto se deu porque esta tradição só conhecia uma única
forma de equilíbrio, o equilíbrio estável em repouso, contrapondo-o à instabilidade e ao movimento.
Para objetivar a individuação em seu devir, Simondon defende que se faz necessário operar pela a chave
analítica da “metaestabilidade”, e para defini-la, prossegue o filósofo, “il faut faire intervenir la notion
d’énergie potentielle d’um système, la notion d’ordre, et celle d’augmentation de l’entropie [la notion
d’information d’um système (...)” (Simondon, 1958:26, grifos meus). É a partir destas noções que se
tornaria possível definir o estado metaestável dos seres. Para além do equilíbrio e do repouso, mas
também irredutível à pura inconstância.
24
plantas cultivadas de maneira substancializada, e a substância em termos duais,
enquanto forma e matéria. Afinal, ao abordar os processos de feitura dos humanos e
das plantas cultivadas a partir de seus componentes materiais e imateriais – isto é, a
“matéria-prima” vegetal e o “conhecimento tradicional”, uma dimens~o material e
outra ideacional –, tanto a lógica dos recursos fitogenéticos, quanto a lógica do
patrimônio imaterial acabam por partir das plantas e dos humanos já formados para
então procurar recapitular seus processos de formação. Como consequência, a
problem|tica da feitura ela mesma é tomada como uma “caixa-preta”, ou delegada a
uma “zona obscura”, e para reconstruí-la ou habitá-la são acionados termos
mediadores e purificadores que corroboram na função da estabilização acima exposta.
Resta-nos, com isso, investigar justamente quais são as articulações e depurações
originais encontradas por estas duas políticas públicas para estabilizar os amálgamas
da agrobiodiversidade e habitar esta tensão. Eis o tema desta pesquisa.
***
Nas páginas que seguem serão apresentadas as soluções acionadas pela política
da conservação dos recursos fitogenéticos e dos conhecimentos tradicionais associados
e pela política de registro dos patrimônios imateriais para estabilizar os termos e as
relações da agrobiodiversidade dentro da tensão matéria/forma, ou seja, duas gestões
distintas a partir de um mesmo pano de fundo. A dissertação tem como objetivo geral,
portanto, empreender uma comparação entre as lógicas de duas políticas públicas que,
no intuito de regular e promover a biodiversidade agrícola no Brasil, estabilizam os
produtos e os processos das interações entre humanos e plantas cultivadas. É
importante ter em mente que não se propõe aqui analisar os embates políticos e as
clivagens sociológicas propriamente ditas, mas sim os pressupostos lógicos acionados
nestas duas séries discursivas. Com efeito, estes dois modos de estabilização serão
cotejados a partir de análise documental e levantamento de casos provenientes do
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) e do Instituto do Patrimônio
Artístico e Histórico Nacional (IPHAN).
25
De antemão, uma pergunta se faz inevitável: quais as vantagens de se
empreender um exercício comparativo desta natureza? Adotando um ponto de vista
pragmático, espero, em primeiro lugar, fornecer uma apresentação detalhada das
lógicas e perfis de atuação destas duas políticas brasileiras que abordam a
agrobiodiversidade a partir de enfoques distintos. Ao longo da pesquisa, pude perceber
que mesmo entre os técnicos e gestores do CGEN e do IPHAN persiste uma distância
significativa entre estas duas instituições e seus modus operandi. Embora esforços
estejam sendo empreendidos para aproximar a política de registro dos patrimônios
imateriais da politicas de conservação dos conhecimentos tradicionais (como, por
exemplo, a partir do credenciamento do IPHAN junto ao CGEN para autorizações de
acesso com finalidades de pesquisa), segue latente a pouca familiaridade de ambos os
lados desta cadeia administrativa. Sendo esta aproximação em grande medida ainda
restrita à interface jurídica, espero poder contribuir para sua aproximação no nível
conceitual de maneira contrastiva. Para efetivar esta comparação, a dissertação foi
estruturada em dois capítulos expositivos e analíticos e um terceiro de ordem sintética
comparativa.
O capítulo 1 se inicia com a apresentação das transformações nas estratégias de
conservação dos patrimônios genéticos a partir das quais emergem tanto as noções de
recursos fitogenéticos quanto de conservação on farm. Em seguida, veremos os efeitos
da regulamentaç~o jurídica dos “recursos genéticos” e dos “conhecimentos tradicionais
associados” normatizados com a assinatura da Convenç~o de Diversidade Biológica
(CDB). No Brasil, a CDB opera mediante a Medida Provisória nº 2.186-16 de 2001, a
partir da qual surge o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), lócus da
pesquisa. O Conselho tem a incumbência de avaliar os pedidos de bioprospecção de
patrimônio genético, bem como os requerimentos de acesso aos “conhecimentos
tradicionais associados” (CTA) à biodiversidade e a repartição de benefícios.
Alicerço a empiria do capítulo nos seguintes tópicos: (1) a estrutura e
organização do CGEN e suas prerrogativas administrativas; (2) os debates em torno dos
conceitos de “cultivo”, domesticaç~o” e “conhecimentos intrínsecos”, definidos pela
legislação normativa e processados nas discussões da Câmara Temática dos
Conhecimentos Tradicionais Associados (CTCTA); (3) a separação neo-darwinista dos
26
conceitos de “cultivo” e “domesticaç~o” e suas associações com o pensamento
hilemórfico; e, por fim, (4) a análise de dois itens de pauta debatidos no Plenário do
Conselho e tidos como “casos emblem|ticos”: o caso do coco anão (Acca sellowiana) e
da goiabeira-serrana (Acca sellowiana). Ao final do capítulo veremos que as noções se
“propriedades características” e “comunidades locais” se apresentaram como elemento
chave tanto na estabilização das plantas cultivadas quanto dos grupos humanos a elas
associados, o que nos permite afirmar que nestes casos as operações agrícolas são
objetivadas tendo em vista os produtos resultantes destas interações.
Já no capítulo 2 é recuperado o debate que fez emergir a política de salvaguarda
dos patrimônios imateriais por meio dos registros, que enfatiza a dimensão lógica e
processual da cultura, em oposição direta à feição histórica e estática da política de
tombamento dos patrimônios materiais. Veremos, no entanto, que, embora a feição
dinâmica da cultura imaterial seja acionada no intuito de se contrapor ao
enquadramento cronológico e conteudístico da cultura material, o debate acaba por
ocorrer no âmbito do hilemorfismo presente no pensamento ocidental, segundo o qual
parte-se da dualidade entre as dimensões formais e materiais dos sujeitos e dos
objetos.
Adentrando
no
IPHAN,
será
explorado
o
primeiro
registro
da
agrobiodiversidade enquanto patrimônio imaterial do Brasil.
Neste capítulo serão destacados os seguintes tópicos: (1) apresentação do
projeto PACTA (Populações Tradicionais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos
Tradicionais
Associados)
e
suas
motivações
para
o
enquadramento
da
agrobiodiversidade sob a lógica dos patrimônios imateriais; (2) o desenvolvimento da
solicitaç~o de registro do “Sistema Agrícola Tradicional do rio Negro” (doravante, SATRN) como patrimônio imaterial; (3) as discussões internas ao IPHAN que culminaram
na adoção da abordagem sistêmica do bem e uma rápida incursão na teoria dos
sistemas agrários; (4) a exploração do dossiê de registro com atenção voltada às
escolhas
metodológicas
originais
encontradas
para
viabilizar
a
tensão
materialdiade/imaterialdiade; e, por último, (5) a análise do enquadramento
dispensado { mandioca como “elemento estruturante” do sistema e do isomorfismo
entre redes de parentesco humano e circulação de variedades vegetais. Ao longo do
capítulo veremos de que modo esta perspectiva sistêmica possibilitou tanto expandir o
27
escopo da objetivação da agrobiodiversidade no rio Negro, como ainda criar com
sucesso uma afinidade tática com a legislação que regulamenta os patrimônios
culturais imateriais no Brasil. Além disso, veremos algumas articulações que o próprio
material etnográfico levantado pelo dossiê de registro fornece como alternativas
(indígenas) ao esquema hilemórfico.
Por fim, após analisar as lógicas e modos de operação destas duas políticas, o
capítulo 3 se dedicará ao exercício de síntese. O intento deste último capítulo recairá
justamente no entendimento das conexões e diálogos conceituais apenas parcialmente
explorados nos dois capítulos precedentes. Uma vez tendo privilegiado o recorte da
tensão matéria/forma como eixo de análise, contrastando os modos particulares e
distintos
que
cada
uma
destas
políticas
encontraram
para
habitá-lo,
os
desdobramentos etnográficos nos conduziram a pensar que esta tensão não seria
apenas um fator residual, mas sim uma disposição englobante que perpassa estas duas
racionalidades. Como consequência, com uma intensão eminentemente compreensiva
de entender este plano pré-conceitual em que se assentam estas duas políticas,
adentraremos de maneira mais delongada no esquema hilemórfico, cujo fundamento é
atribuído a Aristóteles – em especial, ao livro H (oitavo) de seu tratado Metafísica.
Para compreender de
maneira contrastiva as correspondências deste
pensamento hilemórfico nas políticas da agrobiodiversidade, a argumentação foi
formulada a partir de três níveis de análise. O primeiro, intitulado Concebendo: matéria
e forma, recorre ao próprio Aristóteles, ainda que de maneira mais didática do que
exegética, no intuito de circunscrever e compreender a importância que a concepção
do ser enquanto substância, bem como a substância como um engendramento de
matéria e forma, exerce no repertório ocidental de concepção dos processos de
estabilização dos seres (humanos e não-humanos). Em companhia de Tim Ingold e
Gilbert Simondon, o segundo nível de análise, intitulado de Estabilizando: atos e
relações, se presta para demonstrar em que medida os dois instrumentais teóricos
utilizados pelas políticas dos recursos fitogenéticos e dos patrimônios imateriais para
enquadrar e condicionar a agrobiodiversidade – respectivamente, o pensamento neodarwinista e a abordagem sistêmica – dependem da noção de estabilidade e se
28
contrapõem à noção de instabilidade como condição de possibilidade de
conhecimento.
Vale notar que, ao contrário de tratar o pensamento neo-darwinista e a
abordagem sistêmica como modelos estáticos que enclausuram as possibilidades de
conflitos e diferenciações, estes dois instrumentais teóricos serão tratados como duas
ideologias, no sentido empregado por Dumont (2000: 40, 42), cujos efeitos são mais ou
menos latentes a depender das situações empíricas concretas. Em relação a este
procedimento, Dumont antecipa eventuais críticas à sua abordagem lançando a si
mesmo a seguinte pergunta:
“em que medida é legítimo e útil extrair a ideologia de seu
contexto e estuda-la separadamente sem considerar suas
concomitâncias? Proceder deste modo é não somente navegar
contra a corrente da prática habitual, mas se afastar de um
consenso dos nossos colegas contemporâneos sobre a perspectiva
dos fins e dos meios da ciência social e da história. Além disso,
isolar uma parte da realidade social está em aparente contradição
com a inspiração antropológica, e com a minha própria e repetida
alegação em favor de uma perspectiva holista, de forma que pode
parecer que eu sou o último que pode se engajar, sem contradição,
em semelhante pr|tica” (Dumont, 2000: 40).
E responde:
“Isolar nossa ideologia é uma condiç~o sine qua non para
transcendê-la, porque ela é o veículo espontâneo do nosso
pensamento, e nela permanecemos encerrados por tanto tempo
que n~o a tomamos como objeto da nossa reflex~o” (Dumont,
2000: 41).
Com efeito, é importante ter em mente que esta abordagem estruturalista
privilegiada não tem como finalidade a supressão dos conflitos em busca de um
denominador ontológico comum às duas instituições. Por fim, no terceiro nível da
análise comparativa, nomeado Operando: produtos e processos, serão cotejadas as
29
operações levadas a cabo no Plenário do CGEN e no dossiê de registro do SAT-RN para
alcançar,
respetivamente,
os
produtos
e
os
processos
que
compõem
a
agrobiodiversidade.
Percursos e escolhas metodológicas
No que diz respeito aos materiais empíricos, a pesquisa se baseou quase
totalmente em fontes documentais e arquivísticas. Em se tratando de arquivos
públicos, sejam eles atas, boletins oficiais, transcrições ou recomendações
institucionais, são pertinentes as reflexões metodológicas sugeridas por Cunha (2004).
De acordo com esta antropóloga, “em vez de os arquivos serem concebidos como
produto final de uma série de intervenções de car|ter “técnico” — atividades
supostamente naturais de classificação, ordenação e instituição de marcadores
tem|ticos e cronológicos, por vezes desempenhadas pelos arquivistas” (2004: 271), os
documentos oficiais, eles próprios, devem ser tomados como carregados de
significação. Sua agência consiste na feitura de uma série de fios condutores guiados
para várias direções. Ou seja, ao invés de simples repositório, os documentos e seus
modos de classificação são também produtores de conhecimento. Normativas, termos
de referência e regimentos internos devem, neste sentido, ser encarados como algo que
é, ao mesmo tempo, causa e efeito de seus acionamentos7.
Nesta pesquisa sobre a agrobiodiversidade no CGEN e no IPHAN, por se tratar
de um tema em plena construção analítica por estas duas instituições, os documentos
oficiais demonstraram construir uma singular capacidade de habituar, no sentido lato
do termo, a constituiç~o dos “sujeitos-conselheiros” (Soares da Silveira, 2010: 39) em
suas performances burocráticas. Assim como afirma Mariza Peirano no tocante a força
que os documentos de identidade assumem na feitura dos cidadãos, poder-se-ia dizer
que as atas também compõem os conselheiros “em termos performativos e
obrigatórios” (Peirano, 2006: 27), ainda que com pesos e efeitos muitos distintos nos
dois casos.
7
No âmbito da antropologia, uma discussão mais aprofundada sobre esta faceta positiva, e não
meramente repositória, dos documentos burocráticos pode ser encontrada no review de Hull (2012).
30
Por mais que conversas informais e entrevistas também tenham sido realizadas
com analistas e técnicos das duas instituições pesquisadas, estas serviram mais para
balizar a condução do estudo do que como parte integrante do material empírico
explorado. Conforme se verá, tal escolha se justifica uma vez que o intuito da pesquisa
passou a ser mais o plano conceitual em que operam as lógicas dos recursos e dos
patrimônios do que as interações sociológicas nestas duas instituições. Não obstante, a
pesquisa também se valeu de algumas etnografias das instituições propriamente ditas,
que se dedicaram (em maior ou menor grau) a este nível de análise, a saber: a
dissertação de Hugo Loss (2013) e a tese de Diego Soares da Oliveira (2010), sobre o
CGEN, e as dissertações de Fabíola Nogueira da Gama Cardoso (2010) e Marcus
Vinícius Carvalho Garcia (2004), sobre o IPHAN.
Os materiais referentes ao Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN)
foram acessados a partir dos três volumes contidos no Processo Administrativo nº
01450.010779/2007 do DPI. Diferente do CGEN, que não possui em suas instalações em
Brasília espaço reservado para pesquisadores, os técnicos do DPI disponibilizaram um
mesa de estudo e toda a atenção demandada para o bom proveito da coleta de dados8.
As idas pessoais à instituição ocorreram primeiramente no primeiro semestre de 2012,
época em que participava de um projeto de iniciação científica coordenado pelo
professor Carlos Sautchuk, e depois foram retomadas no segundo semestre de 2013,
para a confecção da dissertação. Além de poder acessar na íntegra a pasta de registro
do bem, as visitas também me possibilitaram acompanhar um pouco da rotina da
instituição, bem como me aproximar do ainda inicial (e prenhe de desafios) plano de
salvaguarda do SAT–RN.
É importante explicitar que meu material empírico se restringe ao conteúdo
oficial presente na pasta do “bem”, especificamente {s atas de reuniões, ofícios, dossiê
de registro, componentes audiovisuais, relatórios e termos de referência. Uma vez
inspirando-me nos princípios de simetria antropológica, no sentido definido por
Latour (1994), esta escolha certamente não é isenta de uma série de carências
significativas. Afinal, como insiste Latour, para estudar os modernos faz-se urgente não
8
Aproveito a oportunidade para dispensar meus sinceros agradecimentos à equipe de técnicos e
funcionários administrativos do DPI que me possibilitam uma acolhida sem igual. Em especial, sou
profundamente grato a Desirée Tozi, João Pimenta e Ellen Krohn.
31
apenas reificar os discursos oficiais purificados, mas também, e sobretudo, “acrescentar
à Constituição oficial o trabalho oficioso da mediaç~o” (1994: 125, grifo meu). Para tal
feito, seria necessário acompanhar o processo de registro em ação, conjugando
entrevistas, análise etnográfica e abertura de suas controvérsias internas.
Mesmo ciente destas advertências, a opção por restringir-me aos documentos e
arquivos foi feita tanto em decorrência das contingências da escrita (no caso, em
função do cronograma do mestrado e da não participação do antropólogo na
implementação direta no registro do bem) como ainda em razão das potencialidades
que uma pesquisa com o discurso oficial passou a apresentar. Influenciado (nem
sempre de maneira tão consciente) pelas sugestões de Loius Dumont (2000; 1985),
passei a apostar nos rendimentos de uma análise voltada aos detalhes textuais que não
apenas refletem ou representam, mas que também atuam ativamente nos processos de
estabilizaç~o etnografados. Afinal, como lembra o antropólogo, “a nossa civilizaç~o é,
em grande parte, numa proporção sem precedentes, uma civilização escrita, e seria
inimaginável coligir-se de qualquer outro modo uma massa compar|vel de dados”
(1985:21). Seguindo a esteira de Dumont, poder-se-ia ainda correlacionar o discurso
oficial destas duas instituições com as ideologias que as sustentam, entendo-as aqui
num sentido positivo como “um sistema de ideias e valores que tem curso num dado
meio social” (1985:20). Entretanto, para operacionalizar esta noç~o de maneira
comparativa, é necessário que em um nível superior seja encontrada um aspecto
englobante, a partir da qual passa a ser possível perspectivar as diferenças emergentes9.
Em termos locais, isto é, no CGEN e no IPHAN, veremos que a tensão
matéria/forma cumpre a função deste irredutível facilitador do exercício comparativo.
Se ambas as instituições concebem as interações entre humanos e plantas cultivadas
sob
o
signo
desta
tensão,
desdobrando-a
ainda
em
antinomias
como
produtos/processos, material/imaterial, tangível/intangível e suas derivações, já no
nível dos valores uma diferença de ênfase divide estas duas instituições: enquanto no
CGEN os processos agrícolas se prestam a qualificar produtos (no caso, recursos), já no
DPI os produtos da agrobiodiversidade qualificam seus processos (no caso, imateriais).
9
Emprego aqui a expressão aspecto englobante no sentido definido por Dumont (2000: 31), segundo o
qual “como ocorre habitualmente nos estudos das culturas, é importante extrair as principais linhas de
força, e mesmo o traço predominante, que, como Marx se referia aos traços econômicos, é como o éter
que tinge toda a cena, denominado por mim de aspecto englobante”.
32
Em decorrência destes esforços distintos, veremos na lógica dos recursos fitogenéticos
o empenho de estabilização dos resultados de atividades agrícolas diversas, ao passo
que na lógica dos patrimônios imateriais o esforço é justamente por transformar em
processo (“desmaterializar”) os pleitos de registro atomizados.
É evidente que o recorte proposto está sendo apresentado de maneira bastante
esquemática. E é possível que por razões analíticas algo deste esquematismo nos
acompanhe até o último capítulo da dissertação, quando apresentarmos nossas
considerações comparativas. Também é verdade que o objeto privilegiado desta
pesquisa seja os textos e não os técnicos, pesquisadores e gestores públicos que nos
acompanharão. Isto é, não se propõe aqui adentrar no nível das motivações dos atores
e de suas histórias de vida. Por conseguinte, se a comparação sincrônica nos permite
contrastar duas lógicas distintas, por outro, como adverte Dumont, “n~o se est| em
condições de completar o aspecto consciente pelo aspecto observado de fora, o
ideológico pelo “comportamento”” (Dumont, 1985: 24). Nesse sentido, me eximo por
princípio de qualquer tentativa mais ambiciosa de cobrir todas as contingências que
caracterizam a implementação (política) da lógica do patrimônio imaterial e dos
recursos genéticos 10.
No tocante ao CGEN, primeiramente busquei levantar as atas das reuniões do
Plenário do Conselho e da Câmara Temática dos Conhecimentos Tradicionais
Associados (CTCTA) nas quais plantas tidas como cultivadas e/ou domesticadas foram
itens de pauta das discussões11. Deste primeiro levantamento foram selecionadas as
reuniões nº 46 e 47, referentes à goiabeira-serrana, nº 75, 76 e 80, referentes à
10
Ou, melhor dizendo, foge do escopo desta dissertação o intuito de (1) objetivar isto que chamamos
monoliticamente de “Estado” (Abrams, 1988; Herzfeld, 1993), (2) a implementação de políticas publicas
como instrumentos da mentalidade de governo (Foucault, 2007; Burchell, 1991), (3) a produção de um
ethos das instituições analisadas (Castro, 1990; Moura, 2007) ou ainda (4) um estudo sobre o cotidiano
da burocracia (Nadasdy, 2003; Herzfeld, 1993). Em resumo, ainda que estas questões emerjam de
maneira periférica no decorrer da dissertação, abstenho-me, provisoriamente, de almejar colocar-me sob
a rubrica disto que se convencionou chamar de Antropologia do Estado e das Instituições. Uma reflexão
desta qualidade certamente será proveitosa em seu momento oportuno.
11
Vale notar que entre os anos de 2009 e 2011, como estagiário de antropologia da 6ª Câmara da
Procuradoria Geral da república (PGR-MPU), eu tive a oportunidade de acompanhar as reuniões
ordinárias do Plenário do CGEN. À época, minhas inserções se limitavam à produção de relatoria das
reuniões e levantamento de casos em que se demanda a atuação do Ministério Público Federal. Dentre
estes casos, acompanhei de maneira mais atenta o conflito em torno dos conhecimentos tradicionais
associados ao murmuru (Astrocaryum ssp.) que envolvia a Associação Ashaninka do Rio Amônia
(APIWTXA) e uma pesquisa de bioprospecção (ver, Fagundes & Pimenta, 2011).
33
agrobiodiversidade da mandioca no Alto Juruá, e nº 90 e 93, referentes ao coco anão12.
Já na CTCTA a pesquisa exploratória resultou na seleção das reuniões nº 24, 25 e 26,
nas quais a agrobiodiversidade fora tematizada a partir de discussões em torno dos
conceitos de “cultivo”, “domesticaç~o” e “conhecimentos intrínsecos”. Após esta
primeira etapa, iniciei a fase de visitas ao Departamento do Patrimônio Genético
(DPG/MMA), bem como de trocas de e-mails com técnicos da instituição no intuito de
ter acesso às transcrições na íntegra das reuniões previamente selecionadas.
Consequentemente, o conteúdo da dissertação referente às discussões do Plenário do
CGEN é baseado nestas transcrições; já o material referente à CTCTA teve que se
restringir às atas disponíveis no sítio eletrônico da instituição, uma vez que me foi
informado que não é utilizado o serviço de estenotipia para este tipo de reunião.
Como todo gênero textual, as atas também têm suas especificidades; dentre
elas, talvez a mais notória seja a possibilidade de atenuar os dissensos e cristalizar os
consensos. A rigor, diferentemente de objetos estáticos, neutros e passivos, as atas da
CTCTA devem ser encaradas como artefatos polifônicos, pois permitem agenciamentos
díspares quando acionadas nas reuniões do Plenário, e contingentes, haja vista que são
passíveis de reformulações e reordenamentos estratégicos (Cunha, 2004: 292). Tanto as
atas das reuniões da CTA, bem como aquelas contidas na pasta do SAT-RN são,
concomitantemente, resultado das reuniões e subsídios normativos que, nos termos de
Mary Douglas (1986:131), fornecem aos técnicos e conselheiros as analogias necessárias
para naturalizar suas posições e guiar seus posicionamentos frente às controvérsias
instauradas no decorrer dos processos administrativos. Douglas ainda avança no
argumento metodológico segundo o qual são justamente nos momentos de crise, onde
as convenções sociais são postas em suspensão, que o pensamento institucional13 ganha
12
Em função do prazo diminuto e do recorte estipulado no decorrer da pesquisa, foi adotada a decisão
de não incluir o material referente à agrobiodiversidade da mandioca no Alto Juruá, por julgar que o
mesmo demandaria uma imersão nas questões em torno das “indicações geogr|ficas”. Por mais
pertinente e instigante que o fossem, notei que careceria de tempo (e fôlego) para abarcá-la em sua
devida profundidade.
13
O conceito de instituição é definido por Douglas como “um agrupamento social legitimado” (1986: 58).
Engane-se, porém, quem apressadamente inferir que este agrupamento é de ordem intencional e
moment}nea. Pois, prossegue a autora, “[O] que est| excluído do conceito de instituiç~o, nestas p|ginas,
é qualquer arranjo prático puramente instrumental” (Ibid). Isto é, mais do que uma convenção, o
pensamento institucional é para a autora a naturalização de uma classificação social. Detenhamo-nos
um pouco mais sobre este ponto. Conforme sublinha Fardon (2004:312), no momento em que escrevera
o livro, Mary Douglas havia se desvinculado das explicações processualistas da história, que exigiam
34
força no comportamento e nas escolhas das pessoas. No meu caso, a “crise” analisada
ao longo desta dissertação consiste nas problemáticas colocadas pelas plantas
cultivadas para as lógicas dos recursos fitogenéticos e dos patrimônios imateriais, em
meio à tensão matéria/forma que lhes é subjacente. Deste argumento, a antropóloga
desdobra ainda duas assertivas.
A primeira condiz com os critérios de justiça e verdade que decorrem destas
situações. Quanto a isso, Douglas diz que “uma resposta só parece ser correta quando
se apoia no pensamento institucional que já se encontra na mente dos indivíduos
enquanto eles procuram chegar a uma decis~o” (1986:13). A segunda assertiva alertada
pela autora se refere ao fato de que “elas (as instituições) se baseiam na natureza e, em
consequência, na razão. Sendo naturalizadas, fazem parte da ordem do universo e,
assim,
estão
prontas
para
fundamentar
a
argumentaç~o.”
(1986:
61).
Consequentemente, para entendermos quais as instituições naturalizadas em um
determinado contexto de crise (ainda que em torno de temas específicos, como os
abordados nesta pesquisa), devemos, antes de mais nada, ter em mente que concepção
de “natureza” – ela mesma naturalizada – está em operação. Em certo sentido, este
seria um objetivo último da dissertação.
caminhos e necessidades analíticas distintas para tratar dos “primitivos”, por um lado, e dos “modernos”,
por outro. Ao contrário, a autora buscou lidar com o “contexto social imediato”, a saber, a dimens~o présocial que molda a vida em sociedade. O livro Como as instituições pensam? pode ser encarado como um
refinamento conceitual da querela em torno das volições e necessidades dos indivíduos tal qual tratada
anteriormente pela teoria da escolha racional. Para isto, a autora agencia as noções de “solidariedade”,
“confiança”, “justiça”, dentre outras, visando deslocar o problema da dimens~o racional e individual para
o que ela chama de “uma dimens~o institucional e coletiva” (1986: 13).
35
Capítulo 1
Agrobiodiversidade sob a lógica dos
recursos fitogenéticos
36
Do ex situ ao on farm
“I see no special advantage in conservation in the form of seed
apart from the very eminent one of convenience, and I think that
attempts to find other merits in the “steady state” which seed
storage represents, seem to come dangerously near to adopting
museum concepts. The purpose of conservation is not to capture
the present moment of evolutionary time, in which there is no
special virtue, but to conserve material so that it will continue to
evolve. Such ‘continued evolution’ could only be possible in in situ
collections” Erna Bennet, 1968: 63
Seja entre países provedores e usuários, no âmbito internacional, ou entre
pesquisadores, empresas e comunidades locais, no âmbito nacional, a lógica dos
recursos fitogenéticos se apresenta como um regime de troca bilateral de difícil
aplicação aos processos constitutivos da agrobiodiversidade. Afinal, como delimitar os
domínios das plantas cultivadas e dos conhecimentos associados à biodiversidade
agrícola, uma vez que o próprio processo de promoção e diversificação destas plantas é
intrinsecamente atrelado às trocas e aos movimentos de transformação dinamizados
por grupos humanos? Esta questão têm se tornado central com o movimento de
reorientação nas estratégias de conservação vegetal, a partir do qual as modalidades de
conservação ex situ passam a dividir a cena conservacionista com as modalidades in
situ e, no caso das variedades agrícolas, on farm. Desde então, passe-se cada vez mais a
enfatizar que só há diversificação agrícola onde ocorre experimentação, intercambio de
sementes, difusão de plantas e partilha de técnicas de plantio. Para se entender os
valores que norteiam esta mudança é pertinente acompanhar a evolução dos
paradigmas conservacionistas dos últimos cinquenta anos (Empeaire, 2005:32).
Nos anos de 1961, 1967 e 1973, a Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura (FAO) realizou três conferências técnicas de notória
relevância para a consolidação das estratégias e modalidades de conservação dos
patrimônios genéticos das espécies vegetais, entendidos desde ent~o como “recursos
fitogenéticos”. Isto é, além de se constituírem enquanto patrimônio biológico, as
variedades vegetais, seja no nível da espécie biológica ou do material genético, passam
a ser encaradas em funç~o utilit|ria de seu “uso ou valor para o ser humano” (Walter &
37
Cavalcanti, 2005: 39), associando-as à própria perpetuação da humanidade enquanto
espécie.
De acordo com Pistorius (1997: 16-67), estas três conferências da FAO marcam a
consolidação da modalidade de conservação ex situ dos recursos fitogenéticos, por
meio da qual se argumenta que o material genético deve ser retirado de seus campos
de diversificação e alocado em bancos de germoplasma, no intuito de protegê-los dos
riscos de erosão genética. A conferência de 1961 foi palco da primeira discussão sobre o
tema, ao passo que na conferência de 1967 foi priorizada a conservação ex situ frente à
in situ e na de 1973 foram estabelecidos os critérios científicos de sua implantação.
Santilli (2009: 221) destaca que estas três conferências se deram em meio a intenso
debate, que dividia os cientistas entre os que defendiam a conservação ex situ como a
única capaz de proteger o material genético vegetal e, por outro lado, os que arguiam a
favor de outras formas paralelas de conservação. Em especial, dois renomados
cientistas que trabalhavam com melhoramento vegetal encabeçavam esta oposição,
respectivamente: o australiano Otton Frankel e a irlandesa Erna Bennett. Ambos foram
respons|veis pela consolidaç~o do termo “recurso fitogenético” nos anos 1960 para
enfatizar a importância da conservação do material genético vegetal contra a erosão
genética e a favor da segurança alimentar para toda a humanidade.
Otto Frankel, agrônomo que ganhou notoriedade internacional a partir de suas
pesquisas que visavam o melhoramento genético do trigo, foi o principal defensor das
políticas de conservação da modalidade ex situ. Sua atenção era voltada para o
melhoramento realizado pelos cientistas e não pelas comunidades locais. Frankel
acreditava que apenas nos bancos de germoplasma o material genético estaria
devidamente seguro e protegido contra perdas sociais e alterações climáticas, para
serem utilizados nas pesquisas de melhoramento. Tomando como referência os
interesses dos melhoristas alocados em grandes instituições de pesquisa, a tese por ele
sustentada baseava-se no argumento segundo o qual os recursos fitogenéticos
“deveriam ser mantidos em condições controladas, pois se fossem deixados nos seus
ambientes naturais (in situ), estariam expostos a contínuas mudanças e à erosão
genética” (Santilli, 2009: 221). Ainda que n~o excluísse a conservaç~o in situ, Otton
Frankel via as transformações existentes nos “ambiente naturais” como nocivas para a
38
manutenção dos estoques fitogenéticos, o que acarretaria em riscos imprevisíveis tanto
para a preservação das variedades em extinção quanto para a criação de novas
cultivares14.
Por outro lado, Erna Bennett, pesquisadora que coordenou a Unidade de
Recursos Genéticos e Ecologia de Plantas Cultivadas da FAO entre os anos de 1960 e
1970, não menosprezava a importância da conservação ex situ. Porém, achava que esta
era insuficiente para manter a capacidade de adaptação co-evolutiva das variedades
locais. Segundo Santilli (2009: 222), “Erna chegou a afirmar que a forma ‘est|tica’ de se
conservar sementes, armazenando-as em refrigeradores, se baseava em conceitos
museológicos”, de modo que o objetivo da conservaç~o deveria ser menos o
congelamento de um momento específico dos fluxos evolutivos e mais a conservação
das próprias transformações que produzem a agrobiodiversidade.
Apesar das divergências, Otto Frankel e Erna Bennett contribuíram
conjuntamente nos fóruns da FAO para a consolidação das modalidades de
conservação da biodiversidade agrícola. O livro por eles editado a quatro mãos, Genetic
resources in plants: their exploration and conservation, não apenas se tornou referência
entre os especialistas em conservação global dos recursos fitogenéticos, como foi de
fundamental importância para a inclusão desta agenda na 1ª Conferencia das Nações
Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada em Estocolmo
em 1972. Esta década também marca a criação do Grupo Consultivo para a Pesquisa
Agrícola Internacional (CGIAR), objetivando aprimorar a conservação in situ e ex situ
dos recursos fitogenéticos.
A modalidade ex situ foi alvo de uma série de críticas a partir do final dos anos
80 e início dos anos 90. Além de alegarem que os bancos de germoplasma eram
orientados pelos interesses das grandes corporações sementeiras, que promoviam a
dependência dos países em desenvolvimento aos pacotes tecnológicos alheios à
14
De acordo com sua definição legal, presente na Lei de Proteção dos Cultivares (1997), um cultivar se
define como “a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente
distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação
própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de
espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e
acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos” (cf. Araújo, 2010: 23).
39
soberania alimentar dos agricultores locais, os próprios bancos germoplasma passaram
a ser recintos da erosão genética. Em virtude de suas instalações caras e precárias, a
fertilidade do material genético coletado não estava sendo devidamente assegurada.
Duas séries de eventos marcam esta virada. A primeira delas são os “Di|logos de
Keystone”, realizados em 1988 em Keystone (EUA), em 1990 em Mandras (Índia) e em
1991 em Oslo (Noruega), que enfatizaram a proposição de que a conservação dos
recursos fitogenéticos deveria ser mantida tanto nos bancos de germoplasma quanto
nos nichos ecológicos, marcando a complementaridade das estratégias de conservação
ex situ e in situ (Santilli, 2009: 227). Outro evento de relevância foi a Conferência
Técnica Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos, realizada em Leipzig
(Alemanhã) no ano de 1996. Além de corroborar com os Diálogos de Keystone, a
Conferência de Leipzig marcou necessidade de se conservar o fluxo genético entre as
plantas domesticadas e seus ancestrais selvagens, o que é efetuado sob a alçada dos
agricultores locais em seus experimentos, trocas e manipulações associadas ao
componente “cultural” da agricultura. Seguindo as orientações da Convenç~o da
Diversidade Biológica (CDB), a Conferência de Leipzig colocou em primeiro plano o
papel das populações locais na conservação e diversificação das variedades cultivadas.
Conforme já alertara Erna Bennett na década de 70, a comunidade científica
passou a se dedicar mais às pesquisas que vinculam de maneira interativa os
componentes
genotípicos,
fenotípicos
e
ambientais
na
produção
da
agrobiodiversidade. A conservação in situ não apenas passa a fazer parte das agendas
de pesquisa como também, cada vez mais, é enfatizado que os processos evolutivos das
plantas cultivadas envolvem tanto os componentes tidos como genéticos como os
sócio-culturais, fazendo emergir a modalidade de conservação em seus próprios
campos de cultivo. Trata-se de um movimento em direção às orientações voltadas para
a conservação on farm – ou seja, nos próprios locais onde a diversidade é produzida –
em paralelo com as políticas de conservação ex situ – em coleções e bancos de
germoplasma depositados nas instituições de pesquisa.
Esta reorientação é relevante em pelos menos três pontos. Em primeiro lugar, é
significativo o fato de que com a emergência das modalidades de conservação on farm
os recursos genéticos associados à alimentação e agricultura passam a ser tratados
40
como componentes transformativos e não unidades discretas isoladas. Isto é, a
transformação ela mesma passa a ser valorizada e por isso deve ser conservada. Em
segundo, os processos (em oposição aos produtos) e os manejos (em oposição à
natureza “intocada”) passam a ocupar o primeiro plano da cena conservacionista,
indicando que as interações oriundas do engajamento entre humanos, vegetais e
animais são constitutivas e não deletérias da biodiversidade doméstica (Digard, 2012).
Em terceiro, por fim, as populações locais, antes encaradas como destruidoras da
biodiversidade, passam a ser vistas como responsáveis não apenas pela conservação,
mas também pela produção da alta diversidade agrícola e mesmo florestal (Balée, 2008,
1993; Posey, 1985). Como consequência direta desta reorientação, os saberes e práticas
de manejo das populações indígenas e tradicionais passam a ser valorizados sob a
rubrica dos “traditional ecological knowledge” (TEK) ou, no contexto lusófono, os
“conhecimentos tradicionais associados { biodiversidade” (CTA). (Nadasdy, 2003;
Carneiro da Cunha, 2012, 2009a, 2009b; Little, 2010; Ingold, 2004).
A legislação dos recursos fitogenéticos
Assinada por 157 países, a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) foi o
primeiro instrumento jurídico de abrangência internacional criado para proteger a
biodiversidade e regulamentar o acesso aos TEK ou CTA. Fruto da Eco-92, a CDB é tida
como o marco a partir do qual os recursos genéticos deixaram de ser encarados como
“patrimônio da humanidade” e passaram a ser concebidos como “recursos” de domínio
estatal dos países assinantes da Convenção. A rigor, fica reconhecido desde então o
direito soberano dos Estados de criarem suas próprias legislações nacionais para
regulamentar o acesso aos recursos genéticos, a proteção dos conhecimentos
tradicionais associados e a repartição de benefícios dos produtos gerados pelas
atividades de bioprospecção.
No âmbito interestatal, a principal contribuição da CDB para os países
megadiversos15 foi a soberania em relação a seus recursos naturais, que deixaram de ser
15
Cunhado em 1998, por Russell Mittermeier, à época presidente da ONG ambiental Conservations
International, o termo “megabiodiversidade” indica os países com maior diversidade biológica. Desde
então, o termo vem sendo amplamente utilizado no direito internacional do meio ambiente.
41
tratados como de domínio da humanidade e passaram a ficar sob o resguardo da
legislação interna do país (Moran, 2001). Por sua vez, os direitos dos povos indígenas e
das comunidades tradicionais passaram a ser resguardados por dois artigos. O artigo 8j
prevê a salvaguarda dos direitos de propriedade intelectual coletiva indígena ou
tradicional, com a aprovação da comunidade e eventual repartição dos benefícios
adquiridos quando a comercialização seja visada. Já o artigo 10c sensibiliza para que o
incentivo à utilização costumeira dos recursos biológicos se dê em coerência com as
práticas tradicionais e culturais (Santilli, 2005: 200).
Em relaç~o aos “pontos fr|geis” apontados no documento, uma das críticas mais
contundentes diz respeito ao seu caráter voluntário (Belfort, 2006). Ou seja, à falta de
mecanismos jurídicos que obriguem os países signatários a cumprirem os
compromissos assumidos com a ratificação da Convenção. Essa característica seria
responsável pela baixa efetividade da mesma frente às relações envolvendo os países
industrializados e os países detentores de biodiversidade. Um equívoco indesejável,
visto que, como lembra Santilli (2005: 44), o principal objetivo da CBD é justamente
tentar equilibrar estas relações, dado as visíveis desigualdades econômicas entre os
países signatários.
Outro conflito relacionado à CDB diz respeito às mediações entre Estados
nacionais e povos indígenas e comunidades locais – tendo em vista que parte
considerável dos países signatários da convenção não possui marco legal de proteção
dos direitos indígenas e das comunidades tradicionais. Toda a abundância de materiais
da biodiversidade, além da sua preservação e conservação, encontra-se associada às
diversas formas de existência sociais e ambientais presentes nesses países. Assim, as
partes até então subalternizadas pelo capitalismo biotecnológico passam a disputar
equidade política a partir de novos conceitos tais como os CTA e os “serviços
ambientais” de preservaç~o e conservaç~o da biodiversidade, sem os quais o acesso {
biodiversidade agrícola e selvagem tornar-se-ia dificultado.
No tocante ao recorte da agrobiodiversidade, vale sublinhar que a soberania
nacional firmada pela Convenção se restringe às espécies nativas de cada país, ou seja,
as espécies tidas como exógenas, ainda que cultivadas e manejadas em território
nacional, não são incluídas no escopo da legislação. Por exemplo: a soja, o trigo e o
arroz, por mais que estejam dentre as espécies agrícolas de maior área plantada no
42
território brasileiro, estão fora do alcance da aplicação da CDB no Brasil, pois seus
“países de origem” s~o outros. Em seu Art. 2, a Convenç~o define os “países de origem”
de recursos genéticos como sendo aqueles que possuem o material referido em
condições in situ, isto é,
“as condições em que recursos genéticos existem em ecossistemas e
habitats naturais e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos
meios onde tenham desenvolvido suas “propriedades características”.
Com efeito, para identificar o país de origem dos recursos fitogenéticos, a
Convenção recorre à exigência de se estabelecer o país no qual a variedade agrícola
tenha desenvolvido suas “propriedades características” que as distinga de seus
ancestrais selvagens. Esta definição das condições in situ traz ainda ao menos dois
elementos importantes para a nossa discussão referente à agrobiodiversidade. Em
primeiro lugar, há um tratamento indistinto entre os conceitos de cultivo e
domesticação, junção esta tornada mais explícita em outro inciso do artigo onde se lê
que:
“‘Espécie domesticada ou cultivada’ significa espécie em cujo processo
de evoluç~o influiu o ser humano para atender suas necessidades”.
Ou seja, os conceitos de domesticação e cultivo são encarados como sinônimos.
Não obstante, uma vez acionados para condizerem com o desenvolvimento das
“propriedades características”, ambos os termos acabam por se referirem antes ao
conceito evolutivo de domesticação (i.e concepção de especiação tomada a partir da
mudança na frequência de alelos) do que apenas às relações concretas de cultivo que
não acarretam alterações genotípicas. Isto é, as “propriedades” das plantas cultivadas
são definidas a partir da estabilização dos componentes genéticos das espécies16.
Em segundo lugar, ao definir as condições in situ das espécies domésticas e
cultivadas como sendo os ecossistemas onde estas desenvolveram suas “propriedades
características”, a CDB marca um corte temporal. De um lado, o tempo evolutivo que
cria a espécie dotando-a de seu “país de origem”, por outro, o tempo histórico onde as
A gramática que abarca as noções de “domesticaç~o” e “propriedades características” ser| explorada
mais à frente, ainda neste capítulo.
16
43
ações oriundas dos atos de cultivo não alteram o patrimônio genético da espécie de
modo a torná-la “singular”. Para todos os efeitos, os países de origem dos recursos
fitogenéticos são concebidos como aqueles nos quais as variedades agrícolas tenham
desenvolvido suas propriedades características. Nessa perspectiva, o domínio das
espécies domesticadas e cultivadas (aqui, mais uma vez, como termos equivalentes) é
disposto sob a guarda dos seus “países de origem”, isto é, aqueles que possuem os
recursos genéticos em condições in situ.
Entretanto, como lembra Santilli (2009: 237), a identificaç~o do “país de origem”
das espécies cultivadas é uma tarefa de alta complexidade e não isenta de
arbitrariedades. Afinal, por se tratarem de efeitos de migrações, intercâmbios e
recombinações genéticas, as plantas cultivadas possuem uma história evolutiva avessa
{ linearidades dos esquemas filogenéticos, de modo que nem sempre o dito “país de
origem” das plantas cultivadas ser| o mesmo daquele no qual as mesmas
desenvolveram suas “propriedades características” que hoje interessam ao consumo
humano. Isto é, o que se entende por “desenvolvimento de propriedades
características” n~o se trataria de um corte temporal, mas sim de um continnum de
interação
gerativa
que
possibilita,
inclusive,
que
as
espécies
desenvolvam
características originais em locais distintos de seus “centros de origem”.
