Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
2 3 ANAIS do VIII Congresso Internacional em Ciências da Religião e XIII Semana de Estudos da Religião. Os textos publicados são de responsabilidade de cada autor. Projeto Gráfico: Jackeline Osório Gonçalves Diagramação: Rosemary Francisca Neves Silva Capa: Jackeline Osório Gonçalves FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Goiás Religião, Saúde e Terapias Integrativas./ Clóvis Ecco/Eduardo Gusmão de Quadros/ Pedro Fernando Sahium/Rosemary Francisca Neves Silva, (orgs). Publicação e-book no site PUC Goiás. VIII Congresso Internacional em Ciências da Religião, 2016. Periodicidade: (Anais) ISSN 2177 – 3963 1. Religião – periódico. I. Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião. CDU: 2.(051) Coordenação do Programa de Pós – Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião Dr. Clovis Ecco (Coordenador) Dra. Irene Dias de Oliveira (Vice-Coordenadora) 4 Comissão Organizadora Presidente: Prof. Dr. Clovis Ecco (PUC Goiás) Comissão Executiva Prof. Dr. Eduardo Gusmão de Quadros – PUC Goiás/UEG Prof. Dr. Luiz Antônio Signates Freitas -PUC Goiás/UFG Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira – PUC Goiás Profa. Dra. Luciana Pinele – PUC Goiás Profa. Dra. Rosemary Francisca Neves Silva (secretaria executiva) -PUC Goiás Carolina Bezerra de Souza – Bolsista CAPES/PROSUP Danilo Dourado Guerra – Bolsista CAPES/PROSUP Deusilene Silva de Leão – Bolsista CAPES/PROSUP Emivaldo Silva Nogueira – Bolsista CAPES/PROSUP Humberto dos Santos Neto – Bolsista CAPES/PROSUP Maria Adriana Marques – Bolsista CAPES/PROSUP Rosinalda Correa da Silva Simoni – Bolsista CAPES/PROSUP Aldemário Alves de Sousa – Mestrando/ PUC GO Maria Júlia Ferreira Sampaio – Mestranda/PUC GO Pedro Fernando Sahium – Doutorando PUC GO/UEG Secretaria Executiva Profa. Dra. Rosemary Francisca Neves Silva Profa. Ma. Joana D’arc de Souza Secretário Adjunto Giovanne Bastos Vieira Delfino 5 Realização Programa de Pós–Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião Pontifícia Universidade Católica de Goiás Apoio Patrocínio 6 GT 01 LITERATURA BÍBLICA DEUTEROCANÔNICA E APÓCRIFA Coordenadores: Prof. Dr.Claude Valentin René Detienne/UEG/IFITEG Prof. Me. Jacir de Freitas Faria/Ista-BH Ementa: O Grupo de Trabalho pretende estudar a contribuição dos textos bíblicos deuterocanônicos e apócrifos na sedimentação do cristianismo hegemônico e na construção da identidade das Igrejas e dos grupos cristãos, fenômeno que pode independer da inclusão dos mesmos dentro do cânone de cada igreja. Palavras-Chave: Deuterocanônicos, Apócrifos e Cristianismo. Comunicações: 1. ALCANCES E LIMITES DOS APÓCRIFOS DO SEGUNDO TESTAMENTO Nome: Jacir de Freitas Faria Titulação: Doutorando Instituição: Instituto São Tomas de Aquino (ISTA) Resumo: O maior intento do cristianismo que se tornou hegemônico, dentre outros tantos cristianismos de origem, foi o de afirmar e comprovar a historicidade de Jesus, morto e ressuscitado, como realização das promessas do Primeiro Testamento. Assim, o cristianismo se justificou diante do império romano como religião antiga e ganhou credibilidade. Para conservar a memória do evento histórico, Jesus de Nazaré, e o Cristo da fé surgiram literaturas, uma canônica e outra cunhada erroneamente de apócrifa, a qual urge ser estudada de forma teológica, histórica, critica, ecumênica e pastoral. Perguntar pelo alcance e limite dos apócrifos do Segundo Testamento na ação pastoral e na catequese da Igreja, mesmo que ela tenha sido considerada canônica, é o que propomos com a presente comunicação. A leitura dos apócrifos do Segundo Testamento, considerando seus alcances e limites, nos possibilitará a superar os entraves históricos do rótulo: ‘os apócrifos são todos fantasias e falsas teologias’. O processo de seleção desses livros foi marcado por batalhas teológicas que tiveram forte influência na estruturação do cristianismo apostólico que se tornou o hegemônico. Compreender a identidade das Igrejas passa pelo estudo desses textos. Os apócrifos: classificação e disputas teológicas 7 Para entender os apócrifos do Segundo Testamento, urge, primeiramente, classificá-los em três categorias, a saber: aberrantes, complementares e alternativos.1 Por aberrantes se entendem aqueles que falsearam ou exageram ao descrever os fatos, por exemplo, da infância de Jesus. Já os complementares são aqueles que apresentam dados que complementam os textos canônicos. Neste grupo estão, por exemplo, os Evangelhos sobre Maria, a mãe de Jesus. Os alternativos são os que trazem novidades, seja no conteúdo, seja na expressão de um pensamento rejeitado e condenado ao esquecimento pelo pensamento hegemônico da época. O Evangelho de Maria Madalena é o melhor exemplo para um texto alternativo apócrifo. Não considerar essa divisão é colocar os apócrifos em uma única categoria, a de textos falsos, mentirosos e não inspirados. Se os apócrifos podem ser considerados aberrantes, complementares ou alternativos em relação aos canônicos, há de se considerar também que o cristianismo que se tornou hegemônico também conformou muitos textos inspirados ao seu modo de pensar.2 O cristianismo que se tornou hegemônico venceu os vários tipos de cristianismos propostos, formando uma cristandade, mas não conseguiu eliminar todos eles. Muitos continuaram existindo e propondo novos cristianismos, inclusive em nossos dias. O cristianismo hegemônico assimilou formas, até mesmo aberrantes de cristianismos apócrifos. Muitos movimentos apócrifos cuidaram de fundamentar, defender e complementar, com outras ideias e informações, as propostas conservadoras do cristianismo hegemônico. Os cristianismos alternativos, verdadeiros ou não, resistiram ao longo dos séculos. Muitas de nossas práticas e profissões de fé cristã católicas, ortodoxas, gregas ou evangélicas têm também seus fundamentos nas origens apócrifas do cristianismo. Na maioria das vezes, nem temos consciência disso. Cito apenas algumas, tais como: aceitação do Primeiro Testamento judaico como literatura inspirada; a humanidade e a divindade de Jesus; posturas anti-judaicas; desprezo pelo corpo e a visão negativa do sexo; a luta para Para compreender os apócrifos no seu contexto histórico, veja o nosso livro Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos - Poder e Heresias! Introdução crítica e histórica à Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento. Série Comentários aos Apócrifos. Petrópolis: Vozes, 2009. 2 Cf. EHRMAN, Barth D., Cristianismos perdidos, 313-329. 1 8 escapar do mundo material com práticas ascéticas3; devoções mariana; vivência intimista e individualizada da fé sem a necessidade de uma estrutura eclesial e hierárquica etc. Ler os apócrifos é também considerar as disputas teológicas que marcam o contexto histórico de cada um deles. Tais disputas teológicas aconteceram entre o cristianismo que se tornou hegemônico com grupos e movimentos, como os gnósticos e suas ramificações, os gnósticos docetas, encratistas, fibionitas, cainitas, mas também os ebionitas, marcionitas, donatistas, arianos e tantos outros, que nem tiveram seus nomes registrados nos anais da história. Todos defenderam seus pensamentos sobre a divindade de Jesus, salvação, sofrimento, ressurreição, martírio, virgindade, trindade, conhecimento que salva etc. Muitos desses grupos foram liderados por importantes cristãos, como: Ário, Nestório, Marcião, Pelágio, Valentino, Donato etc. Ler os apócrifos exige um acurado estudo histórico da época de cada um deles. O contexto histórico é muito importante para compreender o porquê da expressão de fé transformada em livros apócrifos. Os apócrifos marianos, por exemplo, surgiram num contexto de retomada da devoção a Maria virgem e mãe. A história do cristianismo nos revela um contexto de negação e afirmação de verdades de fé sobre Jesus. Cada grupo, procurando manter fidelidade aos ensinamentos de Jesus, defendeu o seu ponto de vista. No Evangelho de Maria Madalena 17, 9-19, após Madalena dar o seu testemunho sobre os ensinamentos de Jesus, “André, então, tomou a palavra e dirigiu-se a seus irmãos: O que pensais vós do que ela acaba de contar? De minha parte, eu não acredito que o Mestre tenha falado assim; estes pensamentos diferem daqueles que nós conhecemos. Pedro ajuntou: será possível que o Mestre tenha conversado assim, com uma mulher, sobre segredos que nós mesmos ignoramos? Devemos mudar nossos hábitos; escutarmos todos esta mulher?” 4 Esse exemplo mostra um testemunho do século II sobre o papel da mulher no cristianismo em relação aos homens. Cf. EHRMAN Barth D., Cristianismos perdidos, 363-365. Para um comentário ao evaneglho de Maria Madalena, veja o nosso livro As origens apócrifas do cristianismo. Comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 2ª edição, São Paulo: Paulinas, 2004. 3 4 9 Modelos de Igreja Além de identificar as várias formas do cristianismo, não podemos deixar de considerar, na leitura dos apócrifos, a forma e o modelo de igreja que cada um deles representa ou defende. A cristandade surgiu em meio a várias formas de cristianismo e numa disputa de valores e ideias, algumas delas se solidificaram como verdades de fé e outras foram condenadas ao ostracismo, por serem consideradas heréticas. Por isso, ler os apócrifos é também considerar as questões políticas eclesiais que lhe são peculiares. Havia disputa de poder no início do cristianismo. Somente um tipo de cristianismo se tornou hegemônico, vencedor das disputas teológicas sobre Jesus. Outro fator preponderante na leitura dos apócrifos é a questão de gênero. As mulheres tiveram sua liderança ceifada, no fim do século II, em favor da liderança masculina. Esse fator nos impõe uma leitura de gênero dos apócrifos, de modo que possamos resgatar o papel de Madalena como apóstola do cristianismo e nunca como prostituta. Também Maria, a mãe de Jesus, é descrita nos apócrifos como mãe virgem e apóstola de seu filho. Essas duas mulheres foram apresentadas, historicamente, como modelos de cristãos. Madalena, a prostituta toda impura que se converteu, e Maria, a santa toda pura. Um modelo dependeu do outro para sobreviver. A leitura dos apócrifos deve também nos remeter aos vários gêneros literários, a partir dos quais eles foram escritos. Cada gênero tem seu contexto vital. Cada um deles tem o seu modo próprio de ensinar e transmitir uma visão de fé. Não podemos ignorá-los na leitura dos apócrifos. A leitura pastoral e catequética dos apócrifos é algo novo que nos desafia no estudo desses textos. A tradição popular perpetuou, na memória oral e escrita, os ensinamentos de fé dos apócrifos. O imaginário popular quis que essa fé não se perdesse, mesmo que não tivesse sido considerada a oficial. O povo iletrado, de modo especial, conservou essa fé “inspirada” por outros caminhos, construindo um saber histórico que é perpassado de geração em geração, na oralidade e na vivência de fé de seus valores. As tradições orais e escritas, sejam elas apócrifas ou canônicas, estão permeadas de interações recíprocas. Foi assim com a devoção a Nossa Senhora da Boa Morte e com tantos outros aspectos da fé mariana católica. 10 As muitas expressões de fé dos apócrifos complementares acabaram se tornando quase inspiradas na tradição oral. Suspeitamos que formas atuais de viver, por exemplo, a nossa fé mariana católica, são elucidadas com a leitura dos apócrifos sobre Maria. Sobre Maria pouco se escreveu na Bíblia. As comunidades sentiram-se impelidas a ampliar essas informações de modo devocional e piedoso. Nesse sentido, identificar as formas de oração no contexto da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte poderá esclarecer o modo como ainda vivemos a nossa devoção mariana. No Brasil, o catolicismo português trouxe a devoção a Nossa Senhora da Boa Morte, a qual foi assimilada pelas irmandades negras da Boa Morte como forma de resistência de um povo negro escravo que, não desrespeitando a fé católica, conservou a sua própria fé. Já os outros fieis, os brancos, encontraram nessa devoção de origem apócrifa a resignação diante da morte e aumentaram, assim, a fé na vida pós-morte. Não se podem negar essas constatações acima elencadas e devemos nos perguntar sempre: Em que os apócrifos podem nos ajudar na fé crítica, alicerçada nas bases de uma teologia que liberta? Como nos libertar de visões apócrifas não libertadoras presentes em nosso meio? Quais são os alcances e limites dos apócrifos? Como dialogar com esses textos de origem sem o medo de nos deixar contaminar por eles? Como eliminar o risco de querer defendê-los como textos inspirados? O estudo dos apócrifos não pode ter como objetivo lutar pela sua canonização, afirmação de sua inspiração. Eles são textos de experiência de fé, por mais exageradas que sejam, mas que revelam um outro pensamento, um outro cristianismo que se perdeu. Os limites e alcances dos apócrifos Os limites que decorrem no estudo dos apócrifos, dentre outros, são: 1. Trata-se de uma literatura pouco conhecida e estudada pela maioria dos cristãos, pois, por muitos anos a Igreja impediu o estudo dos apócrifos, por serem uma literatura de oposição ao cristianismo que se tornou hegemônico; 2. Falta de preparação das comunidades para vencer paradigmas em relação aos apócrifos; 3. Foram escritos, na sua grande maioria, após os canônicos; 11 4. Estão permeados de fantasias, aberrações, o que impede sua utilização para a fundamentação histórica do evento Jesus. 5. Podem induzir o leitor a pensar que o cristianismo institucionalizado não procede. O alcance da literatura apócrifa do Segundo Testamento parte do pressuposto de que ele deve ser feito de forma crítica e ecumênica, o que possibilita o resgate da face dos cristianismos perdidos ou excluídos, revelando a luta desenfreada pelo poder nos primórdios do cristianismo, bem como oferece elementos da catequese dos primeiros cristãos ainda presentes no imaginário popular. Por fim, ele mostra o lado multiforme do cristianismo nas origens. Os apócrifos do Segundo Testamento representam a linguagem mitológica do cristianismo. Mesmo que queiramos negar os cristianismos antigos, isso não é possível. Eles estão aí e permanecerão sempre no imaginário popular, na fé libertadora e conservadora, no ecumenismo e na ortodoxia. O que vale é uma leitura ecumênica, dialogal com esses pensamentos apócrifos. Somos eternos devedores de uma fé sólida e eficaz aos nossos predecessores que construíram o cristianismo que hoje vivenciamos, mas é salutar e libertador conhecer outras formas de cristianismos, bem como entender a nossa fé a partir desses cristianismos antigos e perdidos. A nossa fé se torna mais adulta, libertadora e comprometida com os valores de fé, que não podemos abrir mão. Nessa mesma linha de raciocínio, estou também convencido de que o conhecimento de nossa origem judaica, na fé e na tradição, é outra tarefa diária, se quisermos sermos ecumênicos com os nossos irmãos judeus. O cristianismo é uma releitura do judaísmo. Não é possível ser cristão sem conhecer o pensamento judaico. Conclusão Os apócrifos nunca serão considerados inspirados, e nem isso deve ser a nossa bandeira de luta. Basta respeitá-los como formas de cristianismos que procuraram ser verdadeiros, mesmo que não tenham sido como tais. Basta também compreender que eles foram vozes alternativas abafadas e perseguidas pelo cristianismo que se tornou hegemônico, num misto de poder e heresias. 12 Referências EHRMAN, Bart D. Evangelhos perdidos. As batalhas pela escritura e os cristianismos que não chegamos a conhecer. São Paulo: Record, 2008. FARIA, Jacir de Freitas. As origens apócrifas do cristianismo. Comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 2ª edição, São Paulo: Paulinas, 2004. . O outro Pedro e a outra Madalena segundo os apócrifos. Uma leitura de gênero. Série Comentários aos Apócrifos. 3ª edição, Petrópolis: Vozes, 2005. . Vida secreta dos apóstolos e apóstolas à luz dos Atos Apócrifos. Série Comentários aos Apócrifos. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 2005. . El outro Pedro y la outra Magdalena según los apócrifos. Una lectura de gênero. Estella (Navarra): Verbo Divino, 2005. . História de Maria, mãe e apóstola de seu Filho, nos evangelhos apócrifos. Série Comentários aos Apócrifos. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 2006. . Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos Poder e Heresias! Introdução crítica e histórica à Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento. Série Comentários aos Apócrifos. Petrópolis: Vozes, 2009. . Infância apócrifa do menino Jesus. Histórias de ternura e travessuras. Série Comentários aos Apócrifos. Petrópolis: Vozes, 2010. KLAUCK, Hans-Josef. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Loyola, 2007. MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Paulus, 1999. OTERO, Aurélio de Santos. Los evangelhos apócrifos. Madri: BAC, 1991. PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. São Paulo: Cultrix. PIÑERO, Antonio. O outro Jesus segundo os evangelhos apócrifos. São Paulo: Paulus/Mercuryo, 2002. , Textos gnósticos. Biblioteca de Nag Hammadi, v. 2 e 3. Madrid: Trotta, 1999. PIÑERO, Antonio; TORRENTES, José Montserrat; BAZÁN, Francisco Garcia. Textos gnósticos: Evangelios, Hechos, Cartas. Biblioteca de Nag Hammadi, II. Madrid: Trotta, 1999. PIÑERO, Antonio e DEL CERRO, Gonzalo, Hechos Apócrifos de los Apóstoles, v. 1. Madrid: BAC, 2004. 13 RAMOS, Lincoln, A história do nascimento de Maria. Proto-evangelho de Tiago. Petrópolis: Vozes, 1988. ______, Fragmentos dos Evangelhos Apócrifos. Petrópolis: Vozes, 1989. ______, São José e o menino Jesus. História de José o carpinteiro e Evangelho do Pseudo-Tomé. Petrópolis: Vozes, 1990. ______, Morte e assunção de Maria. Trânsito de Maria - Livro do Descanso. Petrópolis: Vozes, 1991. ______, A paixão de Jesus nos escritos secretos. Evangelho de Nicodemos (Atos de Pilatos) - Descida de Cristo aos infernos - Declaração de José de Arimatéia. Petrópolis:Vozes, 1991. ______, O drama de Pilatos. Cartas entre Pilatos e Herodes - Cartas entre Pilatos e Tibério - A Morte de Pilatos e outros textos. Petrópolis: Vozes, 1991. PROENÇA, Eduardo de. Apócrifos e Pseudoepígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte Editorial, 2005. SANTIAGO, Martin. Evangelho Paulus/Mercuryo, 2004. Secreto da Virgem Maria. São Paulo: TILLESSE, Caetano Minette. Extracanônicos do Novo Testamento. Fortaleza: Nova Jerusalém, 2004. TRICCA, Maria Helena de Oliveira. Apócrifos. Os proscritos da Bíblia, I, II, III, IV. São Paulo: Mercuryo. VV.AA. Apócrifos do Segundo Testamento. RIBLA, 58, Petrópolis: Vozes, 2007/3. Internet: www.bibliaeapocrifos.com.br GT 02 PERSPECTIVAS DE CURAS NA LITERATURA BÍBLICA Coordenadores: Prof. Dr. Luiz Alexandre Solano Rossi/PUCPR Prof. Dr. João Luiz Correia Júnior/UNICAP Prof. Dr. Valmor da Silva/PUC Goiás Ementa: A busca pela integridade física e social é uma preocupação contínua nos textos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento. A questão de fundo nos textos é a defesa da integridade da vida daqueles (as) que mais são atingidos por diferentes formas de violência que impedem a construção de uma sociedade onde caibam doentes, pobres, camponeses, viúvas e órfãos. Estamos, portanto, diante da investigação do que poderíamos chamar de "sociedades doentes" retratadas pelos mais diversos textos bíblicos. 14 Palavras-Chave: Textos Bíblicos, Violência, Integridade Comunicações: 1. Povos apátridas, não têm onde repousar a cabeça. Rogério Regis de Azevedo* Resumo: A cura das pessoas aparece na Bíblia como um suporte para a fé construída em uma comunidade ou comunidades. No Antigo Testamento a cura servia como revigorante do povo hebreu, que precisava ser restabelecido em suas funções morais, físicas e espirituais para sustentar a aliança com Deus num processo migratório (Êxodo, Deuteronômio, Provérbios etc). No Novo Testamento, nota-se que o eixo da cura servia para reinserir as pessoas no convívio social. O modelo de sociedade de hoje padece de males antigos, como a violência urbana e rural, mas também de males novos, como a questão da migração e do consequente etnocentrismo e as fobias daí decorrentes que, apesar de estar presente nos povos nômades antigos, ganham características novas diante da violência do poder econômico. Palavras-chave: apátrida, estrangeiro, direitos humanos, migração. As pessoas que perderam a sua nacionalidade de origem e não adquiriu outra, isto é, as pessoas que não se encontram regularmente registradas como cidadãs em uma nação são chamadas de apátridas. A apatridia “foi reconhecida pela primeira vez como um problema mundial na primeira metade do século XX. Está normalmente associada a períodos de mudanças profundas nas relações internacionais”, e pode ter origem em políticas manipuladas para excluir e marginalizar minorias raciais, religiosas ou étnicas5, o que contraria o artigo XV, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”. Os apátridas não têm onde repousar a cabeça. Essa gente, sem origem e sem destino, não pode sonhar com perspectivas melhores, tendo em vista que o estado de vigília confusa não o permite. Sonhos são para os que podem repousar a cabeça em paz em algum pedaço de chão e que lhes deem confiadamente alguma esperança em um futuro mais propício para os seus. No Antigo Testamento, o povo 5 Nacionalidade e apatridia: manual para parlamentares n. 22 (UNHCR/ACNUR, 2014) 15 em deslocamentos sucessivos tinha o suporte da fé, que revigorava as funções morais, físicas e espirituais da comunidade itinerante para sustentar a aliança com Deus (Êxodo, Deuteronômio, Provérbios etc). No Novo Testamento, a cura de Jesus tinha como eixo a inserção das pessoas na comunidade (Lc 4,18; Mateus 10,8; Lc 5,18 etc). É nessa perspectiva que Jesus anuncia o Reino de Deus para todos, menos para os injustos: “Eles virão do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus” (Lc 13,29). Os movimentos migratórios dos últimos tempos, principalmente no ano de 2015, mostram um agravamento desde a Segunda Guerra Mundial. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) calcula que mais de sessenta milhões de pessoas se deslocaram de suas terras. O menino sírio que apareceu morto em uma praia turca reacendeu a discussão sobre o processo migratório na Europa. Os culpados são as políticas colonialistas e invasivas em países em crise econômica e social e o consequente terrorismo. O mundo precisa ser curado dessa mazela que afeta os mais pobres em decorrência, na sua maioria, de sua fé religiosa. Maldito quem perverter o direito do estrangeiro (Dt 27,19) A proteção da pessoa estrangeira é recomendada já no tempo da formação do povo israelita e aparece de forma bastante clara nos textos do Antigo Testamento. No livro do Êxodo, que trata da saída de Israel do Egito, nota-se que há menção de tratamento igualitário para os que habitam sob a mesma terra. Diz o texto: “haverá uma única lei para o cidadão e para o imigrante que reside entre vós” (Ex 12,49). Ainda que neste caso se refira à questão da circuncisão, mas em outras ocasiões os textos indicam que o estrangeiro deve ter os mesmos direitos e deveres do cidadão nativo e que seus direitos não podem ser pervertidos: “Maldito quem perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva” (Dt 27,19). E mais, o Estrangeiro terá direito as vestes e comida e tratamento igualitário aos dos nativos: “Que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestido” (Dt 10,18); “Haverá somente um estatuto, tanto para vós como para o estrangeiro. É um estatuto perpétuo para os vossos descendentes. Haverá somente uma lei e um 16 direito, tanto para vós como para o estrangeiro que habita no meio de vós” (Nm 15,15-16). Jesus afirma que são benditos aqueles que acolhem o estrangeiro (Mt 25,35), e por isso terão lugar na casa do Pai. Em uma referência aos viventes que têm onde repousar (um ninho, uma toca, uma casa, Sl 84,4), Jesus lembra que se tornou pobre e que não tem onde repousar: “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20; Lc 9,58), e assim se solidariza com os que não tem nada (2Cor 8,9), como lembra Paulo quando fala sobre a doação que cada pessoa precisa fazer para o bem comum. Acrescenta que quando existe boa vontade, somos aceitos com os recursos que temos, com igualdade, sem que o alívio de alguns possa ser causa de aflição para outros. Não há mais separação entre cidadãos estranhos e Israel, já que Cristo une a todos (Ef 2,11-14). Por conseguinte, textos que tratam de pessoas estrangeiras perpassam a maioria das Escrituras, e quase sempre são voltados para igualdade de direitos entre cidadãos nativos e os imigrantes. Todo homem tem direito a uma nacionalidade6 Todas as pessoas têm o direito a uma nacionalidade, direito inalienável da liberdade, da justiça e da paz no mundo, considerando que o desprezo e o desrespeito resultaram em barbaridades que ultrajaram a consciência da humanidade, diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). “Sem uma nacionalidade, os indivíduos enfrentam uma existência caracterizada pela insegurança e marginalização. Pessoas apátridas estão entre as mais vulneráveis do mundo”, diz já no prefácio o manual de proteção dos apátridas7. E para assegurar a proteção desse grupo vulnerável adotou-se, após discussões desde a década de 30, a Convenção de 19548 que regulamenta os parâmetros de tratamento dos apátridas. Contudo, essa Convenção não prescreve mecanismo para identificar um 6 Artigo XV da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) Manual de proteção aos apátridas: de acordo com a convenção de 1954 sobre o estatuto dos apátridas, Genebra, 2014 (UNHCR/ACNUR). 8 Convenção sobre o Estatuto dos apátridas, de 1954, entrou em vigor no dia 6 de junho de 1960. 7 17 apátrida, cabendo os Estados dentro de suas jurisdições oferecerem tratamento adequado e cumprir os compromissos assumidos na Convenção9. A Convenção no seu primeiro artigo, parágrafo um, define o termo apátrida como: “Aos efeitos da presente Convenção, o termo ´’apátrida’ designará toda pessoa que não seja considerada como nacional seu por nenhum Estado, conforme a sua legislação”. Mas ressalva, no parágrafo dois, que a Convenção não se aplica aos seguintes casos: a) Às pessoas que atualmente recebem proteção ou assistência de um órgão ou organismo das Nações Unidas diferente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados, enquanto estejam recebendo tal proteção ou assistência. b) Às pessoas a quem as autoridades competentes do país onde tenham fixado sua residência reconheçam os direitos e obrigações inerentes a posse da nacionalidade de tal país. c) Às pessoas sobre as quais existam razões concretas para considerar: I) Que tenham cometido um delito contra a paz, um delito de guerra, ou um delito contra a humanidade, definido nos instrumentos internacionais referentes a tais delitos. II) Que tenham cometido um delito grave de índole política fora do país de sua residência, antes de sua admissão em tal país. III) Que são culpados de atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas. Dessa forma, nem todas as pessoas que aportam em outro país serão consideradas apátridas. Em um regime de agressão e de invasões de nações poderosas não é possível saber as condições de sobrevivência de um ser humano em suas de origem. Diante de possíveis perseguições é possível que uma pessoa seja reconhecida com uma apátrida dentro do próprio país de origem. Por outro lado, não parece adequado que as pessoas estejam submetidas apenas à legislação de um Estado, tendo em vista que o próprio Estado se constitui do espaço físico, da língua, costumes e toda a história das pessoas, o que forma culturalmente uma nação. Conforme reportagem do Jornal do Brasil10 “o ano de 2015 foi marcado pela crise dos refugiados, considerada a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial”. 9 Manual de proteção aos apátridas, p. 1 e 6 18 A formação de grupos extremistas, principalmente na Síria, é responsável pelo deslocamento intenso de pessoas para outros países. Segundo o texto, citando a Organização Internacional para Migrações (OIM), metade dos refugiados que atravessou o Mediterrâneo era sírio. Nota-se, no entanto, que o número de refugiados no mundo aumentou cerca de 45% desde de 2011: “Os países da África Subsaariana acolhem a maioria dos refugiados (4,1 milhões), seguidos da Ásia e do Pacífico (3,8 milhões, da Europa (3,5 milhões), do Oriente Médio e da África do Norte (3 milhões)”. E 753 mil refugiados vivem no continente Americano (JB, 29.12.2015). Jesus viveu como apátrida? Jesus itinerante na região em que nasceu rompeu com dois princípios básicos de sua religião judaica. Deixou de cumprir algumas normas da lei do judaísmo (613 mandamentos) e disse que a salvação alcançaria as pessoas fora das tradições judaicas. Essas são as causas prováveis da perseguição religiosa e do seu desdobramento na sua condenação pelo Estado Romano. Jesus disse que não tinha onde reclinar a cabeça. Contudo, essa afirmação pode ser interpretada tanto como uma perseguição político-religiosa como uma pregação itinerante, de casa em casa, ou nas sinagogas da região. Conforme o Manual de proteção aos apátridas (2014, p. 6), os “apátridas não conseguem usufruir de uma série de direitos humanos e são impedidos de participar plenamente na sociedade”. Além disso, continua o texto (p. 60), existem pessoas que “podem perder a nacionalidade por causa do pertencimento a grupo da sociedade que não tem acesso aos benefícios políticos ou sociais”. Desse ponto de vista, Jesus tornou-se um apátrida em seu próprio país. 10http://www.jb.com.br/internacional/noticias/2015/12/29/crise-migratoria-e- atentados-terroristas-marcam-cenario-internacional-em-2015/. 29.12.2015; Acessado em 19 Conclusão Neste pequeno texto mostramos as linhas gerais do que significa a apatridia, suas principais causas e a responsabilidade dos estados para que as pessoas se sintam acolhidas no país que escolheram para viver com alguma dignidade. Vimos que os governantes das nações devem identificar os apátridas para que possam desfrutar dos seus direitos básicos como todo cidadão nacional, conforme recomenda a convenção sobre o estatuto dos apátridas, de 28.9.1954. Este é o único instrumento que faz menção às pessoas em risco em terras estrangeiras Lamentavelmente ainda são poucos os países que adotam medidas protetoras das pessoas apátridas. Fazem-se necessárias tratativas globais para minimizar os danos aos migrantes ao redor do mundo. Parece-nos, também, que as grandes potências mundiais têm responsabilidades pelo crescente deslocamento de pessoas de suas terras, em face de intervenções políticas e militares e apropriação das riquezas naturais de nações em conflito étnico e religioso. Esperamos que mais países se esforcem para regulamentar a situação dessas pessoas, de forma que os migrantes apátridas possam contribuir legalmente, sem o perigo de serem tratadas arbitrariamente, para o desenvolvimento das nações. Essa gente precisa ser curada dos males contemporâneos a fim que tenham o direito de reclinar sua cabeça e sonhar com dias melhores para os seus familiares. Bibliografia consultada ANDRADE, William César. Povo em itinerância: Israel nos diversos caminhos da migração. São Leopoldo/Brasília: CEBI/CSEM/IMDH, 2007. BÍBLIA DE JERUSALÉM, São Paulo: Paulus, 2002. Jornal do Brasil. Crise migratória e atentados terroristas marcam cenário internacional em 2015. Rio de Janeiro, 29 dez. 2015, disponível em: <http://www.jb.com.br/internacional/noticias/2015/12/29/crise-migratoria-e-atentadosterroristas-marcam-cenario-internacional-em-2015/>. Acesso em 19.12.2015. Manual de proteção aos apátridas: de acordo com a convenção de 1954 sobre o estatuto dos apátridas, ACNUR, Genebra, 2014. USP, Biblioteca virtual de direitos humanos. Convenção Sobre o estatuto dos apátridas, 1954. <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Refugiados-Asilos- 20 Nacionalidades-e-Ap%C3%A1tridas/convencao-sobre-o-estatuto-dosapatridas.html> . Acesso em 11.1.2016. *É licenciado em Letras Português do Brasil como Segunda Língua, pela UnB, bacharel em Teologia pela PUC Goiás. Especialista em Cristianismo Antigo, pela UnB, e Mestre em Ciências da Religião, pela PUC Goiás. Associado à Associação Brasileira de Filosofia da Religião-ABFR. e-mail: rbemelekazevedo@gmail.com 2. “MEU NOME É LEGIÃO”: DORES SOCIAIS PROVOCADAS PELO DEMÔNIO QUE VEM DE FORA - UMA LEITURA DE MARCOS 5,1-17 Nome: Luiz Alexandre Solano Rossi Titulação: Doutor Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Paraná Resumo: Ao utilizar o conceito de imaginário e como ele interfere nos mecanismos da realidade palpável (política, econômica, social, cultural) que alimenta a própria imaginação, buscou-se interpretar o texto de Marcos 5,1-17 procurando perceber como a expressão “legião” podia ser compreendida pela população palestina diante da ação letal da legião romana. Assim sendo, percebe-se que as dores sociais, que dão o padrão da enfermidade de uma sociedade, atingem, principalmente, aqueles que vivem na periferia da existência. O texto de Marcos 5,1-17, que retrata um episódio muito particular da ação de Jesus ao libertar o possesso de Gadara, suscita várias perguntas e algumas delas se fazem especial: a) o episódio revela alguma relação entre a opressão que o império romano exercia sobre a Palestina e o fenômeno de tantas pessoas possuídas pelo demônio à época de Jesus?1 b) seria uma forma doentia de se rebelar contra a submissão romana e o domínio dos poderosos? Mesmo que não entendamos a cura do endemoninhado geraseno como estritamente histórico, talvez seja possível afirmar que o imaginário do povo da Palestina estivesse povoado pelas imagens da opressão de Roma. Sim, provavelmente estamos diante da cura de um indivíduo, mas também não podemos e não devemos ignorar o simbolismo que a narrativa traz em seu interior. Muito possivelmente o caráter simbólico do texto incorpora e gera mais sentido. Ao falar do “imaginário” do povo da Palestina recorro ao conceito de imaginário estabelecido por Hilário Franco Júnior (1998, p. 23) como “um conjunto Pagola afirma que o fenômeno da possessão demoníaca era praticamente ausente em séculos anteriores a Jesus. Sua afirmação ganha relevo ao percebermos que a possessão se tornou um elemento muito difuso no tempo de Jesus. Ainda segundo ele seria cada vez mais numerosos os investigadores que enfatizam a dimensão política que os exorcismos de Jesus poderiam ter. Entre eles são citados: Hollenbach, Horsley, Crossan, Sanders, Evans, Herzog II, Guijarro (p. 413). 1 21 de imagens visuais e verbais gerado por uma sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo mesma, com outros grupos humanos e com o universo em geral”. Dessa forma, é possível concluir que todo imaginário – deve-se salientar a necessidade de se perceber os muitos imaginários possíveis e não cair no erro de reduzir a “um só imaginário” - é eminentemente coletivo e, portanto, não poderia ser confundido com atividade psíquica individual ou ainda à somatória de imaginações. Consequentemente, é possível afirmar que diante dos episódios de exorcismos de Jesus e, principalmente à do geraseno, as pessoas simples da Galiléia entrevissem a rápida derrota dos romanos ou, nas palavras de Crossan (1994, p. 352) quando afirma que “o relato é um resumo do sonho de todo revolucionário judeu” e de Soares (2002, p. 222) indicando que “a presença satânica é como a devastadora ocupação das tropas romanas”. E Gnilka (1999, p. 221) é categórico ao afirmar que “a descrição impressionante da miséria do homem atormentado faz parte do estilo de um bom relato de cura”. E, de fato, a maldade travestida de violência, após a intervenção de Jesus, será eliminada pela raiz. “Meu nome é legião” De acordo com o relato de Marcos o demônio, apesar de ser um só, é nomeado de “legião”, porque são muitos. Trata-se do mesmo termo para se referir à divisão armada de Roma que controlava com mão de ferro a Palestina2. Deve-se ressaltar que “conhecer o nome” de alguém, naquela cultura, significava a pretensão de dominar essa pessoa e ser mais forte do que ela. O espírito impuro, portanto, ao responder a Jesus procura demonstrar todo seu poder e, com isso, a partir do simbólico, subjugar o mais fraco. Os demônios – legião - expulsos por Jesus entram nos porcos que eram considerados “os animais mais impuros de todos e os que melhor podiam definir os romanos” (PAGOLA, p. 208). Chouraqui (1996, p. 93) é ainda mais incisivo ao afirmar que “o homem está possuído pelo demônio como Israel pelas legiões romanas”. E Bortolini segue na mesma direção (2003, p.105) ao expressar que o É possível encontrar críticos a essa interpretação como Meier (1998, p. 175) que afirma “mesmo que se queira ver no nome “legião” uma referência à ocupação romana que afligia a população nativa – uma duvidosa mistura de teorias políticas e psicológicas, de qualquer forma – tais interpretações devem ser mantidas no nível da redação de Marcos”. Contrariamente a Meier, Soares (2002, p. 222) afirma que “o nome é tomado das forças armadas romanas”. 2 22 “possesso é símbolo de um povo politicamente dominado”. Vive excluído e se nega a ele a vida em comunidade. Trata-se de uma pessoa duplamente maldita: “porque é habitado por um espírito imundo e porque habita em sepulcros” (GNILKA, p. 221). O texto é narrado à procura de seu clímax e, por conta disso, os porcos se precipitam ao mar onde a “resistência judaica queria vê-los submersos para sempre” (PAGOLA, p. 208). Dessa forma, a ruína dos porcos também significaria a libertação da escravidão sob o poder romano. Storniolo (1992, p. 89) ratifica a informação: “também o porco era considerado animal sagrado e um dos símbolos do poder romano”. O porco era precisamente o símbolo da X legião romana que controlava a partir da Síria a região palestina (Chouraqui, 1996). Ao escutar o discurso de Jesus, os ouvintes não podiam pensar senão na legião romana estabelecida em Damasco e encarregada de manter a ordem naquela região e de fazer respeitar a pax romana. Não devemos nos esquecer que Roma havia enviado à Judéia e à Síria suas melhores tropas para manter a ordem constantemente perturbada pela população revoltosa (Chouraqui, p. 94). Crossan (1995, p. 54), numa referência a Tácito, mostra a descrição do Império Romano a partir da visão do general Calgaco antes de seu encontro fatal com o poderio militar no nordeste da Escócia. Um texto exemplar: Saqueadores do mundo, agora que a terra não é o bastante para as suas mãos devastadoras, eles exploram até o mar: se o inimigo possui riquezas, eles têm ganância; se ele é pobre, são ambiciosos; Oriente nem Ocidente os fartaram; são o único povo da humanidade que contempla com a mesma paixão a escassez – terras pobres – e a fartura – terras ricas. Pilhar, matar, roubar, a isso chamam erradamente de império: trazem desolação e chamam isso de paz. Estamos, historicamente, no contexto da paz romana (pax Romana). WENGST (1991, p. 23) descreve-a da seguinte maneira: A pax Romana foi resultado produzido a ferro e fogo e mediante o uso, sem escrúpulos, de todos os meios de luta do Estado, de uma disputa inimiga com o mundo inteiro, que se apoiava numa arte de Estado coercitiva e através da qual, em cada caso concreto, houvera a vontade ilimitada da defesa do próprio proveito. A pax romana, que em teoria é uma relação de direito entre dois parceiros, é, na realidade, uma ordem de dominação; Roma é o parceiro, que a partir de si mesmo, ordena a relação e propõe as condições. Para o não romano, pax significava a confirmação da submissão a Roma, por meio de contrato que implorava, simultaneamente, a proteção de Roma contra os ataques de outros povos estrangeiros. Percebe-se que o caminho que conduzia à era dourada e de paz não podia ser realizado sem recorrer à força. A nova era para uma sociedade militar de orientação imperial caminhava ao lado, pari passo, à perpetuação da guerra. É 23 possível, portanto, afirmar que a pax Romana estava fundada na conquista e na guerra. Horsley (2004, p. 27) esclarece o conceito de paz dizendo que se tratava de uma pax no sentido romano, ou seja, um pacto depois da conquista. E num outro livro (HORSLEY, 1987, p. 47) acrescenta que “os romanos mantinham a pax Romana pelo terror”. O povo de Deus vivia uma tragédia no primeiro século. Storniolo (1992, p.89) afirma que “dominação romana era o principal demônio em toda a região”. Ainda que se considerassem o povo eleito de Deus, viviam submetidos ao poder maléfico de Roma. Afirma Pagola (2010, p. 413): “As possessões diabólicas, tão freqüentes ao que parece nessa época, não são senão um fenômeno que expressa de maneira trágica a situação real do povo. Os romanos são as forças malignas que se apoderaram do povo e o estão despojando de sua identidade”. Nesse ambiente de dominação geográfica em que as legiões avançavam e aumentavam suas fronteiras de domínio, o verso 10 se reveste de especial importância: “E pedia com insistência para que Jesus não o expulsasse da região”. A intuição parece ser exatamente a de que a presença do imperialismo romano significava que, no nível social, o povo de Deus estava sendo possuído por demônios. A legião e sua letalidade Ao longo da literatura encontramos muitas referências não somente a respeito da capacidade militar de Roma bem como sobre sua formação. Nesse sentido KOESTER (2005, p. 6) afirma que Vespasiano, durante o inverno de 66, reuniu três legiões e várias tropas auxiliares; em outro momento traz informações, ainda que genéricas, a respeito da capacidade logística e da técnica militar ao afirmar que numa das incursões de Vespasiano o cerco durou “várias semanas”. Uma das maiores questões relativas ao exército romano permanece sem resposta: nenhuma fonte existente afirma o número preciso de homens nas legiões. Desse modo, poderíamos nos aproximar de CROSSAN (1995, p. 147) que afirma que uma legião consistia de 6.000 homens ou ainda de SOUTHERN (2007, p. 99) que indica que é possível que o número de legionários fosse diferente nas províncias e em épocas diferentes e que, por isso, a maioria dos pesquisadores 24 acabe optando por uma força legionária entre 5.000 e 6.000 homens. No entanto, além das legiões havia as tropas auxiliares, recrutadas nas províncias e uma frota. Do ponto de vista da estratégia político-militar era de suma importância que a maioria das legiões estivesse estacionada nas províncias fronteiriças. Afinal, a administração dessas províncias pelo imperador estava estreitamente relacionada com seu imperium militar. A força política do imperador era garantida pela presença e força das legiões, que às vezes podiam nomear o imperador. A força legionária romana era considerada letal. Dois exemplos são significativos: 1) Varo, governador romano, precisou de três legiões e tropas auxiliares para esmagar revoltas na terra judaica. Quando ele chegou a Jerusalém, crucificou, segundo o relato de Josefo (Guerra 2.75), “dois mil rebeldes”. As crucificações em massa marcaram o começo e o fim da primeira guerra romano-judaica. 2) Floro, governador romano da terra judaica, no início do verão de 66 d.C., ordenou a suas tropas que atacassem dentro da cidade. O relato de Josefo (Guerra 2.306-308) fala por si mesmo: Muito dos cidadãos pacíficos foram detidos e levados diante de Floro, que primeiro mandou que fossem açoitados e depois crucificados. O número total de vítimas nesse dia, incluindo mulheres e crianças, pois estas não mereciam perdão, chegava a três mil e seiscentos. A calamidade era agravada pelo aspecto sem precedentes da crueldade dos romanos. Pois Floro se aventurou nesse dia a fazer o que ninguém havia sequer tentado antes, isto é, açoitar diante de seu tribunal e pregar na cruz homens de nível de cavaleiros, homens que, se judeus por nascimento, foram pelo menos investidos com essa dignidade romana. Conclusão O relato de Marcos nos coloca diante de duas possibilidades hermenêuticas: a. Na primeira percebemos o povo pedindo que o exorcista vá embora porque um endemoninhado curado não vale uma manada de porcos. Há uma cruel inversão. Um povo duplamente submetido, isto é, tanto pela força militar quanto pela exploração econômica dos romanos, não possui muitas alternativas. Para os gerasenos, portanto, o centro de tudo passa a ser os porcos, o lucro e o mercado. E é justamente nesse ponto que Jesus, através de seu gesto, problematiza e estabelece a contradição ao estabelecer a pessoa como centro de tudo. 25 b. Na segunda é possível compreender claramente as implicações políticas do ato exorcista de Jesus. As ações de exorcismo de Jesus dessa maneira possuiriam uma dimensão política incontestável. A realidade material, isto é, o cotidiano da política, da economia, da sociedade e da cultura que marca e demarca a existência da população subjugada pelo império romano se expressa criticamente nesse episódio emblemático. Penso que as duas leituras são simultaneamente possíveis e não se excluem a ponto de permitirem belas abordagens hermenêuticas. A primeira descreve a força do império a partir da economia e a segunda a partir da política. No entanto, ambas trazem em comum uma ação que desumaniza o ser humano a partir da violência. Porém, a segunda opção traz à mente a lembrança de dois textos estratégicos: Ex 14,27-15,4 e Is 43,16-17. Os dois textos apresentam de forma paradigmática a vitória de Javé sobre seus adversários e, em especial quando se trata das relações conflitivas do povo de Deus com os impérios estrangeiros. Egito e Babilônia, impérios que dominam a cena nos textos bíblicos do Antigo Testamento e que se apresentam como modelos de violência são, desde o início, desestruturados. No êxodo o exército do faraó é precipitado no mar e termina seus dias tomados pelas águas. As forças militares imperiais que ameaçavam o povo de Javé são desbaratadas: “Ele atirou no mar os carros e a tropa do faraó, afogou no mar Vermelho a elite das tropas” (Êxodo 15,4). A força militar que permite a sustentação e ampliação do império é esmagada. E impérios sem exércitos deixam imediatamente de sê-los. O texto de Êxodo, portanto, poeticamente coloca um fim na força do império a partir de sua base de sustentação. E em Isaías 43,16-17 – “Assim diz Javé, aquele que abriu um caminho no mar, uma passagem entre as ondas violentas, aquele que fez sair o carro e o cavalo, o exército e a força. Eles caíram para não mais se levantar, apagaram-se como pavio que se extingue” - o profeta reatualiza a ação de Javé que desagrega o sistema imperial a fim de libertar o povo subjugado dos tentáculos opressivos do império babilônico. A mesma imagem do passado é recuperada em meio à violência do novo império que nada poupa em seu processo de conquista. A ação de Jesus é paradigmática diante do povo que tinha seu imaginário povoado por legionários que eram detestados por causa de sua brutalidade, selvageria, violência e arbitrariedade de suas medidas. Jesus, que não tinha legião, 26 precipitou no mar, a elite dos soldados romanos. Os porcos, ao se jogarem ao mar e morrerem, ficaram sem possibilidade alguma de existência opressora naquele mundo. A autoridade militar, através de Jesus, foi irremediavelmente repudiada. Bibliografia BORTOLINI, J. O evangelho de Marcos. São Paulo: Paulus, 2003. CHOURAQUI, A. Marcos. Rio de Janeiro: Imago, 1996 CROSSAN, J.D. Jesus – uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995. CROSSAN, J.D. O Jesus histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1994 FRANCO, H. Jr. Cocanha – a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 GNILKA, J. El Evangelio Segun San Marcos. Salamanca: Sígueme, 1999 HORSLEY, R. A. Jesus and the Spiral of Violence. San Francisco: Harper & Row, 1987. HORSLEY, R. A. (Org.). Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial. São Paulo: Paulus, 2004. JOSEFO, F. Guerra dos judeus. Curitiba: Juruá, 2009. KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2005. MEIER, John P. Um judeu marginal. Volume II, Livro 3. Rio de Janeiro: Imagi, 1998 PAGOLA, José A. Jesus – aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010 SOARES, S.G. et al. Evangelho de Marcos. Vol. I:1-18. Petrópolis: Vozes, 2002 SOUTHERN, P. The Roman Army. Oxford: Oxford University Press, 2007. STORNIOLO, I. Como ler o evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 1992 WENGST, C. Pax Romana: pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991. 27 2. DA TENDA AO TEMPLO: UM OLHAR SOBRE AS MUDANÇAS OCORRIDAS EM ISRAEL Nome: Hébert Vieira Barros Titulação: Mestre em Ciências da Religião Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: Desde tempos mais antigos Israel sempre buscou melhores condições de vida migrando de um lugar para outro com seus rebanhos. Neste contexto, a tenda foi um instrumento religioso de fundamental importância para o exercício religioso. Com suas particularidades, cada clã realizava seu exercício religioso na tenda, e tinham a certeza que Deus estava presente em sua história concreta. Com o desenvolvimento e crescimento de famílias que formavam os diversos clãs em Israel, a experiência da tenda, com o passar do tempo, foi sendo suplantada pela ideia de reunir o exercício religioso em um só lugar. O templo nasce a partir da necessidade de haver um controle sistematizado, onde a fé tinha uma ligação direta com a organização social. Neste contexto de mudanças em Israel, o templo serviria como referencial de organização nas diversas esferas: social, política, econômica e religiosa. Esta mudança social religiosa não ocorreu da mesma forma em todos os clãs; e isto foi motivo para diversos conflitos entre o povo. Palavras chave: Tenda, Templo, Religião, Mudanças, Israel. Antes do desenvolvimento da monarquia em Israel o povo vivia em constante migração em busca de pastagens e água para seus animais. Antes da monarquia, o povo de Israel tinha sua prática religiosa centralizada no culto provisório. No imaginário coletivo popular, Deus andava com as pessoas em suas viagens em busca de melhores condições de vida. A tenda para Israel neste período histórico era algo de extrema importância. A pesquisa bíblica em seu desenvolvimento faz diferentes afirmações sobre a tenda. Uma das correntes fortes é que a tenda representava para Israel o que o livro dos Reis chama de tenda de Davi, ou seja, a tenda santuário. Nesta perspectiva a tenda de certa forma é o pré-projeto do famoso templo de Salomão11. Outra posição sobre a tenda que vem sendo discutida na pesquisa bíblica, afirma que esta experiência não é instaurada por Israel em seu período de migração em busca de terras e pastagens. F.M. Cross, contudo, modifica essa afirmação; ele sugere que a tenda como é descrita, é a tenda-santuário erigida por Davi, e que a fonte sacerdotal usou tradições autênticas a respeito de sua estrutura. Tanto os dados bíblicos como informações extra bíblicas tornam a existência de uma tenda-santuário primitiva portátil não somente possível, mas extremamente provável. 11 28 Antes do povo de Israel já havia grupos que tinham o costume de cultuar seus deuses em tendas. Israel pôde então, ter se inspirado nesta experiência para estabelecer nos clãs a tenda e Javé, representando assim a presença de seu Deus particular em meio à sua vida cotidiana. Sobre esta possibilidade muito contribui Roland de Vaux12. A tenda com certeza foi um elemento comum na devoção popular itinerante também de outros povos e não somente de Israel. Transportavam a tenda para todos os lugares. A tenda caracteriza o sistema familiar tribal, do nomadismo, onde predomina a atividade pastoril. A tenda foi para Israel símbolo de um período onde o exercício religioso acontecia dentro da esfera do domínio familiar. O templo de Jerusalém e as mudanças ocorridas na religiosidade de Israel Não é objetivo desta comunicação, fazer uma análise de contraposição ao templo de Jerusalém. Fazendo o clássico e já desgastado raciocínio de tenda contra templo. Seguramente se Israel não tivesse conseguido estabelecer a monarquia, seus conflitos internos, como as divergências entre as tribos pela disputa de terras, dificilmente teriam uma solução que não trouxesse risco de forma geral para o povo. Outra questão que Israel não teria vencido sem a Institucionalização da religião no templo seriam as pressões dos povos estrangeiros, como por exemplo, o conflito com os Filisteus. Sobre a questão interna e externa de Israel são esclarecedoras as contribuições de Carlos A. Dreher13. Já no tempo das tribos a ideia de fazer um templo para o culto religioso em Israel era presente. Muitos são os textos bíblicos que mencionam o desejo de estabelecer um sistema de governo onde a centralidade das questões políticas e religiosas fosse resolvida. No texto de Jz 8,22-28, Gedeão depois de ter vencido uma batalha contra um exército de quinze mil homens (Jz 8,10) exige de seu povo 12 VAUX, Roland de. Instituições de Israel no antigo testamento. Tradução Daniel de Oliveira. São Paulo: Paulus; Teológica, 2003. DREHER, Carlos A. A Constituições dos Exércitos no Reino de Israel. São Paulo: Paulus; 2002. 13 29 uma quantidade de ouro. “Gedeão fez com isso um efod e o colocou na sua cidade, Efra.” (Jz 8,27). Neste texto fica claro que a experiência da tenda mencionada no tópico anterior já não é mais evidente em todo o Israel tribal. Pois, as tribos no período dos juízes (1200a.C - 1000a.C) devido a uma série de inovações voltadas para a agricultura, armazenamento de água e alimentos, conseguem se estabelecer na terra de maneira cada vez mais permanente. O texto de 1Sm 8,20 “Nós teremos um rei e seremos, nós também como as outras nações” reflete bem esta questão14. Com o desenvolvimento interno Israel faz ao longo do processo histórico uma mudança profunda em seu modo de fazer seu exercício religioso. O crescimento dos clãs trouxe para as tribos de Israel a necessidade de organizar-se melhor para garantir assim a sua identidade. O templo de Jerusalém desempenhou um papel fundamental nesta mudança de estrutura15. O projeto de construir um templo em Israel é uma ideia que vem desde o tempo tribal, e por questões de exigências da conjuntura histórica, Israel só consegue o feito no tempo do reinado de Salomão. Segundo a literatura bíblica, Saul não teve muito sucesso como líder de Israel. Assim como descreve em 1Sm, onde Saul não conseguiu: gerir um exército permanente que garantisse a segurança das tribos e estabelecer uma cidade como referência. Desta forma, ele termina sua trajetória como um líder fracassado. Diferentemente de Saul, Davi seu sucessor é visto pela literatura bíblica como modelo ideal de rei, consegue estabelecer um exército permanente conquistando Jerusalém e estabelece sua base política nesta cidade. Em Jerusalém Davi constitui um santuário para Javé. Neste período a pesquisa bíblica afirma que a chamada “teologia de Davi” exerceu importante contribuição para seu sucesso político. A partir da “teologia davídica” Deus faz uma aliança com o rei onde este deve servi-Lo governando o povo. Esta teologia é bem diferente da gestada no Êxodo, 14 Todos os textos da literatura bíblica nesta comunicação que estão sendo citados seguem a tradução da: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010. 15 Sobre este processo de mudança muito contribuiu para a pesquisa bíblica o livro: GOTTWALD, Norman. As tribos de Iahweh – Uma sociologia da religião de Israel liberto 12501050 a C. São Paulo: Paulinas, 1986. 30 onde Deus faz uma aliança com o povo. Na teologia do Êxodo o povo não tem intermediário, os líderes estão a serviço com o povo não para o povo 16. Diante de tantas conquistas, Davi Rei de Israel, consegue levar a sensação de que estavam seguros dentro da monarquia de Israel. Para Davi só restava um feito, construir um templo para Deus. O texto de 2Sm7 evidencia este desejo, porém foi só no reinado de Salomão que o templo de Jerusalém foi construído. Considerações finais A tenda foi muito importante para a religiosidade de Israel, com ela foi possível para as tribos manter viva a experiência do Deus do Êxodo. Um Deus que se fazia presente no meio dos clãs através da liturgia exercitada na tenda. Essa religiosidade estabeleceu sentido para os clãs de Israel, fazendo com que o povo preservasse suas vidas estabelecendo relações, onde o modelo de opressão egípcia não tivesse espaço. Outra característica que a religiosidade da tenda garantiu aos clãs de Israel foi o limite das relações entre Deus, a vida e a morte. O texto de Gn 22 reflete bem a questão.17 O templo de Jerusalém não pode ser compreendido de forma isolada. A experiência da tenda de maneira bem direta foi a base experimental para que o templo fosse construído. Na prática, isto aconteceu de maneira bem simples. Para o grupo de clãs que viam na monarquia a possibilidade de atender as questões urgentes que estavam vivendo, essa construção foi vista com bons olhos, porém para os clãs que não estavam ligados diretamente com os interesses do grupo da monarquia seja por questões políticas ou geográficas, a tenda não foi suprimida pela construção do templo18. 16 A respeito desta questão da teologia do Êxodo juntamente com suas características e a teologia estabelecida no tempo de Davi vale lembrar as várias correntes teológicas no primeiro testamento, cito para o momento apenas duas a OHD (Obra historiográfica deuteronomista) criada já no palácio de Salomão, porém idealizado no tempo de Davi. E a literatura sapiencial que faz uma teologia a partir das questões do cotidiano da vida. Para a literatura sapiencial a teologia do Êxodo foi sempre um referencial de fé. Para a teologia Davídica não foi nesta forma. Sobre este assunto muito ajuda a obra: SICRE, José Luis. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 17 Muitos dos exegetas bíblicos afirmam que as tribos de Israel foram com o tempo percebendo que Javé o Deus que caminha com o povo não desejava a morte de sua criação. O texto de Gênesis 22 é o retrato desta experiência religiosa que foi vivenciada no tempo das tendas. 18 Sobre os vários locais de culto em Israel muito contribuem as ideias do livro: PIXLEY, Jorge. A História de Israel a partir dos pobres. Tradução Ramiro Mincato. Petrópolis: Vozes, 1995. 31 O que muito pode atrapalhar a interpretação sobre a experiência da tenda em Israel são as diversas camadas de interpretação sobre o culto religioso no próprio texto bíblico. É comum perceber em muitos textos a tentativa de institucionalizar o culto a Deus somente no templo de Jerusalém19. Porém não podemos esquecer que a religiosidade popular extrapola em muitos níveis o que é previsto pela oficialidade. É importante destacar também que a tenda e o templo são possibilidades para o exercício religioso, correspondendo assim cada um à expectativa do grupo que a defende. Referências Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010. DREHER, Carlos A. A Constituições dos Exércitos no Reino de Israel. São Paulo: Paulus; 2002. FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAM, Neil Asher. A bíblia não tinha razão. Tradução Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2005. GOTTWALD, Norman. As tribos de Iahweh – Uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a C. São Paulo: Paulinas, 1986. MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. Tradução Álvaro Cunha. São Paulo: Paulus, 1983. PIXLEY, Jorge. A História de Israel a partir dos pobres. Tradução Ramiro Mincato. Petrópolis: Vozes, 1995. SICRE, José Luis. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. VAUX, Roland de. Instituições de Israel no antigo testamento. Tradução Daniel de Oliveira. São Paulo: Paulus; Teológica, 2003. 19 Sobre esta característica dos textos bíblicos para aprofundar sobre a questão indicamos: FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAM, Neil Asher. A bíblia não tinha razão. Tradução Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2005. 32 3. MEMÓRIA BÍBLICA: UMA VIVA CONFISSÃO DE FÉ Nome: Raquel Machado Gomes Araújo Titulação: Graduanda em Teologia Instituição: Faculdade Evangélica de Brasília Resumo: De uma perspectiva teológica, aquilo que Deus selecionou sobre seu relacionamento com Israel e com o mundo para ser lembrado ou esquecido, é o que compõe a Bíblia, como revelação. A Bíblia possui sua unidade literária, mas não deixa de ser composta por uma diversidade de testemunhos religiosos que se deram ao longo do tempo, assim como pela junção de tradições, possuindo, dessa forma, dimensão diacrônica e sincrônica. Suas narrativas, hinos e lamentos são formas de fazer teologia, mostrando uma crença arraigada na história da revelação de Deus ao seu povo. A história humana para os judeus revelava o desejo e propósito de Deus, e esta era uma visão básica de sua fé. Israel conhecia quem era Deus devido aquilo que Ele fazia na história. A sua confissão de fé é impregnada pela história, não podendo ser concebida sem a mesma. Há uma injunção de 'lembrar' como imperativo religioso a todo o povo. A Bíblia é a fonte e registro da memória de Israel selecionada como importante. Seriam registrados os atos de Deus na história e as respostas humanas, positivas e negativas e essa memória geraria temor e daria continuidade à aliança de Deus com seu povo. As narrativas históricas da bíblia são revestidas do caráter teológico de Deus como dono da história, apresentando a mesma como teofania. A memória, portanto, para os judeus, tornou-se a base de sua fé e vivência. O objetivo deste estudo é apresentar a memória bíblica como um fundamento para a confissão de fé, sendo aquela o fator primordial para a crença. Para chegarse ao entendimento disto, deve-se, primeiramente, ter em mente a tríade históriamemória-identidade com a seguinte tese: a história é alicerçada pela memória da comunidade para gerar e confirmar a identidade da mesma. Toda história para ser escrita foi, em primeira instância, vivida por uma comunidade e, depois, contada. Na vivência e na transmissão desta história, a memória constrói a comunidade da forma como ela é, fundamentando suas noções de direitos e deveres, sua religiosidade e crença. Ela é, portanto, formativa e normativa. A identidade só é exercida plenamente quando há um resgate constante da memória, sendo esta a ferramenta ativa daquela. Tanto a experiência passada, quanto a vivência presente e as expectativas futuras de uma comunidade, são partes ativas da memória. É exatamente esta carga histórica acrescida da visão da comunidade sobre a mesma, transmitida para as gerações seguintes, que formam a identidade coletiva. 33 Quando se articula sobre a Bíblia, vê-se que esta é construída por memórias específicas da ação de Deus na história, por aquilo que foi selecionado como importante sobre o relacionamento de Deus com Israel e com o mundo. Ali estão impressas visões específicas de tempos específicos, que para os judeus e, posteriormente, para os cristãos, mostraram-se padrões da ação de Deus para todas as épocas, tanto em sua forma como em seu fundamento. Sendo assim, para a comunidade judaica, inicialmente, e para a comunidade cristã depois, as memórias expostas nas Escrituras, em experiência, vivência e expectativas, formam sua identidade, o que envolve, certa e prioritariamente, sua crença e tudo aquilo que vem com a mesma, como seus ritos e narrativas escritas. Relação entre história e memória Para estudar mais a fundo a relação da Bíblia, como memória viva, com a comunidade na qual a mesma foi construída e da qual foi transmitida, deve-se entender, primeiramente, o processo de relação entre a história e a memória. A confissão de fé da comunidade é impregnada pela história, não podendo ser concebida sem a mesma. O Deus que é apresentado nas Escrituras, alvo de adoração por parte das comunidades aqui abordadas, é um Deus, conforme dito acima, que atua e se revela na história. Portanto, aquilo que dEle se conhece é dado a conhecer pelas memórias que se tem da história, por aquilo que Ele fez e por sua palavra.20 Compreende-se que a história vivenciada se faz contínua através da memória, além de ativar a mesma, como será explicitado mais adiante ao trazer a relação da memória com a comunidade, exemplificada nos profetas. Há a percepção de que o passado se funde com o presente e com o futuro, pois o presente é consequência do passado e determina o futuro. Desta forma, conhecer a história traz a sua importância como ferramenta para a construção da memória, e somente uma comunidade de valores permite que essa história seja transformada em memória viva. 20 “(…) ao qual [povo de Israel] Deus se deu a conhecer em ações salvíficas e nas manifestações de sua vontade” (SCHREINER, 2004, p. 55) 34 A história humana para os judeus revelava o desejo e propósito de Deus, e esta era uma visão básica de sua fé. Demonstra-se com isto que a história, ou o que se conhecia da mesma, formou a memória deste povo de maneira única. Ao mesmo tempo, a memória passa a ser determinante para a interpretação de qualquer história. Portanto, há uma relação de dualidade e dependência entre as duas. Não que a história em si dependa da memória, mas a história conhecida e contada, sim, assim como a história posterior, que será interpretada conforme a memória que já se tem, a qual é fundamento da identidade.21 Como exemplo do que foi colocado acima, pode-se dizer que a Escritura não objetivava ser biográfica, mas esta historiografia almejava, por parte de seus autores e redatores, mostrar o propósito divino. As narrativas, hinos e lamentos bíblicos tornaram-se formas de fazer teologia, mostrando uma crença arraigada no processo histórico da revelação de Deus ao seu povo. As poderosas narrativas humanas e divinas do passado, como Israel relembrou, causaram um impacto profundo nos esforços israelitas em lidar com as crises e encontrar significado para sua existência, bem como conforto no conhecimento de sua aliança com Deus. Através do tempo, estas histórias de Israel e sua Deidade tornaram-se sacramentadas como escritos religiosos de autoridade e, finalmente, como livros da Bíblia canônica. Estes se tornaram reconhecidos como revelação de Deus sobre o passado de Israel e, como resultado, foram transformados, de certo modo, em memórias de Deus (SMITH, 2006, p. 26). Os atos históricos constituíram memórias vivas de uma comunidade de fé. Relevância da memória Pode-se dizer que o Antigo Testamento se formou pela junção de tradições, mesmo possuindo uma unidade literária inerente. Essas tradições moldaram muito do que se tornou a redação final desta historiografia. Para os judeus, a evolução de sua história ao longo do tempo é inseparável de sua memória e ao ser escrita depois do que realmente se vivenciava, vinham como uma espécie de explicação, assim como de defesa de ideologias dos grupos responsáveis pelas determinadas tradições. 21 “(…) a palavra divina recebe a forma de palavra escrita com todos os condicionamentos que acompanham a origem e a transmissão da palavra humana fixada por escrito” (SCHREINER, 2004, p. 55) 35 Conforme o estudo atual das fontes que formaram o Antigo Testamento (Javista, Eloísta, Deuteronomista e Sacerdotal), a fonte deuteronomista, por exemplo, moldou muito do que se tem sobre os livros de Josué a II Reis. O que ali se apresenta - histórias de consequências do pecado do povo, a descrição do caráter moral e religioso dos reis, a idolatria como pecado, as consequências do esquecer-se de Deus, o exílio como resultado do pecado - entre tantos outros temas abordados, eram ideais deuteronomistas, ideais estes que foram reafirmados nas narrativas destes livros na posterior historiografia. Levando em consideração esta afirmação, é interessante perceber, segundo este estudo, que o final de II Reis é identificado como tendo esta influência deuteronomista em sua redação, com o objetivo de dar uma esperança em aberto, tendo sido criado para justificar a queda de Jerusalém por meio da história de pecado, pois o povo, no exílio e pós-exílio, estava em crise - na época, o fato de perder uma guerra e toda a segurança de sua nação significava falta de poder ou de interesse do deus patrono. Aqui pode-se identificar o processo formativo das Escrituras. Um exemplo de seu processo normativo para a memória encontra-se na avaliação moral dos reis com propósito educacional implícito também nos livros de Reis, ainda com influência deuteronomista. Os redatores desta fonte objetivavam apresentar uma lição ao público pós-exílico sobre a desobediência a Deus e as consequências da mesma. Trazia-se, assim, uma continuidade com os profetas, que exporiam os pecados do povo e os trariam como motivo para tudo o que estavam sofrendo, pregando, desta forma, a necessidade de lembrar-se de tudo o que, no passado, lhes fora ensinado. O passado bíblico possui, portanto, três níveis: os próprios eventos e seu contexto cultural maior no passado, os textos que descrevem e interpretam esses eventos e esse contexto, e a pesquisa histórica moderna. O destaque aqui é entender os dois primeiros níveis em sua formação para a memória da comunidade. A realidade total do passado distante não é recuperável. Os narradores posteriores colocavam suas próprias interpretações e usavam as histórias e memórias que tinham como respostas à desafios. O que da história se sabe, torna-se, assim, produto do tempo de seus autores. 36 Smith enxerga ainda que a “história nacional fundadora de Israel como refém das condições do presente do povo e de suas esperanças no futuro” (SMITH, 2006, p.35), assim como “a Bíblia mostra uma mistura do passado de Israel e das memórias coletivas de Israel sobre seu passado” (SMITH, 2006, p.38). As crises que Israel sofria em períodos posteriores aos acontecimentos narrados, geravam novas memórias de períodos iniciais de sua comunidade, o que, afinal, moldava sua identidade. O entendimento do povo como comunidade dava-se pelas memórias compartilhadas. Viam-se como o povo de Deus, e a história que viviam estava completamente subordinada aos propósitos de Deus para Israel e o mundo. A Bíblia proclama a realidade de Deus em vidas humanas e a implicação que flui a partir desta realidade. Se essa memória escrita foi ou não transformada por tradições posteriores, não é a questão principal. O foco é o entendimento de que a memória moldou todos os padrões da comunidade judaica, assim como sua fé e sua vivência. A Bíblia como historiografia tornou-se pedagógica, para ensiná-los como viver. Segundo Maurice Halbwachs22, a memória é expressa por meio de imagens partilhadas (rede moral, social, valores e ideais), confirmando similaridades entre passado e presente. Nessa visão, o que se lembra depende do contexto e do grupo. Aqui, novamente, deixa-se claro o papel dos grupos de redatores das fontes, citadas anteriormente, para a construção da memória como propagadora do passado. Para Israel, “recordar o passado era um ato destinado a influenciar o presente” (SMITH, 2006, p.200). Aqueles que não haviam vivido momentos históricos tão importantes, como o êxodo, por exemplo, saberiam dos mesmos através da memória transmitida, o que estabeleceria temor sobre aqueles e traria continuidade à aliança. Yerushalmi traz a realidade de como a memória, baseada na história, molda a visão da comunidade sobre a história futura. “No seu conjunto, o registro bíblico parecia capaz de iluminar todas as futuras contingências históricas” (YERUSHALMI, 1992, p.41). O passado bíblico já era conhecido e o futuro messiânico, assegurado; o meio tempo era obscuro, e nele, os judeus deveriam responder ao desafio bíblico de se tornarem um povo sagrado, enquanto esperavam a redenção após a destruição que sofreram. 22 HALBWACHS apud SMITH, 2006. p. 185-186. 37 As palavras de Deus nas Escrituras trazem a importância, como intimação, a não se esquecer, a lembrar-se, sendo tudo a serviço de Deus e do povo. A história do povo de Israel tornou-se sua literatura sagrada, exatamente pela crença na ação de Deus na história. “O judaísmo é inseparável de sua evolução através do tempo, de suas manifestações concretas em qualquer ponto da história” (YERUSHALMI, 1992, p.109). O povo judeu vivenciava a eternidade durante sua própria história e essa tradição ainda os faz verem a história com essas lentes, até mesmo na modernidade. Sempre houve entre os judeus um terror de esquecer-se e uma injunção a lembrar-se para transmitir a memória à próxima geração.23 Memória e comunidade: o papel dos profetas É exatamente para esta permanência da tradição que os profetas surgiam, cada um em sua época, mas com algo em comum: a importância central da palavra de Deus e a injunção clara de “lembrar-se" como imperativo religioso. O profeta surge quando a identidade de uma comunidade está abalada, para reforçar a memória e ser guardião da identidade24. Esta se corrompe quando não há importância sobre a memória, e é exatamente isto que o profeta quer corrigir. O profeta traz em si uma sabedoria, a qual define-se pelo anseio de entender o que Deus deseja de seu povo observando-se o hoje e o ontem. Aqui retoma-se a ideia do Deus que age e se revela na história, o qual se compromete com os homens e exige dos mesmos uma resposta. Tudo o que ocorria na história mundial tornava-se dependente de uma ordem criadora de Deus e seu povo deveria se comprometer com a sua obra na história. O castigo iminente que os profetas traziam em suas palavras significava uma resposta para o que o motivara, no passado e no presente. O 23 As Escrituras formaram esta visão nessa comunidade. “E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração; e as ensinarás a teus filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e deitando-te e levantando-te” (Deuteronômio 6,6-7). É fato que a Torá só sobrevive enquanto permanece como tradição do povo. 24 “Os profetas são homens conquistados pela palavra, servidores dela, dispostos a dar a vida por elas” (SICRE, 2002, p. 409). A palavra tem o poder de criar, interpretar e interpelar. A palavra que viesse de Deus permaneceria para sempre, teria o poder de condenar e salvar, anunciaria o que estava para acontecer na história. Tudo o que ocorria na história mundial tornava-se dependente de uma ordem criadora de Deus e seu povo deveria se comprometer com a sua obra na história. 38 presente tornar-se-ia um momento de decisão. Por isso a injunção de lembrar-se "Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim” (Isaías 46:9) - para que a comunidade que estava com sua identidade abalada fosse reforçada em sua memória, naquilo que Deus já havia feito e em como Ele estabelecera com seu povo uma aliança. Desta forma, colocar-se-ia a necessidade de uma decisão concreta, além de fundamentar um discurso futuro, justificando a ação de Deus. Analisando dessa forma, Sicre diz que “o passado é interpretado como um chamado contínuo a conseguir a conversão do povo […] a palavra de Deus interpela-nos através da história, obrigando-nos a recordar o nosso pecado e a mudar a situação” (SICRE, 2002, p.420). É nesse ponto que a memória e a comunidade se encontram em constante relação uma com a outra. Conclusão Como consideração final, pode-se afirmar que para a confissão de fé dos cristãos, o entendimento exposto aqui torna-se importante, pois só se compreende o Novo Testamento e toda a sua pregação ao se entender a comunidade apresentada no Antigo Testamento, a qual fundamentou crenças que se tornaram a base para a fé em Cristo. O Deus da criação é o mesmo Deus da redenção, o Deus pessoal do Antigo que encarnou no Novo Testamento. Este corrobora aquilo que aquele sempre repete e revela um Cristo que estava presente desde a criação do mundo, vinculado ao princípio, continuidade e alvo final desta. A memória da comunidade do Primeiro Testamento foi constantemente moldada e reforçada pelo entendimento da vontade de Deus como alvo a ser seguido, desde o início de toda a criação. A Lei revelada ao povo apresentava a vontade divina, e por meio de Cristo se define e efetiva a vontade criadora de Deus. Ou seja, o entendimento da vontade de Deus fez parte da fé tanto da comunidade judaica quanto da cristã. É interessante perceber, na confissão de fé cristã, a subsistência da ideia da ação de Deus na história e além dela, com uma visão no passado, presente e futuro. No Novo Testamento, “a história é a arena em que se trava o conflito entre a vontade de Deus e tudo aquilo que é hostil” (AULÉN, 2002, p.142). Sustenta-se a visão de que “na medida em que se considera a história totalmente desvinculada da 39 vontade de Deus, ela já não tem mais sentido” (AULÉN, 2002, p.157). Tudo isto conecta-se com o objetivo de restauração da comunhão entre Deus e o homem. Só há a convicção de que Cristo veio trazer reconciliação, perdão e santificação, quando se conhece a base daquilo que o Éden veio mostrar, assim como toda a trajetória do povo que foi escolhido para relacionar-se com Deus. O Primeiro Testamento mostra o amor, o pecado, o autodomínio do homem, entre outras questões, ensinando a obra de Deus e o processo de salvação. Para compreenderse a necessidade de depender do Deus Criador e o quanto o pecado afastou o homem desta realidade, deve-se conhecer a realidade do Antigo Testamento e a memória que construiu a identidade de sua comunidade. Portanto, a memória continua a formar a identidade de uma comunidade, estabelecendo suas crenças e reforçando-as. A pesquisa em tela propôs a metodologia de compreensão bíblica a partir da tríade “Comunidade, Memória e Identidade”. Intenta-se esmiuçar o texto de Isaías 26,8b – “O teu nome e a tua lembrança são o desejo do nosso coração” – num projeto futuro com o fim de expor, com base nas abordagens da exegese e da hermenêutica, a tese aqui defendida. Referências AULÉN, Gustaf. A Fé Cristã. Tradução: Dírson Glênio Vergara dos Santos. São Paulo: ASTE, 2002. SCHMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. Tradução: Vilmar Schneider. RIO Grande do Sul: Sinodal, 2004. SCHREINER, Josef. Palavra e mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. SICRE, José Luís. Profetismo em Israel: O profeta. Os profetas. A mensagem. Tradução: João Luís Baraúna. Petrópolis: Vozes, 2002. SMITH, Mark S. O memorial de Deus: História, memória e a experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006. YERUSHALMI, Yossef Haym. Zakhor: História Judaica e Memória Judaica. Tradução: Lina G. Ferreira. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 40 5. ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA: O CONFLITO SIMBÓLICO MOTIVADO PELA GUARDA DO “SÁBADO NATURAL” DE JOVENS ESTUDANTES Doutorando: Severino Breda da Silva – PUC Goiás (sbscontabil@hotmail.com) Resumo: O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa em andamento acerca do conflito simbólico motivado pela guarda do “sábado natural” ou “sábado bíblico” por adeptos da religião Adventista do Sétimo Dia. Para os Adventistas do Sétimo Dia, a guarda de sábado é um dogma, é um laço com Deus desde o seu início até o seu fim. De acordo com os adeptos da religião Adventista do Sétimo Dia, o sábado é o centro da adoração e culto a Deus e fundamentam tal entendimento nos livros de Êxodo 20:8-11, Levítico 23,32 e Deuteronômio 16,6, respectivamente. O objetivo do presente trabalho é realizar breves considerações e apresentar as características da questão da guarda do “sábado” por adeptos da religião Adventista do Sétimo Dia, pois tal prática apresenta-se como uma colisão de direitos e princípios fundamentais, tanto na esfera pública, quanto particular, principalmente com relação à prestação de concursos públicos e no meio educacional e com relação à prática de atividades seculares e laborais no período sabático, do pôr-do-sol de sexta-feira ao pôr-do-sol do sábado. Palavras-chave: Adventistas do Sétimo Dia; Sábado Bíblico; Colisão de Direitos; Conflito Simbólico. A IASD, abreviatura de Igreja Adventista do Sétimo Dia surgiu nos Estados Unidos da América, no século 19, por volta de 1840. É uma religião classificada pelos estudiosos das ciências da religião como pára - protestante, ou seja, de origem protestante, entretanto, devido algumas doutrinas distintivas do protestantismo tradicional clássico, é considerada como pára - protestante. Destacam-se as seguintes doutrinas distintivas dos Adventistas do Sétimo Dia, de acordo com WANDER (2009, p. 93-101): 1) O sono da alma; 2) O destino final dos ímpios (inferno); 3) O remanescente; 4) O juízo investigativo; 5) Os pecados da humanidade; 6) A lei moral e cerimonial; 7) A guarda do sábado; e o 8) O regime alimentar. 41 Alguns críticos classificam a Igreja Adventista do Sétimo Dia com o termo pejorativo “seita”, principalmente os pentecostais, neo-pentecostais e evangélicos em geral. Entretanto, apesar dessa classificação, a Igreja Adventista do Sétimo Dia é classificada como um “Novo Movimento Religioso” – NMR, assim como outros grupos, com posicionamentos denominados de “fundamentalistas”, como as Testemunhas de Jeová, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons), a Ciência Cristã, o Exército da Salvação, entre outros. GUERRIERO (2006, p. 118), A Igreja Adventista do Sétimo Dia é um grupo religioso considerado como cristão, com ritos e cerimônias iguais às igrejas protestantes tradicionais históricas, como o batismo por imersão, a prática da santa ceia e do lava-pés. Adotam as Escrituras Sagradas como livro sagrado e regra de fé e prática e ainda defendem a justificação pela graça e fé. Apesar destas doutrinas ortodoxas do cristianismo tradicional, os Adventistas do Sétimo Dia consideram os escritos da Sra. Ellen Gould White (1827-1915), como inspirados, o “Espírito de Profecia” ou “Dom de Profecia”. Ellen G. White possui mais de cinqüenta livros de sua autoria, possuem ampla circulação e ganharam considerável autoridade dentro do movimento adventista, o qual a consideram como profetisa da “Igreja Remanescente” para os últimos dias. GAARDER (2000, p. 209). Os Adventistas do Sétimo Dia crêem na salvação pela graça e pela fé, um princípio protestante denominado de “sola gratia” “sola fide”, todavia, enfatizam a guarda dos Dez Mandamentos por seus adeptos, inclusive a guarda do quarto mandamento, o “sábado bíblico” ou o “sábado natural”, como válido para os dias atuais. O pregador batista norte-americano William Miller (1782-1849) ou Guilherme Miller iniciou o movimento espiritual renovador nos Estados Unidos da América, por volta de 1830 a 1840, denominado “movimento milerita”, devido ao seu sobrenome e as pessoas que aderiram às posições de Miller passaram a serem chamadas de “mileritas” SEAMAN (2011, p. 12). Miller pregava o iminente retorno de Jesus Cristo a terra em 1844. Para chegar a tal conclusão, se utilizou de uma Bíblia e de uma “Concordância de Cruden”, interpretando as profecias dos livros de Daniel e Apocalipse, 42 principalmente a “profecia das 2.300 tardes e manhãs” em Daniel 8:14, que diz: “Até duas mil e trezentas tardes e manhãs, e o santuário será purificado...”. Desta forma, Miller aplicou o princípio bíblico-profético de um dia equivalente a um ano (ver, por exemplo Ezequiel 4:6,7). De acordo com esta interpretação, os dois mil e trezentos dias, referidos em Daniel 8:14, significavam dois mil e trezentos anos e, diante disso Miller marcou a data de 1844 para a segunda vinda, ou o advento de Jesus Cristo à terra, tendo como data inicial 457 a. C. e somou os dois mil e trezentos anos a esta data, ele concluiu finalmente que o dia 22 de outubro de 1844 seria a data da purificação do santuário terrestre. SEAMAN (2011, pg. 12 e 13). No entanto, na data marcada, nada ocorreu e Miller admitiu ter errado nos cálculos, pois havia utilizado um calendário hebraico ao invés do romano. Desta forma, remarcou o acontecimento para o dia 22 de outubro de 1844, porém, nada aconteceu novamente. Diante disso, houve o chamado “Grande Desapontamento”. WANDER (2009, p. 94). Apesar deste fato ocorrido, outros líderes componentes do movimento “milerita” reinterpretaram as profecias de Miller e afirmaram que o mesmo havia acertado a data, mas errado o lugar de sua profecia, ou seja, a purificação do santuário seria no céu e não na terra conforme a interpretação de Miller. WANDER (2009, p. 94). A partir destes acontecimentos, outros líderes, tais como Hiram Edson e Joseph Bates, que iniciou a pregação sobre o sábado, o qual tomou conhecimento com uma batista do sétimo dia, chamada Raquel Oaks e, juntamente com a Sra. Ellen G. White e seu esposo James White, em 1860, fundaram o que atualmente se denomina Igreja Adventista do Sétimo Dia. WANDER (2009, p. 94). O nome “adventista” é uma referência ao advento de Jesus Cristo, daí resulta o termo “adventista”, ou seja, aquele que aguarda o iminente retorno de Cristo à Terra. GAARDER (2000, p. 205). O movimento adventista cresceu e se espalhou pelos Estados Unidos da América e toda a Europa e, atualmente, de acordo com as estatísticas oficiais do próprio movimento, totalizam aproximadamente 19 milhões de membros em todo o mundo. 43 Os Adventistas do Sétimo Dia possuem um forte senso de missão e crêem no iminente retorno de Cristo e, diante disso, possuem urgência de se pregar o “Evangelho Eterno” a toda criatura na face da Terra e a guarda dos mandamentos de Deus, com ênfase no quarto mandamento, o “sábado bíblico” (Êxodo 20:8-11). A Igreja Adventista do Sétimo Dia possui uma estrutura organizacional bem alicerçada, com vários seminários teológicos, faculdades e universidades em diversos países, para a formação de pastores e líderes de nível superior, com o objetivo de servirem as igrejas locais e aos departamentos da igreja. Várias igrejas locais formam um distrito pastoral; vários distritos pastorais formam uma missão; várias missões formam uma associação e várias associações uma divisão; várias divisões formam a divisão geral, com sede nos Estados Unidos da América. A cada 5 anos realizam conferências gerais, com a finalidade de tratar de assuntos internos da igreja, mudanças doutrinárias e mudanças a nível mundial, realizam eleições para os líderes departamentais e votações para os líderes mundiais. SEAMAN (2011, pg. 33-34). Os Adventistas, o nome completo é Igreja Adventista do Sétimo Dia, guardam o sábado bíblico, de acordo com (Êxodo 20: 8-12), em vez do domingo, o primeiro dia da semana, que é guardado pela maioria dos cristãos, como dia sagrado. GAARDER (2000, p. 209). Como justificativa para a guarda do sábado, citam algumas passagens bíblicas do Antigo Testamento, assim como o costume de Jesus Cristo, seus discípulos e dos primeiros cristãos, que guardavam o sábado. GAARDER (2000, p. 209). Outra característica desse movimento religioso é a questão do regime alimentar. Os Adventistas do Sétimo Dia condenam o uso do álcool, do tabaco, o café e outras bebidas que contém substâncias prejudiciais à saúde. Adotam ainda certas regras alimentares do Antigo Testamento, principalmente embasados em Levíticos, capítulo 11, que trata dos animais puros e impuros. Muitos adeptos desta religião adotam o vegetarianismo, porém, isto não é uma regra rígida, pois nem todos são vegetarianos. Baseiam-se no Livro de Gênesis, quando Deus formou Adão e Eva e os colocou no Jardim do Éden e deu instruções sobre quais tipos idéias de alimentos deveriam ser ingeridos. GAARDER (2000, p. 210). 44 Além de toda a estrutura organizacional bem elaborada estrategicamente, os Adventistas se utilizam muito da mídia impressa, com diversas editoras espalhadas pelo mundo afora, bem como se utilizam da internet e ainda possuem um canal de TV por assinatura, a Rede Novo Tempo, com programação 24 horas ininterruptamente, como forma de propagação de sua ideologia religiosa. A Guarda do Sábado para os Adventistas do Sétimo Dia e o conflito simbólico A doutrina da guarda do “sábado bíblico” ou “sábado natural” é uma marca distintiva do Adventismo do Sétimo Dia e gera um conflito simbólico no meio social, ou seja, apresenta-se como uma colisão de direitos e princípios fundamentais, tanto na esfera pública quando particular principalmente com relação à prestação de concursos públicos, no âmbito educacional e com relação à prática de atividades seculares e laborais no período considerado como sabático, do pôr-do-sol de sextafeira ao pôr-do-sol do sábado. Para os Adventistas do Sétimo Dia, a guarda do sábado é um sinal de lealdade para com Deus e um dogma irrenunciável pelos adeptos desta religião. A Sra. Ellen White, considerada pelos Adventistas como profetisa da Igreja teve uma “visão”, na qual afirma que viu os elementos da Arca da Aliança e entre estes elementos estavam as Tábuas dos Dez Mandamentos com o quarto mandamento destacado por uma auréola de luz. Após esta “visão” fez as seguintes afirmações: “A guarda do sábado é sinal de lealdade para Aquele que “fez os céus, a Terra, o mar e tudo que neles há”. A mensagem que ordena aos homens adorar a Deus e guardar Seus mandamentos apelará especialmente a que observemos o quarto mandamento”. WHITE (2003, p. 530). Além de considerarem o sábado como sinal de lealdade para com Deus, os Adventistas afirmam que aqueles que guardam o domingo estão aceitando a marca da besta e, portanto, debaixo do julgo papal, conforme se percebe nesta afirmação da Sra. White: “Os romanistas declaram que a observância do domingo pelos protestantes é uma homenagem que prestam, a contragosto, à autoridade da Igreja (Católica). A imposição da guarda do domingo por parte do poder secular formará uma imagem à besta” WHITE (2003, p. 531). Diante o exposto acima, se pode afirmar que a Igreja Adventista do Sétimo Dia, apesar de possuir a maioria de suas doutrinas idênticas às das igrejas 45 evangélicas e dos protestantes em geral, possui algumas doutrinas distintivas, ou seja, doutrinas estas que não são encontradas naqueles segmentos religiosos e somente encontradas e defendidas pelo Adventismo do Sétimo Dia. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante o direito à liberdade religiosa e todos deverão ser tratados com isonomia e possuem o direito de acesso à educação superior e o livre acesso a cargos públicos. Apesar de estar expresso em nossa Constituição Federal o direito à educação dos Adventistas do Sétimo é restringido por um parecer do Conselho Nacional n. 15/99, o qual concluiu que não há amparo legal para o abono de faltas para os estudantes Adventistas do Sétimo Dia que se ausentam das aulas por motivo de crença religiosa. Diane deste parecer, os estudantes Adventistas do Sétimo Dia possuem o dever de comparecer às aulas todos os dias, sob pena de serem reprovados por falta. Ainda com relação aos concursos públicos ou vestibulares dependendo das normas do edital, caso não haja uma prestação alternativa, os Adventistas do Sétimo Dia ficam ainda privados de acesso a cargos públicos e ao ensino superior. É interessante ressaltar que existem diversas leis estaduais que garantem o direito à liberdade religiosa dos Adventistas do Sétimo Dia e o próprio ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio abre uma porta como alternativa para que os Adventistas participem deste exame, tendo direito de permanecerem o dia inteiro do sábado incomunicáveis numa sala e, após o pôr-do-sol, prestarem as provas do exame. É sabido que o direito à liberdade religiosa não é um direito absoluto, mesmo sendo considerado como um direito humano fundamental encontra obstáculos tanto na ordem pública quanto na ordem privada. Com resolver este conflito simbólico? Os Adventistas do Sétimo Dia e outros segmentos religiosos, tais como os Judeus, os Batistas do Sétimo Dia, ficarão impedidos de participarem de um concurso público ou vestibular e ficarão sem direito de acesso à educação superior por motivos de crença religiosa? O questionamento acima deve ser analisado e resolvido dentro dos princípios da isonomia, razoabilidade e dentro da legalidade, pois o direito à liberdade religiosa é um direito humano fundamental elencado na Constituição Federal de 1988 e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. 46 Considerações finais Diante todo o exposto, no presente artigo foi analisada a colisão de direitos fundamentais e o conflito simbólico motivado pela guarda do “sábado natural” dos adeptos da religião Adventista do Sétimo Dia. A República Federativa do Brasil possui como objetivo principal a busca por uma sociedade justa, livre, solidária, a erradicação da pobreza, o respeito à dignidade da pessoa humana e a promoção do bem-estar de todos, sem nenhum tipo de discriminação ou preconceito. O direito à liberdade religiosa é considerado como um direito humano fundamental. Entretanto, apesar disso, inexiste uma lei federal que dê garantia e nem provê os meios necessários para que os adeptos da religião Adventista do Sétimo Dia e outros segmentos religiosos que têm como princípio a guarda do sábado tenham os seus direitos de liberdade de crença resguardados. Diante disso não resta alternativa aos Adventistas do Sétimo Dia buscar socorro no Poder Judiciário, procurando resolver a questão deste conflito simbólico e resguardarem os seus direitos como cidadãos. Muitos casos chegam aos tribunais e a maioria das petições não são aceitas sob o argumento de que o Estado é laico e atender a tais pedidos seria uma ofensa e um desrespeito ao princípio da isonomia, ou seja, atender estas pretensões seria favorecer uma minoria em detrimento da maioria. Diante dos posicionamentos, tanto dos Tribunais do Poder Judiciário, quanto do Ministério da Educação, a prática da guarda do sábado pelas religiões que a defendem seria impossível e incompatível com o direito à liberdade religiosa expressa na Constituição Federal. Conforme já ressaltado, a questão da guarda do sábado bíblico ou sábado natural praticada pelos Adventistas do Sétimo Dia deve ser analisada com mais justiça e ponderação e solucionado dentro dos princípios da igualdade, razoabilidade e da legalidade, pois o direito à liberdade religiosa é um direito humano fundamental elencado na Constituição Federal de 1988 e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e aos desrespeitar tal direito, estaria incorrendo em discriminação e preconceito religioso. 47 REFERÊNCIAS GAARDER, Jostein/HELLERN, Victor/NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. GUERRIERO, Silas. Novos movimentos religiosos: o quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2006. SEAMAN, John. Quem são os Adventistas do Sétimo Dia: um breve exame de sua história, crenças, povo, igreja e missão. Tradução de José Barbosa da Silva. – 5. Ed. – Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011. WANDER, Robson. Religiões, seitas e heresias: à luz da Palavra de Deus, Pindamonhangaba: IBAD, 2009. WHITE, Ellen G. O Grande Conflito: acontecimentos que mudarão o seu futuro. Tatuí: São Paulo, 1ª Edição, 2003. ___________________________________________________________________ GT 03 PAULO APÓSTOLO E AS TENSÕES SOCIAIS, DE GÊNERO E RELIGIOSAS E A ESCRAVIDÃO ANÁLOGA NO BRASIL DE HOJE Coordenador: Prof. Dr. Joel Antônio Ferreira/PUC Goiás Ementa: Este GT terá dois objetivos: a) Olhar o Paulo Apóstolo e o seu envolvimento transformador em vários segmentos da sociedade da época. b) Estudar a Escravidão Análoga no Brasil do Séc. XXI. Para quem diz que a escravidão foi um fenômeno finalizado no Séc. XIX, as evidências sociais dizem, exatamente, o contrário. Este GT prevê a presença daqueles que pesquisam os cristianismos originários, mais especificamente, Paulo Apóstolo e a Escola Paulina, a partir da Leitura Sociológica pelo Modelo Conflitual (Contradição); também, os que pesquisam as contradições sociais do Brasil de hoje no prisma da "escravatura análoga". Palavras-Chave: Escravidão, Escola Paulina, Leitura Conflitual Comunicações: 1. PAULO DEPOIS DE PAULO: A ESCOLA PAULINA Nome: Benivaldo Nunes Lima Titulação: Mestrando Instituição: ITEB Nome: Uelinton Dias Titulação: Mestrando Instituição: FÉ 48 Nome: Hamilton Castro da Silva Titulação: Mestrando Instituição: FÉ Resumo: A pesquisa histórico-crítica desde o século XIX tem trabalhado com a hipótese de uma escola paulina, verificando o processo de recepção e adaptação da teologia de são Paulo, diante das necessidades pastorais diferentes e as novas exigências nos cristianismos originários, gerando os escritos conhecidos como deuteropaulinos. Essa comunicação pretende abordar o problema da definição de uma escola paulina, procurando um modelo de comparação com algumas escolas de filosofia da Antiguidade, com escolas do período do Judaísmo do Segundo Templo e as escolas do ambiente rabínico. Na investigação de alguns indícios da escola paulina, verificamos que na educação de são Paulo, pode ser observado algumas tradições importantes: a farisaica, a helenística e a cristã. Na recepção dessas tradições durante o trabalho itinerante paulino, constata-se a presença de colaboradoras e colaboradores de Paulo, que seriam missionários itinerantes que colaboravam com ele durante um período de tempo. Essas colaboradoras e colaboradores seriam líderes nas respectivas comunidades fundadas pelo apóstolo Paulo. Nesse quadro funcional de participantes do projeto missionário, percebe-se que os colaboradores estavam diretamente vinculados com algumas comunidades cristãs, onde eles assumiam a função de corredatores das cartas paulinas. Essa comunicação tem como pressuposto, que a escola paulina, ou até mesmo, as escolas paulinas, tem suas origens nesse círculo de colaboradores, que seriam os portadores e mantenedores da tradição da herança da teologia paulina. Eles procuravam manter a tradição oriunda de são Paulo, produzindo literatura que atendessem as novas demandas e as novas contextualizações culturais do cristianismo, produzindo a literatura deuteropaulina. A pesquisa bíblica desde o século XIX, através do método histórico-crítico, verificou que na história da recepção do pensamento paulino, pode se obervar uma escola paulina. A pesquisa trabalha com o pressuposto que das treze cartas atribuídas a Paulo, sete são autênticas e seis são deuteropaulinas. O motivo da elaboração desta literatura pseudepigráfica foi à necessidade de responder á novas atualizações, objetivando uma busca de adaptação da religião cristã, procurando torna-la aceitável para os padrões culturais do ambiente cultural romano e a legitimação de doutrinas eclesiásticas recorrendo ao nome de Paulo para dar autoridade a esses escritos. 49 A escola paulina: avaliação de uma hipótese Definição do termo escola paulina Os escritos conhecidos como deuteropaulinos são o resultado de um processo de recepção intensa e variada da pessoa de Paulo e sua teologia (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 439). A pesquisa tem trabalhado que desde o século XIX, encontra-se a inserção do apóstolo em tradições de escola, objetivado a sustentação e atualização da tradição paulina (SCHNELLE, 2010, p. 175), A escola paulina designa um círculo de portadores de tradição que, em parte, provavelmente influenciada por colaboradores de Paulo, desenvolveu uma atividade de manutenção da herança paulina, fazendo referência à figura de Paulo, em particular ao seu apostolado: coleção e redação de seus escritos, desenvolvendo ao mesmo tempo sua própria atividade literária (produção de literatura deuteropaulina). Por falta de dados, esse grupo de portadores de tradição, não pode ser sociologicamente identificado com suficiente precisão (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 440). Um paradigma: Escolas Judaicas e Filosóficas da Antiguidade As pesquisas sobre escolas de tradição veterotestamentária-judaica possuem resultados modestos. No rabínismo pode ser identificada uma escola com bons resultados (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 439). Paulo, de tradição oriunda dos fariseus, passou por uma tradição de escola (SCHNELLE, 2010, p.175). Suas cartas nos indicam que ele, como um judeu do ambiente da diáspora, provavelmente não desconhecia as escolas filosóficas da antiguidade, tendo acesso e condições de cooptar estruturas literárias do helenismo (SCHNELLE, 2010, p. 175), Semelhanças entre antigas escolas filosóficas e a escola de Paulo são evidentes: personagem fundador, discussão e interpretação de escritos, comensalidades, ideal de amizade, construção de identidade em delimitação ao mundo exterior, atividade de ensino em vários lugares, viagens acompanhadas por discípulos, fundação de círculos de simpatizantes (SCHNELLE, 2010, p. 175-176). Dettwiller (2011, p. 442) entende que o ambiente das escolas filosóficas do mundo greco-romano seria o terreno mais promissor para a pesquisa acerca da escola paulina. “Entre as escolas filosóficas mais importantes – a escola pitagórica, a Academia de Platão, o Λύκειον de Aristóteles, o “Jardim de Epicuro” e a escola da 50 Stoa –, as duas últimas parecem ter tido a maior popularidade na época de Paulo” (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 442). A Educação e a Formação Teológica de Paulo A língua materna de Paulo foi o grego, sendo criado em Tarso, seu trabalho missionário se estendeu em sua maior parte na Ásia Menor e na Grécia, isso indica uma cultura helenística sobre o apóstolo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p, 439; SCHNELLE, 2010, p. 85). Paulo recebeu uma educação no farisaísmo, como atestam indiretamente Filipenses 3.5-6 e Gálatas 1.14 (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 449). A informação lucana em Atos 22.3; 26.4-5 é bastante questionável. De acordo com Bultmann (2001, p. 81), Antes de sua conversão, Paulo talvez jamais tenha estado em Jerusalém, e é uma lenda aquilo que At 7.58-8.3 relata a respeito de sua participação no apedrejamento de Estevão, assim como a informação de At 22.3 de que ele teria sido discípulo de Gamaliel. Todavia, é bastante provável, que Paulo não poderia ter adquirido uma formação farisaica fora de Jerusalém. As notícias sobre escolas superiores judaicas fora de Jerusalém são bastante escassas (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 439; SCHNELLE, 2010, p. 446). Além, do mais, Jerusalém era o centro da formação dos fariseus (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 446; VERMES, 2006, p. 271). Após os acontecimentos de Damasco, entre os anos 30 e 48, Paulo foi se familiarizando com as tradições da fé cristã. A comunidade Antioqueana parece ter tido influência sobre sua identidade teológica. Algumas tradições pré-paulinas encontradas em certas cartas autênticas, demonstram que Paulo absolveu tradições eclesiásticas nos cristianismos originários (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 446). Estruturas da Escola Paulina Paulo como “pai” fundador das comunidades cristãs, “Não vos escrevo estas coisas para vos envergonhar; pelo contrário, para vos admoestar como a filhos meus amados. Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores [παιδαγωγοὺς] em Cristo, não teríeis, contudo, 51 muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus”. (I Co 4.1415). Paulo se serve da imagem de pai para designar sua relação com seus colaboradores (I Co 4.17; Fl 2.22; II Co 12.14; I Co 9; 3.1-3; 4.21; 11.2). A construção de uma relação afetiva com suas comunidades desenvolve uma relação de afetividade entre Paulo e suas comunidades, durante toda a vida do apóstolo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 447-448). De acordo com Schnelle (2010, p. 177), Antes de sua missão independente, Paulo foi marcado em intensidade diversificada por tradições de escolas, de modo que a fundação de uma escola própria deve ser considerada apenas lógica. A argumentação em favor da existência de tal escola paulina são as observações que seguem [...] Paulo como receptor de revelação (I Co 9.1; 15.8; Gl 1.1,12), modelo normativo (I Ts 1.6s; I Co 4.16; 7.7s; 11.1; II Co 4.2; 6.11-13; Gl 4.12; Fp 4.9) e mestre inspirado (I Co 2.12016; 4.17; 7.40; 14.6,19,37; Gl 1.8; Fp 3.15). O apóstolo como modelo de vida (imitatio pauli), a correspondência coríntia, mas igualmente em Filipenses (1.12-14; 3.17) e Gálatas (4.12), a imitatio pauli é uma ideia importante. As comunidades destinatárias são chamadas a imitar Paulo como modelo de vida (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 448). O que constitui o objeto de sua imitação não é sua personalidade, mas precisamente sua conformidade com a existência do Cristo crucificado – existência que se caracteriza pela recepção do sofrimento e, finalmente, pelo amor, ou seja, a imitação de Paulo adquire toda a sua profundidade e a sua força de persuasão na perspectiva da cruz (I Co 11.1), (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 449). Paulo, seus colaboradores e colaboradoras São Paulo não era um pregador nômade, as epístolas protopaulinas mencionam cerca de quarenta personagens que devem ser consideradas como colaboradoras e colaboradores. Pertenciam ao grupo mais próximo de Paulo, primeiramente Barnabé (At 15.36-40; Gl 2.13), Silvano (I Ts 1.1), Timóteo (I Ts 1.1; II Co 1.1; Fl 1.1; Fm 1); Tito, Sóstenes (I Co 1.1) e outros (SCHNELLE, 2010, p. 177). Os colaboradores e as colaboradoras de Paulo eram, em sua maioria, delegados das comunidades fundadas pelo apóstolo. Nessa função, participavam do projeto missionário de Paulo, mantendo o vínculo com as comunidades [...] e assumindo sua tarefa, pontual de corredatores das cartas de Paulo [...] Em outras palavras: esse grupo de colaboradoras e colaboradores constitui provavelmente o grupo central da “escola paulina” (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 450-451). 52 A existência da literatura deuteropaulina; pseudepigrafia. Partimos do pressuposto exegético que seis escritos que fazem parte do corpus paulinum devem ser compreendidos como deuteropaulinos, obras que possuem a pretensão de pertencerem a Paulo, mas que foram redigidas por pessoas desconhecidas no período posterior a morte do apóstolo. Todavia, este grupo redacional estava bem familiarizado com à herança paulina (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 447-448). As cartas deuteropaulinas (Cl, Ef, II Ts, Cartas Pastorais) indicam a existência de uma escola paulina que deu continuidade ao legado do apóstolo, após sua morte (SCHNELLE, 2010, p. 179). Helmut Koester (2012, p. 317), acerca das pastorais, nos informa que “essas três cartas, que formam uma unidade em sua linguagem, conceitos teológicos e intenção, e que foram redigidas pelo mesmo autor, diferem acentuadamente de todas as outras cartas do corpus paulino”. Bornkamm (2009, p. 366) entende que na Igreja antiga circularam muitas epístolas inautênticas produzidas com o nome de Paulo. Quais eram as razões da emergência da literatura deuteropaulina? Ou seja, por que os discípulos não escreveram utilizando seu próprio nome, mas recorreram ao nome do apóstolo Paulo objetivando maior valoração e legitimação dos seus escritos? A resposta precisa ser abordada a partir do caráter transitório da pseudepigrafia do Novo Testamento, tendo em vista que estes escritos foram produzidos entre 70 e 110. Partindo deste contexto, a melhor resposta seria que literatura deuteropaulina surgiu como necessidade de resposta no ambiente das discussões eclesiológicas (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 452). Não existia outra autoridade eclesial da envergadura de Paulo nesse período. Somente falando em nome de Paulo é que se tinha a chance de ser entendido nas comunidades paulinas. Fenômeno paradoxo à primeira vista apenas: a morte de Paulo suscitou ao mesmo tempo sua ressurreição literária pela emergência da literatura deuteropaulina (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). Para as comunidades paulinas, a morte do apóstolo, que representava uma figura de estabilidade dessas respectivas igrejas, provocou insegurança (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). O processo de desenvolvimento de liderança eclesiástica estava num estágio recente e rudimentar. A manutenção e 53 atualização da herança paulina tornava-se um problema crítico e emergente. A Igreja de II Pedro se encontrava com o problema da interpretação das cartas de Paulo, em relação aos demais escritos (THEVISSEN, KAHMANN, DEHANDSCHUTTER, 1999, p. 173). Na ausência do apóstolo, os portadores da tradição paulina, aparentemente não tinham outra opção, senão a utilização da autoridade paulina para legitimar seus escritos, recorrendo a pseudepígrafia (CULLMANN, 2003, p. 65; DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). Leitura e circulação das cartas Um indício em prol da hipótese da escola paulina está vinculado à constituição do corpus paulinum, mediante o processo de cópias dos manuscritos (PAROSCHI, 2012, p. 85-86; THEVISSEN, KAHMANN, DEHANDSCHUTTER, 1999, p. 173). Desde o início, as cartas de Paulo foram lidas em voz alta nas comunidades (I Ts 5.27; Rm 16.16; Gl 1.2; Cl 4.16). Colossenses, a carta deuteropaulina mais antiga, informa à troca das cartas, “Quando tiverdes lido a minha carta, empenhaivos para que a leiam também na Igreja de Laodiceia. Quanto a vós, lede a que vier de Laodiceia” (Cl 4.16), (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). II Tessalonicenses pressupõe o conhecimento de falsas cartas paulinas (II Ts 2.2; 3.17). Durante a vida de Paulo, suas cartas já apontavam autoridade (II Co 10.10), indicando o motivo para que fossem reunidas e colecionadas posteriormente. Essas observações apontam para a autoridade atribuída a Paulo nas igrejas paulinas, durante o período de vida do apóstolo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 454). Modificação redacional de cartas existentes Outro indício em favor da escola paulina é o fato de que, logo após a morte de Paulo, suas cartas passaram por ligeiras modificações. Textos ou fragmentos textuais que foram inseridos ulteriormente nas cartas de Paulo (Rm 16.25-27; 14.33b-36; II Co 6.14-7.1). II Coríntios parece ser uma composição ulterior de vários fragmentos de cartas do Paulo histórico (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 54 334-341). Alguém teve que reunir os fragmentos da carta ou a própria carta para apresentar uma redação coerente (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 454) Coleção e reunião das cartas: a construção do corpus paulinum Parece que o processo de coleção e de classificação das cartas paulinas estava bem avançado no fim do primeiro século ou início do segundo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 455). Desde o século II, as cartas de Paulo circularam em forma de coleção, e não separadamente. Foi como coleção que os cristãos do século II em diante as conheceram (BRUCE, 2011, p. 118). A primeira evidência para a existência de uma coleção é apresentada por Marcião no século II d.C (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 455) A edição de Marcião das cartas de Paulo (seu Apóstolo), publicada por volta de 144, baseou-se mais provavelmente um códice paulino que lhe era conhecido, que (semelhante à própria edição de Marcião) não incluía nem Hebreus, nem as epístolas pastorais. A inferência mais natural dessa evidência como a temos, sugere que a edição de original da coleção das obras paulinas continha somente dez cartas (BRUCE, 2011, p. 119). É possível que as pastorais foram incluídas na coleção das cartas de Paulo, como resposta da igreja católica à atitude do Marcião de apresentar um “cânon” as comunidades cristãs (BRUCE, 2011, p. 120). Parece que Marcião conhecia as cartas pastorais (KOESTER, 2012, p. 317), Dúvidas sobre a autenticidade das Epístolas Pastorais foram levantadas já no início do século XIX; estudos recentes acumularam um número tão impressionante de argumentos conclusivos contra a contra a autenticidade dessas cartas, que só é possível manter a autoria paulina com base em hipóteses intrincadas e numa torrente de improbabilidades históricas (KOESTER, 2012, p. 317). De acordo com Crossan (CHEVITARESE; CORNELLI, 2009, p. 91), Tais julgamentos são baseados em diferenças de estilo, tom, vocabulário e conteúdo em relação às sete epístolas consideradas autênticas. As cartas pós-paulinas foram escritas em nome de Paulo por uma tradição posterior e mostram-se, na realidade, antipaulinas em certos assuntos, como a escravidão e o patriarcado, assuntos em relação aos quais o radicalismo do Reino de Deus nega, muito óbvia e praticamente, a normalidade do Reino de Roma. CONCLUSÃO O elo principal de ligação entre literatura protopaulina com a literatura deuteropaulina consiste no cuidado de preservar a herança de seu fundador. 55 Existem elementos comuns nos estágios das redações. Todavia, pode ser verificada certa diversidade nesses processos redacionais. A hipótese da escola paulina torna plausível a preservação, coleção e redação da herança da tradição paulina, objetivando a organização da Igreja de acordo com os padrões de direitos e virtudes sociais dos cidadãos. As cartas pastorais com o objetivo de organizar a igreja em nome de Paulo consolidou o cristianismo como religião organizada e palatável a cultura da época, entre os anos 120-160. Valorando e legitimando comportamentos, apresentando um Paulo depois de Paulo, isto é, a escola paulina. REFERÊNCIAS BORNKAM, Günter. Paulo: vida e obra. São Paulo: Academia Cristã, 2009. BRUCE, F.F. O Cânon das Escrituras: como os livros da Bíblia vieram a ser reconhecidos como Escrituras Sagradas. São Paulo: Hagnos, 2011. BRUCE, F.F. Paulo, o apóstolo da graça: sua vida, cartas e teologia. São Paulo: Shedd, 2003. BULTMANN, Rudolf. Ensaios Selecionados: crer e compreender. São Leopoldo: Sinodal, 2001. CHEVITARESE. André; CORNELLI. Gabriele (Orgs). A descoberta do Jesus histórico. São Paulo: 2.ed. Paulinas, 2010. CULLMANN, Oscar. A Formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2001. DEHANDSCHUTTER, B. KAHMANN, J.J.A; THEVISSEN, G. As Cartas de Pedro, João e Judas. São Paulo: Loyola, 1999. DETTWILLER, Andreas; LOYOLA, Jeas; KAESTLI, Daniel. Paulo: uma Teologia em construção. São Paulo: Loyola, 2011. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento 2: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2012. PAROSCHI, Wilson. Origem e Transmissão do Texto do Novo Testamento. São Paulo: SBB, 2012. SCHNELLE, Udo. Paulo: vida e pensamento. São Paulo: Academia Cristã, Paulus, 2010. 56 STEGEMANN, Ekkehard; STEGEMANN, Wolfgang. História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Sinodal, Paulus, 2004. VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2006. 2. OS REFLEXOS DAS RELAÇÕES DE PODER DE ROMA EM CORINTO Nome: Israel Serique dos Santos Titulação: Doutorando em Ciências da Religião (PUC-GO). Instituição: Faculdade Nossa Senhora Aparecida-FANAP Resumo: Vista como próspera e repleta de oportunidades para o comércio, Corinto se destacou, no primeiro século, como sendo uma cidade cosmopolita e que tinha a escravidão como fundamento de sua cadeia produtiva e estrutura social. Para lá afluíam pessoas das mais variadas etnias, culturas e religiões. Neste contexto, o apóstolo Paulo apresenta, em sua carta aos cristãos desta cidade, uma via alternativa para as suas relações econômicas e sociais, na qual a fé em Cristo, como sabedoria divina, demarcava uma nova proposta de estruturação para uma sociedade assimétrica e cheia de injustiças sociais. Palavras-chave: Corinto; Paulo; Modelo Conflitual; Escravidão. No período do primeiro século, tempo este no qual a igreja cristã primitiva desenvolveu-se por todo vasto Império Romano, Corinto despontava como sendo uma das mais importantes cidades cosmopolitas deste império. Desenvolvida especialmente por sua posição geográfica estratégica e por meio de seus dois portos comerciais os quais garantiam uma relação direta entre o oriente e o ocidente, Corinto foi um cadinho para o qual muitas nações afluíram e uma via que possibilitou um maior engendramento e estabilidade da estrutura de poder de Roma. Vista como próspera e repleta de oportunidades para o comércio, Corinto se destacou, no primeiro século, como sendo uma cidade cosmopolita e que tinha a escravidão como fundamento de sua cadeia produtiva e estrutura social. Para lá afluíam pessoas das mais variadas etnias, culturas e religiões. Neste contexto, o apóstolo Paulo apresenta, em sua carta aos cristãos desta cidade, uma via alternativa para as suas relações econômicas e sociais, na qual a fé em Cristo, como sabedoria divina, demarcava uma nova proposta de estruturação para uma sociedade assimétrica e cheia de injustiças sociais. 57 A origem do Império Romano e sua estratégia de poder Uma breve recapitulação da história da humanidade traz à lume os vários povos antigos que obtiveram êxito em suas campanhas expansionistas. Sírios, egípcios, assírios, babilônicos, medo-persas, gregos e Romanos, são exemplos de como o antigo oriente passou por várias mudanças políticas no decurso das gerações. Entre estes povos, os romanos se notabilizaram na história universal pelo estabelecimento e desenvolvimento de um império que ainda hoje deixou marcas indeléveis na história das nações. Sua estrutura governamental, princípios legais, modo de se relacionar com os povos conquistados renderam ao Império Romano tudo aquilo que necessitava para se manter no poder mundial e se notabilizar na história universal. As origens do Império Romano remontam à complexa relação entre os Italiotas, etruscos e gregos, os quais habitavam na península itálica e trabalhavam nas atividades pastoris e agrícolas. A expansão territorial concedeu à Roma o suporte necessário para se destacar como novo poder de dominação do mundo antigo. A figura emblemática do general Aníbal e sua forte liderança possibilitou aos romanos conquistarem os cartaginenses e obterem domínio inconteste no Mar Mediterrâneo e regiões circunvizinhas. Tal fato histórico possibilitou ao Império Romano uma expansão territorial significativa através dos territórios da Grécia, Egito, Síria, Palestina etc. Contudo, na medida em que Roma alcançava novos territórios e impunha sobre os povos antigos sua presença física, surgia, concomitantemente, a necessidade premente de uma estrutura organizacional que viabilizasse seu estabelecimento e manutenção nas novas regiões conquistas. Esta estrutura organizacional foi desenvolvida a partir de uma visão ideológica de poder na qual o expansionismo do império estava ligado irrestritamente à manutenção de uma classe social. Com este fim, Roma lançou mão 58 de um modo específico de dominação e manutenção de seu poder, o qual, dentre outros elementos, podemos citar: a pax romana e pax deorum. Quanto à pax romana, a análise histórica e política nos faz concluir que a mesma deve ser compreendida a partir de uma conjunção de elementos políticos e estratagemas bélicos que possibilitaram uma relativa estabilidade ao vasto Império Romano, o qual tinha em seu seio os mais variados povos conquistados, e, portanto, uma sempre emergente possiblidade de subversão ao sistema imperial (WENGST, 1991; LOHSE, 2000). Vista sob a perspectiva positiva do termo “paz”, a pax romana, na verdade, constituía-se em um estratagema ideologicamente tecido com vistas à boa vida dos cidadãos romanos. Ou seja, o fim primordial da política romana sempre era a riqueza, o bem, a estabilidade e a paz dos romanos. De fato, embora a pax romana tenha possibilitado uma relativa paz ao vasto Império Romano, entretanto, o alto preço por esta conquista foi pago à custa de terríveis guerras, expropriações, perseguições, escravidão e morte. Esta percepção e análise da pax romana, segundo Wengst (1991), é uma tentativa de poder ouvir a voz daqueles que foram subjugados pelo poder imperial. Em segundo lugar, a pax deorum (do latim, paz divina) concedeu ao Império Romano um significativo elemento apaziguador das tensões sociais, a religião. Embora possuir seu próprio panteão, Romana concedeu aos povos conquistados uma relativa liberdade de culto na medida em que, paulatinamente foi concedendo forte ênfase ao culto ao imperador. Este modo de se posicionar diante das religiões possibilitou aos grandes centros urbanos uma efervescência religiosa e uma pluralidade cúltica sem precedentes na história universal. Envolvido por este sistema, não foi de se estranhar que o politeísmo romano se associasse ao panteão grego com suas divindades, crenças e práticas ritualísticas, trazendo com isto uma relativa estabilidade social. 59 Os reflexos do poder imperial na cidade de Corinto Em tempos do primeiro século, a cidade de Corinto era uma das mais importantes cidades cosmopolitas do Império Romano. A vida social era pujante, o comércio dinâmico, a religião efervescente e as relações sociais demasiadamente assimétricas. A percepção desta cidade por estes primas revela tão somente aquilo que Corinto era de fato, ou seja, um reflexo das relações de poder do Império Romano. Tudo em Corinto respirava e flertava com os valores imperiais. A ideologia romana perpassava todos os aspectos da vida política, econômica, social e religiosa da população coríntia. Tanto a vida pública como os recessos mais recônditos da vida privada transpiravam o modo de ser e viver de Roma. As instituições oficiais defendiam e reproduziam o modo de ser romano de forma contundente e aberta, enquanto as demais estruturas e grupos sociais se alinhavam à política imperial sem que tivessem clara percepção dos meios ideológicos pelos quais Roma reproduzia seus valores e modo de ser no mundo em seu vasto território. Este sistema se justifica, dentre outros fatores, pela significativa presença de romanos nesta cidade desde sua reconstrução (COTHENET, 1984), os quais foram enviados tanto para participar desta grande obra como, também, para administrar a cidade com vista à maior gerência do Império Romano nesta importante que possibilitava ligação entre o oriente e o ocidente, através de seus portos. Entre aqueles romanos enviados é importante destacar a presença de veteranos do exército (PRIOR, 2001), os quais recebiam porções de terra para administrarem e, simbolicamente, apontavam para presença forte e sempre vigilante do poder imperial na cidade. Mesmo que longe das atividades do exército, a presença destes homens significava a defesa do modo de ser romano e a necessidade da população, em geral, de se conformar com esta realidade. Sendo assim, até quando o soldado romano não estava ativo no exército para manter à força a pax romana, ele o fazia por sua presença poderosamente simbólica na sociedade coríntia. Esta relativa paz era vista como algo importante e 60 desejável à sociedade de Corinto, pois possibilitava o clima necessário para a presença de novos comerciantes nos portos e tantas outras novas oportunidades de negócios lucrativos. Somada a presença dos veteranos do exército romano, a cidade de Corinto gozava de estabilidade devido aos esforços do exército imperial, o qual labutava diariamente por fazer cessar qualquer forma de desordem social em seu seio ou em regiões circunvizinhas. Neste sentido, o estilo de vida e a condição histórica favorável à vida social e ao comércio, em Corinto, só eram possíveis, pois esta cidade refletia o modo de ser romano. Em segundo lugar, a reprodução ideológica dos valores imperiais, em Corinto, se dava pelo modo estratégico com o qual Roma resolvera se relacionar com o fator religioso das nações sob o seu domínio. A pax deorum possibilitou uma relativa paz entre os agentes sociais do império romano, ao mesmo tempo em que construiu pontes conceituais e ritualísticas com vistas ao sincretismo (STAMBAUCH; BALCH, 1996). No primeiro século, Corinto era um cadinho para o qual afluíram muitos povos e religiões (COMBY; LÉMONON, 1988). Os deuses e deusas, com suas manifestações glossolálicas (Apolo, Cibele, Baco etc), eram amplamente conhecidos por suas revelações públicas e reservadas. No contexto de relativa liberdade religiosa, o ponto focal a ser defendido era a manutenção deste modo de viver em sociedade. Entretanto, o custo desta relativa liberdade era a aceitação inconteste das regras impostas pelo Império Romano, ou seja, era a assimilação e a defesa da estrutura imperial sobre a cidade e cada um de seus cidadãos e moradores. Com vistas a boa aceitação deste estratagema de poder, Romana chegou a conceder subvenções a certas formas de culto no Império, embora que desse forte ênfase ao culto ao imperador e ao panteão romano. Tal ação fomentava na população comum o senso de que as coisas deveriam ser como lhes eram apresentadas. Diante desta realidade, vivendo em uma sociedade profundamente marcada pelos valores de Roma, a igreja cristã de Corinto tomou para si a árdua tarefa de contrapor-se aos valores imperiais a favor da ética do Cristo ressuscitado. 61 As epístolas de Paulo a esta comunidade cristã tornaram-se um meio de reflexão e um estímulo a um novo modo de vida no qual os fracos, os que não são e os loucos, deveriam viver em prol de uma nova sociedade pautada no carisma do amor. Conclusão Diante do foi pesquisado fica diante dos fatos algumas conclusões a serem objetos de reflexões e aprofundamentos, quais sejam: O Império Romano não prevaleceu sobre os outros povos apenas pela força da espada; ele possuía uma política expansionista e modo peculiar de dominação. Neste modo peculiar de dominação, a pax romana constituía-se em um estratagema político e bélico no qual o governo imperial era estabelecido pela propaganda ideológica de uma paz para todos, mas que era usufruída plenamente somente pelos cidadãos romanos. Em segundo lugar, Roma decidiu que era possível manter uma amplo e diversificado império concedendo relativa liberdade religiosa aos povos conquistados. Este modo de perceber os resultados políticos da religião trouxe um relativo apaziguamento das relações sociais no império. Estes dois elementos se fizeram presentes na história da cidade de Corinto e amalgamaram suas relações culturais, religiosas, econômicas e sociais, ao mesmo tempo em que contribuíram para tornar esta cidade um reflexo do modo de pensar e viver romano. Apesar deste sistema de coisas, a igreja cristã em Corinto buscou viver o carisma do amor, pela consciência de que os valores do Cristo se sobrepunham aos valores do império Romano. 62 Referências COMBY, Jean; LÉMONON, Jean-Pierre. Vida e religiões no império Romano: no tempo das primeiras comunidades cristãs. São Paulo: Paulinas, 1988. COTHENET, Edouard. São Paulo e seu tempo. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Editora Paulina, 1984. LOHSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo Testamento. Tradução de Hans Jorg Witter. São Paulo: Paulinas, 2000. PRIOR, David. A mensagem de 1Coríntios: A vida na igreja local. Tradução de Yolanda M. Krievin, 2. ed. São Paulo: ABU, 2001. STAMBAUGH, John E.; BALCH, David L. O Novo Testamento em seu ambiente social. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1996. WENGST. Pax Romana: pretensão e realidade - experiências e percepções da paz em Jesus e no cristianismo primitivo. Tradução de António M. de Torre. São Paulo: Edições Paulinas. 1991. ___________________________________________________________________ GT 04 Pentecostalismo, Modernidade e Práticas Terapêuticas. Coordenadores: Prof. Dr.Jeová Rodrigues dos Santos/ FAIFA Prof. Doutorando Wellington Cardoso de PPGS/UFG /NER-UFG/ ALFA e FAIFA Oliveira/ Ementa: O mundo moderno impõe aos indivíduos, a busca intensa, por manifestações religiosas que ajudem a enfrentar as situações da vida cotidiana. Neste sentido, as manifestações religiosas configuram-se como elementos de terapia no sentido, de propiciar e amenizar os problemas impostos pela vida cotidiana. Dentre os diversos grupos religiosos existentes no Brasil, os movimentos de cunho pentecostal colocam a disposição no campo religioso, diferentes práticas e atitudes terapêuticas, tais como: oração e unção com óleo como elementos de ministração para a cura de enfermidades, a glossolalia (o falar em línguas), campanhas e a prática de exorcismo, dentre outras, que parecem chamar atenção de um número considerável de pessoas que buscam respostas para seus anseios. Neste sentido, os pentecostais trazem para o campo religioso uma diversidade de oferta de bens religiosos que buscam satisfazer os interesses de sujeitos religiosos cada vez mais exigentes de práticas que lhes garantam conforto em relação às mazelas e dificuldades da vida social. O presente GT se propõe a discutir as diferentes práticas terapêuticas presentes no pentecostalismo brasileiro, e privilegia trabalhos e pesquisas que busquem esse diálogo. Palavra Chaves: Pentecostalismo, Modernidade, Práticas Terapêuticas e Campo Religioso 63 “O ALTAR É O LUGAR DO ENCONTRO COM DEUS [...] É ONDE A PESSOA É CURADA”: REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DO ALTAR COMO LOCAL SAGRADO PARA A LIGAÇÃO DO FIEL COM A DIVINDADE E PARA A OBTENÇÃO DA CURA EM UMA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS EM BELÉM/PA Samuel Marques Campos25 Resumo: De acordo com Marcel Mauss, o sacrifício nas religiões envolve a ideia primária de consagração. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) também tem uma crença peculiar do sacrifício que, de acordo com Edir Macedo, não é mais o derramamento de sangue de animais, mas a entrega do sangue e suor do fiel, ou seja, suas ofertas, pois o dinheiro é atualmente o sangue da igreja. Diante disso, esta comunicação faz reflexões sobre as percepções que os fieis têm sobre a importância do altar para a obtenção da cura. O altar (púlpito) é o local sagrado onde o pastor, o “homem de Deus”, representa a “boca de Deus” para dar instruções aos fieis e ser uma espécie de mediador dos fieis com a divindade. Para realizar tal tarefa, as informações foram obtidas através de pesquisa bibliográfica, observações participantes e entrevistas com fieis da igreja. Foram trabalhados autores da IURD (Macedo, Panceiro etc.) e pesquisadores desta igreja (Mariano, Bledsoe etc.). Sobre o papel do sacrifício e todos os elementos envolvidos nesse ritual, o autor Marcel Mauss será utilizado para lançar luz sobre o sacrifício iurdiano. As observações foram empreendidas nos cultos de terças-feiras, quando ocorrem os rituais de cura no “cenáculo do Espírito Santo”, templo central da IURD Belém/PA. Também foram utilizados dados oriundos de entrevistas com fieis da IURD para maiores esclarecimentos sobre as observações empreendidas. Palavras-chave: Sacrifício. Altar. Rituais de Cura. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), apesar da recente perda de fieis (IBGE, 2015), ainda é a principal igreja neopentecostal do Brasil. Em Belém, esta igreja, assim como nas demais capitais brasileiras, possui um suntuoso templo próximo a um Shopping Center. A movimentação de pessoas é notória e as reuniões estão sempre repletas de pessoas. A “marca registrada” desse movimento é a teologia da prosperidade e a batalha espiritual contra as forças malignas que impedem as pessoas de obterem curas, prosperidade e vitórias. É especialista em Ciências da Religião pela Faculdade Teológica Batista Equatorial (FATEBE) e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Atualmente é Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGSA-UFPA). É Coordenador de Extensão e Docente Acadêmico da FATEBE. E-mail: samcampos81@gmail.com. 25 64 Nas nossas observações dos cultos de cura, chamados de “Sessão do Descarrego”, o que nos chamou a atenção é que as contribuições financeiras eram utilizadas para se obter o favor divino na área da saúde. Elas eram oferecidas à divindade na parte mais elevada do templo, no púlpito, chamado de “altar” tanto pelos pastores como pelos fieis que entrevistamos. Ali os fieis podiam oferecer suas ofertas e sacrifícios ao sagrado. Os autores Marcel Mauss e Henri Hubert trabalham o conceito de sacrifício fazendo comparações da sua prática em várias expressões religiosas. Para eles os sacrifícios nas religiões possuem um núcleo comum. Há, em todas elas, uma “ideia de consagração” quando “um objeto passa do domínio comum ao domínio religioso” (MAUSS, HUBERT, 2005, p. 15). A IURD também possui uma noção de sacrifício que é peculiar. Discorreremos nesta comunicação sobre o conceito e tipos de sacrifícios iurdianos, destacando sua importância para a relação do fiel com o sagrado e para a obtenção do favor divino para sua saúde. TIPOS DE SACRIFÍCIOS: MODALIDADES DE CONTRIBUIÇÕES FINANCEIRAS NA IURD A IURD possui uma visão peculiar do sacrifício. O fiel deve sacrificar à divindade, mas não da mesma forma que é relatada no primeiro testamento da Bíblia Sagrada. Os animais que eram mortos anteriormente apontavam para o sacrifício único e vicário de Jesus Cristo na cruz. Hoje em dia os animais não precisam mais ser sacrificados. Para Macedo (2001, p. 71) atualmente “o dinheiro [...] é o sangue da Igreja” e é a expressão de consagração do fiel a Deus. O ato de entregar a oferta implica que parte do seu “sangue” saiu de seu bolso e não faz mais parte do fiel, pois este foi “destruído” em prol da divindade. As contribuições financeiras manifestadas nos “dízimos e as ofertas são tão sagrados e tão santos quanto a Palavra de Deus” (EM QUE CREMOS, 2016). 65 Na IURD os sacrifícios são manifestados na entrega de bens ou recursos financeiros ofertados26 e podem ser divididos em basicamente três tipos: ofertas, dízimos e sacrifício da Fogueira Santa de Israel. Ofertas A “oferta é o instrumento pelo qual o ser humano se aproxima de Deus” (MACEDO, 1999, p. 37). Como o dinheiro é o sangue da igreja, conforme mencionado acima, “as ofertas [significam] o amor do servo para com o seu Senhor” (EM QUE CREMOS, 2016). Ou seja, elas expressam de forma prática o amor que o fiel tem para com a divindade. E, ao fazer isso, o fiel pode receber bênçãos, pois “o Senhor Jesus afirma no livro de João 10.10: ‘... Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.’” (EM QUE CREMOS, 2016, grifos do autor). Dízimos A declaração de fé da IURD assevera: Os dízimos significam fidelidade, e as ofertas, o amor do servo para com o Senhor. Não se pode dissociar os dízimos e as ofertas, o amor do servo para com o Senhor Jesus, uma vez que eles significam, na verdade, o sangue daqueles que foram salvos em favor daqueles que precisam ser salvos. (EM QUE CREMOS, 2016, grifos nossos). Os fieis são ensinados que a divindade espera que o indivíduo se consagre totalmente a ela, entregando-se sem reservas e demonstrando através do seu dízimo essa completa consagração. Macedo revela que esse valor “é um compromisso que revela a fé prática”. Ao dizimar, “Deus fica obrigado a esse compromisso com a pessoa que deu o dízimo, fica obrigado a cumprir a promessa que está na Bíblia: ‘Trazei o dízimo e eu abrirei as janelas do céu’” (TAVOLARO; LEMOS, 2007, p. 215).27 Sacrifício da fogueira santa de Israel Apesar de informantes me relatarem que o sacrifício também pode se manifestar através de jejuns ou renúncia de algo valioso. No entanto, nas observações que fiz o sacrifício era sempre associado a bens ou ofertas em dinheiro. 27 O bispo Macedo cita o texto bíblico do primeiro testamento de Malaquias 3.10. 26 66 A Fogueira Santa de Israel é uma campanha anual que a IURD realiza duas vezes: no meio e no final do ano. Ela se inspira no relato do livro bíblico de Gênesis 22.1-2. O registro informa: Passado algum tempo, Deus pôs Abraão à prova, dizendo-lhe: “Abraão!”. Ele respondeu: “Eis-me aqui”. Então disse Deus: “Tome seu filho, seu único filho, Isaque, a quem você ama, e vá para a região de Moriá. Sacrifique-o ali como holocausto28 num dos montes que lhe indicarei”. O texto bíblico informa a maior prova da vida do patriarca Abraão: Deus pede que ele sacrifique seu único filho, Isaque. Apesar de absurda, a ordem é acatada. Abraão sobre no monte “Moriá” e vai sacrificar seu filho. No momento em que levanta a faca para sacrificá-lo, um anjo aparece, o impede de completar o ato e afirma que Deus está satisfeito com a sua obediência. Assim, a IURD utiliza esse registro para afirmar que o fiel é estimulado a sacrificar através de ofertas, seguindo o exemplo de Abraão (FOGUEIRA SANTA, 2012).29 No dizer de Edir Macedo (1998, p. 90-91), essa fé que se materializa através das ofertas “é sempre acompanhada pelo sacrifício”. A “qualidade de oferta determina a qualidade da fé” e a “oferta de sacrifício é a mais alta expressão da fé sobrenatural, a fé com qualidade”. Para Panceiro (2002, p. 60-61), o sacrifício “significa a renúncia voluntária de alguma coisa [...] em troca de algo muito mais importante ainda”. “O altar é o lugar de encontro com deus”: a entrega dos sacrifícios no altar Nos rituais de cura que observei no final do ano de 2015, estava acontecendo, na IURD Belém, a campanha da “água milagrosa”. Ao irem à igreja, os fieis eram estimulados a levarem garrafinhas d’água para, então, receberem orações feitas pelo pastor e pelos obreiros, os “homens de Deus” que servem no altar. Alguns levavam garrafas grandes tipo pet. Outros levavam duas ou três garrafas de plástico de diversos tamanhos. O importante, de acordo com as orientações repassadas pelo pastor nas reuniões, era o fiel levar um recipiente com água para que ela fosse consagrada. A nota de rodapé deste versículo na versão bíblica da Nova Versão Internacional (NVI) registra que a palavra “holocausto” significa “sacrifício totalmente queimado” (BÍBLIA, 2001). 29 Outros personagens do primeiro testamento da Bíblia também são utilizados como exemplos para o sacrifício como Gideão, Jacó etc. 28 67 Observei que, antes de começar o culto, algumas pessoas costumeiramente se ajoelhavam diante do altar. Outras faziam orações fervorosas enquanto tocavam o altar. Alguns colocavam as garrafas com água em cima do altar no período da oração. O pastor orientava que as águas ungidas deveriam ser utilizadas para se beber ou passar no local da enfermidade, a fim de obterem a cura desejada. Observei pessoas passando a água consagrada em várias partes do corpo como se fosse um remédio. Presenciei fieis aplicando a água consagrada no abdômen, na cabeça, nos pés etc. O pastor sempre orientava os fieis a colocarem a água onde havia a dor. Um episódio foi emblemático para mim. Um adolescente aparentando ter 12 anos tinha Síndrome de Down. Após o momento de consagração da água no altar, sua mãe passou a água no seu filho, espalhando pelo seu corpo, objetivando a cura do seu filho. Essa proximidade do fiel buscando tocar no altar ou consagrar objetos no altar demonstrava sua crença de que aquele local era sagrado e poderia transmitir bênçãos. Para Mauss e Hubert em “[...] certas lendas bíblicas o fogo do sacrifício não é outra coisa senão a própria divindade que devora a vítima ou, para dizer mais exatamente, o sinal de consagração que a inflama” (MAUSS, HUBERT, 2005, p. 32, grifos nossos). Assim sendo, o altar é o local onde a presença da divindade é real e onde o pastor dá instruções divinas aos fieis. Por isso, essa proximidade com o altar é um símbolo de consagração e relação com o sagrado. Percepções dos fieis Nada substitui a experiência dos fieis. Por isso irei registrá-la aqui e produzir uma interpretação, ainda provisória, das suas percepções acerca dos sacrifícios oferecidos no altar e sua comunhão com o sagrado e a obtenção da cura. As ofertas oferecidas no altar auxiliam para libertar os demônios que causam vícios. O Sr. Quico30 me informou que já presenciou jovens se libertarem das drogas. Ele me contou que, em certa ocasião, o pastor deu um pouco de droga para um jovem rapaz que a inalou no altar demonstrando ser viciado. Em seguida, o 30 Todos os nomes de informantes citados nesta comunicação são fictícios. 68 pastor fez uma “oração forte” e deu novamente a droga para o rapaz. Imediatamente o jovem rejeitou, pois o espírito das drogas havia sido expulso. Assim, segundo ele, essa oração no altar ajuda na libertação dos espíritos que prendem as pessoas aos vícios das drogas. Em outro testemunho, relatado agora pela Sr.ª Cátia, ela disse que presenciou uma mãe que levou uma garrafinha d’água que foi consagrada no altar para que o seu filho, desenganado pelos médicos, bebesse dela. Então, após o tratamento orientado pelo pastor, a cura completa do seu filho aconteceu. Do altar, através da “oração forte”, elementos como a água assumem o poder de irradiar a cura. Considerações finais Quando se oferece algo em sacrifício à divindade “[...] um objeto passa do domínio comum ao domínio religioso – ele é consagrado”. O animal ou coisa sacrificada “[...] elevou-se a um estado de graça ou saiu de um estado de pecado” sendo “religiosamente transformado” (MAUSS, HUBERT, 2005, p. 16, grifos nossos). Isso ocorre porque no sacrifício [...] a consagração irradia-se para além da coisa consagrada, atingindo, entre outras coisas, a pessoa moral que se encarrega da cerimônia. O fiel que forneceu a vítima, objeto da consagração, não é no final da operação o que era no começo. Ele adquiriu caráter religioso que não possuía (MAUSS, HUBERT, 2005, p. 15). Na cosmovisão iurdiana, a oferta do fiel demonstra à divindade a qualidade da sua fé. O pastor é o homem de Deus que, do altar, dá instruções aos fieis. Este é um orientador de como o fiel pode se aproximar do sagrado. Após seguir as recomendações, o fiel, através do “homem de Deus”, obtém da divindade maior comunhão com o sagrado, mas é a sua fé que move todas as coisas em seu favor e que o aproxima de Deus. Finalizo com o relato da Sr.ª Elisa que demonstra essa questão: Uma pessoa que faz uma corrente de libertação ou uma corrente de cura e não vê o resultado [...] Ela se depara e diz: “a culpa está no pastor”. [Isso acontece] porque ela olha para o homem e não pra Jesus. Quando ela passa a olhar pra Deus, de fato e de verdade, ela adquire a fé sobrenatural. Ela crê. Não é a pessoa chegar na igreja e dizer que vai mudar de vida, que vai ser curada ou liberta. Não! Isso só vai acontecer quando ela crer e manifestar a fé sobrenatural. Isto significa que para obter a cura não basta apenas oferecer sacrifícios monetários no altar. Essa e outras atitudes devem ser acompanhadas com as 69 ofertas que são entregues. Nesse levantamento preliminar, os sacrifícios devem ser oferecidos no altar aliado de uma atitude de fé para se aproximar de Deus, para que sua confiança seja despertada a tal ponto que sua cura e o seu relacionamento com a divindade sejam ativados. O segredo está na atitude por trás da oferta e não no sacrifício em si. REFERÊNCIAS BÍBLIA. Português. Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida / Sociedade Bíblica Internacional, 2001. IBGE. Censo demográfico 2010: Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/ Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/caracteristic as_religiao_deficiencia.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2015. EM QUE CREMOS. Universal. Disponível em: <http://www.universal.org/ institucional/emquecremos.html>. Acesso em: 26 abr. 2016. FOGUEIRA SANTA. Arca Universal. Disponível em: <http://www.arca universal.com/iurd/fogueirasanta/2012/julho/sobre-a-fogueira.html>. Acesso em: 16 ago. 2012. MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. Rio de Janeiro: Unipro, 1998. v. 1. _________. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. Rio de Janeiro: Unipro, 1999. v. 2. _________. Nos passos de Jesus. Rio de Janeiro: Unipro, 2001. MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005. PANCEIRO, Romualdo. Segredos do Altar. Rio de Janeiro: Unipro, 2002. TAVOLARO, Douglas; LEMOS, Christina. O Bispo: a história revelada de Edir Macedo. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007. ___________________________________________________________________ 70 GT 06 OS CULTOS AFRO-BRASILEIROS E OS RITUAIS DE CURA Coordenadores: Prof. Dr. Paulo Cezar Borges Martins/UNEB – GEPERCS Prof. Dr. Itamar Pereira de Aguiar/UESB Ementa: Este grupo de trabalho tem como proposta, ampliar a compreensão da complexa matriz afro-brasileira no que diz respeito à diversidade/ diferença dos rituais de cura.. Abrindo espaço para a discussão acadêmica de temas como: história, formas e tipologias de rituais de cura entre candomblé e umbanda. Comunicações: 1. O CANDOMBLÉ E SUAS ORIGENS Nome: Joana D’arc de Souza Titulação: Mestrado Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: A presente proposta visa a apresentação do orixá Ossaim intitulado o senhor das folhas, da ciência e das ervas, o orixá que conhece o segredo da cura e o mistério da vida. Uma narrativa de Reginaldo Prandi mostra um universo mágico de Ossaim. O ser humano pode ser considerado como uma pessoa obstinada por saúde do corpo, da mente, da emoção e do espírito. Nesse sentido também, todos os orixás recorriam a Ossaim para curar qualquer moléstia, qualquer mal do corpo. Tamanha era a importância de Ossaim. No entanto, todos dependiam desse orixá na luta contra a doença. Isso, como veremos adiante, acontecerá com banhos, chás, infusões, pomadas e outros preparados mágicos eram oferecidos para a cura dos males. Em uma casa de candomblé, um dos elementos principais e que requer grande sabedoria são as folhas. Palavras - chaves: ervas – plantas medicinais – orixá - folhas Esboçaremos uma breve definição do candomblé de acordo com os estudiosos (BARROS; TEIXEIRA, 1989, p. 36), o candomblé pode ser definido como uma manifestação religiosa resultante da reelaboração das várias visões de mundo e de ethos provenientes das múltiplas etnias africanas que, a partir só século XVI, foram trazidas para o Brasil. É somente no século XVIII que esta designação vai ser encontrada aplicada aos grupos negros organizados e espacialmente localizados. Os Terreiros, Roças ou Casas-de-Santo, denominações correntes utilizados para nomear espaços e grupos de culto aos deuses africanos - Orixás, Inquices e 71 Vodus, representam assim historicamente, uma forma de resistência cultural e de coesão social (RODRIGUES, 2010, p. 113). Podemos sustentar que as formas de expressão da religiosidade africana, no caso brasileiro, podem ser consideradas fatores fundamentais para a formação de reagrupamentos institucionalizados de africanos e seus descendentes, escravos, foragidos e libertos. A religiosidade originou e alicerçou formas específicas que particularizam e definem relações interpessoais, regras e valores que identificam os adeptos e as suas respectivas formas de expressão religiosa (BARROS; TEIXEIRA, 1989, p. 37). Há outro aspecto a ser considerado, durante sua passagem pela Terra, os orixás viveram aventuras que ficaram gravadas nos anais dos tempos e eram passadas de pai para filho na tradição oral. Os candomblés pertencem a nações diversas e por isso possuem tradições diferentes, as nações de maior influência são: Angola, Congo, nagô, Ketu, Ijexá. Nos cultos afro–brasileiros de tradição Yorubá, cultuam-se os orixás, que participam de um panteão africano estimado em 401 divindades. Porém é importante ressaltar que atualmente no Brasil não estão presentes o culto a todas essas divindades, ou mesmo na África (PRANDI, 2000, p. 7). Como afirma Tramonte (2010, p. 2-5), estudos iniciais de que se tem conhecimento indicam a ligação das religiões afro-brasileiras com seu aspecto terapêutico, tanto no sentido físico quanto psicológico. Adeptos e “clientes” recorrem às práticas terapêuticas próprias das Casas de Santo. O perfil social dos praticantes das religiões afro-brasileiras não estará restrito às classes populares desde seus primórdios, embora haja concentração de lideranças e participantes neste extrato social nesta fase. Parcelas das classes médias e altas integrarão o “povo-de-santo”, ora somente como consulentes dos “serviços espirituais”, como no passado, ora como adeptos e praticantes regulares como atualmente. Haverá variação ao longo do tempo na concentração numérica: nos primórdios, até os anos 40, as classes médias e altas recorrerão às religiões afro-brasileiras somente como consulentes; a partir de então será possível visualizá-las como integrantes regulares dos terreiros. De acordo com Geertz (1989, p. 89), compreendermos e definimos o com um complexo cultural no qual se verifica um conjunto de significados transmitidos historicamente, reelaborados em novo contexto e que vão dar origem a formas 72 simbólicas específicas, por meio das quais os adeptos transmitem e desenvolvem se conhecimento e suas atitudes em relação à vida. Além disso, os africanos, por onde passaram deixaram seu legado e sua marca: segredos, encantos, ensinamentos, a partir disso sua devoção foi se construindo e sendo passada de geração em geração. A iniciação é condição básica para a inserção não só no povo de santo, mas para inserção numa família de santo. O segredo das folhas e os rituais de cura na tradição Afro-brasileira É importante ressaltar que, nesta reflexão discutiremos sobre o campo da saúde e suas relações com as práticas relacionadas às plantas e as ervas medicinais no candomblé. Plantas que agem eliminando energias negativas produzindo energias positivas. Aqui destacarei Ossaim, Senhor das folhas e ervas medicinais, é por benção deste orixá que temos os remédios para a cura ou tratamento de diversas doenças. Assim, no âmbito dos Terreiros de candomblé a construção social do individuo é desenvolvida gradualmente a partir de um processo iniciático. Expressão no idioma Yorùbá que quer dizer: "Se não há folhas, não há Òrìsà!" Esta expressão dá o entendimento da importância das folhas dentro dos rituais de origem africana, no entanto, queremos aqui ampliar este conceito, traduzindo por folhas os vegetais de um modo geral, incluindo além de suas folhas, seus frutos, sementes, e até mesmo seu caule; e traduzindo por Òrìsà, os diversos usos "mágicos" desses vegetais (PORTAL DOS ORIXÁS). O que podemos perceber é que, ao longo da história, de acordo com a conclusão de Botelho (2010, p.1), a tradição religiosa afro-brasileira agrega importantes contribuições para a sociedade brasileira, principalmente no que tange ao uso e preservação das matas, se opondo à filosofia da dominação tão disseminada pela sociedade ocidental, onde a função do homem é subjugar toda a natureza, apenas servindo-se dela. Essa cultura africana no Brasil enriqueceu o conhecimento sobre ervas na sociedade, o seu contato com outras culturas como os povos indígenas e europeus, criou um complexo e diversificado saber sobre folhas. Além disso, o intercâmbio Brasil – África corroborou para a presença em território brasileiro de muitas espécies de vegetais de origem africana ou asiática. É 73 inquestionável a importância que as plantas têm em todas as culturas e em todas as épocas. Quer seja para a alimentação, para a cura de doenças ou para rituais religiosos. Dentro da mística do candomblé, religião de tradição africana de culto aos orixás, conhecer as folhas faz parte do fundamento religioso e da ligação homem – natureza – divindade. Todo ritual do candomblé começa com as folhas. Porém antes mesmo das cerimônias, o ritual começa já na obtenção das folhas e no cuidado que se tem com elas. As folhas usadas no terreiro são adquiridas em sua maioria numa horta comunitária, onde vários outros terreiros encontram as ervas necessárias. Sobre essa realidade do Terreiro, mais uma vez, Botelho (2010, p. 2) afirma que a religião teve que sofrer adaptações, destacamos o acesso às folhas, muitas vezes pela falta de espaço para manter “o mato da casa”, é preciso recorrer aos mercados, feiras, ou hortas comunitárias para se conseguir as folhas necessárias para os rituais religiosos. Todo esse cuidado é observado no cotidiano do terreiro, desde a obtenção das folhas, a preocupação com a pessoa que cuidará delas, a forma de guardá-las entre outras. Há uma expectativa na certeza dos resultados, quer seja nos tratamentos de saúde, quer seja nas festas e rituais sagrados, o início de tudo que é a manipulação das folhas tem que ser rigorosamente observado para que nada ocorra de errado. Reverenciar a folha e pedir licença ao seu patrono que é Ossaim demonstra que o homem é apenas parte de conjunto natural e harmônico, o ser humano não é o dono de tudo, mas parte de um complexo e organizado. No encantamento das folhas, a palavra adquire um poder de ação muito forte, porque ela está impregnada de axé, essas palavras rituais, ofó, mobilizam o axé quando pronunciada de acordo à dinâmica litúrgica. Por isso as palavras estão carregas de emoção, da história pessoal e do poder daquele que a profere. A palavra é atuante e pronunciada no momento certo induz à ação. No universo religioso afro-brasileiro a fala é transmissora do saber que desperta o poder mágico da folha. Bastide (1974, p. 395) expõe que, no candomblé há uma tríplice função da religião que é; adivinhação, colheita de ervas e culto dos antepassados. E por isso coexistem três sacerdócios com funções diferentes, mas que possuem igual valor no culto, que são o babalorixá, que preside ao culto dos orixás, o babalossaim, que presidem ao culto de Ossaim, e os babuje que presidem ao culto dos Eguns. 74 Vemos, então, que toda essa força vinda do axé das folhas facilita a incorporação mediúnica e também aumenta a saúde física e psíquica. A força do Orixá se funde na energia terapêutica do vegetal, aumentando o poder e a eficiência no organismo da pessoa. Há um equilibro das forças ante a magia e a demanda. É a força cósmica da natureza comandando a mente por intermédio dos aromas e princípios curativos das ervas, inclusive da descarga humana através dos banhos e defumações purificações purificadoras que recebem das matas os elementos primordiais dessas magias. Através dessa complexa mistura de forças e aroma provenientes das ervas, provoca-se uma harmonia de vibrações (PÓVOAS, 2009, p. 40-42). Novamente, retomamos Botelho (2010, p. 7), as folhas estão presentes também na feitura, momento em que a pessoa (iaô) passa a fazer parte definitivamente da religião através da iniciação. Essas folhas usadas para a pessoa deitar sobre elas, transmitem seu axé para a pessoa recolhida e ajuda a tornar presente o orixá. Esse momento ele é precedido de oferendas de comidas específicas dos orixás, que são entregues nas portas dos compartimentos sagrados. As folhas têm essa importante separação, as que são para banho e para chás, não se pode misturá-las. Usa-se também muitas folhas na benzeção. Há outros momentos em que as folhas estão presentes, como para servir comidas aos santos, prática geralmente feita para cumprir obrigações, também em algumas festas oferece-se comida em folhas às pessoas presentes. Ossaim: orixá das ervas e folhas, das plantas medicinais e de tudo que cresce livremente. Buscamos nos apropriar em BERKENBROCK (1997, p. 244-45), ao citar como o orixá da vegetação, das folhas, das ervas e especialmente do Axé por elas contidas. Todos os preparados de ervas estão sob a proteção de Ossaim. As plantas têm no candomblé tanto uma importância litúrgica como medicinal. Praticamente todas as cerimônias no candomblé necessitam do uso de alguma planta ou de algum preparado de ervas. Os banhos de purificação são parte obrigatória do tempo de iniciação. Eles são feitos com a mistura de diversas ervas que podem ajudar o iniciado a entrar em transe. As ervas podem liberar diversos axés na vida de um 75 iniciado. tem um status especial no culto. O culto a Ossaim é incomum. Justamente por causa de importância no sistema religioso do candomblé, seu culto é organizado de forma independente e autônoma. Ossaim tem uma sociedade organizada própria e um sacerdócio especial a ele devotado: os Babalossaim. Estes são responsáveis tanto pelo culto a Ossaim, como pela coleta, tratamento, preparação e efeito das plantas. Eles formam uma sociedade quase secreta no candomblé. Esta sociedade detém os conhecimentos sobre os efeitos das ervas, sua forma de coleta e preparação. Os conhecimentos são tanto rituais como medicinais. Ossaim vive no mato e sua cor é o verde. A parte “floresta” do terreiro é seu domínio. Ele é um Orixá cultuado ao ar livre. As ervas de Ossaim não devem ser cultivadas, mas crescer livremente na mata. As ervas cultivadas em casa, mesmo sendo da mesma espécie, não possuem o mesmo axé de Ossaim, pois cresceram no espaço cidade, que não está sob o domínio de Ossaim. As plantas e os seus efeitos à disposição de todas as pessoas. O mesmo vale para Ossaim: ele está a serviço de todos. Através de ervas, ele pode vingar-se, como trazer sorte, saúde, amor e fecundidade (BERKENBROCK, 1997, p. 245). Encontramos mais detalhes da história de Ossaim, filho de Nanã e irmão de Oxumaré, Ewá e Obaluaê, era o senhor das folhas. Todos recorriam a Ossaim para curar qualquer moléstia, qualquer mal do corpo. Todos dependiam de Ossaim na luta contra as doenças. Todos iam à casa de Ossaim oferecer seus sacrifícios. Em troca Ossaim dava seus preparados mágicos: banhos, chás, infusões, pomadas, abo, beberagens. Curava as dores, as feridas, os sangramentos, as disenterias, os inchaços e fraturas; curava as pestes, febres, órgãos corrompidos; limpava a pele purulenta e o sangue pisado; livrava o corpo de todos os males. Um dia Xangô, que era o deus da justiça, julgou que todos os orixás deveriam compartilhar o poder de Ossaim, conhecendo o segredo das ervas e o dom da cura. Xangô sentenciou que Ossaim dividisse suas folhas com os outros orixás. Mas Ossaim negou-se dividir suas folhas com os outros Orixás. Xangô então ordenou que Iansã soltasse o vento e trouxesse ao seu palácio todas as folhas das matas de para que fossem distribuídas aos Orixás. Iansã fez o que Xangô determinara. Gerou um furacão que derrubou as folhas das plantas e as arrastou pelo ar em direção ao palácio de Xangô. 