Os conceitos de “centros de origem” e “centros de diversidade” s~o de elevado
rendimento na literatura fitogeográfica, taxonômica e biossistemática (Walter &
Cavalcanti, 2005) e foge dos nossos objetivos empreender uma exegese aprofundada
dos mesmos17. Ainda assim, vale esclarecer que “centro de origem” é entendido
dedutivamente como região geográfica na qual uma nova forma fitogenética tenha se
desenvolvido a partir de outra pré-existente. Ao passo que o “centro de diversidade” é o
local onde se constata indutivamente o maior número de variedades de uma
determinada espécie.
O pioneiro dos estudos acerca dos “centros de origem” das plantas cultivadas foi
o botânico suíço Alphonse de Candolle. Em seu livro publicado em 1882, intitulado
Origem das plantas cultivadas, Candolle realizou um exaustivo levantamento da
distribuição dos parentes silvestres das plantas cultivadas, bem como de seus padrões
17
Para um maior aprofundamento destes conceitos, ver ainda o compêndio de Haudricourt & Hédin
(1987), intitulado L'Homme et les plantes cultivées.
44
de variação, almejando identificar as regiões de origem das plantas cultivadas a partir
de critérios arqueológicos, botânicos, históricos e linguísticos. Baseando-se nos
trabalhos de Candolle, nas décadas de 1910 a 1930 o agrônomo e geneticista russo
Nikolai Vavilov e seus colaboradores empreenderam o mais vasto trabalho de coleta de
plantas cultivadas no mundo, identificando a frequente correlação de muitos táxos até
então não relacionados (Walter & Cavalcanti, 2005: 65). Financiado pelo Instituto
Nacional de Plantas Nacional, da antiga União Soviética18, Vavilov e sua equipe
percorreram mais de 50 países da Ásia, Américas, África e Europa coletando por volta
de 50 mil amostras de materiais fitogenéticos. Desta pesquisa nasceram o que se
convencionou chamar como os “centros vavilovianos de origem das plantas
cultivadas”19.
A definição dos centros vavilovianos baseava-se na premissa segundo a qual o
centro de origem de uma determinada planta cultivada estaria localizado na região
com maior diversidade genética e com o maior número de parentes selvagens da
mesma. Além das pesquisas de Vavilov, talvez o trabalho de maior envergadura a
respeito dos centros de origens das plantas cultivadas é a obra Crops and man, escrita
em 1975 pelo agrônomo e geneticista norte-americano Jack Harlan. Partindo dos
trabalhos de Candolle e Vavilov, Harlan tentou demonstrar como nem sempre os
centros de origem das plantas cultivadas coincidem com os centros de diversidade das
mesmas, pois cada espécie apresentaria padrões de variação e evolução distintos em
função das correlações entre os mecanismos internos de especiação e os mecanismos
externos de evolução associados aos grupos humanos cultivadores. Esta breve
digress~o a respeito do conceito de “centros de origem” das plantas cultivadas vem, em
continuidade com Santilli (2009: 241), para demonstrar a fragilidade dos termos
utilizados pela CDB no tocante à ânsia por definir uma determinada região na qual as
plantas cultivadas tenham desenvolvido suas “propriedades características”.
Outro ponto que merece ser destacado no tocante à agrobiodiversidade sob a
lógica dos recursos é o design contratual previsto pela CDB, entre “provedores” e
Situado na cidade de S~o Petersburgo, na Rússia, desde 1965 passou a se chamar “Instituto Vavilov”.
Maiores informações são encontradas no sítio eletrônico da instituição: http://www.vir.nw.ru/
19
A saber: China; Índia e Indo-Malásia; Ásia Central; Oriente Próximo; Mediterrâneo; Etiópia; Sul do
México e América Central; América do Sul (Peru, Equador e Bolívia; o arquipélago de Chiloé no sul do
Chile, e a Região do Sul do Brasil-Paraguai) (Santilli, 2009: 239)
18
45
“usu|rios” dos recursos fitogenéticos. Neste quesito vale notar que o mecanismo de
troca bilateral fora elaborado tendo em vista principalmente a regulamentação do
acesso aos recursos genéticos de espécies selvagens e não cultivadas, dado que os
conhecimentos e as pr|ticas associadas {s segundas s~o muita das vezes de “domínio”
partilhado por diversas populações. Santilli (2009: 234) esclarece que inicialmente fora
cogitado tratar os recursos fitogenéticos das espécies cultivadas em um protocolo
anexo à CDB, no entanto esta ideia teria sido abandonada. Além disso, a Decisão II/15
da 2ª Conferencia das Partes da CDB, realizada em 1995 na Indonésia, reconheceu a
“natureza especial da biodiversidade agrícola, suas características distintivas e
problemas, que exigem soluções distintas”, culminando no reconhecimento da
necessidade de um regime sui generis de repartição de benefícios para os recursos
fitogenéticos da alimentação e agricultura (2009: 236)20. Não obstante, a aplicação
prática da CDB têm estimulado a comodificação das plantas cultivadas e dos
conhecimentos tradicionais associados, gerando um descompasso entre a lógica
jurídica dos recursos fitogenéticos e as lógicas locais de concepção dos processos de
feitura das plantas cultivadas e circulação dos saberes a elas associados (Emperaire,
2005: 41; Carneiro da Cunha, 2012, 2009a, 2009b).
Diante destas especificidades, a legislação balizada no regime de contratos
bilaterais deve lidar com pelo menos dois dilemas criados pelo seu próprio marco
lógico: (a) como estabilizar as transformações constitutivas das plantas cultivadas de
modo a definir suas “propriedades características” e seus “países de origem”? (b) uma vez
estabilizadas as plantas, como estabilizar os coletivos humanos que com elas interagem
para então enquadrá-los sob a rubrica do conceito de “comunidade local” e regulamentar
o acesso aos “conhecimentos tradicionais”? São justamente as tentativas de solucionar
estas questões que conduziram a nossa etnografia dos casos selecionados no Conselho
de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN).
20
De fato é o que ocorreu a partir do Tratado Internacional sobre os Recursos fitogenéticos para a
Alimentação e Agricultura (TIRFAA), adotado na 31ª Reunião da Conferência da FAO, em Roma. Além
de fortalecer a conservação e uso sustentável dos recursos fitogenéticos, como já estipulado pela CDB, o
tratado inova ao criar um regime facilitado de trocas multilaterais de recursos utilizados para
alimentação e agricultura no âmbito da pesquisa. Assim, almeja-se que sejam facilitadas as pesquisas
(não a bioprospecção, que segue regulamentada pela CDB) levadas a cabo por centros de melhoramento
genético. O Brasil ratificou a TIRFAA em 2006, mas ainda hoje segue organizando seus bancos de
germoplasma
para
a
facilitação
do
acesso.
Maiores
informações
em
http://tirfaa.cenargen.embrapa.br/tirfaa/
46
O Brasil ratificou a CDB em 1994 e a promulgou em 16 de março de 1998,
mediante o Decreto Presidencial nº 2.519 de 16 de março de 1998. Depois que a CDB foi
ratificada pelo Congresso Nacional, iniciou-se um longo e vagaroso processo de
regularização da convenção no âmbito nacional. De 1995 a 2000, passaram por
votações três projetos de lei que visavam regularizar o acesso ao patrimônio genético,
sendo eles alvo de inúmeros debates (Bensusan, 2003). As controvérsias acerca da
elaboração do projeto de lei se estabilizaram provisoriamente quando, em junho de
2000, o Governo Federal editou uma Medida Provisória para regularizar o acesso ao
patrimônio genético (PG) e aos conhecimentos tradicionais associados (CTA).
Sondava-se que a repentina edição da Medida Provisória nº 2.052, de 29 de junho de
2000, teria a finalidade de legitimar um contrato de exploração de recursos genéticos
na Amazônia Legal entre a organização social Bioamazônia e a empresa multinacional
Novartis Pharma (Santos, 2004). Esse contrato fora assinado em 29 de maio de 2000,
apenas dois meses antes da medida, numa coincidência que suscitou suspeita (Borges,
2002: 42-43).
Por não ter incorporado as discussões que a precederam, a MP nº 2.052/2000 foi
alvo de inúmeras críticas por parte dos parlamentares que estavam envolvidos na
elaboração do projeto de lei. Entre estes, a então senadora Marina Silva, que chegou a
classificar a medida como sendo uma “legispirataria” (Borges, 2002: 43), denunciando a
fraqueza do poder público frente às pressões do setor biotecnológico. Após essa
primeira edição da Medida Provisória do ano de 2000 seu texto foi reavaliado e
rediscutido diversas vezes; os debates amadureceram e alguns pontos frágeis foram
corrigidos, culminando na última edição provisório-permanente, em agosto de 2001.
Desde então, a Convenção da Diversidade Biológica é regulamentada no Brasil pela MP
nº 2186-16/2001, que dispõe sobre o acesso ao conhecimento tradicional associado, a
repartição dos benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua
conservação e utilização.
Embora se aplique tanto à biodiversidade selvagem, representada, sobretudo,
pelos fitoterápicos, quanto à agrobiodiversidade, ou diversidade agrícola, a MP
também não reconhece as singularidades da biodiversidade agrícola. Ademais, como já
dito para o caso da CDB, não estabelece uma separação explícita entre os conceitos de
cultivo e domesticação. Em seu Art. 7 (IX), a espécie domesticada é definida como:
47
“aquela em cujo processo de evoluç~o influiu o ser humano para atender
{s suas necessidades”.
Ora, em acordo com a biologia neo-darwinianista que marca o tom das
discussões sobre domesticaç~o, apenas a “influência humana” na evoluç~o das espécies
não é suficiente para qualificá-las como domesticadas, pois apenas ocupam esta
categoria do pensamento evolutivo moderno as plantas “cuja adaptaç~o ecológica fora
reduzida a tal ponto de somente poder sobreviver em paisagens criadas por humanos”
(Clement et al, 2009: 17). Com efeito, assim como a CDB, a MP não se atém de maneira
rígida a este conceito genético de domesticação, dando margem para discussões
quando de seu acionamento.
O DPG e o CGEN
Além de normatizar os conceitos e os tipos de acesso aos conhecimentos
tradicionais associados, a MP também estabelece o Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético (CGEN) como órgão responsável pelas políticas de gestão do patrimônio
genético nacional. Criado em abril de 2002, o Conselho é um órgão de caráter
deliberativo e normativo, instituído no âmbito do Ministério do Meio Ambiente pelo
artigo 10 da Medida Provisória nº 2.186-16 de 2001. Contando com uma reunião
ordinária mensal, o Conselho avalia os pedidos de bioprospecção ao patrimônio
genético nacional, bem como os requerimentos de acesso aos conhecimentos
tradicionais associados21.
O Conselho fora inicialmente chefiado pela Secretaria de Biodiversidade e
Florestas do Ministério do Meio Ambiente e composto apenas por representantes de
órgãos governamentais, com direito a voz e voto22. Em 2003, entretanto, entrou em
21
A partir do credenciamento do IBAMA para a emissão de autorizações de acesso ao patrimônio
genético para fins de pesquisa, bem como do credenciamento do IPHAN para emissão de autorizações
de acesso aos conhecimentos tradicionais também com a finalidade de pesquisa, o CGEN passou a se
centrar nas autorizações, de patrimônio genético e conhecimentos tradicionais, para fins de
bioprospecção e desenvolvimento tecnológico, isto é, casos que demandam o firmamento de contrato e
repartição de benefícios econômicos.
22
As cadeiras que compõem o Conselho foram regulamentadas pelo Decreto Executivo nº 3.495-2001, a
saber: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC); Instituto Brasileiro do
48
vigor o Decreto 4.946/2003, que tornou possível a participação de entidades nãogovernamentais interessadas (como as empresas de biotecnologia, instituições de
pesquisa e associações de comunidades tradicionais), estas apenas com direito de voz e
não de voto.
Na prática, quando se diz que a atuação do CGEN é tanto “deliberativa” quanto
“normativa”, isso significa que o Conselho tanto executa a MP nº 2.186-16/2001,
deliberando quais os tipos de pesquisas que devem ser encaminhadas ao Conselho,
bem como sob quais condições estas podem ou não acessar PG e CTA, como também
confecciona minutas e resoluções para esclarecer conceitos obscuros e resolver
impasses interpretativos da legislação. Tal atuação se dá a partir de dois fóruns de
discussão: o Plenário e as Câmaras Temáticas.
O Plenário é o espaço onde os Conselheiros deliberam sobre as solicitações de
acesso ao patrimônio genético da biodiversidade nacional e aos conhecimentos
tradicionais associados. De início eles avaliam se a solicitação se enquadra no escopo
da lei e, em seguida, decidem se cumprem de maneira detalhada à anuência prévia e,
no caso de pesquisas com finalidades econômicas, se atendem aos requisitos de
repartição de benefícios. Nas reuniões ordinárias, que ocorrem mensalmente no
Plenário, qualquer conselheiro tem a prerrogativa de fazer cumprir o caráter normativo
do Conselho. Isto é, de elaborar Ante-Projetos de lei, Resoluções, orientações técnicas
e minutas de Decreto.
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do
Rio de Janeiro (JBRJ); Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Instituto
Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA); Ministério do Meio Ambiente (MMA); Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação (MCTI); Ministério da Saúde (MS); Ministério da Justiça (MJ); Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA); Ministério da Defesa (MD); Ministério da Cultura
(MinC); Ministério das Relações Exteriores (MRE); Instituto Evandro Chagas (IEC); Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA); Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ); Fundação Nacional do
Índio (FUNAI); Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e Fundação Cultural Palmares (FCP).
49
23
Figura 1 Organograma do CGEN
23
Agradeço a Hugo Loss pela elaboração deste quadro.
50
O Plenário do CGEN é, portanto, uma instância normativa e deliberativa que se
reúne mensalmente no intuito de deliberar sobre casos que envolvam acesso a PG e
CTA. Baseando-se no artigo 6º do Regimento Interno do Conselho,24 as reuniões do
Plenário são públicas e ordinárias, exigindo apenas que os interessados agendem sua
presença com uma semana de antecedência. As pautas das reuniões são acessíveis
através do sitio eletrônico da instituição, que indica tanto o conteúdo a ser debatido
quanto a ordem das votações. Conforme lembra Loss (2013: 33), em sua etnografia
sobre a estruturação e o funcionamento do Conselho, é comum que os conselheiros
alterem a ordem das deliberações, bem como incluam outros pontos de pauta,
mediante votação, sempre seguindo a prerrogativa adotada de que as deliberações só
ocorram quanto se atinge maioria absoluta.
A etnografia empreendida por Loss (2013: 28) sugere que há ainda uma segunda
forma de relação entres as funções deliberativas e normativas. Trata-se da correlação
entre a discussão dos casos concretos no Plenário e a sedimentação do que Loss chama
de “coerência interna” no Conselho, isto é, “(...) na medida em que as decisões se
repetem, cria-se um padrão de comportamento do Conselho observável pelos
requerentes”.
Estes padrões, por sua vez, criam os precedentes que devem ser
respeitados no intuito de se evitar a acusação de tratamento diferenciado dos
requerentes. Portanto, além de subsidiar a atuação normativa (através das orientações
técnicas, minutas e resoluções) as discussões que ocorrem no Plenário também são
promotoras dos consensos oficiosos. De modo que as deliberações também produzem
o que Loss chama de “naturalizaç~o de comportamento” (idem) em torno da
estabilização dos modos de se classificar as tensões presentes no quadro normativo.
Quando aprovadas, as orientações técnicas e resoluções são imediatamente
incorporadas no léxico jurídico dos conselheiros, ao passo que as minutas de Decreto e
os Anteprojetos de Lei são encaminhados para a Secretaria Executiva do Ministério do
Meio Ambiente ou à própria Casa Civil para avaliação e encaminhamento superior. A
função deliberativa, por sua vez, consiste primeiramente em decidir pelo
enquadramento das solicitações de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento
24
De acordo com o mesmo, se lê que “o Plenário, órgão superior de deliberação do Conselho, reunir-se-á
em caráter ordinário, uma vez por mês, conforme calendário aprovado e, extraordinariamente, a
qualquer momento mediante convocação escrita de seu Presidente, ou da maioria absoluta de seus
membros, acompanhada de pauta justificada”.
51
tradicional no escopo da MP e, em seguida, julgar se as mesmas atendem aos requisitos
de anuência prévia. No caso de pesquisas com finalidades econômicas, deve-se ainda
ser estipulada a repartição de benefícios. Vale notar que, em geral, são dois os tipos de
requerentes no CGEN: as empresas que realizam bioprespecção com finalidade
econômica e os pesquisadores acadêmicos ou vinculados a institutos de pesquisa que
visam acesso sem finalidade econômica.
O Plen|rio é arquitetado em uma mesa no formato de “U” e nele se assentam os
representantes das instituições com cadeira no Conselho. Na ponta da mesa se
posiciona o presidente do Conselho (vinculado ao MMA), ao seu lado os conselheiros e
{ sua frente uma tela de projeç~o de imagens na qual é projetada a “Ordem do Dia”,
bem como os estudos e pareceres técnicos acionados para a elucidação dos casos. No
entorno da mesa se sentam os visitantes, os especialistas, as partes interessadas
(advogados e representantes de empresas), os funcionário técnicos do MMA e os
demais membros da “sociedade civil”. Enquanto os conselheiros e convidados
permanentes possuem direito de voz e voto, os representantes da sociedade civil, por
sua vez se limitam ao uso da palavra para “exposição sucinta da matéria de seu
interesse” (CGEN, 2002). Para tal feito, afirma Loss (2013: 31), “o processo do requerente
tem de estar em pauta, ele deve encaminhar por escrito ao Secretário Executivo do
CGEN a vontade de se expressar oralmente até antes de ser feita a relatoria do processo
em Plen|rio e o requerente ter| até cinco minutos para se expressar”.
Para os casos nos quais s~o deflagradas controvérsias de ordem “técnica” o
Conselho ainda dispõe da prerrogativa de convidar os “especialistas” para subsidiar nas
discussões. Deste modo, os membros da sociedade civil titulados e/ou dotados de
expertise nas questões em discussão podem ser acionados pelos conselheiros nos
momentos de conveniência. Em se tratando da agrobiodiversidade, onde há demanda
pela estabilizaç~o das “propriedades características” das plantas cultivadas e a
circunscriç~o das “comunidades locais” detentoras, correntemente os especialistas são
acionados. Especificamente, por deixar em aberto se as variedades agrícolas de uso
disseminado por diversas “comunidades locais” devem ser tomadas como contendo os
ditos “conhecimentos tradicionais” associados (ou intrínsecos) ao seu PG e, por sua
vez, se necessitam de repartição de benefícios quando de seu acesso para finalidades de
bioprospecção, a legislação dá grande abertura para a participação de pesquisadores
52
vinculados tanto aos estudos de filogenia vegetal quanto da área de antropologia. Não
obstante, ainda que a normativa que regulamenta o Conselho não dê conta deste
impasse, na prática os Conselheiros não se abstém de tentar resolvê-lo; para isso,
também recorrem a disputas de ordem não menos política do que epistemológica,
explicitando seus modos de classificação fundados no pensamento evolutivo moderno
e recorrendo a analogias externas aos humanos e às plantas cultivadas no intuito de se
delimitar “linhas de corte”, como se costuma dizer, seja para os humanos, seja para os
vegetais.
Já as Câmaras Temáticas (CT) são os locais onde se ajustam os conceitos que
causam controvérsias nas reuniões do Plenário. As CT são previstas art. 10, § 2º, da
Medida Provisória 2.186-16/2001 e sua regulamentação se deu mediante o Regimento
Interno do Conselho. O CGEN conta com cinco Câmaras Temáticas para subsidiar as
discussões do Plen|rio tidas como de car|ter “técnico”; s~o as seguintes: 1) C}mara
Temática dos Conhecimentos Tradicionais Associados, 2) Câmara Temática da
Transferência de Tecnologia, 3) Câmara Temática dos Procedimentos Administrativos,
4) Câmara Temática de Repartição de Benefícios, e 5) Câmara Temática do Patrimônio
Genético Mantido em Condições ex situ.
As Câmaras são regidas por um Termo de Referência a partir do qual se
estabelece o coordenador e os componentes fixos oriundos do Plenário. Não obstante,
sempre que desejado, outros membros do Plenário também podem solicitar seu o
credenciamento
em
uma
das
Câmaras.
Nelas,
são
elaborados
estudos
e
aprofundamentos de questões provenientes do (ou a ser encaminhados ao) Plenário.
Em geral, os temas encaminhados às CT são de ordem mais ampla e que fogem ao
escopo dos casos concretos analisados no Plenário. Outra diferença significativa é que,
enquanto o Plenário conta apenas com representantes de instituições do Estado e com
convidados permanentes apenas com poder de voz, as CT são abertas à participação de
qualquer pessoa da sociedade civil, a saber:
“grupos empresariais interessados direta ou indiretamente nas
atividades do Cgen (como empresas de bioprospecção ou empresas de
advocacia), representantes de comunidades e lideranças de movimentos
sociais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos e ONGs), especialistas
(juristas, cientistas sociais e biólogos) e outros representantes ou
53
funcionários de instituições da administração pública que não fazem
parte do Cgen nem como conselheiros nem como convidados
permanentes. (Loss, 2013: 47)
As Câmaras s~o, portanto, “abertas” { participaç~o ativa de público externo,
incluindo aqui tanto “especialistas” ou acadêmicos interessados em contribuir com as
temáticas propostas, como também representantes de povos e comunidades indígenas
e tradicionais, numa tentativa de “aproximar”, como se costuma dizer, o conhecimento
científico e os conhecimentos tradicionais. Como afirma Soares da Silveira (2010), em
sua etnografia que busca analisar as formas de traduç~o da “natureza” nas arenas do
CGEN, as Câmaras Tem|ticas foram construídas com o intuito de “estabelecer as
diretrizes e os procedimentos que deveriam orientar a concessão de autorizações pelo
CGEN” (2010: 11). Acompanhando os caminhos que levaram { criaç~o da C}mara
Temática dos Conhecimentos Tradicionais, Soares da Silveira (2010) afirma ainda que:
Foram convidados especialistas de outras áreas - como direito, economia
e ecologia - para auxiliar no esclarecimento de noções complexas que
permeavam as discussões em torno de diretrizes a serem inscritas em
deliberações e resoluções. Esses documentos seriam utilizados mais tarde
por técnicos do DPG, membros do Comitê de Avaliação de Processos e
pelos próprios Conselheiros para decidir sobre a concessão ou não de
autorizações de acesso. (2010: 13, grifo meu)
Portanto, o car|ter mais “técnico” das c}maras tem|ticas é construído a partir
da mobilizaç~o de “especialistas” das tem|ticas em pauta. Neste sentido, o discurso
oficial de divulgação pretende apresentá-las como sendo ao mesmo tempo mais
“abertas” – pois permitem a fala (não apenas a presença) de convidados permanentes e
a participação ativa de qualquer instituição civil – e mais “técnicas”, em oposiç~o ao
car|ter mais “fechado” e “político” das discussões do Plen|rio.
54
Estabilizando produtos da agrobiodiversidade
A Câmara Temática dos Conhecimentos Tradicionais Associados (CTCTA) é a
respons|vel por tratar dos temas pertinentes { proteç~o dos direitos das “comunidades
locais” e “populações indígenas” sobre os CTA. Além de ser composta por dezoito
membros Conselheiros, titulares ou suplentes, representantes de instituições
governamentais e não-governamentais 25, a Câmara ainda conta com a participação de
“especialistas” convidados para debater temas dos quais tenham expertise e de
representantes das comunidades e de setores da sociedade civil que possuam relações
com as temáticas debatidas. No sítio eletrônico do CGEN, os seguintes tópicos são
elencados como sendo de competência desta Câmara:
a) elaborar e encaminhar ao Plenário do Conselho propostas de normas e procedimentos
relativos, sobretudo, ao capítulo III - da Proteção ao Conhecimento Tradicional
Associado da MP n.º 2.186-16, e outros artigos relacionados ao tema foco da Câmara;
b) relatar e submeter à aprovação do Plenário do Conselho consulta que lhe for
encaminhada a respeito da proteção ao acesso e à remessa ao conhecimento tradicional
associado e, subsidiariamente, da repartição de benefícios;
c) convidar especialistas para assessorá-la em assuntos relativos à proteção ao
conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios;
d) promover consultas e debates com os detentores do conhecimento tradicional associado.
Em um total de trinta reuniões da CTCTA, realizadas entre os anos de 2002 e
2006, nos são especialmente pertinentes as reuniões de número 24, 25 e 26, realizadas
entre março e agosto de 2005, nas quais foram debatidas e (provisoriamente)
estabelecidas as fronteiras e os domínios que separam os conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade daqueles associados à agrobiodiversidade e às plantas
cultivadas. Estas três reuniões têm a serventia de nos permitir constatar que os limites
e as relevâncias das relações entre humanos e plantas cultivadas não se restringem à
conceituação oficial estipulada pela MP. Ao contrário, trata-se, antes, da constante
25
As instituições representadas na CTCTA são: MDIC, MJ, INPA, MinC, MMA, MCT, MAPA, MS, MPF,
ISA, CEBDS, FCP, FUNAI, EMBRAPA, CNPq, IBAMA e INP
55
atualização de uma série de tensões constitutivas da própria noção de CTA, a saber: de
que forma podemos delimitá-los? Como estabelecer seus “detentores”? E, por fim, em
que medida o manejo desenvolvido por comunidades indígenas e locais podem ser
concebidos como atos de projeção dos conhecimentos tradicionais na própria
materialidade das espécies?
a) Conhecimento intrínseco e Conhecimento associado
As três reuniões selecionadas tiveram como foco as discussões acerca da
abrangência e delimitação do conceito de CTA referente às variedades agrícolas
manejadas por populações indígenas e comunidades locais. Em especial, interessava
aos participantes responder se as espécies não selvagens, como o milho e a mandioca,
possuem ou n~o CTA “intrínsecos” { sua própria subst}ncia:
“A discuss~o inicialmente se ateve {s questões conceituais, retomando
temas já discutidos anteriormente na Câmara, especialmente, quanto à
abrangência do conceito de conhecimento tradicional associado. Neste
sentido, um dos pontos de grande polêmica na reunião foi a questão das
espécies alimentares providas por comunidades indígenas ou locais,
como o milho e a mandioca, por exemplo, conterem ou não
conhecimentos associados intrínsecos” (CGEN, 2005: 1, grifo meu).
Isto é, seriam as “espécies alimentares como o milho e a mandioca” um fato
biológico, associado à co-evolução genética e cultural da linhagem hominídea, cujos
“conhecimentos tradicionais” estariam, portanto, associados { própria Evolução
humana? Ou, ao contrário, as mesmas deveriam ser abordadas como artefatos
impregnados de conhecimentos associados a grupos específicos e, assim, passiveis de
repartição de benefícios quando de seu acesso por pesquisadores ou empresas de
biotecnologia? Em outras palavras: seria possível depurar e circunscrever as formas
“culturais” que informam a matéria “natural” das espécies agrícolas? Para responder
tais questões, a Câmara contou com a participação de representantes do Estado –
polarizados, sobretudo, entre as posições vinculadas à agroindústria (Embrapa e
MAPA) e a ala conservacionista (MMA e IBAMA) –, representantes de organizações
56
não-governamentais, especialistas e lideranças indígenas. Em meios aos debates
ocorridos nestas três reuniões, o conceito de “domesticaç~o” foi muito acionado. Seja
para legitimar o reconhecimento da contribuição intelectual das populações indígenas
e tradicionais, seja, pelo contrário, para dispor o domínio das plantas domesticadas sob
a posse da humanidade em geral.
Mesmo reconhecendo a importância das populações indígenas e tradicionais na
domesticação de variedades agrícolas, no que condiz à abrangência do conceito de
CTA:
“(...) alguns representantes do MAPA e EMBRAPA defenderam o
entendimento de que os conhecimentos tradicionais associados a
variedades e cultivares devem ser preservados, e estão sujeitos à
repartição de benefícios, independente da região de domesticação.
Porém, O MAPA tem o entendimento de que a domesticação de uma
espécie é inerente à atividade alimentar humana, vem ocorrendo a
milhares de anos e não se encaixa no conceito de conhecimento
tradicional associado” (CGEN, 2005: 2, grifo meu).
Nesta perspectiva, por assim dizer, universalizante, que atrela as plantas
domesticadas à humanidade em geral e n~o {s “comunidades locais” ou a coletividades
étnicas específicas, o conceito de CTA restringir-se-ia às situações nas quais forma e
matéria pudessem ser separadas. Em uma sentença, só poderia haver “associaç~o”
entre conhecimento e plantas domesticadas quanto os dois termos desta relação
fossem, antes, passíveis de isolamento. Caso contrário, se as espécies domesticadas
(entendidas aqui como aquelas cujo domínio abarca toda a humanidade) adentrassem
no escopo da repartição de benefícios prevista pela Convenção da Diversidade
Biológica:
“todos os povos do mundo teriam que ficar trocando royalties entre si,
por
todas
as
espécies
domesticadas
para
alimentação,
independentemente se haveria ou não conhecimento tradicional
associado” (CGEN, 2005: 2).
Neste sentido, opondo-se a uma possível troca generalizada, os representantes
do MAPA e da Embrapa argumentaram no sentido de encarar as espécies domesticadas
como “patrimônios da humanidade” – isto é, de domínio difuso (não particular) e
57
associadas à humanidade em geral (ao contrario de a grupos étnicos específicos) –
desde que “n~o tenham conhecimento tradicional incorporado” (idem). A expressão
“conhecimento tradicional incorporado” seria aqui condizente com o ato secund|rio de
dar forma a uma matéria previamente existente, seja ela “domesticada” ou n~o. Algo
que, segundo os representantes do MAPA e da EMBRAPA, não é necessariamente
encontrado nas espécies domesticadas (ainda que eventualmente o possa ser). A rigor,
diziam, a conservação ex situ do germoplasma das espécies domesticadas e o registro
dos CTA contemplariam não apenas os interesses dos grupos locais, mas também a
segurança alimentar de toda a população humana:
“Com esta vis~o, o MAPA considera as espécies alimentares
domesticadas como patrimônio da humanidade, desde que não tenham
conhecimento tradicional incorporado. Segundo os técnicos da
EMBRAPA, a conservação de amostras de variedades em condições ex
situ, bem como o registro dos conhecimentos tradicionais associados em
bases de dados é uma medida importante para a humanidade e para os
próprios povos indígenas e comunidades locais, do ponto de vista da
pesquisa e da alimentaç~o” (CGEN, 2005a: 2, grifo meu)
Ao adentrarmos nas atas confeccionadas na CTCTA podemos visualizar que por
mais que representantes de comunidades indígenas possam se manifestar nas
discussões, a gramática norteadora é predominantemente vinculada à cosmologia
evolutiva. O próprio acionamento da separaç~o entre os conceitos de “cultivo” e
“domesticaç~o” só é possível, como veremos adiante, dentro desta matriz de
pensamento. Frente a este descompasso epistêmico (ou seria ontológico?), os
representantes das comunidades indígenas e tradicionais estavam “surpresos”,
conforme registrado em ata (CGEN, 2005a: 3), com a falta de consenso entre os
“especialistas” e representantes governamentais. Mais surpresos ainda devem ter ficado
com a colocação do representante do MAPA quando este defendera a necessidade de
um “corte temporal” para se firmar as fronteiras da aplicaç~o do conceito de CTA:
“O representante do MAPA sugeriu que se adotasse tratamento
diferenciado para as variedades e cultivares com conhecimento
tradicional associado ainda em condições “in situ”. Considerou a
necessidade de estabelecer um corte temporal, uma vez que a
58
incorporação dos conhecimentos largamente difundidos à nossa cultura,
como o uso alimentar da mandioca, por exemplo, faz 500 anos”(CGEN,
2005a: 4).
Frente a este argumento, Daniel Munduruku, à época presidente do
Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI), chegou a afirmar
ironicamente que o argumento advogado pelo representante do MAPA estaria
sugerindo que “o que é meu é meu, o que seu é nosso” (CGEN, 2005a: 4). Indicava,
assim, suas insatisfações para com esta epistemologia política que buscava enquadrar
as espécies domesticadas por populações indígenas como sendo de domínio da
humanidade e apenas as cultivares melhoradas pelos cientistas, estáveis e homogêneas,
como passíveis de patenteamento e repartição de benefícios.
A explanação do representante do MAPA, contra a qual Daniel Munduruku
argumentou, visava conceituar a noção de CTA como sendo uma projeção de saber que
extrapolaria a materialidade das espécies agrícolas. Por exemplo: nessa linha de
raciocínio não seria a mandioca, ela mesma resultado de uma série de intervenções
humanas, portadora de conhecimentos tradicionais associados, mas apenas a
mandioca cultivada na região X, pela população Y, durante o período Z. Em outras
palavras, a relação entre CTA e plantas domesticadas não seria necessária, mas sim
contingente. Haveria CTA apenas entre aquelas variedades que, em consequência de
tipos específicos de cultivos, se tornaram singulares em comparação com suas
ancestrais selvagens e contemporâneas domesticadas. Já para o Daniel Munduruku, ao
contrário, o conhecimento tradicional acumulado ao longo de gerações estaria
materializado na própria espécie domesticada, de modo que caberia consentimento
prévio e repartição de benefício mesmo quando os laboratórios de pesquisa manipulam
estas espécies em condições ex situ.
Esse foi justamente um dos tópicos de maior relevância (e impasses) nessas três
reuniões da Câmara. Em virtude da longa duração de saberes e práticas de cultivo
atrelados à materialidade das plantas domesticadas deveriam elas serem concebidas
como “um caso em que h| conhecimentos tradicional intrínsecos ao patrimônio
genético?” (CGEN, 2005c: 1, grifo meu) Isto é, haveria ou n~o uma correspondência
imediata entre as formas de conhecimentos e a matéria conhecida? Ora, uma vez
sendo a separação entre forma e matéria condição de objetivação da individuação no
59
pensamento hilemórfico ocidental (Simondon, 1958: 37), a perspectiva levantada por
Daniel Munduruku estaria colocando em cheque a própria ordenação que informa a
metafísica científica operante no Conselho, qual seja: a de que um sujeito imune ao
mundo conhece (i.e dá forma a) objetos prontos e estabilizados (Ingold, 2013:5)
Na mesma direção apontada por Daniel Munduruku, os especialistas presentes,
dentre eles o antropólogo Paul Elliot Little (representante da ABA) e a etnobotânica
Laure Emperaire (especialista convidada), também argumentaram a favor do
tratamento das espécies domesticadas como portadoras de “conhecimento tradicional
intrínseco”. Ou seja, ao invés de tom|-las como espécies biológicas meramente
associadas
aos
“conhecimentos
tradicionais”,
a
perspectiva
defendida
pelos
especialistas apontava para a existência da relação necessária (não contingente) entre
plantas domesticadas e conhecimentos tradicionais.
Conforme consta em ata:
“(...) representantes do setor acadêmico — Laure Emperaire
(IRD/CDS/UnB) e Paul Little (ABA) e de organizações nãogovernamentais argumentaram que as variedades locais de espécies
alimentares domesticadas (variedades crioulas) não seriam encontradas
sem o aporte das comunidades indígenas ou locais que as mantém, pois
dependem das técnicas de manejo tradicional para conservação, as quais
também contribuíram para a seleção de características, não sendo
possível ignorar a contribuição intelectual destas comunidades
incorporada às referidas variedades. (CGEN, 2005a: 2, grifo meu).
Percebemos, assim, que por mais bem intencionadas que sejam, estas tentativas
de di|logos “intercientíficos” (Little, 2010) n~o s~o desprovidas das hierarquizações
gramaticais e assimetrias de poder características da ciência moderna, ainda que seus
entusiastas insistam em predicar os impasses como sendo de ordem “técnica” e n~o
“política”. Como bem sublinha Nadasdy, ao compartimentar os conhecimentos
tradicionais em subáreas, destilando e depurando sua feição holista, a ciência moderna
“(...) usually treat these problems as technical difficulties to be overcome and ignore
their political dimensions” (2003: 130). Isto é, além das divergências epistemológicas
entre as ciências e os conhecimentos tradicionais, o analista que pretende etnografar as
situações de encontro entre estas duas matrizes de saberes, tais quais as que ocorrem
60
na CTCTA, devem, segundo Nadasdy, “forget about epistemology and look, insted, at
power” (2003: 138). Política, entretanto, não deve ser encarada como uma dimensão
alheia à técnica. Ou antes, a separação destas duas dimensões é justamente o efeito de
um árduo processo de purificação que, como alerta Latour (1994: 35), é uma das
garantias constitucionais que permitem aos modernos fazer ciência e política26.
A saída “técnica” acionada para sanar o conflito entre as posições vinculadas aos
indígenas e aquelas defendidas pela EMBRAPA e MAPA foi conduzida, como de praxe,
por um dos “especialistas” presentes. Na última destas três reuniões, a especialista
convidada recorreu ao argumento segundo o qual a domesticação, entendida enquanto
processo evolutivo e dirigido a uma população particular da espécie concernida, e a
seleção, por meio das práticas de cultivo, deveriam ser distintas em termos de
intensidade e não de qualidade:
“Laure Emperaire destacou que a domesticaç~o e a seleç~o (ou
formação) de variedades locais são as duas pontas de um processo
gradual, e que em ambas há uma seleção intencional pelo homem de
material vegetal ou animal” (CGEN, 2005c: 1).
Neste sentido, alegava a pesquisadora, em ambos os processos haveria seleção
(intencional ou não) de materiais vegetais e animais por parte dos grupos humanos. Ao
argumentar a favor da perspectiva segundo a qual os conceitos de “domesticaç~o” e
“cultivo” devessem ser encarados de maneira distinta em termos de grau e não de
gênero, a pesquisadora pôde, a um só tempo, reconhecer a contribuição intelectual
indígena sem, no entanto, sair da gramática evolutiva que condicionava a discussão.
Ainda que separando os dois conceitos, tanto as espécies cultivadas como as já
domesticadas deveriam ser entendidas, segundo esta perspectiva, como variações de
um mesmo processo. Tanto o cultivo quanto a domesticação seriam, assim, motivados
26
Segundo Latour, esta Constituição teria ainda outras quatro garantias. A primeira delas se firma na
assertiva de que a natureza é não-humana: ela existe desde sempre independente da feitura dos
humanos e estes apenas a decodificam. A segunda seria simetricamente inversa à primeira: a sociedade é
humana, feita por eles, permitindo-lhes decidir acerca de seu destino social. Já a terceira seria a condição
necessária para que a separação das duas antecedentes não se dê de maneira não contraditória: as
práticas de purificação, que separam o dado do feito, se restringem ao perímetro da ciência enquanto
que as práticas de mediação se restringem ao domínio humano e social. A quarta, por fim, consiste na
supress~o de Deus enquanto agente sobrenatural: “ninguém é realmente moderno se n~o aceita afastar
Deus tanto do jogo das leis da natureza quanto das leis da república” (1994:38).
61
por intenções humanas em selecionar as características visadas. Em ambos, portanto,
existiriam CTA, ainda que de maneiras (ou seria em intensidades?) distintas.
Este breve relato das discussões ocorridas na CTCTA a respeito da existência
“intrínseca” ou “associada” de CTA nas espécies agrícolas não nos possibilita dizer qual
o argumento foi vitorioso. Afinal, por mais que a discussão tenha avançado no sentido
de (tentar) reconhecer as intervenções indígenas e de populações tradicionais
vinculadas ao desenvolvimento das variedades agrícolas, ao término da terceira
reuni~o, “n~o houve consenso em denominar esta intervenç~o como equivalente a
conhecimento tradicional associado” (CGEN, 2005c: 1). Ainda assim pelo menos a
partir dele podemos depreender como que a problemática da diversificação das plantas
cultivadas foi formulada no fórum mais “técnico” do CGEN.
Em resumo, tanto o argumento da “linha de corte temporal” defendido pela
MAPA e pela EMBRAPA, quanto o entendimento (conciliador) da domesticação
enquanto um “processo gradual”, argumentado pela pesquisadora, nos permite inferir
que a gramática que enquadra e condiciona as discussões é claramente informada por
um certo pensamento de matriz evolutiva. Ora, se esta for a conclusão deste relato,
poder-se-ia dizer que chegamos ao óbvio. No entanto, uma vez sendo um exercício
desejado pela antropologia, não apenas chegar ao óbvio, mas extrair dele as suas
devidas consequências, nos resta agora adentrar de maneira mais exaustiva nesse
pensamento evolutivo. Não para estabilizar as falas emergentes em um arcabouço
teórico externo ou superior, mas sim com pretensões eminentemente compreensivas.
Pois só assim, na última sessão deste capítulo, quando lidarmos diretamente com dois
casos debatidos no Plenário do CGEN, conseguiremos assimilar de maneira mais
interna as estratégias encontradas pelos conselheiros para solucionar os problemas
colocados pela natureza especial da biodiversidade agrícola (Santilli, 2009: 283) e,
consequentemente, delimitar os componentes humanos e vegetais, materiais e
imateriais, que resultam dos processos de diversificação das plantas cultivadas.
62
b) Cultivo e domesticação27
Em um texto de sua própria autoria, a especialista convidada pela CTCTA, Laure
Emperaire, distingue os conceitos de “cultivo” e “domesticaç~o” da seguinte maneira:
“É importante diferenciar os termos domesticaç~o e cultivo, muitas
vezes utilizados como sinônimos. O cultivo refere-se ao conjunto das
práticas agrícolas que fazem com que uma dada planta vá se desenvolver
em condições determinadas pelo agricultor. Insere-se, portanto, num
espaço e num tempo relativamente limitados. A domesticação, por sua
vez, refere-se a um processo evolutivo que se dá numa escala de tempo
longa e que acarreta diferenciação genética do ancestral silvestre em
função de pressões seletivas tanto humanas quanto ambientais”
(Emperaire, 2005:42, grifos meus).
Assim pensado, o ato de cultivar implica apenas numa ação direta sobre
fenótipos de indivíduos vegetais, na escala de tempo histórica e sem necessariamente
controlar a reprodução plena da planta. Já o ato de domesticar é dirigido a toda uma
população, numa escala de tempo evolutivo e com efeitos diretos no patrimônio
genético das espécies. Esta separação entre o tempo histórico e o tempo evolutivo, nos
permite enquadrar uma disposição englobante presente na matriz do pensamento
evolucionário: toda espécie domesticada é cultivada, mas o contrário não é verdadeiro.
Toda espécie domesticada é decorrente de um cultivo acumulado ao longo do tempo,
ao passo que as espécies cultivadas são aquelas que sofrem a ação humana, mas que
n~o atingiram o “est|gio” genético de domesticaç~o (Harlan, 1992:63-64, 1995:30-31;
Harris, 1989, 1996; Rindos, 1984).
Com o pensamento evolutivo, a domesticação de espécies vegetais passa a ser
entendida como um processo no qual uma determinada população da espécie
domesticada perde gradualmente seus mecanismos autônomos de sobrevivência,
tornando-se cada vez mais dependentes dos cuidados humanos para sua perpetuação
(Clement et al, 2009: 16). Enquanto as espécies em estado selvagem são aquelas que
independem dos cuidados humanos para sua reprodução e desenvolvimento, em
27
Esta reflexão sobre o neo-darwinismo foi em larga medida subsidiada pelo curso de extensão
intitulado “Evoluç~o e sua interface com os recursos genéticos”, promovido pela Embrapa entre os dias 9
e 13 de julho de 2012, nas dependências do Cenargen, em Brasília. Agradeço aos pesquisadores da
instituição responsáveis pela promoção do mesmo, em especial na pessoa do agrônomo da casa, Fábio
Freitas. Necessário frisar, entretanto, que o autor é o único responsável pelo conteúdo apresentado.
63
estado domesticado as mesmas são promovidas através das seleções de morfótipos por
parte de grupos humanos, resultando em alterações nas frequências alélicas das
populações manejadas bem como tornando-as mais adaptadas aos anseios humanos e
mais dependentes de seus cuidados.
Neste sentido o pensamento evolutivo contemporâneo tem claro que o processo
pelo qual estas espécies se transformam devem ser antes encarado a partir de uma
relação co-evolutiva entre natureza e cultura (Rival & Mackey, 2008: 1124) – para
alguns, guiada por mecanismos de replicação genética e memética (Dawkins, 1976,
1982)
28
–, do que apenas como uma seleção que tem no gene sua única unidade
motriz. Ou seja, ao contrário de meros efeitos da seleção natural, as espécies
domesticadas – pelo menos elas – são encaradas como artefatos (Sauer, 1987: 59)
biológicos e culturais, impregnados de práticas e disposições simbólicas no cerne de
uma materialidade híbrida.
Nesta chave analítica, ao adotar o cultivo de uma determinada espécie vegetal,
os grupos humanos podem passar a escolher os fenótipos mais condizentes com as
suas necessidades, selecionando as variedades mais atraentes e “melhorando” (através
de suas escolhas e descartes) as características que lhes são favoráveis. Para alçá-las à
categoria de domesticadas, no entanto, estas seleções necessitam ser operadas numa
escala de tempo que permita com que os indivíduos selecionados sofram uma alteração
genotípica (na escala populacional) em relação a sua ancestral selvagem.
Visando estipular de maneira mais precisa os parâmetros destas transformações,
que vão da variedade selvagem à variedade domesticada, ecólogos, agrônomos e
O conceito de “meme”, entendido como unidade de replicação da cultura em analogia ao papel que o
“gene” assume na esfera biológica, foi cunhado pelo biólogo evolutivo brit}nico Richard Dawkins em seu
primeiro livro intitulado O gene egoísta, de enorme repercussão no campo da divulgação científica. No
último capítulo do livro Dawkins justificaç~o a invenç~o do conceito da seguinte maneira: “Precisamos
de um nome para o novo replicador, um substantivo que transmita a ideia de uma unidade de
transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. "Mimeme" provém de uma raiz grega adequada, mas
quero um monossílabo que soe um pouco como "gene". Espero que meus amigos helenistas me perdoem
se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a
palavra está relacionada a "memória", ou à palavra francesa même” (Dawkins, 1976: 112). Como resposta
{s acusações de “reducionismo” que lhe foram lançadas, Dawkins lança um segundo livro dedicado à
questão, intitulado The extended Phenotype (1982), no qual ele sintetiza o conceito de memes como
sendo “A unit of cultural inheritance, hypothesized as analogous to the particulate gene, and as
naturally selected by virtue of its 'phenotypic' consequences on its own survival and replication in the
cultural environment” (1982, 290). Em outras palavras, os memes são entendidos como unidades de
seleção da cultura e a memética, por sua vez, como a ciência dedicada ao estudo dos memes.
28
64
biólogos dispõem do que se convencionou a chamar de “índices de domesticaç~o”29.
Trata-se de um conjunto de parâmetros que possibilitam ao analista estipular o grau de
transformações que estas plantas sofreram em virtude das ações humanas, tais como o
“gigantismo” (aumento da parte comestível), a “arquitetura uniforme” (facilitaç~o para
colheita), aumento da aptidão para reprodução vegetativa (por estacas) em detrimento
da reprodução sexuada (por sementes), perda da dormência das sementes
(característica selvagem que permite que a semente aguarde a estação propícia para
germinação), dentre outros.
Todo este quadro referencial conduz à sedimentação da separação entre os
conceitos de “cultivo” e “domesticaç~o”. Por mais que no senso comum os dois
conceitos frequentemente operem como sinônimos, nas arenas dos “especialistas”,
informadas pela cosmologia evolutiva, como é o caso da Câmara Temática dos CTA, o
tratamento indiferenciado destes dois conceitos pode ter o poder de deslegitimar os
não iniciados na gramática corrente. Não apenas nos debates internos da CTCTA,
como vimos acima, mas também em seus textos e palestras, a especialista Laure
Emperaire insiste no argumento de que “é importante diferenciar os termos
domesticação e cultivo, muitas vezes utilizados como sinônimos” (2005:42). Isto posto,
se quisermos de fato entender a distinç~o entre os conceitos de “cultivo” e
“domesticaç~o”, que tanto marcou a discuss~o sobre conhecimento intrínseco e
associado no âmbito da CTCTA, devemos, primeiramente, habitá-la. Ainda que de
maneira provisória. Mas como adentrar em seu universo? Que se reflita nisso um
instante, pois esta é a primeira dificuldade que temos ao aproximar a compreensão
antropológica da ciência biológica.
Bruno Latour adverte que o sucesso de uma antropologia da modernidade que
se pretenda simétrica demanda ao antropólogo “levar a sério” a cosmologia dos
modernos ao invés de neutralizar suas manifestações sob o signo da “crença”. Isto é, de
maneira análoga às etnografias produzidas pelos antropólogos entre os povos não
modernos, nas quais as extensas redes de parentesco e os sofisticados sistemas
xamânicos foram descritos e analisados à sua devida complexidade, o analista que
pretende adentrar as temáticas caras à modernidade também não deve se furtar a
29
Para um aprofundamento nos critérios que estipulam estes índices, ver: Harlan, 1992; Hawkes, 1983 e
Pickersgill, 2007.
65
entender as minúcias ontológicas dos
modernos,
sem
reduzi-las à chave
epistemológica da mera representação. Para tal feito, faz-se urgente lidar não apenas
com os saberes periféricos, mas também, e sobretudo, com os conhecimentos que de
tão arraigados são tomados como dados. Como nos diz o autor: “é preciso torn|-la
capaz de estudar as ciências, ultrapassando os limites da sociologia do conhecimento e,
sobretudo, da epistemologia” (1994:91). Assim sendo, para seguir os preceitos da
simetria latouriana e com isso sair das discussões epistemológicas que visam falsear
e/ou sancionar as possibilidades de conhecimento, faz-se necessário adentrarmos,
ainda que de maneira sumária, na própria gramática que sustenta a separação entre os
conceitos de “cultivo” e “domesticaç~o”.
Seguindo os princípios da simetria, faz-se necessário, antes de decodifica-la, que
o pilar de sustentação desta gramática seja trazido à baila, a saber: a cosmologia
evolutiva de Charles Darwin. Em certo sentido, a evocação de Darwin num trabalho
que se pretende simétrico segue os preceitos formulados por Bruno Latour (1994) de
encarar os pais fundadores do pensamento moderno à maneira de heróis míticos, que
sustentam os fundamentos da sua cosmologia. Seguindo a esteira de Shapin e Shaffer,
Latour (1994:31) aciona Boyle e Hobbes, respectivamente, como fundadores de “um
discurso político onde a política deve estar excluída”, para o primeiro, e “uma política
científica da qual a ciência experimental deve estar excluída”, para o segundo. Com
efeito, prossegue Latour, ambos contribuem para a construç~o de “um mundo no qual
a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada
da representaç~o dos cidad~os através do contrato social”.
Por sua vez, na cosmologia evolutiva contemporânea, a presença do
pensamento de Darwin é tão marcante que, como nota Stelio Marras, em sua
etnografia em laboratórios de biologia, genética e bioquímica, “o nosso modo de ver os
seres e o mundo, darwiniano, se torna invisível, dado, irrefletido” (2011: 195). No
tocante {s problem|ticas associadas aos conceitos de “cultivo” e “domesticaç~o”,
Charles Darwin cumpre o papel de “herói mítico” (Marras, 2011: 6) de um mundo no
qual a escala temporal é cindida entre uma dimensão histórica e outra evolutiva. De
acordo com Ingold (2006), a partir de Darwin a tradição ocidental passa a dispor de
duas teorias sobre a humanidade: “uma teoria da evoluç~o para explicar como nossos
ancestrais quase-simiescos se tornaram humanos e uma teoria da história para explicar
66
como os humanos – certos humanos – se tornaram cientistas” (2006: 20). De maneira
análoga, com Darwin a tradição ocidental também passa a dispor de duas teorias sobre
as plantas domesticadas: uma que documenta a filogenia evolutiva das mesmas e outra
que mapeia as diferenças históricas entre as variedades “crioulas”.
Por mais que, como lembra Jablonka & Lamb (2010: 24), expressões como “de
acordo com a teoria da evoluç~o de Darwin...”, ou ainda, “os biólogos evolutivos
explicam isso como...” sejam simplistas e apaziguadoras de uma série de tensões e
controvérsias que atravessam a obra darwiniana30, o fato é que desde a publicação em
1859 do livro A origem das espécies, de Charles Darwin, a teoria evolutiva nos informa
que as alterações do meio provocadas pela intervenção humana promovem pressões
seletivas sobre as populações não humanas de um dado ambiente, dentre elas, as
plantas. Junto a isso, ao selecionar determinadas características destas populações,
através da manipulação dos cruzamentos, bem como ao incorporar outras populações
da mesma espécie na paisagem manejada, inicia-se o processo de domesticação desta
população.
Com Darwin, portanto, a domesticação passa a ser concebida como um
“processo de aprimoramento gradual” (Darwin, 2002 [1859]: 62), a partir do qual a
diferenciação entre as variedades silvestres e domesticadas é operada no registro
temporal:
“As enormes modificações sofridas por nossas plantas cultivadas, as
quais se foram nelas acumulando de maneira lenta e aleatória, creio que
explicam o bem conhecido fato de que, num amplo número de casos,
não saibamos reconhecer – ou, em outras palavras, desconheçamos
quais sejam – os ancestrais silvestres das plantas há longo tempo
cultivadas em nossos pomares, hortas e jardins. E se foram necessários
séculos, ou mesmo milênios, para que essas plantas se modificassem e
fossem sendo aperfeiçoadas até alcançar o atual padrão de utilidade para
o homem, isso nos faz compreender por que cestas regiões como a
Austrália, o Cabo da Boa Esperança ou outras, habitadas por tribos
afastadas da civilização, não nos tenham fornecido sequer um vegetal
digno de ser cultivado. Não que essas regiões, embora tão ricas em
30
Dentre estas, como diz Jablonka & Lamb (2010: 24), questões como “[A] competiç~o entre indivíduos
com diferenças hereditárias na capacidade de sobreviver e de se reproduzir pode levar a novas
características? A seleção natural é a explicação para toda e qualquer mudança evolutiva? De onde vem a
variação hereditária de que a teoria de Darwin depende? Novas espécies podem realmente ser
produzidas por seleção natural?”
67
espécies, não disponham de possíveis ancestrais de plantas úteis para o
homem, em razão de algum infeliz acaso – o que acontece é que suas
plantas nativas ainda não foram aperfeiçoadas, através da seleção
metódica, a ponto de alcançar um estágio de perfeição comparável ao
antigo pelas plantas existentes nos países de civilizaç~o antiga” (Darwin,
2002 [1859]: 63, grifos meus).
Destarte, “comparando-se as atuais variedades de amor-perfeito, rosas, dálias,
gerânios e outras plantas, com as variedades mais antigas, ou com as plantas silvestres
que a originaram” (Darwin, 2002 [1859]: 62), e marcando assim a continuidade entre
um Darwin cultivador e cosmólogo da evolução (Marras, 2011), a problemática da
domesticação passa a ser atrelada ao problema da variação. Não obstante, por mais que
o livro de Darwin apresente incontáveis exemplos concretos que subsidiam sua teoria
geral da “descendência com modificaç~o”, h| grandes lacunas quanto {s suas
evidencias apresentadas. Dentre estas, e sobretudo, aquelas concernentes às naturezas
e às causas da variação hereditária.
Darwin desconhecia as leis que regulavam a hereditariedade, publicadas por
Gregory Mendel apenas em 1865, forçando-o a afirmar que:
“[N]inguém sabe explicar por que uma determinada peculiaridade surgida
em diversos indivíduos da mesma espécie ou de espécies diferentes seja ora
hereditária, ora não; ou por que sói reaparecer numa criança certas
características do avô ou da avó, senão mesmo de um ancestral bastante
remoto; ou por que uma peculiaridade se transmitida de um sexo para
ambos, ou então para um só sexo, geralmente do mesmo ancestral, se
bem que haja exceções a tal respeito” (Darwin, 2002 [1859]: 45, grifo
meu).
Ao longo do século XX, no entanto, o pensamento darwinista foi largamente
afetado pelas teorias da hereditariedade inicialmente formuladas por Mendel e
precursoras da genética populacional. De acordo com Jablonka & Lamb (2010: 40), na
década de 30 do século passado os biólogos de diversas subáreas começaram a fundar
os alicerces do que hoje é conhecido como a “Síntese Moderna” da biologia evolutiva.
Esta “síntese”, como se convencionou chamar, se coaduna na junção do darwinismo
68
ortodoxo do biólogo alemão August Weismann31 com a herança mendeliana32 que, já
no século XX, adotaria o “gene” enquanto unidade hereditária de informação biológica.
A partir deste acoplamento, a Evolução passa a ser entendida como o resultado da
variação entre os alelos dos genes, de uma geração a outra, desde o nível populacional.
É justamente essa união das ideias de Darwin com as noções provenientes da mecânica
de transmissão do material hereditário que originou o que hoje se entende pela rubrica
do neo-darwinismo (Clement et al, 2009: 24). Hoje em dia é hegemônica a ortodoxia
neo-darwinista segundo a qual a hereditariedade é vista em termos de genes e
sequências de DNA e a evolução como mudança da frequência de alelos.
A própria separação estanque entre as dimensões fenotípicas e genotípicas é
correlata deste neo-darwinismo da biologia evolutiva. Enquanto o genótipo é tomado
como a especificação de direito, que independe do contexto, o fenótipo caracteriza a
forma que o organismo assume de fato. Ao mesmo tempo, enquanto as características
do genótipo são transmitidas filogeneticamente através das gerações, as expressões do
fenótipo são desenvolvidas ontogeneticamente em um ambiente específico. É o que
afirmam Jablonka & Lamb (2010: 40):
“O genótipo é o potencial herdado de um organismo – o potencial para
dar sementes verdes, ter olhos azuis, ou ser alto. Se esse potencial será
realizado ou não depende das condições em que o organismo se
desenvolve. (...) Por isso, mesmo que tenha o genótipo para ser alta, uma
planta não manifestará sua estatura potencial a menos que as condições
31
De acordo com Jablonka & Lamb (2010), o darwinismo ortodoxo de August Weismann teria sido
responsável pela derrocada do lamarckismo nos finais do século XIX. Weismann afirmava que os
caracteres adquiridos pelo desenvolvimento dos organismos não podiam ser herdados porque os eventos
corporais não afetavam a linhagem germinativa da substancia nuclear. Com efeito, segue Jablonka &
Lamb (2010: 36), “Weismann deu { seleç~o natural um papel exclusivo. Ele excluiu a mudança por uso e
desuso e qualquer outra forma de herança de caracteres adquiridos”.
32
As ditas “leis de Mendel” forneceram ao pensamento darwinista a explicaç~o adequada para a gênese
das variações nas populações. A partir de seus experimentos de cruzamentos com ervilhas-de-cheiro
(Pisum sativum), Mendel formulou suas três leis básicas acerca da hereditariedade, a saber : (1) os
caracteres são segregados, isto é, as células sexuais masculinas e femininas devem conter apenas um
fator para cada característica transmitida; (2) cada característica hereditária é transmitida independente
das demais; (3) os seres híbridos necessariamente apresentam um caráter que é dominante e outro que é
recessivo. Segundo Clement et al (2009: 24), a partir do acoplamento dos postulados de Mendel,
posteriormente chamados de “genética”, com a teoria da descendência com modificaç~o de Darwin,
posteriormente rotulada de “teoria da evoluç~o”, “[T]ornou-se claro que a matéria-prima da evolução é a
variação entre alelos dos genes e as suas leis de transmissão de uma geração a outra, em nível
populacional”. É justamente nesta associaç~o que se assenta a teoria moderna da evoluç~o conhecida
como “neo-darwinismo”.
69
sejam adequadas. A maneira como a planta é de fato – seu fenótipo –
depende tanto de seu genótipo quanto das condições ambientais”.
Como enfatizam as autoras, a relação entre genótipo de fenótipo passa a se
transformar numa relação entre projeto e produto, comparando “o genótipo ao projeto
de construç~o de um avi~o, e o fenótipo ao avi~o em si”, ou ainda, “o genótipo { receita
de um bolo e o fenótipo ao bolo que de fato é assado”. De todo modo, alterações nos
projetos e nas receitas levariam a mudanças nos produtos, no entanto as mudanças nos
produtos não reverberariam em alterações significativas nos projetos e nas receitas:
“Sua unidade da hereditariedade, o gene, não era nem parte do fenótipo
nem uma representação dele. Era uma unidade de informação sobre o
fenótipo potencial. Os genes não são afetados pela maneira como essa
informaç~o é usada” (Jabloka & Lamb, 2010: 45).
Ainda que eventualmente possam ocorrer mutações acidentais que originam
novos alelos passiveis de serem herdados, toda a cadeia de operações e problemáticas
constitutivas do ato de feitura não alteram os projetos e as receitas que já estão
prescritas: “somente mudanças nos projetos ou nas receitas – os programas – são
herdadas, n~o mudanças nos produtos” (Jabloka & Lamb, 2010: 51). Isto significa
afirmar que para esta matriz de pensamento as operações associadas à ontogenia dos
seres não são transmitidas ao longo das gerações, de modo que apenas as
características (estabilizadas) do genótipo são relevantes para o mapeamento da
evolução.
O que pretendo sublinhar aqui é que conceber as operações de diversificação
agrícola a partir da separaç~o entre os conceitos de “cultivo” e “domesticaç~o”, o
primeiro condizente à seleção de fenótipos e o segundo à estabilização de genótipos,
significa justamente desviar o olhar da ontogênese ela mesma e tomar as espécies já
constituídas (“o milho”, “a mandioca”) como modelo da individuaç~o. Isto é: se, por
um lado, o pensamento neo-darwinista apresenta (e de fato apresentou no caso da
CTCTA) resultados satisfatórios para empreendimento classificatórios como este que
separa (ainda que de maneira gradualista) as plantas cultivadas das domesticadas, por
outro, o que é deixado encoberto é justamente a “zona obscura” (Simondon, 1958: 25,
70
79) das operações a partir das quais as novas singularidades emergem. As implicações
(e complicações) decorrentes desta necessidade de estabilização da matéria e da forma
na lógica dos recursos fitogenéticos serão exploradas a partir de dois casos concretos
de delimitação das plantas cultivadas e dos coletivos humanos cultivadores.
Adentraremos, pois, na economia do esforço levada a cabo pelos integrantes do
Plenário do Conselho no intuito de estabilizar e precisar as definições da legislação que
regulamenta o acesso ao PG e aos CTA das plantas cultivadas. A escolha metodológica
assumida aqui para apresentar os casos discutidos no CGEN, buscando compreender o
modo como se estabilizam os termos constitutivos das relações que compõem a
agrobiodiversidade, segue os preceitos da simetria generalizada formulados por Michel
Callon e adotados por Bruno Latour.
A rigor, insiste Latour, “o antropólogo deve estar situado no ponto médio, de
onde pode acompanhar, ao mesmo tempo, a atribuição de propriedades não humanas e
de propriedades humanas” (1994: 95, grifo meu). Para tal feito, foram selecionados dois
casos nos quais as “propriedades características” das plantas cultivadas e a delimitação
das “comunidades locais” nos permitirão vislumbrar a lógica dos recursos fitogenéticos
em ação. Segue-se, portanto, uma orientação que se almeja triplamente simétrica:
“explica com os mesmos termos as verdades e os erros; estuda ao mesmo
tempo a produção dos humanos e dos não-humanos; finalmente, ocupa
uma posição intermediária entre os terrenos tradicionais e os novos,
porque suspende toda e qualquer afirmação a respeito daquilo que
distinguiria os ocidentais dos outros”`(Latour, 1994: 101)
Sob influência deste quadro desenhado por Latour, adentraremos agora em
dois casos discutidos no Plenário do Conselho, nos quais uma mesma problemática –
qual seja, a necessidade de se estabelecer “linhas de corte” demarcatórias – é acionada
no intuito de estabilizar tanto as propriedades materiais das plantas cultivadas quanto
as propriedades formais das comunidades locais cultivadoras.
71
Operando linhas de corte
c) O coco-anão e as “propriedades características”
A 90º Reunião Ordinária do CGEN teve como seu nono item de pauta a
deliberação sobre o enquadramento do coco-anão (cocos nucifera sp.) como
patrimônio genético do Brasil. A consulta se referia à necessidade da aplicação da MP
2.186-16/2001 para a solicitação de dispensa de autorização de exportação do coco pela
empresa requerente Pepsico Amacoco Bebidas do Brasil Ltda, representada pelo
escritório Demarest & Almeida Advogados. A questão que mobilizava os presentes era
saber se o coco-anão era parte integrante do patrimônio genético brasileiro, isto é, se o
mesmo teria desenvolvido suas “propriedades características” em território nacional.
Caso a resposta fosse afirmativa, seriam demandados à empresa Pepsico os requisitos
de anuência prévia e repartição de benefícios, bem como a autorização do Conselho
para a remessa desse patrimônio para o exterior. Finda a breve exposição do caso, a
conselheira do MMA, relatora do processo, abriu o plenário para discussão.
O primeiro a se manifestar frente à questão lançada foi o conselheiro do Jardim
Botânico (JB), opinando que o caso fugiria do escopo da MP por se tratar da tentativa
de caracterização de uma nova variedade, algo que, do ponto de vista evolutivo,
demoraria milhares de anos para ocorrer enquanto especiação. Em seguida, o
conselheiro do MRE primeiramente parabenizou a iniciativa cuidadosa da empresa em
trazer o caso para consulta, mas concluiu sua fala demonstrando as dificuldades de se
identificar a origem do material bem como de enquadrá-lo sob a guarda da legislação.
Lembrou ainda aos presentes que, a partir do cumprimento do Protocolo de Nagoya33,
os conselheiros terão que lidar de frente com a problemática de definir o que são as
ditas “espécies nativas”, ou as espécies que adquiriram suas propriedades características
no território nacional.
33
O Protocolo de Nagoya é o mais recente tratado multilateral que visa a repartição justa e equitativa de
benefícios advindos da utilização de recursos genético. Lançado na COP-10, em Nagoya (Japão), e
assinado pelo Brasil em 2012, o Protocolo segue em apreciação pelo Congresso Nacional.
72
No caso em questão, prosseguiu o conselheiro, a dificuldade apresentada pelo
coco se fundaria na incógnita de se definir qual o país provedor do material genético,
pois se trataria de um “produto” difundido por diversas regiões tropicais. J| a
representante da Embrapa expôs que no entendimento dos pesquisadores da sua
instituição o coco-anão seria uma espécie exótica, pois não haveria nenhuma
justificativa “técnica” que comprovasse que o mesmo teria adquirido suas
“propriedades características” no território nacional. Argumentaç~o esta que
descartava seu enquadramento nas ditas “condições in situ”34 definidas pela CDB.
Partindo da controvérsia instaurada, o conselheiro representante do DPG/MMA
aproveitou a oportunidade para conectar a discussão do coco-anão com as reuniões
preparatórias para a CDB ocorridas na década de 90 na sede do Pnuma35. Argumentou
estar diante de uma “irônica contradiç~o”, pois { época da definiç~o conceitual das
“condições in situ” os representantes dos países em desenvolvimento, dentre estes o
Brasil, argumentavam contra o reconhecimento de que a batata andina teria
desenvolvido novas propriedades características no continente europeu:
“Eu, {quela época, quase chorava vendo o que achava uma loucura.
Agora estou aqui olhando exatamente ao contrário, tentando mostrar,
aplicando-se a Convenção, e o entendimento é que o coco é daqui sim,
como pode ter tomate italiano e batata holandesa. Claro, a origem da
batata é no pé dos Andes, a origem do tomate é também daí. Como pode
ter amanhã ou depois o pessoal reivindicar que materiais de amendoim
vão ser indianos e nós temos uma Convenção que assim o ratifica. Agora
estamos dizendo que isso aqui não vale, que isso é errado, claro que
alguém pode dizer que o coco não é brasileiro, ou que o coco não é
colombiano, mas teria que provar que não adquiriu propriedades
características peculiares, mesmo depois de quase meio século aqui no
país”36
Como vimos no início deste capítulo, o Art. 2 da MP define as “condições in situ” da seguinte maneira:
“as condições em que recursos genéticos existem em ecossistemas e habitats naturais e, no caso de
espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas ‘propriedades
características’”.
35
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
36
As citações selecionadas seguem em acordo com as transcrições estenotipadas (CGEN, 2012a,2012b),
sem alterar os eventuais erros ortográficos.
34
73
Para o conselheiro, o Peru e o Equador estariam passando pelo mesmo risco,
qual seja, a possibilidade de “desnacionalizaç~o” de patrimônios genéticos
domesticados no continente americano e levados à Europa nos últimos quinhentos
anos. Na opinião do conselheiro o ônus da prova deveria ser invertido, pois na medida
em que o material genético do coco-anão estaria no país há quase meio século, a
variedade já teria desenvolvido propriedades características distintas de seu país
origin|rio. De modo que, dizia, “se alguém est| dizendo que n~o tem (propriedades
características), este alguém deveria provar o contr|rio”.
O conselheiro do MAPA retrucou a tentativa de inversão da prova
argumentando que nota técnica formulada pelo MMA induziria os conselheiros a
tratarem o coco-anão como uma espécie exótica difundida por todos os continentes.
Nesse sentido, a demonstração de que a variedade teria desenvolvido características
singulares no território nacional deveria ser fornecida pelos próprios conselheiros, pois
“o ônus da prova é provar que tem as características para talvez um dia ser considerado
nacionalizado”.
Complexificando a questão, o conselheiro do JB, reconhecido entre os presentes
como “especialista em evoluç~o de palmeiras”, argumentou que a filogenia das
palmeiras em geral e a consequente comprovação de origem do coqueiro seria uma
temática de alta obscuridade inclusive para os próprios especialistas. Em seu próprio
doutoramento, o pesquisador estudou a história evolutiva da família Arecaceae (família
das palmeiras) nas Américas buscando correlacionar os grupos do gênero cocos no
continente. Frisou que as parcas pesquisas sobre filogenia das palmeiras ainda não
permitem estabelecer conclusões de ordem mais geral sobre o processo de
domesticação da espécie. Em virtude destas incertezas e da escassez de pesquisas na
área, o conselheiro optou por dar seu parecer contrário à tese de que o coco-anão teria
desenvolvido suas propriedades características no território nacional.
Mais uma vez o conselheiro do DPG/MMA tentou ponderar a tese taxativa de
que o coco-anão não seria parte integrante do patrimônio genético nacional. Para tal,
argumentou que as palmeiras compõem uma família taxonômica “ainda em
74
especiaç~o”, isto é, “é um grupo que ainda est| evoluindo, um grupo onde o mesmo
gênero cruza entre si (...) é um grupo que h| uma especiaç~o ainda bastante violenta”.
N~o obstante as argumentações contr|rias ou favor|veis { “nacionalizaç~o do
patrimônio genético do coco-anão”, ou melhor, se o mesmo teria ou n~o adquirido
suas propriedades características no território nacional, a votação final permaneceu
inconclusiva, com 6 votos favoráveis, 2 contrários e 5 abstenções. Com este resultado, a
deliberação foi considerada insuficiente e decidiu-se que projeto retornaria ao Plenário
em uma nova ocasião, desta vez contando com maiores informações técnicas a respeito
da filogenia e domesticação da variedade.
Passados dois meses e duas reuniões ordinárias, o coco-anão voltou à pauta do
Plenário. A conselheira do MMA iniciou a sessão apresentando os dois pareceres
técnicos confeccionados pela EMBRAPA e pelo Jardim Botânico a respeito da história
evolutiva da espécie. Ambos argumentavam que a variedade em questão seria uma
planta perene, de ciclo de vida longo e essencialmente de reprodução endógama, isto é,
possuiria tanto órgão masculino quanto feminino na mesma planta, de modo a facilitar
sua auto-fecundação. Entretanto, o parecer formulado pela EMBRAPA baseava-se
numa análise mais recente do coco introduzido no Brasil já domesticado, numa escala
restrita a centenas de anos; ao passo que o parecer do Jardim Botânico estendia a série
temporal a milhões de anos, para então buscar evidências de possíveis ancestrais
selvagens do coco-anão que teriam saído da América e se dispersado pela África e Ásia,
regiões que abrigam os possíveis “centros de domesticaç~o” da variedade. Sendo, pois,
os dois pareceres divergentes, o primeiro abdicando da titularidade do patrimônio
genético e o segundo buscando a nacionalização do mesmo a partir da ancestralidade
selvagem comum, o Plenário foi novamente aberto para debate.
Para o representante do MAPA , no entanto, não haveria divergência entre os
dois pareceres técnicos. Afinal, argumentou, alegar que o coco-anão tenha um
ancestral comum em território nacional não autorizaria a dizer que a variedade
domesticada tenha se originado na América. Deste modo, os dois pareceres
endossariam a tese segundo a qual não haveria possibilidades reais de nacionalização
do patrimônio genético da variedade. Por outro lado, o representante do IBAMA
75
chamou a atenção dos presentes para as possibilidades (e os possíveis problemas)
advindos da criação de uma jurisprudência nesta linha a partir do caso do coco-anão:
“A nossa afliç~o maior aqui é: vamos abrir mão do coco? Porque
poderíamos pegar o coco, a tese de que o coco é originário aqui e com
isso reivindicarmos adiante que o coco possa ser objeto de repartição de
benefício com o Brasil (...) Nós temos aqui uma série de atividades no
Brasil que se utilizam do coco, até mesmo a própria EMBRAPA. (...) Eu
acho que o coco deveria ser brasileiro, o coco é nosso”.
A tese defendida pelo conselheiro do IBAMA se apoiava no parecer elaborado
pelo Jardim Botânico, segundo o qual, ainda que o coco-anão tenha desenvolvido suas
propriedades características na Malásia, os ancestrais selvagens da espécie teriam saído
do Brasil e sido levados pelas correntes marítimas aos outros continentes. Por outro
lado, o conselheiro do MAPA se contrapôs ao IBAMA alertando que esta tentativa de
nacionalização poderia desencadear um efeito negativo: a possibilidade de
nacionalização de recursos genéticos brasileiros por outros países que também os
cultivam. O conselheiro lembrou ainda que a economia da Malásia é em grande parte
baseada na extração de látex e no melhoramento genético da seringueira (Hevea
brasiliensis). Assim, caso o Brasil acatasse este procedimento com o coco-anão,
nacionalizando uma variedade exógena e quebrando o principio de soberania dos
Estados sob seus recursos genéticos, o país estaria abrindo o caminho para que a
Malásia nacionalizasse a seringueira.
A possibilidade de nacionalização da seringueira pela Malásia também foi
comentada pela conselheira da EMBRAPA, embora ela tenha diferenciado os conceitos
de “melhoramento” e “desenvolvimento de propriedades características”:
“Nós sabemos que a borracha est| na Mal|sia desde o ciclo da borracha,
quando ela foi levada para lá. Eu tenho conhecimento pessoal de que
existem hoje plantas de seringueiras muito melhores, muito mais
produtivas do que as nossas nativas daqui. (...) Há sim um trabalho
fenomenal de melhoramento feito lá, mas não que ela tenha adquirido
características locais da Malásia por si só. Foi um tremendo trabalho de
melhoramento que nós não fizemos no Brasil. Acho que o trabalho com
o coco é a mesma coisa. Nós temos hoje plantações de coco muito mais
adaptadas ao nosso ambiente por programas de melhoramento”
76
O conselheiro do MAPA também contrapôs o conselheiro do IBAMA,
enfatizando que a conclusão do parecer fornecido pelo Jardim Botânico indicaria que
h| no Brasil somente um “ancestral comum” do coco-anão, o que não qualificaria o
país como “centro de origem”. No intuito de elucidar esta diferenciaç~o, em sua
argumentação o conselheiro recorreu a uma analogia com a evolução do gênero homo:
“Nós temos símios todos no Brasil, os macacos, e provavelmente nós
temos lá um ancestral comum, o que não quer dizer que a origem do
homem é no Brasil. Se nós apresentarmos uma tese diferente dessa, essa
de que o coco-anão é de origem brasileira, porque tem um ancestral que
nem sequer tem comprovação de que ele é o originário dessa espécie,
nós vamos forçar aqui uma verdade, vamos faltar com a ética”
Em outro momento, a analogia com os humanos também foi acionada pela
conselheira do MMA:
“Exemplificando esse caso, eu acho que é mais ou menos assim: eu sou
de origem portuguesa. Vou me colocar aqui. Então um ancestral meu era
de Portugal, veio para o Brasil, casou-se, teve uma família e eu sou
descendente dessa família. Eu me casei com outra pessoa brasileira e
meu nome de família é Gouveia. Eu passei a receber o nome Fontes, que
é da minha nova família. Então essa família é brasileira. Embora meu
ancestral seja de Portugal, que emigrou para o Brasil, eu formei uma
nova família que é brasileira. Então eu acho que é mais um menos isso.
Esse coco foi um ancestral comum que emigrou de alguma forma para a
Ásia e lá desenvolveu uma nova espécie, essa espécie de coco que foi
domesticada e posteriormente incluída em programas de melhoramento
trazidas para o Brasil e é o coco que hoje nós cultivamos”
A evocação desta analogia entre a especiação das plantas cultivadas e a
especiação dos humanos gerou questionamentos entre os conselheiros sobre a
77
definiç~o da express~o “condições in situ” presente na legislaç~o37. De acordo com o
representante do MRE, o artigo 2º da CDB definiria o país de origem de recursos
genético como sendo aquele que possui esses recursos em “condições in situ”. Em sua
interpretação, portanto, uma vez detectada a presença de um determinado recurso
genético em território nacional este país passaria a ter domínio sobre o mesmo. Já para
a conselheira da EMBRAPA as “condições in situ” equivaleriam ao “habitat natural” das
espécies, isto é, os locais nos quais as espécies adquiriram suas “propriedades
características”. A conselheira tentou ent~o qualificar as ditas “condições in situ”:
“Nós achamos que tudo que est| plantado est| em condiç~o in situ. Não,
você pode ter uma planta plantada em condições ex situ. Ela está em
condição ex situ desde que ela não esteja no habitat natural dela. A
primeira coisa para saber se ela está in situ ou ex situ é saber onde que é
o habitat natural daquela planta. No caso do coco é a Malásia. Então o
coco que está plantado aqui no Brasil está em condições ex situ, nós
sempre achamos que condição ex situ é só banco de germoplasma, não
é, você pode ter uma planta no chão e ela está em condições ex situ.”
Diante desta explanação, o conselheiro do MRE externalizou uma dúvida, “o
que seria ent~o espécies domesticadas ou cultivadas?”. Ao que a relatora do processo e
representante do MMA tentou respondê-lo:
“Espécies domesticadas? Você n~o sabe o que é? Eu n~o tenho uma
definição para dar. São espécies que foram..., são espécies que o homem
selecionou e começou a desenvolver métodos de plantio e produção; elas
não ocorrem naturalmente, elas são cultivadas para um determinado fim
atendendo às necessidades da espécie humana. Tem uma estreita ligação
entre o homem e as espécies cultivadas”
Então a discussão começou a se encaminhar para seu desfecho. A relatora do
processo propôs uma primeira proposição de deliberação e a expôs para que os demais
conselheiros apreciassem:
37
A MP n~o fornece uma definiç~o das ditas “condições in situ”. Já a CDB as define da seguinte maneira:
“As condições em que recursos genéticos existem em ecossistemas e habitats naturais e, no caso de
espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas propriedades
características” (CDB, Art. 2º, grifo meu).
78
“Ent~o, gente, eu vou fazer uma leitura aqui de uma proposição de
deliberação para vocês opinarem. Considerando a falta de evidências
científicas de que a espécie cococ nucifera linnaeus palme, denominada
coqueiro anão verde do Brasil, tenha adquirido características específicas
no território brasileiro, para manter o vocabulário da Convenção, o
CGEN considera a não aplicação da MP 2186-16/2001 para sua exportação
para fins de acesso a patrimônio genético. O CGEN se reserva o direito de
rever sua decis~o a luz de novas informações científicas”
Antes, porém, de colocar o texto final para votação fora ainda cogitada a
possibilidade de que o caso se transformasse numa Resolução Técnica, no intuito de
criar uma jurisprudência sobre a temática. A conselheira da EMBRAPA lembrou que a
cana-de-açúcar (Saccharum spp.) já teria gerado discussões similares e a partir dela terse-ia confeccionado uma Resolução técnica38 acerca do não enquadramento da espécie
na MP nº 2186-16/2001. Isto posto, decidiu-se favoravelmente à deliberação, mas não se
concluiu em relação à Resolução.
d) A goiabeira-serrana e as “comunidades locais”
A 46º Reunião Ordinária do CGEN teve como item de pauta a solicitação de
acesso a conhecimentos tradicionais associados para fins de pesquisa o processo nº
02000.003004/2006-79, requerido pelo Centro de Ciências da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). A relatoria ficou a cargo da conselheira representante da
FUNAI, que iniciou sua fala explicitando que o processo se referia ao projeto de
doutorado em Recursos Genéticos Vegetais, a ser desenvolvido pela pesquisadora
Karine Louise dos Santos, orientada em sua tese pelo doutor Rubens Onofre Nodari e
co-orientada pelo também doutor Nivaldo Perroni, ambos da UFSC.
A população local vinculada ao projeto consistia em um conjunto de
agricultores dos municípios de São Joaquim (comunidades Monte Alegre, Bentinho,
Postinho e São João), Urubici (comunidades São Pedro e Santo Antonio) e Urupema
38
Trata-se da Resolução técnica n. 26, de 2007, onde em seu Art. 1º. pode-se ler: “As variedades cultivadas
comerciais de cana-de-açúcar, Saccharum spp., inscritas no Registro Nacional de Cultivares - RNC, do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, não se caracterizam como patrimônio genético do
País para as finalidades da Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001”
79
(comunidade Rio dos Touros), todos pertencentes ao Estado de Santa Catarina. A
relatora informou aos presentes que a solicitação fora requerida mediante processo
administrativo no dia 5 de julho de 2006 e tivera como objetivo geral a identificação do
conhecimento tradicional associado à goiabeira-serrana (Acca sellowiana), bem como
suas implicações na variabilidade morfológica e genética da espécie. Visava-se criar
mecanismos de conservação on farm, baseados num programa de melhoramento
participativo no qual se integraria o conhecimento científico e os “conhecimentos
tradicionais” das comunidades correlatas.
De acordo com a relatora, a pesquisa previa ainda a coleta de amostras de
material vegetal para a caracterização morfológica e genética, que seriam depositadas
no banco de germoplasma da EMBRAPA local. A metodologia a ser empregada na
pesquisa contava com a aplicação de entrevistas semi-estruturadas além de outras
ferramentas tidas como mais participativas, tais como: “mapas de história de vida”,
“chuva de ideias”, “|rvore de problemas e soluções”, dentre outras em acordo com os
interesses e disponibilidades dos agricultores locais. As informações almejadas eram
relativas ao histórico do cultivo e à potencial utilização comercial das variedades de
goiabeira-serrana, baseando-se nas frequências de usos, nos critérios de seleção e nos
procedimentos de manejo. A coleta destas informações estava prevista para ser
realizada entre os meses de marco e maio de 2007, com a única e exclusiva finalidade
de pesquisa. Junto ao processo administrativo foram ainda acrescentados os relatórios
sobre a consulta às comunidades em termos de anuência prévia, um para cada
agricultor, totalizando dez termos de anuência. Segundo a relatora, os termos foram
redigidos de forma clara e didática, em acordo com as diretrizes estabelecidas pela
resolução nº 5 de 200339.
Após ler as conclusões dos dois pareceristas ad hoc que se dedicaram ao
processo – ambos fazendo ressalvas quanto à indicação de destino das informações
relativas ao CTA e sugerindo o retorno da tese para a comunidade como forma de
repartição de benefício – a relatora concluiu seu voto. Em razão da conformidade da
pesquisa com as disposições da MP 2186-16, argumentou que seu voto seria favorável à
autorização de acesso a CTA com a exclusiva finalidade de pesquisa científica. Em seu
39
A Resolução n º 5, de 26 de junho de 2003, baliza as diretrizes para obtenção de anuência prévia em
solicitações de acesso a conhecimentos tradicionais associados para fins de pesquisa científica.
80
encaminhamento, a pesquisa foi qualificada como “projeto de conhecimento
tradicional associado à goiabeira-serrana, com implicações sobre a conservação on
farm e domesticaç~o”. Finda a apresentaç~o e voto da relatora, o coordenador da
sessão abriu o Plenário para debate.
O primeiro conselheiro que se manifestou foi o representante do MAPA. De
início o conselheiro parabenizou a iniciativa dos pesquisadores, frisando que o MAPA
acredita que estudos sobre o manejo on farm de espécies nativas são de fundamental
importância não apenas do ponto de vista econômico, mas também no tocante à
segurança alimentar nacional. Em seguida, partiu para suas contestações. Foram
levantados questionamentos acerca do enquadramento do processo em questão, nos
termos definidos pela MP que regula a atuação do Conselho. Especificamente, a
contestação girou em torno do fato que, segundo o conselheiro, as comunidades
associadas { pesquisa seriam “comunidades transformadas”, isto é, j| haveriam
“perdido” sua tradicionalidade. Em contraposiç~o, o conselheiro lembrou aos presentes
o artigo sétimo da MP 2186-16, onde se lê:
III - comunidade local: grupo humano, incluindo remanescentes de
comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se
organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios,
e que conserva suas instituições sociais e econômicas;
A partir desta definição, o conselheiro declarou que o MAPA teria dificuldades
em enquadrar os agricultores familiares consultados na pesquisa no conceito de
“comunidade local”, uma vez que a distinç~o da “condiç~o cultural” e sua “forma de
organizaç~o” estariam em descompasso com os termos estipulados pela legislaç~o.
Dito isto, o conselheiro consultou os presentes se de fato o processo em questão se
enquadraria no molde da MP nº 2186-16 e, por consequência, nas atribuições do CGEN.
O primeiro a respondê-lo foi o representante da “sociedade civil” vinculado ao
CEBDS. Antes, porém, de expor seu posicionamento frete à pergunta lançada pela fala
anterior, o representante elogiou a iniciativa de se “acoplar” o conhecimento científico
aos conhecimentos tradicionais, combinando as técnicas de melhoramento in situ com
as práticas de conservação on farm, e sugeriu que o Conselho passasse a colecionar
81
estes casos em formato de “banco de casos”, para facilitar atuações futuras. Após este
comentário geral, o representante opinou:
“Como o conselheiro do MAPA tocou no assunto, n~o pude deixar de
percorrer todos os documentos de procedimentos prévio e informado
(...) eu queria também manifestar um certo estranhamento, nada muito
preocupante, mas algumas assinaturas parecem de pessoas muito bem
estruturadas e convivendo com a sociedade moderna e bastante urbana;
depreende-se da própria assinatura. Então, como o Conselheiro
Leontino mencionou isso, eu queria deixar também o meu depoimento
de que pelo menos alguns dos participantes desse projeto não me parecem
exatamente agricultores locais, de pequenas comunidades.”40
Em seguida, o Secretário-Executivo do CGEN e coordenador da sessão pontuou
alguns esclarecimentos. De acordo com o mesmo, os conselheiros estariam diante de
uns dos casos limites que demandam o estabelecimento de uma “linha demarcatória”,
isto é, a definiç~o clara e precisa entre os “pequenos agricultores” encontrados por todo
o país e as “comunidades locais” que, por suas “condições culturais distintas”, gozariam
dos direitos estabelecidos pela MP. Para tal feito, prosseguiu o Conselheiro, o CGEN
estaria sondando a possibilidade de contratar uma “consultoria especializada”,
mediante a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e a Sociedade Brasileira de
Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE), no intuito de definir o conceito de “comunidade
local” com “maior profundidade”. N~o obstante, na falta de uma “linha demarcatória”,
o conselheiro enfatizou que a Secretaria Executiva tem se atido a não estender o
conceito de “comunidade local” a todos os agricultores familiares, mas sim, caso a caso,
a partir das situações concretas, analisar como o conceito se coloca na prática.
A conselheira do MPU lembrou aos presentes que, ao se tratar de comunidades
tradicionais
e
populações
indígenas,
o
critério
a
ser
adotado
é
o
da
“autodeterminaç~o”, tal qual estipulado pela Convenç~o 169 da Organizaç~o
Internacional do Trabalho (OIT). Portanto, “se a comunidade se entende como
tradicional não há porque se negar essa condiç~o para a mesma”. Deste modo, a
conselheira alertou os demais participantes da reunião que o Plenário não poderia ter a
incumbência de estabelecer uma regra fixa, ou uma “linha de corte”, que se aplique a
40
As citações selecionadas seguem em acordo com as transcrições estenotipadas (CGEN, 2006b, 2007),
sem alterar os eventuais erros ortográficos.
82
todas as comunidades. A conselheira recorreu ainda à necessidade de se acionar os
antropólogos para esta questão:
(...) é necessário o apoio de antropólogos, sempre que houver dúvida,
essa é a que vai ser a nossa saída, eles é quem vão nos socorrer porque se
a comunidade se intitula comunidade tradicional, se entende como tal,
por mais que a gente tenha elementos, até como o Joaquim colocou,
algumas assinaturas (...) existe um sindicado (...), mas essas coisas não
chegam a se impeditivas do caráter tradicional dessa comunidade.