76 Ossaim percebeu o que estava acontecendo e gritou: ”Euê uassá!”. “As folhas funcionam!”. Ossaim ordenou que as folhas voltassem às suas matas e as folhas obedeceram às ordens de Ossaim. Quase todas as folhas retornaram para Ossaim. As que já estavam em poder de Xangô perderam o axé, perderam o poder de cura. O orixá-rei, que era um orixá justo, admitiu a vitória de Ossaim. Entendeu que o poder das folhas devia ser exclusivo de Ossaim e que assim devia permanecer através dos séculos. Ossaim, contudo, deu uma folha a cada orixá, deu uma euê pra cada um deles. Cada folha com seus axés e seus ofós, que são as cantigas de encantamento, sem as quais a folhas não funcionam. Ossaim distribuiu as folhas aos orixás para que eles não mais o invejassem. Eles também podiam realizar proezas com as ervas, mas os segredos mais profundos ele guardou para si. Ossaim não conta seus segredos para ninguém, nem mesmo fala. Fala por ele seu criado Aroni. Os orixás ficaram gratos a Ossaim e sempre o reverenciam quando usam as folhas (PRANDI, 2001, p. 153-54). REFERÊNCIAS BARROS, J.F Pessoa; TEIXEIRA, Maria L. Leão. O Código do Corpo: Inscrições e Marcas dos Orixás. In: MOURA, Carlos Eugênio de (Org.). 1 ed. Meu sinal está no seu corpo. São Paulo: EDICON/EDUSP, 1989, 36-62 p. BASTIDE. Roger. As religiões Africanas no Brasil. Tradução Maria Eloisa Capellato. 3. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1974. BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. BOTELHO. Paulo F. O segredo das folhas e os rituais de cura na tradição AfroBrasileiro. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/wordpress/24807.pdf.html. Acesso em: 12 de Maio de 2016, 15:58. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: RJ: LTC, 1989. PORTAL DOS ORIXÁS. Os Orixás. Disponível em: <html>http://www.portaldosorixas.com.br/portaldosorixas/entrada.html>. Acesso em: 02 de Maio de 2016, 11:50. 77 PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. REVISTA USP. São Paulo, n. 46, p. 52-65, junho/agosto 2000. PÓVOAS, Ruan do Carmo. O Segredo das Folhas. REVISTA KÀWÉ, Ilhéus, n. 3, 2009, p. 40-42. RODRIGUES, R Nina. Os africanos no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. 303 p. ISBN: 978-85-7982-010-6. Available from SciELO Books. Disponível em <http://books.scielo.org>. Acesso em: 09 de abril de 2016, 23:14. TRAMONTE, Cristiana. Urbanização, Umbanda e Saúde Popular em Santa Catarina: A construção Feminina do Bem Estar Físico e Mental. Disponível em: fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1275931804_ARQUIVO_… · Arquivo pdf. html>. Acesso em: 02 de maio de 2016, 10:45. 2. JOVENS DE TERREIROS E OS SABERES DA MATA NAS RODAS DE CONVERSAS: UM ESTUDO BIBLIOGRÁFICO Nome: Cláudia Maria de Jesus Castro Titulação: Mestranda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Nome: Cláudia Valente Cavalcante Titulação: Doutora Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumos: Esta comunicação decorre de estudos feitos para a composição de minha dissertação de mestrado que está em andamento e traz como tema central a religião de matriz africana. Objetiva apresentar uma discussão acerca da relação existente entre as práticas ritualísticas de cura com a natureza e os valores que os jovens de terreiros expressam ao lidarem com os ensinamentos de sua religião. A investigação parte do entendimento de que a juventude não é apenas uma categoria parametrizada por uma faixa etária, mas um grupo social que estabelece diferentes relações entre o mundo objetivo e subjetivo. Nesse sentido, a religião é um dos espaços importantes para a compreensão da condição juvenil e o respeito que os jovens têm pela natureza ao utilizarem esta paisagem natural como local de culto e também de práticas rituais. Assim, a pesquisa prima por uma investigação para o conhecimento do valor atribuído às folhas sagradas empregadas no contexto desta religião, bem como sua importância nos rituais, por isso faz-se necessário conhecer em que situação e onde especificamente elas são empregadas. Destaca-se a importância delas na preparação de amacis, banhos, bebidas, rituais, remédios, pois as folhas sagradas, dentro da mística das comunidades tradicionais de terreiros, são imprescindíveis na sustentabilidade da religião dos orixás. Sendo esta questão ressaltada em uma frase: “Sem folhas não há orixás”. Sendo assim, o fato de a natureza estar sofrendo um processo de depredação tem se tornado uma das grandes preocupações dos praticantes destes cultos e rituais que buscam preservar a cultura africana. Palavras-chave: Jovens. Rituais. Folhas sagradas. Cultos africanos. 78 Este artigo decorre de estudos feitos para a composição da dissertação de mestrado, a qual se encontra em andamento e vinculada à linha de pesquisa Educação, Cultura e Sociedade do PPGE da PUC-GO e tem como objetivo geral investigar quem são os jovens de religiões afrodescendentes e os sentidos que atribuem à sua religião e à escola. Esta comunicação objetiva apresentar uma discussão acerca da relação existente entre as práticas ritualísticas de cura com a natureza e os valores que os jovens de terreiros expressam ao lidarem com os ensinamentos de sua religião. O artigo intitulado Jovens de terreiros e os saberes da mata nas rodas de conversas: um estudo bibliográfico está dividido em dois subtítulos. O primeiro, denominado Sem Folhas Não Há Orixás, visa oferecer uma discussão sobre a importância das folhas sagradas e sua empregabilidade dentro da mística das comunidades tradicionais de terreiros na sustentação da religião dos orixás. Também discute que a cosmovisão da ancestralidade prima pela preservação da natureza. Já o segundo, Os jovens e os valores atribuídos às ervas, traz um breve apanhado histórico sobre a construção social da juventude e uma discussão acerca dos significados e sentidos que os jovens de terreiros atribuem à sua religião e os saberes que aprendem nas rodas de conversas, nos espaços chamados terreiros. Sem folhas não há orixás A frase do título que dá nome a este tópico reverencia a importância do meio ambiente nas religiões tradicionais de terreiros e uma relação integradora de homem-natureza. Oliveira (2015) diz que a sintonia com a Mãe-Natureza faz parte da tradição africana, pois a natureza é sagrada e divinizada pelos africanos e seus descendentes. No que tange a empregabilidade das plantas ou ervas sagradas, as casas do povo-de-santo e os terreiros fazem constantemente utilização das folhas nas mais diversas situações ritualísticas. Camargo (1988, p.1) sinaliza que “é reconhecida a importância dos vegetais nos rituais afro-brasileiros”. 79 Todo rito de passagem da mística do candomblé inicia-se com as folhas que são consideradas sagradas, porque fazem parte do fundamento religioso, pois, a exemplo, após o Padê de Exu e a defumação, também confeccionado com folhas secas, segundo o ritual, jogam-se folhas em todo o terreiro. Nota-se o quanto é relevante à utilização de plantas no interior desses espaços sagrados o que demonstra os candomblecistas. No entendimento de Oliveira e Oliveira (2007, p.81): A sacralização da natureza é um aspecto fundante do candomblé. As plantas como outros fenômenos e objetos da natureza, são consideradas sagradas e possuem um papel fundamental na estrutura litúrgica do culto: desde os banhos de ervas nos rituais de iniciação, o batismo dos tambores, a lavagem de contas, a oferenda de alimentos, até os banhos de purificação e os remédios vegetais prescritos pelos sacerdotes. Percebe-se que os terreiros constituem em espaços de socialização, de aprendizagem e de saberes, onde as crianças, as jovens e os jovens são preparados para integrarem na comunidade e respeitar os mais velhos. Nesses espaços, os saberes são transmitidos oralmente, por sua vez, a expressão oral e a relação presencial, agregam a dinâmica do processo ensino-aprendizagem. Segundo Caputo (2012, p. 257): Os terreiros como espaços de circulação de conhecimentos, de saberes, de aprendizagens. No cotidiano das casas de Òrisá e nas casas de Égún, se aprende e se ensina com as ervas, as comidas, a confecção das contas, as músicas, as oferendas votivas, as cores, os cheiros, as danças, os panos, as artes, as roupas, os artefatos, a vida, a morte. Tudo aprende e tudo ensina. Contudo, “conhecer” as folhas constitui em um dos pilares fundamentais nos sistemas religiosos afro-brasileiros. Para Camargo (1988), inúmeros são os rituais em que as plantas e ervas estão presentes, dentre eles: de confirmação, de cura, dos alimentos aos orixás, de iniciação à religião, de benzimentos, de purificação, entre outros. Sendo assim, destaca-se a importância delas na preparação de amacis, banhos, bebidas, rituais, remédios, defumadores, abôs, rituais etc. Assim, o segredo das folhas também é transmitido de geração a geração, trilhando os mesmos princípios realizados nos terreiros, porém, antes de qualquer cerimônia ou festa de obrigação, o ritual inicial começa já na colheita das folhas sagradas e no cuidado especial que se tem com elas. Cuidado esse, que os praticantes e, em especial, os jovens de terreiros aprendem nas rodas de conversas, segundo a tradição, exige que as plantas devam ser recolhidas, preferencialmente, pela manhã, quando ainda estão frescas e não próximas a estradas. 80 Na religião de influência africana, os mais velhos são reconhecidos como pessoas produtivas, valorizadas e respeitadas pelas crianças, jovens e adolescentes na comunidade pelo papel que desempenham como “bibliotecas vivas”. Diante disso, elas (re)passam conhecimentos dos ancestrais a seus filhos-de-santo, aos jovens sedentos de saberes e os demais relacionados à tradição, que as folhas mágicas pertencem aos orixás e Exú têm suas próprias folhas, dentre elas, cansanção, urtiga que são usadas para assentamento. Também ouvem das bocas sábias, “arquivos de história e sabedoria”, que a divindade das folhas é Ossaim. Bastide apud Camargo (1988, p.2) diz “O orixá das folhas é Ossaim. Esse Orixá, segundo Bastide, não encarna em seu sacerdote. Babalossaim ou Olasain é aquele que se encarrega da colheita das ervas”. Nas palavras de Sousa Junior (2004, p. 126): Oralidade não é algo que se opõe aos livros, mas que diz respeito a pessoas concretas, figuras que são capazes de representar mais do que qualquer compêndio e reunir explicações que não cabem nas bibliotecas tradicionais, pois são memórias vivas, não de particulares, mas de grupos. Observa-se também nesta religião, a relação de respeito entre aquele que vai recolher as folhas sagradas e a divindade presente nelas, no caso, pedir licença, simboliza a afirmação de que o homem não é dono da natureza. Sendo esta questão ressaltada em uma frase: “É da natureza que emana a força”. Sendo assim, as energias presentes nas folhas são forças vivas que agem e interagem no contexto. Partindo desta perspectiva, Oliveira (2015) adverte que a literatura diz respeito não somente ao que se fala ao se ensina, mas também ao que se diz e ao que não se revela. Assim, nem tudo o que acontece no candomblé pode ser contado, para aqueles que se aproximam e até aos próprios membros da religião, muito menos aos pesquisadores. Usando o conto Caroço de dendê, para explicar o ato de guardar segredos, fragmento de uma das lindas histórias contadas por Mãe Beata de Yemonjá nas rodas de conversas. [...] No mundo do Iorubá, guardar segredos é o maior dom que Olorum pode dar a um ser humano. É por isso que todo caroço de dendê que tem quatro furinhos é o que tem todo o poder. Através de cada furo, ele vê os quatro cantos do mundo para ver como vão as coisas e comunicar a Olorum [...] (YEMONJÁ, 2002, p.97). Desse modo, parece claro que a comunidade em investigação tem uma preocupação com a Mãe-Natureza, em que preservar é o objetivo imprescindível, sobretudo para a sustentabilidade da religião dos orixás. Logo, as conversas 81 informais nas rodas de conversas e da preparação do barracão ou do terreiro para as cerimônias, entre outras, são momentos preciosos para o repasse (pautada na oralidade que circunda essa cultura) dos saberes às futuras gerações, em particular, aos jovens de terreiros. Com isso, a religião é um dos espaços importantes para a compreensão da condição juvenil e o respeito que os jovens têm pelos recursos naturais ao utilizarem esta paisagem sacralizada como local de culto e também de práticas rituais. Os jovens e os valores atribuídos às ervas A juventude tal qual a conhecemos atualmente é um produto sócio-históricocultural que se transforma conforme as condições da realidade objetiva de um determinado tempo. Por décadas, essa categoria foi ignorada no campo acadêmico, mas foi a partir dos anos de 1990, que o tema juventude ganha grandes dimensões, projeções e interesses “nos discursos e nas pautas políticas” como aponta Abramo (2011, p.38). Foi nesse período que houve a delimitação da faixa etária que consideram jovens as pessoas entre 15 e 24 anos, pelos organismos que estavam interessados em diferenciar as características de cada etapa de vida. Na pesquisa “Perfil da juventude brasileira”, Novaes (2011), parte do pressuposto de que as mudanças ocorridas no perfil da juventude nos últimos anos aconteceram também em virtude dos novos espaços de socialização privilegiados pelos jovens para a participação na sociedade, consequentemente, seu engajamento foi mudando conforme o desenvolvimento histórico. Atualmente, falase em juventudes e não no singular, juventude, pois há uma heterogeneidade nesse grupo etário (ABRAMO, 2011). Dentre esses espaços de socialização, os jovens inserem-se em diferentes movimentos religiosos. Novaes (2011, p. 263), diz que “a religião pode ser vista como um dos aspectos que compõem o mosaico da grande diversidade da juventude brasileira”. Os estudos revelam a necessidade de se compreender a relação entre juventude e religião e os modos de ser jovem. Para compreender o que os jovens pensam sobre os valores atribuídos à religião e às ervas, foi realizada uma entrevista com duas jovens: Laura e Luana. Laura tem 24 anos, formada em jornalismo, trabalha com marketing, praticante da 82 religião há um ano, é parda e mora com seus familiares; Luana tem 22 anos, estudante do curso de Direito, é parda e mora também com seus pais. Laura considera importante conhecer as plantas sagradas e sua utilização nos diferentes rituais. Apesar de ser jovem no terreiro, ela demonstra sabedoria sobre o assunto. Usando uma folha de arruda atrás da orelha, perguntei o valor simbólico dela: “Tem ervas, né. E todas elas a gente pode usar pra chá ou pra banho, e ela tem essa função mesmo de descarregar, de limpar a energia. Então, todas as plantas têm uma função, né” (sic). Para a jovem Laura, as ervas e os recursos naturais representam o sagrado. “É muito importante, né, qualquer contato com a natureza já é curador em si, né, quando a gente vai numa cachoeira a gente se sente melhor, se sente revitalizado, mas a própria planta de poder, ela traz toda a selva nela mesma, estão mesmo se a gente utilizar ela aqui nessa sala”. Para Luana, percebe-se a importância de estar sintonizada e íntima com a Mãe-natureza. “Tem uma coisa que é muito especial, que é abraçar as árvores. Olhar as pequenas coisas, as coisas simples e é bom mesmo. O preto velho manda a gente abraçar as árvores o tempo todo” (sic). Percebe-se que as jovens atribuem um sentido sagrado aos valores simbólicos com a religião, a qual representa força vital que vem das substâncias extraídas da natureza. Considerações finais Na entrevista, foi possível perceber o que as jovens aprendem nas rodas de conversas com as “bibliotecas vivas,” a reverenciar a Mãe-Natureza, e os saberes que vêm da mata em suas práticas ritualísticas de cura e uma relação íntima de devoção com os elementos sagrados da natureza. Assim, as folhas sagradas, as plantas e os vegetais são importantes na cultuação dos orixás e na preservação dos recursos naturais. Referências ABRAMO, Helena Wendel. Condição Juvenil no Brasil contemporâneo. In: ABRAMO, Helena Wendel e Branco, Paulo Martoni (orgs). Retratos da juventude 83 brasileira. Análises de uma pesquisa social. Condição Juvenil no Brasil contemporâneo. Fundação Perseu Abramo e Instituto Cidadania, 2011. CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. Plantas medicinais e de rituais afrobrasileiros I. São Paulo: ALMED, 1988. CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Pallas. 2012 NOVAES, Regina. Juventude, percepções e comportamentos: a religião faz diferença? Fundação Perseu Abramo e Instituto Cidadania, 2011. OLIVEIRA, Irene Dias de. Qual a cor da sua pele?: povo negro construindo identidades na diáspora. São Paulo: Fonte Editorial, 2015. OLIVEIRA, M.F.S. de; OLIVEIRA, O.J.R. de. Na trilha do caboclo: cultura, saúde e natureza. Vitoria da Conquista: Ed. UESB, 2007. SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano. Nossas raízes africanas. São Paulo, Atabaque, 2004. SOUZA, Janice. Reinvenções da utopia: a militância política de jovens dos anos 90. São Paulo. Ed. Hacker, 1999. YEMONJA, Mãe Beata. Caroço de dendê – a sabedoria dos terreiros – como Ìyálórisà e Babalórìsà passam conhecimentos a seus filhos. Rio de Janeiro, 1997. 9. SAUDE E DOENÇAS NA RELIGIÃO DE MATRIZES AFRICANAS Nome: Celio de Pádua Garcia Titulação: Doutor Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Resumo: Este artigo pretende trazer elementos que contribuam para uma compreensão da questão da saúde segundo as tradições de matriz africana a partir de seu componente teológico e filosófico. Para tanto apresentamos as tradições de matriz africana conceitualmente, como se dá o processo de acolhimento, as interpretações sobre a doença e as divindades relacionadas com o reestabelecimento da saúde como a importância dos cuidados com o corpo para as religiões afro-brasileiras. Ao trafegar pelos ensinamentos dos terreiros das religiões de matriz africana, encontramos fundamentos para aplicar com uma linguagem acessível e acolhedora, princípios e práticas para a garantia da saúde integral da população negra neste universo. O modo de compreender e agir no mundo, vivido no terreiro, com seus mitos e ritos, crenças e valores, constitui um conjunto de saberes legítimos em seu contexto que, muitas vezes, se contrapõe e escapa aos saberes e verdades técnico-científicas dos profissionais. O terreiro é um espaço marcado pelo acolhimento, aconselhamento e tratamento de seus adeptos, integrando nessas práticas as dimensões física, psíquica e espiritual. Quanto à saúde da população negra, põem-se em evidência que o sofrimento psíquico é 84 resultante do desenraizamento das culturas negro-africanas. Pretende-se que esta publicação seja um instrumento potencializador para dar continuidade às ações de garantia dos direitos em saúde para a população de terreiros. Palavras-chave: Saúde; Terreiro; Religião; Matriz Africana Decidir ou interpretar que você está doente é um processo que é construído junto ao seu grupo, envolvendo noções compartilhadas sobre o corpo, seu funcionamento e quais sinais indicam que algo está errado, a gravidade da situação e como interpretá-la. Trazendo essa abordagem para o cotidiano: quando a pessoa acorda pela manhã e sente que não está bem, ela começa a perceber, investigar e interpretar os sinais do corpo e talvez do ambiente externo, dependendo da cultura, que vão ajudá-la a diagnosticar o mal-estar: Eu não estou bem? Qual é o problema? Qual doença pode ser? O diagnóstico provisório e a busca de tratamento é um processo sociocultural em que o doente e seu grupo negociam para identificar o problema e determinar o que devem fazer. Então, nesse sentido de processo de doença, como processo sociocultural, é um processo que em parte é social, envolvendo interação e negociação do grupo, e por outro lado envolve as subjetividades e as divindades cultuadas nas tradições de matriz africana têm um importante papel na manutenção da vida, que se inscreve na perspectiva da saúde cuja visão é sempre integral. O universo da cosmovisão africana agrega valores civilizatórios para a nossa identidade brasileira que certamente devem ser visitados ao longo do processo de construção de direitos humanos em saúde. Ao trafegar pelos ensinamentos dos terreiros das religiões de matriz africana, encontramos fundamentos para aplicar com uma linguagem acessível e acolhedora, princípios e práticas para a garantia da saúde integral da população negra neste universo. Segundo Míriam Alves, as Tradições de Matriz Africana são principalmente identificadas por possuírem “organizadores civilizatórios invariantes” que materializam simbólica e concretamente o complexo cultural negro-africano em nossa sociedade. A “tradição oral, sistema oracular divinatório, culto e manifestação de divindades, ritos de iniciação e de passagem [...] são fundamentais para a 85 inscrição de um paradigma civilizatório negro-africano nesse contexto.” (ALVES, 2012, p. 56) O historiador e etnólogo malinês Amadou Hampâté Bâ. Bâ (2010. p. 169) ainda enfatiza que a cultura africana está intimamente vinculada à vida numa concepção de mundo como um todo “onde todas as coisas se religam e interagem Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regiões. A violação das leis sagradas causaria uma perturbação no equilíbrio das forças que se manifestaria em distúrbios de diversos tipos. (BÂ, 2010, p. 173) As Tradições de Matriz Africana podem ser classificadas em dois tipos: as tradicionais africanas, que existem no continente há milênios; e as afro-americanas (ressignificadas na diáspora). Dessas últimas ainda temos outra subdivisão: as afrocaribenhas (Santería em Cuba e o Vodu no Haiti) e as afro-brasileiras (Batuque, Candomblé, Tambor de Mina, Nagô e Xambá). As Tradições de Matriz Africana possuem uma mesma Teologia e Filosofia, embora haja diferenças litúrgicas. Todas acreditam num Ser Supremo, Deus (que pode ser chamado de Olódùmarè, Ọlọ́run, Nzambi, Mawu-Lisa, dependendo do grupo étnico de origem) que é o detentor do Àṣẹ, o poder imaterial divino de criação e sustentação da vida na Terra. Ele cria as divindades (Òrìṣà, Nkisi, Vodun) para agirem na Terra como intermediários entre Ele e os seres humanos. As divindades são cultuadas de forma simbólica e espiritual como agentes que lidam diretamente no mundo e na história da humanidade. Cultuam-se várias divindades, dependendo da tradição. No Batuque são basicamente treze: Èṣù (Bara), Ògún, Ọya-Yánsàn, Ṣàngó, Ọdẹ, Ọtin, Ọ̀sányìn, Ṣànpọ̀nná, Ọbà, Ibéji, Ọ̀ṣun, Yemọjá e Òṣàálá. No candomblé ainda acrescentam-se a estes Òṣùmàrè, Lógun 86 Ẹ̀ dẹ, Iyewa e Iróko, além de cultos específicos a Nàná Buruku e Ọ̀rúnmìlà que no Batuque são cultuados de forma agregada a Yemọjá e Òṣàálá, respectivamente. As Tradições de Matriz Africana não acreditam em reencarnação, mas sim em renascimento, onde cada indivíduo renasce como uma nova pessoa totalmente diferente. Não há a doutrina da evolução espiritual nem do sofrimento como inerente à vida. Para essa tradição, a vida é boa, é uma dádiva divina, por isso logo regressamos a ela. (SIVEIRA, 2012) As Tradições de Matriz Africana influenciaram a espiritualidade popular gerando amalgamentos entre tradições religiosas diferentes. Estes amalgamentos são chamados de sincretismos. Religiões como a umbanda, babaçuê, catimbó, jurema, etc., possuem elementos teológicos, filosóficos e ritualísticos que fundem o catolicismo, o espiritismo kardecista, a pajelança (religião indígena) e as tradições africanas em uma só expressão religiosa. Os templos afro-religiosos: espaços de inclusão, de acolhimento e de aconselhamento. As religiões afro-brasileiras mantiveram-se, ao longo dos anos, como foco de resistência cultural negra, formando uma estrutura que marca de forma significativa a cultura brasileira. São mais de 30.000 terreiros espalhados pelo país, constituindo as diversas expressões das religiões de matrizes africanas no Brasil (Silva, 2003). Em função da especulação imobiliária e da necessidade de espaços que possibilitassem contato maior com a natureza, os terreiros encontram-se localizados em subúrbios ou periferias das cidades, áreas geralmente desprovidas de equipamentos e recursos sociais. Os templos afro-religiosos constituem-se, há séculos, em espaços de inclusão para os grupos historicamente excluídos, de acolhimento e de aconselhamento. As práticas rituais e as relações interpessoais que são estabelecidas nestes espaços possibilitam as trocas afetivas, a produção de conhecimento, o acolhimento, a promoção à saúde e a prevenção de doenças e agravos, bem como a renovação de tradições milenares, sobretudo por meio do uso das plantas medicinais. Para as Tradições de Matriz Africana todos os espaços na Terra são sagrados, contudo existem espaços de culto familiar e vínculo iniciático que são 87 chamados de terreiros, terreiras, roças ou ainda Ilé. Nestes espaços de recriação e manutenção civilizatória africana, se estabelecem a seguinte hierarquia: SumoSacerdote (Bàbálórìṣà ou Ìyálórìṣà), sacerdotes auxiliares (Ẹ̀ gbọ́nmí), sacerdotes iniciados no culto às divindades (Ìyàwó) e renascidos para a comunidade (Abíyán) . O indivíduo para esta tradição é importantíssimo, pois a comunidade se entende como um coletivo, ou seja, cada pessoa que compõe a comunidade tem sua importância individual para ela. Assim entendemos que a existência individual só tem sentido no âmbito comunitário. As comunidades tradicionais de terreiro – territórios comunitários de preservação e culto das religiões de matriz africanas e afro-brasileiras – são espaços de acolhimento e aconselhamento de grupos historicamente excluídos, dentre os quais a população negra. As práticas rituais e as relações interpessoais produzidas no terreiro possibilitam o acolhimento, as trocas afetivas, a construção de conhecimento, a promoção e prevenção à saúde e a renovação de tradições, como o uso terapêutico de plantas. (ALVES, 2009). Contudo, é nesses espaços onde a sabedoria dos mais velhos se funde à vocação para aprendizagem dos mais novos, que desenvolvemos o nosso trabalho de ações de promoção da saúde em rede. Os terreiros constituem-se como focos de resistência cultural negra, mas também funcionam como pólos de difusão de informações e trocas de saberes, que muitas vezes não são reconhecidos pela classe dominante (Sodré, 1988). As religiões afro-brasileiras possuem um modelo de cuidado e atenção à saúde que tem repercussão na melhoria da qualidade de vida dos adeptos e da comunidade do entorno. Os terreiros reúnem um repertório simbólico e real de alternativas de informação/ educação/atendimento na prática de lidar com a saúde e com a educação, podendo tornar-se importante instrumento estratégico para o enfrentamento de várias doenças e para a promoção da saúde. Saúde e o terreiro Nos terreiros a saúde acontece em três dimensões: saúde mental, saúde do corpo e saúde espiritual. A noção de saúde e doença está associada ao conceito de 88 axé – energia da vida. O axé como energia pode aumentar ou diminuir causando o equilíbrio ou o desequilíbrio (Santos, 1986). A doença para as religiões afro-brasileiras pode ser considerada um desequilíbrio ou uma ruptura entre os mundos dos humanos e o mundo sobrenatural. Muitas vezes uma experiência, entendida na lógica da medicina oficial como distúrbio do corpo físico e/ou da mente, são para as religiões afro sinais ou manifestações de deuses e deusas. Exemplo disso são os casos de iniciações por problemas de saúde. Vários são os procedimentos utilizados para o reequilíbrio das pessoas e alguns deles serão relacionados a seguir: o jogo de búzios, os ebós, o bori, as iniciações, o uso das folhas, ervas raízes e flores, os banhos, as benzeduras, as beberagens, o aconselhamento, etc. Cada tradição religiosa afro-brasileira utiliza um procedimento ou combinações de procedimentos visando restabelecer a saúde das pessoas. No jogo de búzios, o sacerdote ou a sacerdotisa além descobrir o problema que aflige a pessoa (o consulente), repassa também o que é preciso fazer para solucioná-lo. O jogo de búzios também permite aconselhar as pessoas para escolher o melhor caminho a seguir. O bori, que quer dizer dar comida à cabeça é fundamental para fortalecer a cabeça do indivíduo e fortalece também os laços com a comunidade e com a própria tradição. Enfim podemos dizer que todos os procedimentos rituais são também procedimentos terapêuticos, pois envolvem cuidado, carinho e atenção, propiciando o reforço da energia vital (axé). Para candomblé, nação angola uma pessoa saudável está na linha de kalunga que é a linha do equilíbrio, simbolizada por uma linha horizontal; quando está doente, uma extremidade dessa linha desce e outra sobe tornando-a inclinada, indicando um desequilíbrio energético. A cura das doenças na perspectiva das religiões afro envolve a ação dos dois mundos: material e imaterial, visível e invisível. Nada ocorre nessa tradição religiosa sem a interação desses dois mundos. Muitas vezes um desequilíbrio físico é provocado por um desequilíbrio espiritual e vice-versa. Apesar de sabermos que muitas doenças precisam ser tratadas pela medicina dos cientistas, se a pessoa é iniciada, quase sempre busca antes o terreiro para se curar e sempre busca a cura dos dois lados. 89 Nesse sentido a sabedoria dos terreiros e as suas práticas terapêuticas são fundamentais para lidar com o sofrimento das pessoas e o restabelecimento da saúde. Os modelos de intervenção nos terreiros, como já vimos anteriormente, incluem atenção e cuidado no atendimento. Faz parte do processo terapêutico a escuta do consulente, um modelo que certamente poderia inspirar políticas públicas de saúde e que está de acordo com o que é preconizado pela Organização Mundial de Saúde. A atenção à saúde nos terreiros inclui: o acolhimento e suporte, o toque no corpo, o respeito aos idosos e ao saber dos mais velhos, a celebração da vida e do nascimento, o respeito às orientações sexuais, o equilíbrio psicossocial, a inclusão de todos, entre outros aspectos. A visão de mundo dos terreiros que está no ritual, no cuidado, na construção de uma linha de continuidade de ser, de inclusão num processo histórico, de territorialização, de pertencimento a uma família mítica e humana cria um campo de mediação que facilita o escoamento da tensão psíquica que se cria entre aquilo que queremos (desejo) e o que é possível (limite) (Guimarães, 1990). Os motivos para a doença: um problema da comunidade e não apenas do indivíduo. São muitos os motivos que levam uma pessoa a procurar uma comunidade tradicional de matriz africana para solucionar seus problemas com relação à saúde. Nas sociedades africanas a doença [...] não é ressentida apenas como fenômeno que vem abater a dimensão física do indivíduo em particular mas, ela é também vivenciada em, alguns casos, como uma desordem espiritual do próprio homem nas suas relações com a sua família espiritual, dimensão da ancestralidade. E consequentemente, a doença perturba as relações sociais. Por conseguinte, as sociedades africanas geralmente concebem a doença como a ruptura do equilíbrio, da harmonia do ser humano, do indivíduo, da família, da comunidade, da sociedade e do Cosmos em geral. (DOMINGOS, 2013, p. 1150). Para as tradições de Matriz Africana a diferenciação entre doenças espirituais e físicas é muito sutil, ou seja, não há uma ideia fechada sobre o que é típico do espírito, por isso somente tratável espiritualmente; e o que é típico do físico, tratável pela medicina oficial. 90 Este é o motivo mais comum da busca por cura nas comunidades tradicionais de matriz africana. Contudo, não são os únicos. Há problemas considerados exclusivamente de ordem espiritual. A doença pode, inclusive, ser fator indicativo da necessidade de uma pessoa ser iniciada no culto. A doença e a cura aparecem como os principais fatores responsáveis pelo grande número de fiéis que as religiões afro-brasileiras congregam. A cura, além de ser a demanda mais frequente, é também um dos motivos principais de conversão dos fiéis. (KNAUTH, 1994, p. 91.) É através da consulta a Ifá que se encontra a origem da doença e da terapia a ser utilizada para sua solução. Uma vez identificado que o sofrimento da pessoa provém de um feiticeiro ou de suas próprias ações, são executados trabalhos espirituais para anular o mal e assim trazer o indivíduo de volta ao estado de saúde plena. Estes trabalhos espirituais é o terceiro passo e são executados sempre por um ou mais sacerdotes habilitados e com experiência e sabedoria. É invocado um ou mais divindades para auxiliar na execução do trabalho. Contudo dois Òrìṣà, são os mais importantes, pois estão diretamente relacionados à saúde: Ọ̀sányìn e Ṣànpọ̀nná. A promoção da saúde nesses espaços é fundamental, pois permite a preservação da própria tradição religiosa, uma vez que o corpo é um dos elos de ligação com os deuses e deusas. A saúde é vivenciada pelos adeptos como o equilíbrio das forças vitais ou a harmonia com a natureza. Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. A Rede foi criada em março de 2003 durante o II Seminário Nacional Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (São Luis-MA) sendo uma instância de articulação da sociedade civil que envolve adeptos da tradição religiosa afrobrasileira, gestores/profissionais de saúde, integrantes de organizações nãogovernamentais, pesquisadores e lideranças do movimento negro. A Rede tem como objetivos lutar pelo direito humano à saúde; valorizar e potencializar o saber dos terreiros em relação à saúde; monitorar e intervir nas políticas públicas de saúde exercendo o controle social; combater o racismo, sexismo, homofobia e todas as formas de intolerâncias; legitimar as lideranças dos 91 terreiros como detentores de saberes e poderes para exigir das autoridades locais um atendimento de qualidade, em que a cultura do terreiro seja reconhecida e respeitada; estabelecer um canal de comunicação entre os adeptos da tradição religiosa afro-brasileira, os gestores, profissionais de saúde e os conselheiros de saúde. A Rede desenvolve várias atividades visando o empoderamento das lideranças da tradição religiosa afrobrasileira para o exercício do controle social de políticas públicas. Para isso conta com profissionais de educação e saúde iniciados ou simpatizantes dos terreiros que desenvolvem ações nos diversos núcleos espalhados pelo país e mães e pais de santo gerenciando cada núcleo da Rede. Na sua trajetória a Rede teve que enfrentar alguns desafios devido ao olhar de gestores e profissionais de saúde em relação às religiões afro-brasileiras. Os terreiros por sua vez reclamavam que o PSF não os atendia e com isso não cumpria o que estava garantido por lei, na Constituição: o direito humano à saúde. Outro desafio foi lidar com a intolerância religiosa, uma vez que grande parte das equipes de saúde é formada por pessoas de outras religiões (católicos e evangélicos), que muitas das vezes dificultam o acesso dos adeptos aos serviços oferecidos pelo SUS. Entretanto, as equipes de saúde também reclamavam que alguns adeptos vão contra as orientações prescritas pelos médicos e atrapalham o tratamento confiando mais nos pais e mães de santo do que nos profissionais de saúde. As capacitações da Rede serviram para discutir essas questões e criar um plano estratégico que possibilitasse o enfrentamento dessas dificuldades, envolvendo as lideranças dos terreiros e os profissionais de saúde. Dentre alguns resultados podemos citar o fortalecimento da Rede e a construção de visibilidade nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal); intercâmbio entre sacerdotes e sacerdotisas das diversas religiões de matrizes africanas; a inclusão dos terreiros em ações do SUS em várias cidades; a inclusão do respeito aos saberes e valores das religiões de matrizes africanas na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra (aprovada em novembro de 2006 pelo Conselho Nacional de Saúde) Considerações finais 92 As comunidades tradicionais de terreiro – territórios comunitários de preservação e culto das religiões de matriz africanas e afro-brasileiras – são espaços de acolhimento e aconselhamento de grupos historicamente excluídos, dentre os quais a população negra. As práticas rituais e as relações interpessoais produzidas no terreiro possibilitam o acolhimento, as trocas afetivas, a construção de conhecimento, a promoção e prevenção à saúde e a renovação de tradições. Os terreiros reúnem um repertório simbólico e real de alternativas de informação/ educação/atendimento na prática de lidar com a saúde e com a educação, podendo tornar-se importante instrumento estratégico para o enfrentamento de várias doenças e para a promoção da saúde. (J. Silva, 2007) A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) que foi aprovada em novembro de 2006, pelo Conselho Nacional de Saúde, e a sua execução continua sendo muito importante para a redução das desigualdades raciais em saúde e para o combate ao racismo institucional e outras formas de intolerância. A PNSIPN garante a ampliação e fortalecimento da participação de lideranças dos movimentos sociais em defesa da saúde da população negra nas instâncias de participação e controle social do SUS, além de incluir em suas diretrizes gerais a promoção do reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas. O povo de santo e povo negro, precisa conhecer algumas leis que garantem direitos e o Estatuto de Igualdade Racial (Lei 12.288 de 20 de julho de 2010) é uma delas. O Estatuto reconhece que o direito à saúde da população negra será garantido pelo poder público e informa que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra agora é lei, assim como assegura a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado de representações das demais religiões em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público. Referência Bibliográfica ADÉKỌ̀YÀ, Olúmúyiwá Anthony. Yorùbá: tradição oral e história. São Paulo: Terceira Imagem, 1999. 93 ALVES, Míriam Cristiane. Desde dentro: processos de produção de saúde em uma comunidade tradicional de terreiro de matriz africana. Porto Alegre: PUC/RS, 2012. 306 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. p. 56. ALVES, Miriam Cristiane; SEMINOTTI, Nedio. Atenção à saúde em uma comunidade tradicional de terreiro. Revista de Saúde Pública. v. 43 (supl.1). São Paulo, ago. 2009. p. 86. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v43s1/754.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2015. BÂ, A. Hampaté. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (ed.). História geral da África I: metodologia e pré-história da África. Brasília, DF: UNESCO, 2010. DOMINGOS, Luíz Tomás. A dimensão religiosa da medicina africana tradicional. In: CONGRESSO DA SOTER , 26., 2013, Belo Horizonte. Anais do congresso da SOTER / Sociedade de Teologia e Ciências da Religião: Deus na sociedade plural: fé, símbolos, narrativas. Belo Horizonte: PUC Minas, 2013. p. 1150. GUIMARÃES, M. A. É um umbigo, não é?: a mãe criadeira, um estudo sobre o processo de construção de identidade em comunidades de terreiro. 1990. Dissertação - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, l990. KNAUTH, Daniela Riva. A doença e a cura nas religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. In: ORO, Ari Pedro (Org.). As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1994. SANTOS, J. E. Os Nagô e a morte: Padê, Asese e o culto Egun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986. SILVA, J. M. AIDS e religiões afro-brasileiras. Boletim ABIA, Rio de Janeiro, n. 26, p. 10, 1994. SILVA JM. Religiões e saúde: a experiência da Rede Nacional de Religiões Afro e Saúde. Saude Soc. 2007;16(2):171-7. SILVEIRA, Hendrix. Gbobo ohun ti a bà se ni ayé l'a o kunlẹ̀ rò ni Ọ̀run: processo escatológico no Batuque do Rio Grande do Sul. Identidade!. Vol. 17, nº 02, 2012. p. 247-258. Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2015 SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, 1988. 3- BANHAR PARA DESCARREGAR: A TERAPÊUTICA DOS BANHOS NA UMBANDA Luan Rocha de Campos Email: luanr.campos@gmail.com Mestrando em Ciências da Religião/PUCSP 94 Resumo: Constituído de diversos elementos e preparados para determinados fins, os banhos de descarrego na Umbanda possuem um papel importante na prática de toda ritualística da religião, bem como na vida pessoal do simpatizante, adepto ou iniciado. Ainda que a Umbanda seja uma religião nascida num contexto urbano, sua ligação com os elementos da natureza é indispensável, pois é deste ambiente que o axé dos orixás é proveniente. Os banhos, nesse sentido, possuem algumas funções específicas, que vão da feitura e do batismo do iniciado ao receituário feito por guias e chefes de santo em vista de que a vida do consulente se transforme e este alcance seus objetivos tão desejados. Preparar um banho com ervas maceradas ou fervidas em água quente, não só ajudará o indivíduo a se limpar de “energias pesadas”, como também o fará entrar em relação com as forças que guiam arquetipicamente o terreiro, bem como com as entidades que orientam os filhos de santo daquele espaço sagrado. Este trabalho tem como objetivo apresentar o sentido dos banhos de descarrego na Umbanda em vista de que possamos compreender melhor a função terapêutica destes na vida das pessoas que recorrem à religião em busca de cura e saúde. Palavras-chave: Umbanda, Banho de Descarrego, Saúde, Cura O banho, desde a antiguidade, possui papel de destaque na diversidade de culturas existentes no mundo. Em meio ao contexto religioso, sua função sempre esteve ligada a ideia de renovação e renascimento. Dentro das religiões afrobrasileiras, por sua vez, o seu papel sempre foi essencial, pois somente por meio dos banhos de limpeza espirituais e de fortalecimento mediúnico é que tanto o iniciado quanto o consulente, terão condições de encontrar resoluções para suas questões. Este artigo tem como objetivo apresentar em três partes alguns pontos de destaque em torno do banho e sua função ritual, principalmente na religião de Umbanda. Primeiro, apresentaremos um breve resumo sobre a história do banho. Logo em seguida, discorreremos sobre a ideia de doença dentro da religião umbandista, para em seguida apontar qual a função simbólica dos banhos de descarrego dentro da religião. A função simbólica da água e do banho: um breve resumo. Hoje, tudo o que diz respeito a limpeza e a purificação nada tem a ver com a concepção da antiguidade em torno da água e do banho. Em meio às gôndolas dos mercados, farmácias e spas encontramos, não apenas sabonetes ou shampoos, 95 mas uma grande variedade de produtos que evocam não apenas uma limpeza do corpo, mas seu bem-estar como um todo, seja visando a maciez ou perfume da pele, a proteção ou resistência do corpo em meio o calor ou frio etc. Em nosso contexto moderno e, principalmente, ocidental, o banho não é mais visto como algo possuidor de função ritual, ainda que fazê-lo seja um processo ritual para todo aquele que, habitualmente, o faz em sua vida. Contudo, se voltarmos alguns séculos atrás encontraremos tanto na água quanto no banho a uma função simbólica essencial na ordenação da vida de grandes civilizações A água, em quase todas as religiões, é a representação da purificação e da limpeza profunda. Aspectos estes ligados, ademais, a graça e ao perdão. Existe uma estreita relação, por assim dizer, entre a limpeza que é proveniente da água e do ato de banhar-se, com a sujeira, que diz respeito a tudo aquilo que se encontra fora desse campo da graça, do perdão, da regeneração e da pureza (não enquanto algo limpo apenas fisicamente, mas como algo que não teve maculada sua essência divina ou sagrada). Banhos e imersões possuem uma relação natural com ritos de passagem ou de iniciação, cerimônias que marcam a transição de um estágio da vida para outro (a criança que se torna adolescente, a condição de solteiro para a de casado, o estado de vida para o de morte ou do de morte para o de vida etc.). Mergulhar nas águas e emergir dela é uma maneira de declarar completo abandono pelo velho em detrimento do novo. Chevalier e Gheerbrant (1996, p.15) afirmam que “as significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência”. Era muito comum noivas, e até mesmo noivos, no período da Grécia Antiga, tomarem o seu banho pré-nupcial. Na Alemanha renascentista, era também natural as mulheres jovens confeccionarem uma “camisa de banho” para seu futuro marido. Cavaleiros ou religiosos tomavam um banho ritual antes de sua investidura, fosse para receber sua insígnia real, fosse para tomar seus votos de castidade perante a instituição religiosa. Entre os judeus sempre foi muito comum, além dos banhos de purificação antes de qualquer função sacerdotal na sinagoga, a lavagem do corpo dos mortos, como símbolo essencial de passagem dessa vida para uma posterior (ASHENBURG, 2008, p.16). Entre os indianos, por exemplo, o banho não está ligado apenas a purificação, mas também a uma espécie de reconexão com o sagrado, que abençoa o indivíduo no momento do banho. Entre as práticas 96 candomblecistas, a água possui papel fundamental, não apenas no banho de fortalecimento com ervas do seu respectivo orixá, mas também na administração do axé dos assentamentos nos terreiros. Entre os cristãos, por sua vez, o batismo é , por excelência, o símbolo da morte e renascimento de uma vida de impurezas e apartada do plano de salvação para uma nova existência, livre de influências maléficas e de uma moral estranha, conectada, por assim dizer, aos planos de salvação de Deus. É interessante apontar que os ritos de passagem e a religião não são os únicos contextos nos quais a água e os banhos estão presentes. Até o fim do século XIX, os banhos terapêuticos desempenharam um papel muito significativo dentre o repertório médico ocidental. Era mais que comum, também, o banho como ato social, principalmente entre os romanos, povo este que popularizou as famosas casas de massagem e banho por praticamente toda Europa. Foi com o cristianismo, porém, com sua ênfase espiritual em torno do banho, que o menosprezo e a negligência com o corpo dominaram quase que praticamente a cultural do Ocidente. Os séculos de XIII a XVIII são um período em passa a existir um grande distanciamento das pessoas não só do uso da água enquanto símbolo religioso, mas também de sua função orgânica, como forma de manutenção da limpeza de corpos e ambientes. Em linhas gerais, a água, simbolicamente, é um elemento que gera uma consciência de si mesmo, refletindo ao homem sua própria figura, ou seja, representando como num espelho tudo aquilo que ele é. Por seu movimento, sugere a ideia de mobilidade das coisas e momentos, representando tudo o que é passageiro. Por estar no útero da mulher ao longo da gestação, é símbolo da vida, mas também da morte, quando da sua capacidade de destruir tudo o que está ao seu redor, limpando o que não serve mais e abrindo espaço para que algo novo possa existir. Na Ásia, a água representará a regeneração corporal e espiritual, a fertilidade, a pureza, a sabedoria e a virtude. Sua fluidez evoca a dissolução, enquanto que sua homogeneidade evoca a coagulação. Para a cultura tantra, a água representa o prana ou a força vital. Tida como um elixir, para muitos países do oriente a água é a aquela capaz de dar ao ser humano a beleza e a imortalidade. Oposta ao yang, ela representará para os chineses o feminino e tudo o que é frio, intrauterino e de função nutritiva. Múltiplo em seus significados, este elemento 97 dificilmente não terá uma presença marcante ao longo da diversidade de culturas no oriente e no ocidente. O corpo, nesse contexto, será de grande importância para a compreensão da relação do homem religioso com a água, pois enquanto para alguns ele representará o espaço de manifestação do sagrado, para outros o seu menosprezo será de grande valia, pois o que mais importa são as coisas do espírito. Isso se refletirá, ademais, na forma como os rituais serão desenvolvidos por cada religião. Dentro de um contexto afro-brasileiro, por exemplo, o trato e o cuidado para com o corpo terão papel essencial na relação que o adepto ou iniciado tem com sua divindade pessoal, principalmente do seu uso da água em banhos para diversos fins. Receptáculo de energia e do próprio deus, o corpo é exaltado como sinônimo de alegria, saber, poder, intensidade, sentimentos, arte e movimento. Concepção essa contrária a religiões monoteístas como o cristianismo ou até mesmo espiritualistas como o espiritismo, que vêem na matéria ou na carne uma espécie de prisão. Esse aspecto é fundamental para entendermos melhor o sistema terapêutico presente dentro de religiões como a Umbanda, que enxerga no corpo a cristalização da doença ou do mal. Da doença à desordem: a Umbanda terapêutica. É muito comum vermos pessoas desenganadas de cura perante o método médico tradicional, que lida com os problemas ou disfunções físicas com elementos químicos e cirúrgicos. Contudo é tão comum quanto vermos essas pessoas desenganadas pela medicina saírem em busca de tratamentos alternativos ou complementares, que possam de alguma forma lhes auxiliar num processo de cura, melhoria ou aceitação de sua condição de saúde. É, sobretudo, para o ambiente do terreiro, que muitos se direcionam em busca de algo que possa ser feito por seus males, vistos fisicamente, mas compreendidos ali sob uma ótica espiritual. Aqui está presente uma linha tênue entre o que é e o que não é considerado “doença material” e “doença espiritual”. Essa visão é importante de ser apresentada, pois para o umbandista, na maioria das vezes, o primeiro tipo de doença sempre é preconizado pelo segundo. 98 Paula Montero, em sua obra “Da doença a desordem” (1985), trabalha exaustivamente essa temática ao apontar a magia como último recurso diante do fracasso da medicina e de seus tratamentos medicamentosos. É interessante, pois ao passo em que a doença é sinônimo de perda de algo essencial na vida do indivíduo, ela desempenha, ao mesmo tempo, um papel revelador, no sentido de que a pessoa tem “revelada” pra si a explicação sobrenatural das causas de seus malefícios. Muitas das doenças que se encaminham para o espaço do terreiro, em vista de que ali possam ser explicadas, não foram percebidas pela visão médica, ainda que o indivíduo tivesse em seu corpo os sintomas de algum problema. Isso aponta, além da incapacidade de diagnóstico por parte dos métodos convencionais, para uma presença na vida da pessoa de forças sobrenaturais, cuja natureza, origem e intenções cabem ao médium investigar, e não ao médico (MONTERO, 1985, p.135). Se a doença fosse simplesmente um fenômeno material, o médico a teria detectado com seus aparelhos e sua visão. Sua incapacidade de perceber a doença é uma afirmação de que a doença não é realmente uma doença: os sintomas mórbidos são indicadores de uma outra ordem de acontecimentos, que tem a ver coma esfera do mágico e do transcendente. Tudo se passa como se o médico [...] corroborasse “cientificamente” a existência de uma esfera que escapa a sua competência. (MONTERO, 1985, p.136) Neste contexto, a doença passa por um processo de resignificação e é entendida pelo adepto da religião, ou por aquele que vai em busca de sua cura, como uma espécie de desordem, no sentido de que os sintomas da doença no corpo apenas são um indício de uma ameaça ainda maior. Enquanto expressão de uma negatividade quase que absoluta, a doença se torna uma espécie de paradigma do conflito, denotando de forma metafórica descontrole e caos não apenas no corpo físico, mas igualmente em sua interligação tanto entre o corpo social quanto no corpo astral ou espiritual. Montero (1985, p.142), ao aprofundar seu entendimento sobre as doenças no contexto umbandista, categoriza em três tipos as causas desses males. Primeiro, causado pela própria pessoa, ou seja, é por meio de sua transgressão no jogo ritual, bem como de sua moralidade, que a pessoa atrai para si toda sorte de influências negativas (maus fluídos, quiumbas ou obsessores). Segundo, causado por terceiros, ou seja, são por meio de feitiços ou obsessões que a pessoa acaba convalescendo, pois alguém está desejando o seu mal. E terceiro, 99 causado pelo karma, ou seja, as doenças estão cumprindo um papel de auxílio no processo evolutivo da pessoa. É importante dizer que mesmo sendo a transgressão moral um fator determinante, dentre outros, para o surgimento dessa desordem, não é ela que a prática mágico-religiosa tem a intenção de alterar. Seu intento está, antes de qualquer doutrinação, em controlar as forças negativas responsáveis pela desordem no mundo e, principalmente, na vida cotidiana da pessoa adoentada. Posto isso, é válido adentrarmos a esfera do corpo nessa compreensão em torno da desordem, pois a este é atribuído um local privilegiado na ação mágica de correção dessa desordem. Por serem de uma ordem invisível, as doenças espirituais só são “vistas” a partir do momento em que sua materialização se dá no próprio corpo, espaço em que é possível domesticar essas forças. Montero (1985, p.150), nesse sentido, afirma que as práticas rituais do meio umbandista acabam visando este corpo, “na medida em que este (grifo nosso) é um “corpo-que-fala” que encarna e expressa algo que lhe é estranho e exterior”. Por isso, ao tentar organizar didaticamente as práticas mágico-terapêuticas umbandistas, Montero acaba por dividir em: a) os tratamentos que visam a ação direta no corpo do doente (a desobsessão ou “puxada”, que consiste em retirar por meio de uma corrente vibratória e o intermédio de um ou mais médiuns as forças negativas do corpo da pessoa doente; os passes ou benzeções; os banhos de descarrego); b) os tratamentos que visam a neutralização e a atuação espiritual direta de seres maléficos, atraindo para o indivíduo a proteção de entidades benéficas (desenvolvimento mediúnico; chás; irradiações; entregas, despachos e obrigações). De maneira geral, ainda que a forma como cada ritual é feito possa variar de terreiro pra terreiro, a sua principal intenção está em expulsar qualquer força indesejada que esteja desordenando ou desorganizando a vida da pessoa. Toda e qualquer força não conhecida não é bem vinda, pois o médium ao lidar com o invisível, deve, utilizando de seus recursos mágicos, controlar tais forças, que só são possíveis de serem contidas á medida que são conhecidas. Não se controlada o que é obscuro ou desconhecido. Por isso é de suma importância a prática de rituais que simbolizam em sua ação o ato de tirar algo de alguém, dando espaço para o que devidamente deve entrar na vida da pessoa (no caso, o foco de nossa análise apontaria a saúde, antes de outras coisas como amor, prosperidade etc). 100 Banhos de Descarrego: função simbólica Sabemos que dentre muitos tratamentos presentes no ambiente do terreiro, o banho é um dos que mais de destaca, devido à facilidade do consulente poder fazer no ambiente doméstico tal ritual. Tido, segundo Montero (1985, p.152), como um tipo de terapêutica que visa a ação direta no corpo da pessoa, ele não é só isso, pois sua função abrange muito mais utilidades, que não dizem respeito apenas a um controle da desordem na vida do adoentado, mas também uma espécie de prérequisito na prática mediúnica e na limpeza e administração da força ou axé que sustenta o espaço sagrado do umbandista. O banho de descarrego, além de carregar em seu simbolismo a carta de sentidos provenientes do que representa o banho em si, ou seja, purificação, limpeza, morte e renascimento, também traz como segundo nome o aspecto da descarga ou retirada de algo que tende a colocar o corpo (enquanto conjunto biológico, social e espiritual) em desordem, sinônimo para a presença de forças malignas no indivíduo e cristalizada neste corpo, que evoca, num sentido mais profundo a alusão da maldade com a sujeira. Ou seja, neste aspecto é válido dizer, seguindo a lógica de Mary Douglas, que a sujeira, nada mais é, do que um sistema ou um conjunto de relações ordenadas e uma contravenção a ordem natural das coisas (DOUGLAS, 1966, p.50). O consulente ao passar em uma consulta com o espírito guia do terreiro ou qualquer outra entidade dos filhos de santo daquele templo, geralmente tem receitado para a resolução de seus problemas banhos, que trarão em sua composição ervas, plantas, flores, frutas ou perfumes específicos e destinados a ordenação deste ou daquele problema. A qualidade do banho representará este ou aquele problema dependendo da relação que é feita entre os elementos que o compõe com o resultado desejado, tanto pelo consulente, quanto pelo espírito-guia. Outros “trabalhos” geralmente são recomendados para a desordem não retorne na vida da pessoa, mas é muito comum a recomendação de banhos como uma espécie de continuidade do tratamento, que naturalmente não tem um fim, mas uma 101 continuidade, à medida o homem em relação com o mundo acaba por ter provocado em sua vida males (provenientes de sua transgressão ou provocados por terceiros). O ato de banhar-se evoca simbolicamente, num primeiro momento, a limpeza do corpo de energias deletérias que estejam prejudicando o indivíduo. Isso faz com que se afastem de seu corpo (vida com um todo) toda e qualquer influência negativa de entidades espirituais. Após isso, o próprio ato de descarregar evoca a possibilidade de um vazio, que deve ser preenchido de energias benéficas provenientes tanto dos próprios elementos presentes no banho, quanto por meio da presença positiva de guias e espíritos bondoso e caridosos. O interessante é que atrelado a tudo isso, duas coisas são importantes de serem vistas: a primeira, diz respeito à relação que é travada entre consulente e entidades espirituais, no sentido de que para sua melhoria a pessoa se compromete tanto com ela mesma quanto com a entidade, pois parte do ato de se banhar é de responsabilidade do próprio consulente; e segundo, existe um tipo de relação que se dá, sobretudo, do consulente com a entidade e o ambiente da natureza, locus por excelência dos orixás e de guias como os caboclos. Além de sua função corretiva e de restabelecimento da ordem e da pureza, o banho também é utilizando pelos próprios adeptos da religião como forma de fortalecimento de sua conexão com as divindades e de abertura de seu canal de comunicação com as entidades espirituais. Usado, inclusive, na administração de assentamentos e tronqueiras, os banhos também desempenham o papel essencial quando das lavagens de chão do ambiente terreiro. Não porque de fato existe uma limpeza dita energética nesses locais ou no corpo do médium, mas porque o ato em si, como apontamos a pouco, cria uma íntima identificação e ligação do ser humano com o sagrado, que deve ser a todo tempo agrado e relembrado, afim de que sua ira não recaia sobre os seus filhos ou iniciados. Referências ASHENBURG, Katherine. Passando a limpo: O banho: da Roma antiga até hoje. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, folemas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1996 102 DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1966. MONTERO, P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ___________________________________________________________________ GT 07 PSICOLOGIA, RELIGIÃO, SABERES TRADICIONAIS E EPISTEMOLOGIAS NÃO-HEGEMÔNICAS Coordenadores: Prof. Dr. Luiz Eduardo Valiengo Berni/ Pesquisador da Universidade Rose-Croix Internacional/URCI/COF/DIVERPSI/CRPSP/CETR ANS Profa. Dra Ronilda Iyakemi Ribeiro/UNIPCNPq/ANPEPP/IPUSP Prof. Dr. Wellington Zangari/ USP/ANPEPP/USP Ementa: As terapias integrativas, que estabelecem diálogo entre as práticas religiosas, saberes tradicionais e científicos, evidenciam-se na sociedade ocidental a partir do fomento de organizações de Saúde tais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). A partir desse fomento os países membros, como o Brasil, têm produzido importantes políticas públicas que procuram apresentar tais terapias de forma a complementar à da Saúde convencional, tais como: A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) de 2006 e a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNPES) de 2012. Este cenário tem trazido para o campo das profissões a necessidade de se debruçarem para estabelecer zonas de diálogo entre os conhecimentos cientificamente comprovados, por meio de evidências quantificáveis em nível epidemiológico, e as eficácias simbólicas própria de saberes regionalmente construídos, como aqueles provenientes das religiões e tradições culturais. Como a psicologia e as religiões atuam num campo comum à produção de subjetividades é desejável o estabelecimento de critérios que possam ajudar os profissionais a lidarem com as fronteiras tênues entre esses conhecimentos, sendo este, portanto o objetivo desse grupo de trabalho. Comunicações: 1-FREUD E O FENÔMENO RELIGIOSO, UM ESTUDO PSICANALÍTICO Nome: Josenildo José da Silva Titulação: Doutorando 103 Instituição: Universidade Católica de Pernambuco Resumo: O tema sobre o fenômeno religioso tem se apresentado muito em voga em nossos dias. São muitas as experiências feitas em nível individual e também em nível coletivo no âmbito da religião. O presente trabalho tem como objetivo aprofundar o estudo freudiano do fenômeno religioso, segundo os conceitos psicanalíticos de ilusão e de desamparo. Partindo, pois, da análise de alguns textos da obra de Freud, referentes à temática da religião, buscaremos alcançar uma maior compreensão da relação que se pode estabelecer entre a teoria psicanalítica e os elementos que fundamentam tal fenômeno. Faremos, portanto, uma leitura histórico-crítica-interpretativa do pensamento de Freud, naquilo em que o mesmo se refere à temática da religião como sendo uma ilusão enganosa e consequência das vivências primeiras do desamparo. Tendo, pois, presente a dinâmica própria à Psicanálise, de ser uma teoria sempre aberta e em crescimento, apresentamos, nas considerações finais desta nossa pesquisa, a intuição de que a afirmação de Freud sobre o fenômeno religioso pode ser encarada mais como uma provocação à reflexão, e não como algo definitivamente fechado a possíveis questionamentos e acréscimos teóricos. Finalmente, à luz dos esclarecimentos psicanalíticos, buscaremos indicar a possibilidade de que o fenômeno religioso seja encarado como um elemento psíquico que, dada a sua forte incidência no momento atual, deve ser considerado como um aspecto que pode favorecer a estruturação ou re-estruturação da subjetividade e, portanto, como fator importante no entendimento do psiquismo humano. O fenômeno religioso faz parte do conjunto de elementos que estiveram e estão sempre presentes na história humana. Portanto, podemos afirmar que, do ponto de vista antropológico, não se pode conhecer verdadeiramente a pessoa, sem que façamos referência à sua dimensão religiosa (quando mencionamos aqui a dimensão religiosa estamos tratando da abertura que existe no ser humano para o outro que está além dele e que pode ser nomeado como Deus, mas também pode ser percebida como um compromisso ético, uma responsabilidade de solidariedade...). A partir do momento em que o ser humano começou a questionar a respeito da sua condição pessoal e da realidade na qual se encontrava imerso, se deparou com algumas questões frente às quais não encontrava respostas claras. Vale salientar, no entanto, que o fato de não poder explicar detalhadamente alguns acontecimentos não gerou nele sentimentos de angústia ou impotência (o que seria de se esperar). Na busca de responder às suas inquietudes, identificou a religião como uma instância na qual pôde encontrar possíveis caminhos que o ajudasse a 104 solucionar suas dúvidas. Aqui se encontra, portanto, a importância da temática religiosa. Aqui nos propomos analisar o fenômeno religioso de acordo com a visão psicanalítica freudiana e, mais especificamente, na obra O futuro de uma ilusão31. Intentamos compreender, com maior clareza, o que Freud pensava sobre a religião e o porquê do seu grande interesse por este tema, uma vez que o mesmo Freud sempre fazia questão de se declarar como um ateu convicto. Procederemos, portanto, da seguinte forma: Aprofundaremos brevemente o contexto social e religioso, no qual se encontrava Freud, procurando identificar possíveis elementos que pudessem contribuir para a sua consideração da religião como uma neurose obsessiva ou como uma ilusão enganadora. No segundo momento, nossa intenção será a de nos debruçarmos mais detalhadamente sobre a obra escolhida O futuro de uma ilusão situando-a na realidade histórica em que ela foi elaborada. A ideia do desamparo será crucial para a nossa compreensão do pensamento de Freud sobre a religião e, por isso, nos deteremos um pouco mais sobre esta vivência do desamparo. Finalmente, teceremos algumas considerações a respeito da insuficiência do aprofundamento reflexivo do tema da religião nos escritos freudianos, que julgamos como um fator que, longe de nos limitar a uma visão empobrecida de tal fenômeno, se apresenta como algo como que provocador de novas pesquisas e descobertas. Isso o faremos em consonância com a dinâmica metodológica própria ao saber psicanalítico, que no presente trabalho tomamos como referência. (Metodologia em espiral, onde nos parece que uma afirmação contradiz a outra, mas na verdade é como se amalgamassem as duas afirmações e desse um passo à frente) SIGMUND FREUD: CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAL E RELIGIOSO 31 Freud trabalha o tema da Religião em muitos outros textos, além de O futuro de uma ilusão. E podemos identificar ainda uma mudança na sua visão de fenômeno religioso quando confrontamos tais escritos, isto é, sua análise da religião em Moisés e o monoteísmo (1937), revela-se bem diferente daquela que ele desenvolve em Totem e tabu (1913); O futuro de uma ilusão (1927) e, ainda, em Mal-estar e civilização (1930). Ali, ele identifica no fenômeno religioso, não como uma neurose obsessiva, ou o fruto de uma ilusão ou resposta ao estado de desamparo, no qual se encontra o ser humano frente à natureza, mas reconhece o seu caráter possibilitador de uma ética e de uma espiritualidade para o povo judeu e para a forjadura de sua identidade cultural. 105 Sigmund Freud é conhecido por ser o fundador da Psicanálise, mas também por sua postura frente ao fenômeno religioso, que ele considera como uma “neurose obsessiva da humanidade”, ou ainda, como uma ilusão enganadora do ser humano por prometer algo que não lhe pode conceder. No entanto, verifica-se algo em seus escritos, que num primeiro momento aparenta uma profunda contradição, isto é, o seu grande interesse pelo fenômeno religioso. Por que alguém que se apresenta como um descrente e ateu convicto manifestou tanto interesse por algo a que não concedeu nenhum crédito? A resposta pode ser encontrada no fato de Freud ser um verdadeiro estudioso, pesquisador do ser humano. Na verdade, Freud mantém, em toda a sua existência, um vivo interesse por tudo o que se refere à dimensão antropológica. Entre os elementos presentes na história humana encontra-se em evidência o aspecto religioso que, por isso, atraiu a sua atenção, merecendo dele várias referências ao longo da vasta obra que escreveu e, mesmo, estudos específicos referentes à temática religiosa32. Ernest Jones, um dos seus principais biógrafos, diz, a respeito de Freud que “ele tinha uma verdadeira paixão por compreender... Sua inteligência recebeu uma tarefa da qual ele nunca se esquivou...” (1989, vol. 1, p. 27). Freud desenvolveu a atitude do pesquisador, do cientista que, para além de suas concepções pessoais, não se esquiva de se debruçar sobre qualquer aspecto que lhe venha proporcionar um maior conhecimento do objeto principal de seus estudos, ou seja, a realidade humana, em sua dimensão psíquica. (Pode-se perceber aqui a influência do espírito iluminista sobre Freud) Podemos ainda identificar na própria história pessoal de Freud outros elementos que o influenciaram de modo persistente na sua busca de compreensão do fenômeno religioso. Vale a pena destacar alguns: o fato de pertencer ao povo judeu (ainda que sua família não praticasse efetivamente a religião judaica) já nos concede uma compreensão melhor de seu interesse pelo sagrado, uma vez que 32 Começando em 1897, na sua correspondência com Fliess, na qual expõe suas descobertas sobre os mitos; em 1907, Freud escreve o seu primeiro texto diretamente relacionado ao tema da Religião Atos obsessivos e práticas religiosas (onde ele faz uma analogia com o comportamento dos neuróticos e os rituais religiosos: a compulsão à repetição, o sentimento de culpa...), depois temos, em 1913, Totem e tabu (onde ele trata da psicogênese da religião: o mito da horda primeva e o parricídio); O futuro de uma ilusão (1927); O mal estar na civilização (1930); até chegar a Moisés e o Monoteísmo (1938), obra concluída pouco tempo antes de sua morte. 106 este povo é profundamente marcado pela realidade religiosa na construção de sua identidade. O próprio contexto religioso da cidade em que nasceu e morou nos primeiros anos de sua infância, Freiberg, predominantemente dominada pela fé católicoromana (composta de apenas 2% de protestantes e 2% de judeus), possivelmente deve tê-lo marcado. Os biógrafos de Freud ressaltam também a influência de sua babá, uma mulher católica que sempre o levava às Missas e lhe falava da realidade do inferno. Finalmente, vale a pena registrar como algo verdadeiramente importante para entender a visão religiosa de Freud, o contexto cultural da cidade de Viena, na qual Freud se estabeleceu com a família, após a sua migração da região da Morávia (após os três anos de idade). O quadro social, no qual ele se encontrava imerso, era marcadamente negativista. O clima vivido é de desapontamento, de incertezas e de falta de esperança quanto ao futuro. Ao mesmo tempo, verifica-se nas pessoas um premente desejo de transformação e de mudanças. Neste ambiente, alguns identificavam a religião como um caminho de apaziguamento interior frente às ameaças externas; outros buscavam resposta na arte e havia, ainda, aqueles que procuravam encontrar soluções para as dúvidas cruciais no desenvolvimento da ciência. O FUTURO DE UMA ILUSÃO Na obra O futuro de uma ilusão, de 1927, Freud não mais se aterá ao aspecto da psicogênese religiosa, como o fez, em 1913, quando escreveu o livro Totem e Tabu. Questionará, então, “qual é, então, a significação psicológica das ideias religiosas e sob que título devemos classificá-las?” (1927/ 1996, p. 34). Sua preocupação foi identificar a natureza mesma da crença religiosa, procurando responder o que ela vem a ser numa perspectiva psicológica; desvendando a origem de sua alta estima para o ser humano, e, ainda, questionando o seu real valor para o mesmo.33 33 Desde as mais primitivas comunidades, sempre existiram indivíduos que afirmaram ter passado por experiências religiosas... É inegável, que o crente associa a imagem de Deus à de um pai protetor e bondoso. Freud afirma que isto faz parte da própria natureza psíquica do homem que, devido à 107 No livro, Freud abordará a existência humana como algo que se constitui numa contínua tensão, num permanente conflito entre possibilidades. O homem, pois, apesar de sentir como peso, quase insuportável, os sacrifícios exigidos pela civilização (= cultura), sabe-se, ao mesmo tempo, incapaz de viver no isolamento. Está, portanto, fadado a viver no estado de “frustração” por não poder ver satisfeitos os seus instintos, estado de “proibição” frente às normas que lhe são impostas pela dita civilização e, consequentemente, estado de “privação”, pois se sente impedido de realizar-se como realmente desejaria. Mas como manter um sistema que supõe o contínuo estado de insatisfação nos seus membros? Freud atinou para esse problema: “Não é preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura” (1927/ 1996, p. 22). As renúncias instintuais, exigidas pela formação da cultura, geram uma pressão sobre o homem. No entanto, não estando sozinho no mundo, sofreria as consequências desta “anarquia moral”, pois, ele mesmo seria empecilho para a realização e satisfação dos desejos de outros. A cultura surge, portanto, tendo como finalidade central a defesa do homem frente à natureza, em seu estado original. Todas as suas criações e invenções estão sempre direcionadas no sentido de tornar a vida humana mais confortável e menos ameaçadora. Pensar em vitória absoluta do mundo civilizado sobre o estado natural seria uma pretensão ingênua, como afirmou Freud: Há os elementos, que parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho da civilização. (19271996/, p. 25). Neste ponto do seu escrito, Freud denominou as ideias religiosas como “o mais importante elemento do inventário psíquico”. É interessante notar que ele sua fragilidade diante da morte e da natureza, precisa recorrer a alguém que o acalente e lhe confirme que há sentido em sua vida. Além do mais, o ser humano, como ser pulsional, deseja realizar sua fantasia de onipotência: ser eterno e realizar todos os seus desejos. “Foi assim que se criou um cabedal de ideias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (Freud, 1939, p.30). 108 indicou a insuficiência do trabalho cultural diante da natureza, em sua força mais primitiva e originária, que sempre está a recordar ao ser humano a sua condição constitutiva, ou seja, a sua finitude. Ou, como ele mesmo escreveu, o doloroso enigma da morte. Para todo o resto, o ser humano sempre encontra alguma saída, ainda que paliativa: reconstrói casas; represa águas, evitando inundações; inventa instrumentos que lhe possibilitem um maior controle do clima e de possíveis catástrofes... mas diante da morte ele subjaz passivo, inerte, desamparado. No desamparo, a presença do Pai A ideia fundamental de Freud (1927) sobre a origem do sentimento religioso encontra-se ancorada na vivência infantil que todos experimentamos de total desproteção e desamparo. Freud, em O futuro de uma ilusão, discorreu sobre esta experiência de pequenez e impotência que o homem faz diante das forças da natureza, as quais se manifestam como algo espantoso e incontrolável. Diante da natureza o ser humano se percebe indefeso, porém, não mais paralisado ou desvalido, pois, ele pode se proteger de vários modos, ainda que as maneiras que encontra, muitas vezes não sejam suficientes para livrá-lo de suas consequências nefandas. Diante da experiência “fascinante e tremenda” da natureza não controlável, o homem revive algo que não lhe é novo. Ele já se encontrou frente a situação semelhante: “como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos” (FREUD, 1927/ 1996, p. 26). Para Freud, é essa experiência de desamparo que serve como base ao ser humano para a constituição de suas ilusões religiosas. Frente às incertezas geradas pelo avassalador poder dos acontecimentos naturais, sobretudo, do medo da morte que lhe está sempre em companhia, tal como acontece em sua experiência onírica – segundo Freud – o homem atenua a angústia gerada pela impotência sentida, frente à falta de controle da natureza, transformando-a por meio de um processo de paternalização: deuses são gerados com a função de proteger; explicações míticas são elaboradas, no intuito de conferir sentido ao que se manifesta de modo fantástico. Enfim, para não sucumbir ao desespero, confecciona-se, no dizer 109 freudiano, todo um aparato religioso que proporciona à humanidade um sentimento de segurança e de felicidade, pois, tal como na mais tenra infância, não se está mais fadado ao destino imposto pela condição mortal. Destino este triste e desesperador, porque inexorável. A experiência de desproteção, portanto, re-vivida pelo ser humano diante das forças incontroláveis da natureza, o faz passar novamente pela experiência dos mesmos sentimentos infantis de medo, insegurança, ausência. A religião não é somente uma resposta ao desamparo provocado pela impotência vivida em confronto com a selvagem natureza do mundo externo, mas, deve-se frisar, como proteção diante dos sentimentos íntimos e profundamente negativos da vida psíquica. A formação, então, do fenômeno religioso é como que uma tentativa de resposta do ser humano no intuito de amenizar a sua angústia gerada pelo sentimento de desamparo e também de culpa. Quando, pois, Freud definiu a religião como uma neurose infantil, estava ele se reportando ao desamparo original experimentado pela criança ao nascer e, também, ao desamparo re-experimentado pelo homem, frente às situações desamparadoras, impostas pelos incontroláveis acontecimentos provenientes da natureza. São, portanto, as influências das suas primeiras vivências infantis que estão a lhe ajudar a forjar respostas ao semelhante desamparo que hora ele vive. Esta vivência, como afirma Freud, está presente na inteira vida do ser humano: “O desamparo do homem, porém, permanece e, junto, com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses” (1927/ 1996, p. 26). O desamparo, então, se constitui como elemento fundante de muitas outras experiências da vida do homem. O encontrar-se desamparado, em muitos momentos de sua vida, faz com que o indivíduo, pouco a pouco, vá se dando conta deste elemento que desde muito cedo esteve presente em sua vida não como algo acidental, mas como algo constitutivo. Os escritos freudianos sobre o fenômeno religioso estabelecem, portanto, uma ligação entre o complexo paterno, a situação de desamparo e, consequentemente, a necessidade que nasce no coração do ser humano – criança ou já adulto – de ser protegido. A religião, então, surge com as características próprias de uma resposta infantil frente a uma experiência de medo, de desamparo, 110 de desproteção. Portanto, com os avanços inevitáveis da ciência, e com o acesso das pessoas a um nível sempre maior de conhecimento ela – a religião – acabará por sucumbir a uma natural dissolução. O que, no dizer de Freud se constitui num processo ininterrupto (FREUD, 1927/ 1996, p. 47). CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com Freud, a religião teve uma finalidade, mas diante da evolução da ciência, ela deverá ceder o seu posto a algo mais concreto e mais digno do crédito das pessoas. Como a re-vivência de uma etapa infantil deverá ser deixada para trás. Em dado momento da história humana cumpriu o papel de possível resposta ao desamparo sentido pelo homem, como uma maneira de apaziguar seus temores e inseguranças diante da força brutal e incontrolada da natureza. É perceptível, então, que Freud ao mesmo tempo em que destronou a religião de sua posição de Weltanschauung, elevou a razão, o logos à condição divina. Ela se torna resposta para tudo. Nesta linha de pensamento, então, questionamos: Também o saber científico não possui, não se apresenta como uma visão de mundo a ser aceita, ainda que provisoriamente, como resposta aos desafios que se apresentam à vida humana? Também a ciência não falha nas suas intervenções frente às ameaças experimentadas diante da incontrolável força da natureza? Parece-nos que essas indagações podem encontrar um caminho de respostas numa reflexão mais aprofundada sobre a experiência do desamparo como realidade fundante e estruturante de nossa subjetividade, porque experiência constitutiva de nossa humanidade. O que queremos indicar, portanto, é que Freud é bastante assertivo e coerente quando indica o desamparo como fator que proporciona no ser humano a busca de respostas para o sentimento de angústia que o persegue constantemente. Também é verdadeiramente legítima a sua crítica à forma religiosa que se apresente como uma resposta cabal às interrogações e inquietações do homem. Não existe uma resposta absoluta! Não é possível fechar o “círculo humano” e torná-lo completo, sem que se lhe negue a condição mesma de “ser humano”. Ou seja, o ser humano é, em si mesmo, faltoso e, portanto, incompleto, inquieto e desamparado. E esta sua condição não é um defeito, mas um elemento de sua constituição. 111 Será que a Freud não faltou uma visão de religião mais ampla e menos dependente da experiência concreta que o mesmo viveu em seu tempo? Não terá sido ele mesquinho por demais na sua afirmação sobre a religião como uma neurose infantil e obsessiva? Ou ainda, não terá ele, com os seus escritos, apenas provocado a reflexão e o aprofundamento sobre este tema que sempre lhe foi caro? Concluo, finalmente, com uma citação do próprio Freud em uma carta escrita a Oscar Pfister, pastor protestante, com quem manteve longos anos de correspondência a respeito da relação entre a Psicanálise e a Religião: A psicanálise em si não é religiosa nem antirreligiosa, mas um instrumento apartidário do qual tanto o religioso como o laico poderão servir-se, desde que aconteça tão somente a serviço da libertação dos sofredores. Estou muito admirado de que eu mesmo não tenha me lembrado de quão grande auxílio o método psicanalítico pode fornecer à cura de almas, porém isto deve ter acontecido porque um mau herege como eu está distante dessa esfera de ideias (2009, p. 25). 112 REFERÊNCIAS ALVES, Rubem. O que é religião? São Paulo: Edições Loyola, 1999. ALVES, Rubem. O enigma da religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1969. DALGALARRONDO, Paulo. Religião, psicopatologia & saúde mental. PortAlegre: Artmed, 2008. DAVID, Sérgio N. Freud & a religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. DOLTO, Françoise; SÉVÉRIN, Gérard. A fé à luz da psicanálise. Campinas, SP: Verus Editora Ltda., 2010. DURKHEIM, E. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulus, 2008 (3ª. Ed.) FREUD, Sigmund. (1913/ 1996) Totem e tabu. In: Obras completas (vol. 13). Rio de Janeiro: Imago Editora. FREUD, Sigmund. (1927/ 1996) O futuro de uma ilusão. In: Obras completas (vol. 21). Rio de Janeiro: Imago Editora. FREUD, Sigmund. (1930/ 1996) O mal-estar na civilização. In: Obras completas (vol. 21). Rio de Janeiro: Imago Editora. FREUD, Sigmund. (1933/ 1996) Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. A questão de uma Weltanschauung. In: Obras completas (vol. 22). Rio de Janeiro: Imago Editora. FREUD, Sigmund. (1939/ 1996) Moisés e o monoteísmo. Três ensaios. In: Obras completas (vol. 23). Rio de Janeiro: Imago Editora. FREUD, Ernst; MENG, Heinrich (Orgs.). Cartas entre Freud e Pfister: Um diálogo entre a Psicanálise e a fé cristã. São Paulo: Ultimato Editora, 1998. FRAZER, James George. Sobre totemismo e tabu. In: FADIMAN, C. O tesouro da enciclopédia britânica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 95-100. GAY, Peter. Um judeu sem Deus. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992. JONES, Ernest. A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1989. JULIEN, Philippe. A psicanálise e o religioso. Freud, Jung, Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. KÜNG, Hans. Freud e a questão da religião. Campinas, SP: Verus Editora, 2006. ROCHA, Zeferino. Desamparo e Metapsicologia. Para situar o conceito de desamparo no contexto da metapsicologia freudiana. In Síntese – Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 26, n. 86, 331-346, 1999. 113 2. “ A Experiência Religiosa, seu nascimento e benefícios para o Indivíduo e sociedade” Elisa Leão - Doutoranda em Psicologia Social pela USP Richeuma Lima Constantino Silva - Graduanda em Psicologia pela Faculdade Estácio de Sá de Goiás Resumo: O texto desenvolve-se com a pretensão de trabalhar com a ideia de como surge a ilusão, como esta se transforma em experiência religiosa a sua importância para o ser humano e como esta experiência, pode transformar-se em algo transcendente que auxilia o desenvolvimento individual e consequentemente a sociedade. A ilusão encontra-se num plano do sentir o transcendente, sendo esse lugar sofisticado de se alcançar. Acreditar em algo que pode suprir necessidades emocionais, fazer companhia, gerar conforto, pode significar um preenchimento emocional que ajuda alcançar a superação em momentos difíceis ao longo da vida. O objeto transicional discute o ponto em que a ilusão pode ser positiva e também importante para o bom desenvolvimento humano, pois a partir de então a relação com o algo que não se vê, fortalece e a experiência religiosa acontece. Os sentimentos abstratos estão num plano transcendente, assim como o amor, a confiança, a paixão, a fé. Este trabalho discute sobre o nascimento e a sensação que as experiências religiosas oferecem para o ser humano. A Psicanálise é o referencial teórico para a discussão, pois ela traz à luz, reflexões relevantes sobre a origem da experiência religiosa no aspecto psicológico e social, como também tenta responder a origem psíquica desse fenômeno, levando em consideração a ilusão. O texto com a perspectiva da Psicologia Social explora referências como Freud, Allport, Winnicot, James. ]Palavras Chaves: objeto transicional, ilusão, fé, saúde. Desenvolver sobre o tema Experiência religiosa, é algo provocativo, no sentido individual e social. Na atualidade, a expressão “experiência” é utilizada para explorar campos diversos que estão nas questões da modernidade. Em pleno séc. XXI vivemos situações em que a experiência é aguçada e vivenciada como algo peculiar a essa geração, em função de estímulos próprios desse momento. As relações interpessoais e intrapessoais, estampam uma realidade de experiência em formato virtual a todo instante. O uso da comunicação cada vez mais facilitada e alternativa, tanto para os que só entendiam até então, os moldes ortodoxos de olho no olho, hoje faz-se através de ondas invisíveis e quase sagradas para os que a utilizam. 114 Pensar experiência religiosa, é falar da sensação que as experiências oferecem para o ser humano. Algo que provoca consequências de relacionamento num plano que também não é físico, mas sim religioso, que transcende e que contribui com o desenvolvimento psicológico e social. Acreditar que algo pode suprir necessidades emocionais, fazer companhia, gerar conforto e sentir que isso é realmente possível em função da experiência, pode provocar no indivíduo um preenchimento emocional que ajuda a superação em momentos difíceis ao longo da vida. Desde o apego por um objeto que ocupara o lugar do vazio deixado pela figura da mãe, quando esta não se apresenta mais o tempo toda a disposição da criança, e assim aprende o objeto transicional, Winnicott (1975) referindo-se ao objeto transicional “... meu tema se amplia para o do brincar, da criatividade e apreciação artísticas, do sentimento religioso, do sonhar...” (p.395). A teoria psicanalítica e escritos Freudianos, citando um especificamente, “O Futuro de uma ilusão” a qual Freud, postula que a religião nada mais é do que um recurso ilusório bem articulado pelo homem com o objetivo de criar uma saída para o seu mal estar que o acompanha desde seu nascimento. Sendo assim, a religião seria um arranjo cerimonial ilusório, que lhe traz alivio e conforto para suportar as dificuldades diárias, das quais busca o tempo todo se desviar. Segundo o pai da psicanálise acreditar em um ser superior capaz de controlar todas as forças da natureza e também todo o mal que molesta os indivíduos traz alivio a angustia e solução ao sentimento de desamparo, seria algo ilusório, criado para o homem se safar de suas agruras. Mas seus contemporâneos discordaram de tal posição, Winnicott se destaca entre eles, observando que o espaço ilusório é o local onde o indivíduo se organiza de forma psiquicamente saudável. Garcia (2007) diz que a psicanálise atribui à ilusão um significado bem diferente daquele linguajar cotidiano, que a desconsidera comparada com a verdade, a realidade externa e o erro. “ O conceito psicanalítico de ilusão não diz respeito à definição sobre a verdade ou a falsidade de um enunciado, mas à sua potencialidade psíquica, isto é, sua capacidade de causação psíquica. Assim, a definição de ilusão, em psicanálise, subverte sua acepção corriqueira já que positiva o conceito que passa a ser entendido como a expressão legítima de uma realidade incontestável – a realidade psíquica. A ordem da ilusão é, por excelência, a ordem do psíquico(...)” Garcia ( 2007, p. 169). Winnicott foi o primeiro a observar a maneira como é instaurado essa potencialidade psíquica no momento em que o bebê se separa da mãe e carrega 115 consigo um sofrimento, pois passa a notar que esta é algo que se encontra exterior a si e não como uma extensão de si mesmo. Esse sentimento leva o bebê a inventar formas de conter o vazio que se instala, colocando neste espaço objetos que venham a simbolizar a presença da mãe, restaurando assim um sentimento de continuidade existencial, um arranjo psíquico a fim de construir uma unidade harmônica. Chamados de Objetos transicionais por Winnicott, por terem a função temporária de mostrar ao bebê que ele e sua mãe são uma unidade separada, e que mesmo diante dessa separação o sujeito infante não perderá a continuidade da existência. Assim, dando conta assim de preencher o vazio, ou seja, ele será capaz de criar por si próprio, indicando um movimento criador, com uma existência ativa. Para Winnicott (1975) seria o espaço potencial a área que os processos de subjetivação acontecem, área esta de potencial criativo. O objeto transicional abre assim um campo para ser capaz de aceitar que existem diferenças, assim como a similaridade (Winnicott 1975, p. 19), tendo a ver também com a capacidade de construir a simbolização, bem presente na religião. Este espaço potencial presente no bebê que é preenchido por objetos transicionais é o mesmo que na vida adulta de uma forma mais elaborada pode ser chamado de fenômenos transicionais que se utiliza da arte, filosofia e da religião, sendo que esta área (espaço das ilusões necessárias) se localiza “entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade” (Winnicott 1975 p. 26). Essa é a passagem (transição) para a “realidade externa”, o adulto se beneficiará do alívio da tensão visto que a “aceitação da realidade nunca é completada, e que nenhum ser humano está livre da tensão de se relacionar com a realidade interna e externa” (Winnicott 1975 p.28-29). A religião vem a ser o local encontrado por este indivíduo do qual pode descarregar suas tensões, e buscar conforto e amparo. Quando Winnicott cita que a ilusão é necessária à vida, aproxima-se de Nietzsche, quando afirma “a vida tem necessidade de ilusões, isto é, de nãoverdades tidas como verdades. Ela tem necessidade de crença na verdade, mas então a ilusão basta, isto é, as ‘verdades’ se demonstram por seus efeitos, pela prova da força, e não por provas lógicas” (apud Machado, 1999, p. 45). Freud imaginava que com o avanço da razão a ilusão religiosa chegaria ao fim, pelo contrário, nada é mais contemporâneo e atual do que a busca das pessoas 116 pela espiritualização do ser, sendo visto pela psicologia contemporânea como um tipo de inteligência, a chamada inteligência espiritual mencionada e defendida pelo psicólogo Martin Seligman pai da psicologia positiva, que se refere a espiritualidade dos indivíduos como uma força e um traço positivo que têm sido geralmente desconsiderados pela razão. (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000 ) Os benefícios dos quais os indivíduos se apropriam seguindo os princípios religiosos, segundo Cameron (2004) o bem estar, virtudes como a honestidade, a confiança, a temperança, a prudência e a honradez, podem decorrer efeitos positivos sobre as ações éticas e comportamentos de cooperação nas relações. Assim, considerando que a espiritualidade “virtuosa” (e não a intolerante) ou seja, a religião passa a ser algo positivo e resiliente para que as pessoas usufruam de sentimentos mais positivos e as relações interpessoais se tornem saudáveis quando estes princípios são buscados, adotados e vivenciados. Acredita-se então que o início da experiência religiosa se dá na primeira fase do desenvolvimento humano, quando este ainda é um bebe e aprende através do objeto transicional, a ilusão. O cuidador ou um objeto dentro do berço ou um cobertor, pode significar segurança por estar sempre disponível nos momentos que ele for desejado. A certeza da existência de algo, mesmo quando não se está próximo fisicamente, é o que faz acontecer a relação com a ilusão. Esta, sempre relacionada a algo transcendente ou invisível aos olhos, pode oferecer bem estar ao indivíduo, pois o espiritual é um objeto transicional e os ritos e pressupostos oferecem a segurança da disciplina. A ilusão é bem quista para o ser humano, ela acolhe, necessidade quase intrínseca do homo sapiens. Acolhe por um grupo que faz todos sentirem-se parte importante para a manutenção da sociedade e mais especificamente, daquela comunidade. A necessidade de cooperação e a responsabilidade de manter esse acolhimento, gera vínculo de respeito e cumplicidade que impõe critérios éticos e de confiança, o que é buscado para relações positivas, de confiança. Este trabalho teve a pretensão de expor reflexões sobre aspectos que entende-se por convergentes entre a espiritualidade e psicologia. O estudo do comportamento humano, conduz para uma dimensão de subjetividade indiscutível, a ilusão é parte integrante do mundo interno do homem e pode levá-lo à sensações de reais profundidade, plenitude, completude. 117 Referências ALETTI, Mario. A Figura da Ilusão na Literatura Psicanalítica da ReligiãoUniversità Cattolica Di Milano – 2004. CAMERON, K. S., BRIGHT, D. & CAZA, A. Exploring the relationships between organizational virtuousness and performance. The American Behavioral Scientist, v.47, n.6, p.766-790, 1994. FREUD, Sigmund (1996). O futuro de uma ilusão. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Rio de janeiro: Imago. FREUD, Sigmund. (1939). Moises e o Monoteiś mo. Rio de janeiro: Imago, 1996 (esb, 23).GARCIA, Claudia Amorim. O conceito de ilusão em psicanálise: estado ideal ou espaço potencial. Estudos de psicologia, v. 12, n. 2, p. 169-175, 2007. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, 1999. Psicanálise e Fé Cristã - Recensão do livro Cartas Entre Freud & Pfister 1909-1939; Um Diálogo entre a Psicanálise e a Fé Cristã, Org. Por Emst Freud E Heinrich Meng (Trad. Por Karin Wondracek E Ditmar Junge) - Viçosa: Ultimato, 1998. 199 P. RIZZUTO, Ana-Maria. Porque Freud Rejeitou Psicodinâmica São Paulo, Editora Loyola, 2002. Deus. Uma Interpretação ROCHA, Márcia Christovam da Silva. O Retrato De Deus: Representações De Deus em crianças, colhidas através de técnicas projetivas gráficas e verbalizações. – 2007 SELIGMAN, M. E. P. & CSIKSZENTMIHALYI, M. Positive psychology: An introduction. American Psychologist, v.55, n.1, p.5-14, 2000. WINNICOTT, Donald (1964): A criança e seu mundo. Trad. De Álvaro Cabral. Rio de janeiro, zahar editores, 1985. W7 - the child, the family, and the outside world. Harmondsworth, penguin books, 1964. WINNICOTT, Donald (1965): A família e o desenvolvimento individual. Trad. De Marcelo Brandão Cipola. São Paulo, Martins Fontes, 1983. W8 – The family and individual development. London, Tavistock publications, 1965. WINNICOTT, Donald (1965): O ambiente e os processos de maturação. Trad. De Irineu Constantino Schuch Ortiz. Porto alegre, Artes Médicas, 1983. W9 - The maturational processes and the facilitating environment. London, Hogarth 1965. WINNICOTT, Donald (1987): Os Bebés e suas Mães. Trad. De Jefferson Luis Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1988. W16 - Babies and their Mothers. Eds. C. Winnicott/Shepherd/M.Davis. Reading, Mass., Addison-Wesley, 1987. WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 118 WONDRACEK, Karin. Culpa e Graça Aproximação Psicanalítica – Painel Sobre Culpa, Cppc Alegre, Agosto 1996. ___________________________________________________________________ GT 08 CORPO, ALMA E ESPÍRITO: O SER HUMANO INTEGRAL Coordenadores: Prof. Dr. Fábio Augusto Darius/CUA de São Paulo Prof. Ms. Kevin Willian Kossar Furtado/ Universidade Estadual de Ponta Grossa Ementa: O presente Grupo de Trabalho foi pensado a partir das pesquisas centrais de seus proponentes e suas mais diversas ramificações atuais e futuras. Almeja discutir acerca da formação integral (holística) do ser humano a partir das mais distintas fontes consideradas sagradas e/ou significativas como os Vedas, o Alcorão, o Bhagavad-Gita, Bíblia e o Livro dos Espíritos, dentre outros. Considera também as múltiplas leituras e aplicações interdisciplinares e multiculturais hodiernas no contexto das percepções da possível falibilidade da construção do ser humano compartimentado, herança grega ainda mantida majoritariamente, não obstante, questionada. Assim, trabalhos que apresentem esta discussão e suas implicações, como questões acerca da mortalidade e imortalidade da alma, dualismo e neoplatonismo, contrapontos outros ao cartesianismo e, principalmente, integração entre o corpo físico e espiritual, serão centrais e imprescindíveis dentro da perspectiva ora apresentada. Afinal, ainda que de forma incipiente e, portanto, passível de cada vez mais estudos, parece mais nítida a relação entre o equilíbrio biopsicossocioespiritual como pressuposto da espiritualidade plena. Ademais, trabalhos que contraponham esta perspectiva também serão considerados para o fomento da referida discussão. Comunicações: 1. A ÉTICA DO AMOR DE SI: UMA INTERPRETAÇÃO QUE TANGENCIA O AMOR DE CRISTO OU A ÉTICA CRISTÃ Nome: Marisa Vento Titulação: Doutora Instituição: Instituto Federal de Goiás Resumo: Este trabalho propõe uma leitura da noção de amor de si que, pela via fenomenológica de Michel Henry, não a interpreta como o princípio da autopreservação. A concepção que se pretende demonstrar compreende o amor de si como o páthos primordial, o princípio estruturante que funda a subjetividade da alma humana ou a Ipseidade do vivente, pois é em virtude do amor de si, próprio à 119 vida, que a alma pode conseguir e consegue, de fato, experimentar-se a si mesma. Assim, se pretende dizer que esse páthos original é uma auto afeição no sentido radical de imanência, que nada tem a ver com egoísmo, amor próprio ou com individualismo particular de qualquer natureza, mas constitui a doação da Vida absoluta ou Deus. Nesse sentido, do amor de si deriva uma sensibilidade positiva e atrativa que constitui, ao mesmo tempo, a propriedade de aderir-se a si (reforçando o sentimento do nosso ser) e a de expansão (projeção do ser para fora de si). Esta segunda propriedade traduz a ideia de um sentimento natural ou, talvez melhor dizendo, de uma potencial “impulsão moral” que liga um indivíduo a outro, cujo exemplo decisivo é a compaixão. Daí advém a possível relação ao amor do Cristo ou à ética cristã, cujo Mandamento de amor ainda é tão pouco compreendido. Palavras-chave: amor de si, compaixão, ética Em sua trajetória conceitual a noção de amor de si percorreu vários caminhos e desdobramentos, incluindo os equívocos gerados pela confusão entre os termos amor de si e amor próprio. Após apontar algumas das controvérsias, pretende-se interpretar o amor de si a partir de uma perspectiva fenomenológica, definindo-o como um páthos originário, que está na origem de outras paixões afirmando que a compaixão ou piedade deriva ou é a própria manifestação da expansividade do amor de si, propiciando o “sentir-se em seu semelhante”. Nada mais próximo do espírito do amor ou da ética Cristã, cuja relação se tentará estabelecer neste texto. Amor de si e amor próprio noções indistintas O amor de si é uma noção que remonta à filosofia estoica da qual Sêneca, um dos seus representantes, notavelmente numa das Cartas a Lucílius, desenvolveu a temática do amor de si identificando-o plenamente com o puro instinto de autopreservação. E foi da tradição estoica que os filósofos modernos herdaram as ideias sobre uma certa inclinação natural do homem para conservar-se, tornando-se um conceito que depois acabou sendo empregado pelos jusnaturalistas como base para as teorias do direito natural. (BROOKE, 2006, p. 107)34 Já a tradição agostiniana, deixou como legado uma interpretação do amor de si (amor sui) que o identifica como a impulsão egoísta e fundamentalmente O pressuposto dos teóricos do Direito natural era de que se poderia pensar num princípio moral comum às pessoas e que serviria como um ponto de acordo. Se isso viesse a ser encontrado, um código moral que poderiam ser desenvolvidos a partir desse princípio. Para Grotius, por exemplo, o direito de autopreservação seria um princípio desse tipo e ele apresenta seus argumentos em termos bem proximos dos estoicos. 34 120 responsável pelas misérias humanas. Na perspectiva agostiniana, o amor sui, um amor frequentemente deturpado e mundano (cupiditas), predomina na “cidade dos homens” que deve submeter-se ao amor de Deus, predominante na “cidade celeste”. (RAMOS, 1984, p. 50) Pode-se dizer que é no rigorismo agostiniano que se encontra a raiz da crença em uma natureza humana degradada pelo pecado original, capaz, portanto de exacerbar seu egoísmo. Pascal, por exemplo, na obra Pensées (1670), denuncia um “eu odioso” e tirânico, que se coloca no centro de tudo para tudo dominar. As paixões são culpáveis, uma vez que decorrem do amor próprio que leva o homem a mergulhar na ilusão, afastando-o de Deus e deteriorando suas relações com seus semelhantes. O enciclopedista Voltaire, por sua vez, em suas Anotações35 sobre o texto de Pascal, lança-se numa defesa inflamada do amor próprio, que, no entanto, tem a mesma conotação do amor de si como se pode notar: “É o amor a nós mesmos que nos leva a socorrer o outro; é por nossas necessidades mútuas que somos úteis ao gênero humano; é o fundamento de todo o comércio, é o vínculo eterno entre os homens. Sem amor próprio não haveria invenção da arte, nem formação de uma sociedade.” (VOLTAIRE, 1978, p. 49) Neste intenso debate acerca do interesse e das paixões, ocorrido entre 1650 e 1750, que envolveu teólogos apologistas da fé e filósofos moralistas 36, teístas ou ateus, que teve como foco a compreensão da motivação das ações humanas, vê-se claramente a confusão entre as noções de amor de si e amor próprio. Como saldo das discussões e controvérsias restou a visão sombria da natureza humana, com uma crença subjacente, e quase generalizada, de que as paixões eram perigosas e destrutivas. Entretanto, tantas e tão divergentes foram as concepções, que aquele mesmo século pôde testemunhar, de um lado, a condenação do amor próprio e, de outro, a sua reabilitação.37 O amor de si como princípio da alma humana O teólogo protestante Jacques Abbadie, na obra L’Art de se connaître soi 35Ver Cartas Inglesas de Voltaire. filosofia moral que resultou do humanismo renascentista teve uma importante contribuição no processo de secularização pelo qual passou todo o Ocidente. Em razão dos limites deste texto não é possível abranger todos os aspectos e autores dessa temática tão polêmica que fecundou a literatura das Luzes. 37 Ou seja, passou-se do desprezo de si e das paixões (porque o que se visava era a vida eterna), para o que se pode chamar de “programa ético das Luzes” com vistas a reconhecer nas paixões humanas a alavanca para o progresso do homem. Ver HIRSCHMAN, 1997, p. 27. 36A 121 même (1692), foi o primeiro a estabelecer a distinção entre o natural e legítimo princípio do amor de si e a sua forma corrompida: o amor próprio. Nessa obra o autor argumenta, inclusive, que o comportamento moral genuíno e, sobretudo, a perfeição moral humana podem advir desse princípio (amor de si)38. Para o que nos interessa aqui, essa distinção realizada por Jacques Abbadie entre amor de si e amor próprio é extremamente importante, mas resta expor ainda algumas considerações sobre o modo original como o filósofo Jean-Jacques Rousseau tratou essa questão. Ao elaborar sua ciência antropológica, Rousseau emprega a ficção metodológica do homem no estado de natureza e postula que na origem dos primeiros movimentos do coração humano (no estado de natureza) encontram-se os princípios do amor de si e a piedade. Estes primeiros movimentos da alma humana levam o homem natural a estar em paz, a não desejar mais do que pode, a estar em equilíbrio. Nesse estágio, o homem apenas sente sua existência e ouve o sentimento interior a ditar-lhe o interesse pela sua conservação sem, contudo, suscitar nele qualquer oposição ao seu semelhante. Em outras palavras, o homem no estado de natureza vive em paz porque ocorre uma moderação espontânea do seu amor de si. Trata-se, de acordo com Rousseau, de um segundo princípio39: a piedade, uma “virtude natural” que, no estado de natureza, “nos leva, sem reflexão, a socorrer aqueles que vemos sofrer”. (ROUSSEAU, 1964, p. 156) Rousseau assume que o amor de si é o único e mais poderoso motivo que leva os homens a agirem e distingue radicalmente amor de si e amor próprio, esse último por mais onipresente que seja40, não é natural, é uma condição do “homem do homem” ou homem social, cujas relações conduziram à corrupção do amor de si. Em Rousseau, “o amor de si é sempre definido como o princípio originário, paixão geradora, indiferente, em si mesma, tanto ao bem quanto ao mal. Esse sentimento 38: “Há em nosso coração as primeiras afeições que são necessariamente legítimas, sentimentos sem os quais a natureza do homem não poderia ser, e que não só, não comportam nenhuma corrupção em si mesmas, mas que nos servem, quando são bem dirigidas, para nos livrarmos dos vícios. Tal é o amor natural da estima, o amor por nós mesmos, o cuidado com a nossa conservação e o desejo de nossa felicidade”. (ABBADIE, 1761, p. 229-230) 39 Nos estudos desenvolvidos por mim na Tese intitulada: O fundamento antropológico da vontade geral em Rousseau, tentei demonstrar que, na verdade, trata-se de um princípio primordial que origina dois movimentos. O segundo movimento, também chamado de expansão do amor de si ou piedade é derivado do primeiro. 40É preciso considerar que Rousseau não recusa a descrição do amor próprio, suas denúncias bastante conhecidas, por exemplo, no Discurso sobre as Ciências e as Artes se referem aos seus efeitos: a perda do liame afetivo, a falsa virtude, a cisão entre ser e parecer. 122 absoluto, que diz respeito a si, não engendra oposição a outrem”. Ao contrário, embora sufocado em decorrência dos progressos sociais e do esquecimento de si mesmo, ele jamais se extingue e permanece com o homem enquanto ele vive, por essa razão considerou-se que o amor de si “pode ser o vetor do desenvolvimento da moralidade e da virtude no homem”. (VENTO, 2013, p. 70) Rousseau percebe ainda, que em sua complexidade o amor de si possui um aspecto que se liga ao bem-estar da alma, também chamado de amor pela ordem e que, ao desenvolver-se e tornar-se ativo tomará o nome de consciência. Na impossibilidade de aprofundarse nessa problemática deve-se salientar, para o que interessa no momento, a profunda intuição de Rousseau de que o prazer natural de viver, a fruição do sentimento de existência é extravasante quando decorre da relação verdadeira consigo mesmo, e se expande para fora de si em direção ao outro. Dito de outro modo, o processo compassional que impulsiona o meu ser em direção ao outro nada mais é do que a consequência natural do meu próprio bem-estar. Logo, compreender essa auto-afetividade ou afeição que o ser nutre por si mesmo, como sendo o ponto comum entre o eu e o outro, resultaria na compreensão do papel fundamental desse pathos originário, que ao mesmo tempo em que individualiza estruturando o Si permite o reconhecimento do outro semelhante a si, naquilo que os une constitutivamente ou ontologicamente. É exatamente esse ponto da interpretação rousseauniana que sugere uma ética do amor de si, abrindo a possibilidade de uma leitura fenomenológica quando se vê surgir uma oposição entre a “interioridade do ser em vida” e a “exterioridade do ser no mundo”. É na auto afeição originária (amor de si), que constitui o “dado primeiro e primordial da existência” do vivente que a alma experimenta-se a si mesma, e nessa fruição constitui seu si, sua ipseidade. Tal fenômeno, que só é possível na mais absoluta interioridade, é experimentado por todos os homens, nas palavras de Audi, é justamente essa “communauté pathétique originelle” 41 que torna possível a “experiência singular e imediata do pathos imediato e natural que é a compaixão”. (AUDI, 2008, p. 129) O sentimento compassivo, que conduz ao transporte para fora de si propiciando a identificação o semelhante, sobretudo em sua dor, é a sublime manifestação tanto do amor a si mesmo quanto do amor ao próximo. 41 “Comunidade patética primordial”. 123 O amor do Cristo ou a ética Cristã O filósofo Michel Henry em sua obra Eu sou a Verdade – por uma filosofia do Cristianismo (2015), num capítulo em que aborda a ética cristã, comenta sobre o maior ou o “único Mandamento da ética”: “O Mandamento não é um Mandamento de amor senão porque a Vida é amor. A Vida é amor porque se experimenta a si mesma sem cessar na fruição de si, amando-se a si mesma infinitamente e eternamente.” (HENRY, 2015, p. 264) O que o filósofo Michel Henry mostra é que a Vida Absoluta ou Deus engendra todos os viventes em sua condição de Filhos, dá-lhes a vida e lhes ordena o Amor, estes “experimentando-se a si mesmos na experiência de si da Vida infinita amam-se a si mesmos enquanto são Filhos” e, são capazes de amar os outros enquanto eles também são Filhos. Ou seja, essa condição de Filhos da autodoação da Vida absoluta é comum a todos, não obstante o homem tenha se esquecido dessa condição. E nesse sentido, a ética cristã visa permitir ao homem ultrapassar esse esquecimento e reencontrar a Vida absoluta. (HENRY, 2015, p. 245) Constata-se que auto-afetividade ou amor de si comum a todos, como foi mencionado na sessão anterior, é condição do reconhecimento e do amor ao outro, ou seja, é no plano da imanência que ocorre o estreitamento de si, que nada mais é do que o mergulho na interioridade visando, como propõe Henry, o reencontro e, o consequente transbordamento em direção ao outro. Do que se segue que a ética do Cristo não é propriamente uma exigência, uma vez que não se pode exigir de alguém que ame, se este próprio não ama, mas uma consumação. Michel Henry lembra que João (2 Jo 6) ao dizer: “Nisto consiste o amor: em viver conforme seus mandamentos. E o primeiro mandamento, como aprendestes desde o início é que vivais no amor”, estaria reconhecendo no fundamento da ética cristã “a imanência do Mandamento no processo de auto geração e de amor de si da Vida absoluta em que todo vivente é engendrado em sua condição de Filho”. (HENRY, 2015, p. 265) Desse modo, o amor de si assim compreendido é um pressuposto da ética cristã. Dados os limites deste texto, pode-se à guisa de conclusão, considerar, em que pese as controvérsias acerca do princípio do amor de si, que desde a distinção tão própria elaborada por Jean-Jacques Rousseau, remetendo-o para os domínios da interioridade, definindo-o como o primeiro princípio da alma e como o único 124 motivo do agir humano, foi aberta uma via para o entendimento do sentimento genuíno de compaixão. À luz da compreensão dessa auto-afetividade que torna o ser capaz de estreitar-se consigo mesmo, de fruir do seu sentimento interior e nutrirse desse amor de si, é que se compreende o sentimento compassivo, que é o movimento de expansão ou emanação desse amor. É, portanto, a alma plena dela mesma, presente a si que se estende para fora de si mesma e alcança o outro na mais perfeita comunicação do amor. Acredita-se que compreendida dessa forma essa ética do amor de si, permitiria realizar a máxima da ética cristã: amar o outro como a si mesmo. Referências ABBADIE, Jacques. L’art de se connaître soi-même ou la recherche des sources de la morale. Rotterdam: P. Vander Slaart & Jean Neaulme, 1761. AUDI, Paul. Rousseau, une philososophie de l’âme. Lagrasse: Éditions Verdier, 2008. BROOKE, Christopher. Rousseau's Political Philosophy: Stoic and Augustinian Origins. In: RILEY, Patrick. The Cambridge Companion to Rousseau: Cambridge University Press, 2006, p. 94-123. HIRSCHMAN, Albert. The Passions and the Interests: Political Arguments for Capitalism before its triumph. Princeton, New Jersey : Princeton University Press, 1997. PASCAL, Blaise. OEuvres completes. Éd. Louis Lafuma. Introd. Henri Gouhier. Paris: Seuil, 1963. RAMOS, Angelo Aparecido Zanoni. Cidade de Deus e cidade terrena segundo Agostinho de Hipona. Revista eletrônica do Instituto de Filosofia – I.F. Science Institute, ISSN 1984-5804, p. 39. Disponível em: www.institutodefilosofia.com.br Acesso em: junho de 2012. ROUSSEAU, Jean Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, volumes i,ii, iii et iv - 1959, 1961, 1964, 1969. (Bibliothèque de la Pléiade). VENTO, Marisa Alves.O fundamento antropológico da vontade geral em Rousseau / Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Campinas, SP : [s.n.], 2013. VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Cartas Inglesas. Trad. Marilena Chaui et al. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 125 2. A PERCEPÇÃO DA INFLUENZA EM PERIÓDICOS ADVENTISTAS (1918-1920)42 Elder Hosokawa43 Pablo Rogério Correa dos Santos44 Rodolfo Cardoso Zani45 Sidônio Cunico46 Resumo: Essa pesquisa tem por objetivo resgatar informações históricas sobre a pandemia da gripe espanhola. Analisa como a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) compreendeu essa pandemia com suas crenças escatológicas e a mensagem de saúde. Justifica-se o estudo em razão da proximidade do centenário da gripe em 2018. A metodologia privilegiou a pesquisa de fontes em periódicos adventistas digitalizados disponíveis na internet e complementada por levantamento bibliográfico. Foi utilizado como recorte temporal os anos 1918-1920, período da menção da influenza na Revista Mensal, órgão informativo oficial da IASD. A pesquisa fez uso de revista congênere nos Estados Unidos, Advent Review and Sabbath Herald, para complementação de dados. Como problemática da pesquisa investigou-se a perspectiva adventista sobre a doença refletida nos textos da Revista Mensal. Como interpretaram essa pandemia à luz de sua crença escatológica? Como referenciais historiográficos da influenza no Brasil foram utilizados os autores Bertolli Filho, Bertucci e Abrão. Para compreender o adventismo no mundo e no Brasil utilizamos Darius, Greenleaf e Schwarz. Constatou-se que a IASD se percebeu um povo peculiar possuindo crenças singulares em seu estilo de vida que promovia o bem-estar físico, com acentuado senso de proteção divina. Palavras-Chave: Protestantismo; Adventista; Gripe Espanhola; Saúde Pública. Os primeiros registros da gripe espanhola antecedem o fim da Primeira Guerra Mundial. Porém, não existe consenso sobre a origem dos primeiros casos da gripe espanhola como afirma Bertucci (2005). Segundo ele, teria começado nos Estados Unidos ou na China, em Guangdong. Para Abrão (1998) e Goulart (2003) a pandemia começou no litoral atlântico africano nas imediações do Equador, mais precisamente em Dakar, Senegal e teria se propagado pela Europa, entrando na península ibérica, ao norte da Espanha, em San Sebastian. Com grande capacidade 42Texto apresentado para Trabalho de Conclusão do Curso de Licenciatura em História no Centro Universitário Adventista de São Paulo Campus Engenheiro Coelho, São Paulo. 43 Orientador. Prof. Ms. do curso de Licenciatura em História. Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC) 44 Graduando em Licenciatura em História, Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC). 45 Graduando em Licenciatura em História, Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC). 46 Graduando em Licenciatura em História, Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC). 126 de disseminação alcançou a Espanha e toda a Europa, América, Ásia e o restante do mundo contagiando entre 200 a 600 milhões de pessoas, matando em torno de 20 milhões de indivíduos (BERTOLLI FILHO, 2003). Houve três fases da pandemia, segundo Bertucci (2003): uma ocorrida entre março e julho de 1918, outra entre agosto e janeiro de 1919 e uma fase menos letal iniciada em fevereiro perdurando até maio de 1919. Conforme Bertucci (2004), os primeiros casos de gripe espanhola no Brasil acontecem em 1918, a doença entrou no país através de um navio, oriundo de Lisboa, que desembarcou passageiros infectados pelo vírus em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. O jornal paulista O Combate, no dia 10 de outubro de 1918, sinaliza em manchete de primeira página a chegada da pandemia em São Paulo (BERTUCCI, 2003). No Brasil estima-se a morte de 35 mil pessoas, predominando essas ocorrências na região sudeste. Caracterização da IASD e seus periódicos nos EUA e Brasil A Igreja Adventista do Sétimo Dia tem suas origens nos Estados Unidos na primeira metade do século XIX. Três líderes se destacaram no desenvolvimento inicial desta denominação: Joseph Bates (1792-1872), James S. White (1821-1881) e Ellen G. White (1827-1915).47 A IASD começou a se disseminar oficialmente em outros continentes em 1874. Já se fazia presente no Brasil em 1880 através de literatura alemã adventista impressa nos Estados Unidos. A IASD penetrou nas colônias de imigrantes alemães no sul do país, através da remessa e distribuição de literatura adventista em língua alemã (BORGES, 2001). O adventismo recebeu adesão dos brasileiros nacionais nos primeiros anos do século XX, iniciando a produção de literatura religiosa em português, a exemplo do periódico O “Arauto da Verdade”, impresso no Rio de Janeiro, em julho de 1900. Os adventistas creem no iminente retorno de Cristo, observam o dia de sábado como descanso semanal e seguem um estilo de vida saudável (KNIGHT, 2000; BORGES, 2001; HOSOKAWA, 2001; LAND, 2005; SCHWARZ; GREENLEEF, 2009; GREENLEAF, 2011). Uma das fundadoras da IASD, E. G. White escreveu livros sobre diversos assuntos incluindo o tema da saúde. Ronald L. Numbers é um dos proeminentes pesquisadores de White no assunto da manutenção da saúde e cura das doenças. Ele contextualiza a saúde nos Estados Unidos e a atuação dos reformadores de saúde norte-americanos do século XIX incluindo White nesse contexto (NUMBERS, 2008, p. 95-110). 47 127 Além de seguir os ensinamentos bíblicos, os adventistas consideram relevantes os conselhos de Ellen G. White e acreditam que seus escritos foram inspirados por Deus. Para White a doença seria evitada pela prática de preceitos de saúde como: Ar puro, luz solar, abstinência, repouso, exercício, regime conveniente, uso de água e confiança no poder divino — eis os verdadeiros remédios. (WHITE, 2007, p. 42). Nos Estados Unidos os precursores da IASD fundaram em 1850 um periódico quinzenal de subscrição voluntária inicialmente nomeado com Second Advent Review and Sabbath Herald, com oito páginas, impresso em Paris, Maine, Estados Unidos. Um dos editores era James S. White (1849-1928). Essa revista se tornou o periódico oficial da IASD com circulação mundial, incluindo o Brasil. Por muitos anos ficou conhecida como Review and Herald (SCHWARZ; GREENLEAF, 2009). Em 1906, a IASD no Brasil iniciou impressão da Revista Trimensal que entre 1908 e 1931 passou a ser chamada Revista Mensal e posteriormente, Revista Adventista, nome atual. Essas revistas que abordavam assuntos religiosos, noticiário do Brasil e do mundo, artigos de saúde revela a essência do discurso da IASD. A gripe espanhola nos periódicos adventistas Quando a pandemia da gripe atingiu o auge nos Estados Unidos em 1918, as autoridades sanitárias passaram a recomendar cuidados para evitar o contágio e a disseminação da doença. No caso da IASD, a liderança fez uma declaração solene no seu periódico oficial, através de seu presidente, Pastor Arthur G. Daniells (18581935): Estamos em meio aos males e perigos dos últimos dias. [...] Enfrentamos uma nova epidemia de gripe que está ceifando um grande número de vidas, especialmente em nossas cidades superpovoadas. Em muitos lugares reuniões públicas estão proibidas, e os nossos irmãos e irmãs estão incapazes de cumprir seus serviços religiosos. Um bom número de nossas escolas, bem como as escolas públicas, foram fechadas por ordem de serviço público de saúde. Isto oferece ocasião para especial intercessão com Deus. Oremos para que o livramento alcance a humanidade aflita, e que os nossos queridos irmãos e irmãs possam ser protegidos, e que neste tempo de angústia possam se tornar mensageiros de luz e vida, dando aos semelhantes um conhecimento dos princípios de saúde que possuímos. Oremos para que esta doença cesse, de modo que a obra do evangelho não sofra interrupção; que as escolas, tanto públicas como particulares, 128 retomem suas atividades, e que os jovens continuem seu preparo. Diariamente, em cada lar, fervorosa intercessão deve ser feita a Deus por sua intervenção (DANIELLS, 24 Out. 1918, p.15). Esse alerta de Daniells veio acompanho de recomendações do departamento de saúde da IASD nos Estados Unidos dirigida pelo médico Dr. Harry Willis Miller (1879-1977), do Washington Adventist Sanitarium que além de listar uma série de recomendações para prevenção que envolviam quarentena, ventilação dos ambientes, higienização das mãos (MILLER, 24. Out.1918), indicou também tratamento hidroterápico em caso de contágio pela gripe “Hespanhola” lembrou as recomendações de White para a recuperação da saúde, sugerindo o repouso, luz solar, alimentação, água e orações. A Revista Mensal de outubro de 1918 reproduz o sermão intitulado “Enfrentando a Situação” apresentado na reunião mundial da IASD em São Francisco, Califórnia, nos Estados Unidos, no dia 13 de abril de 1918, pelo presidente da IASD Arthur G. Daniells. Nessa ocasião destacou o elevado privilégio dos delegados que conseguiram chegar à assembleia e referiu-se ao tempo que estavam vivendo como sendo com sendo “dias de tribulação”. Embora não citasse a influenza, Daniells referia-se a um contexto próprio das dificuldades da Primeira Guerra Mundial e pode ter incluído possivelmente a pandemia que chegou nos Estados Unidos no mês março de 1918 (KOLATA, 1999). A IASD tem um corpo doutrinário com forte ênfase escatológica. Creem que nos últimos dias guerras, epidemias, desastres naturais aumentariam em frequência e amplitude, referindo-se ao relato bíblico de Mateus 24:7: “Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares” (ALMEIDA, 1995). A menção inicial da gripe no periódico adventista brasileiro aparece no relato do missionário americano Raleigh M.Carter (1883-1966) que tendo passado no dia 14 de outubro por Curitiba, ainda sem contágio de sua população refere a pestilência que presenciou na segunda quinzena desse mês na Capital Federal: [...] embarquei para o Rio de Janeiro com destino para Theophilo Ottoni, onde desde alguns meses diversos colportores haviam desejado ansiosamente um curso para colportores. No Rio achei a praga “Hespanhola” no ápice de sua força, ficando eu detido ali até o dia 28 de Outubro.Desistirei de contar-vos das horrorosas cenas que testemunhei ali durante a fase mais violenta da moléstia; palavras são demasiado fracas para descrever o seu horror. Deus me protegeu de modo que a praga não se chegou a mim e, afinal, restabelecidos os marinheiros do vapor em que 129 eu pretendia viajar, o navio estava pronto para se fazer ao mar (Idem). (CARTER, Jan. 1919, p. 12). Num longo texto Carter demonstra senso de urgência na pregação, com a percepção pessoal de que vivia no final dos tempos que cumpriam das profecias bíblicas. O missionário considerava-se um privilegiado por ter a sua vida poupada e miraculosamente preservada da peste e seguidas vezes refere-se à providência divina. Em novembro de 1918 o trabalho da disseminação de literatura religiosa foi interrompido pela gripe. Na Revista Mensal de janeiro de 1919 (p.11), o editor informou que quase todos os membros e os líderes da IASD em Minas Gerais tiveram a doença e ficaram acamados. Muitos colportores vendiam seus livros ao povo nas suas camas. Clarence E. Rentfro (1877-1951), John L. Brown (1888-1972), Manoel Margarido (1886-1969) eram líderes estrangeiros da IASD na primeira metade do século XX na região de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Enfrentaram a gripe no auge e o excesso de trabalho, a tentativa de não paralizar o evangelismo, a circulação em areas de surto e necessidade de atender os membros adoentados favoreu caírem também doentes. A escatologia da IASD está fundamentada na iminência da parousia, ou retorno de Cristo que na compreensão de seus membros deveria ser antecedida por sinais anunciadores do “final dos tempos” caracterizados por guerras e pestes. O contexto da Primeira Guerra Mundial na Europa com reflexos no mundo, conjuntamente com a pandemia da gripe, configurou para líderes e membros o fim dos tempos e a volta próxima de Cristo. Os textos na Review and Herald e Revista Mensal entre 1918 e 1920, usam termos que evidenciam isso: “tempos solenes”, “últimos dias”, “finalizar a obra”, “tempo atual escuro e de trevas” e “resta-nos pouco tempo”. Isso pode ser também percebido no editorial do pastor Frederick W. Spies, presidente da União Brasileira da IASD, que enfatizou solenidade dos dias em que viviam. (SPIES, Set. 1920, p. 1). A urgência na disseminação do evangelho através da venda de literatura religiosa dada a compreensão escatológica diante da pandemia, fazia com que colportores, mesmo debilitados e tendo a família doente, continuassem seu trabalho com disposição e comprometimento. (MARGARIDO, Mar. 1919, p.7) 130 Max Rohde (1871-1950) veio para o Brasil como missionário em 1908, tendo atuado na Casa Publicadora de Hamburgo, localizada na Alemanha, principal editora adventista europeia. Autor de diversos textos na Revista Mensal, escreveu uma matéria a respeito do contexto escatológico adventista e a eclosão da pandemia da gripe no Brasil: Um tempo de angustia tal como nunca houve desde que houve nação, está se aproximando a nós. Enquanto doenças e epidemias argumentam constantemente, incumbe-nos a tarefa de instruir o povo em como aplicar tratamentos simples, substituindo deste modo o uso das drogas venenosas. A mesma necessidade existe a respeito da alimentação dietética, particularmente em caso de doença. Cumpre-nos mostrar ás almas a grandiosa verdade que o corpo humano deve ser o templo do Espirito Santo, e devemos persuadi-las por palavras e bons exemplos, a aceitarem os princípios divinos das leis naturais que regem o nosso corpo, e que são constituídas para o nosso bem-estar. Se fizermos um tal trabalho individual, ajudando e tratando aos doentes, anunciando o evangelho aos perdidos, a consequência será que nos corações das almas escurecidas nascerá gratidão, e verão que Deus ainda tem cuidado delas (ROHDE, fev. 1919, p. 9). Embora Rohde não fosse um pastor com formação ministerial aprofundada, seu texto demonstra e sintetiza a compreensão adventista desta época, relacionando a escatologia com a missão e o comprometimento com o pensamento de White sobre prevenção, manutenção da saúde e cura das doenças através de tratamentos naturais (DARIUS, 2014; DOUGLASS, 2001; SCHWARZ & GREENLEAF, 2009). A Revista Mensal cita a morte de três membros adventista, sendo uma mãe de cinco crianças, em Campestre, RS; uma criança de três anos em Rio Negro, PR, em 6 de dezembro de 1918 e por fim um colportor, por nome Jonas Câmara, Rio Preto, MG, nos primeiros meses de 1919. Também noticiou um surto de gripe no Seminário Adventista, em Santo Amaro, São Paulo. Seu diretor, Thomas Walter Steen assim se expressou: As primeiras duas ou três semanas, trouxeram-nos muitas perplexidades. Durante a conferencia certo número de pessoas aportaram aqui doentes, atacados de influenza, enquanto que outros enfermaram logo após a sua chegada. Dada a aglomeração de tantas pessoas, foi impossível impedir o alastramento do mal insidioso e dias houve em que se achavam prostrados nos leitos não só visitantes, mas também estudantes e professores, e isto ao mesmo tempo. Tal fato, porém, só se deu durante poucos dias, e, como não houvesse casos realmente desesperadores, encerraram-se as aulas somente por dois dias. Ao cabo de três semanas tudo estava normalizado, e os seminaristas conseguiam bons progressos em todas as suas classes (STEEN, Ago. 1920, p. 13) No texto, Steen, um norte-americano pragmático, enfatiza o ajuntamento de pessoas, vindas de diferentes regiões do Brasil. Isso, para ele, tornou o surto 131 inevitável, embora não fosse registrado ocorrência de mortes, dando a entender aos leitores que o estilo de vida saudável praticado no Seminário Adventista, dos alunos e dos membros juntamente com a providência divina, constatava-se que todos os doentes se recuperaram em pouco tempo. Spies destaca essa percepção da providência: Ao tratarmos deste assunto devíamos lembrar-nos das bênçãos concedidas pelo Senhor ao Seu povo tendo-os instruído quanto ao modo de viver e alimentar-se (SPIES, Set. 1920, p. 1). O pastor Spies recomendou aos leitores da Revista Mensal uma edição especial na revista Signaes do Tempos, editada pela Sociedade de Tratados do Brasil, com o título Epidemias e que se transformou num livro intitulado “Epidemias: Meios de Combatê-las”. Na promoção do livro e já de dirigindo a um leitor sobrevivente da pandemia no Brasil expõe o que se pode considerar a compreensão do adventismo sobre a “Hespanhola”: [...] Não resta hoje a menor dúvida de que poderiam ter sido salvas as três quartas partes dos homens vitimados pela hespanhola se tivessem sido tratados adequadamente, afirmação que fazemos por experiência própria, porque onde, quer que pelos nossos fossem tratados os enfermos só em casos mui raros foram registrados falecimentos. [...] devíamos prontificarnos a observar com sinceridade e fielmente as regras de saúde e então não negligenciar o tratamento de nenhum resfriamento, antes procurando conservar a saúde, esse dom precioso. [...], mas só aquele preservará o Senhor que inteiramente tenham seguido a luz da verdade... (SPIES, Set. 1920, p.2) Spies é categórico ao afirmar que prevenção e proteção divina estão intimamente correlacionados com o comprometimento e com o conhecimento e práticas das leis naturais de saúde. Considerações Finais A pandemia da gripe espanhola é um tema que atraiu pesquisadores de diferentes áreas com uma produção intensa, especialmente na saúde pública. Poucos estudos foram realizados envolvendo a compreensão religiosa das igrejas ou do ponto de vista de seus adeptos. No caso da IASD constatou-se na leitura crítica de artigos produzidos nos Estados Unidos e no Brasil que a pandemia trouxe enorme apreensão inicial aos seus líderes que procuraram informações oficiais dos departamentos de saúde públicos para esclarecer através dos periódicos como proceder. Os líderes e 132 membros da IASD atribuíram à pandemia um caráter escatológico deram ênfase nos cuidados com a prevenção. Reforçando o discurso da prevenção, encontrou-se referências ao estilo de vida saudável pregado por White. Os textos produzidos durante a pandemia e nos anos imediatamente subsequentes apresentam uma articulação intensa com a compreensão escatológica adventista. A gripe temporariamente paralisou a evangelização realizada pela IASD. São citados os poucos casos de óbito entre os membros. Embora haja menção de líderes adoentados, o noticiário adventista não cita baixa entre eles. Conclui-se através das páginas dos seus periódicos, que os membros da IASD se perceberam um povo peculiar, possuindo crenças singulares na promoção do bem-estar físico, ajudando essa denominação a enfrentar essa pandemia que afetou milhões de pessoas no Brasil e no mundo. REFERÊNCIAS ABRAÃO, J. S. Banalização da morte na cidade calada: a hespanhola em Porto Alegre. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. ALMEIDA, J. F. Bíblia corrigida revisada fiel. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. BERTOLLI FILHO, C. Epidemia e sociedade: a gripe espanhola no município de São Paulo. São Paulo, 1986. Dissertação (Mestrado). FFLCH-USP. São Paulo, 1986. BERTUCCI, L. M. Conselhos ao povo: educação contra a influenza de 1918. Caderno Cedes, Campinas, v. 23, n. 59. p. 103-117, abr. 2003. ____________. Influenza, a medicina enferma: ciência e práticas de cura na época da gripe espanhola em São Paulo. Campinas, 2002. Tese (Doutorado). Departamento de História, IFICH, Universidade Estadual de Campinas, 2002. BORGES, M. A chegada do adventismo no Brasil. Tatuí: CPB, 2000. CARVALHO, M. J. Minha Experiência. Revista Mensal. Fev. 1919, p.13-14. DANIELLS, A. G. An occasion for earnest intercession. The Advent Review and Sabbath Herald. 24 de outubro de 1918, p. 16. DARIUS, F. A. De corpo, alma e espírito: apontamentos históricos e teológicos acerca do tema santificação na obra holística de Ellen White. São Leopoldo, RS: Tese (Doutorado). Escola Superior de Teologia, 2014. 133 DOUGLASS, H. E. Mensageira do Senhor. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001. GOULART, A. C. Um cenário mefistofélico: gripe espanhola no Rio de Janeiro. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2003, p.37. GREENLEAF, F. Terra de esperança: o crescimento da Igreja Adventista na América do Sul. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. HOSOKAWA, Elder. Da Colina rumo ao mar: Colégio Adventista Brasileiro em Santo Amaro. (1915-1947). São Paulo: Dissertação (Mestrado), FFLCH-USP, 2001. KNIGHT, G. R. Uma igreja mundial: breve história dos Adventistas do Sétimo Dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2000. KOLATA, G. Flu: the story of the great influenza pandemic of 1918 and the seach for the virus that caused it. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1999. MARGARIDO, M. Notícias da Colportagem. Revista Mensal. Mar. 1919, p.7. MILLER, H. W. Hydropathic treatment for Spanish Influenza. The Advent Review and Sabbath Herald. 24 de outubro de 1918, p. 15 e 16. NUMBERS, R. L. Prophetess of health: a study of Ellen G. White. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 2008. ROHDE, M. Obra missionária. Revista Mensal. Fev. 1919, p. 9. SCHWARZ, R. W; GREENLEAF, F. Portadores de luz: história da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Engenheiro Coelho: UNASPRESS, 2009. SPIES, F. W. Uma Advertência. Revista Mensal. Set. 1920, p. 1-2. STEEN, T. W. O Seminário Adventista. Revista Mensal. Ago. 1920, p. 13-14. WHITE, E. G. A ciência do bom viver. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007. 3. CONHECENDO O IDEAK – INSTITUTO DE DIFUSÃO ESPÍRITA ALLAN KARDEC NO MUNICÍPIO DE RIO VERDE-GO Nome: Nívea Oliveira Couto de Jesus Titulação: Mestranda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Nome: Sebastiana Aparecida Moreira Titulação: Doutoranda bolsista da FAPEG/CNPQ Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás 134 Resumo: Este artigo visa contribuir para a reflexão acerca da imortalidade da alma, no tange aos trabalhos desenvolvidos pelo IDEAK-Instituto de Difusão Espírita Allan Kardec no município de Rio Verde-GO. Para tanto apresentaremos a ações utilizadas pela instituição no sentido de formar o ser humano integral, tendo a integração do corpo físico e espiritual como fatores indissociáveis para esse fim. Em abril de 1857 com a publicação do Livro dos Espíritos, organizado pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (Allan Kardec), estruturava-se a fé racionalizada sustentada pelo tripé religião, ciência e filosofia. Atualmente o Brasil possui o maior número de adeptos do Espiritismo no mundo, mas cujas raízes remontam a Sócrates e Platão, passando por interpretações não ortodoxas do Cristianismo e por pedagogos, como Comenius, Rousseau e Pestalozzi, que influenciaram Kardec. O ser humano O ser humano enquanto ao nível antropológico filosófico possui uma tríplice estrutura corpo-alma-espirito; sua autorrealização consiste na harmonização destes três elementos. Por isso o IDEAK-Instituto de Difusão Espírita Allan Kardec procura através das diversas frentes de trabalho resgatar conceitos deixados no esquecimento sobre o que de fato é o homem e qual é sua estrutura fundacional, para que tenha em mente aonde se quer chegar: à plenificação da pessoa, tendo como referencial teórico o Livro dos Espíritos. Palavras-chave: IDEAK. Corpo. Alma. Espírito. Ser Integral. Este artigo visa contribuir para reflexão acerca da imortalidade da alma, no que tange aos trabalhos desenvolvidos pelo IDEAK-Instituto de Difusão Espírita Allan Kardec no município de Rio Verde-GO. O IDEAK – Instituto de Difusão Espírita Allan Kardec é um dos programas criados pelo IAM – Instituto de Assistência a Menores localizado no município de Rio Verde-GO. Tem como missão a prática da caridade e amor ao próximo. Para esse fim procura através das diversas frentes de trabalho, resgatar conceitos deixados no esquecimento sobre o que de fato é o homem e qual é sua estrutura fundacional, para que tenha em mente aonde se quer chegar: à plenificação da pessoa, tendo como referência teórica o Livro dos Espíritos. Histórico do IAM-Instituto de Assistência a Menores O Instituto de Assistência a Menores de Rio Verde (IAM) foi fundado em 04 de janeiro de 1956, através da liderança de Paulo Campos, que contou com o apoio da comunidade, tendo como um de seus fundadores o Centro Espírita Eurípedes Barsanulfo. Paulo Campos, na época visitou instituições semelhantes no Estado de 135 Minas Gerais e São Paulo, buscando referências e informações que lhe dessem subsídios para a execução da obra (Moreau, Andrade e Almeida, 2004). O IAM foi criado com a finalidade de prestação de assistência social a menores desajustados, através de internamento e instrução intelectual, aprendizado profissional, encaminhamento a cursos superiores, educação espiritual e orientação geral para a vida civil. Foi declarado de utilidade pública pelo Decreto Federal nº 72.220 de 11 de maio de 1973, publicado no DOU de 14-05-1973, registrado no Conselho Nacional de Serviço Social do Ministério da Educação e Cultura (proc. 43.320/67) bem como no Conselho Nacional de Serviço Social (proc. 249.395/74) e no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente desde 21 de fevereiro de 1992. Até 1999 possuía um funcionamento particular de acolhimento a menores oriundos de famílias pobres desamparadas e vitimadas por fatores como migração, desemprego e ausência de trabalho. Nesses trinta e oito anos o IAM atendeu, através de sistema de abrigo, duzentos e quatorze crianças. A partir de 1999, com a elaboração do Plano de Reordenamento Institucional, o IAM buscou novas estratégias de atendimento, que otimizasse a utilização das instalações físicas com atividades para criança e adolescentes. Dentro da nova proposta, foram implantados programas de atendimento como: Menino Cidadão, um programa de apoio socioeducativo que buscava meninos que estavam nas ruas para fazer atividades educativas e recreativas nas dependências do e o Programa Civil Voluntário que se dedicava a promover e a resgatar a autoestima de jovens com até dezoito anos de idade, preparando-os para a inserção no mercado de trabalho. Estes programas foram instrumentos que alavancaram a nova proposta do IAM. Na difusão espírita são desenvolvidas ações de esclarecimento e de assistência embasados nos preceitos da Doutrina Espírita Cristã com reuniões públicas, evangelização infanto-juvenil, escola de médiuns, escola de estudos espíritas, campanha da fraternidade Auta de Souza, campanha de esclarecimento Humberto de Campos, culto cristão no lar, atividades mediúnicas. 136 A Doutrina Espírita e as atividades realizadas pelo IDEAK Em 1854 o professor Denizard Rivail começou a investigar os fenômenos psíquicos que haviam, nove anos antes, abalado os Estados Unidos e repercutido intensamente na Europa. Discípulo de Pestalozzi, o grande pedagogo da época, e ele também pedagogo, interessava-se por todos os fenômenos que pudessem dar-lhe um conhecimento mais profundo da natureza humana. Partia do princípio de que o objeto da Educação é o homem e por isso o pedagogo tinha por dever aprofundar o conhecimento deste. Em 1857 lançava em Paris o Livro dos Espíritos, como primeiro fruto de suas pesquisas. Havia descoberto o espírito, determinado a sua forma, a sua estrutura, as leis naturais e não sobrenaturais, que regem as suas relações com a matéria. Podia afirmar, baseado em provas, que a natureza do homem é espiritual e não material, que ele sobrevive à morte, que possui um corpo energético, e se submete ao processo biológico da reencarnação para evoluir como ser integral48, despertando em sucessivas existências as suas potencialidades ônticas. O espiritismo acredita apresentar o verdadeiro destino do homem, tomando-se por base sua natureza e os atributos divinos, acreditando que o céu não é um local delimitado e circunscrito, mas decorrente do trabalho vibratório íntimo. Segundo o Livro dos Espíritos cap. VI questão 135, a doutrina espírita revela que o homem se compõe de corpo espírito e períspirito. O espírito é o ser principal, racional, inteligente. O corpo é o invólucro material do qual o espírito se serve temporariamente, para cumprimento da sua missão na Terra e execução de trabalhos necessários ao seu adiantamento. O corpo, usado, se destrói e o espírito sobrevive à sua destruição, envolto pelo períspirito. O perispírito é o princípio intermediário, substância semimaterial que serve de primeiro envoltório ao Espírito e liga a alma ao corpo. Ausente do espírito, o corpo é apenas matéria inerte, qual instrumento privado da mola real de função, sem o corpo, o espírito é tudo: a vida, a 48 O ser integral conhece a harmonia cósmica e está conscientizado a respeito de suas características. Está consciente do processo evolutivo, da visão sistêmica do mundo; está consciente de que a manutenção do equilíbrio requer auto aprendizado, auto atualização permanente. Fonte: http://www.sbee.org.br/portal/homem-integral/doutrina-dos-espiritos/textos-de-apoio/homem-integral. Acesso em: 20 de fev. 2016. 137 inteligência. Deixando o corpo, torna ao mundo espiritual, onde avalia a última existência, estuda, aprende e planeja o próximo reencarne. Embora o IAM realizasse desde sua fundação, 1956, atividades fundamentadas na doutrina espírita, em 2009 criou o IDEAK-Instituto de Difusão Espírita Allan Kardec visando legitimar a prática da caridade e amor ao próximo. Para esse fim procura através das diversas frentes de trabalho resgatar conceitos deixados no esquecimento sobre o que de fato é o homem e qual é sua estrutura fundacional, para que tenha em mente aonde se quer chegar: à plenificação da pessoa, tendo como referencial teórico o Livro dos Espíritos, seguindo a programação semanal no quadro abaixo. Quadro 01-Atividades semanais realizadas pelo IDEAK. Dia da semana Segunda-feira Terça-feira Atividade A segunda-feira é o dia dedicado à Triagem na Casa Espírita. As pessoas que buscam o tratamento espiritual e/ou adaptação às atividades da Casa são neste dia recebidas, orientadas e encaminhadas através de conversação fraterna. Ouvem as explicações sobre o Tratamento Espiritual e comentário de O Evangelho segundo o Espiritismo, recebem o auxílio magnético através do passe e são encaminhadas para uma sequência de três semanas de tratamento, após o qual devem retornar à Triagem para alta ou nova sequência de tratamento. A terça-feira é o dia dedicado à compreensão do Evangelho de Jesus à luz dos ensinamentos espíritas. A Reunião Pública esclarece e consola, reformula ideias e conceitos e renova a esperança. Após a Reunião Publica é oferecido a Triagem na Casa Espírita. As pessoas que buscam o tratamento espiritual e/ou adaptação às atividades da Casa são neste dia orientadas e encaminhadas através de conversação fraterna. O horário da Reunião Publica é as 19:30. A Reunião Pública funciona com várias salas simultâneas, propiciando aos seus frequentadores a opção de escolha. Assim, dentre os temas oferecidos na noite, o frequentador busca o que mais lhe convier. Veja o exemplo a seguir para facilitar o entendimento: Os temas oferecidos são atuais e de interesse geral. Lições em torno dos problemas humanos são explicadas de maneira fácil, agradável e atraente. O Livro dos Espíritos e o Evangelho de Jesus são temas permanentes e estudados de forma sequenciada. 138 Quarta-feira Sábado Esclarecimento (manhã): e Evangelização, Família, Assistência e Mocidade Divulgação, A quarta-feira destina-se ao tratamento espiritual, ao desenvolvimento mediúnico e à Escola de Médiuns. No compasso da disciplina e da harmonia, encadeiam-se atividades de socorro e esclarecimento a encarnados e desencarnados. Ao par das atividades dedicadas aos pacientes, desenvolve-se, de forma metódica e direcionada, a educação mediúnica, onde os exercícios e experiências visam a formação de medianeiros especializados para as salas de tratamento espiritual. Os cursos da Escola de Médiuns são desenvolvidos neste dia. Sob as luzes dos ensinos de Allan Kardec, André Luiz, Manoel P. de Miranda e tantos outros, prepara-se o médium esclarecido e renovado para o mandato mediúnico. A atividade mediúnica é reservada apenas para aquelas pessoas que concluirão a Escola de Estudos Espíritas no sábado à noite. No sábado pela manhã são realizadas atividades de Evangelização, Esclarecimento e Família, Divulgação e Assistência, fazendo deste momento a oficina de trabalho e o laboratório de experiências profícuas dos Institutos. Os Institutos da Criança, do Esclarecimento e Família, da Mediunidade, da Divulgação e do Jovem são os responsáveis pela organização e o máximo rendimento no bem de todas as atividades do dia. No sábado, das 18:00 às 20:00 temos o momento dedicado ao estudo, troca de experiências e pesquisas. Os cursos que congregam todos os trabalhadores da Casa Espírita estão divididos em cursos do Ciclo Introdutório e das Escolas para Formação de Trabalhadores dos Institutos. Ciclo Introdutório: Noções Básicas de Doutrina Sábado (noite): Escola de Espírita, Nosso Lar, Passe e Corrente Magnética Estudos Espíritas Ciclo de Especialização: Escola para Formação de Trabalhador. O esclarecimento e o consolo, a assistência, a divulgação, a mediunidade, o atendimento à criança, ao jovem, ao adulto, à velhice e ao desencarnado são atividades que solicitam o preparo e a especialização constante do trabalhador espírita. A formação do trabalhador tem início com a sua integração no programa de estudos da Escola de Estudos Espíritas. Fonte: Quadro organizado pelas autoras. 139 Com base nos conceitos propostos no Livro dos Espíritos, o tríplice aspecto da doutrina, religioso, filosófico e científico conferem-lhe o fundamento necessário para uma fé raciocinada de resultados duradouros. O Espiritismo é a nova ciência que vem revelar aos homens, por provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual, e suas relações com o mundo corporal; ele no-lo mostra, não mais como uma coisa sobrenatural, mas, ao contrário, como uma das forças vivas e incessantemente ativas da Natureza (...). (Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 1) Dessa forma, o espiritismo traz conceitos novos sobre o homem e tudo o que o cerca, toca em todas as áreas do conhecimento das atividades, e do comportamento humano. Pode e deve ser estudado, analisado e praticado em todos os aspectos fundamentais da vida, tais como: científico, filosófico, religioso, ético, moral, educacional, social. Algumas considerações É plausível concluir que o IDEAK está alicerçado no caminho da caridade, pois valoriza todos os esforços para a prática do bem e trabalha pela confraternização e pela paz, independentemente de sua raça, cor, nacionalidade, crença, nível cultural ou social, percebendo o homem como ser integral. Suas Atividades Básicas consistem em:  Divulgação da Doutrina Espírita realizada por todas as formas e meios compatíveis com os princípios doutrinários, a saber, palestras, aulas, grupos de estudos, livros.  Assistência espiritual que preconiza orientação e ajuda às pessoas com necessidades espirituais, por meio de atendimento fraterno, exposição de temas espíritas, estudo do evangelho à luz da Doutrina Espírita, passes e atividade mediúnica.  Assistência e promoção social por meio de orientação e ajuda às pessoas com necessidades materiais, bem como a assistência básica: distribuição de alimento, roupa e remédio, e promoção através de cursos de orientação, e encaminhamento ao ensino e formação profissional. 140 Referências KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª reimp. Rio de Janeiro: FEB Editora, 2011. ________, Allan. O céu e o Inferno. Tradução de Manuel Justiniano Quintão. 61. ed. 1. Imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. http://www.ocentroespirita.com/centroespirita/funcionamento.php 4. DOUTRINA DA INTEGRALIDADE CORPO/ALMA/ESPÍRITO ADVENTISTA E O ABOLICIONISMO ANIMAL DE PETER SINGER: ENCONTROS E DESENCONTROS. Igor Emanuel de Souza Marques49 Dilson Cavalcanti Batista Neto50 Resumo:O presente estudo parte da problemática de que o abolicionismo animal de Peter Singer tem como um dos seus pressupostos uma crítica ao cristianismo que prega a separação corpo e alma, sendo que esta não representa todas as visões cristãs, como a do Adventismo. Curiosamente, ambos apontam para uma postura do não uso de carne animal para consumo humano, tendo embasamentos diametralmente opostos. Conclui, após a apresentação de ambas as perspectivas, que deveria haver um diálogo construtivo entre elas. Palavras-chave: Abolicionismo Animal, Peter Singer, Adventismo, Integralidade humana, Ellen G. White. Peter Singer se autodeclara utilitarista e ateísta. Suas propostas partem, dentre outros fatores, de uma crítica à doutrina cristã51 de separação do corpo e alma. Nessa perspectiva, o uso da carne animal seria eticamente permitido já que eles não possuem alma. Singer aponta que a escravidão humana (século XVIII e XIX) teria o mesmo fundamento, já que o negro não possuía alma e, desta forma, 49 Mestre em Ciências da Religião pela UMESP, Pós-graduado em Docência Universitária pelo UNASP, Graduado em Teologia e Direito pela mesma instituição. Professor de Ensino Religioso na Faculdade de Direito do UNASP. E-mail: igor.marques@unasp,edu.br 50 Doutorando em Filosofia do Direito na PUC/SP. Mestre em Direito pela UFBA, Graduado em Direito pela UFS. Professor da Faculdade de Direito do UNASP. E-mail: dilson.neto@unasp.edu.br. 51 Como será demonstrado, tal doutrina não é da totalidade das denominações cristãs como, p. ex., é o caso do Adventismo. 141 poderia ser tratado como coisa, escravizado. Singer parte do pressuposto ateísta de que não deve haver nenhum domínio natural do ser humano sobre a natureza e de que não existe alma. Sendo assim, o humano, como animal evoluído, tendo a capacidade de perceber o sofrimento de outros animais, tem o dever ético de diminuir tal sofrimento. Não obstante o diálogo entre o Adventismo e Singer poder ser proposto em outros temas (como a eutanásia e o aborto), o presente trabalho restringe-se à questão do tratamento aos animais. Amparado na contribuição de Ellen White, a visão adventista de integralidade do ser humano representa um desafio à construção de Peter Singer mostrando como o cristianismo bíblico pode contribuir para florescimento da ética. A concepção de Cristianismo para peter singer no contexto do abolicionismo animal. Singer adota como base de suas teses uma postura utilitarista, que tem como critério de definição de justiça a ideia de sofrimento, aliado com uma concepção evolucionista e ateísta da história humana. Desta forma, ele entende que a ética deve ter seus horizontes alargados e não vinculados a uma visão metafísica, muito menos religiosa. A sociobiologia é, para ele, a base para uma nova compreensão da ética. O conceito de altruísmo, por exemplo, é um elemento da ética, do raciocínio humano, que se desenvolve em um contexto de grupo, com contornos essencialmente biológicos. Afirma que “os seus princípios não são leis escritas no céu. Também não são verdades absolutas sobre o universo, conhecido por intuição. Os princípios da ética vêm de nossa própria natureza como seres sociais, de raciocínio”. (SINGER, 2011b, p. 149). O Cristianismo, a linha religiosa que mais influenciou o Ocidente, é, segundo Singer, contribui para o que ele chama de “especismo”, ou seja, para a ideia de que o animal humano é superior ao animal não humano. Desta forma, para Singer, o Cristianismo legitima que os animais não humanos possam ser mortos e escravizados sem maiores problemas éticos pelos animais humanos. Para analisar esta proposição, em sua obra “Liberação Animal”, principalmente no Capítulo 5 (denominado “A Dominação do Homem”), Singer liga o 142 Cristianismo às doutrinas gregas de separação corpo e alma para afirmar que, para os cristãos, o Ser Humano seria superior aos animais por possuir alma imortal. Mas não só liga à tradição grega, mas à Filosofia Moderna de Descartes, por exemplo, para quem o animal não humano não passava de máquina, sem alma. (SINGER, 2002, p. 200). Além da doutrina de que o ser humano é digno e santo por ter alma imortal, Singer aponta outra doutrina cristã como base do “especismo”. É a ideia de o ser humano, por ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, é Sua propriedade. Matar um humano é usurpar o direito de Deus, dono do humano. Mas já que os animais não humanos foram passados para o domínio dos humanos (Genesis 1:29 e 9:1–3), estes poderiam matar os primeiros, desde que não atacassem o direito de propriedade de outro humano. Peter Singer reconhece que, com a crescente secularização do Ocidente, as doutrinas cristãs não são amplamente aceitas. Mas as duas ideias supramencionadas estariam profundamente enraizadas na crença ocidental de que a espécie humana é única e possui privilégios especiais. (SINGER, 2011a, p. 76). O mesmo “especismo” que legitimou a escravidão humana no passado, hoje fundamenta a escravidão de animais não humanos. As ideias de Singer não são isentas de um diálogo com pensadores cristãos. David Clough (2014, p. 169-174), por exemplo, propõe algumas respostas a tais interjeições de Singer em relação ao Cristianismo. Uma delas é que nos Evangelhos, Jesus enfatiza o cuidado com o bem-estar dos animais (Mateus 10:31 e Lucas 12:6-7); Em Mateus 6.26, quando Jesus dá o exemplo das aves, esta não é necessariamente uma injunção moral para ser gentil com pássaros, mas é precisamente uma recomendação para o cuidado com os interesses no momento da busca de alimento. Por mais que várias visões do Cristianismo busquem um diálogo com Peter Singer52, falta ao repertório do filósofo a consideração de doutrinas cristãs como a Adventista do 7º Dia que, ainda que por razões diversas, prega o vegetarianismo como melhor forma de alimentação. Mas este ponto de econtro tem como pressupostos uma série de desencontros abisais. O próximo bloco tratará das 52 Como o exemplo do Professor católico Charles Camosy publicou em 2012 a obra “Peter Singer and Christian Ethics” no qual busca um diálogo entre a tradição cristã e as propostas de Singer. 143 crenças adventistas que a tornam única entre os ramos do cristianismo e, na conclusão, serão apontadas possíveis formas de diálogos e aprendizados mútuos entre a escola do Abolicionismo Animal de Peter Singer e o Adventismo do 7° Dia. A integralidade do ser humano e a doutrina de saúde Adventista: cuidado com a alimentação e o relacionamento com Deus A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) é o principal grupo religioso resultante do movimento Milerita, que exerceu importante influência no cenário de reavivamento religioso norte-americano da primeira metade do século XIX, com características milenialistas. Entre as denominações cristãs, o adventismo se diferencia em sua visão quanto ao estilo de vida saudável, especialmente por afirmar uma relação estreita entre princípios de saúde e espiritualidade, além da já difundida qualidade de vida por abstinência do alimento cárneo. Reid (2011, p. 859) destaca a compreensão adventista quanto à dieta humana originalmente apresentada no texto bíblico, quando afirma que essa era vegetariana (Gênesis 1:29) e que, na ótica bíblica foi somente após o dilúvio que o ser humano recebeu permissão divina para o consumo de carne animal em razão da extinção da vegetação. A referida compreensão bíblica, prevalecente até os dias atuais no meio adventista, teve início em 1863 quando da organização formal da denominação. 