A conselheira do MPU encerrou sua explanação enfatizando o fato de que, se a
própria pesquisadora reconheceu a comunidade como “tradicional” e a comunidade
passou a se reconhecer desta maneira, não caberia ao Conselho retirar esta qualificação
da mesma. Aos olhos da conselheira a vinculação identitária deveria ser respeitada, a
menos que “se prove o contr|rio”, isto é, “só uma perícia antropológica poderia dizer se
a comunidade é ou n~o tradicional”.
Por fim, o conselheiro do MAPA agradeceu as contribuições dos demais, no
entanto externou sua insatisfação quanto à falta de consenso. O conselheiro pediu
vistas ao processo no intuito de retomá-lo na próxima reunião ordinária do CGEN. Na
sua argumentaç~o, disse que visualizava este caso como o início de uma possível “linha
de corte”, que demarcaria o conceito de “comunidade local”. Em especial porque esta
linha regularia o tamanho do passivo ambiental existente na pesquisa agropecuária
nacional, de modo a determinar os rumos das pesquisas participativas de conservação
on farm no Brasil. O processo foi retirado de pauta pelo coordenador na sessão, sendo
delegado ao MAPA a incumbência de confeccionar um relatório sobre o tema, a ser
apresentado na reunião seguinte do Conselho.
Na segunda reunião sobre o caso, o representante do MAPA abriu os trabalhos
com a nota técnica confeccionada em função do pedido de vistas anteriormente
solicitado. Após retomar os contornos que a discussão tivera na reunião passada, a
nota concluía com o seguinte teor:
“Os elementos apresentados no processo permitem concluir que não há
informações suficientes para caracterizar o enquadramento das atividades
propostas como acesso ao conhecimento tradicional associado ao
83
patrimônio genético pela falta de caracterização da interface de um
trabalho com uma comunidade local nos termos da MP”.
Além de indagar sobre a existência de “comunidade local” nos termos definidos
pela MP, a nota também recomendava uma série de solicitações à requerente, a saber:
a apresentação de documentação que comprovasse a existência de comunidade
tradicional; documentação comprobatória da titularidade das áreas privadas
abrangidas pela pesquisa; identificação dos signatários dos termos de anuência prévia;
fundamentação da existência de conhecimentos tradicionais associados à goiabeiraserrana e esclarecimento acerca da realização de bioprospecção e desenvolvimento
tecnológico a partir do material vegetal obtido ao longo da execução da pesquisa.
O Secretário-Executivo do CGEN foi o segundo a se manifestar. Em sua fala
argumentou não se tratar de acesso a patrimônio genético uma vez que a pesquisa se
enquadraria no escopo da resolução nº 2141. Em seguida, adentrou ao tópico da
controvérsia em torno da existência ou n~o de “comunidade local”. Para o conselheiro,
dada a expectativa da requerente frente ao reconhecimento da solicitação de acesso
aos conhecimentos tradicionais associados à goiabeira-serrana, não seria cabível ao
Conselho recusar a existência da comunidade. Mas como este reconhecimento não
sanava a controvérsia instaurada, a questão permaneceria em aberto:
“(...) No nosso entendimento h| uma concord}ncia de que nem todos os
agricultores devam ser tratados como comunidades locais. No entanto,
não há uma máquina que a gente coloque a comunidade de agricultores
dentro e saia a etiqueta de dentro dizendo se ela é local ou não, é muito
difícil fazer esta aferição e é muito difícil também, me parece, pedir para
que a instituição prove, mostre evidências de que aquilo de fato é uma
comunidade local”.
A saída administrativa sugerida pelo conselheiro fora a de que as solicitações
que envolvam agricultores locais sejam avaliadas caso a caso e não a partir de normas
gerais, pois a requerente poderia estar se precavendo de eventuais ações futuras que a
comunidade possa mobilizar por n~o ter sido considerada como uma “comunidade
41
A Resolução nº 21, de 31 de agosto de 2006, estabelece quais os tipos de pesquisa que não se enquadram
na atuação do Conselho. Dentre estas, o conselheiro se referia especificamente às pesquisas que “visem
avaliar ou elucidar a história evolutiva de uma espécie ou de grupo taxonômico, as relações dos seres
vivos entre si ou com o meio ambiente, ou a diversidade genética de populações”.
84
local”. Para o conselheiro, a quest~o de identificaç~o dos agricultores como
“comunidade local” seria an|loga {s discussões sobre identificaç~o racial nas políticas
de ações afirmativas. Ao tratar o reconhecimento das “comunidades locais” sob o
mesmo registro das políticas de reconhecimento indentitário, o Conselheiro recorreu à
já citada Convenção 169 da OIT, para sugerir o critério de auto-reconhecimento:
“É muito parecido com a discussão das cotas. Quando nós vamos
discutir as cotas raciais na questão do acesso à universidade, como que
funciona isso? Como é que a gente enquadra nas cotas? Não há uma
máquina de detecção, seria inclusive imoral uma questão dessas (...)
Então nossa sugestão é que a gente use um critério parecido, ou seja, de
um lado o auto-reconhecimento e de outro a instituição que tem um
entendimento a priori de que aquilo deve ser tratado como uma
comunidade local, entendendo que é uma decisão específica para aquele
caso”.
Apesar da analogia entre afirmação racial e auto-determinação étnica esboçada
pelo Secretário-Executivo do MMA, o conselheiro do MAPA solicitou a fala e buscou
convencer aos presentes que a comunidade em questão não se intitulava como
tradicional, embora tenha sido assim rotulada pelos proponentes da pesquisa. Disse
que, a rigor, em nenhum momento da pesquisa a comunidade se enxergava desta
maneira, e que as anuências prévias foram assinadas individualmente pelos
agricultores e não por uma representaç~o comunit|ria: “Quer dizer, foi criada a figura
da comunidade local pelo próprio proponente”. O conselheiro argumentou ainda que a
Convenç~o 169 da OIT se restringe {s comunidades indígenas e “tribais”, n~o
abarcando as comunidades locais compostas por agricultores.
Em suma, na perspectiva do conselheiro do MAPA, os proponentes da pesquisa
teriam inventado uma comunidade local de maneira arbitr|ria e o termo “comunidade
local” a que se referia o projeto representaria, antes, um grupo de “agricultores
familiares”:
“Nós temos três pontos: eles são agricultores familiares, eles estão na
Serra Catarinense e eles têm árvores da goiabeira-serrana. Toda a
descriç~o, a circunscriç~o desta “comunidade local” est| baseada nisso.
Ora, nós fizemos um rápido levantamento no IBGE e nos três
municípios 75% são agricultores que poderiam se encaixar perfeitamente
85
em agricultura familiar segundo o MDA, que tem um escalonamento da
agricultura familiar. Se nós estamos falando de um grupo diferenciado
na sociedade, que diferença é esta? São 75% dos agricultores daqueles
três municípios que poderiam ser encaixados como agricultores
familiares”.
De acordo com o conselheiro, o Estado de Santa Catarina contaria com cerca de
50% de seu território composto por pequenas propriedades de até 100 hectares,
podendo ser encaixados pelo MDA, “a depender da renda”, como agricultores
familiares. Já na região onde a pesquisa pretendia atuar, que seria o provável centro de
domesticação da goiabeira-serrana, esta quantia chegaria a 75%. Com efeito, para o
conselheiro tratar-se-ia de uma “maioria” e n~o uma “comunidade local” nos termos
definidos pela legislação.
Esta conceituaç~o quantitativa (e n~o qualitativa) dos conceitos de “maioria” e
“minoria” também foi corroborada pela conselheira do MCTI:
“Todo mundo vive cultuando suas crenças e nem por causa disso é
tradicional. Para mim não justifica antropologicamente, não sou
antropóloga não, mas antropologicamente isso aqui não se sustenta. E
mais, obrigado por você ter tido a curiosidade de levantar as estatísticas,
a argumentação que possuo aqui é exatamente essa, não são minoria, é
justamente a maioria”.
Por outro lado, se colocando de maneira refratária às posições defendidas pelo
MAPA e os MCTI, a conselheira do FBOMS (sociedade civil) argumentou que, em sua
opinião, a MP 2.186-16/2001 não pretende classificar as comunidades locais em termos
de linha de corte. Outro comentário que preocupou a conselheira foi o critério
quantitativo para demarcar a tradicionalidade das comunidades. Para a Conselheira,
quando as comunidades quilombolas tiverem o Artigo 68º da Constituição Federal42
cumprido, e seu direito à terra respeitado, elas irão ocupar uma área de
aproximadamente 200 milhões de hectares no Brasil. Nas palavras da conselheira,
“uma envergadura fundi|ria correspondente ao território da It|lia”, e nem por isso
42
O artigo referido estabelece que: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.
86
deixarão de serem resguardadas pela legislação específica. Deste modo, a quantidade
de indivíduos e o tamanho do território ocupado não seriam os critérios mais
adequados para deferir acerca da tradicionalidade das comunidades locais.
Não obstante a defesa da tese qualitativa, a conselheira da EMBRAPA expôs sua
desconfiança frente ao que chamou de “ampliaç~o irrestrita de direitos”. Afinal,
argumentou a representante, uma vez estendido o conceito de “comunidade local”
para qualquer conjunto de agricultores que não possuem características distintas, que
os diferenciam dos demais, os direitos já assegurados para as populações indígenas,
tradicionais e comunidades quilombolas estariam enfraquecidos. O conselheiro do
MAPA aproveitou a oportunidade para sublinhar que as reuniões a partir das quais o
termo de anuência prévia fora elaborado teriam sido promovidas pela Empresa de
Pesquisa Agrícola e Extensão rural de Santa Catarina (EPAGRI), com o objetivo de se
firmar uma extensão rural e não uma reunião relativa a um conhecimento tradicional
que caracterizaria uma especificidade da comunidade. Para o conselheiro, com efeito,
“uma reuni~o de extens~o rural promovida pela empresa de melhoramento n~o pode
ser chamada de uma reuni~o de comunidade local”.
A conselheira do DPG/MMA solicitou a fala para recordar os conselheiros de
outros três processos já discutidos em reuniões anteriores do Conselho e que, segundo
ela, “foram objeto de deliberaç~o que abordaram situações semelhantes que talvez
ajudem no encaminhamento desse processo específico”. O primeiro processo era de
interesse do Instituto Agronômico de Campinas, cujas comunidades residiam no
Parque Estadual Serra do Mar, em São Paulo. Tratava-se também de pequenos
agricultores organizados em famílias e, portanto, agricultores familiares cultivadores
de variedades crioulas. As anuências estabelecidas foram muito similares ao caso da
goiabeira-serrana, nas quais os interlocutores assinaram apenas como agricultores
informantes. Neste caso, o encaminhamento do CGEN não exigiu a comprovação de
tradicionalidade das comunidades mediante laudo antropológico, assim como não
solicitou documentos de auto-determinação.
O segundo caso recapitulado pela conselheira foi o processo requerido pela
EMBRAPA a partir de uma pesquisa com variedades tradicionais de feijão. A instituição
de pesquisa teria solicitado a dispensa de anuência ao Conselho por se tratar de uma
elevada quantidade de agricultores espalhados por todo o país, de modo que tornava
87
inviável a coleta de anuência para todos os agricultores correlatos. O CGEN teria
decido que o adjetivo de “comunidade local”, tal qual estipulado pela MP 2186-16/2001,
só poderia ser estendido às comunidades caso as variedades tradicionais de feijão
tivessem marcadores moleculares que as tornassem geneticamente distintas. O
Conselho permitiu assim o acesso ao PG e CTA sem a obrigatoriedade de anuência
prévia para que a pesquisa fitogenética pudesse verificar se o manejo on farm praticado
pelas comunidades teria de fato acarretado em alterações na variabilidade genética das
populações de feijão. Caso a resposta fosse positiva, não apenas o feijão manejado
passaria a ser reconhecido como “tradicional”, mas também as comunidades que o
cultivam passariam a ser consideradas como culturalmente distintas.
O último caso levantado pela conselheira foi referente à pesquisa empreendida
pela empresa Natura, na qual a mesma teria acionado o Conselho para saber se um
agricultor posseiro do Vale do Ribeira (SP) e associado ao PROTER43 deveria ser
enquadrado como “comunidade local”. A Secretaria Executiva do MMA teria
consultado o PROTER e o mesmo respondera que os posseiros do Vale do Ribeira não
se consideravam enquanto “comunidade local”. Assim, a deliberação do Conselho foi
de que tratar-se-ia de um “propriet|rio privado”, o que dispensaria o termo de
anuência nos moldes de acesso a CTA.
Além de apresentar estes três casos, a conselheira do DPG/MMA ainda tentou
esclarecer que a exigência de laudo antropológico só é demandada pelo CGEN nos
casos em que almejem bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico, acarretando
contratos de repartição de benefícios. Já para os casos que se restringem à pesquisa
científica, o Conselho tem considerado que “é um ônus grande demais para a
instituição exigir a apresentação do laudo antropológico, mesmo que fosse da própria
universidade”.
Após a fala da conselheira do DPG/MMA, outro conselheiro do MMA propôs o
início de uma deliberação final. Apesar das controvérsias ainda operantes, o
conselheiro argumentou que a discussão teria se encaminhado para constatação de
insuficiência de informações que comprovassem que a comunidade se auto-reconhece
43
Com sede na cidade de Registro (SP), o Programa da Terra Assessoria, Pesquisa e Educação Popular no Meio Rural
(PROTER) é uma organização não governamental que atua no desenvolvimento rural de agricultores
familiares: http://www.proter.org.br/proter.html
88
enquanto “local”, i.e tradicional; o que serviria, inclusive, como base para casos futuros.
Não obstante, o conselheiro certificou que:
“Se a comunidade disser: “Nós? Imagina, nós somos comunidade local,
nos reconhecemos, temos até um nome”. Ela comunica o Conselho, o
processo está todo instruído, a gente autoriza. Se ela nos informar que,
consultada a comunidade, não houve esse entendimento, fica tudo
devidamente esclarecido, o processo é imediatamente arquivado”.
Posicionamento similar foi levantado pelo conselheiro Roberto Lorena (MAPA):
“Estou de acordo com o arquivamento, estou de acordo com a
informação de que a instituição pode trabalhar normalmente sem
necessidade, pelos diversos motivos já relacionados, só acho que a gente
n~o deve induzir: “Você organize a comunidade tradicional e volta ao
CGEN”; simplesmente cumpra-se a MP. Se um dia for identificado uma
comunidade tradicional, não só nesse como em qualquer outro trabalho,
ele tem que voltar ao CGEN para cumprir a legislação, simples. É um
texto muito mais curto. Os trabalhos estão liberados, se for identificada
comunidade tradicional, cumpra-se a lei”.
O Plenário foi tomado por um longo debate a respeito das implicações políticas
que poderiam ser acarretadas tanto pela negação do auto-reconhecimento, mas
também, por outro lado, pela possibilidade de indução da tradicionalidade para os
agricultores em geral. Para a conselheira do Ministério da Saúde (MS) a escrita do
parecer deveria ser muito cuidadosa para “nem fazer a induç~o e nem fechar as portas”.
Isto posto, o representante do IBAMA formulou o encaminhamento posteriormente
adotado pelo coordenador da sessão, a saber:
“O processo será arquivado porque não se conseguiu verificar que aquele
grupo de fato se constitui numa comunidade local. A instituição pode
continuar trabalhando normalmente. Eventualmente, se a pesquisadora,
ao longo da execução do projeto, detectar elementos que levem ao
entendimento de que aquela comunidade é uma comunidade local, ela
vai comunicar isso à Secretaria Executiva e volta-se a tramitar o
processo.”
89
Uma vez submetido à votação o encaminhamento proposto foi, nas palavras do
coordenador, “incrivelmente un}nime”, com todos os votos favor|veis, nenhum
contrário e nenhuma abstenção.
Considerações parciais: dos processos aos produtos
Apresentei no início deste capítulo o quadro normativo que regulamenta a
atuação do CGEN, bem como explorei os impasses conceituais que definem as plantas
cultivadas (ou domesticadas) e os conhecimentos tradicionais associados (ou
intrínsecos) nas reuniões da CTCTA. Já no âmbito do Plenário, constatamos, no caso
do coco-anão, os esforços dos conselheiros em delimitar quais tipos de pesquisa se
enquadram como acesso a patrimônio genético nacional. Ao passo que o caso da
goiabeira-serrana ilustrou este mesmo exercício de estabilização, só que voltado aos
coletivos humanos sob a chancela do acesso aos conhecimentos tradicionais
associados. Ambos os casos foram enquadrados como não pertinentes ao escopo da
legislação de acesso. Ora, como bem notou Douglas (1986: 108-130), mesmo os casos
anômalos ou desviantes são justamente o efeito de uma classificação precedente. Isto
é, o que não se enquadra em um tipo de pensamento institucional também é parte
integrante do exercício de classificação que lhe dá forma. Daí a pertinência dos casos
selecionados.
Ao abordar os modos de relação humano-plantas cultivadas em termos de
“patrimônio genético” e “conhecimento tradicional associado”, a aplicaç~o da MP
acaba por demandar mecanismos de estabilização de dois pólos das relações agrícolas,
um material e outro ideacional. Como bem alertara Nadasdy (2003) em sua magistral
etnografia acerca das relações de manejo participativo envolvendo as populações
indígenas Kluane e burocratas conservacionistas da província de Yukon, no Alaska, o
próprio conceito de “conhecimento tradicional associado” (CTA), que entre os
anglófonos é tomado como os “traditional ecological knowledge” (TEK), n~o deixa de
90
ser uma destilação moderna levada a cabo pelos aparelhos do Estado de captura dos
modos de vida locais. Esta “compartmentalization and distillation of TEK” (2003: 123126) tende a enquadrar o conceito de “conhecimento”, seja ele “tradicional” ou n~o, de
maneira formalista, abstrata e desatrelada dos engajamentos mundanos. Para Nadasdy,
esta operação acarreta numa série de consequências; dentre elas o descompasso entre
o que se entende por “conhecimento” e “modo de vida”:
“Kluane people are acutely aware of the culturally contingent nature of
their knowledge about animals. At a conference on traditional
knowledge, I once heard a wildlife biologist ask a member of the Kluane
First Nation, ‘What exactly is “traditional knowledge?” She responded.
‘Well, it’s not really ‘knowledge’ at all; it’s more a way of life’. Since it is
from that way of life that biologists and others hope to isolate and
extract “traditional knowledge”, we need to know something about it if
we are to have any hope of understanding the potential social political
impacts of knowledge-integration”. (Nadasdy, 2003: 63, grifo meu)
Atento a tal descompasso, Tim Ingold (2004) apresenta elucidações pertinentes
para que pensemos a triangulaç~o entre os ditos “conhecimentos tradicionais
associados”, suas relações com os ambientes a eles acoplados nas atividades pr|ticas e
os mecanismos estatais de estabilização desta relação. Para Ingold, ao invés de
aplicados, os ditos TEK são, de fato, gerados em atividades práticas por meios das quais
os organismos-pessoas (isto é, e organismo e a pessoa entendidos como uma
informação em contínuo desenvolvimento) se filiam com o ambiente (2004: 302).
Ingold contrasta dois modos distintos de se pensar os TEK, o primeiro que embasa o
discurso moderno dos aparatos estatais e o segundo no senso vivido pelas populações
locais.
O primeiro modo Ingold nomeia de MTK (em inglês, “traditional knowledge in
modernista conception”). Esta acepç~o de conhecimento tradicional seria pertinente a
um esquema de pensamento, implícito inclusive em algumas vertentes da
antropologia, no qual os diagramas de parentesco representariam canais de
transmissão de substância. Analogamente à transmissão de substância por
consanguinidade, o MTK abordaria a circulação de conhecimentos como transmissão
de cultura. Nessa perspectiva, as relações que os grupos mantêm com seus ambientes
91
seriam subestimadas em prol da maior importância dispensada aos aspectos
estritamente cognitivos. Este MTK seria tribut|rio, portanto, do “modelo genealógico”,
a saber: “this is based on the idea that the elements that go together to constitute a
person are passed down, along one or several lines descent, from that person´s
ancestors, independently and in advance of his or her life on the land, in an
environment” (2004: 307).
Por outro lado, a segunda tipificação dos conhecimentos ecológicos seria o LTK
(em inglês, “traditional knowledge in local conception”). Este, diferente do primeiro,
seria o conhecimento ecológico tal qual vivido pelos grupos que os compartilham - isto
é, os praticam. Tratar-se-ia aqui menos de “cognição” e mais de engajamento em
atividades operativas – de modos de vida, poder-se-ia-dizer – por meio das quais os
conhecimentos se originam em estreita relação com a territorialidade dos grupos.
Deste modo, no caso do LTK, a ideia de transmissão de conhecimento, no sentido de
um substrato imaterial que é sobreposto em uma matéria passiva, faz pouco ou
nenhum sentido.
Por mais pertinentes que sejam estas tipificações analíticas fornecidas por
Ingold, penso que, para os nossos intentos aqui visados, talvez seja mais interessante
lançar perguntas sobre isso que tem sido chamado de “conhecimentos tradicionais
associados”. Ou seja, ao invés de tentar preencher esta noç~o a partir de definições
externas, cabe-nos aqui investigar as traduções envolvidas e seus efeitos acarretados.
Ao adotar tal perspectiva, o exercício aqui proposto se aproxima de Leach & Davis
(2012: 218), segundo os quais “the impetus to redefine things as knowledge or
knowledge production is exactly the process we should be interrogating”. Os autores
ainda reiteram que, ao invés de ambicionar levantar um inventário exaustivo de
“coisas” ou “processos” que poderiam ser chamados de “conhecimento”, faz-se
oportuno que o etnógrafo se atente ao que ocorre nas relações às quais o
“conhecimento” é o foco da atenção.
Se tomarmos a noção de PG e CTA como “ethnographic subjects” (idem, 2012:
221), conforme sugerido pelos autores, perceberemos que nas deliberações sobre o
coco-anão e a goiabeira-serrana, se fez necessário elaborar estratégias executivas para
92
que sua “destilaç~o”44 se tornasse eficaz no plano operacional. Duas noções
despontaram nestes dois casos analisados: a de “propriedades características” e a de
“comunidade local”, a primeira referente { “matéria” do coco-anão e a segunda às
“formas de organizaç~o” das comunidades cultivadoras da goiabeira-serra no interior
catarinense. Ambas são definidas pelo quadro normativo, o que não impediu os
dissensos em suas aplicações. Enquanto a primeira demandou a expertise de um
“especialista em evolução de palmeiras”, j| a segunda foi confiada ao parecer de
antropólogos, pois “só uma perícia antropológica poderia dizer se a comunidade é ou
n~o tradicional”.
Uma terceira noção emergente, esta transversal aos dois casos do Plenário e
ainda {s discussões na CTCTA, é a de “linhas de corte”. Na CTCTA as linhas de corte
foram evocadas por representantes da EMBRAPA e do MAPA em seu sentido temporal,
visando fixar os limites cronológicos das variedades que seriam tomadas como
contendo CTA intrínseco. No caso do coco-anão esta noção visou estabelecer o
território nacional no qual a espécie teria desenvolvido suas “propriedades
características”, determinando, assim, qual o país seria o detentor de seu patrimônio
genético. Enquanto que no caso da goiabeira-serrana, por sua vez, as linhas de corte
foram acionadas para se delimitar as fronteiras das “comunidades locais”, incidindo
diretamente na possiblidade de repartiç~o de benefícios. A noç~o de “linha de corte” se
prestou, em suma, para evitar que “todos os países troquem royalties entre si”, em
relaç~o aos recursos fitogenéticos das plantas cultivadas, e que uma “maioria”, como
são os agricultores locais, passem a gozar de direitos específicos restritos às
“populações indígenas e tradicionais”.
Deixemos para as comparações sintetizadas no último capítulo os avanços
analíticos destas considerações parciais. Por hora, nos é suficiente a constatação
etnográfica de que, sob a lógica dos recursos, a agrobiodiversidade é tomada mais pelos
seus resultados e produtos. Sendo os processos etnogenéticos (dos coletivos humanos
44
A express~o “destilaç~o” é aqui tomada de empréstimo de Nadasdy (2003: 126), segundo o qual toda
uma série de histórias, valores, relações sociais e práticas que contribuem para relações indígenas com
os ambientes, devem ser destiladas sob a rubrica dos TEK para serem incorporadas nas categorias
institucionais de gestão científica.
93
cultivadores) e fitogenéticos (das variedades cultivadas) apenas um resíduo de baixo
valor na implementação dos conceitos de acesso aos conhecimentos tradicionais
associados e ao patrimônio genético das plantas cultivadas.
94
Capítulo 2
Agrobiodiversidade sob a lógica dos
patrimônios imateriais
95
Do tombamento ao registro
“Assim como se criam bancos de genes de espécies vegetais para evitar
o empobrecimento da diversidade biológica e o enfraquecimento de
nosso ambiente terrestre, é preciso, para que a vitalidade das
sociedades não seja ameaçada, conservar, ao menos, a memória viva dos
costumes, de práticas e saberes insubstituíveis que não devem
desaparecer. Pois é a diversidade que deve ser salva, não o conteúdo
histórico que cada época lhe conferiu e que ninguém saberá perpetuar
para além dela própria”.
Lévi-Strauss, Laurent. Patrimônio Imaterial e Diversidade Cultural: o
novo Decreto para a Proteção dos Bens Imateriais.
Em um texto de síntese, fornecendo um balanço do campo institucional do
patrimônio cultural no Brasil, José Reginaldo Gonçalves (2012) apresenta o diagnóstico
segundo o qual a gramática norteadora das políticas do patrimônio nacional estaria
passando por um deslocamento singular. Tratar-se-ia, nos diz o autor, da adesão do
vocabul|rio da “moderna antropologia social e cultural” em detrimento do patrimônio
de “pedra e cal”, antes formulado pelo léxico da história da arquitetura. Um dos efeitos
desta mudança seria a saída de cena da dita “retórica da perda”, que justificava ao
mesmo tempo em que criava a necessidade das políticas de preservação do patrimônio
histórico e artístico nacional, e a emergência da retórica da “reconstruç~o
permanente”, a partir da qual a mudança deixaria de ser encarada como deletéria,
passando a ser incorporada de maneira constitutiva da dinâmica patrimonial.
Dando continuidade a esta impressão anunciada por Gonçalves, esta seção
busca investigar brevemente a emergência das políticas do patrimônio cultural
pensando também em como se atualiza aí a dualidade matéria/forma. Para tal feito, me
basearei nos dois modos de operação da política de patrimonialização da cultura no
campo brasileiro, quais sejam: o tombamento e o registro. Ao final, veremos que por
mais avessa que seja à natureza estática e substancializada dos bens tombáveis, a
política do registro segue sendo dependente do sentido atomista do patrimônio, ainda
que a ele se contraponto.
96
A noção de tombamento dos patrimônios históricos e artísticos tem origem
como figura jurídica no Brasil a partir do Decreto presidencial nº 25, de 30 de
novembro de 1937, elaborado com influências diretas do então ministro Gustavo
Capanema
e
Rodrigo
Melo
Franco
de
Andrade,
passando
a
ordenar
administrativamente o patrimônio histórico nacional. Tomando por inspiração a Torre
do Tombo de Portugal, onde ainda hoje obras raras da literatura mundial são
arquivadas, o tombamento passou a ser o mecanismo central da preservação
patrimonial, de modo que, até a década de 1970, a política de patrimônio incidia
apenas sobre a “cultura de pedra e cal” (Gonçalves, 2003; Garcia, 2004). Usada em seu
sentido literal, a express~o “pedra e cal” condiz com “coisas” como os monumentos, as
edificações e as obras da alta cultura que, além de se restringir à dimensão material,
imputa a noção de mudança como perda, isto é, como um processo que leva
inevitavelmente à degeneração.
O decreto que marca a gênese do tombamento no Brasil é tributário do Anteprojeto de lei formulado pelo poeta modernista Mário de Andrade, embora que em sua
ratificação as motivações andradeanas não tenham sido levadas a cabo por completo.
De acordo com Santana (2003), não obstante o fato de que o dispositivo
jurídico/administrativo do tombamento só seja aplicado e produza efeitos nos bens
materializados, a concepção visionária de Mário de Andrade não subestimava a
dimensão intangível da cultura nacional. Ainda assim, as seções do Ante-projeto
referentes ao que hoje se denomina bens imateriais foram suprimidas justamente em
virtude da dificuldade encontrada à época em conciliar os mecanismos de
jurisprudência que organizavam o direito de propriedade material às referências da
“alma popular”, como as músicas, as danças e as expressões artísticas em geral
(Londres, 2003; Sant’Anna, 2003a; Gonçalves, 2003). Com efeito, se a política do
tombamento se prestou de maneira eficaz a conservar a imutabilidade física das obras
de arte e das edificações, por outro lado o léxico historicista acarretou num
acionamento da noção de conservação em contraposição à mudança e à transformação,
além de centrar a atenç~o “mais nos objetos e menos nos sentidos que lhes s~o
atribuídos ao longo do tempo” (Londres, 2003: 66).
97
Esta recusa à mudança característica do tombamento foi hegemônica nas
políticas de patrimônio no Brasil até meados da década de 1970, momento a partir do
qual ocorre uma ressignificaç~o do “patrimônio artístico e histórico nacional” em favor
do “patrimônio cultural”. Este momento coincide com a entrada de Aloísio Magalhães,
de 1975 a 1982, no ainda Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN). Designer e artística plástico pernambucano, Aloísio Magalhães viera do
Centro Nacional de Referencia Cultural (CNRC) trazendo na bagagem uma visão
processualista do patrimônio, dirigindo-se mais para o futuro do que para o passado:
“a tarefa de preservaç~o do patrimônio cultural brasileiro, ao invés de ser
a tarefa de cuidar do passado, é, essencialmente, uma tarefa de refletir
sobre o futuro” (Magalh~es, 1985:42)
Retomando os ideais de Mário de Andrade que não foram incluídos na
instrumentalização do
tombamento,
Magalhães empreendeu um
esforço de
“desmaterializaç~o do patrimônio” (Garcia, 2004: 62). Para tal, buscou partir de
atividades relacionadas à indústria, ao designer e à informática, bem como se apoiar na
noç~o de “referencia cultural”, que até ent~o passava ao largo das preocupações da
política do patrimônio (Londres, 2006: 85). Desta maneira, seu empenho se contrapôs
diretamente a Rodrigo de Melo Franco de Andrade, seu antecessor no SPHAN. Este
vinha da arquitetura e sua preocupação era especialmente direcionada à nação no
sentido “heróico”, entendida como projeto unit|rio calcado na alta cultura e aos
monumentos edificados que materializavam a mesma.
A chegada de Aloísio marca a gênese do conceito de bem cultural menos
apegada { naç~o “heróica” e mais próxima das manifestações plurais e populares da
cultural nacional, que até então não eram dignas de ocupar a categoria de patrimônio.
Visava assim a retomada do projeto de Mário de Andrade, qual seja, estender a noção
de patrimônio n~o apenas {s edificações, mas também aos produtos da “alma popular”.
De fato, a quest~o das “relev}ncias”, isto é, quem, quais valores e quais interesses
teriam a legitimidade de selecionar o que deveria ser preservado, passou a pôr em
destaque a dimens~o também política (e n~o apenas “técnica”) do patrimônio cultural
98
brasileiro: “relativizando o critério do saber, chamava-se a atenção para o papel do
poder” (Londres, 2006: 86).
Garcia (2004: 63) propõe uma leitura das descontinuidades entre estes dois
ideólogos a partir do que o autor qualifica como dois pontos de vista, um diacrônico e
outro sincrônico, da noção de patrimônio. Atrelando o primeiro à história oficial
firmada pelas elites nacionais e o segundo { “cultura” indígena, negra e das camadas
populares em geral:
“A narrativa de Rodrigo é sobre a “preservaç~o” do patrimônio “histórico
e artístico” e enfatiza a “defesa” de uma “tradiç~o” para “civilizar”.
Assenta-se num ponto de vista que podemos chamar de diacrônico. Por
sua vez, Aloísio se detêm na “promoç~o” da “heterogeneidade cultural”
para “garantir” o “desenvolvimento” – perspectiva esta que podemos
classificar de sincrônica. Em Aloísio o valor simbólico de um bem
cultural não se mede pela sua materialidade nem somente pelo seu papel
num passado objetificado, ou seu lugar na história. Esse valor é agregado
pelos significados que esse bem possui no presente, segundo os sentidos
das pessoas ou dos grupos que o apropria”.
Nas palavras do próprio Aloísio, o “tempo cultural não é cronológico. Coisas do
passado podem, de repente, tornar-se altamente significativas para o presente e
estimulantes para o futuro” (Magalh~es, 1985: 75). Esta desmaterializaç~o da cultura
promovida por Aloísio Magalhães incidiu diretamente no texto final da Constituição
brasileira de 1988, que abarca em sua carta tanto a vertente material quanto imaterial
do patrimônio cultural nacional – ambos tidos, em seu Art. 216, como “portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”. Ao ampliar o conceito de patrimônio cultural em seu artigo 21645,
reconhecendo-o em sua dupla dimensão material e imaterial, a Constituição Federal
empreendeu um passo importante no reconhecimento da vivacidade do patrimônio,
45
No Artigo 216 da Constituiç~o, se lê: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referencia à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nas quais se incluem: I – as
formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
99
cujos “bens culturais” s~o, n~o obstante, intrinsecamente correlatos aos valores
associados e as bases materiais que lhes dão suporte (Santilli, 2009: 383).
De todo modo, apesar de ambas as noções (material e imaterial) já estarem
presentes na concepção andradeana de cultura, bem como aparecerem uma ao lado da
outra na carta constitucional, elas carregam também alguns contrastes comumente
enfatizados. Dentre estes, talvez o mais not|vel seja o fato de que o “patrimônio
imaterial se compõe de processo tanto, e provavelmente mais, do que produtos”
(Carneiro da Cunha: 2005: 15). E conservar os processos, por sua vez, implica em
conservar virtualidades, que não se limitam a apenas congelar um determinado objeto,
mas sim mapear as relações relevantes que precisam ser conservadas para a sua
constante atualização. Em termos estruturais, a política dos patrimônios imateriais
tratar-se-ia mais de uma política das relações do que de seus termos, ainda que os
termos continuem sendo a referência englobante, isto é, o patrimônio material
enquanto tal continua sendo o termo não-marcado, como dizem os linguistas. Esta
política das relações, entretanto, só pode de fato ser consolidada a partir de outro
mecanismo de enquadramento político e analítico que não fosse o tombamento: a
política do registro dos bens imateriais.
A legislação dos patrimônios imateriais
A partir de 2003, com o lançamento da “Convenç~o para a Salvaguarda do
Patrimônio Imaterial”, a UNESCO passa a definir o patrimônio imaterial como objeto
de instrumento normativo no campo da cultura. Além do “reconhecimento”, a
Convenção ainda objetiva, segundo o representante da UNESCO no Brasil, Vicente
Defourny, “intervir em prol da superaç~o das desigualdades e da validaç~o da
diversidade cultural como um alicerce a mais para a sustentabilidade do
desenvolvimento nos planos internacional, regional e local” (Castro, 2008:4). No artigo
2º da Convenção, entende-se por “patrimônio cultural imaterial”:
“As pr|ticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas –
junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que
lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos,
100
os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio
cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração
em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em
função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua
história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e
contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à
criatividade humana”.
Antecipando a Convenção, ratificada pelo Brasil apenas em 2006, já em agosto
de 2000 o Brasil lançou o Decreto 3.551/2000 que cria o Plano Nacional do Patrimônio
Imaterial e a política de registro de bens culturais (imateriais). A promulgação do
decreto deve ser vista como resultante de um longo processo de caráter politico e
intelectual, realizado por técnicos e dirigentes do IPHAN e fomentado por vetores
acadêmicos nacionais e internacionais (Carneiro da Cunha, 2005). Se no âmbito
internacional a Convenção da UNESCO foi de notória influência, já no nível nacional o
semin|rio “Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteç~o”, realizado em 1997
pelo Minc na cidade de Fortaleza (CE) foi, segundo as próprias publicações do IPHAN
(2006), o evento mais marcante deste processo:
“O semin|rio produziu o documento A Carta de Fortaleza. Nela
recomendava-se o aprofundamento do debate sobre o conceito de
patrimônio cultural imaterial e o desenvolvimento de estudos para a
criaç~o de instrumento legal, instituindo o ‘Registro’ como principal
modo de preservação e de reconhecimento de bens culturais dessa
natureza” (IPHAN, 2006a: 12).
Como consequência direta da Carta de Fortaleza na política do Minc, em março
de 1998 foi constituída uma comissão interna com o objetivo de elaborar proposta
visando a implementação da politica do patrimônio imaterial. Junto a esta comissão,
foi ainda instituído o Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial (GTPI), que congregava
técnicos do Minc, da Funarte e do próprio IPHAN para assessorá-la. O trabalho destes
dois coletivos técnicos é apontado como responsável pelo texto final do Decreto
3.551/2000, que institui: “o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que
101
constituem patrimônio cultural brasileiro”, bem como o “Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial” (IPHAN, 2006a: 14).
Portanto, além do tombamento dos bens materiais, a partir do Decreto
3.551/2000, o Estado brasileiro passa a contar com um conjunto de políticas voltadas
para o Patrimônio Cultural Imaterial. As principais atuações desta nova politica se
assentam nos seguintes instrumentos: o registro dos patrimônios imateriais, o
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), o Programa Nacional de
Patrimônio Imaterial (PNPI) e os Planos de Salvaguarda (PS). Estes quatro
instrumentos merecem ser brevemente apresentados para que o enquadramento da
agrobiodiversidade sob a lógica dos patrimônios seja devidamente compreendida.
Mesmo sendo complementar ao tombamento, o registro dos bens imateriais não
visa em sua concepção congelar as mudanças que afetam e reconstroem as
manifestações culturais. Sua atuação é mais focada no reconhecimento e
acompanhamento de suas transformações por parte do Estado do que no
congelamento de suas inconst}ncias. Se ainda se trata de “preservar”, preservaç~o é
aqui entendida antes como a manutenção da memória, material ou não, desses bens
culturais ao longo de suas trajetórias temporais (Santana, 2003a: 55). Em contraposição
à política do tombamento, a política do registro considera, portanto, o caráter
processual e dinâmico dos bens imateriais, de modo que a própria noç~o de “tradiç~o”
passa a ser deslocada de seu convencional senso histórico e conteudístico e
redirecionada para a dimensão lógica e transformacional. Com efeito, o processo de
registro deve ser renovado a cada dez anos46, pois, como enfatiza o próprio documento
do IPHAN a esse respeito,
“O registro é sempre do retrato de um momento, que deve ser refeito
periodicamente, a fim de que possa se acompanhar as adaptações e as
transformações que o processo cultural opera nessas manifestações. Este
reexame também é importante para o monitoramento e a avaliação dos
impactos gerados pela declaração desses bens como patrimônio cultural
do país” (IPHAN, 2006a:22).
46
De acordo com o artigo 7 do Decreto 3.551/2000, “O Iphan far| a reavaliaç~o dos bens culturais
registrados, pelo menos a cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural para decidir sobre a reavaliaç~o do título de ‘Patrimônio Cultural do Brasil’”.
102
Ao levar em consideração as dinâmicas próprias às manifestações culturais, o
registro propõe o acompanhamento de suas transformações e detecção das relações
tidas como relevantes para a continuidade do bem imaterial. Como consequência, se as
palavras de ordem do tombamento s~o “conservaç~o e “restauraç~o”, em se tratando do
registro busca-se antes “documentar” e “acompanhar” as transformações sempre de
maneira processual. Em termos operacionais, o registro se refere à inscrição de
determinada manifestação local de relevância à cultura nacional em um dos quatro
“Livros de Registro”. No Livro de Registro dos Saberes s~o inscritos “os conhecimento e
modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades”. No Livro de Registro das
Celebrações s~o inscritos “rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho,
da religiosidade, do entretenimento, e de outras pr|ticas da vida social”. No Livro de
Registro das Formas de Expressão s~o inscritas as “manifestações literárias, músicas,
pl|sticas, cênicas e lúdicas”. E, por fim, no Livro de Registro dos Lugares são inscritos
“mercados, feiras, santu|rios, praças e demais espaços onde se concentram e
reproduzem pr|ticas culturais coletivas” 47.
Além destes quatro livros já acolhidos pelo aparato instrumental do IPHAN, o
Decreto 3.551/2000 ainda prevê a possibilidade de abertura de novos livros no intuito
de assegurar o reconhecimento de outras formas de manifestação cultural coerentes
com a lógica do patrimônio imaterial. A rigor, o registro em um destes quatro livros
sucede sua identificação e inventario, bem como estabelece um compromisso do
Estado em dar visibilidade ao bem registrado no intuito de acompanhar suas
transformações e garantir sua continuidade através da política de salvaguarda. Além
disso, pressupõe a participação ativa dos coletivos sociais envolvidos no bem imaterial.
47
Até o presente momento foram registrados os seguintes “bens imateriais”: no Livro dos Saberes:
“Sistema Agrícola Tradicional do rio Negro”, “Modo de fazer viola-de-cocho”, “Ofício dos Mestres de
Capoeira”, “Ofício de Sineiro”, “Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro e das
serras da Canastra e do Salitre/ Alto Paranaíba”, “Ofício das Baianas de Acarajé”, “Modo de Fazer Renda
Irlandesa, tendo como referência este ofício em Divina Pastora/SE”, “Ofício das Paneleiras de
Goiabeiras”, e “Saberes e Práticas Associados ao modo de fazer Bonecas Karajá”; no Livro das
Celebrações: “Círio de Nossa Senhora de Nazaré”, “Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do
Maranhão”, “Festa do Divino Espirito Santo de Pirenópolis/GO”, “Festa do Divino de Paraty”, “Festa do
Senhor Bom Jesus do Bonfim”, “Festa de Sant´Ana de Caicó/RN” e o “Ritual Yaokwa do povo indígena
Enawene Nawe”; no Livro das Formas de Express~o: “Arte Kusiwa - pintura corporal e arte gráfica
Wajãpi”, o “Frevo” e o “Jongo no Sudeste”; no Livro dos Lugares: “Cachoeira de Iauaretê - Lugar Sagrado
dos povos indígenas dos Rios Uapés e Papuri” e “Feira de Caruaru”.
103
O processo de inventario dos bens imateriais é em geral efetuado a partir da
metodologia intitulada INRC (Inventário Nacional das Referências Culturais), cuja
aplicação visa levantar os dados referentes ao processo patrimonializado de maneira a
totalizar suas correlações numa unidade territorial previamente selecionada. O intento
é justamente formar um banco de dados constantemente reatualizado, bem como
acompanhá-lo frente às transformações das relações que garantem singularidade dos
bens. Neste sentido, o inventário é apenas uma das etapas do registro, pois este
segundo, de maneira equivalente ao tombamento, é o reconhecimento por parte do
Estado do aspecto distintivo que uma determinada prática ou saber confere ao
patrimônio cultural nacional, marcando o compromisso do poder público em manter
sua continuidade. O INRC é, portanto, a metodologia desenvolvida pela instituição no
intuito
de
produzir
conhecimento
padronizado
a
respeito
das
referências
informacionais que compõem as manifestações culturais da sociedade brasileira 48. Ao
passo que o registro possui um caráter mais seletivo (e restritivo), pois, além de
reconhecer o valor e possibilitar o reconhecimento do bem, ainda prevê a concessão do
título de “Patrimônio Cultural do Brasil”, marcando o compromisso do Estado em
manter a sua salvaguarda a despeito das suas alterações ao longo do tempo. Dito de
outra maneira, tratar-se-ia “mais de documentação e acompanhamento e menos
intervenç~o” (Sant’Anna, 2003b: 19), como frisam seus idealizadores.
Além do registro e do inventário dos bens imateriais, o Decreto 3.551/2000 ainda
gera a obrigatoriedade dos poderes públicos locais e nacionais de promover ações para
a salvaguarda do bem registrado no intuito de conservar as transformações que são
fundamentais para a existência das formas de expressão cultural. Junto ao INRC e ao
registro, o Plano de Salvaguarda é um dos instrumentos da Política do Patrimônio
Imaterial cujos programas de atuação visam viabilizar as condições sociais tidas como
necessárias à continuidade existencial dos bens imateriais registrados. Como sublinha
uns dos responsáveis pelo desenho operacional da Salvaguarda,
48
Vale notar que a partir de 2010, com a implantação do Decreto nº 7.387/2010, outro instrumento de
inventário passou a ser operado pela instituição: o Inventário Nacional da Diversidade Linguística
(INDL). Para maiores informações sobre os debates que culminaram na implantação deste instrumento,
ver Cardoso (2010).