53 Foi nesse mesmo ano que Ellen White, co-fundadora do grupo e reconhecida como profetisa do movimento religioso, asseverou ter recebido uma visão sobre a importância de cuidados com a saúde, tema que posteriormente recebeu status de doutrina do grupo religioso, e até hoje recebe atenção especial da denominação e constitui-se num dos principais elementos identificadores do grupo. A partir de uma simples leitura de textos da autora54 que servem de fundamento à doutrina denominacional, percebe-se que o cuidado do corpo aparece 53 Schunemann (2008) ressalva que não obstante o discurso da IASD do cuidado da saúde começar com a “visão” de 1863, já havia um contexto anterior de grande interesse contra a intemperança. 54 As informações registradas pela visionária adventista sobre saúde humana são encontradas principalmente em seus livros “Conselhos sobre o Regime Alimentar”, “Conselho sobre Saúde” e “A Ciência do Bom Viver”. 144 como condição fundamental para o desenvolvimento da espiritualidade. Nesse sentido, a título de exemplo, encontra-se que ninguém que professe piedade deve considerar “com indiferença a saúde do corpo, iludindo-se com o pensamento de que a intemperança não é pecado e não afeta a espiritualidade”, pois existe íntima correspondência entre a natureza física e a natureza moral, situação que condiciona o aperfeiçoamento do caráter cristão às condições saudáveis do corpo (WHITE, 2009, p. 43). Portanto, a principal líder e escritora adventista apresenta fundamento saúde física e bem-estar para o abandono de carne da dieta humana, pois a carne seria um prejuízo à saúde humana, não obstante já sinalize para implicações morais quanto à ingestão do referido alimento cárneo, visto que, em sua compreensão, tira a vitalidade humana em vez de conceder forças, o que causaria inevitável influência na parte moral, que é indissociável do aspecto físico (WHITE, 2009, p. 487). Para reforçar a preocupação com a saúde humana, o alerta da visionária adventista dirige-se às crescentes enfermidades dos animais, que trariam ainda mais prejuízos à saúde humana, ao ponto de fazer um prognóstico generalizante: “não demorará muito até que o alimento cárneo tenha que ser abandonado por muitos, além dos adventistas do sétimo dia”. (WHITE, 2003, p. 267). De maneira bastante incisiva, pode-se perceber que nos livros de Ellen White há um claro apelo ao controle do apetite e ela chega a afirmar que o pecado original se dera pela incapacidade de resistir ao apetite, pois Satanás na tentativa de subjugar o ser humano especialmente através da alimentação (WHITE, 2009, p. 150). Ainda no sentido de relevância moral para abstinência do alimento em questão, Schunemann (2008) afirma que os conselhos de Ellen White sempre vinculam os hábitos saudáveis à espiritualidade e à salvação. A autora chega a afirmar em um dos seus livros que entre os que aguardam o retorno salvador de Jesus “o comer carne será abandonado, a carne deixará de ser parte de sua alimentação” (WHITE, 2009, p. 380) Interessante notar que embora o vegetarianismo seja intensamente recomendado, ele não é requisito para que a pessoa se torne membro da 145 denominação, devendo, para tanto, se abster de carnes consideradas impuras desde o texto bíblico55. Ademais, é importante registrar, que nos escritos da visionária da Igreja sobre alimentação vegetariana, também é possível encontrar fundamento ético. A escritora adventista também apela para o sofrimento que o consumo de carne causa aos animais e como isso impede o ser humano de manifestar verdadeiro amor e compaixão pelos indefesos animais, como seria o ideal de Deus para o relacionamento humano com as outras criaturas: Pensai na crueldade que o regime cárneo envolve para com os animais, e seus efeitos sobre os que a infligem e nos que a observam. Como isso destrói a ternura com que devemos considerar as criaturas de Deus! A inteligência apresentada por muitos mudos animais chega tão perto da inteligência humana, que é um mistério. Os animais veem e ouvem, amam, temem e sofrem. (...) Muitos animais mostram, pelos que deles cuidam, uma afeição muito superior à que é manifestada por alguns membros da raça humana. Criam para com o homem apegos que se não rompem senão à custa de grandes sofrimentos de sua parte. Que homem, dotado de um coração humano, havendo já cuidado de animais domésticos, poderia fitá-los nos olhos tão cheios de confiança e afeição, e entregá-lo voluntariamente à faca do açougueiro? Como lhes poderia devorar a carne como um delicioso bocado? (grifo nosso) (WHITE, 2003, p. 315 e 316.) Enfim, é possível verificar que a visão adventista entende o ser humano como unidade indivisível. Isto significa que o adventismo rejeita propalada compreensão dicotômica da vida humana entre o material e o espiritual. Portanto, de acordo com o pensamento de White, que - como apresentado - é fundamento do pensamento adventista, a pessoa que não cuida da saúde estaria desagradando a Deus, e enfraquecendo a mente para a recepção da comunicação com Ele e sua atitude não corresponderia ao ideal divino para a vida humana. Conclusões: Adventismo e Peter Singer: encontros e desencontros Poupar a vida dos animais como alimentação é um ponto de encontro entre o Abolicionismo Animal de Peter Singer e o Adventismo. Como apontado, os desencontros ocorrem nas razões para tal proceder. Para o primeiro, trata-se de uma postura ética, de matriz utilitarista e ateísta, que, inclusive, leva à não utilização de produtos que sejam frutos de pesquisas em animais. Para o Adventismo, é uma Sobre essa classificação de dois tipos básicos de carne animal, ver Gênesis 7:2 que aponta , além de Levítico 11 e Deuteronômio 14. 55 146 questão eminentemente ligada à crença da integralidade corpo-alma, de bem-estar, aonde o uso da carne pode interferir no relacionamento entre Deus e o ser humano. Apesar que, de forma menos evidente, também há indicações de problemas éticos do ingerir carne na doutrina Adventista. O presente trabalho propõe que novos encontros sejam realizados pelas doutrinas em estudo. Por um lado, o Abolicionismo Animal cresceria em repertório se encarasse e dialogasse com o Adventismo. E este ganharia em ampliar as formas de propagação da sua mensagem se levasse em conta mais seriamente os problemas éticos do uso da carne como alimentação. Poderia fazer da questão dos direitos dos animais uma porta de entrada para toda sua doutrina cristã. Referências CLOUGH, David. How to respect other animals: Lessons for theology from Peter Singer and vice versa. In PERRY, John (ed). God, the Good and Utilitarianism: Perspectives on Peter Singer. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. REID, G. W. In: DEDEREN, R. Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. SCHUNEMANN, Haller. Interfaces entre Religião e Ciência no Discurso de Saúde no Adventismo. Disponível em: http://www.abhr.org.br/wpcontent/uploads/2008/12/schunemannn-haller.pdf SINGER, Peter. Animal Liberation. 3 Ed. 2002. New York: HarperCollins Publishers, __________. Pratical Ethics. 3 Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011a. __________. The Expanding Circle: Ethics, Evolution and Moral Progress. Princeton: Princenton University Press, 2011b. White, E. G. A Ciência do Bom Viver. Tatuí, Casa Publicadora Brasileira, 2003. __________. Conselhos sobre Regime Alimentar. Tatuí, Casa Publicadora Brasileira, 2009. 5. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA ÊNFASE ADVENTISTA NA SAÚDE COMO ELEMENTO ESPIRITUAL: IMPLICAÇÕES PARA UM ETHOS CRISTÃO NA ERA DO FAST FOOD Nome: Douglas de Souza Reis Titulação: Mestrado 147 Instituição: Colégio Adventista do Portão (CAP), em Curitiba-PR Resumo: É relevante falar sobre saúde no contexto cristão? Em meio a uma sociedade orientada pelo sensorial, a busca pelo prazer, aliada à dinâmica da própria vida nos grandes centros urbanos, favorece o consumo por alimentos industrializados – os fast foods, como logo passaram a ser conhecidos. Enquanto autoridades na área da saúde e demais setores da sociedade questionam os valores nutricionais e elencam diversos malefícios da comida enlatada, gordurosa, contendo conservantes, corantes e demais artifícios, como os cristãos deveriam reagir? Seria a espiritualidade cristã neutra a essa “questão secundária”, ou se poderia teologizar sobre aspectos envolvendo não só a alimentação, porém abarcando o estilo de vida, como um todo? Partindo da compreensão adventista, movimento protestante norteamericano, pode-se dialogar com o zeigeist contemporâneo, não somente no sentido de lhe contrapor uma crítica com base bíblico-profética, enraizada na compreensão fundadora do “corpo como templo do Espírito”; ademais, essa mesma interpretação justifica a construção de um paradigma cristão mais positivo, capaz de integrar as dimensões diversas do ser humano no objetivo de que o homem, reunido, re-unificado, se apresente perante Deus, consagrando-se-Lhe integralmente. Assim se pode falar de uma contribuição teológica que se apresente no cenário contemporâneo para tratar de um tópico que mais preocupa homens e mulheres no século XXI: a qualidade de vida. O movimento adventista nasceu no agitado século XIX, período de diversas mudanças sociais no mundo e, especificamente, nos Estados Unidos. Um pouco antes, no início do século, a época também ficou marcada pela reforma educacional encabeçada por Samuel Hall, movimento abolicionista de ativistas como William Lloyd Garrison, em prol da maior participação da mulher na sociedade (a começar pela educação56) e em favor da temperança. (FAULKNER, 2011; FLETCHER, 2008; RISS, 2006; STEFFES, 2012) Como descendentes diretos do movimento milerita, o adventismo herdou não apenas a escatologia de William Miller, como também os elementos bíblicos que seriam posteriormente integrados em um sistema coerente e unificado. Tem-se definido a pregação de Miller, em torno da qual se construiu uma rede de jornais e uma comunidade de pregadores itinerantes, como gravitando ao redor de um único tema: a parousia bíblica. Todavia, não podemos olvidar as preocupações sociais entre os mileritas, ainda que essa não fosse a tônica daqueles primeiros adventistas. Obviamente, encontra-se também um componente de desejo pela mudança entre os mileritas. Muitos dos líderes que se uniram a Miller haviam defendido reformas sociais, como abolição da escravatura e temperança, ligadas ao movimento de “Apesar de haver aqueles que acreditavam que cérebros eram sexuados e que os cérebros femininos eram menos capazes de estudar, a retórica predominante foi de uma habilidade equiparada. […] A diferença mais saliente em oportunidades educacionais era mais de classe e raça, não de gênero.”(NASH, 2005, p. 99). 56 148 reforma que endossava o pós-milenianismo. Também os líderes adventistas mostravam simpatia com a causa pró-vegetarianismo de Sylvester Graham.(BULL; LOCKHART, 2007, p. 11) Um dos membros fundadores do que futuramente seria chamado Igreja Adventista do Sétimo Dia, Joseph Bates, tornou-se o primeiro vegetariano do movimento, logo após 1844. (LEVTEROV, 2015, p. 200) Logo, “o movimento adventista não foi rejeição da reforma, mas esperança final para uma reforma por meios diferentes.” (MORGAN, 2001, p. 7) Com a diluição fatídica do milerismo, após o desapontamento em 22 de Outubro de 1844, diversas facções do movimento tentaram se reestruturar, interagindo com a mensagem de Miller de formas as mais diversificadas. Entre esses epígonos do movimento adventista original, surgiu a facção que passou a defender a crença em um santuário celestial e a perpetuidade da lei divina. Esses adventistas sabatistas se organizaram apenas em 1863, adotando formalmente o nome de Igreja Adventista do Sétimo Dia. Além de doutrinas bem definidas, os tais adventistas sabatistas se preocuparam em integrar sua mensagem a um estilo de vida peculiar e distintivo. Detectam-se as primeiras definições sobre estilo de vida em 1863, as quais incluíam: (1) a observância do sábado; (2) a mordomia financeira; (3) a reforma da temperança; (4) a não-combatência. (TIMM, 2009, p. 148). Em grande parte, a influência da pioneira, Ellen G. White, fez-se fundamental para resgatar a ênfase de santidade em todas as áreas, inclusive no que se refere à temperança. Alguns chegam a dizer que sua ênfase na saúde é incomparável na história do cristianismo, dada a sua magnitude.(RODRIGUEZ, 2014, p. 133) Essa mensagem está estritamente relacionada com as leis dietéticas e higiênicas exigidas do Israel mosaico. Sobre o objetivo dessas leis, alguém observou: Assim, as leis de Deus para Israel – leis de alimentação, leis sobre vestuário, leis acerca do plantio, leis civis ou leis regulamentando casamento e relações sexuais – não eram exaustivas, devendo ser vistas primeiramente como lembranças visíveis para se viver como santo povo de Deus em cada área da vida.(COPAN, 2005, p. 176) Apesar de algumas visões ainda nas décadas de 1840 e 1850, Ellen White passou a advogar o vegetarianismo apenas depois do início da década de 1860, especialmente após duas importantes visões sobre saúde em 1863 e 1865. (LEVTEROV, 2015, p. 201) É digno de nota a rejeição de White a uma abordagem meramente secular da reforma de saúde, dada sua motivação ímpar embasada em 149 convicções religiosas e nas leis da natureza. Tais fatores a levam à conclusão de que o desenvolvimento pessoal – no qual se inclui o bem estar físico – se trata de responsabilidade moral. (RODRIGUEZ, 2014, p. 135, 140) Sobre as críticas, que fazem de White plagiadora, ou, na melhor das hipóteses, simples compiladora de conceitos disponíveis na literatura de sua época, vale a ponderação apresentada a seguir: Uma vez que Ellen White tinha pouca educação formal, e certamente nenhuma formação médica, como sabia ela que não deveria utilizar aqueles princípios que podem até ter parecido válidos 150 anos atrás, mas que hoje são reconhecidamente muito equivocados? E onde foi que ela conseguiu os muitos princípios que os outros reformadores de saúde jamais defenderam? Esse último ponto é particularmente importante, porque os princípios que lhe são exclusivos têm um grau de precisão muito maior do que os princípios encontrados em seus escritos e nos de um ou mais dos outros reformadores da saúde. A precisão de seus princípios de saúde não pode ser derivada de nenhuma fonte disponível em qualquer época da vida dela. (BRAND, 2005) Outro expoente da mensagem adventista sobre saúde, John H. Kellog era um médico e ativista brilhante, que inventou os sucrilhos, entre outras patentes, e nos anos 20, quando já havia deixado a denominação, gravou a primeira série de exercícios pela Columbia Gramophone Records. (BULL; LOCKHART, 2007, p. 12,13) Kellog aparece como alguém menos flexível em seus posicionamentos sobre dietética do que White. Tanto em carta a Kellog (1845), quanto ao casal Kress (1905), White solicita um posionamento cauteloso sobre proibições ao consumo de carne, especialmente em casos que envolvesse condições especiais de saúde. (LEVTEROV, 2015, p. 201) As conexões bíblicas feitas pelos adventistas dos textos sobre saúde (Lv 11; 1 Co 3:16-17; 6:19-20) com as três mensagens angélicas (Ap 14:6-12) os levou à apreciação da saúde como assunto de importância escatológica. Até hoje, embora não legisle sobre o assunto, obrigando sua membresia a adotar uma alimentação vegetariana estrita, o movimento adventista proclama que a dieta edênica não incluía carne e que um estilo de vida saudável deve resgatar princípios dietéticos similares aos de nossos primeiros pais, além de um enfoque global que inclua hábitos temperantes. 150 Um fim para a dieta: perspectiva contemporânea Na sociedade cotemporânea, o ideário popular admite o “fazer dieta”, por objetivos medicinais ou estéticos; tal comportamento, por seu caráter efêmero, se contrapõe à adoção de uma dieta como estilo de vida peculiar, que seja fruto do tipo de perspectiva vinculada a uma agenda ideológica. Lupton enxerga duas correntes em disputa quanto à “comida e comer”: a premência imperativa do fazer dieta, que, basicamente, prega a abstinência dos “alimentos maus” e o emprego dos “alimentos bons”, tudo “em nome da saúde e de um físico magro”; a segunda corrente estaria preocupada em seguir os impulsos pessoais e em ser autêntico, livre para buscar o “prazer e a autoindulgência”. (LUPTON, 1996, p. 151) Em sua denúncia filosófica da glutonaria, pecado de uma sociedade de consumo acostumada à abundância, matizada em um leque sofisticado de opções para cada desejo, Guinness assevera: As pessoas comem em demasia para compensar o vazio emocional. Contudo, comer em demasia nunca compensa. A barriga está cheia, mas o coração está oco. A glutonaria engana, como todos os outros vícios. Nossa condenação se torna esta: “Somos o que comemos”. (GUINNESS, 2006, p. 206). A indústria de alimentos refinados apresenta produtos extremamente atrativos, cujas cores e aromas estimulam o gosto. Desde os primeiros anos, os hábitos alimentares formados e repetidos em um processo de socialização estabelecem os “comfort foods”, ou seja, nossas preferências alimentares.(SCHLOSSER, 2012, p. 123) Por toda a parte, é possível encontrar comida processada e fast food, geralmente compostas por “grãos refinados, açúcares refinados e gordura.”(KISSINGER, 2015, p. 90) Esse tipo de alimentação, além de comprovadamente não ser o mais apropriado, contribui para problemas de saúde a longo prazo. Evidentemente, a questão não se resume ao que se come; enfermidades como hipertensão, obesidade, doenças cardíacas, estresse, osteosporose, entre outros, estão ligados a um estilo de vida não saudável, que inclui falta de exercícios físicos (sedentarismo), falta de sono apropriado, consumo insuficiente de água potável, pouco contato com ar puro e luz solar – elementos bastante comuns para pessoas que vivem nos principais centros urbanos. Tampouco grupos cristãos se revelam preocupados em adotar uma dieta ou estilo de vida saudável como marca 151 distinta da espiritualidade cristã. Com acuidade, se observa que mesmo entre “representantes das denominações, imperam aportes ligados à medicina tradicional ou curas espirituais de viés carismático.”(RODRIGUEZ, 2014, p. 133) Nesse sentido, a mensagem adventista, com sua ênfase na saúde como componente espiritual e cheio de conotação escatológica, ganha relevância ainda maior do que por ocasião de suas primeiras formulações – afinal, mais do que no século XIX, é mister cuidar do corpo, esse bem tão precioso, todavia tão maltratado pela vida contemporânea, que avidamente busca sensações e facilidades, sem medir as consequências psico-físicas e espirituais daquilo que consome. Conforme pontua uma pesquisadora: “Um alvo da Igreja Adventista do Sétimo Dia é prover o conhecimento, habilidade e motivação que leva à vida abundante”.( KISSINGER, 2015, p. 88) Conclusão Surgido no século XIX, em meio a efervescentes mudanças na sociedade, o movimento adventista apresentou, desde seu início, a peculiaridade de entender o fenômeno da salvação como contendo suficiente potencial para abarcar todas as dimensões da experiência humana, o que inclui o estilo de vida. Entre as ênfases adventistas, destacamos a reforma de saúde como elemento espiritual, relacionado ao desenvolvimento de uma vida cristã harmoniosa e integral. A sociedade contemporânea, grosso modo, não se mostra preocupada com a adoção de princípios de bem estar, uma vez que o ethos hedonista presente na mentalidade ocidental promove um estilo de vida voltado para o prazer imediato, sem medir as consequências físicas e emocionais. Em razão disso, a vida moderna se encontra vitimada por diversas doenças que afetam tanto a longevidade quanto a qualidade de vida. Certamente, tais problemas encontram repercussão na espiritualidade. Diante do que foi exposto, pontua-se três contribuições da mensagem adventista voltada ao bem estar do homem integral para indivíduos inseridos na sociedade de consumo, que busca a satisfação pessoal e tem no apetite uma bússola: (1) O resgate de uma espiritualidade integral: a dicotomia entre corpo e alma destoa da apresentação bíblica da alma como pessoa composta de corpo e 152 espírito (Gn 2:7) – outrossim, uma espiritualidade que desconsidere a integralidade do homem contradiz a ênfase do NT, que estende o processo de santificação a todas as dimensões do indivíduo, inclusive dentro de um panorama escatológico (1 Ts 5:23); (2) A adoção de uma visão crítica com respeito ao ethos contemporâneo: se os cristãos não devem se conformar a visões culturais de matizes seculares (Rm 12:2), é mister que se questione o comportamento autoindulgente e hedonista em todos os seus aspectos e, em particular, no que tange à alimentação e hábitos não saudáveis; (3) A responsabilidade que temos em proteger a vida: se o sexto mandamento proíbe abertamente o homicídio (Ex 20:13), seu princípio se aplica ao próprio indivíduo, que não deve atentar contra o seu bem estar físico, ainda que de modo indireto, por meio de hábitos prejudiciais à saúde (1 Co 3:16-17; 6:19-20). À guisa de conclusão, deixamos as palavras de White, ditas originalmente há mais de 100 anos: O povo de Deus deve ser genuinamente médico-missionário. Deve aprender a ministrar às necessidades da alma e do corpo. Deve saber como ministrar tratamentos simples que fazem tanto em aliviar dores e remover enfermidades. Deve estar familiarizado com os princípios da reforma de saúde, a fim de que possam mostrar a outros como, mediante hábitos corretos no comer, beber e vestir, podem as enfermidades ser evitadas e reconquistada a saúde. Uma demonstração do valor dos princípios da reforma de saúde muito fará para remover preconceito contra nossa obra evangélica. O grande Médico, o originador da obra médico-missionária, abençoará cada um que vá humilde e confiantemente, procurando distribuir a verdade para este tempo.(WHITE, 2007, p. 127). Referências BRAND, L. Ellen White e seus críticos. Diálogo Universitário, p. 24–26, 32, [2005]. Disponível em <http://dialogue.adventist.org/pt/artigos/17-2/brand/ellen-white-e-seuscriticos>. Acesso em: 15 de mai. 2016. BULL, M.; LOCKHART, K. Seeking a sanctuary: seventh-day Adventism and the American dream. 2nd ed ed. Bloomington: Indiana University Press, 2007. COPAN, P. How do you know you’re not wrong?: responding to objections that leave Christians speechless. Grand Rapids, Mich: Baker Books, 2005. FAULKNER, C. Lucretia Mott’s heresy: abolition and women’s rights in nineteenth-century America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2011. FLETCHER, H. B. Gender and the American temperance movement of the nineteenth century. New York: Routledge, 2008. 153 GUINNESS, O. Sete pecados capitais: Navegando através do caos em uma era de confusão moral. In: São Paulo, SP: Shedd Publicações, 2006. KISSINGER, E. Obesity, A Global Concern. In: MAIER, R. Church and society: missiological challenges for the Seventh-Day Adventist Church. Andrews University mission studies. Berrien Springs, Michigan: Department of World Mission, 2015. LEVTEROV, T. Ellen White and vegetarianism. In:BURT, M. D. (ED.). Understanding Ellen White: the life and work of the most influential voice in Adventist history. Nampa, Idaho: Pacific Press Publishing Association, 2015. LUPTON, D. Food, the body, and the self. London; Thousand Oaks, Calif.: Sage Publications, 1996. MORGAN, D. Adventism and the American republic: the public involvement of a major apocalyptic movement. 1st ed ed. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001. NASH, M. A. Women’s Education in the United States: 1780-1840. Hampshire, UK: Palgrave Macmillan, 2005. RISS, A. Race, slavery, and liberalism in nineteenth-century American literature. Cambridge, UK ; New York: Cambridge University Press, 2006. RODRIGUEZ, Á. M. The Theological and Practical Significance of Health Reform in the Writings of Ellen G. White. Journal of the Adventist Theological Society, p. 132–157, 2014. SCHLOSSER, E. Fast food nation: the dark side of the all-American meal. 1st Mariner Books ed ed. Boston: Mariner Books/Houghton Mifflin Harcourt, 2012. STEFFES, T. L. School, society, and state: a new education to govern modern America, 1890-1940. Chicago ; London: The University of Chicago Press, 2012. TIMM, A. R. O Santuário e as Três Mensagens Angélicas: Fatores integrativos no desenvolvimento das doutrinas adventistas. 5. ed. Engenheiro Coelho, São Paulo: Unaspress, 2009. WHITE, E. Benificiência social. Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2007. 154 6. Aspectos culturais da visita para unção Tania M. Lopes Torres licenciada em Ciências Sociais pela UFBA, mestre em História Cultural pela UNICAMP, doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP professora no Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP) taniamltorres@hotmail.com Resumo: A visita de um cuidador espiritual faz parte de uma antiga tradição cristã praticada ininterruptamente ao longo dos séculos, uma importante etapa preparatória para que o rito da unção seja ministrado a um doente em estado terminal. Por ser uma prática socialmente localizada, a visita provê a oportunidade para a negociação de papéis sociais. Ao recorrer a uma fonte de autoridade que precede e transcende sua condição final, o doente recupera momentaneamente o poder sobre a própria vida, um poder do qual já havia geralmente abdicado. Além dessa dinâmica de negociação de papéis, a visita também abre espaço para o questionamento das expectativas sociais. A unção tem pouco significado cultural nos Estados Unidos; ainda assim, é praticada porque, naquele país, os enfermos dão grande valor ao toque pelo cuidador espiritual, que consegue, de certa forma, atravessar as barreiras impostas pela vergonha, medo e constrangimento criados pela doença terminal. Os objetivos desta comunicação são, em primeiro lugar, mostrar que a visitação é uma parte intrínseca e indissociável do rito da unção, sem a qual não somente a aplicação do rito seria impossível, mas muito de sua eficácia social, cultural e espiritual se perderia. Em segundo lugar, pretende-se sugerir quais são as atitudes mais adequadas para o cuidador espiritual a fim de garantir que sua visita alcance a eficácia pretendida. A metodologia consiste da análise de relatos, encontrados na literatura especializada, de visitas feitas por parte de cuidadores espirituais a fim de ungir pacientes em estado terminal. Palavras-chave: Unção. Cuidador espiritual. Morte. Os seres humanos, desde o início de sua história, deram várias provas de que não conseguem aceitar a factualidade da morte. Seu sentimento de abandono indefeso diante da pavorosa constatação de que são finitos, os levou a desenvolver rituais e a idear mitos capazes de auxiliá-los a colocar ordem no caos causado pela doença e pela morte. Como forma de abstrair significado da dura realidade do sofrimento, doença e morte, as sociedades antigas, mesmo as pré-cristãs, praticaram o rito da unção com óleo. O óleo, que já tinha um uso secular e mundano, principalmente na cozinha (Lv 2:7; 9:4; Nm 11:8; 1 Re 17:12; Ez 16:13) e como combustível (Êx 35:8, 14 e 28) e bronzeador, passou, então, à dimensão do uso religioso, servindo para preparar o corpo morto para o sepultamento, coroar reis (1 Sm 10:1; 15:17; 16:13; 2 Sm :4, 7; 12:7; 1 Re 1:39; 2 Re 23:30; Sl 89:20), consagrar sacerdotes (Êx 40:15; Lv 7:36) e profetas (Is 61:1), dedicar locais para a 155 adoração (Gn 28:18; Lv 8:10; Dn 9:24), oficiar matrimônios (Ez 16:9), ungir os enfermos antes da morte e os cativos prestes a serem libertos (2 Cr 28:15), e preparar o corpo para o sepultamento (2 Cr 16:14). Para os primeiros cristãos, Jesus, a quem o Novo Testamento apresenta como capaz de curar os enfermos pelo toque e pela palavra, era o Messias ou o Cristo, palavras que significam “ungido” em hebraico e grego. Por isso, os próprios discípulos de Jesus praticavam a unção em busca da cura física e exorcismo para as pessoas com quem entravam em contato (Mt 4:23-24; Mr 6:13). Gusmer (1984, p. 7), entre outros, acredita que, na prática dos discípulos, encontra-se a origem da unção como costume cristão (Ti 5:14-15). Mesmo não havendo indícios, no Novo Testamento ou na história da igreja cristã, de que a unção tenha sido usada para a evangelização, para os cristãos, a realidade física se torna, com frequência, uma alegoria da realidade espiritual. A Visita do Cuidador Espiritual como Parte do Rito da Unção Numa tentativa de situar a unção dos enfermos a partir de uma cosmovisão pós-moderna, Cavanaugh (2009, p. 3) propôs recentemente que o ritual deve compreender três elementos fundamentais: a visitação, a cura e a reconciliação. Ao fazer isso, a estudiosa reconhece o papel fundante de Tiago 5:14-15, passagem da Bíblia que faz essa estipulação: E quando alguém estiver doente, mande chamar os responsáveis da igreja, para orarem por ele, derramando óleo sobre ele, em nome do Senhor. Esta oração, feita com fé, dará a saúde ao doente e o Senhor há de restabelecê-lo. E, se cometeu algum pecado, será perdoado. Na Bíblia Hebraica, Deus visita os velhos, os enfermos e os inférteis; no Novo Testamento, Jesus “visita” os enfermos (Mt 8:14-15; 9:27-31; 20:29-34; Mr 1:29-31; 5:25-34; 7:31-37; 8:22-26 e Jo 9:1-7), em sua missão itinerante, chamando a si mesmo de médico (Mt 9:12; Mr 2:17;Lc 4:23 e 5:31). Na perspectiva de unção que tem por base a fórmula estabelecida na passagem fundante de Tiago 5:14-15, o oficiante e seus auxiliares visitam o enfermo com o propósito de orar por ele e o ungir de modo a que receba o benefício duplo de ser curado e se reconciliar com Deus. É muito comum que um doente terminal questione por que Deus permite que ele se encontre nessa situação angustiante, o que produz baixa autoestima e dor espiritual, tornando a reconciliação com Deus um tema antropológico tanto quanto 156 dogmático e teológico (YAMADA, 2001, p. 28 e 36). Nesse sentido, a reconciliação é bastante diferente da aceitação da morte, emanando, em vez disso, de um sentimento de paz produzido pela convicção de que somos compreendidos e aceitos pelo outro e de que o compreendemos e aceitamos (YAMADA, 2001, p. 38). Em realidade, quem visita o enfermo também exerce um papel simbólico. Sua influência sobre a pessoa visitada é significativa. Para Young (1954, p. 61-62), A influência do pastor não se limita a seu apelo pessoal, mas sofre o acréscimo de um poder figurativo que é tão antigo quanto a própria religião. Os pacientes atribuem ao pastor todos os tipos de papéis emocionais. Uma ampla gama de sentimentos e interpretações é invocada desde o contato inicial com o indivíduo. Essa reação resulta necessariamente da natureza simbólica do papel do pastor porque ela ocorre geralmente antes que uma boa relação interpessoal tenha sido estabelecida. É nesse contexto que Holst (1985, p. 46) afirma que “todo cuidado pastoral tem um papel básico, primário, definível e fundamental”. Papel, nessa declaração, tem o sentido de tarefa ou objetivo básico que se determina pelo cargo, profissão ou posição, sendo, além disso, uma combinação de expectativas internas e externas. A isso Yamada (2001, p. 10) acrescenta que o papel pastoral tem uma dimensão desejada e outra que é dada como tal. De qualquer forma, durante a visita ao doente, em muitos casos, o cuidador espiritual se torna, para ele, um representante de Deus e da igreja. “Quando o pastor visita o doente, o pastor não recebe nenhuma outra credencial senão o endosso dessa autoridade” (YAMADA, 2001, p. 13). Nesse sentido, como documentou Foulcault (1979, p. 99-128) a respeito da origem do hospital, o papel do médico, o principal responsável pelo cuidado físico prestado ao doente, se reveste de uma aura de respeitabilidade semelhante à que se percebe em relação ao cuidador espiritual: “a tomada de poder pelo médico se manifesta no ritual da visita, desfile quase religioso em que o médico, na frente, vai ao leito de cada doente seguido de toda a hierarquia do hospital: assistentes, alunos, enfermeiras, etc.” (FOUCAULT, 1979, p. 110). O rito da unção lança, portanto, o cuidador espiritual em meio a um torvelinho de emoções fortemente afetadas pela condição do doente terminal, sendo que, em muitos casos, considerável responsabilidade recai sobre a atuação do cuidador espiritual, em quem o doente deposita suas últimas esperanças de salvação ou de um pouco de alívio e paz. A teoria clássica de Kübler-Ross situa o paciente terminal 157 numa progressão de estágios em relação à morte que avança desde a negação e a raiva, passando pela negociação e depressão, até a aceitação. “Não se deve confundir, porém, a aceitação com uma etapa feliz. Ela é quase destituída de sentimentos. É como se a dor acabasse, a luta terminasse e tivesse chegado o momento de um pequeno descanso antes da longa jornada” (KÜBLER-ROSS, 1997, p. 124). Segundo Cavanaugh (2009, p. 3), A visitação aponta para a natureza dialógica da unção, um ponto de partida que permite observar a dinâmica e a interação social entre poder e vulnerabilidade. Colocar esse componente em primeiro lugar é olhar o milieu concreto das realidades humanas que definem a enfermidade. Assim, segundo os que a praticam (YAMADA, 2001, p. 5), a visitação pastoral àqueles que estão gravemente enfermos tem por motivação o precedente das Escrituras, o anseio de seguir o exemplo estabelecido por Cristo, o desejo de conformidade com a tradição cristã, a vontade de ajudar o próximo, o interesse em dar testemunho da própria fé, a aspiração ao crescimento espiritual e o objetivo clínico de prover algum tipo de consolo e certeza em meio ao cansaço, dor, isolamento e sofrimento provocados pela doença. Por essa razão, o cuidador espiritual vai até o leito da pessoa e se esforça para demonstrar empatia por meio do toque físico e para reafirmar a fé do enfermo por meio da leitura da Bíblia e da oração. Segundo Yamada (2001, p. 6), esses objetivos não são alcançados se o cuidador espiritual se atém à própria agenda e não leva em consideração as expectativas daquele que está enfermo, embora estas sejam verbalizadas apenas raramente. Johnson e Spilka (1991) relatam, por exemplo, que, em seu estudo com pacientes de câncer de mama, uma mulher mencionou sua indignação diante da recusa de um cuidador espiritual em orar por um milagre em seu caso. O texto de Tiago e, por extensão, o próprio ritual da unção contribuem para a concessão de poder ao enfermo, já que é por sua decisão que o rito lhe deve ser ministrado. É o enfermo quem, de fato, manda chamar os oficiantes. Além disso, por sua solicitação, os oficiantes vêm a sua presença e não o contrário. Segundo Cavanaugh (2009, p. 11), a prática de visitar e cuidar dos enfermos, viúvas e órfãos é vista pelos primeiros cristãos como uma continuação do ministério de Cristo (Ti 1:27; At 6:1-2). De acordo com o Novo Testamento, Jesus tinha encontros com os 158 enfermos nas estradas (Mt 8:13; Lc 17:12-14) e permitia que eles lhe fossem trazidos onde quer que estivesse (Mt 9:6-7). Além disso, ensinava que a visitação aos enfermos era um dever de seus seguidores (Mt 25:36; Lc 16:19-31). De fato, Borobio (1991, p. 45ss) coletou referências a inúmeras fontes antigas que fazem menção ao costume cristão de visitar os enfermos e que o sancionam, dentre as quais se pode mencionar, a título de exemplificação, a hipérbole de Atanásio, em meados do século IV, de que os enfermos lamentavam mais a falta de visitas do que a própria presença da enfermidade. Nem sempre, porém, se respeitou a regra de visitar o doente em seu lar. Com a emergência dos hospitais, no período carolíngio (800-1100), o local de visitação acaba transferido para as dependências de hospitais e mosteiros (CAVANAUGH, 2009, p. 35). Há evidência de que, nesse período, surgiu, além disso, a prática nada cristã de deixar o enfermo perto de um altar a fim de constranger Deus a que o curasse. Caso a cura não ocorresse, o enfermo era deixado ali para morrer (POSCHMANN, 1964, p. 248; CAVANAUGH, 2009, p. 36). Cuenin (1987, p. 74) interpreta, por outro lado, que o advento dos hospitais e o enorme contingente de homens e mulheres dedicados ao cuidado pastoral dos enfermos acabam alterando a forma como as doenças são entendidas depois desse período e contribuem para a concessão de um contexto de fé à realidade da doença. Entre os católicos, o Concílio Vaticano II recomenda o retorno à prática da visitação aos enfermos em seu próprio lar (CAVANAUGH, 2009, p. 52). Seu conselho, além disso, é que o clérigo elabore uma lista de pessoas enfermas a fim de que possa visitá-las periodicamente. Como parte da visita, o padre deve admoestar o enfermo a confiar em Deus, arrepender-se de seus pecados, implorar a misericórdia divina, ter paciência com o sofrimento causado pela doença e considerar a visita como uma visitação divina capaz de lhe confirmar a salvação e como uma oportunidade para que reforme sua vida. A visitação aos enfermos, na perspectiva do Concílio Vaticano II, não apenas muda o foco para a concessão de poder à pessoa enferma que o invoca, mas também para a família, a comunidade e os cuidadores que lhe dão apoio. A pesquisa psicológica e sociológica sobre a doença enfatiza o poder da doença de “infectar” não apenas o indivíduo, mas também a família e a rede social à qual a pessoa pertence (CAVANAUGH, 2009, p. 93). 159 Por isso, Collins (1991, p. 4) afirma que a visita pastoral, conforme recomendada pelo Concílio Vaticano II, concede uma extraordinária oportunidade para que os cuidadores espirituais coloquem a fé da igreja em diálogo com as esperanças, aspirações e temores humanos tão comuns aos enfermos e suas famílias. Nesse sentido, Fink (2005, p. 29) analisa o impacto da visita pastoral em termos de seu valor como liame social. Segundo ele, a simples visita do cuidador espiritual simbolicamente conecta toda a comunidade eclesiástica ao processo de cura. Trata-se, de fato, de um convite ao envolvimento da comunidade, um apelo a que a comunidade se veja como parte importante na cura de seus membros. Um procedimento comum na visita do cuidador espiritual é a garantia ao enfermo de que outras pessoas estão orando por ele (VANDECREEK, 1998, p. 198). Com isso, apesar do confinamento que a doença grave lhe impõe, o doente recorda, por sua vez, dos vínculos que ainda mantém com os amigos e conhecidos. Isso é especialmente evidente quando o doente costuma frequentar a congregação do cuidador espiritual. O Significado Social e Cultural da Visita do Cuidador Espiritual Atualmente, a perspectiva predominante da pós-modernidade aponta para a experiência humana como sendo localizada socialmente. Isto é, apesar de suas vozes geralmente múltiplas e de seu reconhecimento do potencial hermenêutico da linguagem, a pós-modernidade inclui alguns posicionamentos quase que consensuais, dentre os quais está o ponto de vista de que gênero, raça, classe e etnia informam a compreensão que as pessoas têm de sua realidade (CAVANAUGH, 2009, p. 104). De acordo com Cavanaugh (2009, p. 145-146), a unção, por exemplo, tem pouco significado cultural nos Estados Unidos; ainda assim, é praticada porque, naquele país, os enfermos dão grande valor ao toque pelo cuidador espiritual, que consegue, de certa forma, atravessar as barreiras impostas pela vergonha, medo e constrangimento às pessoas que residem no casulo inamistoso que a doença fatal constrói ao seu redor. Segundo Cavanaugh (2009, p. 143), durante uma visita, a pessoa enferma se esforça “para contar a história de sua vida”, para refletir sobre o que lhe deu significado à vida. Por isso, acaba tecendo “uma autobiografia que contém meadas 160 de integridade e desespero”. Quem a visita se esforça, por sua vez, para puxar a linha dos fiapos de esperança, abstendo-se de desenrolar a linha tingida com as cores berrantes do desespero. O doente é, nesse sentido, uma espécie de “vivo documento humano” (living human document), na expressão cunhada por Boisen (1936). O cuidador espiritual eficiente presta atenção nesse relato de vida e procura participar da experiência nele contida a fim de encontrar o significado que dele emerge (YAMADA, 2001, p. 8). Em momentos de dor física e espiritual, “qualquer pergunta tem significado”, e o cuidador espiritual reúne nas perguntas as condições adequadas para compreender a dor espiritual do doente e se unir a ele na exploração de seu significado (YAMADA, 2001, p. 28). De acordo com Gerkin (1984, p. 38), “cada vivo documento humano tem integridade própria que requer compreensão e interpretação, em vez de categorização e estereotipização”. Segundo Yamada (2001, p. 8), sem essa busca de significado, qualquer propósito de uma visita pelo cuidador espiritual perde seu valor. Uma confirmação desse fato vem de uma pesquisa voltada para pacientes com câncer de mama (JOHNSON; SPILKA, 1991, p. 24).57 As pacientes expressaram sua satisfação por ter recebido a visita de um cuidador espiritual no ambiente hospitalar principalmente porque se disseram compreendidas pelo cuidador espiritual. Outra preocupação dos enfermos, geralmente expressa por ocasião da visita de um cuidador espiritual, tem que ver com a forma como a vida das pessoas a quem amam e com quem se importam vai prosseguir sem sua presença ativa (CAVANAUGH, 2009, p. 143). No estudo de Johnson e Spilka (1991), 43,1% das pacientes de câncer de mama visitadas por um pastor ou capelão revelaram que um dos temas da conversa durante a visita foi sua preocupação com membros da família. De acordo com Yamada (2001, p. 19), até a oração proferida pelo cuidador espiritual reproduz os temas sobre os quais conversou com a pessoa enferma a quem está visitando e agrega a impressão de que lhe compreendeu o estado e as preocupações que derivam dele. 57 O estudo de Johnson e Spilka (1991) incluiu 103 voluntárias da Sociedade Americana de Câncer, sendo que mais de 90% das pacientes se disseram satisfeitas por terem recebido a visita de um pastor ou capelão no hospital ou em casa. O estudo demonstrou, portanto, que, em geral, as mulheres americanas apreciam visitas pastorais quando enfrentam problemas de saúde. Além disso, 53,4% dessas pacientes expressaram a opinião de que, durante a visita, o cuidador espiritual compreendeu sua dor e sentimentos. 161 Percebe-se, portanto, que a visitação é uma parte intrínseca e indissociável do rito da unção, sem a qual não somente a aplicação do rito seria impossível, mas muito de sua eficácia social, cultural e espiritual se perderia. A visita continua, inclusive, a ter valor cultural mesmo nas condições em que o doente terminal não partilhe da cosmovisão do cuidador espiritual, desde que este não ignore suas expectativas. A visita provê a oportunidade para a reflexão sobre temas ponderais e é essencial para a compreensão da factualidade da mortalidade humana, para a aceitação da morte e para a reconciliação com o outro. Conclusão A visita de um cuidador espiritual faz parte de uma antiga tradição cristã praticada ininterruptamente ao longo dos séculos, sendo, além disso, uma importante etapa preparatória para que o rito da unção seja ministrado a um doente em estado terminal. Por ser uma prática socialmente localizada, a visita provê a oportunidade para a negociação de papéis sociais. Durante ela, ao recorrer a uma fonte de autoridade que precede e transcende sua condição final, o doente recupera momentaneamente o poder sobre sua própria vida, um poder do qual, na maioria dos casos, já havia abdicado. Além dessa dinâmica de negociação de papéis, a visita também abre espaço para o questionamento das expectativas sociais em pauta. Como “vivo documento humano”, o doente proporciona à comunidade representada pelo cuidador espiritual e seus acompanhantes bem como aos familiares e amigos presentes durante a visita uma abertura para novas interpretações de sua história de vida e do significado último de sua condição. Dessa forma, a razão por que os envolvidos no processo se dizem beneficiados pode muito bem emanar da percepção que passam a ter de que, de alguma forma, a visita do cuidador espiritual contribui para a criação de uma nova sensibilidade hermenêutica na comunidade. Referências BOROBIO, Dionisio. An enquiry into the healing anointing in the early church. In: COLLINS, Mary; POWER, David (Eds.). The pastoral care of the sick. New York: SCM Canterbury, 1991. 162 CAVANAUGH, Ellen P. Anointing as the iconic interruption of the loving God. Tese de doutorado em teologia. Departamento de Teologia da Universidade Duquesne. Pittsburgh, 2009. 234 f. COLLINS, Mary. The Roman ritual: pastoral care and anointing of the sick. In: COLLINS, Mary; POWER, David (Eds.). The pastoral care of the sick. New York: SCM Canterbury, 1991. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 17. ed. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GUSMER, Charles. And you visited me: sacramental ministry to the sick and dying. New York: Pueblo, 1984. HOLST, Lawrence E. (Ed.). Hospital ministry: the role of the chaplain today. New York, Crossroad, 1985. JOHNSON, S.; SPILKA, B. Coping with breast cancer: the role of clergy and faith. Journal of Religion and Health, v. 30, n. 1, p. 21-33, 1991. KÜBLER-ROSS, Elisabeth. On death and dying. New York: Simon and Schuster, 1997. POSCHMANN, Bernhard. Penance and the anointing of the sick. Tradução: Francis Courtney. New York: Herder & Herder, 1964. VANDECREEK, Larry. The parish clergy’s ministry of prayer with hospitalized parishioners. Journal of Psychology and Theology, v. 26, n. 2, p. 197-203, 1998. YAMADA, Kazuhito. Pastoral visitation of the sick: reflections of a Japanesepastor. Dissertação de mestrado de teologia em aconselhamento pastoral. Departamento de Teologia do Waterloo Lutheran Seminary. Waterloo, Canadá, 2001. 61 f. YOUNG, Richard K. The pastor’s hospital ministry. Nashville: Broadman, 1954. 7. A DISTINÇÃO ENTRE O CORPO E A CARNE EM MICHEL HENRY Nome: Renato Garibaldi Mauri Titulação: Doutor Resumo: A possibilidade de um diálogo com a fenomenologia de Michel Henry proporciona a reflexão na contemporaneidade. Evoca a importância da afetividade na "fenomenologia da vida“, onde o corpo se torna dotado de sentidos, impressões e afetos. Nesta subjetividade consiste a concepção da carne, se distinguindo do corpo biológico, inclusive no que se diz respeito ao ser religioso. O artigo em questão aborda e analisa a distinção entre o corpo e a carne, na filosofia do corpo desenvolvida por Michel Henry, que utilizou o arcabouço teórico do filósofo Maine de Biran. O corpo, segundo Biran, é subjetivo, e sua natureza depende da subjetividade. Com isso Michel Henry rompe com a fenomenologia clássica que indica a "consciência" na representação, na intencionalidade ou na Transcendência 163 do Ser. A teoria de Michel Henry aborda uma teoria sobre o corpo não grega, através da fenomenalidade do corpo, tendo como referencial, o corpo como receptáculo da essência da vida. Palavras chave: Corpo; Carne; Maine de Biran; Michel Henry Michel Henry, em seus escritos, principalmente em “Encarnação”, “Palavras de Cristo” e “Eu sou a verdade”, faz uma distinção entre a concepção da corpo e da carne. Este aspecto elucida a pesquisa sobre a fenomenologia material, teoria filosófica original do filósofo francês, que aborda, segundo ele, a essência da vida no próprio manifestar – se, através de seu “pathos”. A “carne”, para Henry, é um fator importante para a compreensão da inversão fenomenológica que o autor propõe e que, segundo ele, se destaca das demais teorias fenomenológicas. A fenomenologia henryana se configura em uma virada filosófica, pois propõe a investigação do manifestar da vida em sua essência, na imanência. A vida para Henry, não se coloca a distância de si, não aparece, mas se manifesta, através do “pathos”, na vivência e experiência do viver, na própria “carne”. Para evidenciar a manifestação e a imanência em sua fenomenologia, Henry utiliza a noção da carne, a partir de uma fenomenologia da vida. Em “Eu sou a verdade”, o filósofo parte da “auto revelação” do verbo que se fez carne e que habitou entre nós. Em “Encarnação” ele trabalha com uma hermenêutica, a manifestação da essência da vida, e encontra no cristianismo o exemplo crucial para sua teoria, a auto revelação originária da vida. Na obra, Henry assume a perspectiva fenomenológica, como propõe a “inversão temática”, diante de uma fenomenologia histórica, pois “não é o pensamento que nos dá acesso a vida, é a vida que permite ao pensamento acender a si, de se experimentar, enfim ser o que é a cada momento...” ( Henry 2001,p.96). A Concepção da Carne nas obras de Michel Henry A obra “Encarnação” está elucidada a distinção entre corpo e “carne”. O corpo para Henry é o objeto da experiência, o corpo objeto, algo exterior, estudado e analisado pela ciência e a carne é o princípio da experiência, pois identifica o ser que sofre, que vivencia, deseja, revive, e que se suporta. Michel exemplifica a questão através do cristianismo, “É a capacidade de sofrer que faz da carne de Cristo uma carne humana... uma das tonalidades afetivas fundamentais, pelas quais a vida toca no seu próprio fundo” (Henry, 2001p. 138). A concepção da “carne” como 164 distinção do corpo, se torna aspecto investigativo essencial para a compreensão da filosofia estabelecida por Henry e que caracteriza por ser radical e material, além de explorar a vivência subjetiva. Radical é o esforço de se chegar a raiz do que aparece, precisamente dos fenômenos. É a raiz do que está enterrado, daquilo que não aparece daquilo que se mantém na vida. Ir a raiz significa escavar os fenômenos ir á fonte da manifestação (Henry, 2004p. 5).O aspecto material é em relação à construção, aquilo que é impossível erigir um edifício, como aquele ingrediente necessário que se constitui a essência do material de uma casa. É o que dá forma a cada parte do edifício, cada parede. Henry pretende desvelar a matéria que se compõe o aparecer, a substância inserida na manifestação, que sustem todo o aparecer, todo o fundamento e sua essência. O objetivo de Henry é desvelar a raiz material do que aparece por trás da aparência, aquilo que constitui o verdadeiro ser dos fenômenos. Para Henry, a vida é a essência, a matéria primordial de toda “manifestação originária”. (idem). Logo para o filósofo francês, toda a impressão acontece na vida, e esta se faz na carne viva na impressão do sentir. Para Henry, “A carne é justamente o modo como a vida se faz Vida. Não há vida sem carne, mas não há carne sem vida. (Henry,2001.p.11). “O eu de cada um de nós sente a vida na própria carne. Logo a elucidação da carne é um dos principais temas da investigação da teoria henryana. Com isso Henry propõe uma inversão fenomenológica. Inversão Fenomenológica O pensamento de Michel Henry se desenvolve através da fenomenologia, no que o autor francês chama de “a essência da manifestação”, algo que depois ele vai denominar de “subjetividade”. Segundo o filósofo, há que repensar a tradição da fenomenologia. Para Henry (Henry, 2013), o horizonte em Husserl coincide com a esfera da consciência, já para Heidegger se identifica com o âmbito do ser. O aparecer para Husserl, a intencionalidade é a estrutura da consciência, é o dizer, no âmbito da manifestação dos fenômenos. Para Heidegger, a essência aparece na temporalidade originária, do qual constitui o sentido de ser e dizer, é o sentido da fonte dos entes, o fundamento ontológico originário está na temporalidade. A temporalidade é o dizer, é o horizonte do tempo, é que constitui o sentido do serem sua essência. A matéria do aparecer, sua condição de temporalidade, o modo de 165 como aparecer no tempo e de como se revelar constitui a essência da fenomenalidade pelo que aparece. Logo Husserl parte da consciência e Heidegger do tempo. Ambos descrevem o que aparece, o que se dá, partindo da consciência e do “extasis” da temporalidade originária. Assim para poder pensar esta matéria originária , para poder falar sobre ela, para poder vê – la, é preciso relacionar com nosso pensamento, transformar em um objeto do mundo, atribuindo a posse na medida que é pensada. Para Henry, o erro esta em acreditar que a matéria coincide com a o pensamento, é dizer que o ser e o pensar possuem uma simetria. É através das diferenças que se compreende as diferenças diante das concepções do corpo. A Questão da Corporeidade O corpo para Husserl é ao contrário do que as diversas aproximações entre Husserl e Descartes podem sugerir, Husserl foi um severo crítico do dualismo mente-corpo, de origem cartesiana, como cita Alan Piloto Barco. As análises de Husserl em “Ideas II” mostram que no contato de uma mão com a outra temos duas sensações, com dupla apreensão, dupla experiência, no que diz respeito a tocante e tocada dimensão sensível e a dimensão subjetiva. No ser e no aparecer. Logo o corpo é tanto objetivo quanto subjetivo, corpo vivo e corpo físico. (Cardim,2009). Heidegger escreveu poucas linhas sobre o corpo em “Ser e Tempo”, essa foi motivo de crítica por parte de Sartre. Respondeu Heidegger que ao corpo era um tema difícil e não sabia o que dizer sobre o mesmo. (Villaça, 2012) Para Martin Heidegger, o homem não está no mundo da mesma maneira que as coisas e por isso não pode ser investigado e explicado da mesma maneira que os objetos. O homem encontra-se lançado-no-mundo, sempre se relacionando com as coisas e com as pessoas. Num esforço de tornar o ser-homem objeto de estudo, o modelo cartesiano perde de vista a especificidade do ser deste ente que somos, que Heidegger chamará de Dasein, ou ser-no-mundo. (Nascimento, 2008) Para Sartre, como cita Funk (Funk, 2012), não existe um corpo concreto de um lado, e de outro um corpo abstrato. Mas há dois modos distintos de alcançar o Corpo: o corpo que sou é alcançado por uma consciência perceptiva e espontânea que não permite qualquer distância entre o corpo e a consciência. O corpo abstrato é alcançado por uma consciência reflexiva que já por este 166 modo de ser alcançado guarda uma distância nula com este corpo, demarcando o num contexto. Neste aspecto, também com relação ao corpo, se compreende as frases “ a existência precede a essência” e Um homem não é outra coisa senão o que faz de si mesmo. Merleau – Ponty, na “Fenomenologia da Percepção”, como cita Reis (Reis, 2011), o corpo está no plano primordial da reflexão do filósofo, revela o modo através do qual o homem percebe o mundo, assim como a si mesmo. Na visão tradicional, a percepção era explicada ou em uma abordagem intelectualista, considerando-se que o sentido do percebido está na consciência do sujeito, ou na empirista, pois o sentido está no objeto. A noção fenomenológica de intencionalidade considera que o sentido não se encontra em nenhuma das colocações anteriores de forma isolada, mas está na relação entre eles. O mérito de Merleau-Ponty consiste em mostrar que esta relação é mediada pelo corpo, pois para ele tenho consciência do mundo por meio do corpo. Henry em um ensaio sobre a ontologia birariana (Henry, 2012), explica que Maine de Biran foi o primeiro filósofo, o único, na história da reflexão humana, que compreendeu a necessidade de determinar originalmente nosso corpo como subjetivo, como um dos verdadeiros fundadores de uma ciência fenomenológica da realidade humana. Para Henry, Biran fez a descoberta do corpo subjetivo como uma ontologia fenomenológica e isso o levou a bases novas sobre o corpo, algo que conduziu ao problema do ego. Pois “um corpo que é subjetivo e que é o ego”. (Henry, 2002 p.21). O objeto seria “minar o materialismo em seu próprio fundamento”. Assim Biran foi, entre alguns filósofos, aquele que determinou a consciência do eu, não como representação, mas como esforço, força, vida, ato. O mérito de Biran consiste em elaborar, não uma filosofia da ação por oposição a uma filosofia da contemplação ou do pensamento, mas uma teoria ontológica da ação, e sua originalidade não estão no fato de determinar o cogito, eu posso, como ação ou movimento, mas no aspecto de que o ser desse movimento, dessa ação é o de um cogito. Seria o pertencimento do ser do movimento à esfera de imanência absoluta da subjetividade. Logo o movimento nos é dado e é precisamente o da experiência interna transcendental. (idem). Esses estudos 167 levaram Henry a entender que existe uma manifestação exterior, mas uma manifestação passiva originária da matéria que Henry descreve como “auto afecção” que sustenta toda exterioridade. Logo, a vida para Henry é a essência, pois toda a impressão acontece na vida. É a carne viva do vivente, logo fenomenologia material é a fenomenologia da vida, é o manifestar da vida em sua “auto afecção”. Florinda Martins58 revela em entrevista via e mail, a concepção do corpo com o Absoluto. “O corpo objetivo não existe... o que existe é o «espírito» que paira em cada corpo remetendo a ele mesmo, ou seja, à sua interioridade (tal como a casca vermelhinha da maça remete ao seu interior...esse é também o princípio das esculturas de Giacommetti); - o que existe é a afeção do espírito - que paira sobre o «corpo» - em mim; a afeção da minha vida pela vida do outro....e nesse encontro afetivo....encontro na vida....permanece....para sempre”. Considerações Finais Michel Henry elabora, inclusive através das concepções dos estudos em Maine de Biran, um novo conceito de fenômeno, através de uma filosofia do absoluto. Logo a essência do ser, a carne, é a manifestação de si de forma originária e afetada por si. Esta é a “auto afecção”, importância crucial a essência da vida, que designa a essência de si ou como ele cita a essência do espírito. Esta revelação é invisível, se prefigura em uma imanência radical, que se situa na experiência da afetividade. A afetividade é a essência original do “Logos”. O manifestar – se está na imanência, na afetividade, na vida. Assim a vida não se identifica com a ruptura ou reducionismo, não se coloca à distância de si, pois a vida não aparece, mas se manifesta pelo “pathos”, na afetividade da própria carne, na fenomenologia da vida. A “carne” possui uma perspectiva singular na fenomenologia de Henry, pois segundo ele, é a vida que permite a prefiguração do pensamento, e não o pensamento que permite o acesso a vida. É só através da carne na vida é que o ser se experiência. Florinda Leonilde Ferreira Martins, doutorada em Filosofia Moderna e Contemporânea. Coordenadora científica do projeto internacional de investigação em rede, do CEFi, Michel Henry: O que pode um corpo? Coordenadora de diversos trabalhos em Michel Henry em diversos países. 58 168 Esta talvez seja a jornada para o ser se desvincular de uma materialidade histórica e de um individualismo, para ir ao encontro da subjetividade, no processo único de uma “alteridade” (como escreveu Florinda Martins em Recuperar o Humanismo - Martins, 2002), no encontro do outro pelo outro, e no atributo de todos serem carnes compartilhando o amor e fazer a vida ter um sentido único e singular. Desta forma, talvez o ser humano presencie a plenitude de uma fenomenologia afetiva. Referência BARCO, Aron Pilotto. A Concepção Huserliana de Corporeidade. A Distinção Fenomenológica entre Corpos próprios e corpos Inanimados, V. 7, N.2: JUL.-DEZ. 2015. Disponível em: http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=synesis&page=search&op=titles. BEATRIZ, Lara; Fernandez, Alexandre; Silva, Pedro. O Corpo: Um estudo a partir da Ontologia v.7, n 2(2012). Disponível em: http://gorila.furb.br/ojs/index.php/atosdepesquisa/issue/view/245/showToc. CARDIM, Leandro Neves. Corpo. São Paulo: Globo,2009. KOSOVSKI, Ester; Góes, Fred; Villaça, Nízia. Que Corpo é Esse? São Paulo: Saraiva, 2012. NASCIMENTO, Lima. O Homem e o Corpo na Perspectiva do Dasein. 2008. Disponível:http://www.fgr.org.br/admin/artigos/ MARTINS, Florinda. Michel Henry. O que pode um corpo? Lisboa: UCBA,2001. _________, Recuperar o Humanismo. Para Uma Fenomenologia da Alteridade em Michel Henry. Lisboa: Principia, 2002. _________, Mensagem recebida por maurirenato@hotmail.com. Em 22 de fevereiro de 2016. MICHEL, Henry. Eu sou a verdade: para uma filosofia do cristianismo. Tradução de Florinda Martins Lisboa: Vega, 1998. - _____. Encarnação: por uma filosofia da carne. tradução de Florinda Martins. Lisboa: Circulo de Leitores, 2001. - _____.La fenomenologia Radical, la questiòn de Dios y el problema del mal. Buenos Aires: Encuentro,2013. - _____. Filosofia e Fenomenologia do Corpo. São Paulo: Realizações, 2012. - _____. Palavras de Cristo. Tradução de Florinda Martins. Lisboa: Colibri; Fórum de Ideias, 2003. 169 Rei, Alice Casanova dos. A subjetividade como corporeidade: o corpo na fenomenologia de Merleau – Ponty.UFSC, V13 N3,2013. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/issue/view/649 8.O HOMEM INTEGRAL NA VISÃO ROHDENIANA Nome: Luiz Humberto Carrião Titulação: Mestrando Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: Huberto Rohden, diante da matemática einsteiniana e da demonstração de que os elementos químicos da tabela periódica, base dos componentes do universo, são essencialmente luz - luz congelada - vislumbrou não ser mais possível tomar por base da Filosofia perene, escolas, sistemas e pessoas em busca da resolução da equação universal. Era necessário apoio em um alicerce mais sólido que a variável mentalidade humana: o Universo. Enxergou que, cedo ou tarde, a filosofia teria que fazer o que a ciência já havia feito: reduzir a um monismo real todos os pluralismos aparente. Ao formular a Filosofia Univérsica ou Cósmica, estabeleceu no homem a mesma harmonia estabelecida no Universo. Neste, por necessidade automática; naquele, voluntária e livre. Eis a quintessência da Filosofia Univérsica: o homem univérsico, cósmico, cristificado, integral pode e deve fazer pelo poder do seu livre-arbítrio o que o cosmos é por necessidade automática. Na visão Rohdeniana, Cristo é identificado como sendo a primeira e mais perfeita manifestação da Divindade Universal no universo com propósitos bem definidos: o primeiro, de que todo homem é inconsciente o que o Cristo é conscientemente e o que nós somos potencialmente; toda fascinação do Cristo é uma autofascinação em ínfima potência; e, se nunca ninguém se realizara plenamente, como poderíamos nós, ansiar por nossa autorrealização? O presente trabalho tem como objetivo atender ao GT 8: corpo, alma e espírito: o ser humano integral, do VIII Congresso Internacional em Ciências da Religião, PUC Goiás, no sentido de trazer a visão do filósofo cristão Huberto Rohden, formulador da Filosofia Univérsica, tomando por base o Universo. Para o filósofo, a religião não existe para justificar a ciência, muito menos esta para explicar aquela. Elas se completam a partir do momento em que o monismo da ciência passa a ser enxergado em seu simulacro na religião. Tudo no Universo é luz congelada ou semipassivizada - Tudo na Religião é Divindade, é Brahman. Para Einstein, E = M.C², isto é, Energia é igual a Massa multiplicada pela Velocidade da Luz ao quadrado. Para os físico-químicos os 9259 elementos da química de que são construídas todas as coisas, é essencialmente luz. No Ocidente, Jesus Cristo afirmou: “eu e o Pai somos um, mas o Pai é maior do que eu”. O Pai é a Divindade 59 Aos 92 elementos químicos foram acrescidos mais três. 170 Universal, que na Filosofia do Oriente é identificada como Brahman, ambos, Divindade e Brahman se manifestaram em humanos, Jesus de Nazaré e Krishna, são exemplos. Como explica Rohden, (s/d/-2), “Todo homem é inconscientemente o que o Cristo é conscientemente, e o que nós somos potencialmente” (p. 19), Deus. Jo 10: 34 – Jesus replicou: Não este escrito em nossa Lei: Eu digo: sois deuses? Sl 82: 6 – Eu disse: “Todos vos sois deuses e filhos do Altíssimo” (BIBLIA SAGRADA, 1986, p. 1287 e 717). Todos somos deuses! “Vós sois a luz do mundo”, Mt 5: 14 (1986, p. 1182). Sabemos, em nossos dias, que a luz cósmica, não focalizada – o “c” da conhecida fórmula eisteiniana, E = mc² - é a base e, por assim dizer, a matéria-prima de todas as coisas do mundo material e astral. Os 92 elementos da química, desde o mais simples H(idrogênio) até o mais complexo U(rânio), são filhos da luz invisível, a qual quando condensada em diversos graus, produz os elementos, e destes são feitas todas as coisas do mundo. Quer dizer que, no plano físico, a luz é a causa e origem de todas as matérias e forças do Universo. Ora, o que a luz é no plano físico, isto é, Deus na ordem metafísica ou espiritual do cosmos, a luz física é o grande símbolo desse simbolizado metafísico (ROHDEN, 1965, p. 61). De onde se conclui que tudo é luz. Onde, Sendo o Universo Infinito e Finito, Eterno e Temporário – a indestrutível realidade do macrocosmo sideral não pode deixar de ser também a lei que rege o microcosmo hominal; o homem deve tornar-se livremente o que o Universo é automaticamente; deve fazer de si a mesma harmonia que o Creador fez do Cosmo Sideral e atômico. O homem univérsico ou integral é uma harmonia creada60 pelo seu livre-arbítrio (RODEN, 2009, p. 121). A verdade – dizia Mahatma Gandhi – é dura como um diamante, mas é também delicada como flor de pessegueiro (Apud, ROHDEN, 1972, p. 26). Huberto Rohden, o formulador da Filosofia Univérsica ou Cósmica Huberto Rohden nasceu em uma Colônia Alemã, na localidade de Braço do Norte, atualmente integrada à cidade de Tubarão, no Estado de Santa Catarina, de onde saiu para o Seminário de Pereci-Novo, no Estado do Rio Grande Huberto Rohden faz esta advertência no início de todos os seus livros: A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas. 60 171 do Sul, ingressando na Companhia de Jesus. Na Europa (Áustria, Holanda e Itália) aprofundou seus estudos em Ciências Naturais, Teologia e Filosofia, com o título de doutor nesta última pela Universidade de Nápoles. De volta ao Brasil foi aconselhado pelo seu orientador espiritual a voltar ao clero secular, no qual se transformou em um evangelizador através de um Movimento que chegou a estar presente em 1/3 dos municípios brasileiros, de acordo com o censo de 1940. Esteve presente em 21 Estados e um Território. Para dar suporte a esse trabalho fundou no Rio de Janeiro a Casa Editorial Cruzada da Boa Imprensa, especializada em publicações cristãs e de apoio na produção de material para o Movimento, além de preocupar-se com larga produção literária cristã e na tradução de várias obras de aporte a essa evangelização. Com a morte de seu amigo, protetor e superior Cardeal Sebastião Leme, um movimento sob a liderança de Dom José Gaspar d’Afonseca e Silva, Arcebispo de São Paulo, com o apoio de dioceses de outros Estados, fez veicular na imprensa católica brasileira de que o padre Rohden estava a serviço do protestantismo bíblicopaulinista, e que, suas obras eram perniciosas ao catolicismo romano, solicitando inclusive a proibição de suas obras. Como haviam todas elas sido publicadas com o imprimatur, padre Rohden através de carta solicitou junto ao seu conterrâneo e contemporâneo de Seminário no Rio Grande do Sul, Dom Jaime de Barros Câmara, agora Arcebispo do Rio de Janeiro, em substituição ao Cardeal Leme, uma retratação por parte de seus detratores, o que não aconteceu. Desiludido, encaminhou o pedido de demissão do clero, indo morar em um pequeno sítio no interior fluminense, de onde saiu para a Universidade de Princeton, nos EUA, através de uma bolsa de estudos. Lá, conheceu e conviveu com Einstein, com quem teve boa relação. Rohden (2009) afirma que, Depois de ter convivido mais de um ano com Albert Einstein, na Universidade de Princeton, e depois de ter lecionado Filosofia a milhares de jovens e adultos numa universidade de Washington D.C., cheguei à conclusão de que, em plena Era Atômica e Cosmonáutica, não podemos mais apresentar a Filosofia nos moldes tradicionais. A ciência, nos últimos decênios, assumiu um caráter monista como nunca dantes; o seu antigo pluralismo heterogêneo culminou num monismo homogêneo, que focaliza aparente diversidade do Cosmo numa fascinante unidade. Esta unificação da pluralidade é devida, sobretudo, ao fato de ter a matemática de Einstein e a ciência dos físicos demonstrados que os 92 elementos da química, de que são feita todas as coisas, são essencialmente luz, luz congelada ou semipassivizada, manifestando-se como matéria ou energia. [...] Este monismo físico da ciência não podia deixar de ter o seu paralelo no 172 monismo metafísico da sapiência, ou filosofia. A heterogeneidade diversitária dos sistemas filosóficos estava a clamar por uma homogeneidade unitária que completasse pelo eterno Uno o efêmero Verso do Universo. Não era mais possível, em nosso tempo, tomar por base da Filosofia perene, escolas, sistemas e pessoas. Mister se fazia partir de um alicerce mais sólido que não fosse a variável mentalidade humana. (p. 120). Assim nasceu a idéia de formulação da Filosofia Univérsica ou Cósmica, tomando o Universo como referência sideral e hominal – o macrocósmico e o microcósmico - ambos estabelecidos e mantidos por uma Lei única, nomenclaturada dentro da cultura de cada povo, todavia, sem nunca perder sua essência. Filosofia Univérsica ou Cósmica Para o professor Natalino D’Olivo, “o homem é uma conquista biológica do Princípio Inteligente” (1984, p. 15), o que corrobora com as sábias palavras de Agostinho de Hipona, ao afirmar que, “o Criador não teria tido necessidade de tudo criar, incluindo o homem, mas que teria semeado na matéria sementes de razão e que amadureceram ao aparecimento do ser humano (Apud, GIRARD e QUADROS, 1975, p. 13), ao que Rohden (1995) conclui: “Aqui na Terra, é o homem o ponto culminante da matéria espiritualizada” (p. 99). Rohden (2009) ao definir o homem como sendo “a mais perfeita individuação consciente de Deus aqui na Terra” (p.25), assevera que “... a indestrutível realidade do macrocosmo sideral não pode deixar de ser também a lei que rege o microcosmo hominal” (Ibidem, p. 121). Einstein arremata ao afirmar que “Deus é a Lei e o Legislador do Universo” (ROHDEN, s/d-1, p.180). Alguns dão a esse Poder Cósmico o nome de “Alma do Universo” (Spinoza); outros, para não o amesquinhar, o deixam em perpétuo anonimato (Buda). Outros lhe chamam “Pai” (Jesus); para outros ainda ele é simplesmente “Tao”, Realidade (Lao-Tse); outros, finalmente, lhe dão o nome de “Lei” (Einstein), (Ibidem, p. 32). Sobre esse Poder Cósmico, essa Alma do Universo, esse respeitoso anonimato, esse Pai, essa Realidade, essa Lei, assim refere Esse Capelli: O matemático não se arriscaria em negar a existência da incógnita no conjunto equacional, pelo simples fato de desconhecê-la. Pelo contrário, usando o raciocínio lógico, ele tem a necessidade de sua existência e utilização para solucionar a equação, pois sem a existência da incógnita, mesmo desconhecida, a solução equacional seria impossível. Assim, temos que Deus é a grande incógnita da equação universal, que mesmo desconhecido, deve existir, para que possamos encontrar as respostas sugeridas pelo grande dilema da vida. Como o matemático, tomamos Deus 173 como a incógnita O colocamos em evidência, para que seja possível a resposta à grande equação da Criação (CAPELLI, 1998, pp. 13 e 14). A grande incógnita capelliana, Deus, se traduz pela filosofia einsteniana, na grande Lei que estabeleceu e mantém a harmonia do Universo. O UNO a Lei, o VERSO tudo o que existe. O propósito da Filosofia Univérsica é colocar em evidência na equação hominal a incógnita capelliana a fim de “estabelecer no homem a mesma harmonia que existe no Universo, com a diferença de que no homem esta harmonia é voluntária e livre, enquanto no cosmos ela é automática” (ROHDEN, 1982, p. 32). Roteiro Univérsico Se nunca ninguém se realizara plenamente, como poderíamos nós ansiar por nossa autorrealização? Pergunta Huberto Rohden (s/d-2, p. 21). Em outras palavras, se não houvesse na face da Terra um homem autorrealizado plenamente, como nós, homens, haveríamos de procurar por esta realização? Esse homem foi Jesus Cristo. Com isso, mostrou que “Todo o homem é inconscientemente o que o Cristo é conscientemente – e o que nós somos potencialmente” (Ibidem, p. 19). Jesus Cristo que tem sido discutido ora como a mais bela das lendas, ora como a mais tremenda das realidades, tem exercido em ambos os debatedores um fascínio que só é entendido como “a visão de nosso próprio Eu, se fosse plenamente realizado” (Ibidem, p. 20). Quando afirma em Jo 14:6 – “Eu sou o caminho a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Bíblia Sagrada, 1986, p. 1292), três análises a proceder: a primeira é que quem profere a assertiva não é o Jesus de Nazaré (Telúrico), e sim, o Jesus Cristo (Cósmico). Jesus de Nazaré foi o veículo que deu visibilidade ao Cristo, que segundo Jo 1. 1 – “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Ibidem, p. 1272), e outro evangelista, Mateus afirma em Mt 1: 18 – “A origem de Jesus Cristo, porém, foi assim: Maria sua mãe, estava prometida em casamento a José. Mas antes de morarem juntos, ficou grávida do Espírito Santo” (Ibidem, p. 1179), em outras palavras, Jesus Cristo foi o Verbo que era Deus, que se fez presente entre nós através da Virgem Maria; a segunda análise é de sua afirmativa de que “ninguém vem ao Pai senão por mim”. Quem é o Pai? Se o Cristo é Deus, como pode ser Pai? A resposta esta em Jo 10: 30 – “Eu e o Pai somos um” (Ibidem, p. 1287), e em Jo 14: 28 – “... o Pai é maior 174 que eu” (Ibidem, p. 1292), isto é, Eu e o Pai somos um... o Pai é maior que eu”. Se Cristo é Deus que habitou entre nós para nos exemplificar, quem será esse Pai que Nele está contido e vice-versa, que ele considera Maior que Ele? A grande Lei que estabeleceu e mantém a harmonia do Universo (ROHDEN, 1965, p. 7) , que Rohden chama de Divindade, os hindus de Brahman. O Uno (Lei) que se manifesta no Verso (tudo que existe). Escreve Rohden, “O ‘Uno’ da Divindade absoluta (Brahman), se manifesta no ‘Verso’ das coisas relativas (Brahma)”. A infinita Essência aparece nas Existências finitas, aparecendo como UNI-VERSO”, (1970, p. 17); e a terceira, que ao afirmar que “ninguém vai ao Pai senão por mim”, mostra não um caminho físico, mas o caminho da autorrealização, da cristificação, da cosmoficação, da integralização, da possibilidade de que essa Lei venha estabelecer, como no Universo sideral, a harmonia hominal. Todavia, esse é um processo único, singular, individual, ao qual, Rohden chama de cristicidade. Escreve Rohden: “É da íntima essência da experiência mística ser individual” (s/d-2, p. 13). É o homem através de seu livre-arbítrio, se submeter a essa grande Lei, para Einstein e Divindade, para Rohden. O homem e o Universo Duas são as teorias sobre a origem do homem mais aceitas atualmente. O Criacionismo Fixista, assentada na Bíblia. Gn 1: 26 – “Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e segundo a nossa semelhança...” e, em Gn 2: 7 – “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem se tornou ser vivo” (Bíblia Sagrada, 1986, p. 29); e, o Evolucionismo que “se opõe ao criacionismo fixista, ao afirmar que as espécies superiores provieram das inferiores através de uma lenta evolução em que houve uma paulatina passagem de formas imperfeitas e simples para formas cada vez mais perfeitas e complexas, conquistando-se a perfeição no final da evolução. No conceito de evolução, a perfeição acontece na medida em que há uma transformação nas espécies, causadas por vários fatores internos e externos às espécies”. [...] A respeito do homem, Darwin não afirma categoricamente que sua origem esteja no símio, mas afirma que proveio de espécies inferiores. Afirma, outrossim, que entre o homem e o animal mais superior aproximado da espécie humana, a diferença não chega a ser essencial. Nas pegadas de Darwin seguem-se depois Herbert Spencer (1820 – 1903), Eduardo Heckel (1843 – 1916) e outros (GIRARD e QUADROS, 1975, pp. 13 e 15). 175 Ao justificar que o monismo físico da ciência, não poderia desconhecer o seu paralelo no monismo metafísico, Rohden (2009), escreve que “Sabemos hoje analiticamente o que Moisés sabia há 3.500 intuitivamente; que todas as coisas do mundo são lucigênitas. E, por esta razão, podem ser também lucificadas” (Ibidem, p. 120). A justificativa referencia à matemática Einsteniana, E = M.C², “e a ciência dos físicos demonstrando que os 92 elementos da química, de que são feitas todas as coisas do mundo, são essencialmente luz, luz congelada ou semipassivizada, manifestando-se como matéria ou energia” (Ibidem). O Livro de Genesis onde é narrada a criação do homem por Deus, à sua imagem e semelhança através do pó da Terra, depositária dos 92 elementos químicos lucigênicos, é atribuído a Moisés. Para Rohden (1982), “Esta verdade, que enche de estupefação os inexperientes e de dúvidas os céticos, é a conquista suprema da inteligência humana do século XX” (p. 22). Com relação ao evolucionismo, os compêndios escolares têm publicado erroneamente de que o homem e os símios provêm de um ancestral comum. O homem e os macacos não podem vir “de” um ancestral comum, mas “através de”. Esse ancestral comum serviu de canal, como a instalação hidráulica que possibilita a água chegar a uma torneira. Como a água não vem da torneira, o homem não vem daquele ancestral. Pessoas não habituadas a pensar logicamente têm esta argumentação em conta de um jogo de palavras; acham que esta distinção entre “causa” e “condição”, entre “de” e “através”, entre “crear” e “criar” seja simples brincadeira e trocadilho ou inaneacrobacia mental, quando, na realidade, é um imperativo da mais pura lógica e matemática, que representam a realidade objetiva das coisas (ROHDEN, s/d-3, p. 79). “Nenhum homem pode ser realmente feliz, enquanto não se UNIVERSIFICAR, sintonizando sua Vida com o Deus do Mundo no Mundo de Deus’ (ROHDEN, 1982, p. 7). Conclusão Huberto Rohden, referencial teórico desse trabalho foi uma daquelas personagens da história que se anteciparam no tempo. Antes do filósofo existiu o historiador de ideias. Um leitor e escritor contumaz que sempre esteve atento a origem do pensamento tomando como base a fidelidade da palavra naquilo que ela exprime, seja no ato de ler, escrever ou traduzir. Estudou Filosofia (ciência que lhe 176 fez doutor na Academia), Teologia (que lhe fez sacerdote jesuíta) e por fim, Ciências Naturais que lhe aproximou do Paleontólogo, também de formação jesuítica, Pierre Teilhard de Chardin, e do físico Albert Einstein, com quem conviveu por um período na Universidade de Princeton, nos EUA. Neste mesmo país, foi iniciado em Kryia Yoga, por Swami Premananda, no Golden Lotus Temple, que o levou a vivenciar a Filosofia do Oriente. Todos lhes serviram de base para a formulação do que ele chamou de Filosofia Cósmica ou Univérsica, por ele (s/d-3), definida como sendo “essencialmente o reatamento do fio da mensagem do Cristo, em toda a sua autenticidade e plenitude sem nenhum “ismo” humano que o deturpe ou amesquinhe” (p. 208). E com relação ao homem integral assim se expressa: “O homem univérsico é equidistante do dualismo separatista, que, geralmente, impera no ocidente, e do panteísmo identificador, que domina boa parte do oriente; guia-se por um monismo cósmico (também chamado de panenteísmo), que consiste na unidade com diversidade, perfeita harmonia, equidistante da monotonia unitária e do caos diversitário (Ibidem, p. 12). Rohden (1982) ao afirmar que “A consciência do homem não é outra coisa senão a voz das leis cósmicas, que dão liberdade ao homem para ser mau, mas exigem dele que seja livremente bom” (p. 157), anuncia que o homem integral deve ser pelo seu livre arbítrio, o que o Universo é pelo automatismo. A liberdade para ser mau, conduz o homem ao caos, a miserabilidade, ao inferno (estado de espírito), no qual infelicidade se manifesta em sua grandeza trazendo na algibeira a principal doença do século XXI, a depressão. Ao exigir dele que seja bom, porém, através de seu livre-arbítrio, dá a ele a oportunidade de escolha entre o seu Céu e o seu Caos. Para Rohden, (2009), “Faz bem pelo fato de ser bom, de viver em harmonia com a alma do Universo” (p. 110). É o homem um produto da sociedade, ou a sociedade um produto do homem? Eis a questão. Para Rohden, (2010), “É matematicamente impossível que a sociedade seja melhor do que a soma total de seus indivíduos que a compõem, porque aquela não é senão o composto destes componentes. É uma utopia pueril querer reformar a sociedade sem regenerar os indivíduos” (p. 15). Essa regeneração da qual fala o filósofo não pode ser feita através de uma lei constitucional ou ordinária, ou mesmo de um decreto, e sim pela educação. Mas não uma educação vista como referencia 177 a graus de instrução ou escolaridade; e, sim, em seu sentido etimológico: eduzir. Enquanto a instrução oferece conhecimentos, a educação fornece valores. Recentemente, 2015, outro jesuíta, o Santo Padre Francisco, através da Encíclica Laudato Si – sobre o cuidado da casa comum – pela sua importância enquanto Carta Pontifícia aos cidadãos do mundo, independente de cor, credo e raça, propõe uma discussão sobre o estresse e a exaustão do planeta Terra. Fomenta a discussão sobre o consumismo descartável assentado no binômio: Meio Ambiente e Homem, através da Educação e Espiritualidade, no que chamou de Ecologia Integral. Todavia, sem a consciência humana - voz da grande Lei que estabeleceu e mantém a harmonia do Universo (ROHDEN, 1965, p. 7) – presente nesse homem, despertando-o para essa relação de UNO (causa) e VERSO (efeito) torna-se utópica a proposta do Santo Padre. Sem o homem, o Universo seria incompleto. É o homem que possui a faculdade contemplativa de torná-lo belo e encantador. Fora ele, tudo seria triste e patético. Mas esse ser que completa o Universo, ao contrário das demais creaturas divinas, possui o livre-arbítrio que, segundo Vargas Vila, (1945), o torna mais importante que Deus, porque o homem pode suicidar, e Deus, não! Esse poder humano de destruição desaparece quando ele, efeito (VERSO) da causa (UNO), por essa mesma liberdade (livre-arbítrio), opta pela submissão legislativa ao legislador universal, segundo Einstein, Deus. Referências BÍBLIA Sagrada. Petrópolis-RJ: Vozes, 1986 CAPELLI, Esse. Crestomatia Espiritualista – A grande análise. Goiânia: Kelps, 1998. GIRARD, Leopoldo Justino e QUADROS, Odone Jose de. Filosofia. Porto AlegreRS: PUC/EMMA, 1975 ROHDEN, Huberto. Catecismo da Filosofia e outros opúsculos. São Paulo: Martin Claret, 2009 _______. Filosofia Univérsica, sua origem, sua natureza, sua finalidade. São Paulo: Fundação Alvorada para o Livro Educacional, 1978 _______. A Experiência Cósmica, textos inéditos. São Paulo: Martin Claret, 1995 _______. Einstein, o enigma da matemática. São Paulo: Editora Alvorada, s/d-1 _______. O Homem e o Universo. São Paulo: Editora Alvorada, 1982 178 _______. Que vos parece do Cristo? São Paulo: Editora Alvorada, s/d-2 _______. Que vos parece do Cristo? São Paulo: Sabedoria, 1970 _______. Luzes e sombras da Alvorada. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S. A., s/d-3. _______. Novos Rumos para a Educação. São Paulo: Martin Claret, 2010. _______. Orientando. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A., 1965. _______. O sermão da montanha. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A., 1965. _______. O drama milenar do Cristo e do Anticristo. São Paulo: Fundação Alvorada, 1972. VILA, Vargas. O lírio vermelho. São Paulo: Editora Prometeu, 1945. 09. O QUE CONTAMINA É O QUE ENTRA NA BOCA? BREVES PERCEPÇÕES ACERCA DAS REFORMAS DE SAÚDE DE GRUPOS ESTADUNIDENSES NO SÉCULO XIX Nome: Fábio Augusto Darius Titulação: Doutor Instituição: Universitário Adventista de São Paulo – UNASP Resumos: Certos grupos cristãos protestantes de origem estadunidense formados a partir do grande fervor religioso naquele país ao longo do século XIX têm algumas características em comum: são institucionalmente centralizadores, altamente contabilizadores, em certa medida literalistas em suas percepções bíblicas, criacionistas – e, portanto, preocupados com o estudo da arqueologia em busca da verdade – bem como interessados na preservação da saúde física. Ellen White, cofundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia – que em certa medida se encaixa no conceito acima elencado – na segunda metade do século XIX escreveu prolificamente acerca dos cuidados dietéticos em estrita relação com suas percepções da integralidade humana. O presente texto busca sucintamente analisar a questão entre a alimentação, estilo de vida e conceitos teológicos à luz da história tendo como contraponto grupos antagônicos nascidos no mesmo recorte temporal, como Mary Baker Eddy e a Ciência Cristã e mesmo os Testemunhas de Jeová. Palavras-chave: Integralidade Humana; Alimentação; Contemporaneidade O século XIX estadunidense ainda hoje é tema abrangente e desafiador para a grande gama de pesquisadores das mais distintas áreas - de forma específica, historia- dores, teólogos e cientistas da religião. No final do século XVIII houve a Guerra de Independência, mas de fato a tão almejada liberdade ante o jugo britânico apenas se tornou evidente para os colonizadores ingleses a partir da derrota britânica de 1812 - que vários estudiosos até hoje costumam chamar de 179 2a. Guerra de Independência, conforme Hickey (2013), apenas para citar um dos mais conhecidos. A partir desses fatos - que em seu bojo contém toda uma vastíssima gama bi- bliográfica - pode-se concluir sem maiores reflexões que os Estados Unidos passaram à maioridade ou autonomia, de acordo com a acepção moderna do termo proposta em 1783 por Kant (2005, p. 63-71) apenas após a primeira década do século XIX, o que não pa- rece significar algo favorável ou negativo sobre qualquer aspecto, principalmente à luz da análise conjectural econômica contemporânea1. Contudo, deve-se destacar que para muito além da assimilação e refinamento do sistema econômico atual que simultaneamente seduz e esgota2, aquele país gestou prolíficas “religiões originais” (BLOOM, 2013) a partir de ótica diversa (ou transcendente) àquela da Modernidade. Estas podem ser pautadas em seus traços mas distintivos a elementos de religião pré-moderna, (São João da Cruz pode ser um bom exemplo . . . ) e simultânea e (talvez) paradoxalmente ao lado3 e à margem das ciências4 que já no século retrasado ostentavam o status que hoje destemidamente possuem. Essas “religiões originais” - mórmons, adventistas do sétimo dia e testemunhas de Jeová - para citar as três majoritárias, nasceram com poucos anos de diferença e nessa or- dem, romperam com praticamente tudo aquilo que se entendia por religiosidade ou mesmo teologia porque propuseram e ainda mantém hermenêuticas e práticas distintas que ga- nham ou perdem cores nos mais diversos países onde se instalam. deste pequeno paper Porém, por questões geográficas, excluiremos os mórmons e, em seu lugar, adicionaremos a chamada Ciência Cristã, que também se inclui no citado estudo de Bloom. parecem ser muito claras: As razões 1) essas denominações foram fundadas na Nova Inglaterra, região geográfica extraoficial no nordeste dos Estados Unidos. (Também nasceu ali - e na mesma época - o moderno Espiritismo, estudado por este autor nos moldes da presente proposta em sua tese doutoral 5 ). O fato de Jonathan Edwards, um dos primeiros teó- 180 1A Inglaterra está disposta a deixar a União Européia enquanto a Alemanha, que se unificou apenas 60 anos depois da Segunda Independência americana se mostra rija e hegemônica. 2 de Vozes importantes dizem que esse próprio sistema é hoje uma espécie religião, conforme Agamben (2012), disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben>. 3 Por conta de todo o aporte histórico-matemático para cristalização de seus ditos proféticos, por exemplo . . . 4 Por renegarem alguns de seus conceitos e às vezes radicalizando com os mesmos 5 DARIUS, Fábio Augusto. De corpo, alma e espírito: apontamentos históricos e teológicos logos e filósofos estadunidenses ter ali iniciado sua grande campanha de avivamento no final do século XVIII e ser considerado hoje um dos grandes pilares dessa espiritualidade estadunidense, de acordo com Kreider (2004, p. 1-7), não parece ser tema irrelevante e de alguma forma pode conectar essa riqueza religiosa americana. 2) Além disso, Ellen White, co-fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia, Charles Russell, fundador do grupo dos Estudantes da Bíblia, posteriormente Testemunhas de Jeová e Mary Baker Eddy não eram teólogos. Muito longe disso: Ellen White não terminou seus estudos fun- damentais, Charles Russell era um comerciante de roupas masculinas e Mary Baker Eddy foi casada três vezes e chegou a se divorciar do segundo marido, um verdadeiro escândalo para a época. Ainda assim, Eddy e White figuram entre os cem mais significativos ame- ricanos, independentemente do gênero, conforme Frail (2014). Finalmente, premissa final para o desenvolvimento do tema, os três citados grupos possuem absolutamente distintos pontos de vista sob aquilo que para eles parecem ser o mais caro em relação a doutrina. Essas distinções os tornam relevantes quando se trata das reformas de saúde em voga nos Estados Unidos da época em relação direta com seus percepções acerca do corpo, alma e espírito. 181 Percepções Reformistas dos Americans Originais Importante notar que o reformismo religioso estadunidense não pode ser medido pelo nascimento de suas religiões originais, mas certamente esse nascimento deve ter a ver com esse fervor. De acordo com Karnal et al. (2008, p. 117) “foi em decorrência desse movimento, bastante heterogêneo, que a porcentagem da população que pertencia às igrejas protestantes [...] aumentou.” Precisamente nesse período - certamente por alguma influência dele - surgiu o primeiro movimento de temperança, entre 1784 e 1840. O alvo principal foi o exarcebado consumo de “bebidas fortes”. À época, com a péssima qualidade da água e o alto preço do leite, além de sua inconstância e dificuldade de obtenção, o consumo de whisky era bastante alto e comum entre a grande maioria dos homens do início do século XIX (BLOCKER, 1989). Enquanto o consumo de água pura era temerário, em virtude de toda a sorte de doenças que ela continha, o whisky era garantia contra a diarréia e o cólera. Contudo, as consequências sociais podem ser imaginadas. 6 De acordo Buyers, em 1848 a igreja acerca do tema santificação na obra holística de Ellen White. 2014. Tese (Doutorado) — Escola Superior de Teologia, 2014. Metodista Episcopal vestiu de novo sua armadura e entrou na luta contra o alcoolismo. O dr. Wilbur Fisk, que era homem forte, levantou sua voz em protesto contra esse vício. As Regras Gerais de Wesley sobre o uso do álcool foi incluída, sem alterações, na Disciplina. O movimento de temperança começou de fato nessa época. O estado de Maine, em 1850, votou à lei-seca para todo seu território .Apareceram sociedades de temperança em diversos lugares. Publicou-se literatura sobre o assunto, começou, enfim, uma campanha nacional. BUYERS, Paul Eugene. História do Metodismo. São Paulo: Imprensa Metodista, 1945. p.184-185. Este primeiro movimento reavivamento, conexão. de temperança e o primeiro movimento por questões cronológicas e temáticas, de devem ser postos em 182 Em 1823, com o advento da “Doutrina Monroe”, surge a crença do “Destino Mani- festo”, que afirmava que os Estados Unidos deveriam, por vontade divina, governar toda a América. Ao mesmo tempo, Charles Finney, pastor, professor e abolicionista, que bebeu de toda a teologia da Nova Inglaterra7 , “apelava diretamente para o coração, afirmando que era possível para os cristãos redimidos serem totalmente livres de pecado [...]”, de acordo com Karnal et al. (2008, p.119). Os estadunidenses, afinal, desenvolveram a fé em seu destino nacional em estrita conexão ao que entendiam ser o reino de Deus, envolvendo inteira dependência na iniciativa divina (SONTAG; ROTH, 1972). Eis, a partir dessas percepções, o adubo para o fértil solo lá plantado, que fomentaria os protagonistas das citadas religiões, levando-os a concepções próprias, distantes da teologia tradicional. Para Ellen White, a religião devia ser prática, embora com toda a autoridade sob a Bíblia. De acordo com Darius (2014, p.187), a autora deixa claro que corpo são e mente sã fazem com que os seres humanos sejam capazes de discernir mais facilmente a verdade do erro e, por isso, é uma questao espiritual irrevogável àqueles que almejam as mansões celestiais quando da breve vinda de Cristo. Ao propor as reformas, Ellen White rompe definitivamente com o antigo pensamento medieval acerca do corpo fazendo com que o mesmo deixe de ser vergonha ao glorificar integralmente o Criador. Para a autora, os movimentos de temperança - que ela nunca participou de fato, estavam corretamente preocupados com a solução de problemas sociais. No entanto, sua visão integral de ser humano a punha um passo à frente ao não distinguir “vida material” de “vida espiritual”. O que distingue uma da outra questão, afinal? Sua visão pré-cartesiana quase encontra eco com com Platão ao propor a união dos “corpos”, quando da discussão entre um certo estrangeiro e Teeteto aliás, da discussão sofística, foi gestado o filósofo! Para Ellen White e os adventistas do sétimo dia, a reforma devia ser para a glória de Deus e para obediência. conhecimento a busca da perfeição, além de ser uma questão Segundo White (2009, p. destes princípios 114-115): e, pela obediência, restauração da corpo, bem como da alma.” ‘É nossa obra de obter cooperar com Ele na Portanto, sua percepção tem total apoio bíblico e escapa aos modismos das dietas contemporâneas, mais voltadas a obtenção de um corpo “perfeito’, relegando a um estado secundário a o espírito. 183 Estes artifícios apenas surtirão alguma relevância para o ser humano se for integralmente bom para toda a sua alma, que segundo a teologia adventista do sétimo 7 GUELZO, Allen C. An heir or a rebel? charles grandison finney and the new england theology. Journal of the Early Republic, [University of Pennsylvania Press, Society for Historians of the Early American Republic], v. 17, n. 1, p. 61–94, 1997. ISSN 02751275, 15530620. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/3124643>. dia diz respeito ao corpo físico e espiritual. 8 Sua reforma de saúde transcendeu o que entrava pela boca e atingiu até mesmo o vestuário. Segundo White (1868, p. 1): Nós não somos espiritualistas. Somos mulheres cristãs, acreditando em tudo o que as Escrituras dizem acerca da criação do homem, de sua queda, seus sofrimentos e infortúnios por conta da continua transgressão, de sua esperança de redenção em Cristo e do seu dever de glorificar a Deus em seu corpo e espirito a fim de sermos salvas. Nós não utilizamos o estilo de vestimenta aqui representado por ser esquisito – para que possamos chamar a atenção. Nós não particular. diferimos do estilo comum de vestimenta da mulher em qualquer Nós escolhemos concordar na teoria e pratica para estarmos em harmonia com a Lei de Deus e com as leis de nosso ser Assim, à guisa de conclusão prévia, para um delicado equilíbrio entre as esferas da alma, os adventistas do sétimo dia creem no benefício de um regime alimentar desprovido o máximo possível de carne - sendo o ideal a eliminação de qualquer vestígio animal - ingestão de água, boas horas de sono, descanso sabático, luz solar e bons relacionamentos, sendo o principal deles com Deus. O contemporâneo de Ellen White, Charles Russell e seus estudantes da Bíblia tinham e ainda hoje possuem uma diferença na percepção de Cristo enquanto Deus filho, sentado à direita de Deus Pai e intercessor da humanidade. Para aquele grupo, Cristo situa-se próximo da ideia platônica de um demiurgo ou espécie de intermediário. Seus adeptos, à exceção desta doutrina amplamente compartilhada entre os cristãos das mais diferentes denominações, guardam o domingo e não impõem ou aconselham uma dieta um tanto mais rígida ou mesmo 184 espartana. Contudo, sua reiterada negação de receber transfusões de sangue é algo sempre lembrado. Conforme o sítio oficial da denominação, Isso é mais uma questão religiosa do que médica. Tanto o Velho como o Novo Testamento claramente nos ordenam a nos abster de sangue. (Gênesis 9:4; Levítico 17:10; Deuteronômio 12:23; Atos 15:28, 29) Além disso, para Deus, o sangue representa a vida. (Levítico 17:14) Então, nós evitamos tomar sangue por qualquer via não só em obediência a Deus, mas também por respeito a ele como Dador da vida. (JEOVá, 2016) Ainda que não de forma tão incisiva quanto acontece com os adventistas do sétimo dia, os testemunhas de Jeová mostram-se geralmente muito preocupados com sua saúde integral e costumam estar bem contemporaneamente, conforme Gusfield (1986, p.160). citado autor, que denominações atentos quanto a isso, Percebe-se, conforme o menos institucionalizadas e influentes obtém maior sucesso em sua empreitada reformista, pro- vavelmente devido ao maior controle que seus líderes têm sobre seus membros. Mary Baker Eddy e os cientistas cristãos diferem em grande medida de todos os grupos citados e quase todos os outros. Para ela, as doenças são irreais, assim como a 8 Assim sendo, para esta denominação, a alma é mortal, ao contrário do orfismo grego que, sob os auspícios platônicos, atingiu status hegemônico. Ainda assim, a Sra. Eddy participou do movimento de temperança, talvez, simplesmente porque era bastante popular em sua época e contava com grande participação feminina e porque ela era bastante inteligente e possuía bom senso. De acordo com Walter (1993, p.184-185): O Jesus que a Sra. Eddy apresenta é um princípio ideal ou divino, que seria inerente a todos os homens, e do qual Jesus seria a manifestação suprema. Como ela negava a existência do universo material, negava também a realidade da carne e do sangue. Afirmava que o mundo físico era apenas uma ilusão da mente mortal. Conclui-se daí que nem Cristo nem homem algum possui um verdadeira corpo de carne e osso. Para ela, portanto, Jesus não veio em carne. 185 Adeptos da homeopatia e tratamentos alternativos, a concepção da Ciência Cristã a questão do corpo e espírito é bastante equilibrada, embora seus membros sejam livres para escolher, visto que tudo é temporal. Ela mesma saboreava carne (LIBRARY, 2013) e parecia não se preocupar tanto quanto Ellen White. À guisa de conclusão Em poucas palavras, pode-se perceber que os movimentos religiosos estadunidenses foram acompanhados por movimentos de reforma de saúde, mais ou menos rígido de acordo com cada uma das muitas denominações que delas participaram. Em grande medida foi um movimento feminino e sem dúvida atingiu de alguma forma suas igrejas, moldando-se a suas doutrinas ou princípios mais caros. Entre os adventistas do sétimo dia, a questão entre alimentação, estilo de vida e conceitos teológicos é bastante nítida e ainda hoje apresentada aos neófitos e relembrada aos membros mais antigos. Os distintos grupos aqui citados, apresentam seus próprios conceitos acerca da matéria e de Cristo, apresentando em maior ou menor grau preocupações oriundas dessas reformas. *Historiador pela Universidade Regional de Blumenau, SC. Mestre e Doutor em Teologia Histórica pela Escola Superior de Teologia (EST), São Leopoldo, RS, com bolsa CAPES. Professor da Graduação e Pós-Graduação no Centro Universitário Adventista de São Paulo – UNASP – campus Engenheiro Coelho. Referências AGAMBEN, Giorgio. Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro. Instituto Humanitas Unisinos, 2012. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgioagamben>. BLOCKER, Jack S. American Temperance Movements: Cycles of Reform. Boston: Twayne, 1989. BLOOM, Harold. The American Religion. Nova Iorque: Chu Hartley, 2013. BUYERS, Paul Eugene. História do Metodismo. São Paulo: Imprensa Metodista,1945. DARIUS, Fábio Augusto. De corpo, alma e espírito: apontamentos históricos e teológicos acerca do tema santificação na obra holística de Ellen White. 2014. Tese (Doutorado) — Escola Superior de Teologia, 2014. 186 FRAIL, T.A. The 100 most significant americans of all time. Smithsonian,2014. Disponível em: <http://www.smithsonianmag.com/smithsonianmag/meet-100-mostsignificant-americans-all-time-180953341/?no-ist>. GUELZO, Allen C. An heir or a rebel? charles grandison finney and the new england theology. Journal of the Early Republic, [University of Pennsylvania Press, Society for Historians of the Early American Republic], v. 17, n. 1, p. 61–94, 1997. ISSN 02751275, 15530620. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/3124643>. GUSFIELD, Josepeh R. Symbolic Crusade: Status Politics and the AmericanTemperance Movement. Chicago: University of Illinois Press, 1986. HICKEY, Donald R. The War of 1812: Writings from America’s Second War of Independency. Nova Iorque: Library of America, 2013. (Library of America). JEOVá, Testemunhas de. Por que as Testemunhas de Jeová não aceitam transfusão de sangue? 2016. Disponível em: <https://www.jw.org/pt/testemunhas-dejeova/ perguntas-frequentes/por-que-testemunhas-jeova-nao-transfusao-sangue/>. KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento. In: Seletos. Petrópolis: Vozes, 2005. . Textos KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século xxi. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. KREIDER, Glenn R. Review of jonathan edwards: Philosophical theologian. Ars Disputandi, v. 4, 2004. LIBRARY, The Mary Baker Eddy. Foods Prepared and Consumed in Mary Baker Eddy’s Household. 2013. Disponível em: <http://www.marybakereddylibrary.org/ research/foods-prepared-and-consumed-in-mary-baker-eddys-household/>. SONTAG, Frederick; ROTH, John K. The American Religious Experience: The roots, trends and future of theology. Nova Iorque: Harper & Row, 1972. WALTER, Martin. Book. O império das seitas. Belo Horizonte: Betânia, 1993. IV. WHITE, Ellen. An Appeal to the People in Its Behalf. Battle Creek: Seventh- Day Adventist Publishing, 1868. A Ciência do Bom Viver. 10. ed. Tatuí: Casa Pub 10. MITOS INDÍGENAS NO AMBIENTE ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE O UNIVERSO GUARANI A PARTIR DA ANÁLISE DA OBRA TUPÃ TENONDÉ Haroldo Nélio Peres Campelo Filho - História UEG, Especialista em Gênero e Diversidade na Escola UFG, atua na Escola Pluricultural Odé Kayodê do Espaço Cultural Vila Esperança, em Goiás / Go – email: haroldocampelo@hotmail.com 187 Resumo: A proposta deste trabalho é aprender sobre o universo Guarani a partir da obra “Tupã Tenondé”, de Kaká Werá Jecupé, refletindo sobre a importância dos mitos nas culturas originais e a utilização deles no ambiente escolar como uma forma de expor aos alunos aspectos culturais e sociais dos povos indígenas, colaborando com a valorização da diversidade tendo como desafio a construção de uma educação que propicie uma visão ampla, que supere os entraves criados pelas concepções etnocêntricas. Kaká Werá Jecupé, escritor de origem indígena, realiza um estudo direto com pajés para apresentar um pouco do que só aos iniciados era transmitido. Outra obra de Jecupé que é base deste trabalho é “A Terra dos Mil Povos - História Indígena do Brasil Contada por um Índio” que, de certa forma, complementa as informações contidas em “Tupã Tenondé” e traça um panorama dos povos indígenas. Foram acessados outros autores indígenas como Ailton Krenak e Daniel Munduruku, e não-índios como Lévi Strauss (1978), Clastres (1976) e Laraia (2001). É feito um breve histórico das leis que regem o estudo de história e cultura indígena na sala de aula e também abordado o papel da educação na busca de alteridade e da superação dos estereótipos e preconceitos. Palavras-chave: Cosmovisão. Cultura. Escola. Mito Indígena. Som. Este artigo começa não pela palavra introdução, comumente usada, mas com uma expressão sinônima propositalmente escolhida por se tratar de um trabalho que tem a proposta de refletir sobre a “iniciação” dos não-índios às culturas indígenas, por meio do ambiente escolar. Uma introdução, por ser um tema tão amplo que se refere a centenas de grupos espalhados pelo vasto território brasileiro. Falar sobre mitos sem usar de poesia é uma tarefa difícil. Mito é pura poesia que tenta explicar o inexplicável e que não fecha em si, pelo contrário, abre caminhos para várias interpretações e aplicações diversas no cotidiano. É por isso que os mitos ultrapassam o tempo e servem, de uma maneira geral, para nortear a vida em comunidade. Para falar de mitos indígenas, especialmente tendo como referência os Guarani que são tonais, que são som em carne, que possuem alma musical, é imprescindível uma dose a mais de poesia. Lévi Strauss afirma que é impossível compreender um mito como uma sequência contínua. Para compreender seu significado teríamos que ler o mito de uma forma similar à leitura de uma partitura, “Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p.42). 188 O Universo Guarani, o som, a palavra e o silêncio. Ao publicar a obra “Tupã Tenondé” o autor, Kaká Werá Jecupé, revela as palavras formosas algo que, para os Guarani, é vivido e transmitido pelos grandes pajés em volta da fogueira. Jecupé é de família oriunda de um clã Tapuia e, como ele próprio diz, não nasceu Guarani, tornou-se por meio de iniciações específicas. Ele propõe o ensino de história e cultura indígena nas escolas através da vivência dos mitos, cantos e danças. Trabalhar mitos indígenas na escola é também falar de uma parte da identidade brasileira muitas vezes esquecida e que perpassa pelo absurdo de parecer que se trata de algo exótico, distante, ou que ficou no passado, mas que de fato deveria ser valorizado como base cultural fundamental na formação de uma identidade nacional. Conhecer, reconhecer, valorizar a história e cultura dos povos indígenas é, para alguns, retomar o que falta em sua existência e, para outros, significa vencer preconceitos e estereótipos criados por ideologias dominantes que tentaram, e tentam “branquear” o Brasil, desmerecendo as raízes africanas da população brasileira e querendo relegar os povos indígenas ao esquecimento. O que é esquecido, nesta ótica, deixa de existir. Por isso falam-se tanto dos indígenas no tempo passado, como se já não existissem. Na tradição Guarani o som, a palavra e o silêncio são fundamentais para a existência do ser. Calar é também se resguardar, pois a palavra possui espírito e, portanto, não pode ser gasta inutilmente. A palavra manifestada em forma de som pode construir ou destruir, gerar vida ou dirimir forças. O ser humano é um som encarnado, por isso emitir palavras negativas é agir contrariamente a si próprio, é se desgastar, jogar fora sua essência. O som, a palavra, são tão importantes que Hèlene Clastres (1978, p. 88) diz que para os Guarani a “morte é a perda da palavra: a alma, o princípio vital”. Dançar, cantar, afinar-se com a música universal é a tentativa de se aproximar daquilo que já fomos e de tudo o que podemos ser. “Para a tradição ancestral o bálsamo de cura mais profundo é a música, o espírito da vida” (JECUPÉ, 2001, p.34). Existir no mundo é ser um “som-de-pé”, um tom assentado em uma matéria que busca se afinar com a grande música universal. Por isso é tão importante a relação com a natureza, uma afinidade umbilical que interliga socialmente as pessoas aos reinos animal, vegetal e mineral, numa forma ampla de 189 concepção familiar onde tudo se conecta na grande teia da vida. “O pulsar de uma estrela na noite é o mesmo do coração. Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo, com ações interdependentes. Esse conceito só pode ser compreendido através do coração, ou seja, da natureza interna de cada um” (JECUPÉ, 1998, p. 61). A importância dos mitos para os povos indígenas Para os povos indígenas, o tempo é algo completamente diferente daquilo que se faz usando o relógio, ou a folhinha do calendário. O tempo indígena dialoga com as estações, com os ciclos da natureza, como o dia e a noite, com os momentos de fazer e com o respeito aos momentos de não fazer. Esse tempo, incalculável por meio de números e datas, é o tempo da história dos povos indígenas que antecede a 1500 e que está vivo, não por meio de documentos, mas na memória de cada povo, e que é transmitida oralmente através dos mitos, muitas vezes pelos pajés ao redor da fogueira, e que engloba grafismos, cantos, danças e afazeres cotidianos entre outras coisas. É história viva verdadeiramente, que retoma as raízes ancestrais, mas que serve de orientação para o fazer atual. Passado, presente e futuro têm outra dimensão e se confundem, se misturam no hoje. É por isso que os mitos são tão importantes para os povos indígenas, pois eles são portadores de todo o arcabouço sociocultural. Eles explicam a origem das coisas e o lugar de cada um na grande roda universal. Os mitos fazem parte da maneira indígena de contar a história, de dizer o que as pessoas são e o porquê de ser no mundo, ajudam a compreender como ser e colaboram para a construção de identidade dentro da coletividade. A construção de identidade depende fundamentalmente da cultura, obtida de geração em geração, em grande parte pelos mitos. Segundo Laraia (2001, p. 45), “O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam”. 190 Mitos indígenas no ambiente escolar Mitos indígenas, pelo seu poder de abranger cultura, história e cosmovisão, ao serem usados no ambiente escolar contribuem para a construção de identidades mais coerentes com o brasileiro que é originário de africanos, europeus e dos povos autóctones destas terras. Buscar a compreensão de como os indígenas enxergam o mundo ao seu redor contribui para uma visão menos etnocêntrica, preconceituosa ou discriminatória. Se o aluno consegue reconhecer a riqueza cultural transmitida com os mitos, ele pode construir uma opinião mais respeitosa a cerca destes povos. Segundo Mendes (2014, p. 2), “Um elemento importante é remover da história indígena ensinada os estereótipos de uma cultura unívoca, atrasada, exótica, fixa”. É preciso romper com a mentalidade equivocada que atribui valor, faz comparações e que imagina existir uma cultura superior, ou estágios de evolução onde os índios passam a ser “civilizados” a partir da imposição das culturas europeias. Outro equívoco recorrente no ambiente escolar é de se referir aos índios no tempo passado, como se estivessem extintos ou como se suas histórias se resumissem apenas aos anos inicias da invasão dos não-índios às terras hoje chamadas de Brasil. Daniel Munduruku (2010), autor de diversos livros, relata em “Coisas de índio: versão infantil” que quando criança ouvia dos colegas de escola que índio era comedor de gente, preguiçoso. Ele sofria com o preconceito e a exclusão, e seus traços físicos não o permitia negar sua identidade. Daniel Munduruku chegou a desejar não ter nascido índio, mas seu avô falou de toda a beleza a qual ele pertencia e disse que deveria mostrar isso a todos. Suas obras, hoje, cumprem este papel. Propor o ensino de história e cultura indígena nas escolas por meio da vivência dos mitos pode colaborar para que o ser humano, um som encarnado, consiga chegar mais perto do objetivo de se afinar no mundo. Os mitos encontram ressonância na essência do ser e ao pulsar no coração das pessoas podem provocar mudanças. Eles são profundamente atuais porque evocam questões existenciais inerentes a todas as pessoas e, baseado na visão musical e rítmica de mundo dos Guarani, o som das palavras evocadas pela oralidade dos mitos tocam fisicamente os ouvidos, entram nas veias, percorrem o sangue, aquecem a alma, 191 vibram no corpo de maneira a romper com a inércia, criando movimento, mais som, mais vida. Segundo Boneti (2009, p. 162), “a escola ainda não conseguiu ver as diferenças culturais e sociais como possibilidade de meio de ensino, como por exemplo, de se considerar verdadeiros diferentes saberes, mesmo os que são construídos fora dos muros da escola”. Utilizar os mitos como forma original de contar a história é agregar saberes diferentes à forma com que se constrói o conhecimento escolar. Para os indígenas, o conhecimento é adquirido desde o seio materno e, segundo Marcos Terena (2003, p. 102) “O conceito de ser educado sempre foi uma tradição indígena”. Para ele, a educação indígena se sustenta na “confiança do índio em si mesmo e no respeito mútuo”. Para educar desta forma, primeiramente, os mitos devem fazer parte da cultura do professor para que ele tenha vivência e condições de transmitir ao aluno. Forquin diz que “ninguém pode ensinar verdadeiramente se não ensina alguma coisa que seja verdadeira ou válida a seus próprios olhos” (FORQUIN apud BONETI, 2009, p. 163). Ensinar história e cultura indígena em sala de aula requer inovação. Novas práticas pedagógicas são necessárias para ultrapassar as quatro paredes de concreto, levantar os alunos das carteiras enfileiradas, botar os pés descalços no chão e construir roda. E isso não se encontra em livro didático. A educação não pode encarcerar o aluno entre os muros da escola, ela deve romper as barreiras hierárquicas pautadas somente no poder e alimentar a construção de relações fundamentadas na alteridade. Para utilizar os mitos indígenas como referência no ensino é necessário que o professor se atente aos sinais. Segundo Ailton Krenak (2012, p. 119), a História manda sinais. “Se a gente estiver atento, se a gente estiver desperto, se a gente estiver com a nossa mente aberta, a gente percebe os sinais da História, interpreta os sinais da História e viaja dentro da História”. As mitologias indígenas aplicadas no ambiente escolar devem ser instrumento não apenas conteudista, mas sim um ato verdadeiro de educar. Educar para corações valorosos, para uma humanidade que reconhece seu lugar no planeta e com o planeta. Algumas experiências ajudam a refletir sobre como lidar com a diversidade étnico-racial no ambiente escolar. Na cidade de Goiás, em Goiás, o Espaço Cultural Vila Esperança trabalha a vinte e cinco anos com a educação, 192 cultura e arte, desenvolvendo atividades direcionadas a apropriação e valorização das origens africanas e indígenas. Escolas da cidade e região participam de oficinas ligadas a essas matrizes culturais, em dois momentos: o Ojó Odé (vivência cultural africana e afro-brasileira), e o Porancê Poranga (vivência cultural indígena). A Vila Esperança mantém ainda uma escola que antecedeu à criação da lei 10.639/2003. A Escola Pluricultural Odé Kayodê atende crianças da primeira fase do ensino fundamental e educação infantil, tendo como base as culturas nativas e as oriundas do continente africano. Nessa escola tão importante quanto saber a conta de matemática é igualmente fundamental poder fazer roda, saber dialogar, respeitando o momento de o outro falar e compreender o momento de se manifestar com clareza, com contribuição efetiva para o grupo. Robson Max de Oliveira Souza, Graduado em Antropologia pela PUC-GO, Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás e presidente fundador do Espaço Cultural Vila Esperança, afirma em publicação disponível no site da Vila Esperança que a busca é pelo respeito às diferenças, “pela quebra de preconceitos e discriminações, construímos e demolimos ideias fechadas e cristalizadas do que é ser-índio”. Para ele é necessário esforço e disponibilidade interior para que isso ocorra. “É tempo de se firmar um ethos planetário. E os povos originais têm uma enorme contribuição a dar” (SOUZA, 2010). Considerações Os mitos indígenas podem colaborar com a construção de atitudes de alteridade, dando oportunidade aos não-índios de adentrarem em culturas as quais historicamente lhe foram negadas. Educar desta forma implica em saber que tudo tem um sentido, um significado. Conhecer mais sobre a diversidade de culturas e valorizar a riqueza das raízes indígenas é se apoderar de uma parte fundamental da identidade brasileira. É um exercício constante na busca de novas relações, mais respeitosas com o outro, com a terra e com o universo. Referências 193 AMARAL, Fernando Rosa do. A História indígena na perspectiva de luta dos povos indígenas: Ailton Krenak e o “Eterno retorno do encontro”. PG 93 LIMA, Pablo. Fontes e reflexões para o ensino de história indígena e afro-brasileira. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Educação (Coleção PIBID Faz), 2012. BONETI, Lindomar Wessler. Etnocentrismo, cultura e políticas educacionais. 2009 CLASTRES, Hélène. Terra sem mal. Tradução: Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1978. CLASTRES, Pierre. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani. Tradução Nícia Adan Bonatti. Campinas, SP: Papirus, 1990. JECUPÉ, Kaká Werá. A Terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio. São Paulo: Editora Peirópolis, 1998. ______. Tupã Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo: Editora Peirópolis,2001. KRENAK, Ailton. História indígena e o eterno retorno do encontro. PG 114 LIMA, Pablo. Fontes e reflexões para o ensino de história indígena e afro-brasileira. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Educação (Coleção PIBID Faz), 2012. LARAIA, Roque de Barros. Cultura. Um conceito antropológico.14.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. LEVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Disponível em: < http://www.usp.br/cje/anexos/pierre/LEVISTRAUSSCMitoesignificado.pdf > acesso em: 04 maio 2015. MUNDURUKU, Daniel. Coisas de índio: versão infantil. 2.ed. São Paulo: Callis, 2010 ______. Daniel. Vamos Brincar de Índio? Disponível em: <http://www.danielmunduruku.com.br/2015/04/vamos-brincar-de-indio.html> acesso em: 10 abril 2015. SOUZA, Robson Max de Oliveira. Todo dia é dia de índio! Disponível em: < http://www.vilaesperanca.org/?p=1733> acesso em 04 maio 2015. TERENA, Marcos. Posso Ser o que Você É, Sem Deixar de Ser Quem Sou. In: RAMOS, M. N.; ADÃO, J. M.; BARROS, G. M. N. (Orgs.). Diversidade na educação: reflexões e experiências. Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 2003. p.99-104. 194 11. O PROBLEMA DO EU EM SCHOPENHAUER E A QUESTÃO DA (IN) SUBSTANCIALIDADE DO SUJEITO NO PENSAMENTO BUDISTA, ALGUMAS APROXIMAÇÕES Nome: Karla Samara dos Santos Sousa Titulação: Doutoranda Instituição: Universidade Federal da Paraíba Nome: Glício Freire de Andrade Júnior Titulação: Mestrando Instituição: Universidade Federal da Paraíba Resumo: O presente estudo busca analisar o problema do eu na filosofia do alemão Arthur Schopenhauer e sua proximidade com a ideia de (in) substancialidade do sujeito nos ensinamentos budistas. Necessário destacar que, como são várias as escolas budistas existentes, nos reportaremos a um grupo em especial, o Budismo Theravada, considerado o único a compilar integralmente os sermões do mestre. Questionamos, pois, dois pontos: em que se circunscreve o problema do eu na doutrina schopenhaeuriana e, quais suas consonâncias com a concepção budista acerca do eu. Trata-se, portanto, de uma leitura teórico comparativa que tem por escopo traçar esses pontos entre ambos. Nota-se que em Schopenhauer quanto no Budismo Theravada toda formulação sobre o eu perpassa a questão do sofrimento. Além do sofrimento, o eu schopenhaueriano e budista estão ligados indelevelmente ao querer e a percepção de insubstancialidade das coisas no mundo. Para o Budismo Theravada, o eu nada mais é que um conjunto de agregados. Em Schopenhauer o eu é o sujeito do querer que, uma vez ligado ao mundo fenomênico, está preso a cadeia de causalidade e de individuação. Palavras-chaves: Eu. (In)substancialidade. Sofrimento. Querer. A relação entre a filosofia do alemão Arthur Schopenhauer e o Budismo já é bastante conhecida, estando inicialmente associada ao notável interesse do autor pelo pensamento (religião-espiritualidade) budista, como registram seus escritos. Num momento posterior, são as assombrosas coincidências que há entre sua filosofia e a doutrina do Buda que chamam nossa atenção. ‘Assombro’ e ‘coincidência’ foram os termos cunhados pelo próprio Schopenhauer ao se referir a consonância de seu edifício filosófico com o budismo (SCHOPENHAUER, 2011). Ao nosso ver, essa perspectiva parece vigorar, pois apresenta um leque de discussões bem maior que a anterior. Pontos fundamentais da reflexão schopenhaueriana acerca do mundo e da natureza humana trazem à baila percepções da realidade que podem ser identificados nos ensinamentos budistas, ainda que, em contextos e com pontos de 195 partida distintos. A filosofia de Schopenhauer faz menção a questão da Vontade, da representação, do sofrimento, do corpo, da ilusão, afora outros aspectos. Os ensinamentos budistas, em suas diversas ramificações, abordam essas questões. No presente ensaio, será nosso objetivo analisar especificamente o problema do eu na filosofia de Schopenhauer e sua proximidade com a ideia de (in) substancialidade do sujeito nos ensinamentos budistas. Como fora mencionado, o Budismo não é unívoco; de fato, ele é constituído por variadas escolas ou linhagens. Em vista disso, nos reportaremos a um grupo em especial, o Budismo Theravada, considerado o único a compilar integralmente os sermões do mestre no Cânone Páli (conjunto de textos dos ensinamentos do Buda). De início, perguntamo-nos em que sentido se circunscreve o problema do eu na doutrina schopenhaeuriana e, quais suas consonâncias com a concepção budista acerca do eu. Para responder esses questionamentos consideraremos três pontos fundamentais: em Schopenhauer e nos ensinamentos budistas o “eu” está relacionado a) ao problema do sofrimento; b) ao querer (desejo) e c) a (in) substancialidade das coisas. Não pretendemos exaurir o assunto. Nosso propósito será mostrar por meio dessa análise, que longe de serem esferas dicotômicas, a filosofia ocidental e o pensamento oriental dialogam de modo profícuo. O eu conforme os ensinamentos budistas, breves considerações Segundo o Budismo Theravada, equivocadamente nos percebemos como sujeitos permanentes, substanciais, autônomos. Essa percepção está presente em nosso cotidiano de tal forma que, não notamos como somos mutáveis, dinâmicos, causais e condicionados. Mas é preciso esclarecer: o que sustenta essa errônea convicção é a ignorância. A ignorância leva o sujeito a criar um universo autorrefencial, no qual cada coisa na realidade é vista como existente em si mesma, inclusive ele mesmo. É nesse contexto que surge o sofrimento - dukkha na língua páli61. O sofrimento aparece justamente quando não nos percebemos como fenômenos fugidios de uma realidade inconstante e tentamos a ela agarrar-se. O páli é uma língua antiga da Índia muito próxima ao sânscrito. Compara-se a relação entre o páli e o sânscrito ao elo que existe entre o latim e o italiano. Conforme Possebon, dentre as línguas indo-arianas então os antigos védicos, o sânscrito e os prácritos. Os prácritos são normas vulgares do sânscrito; entre muitas delas, registra-se o páli, a língua do Buda (POSSEBON, 2006). 61 196 Segundo Laumakis, “[...] Buda ensina que a maneira com que concebemos e compreendemos quem e o que somos é algo básico de nossa doença – isso também gera o dukkha” (LAUMAKIS, 2010, p. 72). Ademais, para entendermos mais a fundo a questão do “eu” no budismo, é necessário recorrer ao ensinamento dos cinco agregados do apego (upadana – khandha). Assim apresenta-se o ensinamento dos cinco agregados do apego no Majjhima Nikaya, um dos livros do Cânone Páli: E quais são, oh monges, sucintamente, os cinco agregados de apego (skandhas) que são sofrimento (e insatisfatórios)? O agregado de apego ‘corpo’ (rupa), o agregado de apego ‘sensação/sentimento’ (vedana), o agregado de apego ‘percepção’ (sannha), o agregado de apego ‘formações/disposições mentais’ (sankhra), o agregado de apego consciência (vinnana) (Majjhima Nikaya, iii, 250-141, p. 63). Os cinco agregados do apego, como a própria expressão enuncia, dizem respeito a todas as formas de “apego” que envolve a personalidade humana. O primeiro deles é a rupa (forma material) - este se remete a forma física ou corporal do ser (pelo, carne), de onde surge o prazer. O segundo é o vedana (sentimento/sensação) – este refere-se ao aspecto sensorial da experiência do ser com o mundo externo; aqui define-se o que é agradável ou desagradável. O terceiro agregado é o sanna (cognição/percepção) – este de toda forma de interpretação, ordenação ou classificação dos objetos. O quarto agregado é o snakhara (disposição/formação) – este faz alusão ao caráter volitivo do ser. O quinto e último agregado é o vinnana (consciência) – este agregado é responsável pelo processo de conscientização sensorial e mental do ser. O termo apego é elucidativo pois, qualquer coisa no mundo que o sujeito venha a se apegar ou desejar propriamente ou é forma (material ou corpo), ou são sentimentos, ou é percepção, ou são formações volitivas ou é consciência que ele se apega. O conjunto dos agregados, porém, não possui existência inerente. Conforme os ensinamentos, como nenhum agregado possui uma existência substancial, não há como considerar a partir deles, tomados em sua individualidade ou em seu conjunto, que o eu seja existente em si mesmo. Podemos dizer apenas que o homem e todos os demais fenômenos da experiência são compreendidos como um grupo de agregados, os quais, cada um deles, passam pela transitoriedade e instabilidade. 197 O corpo ao nascer, crescer, envelhecer; as sensações ora são agradáveis ora desagradáveis, enfim todos são instáveis e sujeitos a mudanças (SADDHATISSA, 1977). Por conseguinte, se o sujeito, enquanto personalidade, “eu substancial” só existe de forma abstrata, os cinco agregados também seguem a mesma categorização. Nas palavras de Cohen: “[...] cinco agregados são simples classificações abstratas usadas pelo Buda na análise da existência humana, úteis como categorias analíticas, mas por si mesmas apenas conceitos, da mesma maneira que o indivíduo é um mero conceito” (COHEN, 2004, p. 249). Segundo Buda, o desejo de afirmação da individualidade mergulha o homem cada vez mais na teia incomensurável das insatisfações. Não havendo satisfação última, prevalece a impermanência e insubstancialidade das coisas. Essa sensação de insegurança alcança seus estágios mais vorazes e dolorosos à medida que o sujeito busca, a todo preço, tornar-se único e indivisível. O caminho inverso surge quando o homem decide renunciar a si mesmo. Esta prática, na visão budista Theravada direciona o homem a construção de um novo modo de vida, uma que negue todas as formas de afirmação da individualidade. O eu conforme a filosofia de Schopenhauer, breves considerações A filosofia de Schopenhauer parte de dois pontos de vistas, o mundo visto como Representação, mundo fenomênico, e o mundo percebido como Vontade, muito como coisa-em-si. Eles não são excludentes, mas complementares. O eu schopenhaueriano é concebido a luz desses dois pontos de vista. Em linhas gerais, podemos dizer que em Schopenhauer a ideia do “eu” está relacionado a percepção do sujeito como sujeito do conhecimento e do sujeito como sujeito do querer, ambas formulações são fundamentais. O eu enquanto sujeito do conhecimento é o indivíduo ligado ao mundo fenomênico – ilusório representativo. Conforme Schopenhauer, os indivíduos, enquanto fenômenos particulares estão subordinados ao princípio de individuação – espaço e tempo – e ao princípio de razão causalidade. Isso explica o vir-a-ser e o perecer dos indivíduos no mundo, assim como o modo de conhecer dos fenômenos. Nas palavras do filósofo: 198 A pluralidade desses indivíduos só pode ser representada por meio do tempo e espaço, enquanto o seu nascimento e morte só o são pela causalidade; formas estas nas quais reconhecemos as diversas figuras do princípio de razão, que é o princípio último de toda finitude, de toda individuação, forma universal da representação tal como se dá ao conhecimento // do indivíduo enquanto tal (SCHOPENHAUER, MVR I, 2015, § 30, p. 195). Também é importante ressaltar, conforme demonstra Schopenhauer, que o modo de ser do indivíduo no mundo é finito, a começar pelo seu próprio corpo. O que é o corpo para o autor alemão? O corpo é o elemento central do pensamento schopenhaueriano, que revela que o indivíduo não é apenas representação, mas também vontade. Schopenhauer explica que isso se deve ao fato de que a “coisaem-si, ao aparecer a cada um como o seu próprio corpo, é conhecida imediatamente, porém quando se objetiva nos outros objetos da intuição, só é conhecida de maneira mediata” (SCHOPENHAUER, MVR I, 2015, § 6, p. 22). O corpo revela a coisa-em-si, pois as ações do corpo tornam-se própria experiência interna dos atos da vontade. Schopenhauer no parágrafo 18 do O Mundo como Vontade e como Representação62 não trata propriamente da união de dois elementos distintos, mas opta por utilizar o termo ‘identidade’ para definir a união entre sujeito sensível, fenomênico, submetido ao princípio de causalidade, tempo e espaço e o sujeito do querer na constituição do indivíduo. Partindo da experiência corpórea, Schopenhauer conclui que o eu constitui-se da identidade entre o sujeito do querer e o sujeito do conhecimento, e não no simples elemento intelectual (cognoscente) como sustentara a maioria dos filósofos. Ademais, o eu schopenhaueriano está relacionado diretamente à noção de sofrimento, uma vez que em seu interior, pela ação da Vontade, seu agir é marcado estruturalmente pelo conflito. Como a Vontade, ela mesma é desprovida de consciência e fundamento (Grundl), o eu, para realizar-se, tende a aniquilar as espécies inferiores, entrando em discórdia63 em favor de sua satisfação e perpetuação. É possível extrair daí um quadro esclarecedor: na natureza há uma escala hierárquica de dominação dos graus superiores sobre os graus mais baixos de objetivação da Vontade. No âmbito dessa hierarquia, o gênero humano, por A partir desse ponto, abreviaremos a obra O Mundo como Vontade e como Representação da seguinte forma: ‘o Mundo...” 63 Schopenhauer argumenta que a discórdia é uma qualidade inerente a própria Vontade. A Vontade ávida e faminta crava os dentes em sua própria carne, a Vontade de vida. (SCHOPENHAUER,MVR I, § 27, 2015, p. 145). 62 199 dominar todas as espécies, vê a natureza senão como instrumento. Schopenhauer ratifica: “esse mesmo gênero humano, porém, [...] manifesta em si próprio aquela auto discórdia da Vontade da maneira mais clara e terrível quando o homem se torna o lobo do homem, homo homini lúpus” (SCHOPENHAUER, MVR I, § 27, 2015, p. 171). Se tomarmos essa passagem ao pé da letra, a constatação é inequívoca: se o eu está em conflito, e estar em conflito é sofrer, o eu schopenhaueriano é essencialmente sofrimento. Ao investigar a origem do sofrimento, Schopenhauer vê que o que há por traz de tudo, a essência do universo, não é outra coisa senão a Vontade. No homem, a Vontade é desejo e o sofrimento gerado pelo desejo não cessa, é eterno. Com efeito, não há satisfação duradoura, já que a satisfação não passa de um ponto de partida para um novo esforço. E como a vida é, em sua essência, uma manifestação de Vontade, e esta por natureza não possui finalidade, devemos sempre, com ou sem esforço, retornar a um estado de sofrimento O eu em Schopenhauer e no Budismo Theravada, algumas aproximações possíveis Em nossa leitura, a noção de um ‘eu’ na filosofia de Schopenhauer possui algumas conotações que são semelhantes à visão apresentada pelo Budismo Theravada, com algumas ressalvas. Tanto em Schopenhauer quanto no Budismo Theravada o que se formula como ‘eu’ conduzem ao sofrimento, assim como, afirmam a impossibilidade de sua existência inerente. O Budismo Theravada define o eu como um conjunto de agregados, não substancial, permeado pela insatisfatoriedade e transitoriedade. Em Schopenhauer a perspectiva não é distinta, pelo menos no nível representativo. O autor do O Mundo... sustenta que o eu, enquanto indivíduo ligado ao mundo representativo, está subordinado ao princípio de razão e individuação (tempo, espaço e causalidade) e, por isso, transitório. Nesse quadro, poderíamos então sustentar que não haveria no eu schopenhaueriano, enquanto indivíduo preso ao princípio de razão, existência em si mesma. Em uma nota de rodapé do parágrafo 54 do O Mundo... percebemos que Schopenhauer corrobora o caráter vazio da individualidade, acrescentando um dado importante a questão da identidade do sujeito: o sujeito, embora cognoscente, não 200 tem consciência de si. Como vimos antes, Schopenhauer destaca que o sujeito que conhece é o mesmo sujeito que quer; eis os dois polos do mundo, a representação e a vontade. Neste caso, falamos da Vontade, enquanto núcleo essencial da realidade, que se conhece a partir de seu fenômeno mais adequado, a vontade humana, ou melhor, por meio dos atos da vontade de cada indivíduo. O indivíduo não conhece a si mesmo, mas conhece-se apenas como objeto do querer. O querer schopenhaueriano também é algo que se aproxima da ideia de apego no pensamento budista. Ambos revelam notadamente que o desejo de satisfação no indivíduo, além de incomensurável é carregado de ilusões. Para cada forma de apego ou desejo “satisfeito”, surgem milhares de outros desejos. Daí a dor, o engano. Referências Dhammapada. Trad. Nissim Cohen. São Paulo. Palas Athena. 2004. Ensinamentos do Buda. (Org. Nissim Cohen). São Paulo. Devir Livraria. 2008. LAUMAKIS, Stephen. Uma introdução à filosofia budista. São Paulo. Madras. 2010. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2015. ____________________. Notas sobre Oriente. Madrid. Edición y estúdio Giovanni Gurisatti. Trad. Adela Muñoz Fernández (del Aleman) y Paula Caballero Sánchez. Editorial Alianza. 2011. POSSEBON, Fabrício. Rig-Veda, a sabedoria das estrofes. João Pessoa. Idéia. 2006. SADDHATISSA, H. O caminho do Buda. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. 12. A FORMAÇÃO BÍBLICA COMO PRECURSORA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIOCESE DE GOIÁS 1967 A 1998. Arcangelo Scolaro Mestre e doutor em Ciências da Religião PUC GO Docente de fundamentos de educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG) arcangeloscolaro@hotmail.com 201 Resumo: A formação bíblica na Diocese de Goiás, na segunda metade do século XX, destacou-se por seu compromisso evangélico com os empobrecidos. A Educação do Campo é uma realidade recente como política pública. Como prática de movimentos sociais é uma presença marcante já na década de 1960. Esta presença se manifesta em vários movimentos sociais e práticas de algumas pastorais da igreja. As práticas sócio-políticas fizeram parte da igreja das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que adotavam a Teologia da Libertação. Há uma evidente identificação entre a formação bíblica na Diocese de Goiás e a educação do campo. A análise verifica a presença de características, no trabalho da Diocese, que são marcantes na futura educação do campo. Tanto o trabalho da Diocese de Goiás como a educação do campo se ocupam com a formação integral da pessoa a partir de seu meio, de sua cultura. Isso significa libertação, saúde do corpo e espírito. A pesquisa parte de conceitos fundamentais como: Educação do Campo, Teologia da Libertação, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), e leitura popular da Bíblia. A mesma base teórica metodológica foi utilizada na Diocese de Goiás e pela futura educação do campo. A pedagogia do oprimido de Paulo Freire é utilizada tanto pela Diocese como pela Educação do Campo como um manual pedagógico para a sua ação. A reforma agrária é elemento fundamental nas metas traçadas pela educação do campo. Palavras-chave: Educação do campo, Teologia da Libertação, Diocese de Goiás, formação integral. O objetivo aqui é de apresentar o resultado da pesquisa realizada como tese de doutorado em Ciências da Religião, onde se analisa o trabalho de formação bíblica empreendido pela Diocese de Goiás (1957-1998). O objetivo da pesquisa foi o de verificar as semelhanças existentes entre a formação bíblica, os objetivos e metodologia empregados pela Educação do Campo. Ocorre no trabalho empreendido pela Diocese uma retomada da Palavra, como palavra em si mesma e, como Palavra maior, Palavra de Deus. A ação da Diocese se fundamenta na crença de que se apossar da palavra é empodeirar-se e quando o dizer esta palavra está ligado à Palavra maior que é a Bíblia Sagrada. Mas se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. [...] O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu (FREIRE, 2013, p. 109). A hipótese é de que o novo modo de ser Igreja, com a utilização da Bíblia, provocou uma verdadeira Educação do Campo. Neste sentido a Igreja de Goiás, 202 junto com outras igrejas e movimentos sociais pelo Brasil, teriam lançado os fundamentos para uma futura Educação do Campo. Os grupos do Evangelho com seu método de releitura das escrituras sagradas observando o pré-texto, o texto e o contexto desencadeiam um processo educativo em que os camponeses se tornam os protagonistas de sua própria formação bíblica. Isto traz como consequência uma formação geral, pois a Bíblia não os tira de sua realidade, antes pelo contrário, é um convite a mergulhar em sua própria situação de vida e, de dentro dela, buscar a sua redenção, a sua transformação, esse foi o trabalho realizado pela “Igreja do Evangelho” ou “Igreja da Caminhada”. A salvação não é uma questão individual. Para reafirmar essa verdade bíblica busca em Paulo Freire a forma pedagógica de se fazer concreta essa verdade. Paulo Freire não inventou o homem; apenas pensa e pratica um método pedagógico que procura dar ao homem a oportunidade de re-descobrir-se através da retomada reflexiva do próprio processo em que vai ele se descobrindo, manifestando e configurando – “método de conscientização”. Mas ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência se constitui como consciência do mundo... As consciências não se encontram no vazio de si mesmas, pois a consciência é sempre, radicalmente, consciência do mundo (FIORI apud FREIRE, 2011, p. 20). A Educação do Campo, por sua vez, bebe também na mesma fonte, o método Paulo Freire. Para o camponês e na Diocese de Goiás mais especificamente o lavrador, o pensar a terra é diferente do pensar do capitalista. O lavrador pensa a terra como vida, como subsistência e, por isso garantia de autonomia. Ela é um bem coletivo, pois a família trabalha de modo coletivo. A Educação do Campo oferece um método diferenciado para que o camponês a partir de sua cultura, da sua realidade vivenciada, isso possibilita uma reflexão sobre as condições que o sistema lhe oferece. Esse movimento destaca a importância da educação como parte de um projeto de emancipação social e política que fortaleça a cultura e os valores da comunidade campesina, vinculada ao seu projeto de desenvolvimento sustentável. Para tanto preconiza que essa educação seja fundamentada em princípios que valorizem os povos que vem no campo, respeitando sua diversidade (PIRES, 2012, p. 93). Teologia da libertação e educação do campo Dom Tomás Balduíno, bispo desta Igreja de 1967 a 1998, assume claramente o referencial teórico científico marxista como um instrumento de análise do chão onde pretendia semear as verdades evangélicas. “A Teologia da Libertação não vê 203 o marxismo como um bicho papão, não um mal, mas um instrumento científico. E aí você o adota com liberdade de cientista” (BALDUÍNO, 2012, p. 2). E ele explica o porquê dessa opção por esse instrumento de análise cientifica da realidade. “Para nós da Teologia da Libertação é útil na análise da realidade, com profundidade. Favorece a desentranhar a sociedade de hoje e trazer à tona os seus problemas e suas vinculações políticas e econômicas e fazer assim uma reflexão teológica” (BALDUÍNO, 2012). Por sua vez Dom Tomás Balduíno afirma também que a teoria marxista foi uma opção da Teologia da Libertação, mas que não é a única. No campo da Teologia da Libertação utiliza-se como o grande referencial teórico aquele que foi um dos criadores desse modo de fazer teologia, Gustavo Gutierréz (1975) e toda a teologia que deriva desse modo de pensar que foi uma releitura da teologia a partir do Vaticano segundo, Conferência Episcopal de Medellín, mas, sobretudo, da realidade vivida pelo povo marginalizado da América Latina. A Teologia da Libertação trabalhou com conceitos sociológicos de raça, classe e posteriormente de gênero. “Libertação é libertação do oprimido. Por isso, a Teologia da Libertação deve começar por se debruçar sobre as condições reais em que se encontra o oprimido de qualquer ordem que ele seja.” (BOFF, 1986, p. 40). Na área da educação e, no caso a Educação do Campo, o referencial teórico está baseado em idealizadores deste novo pensar pedagógico. Assim como a Teologia da Libertação emerge do meio do povo pobre, a Educação do Campo emerge da luta pela terra e pela sobrevivência na mesma. Na luta pela terra o Movimento dos Sem Terra (MST) se destaca mundialmente. Um dos fatores muito valorizados pelo movimento é a questão da educação. É de dentro do movimento que surge este novo em termos de educação. Educação do Campo tem os mesmos princípios da Teologia da Libertação. O que é necessário não nasce dos intelectuais mas do homem, da mulher, do jovem e da criança do campo. Os intelectuais solidários a esta causa são chamados a organizar pedagogicamente essas necessidades campesinas em termos de educação. Nesse processo se destacam Miguel Arroyo (2004) e Roseli Salete Caldart (2004, 2009, 2015) estes são os grandes esteios juntamente com uma equipe que tem se destacado a partir da I Conferência Nacional: Por uma educação básica do campo (1998). A análise da importância da formação bíblica como instrumento da Educação do Campo são o eixo central. Utiliza-se de referencial cujo método de leitura bíblica se 204 denomina de leitura popular da Bíblia. A teologia bíblica popular se identificou, ou mesmo nasceu a partir desse pensar teológico, nasceu no mesmo contexto social e político que a Teologia da Libertação. A teologia bíblica popular é um chamado para uma reação a todas as injustiças praticadas contra os mais fracos. No centro da teologia Bíblica popular está o Deus libertador. Este é o elo fundamental de ligação com a Teologia da Libertação. O objetivo fundamental é entender a realidade diária vivida pelo pobre e tornar presente e convincente o Deus libertador que se encontra na Bíblia sagrada. A metodologia utilizada basicamente é de análise de dados encontrados em documentos da Igreja da Diocese de Goiás, Assembleias Diocesanas, Avaliações Diocesanas, Encontros da Coordenação Diocesana, Jornal ‘A caminhada’ e, entrevistas concedidas por Dom Tomás Balduíno disponíveis na Web. Esses documentos são analisados à luz do referencial teórico já indicado. Como complementaridade o grande desafio é no sentido de uni-los na luta por um mundo melhor obedecendo ao grande chamado de Marx e Engels (2002): “Trabalhadores de todo o mundo uni-vos”. Na sua prática política destaca-se a opção e atuação junto aos lavradores, primeiro por meio de um instrumento ao alcance dos mesmos, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (SCOLARO, 2001). A renovação da igreja Este processo revolucionário de transformação interna e externa da igreja se deu como um processo. O processo foi desencadeado a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II. A Diocese de Goiás foi radical em sua opção pelos excluídos da sociedade. Capponi (1998) demonstra que as assembléias diocesanas foram o eixo condutor deste processo. Neste processo aconteceu um verdadeiro partilhar do poder e ao mesmo tempo a solidificação de um método de ação: Ver, julgar e agir acontecendo de maneira colegiada. Segundo o mesmo Capponi (1998) Dom Tomás Balduíno afirmava que neste processo colegiado e, o amor à terra era um aprendizado na vivência com os povos indígenas. No período analisado pela tese (1967-1998) aconteceram quinze assembléias, um sínodo diocesano e três avaliações do processo de caminhada desenvolvido. Apresenta-se aqui um pequeno resumo do que foi este processo e 205 agrupamos o processo em cinco períodos. Este resumo foi realizado a partir de informações retiradas do escrito de Capponi (1998). 1) !968 – 1971. Este primeiro grupo de assembléia foi denominado de Arrumação da casa. A preocupação deste conjunto de assembléias foi com a questão interna de Igreja, organizar as suas pastorais e isso de forma geral era denominado de pastoral de conjunto. Embora esteja dentro deste primeiro bloco a 4ª assembléia começa a se preocupar com a promoção humana. O que ajudou a motivar este lançar-se para o mundo externo. Esta tendência foi motivada pelo sínodo mundial acontecido em 1971 que tinha como tema a justiça no mundo. 2) O segundo bloco de assembléias se caracteriza fundamentalmente por sua opção preferencial pelos pobres ( 1972 - 1978). Foram seis assembléias para tomar a decisão e fortalecê-la. Isto foi acontecendo por meio de ações práticas na pastoral a favor dos menos favorecidos, no caso da diocese: os lavradores. Isto aconteceu da 5ª até a 10ª assembleias. 3) O período da politização (1978 - 1985). Este período é caracterizado principalmente pelo aprofundamento da participação das comunidades na vida política, acompanha de certa forma o processo de abertura política do país. Esse período corresponde a 11ª à 13ª Assembléias. Acontece também o fortalecimento dos estudos bíblicos, exigência para os agentes trabalharem na diocese. É também o momento do surgimento das pastorais sociais que caminham paralelamente com as comunidades eclesiais de base (CEBs). Neste período acontecem as três avaliações do trabalho diocesano, intercaladas às assembléias (1979, 1981 e 1983). 4) Período forte da luta pela terra (1985-1990) 14ª assembléia. A comissão pastoral da terra (CPT) já havia nascido no período anterior mas aqui acontece a intensificação da luta pela terra, acontecem os primeiros acampamentos e assentamentos. 5) Período da resistência e desistência (1991 a 1998). Neste período acontece um grande período de avaliação e de tentativa de resistência à nova corrente que vai tomando conta da Igreja que é de volta à tradição, o surgimento de grande movimentos eclesiais. Aconteceu aquilo que se denominou de sínodo diocesano com ampla participação das bases (1995-1997). 206 Conclusão A tese da pesquisa é de que o trabalho desenvolvido pela diocese de Goiás, de modo especial a formação bíblica, foi uma verdadeira educação do campo. Elencamos a seguir aquilo que consideramos fundamental para a comprovação desta tese: a) O trabalho desenvolvido pela Diocese de Goiás e a Educação do campo partem do mesmo método. Partem da realidade do trabalhador utilizando o ver, julgar e agir; b) Ambos utilizam o mesmo referencial teórico: Paulo Freire; c) O mesmo ideal ilumina o caminhar: a libertação do oprimido, independente de ser do campo ou cidade; d) O combate decidido ao capitalismo como o grande mal que causa a pobreza; e) A busca incessante pela reforma agrária e reforma agrícola; f) Solução coletiva e não individual dos problemas; g) Como resultados concretos apontamos: 23 assentamentos só no município de Goiás, cerca de 50 na Diocese. Feiras do produtor, associações, cooperativas, etc.. A criação de um curso especial de direitos para filhos de camponeses, criado pela UFG na cidade de Goiás, curso de graduação em Educação do campo também criado pela UFG na cidade de Goiás. Inúmeros filhos de assentados e pequenos proprietários que se formaram em diversas áreas do conhecimento que hoje continuam militando pela reforma agrária e em outros movimentos sociais. Estes são em síntese os motivos que nos levam a crer que a formação bíblica na Diocese de Goiás foi e, de alguma forma, continua sendo uma verdadeira educação do campo. Referências ARROYO, Miguel G. A educação básica e o movimento social do campo. In: ARROYO, Miguel Gonçales e FERNANDES, Bernardo Mançano (Org.). Petrópolis: Vozes, 2004. Coleção Por uma educação básica do campo, v. 2, p. 13-52. 207 CALDART. Roseli Salate. Elementos para a construção do projeto político pedagógico da Educação do Campo. Petrópolis: Vozes, 2004. _____.Educação do campo: notas para uma análise de Trabalho,Educação. Saúde, Rio de Janeiro, v. 7 n. 1, p. 35-64,mar./jun.2009. percurso _____. Sobre a especificidade da Educação do Campo e os desafios do momento atual. Porto Alegre: s.n., 2015. CAPPONI, Francesco. Tempo de graça. Itaberaí: s.n., 1998 BALDUÍNO , D. Tomás. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516656-90-anos-de-transformacao-na-igrejaentrevista-especial-com-dom-tomas-Balduíno . Acessado dia 31/05/2015, acesso em15 de março de 2015 _____.Nossa reforma agrária ainda é a dos militares. Disponível em: http://quemtemmedodademocracia.com/2012/09/22/d-tomas-Balduíno -nossareforma-agraria-ainda-e-a-dos-militares-especial-para-o-qtmd/, Acesso em 18 de fevereiro de 2015. BOFF, Leonardo, BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1986. FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. 54ª Ed. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 2013 _____. Educação e mudança. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Petrópolis, Vozes, 1975. MARX, Karl, e ENGELS, Frederich. A ideologia Alemã. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PIRES,Ângela Monteiro. Educação do campo como direito humano. São Paulo: Cortez, 2012. SCOLARO, Arcangelo. Profecia e Diálogo. Análise sócio-cultural da Diocese de Goiás – 1967-1998. Goiânia, Universidade Católica de Goiás, 2001. 13. PRESCRIÇÕES DIETÉTICAS CONTRIBUINTES PARA A INTEGRALIDADE FÍSICO-MENTAL-ESPIRITUAL DO SER HUMANO EM ELLEN GOULD WHITE Nome: Kevin Willian Kossar Furtado Titulação: Doutorando Instituição: Universidade Estadual de Ponto Grosso/Editor gerente da Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo Resumo: Diferentemente do que expressa a construção compartimentada do dualismo grego de um ser humano composto de um corpo desprezível por conta de sua terrenidade e materialidade e de um(a) espírito (ou alma) que, enquanto estiver no corpo, esta aprisionado(a) ao mundo material, na concepção teológica adventista 208 tal dicotomia inexiste e, em contraposição, se concebe uma integralidade entre espírito, mente e corpo; este tido como habitação divina, tal sua importância. Por isso, a chamada reforma de saúde e seu ensino constituem elementos indissociáveis da espiritualidade adventista. A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) adota um sistema alimentar ajustado em um contexto religioso-teológico, seja no plano teórico ou nas práticas da denominação e seus membros. Partindo da premissa de que a saúde colabora à vivência religiosa, e que apenas um corpo saudável pode tê-la em plenitude, relacionado com as prescrições alimentares bíblicas, um conjunto de conselhos, através, principalmente, do Espírito de Profecia, foram elaborados pela Igreja com vistas a promover um estilo de vida combinante com os seus princípios, em que o cuidado com a saúde forma uma demanda tanto físico/corporal, quanto mental e moral/religiosa/espiritual. Ellen G. White (18271915), uma das precursoras do movimento adventista e em quem, na concepção denominacional, se manifestou o dom espiritual da profecia, cujos escritos colaboram para a orientação, instrução e correção da Igreja, tece orientações, sobretudo proibitivas, que contribuem para a preservação da saúde físico-mentalespiritual do ser humano, objeto da presente discussão. O paper foi construído por meio de pesquisa bibliográfica pautada, majoritariamente, em literatura adventista. Palavras-chave: Formação holística do ser humano. Dieta alimentar. Ellen Gould White. Igreja Adventista do Sétimo Dia. Em contraste ao dualismo grego, que entende o ser humano como formado por essências dissociadas, o corpo e a alma, a teologia adventista preconiza que “as Escrituras não admitem tal dicotomia. Elas falam de inteireza”, de uma unidade na composição do homem. Significância tal se dá ao corpo a ponto dele ser tido como 'o templo do Espírito Santo' (1Co 6:19), a morada da divindade. Por conseguinte, a reforma de saúde, sua prática e ensino – assim como a(o) da temperança, compõem elementos intrínsecos à mensagem adventista (BRADFORD, 2011, p. 740). Kiš (2011, p. 763) explica que o princípio do corpo como santuário do Espírito “requer a rejeição de qualquer atitude depreciativa ou desdenhosa para com o corpo humano” e que, em conjunto com 1 Tessalonicenses 5:23, tal premissa “afirma uma visão holística do ser humano”. No tocante ao cuidado da habitação divina através – no caso particular aqui discutido – da alimentação, Reid (2011, p. 859) expressa que Deus demostra sua preocupação com o que o ser humano come já “no primeiro capítulo de Gênesis, onde Ele prescreve a dieta original. O assunto é retomado ao longo das Escrituras com surpreendente frequência, tendo aplicações tanto na saúde física como no serviço a Deus.” Tal dieta, vegetariana, se apresenta “com detalhada exatidão” no primeiro capítulo bíblico. 209 A dieta alimentar sistematizada na teologia adventista Entre as crenças fundamentais da Igreja Adventista, a 'Conduta cristã‘ trata da dieta alimentar e expõe que “sendo o nosso corpo o templo do Espírito Santo, devemos cuidar dele inteligentemente. Junto com adequado exercício e repouso, devemos adotar a alimentação mais saudável possível e abster-nos dos alimentos imundos identificados nas Escrituras.” (ASSOCIAÇÃO MINISTERIAL DA ASSOCIAÇÃO GERAL DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA, 2011, p. 346). Nesse caso, a teologia adventista entende que a Bíblia não desaprova o consumo da carne de animais classificadas como limpas conforme Levíticos 11, mas que o plano original de Deus era de que o homem não matasse animais para se alimentar e adotasse uma dieta vegetariana. Entre os adventistas, “a opção pelo regime vegetariano ou ovolactovegetariano é livre e [...] os membros da Igreja apenas são abstêmios das carnes consideradas 'imundas‘.” (SILVA, 2012, p. 47). Segundo Reid, após a queda do homem, a dieta original se amplia e passa a incluir plantas herbáceas, frutas e nozes. Ou seja, conserva-se vegetariana. Apenas depois do dilúvio, com as limitações de produção de alimento pela Terra, foi dada permissão para que a carne fosse usada na alimentação, mas com restrições do “uso da carne com sangue (Gn 9:3, 4) e depois com gordura (Lv 3:17). A essa altura, Deus já havia introduzido a distinção entre animais limpos e imundos (Gn 7:2; 8:20).” (REID, 2011, p. 860). No entendimento adventista, em perspectiva bíblica, os animais imundos não constituem o melhor alimento. […] Alguns pensam que, pelo fato de as leis de saúde serem mencionadas em Levítico, eram meramente leis cerimoniais ou ritualísticas, que não mais estariam em vigor sob o cristianismo. Contudo, a distinção entre animais limpos e imundos retrocede à época de Noé – muito antes da existência de Israel. Sendo princípios de saúde, essas leis dietéticas carregam consigo uma permanente obrigação. (ASSOCIAÇÃO MINISTERIAL DA ASSOCIAÇÃO GERAL DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA, 2011, p. 355). A IASD adota um sistema alimentar ajustado em um contexto religiosoteológico, seja no plano teórico ou nas práticas da denominação e de seus adeptos. Com base na premissa de que a saúde colabora à vivência religiosa, e que somente um corpo saudável pode tê-la integralmente, relacionado com as prescrições 210 alimentares bíblicas, um conjunto de conselhos foram elaborados com vistas a promover um estilo de vida64 combinante com os princípios da Igreja (PACHECO, 2001, p. 98) através, principalmente, do Espírito de Profecia. Destarte, o cuidado com a saúde constitui “uma questão tanto física/corporal como moral/religiosa” e existe “um intercâmbio entre estas duas esferas no sentido de que é importante preservar a saúde, não per si, mas para melhor servir a Deus.” (PACHECO, 2001, p. 104). Com a liderança carismática de Ellen Gould White (1827-1915), que figura entre os fundadores do adventismo, o movimento instituiu, em seu primeiro cinquentenário, entre outras coisas, a promoção do vegetarianismo como a postura dietética ideal para os membros da Igreja (NOVAES, 2015, p. 62). Orientações dietéticas whiiteanas para a integralidade do ser Para a teologia adventista, a profecia se configura como um dos dons do Espírito Santo, uma característica da igreja remanescente e [que] foi [manifestada] no ministério de Ellen G. White. Como a mensageira do Senhor, seus escritos são uma contínua e autorizada fonte de verdade e proporcionam conforto, orientação, instrução e correção à igreja. Eles também tornam claro que a Bíblia é a norma pela qual deve ser provado todo ensino e experiência.” (ASSOCIAÇÃO MINISTERIAL DA ASSOCIAÇÃO GERAL DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA, 2011, p. 276). Ela acreditava que ser considerada ‘profetisa’ não expressava apropriadamente seu trabalho. Por isso, optava ser vista como ‘mensageira’ de Deus para Seu povo (RICE, 2011, p. 702). Ellen G. White foi responsável por sistematizar um conjunto de recomendações dietéticas, especialmente restritivas, que contribuem para o preservar da saúde físico-mental-espiritual do ser humano, em obras específicas sobre o regime alimentar, e sobre saúde de maneira mais ampla, que colaboram para um habitus dietético entre os adventistas. Observa-se que o combate ao consumo do chá e café – às vezes entremeado com citações a outros 'estimulantes‘ – forma a maioria das proibitivas dela no Lopes (2012) apresenta um conjunto de pesquisas internacionais que abordam o estilo de vida adventista em comparação com a população geral e expressa que no Brasil são escassas as investigações com esse perfil. 