104
“a salvaguarda deve, antes, estimular e fortalecer as condições de
circulação (troca) e a reprodutibilidade (transmissão e mudança) dos
bens protegidos, ou seja, contemplar a natureza dinâmica e mutável de
seus objetos” (Arantes, 2005: 9).
Em termos oficiais, a salvaguarda dos bens imateriais se fundamenta no apoio à
continuidade das condições sociais e materiais que possibilitam a “transmiss~o” e
reprodução dos bens. Para tal feito, parte-se do conhecimento acumulado nos
processos de inventário e dossiê de registro para se identificar de maneira precisa as
formas de atuação condizentes com as especificidades colocadas por cada plano de
salvaguarda. Castro (2008: 24) sintetiza o conjunto de ações associadas à salvaguarda
nos seguintes quesitos: (1) apoio à transmissão do conhecimento às gerações mais
novas; (2) promoção e divulgação do bem cultural; (3) valorização de mestres e
executantes; (4) melhoria das condições de acesso a matérias-primas e mercados
consumidores; (5) organização de atividades comunitárias. Conforme sublinhado pela
antropóloga, a atuação da salvaguarda pode se dar desde o apoio financeiro aos
elementos chave dos bens, até a garantia de acesso {s “matérias primas” e promoç~o de
articulação política no nível local.
O IPHAN e o DPI
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é a autarquia
do Ministério da Cultura responsável por tratar da gestão do patrimônio cultural
nacional. A partir de 2004, o Instituto passa a atuar de maneira mais sistemática na
politica do patrimônio imaterial, notadamente com o surgimento do Departamento de
Patrimônio Imaterial (DPI), no qual temática do registro e da salvaguarda se
desenvolve. O Departamento é composto por duas Coordenações gerais: a
“Coordenaç~o Geral de Identificaç~o e Registro” e a “Coordenaç~o Geral de
Salvaguarda”. A primeira se subdivide em mais outras duas: “Coordenaç~o de
Identificaç~o” e “Coordenaç~o de Registro”. J| a segunda ainda dirige a “Coordenaç~o
de Apoio { Sustentabilidade”. As outras duas repartições vinculadas ao DPI, mas que
105
n~o respondem {s coordenações gerais s~o: o “Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular” (CNFCP) e a “Coordenadoria de Conhecimentos Tradicionais Associados”.
Em relação a esta última, vale ressaltar que em 20 de setembro de 2011 o CGEN
credenciou o IPHAN para autorizar instituições privadas e públicas a acessar CTA com
exclusiva finalidade de pesquisa. A intenção do credenciamento se fundou numa
tentativa de aprimoramento, maior agilidade e eficiência dos processos de solicitação
de autorizações de acesso a CTA. Já em janeiro de 2012, mediante Portaria interna do
IPHAN, foi homologada a formação do Grupo de Trabalho Permanente (composto por
membros das coordenações supracitadas) para adoção de procedimentos referentes à
autorização de pesquisa científica envolvendo CTA.
Figura 2 Organograma do DPI
49
Já no que condiz às propostas de registro de patrimônio imaterial, no cotidiano
do DPI estas são acionadas a partir de manifestações provenientes dos próprios grupos
promotores (ou de partes legítimas a elas associadas) e encaminhadas à presidência da
49
Agradeço a João Pimenta e Ellen Krohn pela confecção deste quadro.
106
instituição. De acordo com os artigos 2 a 4 da Resolução 001 de 2006, o envio de
pedidos por parte das comunidades locais deve respeitar às regras que se seguem:
Art. 2º - O requerimento para instauração do processo administrativo de
Registro poderá ser apresentado pelo Ministro de Estado da Cultura,
pelas instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, pelas Secretarias
Estaduais, Municipais e do Distrito Federal e por associações da
sociedade civil.
Art. 3º - O requerimento para instauração do processo administrativo de
Registro será sempre dirigido ao Presidente do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, podendo ser encaminhado
diretamente a este ou por intermédio das demais Unidades da
instituição.
Art. 4º - O requerimento será apresentado em documento original,
datado e assinado, acompanhado das seguintes informações e
documentos:
I. identificação do proponente (nome, endereço, telefone, e-mail etc.);
II. justificativa do pedido;
III. denominação e descrição sumária do bem proposto para Registro,
com indicação da participação e/ou atuação dos grupos sociais
envolvidos, de onde ocorre ou se situa, do período e da forma em que
ocorre;
IV. informações históricas básicas sobre o bem;
V. documentação mínima disponível, adequada à natureza do bem, tais
como fotografias, desenhos, vídeos, gravações sonoras ou filmes;
VI. referências documentais e bibliográficas disponíveis;
VII. declaração formal de representante da comunidade produtora do
bem ou de seus membros, expressando o interesse e anuência com a
instauração do processo de Registro.
Uma vez recebidas pelo departamento, as propostas são avaliadas e
encaminhadas para instrução. Em geral, a instrução é supervisionada pelo próprio
IPHAN, no entanto outros órgãos do Minc, unidades estaduais do instituto e entidades
publicas ou privadas que detenham conhecimento específico sobre os temas também
podem fazê-la (Cardoso, 2010:33). Em seguida, caso a deliberação seja positiva, é
emitido parecer no Diário Oficial da União e, após trinta dias de espera para eventuais
107
manifestações contrárias, o processo é encaminhado ao Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultural para deliberação final. Como adverte Castro (2008: 19), um dos
critérios-chave para o sucesso dos pleitos de registro é a sua “relevância para a
memória, a identidade, e a formaç~o da sociedade brasileira”.
O processo de registro propriamente dito e a elaboração do dossiê do bem
registrado são supervisionados pelo DPI, podendo ser confeccionado tanto pela
instituição como por unidades regionais ou ainda por entidades públicas ou privadas
com notório conhecimento sobre o bem a ser registrado. No dossiê deve constar uma
descrição pormenorizada e documentação condizente ao coletivo social detentor.
Estabilizando processos da agrobiodiversidade
Entre os meses de novembro de dezembro de 2010 diversos veículos midiáticos
divulgaram com louvor o registro do primeiro “sistema agrícola tradicional” pelo
IPHAN50 como patrimônio imaterial do Brasil. Além de salientarem que o Conselho
Consultivo da instituiç~o “reconheceu, por unanimidade, o Sistema Agrícola do Rio
Negro como patrimônio cultural brasileiro”, as matérias jornalísticas vinculadas ao
acontecimento ainda frisavam o protagonismo das associações comunitárias indígenas
pela conquista. De fato, é o que consta no Vol. I da pasta “Sistema Agrícola Tradicional
do Rio Negro” (IPHAN, 2007) dos arquivos do DPI, segundo a qual no dia 28 de junho
de 2007 teve início a solicitação oficial de registro por parte da Associação das
Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN).
No
documento
que
dá
abertura
ao
processo
administrativo,
cinco
representantes da diretoria executiva da associação somado ao então presidente da
Vide, “Sistema agrícola do Rio Negro é reconhecido como patrimônio cultural pelo Iphan” (http://siteantigo.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3227); “Sistema indígena no Amazonas é tombado pelo
Iphan”(http://www.d24am.com/amazonia/parintins-cultura-arte/sistema-indigena-no-amazonas-etombado-pelo-iphan/10645) e “Rio Negro (AM) Sistema agrícola é reconhecido pelo Ipham como
patrimônio cultural brasileiro” (http://www.gvces.com.br/index.php?r=noticias). Acessado em
29/01/2014.
50
108
mesma, José Augusto Fonseca, argumentaram a favor da necessidade de
patrimonializaç~o do “Sistema Agrícola do Rio Negro” (até ent~o sem contar com o
adjetivo “tradicional”), entendendo o mesmo como “o conjunto de saberes, pr|ticas,
produtos e outras manifestações associadas que envolve os espaços manejados e as
plantas cultivadas, as formas de transformação dos produtos agrícolas e os sistemas
alimentares locais” (IPHAN, 2007, vol. I: 01).
Na carta, os representantes da associação indígena delimitam as fronteiras
geográficas do sistema como estendidas desde a cidade de Barcelos, baixo rio negro,
passando por Santa Isabel, à mediana, e São Gabriel da Cachoeira, à montante. Ciente
do caráter seletivo do registro, o documento ainda apresenta as peculiaridades que
justificariam a patrimonialização:
“A primeira delas é o contexto multiétnico, e multilinguístico, no qual
este sistema agrícola é elaborado, desenvolvido e constantemente
atualizado. As diversas etnias, no mesmo tempo que produzem e
resguardam variedades agrícolas, tem em comum formas de transmissão
e circulação de saberes, práticas e produtos que respondem pela
altíssima agrobiodiversidade da região. Trata-se de uma agricultura de
pousio praticada em condições de baixa pressão demográfica o que lhe
outorga um caráter de alta sustentabilidade. O elemento central, e
estruturante, desta agricultura é a mandioca, representada nas roças por
dezenas de variedades constituindo uma forma de manejo única em
todo o Brasil da diversidade. O processamento da mandioca para
consumo envolve uma série de etapas específicas e o uso de artefatos,
em geral de cestaria, que expressam dimensões culturais importantes”
Estas seriam, no entendimento da diretoria executiva da ACIMRN, as razões
para o reconhecimento do sistema agrícola do rio Negro como patrimônio cultural do
Brasil. A singularidade do bem que justificaria sua patrimonialização não fora definida
meramente por seus elementos culturais, mas em função de seu arranjo sistêmico. Em
outras palavras, a “tradiç~o”, ou a tradicionalidade da agricultura local, fora deslocada
da perspectiva restrita os produtos e elevada a um entendimento relacional do bem,
em meio ao qual os componentes “sociais” e naturais da agricultura se integram
enquanto sistema. Para enfatizar a necessidade de reconhecimento, a carta finaliza a
solicitação nos seguintes termos:
109
“O complexo formado pelas formas de manejo dos espaços e das plantas
cultivadas, pelos processos e objetos envolvidos na transformação dos
produtos agrícolas, pelos sistemas alimentares decorrentes, e pelas
outras manifestações culturais associadas, constituem uma referência
cultural para os povos indígenas do Rio Negro. Este sistema agrícola
assegura também a permanência de várias outras práticas sociais
relacionadas com técnicas, expressões estéticas, sistemas cognitivos e
cosmológicos entre outros aspectos. Por essas razões, solicitamos seu
reconhecimento como Patrimônio Cultural Brasileiro”.
Aos leitores menos informados, poderia parecer muito categórico o linguajar
utilizado pela associação. Pois, de certa maneira, a solicitação já fora encaminhada ao
IPHAN em acordo com os termos e preceitos firmados pela legislação que regulamenta
o registro de patrimônios imateriais no Brasil. A própria noç~o de “sistema” utilizada j|
configura concordância com o que a legislação do patrimônio imaterial entende por
processos, em oposição aos produtos. Entretanto, na medida em que vamos adentrando
os arquivos da instituição, e com isso nos aproximando dos meandros da composição
burocrática, percebemos que esse movimento é muito mais dinâmico do que a
normativa jurídica nos permite acessar. E que artificial, se insistirmos, é a própria
separação entre o que é feito e o que é real. Assim, ao mesmo tempo em que as práticas
agrícolas são, de fato, sistêmicas, nomeá-las como sistemas só as tornaram mais reais
(Latour, 2001) – isto é, mais passíveis de serem enquadradas pelos instrumentos
estatais de patrimonialização. Por conseguinte, se, como propõe a legislação,
patrimônios imateriais são, por definição, dinâmicos e processuais, sistemas agrícolas,
são, por sua vez, passíveis de serem patrimonializados. E, ao patrimonializá-los,
habilidades técnicas de diversas ordens com o ambiente passaram a ser encaradas sob
um particular registro de “cultura”, segundo o qual os “saberes agrícolas” s~o de
natureza “imaterial”, bem como passíveis de serem transmitidos, perdidos e/ou
salvaguardados.
Embora o processo de registro tenha se iniciado a partir da carta da ACIMRN,
ao adentrar nos arquivos do Sistema Agrícola do Rio Negro pode-se constatar o quanto
o processo de patrimonialização foi multivetorial. Trata-se de uma composição que
envolveu tanto as instituições locais e parcerias regionais, quanto, no caso, um
110
programa de cooperação internacional entre Brasil e França. A partir do ano de 2005
tem início o projeto “Populações tradicionais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos
Tradicionais na Amazônia” (PACTA), uma cooperaç~o cientifica bilateral, envolvendo
o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), do lado
brasileiro, e o IRD (Institut de Recherche pour le Développement), do lado francês,
cujo objetivo centrava-se justamente no entendimento dos processos socioculturais e
biológicos
envolvidos
na
construção
da
agrobiodiversidade
amazônica,
especificamente nas regiões do médio rio Negro (AM) e alto rio Juruá (AC).
Esta primeira versão do projeto ambicionava responder as seguintes perguntas:
“Quais s~o os processos de construç~o de objetos biológicos e de saberes locais? Como
assegurar a continuidade dos processos de construção da agrobiodiversidade e dos
conhecimentos a eles associados?”. Apoiando-se numa metodologia fundada na
participação das comunidades locais, na espacialização dos dados e na identificação
das redes de troca de materiais agrícolas, o projeto tinha por resultados esperados: (1)
fortalecer os estudos etnobiológicos e antropológicos sobre a agricultura tradicional e
(2) contribuir, através de instrumentos de conservação, para políticas públicas locais de
valorização da agrobiodiversidade e do papel das populações locais na sua gestão.
Como se vê, a inovação do projeto PACTA foi ambicionar deslocar o
enquadramento jurídico da agrobiodiversidade para além de sua dimensão
estritamente biológica, calcada na conservação de recursos fitogenéticos, acoplando-a
à dimensão patrimonial (imaterial) em que se assentam os saberes e as práticas tidas
como “culturais” da agricultura. Ainda assim, mesmo frisando a n~o coleta de material
genético para fins de bioprospecção, o projeto não pode se furtar a cumprir com os
requisitos estipulados pela MP nº 2.186-16/2001, no tocante ao acesso a CTA com
finalidade de pesquisa. Com efeito, se a transformação da agrobiodiversidade em
patrimônio se deu no âmbito do IPHAN, antes, porém, o projeto teve que passar pelo
aval do CGEN.
111
a) De recurso a patrimônio
O projeto PACTA obteve sua autorização de acesso a conhecimentos
tradicionais associados para fins de pesquisa científica no CGEN mediante o Processo
nº 02000.005654/2005-78, requerido pela Universidade de Campinas (Unicamp) e
pautado na 39ª Reunião Ordinária do Conselho. No Plenário, o processo teve como
relatora a representante do Jardim Botânico (JB). A conselheira apresentou aos demais
que o projeto teria como coordenador brasileiro o antropólogo Mauro Willian Barbosa
de Almeida e que o objetivo centrava-se na identificaç~o dos “processos biológicos e
sócio-culturais que geram a agrobiodiversidade na Amazônia brasileira, visando
responder como assegurar a continuidade futura dos processos de construção da
agrobiodiversidade e dos conhecimentos a ela associados” (CGEN, 2006a). A relatora
salientou ainda que o projeto abrangeria o conjunto de moradores de Santa Isabel, no
rio Negro (AM), bem como Cruzeiro do Sul e Marechal Thaumaturgo, no alto rio Juruá
(AC).
No tocante às informações levantadas, foi exposto que as mesmas seriam
relativas aos seguintes quesitos: “nome de plantas cultivadas, classificações locais,
critérios locais de reconhecimento das variedades, práticas de cultivo e seleção,
espaços cultivados, redes sociais associadas à circulação do germoplasma, dinâmicas
individuais, formação e transmissão dos saberes, cultura material associada à
agrobiodiversidade e preparo de alimentos e formas de consumo” (CGEN, 2006a). A
pesquisadora e também coordenadora do projeto, Laure Emperaire, também estava
presente na reunião e fez esclarecimentos. Além de enfatizar que um dos resultados
mais importantes do projeto seria justamente a construção de uma experiência de
parceria positiva com populações locais, atuando a partir da complementaridade entre
saberes científicos e tradicionais, a pesquisadora sublinhou ainda dois pontos que
seriam de grande valia para as políticas da agrobiodiversidade.
O primeiro deles é a noção de variedade. De acordo com Emperaire, a noção de
variedade, entendida como unidade básica em termos de conservação de recursos
fitogenéticos, é uma noção biológica, convencionalizada em termos jurídicos, que tem
um sentido muito distinto das práticas e saberes das comunidades locais. Sendo,
112
portanto, de um lado, uma noção científica, e de outro, um recorte cultural. Tal
dualidade seria muito explícita no caso da mandioca, pois cada grupo tem seus
próprios critérios de definição das singularidades de cada variedade cultivada. Nesse
sentido, um dos objetivos do projeto PACTA seria justamente entender como se opera
esta variação entre a noção biológica de variedade e as noções locais, não apenas
condizentes à mandioca, mas também a outras espécies cultivadas na Amazônia.
Já o segundo ponto em que o projeto teria a contribuir é a noção de
comunidade. Emperaire enfatizou que muitas vezes a regulamentação do CGEN
considera que a unidade pertinente de manejo da agrobiodiverisdade é a “comunidade
local”. N~o obstante, alegava a pesquisadora, em relaç~o { mandioca as pesquisas têm
enfaticamente demonstrado que não é apenas a comunidade a unidade influente, mas
sim todo um complexo regional por meio do qual os materiais de germoplasma
circulam pelas redes de parentesco. Nas palavras de Emperaire, “se por um motivo ou
outro se separa essa circulação, se separa a possibilidade de ter uma ampla diversidade
em certo local, um fenômeno din}mico que vai muito além da comunidade”.
Finda a apresentação de Emperaire, o projeto foi comentado por outros
conselheiros que, em geral, parabenizaram o histórico da pesquisa do PACTA junto a
comunidades indígenas e tradicionais do Acre e o tratamento metodológico
dispensado. Foi ainda cogitado o potencial da pesquisa para servir de “modelo” para
outros processos que viessem a ser discutidos no âmbito do Conselho. Em especial, o
presidente da sessão dispensou elogios à obra Enciclopédia da Floresta organizada pelo
coordenador da pesquisa, professor Mauro Almeida, a partir da qual teria germinado o
projeto de se formar a primeira “Universidade da Floresta” no Acre, aglutinando, em
suas palavras, “uma ideia inédita j| que d| peso igual ao conhecimento científico e
tradicional” (CGEN, 2006a). No mais, os conselheiros parabenizaram a Secretaria
Executiva do MMA pela rapidez com a qual o processo fora trazido ao Plenário, num
curto prazo de dois meses. Ao final do comentário do conselheiro o processo foi posto
em votação e aprovado por unanimidade.
A primeira fase do projeto PACTA foi finalizada no ano de 2009, quando teve
início a segunda fase do projeto. Nesta segunda etapa, o objetivo geral e a metodologia
113
empregada permaneceram praticamente inalterados. Já no tocante aos objetivos
específicos, eis que surge algo novo: a noç~o de “sistema agrícola”. Como objetivos
específicos, o projeto previa os seguintes itens: (1) caracterizar com base empírica a
noção de sistema agrícola tradicional (elementos estruturantes, sistemas conceituais e
simbólicos associados aos sistemas agrícolas); (2) dar início à elaboração de um Atlas
de Sistemas Agrícolas Tradicionais, sem o objetivo de ser exaustivo, mas capaz de
refletir a variedade e pluralismo desses sistemas agrícolas; (3) estudar as
complementaridades entre as formas de manejo e conservação da diversidade agrícola
in situ e ex situ a partir da análise dos saberes e práticas mobilizadas nesses dois
registros; e (4) refletir e experimentar os instrumentos jurídicos e econômicos de
valorização da agrobiodiversidade visando o fortalecimento dos processos locais de
gestão da mesma. Assim, nesta segunda fase do projeto, a noção de sistema fora
acionada como perspectiva mediadora de duas dimensões supostamente distintas nos
processos de promoção da biodiversidade agrícola: a conservação dos recursos
fitogenéticos e a salvaguarda dos patrimônios imateriais.
Uma vez reconhecido o papel exercido pelos agricultores e agricultoras locais (o
recorte de gênero é marcante) como verdadeiros “selecionadores e conservadores de
uma diversidade biológica agrícola” (IPHAN, 2010: 11), foi inserido na agenda da
pesquisa o desafio prático de atender as demandas das comunidades no que condiz
com a manutenção das técnicas e dos conhecimentos associados à agrobiodiversidade
regional. Ainda que ambas as regiões de estudo apresentassem potencial para a
elaboração de projetos de valorização e fomento das práticas agrícolas, apenas na
pesquisa do Rio Negro as comunidades envolvidas consolidaram a organização política
necessária para alçar a agricultura praticada localmente à categoria de patrimônio
imaterial do Brasil. Viabilizou-se, assim, uma parceira capaz de satisfazer tanto os
anseios dos pesquisadores quanto dos anfitriões locais. Mais do que isso: em se
tratando de uma pesquisa inovadora no tocante à valoração da parceria positiva entre
cientistas e populações locais, o projeto PACTA possibilitou uma experiência única de
parceria e complementaridade de saberes, ampliando as relações entre coletivos
humanos, conhecimentos científicos, e dimensões ambientais correlatas às plantas
cultivadas.
114
Deste modo, no intuito de assegurar a continuidade da agricultura praticada na
região, bem como preservá-la frente ao avanço da agricultura intensiva, em julho de
2007 a ACIMRN deu entrada no IPHAN na solicitação de registro do Sistema Agrícola
do Rio Negro (doravante, SAT-RN) como patrimônio imaterial do Brasil. Motivada pelo
projeto PACTA, a solicitação de registro provocava o reconhecimento da agricultura
tradicionalmente praticada na região, bem como apontava para que as agências
governamentais passassem a empreender ações de fortalecimento e proteção das
variedades agrícolas cultivadas e dos processos culturais a elas correlatos.
São relevantes para os interesses aqui em questão os percursos que culminaram
na solicitação de registro por parte das comunidades do médio rio Negro. Afinal, pelo
menos no que condiz ao cenário brasileiro, trata-se de um caso pioneiro no qual, para
além das preocupações voltadas aos recursos fitogenéticos, se buscou associar as
dimensões tidas como “imateriais” da agrobiodiversidade. Em termos oficiais, tudo tem
início com uma carta da pesquisadora Laure Emperaire, direcionada à coordenadora
do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI/IPHAN), Ana Gita de Oliveira, por
meio da qual a pesquisadora primeiramente esclarece o interesse científico do projeto
PACTA – qual seja, entender os processos de produção da agrobiodiversidade e de
saberes tradicionais associados em comunidades tradicionais, indígenas e locais,
considerando-os concomitantemente como produções culturais e biológicas. Em
seguida convida a coordenadora do IPHAN a participar da reunião realizada em Santa
Isabel do rio Negro entre os dias 11 e 15 de junho de 2007. Na ocasião, tendo como
participantes tanto os integrantes brasileiros e franceses do projeto PACTA como
representantes da ACIMRN, seriam discutidas as possibilidades de aplicação de
instrumentos de conservação e valorização dos patrimônios imateriais no contexto da
produção da agrobiodiversidade local, dentre eles, e em especial, o que viria a ser o
SAT-RN.
A diretora do IPHAN aceitou o convite e como resultado confeccionou um
relatório da reunião, documento este também posteriormente anexado ao processo
administrativo. Além de apresentar os interesses do projeto PACT, qualificar as
singularidades deste sistema agrícola e, por fim, contextualizar o cenário político do
médio rio Negro e de suas associações indígenas, o relatório apresenta ainda uma
115
proposta de agenda de trabalho interinstitucional (IPHAN, PACTA e ACIMRN),
composta de recomendações, roteiro e cronologia. Basicamente todos os passos
tomados em direção à patrimonialização do bem já foram previstos no relatório. A
própria carta posteriormente elaborada pela diretoria da ACIMRN e encaminhada à
presidência do IPHAN já estava inclusa como o primeiro item da agenda de trabalho:
“A ACIMRN elaborar| uma carta ao presidente do IPHAN manifestando
seu interesse no Registro do Sistema Agrícola do Rio Negro. Na mesma
carta fará a indicação de consulta à Associação das comunidades
Indígenas de Barcelos – ACIBA – e à Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro – FOIRN – para a elaboração do pedido de
Registro do Sistema Agrícola do Rio Negro, reservando-se o papel de
protagonista da solicitação. Caso não haja adesão por nenhuma das
partes, o pedido ser| feito apenas pela ACIMRN” (Oliveira, Ana Gita de,
pg. 3, grifo meu).
E assim se deu. Em 28 junho de 2007 a ACIMRN remete a carta à presidência do
IPHAN notificando oficialmente o interesse da associação pela patrimonialização do
desde ent~o nomeado “Sistema Agrícola do rio Negro”. O fato é que, partindo de uma
constatação biológica - no caso, o elevado índice de variedades51 de mandioca brava-, a
justificativa utilizada pela ACIMRN para a patrimonialização dos sistemas agrícolas do
rio Negro passou então a centrar-se no arranjo sociocultural que sustenta esta
agrobiodiversidade. Nesta chave analítica privilegiada, seu caráter distinto residiria
justamente na junção de vários elementos que em conjunto formariam um sistema.
Através deste discurso público, a própria comunidade passa a se reconhecer como
produto e produtora de uma área cultural multiétnica e multilinguística, por meio da
qual não apenas se promove e se atualiza a agrobiodiversidade, como também a
mesma é posta em circulação em compasso com as especificidades das redes de
parentesco local.
Por “variedade” as pesquisadoras entendem “a unidade mínima de percepção e de manejo da diversidade de
plantas cultivadas, o que corresponde em língua vernacular à qualidade ou tipo. Uma variedade é representada
por um conjunto de plantas consideradas como suficientemente homogêneo e suficientemente diferente de outros
grupos de indivíduos para receber um nome particular a ser objeto de práticas e conhecimentos específicos ao
longo de seu ciclo. Essa definição enfatiza a dimensão cultural da percepção da diversidade biológica, não
cabendo fazer um paralelo com a taxonomia científica”. (IPHAN, 2010: 73).
51
116
Dando continuidade ao processo de reconhecimento, em 11 de setembro de 2007
a então diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI/Iphan), Márcia
Sant’Ana, encaminhou ofício para a diretoria executiva da ACIMRN acusando o
recebimento da solicitação de registro bem como esclarecendo que o Decreto
3.551/2000 e a Resolução n. 001/2006 demandavam outras informações não
disponibilizadas pela requerente. Tais informações não teriam sido apresentadas no
pedido original da associação e seriam fundamentais para a abertura do processo
administrativo do registro, a saber: 1 – Documentação mínima disponível, adequada à
natureza do bem, tais como fotografias, desenhos, vídeos, gravações sonoras ou filmes;
2 – Referências bibliográficas disponíveis; 3 – Justificativa do pedido, se o bem estaria
sendo ameaçado ou sofrendo algum tipo de risco. Esta demanda foi acolhida por Laure
Emperaire, que encaminhou ao IPHAN uma documentação contendo o relatório de
atividades do projeto (a mesma documentação que tivera sido encaminhado ao CGEN
a título de adequação à MP 2186-16/2001), junto a três artigos científicos de sua autoria.
Uma vez sanada as lacunas documentais, em 23 de outubro de 2007 a então diretora
substituta do DPI, Ana Gita de Oliveira, encaminhou ofício à ACIMRN comunicando a
abertura do processo nº 01450.010779/2007-11 correlato à proposta de Registro do
“Sistema Agrícola do Rio Negro” como Patrimônio Cultural Imaterial no Livro de
Registro dos Saberes.
Na nona reunião da Câmara do Patrimônio Imaterial, realizada nos dias 11 e 12
de fevereiro de 2008, o registro foi apreciado pelos conselheiros. A solicitação foi
avaliada como pertinente à instrução do processo de registro, bem como sublinhada a
inovação oriunda da abordagem sistêmica para este tipo de bem cultural. Vale ressaltar
que nesta mesma reunião do Conselho também foi analisado o registro da “Cajuína”
como patrimônio imaterial do Brasil. Esta, por sua vez, foi tida como incompatível,
mas o conteúdo desta incompatibilidade nos é significativo. Assim consta em ata:
“A C}mara entende que o bem a ser registrado não deve ser a cajuína,
mas o sistema cultural onde ela está inserida. Dessa forma, chegou à
conclus~o de que o nome adequado para dar tal processo é “Registro dos
saberes e fazeres tradicionais associados ao uso do caju”. Este seria o
eixo estruturante que inclusive já havia sido proposto por Aloísio
Magalhães quando sugeriu que o Centro Nacional de Referências
Culturais se dedicasse ao estudo Multidisciplinar do Caju”.
117
A um só tempo, portanto, o registro da cajuína teve que ser reelaborado e
sistema agrícola tradicional do rio negro passou a ser tomado como um caso “modelo”
para outras propostas de patrimonialização. A noç~o de “sistema” foi elogiada no
sentido de possibilitar a acolhida de outras demandas por patrimonialização oriundas
da sociedade civil, dentre elas, e em especial, aquelas referentes {s “comidas típicas”. A
C}mara sugeriu ainda a inclus~o do adjetivo “tradicional” na qualificaç~o do bem.
Mediante o ofício n. 0083/08/GAB/DPI/Iphan, de 23 de maio de 2008, a então
diretora do DPI, M|rcia Sant’Anna, comunicou { ACIMRN que a solicitaç~o de registro
havia sido apreciada tanto pela Gerência de Registro do DPI quanto pela Câmara do
Patrimônio Imaterial e que ambas instâncias teriam deliberado pela pertinência da
solicitação. Entretanto, para que o enquadramento se efetivasse enquanto tal, a ACRIM
deveria acrescentar o adjetivo “tradicional”, passando, pois, a nomear o bem como
“Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro”52.
b) Objetos e Sistemas
Como vimos no início deste capítulo, a retórica da “reconstruç~o permanente”
(Gonçalves, 2012), animada pelos idealizadores e defensores da nova política do
patrimônio imaterial, visa justamente superar as dicotomias que separam os
componentes físicos dos patrimônios de seus aspectos simbólicos. Ainda assim,
cumpre ressaltar que a gramática norteadora da política do registro segue repleta de
oposições hilemórficas que separam a forma da matéria, o material do imaterial, o
tangível do intangível, de modo que estas oposições continuam sendo uma tensão
constitutiva.
52
Vale notar que em setembro de 2008 o IRD e o IPHAN assinaram um termo de cooperação técnica
internacional objetivando “conhecer, salvaguardar e valorizar os sistemas agrícolas nos seus diversos
componentes, desde as formas de manejo do espaço, a diversidade agrícola em jogo, seus produtos,
formas de processá-los e modelos alimentares resultantes, produzidos por comunidades tradicionais no
Brasil” (Termo de Cooperação Técnica IRD/Iphan, 2008).
118
Dizendo de outro modo, seja advogando que “o INRC supera a falsa dicotomia
entre patrimônio material e imaterial, tornando-os como faces de uma mesma moeda:
a do patrimônio cultural” (Sant’anna, 2003: 56), ou ainda que “as dimensões materiais e
imateriais do patrimônio s~o conceitualmente entendidas como complementares”
(IPHAN, 2006a: 18), o fato é que, como enfatiza Coelho de Souza (2010: 150), a
gram|tica da PPI continua “excessivamente dependente do sentido ‘literal’ do
patrimônio cultural e da peculiar (durável) materialidade de que este sentido
depende”. Isto é, embora contrapondo a “retórica da construç~o permanente” {
“retórica da perda”, o patrimônio imaterial continua a operar na mesma lógica segundo
a qual o “patrimônio” ele mesmo é o termo de referência. Tal característica carrega
consigo tensões, implicações e complicações, que são revolvidas caso a caso, em cada
pleito de registro, pelos técnicos do IPHAN responsáveis pela implantação desta
política. Ao dissertar justamente acerca dos dilemas enfrentados por esta política,
especialmente no tocante { “quest~o especial das línguas”, objeto privilegiado de sua
dissertação, Cardoso (2010) sublinha que:
“Embora o tema fosse (e seja) considerado fundamental, o Iphan tinha (e
tem) uma série de dúvidas a respeito da possibilidade de abordar as
línguas como um patrimônio imaterial no mesmo sentido das quatro
categorias de bens já estabelecidas no Decreto 3.551/2000, a saber:
celebrações, saberes, formas de expressão e lugares. Isso porque, mais do
que um bem cultural semelhante aos que já estavam então
categorizados, as línguas eram vistas como uma das condições de
existência desses bens e/ ou como veículos de (re)produção e
transmissão dos mesmos. Sendo consideradas um objeto (de estudo)
distinto e, ao mesmo tempo, (bastante) complexo, havia dúvidas que
diziam respeito também à adequação dos instrumentos de descrição e
documentação técnica disponíveis no Iphan a um objeto que, como tal,
parecia “demandar uma abordagem própria” e uma “especializaç~o
técnica inexistente no contexto dos órgãos de preservação do
patrimônio” (Cardoso, 2010: 10)
Nesse sentido, a objetivação das línguas enquanto patrimônio imaterial
demandou abordagens próprias para a adequação de seu enquadramento lógico. Vale
notar que a etnógrafa também trabalhava na instituição à época de sua dissertação, o
que lhe possibilitou oferecer uma série de exemplos (comparativos) extremamente
119
elucidativos destes dilemas metodológicos enfrentados pelos técnicos da instituição.
No caso da solicitaç~o de registro do “sanduíche Bauru”, a resposta do IPHAN foi que:
“(...) n~o é possível registrar receitas culinárias, mas que, ao invés disso,
se deve atentar para o fato de que existe toda uma “teia de relações
sociais” por tr|s de um “saber-fazer” desse bem cultural que se quer
registrar e que isso deve ser o que expressa o valor do bem para a
comunidade envolvida (...) Assim, para que o pedido do sanduíche fosse
admitido, seria preciso “revelar” “traços” que definissem um
determinado “perfil cultural”, ou mesmo, uma “identidade singular” que
fosse “merecedora de preservaç~o e valorizaç~o”, o que, nesse caso,
implicaria seu “reconhecimento” como “representaç~o da comida de fast
food adaptada { cultura brasileira e/ ou como “um dos sanduíches mais
populares do país” (Cardoso, 2010: 37, grifo meu).
Este procedimento de “desmaterializaç~o” da cultura (material) do “sanduíche
Bauru” também ocorreu no processo de registro do “Ofício das Baianas de Acarajé”:
“A ideia é que, tal como se deu com o registro do Ofício das Baianas de
Acarajé, não se trata de reconhecer e preservar as receitas, mas dar
atenção a todo um “sistema cultural” que envolveria, além dessas
receitas, diferentes dimensões da vida social, como, no caso do acarajé, o
interior dos terreiros de candomblé, os cantos e pontos dos tabuleiros
das baianas espalhados pelas ruas de Salvador, os sentidos dos quitutes
que compõem esses tabuleiros e, sobretudo, os sentidos do “modo-defazer” (e consumir) esse “bolinho de fogo” (Vianna, 2004; Mendonça et
al, 2005). O “valor patrimonial” desse bem remeteria, dessa forma, {
história e riqueza de todo um “universo cultural específico”, cujos
reconhecimento e preservação, por sua vez, estariam relacionados à
valorizaç~o e transmiss~o permanente dos “saberes” pertinentes a esse
universo (...)” (Cardoso, 2010: 38, grifo meu)
Diante desta tensão geral entre as dimensões materiais e imateriais, cada pleito
de registro de patrimônio imaterial coloca aos técnicos do IPHAN um desafio singular.
No registro da agricultura do Rio Negro, o desafio se deu na tentativa de conjugar
diversos níveis da agricultura sem se abster da univocidade necessária para a
patrimonialização. Como resposta a este desafio, a abordagem sistêmica foi a solução
acionada pelos formuladores do dossiê de patrimonialização para registrar as escalas
120
ecológicas e socioculturais de maneira a conectar tantos os domínios da vida humana
quanto os ecossistemas em que eles repousam. A partir desta mediação metodológica,
a noção de diversidade passa a ser entendida menos como a soma dos elementos que
compõem o sistema e mais como o espectro de conexões que os correlacionam. Já a
estabilização das atividades de diversificação agrícola deixa de se limitar à simples
preservação de um recurso genético e passa a caracterizar a agricultura do rio Negro
como um feixe de relações, cujas facetas técnicas, culturais e ambientais passam a ser
constitutivas de verdadeiros amálgamas de conhecimentos, práticas e materiais
genéticos.
No “Semin|rio Patrimônio Imaterial e Sistemas Agrícolas”, realizado pelo Iphan
e o IRD em Brasília (2009), as palestrantes acentuaram que “a noç~o de sistema se
aplica de fato a todos os bens registrados no patrimônio imaterial mesmo se essa
abordagem n~o é explícita no Decreto 3551/2000” (IPHAN, 2007, vol. III: 453). A título
de exemplo, e nos restringindo ao Livro de Registro dos Saberes, podemos citar os
dossiês: “Modo de fazer viola-de-cocho”, “Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas
nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre/ Alto Paranaíba” e “Ofício das
Paneleiras de Goiabeiras” como casos nos quais, ainda que de maneira implícita, a
abordagem sistêmica foi constitutiva do processo de registro. Em todos estes registros,
termos mediadores equivalentes à abordagem sistêmica foram acionados para habitar a
tensão entre materialidade e imaterialidade53.
O parecer de registro do “Modo de Fazer Viola-de-Cocho” como patrimônio
imaterial do Brasil foi feito pela relatora Ângela Gutierrez, cujo encaminhamento
positivo culminou registro do bem no Livro dos Saberes. No parecer, a relatora enfatiza
que “[A] viola-de-cocho e essas manifestações musicais não devem ser dissociadas uma
das outras por se tratarem de bens relacionados a um mesmo universo eco-sociocultural” (IPHAN, 2009: 81). De maneira similar, o relator do processo referente ao
“Ofício das Paneleiras de Goiabeiras” (primeiro bem imaterial registrado no Livro dos
Um exercício comparativo mais exaustivo sobre as relações envolvendo as dimensões “técnicas”,
“ambientais” e “culturais” no Livro de Registro dos Saberes foi empreendido no }mbito do Projeto de
Iniciação Científica (Proic) UnB 2011-2012. O projeto foi coordenado pelo professor Carlos Sautchuk e
desenvolvido por Ellen Krohn, Michele Cheibub, Lucas Farage e por mim. Restrinjo-me aqui a apenas
citar um de seus resultados.
53
121
Saberes), o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, além de qualificar o bem como
“um sistema de saberes pr|ticos tradicionais com qualidades de um patrimônio
nacional” (IPHAN, 2006b: 66), também pôs em foco que “a produç~o das panelas de
Goiabeiras é parte de uma realidade eco-sócio-cultural construída historicamente pelos
sucessivos grupos sociais que vem ocupando aquela localidade, em suas relações de
troca com o meio natural e com a sociedade envolvente” (2006b: 66). Por fim, no caso
do “Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro e das Serras da
Canastra e do Salitre/ Alto Paranaíba” o conceito de “território cultural” também flerta
com as abordagens sistêmicas. Ou melhor, com uma tentativa de solucionar a mesma
tensão pela qual a noção de sistema fora acionada. De acordo com o dossiê de registro
do bem, a integração entre as dimensões materiais e imateriais sugeriram a semântica
acionada para o conceito de “território”, a saber:
“Território é um modelo explicativo que tem a base em um produto
cultural que congrega em si interesses, motivações, utilidades e valores
para uma determinada coletividade. Ele é físico e material e é, também,
cultural e imaterial. Interpretar um bem patrimonial nessa premissa é
conferir-lhe utilidade social e cultural” (IPHAN, 2006c: 79).
Propondo uma solução inovadora para o problema da tensão material/
imaterial, ao se apoiar de maneira explícita na noç~o de “sistema” o registro do SAT-RN
passa a se atentar não somente aos produtos, mas, sobretudo, às relações entre os
elementos constitutivos da agrobiodiversidade. Aqui o “bem”, ele mesmo, passa a se
constituir enquanto um conjunto de relações, especialmente a quatro conjuntos delas:
a) relações entre as plantas cultivadas e as mitológicas locais, b) relações de manejo do
espaço e das plantas, c) relações associadas às transformações dos alimentos e a cultura
material, e d) relações constitutivas do sistema alimentar e diversificação agrícola.
Conforme explicitado no próprio dossiê de registro do bem:
“O uso da express~o sistema, um conjunto de elementos em interação
(Delattre, 1984), no título do registro resulta da abrangência do bem em
questão. Passar da noção de agricultura à de sistema agrícola significa
evidenciar interações deste campo de atividade com outros domínios da
vida social, cultural e material de um grupo e não se limitar ao registro
funcional. Trata-se de um sistema aberto, construído em torno das
relações sociedades-espaços-plantas que incorpora certos elementos em
122
funç~o de contextos culturais, ecológicos, históricos ou ainda políticos”
(IPHAN, 2010: 18).
Segundo os documentos consultados, a discussão em torno da adoção da
abordagem sistêmica teve início com uma reunião realizada em 13 de novembro de
2007, nas dependências do DPI/IPHAN, na qual estiveram presentes a pesquisadora
Laure Emperaire (IRD), Carlos Nery (ACIMRN), Abraão França (FOIRN), Ana Cláudia
Lima e Alvez (DPI), Ana Gita de Oliveira (DPI), Teresa Paiva (DPI) e Sílvia Guimarães
(DPI). O objetivo da reunião era justamente assentar as bases para a implementação
pioneira da noç~o de “sistema” na política de patrimônio imaterial. Além disso, foi
aventada a possibilidade de estender esta noção a outras demandas que chegam ao
IPHAN no intuito de se registrar comidas típicas sob o signo (“sistêmico”) do
patrimônio imaterial. Na reunião foram levantadas as possibilidades de se considerar:
“n~o o produto em si, mas o processo para sua criaç~o, isto é, o conjunto de
saberes, práticas e outras manifestações associadas que envolvem espaços
manejados, as plantas cultivadas, as formas de transformação dos produtos
agrícolas e maneiras de se alimentar. Em suma, o complexo que vai das roças
até os alimentos e os seus modos de consumo em diversos contextos sociais”
(IPHAN, 2007, vol. III: 453).
No documento de memória da reunião (IPHAN, 2007, vol. III) foram destacados os
seguintes pontos, que tomo a liberdade de transcrever na íntegra, com grifos de minha
autoria:
1. Há uma crescente demanda de solicitações de Registro de comidas, o que revela
a importância de culturas como a da mandioca, do milho, do feijão, do
amendoin, entre outras, na diversidade que compõe o Brasil.
2. O problema nessas solicitações é que a ênfase dada nos produtos em si suprime o
contexto social onde um grupo evidencia a elaboração dessas comidas. Assim, são
olvidadas as dimensões de produção, da rede de troca onde se compartilha
conhecimento, produtos e sementes, da lida com a terra e do tempo das
plantações e da colheita. Portanto, temos o desafio de elaborar o conceito de
123
sistema agrícola onde essas comidas estão inseridas com ênfase sobre o processo
de produção.
3. A solicitação de Registro do Sistema Agrícola do Rio Negro surge como uma
oportunidade de pensar, ao longo da instrução desse processo, o conceito de
sistema agrícola, o qual poderia ser utilizado em outras situações.
A reunião contou ainda com uma apresentação de Laure Emperaire, resumida
na memória da reunião, conforme segue:
1. Há uma região delimitada onde acontece esse sistema que inclui a fronteira, o
alto e o médio rio Negro até alcançar a cidade de Barcelos (AM). Nesse território
é possível identificar uma rede de troca de conhecimento acerca do sistema
agrícola, uma vez que de Barcelos até Manaus uma outra realidade é
apresentada.
2. O Sistema Agrícola do Rio Negro foca processos que geram produtos.
3. A noção de sistema engloba os elementos: plantas cultivadas, espaços, redes
sociais, cultura material, sistemas alimentares, saberes, normas e direitos.
4. Há elementos ou conceitos estruturantes na concepção da ideia de sistema
agrícola: sistema dinâmico, dimensão temporal, noção de diversidade,
mandioca ou maniva como referência estruturante.
A reunião teve como resultado a delimitação geográfica do que se convencionou
chamar de “Sistema Agrícola do rio Negro”, definindo-o como englobando a montante,
mediana e jusante do curso do rio, e estabelecendo como seus pontos de referência na
cartografia política os municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do rio
Negro e Barcelos. A legitimação desta escolha se deu tanto por razões administrativas,
pois nestas cidades se encontram as sedes das associações de apoio, parceiras do
projeto, quanto por razões propriamente internas ao “sistema”, dado que essa regi~o
124
engloba as extensas redes de parentesco e, por sua vez, de troca de conhecimentos,
processos rituais e materiais agrícolas, incluindo tanto as plantas cultivadas quanto os
objetos técnicos associados às casas de farinha (IPHAN, 2007, vol. III: 451). No tocante
à delimitação de conteúdo, a reunião estabeleceu que os componentes do sistema
fossem fixados nos seguintes tópicos: “plantas cultivadas”, “espaços”, “redes sociais”,
“cultura material”, “sistemas alimentares”, “saberes”, “normas” e “direitos”. Dentro
destes tópicos, a mandioca brava (Manioc Esculientacrantz ssp.) cumpriria a função de
“elemento estruturante”, de modo que todos os outros elementos do sistema gravitam
em torno da organização das manivas54.
***
Destaca-se desta reuni~o, portanto, a noç~o de “sistema” acionada para qualificar o
conjunto de relações que se estabelecem em torno das práticas agrícolas do rio Negro.
Sendo esta uma noção de larga trajetória no pensamento ocidental, faz-se oportuno
explorar seus contornos e críticas já clássicas, no intuito de compreender alguns de
seus limites e potenciais pertinentes ao seu acionamento na dinâmica patrimonial. Não
se trata aqui de contrapor a noção teórica de sistema a sua utilização prática no
decorrer de seu agenciamento. Afinal, vale notar que seu emprego no âmbito do SATRN fora feito de maneira um tanto quanto fluida e sem grandes comprometimentos
teóricos de ordem mais geral. Menos ainda se trata de formular uma "crítica" às
abordagens sistêmicas, até mesmo porque o emprego desta noção demonstrou ser uma
escolha bem sucedida de fazer as mediações necessárias para articular o caráter
dinâmico e processual das práticas agrícolas frente às condições de possibilidade
ofertadas pelo hilemorfismo estatal. Ambiciona-se, antes, expor o modo de existência
desta noção para que as perguntas a partir dela formuladas, e seus problemas
decorrentes, sejam melhor compreendidos.
Tal qual utilizado no dossiê de registro, “maniva” é um “termo polissêmico que designa a variedade de
mandioca, a parte epigéia do pé de mandioca, o caule inteiro e o pedaço de caule cortado que servirá de
estaca para o plantio”. (IPHAN, 2010: 47).
54
125
É certo que no caso do SAT-RN a noção de sistema se pretende antes como um
esforço para equacionar movimentos e transformações do que o congelamento das
relações. Ou seja, ao contrário de tratar o fenômeno agrícola de maneira estática e
fracionada, o mesmo é tido de maneira dinâmica e relacional. Ao acionar a noção de
“sistema”, h| um claro intuito de n~o somente abordar os elementos (produtos), mas,
sobretudo, conseguir objetivar as relações (processos) dos saberes e das práticas
constitutivas da agrobiodiversidade. No entanto, por fazer parte do léxico científico, a
noç~o de “sistema” – e sua derivaç~o em “sistema agrícola” – ao mesmo tempo em que
busca alternativas, é também perpassada por tensões constitutivas do pensamento
moderno. Conforme nos diz Latour (1994), a rigidez característica da noção de sistema
é pertinente ao repertório moderno, que necessita separar a imanência dos fenômenos,
onde tudo se mistura, da transcendência dos modelos, onde tudo é purificado e
depurado. Para os modernos, nos diz Latour, a “cultura” e a “natureza” só podem ser
integradas enquanto realidade após o processo que as decompõem e em seguida as
compõem de maneira sistêmica (1994: 9).
Isto é também o que afirma Mura (2011), em seu ensaio sobre o emprego das
abordagens sistêmicas nos estudos de Antropologia da Técnica. Embora o tom crítico
empregado por Mura extrapole o interesse eminentemente compreensivo aqui visado,
faz-se oportuno apresentar suas ponderações a estas abordagens. Para este autor, além
do etnocentrismo analítico que privilegia noções externas aos fenômenos,
inevitavelmente não aproveitando as contribuições procedentes dos pensamentos
indígenas, as abordagens sistêmicas acarretariam em pelo menos três consequências
indesejáveis.
A primeira delas seria a concepção das atividades de feitura empreendidas por
grupos humanos sob o signo da “produç~o”. Neste sentido, haveria um principio de
causalidade, anterior {s relações pr|ticas propriamente ditas, que “coloca a relaç~o
entre o homem e a matéria como um ato de produção” (2011: 96, grifo meu). A segunda
consequência, que não deixa de ser derivada da primeira, condiz com a assertiva
segundo a qual apenas os humanos produzem, isto é, transformam a matéria-prima em
matéria trabalhada, acarretando numa fenda ontológica que separa o “Homem” da
“Natureza”. Com efeito, prossegue Mura, “os fenômenos causais existentes na natureza
126
são assim separados e considerados distintos dos fenômenos que regem a vida do
homem” (2011: 96). Por fim, um terceiro aspecto, diretamente conectado aos outros
dois precedentes, também chama a atenção do antropólogo. Trata-se, aqui, da noção
abstrata de totalidade, pertinente tanto aos polos humanos e naturais como também à
conexão entre ambos. Desta maneira, “além de expressar duas ontologias distintas, os
dois lados da dicotomia enunciam também a ideia de coletividade, de conjuntos, de
sistemas” (2011: 97). Portanto, de um lado teríamos a “Natureza”, cuja composiç~o se
daria a partir de relações de ordem ecológica; de outro, o “Homem”, encarado como
express~o da sociedade e sob a égide do “sistema simbólico”. Ambos, por sua vez, se
conectariam enquanto “sistema”, o que implicaria na “ênfase na promoção de uma
ideia de totalidade e de coerência nas concatenações técnica dos elementos” (2011: 105,
grifo meu).
No tocante ao acoplamento da teoria dos sistemas às práticas e aos saberes
associados { agricultura, a chamada “teoria dos sistemas agr|rios” também opera a
partir desta separação (sucedida pela reintegração) apontada por Bruno Latour e Fábio
Mura. Uma obra que se destaca neste arcabouço teórico, citada inclusive no dossiê de
registro do SAT-RN, é o compêndio Histoire des agricultures du monde, de Marcel
Mazoyer e Laurence Roudart (1997)[2008]. Tomados ali enquanto sistema, os diversos
tipos de agricultura são encarados como constructos teóricos formulados pelo analista,
que torna significante a manifestação agrícola historicamente construída e
geograficamente situada. Uma vez sendo a pluralidade de manifestações de culturas
agrícolas praticadas por populações humanas fenômenos complexos e singulares,
recorre-se ent~o { noç~o de sistema no intuito de “traçar uma fronteira virtual entre
esse objeto e o resto do mundo, e considerá-lo como um todo, composto de
subsistemas hierarquizados e interdependentes” (2008: 72). Em sua exatid~o, analisar a
biodiversidade agrícola de um determinado local e numa determinada época em
termos de sistema consiste em abordar seu funcionamento como funções e
combinações interdependentes e complementares.
Para Mazoyer & Roudart (2008), em razão da elevada complexidade e tipos de
“formas” agrícolas observ|veis pelo mundo, faz-se necessário decompor analiticamente
os sistemas agrícolas em dois subsistemas principais, a saber: “o ecossistema cultivado
127
e o sistema social produtivo, estudando tanto a organização e o funcionamento de cada
um desses subsistemas, como suas inter-relações” (2008: 72). Portanto, além de separar
o design formal de seu conteúdo fenomênico, é ainda operada a cisão, seguida da
decomposição e, por fim, reconexão dos subsistemas internos aos sistemas agrícolas.
O primeiro destes dois subsistemas, o ecossistema cultivado, é tomado como
contendo uma organização própria, dividida em outros subsistemas complementares:
as hortas, as florestas as terras cultiváveis, dentre outros relevantes para cada situação
concreta. Cada uma destas variáveis contribui de maneira funcional para a renovação
do sistema. Para os autores, a circulação interna de matéria e energia deve ser tomada
em paralelo com as trocas exteriores dos ecossistemas próximos ou até mesmo
distantes. A rigor, afirmam, “devido a essas trocas e estas influências longínquas, o
estudo de um sistema agrário não pode ser feito isoladamente” (2008: 73). Por outro
lado, o sistema social produtivo, tomado como “sistema técnico, econômico ou social”,
engloba a dimensão laboral pela qual os humanos desenvolvem suas práticas
produtivas que repousam no ecossistema cultivado. Este subsistema seria composto,
portanto, de “homens e mulheres (força de trabalho, conhecimento e savoir-faire),
meios inertes (instrumentos e equipamentos produtivos) e de matéria viva (plantas
cultivadas e animais domésticos)” (idem).
Enquanto a renovação do ecossistema cultivado se dá a partir do funcionamento
orgânico de seus subsistemas internos – “funç~o de desmatamento (...), funç~o de
renovaç~o da fertilidade (...), conduç~o dos cultivos” (2008:73) –, já a renovação do
sistema social produtivo acompanha seus meios de produção e atividades – “esses
meios de produção e essas atividades produtivas são organizadas nos estabelecimentos
pelo sistema de produção que eles praticam, e pela categoria social à qual eles
pertencem” (2008:73). Seguindo esta linha de raciocínio, os estudos que se dedicam a
pensar as transformações agrícolas a partir da teoria dos sistemas agrários operam, em
geral, pelas lógicas modernas da produção social, no tocante às atividades humanas, e
da
transformação
orgânica,
no
perímetro
das
funções
não-humanas.
Consequentemente, parte-se da dicotomia Humanos/Natureza, em paralelo com a
cisão que separa as mudanças de ordem históricas das transformações de ordem
evolutivas. Temos aqui, portanto, uma fenda ontológica que limita dois sistemas de
128
herança: de um lado, os processos históricos de ordem simbólica e produtiva, e, de
outro, as transformações evolutivas de ordem genética e populacional. Ao passo que
noção de sistema serviria como uma ponte, um instrumento de articulação e
dinamização destes dois domínios.
Embora seja uma referência importante no dossiê de registro, o SAT-RN não se
ateve de modo tão estrito ao esquema proposto por Mazoyer & Roudart (2008). Um
diacrítico significativo entre as duas abordagens é que, enquanto os autores estão
buscando destacar as singularidades da agricultura frente às demais práticas humanas,
já no caso do SAT-RN o acionamento da noç~o de “sistema” se prestou para reunir
escalas e tipos de práticas tidas como supostamente não conexas à agrobiodiversidade.
Além disso, enquanto no esquema proposto por Mazoyer & Roudart (2008) o conceito
de sistemas agrário é acionado por sua “funç~o heurística”, isto é, como “um tipo de
arquétipo que proporciona uma imagem coerente e harmoniosa dessa agricultura”
(2008: 76), já no caso do SAT-RN esta feição modelar é inaplicável, uma vez que se
trata da descrição de um caso particular mediante o método etnográfico. Ainda assim,
à maneira como foi acionada a noção de sistema no registro, esta cisão (analítica) e
interconexão (operacional) entre as ordens produtivas e evolutivas também é evidente
no caso do SAT-RN:
“A express~o sistema, utilizada no título, evidencia a interdependência
desses domínios de formas de fazer. Trata-se de registrar uma diversidade
de processos que envolvem várias escalas ecológicas, biológicas,
socioculturais e temporais, que atravessam domínios da vida material,
social e econômica, que têm funções simbólicas e produtivas, que repousa
sobre ecossistemas, plantas, conceitos e saberes, normas sociais e que
suprem necessidades biológicas” (IPHAN, 2010: 9, grifos meus.)
Assim, manejando originalmente com tais dualidades, o SAT-RN foi concebido
como um sistema aberto, “construído em torno das relações sociedades-espaçosplantas que incorpora certos elementos em função de contextos culturais, ecológicos,
históricos ou ainda políticos” (IPHAN, 2010: 19). Quanto ao plano da eficácia
administrativa, o emprego desta abordagem possibilitou tanto expandir a envergadura
do registro da agricultura tradicional do rio Negro, como ainda criar uma afinidade
tática com a legislação que regulamenta os patrimônios culturais imateriais no Brasil.
129
Conforme vimos, a emergência da patrimonialização de bens imateriais no país
considera que “os saberes, os ofícios, as festas, os rituais, as expressões artísticas e
lúdicas, que, integrados à vida dos diferentes grupos sociais, configuram-se como
referências identitárias na visão dos próprios grupos que as praticam” (Iphan, 2000).
Desde então, passou-se a estender às celebrações, aos saberes, às formas de expressão e
aos lugares a qualificação de patrimônios culturais, tal qual já era entendido em relação
aos produtos de “pedra e cal” como prédios, sítios arqueológicos e monumentos em
geral.
Vimos também que, de acordo com San’tana (2003a), a introduç~o de bens
imateriais no escopo da patrimonialização não é uma inovação, mas sim uma retomada
da proposta inaugural de Mario de Andrade, ainda na década de 1930, por meio da qual
o vision|rio modernista formulava que “o patrimônio n~o se compõe apenas de edifício
e obras de arte erudita, estando também presente no produto da alma popular” (2003a:
54, grifo meu). De todo modo, insiste Carneiro da Cunha (2005), ainda que irmãs em
termos de origem, as noções de patrimônio material e imaterial carregam também
alguns contrastes. Dentre eles, talvez o mais not|vel seja o fato de que “patrimônio
imaterial se compõe de processo tanto, e provavelmente mais, do que produtos” (2005:
15). E conservar os processos, por sua vez, implica em conservar virtualidades
intangíveis, haja vista as definições presentes na legislação.
Numa retórica similar a esta desenvolvida por San’tana (2003a) e Carneiro da
Cunha (2005), no processo de registro do SAT-RN é ressaltado que a abordagem
sistêmica carrega continuidades com a já operante política do patrimônio imaterial,
pelo menos no que se refere ao registro55. Uma destas continuidades é justamente o
desenho do SAT-RN dentro do quadro referencial da tensão matéria/forma
disponibilizado pela gramática do patrimônio imaterial. No entanto, ao habitar este
hilemorfismo manejando a noção de sistema, não apenas diversas ordens passam a
55
Agradeço à técnica do Iphan Desirée Tozi por me atentar a este ponto. De acordo com a mesma, ainda
que o instrumento do registro partilhe de pressuposições que nos permite predicá-lo de “sistêmico”,
uma salvaguarda sistêmica tal qual proposta pelo caso do rio Negro é um desafio sem precedentes na
política do DPI. Este desafio também é salientado por Ana Gita de Oliveira, segundo a qual “[N]o
contexto das políticas de salvaguarda, esta perspectiva põe novas questões sobre as formas de atuação do
Estado e sobre as condições de sustentabilidade das dinâmicas ensejadas no interior de contextos
culturais específicos, de modo a garantir a continuidade histórica do patrimônio reconhecido” (IPHAN,
2007, vol. III: 457)
130
constituir o “bem” registrado como também passam a ser demandados saberes
analíticos provenientes tanto das ciências da vida como das ciências da cultura.
Registrar um “bem” como a agricultura do Rio Negro de maneira sistêmica só foi
possível, como veremos, a partir de uma equipe de pesquisadores capazes de atar o que
poderia ser inicialmente considerado como fatores externos ao fenômeno agrícola56.
Operando redes de associação
c) Os arranjos de um sistema agrícola: explorando o dossiê
Não se atendo ao procedimento metodológico usual de registro dos patrimônios
imateriais pelo IPHAN – qual seja, a obtenção de informações a partir de pesquisa de
campo e posterior adequação das mesmas ao formato do INRC – o processo de registro
do SAT-RN se apoiou, conforme já mencionado, na metodologia empregada pelo
projeto PACTA em suas pesquisas sobre a agrobiodiversidade amazônica 57. Esta, por
sua vez, é fruto de um esforço multidisciplinar – em especial envolvendo referenciais
metodológicos provenientes da Antropologia e da Etnobotânica – baseado na
espacialização dos dados e na identificação das redes de troca de material genético
entre os grupos indígenas e comunidades tradicionais. O trabalho foi realizado na
escala das unidades domésticas, em língua portuguesa e nhengatu, visando “entender
56
Além de empreender passos importantes para a lacuna de pesquisas amazônicas sobre técnicas de
cultivo e processos de disseminação agrícola, Sautchuk (2010: 6) ainda sugere que a interdisciplinaridade
conjugada na pesquisa do SAT-RN “aponta provavelmente uma tendência metodológica”.
57
A descrição contou ainda com os dados provenientes de cinco pesquisas anteriormente realizadas pelo
PACTA entre os anos de 1990 e 2009, a saber: (1) pesquisa Extrativismo na Amazônia Central, CNPqINPA / IRD, 1990 – 1996, coord. J. Ferraz – J.-P. Chauvel, trabalhos no município de santa Isabel do Rio
Negro; (2) pesquisa Manejo tradicional da mandioca na Amazônia brasileira, 1998 - 2000, CNPq-ISA/ IRD
coord. G. Andrello - L. Emperaire, trabalhos nos municípios de Santa Isabel do Rio Negro (Tapereira,
Santa Isabel), São Gabriel da Cachoeira (São Gabriel, Louro, Iauareté, -Rupitá, Tabocal dos Pereira) e
Barcelos (Barcelos); (3) pesquisa Populações, agrobiodiversidade e conhecimento tradicional na
Amazônia, 2005- 2009, CNPq-Unicamp/ IRD coord. M. Almeida - L. Emperaire, trabalhos no município
de Santa Isabel do Rio Negro (Santa Isabel, Tapereira, Espírito Santo); (4) pesquisa Populações,
agrobiodiversidade e conhecimento tradicional associado, 2009- 2013, CNPq-Unicamp/ IRD coord. M.
Almeida - L. Emperaire, trabalhos no município de Santa Isabel do Rio Negro (Santa Isabel, Tapereira,
Espírito Santo) e (5) Documentação e Pesquisa sobre os sistemas agrícolas do Rio Negro / AM, 2008-2009,
ISA –DPI/ IPHAN – ACIMRN - PACTA (coord. C. Dias)
131
as lógicas culturais e técnicas, embutidas na gest~o da diversidade agrícola” (IPHAN,
2010: 24).
Para tal feito, o projeto contou com a participação de diversas pesquisadoras 58,
divididas em cinco grandes áreas de descrição técnica: a agricultura e as plantas
cultivadas nos relatos míticos, a transformação do espaço, a criação das plantas
cultivadas, a cultura material e os modos de alimentação locais. Estes cinco
componentes constituem o carro-chefe do dossiê de registro encomendado pelo
IPHAN. Uma análise exaustiva deste vasto material composto por 230 páginas escapa
aos objetivos deste trabalho. Restrinjo-me apenas a resumir alguns dos argumentos
destes cinco componentes, tendo como interesse manifesto a tensão entre as
dimensões materiais e imateriais da dinâmica patrimonial, bem como as estratégias
que a abordagem sistêmica empregada no dossiê encontrou para lidar com esta tensão.
O primeiro componente do dossiê intitula-se Agricultura e Plantas Cultivadas
nos Relatos Míticos. Sendo o mais curto (quatro páginas) e fundamentado na literatura
etnográfica da região59, este primeiro componente se presta a abrir o caminho do
registro, tendo em vista que as narrativas míticas sobre as plantas cultivadas fornecem
“um referencial de pr|ticas, de normas e de direitos sobre o manejo do espaço e das
plantas cultivadas” (IPHAN, 2010: 47). De acordo com o dossiê, a existência das plantas
cultivadas segue uma “cronologia”, dispondo um conjunto de plantas que existiam
antes da agricultura, as “plantas dos antepassados”, e que foram fundamentais para a
“transformaç~o do mundo” e da “gente”. Dentre estas, as manivas ganham destaque:
Uma maniva (maniiwá em nheengatu) existia desde o início, a maniva
bere (pertencendo ao grupo das manivas brancas) que carregava nos
seus galhos outras qualidades que eram caroço de umari, cipó, branca,
piaba de japurá, cunuri, pomba, rato, rainha das maniuaras, roxa,
abacaxi, flores, cucura, abiu, ingá, pari, tucunaré, paca, (Galvão & Galvão,
2004 – História da criação do mundo e da humanidade, p. 27). Foi a
58
A organização do dossiê de Registro do SAT-RN ficou a cargo de Laure Emperaire (IRD). Já a confecção
das partes componentes do dossiê foi dividida da seguinte maneira: Ester Katz – IRD (Alimentação),
Juliana Santilli – MP/DF (Direitos), Laure Emperaire – IRD (Geral, Agricultura), Lúcia Hussak Van
Velthem – MCTI (Cultura Material), Manuela Carneiro da Cunha – Universidade de Chicago (Saberes).
Colaborações e revisões: Ana Gita de Oliveira – IPHAN, M|rcia Sant’Ana – IPHAN, Sílvia Guimarães –
IPHAN, Ludivine Eloy – CNRS, Carla Dias – ISA (IPHAN, 2010:8).
59
A principal referência acionada para abarcar os relatos míticos associados às plantas cultivadas é o
livro de Galvão & Galvão (2004).
132
partir dessas manivas que se preparou a festa que consagrou a
transformação da gente. (Dossiê, SAT-RN, 2010: 47).
Um segundo mito relativo ao surgimento das manivas também foi coletado
pelas pesquisadoras. Este, por sua vez, enfocaria mais no aspecto da “inovaç~o e
experimentaç~o”, sendo, portanto, “muito mais próximo da noç~o de domesticaç~o”
(IPHAN, 2010: 49). Trata-se do mito do “pé de mandioca nascido do túmulo de uma
menina morta”, disseminado por todo o Brasil e com frequência mais marcante à
jusante do Rio Negro:
Minha mãe que conta:
Quando foi para existir essas manivas, não existia maniva não, tinha mãe
dessas manivas. A mulher que era mãe das manivas morreu. Enterraram
ela, como a gente enterra essas pessoas que morrem. Ela morreu, tudo
mundo ficou chorando, ficou triste. Passou uns tempos e a família que era
daquela mulher foram ver o que já era capoeira, já desprezavam. Foram
ver lá, quando foi ver tinha um pé de maniva que brolhou lá, que nasceu
daquela sepultura da mulher. Eu acho que eles estavam passando tipo o
que nos passamos agora, ninguém tem roça11, ninguém tem nada, tem
pouco. Dizem que a mulher [da família] foi lá, foi ver. Dizem que ela
chegou lá chorando, com o pé de maniva aí. Tinha nascido. Ela viu as
manivas. Fizeram o roçado; naquele tempo não existia machado, era de
pedra. Só fizeram descascar os paus, quando morriam, quando caiam, aí
que eles vão plantar. A mãe é aquela mulher que morreu, então quando
não tem mais dono, a mãe da roça, [é lá] que as manivas morrem, que não
tem mais leite, pois o dono já morreu. Tem o princípio deles. Clemente
Murilo, Tapereira, 1995. (IPHAN, 2010: 49-50).
Já o acervo mitológico condizente às outras plantas cultivadas atualiza de
maneira mais ou menos uniforme o famoso mito de Baaribó, segundo qual a
agricultura marca uma transição entre uma humanidade espúria (que não usufruía dos
alimentos legítimos) e a humanidade verdadeira, que se alimenta das plantas
cultivadas. O mito, recolhido por Galvão & Galvão (2004), é sintetizado no dossiê da
seguinte maneira:
Havia, naquela época, vários tipos de maniva: bere duku8, mu perori
duku, sigãyara duku, masá boho duku, bariamu duku, wasõpu duku, buha
133
duku, bihi duku, megã diarã duku, diari duku, será duku, goori duku, igui
duku, kareduku, mere duku, pari duku, bu duku, seme duku, duhiri duku.
Existiam, mas faltava o companheiro dele, ou seja não havia nada para
temperar o caxiri.
[...]
Ele [Baaribo] se transformou numa árvore enorme, naquele pau de batata
ou pau de alimento. Este pau é também conhecido com pau de massa de
tapioca ou árvore de caroço de umari porque dentro havia massa de
tapioca e de caroço de umari. Na verdade todas as plantas que servem hoje
em dia para temperar o caxiri estavam dentro do tronco desse pau: havia,
por exemplo, vários tipos de araruta, araruta média, araruta do pênis, o
mais comprido, e araruta de anta; vários tipos de carás tais como cará de
japu, cará corcundo, cará de pescoço de inhambu, cará de espinho, cará de
cuia, batata branca, batata preta, cará de raiz, batata do ar. Havia
também vários tipos de batatas tais como batata do pica-pau pequeno,
batata de mandioca, batata de ingá, batata de tatu, batata do dedo do pé,
batata de cigarra, batata preta, batata branca, batata vermelha, batata de
gente, batata ote. Essas batatas serviam também para temperar o caxiri.
Havia também vários tipos de milho, milho miudinho, milho de carajuru,
milho de sapo cururu que é de tamanho médio, milho grosso e milho do
diabo que é o maior. Havia por fim sementes de bananeiras dentro do
tronco do pau de alimento: semente de banana nanica, semente de banana
inaj|, semente de banana mel, semente de banana d’|gua, semente de
banana cunuri, semente de banana cobra, semente de banana anta,
semente de banana pacova e semente de banana peixe. Os Desanas
tinham naquela época quatro tipos de machados: machado de pedra preta,
machado de pedra branca, machado de pedra de quartzo branco e
machado de ouro amarelo. Baaribo reuniu todos os moradores do mundo
para derrubar o pau de batata. Cada um deles deveria dar um só golpe de
machado nele. [...]
Os representantes de todos os povos, dão um golpe, desana, tukano, piratapuia, wanano, juruti, siriano, baniwa, karapanã, maku. Vários animais
vieram também. Todos eram Moradores do Mundo. A árvore cai e os
animais se precipitam para pegar as frutas, menos a anta que estava longe
bebendo água no igarapé. Mas voltando, ela encontra e engole, a batata
vermelha, o abacaxi, a cana de açúcar, o umari e o ucuqui. [...]. [Baaribo]
os mandou preparar caxiri. Deu certo. O caxiri ficou muito saboroso.
(IPHAN, 2010: 48-49)
134
O dossiê sublinha que estes relatos marcam tanto a correlação entre as plantas
cultivadas e a “express~o da diversidade étnica”, como também, e sobretudo, “as
noções de totalidade e de circulação de bens que pontuam as narrativas” (2010: 50). Pois
as plantas cultivadas surgem com o propósito de circular por toda a humanidade e
marcar a centralidade da troca na sociabilidade regional. As ênfases acentuadas na
interpretação destes mitos possibilitaram rendimentos heurísticos significativos para a
detecção dos níveis de relevância por parte das formuladoras do dossiê. Em especial,
no que se refere { centralidade dispensada { mandioca como “elemento estruturante”
do sistema, bem como à qualidade isomórfica da circulação das plantas e das pessoas
no Rio Negro60.
No segundo dos quatro componentes, intitulado Transformar o espaço, é
pormenorizada a descrição da agricultura de corte e queima empregada na região,
conjugando tanto os aspectos tidos como “materiais” quanto os “imateriais”. O
“modelo” da roça é, segundo o dossiê, “conceitual” (2010:54). O conceito de kupixá, em
língua geral, é tido como uma roça redonda de mata, indicando uma série temporal
gradativa na qual a mata é o último estágio de um roçado. Conforme descrito,
A roça é idealmente redonda, tendo um centro e uma beira, prolongada
pelo aceiro, espaço de junção com a floresta. O modelo conceitual do
objeto circular com um centro, que materializa o início de um processo,
se encontra também em outros domínios da vida material, das plantas
dispostas na roça com um centro, da cestaria com a realização de balaios
e peneiras circulares, e dos beijus que também têm um centro e uma
periferia (...). O mesmo verbo se aplica à roça e ao beiju, abrir uma roça e
abrir um beiju. (IPHAN, 2010: 57).
60
Estes dois quesitos serão analisados de maneira mais exaustiva na última seção deste capítulo.
135
Figura 3 Abrindo o beiju de maneira circular, comunidade Espírito Santo (2008).
Fotografia: Laure Emperaire. (IPHAN, 2010: 58)
Figura 4Roça circular aberta na mata e recentemente plantada, comunidade
Espírito Santo (2008). Créditos: Laure Emperaire. (Dossiê SAT-RN, 2010: 57
Neste tipo de agricultura, são três etapas principais de trabalho na terra, a
saber: derrubada e queima, recolonização do espaço florestal com as variedades
agrícolas e o tempo de pousio após a colheita visando a regeneração do solo. Com isto,
a paisagem regional é qualificada como sendo um “mosaico de roças novas, roças
velhas, capoeiras e florestas em v|rios est|gios de regeneraç~o” (2010:51). A terra, por
sua vez, possui “força” própria, podendo ser “fraca ou cansada nas capoeiras’ (2010: 54).
Este processo de transformação do espaço envolve tanto trabalhos masculinos quanto
femininos, de maneira especializada, sendo a roça emergente dos trabalhos conjugais.
136
A abertura dos novos roçados e todas as etapas que antecedem ao plantio é uma
atividade efetuada pelos homens; a mulher, por sua vez, terá acesso ao novo espaço de
plantio apenas após a queimada do novo terreno. Neste sentido, é enfatizado que “a
abertura de uma roça na mata carrega vários significados” (2010: 54); sinônimo de
plena realização e motivo de orgulho: “uma roça de 18 dias de machado”, dizia Moises
Gervásio às pesquisadoras.
A autonomia alimentar da unidade doméstica depende dos laços de parentesco
e da constituição das uniões parentais. Após a abertura e queima das novas roças pelos
homens, que deve obedecer ao calendário das chuvas visando um período de secagem
de três a quatro semanas de ver~o, o espaço de “criaç~o” e “fertilidade” pode ser
entregue { mulher, tida localmente como a “dona da roça”. A primeira atividade
realizada pela mulher no espaço ainda virgem se consiste em “fazer urubu” (2010: 59),
uma prática regional segundo a qual deve-se plantar no primeiro dia após a queima,
com a terra ainda quente, um conjunto de manivas no centro da roça. Plantar no
centro significa construir o “olho da roça” (kupixá cegá), que, além de firmar o vigor e a
vitalidade do roçado, permite estabelecer uma comunicação semiótica com os urubus,
indicando que este espaço j| n~o os pertence e que “ele n~o pode se apoderar da roça
ou defecar neste espaço, sujá-lo, e assim espalhar sementes das quais nascerão capim e
outros matos, fonte de trabalho adicional” (idem). Nas palavras de uma agricultora da
etnia Baré, o olho da roça:
“[...] serve para que, para esse, para urubu não cagar, diz que é para urubu
não cagar porque aquela roça fica rançoso, sabe, para ficar de gostoso,
por isso que a gente coloca logo esse olho da roça” (IPHAN, 2010: 59).
Após o firmamento da ação humana sob o espaço antes florestal, é iniciada a
fase de mudar e repassar que se consiste no trânsito dos materiais agrícolas das roças
antigas ou vizinhas para o novo roçado. O transporte destes espécimes é realizado com
a “ajuda”, conforme se diz, do cesto cargueiro chamado waturás, indicando a conexão
sistêmica visada pelo dossiê entre as práticas agrícolas de cultivo e a cultura material
associada. O repasse dos plantios obedece à seguinte ordenação: primeiramente são
plantadas as variedades de manivas, sendo o princípio motivador o da diversidade,
137
tanto por razões de ordem ecológica (como, por exemplo, plantar em conjunto
espécies com exigências ecológicas distintas e complementares), quanto por
finalidades estéticas (uma roça “bonita” é aquela que reúne uma elevada diversidade
intra e interespecífica). Após o repasse das manivas é o momento da entrada das canasde-açucar, bananas e abacaxis. As pimentas e o tabaco são alocados em locais mais
adubados, como os tocos de árvores enriquecidos com as cinzas da queima de coivara.
J| o centro da roça é reservado aos “remédios”, que dão força e vitalidade tanto às
manivas quanto aos humanos. Por último, já no segundo ano com as manivas bem
desenvolvidas, são plantadas as frutíferas (cupuaçu, ingá, cucura, caju, etc.).
Interessante notar que estas espécies florestais são plantadas pelos homens, adultos ou
crianças, indicando, segundo o dossiê, a retomada da feição selvagem dos roçados
masculinos (em contraposição à feição domesticada cara às manivas das mulheres) e
restabelecendo o ciclo agroflorestal. De acordo com o Dossiê (2010: 66), o “trabalho” da
roça é marcado por relações de aprendizagem e parceria entre adultos e crianças que se
estende também aos objetos técnicos utilizados61. Os “benzimentos e orações” s~o
também outro elemento fundamental para o sucesso da “produç~o”: “benzer é dar
saúde, dar nome, dar força, impedir os estragos, tornar segura, tornar produtivo, e
cumprir regras” (2010: 68). O ato de benzer implica ainda em relações intersubjetivas
com os animais que frequentam os roçados, uma vez que a “força” destes é acionada
para aumentar a fertilidade das manivas e proteger os roçados de pragas indesejadas.
No terceiro componente, intitulado Criar as plantas, o cultivo da mandioca
brava assume seu protagonismo enquanto “espécie estruturante” do sistema agrícola
do rio Negro. Tal centralidade se dá na medida em que, com suas centenas de
variedades em circulaç~o local, “a mandioca constitui o foco da diversidade cultivada
pela sua amplitude, suas formas din}micas de manejo e seu papel na alimentaç~o”
(2010:73). Sendo este componente o de maior densidade conceitual do dossiê, bem
como estância em que reside a saída encontrada pela abordagem para conciliar as
61
Ainda que em menor ocorrência nos últimos anos, o dossiê argumenta que o padrão tradicional de
organização da força de trabalho é o ayuri, evento de socialidade que conjuga relações de troca,
parcerias, beberragens e trabalhos coletivos. As pesquisadoras ainda sugerem que “[O] ayuri, com a
oferta de alimentos, carrega também fortes valores de prestígio social. Este tema, com seus
desdobramentos rituais com o danukuri, e sociais, constitui um tema de pesquisa a ser aprofundado”
(IPHAN, 2010: 66).
138
relações múltiplas do sistema com os “elementos estruturantes”, sua an|lise nos exige
uma seção à parte. Voltaremos, portanto, a estas questões no final deste capítulo.
Passemos ao quarto componente, intitulado Transformar: A Cultura Material. É
notável a preocupação das pesquisadoras em abordar a parafernália tecnológica
constitutiva do processamento da mandioca brava desde uma perspectiva sistêmica,
que transcenda os constrangimentos de ordem estritamente econômica. Nos termos
estipulados pelo dossiê,
“(...) os artefatos implicados nesse processo s~o, primeiramente,
elementos de identificação e de reiteração de modos de produção,
essencialmente familiares. Entretanto, não podem ser esquecidos outros
significados que são atribuídos ao patrimônio, enquanto meios de
simbolizar, representar ou comunicar valores sociais, coletivos e
individuais” (IPHAN, 2010: 114).
Esta mediaç~o entre os aspectos “produtivos” e “simbólicos” é operada no dossiê
a partir de correlações entre os artefatos da produção da farinha e concepções
cosmológicas mais amplas dos coletivos indígenas do médio e alto rio Negro. Na
cosmogonia dos índios Desana, por exemplo, “os derivados da mandioca e os artefatos
a estes associados estão na própria gênese da vida, pois um ser primordial que deu
origem ao mundo e aos seres humanos criou-se a si mesmo a partir de ‘seis coisas
misteriosas’, entre as quais uma cuia contendo farinha de tapioca e o seu suporte
trançado”. (2010: 104).
Os objetos técnicos que compõem o sistema agrícola do rio Negro foram
exaustivamente catalogados e classificados no dossiê de patrimonialização. Esta
“província cultural” (2010: 103) foi registrada como sendo composta por trinta e quatro
objetos, vinte e oito artesanais e quatro industriais, utilizados na fabricação de farinha
de mandioca brava. A pesquisa resultou num amplo inventário descritivo dos mesmos
(2010: 191) no qual foram incluídas fotos e informações do tipo: matéria-prima,
medidas, procedência (industrial ou artesanal), formas de propriedade (individual e/ou
familiar), maneiras de uso (incluindo a divisão entre os gêneros masculino e feminino),
funções e locais de uso. Cabe salientar que os artefatos e objetos de origem artesanal
são em grande medida confeccionados a partir de materiais que o dossiê classificou
139
como sendo “matérias-primas n~o cultivadas”62 (2010: 186). No dossiê, estes artefatos
(especificamente os utensílios e as ferramentas) s~o concebidos como sendo “dotados
de agência, o que constitui o eixo principal de sua valorização patrimonial e da lógica
da sua gest~o” (2010: 111). Em suas nuanças locais, evidentemente mediadas pelas
categorias modernas da patrimonializaç~o, o conceito de “agência” adquire a sem}ntica
antropomórfica atribuída à noção de trabalho:
“No Rio Negro um fundamental aspecto do processo de
patrimonialização se insere no quadro das relações de sociabilidade não
apenas entre as pessoas que produzem e utilizam cada artefato, mas
também das coisas entre si. Assim, o status dos objetos deriva das
relações que possuem, uma vez que há a nítida percepção de que agem
e, portanto, que trabalham de forma sincronizada ou complementar nas
complexas tarefas de transformação da mandioca em alimentos. Através
da agência, os objetos humanizam-se e, consequentemente, transformam
seu próprio trabalho, o que lhes permite intermediar o trabalho
humano.” (IPHAN, 2010: 114, grifos meus).
Além dos artefatos de uso generalizado, como os tipitis e os cestos de carga, o
dossiê aponta ainda que diversos autores (Galvão, 1979; Hugho-Jones, 1979; Ribeiro,
1995) têm enfatizado a centralidade da “especializaç~o artesanal” entre as etnias do rio
Negro e sua derivada transferência e adoção de objetos por parte dos grupos vizinhos.
Esta especializaç~o estaria em sintonia com a “import}ncia da troca” (IPHAN, 2010:
104) entre estes grupos. Cada grupo teria, assim, uma predileção e, por sua vez, maiores
habilidades na confecção de um determinado tipo de artefato, conduzindo-os a
estabelecer relações de troca com outros grupos os quais possuem o domínio sobre
outros materiais:
“Kumonó é banco, propriedade dos Tukano, não deixa niguem fazer.
Assim também o ralo sokonó, é propriedade dos Baniwa. Tukano é
proibido de fazer máscara, que é propriedade dos Kubewa. Propriedade
de Maku é sarabatana e aturá. Wanãno é proprietário dos caraiuru, só
ele que faz” (Depoimento de um indígena Tukano do rio Papuri. In:
Ribeiro, 1995: 67-68, apud IPHAN: 2010: 105).
62
Tais como: a argila tuyuka utilizada na confecção dos fogareiros; o Arumãi , o cipó Xipú e as Enviras
Iwira, utilizados na feitura de diversos tipos de cestos; as lenhas e madeiras Mirá, de usos diversos, as
palhas Káa, utilizadas na feitura de vassouras, abanos e coberturas das casas de farinha; e as tinturas
Ingá xixi, Karayuru, Kumati e Makuku, responsáveis pela impermeabilização das cuias e pintura dos
trançados (2010: 186)
140
Na casa de forno, local de importância impar na dinâmica do sistema agrícola,
estes artefatos estabelecem relações de ajuda e parceria, tanto entre si quanto
associados às mães e filhas, no emaranhado tecnológico que envolve os conhecimentos
e instrumentos necessários para a extração do veneno da mandioca brava e a produção
de farinha. Neste sentido, é enfatizada pelo dossiê a mediação exercida pela cultura
material na produção agrícola e elaboração alimentar. A rigor, “a manutenç~o de uma
diversidade alimentar está diretamente ligada à diversidade dos objetos empregados na
preparaç~o de alimentos” (2010: 113). Em especial, os elementos da cultura material
inseridos na categoria “cestaria” merecem destaque. De acordo com o dossiê (2010: 117),
o destaque desta categoria se dá na medida em que é pelos artefatos trançados que um
tubérculo venenoso como a mandioca brava transforma-se em alimento. Seja pelo
“trabalho” de extraç~o exercido pelo tipiti, seja ainda pela função cargueira exercida
pelo cesto waturá, somente com o auxílio destes artefatos trançados que a mandioca
brava pode ser transformada em alimento. Partindo das pesquisas de Berta Ribeiro
(1985) e Lúcia Van Velthem (1998), somado ao material coletado em campo, as
pesquisadoras do dossiê elaboraram um amplo catálogo contendo 23 tipos de
trançados com grafismos. Destes, 13 s~o localmente classificados como “trançados com
pinima”, 2 como “trançados sem pinima” e 8 como “arremates com pinima”.
O quinto e último componente do SAT-RN intitula-se Consumir: Alimentação e
Diversidade Agrícola. Nele, pretende-se justificar a importância dos processos
alimentares como um segmento indissociável do sistema agrícola em sua faceta
patrimonial. O escopo da argumentação abrange de maneira detalhada os elementos
da alimentação local que vão desde os ingredientes, passando pelas técnicas culinárias
e receitas, e chegando até os hábitos de consumo e a simbologia dispensada à comida.
Nesta seção é interessante notar que o olhar metodológico abarcou tanto os
ingredientes que compõem as receitas locais, classificando-os entre os considerados
silvestres, cultivados, nativos e exóticos, mas também as técnicas culinárias
propriamente ditas.
No tocante às técnicas, foi adotada a assertiva de Leroi-Gourhan (1965: 33)
segundo a qual “o utensílio só existe realmente no gesto que o torna tecnicamente
eficaz”. Com efeito, além de catalogar os objetos técnicos que compõem a cozinha
local, os mesmos foram classificados em categorias condizentes com os atos culinários
141
que os animam, a saber: (1) Ralar, raspar, socar, cortar; (2) Coar, peneirar, prensar; (3)
Cozer; (4) Extrair Óleos; (5) Conservar; e (6) Fermentar.
Já na seção referente ao Consumo (2010: 141), a dimensão dita “simbólica” ganha
maior destaque. Partindo da literatura associada à região (Reichel-Dolmatoff, 1968; C.
Hugh-Hones, 1979; Buchillet, 1988; Garnelo & Buchillet, 2006; Garnelo, 2007), são
enfatizadas as correspondências lógicas entre o acervo mítico Tukano e Arawak e a
simbologia dispensada aos alimentos. Nesta chave analítica, o mingau de goma é
comparado ao esperma, cozinhar os alimentos em uma panela seria equivalente à
gestação, dentre outras homologias. De acordo com o dossiê,
“Do mesmo jeito que a agricultura, a alimentação está relacionada com a
reprodução humana, o ciclo de vida, a sexualidade e a fertilidade, o que
acontece em muitas sociedades. C. Hugh-Jones (1979) mostrou como
que as técnicas de transformação da mandioca se relacionam
simbolicamente com a reprodução e o ciclo de vida, e funcionam em
processos de conjunção e separação que encontram-se em outros
aspectos da sociedade”(IPHAN, 2010: 144)
Não obstante, a junção destes componentes culinários, compartilhados de
maneira transversal pelas diversas etnias que formam a área cultural do rio Negro (com
not|vel exceç~o dos Yanomamis e dos Makus, “considerados mais caçadores que
pescadores, e n~o vistos como bons agricultores”, pg. 145), tem a serventia de ampliar a
noção de patrimônio alimentar para além da sua dimensão estritamente simbólica.
Busca-se dinamizar, portanto, a oposição estática entre natureza e cultura. Nesse
sentido, as autoras enfatizam que:
“Os ingredientes, as técnicas culin|rias e as receitas s~o elementos
relevantes, mas consideramos, como outros pesquisadores, que as
interações como o meio ambiente, os sistemas de produção e obtenção
de alimentos devem ser levadas em conta nesse reconhecimento. Fazem
também parte do sistema alimentar os modos de consumo, as ‘formas de
comer’ e as relações sociais construídas em torno da alimentação, assim
como a cosmologia, a simbologia, as crenças, os ritos e mitos próprios”
(IPHAN, 2010: 147).
Conforme se percebe, a intenção argumentativa do sistema alimentar adunado
argumenta a favor da ampliaç~o do conceito de “patrimônio cultural”, n~o mais
142
definindo-o a partir da junção dos alimentos de uma região ou grupo social específico,
mas também num borrar de fronteiras entre as dimensões históricas, agroecológicas e
simbólicas locais. Nesta perspectiva ganham relevância analítica não apenas as
dimensões ditas a princípio como simbólicas e subjetivas, como as qualidades
gustativas e a estética alimentar, mas também aquelas ditas como materiais e objetivas,
como os ingredientes utilizados e as técnicas de preparação dos alimentos.