64 211 tocante ao tema. O regime e as bebidas estimulantes desta época não são conducentes ao melhor estado de saúde. Chá, café e fumo são todos estimulantes, e contêm venenos. São, não somente desnecessários, mas nocivos, e devem ser rejeitados, caso queiramos acrescentar ao conhecimento, a temperança. (WHITE, 2005, p.76; WHITE, 2007a, p. 362). Para Ellen G. White, as bebidas citadas causam excitação prejudicial, não são nutritivas, causam alívio passageiro e irritam o cérebro. “Tudo isto é falso vigor, que nos deixa pior. Eles não comunicam uma partícula de energia natural.” (2005, p. 76). O chá e o café contaminam o organismo na concepção de Ellen G. White. “O chá atua como estimulante, e, até certo grau, produz intoxicação. A ação do café, e de muitas outras bebidas populares, é idêntica.” (WHITE, 2013, p. 228). Tais bebidas, para ela, são dispensáveis. “Chá e café não são necessários nem saudáveis. Não são de utilidade alguma no que se refere à saúde do corpo.” (WHITE, 2005, p. 78). Aconselha-se posicionamento contrário ao seu consumo. “E todos devem dar claro testemunho contra chá e café não os usando nunca. São narcóticos, igualmente nocivos ao cérebro e aos outros órgãos do corpo.” (WHITE, 2005, p. 79; WHITE, 2007a, p. 371). No que diz respeito à espiritualidade, Ellen G. White chega a afirmar que a ingestão das bebidas aqui mencionadas configura um pecado. “Tomar chá e café é pecado, condescendência prejudicial, que, como outros males, causa dano à alma. Esses diletos ídolos criam excitação, ação mórbida do sistema nervoso.” (WHITE, 2005, p. 80; WHITE, 2007a, p. 366). Para ela, aqueles que os consomem correm o perigo de desobedecer às leis de Deus. “Alguns têm voltado atrás e condescendido com chá e café. Os que violam as leis de saúde ficarão mentalmente cegos e transgredirão a Lei de Deus.” (WHITE, 2005, p.80). O abandono de tais coisas significa, na perspectiva whiteana, como uma confirmação da autenticidade da fé e impede a aspiração por outros estimulantes nocivos à saúde. “Os que [creem na] verdade presente devem recusar-se a beber chá ou café, porque despertam o desejo de estimulantes mais fortes. Devem recusar-se a comer carne porque esta também desperta o desejo de bebidas fortes.” (WHITE, 2005, p. 161). Ellen G. White recomenda que certos condimentos não sejam usados na alimentação. “Os condimentos são prejudiciais em sua natureza. A mostarda, a pimenta, as especiarias, os picles e coisas semelhantes irritam o estômago e tornam 212 o sangue febril e impuro.” (WHITE, 2007a, p. 289; WHITE, 2013, p. 228). O açúcar também recebe parecer contrário. “Açúcar não é bom para o estômago. Causa fermentação, e isto obscurece o cérebro e ocasiona mau humor.” (WHITE, 2007a, p. 280). Para ela, certas misturas com o açúcar fazem mal para digestão. “Especialmente nocivos são os cremes e pudins em que o leite, ovos e açúcar são os principais elementos. Deve-se evitar o uso abundante de leite e açúcar juntos.” (2007a, p. 280). O consumo cárneo, além de se configurar como uma pauta recorrente nos escritos whiteanos sobre o regime alimentar, representa uma atitude artificial adotada pelo ser humano a partir de certo momento da história do planeta. Segundo Ellen G. White, o plano original de Deus não previa tal uso alimentar. O apetite para a carne foi feito e educado pelo homem. Nosso Criador nos forneceu nas verduras, nos cereais e nas frutas, todos os elementos de nutrição necessários à saúde e à resistência. As comidas de carne não faziam parte da alimentação de Adão e Eva antes da queda. (2005, p. 163). White alega que a carne afeta funções vitais do organismo, como o intelecto, “pois que o uso da carne de animais tende a tornar pesado o corpo e a entorpecer as finas sensibilidades do espírito” e que ela “não é essencial à manutenção da saúde e da força.” (2007b, p. 136). Ela advoga a adoção de uma dieta vegetariana, quando possível, e repreende àqueles que podem adotar um regime tido como saudável, mas não o fazem. Segundo White, esses acabarão para desaprender as 'verdades‘ que conheceram. Os que estão em condições de seguir o regime vegetariano, mas atêm-se às suas preferências, comendo e bebendo o que lhes apraz, a pouco e pouco se tornarão descuidosos das instruções que o Senhor lhes deu no tocante às outras verdades e serão por fim incapazes de discernir estas (2007b, p. 149-150). Em contraste com o uso cárneo, Ellen G. White apresenta o ideal divino de alimentação para a humanidade. Cereais, frutas, nozes e verduras constituem o regime dietético escolhido por nosso Criador. Esses alimentos, preparados da maneira mais simples e natural possível, são os mais saudáveis e nutritivos. Proporcionam uma força, uma resistência e vigor intelectual que não são promovidos por uma alimentação mais complexa e estimulante. (WHITE, 2007a, p. 74; WHITE, 2013, p. 208-209). 213 White (2007b, p. 58) aconselha a troca de alimentos estimulantes por outros mais simples, para que se compreenda como se obedece a Deus e se alcança a salvação e defende que a alimentação simples e natural ajuda no esclarecimento dos assuntos sagrados e auxilia no serviço a Deus. Para tanto, preparar os alimentos da maneira mais simples e natural possível ajuda que “os delicados nervos do cérebro não sejam enfraquecidos, entorpecidos ou paralisados, tornandose [...] impossível discernir as coisas sagradas” (2007b, p. 81). Considerações finais Pacheco (2001, p. 112) defende que, embora os conselhos whiteanos sejam apreciados como orientações divinas e que exista considerável ênfase no quesito alimentar na Igreja Adventista, no pensamento denominacional, a aderência – ou não adesão, ou seja, o não seguir estritamente das recomendações de Ellen G. White no tocante à alimentação – plena dos seus membros a tais princípios, não se caracteriza enquanto condição intrínseca à salvação eterna do ser. Não obstante, para Ellen G. White, o seguimento das normas dietéticas são contributos à experiência religiosa e influenciam no trilhar rumo à redenção. Assim, para se crescer no conhecimento das coisas divinas, o não consumo de bebidas estimulantes como café e chá mostra-se necessário. Consumi-los pode acarretar em desobediência às leis de Deus e configura-se até mesmo como pecado, que causa dano ao ser. A fé autêntica se mostra no abandono da ingestão dessas bebidas, e protege do desejo por outros estimulantes tidos como nocivos à saúde. Ênfase proibitiva também está colocada no consumo da carne, a qual afeta funções vitais do organismo e adormece as sensibilidades do ser. Os que não substituem a alimentação cárnea por uma dieta vegetariana – dentro das possibilidades – acabam por descuidar das instruções e verdades divinas que receberam. A prescrição whiteana contribuinte para a integralidade físico-mental-espiritual do ser humano síntese, que coopera para o discernimento das coisas sagradas e para o alcance da salvação, está na substituição dos alimentos considerados estimulantes por outros mais simples e naturais. 214 Referências ASSOCIAÇÃO MINISTERIAL DA ASSOCIAÇÃO GERAL DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA (Org.). Nisto cremos: as 28 crenças fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia. 8. ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. BRADFORD, Charles E. Mordomia. In: DEDEREN, Raoul (Ed.). Tratado de Teologia: adventista do sétimo dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. p. 721747. FURTADO, Kevin Willian Kossar. Representações escatológico-sabáticodietéticas de jovens da Igreja Adventista do Sétimo Dia. 2014, 365 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2014. KIŠ, Miroslav M. Estilo de vida e conduta cristã. In: DEDEREN, Raoul (Ed.). Tratado de Teologia: adventista do sétimo dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. p. 748-802. LOPES, Leidjaira Juvanhol. Fatores de risco e proteção para doenças crônicas não transmissíveis entre adventistas do sétimo dia. 2012, 272 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012. NOVAES, Allan. O problema Cristo-cultura e o adventismo. In: FOLLIS, Rodrigo; NOVAES, Allan; DIAS, Marcelo (Orgs.). Sociologia e adventismo: desafios brasileiros para a missão. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2015. p. 51-73. PACHECO, Sandra Simone Queiroz Morais. Alimentação e religião: a influência da orientação religiosa na formação de hábitos alimentares de adventistas do sétimo dia. 2001, 169 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. REID, George W. Saúde e cura. In: DEDEREN, Raoul (Ed.). Tratado de Teologia: adventista do sétimo dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. p. 833-869. RICE, George E. Dons espirituais. In: DEDEREN, Raoul (Ed.). Tratado de Teologia: adventista do sétimo dia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011. p. 676-720. SILVA, Stael Silvana Bagno Eleutério da. Prevalência da hipertensão arterial, avaliada pela medida casual e monitorização residencial da pressão arterial, em comunidades adventistas do sétimo dia no sudoeste paulista. 2012, 226 f. Tese (Doutorado em Enfermagem na Saúde do Adulto) – Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. WHITE, Ellen G. A ciência do bom viver. Silver Spring: Ellen G. White Estate, 2013. 215 ______. Conselhos sobre o regime alimentar. Silver Spring: Ellen G. White Estate, 2007a. ______. Conselhos sobre saúde. Silver Spring: Ellen G. White Estate, 2007b. ______. Temperança. Silver Spring: Ellen G. White Estate, 2005. 14. PESSOA: ALMA VIVENTE. CRÍTICA AOS DUALISMOS CARTESIANO E ESTRUTURAL Nome: Gerson Joni Fischer Titulação: Doutor Instituição: Faculdades Batista do Paraná (FABAPAR) Resumo: Há um Eu que controla a sua própria casa, o corpo? É possível, com base nos conhecimentos acerca do cérebro, assumir o ser humano como uma máquina biomolecular que funciona de modo determinado? Há consenso de que é por meio do cérebro que ocorrem os processos mentais; não na alma, como no dualismo clássico. Pode-se, entretanto, reduzir ao pequeno órgão cinzento a explicação pela emergência da vida consciente? Reduzir o entendimento do evento contribui para a defesa do valor do humano, para uma compreensão deste como responsável por suas decisões e atos? A pessoa é um mistério não decifrado. Critica-se o conceito de pessoa que imperou na modernidade, mas também o uso totalizante do princípio de causa e efeito. A presente abordagem recebe o humano como uno e dual. O cérebro e a mente surgem como fatos distintos, porém, indivisíveis. Pessoas não possuem, são almas viventes. O atual estágio dos debates sugere que o dualismo cartesiano e o monismo reducionista não se apresentam como alternativas. É a pessoa toda quem percebe, pensa, recorda, se emociona, se motiva, é atenta e produz impulsos. A vida diária revela que se é tudo isto que se apresenta de modo inseparável. O diálogo proposto põe-se a serviço das refinadas descobertas acerca da anatomia e da fisiologia do cérebro e do uso ético destas, bem como da afirmação do ser humano, que as transcende. Sob o ponto de vista da tradição bíblica, o testemunho de Deus jamais é dualista, fazendo-se perceptível sempre de modo encarnado. Há um Eu que controla a sua própria casa, o corpo? Existe uma alma, de substância específica, que rege o corpo, enquanto matéria extensa? A discussão não é nova. Trata-se de um tema corrente entre estudiosos do cérebro desde o século XVIII, mas que, de modo especialmente intenso, se encontra em disputa desde fins do século XX, como resultado de pesquisas recentes acerca da anatomia e fisiologia do pequeno órgão cinzento no interior da abóbada craniana. No âmbito da filosofia o assunto vem sendo debatido nos domínios da Filosofia do Espírito, na busca por respostas para o clássico problema da relação entre corpo e alma; hoje 216 nominado de “problema cérebro e mente” em função dos questionamentos levantados nas neurociências. (FISCHER; FACION 2011, p. 291-293). Verifica-se, nas publicações que a esse respeito se multiplicam, o esforço em superar uma das fronteiras mais sensíveis do conhecimento, ainda não satisfatoriamente sujeitas à lei da física de causa e efeito: o humano. O dualismo cartesiano de corpo e alma já não encontra aceitação entre os pensadores ativamente envolvidos neste objeto de pesquisa. Indaga-se, contudo, se é mesmo possível reduzir o conceito de pessoa a um entendimento que a situa como uma espécie de máquina biomolecular, comportando-se de modo determinado? Apesar de não mais se sustentar a existência de uma alma que, de modo distinguível, interage com o corpo como sua extensão, uma vez que jamais foi localizada, é objetivo do presente trabalho argumentar que esta não pode ser negada enquanto expressão da própria existência; um fenômeno que atribui sentido à mesma. Empresta-se um conceito defendido por inúmeros cientistas da natureza e filósofos da atualidade, a saber, de uma causalidade aberta (DROSSEL, 2013) que integra a dimensão teleológica na compreensão do ser humano (NAGEL, 2013), sua busca permanente de sentido. Entre o dualismo de substância e o cartesianismo oculto: problemas não solucionados e os riscos do reducionismo materialista Há acordo de que é por meio do cérebro que ocorrem os processos conscientes e inconscientes; não por meio de uma suposta alma que rege o corpo enquanto uma espécie de órgão soberano, a exemplo do conceito de mente de Descartes. (FISCHER, 2013, p. 64-76). John C. Eccles é considerado o último neurobiólogo de maior expressão a defender, ainda em fins do século passado, o dualismo clássico de corpo e alma. (FISCHER, 2013, 72-74; ECCLES, 1997). Desde os experimentos de Benjamim Libet na década de 80 do último século, generaliza-se a percepção de que o dualismo cartesiano não pode ser mantido enquanto uma hipótese racional. (LIBET, 2004, p. 268-289; FISCHER; FACION, 2011, p. 300). O modelo explicativo de funcionamento do cérebro em rede embasa a teoria de que uma complexa comunicação neural, herdada pelas gerações de seres humanos ao longo do processo evolutivo e em permanente desenvolvimento, é a responsável pelo fenômeno mental; a saber, a percepção, o pensamento, a 217 memória, a emoção, a motivação, a atenção, o impulso, entre outras. A ideia em uso é a de há um continuum entre cérebro e mente, integrado ao todo do corpo, inserido e também impulsionado pelo ambiente externo. (MORA, 2004). Opõe-se veementemente ao ideário de alma pelo fato de não poder sua existência ser provada pelo método que rege as ciências empíricas, ou seja, a causalidade. (FISCHER, 2013, p. 64-76; BECKERMANN, 2008, p. 9-53). Prossegue sem resposta, porém, a pergunta sobre como emerge o fenômeno da consciência da base cerebral de um ser humano. Até o presente não se demonstrou como impulsos neurais transformam-se em realidades mentais. O fato é que se pode constatar uma dose elevada de pretensão quando o assunto é conceituar o que é a pessoa dispondo-se apenas dos conhecimentos disponíveis acerca do funcionamento do cérebro. É difundida a mensagem que tudo será elucidado, inclusive a impossibilidade da liberdade de escolha e ação, bastando que se invistam ainda outros milhões em pesquisa. (TRETTER; GRÜNHUT, 2010, p. 35). O que se afere é que rejeitar o dualismo cartesiano de substâncias não garante que o pensamento no que diz respeito à compreensão do mistério que transforma um ser em pessoa se unifique. Entre os inúmeros debates e publicações a respeito da temática vem-se verificando a manutenção da estrutura de pensamento que caracteriza o dualismo cartesiano. Em outros termos, prossegue-se argumentando com base em um modo de raciocinar polarizado, a exemplo do binômio cérebro e mente; apresentando-se apenas como um substituto de seu antecessor, corpo e alma. (FISCHER, 2013, p. 76-85). A crítica que se estende a, entre outros, neurobiólogos e a filósofos naturalistas é que praticam um dualismo oculto (criptocartesianismo), ou seja, quando o esforço envolve a redução de toda a realidade humana à sua base neural. Destacam-se, entre os críticos, Maxwell Bennett, Peter Hacker (BENNETT et al., 2010), Thomas Nagel (2013) e Peter Janich (2009), fazendo-se uma menção literal desta contestação vinda do neurobiólogo Bennett: Eu tenho um corpo e estou no crânio de meu corpo. Esta é uma variável materialista do cartesianismo. Um motivo central, devido ao qual escrevemos nosso livro, é a firme convicção de que os neurocientistas modernos bem como muitos filósofos ainda permanecem na ampla e escura sombra de Descartes. Pois embora recusem a substância imaterial da alma cartesiana, transportam suas características sobre o cérebro humano, com o que deixam intacta por inteiro a equivocada concepção cartesiana da relação entre alma e corpo. Nossa recomendação dirige-se no sentido de que os neurocientistas e também os filósofos abandonem o domínio da sombra 218 cartesiana e procurem a luz do sol aristotélica, na qual se pode enxergar muito melhor. (BENNETT et al., 2010, p. 230). No que reside esta diferença entre o cartesianismo clássico de corpo e alma do ocultado, isto é, do discurso cérebro e mente? Por que a pretensa mudança não soluciona problema do dualismo referido à compreensão de pessoa? Ansgar Beckermann, pensador adepto da teoria naturalista materialista, argumenta que somente é possível prosseguir falando na existência de um eu escrito em letras minúsculas (2008). Isto porque em sua dedução filosófica inspirada nos atuais conhecimentos acerca do funcionamento do cérebro os “seres humanos [...] são integralmente entes biológicos, nada contribuindo na observação destes a algo que leve a supor a existência de uma alma criada à imagem e semelhança de Deus, imaterial, imortal e que sobrevive à morte do corpo.” (FISCHER, 2013, p. 64). De modo que, nesta linha de raciocínio, mencionar um Eu iniciado em letra maiúscula, corresponderia a continuar admitindo a existência de uma alma, enquanto substância distinta habitando um corpo. Não se nega que os seres humanos possuam aptidões mentais, que sejam capazes de constituir uma imagem do mundo e de si mesmos, entretanto, rejeita-se a ideia de haver almas, `eus´ ou `sis´, formando o núcleo destes. (BECKERMANN, 2008, p. 85-86). A tese que reduz a pessoa à sua realidade anatômica e fisiológica não nega a mente, a consciência em suas distintas manifestações, procurando um caminho que harmonize determinismo com liberdade de escolha e ação. Trata-se de uma orientação que se sujeita à lei de causa e efeito que orientam as buscas de compreensão do comportamento da matéria, também quando esta se refere ao organismo humano. (FISCHER, 2013, p. 64-76). Porém, esta é a crítica, mantem-se nesta linha de pensamento uma estrutura tipicamente dualista. Afinal, como emerge a consciência do substrato neural? (FISCHER; FACION, 2011, p. 293-298; FISCHER, 2013, p. 76-85). Reduzir o entendimento de quem é a pessoa não contribui para a defesa de seu valor, enquanto ser livre e responsável por suas decisões e atos. Não seria este dualismo camuflado de monismo uma expressão contemporânea de uma cultura desencantada com a moral cartesiana moderna do dever? A reflexão encontra-se inserida em um campo de saber relativamente novo e relacionado com a bioética, nominado de neuroética (FISCHER; FACION, 2011, p. 298-300; FISCHER, 2013, p. 85-87; GEYER, 2004, p. 9-19). 219 Pessoa: um mistério não decifrado e em permanente desvelar A pessoa se constitui em mistério não totalmente decifrável, ente em permanente desvelar. A aproximação à mesma, independente da ótica de análise, demanda experiência e conhecimento. Em termos figurativos, envolve uma viagem que é marcada por um início, porém, que nunca tem fim. Exige, ademais, que se integre um conceito de complementariedade, exemplificado com o que ocorre em relação à rotação da Lua e no que diz respeito à luminosidade solar que reflete sobre a sua superfície. O que em um dado tempo e espaço dela se pode enxergar, a partir da Terra, é somente a face que se encontra iluminada. Esta, contudo, em processo contínuo, volta à escuridão, na medida em que se revela o que ainda permanecia em trevas. A pessoa é este complemento de, por assim dizer, dupla face, enigma e conhecimento, em processo de saída e chegada permanente. (ESPINOSA, 2008, p. 17-21). Critica-se o conceito de pessoa que imperou na modernidade, isto é, o dualismo de substância cartesiano. Porém, também o dualismo que se esconde por trás do discurso naturalista e materialista de cérebro e mente, uma vez que mantem a estrutura do pensamento de Descartes; apenas supostamente encontra-se explicado pelo princípio da causalidade. Em meio à suas reflexões sobre a intencionalidade da mente, o filósofo John Searle reconhece que o tema em debate se encontra imerso em confusão e desacordo. (2006, p. 353-355). Afirma que, ao invés de se deixar ditar pelos métodos existentes, o tempo presente deveria ser de discussão. Mas apesar de sua disposição dialógica, afirma que “processos cerebrais causam a consciência em todas as suas formas.” (SEARLE, 2006, p. 354); axioma este que leva “em conta a compreensão de que o cérebro é a única coisa lá dentro, e que o cérebro causa consciência...” (SEARLE, 2006, p. 354). Em outros termos, o suporte estrutural prossegue sendo dualista. Não é esta a percepção e compreensão que se postula na presente comunicação. A recomendação de Maxwell Bennett é mais uma vez retomada, isto é, de que neurocientistas, bem como filósofos, se afastem da “sombra cartesiana” e busquem a “luz do sol aristotélica”, pois nesta se pode ver melhor. (BENNETT et al., 2010, p. 230). A perspectiva é aquela que assume a alma humana como a vida que se manifesta no corpo, ou melhor, a pessoa não tem alma, é alma vivente. No 220 “modelo aristotélico clássico, o corpo seria a matéria e a vida, a forma.” (FISCHER; FACION, 2011, p. 301). Eu “...sou tudo isto que se apresenta como realidade inseparável” (FISCHER, 2013, p. 79); não há porque não considerar o “Eu” iniciado em letra maiúscula. Assume-se a seguinte declaração paradoxal: “a mente é [...] nem uma substância diferente do cérebro, ainda com o cérebro idêntica.” (BENNETT et al., 2010, p. 19). Searle, a exemplo de muitos neurobiólogos e filósofos, não se conforma com esta adequação, entendendo que se trate de um modo tolo de discutir sobre a pessoa, pois a assume sem explicação. (BENNETT et al., 2010, p. 139-175). É isto, entretanto, que se afirma, ou seja, o ser humano é um mistério a “ser abraçado”; experiência e conhecimento, complementaridade nos limites do enigma e do desvelamento. A consideração é que o humano é uno e dual, ou melhor, unidual. O cérebro e a mente, ou melhor, o corpo e a alma, surgem como fatos inseparáveis. À luz das referências arroladas, argui-se que o estágio atual dos debates em torno do tema não oferece condições de sustentação ao monismo reducionista e, isto, enquanto alternativa à justa crítica feita ao dualismo cartesiano. Considerações finais As considerações finais sinalizam a demanda por reflexões que associem a presente comunicação temática ao horizonte do pensamento em torno da religião. Em seu propósito fundamental de religar relacionamentos destituídos, ela se propõe a promover a dignidade humana como um valor transcendente; seu discurso possui uma dimensão ética; neuroética, a considerar o assunto discutido. Enquanto tal, basilar é que somente uma visão integral de pessoa, nem dualista, nem reduzida, pode de fato contribuir para este intento de reconciliar tudo o que insistentemente se divide e fragmenta. Filósofos e pensadores contemporâneos dos mais diversos argumentam que não mais é possível prosseguir sustentando uma visão de mundo destituída de sentido. A natureza, de um modo geral, os animais e, especialmente, os seres humanos, exalam, por assim dizer, sentido, ou melhor, no caso dos últimos, buscamno permanentemente (NAGEL, 2013). Ainda que para vários destes inquiridores 221 deva-se encontrar na própria natureza as normas que regem tal dimensão teleológica, para as religiões tal fato revela uma consciência enquanto “prova da `imagem e semelhança a Deus´ no homem, colocando-o claramente acima dos animais.” (MÜLLER, 2013, p. 38). A pessoa é alma vivente corporificada, apropriando-se aqui do testemunho cristão acerca da encarnação do próprio Deus: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.” (BÍBLIA SAGRADA: nova versão internacional. João 1.14a). A intenção de por em diálogo ciência e fé não deveria ter por alvo uma espécie de encantamento do mundo. Não seria admissível considerar todos os objetos de pesquisa, especialmente quando se trata do esforço para compreender o enigma do humano, em uma perspectiva de causalidade aberta? Afinal, são pessoas que percebem, pensam, recordam, se emocionam, se motivam, decidem e agem, não seus cérebros. Conclui-se a presente reflexão com duas citações provocativas da física cristã Bárbara Drossel e que sintetizam a posição assumida na presente comunicação: Diante do fato de que as leis da natureza não fixam, por completo, o que transcorre no Universo, Deus pode agir no mundo sem que, com isso, viole continuamente as leis criadas por ele mesmo. Isto significa que o Universo é “aberto casualmente”. A propósito, isto é semelhante às ações de nós seres humanos no mundo. Quando pensamos de modo lógico ou quando tomamos decisões, em nossas células cerebrais se desenvolve muita atividade elétrica. A distribuição exata desta atividade no espaço e no tempo não é, de antemão, quantificável e envolve uma mecânica quântica aleatória. Não há razão alguma para aceitar que, quando pensamos, alguma lei da natureza esteja sendo destruída. No entanto, se nossa atividade cerebral fosse, por completo, determinada, não poderíamos agir de modo livre, pois seríamos, antes, inteiramente definidos por meio do estado de nosso cérebro e do mundo material, do qual provêm suas impressões. O filósofo Karl Popper argumenta em seu livro “O Universo aberto” a favor de uma abertura causal do mundo. Este é um pressuposto para que, nas atividades que nele se desenvolvem, possam haver seres inteligentes. (2013, p. 29-30). Devido ao fato de que a fé e a ciência lidam com perguntas distintas, elas têm suas respectivas áreas de responsabilidade. À responsabilidade da ciência pertence a coesão interna do mundo, a saber, a descrição dos processos na natureza por meio das leis de causa e efeito e a busca dos princípios gerais por trás dessas leis. Assim, as ciências naturais estabelecem a pergunta pelo `como´. O domínio da fé cristã, no entanto, é a revelação e o plano de salvação de Deus. Trata-se das perguntas pelo `quem´ e `por que´. Como salientamos anteriormente, a fé está preocupada com a explicação "pessoal" do mundo, sua origem e destino. Ela lida com os propósitos de Deus, seus critérios de valor e seu amor para com o ser humano. Se as responsabilidades da fé e da ciência forem confundidas chega-se a uma ultrapassagem de fronteiras, nas quais cientistas consideram poder dizer algo sobre o significado (ou falta de sentido) do Universo, e pessoas religiosas acreditam serem capazes, com base nas doutrinas bíblicas, deduzir algo sobre as condições da natureza. (2013, p. 33). 222 Referências BECKERMANN, A. Gehirn, Ich, Freiheit. Neurowissenschaften und Menschenbild. Paderborn: Mentis, 2008. BENNETT, M., et al. Neurowissenschaft und Philosophie. Gehirn, Geist und Sprache. Berlin: Suhrkamp, 2010. BÍBLIA SAGRADA: nova versão internacional. São Paulo: Vida, 2000. DROSSEL, B. Und Augustinus traute dem Verstand. Warum Naturwissenschaft und Glaube keine Gegensätze sind. Brunnen Verlag: Giessen, 2013. ECCLES, J. C. Wie das Selbst sein Gehirn steuert. 2. ed. München: Piper, 1997. ESPINOSA, N. A. Presentación. In: HERNÁNDEZ, C. J. La reflexión filosóficateológica y el ejercicio clínico como atividades complementarias em la práctica psiquiátrica: uma interpretación del “pensamento para la psiquiatria” del Profesor Doctor Juan Ramón Sepich-Lange: 1905-1978. Posadas: EDUNaM, 2008, p. 17-21. FISCHER, G. J. A pessoa: fenômeno causal ou espontâneo? Exame crítico das objeções de Ansgar Beckermann à existência da alma. Revista Pistis Praxis, v. 5, n. 1, p. 59-90, jan./jun., 2013. Disponível em: http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/pistis FISCHER, G. J.; FACION, J. R. Uma nova imagem de pessoa? Neurociências e filosofia: possibilidades e limites. Revista Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 51, n. 2, p. 288-303, 2011. GEYER, C. Vorwort. In: GEYER, C. Hirnforschung und Willensfreiheit. Zur Deutung der neuesten Experimente. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004, p. 9-19. JANICH, P. Kein neues Menschenbild. Zur Sprache der Hirnforschung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009. LIBET, B. Haben wir einen freien Willen? In: GEYER, C. (Ed.). Hirnforschung und Willensfreiheit. Zur Deutung der neuesten Experimente. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004, p. 268-289. MORA, F. Continuum: como funciona o cérebro? Porto Alegre: Artmed, 2004. MÜLLER, K. W. A consciência na cultura e na religião: vergonha e culpa como fenômeno empírico do superego/eu ideal: manual de elênctica. Curitiba: Esperança, 2013. NAGEL, T. Geist und Kosmus. Warum die materialistische neodarwinistische Konzeption der Natur so gut wie sicher falsch ist. Suhrkamp Verlag: Berlin, 2013. SEARLE, J. R. A redescoberta da mente. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 223 TRETTER, F.; GRÜNHUT, C. Ist das Gehirn der Geist? Grundfragen der Neurophilosophie. Göttingen – Bern – Wien – Paris – Oxford – Prag – Toronto – Cambridge, MA – Amsterdam – Kopenhagen – Stockholm: Hogrefe, 2010. 15. Diferenças Entre Regime Alimentar De Ellen White e o Regime Vegetariano Comum. Nome: Fábio Augusto Darius Titulação: Doutor Instituição: Universitário Adventista de São Paulo – UNASP Nome: Cleyton Ribeiro de Souza Titulação: Graduando Instituição: centro Universitário Adventista de São Paulo Resumo: O regime vegetariano comum por muitas vezes coincide com a reforma de saúde de Ellen G. White, isto é, profetiza da Igreja Adventista do Sétimo Dia. A partir desta divergência procura-se esclarecer os paradigmas a respeito da reforma de saúde whiteana e o senso comum de um regime vegetariano. Para tanto é necessário fazer uma contextualização histórica a respeito das visões de White que promovem o regime de saúde com determinado intuito, para então compreender a necessidade e causa da promoção de tal regime, por fim com as definições do regime de saúde White ano, faz-se distinção entre um e outro, isto é, seus objetivos, necessidades e justificativas, que se encontram permeadas de forma intrínseca no texto. Palavras-Chave: Regime alimentar; Vegetarianismo; Ellen White; Senso Comum. A Igreja Adventista do Sétimo Dia constitui um movimento dito; “profético”, que se separaria do movimento Millerita em seu desapontamento em 1844. A partir de então, o movimento Adventista vira se consolidar em meados de 1863, onde seria colocado em pauta a visão da reforma de Saúde. Tão visão viria a tornar-se um dos pilares da instituição médico-missionário da IASD.65 Esta obra que até nos dias atuais caracteriza uma das identidades da IASD. O artigo então encontra-se dividido em três partes. A primeira trabalha o movimento e a pregação da reforma de saúde proposta por Ellen G. White, segundo o contexto norte americano e enfatizando sua necessidade. A segunda parte descreve como a religião engendra-se com saúde na perspectiva Whiteana e Ellen White coloca que: quando ministros do evangelho e obreiros na atividade médicomissionária não estão unidos, lança-se sobre nossas igrejas o pior mal possível” (Medicina e Salvação, p. 241). Ou Ellen White declarou: “Desejo dizer-vos que em breve nenhuma obra será realizada pelo plano ministerial senão a obra médico-missionária” (Conselhos sobre Saúde, p. 533). 65 224 cultural.66 Por fim, procura-se de diferenciar o regime vegetariano do regime de saúde de Ellen White. EUA de 1860/1865 e a necessidade de uma reforma de saúde. Foi em 1861 - culminando com a Guerra Civil norte americana - que se fundou o primeiro grupo congregacional de Adventistas do Sétimo Dia, na cidade de Ostego no estado de Michigan. Segundo Ribeiro (2006, p.57): “Ellen White e os primeiros Adventistas sempre estiveram envolvidos nas campanhas sociais de seu tempo: antitabagismo, antialcoolismo e todo tipo de campanhas pró-saúde. ” Para ser mais especifico, os primeiros adventistas não traziam uma mensagem exclusiva e nova, mas acentuavam a pregação que já existia. No começo do século 19, a condições sociais, de higiene eram extremamente defasadas, assim, a população enfrentava grandes surtos de doenças, Segundo Zukowski (2010, p.97): Os procedimentos médicos baseavam-se em premissas erradas no que tange o diagnóstico e natureza das doenças. Os tratamentos mais comuns eram o sangramento e o uso de fortes estimulantes e drogas como ópio e protocloreto de mercúrio. Pobres hábitos alimentares contribuíam para o aparecimento de doenças. A base da dieta americana era carne, pão branco, massas, frituras e alimentos gordurosos. Fica claro que a desestruturação social e a debilidade na saúde eram fatores determinantes para o declínio da sociedade norte americana do século 19. Não somente as questões de saúde colocava em risco o futuro da nação, mas todos os movimentos que buscavam ressignificação de identidade. Darius (2014, p.180) acrescenta que: Apesar das grandes conquistas dos Estados Unidos em muitas distintas áreas, a começar pela vitória na guerra contra os ingleses em 1812 e a posterior aceitação destes da independência de sua antiga colônia, em termos higiênicos e sanitários, os Estados Unidos padeciam miseravelmente. Existiam reformadores, tais quais: Dr. Harriet Austin e Sylvester Graham, entretanto é com Ellen G. White e sua visão, que alavancaria tanto o método de Termo criado para nomenclaturar a perspectiva de regime saudável exclusivo de Ellen G. White. Segundo 66 225 tratamento de saúde como a espiritualidade. Em 1842 quando Ellen White recebeu sua primeira visão, agora não somente sobre a Reforma de Saúde; Zukowski (2010, p.98) relata: “O anjo lhe orientou que todos aqueles que não abandonassem o tabaco não receberiam o selamento, pois o uso de tabaco é idolatria. ” Embora o intuito mais tarde fosse a total exclusão de alimentos condicionados, alimentos estimulantes entre outros. A Segunda visão em 12 de fevereiro de 1854 enfatizava questões como; adultério, profanação, negligência paterna, casamentos não recomendados e necessidade de controle no apetite. Por fim a terceira visão de saúde, que foi recebida em 6 de junho de 1863 foi a mais expressiva, no que tange a saúde e espiritualidade. Segundo Zukowski (2010, p.99): As diferentes orientações trazidas pela visão podem ser sumarizadas em dez tópicos. O primeiro apresenta o cuidado com a saúde como um dever religioso. Deus requer que seu povo O glorifique através de corpos saudáveis. Segundo, doenças são apresentadas como resultado das violações das leis de saúde. Terceiro, a intemperança pode ser apresentada na vida do cristão em diferentes maneiras, tais como: (1) uso de “bebidas estimulantes”; (2) uso de tabaco “em qualquer forma”; (3) uso de alimentos altamente condimentados; (4) a “intemperança no trabalho”; e (5) “a indulgência é à base das paixões” (...) O quarto tópico apresenta a dieta vegetariana como ideal para o ser humano (...) O quinto ponto está relacionado com a importância dos Hábitos de saúde (...) O sexto tópico está relacionado com a saúde mental. Sétimo, os efetivos remédios de Deus para os seres humanos são: (1) ar, (2) água, (3) luz solar, (4) exercício, (5) descanso, e (6) abstinência. (...) O Próximo tópico enfatiza a Higiene Pessoal (...) O Nono tópico dá orientação sobre a construção da casa (...). Finalmente ela enfatiza que é um dever cristão partilhar com outros os princípios da reforma de saúde. Foi com esse intuito que veio à tona um dos médicos mais famosos neste ínterim Adventista do Sétimo Dia, isto é, Dr. John Harvey Kellogg67, que foi inicialmente patrocinado pelo Casal White, iniciando assim atividades no Instituto Ocidental para Reforma de Saúde. Adventista, médico, cirurgião e higienista nascido em Tyrone, Michigan, EUA. Junto com o irmão William Keith Kellogg, descobriu o valor dos cereais saudáveis para o desjejum. Formou-se no Bellevue Hospital Medical College em New York City (1875). Tornou-se superintendente do Adventist Battle Creek Sanitarium (1876), antigo Instituto Ocidental de Reforma de Saúde, de Battle Creek (1866), idealizado por Ellen White. Neste sanatório ocupou a posição de médico-chefe por muitos anos, onde propiciava a seus pacientes um regime alimentar adequado e instruía sobre maneiras de manter um estilo de vida saudável. Texto Retirado de: <http://centrowhite.org.br/downloads/imagens/dr-john-harvey-kellogg/dr-john-harvey-kellogg-andfamily/> Acesso em: 16. Maio de 2016 67 226 A Religião e a Alimentação, sua Relação como Processo Cultural. Para os antigos a alimentação era extremamente pontual na sua identidade cultura, assim como hoje, como dita Bessis (1995, p.10): Dize-me o que comes e te direi qual deus adoras, sob qual latitude vives, de qual cultura nascestes e em qual grupo social te incluis. A leitura da cozinha é uma fabulosa viagem na consciência que as sociedades têm delas mesmas, na visão que elas têm de sua identidade. A alimentação sempre compôs uma parte significativa da produção cultural religiosa. A construção da identidade baseada na alimentação, constitui as particularidades de cada sociedade ao longo da história, no entanto Maciel (2005) comenta a complexidade de delimitar um modelo de alimentação, a outras cultura e sociedades, pois a construção cultural, associa-se as necessidades de determinada sociedade, isto é, fatores como geografia, clima e formação genética, torna a “imposição” de um modelo de alimentação algo preocupante. Seria intolerância então a pregação de saúde whiteana? Segundo Moura (2004, p.3) “Somos diversos. Essa verdade fundamental é sempre ameaçada por ações individuais e coletivas de intolerância”. Essa uniformidade seria uma forma de imposição? Se um adepto servir de exemplo, José Bates, um dos fundadores do movimento adventista, vive sua reforma de saúde sem imposição. Zukowski (2010, p.97) o descreve como: Entre os pioneiros adventistas do Sétimo Dia, José Bates foi o primeiro a adotar a reforma de saúde. Mesmo antes de ter aceitado o cristianismo ele já havia abandonado o uso de álcool e fumo. Após sua conversão, ele organizou uma sociedade de temperança em sua igreja local. Ao aposentarse, ele fez mudanças em seus hábitos nutricionais e abandonou o uso do chá e café, sendo ele o mais saudável dentro todos os líderes do movimento Adventista do Sétimo Dia. Entretanto, dentro do movimento adventista ele nunca tentou impor seu estilo de vida aos outros, advogando a reforma de saúde apenas depois das visões de Ellen G. White. Moura (2004, p.5) comenta que: “Há o reconhecimento de que as questões religiosas permeiam a vida cotidiana como religiosidade popular, sob formas de espiritualidade que fornecem elementos para construção de identidades”. Portanto, para se pertencer a determinados grupos deve-se submeter à sua produção cultural. O regime alimentar proposto por Ellen White, seria um processo de separação e santificação. Zukowski (2010, p.106) comenta que: 227 A reforma de saúde foi conectada pelos adventistas à terceira mensagem angélica através do decálogo, da visão holística da natureza humana e o direito de propriedade de Deus sobre suas criaturas. Deus se comunica com os seres humanos através dos nervos do cérebro e a transgressão das leis de saúde cria uma barreira nesta comunicação. A forma de alimentação distingue os Adventista do Sétimo Dia, do restante dos crentes em outras denominações, bem como de outros regimes alimentares. Reforma de Saúde De Ellen White e o Vegetarianismo como Forma de Vida Embora o Dr. Kellogg possuísse afeição pela mensagem no início mostrou-se inclinado a subserviência a proposta, entretanto a falha em um ponto fundamental o fazia desviar da proposta da reforma Whiteana. Zukowski (2010, p.99) comenta que: Para ela as instruções sobre a reforma de saúde deveriam ser dadas em conexão com a terceira mensagem angélica. Todavia, o Dr. Kellogg enfatizava apenas a parte da importância da mudança dos hábitos de saúde, mas quase sempre negligenciava conectá-los com a terceira mensagem angélica. A grande dificuldade era conciliar a reforma de saúde com a proposta de santificação interpretada por Ellen White, a respeito das “três mensagens angélicas”68. Segundo Zukowski (2010, p.102) Uma parte dessa mensagem descrita em Apocalipse 14:12 chama os adoradores à obediência da lei de Deus. Essa conexão feita por Ellen G. White entre a transgressão Das leis do corpo humano e o decálogo fez a mensagem de saúde tornar-se verdade presente. Fato é que grande parte das características trabalhadas por White, pouco tinham haver com longevidade, mas, compromisso com a pregação do evangelho. Darius (2010, p.177) comenta que: “não parece ser exagero afirmar que a Igreja Adventista do Sétimo Dia nasceu com a proposta de reforma da saúde, sem, no A realidade da proximidade do advento dominou sua vida e moldou sua carreira de escritora. Assim, esse tema está a cada um dos outros seis que estamos examinando. Portanto, a Segunda Vinda é um ponto focal da verdade na Bíblia, é o clímax da salvação em Cristo, sinaliza o começo do fim do grande conflito entre o bem e o mal, é uma expressão suprema do amor de Deus, é o objetivo das três mensagens angélicas, e proporciona um incentivo para se viver a vida cristã. A Segunda Vinda não deixou de influenciar nenhuma parte do pensamento de Ellen White. Ela ensinou que o Segundo Advento deve estar no centro dos ensinamentos e atividades dos adventistas do sétimo dia. Texto retirado de: < http://centrowhite.org.br/perguntas/perguntas-sobre-ellen-gwhite/principais-temas-dos-escritos-de-ellen-white/ > Acesso em: 16 maio de 2016. 68 228 entanto, deixar de lado seu grande tema do “grande conflito cósmico entre Cristo e Satanás”. Embora existissem os que pregavam uma reforma de saúde, a alimentação para Ellen White possui um princípio quase que exclusivo de proporcionar ao corpo estabilidade e equilíbrio, para adorar ao criador. Zukowski (2010, p.103) comenta que: “A íntima conexão entre a reforma de saúde e a segunda vinda de Cristo é uma das mais importantes contribuições da mensagem adventista no campo da saúde”. Importante lembrar que esta ação premeditada do Dr. Kellogg, tinha como impulso a ênfase em médicos capacitados, excluindo assim a mensagem evangelística. Zukowski (2010, p.100) comenta que: “ele tinha uma personalidade muito forte [...] Sua maneira independente de trabalhar, juntamente com os problemas oriundos de sua visão do trabalho médico e trabalho evangelístico, resultou em uma crise na igreja”. Este diálogo entre Dr. Kellogg e a obra Ministerial, contrariava diretamente a ideia de preparação do corpo para a adoração do criador, isto é, referente as mensagens angélicas de Apocalipse 14; White (1942, p.113) pontua que: O corpo deve ser mantido em uma condição saudável, a fim de que a alma possa estar saudável. O estado do corpo atinge o estado da alma. Ele, que teria a força física e espiritual deve educar seu apetite nas linhas certas. Ele deve ter cuidado para não sobrecarregar a alma por sobrecarregar seus poderes físicos ou espirituais. Esta separação entre Corpo e espirito não deve existir, pois como um único corpo, estão fadados um a influenciar o outro, ou seja, se o corpo está debilitado, o espirito, por conseguinte terá dificuldades em desenvolver-se, e assim de forma sucessiva o espirito para o corpo. Segundo DGS (2015, p.10): Uma das principais razões apontadas para a opção por uma dieta vegetariana tem sido as questões ambientais. As escolhas alimentares provocam um grande impacto na natureza. Por exemplo, na Europa, o consumo alimentar representa 20% a 30% do impacto ambiental de uma família e pequenas mudanças, como a eliminação do consumo de carne, podem ter grande influência nesta redução, da ordem dos 25%. O Programa Nacional da Alimentação Saudável criado em 1899, enfatiza uma das principais necessidades, isto é, o impacto ambiental. No entanto o regime vegetariano comum, preocupa-se com o impacto ambiental, no tanger da morte de animais, emissão de metano pela grande quantidade de rebanhos e secamente de 229 reservas hídricas. Ao contrário da finalidade que o DGS propõe para o regime vegetariano, Zukowski (2010, p.103) explicita: A íntima conexão entre a reforma de saúde e a segunda vinda de Cristo é uma das mais importantes contribuições da mensagem adventista no campo da saúde. Esta conexão traz luz a dois pontos importantes do evangelho eterno para os últimos dias, que é a terceira mensagem angélica: santificação e missão. . Segundo o DGS (2015, p.15) “Os movimentos cristãos mais radicais dão um grande ímpeto ao movimento vegetariano neste período, [...] da América. Entre eles, a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Um dos seus membros mais famosos é John Harvey Kellogg”. Fica claro que a obra holística whiteana pretende a unificação de todos campos do ser humano, espiritual, mental e físico. Conclusão Embora existam muitas funções para o regime de saúde whiteano, e por vezes coincida com o vegetarianismo comum, seu objetivo final é o trabalho holístico no ser humano, ou seja, mental, espiritual e físico. Embora os processos culturais, mostrem-se desfavoráveis a pregação da reforma de saúde, a IASD, não trabalha com imposição, mas, com testemunho e promoção, de maneira que o ato de aderir a causa, torna-se algo particular do indivíduo. Por fim, é possível observar que a pregação da reforma de saúde não é algo temporal, para Ellen White, mas continuo sendo passível de todo aquele que adota a fé Adventista do Sétimo Dia como regra de vida. REFERÊNCIAS BESSIS, S. Mille et une bouches: cuisines et identités culturelles. Autrement, 154, 1995. (Mutations/Mangeurs). In: CANESQUI, A.M.; GARCIA, R.W.D. (org.) Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, p.50, 2005. DARIUS, Fabio A. De corpo, alma e espirito: apontamentos históricos e teológicos do tema santificação da obra holística de Ellen White. 2014. 244p. Tese (Doutorado em teologia) – EST/PPG, São Leopoldo, 2014. 230 DIREÇAÕ GERAL DE SAÚDE. PNPAS: 978-972-675-228-8. Linhas de Orientação para uma Alimentação Vegetariana. Lisboa, 2015. MACIEL, Maria E. Identidade Cultural e Alimentação. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. MOURA, Eliane S. Religião Valores Culturais: conceitos teóricos e a educação para a cidadania. Revista de Estudos da Religião. São Paulo, Nº 2 / 2004 / pp. 1-14 ISSN 1677-1222, jul/ dez. 2004. RIBEIRO, Mirtes A. D. Ellen White a saúde na cosmovisão adventista. 2006. 143. Dissertação (Mestre em Ciência da Religião – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2006. ZULKOWSKI, Jean C. Reforma de Saúde: História e relevância Teológica no Movimento Adventista. Parousia. v.1. São Paulo, p. 96 -111, jul/ dez. 2010 WHITE, Arthur. The Ellen G. White Biography. Hagerstown: Review and Heral Publishing Association, 1982. volume 2. WHITE, Ellen G. The Ministry of Healing. Mountain View: Pacific Press Publishing Association, 1942. ___________________________________________________________________ GT 09 ESPIRITISMO E SAÚDE: MEDIAÇÃO ENTRE CURA E MEDIUNIDADE Coordenadores: Prof. Dr. Welthon Rodrigues Cunha/FAFICH Profa. Mestranda Elza Maria do Socorro da Silva/FAFICH Prof. Dr. Luiz Antônio Signates/PUC Goiás/UFG Profa. Dra. Ângela Teixeira de Moraes/PUC Goiás Ementa: .O GT Espiritismo e Saúde: mediação entre cura e mediunidade acolherá comunicações que estejam relacionadas a relação entre religiões espíritas, como o kardecismo, umbanda e candomblé, e que utilizem a mediunidade como instrumento de mediação com o sagrado no processo de cura de seus participantes. Também podem ser acolhidos trabalhos que analisem a forma como estas religiões interpretam e constroem explicações sobre o processo de cura e doença. Nestes sentidos as comunicações podem abordar diferentes características desta relação, específicos ou não a alguma forma de religiosidade ou grupo religioso, e contemplando diferentes recortes e análises científicas como: parapsicológicas, psicobiológicas, médicas, antropológicas, sociológicas, teológicas, éticas e metafísicas. 231 Comunicações: 1.O DISCURSO DA SAÚDE NO ESPIRITISMO: DO MAGNETISMO À AUTOCURA Nome: Ângela Teixeira de Moraes Titulação: Doutora Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás/ Universidade Federal de Goiás Resumo: Este trabalho objetiva mostrar o percurso histórico do discurso espírita sobre saúde e suas práticas decorrentes, considerando a noção de episteme em Foucault. Parte da análise da literatura básica de Allan Kardec, cujas ideias se articulavam com o magnetismo em voga no século XIX, passando pelas receitas homeopáticas, cirurgias espirituais, tratamentos menos intervencionistas e, atualmente, a autocura, com orientações em livros de autoajuda. O Espiritismo parte do pressuposto de que há uma estrita ligação ente o corpo material e o corpo espiritual, e que a doença é fruto do desequilíbrio mental ou se instala a partir das consequências cármicas, em razão de comportamentos negativos adotados em outras vidas. A terapia espírita seria uma aliada ao doente na busca do equilíbrio e, consequentemente, da cura. Os resultados mostram que o Espiritismo historicamente se vinculou ao serviço socorrista como forma de empatia social, o que colaborou na construção de sua legitimidade. As demonstrações públicas de cura, especialmente aquelas do tipo protagonizadas pelo médium José Arigó, na década de 1960, também objetivam provar a sobrevivência dos espíritos após a morte e a realidade do fenômeno mediúnico. Este estudo ainda mostra que essas práticas espíritas incomodaram boa parte dos representantes da medicina convencional, cujo discurso disciplinador buscou desautorizar os terapeutas espíritas. Contraditoriamente, o discurso disciplinador também se instaurou dentro do movimento espírita, culminando na criação da Associação Médico-Espírita, que vem se posicionando contra as cirurgias “com corte”, e reforçando a cura a partir do esforço do próprio indivíduo. As práticas de cura sempre fizeram parte das sociedades humanas. Muitas delas estiveram estreita e exclusivamente ligadas ao domínio religioso, até que a medicina firmou-se como ciência, dividindo as responsabilidades no tratamento das doenças com esse campo. Curandeiros, pajés, sacerdotes e profetas disputam, desde a Grécia Antiga, cerca de 2.500 anos, quando ocorreram os primeiros experimentos de Hipócrates, o espaço social onde ocorrem as ofertas de cura. A busca pela legitimação de ambos os campos remete-se à própria origem da palavra “cura”. Curar, em latim, significa literalmente “cuidar”. Segundo Paiva (2007), cuidar da doença, ou do doente, significa ter cuidado para a saúde não 232 se deteriorar ou o doente não piorar. Como o resultado do cuidado é, muitas vezes, o retrocesso da doença e a melhora do organismo, curar passou, por metonímia, a significar sarar. Nesse sentido, a medicina e a religião podem cuidar e conseguem resultados semelhantes, apesar da adoção de ritos, procedimentos e pressupostos diferentes Mas a tensão entre o campo científico e o campo religioso é persistente. Na Idade Média, a Igreja Católica impedia a dissecação de corpos visando ao estudo da anatomia por considerá-la um sacrilégio. Com a modernidade, médiuns e curandeiros, em geral, foram desautorizados pelos médicos com formação acadêmica, invertendo o pêndulo das crenças e da autoridade no exercício da cura. Os discursos decorrentes dessa tensão são perceptíveis ainda hoje, apesar de haver certo “acordo de cavalheiros” entre essas duas formas de produção de saberes sobre a saúde. Os protagonistas das terapias populares religiosas não são mais perseguidos pela polícia (desde que não se enquadrem na lei que tipifica o exercício ilegal da medicina), e até a medicina convencional já se interessa pelos estudos científicos da fé como propulsora da cura. Com relação ao espiritismo, o processo não é diferente. Desde o início da sua codificação por Allan Kardec, o discurso do bem-estar e da saúde esteve presente na literatura e nas práticas. Muitos dos seus ensinos têm caráter profilático, e os espíritas, especialmente os médiuns, têm o dever de ajudar os doentes que buscam os centros espíritas. Essa inscrição no campo terapêutico é vista tanto positiva quanto negativamente pela opinião pública, não muito diferente ao que acontece com outros religiosos que se dedicam ao saneamento das doenças. É perceptível na história do desenvolvimento do espiritismo a prática religiosa com finalidade curadora. Essa prática esteve, muitas vezes, associada a uma outra já existente que lhe serviu de “fiança”. Em meados do século 19, na Europa, o magnetismo de Mesmer favoreceu a tese espírita de que os fluidos podem curar, dando origem ao que hoje conhecemos por “passe”. No Brasil, no final do século 19, a homeopatia esteve presente nas receitas emitidas por vários médiuns de cura que atuavam em centros espíritas. Cirurgias com corte e sem anestesia espantaram muitos céticos e popularizaram o espiritismo, tendo como principal 233 expoente o médium José Arigó na década de 60. E mais recentemente, o discurso da cura espírita acompanha uma tendência mundial em torno da autoajuda. Todas essas fases em que uma ou outra prática terapêutica mostrouse mais evidente foram possibilitadas por condições sócio-históricas que afetaram certo modo de entendimento por parte do espiritismo sobre o que é saúde e de que forma se pode alcançá-la. Neste trabalho, analisaremos cada uma delas, buscando identificar os discursos emergentes e as particularidades sociais que possibilitaram determinadas práticas. Antes, porém, faremos uma breve discussão do pressuposto teórico em que se filia este estudo. A priori histórico e arquivo O vetor histórico sempre esteve presente nos estudos sobre religião e há, basicamente, duas formas de se abordar a história. A primeira, a História Tradicional, é milenar, e concentra-se no relato dos grandes feitos, dos grandes homens, por meio da linearidade cronológica. Notadamente, privilegiam-se os acontecimentos transformadores da macroestrutura das sociedades, especialmente a política, a economia e a cultura. A segunda, denominada de Nova História, surgida na École dos Annales no século XX, na França, interessa-se por toda atividade humana, inclusive os fatos relacionados a convenções sociais, estereótipos, esquemas de pensamento e saberes diversos. A História Tradicional foi abraçada pelos positivistas. Ela busca incessantemente os fatos históricos e sua comprovação empírica. A busca desses fatos deveria ser feita por pesquisadores neutros, evitando-se qualquer juízo de valor na análise, pois isso alteraria o sentido e a verdade própria dos fatos, modificando, pois, a própria História. A Nova História desconstrói o mito da neutralidade do pesquisador, e não debita toda a glória pelas transformações sociais aos estadistas, inventores e artistas consagrados. Não privilegiando a política e os sistemas de produção massivos, seriais e irreversíveis, o olhar do historiador volta-se para as estruturas particulares (as microestruturas) e para o cotidiano. Pessoas comuns, alijadas dos grandes documentos, também fazem parte da história. É dentro dessa última forma em que se inserem as reflexões de Michel 234 Foucault sobre a história das ideias. O autor volta-se para a investigação dos acontecimentos discursivos que propiciam o surgimento de enunciados e também das práticas não-discursivas. Seus estudos concentram-se na identificação das condições históricas que favorecem a emergência de discursos institucionalizados que se separam, se aderem e se modificam em relação a outros já existentes. A priori histórico é a expressão utilizada por Foucault para determinar o objeto da sua descrição arqueológica no campo da história. Ela não designa a condição de validade dos juízos, nem busca estabelecer o que torna legítimo um enunciado, mas as condições que afetam vários discursos ao mesmo tempo. Os enunciados e os sentidos que dele emanam se inspiram em um mesmo arquivo de época. O termo arquivo não diz respeito a um conjunto de documentos que uma sociedade acumula. “O arquivo é, antes de tudo, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o surgimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2007, p. 147). Reafirmado em outra obra, o autor esclarece: Entendo por arquivo o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados. Esse conjunto é considerado não apenas como um conjunto de acontecimentos que tiveram lugar uma vez por todas e ficaram em suspenso, no limbo ou no purgatório da história, mas também como um conjunto que continua funcionando, se transforma através da história, da possibilidade de aparecer de outros discursos. (FOUCAULT, 1999, p.772) Não se pode descrever integralmente o arquivo de uma sociedade ou de uma civilização, por isso ele concerne a algo que é do sujeito. O sujeito se insere em um arquivo, e parte dele se transforma em memória discursiva que se manifesta nos ditos, mesmo com a ilusão da pura autoria. Assim, o pressuposto teórico deste estudo é que os sujeitos responsáveis pela formação discursiva espírita se apropriaram de um arquivo discursivo sobre saúde, articulando e renegociando seus significados. O espiritismo estabelece uma lógica relacional e diferencial com relação a outros campos de saberes, fixando alguns sentidos, na direção de uma “fiança” discursiva, mas ao mesmo tempo constrói uma singularidade de dizeres para estabelecer sua identidade. A influência de Mesmer 235 O alemão Franz Mesmer, nascido em 1734 e falecido em 1815, foi fundador da teoria do magnetismo animal chamada Mesmerismo. Estudou teologia e medicina, tendo uma tese de doutorado intirulada Dissertatio physico-medica de planetarum influxu, onde, pela primeira vez, usou o conceito de fluido universal. Allan Kardec, codificador do espiritismo fará uso dessa mesma expressão em 1857, adaptando-a para fluido cósmico universal, o FCU. A teoria de Mesmer foi, por diversas vezes, debatida pelas academias médicas europeias, porque ela vislumbrava a possibilidade de cura por meio da transmissão de fluidos vindos de uma outra pessoa. Mesmer dizia ainda que a terapia magnética dependia de outro sentido: O magnetismo animal deve ser considerado nas minhas mãos como um sexto sentido artificial. Os sentidos não se definem nem se descrevem: eles sentem. Seria em vão ensinar um cego de nascença a teoria das cores. É necessário fazê-lo ver, ou seja, sentir [...] Ele deve em primeiro lugar se transmitir pelo sentimento. O sentimento e apenas ele pode tornar a teoria inteligível. Por exemplo, um dos meus doentes, acostumado a provar os efeitos que produzo, tem, para me compreender, uma disposição a mais do que o restante dos homens. (MESMER apud, INEY, 2013). Esse saber enunciado por Mesmer é apropriado por Allan Kardec, como vemos a seguir: O espiritismo liga-se ao magnetismo por laços íntimos, considerando-se que essas duas ciências são solidárias entre si. Os espíritos sempre preconizaram o magnetismo, quer como meio de cura, quer como causa primeira de uma porção de coisas; defendem a sua causa e vêm prestar-lhe apoio contra os seus inimigos. Os fenômenos espíritas têm aberto os olhos de muitas pessoas, que, ao mesmo tempo aderem ao magnetismo. Tudo prova, no rápido desenvolvimento do Espiritismo, que logo ele terá direito de cidadania. Enquanto espera, aplaude com todas as suas forças a posição que acaba de conquistar o Magnetismo, como um sinal incontestável do progresso das idéias (KARDEC, 2004, p. 421). O Magnetismo preparou o caminho do Espiritismo, e o rápido progresso desta última doutrina se deve, incontestavelmente, à vulgarização das idéias sobre a primeira. Dos fenômenos magnéticos, do sonambulismo e do êxtase às manifestações espíritas não há mais que um passo; tal é a sua conexão que, por assim dizer, torna-se impossível falar de um sem falar do outro. Se tivéssemos que ficar fora da ciência magnética, nosso quadro seria incompleto e poderíamos ser comparados a um professor de física que se abstivesse de falar da luz. Todavia, como entre nós o magnetismo já possui órgãos especiais justamente acreditados, seria supérfluo insistirmos sobre um assunto que é tratado com tanta superioridade de talento e de experiência; a ele, pois, não nos referiremos senão acessoriamente, mas de maneira suficiente para mostrar as relações íntimas entre essas duas ciências que, a bem da verdade, não passam de uma (KARDEC, 2004, p. 149). O que tem o Espiritismo a reelaborar sobre o magnetismo é que existe a possibilidade de intervenção dos espíritos no processo da cura. Ou seja, além da 236 energia humana animal, existe uma energia a ela associada que provém de uma outra dimensão. Vejamos a definição do passe espírita: Passe é uma transmissão conjunta, ou mista, de fluidos magnéticos – provenientes do encarnado – e de fluidos espirituais – oriundos dos benfeitores espirituais, não devendo ser considerada uma simples transmissão de energia animal (magnetização) (MOURA, 2013, p.1). Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o espiritismo se apóia ao magnetismo para usufruir de certa legitimidade científica, ele atribui novos sentidos, a fim de autenticar uma identidade própria, e colocar a cura dentro de uma nova formação discursiva. A homeopatia A homeopatia também é anterior ao espiritismo. Seus princípios fundamentais foram estabelecidos pelo médico alemão Christian Friedrich Samuel Hahnemann no final do século 18. Sua obra fundamental, Órganon da Arte de Curar, foi publicada em 1810, quarenta e sete anos antes da publicação de O Livro dos Espíritos de Allan Kardec. A proximidade entre esses dois campos de saber deve-se ao fato de a Homeopatia afirmar que a saúde subordina-se à harmonia física, emocional e mental do indivíduo. A cura pela homeopatia, no entendimento espírita, se assemelha à efetuada pelo passe: o magnetismo é liberado da substância dinamizada, e ele é capaz de atingir o perispírito (corpo espiritual que envolve tanto os espíritos encarnados quanto os desencarnados). Muitos médiuns que ”incorporam” médicos desencarnados receitam fórmulas homeopáticas a doentes que procuram os centros espíritas. Apesar de não ter conhecido Hahnemann pessoalmente, há referência a ele nos livros de Kardec. Em Obras Póstumas há duas consultas que Kardec lhe fez sobre questões doutrinárias. Em O Evangelho segundo o Espiritismo há uma mensagem de sua autoria, abordando o problema do temperamento, segundo ele subordinado muito mais às tendências do Espírito do que às características do corpo: O corpo não dá cólera àquele que não na tem, do mesmo modo que não dá os outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito. A não ser assim, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem deformado não pode tornar-se direito, porque o Espírito nisso não pode atuar; mas pode modificar o que é do Espírito, quando o quer com vontade firme. Não vos mostra a experiência, a vós espíritas, até onde é 237 capaz de ir o poder da vontade, pelas transformações verdadeiramente miraculosas que se operam sob as vossas vistas? Compenetrai-vos, pois, de que o homem não se conserva vicioso, senão porque quer permanecer vicioso; de que aquele que queira corrigir-se sempre o pode. De outro modo, não existiria para o homem a lei do progresso (HAHNEMANN, 2013, p. 140). Novamente percebemos um caso de fiança discursiva. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004), a autoridade citada funciona como apoio ao discurso proferido por um locutor para legitimar um dizer ou uma maneira de fazer. Fazer alusão a um discurso prestigioso ou especializado é uma estratégia argumentativa que confere autoridade a um enunciado e, nesse caso, o fundador da homeopatia surge como fiador do discurso espírita. A homeopatia foi muito importante para a afirmação do espiritismo no Brasil. Segundo Arribas (2010), um dos maiores expoentes da doutrina espírita no País, Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, descontente com a medicina alopata, começou ele mesmo a fazer uso da homeopatia. Segundo a autora, foram os próprios médicos espíritas os responsáveis pela introdução no Brasil da medicina homeopática no século 19. Arribas diz ainda que o espiritismo brasileiro tem características formativas do tipo “religioso-terapêutico”, seja para a cura da alma seja para a cura do corpo. Essas características, acrescidas da tendência caritativa, legitimaram as práticas espíritas que enfrentavam, no seu início, a perseguição de religiosos e autoridades públicas. Médiuns e médicos espíritas atendiam gratuitamente nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, construindo uma imagem favorável da doutrina espírita no País desde então. As cirurgias espirituais As curas propiciadas pelo passe e pela homeopatia não convenceram muitos sobre a seriedade dos princípios espíritas, até porque não foram feitos muitos experimentos científicos capazes de comprovar a cura mediante a ação de espíritos desencarnados e energias magnéticas. Essa possibilidade ficou limitada, na maioria dos casos, à crença na cura, colocando o discurso da fé como promotora de “milagres”. Contudo, na primeira metade do século 20, um médium mineiro de Congonhas, José Arigó, impressionou religiosos e ateus com suas curas atribuídas 238 ao espírito Dr. Fritz. A Igreja Católica ainda exercia inegáveis poderes em todos os segmentos sociais no Brasil, e foi desafiada por um “caboclo matuto”, e não um médico de prestígio como foi Bezerra de Menezes, ao tentar provar a existência dos espíritos e da sua capacidade de interferência no mundo dos vivos por meio da mediunidade. Segundo a biógrafa de Arigó, Leida Lúcia de Oliveira (2014), o médium viveu no seguinte contexto histórico: Assumir a mediunidade e o Espiritismo era abrir um espaço para vários tipos de retaliações sociais. Aconteciam humilhações, agressões, evitamentos e impedimentos dos mais diversos: não transitar no mesmo passeio que alguém que se assumisse espírita, não poder comprar em lojas cujos donos eram espíritas, não permitir a entrada de espíritas e dos seus familiares em escolas, eventos e festividades diversas. Mais do que um desafio, era um testemunho de intenso sacrifício pessoal (OLIVEIRA, 2014, p. 20). Arigó foi condenado duas vezes e preso: uma por curandeirismo, outra por exercício ilegal da medicina. O relato das curas vai desde a recuperação instantânea da saúde após uma ordem verbal ou um toque do médium, até o restabelecimento orgânico obtido medicações prescritas. Mas foram as cirurgias com instrumentos não esterilizados e sem anestesia que alavancou comentários e coberturas na imprensa. Vejamos o seguinte depoimento: Eu tinha 7 ou 8 anos de idade quando assisti, pela primeira vez, uma cirurgia realizada pelo Dr. Fritz. Essa cena está grava em minha memória com todos os detalhes. Nós tínhamos um vizinho que era portador de um câncer no estômago. (...) Arigó mandou que ele se deitasse num banco que havia na cozinha. Sobre a mesa tinha uma faca de pão (de serra), ainda suja de migalhas. Arigó a pegou e com gestos rápidos, na altura do estômago, abriu o abdômen do doente. (...) Terminada a operação, o homem levantou-se do banco e foi embora andando normalmente, como se nada tivesse acontecido (OLIVEIRA, 2014, p.37). O médium não teorizou sobre a cura, como o fizeram os pioneiros do magnetismo e da homeopatia. Ele simplesmente servia de instrumento de cura, enquanto o Dr. Fritz despertava os doentes para que tomassem “novos rumos” na vida (OLIVEIRA, 2014). Dessa forma, o sentido da cura que se projeta nesse fenômeno tem o efeito de atingir os céticos e enfrentar os perseguidores do espiritismo 239 A autora afirma que o espiritismo no Brasil ainda era pouco divulgado no limiar do século 20. Com o surgimento de dois grandes médiuns brasileiros, Francisco Cândido Xavier e José Arigó “houve um despertar maior e um grande interesse de pesquisa sobre a mediunidade” (p. 38). A AME e a autocura Recentemente, o discurso sobre a saúde no espiritismo adotou um viés mais científico e psicológico, especialmente com a criação da Associação Médico-Espírita do Brasil (AME). Ela foi fundada em São Paulo no ano de 1995, durante a realização do Mednesp-95 - 3º Congresso Nacional de Médicos Espíritas - realizado pela Associação Médico-Espírita de São Paulo, instituição pioneira que existia desde 1968. A aproximação maior com o campo científico se dá em torno de debate entre “medicina e espiritualidade” (este é também o nome da revista publicada pela entidade), mediante a realização de congressos e divulgação de pesquisas científicas mundiais, protagonizadas ou não por estudiosos espíritas, mas que sugerem uma estreita relação entre saúde e equilíbrio espiritual. A AME (2012) tem feito gestão junto às universidades, incentivando a criação de grupos de pesquisa, a partir dos seguintes argumentos: a) O paradigma materialista é fator limitante do campo de possibilidades da ciência frente à busca pela compreensão do Ser e da sua essência; b) A estruturação da educação em saúde voltada para tratar doenças e não compreender doentes é equivocada; c) A definição de vida baseada no materialismo desconsidera a compreensão de uma dimensão do Ser humano para além do corpo físico; d) A Espiritualidade é um importante aspecto da experiência humana, que toca em múltiplas dimensões da vida, podendo ou não levar ao desenvolvimento de uma religião, sendo integrativa, permitindo o diálogo 240 fraterno dentre os diversos pontos de vista, fortalecendo e estimulando a humanização na Saúde; e) A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec é um caminho de visão científica e filosófica para a reativação do paradigma espiritualista. Outra característica da instituição é seu movimento de divulgação internacional. A AME já organizou congressos em Lisboa (Portugal), Genebra (Suiça), Londres (Inglaterra), Viena (Áustria), Bonn (Alemanha) e Lille (França). Apesar de sua identidade espírita, faz interlocução com profissionais e estudiosos da saúde espiritualistas, desde que suas pesquisas convirjam para os postulados kardequianos. A AME tornou-se uma associação profissional de referência no movimento espírita e fora dele. Ao agregar representantes de uma profissão de prestígio, estabelece um lugar de fala autorizado, possibilitado ainda pelo crescente interesse humano em buscar terapias alternativas, aquelas que se diferenciam das abordagens materialistas alopatas. Uma abordagem que vem crescendo entre esses profissionais é a autocura. Partindo de fundamentos psicológicos, a proposta vai além da terapêutica espírita tradicional, tais como a oração, o passe magnético, a água fluidificada e a desobsessão. O discurso centra-se no indivíduo doente como responsável por sua própria cura: Segundo Moreira (2013), o autoconhecimento é o caminho para a autocura: Amar-se é ir ao encontro de si mesmo.O autoconhecimento é propiciador da base para o autoamor. Amar-se (...) significa ser indulgente consigo mesmo, paciente diante dos desafios e perseverante perante a luta por autodomínio e autossuperação. Aquele que se ama se acolhe com generosidade, permitindo-se ser o que é, valorizando seus aspectos luminosos, sua beleza interior, enquanto luta para ser aquilo que deve ser ou que deseja ser (MOREIARA, 2013, p. 177). O discurso da autocura se entrelaça com o discurso da autoajuda. Tem origem no enunciado milenar cristão “Ajuda-te que o céu te ajudará”, mas só agora, na sociedade contemporânea, alcança outras áreas como os negócios e a medicina. Ele também está associado à prática da caridade como forma de se obter paz e resistência espiritual: 241 O bem realizado em prol do semelhante é o maior e melhor advogado da criatura em todas as circunstâncias da vida. Quando o ser se esforça para se conectar ao amor, essência da vida, todo o universo conspira em seu favor, estimulando-o e auxiliando-o no que se fizer necessário, visto que esse e o movimento fundamental da cura (MOREIRA, 2013, p.129). O amor de Deus é incondicional, mas se faz mais perceptível ao ser que entra em sintonia com Ele. (...) ao ser que ama ou que se esforça por amar, beneficiando a coletividade, há um incremento de amparo e misericórdia na recuperação da saúde, em função do efeito na comunidade (MOREIRA, 2013, p.129-130). A princípio, esse discurso se assemelha àquele que busca a graça a partir de uma negociação com Deus para a troca de favores, comum também em outras religiões cristãs. Mas no sentido espírita, a caridade tem o poder de atrair a companhia de espíritos superiores que possam ajudar o doente, porque este se encontra mais acessível psiquicamente à influência de bons pensamentos, além do que ele percebe que outros estão na mesma ou em pior situação que ele. Isso estimula situações onde haja identidade compartilhamento de sentimentos, acrescidas da sensação de ter realizado algo de bom, com reconhecimento e gratidão por parte daquele que é alvo da ajuda. Considerações finais Este estudo teve o objetivo de identificar as diferentes práticas discursivas e não discursivas do espiritismo em torno da saúde. Verificou-se que as condições sócio-históricas favoreceram o surgimento de um modo de pensar e agir espíritas, e que foram responsáveis por um processo de legitimação social e científica da Doutrina de Kardec. Do ponto de vista da legitimação social, as curas empreendidas pelos médiuns popularizaram o espiritismo, especialmente as camadas mais pobres da sociedade ou aqueles desenganados pela medicina tradicional. Os espíritas que também são médicos emprestam sua autoridade ao campo religioso, minimizando preconceitos e até perseguições. Quanto à legitimidade científica, o discurso espírita buscou se apoiar em experiências e estudos que conseguiam dialogar com seus princípios, aproveitando os saberes disponíveis em cada época para propor suas terapias. Isso aconteceu com o magnetismo, a homeopatia e a psicologia positiva (autocura). Entidades 242 médicas especializadas foram criadas pelo movimento espírita, aproximando-as das instituições universitárias e institutos de pesquisa, principais referências científicas na atualidade. As cirurgias espirituais empreendidas pelo médium José Arigó também foram importantes para aguçar a curiosidade popular e científica em torno da mediunidade. O fenômeno baseava-se na cura de doenças mediante cortes sem anestesia, atribuindo-se aos espíritos (no caso, o Dr. Fritz) a responsabilidade pelo diagnóstico, assepsia e bloqueio da dor. Independente dos diferentes momentos históricos, pode-se concluir que a saúde, para o espiritismo, é dependente da aceitação de uma dimensão espiritual do ser humano, o que implica a aceitação dos seguintes princípios e práticas: a) existe vida após a morte, e os espíritos podem interagir com os vivos (os espíritos imperfeitos podem influenciar na instalação de doenças, e os superiores podem ajudar a curá-las); b) muitas doenças atuais são resultados de atos negativos praticados em vidas passadas; c) o passe, a desobsessão, as cirurgias espirituais (com ou sem corte), e o receituário homeopático são as principais terapias disponíveis nos centros espíritas; e d) a caridade, o pensamento positivo e a transformação moral do indivíduo constituem a terapia mais eficiente e capaz de promover um bem-estar mais duradouro. Referências ARRIBAS. Célia. Afinal, espiritismo é religião? São Paulo: Alameda, 2010. ASSOCIAÇÂO MÈDICO-ESPÌRITA DO BRASIL. Você quer montar um departamento acadêmico em sua Universidade?. São Paulo, 2012. Disponível em: http://www.amebrasil.org.br/2015/node/13. Acesso em 27 de fev de 2016. CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004. FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução de Vera Lúcia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. v. 1 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 243 HAHNEMANN. Samuel. A cólera. In: Kardek, Allan. O Evangelho Segundo o Espirtismo. Brasília: FEB, 2013, p. 138-140. INEY, Lúcia. Magnestismo: o campo de energia universal. Espirit Book, 2013. Discponível em: http://www.espiritbook.com.br/profiles/blogs/magnetismo-o-campode-energia-universal Acesso em 10 fev 2016. KARDEC. Allan. Magnetismo e Espiritismo. In; Revista Espírita, Ano I, 1858. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB, 2004, p. 148- 150 Disponível em: http://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1858.pdf. Acesso em 21 de fev de 2016. KARDEC. Allan. Emprego Oficial do Magnetismo animal. In; Revista Espírita, Ano I, 1858. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB, 2004, p. 419-424. Disponível em: http://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1858.pdf. Acesso em 21 de fev de 2016. MOREIA< Andrei. Cura e Autocura. Belo Horizonte: Ame Editora, 2013. MOURA, Marta Antunes. O que é passe espírita? Brasília: Feb, 2013. Disponível em: http://www.febnet.org.br/blog/geral/colunistas/o-que-e-passe-espirita. Acesso em 21 de fev de 2016. OLIVEIRA, Leida Lúcia. Cirurgias Espirituais de José Arigó. Belo Horizonte: Ame Editora, 2014. PAIVA, Geraldo José de. Religião, cura e psicologia. In: Estudos de Psicologia I. Campinas: USP, 2007, p. 99-104. 2. O ETOS PSICOTERAPÊUTICO ESPÍRITA NO ROMANCE A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA, DE MOACYR SCLIAR Nome: Gismair Martins Teixeira Titulação: Doutor Instituição: Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte/Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás. Resumo: O etos psicoterapêutico espírita tem como princípio fundamental a relação conflituosa da alma, tanto consigo mesma quanto em relação ao seu próximo. No paradigma espírita, o espírito sobrevive à morte corporal e pode continuar a relacionar-se com aqueles que conviveram com ele durante sua vida terrena. Este convívio, se conflituoso, configura uma interação entre ambos, promovendo desequilíbrios físicos e/ou psicológicos. A tradição terapêutica do espiritismo propõe a mediação dos conflitos da alma com a finalidade de cura, esteja ela na dimensão espiritual ou na dimensão física. Pesquisadores espiritistas, como Hermínio C. Miranda, desenvolveram técnicas terapêuticas espirituais, como a regressão de memória, aplicadas a indivíduos radicados no plano físico ou no plano extrafísico, conforme o contexto doutrinário espírita. A literatura, em sua característica de representação mimética da realidade, vez por outra se serve desses pressupostos em suas efabulações. Neste trabalho, apontaremos como o romance A mulher que 244 escreveu a Bíblia, do escritor brasileiro Moacyr Scliar, insere-se nesse contexto, dialogando com o etos psicoterapêutico espírita, mesmo quando a doutrina sistematizada pelo francês Allan Kardec não aparece mencionada nos escritos dessa narrativa scliariana. O espiritismo, doutrina sistematizada pelo professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, sob o pseudônimo de Allan Kardec, na segunda metade do século XIX, na França, propõe que um dos problemas etiológicos mais graves com que a humanidade se vê a braços é o da influência psíquica recíproca entre os habitantes da dimensão física e os da dimensão espiritual. A influência maléfica exercida primordialmente dos chamados espíritos desencarnados sobre os espíritos encarnados seria a causa de um sem número de patologias tanto psicológicas quanto físicas. Alan Kardec denomina a esse fenômeno de “obsessão”, apresentando nas páginas da codificação espiritista (KARDEC, 2003) as gradações por ela apresentadas. A prática espírita, de Kardec aos dias atuais, propõe a intercessão por parte de terceiros para o apaziguamento dos indivíduos das duas dimensões da vida que estejam envolvidos em um conflito obsessivo, que geralmente tem sua origem em relações malsãs do passado, mediante o processo das encarnações sucessivas. Nas últimas quatro décadas, no Brasil, tornou-se comum no movimento institucionalizado espírita a abordagem psicoterapêutica denominada de regressão de memória, cuja essência consiste no despertar de recordações traumáticas multisseculares para que o espírito, encarnado ou desencarnado, realize uma catarse purificadora de seus traumas de relacionamento com o próximo. No espiritismo, tais práticas se realizam em reuniões denominadas de desobsessão. A técnica é utilizada, preferencialmente, pelos mestres espirituais dessas reuniões. No entanto, pesquisadores da dimensão física também já se utilizaram dessa prática. O mais célebre deles é Hermínio Corrêa de Miranda. Falecido há quase três anos, Miranda pesquisou por décadas o processo de regressão de memória, antes de aplicá-lo tanto aos espíritos encarnados quanto aos desencarnados, conforme registro em sua obra A memória e o tempo (2011). Apresentaremos neste trabalho, de forma sucinta, o instigante diálogo entre esse etos psicoterapêutico espírita e o universo da efabulação literária de A mulher que escreveu a Bíblia, do escritor gaúcho Moacyr Scliar, cuja narrativa se 245 impregna do imaginário espírita (DURAND, 1985, p.14) em sua correspondência com o problema da saúde tanto física quanto psicológica. A mulher que escreveu a Bíblia: sobreposição ficcional e regressão de memória Em 1990 veio a lume nos Estados Unidos da América um livro provocador. Escrito a quatro mãos por Harold Bloom e David Rosenberg, O livro de J apresenta uma proposta inusitada. Nesse livro, o crítico literário estadunidense advoga que os principais livros fundadores do judaísmo, conhecidos sob o nome de Torá, teriam sido escritos por uma mulher. Óbvio, não seria uma mulher sem maiores predicados, mas sim uma sofisticada e irônica habitante da corte do lendário rei bíblico Salomão, famoso por sua extraordinária sabedoria. O livro de J possui uma composição peculiar. O poeta judeu, David Rosenberg, traduziu os textos primitivos, procurando manter o mais próximo possível do original o tom poético da narrativa. Harold Bloom, que também possui ascendência judaica, interpretou a tradução de Rosenberg, expondo a sua intuição sobre a origem dos textos conhecidos na Bíblia tradicional como Gênesis, Êxodo e Números (BLOOM, 1992). Leitor poliglota e uma das maiores autoridades mundiais na obra de William Shakespeare, Harold Bloom faz questão de enfatizar que a sua perspectiva em relação ao texto bíblico não possui propósitos confessionais, mas sim literários. Para o escritor norte-americano, a Bíblia é fundamentalmente uma peça literária e a sua autora imaginária não pensava em religião quando produziu o texto a ela atribuído (BLOOM, 1992, p.44):69 O argumento fundamental de Harold Bloom para o seu achado é retórico, vinculando-se mais a uma espécie de arqueologia do saber faulcultiana do que propriamente a um achado arqueológico 69 Como disse anteriormente, poucas idéias fixas são tão difíceis de desalojar como a noção de que a Bíblia é um “livro sagrado” de um modo completamente único. O Corão, o Livro de Mórmon e os escritos sagrados das religiões asiáticas, sem mencionar outras obras rivais, de alguma forma não apresentam o curioso prestígio que mantém a Bíblia mesmo para leigos e descrentes. É de absoluta importância que o leitor do Livro de J inicie sua leitura com a consciência de que J não pensava em termos de textos sagrados quando compôs os pergaminhos que constituem sua obra. 246 em conformidade com a ciência da arqueologia. Assevera Harold Bloom (1992, p.50):70 O crítico norte-americano não é um historiador, mas alguém que trabalha diretamente com a matéria literária. Ao propor a sua abordagem em torno da autoria de parte do texto bíblico do Velho Testamento, Bloom se insere de certo modo na proposição de Aristóteles em sua Arte poética (2015).71 Sua proposição acerca da autoria J é retomada pelo sucedâneo do poeta aristotélico – aqui configurado como o escritor de qualquer gênero literário –, que no presente estudo é o romancista brasileiro Moacyr Scliar. Com base na proposição bloomiana, Scliar produziu o romance A mulher que escreveu a Bíblia, que representareia um imbricamento da asserção “o que poderia ter acontecido”. Nessa obra, vencedora do Prêmio Jabuti de 2000, o escritor brasileiro nascido no Rio Grande do Sul apresenta uma narrativa que se revela uma paródia bem urdida em torno da mulher idealizada por Harold Bloom. Em sua original narrativa, Scliar concebeu uma maneira engenhosa de fazer a ponte para o leitor até os tempos bíblicos, mais especificamente a época da corte do rei Salomão. Para tanto, o escritor gaúcho apresenta um professor da disciplina de História, do ensino médio, que, apesar de inicialmente idealista, mostrase desencantado com a sala de aula, pretendendo mudar de profissão. À reclamação dos alunos sobre as aulas enfadonhas, o professor-narrador concebe uma didática para torná-las mais interessantes. Faz com que os alunos encenem eventos históricos, trajando-se como personagens do passado. Neste ínterim, um dos estudantes que ficou encarregado de apresentar a vida de um príncipe da Antiguidade assume a personalidade do antigo monarca, após exaustiva pesquisa bibliográfica, passando a comportar-se como se fora realmente a personagem histórica. Intrigado com o fenômeno, o narrador realiza estudos autodidatas para desvendar o mistério. Em suas pesquisas, chega à hipótese que julga mais plausível para explicar como um garoto tímido, de estrato social pouco privilegiado pôde incorporar uma personagem que era o seu oposto. Consoante suas conclusões, Já admiti que identificar J com uma mulher é uma ficção, mas também não é menos fictícia a afirmação rotineira e fácil de que J era um homem. 71 [...] é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, [...] 70 247 tratava-se de um caso de regressão de memória espontânea a uma outra vida, ou reencarnação. Dessa forma, tem o leitor diante de si um frustrado professor de ensino médio, agora dublê de terapeuta de vidas passadas. Aplicando técnicas específicas, dentre as quais se destaca a hipnose, o improvisado psicólogo ganha fama na peça romanesca, tornando-se personagem requisitada, que pode abandonar em definitivo o ofício do magistério. Em determinada oportunidade, ele recebe a visita de uma jovem interiorana, imersa em conflitos existenciais, como um amor não correspondido. Para minorá-los, lia muito. No colégio de freiras, destacava-se pelos seus profundos conhecimentos acerca da Bíblia. Sabia de cor o livro bíblico Cântico dos cânticos. Submetida à técnica regressiva, ela se viu em uma remota existência como integrante de uma tribo nômade de regiões desérticas. Ali, era a filha primogênita do chefe do clã. Mas havia um senão. Era dotada de uma extraordinária fealdade. Por conta disso, o casamento lhe era pouco provável. Compadecido, o escriba da tribo lhe ensina a ler e a escrever, habilidades então raríssimas, mesmo para um homem, naqueles recuados tempos, mais precisamente o décimo século antes de Cristo. Contra sua expectativa, em determinado momento seu pai a envia como esposa para o rei Salomão, numa celebração de aliança político-militar. Após muitas idas e vindas em sua atribulada relação com Salomão e suas esposas e concubinas, este descobre em sua feia esposa uma extraordinária escriba, o que o leva a convidá-la para escrever a história do povo hebreu. À medida em que sua história junto ao monarca bíblico se desenrola, A Feia revela que um antigo afeto ligado ao seu clã de origem se transforma em um conspirador contra a vida do rei graças à influência espiritual do irmão natimorto de Salomão, fruto proibido do relacionamento de seu pai, o rei Davi, com a esposa de Urias, Betsabeia, em célebre episódio bíblico (SCLIAR, 2007, p.144). Ao fim de uma sessão dos transes regressivos, a consulente do ex-professor de História tem sua vida sentimental encaminhada, o que aponta para o sucesso da técnica terapêutica. Neste particular, a efabulação scliariana guarda instigante correspondência com o trabalho realizado pelo consagrado pesquisador espírita, Hermínio C. Miranda. Em 1989, no bicentenário da Revolução Francesa, o pesquisador brasileiro lançou a obra Eu sou Camille Desmoulins: a revolução francesa revelada por um de seus líderes, de autoria compartilhada com o jornalista 248 Luciano dos Anjos. O trabalho apresentava ao público brasileiro o resultado de horas de gravações em fita cassete de supostas recordações de uma outra vida por parte de dos Anjos. Em uma pesquisa inicial acerca do fenômeno de regressão, sem maiores pretensões históricas a princípio, Luciano dos Anjos (MIRANDA; DOS ANJOS; 1989) se viu na personalidade do jornalista francês Camille Desmoulins durante os acontecimentos históricos que resultaram nos episódios cuja data demarcatória é 14 de julho de 1789, que ficaram conhecidos na historiografia como Revolução Francesa. Durante o transe, o jornalista rememorou fatos em detalhes que só puderam ser comprovados posteriormente após pesquisas bibliográficas minuciosas e lances de golpe de sorte, como encontrar um livro raríssimo em um sebo, com uma nota de rodapé confirmatória daquilo que fora apresentado durante a regressão (MIRANDA; DOS ANJOS; 1989). Acerca desse livro peculiar, o CREA - Centre de Recherches et D’Estudes Anthropologiques, da França, trouxe em seu periódico de divulgação científica, sob o título de capa Le défi magique – esotérism, occultisme, spiritisme, um artigo assinado por Marion Aubree intitulado De l’histoire au mythe: la dynamique des romans spirites au Brésil. Nele, afirma Aubree (1994, p.212):72 A técnica de regressão de memória aplicada em Luciano dos Anjos, que o fez regredir a uma vida anterior, seria usada fartamente nos espíritos desencarnados por Hermínio Corrêa de Miranda, conforme pode ser pesquisado na série por ele publicada sob o título de Histórias que os espíritos contaram , composta dos volumes A dama da noite (1997), O exilado e outras histórias que os espíritos contaram (1985), A irmã do vizir e outras histórias que os espíritos contaram (2005) e As mãos de minha irmã (2011). Nesses relatos, almas em profundo desequilíbrio 72 Enfin, on a vu apparaître rêcemment (1989) un nouveau genre d’écrit: l’autobiographie d’un célèbre trépassè. Celle-ci n’est plus produit par um médium psycographe qu’inspire um ‘esprite-guide’ comptant au nombre de ceux qui ont jué um rôle dans l’Histoire, mais à partir du témoignagne qu’en donne, sous hypnose, un vivant que l’on considere comme la réincarnation de ce personnage. Il s’agit de l’ouvrage Eu sou Camille Desmoulins (Je suis Camille Desmoulins) qui a pour sous-titre “La Révolution Française révélé par l’un de ses leaders”. Cet ouvrage a été produit par Herminio de Miranda, un parapsychologue spirite du Rio, à partir de récits obtenus de Luciano dos Anjos, luimême journaliste, au cours d’une “thérapie des vies antérieures”. Por fim, surgiu recentemente (1989) um novo gênero de escrita: a autobiografia de um morto famoso. Já não é produzida por meio de um médium psicógrafo inspirado por um “guia espiritual” contado entre o número daqueles que desempenharam um papel na história, mas a partir de evidências do testemunho dado, sob hipnose, por um vivo que é considerado a reencarenação do personagem. É o caso do livro Eu sou Camille Desmoulins, que tem o subtítulo de A Revolução Francesa revelou um de seus líderes. Este livro foi produzido por Hermínio Miranda, um parapsicólogo espírita do Rio, a partir de narrativas obtidas de Luciano dos Anjos , ele mesmo um jornalista, durante uma “terapia de vidas passadas”. (AUBRE, 1994, p.212; tradução livre minha) 249 reencontram o cerne de suas dores seculares, o que as leva a um processo de purificação de seus traumas, num etos remissivo à efabulação de A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, cuja personagem se reequilibra emocionalmente após descobrir os motivos de suas dores em outra vida recuada no tempo e no espaço. Conclusão O paradigma espírita tem por base a existência do espírito e sua preexistência à vida física, sobrevivência à morte e reencarnação em novos corpos para ascender continuamente na escala evolutiva até à perfeição possível, bem como a sua comunicabilidade com os chamados vivos, quando no mundo espiritual, através do processo denominado por Allan Kardec de mediunidade. No relacionamento entre os seres, muitos conflitos têm origem. O etos psicoterapêutico espírita se caracteriza pela intercessão junto a almas em profundo desajuste espiritual com a finalidade de reencaminhá-las a um processo de equilíbrio psicofísico. A regressão de memória é uma das ferramentas possíveis neste processo de terapia espiritual. A literatura, em seu caráter de mimese – representação da realidade – reproduz algo dessa possibilidade apresentada no conjunto da obra de Hermínio Corrêa de Miranda. A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, trabalha sua narrativa em íntima consonância com a pesquisa de Miranda, configurando um caso de extraordionária e, a princípio, insuspeita intertextualidade, que mereceria desdobramentos ulteriores em sua abordagem no campo da cultura e das artes. Referências AUBRÉE, Marion. La nouvelle dynamique du spiritisme kardéciste. De l’histoire au mythe : La dynamique des romans spirites au Brésil. In : MARTIN, Jean-Baptiste e LAPLANTINE, François. Le défi magiques. Ésoterisme, occultisme, spiritisme. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994. ARISTÓTELES. Arte poética. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000005.pdf 26/02/2016. Acesso em: 250 BLOOM, Harold. O livro de J. Tradução de Monique Balbuena . Rio de Janeiro: Imago, 1992. DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Tradução de Hélder Godinho. Lisboa: Editorial Presença, 1989. KARDEC, ALLAN. O livro dos médiuns, ou, Guia dos médiuns e dos evocadores: espiritismo experimental. Tradução de Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2003. MIRANDA, Hermínio de. A memória e o tempo. Niterói, RJ: Publiações Lachâtre, 2001. MIRANDA, Hermínio de; ANJOS, Luciano dos. Eu sou Camille Desmoulins - A Revolução Francesa revelada por um de seus líderes. São Paulo: Arte e Cultura, 1989. MIRANDA, Hermínio. A dama da noite. Coleção histórias que os espíritos contaram. São Paulo: Ed. Correio Fraterno, 1997. ______O exilado e outras histórias que os espíritos contaram. Coleção histórias que os espíritos contaram. São Paulo: Ed. Correio Fraterno, 1985. ______A irmã do vizir e outras histórias que os espíritos contaram. Coleção histórioas que os espíritos contaram. São Paulo: Ed. Correio Fraterno, 2005. ______As mãos de minha irmã. Coleção histórias que os espíritos contaram. São Paulo: Ed. Correio Fraterno, 2011. Scliar, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 3. RELIGIAO E INDIVIDUAÇÃO: AS DIMENSÕES PSICOLÓGICAS DO INDIVÍDUO E A CORRESPONDÊNCIA SIMBÓLICA DOS ARQUÉTIPOS E COMPLEXOS NAS MANIFESTAÇÕES DOS GUIAS E ORIXÁS NA UMBANDA Nome: Gislene Alves Marian Titulação: Mestranda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo: A partir de uma abordagem psicológica, este estudo visa contribuir na compreensão das experiências vividas, narradas e interpretadas religiosamente pelos trabalhadores, médiuns e não médiuns73 de Umbanda. Conhecer o universo dos Orixás e Guias desse ponto de vista psicológico é essencial, uma vez que essas experiências religiosas na Umbanda, com as características que lhe são peculiares, podem possibilitar um processo de integração do ser. Este universo simbólico está 73 Médiuns aqueles que recebem entidades durante o transe no ritual da umbanda e os não médiuns que acompanham o ritual como auxiliares. (LIMA, 1997) 251 enraizado em nossa cultura e é repleto de significados. Alguns autores 74 acreditam que podemos encontrar respostas para diversas questões pessoais e até mesmo a cura em nosso inconsciente uma vez que “as camadas mais profundas falam através de imagens que devem ser consideradas como se nos apresentassem descrições de nós mesmos, ou de nossas situações inconscientes” 75. Sendo assim pretendemos estudar como isto se processa, observando os fenômenos religiosos e o comportamento dos indivíduos incluindo, se possível, sua dimensão psicológica sempre respeitando o aspecto sagrado e a ligação mítica entre o visível e o invisível. A produção de subjetividade é inerente tanto à Psicologia como à Religião, portanto, os diversos fenômenos religiosos em contato com os princípios, normas e opções individuais dos seres humanos podem realizar o processo de individuação conforme o Self exige: aceitar-se em sua inteireza e totalidade. É possível afirmar que o ser humano, desde os seus primórdios, realiza rituais para manter-se conectado ao sagrado e ao numinoso76 e é no sentido de compreender esta comunicação e suas consequências na psique que escolhemos estudar o simbolismo existente na umbanda e sua influência no processo de individuação de seus adeptos. É a psicologia analítica que nos habilitará a construir um caminho de entendimento entre a psique (inconsciente) e o mundo externo (consciente). Jung (2012i) escreve: “as religiões representam uma das mais antigas e universais manifestações da alma humana” (p.17). Ele estudou profundamente as experiências do ser humano com o sagrado ou divino, independentemente de sua vontade, entendendo a religião como uma função do inconsciente não importando qual credo religioso fora adotado. Portanto, nossa pesquisa se direciona no intuito de compreender se a umbanda, através de seus símbolos, revela-se como uma experiência psíquica a qual pode promover a realização de um potencial e/ou à integração de complexos ou se essa experiência religiosa pode dificultar o enfrentamento do si mesmo através das projeções realizadas nessa religião. 74 C.f Jung (2012k), Whitmont (2000), Von Franz (1992). Whitmont, A busca do Símbolo, p 35. 76 O termo ocorre na psicologia analítica como sinônimo do fascinosum, para indicar o caráter com que uma coisa, cujo sentido é ignorado ou ainda não conhecido. Entra na categoria do numinoso a experiência que a consciência faz daquele outro diferente de si que é o inconsciente. Segundo a filosofia da religião de Rudolf Otto, aplica-se ao estado religioso da alma inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade, é a consciência que está no fundamento da experiência do sagrado. (PIERI, 2002, p.347 – Dicionário junguiano). 75 252 Não é possível, nos limites deste artigo, uma descrição pormenorizada da religião umbandista, nos limitaremos a esclarecer princípios que possibilitem o entendimento do seu sistema enquanto símbolo vivo que promove um diálogo com os elementos subjetivos da psique. UMBANDA: Breves Esclarecimentos Parece haver um consenso entre os pesquisadores que a umbanda é uma religião tipicamente brasileira que engloba características de cinco influências: africana, católica, espírita, indígena e orientalista: A umbanda surge e se desenvolve em centros urbanos e industrializados, onde cada terreiro dispõe e combina elementos de uma rica e variada tradição religiosa em torno de alguns eixos que não variam. A versatilidade ímpar encontrada na umbanda é fruto da mescla de tradições que ocorreram na sua formação. Dentre estas tradições, podemos citar as culturas africanas, o catolicismo popular, o kardecismo, as tradições indígenas e as linhas orientais, que contribuíram para uma de suas características mais marcantes, o sincretismo religioso. (MALANDRINO, 2008, p. 10-11). Uma mistura de concepções, preceitos e fundamentos que traz em si uma representação simbólica que na procura de uma legitimação social passa por um processo de integração dos valores propostos pela sociedade moderna, significando inevitavelmente algumas perdas as quais são substituídas por rituais e conteúdos ético-doutrinários brancos e cristãos. (NEGRÃO, 1996). Há que se destacar que esta nova religião surge como uma maneira de ressignificar as carências de um grupo que encontra uma forma de dar continuidade a sua identidade religiosa, étnica e a transmissão de suas tradições. Malandrino (2006) acredita que nessa “nova estrutura religiosa foram criados símbolos e rituais provenientes do inconsciente que responderam as necessidades psíquicas daqueles indivíduos” (p.96). Lima (1997) esclarece que para os umbandistas corpo e mente constituem uma só unidade e está em sua base a comunicação entre a esfera do sobrenatural e o mundo dos seres humanos. Através da incorporação das entidades espirituais (vivência de uma ou mais personalidades) ocorre um estado alterado de consciência (transe). O eu se afasta por força da evocação do sagrado como se a consciência mergulhasse em correntes profundas da indiferenciação psíquica. Os médiuns, os 253 quais “recebem” as entidades durante o transe no ritual da umbanda, são considerados como instrumentos a serviço de uma vontade tida como externa (os guias ou orixás). Sendo assim, a vivência simbólica propiciada pela umbanda pode promover uma ampliação da consciência. SÍMBOLO: Uma Ponte Para A Consciência Estamos rodeados de símbolos e este universo simbólico é repleto de significados e está enraizado em nossa cultura. Etimologicamente a umbanda é a arte de curar (ZACHARIAS,1998), portanto podemos considerar que através de seus símbolos é possível que um material inconsciente seja transformado em algo conhecido e possibilitar vivências de integração de complexos77. Quanto ao conceito de símbolo devemos começar por sua etimologia que se refere à união de duas coisas que, apesar de separadas, como descreve Kast (2013, p.20) “é um compósito que pode se complementar e se inter-relacionar, ou seja, são elevadas à dimensão simbólica”. O símbolo é, declaradamente, uma criação do inconsciente e representa um acontecimento natural e espontâneo, atuam transformando e redirecionando as energias instintivas. Para Jung (2013a), o símbolo é a melhor expressão possível para algo que jamais será conhecido plenamente. Talvez isso explique sua preocupação em fazer com que seus pacientes pudessem refletir suas experiências de vida a partir do nível simbólico. Isto porque, conforme o autor, o desenvolvimento psíquico não pode ser realizado apenas pela força de vontade e pela intenção, mas necessita das qualidades valorativas do símbolo que “sempre retém um excedente significado e está bastante ligado à emoção” (KAST, 2013, p.22). O símbolo tem um poder transformador é a ponte entre o conhecido e o desconhecido, promovendo sua união. Sendo assim, a compreensão dos símbolos é uma demanda do processo de individuação. 77Complexos são os pontos críticos da estrutura psíquica. Todos nós temos complexos, são núcleos conflitantes, que se unem por meio de um tom emocional comum, são as situações não aceitas, não digeridas carregadas de valores afetivos. Jung aponta os complexos como “grandezas psíquicas que escaparam do controle da consciência e que separados dela, levam uma existência à parte na esfera obscura da psique de onde podem, a qualquer hora, impedir ou favorecer atividades conscientes”. (JUNG, 2012a, p.533). 254 Individuação Para Jung (2012k) a personalidade do ser humano é constituída de duas partes: o eu (ego) que é “o ponto central de referência da consciência” (p.154) e si mesmo (Self) o sujeito de nossa totalidade, não passível de observação direta e que compreende todo nosso potencial, é nossa psique inconsciente. A consciência e o inconsciente são as duas divisões topográficas básicas, sendo que o inconsciente está dividido em inconsciente pessoal e psique objetiva, chamada a principio de inconsciente coletivo. Inconsciente coletivo ainda é o termo mais usado quando se discute a teoria de Jung. O termo “psique objetiva” foi introduzido para evitar confusão com os heterogêneos grupos coletivos da espécie humana, uma vez que Jung quis enfatizar de modo especial que as profundezas da psique humana são objetivamente tão reais quanto o universo “real”, exterior, da experiência consciente coletiva. Existem, 4 níveis da psique: 1- consciência pessoal, ou a percepção consciente ordinária; 2 – o inconsciente pessoal, o que é exclusivo de uma psique individual, mas não consciente; 3 – a psique objetiva, ou inconsciente coletivo, que possui uma estrutura aparentemente universal na humanidade e 4 – o mundo exterior da consciência coletiva, o mundo cultural dos valores e formas compartilhadas. (HALL, 2007, p. 1314). Sendo assim o consciente pessoal é a parte desperta do individuo: nossa memória, nossa personalidade e tudo que nela está contido – o eu (ego). O Inconsciente pessoal é nosso lado inconsciente, tudo que sabemos ser psiquicamente real, mas não é consciente (complexos). A psique objetiva ou inconsciente coletivo é o que transcende os conteúdos pessoais, é o conjunto de todos os arquétipos78. O Self, ou si mesmo, é o que representa o objetivo do homem inteiro, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade. É o centro ordenador dos processos psíquicos e Integra e equilibra todos os aspectos do inconsciente. É o arquétipo central da ordem e totalidade da personalidade. (JUNG, 2012a, p 15). Arquétipo é uma imagem primordial comum a todos os povos e tempos. (...) está relacionada, por um lado, com certos processos da natureza, perceptíveis aos sentidos, em constante renovação e sempre atuantes e, por outro lado, também sempre relacionada com certas condições internas da vida do espírito e da vida em geral. O organismo confronta a luz com um novo órgão: o olho; o espírito confronta o processo da natureza com a imagem simbólica que o apreende tão bem quanto o olho apreende a luz. Assim como o olho é testemunho da atividade criativa, específica e autônoma da matéria viva, também a imagem primordial é expressão da força criadora, única e incondicionada do espírito. (JUNG, 2012a, p.460). 78 255 Umbanda e Individuação Essa pesquisa é gerada em um nível da realidade que não pode ser quantificada, trabalhando com um universo de significados, crenças, valores e atitudes que estão escondidos no mais profundo ser, portanto, “impossível de ser reduzida a operacionalizações de variáveis, mas são dados que merecem ser conhecidos e interpretados”. (EVORA, 2006 p.7). A proposta desse trabalho foi compreender como os símbolos da umbanda juntamente com a manifestação mediúnica dos guias e orixás auxiliam no processo de individuação. A princípio foi possível observar que grande parte da vivência na umbanda ocorre de modo subjetivo. Sendo a produção de subjetividade inerente tanto à Psicologia como à Religião, podemos considerá-la como expressão do modo humano de viver, seu conteúdo apresenta-se sob a forma de percepções, representações e conceitos, transita em um terreno com sentido próprio, no qual cada indivíduo procura um significado para a sua existência. Em nossa percepção é o trabalho fundamental da consciência e é isso que nos permite encontrar verdadeiramente quem somos. Um trabalho árduo, para uma vida inteira. Assim como o símbolo a religiosidade é a capacidade de religar a dimensão do eu (consciência) a do si mesmo (Self – inconsciente). De acordo com alguns relatos obtidos e através dos estudos realizados pudemos observar que a umbanda propicia através da incorporação momentos de puro êxtase, fortes sensações corporais e emocionais que em conjunto com os símbolos estabelecem a ponte com o inconsciente. Os símbolos que permeiam esse contato se configuram como um elemento de ligação com o sobrenatural gerando uma experiência significativa possibilitando, dessa maneira, o processo de transformação interna. Jung afirma que “religião designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso”, (JUNG, 2012i, p.21) é uma experiência religiosa do divino ou transpessoal. A questão não é se referir a uma determinada crença ou a uma profissão de fé, mas às atitudes singulares produzidas por uma determinada consciência. Passos e Usarski (2013) esclarecem que “esboçar uma concepção de religião não é tarefa fácil, não há unanimidade ou inequívoca universalidade” (p.143). Culturalmente podemos considerar que há um amplo 256 significado, no qual engloba os modos comuns e aprendidos da vida, transmitidos pelos indivíduos e grupos, em sociedade. Como a umbanda reflete a miscigenação que compõe a sociedade brasileira, possivelmente as manifestações dos chamados guias espirituais, podem corresponder à somatória dos complexos que corresponde ao nosso inconsciente pessoal. Kast (2013) esclarece que estruturalmente, os complexos são compostos de imagens associadas e memórias congeladas de momentos traumáticos que estão enterradas no inconsciente e não são facilmente acessíveis para recuperação pelo ego. Estes complexos estariam relacionados a certos conteúdos que podem fazer parte de um único grupo, partir de um clã, de uma família de tradições grupais ou transmitidas por hereditariedade. Lima (1979) esclarece que a umbanda reúne vários grupos étnicos brasileiros e influencia os seres humanos através de sua cultura e das tradições religiosas. Assim, temos os arquétipos dentro das matrizes afro-brasileiras e sua correspondência com os Orixás que são formas através dos quais os instintos se expressam. A comparação dos Orixás com a nossa personalidade é inevitável: a força de Ogum, a delicadeza de Oxum, a sabedoria das pretas e dos pretos velhos, a doçura das crianças, enfim, as diversas personalidades que podem representar a própria identidade de cada individuo. Conclusão Resta um vasto campo de investigação e inúmeras indagações a serem respondidas, no entanto percebemos que as relações existentes dentro de um terreiro, sejam com as divindades (guias e orixás) sejam com os indivíduos pertencentes ao grupo, são fundamentais e trazem significado para a vida dos envolvidos. O processo de autoconhecimento implica em fazer escolhas e assumir responsabilidade pela própria vida e isso abrange tanto a relação com o mundo interno (individual) quanto com o mundo externo (social). Com relação ao processo de individuação ou podemos dizer o caminho para o autoconhecimento estes nunca terminam. Será uma busca constante, se tivermos coragem de fazer nossa jornada. A dimensão religiosa, no nosso caso a umbanda, será o meio que nos coloca em contanto com uma força que propicia experiências de múltiplas facetas que nos 257 remetem a um mundo repleto de mistérios, o qual poderá ser descoberto através das vivências simbólicas. A função religiosa propicia um contato profundo com a psique e assume um caráter numinoso, porém, longe de afirmarmos categoricamente que os adeptos são transformados pelas experiências sagradas da umbanda, há um grande indício que nos aponta uma mudança interna – já que o processo de individuação acontece sem a interferência de nossa vontade consciente – e uma forte sensação de que somos guiados pelo invisível, seja pela crença na divindade ou pela força do nosso inconsciente. Referências Bibliográficas ÉVORA, I. Sobre a metodologia qualitativa: experiências em psicologia social . Disponível em:< http://pascal.iseg.utl.pt/~cesa/files/ publicacoes/ OP4.pdf > Acesso em: 03 11 2015 HALL, J. A. Jung e a Interpretação dos Sonhos: Manual de Teoria e Prática. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 2007. 160 p. JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012a. 614 p. v 6 JUNG, C. G. A Dinâmica do Inconsciente: A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013e. 414 p. v. 8/2. JUNG, C. G. Psicologia e Religião Ocidental e Oriental: Psicologia e religião. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012i. 154 p. v. 11/1. JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis: Os componentes da Coniunctio Paradoxa As Personificações dos Opostos. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012k. 432 p. v. 14/1 KAST, V. A dinâmica dos Símbolos: Fundamentos da Psicoterapia junguiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 311 p. LIMA, B. Malungo: decodificação da umbanda. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. Edição revista, ampliada e reestruturada. 1ª Ed.1979. p. 265 MALANDRINO, Brígida Carla. Umbanda: mudanças e permanências – uma análise simbólica. São Paulo: EDUC – Fapesp, 2006 MALANDRINO, Brígida Carla. Macumba e umbanda: aproximações. Anais do X Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões – “Migrações e Imigrações das Religiões”. Assis, ABHR: 2008. 258 NEGRÃO, Lísias N. Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. ed. USP, São Paulo, 1996 ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Petrópolis: Vozes, 1978 (1999). VON FRANZ, M. L Reflexos da alma: projeção e recolhimento interior na psicologia de C.G. Jung. 1992 WHITMONT, E. C.. A Busca do Símbolo: Conceitos Básicos de Psicologia Analítica. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2000. 301 p. XAVIER, Marlon. O conceito de religiosidade em CG Jung. Psico, v. 37, n. 2, 2006. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ face/ojs/index.php/ revistapsico/ article/viewFile/1433/1126> Acesso em: 10 02 2015. ZACHARIAS José Jorge de Morais. A psicologia e a religião dos orixás. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano V, n. 14, Setembro 2012 - ISSN 1983-2850. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf13/06.pdf Acesso em 07 02 2015 ZACHARIAS José Jorge de Morais. Ori Axé a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998 221 p. 4. CIRURGIAS ESPIRITUAIS: CONTROVÉRSIAS ENTRE A ETOLOGIA E A ETIOLOGIA EM SIDNEY M. GREENFIELD Nome: Ricardo Delgado de Carvalho Titulação: Doutorando Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás/Universidade Federal de Goiás Resumo. As cirurgias espirituais incisivas são realizadas pelos médiuns-curadores de maneira rápida, sem anestesia, sem assepsia, com sangramento mínimo, não apresentando complicações pós-operatórias e os efeitos positivos da cura são evidentes, como afirma Sidney M. Greenfield. Essas são técnicas e práticas cirúrgicas que quase não encontram estudos e pesquisas nas ciências, pretendendo provar novo paradigma. Estes fenômenos causam espanto nas pessoas comuns e em profissionais experientes. Como explicar as cirurgias ditas espirituais? Que utilidades revelam seus mecanismos de cura? Eis o objetivo principal desse artigo. O estadunidense e professor de antropologia Greenfield, pesquisou o assunto ‘espiritismo, cirurgia e cura espiritual’ – por mais de quinze anos no Brasil –, observando diretamente as cirurgias espirituais e autenticando sua veracidade, mas não a interpretação espírita sobre as cirurgias, ou seja, a etologia. A etologia espírita apresenta conceitos chaves como: existem dois mundos, o espiritual e o material; há comunicação entre encarnados e desencarnados; a reencarnação é motivo de evolução moral, por isso a importância da caridade. Greenfield, mantendo sua postura objetiva e científica, contesta esta explicação e apresenta sua etiologia, baseada na biomedicina e na cura psicossomática, contribuindo com conceitos chaves, entre eles: a hipnose introduz informação ao nível do psiquismo percorrendo os sistemas endócrino, imunológico e outros; as informações chegam 259 simbolicamente ao psiquismo por meio de palavras e imagens; o fluxo de informação é meio de solucionar problemas físicos e mentais; é relevante o papel dos símbolos na cura. Este estudo auxilia na compreensão da etologia espírita e da etiologia científica. Como explicar as cirurgias espirituais? Quais os fatores simbólicos de êxito? Para isso, a explicação etológica, do espiritismo de Allan Kardec, afirma que o ser humano é capaz de se comunicar e interagir com o mundo dos espíritos dos mortos. Dando prosseguimento a antigas tradições de contato entre vivos e mortos, igualmente da possessão do espírito, os seguidores de Kardec acreditam que alguns médiuns podem receber os espíritos dos mortos que com eles interagem na prática tão importante da caridade para com os vivos. Greenfield assevera que talvez a mais importante forma de caridade entre os espíritas seja socorrer os doentes (GREENFIELD, 1999). Existem curadores que oferecem grande variedade de meios curativos, mas interessa-nos aqui as cirurgias realizadas por alguns médiuns-curadores que incisam a pele do paciente “usando desde um bisturi até instrumentos mais estranhos, como uma faca enferrujada ou uma serra elétrica. Isto sem simulação ou sugestão psicológica. Os médiuns-curadores espíritas realmente cortam; e, (...) não usam antissépticos nem anestesia” (GREENFIELD, 1999, p. 116). Com a ferida aberta, não raro, introduzem as mãos sujas ou outros objetos, sem causar infecção ou dor. A maioria dos pacientes confessa não sentir dor alguma, outros, leve dor, tanto durante como depois das operações. Além disso, o sangramento é quase inexistente. Em outra pesquisa realizada entre a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) no ano de 2000, verificou-se em laboratório que os tecidos extraídos eram compatíveis ao da região cortada e não apresentavam patologias (ALMEIDA et all., 2000). De qualquer forma, os pacientes não apresentam infecções ou outras complicações, se curam e rapidamente se restabelecem. A etiologia, esta advinda da antropologia e da biomedicina, apresenta uma possível solução para o entendimento do que ocorre na operação ‘espiritual’. O paciente, rodeado de signos religiosos, adentra num mundo de realidade alternativa cultural acionando símbolos que estão ligados a sistemas orgânicos, como 260 endocrinológico, imunológico, nervoso e outros, que liberam endorfinas e diversas substâncias químicas relacionadas a ausência de dor, cura e outros benefícios. Dois casos trazidos por Greenfield José Pedro de Freitas, mais conhecido como Zé Arigó, nasceu em Congonhas/MG em 1922 e morreu em 1971 de acidente automobilístico. Estudou até a terceira séria do ensino fundamental. Ele “realizou durante vinte anos as curas mais surpreendentes. Através do espírito do médico alemão, Adolf Fritz, diagnosticava, dava receitas e operava” (FATO REAL, 2014, p.01). Zé Arigó foi estudado por médicos de diversos países que constataram que 95% dos diagnósticos eram corretos. Diz Greenfield que, desde que o legendário médium Zé Arigó removia tumores e realizava delicadas operações oculares com uma faca comum de cozinha e sem antissépticos ou anestesia, o Brasil tem se tornado a pátria de curadores. Greenfield relata a descrição de John Fuller, autor de “Arigó: o curandeiro da faca enferrujada” na presença de dois cientistas norte-americanos: “Não há nada o que esconder aqui”, foi o que disse Arigó, enquanto ordenava aos dois cientistas que ficassem de pé perto de sua mesa de trabalho. “Fico feliz em tê-los como testemunhas”. E, sem mais aviso, tirou a primeira pessoa da fila – um cavalheiro de meia idade, impecavelmente vestido num terno cinza – e silenciosamente “apanhou uma faca comum de quatro polegadas de lâmina de aço inoxidável com cabo de madeira e, literalmente a introduziu no olho do homem, um pouco abaixo da pálpebra e bem dentro da cavidade ocular”. Apesar de seus anos de prática médica e experiência”, continua Fuller, “o médico Puharich estava chocado e maravilhado. E ficou mais ainda quando Arigó começou violentamente a raspar com a faca o interior do globo ocular e por dentro das pálpebras, pressionando-o para fora com desinibida força. O homem estava plenamente acordado e consciente e não aparentava temor algum. Não se movia nem tremia. Uma mulher ao fundo gritava. Uma outra desmaiara. Arigó, então, retirou o olho da sua cavidade ocular. O paciente ainda absolutamente calmo, parecia incomodado apenas com uma coisa: uma mosca pousara-lhe na face. E, enquanto seu olho pendia literalmente fora da órbita ocular, ele calmamente espantava a mosca da 261 face”. O médico removeu, então, a faca e, enquanto a limpava em sua camisa esporte, disse ao paciente que ele ficaria bom. E chamou o próximo paciente. Tudo tinha acontecido em menos de um minuto (GREENFIELD, 1999, p.21-22). Outro médium-curador, Antonio de Oliveira Rios, trabalhava na cidade de Palmelo/GO. Morreu em 1990, aos 38 anos, depois de várias picadas de abelhas africanas. Semianalfabeto, com apenas uma série primária concluída, e pedreiro de profissão, Antônio pedreiro, como era conhecido, diagnosticava os pacientes através de fotografias. Ele dizia que realmente não operava os pacientes, apenas abria os cortes. Todos os procedimentos terapêuticos que iriam beneficiar seus pacientes eram realizados por um dos espíritos que trabalhavam com ele. Sua esposa ou outro assistente faziam as suturas, enquanto Antônio se apressava em cortar outro paciente, que esperava numa longa fila. O último paciente foi também colocado numa padiola fora do centro. Ele antes me havia contado que tinha sido vítima de um tiro de bala há dez anos e ainda não podia usar suas pernas. Antônio injetou algo na parte superior das costas do homem. Com o bisturi fez um corte de dez a doze polegadas de comprimento e cerca de uma polegada e meia de profundidade ao longo da espinha dorsal. Limpou com um pouco de gaze a pequena quantidade de sangue que jorrava, e cravou uma tesoura num ângulo da ferida aberta. Com outra tesoura, martelou a primeira mais para dentro, até que a pudessem ouvir batendo contra o osso. Depois de uma pequena pausa, repetiu o procedimento. O curador retirou do carrinho o que pareceu ser uma serra elétrica com uma lâmina de seis polegadas. Os espectadores na rua, entrementes, chegaram mais perto para ver o que ele iria fazer, quando conectou a serra a um fio de extensão, que lhe passaram de dentro do prédio por uma janela lateral. O paciente, enquanto isso, permanecia imóvel, aparentemente sem tomar conhecimento da serra. Antônio ligou o instrumento e inseriu sua lamina rotora na ferida aberta, percorrendo verticalmente a espinha dorsal. Uma pequena quantidade de sangue brotava à medida que a ferida ia se alargando. Os espectadores prendiam a respiração. O paciente, contudo, não se movia nem reagia de nenhuma maneira. Depois de alguns minutos movimentando a serra para baixo e para cima dentro da coluna vertebral do paciente, Antônio desligou a serra, removeu a lâmina e as depositou sobre o carrinho. Sem parar de olhar para o paciente, empurrou o carrinho apressadamente pela porta adentro, parando diante do que parecia ser seu 262 próximo paciente. O homem cuja coluna vertebral tinha sido aberta com a serra, entretanto, permanecia sozinho e tranquilo sobre uma padiola no meio da rua. Alguns minutos depois, a esposa de Antônio novamente apareceu com uma agulha e linha cirúrgica, para fechar as costas do paciente e cobrir a área com bandagem. Antes que eu pudesse me aproximar dele, vários espectadores já lhe haviam perguntado o que tinha sentido. Ele não tinha sentido dores, apenas um leve malestar quando a lâmina da serra lhe penetrara as costas. Ao se despedir com os amigos que o acompanharam na viagem, ele me deu seu endereço para que o pudesse visitar depois, quando fosse a São Paulo (GREENFIELD, 1999, p.119-120) Para Greenfield, não restam dúvidas, as cirurgias espirituais, que não se usam antissépticos ou anestesia, no qual os pacientes dizem quase não sentir dor e sangram pouco, não desenvolvem infecções e se recuperam prontamente, “não são apenas excepcionais, mas também anômalas no sentido de não encontrarem explicações dentro dos paradigmas tanto da psicologia, quanto de qualquer outra ciência médica convencional” (GREENFIELD, 1999, p.120). Mas será uma discussão parapsicológica? Greenfield evita uma área quase sempre tendenciosa e polêmica entre psicólogos e parapsicólogos . Os antropólogos, por sua vez, procuram explicações em nível social ou cultural, muito mais que a nível individual. É da antropologia que surge dois conceitos interpretativos: etologia e etiologia. O primeiro é o reconhecimento de que povos/grupos de diversas culturas têm suas próprias explicações do que é considerado estranho para outros. A segunda tem a ver com uma explicação objetiva, científica. Aproximação etológica Para Greenfield, o espiritismo kardecista concebe dupla realidade criada por Deus: uma, material e familiar, e a outra, habitada por espíritos e desconhecida. Os espíritos são entidades que animam as duas realidades. Quando na terra, vivendo em sociedades e habitando corpos, são chamados vivos ou encarnados; quando morrem, ou deixam o corpo, retornam ao mundo espiritual, são chamados espíritos ou desencarnados. Assim, é possível o contato entre vivos e mortos. Como os espíritos estão moralmente evoluindo, seja na Terra ou no mundo espiritual, os 263 espíritos devem reencarnar no planeta para aprender o necessário rumo ao aperfeiçoamento. Se o espírito, no uso do livre-arbítrio se rebelar, voltará para a Terra quantas vezes forem necessárias para rever a lição não aprendida. O Brasil tem forte influência de tradições africanas que, segundo essa crença, os espíritos dos mortos podem se ‘apossar’ do corpo dos médiuns, mas a crença de contatos espirituais é muito antiga, ultrapassa a África, fazendo parte de outros continentes. Para as religiões que acreditam na relação entre espíritos, os chamados médiuns, pelo espiritismo, podem receber espíritos que em vidas passadas praticavam curas, como médicos ou outros profissionais da saúde, e os médiuns sob influência desses espíritos, são denominados médiuns-curadores. Conforme os dois relatos de experiências anteriores, Zé Arigó e Antônio de Oliveira Rios não operavam ninguém, quem operava eram os espíritos que eles recebiam para a tarefa. “Cada um deles tem um espírito guia que opera usando seus corpos” (GREENFIELD, 1999, p. 121). Respectivamente, um espírito alemão chamado Dr. Adolph Fritz e o outro, um italiano, Dr. Ricardo Stams. Não é fácil aceitar a descrição de cirurgias praticadas com facas de cozinha ou serra elétrica, sem anestesia ou assepsia, a pessoa sair andando e ter restabelecimento rápido. Os espíritas dizem que esta é uma ciência do futuro. Para um cético é difícil aceitar a intermediação de espíritos de médicos usando o corpo de uma pessoa na cura de doenças. Mas esta é a explicação dos espíritas kardecistas, do ‘diferente’, o esclarecimento etológico (GREENFIELD, 1999). Faz-se importante notar que entre os espíritas kardecistas brasileiros, muitos são médicos, advogados, jornalistas, professores universitários e outras graduações acadêmicas, formados na racionalidade ocidental, e aceitam a crença de que as cirurgias são produzidas por espíritos do além, com tecnologia avançada, enxergando no espiritismo kardecista uma filosofia e uma prática científica, além da religão. O espiritismo kardecista nasceu advindo das experiências feitas com as conhecidas Irmãs Fox, que na década de 1840, em Nova Iorque, “relataram que haviam se comunicado com o espírito de um assassino que tinha sido sepultado no porão da casa de seus pais” (GREENFILED, 1999, p. 123). Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail), professor e diretor de um colégio, discípulo de Pestalozzi, formado em Letra e Ciências, na década de 1850 realizou uma pesquisa científica sobre o fenômeno paranormal das ‘mesas girantes’, que na época tinha virado moda 264 e diversão das classes superiores e concluiu pela existência dos espíritos. Estudioso de magnetismo animal do médico austríaco Anton Mesmer, Kardec publicou entre outros livros, “O livro dos Espíritos” (este, com 1008 perguntas e respostas que os espíritos lhe deram) e “O Livro dos médiuns” (MAIOR, 2013). Mas não é assim que pensa a antropologia. O modelo etiológico da antropologia As orientações antropológicas de E. B. Taylor e G. Frazier , afirmam que “toda cura ou intervenção no mundo material provocada por espíritos ou outros seres sobrenaturais, sem nem considerar a evidência, devem ser rejeitadas imediatamente como superstição” (GREENFIELD, 1999, p.125), mas Greenfield não se fixa aí. Somente com as pesquisas de Lévi-Strauss, na década de 1960, em que une cura xamanística com psicanálise, compreende-se que os pacientes curados criam um mito e revivem em seu psiquismo. É na relação entre curador e paciente que se cria a força mítica da cura. E, portanto, a cura surge desse ritual simbólico significativo na mente do paciente, onde as informações culturais e ou religiosas se transformam em imaginário, repleto de representações. Existem estudos associando doenças com questões culturais (UCHÔA e VIDAL, 1994; ALVES e RABELO, 1998), e o papel do processo terapêutico transpassando valores sociais e culturais. De certo modo, algumas crenças do indivíduo contém a cura, bastando para isso serem despertadas ou induzidas. Por isso, Greenfield concorda que apenas as doenças psicossociológicas e culturais podem ser sanadas pelos médiuns-curadores, não as doenças físicas, que somente a biomedicina resolve. No entanto, Greenfield é claro ao asseverar ser essa uma tendência nova, mas muito pouco ela elucida as cirurgias espirituais descritas anteriormente. Lévi-Strauss abriu a porta para outras interpretações mais condizentes. Nesse sentido, Greenfield vê em Ernest L. Rossi, na obra “A psicobiologia da cura mente-corpo”, a explicação científica nos limites da ciência médica, na medicina alternativa, junto ao desenvolvimento de áreas como a neurologia, imunologia, endocrinologia entre outras. Rossi é um psicólogo que usa a hipnose em sua prática 265 clínica e, segundo ele, a hipnose revê e supera a teoria mente-corpo ao mostrar que o corpo humano é uma rede sistêmica de informações, onde a genética, o sistema límbico-hipotalâmico, o imunológico e outros decodificam informações recebidas pelo cérebro. Para Rossi, o sistema límbico-hipotalâmico é o principal responsável pela codificação entre corpo e mente, encarregado de psicossomatizar afecções. Esse sistema faz a ponte entre informações simbólicas (entre elas, a comunicação semântica) e o soma. “O resultado é um modelo de interação e interdependência mente-corpo no qual a teoria da informação oferece as imagens básicas que abrem caminho (...) para uma vasta gama de possíveis alternativas terapêuticas” (GREENFIELD, 1999, p.130). Além da hipnose alterar o fluxo sanguíneo para algumas regiões do corpo, ela também contribui para controlar os hormônios estressores, como a cortisona, liberando beta-endorfina, atenuadora da dor. Também fortalece o sistema imunológico do corpo, evitando infecções e doenças. Se os pacientes operados nesse estudo foram hipnotizados, talvez o fato de terem sentido quase nenhuma dor se possa explicar pelas sugestões emitidas pelos médiuns-curadores para que fossem liberadas as beta-endorfinas. Da mesma forma, mudanças no fluxo de sangue para específicas partes do corpo podem explicar a ausência de excessivo sangramento. E sugestões que estimulam o sistema imunológico podem reduzir os casos de infecções ou outras complicações pósoperatórias em condições não esterilizadas (GREENDFIELD, 1999, p.131). Para Greenfield, essa explicação é razoável, mas ainda falta algo. Sabe-se que a hipnose não é comum a todas pessoas, isto é, existem pessoas que não possuem traços de personalidade hipnotizáveis. Há medições de escala de hipnose que evidenciam aqueles que são menos até os mais suscetíveis. Em um estado normal de consciência, as pessoas não são facilmente hipnotizáveis, levando a compreender que o estado de transe é induzido pelo hipnotizador; nos casos anteriores, pelo médium-curador. O funcionamento normal da consciência abre espaço para o estado de transe sugestionado pelo curador. Conforme Cavalcanti (1983), o transe é um estado orgânico e fisiológico alterado pelas vias mentais. Para que isto ocorra é necessária uma relação especial entre hipnotizador e paciente ou sujeito, uma espécie de ‘conexão hipnótica’. É 266 comum pensar que transe é loucura ou ‘coisa de anormal’, mas quando ela ocorre na maioria das religiões, pensar tal afirmativa não se sustenta (GREENFIELD, 1999). Vale ressaltar que a hipnose, uma espécie de transe ou estado alterado da consciência, excita a imaginação, a atenção, também envolvidas com a memória, a aprendizagem e o comportamento assimilado; tudo isso ocorre na psique estimulando o sistema nervoso autônomo, o sistema endócrino, o sistema imunológico e outros, numa atuação holística . Apesar de todo esse processo complexo curativo, as explicações deixam a desejar para Greenfield; assim, busca aprofundar a compreensão da atuação dos símbolos na mente humana pois, através do símbolo mental advém a cura; levando a inferir que doente despossuído dos símbolos não se cura. Se os símbolos por si só não curam, havendo a necessidade de despertá-los, sem eles a cura não se processa. Que força os símbolos têm? Por quais meios ocorrem? As pesquisas feitas por Felicitas G. Goodman, testemunham que o ritual religioso é uma espécie robusta de comunicação, talvez a comunicação mais exaltada (GOODMAN in GREENFIELD, 1999, p.135). “No seu desenrolar, a informação sobre a outra realidade, com suas forças misteriosas e seres poderosos, é transmitida aos participantes” (GREENFIELD, 1999, p.135). Além dos padrões de pensamento, o ritual modifica o ser. Para quem está iniciando um rito de passagem, Tanto ensina aos neófitos como pensar com algum grau de abstração sobre o seu ambiente cultural (e as forças existentes nele), como também lhes fornece os padrões definitivos de referência. Ao mesmo tempo, mudam-lhes a natureza, convertendo-os em outros tipos de seres humanos (TURNER in GREENFIELD, 1999, p.135). Dessa maneira, engana-se quem pensa da necessidade da linguagem verbal ou conceitual. Göran Aijmer certifica que na interação das pessoas, estas se servem de imagens e, às vezes, devido às suas fortes imagens, não são captáveis em termos linguísticos. Para Aijmer, “as imagens se fazem conhecer a si mesmas através das instituições culturais, não através do pensamento reflexivo. A imagística, especialmente na forma de ícones estáveis, estrutura e sustenta o discurso oficial” (AIJMER in GREENFIELD, 1999, p.135-136). Esse fluxo simbólico não necessariamente tem fundamento cognitivo, mas intuitivo. Não está na memória ao nível da resposta do ‘que dia foi ontem?’. “Ele parece operar mentalmente mais 267 como gravuras visuais do que como formulações verbais e sua semântica depende da presença simultânea de elementos que são em si mesmos imagens” (AIJMER in GREENFIELD, 1999, p.136). Desse modo, a imagística cultural dá-nos uma espécie de competência social introduzindo valores morais de integridade, ordem, outros e, por fim, a invocação da divindade. Greenfield denominou este ‘local imagístico’ de ‘realidade alternativa de cultura’, uma capacidade de fazer registros sem perceber, em que a consciência é dispensável, reinando a ordem sugestionada. No momento da cura espiritual, o doente emite sinais em resposta ao ritual religioso, adentrando na realidade alternativa de cultura, propícia em estados alterados de consciência, hipnose, sono e sob efeitos anestésicos. Dessa forma, Os conhecimentos embutidos na sua compreensão das coisas sagradas, muitas vezes em forma de imagens que incluem a causa eficiente da doença e da sua cura, sejam comunicados como informação, isto é, decodificada da cultura através da mente ou da psique do indivíduo para o sistema nervoso autônomo, o sistema endocrinológico, o sistema imunológico, etc. (GREENFIELD, 1999, p.137). Portanto, relembrando os casos anteriormente tratados pelos médiunscuradores Zé Arigó e Antônio de Oliveira Rios, a ausência de dor, o pouco sangramento, a inexistência de infecções, a rápida recuperação pós-cirúrgica, são descritas por Rossi em seu modelo de interação mente-corpo junto à compreensão da realidade alternativa de cultura, contribuição antropológica de Greenfield, em que os rituais transmitem sinais comunicados e captados, normalmente em formas de imagens, mas também por meio de expressões verbais. Considerações finais Greenfield mostra que as cirurgias acontecem realmente, mas que elas não são propriamente espirituais, são resultados de inter-relações entre mente-corpo e aspectos simbólicos. Presumimos que, assim como Rossi percebia informações entrando na mente e desencadeando uma conexão de sistemas orgânicos, podemos entrever o mesmo na mente simbólica, ou seja, sinais exteriores, não necessariamente conscientes, excitam imagens que estão encadeadas a conexões 268 simbólicas na realidade alternativa de cultura, e complementam a rede mente-corpo, numa simbiose recíproca. Alimentar essa hipótese de Greenfield em muito contribui para o conhecimento do mecanismo psíquico-físico na atuação da doença-cura. Descobrir o meio pela qual atua ou deixa de atuar é conhecimento importante na prevenção e equilíbrio da vida intelectual e prática do dia a dia. Faltam divulgações dessa hipótese e mais pesquisas. Se os símbolos, como fluxo de informação, são extremamente relevantes por sustentarem nossa qualidade de doença ou bem-estar, podemos perquirir sobre quais são esses e em que quantidade podemos melhorar esse estado. Como ficou subentendido, os símbolos são meios de solucionar problemas físicos e mentais. Pressupõe-se que esta ação é um passo na conquista da auto-hipnose, no maior controle do que ocorre internamente em cada pessoa, consigo mesma. Por outro lado, esta explanação ‘sistêmica’ talvez seja porta aberta ao entendimento do famoso efeito placebo ou o desvelamento da cura pela fé. Provavelmente, o efeito placebo é o efeito do que acontece no psiquismo do doente quando os signos influem em seus símbolos. Se o paciente acredita na cura, mesmo que se corte a carne da pessoa, ou que não se corte, mesmo que se acredite tomar remédio forte, quando na verdade se toma farinha com açúcar ou outros ‘milagres’, depende da pessoa crer ou não, mas não uma simples crença, sim uma crença mais ‘profunda’, isto é, aquela que atua nos símbolos psíquicos para que estes atuem nos sistemas imunológico, nervoso e outros e, consequentemente, a cura. Mais uma vez, a importância de perscrutar tais símbolos, o ‘santo graal’ da doença-cura. Greenfield levantou uma hipótese a respeito da “cura cirúrgica”, a cura advinda da crença religiosa do doente sob influência do médium e de todo contexto religioso. Mudemos o foco para o médium-curador, para o problema mais etológico ou etiológico. Será que os conhecimentos do médium advieram da realidade alternativa de cultura? Se sim, como entraram lá? Compreender completamente o conjunto do ‘fenômeno cirúrgico espiritual’ ainda está distante, uma vez que tanto Zé Arigó, como Antônio de Oliveira Rios eram semianalfabetos, ou seja, não tinham ensino fundamental completo, mas ‘possuíam’ um conjunto de conhecimentos práticos médicos, empiricamente saberes somente advindos de anos de estudo em faculdades da área. Recordando o caso 269 relatado, Zé Arigó começou “a raspar com a faca o interior do globo ocular e por dentro das pálpebras, pressionando-o para fora com desinibida força” (GREENFIELD, 1999, p.22). De onde veio tamanho conhecimento desses médiuns que, devido sua rapidez, entre outras qualidades, deixava médicos experientes atônitos, como visto no caso Zé Arigó pelo médico Puharich? Antonio de Oliveira Rios depois de abrir com bisturi um corte ao longo da espinha dorsal, “cravou uma tesoura num ângulo da ferida aberta. Com outra tesoura, martelou a primeira mais para dentro, até que a pudessem ouvir batendo contra o osso” (GREENFIELD, 1999, p.119). Ninguém pode consertar um motor de carro de alta tecnologia se não aprendeu, mesmo que se tente consertar esse motor de tecnologia avançada, faz-se necessário bastante tempo de estudos e práticas. Agora, imagine consertando o motor do carro com uma moto serra. Ninguém pode fazer uma cirurgia com moto serra sem alguns conhecimentos técnicos do manejo da máquina, da profundidade e extensão necessária do corte e da delicadeza do corpo humano, dos músculos, dos nervos e toda rede orgânica em mexer perto da espinha dorsal, local sabidamente vulnerável. Exige-se muito mais explicação que simplesmente hipnose, conexão simbólica junto a conexão orgânica (sistema nervoso, endócrino, imunológico e outros). Talvez uma interpretação epistemológica, além da etológica e da etiológica. Desde que Einstein descobriu que matéria é um emaranhado de energia concentrada (E=mc2), algumas portas se abriram para a ampliação da contribuição etológica/etiológica. Robson Pinheiro nos fala de variedade de energia vibratória a percorrer os corpos. Energia originada de pensamentos, sentimentos, emoções, ou estados conscienciais que influem no corpo, ou soma. Para Pinheiro, se os estados conscienciais vibrarem em teor negativo, podem bloquear energeticamente determinada área, originado a doença psicossomática. Dessa forma, para António Damásio, as doenças psicossomáticas iniciam-se por uma “avaliação cognitiva do acontecimento, que invoca imagens cerebrais verbais e não verbais” (CRUZ e PEREIRA JÚNIOR, 2011, p.61). Pelo exposto, as aclamadas controvérsias entre etologia e etiologia não são tão controvérsias assim, visto que uma complementa a outra, se pautando nas considerações de Greenfield. O espiritismo de Kardec assevera a existência de energias vibratórias a circular na mente, sendo qualificadas positivas ou negativas 270 de acordo com o pensamento emitido (PINHEIRO, 2007). Talvez, o que uma chama de energia vibratória, outra denomina de fluxo simbólico, mas ainda faltam informações no entendimento do fenômeno da raspagem do olho ou da serra elétrica. Referências ALMEIDA, Alexander M. de; ALMEIDA, T. M. de; GOLLNER, A. M.. Cirurgia espiritual: uma investigação. Rev. Ass. Med. Brasil, 46(3), 2000. ALVES, Paulo César; RABELO Miriam Cristina (orgs.). Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Fiocruz/Relume Dumará, 1998. CAVALCANTI, Maria Laura V. de C. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no Espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. CRUZ, Marina Zuanazzi; PEREIRA JÚNIOR, Alfredo. Corpo, mente e emoções: referenciais teóricos da psicossomática. Rev. Simbio-Logias, v.4, n.6, Dez/ 2011. FATO REAL. O portal de notícias de Lafaiete e região. Morre a viúva do médium Zé Arigó. 2014. Disponível em: http://fatoreal.com.br/site/morre-a-viuva-do-medium-zearigo/ Acesso em: abr. 2016. GREENFIELD, Sidney M. Cirurgias do Além: pesquisas antropológicas sobre curas espirituais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. MAIOR, Marcel Souto. Kardec: a biografia. São Paulo, Record, 2013. PINHEIRO, Robson. Medicina da alma. Pelo espírito Joseph Gleber. Contagem, MG: Casa dos espíritos, 2007. UCHÔA, Elizabeth; VIDAL, Jean Michel. Antropologia médica: elementos conceituais e metodológicos para uma abordagem da saúde e da doença. Cad. Saúde Públ. Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994. 5. ATUAÇÃO ESPIRITUAL NA CURA DO CÂNCER: BREVES RELATOS Maria Gorete Santos Jales de Melo79 Mirinalda Alves Rodrigues dos Santos80 Mestranda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (mar.goretesantos@gmail.com). 79 271 Roberto PereiraVeras81 Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo apresentar a procura das pessoas pelo alívio de suas dores pela cura de suas enfermidades através da espiritualidade como sendo fato comum. Sendo assim, o número de estudos que investigam a relação entre espiritualidade e saúde tem consideráveis implicações no campo das religiões atuais. Portanto, faz-se necessário explorar cientificamente a relação entre espiritualidade e saúde, uma vez que é uma perspectiva híbrida aparentada de preconceitos e críticas discrepantes em relação à espiritualidade. Isso porque essa questão vai desde a negação dogmática ao ceticismo intolerante de uma aceitação simples com afirmativas insuficientemente fundamentadas. Para tanto, utilizaremos como objeto de estudo a União Espírita Diogo de Vasconcelos Lisboa, cujo lugar se torna expressivo para realizações desses procedimentos cirúrgicos-espiritual ante as múltiplas problemáticas: físicas, psicológicas, e principalmente para a cura do câncer. Assim procedendo, iremos apresentar relatos de algumas pessoas enfermas assistidas e tratadas nessa instituição religiosa. Palavras-chave: Câncer. Espiritualidade. Tratamento. A motivação de realizar esse estudo teve início durante participação de um dos autores com assistente voluntária na instituição religiosa União Espírita Diogo de Vasconcelos Lisboa, onde tivemos a oportunidade de entrar em contato com diversas pessoas passando pelo enfrentamento de variadas doenças consideradas graves e incuráveis pela medicina tradicional, inclusive diferentes tipos de câncer através dos relatos de algumas pessoas enfermas assistidas e tratadas na instituição religiosa, pudemos perceber que a grande maioria delas afirmava ter procurado o tratamento terapêutico daquela instituição pelo fato de já não mais haver encontrado alívio nem cura para sua enfermidade através das terapias tidas como convencionais. Nesse sentido buscamos analisar de forma mais sistematizada e científica, através da aplicação de um questionário, os relatos como se deu ou se dá o processo de cura delas, uma vez que muitas dessas pessoas relatam (em tom de 80 Mestra e aluna especial do Doutorado em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (mirirodrigues2@gmail.com). 81 Mestre e Doutorando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA. Membro do Grupo de Pesquisa SACRATUM/UFPB. Membro da Associação Brasileira de Filosofia da Religião - UNB (robertoveras_cg@hotmail.com). 272 desabafo) com alegria e entusiasmo sobre a cura total de suas enfermidades gravíssimas e incuráveis, segundo elas mesmas. Interfaces da Mediunidade e da cura Durante toda a história da humanidade saúde e espiritualidade sempre estiveram presentes nas diversas sociedades ligadas através de crenças, práticas e experiências espirituais. A influência espiritual exerce sobre um número significativo de pessoas, isso pode observado nos rituais e cultos evangélicos, na renovação carismática católica ou nos centros espíritas, as pessoas estão resgatando o sagrado nas manifestações e rituais das práticas religiosas das igrejas e/ou instituições religiosas. O sagrado é algo intrínseco ao homem que, em sua essência, ele busca a religação com Deus. Esta religação faz com que se sinta protegido, tanto no aspecto físico, quanto no âmbito psicológico e espiritual. Apesar do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, sempre se conservou uma ligação entre a cura do corpo vinculado a um aspecto sobrenatural, condicionados a uma crença como instrumento intercessor para trazer a cura, principalmente quando esgotados todos os recursos conhecidos pela medicina convencional. Mais recentemente Koenig verificou que 90% dos pacientes dizem que suas crenças e suas práticas religiosas são importantes elementos através dos quais podem melhor enfrenta e compreender suas enfermidades, e mais de 40% afirmam que a religião é o fator mais importante para auxiliar ajudam nessa circunstância da vida. Assim sendo, acredita-se ser de extrema importância uma reavaliação da influência da espiritualidade nas condições de busca pela saúde, incluindo-se a sua participação no processo de cura. “A espiritualidade, relacionada ou não à religiosidade, historicamente tem sido ponto de satisfação e conforto para momentos diversos da vida, bem como motivo de discórdia, fanatismo e violentos confrontos” (GUIMARÃES; AVEZUM, 2007, p. 89). Apesar do avanço tecnológico e científico, percebe-se uma visão muito conservadora e separatista, entre corpo e espírito, por parte da medicina tradicional. Sobretudo no entendimento da cura quando foge do alcance das explicações sobre científicas e convencionais. Na sua raiz a medicina não fazia a distinção no homem 273 do seu corpo e do seu espírito, mas percebia-se a manifestação humana como um todo. Não compete mais à religião cuidar unicamente da salvação da alma e deixar para a medicina a salvação do corpo. E este é um desafio que se apresenta neste nosso século. Percebe-se atualmente que as pessoas estão buscando, através de outras terapias alternativas e menos ortodoxas, para o alívio para as suas dores e cura para suas doenças, independentemente de religião. Assim sendo, há um grande campo de pesquisa para o desenvolvimento da temática Espiritualidade e Saúde. Breves relatos da influência da Espiritualidade na cura do Câncer A instituição religiosa União Espírita Diogo de Vasconcelos Lisboa, localizada na Rua Rodrigo Jansem, s/n Bairro Ernani Sátiro - João Pessoa, Paraíba. O seu atendimento são nas segundas, nas terças e nas quartas-feiras e também nos sábados, sendo este dia especificamente para realização de consultas, tratamento terapêutico e cirurgias mediúnicas. Recebe centenas de pessoas que procuram aquele local na busca da recuperação de sua saúde. Doenças que vão desde problemas psicológicos, emocionais, bem como casos graves de diversos tipos câncer, na maioria das vezes, são casos até mesmo já desenganados pelos médicos convencionais. Na instituição, a cirurgia é realizada por um médico espírito que se chama Dr. Romano, por meio do fenômeno de incorporação, através de um médium. Os voluntários assistentes que auxiliam diretamente o médico espiritual são, em grande maioria, da área de saúde. Assim, apresentamos aqui os relatos feitos por pessoas que são assistidas na referida instituição. Faremos a análise da aplicação do questionário que foi realizado com pacientes oncológicos voluntários e em tratamento, homens e mulheres com faixas-etárias e nível sócioeconômico diversificado. A seleção será realizada aleatoriamente, considerando os pacientes atendidos pela instituição religiosa União Espírita Diogo de Vasconcelos. O questionário tinham quatro (4) perguntas e foi realizado com três (3) pacientes, sendo que duas (2) são do sexo feminino e um (1) do sexo masculino. Para a preservação da identidade dos mesmos daremos nomes fictícios respectivamente, PACIENTE (1), PACIENTE (2) e PACIENTE (3). A primeira pergunta diz respeito: O que fez você procurar tratamento de saúde nesta instituição e há quanto tempo? 274 PACIENTE (1) feminino: “Eu busco a cura para a doença que me acometeu há 6 anos. Depois que vim pra cá, há 5 anos, melhorei consideravelmente. Antes eu nem andava”. PACIENTE (2) feminino: Eu vim pra cá porque fui desenganada pelos médicos. E eu soube que aqui era referência na cura de diversas doenças, inclusive o câncer. Eles disseram que eu não ia morrer disso, mas que ia morrer com isto, com essa doença. Eu estou me tratando aqui há 1 ano’. PACIENTE (3) masculino: “Eu vim procurar tratamento aqui porque os médicos disseram que eu poderia morrer se fizesse a cirurgia para retirar o tumor eu tenho”. Podemos observar nessas primeiras respostas que fez levar esses pacientes a buscar essa instituição diz respeito a esperança do alívio para as suas dores e cura para suas doenças, em específico o câncer. Conforme Aureliano (2013, p. 21), “A busca pelo tratamento complementar/espiritual também foi apontada como uma forma de proporcionar às pessoas com câncer um espaço para a expressão dos seus sentimentos com relação à doença, o que, segundo eles, o sistema médico oficial não oferece”. A segunda pergunta era: Você pode falar a sua doença? PACIENTE (1) feminino: “Sim, posso sem problemas. Eu tenho um problema na principal válvula do coração, uma espécie de estreitamento. Precisaria de um transplante”. PACIENTE (2) feminino: Posso sim. Eu tenho um tipo de câncer raro no intestino desde a adolescência, mas somente depois de adulta, há 3 anos foi que se descobriu que se tratava de um câncer. Essa doença, a pessoa não controla as fezes, sai sem a pessoa sentir, uma espécie de diarreia continua, entende? Eu passei a adolescência inteira com isso, de fralda porque se não sujava a roupa. Perdi a minha juventude. Não podia sair, me divertir só estudava. PACIENTE (3) masculino: “Sim, tenho um tumor na laringe e os médicos me deram 6 meses de vida e isso já faz 3 anos!” Nota-se nas respostas dos pacientes afirmam a melhor e eficácia desses tratamentos, observando assim, que tinham sido desenganados pelos médicos 275 convencionais. Mas quando começaram o tratamento na União Espírita Diogo de Vasconcelos sentimentos como bem - estar e a autoestima são internalizados pelos mesmos em relação a uma cura espiritual. Diante da terceira pergunta: Você abandonou ou continua com o tratamento convencional? PACIENTE (1) feminino: “Eu continuo com o tratamento convencional sim. Não pode deixar não! Uma coisa é a matéria, outra coisa é o espírito. Tô curando aqui não só o meu corpo material, mas também o espiritual, os dois!”. PACIENTE (2) feminino: Eu continuo sim com o tratamento convencional. A indicação aqui é que se continue com o tratamento com os médicos aqui da Terra. Aqui eles tratam o nosso corpo espiritual. Eu não tinha essa mentalidade, achava que era só matéria e pronto, agora entendo que somos a soma de corpo, mente (cérebro) e espirito. E tudo isso rege a nossa existência. PACIENTE (3) masculino: “Eu faço só exames de rotina, não abandonei por completo não!”. Podemos perceber que a espiritualidade permanece como uma manifestação humana para poder ser utilizada em favor do doente, e/ou a oferecer uma resposta às questões aflitivas da existência humana essas questões são reforçadas nas falas das Pacientes (1) e (2). Já a quarta e última dizia respeito: Você percebeu alguma diferença na sua saúde desde que está se tratando aqui? Explique. PACIENTE (1) feminino: Sim, sim! Antes eu estava muito debilitada, ficava cançada ao menor esforço Mas depois que conheci esse lugar, me sinto outra. Pronta para a ajudar as outras pessoas na cura de suas doenças. Sou voluntária aqui.Os meus médicos nem acreditam na minha melhora! Eles ficam admirados como a válvula alargou, disseram que é como se eu tivesse feito um transplante! Não sabem como se explica isso! PACIENTE (2) feminino: Não só percebi, como senti essa diferença. Eu me curei!!! Só vou ao banheiro 2 vezes ao dia. Coisa que fazia umas 10 a 15 vezes. Até os médicos ficam impressionados. É como se eu tivesse ganhado um intestino novo. A textura é outra, parece que fiz um transplante, os médicos dizem pra mim. PACIENTE (3) masculino: 276 Percebi sim. Primeiro que eu só tinha uma perspectiva de 6 meses de vida e estou vivo aqui contando essa história! Antes eu tomava muitos remédio fazia quimioterapia e me sentia muito mal com os efeitos colaterais. Estou sem o tumor, ele regrediu e os médicos não sabem como isso aconteceu! Atualmente só faço a químio, para ele não crescer. E o tratamento aqui, claro! Nesses últimos relatos podemos verificar que os pacientes assistidos na instituição mencionada nos apresenta uma melhora significativa no quadro de saúde dos pacientes, assim, faz-se necessário explorar cientificamente a relação entre espiritualidade e saúde. Uma vez, que esse campo cheio de controvérsias, preconceitos e críticas favoráveis e desfavoráveis em relação, especificamente, a espiritualidade, que vai desde a negação dogmática ao ceticismo intolerante e/ou uma simples e ingénua aceitação com afirmativas insuficientemente fundamentadas. “Embora o campo da religião, espiritualidade e saúde ainda esteja na infância e sejam necessárias muitas pesquisas para verificar (ou refutar) descobertas prévias, muito trabalho considerável já foi feito [...]” (KOENING, 2010, p 23). Conclusão Diante dos relatos podemos dizer que a busca das pessoas pelo alívio de suas dores e pela cura de suas enfermidades através da espiritualidade é um fato bem comum, Sendo assim o número de estudos que investigam a relação entre espiritualidade e saúde tem crescido consideravelmente. Pesquisadores, profissionais de saúde e, sobretudo a população em geral têm, cada vez mais reconhecido a importância da dimensão espiritual para a saúde. Em suma, as experiências espirituais têm sido um dos elementos mais influentes e importantes na maioria das sociedades, sobretudo, tendo em vista a precariedade da saúde no nosso país, em que cada vez mais as pessoas têm dificuldade ao acesso a um atendimento eficiente e humanizado. Referências AURELIANO, Waleska de Araújo. Terapias espirituais e complementares no tratamento do câncer: a experiência de pacientes oncológicos em Florianópolis (SC). Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 2013. 277 GUIMARÃES HP, AVEZUM A. O impacto da espiritualidade na saúde física. Rev. Psiq. Clin. 2007. KOENIG Harold G. Espiritualidade no cuidado com o paciente. São Paulo:Fé Editora Jornalística, 2005. ___________. Medicina, Religião e Saúde - O encontro da ciência e da espiritualidade. Tradução: de Iuri Abreu – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012. 6. AS ASSOCIAÇÕES MÉDICAS ESPÍRITAS - AMEs: diálogo entre ciência, saúde e religiosidade Welthon Rodrigues Cunha82 Elza Maria do Socorro da Silva83 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo realizar uma análise das Associações Médicas Espíritas – AMEs e da proposta das mesmas em realizar um diálogo entre ciência e religiosidade espírita kardecista dentro do contexto das ciências da saúde e, especificamente, das ciências médicas. As AMEs procuram superar o paradoxo entre ciência e religião ao tentar legitimar o que eles chamam de paradigma médico-espírita que propõem criar uma nova concepção de ciência médica a partir de concepções do universo espírita. Por outro lado as AMEs denotam a existência de um grupo de sujeitos religiosos, com formação médicacientífica, que buscam legitimar através das atividades destas associações a sua própria religiosidade e assim ressignificar o seu universo profissional. Palavras-chave: Associações Médicas Espíritas; Ciência Espírita, Paradoxo médico-espírita. O termo espiritismo foi inventado por Allan Kardec, pseudônimo do pedagogo francês Hippolyte Leon Denizard Rivail (1804 – 1869), considerado pelos próprios espíritas como o criador e principal teórico do movimento (VASCONCELOS, 2003). Kardec e o espiritismo surgiram no final do século XIX, quando ocorria na Europa uma onda de interesse, tanto popular quanto científico, para fenômenos insólitos, cuja causa era atribuída a ação de espíritos de mortos (VASCONCELOS, 2003). A proposta de Filósofo, Biólogo, Mestre e Doutor em Ciências da Religião, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Goiatuba – FAFICH. 83 Pedagoga, Mestranda em Educação, professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Goiatuba – FAFICH. 82 278 Kardec procurava criar mais uma nova ciência, a ciência dos espíritos, do que uma forma de religiosidade84. Este tipo de pesquisa era chamado de pesquisa psíquica ou psychical research, na Inglaterra e EUA, e espiritualismo ou metapsíquica, na França. A primeira vai culminar na moderna parapsicologia e a segunda no espiritismo (VASCONCELOS, 2003). Merece destaque na estruturação deste grupo de pesquisadores a fundação, em 1882, da Society Psychical Research (SPR), em Londres, cujo objetivo principal era investigar a possibilidade de comunicação com os mortos e a sobrevivência do espírito após a morte (ZANGARI, 1996). No Brasil o espiritismo surge ‘oficialmente’ em 1865, na Bahia, com a fundação do primeiro centro espírita brasileiro, designado de ‘Grupo Familiar do Espiritismo’. Interessante é que a chegada do espiritismo no país coincidiu com a entrada da Homeopatia, que na época era uma prática terapêutica ainda não validada pela ciência ‘oficial’. Esta prática terapêutica alternativa encontrou como o espiritismo forte oposição social, no caso do espiritismo pelo catolicismo e no caso da homeopatia pela classe médica brasileira (ALMEIDA, 2007). Foi com o médico o cearense Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831 – 1900), assume a direção da Federação Espírita Brasileira – FEB em 1889 que se inicia um processo de divulgação de um espiritismo em bases mais assistencialistas, principalmente voltado para o auxílio à saúde e às doenças mentais, o que sem dúvida a sua formação médica influenciou. Sua prática médica voltada especialmente para o auxílio aos pobres e necessitados levou a sociedade da época a lhe conferir o título de ‘médico dos pobres’, onde acreditava que a cura de problemas físicos e mentais, deveria passar concomitantemente por um tratamento físico e moral do paciente 85 (VILHENA, 2008). O século XX assistiu a tentativa dos espíritas de evitarem serem associados a religiões mediúnicas afro-brasileiras, como a Umbanda, pois seu ‘publico alvo’ era outro, mas também pelo fato de uma verdadeira perseguição a religiões mediúnicas ter se intensificado no Brasil durante o governo Vargas. Por causa disto o espiritismo foi a forma de religiosidade mediúnica que menos sofreu perseguições neste período. Porém, outro Atitudes de caráter religioso eram inclusive combatidas pelos espíritas franceses e mesmo pelo espiritismo quando chegou no Brasil (CUNHA, 2013). 85 A figura de Bezerra de Menezes é utilizada como ícone pelas AMEs, por ter sido ele um médico e espírita e ao mesmo tempo representar um posicionamento mais assistencialista, mais humanista, na prática da medicina. N.A. 84 279 fator ajudou a acirrar esta perseguição, a busca da psiquiatria, que buscava se legitimar e se consolidar de forma autônoma nos domínios médicos-acadêmicos da sociedade. A psiquiatria era marginalizada dentro do próprio meio acadêmico e o fato do Espiritismo também estar tentando se legitimar dentro do campo da ciência com outra proposta na área da saúde mental, levou a um embate entre espíritas e psiquiatras, que chegou a mídia da época. (ALMEIDA, 2007). O fim deste embate se encerra praticamente na década de 50 do século XX, onde os espíritas passaram a qualificar seu movimento de religião, ao invés de ciência como faziam, para evitar a perseguição dos psiquiatras que se restringiam ao campo médicocientífico (ALMEIDA, 2007). Finalmente, foi com o médium e escritor Francisco de Paula Cândido Xavier (1910 – 2002) que se consolidou este modelo de espiritismo de caráter mais religioso (LEWGOY, 2001). Fundação e contexto das AMEs: Segundo a Revista Saúde e Espiritualidade, órgão oficial de divulgação a AME – Brasil, a AME Brasil foi fundada em 17 de junho de 1995, durante o III Congresso Médico-Espírita do Brasil, com o objetivo de congregar e promover a criação de outras associações congêneres e regionalizadas pelo Brasil. Na época existiam apenas a AME – SP e a Associação Médica Espírita Mineira (CAMPOS, 2010). A AME – SP surgiu quando em 1967 médicos espiritas daquele estado se reuniram sob a liderança do médico homeopata Luiz Monteiro de Barros (191-1982) que também traçou os objetivos da sociedade, que seria principalmente divulgar o que eles chamam de ‘paradigma médicoespirita’. Porém foi somente me 1968 que a associação foi formalizada. Já em 1999 foi criada, durante outro congresso que teve participação de médicos de seis países (Panamá, Portugal, Brasil, Guatemala, Argentina e Colômbia) a Associação Médica Espirita Internacional. Na atualidade existem 62 AMEs em diversas cidades brasileiras, além de diversas outras em organização, o que denota ser uma rede com bastante capilaridade no país. Porém, foi somente a partir da década de 90 quando a médica e médium Sra. Marlene Nobre, assumiu a presidência da AME – SP, que a entidade apresentou um crescimento significativo. Marlene Nobre criou a AME – Brasil e da AME Internacional se tornando a presidente das duas, incentivou a criação de várias outras AMEs por todo o país, iniciou a partir de 1991 a realização de Congressos Médicos- 280 Espíritas, chamados de Mednesp a cada dois anos. Estes congressos objetivam a troca de experiências, a divulgação de pesquisas científicas que comprovem as teses espíritas e congregar outras AMEs (CAMPOS, 2011). Além disto, a AME- BR incentiva a inserção do ‘paradigma médico-espirita nos cursos de medicina o que foi está sendo feito através da criação da disciplina Saúde e Espiritualidade nos cursos de medicina da Universidade Federal do Ceará, na Universidade Federal de Minas Gerais, na Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e na Faculdade de Medicina de Taubaté (LUCHETTI, 2011). A AME- Br incentiva a pesquisa científica que é realizada formalmente em núcleos e grupos de estudo, formados por médicos-professores espíritas, em universidades brasileiras, se destacando o o Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos (NEPER), que hoje é designado como Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSER) dentro da Universidade de São Paulo – USP, o Núcleo de Estudos em Espiritualidade e Saúde (NUPES) dentro da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e o trabalho de pesquisa e formação realizado pela Faculdade Integrada Espíritas – FIES, de Curitiba (CUNHA, 2013). É relevante salientar que mesmo sendo teoricamente aberta a pesquisadores espíritas de quaisquer áreas, possuindo inclusive departamentos ocupados por profissionais que não são da área da medicina, como físicos e psicologos, a composição da diretoria das AMEs, em seu regimento, determina que deve ser composta obrigatoriamente por médicos, o que aponta ser a entidade centrada em torno dos interesses e visão que a classe médica têm sobre o espiritismo kardecista (SOARES, 2009). O Paradigma Médico-espírita: Um dos objetivos principais das AMEs é a divulgação e legitimação do que eles denominam de ‘paradigma médico-espírita’. Este é definido por uma série de ideias e suposições a serem aceitos pela comunidade e ciência médica, entre eles: a existência e imortalidade da alma, bem como sua preeminência sobre o corpo físico, existência de outros corpos que não o físico (períspirito), poder co-criador da mente, ação não local da consciência, possibilidade de comunicação dos espíritos por meio extra-sensoriais, existência da reencarnação do espírito como processo natural de um processo de evolução espiritual, saúde como um estado de harmonia entre corpo e alma, cura como 281 um processo de autocura (NOBRE, 2004 ). O paradigma médico-espírita afirma as principais teses espíritas e propõem uma nova visão holística e integradora da saúde e do processo de cura, chegando ao ponto de afirmar que todos os processos mórbidos são essencialmente mentais. Este paradigma abre a possibilidade para a confirmação e validação de outras terapias não convencionais pela medicina, como a cromoterapia, a musicoterapia e também de alguns processos curativos utilizados pelos espíritas, como a fluidoterapia, a desobsessão e a prece. Este paradigma também estabelece uma postura ética e social diferente do médico por parte do paciente, priorizando a afetividade, o respeito e os valores cristãos. Trata-se, segundo as próprias AMEs de uma ‘nova medicina’, de uma ‘medicina da alma’ (SOARES, 2009 e NOBRE, 2004). Segundo Soares (2009) o paradigma médico-espírita representa uma busca da classe médica de legitimação de uma nova forma de medicina, de uma medicina holística que rompe com o modelo tradicional, cartesiano de medicina e que o autor aponta como estando em crise. Os médicos espíritas, assim como médicos católicos que também fundaram uma associação semelhante, é buscar através da religião, no caso o espiritismo, uma legitimação popular de uma medicina mais humanizada, mais ética e menos dogmática e dessacralizada. Quando as AMEs colocam que o paradigma médicoespírita vai promover o surgimento de uma nova medicina, percebe-se que um grupo específico, os médicos espíritas, encontram neste paradigma e na organização e divulgação das AMEs, uma alternativa de modernização de seu campo simbólico, a ciência médica e de sua inserção em outros contextos sociais, que não o científicomédico, como o contexto social e o religioso (CUNHA, 2013, GEERTZ, 1989). Segundo Geertz (1989) a religião, como no caso o espiritismo, é um sistema simbólico extremamente rico de sentidos que cria uma cosmovisão, uma organização do mundo capaz de conferir sentidos a pessoas (privado) e a grupos (público). Assim, os médicos das AMEs, em busca de legitimação de suas teses de renovação e modernização da medicina vão buscar no sistema simbólico espírita e na sua cosmovisão sentidos e legitimação (GEERTZ, 1989). O fato do espiritismo trazer em seus pressupostos a ideia que é ‘uma ciência’ (na versão do espiritismo francês) e ao mesmo tempo humanista e assistencialista (na versão do espiritismo brasileiro) vai facilitar está aproximação e intercâmbio simbólico entre médicos e espiritismo. É relevante esclarecer que são sujeito médicos e espíritas que vão realizar este intercâmbio e não entre sujeitos espíritas com sujeitos médicos sem vinculação ao espiritismo. Verifica-se que desta forma 282 o confronto que se instaurou na primeira metade do século XX entre médicos e espíritas não é superado, mas apenas acomodado, pois não se trata de espíritas procurando legitimação dentro da ciência médica, mas médicos que usam a cosmovisão espírita para legitimar uma nova visão da medicina, da saúde e da doença (SOARES, 2009). Conclusão Pelo exposto, concluímos que as AMEs aparentemente não representam necessariamente uma tentativa de racionalização ou de comprovação científica dos fenômenos e teses espíritas por parte de médicos, mas na verdade se trata de uma utilização do espiritismo, de sua cosmovisão, de seu sistema simbólico por parte de um grupo de médicos em busca de legitimação e estruturação de uma ‘nova medicina’. Não se procura na proposta das AMEs romper com o confronto entre medicina e espiritismo, pois ainda se continua mantendo o exclusivismo e o corporativismo da classe médica no trato de questões relativas a saúde e cura material. Por outro lado o meio espírita pode se beneficiar muito com este intercâmbio, pelo menos enquanto o dito ‘paradigma médico-espírita’ não se estruturar e se legitimar, pois representa a possibilidade de ver suas teses e cosmovisão reproduzidas e aceitas dentro de um contexto que histórica e cientificamente os excluiu (ALMEIDA, 2007). Ainda existem muitas questões sobre este tema que ainda necessitam de investigação, como a questão do intercâmbio entre as AMEs com a comunidade médica tradicional e também com a comunidade espírita. Será que as pesquisas que as AMEs vêm realizando com o objetivo de procurar comprovar, legitimar seu paradigma médicoespírita podem ser consideradas válidas do ponto de vista científico ou estão na verdade construindo outro parâmetro de cientificidade, como Kardec tentou fazer no século XIX com a ciência espírita (CUNHA, 2013)? Todas estas questões ainda estão sem resposta e denotam um intercâmbio entre ciência e religião ou a uma nova concepção das ambas. Referências 283 ALMEIDA, Angélica Aparecida de. Uma fábrica de loucos: psiquiatria X espiritismo no Brasil (1900-1950). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Estadual de Campinas. São Paulo, 2007. CAMPOS, Giovana. A Associação Médica-espírta de São Paulo: pioneirismo no binômio saúde-espiritualidade, parte II (1980 – 2010) . in: Revista Saúde da Alma. nº 02, Jan/Fev/Mar de 2011. AME – Brasil, São Paulo. ________________. A Associação Médica-espírita de São Paulo: pioneirismo no binômio saúde-espiritualidade, parte I (1967 – 1980). In: Revista Saúde da Alma. nº 01, Out/Nov/Dez de 2010. AME – Brasil, São Paulo. CUNHA, Welthon Rodrigues. Transe mediúnico, entre a ciência e a religião: uma análise sobre as relações entre o espiritismo e a parapsicologia. Tese Doutorado (Programa em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiás, 2013. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. LEWGOY, Bernardo. Chico Xavier e a cultura brasileira. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 44, nº 01, 2001. Disponível em: C:\Users\Welthon\Desktop\Revista de Antropologia - Chico Xavier e a cultura brasileira.mht . Acesso em: 10 de Julho de 2012. LUCHETTI, Giancarlo. Pesquisa em Saúde e espiritualidade. in: Revista Saúde da Alma. nº 02, Jan/Fev/Mar de 2011. AME – Brasil, São Paulo. NOBRE, Marlene. O Paradigma médico-espirita. In: Revista Saúde e Espiritualidade, nº 01, 2004, AME – Brasil, São Paulo. SOARES, Rogers Teixeira. As associações médico-espíritas: ciência e espiritualidade em um só paradigma. In: Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 3, ed.6, jan./abr. de 2009. P. 169-189. VASCONCELOS, João. Espíritos clandestinos: espiritismos, pesquisa psíquica e antropologia da religião entre 1850 e 1920. In: Revista Religião e Sociedade, v. 23, nº 2, Rio de Janeiro. Dezembro. 2003. VILHENA, Maria Ângela. Espiritismos: limiares entre a vida e a morte. São Paulo: Paulinas, 2008. ZANGARI, Wellington. Parapsicologia e religião: a importância das experiências parapsicológicas para uma compreensão mais dos fenômenos religiosos. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1996. ___________________________________________________________________ 284 GT 10 RELIGIÃO, RITOS E PROCESSOS DE CURA Coordenadores: Profa. Dra. Carolina Teles Lemos/ PUC Goiás Prof. Doutorando Gilson Xavier de Azevedo/UEG Ementa: Resumo: As religiões de forma geral, estão imiscuídas nos muitos seguimentos e estruturas humanas. Nesse sentido, as práticas religiosas visualizadas nos ritos que cada prática demanda ou inaugura, também atendem à manutenção de certa ordem cósmica a que se destinam (Eliane; Strauss). Dentre os vários processos sociais que são afetados por tais práticas, estão os processos de cura no que diz respeito a busca por uma condição harmoniosa da não doença, da proteção contra pestes, medos, acidentes, flagelos e outros mais. Tais práticas destinam-se ainda aos pedidos por curas de doenças e males não só físicos, mas existenciais e dentro do universo das representações humanas, dos problemas espirituais também. Por fim, as práticas religiosas destinam-se ao agradecimento de benesses simbolicamente atribuídas às divindades às quais os pedidos, orações e ensejos ora se destinaram. Dessa maneira, o presente GT pretende abrigar tais discussões e fomentar um debate amplo sobre a relação entre o ser humano e tais processos vivenciados em seu cotidiano. Palavras-chave: religião, ritos; processo de cura. Comunicações: 1. CURA OU "CATARSE" PSICOLÓGICA? O PODER DO CANTO NA TRADIÇÃO PATRÍSTICA José Reinaldo F. Martins Filho Mestre em Filosofia (UFG) e em Música (UFG) Doutorando em Ciências da Religião – PUC-Goiás Professor IFITEG e PUC-Goiás jreinaldomartins@gmail.com Resumo: Relatos sobre os poderes terapêuticos da música, especialmente do canto, nos fazem remeter a tempos imemoriáveis, domínio de monstros, gigantes e herois, como é o caso das epopeias gregas. Foi pela música, segundo a tradição homérica, que Orfeu conseguiu ludibriar o barqueiro Caronte e estabelecer um pacto com o senhor do mundo inferior, Ades, a fim de resgatar sua amada Eurídice. Rompendo, contudo, o acento mitológico, também nos relatos dos primeiros filósofos gregos encontramos os efeitos positivos da música sobre o corpo e a alma do homem. Acerca deste tema, os escritos de Pitágoras de Samos são, provavelmente, os que mais marcaram a tradição ocidental. Isso é atestado pelo impacto causado por alguns de seus fragmentos sobre a concepção de música no cristianismo dos primeiros séculos. Nesse novo contexto, porém, o valor curativo da música – 285 entendida como canto em uníssono – passou a ser dirigido, necessariamente, aos males da alma. Entre outros, merecem destaque os discursos de Ambrósio, João Crisóstomo, Proclo, Atanásio, Nicetas de Remesiana e do próprio Agostinho, que viam no canto uma singular força de catarse psicológica, como elemento positivo para a tranquilização da alma e, por decorrência, a purificação espiritual. É nesse sentido que, estabelecendo diálogo com a tradição patrística, o presente trabalho visa salientar o poder terapêutico do canto no cristianismo primitivo, sobretudo caso pensemos o seu impacto sobre as doenças chamadas “espirituais”, e seus possíveis desdobramentos na tradição musical religiosa que viria a se constituir no Ocidente. Palavras-chave: Cura. Catarse Psicológica. Canto. Tradição Patrística. “Deinde qui cantat vacuus est, et diversarum cogitationum curas relegat ... : tamquam liber ab omnibus corporalium affectibus passionum canebat idem Propheta...” (St. Agostinho, Expositio psalmi 118,7,29) Relatos sobre os poderes terapêuticos da música, especialmente do canto, nos fazem remeter a tempos imemoriáveis, domínio de monstros, gigantes e herois, como é o caso das epopeias gregas. Foi pela música, segundo a tradição homérica, que Orfeu conseguiu ludibriar o barqueiro Caronte e estabelecer um pacto com o senhor do mundo inferior, Ades, a fim de resgatar sua amada Eurídice. Rompendo, contudo, o acento mitológico, também nos relatos dos primeiros filósofos gregos encontramos os efeitos positivos da música sobre o corpo e a alma do homem. Acerca deste tema, os escritos de Pitágoras de Samos são, provavelmente, os que mais marcaram a tradição ocidental. Isso é atestado pelo impacto causado por alguns de seus fragmentos sobre a concepção de música no cristianismo dos primeiros séculos. Nesse novo contexto, porém, o valor curativo da música – entendida como canto em uníssono – passou a ser dirigido, necessariamente, aos males da alma. Entre outros, merecem destaque os discursos de Ambrósio, João Crisóstomo, Proclo, Atanásio, Nicetas de Remesiana e do próprio Agostinho, que viam no canto uma singular força de catarse psicológica, como elemento positivo para a tranquilização da alma e, por decorrência, a purificação espiritual. É nesse sentido que, estabelecendo diálogo com a tradição patrística, o presente trabalho visa salientar o poder terapêutico do canto no cristianismo primitivo, sobretudo caso pensemos o seu impacto sobre as doenças chamadas “espirituais”, e seus possíveis desdobramentos na tradição musical religiosa que viria a se constituir no Ocidente. 286 A força do canto na tradição patrística Não é fácil discorrer sobre assuntos referentes a uma história remota e com pouca documentação musical. No caso do cristianismo, o grau de dificuldade pode ser ainda maior, afinal, trata-se de uma tradição religiosa que se consolidou hegemônica em séculos posteriores e que foi responsável por produzir e preservar a maior parte dos documentos alusivos a seu respeito. Não possuímos informações muito precisas sobre os três primeiros séculos do cristianismo, senão esboços de reconstrução historiográfica, a partir de referências secundárias e/ou comparações com outras culturas. A própria literatura bíblica do Novo Testamento é considerada como a documentação mais antiga do cristianismo nos primeiros séculos – ainda que sua narrativa tenha circulado por várias décadas unicamente por meio da oralidade. Por conta da escassez de fontes documentais escritas, para além da própria Bíblia, a historiografia estabeleceu diálogo com outras formas de expressão da cultura, tais como a iconografia. Os mais antigos ícones cristãos são datados do início do século IV. Em grande parte destas pinturas a figura de Cristo está retratada em analogia ao personagem Orfeu86, importante expoente das tragédias gregas. Para André Egg (2014), esta relação nos remete a, pelo menos, duas ligações muito importantes: “primeiro aos processos de helenização que transformaram o cristianismo de uma seita sectária em um grupo intelectualizado e aceitável para o mundo urbano antigo, e, em segundo lugar, à importância que a música assumiu nas comunidades cristãs dos primeiros séculos”. Conforme o entendimento desse autor, [...] a associação da figura do Cristo Salvador com o mito grego de Orfeu diz muito sobre o status da música nas primeiras comunidades cristãs, afinal, Orfeu era filho de uma musa, e usou suas habilidades com a lira que ganhara de Apolo para salvar os argonautas em vários perigos da viagem. Depois tinha usado sua lira novamente na descida ao inferno para a busca de sua amada Eurídice, quando tocou para a barca de Caronte não afundar carregando um vivo, para acalmar o cão Cérbero, e até mesmo para aliviar o sofrimento dos mortos. Se a lira de Orfeu tinha tantos poderes Cf. Basurko (2005, p. 59), “a interpretação ou transposição da lenda das sereias realizada por Metódio converge com a que Clemente e Eusébio fizeram da lenda de Orfeu. Em ambas, a transposição ao plano cristão se verificou, comparando ou contrapondo os efeitos mágicos do canto e da música atribuídos a estes personagens legendários ao poder salvífico do Verbo de Deus com relação aos homens por meio de sua palavra divina [...]”. 86 287 miraculosos, nada melhor do que associá-la ao Redentor dos cristãos (EGG, 2014, s/p). Na esteira dessa interpretação, já encontramos elementos que nos permitem articular a concepção de música e canto nos primeiros séculos do cristianismo e o modo como compreendiam os antigos gregos, sobretudo caso pensemos na existência de “poderes” terapêuticos inerentes ao canto87. Para teóricos como Egg, como dissemos, isso se efetiva por meio da identificação entre Cristo e Orfeu. No caso do cristianismo, contudo, tal entendimento seria levado a cabo tomando o canto dos salmos como fonte por excelência. Para muitos pesquisadores da música ritual nos primeiros séculos da era cristã, tais como Xabier Basurko (2005), uma série de trechos do Novo Testamento constituem adaptações de cantos e orações comunitárias da igreja primitiva, que apenas ulteriormente passaram a integrar o cânone bíblico. Apesar disso, não restaram vestígios de quaisquer elementos concretos a partir dos quais se possa aferir a forma de sua execução. Dedicando-se exclusivamente aos séculos de II a V d.C., a obra de Xabier Basurko, intitulada O canto cristão na tradição primitiva, parece ser uma das principais fontes de referência sobre, nos termos de Weber (2005, p. 7), a música ritual da “época de ouro das primeiras comunidades cristãs”. Nesta obra Basurko parte da tentativa de reconstruir o panorama da sociedade cristã primitiva, situando o lugar que a música ocupava naquele contexto por meio de detalhadas análises da literatura patrística. Não é difícil, como é sabido, encontrar referências à música em textos de escritores dos séculos III e IV. Exemplo disso é o relato descoberto em uma das homilias de São João Crisóstomo, mencionado por Basurko, no qual fica evidente o papel integrador conferido ao canto e à música: Desde que o salmo cai no meio de nós, ele reúne as vozes diversas e forma de todas elas um cântico harmonioso: jovens e velhos, ricos e pobres, mulheres e homens, escravos e livres, fomos arrastados em uma só melodia. Se um músico, fazendo soar com arte as diversas cordas de sua cítara, compõe com elas um só canto, apesar de serem múltiplos os seus sons, é preciso ainda espantar-se de que nossos salmos e nossos cantos tenham o mesmo poder? O profeta fala, e todos nós respondemos, todos mesclamos nossa voz à sua. Aqui não há nem escravo nem livre, nem rico nem pobre, nem príncipe nem súdito; longe de nós estão as desigualdades sociais, formamos todos um só coro, todos fazemos igualmente parte dos santos cânticos, e a terra imita o céu (JOÃO CRISÓSTOMO apud BASURKO, 2005, p. 101). Até a consolidação do que hoje conhecemos como Musicoterapia muito sempre foi especulado sobre a possibilidade de associar o canto (ou a música, de maneira geral) ao tratamento contra algumas doenças. Note-se o exemplo de Hildegard von Bingen, ainda na Idade Média. 87 288 Este fragmento nos faz recordar importantes elementos da concepção musical judaico-cristã, entre os quais o mais importante talvez seja o lugar dos salmos como hinário por excelência no meio cristão e o valor dos instrumentos como adereços ao canto do povo, sobretudo a importância da cítara 88. Isso, notadamente, não significa indicar a prevalência dos instrumentos em detrimento do canto da assembleia. Ao contrário, segundo Basurko (2005), caso nos perguntássemos sobre as principais características da prática musical cristã nos primeiros séculos, poderíamos, sem maiores encargos, responder: em primeiro lugar o estreito vínculo estabelecido entre a música e o texto, na maioria das vezes extraído da narrativa bíblica; por conseguinte, e não menos importante, o privilégio da melodia – que na maioria das vezes era entoada por toda a assembleia – e da voz, como lemos no seguinte relato: Ela [a melodia] deve estar dotada de certas características para que possa prestar um serviço adequado no culto cristão. Deve estar isenta de toda influência profana, sem tratar de imitar canções dos teatros, cheias de modulações complicadas para brilho dos cantores. A melodia do cristão deve ser tal que em sua própria composição faça mostrar a simplicidade cristã e provoque ao mesmo tempo a compunção do coração nos ouvintes (NICETAS DE REMESIANA apud BASURKO, 2005, p. 39 – grifos nossos). Em vista disso, se há algum privilégio estilístico no canto cristão, este se refere à primazia do texto sobre a melodia (o que se manteve até meados dos séculos VI-VII). No entanto, com o passar das décadas outros tipos de música assumiriam valiosa função no culto cristão, inclusive como conforto espiritual para os fiéis – e aqui já começa a se inserir o efeito catártico ao qual nos referimos de início. Nesse sentido, é com Ambrósio de Milão (+ 397) e, sobremaneira, com seu discípulo Agostinho (+ 430) que a música ritual tomaria um lugar de destaque. O canto da assembleia é algo que sempre esteve presente nos textos de Agostinho: “com exceção dos momentos em que se fazem as leituras, em que se prega, em que o 88 O valor positivo dos instrumentos de corda, tal como eram concebidos pelos gregos, também é notado no cristianismo primitivo. A referência, contudo, passa de Apolo para Cristo, como lemos no seguinte fragmento: “uma interessante interpretação espiritual encontramos em Nicetas de Remesiana. Segundo ele, não foi o som da cítara de Davi que expulsou o espírito maligno que agia em Saul, mas o poder de Cristo. Na realidade, a cítara de Davi com suas cordas estendidas sobre a madeira era o símbolo de Cristo crucificado e era também a paixão do Salvador que Davi cantava naquele momento” (BASURKO, 2005, p. 64). Note-se que as cordas da cítara eram fabricadas a partir das vísceras de cordeiros e, em seguida, dispostas sobre o corpo do instrumento feito em madeira. Para o cristianismo, Cristo é o Cordeiro de Deus que se imolou pela salvação da humanidade. A cítara (como também o violino em tempos ulteriores), portanto, passa a ser identificada como o emblema da Paixão de Cristo. 289 bispo reza em alta voz, em que o diácono inicia a ladainha da prece comum [...], existe algum instante em que os fiéis reunidos na igreja não devam cantar? Na verdade, não vejo o que eles poderiam fazer de melhor” (AGOSTINHO apud CNBB, Estudo 79, n. 254). Outra vez estamos diante do valor do canto da assembleia, primeira protagonista da ação ritual cristã nos primeiros séculos – ainda que, nesse contexto, unido ao canto dos salmos, outra forma musical começasse a ser introduzida nas celebrações do Ocidente, qual seja: o hino89. Nascidos no Oriente, os hinos se propagaram pela Europa graças à contribuição de Ambrósio. Nesse sentido, os hinos ambrosianos podem ser considerados como antecessores diretos do cantochão, posteriormente difundido na tradição católica – de maneira particular após a sua instituição como canto oficial da Igreja, o que ocorreu no papado de Gregório VII (+1085). Em suma, trata-se de uma salmodia de tipo siríaco, muito mais viva e animada, descoberta por Ambrósio no Oriente. Sua execução se dava por meio da divisão da assembleia em dois grupos, que se alternavam ao longo do canto. A princípio, a introdução do hino nas grandes liturgias visava provocar o silêncio da assembleia. Passando, contudo, o período de estranheza, esta forma musical encontrou grande aceitação no meio cristão, conforme lemos no seguinte relato: É curioso saber como estes cantos estrangeiros, orientais, numa tradução enrolada do texto hebreu, carregada de palavras pouco familiares, com seu paralelismo estranho em termos de pensamento e de propostas, seus melismas bizarros a se prolongarem sobre uma única sílaba, tinham, apesar de tudo, conquistado corações que normalmente teriam se mostrado reticentes e ouvidos acostumados à métrica clássica, e isto, mesmo entre ocidentais latinos, amigos da sobriedade (VAN DER MERR apud CNBB, Doc. 79, n. 105). Ao contrário dos salmos, cujos textos eram retirados literalmente da Bíblia, os hinos cantavam os demais princípios da fé cristã, recolhidos ao longo da tradição eclesial. Na verdade, a influência de Ambrósio sobre a inserção da modalidade hínica na liturgia ocidental não se limitou à mera repetição das composições orientais. O próprio Ambrósio, como atesta Agostinho, foi um grande compositor de hinos: “escritos num latim impecável, tinham a marca do seu autor, um patrício cordial, mas comedido em suas palavras, um tanto tenso por conta de sua O principal hino deste período acerca do qual temos notícia permanece inserido no atual ordinário da Missa católica. Trata-se do Glória, em relação ao qual teceremos breves comentários adiante. 89 290 consciência profissional, sem perder, porém, a ternura” (CNBB, Estudo 79, n. 106). Suas melodias, quase sempre despojadas de vocalizes, eram de simples acesso por parte da assembleia, com textos claros e objetivos, em sua maioria contemplando os princípios nucleares da fé cristã. Por conta disso, foram amplamente difundidos no meio da época, servindo, inclusive, de instrumento de evangelização e catequese. No livro IX de suas Confissões, é o próprio Agostinho90 quem apresenta a importância dos hinos ambrosianos para a vida das comunidades cristãs: “não fazia ainda muito tempo que se havia adotado na Igreja de Milão esta maneira de se consolar e se encorajar, onde os irmãos com entusiasmo cantavam juntos na união das vozes e dos corações. [...] Foi nesta ocasião que a gente se pôs a cantar os hinos e os salmos segundo o costume das regiões do Oriente” (AGOSTINHO, 2000, p. 238). Não há dúvida, portanto, sobre a importante função desempenhada pelo canto (esta singular forma de expressão musical) nas comunidades cristãs dos primeiros séculos. Mas um reforço ao seu efeito catártico ainda pode ser notado em fragmentos de autores como Basílio, João Crisóstomo e Proclo: Os salmos, enquanto lhes é possível, reprimem os defeitos desordenados que vão surgindo no espírito humano através de sua vida e o fazem por meio da harmonia suave e agradável que faz nascer pensamentos honestos... e, embora alguém se encontre irado como uma fera, tão logo começa a deleitar-se no canto dos salmos, desaparece imediatamente sua ferocidade, adormecida pela melodia (BASÍLIO, Homilia in psalmum, PG, 29, 211 apud BASURKO, 2005, p. 59) Supondo um homem entregue aos mais baixos vícios: enquanto está cantando com respeito os salmos, adormece a tirania de suas paixões, e , embora esteja oprimido por inumeráveis males e seja vítima de uma profunda tristeza, a suavidade destes cantos alivia sua dor, eleva seus pensamentos e levanta seu espírito até o céu (JOÃO CRISÓSTOMO, Expositio in psalmum, PG, 55, 388 apud BASURKO, 2005, p. 60) Saudável é sempre o canto dos salmos, o qual acalma com o mel de sua melodia os afetos desordenados. Como a podadeira para os espinhos, assim é o salmo para a tristeza. Pois o salmo suavemente cantado amputa as dores do espírito, corta pela raiz a tristeza, limpa-a de toda perturbação, recria os oprimidos pela dor, provoca a compunção nos pecadores, excita à piedade (PROCLO, Oratio II, De Incarnatione, PG, 65, 692 apud BASURKO, 2005, p. 60). Breve conclusão “Mais tarde, ao chegar como bispo a Hipona, Agostinho logo introduziu tanto o novo método de canto dos salmos, quanto estes hinos. Porém, preocupado com os excessos do emocionalismo, confessa que muitas vezes pensou em suprimir os hinos e fazer cantar os salmos da maneira como Atanásio de Alexandria havia prescrito a seus leitores: com modulações discretas, que tinha mais recitativo que propriamente canto” (CNBB, Estudo 79, n. 109). 90 291 De maneira geral, esta breve comunicação teve como objetivo introduzir o leitor ao universo de valores e significados do cristianismo nos primeiros séculos. Para isso, tomamos como referência alguns fragmentos escolhidos dos autores da patrística, sobretudo aqueles dedicados ao lugar do canto na experiência das comunidades cristãs. Apesar de não podermos afirmar sobre os poderes “curativos” do canto, caso este seja tomado de maneira isolada, certamente há fortes indícios sobre sua contribuição na cura de males do espírito – talvez os mais frequentes nas sociedades contemporâneas. Como vimos, tal propriedade terapêutica, se assim podemos denominá-la, já era tida em consideração nos primeiros séculos da tradição ocidental, ainda que sua utilização mais específica apenas tenha se consolidado muito ulteriormente. Referências AGOSTINHO. Confissões. Tradução de José Oliveira santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores) BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. Tradução de Celso Márcio Teixeira. São Paulo: Paulus, 2005. (Liturgia e Música, 3) CNBB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A música litúrgica no Brasil. São Paulo: Paulus, 1998. (Estudos da CNBB, n. 79) EGG, André. “O cântico dos cristãos nos primeiros séculos”. Disponível em http:// andreegg.org/os-canticos-dos-cristaos-nos-primeiros-seculos/ Acessado em 12 de novembro de 2014. WEBER, José. “Introdução à edição brasileira”. In. BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. Tradução de Celso Márcio Teixeira. São Paulo: Paulus, 2005. (Liturgia e Música, 3) 2. O PROCESSO DE CONVERSÃO ATRAVÉS DAS LINGUAGENS DO PENTECOSTALISMO91 Lusinaide Cordeiro de Sales Lima Marques Mestranda TECCER - UEG lusinaidecordeiro@gmail.com Trabalho apresentado com apoio financeiro da Universidade Estadual de Goiás – UEG, por meio do Programa de Auxílio Eventos (Pró-Eventos). Edital Interno PrP. -004/2016. 91 292 Resumo: A religião não é somente a relação entre o transcendente e o indivíduo, não se limita à fé ou salvação, mas estabelece também uma relação social, onde pode moldar a vida em sociedade e, frequentemente, com parâmetros do que é considerado como sagrado. Tal relação, em um primeiro momento, pode ser individual, mas com o passar do tempo assume uma dimensão coletiva, e se estabelece com sucessivas projeções simbólicas que são marcadas como identidades religiosas de um determinado grupo. Assim, estabelece subsídios para a construção identitária, que se manifestam através de símbolos, ritos e mitos. Estes subsídios são oriundos de vivências coletivas e interpretações das diversas linguagens que surgem através dos anos e que vão ganhando significados diante das comunidades se tornando práticas fundamentais para reafirmar convicções que as unem. Daremos destaque ao Pentecostalismo que atualmente vem passando por diversas transformações em sua linguagem tradicional que o definia. Os sujeitos procuram práticas religiosas que prometem solucionar problemas considerados impossíveis de serem resolvidos e buscam no sagrado esta ajuda. O discurso pentecostal, cada vez mais, tem contribuído para o aumento do número de pessoas que buscam satisfazer as necessidades que vão além da salvação, pois já não basta ser somente “salvo” é preciso obter benefícios que possam ser desfrutados em seu dia a dia. Palavras-chaves: Linguagens religiosas, Ritos e Mitos, Pentecostalismo, Para obter uma definição mais fundamentada do que é religião, é necessário destacar o que alguns autores já escreveram. Para a teoria Marxista ela é o resultado de um mecanismo social, da materialidade, para Max Weber, é geradora de culturas específicas, Durkheim a compreende como um produto de imensa cooperação e representações coletivas e Rubem Alves, diz que ela se dá através da autoconsciência e autoconhecimento. É possível se reportar aos conceitos estabelecidos por outros autores, de que religião é a experiência do sujeito, a experiência do sagrado, que se manifesta através da comunicação ou por várias formas de linguagem. O conceito de fenômeno religioso apresenta uma inerente dificuldade de apreensão, mas se sabe que o ato religioso pode materializar de um ato concreto para algo simbólico, nesse sentido (OTTO, 2007, p.35) diz que o sagrado invoca o que é racional ou irracional, “pois se existe um campo da experiência humana que apresente algo próprio, que apareça somente nele, esse campo é o religioso”. Contudo, é salutar perceber a religião como algo que não se expressa somente nos aspectos racionais, ou seja, da razão. 293 Segundo Otto ( 2007, p. 37), o sagrado não pode ser concebido como a obediência à moral, mas sim no sentido de Heilig que pode ser traduzido por “sagrado” ou “santo”. Com essa concepção ele ocorre em um campo designado como religioso. E para definir melhor esse elemento, o sagrado, o autor cunha o termo “Numinoso” que em linhas gerais seria a experiência com e no sagrado. A percepção do sagrado como um ato de manifestação simbólica do transcendente. O sentimento de criatura como algo qualitativamente diferente do sentimento de dependência no sentido natural, exprime a nulidade do ser que está totalmente dependente do poder avassalador do ser superior. Esse sentimento de criatura surge como reflexo das experiências do ser com a presença do nume, ou seja, quando se sente algo fora de si e tal emoção é paralela ou sentimento de receio, “o sentimento subjetivo de “dependência absoluta” pressupõe uma sensação de “superioridade (e inacessibilidade) absoluta” do numinoso (OTTO, 2007, p.43). O numinoso pode se manifestar em diferentes níveis, é o que Otto designa como “Mysterium Tremendum”, são elemento que provocam sensações que podem ser consideradas em diversos aspectos como arrepiantes, avassaladoras, desperta o zelo um exercício contra o mundo e a carne e que manifesta como ato espantoso. As práticas religiosas são representatividades de uma reafirmação de sua identidade cultual e a religião da liberdade para se aglutinar diversas práticas até mesmo porque para Mata (2010), ela não se limita a tratar, Exclusivamente somente a “fé”, “santidade” ou “salvação”. Ela tende a ampliar seu campo de influência para as mais diversas esferas da vida, da sexualidade à política, estabelecendo ou pretendendo estabelecer a forma como os indivíduos devem agir em tal ou qual circunstância (p.23). Se a religião tem essa característica de influenciar em todas as esferas de comportamento do ser humano e assim estabelecer subsídios para que se tenha uma construção identitária, ela se manifesta através de símbolos, mitos e ritos que são oriundos de vivencias coletivas e interpretações das diversas linguagens, Croato (2001), que surgem através dos anos e que vão ganhando significados diante da comunidade tornando-se práticas fundamentais para reafirmação de convicções que as une. Nessa perspectiva o trabalho está estruturado com um breve discussão sobre a religião como fator social e posteriormente com o pentecostalismo tem adaptado linguagens tradicionalmente marcada pela a salvação futura do ser, por uma que traz soluções imediatas para males como saúde e riquezas aqui na terra. 294 A religião como um fator sociocultural O multiculturalismo conota a uma heterogeneidade, evidenciando a questão das diferenças, do pluralismo, e na prática toda a sociedade é plural em todas as esferas, principalmente social e cultural. Na visão de Gusmão (2004), multiculturalismo pode ser compreendido como um “fenômeno” vivenciado no encontro de vários agentes com características migratórias e distintas e muitas vezes se manifesta diante da necessidade de atender demandas plurais, coabitando grupos ou indivíduos de diferentes culturas. Diante do pluralismo que existe no Brasil, a questão da religiosidade não poderia se diferente. Sendo a religião um “fenômeno social”, Bonome (2010). Sendo assim, ao ser entendido por uma forma de invenção social e construção identitária, revela-se como via para a ressignificação de práticas inerentes a possibilidade de uma diversidade entre os atores da sociedade. Percebendo que religião não é somente a relação entre o transcendental que desafia, através do conhecimento, o mistério da existência, tatua na alma a experiência do sujeito. Aqui se entende o transcendente a partir de Leonardo Boff (2002, p. 35): “Esse mistério que se dá na história foi chamada de mil nomes e resumo no nome de Deus. Suprema Realidade” Com essa afirmação, o transcendente torna-se algo grandioso e central na vida do homem. No entanto, a relação do transcendente com o ser, transcorrendo por ligações sociais onde os parâmetros da vida em sociedade seguem frequentemente os parâmetros do Sagrado. Num primeiro momento, essa relação pode ser individual, mas com o tempo assume uma dimensão coletiva, e estabelece-se com sucessivas projeções simbólicas relevantes que ficam marcadas como identidade religiosa de determinado grupo. Contudo seria necessário ter um sentimento de pertencimento que é construído através de um processo histórico-cultural e diversificado, conforme é a diversidade religiosa existente no Brasil como caracteriza Reimer, A partir da fonte matriarcal da sensibilidade humana e da comunicação em formas diferenciadas, a diversidade cultural conduz ao pluralismo cultural. Algo similar se verifica no campo religioso: a diversidade leva ao pluralismo, e o pluralismo religioso deveria ser reconhecido como patrimônio comum. Que permite aos diferentes o seu próprio desenvolvimento, a formação de sua identidade e a afirmação de seus direitos (REIMER, 2013, p. 28). 295 Sendo assim, entende-se a religião como um sistema representativo e cultural, e que uma das características da religiosidade brasileira é sua crescente diversidade, formando um quadro religioso que, segundo Altmann (2013), é cada vez mais diversificado. A linguagem que da forma ao pentecostalismo: o processo entre a decisão e a conversão. A primeira vez que se deu abertura para a aceitação do protestantismo no Brasil, a partir de então passou a ter celebração de cultos protestantes a bordo de navios que ancoravam no porto no Rio de Janeiro e em casas particulares de ingleses. Desde então, suas ramificações passaram por inúmeras mudanças, ressignificando a identidade de seus adeptos no Brasil. Ao final dos anos 80 e mais início dos anos 90, passou a ter um maior número de estudos voltados para esse segmento religioso, em especial para o pentecostalismo que é uma ramificação do protestantismo histórico (Campos, 1997). Para alguns autores como Mendonça (2005, p.51), “embora seja certo que as religiões protestantes, sempre assimilam ou mantém traços das culturas locais (...) o protestantismo que chegou aos Brasil jamais se identificou com a cultura brasileira” já outros como Léonard (1981), dizem que é possível uma flexibilidade mesmo tendo um modo peculiar de se apresentar, mas possível de agregar aspectos da cultura local, porém não perdendo o foco de uma igreja cristã, ou seja a evangelização do outro. Em geral a decisão de deixar sua religião de origem e se “converter” à uma igreja pentecostal se dá pela utilização de vários rituais, formas de linguagens e o discurso geralmente utilizados nos cultos dessas denominações. O que mostra que a pregação pentecostal tem em seu discurso uma enorme capacidade de convencimento. A partir do momento em que faz essa adesão o novo convertido passa a ser identificado como “crente” e muitas vezes passam a construir uma nova identidade. Nesse momento é preciso chamar atenção para essas duas palavras: decisão e conversão, isso porque as pessoas decidem por diversos motivos, aceitar ou 296 passar para outra religião, e só depois de um longo processo é que acontece a conversão. Nem sempre a conversão acontece de imediato como assegura Mata, A conversão pode ser repentina ou gradativa, e que geralmente é fruto da angústia advinda da condição de “pecador”. O mais importante, para nossos fins aqui, é ressaltar a tremenda descarga de energia psíquica que envolve e é suscitada pela conversão. (...) Por vezes, a conversão é detonada por meio de técnicas mais rudes, uma espécie de arriscado “tudo ou nada”. (MATA, 2010, p. 103). A decisão em aderir à uma nova crença, suscita no campo das experiências do indivíduo, um “eu” pessoal que se envolve com o sagrado, que mesmo tendo uma convivência coletiva a experiência é totalmente pessoal. Requer uma disposição do ser em investir energias para adaptar ou novo credo, e assim, passar a participar dos rituais e internalizar os mitos e traduzir símbolos que são transmissores de cosmovisões e imposições de ideologias que são apregoadas pela a nova religião. Na década de 90, a pregação do pentecostalismo era baseada principalmente na polarização Sagrado x Profano, valorizando a moralidade e ressaltando sempre as “coisas espirituais”, com um discurso imperativo, (CUNHA, 1997, p. 9). Hoje há uma oferta de bens religiosos que vão além da salvação da alma, mas também de um bem estar físico, emocional e financeiro. A busca ávida por fiéis, através de novas ofertas de bens religiosos, está mais presente nas igrejas neopentecostais, mas é comum, nos dias de hoje, igrejas pentecostais, inserirem no seu discurso a aquisição da cura, e milagres estrondosos na vida daqueles que se renderem aos seus dogmas. Conclusão Ao analisar aspectos do fenômeno religioso, é evidente que a religião não se limita a uma modalidade social ela, é transcendente, ou seja, ultrapassa os limites físicos e atinge o imaterial através das experiências espirituais vivenciadas na coletividade e que se perpetua, mesmo que com novos significados, por diversas gerações, também se configura num sistema simbólico que se entrelaça com os fenômenos naturais dando novos sentidos a esses fenômenos por meio das 297 experiências da consciência, entretanto, a igreja ao evangelizar, crê na possibilidade de ressignificar essa identidade, dando novos sentidos a essa religiosidade. Embora esse trabalho da Igreja é entendido por muitas pessoas como uma agressão aos valores culturais das comunidades onde chega, visto que as igrejas protestantes, principalmente as pentecostais, não aceitam o sincretismo presente em diversas prática religiosas. Pois, para comungar com os dogmas estabelecidos pela Igreja, os novos membros devem renunciar algumas de suas tradicionais práticas definitivamente ou se propõem à novas configurações que possibilite frequentarem a nova religião e simultaneamente conservarem a cosmologia de antes. Referência ALVES, Rubem Azevedo, O que é Religião? São Paulo: Abril Cultura, 1984. BOFF, Leonardo. Experimentar Deus: A transparência de todas as coisas. Campinas: Verus, 2002. BONOME, José Roberto. Cultura e Religião. Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2010. CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentescostal. São Paulo: Vozes, 1997). CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiência Religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. Tradução de Carlos Maria Vasquez Guitiérrez (trad.). São Paulo: Paulinas, 2001. CUNHA, Magali do Nascimento. Debate: linguagem, um jeito de ser dos evangélicos. Suplemento do Jornal Contexto Pastoral. Nº 38, maio/junho de 1997. LÉONARD, E.G.. O Protestantismo Brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Tradução de Linneu de Camargo Schutzer. Rio de Janeiro e São Paulo: JERP/ASTE, 1981. OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. SCHLUP, Walter O. (tradutor) – São Leopoldo: Sinodal/est; Petrópolis: Vozes, 2007. P. 33-63. MATA, Sérgio da. História & Religião. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. MENDONÇA, Antônio Gouvêia. O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas. Revista USP, São Paulo, n. 67, p. 48-67, setembro/novembro. 2005. 298 4. SESSÃO DAS CURATIVOS ALMAS E SESSÃO DA CARIDADE: DOIS RITUAIS Nome: Lucas Gonçalves Brito Titulação: Mestrando Instituição: Universidade Federal de Goiás Resumo: Nosso trabalho se localiza no âmbito de uma pesquisa de mestrado, em andamento, sobre simbolismo e ritual no Centro Espiritualista de Umbanda Pai Joaquim de Angola (CEUPJA), em Goiânia. Buscando contribuir e compartilhar algumas reflexões acerca da noção de ritual no amplo e diverso contexto das assim chamadas religiões afro-brasileiras, em uma abordagem antropológica dos processos de cura pelos quais as pessoas passam através dos rituais, ressaltamos que as relações entre itinerário terapêutico, trajetória religiosa e rituais, sejam eles “profiláticos”, “reparadores” ou “de aflição” (TURNER, 2005), podem ser analisadas a partir de uma perspectiva etnográfica (BRITO, 2015) e do ponto de vista da experiência vivida (RABELO, 1993; 1994). Compreendemos que, se os rituais religiosos, por meio de seus símbolos sagrados, sintetizam uma visão de mundo; uma ontologia e uma cosmologia e, a um só tempo, o ethos; os valores e moralidade com os quais uma pessoa pode organizar sua conduta e interpretar a vida, eles também respondem à inquietação perante o sofrimento expressa na noção weberiana do Problema do Significado (GEERTZ, 2014). Neste sentido, argumentamos que a Sessão das Almas e a Sessão da Caridade do CEUJPA são algumas das tantas formas de expressão religiosa as quais podemos chamar de rituais de cura. “Dá licença Pai Antônio/Eu não vim te visitar/Eu estou muito doente/Vim pra você me curar”. Estes singelos versos, de um antigo cântico de Umbanda (ponto cantado), são tomados como pistas para esta análise. Procuramos aqui perceber e interpretar algumas relações entre rituais, cura e experiência através das narrativas as quais algumas pessoas que frequentam o Centro Espiritualista de Umbanda Pai Joaquim de Angola (CEUPJA) nos contaram sobre suas trajetórias religiosas e itinerários terapêuticos. Por estar fundamentada no encontro etnográfico entre um “eu” e um “outro”, no contexto de nossa pesquisa executada no mestrado em Antropologia, tais narrativas, registradas em notas de campo e gravações, devem ser entendidas do ponto de vista de quem as viveu, isto é, etnograficamente. Isso somente será possível se conseguirmos relacionar os conceitos do “outro” - os filhos de Pai Joaquim - com os conceitos teóricos. Haverá correspondência entre eles à medida que a reflexão teórica seja informada pelas concepções que as pessoas apresentam (BRITO, 2015). Para tal, partiremos de algumas narrativas sobre a busca da cura, as 299 quais foram registradas durante a pesquisa de campo que realizamos no Centro Espiritualista de Umbanda Pai Joaquim de Angola, em Goiânia. Experiência Vivida e Rituais Há muito sabemos que a experiência aflitiva integra as narrativas de adesão aos cultos afro-brasileiros (MOTA, TRAD, VILLAS BOAS, 2012, p. 669). Embora não se possa afirmar que a busca pela cura é o único motivo que leva uma pessoa a tornar-se adepta de uma religião, segundo o adágio, “quem não aprende pelo amor, aprende pela dor”. A doença, a melancolia, a falta de sentido são questões existenciais que podem levar as pessoas a voltarem seus olhos para as dimensões sagradas da vida e, neste sentido, são compreendidas como experiências “educativas”. Em nossa pesquisa, quando perguntávamos às pessoas o que as tinha levado ao Centro, as respostas, muitas vezes, relacionavam-se a experiências dolorosas, tais como transtornos de cunho mental, sensações estranhas e busca por libertação de vícios. Rabelo (1993, 1994) trabalhou rituais de cura na perspectiva da experiência das pessoas. Isto implica deixar de reificar a ideia de que as pessoas ordenam sua experiência apenas através do ritual, ou seja, abandonar uma visão passiva do paciente e de seu próprio papel no processo de cura. A contribuição analítica de nosso estudo é apresentar uma concepção de experiência, elaborada por Victor Turner a partir de John Dewey e Wilhelm Dilthey. Embora recorrente nos escritos antropológicos, ainda não se pode dizer que um termo mais específico de experiência seja sedimentado teoricamente. Contudo, o conceito existe. Tomamos as narrativas sobre a experiência vivida como instrumento metodológico para análise das relações entre itinerário terapêutico, trajetória religiosa e rituais. A experiência vivida – Erlebnis – tem caráter formativo e transformativo e se refere a sequências de eventos externos e reações internas a eles (TURNER, 2005, p. 178). Não se trata de mera experiência cotidiana, mas de uma experiência, com uma estrutura dramática (e estética), impregnada de símbolos e, significativa, por que articula passado e presente, memória e significado e, importante demais para ser calada, leva quem a viveu a narrá-la. “Na visão de 300 Dilthey, a experiência incita a expressão, ou a comunicação, com os outros” (TURNER, 2005, p. 180). Uma médium que trabalha no Centro há décadas, nos contou como chegara à Umbanda. Ela estava doente, andava olhando para baixo e não “via o verde”. Uma amiga lhe convidou para ir ao trabalho de segunda-feira, que já naquela época eram os rituais de Sessão das Almas e Sessão da Caridade. Chegando lá, embora amedrontada, melhorou e nunca mais saiu do Centro. Segundo o que ela narrou, desde pequena sabia que seria médium por que um compadre de sua mãe, que recebia as entidades em casa, havia avisado que uma das filhas seria “médium de Centro”. Um outro médium também chegou ao Centro em busca de tratamento de saúde. Ele trabalhava em um Centro Espírita, tinha um diagnóstico de fibromialgia e, estando em uma fase crônica e dolorosa, recebeu um conselho de uma amiga, psicóloga frequentadora do Centro, que lhe disse: “O que você precisa é de uma limpeza e eu vou te levar em um lugar”. Na segunda-feira, chegando para conversar com a entidade, não precisou nem dizer o que buscava. A entidade falou sobre a doença, disse-lhe que iria “fazer um curadô” e o encaminhou para a terça-feira (trabalho de cura). Cerca de seis meses depois o paciente não tomava mais remédios. Ele tornou-se um trabalhador na Casa e lá dentro aprendeu a se curar “por que”, como ele ressaltou, “a cura parte de dentro para fora”. Essas experiências, convergindo a trajetória religiosa e o itinerário terapêutico, demonstram a relevância que o ritual teve sobre os processos de cura, no entanto, revelam que a afiliação ao culto se dá também no contexto de saúde/doença. O conceito de experiência de Turner, presente neste estudo, implica ritos de passagem, pois a etimologia da palavra se relaciona ao termo grego peraō, que significa “passar através” (TURNER, 20015, p. 178). Observemos como atuam os rituais do CEUPJA pelos quais essas pessoas “passaram através”. A Sessão da Caridade consiste na chamada dos seres espirituais (pais velhos e vovós) e o atendimento dessas entidades trabalhadoras às pessoas que afluem no Centro em busca de alívio para suas dores, sejam elas físicas ou espirituais. A cura é entendida como um processo amplo, abrangendo não apenas o corpo físico, mas também os corpos espirituais que, segundo a visão de mundo espiritualista da Umbanda, são pelo menos quatro – corpo mental, corpo astral, corpo etérico e corpo 301 físico92. A doença é vista como desequilíbrio da energia que deveria circular entre esses corpos. Para as centenas de pessoas que são atendidas nas segundas-feiras, prosear com os seres espirituais, através dos médiuns, é uma atividade que tem eficácia terapêutica, no sentido de tratamento, e profilática, no sentido de prevenção. A conversa com os pretos velhos caracteriza justamente o que Turner chamou de “necessidade ritualizada de comunicação” (2005, p. 180). Através desses diálogos, as pessoas atribuem significado às experiências e, desse modo, aliviam-se. O outro que ouve a narrativa é, pois, ainda mais capaz de compreender e auxiliar. Através das mandingas, das folhas de arruda, de guiné, do alecrim e do manjericão, da água e do fogo da vela, os pretos velhos dão um “passe mediúnico”, isto é, eles trabalham com a “parte etérea” do consulente, limpando e curando. Um adepto do Centro, certa feita, nos disse: “Se, por exemplo, eu chego preocupado, ele [o pai velho] me dá uma palavra, um conselho. Eu saio de lá, posso sair até preocupado, aí eu deito, durmo e é no outro dia que as coisas acalmam, por que também não são milagrosos. Às vezes te dá a cura mas precisa de um tempo para ela fazer efeito”. A Sessão das Almas, precedente à Sessão da Caridade, tem como objetivo manter a “firmeza” do terreiro, através da atração e fixação das energias espirituais que emanam dos sete orixás sagrados da Umbanda e, por meio deles, dos guias espirituais que os representam e protegem os trabalhos. Através desses trabalhos as pessoas elevam seus pensamentos e, desta forma, elas permitem que as energias cósmicas sejam movimentadas e impregnem seus corpos, elevando seu padrão vibratório, isto é, a frequência e a qualidade da energia circundante. Considerações finais Apesar de que, no CEUJPA, há um trabalho de cura, que acontece nas terças-feiras, fundamentado no uso do magnetismo através do “passe”, circunscrevemos a análise a outros dois rituais e argumentamos que eles também A relação entre os quatro corpos é a seguinte: 1) No corpo mental se localizam os chacras superiores e os pensamentos; que atuam 2) no corpo astral, em que se localizam as emoções e no qual há núcleos vibratórios que se ligam aos núcleos vibratórios etéricos do 3) corpo etérico, que se ligam aos plexos nervosos e glândulas endócrinas do 4) corpo físico. 92 302 podem ser entendidos como curativos. É claro que a noção de cura, em sentido lato, alargou-se para abranger tal concepção. Os processos da cura não dizem respeito somente aos aspectos físicos da pessoa. A doença é vista como resultado do desequilíbrio energético, ou seja, as emoções e pensamentos desarmonizados obstruem as vibrações sutis que emanam do cosmos e que deveriam irrigar os chacras do corpo etérico. Se os chacras deixam de movimentar essas energias espirituais pelo corpo físico, em vez de circular pelas células, as energias cósmicas sutis não são absorvidas e surge assim o desequilíbrio e a doença. O que os pretos velhos fazem, através do diálogo, é atuar no corpo mental dos consulentes, auxiliando as pessoas a mudarem seu padrão mental e, consequentemente, se o pensamento é entendido como vibração e energia, a pessoa eleva seu padrão vibratório/energético – o que desobstrui seus chacras e permite que as forças cósmicas, essencialmente benéficas, circulem. Os chacras são compreendidos exatamente como centros de força em constante rotação, que ligam o corpo físico ao corpo astral. Se eles não estão girando, conforme seu movimento natural, há algo errado. Segundo a concepção nativa, o passe, seja ele aplicado pelo preto velho ou pelo médium, consiste na movimentação dos chacras através da força espiritual que emana de todo ser, seja encarnado ou não. Pudemos perceber quão complexa é a Weltanschauung umbandista, tal como sintetizada através dos símbolos e concepções presentes no CEUPJA. Não poderíamos esgotar aqui os variados aspectos. O que ainda nos cabe ressaltar é que os símbolos sagrados conjugam uma cosmologia, assim como os valores religiosos (GEERTZ, 2014). Se o ritual é um sistema simbólico de comunicação, então através dele o conhecimento que os símbolos condensam pode ser transmitido. O conhecimento tem um efeito terapêutico sobre o pensamento e, desse modo, sobre a circulação das energias cósmicas através dos chacras. Os rituais pelos quais essas pessoas “passaram através” em busca da cura auxiliaram-nas a compreender seus males e, através da própria vontade, reequilibrar-se. Afirmamos que o ritual permite às pessoas ordenarem sua experiência mas isso não pressupõe, como pensou Rabelo (1994, p. 54), que “os indivíduos ali ingressam desprovidos de modelos para comunicar e lidar com a aflição, sujeitandose aos significados construídos através da performance”. Por outro lado, como 303 notava Tambiah (1979, p. 128), inquirir sobre a eficácia de um rito pode conduzir a enxergá-lo somente sob uma perspectiva racionalista, gerando interpretações etnocêntricas. Mesmo observando as leis científicas, se procurarmos a lógica dos ritos dentro de um quadro performativo de ação social simbólica, como sugeriu Tambiah, entenderemos que o ponto de vista das pessoas que vivem a experiência é chave imprescindível para compreender os processos de cura. Referências BRITO, Lucas G. “‘Eu tinha uma concepção de uma coisa, chega lá eles passam outra’ – Reflexões sobre uma trajetória religiosa”. 2015, no prelo. GEERTZ, Clifford. “A Religião como Sistema Cultural”. In: _________. A interpretação das culturas”. Rio de Janeiro: LTC, 2014, p. 65-91. MOTA, Clarice Santos; TRAD, Leny Alves Bomfim; VILLAS BOAS, Maria José Villares. “O papel da experiência religiosa no enfrentamento de aflições e problemas de saúde”. Interface. Vol. 16, N. 42, 2012, p. 665-675. RABELO, Miriam Cristina. “Religião e cura: algumas reflexões sobre a experiência religiosa das classes populares urbanas”. Cadernos de Saúde Pública. Vol. 9, N. 3, 1993, p. 316-325. RABELO, Miriam Cristina. “Religião, ritual e cura”. In: ALVES, P. & MINAYO, M (orgs.) Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994, p. 47-56. TAMBIAH, Stanley. “A performative approach to ritual”. Proccedings of the British Academy. Vol. 65, 1979, p. 113-169. TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência. Cadernos de Campo. N. 1, 2005, p. 177-185. 5. A CURA E O ETERNO MISTÉRIO DA ORAÇÃO Celma Laurinda Freitas Costa93 Resumo: Desde tempos imemoriais, a oração é um dispositivo presente nas percepções humanas em pelo menos cinco dimensões: corporal, mental, espiritual, emocional e psicológica. Disso se deduz que a oração é universal e pertence à humanidade, não sendo, portanto, privilégio de nenhuma concepção religiosa. A 93 Doutoranda em Ciências da Religião (turma 2015, PUCGoiás). Doutora em Ciências Jurídica e Sociais. Mestre e doutora em Educação. Conciliadora e Mediadora. Instrutora em Mediação Judicial. E-mail: cellac@uol.com.br 304 oração é um eterno ministério nas experiências humanas com o sagrado. É ponte com o Absoluto. É bem-estar. É atitude. É força inefável que promove saúde e cura. A oração é uma comunicação que se estabelece por meio de uma prática espiritualista, seja ela qual for, e que produz eficácia a rogativas diversas em resposta a algum tipo de necessidade. Então é de se perguntar: por que não orar? Que qualidades o ser humano compartilha no ato da oração? Do aspecto finito à dimensão infinita, a consciência humana se conecta com algo que lhe traz sentidos intencionais, mas ela não sabe como isso funciona. O astrofísico inglês Sir Arthur Eddington, com o Princípio da Incerteza da física moderna, diz que a percepção é “algo desconhecido que está fazendo algo que não sabemos”. Dessa perspectiva, a leitura espiritista pode apontar alguns caminhos para se compreender a eficácia da oração e até mesmo da cura, considerando-se que, além do corpo, o espírito se redimensiona e transita em um espaço não-local e se liga a diferentes entidades do mundo espiritual por meio de campos energéticos imortais numa correlação matériaespírito e espírito-matéria, em aptidões e experiências que diferem de indivíduo para indivíduo. Palavras-chave: Cura. Oração. Sagrado. Espiritismo. Na contemporaneidade, a construção do conhecimento cada vez mais aceita e se amplia com diferentes saberes em regime colaborativo. A ciência em diálogos plurais com as questões religiosas reconhece que o conhecimento não mais tem o propósito de se institucionalizar nem de se autorreferenciar como pensamento único. Ela está em constante movimento de criação e recriação. O ato de conhecer com bases fundantes em concepções científicas não renega, portanto, outros saberes. Nesse sentido, a visão espírita tem a seguinte ideia: Quando surge um fato novo, que não guarda relação com alguma ciência conhecida, o sábio, para estudá-lo, tem que abstrair da sua ciência e fazer dizer a si mesmo que o que se lhe oferece constitui um estudo novo, impossível de ser feito com ideias preconcebidas. (KARDEC, 2007, p. 3738) Para falar das correlações espírito-matéria, Jorge Andréa (1990, p. 5), médico e expositor do Instituto Cultura Espírita do Brasil, afirma que “as ideias espiritualistas, calcadas na lógica dedutiva das posições científicas, propiciam farto campo de propostas para o conhecimento humano”. Com esse raciocínio, no VIII Congresso Internacional em Ciências da Religião, promovido pela PUCGoiás, com o tema Religião, Saúde e Terapias Integrativas, vamos trabalhar a ideia da oração na concepção espírita, tomando-a como uma prática religiosa que compõe o arcabouço das terapias integrativas na promoção da saúde. Assim, a nossa comunicação oral nesse evento será feita com o título A cura e o eterno mistério da oração. Buscamos então refletir sobre alguns 305 aspectos que motivam e levam o ser humano a orar e sobre o que ele compartilha no ato da oração. Para abordar essa proposta, partimos da concepção de que o ser humano é um ser racional: ele raciocina, pensa, sente, emociona-se e tem desejos e necessidades. Outro ponto a ser considerado na nossa reflexão é que ao ser humano foram dadas duas realidades: a realidade interior e a realidade exterior; a exemplo do que Jung catalogou para compreender a energia psíquica, o inconsciente coletivo, os símbolos e os arquétipos. Mas a referência que fizemos a Jung é mais ilustrativa, no sentido de dizer que nenhuma realidade é melhor ou pior que outra, elas se complementam no mundo do indivíduo. Queremos aqui, então, expor que essas duas realidades, na acepção do Espiritismo – codificado em Doutrina Espírita por Allan Kardec –, ganham dimensões que se integram, interpenetram e se complementam reciprocamente: espírito e matéria (espírito-matéria e matéria-espírito). Ou numa linguagem mais simples: alma e corpo – corpo e alma. Sem termos a intenção de discorrer sobre as múltiplas acepções do termo “alma”, Kardec (2007, p. 17) chama “ALMA ao ser imaterial e individual que em nós reside e sobrevive ao corpo”. Para se chegar à noção de ciência espírita, um dos três pilares da Doutrina Espírita (filosofia, ciência e religião), Kardec, por meio de observação, catalogação e sistematização de respostas dadas pelos espíritos (pessoas desencarnadas) ao médium (pessoa que intermedeia as mensagens do mundo espiritual ao mundo físico) em manifestações que ele denominou de fenômeno mediúnico (intercâmbio e diálogos entre vivos e mortos), afirma que “os seres orgânicos têm em si uma força íntima que determina o fenômeno da vida”, a vida material. E entre os seres da vida material está a vida humana, dotada das faculdades da inteligência e pensamento, que propulsionam o desenvolvimento do “senso moral especial” dos indivíduos. É importante dizer que os indivíduos se encontram, pelo fenômeno da reencarnação, em diferentes níveis e graus de progresso espiritual, independentemente das suas condições de saúde psicofísica e emocional. O fato é que a Doutrina Espírita descreve e explica a existência comunicante entre vivos e mortos (espíritos encarnados e espíritos desencarnados), define a alma como o “ser” que independe da matéria e sobrevive ao corpo, e nela 306 repousando um corpus de ensinamentos ditados pelos “espíritos superiores” (há vários mundos e espíritos em evolução espiritual). Kardec aponta que a filosofia clássica fazia reflexão semelhante: Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se encontram após a morte e se reconhecem. Mostra o Espiritismo que continuam as relações que entre eles se estabeleceram, de tal maneira que a morte não é nem uma interrupção, nem a cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade. (KARDEC, 2006-a, p. 50) Nesse sentido, a preocupação de Sócrates e Platão era a de tomar maior cuidado com a alma, e menos ao que diz respeito à vida terrena, que não dura mais que um instante frente à eternidade. Ao Espiritismo foi dado o status de demonstrar o conhecimento do mundo espiritual e do progresso da alma (espírito), o qual se realiza gradativamente. Nesse sentido, a Doutrina Espírita esclarece: Não sendo mais que as almas dos homens, os Espíritos não adquirem a perfeição logo que deixam o envoltório terrenal. Seu progresso só se faz com o tempo, e não é senão paulatinamente que se despojam das suas imperfeições, que conquistam os conhecimentos que lhes faltam. (KARDEC, 2006-b, p. 174) Entrelaçados os mundos visíveis e invisíveis, o espírita compreende o ensinamento dado pelos espíritos de que “Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” (KARDEC, 2007, p. 67). Em razão disso, o Espiritismo, embora propugne que tudo deva passar pelo crivo da razão em confronto com a fé (fé raciocinada), é uma doutrina cristã, pois ele possui um ensino moral que exige de cada indivíduo uma “reforma de si mesmo” como meio de perfectibilidade, de ficar livre das injunções da matéria, como dor, sofrimento, enfermidade, doença. Com a ideia espiritista de que o ser humano é um espírito vivendo experiências físicas de diversas ordens sob a sua responsabilidade, uma vez que ele necessita reformar-se a si mesmo transformando as suas imperfeições em qualidades boas que o conduzam à saúde, à plenitude, à iluminação – e de que Deus é o ser protetor, destacamos a oração como um dos caminhos que ligariam o indivíduo a esse ente Divino (Deus, espíritos protetores). Nesse encontro, teremos o sagrado entre dois mundos: matéria e espírito. O sagrado experimentado pelo espírita e o sagrado imanentemente depositado pelo espírita no Ser Divino (Deus, espíritos protetores) consistem em algo especial que pode transformar o ser humano e levá-lo à plenitude, à perfeição e, por que não, ao restabelecimento da saúde. 307 O sagrado nas dimensões da matéria e do espírito nos permite fazer uma exegese avaliativa a partir da visão de Rudolf Otto com a categoria “numinoso” (latim numen), entendendo essa como uma experiência de “estado da alma”. É por meio do numinoso que a pessoa, aberta à experiência religiosa, pode “encontrar em sua vida íntima” o ponto onde a alma volta-se a algo e tem uma reação da consciência. É, pois, “o sentimento de ser criatura”. Noutras palavras, “o sentimento de ser criatura ou a reação provocada no consciente pelo sentimento de ser objeto do numinoso” (OTTO, 1985, p. 12). Muito provavelmente o indivíduo que está doente experimenta sair em busca de algo no “além” (mundo invisível) quando as suas condições materiais e racionais não são mais suficientes ou já se tornaram insuficientes para responder às suas necessidades de refazimento da saúde, de voltar ao estado saudável. Ele então, com tal busca, acaba tendo uma reação consciencial ao encontrar o objeto numinoso (como, por exemplo, Deus, um espírito protetor: uma entidade de cura). Porém esse indivíduo não tem condições nem elementos de ressonância suficientes para definir a sua experiência religiosa. O que ele pode deixar de mais concreto e perceptível é o resultado da experiência: a cura (se essa ocorrer, claro). A cura como resultado da oração demanda que algo de extraordinário tenha ocorrido e que um inefável mistério tenha a capacidade de transformar o estado de alma do indivíduo que está doente na realização do desejo de ser saudável. Aí, sim, ele se coloca em experiência com o desconhecido, com o místico. É um atendimento. Nesse compasso, o “sentimento de ser criatura” ou “sentimento do numinoso” ou “estado numinoso” ganha qualidade com o “temor místico”, pois há nele uma emoção religiosa intensa, que Otto (1985, p. 23) define como “impressão do tremendum”. Com efeito, o indivíduo que está doente, ao buscar algo no “além” (mundo invisível) para sanear a sua dor ou para se curar, repetimos, usa diferentes mecanismos, entre elas a oração. Ele se coloca aberto e disposto à experiência religiosa num profundo estado numinoso. Ele simplesmente experimenta, mas quase sempre não conceitua nem define o que experimentou no ato de orar e no caso de ter obtido a cura pela oração. Ele apenas expressa que está curado (caso seja curado) e relata a sua jornada espiritual; entretanto a sua manifestação fica na dimensão sentida e continua no indizível, especialmente o que ele compartilhou no 308 ato da oração. São sentimentos qualitativos de uma relação que transcendem a racionalidade das percepções mentais, físicas, psicológicas e emocionais. É uma relação espiritual, é uma relação fundante no numinoso e no místico. Para que isso aconteça, o indivíduo em experiência com o numinoso mantém uma relação com a superioridade absoluta do poder (ou “majestas”), porém ele sabe que necessita promover a autorreforma – ditame do ensino moral do Espiritismo, para alcançar respostas em razão dos seus méritos, mesmo sob a aparência de sentimento de dependência. O indivíduo nutre ainda o “sentimento de ser criatura exaltada e levada ao extremo”, especialmente ao pedir a cura para os seus males. Essa relação tem uma natureza ontológica e se manifesta em razão da visão de unidade que penetra o poder universal de Deus. Na acepção de Otto (1985, p. 25), a expressão “sentimento de ser criatura exaltada e levada ao extremo” significa “o sentimento de ser apenas uma criatura”, de se colocar num estado numinoso da majestas, que está acima de toda criatura. Quando o resultado da oração é a cura, obtida em razão da experiência religiosa, pode-se dizer que isso implica uma atuação da energia do numinoso (ou “orgé) por se relacionar particularmente com “expressões simbólicas da vida, da paixão, da sensibilidade, da bondade, da força, do movimento, da excitação, da atividade, da impulsão” (OTTO, 1995, p. 26). A respeito do orgé numa relação com os elementos do tremendum e da majestas, Otto (1995, p. 26) discorre: Esta característica se encontra, essencialmente idêntica, desde os diversos graus do demonismo até a ideia de Deus vivo. Eles formam, no numem, o elemento cuja experiência coloca a alma em estado de atividade, excita o zelo, provoca a tensão e a energia prodigiosa da qual o homem prova, seja no ascetismo ou na luta ardente contra o mundo e a carne, seja nos atos de vida heroica na qual a excitação tem lugar. Ainda, refletindo sobre a cura decorrente da oração e analisando os elementos que englobam o estado numinoso no seu tríplice aspecto (tremendum, orgé e mysterium), define-se que o mistério consiste naquilo que é estranho e surpreende o ser humano. O mistério é aquilo que se opõe à ordem conhecida das coisas, ou seja, aquilo que está fora do domínio das coisas habituais. Segundo Otto (1985, p. 30), o “mysterium significa qualquer coisa de secreto, algo que nos é estranho, incompreensivo, inexplicável”. O mistério, o tremendo e a energia do 309 numimoso estão numa relação interligada que traz sentido ao próprio indivíduo na sua experiência espiritual, cuja explicação é inefável, indizível, indescritível. Thich Nhât Hanh (2006, p. 11), monge budista, em seu livro A energia da oração, discorre que “o que importa é reconhecer o eterno mistério da oração, pois é o mistério e não alguma fórmula imaginada que perdura para sempre” e continua afirmando que “nunca ninguém conseguiu reduzir a oração a um método formalístico que sempre “funciona” num certo sentido utilitário, ainda que milhões já o tenham tentado”. O autor é enfático quando fala da inexistência de um método utilitário da oração e pontua que “isso não surpreende, pois o Absoluto está além do conhecimento racional”, que, na perspectiva de Otto a respeito do sagrado, é uma experiência religiosa, e quaisquer conceitos são insuficientes para exprimi-la. Assim é de se perguntar: Como funciona a oração? Minha explicação preferida vai na linha do comentário de Sir Arthur Eddignton sobre o Princípio da Incerteza da física moderna: “Alguma coisa desconhecida está fazendo não sei o quê”. Ou na linha da observação do Dr. Seuss: “Simplesmente aconteceu”. Não é sinal de fraqueza confessar nossa ignorância sobre o funcionamento da oração. Na medicina, constatamos muitas vezes que algo funciona milênios antes de sabermos como é que funciona. (NHÂT HANH, 2006, p. 12). Sem a intenção de conceituar ou definir o que é a oração (que, no Espiritismo, se denomina de prece) ante o teor do desconhecido, do mistério, o indivíduo pode ser socorrido em suas rogativas segundo os ditames das leis universais (sintonia, vibração e de causa e efeito) que ele professa ou acredita. Na concepção espírita, o resultado e a eficácia alcançados pela prece condicionam-se à máxima “ajuda-te, que o céu te ajudará” (KARDEC, 2006, p. 422). O ser humano precisa reformar-se a si mesmo para mudar e obter respostas positivas às suas necessidades. A prece e a cura são então uma atividade subjetiva de individuação em constante processo de aprimoramento do espírito, implicando dizer, pois, que o sagrado, no processo da oração e da cura, é uma manifestação e atividade que se expressam por meio da interligação ativa entre dois sujeitos (espírito encarnado e espírito desencarnado) e entre dois mundos (visível e invisível) em constante trabalho de evolução. A cura é, assim, condicionada ao exercício da reforma íntima. Nas correlações espírito-matéria, Jorge Andréa (1990, p. 11), fazendo breves considerações sobre organização psíquica humana, destaca que “a linguagem da física moderna se está tornando mais efetiva e apropriada aos estudos e investigações dos chamados problemas espirituais”. Avocando os conhecimentos 310 da física moderna para compreender o indizível do campo da espiritualidade, o autor assevera ainda: “diríamos, mesmo, que o raciocínio matemático, em alcançando parâmetros além do pensamento filosófico, possibilitaria à física esta profunda penetração nas ainda desconhecidas dimensões espirituais”. Noutras palavras: O físico moderno, este grande “místico” da ciência, vem oferecendo maior soma de válidas equações ao panorama da pesquisa espírita. Assim mesmo, quando os estudos físicos penetram as estruturas do átomo, o perquiridor embaraça-se completamente diante dos conceitos de partículas e de ondas; isto é, matéria e energia que neste cadinho se confundem e refundem completamente. É como se os limites entre o que consideramos matéria e energia desaparecessem e não possibilitassem demarcações para atender o intelecto humano. (ANDRÉA,1990, p. 11) Tratando-se de espírito-matéria, a tese espírita apresenta-se complexa na medida em que são arrolados diferentes campos energéticos (corpo mental, duplo etérico, perispírito) para sustentarem a estrutura espiritual e o psiquismo do indivíduo, pois “os laboradores do microcosmo estão, em maioria, acordes com a existência de um campo orientador das estruturas físicas; uma autêntica “essência orientadora” dentro da inteligente dinâmica atômica, a fim de que não se esbare no acaso.” (ANDRÉA, 1990, p. 12). Mesmo no universo complexo do Espiritismo, o sagrado não deixa de ser uma realidade constituída de subjetividade irracional (irracional, segundo Otto, no sentido de que não há um conceito para expressar a experiência da cura), ainda que se tente explicar que as energias psíquicas e espirituais, ao se acoplarem e associarem à matéria em dimensões não-locais, promovem de alguma forma mudanças no ser humano: da doença à saúde. A cura em resposta à sua oração. Assim, como uma experiência religiosa, a cura de doenças na acepção espírita é algo que simplesmente acontece. Acontece numa interrelação dinâmica entre o ser humano e o Divino, e a experiência religiosa difere de indivíduo para indivíduo. Referências ANDRÉA, Jorge. Correlações espírito-matéria. Petrópolis, RJ: Sociedade editora espiritualista F. V. Lorenz, 1990. KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2006-a. KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2006-b. 311 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2007. MEIRA, Isabela F. Carl Jung: Introdução a arquétipos e inconsciente. http://www.psicosmica.com/2014/12/introducao-arquetipos-e-inconsciente.html. 28.02.2016 NHÂT HANH, Thich. A energia da oração. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. OTTO, Rudolf. O sagrado. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. ___________________________________________________________________ GT 11 HISTÓRIA CULTURAL DAS RELIGIÕES Coordenadores:Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura/ UFPE / UNICAMP Prof. Dr. Gustavo de Souza Oliveira/UNICAMP Prof. Ms. Harley Abrantes Moreira/UPE / UNICAMP Ementa: O objetivo do grupo de trabalho é realizar uma discussão acerca do estudo das religiões na perspectiva da História Cultural. A abordagem ganhou força com a chamada “virada cultural”, a partir da década de 1970, quando grupos de historiadores questionavam esquemas teóricos generalizantes, com o enfoque nas distinções de natureza cultural em detrimento das explicações sociais, políticas e econômicas. Pensar as religiões a partir das práticas e estratégias contidas no escopo da História Cultural permite resignificar o conceito como parte integrante de culturas específicas. Deste modo, seu estudo torna-se relevante na medida em que atua na desconstrução de generalizações que podem funcionar como ferramentas de violência em variadas espacialidades e temporalidades.O grupo tem objetivo de reunir trabalhos que abordem questões teóricas e metodológicas sobre a história das religiões, história de instituições e confissões religiosas, gênero e religião, missionarismo, colonialismo e cristianização, os intelectuais, a mídia, os diálogos religiosos na história da América Luso-espanhola, a história comparada das religiões, a história das teologias e da construção de crenças, práticas, devoção e discursos religiosos nas sociedades modernas, pluralistas, cristãs, não cristãs e multiculturais. Comunicações: 1. ESPAÇO E TEMPO DA INVENTIVIDADE CULTURAL DOS RITOS RELIGIOSOS DO SAIRÉ NA AMAZÔNIA BRASILEIRA ENTRE 1750-1850 Nome: Maria Augusta Freitas Costa Canal Titulação: Doutoranda do PPGEO/FCT /UNESP Instituição: UNESP 312 Resumo: A discussão proposta para esse trabalho é resultado de seis anos de pesquisas, em que nossos projetos e subprojetos se destinaram a análise e entendimento da festa do Sairé, realizada em Alter do Chão no oeste paraense e tem como objetivo apresentar os elementos que deram suporte a invenção cultural do Sairé enquanto rito religioso e estratégia política de viabilização do catolicismo na Amazônia brasileira e sua enculturação como mediador de práticas espirituais dos sujeitos amazônidas. A metodologia utilizada para abordar a temática consistiu em revisão bibliográfica e documental; identificação e sistematização de descrições, narrativas e relatos sobre o Sairé encontrados em obra de religiosos e cronistas que estiveram na região entre 1750 e 1850 e; análise dos discursos encontrados. Os resultados demonstram que o campo da inventividade cultural do Sairé foi permeado de tensões e contradições entre os ensinamentos das doutrinas católicas das ordens religiosas estabelecidas na região e a manutenção da religiosidade indígena de honra aos antepassados e às manifestações do naturalismo, o que engendrou uma peculiar manifestação religiosa/espiritual do culto ao divino e à trindade na Amazônia. A simultaneidade de variação temporal, de acordo Heller (1987), pressupõe “[...] que las diversas épocas son representables a traves de los diferentes individuos-tipos, sin embargo, tales tipos de individualidade – aunque de una manera compleja – están construídos el uno sobre el otro [...]” (IDEM, p. 49). O que nos permite reconhecer que a horizontalidade das relações particulares cotidianamente estabelecidas é impulsionada a um movimento de superações quantiqualitativas sem aniquilação do velho ou das velhas formas–conteúdos. Ou, como diz Koselleck (2006), pensar o tempo não necessariamente é uma margem quantitativa, mensurada por calendários ou máquinas, mas é, antes de tudo, uma margem de “experiência” e de “expectativa”. Conforme Koselleck (2006), o par “experiência” e “expectativa” corresponde a duas categoria adequadas “[...]para nos ocuparmos do tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro [...] para tentar descobrir o tempo histórico, [...] enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político” (IDEM, p. 308). Para este autor, a apreensão das duas categorias existencialistas “tempo” e “espaço” pode ser mediada pela composição de um “espaço de experiência” (o presente passado) cujas recordações antecipam esperanças configuradas em um “horizonte de expectativa” (o passado futuro). Dessa forma, quando observamos a cultura do Sairé apresentada em Alter do Chão, distrito santareno situado no oeste paraense, percebe-se formas-conteúdos que revelam um tempo engendrado pelo presente que é passado e futuro. 313 A tríade “passado-presente-futuro” corresponde a um sistema cujo universo é cada vez mais permeado por aquilo que Guattari (1992) denominou de multiplicidade maquínica, que associa a delimitação de máquina ao homem através de seus múltiplos componentes, inclusive as máquinas abstratas que se instauram “[...] transversalmente aos níveis maquínicos materiais, cognitivos, afetivos, sociais [...]” (IDEM, p. 44). Fazendo uma aproximação com a assertiva de Heller (1993) de que: “[...] Nosso passado é o futuro de outros, assim como o nosso presente é o passado de outros. Somos os outros. Historicidade é história” (IDEM, p. 55), podemos falar de fluxos ininterruptos de cortes maquínicos na temporalização histórica. A invenção da cultura Sairé A produção de uma cultura que emerge do cotidiano indica que os sujeitos humanos não são passivos, pois como mostra Wagner (1981), no cotidiano são formatados os espaços de convivência responsáveis pela criação coletiva de estratégias de sobrevivência que culminam com inovações e mudanças culturais. Portanto, segundo o autor, toda cultura é invenção coletiva de significados comum ao grupo, o que remete ao contexto de geração de significação a coisas. No caso do Sairé em Alter do Chão as mudanças culturais podem ser descritas como estratégia de consumo à sobrevivência religiosa indígena e a introdução de ritos católicos que temporalizou o outro (o colonizador para os indígenas e vice-versa) no espaço de convivência dessa localidade. Em outras palavras, o temporalizar o outro implica na construção de experiências e expectativas que coadunam a construção de um tempo que é um presente único, inventado na prática cotidiana e que sintetizou em uma manifestação cultural: a festa do Sairé. O que propícia à compreensão dos sistemas simbólicos engendrados por seus grupos sociais e pela dinâmica da consciência humana sobre a qual essa manifestação cultural se estabelece como tradição (WAGNER, 1981). Assim, ao observarmos a estrutura ritualística do Sairé detectamos a ingerência colonial dos jesuítas sobre essa região amazônica, posto que sua liturgia organizada à conversão do “bom selvagem” era encontrada, como assesta Pereira (1989), no entorno dos rios Solimões e Negro, bem como a jusante do Amazonas, de acordo com esse autor, o “Sahiré” se constituía como “[...] liturgia 314 católica com o movimento e o colorido das procissões, os temas ingênuos e bárbaros [...] em tupi e português, tanto dos cânticos sagrados como dos populares, e o ritmo largo e sensual das danças [...]” (IDEM, p. 12). Segundo relatos do Pe. João Daniel que vivera e viajou pela Amazônia durante o século XVIII, o Sairé era uma dança particular de menino e meninas “[...] em que regularmente não entram homens mais, de que os tamburileiros, e ainda esses não estão metidos nas danças [...]” (DANIEL, 2004, p. 213), nessas danças eram entoadas canções devotas de roda ao “Sahiré”, à procissão e às danças, bem como, a Santos e a Juízes e mordomos (BATES, 1962; BAENA, 2004). Nos relatos de Daniel (2004), encontramos o lugar social da prática discursiva, ou seja, seus argumentos não são “[...] um conjunto de textos, mas uma prática, uma forma de intervenção no mundo [...]” (COSTA, 2005, p. 45). No seu discurso encontramos o termo “Sahiré” e não “Turyua” (expressão indígena) para denominar a dança e a procissão, também se verifica o uso de termos como zelo, boas notícias, glorioso para se referir à ação missionária que conseguiu “transmutar o Sahiré” em cantiga devota (DANIEL, 2004). Assim, as práticas discursivas encontradas nos relatos do Pe. João Daniel nos permite vislumbrar, por meio da cultura do Sairé, a forma de intervenção no mundo amazônico de um período do processo de sua colonização: o controle diretivo e repressor das missões (MACHADO, 1997). Pode-se indicar a invenção da cultura Sairé ao abstrairmos dois elementos do discurso do Pe. João Daniel: o uso do termo “Sahiré” em declínio de “Turyua”; e o uso da expressão “transmutar” indicam que elementos da cultura do Sairé já existiam entre os povos pré-colombianos. Essa indicação também pode ser feita ao considerarmos que, segundo Pereira (1989), na área hoje conhecida como Alter do Chão eram identificados por volta de 1722 pelo menos quatro (4) aldeamentos (Iburari, Ibararib, Morari e Borari). E, ainda, ao apreciarmos Ferreira (2008, pp. 67;68), para quem: “[...] os Borari realizam rituais festivos com som de batuques, danças, comidas e bebidas. As crianças, em círculos, imitavam a dança dos adultos [...] numa espécie de confraternização e celebração de exaltação à natureza [...]”. A configuração do Sairé entre 1750 e 1850 315 Percebe-se, nesse ínterim, a máquina da colonização e máquina das ordens religiosas como cortes maquínicos transversais que em Alter do Chão operam como máquinas sociais classificadas como equipamentos coletivos que corroboraram a produção da heterogenia de subjetivações engendradas na cultura do Sairé (GUATTARI, 1992), o que proporcionou um outro “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” em seu corte temporal (KOSELLECK, 2006). Nesse outro “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” o Sairé se conforma como um híbrido de festa, materialidade simbólica e saudação que em Alter do Chão se configurou desde o processo de colonização como expressão do sagrado (DANIEL, 2004; BATES, 1962). A expressão de sagrado denotada ao Sairé não se efetivou pelo controle do catolicismo, mas por sua consumação, posto que, como nos diz Certeau (1994), todo objeto é alterado na sua consumação. Assim, muito embora a concepção ou a adaptação do Sairé tenha uma corte maquínico no processo colonizador da religiosidade católica, sua prática criou espaços de permanência das danças e festejos indígenas (SANTIAGO, 1996, FERREIRA, 2008), o que demostra a sabedoria dos dominados ao usarem os espaços religiosos permissivos para atuarem como pessoas, para consumir à sua maneira o Sairé. Essa maneira de consumir o Sairé tornasse mais incisiva quando do reordenamento territorial amazônico imposto pela coroa portuguesa à retirada das ordens religiosas da Amazônia (MACHADO, 1997), o que possibilitou com que a festa transitasse do controle efetivo dos padres e vigários para os grupos sociais amazônicos cuja situação econômica atribuía a decadência ou permanência do Sairé em suas localidades. Em geral, segundo Pereira (1989), ao longo da história a igreja vai gradativamente se afastando das celebrações do Sairé até abandonar “[...] ao povo e aos que, na sua estrutura haviam atingido condições econômicas marcantes [...]” (IDEM, p. 150). Sem, contudo, diminuir o vigor e expressão dos elementos sagrados anteriormente elaborados, como demonstra o quadro 01 apresentado a seguir. ANO/LOCAL /AUTOR JOÃODANIE L (1797) QUADRO 01: Dos elementos do Sairé descritos pelos viajantes e cronistas DADOS APRESENTADOS CARC. DO ESTANDARTE Mordomos; juízes, Santos católicos, Cantos - Cantigas devotas Movimentos que chusma imprimia à procissão às suas danças Feito de cipó que variava de forma de acordo com a missão e o cerimonial Enfeitado com algodão, flores 316 Norte da colônia do Brasil A. BAENA (1839) Na Catedral de Belém do GrãoPará J. A. de MORAES TORRES (1852) freguesias de Boin, Pinhel e Aveiro (no estado do Pará) e em Fonte Boa (no Esatdo do Amazonas) L. DA S. ARAÚJO E AMAZONAS (1852) Localidades do estado do Amazonas (1863) H. BATES Serpa (atual Itacoatiara) Aldeias, vilas e na Capital Paraense Procissão - onde se cantava aos santos e aos juízes da festa. fitas de diversas core, e lindas plumagens, espelhos e vários outros adornos. Juiz e juíza e seu coro – que cantavam e dançavam Cantigas em letras na língua geral. Em geral falavam de Jesus; Maria e deus menino) Procissão bailada – guiadas por 3 índias que carregavam o estandarte sairé. (a do meio chamada de mestra) Feito em seis palmos de diâmetro quadripartido com uma cruz e um espelho em cada uma dessas partes e outra cruz no meio da periferia. Enfeitado de algodão batido, e adereçado de malacachetas e fitas, e adherete a seis pequenas varas também cobertas de algodão batido, as quaes segurão tres índias [...] O arco é emblemático em todas as suas partes, e somente certas raparigas tinhão o direito de o segurar para a igreja Juiz, juíza; mordomos e mordomas Cantoria em língua indígena parecendo choro. Repiques de sino, tambores e flautas. MASTRO - circulado de ramagens, fructas e biscoitos feitos de farinha de mandioca Três índias velhas Procissões de Santos católicos E do Espirito Santo Tambor e Flauta Coroa do Divino Espirito Santo Honra de - Santa Cruz, da Virgem Santíssima e de São João Batista. Mordomos, Juiz e Juíza e Três velhas Procissão dançada Hino e cantos lamentosos e monótonos em língua Tupi Varas grandes brancas enfeitadas homens e mulheres segue-o segurando varas enfeitadas com papéis recortados e fitas.” Instrumento em simecirculo com seu diâmetro, raios e cordas Enfeitado com algodão, ou arminho, enfeitado com fitas e corôado de huma Cruz da mesma forma forrada e enfeitada. Levado na frente entre bandeiras e tambores. Grande armação semicircular, Enfeitado com algodão e cheia de enfeites, cacos de espelho, etc. Vinham adiante três velhas, carregando o Sairé Fonte: Elaborado a partir das obras de Daniel ([1776] 2004); Baena ([1839], 2004); Torres (1852); Amazonas (1852) e Bates ([1864] Nesses termos, encontramos em Baena (1839); Torres (1852); Amazonas (1852) e Bates (1962 [1864]), descrições detalhadas, cujos discursos não mais atrelados diretamente à igreja, apesar de manter os aspectos pitoresco e exótico, nos permite ponderar sobre a elaboração de elementos da vida cotidiana amazônica como momentos festivos. No quadro 01 destacamos as principais características apontadas pelos autores sobre o semicírculo Sairé, que segundo Amazonas (1852) era levado pelos índios: “[...] as mais vezes quando acompanhão alguma Imagem à igreja para ser festejada ou quando desembarcão a Corôa do Espírito Santo na véspera da Assensão. Nas festas de S. João, e S. Thomé, que são feitas pelos indígenas, ao dito Sahiré [...]” (p. 53). Ao comparamos as descrições desses autores percebemos a imponência e permanência do semicírculo do Sairé como instrumento intermediador das relações religiosas entres os sujeitos da Amazônia Brasileira, bem 317 como, percebemos elementos que denotam aspectos dos rituais comemorativos ao “Divino”, em especial a coroa. Conclusão Apresentamos de forma sintética nesse texto os elementos que engendraram a invenção cultural do Sairé como instrumento, canto, procissão bailada e festa religiosa. Notamos, a partir da análise bibliográfica e documental, que registram a ocorrência do Sairé na Amazônia brasileira entre 1750 e 1850, que, em meio às tensões e conflitos entre as ordens religiosas, o projeto missionário e os diversos grupos indígenas ali alocados se configurou uma prática religiosas/espiritual vinculada ao calendário festivo dos santos da igreja católica. Mas que, em seus ritos e elementos simbólicos faziam reverencia ao culto ao Divino e à Trindade, tendo como arquétipo central um grande semicírculo ornamentado. Tudo isso conjurou à invenção cultural da Festa do Sairé até hoje realizada em Alter do Chão no oeste paraense. Referências AMAZONAS, L. da S. A. Dicionário, topográfico, histórico descitivo da Comarca do Amazonas. Recife: Typ. Commercial de Meira Henrriques, 1892. BATES, H. W. The naturalist on the river Amazons. Berkeley: University of California Press, 1962 [London: 1864] BAENA, A. L. M. Ensaio Corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado Federal, 2004. [1932] COSTA, N. B. da (Org.) Práticas discursivas: exercícios analíticos. Campinas, SP: Pontes, 2005. DANIEL, J. (sac.) [ 1722-1776] Tesouro descoberto no rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2004. FERREIRA, E. O berço do Çairé. Santarém: Edição do Autor, Editora Valer, 2008. HELLER, A. Sociologia de la Vida Cotidiana. Barcelona, Grijalbo, 1987 GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. KOSELLECK, R. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos 318 históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006. MACHADO, L. O. O controle intermitente do território amazônico. In: Revista Território, n. 1, v. 2, 1997. PEREIRA, N. O Sairé e o Marabaixo: tradições da Amazônia. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1989. SANTIAGO, M. do S. de F. Pelos caminhos do Sairé: um estudo do comportamento popular nas Festas do Çairé. Tese de Doutorado. São Paulo: ECA/USP 1996. WAGNER, R. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1981. 2.HISTÓRIA DA MAÇONARIA: UM BREVE LEVANTAMENTO DA HISTÓRIA DA INSTITUIÇÃO NO BRASIL E EM PERNAMBUCO NO SÉCULO XIX Nome: Carmem Lopes de Oliveira Titulação: Mestranda Instituição: UFRPE Resumo: A instituição maçônica quase sempre é esquecida pela historiografia brasileira. Geralmente não constam nos livros didáticos suas atuações nem articulações. Nossa proposta é levantar a História da Maçonaria, como chega ao Brasil com um enfoque especial no estado de Pernambuco, para que historiadores e interessados no tema possam visualizar as ações e práticas desta instituição e complementar de melhor forma as pesquisas em curso. Nossa metodologia se utiliza de jornais e periódicos onde pudemos visualizar os maçons, suas ações e interesses, e seus supostos “inimigos”. Também usamos livros de historiadores e maçons que complementam nossas investigações. Nossas pesquisas apontam para uma presença maçônica atuante e até de momentos de expansão e atritos internos na história do Brasil e em Pernambuco, porém intercalada por períodos de “adormecimento” e inoperância. A participação de maçons, tais como Castro Alves e Joaquim Nabuco, através da literatura da época, contribuíram na desestruturação do sistema escravista. Percebemos que ao longo do nosso corte temporal houve repressões e preconceitos pela elite e intelectualidade católica, marcando conflitos entre as duas instituições. Sendo assim a instituição maçônica presente na sociedade brasileira de forma regular desde o início do século XIX, teve muita participação nas ideologias libertárias, humanitárias e liberais, porém passou quase despercebida pela história do Brasil. Quando se estuda história do Brasil e seus principais acontecimentos geralmente não se vê referência à participação da maçonaria. No artigo para a revista da USP de 1996, Célia M. Marinho coloca que dentro da historia brasileira a maçonaria não tem aparecido tornando-se apenas “assunto para maçons”. 319 Há muito que a maçonaria deixou de ser tema corrente de estudos históricos, tornando-se tão-somente um assunto de maçons, ou quando muito o tema obrigatório de autores maçons interessados em construir uma história maçônica do Brasil (AZEVEDO, 1996. p. 182). Nesse sentido, concordando com a autora, podemos constatar a instituição maçônica “apagada” dos livros de história. Algumas historiografias a consideraram inexpressivas após a independência do país. No entanto, Alexandre Mansur Barata, referência na pesquisa sobre o tema da maçonaria, defendeu uma importante obra que contraria os estudos de Sérgio Buarque de Holanda, que disse ser a maçonaria apenas expressiva durante o processo de emancipação do Brasil (BARATA, 1999, passim). Mansur ao contrario, diz ser a maçonaria também atuante durante o final do século XIX e início do XX. Em sua obra o autor conta a história da maçonaria como herdeira da ilustração iluminista durante o período da primeira república no Brasil, contribuindo para a formação de uma identidade política nacional, no que diz respeito as alas com ideais republicanos e liberais. A maçonaria para ele fez parte de uma elite ilustrada que teve muita participação na emancipação política do país numa rede de sociabilidade (BARATA, 1999, passim). Para podermos entender as articulações e ações políticas da maçonaria será necessário conhecermos também um pouco de sua história interna. Este artigo tenta resgatar a participação maçônica nos principais acontecimentos do país para dar visibilidade à instituição e ajudar pesquisadores e interessados pelo tema. A Maçonaria: surgimento e chegada ao Brasil. A maçonaria considera que suas origens são da antiguidade chegando alguns a fazerem referencias ao Templo de Salomão. Álvaro de Queiroz, por exemplo nos relata que “alguns autores apaixonados pelo tema, que passaram a descrever a Maçonaria como se ela tivesse existido na Atlântida, no Egito, na assíria, etc., chegando alguns ao período do dilúvio e até ao principio do mundo com Adão” (QUEIROZ, 2010. p.16). No entanto, a ciência histórica reconhece o surgimento da instituição apenas a partir da Idade Média. Foi na Inglaterra por volta do século XIII que construtores de 320 catedrais (pedreiros)94 formaram associações de ofícios, o que acabou gerando no século XVIII, nas instituições maçônicas modernas95 (MOREL; SOUZA, 2008, p.40). Dentro das corporações de ofícios os maçons tinham um santo padroeiro em sua sede que poderia ser uma Igreja ou capela, tinham preocupações de caridade e socorro aos necessitados. A partir do século XVI e XVII as corporações passaram a aceitar que pessoas que não fossem pedreiros também fizessem parte das irmandades. Pertencer a uma confraria garantia benefícios tais como acolhimento as pessoas do período. Pertencer a uma comunidade era mais importante do que ser individualista. E assim a maçonaria deixa aos poucos de ser “operativa” 96 para passar a ser mais “especulativa”97. A primeira Grande Loja98 Maçônica surge em 1717 em Londres. Na ocasião é solicitado que se reúnam as normas da fase operativa da maçonaria que são publicadas em 1723 chamadas de Constituição de Anderson. No entanto a Constituição de Anderson desagradou alguns maçons que alegaram que a obra omitiu alguns dias santos e orações “descristianizando” a instituição. O fato fez decorrer o primeiro grande cisma da instituição em 1877. Assim passaram a existir corrente maçônica inglesa- ortodoxa, e a francesa-heterodoxa. A unificação dos “antigos” e os “modernos” (franceses e ingleses) só ocorrem em 1813 (MOREL; SOUZA. 2008, p.42). No Brasil a maçonaria chega com a independência em 1822 99. José Bonifácio foi o primeiro grão mestre100 da primeira loja Reunião, implantada no Rio de Janeiro. A maçonaria nem sempre foi uma instituição unificada, coesa. Segundo Marco Morel e Jean Françoise chegaram a existir, apenas na cidade do Rio de Janeiro em 1831, cinco Grandes Orientes (ibidem, p.134). Porém o Grande Oriente do Brasil se 94 O termo “maçom” também pode ser sinônimo de pedreiro. A fase dita moderna por qual passou a maçonaria é a fase posterior à fase onde ela surge na Idade Média. 96 Período onde os maçons operavam como pedreiros de ofício. 97 Período onde os maçons não eram necessariamente pedreiros e outras profissões podia pertencer às lojas. 95 98 O termo “loja” é o local onde acontecem as cerimônias maçônicas e onde os maçons se reúnem para realizarem os ditos “trabalhos”. A Maçonaria é reconhecida enquanto instituição em 1822 no Brasil, mas antes dessa data há indícios de atuações de maçons brasileiros de forma fragmentada, iniciados na Europa. (MOREL; SOUZA, 2008 p.55) 99 100 maçônica. O termo “grão mestre” é a autoridade máxima dentro da organização hierárquica de uma loja 321 sobressaiu à medida que os outros Grandes orientes foram deixando de existir, fortalecendo o poder central do Grande Oriente do Brasil101. Na Abolição da Escravatura A participação dos maçons na Abolição da escravatura foi significativa, pois muitos dos importantes políticos e intelectuais da época eram adeptos da maçonaria. Ouve a criação de agremiações abolicionistas, e a divulgação e propaganda contra a escravidão em jornais e periódicos (COLUSSI, 2002. p.35). Também ocorreram participação e iniciativas individuais de alguns maçons que discursavam nas lojas ou abriam projetos de lei, ou na atuação de algumas lojas que se comprometiam a proteger e gerar fundos para libertar crianças do sexo feminino (MONTEIRO, 2009. p.39). A lei Eusébio de Queiroz e a do Ventre Livre foram criadas por maçons. Alguns maçons militantes são conhecidos personagens dos livros de história, mas não por terem feito parte da maçonaria. Tais personagens foram: Nabuco de Araújo; Visconde do Rio Branco; José do Patrocínio; Luís Gama; Joaquim Nabuco; Quintino Bocaiuva; e o Barão do Rio Branco (ibidem, p.40). É importante colocar que é difícil definir qual a o perfil político dos maçons já que dentro da maçonaria havia diversas representações políticas. Segundo Eliane Lucia, republicanos e monarquistas conviviam como irmãos dentro das lojas maçônicas. (COLUSSI, 2002. p.37). Os maçons defendiam que os escravos fossem libertos gradualmente, pois acreditavam que a passagem do trabalho escravo para o livre de forma abrupta resultaria em sérios problemas econômicos para o país (MONTEIRO. 2009, p.42). Os maçons, segundo Elson Luiz Monteiro, que faziam parte da instituição no final do século XIX no Brasil estavam influenciados pelas ideias liberais ala Iluminista, com o pensamento positivista, e se comprometiam com o crescimento moral e intelectual do ser humano. Por conta disso aboliam veementemente a escravidão e no final do século XIX os maçons passam a defender a secularização da sociedade e a formação de uma cultura política baseada na defesa de uma sociedade laica. Uma loja que funciona como um “Grande Oriente” é uma loja central que tem outras lojas subordinadas a ela. 101 322 Antes da Proclamação da República, e por causa da defesa da secularização da sociedade, houve um embate entre a Maçonaria e a Igreja Católica. Dom Vital, bispo de Olinda junto com o bispo do Pará, determinaram que as Irmandades católicas excluíssem os seus membros que também pertencessem à Maçonaria. Muitas desobedeceram, e Dom Vital lançou um interdito canônico contra as irmandades ligadas com a Maçonaria. Este embate ficou conhecido como a Questão Religiosa. (MOREL; SOUZA, 2008. p.159). No livro de Ramos de Oliveira intelectual católico, publicado em 1952 sobre o conflito podemos perceber a ação do bispo de Olinda quando ele Chamou à sua presença, um a um, os sacerdotes maçons e, [...] mostrando-lhes as bulas, [dos papas] que por motivos óbvios e históricos condenara a seita, [...] rogou-lhes que abjurassem. Só dois não abjuraram e foram suspensos [sic]. (OLIVEIRA, 1952, p. 85). 102 Na Proclamação da República É difícil localizar qual o papel e o grau de participação da instituição maçônica no advento da Proclamação da República. Segundo Marco Morel e Françoise Jean a proclamação não teve a participação direta do Grande Oriente do Brasil 103, porém contou com a participação de civis e militares maçons, bem como a atuação de algumas lojas (MOREL; SOUZA. 2008, p. 179). Para os republicanos a monarquia representava o atraso do país. A figura do Imperador não passava a ideia de protetor da sociedade. No jornal “O Alfinete” publicado na cidade do Recife de 1878, pode-se perceber o sentimento de insatisfação pelo sistema monárquico. [...] meio seculo [sic] de tanta degradação é sufficiente para convencer ao paiz de que a monarchia é impotente para produzir o bem, e só efficaz para cavar mais fundo ainda o abysmo onde se tem sepultado a sua grandeza e prosperidade. (O ALFINITE. Recife, 1878) A partir de 1870 o Partido Republicano começa a se organizar, e consequentemente publica o seu Manifesto104 que continha exigências consideradas 102 Este trecho foi retirado do livro que faz parte do acervo de obras raras do Arquivo Documental D. Vital da Província Nossa Srª da Penha do NE do Brasil, dos Frades Capuchinhos. Recife. O fato do GOB não ter participado diretamente da Proclamação da República não significa que ele era monarquista, e nem podemos traçar um perfil engessado para a instituição nesse período. 103 104 Alguns historiadores, como Sérgio Buarque de Holanda consideram o Manifesto Republicano antirrevolucionário, por defender uma “revolução pacífica” (BARATA, 1999. p. 126). 323 radicais (COLUSSI, 2002. p.37). Tais exigências foram a “[...] reformas eleitorais, descentralização, total liberdade religiosa, ensino livre, Senado temporário e eletivo, substituição do trabalho escravo pelo livre, extinção do poder Moderador.” (BARATA, 1999. p.125) Após a fundação do Partido Republicano surgiram vários clubes republicanos nas províncias, tais clubes surgiram no seio das lojas maçônicas. Augusto César Acioly coloca que em Pernambuco os republicanos locais não conseguiram projetar uma expressiva campanha em razão, principalmente, pelo desgaste que a instituição sofreu com o episódio da Questão Religiosa, e pela falta de um agrupamento político forte, a exemplo do que ocorreu em São Paulo ou no Rio Grande do Sul, por exemplo, (SILVA, 2007, 48). Após a implantação da República por Deodoro, o mesmo constitui um ministério formado só por maçons. E dentre os 12 presidentes da primeira República, 8 foram maçons (MOREL; SOUZA. 2008, p. 181). A proclamação da República que chega de repente se utiliza do sistema liberal que logo se encarrega de providenciar a constituição de 1891. Tal constituição estabelecia a separação entre Estado e Igreja em seu artigo 72, que surpreendeu os católicos deixando o Estado um pouco mais laico, afastando a permanência de antigas funções públicas antigamente reservadas aos membros do clero tais como, o casamento civil, o atestado de óbito e a certidão de nascimento e o ensino, que agora poderia ser leigo. O processo de secularização da sociedade dava mais um passo a frente. Assim a Igreja se viu perdendo espaço dentro da sociedade e passou a encarar a maçonaria com temor e como um perigo social, pois esta última tinha uma filosofia liberal que rivalizava com o conservadorismo católico (SILVA, 2007, passim). Nesse sentido, ações das alas liberais, muito representados pelas alas maçônicas com um ideário liberal, passaram a conflitar com intelectuais e clero católico, que tinham estes últimos, mais interesse no conservadorismo e em limitar o fluxo das correntes filosóficas liberais e cientificistas. 324 Muitas lojas, por iniciativas próprias, ou contando também com ajuda de simpatizantes das causas maçônicas, desempenharam projetos culturais e políticos que concorriam com os projetos dos católicos105. Nesse sentido, já ao final do século XIX e início do XX, as lojas executaram em todo o Brasil, escolas para ensinar as primeiras letras e de ofício, bibliotecas, congressos, divulgados por uma imprensa maçônica, ações filantrópicas e etc. por vários estados do país (CANDIÁ, 2015, passim). A atuação das lojas maçônicas na educação foi forte em Pernambuco. Ainda segundo Milena Candiá os pedreiros fundaram no estado a Sociedade Propagadora da Instrução Pública de Pernambuco em 1872. A escola Pinto Júnior foi a primeira escola normal particular criada no Brasil onde mais tarde se tornaria Ginásio Pinto Júnior. Dentro desse campo simbólico os maçons disputaram com os católicos sobre o ensino que deveria ser ensinado nas escolas. Os maçons queriam que fosse laico e sem influências religiosas. “[...] Sempre fomos [...] adversários intransigentes do ensino religioso nas escolas”, diziam os maçons em seus periódicos em Pernambuco. (ARCHIVO MAÇONICO. Recife, 1906). Percebe-se assim que a instituição maçônica teve ampla participação na história do país, sendo necessário que se faça uma pesquisa especializada para poder encontrar seus integrantes nos acontecimentos e fatos da história. Conclusão Assim que chega ao Brasil a maçonaria já trouxe sua ideologia forjada na Europa e agiu conforme a condição local de cada estado brasileiro. Desde tempos remotos a maçonaria se considera propagadora do bem, desenvolvedora da moral e intelectual do ser humano. Houve momentos em que foi mais militante, já em outros atuou de forma mais branda, apenas executando projetos culturais e divulgando sua propaganda e filosofia numa imprensa periódica. 105 Como exemplo de projeto católico para este período temos o processo de Romanização da Igreja Católica. Para saber mais consultar MOURA, Carlos André Silva de. Fé, Saber e Poder: os intelectuais entre a Restauração Católica e a política no Recife (1930-1937). Recife, PCR: 2012. 325 Após a independência, estar presente na política era uma forma de se fazer influente na sociedade e fortalecer a filosofia defendida pela maçonaria. Percebe-se que grandes personalidades da história pertenceram à maçonaria. Aproveitando o processo de secularização da sociedade e da constituição mais laica, a organização maçônica no final do século XIX passa a se expandir e a se fortalecer, o que não agrada a Igreja Católica. Durante o processo de rivalidade com a Igreja as lojas executam projetos culturais logo após a implantação da República. Tais projetos executados pelas lojas se faziam necessárias para elas, no sentido de serem estratégias sociopolíticas de um maior ganho de espaço dentro da sociedade. Eles justificavam suas atuações de oferecerem, por exemplo, ensino às primeiras letras a sociedade, como a distribuição não apenas de uma educação básica, mas de estarem oferecendo “as luzes” que iluminariam a sociedade das trevas. Tem crescido trabalhos que tratam da maçonaria principalmente de forma local, que tem se baseado em pesquisas de autores que trabalharam a instituição de forma mais macro. Assim, já se pode encontrar a maçonaria escrita pela visão de pesquisadores não maçons. É necessário mais aprofundamento em relação ao tema, visto que a instituição é de caráter secreto e muitas lojas não divulgaram seus arquivos e nem facilitam o acesso de pesquisadores não maçons em suas dependências. Referências AZEVEDO, Célia M. Marinho. Maçonaria: história e historiografia. Revista USP, São Paulo, n. 32, 1996-97, p. 178-189. BARATA, Alexandre Mansur. Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870 –1910). Campinas: Ed Unicamp, 1999. CANDIÁ, Milena Aparecida Almeida. A instrução do povo pelo povo: a maçonaria e o movimento associativista pela expansão da educação popular no Brasil. In: SILVA, Michel (Org). Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade. Jundaí, Paco Editorial: 2015. COLUSSI, Eliane Lucia. A Maçonaria Brasileira no Século XIX. São Paulo: Saraiva, 2002. (Que História é essa?) 326 MONTEIRO, Elson Luiz Rocha. A Maçonaria e a Campanha Abolicionista no Pará: (1870-1888). 2009. 115 f. Dissertação (Mestrado em História) - UFPA, Belém PA. MOREL, Marco; SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. O Poder da Maçonaria: a história de uma sociedade secreta no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. QUEIROZ, Álvaro de. A Maçonaria Simbólica. São Paulo: Madras, 2010. SILVA, Augusto César Acily Paz. Pedreiros do Mal: Maçonaria X Igreja Católica em Pernambuco. Dissertação (Mestrado em História). UFPB/CCHLA, João Pessoa, 2007. Acervo Digital da Biblioteca Nacional. <http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/> Arquivo de Obras Raras da Biblioteca Pública. Recife. Arquivo da Província Nossa Srª da Penha do NE do Brasil, dos Frades Capuchinhos/Acervo Documental D. Vital. Recife. 3. O projeto anticlerical no início da República Portuguesa (1910 – 1911) Carlos André Silva de Moura106 Resumo: A transição política entre a Monarquia e a República portuguesa foi marcada por atritos do poder político com o religioso. Os representantes do novo sistema de governo, responsáveis pelo processo de laicização do Estado, assumiram uma postura anticlerical, fundamentada em um projeto cultural laicista e de combate ao catolicismo. Neste trabalho, analisaremos como as propostas de secularização apresentadas pelo Ministro da Justiça Affonso Costa, entre os anos de 1910 e 1911, foram fundamentais para a formação dos discursos contrários as práticas dos membros da Igreja Católica. Para isto, analisaremos as leis que fundamentaram a secularização do Estado e as suas formas de aplicação na nova república. Palavras-chave: Secularização – Portugal – Igreja Católica A instauração da República em Portugal, em 05 de outubro de 1910, foi acompanhada por um acerto de contas entre o Estado, a população e os membros da Igreja Católica. As ações desenvolvidas já nas primeiras semanas do novo governo se concentraram na publicação de decretos e leis que normatizaram o cenário político-religioso, ultrapassando os objetivos de uma secularização, com ideias que caminhavam para os processos de laicização simbólica e a formação de uma cultura laicista (MOURA, 2015, p. 25 – 43.; CATROGA, 2006.). Doutor em História na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutorando no Departamento de História da UNICAMP e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP) E-mail: casmcarlos@yahoo.com.br 106 327 A participação da população no movimento republicano português atribuiu uma conotação diferente quando comparada ao Brasil. Parte dos lusitanos acompanhou de perto os desdobramentos políticos em Lisboa, com armas nas mãos, contribuíram para a queda da Monarquia liderada por D. Manuel II que se refugiou no Palácio das Necessidades no dia do fim do império (PROENÇA, 2008.; MATTOSO, 2001, p. 344 – 345.). As páginas do jornal O Seculo ilustraram as movimentações nas ruas da capital. Percebemos em seus artigos diários, a expectativa da população para a implantação do novo sistema político e o esforço de desqualificar as ações da Família Real no momento da fuga de Lisboa. A participação popular foi incentivada pela falta de identidade que alguns portugueses tinham com a Monarquia, ocasionada devido às crises sociais e aos problemas na administração do país. Foi registrado no periódico que: […] os populares, armados de revólver, tinham assaltado a cerca do regimento de infantaria 16, onde dispararam alguns tiros, sendo esse o signal para o regimento se revoltar. Os soldados saíram logo das casernas. Revoltosos, ficando feridos alguns officiaes, que quizeram oppôr-se ao movimento. Os soldados arrombaram os paioes, tiraram o armamento e foram distribuil-o aos populares, a quem ensinavam o manejo das armas, seguindo depois o regimento em direção a Entremuros, protegidos por pequenas forças de soldados commandados por cabos, que se dispunham nas emboccaduras das ruas. O quartel ficou abandonado. O capitão Lino está ferido n’uma perna. Foi assaltada a esquadra da Travessa das Almas, onde o povo se apossou de varios armamentos (O Seculo, 1910b.). As ideias republicanas chegavam a Portugal como expectativas para a solução dos problemas nacionais, com a resolução das questões sociais e a proposição do bem-estar e do progresso nacional. Entretanto, o movimento não foi unanimidade entre os portugueses. Suas ações mais intensas se concentraram entre os militares, alguns populares e parte dos políticos de Lisboa. Apesar de alguns integrantes de outras regiões, como parte do Norte do país, permanecer no intento de resguardar suas tradições monarquistas, após 05 de outubro não demoraram em aderir ao movimento. A capital portuguesa traduzia o caráter democrático, nacionalista e anticlerical do pensamento republicano e de uma pequena burguesia. Seguida da cidade de Lisboa, a região da linha do Tejo, uma localidade de influência dos debates realizados na capital, acompanhou o crescimento populacional da localidade, mas com menor influência clerical em seu cotidiano (CATROGA, 2000, p. 41 – 42.). 328 A participação das sociedades secretas foi uma marca dos eventos em torno da Proclamação da República. Entre os grupos que se destacaram, estavam os componentes da Carbonária, que defendiam os recursos da luta armada para promover a implementação do novo sistema de governo. A Maçonaria, da mesma maneira, apresentou suas contribuições, principalmente na organização do pensamento filosófico do novo governo. O grupo defendia a instauração do laicismo, que ficou evidente nas ações desenvolvidas por Affonso Costa a frente do Ministério da Justiça. A partir de outubro de 1910, teve início em Portugal, sobretudo na capital do país, uma verdadeira “caça aos padres”, com assaltos a igrejas e seminários, prisões e assassinatos de religiosos. As ações populares foram incentivadas por publicações que contribuíram para o silenciamento das atividades religiosas e a falta de punições para os revoltosos que promoviam atos contra os eclesiásticos. Para os manifestantes, que defendiam o anticatolicismo, suas ações eram justificadas pela afirmação de que as ordens religiosas eram o maior obstáculo para o desenvolvimento econômico, cultural, educacional e social do país. O anticlericalismo fazia parte dos projetos de alguns republicanos que tinham a intenção de acabar com a influência da Igreja Católica e da monarquia no país. Os líderes da República iniciavam o governo com mais ações contra o clero do que contra os membros do império, fato que pode ser percebido nas primeiras publicações que contribuíram para o surgimento de conflitos nas diversas cidades portuguesas (MOURA, 2011, p. 27.). As acusações de excessos foram feitas dos dois lados. Militares e integrantes do governo provisório afirmavam que em algumas igrejas e seminários, religiosos enfrentavam as forças da Guarda Nacional Republicana em defesa da monarquia. Na imprensa portuguesa, várias matérias circularam sobre as investidas dos militares que procuravam armas em diversas instituições, a exemplo das ações no Convento do Quelhas. O jornal O Seculo fez a descrição dos objetos encontrados na instituição no momento da invasão por populares e militares. O redator da matéria informou que os: […] padres, que se suppõe se evadiram por um subterrâneo, deixaram os bicos de gaz, que se vêem em profusão por todas as dependencias, completamente abertos, sendo grande o cheiro a gaz que ali se notava. Tambem foram apprehendidas varias cargas de Mauser, muitas pistolas e revólvers, que foram enviados para o quartel general. […] Os populares, 329 desconfiados que os padres que haviam fuzilado o povo e os marinheiros se encontravam refugiados no subterrâneo desceram ali, nada encontrando, vindo depois, armados de picaretas e alavancar, abrir cavidades no solo que fica em volta do edificio das Côrtes, a fim de entrarem nos subterrâneos que ali existem e que, parece, communicam com o convento. […] (O Seculo, out. 1910.). É interessante destacar que o periódico foi um dos principais meios de comunicação a fazer cobertura dos acontecimentos que envolviam os republicanos. Suas páginas eram preenchidas diariamente por notícias dos movimentos políticos, com destaque para a questão religiosa. O jornal ocupou um lugar institucional em relação ao movimento, com a divulgação das ações dos membros do governo provisório e das forças armadas. Além dos periódicos que contribuíam com a ação do governo, intelectuais republicanos, de forma independente, também foram fundamentais no discurso anticatólico. Eurico de Seabra, um dos principais pensadores que analisou as mudanças políticas do início do século XX em Portugal, desenvolveu um longo trabalho sobre as causas da separação entre o Estado e a Igreja, com uma abordagem sobre o momento social vivenciado no país. Em sua obra, elogiada no prefácio escrito pelo Ministro da Justiça Affonso Costa, o autor demonstrou as “problemáticas” causadas pelas ordens religiosas e o jesuitismo para o desenvolvimento da nação. Com o texto, contribuiu com o trabalho dos republicanos mais radicais em desqualificar o catolicismo, suas instituições e as práticas em terras portuguesas (SEABRA, 1914.). As notícias sobre as atividades anticlericais eram frequentes nos primeiros meses da República. Dessa forma, eventos que envolviam prisões de religiosos e saques de instituições católicas eram publicados diariamente. Alguns tiveram repercussão internacional, como as mortes dos padres Bernardino Barros Gomes, na casa dos Lazaristas de Arroios, e do padre francês Alfred Fargues, que vivia na Igreja de São Luís. Os assassinatos dos religiosos, no dia 04 de outubro de 1910, causaram atritos entre as representações diplomáticas da França e de Portugal. O governo francês cobrou explicações do ocorrido e obteve como respostas as mesmas justificativas que eram publicadas em alguns jornais de Lisboa, que dava a causa da morte como legítima defesa dos militares e populares após o ataque armado dos religiosos. Em seguida ao acontecimento, alguns membros das congregações 330 religiosas receberam apoio diplomático para sair de Portugal. No entanto, a ajuda não chegou para a maioria dos eclesiásticos, que precisaram passar por vários procedimentos baseados na antropologia criminal antes de seguirem ao exílio ou retornarem aos seus países de origem (O Seculo, out. 1910a.). Os atos contrários aos integrantes do clero foram incentivados por ações governamentais, principalmente após a publicação dos decretos e leis que normatizaram as práticas religiosas. Com o início da República, houve uma restauração do pensamento pombalino no que se refere ao anticongregacionalismo e ao controle dos cultos. Enquanto, no Brasil, a Igreja havia conquistado a liberdade jurídica para as suas atividades, em terras lusitanas, o clero era controlado por membros do Ministério da Justiça, a partir de um mecanismo de vigilância voltado para as práticas públicas e privadas. Muitos padres foram detidos por integrantes das forças armadas com a justificativa de “evitar abusos” da população mais exaltada. Então, no dia da proclamação da República, o patriarca emérito de Lisboa, D. José Sebastião de Almeida Neto (1841 – 1920), antecessor de Dom António Mendes Belo (1842 – 1929), foi preso e levado às instalações do governo provisório para um interrogatório que foi conduzido por Affonso Costa, com o objetivo de tomar informações sobre os projetos católicos contrários a República. Em decisão contra os católicos, no dia 04 de novembro de 1910, o governo autorizou a concessão de anistia a todos os crimes contra a religião. A determinação incluía os atos praticados em datas anteriores ao momento da publicação do decreto, o que incluía os excessos praticados nos primeiros dias da República em Portugal. Com isso, o governo não reconhecia os assassinatos de religiosos, a exemplo dos padres Bernardino Barros Gomes e Alfred Fargues, como crimes passíveis de punição mesmo com as restrições que as relações internacionais poderiam acarretar. É importante destacar que os atos contra os religiosos não foram uniformes em todas as regiões. Em algumas cidades distantes de Lisboa, a instauração da República aconteceu sem maiores problemas para os eclesiásticos. Em uma carta endereçada à Nunciatura Apostólica de Lisboa, conseguimos identificar as informações sobre as negociações entre os republicanos e os religiosos no interior do país. No documento, o eclesiástico que não se identificou, relatou que: 331 Aqui, graças a Deus, não tem havido descordeas nem assaltos as casas religiosas, só manifestações […] Nas ruas, e as vezes algumas palavras offencivas aos padres, segundo me consta. Eu tive participação da autoridade que tem sido proclamada a mesma forma de govêrno em Lisboa, e pedia-me permissão para ser hasteada no paço a bandeira republicana, ao que accedi, - pedindo para os homens ordem, respeito e tolerancia para com todas as opiniões e classes, o que se prometteu, e pois assim tem cumprido. […] tenho sido respeitado como mereço e é devido á sua sagrada pessoa e á representação predescificada […] (Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona. Caixa 392, p. 23.). Como capital política e administrativa, onde se localizavam as principais instituições católicas, como os seminários, o patriarcado e os centros de reunião das ordens religiosas, os eclesiásticos de Lisboa receberam maior resistência dos republicanos que defendiam o anticlericalismo. Por isso, os debates sobre o laicismo e a recatolização se concentraram na capital portuguesa, mas não deixaram de ter seus desdobramentos em outras cidades. O principal articulador da legislação que organizava o culto e o cotidiano religioso em Portugal foi o ministro Affonso Costa. Formado em Direito na Universidade de Coimbra, exerceu vários cargos à frente do movimento Republicano, como as legislaturas de deputado pelo Porto (1900) e por Lisboa (1906-1926). Também esteve envolvido com os movimentos de revolta no Norte de Portugal, que em 1891 e 1908 tentaram proclamar a República na região. Em 1905, foi iniciado na maçonaria, com ascensão a todos os graus na hierarquia da instituição. Conhecido no meio religioso como o “mata-frades”, uma referência a Joaquim António de Aguiar, teve identificada, por muitos dos seus opositores, a sua relação com a maçonaria como a principal causa para o anticlericalismo presente em suas propostas. O primeiro ato oficial dos republicanos para o controle das ordens religiosas foi o decreto de 08 de outubro de 1910. A publicação restaurou as leis aprovadas pelo Marques de Pombal, em 1759 e em 1767, com relação à expulsão dos jesuítas, e a de Joaquim António de Aguiar em 1834, que extinguiu em Portugal, Algarves, ilhas adjacentes e seus domínios, os conventos, colégios, hospícios e qualquer casa religiosa de todas as ordens regulares. A documentação foi importante para a elaboração da lei de separação entre o Estado e a Igreja, composta por 196 artigos e que tinha o objetivo de controlar as práticas católicas no país. A legislação foi utilizada para legitimar atos 332 anticlericais, como prisões e exílio de religiosos. Deste modo, identificamos que o movimento em Portugal pode ser caracterizado como um processo laicista, pois além de propor a independência entre os poderes político e religioso, incentivou ações anticatólica em várias regiões. Fontes: Os assaltos aos conventos. O Seculo, Lisboa, p. 01, 09 Out. 1910. Os Mortos. Para a Morgue entram mais oito cadáveres. O seculo, Lisboa, p. 03, 07 out. 1910a. P.A.. Archivio Segreto Vaticano (Ciudad del Vaticano). Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona. Caixa 392, p. 23. SEABRA, Eurico de. A Egreja, as Congregações e a Republica. A separação e as suas causas. Lisboa: Livraria Classica Editora, 1914. Ultimas Noticias. O Movimento revolucionário d’esta Madrugada. As tropas na rua – Mortos e feridos – O povo acclama a republica. O Seculo, Lisboa, p. 05, 04 Out. 1910b. Referências: CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Uma perspectiva histórica. Coimbra: Almedina, 2006. MATTOSO, José (Dir.); RAMOS, Rui (Coord.). História de Portugal: a segunda fundação (1890 – 1926). Lisboa: Editorial Estampa, 2001. V. 06. MOURA, Carlos André Silva de. Histórias cruzadas: debates intelectuais no Brasil e em Portugal durante o movimento de Restauração Católica (1910 - 1942). 417 p. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2015. MOURA, Maria Lúcia de Brito. A resistência e o acatamento à República no seio do clero português. Lusitania Sacra – A República: resistência e acatamento a nível local, Lisboa, p. 25 – 41, T. XXIV, jun. dez. 2011. PROENÇA, Maria Cândida. D. Manuel II. Lisboa: Temas e Debates, 2008. 4. ASPECTO CULTURAL E RELIGIOSO DO SANTUÁRIO DE TRINDADE/GOIÁS E FÁTIMA/PORTUGAL Nome: Dalva Pedro da Silva Titulação: Mestranda Titulação: Pontifícia Universidade Católica de Goiás/PUC-GO Nome: Rosemeire Bernardino dos Reis Titulação: Mestra 333 Instituição: Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte/Seduce Resumo: Com base nas leituras historiográficas acerca do turismo romaria e santuário, podemos verificar que a pesquisa se desenvolve na tríade do conceito e contexto social, o conceito do turismo religioso em Trindade Goiás e Fátima Portugal e não menos importante os aspectos econômicos dos santuários pesquisados. Portanto a proposta do trabalho permeia num diálogo onde podemos verificar que tanto a devoção quanto o econômico andam na mesma direção. Ou seja, para atingir o devocional trilhamos o universo econômico que sustentam os princípios e os dogmas da cultura religiosa católica. Mediante o pensamento religioso da cultura e suas representações podemos assegurar que está intimamente interligada ao aspecto que a cultura perpassa pelo conceito que a religião é apresentada como elemento da mentalidade, já a representação afirma no seu aspecto das diferentes expressões dadas a partir dos elementos fundamentais da cultura religiosa. Assim, podemos a partir desses dois pressupostos apresentar o estudo sobre o turismos religioso no santuário de Trindade/Goiás e Fátima/Portugal. Ambos são assinalados pela cultura religiosa consolidando sua existência a partir da crença de um povo que busca atender suas necessidades via uma fé religiosa que possa garantir a partir dos ritos, símbolos suas necessidades cotidianas. Firmando nos princípios religiosos representados em diferentes manifestações religiosas em especial em nosso objeto de pesquisa sobre o turismo religioso do santuário de Trindade e Fátima. O Turismo numa Perspectiva Histórica O turismo pode ser definido como ciência, a arte e atividade de atraire transportar visitantes, alojá-los e cortesmente satisfazer suas necessidades e desejos. Robert Mclntosh. O turismo serve a interesses humanos, mesmo para além da sua expressa cultural: com ele abrem-se os povos a um melhor conhecimento recíproco, cujos frutos se traduzem num enriquecimento do patrimônio cultural da humanidade, num fortalecimento da solidariedade e da paz. Segundo estudo elaborado por Sandra Carvão (2009) sobre Turismo e Patrimônio, para Organização Mundial do Turismo (OMT), as perspectivas de futuro do turismo mundial, incluindo a sua contribuição para o desenvolvimento econômico e social, cultural são cada vez mais importantes. O turismo internacional moveu em 2007 quase 900 milhões de turistas (733 milhões de dólares de receitas em 2006). As previsões em longo prazo publicadas 334 pela Organização Mundial de Turismo (OMT) indicam que o número de turistas internacionais será de 1.6 milhões em 2020, o que implica uma taxa de crescimento anual da ordem dos 4%. A previsão indica que os destinos de África, Ásia e Médio Oriente crescerão a taxas superiores à média, enquanto que as previsões para os destinos mais maduros da Europa e da América são de crescimento menor que a média (CARVÃO, 2009, p. 17). Os dados da OMT e de outras pesquisas que visam explicar o que surge de atual no segmento do turismo no mundo, mostram que o avanço deste setor da economia contribui com boa parte dos lucros da balança comercial. Frente a importantes procuras atuais das pessoas por lugares sagrados, o turismo no seu segmento religioso proporciona uma importante alternativa e atividade sócio-cultural. Os autores Lickorish & Jenkins definem turismo como uma atividade que ultrapassa os setores convencionais da economia. O turismo requer dados da natureza econômica, social, cultural e ambiental. Nesse sentido, é freqüentemente descrito como uma atividade multifacetada. Não se sabe ao tempo certo quando o homem começou afazer turismo, embora se reconheça que já na antiguidade o tempo livre tinha um papel de destaque entre as classes mais abastadas das principais civilizações ocidentais. Na Grécia Antiga os cidadãos de toda a área dominada pelas cidades-estado gregas convergiam para assistir aos eventos, dos jogos olímpicos. Havia por exemplo, peregrinações a importantes centros religiosos, como ao Oráculo de Delfos. Isso nos leva a perceber que as peregrinações eram centrais na cultura helênica. Neste sentido podemos vislumbrar um florescer do turismo nas peregrinações dentro da cultura helênica. Com o fim do império romano, as viagens sofreram um grande decréscimo. Com a sociedade organizada em feudos autosuficientes, as viagens tornaram-se uma grande aventura, pelo que elas representavam em termos de assaltos de grupos de bandidos. Como se vê, o problema de segurança dos turistas não é uma preocupação exclusiva dos tempos atuais (IBDEM, p. 4). Com as mudanças sociais do século XIX inicia-se à chamada Revolução Industrial que traz como característica, por exemplo, a inovação da tecnologia. Os 335 avanços tecnológicos proporcionam condições a Thomas Cook107”,de organizar com sucesso a primeira viagem de turismo. Considerando o contexto histórico social do turismo, sua decolagem ocorre a partir de 1945, com forte marca de sua evolução no período da primeira e segunda Guerra Mundial. Em 1949 primeiro pacote aéreo. Em 1956 foi realizado o primeiro Congresso de Turismo Social em Berna e a partir de 1957, o turismo aéreo. Já no ano de 1960 surgiram às operadoras turísticas. O fenômeno do turismo está relacionado com viagens, visita a um local, seja ele qual for, santuário, templo ou lugar sagrado de peregrinação ou lazer. Assim, em termo histórico, podemos concordar com Ignarra (2003), quando afirma que o turismo teve início quando o homem deixou de ser sedentário e passou a viajar. Assim, o seguimento desta discussão leva-nos a conhecer os caminhos trilhados historicamente pelas romarias108. Ligadas à tradição católica, elas são comuns na maior parte dos santuários no mundo, no Brasil em Portugal. São as atividades urbanas mais antigas na história da humanidade. Em seu estudo sobre a Romaria do Bom Jesus da Lapa, o antropólogo STEIL (1996) afirmou que as romarias são portadoras de uma tradição continuamente reinventada pelos participantes, objetivando a legitimação de valores culturais. Quando evocam a tradição, esses diversos autores pretendem, na verdade, acionar um estoque de referências religiosas e práticas rituais que foram sendo acumulada em torno do Santuário, com ou sem o selo da ortodoxia, mas que hoje são usadas para socializar seus sistemas de idéias e padrões de comportamento. As romarias oferecem um amplo repertório de símbolos e ritos que os romeiros manipulam para lidar com as transformações geradas pela modernização capitalista. (STEIL, 1996, p.59). 107Foi em 1840 que Thomas Cook, considerado o pai do Turismo Moderno, promove a primeira viagem organizada da historia. Mesmo tendo sido um fracasso comercial é considera como um rotundo sucesso em relação à organização do primeiro pacote turístico, pois se constatou a enorme possibilidade econômica que, este negócio, poderia chegar a ter como atividade, criando assim em 1851 a Agência de Viagens “Thomas Cook and son”. https://turistificando.wordpress.com/2009/11/13/thomas-cook-o-pai-do-turismo-moderno/ Acesso em 15/09/2015. 108Romaria é uma prática histórica pertencente ao patrimônio cultural e religioso da Igreja Católica. O termo surgiu no século XIII para denominar o caminhar dos cristãos para Roma. As romarias são associadas a promessas. A Igreja Matriz foi construída em 1912 pelos missionários redentoristas de Goiás. O local escolhido é o mesmo do achado do medalhão e das demais capelas levantadas. 336 O Turismo no Brasil No Brasil a história do turismo, começa com o próprio descobrimento do País. Segundo Luiz Ignarra (2003, p. 3), as primeiras expedições marítimas que chegaram com Américo Vespúcio, Gaspar Lemos, Fernando de Noronha e outros não deixaram de fazer turismo. Teorias complementares apontam para reflexão seguinte; no Brasil colonial tivemos as viagens comerciais e de alguns raros personagens que viriam a se tornar importantes para a história, sendo que em muitos casos, tratavamse paradas por problemas com o tempo, ou com seus barcos, já que Portugal fazia restrições à circulação de estrangeiros por seus portos. No período imperial, com abertura dos portos, a presença da corte e a chegada de imigrantes europeus, tivemos visitas programadas como a dos naturalistas George Gardner e Charles Darwin, entre outros, e houve mudança de hábitos, com a instalação das ferrovias, construção de hotéis, restaurantes, a busca por higiene, saúde e lazer alguns dos primeiros lugares a receber turistas foram Petrópolis, Poço de Caldas e Campos do Jordão, entre outros. Em 1907 recebemos a primeira excussão internacional, organizada pela agência Thomas Cook. A partir desse ano é oferecido incentivo para construção de hotéis, o Copacabana Palácio foi construído em (QUEIROZ, 2004, p. 4). Turismo começou a se firmar no país como atividade de grande importância sócio-econômica. A chegada do primeiro grupo organizado de turistas ao Rio de Janeiro, a bordo do vapor Byron, em julho de 1907, desperta a curiosidade da população e é notícia de destaque nos jornais. Também no ano de 1907, dois importantes avanços legais trouxeram impactos altamente positivos para a atividade turística: o direito a férias remuneradas (já assegurado na Europa décadas antes) e a isenção de impostos aos primeiros grandes hotéis da cidade109. Segundo Silva & Silva (2012), em um Breve Histórico do Turismo e uma Discussão sobre a Atividade no Brasil, que o turismo ganha impulso com a intervenção do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, juntamente com a iniciativa privada para se adequar a uma nova era no campo do turismo. Desta forma sabe-se que, 109www.correiogourmand.com.br/turismo_02_turismo_03_brasil_seculos_19_e_20. 337 Foi a partir de 1994, com a elevação do turismo à categoria do Ministério da Indústria, do comércio e do Turismo, permitiu-se um maior desenvolvimento do setor, com a celebração de uma estratégica aliança com a iniciativa privada. O turismo brasileiro ingressou em uma nova era, que se consolidou com as quatro macro-estratégias: 1- Melhorar a infra-estrutura básica das regiões turísticas; 2– Capacitar profissionais para ampliar a qualidade dos serviços prestados para tornarem-se competitivos; 3– Modernizar a legislação para adequá-la à realidade do mercado mundial de viagens e turismo; 4- Fortalecer a imagem do Brasil no exterior através de companhias de marketing e promoções nos principais mercados emissores. Considerando a questão, para o governo brasileiro, o turismo é considerado a atividade estratégica. Pois, é através do Programa Nacional de Turismo que se estabeleceram as quatro macro-estratégias acima citadas (SILVA & SILVA; 2012.p.4). De acordo com Theobald (2002, p. 114), não há dúvida de que o turismo transformou o mundo em muitos aspectos e de que para um grande número de culturas o turismo é a incorporação viva das imagens da mídia global. Neste sentido buscamos conhecer a trajetória do turismo religioso português. O Turismo em Portugal Sobre o turismo português fundamentamos nos estudos do sociólogo português, José Alberto Alexandre (2012), da universidade de Coimbra. Para Alexandre apesar da sua importância enquanto fenômeno econômico e sociocultural, só recentemente o turismo começou a merecer uma atenção científica mais dedicada por parte da sociologia. Essa atenção recente está relacionada com o caráter também recente da atenção sociológica aos fenômenos do lazer, consumo e do tempo livre. Segundo Alexandre, os primórdios do turismo em Portugal até final do século XIX estão ligados a um motivo especifico; as viagens tinham mais um objetivo formador, o estudo intelectual e não por prazer. Uma época de difícil condição de viagem levava a classe burguesa afirmar-se como viajante e não como turista. Nesse sentido Alexandre firma que: 338 Nesta altura havia dificuldades em realizar viagens, só alguns é que as faziam; havia viajantes e não turistas, por isso abundavam os livros de viagens nos séculos XVIII e XIX. Quem viajava, fazia-o para se cultivar intelectualmente e não por prazer. Na segunda metade do século XVIII e início do século XIX aparecem às primeiras viagens de recreio. O mecanismo impulsionador do turismo era comandado da seguinte forma, por um lado funcionava a velhíssima atração causada pelo brilho da realeza e da sua corte, as quais sempre talharam as modas e encorajaram o snobismo, do outro, com idênticos resultados turísticos, a nova força difusora das idéias e das opiniões, representada pela nascente comunicação social, ainda limitada ao livro e à gazeta.A partir do momento em que, rendida aos efeitos de tamanho arsenal de seduções, foi despertada a vontade de excursionar, restava apenas aguardar que aparecessem os meios logísticos, cômodos e baratos, capazes de satisfazer tais intenções. Eles vão aparecendo uns a seguir aos outros (principalmente em Inglaterra): estradas de macadame e vapores (1815), comboios (1825), telégrafos (1837), hotéis padronizados (1830-1840) e, por fim o moderno agente de viagens (Thomas Cook, 1841). (ALEXANDRE, 2012, p. 2). Ainda de acordo com os estudos de Alexandre, na metade do século XIX, o turismo expandiu-se, empalhou-se à maioria dos estratos sociais, ampliou a gama temática da sua oferta. Contudo o turismo teve que ter na base uma motivação fortemente recrutador. As deslocações motivadas pelo bem-estar físico ou espiritual sejam pela via do sobrenatural que ergueu a fama de santuários como Fátima, seja pela força que levantaram as termas ou as praias. Nesta fase o turismo está associado a um sentido único: saúde espiritual ou física. A partir dos anos 60, podemos analisar as alterações referentes ao desenvolvimento turístico em Portugal. Nesse o turismo começa a dispor de estatísticas, que apontam para um movimento de estrangeiros viajantes, à procura de estrutura de acolhimento (alojamento) na cidade de Lisboa . Nuno André Gomes Maricato (2012) aponta o crescimento do turismo português, apresenta evolução positiva nos anos de 1974 e 1975 após os uma série de retrocesso devido ao acontecimento de 25110 de abril. 110 339 Conclusão A presente pesquisa foi desenvolvida sobre o aspecto cultural e religioso do santuário de Trindade e de Fátima. Presente na discussão esteve o turismo religioso como expressão maior. O procedimento adotado em nosso trabalho está voltado a uma análise numa perspectiva sociológica da religião. Contudo nela está compartilhado, também, um caráter interdisciplinar, pois, fizemos abordagens nos campos da antropologia, sociologia economia, historia, além de reflexões de ordem filosófica. A possível conclusão que chegamos foi que o elemento mantenedor do aspecto cultural e religioso dos santuários mesmo em plena sociedade moderna e com tantas crises, permanece sendo o aumento da procura das pessoas pelo sagrado, presente nos santuários. Bibliografia ABUMANSSUR, Edin Sued. (Org). Turismo Religioso: ensaios antropológicos sobre religião e Turismo. São Paulo: Papiros, 2003. ALEXANDRE, José Alberto, Coimbra Portugal: 2012 CARVÃO, Sandra. Pesquisas relacionadas ao Segundo estudo sobre Turismo e Patrimônio, para Organização Mundial do Turismo (OMT), (2009). IGNARRA, Luiz Renato – Fundamentos do turismo. São Paulo: Editora Thonson Learning, 2003. LICKORISH, Carson L. JENKINS. Introdução ao Turismo. Rio de Janeiro: Ed Campus, 2000. MARICATO, Nuno André Gomes. O Turismo em Portugal: Tendências e Perspectivas, Dissertação de Mestrado em Gestão. Coimbra, 2012. Na madrugada de 25 Abril de 1974, forças militares ocuparam pontos estratégicos em Lisboa e derrubaram a ditadura do Estado Novo, implantada também por militares em 1926. Às primeiras horas da manhã, militares de vários ramos, ocuparam pontos estratégicos na capital portuguesa, com o objetivo de derrubar o regime do Estado Novo. Os sinais de código para dar o arranque das operações – canções de Paulo de Carvalho e Zeca Afonso – foram transmitidos através da rádio nas horas anteriores.http://ensina.rtp.pt/artigo/a- revolucao-de-25-de-abril-de-1974. dpuf. Acesso 12/01/2015. 340 THEOBALD, William F. (Org.). Turismo global, Maria Cristina Guimarães Cupertino e João Ricardo Barros Penteado. 2. Ed. São Paulo: 2002. SILVA, Jaqueline Santa Rosa, SILVA Gama Samira da. Breve Histórico do Turismo e uma discussão sobre a Atividade do Turismo no Brasil. Três Lagoas – AEMS. Brasil 2012 SILVEIRA, Emerson Sena da.Turismo em Análise,Turismo Religioso no Brasil: uma perspectiva local e global Turismo em Análise, v. 18, n. 1, p. 33-51, 2007. STEIL, Carlos Alberto. Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes, etimologias e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued. (Org). Turismo Religioso: ensaios antropológicos sobre religião e Turismo. São Paulo: Papiros, 2003. 5. FESTA DO DIVINO PAI ETERNO: FENÔMENO RELIGIOSO E SUAS REPRESENTAÇÕES EM PANAMÁ-GO Nome: Eloane Aparecida Rodrigues Carvalho Titulação: Mestranda/ Bolsista do Programa de Pós-graduação/TECCER/UEG. Instituição: Universidade Estadual de Goiás Nome: Mary Anne Vieira Silva Titulação: Doutora Instituição: Universidade Estadual de Goiás Resumo: O estudo sobre a festa do Divino Pai Eterno que ocorre anualmente na cidade de Panamá-GO possibilita compreender suas representações individuais e coletivas pautadas na experiência com o santo padroeiro. Muitos estudiosos da Ciência da Religião, dentre eles o teólogo Rudolf Otto, afirmam que o todo fenômeno religioso deriva-se da experiência do indivíduo com o sagrado. Nesse sentido, inferese que as representações por meio de símbolos e ritos, elencados pelo mito de origem da devoção ao Divino Pai Eterno, configura o espaço local na crença de dogmas da Igreja Católica. Porém, é importante ressaltar que em Panamá também possui outras religiões que caracteriza o sentido de existência de muitos habitantes. Segundo o teólogo José Severino Croatto, “Todas as culturas e todos os povos tiveram e têm uma expressão religiosa. [...]” (2001:08). De acordo com o historiador Roger Chartier (2002:19) essas representações coletivas organizam o mundo social, construindo assim a sua realidade apreendida e comunicada através dos símbolos. Por isso, essa pesquisa tem o intuito de identificar e interpretar o fenômeno religioso e suas formas de representações na cidade de Panamá. Através da metodologia de análise de referências bibliográficas com caráter interdisciplinar, enfatizando principalmente Rudolf Otto, Waldomiro Piazza, Mircea Eliade, Ernst Cassirer, Paul Ricoeur e Roger Chatier. Além da Observação Participante, permitir ao intérprete vivenciar e perceber a relação entre o devoto e o santo de devoção, assim como suas representações. Palavras-Chave: Panamá/GO – Divino Pai Eterno – Fenômeno Religioso – Devoção – Representações. 