Partindo desta articulação metodológica dos cinco componentes do dossiê de
registro, podemos constatar que o adjetivo “tradicional” do SAT-RN passou a ser
definido menos por seus elementos culturais e mais pela sua própria feição sistêmica,
entendida como “um conjunto de elementos em interaç~o” (2010:18). Com efeito, não
seria descabido afirmar que o marcador de singularidade – tanto do bem, ele mesmo,
quanto da metodologia empregada– situou-se justamente na predicação sistêmica
acionada para qualificá-lo. Recapitulemos em resumo como isso se deu: o acervo
mitológico foi associado à circulação de plantas e pessoas (2010:50); a transformação
material do espaço foi sublinhada como sendo baseada em modelos conceituais (2010:
54); as manivas possuem “dignidade” e o tratamento a elas dispensado é homólogo ao
cuidado materno (2010:86); os artefatos associados à cultura material são dotados de
“agência” e n~o se limitam ao aspecto utilit|rio; j| a alimentaç~o apela tanto aos fatores
organolépticos quanto à simbologia dispensada à comida. Operacionalizada desta
maneira, portanto, a noção de sistema agrícola possibilitou um modo inovador de
habitar a tensão material/imaterial que arregimenta a dinâmica patrimonial. Ainda
assim, ao se esquivar do problema da atomização, outro problema passa a ser
pertinente: o da hierarquização das relevâncias.
d) Elementos estruturantes e redes de parentesco
Em uma das conversas que tive com as servidoras do DPI me foi relatado uma
preocupação significativa: ao se buscar implodir a perspectiva atomista do patrimônio
material, se aproximando das abordagens sistêmicas, onde ficariam os limites – as
“linhas de amarraç~o”, poder-se-ia dizer, fazendo uma analogia com o CGEN – do
inventário? Em outras palavras, se abordagem sistêmica permite, de fato, tanto ampliar
143
o alcance do registro, como também eludir-se de um atomismo ingênuo, por outro
lado ela também cria o problema de se estabelecer níveis e critérios de relevância para
que a salvaguarda do bem se torne viável – do ponto de vista das possibilidades de ação
das políticas públicas. Neste quesito, a experiência de aplicação do INRC no caso do
“Complexo do Boi” é emblemática.
Luciana Carvalho e Gustavo Pacheco (2004) nos fornecem reflexões aguçadas,
talvez só possíveis em razão da investida prática por eles empreendida, sobre as
problem|ticas decorrentes da instrumentalizaç~o do INRC sobre o “bem”. Inventariado
pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), o “Complexo do Boi no
Maranh~o”, como se convencionou chamar, é entendido como “o agregado dos
folguedos realizados em diversas regiões do país que têm como denominador comum a
presença do boi (boi-de-mamão, boi-bumbá, bumba-meu-boi, boi pintadinho, etc.)”
(2004: 25). Objetivando descrever e avaliar a utilidade do INRC como suporte para o
inventário deste agregado de manifestações plurais, os autores enfatizam os problemas
advindos do uso da noção de “bem” na definiç~o dos patrimônios imateriais. A
despeito da sua pertinência como candidato à inclusão no Livro de Registro dos
Saberes do IPHAN, Carvalho & Pacheco (2004) se perguntam: “de que ‘boi’ ou de que
bem estamos falando? E ainda sugerem: “decidir esta questão – qual ‘unidade concreta’
se quer apreender – é um ponto chave do invent|rio” (2004: 26).
A saída encontrada para solucionar esta aporia da circunscriç~o das “unidades
concretas” no SAT-RN foi fornecida tanto pelos valores hierárquicos locais (que
dispensam maior importância a algumas plantas no acervo mitológico e nos critérios
estéticos dos roçados) quanto por dispositivos analíticos intrínsecos à própria teoria
dos sistemas. No tocante aos valores locais, constatou-se que “a conotaç~o positiva
outorgada à diversidade das mandiocas, com suas inúmeras variedades, é o elemento
central do sistema e vai além dos imperativos funcionais ecológicos” (IPHAN, 2010: 150,
grifo meu). Neste sentido, por mais que a agricultura praticada na região prime pela
diversidade intra e interespecífica, no }mbito dos valores míticos (“Foi a partir dessas
manivas que se preparou a festa que consagrou a transformaç~o da gente”, 2010: 47) e
sociológicos (“tanto o leque de variedades plantadas quanto o cuidado com o qual a
roça e mantida s~o motivos de orgulho para a dona da roca”, 2010: 86) a mandioca
144
assume certo protagonismo. Já no que diz respeito à própria teoria dos sistemas, um
conceito de grande valia para o dossiê de registro é o de cultural keystone species,
desenvolvido por Garibaldi & Turner (2004), em estreita correspondência com o
conceito de ecological keystone species, este último cunhado por Robert Paine na
década de 1960. Para os formuladores deste conceito, do mesmo modo que certas
espécies de animais e plantas têm sido descritas pelos ecólogos como sendo de
influência primordial em determinados ecossistemas, o mesmo se daria com os
sistemas agrícolas. Nas palavras dos autores:
We have termed these organisms "cultural keystone species" and define
them as the culturally salient species that shape in a major way the
cultural identity of a people, as reflected in the fundamental roles these
species have in diet, materials, medicine, and/or spiritual practices
(Garibaldi & Turner, 2004, sem paginação).
Visando dinamizar sua utilização em análises concretas de sistemas agrícolas, os
autores ainda estipulam seis quesitos a serem considerados na identificação das
cultural keystone species. A saber: (1) intensity, type, and multiplicity of use; (2) naming
and terminology in a language, including the use as seasonal or phenological indicators;
(3) role in narratives, ceremonies, or symbolism; (4) persistence and memory of use in
relationship to cultural change; (5) level of unique position in culture, e.g., it is difficult
to replace with other available native species; e, por fim, (6) extent to which it provides
opportunities for resource acquisition from beyond the territory.
No caso do SAT-RN, a mandioca (Manihot Esculenta Crantz) assume o papel de
cultural keystone species. Ou melhor, não as mandiocas, mas sim as manivas. Afinal,
falando em termos locais, há uma disjunção entre os termos maniva e mandioca. O
primeiro se refere à parte aérea do vegetal, a partir da qual se fazem as estacas para a
multiplicação vegetativa, ao passo que a mandioca propriamente dita condiz apenas ao
tubérculo subterrâneo, cuja finalidade se restringe ao consumo humano. As manivas, e
não as mandiocas, compartilham com os humanos alguns atributos da vida em
sociedade e por este motivo a relação entre as agricultoras e suas manivas é
marcadamente antropomórfica e, segundo o dossiê, “filiativa” (2010: 83). De maneira
145
an|loga { sociedade dos humanos, haveria também a “sociedade das manivas” (2010:
86): “(...) as manivas são seres, com certa dignidade, e não podem passar sede, devem
estar alegres, bem penteadas [capinadas], fazem festas, são criadas”63. Neste sentido,
cuidado e cultivo são termos distintos, mas que, no entanto, condizem a um tipo
similar de relação consanguínea entre as mulheres e suas crias, sejam elas as crianças
ou as plantas. Em uma única passagem as autoras conseguem conjugar estes dois
vetores (locais e metodológicos) que possibilitaram as linhas de amarração da
abordagem sistêmica:
“A mandioca constitui o foco da diversidade cultivada pela sua
amplitude, o espaço ocupado, suas formas dinâmicas de manejo e seu
papel na alimentação. E também o foco das atenções e de um constante
interesse da parte das agricultoras. Pode ser considerada como a espécie
estruturante do sistema no sentido de cultural keystone species
(Garibaldi & Turner, 2004) (...). Em torno dela gravitam outros
conjuntos de plantas cultivadas que integram a diversidade agrícola
“ordin|ria” cuja identificaç~o e denominaç~o repousa sobre critérios de
tipo sensorial.” (IPHAN, 2010: 73).
Não por acaso, o componente dedicado à criação das plantas (a mandioca em
especial) e às redes de parentesco é o maior do dossiê em número de páginas. Afinal, as
manivas “estruturam a organizaç~o espacial e temporal das roças e ordenam, no plano
conceitual, relações com outros grupos de plantas cultivadas” (2010: 82). Neste
enquadramento, ainda que a mandioca seja elevada { condiç~o de “elemento
estruturante” (2010: 9,21,75), ela só o é na medida em que se refere a uma noção
relacional de estrutura, permitindo assim assegurar “a permanência de v|rias outras
práticas sociais relacionadas com técnicas, expressões estéticas, sistemas cognitivos e
cosmológicos entre outros aspectos” (IPHAN, 2007, vol. I: 2). Juntamente { mandioca
é, pois, acrescentada uma série de relações de diferentes ordens: como as técnicas de
63
Seguindo a linha argumentativa de Buchillet (1983), as pesquisadoras argumentam outras
correspondências entre a sociedade tukano e a sociedade das manivas: “Elementos da hierarquia da
sociedade tukano se reencontram na sociedade das manivas onde irmãos maiores e irmãos menores são
diferenciados, os segundos devendo cuidar do bem estar dos primeiros. Reconhece-se o ‘cla dos
servidores’ encarregado de ir buscar agua (e acender o fogo), ambas funções femininas, (...). As manivas
podem ser diferenciadas entre as pristinas e as ‘outras’, refletindo uma hierarquia de prestigio entre mais
velhos e mais novos; a diferenciação e mencionada por muitas agricultoras embora a enumeração das
manivas de cada grupo seja variável. (...) Outras relações entre manivas são mencionadas: elas podem
fazer pares, serem irmãos, companheiros ou cunhados, na base de uma terminologia semelhante a dos
humanos, embora essas relações estejam principalmente ligadas a semelhanças morfológicas”. (IPHAN,
2010: 86).
146
processamento, os artefatos correlatos ao seu manejo e o universo mitológico das
espécies vegetais.
Assim como entre as etnias do Rio Negro a nomeação confere atributos basilares
no processo de construção da pessoa (Buchillet, 1983:70), há também toda uma
onomástica das manivas, processo a partir do qual as manivas nomeadas ganham sua
história, linhagem e constituem uma “identidade”. De acordo com o dossiê (2010: 83), a
regra de nominação das manivas “locais” se baseia na junç~o do sufixo maniva com um
prefixo em geral tomado de empréstimo de algum vegetal ou animal do cotidiano
(açaí, abacaxi, tucunaré), formando assim um binômio (p. ex. açaí maniva, abacaxi
maniva, tucunaré maniva etc.). Já a nomeação das manivas “introduzidas” apela tanto
para “critérios descritivos” (coloraç~o e idade de maturaç~o) bem como para uma
origem geográfica, social ou individual (p. ex. maniva de Barcelos, maniva do Benedito,
etc.). Para as pesquisadoras, entretanto, a qualidade de maior relevância a ser
enfatizada nesta onomástica das manivas é menos o nome de cada uma delas e mais a
totalidade dos nomes em seu conjunto. Com efeito, advertem, “n~o se trata somente de
uma justaposição de variedades, mas de uma coleção, de uma entidade global que tem
seu próprio significado (...) a coleção das manivas” (2010: 84).
Interessante notar que ao contrário do que supõem os modelos de domesticação
vegetal, a mandioca manteve, ao longo de seu processo co-evolutivo, a capacidade de
se reproduzir de maneira sexuada, isto é, por sementes. Ao atingir sua maturidade, este
tubérculo amazônico produz flores e sementes que são dispersadas a uma distância
média de 15 cm (auxiliada, ainda, por dispersores não-humanos, como pássaros e
formigas). Uma vez dispersadas, estas sementes permanecem no solo até que, após o
período de pousio, os agricultores ateiem fogo na capoeira antiga e quebrem sua
“dormência”, como dizem os agrônomos.
Este processo permite aos formuladores do dossiê enquadrar as capoeiras
antigas como verdadeiros bancos de semente em dormência. As manivas provenientes
deste processo não vegetativo (i.e não reproduzidas a partir de outras manivas, mas
sim por sementes) são classificadas localmente (e assim chamadas no dossiê) como
“maniva sem pai, sem mãe, sem nome ou ainda achada ou semente” (2010: 85). Ainda
que “órf~s”, esta qualidade de maniva não é menosprezada pelas agricultoras. Ao
147
contrário, elas são exaustivamente testadas e experimentadas ao longo dos primeiros
ciclos da roça. Se o resultado não for satisfatório, elas são deixadas no canto dos
roçados (sem descartá-las); se produzir “filhos” (i.e tubérculos) atraentes, elas s~o
incorporadas { coleç~o, “recebendo o nome de uma variedade morfologicamente
próxima ou, eventualmente, um novo nome” (2010: 86).
Portanto, esta reprodução sexuada tem o potencial de expandir o número de
variedades locais, distintas das que lhe deram origem. Não obstante, o dossiê de
registro enquadra as manivas-sem-nome como um estágio provisório, pois a existência
plena da maniva só seria atingida mediante sua nomeação pelos humanos:
“(...) Trata-se de uma denominação relativamente transitória, já que o
novo pé poderá ser descartado se não convém à agricultora, ou
multiplicado e incorporado no estoque de manivas já existente,
recebendo o nome de uma variedade morfologicamente próxima ou,
eventualmente, um novo nome”. (Dossiê, 2010: 86).
Apesar de sua centralidade – ou presença “estruturante”, como colocado – as
manivas encontram-se inseridas num total de 17 categorias locais64 mais amplas que
foram inventariadas pelo dossiê. É apresentada, ainda, a “história das plantas”,
indicando que os cultivos são objetivados localmente de maneira diacrônica, com
plantas de origem antigas e recentes, provenientes dos mitos e/ou de contatos
interculturais.
Este caráter dinâmico e
transformativo é
estabilizado pelas
pesquisadoras no intuito de salientar a resiliência do sistema agrícola frente às
incorporações de novas plantas e a perda de outras, levando-nos a encarar a noção de
patrimônio agrícola para além do simples conjunto das plantas locais e mais voltado
aos seus processos e capacidade de adequação às mudanças de ordem histórica. Há,
ainda assim, entre os locais, a noç~o de perda (“as plantas que se perdem (...) Perdemse pelo descuido da dona da roça”, 2010: 77), no entanto a esta noç~o n~o se dirige
exclusivamente à entidade biológica das variedades, mas também aos seus nomes, usos
e saberes associados:
64
São as seguintes: 1) só remédio; 2) Maracujá peroba; 3) manivas e mães da roça para as manivas darem raízes;
4) Canas e cubios; 5) Caxiri; 6) Vai na comida; 7) Timbó, cunambi; 8) Bananas; 9) Tempero e remédio de casa;
10) Pimenta da roça e da casa; 11) Puçanga para amarrar; 12) Dá tintura de casa; 13) Frutas da roça; 14)
Tapereba de casa; 15) Mamão de casa; 16) Cebolinha de casa; 17) Frutas de casa. (2010:75)
148
“A noç~o de perda envolve n~o só a planta como entidade biológica
como seu nome e seus usos e outros saberes. A perda enfraquece o
conjunto. Angelina Gervásio comenta a perda de uma maniva, a
manipewa, especial para o caxiri e o tucupi, que quase não tem como e é
aguada; no entanto parece que foi seu uso que foi perdido já que a
variedade foi levantada na mesma época do depoimento” (IPHAN, 2010:
77-78).
Ao acompanhar o movimento de circulação das manivas nomeadas através das
relações de afinidade que marcam a “sociabilidade” do médio e alto rio Negro, o dossiê
passou a enfatizar a qualidade isomórfica entre a exogamia parental e linguística e a
circulação de material agronômico. Ou seja, pretende-se que, aos olhos da
patrimonialização, a organização social e a circulação de pessoas sejam vistas atreladas
{ transmiss~o de material agrícola e { circulaç~o de saberes. Esta “intensa circulaç~o de
plantas” é analisada de maneira formidável pelo dossiê, buscando meios para contrapor
a inércia semântica do quadro conceitual que nos permite pensar a agricultura
tradicional. Recorrendo a softwares de mapeamento de redes, as pesquisadoras
explicitaram uma verdadeira cartografia das relações de troca entre as agricultoras
locais. O intento fora articular duas séries pretensamente distintas de relações: redes
de parentesco humano e circulação das variedades vegetais.
A região abarcada pelo registro é composta por 23 etnias pertencentes a três
famílias linguísticas: tukano, arawak e maku. Sociologicamente falando, trata-se de um
sistema social composto, em geral, por grupos patrilineares e de residência virilocal. O
casamento ideal, por sua vez, é exogâmico, incidindo num elevado índice de
intercâmbios matrimoniais, econômicos e rituais (2010: 29). Em razão desta elevada
exogamia linguística e matrimonial, em uma mesma comunidade é possível encontrar
pessoas falantes de mais de uma língua e de etnias distintas. Todo este mosaico
cultural associado às regras que definem a organização social também delineiam os
trajetos por onde circulam sementes, manivas e artefatos das casas de farinha. Com
efeito, em seu primeiro roçado a agricultora indígena recebe de sua sogra um conjunto
composto por diversas variedades de manivas que poderão ser repassadas para seus
parentes e aliados de sua aldeia natal. Nas palavras do próprio dossiê,
“a patrilocalidade dita a norma na maioria dos casos observados e,
portanto, uma jovem recém-casada processará mandioca na casa de
farinha do grupo familiar a qual pertence o esposo, utilizando os
149
instrumentos e objetos que pertencem a sua sogra, porque ainda não
possui os seus próprios”. (IPHAN, 2010: 110).
A “cartografia das redes de obtenç~o de plantas cultivadas” (IPHAN, 2010: 95)
logrou êxito tanto no mapeamento das trocas individuais quanto entre as comunidades
pesquisadas. No que condiz às fontes de obtenção de cada agricultura, as redes em
geral oscilam entre dez e cinquenta doadores para uma única pessoa. Por exemplo:
Figura 5 Rede dos 42 doadores das 142 plantas cultivadas por uma agricultora,
comunidade Santa Isabel, 2008. (IPHAN, 2010: 95)
Já nas redes inter comunitárias, é notória a influência da cidade – no caso, Santa
Isabel – como vínculo introdutor de novidades botânicas (mediante os mercados,
agências de assistência rural e ONGs) que “despertam o interesse de todos” (2010: 96).
De maneira um tanto contra-intuitiva para aqueles que concebem as cidades
amazônicas como foco de “aculturaç~o” ou “eros~o genética”, as autoras argumentam
ainda que,
150
“uma comparaç~o entre a agricultura desenvolvida em |rea florestal e no
contexto peri-urbano aponta para a permanência neste último de uma
alta diversidade agrícola, às vezes maior que no contexto florestal”
(IPHAN, 2010: 101)
O exemplo da rede inter-comunitária apresentada pelo dossiê atesta esta
assertiva. Nele, como podemos ver abaixo, as comunidades de Tapeira (pontos azuis) e
Espírito Santo (pontos lilás), distantes em uma hora de barco, são fundamentalmente
abastecidas por fluxos de plantas provenientes da cidade de Santa Isabel (pontos
amarelos):
Figura 6 Redes de obtenção das plantas cultivadas em Tapereira (azul), Espírito Santo (lilás) e Santa Isabel (amarelo)
(2008). (IPHAN, 2010:96)
151
Foi-se constatada uma correlação entre o padrão da diversidade agrícola
cultivada e a idade e estabilidade das famílias num dado local, indicando que a
manutenção da diversidade é um processo cumulativo. Circulando majoritariamente
através das mulheres, as “plantas, mudas, sementes, vistas nas roças dos vizinhos ou
dos parentes, são trazidas, comentadas, testadas, assegurando um fluxo contínuo
regional de plantas” (2010: 95). Neste intenso movimento, as agricultoras mais jovens
apresentam, em geral, um número de variedades inferior às agricultoras de maior
idade. No tocante a conexão entre os marcadores de gênero e as trocas de plantas, as
pesquisadoras alegam que as variedades de manivas circulam preferencialmente de
m~e para filha e de sogra para nora, “inscrevendo-se em uma lógica de um bem
patrimonial de transmiss~o intergeracional” (2010:97).
Figura 7Rede de circulação das manivas, comunidade Espírito Santo (2008). (IPHAN, 2010: 97)
Já as variedades frutíferas trilham rotas masculinas, em sua maioria na mesma
geração, fundamentando-se “sobre laços de parentesco, por consanguinidade ou
aliança, relações de vizinhança ou outras relações (patrões, compadrio, comerciantes)”
(2010: 97).
152
Figura 8 Rede de circulação das fruteiras, comunidade Espírito Santo (2008) (IPHAN, 2010:97)
Em resumo, dois são os modos de circulação objetificados pelo dossiê: o
primeiro, condiz ao repasse do material presente nas capoeiras antigas para os novos
roçados, fundamentado na escala individual de agricultura a agricultura e acrescido
pela incorporação das manivas-sem-nome. Ao passo que o segundo opera por vínculos
sociais, em escala regional, sustentado na circulaç~o de um “bem coletivo”. A feiç~o
sistêmica deste processo de circulação de materiais vegetais seria, segundo o dossiê,
menos estática, concêntrica e hierárquica, e mais multilocalizada, policêntrica e
horizontalizada, “onde os papeis de selecionador, multiplicador, distribuidor e usuário
das sementes s~o assumidos pela mesma pessoa” (2010: 98).
153
Considerações parciais: das formas às forças
Este capítulo nos possibilitou explorar os alicerces jurídicos e retóricos que
fundamentam o que chamei de lógica do patrimônio imaterial. Foi apresentado o
debate que fez emergir a política de salvaguarda dos patrimônios imateriais por meio
dos registros, que enfatiza a dimensão lógica e processual da cultura, em oposição
direta à feição histórica e conteudística da política de tombamento dos patrimônios
materiais. Nesta reordenação do campo institucional do patrimônio pudemos
depreender que, embora a feição lógica e processual da cultura imaterial seja acionada
no intuito de se contrapor ao enquadramento cronológico e conteudístico da cultura
material, o debate ocorre no âmbito do hilemorfismo presente no pensamento
ocidental. Com efeito, assim como na lógica dos recursos fitogenéticos, aqui também a
agrobiodiversidade é concebida a partir de um engendramento de forma e matéria.
A análise do percurso administrativo que culminou no SAT-RN, primeiro
registro da agrobiodiversidade como patrimônio imaterial do Brasil, lançou questões a
respeito das habilidades analíticas –interdisciplinares e intercientíficas – necessárias
para a estabilização da agrobiodiversidade para além da sua dimensão utilitária,
calcada nos recursos fitogenéticos. Com o uso da noção de “sistema”, deixou-se de se
limitar à simples preservação de um recurso genético, passando a evidenciar a
interdependência de diversos domínios, humanos e ambientais, e escalas, simbólicas e
produtivas, da agricultura do rio Negro. No caso em questão, esta abrangência na
objetivação dos processos agrícolas só foi possível por contar com a expertise de
pesquisadores com formação em ciências humanas e ciências biológicas, somado ainda
à participação ativa de pesquisadores indígenas no relato das histórias de vida das
plantas, dos rituais de benzimento, do acervo mitológico local e das técnicas de
processamento alimentar.
No capítulo anterior, chegamos à consideração segundo a qual na lógica dos
recursos a agrobiodiversidade é tomada muito mais a partir de seus resultados e
produtos do que pelos processos ontogenéticos. Já neste capítulo podemos constatar
154
que na lógica dos patrimônios imateriais os esforços se dão justamente no sentido de
transformar em processo (“desmaterializar”) os pleitos de registro inicialmente
atomizados. Como consequência, se as soluções encontradas pela lógica dos recursos
para estabilizar a agrobiodiversidade repousam sobre a qualificação de substantivos
(“propriedades características”, “comunidades locais”, etc.), em se tratando do registro
da agrobiodiversidade como patrimônio imaterial o que ressaltou foram os verbos; três,
em especial, produzir, trabalhar e trocar. Eminentemente modernos, estes verbos
exerceram mediações entre os modos de vidas agrícola do rio Negro e o linguajar
estatal que alicerça a retórica do patrimônio imaterial.
Entretanto, a política de registro do patrimônio imaterial faculta um modo de
articulação que a diferencia da política dos recursos fitogenéticos. Refiro-me aqui à
incorporação dos pontos de vista locais, não-modernos, no escopo do registro. Não que
no CGEN estes pontos de vista não tenham o seu lugar assegurado através dos
especialistas convidados e de representantes da “sociedade civil”, comunidades
indígenas e “locais”. Porém é notório o fato de que nessa segunda instituiç~o a
participação se restringe a disputas semânticas de conceitos que já são dados
previamente pelo quadro normativo. Ao passo que no IPHAN há uma (relativa)
abertura para a incorporação das formas, e não apenas do conteúdo, de pensamentos
não-modernos. Em virtude disso, o próprio material etnográfico disponibilizado pelo
dossiê de registro do sistema agrícola do rio negro forneceu alternativas (indígenas)
suficientes para colocar em perspectiva o binômio forma/matéria caro ao esquema
hilemórfico e, com isso, oxigenar os instrumentos de patrimonialização da
agrobiodiversidade. Como diz Coelho de Souza (2010),
“No caso das culturas indígenas sul-americanas (...), essas formas
envolvem uma tensão (uma dinâmica) entre o material e o imaterial, o
visível e o invisível que, embora possa ser posta em paralelo com
dualidades similares encontradas no contexto dos processos e dos
debates envolvendo a ‘patrimonializaç~o’ da cultura, e inerentes { noç~o
de patrimônio cultural imaterial, difere delas sob aspectos decisivos”
(2010: 152, grifo meu).
155
Ao incorporar as perspectivas êmicas das populações concernidas ao SAT-RN, o
próprio dossiê de registro nos apresentou um universo agrícola marcado muito mais
por forças (humanas e não-humanas) do que pelo ideia de formas previamente
concebidas e aplicadas de maneira projetista. Este deslocamento conceitual tem o
rendimento de possibilitar uma articulação dinâmica, avessa ao esquematismo estático
que pode decorrer da separação entre as dimensões formais e materiais. Como
consequência, no universo agrícola apresentado pelo dossiê, a “terra” n~o é uma
matéria-prima passiva à espera do trabalho humano que a anima ao lhe dar forma. Ao
contrário, trata-se de uma entidade que possui “força” própria, podendo ser “fraca ou
cansada nas capoeiras” (IPHAN, 2010: 54). Do mesmo modo, o benzimento n~o se
reduz a esquemas simbólicos formais – projetos mentais, poder-se-ia dizer – que são
imputados à matéria vegetal, mas sim como uma espécie de acionamento das forças de
não-humanos que frequentam os roçados.
156
Capítulo 3
Recursos e Patrimônios:
considerações comparativas
157
Variações hilemórficas
“(...) Mauss insiste, como de costume, sobre a necessidade de
reconstruir depois de ter analisado. Como ele dizia: ‘depois que
se recortou mais ou menos arbitrariamente, é preciso voltar a
costurar’”.
Dumont, Louis. 1985. Marcel Mauss: uma ciência em devenir
O objetivo da dissertação consiste em apresentar as soluções acionadas pelo que
chamei de lógica dos recursos fitogenéticos e lógica dos patrimônios imateriais para
promover o enquadramento da agrobiodiversidade no âmbito das políticas públicas
brasileiras. Tratou-se, portanto, de analisar duas iniciativas de se criar e operar marcos
legais e modos de articulação entre biologia e cultura diante de um cenário político
composto
por
diversos
atores
(plantas,
nações,
empresas,
grupos
étnicos,
pesquisadores, etc.). No capítulo 1 acompanhamos os debates no CGEN para delimitar
em termos de produtos as operações que promovem a agrobiodiversidade. Já no
capítulo 2, pudemos depreender o empenho do DPI em transformar em processos
(“desmaterializar”) pleitos de registro inicialmente atomizados.
Resta agora, neste último capítulo, não apenas ressaltar as diferenças entre estas
duas políticas, que neste momento devem estar explícitas, mas também buscar
entender de que maneira ambas se conectam em níveis englobantes e são capazes
inclusive de algum patamar de diálogo conceitual. Dumont (1985) sugere que a
perspectiva antropológica, que para ele é por definição comparativa, oferece a
vantagem de visualizar o fenômeno analisado em sua totalidade, pois possibilita um
exercício estrutural no qual os dois termos da comparação se iluminem mutuamente.
Além disso, prossegue o antropólogo, a “colocaç~o em perspectiva” (1985: 20) permite
evitar as arbitrariedades de uma visão global. Para uma comparação estritamente
dumontiana, entretanto, acredito que seria necessário um investimento diacrônico
cuja envergadura foge do meu alcance no momento. Logo, o exercício que segue toma
apenas como inspiração metodológica o estruturalismo de Dumont, em especial suas
158
considerações acerca da comparação e da hierarquia, devendo ser encarado de maneira
situada e sempre parcial.
O recorte privilegiado nesta análise evoca o modo como estas diferentes
políticas habitam a tens~o matéria/forma. As noções de CTA, “propriedades
características” e “comunidade local” que dependeram, cada uma a sua maneira, da
delimitação e separação das dimensões ideacionais e materiais, bem como as
implicações que dualidade material/imaterial apresentou para o registro do SAT-RN,
nos leva a pensar que esta tensão não é apenas um fator residual, mas sim uma
disposição constitutiva dos alicerces jurídicos, científicos e retóricos que fundamentam
estas duas políticas públicas. Diante de tal imperativo, proveniente do levantamento
etnográfico, faz-se pertinente adentrar na dimensão pré-conceitual que, ao abordar os
produtos e os processos da agrobiodiversidade de maneira substancializada, cinde a
substância numa dimensão material e outra formal. Esta dimensão pré-conceitual
operante nas duas politicas da agrobiodiversidade aqui analisadas será agora conectada
à doutrina do ato e da potência, atribuída à metafísica hilemórfica de Aristóteles,
compondo o que chamarei de variações hilemórficas.
A justificativa deste atrevimento analítico de enveredar para a seara da
metafísica (importante, porém não tão central na formação dos antropólogos), se dá na
medida em que o hilemorfismo aristotélico cumpre a função de ser uma doutrina
tácita do pensamento ocidental (Simondon, 1958; Ingold, 2013; Neves, 2006). Desde
esta perspectiva, os seres são concebidos em termos de um engendramento de matéria
(hyle) e forma (morphè), a primeira condizente à potência e a segunda ao ato, e suas
derivações decorrentes.
Alguns poderiam alegar ser desnecessário ir tão longe – no caso, aos gregos –
para compreender esta tensão matéria/forma que marca a concepção das plantas
cultivadas nas duas politicas da agrobiodiversidade aqui analisadas. Poder-se-ia dizer,
neste caso, por exemplo, que os apontamentos de Latour (1994), explorados ao longo
da dissertação, acerca da separação entre natureza e cultura como garantia
constitucional dos modernos, já seriam suficientes para nossos intentos.
159
O fato, porém, é que enquanto a separação entre natureza e cultura assume seu
protagonismo apenas a partir da disjunção moderna entre ciência e política, como bem
notara Latour (1994: 33), a separação entre a dimensão da forma e a dimensão da
matéria que engendram os seres é anterior; tanto em termos cronológicos, datando
pelo menos desde Aristóteles, quanto lógicos, se atualizando tanto nos objetos tidos
como “culturais” quando naqueles tomados como “naturais”. Com efeito, n~o se trata
aqui de constatar mais um dentre os vários dualismos que compõem o pensamento
moderno, mas sim compreender as vantagens (e desvantagens) que a concepção dos
seres enquanto um engendramento de ato e potência possibilita para o entendimento
das relações entre humanos e plantas cultivadas.
Por mais que em certos momentos o texto aponte alguns percalços provenientes
da separação entre matéria e forma nas políticas da agrobiodiversidade, é preciso
entender que este esquema de pensamento torna possíveis as soluções que já garantem
sua eficácia na esfera administrativa. Por outro lado, vale dizer que a própria
dissertação, ela mesma, reside dentro de um hilemorfismo. Ao explicitar a ciência
deste enquadramento, aproveito para deixar claro que foge dos meus interesses atacar
ou ainda decretar a falência deste esquema de pensamento. Ao contrário, trata-se
apenas de contribuir para a sua maior objetivação e vislumbre de seus potências e
limites, visando, sobretudo, compreender seus modos de operação, dilemas e soluções
gerados por ele em casos específicos como os abordados neste trabalho. Para esquivar
de um “antifetichismo”, adverte Latour (2001), é necessário não dissimular a nossa
própria formulação esquemática. Cabe, portanto, esboçar o que vem a ser este
pensamento hilemórfico para em seguida, como diz Latour (2002: 56), compreender
suas variações e eficácia dentro destas duas políticas aqui analisadas.
No âmbito da antropologia, Tim Ingold é um dos autores que mais tem
empreendido esforços para destacar as estreitas ligações entre o pensamento
hilemórfico e a concepção dos processos de feitura no repertório analítico da teoria
social. Em seu último livro, intitulado Making: Anthropology, Archaeology, Art and
Architecture, Ingold diz com todas as letras que: “Whenever we read that in the
making of artefacts, practitioners impose forms internal to the mind upon a material
world ‘out there’, hylomorphism is at work” (Ingold, 2013: 21). Além de remeter a
160
separação entre matéria e forma { perspectiva daqueles que “n~o trabalham”, ou que
est~o “fora da oficina” como diz Simondon (1958: 46), Ingold n~o é nem um pouco
econômico quando atribui a Aristóteles, por vezes de maneira acusativa, a origem
ateniense deste pensamento que “see what goes in and what comes out but nothing of
what happens in between” (2013: 25). Em suas próprias palavras,
“Ever since Aristotle, this distinction between body and soul has been
taken as a specific instance of a more general division between matter
and form. Any substantial thing, Aristotle had reasoned, is a compound
of matter and form, which are bought together in the act of its creation.
Herein, as we saw in the last chapter (p. 20-21), lies the foundation of the
hylomorphic model of making. In the subsequence history of western
thought hylomorphic thinking became over more entrenched. But it also
became increasingly unbalanced. Form came to be seen as imposes by
an agent with a particular design in mind, answering to his or her
purpose, while matter – thus rendered passive and inert – became that
which was imposed upon” (2013: 37).
Adotando esta constatação de Ingold, parto da hipótese segundo a qual a
exposição do esquema hilemórfico pode nos auxiliar na compressão conceitual das
políticas da agrobiodiversidade em três níveis. O primeiro abarca de modo mais geral a
concepção do ser enquanto substância, e a substância como um composto de forma e
matéria. Como vimos ao longo da dissertação, esta tensão entre as dimensões formais e
materiais é um pressuposto tácito – metafísico, poder-se-ia dizer – que se atualiza
tanto na lógica dos recursos quanto na lógica dos patrimônios. Já no segundo nível,
tratarei de conectar os instrumentais teóricos de estabilização da agrobiodiversidade –
no caso, as teorias neo-darwinista e dos sistemas agrícolas – à doutrina do ato e da
potência que perpassa a ambas. Veremos que tanto a separação entre os conceitos de
genótipo e fenótipo, para a primeira, quanto a objetivação dos fenômenos a partir das
trocas e circulações, para a segunda, dão um privilégio analítico à estabilidade e aos
aspectos organizacionais ao invés dos processos ontogenéticos. No terceiro nível, por
fim, serão aventadas e cotejadas as operações propriamente ditas para alcançar os
produtos e os processos da agrobiodiversidade, respectivamente no Plenário do CGEN
e no dossiê de registro do SAT-RN. Estes três níveis comparativos se prestarão,
portanto, para nos auxiliar a entender de que modo estas duas politicas se conectam a
161
partir de um exercício conceitual ainda pouco explorada pela literatura correlata. Isto
é, ainda que operando de maneiras muito distintas, trata-se de visualizar de que modo
estas duas políticas se filiam a uma mesma gramática, permitindo e condicionando um
diálogo.
Concebendo: matéria e forma
Nos debates internos sobre as políticas dos recursos fitogenéticos e dos
patrimônios imateriais a conexão entre a tensão matéria/forma e o hilemorfismo
aristotélico não é tão evidente, ou pelo menos não de maneira tão explícita. Ainda
assim, em uma nota de rodapé da colet}nea “Patrimônio imaterial e Biodiversidade”
supracitada, Carneiro da Cunha (2005) notou que, ao opor matéria à imaterialidade e
produtos a processos, a gramática do patrimônio atualiza de maneira direta a
concepção aristotélica do mundo sensível. Nas palavras da antropóloga,
“É certo que no mundo supralunar, segundo Aristóteles, a forma
imaterial e sua realização material não se distinguem, são uma coisa só.
Mas no mundo infralunar em que vivemos, eles não se confundem. A
política do patrimônio histórico foi toda voltada para a preservação da
realização material. Trata-se de passar dessa preservação do material à
conservação da forma imaterial. E conservar a forma imaterial é,
repetimos, conservar processos, não preservar produtos” (Carneiro da
Cunha, 2005: 26, nota 3, grifo meu).
Esta citação evoca a perspicácia, por parte da antropóloga, no domínio do
universo metafísico (no caso, aristotélico) em que o debate se assenta, encontrando
brechas neste jogo de processos e produtos do hilemorfismo estatal. Neste sentido, a
defesa do componente processual/imaterial da agrobiodiversidade é justamente uma
maneira de acionar uma tecla possível para contrabalancear a hegemonia “materialista”
de alguns setores da administração pública. Como vimos no decorrer da dissertação,
esta petição de princípio advogada por Carneiro da Cunha tem gozado de relativo
sucesso na concepção das politicas brasileiras da agrobiodiversidade. Afinal, a
dualidade produtos/processos segue sendo empregada como um dos maiores
162
diacríticos, marcando as diferenças entre a política do patrimônio material e a do
patrimônio imaterial, mas também deste último em relação aos recursos fitogenéticos.
Diante destes apontamentos, vale a pena recorrer ao próprio Aristóteles para
que este esquema hilemórfico seja devidamente circunscrito e compreendido. Ainda
que de maneira sumária e sem grandes pretensões exegéticas, faz-se pertinente
explorar o hilemorfismo como um padrão da racionalidade científica (moderna, mas
não apenas) que tem sua gênese na metafísica aristotélica – em especial, no livro H
(oitavo) da Metafísica. Direcionaremos assim nossa atenção para o peso que a
concepção do ser enquanto substância, bem como a substância como a junção de
matéria e forma, tem para o repertório ocidental de compreensão dos processos de
individuação dos seres (humanos e não-humanos).
Uma vez introduzida no volume Z (sétimo) de seu livro Metafísica a noção de
ser como substância – em suas palavras, “o ser primeiro, ou seja, n~o um ser particular,
mas o ser por excelência é a subst}ncia” (Aristóteles, VII.1, 1028ª 30-35) – no volume H
(oitavo), por sua vez, Aristóteles vai considerar a noção de substância em termos de
potência (dynamei) e ato (energeiai). A “potência” Aristóteles associa { matéria (hyle),
ao passo que o “ato” é associado { forma (morphè) – i,e enquanto a matéria condiz com
a capacidade em estado de dormência a forma se refere à atividade ou atualização em
movimento –, daí o hylemorphismo. É justamente nesta assertiva que reside o cerne do
pensamento hilemórfico, a saber: uma doutrina segundo a qual “n~o se deve
considerar, unilateralmente, apenas a forma, ou apenas a matéria, ao definir e explicar
o comportamento dos seres naturais, pois esses seres não são sem matéria, mas
também n~o se reduzem a ela” (Carvalho, 2011: 28). Conforme nos diz Aristóteles,
“[o] ato est| para a potência como, por exemplo, quem constrói est| pra
quem pode construir, quem está desperto para quem está dormindo,
quem vê para quem está de olhos fechados, mas tem a visão, e o que é
extraído da matéria para a matéria e o que é elaborado para o que não é
elaborado, ao primeiro membro dessas diferentes relações atribuiu-se a
qualificaç~o de ato e ao segundo a de potência” (Aristóteles, IX.6, 1048b)
163
Deste modo, o livro H da Metafísica estabelece esta perspectiva, hoje
generalizada em diversos desdobramentos, como os apontados nesta pesquisa,
segundo a qual a substância se associa tanto ao ato quanto à potência, permitindo com
que a mesma possa ser captada tanto através da estabilização da forma como pela
estabilização da matéria. Portanto, uma vez introduzidas as ideias de ato e potência à
noção de substância, o que é substancial deixa de ser reduzido à pura forma que
residiria além do mundo sensível (como sói ocorrer na metafísica platônica), mas
também se esquiva de uma teoria heraclitiana do sensível na qual tudo se reduz ao
mais obscuro devir. É justamente na hesitação desta encruzilhada que Aristóteles
advoga que a substância não está apenas na forma como também na matéria; não só no
ato como também na potência.
Em certo sentido, o conteúdo que este enquadramento aristotélico ambiciona
controlar é a problemática da transformação, de ampla trajetória na metafísica
ocidental, que se apresenta de maneira emblemática no debate entre Heráclito e
Parmênides. A saber: enquanto Heráclito, a partir da sua famosa sentença da
impossibilidade de “passar duas vezes pelo mesmo rio”, advoga que a transitoriedade e
a mudança constantes são o caso de todas as coisas, por outro lado, Parmênides
afirmava que a imutabilidade é condição sine qua non da existência do ser (pois o que
muda simplesmente não é). É justamente no intuito de solucionar este paradoxo do
movimento e reconciliar o ser de Parmênides com o devir heraclitiano que Aristóteles
lança mão de sua doutrina hilemórfica. No hilemorfismo a oposição entre ser e devir é
conciliada pela junção – ou sínolo, nas palavras de Aristóteles – entre potência e ato, o
primeiro condizente às possibilidades de realização das formas e o segundo à
atualização efetiva que especifica a matéria inerte. A substância, portanto, passa a ser
encarada como esta junção entre matéria e forma, entre potência e ato, ao passo que a
problemática originária do movimento, por sua vez, é assumida como forma
animadora de uma matéria entorpecida. Esta seria, em resumo, a maneira aristotélica
de assumir a existência do ser a despeito do movimento presente na natureza.
Se o esquema hilemórfico de Aristóteles resolve de maneira aparente a
controvérsia entre Parmênides e Heráclito – na qual o primeiro advogava pela
imobilidade do ser e o segundo pela sua constante transformação – no sínolo
164
aristotélico o ser, ele mesmo, precisa ser substancializado mediante a teoria do ato e da
potência. Em outras palavras, Aristóteles se vê diante da difícil tarefa de assegurar a
existência do ser sem que, com isso, o movimento inerente à natureza seja
negligenciado. Para tal feito, o sínolo aristotélico é justamente este elemento mediador
da dualidade ser vs devir, pois o ser não se reduz ao que existe em potência, nem o que
se define em ato (i.e o que pode vir a ser em ato). É baseando-se nesse esquema
hilemórfico que a Aristóteles é permitido assegurar de maneira não contraditória que o
ser (entendido aqui como substância resultante do encontro entre forma e matéria;
potência e ato) apresenta certas características num dado momento e outras em outro.
Vejamos como o esquema hilemórfico opera a partir de um exemplo extraído do
capítulo 5 do Livro H, intitulado A matéria considerada relativamente aos contrários e
ao devir das coisas:
“Põe-se então o problema de como a matéria de cada coisa se comporta
relativamente aos contrários. Por exemplo, se o corpo é sadio em
potência, e se a enfermidade é contrária à saúde, o corpo seria em
potência saúde e enfermidade? E a água é em potência vinho e vinagre?
Deve-se, talvez, dizer que a matéria é potencia do lado positivo dos dois
contrários enquanto é um estado e uma forma, e que é potência do seu
contrário enquanto é privação e corrupção da natureza?
Surge ainda este outro problema: porque o vinho não é matéria do
vinagre nem é vinagre em potência, mesmo que dele derive vinagre? E por
que o animal não é cadáver em potência? Deve-se responder que não é
assim porque se trata de corrupções acidentais: é a matéria do animal
que, em função de sua corrupção, é potência e matéria do cadáver, assim
como a água relativamente ao vinagre. O cadáver e o vinagre derivam do
animal e do vinho do mesmo modo que o dia deriva da noite. E todas as
coisas que se transformam umas nas outras desse modo devem antes
retornar à matéria originária; por exemplo: para que do cadáver derive o
animal é necessário que ele se transforme antes em matéria, e assim
poderá posteriormente tornar-se animal. E também o vinagre deve
primeiro transformar-se em água para depois tornar-se vinho”
(Aristóteles, VIII.5, 1044b 25-35, grifo meu).