341 A devoção ao Divino Pai Eterno na cidade de Panamá em Goiás contribuiu para a formação de uma territorialidade sagrada baseada em dogmas da Igreja Católica. Diante disso, a aglomeração de pessoas em homenagem a essa divindade propiciou demarcações simbólicas e territoriais, principalmente, durante os dias festivos. Essa festa religiosa é um marco da espacialização e da identidade cultural por configurar seu próprio sentido nas celebrações aos santos padroeiros e na valorização das características rurais. É importante compreender que desde meados de 1917 a 1918, apresenta a devoção ao Divino Pai Eterno, embora a nomenclatura do município tenha sofrido algumas alterações ao longo dos anos, de início foi denominada de Terra Quebrada, por conseguinte, Divinópolis e somente em 1952 foi emancipada como Panamá. A priori, a crença religiosa da região sul de Goiás foi idealizada da devoção do município de Trindade e, ao se reterritorializar nessa espacialidade, logo se caracterizou ao cotidiano da população. Esse artigo pretende abordar a devoção ao “santo” como uma liga territorial entre os participantes da/na festividade e a cidade goiana, a partir de análises interdisciplinares no âmbito da Geografia e da História Cultural, bem como, da Sociologia, da Antropologia e da História da Religião. Para complementar essa análise serão utilizados as metodologias da observação participante a fim de ressaltar a experiência do sujeito na construção histórico-social do território goiano Representações simbólicas do fenômeno religioso A devoção ao Divino Pai Eterno caracteriza a cidade de Panamá em uma territorialidade elencada nos dogmas católicos com símbolos e rituais que o demarcam em um espaço sagrado. É importante ressaltar que com o passar do tempo e com o avanço do protestantismo no território brasileiro, várias igrejas se instalaram nessa localidade. Essa manifestação religiosa iniciou em meados de 1917 a 1918, período em que os crentes da força transcendente se restringiam a população local. A experiência do indivíduo com o mundo intangível tornou essa região como um 342 espaço que contempla a aproximação com a divindade, bem como, de sociabilização. Ao considerar o conceito de desterritorialização do geógrafo Rogério Haesbaert nos faz pensar que (2011:30) “[...] Em certos casos, desterritorialização significa dissolver ou deslocar o espaço e o tempo, alteram-se estas noções, desterritorializam-se “coisas, pessoas e idéias”. Segundo esse autor, o processo de desterritorialização esta vinculado com a reterritorialização em virtude da experiência com outros “mundos” apropriarem novos espaços. Na segunda década do século XX, houve a desterritorialização da devoção ao Divino Pai Eterno da cidade de Trindade, logo a sua reterritorialização no Povoado Terra Quebrada, mas com configurações específicas da região. Haesbaert ressalta que “[...] o território aqui é, antes de tudo, um território simbólico, ou um espaço de referência para a construção de identidades”. (2011: 35) A experiência de alguns panamenses com o sagrado influenciou a demarcação simbólica e territorial da materialização da subjetividade no espaço onde vivem, contribuindo assim com o fortalecimento da devoção na região sul de Goiás. Segundo o filósofo Ernst Cassirer o ser humano produz seus próprios símbolos de comunicação “[...] de tal modo que as conseqüências lógicas das imagens seriam sempre imagens naturalmente necessárias dos objetos reproduzidos”. (2001: 15). Essa experiência individual após se materializar, tende a criar vínculos de pertencimentos entre os indivíduos, já que as pessoas necessitam sentirem membros de um determinado grupo. Dentro dos grupos existem padrões de interações que são chamados pela História Cultural de representações simbólicas e podem ser definidas como rituais, comportamentos religiosos, crenças e até pelas formas de sociabilidade. De acordo com o historiador Roger Chartier (1987:16) “A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler [...]”. Para compreender essas representações e como elas se externalizam nos territórios é importante enfatizar as formas de linguagens abordadas pelo teólogo José Severino Croatto por afirmar que “O homo religiosus tem criado uma variedade 343 de símbolos, mitos, ritos e doutrinas ao longo dos tempos, enfatizando uma “comunidade” religiosa universal no plano da experiência mais profunda do sagrado.” (2001:07) Nesse sentido, ao experienciar o transcendente, o indivíduo materializa a subjetividade em elementos considerados “profanos”, ou melhor, que fazem parte do mundo real ou tangível dos seres humanos. Mediante o exposto, os símbolos tornam-se os elementos primordiais da relação entre a subjetividade e a objetividade. Aqui, é utilizado o conceito de subjetividade pautada na perspectiva do teólogo Rudolf Otto, “[...] Usamos aquele linguajar presente, por exemplo, ao se dizer de um evento um tanto singular, que por sua profundidade foge à interpretação inteligente: "Isto tem algo de irracional". Por "racional" na idéia do divino entendemos aquilo que nela pode ser formulado com clareza, compreendido com conceitos familiares e definíveis. Afirmamos então que ao redor desse âmbito de clareza conceituai existe uma esfera misteriosa e obscura que foge não ao nosso sentir/mas ao nosso pensar conceituai, e que por isso chamamos de "o irracional".” (2007: 96-97) Indubitavelmente, as festas são espaços demarcados por elementos simbólicos, imateriais e espirituais que perpassam os campos territoriais e identitários designando o local dos/as santos/as e aqueles destinados a ritualística da religião. Dessa maneira, depreende-se que o espaço da festa destinado à devoção ao Divino Pai Eterno é pensado e demarcado simbolicamente em vista da experiência com esse sagrado estar aliada ao cotidiano da população local. A experiência do sagrado em Panamá. A população de Panamá, bem como, das cidades vizinhas, ao experienciar o mundo transcendente em muitos casos se tornam devotos do Divino Pai Eterno. Em decorrência disso, anualmente dedicam dias festivos que contemplam os rituais de consagração e de aproximação com a divindade. De acordo com a geógrafa Maria Idelma Vieira D’Abadia destaca que (2014:99) “[...] durante a vivência de uma festa de padroeiro, é possível retomar a ideia de que o território que ali se constitui estabelece-se numa ligação por um princípio cultural de identificação ou pertencimento, relativizando aquele princípio material de apropriação.” 344 Essa discussão voltada para as demarcações dos espaços pelo fenômeno religioso garante a formação de hábitos culturais, em que os indivíduos se relacionam por meio de elementos simbólicos. No caso da cidade de Panamá, o que prevalece é a devoção ao Divino Pai Eterno, elencados nos dogmas católicos e que aglomera anualmente um contingente de devotos em prol de homenagear o “santo” padroeiro. Ao salientar o aspecto cultural que essa manifestação religiosa proporciona dentro dos espaços, logo se estabelece uma relação com a formação da identidade. De acordo com o sociólogo Stuart Hall (2014:24), [...] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. Desse modo, as representações do mundo social são construídas e determinadas pelos interesses dos grupos pautadas na subjetividade dos indivíduos. Por isso, marcam as singularidades das manifestações religiosas a fim de garantir a permanência do fenômeno religioso dotado de significações e de sentidos relacionados a linguagens de uma coletividade. Em Panamá, assim como, em outras localidades “A religião tem, portanto, como principal função fornecer significados ao cotidiano das pessoas, independente da forma como este se apresenta [...]” (LEMOS, 2012:09). A devoção ao Divino Pai Eterno que ocorre na região sul de Goiás se configura na experiência do trabalhador rural com a divindade, tal fato caracterizou essa manifestação com traço regionalista. O Antropólogo Clifford Geertz (2008:09) afirma que “[...] a cultura (está localizada) na mente e no coração dos homens". Assim, para compreender essa manifestação religiosa e festiva é preciso debruçar na reinterpretação dos elementos simbólicos da mesma maneira que na organização dos rituais a fim de fazer uma releitura das ações dos devotos e perceber que “[...] o ser humano é sujeito ativo no mundo, ou seja, criador e transformador da realidade, cultivador de suas condições de vida em sociedade” (LEMOS, 2012:49). 345 Considerações finais A devoção ao Divino Pai Eterno é abordada nesse artigo como um elemento que liga os indivíduos a cidade de Panamá, principalmente, durante os dias festivos destinados a homenagear o “santo” padroeiro. A festa é percebida como um reavivamento da memória, em que ao experienciar o mundo invisível, logo sente a necessidade de materializar essa experiência no local onde vivem por meio dos elementos simbólicos, bem como, dos rituais aliadas às práticas do cotidiano da população da região sul de Goiás. Referências CASSIRER, Ernst. A Filosofia das Formas Simbólicas: Primeira Parte – A Linguagem.Trad. Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Portugal: Memória e Sociedade, 2002. CROATTO, José Severino. As linguagens da Experiência Religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. Trad. Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo: Paulinas, 2001. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. 1ª Edição. Rio de Janeiro: LTC, 2008. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização: Do “Fim dos Territórios” à Multiterritorialidade. / Rogério Haesbaert. 6ª Edição – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. LEMOS, Carolina Teles. Religião e Tecitura da Vida Cotidiana. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2012. OTTO, Rudolf. O sagrado: Os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Trad. Walter O. Schlupp. Petrópolis: Vozes, 2007. PIAZZA, Waldomiro O. Introdução à fenomenologia religiosa. Petrópolis – RJ: Vozes, 1976. 346 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação (Trad. Artur Morão). Lisboa - Portugal: EDIÇÕES 70, 2013. 6. XANGÔ KAMUKÁ BARUÁLOFINA: REI DA NAÇÃO RELIGIOSA DE CABINDA NO BATUQUE DO RIO GRANDE DO SUL Nome: Roberto Jair Bastos da Cruz (FEEVALE/RS) Titulação: Mestrando em Processos e Manifestações Culturais Instituição: Universidade FEEVALE/RS Resumo: O Batuque do Rio Grande do Sul é constituído por quatro correntes afroreligiosas, denominadas da seguinte forma: Cabinda, Jeje, Ijexá e Oyó. Cada uma delas são chamadas de “nação” por seus praticantes. Dentro do tema proposto, nesse cenário batuqueiro, das referidas correntes afro-religiosas, três são apresentadas no âmbito geral e a nação de Cabinda está desenvolvida com mais detalhes para que se possa entender a relação da deidade enigmática identificada como Xangô Kamuká Baruálofina com a mencionada nação. Inserido nesse contexto, o propósito investigativo tem como objetivo geral levantar as evidências encontradas nas quatro nações religiosas e, em especial, a nação de Cabinda, conectada com outras realidades. Essa trama, impregnada de significados, carrega em si os objetivos específicos: trazer à tona, através de uma síntese histórica, a origem da nação religiosa de Cabinda e seu surgimento no Rio Grande do Sul; abordar os fatos importantes que caracterizam a referida nação, acentuando-a com conceitos bem definidos; relacionar a essa nação religiosa o seu responsável espiritual, Xangô Kamuká Baruálofina, juntamente com seus integrantes afroreligiosos. A metodologia aplicada para esse conteúdo é baseada em fontes secundárias e primárias. Essas, fazem parte de um conjunto de situações vinculadas às manifestações afro-religiosas que ocorrem periodicamente nos templos religiosos de matriz africana: observações, interpretações, entrevistas formais e informais, dentro de uma descrição etnográfica. As considerações finais dessa investigação levam a um caminho cheio de significados, construído pelo ato simbólico do homem, através de seus rituais para reforçar a permanência do mito de matriz africana. As quatro correntes afro-religiosas, também chamadas por seus praticantes de “nação”, são compostas de forma hierárquica por doze Orixás. Numa visão geral no Batuque do Rio Grande do Sul, os Orixás são: Bará, Ogum, Iansã/Oyá, Xangô, Odé, Otim, Obá, Ossain, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá. Nesse contexto não estão explanados todos os Orixás mencionados, mas somente os que pertencem às quatro nações afro-religiosas: Cabinda, Ijexá, Jeje e Oyó. Cada nação religiosa, considerada como uma corrente tem o seu Orixá rei ou rainha no campo espiritual. Mesmo possuindo o seu rei ou rainha, os praticantes da sua determinada nação religiosa cultuam os doze Orixás. Partindo desse princípio, foram abordadas as quatro nações, com ênfase à nação religiosa de Cabinda, devido a sua ligação direta 347 com o seu rei, Xangô Kamuká Baruálofina. A referida nação religiosa é abordada por último para garantir uma compreensão de ideias e para um melhor equilíbrio do tema proposto. Em todo o Brasil os jeje influenciaram as diversas variantes africanas (entende-se aqui como variantes africanas o Batuque do Rio Grande do Sul, o Candomblé da Bahia, o Tambor de Mina do Maranhão, o Xangô de Pernambuco, etc.). No cenário rio-grandense não foi diferente: os jeje deixaram suas marcas através das manifestações culturais e religiosas, surgindo as mesclas jeje-nagô que é a junção “... da união das crenças, costumes, etc. dos povos daometanos e iorubanos (com predomínio destes), trazidos como escravos para o Brasil” (CACCIATORE, 1977, p. 154). Mesmo com a predominância dos grupos yorubá, os jeje deixaram a sua influência que perdura até hoje. Na sua bagagem cultural e religiosa os jeje trouxeram para o Brasil e também para o Rio Grande do Sul as suas deidades chamadas de Voduns. Nesse referido Estado sulino, o Vodum Xapanâ se transformou em Orixá. No Batuque, Xapanã é rei da nação Jeje e “... essa nação, absorveu os Orixás dos nagô, constituindo-se assim, essa forte influência jeje-nagô no Rio Grande do Sul” (CRUZ, 2015, p. 308309). Encontra-se no Batuque o Vodum Sapatá, que transformado em Orixá, tornouse uma modalidade de Xapanã. Percebe-se aí que os praticantes do Batuque sabem que ambos são Voduns, mas os tratam como Orixás. Outra nação religiosa bastante acentuada no Batuque é a Ijexá, que provém de um subgrupo dos yorubá e tinha como capital Ilexá nos limites de Oxogbô, na Nigéria. Hoje, Ilexá é somente uma cidade. Nessa região está localizado o rio Oxum. Na referida região, Oxum é a rainha. No Batuque do Rio Grande do Sul, Ela é a rainha da nação religiosa de Ijexá. Oxum é vista e cultuada pelos seus devotos e praticantes como “Deusa das águas doces – rios, lagos, cachoeiras – bem como da riqueza e da beleza” (CACCIATORE, 1977, p. 202). O culto à Oxum não é praticado somente no Batuque, mas também nos outros rituais afro-brasileiros, devido à importância e à abrangência desse Orixá feminino em todo o território nacional. Encontra-se no Rio Grande do Sul outra importante corrente afro-religiosa chamada de nação de Oyó. Essa nação é liderada pelos reis Xangô e Iansã/Oyá. A total concentração dos rituais de Oyó está nesse Estado brasileiro. Na roda de batuque “o xirê” as rezas são cantadas de Bará a Oxalá. Por ser um pouco 348 diferenciada das demais nações, não segue a hierarquia dos Orixás apresentada anteriormente. As rezas são cantadas para os Orixás masculinos e depois para os Orixás femininos. No momento em que são rezadas para os Orixás femininos, canta-se primeiro para Iansã/Oyá, por ser essa a rainha de Oyó. Depois de reverenciar todos os Orixás femininos, canta-se novamente para Iansã/Oyá e encerra-se com Oxalá. Mesmo que a hierarquia seja um pouco diferenciada das demais, primeiro inicia-se com Bará (Exu ancestral), por ser o primeiro a responder nos rituais e encerra-se com o velho Oxalá, porque esse é o que dá a última palavra. A nação de Cabinda é uma corrente que também pertence ao Batuque sulino. Essa nação é proveniente de grupos bantu, trazidos para o Rio Grande do Sul, na época da escravidão, vindos das regiões de Angola, Cabinda e Congo. Na convivência com os negros escravos das culturas jeje e nagô, acabaram assimilando o processo ritualístico jeje-nagô, mesclando-o aos seus rituais de origem bantu, intensificando ecleticamente as várias procedências e acentuando na prática, o vibrante e o cadenciado som do tambor da nação de Ijexá. Na nação de Oyó o toque do tambor é abafado, isto é, sem muita vibração. Na nação de Cabinda, o toque do tambor é bem marcante que até parece um convite aos assistentes para dançar na roda de batuque. No Jornal Grande Axé, com sede em Porto Alegre, estão arquivadas as publicações do antigo Jornal Bom Axé. Nesse antigo Jornal, na sua publicação 32, janeiro de 2008, p. 10, encontra-se um artigo publicado com o título “Quem é Kamuká?”, pelo babalorixá, professor de História e investigador dos cultos afrobrasileiros que se identifica como Hendrix de Orumilaia. O mesmo tenta explicar da melhor forma possível a relação existente da deidade enigmática, apresentada como Xangô Kamuká Baruálofina com a nação de Cabinda, trazendo à tona uma polêmica que há muitos anos envolve não só os praticantes como também alguns investigadores voltados ao assunto em foco. Hendrix inicia sua abordagem dizendo que Kamuká é um Orixá exclusivamente da nação de Cabinda. Realmente isso é uma verdade, porque o referido Orixá é rei dessa nação e que também está ligado no culto aos espíritos dos mortos no contexto do Batuque. Isso, espiritualmente falando, no entanto o referido autor levanta um questionamento dentro de uma visão político-religiosa, relatando 349 que a nação de Cabinda, em Porto Alegre, foi fundada pelo negro africano Gululu e dá a entender que o negro Waldemar Antonio dos Santos é o fundador dessa nação. Dessa forma, ele questiona se Gululu e Waldemar não seriam a mesma pessoa. Toda essa polêmica é resultado de diferentes afirmações, originárias dos praticantes e dos investigadores também. O antropólogo Norton Corrêa, ao investigar o Batuque do Rio Grande do Sul, entrevistou babalorixás, yalorixás e demais praticantes e “Segundo Ayrton do Xangô, quem trouxe o cambini para Porto Alegre, foi o Gululu, um africano que morava no antigo Beco do Poço, e falava português muito mal” (CORRÊA, 2006, p. 55). Quando Ayrton do Xangô fala “o cambini”, ele está se referindo à nação de Cabinda. O Gululu não é falado somente por Ayrton, mas também pela maioria dos praticantes dessa nação. Até o presente momento, não existe nenhuma comprovação documental sobre o referido africano, o que se sabe provém da oralidade através das gerações no meio religioso. O livro de Paulo Tadeu Barbosa Ferreira, que se titula “Orixá Bará”, foi prefaciado por Maria Helena Nunes, identificada nesse prefácio como Socióloga e relata que “A Nação de Cabinda chegou a Porto Alegre, provavelmente no início do século XX, trazida pelo Babalorixá Valdemar do Xangô Kamuká, o Rei de Cabinda” (FERREIRA, 1997, p. 11). Nessa citação há dúvidas em relação ao Waldemar e o referido Orixá. Segundo os praticantes de Cabinda, o rei dessa nação é Kamuká. O Waldemar era o “cavalo de santo” desse Orixá, isto é, nos rituais o mesmo se manifestava em Waldemar através da incorporação. Há controvérsias à introdução da nação de Cabinda por Waldemar, pelo fato de que anterior a ele já existia em Porto Alegre a identificação do africano Gululu de Kamuká com a referida nação, dissolvendo, dessa forma, o questionamento levantado por Hendrix em relação ao Gululu e Waldemar, que logicamente não se trata da mesma pessoa. Nos relatos por meio da oralidade, Gululu é sempre representado como africano. Futuramente, essa versão poderá ser mantida ou descartada. Tudo vai depender de comprovações relacionadas às investigações. Um fato inédito e recém descoberto em documentos e que pela primeira vez está sendo publicado nesse presente artigo são o casamento e o óbito de Waldemar com descrição da sua data de nascimento e que foi o último “cavalo de santo” de Xangô Kamuká Baruálofina. 350 Pelos relatos orais, Kamuká, incorporado em Waldemar, revelou que não iria mais “baixar” em nenhum praticante da nação de Cabinda e com essa revelação, Kamuká tornou-se rei dessa nação e protetor de todos os seus praticantes, abarcando-os como filhos, dentro da realidade do Batuque do Rio Grande do Sul. Após a morte de Waldemar, Kamuká foi destacado rei espiritual da nação de Cabinda e Waldemar se transformou em Egum (espírito do morto) divinizado, nessa efervescência político-religiosa e que se confirma até hoje nas manifestações ritualísticas dessa nação. Na certidão de casamento do Cartório de Registro Civil da 1ª Zona de Porto Alegre, Waldemar Antonio dos Santos casou com Ottilia Tavares em 14/11/1925. O documento declara que ele nasceu em 24/08/1885, mas não revela a sua idade. Nesse documento, ela tinha 23 anos de idade, mas não consta a sua data de nascimento. Pela data de nascimento dele, percebe-se que ele tinha 40 anos de idade e, pela idade dela, constata-se que ela nasceu em 1902. Ele era bem mais velho do que ela e até a data do casamento ambos eram solteiros. Na certidão de óbito do Cartório de Registro Civil da 2ª Zona de Porto Alegre, até a sua morte, Waldemar continuou casado com Ottilia e domiciliado em Porto Alegre, informa que ele era de cor preta e faleceu em 15/09/1935, com 48 anos de idade, tendo como causa da morte coma diabético. Waldemar foi sepultado em 16/09/1935, no Cemitério da Santa Casa de Porto Alegre. Waldemar era operário e averbado nesse documento sua esposa aparece com o nome de Ottilia Tavares dos Santos. Ele deixou os filhos Antonio com 21, Manoel com 16 e Nair com 6 anos de idade. A data do sepultamento de Waldemar é confirmada também no Livro de Óbito de nº 39, do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Porto Alegre. Tanto na certidão de casamento como na de óbito, constata-se a mesma filiação. Na data de sua morte, consta que Waldemar tinha 48 anos. Ao verificar os dois documentos, o de casamento e o de óbito, percebe-se que na realidade ele tinha 50 anos. Nota-se aí que foi apenas um erro técnico no momento do registro. Quanto a sua cor, declarada na certidão de óbito é confirmada através da antiga fotografia que alguns praticantes da nação de Cabinda possuem em seus templos religiosos. Waldemar casou em 14/11/1925 e faleceu em 15/09/1935. Teve um casamento de quase 10 anos. Analisando os documentos, observa-se que ele era 351 pai solteiro de dois filhos e teve uma filha ao contrair o casamento com Ottilia. Esse fato aparece de forma evidente, porque tanto Waldemar como Ottilia eram solteiros até a data do casamento. Pela idade de Ottilia, quando casou, não permitia biologicamente ter filhos com 21 e 16 anos de idade. Nesse contexto, compreende-se que não foi Waldemar o introdutor da nação de Cabinda em Porto Alegre. Pelos documentos, percebe-se que ele era natural do Estado do Rio Grande do Sul e não africano. Seus pais eram Pedro Antonio dos Santos e Maximiana Georgina dos Santos. Como ambos possuem o mesmo sobrenome é de se acreditar que eles casaram na época da escravidão e tiveram como filho Waldemar, nascido um ano depois à abolição da escravatura no Rio Grande do Sul. Não há dúvida de que Xangô Kamuká Baruálofina é o rei da nação religiosa de Cabinda, tendo como Egum ancestral Waldemar, sem nenhuma possibilidade de dissociação entre ambos, demonstrando dessa forma que o negro no período da escravidão e depois da escravidão, lutou arduamente para perpetuar os seus mitos e ritos, mesmo que de forma diferenciada e para marcar também a sua identidade, dentro de uma realidade cultural e religiosa de matriz africana. Em um dos parágrafos anteriores foi explanado que a nação de Cabinda foi trazida ao Rio Grande do Sul pelos negros escravos bantu das regiões de Angola, Cabinda e Congo. Dependendo da situação e da realidade no período da escravidão, os grupos de negros eram transportados de Angola e Congo para o porto de Cabinda e trazidos para esse Estado sulino como se fossem todos de Cabinda. Diante desse fato e voltando ao conteúdo do artigo de Hendrix do Jornal já mencionado anteriormente, o referido autor declara a existência de uma etnia bantu distante de Cabinda, denominada Mbundu/Kamuka, leste de Angola. É de se acreditar que grupos de negros escravos provenientes dessa região via Cabinda, ao chegarem ao Rio Grande do Sul, implantaram o culto a Kamuká, introduzindo mesclas de outras realidades culturais e religiosas, com a denominação Cabinda, sobreviveram no Rio Grande do Sul com essa identificação, que faz parte da variante africana chamada Batuque. Referências 352 CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. CARTÓRIO de Registro Civil da 1ª Zona de Porto Alegre. Certidão de casamento de Waldemar Antonio dos Santos e Ottilia Tavares, em 14/11/1925. CARTÓRIO de Registro Civil da 2ª Zona de Porto Alegre. Certidão de óbito de Waldemar Antonio dos Santos, em 15/09/1935. CENTRO Histórico-Cultural da Santa Casa de Porto Alegre. Livro de óbito n. 39. Sepultamento de Waldemar Antonio dos Santos, em 16/09/1935. CORRÊA, Norton F. O Batuque do Rio Grande do Sul: Antropologia de uma religião afro-rio-grandense. 2. ed. São Luis: Cultura & Arte, 2006. CRUZ, Roberto J. B. da. “Cultura e religião de matriz africana no contexto riograndense”. In: I Simpósio Internacional Comunicação e Cultura: aproximações com memória e história oral. São Caetano do Sul: USCS, 2015, p. 301-315. FERREIRA, Paulo Tadeu Barbosa. Orixá Bará: nação religiosa de Cabinda. Porto Alegre: Toquí, 1997. JORNAL Bom Axé. Ed. 32. Porto Alegre. Janeiro/2008, p. 10. 7. Helder Pessoa Camara e a construção do “Pacto das Catacumbas” Luiz Carlos Luz Marques111 Lucy Pina Neta112 Resumo: Considerada, entre seus pares, como uma das figuras mais proeminentes do episcopado católico durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, pela sua afabilidade, testemunho cristão e eficácia como articulador, a figura do cearense Helder Pessoa Camara, pode, com a progressiva publicação do seu epistolário, ser analisada em seu modus operandi a partir daquilo que ele mesmo acreditava ser sua missão pessoal, que justificava sua pertença à Igreja católica e sua ação como operador social do sagrado. O presente artigo trabalha a partir de uma pequena, mas significativa, seleção do seu epistolário – as chamadas circulares conciliares – para apresentar, à luz da perspectiva da história cultural, uma síntese da atuação do arcebispo brasileiro, discutindo, a partir do seu discurso autobiográfico, como ele próprio significou e resignificou sua participação na construção do “Grupo da Pobreza”, ou da chamada “Igreja servidora e pobre”, que resultou no Pacto das Catacumbas, assinado cinquenta anos atrás, em novembro de 1965. Documento esse que, apesar de desconhecido para muitos, é tido como uma marca na construção mediática de uma imagem social para a Igreja. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Católica de Pernambuco (PPGCR-UNICAP). E-mail: prof.luizcmarques@gmail.com. 112 Doutoranda do PPGCR-UNICAP e historiadora do Instituto Dom Helder Camara (IDHeC). E-mail: lucypina1608@gmail.com. 111 353 Palavras-chave: Escrita autobiográfica; Correspondência; Grupo da Pobreza; Operador social do sagrado. O falecido arcebispo de Olinda e Recife, Helder Pessoa Camara (1909-1999) escreveu, durante quase duas décadas, um contínuo conjunto de cartas ou circulares coletadas – 2.212 já recuperadas e em processo de edição –, que remetia à “Família do São Joaquim, mais tarde “Família Mecejanense”, grupo inicialmente formado por jovens que possuíam experiência de trabalho ombro a ombro com ele, na Ação católica e na arquidiocese do Rio de Janeiro, a partir dos anos 40 do século XX, ao qual se somaram, a partir de março de 1964, os principais colaboradores do Recife. Grupo, tanto no Rio quanto no Recife, formado majoritariamente por mulheres. O primeiro registro que encontramos, desse gênero epistolar, marca, justamente, o início da participação intensa do ainda arcebispo auxiliar no Concílio, em 1962. Não é fácil afirmar, sobre a carta datada da madrugada de 13 para 14 de outubro de 1962, que ele mesmo indica como a “primeira”, se ela é o marco inicial de um novo hábito do arcebispo, ou se escrever “circulares” já fazia parte de seus métodos de comunicação, embora de maneira mais restrita (os autores pendem para essa reconstrução). As cartas recuperadas obedeceram, praticamente desde o início, a um criterioso padrão (MARQUES in CAMARA, 2009, p. LVII): foram escritas no mesmo tipo de papel, com uma média de três ou quatro folhas, traziam numeração progressiva, local e data em que foram escritas. O próprio dom Helder criou um índice, no qual anotou o número e data de cada carta e as dividiu em “coleções” (conciliares, interconciliares, pósconciliares etc.). Quando ao conteúdo, elas são de insofismável riqueza pois, ora descrevem os acontecimentos do Concílio, ora sintetizam as reflexões pessoais do Dom, ora trazem indicações, comentadas, de leitura, ora buscam informar-se sobre as atividades no Brasil, ora cobram providências, ora aplaudem iniciativas. Além disso, poesias, meditações, propostas de crescimento individual e comunitário, crônicas, introduções às questões teológicas em jogo nas Comissões e em Aula, projetos de grande alcance e pequenos cuidados com pessoas sucedem-se entremeados, aqui e ali, de episódios pitorescos (MARQUES, in CAMARA, 2009, XLII). Os textos não nos parecem ter a pretensão de historicizar um período ou um evento do Concílio, trata-se, antes, das memórias de um padre conciliar, que ao 354 escrevê-las numa perspectiva autobiográfica, apresenta a si mesmo enquanto sujeito ativo de suas narrativas, entre processos de acomodação e inquietações, mudanças e permanências e, em alguns momentos, de profunda ressignificação do seu trabalho como operador social do sagrado, Vim para aqui com planos muito queridos, sonhos que não me pareciam meus. Não forcei a Providência. Não houve nem sombra de clima para eles. Fui aceitando o que Deus foi pondo diante de mim (e as Circulares anteriores refletem, dia a dia, os altos e baixos, as marchas e contramarchas, os sofrimentos e as esperanças da caminhada) (CAMARA, 2009, p. 37). Selecionamos, para a composição desse artigo, as cento e vinte e duas circulares existentes, das que foram escritas durante os quatro períodos conciliares e destacamos, especificamente, aquelas em que dom Helder apresenta e analisa a sua atuação na articulação de um grupo de trabalho não-oficial denominado de “Igreja servidora e pobre”, ou simplesmente, o “Grupo da Pobreza”, trabalho esse que ele acreditava ser sua missão no Concílio, Aos poucos (depois de algumas idas e vindas, depois de algumas incertezas e vacilações), se aclaram, salvo engano, as missões que Deus me confia no Vaticano II: Ajudar o Concílio a realizar-se segundo os planos de Deus e as necessidades da Igreja e do mundo de hoje (CAMARA, 2009, p. 83). O Grupo da Pobreza O Concílio Ecumênico Vaticano II convocado pelo papa João XXIII pretendia trazer a Igreja católica para o diálogo com a modernidade, não tencionava uma nova síntese doutrinária, muito menos responder a todos os problemas, pretendia, antes, colocar a Igreja numa marcha de renovação para acompanhar os passos da história. Do ponto de vista logístico o evento reuniu mais de dois mil bispos, representando os cinco continentes que, reunidos na basílica de São Pedro, no Vaticano, durante dois ou três meses ao longo de quatro anos (1962-1965), trataram de propor e votar reformas para “que a Igreja enfrentasse uma renovação de grande profundidade, de modo a apresentar-se ao mundo e a indicar aos homens a mensagem evangélica com a mesma força e o mesmo imediatismo do Primeiro Pentecostes” (ALBERIGO, 2006, p.187). Em meio a esse evento surgiram grupos de trabalhos não oficiais entre os padres e bispos do Concílio. Um, em especial, o Grupo da Igreja dos Pobres, 355 dirigido pelo cardeal Giacomo Lercano, arcebispo de Bolonha, passou a se reunir desde meados de outubro de 1962 no Colégio Belga, por iniciativa do padre francês Paul Gauthier. Segundo o historiador catalão Hilari Ranger (2002, p. 197), entre as grandes vozes desse grupo, no Concílio, estavam as de dom Helder Camara, vindo de “el llamado ‘trángulo del hambre’ del nordeste brasileño, y parecidamente monseñor Georger Mercier, de los Misioneros de África, obispo de Laghouat (Sahara de Argelia), que habló de la necessidade de um ‘Bandung Cristiano’” Se traçássemos um rápido perfil desse grupo poderíamos defini-lo como um agente de denuncia, disposto a amenizar a ruptura histórica que existe Igreja e os pobres do mundo todo, não só com a faixa de países que, naquele momento, se encontrava na linha do terceiro mundo, já que segundo eles, “la Iglesia se había avenido a pactar com la civilizacions del capitalismo” (RANGER, 2002, p. 197). Durante o primeiro ano do Concílio houve cinco reuniões de trabalho desse grupo, cujas discussões giravam em torno de: reforçar as linhas de difusão, entre os padres conciliares, do documento Jésus, l’Église et les pauvres; a sensibilização do maior número de padres para a problemática da pobreza, pedindo-lhes que fizessem exames de consciência e revisão de vida para ver como poderiam anemizar essa distância entre a Igreja e os pobres; a divulgação, na imprensa, dessas ideias para o opinião pública. Além disso, dirigiram ao cardeal italiano Amleto Giovanni Cicognani, à época Secretário de Estado e presidente da Comissão de Assuntos Extraordinários do Concílio, uma súplica pedindo a criação de uma comissão especial ou de um secretariado que tratasse dos seguintes temas: exercício da justiça pessoal e social, com especial atenção para os países em via de desenvolvimento, a paz e a unidade da família humana, evangelização dos pobres e dos que encontravam-se afastados da Igreja e a exigência da renovação evangélica entre os pastores e os fiéis, particularmente por meio da pobreza. Como último ato, o Grupo dirigiu uma carta ao papa João XXIII pedindo que apoiasse essa súplica ao cardeal. Apesar dos esforços, este grupo nunca gozou de um status oficial no Concílio, a súplica endereçada ao cardeal não resultou na criação de nenhum dos secretariados pedidos, apesar de contar com o apoio dos dois papas que acompanharam o Concílio, João XXIII e Paulo VI, que foi membro do grupo quando ainda era cardeal Montini, 356 Este grupo permaneció siempre al margen del Concilio e incluso la iniciatiba de Pablo VI de octubre de 1963 de pedir al cardenal Lercaro – membro activo de dicho grupo – que le hiciera propuestas concretas (presentadas uma año más tarde) no obtuvo resultado (RANGER, 2002, p. 199). Segundo o historiador Eduardo Hoorneart (2015), o que reunia alguns bispos em torno do tema da “Igreja dos Pobres” era uma sensibilidade compartilhada. “Numa Roma eclesiástica feita de símbolos de poder, ou seja, no Vaticano, esses bispos não se sentem bem”. Para marcar esse sentimento aparece na última celebração do Grupo, em 16 de novembro de 1965, a imagem das “catacumbas”, sugerindo, ainda segundo Hoorneart (2015), “uma Igreja ‘subterrânea’ e perseguida”. Alguns membros do Grupo se reúnem na Catacumba de Santa Domitila, que papa Paulo VI percorrera, em oração, dois meses antes, “mostrando um apoio simbólico à ideia de uma ‘igreja das catacumbas’”, embora, acrescenta o historiador, o ato mais concreto tenha sido “a missa concelebrada, presidida por Mons. Himmer, bispo de Tournai na Bélgica. Os bispos presentes firmam entre si o chamado ‘pacto das catacumbas’, um compromisso de vida ‘para anunciar uma boa nova aos pobres’”. Helder Camara e seu complot em defesa da Pobreza A atuação de dom Helder nesse Grupo deixa marcas profundas em seu episcopado em Olinda e Recife, a veemência com que atua e defende a importância desse tema na experiência pastoral à frente da arquidiocese faz do arcebispo um dos maiores, senão um dos poucos capazes de viver os treze itens do Pacto assinados pelos padres na celebração do dia 16 de novembro. Minha responsabilidade é grave no caso de Pobreza. Quando no ouvido e no coração a voz do Santo Padre Paulo VI: “Faça tudo para que se multipliquem, no Mundo inteiro, Bispos que, de fato, amem os Pobres e que dêem com u’a mão o que receberam com a outra. Você não imagina o que representam para o Papa exemplos assim” (CAMARA, 2009c, p. 177). Para compreender a dimensão dessa missão pessoal, que justificou sua pertença à Igreja católica e sua ação como operador social do sagrado é preciso compreender o “padre” Helder que chega a Roma para o Concílio Vaticano II como pastor que estava passando por um profundo processo de ressignificação do exercício do sacerdócio. Poucos anos antes do anúncio do Concílio, em 1955, a cidade do Rio de Janeiro havia recebido um grande evento católico, o XXXVI 357 Congresso Eucarístico Internacional, uma festa para celebrar a fé católica, na maneira triunfante, que agradava aos mais abastados. O evento em si foi um grande êxito, o Rio de Janeiro entra para a rota do turismo religioso católico e converte-se na capital da fé. No final do Congresso, o cardeal francês Gerlier, arcebispo de Lyon, teria perguntado a dom Helder onde estavam os pobres de Cristo em meio a toda aquela opulência. Essas palavras teriam sido o catalisador que potencializou a grande mudança na missão pessoal-pastoral do jovem arcebispo auxiliar, que ainda amava ser chamado de “padre” Helder, ou “padrezinho” (fora eleito bispo auxiliar em 1952, aos 43 anos, por ocasião da criação da CNBB e elevado a arcebispo auxiliar, em 1955, por ocasião do Congresso). A partir daí ocorre uma verdadeira “virada social” na sua trajetória eclesiástica, o grande mote que impulsiona sua pertença à Igreja é proporciona vida digna aos mais necessitados, um conjunto de condições sociais e religiosas. Para tornar isso possível, empreende no âmbito da arquidiocese do Rio de Janeiro uma série de reformas, inclusive alterando a paisagem social da cidade, como quando forçou a instalação do conjunto habitacional da Cruzada de São Sebastião, no Leblon, e liderou a criação da Feira e do Banco da Providência. Obras criadas na segunda metade da década de 1950, que ainda estão em funcionamento. Esse é o Helder que chega a Roma, disposto a promover a fé católica desde que ela não se assente somente em palavras, que seja uma fé capaz de modificar a realidade de uma comunidade. O Grupo da Igreja dos Pobres pareceu a dom Helder a chance de contagiar mais padres e dessa vez, padres do mundo inteiro, quanto ao problema da pobreza. Na Circular escrita na madrugada do dia 04 de novembro de 1962, véspera da segunda reunião oficial do Grupo, ele comunica aos seus: Enquanto isto, amanhã, no Colégio Belga, temos reunião da equipe que estuda o problema da “pobreza”, na linha de “Jésus Christ, l’Église et les pauvres”, que eu enviei a vocês. Estarão conosco, se Deus quiser, além da equipe de Nazaré e de Mons. Mercier (do Sahara), Cardeais como Gerlier, Suenens e Lercaro (CAMARA, 2009, p.81). Nesta ocasião, dom Helder apresentou uma preleção sustentada em dois pontos principais, a distinção necessária entre pobreza e terceiro Mundo, com o objetivo de arregimentar mais padres para a causa da Pobreza, sobretudo, entre os padres vindos dos países mais pobres ou em desenvolvimento e, segundo, o envio de um “documento assinado por uns 2 mil Bispos” (ainda citando a circular de 04 de novembro), ao Papa João XXIII, pedindo a constituição de uma nova Comissão 358 Conciliar para estudar, especificamente, os assuntos da pobreza e do desenvolvimento do mundo subdesenvolvido. Foi nomeada uma Comissão, da qual faço parte, para preparar para a 3ª reunião (2ª feira, 12, as 16:30) a petição da Comissão conciliar sugerida. Sábado, a nossa Comissão se reune: fiquei de levar um projeto de texto, a ser aprimorado para a 2ª feira (CAMARA, 2009, p.84). Esses propósitos cercaram todas as reuniões do Grupo do ano de 1962, entre almoços de articulações, visitas e muitas horas de estudo e dedicação. De convidado a membro do “estado maior”, esse é o status a que dom Helder se atribui numa das primeiras menções de trabalho do Grupo, no ano seguinte, Reunião do Grupo da Pobreza. No Seminário dos Franceses, às 15h de hoje, tivemos uma reunião do estado maior do Grupo da Pobreza (Mons. Himmer, de Tournai, na Bélgica; Mons. Ancel, coadjutor de Lion; Mons. Mercier, do Sahara; Pe. Paul Gauthier e eu). Reunião à altura do dia de hoje. Combinamos 3 grupos de estudos: teologia da pobreza (em torno de Mons. Himmer); pastoral da pobreza (em torno de Mons. Ancel); espiritualidade do desenvolvimento (em torno do Dom) (CAMARA, 2009, p. 185). Mas confiante do efeito dominó que o Grupo da Pobreza causou no episcopado, contagiando mais padres e bispos a cada reunião, dom Helder apresentar logo no início o projeto da petição que seria entregue ao papa Paulo VI. Na carta, o item dois do texto refere-se aos planos e desejos para o encerramento do 2º Período do Concílio que tem especial destaque nos planos do padre cearense, temos a confiança filial de propor como convidados de honra os Operários e os Pobres de Roma, representando os Operários e os Pobres do mundo inteiro. Esta petição não precisa de justificativa junto ao Vigário de Cristo e Antigo Arcebispo de Milão. Compreendeis como ninguém o alcance deste gesto como símbolo da decisão por parte da Santa Igreja de ser, cada vez mais, a Igreja servidora e pobre (CAMARA, 2009, p.201). O desejo de ver Roma invadida pelos pobres será ilustrado por dom Helder não só nessa carta, mas também, em muitos poemas que escreveu e muitos textos que publicou. O ano de 1963, para ele, no Grupo da Pobreza, no entanto, foi reservado à tarefa de desenvolver trabalhos na linha da “Espiritualidade do desenvolvimento”, ajudado pelo teólogo Père Chenu e por peritos da América Latina, da Ásia e da África. Estruturou seus estudos nesse sentido, aprofundando os seguintes temas: para além da mera existência e da própria justiça social, despertar evangélico dos ricos do mundo desenvolvido e em desenvolvimento; 359 conscientização das massas infra-humanas em nome do Evangelho; socialização com expansão da pessoa como possibilidade única de romper o subdesenvolvimento; e o Cristo presente às mutações sociais. Essa estrutura ficou conhecida em seus escritos como plano Trienal de conquista dos Bispos para a Pobreza, e para alcançar seus objetivos, dom Helder não mede esforços, produz vários esquemas de trabalhos, troca com colaboradores leigos brasileiros livros anotados e referências literárias para aprofundar o assunto. A última sessão conciliar do ano de 1963 marca em dom Helder a impressão de que a mudança que ele buscava com tanto esforço entre os bispos do mundo inteiro ainda não havia contagiado a Cúria Romana, A sessão solene de encerramento foi preparada por Vigília mais longa, e Missa mais intensa. E nós fomos para a Basílica. Entrada pelo Portão de Bronze, travessia dos Museus (pintura, escultura, arqueologia), Capela Sistina... Quando saímos em S. Pedro, foi na altura exata da colossal estátua eqüestre de Constantino... Quem disse que terminou a era constantiniana? Durante a cerimônia toda - parecia um pesadelo - quase via e ouvia - o Cavalo de Pedra passar a galope pela Basílica, carregando o Rei que, coitado, se tornou o triste símbolo de uma fase que desejamos superar, mas que está ainda vivíssima... (CAMARA, 2009, p.401). Ao voltar para o 3º período do Concilio, em 1964, agora como arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder tem como missão tornar mais sólidas as decisões do Grupo da Pobreza, pela primeira vez mencionado em suas cartas como “Igreja Servidora e Pobre” com vistas a um Pós-Concilio. Os trabalhos começam em torno de duas novas petições dirigidas ao papa Paulo VI, uma pedido a autorização para que os bispos possam ter e autorizar seus padres a conciliar o trabalho pastoral com um ofício, a fim que a Igreja mostrasse sua “face” servidora e pobre e, a outra, pedindo a autorização para que cardeais, patriarcas e bispos pudessem simplificar suas vestes e títulos. Sabes, ainda, Miguel – sempre melhor do que eu – que Concílio é episódio na vida da Igreja. Vale na medida em que nela deixa marcas positivas, largas e permanentes. Ajuda a Igreja de Cristo a reencontrar os perdidos caminhos da Pobreza. Ajuda-a na abertura de portas: que nenhuma seja fechada por Ela, mas se abram todos os diálogos e irrompa hora nova e única para os teólogos, encarregados não só de aprofundar o Vaticano II, mas de preparar o Vaticano III... Ajuda-a no esforço de levar à prática as decisões conciliares: sopro renovador da face da terra (CAMARA, 2009a, p.83). 360 É possível imaginar a angustia de dom Helder diante da resistência que encontrou nos membros da Cúria Romana, já que viver numa Igreja Servidora e Pobre significa abrir mão de alguns privilégios e repensar uma nova forma de atuar no mundo. Para muitos isso pareceu uma barreira difícil demais para ser transposta. O animo necessário para prosseguir na caminhada vinha do próprio Grupo da Pobreza, dom Heder escreve que o Mercier achava que o Vaticano II já havia ultrapassado dois limiares, indispensáveis à renovação da Igreja: o da unidade, fruto das intervenções do Cardeal Bea e o da pobreza, produto das intervenções do Cardeal Lercaro. Já neste ano de 1964 começam a ser escritos, devidamente votados e apresentado ao papa Paulo VI as resoluções do Grupo, isso demonstra o quanto foi intenso o trabalho de construção coletiva em torno da Pobreza para esses bispos, 1ª atitude (objeto do 2º texto, discutido ontem) é a decisão: de ––abrir mão de títulos e adotar estilo simples de vida; de ajudar a despojar a liturgia de todos os acréscimos mundanos e artificiais; de procurar ser de todos, mas de efetivamente assumir, a exemplo de Cristo, uma atitude de preferência para com os pobres... (Há claras alusões ao 3º Mundo e sente-se amor ao Pobre e decisão de lutar contra a miséria) (CAMARA, 2009a, p.102). Dom Helder não articulou sozinho, conforme ele mesmo escreve, existia um “estado maior” em defesa da Pobreza, do qual ele fazia parte. Porém, é inegável que seu trabalho como articulador ganhe, hoje, um destaque maior, pela forma cuidadosa e sistemática com que foi sendo escrito. Na madrugada de 03 para 04 de outubro de 1965, data da 24ª Circular daquele ano, escreveu: “amanhã, à noite, se Deus quiser, deverei levar ao Grupo da Pobreza um projeto do Compromisso a ser feito pelos Padres Conciliares que concelebrarem com Cardijn numa Catacumba e por Irmãos Bispos que resolvam aderir” (CAMARA, 2009b, p. 99). O projeto a que dom Helder refere-se é a estrutura final do Pacto das Catacumbas, esse foi o grande acontecimento do final do Concílio para o Grupo da Pobreza, a livre e espontânea aceitação de um novo modelo de vida e sacerdócio que buscava raízes no Evangelho para viver entre os pobres, como os pobres e para os pobres. Mania de Pobreza!... Para que a Igreja seja servidora como Cristo, para que não dê ao Mundo o escândalo de uma Igreja poderosa e forte, que se faz servir, parece-me fundamental este começo de começo, a ser feito logo no primeiro dia. Já pensaram na revolução que seria?!... Daí, para a reforma da Cúria Romana, seria um passo (CAMARA, 2009b, p.93). 361 A assinatura do documento, pelos quarenta padres que celebraram na Catacumba de Santa Domitila, marcou o começo de uma busca pela pobreza para além dos limites de Roma, o desafio era voltar para as suas dioceses e procurar aqueles que estivessem dispostos a viver essa opção preferencial pelo pobre. Dom Helder o viveu intensamente, conseguiu que o mundo inteiro se voltasse para ouvir e ver o franzino bispo que abandonou a solidão do palácio episcopal para ir morar nos fundos de uma igrejinha; que vendou o suntuoso carro oficial do arcebispo para andar de ônibus, a pé ou de carona; e se espantou quando da sua morte, em seu testamento, não possuía nenhum bem (a não ser os direitos autorais de seus livros e seus objetos pessoais, que deixou à entidade Obras de Frei Francisco, hoje Instituto Dom Helder Camara, para que aquela continuasse o seu serviço aos pobres do Recife). Conclusão É indiscutível que a figura do padre cearense Helder Pessoa Camara marcou profundamente a história recente da Igreja Católica, não só no Brasil. Seus trabalhos, tanto em âmbito social quanto pastoral, estão ativos e são recorrentes na memória de seus fiéis admiradores. No entanto, ainda não foi feita, a fundo, uma análise histórica, crítica e desapaixonada, de sua atuação e do alcance de suas ideias, mesmo daquelas em que seu nome aparece frequentemente citado, como é o caso da construção do Pacto das Catacumbas. É fato histórico, por exemplo, que dom Helder não esteve presente na celebração do dia 16 de novembro de 1965, em que os bispos e religiosos assinaram o documento comprometendo-se a viver os treze itens do Pacto. O que não significa não ter, ele, participado intensamente da sua construção e, ainda mais, de sua colocação em prática. Ocorre apenas que ele havia viajado para encontrar-se com o Rei Baudouin, da Bélgica, que na ocasião havia perdido sua avó, a Rainha Elisabeth da Baviera. Talvez por isso a celebração tenha recebido tão pouca atenção e só fosse mencionada na circular escrita na madrugada de 19 para 20 de 362 novembro, em que comunica aos seus que “já houve a Concelebração na Catacumba (em torno de Mons. Himmer) e a Concelebração na Igreja do Cardijn” 113. É curioso o fato de dom Helder não apresentar detalhes sobre o teor da celebração, ou seus participantes, afinal, conforme mostramos, ele sempre indicou todos os passos do Grupo e como organizou suas articulações entre um período e outro do Concilio. Essa ausência de informações nas cartas que se seguiram à celebração deu azo ao surgimento de alguns trabalhos que, não compreendendo o longo trabalho que dom Helder desempenhou durante todo o Concilio, não valorizaram sua participação no Pacto. No entanto, quem lê suas cartas, percebe que ele escreve não para se vangloriar, mas no desejo de eternizar, no papel, os momentos de angustia e glória, de frustração e profunda alegria. Não se pode falar em excepcionalidade, no ato de escrever essas cartas, mas pode-se reconhecer que fazê-las com a frequência e intensidade que ele as fez, é um trabalho para poucas pessoas. O Helder que assina cada uma dessas 122 cartas durante o Concílio (e as mais de 2.000 outras) não nos parece um homem que tem todas as respostas e escreve um script que busca cumprir à risca para a promoção pessoal, mas sim, um padre que busca respostas para dramas universais e que espera, com uma confiança absurda, que o Espirito Santo o guie. O que este artigo pretendeu foi apresentar o modo como dom Helder se escreve de modo criterioso, no cenário dos acontecimentos do Concilio Ecumênico Vaticano II, como ele se mostrar e constrói a imagem que se eternizou de um grande articulador de bastidores. Uma questão, porém nos parece ainda sem resposta: o Pacto da Igreja Pobre e Servidora, tido como uma marca na construção mediática de uma imagem social para a Igreja seria, no decorrer dos últimos 50 anos, a celebração de um fracassado projeto de retorno à Pobreza Evangélica ou, ao contrário, como uma antecipação profética de um percurso colegial que, contornando a milenar burocracia da Igreja, indicou caminhos evangélicos de reconciliação da Igreja com o Cristo-Pobre que só hoje estão se revelando atuantes? Ainda é cedo para indicar uma resposta, mas ela é fundamental para que possamos avaliar melhor o alcance, fora de Roma, das ideias de dom Helder e de seu “ambicioso complot” em defesa da Santa Pobreza. Trata-se da igreja de São Miguel Arcanjo, em Roma, da qual Cardijn era “titular”, na qualidade de cardeal diácono. 113 363 Referências ALBERIGO, Giuseppe. Breve História do Concílio Vaticano II. 2.ed. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2013. BEOZZO, José Oscar. Pacto das Catacumbas: por uma igreja servidora e pobre. São Paulo: Paulinas, 2015. CAMARA, Helder. Circulares Conciliares: de 13/14 de outubro de 1962 a março de 1964. Luiz Carlos Luz Marques e Roberto Faria (Orgs.). Introdução e notas Luiz Carlos Luz Marques. Recife: CEPE, 2009. Coleção Obras Completas, V. 1, T. 1. ______. Vaticano II Correspondência Conciliar: Circulares à Família Mecejanense, 1964. Luiz Carlos Luz Marques e Roberto Faria (Orgs.). Recife: CEPE, 2009b. Coleção Obras Completas, V. 1, T. 2. ______. Vaticano II Correspondência Conciliar: Circulares à Família Mecejanense, 1965. Luiz Carlos Luz Marques e Roberto Faria (Orgs.). Recife: CEPE, 2009c. Coleção Obras Completas, V. 1, T. 3. ______. Circulares Pós-Conciliares: de 09/10 de dezembro 1965 a 30/31 de maio de 1965. Zildo Rocha (Org.). Recife: CEPE, 2009d. Coleção Obras Completas, V. 3, T. 1. HOORNEART, Eduardo. Como foi o Pacto das Catacumbas em Roma, no dia 16 de novembro de 1956?, disponível online via: http://eduardohoornaert.blogspot.com.br/2015/11/como-foi-o-pacto-das-catacumbasem-roma.html. Acessado em fevereiro de 2016. RAGUER, Hilari. Primera fisionomia de la asamblea. In: Historia del Concilio Vaticano II: la formación de la consciência conciliar. El primero período y la primera intersesión (octubre 1962 – septiembre 1963). Giuseppe Alberigo (Dir). Salamanca: Ediciones Sígueme, 2002. 167 a 224p. 8. RELIGIÃO POPULAR: UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA? Nome: Gilvan Gomes das Neves Titulação: Doutorando Instituição: UNICAP Resumo: A presente comunicação tem como objetivo discutir a Religião do povo na formação do catolicismo brasileiro, como uma alternativa de sobrevivência da fé, vivida no Brasil desde o período da Colônia até os dias de hoje, afirmação corroborada pelo Padre José Comblin (1993, p. 47): “o que existe no catolicismo nordestino hoje (...) foi o que sobrou do catolicismo tradicional, aquele que os beatos e os conselheiros viveram e alimentaram. O resto não penetrou na alma do povo”. O processo de romanização que se fez presente no Brasil a partir da segunda 364 metade do século XIX, iniciada durante o pontificado de Pio IX (1869-1870), tentou apagar o catolicismo do povo impondo prática e devoções européias baseada na doutrina e na moral. Palavras-chaves: Catolicismo brasileiro; religião popular; devoções; beatos; conselheiros. O presente trabalho tem como objetivo discutir a Religião do povo na formação do catolicismo brasileiro como uma alternativa de sobrevivência da fé vivida no Brasil desde o período da Colônia até os dias de hoje, afirmação corroborada pelo Padre José Comblin (1993, p. 47): “o que existe no catolicismo nordestino hoje (...) foi o que sobrou do catolicismo tradicional, aquele que os beatos e os conselheiros viveram e alimentaram. O resto não penetrou na alma do povo”. O processo de romanização que se fez presente no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, iniciada durante o pontificado de Pio IX (1869-1870), tentou apagar o catolicismo do povo impondo prática e devoções europeias baseada na doutrina e na moral. A partir daí, começa-se a ‘desmontagem’ da Igreja colonial. Com a abertura de novos seminários, como o de Mariana e Olinda, a vinda de padres estrangeiros para cuidar da formação sacerdotal, mais aos moldes de Roma, do que pelos que eram sustentados pelo governo; diminuir o poder das forças leigas com as suas irmandades e movimentos, deixando o clero local submisso às diretrizes de Roma, por meio dos bispos diocesanos. No início do século XX, a cara da igreja Católica no Brasil, já estava renovada ou romanizada. Seminários, Santuários, sob o controle de padres vindos de congregações estrangeiras. “Esses padres estrangeiros, italianos, franceses, alemães e de outra nacionalidades visitavam o interior do País, realizando atividade de missões, buscando diminuir e integrar a força da religiosidade leiga (rezadores, puxadores de terço e festeiros), padronizando as práticas religiosas, introduzindo novas instituições católicas, novos cultos e padroeiros, agora sob o controle de Roma”( CAMPOS, p.39). Diante dessa nova lógica eclesial, do catolicismo oficial, opondo-se a elas as camadas populares vão se refugiar no chamado “catolicismo popular” ou no “catolicismo rústico”, que são utilizados como lugares de resistência simbólica ao que estava acontecendo no campo religioso católico de então. 365 A Religião e o Estado burguês Após a proclamação da República, é instaurado um Estado laico. A separação entre Igreja e Estado parte da iniciativa do próprio governo. O episcopado brasileiro se opõe, por razões dogmáticas, mas a elite pensante do Estado acha que “não precisa de justificação religiosa para legitimar-se. Sua ideologia não requer uma referência à religião para sustentar-se” (OLIVEIRA, 1985, p. 269). Assim, a Igreja seu papel de organizadora da vida coletiva, sem entretanto ser substituída por outra instituição capaz de desempenhar o mesmo papel. O povo mantêm-se à margem de todo esse processo, não decide, não participa, “as grandes massas mantêm-se fora do alcance dos aparelhos de hegemonia de que dispõe a burguesia agrária e seus intelectuais (1985, p. 271). Os dominados não são levados a reconhecer que seja de seu interesse entrar nas relações de produção capitalistas. Eles não reconhecem a legitimidade dessas relações nas quais são obrigados a entrar. Por outro lado surge a Questão Religiosa, tal conflito é em suma uma expressão brasileira da grande luta entre a Igreja de então e o mundo liberal. A referida questão foi em primeiro lugar uma transplantação para o Brasil da controvérsia liberal e ultramontana, que agitava os países católicos da Europa; a partir das condenações de Pio IX (através do Syllabus), em 1864, das doutrinas liberais exacerbaram também os paladinos do liberalismo nacional (FRAGOSO, p. 188). Apesar de toda ambiguidade da referida questão, ela serviu como uma espécie de grito de independência da Igreja com relação ao Estado. Dois grandes bispos brasileiros: D. Macedo e D. Vital deram um “chega pra lá” na pretensão do governo imperial em transformar a Igreja num ramo de sua administração. Mais uma vez o povo ficou alheio aos acontecimentos, valendo Acusação de Joaquim Nabuco: “os bispos foram corajosos em atacar a maçonaria, mas, nenhum bispo pregava do púlpito contra a escravidão negra” (p.192). Juntando tudo isso, a Igreja via a decadência moral do clero e a falta de preparação intelectual do mesmo. Confiscam os bens das ordens religiosas, proíbem o ingresso de noviços nas mesmas. Restando a Igreja a importação de 366 religiosos para o trabalho de educação, catequese, orientação nos seminários de formação sacerdotal. Os pobres sempre objeto da caridade da Igreja e nunca de justiça. Mas, isoladamente apareceram grandes Apóstolos que apontavam para um outro caminho: Fr. Caetano de Messina e Padre Ibiapina, exemplos de uma alternativa de lidar com o povo e sua religião. [...] a fidelidade do povo do interior a Igreja Oficial não era incondicionada. Os sertanejos dispunham de um ideário religioso próprio. Era um catolicismo autônomo e leigo, expressão específica de sua vida (OTTEN, 1990, p. 301). A ausência da Igreja oficial deixou o caminho aberto pela influência dos padres e missionários. Com a Reforma isto mudou: ela quer acabar com o “fanatismo” e a “superstição” do povo ignorante. As instruções constituem, de fato, uma agressão a fé e o catolicismo dos simples. Comenta Azzi (1976, p. 130): De repente ele (o povo, ndA) se viu separado dos seus santos, impedido de cumprir suas típica promessas. E o clero passou a reprovar suas atitudes e seus costumes religiosos. Não, é pois, de estranhar que alguns desses grupos marginalizados vissem no sacerdote um inimigo de sua religião e de sua fé. Daí é preciso entender um pouco mais esse “universo” do chamado catolicismo do povo com seu ideário rústico. Para que a análise desse fenômeno não seja marcada por preconceitos ou uma visão determinista da religião e da realidade vivida. O Catolicismo do povo – declínio do Catolicismo sertanejo O capitalismo agrário e os desastres climáticos trazem dificuldades para os latifundiários que estes querem resolver com uma maior exploração dos pobres. Tomam-lhes a terra ou exigem renda dos moradores. Assim, as leis sagradas caem: “A sagrada instituição do compadrio se rompe. Há uma outra transgressão das mais sagradas leis: a de não roubar a terra cultivada” (OTTEN, 1990, p. 258). O universo do sertanejo se desagrega. A justiça não funciona: o pobre parte para a vingança porque, no sertão, a honra masculina vale mais do que os dez mandamentos com “Não matarás”. Há uma violenta disputa dos poucos bens. 367 A dissolução não veio só de fora, porém, Queiroz (2003) alerta que a “anomia” reinava no sertão desde a origem da sociedade sertaneja (p.319). Documentos da época falam de brancos com 60 filhos de várias mulheres. Famílias desorganizadas e sem solidariedade; esta é afirmada como valor, mas, negligenciada como comportamento. Há prostituição, violência e abusos. O povo sertanejo é descrito como povo capanga e matador, como povo relaxado, barulhento, cachaceiro, sem religião e soberbo. Esta crise não vem do capitalismo agrário: vem do berço. Mas, o novo sistema econômico acelera o processo de desfazer os grupos, acabar com as novenas, festas de santo, etc., aumenta o número de migrantes nus e moribundos, contribui para que o povo sertanejo perca não só os costumes, mas a fé. Foram-lhe roubados, de uma vez, a vida na terra e no céu. Neste contexto cabe o depoimento daquele pai que evita falar de Deus aos seus filhos para não precisar falar-lhes mal dele. Não conhece e não lhe reconhece a bondade (...) Abundam no sertão os benditos penitenciais (OTTEN, 1990, p.263). Segundo Roger Bastide (1978, p. 93): Deus nosso Senhor / se apiede de nós;/ a seca é tão grande,/ a poeira é atroz. A poeira é atroz; / por nossos pecados, / tão grande são eles / que fomos castigados. Os males dependem de Deus; no sertão, as marcas mais profundas parecem ser marcas de morte e não da vida. A resposta religiosa são penitências sem fim. As revoltas e os bandos de cangaceiros são reprimidas pelas autoridades com extrema crueldade e esvaziadas pelos sermões dos frades, a um alto custo, porém: a religião não é mais hegemônica. É provável que o Deus que levaram aos rebeldes não atendesse às misérias dos sertanejos. Era o Deus das autoridades que os frades proclamavam, e não o do povo ignorado e desatendido (...) O Deus que levarão, por sua vez, Ibiapina e Antônio Conselheiro atende ao povo e é atendido pelo povo do sertão, mas causará irritação e a reação das autoridades (1990, p. 265). O exemplo do Padre Ibiapina 368 O maior milagre de Ibiapina foi o de conseguir uma relativa e passageira organização do povo nordestino atomizado e desarticulado pelo cataclisma do colonialismo. Este milagre foi apenas passageiro por falta de compreensão por parte do clero, que não entendeu a organicidade da atuação de Ibiapina e se deixou seduzir por modelos pastorais importados da Europa, sem prestar atenção ao que era possível aqui, no Nordeste, concretamente (HOORNAERT, 1981, p. 11). Parece-me ter sido o Padre Ibiabina quem melhor compreendeu a alma do sertanejo, especificamente o seu jeito de viver a sua religião. Faz o curso de Direito e como advogado, defendeu os pobres, muda a partir de uma “visão da eternidade” a sua vida. É logo ordenado padre e recebe um alto cargo na instituição Igreja, na Cúria da Arquidiocese de Olinda e Recife, mas, se desfaz. Larga tudo para ser missionário, para buscar o povo perdido do sertão. Encontra a sociedade em dissolução e os costumes em ruínas. Vive e prega o seguimento da cruz do “Jesus doce” e tem uma fé profunda na bondade de Deus. Combate a maçonaria com a arma da cruz, imitação do sofrimento do Bom Jesus e sinal de sofrimento e vitória. Constroem Casas de Caridade pelo sertão a fora, age como um São Vicente da caridade e discípulo do “Bom Jesus dos pobres e aflitos”. O Conselheiro e tantos outros beatos o acompanham em tempo de missão do Pe. Ibiapina e sofrem fortes influências. Tanto o Pe. Cícero como o Pe. Ibiapina e o Beato Antônio Conselheiro lembram o processo de marginalização e desclassificação ao qual o Nordeste estava sendo submetido desde os meados do século XIX e que chegou aos níveis de um genocídio pragmático...(HOORNEART,1985,p.12). Coincidentemente foi durante a peregrinação do Padre Ibiapina, conhecido no interior dos sertões nordestinos como “Padre-Mestre”, que a Igreja começou o processo de romanização, criando assim dificuldades para a sua ação. Como nos diz o Padre Comblin (1993:46): Os bispos da época queriam destruir as formas populares e mais ou menos carismáticas de lideranças religiosas. Quiseram destruir o papel dos conselheiros, beatos ou beatas. Queriam promover a única autoridade religiosa prevista pelo direito canônico, a autoridade dos párocos. A herança de Ibiapina fora atacada diretamente. Deixaram-na morrer sem fazer nenhum esforço para renová-la. 369 A Missão abreviada como manual No sertão era comum que missionário e beatos sempre levassem consigo a Missão Abreviada, um guia de vida cristã com 993 páginas, contendo 211 meditações e instruções titulados, ‘edificantes’, 21 vidas de santo, apartados de práticas e indicações devocionais. O pecado é o elemento central que estrutura o livro cuja tática consiste na “ameaça e na intimidação, em provocar medo, terror, insegurança e sentimentos de culpa” (OTTEN, 1990, 275). Temas são a morte, o juízo particular e universal, o inferno, o memento quis es, a paixão do Senhor Jesus Cristo. Reduz a vida de Cristo a seu sofrimento; a paixão salva e culpabiliza. Jesus não tira a ira de Deus; ele é o sofredor, não o salvador. Mostra um Jesus um pouco bíblico, mais sacramental e a abnegação como modelo de vida. Compartilha as distorções da morte vicária do Filho de Deus, elaborada por Santo Anselmo: Salvação = Ordo, como criação. Sofre influências da Reforma e sua descobertada subjetividade e do Homem-Sujeito e a espiritualização, porém. Estes dois fatores imprimem à Missão Abreviada um intimismo desencarnado e fazem dela o exemplo de uma espiritualidade desviada. Missionários, Conselheiros e beatos vão construindo uma alternativa de sobrevivência no catolicismo sertanejo, sobretudo, a partir de uma certa “apocalíptica popular” fruto do universo religioso, herança dos grandes missionários que viveram pelos sertões nordestinos. As Romarias Eduardo Hoornaert (1983) assinala a importância das romarias em direção aos santuários na formação do catolicismo popular brasileiro, entre tantos outros movimentos da cristandade colonial. Embora “estes movimentos sempre foram encarados com desconfiança pelos detentores do poder que neles sentiram uma força que escapava ao seu controle” (p. 398). Esta força tem raízes longínquas na tradição brasileira, que remontam até a cultura indígena. “Os padres jesuítas que entraram em contato com os chefes indígenas por ocasião das ‘entradas’ e dos ‘descimentos’ foram ‘redifinidos’ ou antes ‘predefinidos’ como pajés, a partir dos esquemas ancestrais da cultura tupi” (p. 399). 370 Continua o autor: [...] houve pois continuidade, a partir da cultura indígena, entre o papel do pajé e do padre católico. Contudo, os padres cedo se recusaram a perpetuar este papel, uma vez realizado o descimento e o aldeamento dos indígenas: eles começaram a revelar-se autoritários e fechados ao diálogo com a cultura indígena, comprometidos com os colonizadores. Os indígenas, diante desta situação, se voltaram para figuras que pudessem perpetuar a imagem do pajé e a encontraram nos beatos e ermitães, pessoas carismáticas e sensíveis aos anseios dos oprimidos. Desta forma os beatos e ermitães entraram na linha da religião ancestral indígena e estabeleceram uma continuidade entre esta religião e a religião dos santuários, do qual eram os depositários(p.339). Essa característica “leiga” da religião do povo fazia que “a sua atuação (do beato) prescindia da do padre, não se necessitava de um padre na presença deum beato: o relicário do beato substituía a missa do padre e a imagem do santo substituía o sacrário, enquanto a capela substituía a matriz: Muita reza, pouca missa, Muito santo, pouco padre. Foi instalada “desta maneira uma alternativa de poder na Igreja do Brasil: o poder era dividido entre a instituição eclesiástica, ligada ao sistema colonial, e o livre caminhar para os santuários que surgiram por toda a parte. Claro que nestas condições, a instituição começou a perceber a importância das romarias e a tentar a recuperar as forças vivas que nelas se manifestavam”(p. 339-340). A apocalíptica popular No universo do catolicismo popular, a vida no mundo tem um “horizonte escatológico” a manutenção da ordo visa a entrada no céu. Conselheiros e beatos veem como esta ordo se dilui, como as ideias liberais e o capitalismo convulsionam o sertão: os fortes pecam, os fracos são vítimas, há pragas, os padres descuidam do seu rebanho e o povo não reza mais. Mas, não é a miséria sozinha que gera esta visão: Necessário para haver apocalipse é o horizonte da vontade de Deus. As injustiças, os liberais, os protestantes, governo e maçons, o casamento civil e os cemitérios secularizados são em primeiro lugar, abolição da lei de Deus.Esta 371 oposição junta os pobres e a Igreja oficial. “Nas profecias apocalípticas populares, pode-se observar uma crescente aglutinação dos sinais apocalípticos ao redor do Conselheiro e da sua comunidade” (OTTEN, 1990, p.295). Nesta visão, Canudos é campo de batalha entre Jesus e o Anticristo. Se espera a inversão da ordem com as forças sobrenaturais de Jesus, D. Sebastião e do Conselheiro. É no fundo, a concepção do líder que orienta o movimento (...) O Conselheiro capta a hostilidade destrutiva das elites e constata o fim do mundo. Proclama que Deus surge para manter a sua Lei e proteger os seus contra as hostes do Anticristo. Deste modo, identifica os males e os malfeitores. Confiando no poder de Deus recupera para o povo esperança e otimismo que se manifestam até em projetos históricos como o da reconstituição da monarquia ou da marcha revolucionária contra o Rio de Janeiro. A ideia religiosa da Lei de Deus, que no catolicismo popular, muitas vezes, é instrumento de opressão, fazendo os pobres se calarem, acomodarem e resignarem, surge agora como fonte de protesto. O povo recupera a força histórica, se bem que nos limites apocalípticos, visto que o Juízo final não tarda, e penitência e conversão se fazem urgentes. Os apelos do beato de ‘jejuai que estamos no fim dos tempos e ‘jejuai e preveni-vos’ dominam o os projetos históricos (p. 298s). Considerações finais No tempo do capitalismo agrário emergente, em que para os sertanejos a situação econômica piora significativamente, as relações sociais se desfazem e o universo simbólico cai por terra, nossos beatos, Conselheiros vivem e pregam o êxodo desta sociedade que os sertanejos não entendem mais. O “potencial evangelizador dos pobres” (Puebla 1147) e sua “sabedoria” (Puebla 448) que os Bispos da América Latina invocaram na Terceira Assembleia Geral em Puebla, se articularam muitas vezes, ao longo da história, na rejeição do progresso. Assim, nossos beatos e Conselheiros expressam a desconfiança dos pobres contra o progresso que, a despeito das promessas contrárias, não costumam trazer nenhuma vantagem para os pobres, aumentando somente o seu sofrimento. Neste sentido, eles representam a tradição que normalmente é conectada pelos sociólogos à conformidade. Sociedades tradicionais são vistas como sociedades da passividade, 372 e para Karl Marx é o Deus Onipotente que deixa o homem passivo. No caso do Conselheiro e nossos beatos, acontece o contrário, é o Deus Onipotente suas maravilhas que o fazem, como força propulsora criar espaços de sobrevivência. É a tradição que deve ser reativado, como algo operante”, como diz Balandier: A tradição é como um reservatório latente de ideias podemque podem provocar uma mudança social. J. Berque “mostra que toda sociedade dispõe de uma ‘latitude de escolha’, e uma flexibilidade de existência’ e que ‘uma parte importante do dinamismo social reside na possibilidade de mudança de eixos (...) O passado ressurge, ‘ele se projeta, às vezes, sob as formas mais diferentes de seus costumes anteriores (BALANDIER, 1976, p. 175 e 110), Se opondo ao presente. A tradição provoca, neste caso, não conformismo, mas a resitência; CHAUÍ, 1986 vê nos movimentos de protestos sociorreligiosos, do catolicismo popular “uma resposta concreta, de caráter religioso, articulada a transformações políticas na sociedade brasileira e percebidas como adversas para os fracos e desprotegidos” (p.75). A história do nosso catolicismo popular, que nas palavras do Pe. Comblin foi o que sobreviveu na alma do povo, ecoa nos nossos ouvidos e nos provoca a perguntar qual é o espaço que os pobres e seu projeto de libertação popular hoje tem na Igreja: Espaço sem imposição coercitiva, mas também sem tutelismo de padres que já sabem qual o caminho a trilhar. Espaço para viver a Lei de Deus, o projeto de vida comunitária e no Espírito das primeiras comunidades. Talvez as Comunidades Eclesiais de Base, os Encontros de Irmãos, poderiam ter sido esse espaço. Referências AZZI, Riolando. A Teologia no Brasil: considerações históricas. In: VV. AA.História da Teologia no Brasil e na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1981. BALANDIER, Georges. Antro-pológicas. São Paulo: Cultrix, 1976. BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. Série Corpo e Alma do Brasil, tomo 2, Rio de Janeiro: Difel, 8ª edição, 1978. CAMPINA, Maria C. L. Voz do Padre Cícero e outras memórias. São Paulo: Paulinas, 1985. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986. 373 FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. FRAGOSO, Hugo. A Igreja na Formação do Estado Liberal (1840-1875). In: BEOZZO, J. Oscar (Cord.) História da Igreja no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1980. HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1974. ____. Crônica das Casas de Caridade fundadas pelo Padre Ibiapina. Edição e Introdução Geral de Eduardo Hoornaert. São Paulo: Ed. Loyola, 1981. ____ . Introdução - Nota do Organizador. In:CAMPINA, Maria C. Lima.Voz do PadreCícero e outras memórias. São Paulo: Paulinas, 1985. _____ .Ambientes e movimentos alternativos. In: História da Igreja no Brasil. Tomo II/1, Petrópolis :Vozes, 1983. _____ .O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1991. LEERS, Bernardino. Catolicismo popular e mundo rural. Petrópolis: Vozes, 1977. MONTEIRO, D. T.Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1974. NEGRÃO, Lísias N. A religiosidade do povo: visão complexiva do problema. In: QUEIROZ, J. J. (Org.). A religiosidade do povo. São Paulo, Paulinas, 1984. OLIVEIRA, Pedro A. R. Religião e dominação de classes. Petrópolis: Vozes, 1985. OTTEN, Alexandre. Só Deus é Grande.São Paulo: Loyola, 1990. QUEIROZ, Maria Isaura. P. O messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Alfa Omega, 2003 9. As mulheres vem à tona: O reavivamento e as novas práticas da Convenção Batista do Sul (1870-1950) Nome: Júlia Rany Campos Uzun Titulação: Doutoranda Instituição: Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Resumo: Este trabalho procura discutir as transformações ocorridas em uma das principais instituições religiosas dos Estados Unidos, a Convenção Batista do Sul (Southern Baptist Convention), a partir dos movimentos de reavivamento, da reorganização da região após a Guerra Civil e com o advento da cultura gospel. Buscaremos refletir sobre o surgimento de novos papeis sociais femininos dentro da comunidade religiosa batista do Deep South, vislumbrando pensar como as 374 mulheres foram importantes na disseminação da fé desta denominação. Utilizaremos como fontes principais os anuários da Convenção Batista do Sul e, sob os auspícios da História Cultural das Religiões, buscaremos identificar quais foram as novas tarefas atribuídas às mulheres no periodo e como esse processo auxiliou na construção da maior instituição do sul dos Estados Unidos. Palavras-chave: Deep South; Convenção Batista do Sul; gênero e religião; cultura gospel; História Cultural das Religiões Como a cultura religiosa pode transformar e ser transformada pelos movimentos políticos, econômicos e sociais de determinada região? Nessa pesquisa, queremos descobrir como o sul dos Estados Unidos foi modificado após ter sido palco dos conflitos da Guerra Civil Americana, protagonizando a expansão das igrejas prostestantes – especialmente a batista – que permitiu a criação de um Olhar para o mundo mais próximo ao dos novos agentes que passariam a ganhar voz: os afroamericanos. De forma mais pormenorizada, estudaremos como a cultura gospel gerada no período ajudou a criar novos espaços religiosos de socialização para as mulheres batistas, que asumiram novas tarefas no campo religioso. Mais do que apenas mapear os novos lugares ocupados por elas, queremos conhecer quais as estratégias e as práticas utilizadas por tais mulheres para a transformação ou a manutenção da cultura religiosa. Nosso recorte temporal foi escolhido por delimitar dois períodos importantes na cultura norte-americana. Os Grandes Despertares (ou awakenings) e os reavivamentos agitaram os estados do Deep South especialmente a partir do final da década de 1870, quando as questões raciais foram introduzidas nas comunidades religiosas, a presença feminina nos diferentes movimentos e organizações ganhou destaque e o papel dos clérigos profissionais passou a decair, consolidando a força das lideranças carismáticas (SILVA, no prelo), até a expansão dos direitos civis afroamericanos na década de 1950. Durante o período da Reconstrução, após os tormentosos anos da Guerra de Secessão (1860-1865) e pós-Abolição, negros em quantidade significativa, começaram a se congregar em uma grande variedade de denominações independentes, principalmente, quando a degeneração do clima racial foi se tornando acentuada e visível. Os sermões que escutaram durante anos, tinham engendrado um sentido de valor moral e igualdade aos olhos de Deus, bem como ensinado alguma experiência prática de liderança e administração das comunidades e congregações. Assim, o modelo de Cristianismo evangélico se tornou uma 375 expressão preferencial de fé, moldando suas vidas e necessidades após a emancipação (IDEM, p.13). A eleição de nosso recorte espacial se deu porque o campo religioso do sul dos Estados Unidos, após o fim da Guerra Civil, sofreu a maior transformação de todo o território nacional, tornando-se muito mais plural com o desenvolvimento de igrejas afroamericanas, que se estabeleceram por rapidamente do Kentucky ao Texas (FRANK, 1999, p.98). Como as igrejas brancas não assimilavam a frequência de ex-escravos, cada vez mais as igrejas tornaram-se instituições segregadas e etnicamente diferenciadas. Através dos jornais e dos acampamentos de culto, os pastores arrecadavam dinheiro para a construção de suas igrejas, mantendo pregações de salvação e redenção em terra para os recém-libertos (CUSIC, 2002, p.21). Já em 1890, mais de 1.3 milhões de afroamericanos frequentavam as igrejas batistas na região do Deep South, enquanto apenas um quarto desse total fazia suas orações em igrejas presbiterianas ou metodistas, elevando essa denominação como a nossa escolha quase óbvia. Nos anos que se seguiram à Guerra Civil, as igrejas batistas afroamericanas se proliferaram de tal forma que tornaram-se uma das maiores instituições em muitas das cidades sulistas (FRANK, Op. Cit.,p.98). A convenção Batista do sul e suas mulheres A Convenção Batista do Sul surgiu em 1845 e, depois de 150 anos pode ser considerada a religião do sul dos Estados Unidos. Com força muito maior do que os presbiterianos ou os metodistas, os batistas do Sul se converteram na Igreja estabelecida dos antigos estados confederados, proporcionando a sua posição espiritual uma curiosa aura de sobrevivência cultural e política mesmo com a derrota política e militar na Guerra Civil (BLOOM, 1993, p.208). Estas igrejas, além das funções espirituais e teológicas, cumpriam uma série de outros papéis importantes, como a promoção das necessidades sociais, culturais, educacionais, recreacionais e de auxílio econômico em momentos de carestia de seus membros (FRANK, Op. Cit., p.99). Isso fez com que estas instituições desenvolvessem ao ser redor verdadeiras comunidades religiosas, em que todas as funções sociais girassem ao redor do culto e fossem administradas dentro dos ditames guiados pelo pastor. 376 O estudo clássico de Ted Ownby, intitulado “Subduing Satan: Religion, Recreation and Manhood in the Rural South, 1865-1920” buscou compreender como as transformações trazidas pelo movimento dos avivamentos modificou a organização interna das comunidades religiosas protestantes sulistas com o fim da Guerra de Secessão. O autor observa que a Guerra Civil deixou o território confederado em situação muito precária, fazendo com que as igrejas encontrassem uma grande possibilidade de crescimento entre as camadas mais simples da população – os trabalhadores rurais – que passaram a seguir as novas premissas do evangelicalismo. Dessa forma, os homens adotaram novos critérios para definir sua masculinidade, deixando de apostar em jogos de azar e rinhas de galo, de consumir álcool e de frequentar casas de prostituição para permanecer dentro do ambiente familiar, mais próximos às práticas de culto e à comunidade religiosa que se formava (OWNBY, 1990, p.179). Mas esta transformação foi suficiente para a criação de novos espaços sociais para as mulheres? Ou os homens ainda sobressaiam em todas as atividades principais dentro da comunidade religiosa? As mulheres passaram a desenvolver uma série de estratégias para criar novos espaços de vivência dentro das comunidades religiosas, ainda que muitas vezes mantidas dentro da lógica da sociedade patriarcal tradicional. Como afirma Dana L. Robert, o Cristianismo – especialmente o Protestantismo – deveria ser encarado como um movimento de mulheres pois, ainda que seus teólogos, formadores e principais lideranças sejam figuras masculinas, a imensa maioria de seus membros ativos e participantes é formada por mulheres (ROBERT, 2016, p.01). A autora acredita que há motivações específicas de gênero para a conversão feminina às religiões cristãs. Durante o Segundo Grande Despertar, os reavivamentos ocorreram porque as mulheres organizadoras formaram uma rede maternal que buscava converter maridos e filhos. A prova para essa conclusão é a tendência das mulheres em frequentar a igreja sozinhas, enquanto os homens tipicamente as frequentam na presença de suas famílias.(IDEM, p.13) A autora reitera as ponderações já feitas por Ownby, ao afirmar que a formação de uma comunidade religiosa foi bastante importante para as mulheres por permitir a elas que aproximassem seus maridos e filhos da vida familiar e religiosa, afastando-os da criminalidade e dos vícios tão comuns ao universo masculino sulista de finais do século XIX e princípios do século XX. O evangelicalismo torna-se uma 377 forma de ação coletiva das mulheres, a partir do momento em que possibilita a reintegração dos homens ao contexto familiar. As mulheres, assim, passam a frequentar igrejas nas quais elas encontrar outras mulheres em situação semelhante às suas e, se seus companheiros podem também ser convencidos a passar pelo processo de conversão, eles passam a rejeitar os aspectos destrutivos da sociedade machista na qual estão inseridos e reafirmam seu compromisso como esposos. Dessa forma, uma família que passa a viver unida dentro dos preceitos do evangelicalismo passa a prosperar, porque direciona seus parcos recursos para os “valores femininos”, como a educação dos filhos. Seguindo esta mesma concepção, Elizabeth Brusco afirma que em momentos de princípios de urbanização, como é o caso do período estudado, as funções femininas na economia local são prejudicadas porque os homens passam a ser as principais (ou únicas) fontes de recurso (enquanto no campo toda a família era economicamente produtiva). Dessa forma, a ética da família nuclear (...) serve para reafirmar o compromisso dos homens com suas esposas e descendentes. Como um “movimento estratégico de mulheres”, o evangelicalismo então concedeu benefícios materiais concretos às famílias em forma de lealdade econômica para os homens e apoio emocional e espiritual para as mulheres. (BRUSCO, 1995, p.63) Desde suas primeiras reuniões pós-Guerra Civil, a Convenção Batista do Sul reservou um espaço para discutir os lugares sociais que as mulheres deveriam ocupar dentro das comunidades religiosas. Em 1876, as Atas do Congresso Anual da Convenção, realizado em Richmond, alertam para a necessidade de empregar as mulheres na leitura da Bíblia como uma verdade universal, dando a elas pleno acesso a famílias pagãs114 para que, com seus “talentos peculiares, seus corações habilitados e suas fortes influências” poderem trazer tais famílias para o seio da fé batista. Também ressaltam que as mulheres podem ser tornam evangelizadoras e educadoras do lar, incentivando o apoio das “home missions” e das sociedades femininas de cooperação mútua. 114 Nota da autora: Segundo as fontes, são entendidas como “famílias pagãs” no período estudado tanto aquelas que não foram batizadas nas religiões cristãs como também aquelas que não vivem ativamente dentro das comunidades religiosas, ainda que tenham passado pelo sacramento do batismo. 378 O que era apenas uma recomendação em 1876 se torna um trabalho efetivo no começo da década de 1890. As Atas do Congresso de 1890, realizado em Atlanta, já apresentam os resultados de um trabalho organizado do Comitê Executivo da Sociedade Missionária de Mulheres, criada no ano anterior, com um brilhante relatório de atividades em que constam os periódicos missionários escritos, as cartas, os cartões de oração, os panfletos distribuídos e todo o trabalho realizado pelas missionárias norte-americanas ligadas à Convenção Batista do Sul. Na virada do século, por sua vez, a reunião realizada em Hot Springs em 1900 traz o crescimento anual das contribuições financeiras para o Home and Foreign Boards. Fala também do trabalho das mulheres no Sunday School Board, uma organização que tem recebido grande consideração da Convenção Batista do Sul por ser formada por “boas mulheres” em nome da educação, cuja contribuição tem crescido quase 5 vezes na última década. O Comitê chama a atenção para a distribuição da literatura do Comitê Executivo da União Missionária de Mulheres, que tem realizado importantes envios de material religioso por todo o território, enviando “graças para os lares inclusive fora das fronteiras do missionarismo para confortar os corações”. A Comissão também felicita as mulheres por expandir a educação através dos Home Boards. Vinte anos depois, em Washington, é possível notar o surgimento de uma nova entidade dentro da Convenção Batista do Sul: o Conselho Auxiliar de Mulheres, que passa a lidar com os assuntos ligados às questões femininas dentro da Convenção, como as Home Missions, as Sunday schools, todo o trabalho missionário, educativo e de cuidados de enfermagem. Trata-se da construção de um edifício-sede para o Conselho e da eleição de um corpo de membros para sua organização, que também deve lidar com os trabalhos de caridade da Convenção. Nota-se o empoderamento das mulheres de forma efetiva dentro da Convenção, neste momento: elas ganham um espaço exclusivo para cuidar das tarefas as quais são designadas. Tal empoderamento é reforçado nas estruturas expostas na Ata do Congresso de 1950, realizado em Chicago. As mulheres participam e organizam várias das comissões: A Comissão de Educação, a Comissão de Serviço Social, a Comissão de Rádio, a Comissão Histórica, a Comissão do Seminário Teológico Batista Americano, além dos Comitês de Assuntos Públicos,do Comitê Especial para 379 a Campanha de Circulação Batista, do Comitê do Calendário Denominacional, dentre outros. Se elas eram mulheres do lar, a religião as levou a todos os lugares. Bibliografia BLOOM, Harold. La religión en los Estados Unidos: el surgimiento de la nación postcristiana. México: FCE, 1993. BRUSCO, Elizabeth. The Reformation of Machismo: Evangelical Conversion and Gender in Colombia. Austin: University of Texas Press, 1995. CUSIC, Don. The Sound of Light: A history of Gospel and Christian Music. Milwaukee: Hal Leonard Corporation, 2002. FRANK, Andrew K. The Routledge Historical Atlas of the American South. New York/London: Routledge, 1999. OWNBY, Ted. Subduing Satan: Religion, Recreation and Manhood in the Rural South, 1865-1920. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1990. ROBERT, Dana L. “O Cristianismo mundial como um movimento feminino” in SILVA, Eliane Moura da; MOURA, Carlos André Silva; MOREIRA, Harley Abrantes; no prelo. SILVA, Eliane Moura. Evangelicalismo, Democracia e a Cultura Americana nos séculos XIX e XX. No prelo. 10. Entre o discurso e a prática: a adaptação do presbiterianismo norteamericano à cultura recifense (1873-1878). Nome: Rafaelle Cristine Custódia da Silva Titulação: Mestranda Instituição: UFRPE Resumo: A introdução e o estabelecimento do protestantismo no Brasil se deram no século XIX. Os presbiterianos chegaram ao Recife na década de 1870, trazendo consigo suas bíblias, doutrinas e suas práticas religiosas. Para melhor compreender sobre essas práticas e a representação do “ser protestante” (tendo as representações como matrizes geradoras de condutas e práticas sociais e estas são dotadas de uma força integradora e coesiva; indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio destas representações que são construídas sobre a realidade) no Recife no final do XIX, e a adaptação norte-americana com a cultura local, analisamos os jornais da denominação, assim também, as atas da Igreja Presbiteriana do Recife (IPR). Parte da documentação possibilita realizar uma análise não apenas da instituição religiosa como mais uma proposta religiosa na cidade do Recife como também conhecer algumas práticas promovidas com o intuito de ensinar os novos adeptos do protestantismo, no caso, sobre o presbiterianismo. Ao se falar sobre o trabalho religioso entende-se que este só se completa quando as 380 crenças e práticas sugeridas por alguém socializam-se como crenças e práticas de um grupo, por pequeno que seja. Sendo assim, discutiremos no presente artigo a inserção desta denominação e seu diálogo com a cultura recifense no século XIX, apresentando e adaptando suas praticas religiosas ao contexto local. O recorte temporal proposto fora escolhido por se tratar do período de adaptação do missionário John Rockwell Smith na cidade do Recife, até o momento de fundação da Igreja Presbiteriana em Pernambuco. Durante o período de cinco anos o Reverendo Smith procurou aprender a língua portuguesa para divulgar a doutrina presbiteriana; entender as leis e suas extensões que permitiam a presença protestante no Brasil, buscando táticas para o desenvolvimento do proselitismo; e por fim tentar adaptar as práticas religiosas provenientes dos Estados Unidos com a cultura local. Este missionário, apesar de não ser o pioneiro do presbiterianismo na região, desenvolveu um trabalho de inserção e implantação da denominação em Pernambuco no decorrer da década de 1870. Tal trabalho lhe rendeu uma igreja fundada na capital e outra na cidade de Goiana, algumas congregações nos arrebaldes de Recife e uma escola teológica. Ao deixara província em 1892, quando foi chamado para trabalhar no Seminário Presbiteriano em Nova Friburgo. Suas cartas115 relataram sua chegada, estadia na cidade e as dificuldades de adaptação; seus desafios como com as práticas religiosas locais, os conflitos entre a Igreja Católica e o governo imperial; porém elas também trazem as viagens feitas para o reconhecimento do litoral nordestino, com o intuito de promover ações prosélitas e assim instalar uma congregação no local. A ação missionária impulsionada pelo “kidderismo” No decorrer do século XIX, direcionados pela doutrina Monroe, os Estados Unidos acreditavam ser um país eleito por Deus para levar a democracia e a liberdade para o mundo (SIEPIERSKI, 2008, p. 220). Com esse pensamento, protestantes norte-americanos viajaram para o Brasil a fim de “transferir para a América Latina os benefícios do ‘sonho americano’ ou do ‘estilo americano de vida’” Parte destas cartas foram traduzidas e publicadas no jornal Brasil Presbiteriano no ano de 1978, quando a Igreja Presbiteriana do Recife comemorava seu aniversário de 100 anos. 115 381 sendo o protestantismo um dos componentes (MENDONÇA, 2002, p.31). Aliada a essa visão, a compreensão de Daniel Parish Kidder116 sobre o Brasil, o “kidderismo”, foi bastante divulgada no país, direcionando assim as principais denominações (batista, congregacional, presbiteriana, metodista e episcopal) a implantarem trabalhos no Brasil. Ao escrever sobre o movimento missionário protestante e a expansão norteamericana no Brasil, Paulo D. Siepierski explica o “kidderismo” sendo as percepções de Kidder sobre o Brasil e os brasileiros, principalmente como estes “não se importavam com sua vida pública, abdicando de seu destino político. Esse absenteísmo era provocado, e incentivado, pelo catolicismo”. Sendo assim, no entendimento de Kidder, cabia aos norte-americanos, através de seu protestantismo, conduziria a democracia e a liberdade do indivíduo e da sociedade (SIEPIERSKI, Op. Cit. p. 220). “Talvez seja por isso que o protestantismo que chegou ao Brasil tenha tido intenções fortemente pragmáticas: pretendia ser elemento transformador da sociedade através da transformação dos indivíduos” (MENDONÇA, 2002, p.31). Outro fator que impulsionou a vinda de americanos ao Brasil foi a Guerra Civil americana, na década de 1860. A separação entre o norte o sul motivou uma divisão eclesiástica na Igreja Presbiteriana. Em 1861, o grupo sulista dessa igreja separou-se e formou a Igreja Presbiteriana dos Estados (PCUS) Unidos (NICHOLS, 2000, p.293). Ao final da Guerra Civil, muitos sulistas que perderam seus bens devido a causa confederada, migram para o Brasil, na região de São Paulo e Rio de Janeiro, buscando um recomeço. A presença desses imigrantes influenciou a recémformada Igreja Presbiteriana do Sul a enviar missionários para o Brasil. Vale salientar que os dez primeiros anos do trabalho missionário do presbiterianismo brasileiro foram feitos somente entre os missionários da Igreja do Norte, os do Sul chegaram após 1869. John Rockwell Smith e o pioneirismo presbiteriano no Recife Daniel Parish Kidder foi um missionário metodista enviado ao Brasil em 1836, para auxiliar outro missionário que residia no Rio de Janeiro. Distribuiu bíblias, livros e literatura protestante em cidades do litoral brasileiro durante sua estadia no país. Através dessas viagens por diversas províncias, ele fez observações detalhadas sobre o cotidiano religioso e criou uma rede de contatos com pessoas importantes daqui. 116 382 Ao concluir o curso de teologia em 1871, no Union Seminary de Richmond, Virginia, só recebeu sua ordenação no ano seguinte, podendo assim exercer as funções do cargo pastoral. O Rev. Smith, influenciado pelo “kidderismo”, embarca para o Brasil em dezembro de 1872, chegando às terras brasileiras em janeiro de 1873. Ao escrever a primeira carta à sua missão no mesmo mês, o missionário presbiteriano descreve sua chegada e as primeiras impressões sobre a capital da província: Na manhã do dia 15 ancoramos defronte a Pernambuco. Desembarquei em minha nova cidade [...]. Um grande número de navios entra e ancora no porto interno assim formado. Corre pela cidade um rio tortuoso, o Capibaribe, dividindo-a em três setores diferentes [...]. Este rio é atravessado por um grande número de resistentes pontes, sobre as quais passam carros a vapor e bondes [...]. A parte mais importante da cidade é densamente construída. Muitas das ruas são bem estreitas, com um ou nenhum passeio [...]. Passando por Boa Vista, em direção ao campo, a cidade se torna um misto de campo e cidade.117 O primeiro olhar do missionário presbiteriano John Rockwell Smith sobre o Recife de 1873, apresenta o perfil de uma cidade urbana e sua conexão com o campo. A começar pelo porto e sua importância para a capital da província, por onde transitaram pessoas, mercadorias e culturas. Apresentou alguns bairros, delineados pelo desenhar do rio, e suas freguesias, acompanhando a expansão urbana e sua negociação com os espaços já ocupados por mercadores e mercadorias, escravos urbanos, carros a vapor e bondes. No âmbito religioso, o catolicismo esteve presente na vida da cidade e na construção de seus espaços, e através de suas práticas – tidas como forças agregadoras da sociedade – projetaram suas influências nos marcos arquitetônicos e no espetáculo devoto das procissões por elas promovidas (ARRAIS,2002, p.168). Os nomes de Dom Vital (Pernambuco) e Dom Macedo (Pará), tornaram-se o símbolo da crise existente entre a Igreja Católica e o imperador, ao cumprir a bula papal “Syllabus” que reafirmava a incompatibilidade entre o catolicismo e a maçonaria. Devido a persistência dos clérigos em ameaçar com punição de excomunhão àqueles que insistissem em sua relação com a maçonaria, por ordem do imperador ambos os padres foram presos e exilados. É diante desse cenário que o presbiterianismo busca se instalar na cidade e promover suas práticas religiosas. 117 BRASIL PRESBITERIANO, n. 3, 1º de fevereiro de 1978. 383 Os presbiterianos não foram os primeiros a propagar a doutrina protestante no Recife durante a década de 1870. Houve boa parceria entre os presbiterianos e outras denominações, sendo a principal com os congregacionais (SOARES, 2009, p. 458). O Rev. Smith recebeu uma carta de outro missionário presbiteriano informando do trabalho de um colportor da Sociedade Bíblica existente na cidade, era sobre o Manoel José Vianna. O grupo reunido pelo Sr. Vianna, em torno de trinta pessoas, passa a contar com a presença do Rev. Smith durante as reuniões religiosas, em seu período de adaptação na cidade (FERREIRA,1992, p. 155). Durante seu convívio com os congregacionais presenciou a interrupção de uma reunião por parte da polícia, onde o subdelegado mandou encerrar a atividade e proibindo sua continuidade. Diante o ocorrido, o Rev. Smith ainda com pouco progresso com a língua portuguesa, contou com um intérprete em sua conversa com o presidente da província de Pernambuco. Nessa conversa ele se apresentou como pastor presbiteriano e qual era seu objetivo na cidade, ouvindo da autoridade a permissão para o exercício religioso, desde que respeitasse as leis do Império, principalmente no que diz respeito ao local de reunião, que não tivesse aparência de templo (FERREIRA, 1992, p.157). Devido a número pouco expressivo de missionários na região que ajudassem na propagação do presbiterianismo, em 1875, ele fundou o jornal “Salvação de Graça”, de cunho doutrinário. O jornal além de instruir na doutrina presbiteriana os adeptos que se agrupavam ao Rev. Smith, serviu também como mecanismo de divulgação da denominação e de suas práticas religiosas. Por fim, duas observações devem ser comentadas: a primeira é reconhecer a liderança desse pastor na região nordeste. Em suas cartas ele passar para a missão um relatório da situação da área onde se desenvolve o trabalho presbiteriano, apresentando opções de ocupação e montando sua tática para expansão e fixação na região. A segunda é a importância de Recife como centro radiador do protestantismo, e logo do presbiterianismo, para as regiões norte-nordeste. Do protestantismo, pois os anglicanos construíram uma capela aqui ainda na década de 1820. Posteriormente os congregacionais, através da figura do pastor Kalley, que fundou a segunda igreja da denominação no Brasil aqui no Recife. Com o presbiterianismo, a capital da província foi um lugar de treinamento, tanto para a língua quanto a 384 adaptação ao clima da região. O Rev. Smith iniciou ali os estudos teológicos para a formação de futuros pastores, já que não possuía seminário para ensino. Referências ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: A formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas/FFLCH USP, 2004. FERREIRA, Júlio Andrade. História da Igreja Presbiteriana no Brasil. Vol. I. São Paulo: Casa Presbiteriana, 1992. MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Introdução ao protestantismo brasileiro. São Paulo: Paulinas, 1990. NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã: . São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2004. SIEPIERSKI, Paulo Donizéti. O movimento missionário protestante, o expansionismo noteamericano e o Brasil: dos primórdios ao congresso do Panamá (1916). Mnemosine, Campina Grande, PB, v. 6, n. 2, abr/jun 2015. Disponível em: < http://media.wix.com/ugd/101348_1660d0cb0d1341d9a29f1faacf179830.pdf>. Acesso em: 22 mar. 2016. SOARES, Caleb. 150 anos de paixão missionária: o presbiterianismo no Brasil. São Paulo: Instituto de Pedagogia Cristã. 2009. 11. A SAÍDA E A VOLTA: O desligamento da Igreja Presbiteriana do Recife da jurisdição da Igreja Presbiteriana do Brasil, a sua volta, e a fundação da Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil. José Roberto de Souza118 RESUMO: Em meados do século XX, mais especificamente, no ano de 1956, o movimento fundamentalista protestante norte-americano atraiu simpatizantes da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), na cidade do Recife. Um dos principais e, líder do movimento foi o reverendo Israel Gueiros, o qual se destacou como porta-voz do movimento na cidade. É dentro desse contexto que a IP do Recife deixa a jurisdição da IPB para criar a Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil (IPFB). Porém, em meado da década dos anos de 1980, alguns pastores e Igrejas pertencentes a IPFB deixam a sua jurisdição para ser aceitos na IPB. 118 Doutorando em Ciências da Religião (UNICAP), Mestre em Teologia e História (SPN); Mestre em Ciências da Religião (UNICAP); Especialista em História da Religião e da Arte (UFRPE); Bacharel em Teologia (SPN/UNICAP). Tem experiências na área de Teologia, Ciência da Religião e História da Igreja. Pesquisa sobre as seguintes áreas: História do Protestantismo Brasileiro, História do (Neo)Pentecostalismo no Brasil e do Fundamentalismo Protestante. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Religiões, Identidades e Diálogos (UNICAP). Membro do Corpo Editorial da Revista Paralellus (UNICAP). Professor e Coord. do Deptº de História da Igreja (SPN). E-mail: revjoseroberto@gmail.com 385 Palavras-Chaves: Identidade e Religião – Fundamentalismo – Presbiterianismo Quanto o surgimento e o desenvolvimento da Igreja Presbiterana Fundamentalista do Brasil (IPFB), tudo começou quando o Rev. Israel Gueiros, passou a fazer acusações ao Seminário Presbiteriano do Norte (SPN), afirmando que o mesmo, tinha aberto as portas para a propagação de ensinos liberais, por parte de alguns dos seus professores119. Na ocasião o Rev. Israel Gueiros era pastor da Igreja Presbiteriana do Recife, pertencente a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), e também, professor do SPN. O Rev. Israel Gueiros que durante anos ensinava inúmeras disciplinas no SPN (desde 1932), passou a ser substituído em algumas delas, por professores recém-chegados, entre esses, o Rev. Oton G. Dourado, tendo esse, feito a sua Pósgraduação, no Seminário de Princeton (USA). O Rev. Oton, assim que chegou no SPN (fevereiro de 1949), assumiu a cadeira de homilética, que era ocupada pelo Rev. Israel Gueiros. Como se não bastasse, antes mesmo de assumir a cadeira no SPN, o Rev. Oton “foi convidado para palestrar em torno de Ecumenismo num Congresso de Jovens que se realizava no próprio seminário. Desde então começase certa oposição por parte do Dr. Gueiros”. (MACHADO, 1979, p. 9). Em 1949 acontece o primeiro encontro pessoal dos Revs. Israel Gueiros e Carl McIntire120, que veio para o Recife. É bom lembrar que, a vinda do Rev. Carl McIntire foi uma proposta do Rev. Israel Gueiros (que nesse momento 119 120 Cf. a dissertação de CAMPOS Jr. (2003). O Rev. McIntire nessa ocasião era o maior representante do fundamentalismo protestante nos Estados Unidos. McIntire, além de fundar a The Bíble Presbyterian Church (Igreja Presbiteriana da Bíblia), criou também, o Seminário Teológico da Fé (1938). Organizou ainda, o Concílio Americano de Igrejas Cristãs (1941), este Concílio era formado por “17 grupos religiosos, dos quais somente a Igreja da Bíblia era declaradamente presbiteriana. (MACHADO, 1979, p. 5).), o qual tinha a função de representar os fundamentalistas e a Associação Nacional de Evangélicos (1942). Todas as denominações, igrejas e indivíduos que se identificavam com a causa fundamentalista, esses, liderados por McIntire criaram em 1948, o Concílio Internacional de Igrejas Cristãs (CIIC), o qual servia como oposição ao Concílio Mundial de Igrejas (CMI), que era acusado de ser ecumênico e liberal. O CIIC, que foi fundado pelo Dr. McIntire, “em Amsterdam, Holanda, filiando-se ao mesmo 111 denominações”. (MACHADO, 1979, p. 5). 386 ainda era professor do SPN), para que o mesmo palestrasse no SPN. A diretoria aceita, mas impõe uma condição: [...] à Diretoria do Seminário, que o aceitou e, para fazer justiça, somente na condição de convidar também o representante do CMI, Karl Boegner. [...] A Congregação do Seminário havia agido de boa fé e McIntire veio. Dr. Israel tomou suas medidas e Dr. Boerner não veio. (MACHADO, 1979, p. 9). Apesar de ser o primeiro encontro, o Rev. Israel Gueiros já conhecia o Dr. McIntire de um bom tempo121. Quando veio ao Recife em 1949, o Rev. McIntire liderava o Concílio Americano de Igrejas Cristãs e o Concílio Internacional de Igrejas Cristãs. O conflito interno no Seminário Presbiteriano do Norte, era notório, “Dr. Israel desferia ataques aos colegas e à Igreja Presbiteriana do Brasil, chamando-a de adúltera”122 [...] acusou o Rev. Oton de ser modernista, homem iníquo, mas nenhuma prova sequer”. (MACHADO, 1979, 10). Tentando combater as acusações feitas pelo Rev. Israel Gueiros, bem como o resultado da visita do Rev. McIntire ao Seminário, o Rev. Alexander Reese, assim que assume a Reitoria do SPN, no seu relatório parcial correspondente ao primeiro Semestre de 1950, preparado para a reunião do Supremo Concílio em Caratinga e Presidente Soares – MG. Afirma: É critica a situação do Seminário desde a visita de McIntire em Agosto do ano passado. [...] Não é exagerado dizer que esta Igreja tem o ministério mais conservador e mais agressivamente evangélico do mundo, os Seminários mais conservadores, de toda a Igreja Presbiteriana Universal [...]. Farejando a praga do modernismo que suspeita já estar engolfando até as igrejas mais conservadoras do Brasil [...] é como se um médico diagnosticasse uma mancha de nascimento como lepra, um caso de bronquite como tuberculose, ou úlcera como câncer. (RELATÓRIO, 1950, p. 5-7, Apud, MACHADO, 1979, p. 10). Na proporção que o tempo passava, aumentava a animosidade entre o Rev. Israel Gueiros e os seus colegas do Seminário Presbiteriano do Norte: Ele pensava em termos de traidores e coisas assim, tanto é que, no ano de 49, ao saber que a Congregação do Seminário não podia recomendá-lo ao 121 Os contatos iniciais entre os Rev. Israel Gueiros com Carl McIntire se deram da seguinte forma: “chegou às suas mãos um exemplar do Christian Beacon, editado por McIntire, o qual expressava num dos artigos seus pensamentos, que vieram a chamar a atenção por identificarem com os seus. Foi aí então que começou o relacionamento dos dois líderes. Dr. Israel teve seu segundo contacto com McIntire, lendo o livro deste, Twentith Century Reformation. Logo entrou em contacto com o mesmo, convidando-o a falar no Recife, onde mais tarde, no ano de 1949, deu-se o terceiro contacto, agora pessoal. Nasceu assim um estreitamento de laços de amizade e idéias”. (Cf. MACHADO, 1979, p. 7). Duas obras de McIntire foram traduzidas para a língua portuguesa, pelo Rev. Israel Gueiros. A moderna torre de Babel (1952) e A morte de uma Igreja (1968). Há um polêmico artigo sobre Carl McIntire ter oferecido uma certa quantia para ter apoio ao movimento fundamentalista no Brasil. Cf. CUNHA (2000). Resolvemos manter a escrita e a ortografia original. 122 A expressão Adúltera no texto original está entre aspas, porém, colocamos em itálico para destacar. 387 SC123 para ser confirmado como professor permanente, visto que a matéria era de alçada do Supremo Concílio e que todo professor devia dar tempo integral ao Seminário, ele acusou a Diretoria de mentira oficial e acrescentou que os Diretores deviam ter a honestidade de dizer sem rebuços que queriam ficar livres dele. (RELATÓRIO, p. 2, Apud, MACHADO, 1979, p. 10). Não havendo mais clima para convivência e permanência do Rev. Israel Gueiros no SPN, a sua relação com o seminário chega ao fim: Na reunião do Supremo Concílio de 1950 em Janeiro, na sua 14ª. sessão, encontramos o doc. 304 que trata do pedido de demissão do Rev. Dr. Israel Furtado Gueiros, nos seguintes termos: O Supremo Concílio resolve: 1. Registrar sua apreciação pelo espírito de sacrifício e nobreza de atitude do rev. Israel Gueiros; 2. Registrar seu sincero agradecimento ao rev. Israel Gueiros pela colaboração desinteressada que prestou ao Seminário em dias difíceis e espinhosos quando nem mesmo a remuneração de seus serviços se lhe pagava; 3. Aceitar a renúncia do rev. Israel Gueiros; 4. Oferecer ao rev. Israel Gueiros, a título de gratificação, a quantia de Cr$ 20.000,00. (MACHADO, 1979, p. 10-11). Agora fora do SPN, o Rev. Israel Gueiros continuou a sua campanha em prol do movimento e das ideias fundamentalistas, tornando-se cada vez mais simpatizante e parceiro do Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, liderado pelo Dr. Carl McIntire. Ainda como ministro da IPB, resolveu no ano de 1956, fazer uma campanha nos Estados Unidos, com a pretensão de arrecadar 25 mil dólares, com objetivo de abrir um novo seminário na cidade do Recife. Justificava a sua ação, acusando a infiltração modernista no SPN. Para isso, fez uso de discursos públicos, artigos de jornais, revistas e cartas circulares. E isso, não podia ser negado, pois havia provas concretas dessa ação. Na realidade o Rev. Israel Gueiros tinha se preparado para esse momento. Com amizade e contatos com o Rev. McIntire, o Rev. Israel passava-lhes informações sobre a situação da educação teológica do SPN. Passou a ter o seu total apoio, e a 123 SC é a sigla para Supremo Concílio, a maior instância da Igreja Presbiteriana do Brasil. Há na IPB quatro Concílios, os quais funcionam de forma crescente. São eles: o Conselho da Igreja local, o Presbitério, o Sínodo e o Supremo Concílio. Esses Concílios funcionam de forma Republicana, onde se elege alguns (Presbíteros) para representar todos (membros). Na IPB, há duas categorias de Presbíteros: Docente (Pastor) e os Regentes (Presbíteros). O primeiro é responsável pelo ensino, pregação da Palavra e ministração dos Sacramentos (Ceia e Batismo). Enquanto, o segundo, pela administração da Igreja local. Tanto um, como o outro, são eleitos pela comunidade local, ou seja, pelos membros comungantes (que foram batizados e fizeram a sua pública profissão de fé). Nos Concílios os direitos de ambos são iguais. 388 seu favor foi publicado um artigo no Christian Beacon, onde encontramos o seguinte conteúdo: Existe hoje um seminário no Recife, mas está debaixo do controle dos Boards Missionários das Igrejas Presbiterianas do Norte e do Sul, e a influência e liderança daquela instituição é definitivamente em favor do Concílio Mundial de Igrejas. Ocorreu, há pouco, um incidente em que um professor disse aos estudantes que eles não podiam confiar em certas porções da Bíblia. Os missionários não levantaram objeções. Foi necessária a ação unânime do Sínodo do Norte do Brasil da Igreja Presbiteriana para exigir a remoção deste professor missionário. Estes líderes decidiram agora que não há mais esperança, que não podem mais enviar os seus moços para um seminário que irá prepará-los para uma mudança na Igreja, levando-a para dentro da órbita ecumênica de cousas. Dr. Gueiros tomou agora a iniciativa para a formação e estabelecimento do Seminário Nacional Presbiteriano no Recife, outro seminário semelhante ao Faith Theological Seminary, iniciando simplesmente porque a ocasião reclama e a necessidade é grande... É perfeitamente possível que este Seminário, controlado e dirigido por nacionais, causará atualmente (sic) o declínio do outro seminário, controlado e dirigido por missionários... (Apud, MACHADO, 1979, p. 13). Outra prova concreta da ação do Rev. Israel Gueiros em relação a abertura de um novo seminário, pode ser confirmada através de uma carta mimeografada de Miss Margaret Harden, que escreve a seu favor, disse ela: No presente ele (Dr. Israel Gueiros) se encontra nos Estados Unidos para apresentar-vos a necessidade urgente e imediata de um seminário fundamentalista no Recife, maior porto no norte do Brasil, com uma população de quase um milhão de habitantes. Com o correr dos anos uma igreja forte presbiteriana estabeleceu-se ali. Este testemunho precisa de ser preservado. O passo que se deve dar a seguir na luta pela fé no Brasil é a formação de um novo Seminário Presbiteriano Fundamentalista que irá preparar pastores fiéis para a Igreja, sem compromissos de qualquer espécie. Precisamos urgentemente de 25 mil dólares para comprar um prédio antigo numa área residencial da cidade e para manter o Seminário durante o primeiro ano. O apelo para este fim vem por intermédio do Dr. Israel Gueiros, com o apoio da maioria esmagadora de um dos cinco Sínodos da Igreja Presbiteriana do Brasil... Pedimos vossas orações para que o Senhor abençoe este esforço do Dr. 389 Gueiros de organizar o Seminário Nacional Presbiteriano no Norte do Brasil, que será o meio de preservar um testemunho cristão verdadeiro naquele País de oportunidade. (Apud, MACHADO, 1979, p. 13). Outro material que serviu como documento de comprovação para investida do Rev. Israel Gueiros, para abertura de um novo seminário, foi exatamente um boletim da sua própria Igreja (IP do Recife), onde o seu conteúdo muito se assemelha ao artigo publicado no Christian Beacon. Nesse boletim podia ser lido a seguinte informação: Diante da opinião unânime do Sínodo Setentrional contra a orientação do nosso Seminário ao protestar contra a presença na Congregação de um missionário professor que ministrou ensinamento contrário aos nossos princípios, declarou o pastor em toda parte onde falou que pastores do Norte perderam a confiança que tinham no velho e querido seminário, onde ele próprio estudou e ensinou durante 18 anos. Fez a campanha para levantar 25.000 dólares para estabelecer um Seminário fundamental, evangelístico e pre-milenista. Organizou também a “Faith Biblical Mission Inc.” com a finalidade de manter um Seminário e fazer intenso trabalho missionário através de pastores nacionais, sob a supervisão do Seminário. A Faith Biblical Mission Inc., depois da campanha, em sua última reunião, resolveu sugerir que o nome do nosso Seminário fosse Seminário Teológico do Brasil, em vista do propósito de receber candidatos de todas as denominações e da sua manutenção proceder crentes de novo 'nascidos de todas as denominações evangélicas. (Apud, MACHADO, 1979, p. 14). Sabendo de tudo isso, como era de se esperar, não só a Direção do SPN e os seus professores resolveram agir, ou melhor, se defender, mas, o processo envolveu a IPB nacionalmente. O motivo era obvio, pois, além da IPB está sendo acusada, era de competência apenas do Supremo Concílio, a abertura de novos seminários. Isso, desencadeou num longo e penoso processo. Como a IPB é uma Igreja conciliar, ou seja, que funciona através de Concílios (sempre do menor ao maior) 124, o Rev. Israel foi intimado para prestar esclarecimentos e, quando indagado sobre a 124 Na IPB, geralmente os casos iniciais de julgamento de um membro, o mesmo é tratado no Conselho da Igreja local em que esse pertence, tendo em vista que o fiel é membro de uma Igreja local. Porém, os casos iniciais de julgamento de um pastor, acontecem a partir do Presbitério, pois, o pastor não é membro de uma Igreja local, e sim, do Presbitério. Portanto, o pastor só pode ser julgado a partir do Presbitério. 390 origem e intensão dos documentos que demonstravam interesse na abertura de um novo seminário, ele prontamente, admitiu a sua veracidade. Pedindo-lhes que se retratasse e que, abandonasse o seu intento, que era a abertura de um novo seminário, ele em todos os casos, agiu negativamente. Com isso, “criou-se uma grande polêmica em torno do assunto, havendo várias manifestações prós e contras e outros não sabendo se definir”. (MACHADO, 1979, p. 14). Durante esse período o jornal Norte Evangélico125 publicou uma série de artigos sobre o caso. Por exemplo, na edição de Maio de 1956, na primeira página (capa), trouxe a seguinte manchete: “A Congregação do Seminário Refuta Injustas Acusações do Rev. Israel Gueiros”. Informou ainda: “McIntire repudiado por suas próprias Igrejas!” E nessa mesma página, semelhante a uma nota de rodapé, mas em negrito, para que ficasse em destaque, podemos ler a seguinte informação: “O “Norte Evangélico”, neste momento histórico da Igreja Presbiteriana do Brasil, desfralda a bandeira e torna-se um símbolo da resistência dessa Igreja contra quaisquer tentativas de desagregação da mesma, partam de onde partirem. Espera pois, no restrito apoio de todos os seus amigos e assinantes”. Na edição de Julho, desse mesmo ano, novamente a cena se repete, na manchete de capa, foi publicado: “Contra a tentativa do Dr. Israel Gueiros de dividir a Igreja Presbiteriana do Brasil sob falsas acusações, o Presidente do Supremo Concílio acautela a nossa Igreja e apela à consciência de todos os crentes presbiterianos com a seguinte PASTORAL [...]”. Interessante destacar que, nessas duas edições citadas, das suas oito páginas, aproximadamente 50%, foi sobre o caso do Rev. Israel Gueiros. Mas, o certo é que, depois de haver inúmeras reuniões, chegando até mesmo num processo de Tribunal Eclesiástico, para julgamento do caso, e não havendo acordo de ambas as partes, o Tribunal do seu Presbitério resolveu aplicar, “a pena de AFASTAMENTO POR TEMPO INDETERMINADO DOS SEUS CARGOS E OFICÍOS126, até que desse provas do seu arrependimento. Sabendo disso, o Rev. Israel não aceitou a disciplina, e tendo uma parte da Igreja 125 Jornal oficial da IPB, distribuído nacionalmente. No Norte Evangélico de Agosto e de Setembro de 1956, as manchetes de capas, trouxeram as seguintes informações: “Dr. Israel Gueiros sob disciplina.” (Agosto). “Não é mais ministro Evangélico o Dr. Israel F. Gueiros”. (Setembro). 126 391 Presbiteriana do Recife ao seu lado, da qual era pastor, essa, solidária com ele, resolveu renunciar à jurisdição da IPB. Foi assim que no dia 30 de julho de 1956, numa Reunião Extraordinária, na Igreja Presbiteriana do Recife, com a presença de 220 membros, onde 147 desses, resolveram acompanhar o Rev. Israel Gueiros127, na abertura de uma nova denominação, surgindo assim: A Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil (IPFB)128. A IPFB, não tardou para expandir o seu território. Em pouco tempo já havia presença de Igrejas Fundamentalistas em vários Estados do Brasil, bem como aberturas de orfanatos, programas de rádio etc. O Rev. Israel permaneceu na liderança dessa igreja, por aproximadamente mais de três décadas, juntamente com o suporte dado pelo seus dois filhos, que também exerciam o pastorado: Porfirio e Israel Filho. Todavia, em meados da década de oitenta, alguns pastores e Igrejas, ligados ao movimento fundamentalista, depois de alguns descontentamentos, resolveram se desligar do movimento e ir para a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). E foi assim também, com a Igreja Presbiteriana do Recife (Fundamentalista), ou seja, na sua Reunião Extraordinária, ocorrida no dia 25 de junho de 1995, com a presença de 108 membros comungantes, após aproximadamente quatro décadas afastada da jurisdição da IPB, essa Igreja resolve retornar a sua comunhão de parceria com a sua antiga denominação. Referências CAMPOS JR, Heber Carlos. A Reação da Igreja Presbiteriana do Brasil ao “Modernismo” dentro de seus seminários nas décadas de 1950 e 1960. São 127 Cf. Norte Evangélico, Setembro de 1956, p. 5. Nessa mesma matéria, encontramos a seguinte manchete: A Igreja Presbiteriana do Recife, Salva pela graça de Deus, de uma inovação ruinosa importada de fora, com a finalidade de semear discórdias e destruir a comunhão dos santos. 128 Inúmeras obras foram escritas por parte da família Gueiros, contando as suas histórias e versões. Cf. Perseguido, mas não desamparado (1956); Rev. Israel Gueiros: 60º aniversário natalício e 36ª aniversário de ordenação (1967); Este insigne varão de Deus (1977); Anais do centenário (1978); A luz do mundo (1980); Israel Gueiros: vida e obra missionária (2007); ainda sobre os Gueiros de autoria de VIEIRA, David. Trajetória de uma família: A história da família Gueiros (2008). 392 Paulo: Dissertação de Mestrado do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 2003. CUNHA, Guilhermino. Os herdeiros de Carl McIntire. In: Fides Reformata, Vol. VI. n. 1. São Paulo: CPAJ, 2000. GUEIROS, Israel Furtado. Perseguido mas não desamparado. Recife: 1956. __________,. 60º Aniversário Natalício e 36º Aniversário de Ordenação. Recife: Igreja Presbiteriana do Recife, 1967. __________,. Este Insigne Varão de Deus. Recife: Igreja Presbiteriana do Recife, 1977. __________,. A Luz do Mundo. Recife: Igreja Presbiteriana do Recife, 1980. __________,. Projeções de Minha Vida: letras, histórias e controvérsias (19011951). Recife: 1951. LIVRO DE ORDEM da Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil. Recife: Gráfica Missões Unidas, 1977. MANUAL PRESBITERIANO (com Jurisprudência). 1ª edição, São Paulo: Cultura Cristã, 2006. MACHADO, Jonas da Silva. A Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil: Origem e Expansão (Trabalho da cadeira de História da Igreja Brasileira, T. 3. Prof. Francisco L. Schalkwijk). Recife: SPN, 1979. McINTIRE, Carl. A Moderna Torre de Babel. Recife: 1952. __________,. A Morte de uma Igreja. Recife: 1968. 12. A Invenção da Imagem Autoral de Chico Xavier: a escrita de si no texto prefacial de Cartas de uma Morta Nome: André Victor Cavalcanti Seal da Cunha Titulação: Doutor Instituição: Professor do Departamento de História da UERN Resumo: Esta pesquisa realiza uma análise de Chico Xavier como portador de uma imagem autoral inventada, construída pela complexa dinâmica da inter-relação produção, recepção e apropriação de suas obras. O período do recorte cronológico foi do final de 1931 até o início de 1938. Investigou-se, pois, a criação da imagem autoral de Xavier, concebendo esta como uma elaboração coletiva da qual participaram vários sujeitos, dentre eles intelectuais ligados ao movimento espírita, editores e leitores. Pôde-se compreender seu surgimento na cena literária espiritista, integrando um projeto coletivo elaborado e capitaneado por lideranças da Federação Espírita Brasileira. Quanto a sua escrita de si, no texto prefacial da obra Cartas de 393 uma Morta, a renúncia dos diretos autorais, a recusa pública de sua fruição, pôde ser identificada como um dispositivo textual voltado à denegação autoral. Esta desempenhou um papel importante para legitimar o lugar ocupado por Xavier, contribuindo para a consolidação do regime de autoralidade compartilhada dentro do circuito da literatura espiritista. Como não considerar esta obra um sucesso editorial? Em 2011, Cartas de uma Morta estava na sua 15º edição e contava com uma publicação na casa do centésimo sexto milheiro. Quando, entretanto, tratamos de uma literatura de massa como a espiritista, esses são números relativos. Se compararmos os sucessos editoriais de fato grandiosos de Chico Xavier, veremos que este representa um desempenho apenas mediano. Não obstante, ao observarmos hoje o volume de tiragem deste livro não pode ser negada sua perpetuidade. Uma publicação que passa de 100 mil exemplares em quase 80 anos não é um fenômeno desprezível. Pela peculiaridade do caso e complexidade de seu sucesso relativo, optamos por iniciar a análise do segundo texto prefacial assinado por Chico Xavier por uma reflexão focada na obra que ele prefacia. Cartas de Uma Morta: uma análise da obra No seu ano de lançamento, ela não teve grande repercussão no cenário literário espirita nacional129. Também não foi publicada com o selo da FEB. Sua publicação está dentro do nosso recorte cronológico, mas apenas tangencia a delimitação do objeto dessa investigação. O ponto de contato lança, porém, uma fagulha que possibilita o estabelecimento de inteligibilidade e compreensão. Essa chave de leitura repousa na demonstração de que o exercício lítero-mediúnico de Chico Xavier comportou experiências nem sempre tão bem-sucedidas, mas que foram importantes na invenção das fórmulas editoriais materializadas na sua vasta Não obstante, encontra-se no Diário Carioca uma nota sobre o seu lançamento, publicada na edição do jornal de 10/11/1935. O texto, em linhas gerais, é bastante favorável à obra, aproximando- se de uma peça propagandística, apesar do cuidadoso “distanciamento” do articulista. Esse artigo traz ainda a informação de que o livro Cartas de uma Morta foi publicado pela Editora Espírita Limitada (DIÁRIO CARIOCA, 1935, p. 22). Segundo Oliveira (2014, p. 236), esta instituição representou uma experiência editorial “alternativa”. Apesar de ter entre seus fundadores alguns membros da FEB, teria surgido como contraponto à hegemonia febiana. Para sua criação, contou com doações do que parece ter sido uma campanha entre os leitores espíritas; contudo, a Editora Espirita Limitada não conseguiu se sustentar no mercado editorial brasileiro, abrindo falência alguns anos mais tarde. 129 394 obra, na definição dos diferentes gêneros que ela integraria. Não localizamos, no Reformador, propagandas ou artigos comentando a publicação. O silêncio na revista denuncia o pouco acolhimento do livro pela FEB. O que poderia, porém, explicar um desempenho tão discreto na contemporaneidade de seu lançamento? Poderíamos dentro do escopo deste trabalho criar apenas algumas hipóteses explicativas. Talvez a falta da chancela da FEB seja um componente significativo, pois toda a engrenagem febiana não foi colocada à disposição, como aconteceu em outros momentos ou relativamente a outras obras. Talvez as características da obra não tenham agradado a primeira geração de leitores que compunham a época o público leitor espiritista. Poderíamos também julgar que estes elementos formaram um conjunto de variáveis convergentes. O fato é que o modelo da obra não foi repetido por Chico Xavier. Isso possivelmente indique que esta experiência tenha sido considerada imperfeita, necessitando de ajustes e reelaborações. Antes de aprofundarmos as características do livro, porém, vamos ao que nos toca diretamente. No texto, autor espiritual é também o narrador e personagem principal. Essa é, segundo Philippe Lejeune, uma premissa a ser preenchida para uma narrativa ser considerada autobiográfica130. Até o momento de sua publicação, em 1935, Chico Xavier só havia psicografado poemas, mensagens doutrinárias e crônicas. O caso de Cartas, entretanto, é significativamente diferente, pois o texto seria um relato de experiência no post-mortem. Sendo apenas ficcional ou não, do ponto de vista dos procedimentos literários, em uma narrativa autobiográfica, o autor espiritual precisava funcionar como um heterônimo. O livro seria, então, uma coletânea de cartas trazendo relatos de experiências vivenciadas pela autora espiritual em outras dimensões e mundos, viagens essas realizadas depois de seu falecimento. Esta fórmula editorial, que encontra hoje tamanha aceitação no segmento de livros espíritas, não era dominante e talvez tenha enfrentado resistências por parte da sua primeira leva de leitores na década de 1930. Apesar de esse modelo se transformar na década seguinte em um grande sucesso de vendas, o autor espiritual de Cartas de uma Morta não encontrou guarida no panteão de espíritos de Xavier, mas, quem foi este personagem que não funcionou bem como o polo da autoria espiritual no regime de interautoria? Que Lejeune afirma como um critério textual para o estabelecimento do pacto autobiográfico a identidade do nome nas figuras do autor, narrador e personagem (2008, p. 26). 130 395 especificidades do texto podem ser apontadas como componentes que não foram mais explorados na produção psicográfica do Medium? Vamos agora ao seu prefácio. Uma Análise da Explicação Necessária ao Leitor Intitulado Explicação Necessária ao Leitor. Este introito, muito mais enxuto do que Palavras Minhas, desenvolve dois movimento revelados pelas análises. O primeiro deles é a invenção da imagem autoral do polo espiritual. As páginas que vão ler são de autoria daquela que foi, na Terra, a minha mãe muita querida. Minha progenitora chamava-se Maria João de Deus e desencarnou nesta cidade, em 29 de Setembro de 1915. Filha de uma lavadeira humilde, de Santa Luiza do Rio das Velhas, ela não pode receber uma educação esmerada; mas, todos os que a conheceram, afirmam que os sentimentos do seu coração substituíram a cultura que lhe faltava. Quando o seu bondoso espírito se comunicou por meu intermédio, pela primeira vez, eu lhe pedi que me contasse as impressões iniciais da sua vida no outro mundo, recebendo a promessa de que havia de fazer oportunamente; e, há pouco tempo, ela começou a escrever, por intermédio da minha mediunidade, estas cartas que vão ler. Eu contava cinco anos de idade, quando minha mãe desencarnou; mas, mesmo assim, nunca pude esquecê-la e, ultimamente, graças ao Espiritismo, ouço a sua voz, comunico-me com ela e ao seu espírito generoso devo os melhores instantes de consolo espiritual da minha vida. (XAVIER, 2011, p.11). Neste trecho existem diversos procedimentos literários que caracterizam um esforço de criação semelhante ao desenvolvido na constituição de um autor heterônimo. Evidentemente, se comparamos a energia criadora implementada na invenção das imagens autorais de Emmanuel e André Luiz, temos no prefácio de Cartas apenas um singelo esboço do que viria de 1935 em diante. Não obstante, consideramos útil para o desenvolvimento de nossa argumentação uma análise pormenorizada desse texto. Destrinchemos, então, os elementos que detonam gatilhos de persuasão e convencimento para seduzir o leitor. Diferentemente de Palavras Minhas, Chico Xavier não fala diretamente de si, mas da sua genitora, alçada à condição de autora espiritual de uma obra. Ao falar dela, porém, há muitos elementos de invenção do autor empírico – as análises revelaram que existiram sempre trocas de serviços na criação dos autores espirituais de referência em conjunto com a criação da sua imagem de medium-autor. Aqui seu primeiro passo, sem dúvida, foi o de apresentação ou caracterização da autoria espiritual. Sua 396 identidade é revelada ao leitor, associando-se ao nome próprio Maria João de Deus; contudo, a constituição da interautoria transborda do mero uso do nome de um “outro” quando foram colocados a disposição dados biográficos da morta. Os elementos de pobreza e ausência de instrução formal foram associados à pureza de sentimento, podendo ser detectados nas referências aos “sentimentos do seu coração”, que substituiriam a falta de “cultura”, bem como as expressões de “seu bondoso espírito” ou de “seu espírito generoso”. Antes de tudo, esses elementos permitem caracterizar um esboço de invenção da imagem de autor espiritual com um funcionamento semelhante ao de um heterônimo. A utilização da expressão “semelhante” é importante para não assumirmos uma posição de apagamento das especificidades da literatura espírita, principalmente com relação à produção mediúnica de Chico Xavier. Os procedimentos literários são próximos, mas o fenômeno do ponto de vista da cultura é bem outro. Portanto, os dispositivos textuais são convergentes, mas seu funcionamento comporta especificidades e distanciamentos, ou seja, são diferentes, se comparamos a escrita literária com a escrita mediúnica no que tange à produção, ao regime de autoralidade e ao pacto de leitura que permeiam estes livros. Após esta ressalva, voltemos ao nosso movimento analítico. Localizamos, ainda neste trecho, dispositivos de caracterização não da questão autoral, mas do gênero textual e literário que a obra se propõe integrar. Para continuarmos desenvolvendo o leque que abrimos, precisamos neste momento pontuar algumas noções importantes de nossa teia conceitual. Precisamos definir o que consideramos nesse trabalho como sendo gênero literário e gênero textual. Afinal, o que seriam os gêneros literários? Para apresentarmos uma conceituação minimamente aceitável, necessitamos da definição de gêneros textuais. Esta categoria foi trabalhada com maior fôlego por Bakhtin em sua obra Estética da Criação Verbal, trazendo a denominação originalmente de gênero do discurso (BAKHTIN, 2003). Segundo ele, Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. (P. 262). 397 Seguindo-se esta abordagem teórica, os gêneros textuais possuiriam uma estrutura mutável, flexível, mas com estabilidade. E o que parece ser importante ressaltar: sua estrutura seria definida por sua função e esfera de circulação (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004, p. 26). Assim, cartas, bilhetes, artigos de opinião, editoriais, memorandos, contos, crônicas, romances seriam gêneros textuais ou do discurso. Isto nos leva à conclusão de que todo gênero literário é um gênero textual. Não obstante, a recíproca não é verdadeira. A conceituação de gênero textual é muito mais abrangente, indo muito além da própria definição lato sensu de literatura antes da Modernidade. Por isso o número de gêneros textuais é proporcional às possiblidades de criação na comunicação via linguagem. Assumimos, então, para o exercício desta investigação, o entendimento de que os gêneros literários são os gêneros textuais que integram o campo da literatura, ou seja, que navegam na esfera de circulação literária. Neste sentido, os romances, contos, crônicas e poemas são exemplos de gêneros literários, mas não as cartas. Como pensar, então, a especificidade da obra publicada por Xavier, como autor empírico, e assinado por sua mãe? O livro traz as seguintes características literárias: é um texto em prosa considerado como relato de experiência, portanto, como narrativa autobiográfica da vida após a morte. O formato adotado foi o do gênero textual “carta”; mas poderíamos falar de fato em uma coletânea de cartas para caracterizar esta obra? Se assumirmos o ponto de vista dos procedimentos literários, a resposta seria uma, tão somente: não. Simular a estrutura textual de um gênero do discurso de circulação social para potencializar a verossimilhança da narrativa é um recurso literário amplamente ventilado. É com facilidade que poderíamos pinçar ocorrências na chamada literatura universal. O caso de Stoker (2011) representa um exemplo bastante conhecido. A narrativa de seu famoso romance Drácula não está toda estruturada tendo os capítulos, tópicos e itens formulados como diários, cartas e materiais de correspondências assinados por diversos personagens que compõem a trama? Em Stoker, teríamos o exemplo de um autor que brinca com elementos autorais e lança mão da estrutura de gêneros textuais para constituir sua obra literária. É, portanto, um procedimento do campo literário compor uma obra utilizando-se de uma mímese da estrutura de gêneros textuais de ampla circulação. Independentemente de se 398 considerar a autoria espiritual como realidade transcendental ou de concebê-la como meramente um exercício de criação de heterônimos, Cartas de uma Morta se utiliza de procedimentos do campo da literatura, contendo uma estruturação organizada pelo que poderíamos denominar de gênero textual mimético. Os gêneros textuais miméticos seriam, de acordo com Cavalcante e Marchuschi (2005, p.244), aqueles que “imitam gêneros de circulação social, sem todavia conseguirem preservar a função sócio-comunicativa do espaço de circulação original, que é substituída pela função pedagógica”. Em nosso caso, o uso imitativo da estrutura do gênero textual “carta” se deu para compor uma narrativa, para que esta fosse lida como relato de experiência, para que o livro fosse recebido como texto autobiográfico do post-mortem. Esta formula editorial, testada com o lançamento de Cartas de uma Morta (1935), será reelaborada em Nosso Lar (1944). Nesta última, tendo sido trocado o gênero literário, a narrativa autobiográfica virá em formato de romance. Compreendidas, porém, as características literárias da obra em foco no momento, voltemos às análises da escrita prefacial de Cartas. Por agora, qual o desfecho da Explicação Necessária ao Leitor? Aí estão, minha mãe, as tuas páginas. Elas vão ser vendidas em benefício das órfãzinhas. Deus permita que os pequeninos, que sofrem, recebam um conforto em teu nome, e que a Misericórdia Divina te auxilie, multiplicando as tuas luzes na vida espiritual. (XAVIER, 2011, p.12). Todo nosso percurso analítico de Cartas de uma Morta foi desenvolvido para chegarmos a este ponto. Aqui foi situada a pedra angular que sustentou o edifício da representação ou da imagem autoral de Chico Xavier. Há no final do introito uma explicitação da doação dos direitos autorais para finalidades de ação social, o que representou a radicalização da denegação da autoria, pois, abrindo mão dos direitos autorais, ele se privaria dos retornos financeiros de seu trabalho psicográfico. De fato, esta será uma prática firmada pelo Medium como compromisso ético para atestar a coerência de seu exercício mediúnico. Essa renúncia dos diretos autorais, esta recusa pública de fruição ou uso em benefício próprio, foi um dispositivo essencial para legitimar o lugar da não autoria ocupado por Xavier, contribuindo para a consolidação do regime de autoralidade compartilhada dentro do circuito da literatura espiritista. Para instaurar o regime e estabelecer o pacto de leitura, ele rejeitou os ganhos materiais da sua produção literária, optando por permanecer vivendo na pobreza durante as décadas seguintes. 399 Registrar publicamente a destinação dos recursos que passava a adquirir com a publicação e vendagem dos seus livros foi o dispositivo textual que encerou sua escrita prefacial, Bem, pelo menos a escrita prefacial assinada, seguindo um regime de autoralidade convencional. Depois de Explicação Necessária ao Leitor, Chico Xavier não mais assinará os prefácios, pois estes terão em sua maioria a alcunha do espírito Emmanuel. Quanto a sua mãe, Maria João de Deus, ao que tudo indica, o (in)sucesso relativo da obra selou o seu destino como autora espiritual dentro do panteão de espíritos que assinavam livros dentro da vasta obra do Medium. Não obstante, ela ressurgirá como personagem central na escrita memorialística sobre a vida de Chico Xavier. Ao estilo hagiográfico, as narrativas cunhadas da década de 1950 em diante irão representá-la como grande esteio afetivo do Medium, interferindo em diversas situações de sua existência desde a infância (LEWGOY, 2004, p. 31). Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CAVALCANTE, Marianne e MARCUSCHI, Beth. Atividades de escrita em livros didáticos de língua portuguesa: perspectivas convergentes e divergentes. In: VAL, Maria da Graça Costa e MARCUSCHI, Beth. Livros didáticos de língua portuguesa: letramento e Cidadania. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. LEJEUNE, Philippe. O pacto auto-biográfico de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru, SP: EDUSC, 2004. OLIVEIRA, Marco Aurélio Gomes de. Imprensa espírita na cidade do Rio de Janeiro: propaganda, doutrina e jornalismo. 2014. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014. XAVIER, Francisco Cândido. Cartas de uma morta. 15. ed. São Paulo: Lake, 2011. 13. THOMAS HOBBES: A RELIGIÃO DISCIPLINANDO AS PAIXÕES HUMANAS 400 Nome: Marcina de Barros Severino Titulação: Doutoranda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: A presente comunicação visa fazer uma reflexão sobre a análise que Thomas Hobbes fez da natureza e do comportamento dos seres humanos, os quais movidos por paixões e interesses individuais necessitariam de um poder soberano para garantir a paz e a segurança entre eles. Hobbes partiu do princípio de que o ser humano é um ser em movimento, tendendo a desejar o que é bom e afastar-se do que lhe causa dor. Devido a essa natureza, o ser humano se envolveria em conflitos e para se defender usaria da violência. A metodologia utilizada será a bibliográfica, resultante de pesquisa revisional sobre questões religiosas presentes na obra Leviatã (1651). As etapas da pesquisa consistem em fazer a análise do contexto histórico no qual Thomas Hobbes estava inserido e, a partir dos dados coletados, identificar os aspectos religiosos, que serviram de reforço para a obrigação civil. O Leviatã foi escrito durante o conturbado século XVII, período das Revoluções Inglesas, período no qual o medo da morte era motivo de insegurança constante. Hobbes reservou as duas últimas partes de sua obra Leviatã para tratar do tema religião. As Escrituras Sagradas e a religião cristã ocuparam um papel fundamental na teoria política de Hobbes, isto é, ambos os temas são recursos retóricos, que legitimam a obrigação civil. A teoria do Estado hobbesiano consistia na delegação de todos os poderes, por meio do contrato, a um rei ou a uma assembleia em benefício de segurança e paz. Os preceitos morais das leis naturais ou das leis de Deus modelam o comportamento humano, disciplinando as paixões humanas. Palavras-chave: Hobbes; Religião; Controle social Foi proposta uma reflexão sobre a influência da religião no controle das paixões humanas, tomando-se por base a obra Leviatã e outras obras de Hobbes131. Hobbes recorreu às Escrituras Sagradas como linguagem retórica para legitimar o poder soberano do Estado. Embora criticasse a má interpretação de algumas autoridades religiosas, lançou-se na exegese das Escrituras para desmistificar superstições e apropriar-se do poder de legitimação da religião. O século XVII foi um período marcado por intensas perseguições religiosas e políticas. Os monarcas utilizavam o direito divino para legitimar seus atos. Em nome da fé eram cometidas atrocidades e decidiam-se pela guerra. Vários incidentes, tanto políticos quanto religiosos, marcaram esse período. Período este das revoluções inglesas, em que ocorreram: a grande rebelião (1640-42), a revolução puritana (1640) e a guerra civil (1646-48). O momento histórico, em que Hobbes viveu e desenvolveu sua teoria foi caracterizado pela disputa de poder. Essas Thomas Hobbes (1588-1679) nasceu e morreu na Inglaterra, foi um matemático e um filósofo político. 131 401 guerras envolviam aspectos políticos, econômicos e religiosos. O medo da morte, devido ao contexto de guerra, era uma preocupação constante. A paz e a segurança eram muito almejadas. Apesar de ter sido um século de crises e inseguranças, a esperança de uma vida plena se manteve forte na teoria hobbesiana. Nesse período ocorreu a queda da supremacia da Igreja católica, isto devido a vários fatores, entre eles, o enriquecimento próprio de alguns agentes religiosos, que focavam mais no lucro do que nos assuntos espirituais. A venda de indulgências e de relíquias sagradas era uma estratégia muito eficiente para captar recursos financeiros com base no medo da morte e dos tormentos eternos. Nesse período, a Reforma, na Europa, “foi vista como um corte após uma noite milenar de escuridão, ignorância e superstição” (SOUKI, 2008, p. 110). Hobbes era um obstinado defensor da monarquia. Ele aproveitou o momento de crise da Igreja para desvincular o poder civil da submissão religiosa. Hobbes propôs a teoria do Estado soberano, em que não poderia haver divisão de poder. “A monarquia viu dentro de toda essa desorientação dos indivíduos e das instituições a oportunidade única de consolidar e de reforçar sua autoridade até torná-la absoluta” (SOUKI, 2008, p. 111). Souki (2008) esclarece que antes de 1600, absoluto era sinônimo de perfeição e poder absoluto se referia ao direito de fazer guerra e paz, de administrar a moeda, etc. O poder absoluto do monarca tinha um “significado de independência e não-sujeição a poderes externos” (SOUKI, 2008, p. 112). Para Souki (2008), Hobbes confere ao Estado absoluto a denotação de um exclusivismo sem divisão. Natureza e comportamento humano O ser humano para Hobbes é um ser em movimento, este ser é movido por paixões. Hobbes define conatus como o início do movimento voluntário das paixões. Silva (2009) menciona que para Hobbes, conatus é a mola que imprime movimento ao corpo e que as paixões são como uma “reação indireta da ação dos objetos externos que afetam os sentidos e provocam as sensações, e que os resíduos ou o declínio dessas sensações são chamados de imaginação” (SILVA, 2009, p. 83). A imaginação age na formação das paixões fornecendo conteúdo. “A imaginação nada mais é, portanto do que uma sensação diminuída, e encontra-se 402 nos homens, tal como em muitos seres vivos, quer estejam adormecidos, quer estejam despertos” (HOBBES, 1997, p. 34). “A imaginação recebe o conteúdo experimental e, posteriormente, trabalha esse conteúdo em um cálculo de apetites e aversões (deliberação) de modo a produzir uma ação” (Silva, 2009, p. 80). O objeto é captado pelos sentidos e produz aparências diversas. Segundo Hobbes (1997), a sensação é uma ilusão originária provocada pelo movimento das coisas exteriores nos órgãos do sentido. “Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até o momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba; [...]” (HOBBES, 1997, p. 110). O ser humano se movimenta em defesa da própria vida. A igualdade natural entre os homens é uma circunstância que explica as paixões e o comportamento humano. Segundo Limongi (2002), dessa situação de igualdade surge a disputa, a busca de cada vez mais poder, que é um comportamento razoável e justificável diante dessa situação. “A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito [...]” (HOBBES, 1997, p. 107). Na natureza do homem, segundo Hobbes (1997), encontram-se três causas de conflito e guerra: competição, desconfiança e glória. A disputa entre os homens por poder os distancia do caminho para paz. A lei de natureza consiste na razão, no caminho para obter a paz. Para Hobbes, a razão é um cálculo matemático. “Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra; o que (se for feito com palavras) é conceber da conseqüência dos nomes de todas as partes, para o nome da outra parte” (HOBBES, 1997, p. 51). Hobbes (2002) menciona que os princípios da lei de natureza parecem estar confirmados em alguns trechos da Escritura. Nesse sentido, ele conclui que a “doutrina de Cristo, nosso Salvador, envolve o cumprimento da lei em favor da paz” (HOBBES, 2002, p. 122). A razão foi dada ao homem pelo Todo-Poderoso para que ela fosse uma luz para ele (HOBBES, 2002). As leis de natureza são leis morais e também leis divinas, “em consideração ao autor daquelas, Deus Todo-Poderoso; e devem, portanto concordar ou, pelo menos, não repugnar a palavra de Deus revelada na Santa Escritura” (HOBBES, 2002, p. 121). 403 “As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho” (HOBBES, 1997, p. 111). Segundo Hobbes (1997), a razão sugere normas de paz, que são as leis de natureza. “Uma lei de natureza é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la” (HOBBES, 1997, p. 113). A primeira e fundamental lei de natureza consiste em procurar a paz e seguila (Hobbes, 1997). As demais leis de natureza derivam da primeira e “dirigem nossos caminhos seja para a paz ou para a nossa própria defesa” (HOBBES, 2006, p. 41). Hobbes, nas obras: Os elementos da lei natural e política, Do Cidadão e O Leviatã enumera algumas das leis de natureza relativas ao contrato132. Essas leis são instruções derivadas da razão e que visam à preservação da vida. Limongi (2002, p. 38) afirma que para Hobbes as leis de natureza são “preceitos da razão que apontam os meios mais convenientes de assegurarmos as condições de uma vida satisfeita”. Esses preceitos não garantem apenas a sobrevivência humana, mas também possibilitam uma vida plena. Outra lei de natureza consiste em desapossar do direito que, por natureza, tem a todas as coisas e optar em fazer o que o Evangelho de Mateus, cap. 7, v. 12 recomenda: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (HOBBES, 2002, p. 124). Percebe-se que Hobbes emprega a regra de ouro de Jesus para instruir as ações humanas e mais, chega a mencionar que Deus pedirá um relato das instruções que deveriam ter seguido em peregrinação no dia do Juízo (HOBBES, 2002). Segundo Hobbes, a semente da religião se encontra no homem e é uma característica peculiar dele. Essa semente natural consiste na crença nos fantasmas, na ignorância das causas segundas, na devoção pelo que se teme e na aceitação de coisas acidentais como prognósticos. A incerteza do futuro fortalece a necessidade de religião. No Leviatã, Hobbes traça critérios muito simples para se alcançar salvação. “O único artigo de fé que as Escrituras tornam simplesmente necessário para a salvação é este, que Jesus é o Cristo” (HOBBES, 1997, p. 414). 132 Contrato é “o ato em que dois ou mais transferem seus direitos mutuamente” (2006, p. 44). 404 Hobbes (1997, p. 61) conceitua religião como “o medo dos poderes invisíveis, inventados pelo espírito ou imaginados a partir de relatos publicamente permitidos, [...]”. Para Hobbes, o reconhecimento da religião está vinculado à autorização do poder civil. Seria, talvez, uma precaução de Hobbes para evitar conflitos entre as religiões. Naquela época de guerras religiosas devia ser difícil conceber a convivência pacífica entre as religiões. “A religião é um empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmo com o sagrado” (BERGER, 1985, p. 38). O sagrado confere significado às vivências humanas. Ele coloca a vida humana em uma ordem. Os mundos que o homem constrói estão ameaçados pelas forças do caos e pela realidade inevitável da morte. A religião tenta conceber o universo como humanamente significativo (BERGER, 1985). O terror do mistério do totalmente Outro é um motivo condutor do encontro com o sagrado (BERGER, 1985). Hobbes (1997) afirma que as Escrituras preparam os homens para entrar no reino de Deus. “As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural” (HOBBES, 1997, p. 78). Nesse sentido, por meio da religião, da obediência aos preceitos divinos revelados nas Escrituras, o homem conseguiria disciplinar suas paixões e viveria em paz. O caos em que os homens se encontravam no estado de natureza133 hobbesiano seria pacificado pelo Leviatã, percebe-se a influência do sagrado no estabelecimento e manutenção da ordem social. O medo real da morte violenta fez o homem assinar o contrato social delegando poderes ao Estado em troca de paz e segurança. O Estado é o detentor exclusivo do direito de punir, o pacificador social. Para impor a ordem, a ele é transferido todos os poderes. Poder é um dado que está presente nas relações sociais. Poder é “toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade” (WEBER, 1991, p. 33). Dominação “é a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” O estado de natureza hobbesiano “é o modo de ser que caracteriza o homem antes de seu ingresso no estado social” (HOBBES, 1997, p. 23). 133 405 (WEBER, 1991, p.33). A dominação necessita de argumentação convincente. A dominação é uma forma camuflada de poder, necessita de legitimação. O medo se une a esperança e com a ajuda da razão se realiza o contrato social. Souki (2008) acredita que a ideia de medo inclua certa racionalidade para a autopreservação. Porém, o medo permanece de forma mais amena na teoria hobbesiana. O medo se torna racionalizado. O Estado inspira medo apenas quando desobedecido. Hobbes reforça o poder do Estado utilizando o nome do monstro bíblico Leviatã para designá-lo. “Leviatã (...) aquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (HOBBES, 1997, p. 144). Ele busca legitimação para o poder do Estado na Escritura Sagrada. O medo é reforçado por fundamentos religiosos. O temor que inspira o Leviatã, monstro bíblico, tem a capacidade de disciplinar as paixões humanas e instaurar a paz e a ordem. O Estado cristão de Hobbes deve observar as leis de natureza. O objeto do contrato social é a observância das leis de natureza. Todos os poderes do Leviatã são subordinados às leis de Deus. Os súditos do Leviatã também são súditos de Deus, nesse sentido desejam a salvação. Hobbes (1997) resume as virtudes necessárias à salvação em duas: fé e obediência às leis. “O Reino de Deus está fechado aos pecadores, isto é, aos desobedientes ou transgressores da lei” (HOBBES, 1997, p. 412). Hobbes conseguiu relacionar a obediência a Deus com a obediência ao soberano. Para Hobbes (2002) a doutrina de Cristo envolve o cumprimento da lei em favor da paz e os que procedem com negligência e desprezo às leis de natureza serão punidos por Deus Todo-Poderoso. Conclusão Em virtude dos argumentos apresentados entendemos que o sagrado contribuiu para o estabelecimento e manutenção da ordem social na teoria de Hobbes. Ele atuou fornecendo princípios para disciplinar as paixões humanas. Referências BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Tradução José Carlos Barcelos. São Paulo: Paulus, 1985. 406 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. _______. Do cidadão. Tradução Fransmar Costa Lima. São Paulo: Martin Claret, 2006. _______. Os elementos da lei natural e política: tratado da natureza humana: tratado do corpo político. Tradução de Fernando Dias Andrade. São Paulo: Ícone, 2002. LIMONGI, Maria Isabel. Hobbes. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. SOUKI, Nádia. Behemoth contra Leviatã: Guerra civil na filosofia de Thomas Hobbes. São Paulo: Loyola, 2008. SILVA, HA. As paixões humanas em Thomas Hobbes: entre a ciência e a moral, o medo e a esperança [online]. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. WEBER, Marx. Economia e sociedade. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UNB, 1991. 14. REFORMA PROTESTANTE ALEMÃ: ANTECEDENTES E CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS Nome: Oswaldo da Silva Cazaleiro Filho Titulação: Graduando Instituição: Faculdade Evangélica de Brasília Resumo: Para entender o presente é necessário recorrer ao passado e acompanhar a evolução histórica. Essa pesquisa dedicou-se a entender, de forma breve, a Reforma Protestante Alemã̃. Ocupa-se do contexto imediatamente anterior e suas influências econômicas, polit́ icas, religiosas, sociais e teológicas sobre o mundo e o pensamento de Martinho Lutero, bem como reflete sobre suas consequências imediatas em Wittenberg e na Alemanha. No primeiro capit́ ulo considera-se a queda do Império Romano e a ascensão do poder Papal; o segundo tópico avalia a pluralidade do pensamento teológico que dominou a Baixa Idade Média, enfatizando as diferenças entre as soteriologias da via antiqua e da via moderna, por um lado, e da schola Agostiniana moderna, por outro, as primeiras com viés semi-pelagiano e a última plenamente Agostiniana – focada nas Doutrinas da Graça; a terceira parte estuda o impacto das conjunturas culturais, econômicas, polit́ icas e sociais do período conhecido como Renascimento, considerando o desenvolvimento da siderurgia, da imprensa, do desemprego rural e o êxodo em direção às cidades, da queda da produção agrícola, da fome e a miséria e da terrível peste negra; em quarto lugar, a deflagração da Reforma Luterana está em tela em meio à crise da Igreja e à campanha agressiva de venda de indulgencias e a disputa de poder entre os Príncipes Eleitores e o imperador do Sacro Império Romano; por último, têm lugar os impactos da Reforma Luterana em Wittenberg e região, refletindo sobre a instituição do ensino público universal e ação social organizada. 407 Palavras-chave: Lutero, Igreja Católica, Reforma, Papa, Idade Média, Teologia, Império Romano, Renascimento, Wittenberg, Indulgências, Salvação. A queda do Império Romano e a ascenção do poder papal Desde o período apostólico, a igreja de Roma se destacava de forma que o apóstolo Paulo endereçou a importante Epístola aos Romanos àquela igreja. Sua influência relativa aumentou com a divisão do Império: no Oriente, as igrejas de Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Jerusalém disputavam a supremacia, a igreja de Roma liderou os cristãos do Ocidente desde o início. Durante todo o período patrístico a bispos romanos foram influentes em toda a cristandade (MATOS, out. 2015). A rápida expansão do Império Romano, a partir de 27 a.C., e suas longas guerras de conquistas e esmagamento de revoltas levaram a uma grande desvalorização da vida humana e favoreceram o alastramento da criminalidade e da corrupção pública (BURNS, 1970, p. 232). Apesar da prosperidade econômica e do desenvolvimento da lavoura, a riqueza era mal distribuída. A importação de produtos levou à rápida evasão de riquezas e a manutenção do exército e da expansão das fronteiras consumia cada vez mais recursos. Então, a partir do início do terceiro século a economia romana entrou em colapso (Idem, p. 240, 242-246). A partir de agosto de 410 d.C., as invasões bárbaras ocorreram em ondas sucessivas. Em vários momentos, Leão Magno, o bispo de Roma (440-461) atuou decisivamente em favor da cidade, elevando consideravelmente seu prestígio político. Adotou o título de Pontifex Maximus (“o supremo construtor de pontes”) por considera-lo adequado à função sacerdotal do bispo de Roma (COLLINS e PRICE, 2000, p. 70-72). Assumindo o título de Sumo Pontífice, Leão Magno também herdou a função de principal magistrado romano e levou a igreja a assumir a responsabilidade por questões judiciais, de defesa e outros negócios seculares desenvolvendo, assim, o poder temporal. A organização da igreja em jurisdições, efetuada pelo imperador Constantino (330-363), bem conhecida por Leão, foi de grande importância na consolidação do papado e da igreja ocidental. Ao final do século V, Gelásio I definiu com precisão a doutrina dos poderes espiritual – exercido pela Igreja – e temporal – exercido pelo estado. Contudo, na Itália pós-imperial as 408 duas esferas de poder eram exercidas pelo chefe da Igreja, o papa (MATOS, abr. 2015). O cenário teológico na idade média Desde o edito de tolerância do Império Romano (311) o cristianismo foi favorecido por meio da promulgação de uma série de decretos (380-392) até tornarse a única religião legal do império (BURNS, 1970, p. 258). Número expressivo de opositores da união igreja-estado começaram a retirar-se para os desertos do Egito e da Síria, iniciando o monasticismo, que logo envolveu-se com a expansão do Evangelho e da educação.134 Essas atividades levaram à criação das catedrais e universidades europeias. Os vigorosos debates teológicos e a erudição acadêmica culminaram com o desenvolvimento do Escolasticismo.135 A teologia acadêmica e a influência da piedade leiga 136 geraram “profunda e considerável confusão dentro da Cristandade ocidental com referência aos ensinamentos oficiais da igreja” (MCGRATH, 2007a, p. 34). Contudo, o pensamento teológico do período, pode classificar-se em três principais escolas: i) a via antiqua, associada a Tomás de Aquino; ii) a via moderna, relacionada a Gabriel Biel; e iii) a schola agostiniana moderna, vinculada a Gregório de Rimini e Hugolino de Orvieto (MCGRATH, 2007a, p. 75-94). As primeiras desenvolveram doutrinas da justificação que se aproximavam do Pelagianismo137, enquanto a terceira desenvolveu uma teologia fortemente anti-pelagiana (MCGRATH, 2007a, p. 36, 80-89). A schola Agostiniana moderna foi importante entre os agostinianos ao final do período medieval. Ainda que educado com ênfase no pensamento da via moderna, Lutero deparou-se com o pensamento prevalecente em sua ordem, apropriando-se deles e moldando-os “de acordo com seus propósitos” (MCGRATH, 2007a, p. 109). Comentando sobre o pensamento teológico de Lutero, McGrath diz: Assim, há fundamentos sólidos para sugerir que as origens da Reforma de Wittenberg encontram-se ligadas à uma redescoberta de Agostinho, tendo como resultado uma crítica que, a princípio, voltou-se para a soteriologia da via moderna, mas que, subsequentemente, tratou de aspectos da Teologia 134 Particularmente notável é a contribuição dos monges celtas que atuaram fortemente na região central da Europa (FERREIRA, 2013, p.79-80 e 91-92). 135 Tentativa de “unir ideias dos escritos filosóficos gregos e das Escrituras, dos textos dos Pais da Igreja e de outras obras do período medieval, com a finalidade de formar um sistema doutrinário claro e definitivo.” (FERREIRA, 2013, p. 122-123, 125) 136 A invenção da imprensa permitiu o acesso popular às Escrituras. 137 promovendo o conceito de atos meritórios do qual derivaram a ênfase na caridade e nas indulgências, características da igreja medieval 409 agostiniana da graça (principalmente sobre suas ideias acerca da natureza da retidão justificadora. (MCGRATH, 2007a, p. 118) A conjuntura cultural, econômica, política e social na baixa idade média Nos séculos XII e XV a forte urbanização e o êxodo rural foram decisivos para o aumento da pobreza; alterações climáticas importantes e duradouras, longas secas e o surgimento de várias pragas comprometeram a produção agrícola e agravaram a pobreza e a fome; o comércio ultramarino trouxe a peste, dizimando em torno de 75 milhões de pessoas; a metalurgia e a fabricação de canhões tornou desnecessários os cavaleiros feudais marginalizando parcela importante e belicosa da nobreza; a invenção da imprensa permitiu que as pessoas adquirissem conhecimento diretamente de livros e textos, favorecendo o desenvolvimento do individualismo (LINDBERG, 2001, p. 40-42; 50-52). Outro grande fator de mudança social foi originado no Renascimento e no Humanismo. (MCGRATH, 2007a, p.47) A credibilidade da igreja estava seriamente comprometida. Envolvida em disputas internas de poder e prestígio, chegou a ter três papas simultâneos.138 A Europa estava dividida e confusa: qual deles viria a ser, verdadeiramente, o vigário de Cristo? Qual deles detinha a infalibilidade papal? (LINDBERG, 2001, p.61) O império139 buscou o apoio político da igreja e das lideranças dos territórios alemães adotando a prática de eleger o imperador. O colégio eleitoral140 era composto por sete eleitores: a) três arcebispos: de Colônia, de Mainz e de Trier; e b) quatro nobres: o conde palatino do Reno, o rei da Boêmia, o duque da Saxônia e o margrave de Brandemburgo. (LINDNBERG, 2001, p. 101) Às vésperas da Reforma Protestante, a família do margrave de Brandemburgo comprou o arcebispado de Mainz, obtendo autorização especial do papa para a venda de indulgências em seus territórios. A prática agressiva de vendas de indulgências aumentou ainda mais o descontentamento de grande parte do clero e da burguesia alemãs. (LINDBERG, 2001, p. 101-103) Cenário preparado para a deflagração da Reforma! 138 Durante o Grande Cisma da Igreja Ocidental houveram três papas: Urbano VI, em Roma; Clemente VII, em Avignon; e Alexandre V, em Pisa. 139 Em 800 d.C., um acordo entre o papa Leão III e Carlos Magno, rei franco, instituiu o Sacro Império Romano. Com o fortalecimento do estado franco, a França tornou-se autonoma e o império assumiu nova configuração e passou a chamar-se Sacro Império Romano Germânico. (MATOS, abr. 2015) 140 Estabelecido em 1356. 410 A deflagração da reforma luterana Os tormentos eternos do inferno e do purgatório provocavam pânico generalizado (LINDBERG, 2001, p.45-46). Quem podia comprava cartas de indulgência para si e familiares, inclusive falecidos. Lutero, monge agostiniano e professor na universidade de Wittenberg, constrangia-se com a igreja, porque essa não respondia seus anseios. Sofria com a incerteza da salvação: incapaz de não pecar, parecia-lhe que sua alma não teria chance de salvação (FEBVRE, 2012, p.72-74). Estudando a Epístola de Paulo aos Romanos, leu: “[...] visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé.” (BÍBLIA SAGRADA, Romanos 1:17). Percebeu que a salvação é obtida pela fé em Jesus Cristo e não depende de obras humanas, nem da igreja (LIENHARD, 1998, p. 47-51)! Assim, resolveu afixar, em 31 de outubro de 1517, 95 Teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, propondo o debate acadêmico em torno da reforma dos costumes e da teologia da igreja. Sua mensagem expandiu-se rapidamente pela Alemanha e seus escritos tornaram-se sucessos editoriais por todo o Império. (LIENHARD, 1998, p. 113-121) Frederico, eleitor da Saxônia, buscava independência do imperador e da igreja, e apoiou o Dr. Lutero. Carlos V, envolvido com a ameaça da invasão turca, não deu atenção ao movimento; o papa Leão X ignorou Lutero. Sem oposição e com o apoio, as ideias de Lutero foram se consolidando. (LINDBERG, 2001, p.99-110) Excomungado em janeiro de 1521, Lutero foi convocado à Dieta141 de Worms, onde deveria retratar-se ou ser banido do império (LINDBERG, 2001, p.110-112). Compareceu em abril do mesmo ano, não recuou e declarou: A menos que me convençam, por testemunho das Escrituras ou por uma evidência da razão [...], tenho um compromisso com os textos que produzi; minha consciência é cativa das palavras de Deus. Não posso nem quero revogar o que quer que seja, porque agir contra a própria consciência não é seguro nem honesto. Que Deus me ajude, Amen! (FEBVRE, 2012, p. 201) Banido do Império, Lutero escondeu-se no castelo de Wartburg. Durante seu retiro, traduziu a Bíblia para o alemão. Enquanto isso, o movimento reformista da igreja alemã prosseguia. 141 Seria algo equivalente a uma reunião de cúpula da União Europeia, atualmente. 411 Reformando a igreja e a sociedade A tese da salvação somente pela Graça [Divina], mediante a fé [em Jesus Cristo], constituiu um grito de liberdade em relação à tirania do pecado. Substitui a necessidade de esforço pessoal pela certeza de alcançar a salvação, porque não depende do ser humano, mas de Deus, por meio da fé em Jesus Cristo e em Seu sacrifício redentor. (BÍBLIA SAGRADA, Romanos 1:17; Efésios 2:8-10) Enquanto esteve refugiado no castelo de Wartburg (janeiro/1521- março/1522), a tarefa de reformar a igreja coube a Melanchthon e Karlstadt, respectivamente reitor e professor da Universidade. Contudo, logo instalou-se intensa luta pelo poder sobre a trajetória da Reforma (LINDBERG, 2001, p.120-127). O enfraquecimento do poder episcopal fez com que Albrecht, agora cardeal de Mainz, abandonasse sua campanha de venda de indulgências (Idem, p.122). As alterações na missa, na eucaristia e a destruição de imagens geraram conflitos sociais; a revolta camponesa, associada aos anabatistas, exigia o afastamento entre igreja e estado e a morte dos ímpios. Preocupado, Lutero retornou e passou a induzir a reorganização social a partir da Reforma litúrgica. Em 1522, o conselho da cidade aprovou a Constituição de Wittenberg, reformando o culto e o sistema de assistência. Estabeleceu um fundo proveniente de dotações de instituições religiosas dissolvidas e estipulou um imposto aplicado ao clero e aos cidadãos “para a manutenção da multidão de pobres” (Idem, p. 141-149). A mendicância foi expressamente proibida. O exemplo de Wittenberg foi se repetindo por toda a Europa central (LINDBERG, 2001, p. 139-149). Faziam-se necessários grandes investimentos em educação (Idem, p.154-56). Dirigindo-se aos conselhos de todas as cidades alemãs, Lutero escreveu: Caros senhores. Anualmente é preciso levantar grandes somas de dinheiro para armas, estradas, pontes, diques e inúmeras outras obras semelhantes, para que uma cidade possa viver em paz e segurança. Por que não levantar igual soma para a pobre juventude necessitada, sustentando um ou dois homens competentes como professores? (LINDBERG, 2001 p. 155) Seu apelo teve algum êxito. Várias cidades e territórios instituíram escolas por meio de instituições eclesiásticas O movimento reformista da igreja se expandia por toda a Europa central. 412 Referências BÍBLIA Sagrada. Versão Revista e Atualizada no Brasil. 2ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1996. BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. 2ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1970. COLLINS, Michael; PRICE, Matthew E. História do Cristianismo – 2000 anos de fé. São Paulo: Edições Loyola, 2000. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012. FERREIRA, Franklin. A Igreja Cristã na História. São Paulo: Vida Nova, 2013. LINDBERG, Carter. Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida e mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 1998. MATOS, Alderi de Souza. Igreja e Estado: uma visão panorâmica. Disponível em <http://www.mackenzie.br/7113.html> Acessado em 19/04/2015. ______. O Papado: sua origem, evolução histórica e significado atual. Disponível em <http://www.mackenzie.br/6933.html> Acessado em 27/10/2015. MCGRATH, Alister. A Revolução Protestante. Brasília: Palavra, 2012. ______. Origens intelectuais da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2007a. ______. Teologia Histórica. São Paulo: Cultura Cristã, 2007b. ___________________________________________________________________ GT 12 SAÚDE E RELIGIÃO Coordenadores: Prof. Dr. Paulo Rogério Rodrigues Passos/PUC Goiás Prof. Mestrando Aldemario Alves de Souza/Secretária Estadual de Saúde de Goiás Profa. Doutoranda Roberta Mayara Alves de Souza/Secretária Estadual de Saúde de Goiás. 413 Ementa: Titulo – Religião e Religiosidade na Saúde e no âmbito Hospitalar. A preocupação sobre a saúde existe desde os primórdios da humanidade. Essa idéia aparece, naturalmente, associada à concepção de doença, sendo que as primeiras preocupações sobre saúde estavam mais relacionadas à procura das causas das enfermidades. Inicialmente, tanto os adoecimentos, quanto os fenômenos naturais eram explicados somente com base em crenças religiosas, de modo que tais acontecimentos eram encarados como decorrentes de vontades divinas. Hoje a religiosidade, religião e saúde integram ao individuo ou coletivo social não somente na condição do adoecer, mas pelo momento em que se encontra a fim de verificar se há uma ideologia ou uma relação intrínseca com a noção de equilíbrio e bemestar. A constituição do GT propõe a necessidade do conhecimento nesta área por justificar ser de suma importância a necessidade de se estudar a ligação entre os parâmetros sociais e religiosos do indivíduo e da coletividade no âmbito hospitalar ou familiar na atualidade. Onde a busca pelo bem estar não se relaciona somente na condição da medicina, mas sim nas suas influências pelas práticas e crenças religiosas; ou pelo encontro do sentido á vida, o que possivelmente possa ajudá-lo a viver melhor, com mais esperança e atitudes mais positivas. Comunicações: 1. COM A CARA NA RUA Nome: Sandra Helena Rios de Araújo Titulação: Doutoranda Instituição: UNICAP Nome: Jussara Rocha Kouryh Titulação: Mestranda Instituição: UNICAP Resumo: Palmares, cidade da Zona da Mata Sul de Pernambuco, por sua própria característica, sempre foi marcada por uma forte presença feminina. Mulheres extraordinárias que contribuíram substancialmente com a história da cidade e se destacaram no comércio, na educação, na política, na literatura. O grupo Mulheres Guerreiras dos Palmares nasceu assim, mais especificamente a partir de uma conversa entre duas amigas onde dores e incertezas foram compartilhadas diante do sofrimento comum: o diagnóstico de câncer de mama. A partir dessa primeira conversa, descobriram que não eram únicas. Visitaram outras mulheres com a mesma doença. Buscaram-se, formaram um grupo para um fortalecimento recíproco, desenvolveram ações preventivas envolvendo escolas e comunidades, promoveram passeatas nos outubros rosa, colocaram a cara na rua: eis o título do livro lançado em outubro de 2015 que contém a história de 19 mulheres, todas diagnosticadas com câncer. O que existe em comum nessas mulheres além do comprometimento da saúde? A vivência da espiritualidade. Pertencentes a diversas crenças religiosas, em todas essas histórias estão explícitas o relacionamento com o sagrado e o quanto tal relacionamento foi marco decisivo na luta pela vida e vida com qualidade. A proposta dessa comunicação é apresentar essa experiência. 414 A força quilombola Cidade pequena, população estimada, em 2015, pelo IBGE142 em 62.300 habitantes, Palmares, encravada em terras quilombolas, traz em seu bojo o melaço da cana misturado ao suor e sangue resultante de moendas de gentes e sonhos. Na crueza da vida, novas são as moendas que continuam tragando pessoas e projetos de vida. Tal qual quilombolas dos tempos de Zumbi dos Palmares, existem aquelas que se rebelam e buscam romper um doloroso percurso pré-anunciado para correr em busca do esticamento da vida. São nesses quadro e território que se incluem as experiências de 19 mulheres as quais, a partir do encontro de duas amigas, ambas acometidas pela mesma doença, constituíram o grupo Mulheres Guerreiras. Tais experiências estão pontilhadas de muitos aspectos, todos relevantes e compilados no livro Com a cara na rua, organizado por Jussara Rocha Kouryh e Mirian Pina143. Essas mulheres, residentes em terras palmarenses, relatam singulares percursos no enfrentamento de um mal comum: o câncer. Receber um diagnóstico de câncer, na ótica do paciente, sejam quais forem as circunstâncias, no primeiro momento é como receber um atestado de óbito antecipado, uma sentença de morte, um experimentar a finitude da vida. Dois relatos desses iniciais momentos: o primeiro, de Janeide de Albuquerque Fragoso; o segundo de Solange Miranda. Pronto! Confirmado: eu estava com câncer. Pensei: “E agora?!” Casada, mãe de três filhos – uma filha de 19 anos, um filho de 15, e minha caçula de um aninho. Minha decisão foi: “Agora é arregaçar as mangas e ir à luta”. E assim aconteceu... Eu falei com Deus: “Me dê mais uma chance de vida” (Janeide, 22 abr. 2015). Ao sair do consultório, pensei em tudo que eu iria deixar para trás. E a pergunta direto em minha mente: “Eu vou morrer?” Lágrimas e tensão (Solange, 22 abr. 2015). Se assim o é para pacientes, como será para o médico? No prisma do profissional da área, se revestido de sensibilidade humana, esse enfrentamento é experimentar a própria finitude, o limite, a quebra do pedestal, o despir-se de sua pseudo autoimagem de ser um deus, senhor da vida e da morte de seus pacientes. Disponível em: http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=261000&search=pernambuco|palmare s. Acesso: 27.02.2016 143 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco, com especialização em inglês. 142 415 Ambos, paciente e médico, vivenciam a mesma limitação com percepções singulares. Existe um ponto convergente? Sim. Tanto o doente quanto o curador buscam a superação de fronteiras para prolongar a vida. Cada um usando as armas de que dispõe. Para o profissional da área de saúde, o estudo e domínio da ciência; para o enfermo, o entregar-se nas mãos do “seu” médico e, via de regra, nas mãos d´Aquele no qual acredita provém sua própria vida. Dá-se, então, o inevitável encontro entre a ciência e a fé. Fé e ciência devem ser domínios separados, mas devem trabalhar levandose em conta. Porque, afinal, hoje percebemos que os seus métodos são na verdade próximos e complementares: nem a ciência nem a Teologia podem pretender objetividade. A Teologia não pode conhecer Deus nele mesmo, e o objeto de seu estudo é a relação entre Deus e o ser humano. Da mesma forma, a ciência pode apenas estudar a relação entre a realidade física e o ser humano, porque a mecânica quântica prova que a intervenção humana modifica irremediavelmente os dados e coloca o real fora de nossas possibilidades. (ARAGÃO, 2009, p. 134) Fé e ciência têm um outro encontro marcado, intimista, único, cujo espaço está na formação do médico que compreende e não abre mão de vivenciar sua própria espiritualidade, considerando elemento constitutivo do ser humano a busca e relação com o sagrado. Será que esta formação, mesmo se ainda escassa nas grades curriculares dos cursos da área de saúde, começa a se tornar um viés palpável a partir da evolução das políticas de humanização dos serviços de saúde no Brasil? É um passo significativo. Todavia, a espiritualidade como elemento base das relações entre médico e paciente vai além, requer uma postura pessoal. Espiritualidade, é, portanto, um estilo de vida, um modo de sentir, pensar e agir segundo valores tomados como essenciais, que direcionam a ação humana e lhe dão sentido ao longo da existência. As várias expressões de espiritualidade sugiram do desejo humano de autossuperação de suas vulnerabilidades. (CORREIA JÚNIOR; SOARES, 2016, p. 24) O estilo de vida sobre o qual Correia Júnior e Soares se reportam está sustentado sobre a pilastra da fé. A crença naquilo que transcende gera e alimenta uma força íntima capaz de suplantar obstáculos antes inimagináveis. Portanto, quando paciente e médico, mergulhados em suas singulares espiritualidade, tornamse parceiros de uma longa caminhada em busca da superação dos pessoais limites, os enfrentamentos assumem uma nova conotação. Assim, persegue-se a qualidade da vida e a dignidade da morte. 416 Contando suas histórias... Nos relatos das Mulheres Guerreiras, as expressões de fé perpassam por todos os momentos do enfrentamento do câncer. Para Ana Cláudia, a intervenção divina começou ainda no encontro com sua mastologista. “Deus me colocou nas mãos da melhor mastologista que eu poderia conhecer, uma profissional sábia e cheia de amor” (Ana Cláudia, 22 abr. 2015). Esta percepção também foi explicitada por Nathália Tereza Gomes em relação ao “seu” mastologista: “... um médico iluminado por Deus, tranquilo, sábio, sereno e muito humanizado” (Nathália Tereza, 22 abr. 2015). O doloroso tratamento possui vários vieses. Um deles é a falta de assistência médica especializada, sobretudo para quem é do interior de Pernambuco. Palmares, distante 120km do Recife, não foge à regra. Assim, essas mulheres, além da luta contra o câncer, tiveram que enfrentar uma outra batalha, aquela gerada por uma chaga social que nega o direito constitucional à assistência médica de qualidade. Situação evidenciada por Alcinea e Lúcia Gamo: Uma das maiores dificuldades por que passei foi a falta de tratamento específico em Palmares. Tinha que sair às 4 horas da madrugada para o IMIP (Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira), no Recife, sem hora para voltar. Quando chegava em casa, muitas vezes à noite, o tempo não era suficiente para me recuperar e poucas horas depois deveria fazer o mesmo trajeto para retornar à capital. Foi muito difícil (Alcinea, 22 abr. 2015). A falta de recursos em Palmares é muito grande. Por isto, temos que nos deslocar ao Recife ou a Caruaru para fazer o tratamento. Esse deslocamento é desumano. Saímos de Palmares às 3h30 da madrugada e não temos hora para voltar. Além disso, é preciso esperar por todos os outros pacientes que vão para diferentes tipos de tratamento. Mas o que mais queremos ao final de uma sessão de quimioterapia é voltar para casa e repousar, pois ficamos muito debilitados (Lúcia Maria, 22 abr. 2015). Essas e outras complicações, foram encaradas de frente e suplantadas também a partir de uma experiência de vivência da fé. São emblemáticos os depoimentos de Eliane Conceição e de Nathália Tereza aqui transcritos: O que mais me impressionou foi a forma como reagi a tudo, na maior naturalidade. Era como se isso tivesse acontecendo com alguém distante. Não sabia que tinha tanta força, mas a realidade é que tenho. A força veio de Deus. Ele que estava e está no comando de tudo. Ele é minha força, minha fortaleza. Hoje entendo como suportei tanta dor sem reclamar, foi porque Jesus Cristo já tinha vivenciado todas as minhas dores e as suas também, lá na cruz. Acredito na existência de anjos, mas não só os anjos do plano espiritual. Acredito que Deus coloca pessoas aqui na terra para nos socorrer e essas pessoas são os anjos sem asas. Eu estava e estou cercada desses anjos. 417 Todas essas pessoas (...) e aquelas que oraram por mim sem eu nem conhecer foram meus anjos. Agradeço a Deus pela vida dos médicos, enfermeiros, amigos, familiares e todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para o meu bem (Eliane, 22 abr. 2015). A minha relação de fé é de entrega total à vontade de Deus, pois sei que Ele sempre faz o melhor para nós. A nossa fé é construída desde quando somos pequeninos, pela apresentação que nossos pais fazem a Deus. No meu caso, fui apresentada por minha mãe, que além de mãe, é avó, pai, madrinha, tudo. Sua dedicação em me apresentar a Deus e a Nossa Senhora foi primordial para estabelecer a minha formação como pessoa e como cristã, o que me sustentou durante todo o tratamento, nas minhas angústias, tristezas, medos, dores e aflições. A entrega nas mãos do Senhor concretizou mais ainda tudo o que mainha me ensinou. “Nathália, em tudo temos que dar graças a Deus e se lançar nos Seus braços para que seja feita a vontade d´Ele e não a nossa. É crer para ver” (Nathália Tereza, 22 abr. 2015). Para além do próprio umbigo A mesma garra que levou as Mulheres Guerreiras de Palmares à superação dos seus limites na luta contra o câncer não permitiu que ficassem instaladas numa atitude individual e estéril. Deram-se as mãos e olharam além das fronteiras dos seus próprios desafios. Partiram para uma ação coletiva mais ousada. Unidas, foram procurar aquelas que enfrentavam obstáculos semelhantes aos que tiveram que vencer para oferecer uma mão amiga, um abraço acolhedor, uma palavra de conforto e a partilha de conhecimentos e experiências adquiridas. Formado o grupo, o olhar se estende inevitavelmente a horizontes mais vastos: outros grupos, a cidade inteira, como narrou Solange Miranda, uma das fundadoras e coordenadoras do grupo: Surgiu, em 30 de outubro de 2013, o Grupo Mulheres Guerreiras. Guerreiras, corajosas, sem medo de dizer o que pensam e o que fazem. Guerreiras que enfrentaram o câncer, colocando a cara na rua, afastando a depressão e levantando a autoestima das mulheres palmarenses e da região, incentivando a campanha de prevenção. No primeiro semestre de 2014, começamos uma campanha de doações de cabelo para o IMIP e o Hospital do Câncer, realizada nos meses de março e abril, em Palmares, com entrega no mês de maio a essas duas instituições. Naquele período, fizemos uma rifa para arrecadar fundos para a segunda caminhada. Partimos para o comércio de Palmares pedindo colaboração na compra de talões ou doação de prêmios para sortearmos. Isto foi em junho de 2014, já com a participação de mais ou menos quinze guerreiras no grupo. Assim, partimos para a 2ª Caminhada do Outubro Rosa. Cinco mil pessoas na rua entenderam o nosso chamamento, nossa luta, nossa coragem de enfrentar a doença. O sentido passou a ser a superação e a forma de encarar os fatos sem preconceito. Estamos convertendo o câncer numa doença passível de controle e de equilíbrio, informando às pessoas que prevenir é a coisa mais certa a fazer. 418 Vivemos a emoção de passar para as pessoas que estamos mudando o jeito de pensar, o comportamento, em dizer que não é o fim de tudo. Neste ano de 2015, estamos partindo para a 3ª Caminhada Outubro Rosa, com o lançamento do livro Com a Cara na Rua (Solange, 22 abr. 2015). A atual luta do grupo é conseguir implantar em Palmares um centro de oncologia que atenda a Mata Sul de Pernambuco e a Mata Norte de Alagoas. Considerações Com a Cara na Rua é um livro que expõe, de modo vigoroso e real, o relato de superação e vitória de mulheres que decidiram ser protagonistas de suas próprias histórias e escrevê-las de próprio punho. Os textos evidenciam a singularidade do caminho percorrido por cada uma a partir do impacto do diagnóstico de câncer. Em suas narrativas despretensiosas e singelas, vão debulhando suas histórias uma a uma, como numa conversa ao pé do ouvido. Elas resgatam memórias preciosas de um percurso marcado pela coragem de enfrentar os próprios medos, o preconceito, a escassez de recursos e da assistência adequada que por direito lhes deveria ser garantida pelo Estado. Na gana de ultrapassar temores e tremores, incógnitas e aridez das estradas, um fio condutor invisível vai conectando e iluminando todas as labutas. A trama se compõe diante dos nossos olhos na combinação de quatro elementos que se entrelaçam num movimento de rara beleza: a fé – foco dessa comunicação –, a família, os profissionais da saúde e os amigos. Em todos os depoimentos, as mulheres fazem referências aos profissionais da saúde que as acompanharam e continuam dando as devidas assistências, como anjos enviados por Deus para que possam enfrentar as adversidades que seus estados clínicos impõem. Que venha o Centro de Oncologia dos Palmares! Benditas mulheres que nos ensinam a continuar acreditando no valor da vida! Referências 419 ARAGÃO, Gilbraz. Do transdisciplinar ao transreligioso. In: TEPEDINO, Ana Maria; ROCHA, Alessandro (Orgs.). A teia do conhecimento: fé, ciência e transdisciplinaridade. São Paulo: Paulinas, 2009. ARAÚJO, Ana Cláudia Valentino de. Depoimento escrito. Pesquisadora: Jussara Rocha Kouryh, 22 abr. 2015. CORREIA JÚNIOR, João Luiz; SOARES, Sebastião espiritualidade de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2016. A. Gameleira. A FRAGOSO, Janeide de Albiquerque. Depoimento escrito. Pesquisadora: Jussara Rocha Kouryh, 22 abr. 2015. GAMO, Lúcia Maria. Depoimento escrito. Pesquisadora: Jussara Rocha Kouryh, 22 abr. 2015. GOMES, Nathália Tereza de Gois Carvalho. Depoimento escrito. Pesquisadora: Jussara Rocha Kouryh, 22 abr. 2015. KOURYH, Jussara Rocha; PINA, Miriam (Org.). Com a cara na rua. Recife: edição dos organizadores, 2015. MIRANDA, Solange. Depoimento escrito. Pesquisadora: Jussara Rocha Kouryh, 22 abr. 2015. PREREIRA, Eliane Conceição de Melo. Depoimento escrito. Pesquisadora: Jussara Rocha Kouryh, 22 abr. 2015. SANTOS, Alcinea Rozendo dos. Depoimento escrito. Pesquisadora: Jussara Rocha Kouryh, 22 abr..2015. ___________________________________________________________________ GT 13 NUANCES DA PAISAGEM RELIGIOSA DA MODERNIDADE TARDIA: INOVAÇÕES, EXPERIMENTAÇÕES E NOVOS ARRANJOS RELIGIOSOS NO BRASIL Coordenadores: Prof. Dr. Flávio Munhoz Sofiati/ FCS-UFG Prof. Ms. João Paulo P. Silveira/UEG-Iporá Ementa: Vinculado ao Núcleo de Estudos da Religião “Carlos Rodrigues Brandão” (NER-UFG), o presente Grupo de Trabalho busca explorar as particularidades da paisagem religiosa tendo como chave compreensiva a relação dialética entre o fenômeno religioso e os aspectos constituintes da modernidade tardia (DAWSON, 2006). Partindo do pressuposto de que a teoria da secularização em sua forma clássica está assentada em uma imagem de mundo eurocêntrica incapaz de desvelar a realidade sociorreligiosa do Brasil, o GT assume que o fenômeno 420 religioso é dotado do ímpeto contemporizador capaz de oferecer narrativas de mundo que estão em afinidade com os anseios, demandas e temores que definem a realidade cotidiana de mulheres e homens da contemporaneidade. Nesse sentido, as espiritualidades modernas, os novos movimentos religiosos e também as novas dinâmicas do Pentecostalismo e do Catolicismo que imbricam tradição e inovação evidenciam a capacidade das religiões em acomodarem seus conteúdos às nuances constitutivas de uma realidade social complexa, especializada e plural que é marcada pelo “imperativo voluntário” que interpela os sujeitos como indivíduos autores de seu próprio destino religioso (BERGER, 2007). Com base nisso, os trabalhos apresentados no presente GT comportam temas que consideram os seguintes aspectos da paisagem religiosa contemporânea brasileira: espiritualidades terapêuticas, bricolagem e errância religiosa, eco-espiritualidades, neotradicionalismos, juventude religiosa e novas religiões. Comunicações: 1. MEMÓRIA DAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE: ESPAÇO DE FORMAÇÃO DA JUVENTUDE NA DÉCADA DE 1980 Nome: Marilene Nascimento da Silva Titulação: Mestranda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Nome: Aldimar Jacinto Duarte Titulação: Doutor Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: Este texto apresenta resultados parciais de uma pesquisa de mestrado em andamento vinculada ao programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Tem como objeto de estudo a História e a Memória das Comunidades Eclesiais de Base na década de 1980 em dois municípios do Estado de Goiás (Sanclerlândia e Goiânia). Analisa o papel das CEBs na formação de lideranças jovens e busca compreender o seu caráter educativo referenciado na Educação Popular. O estudo parte da análise de documentos institucionais e materiais impressos que fundamentaram as ações da Igreja e sua perspectiva formativa em relação aos jovens das periferias da cidade e do campo. Pretende compreender as origens históricas das CEBs no Brasil e suas intenções em se constituir em uma nova opção de organização da Igreja e a sua relação com as organizações e movimentos sociais do campo e da cidade. Pretende ainda compreender se tais comunidades buscavam, ou não, contribuir de forma significativa na formação de sujeitos críticos e na transformação da realidade social, por meio da reflexão do cotidiano do sujeitos: na família, no trabalho, na escola, na política, na cultura, nos movimentos populares e sindicais, nos meios de comunicação, entre outros. Palavras Chaves: CEBs, Memória, Juventudes. 421 O presente trabalho cujo objeto de estudo é a História e Memória das Comunidades Eclesiais de Base na década de 1980 tem como objetivo: investigar o papel formativo das Comunidade Eclesiais de Base (CEBs), para as lideranças jovens, buscando compreender o seu caráter educativo visando analisar em que medida elas contribuíram para a transformação social. De acordo com Borges (2013) as CEBs fundamentaram seus trabalhos de educação popular por intermédio da evangelização crítica, considerando a Assembleia de Puebla (1979) e a história de fé do povo Latino-americano (p. 77). Portanto, compreende-se que as CEBs propunham renovar a forma de organização da Igreja, postulando que os leigos tivessem acesso ao Evangelho, com o intuito do catolicismo popular assumir uma função libertadora, na medida em que elas exercitariam um papel de mobilização popular. Esse trabalho vincula-se ao subprojeto - Juventude e memórias o qual tem a finalidade de investigar o papel das CEBs no processo de formação de jovens da periferia de Goiânia entre as décadas de 1980 e 1990. Vincula-se também ao projeto mais abrangente que tem por foco a criação de um Centro de Memória, Documentação e Referência em Educação de Jovens e Adultos (EJA), Educação Popular e Movimentos Sociais para a Região Centro Oeste, denominado Centro Memória Viva que tem como objetivo geral localizar, identificar, preservar o que produziu a educação popular, a educação de jovens e adultos e os movimentos sociais em Goiás, entre o período de 1960 a 2010, com vistas a divulgar e disponibilizar no museu virtual o acervo ao público especializado para consulta e pesquisa. Nessa perspectiva, analisamos as experiências formativas das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na décadade1980 em dois territórios distintos: Diocese de Goiás, em especial no município de Sanclerlândia e, Arquidiocese de Goiânia, expressado nos bairros da periferia desta cidade. Buscou-se compreender o caráter educativo destas Comunidades e, em que medida elas contribuíram na formação de lideranças dos setores populares, tanto do campo como da periferia da capital Goiânia no sentido de implementar ações que buscassem a transformação social. Este estudo compreende duas unidades. A primeira aborda, sinteticamente, a origem histórica das CEBs no Brasil, na tentativa de reconstituir uma parte da 422 história desse processo experimentado por seus membros a partir da década de 1950 e apresentando suas intenções em se constituírem em uma nova opção de organização da Igreja Católica, voltada para os estratos sociais mais pobres. Nessa abordagem, explicitam-se, também, a definição de CEBs e a participação dos leigos na Igreja a partir de sua organização procurando envolver-se no processo de democratização social e entre eles a reivindicação das melhorias nas comunidades e nos bairros, a tomada de consciência da situação social e política, a transformação da sociedade inspiradas no método "Paulo Freire" de alfabetização de adultos entre outros, mediante ao acesso ao Evangelho, com o intuito do catolicismo popular assumir uma função libertadora, na medida em que elas exercitariam um papel de forte mobilização popular (ligação fé e vida). A segunda unidade procura descrever a atuação das CEBs e o processo de transformação da realidade social de comunidades populares, considerando os aspectos da Memória da educação popular do município de Sanclerlândia nos anos 1968-1989, a Situação e Perspectiva dos Movimentos Populares em Goiânia na luta por melhoria das condições vida nos bairros da periferia desta cidade. Por fim, tecemos algumas considerações que não tem como objetivo concluir tal análise, mas sim, de relacionar alguns aspectos teóricos e empíricos que compuseram este estudo. Considera-se o presente estudo importante na medida em que ele pode contribuir para a compreensão dos processos de ensino e aprendizagem que ocorrem mesmo fora da escola formal: Educação de Jovens e Adultos (EJA), Educação Popular, Movimentos Sociais entre outros. Além disso, tal estudo vem contribuir em minha formação acadêmica na medida em que me proporcionará uma melhor compreensão sobre a organização da população e as transformações das condições cotidianas para a reivindicação de direitos em seus territórios. A definição de CEBs a partir de sua organização As comunidades eclesiais de base (CEBs) são definidas como um pequeno grupo de pessoas que regularmente se reúnem para a leitura da Bíblia, confrontando-se com a própria vida, e, postulando transformações das condições cotidianas dos agentes envolvidos. Elas se caracterizam como comunidades na 423 medida em que reúnem pessoas que se propõem comungarem da mesma fé e que se unem por laços de solidariedade e de compromisso de vida. São eclesiais porque constituídas de cristãos e cristãs que se reúnem em razão de sua fé e em comunhão com a igreja universal (entendida aqui como “geral” sob a autoridade suprema do papa). São de base porque são integradas por pessoas das camadas populares. Da conjunção destes três termos (comunidades-eclesiais-de-base) clarifica-se o significado desse novo modo de ser igreja onde os leigos, os pobres, os sem vez e sem voz encontrariam seu espaço para se encontrarem, ler e meditar a Bíblia, cantar, dançar e se confraternizarem, confrontando-a com a própria vida e com tudo o que ela comporta. Tal afirmação é reforçada por Teixeira (1988, p. 299) quando diz que: As comunidades eclesiais de base expressam o amor preferencial pelo povo simples [...]. A comunidade eclesial de base é o lugar [...] de comunhão e participação. Enquanto eclesiais, o dinamismo da fé, esperança e caridade, o aprofundamento da palavra de Deus, a participação na eucaristia e a comunhão com os pastores da igreja particular conferem [...] uma maior participação no processo de libertação da sociedade. A conduta social é parte integrante do seguimento de Jesus Cristo. Nascidas de um processo dinâmico e do cotidiano das pessoas, as CEBs se fundamentavam na participação dos setores e movimentos populares vinculados à Igreja Católica, tais como a Ação Católica, enquanto conjunto de movimentos, dos quais visavam ampliar sua influência, através da inclusão de setores específicos do laicado e do fortalecimento da fé religiosa, com base no Movimento de Educação de Base (MEB)144 Estes movimentos (AC e MEB) pretendiam lançar os fundamentos de uma compreensão crítica da leitura da Bíblia e da incidência da fé na história e criariam o ambiente de uma atuação crítica dos cristãos no interior da Igreja Católica e da sociedade como um todo, apontando para aspectos importantes que prenunciariam e antecipariam temáticas que emergiram com a Teologia da Libertação145 e foram legitimadas pelo Concílio Vaticano II146 (Vat.II) e as e as Criado em 1961, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), para desenvolver um programa de educação de base por meio de escolas radiofônicas. Sua criação foi prestigiada pela Presidência da República e sua execução apoiada por vários ministérios e órgãos federais e estaduais, mediante financiamento e cessão de funcionários. Foi prevista também importante colaboração do Ministério de Viação e Obras Públicas, responsável pela concessão dos canais de radiodifusão, visando agilizar os processos de criação e ampliação de emissoras católicas. 144 Movimento [...] que interpretam os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação de injustas condições econômicas, políticas ou sociais. Foi iniciada dentro da Igreja Católica, na América Latina nos anos 1950-1960, pelo padre Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon 145 424 Conferências Episcopais Latino Americanas de Medellín (1968)147 e Puebla (1979)148, das quais propunham uma caminhada de libertação (Medellín), e, comunhão e participação (Puebla). Tais propostas tinham o intuito de aproximar a Igreja da sociedade. Para isso, alguns movimentos procuraram encontrar respostas e engajamento eclesial aos problemas sociais. A América Latina enquanto realidade de miséria, subdesenvolvimento e subordinação se constituiria o local concreto da Igreja para a aplicação profética da ação sócio política, embora não comungada por todos os setores, tanto por parte da hierarquia quanto do laicato, pois ainda se vivia uma reprodução do modelo da Igreja europeia, em seu modo de organização, em suas questões teológicas e em suas propostas pastorais. Não foi somente o Vaticano II, mas conjugadas a ele, foram às circunstâncias concretas em que vivia a América Latina que levaram a Igreja a definir sua identidade: uma "Igreja social", uma igreja profética, uma Igreja libertadora e dos pobres. Na opção preferencial pelos pobres apontada por Puebla (1979) e na perspectiva de Medellín, propunha-se a retomada da necessidade de conversão de todos os membros da Igreja Católica para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação e junto a ela, a opção preferencial pelos jovens. Para isso, na Conferência os participantes se propuseram em: [...] oferecer uma linha pastoral global capaz de proporcionar o desenvolvimento de uma pastoral da juventude que levasse em conta a realidade social dos jovens, atendendo ao aprofundamento e crescimento da fé para a comunhão com Deus e as pessoas, orientando a opção Sobrino [...].acesso em pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_Libertaçãopt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_Libertação 29/05/14 Concílio Ecumênico da Igreja Católica, convocado no dia 25 de Dezembro de 1961, através da bula papal "Humanae salutis", pelo Papa João XXIII, terminando no dia 8 de dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo VI e realizado em 4 sessões. 146 Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizada em Medellín, na Colômbia no período de 24 de agosto a 6 de setembro de 1968, convocada pelo Papa Paulo VI para aplicar os ensinamentos do Concílio Vaticano II às necessidades da Igreja presente na América Latina. A temática proposta foi “A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II”. A abertura da Conferência foi feita pelo próprio Papa que marcou a primeira visita de um pontífice à América Latina. 147 Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizada em Puebla de los Angeles no México, no período de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. Nela fez-se opção preferencial pelos pobres apontada por Medellín, e consequentemente pela juventude. 148 425 vocacional e oferecendo elementos para se converterem em fatores de transformação e participação ativa na Igreja e na transformação da sociedade [PUEBLA, 1979, p. 317]. As CEBs, em sua dinâmica de organização, se propunham a ser um lugar de inclusão e de vivência do Evangelho, e, um espaço aberto de reflexão no qual a população pudesse realizar a sua mudança, também, internamente. Era uma tentativa de aproximação que nunca antes houve entre o povo e os eclesiásticos. Medellín (1968), então, oportunizaria o crescimento de uma igreja popular. No período de censura e repressão política149 a Igreja Católica assinalaria sua multiplicação e fortalecimento, e, expandiria as experiências a partir de uma maior articulação entre as comunidades, que antes, se encontravam isoladas no interior de paróquias ou dioceses. Tais prioridades pastorais exigiriam maior compromisso à luz do Evangelho a fim de delinear a dinâmica da fé e vida, o que despontaria num novo rosto eclesial o qual se comprometeria em colaborar para que a população descobrisse as causas da opressão. A experiência das CEBs fundamentar-se-ia no ideal e na prática de Jesus, um líder judeu que viveu na Palestina, sob o poder do Império Romano, cujos registros históricos mais difundidos teriam sido produzidos pelos seus seguidores e encontrase em forma literária de Evangelho (Mateus, Marcos, Lucas e João) com objetivos pastorais e doutrinários e que teriam sido levados adiante pelas comunidades nascidas após a sua morte, ressurreição e ascensão com o mandato missionário: “vão, portanto, e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos [...]” (Mt 28, 19). Para o teólogo Frei Carlos Mesters a espiritualidade das CEBs lançaria suas raízes na tradição bíblica. Mas este enraizamento se faria de modo criativo, “olhando a vida com a Bíblia nos olhos e olhando a Bíblia com a vida nos olhos. A vida que ilumina a Bíblia é iluminada pela Bíblia”. Na verdade, é uma ressonância do Sl 119, 105 “Tua palavra é lâmpada para os meus pés, Senhor, e luz para o meu caminho”. “A Bíblia lida pelo povo pobre, liga a Bíblia com a vida: Um olho na vida e outro olho na Bíblia” (Texto Base do 11º Interclesial das CEBs, p. 31). 149 Ditadura Militar (1964-1985) 426 Essa explicativa teológica não se restringiria a obras assistencialistas, mas se caracterizaria enquanto uma práxis150, que envolveria a conscientização políticosocial, fé-evangelizadora e ação libertadora do povo. Tais princípios foram postulados sinteticamente no chamado no método ver-jugar-agir, pensamento base das articulações das CEBs, formação pastoral, e lema dos Encontros Intereclesiais. Tendo este último como finalidade partilhar as experiências, a vida, e as reflexões das CEBs. Conforme Queiroz (1985), a multiplicação das CEBs no Brasil e a intensidade do seu engajamento tornou-se o campo mais fértil para germinar e robustecer os movimentos populares. A fé, que animaria as comunidades, incentivariam os cristãos das classes subalternas a se unirem para defender e promover os direitos básicos do povo pobre. “Dessa urgência, à luz do Evangelho, nascem os movimentos populares ligados as CEBs” [p. 78]. Por serem formadas pelas camadas mais simples da sociedade, as CEBs proclamariam o seu compromisso com os mais pobres. O pobre nas CEBs teriam a possibilidade de ser visto não como problema, mas como solução, sujeito ativo no processo de construção de uma nova sociedade, mais justa, fraterna e solidária. A Educação Popular e a sua contribuição para a formação de sujeitos Defini-se educação popular como um movimento educativo que surge em torno das ideias de Paulo Freire a partir dos anos 1960 o qual propunha inspirar reflexões e práticas aos educadores de base, professores, animadores culturais, militantes sociais, organizações civis entre outros. Esse movimento caracteriza-se como educação na medida em que suas práticas pedagogias e metodológicas se constituem em opção ética e de transformação, a partir de políticas alternativas as quais dialogam com outros paradigmas críticos visando à dimensão pedagógica como um campo de dispositivo de saber e poder. Para Berlanga, 2010 (apud ESTEBAN, 2013), a Educação Popular “guarda estreita relação com outras correntes e movimentos afins, como a teologia da libertação [...], a perspectiva de 150 Termo utilizado por Marx para designar atividade humana prático-crítica, que nasce da relação entre o homem e a natureza. A natureza só adquire sentido para o homem à medida que é modificada por ele, para servir aos fins associados à satisfação das necessidades do gênero humano. 427 gênero, o movimento de mulheres, a pesquisa-ação participativa, o ambientalismo popular e o desenvolvimento alternativo” (p. 19). Outro estudo intitulado “Educação popular e movimentos sociais.” Cujo objetivo é resgatar alguns elementos sobre o papel da educação popular na constituição de sujeitos sociopolíticos, especialmente junto aos movimentos sociais, nos aponta que a preocupação com a questão do sujeito se dá mediante a sua importância frente ao processo de mudanças e transformação social e da confusão ao redor do termo utilizado em diferentes concepções e significados, de agente social para ator social. Tal argumento se justifica conferindo ao sujeito protagonismo e ativismo os quais passam de atores sociais, políticos e culturais, em agentes conscientes de seu tempo, de sua história, de sua identidade, de seu papel como ser humano, político, social. Diante isso, afirma-se que: O sujeito é reconhecido – objetivamente, e se reconhece – subjetivamente, como membro de uma classe, de uma etnia, parte de um gênero, uma nacionalidade e, muitas vezes de uma religião, culto ou crença. Os sujeitos se constituem no processo de interação com outros sujeitos, em instituições, privadas e públicas estatais ou não (GOHN, 2013, p. 33). A educação enquanto ato educativo de conhecimento e prática de liberdade, descrita em uma das obras de Paulo Freire, é, antes de tudo, conscientização. Nela, a educação é pensada como um ato político, um ato de conhecimento e um ato criador. Sua matriz é a realidade concreta, que precisa, por meio de um processo e da ação dos educadores, ser transformada, tornando-se-a libertadora. Para isso, constatam-se em relatos que o trabalho educativo de formação de sujeitos gerou iniciativas populares as quais contribuíram para a organização das massas populares, sobretudo nos espaços urbanos. Verifica-se: “bibliotecas populares, grupos de teatro [...], cursos de formação em centros populares e operários, boletins [...] mídias alternativas, músicas e concurso populares” (GOHN, 2013, vide 1997a, p. 36). Neste cenário, a Educação Popular, era vista como parte integrante do processo organizativo das classes e camadas populares, desenvolvida pela Igreja Católica e por outras entidades, aos quais deram origem a vários grupos entre eles, os Sindicatos. Seus objetivos principais nos anos 1979, segundo Torres, 1994 (apud GOHN, 2013) eram: [d] esenvolver nas classes mais desfavorecidas da sociedade algumas capacidades que foram consideradas necessárias para a sobrevivência ou lhes ajudariam a viver de uma maneira produtiva – ou a sobreviver – dentro da ordem 428 social existente. [...] isso, inclui “alfabetização”, que obviamente tem uma dimensão mais política no sentido da pedagogia de Paulo Freire [...] que constitui uma preparação para uma ação política da população através de um programa de conscientização [...]. Nesse sentido [...], os movimentos de educação popular fazem parte de uma subversão discreta (e frequentemente aberta), que tem sido [...] confrontada na América Latina [...] com força e repressão [...]. O fracasso evidente de muitos programas de educação popular em alcançar sua meta final de organização, participação e conscientização dos despossuídos da América Latina [...] pode ser atribuída às intervenções violentas “externas” por parte do Estado – o exemplo clássico é o fim dos experimentos com o método Paulo Freire no Brasil e a repressão aos educadores populares após a queda de Goulart em 1964 (p. 251252 e 256) (p. 36). Para o educador Paulo Freire a lógica do mercado é oposta à lógica da liberdade, pois o mercado controla, ao passo que a lógica da liberdade desemboca em atos pedagógicos e democráticos, em sua essência. Isso possibilitaria legitimar de que a educação não pode se orientar pelos paradigmas das empresas, que dá destaque apenas à eficiência, à eficácia, e na relação custo-benefício. Ainda para o educador, o paradigma empresarial ignora o ser humano, tratando-o como simples agente econômico, buscando retirar da “pedagogia sua essência política, por isso ela é uma pedagogia da exclusão, oposta à pedagogia da esperança elaborada por Freire” (vide Freire, 1992; Gadotti, 1998, 116-118; e também Gentili, 1995). (p.3 REFERÊNCIAS A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Paulus, São Paulo, 1995. BORGES, Adão Donizete. Memória da Educação Popular nas CEBs no Município de Sanclerlândia de 1968 – 1980. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2013. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. Petrópolis, Vozes. 1986. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Coleção primeiros passos; 38). CARRILLO, Alfonso Torres. A Educação Popular como prática política e pedagógica emacipatória. In:______STRECK, Danilo R; ESTEBAN, Maria Terersa (Orgs.). Educação Popular: Lugar de construção social coletiva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. P. 15-47. FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? São Paulo: Paz e Terra, 2011. GOHN, Maria da Glória. Educação popular e movimentos sociais. In:______STRECK, Danilo R; ESTEBAN, Maria Teresa (Orgs.). Educação Popular: Lugar de construção social coletiva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. P. 33-47. 429 QUEIROZ, José J.A. Educação popular nas Comunidades Eclesiais de Base. São Paulo, 1985. Ed. Paulinas. TEIXEIRA, Faustino Luis Couto. A gênese das CEBs no Brasil: elementos explicativos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1988. ______COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE NO www.iserassessoria.org.br/novo/arqsupload/89.DOC (acesso: 08/04/14). BRASIL. Texto Base do 11º Intereclesial das CEBs: Espiritualidade Libertadora – Seguir Jesus no Compromisso dos excluídos. Belo Horizonte, O Lutador, 2004. UCG. Situação e perspectiva dos movimentos populares em Goiânia: Comunidades Eclesiais de Base – CEBS, Goiânia, S/D 430 2.PAISAGEM RELIGIOSA DOS PIRENEUS: NOVOS ARRANJOS Nome: Sirlene Alves da Silva Titulação: Especialista Instituição: Rede Estadual de Educação de Goiás – Diretora do CECCO Nome: João Guilherme Curado Titulação: Doutor Instituição: Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos, UEG, CECCO, Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte e Comissão Resumo: A Serra dos Pireneus com sua paisagem natural, cujo cume constituise de três picos, possui inúmeras relevâncias que se ampliam em escalas. Em tempos pretéritos já foi considerada uma das maiores altitudes do Brasil, o que foi desmistificado pela Comissão do Planalto Central do Brasil, que realizou naquela localidade os primeiros estudos e fotografias que registraram a beleza da paisagem local. Posteriormente foi implantada, a Festa da Santíssima Trindade que ocorre desde 1927 e que tinha o bispo Dom Emanuel Gomes como frequentador assíduo. Para a festa que acontece no plenilúnio de julho foram feitas algumas alterações, como alargamento da estrada, construção de duas capelas, uma no cume mais alto e outra no sopé do Pico dos Pireneus. Atualmente duas novas inserções festivas ocorrem ali: Pireneus Gospel e Novenas em Louvor à Santíssima Trindade, sendo esta última manifestação considerada um dos novos arranjos na paisagem dos Pireneus que propomos esboçar por meio de entrevistas realizadas com os pioneiros desta prática dotada de ecoespiritualidades, dos registros de campo realizados durante várias edições ocorridas em 2015 e também em 2016. Terra dos Pirineus A lua cheia Nos olhos meus A luz é calma Prata de mina Estrela Dalva Me ilumina (Fernando Perillo/Nasr Chaul) A primeira Constituição republicana brasileira designou a necessidade de se constituir a Comissão do Planalto Central do Brasil, que chegando a Pirenópolis em 1892, logo partiu em direção aos Pireneus, considerado, até então uma das elevações mais significativas do Brasil. Os primeiros registros fotográficos das paisagens dos Pireneus pertencem ao conjunto de estudos que ali foram realizados nos anos finais do século XIX, pelos integrantes da Comissão Cruls, uma homenagem ao belga que a conduziu. 431 No entanto, vale ressaltar que as paisagens dos Pireneus passaram a ser sistematicamente contempladas por um número maior de pessoas a partir de 1927, quando foi iniciada a Festa da Santíssima Trindade, realizada desde então a cada plenilúnio de julho e que em suas primeiras edições contava com o apoio e a presença do Arcebispo Dom Emanuel Gomes de Oliveira, amigo do Comendador Cristóvam José de Oliveira, o responsável pela introdução da festa nos Pireneus. Desde a primeira missa ali celebrada aos dias atuais, muitas modificações ocorreram para melhor abrigar os romeiros que para ali se dirigem, alterando a paisagem em benefício do bem estar dos peregrinos que escolheram aquele espaço para manifestar devoção à Santíssima Trindade. A estrada foi alargada possibilitando o tráfego de veículos que passam a locomover as pessoas, em substituição aos carros de bois e carroças do passado. A primeira missa no pico dos Pireneus foi celebrada a 19 de julho de 1927, pelo padre Santiago Uchoa (JAYME; JAIME, 2002), dando início à tradição da romaria ao morro que é seguida todos os anos por diversas famílias pirenopolinas, dentre elas a Oliveira, e por demais fiéis. Atualmente, o momento festivo é comemorado no final de semana mais próximo da lua cheia, iniciando com a realização de uma procissão com o andor da Santíssima Trindade que parte da igreja do Nosso Senhor do Bonfim em peregrinação rumo aos Pireneus com vários seguidores, na quinta-feira que antecede o ápice da festa. A transposição do percurso que ocorre ao entardecer mescla o fim da tarde com o início da noite, devoção e penitência, orações e confraternização ao longo do íngreme caminho. A chegada da procissão aos Pireneus é acompanhada por inúmeras pessoas que já se encontravam acampadas ali, e seguem para a abertura do tríduo, que constitui-se na reza do terço a cada noite, sendo o último após a missa realizada no cume mais alto dos Pireneus. No domingo pela manhã a missa é celebrada em outra capelinha situada em um espaço no sopé dos três picos. Após a missa um café ou almoço é servido pelo festeiro – aquele que conduz a festa a cada ano e que é escolhido por sorteio entre os nomes dos devotos que se dispõem a participar de tal processo de seleção. 432 Pireneus: paisagem religiosa Recorrendo à etimologia da palavra religião, nos deparamos com o re-ligare, que se constitui como uma busca quase sempre necessária ao ser humano no processo de compreensão de si enquanto sujeito e das forças que regem o universo. Assim sendo, partimos das compreensões de Eliade (2001), sobre o Imago Mundi, o centro, o local de hierofania, tão necessário e que se constitui, para a maioria das religiões, em um espaço que se diferencia por certa altitude. Destarte, os Pireneus se adéquam a esta premissa, pois seu cume está a 1385 metros em relação ao mar. Se as primeiras missas aconteciam tendo por suporte um altar improvisado no cume mais alto, para a sexta edição da romaria foi providenciada uma capelinha de madeira. Atualmente existe ali uma capela destinada à Santíssima Trindade e no sopé uma ermida à Nossa Senhora Abadia. Em estudos sobre as relações travadas entre espaço e religião, Rosendahl, que em alguns trabalhos segue o direcionamento traçado por Eliade, nos relembra que o impacto da religião na paisagem não está limitado somente às características visíveis, como locais de culto, apesar de esses mostrarem mais claramente formas e funções religiosas, mas se estende à experiências da fé que símbolos e mensagens nos fornecem, alguns inteligíveis somente aos que comungam a mesma fé (ROSENDAHL, 2010, p. 26). Com o advento da pluralidade religiosa no Brasil, mesmo em sociedades mais tradicionalistas como a pirenopolina, mudanças ocorreram e os Pireneus denota um espaço para manifestações de diversas religiões e religiosidades. A representatividade dos Pireneus é tão significativa que a antiga Meia Ponte teve seu nome alterado, por decreto estadual de 27 de fevereiro de 1890 (JAYME, 1971), para Pirenópolis: cidade dos Pireneus. Mesmo considerando o transcorrer do tempo e das gerações pirenopolinas, há de se relevar a ligação existente com os Pireneus, o que pode ser compreendido conforme a análise sobre o habitar, proposto por Claval, para quem “as pessoas têm uma reação emotiva diante dos lugares em que vivem, que percorrem regularmente ou que visitam eventualmente” (2010, p. 39). Atualmente as terras mais elevadas dos Pireneus constituem uma Área de Proteção Ambiental, o Parque Estadual dos Pirineus que desde a sua criação em 1987, não levou em consideração nem mesmo a toponímia do local, quanto mais as 433 manifestações que lá ocorrem ou ocorriam, impondo regras ao uso e dificultando a permanência dos que ali permaneciam acampados durante a semana da Festa do Morro, com popularmente é denominada a Festa da Santíssima Trindade nos Pireneus. Ao estudar os Pireneus, o padre e biólogo pirenopolino Josafá Carlos de Siqueira, indica o seguinte questionamento: “por que a região da Serra dos Pireneus é um ponto de integração entre o social, o ambiental e o religioso?” (2004, p. 41). Segue o autor apontando possíveis caminhos, ao propor refletir sobre esta questão usando os paradigmas atuais do pensamento ecológico, onde a compreensão do espaço geográfico se dá na integração dos vários processos sociais, geológicos, biológicos, ecossistêmicos e teológicos, todos interagindo num local específico, de tal modo que esse espaço passa a ser uma referência ou um ponto de convergência dinâmico (SIQUEIRA, 2004, p. 41). Os Pireneus se mostram bastante dinâmico, desde sua geomorfologia a um ecossistema que consegue congregar o social e o religioso diante do ambiente. A devoção manifesta ou não na materialidade, impetra em relação aos Pireneus paisagens de religiosidades, uma vez que há concordância de que o homem religioso sente necessidade de viver numa atmosfera impregnada do sagrado; é por essa razão que se elaboram técnicas de construção do sagrado. Esse trabalho humano de consagrar um espaço, essa necessidade de construir ritualmente o espaço sagrado, nos revela que o mundo é, para o homem religioso, um mundo sagrado (ROSENDAHL, 1996, p. 29-30). Pireneus: novos arranjos Algumas das ritualidades que acontecem nos Pireneus, em especial as mais recentes, constituem os novos arranjos que propomos e que buscamos perceber a partir de falas de participantes de diversas manifestações festivas por meio de entrevistas semiestruturadas que visaram colaborar com os registros de campo e com nossas vivências nos Pireneus. Ponderando que informações e observações se fundiam e se incorporavam; assim a opção foi por não utilizá-las como citações ou referências. Há aquiescência com o proposto por Carlos Rodrigues Brandão, para quem festas e rituais são falas. São mensagens ao mesmo tempo compreensíveis e cifradas. São meios fortemente carregados de simbologia e de afeto pelos quais as pessoas vivem, na celebração coletiva da cultura, o aprendizado de seu próprio modo de ser (2015, p. 68). 434 Compreender o que leva pessoas a se deslocarem em procissão da cidade para os Pireneus ou promoverem acampamentos durante o período da festa, participarem de missas por ocasião da Festa da Santíssima Trindade implica em devoção e/ou religiosidade. Manifestações que foram ampliadas com a incorporação do tríduo que se constitui em uma sequência de três terços que são rezados nos principais dias da festa, iniciando na quinta-feira com a chegada da procissão e finalizando no sábado, junto com o último terço da novena. A novena à Santíssima Trindade é outro arranjo que compõe a paisagem festiva dos Pireneus. Instituída como continuidade e possibilidade de contemplação, se estende entre os meses de novembro a julho, tendo por referência as luas cheias, quando os romeiros se deslocam aos Pireneus para rezar um terço na capela aos pés dos três picos que simbolizam, cada um deles: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Com programação impressa, a novena à Santíssima Trindade nos Pireneus, reúne poucas pessoas que se mobilizam nos deslocamentos e na produção de acepipes, como são chamados os “comes e bebes”, servidos comunitariamente após a reza do terço. A região que abarca as paisagens dos Pireneus já foi contemplada por acontecimentos que incluem grupos de pessoas de diferentes religiões em um passado recente, deixando de ocorrer após a implantação do Parque. A igreja Fonte da Vida promoveu por breve tempo um evento denominado Pireneus Gospel, que foi o encontro de evangélicos nos Pireneus para louvor. Havia acampamentos e passavam ali reunidos durante um fim de semana a cada ano, também seguindo o calendário lunar, mas a partir da implantação do Parque optaram por fazer os retiros espirituais em outras localidades como fazendas. Em 2010 um grupo de jovens da igreja católica criou outra manifestação que direciona grande quantidade de pessoas em direção ao Morro dos Pireneus, é a caminhada do “Segue-me”. Esta peregrinação é organizada pelos dirigentes do grupo e a cada ano durante o período da quaresma, com o objetivo de praticar penitências e encenar a Via-Sacra durante o transcurso que se inicia na porta da Igreja Matriz, percorre dezoito quilômetros até a Capela de Nossa Senhora D’Abadia aos pés dos Pireneus. Ao término dos momentos de orações/contemplações, almoçam e retornam para a cidade utilizando-se de meios de transportes. 435 Considerações Finais A presença de características tão peculiares da região dos Pireneus, manifestas na natureza, em especial pela vegetação do Bioma Cerrado e por um relevo formado por elevações e por rochas milenares que emolduram a exuberância do pôr do sol e do nascer da lua, tornam a paisagem local um atrativo para contemplação e elevação espiritual e de religiosidades. A Festa do Morro com todas as atividades que inclui, tem para seus participantes uma simbologia muito marcante, uma vez que o ambiente, o social e o religioso possibilitam a constituição de um verdadeiro santuário que proporciona aos frequentadores do local um bem estar físico e mental. Referências BRANDÃO, Carlos Rodrigues. De um lado e do outro do mar: festas populares que uma origem comum aproxima e que um oceano e um cerrado separam. In: OLIVEIRA, Maria de Fátima [et al.]. Festas, religiosidades e saberes do Cerrado. Anápolis: Ed. UEG, 2015. pp. 25-72. CLAVAL, Paul. Terra dos homens: a geografia. Trad. Domitila Madureira. São Paulo: Contexto, 2010. 143p. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 191p. JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. 624p. JAYME, Jarbas; JAIME, José Sisenando. Casas de Pirenópolis: Casas de Deus e Casas dos Mortos. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2002. 122p. PERILLO, Fernando; NARS, Chaul. Terra dos Pirineus. In: PERILLO, Fernando. Amores. Goiânia: Anhanguera Discos, 2003. CD, faixa 6 ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ/NEPEC, 1996. 92p. ROSENDAHL, Zeny. Conferência NEPEC: local onde fluem as ideias e as escrevem sobre elas. In: ROSENDAHL, Zeny (Org.). Trilhas do sagrado. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010. p.11-34. SIQUEIRA, Josafá Carlos de. Pirenópolis: identidade territorial e biodiversidade. Rio de Janeiro: Loyola, 2004. 77p. 436 3. LIDANDO COM OS CICLOS: A CATÁBASE MÍTICA NA PRÁTICA TERAPÊUTICA EM NATUROLOGIA Nome: Ana Luisa Prosperi Leite Titulação: Mestranda/ Bolsista da CAPES Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Resumo: A Naturologia, profissão neófita na área da saúde que opera com terapias complementares conta com uma identidade arraigada aos princípios da Nova Era, conforme demonstram Stern (2015) e Teixeira (2013). No contexto novaerista tem-se como premissa a ideia de um equilíbrio primordial perdido entre individuo e natureza que resultou no adoecimento do todo. Uma vida saudável sob esta perspectiva supõe, dentre outros atributos, a busca por uma relação harmônica com a natureza e seus ciclos. Com isto em mente, esta comunicação propõe pensar o tema mítico da catábase como meio terapêutico, posto que a mensagem contida em suas narrativas vai ao encontro de um dos principais anseios observados no espaço terapêutico: a dificuldade do individuo em lidar com os términos (ciclos) inerentes à vida. Palavras-chave: Naturologia; Nova Era; Novas Espiritualidades; Mitos. As seguintes reflexões foram elaboradas a partir de um recorte do artigo “Narrativas mitológicas sobre processos de morte simbólica” (LEITE; WEDEKIN, 2015) e pautam-se na comunicação entre mito e saúde na contemporaneidade. Tem-se como cenário o contexto novaerista que deu base ao surgimento de uma nova profissão na área da saúde, a Naturologia. Sob a perspectiva naturológica a compreensão e aceitação dos ciclos que perpassam a vida são elementos fundamentais para o alcance de uma saúde integral. Pretende-se nesta pesquisa pensar aproximações entre o tema do término e as narrativas de catábase mítica no âmbito terapêutico em Naturologia, a partir de uma breve revisão bibliográfica que contemple estes objetos. A narrativa mítica em naturologia A Naturologia surgiu no Brasil na década de 1990 com a criação de um bacharelado na área da saúde que propôs o diálogo entre diferentes correntes de conhecimento, amparando-se em fundamentos da medicina ocidental contemporânea, saberes e terapêuticas provenientes de medicinas tradicionais e conhecimentos oriundos de diversas linhas da psicologia a partir de um panorama holístico (TEIXEIRA, 2013). Como área herdeira da Nova Era, a Naturologia dá continuidade a algumas 437 perspectivas naturais ao movimento no que tange à relação com a saúde: a crise é vista como uma oportunidade de transformação, saúde se relaciona ao equilíbrio entre corpo, mente e espirito, e a cura implica na busca pessoal do individuo por este equilíbrio (LEITE; WEDEKIN, 2015). Ainda que as similaridades com os preceitos da Nova Era sejam bastante evidentes, somente há pouco pesquisadores naturólogos passaram a debater e produzir sobre o tema. Como pontuado por Stern (2015a; 2015b), da criação da Naturologia aos momentos atuais é possível observar que o curso passou por três fases, cada qual norteada por tendências díspares. Se na primeira fase a perspectiva cultural da Nova Era foi mais marcante, a segunda caracterizou-se pela dominância de um caráter biologicista que suprimiu discussões ligadas à espiritualidade e religião, isto com o intuito de não gerar discussões acerca de uma possível não-cientificidade do meio (RODRIGUES, et al, 2012; STERN, 2015b; TEIXEIRA, 2013). A fase corrente evidencia a continuidade no âmbito das pesquisas cientificas, sobretudo com um olhar mais crítico em relação à abordagem biologicista e buscando maior respaldo nas ciências humanas quando temas que envolvem o metaempírico são levantados (STERN, 2015a). No campo novaerista é comum a ocorrência da chamada psicologização da saúde, onde compreende-se que os sintomas advindos de uma doença indicam questões internas que precisam ser trabalhadas pelo individuo para que este possa ser curado; a supressão dos sintomas sem que haja o entendimento daquele processo resultaria na volta do desequilíbrio até que este torne-se consciente e plenamente trabalhado pelo enfermo. Infere-se desta maneira que saúde e autoconhecimento são conceitos inseparáveis (AMARAL, 2000; HANEGRAAFF, 1998), compreensão essa que é igualmente compartilhada na Naturologia. Desde o primeiro projeto pedagógico do curso constam diversas disciplinas voltadas à psicologia, das quais nos interessa aqui destacar a cadeira de arteterapia, por ser aquela pela qual o naturólogo elabora seu entendimento e prática acerca dos mitos em terapia. A arteterapia supõe o processo criativo como via para a reconciliação de conflitos emocionais, bem como de facilitador da auto-percepção e do desenvolvimento pessoal do individuo. A mitologia neste contexto é trabalhada como uma ferramenta de acesso aos conteúdos internos pessoais, ou, partindo dos pressupostos junguianos, uma expressão de potencialidades inerentes à todos os seres humanos (em referência 438 às conceituações de arquétipos e inconsciente coletivo). Esta última representa o viés pelo qual a mitologia é mais amplamente trabalhada em Naturologia. Conceitos como as funções do mito, elencadas por Campbell (2009) a partir da teoria junguiana arquetípica são também caras sob a perspectiva terapêutica, posto que o autor disserta sobre a mitologia como capaz de conduzir os humanos através dos vários estágios e fases da vida, relacionando-se diretamente às passagens inerentes à vivência humana. Ainda que pouco discutida no meio naturológico podemos elencar também a noção de eficácia simbólica a partir de Lévi-Strauss (2003) como recurso para a compreensão do trabalho com mitologia neste espaço. Grosso modo, o antropólogo discorre sobre como na cura xamânica (à qual ele tece estreitas proximidades com o método da psicanálise) a narrativa mítica conduzida pelo xamã oferta ao enfermo uma significação para suas dificuldades; o mito articula aquilo que encontrava-se desarticulado, expressa verbalmente o problema vivido fisiologicamente, e por dar forma ao que antes era incoerente, torna-se simbolicamente eficaz e conduz à cura. Todavia, dos mitos próprio ao sujeito e daqueles que são tomados de empréstimo da tradição (entre os quais acontecem trocas e interpenetrações constantes), é absorvido somente aquilo que é reconhecido pelo sujeito, seja consciente ou inconscientemente, sendo esta a via pela qual a função simbólica se realiza. Catábase O Mundo Inferior é um espaço mítico existente entre todos os povos, sendo usualmente descrito como o reino dos mortos, ou, na mitologia grega, o Hades. Catábase implica na descida à morada das sombras, e é enfatizada pela sua característica de metamorfosear aquele que a busca, como uma espécie de passagem. Como postula Eliade (2002), o impulso mítico caracteriza-se não somente pelo relato mítico, mas o poder da palavra se efetiva através dos rituais. O historiador relaciona os mitos catábasicos com os ritos iniciáticos das sociedades primitivas, nos quais eram exercidas praticas de rompimento bastante rigorosas que levavam o noviço à viver passagens que representam, segundo Souza (1988), a ultrapassagem de limites interiores e exteriores, impelindo-o a desprender-se de antigos vínculos, atitudes e padrões ligados à sua fase anterior. Eliade relata que à tais rituais seguia-se um 439 período de introspecção, referido pelo autor de regressus ad uterum, posto que representaria um retorno ao estado uterino, fazendo uma alusão ao processo de renascimento. No mito, este regresso pode ser traduzido pela entrada na caverna, pela passagem pelo labirinto, pela barriga da baleia ou ainda pela descida ao submundo, do qual faz-se a analogia ao confronto com a própria morte que levaria à transmutação da forma interna ou externa. É essencial ainda, quando pensamos em catábase, citar a pesquisa de Adolph Jensen (1949 apud ELIADE, 2013) à ilha de Cerem na Indonésia, em que este discerne a divindade-dema, muito comum à religião dos plantadores primitivos e semelhante ao mito de Deméter-Perséfone-Hécate; na área do Mediterrâneo Oriental à Cibele-Átis, Astarte-Adônis, Isis-Osiris; na Mesopotâmia, por Innana-Ishtar-Dumuzi (SOUZA, 2013). Grosso modo, o culto de uma divindade-dema é a renovada celebração do drama que institui a ordem presente no mundo em que se integrou o homem tal como existe hoje; consiste no assassínio da divindade e a respectiva transformação da mesma em alguma planta útil. Destarte, o surgimento destes mitos deu-se pela associação dos mistérios do nascimento, da morte e do renascimento com os ritmos da própria agricultura; reclama-se a “morte” da semente a fim de assegurar-lhe um novo nascimento, semelhante à assimilação da existência humana à vida vegetativa, onde o tema mítico dos deuses que morrem e ressuscitam figura-se entre os mais importantes (ELIADE, 2010). Para Souza (1988), a catábase é sempre uma situação liminar, na qual o “homem deste mundo” se desencontra com o “mundo deste homem”, ou seja, “eu já não sou o que fui, mas ainda não sou o que serei” (SOUZA, 1988, 26). O autor considera que inferno é uma das possíveis correlações entre homem e mundo, pois a catábase descreve a transcendência da experiência humana, que ocorre quando no limite de um mundo, se veja o liminar do outro. Souza (1988) expõe que catábase é sinal de conversão ou reversão, em todo caso de metamorfose. “De mundo em mundo, as portas vão se estreitando; e tão estreita é a última, que, por ela, só ‘eu’ posso sair sem ‘mim’; ‘eu’ a transponho, deixando-‘me’ para trás” (SOUZA, 1988, 28), processo esse, enfatiza o autor, realizado ritualisticamente pelos deuses e heróis ao empreenderem a busca de uma preciosidade que foi retira dos domínios da Habitação Inferior. 440 Conclusão Apesar de a impermanência ser uma condição inerente à existência humana seu sentido pouco é compartilhado na atualidade, sobretudo numa sociedade que já não é amparada pelos mitos que lhe confeririam essa compreensão. O encontro com as mortes que simbolizam a finitude das situações coloca o ser humano frente à sua fragilidade perante a vida, posto que na maior parte das civilizações contemporâneas a relação que se tem com a morte é de negação, conferindo à mesma o estigma de aniquilação e perda (LEITE; WEDEKIN, 2015). Especialistas151 na área de tanatologia elencam experiências como separações, situações-limite permeadas por dor e também momentos festivos que marcam a mudança de um período, como casamentos e saídas dos filhos da casa dos pais como circundadas pelo espectro da morte, visto que delimitam o fim de um período. A reação daquele que o vivencia muitas vezes aproxima-se a de um enlutado, exceto pelo fato de que o mesmo não se vê desta maneira e, sem o reconhecimento e o respaldo apropriado, pode evoluir de quadro em virtude de um sofrimento do qual se tem pouca consciência. Alvarenga (2007) exemplifica que para que o individuo aceite um processo de mudança profunda, é necessário que haja o abandono do estado de consciência estabelecido e este vivencie o polo da morte. Nesse ‘inferno’, a pessoa luta pelo seu modo de ser e ver a si mesma, descendo ao subterrâneo para superar o próprio ‘eu’, como dito por Eliade (2010) ao comparar as técnicas terapêuticas modernas ao padrão iniciático de morte e renascimento que remonta à ancestralidade. A partir de uma perspectiva em que natureza e saúde são conceitos imbrincados e onde, portanto, o estado de adoecimento refletiria uma desintegração entre a pessoa em sofrimento e a totalidade na qual se encerra a natureza, o adoecer é sempre referido como uma oportunidade de transformação para o naturólogo (TEIXEIRA, 2013). Se colocarmos que ‘a descida ao submundo’ interior é uma situação experienciada por todos os indivíduos em vida, a abordagem dessa experiência é certamente um tema de relevância para o tratamento terapêutico e vai ao encontro da noção de saúde incutida na Naturologia. Cabe por fim ressaltar que o acesso à tais conteúdos através da narrativa mítica podem ser pensados como uma possibilidade de ampliação no cuidado em saúde, especialmente quando ritualizados por meio das 151 BROMBERG; KÓVACS, 1996. 441 práticas integrativas que são utilizadas no atendimento em Naturologia, pois como exposto por Lévi-Strauss (2003), a carga simbólica dos atos concretos torna-os próprios para a constituição de uma linguagem, transformando-os em verdadeiros ritos que atravessam a tela da consciência. Referências ALVARENGA, Maria Zélia de (Coord.). Mitologia simbólica: estruturas da psique e regências míticas. 1. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000. BROMBERG, Maria Helena Pereira Franco; KOVÁCS, Maria Júlia. Vida e morte: laços de existência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 10. ed. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2005. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas, volume I: da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. LEITE, Ana Luisa P.; WEDEKIN, Luana M. Narrativas mitológicas sobre processos de morte simbólica. Último Andar. n. 25. P. 57-76, 2015. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. SOUZA, Eudoro de. Mitologia I: Mistérios e surgimento do mundo. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1988. SOUZA, Eudoro de. Catábases: Estudos sobre viagens ao Inferno na Antiguidade. São Paulo: Annablume Clássica, 2013. STERN, Fábio L. Uma abordagem preliminar sobre as concepções de “energia” pela Naturologia. In: V CONGRESSO ANPTECRE, 5., 2015a. Anais eletrônicos. Disponível em: <http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/5anptecre?dd99=anais/>. Acesso em: 20 jan. 2016. STERN, Fábio L. Naturologia e espiritualidade: indícios dos valores do movimento da Nova Era entre naturólogos formados no Brasil. 2015. 224 f. Dissertação (Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015b. HANEGRAAFF, Woulter. New Age religion and Western culture: esotericism in the mirror of secular thought, New York: State University, 1998. 442 RODRIGUES, Daniel Maurício de Oliveira (Org.); et al. Naturologia: diálogos e perspectivas. Palhoça: Unisul, 2012. TEIXEIRA, Diogo Virgilio. Integralidade, interagência e educação em saúde: uma etnografia da Naturologia. 2013. 112 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. 4. A RENOVAÇÃO CATÓLICO CARISMÁTICA: UM MOVIMENTO AUTÔNOMO? Nome: Brunna Dias Cardoso Titulação: Mestranda Instituição: Universidade Federal de Goiás Resumo: O presente texto busca compreender como o movimento da Renovação Católico Carismática incentiva o crescimento de organizações autônomas ao mesmo tempo que buscam manter os grupos em seu controle. Perpassando por um breve histórico do pentecostalismo católico, tem-se como objetivo compreender suas formas de evangelização. A princípio o “movimento” surgiu como um novo modo de ser igreja, mas que perpassa por um processo de redefinição de seus objetivos, como um meio e uma forma de legitimação, e como uma possibilidade de assegurar a sua sobrevivência, a partir da burocratização dos carismas, que se deu pela adaptação a hierarquia da Igreja Católica. Embora houve a burocratização e institucionalização dos carismas, ainda existe uma preocupação com os excessos dos movimentos, por parte da ala conservadora da Igreja, que considera ser um problema de formação litúrgica. Diversos autores argumentam que as raízes do pentecostalismo católico tiveram início a partir da busca de uma experiência de um grupo de alunos e professores universitários que estavam desejosos de receber o batismo do Espírito Santo. Prandi (1998) e Carranza (2000) coadunam ao argumentarem que esse momento foi vivenciado por pessoas do meio acadêmico e que professavam a fé cristã católica, dando o surgimento ao movimento, aproveitando o momento chamado fim de semana em Duquesne nos EUA que propiciou o que é atualmente a Renovação Católico Carismática no Brasil. Disseminando uma variedade de seminários, encontros e grupos de oração, objetivando a fundamentação da vida cristã nos dons emanados pelo Espírito Santo. O pentecostalismo afirma Carranza (2000), ser uma das três vertentes das divisões do Born Again, significando os renascidos, surgindo na década de sessenta, tendo suas origens nas igrejas evangélicas. Deste modo, o pentecostalismo católico partilhava características incomuns com o mesmo, principalmente o destaque no batismo do Espírito Santo. Já Ramos (2011) faz questão de acentuar que o 443 pentecostalismo católico foi consequência do Concílio Vaticano II, em contraposição a Teologia da Libertação (TL), que tinha como foco a política de auxílio para os pobres. Assim, Prandi (1998) atesta que tanto a RCC e a TL buscavam legitimar a paternidade do Concílio Vaticano II, embora seria impossível a convivência de ambas no mesmo espaço, justificativa dada devido a diferenciação nos objetivos de ambos os movimentos. Prova disto, foi o enfraquecimento da Teologia da Libertação no papado de João Paulo II, que se posicionava de forma negativa ao movimento, manifestando por meio de cartas aos Bispos Brasileiros. Deste modo, a Igreja popular passa a ser censurada e a RCC deslancha juntamente com o discurso de que é necessário uma despolitizar a Igreja. Na visão de Prandi (1998) a Santa Sé incentiva a expansão do Movimento Carismático, opondo-se as Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs). Desenvolvimento A RCC nasce nos Estados Unidos e chega ao Brasil, alastrando suas raízes antes outrora advinda da América, o Movimento nasce em uma universidade, fruto de insatisfação espiritual de um grupo que mantinha contato com protestantes. Deste modo, desejosos de renovação espiritual, Prandi (1998) atesta que dois jovens fundaram uma comunidade reunindo ambas denominações, funda-se as bases do movimento carismático, movimento de leigos. Chegando ao Brasil nos anos de 1960, trazido por padres jesuítas para Campinas-São Paulo. O movimento surge a partir de dois Padres, sendo assim, logo em seguida por motivos ideológicos, o mesmo se divide em dois grupos, um voltado para causas sociais e outro para expansão e estruturação do movimento. Carranza (2000) argumenta que Padre Haroldo mantinha características peculiares, enquanto Padre Eduardo mostrava um espírito empreendedor, possibilitando a expansão do movimento a partir dos meios de comunicação. Embora a RCC recebe seu impulso difusor com o lançamento do livro “Sereis Batizados no Espírito Santo” do Padre Haroldo, possibilitando a difusão do movimento e sua aceitação pela Conferência Nacional de Bispos no Brasil. Embora o Movimento Carismático tenha concretizado sua etapa fundacional, com a burocratização dos carismas. O movimento recebe legitimidade por meio do Vaticano II, possibilitando que o mesmo se espalhasse por todos continentes, tendo como base o aggiornamento. 444 Resultando posteriormente como afirma Carranza (2000) em uma diversidade de associações de leigos, que mantiveram o sucesso devido a solidão dos fiéis. Mantendo a fundamentação doutrinária e tradicional da Igreja e acrescentando as experiências subjetivas, o movimento tem influencias pentecostais evangélicas, embora mantenham características peculiares evangélicos. Carranza (2000) destaca elementos que se sobressaem até os dias atuais, como rezar de mãos para o alto, emotividade, afetividade e espontaneidade. Prandi (1998) afirma que o Movimento Carismático é novo, com características dentro da Igreja, obtendo seu estilo próprio, tendo como bases os Grupos de Oração é organizado de forma laica, dividindo responsabilidades dentro do movimento. O Movimento Carismático surgiu com a proposta de renovação espiritual, mas o mesmo teve que incorporar a sua realidade algumas regras, como normas oficiais do movimento. O documento 53 da CNBB, deste modo, estabelece essas restrições, com as Orientações Pastorais sobre a Renovação Carismática, estabelecidas como regras, Prandi (1998) refere-se principalmente as celebrações. Diante da elaboração do mesmo documento Oro e Alves (2013) destacam que um dos motivos para sua elaboração está na contenção do exagero contidos nas práticas que envolvam a glossolalia e o repouso no espirito. A hierarquia da Igreja teme a aproximação do movimento as práticas e conteúdo do pentecostalismo evangélico, deste modo, a Igreja os acolhe, mas sob condições. Deste modo, temos a separação entre as práticas e conteúdos pentecostais evangélicos e católicos, por meio da nomenclatura e depois pelo reconhecimento papal, sob as condições de manterem a devoção mariana. Sofiati (2009) argumenta que não há a adaptação a hierárquica eclesial da Igreja se deu de maneira exemplar, embora as restrições estabelecidas pela CNBB tenham causado nos carismáticos um distanciamento com relação a paróquia ao qual fazem parte, passando a priorizar apenas o que é carismático. Sendo assim, Sofiati destaca a preocupação da CNBB com a necessidade de formação litúrgica com relação as Igrejas onde existem grupos do Movimento Carismático. Destacando a importância da distinção entre cantos nas missas e nos grupos carismáticos, provocando consequentemente esse distanciamento com relação a paróquia ao qual os membros deveriam sempre estar inseridos. Passando a priorizar 445 o discurso da existência da comunhão voltada para a participação dos carismáticos nas paróquias, com o intuito de ampliação do movimento. Sendo assim, Sofiati (2009) argumenta na defesa de que essa relação da Igreja e do Movimento Carismático é uma relação de autonomização, mas sem rompimento. Levando em consideração que o discurso é sempre conciliador, não produzindo apenas líderes religiosos, mas políticos, representando a Igreja juntamente com a RCC nas demais esferas sociais de valores. Consequentemente, isso tem sido otimizado nos meios de comunicação, não descartando do movimento características herdadas dos evangélicos, mas não deixando de lado a busca constante pela legitimidade identitária católica. Seja, ocupando lideranças sociais, religiosas e políticas, buscando o combate as ideias contrarias as religiosas, como por exemplo a legalização do aborto, o casamento homo afetivo entre outros. Valle (2004) justifica que o movimento tem funcionado dentro dos padrões da modernidade, embora existam alguns comportamentos carismáticos que são considerados excessos, enquadrados assim, dentro de uma perspectiva de fundamentação doutrinária, envolvendo comportamentos e rituais. Considerando o envolvimento político quando se limita apenas a renovação do indivíduo, deste modo, os indivíduos são instruídos a uma visão conservadora do mundo, afirmando Valle (2004) que a visão ao qual o indivíduo tem do mundo, sendo ele social, é tido como um projeto moral dentro de uma perspectiva do catolicismo, muitas das vezes formados, a partir, de diretrizes papais e da CNBB, porém transmitidas e fundamentadas pelas falas de líderes religiosos carismáticos que falam para o Brasil inteiro por meio da mídia. Viegas (2012) defende que a CNBB se refere a RCC com preocupação com relação aos rumos do movimento, considerando sua importância para a Igreja, os discursos difundidos no mesmo passa pelo monopólio da CNBB, sendo necessário a aprovação de um superior local dos materiais a serem utilizados pelo movimento. Deste modo, Viegas (2012) considera o monopólio discursivo descontrolado, ao referir-se as autoridades eclesiais, pois há a existência de um mesmo discurso para membros tradicionais e carismáticos. Assim, existe a possibilidade de uma justificativa em Mariz (2003), de uma Igreja dentro de outra Igreja, em consequência de um paralelismo. 446 Cecilia Mariz (2003) ao tecer seus argumentos com relação aos carismas, afirma que a permanência e a reprodução dos mesmos só se é possível, com a institucionalização em decorrência da rotinização. Não desconsiderando a estrutura das religiões tradicionais, pois é em consequências das mesmas, que as emocionais se têm expandido. As religiões emocionais não é o antagonismo ao tradicional, porém, apresenta-se como resposta as necessidades das demais esferas de valores diante da religiosa. Havendo deste modo, a necessidade de compreensão da organização estrutural dos movimentos da Igreja. Mariz (2003) aponta que o Movimento Carismático ajuda a fortalecer o espaço institucional da Igreja, adotando uma organização que os compeli a abrir mão da proposta inicial do Movimento Carismático, o de transformação. Deste modo, afirma que a burocracia é uma consequência do carisma, definido como força desreguladora e contestadora. A RCC é um movimento que veio com essa proposta, em oposição as regras tradicionais e institucionais, deste modo, a Igreja vê no movimento uma oportunidade de crescimento, propondo-o novas regras e tornando-o legitimo, havendo consequentemente argumenta Mariz (2003) a burocratização dos carismas. Conclusões Mariz (2003) refere-se organização nacional do movimento como plural, contendo um poder paralelo, onde se obedece ao papa, porém se contrapõe a inserção local. Apresentando deste modo, duas posições que soam contrarias, uma é que existe um determinado paralelismo e outra que há uma autonomia organizacional por parte do Movimento Carismático. Assim, atesta que a Igreja busca sempre manter os diversos grupos sob seu controle, a partir de regras dogmáticas, pois o mesmo movimento é consequência de uma impossibilidade integracional. A instituição católica oferece ao movimento possibilidades de existência, mas com uma autonomia relativa, havendo uma organizacional de subestruturas, onde os sujeitos têm a sensação e a realidade ao mesmo tempo de sair da Igreja Católica, mas não deixando de estar nela. Considerando os autores supracitados, podemos concluir que a Renovação Católico Carismática é um movimento de estrutura organizacional relativamente autônomo. Pois, depende hierarquicamente da Igreja para existir, se manter e se 447 difundir, abdicando de seu proposito inicial, como forma de sobrevivência a regra da mesma, deste modo, considera-se sua autonomia dependente a da Eclesial. Referências Bibliográficas: CARRANZA, Brenda (2000). Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. Aparecida. SP: santuário. MARIZ, Cecília L. A Renovação Carismática Católica: Uma igreja dentro da Igreja? Civitas , Porto Alegre, v. 3, nº 1, p. 169-186, jun. 2003. ORO, Ari Pedro; ALVES, Daniel. Renovação Carismática Católica: Movimento de Superação da Oposição entre Catolicismo e Pentecostalismo? Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 33(1): 122-144, 2013. PRANDI, Reginaldo (1998). Um Sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo carismático. SP EDUS SOFIATI, Flávio, M. (2009). Elementos sócio-históricos do movimento carismático no Brasil . Acessado em 28 de Novembro, 2015, em www.fflch.usp.br/ds/posgraduacao/.../m_10_Flavio_Munhoz_Sofiati.pdf. VALLE, Edênio. A Renovação Carismática Católica. Algumas observações. ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004, Pg 97-107. VIEGAS, Vanessa L. A RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA (RCC): ENTRE O TRADICIONALISMO E O NOVO. Anais dos Simpósios da ABHR, Vol. 13 (2012). 6. NARRATIVAS JUVENIS E A QUESTÃO DA MORAL NA RELIGIÃO Nome: Rosana G. Lôbo Sahium Titulação: Mestre Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás/ Anhanguera Educacional – Anápolis Resumo: A formação dos mais jovens se estabelece numa sociedade política, cultural e econômica sendo inevitavelmente afetada pelas mudanças e contradições que caracterizam a dinâmica social. Não são poucos os que costumam atribuir o sucesso ou fracasso educacional de forma direta ou indireta à questão moral. Entretanto, este tema, em razão da complexidade social que o envolve, não se encontra historicamente superado, exigindo investigações que ampliem sua compreensão. Neste sentido este artigo se propõe examinar esta questão a partir do ponto de vista do próprio jovem, que em sua identificação com as agências socializadoras atribuem sentidos e significados às suas vivências e experiências, o que irá interferir em suas condutas e comportamentos. A religião, como manifestação de práticas sociais e culturais, incide de forma significativa, embora nem sempre manifesta, entre os jovens como peça relevante desse complexo mosaico sócio cultural. Segundo alguns relatos dos próprios jovens a religião é a agência preponderantemente responsável pela formação moral dos indivíduos que por sua vez, interfere e influencia nas demais agências formadoras. 448 Nesse sentido é considerada a possibilidade de investigação, conexão e interpretação das narrativas juvenis, da questão da moral e da religião como tripé de análise das representações que emergem dos discursos dos jovens, sobre a preponderância da igreja como agência formadora dos valores desencadeadores de posturas e comportamentos característicos da atualidade. Palavras-chave: Religião. Formação. Moral. Juventude. Muito se tem esperado da educação, atribuindo a ela o êxito ou as mazelas sociais. E um dos temas que volta à tona e que está presente nos discursos de pais, educadores e educandos, diz respeito ao resgate dos valores, ou a questão da moral e da ética apontados como desencadeadores de posturas e comportamentos característicos da atualidade. A educação é reflexo das novas formas de relações humanas, novos comportamentos que emergem das mudanças sociais, mas também incide sobre estes transformando-os ou legitimando-os. Ao levantar algumas concepções de moral em sua relação com a educação, buscamos identificar algumas raízes históricas e possíveis relações com os comportamentos e discursos que tem reconhecido a religião como preponderante na formação moral. Assim este artigo propõe contribuir para uma reflexão mais apropriada do tema, sua relevância e interferência no processo de formação e no comportamento social. As narrativas A partir de entrevistas com jovens em um trabalho acadêmico, sobre as agências formadoras, chama a atenção a convergência em seus discursos, no que se refere às posturas, comportamentos e valores presentes hoje e sua relação direta com a religião152. Segundo suas narrativas a religião aparece como base referência da moral, muito embora pareça, para muitos estar superada face a relativização dos valores na sociedade “pós moderna”153 ainda se faz presente nos discursos, como princípios norteadores de condutas éticas a serem resgatadas. 152 Pesquisa realizada em 2010 para dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós graduação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, PROJETO MINTER PUC GOIÁS \ UniEvangélica para obtenção do título de Mestre em Educação, sob a orientação da Profa.Dra. Elianda Figueiredo ArantesTiballi. 153 Neste texto, o termo pós-moderno será empregado como expressão utilizada por Lyotard,( 1979) ao traçar o panorama das transformações que afetam a cultura ocidental neste nosso fim de século. 449 Ou seja, o que emerge em suas falas, quando analisam questões como “respeito”, “solidariedade”, “tolerância”, “honestidade” presentes ou ausentes na sociedade atual e mais precisamente entre seus pares, apontam para o que eles identificam como valores cristãos que consideram a base determinante, que não apenas interfere e regula suas condutas, mas que norteiam as demais agências formadoras como a família e a escola. Ao serem questionados sobre o que eles consideram o mais importante na vida, “Deus” e a “fé” aparecem em primeiro lugar para grande parte deles, porém, com poucas exceções, esta fé não está diretamente associada à necessidade de se ter uma religião. Alguns mesmo considerando importante frequentar uma igreja, dizem não fazê-lo, como sugere algumas falas: - “Religião ajuda na formação do caráter e da vivência..”. - “É preciso acreditar em Deus e não seguir uma religião.” - “Crer faz você mudar de vida, não garante que você vai agir corretamente... quando se crê você tenta fazer o que é certo.” - “Deus nos deu a vida, ...Crer traz esperança.” - “Deus ajuda nas escolhas, o ser humano pode errar e pedir perdão.” Pode-se dizer que a maior parte dos entrevistados não frequenta assiduamente igrejas, critica o fanatismo, os exageros e as muitas regras. Segundo eles para “chegar-se a Deus” não precisa ter uma religião, depende de cada um. Alguns mencionam que o ir ou não à igreja pode estar ligado à pressão da família: - “... ir à igreja é bom, independente de qual seja a igreja, pois as pessoas estão com pensamentos positivos, é bom se relacionar ali...” - “Eu não vou, mas acho que é importante ir...” - “Hoje as pessoas confundem igreja com clube, vão mais para fazer um social. A pessoa tem que ir não só pela socialização, mas também para preencher algo mais íntimo.” - “Muitas religiões pregam irmandade, igualdade, mas na verdade se contradizem, não agem assim.” É interessante observar que, conquanto o Brasil seja considerado um país católico, como apontam os dados pelo IBGE 2010154 e de grandes manifestações religiosas, alguns jovens atribuem sua religião à influência e legado da família enquanto agência socializadora, entretanto, isso não se revela enquanto prática religiosa. 154 No quadro referencial n. 1 a queda da filiação à religião Católica Romana obedece a uma verticalidade descendente entre 1991 e 2010. De 83% em 1991, para 73,6% em 2000, e, 64,6% em 2010.) 450 Dizem acreditar em Deus, reconhecendo esta fé como imprescindível valor, mas admitem não frequentarem ou participarem regularmente de nenhuma igreja, e quando fazem, suas escolhas parecem ter um caráter mais pessoal.155 Segundo os jovens, não é comum frequentar uma igreja ou professar uma fé se isto não fizer sentido para eles. E fidelizar a uma instituição religiosa significa reconhecer- se pertencente a um grupo indenitário. Para Novaes (2005) na emergência de um mundo religioso plural cresce a possibilidade de rearranjos provisórios entre crenças e ritos sem fidelidades institucionais, por outro lado as instituições religiosas continuam produzindo espaços para jovens como lugares de agregação social, identidades e formação de grupos. É possível notar que mesmo a linguagem religiosa está também presente em determinadas expressões culturais juvenis como se observa, por exemplo, a categoria “hip-hop gospel” falando de Cristo e citando versículos bíblicos. Assim a religião presente apenas nos discursos, ou como manifestação de práticas sociais e culturais, incide de forma significativa nas representações juvenis. Vários foram os teóricos que se ocuparam da questão da moral. Selecionamos os autores: Herbart, Vygotsky e Lipovetsky, para representar o pensamento moral em diferentes momentos históricos e que aqui nos ajuda a pensar as questões emergentes. Johann Friedrich Herbart (1776-1841) foi filósofo da educação, considerado o pai da psicologia moderna, precursor de uma psicologia experimental aplicada a pedagogia. Pertence a teoria da pedagogia tradicional, nascido na Alemanha em 1776. Tinha uma concepção de educação intimamente vinculada ao ensino da moral Segundo Herbart (1962) a virtude e os bons sentimentos são resultados das ideias e do conhecimento adquirido, neste sentido instruir significa cultivar a clareza a precisão e a continuidade de pensamento. Portanto a finalidade ou objetivo da educação pode se resumir no conceito de Moralidade que para ele significa; liberdade, perfeição, boa vontade, direito e retribuição, associados à uma personalidade positiva e a percepção clara do ideal. O tema da religião para a juventude, aqui mencionado, merece explicações mais aprofundadas, pois escondem algumas contradições, como foi possível evidenciar nesta pesquisa. Em entrevista com jovens italianos o tema religião foi o único em que as opiniões destes jovens divergiram em relação aos jovens brasileiros. Mesmo a Itália reconhecida como berço do catolicismo, os jovens entrevistados se dizem ateus e são avessos à qualquer forma de religiosidade. 155 451 A ideia de humanidade estética influenciou seu pensamento, o gosto estético se opõe aos apetites mais baixos e dá ao indivíduo controle moral sobre si mesmo. Para Herbart, portanto o homem de cultura pelo seu senso estético é levado constantemente a lutar pela obtenção dos mais altos ideais éticos, e a produção deste homem é o objetivo e o fim da educação e da instrução. Nessa perspectiva o caráter então passa a ser o objetivo da educação. Se a vontade é a sede do caráter e as decisões da vontade determinam o caráter, supõe-se que “o homem bom comanda a si próprio” (HERBART,1962, p. 411) Educar a juventude para querer o bem livre e constantemente até que isso faça parte de sua natureza é então o empenho fundamental da educação. Quanto mais experiências, interesses e maior número de aspectos se tenha estudado a vida, melhores serão as escolhas. Essa unidade; bom caráter e multiplicidade de interesses formam os objetivos completos da educação, pois garantem escolhas sólidas e inteligentes. Quanto mais frequentemente um conceito ou ideia for trazido à consciência, mais fácil se torna a sua volta e maior o seu poder sobre a mente, “lei do hábito” (HERBART,1962) A arte do educador é então trazer constantemente para a atenção àquelas ideias que ele quer que prevaleçam e dominem a vida de seu aluno, construindo assim massas de ideias que se desenvolvem pela assimilação. É então tarefa da educação introduzir interesses e desejos adequados para a construção do controle interior tendo assim, profundos efeitos sobre a vida e a felicidade humana. Ideias claras e verdadeiras resultarão inevitavelmente em boa conduta; “pensamento correto produz ação correta” (HERBART, 1962, p. 413). No processo educativo todas as funções mentais cooperam numa tarefa comum, vontade e intelecto desenvolvem-se sincronicamente. Implantar na alma interesses e desejos por meio de instrução promove auto controle interno. A instrução deve então fornecer conhecimento e disciplina interior por meio do discernimento. Herbart estava formulando uma pedagogia social e ética. Para a educação atingir seu fim que é o cultivo do caráter, o mundo moral deve ser apresentado à criança através de condutas ideais de antepassados que lhes são apresentadas através da história e da literatura, acredita o autor que por este meio a criança visualiza 452 o bem e o mal para o aprimoramento de seu discernimento e refinando seu gosto moral. Há duas espécies de representações; as que nascem das experiências de coisas (conhecimento empírico) e aquelas que vêm do intercambio social ou relações pessoais (solidariedade) sendo esta a mais importante pois é a base de todo o desenvolvimento intelectual, a moral superior. Segundo Herbart (1962) o conhecimento só é assimilado e se torna ação eficaz quando tem relação com a experiência do indivíduo. A personalidade ética é, portanto, produto da evolução social elaborada na interação com outros seres humanos. Lev Vygotsky (1896-1934) foi professor e pesquisador, nasceu na Rússia em 1896. Dedicou-se nos campos da pedagogia e psicologia. Sua teoria se baseava no desenvolvimento do indivíduo como resultado de um processo sócio histórico, enfatizando o papel da linguagem e da aprendizagem nesse desenvolvimento, “teoria considerada histórico-social”. O comportamento moral para Vygotsky está diretamente ligado as condições históricas e sociais. A moral é considerada como forma de comportamento social determinado pelo sistema vigente ou dominante. Na escola, portanto a educação moral coincide com a moral da classe que a orienta. Ao se criar uma nova sociedade se cria também uma nova moral ou novos códigos e valores morais. A pedagogia moral terá que considerar alguns pontos como; a negação da origem absoluta da moral ou sentimento moral que se pretende inato, pois o comportamento moral apesar de depender das reações instintivas e congênitas é elaborado sob ações e influencias do ambiente o que leva a concluir que o comportamento moral como qualquer outro pode ser educado através do ambiente social (VYGOTSKI, 2000) Toda época revolucionária de rupturas são acompanhadas também de crises morais causando deformidades morais, mas também permitindo ricas possibilidades. Na relação conduta moral e consciência moral sem dúvida há uma influência da consciência no comportamento moral, mas sem que haja uma dependência direta entre ambos. Os fatos mostram inclusive relação inversa entre a consciência e o comportamento moral. No entanto o autor afirma que o desenvolvimento intelectual é um requisito propício para a educação moral. 453 Num meio social desfavorável de contradições e desarmonia sempre surge formas antissociais de comportamento e a reeducação social passa a ser o meio pedagógico para combater esse mal. Educação moral então é, sobretudo educação social no intuído de adaptação e readaptação. Segundo Vygotsky (2000) o desequilíbrio moral da criança pode ser causado pelo abandono ou ausência de um lar, o que equivale a falta de toda a educação social. A educação moral tradicional estava estruturada no princípio autoritário e na valorização moral pela obediência motivada pelo medo, mecanismo enraizado ainda na conduta de professores e pais. Porém a base para a educação moral deve estar pautada na verdadeira regeneração que pressupõe não a obediência, mas o assumir livremente as formas de comportamento que garantam correção no comportamento geral. Assim como acontece na situação do jogo onde a criança se submete às regras não por imposição ou medo, mas porque sabe que a observância das regras é a garantia de que o jogo dará certo o que lhe confere satisfação interna. Um ambiente social deve ser, de tal forma, organizado que permita a criança sentir os reflexos de seus próprios atos servindo como medidas educativas poderosas à disposição dos professores, lembrando porém que educar também significa limitar e restringir a liberdade. Gilles Lipovetsky (1944- ), filosofo francês nascido em 1944 é professor de filosofia, teórico, autor de vários livros aborda temas de nossa cultura e apresenta reflexões sobre a revitalização dos valores e a emergência de O autor Lipovetsky (2005) talvez seja quem melhor descreva a sociedade atual apontando mudanças significativas identificando-as ao conceito de moral, que ele bem define como a Sociedade Pós-Moralista. Segundo o autor o processo de secularização da ética que ocorreu a partir do século XVII foi um marco significativo na cultura democrática moderna. Os modernos organizaram a sociedade com base nos princípios éticos laicos universalistas. Cria–se um novo pacto social proclamando os direitos humanos e a soberania individual. O indivíduo é o símbolo do novo valor absoluto dos tempos modernos. As obrigações às leis divinas não mais fundamentam o organismo social e político e sim os direitos inalienáveis do indivíduo. 454 A preeminência das prerrogativas do indivíduo soberano conduz o pensamento econômico liberal. Assim as paixões egoístas, vícios particulares, o direito de só pensar em si mesmo, cuidar de seus próprios interesses faz parte do princípio básico da nova sociedade. Durante cerca de dois séculos ressaltam-se ideais de renúncia, de prática de deveres para consigo e com o próximo, procurando promover as virtudes e elevar o espírito. A moral é definida como a “ciência do imprescindível dever” e a virtude como a “inteira abnegação de si”. Convive-se de um lado a exaltação da moral do outro a radical negação de sua legitimidade, mas ambos, moralistas e inimigos da moral proclamam a autonomia da vontade humana (LIPOVETSKY, 2005, p, 8) É possível atingir uma vida moral, eficaz, ideal, autônoma e independente dos dogmas religiosos\. A virtude se desvincula da fé e não há mais diferenciação hierárquica entre o que crê e o que não crê no céu. Mas o que se percebe portanto é que isto não significou o fim das religiões, mas a sua nova estruturação e prática de um caráter mais individualista, uma portabilidade religiosa, onde o indivíduo pode agora escolher aspectos de diferentes crenças estruturando sua própria ordem de fé. A cultura moral se fundamenta então no individualismo democrático universalista onde o interesse de cada um passou a ser um valor de ordem moral. Na época atual as iniciativas humanitárias, a caridade e a prática do bem ressurgem. Segundo o autor “o retorno da moral” não é um termo apropriado para traduzir o que se apresenta, pois o que se estabelece é uma moral sem obrigações e sem sanções inclinadas a um individualismo hedonista. Uma sociedade que exalta a ética é também caracterizada pelo sentimento de declínio da moral que se reflete através da violência, do egoísmo das disputas de interesses, enfim, a queixa de hoje é a mesma de ontem, atribui-se as mazelas sociais à decadência moral. O homem não se tornou menos ou mais egoísta, mas o caráter individualista agora está definitivamente exposto, e pensar só em si não é mais tido como algo imoral, mas legitimado; direito de cidadania. Indiscutivelmente honestidade, respeito, polidez devem ser incorporados, mas sem o espírito do sacrifício, da abnegação, de dar precedência aos outros ou se 455 dedicar ao próximo, valores estes desacreditados. Há um desejo de ajudar os outros, mas sem se comprometer, solidariedade sim, mas sem envolvimento. Os meios de comunicação não desempenham o mesmo papel que as instancias tradicionais da moral; descompromete o indivíduo, exonera o de culpa, desvia os indivíduos dos hábitos de socorro e benevolência ao próximo, enfim comove, mas não cria vínculos. São também estas as raízes da filosofia contemporânea do bem estar individualista que ao invés de levar ao egoísmo e ao cinismo conduz a uma identificação superficial com o outro bem como a repugnância ao sofrimento. A renovação ética que se identifica no atual contexto corresponde tanto ao individualismo liberto do dever categórico quanto a manifestação descontente com um individualismo exacerbado. Deprecia os sistemas morais dogmáticos, mas atesta o retorno do “elemento humano” visto como fator de mudança coletiva. O ressurgimento ético é fruto do enfraquecimento da fé nas promessas do racionalismo tecnicista e positivista. Porém ao reafirmar os direitos humanos, saudar os ímpetos humanitários e caritativos não se deve desprezar ou menosprezar o ideal de justiça social e econômica. (LIPOVETSKY, 2005, p.187). Considerações finais A análise da questão da moral no processo de formação do indivíduo, nos remete a sua vinculação com a religião. Nas épocas pré-modernas não se concebia a moral separada ou independente da religião, e a prática da virtude se justificava não pelo respeito moral ao homem, mas a Deus. Os modernos ao rejeitarem essa subordinação da moral à religião buscam sua emancipação dissociando-a da igreja e da crença religiosa, reafirmando sua sustentação humano-racional. O que é possível observar, é que a moral que sempre teve relação direta com a religião depende cada vez menos desta e cada vez mais das condições históricas e sociais. Porém o que se pode identificar, segundo Lipovetsky (2008), é que mesmo em face de uma libertação e depreciação dos sistemas morais dogmáticos, acentua-se o 456 retorno do elemento humano e ressurgimento ético em resposta a um individualismo exacerbado. Ou seja, as sociedades ao se afastarem dos modelos de visões conservadoras, faltam lhes um novo modelo ético. Sem norte diante das exigências sociais instáveis, as agências formadoras buscam um modelo ético que possa conciliar as necessidades sociais e individuais. Mas na escola as considerações morais acabaram sendo substituídas por valores ditos funcionais que buscam muito mais responder à eficácia técnica e operacionais simplesmente para garantir a preservação da vida organizacional. Estabelecem-se sanções, disciplina e respeito aos regulamentos, mas os princípios que os regem, estão distantes de uma proposta emancipadora da formação, que prevê um indivíduo livre e consciente de suas ações ou escolhas A consciência vinculada ao comportamento é decisiva para a moralidade, afirma Vygotsky (2000). Como ele ressalta, tanto os conceitos e noções morais quanto o comportamento social são determinados pelo sistema vigente, isto é, sofre influencias do meio. Cabe à educação limitar e adaptar às novas condições de vida identificando esse traço fundamental da moral que está sendo criada. O autor também atribui as falhas morais à deficiência educacional, requerendo maior influência educativa do meio. Em consonância com o autor é possível observar que a escola, uma das agências socializadoras em seu papel de formação ainda não se configura como esse espaço de interação, de práticas solidárias, de discussões e reflexões tão imprescindíveis ao desenvolvimento da autonomia, da liberdade que estão vinculados a comportamentos e escolhas mais conscientes. Segundo os relatos dos jovens entrevistados, o que eles identificam como valores, são fruto de uma formação moral e de princípios oriundos da família, mas com influência direta da religião. Percebe-se assim que a religião é ainda hoje uma instituição de legitimação da sociedade com grande peso na formação da consciência. E mais, a religião é, de acordo com eles, central para a formação da moral e do respeito entre os humanos. Mesmo não frequentando uma igreja eles reforçam sua influência na formação da consciência e de condutas 457 Referências http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/000000093525061220 12255229285110.pdf EBY, Frederick. Herbart e a ciência da educação. In: EBY, Frederick. História da educação moderna. Rio de Janeiro: Globo, 1962. (PP. 408-429) LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal, Ensaio sobre a Sociedade do hiperconsumo, São Paulo: Schwarcz , 2008. LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós Moralista. Barueri- SP: Manole, 2005. NOVAES, R. Os jovens de hoje: contextos, diferenças e trajetórias. In: ALMEIDA, MENDES, Maria Isabel de; EUGENIO, Fernanda (Orgs.) Culturas Jovens, novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. VIGOTSKY, Liev Semionovich. O comportamento moral, In: VIGOTSKY, Liev Semionovich, Psicologia Pedagógica, 2000 ___________________________________________________________________ GT 14 FÉ E CURA NO ÂMBITO DA RELIGIOSIDADE POPULAR Coordenadores: Prof. Dr. Antônio Lopes Ribeiro/FATEO – GEPERCS Profa. Dra. Sandra Célia Coelho G. da Silva/UNEB – GEPERCS Prof. Dr. Krzysztof Dworak/PUC SP - GEPERCS Ementa: Este grupo de trabalho tem como proposta reunir estudos sobre a fé e a cura, no âmbito da religiosidade popular, com ênfase na multiplicidade e especificidades das manifestações de cunho religioso, nos diferentes contextos sócio-histórico-culturais. Comunicações: 1. SIMPATIA, ALEGRIA E AFLIÇÃO NA “FESTA DE SÃO COSME E DAMIÃO DA DONA NILDA BENZEDEIRA” (MATINHOS/PR, 1992-2015): OS SENTIMENTOS COMO POSSÍVEIS CATEGORIAS DE ANÁLISE DAS RELIGIOSIDADES CONTEMPORÂNEAS Nome: Aline Suzana Camargo da Silva Cruz Titulação: Mestranda Instituição: Universidade Federal do Paraná Resumo: Pensar a História das Religiões numa perspectiva cultural requer atenção especial a alguns assuntos por muito tempo não considerados pela historiografia, como 458 as práticas religiosas não institucionalizadas, comunitárias ou individuais, conhecidas como religiosidades; assim como o lugar dos sentimentos nessas práticas. Em sintonia com essa perspectiva, propõe-se uma reflexão acerca dos sentimentos como possíveis categorias de análise das religiosidades contemporâneas. Para tanto, aplicaremos os sentimentos de simpatia, alegria e aflição à análise de narrativas orais sobre a “Festa de São Cosme e Damião da Dona Nilda Benzedeira” em Matinhos/PR (1992-2015), objeto de estudo da pesquisa de mestrado da proponente. A comunicação se dividirá em três momentos: No primeiro, será desenvolvida uma discussão acerca das relações entre história, religião, sentimento e memória. No segundo, a festa em questão será apresentada aos participantes do GT, para que esses se familiarizem com o evento cujas narrativas orais serão analisadas. No terceiro e último, os sentimentos de simpatia, alegria e aflição serão explorados como possíveis categorias analíticas de narrativas orais sobre a festa. As discussões a serem desenvolvidas na comunicação se alicerçarão na bibliografia abaixo citada e manterão estreito diálogo com o produto de entrevistas realizadas pela pesquisadora com participantes da festa. Tais entrevistas se deram com base na metodologia de história oral, mesclando as modalidades “história de vida” e “história oral temática”. De Platão e Aristóteles, passando pela filosofia iluminista e culminando nas pesquisas recentes em neurociência, a investigação sobre a emoção tem sido caracterizada pelo debate sobre o que constitui a sua "essência". À medida que estudiosos tornaram-se mais ativos na investigação acerca da emoção, a essência desta foi sendo cada vez mais relacionada à historicidade, à diferença cultural e até mesmo às diversas circunstâncias da vida de cada pessoa. Por conseguinte, o debate atual é caracterizado por um lado pela defesa da universalidade das emoções, e, por outro, pelos argumentos que sustentam a ideia da construção cultural das emoções. A investigação dos aspectos fisiológicos da emoção está fornecendo fundamentação concreta para interpretações universalistas, ao mesmo tempo em que o aumento da consciência das diferenças culturais se traduz em um apoio mais profundo às teorias que reconhecem a derivação cultural de emoção. (CORRIGAN, 2004:07). Os argumentos mais recentes da abordagem universalista acerca de emoção são alicerçados na biologia. No que toca à relação religião versus emoção, os cientistas estão explorando a maneira pela qual características fisiológicas da emoção podem ser correlacionadas com os diferentes aspectos da religião. A vanguarda desta abordagem tem evitado afirmações doutrinárias do universalismo, tanto que alguns pesquisadores chegam a defender certa cumplicidade entre biologia e cultura, aceitando os estados emocionais como variáveis de acordo com a cultura, concepção 459 que pode se configurar como uma alternativa ao reducionismo na pesquisa científica sobre religião. (CORRIGAN, 2004: 09-10). Quanto à abordagem relativista da emoção, pode-se dizer que se desenvolveu de forma proeminente na História e nas Ciências Sociais, áreas em que as pesquisas tendem a explorar as emoções menos como um aspecto da "interioridade" humana do que como a representação de códigos sociais de significado e conduta. Dentro desta perspectiva, o que se entende por "emocional" em uma cultura, pode não ser assim entendido em outra. Porém, é importante ressaltarmos que a teoria sociocultural da emoção é um projeto em andamento, e, alguns dos estudos etnográficos recentes que admitem a influência da cultura na vida emocional, contestaram a posição fortemente construtivista. (CORRIGAN, 2004:11-12). A história das emoções- campo que tem se desenvolvido rapidamente desde os anos 1980- tem contribuído consideravelmente no que toca às formas historicamente variáveis das pessoas conceberem a emoção em decorrência de alterações na vida social. Diante disso, a história das emoções pretende apresentar suas conclusões através da comparação de aspectos da vida das pessoas em diferentes períodos históricos, com atenção especial às diferentes maneiras de organização social, produção de mercadorias, administração política, papéis de gênero, doenças e até mesmo clima, dentre outros fatores que podem ter condicionado o regime emocional. (CORRIGAN, 2004: 12). No que toca ao objeto de estudo de nossa pesquisa de mestrado, noções acerca de aspectos relacionados ao tempo presente – individualismo, identidade cultural na pós-modernidade e secularização, por exemploalém de conhecimento prévio da realidade social, política e econômica do município de Matinhos, são de extrema importância no que toca à análise do lugar das emoções na constituição e manutenção da crença em Dona Nilda Benzedeira e em sua Festa a São Cosme e Damião. Uma vez que o estudo das religiões contempla também o estudo das religiosidades- manifestações religiosas individuais- contamos com um arsenal de pesquisas acerca de rituais de possessão espiritual, orações em grupo, danças e curas, visando analisar o papel da emoção na constituição dos mesmos, perspectiva na qual se enquadra nossa pesquisa de mestrado. É importante observarmos que, embora pareçam extremamente marcados pela espontaneidade e improvisação- envolvendo a expressão da emoção através de uma ampla gama de estados, como a alegria, a 460 simpatia e o luto, por exemplo- esses rituais nem sempre são espontâneos, desinteressados. Guiados pelos padrões que lhes são impostos pela adesão religiosa, os indivíduos constroem seu regime emocional no que diz respeito à religião em face de uma maior ou menor ortodoxia. O ideal é que o estudo da emoção na religião/religiosidade seja realizado simultaneamente em duas frentes: os pesquisadores devem recolher dados sobre a emoção religiosa oficialmente sancionada, ao mesmo tempo em que prosseguem, através do exame das vidas individuais dos participantes. Em seguida, os dois conjuntos de dados devem ser organizados de forma que iluminem a complexa relação entre o que as pessoas sentem e o que as religiões esperam que eles sintam. (CORRIGAN, 2004: 17-19). Tal perspectiva tem sido adotada em nossa pesquisa de mestrado, visto que entrevistamos tanto Dona Nilda Benzedeira como alguns de seus seguidores – uns mais próximos, outros nem tanto- objetivando assim analisar a percepção de ambos os lados. Os indivíduos produzem seus próprios estímulos de entretenimento, que podem se apresentar na forma de teatro, jogos, festas, rituais, etc., onde os participantes provocam as demonstrações de emoção necessárias e convenientes ao contexto em que estão inseridas, tais como o choro, o riso, a tensão e o relaxamento. Em sintonia com tal proposição, realizaremos no próximo item uma discussão acerca do lugar de emoções como a “simpatia” na crença em Dona Nilda Benzedeira e na festa por ela organizada, nos debruçando sobre as relações sociais que perpassam tal evento de religiosidade, bem como sobre a importância das expressões emocionais nas negociações travadas entre os atores sociais envolvidos com o evento. Uma festa de emoções: A simpatia como categoria de análise de narrativas orais da “Festa de São Cosme e Damião da Dona Nilda Benzedeira” (Matinhos, 19922015). Como vimos, as demonstrações de emoção são consideravelmente importantes na definição e negociação das relações sociais em uma ordem moral. Diante disto, convencionamos discutir a importância da emoção “simpatia” no desenvolvimento e manutenção da crença em Dona Nilda Benzedeira e em sua festa a São Cosme e Damião. Podemos considerar a simpatia como um processo integrado e negociado envolvendo duas partes: a simpatizante e a simpatizada. Num primeiro momento, o ato de simpatizar está relacionado à compaixão, envolvendo aspectos interiores- empatia e 461 sentimento- e aspectos exteriores, relacionados à exibição. O processo de simpatiza possui uma linguagem simbólica e “regras do jogo”, e, em decorrência desse jogo, a simpatia pode ser aceita ou recusada, o que por sua vez acarreta uma série de conseqüências. É o processo de simpatia que estabelece ou fortalece as relações de poder. Em sintonia com a ideia da “economia sócio-emocional” proposta por Marcel Mauss, a simpatia pode ser considerada como uma dádiva, mais especificamente uma moeda de troca, em meio às relações sociais. (CLARK; SCHMITT, 2006: 468). Diante disto, no que diz respeito ao processo da crença em Dona Nilda e na festa por ela organizada, podemos conceber a benzedeira tanto como a parte simpatizante – à medida que se compadece de seus fiéis- como a parte simpatizada, que será a concepção adotada neste texto. Seguindo a linha de Mauss, a intensa participação dos fiéis na festa possui valor simbólico à medida que demonstra respeito para com Dona Nilda, além de atestar o poder da mesma, provando que ela tem algo que a outra parte não tem. Fica explícito na festa que ela é quem tem o “dom da benzedura”, e isso se faz muito interessante para a manutenção da crença na benzedeira. Existem três elementos básicos no processo de simpatia. O primeiro seria a empatia, ou seja, o ato de colocar-se no lugar do outro prevendo suas percepções e respostas, e, em alguns casos, para por aí, não havendo a conclusão do processo de simpatia. O segundo elemento seria ou sentimento, que consiste em sentir emoções semelhantes as da outra pessoa e o terceiro seria a exibição da emoção. Para que a empatia por alguém vire sentimento, alguns fatores entram em jogo: o fator “responsabilidade do simpatizado”; o fator “divulgação dos feitos” (através de ONGS, entidades protetoras, literatura e mídia de um modo geral), o fator “fardo a carregar”, o fator “econômico”, o fator “vulnerabilidade”, o fator “potencialidade”, o fator “responsabilidade social” e o fator “valor social da ação”. (CLARK; SCHMITT, 2006: 469-471). É certo que a empatia dos fiéis para com Dona Nilda viraria sentimento, visto que a benzedeira se enquadra em todos os fatores acima mencionados. Quanto ao fator “responsabilidade do simpatizado”, Clark e Schmitt explicam que o ideal é que a parte a ser simpatizada não possua responsabilidade pela situação em que vive. As pessoas dificilmente se compadecem daqueles que procuram determinada situação, e sim daqueles que não possuem escolha. É exatamente assim que Dona Nilda apresenta a sua vida; como uma missão recebida do transcendental e que deve ser cumprida independente de sua vontade. (NILDA, 2013: 05-06). O fator “divulgação dos 462 feitos” também é de extrema importância no desenvolvimento de simpatia para com Dona Nilda. A divulgação de suas práticas se dá através de diversos meios, como rádio e jornal locais, redes sociais, homenagens públicas e em grande parte através do poderoso boca a boca. (NETO, 2013: 06-07). Semelhante ao fator “responsabilidade”, é o fator “fardo a carregar”. Como comentado acima, Dona Nilda afirma publicamente não ter tido escolha quanto a exercer a função de benzedeira, tendo esse “fardo a carregar” pro resto de sua vida. Sendo uma pessoa de origem e modo de vida humilde, Dona Nilda também se enquadra no fator “econômico”, à medida que Clark e Schmitt defendem que quanto menos favorecida economicamente é a pessoa, mais passível de ser simpatizada, uma vez que a simpatia está relacionada, pelo menos num primeiro momento, à compaixão. Sobre o fator “vulnerabilidade”, os mencionados autores defendem que, quanto mais vulnerável a pessoa, mais passível de compaixão, entendendo-se como vulneráveis as crianças, os doentes, os desfavorecidos economicamente e os idosos, categoria na qual se enquadra a Dona Nilda, do alto de seus oitenta e dois anos de idade. O fator “potencialidade” refere-se a ter um potencial – no caso da benzedeira, o dom- e não deixar guardado para si, fazer uso desse potencial em prol do próximo, o que está relacionado aos dois últimos fatores: o da “responsabilidade social” e o do “valor social da ação”. Quanto a estes dois últimos fatores, o fato de Dona Nilda se usar do prestígio que goza na cidade para reivindicar junto aos políticos locais, melhorias para o bairro onde reside, parece bastante significativo aos olhos de terceiros, visto que apareceu praticamente em todas as narrativas das pessoas entrevistadas até o presente momento. Embora os autores proponham estas “leis” para a transformação da empatia em sentimento, os mesmos atentam para o fato de que os fatores acima mencionados devem ser considerados de acordo com o capital sociocultural em questão, perspectiva em sintonia com a abordagem que concebe as emoções como construções históricas, utilizada em nossa pesquisa de mestrado. Após a empatia ter se transformado em sentimento, chegamos à última e mais importante fase do processo de simpatia- a exibição da emoção; o momento da entrega da dádiva à Dona Nilda, dádiva essa que se resume no comparecimento de seus fiéis à festa, na qual se desenrola o jogo das posições sociais. Ainda que feitas as devidas alterações em decorrência do contexto em que é posta em prática, a exibição também obedece algumas normas: Espontaneidade, modo adequado, tempo certo e 463 possibilidade de exibição a um representante do simpatizado. (CLARK; SCHMITT, 2006: 473). A primeira norma mencionada – a da espontaneidade- sugere que a exibição deve ser espontânea, ou melhor, parecer espontânea, visto que, uma vez que consideramos a exibição das emoções como parte de um jogo em busca de posições sociais, não podemos conceber tal exibição como desinteressada, impensada. Uma situação que ilustra bem esta questão refere-se à participação dos políticos locais na festa da benzedeira. Sendo ela uma pessoa indiscutivelmente bem quista na cidade, é possível que os políticos- especialmente em anos eleitorais- se usem da festa para a divulgação de suas propostas eleitorais e, ainda mais importante que isso, se usem da proximidade com Dona Nilda para ganharem a simpatia dos eleitores, sendo frequente a disputa entre eles pela maior proximidade espacial em relação à benzedeira, numa possível tentativa de exibir intimidade com a mesma. Relacionada com a primeira e comprovando que a exibição das emoções não é impensada, a segunda norma- que defende a exibição adequada das emoções- diz respeito à postura corporal, à expressão facial, à fala, ao toque e à forma de entrega das contribuições materiais. Acompanhando a festa há cinco anos, a pesquisadora possui em seu arquivo uma série de fotos e vídeos que demonstram exibições de emoção por parte dos fiéis durante a festa, como choro e orações realizadas de joelho diante de Dona Nilda. Também existe menção à exibição das emoções nas narrativas de nossos entrevistados, como na de Teleca, que, possuindo função de destaque na festa – uma vez que realiza a oração que precede a benzedura- e, possivelmente desejando manter tal posição, precisa apresentar uma postura diferenciada, específica de quem se propõe a realizar a ligação entre os fiéis de Dona Nilda e o transcendente. Em suas palavras: “Eu me sinto muito bem. E de repente que eu to ali com aquela fé grande ali que eu estou fazendo, eu fico muitas vezes até sem conseguir falar porque eu fico emocionada. Eu sinto emoção no dia de São Cosme e Damião.” (NALCQ, 2016: 11). A terceira norma está relacionada ao tempo certo para a entrega da dádiva. A festa de Dona Nilda acontece anualmente e essa é a ocasião que as pessoas utilizam para “agradecer” a benzedeira pelo auxílio por ela oferecido durante todo o ano. É claro que este agradecimento poderia acontecer- e muitas vezes realmente acontece- em outros momentos, no entanto, como entendemos que a exibição das emoções faz parte de um jogo, a demonstração de afeto em particular não é significativa. No que toca ao 464 processo de simpatia, a presença do público é condição essencial para a exibição de emoções. As pessoas precisam ver as demonstrações de afeto para com Dona Nilda para que a crença em torno dela e de sua festa continuem fortes e, mais que isso, se propague, afinal, uma benzedeira só o é se existirem fiéis a ela. Cabe aqui também comentar o fato de políticos esperarem a ocasião da festa para fazerem doações materiais à Dona Nilda diante dos eleitores. A contribuição material poderia ser feita qualquer dia, inclusive nos dias em que antecedem a festa, mas certamente não teria tanto impacto como a entregue nas mãos da benzedeira durante o evento. A quarta norma afirma que a dádiva pode ser entregue a alguém que represente a pessoa simpatizada, o que justifica a atenção das pessoas à Teleca, responsável pela oração até o momento da entrada da benzedeira no local da festa para a realização da benzedura coletiva. Sendo assim, no momento da oração, Teleca está representando Dona Nilda. Até aqui nos referimos à qual deve ser a postura adequada por parte dos simpatizantes, no entanto cumpre mencionarmos que, para que o processo de simpatia tenha êxito, é essencial que o simpatizado também se comporte de forma adequada, cobrando a “dádiva” de alguma maneira, porém, não a exigindo, visto que a dádiva é um presente e, como tal, não deve ser cobrada. O simpatizado não deve em hipótese alguma solicitar demonstrações de simpatia alegando alguma mentira – estar doente, por exemplo- e também não deve aceitá-las muito fácil, sob pena de isso demonstrar fraqueza de sua parte. Também não poderá recusar a demonstração, ao passo que isso pode soar arrogante e, por fim, deve retribuir a simpatia, para que o processo se torne um ciclo vicioso. (CLARK; SCHMITT, 2006: 475). Podemos dizer que Dona Nilda benzedeira cumpre com eficácia o seu papel de simpatizada, principalmente pelo fato de retribuir a dádiva recebida dos fiéis com o que ela possui de mais precioso: a sua benzedura, a qual, na ocasião da festa, se dá em forma de um ritual coletivo. O fato de ter que haver retribuição por parte do simpatizado mostra que o processo de simpatia supõe uma troca e, assim sendo, concluímos que a emoção “simpatia”, diferente do que pode parecer à primeira vista, tem muito mais a ver com um jogo em prol de posicionamentos sociais do que com uma compaixão desinteressada de uma parte para com outra. 465 Conclusão Em síntese, concluímos que as emoções – exemplificadas aqui pela simpatiasão construções históricas que podem ser muito interessantes para a análise de fatos históricos. Inclusive, no que toca a questões acerca da religião e da religiosidade, mais do que interessantes, as emoções parecem essenciais a análise, desde que tomados os devido cuidados de relacioná-las ao contexto histórico a ser estudado, não as considerando como universais. Tendo narrativas orais acerca da crença em Dona Nilda Benzedeira e em sua festa a São Cosme e Damião como objeto de estudo, percebemos o quanto a referência a sentimentos se faz constante nessas narrativas, o que nos motivou a um estudo acerca do lugar das emoções nas experiências históricas (realizado no item “01” deste artigo), bem como a um proveitoso contato com o olhar sociológico acerca de emoções como a simpatia (presente no item “02”). Finalizamos o presente texto, certos do quanto a análise de nossas fontes à luz de reflexões propostas pelos autores aqui referenciados podem agregar ao nosso conhecimento e, consequentemente, ao desenvolvimento de nossa pesquisa de mestrado. Fontes e referências NALCQ, Wilma Ferreira. Entrevista concedida à Aline Suzana Camargo da Silva Cruz. Matinhos, 12 jan. 2016. Acervo da pesquisadora. NETO, José da Silva. Entrevista concedida à Aline Suzana Camargo da Silva Cruz. Matinhos, 25 jul. 2013. Acervo da pesquisadora. SANTOS, Maria Aparecida Gregório dos. Entrevista concedida à Aline Suzana Camargo da Silva Cruz. Matinhos, 31 jul. 2013. Acervo da pesquisadora. SILVA, Nilda Teles da. Entrevista concedida à Aline Suzana Camargo da Silva Cruz. Matinhos, 05 jul. 2013. Acervo da pesquisadora. CLARK, Candace; SCHMITT, Christopher S. Simpathy. In STETS, Jan & TURNER, Jonathan H. (orgs.). Handbook of the Sociology of Emotions. Springer, 2006. pp. 467487. CORRIGAN, John. Religion and Emotion: Approaches and Interpretations. Oxford University Press, 2004. pp. 03-32. 466 2. RELIGIOSIDADE POPULAR NOS NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS Nome: Edson Matias Dias Titulação: Mestre Instituição: Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG) e na Faculdade de Piracanjuba (FAP). Resumo: A religiosidade popular contemporânea é expressão de uma sociedade que é multicultural e multireligiosa. O número de denominações cristãs tem se adaptado ao mundo moderno e gerado novas manifestações religiosas. O avanço dos movimentos religiosos tem sido objeto de investigação de pesquisadores: Qual seriam as novas manifestações da religiosidade popular decorrentes das grandes transformações socioculturais que ocorreram nas últimas décadas? E ao mesmo tempo, como elas entrelaçam e reforçam os novos sentidos e dão ‘gosto’ e ‘tempero’ ao ‘caldo cultural’? A Teologia da Retribuição e da Prosperidade são configurações adaptativas à sociedade atual, produzindo novas formas de religiosidade Quando se fala em religiosidade popular normalmente vem em nossa mente o catolicismo. Isso não por acaso. Temos uma longa história de devoções presente em nossa cultura produzida principalmente nessa denominação cristã. Antes de existirem no Brasil grandes santuários sobre o comando da Igreja Romana, eles pertenciam, no sentido mais especifico do termo, ao povo. Eles criavam esses espaços a partir de um medalhão encontrado, uma santa, um voto, uma tradição familiar, etc. O clero somente mais tarde foi se apropriando de tais espaços. Nesses locais aglomeravam-se pessoas, rezas, ritos, símbolos. Tudo nascia de uma espontaneidade, de intuições e sentimentos religiosos. Não sem razão. Existia um ‘por que’ e um ‘para quê’, ou seja, havia uma racionalidade, mas não nos moldes romanos ou intelectuais. A tentativa era de construir um mundo significativo. Estabelecer uma relação com o sagrado que desse condições de manter a vida, às vezes sofrida e difícil. Um mundo significativo e habitável. “[...] a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”, possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do mundo” o viver real” (ELIADE,2008, p. 27). Que ‘mundos’ foram sendo construídos em nossa cultura? Em cada tempo se busca, em meio à confluência de identidades grupais, se estabelecer uma morada, uma linguagem que pudesse preencher e impedir o caos perante as dificuldades. “O 467 indivíduo não só aprende os sentidos objetivados como se identifica com eles e é modelado por eles” (BERGER 2004, p. 28). Nossas bases Lembremos que nossa religiosidade é um misto de expressões religiosas. O terreno cultural brasileiro foi se constituindo passo a passo nas interações entre as culturas que se estabeleciam. Primeiro, com os indígenas, depois, com os portugueses e às várias formas do catolicismo que estes trouxeram, já diferenciado daquele estritamente romano. Depois a cultura africana chegou com o trafego negreiro. Não podemos nos esquecer mais tarde do espiritismo e das novas Igrejas a partir do século XIX. E claro, mais recentemente, o pentecostalismo e o novíssimo neo-pentecostalismo – agora não mais explicado somente a partir de um grupo especifico, mas denominado de novos movimentos religiosos. Em toda esta configuração sociocultural, foi se formando no Brasil, aquele substrato social, cultural e assim, psicológico. Uma camada ‘submersa’, num ‘mix cultural’, uma ‘base’ para nossa identidade. No estudo das religiões, no Brasil chamamos de Matriz Religiosa Brasileira. Conceito criado por José Bittencourt Filho. Para o autor as expressões religiosas surgem desses valores culturais próprios do Brasil. “[...] a existência, no bojo da matriz cultural, de uma matriz religiosa, que provê um acervo de valores religiosos e simbólicos característicos, assim como propicia uma religiosidade ampla e difusa entre os brasileiros (BITTENCOURT, 2003, p. 17). O que encontramos como religiosidade popular está fundada e tem suas raízes neste substrato formado historicamente e assim também é, de certa forma, em novas roupagens, atual. Evidentemente não podemos dizer que ele seja rígido, isso seria contraditório. Ele está em movimento. É dinâmico. E em cada tempo agrega novos elementos em sua base. Ou seja, está em formação e ebulição. Necessário entender e considerar, na manutenção e transformação dessa matriz religiosa, as fortes mudanças socioculturais no Brasil nas últimas décadas como também em todo o mundo. Com os avanços econômicos e tecnológicos, estabeleceram-se novas formas de comunicação. Mudar o modo de se comunicar é dar início a novas formas de identidades. A linguagem econômica invadiu o cotidiano das pessoas. O uso constante do dinheiro acabou transformando nossas relações. 468 Algo óbvio acontece com os aspectos religiosos. Quando o modo da sociedade se constituir muda, eles mudam também. O forte apelo ao econômico acaba por atingir também o modo de se relacionar com a divindade nos ritos sagrados. “Trata-se de um fenômeno que, no Brasil, vem sendo detectado desde a década de 1960 e que condensa, de certo modo, transformações mais amplas na sociedade e no campo da cultura” (ALBUQUERQUE, 2004, p. 139). Voltemos novamente para entender como a religiosidade popular foi ganhando novos contornos. Junta-se todas as mudanças atuais ao nosso substrato sóciohistórico: religiões indígenas, catolicismo português, religiosidade africana de diferentes agrupamentos, espiritismo, igrejas protestantes históricas, catolicismo romano, pentecostalismos e novos movimentos religiosos. agregando a tudo isso as das transformações socioeconômicas recentes. Pouco a pouco, processos econômicos, sociais e culturais (globalização financeira e cultural) começaram a liquefazer essa modernidade sólida; a indústria cultural disseminou-se, os meios de comunicação e transporte desenvolveram-se. Novas teologias renasceram, bem como heresias antigas e atuais confirmaram a universalização do imperativo da escolha. Em contrapartida, o velho e novo convivem e intercambiam-se na hipermodernidade (SILVEIRA, 2014, p. 219). Novo olhar Qualquer estudo que queira investigar a religiosidade popular tem que levar em conta todo esse substrato. Caso um pesquisador, por exemplo, queira examinar as romarias ao Santuário do Divino Pai Eterno, ou mesmo as novas ‘caravanas’ ao Tempo de Salomão, terá que partir do entendimento de todas estas realidades de transformações sociais. Podendo chamar de ‘matriz’, ‘terra fértil’, ‘substrato’, etc. essa realidade sociocultural. Logo, em qualquer pesquisa atual deverá estar presente a identidade religiosa do povo brasileiro e não somente a de uma determinada manifestação religiosa como exclusiva e apartada dessa realidade. Muito importante ao pesquisar, ter em mente que muitos autores americanos e europeus podem contribuir com as investigações sobre religiosidade brasileira. Todavia, apenas como fontes auxiliares e nunca como chave de leitura total para nosso contexto sóciocultural. “É importante analisar os impactos da cultura atual sobre a 469 religião, mas essa análise é insuficiente se permanece na superfície do fenômeno analisado e não se interessa por suas raízes mais profundas” (DE MORI, 2012, p. 293). Somente os que estão inseridos no contexto podem lidar melhor com seus objetos de estudos. Religiosidade popular evangélica Diante de nós hoje se apresentam novas manifestações da religiosidade popular. Novas igrejas que baseiam sua pregação na Teologia da Prosperidade. Essa nasceu juntamente com as transformações econômicas do século passado e foi se misturando à linguagem religiosa. Não mais chamamos ou pesquisamos por ‘religiosidade popular’ somente no catolicismo. Há um bom tempo estamos diante de fenômenos parecidos em todas as denominações cristãs. Como nos antigos modos os discursos religiosos que se ligam à prosperidade e à retribuição, estão fundados em uma racionalidade, em um desejo do fiel em conseguir algo especifico com seu rito religioso. No imaginário religioso de um tempo atrás percebíamos uma ‘barganha’ um ‘toma-lá-dá-cá’ no cumprimento de um ‘voto’ para atingir a saúde de um familiar ou de si próprio. Vimos isso agora, nos novos movimentos religiosos na retribuição financeira. O fiel agora deve ser um bom dizimista para receber as bênçãos de Deus em forma de mais bens materiais e dinheiro. Não há dúvidas de que as fortes transformações culturais que ocorram nas últimas décadas têm transformado as identidades religiosas em formas porosas. Antes o fiel - pertencente a uma igreja evangélica – fazia de tudo para se diferenciar do catolicismo ou do espiritismo. Vestia-se diferente, pregava contra a idolatria no uso das imagens, combatia a devoção aos santos, etc. Mais recentemente constatamos usos rituais e simbólicos semelhantes com os anteriores rechaçados. As novenas se tornaram ‘correntes de oração’, ‘sessões de descarrego’, ‘reunião dos 72 apóstolos’, ‘Jejum da prosperidade’, etc.. As imagens de santos suprimidas ressurgiram nas imagens de pastores e pastoras famosas estampadas nas fachadas das igrejas. Dos pajés e dos pais de santos, emergiu o pastor curandeiro. Neste contexto, percebe-se fronteiras étnico-religiosas fechadas, antes definidoras das exclusividades dos saberes religiosos, tal qual as fronteiras dos Estados; hoje, em tempos de globalização das economias e dos encontros 470 multiculturais, tornarem-se borradas, disformes e indefinidas (GOUVEIA, 2004, 153). E de onde ‘ressurgiu’ tudo isso? Na realidade não ressurgiu, estava por ai o tempo todo. Em nossa ‘base’, em nossa ‘Matriz Religiosa’. O protestantismo clássico não foi capaz de apagar o ‘pavio que fumegava’. O pavio das relações do ‘toma-lá-dácá’, das relações de trocas com a divindade, dos votos, das novenas, dos ritos africanos, espíritas e indígenas. Algo se moveu em nosso chão cultural, e surgiu, misturando com as novas linguagens e símbolos econômicos, a religiosidade popular evangélica. Agora é possível ver santuário evangélico com suas peregrinações – caravanas ao Templo de Salomão da IURD. Como também é possível ver a ‘idolatria’ das imagens e tudo isso recheado com as relações econômicas que marcam a vida de cada fiel de forma afetiva e espiritual. Considerações Finais Por fim, constatamos que os aspectos religiosos acompanham as mudanças culturais. Mesmo que uma denominação religiosa tente se sustentar em seus dogmas, não passarão ilesa as transformações sociais. Os livros sagrados, os símbolos e ritos acabam por servir às novas linguagens, às novas necessidades humanas. Chegando ao ponto de negar a própria origem da experiência religiosa (transformada em doutrina). Como por exemplo, a opção pelos mais vulneráveis na pregação primitiva cristã e, em contrapartida mais recente, a Teologia da Prosperidade. Em outras palavras, a negação do próprio modo de Jesus Cristo e seus discípulos evangelizarem. Nesta breve investigação podemos dizer que nas dinâmicas socioculturais, podemos observar que surge a religiosidade popular evangélica, virtual, midiática, financeira, etc. Tudo como que em uma grande mistura cultural própria de nossa matriz viva e dinâmica. Referências ALBURQUERQUE, Leila Marrach Bastos de. Estrutura e dinâmica dos novos movimentos religiosos. In: SOUZA, Beatriz Muniz; MARTINO, Luís Mauro (ORGs). Sociologia da Religião e Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004. p. 139-150. 471 BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Paulus: São Paulo, 2004. BITTENCOURT, F. J. Matriz Religiosa Brasileira: religiosidade e mudança social. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Koinonia, 2003. COUVEIA, Eliane Hojaij. Apontamentos sobre novos movimentos religiosos. In: SOUZA, Beatriz Muniz; MARTINO, Luís Mauro (ORGs). Sociologia da Religião e Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004. p. 151-156. DE MORI, Geraldo. Posfácio: Uma mobilidade que desestabiliza, faz sair de si e convida a pensar. In: OLIVERIA, Pedro A. Ribeiro de; DE MORI, Geraldo. Mobilidade Religiosa: linguagens, juventude, política. São Paulo: Paulinas, 2012. p. 289-294. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. SILVEIRA, Emerson Sena. Espetáculo, Religião e Consumo: passagem e tensões na hipermodernidade. In: MOREIRA, Alberto da Silva; LEMOS; Carolina Teles; QUADROS, Eduardo Gusmão. A Religião Entre o Espetáculo e a Intimidade. Goiânia: PUC Goiás, 2014. p. 219-254. 3. O MASTRO DE SÃO SEBASTIÃO EM CANAVIEIRAS: HISTÓRIA, FÉ E RELIGIOSIDADE POPULAR NO SUL DA BAHIA Nome: Oslan Costa Ribeiro Titulação: Pós-Graduando Instituição: Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Membro do Grupo de pesquisa: "História, Memória e Representações: Suportes para o Turismo Cultural" (UESC), Resumo: A presente comunicação tem por objetivo apresentar uma parte dos resultados referentes à pesquisa em História, desenvolvida no curso de pós-graduação Lato Sensu em História do Brasil da Universidade Estadual de Santa Cruz (IlhéusBahia), sobre o caso da demolição da antiga e construção da nova igreja matriz de São Boaventura de Canavieiras, entre 1912-1932, sob a perspectiva dos conceitos de memória, identidade e patrimônio religioso. Nas fontes hemerográficas, verificou-se no início do século XX, uma epidemia de varíola e lepra que assolou o município de Canavieiras. O desespero da população pela rápida disseminação da doença, pelas mortes provocadas, pela ausência da medicina legal na cidade, impulsionou o surgimento da devoção popular em torno do mártir São Sebastião ao qual pediam proteção e livramento da peste. A notícia mais antiga sobre essa devoção data de 1905, quando um mastro em honra do santo mártir foi erguido em frente à antiga igreja matriz de São Boaventura, e, de 1909 quando sua imagem foi adquirida para as novenas na capela de Jesus, Maria e José, ainda em construção, por esta igreja ser mais próxima do leprosário da cidade. Ainda hoje, o mastro de São Sebastião é a maior manifestação de religiosidade popular em Canavieiras. É erguido todos os anos a 11 472 de janeiro na Praça da Capelinha de Jesus, Maria e José, precedido de cortejo pelas ruas, acompanhado por uma grande multidão, que levam cascas e folhas do tronco de madeira recém cortado da mata, buscando através do rito do chá e pela fé, a cura dos seus males corporais e espirituais. Palavras-chave: História, fé, religiosidade popular. No sul da Bahia, onde foi iniciada a ocupação do Brasil pelos portugueses a partir de 1500, o catolicismo foi implantado sob a proteção da Coroa, como religião oficial do estado, imposto à duras penas à população indígena no processo de catequização, liderado principalmente, pelos missionários da Companhia de Jesus. Santos e festejos religiosos da Igreja em Portugal foram trazidos como modelo de religiosidade para a colonização. A Virgem Maria em seus diversos títulos, São José, Santo Antônio, São João Batista, São Benedito, são alguns nomes que fazem parte desse elenco de santos populares em Portugal que aos poucos foram inseridos na catequização dos padres jesuítas aqui no Brasil. Outro não menos popular em Portugal foi trazido e apresentado como protetor dos indígenas – São Sebastião (executado no ano 288 d. C.), mártir da fé católica, santo guerreiro, crivado de flechas – foi o personagem religioso que mais se adequou àquele processo de ocupação portuguesa e de propagação da fé católica através da catequização. Os jesuítas se utilizaram de elementos da cultura dos indígenas já percebidas, como um santo crivado de flechas, as mesmas flechas usadas como arma e para a caça, para ali aplicarem uma pedagogia mais eficaz de ensino da doutrina católica, criando uma comunicação visual catequética, no obstinado projeto colonial de conversão à fé católica. Surge indício do uso de mastros erguidos em honra ao mártir São Sebastião, por se assemelhar, em algumas nações indígenas, a corrida de toras que os homens em aldeamentos realizavam entre si, numa competição de força e demonstração de virilidade, segundo Couto, 1999. Assimilando isso, os missionários jesuítas viram uma forma de resignificar ao seu modo e projeto, elementos culturais dos indígenas, para aplicarem sua metodologia catequética. Claro, que esse processo não foi de paz. Houve muita resistência e conflitos entre os brancos colonizadores e as nações indígenas. O sucesso no estabelecimento da religião católica na colônia era a garantia também de sucesso do estado em seu plano de ocupação. 473 O mastro de São Sebastião se tornou um elemento de pedido de perdão a Deus pelo martírio do santo, ao mesmo tempo, de homenagem ao santo protetor, e uma seta que aponta para o céu onde habita esse Deus. Na região sul da Bahia, essa manifestação devocional foi verificado em Olivença, povoado da capitania de São Jorge dos Ilhéus. Essa festividade, que teve início no século XVIII, quando os jesuítas fundaram um aldeamento indígena no local, foi criada para homenagear São Sebastião em troca da sua proteção contra fome, guerras e doenças e fortalecer a catequese dos índios. (COUTO, 1999, p. 197). O mastro de são sebastião em canavieiras No período colonial, a fé católica em Canavieiras culminou na instalação da freguesia criada a 11 de abril de 1718 sob o orago de São Boaventura no remoto povoado do Poxim. As relações entre os brancos colonizadores e os indígenas da região eram também tensas e violentas, forçando a mudança do povoado e freguesia em fins do século XVIII, para a foz dos rios Pardo e Patipe, onde atualmente se encontra Canavieiras. Já não existia a sua no primitivo assento, em Poxim, pois se transladara para o sítio de Canavieiras. Haviam os moradores abandonado a originária ubicação 156 a contragosto, mudando-se para o Patipe, em virtude de não poderem mais suportar os gentios pataxós, que durante quarenta anos os incomodavam continuamente. (CAMPOS, 2006, p. 280). A 13 de dezembro de 1832, Canavieiras é elevada à categoria de município sob o título de Imperial Villa de Cannavieiras. Nesse período também, a tradição oral local acusa que em meados do mesmo século XIX surgiram práticas de devoção a São Sebastião em Canavieiras, através de uma narrativa mítica de um milagre do santo mártir a uma família. “Como tudo começou - Explica o coordenador da Puxada do Mastro de São Sebastião há 57 anos, Trajano Barbosa, que a tradição começou há cerca de 150 anos, com uma história de uma família - pai, mãe e um casal de filhos que veio morar em Canavieiras. Como não encontrou emprego nas roças de cacau, ele resolveu procurar uma área para morar, encontrando-a próximo onde hoje é o bairro da Birindiba. Na nova casa, mãe e filho foram acometidos pela lepra, morrendo em seguida. Depois foi a vez do chefe da família, que também contraiu essa terrível doença, à época tida como sem cura. Numa noite, enquanto a filha esquentava água para o pai tomar banho teve uma visão. Ela via um homem todo perfurado por flechas, amarrado a uma árvore, que lhe dizia: "Tire as folhas da árvore e faça Ubiquação: razão formal de algo estar nesse, naquele, ou qualquer outro lugar. (Dicionário HOUAISS, 2008, p. 2796). 