Deste excerto pode-se depreender que por mais que o vinho se transforme em
vinagre, assim como o animal em cadáver, trata-se, de acordo com Aristóteles, de
165
quatro substâncias distintas. Afinal, ao invés transformações necessárias à
potencialidade da matéria, tratam-se, antes, de “corrupções acidentais”. O movimento
que desloca de um termo a outro é remetido ao acaso, isto é, é a matéria elementar do
animal que em sua “corrupç~o acidental” é matéria do cad|ver, assim como a água
relativamente ao vinagre e do mesmo modo em que todas as coisas que derivam umas
nas outras. Ou seja, é um acidente a transformação do vinho em vinagre e do animal
em cadáver; não se tratando, portanto, de uma predisposição que reside na substância
ela mesma. A importância para Aristóteles de se postular que o vinho, o vinagre, o
animal e o cadáver são quatro substancias distintas se dá, pois, na medida em que a
substancia não se reduz à potência (matéria), nem mesmo ao ato (forma), mas sim ao
sínolo do hilemorfismo. Lembremo-nos que Aristóteles chama de sínolo a conjugação
matéria e forma. Ainda assim, ao postular a existência do acaso sob a rubrica das
“corrupções acidentais”, o que o hilemorfismo aristotélico n~o ilumina s~o justamente
as operações constitutivas destes acasos. Ora, se o monismo atomista, contra o qual
Aristóteles argumenta, postula a anterioridade do átomo e, consequentemente, dos
seres, o hilemorfismo aristotélico recapitula a mesma negligência das operações que,
em se tratando do exemplo supracitado, transformam o vinho em vinagre e o animal
em cadáver.
Ainda que a saída aristotélica vise justamente atenuar a tensão entre o ser e o
devir presente na matriz de pensamento ocidental, para o filósofo e tecnólogo francês
Gilbert Simondon o esquema hilemórfico acaba por deflagrar uma concepção
substancialista do ser, uma vez que “l’opposition de l’être et du devenir peut n’être
valide qu’{ l’intérieur d’une certaine doctrine supposant que le modèle même de l’être
est la substance” (1958: 25). Isto posto, n~o nos surpreende a afirmaç~o de Simondon
(1958: 24) segundo a qual tanto o monismo atomista quanto o hilemorfismo dualista
evitam explicar a ontogênese e se restringem aos indivíduos já estabelecidos, seja
concebendo-os como um fato de existência própria (atomismo), seja encarando-os
como um composto fruto de corrupções acidentais entre matéria e forma
(hilemorfismo). Ora, ao tratar a substância como o sínolo de ato e potência, o
hilemorfirsmo aristotélico se restringe aos atos que dão forma e à potência da matéria
já estabilizada, ao invés das operações propriamente ditas. No esquema hilemórfico,
166
portanto, os termos são claros e discerníveis e as relações que operam as
transformações são obscuras e indiscerníveis. Nas palavras de Simondon,
“l’être individué n’est pas déj{ donné lorsque l’on considère la matière et
la forme qui deviendront le sínolo: on n’assiste p|s { l’ontogénèse parce
qu’on se place toujours avant cette prise de forme qui est l’ontogénèse; le
principe d’individuation n’est donc pas saisi dans l’individuation même
comme opération, mais dans ce dont cette opération a besoin pour
pouvoir exister, à savoir une matière et une forme: le principe est
supposé contenu soit dans la matière soit dans la forme, parce que
l’opération d’individuation n’est pas supposée capable d’apporter le
principe lui-même, mais seulement de le mettre em oeuvre”(Simondon,
1958: 24).
Neste sentido evocado por Simondon, tanto o internalismo monista de
Parmênides, que advoga pela anterioridade ontológica do ser, quanto o externalismo
hilemorfista de Aristóteles, que considera os seres como resultados do engendramento
entre formas e matérias, podem ser caracterizados como “duas faces da mesma moeda”
(Neves, 2006: 41), pois as operações da individuação, que devem justamente ser
explicadas para visualizar a emergência das singularidades, são deixadas numa zona
obscura, lócus da fase intermediária, ontogenética, que interessa àqueles atentos à
individuação em sua completude:
“La recherche du principe d’individuation s’accomplit soit après
l’individuation, soit avant l’individuation, selon que le modèle de
l’individu est physique (pour l’atomisme substantialiste) ou
technologique et vital (pour le scheme hylémorphique). Mais il existe
dans les deux cas une zone obscure qui recouvre l’opération
d’individuation. Cette opération est considérée comme chose { expliquer
et non comme ce en quoi l’explication doit être trouvée: d’ oú la notion
de principe d’individuation” (Simondon, 1958: 24).
Contra a imagem do ser como substância, cara ao hilemorfismo, Simondon
oferece a imagem do ser como relação. Para o filósofo, portanto, é justamente nesta
zona obscura entre as supostas “essências das coisas” (matéria + forma) e as coisas j|
“formadas” (indivíduos) que reside a dimens~o pré-individual que possibilita a
167
emergência do novo, do diferente, em suma, do singular. Poder-se-ia dizer com
Simondon que é exatamente aí que residem os seres, sendo o indivíduo apenas uma de
suas fases (1958: 320)65. Em outras palavras, fora do esquema hilemórfico o individuo
não se reduz nem a forma nem a matéria, mas sim a uma resolução sempre parcial de
um sistema tenso 66, sobressaturado e maior que uma unidade (1958: 25).
Adaptado a partir de Neves (2006:46)
Se o esquema hilemórfico se presta de maneira satisfatória para os
empreendimentos classificatórios que almejam depurar a gênese dos indivíduos já
individuados – para isso partindo da estabilização seja dos processos (atos que dão
forma) seja dos produtos (matéria bruta trabalhada) – o mesmo oferece pouco
rendimento quando se pretende captar a ontogênese propriamente dita. Conforme diz
Tim Ingold (2013: 25), “it is a thought, in form and matter, he could grasp only the
ends of two half-chains but not what brings them together, only a simple relation of
moulding rather than the continuous modelation that goes on in the midst of formtaking activity, in the becoming of thing”. Esta ontogênese, ou “form-taking activity”
65
Por indivíduo como fase do ser, entenda-se: “En fait, l'individu est multiple en tant que polyphasé,
multiple non comme s'il recélait en lui une pluralité d'individus secondaires plus localisés et plus
momentanés mais perce qu'il est une solution provisoire, une phase su devenir qui conduira à de
novelles opérations" (1958: 320).
66
Ao contr|rio da noç~o de “sistema” disponibilizada por Saussure e de grande impacto no movimento
estruturalista francês, esta noção é utilizada por Simondon tendo como referência a cibernética e,
sobretudo, a termodinâmica (Simondon, 1958: 63-66). Enquanto a noção saussuriana concebe a
diferença em termos de signos, sob o modelo da diferença linguística, em Simondon a diferença é
pensada em termos de energia potencial, tomando a energia enquanto fundamento da relação. Esta
guinada energética tem ao menos um efeito importante para o estudo da agrobiodiversidade, a saber: o
fim do privilégio dispensado ao ponto de vista do humano e a abertura de ricas possibilidades para
pesquisas interdisciplinares.
168
(em oposiç~o { “form-receiving passivity”), reside justamente na fase pré-individual
negligenciada pelo esquema hilemórfico. Ou, melhor dizendo, é justamente por tomar
as problemáticas pré-individuais pela negatividade, como um “est|gio provisório do
nosso conhecimento” (Deleuze, 2003: 122), que o hilemorfismo apresenta dificuldades
para visualizar a individuação no nível ontogenético.
Ao operar pela chave do sínolo aristotélico, no esquema hilemórfico a
individuação dos seres (humanos e não-humanos) se apresenta como uma realidade
estabilizada no par matéria/forma e suas derivações contemporâneas: teoria/prática,
tangível/intangível, corpo/espírito, dentre outras que, para Ingold (2007: 2), condizem
menos com as operações de feitura propriamente ditas e mais com ruminações
abstratas de teóricos e filósofos67. Deste modo, só é passível de conhecimento aquilo
que pode ser estabilizado através das potencialidades da matéria e dos atos de
modelagem, ao passo que a zona obscura das operações técnicas passa a ser qualificada
como instável e provisória, impossibilitando adentrar na ontogênese dos seres.
Portanto, junto ao par matéria/forma a dicotomia clássica instabilidade/estabilidade
também acompanha o esquema hilemórfico.
Assim como os antigos aristotélicos, os modernos só conseguem descrever e
pensar a individuação partindo do equilíbrio estável, se contrapondo ao desequilíbrio
da instabilidade. Para Latour (1994: 16) a grande distinção dos modernos se dá
justamente na criaç~o e necessidade de separaç~o de “duas zonas ontológicas
inteiramente distintas”: de um lado as pr|ticas de mediaç~o onde se misturam “gêneros
de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura”, e, de outro, as pr|ticas
de purificação, que estabilizam humanos e não-humanos em recintos particulares.
Com efeito, não seria de todo descabido tomar estes dois conjuntos de praticas
mobilizados por Latour como uma variação historicamente situada deste pensamento
hilemórfico que perpassa a tradição ocidental.
67
Ao comentar os livros de referência do campo que se convencionou chamar “cultura material”,
contrapondo-os ao elogiado estudo de Henry Hodges’s sobre os materiais dos povos ditos pré-históricos
(em oposição à ideia de materialidade), Ingold afirma ainda que: “In style and approach, these books are
a million miles from Hodges’s work. Their engagements are not with the tangible stuff of craftsmen and
manufacturers but with the abstract ruminations of philosophers and theorists. To understand
materiality, it seems, we need to get as far away from materials as possible”.
169
Em se tratando do nível conceptual, e se atendo aos termos latourianos, vimos
que no CGEN e no IPHAN as interações entre humanos e plantas cultivadas são
concebidas sob o signo da matéria e da forma, sendo que a primeira instituição se
dedica com maior afinco às práticas de purificação e a segunda às de mediação. Não se
trata, todavia, de afirmar que uma só faça purificações enquanto a outra apenas se
restrinja a construir mediações. No entanto, no nível ideológico (Dumont, 1985) das
racionalidades operadas, se fez notória uma diferença de ênfase entre estas duas
instituições: pois enquanto no CGEN as práticas de cultivo e conhecimentos associados
são objetivadas para qualificar os resultados destas interações, no IPHAN os elementos
do SAT-RN são concebidos de maneira secundária frente às redes de parentesco e
demais processos agrícolas que, em “conjunto”, compõem o “sistema”.
Estabilizando: atos e relações
A despeito destas ponderações feitas por Simondon e Ingold ao esquema
hilemórfico, o fato é que, como vimos no decorrer da dissertação, as duas políticas
analisadas funcionam; a seu modo e no seu mundo. Tomamos aqui estas avaliações do
hilemorfismo menos no intuito de endossar tais críticas e mais no sentido de uma
guinada eminentemente heurística. Logo, a explicitação destes aspectos nos serve
como instrumental compreensivo da tensão entre matéria e forma nas políticas da
agrobiodiversidade, em particular, e no pensamento moderno, de maneira mais ampla.
Uma vez sendo o meu objetivo compreender este modo de funcionamento,
nada mais oportuno do que habitar seu próprio mundo, partindo de seus próprios
problemas e do modo como são colocados. Foi exatamente este o intento quando os
materiais etnográficos nos conduziram a adentrar no pensamento neo-darwinista
(Jablonka & Lamb, 2010) e na teoria dos sistemas agrários (Mazoyer & Roudart, 2008).
É verdade que não nos detivemos em definir em sua devida minúcia os complexos
contornos das distintas vertentes destas duas teorias. Tal empreendimento escapa ao
nosso escopo e, sobretudo, às nossas atuais competências. Ainda assim, colocamos em
relevo algumas das suas arestas, nos permitindo encarar tais teorias como modos
170
distintos de estabilização da tensão matéria/forma no interior das duas políticas
analisadas.
No que se refere { separaç~o entre os conceitos de “cultivo” e “domesticaç~o”
constatada na CTCTA, atrelando o conceito de cultivo à seleção de fenótipos e o
conceito de domesticação à estabilização de genótipos, a Síntese Moderna neodarwinista atualiza a separação hilemórfica entre forma (enquanto ato) e matéria
(enquanto potência). Como afirmam Jablonka & Lamb (2010: 45), “a hereditariedade
não envolve a transmissão de caracteres, mas sim o potencial para os caracteres”. Por
conseguinte, se no esquema hilemórfico toda forma passa para o lado da expressão e a
matéria é caracterizada pelo seu conteúdo passivo e imune aos fluxos informacionais
(Simondon, 1958: 5; Ingold, 2013: 28, Deleuze & Gattari, 1997: 35; 90-95), de maneira
análoga no esquema neo-darwinista as formas fenotípicas (morfótipos) são fluidas,
plásticas e instáveis, ao passo que os materiais genéticos são concebidos de maneira
estável e também imune à praxis (o que permite sua “transmiss~o”).
Para Ingold (2000: 380), esta maneira de encarar o genótipo como o exercício de
codificação de mensagens semânticas (entre emissores e receptores), imunes ao
contexto de enunciação, é tributária de uma apropriação equivocada da noção mesma
de informação. Se para os teóricos da informação da década de 1940 – como Nobert
Winer, John Von Neumann e Claude Channon – a informaç~o “had no semantic value
whatever; it did not mean anything”, j| para a biologia neo-darwinista e, em especial,
para a ortodoxia da biologia molecular, a informação genética passa a ser concebida
como um código cujo conteúdo é semântico e específico. Segundo Ingold, os próprios
teóricos da informação passaram a ficar perplexos diante de tal apropriação:
The point was not lost on the information theorists themselves,
however, who repeatedly warned against the conflation of the technical
sense of information with its generic counterpart, and looked on in
dismay as the scriptural metaphors of message, language, text and so
forth became entrenched in a biology that had become seemingly
intoxicated with the idea of DNA as a ‘book of life’.” (Ingold, 2000: 380)
O resultado desta apropriação teórica pode ser constatado na redução do
conceito mesmo de informação genética ao domínio linguístico – o DNA como o “livro
da vida” –, bem como sua operacionalidade em termos de “mensagens” e “transmiss~o”.
171
Afinal, assim como o signo linguístico é compreendido como a junção entre o
significado (conceito) e significante (imagem acústica), o gene, por sua vez, também
passa a ser concebido como a união entre uma propriedade característica e seu
segmento correspondente na molécula do DNA. A rigor, insiste Ingold, o modelo neodarwinista acaba por recapitular a separação hilemórfica entre a dimensão formal
(fenotípica) e dimensão material (genotípica), baseando-se na divisão convencional
entre ontogenia (desenvolvimento) e filogenia (evolução) e partindo de uma premissa
fundamental: somente as características do genótipo, e não as do fenótipo, são
transmitidas através das gerações (Ingold, 2000: 381).
Portanto, ainda que a separação neo-darwinista entre o “cultivo” e a
“domesticaç~o” tenha possibilitado aos integrantes da CTCTA abordar as plantas
cultivadas e as plantas domesticadas como expressões de duas qualidades distintas
(seja como “duas pontas de um processo gradual”, como destacou Emperaire, seja
através de um “corte temporal”, como sugeriu o representante do MAPA) os processos
constitutivos da ontogênese passam a ser encarados como secundários no processo
evolutivo. Nas palavras de Simondon, “une telle perspective de recherche accorde um
privilège ontologique { l’individu constitué. Elle risque donc de ne pas opérer une
véritable ontogénèse, de ne pás replacer l’individu dans le système de réalité em lequel
l’individuation se produit” (Simondon, 1958: 23).
É justamente por conceber a ontogenia pré-individual como um “est|gio
provisório do nosso conhecimento” (Deleuze, 2003: 122) que o esquema matéria/forma
necessita purificar de maneira eficaz os dois polos da relação de individuação do
engajamento humano-planta: de um lado, uma coletividade humana que conhece
(imprime uma forma) e, de outro, uma variedade agrícola que é manejada (informada).
Do mesmo modo, assim como a separação entre forma e matéria só pode ser válida no
interior de uma certa doutrina que supõe o modelo do ser enquanto substância já
individualizada (Simondon. 1958: 23), também a separação entre os conceitos de
“cultivo” e “domesticaç~o” só é pertinente dentro de uma matriz de pensamento que
concebe a individuação das plantas cultivadas de maneira a conjugar o encontro de um
ato ativo com uma potência passiva, isto é, partindo do princípio segundo o qual “a
coisa é, de um lado, matéria e, de outro, forma, e uma é potência enquanto a outra é
ato.” (Aristóteles, VIII. 6, 1045a, 25).
172
Dentro deste esquema, portanto, se fez necessário nos casos debatidos no
Plenário do CGEN a estabilização dos produtos da individuação a partir da deflagração
das “propriedades características” da matéria e da circunscriç~o formal de um sujeito
ou uma coletividade que lhe imputa uma forma específica – no caso, as “comunidades
locais”. De um lado, uma matéria passiva e prenhe de potencialidades em estado de
dormência. De outro, as formas ativas, ou melhor, ativadas, no caso, pelas
coletividades humanas que as imprimem. Atentando aos termos empregados pelos
conselheiros do CGEN, podemos depreender que a dimensão material da
agrobiodiversidade
fora
concebida
de
maneira
passiva,
com
“propriedades”
estabilizáveis, permitindo transformá-la em “recurso”. Ao passo que a esfera das formas
imateriais fora encarada de maneira (transform)ativa, passível de impossibilitar a
extens~o do predicado “tradicional” {s “comunidades locais”.
Já na estabilização da agrobiodiversidade sob a lógica dos patrimônios
imateriais, a noção de sistema cumpriu o papel de estratégia adotada pelos ideólogos e
executores do projeto SAT-RN no intuito de equalizar distintas dimensões dos
fenômenos agrícolas. Para tal feito, partiu-se da decomposição analítica em escalas,
prosseguida do rearranjo em formato sistêmico. Ou seja, as fragmentações se
prestaram justamente para qualificar as conexões almejadas, não o contrário. Ainda
assim, se faz salutar o apontamento de que, por mais que a abordagem sistêmica
empregada almeje justamente por em conexão relações de diversas ordens, visando
inclusive tornar mais rarefeita a separação entre as dimensões materiais e imateriais,
seu acionamento teve que se articular de algum modo à lógica do patrimônio segundo
a qual deve-se “desmaterializar” os bens registrados, mas n~o ao ponto de tornar sua
objetivação inviável. Em suma: na objetivação da agrobiodiversidade sob a lógica do
patrimônio as dimensões materiais e imateriais, seus termos e suas relações, seguem
sendo uma tensão. Vale refletir sobre isso de maneira mais prolongada.
Ao conceber a noç~o de sistema como “um conjunto de elementos em interaç~o”
(Delattre, 1984 apud IPHAN, 2010: 18), a opção metodológica se filia ao que Simondon
chama de “conceptualisme scientifique”, a saber: “suppose l'existence d'un réel fait de
terms entre lesquels existent des relations, les terms n'étant pas modífiés par les
relations dans leur structure interne” (1958: 26). Trata-se, portanto, de um tratamento
173
no qual a ontologia da relação é convertida em uma epistemologia do acesso ao
conhecimento, ou, melhor dizendo, os termos são tomados enquanto antecedentes
lógicos da ontologia das relações. Essa subordinação dos processos reais à linguagem
sistêmica como condição de possibilidade de conhecimento também é enfatizada por
Mazoyer & Roudart (2008:71):
“Para compreender o que é um sistema agr|rio é preciso, em princípio,
distinguir, de um lado a agricultura tal qual ela é efetivamente praticada,
tal qual pode-se observá-la, formando um objeto real de conhecimento, e,
por outro lado, o que o observador pensa desse objeto real, o que diz
sobre ele, constituindo um conjunto de conhecimentos abstratos, que
podem ser metodicamente elaborados para construir um verdadeiro
objeto concebido, ou objeto teórico de conhecimento e de reflex~o”
A partir desta conceituaç~o, podemos afirmar que esta vertente “agr|ria” da
teoria dos sistemas desenvolvida por Mazoyer & Roudart (2008) parte da separação
hilemórfica (neste caso, em sua vertente kantiana) entre o sujeito de conhecimento e o
objeto conhecido. É certo que este “instrumento intelectual” (idem: 76) fornecido pelos
autores possibilita o conhecimento dos seres já individuados sob a chave de
classificações, elementos e subsistemas. Porém, insiste Simondon (1958: 84), tal eleição
teórica implica na substancialização dos objetos e dos sujeitos (ou até mesmo das suas
relações) ao invés de encará-los de maneira verdadeiramente ontogenética. Isto é,
dificulta conceber as relações de maneira realista. Ora, se o intento da politica do
patrimônio imaterial é justamente sair do atomismo, como insistem seus
formuladores, faz-se pertinente a colocação de Simondon segundo a qual o
conhecimento das operações de individuaç~o só é possível mediante “l’individuation
de la connaissance du sujet” (1958: 36). Tal postulado implicaria, no caso, em permitir
que as ditas “formas” da agrobiodiversidade alterassem (se individuassem com) as
“formas” da lógica do patrimônio imaterial (Gordon, 2006). Dito de outra maneira, e
ainda permanecendo na gramática da forma e da matéria, ao invés de se utilizar da
abordagem sistêmica (enquanto forma) para conhecer os fenômenos agrícolas
(enquanto matéria) far-se-ia necessário que as duas pontas desta relação se afetassem
174
mutuamente ao longo da experiência de conhecimento. Isso significa olhar de dentro
dos roçados, poder-se-ia dizer Simondon, justamente ao modo intentado pela
abordagem sistêmica. No entanto, em contraste com pensamento logicista e
organizacional pertinente à objetivação da circulação dos elementos em conjunto,
Simondon sugere que além de entrar nos roçados, o tecnólogo (estudioso das
operações técnicas) adentre “no molde mesmo” (1958: 46), implique a si mesmo na
atividade, dando uma primazia à ontogênese técnica dos seres (pré-individual;
envolvendo humanos e não-humanos), ao invés da classificação dos indivíduos e
acompanhamento das suas circulações mediante as relações de troca (restritas aos
humanos).
Para todos os efeitos, nosso intento aqui é muito mais indicar (algumas das)
conexões conceituais entre o pensamento neo-darwinista operante na lógica dos
recursos fitogenéticos e a abordagem sistêmica que informou a racionalidade dos
patrimônios imateriais, do que sugerir possíveis soluções para as problemáticas
decorrentes da objetivação ontogenética dos seres. Menos ainda nos interessa aqui
indagarmos se as proposições derivadas destas duas racionalidades são verdadeiras ou
falsas. Como reafirmado diversas vezes ao longo da dissertação, trata-se de encará-las
em sua positividade, como duas ideologias (Dumont: 2000), e com isso, o que é ainda
mais relevante, como podem ser pensadas uma em relação à outra (2000: 170).
Restringindo-nos a este recorte, vale notar que a noç~o de “estabilizaç~o” perpassa
ambas as lógicas objetivadas. De um lado, a diferenciação entre os conceitos de
“cultivo” e “domesticaç~o”, possibilitada pela biologia neo-darwinista, se presta para
qualificar dois tipos de atos distintos, o primeiro condizente à seleção de fenótipos e o
segundo à estabilização de genótipos. De outro, na teoria dos sistemas agrários, de
Mazoyer & Roudart (2008), os intentos são eminentemente voltados à estabilidade, ou
melhor, à estabilização de fenômenos complexos cuja elevada quantidade de
elementos e interações tornam necessário recorrer à objetivação da circulação dos
materiais agrícolas já individuados. Vejamos agora as implicações desta estabilização
no nível operacional das políticas.
175
Operando: produtos e processos
Na operacionalização da agrobiodiversidade sob a lógica dos recursos, vimos, no
caso do coco-anão, as dificuldades enfrentadas pelos conselheiros em definir o país
provedor do material genético de um “produto” difundido por diversas regiões
tropicais. Por se tratar de uma variedade pertencente a “um grupo em que h| uma
especiação ainda bastante violenta”, os conselheiros n~o puderam alcançar o objetivo
visado pela discuss~o, qual seja, “estabelecer conclusões de ordem mais geral sobre o
processo de domesticaç~o da espécie”. No caso da goiabeira-serrana, por sua vez, as
“formas de organizaç~o” dos coletivos humanos cultivadores foram tidas como
“transformadas”, isto é, “j| haveriam ‘perdido’ sua tradicionalidade”, impedindo-lhes de
ocupar a categoria jurídica de "comunidades locais”. Nesta perspectiva, destarte, esta
última categoria assumiu um caráter restritivo, pois como afirmou o Secretário
Executivo do CGEN: “nem todos os agricultores devem ser tratados como comunidades
locais”.
Embora em ambos os casos os objetivos de demarcação precisa das fronteiras
que limitam os conceitos de “propriedades características” e “comunidades locais” n~o
tenham sido alcançados, por outro lado ficou clara a qualidade dos intentos visados
pela instituição. A saber: buscar definições e estabelecer seccionamentos, isolando
causas e efeitos no intuito de repartir benefícios. O fator diacrítico de destaque passou
a ser, portanto, os produtos que resultam das operações agrícolas: “Nós temos três
pontos: eles são agricultores familiares, eles estão na Serra Catarinense e eles têm
árvores de goiabeira-serrana”, dizia o conselheiro do MAPA em um dos casos. Esta
demanda por se estabilizar os produtos e as propriedades destas interações também se
fez notória no exemplo da EMBRAPA com variedades tradicionais de feijão recuperado
pela conselheira do DPG/MMA. Nesta pesquisa, caso as variedades tradicionais de
feijão atestassem no nível molecular uma base genética alterada, as comunidades que
as cultivam também passariam a serem consideradas como culturalmente distintas.
Dito de outro modo, a partir da constatação de modificação genética do feijão, não
apenas ele passaria a ser tomado como uma “variedade crioula” como também se
176
tornaria possível considerar seus cultivadores como pertencentes a uma “comunidade
local”.
Já a operacionalização da agrobiodiversidade filiada à lógica do patrimônio
imaterial apresentou um imperativo simetricamente inverso: a demanda neste
enquadramento foi por “desmaterializar” os pleitos atomizados. No IPHAN, portanto,
as discussões ganharam um tom de reunião de fatores, integração e incorporação de
elementos a uma din}mica “cultural” que perpassa produtos e saberes para e conservar
e valorizar seus processos. Ao contrário dos casos analisados pelo CGEN, nos quais se
buscou delimitar as “propriedades características” das plantas cultivadas e as
“comunidades locais” cultivadoras, o registro do SAT-RN pelo IPHAN não se ateve a
uma comunidade “detentora” dos conhecimentos e do acervo das plantas cultivadas,
mas sim à extensa rede de parentesco (multiétnica e multilinguística) que mobiliza
trocas matrimoniais, rituais e agrícolas. Do mesmo modo, não se tratou de se restringir
aos marcadores moleculares de uma justaposição de variedades, mas sim registrar toda
uma onomástica associadas à produção das manivas – entendidas como uma coleção
supra-material: “uma entidade global que tem seu próprio significado” (IPHAN, 2010:
84).
Uma decorrência marcante das categorias modernas utilizadas para mediar o
registro do SAT-RN é o privilégio metodológico dispensado às redes de troca das
manivas nomeadas. Ao se apoiar na metáfora da “modelagem” (IPHAN, 2010: 150), sob
a égide da noç~o de “trabalho” (IPHAN, 2010: 51,53,153), o intento do registro fora
justamente no sentido de não se restringir à catalogação das plantas, mas sim objetivar
seus processos de “produç~o” e “troca”. Com efeito, a circulação das plantas teve que se
apoiar nas manivas já individuadas, ou melhor, nomeadas. Em contrapartida, as
manivas-sem-nome, avessas a estes verbos, foram tomadas como:
“uma denominaç~o relativamente transitória, j| que o novo pé poder|
ser descartado se não convém à agricultora, ou multiplicado e
incorporado no estoque de manivas já existente, recebendo o nome de
uma variedade morfologicamente próxima ou, eventualmente, um novo
nome”. (IPHAN, 2010: 86).
177
Não por acaso, portanto, as manivas nomeadas, “produzidas” pelo “trabalho
agrícola” e colocadas em movimento mediante relações de “troca” que acompanham as
redes de parentesco ganharam destaque na objetivação do dossiê. Ao passo que as
manivas-sem-nome são tidas como ontologicamente provisórias, num estado préindividual, poder-se-ia dizer, ainda que suas singularidades sejam fundamentais para a
imputação de diversidade na dinâmica do sistema agrícola. Pensando em termos
comparativos, se na estabilização da agrobiodiversidade sob a lógica dos recursos as
plantas foram depuradas a partir de dois substantivos, “cultivo” e “domesticaç~o”, em
se tratando da estabilização dos patrimônios imateriais as mesmas foram mediadas a
partir de três verbos: “trocar”, “produzir” e “trabalhar”. N~o obstante, ainda que se
prestem a objetivos distintos, como os explorados nos capítulos precedentes, todos eles
atualizam variações do pensamento hilemórfico, possibilitando seu manejo e os
diálogos interministeriais através das politicas públicas estatais.
Por fim, uma última questão emergiu de maneira contrastante: a noção de
“território”. Ambas as instituições demonstram preocupações voltadas { circunscriç~o
de uma realidade territorial que se distinga de um todo, seja ele uma nação, uma
comunidade, uma região ou ainda um sistema. Vários estudos sobre os Estados-Nações
apontam para a centralidade do território em sua dinâmica de controle e ação
administrativa (Souza Lima, 1998, 2002; Barreto Filho, 2005, 2006; Foucault, 2007).
Mesmo abstendo-me, no momento, de extrair disso maiores resultados analíticos, é
inevitável constatar alguns contrastes entre o CGEN e o IPHAN neste quesito.
No CGEN, vimos que a necessidade de identificação territorial é de suma
importância, seja no tocante { definiç~o das “espécies nativas” (aquelas que
“adquiriram suas propriedades características em território nacional”) ou {s
“comunidades locais” (delimitando o território específico que lhe outorga a localidade).
Já no IPHAN, parece existir uma articulação necessária entre o território nacional
(afinal, a noção de patrimônio imaterial filia-se ao ideário da nação enquanto um valor,
ainda que funcione de maneira atrelada ao caráter supranacional do patrimônio da
humanidade) e uma territorialidade local que ativa um certo tipo de aspecto cultural
distinto. Não apenas no caso do SAT-RN como também nos outros registros
pertencentes ao Livro dos Saberes é not|vel esta estreita relaç~o entre o “bem”
178
registrado e uma territorialidade local que fornece tanto as “matérias-primas”
necessárias quanto os diacríticos simbólicos que demarcam suas especificidades.
Restringindo-nos { tem|tica dos “centros de origem” e dos “centros de
diversidade”, apresentadas no capítulo 1, poder-se-ia dizer que no CGEN a
circunscrição territorial é operada a partir da identificaç~o dos “centros de origem” das
plantas cultivadas, permitindo estabelecer os países detentores dos recursos genéticos.
Já no IPHAN a identificação é (ou pelo menos foi no caso do SAT-RN) baseada nos
“centros de diversidade”, almejando detectar regiões nas quais s~o encontradas
relações de intensa promoção de diversidade cultural e vegetal. Poderíamos dizer,
portanto, que, em relação à distinção temporal da territorialidade, no primeiro o
interesse é diacrônico, calcado na busca cronológica pela região na qual uma
determinada
formaç~o
fitogenética
tenha
desenvolvido
suas
“propriedades
características” a partir de outra pré-existente. Já no segundo a atuação é baseada em
critérios sincrônicos, pois a própria noção de “tradiç~o” é antes motivada por critérios
lógicos (trocas e produções) do que refém de justificativas cronológicas (continuidade
histórica e permanência de elementos culturais).
Por outro lado, quanto aos aspectos geográficos, no SAT-RN a territorialidade
foi delineada pelos formuladores do dossiê de maneira menos restrita aos limites
fundi|rios habitados pelos agricultores indígenas e mais enquanto uma “rede relações”.
Mesmo não se abstendo em fixar e justificar as fronteiras do sistema, necessárias para o
registro de um “bem” deste tipo, a noç~o de “província cultural” (IPHAN, 2010: 103)
acionada indica uma clivagem de ordem mais geral entre o tratamento territorial do
CGEN, com suas noções de “país de origem” e “centro de domesticaç~o”, e do DPI,
onde as fronteiras geográficas do sistema foram delimitadas a partir de critérios mais
“culturalistas”, como as redes de parentesco exogâmico e patrilocal. Uma
exemplificação desta constatação pode ser encontrada a partir do contraste entre o
enquadramento das “comunidades locais” cultivadoras da goiabeira-serrana, no qual a
regionalização dos agricultores conduziu à descaracterização enquanto CTA, e o
desenho do SAT-RN, onde a extensão e amplitude das redes de parentesco se
prestaram justamente para endossar a legitimidade da patrimonialização.
179
Considerações finais
As operações de diversificação das plantas cultivadas, bem como as atuações das
políticas brasileiras que objetivam estas operações, conduziram a dissertação ao
conceito etnográfico de agrobiodiversidade. Por sua vez, a malha semântica e
administrativa associada a este conceito demonstrou estar filiada tanto às políticas
públicas da “cultura” quanto as da “natureza”. Diante desta primeira constataç~o
etnográfica, somada aos interesses por questões mais amplas acerca das relações entre
natureza e cultura no pensamento moderno, a pesquisa foi direcionada para um
enfoque comparativo. Comparação esta que – importante dizer – apenas adquire sua
validade uma vez rejeitada, de maneira deliberada, algumas das dimensões contextuais
no intuito de privilegiar o nível eminentemente ideológico (Dumont, 2000; 1985). É
certo que, como adverte Dumont, “enquanto o analista pode naturalmente sofrer
devido ao seu insuficiente conhecimento do contexto, é mais seguro para ele deixar de
lado na an|lise o que n~o pertence estritamente ao seu objeto” (2000: 42).
Para um empreendimento desta qualidade se tornar viável, fez-se necessário,
seguindo as recomendações de Dumont (1985), estabelecer algum aspecto englobante,
que perpassasse as duas séries comparadas. Em termos etnográficos, notamos que
tanto no CGEN quanto no IPHAN a dualidade matéria/forma se apresentou como uma
tensão, nos fornecendo o eixo privilegiado do exercício almejado. Assim arquitetada, a
dissertação dedicou-se a explorar as soluções acionadas pelas políticas dos recursos
fitogenéticos e dos patrimônios imateriais para enquadrar e condicionar as
problemáticas decorrentes da agrobiodiversidade dentro desta tensão matéria/forma.
Sob a lógica dos recursos, a agrobiodiversidade foi concebida como um tema de
difícil assimilação e enquadramento, uma vez que a legislação correlata foi elaborada
para lidar com as plantas “silvestres”. Frente a isso, a Câmara Temática dos
Conhecimentos Tradicionais (CTCTA) dedicou três de suas reuniões para debater os
conceitos de “cultivo”, “domesticaç~o” e as possibilidades de conceber as plantas
adjetivadas por estes dois substantivos como contendo “conhecimentos tradicionais
intrínsecos”. Ainda que contando n~o apenas com os “especialistas”, mas também com
180
representantes da “sociedade civil” e membros de comunidades indígenas e
tradicionais, o debate ocorreu sob a égide da cosmologia neo-darwinista, que torna
possível a diferenciação dos dois conceitos debatidos. Desde este tipo de pensamento,
enquanto o conceito de “cultivo” condiz com o conjunto de pr|ticas agrícolas
direcionadas a uma determinada planta, permitindo-a se desenvolver nas condições
estipuladas pelo agricultor, já o de “domesticação” refere-se à escala de tempo
evolucionária, a partir da qual uma população particular das espécies manejadas sofre
alterações em seu patrimônio genético, diferenciando-a de suas ancestrais selvagens.
Esta classificação entre dois tipos de variedades agrícolas, as cultivadas e as
domesticadas, tornou possível, ainda que de maneira provisória, conciliar a cosmologia
evolutiva à necessidade de reconhecimento das contribuições indígenas e tradicionais
para o desenvolvimento das variedades agrícolas. Entretanto, a denominação desta
contribuição sob a rubrica dos CTA seguiu sendo uma questão em aberto. Com efeito,
na reunião do Plenário do CGEN que debateu a identificação de CTA associado à
goiabeira-serrana, os conselheiros adotaram a espécie como sendo “domesticada”, no
entanto tiveram dificuldades em delimitar os agricultores a ela associados como
“comunidades locais”. Por outro lado, o caso do coco-anão atesta que, para ser
deflagrada enquanto uma “espécie nativa”, as variedades agrícolas devem demonstrar
terem adquirido suas “propriedades características” no território nacional. Em ambos
os casos, a expressão “linha de corte” se apresentou como um imperativo na política
dos recursos fitogenéticos, seja para estabelecer as fronteiras materiais do patrimônio
genético nacional, seja para demarcar os limites formais das comunidades que podem
gozar de direitos específicos das populações indígenas e “comunidades locais”. Para
todos os efeitos, portanto, a ênfase nestes casos foi colocada nos produtos resultantes
das operações agrícolas.
Já sob a lógica dos patrimônios imateriais, vimos que a agrobiodiversidade foi
acolhida pela política dos registros, que enfatiza a feição dinâmica e processual da
“cultura”, em contraposiç~o { política reificante de tombamento dos “bens” materiais.
Em conformidade com esta política, o primeiro registro da agrobiodiversidade
enquanto patrimônio imaterial do Brasil se deu no âmbito do DPI, a partir do Livro dos
181
Saberes, reportando-a menos aos elementos que a compõem e mais aos processos que
garantem sua reprodutibilidade.
O projeto PACTA, vetor importante desta patrimonialização, tramitou também
pelo CGEN no intuito de obter autorização de acesso ao CTA para fins de pesquisa
científica. Na ocasião, uma das coordenadoras do projeto, Laure Emperaire, lançou
questões sobre duas noções que, coincidentemente, causaram dificuldades no
enquadramento do coco-anão e da goiabeira-serrana, quais sejam, “variedade” e
“comunidade”. De fato, pudemos ver que, { maneira como foi estruturado pelos
formuladores do projeto, o SAT-RN não se ateve a uma “comunidade local”, nos termos
da MP nº 2.186-16/2001, assim como fez da noç~o biológica de “variedade” justamente
um de seus temas de pesquisa. Neste sentido, a equalização dos conceitos normativos
com os pontos de vista locais (indígenas), bem como das dimensões materiais e
imaterias que compõem a agrobiodiversidade, demonstrou a desenvoltura do projeto
em termos (i) “intercientíficos” (Little, 2010), correlacionando os conhecimentos
científicos com os saberes locais, (ii) interdisciplinares, a partir da mobilização de uma
equipe de pesquisadoras provenientes da antropologia, do direito e da etnobiologia, e
também (iii) burocráticos, tendo em vista que o SAT-RN demonstrou ser uma
sofisticada e árdua construção analítica para articular as atividades agro-indígenas à
gramática estatal da patrimonialização.
Para estabilizar os amálgamas que compõem a agrobiodiversidade, a noção de
“sistema agrícola” foi protagonista na abordagem empregada. Com o emprego desta
noção, o intento fora justamente estabilizar os fenômenos menos como objetos e mais
no sentido de conexões relacionais de um conjunto de elementos. Como resultado, a
objetivaç~o do “bem” registrado alcançou uma envergadura temática sem precedentes
na política dos registros. Além disso, o SAT-RN logrou criar o que chamei de afinidade
tática com a legislação que regulamenta o patrimônio imaterial nacional.
Considerando que, para responder as demandas da “viabilidade” do registro e da
salvaguarda, se privilegiou a eleiç~o das “redes de parentesco” e das “espécies
estruturantes”, ao invés de atomizar os resultados das operações agrícolas.
182
Os enquadramentos lógicos da agrobiodiversidade como recursos fitogenéticos
e patrimônios imateriais apresentaram ser dois modos muito distintos de estabilização
e operacionalização das problemáticas decorrentes da diversificação agrícola. O que
não permite, de maneira alguma, plasmar suas singularidades em nome de uma
suposta totalidade que neutralizaria as diferenças. Neste sentido, nem mesmo o
“Estado” pareceu ser um plano favorável de análise, sendo muito mais rentável tomá-lo
como um conjunto de práticas do que uma entidade abstrata68. Afinal, a pesquisa
tratou de apontar para uma realidade múltipla e repleta de sutilezas, boa parte das
quais não puderam ser consideradas aqui. Dentre estas segmentações não abordadas,
poder-se-ia mencionar, no caso do CGEN, as clivagens políticas entre a bancada da
agroindústria (MAPA e EMBRAPA) e a ala conservacionista (IBAMA e MMA), tema da
dissertação de Loss (2013). Do mesmo modo, Cardoso (2010) e Garcia (2004) também já
demonstraram que, no IPHAN, os critérios de legitimação e eleições de prioridades se
dão em meio a uma série de dilemas políticos para equalizar a diversidade cultural com
a identidade nacional.
Sendo assim, para ao mesmo tempo considerar os fatores comuns, mas evitando
o risco de homogeneização, presente em todo esforço comparativo, optei por acionar a
noção de níveis, no intuito de que as disposições englobantes que perpassam as duas
políticas analisadas não eclipsassem suas inúmeras diferenças. Adotando este tipo de
procedimento, vimos que, no nível da concepção, a imagem dos seres enquanto um
engendramento de matéria e forma se atualiza tanto na lógica dos recursos quanto na
dos patrimônios imateriais. No entanto, esta concepção transversal não inibe uma
diferença de ênfase que é central: na primeira, as formas de conhecimento são tomadas
como atalhos para a depuração dos produtos da agrobiodiversidade, ao passo que na
segunda os elementos constitutivos destas interações só têm sua razão de ser se
correlacionados em conjunto.
68
É também o que afirma Abrams (1988:61): “It seems necessary to say, then, that the state, conceived of
as a substantial entity separate from society has proved a remarkably elusive object of analysis. Aridity
and mystification rather than understanding and warranted knowledge appear to be the typical
outcomes of work in both the traditions within which the analysis of the state has been regarded as a
significant issue in the recent past”.
183
No nível da estabilização, por sua vez, as diferenças entre as duas políticas são
ainda mais explícitas. Foram brevemente explorados o pensamento neo-darwinista e a
teoria dos sistemas agrários, uma vez que estas duas referências teóricas exerceram
influências importantes, ainda que tácitas, nos enquadramentos da agrobiodiversidade.
Importante deixar claro, todavia, que em nenhum momento o intuito foi estabelecer
uma relação direta entre estes dois referenciais teóricos e os enquadramentos da
agrobiodiversidade sob as lógicas dos recursos genéticos e dos patrimônios imateriais.
Ainda assim, é inegável que os casos analisados atualizaram de maneira mais ou menos
explícita algumas variações destas racionalidades. Consequentemente, se ambas
partem de uma certa noção de estabilidade para modelar as transformações, a maneira
como isso se dá é muito distinta nos dois casos. Na variação do neo-darwinismo
evocada no CGEN, a separaç~o entre os conceitos de “cultivo” (seleç~o de fenótipos) e
“domesticaç~o” (estabilização de genótipos) é tributária de uma disjunção anterior
entre a dimensão da forma (fenotípica) e a dimensão da matéria (genotípica),
acarretando ainda no desdobramento segundo o qual as alterações ontogenéticas das
formas não alteram a matéria, bem como apenas as características da segunda é que
são transmitidas através das gerações. Por outro lado, na teoria dos sistemas agrários
desenvolvida por Mazoyer & Roudart (2008) e referenciada no SAT-RN, as operações
ontogenéticas também não são privilegiadas pela análise. No entanto, neste caso há
uma opção deliberada por objetivar as manifestações agrícolas em termos lógicos e
organizacionais a partir de suas trocas e circulações de pessoas, plantas e artefatos.
Algo que torna possível, dentre outras coisas, estabilizar os fenômenos em termos de
escalas, elementos e subsistemas.
Já no nível das operações, pudemos adentrar de maneira comparativa no dossiê
de registro do SAT-RN e nos dois casos debatidos no Plenário do CGEN. Enquanto nos
dois últimos as objetivações se deram em termos de causalidades e seccionamentos –
visando, portanto, os produtos derivados das operações agrícolas –, a formulação do
SAT-RN almejou justamente maximizar as hibridações do sistema, reunindo fatores e
correlacionando elementos para objetivar os processos. Diferenças quanto à
territorialidade (em termos temporais e geográficos) também foram marcantes. No
CGEN, as noções de “país de origem dos recursos genéticos” e “comunidades locais”
184
podem ser contrapostas {s noções de “província cultural” e “redes de parentesco”,
acionadas no registro do SAT-RN.
Por último, a título de comentário final, acredito que o esforço que compõe este
trabalho cumpre as questões suscitadas a partir do curso realizado na EmbrapaCenargen. Uma vez que tratamos aqui da caracterização da agrobiodiversidade tanto
como recurso fitogenético quanto como patrimônio imaterial, e ainda da conexão entre
elas. Se isto nos levou a adentrar brevemente em searas tão complexas tais quais a
metafísica hilemórfica, o pensamento neo-darwinista e a teoria dos sistemas, foi como
estratégia de compreensão das expressões diversas da agrobiodiversidade, igualmente
complexas e desafiadoras em sua maneira de conjugar dilemas metafísicos, diferentes
ramos da ciência e formatações de políticas públicas. A esperança que nos motiva é de
que outros pesquisadores e estudiosos se atentem a estas conexões, usufruam de seus
erros e acertos, bem como prossigam este exercício de aproximação.
185
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