156 474 um chá para seu pai beber. Também coloque na água do banho que ele ficará bom". Imediatamente ela contou ao pai e como não sabia qual das três árvores em frente à casa - amescla, aroeira e sete cascos – resolveu juntar as três e atendeu o pedido. Isso era o dia 11 de janeiro e já no dia 20, o pai se levantou da cama e a terrível doença foi erradicada de Canavieiras, para surpresada população. Com saúde, ele arranjou trabalho numa fazenda vizinha e no dia 11 de janeiro seguinte pediu uma folga ao patrão para pagar a promessa. Entrou na mata, cortou um pau, ornamentou com folhas e arrastou pelas ruas da cidade, até as imediações da Capelinha, hasteando o pau. Nos anos seguintes, ele voltou a realizar a puxada, que se tornou tradição na cidade. Com o passar do tempo ele comprou a propriedade em que trabalhava e se tornou um próspero fazendeiro. ”157 Ainda que longa, optamos por citar inteiramente a narrativa mítica acima, por compreender a sua importância fundante nessa prática religiosa, que embora resignificada, persiste até os dias atuais com grande adesão de fiéis. Segundo Modin: “O mito é por definição, relato ou representação imaginária: não é uma fotografia da realidade, mas uma representação fantástica. O mito não é história, entendida como fiel transcrição dos fatos, mas história mais ou menos romanceda. Por essa razão, a porcentagem de verdade do mito é necessariamente limitada, ainda que sua intencionalidade seja claramente verídica.” (MONDIN, 1997, p. 72). Em 1905, fontes hemerográficas publicam a notícia do levantamento do mastro de São Sebastião em frente à velha igreja matriz (demolida entre 1932-1933), na Praça do Paço, seguida de novena. Esses festejos sebastianos foram transferidos posteriormente para outra igreja, afastada do centro da cidade: a capela de Jesus, Maria e José (Capelinha) que ainda se encontrava em conclusão de sua construção iniciada em 1904. O jornal “A Razão”, de Canavieiras, noticia em 1909 a aquisição de uma imagem de São Sebastião para Capelinha: “Imagem de S. Sebastião – Chegou hontem na barcaça Sissa, S. Sebastião, cuja imagem benta pelo Padre Tapyranga na matriz de Santo Antônio da Capital, será conduzida para a Capella de Jesus, Maria e José.”158 A narrativa mítica do milagre ocorrido pela intercessão de São Sebastião em meados do século XIX contra a lepra foi revivida pelos fiéis, entre a década de 19301940, pedindo o livramento da epidemia da varíola, também, altamente contagiosa. DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO DE CANAVIEIRAS-BAHIA, Ano III, edição 343, de 09/01/2015, p. 1. In: http://www.doem.org.br/diarios/35829/37A3B526-59C1-4946-A93B4CF3B6DBE8AEASSSSS_signed.pdf, acessado em 27/04/2016. 158 A RAZÃO, Ano III, n° 104, de 21/11/1909. 157 475 A religiosidade popular era praticada através de novenas, preces, cantos e súplicas e longas procissões arrastando o mastro em penitencia pelo perdão dos pecados, pois acreditavam sofrer outro grande castigo, expressado no refrão do hino ao santo cantado até hoje, que diz: “Mártir São Sebastião seja o nosso protetor, queira nos livrar da peste, amorosíssimo senhor! Queira nos livrar da peste, amorosíssimo senhor!...”159. O sacrifício era preço para o livramento do surto que assolava os moradores. O uso das folhas do tronco do mastro servia de chás curativos, conforme a ordem do santo a menina do milagre fundante dessa tradição religiosa. Essa experiência com o sagrado em busca da cura através da intercessão do santo mártir, aos poucos foi dando lugar a manifestações de cunho profano, identificados a partir da década de 1950 pelas fontes hemerográficas e pelo livro de tombo da Freguesia de São Boaventura do Poxim de Canavieiras. Além da religiosidade no levantamento do mastro, em frente da igreja, ocorria a festa na praça. Os excessos provocados pelo consumo do álcool e da jogatina provocavam confusões sociais e o padre da época combatia, mas era ignorado. Para proteger o lado sagrado do mastro, o padre resolveu não mais levantar o mesmo na praça em frente à igreja da Capelinha, e sim, num terreno doado pela prefeitura municipal em outro bairro. Houve resistência por parte da população que era contra a mudança, e em 1956, foram levantados dois mastros a 11 de janeiro: o do padre e outro na Praça da Capelinha, sem a bênção da Igreja. Após esse episódio repetido até 1958, não evitou que a levantamento do mastro ocasionasse também uma manifestação profana. A partir da década de 1960 o mastro voltou a ser um levantado na Praça da Capelinha, seguido de novena até 20 de janeiro na igreja e com festa na praça. Na década de 1990 foi construída uma igreja nova no terreno doado pela prefeitura municipal em 1954, no atual bairro São Sebastião, onde ocorrem as novenas e missas, continuando o mastro a ser levantado na praça de sempre. O cortejo do mastro do Porto Grande até a Praça da Capelinha, na noite de 11 de janeiro a cada ano, é acompanhado por grande multidão, filarmônicas e fanfarras musicais, grupos folclóricos como o Boi Duro – uma versão regional mais conhecida pelo país como Bumba meu boi –, e por políticos que utilizam da festa como 159 Domínio público. 476 termômetro eleitoral. Outra grande multidão já espera a chegada do mastro na praça, onde é levantado ao som do rufar de tambores e dobrados das filarmônicas, encerrando com show de várias bandas de axé music em um trio elétrico. Consideração final História, fé e religiosidade no mastro de São Sebastião no município sul baiano Canavieiras é verificado nos festejos a cada ano. Embora a Igreja não acompanhe oficialmente o mastro levantado na Praça da Capelinha, parte do público que acompanha segurando em suas mãos galhos com folhas do tronco arrastado, acredita na eficácia curativa delas através do chá, ou como amuleto, ao colocarem uma folha na carteira para ter prosperidade o ano todo. A municipalidade usa o mastro de São Sebastião, como um evento cultural que evoca a tradição repetida há quase 150 anos para ser mais um atrativo folclórico local, seduzindo a atenção de turistas nacionais e internacionais, que em sua maioria, já se encontram na cidade atraídos por suas praias, rios, manguezais e história. A história, fé e religiosidade no mastro de São Sebastião foram retomadas pela Igreja católica no município de Canavieiras em outras localidades e em outros dias: 12 de janeiro no bairro praieiro da Atalaia e no dia 20 (festa de São Sebastião) na comunidade rural do Estreito. Em todas elas, os fiéis fazem memória (atualizando em suas necessidades atuais) o milagre fundante ocorrido em meados do século XIX (lepra) e do livramento da varíola nas décadas de 1930-1940, levando cascas e folhas do tronco de madeira recém cortado da mata, buscando através do rito do chá e pela fé, a cura dos seus males corporais e espirituais. Referências ABREU, Martha. O império do Divino – Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira/São Paulo: Fepesp, 1999, 406 p; ANDRADE, Solange Ramos. Breves considerações acerca da vitalidade de um mártir no catolicismo. In: QUADROS, Eduardo Gusmão; SILVA, Maria da Conceição. Sociabilidades religiosas: mitos, ritos e identidades. Coleção estudos da ABHR, Vol. 8. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 177-190; 477 AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Festa à Brasileira – Significados do festejar, no país que “não é sério”. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de São Paulo, 1998, p. 224-225; CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. 3ª edição. Ilhéus: Editus, 2006, p. 422; COSTA, Alcides. Canavieiras – sua história e sua gente (Lendas e festas). 2ª edição. Itabuna: Via Litterarum Editora, 2014, 175 p; ---------------------. Piaçava, côco, fatos e fofocas e um congresso paroquial. Salvador: Ed. Mensageiro da fé, 1969, 54 p; COUTO, Edilece Souza. A Puxada do Mastro. Transformações históricas da festa de São Sebastião em Olivença (Ilhéus-BA). Revista Ideação. UEFS, Feira de Santana – Bahia, n.3, p. 197-200, jan./jun. 1999. Disponível em: www.revistaideacao.com.br , acessado em 11/11/2013; FRANÇA Fº, Durval Pereira. 100 anos de Canavieiras. Canavieiras: Prefeitura Municipal de Canavieiras – Bahia, 1991, 119 p; HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. 6ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 316 p; MONDIN, Battista. Quem é Deus? – Elementos de teologia filosófica. São Paulo: Paulus, 1997, p. 31-79; SIQUEIRA, Sonia A. Religião ou religiosidade: continente ou conteúdo? In. ASSIS, Angelo Adriano F.; PEREIRA, Mabel Salgado (Orgs). Religião e religiosidades: entre a tradição e a modernidade. Coleção estudos da ABHR; vol. 7. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 143-157; SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 542 p. ___________________________________________________________________ GT 15 CAPITALISMO, SAÚDE E RELIGIÃO Coordenadores: Prof. Dr. Alberto da Silva Moreira/PUC Goiás Prof. Doutorando Pedro Fernando Sahium /UEG 478 Ementa: A globalidade do mercado transcende os indivíduos, as classes sociais e as nações, e envolve todos numa mesma integralidade. Seu domínio não conhece fronteiras, abarca o planeta por inteiro. A universalidade do mercado, ou seja, sua extensão confere-lhe a dimensão de realidade total e totalitária. A transcendência do mercado se realiza através do consumo, inserindo e comprometendo o indivíduo na sua promessa de felicidade. Por tudo isso, não deveria o capitalismo atual ser pensado e analisado como uma religião? Se sim, que tipo de religião seria esta, que desafios teóricos ela coloca às ciências da religião, que desafios práticos propõe à política e à cidadania, que desafios pastorais apresenta às religiões. Se não, onde estariam as fronteiras, os limites, as pertinências de cada um? Este GT acolhe contribuições que queiram discutir e analisar as pretensões religiosas do capitalismo, sua produção e uso dos símbolos, a fusão dos horizontes da economia capitalista com as expectativas de felicidade, saúde e realização humana, a empatia da mercadoria com a esfera libidinal e do desejo, as experiências de transcendência ligadas ao consumo, sua linguagem e estética, bem como as patologias e adoecimentos que provoca. Por outro lado, também são bem-vindas contribuições que, desde abordagens econômicas, sociológicas, antropológicas, de gênero, psicológicas, teológicas, lingüísticas, das ciências da saúde e outras, analisem aspectos concretos ou estudos de caso da transformação da religião pela interação com a economia capitalista ou da mutação da religião por sua conformação à lógica do mercado ou do capital. Comunicações: ABURGUESAMENTO DO EVANGELHO: O ESTILO DE VIDA PENTECOSTAL E SEU O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO 1. Dr. José Rômulo de Magalhães Filho Faculdade Ruy Barbosa / Faculdade Área1 (Grupo Devry Brasil) jrmf.pro@gmail.com Resumo: O estudo aqui desenvolvido busca apresentar o significado do conceito de aburguesamento do evangelho a partir do estabelecimento de um estilo de vida próprio desenvolvido pela Igreja Presbiteriana Renovada, e que está fundamentado em um projeto ético-político presente no pentecostalismo neoclássico brasileiro. O conceito de estilo de vida aparece em Bourdieu (1983) como expressão sistemática das condições existentes e, segundo o próprio autor, é produto do habitus. Estes elementos indicam as propriedades do estilo de vida observado e analisado. O estilo de vida, no pensar bourdieusiano, é manifesto em ações bem práticas, tais como o modo de se vestir, de falar, de morar, de comportar-se socialmente etc. Daí o surgimento da ideia de aburguesamento, que é apresentado como o consumismo que vicia e gera insatisfação dentro da lógica do consumir mais para se firmar no grupo social. A busca por esta afirmação leva a elaboração de modelos pré-estabelecidos de estilos de vida. O estudo aqui apresentado é parte da tese de doutoramento apresentado em 2014, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. 479 Palavras-chave: Aburguesamento; Estilo de vida; Bourdieu; pentecostalismo. Vida renovada é uma expressão utilizada como elemento de marketing da Igreja Presbiteriana Renovada de Aracaju (IPRA). O próprio domínio virtual traz a expressão supracitada; muito mais do que um slogan, vida renovada é um conceito, uma ideia, um projeto a se realizar na vida de pessoas e de um grupo social e, de forma mais ambiciosa, na sociedade como um todo. Nesta comunicação se busca apresentar o significado deste conceito, que está diretamente ligado ao estabelecimento de um estilo de vida próprio, de um processo daquilo que vou chamar de aburguesamento e que está diretamente ligado a um projeto ético-político do pentecostalismo neoclássico. Para tanto, parto do seguinte questionamento: existe um estilo de vida renovado que aponta para um projeto éticopolítico específico? A resposta a esta pergunta passa pela leitura do que venha a ser estilo de vida e projeto ético-político. Concomitante a estas respostas que aparecem como conceito fundantes, procuro entender o que é de fato estilo de vida renovado a partir do processo de aburguesamento. O estudo aqui apresentado é parte da tese de doutoramento, defendida em 2014 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que teve como objeto de estudo a Igreja Presbiteriana Renovada na cidade de Aracaju (IPRA). Estilo de Vida Renovado e Aburguesamento O conceito de estilo de vida aparece em Bourdieu (1983) como expressão sistemática das condições existentes e, segundo o próprio autor, é produto do habitus. O estilo de vida como habitus se dá ao verificar que existe sistematicidade e unidade não só no trabalho realizado como também no modo de operacionalizar este trabalho. Estes dois elementos indicam as propriedades do estilo de vida observado e analisado. Este estilo de vida, no pensar bourdieusiano, é manifesto em ações bem práticas, tais como o modo de se vestir, de falar, de morar, de comportar-se socialmente etc. E são, na verdade, estas práticas que gerarão o habitus “como princípio unificador e gerador de todas as práticas”. (BOURDIEU, 1983, p. 83). Para melhor compreender o conceito de estilo de vida em Bourdieu, que é o que adoto para analisar a IPRA, faz-se necessário digressionar e apresentar o conceito de 480 habitus. Ortiz (1983) afirma que a noção de habitus trazido por Bourdieu vem da escolástica, que se referia ao que era aprendido. Partindo deste conceito, Ortiz (1983) vai afirmar que Bourdieu faz uma reinterpretação do mesmo, agora dentro do choque de ideias que ocorre entre o objetivismo e a fenomenologia. Apresentando a teoria do habitus, Setton (2002, p. 63) afirma: “surge então como um conceito capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais [...] um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas e estruturantes”. Logo, o habitus é aquilo que é incorporado, apreendido, interiorizado. Ele aparece como algo social, e está relacionado com um grupo ou uma classe; entretanto se apresenta como componente individual. Ao internalizar um habitus (ação objetiva) interiorizam-se comportamentos e ações, ação subjetiva. Este conceito surge na obra de Bourdieu (1983) para descrever um conjunto de acondicionamentos que determina os gostos e caracterizam certa camada ou grupo social. O conceito é empregado para indicar as disposições não conscientes, projetos de vida coletiva, preferências de grupos. O habitus não opera apenas no plano do conhecido, mas está estabelecido no próprio corpo, mostrando-se no seu tamanho, desenho, modo de se sentar, comer, vestir, beber. Bourdieu (1983) chega a afirmar que o corpo materializa o gosto de uma classe, é o gosto corporificado. É o estilo de vida, então o conjunto de práticas que geram o habitus, e apropriarse materialmente e simbolicamente, de certas categorias e práticas de um grupo é o que gera um estilo de vida; são as relações de associação ou o seu inverso na estratificação social (BOURDIEU,1983). Por exemplo, as formas de estilo de consumo, como a música que se ouve, a roupa que se veste, o restaurante que se frequenta, a linguagem que se usa (expressões verbais) são significados atribuídos por indivíduos que se adéquam aos grupos ou estratos, buscando identificação com os mesmos. É a adequação à imagem social do grupo. Neste sentido, a igreja estabelece um estilo de vida próprio. Esta estilização ocorre a partir de um distanciamento do mundo e está ligada a uma ascensão social, a certa mobilidade. Ao se referir ao distanciamento do mundo, a tese bourdieusiana é de afastamento da realidade anteriormente vivida. Nesta perspectiva há uma necessidade de romper com o que é passado, com o que pode lembrar uma situação anterior que causou alguma experiência vexatória. A lembrança, 481 a relação com o passado colocam as pessoas em contato com momentos em que elas mesmas podem decidir seus valores. E nem sempre isso é positivo para alguns. Assim, romper com a religião dos pais, com o convívio familiar, com o clã, é elemento importante, principalmente para aqueles que almejam ter uma mudança no que se refere a status social. Este rompimento é um modo de marcar a passagem para um novo estrato social, uma nova esfera de relações, onde o que prevalece não é a tradição ou a relação de confiança, mas o estilo de vida que é exibido nos grupos de convivência. São variados estes grupos de convivência; a comunidade religiosa é um deles. A este rompimento eu chamo de aburguesamento, que é o assumir os hábitos, os gostos, o estilo de vida, a cultura e os valores de segmentos médios urbanos. Chamo de rompimento o abandono de um estilo anterior de vida, de gosto e valores típicos de outras camadas sociais. Quando me refiro a aburguesamento, falo do assumir os gostos e valores de segmentos médios dominantes, que ideologicamente determinam o comportamento de pessoas. Lacroix (1972, p. 13) ao definir o burguês contrapondo com o conceito de proletário no marxismo, diz que ele é “contentamento, portanto inconsistência: ele é alienado sem sabê-lo”. Assim a condição econômica aliena o burguês, o adormecendo e desenvolvendo nele uma consciência feliz, justificando esta alienação – a não tomada de consciência na leitura marxista feita por Lacroix (1972) – com um refúgio no transcendente. Daí a prática de caridade e ações assistencialistas daqueles que assumem esta condição. Tomando este conceito de burguesia em Lacroix (1972) que é o de contentamento e inconsciência, e diante de um movimento global que leva a uma “concorrência incessante” (FERRY, 2008, p.43), a sociedade contemporânea vive uma globalização da competição, que vê a história acontecer independente sua vontade. “Precisamos o tempo todo ‘progredir’, mas esse progresso mecanicamente induzido por uma luta pela sobrevivência” (FERRY, 2008, p. 43). Aburguesamento é se inserir neste contexto de competição sem a devida consciência, dai a alienação sugerida por Lacroix (1972). É o consumismo que vicia e gera insatisfação dentro da lógica do consumir mais para se firmar no grupo social. A busca por esta afirmação leva a elaboração de modelos pré-estabelecidos de estilos de vida. 482 Ferry (2008) procura demonstrar que esta condição de consumismo desenfreado, ou de alienação burguesa não ocorria em gerações passadas, pois os valores morais e cívicos eram bem definidos. Demonstra também que a sociedade de consumo desconstruiu esses valores, colocando no lugar a necessidade do ter, o que gera concorrência. Entre os indivíduos. O rompimento com o passado, com valores anteriormente constituídos aponta para esta hipótese construída por Ferry (2008) de uma sociedade que consome desenfreadamente. No entanto na estratégia de estabelecer uma população sem consciência e sem ação, alienada portanto; novos valores podem e são elaborados, que acatam as necessidades do mercado consumidor, mas também condiciona pessoas a viverem de um modo específico, que busca formar um “ideal transcendente e religioso no qual se refugia” (LACROIX, 1972, p. 13). Mas também o aburguesamento se dá no sentido de acúmulo de riqueza e da construção de uma propriedade privada, mesmo que pequena, mas conquistada com esforço próprio. A propriedade pode ser um pequeno negócio; a casa própria em um condomínio que expresse o novo estilo de vida, semelhante ao do grupo que agora pertence; como pode ser o emprego alcançado pelo mérito. Esta perspectiva de aburguesamento coloca esta parcela da população em uma posição oposta a da maioria dos trabalhadores. O sentimento de pertencimento a um grupo social que possui bens e que consome serviços o distancia da ideia de classe, que luta por melhores condições de vida. O processo de aburguesamento, ao mesmo tempo em que insere o indivíduo em grupos específicos, estabelece uma distância deste indivíduo com as históricas lutas de classe. Aburguesamento é, então, não só viver um novo habitus como também transferir o foco de seus interesses sociais. Do coletivo para o individual. Onde a comunidade é um meio para se viver um novo estilo de vida, e não um fim. A Igreja: espaço de um novo estilo de vida A comunidade religiosa é um destes grupos sociais de aprendizado coletivo, de um espaço para estabelecer um estilo de vida. Porém os modelos que se apresentam para os segmentos médios e que cada dia ganham mais notoriedade entre eles, têm se amoldado a este estilo de vida individualista, característica de um aburguesamento. O 483 discurso é marcado pelo individualismo, pelas palavras de incentivo a uma vitória pessoal diante de dificuldades. Referindo-se a este estilo de vida e à busca de identificação com o grupo, o Pastor da IPRA afirmou: O sentido de vida renovada, de renovar é o sentido de Romanos 12: em Deus uma nova perspectiva de vida, que não se resume à vida religiosa, mas se resume a vida em todos os aspectos: conjugal, a vida familiar, a vida profissional. Um novo estilo de vida, que não é novo, que é velho, mas, porém as pessoas não tem conhecimento. [...] Este renovado é o cidadão como um todo, como pai, como esposo, como profissional. [Cristão que vai] se esforçando a adquirir conhecimento, estudo, uma releitura da Bíblia Sagrada [...] uma leitura numa perspectiva nova, de vida transformada em Cristo Jesus. [...] Nós não somos uma igreja que pregue em cima da prosperidade, embora quando você comece a viver este “estilo de vida renovado”, ou seja, o moço vai melhor na faculdade, tem um concurso ele se prepara muito mais, ele sabe que não basta ficar orando, tem de se preparar, ele como, como, depois de aprovado no concurso, depois de terminar a faculdade ele também tem uma mente renovada, porque dentro da igreja ele já aprendeu a pensar maior, que ele tem um potencial em Cristo, que ele estudou, esta é a vida renovada, e ele experimente a boa, perfeita e agradável vontade de Deus para a vida dele. (ANDRADE, 2012). No que se refere à ideia de afastamento do grupo social anterior é muito forte. Um casal de entrevistado afirmou: “Foi à primeira igreja evangélica que chegamos. [...] fomos à igreja do meu sobrinho evangélico, aquela da Barão de Maruim, a Renovada, já gostei, daqui eu não saio mais. E de lá prá cá, estamos crescendo mais em Cristo, em família”. O casal entrevistado buscava um referencial para a nova vida que iniciara. Recém-casados procuram uma comunidade religiosa, e afirmam ter encontrado na IPRA a possibilidade como afirmado pela esposa: “desenvolver nossos dons”. A permanência na igreja os afastou de grupos anteriores, ligados ao uma vida classificada pelo casal de ainda não renovada, e possibilitou a assimilação de novos hábitos, valores, gostos. O interessante é que mulher, na conclusão da nossa entrevista trouxe uma fala muito próxima a do Pastor da igreja, revelando exatamente este processo de aprendizado e de interiorização de valores. Estar na igreja é estar seguro. E isso é levado até as últimas consequências pela direção da igreja. O projeto Ético-politico Entende-se por projeto ético-político as ações coordenadas do pentecostalismo voltadas para a construção de uma sociedade que tem princípios em uma interpretação 484 quase que literal das escrituras sagradas, onde a família é vista como centro da sociedade e, na centralidade da família, está o homem. O projeto ético-político pentecostal que é aqui apresentado como perspectiva a médio e em longo prazo de um Estado evangélico e conservador; este projeto tem como elemento chave o estabelecimento de um estilo de vida próprio; estilo que se revela como prática religiosa. No grupo observado é o que eles chamam de estilo de vida renovado, ou simplesmente: vida renovada. A IPRA vem construindo um projeto ético-político com base no conceito de Família Renovada. Conceito este que passa pelo estabelecimento de um estilo de vida específico, como indicado anteriormente. A estratégia de ação foi toda construída a partir do conceito de família, que é patriarcal, monogâmica e fundada na base da obediência. Outra entrevistada, ao definir Vida Renovada, expressa claramente seu sentimento de pertencimento a este grupo que se coloca como família: Entrevistador: Eu quero saber assim, o que essa vida renovada pra você? Resposta: Renovação de tudo, de pessoa, de mente de alma assim é aquela historia que morreu pro mundo é a nova criatura então... pra mim é isso, mudança de velhos hábitos, tá renovando, com os novos. Pra mim é isso! [...] o que eu sou hoje é graças a igreja a Deus primeiramente e aos meus Pastores, como eles dizem uma vez ovelha sempre ovelha, né? Foi um papel fundamental pra minha vida quanto pessoa ser humano, a minha base, foi a igreja, pra mim é tudo. A Igreja é tudo! A família é tudo! São afirmações presentes na fala dos entrevistados. O Pastor, em sua entrevista, deixou claro que o foco das atividades eclesiásticas ser a família foi uma escolha estratégica. Estas falas, a observação e o material analisado apontam para a ideia do estabelecimento de um estilo de vida específico, que é a construção de um habitus, fundado no conceito de uma família renovada. Onde se faz presente uma organização baseada na liderança firme e hierárquica determinada, vislumbra-se uma sociedade que se firmará em um projeto ético-político pentecostal. Conclusão Percebe-se que os pentecostais têm agido em busca de um modelo de sociedade fundamentada em valores como obediência, ordem, família heterossexual e monogâmica, propriedade privada e meritocracia. Estes valores têm uma base religiosa (a Bíblia Cristã), mas também uma orientação de manutenção de uma sociedade 485 comprometida com o capital e que precisa de uma população satisfeita com sua condição – princípios do aburguesamento. Uma população obediente e que atende as vozes de sua liderança. É a continuidade e não a renovação. A presença do discurso conservador nas comunidades evangélicas pentecostais, somado ao crescimento em proporções geométricas, nos leva a pensar de forma mais específica como se comportarão os outros segmentos da sociedade diante da iminência de um Estado Cristão Evangélico no Brasil. Haverá espaço para as diferenças? As conquistas jurídico-sociais serão mantidas, ou haverá revisão nos direitos de minorias já conquistados? Não estou falando de algo irreal ou hipotético, mas de possibilidades concretas. Há um projeto ético-político em ação e este têm ganhado força e espaço. A grande mídia tem se rendido a este público, o mercado tem entendido as demandas desta parcela da população. Um espectro ronda o Brasil... O espectro do pentecostalismo. Referências ANDRADE, Marcos. Entrevista [11 de setembro, 2012]. Aracaju: Entrevista concedida a José Rômulo de Magalhães Filho. BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 82-121. FERRY, Luc. Família, amo vocês: política e vida privada na era da globalização. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. LACROIX, Jean. O homem marxista. In: ______. Marxismo, existencialismo, personalismo: presença da eternidade no tempo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. p. 7- 51. (Série Encontro e Diálogo, volume 4). ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da pratica. In: ______Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 20, ago. 2002. Disponível em: Acesso em 22 abr. 2012. 2. DA CURA AO ESPETÁCULO: REFLEXÃO DE VÍDEO DE CURA DE DEPENDENTE QUÍMICO FEITO PELO BISPO ROGÉRIO FORMIGONI DA IGREJA UNIVERSAL Nome: Paulo Afonso Tavares 486 Titulação: Mestrando/ Bolsista FAPEG Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: Nesta comunicação pretende-se apresentar reflexões sobre curas espetaculares e midiáticas de igrejas neopentecostais como resultados de transformações oriundas da modernidade e da contemporaneidade que alguns classificam de pós-modernidade, modernidade tardia e até mesmo de modernidade líquida, como secularização, desencantamento do mundo, campos sociais, campo midiático e midiatização da religião, afetando o modo da religião de ser no mundo. A nossa comunicação tem como pano de fundo um vídeo de 4:22 minutos, gravado no púlpito de uma Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo, publicado na página do bispo Rogério Formigoni, onde ele opera a cura teatral de um viciado há 20 anos em “pedra, pó, cachaça e maconha”, participando juntamente com a sua esposa. Deixando bem claro que perdeu tudo para as drogas. Após do que seria um tratamento religioso, o bispo coloca o ex-dependente químico à prova. “Cadê a cocaína que entregaram, antes de a gente jogar a gente faz um teste”, pede Formigoni. É entregue a ele um pino de plástico que, segundo o mesmo, contém cocaína. “Sente o cheiro”, diz ao ex-viciado, que faz cara de nojo após cheirar o pino. A mesma cena se repete mais adiante, porém com cerveja e maconha. Só que o interessante é que antes do corte que divide os dois momentos, o antes e o depois da cura, mostrava um viciado “fissurado” pelas drogas. Um vídeo todo elaborado com técnicas de edição de imagens para realçar a cura do dependente químico. A Igreja Universal do Reino de Deus surge com a consolidação do campo das mídias na década de 80, cujo campo efetivou a partir da segunda metade do século XX. Sendo que as igrejas neopentecostais que também surgem nesse momento não tem que adaptar ao campo midiático, como as igrejas tradicionais são obrigadas a fazerem para garantir visibilidade e publicização das suas mensagens religiosas, pois elas já nasceram midiáticas. Sendo que o campo midiático possui as suas próprias regras de conduta, e uma delas, é o espetáculo, ao aceitar as exigências deste campo, o campo religioso espetaculariza a sua mensagem religiosa, chegando até o ponto, de construí-la por meio de profissionais especializados em áreas como comunicação e marketing, com isso, os pregadores midiáticos mudam seus discursos, conforme Patriota (2005) entregando o evangelho cuidadosamente envolvido numa embalagem atrativa aos seus fieis espectadores. A programação religiosa televisiva dessas igrejas é preenchida, por exemplo, curas, milagres, exorcismos, testemunhos extraordinários. 487 Um dos muitos exemplos, de um produto midiático da Igreja Universal do Reino de Deus é o vídeo160 de cura realizada pelo bispo Rogério Formigoni de um dependente químico viciado há 20 anos. Nesse vídeo, chamou atenção de alguns meios de comunicação social, por esse bispo oferecer drogas ilícitas a esse dependente químico, como a igreja pode estar guardando drogas no seu interior? Apesar de que a droga em si, não é a centralidade desta comunicação, mas sim, a espetacularização desta cura. Inicialmente discutimos os conceitos de modernidade, secularização, campos sociais, campo midiático, midiatização e midiatização da religião, espetacularização. Após, adentra-se na análise do vídeo de cura. Modernidade e Secularização A modernidade é um projeto histórico influenciado pelo o iluminismo, onde o conhecimento revelado é substituído pelo o conhecimento racional. As verdades sagradas e reveladas são desacreditas nas sociedades ocidentais em consequência da valorização das novas tecnologias criadas pela a ciência, fazendo com que essa aumentasse o seu valor enquanto critério de verdade (MARIZ, 2006). Por isso que as verdades reveladas e imutáveis foram sendo substituídas gradativamente pelas verdades científicas, que são comprovadas empiricamente. O que houve no mundo moderno, foi a redefinição do critério de verdade. Fazendo com o que, a religião e o conhecimento determinado pelo religioso possam ser questionados e refutados. Já Hervieu-Léger (2008), afirma: O que é especificamente “moderno” não é o fato de os homens ora se aterem ora abandonarem a religião, mas é o fato de que a pretensão que a religião tem de reger a sociedade inteira e governar toda a vida de cada indivíduo foi-se tornando ilegítimo, mesmo aos olhos dos crentes mais convictos e mais fiéis. Nas sociedades modernas, a crença e a participação religiosa são “assuntos de opção pessoal”: são assuntos particulares que dependem da consciência individual e que nenhuma instituição religiosa ou política podem impor a quem quer que seja. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 34). É no inicio do século 16, conforme Puntel (2015), que a modernidade estabelece no Ocidente, como estrutura histórica e controversa de mudança. Mas é somente no século 19, que assumirá toda a sua amplitude. Puntel (2015) vê certa 160 https://www.youtube.com/watch?v=ggfpFk4xtMQ 488 dificuldade em definir um período histórico, referente à modernidade, mas salienta que é a partir da descoberta do continente americano em 1492 por Cristovão Colombo, dando o fim da Idade Média e o início da modernidade. É também desse período histórico a invenção da prensa por Gutenberg, iniciando a imprensa, as descobertas de Galileu e o humanismo do Renascimento, inaugurando um “modo novo de ver a realidade”, (PUNTEL, 2015, p. 50). Para uma melhor compreensão do processo de secularização oriundo na modernidade, precisamos primeiro conceituar religião, bem como entender o que se encontra na esfera do sagrado e na esfera do profano. Portanto para Berger (1985) a religião é um fato social, um “empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado” (BERGER, 1985, p. 38-9). O mesmo autor ainda define o sagrado como a qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem, que se relaciona com ele, como algo extraordinário e potencialmente perigoso. Com isso, a perda do caráter sagrado dos acontecimentos seria a secularização. Mesmo com a perda e até mesmo a privatização do sagrado, a religião continuaria a desempenhar uma função de construção, manutenção e significação do mundo privado. De acordo com Berger (1985) o processo de secularização está atrelado com a origem da modernidade, bem como, com os seus pressupostos de racionalidade, a religião passa a ser uma das estruturas sociais oriunda do processo de separação. Campos Sociais e Midiático Desse processo de secularização surgem os campos sociais, resultando na autonomia dos diferentes domínios da experiência, gerando a constituição de campos de saber específicos. Possuindo características intrínsecas e regras específicas para seu funcionamento. Pois eles são compostos com funcionalidades e normas que regula suas ações e constituem como tal. O conceito de campo é oriundo da física, nos sentidos espacial e metafórico, mas com uma configuração própria. Essa concepção evidencia um campo de forças gerador de tensões entre polos de sentido opostos. Ficando somente desta área de conhecimento, a definição de tensionamento. Já Rodrigues (1999, p. 18) conceitua campo social como uma esfera de legitimidade “para criar, impor, manter, sancionar e restabelecer os valores e as regras, 489 tanto constitutivas como normativas, que regulam um domínio autonomizado da experiência. Cada campo social é composto por instituições reconhecidas e respeitadas dentro de um domínio distinto de competência de impor seus próprios modos de operar, tanto para o próprio campo, quanto para os membros que a compõem. Borelli (2007, p. 40) salienta que os campos sociais apresentam “características intrínsecas e regras específicas para seu funcionamento, pois são dotados de funções e de normas que orientam suas ações e o constituem como tal”. Eles são formados por especificidades e características muito particulares que os diferenciam dos demais, com isso, garantem a sua singularidade. São essas especificidades constituídas por ações e marcas discursivas que fazem que os campos sociais gerem simbólicas, destaca Borelli (2007). Borelli (2007) afirma que cada campo social mantém um domínio específico da experiência, para constituir e assegurar sua visibilidade pública, possui uma legitimidade própria e uma simbólica particular. Por isso essas simbólicas podem ser formal ou informal. A primeira é marcada por regras constitutivas e normativas, com rigor e exclusividade de uso pelos seus especialistas. Já a segunda tem como característica um apagamento das marcas distintivas no intuito de garantir permeabilidade na sociedade. O campo midiático surge da necessidade dos campos sociais conservarem-se unidos e ligados, fugindo do isolamento para atingir os domínios da experiência moderna, que não é mais marcada pela solidez, mas sim pela fluidez. Iniciando a partir da segunda metade do século XX e consumando na década de 80, com a finalidade de gerenciar a natureza conflituosa da experiência moderna, no qual acontece o “fenômeno da autonomização dos diferentes domínios”, como explica Rodrigues (2000, p. 203). A ampliação da tecnologia e a criação de novos dispositivos técnicos de comunicação são fatores decisivos para o inicio do campo midiático nesse contexto de secularização da sociedade, na qual a religião não desempenha mais a função de matriz unificadora e homogeneizante da totalidade da experiência conforme Borelli (2007) e Rodrigues (1999). O campo das mídias possui o poder regulador midiático, consistindo em privar a visibilidade aos outros campos sociais, se caso eles não coloquem em prática as 490 suas regras instituídas e se não se sujeitarem aos seus valores constitutivos. Pois o campo midiático detém o poder de visibilidade, se não segue as suas lógicas não haverá publicização. Mas os demais campos sociais podem negar ou restringir o acesso aos seus temas, ocultando informações e até mesmo produzindo outros tipos de mecanismos de visibilidade pública, sem precisar recorrer à ajuda do campo das mídias, outra experiência de visibilidade gerando outras ressonâncias. Para que isso não ocorra é necessária essa relação de interdependência entre o campo midiático e os demais campos sociais. Assim os campos sociais garantirão visibilidade frente à esfera pública, e a mídia concederá visibilidade a esses campos. Essa visibilidade que o campo midiático concede aos demais campos acontece através de embates e tensões instaurados por vínculos entre os campos, cada um possui a sua própria simbólica e relevância, que assegura a visibilidade pública. O discurso do campo das mídias só consegue assumir uma importante função de posicionamento centralizante na estruturação do tecido social, por causa da divergência de objetivos e interesses entre os campos sociais. A televisão acaba sendo para muitos indivíduos o único meio de acesso às informações de variados campos sociais, tornando o único olhar para a realidade socioeconômico-politico-cultural. Sociedade em Midiatização Na contemporaneidade surge um novo modo de viver a religião. A identidade não é mais construída a partir da tradição, mas a partir da midiatização das praticas sociais que reorganizam os grupos numa nova dimensão (PUNTEL, 2008). Sendo a midiatização que afeta as práticas sociais, afeta as práticas religiosas. Surgindo então um novo modo de ser no mundo, uma nova ambiência, caracterizada pelo processo de midiatização da sociedade, ainda pouco conhecida e explorada, mas que tem como uma de suas principais características o compartilhamento de informações, a participação. A sociedade está se tornando cada vez mais midiatizada. Segundo Gomes, “se um aspecto ou fato não é midiatizado, ele parece não existir”. (2010, p. 163). Ou ainda: “Cada vez mais o fato, para ser reconhecido como real, deve ser midiatizado. Tudo é feito eletronicamente”. (2010, p. 164). 491 Gomes analisa que, “aceitar a midiatização como um novo modo de ser no mundo, coloca-nos numa nova ambiência que, se bem tenha fundamento no processo desenvolvido até aqui, significa um salto qualitativo no modo de construir sentido social e pessoal”. (2010, p. 163). De acordo com Fausto Neto (2009, p. 4): A midiatização consiste no desenvolvimento de fenômenos técnicos transformados em meios, que se instauram intensa e aceleradamente na sociedade, alterando os atuais processos sócio-técnico-discursivos de produção, circulação e recepção de mensagens. Produz mutações na própria ambiência, nos processos, produtos e interações entre os indivíduos, na organização e nas instituições sociais. Logo as instituições religiosas não ficam fora desse processo. Surge nos Estados Unidos na década de 50, o fenômeno hoje conhecido como Igreja Eletrônica. Pois alguns pastores acreditando que a televisão era um meio enviando por Deus para pregar o Evangelho para o mundo, maravilhados com poder de alcance e mobilização desse novo meio, passaram a comprar espaço na mídia televisiva. Conforme Gomes (2010) a Igreja Eletrônica chegou ao Brasil através dos programas dos pastores, Pat Robertson, Rex Humbard, Billy Graham, Oral Roberts entre outros. Com o passar dos anos, esses programas evangélicos americanos foram substituídos por pregadores nacionais, tanto no rádio quanto na televisão. O bispo Edir Macedo, o fundador da Igreja Universal do Reino de Deus é um dos pregadores nacionais. E sua igreja nasceu nessa nova ambiência em midiatização. Segundo Borelli (2011) as igrejas neopentecostais, da qual a Universal faz parte, nasceram na era das mídias, bem diferente das igrejas tradicionais, igual o catolicismo, por isso essas igrejas tradicionais tem grande dificuldades em utilizar os meios de comunicação sem deixar contaminar por eles. E por as igrejas neopentecostais nascerem na sociedade em midiatização, elas atuam mais a partir de “lógica midiática do que religiosa” (BORELLI, 2011, p. 01). Análise Uma destas lógicas midiáticas é o espetáculo. A palavra espetáculo vem do latim, spectaculum, significando, representação teatral. Tudo o que chama atenção, despertando a curiosidade visual. Ortega e Gasset (1978, p. 46 apud NASCIMENTO, 2012, p. 36) conceitua o espetáculo, “como presença e potência de visão, ou seja, é 492 algo que se vê”. Diferenciando as artes de cena e artes de representação. No primeiro, o que é visto é realidade, já no segundo , é um mundo imaginário que oferece “realidades que têm a condição de apresentar-nos em lugar delas mesmas outras, distintas” (ORTEGA e GASSET, 1978, apud NASCIMENTO, 2012, p. 36). Por isso que caracterizamos como espetáculo as estratégicas midiáticas empregadas pelo bispo Rogério Formigoni no vídeo de cura em questão, para atrair o maior número possível de fiéis para a Igreja Universal do Reino de Deus. Nascimento (2012) que as igrejas neopentecostais baseadas nos dramas dramatúrgicos, que elas iniciaram “sua empreitada em busca do ‘espetáculo da fé’”. No vídeo da cura de um jovem há 20 anos viciado no crack, dividido entre o vício e o amor por sua esposa. Indagado pelo bispo Formigoni, “você não vê a sua esposa sofrer?” entre lágrimas o jovem responde, que o vício é bem mais forte do que ele. Ao mesmo tempo, que mostra uma esposa sofrendo por causa do vício do marido, que vendeu a televisão adquirida por 700 reais, por 150 reais “para fumar em pedra”, vendendo até mesmo o sapato adquirido para o casamento dos dois. Mostra também o viciado agitado, nas palavras do bispo, “fissurado”. Para comprovar aos telespectadores do vídeo, que o jovem, realmente é viciado, o bispo Formigoni, oferece a ele cocaína, cerveja. Colocando a cerveja num copo transparente plástico, para que realmente todos possam saber do que se trata. Só que antes, o bispo pede ao jovem que ele coloque a mão no coração e reza por ele. O vídeo sofre um corte, passando para a segunda parte, “após o tratamento”. Agora o viciado há 20 anos em diversas drogas curado tem aversão as mesmas drogas que ele estava “fissurado” para usá-las. “Cadê a cocaína que entregaram, antes de a gente jogar (fora) a gente faz um teste”, diz Formigoni. É entregue ao religioso um pino de plástico que, segundo ele, contém cocaína. “Sente o cheiro”, diz ao viciado, que faz cara de nojo passando mal após cheirar o pino. A mesma cena se repete mais adiante, porém com cerveja e maconha. Conclusão O vídeo dramatúrgico de um drama familiar, de um lado o marido viciado há 20 anos em crack, do outro lado, a esposa sofredora, que vê a televisão, até mesmo o sapato do marido, comprado para o casamento dos dois, sendo vendido para saciar o 493 vício do marido. O bispo Formigoni é mostrado como o salvador da relação conjugal ao libertar o marido do vício das drogas. Esse vídeo faz parte das estratégicas midiáticas das igrejas neopentecostais, grupo da qual a Igreja Universal do Reino de Deus faz parte, igrejas que nasceram nesse fenômeno midiático por qual a nossa sociedade está passando, na qual um fato só existe, se ele for midiatizado, ou seja publicizado pelo o campo midiático. Referências BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985. BORELLI, Viviane. Da festa ao cerimonial midiático: as estratégias de midiatização da teleromaria da Medianeira pela Rede Vida. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2007. _______.Igrejas midiáticas. “O objetivo é garantir o contato com o fiel e a permanência de sua “marca’ junto a ele”. Entrevista especial com Viviane Borelli, 2011. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500446-igrejas-midiaticas-o-objetivo-egarantir-o-contato-com-o-fiel-e-a-permanencia-de-sua-marca-junto-a-ele-entrevistaespecial-com-viviane-borelli/>. Acesso em: 13 de abr. 2016. FAUSTO NETO, Antônio. A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é bom que seja assim. In: Midiatização: uma análise do processo de comunicação em rede. IHU. Ano5. Nº 35, 2009. Universidade do Vale do Rio dos Sinos –Unisinos. RS. GOMES, Pedro Gilberto. Da Igreja eletrônica à sociedade em midiatização. São Paulo: Paulinas, 2010. HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido; a religião em movimento. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. MARIZ, Cecília Loreto. Mundo moderno, ciência e secularização. In: Falcão, Eliane Brígida Morais (Org.). Fazer ciência, pensar a cultura: estudos sobre as relações entre ciência e religião. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. NASCIMENTO, Cleoneide Moura do. “Fala que eu te Escuto” e o Espetáculo Universal da Fé. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012. PATRIOTA, Karla. Mídia e Religião: 82 horas de missas, cultos, pregações e exorcismos. Trabalho apresentado à Sessão de Temas Livres da Intercom, 2005. Disponível em: < http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/7994284325506906741776756452885506701 8.pdf />. Acesso em: 17 de mai. 2016. 494 PUNTEL, Joana Teresinha. Contribuições e desafios das mídias católicas. Disponível em: http://www.rccrj.org.br/index.php/content/article/40-ministro-de-comunicasocial/619-texto-contribuis-e-desafios-das-mas-catas. Acesso em: 23 jun. 2014. PUNTEL, Joana Teresinha. Igreja e Sociedade: Método de Trabalho na Comunicação. São Paulo: Paulinas, 2015. RODRIGUES, Adriano Duarte. A emergência dos campos sociais. In: RODRIGUES, Adriano Duarte. Reflexões sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Piauí: Editora Revan, 2000. _______.Experiência, modernidade e campo dos media. Biblioteca On Line de Ciências da Comunicação. Portugal, 1999. In: http://www.bocc.ubi.pt/pag/rodrigues-adrianoexpcampmedia.pdf. Acesso em 09 mar. 2016. 3. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E LIBERDADE RELIGIOSA NOS PAÍSES DO MERCOSUL Doutorando: Severino Breda da Silva – PUC Goiás (sbscontabil@hotmail.com) Resumo: O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa em andamento acerca da objeção de consciência e liberdade religiosa em alguns países do MERCOSUL. O objetivo é apresentar as características e previsões legais acerca da objeção de consciência e liberdade religiosa na Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai. Somente o Brasil e o Paraguai possuem regulamentado este tema em suas constituições. Apesar de a Argentina não regulamentar este tema em sua constituição, existe em quase todas as províncias casos de jurisprudências legislando a objeção de consciência às transfusões de sangue e ao serviço militar obrigatório. Os temas em questão são de suma importância, pois possuem intrínseca relação, sendo a liberdade religiosa considerada como uma espécie de objeção de consciência, a qual possui características éticas e religiosas exercida tanto no âmbito público quanto privado. No presente trabalho serão apresentados alguns aspectos filosóficos e jurídicos da liberdade religiosa e objeção de consciência, à luz dos autores que tratam do tema. Pretende-se apresentar considerações a respeito de um assunto polêmico na atual sociedade pós-moderna, num Estado democrático de direito e que, por ser laico, tem separação entre Igreja e Estado, não podendo admitir qualquer forma de restrição aos direitos humanos fundamentais. Palavras-chave: Objeção de Consciência; Liberdade Religiosa; MERCOSUL. No presente artigo serão abordados alguns aspectos introdutórios, conceituais e jurídicos da liberdade religiosa e objeção de consciência, à luz dos autores 495 relacionados na bibliografia, desde uma abordagem crítica do Direito Natural, do Direito Positivo e do Direito Público. Os temas da liberdade religiosa e objeção de consciência têm suscitado nos dias atuais várias polêmicas e tem sido um assunto delicado em diversas esferas da sociedade, nas relações privadas, nas repartições públicas, nos meios judiciais e nos meios de comunicação em geral. O constitucionalista brasileiro Alexandre de Moraes (2004, p. 75) afirma que: "a liberdade de consciência constitui o núcleo básico de onde derivam as demais liberdades do pensamento". É nela que reside o fundamento de toda a atividade político-partidária, cujo exercício regular não pode gerar restrição aos direitos de seu titular. Diante o exposto, pode-se inferir que o pleno exercício da liberdade de consciência e de pensamento não pode gerar restrição aos direitos de um cidadão, tanto na esfera privada, quanto na pública. Neste mesmo sentido, a Constituição da República Federativa afirma em seu art. 5º., inciso VIII que: “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Afirme-se ainda que a recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa acarretará a perda dos direitos políticos do cidadão. Assim, pode-se afirmar que existem dois requisitos básicos para a privação de direitos em virtude de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política: o não cumprimento de uma obrigação a todos imposta e o descumprimento de prestação alternativa, fixada em lei. MORAES (2004, p. 76), em continuidade à sua explanação ainda afirma que “o constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar a sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofias e a própria diversidade espiritual”. Salienta ainda o constitucionalista que a liberdade religiosa não deve sofrer limitações ao livre exercício do culto religioso, “enquanto não for contrária à ordem, tranquilidade e sossego público, bem como compatível com os bons costumes” MORAES (2004, p. 76). 496 Sabe-se da grande influência que a religião exerce sobre a vida das pessoas, a qual possui a função de formar o caráter e a subjetividade das pessoas, pois se trata de um tema de foro íntimo, o qual exerce influência na vida e no meio social. A liberdade religiosa abrange três vertentes distintas, porém, relacionadas entre si, quais sejam: a liberdade de crença, de culto e de organização religiosa. A liberdade religiosa é considerada como um direito fundamental relacionada na Carta Magna, a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988, tema este que pertence ao ramo dos Direitos Humanos, baseados nos princípios da Dignidade da Pessoa Humana (Dignitatis Humanae). Tais direitos, por serem considerados fundamentais, não podem ser desrespeitados, sob pena de se incorrer em discriminação religiosa, desrespeitando-se, desta forma, a dignidade da pessoa humana, como pressuposto dos direitos humanos. A tutela da objeção de consciência e liberdade religiosa A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948, reza no art. 18, que “todo indivíduo tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”. A Declaração Dignitatis Humanae, promulgada em sete de dezembro de 1965, pelo Concílio Vaticano II, pela Igreja Católica declara que “a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa”. A objeção de consciência em linhas gerais pode ser definida como “a negativa de um sujeito individual a cumprir uma objeção legal, baseada em motivos de consciência”. De acordo com NAVARRO FLORIA (1998, p. 10), “toda pretensão contrária à lei motivada por razões axiológicas, não meramente psicológicas de conteúdo primordialmente religioso, já tenha por objeto a escolha menos lesiva para a própria consciência entre as alternativas previstas na norma, eludir o comportamento contido no imperativo legal ou a sanção prevista pelo seu descumprimento ou aceitando o mecanismo repressivo, lograr a alteração da lei contrária ao imperativo ético pessoal.” LLAMAZARES (1991, p. 20) define objeção de consciência como “negativa individual a prestar observância a uma norma jurídica por ser contraditória com a própria consciência”. 497 TORRON (1996, p. 13) conceitua como “negativa do indivíduo por motivos de consciência a submeter-se a uma conduta que, em princípio resulta juridicamente exigível.” E, por fim, DE AGAR (1995, p. 35), afirma que a objeção de consciência é uma “resistência pessoal a uma prescrição jurídica por ser contrário a uma prescrição moral que se considera prevalente”. Cabe aqui frisar que não se pode confundir a objeção de consciência com outros tipos de comportamentos rebeldes, ou seja, o objetor de consciência protesta pacificamente por uma ordem expressa que viola a sua própria consciência e suas convicções filosóficas. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 existem várias obrigações que o estado impõe aos indivíduos, ou seja, a prática de determinados atos que podem, muitas vezes, contrariar certas convicções religiosas, o que certamente haverá uma colisão de direitos com a neutralidade do estado em matéria religiosa. Pode-se citar como exemplo, o alistamento militar obrigatório, onde adeptos de algumas religiões defendem a participação em guerras como não combatentes, o voto, a participação no Tribunal do Júri, etc. Para estes casos, a Constituição da República, em seu art. 5º. VIII traz em seu bojo o instituto mais conhecido e denominado de “escusa de consciência” ou também “objeção de consciência”. A objeção de consciência é a recusa individual, não violenta, baseada em norma ética/moral, ou seja, é o direito de exigir do Estado a dispensa do cumprimento de uma obrigação legal a todos imposta e que seja compatível com as convicções pessoais do indivíduo, desde que se cumpra prestação alternativa fixada em lei. Um caso atual de objeção de consciência que freqüentemente se depara é a controvérsia das denominadas “Testemunhas de Jeová”, com relação à prática proibitiva da transfusão de sangue de seus adeptos. Neste caso, pode-se identificar claramente que há uma colisão de direitos fundamentais e individuais, ou seja, há um conflito de direitos, entre o direito à vida e o direito à liberdade religiosa. Ambos são considerados como direitos inalienáveis. Quando há um conflito entre estes direitos, qual a atitude que o magistrado deverá tomar diante de um caso como este de extrema complexidade? 498 As Testemunhas de Jeová justificam tal recusa baseados no Livro de Levíticos 17:10 e no Livro de Atos 15:20.: “qualquer homem da casa de Israel ou dos estrangeiros que peregrinam entre vós que comer algum sangue, contra ele me voltarei e o eliminarei do seu povo”. “.. mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue”. Tal interpretação e prática colocam os médicos diante de um terrível dilema ético profissional e alguns pacientes adeptos desta religião chegam a óbito, por se recusarem a receber a transfusão de sangue. Devido este fato, já existem atualmente no sistema de saúde vários tratamentos alternativos, tal com o uso de sangue de plasma, fabricados artificialmente e a injeção de sangue do paciente de volta ao seu próprio corpo, sendo que este tipo de procedimento os pacientes adeptos desta religião aceitam. No sentido ético, moral e jurídico entende-se que a vida é um bem jurídico superior à liberdade religiosa. No entendimento do doutrinador CERNICCHIARO (1999, p. 18), “a liberdade religiosa não pode ferir o direito à vida, que é de ordem pública”. Os indivíduos que defendem a “escusa de consciência” ou “objeção de consciência” não são contrários ao cumprimento das leis, nem tampouco à desobediência civil. Nestes casos, a proteção desse direito não ameaça o direito de terceiros, nem tampouco a ordem pública e os bons costumes. Na opinião da jurista VIEIRA (2004, p. 14 1 15), quando houver um conflito como no caso das Testemunhas de Jeová, se o paciente for adulto, terá o direito à recusa ao tratamento, porém, se for uma criança não conscientizada, deverá o médico transfundir para salvar a sua vida, pois, além de ser um bem jurídico superior à liberdade religiosa, a criança é incapaz de tomar uma decisão por conta própria. A jurista conclui a sua abalizada opinião e afirma: “A escolha, a opção por essa ou aquela religião merece a tutela do Estado, não podendo este intervir ou coagir o cidadão a fazer ou deixar de fazer o que a lei não dispõe, sobretudo quando se trata de matéria ligada à autonomia do indivíduo, princípio inerente a todo ser humano, que lhe confere a possibilidade de agir de conformidade com seus valores”. No Brasil, infelizmente, as leis vigentes são elaboradas para governar a maioria populacional da religião predominante, a elite e a burguesia, porém, o que se enfatiza é que o Brasil ainda é um país laico, graças a Deus e deve-se respeitar a autonomia do indivíduo em matéria religiosa. 499 A tutela da liberdade religiosa e objeção de consciência nos paises do mercosul Brasil O direito à liberdade religiosa vem expresso na Constituição Federal do Brasil de 1988 no artigo 5º. nos incisos VI e VIII, verbi: "Inciso VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;" "Inciso VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei". Argentina A Constituição da Nação Argentina, em seu art. 2º. se expressa da seguinte maneira: “O Governo Federal ampara o culto católico apostólico romano”. Como se pode notar, o sistema constitucional argentino opta claramente por um determinado segmento religioso, ou seja, a Religião Católica Apostólica Romana e, agindo desta forma, se distancia da maioria das constituições ocidentais e sul-americanas, que são laicas. No entanto, apesar desse aspecto, o art. 20 da mesma Constituição tutela a liberdade de culto como um direito fundamental. Dessa forma, infere-se que a Constituição argentina não é laica, mas dá plena proteção aos demais segmentos religiosos, que inclusive, existem diversos órgãos e organizações não governamentais que promovem a liberdade religiosa e o diálogo inter-religioso, dentre os quais se destaca o CALIR – Conselho Argentino para Liberdade Religiosa, o qual possui diversos artigos e publicações que abordam e promovem a Liberdade Religiosa. Paraguai O art. 24, da Constituição paraguaia, assim se expressa: “Da liberdade religiosa e ideológica. Fica reconhecida a liberdade religiosa, a de culto e a ideológica, sem mais aquelas limitações estabelecidas na Constituição e na lei. Nenhuma confissão terá caráter oficial”. As relações do Estado com a Igreja Católica se baseiam na independência, cooperação e autonomia. Garantem-se a independência e a autonomia das igrejas e 500 confissões religiosas, sem mais limitações que as impostas nesta Constituição e nas leis. Ninguém pode ser molestado, indagado ou obrigado a declara por causa de suas crenças ou de sua ideologia. Uruguai A Constituição uruguaia, assim como na Constituição paraguaia, faz separação entre Igreja e Estado e em seu art. 5º. prevê a liberdade para todos os cultos, acentuando que o Estado não manterá religião alguma. No entanto, à Igreja Católica se reconhece o domínio de todos os templos que tenham sido total ou parcialmente construídos, excetuando-se apenas as capelas destinadas ao serviço de asilos, hospitais, cárceres ou outros estabelecimentos públicos (art. 5º). O mesmo artigo enuncia ainda a imunidade tributária para todos os templos de todas as religiões. Considerações finais Após todas as considerações e ponderações sobre o assunto em tela, há que relacionar algumas conclusões parciais. Conforme relatado no presente trabalho, em matéria de religião, o Estado deve se manter neutro, pois se denomina Estado laico, onde há separação entre Estado e Igreja, nem tampouco assumir alguma religião como oficial, isto é, adotar a sua forma política e religiosa como Estado confessional. O Brasil é um Estado laico desde a Constituição de 1891, ou seja, desde o momento em que proclamou a República Federativa até os nossos dias atuais. No entanto, os cidadãos brasileiros passaram a usufruir de plena liberdade religiosa somente com a entrada em vigor da atual constituição. A liberdade de crença, que revela o pensamento não exteriorizado é a liberdade de convicção em matéria religiosa e inclui até o direito de ser ateu, ou seja, qualquer cidadão possui a plena liberdade de não adotar nenhum tipo de crença, consciência ou convicção religiosa, ou seja, a Constituição lhe dá o direito de ser ateu. A liberdade de culto é a exteriorização da liberdade de crença, sendo livre seu exercício desde que em harmonia com a ordem pública e os bons costumes, vedada a prática de atos ilícitos. 501 Se a lei impuser ao indivíduo a prática de ato que contrarie suas convicções religiosas, é lícito que invoque a escusa de consciência ou objeção de consciência, quando então se obrigará a prestação alternativa, sob pena de perder os direitos políticos após dupla recusa; A assistência religiosa prestada pelo Estado, nos termos do art. 5º. VII, da CR/88, em hipótese alguma fará referência a alguma religião em específico. Diante disso, é expressamente proibida a prática de proselitismo nas escolas e instituições públicas. A Constituição da República de 1988 dispensa a todas as confissões religiosas o tratamento isonômico e idêntico da imunidade tributária, mas apenas no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a finalidade do culto religioso; de resto, são tributadas normalmente; Urge a necessidade de se elaborar uma lei a nível nacional no Brasil e a nível internacional, principalmente nos países do MERCOSUL, para que se resolvam conflitos religiosos, envolvendo questões de liberdade religiosa e objeção de consciência. Tal elaboração deve ser de iniciativa do poder legislativo, através de projeto de lei específico. Cabe a cada cidadão cobrar dos representantes políticos a resolução de conflitos religiosos e exigirem seus direitos como cidadãos brasileiros, relacionados na lei máxima, a Constituição da República Federativa do Brasil, os direitos fundamentais da liberdade de crença e de consciência e não aceitar qualquer forma de discriminação, preconceito ou intolerância. Diante de todo o exposto, pode-se afirmar que há uma urgência de se praticar a tolerância e o respeito ao pluralismo religioso, pois, agindo desta forma, todos terão voz ativa em suas decisões. Praticar a exclusão não é nada democrático, pois não serve a nada, nem a ninguém. Referências A BÍBLIA SAGRADA. 1993. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2a. ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil. DE AGAR, MARTIN. La objección de consciência como derecho humano. Buenos Aires, Editorial Abaco Rodolfo de Palma, 1995. LLAMAZARES, J. La objección de consciência. Buenos Aires: Editorial Abaco Rodolfo de Palma, 1991. 502 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2004. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. NAVARRO FLORIA, Juan G. El derecho a la objección de consciência. Buenos Aires: Editorial Abaco de Rodolfo Depalma, 1998. PORTELA, Jorge Guillermo. 2005. La justificación iusnaturalista de la desobediência civil y la objección de consciência. 1ª. Ed. – Buenos Aires: Educa. TORRON, MARTINEZ. El derecho a la objección Editorial Abaco Rodolfo de Palma, 1996. de consciência. Buenos Aires, VIEIRA, Tereza Rodrigues. Ano X – n. 231 – 31 de agosto/2006. Objeção de consciência. In: Revista Jurídica Consulex. 4. CAPITALISMO E RELIGIÃO: APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS Pedro Fernando Sahium161 RESUMO: Este artigo pretende seguir a trilha de possíveis aproximações entre os sistemas capitalista e religioso. Usaremos o termo “sistema” como “um conjunto estruturado que constitui um todo organizado cujos elementos são interdependentes ou obedecem a uma lei única” (DUROZOI, 1993, p. 438). Na difícil tarefa de relacionar dois sistemas diferentes queremos mostrar algumas possibilidades de se conhecer as influências mútuas e incrustradas exatamente na relação sinérgica entre ambos. As esferas de influência de cada um dos sistemas citados podem se aproximar. Nessa aproximação, onde partes de um sistema se sobrepõe às do outro sistema, ocorre um grau de influência que pode modificar a estrutura do sistema colonizado. Dito de outra forma, o capitalismo pode assumir funções e práticas que lembram o sistema religioso, ou, a religião absorve características de ação do capitalismo que a transforma cada vez mais em mercadoria a ser vendida com sucesso no mercado. As previsões de secularização da sociedade com a crescente libertação do homem moderno da tutela religiosa, ou, como definiu Berger (1985), com o avanço de uma sociedade onde um número crescente de indivíduos “passam a encarar o mundo e suas vidas sem o recurso às interpretações religiosas”, não se realizou como previsto. As religiões tradicionais como o cristianismo, o islamismo, o judaísmo e outras permanecem na ordem do dia de grandes e crescentes parcelas da população mundial. Os símbolos Mestre em Educação PUC de Goiás, Doutorando: Ciências da Religião PUC - GO professor de História Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual de Goiás, estudante Grupo de Pesquisa em Religião, Cultura e Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás Endereço eletrônico email: psahium@hotmail.com 161 503 religiosos não foram subtraídos da sociedade, mas, passaram a ser usados por outras instituições e ganharam novas representações. Além disso aparece no século XX o fenômeno dos Novos Movimentos Religiosos (NMRs), que desafiam as teses da secularização e apontam, como enfatizou Bourdieu (1974), a religião como linguagem que permanece estruturada e estruturante, e como um instrumento eficaz de comunicação. Palavras-chave: Capitalismo. Mercado. Religião Religião e cultura Partiremos de um conceito antropológico da religião. Na verdade um recorte feito por Geertz (1988) que deve nos orientar nas aproximações dos sistemas e de suas definições. A religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições nos homens através da formação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura da fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 1989, p. 67). Para Geertz a religião se insere no mundo cultural. Embora existam vários conceitos de cultura, ele a usará no sentido em que ela (a cultura) "denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio dos quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida" (Geertz, 1989, p. 66). Ele estabelece um paradigma: "símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo" (Ibidem, p.66). A forma de vida de um povo e sua cosmovisão se expressam e se reforçam pelos símbolos sagrados. Afinal os homens se ajustam, e ajustam suas formas de vida, de acordo com a visão que têm da "ordem cósmica". A religião faz isso muito bem. Evidencia-se a priori que a religião é um sistema profundo na estruturação da sociedade. A religião caminhou pari passu com o desenvolvimento das relações econômicas. Dentro do já exposto por Geertz (1989) o comportamento dos homens se ajustou na história pela força dos símbolos sagrados das religiões. Na história mais recente Weber (1989) salienta esse fato quando percebe a ética ascética do protestantismo necessária para o desenvolvimento do capitalismo. A concepção de um 504 Deus que distribui bens aos homens de acordo com o comportamento destes ou com sacrifícios, e que controla todo o mundo se difundiu bem em todas as sociedades. Nas seitas protestantes isso se difundiu amplamente e o exemplo desta “ética tipicamente burguesa” pode ser dada nos princípios da seita metodista na América que proibia: 1. Conversar enquanto compravam e vendiam (“regatear”); 2. Negociar as mercadorias antes de pagos os tributos aduaneiros sobre elas; 3. Cobrar juros mais altos do que o permitia a lei do país; 4. “Amontoar tesouros na terra” (significando isso a transformação do capital de investimento em “riqueza consolidada”); 5. Tomar empréstimos sem ter certeza de capacidade de pagar a dívida; 6. Luxos de todos os tipos (Weber, 1982, p. 359, 360). Ao mesmo tempo percebemos a aproximação economia e religião, mas, dentro de outros parâmetros, quando focamos a colonização do Brasil. Para lembrar, na história da colonização do Brasil a mercadoria primordial de exploração foi o Pau-Brasil usado para tingir tecidos na Europa. Essa madeira foi devastada da Mata Atlântica. Os ameríndios foram transformados em mercadoria, se tornaram escravos assim como os negros traficados da África. A terra massapê, boa para o plantio de cana-de-açúcar foi outra mercadoria amplamente valorizada. O que movia a exploração econômica neste período eram as políticas mercantilistas que ocasionaram uma “ampla intervenção governamental nos processos de mercado” tendo como “objetivo, de modo geral, assegurar elevados lucros para as grandes companhias de comércio, ampliar as fontes de rendas dos governos nacionais e, numa perspectiva maior, atrair o máximo de metais preciosos para o país” (HUNT E.K.; SHERMAN Howard J., 1985, p. 40). Dentro do conjunto destas práticas de colonização a religião servia com o seu discurso teológico racionalizado endossando o massacre e a coisificação de índios e negros, bem como da devastação que se seguiria. Os exploradores criam que “cumpriam uma destinação cristã de construtores do reino de Deus no novo mundo, de soldados apostólicos da cristandade universal” que ao entrar em contato com aquele povo pagão “cumpriam uma missão divina (RIBEIRO, 1982, P. 58). Era a doutrina do salvacionismo religioso como base das ações econômicas mercantis. Especificando as aproximações 505 Fica claro que não existe até aqui nenhuma originalidade em estabelecer as possíveis aproximações do capitalismo com a religião, neste caso o cristianismo. Muitos já o fizeram. Contudo, quero estabelecer três relações entre os sistemas que trazem algo de novidade. Como o capitalismo avançou, novas e profundas reações foram também se desenvolvendo no seio da cultura. A primeira aproximação que considero de caráter relevante e que se apresentou recentemente no entrelace da economia capitalista com a religião cristã, foi que a economia fez da mercadoria simbólica religiosa um espetáculo, um show pronto para ser consumido no ato de sua produção Na sociedade do espetáculo tudo se transforma em show, tudo é feito para se apresentar aos olhos do espectador, para conquistá-lo via impacto sensitivo, sinestésico, emocional, repleto de distrações, de cores, de contornos e performances. Nesta perspectiva o púlpito se transforma num palco, o sacerdote num animador, num showman e os cultos em representações teatrais de busca por uma alta performance. É preciso conquistar de forma arrebatadora. Para isso arte e economia se misturam e os designers (aqueles que preparam a publicidade capitalista para estimular o consumo) se transformam em agentes imprescindíveis no preparo da mercadoria (material ou simbólica). A homilia é importante, mas, a frase lapidar que traduz o “espetáculo” religioso é: “luzes, câmera, pregação”. Debord (1997, p. 111), falou da dissolução dos espaços autônomos e da criação de um único espaço “não limitado por sociedades externas”, uma forma de homogeneização da cultura que antes existia criando espaços diferenciados, e, que na sociedade do espetáculo tende à unificação dos espaços. Um cantor de música pop precisa usar os recursos midiáticos, de criação, de luzes, de captação da emoções dos espectadores, bem como o sacerdote religioso precisa fazer do momento cúltico um show midiático, com novas formas de comunicabilidade, com profusão de telas, de sons e de cores a mobilizar incessantemente os fiéis. Se no capitalismo a venda das mercadoria matérias devem fazer parte do show business, as mercadorias simbólicas obedecem à mesma regra. A religião entrou na esfera do espetáculo. Na crítica de Debord (1997, p. 130) se percebe a mesma coisa pois, para ele, os homens se tornaram espectadores, não vivem a verdade dos acontecimentos porque estão mergulhados no mundo da espetacularização das mercadorias. Para ele os espectadores são enganados, vivem num estado de passividade. Vivem “pseudo- 506 acontecimentos”, uma falsificação da vida comum. É uma crítica aguda à sociedade capitalista moderna. É uma crítica que envolve todas as esferas da sociedade. Incluindo a religião que precisa se espetacularizar para atender a demanda padronizada pelos meios midiáticos, e não somente por eles, que regem a sociedade atual. O mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação a tudo que produzem (DEBORD, 1997, p. 28). A segunda aproximação que percebo entre a economia e a religião decorre da possibilidade da religião ter se tornado uma “questão de escolha”, regida pelas forças de mercado que atuam para atrair e fidelizar “novos crentes”. Pode ser que esta seja uma questão já existente em tempos passados, contudo, é novo o “surgimento do homem como legislador da sua própria vida capaz igualmente, cooperando com outros no seio do corpo cidadão que forma com eles, de determinar as orientações que entende dar ao mundo que o rodeia” (HERVIEU-LÉGER, 2005, p. 37). Na esteira das escolhas individuais aparecem, e, se revitalizam, formas religiosas de ver a vida. Surgem novas religiosidades. Alguns estudos apontam para um número de 40 a 50 mil religiões no mundo inteiro (GUERRIERO, 2006, p. 20). Um ponto central para entender essas novas religiosidades está em seu caráter experiencial. A ideia nuclear é a de que cabe a cada um encontrar seu próprio caminho entre as diferentes vias espirituais. Essas vias são todas tidas verdadeiras. Não é preciso crer, mas experimentar. Dessa ênfase na experiência individual decorre a recusa a qualquer controle institucional, a qualquer ideia ortodoxa de verdade única. O objetivo dos adeptos é promover a transformação pessoal por meio de técnicas psicocorporais ou esotéricas, como ioga, meditação, danças sagradas, oráculos e várias outras oriundas, muitas vezes, de tradições bastante antigas e distantes. A salvação procurada está contida em uma felicidade total e diz respeito a este mundo (GUERRIERO, 2006, p. 59). Enquanto a religião se redefine como experiência individual e não comunitária, o capitalismo oferece seu ethos particular à religião. Dito de outra forma, a religião que dava sentido ao mundo e se estruturava coletivamente formando uma visão de mundo se adapta aos estilos cambiáveis, à estética da obsolescência ou à caducidade precoce que marca as relações práticas da sociedade capitalista. A religião se diversifica, transforma, cresce, experimenta formas fundamentalistas de manifestação. Mas, o capitalismo também cresce, se globaliza, alcança as esferas mais distantes da vida societária. Como afirma Ianni (1999): 507 Os processos de concentração e centralização do capital adquirem maior força, envergadura, alcance, invadem cidades, nações e continentes, formas de trabalho e vida, modos de pensar e ser, produções culturais, e formas de imaginar, muitas coisas desenraizam-se, parecendo flutuar pelos espaços e tempos presente (IANNI, 1999, p. 39). No avanço do capitalismo sobre a religião o impulso econômico para a universalização é fulcral. Daí estabeleço a minha terceira aproximação, aquela em que a religião se estrutura numa cadeia similar ao do capitalismo, ou, dito de forma diferente, a religião passa a ser pautada pelos critérios de ação do capitalismo contemporâneo. Os critérios do capitalismo são muitos e variados, mas, quero apenas salientar aqueles que fazem desse sistema econômico um todo organizado para a busca incessante do lucro, e, hoje, não pode dispensar critérios de vida baseados da busca do prazer, na emoção no sonho e no entertainment sem fronteiras, da sujeição a modelos mercantis, da regulação do tempo pela velocidade e fluidez, pela renovação constante de ofertas, pela aferição de tudo por critérios de eficácia patrimonial (LIPOVETSKY, 2015). Conclusão O individualismo extremado do homem moderno, a “soberania do indivíduo”, avança sobre a esfera da religião. De onde procede e qual o peso deste individualismo? Penso que os estudos de Dufour (2014) sobre o liberalismo do século XVIII oferecem uma pista. Num resumo sobre as tendências liberalismo nascente ele afirma: O grande filósofo das luzes escocesas, David Hume, fundador do empirismo moderno, partia da seguinte proposta na sua análise das paixões no livro II de seu Tratado da natureza humana (1739): Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro ao arranhão do meu dedo. De qual razão procede esse pensamento escandaloso? Daquela que seu amigo Adam Smith estava promovendo. Trata-se de uma razão nova, baseada na priorização, em todos os domínios, do egoísmo (o self love), e na retirada concomitante do altruísmo com a qual não precisava mais incomodar-se, já que a melhor maneira de realizar a felicidade coletiva dependia em última instância do esforço de cada um em defender seus próprios interesses (DUFOUR, 2014, p. 18). Penso que fica estabelecida a base do individualismo moderno, da defesa dos próprios interesses, da montagem e gestão da própria vida que domina o espaço mundial. Da base ideológica da individualização que leva ao individualismo. Como afirma Moreira (2014) da sociedade em que “o sujeito se torna administrador de sua própria subjetividade, manager de seu próprio interior, seguindo a racionalidade 508 estética da vivência prazerosa (MOREIRA, 2014, p. 304). Daí ficam também abertos todos os espaços para a mercantilização do Sagrado. Contudo, o que está posto não pode desconsiderar que não é exclusivamente o interesse mercantil que está a guiar a humanidade, mas, o seu peso é considerável. “Vender” crenças, práticas, caminhos para o “bem-estar”. Esta aproximação entre a modernidade capitalista e a religião produz uma portabilidade religiosa que se manifesta menos dogmática e por isso mais adequada aos novos tempos. Exige-se tolerância entre as pessoas e entre as sociedades. O que pode ser fator positivo. Por outro lado pode significar a experimentação subjetiva como a única verdade a ser considerada, incorporada e consumida e daí desestruturar os valores que as religiões tradicionais construíram ao longo da história. Isto pode significar a descaracterização e o distanciamento daquilo que a religião busca em termos de formação do convívio social partilhado, de solidariedade. Dito de outra forma, a religião pode torna-se uma questão de moda, mais afeita ao mundo das trocas incessantes e do sucateamento constante de homens, máquinas, teorias e teologias. Mariz (2003) nos seus estudos sobre a sociologia e a religião na perspectiva tratada por Max Weber, afirma que a religião (nas suas muitas manifestações nominais) forma atitudes e disposições para aceitar ou rejeitar determinados estilos de vida. Isso aconteceu com o protestantismo histórico quando ressaltou uma ética que se aproximava do capitalismo nascente: redirecionando a ascese no mundo; rejeitando a prática de promessas e rezas; estimulando a leitura da Bíblia por todos; produzindo uma religião menos ritualística e mais intelectualizada; estimulando uma religião mais ética e que via Deus como aquele que chamava o homem para servi-lo nas atividades produtivas (MARIZ, 2003, pp. 76-80). Hoje há aproximação da modernidade capitalista globalizada com a religião, só que em outros termos. A busca por glória pessoal diminui a busca dos valores comunitários. A ascese foi substituída pela busca de um mundo estético, prazeroso, emocional, fluido. Os valores econômicos e financeiros são exaltados. A possibilidade de religação do homem consigo mesmo e com a transcendência se reduz, ou, até se anula, num projeto egóico de busca de prazeres e de sensações renovadas, de pluralismo dos caminhos espirituais ditados pelo gosto do momento. Pelo menos até que surja uma síntese, quem sabe, poderosa para cambiar a competição pelo amor ao próximo, e estabelecer a regra de ouro de tantas religiões, 509 que no cristianismo foi assim estabelecida por Jesus: “tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles (Mateus 7:14). Referências ASSMAN, Hugo. As falácias religiosas do mercado: In Petrópolis RJ: Vozes, 1994. BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. BERGER, Peter e LUCKMANN Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2003. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Org. por Sérgio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.27-78 (98). CRAWFORD, Robert. O que é religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e terra, 1999. DUFOUR, danny-Robert. IN MOREIRA, Alberto da Silva, LEMOS; Carolina Teles; Quadros; Eduardo Gusmão (Orgs.). A religião entre o espetáculo e a intimidade. Goiânia: Ed PUC Goiás, 2014, p. 11-27. DUROZOI, Gérard; ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia. Campinas, SP: Papirus, 1993. ELIADE, Mircea e COULIANO, Loan P.. Dicionário das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2003. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Lisboa, Portugal: Gradiva, 2005 HOBSBAWM, Eric J.. A crise geral da economia europeia no século XVII. IN: SANTIAGO, Theo A. (Org). Capitalismo I. Rio de Janeiro: Eldorado, 1975. HOOVER, Stewart M.. A mídia em suas linguagens religiosas. IN: MOREIRA, Alberto da S.; LEMOS, Carolina T. e QUADROS, Eduardo G. (Orgs.) Religião entre a intimidade e o espetáculo. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2014. IANNI, Octávio. A sociedade global. São Paulo: Civilização Brasileira, 1999. LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo, viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 510 MARIZ, Cecília Loreto. A sociologia de Max Weber. In: TEIXEIRA, Faustino (org). Sociologia da religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, pp. 67-93. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Paz e Terra, 1996. MOREIRA, Alberto da Silva. A estetização da experiência religiosa. In MOREIRA, Alberto da Silva, LEMOS; Carolina Teles; Quadros; Eduardo Gusmão (Orgs.). A religião entre o espetáculo e a intimidade. Goiânia: Ed PUC Goiás, 2014, p 299-317. MOREIRA, Alberto da Silva. Em que sentido o capitalismo é uma religião. In MOREIRA, Alberto da Silva (Org.). O capitalismo como religião. Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2012. p 15-39. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SINGER, Paul. O Capitalismo - sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. São Paulo: Moderna, 1987. HUNT E.K.; SHERMAN Horward J.. História do pensamento econômico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. TEIXEIRA, Faustino. Peter Berger e a religião. In: TEIXEIRA, Faustino (org.). Sociologia da religião. Petrópolis: RJ: Vozes, 2003, pp. 218-248. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: ed. Pioneira; 1989. WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: LTC, 1982. ___________________________________________________________________ GT 16 RELIGIÃO, IDENTIDADE ÉTNICA E TERAPIAS COMO PROCESSO DE CURA Coordenadores: Profa. Dra. Rosemary Francisca Neves Silva/ PUC Goiás Prof. Dr. Clóvis Ecco/PUC Goiás Profa. Dra. Erika Pereira Machado/ UniRV/ UFG Ementa: Religião e etnicidade são questões que vêm marcando e afirmando a identidade das pessoas que compõem a sociedade brasileira, tendo em vista que as “diferenças étnicas envolvem diferenças culturais. A diferença é uma realidade concreta, um processo humano e social inserido no processo histórico” (SEMPRINI, apud OLIVEIRA, 2008, p.286). No que tange a questão da identidade étnica há vários fatores envolvidos tais como: a raça, a língua, a religião, o espaço e território, a história e a própria noção de etnia. O GT pretende ampliar tais discussões a partir da reflexão entre religião, identidade étnica e os vários processos terapêuticos de cura presente na história do ser humano. Palavras-chave: Religião, Identidade Étnica, Terapias e Curas 511 Comunicações: 1. AS CEBS, O CENTRO SOCIAL RURAL DE ORIZONA E A ESCOLA FAMÍLIA AGRÍCOLA DE ORIZONA – EFAORI Nome: Valdivino Souza Ribeiro Titulação: Doutorando Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: A presente Comunicação faz parte do meu projeto de estudo de doutoramento em educação com a temática na linha da Pedagogia da Alternância, Escola Família Agrícola de Orizona. As CEBs tiveram início na região de Orizona deram uma reconfiguração na dinâmica religiosa do município e por conseguinte no Centro Social Rural de Orizona. Este por muitos anos desenvolveu suas atividades como apoio às pessoas com menores condições econômicas da municipalidade. No final dos anos 90 se define por centrar os esforços na criação da Escola Família Agrícola de Orizona. 2. EPISTEMOLOGIA DOS SABERES DA FORMAÇÃO ACADÊMICA DOS JOVENS: ESPAÇO DE VALORIZAÇÃO MEDIADO Ivoni de Souza Fernandes162 Resumo: Este artigo é resultado da discussão teórica da construção de uma tese que visou apreender os sentidos e os significados atribuídos por estudantes de medicina e direito, aprovados nos vestibulares em 2005, 2006 e 2007, à sua formação universitária, no contexto do ensino público federal e para compreender as dimensões que se fazem presentes em suas relações consigo mesmos, com seus pares, sua família, a universidade e a sociedade. A presente pesquisa, pautada pelos pressupostos teórico-metodológicos da psicologia sócio-histórica de Vygotsky, fundamentados na perspectiva do materialismo histórico dialético, enquadra-se no tipo qualitativo, utilizando a proposta metodológica da triangulação de procedimentos: questionários, entrevistas e grupos focais. Participaram deste trabalho 12 jovens, com idades entre 18 e 24 anos. Objetiva-se neste artigo dar continuidade a discussão dos estudos sobre essa temática de modo a problematizar “a importância da mediação na vida acadêmica na formação profissional e humana dos jovens”, por meio dos estudos de Vygotsky (2007), Oliveira ( 2002), Rego (2007) e outros, bem como estabelecer um diálogo com os pressupostos teórico-metodológicos da psicologia sócio-histórica na tentativa de apresentar algumas ideias de Vygotsky. Aqui são discutidos os depoimentos dos jovens que emergiram das entrevistas e dos grupos focais. Contudo a montagem do núcleo de significação durante a pesquisa possibilitou compreender e analisar teoricamente as concepções que os sujeitos pesquisados possuem, 162 Doutora em Psicologia Psicossocial. Pesquisadora e Professora Titular dos cursos de Pedagogia, Psicologia, Fonoaudiologia, Licenciatura da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). ivonifernandes@hotmail.com 512 internalizadas, acerca do subnúcleo do subitem com o tema: formação acadêmica: espaço de valorização mediado. Palavras-chave: Juventude. Mediação. Teoria sócio-histórica A discussão sobre a questão epistemológica da ciência da Educação nos parece um ponto de partida fértil para a ressignificação dessa ciência, diante das atuais demandas sociais postas à educação. Pois o processo de desenvolvimento e modernização da sociedade inclui modelos de participação e de compreensão que transformam velhas estruturas em formas qualificadas de atuação e vivência. Portanto há enormes desafios a serem enfrentados em todos os setores da sociedade. Desta forma a escola e a universidade passam a ter uma responsabilidade maior com as ações políticas, pedagógicas e culturais. A formação docente torna-se complexa em sua efetivação, pois tem o compromisso de preparar o sujeito para ser profissional e cidadão numa sociedade permeada de problemas de todas as ordens. A discussão teórica que se propõe este artigo decorre dos resultados dos estudos teóricos da tese intitulada sentidos e significados atribuídos por estudantes do curso de medicina e direito da Universidade Federal de Goiás à sua formação universitária163. Essa discussão parte-se da compreensão de que a juventude é sóciohistoricamente constituída como categoria analítica e que o jovem, como sujeito, se constitui no processo sócio-histórico. A escolha deste tema deu-se especialmente por entender a relevância de estudar a temática da juventude tendo como base a psicologia sócio-histórica. No entanto o artigo teve como propósito dar continuidade a discussão dos estudos sobre essa temática de modo a problematizar “qual a importância da mediação na vida acadêmica dos jovens na sua formação profissional e humana?”, por meio dos estudos de Vygotsky, (2007), Oliveira ( 2002), Rego (2007) e outros. Por tanto nos depoimentos dos sujeitos pesquisados eles afirmam que a interação professor - aluno vem se tornando muito mais dinâmica nos últimos anos. O professor tem deixado de ser um mero transmissor de conhecimentos para ser mais um mediador, um estimulador de todos os processos que levam os alunos a construírem seus conceitos, valores, atitudes e habilidades que lhes permitam crescer Tese defendida em 2012 no Programa de Pós-graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. 163 513 como pessoas, como cidadãos e futuros trabalhadores, desempenhando uma influência verdadeiramente construtiva. O desafio de contribuir com a educação do jovem e do cidadão, num momento de mudanças e incertezas e a necessidade de resgatar valores tão importantes condizentes com a sociedade contemporânea leva o professor a entender que deverá exercer um novo papel, de acordo com os princípios de ensino-aprendizagem adotados, como saber lidar com os erros, estimular a aprendizagem, ajudar os alunos a se organizarem, educar através do ensino, entre outros. Contudo para apreender está mediação foram montados núcleos de significação durante a pesquisa que possibilitou compreender e analisar teoricamente as concepções que os sujeitos pesquisados possuem, internalizadas, acerca do subnúcleo do percurso acadêmico e o conhecimento atribuído pelos sujeitos à sua formação que se apreende o subitem a formação acadêmica: espaço de valorização mediado. Neste subitem se apresenta o depoimento de alguns participantes desta pesquisa, que atribui significados mostrando implicações, características, marcas positivas e/ou negativas vivenciadas e, ainda, como o sujeito se insere no contexto de mediação apreendendo os sentidos e significados da vivência dentro da academia. Para desenvolver essa temática o presente estudo divide-se em duas partes. Na primeira, busca-se discutir o conceito de mediação para Lev Semenovitch Vygotsky, sendo agente de transformação social para o jovem. Na segunda a formação acadêmica um espaço de valorização mediado por esses jovens pesquisados. Por fim apreendem-se algumas considerações que não têm a pretensão de ser finais, mas de uma reflexão sobre o tema proposto. O conceito de mediação para Vygotsky Antes de discutir a mediação na visão Vygotskyana, busca-se saber quem foi Vygotsky. Foi professor e pesquisador nas áreas de psicologia, pedagogia, filosofia, literatura, deficiência física e mental, atuando em diversas instituições de ensino e pesquisa. 514 No entanto Vygotsky tem como abordagem para a psicologia, três pontos básicos: as funções biológicas têm um suporte biológico; o funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior e a relação homem / mundo é uma relação mediada por sistemas simbólicos. Então a preocupação inicial é discutir a mediação como um ato de interação que ocorre entre um mediador e um mediado (SOUZA, MACHADO, 2001, p. 39). Portanto Vygotsky busca-se em seus trabalhos uma psicologia e uma pedagogia no quadro teórico-epistemológico do marxismo. Para isso, usou como exemplo a metáfora do conceito de trabalho em Marx, que deu origem ao conceito de mediação. A visão mais importante para compreender as teorias vygotskyanas sobre o funcionamento do cérebro humano é a mediação. De acordo com Vygotsky, mediação em termos genéricos é o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a relação deixa, então, de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento (OLIVEIRA, 2002, p. 26). Acrescenta, além disso, que: O processo de mediação, por meio de instrumentos e signos, é fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, distinguindo, portanto o homem dos outros animais. A mediação é um processo essencial para tornar possível a atividade psicológica voluntárias, intencional, controlada pelo próprio indivíduo (Idem, p. 33). Com base nessas reflexões, tanto no trabalho como na ação sobre o mundo para transformá-lo, o homem usa de instrumentos. No entanto, quando o cérebro humano aprende um conceito, usa a mediação das palavras ou a própria linguagem. Não há como pensar se não utilizar, sempre, palavras ou imagens. Por isso, em vez da linguagem, pode-se falar de uma mediação semiótica. Marta Kohl de Oliveira, ao tratar da aprendizagem em Vygotsky, afirma: "[...] a principal função da linguagem é a de intercâmbio social: é para se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagens" (2002, p. 42). Se toda ação humana supõe uma mediação, do mesmo modo a aprendizagem se faz com a mediação semiótica ou pela interação com o outro, na interação social, na qual as palavras são empregadas como meio de comunicação ou de interação. A essa mediação, Vygotsky e seus discípulos denominaram de sociointeracionismo – a ação se dá numa interação sócio-histórica ou históricocultural. 515 Para Vygotsky mediar é uma forma do professor persuadir o aluno no ato de pensar em que se suscita discussões em torno de uma resposta obtida e, em seguida, questiona-se sua veracidade, indica-se caminhos que podem levar à resolução e orienta-se a reformulação de hipóteses para obtenção de resposta. De acordo com Vygotsky, Mediação em termos genéricos é o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a relação deixa, então, de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento (OLIVEIRA, 2002, p. 26). Desta forma a mediação era vista por Vygotsky sob os aspectos: signo, palavra e símbolo, por isso, o processo de mediação, por meio de instrumentos e signos, é fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, distinguindo o homem dos outros animais. A mediação é um processo essencial para tornar possíveis as atividades psicológicas voluntárias, intencionais, controladas pelo próprio indivíduo (Idem, p. 33). Com base nessas reflexões, tanto no trabalho como na ação sobre o mundo para transformá-lo, o homem usa de instrumentos. Assim afirma Vygotsky (2001, p. 10), a constituição do homem se dá “pela compreensão de como a singularidade se constrói na universalidade e, ao mesmo tempo e do mesmo modo, como a universalidade se concretiza na singularidade, tendo a particularidade como mediação”. Levando em consideração que o jovem se pauta pela busca do que é novo para construir sua história, Vygotsky (1996) adverte que na idade juvenil ocorre o ápice do desenvolvimento das funções intelectuais, ou seja, neste momento, o sujeito é capaz de transformar com plenitude um objeto concreto em um conceito abstrato, um pensamento em um conceito, processo indispensável ao desenvolvimento da individualidade. Desse modo, “a passagem ao pensamento por conceitos é o passo decisivo, na idade juvenil, para o desenvolvimento da personalidade e da concepção de mundo do indivíduo” (VYGOTSKY, 1996, p. 198). Por tanto quando o cérebro humano apreende-se um conceito, usa a mediação das palavras ou a própria linguagem. Não há como pensar se não utilizarmos, sempre, palavras ou imagens. Por isso, em vez da linguagem, pode-se falar de uma mediação semiótica. Marta Kohl de Oliveira, ao tratar da aprendizagem em Vygotsky, afirma: "[...] a principal função da linguagem é a de intercâmbio social: é para se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagens" (2002, p. 42). Assim Vygotsky não abre mão do processo de aprendizagem de acordo com o conceito de mediação para a aquisição de funções superiores (1999a, p. 53). Nesse 516 princípio existe uma coerência teórica que justifica o sociointeracionismo como desdobramento do materialismo histórico dialético posto que, a mediação cria as possibilidades de reelaboração (recriação) da realidade. Realidade esta estabelecida, segundo o próprio Vygotsky, como um elo em que o signo, a atividade e a consciência interagem socialmente. Imperativamente, a categoria de mediação possibilita a aquisição de funções superiores. Por conseguinte se toda ação humana supõe uma mediação, do mesmo modo a aprendizagem se faz com a mediação semiótica ou pela interação com o outro, na interação social, na qual as palavras são empregadas como meio de comunicação ou de interação. A essa mediação, Vygotsky e seus discípulos denominaram de sociointeracionismo – a ação se dá numa interação sócio-histórica ou históricocultural. Formação acadêmica: espaço de valorização mediado Por tanto a epistemologia dos saberes da formação acadêmica dos jovens apreende-se como espaço de valorização mediado, sendo que os sentidos e os significados do conhecimento universitário para os jovens participantes deste estudo revelaram a importância da mediação na vida acadêmica e na formação, não apenas profissional, mas também humana. Nessa perspectiva, destacam-se alguns relatos. Davi vê o outro, com suas particularidades, como parâmetro intelectual para obter conhecimento científico durante a sua vida estudantil. Eu adquiro muito conhecimento, porque eu começo a pensar mais, raciocinar e perceber algumas coisas que eu não via antes no mundo. Você começa a ter outra visão diante das aulas e ver as coisas de uma forma diferente e tendo uma visão mais madura, também. Eu espero trazer esse conhecimento acadêmico para sempre e também conseguir atingir o que eu espero para a minha vida profissional, que é passar em uma residência. Eu preciso desse conhecimento acadêmico, porque isso dá sentido para a minha vida estudantil e me dá segurança sobre o meu conhecimento intelectual. (Davi, 24 anos, acadêmico de medicina) Esse jovem revelou a importância da academia como produzindo uma transformação no aluno, que passa a “pensar mais” e a “perceber coisas que não via antes”. Isso traz para Davi um sentido de conhecimento para o futuro, de capacidade para enfrentar os desafios da profissão e obter segurança quanto ao “conhecimento intelectual”. 517 Juliana afirmou, a respeito de sua formação acadêmica, que é um espaço de valorização mediada em que constrói a personalidade e em que se formam as ideias. Nossa! Acho que essa construção é a base de tudo. Hoje, eu me olho da forma que eu entrei na faculdade, como era meu pensamento, como era a forma de ver muita coisa e, agora, quando eu estou saindo da faculdade, acho que há uma mudança muito grande. Há uma construção realmente na nossa vida. Há uma construção de formação de personalidade, formação de ideias. Acho que essa é a maior importância que a gente tem. (Juliana, 24 anos, acadêmica de medicina) Juliana reiterou que, na busca do conhecimento, muitos acadêmicos enfrentam dificuldades. Para ela, estudar é um pouco difícil e o estudante vive cada momento do processo, tendo alegrias e experienciando situações difíceis. Segundo a jovem, o enfrentamento dessas dificuldades e o esforço de cada um formam a personalidade, o jeito de ser de cada sujeito. Assim como para Davi, o sentido da vida acadêmica, para Juliana, é de que, pela mediação do outro, ela proporciona uma grande transformação na pessoa. Pelo seu relato, fica evidente que ela reconhece que era uma pessoa diferente antes de ingressar na universidade. Para Juliana, o desenvolvimento proporcionado pela academia, quando valorizado pelo aluno, produz a construção de um projeto de vida que pode orientar o jovem tanto em sua trajetória acadêmica quanto profissional. Dentro da universidade, preciso ter um desenvolvimento interpessoal para saber aprender e buscar o conhecimento, para me relacionar melhor com as pessoas ao longo desses anos. A questão até de se encontrar no futuro, porque eu realmente quero para o meu futuro. Acho que começou, também, durante a minha formação aqui, juntamente com os professores e colegas na universidade. Foi quando eu realmente me abri. O que eu vou querer fazer? Vou querer só trabalhar? Vou querer voltar para a universidade, seguir carreira como docente? Acho que foi esse o sentido. (Juliana, 24 anos, acadêmica de medicina). Em sua fala, Juliana trouxe o sentido da aquisição de conhecimento durante a sua vida acadêmica e mostrou que está consciente da importância desta experiência para a sua vida presente e futura. O jovem acadêmico Vitor, ainda completou seu pensamento afirmando que o conhecimento acumulado na universidade não deve servir apenas para conseguir o diploma, mas também para que o sujeito possa saber utilizá-lo em sua vida profissional, pois, do contrário, seria inútil. Se você quiser ser um bom profissional, um bom jurista, um bom operador do direito, isso exige muito de você. Tem uma carga de leitura muito grande. O ordenamento jurídico brasileiro não é algo fácil, não é algo apreensível de imediato. Os pontos do direito são dados mais variados, muitas vezes contraditórios. As decisões judiciais, as jurisprudências acabam sendo muito 518 contraditórias. Você tem de saber muito. Muitas vezes, a pessoa se forma em direito, se forma em engenharia, mas acontece de trabalhar em uma profissão totalmente diferente do curso. Muitas vezes, vira empresário, vai trabalhar no banco. Pense bem: fazer cinco anos sabendo que existe um significado muito forte. Cinco anos no mesmo lugar. Ficando de manhã, muitas vezes à tarde e à noite também. Isso tem um significado forte. Para mim, seria muito frustrante você ficar na faculdade, se dedicando tanto e não usar nada daquilo que você se dedicou na sua vida acadêmica para sua vida profissional. Se isso acontecer comigo, eu vou achar muito ruim. (Victor, 22 anos, acadêmico de direito) Para Victor, os estudos trazem mais discernimento para o sujeito, tornando-o cidadão, capaz de se posicionar e de se colocar na vida da sociedade. Pelos relatos apresentados, destaca-se que o espaço da universidade proporciona um tipo de formação acadêmica aos estudantes em que os jovens apreendem o conhecimento, principalmente, pela mediação dos professores. De maneira complementar, isso também pode ocorrer pela mediação dos colegas, que têm o diferencial de pertencer a um grupo com objetivos semelhantes e cujas exigências acadêmicas são as mesmas. Nessa perspectiva, os sujeitos deste estudo compreendem o seu papel social como alguém que, pelo conhecimento, deve colaborar com a transformação da sociedade. Se reconhecem como sujeitos produtores de cultura, constituídos e constituintes do conhecimento, que possuem capacidades plenas para dar sentido às suas experiências e (re) significá-las em seu futuro. Considerações finais Os sujeitos pesquisados mostraram estar continuamente em busca do conhecimento, com o propósito de se certificarem de que os laços estabelecidos com os professores e colegas na universidade permanecem. Dessa forma, esses sujeitos vão dando sentido a si mesmo à medida que os professores e colegas também o fazem. Pode-se inferir que os sujeitos desta pesquisa trouxeram à tona conteúdos que revelam como é importante estar inserido no conhecimento proposto na universidade com as quais se identificam e que os acolhem. A discussão referente aos significados atribuídos ao professor, caracterizado por eles como espaços de poder e mediação do conhecimento. Também oportuniza a apresentação das particularidades dos sentidos que os jovens atribuem aos seus professores e colegas. A afetividade também foi uma importante mediação, demonstrando que, na relação entre professores e colegas, a cooperação, o companheirismo e a amizade são 519 dimensões relacionais/afetivas relevantes para a construção do conhecimento que eles atribuem à formação de sua subjetividade. Em relação aos sentidos e significados que os jovens pesquisados atribuem à ao professor, notou-se que há, entre os membros da sala de aula, união, cooperação, corresponsabilidade, amor e afeto. Para os jovens, estes membros tem senso de justiça em relação aos seus estudos. Também se observou, pelas falas dos jovens, que eles mostram reconhecimento pela universidade. Na tentativa de síntese, é possível identificar as seguintes contribuições que este estudo produz: Apresenta o estudo significado da mediação como importante no contexto educacional, uma vez que foi valorizado em todo o processo de socialização desses jovens. Não há dúvida de que a mediação é uma interatividade muito dinâmica de comunicação, para alunos. Conforme afirmou Wertsch (1998), a mediação exige mudanças nos modos de aprender e de ensinar. Espera-se que este artigo tenha contribuído para melhor refletir sobre o que os jovens pesquisados apreendem sobre a mediação, de modo a compreender uma juventude que tem compromisso e responsabilidade com a sociedade e esperança de um futuro promissor, bem como para ampliar os estudos sobre juventude na perspectiva da psicologia sócio-histórica. Também se deseja que este trabalho possa estimular outros pesquisadores a se interessar por esta temática. Referências OLIVEIRA, Marta Kohl de. Pensar a educação: contribuições de Vygotsky. In: Piaget Vygotsky: novas contribuições para o debate. São Paulo: Ática, 1988. p. 51-81. OLIVEIRA, Marta Kohl. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico. 4. ed. São Paulo: Scipione, 2002. REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 2007. WERTSCH, James V.; DEL RIO, Pablo; ALVAREZ, Amélia. Estudos socioculturais da mente. Porto Alegre: Artmed, 1998b. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: M. Fontes, 1993. 520 VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 6. ed. Trad. José Cipolla Neto, Luis S. M. Barreto e Solange C. Afeche. São Paulo: M. Fontes, 1998. Vygotski, L. S. (1995). Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Obras Escogidas III (p. 11-340). Madri: Visor/ Ministerio de Educación y Ciencia. Vigotski, L. S. (1999a). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes. Vigotski, L. S. (1999b). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes. 3. PROTESTANTISMO COMO EIXO DE COMUNIDADE QUILOMBOLA NO AMAPÁ Elivaldo Serrão Custódio164 IDENTIDADE RELIGIOSA EM Resumo: Este texto tem por objetivo discutir sobre a influência do protestantismo histórico na cultura e na religiosidade da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Mel da Pedreira (CRQMP) no Estado do Amapá. O fator relevante para a escolha da CRQMP deve-se ao fato da mesma se diferenciar das demais, por não trazer como parte de sua cultura, os rituais afros e as festas de santos, à medida que realiza cultos evangélicos. Acreditamos que esta identidade religiosa é uma singularidade frente às características dos quilombos tradicionais no Brasil, pois na sua maioria, cultivam as tradições afrodescendentes. A questão da identidade está sendo hoje amplamente discutida no campo científico. A afirmação da identidade em comunidades quilombolas perpassa pelo valor de suas expressões culturais e as identidades se relacionam e se evidenciam de acordo com o contexto e as interações nas quais se estabelecem. Tendo como pressuposto que a religiosidade é um fenômeno que está presente em todas as sociedades, pois é tida como suporte para a convivência, entendemos que a CRQMP, embora apresente princípios protestantes em sua forma de vida, nos hábitos e nos costumes, não podemos desconsiderar seu reconhecimento como comunidade quilombola, pois demonstra em sua essência, uma herança cultural negra. Palavras-chave: Comunidade Quilombola. Religiosidade. Identidade. Protestantismo. Amapá. As Comunidades Remanescentes de Quilombo, Comunidades Negras Tradicionais e Comunidades Negras Rurais se enquadram no artigo 215 da Constituição Federal (CF) de 1988, que estabelece como dever do Estado proteger as manifestações culturais afro-brasileiras e no artigo 216, que define como patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente Doutorando em Teologia pela Escola Superior de Teologia (Faculdades EST) em São Leopoldo/RS, Brasil. Bolsista da CAPES. Mestre em Direito Ambiental e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Docente da Secretaria de Estado de Educação do Amapá (SEED). E-mail: elivaldo.pa@hotmail.com 164 521 e/ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]” (BRASIL, 1988). A Comunidade de Remanescentes de Quilombo Mel da Pedreira (CRQMP) no Estado do Amapá é uma comunidade quilombola que se diferencia das demais existentes no Estado, por não trazer como parte de sua cultura, os rituais afros e as festas de santos, à medida que realiza cultos evangélicos. Acreditamos que esta identidade religiosa é uma singularidade frente às características dos quilombos tradicionais no Brasil, pois na sua maioria, cultivam as tradições afrodescendentes. Este texto tem por objetivo discutir sobre a influência do protestantismo histórico na cultura e na religiosidade da CRQMP no Estado do Amapá. Trata-se de resultado preliminar de um estudo exploratório de natureza qualitativa que vem adotando a pesquisa bibliográfica, a análise documental e a entrevista como forma de investigação no âmbito da Tese de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, Brasil. A Comunidade de Remanescentes de Quilombo Mel da Pedreira A CRQMP está localizada na BR 156, na altura do quilômetro 25, cerca de 50 quilômetros da capital Macapá/AP, município ao qual a comunidade pertence. O nome da comunidade advém da época em que Antônio Bráulio de Souza, comprou as terras e começou a prepará-la para a agricultura. Com a derrubada das árvores e da vegetação nativa foram encontradas abelhas sem ferrão e uma quantidade expressiva de mel na região, que já se chamava pedreira por causa da influência do rio Pedreira. Daí a denominação de Mel da Pedreira (SUPERTI & SILVA, 2013, s/p). De acordo com o Diário Oficial da União (DOU) de 02/02/2007, Seção 1, fl. 98, a área correspondente ao território da CRQMP foi reconhecida e declarada em 2.629,0532 ha. Foram cadastradas na época, dezesseis (16) famílias domiciliadas na comunidade. Além disso, havia mais oito (08) famílias, pertencentes à comunidade, que residiam na área urbana por razões de trabalho e de estudo. O acesso à CRQMP é realizado pela estrada e um pequeno ramal até a vila, mas a comunidade também utiliza o transporte fluvial pelo lago perene que há no território. Esse lago faz a interligação com as comunidades vizinhas como Alegre e São Pedro dos Bois. De acordo com Sacramento, atualmente aproximadamente vinte (20) famílias vivem na comunidade, cerca de setenta (70) pessoas (SACRAMENTO, 2013). 522 A CRQMP existe desde 1954, sendo que no ano de 1968 passou a se declarar protestante, particularidade essa que marca a identidade desta comunidade, pois foi a única no Estado do Amapá reconhecida e titulada como uma comunidade quilombola evangélica. Ressaltamos que uma das questões que tem servido como parâmetro para se reconhecer uma comunidade como quilombola por muito tempo foi à conservação das tradições africanas. Lembramos que a maioria das famílias nasceu na comunidade, exceto os primeiros ocupantes que vieram de outras comunidades afrodescendentes do Estado do Amapá. Ao chegarem à região tinham como religião oficial o catolicismo apostólico romano e eram devotos de Santo Antônio, mas a aproximadamente quarenta e seis (46) anos foram convertidos ao protestantismo. O protestantismo na CRQMP se iniciou por meio de missionários da Igreja Presbiteriana de Macapá-AP (IPM) que chegaram à comunidade no ano de 1968. Vale ressaltar que a IPM começou a realizar seus trabalhos evangelísticos na capital Macapá, Estado do Amapá, especificamente no bairro do Trem, no dia 29/11/1949. Entretanto só foi organizada como Igreja em 29/10/1961. A IPM é uma Igreja filiada à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), estabelecida em nosso país desde o século XIX. A IPM na CRQMP também funciona como lugar de encontro entre as famílias. Esse momento tem como finalidade estreitar os laços entre os moradores da comunidade (SACRAMENTO, 2013, p. 94). A identidade e sua ressignificação na comunidade quilombola Mel da Pedreira A questão da identidade está sendo hoje amplamente discutida no campo científico. A afirmação da identidade em comunidades quilombolas perpassa pelo valor de suas expressões culturais e as identidades se relacionam e se evidenciam de acordo com o contexto e as interações nas quais se estabelecem. Hall afirma que as concepções de identidade vêm sendo transformadas ao longo do processo histórico (HALL, 1998, p. 7). Para Hall, o sujeito pós-moderno é definido historicamente, assumindo identidades diferentes em momentos distintos, que são afetadas tanto pelos processos de socialização, pelos processos de globalização, quanto pelos meios de comunicação e/ou informação (HALL, 1998, p. 10-13). Tendo como pressuposto que a religiosidade é um fenômeno que está presente em todas as sociedades, pois é tida como suporte para a convivência, assim, 523 entendemos que a CRQMP, embora apresente princípios protestantes em sua forma de vida, nos hábitos e nos costumes, não podemos desconsiderar seu reconhecimento como comunidade quilombola, pois demonstra em sua essência, uma herança cultural negra. Observamos em nossa análise preliminar que a religiosidade da CRQMP está presente no seu cotidiano. Ao chegarmos na comunidade é notório como o modo de vida da comunidade se difere dos padrões religiosos de uma comunidade de matriz africana. A nova religião provocou mudanças na percepção da roça e do trabalho na terra. O território se tornou repleto de significados, e o local da igreja passou a ser considerado um espaço divino. O novo prédio da igreja foi reconstruído recentemente em alvenaria e com proporções bem maiores do que a de madeira (SUPERTI & SILVA, 2013, s/p). Somos conhecedores de que a religião sempre fez parte da história da humanidade. Acreditamos que o sagrado permeia toda a realidade humana. Com o passar do tempo, observamos que na religião foi se modelando e se transformando, seja em função do momento histórico, do lugar e principalmente da cultura a que pertence. E neste processo, não aconteceu diferente na CRQMP, pois percebemos com a interferência e/ou influência do protestantismo histórico, este é à base dos valores religiosos que orientam toda a CRQMP. E esta força religiosa, embora muitas vezes não aceita e/ou reconhecida pela maioria das demais comunidades quilombolas no Estado, é reconhecida com muito orgulho por todos seus moradores locais. Cabe destacar que no Amapá segundo Silva até 2011, foram identificadas 138 comunidades remanescentes de quilombolas, sendo que deste universo, 30 já tinham conseguido a certidão de autoreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares (FCP), entre elas a CRQMP (SILVA, 2012). Sobre a questão religiosa, observamos na história tradicional e contemporânea que a maioria dos quilombos brasileiros tem sua base religiosa centrada no sincretismo religioso. Diferente da CRQMP que aparentemente não realiza mais os rituais tradicionais e sim, os cultos religiosos evangélicos, resultado de algumas trocas decorrentes de um processo sócio histórico. O Saber Local e a Educação Escolar 524 Em relação à educação escolar, mais precisamente ao ambiente escolar, Sacramento descreve que É uma escola com uma estrutura pequena, mas que realiza um trabalho ostensivo no campo da alfabetização das crianças. Portanto, é importante destacar ser esse espaço, local de saberes, com a ressalva que não se desenvolve na prática educativa estudos da tradição dos Quilombos, quando esse seguia a tradição de matriz africana. Privilegia-se o estudo bíblico, que se efetiva no espaço da igreja aos domingos (SACRAMENTO, 2013, p. 54). Levando-se em consideração a afirmação acima, percebemos que na CRQMP, não há, portanto, traços de uma identidade com marcas de ancestralidade como têm os quilombos tradicionais no Brasil. Percebemos ainda, que a CRQMP, reflete uma cultura centrada não mais em valores de tradição africana, e sim, em ensinamentos bíblicos. Gallois ao tratar da diversidade cultural explica que, [...] A diversidade cultural se configura, cada vez mais claramente, como uma condição essencial para o desenvolvimento. Pois nenhuma comunidade poderia se desenvolver sem o reconhecimento político de sua contribuição particular à criação e transmissão de valores culturais (GALLOIS, 2006, p. 24). Observamos no caso da CRQMP que o uso da Bíblia Sagrada como símbolo e fonte de estudo bíblico, provoca um impacto cultural em relação à tradição de herança religiosa africana, pelo fato da comunidade ser um quilombo evangélico. Já expressava Tillich afirmando que “aquilo que toca o homem incondicionalmente precisa ser expresso por meio de símbolos, porque apenas a linguagem simbólica consegue expressar o incondicional” (TILLICH, 1974, p. 30). Somos conhecedores que os quilombos são territórios demarcados a partir de seus traços sociais, geográficos, culturais, políticos e religiosos. Neste sentido, existem muitos quilombos que em termos de manifestações seguem as matrizes africanas. No caso dos quilombos no Estado do Amapá, muitos mantêm a tradição do tambor como elemento e símbolo de cultura. Daí o fato de muitas comunidades quilombolas amapaenses utilizarem em seus rituais o tambor, cuja simbologia é bem mais que a de um mero instrumento, mas a força de uma tradição, de uma etnia. Para Sacramento a CRQMP passou por grandes transformações ao se tornar evangélica, não só no que diz respeito aos rituais religiosos, mas também de fazer uso de bebidas como a gengibirra165 tão comum nos quilombos, nas festividades A Gengibirra é uma bebida popular feita com cachaça e gengibre, que tem resistido ao tempo através das tradições culturais. Muito apreciada nas festas negras no Amapá. 165 525 tradicionais. As missas de santos foram substituídas por cultos religiosos evangélicos. O tambor fora substituído por outros instrumentos como a bateria, a guitarra, o baixo (SACRAMENTO, 2013, p. 72). Segundo Superti & Silva, a igreja é outro fator muito importante na comunidade, pois se concentra e mescla-se com a história e a identidade dos moradores. A princípio, a devoção religiosa dos fundadores era Santo Antônio e as rezas e as festividades ocorriam na casa de Antônio Bráulio de Souza, fundador da comunidade. Ele praticava a pajelança166 em sua casa e todos o conheciam como Pajé. Entretanto, Antônio foi convertido para a religião presbiteriana e com o tempo se tornou um pregador. Os filhos e filhas de Antônio Bráulio foram se convertendo e logo a comunidade se consolidou através da comunhão da fé (SUPERTI & SILVA, 2013, s/p). Considerações finais No decorrer desta pesquisa que se encontra ainda em andamento, observamos que a concepção de Quilombo está engendrada nas questões da cultura, da identidade e da religiosidade. No caso da CRQMP, em especial, observamos através da pesquisa que o processo de evangelização vem trazendo como resultados, novos hábitos e valores. O que implica-nos a dizer que existe neste espaço, uma transposição cultural onde o modo de vida desta comunidade é sacralizado pelo protestantismo. Não há como ignorar a presença marcante da religião no processo histórico e cultural brasileiro. Assim, entendemos que se a formação de professores/as não tiver em sua base de formação a história da África, a história e a cultura do negro no Brasil, continuaremos enfrentando grande problemas no que diz respeito à consolidação e efetivação de políticas públicas e ações afirmativas para valorização da cultura e da religiosidade negra no Brasil. Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/con1988/CON1988_30.06.2004/CON198 8.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2014. A pajelança é uma prática oriunda da Amazônia, normalmente classificada como religião afro católica- ameríndia, por possuir rudimentos desses três elementos. 166 526 BRASIL. Ministério do desenvolvimento Agrário. Instituto nacional de colonização e Reforma agrária. Diário Oficial da União (DOU) de 02/02/2007, Seção 1, fl. 98. Portaria de 30 de janeiro de 2007. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/443896/pg-98secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-02-02-2007>.Acesso em: 10 fev. 2014. CUSTÓDIO, Elivaldo Serrão. Políticas públicas e direito ambiental cultural: as religiões de matrizes africanas no currículo escolar no Amapá, 2014, 198f. Dissertação (Mestrado em Direito Ambiental e Políticas Públicas) - Universidade Federal do Amapá, Macapá, 2014. GALLOIS, Dominique Tilkin (Org.). Patrimônio Cultural Imaterial e Povos Indígenas: exemplos no Amapá e norte do Pará. São Paulo: Iepé, 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. SACRAMENTO, Sonia Maria da Silva. O impacto das trocas culturais nas comunidades quilombolas: do tambor a guitarra. Dissertação (Mestrado) - Universidade da Amazônia, Programa de Mestrado “Stricto Sensu” em Comunicação, Linguagens e Cultura, 107 f. 2013. Belém, 2013. Disponível em: <http://www.unama.br/novoportal/ensino/mestrado/programas/comunicacao/attachment s/article/130/O%20impacto%20das%20trocas%20culturais%20nas%20comunidades%2 0quilombolas%20do%20tambor%20%C3%A0%20guitarra.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2014. SILVA, Marcelo Gonçalves da. Territórios Quilombolas no Estado do Amapá: Um Diagnóstico. In_____: Anais... XXI Encontro Nacional de Geografia Agrária. Uberlandia/MG, 15 a 19 de outubro de 2012. Disponível em: <www.lagea.ig.ufu.br/xx1enga/anais_enga_2012/eixos/1308_1.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2014. SOARES, Liliane Rodrigues. A Territorialidade Quilombola em Comunidades Rurais: O Quilombo do Mel da Pedreira (Amapá). Seminário internacional - Amazônia e fronteiras do conhecimento. Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) - 35 anos. Universidade Federal do Pará. 9 a 11 de dezembro de 2008. Belém - Pará – Brasil. Disponível em: <http://www.naea.ufpa.br/siteNaea35/anais/html/geraCapa/FINAL/GT1352-1316-20081129011508.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2014. SUPERTI, Eliane; SILVA, Gutemberg de Vilhena et al. Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Mapeamento e Publicação do Patrimônio Cultural das 28 Comunidades Quilombolas no Estado do Amapá, certificadas e/ou tituladas pela Fundação Cultural Palmares. Macapá: [s.n.], 2013. Disponível em: <http://lides.unifap.br/comunidades/mel_da_pedreira.html>. Acesso em: 10 fev. 2014. TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1974. 527 3. RESTABELECENDO A PAZ NO CAMPO Nome: Jéssica Cardoso De Sousa Titulação: Graduanda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: A Terra é um elemento primordial para a sobrevivência, por ser a mãe de todas as espécies, mas para dois grupos: indígenas e agricultores, esse recurso se torna ainda mais substancial, pois dela dependem diretamente a continuidade de sua existência. Para os índios a terra é a sustentação de toda a sua cultura, imbuída de história, ensinamentos, valores, mitos, ritos e símbolos, deixados por seus antepassados. Já para o agricultor, a perca da terra significa mais do que acabar com sua principal fonte de renda, implica na redução de sua percepção de vida, o que pode acarretar na perca de sua identidade. Quando se institui o processo demarcatório, inicia uma sequência de conflitos, no qual se faz necessário discutir á cerca da indenização da terra nua ao agricultor, que resultante da boa-fé acabou residindo na região que hoje é reconhecida como territórios indígenas, afinal, é preciso chegar a um resultado satisfatório para ambos, onde a dignidade da pessoa humana seja cumprida como promete a nossa Constituição. Palavras chaves: Religião, Indígena, Agricultores, Conflitos, Demarcação de Terras. Muito se tem discutido sobre os constantes embates entre índios e agricultores, o motivo de tais desavenças se dá pela posse da terra, afinal todos compreendem a importância desse recurso, mas, para essas duas classes, se torna imprescindível o contato com esse bem, pois dele dependem de forma direta sua sobrevivência. Nestes termos faz se necessário adotar medidas capazes de minimizar esses conflitos e restabelecer a paz no campo. Visto isso, buscaremos analisar uma medida capaz de diminuir essas desavenças, para assim desenvolver um raciocínio que vise primeiramente a compreensão do que seria a terra e a sua importância para esses dois grupo, entender como se da o direito a propriedade e como esta desenvolve sua função social, refletiremos ainda como a constituição regula o tratamento ao indígena e como ocorre hoje a indenização das terras, para por fim analisar uma medida legislativa que busque minimizar os embates através de uma emenda a constituição. Índios e agricultores: filhos da Terra 528 Fonte de vida e nossa casa comum, bem indispensável para todo e qualquer ser vivo, a terra se torna fundamental para nossa sobrevivência, nos faz um só povo, filhos de uma só mãe, pois “temos elementos-terra no corpo no sangue, no coração, na mente, e no espírito. Desta constatação resulta a consciência de profunda unidade.” (BOFF, 2011, p.76), independentemente de crenças ou ideologias todos possuem dependência da terra. Para os índio a terra é a única forma de perpetuação de sua espécie, podendo somente através dela passar de geração em geração: sua cultura e seus ensinamentos para com a pesca, a caça, a utilização de remédios naturais e no cuidado com a natureza. É por meio deste bem, que ocorre a ligação direta com seus antepassados, suas historias, suas crenças, seus ritos e mitos, onde somente aquele solo propicia a estes o contato com sua divindade. Já para o agricultor, a perca da terra significa muito mais do que a privação da sua principal fonte de renda, que é de onde tiram o seu sustento e de sua família, representando o desaparecimento de sua percepção de vida, ou seja a destruição de sua identidade, afinal o valor do trabalho é algo gratificante para o produtor rural, é o que lhe propicia sentido a vida. Essas pessoas que tiram do solo sua sobrevivência e que com seu trabalho mantém o abastecimento de milhares de famílias brasileiras, é na maioria das vezes composta por pessoas muito simples, que não possuem condições de ingressar no mercado de trabalho de outra forma, mas que com o cultivo da terra garantem sua subsistência. Desta maneira é preciso que compreendamos que “assim como uma mãe humana pode gerar filhos com características físicas diferentes, a Mãe-Terra também... mas o inicio da vida de cada ser vivo é uma prova de que somos todos filhos de uma mesma mãe.” (ANDRADE, 2000, p.85). Para que possamos ampliar nossas experiências e nossas oportunidades de lembrar, Nossa Mãe Terra nos ofertou a multiplicidade de Raças humanas e de Etnias ... e Nosso Pai nos brindou com dádiva de diversidade de pensamento e mentalidade... Portanto , nós, Seres humanos, devemos ter consciência de que é na diversidade racial, étnica, cultural, social e de costumes que reside nossa qualidade e nosso trunfo como Espécie viva... (ANDRADE,2000, p. 93) Visto isso, concluímos que apesar das divergências entre o índio e o agricultor, é nítida a ligação direta que cada um tem com a terra, por isso todos fazem jus ao 529 contato com o solo, como forma de manter viva suas crenças e de dignamente produzir para sustentar a si e a suas famílias. A propriedade sobre uma perspectiva histórica, teológica, legal e jurídica Com base no pensamento de ALMEIDA (2005), a origem da propriedade é entendida como um Direito Natural, sendo antecedente ao próprio homem, onde é através dos dez mandamentos, que Deus deixou os ensinamentos de “não cobiçaras coisa alheia” e “não roubarás”, o que propicia uma visão de que a propriedade é uma garantia de todos, porém se trata de um bem inviolável. Ainda na bíblia, temos a primeira sociedade, quando Deus deu a companhia de Eva para Adão, “bem como no livro Gênesis, Adão não tinha propriedade, mas ao ser expulso do paraíso cria-se a concepção de propriedade” (ALMEIDA, 2005, p.01). Nestes termos é partir dos descendentes de Adão que essa ideia começa enraizar no meio social. Como lecionada VARELLA, 1998, p.196: “Ainda que sob uma análise teológica, na linha de raciocínio citada, desconsiderando Gênesis como um livro simbólico, Adão não tinha propriedade, mas vivia no paraíso, em harmonia com todos e com seu Criador. Adão vivia no Jardim do Éden e Deus o” tomou para o cultivar e guardar “(Gen. 2,15), não havia qualquer noção de propriedade. Para que Adão não ficasse só e para satisfazer a seus desejos, Deus criou Eva e então nasce a primeira sociedade.” O direito a propriedade com o tempo passou a ser tão indispensável para vida em sociedade, que o constituinte de 1988, descreveu a propriedade como uma garantia fundamental a todo brasileiro nato ou residente no país, como prescreve o caput do art.5 e XXII e XXIII: Art. 5° “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito a propriedade; XXIII – A propriedade atenderá a sua função social” (Grifo nosso). Assim como todos tem direito á vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, todos também tem direito a propriedade, sendo este inviolável. Tal importância tem esse direito, que foi regulamentado na Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789, prescrito em seu art.17°, que prescreve: “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.” 530 No entanto, diferentemente do que se presume, esse não é um direito absoluto, é preciso que a propriedade exerça sua função social, podendo esta perder sua legitimidade jurídica caso não cumpra essa exigência. Para sua criação, este principio sofreu extrema influência da igreja católica, representada por grandes filósofos como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, que contribuíram de forma gigantesca para formulação do entendimento do que seria função social. Santo Agostinho deixa claro que a terra deve ser exercida para atender as necessidades humanas, e não para que se tenha aumento de riqueza. Em seu livro Confissões, livro XIII, capítulo 25, ensina: Destes, para alimento, todas as ervas semeáveis que produzem semente à superfície de terra, as árvores que tem em si o fruto, junto como germe. (...) Dizíamos nós que nestes frutos da terra se significavam e representavam alegoricamente as obras de misericórdia, as quais brotam da terra fecunda, para socorrerem as necessidades da vida”. Hoje no mundo jurídico, possuímos o direito agrário como ramo que disciplina normas reguladoras das relações entre o homem e a terra, sendo o principio da função social da propriedade entendido por alguns doutrinadores, como um dos primordiais para politicas agrarias. Neste sentido para auxiliar na conceituação deste principio BORGES, 2009, p.63, leciona: É aquele principio que obriga os proprietários rurais a exercer o ius proprietatis segundo as regras da lei, ou seja explorar a propriedade imóvel rural de modo racional e adequado, com a finalidade de torna-la produtiva, tanto para o bem estar, como se sua família e de seus empregados, consequentemente, da sociedade, respeitando ainda o meio ambiente e os recursos. Função social é produzir e respeitar os recursos naturais, meio ambiente e direitos sociais. Nestes termos a função social da propriedade deve respeitar quatro requisitos previstos no art.186 da CF: Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Neste sentido, mesmo o agricultor cumprido a função social da propriedade, há a desapropriação das terras para usufruto dos índios, passando o bem 531 a ser patrimônio da união. “O atendimento, ou não à função social somente pode ser constatado em se tratando de bens privados, bens públicos já presumidamente atendem àquela função por serem assim qualificados.” (CARVALHO,2010, p. 1254) Neste este sentido, entende VIADANA, 2010, p.03: Apesar de expresso o conceito da função social da propriedade, não ficou claro como o princípio poderia ser cumprido de maneira efetiva, sem prejudicar comunidades tradicionais, como as terras indígenas. Sendo assim, ainda que todos os produtores rurais aplicassem o princípio plenamente, buscando o que o concretizar o modo eficiente de produção, não haveria como não prejudicar as comunidades indígenas, por meio de interferências em sua organização e na produção. As terras indígenas são diferentes das propriedades rurais, porém, não é explicitado na Constituição como o princípio da função social da propriedade poderia ser aplicado nos casos de demarcação. Apesar de poucos referenciais teóricos que detalham a questão da função social da propriedade nos casos de demarcação de terras indígenas, é necessário compreender este principio. Sempre tendo em vista que o índio possui sobre a aquele território um direito originário, portanto mesmo que propriedade cumpra sua função social, deverá ser demarca se comprovada como território indígena. Nestes termos faz-se necessária justa indenização, para que os agricultores possam produzir em outro local, onde tenham condições para desempenhar suas atividades agrícolas, pecuárias e afins, possibilitando a manutenção da função social da terra. Regimento constitucional sobre as terras indígenas Em relação as outras constituições, o Constituinte de 1988 trouxe inúmeros avanços com referência aos indígena, como evidência a carta magna possui um titulo unicamente para tratar temas que possuem ligação com índio, nesta lógica, prescreve em seu art. 213, CAPUT: Art. 213°: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (GRIFO NOSSO). Sendo uma das atribuições da união a demarcação das terras, e tendo por base a tese de SILVA (2009), dividimos esse processo em cinco etapas, primeiramente é 532 desenvolvido minuciosos estudos antropológicos para identificação da terra, logo em seguida é realizada a delimitação, posteriormente a demarcação física, seguidamente a homologação e por fim o registro. Nestes termos SILVA, 2009 , p.55 prescreve: Todos os passos são transparentes e públicos e pode-se tomar conhecimento dos estudos e identificação pelo Diário oficial da União. Este processo é longo, minucioso, e para que as terras sejam efetivamente regularizadas podem-se levar anos. São quatro as etapas principais para garantia das terras de um povo indígena, ou seja, identificação, delimitação, demarcação física, homologação e registros no cartório ou a regularização propriamente dita. Todavia a própria Constituição trouxe um tempo estipulado para que ocorresse esse processo, como suscita NUNES e ALMEIDA, 0000, p.52: “Ademais, houve preocupação do constituinte na proteção do direito indígena a terra no “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, quando no artigo 67, há determinação expressa de que a União finalize a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos contados a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.” O agricultor que adquiriu aquela propriedade sem o entendimento de ser ela território indígena, pela constituição vigente só é indenizado pelas benfeitorias realizadas na terra, como prescreve o art.213 §6 da CF: § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Quando ocorre então a demarcação, a União passa a ser legitima proprietária das terras e propicia ao índio usufruto dela e de seus bens, não podendo o agricultor mais permanecer naquele local. Este não tem previa e justa indenização, uma vez que só recebe pelas benfeitorias realizadas na terra e não pela terra nua. Neste termos se faz necessário que haja uma alteração constitucional com relação a este tema. Proposta de emenda a Constituição É preciso e inteiramente possível a efetiva proposta de emenda por não se tratar de clausula pétrea (assuntos que não podem sofrer emenda constitucional), uma vez que este tema não se encaixa em nenhum dos casos citados pelo § 4º do artigo 60º da constituição federal. 533 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; Ver tópico IV - os direitos e garantias individuais. Considerando o que foi visto, é necessário fixar o entendimento que a terra é um direito do índio, sendo esta afirmação indiscutível com vista a todos os referencias teóricos pertinentes a este tema. Sendo assim, o que se almeja com esse artigo é uma forma de minimizar os conflitos, mediante a indenização da terra nua para o agricultor, possibilitando a este exercer suas atividades em outro local. Neste cenário o agricultor que adquiriu as terras de boa fé não pode ser punido por um erro historio, vista que, após vinte cinco anos de promulgação da constituição federal, ainda não se há segurança de quais terras são ou não indígenas. A primeira e talvez mais óbvia forma de superar o dogma da falta de indenização pela terra nua nas demarcações de terras indígenas é a alteração do artigo 231 da Constituição Federal, pela via da emenda constitucional, visando mudar a redação do seu § 6º ou incluir um novo parágrafo tratando do tema. (JABUR, 2014, p.23) Além da indenização da terra nua beneficiar os agricultores, pois assim poderão produzir em outro local, é nítido o beneficio também para os índios, pois haverá a aceleração do processo de demarcação, vista que a resistência obviamente será consideravelmente reduzida, evitando os conflitos. Portanto, no hodierno panorama da questão fundiária indígena no Brasil, de fato, há que se repensar o dogma da não indenização pela terra nua ou, ao menos, instituir alguma forma efetiva de compensação daqueles que, de boafé, estejam ocupando terras indígenas, sobretudo com base em título de domínio emitido pelo Poder Público, seja em prestígio ao princípio da segurança jurídica, seja para garantir celeridade e efetividade aos direitos coletivos dos indígenas à terra tradicional. (JABUR, 2014, p.23) É indiscutível que tanto para o índio quanto para o agricultor a terra possui um valor inestimável, como justificativa ao que foi exposto podemos citar o caso índios Guarani, no Oeste do Pará, descrito por Rautenberg e Duarte, 2013, p.02: Do mesmo modo que se torna impossível negar o direito originário dos indígenas nestas terras – já que há documentos e estudos que comprovam a presença, desde tempos imemoriais, de diferentes parcialidades Guarani no Oeste do Paraná4 –, é necessário que se compreenda a situação dos pequenos agricultores que, através de escrituras, provam e requerem o direito legalmente adquirido desta porção territorial. Assim como os Guaranis possuem uma relação intrínseca com a terra – que é morada dos homens e das divindades e local onde viveram seus antepassados –, muitos destes agricultores também estabelecem uma relação de pertencimento com a terra na qual vivem – onde elaboram e reelaboram significações e relações culturais 534 e de trabalho com o espaço em que estão inseridos. Muitos participaram ou descendem das famílias que estiveram presentes no processo de reocupação desta região, nas décadas de 1940 e 1950, abrindo picadas para trabalhar e construir suas habitações, em meio a muitas dificuldades. Neste sentido, a terra onde atualmente habitam estes agricultores é, além de muitas vezes, única fonte de renda para sua sobrevivência, representação e lembrança do trabalho e da luta de seus familiares.(pg.02) Atualmente tramita no congresso uma proposta de emenda a constituição, a PEC 71/2011, que prevê a indenização das terras indígenas aos agricultores quando presentes algumas condições. Ainda se faz coerente ressaltar o pensamento de Andrade, em sua obra: um planeta terra, uma humanidade, o que nós leva a uma reflexão profunda de que devemos buscar sempre ferramentas para manter a harmonia social. Somos todos parte de uma orquestra magnífica, criada ao logo de milhões, bilhões de anos de evolução... porém, nesta orquestra, somos apenas um instrumento, não somos a orquestra toda (ah, a vaidade humana!...) cada ser vivo neste planeta tem seu lugar nesta orquestra... o regente é a Mãe-Terra, a natureza... Se quisermos que está orquestra continue sua maravilhosa melodia temos de respeitar o direito pela vida de todos os seus participantes... (ANDRADE,2000, p. 83) Por fim, fica claro a necessidade de indenização para os adquirentes de boa fé, que possuam o titulo da propriedade. Sendo está uma maneira de propiciar condições de sobrevivência a estes produtores em outro local, o que certamente diminuirá sua resistência na desapropriação, reduzindo os conflitos e acelerando o processo demarcatório. Neste sentido, JABUR, 2014, p.36 instrui: “Portanto, o reconhecimento pelo Estado e sua responsabilização pelos erros históricos quanto à execução da política indígena é o meio de construção de uma sociedade que dê real significado ao direito à diferença”. Conclusão Conclui-se que o direito dos índios sobre a terra é indiscutível, no entanto, cabe o entendimento de que o agricultor que adquiriu a terra de boa fé merece não somente a indenização das benfeitorias, se este for possuidor de titulo por escritura pública que comprova a posse. Neste termos para que se possa diminuir os conflitos, dando condições de ambos os grupos viverem em harmonia, deve a estado intervir como pacificador social, 535 propiciando ao agricultor a justa indenização pela terra nua, para que este possa produzir em outro local, ofertando assim dignidade a todos os brasileiros. Referência: AGOSTINHO, Santo. Coleção Os Pensadores. 3 ed., Livro XIII ,São Paulo:Abril Cultural, 1980, Cap.24, 25, 34. ALMEIDA, Andréia Alves de. Função Social da Propriedade: Pensamento Filosófico dos Pensadores da Doutrina da Igreja Católica e seu Contexto Jurídico. Disponível em: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/933/904. Acesso em: 17 abr. 2016. ANDRADE, PAULO MAURÍCIO PIÁ DE. Um planeta Terra, uma humanidade. São Paulo: Paulinhas, 2000. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra. 17. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. BRASIL. SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição nº 71, de 2011. Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/101237 . Acesso em: 24 abr. 2016. BRASIL. Competências Digitais para Agricultura Familiar. A importância da Agricultura Familiar. CoDAF. Disponível em: http://codaf.tupa.unesp.br/informacoes/aimportancia-da-agricultura-familiar. Acesso em: 16 jul. 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Secretaria de Editoração e Publicações-SEGRAF. Brasília, 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Estatuto do Índio. Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. CARVALHO, Edson Ferreira de. Manual Didático de Direito Agrário. 1ª ed. (ano 2010), 2ª reimpr./ Curitiba: Juruá, 2012. DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitoshumanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em: 18 fev. 2016. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Terras Indígenas: o que é? Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-32. Acesso em: 14 jul. 2015. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Direito originário. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-26-02. Acesso em: 25 abr. 2016. 536 JABUR, Alexandre. A Indenização da Terra Nua nas Demarcações de Terras Indígenas: Modelos e Teses em Discussão. Manaus. 2014. Disponível em: http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/institucional/grupos-de-trabalho/gtdemarcacao/doc_artigos/alexandre-jabur. Acesso em 09 Mar. 2015. NUNES, Renata Cristina da Silva; ALMEIDA, Cristiano Silva de. A Desapropriação Indireta e a Demarcação de Terras Indígenas. Disponível em: http://unifia.edu.br/revista_eletronica/revistas/direito_foco/artigos/ano2015/desapropriac ao.pdf. Acesso em 10 Mar. 2016. RAUTENBERG, Edina; DUARTE, Selma Martins. MUITA TERRA PRA POUCO ÍNDIO?: A luta pela terra: agricultores e indígenas no Oeste do Paraná. Disponível em: http://site.projetoham.com.br/arquivos/textos/MUITATERRAPRAPOUCOINDIO.pdf. Acesso em: 06 jul. 2015. SANTOS, José Pereira dos. Reserva Indígena Raposa Serra do Sol: Uma Visão Constitucional. Disponível em: http://www.defensoria.rr.gov.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=381:reservaind%C3%ADgena-raposa-serra-do-sol-uma-vis%C3%A3o-constitucional&Itemid=245. Acesso em: 03 jul. 2015. SILVA, Joana A. Fernandes. Terras e Territórios indígenas: Dilemas, Avanços e Dificuldades na Demarcação e Garantia dos Direitos dos Povos Indígenas no Brasil atual. Habitus, v.7, n. ½, p.45-74, jan./dez.2009. VARELLA, Marcelo.Dias. Introdução ao Direito à Reforma Agrária.Leme, SP: Editora de Direito Ltda, 1998, p.196. VIADANA. Deborah Caetano de Freitas. REFLEXÕES PRELIMINARES ACERCA DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. Disponível em: http://www.direitorp.usp.br/arquivos/noticias/sites_eventos/3_semana_juridica_2010/pa pers/Deborah%20Caetano%20de%20Freitas%20Viadana.pdf. Acesso em: 05 abr. 2016. 4. CURA COMO CRIATIVIDADE BIOLÓGICA E TRANSFORMADORA DO MODO DE VER A SAÚDE E A DOENÇA. Nome: Erika Pereira Machado Titulação: Pós-Doutoranda Instituição: Universidade Federal de Goiás/ UniRV Resumo: a comunicação apresenta o processo de cura na busca de sua raiz etimológica, isso quer dizer no sentido amplo que cura significa alcançar a totalidade. Curar uma doença é compreender que somos um todo, e que para ter um processo de saúde é preciso cuidar do corpo vital, mental e supramental. A integração física, mental e emocional com a natureza estimula positivamente o cérebro, produzindo hormônios de prazer e satisfação beneficiando o estado de saúde. Num contexto de doença é 537 perceptível o sofrimento da totalidade de um corpo físico, no entanto é possível perceber que os processos relacionais estão abalados, assim, a cura só pode ser conquistada na vida de uma pessoa quando a mesma permite um processamento de mudanças de seus padrões de pensamentos e uma compreensão do que está vivendo e enfrentando seja no real ou no virtual. Para tanto, a doença é um verdadeiro caminho de auto conhecimento e auto realização, visto que, por intermédio dos processos de doença é percebido o que o corpo sofre em seu amplo sentido biológico em contextos de perdas de proteção, impotências e desvalorizações, e processos relacionais e de separação. Palavras-chave: doença, cura, saúde. Durante muitos anos, acreditou-se que a base para uma vida de sucesso seria o quociente de inteligência, ou QI, conceito 100% baseado na compreensão e manipulação de símbolos matemáticos e linguísticos. Nos anos 90, Daniel Goleman criou a expressão "inteligência emocional" para descrever a necessidade de se desenvolver o autoconhecimento, a autodisciplina e a empatia. Recentemente, pesquisadores encontraram evidências de que o cérebro humano foi programado biologicamente para fazer perguntas filosóficas e subjetivas, como: "Quem sou eu?" ou "O que torna a vida digna de ser vivida?", que aciona a necessidade humana de buscar um sentido para a vida. Pesquisadores preferem usar o termo Inteligência Supramental, porque significa a inteligência além do mental. Tem a ver com nossos valores, virtudes, e com os arquétipos que definem verdade, beleza, amor, justiça, bondade. Uma inteligência mais ligada à intuição do que à razão. Temos quatro tipos de percepções: a sensorial, no nível físico, a emoção, no nível vital, energético, e o pensamento, no nível mental. E temos também a percepção sutil, a intuição, no nível supramental. Quando dependemos apenas do racional, que é a tendência hoje em dia, jogamos fora nosso aspecto emocional - e, com ele, a nossa intuição. O aspecto sensorial não é descartado, porque ele faz parte da relação física com o mundo, mas no tocante a atualidade as pessoas tem ignorado bastante a emoção e a intuição. Isso precisa mudar. Quando o aspecto intuitivo se restringe, ficamos reduzidos em nossa maneira de pensar e em nossa busca de significado. É preciso as pessoas começar a usar todas as suas habilidades, e não apenas a razão, na nossa inteligência. Para tanto, não há dúvida de que as emoções exercem influência direta sobre o sistema imunológico. Há quem diga que o mesmo é uma espécie de sexto sentido, 538 remetendo informações acessíveis do ambiente, por intermédio dos cinco sentidos, ao cérebro. Uma mudança no estado emocional produz uma mudança na estrutura do corpo e uma mudança na estrutura do corpo produz uma mudança na estrutura das emoções (AUSTIN, McBRIDE e DAVIS, 1984). Nos últimos 50 anos a visão de mundo materialista, reforça os lados sensorial e mental. É possível acreditar que o mental faz parte do físico, que a mente é um fenômeno criado pelo cérebro. O que proponho é que, ao contrário, é a mente, a consciência, que cria não só o cérebro, mas a vida, a realidade que percebemos no cotidiano das pessoas. As pessoas não são entusiásticas sobre as virtudes, estão mais ligadas há qualidades negativas, como a avareza ou a competição ou a vaidade ou o orgulho. É importante equilibrar as emoções negativas com qualidades positivas, que podemos apenas intuir. É aí que a inteligência intuitiva, ou espiritual, se torna uma noção poderosa para ser cultivada. A consciência é a base da existência, não a matéria. Ao dar valor primordial à consciência, podemos aprender todas as suas qualidades e experiências, não só as experiências materiais, sensoriais, mas também o que é pensado, sentido e intuído. Essa intuição é um fenômeno que se explica pelo conceito de não-localidade, ou seja, uma comunicação que não há troca de sinais, explicada pela física quântica. É um fenômeno em que moléculas, elétrons e pessoas se comunicam mesmo a longas distâncias. Isso é a evolução do nosso conceito de inteligência, porque previamente o argumento era que inteligência era a maneira como usamos nosso computador cerebral. Lógico que existe um componente no seu DNA que explica como você usa seu cérebro, mas inteligência também é criatividade, como você vai além da mente, além do conhecido. Quando é integrada a intuição, a criatividade, à nossa razão, aí ocorre transformações que tanto precisamos. O conceito em ciência, da não-localidade, provaram que pessoas podem se comunicar, que seus cérebros podem se comunicar, sem estar presentes no mesmo local, ou seja, existe uma comunicação não-local entre nossos cérebros, que é a interconexão com o que chamamos de consciência. Nossa consciência não está no nosso cérebro, não está na nossa individualidade. Ela é cósmica e está em todos nós; ou melhor, todos fazem parte dela. 539 Mas existe uma forma mais profunda de criatividade, onde vislumbramos esses símbolos, não para escrever um poema ou pintar um quadro, mas para mudar nossa paisagem interior. Mudar o jeito da nossa mente. Nossa paisagem interior às vezes nos traz sofrimento, porque é cheia de ansiedade e angústia, provocadas por diversas coisas. Ao trabalhar a criatividade interior, acessando o supramental e a intuição, damos uma nova forma à nossa experiência interior, transformando nosso comportamento quando começarmos a viver do jeito que intuímos. Para quem quer desenvolver a criatividade, o "fazer" é importante, mas o fundamental é "ser", o que é permitido processar a consciência. A física quântica diz que, quando fazemos isso, infinitas possibilidades se tornam disponíveis. Nossa experiência é gerada quando escolhemos entre as possibilidades. Se as possibilidades não têm tempo de proliferar, estaremos sempre escolhendo dentro de um repertório antigo. Se queremos mudar, devemos permitir que novas possibilidades surjam na nossa consciência, e essa permissão requer um estilo de vida com ressignificações e revisões. E essa é a grande mudança no estilo de vida que é provocada pela inteligência espiritual. As experiências vivenciadas e construídas por cada pessoa estão, na maioria dos casos, ameaçadas por forças do caos e pela realidade inevitável da morte, “a não ser que a anomia, o caos e a morte possam ser integrados no nomos da vida humana, assim, a teodiceia é uma tentativa de se fazer um pacto com a morte” (LUZARDO, 2006, p. 26; BERGER, 1985, p. 92). As situações geradoras de sofrimento e a valorização das forças espirituais podem ser uma forma de buscar significados para os acontecimentos da vida. A espiritualidade é referida como parte da essência de quem cuida, sendo uma força que impulsiona nas situações difíceis. (SCHOSSLER, 2007, p. 71). Neste contexto, Lemos (2009, p. 21) enfatiza que é na experiência do sagrado que a pessoa pode encontrar sentido para a vida, com seus males e seus bens. Esse fator faz com que as pessoas, ao não quererem ou não poder enfrentar suas fragilidades, e responsabilizarem-se para resolvê-las, possam também culpar o sagrado pelos seus fracassos. Isso lhes permite permanecer de cabeça erguida mesmo nas situações mais difíceis. 540 No momento em que o ser humano reconhece sua espiritualidade, mobiliza forças internas e torna-se capaz de agir de maneira transformadora dentro da sua realidade (SCHOSSLER, 2007, p. 67). Afinal, toda pessoa é espiritual, enquanto dotada de espírito, isto não implica que a espiritualidade esteja necessariamente relacionada na fé em uma divindade específica, pois a palavra espírito não se refere apenas à divindade, mas a uma “capacidade de autoconsciência, de fazer uma reflexão sobre si mesmo; e que o ser humano é um ser intrinsecamente espiritual, pois demonstra esta capacidade de refletir e autotranscender-se” (SALGUEIRO e GOLDIM, 2007, p. 15). Dessa forma o ser humano relaciona-se com o sagrado como uma realidade poderosa, diferente da sua. Essa realidade a ele se dirige e coloca sua vida em uma ordem dotada de significado. Assim o cosmo postulado pela religião transcende o ser humano e ao mesmo tempo o inclui, ensinando-o como sofrer, como fazer da dor física, da perda pessoal, da derrota em face do mundo ou da impotente contemplação da agonia alheia como algo tolerável e suportável. Para Brandalise (2004, p. 34) o sentido da vida precisa ser decorrente da fonte da vida, que é o próprio Deus. A vida das pessoas deve ser uma nota na pauta de Deus, e o sentido para a vida de uma pessoa nasce da sintonia profunda com o Deus da vida. Pelo sentido da vida está em jogo não só o destino de cada pessoa, mas também o destino da humanidade, pois são nas situações de crise, dúvida e insatisfação interior que a pessoa é verdadeiramente surpreendida pela questão sobre o sentido da vida. A crise é uma ruptura na dinâmica da vida, exige parar, pensar e refletir, experienciar-se frágil, curtir a solidão, sacrificar algumas coisas que pareciam essenciais. Tempos de crise chegam à vida das pessoas de forma brusca, para pôr à prova as crenças, valores e purificar. Caso a pessoa saiba trilhar este caminho de deserto com esperança e coragem, a crise possibilitará um novo nascimento. É tempo de reler a vida e descobrir razões profundas pelas quais valem a pena viver e empenhar a vida. Permitir abandonar mochilas que estão carregadas e que estão vazias de sentido e significado para cada pessoa e para a humanidade. Nesta busca da intencionalidade dos fatos e objetos que circundam a pessoa, descobre que toda sua alteridade está simplesmente voltada para o grande Outro: o 541 Absoluto, Deus. “O ser humano recebeu das mãos do criador a tarefa de cuidar da criação e valorizar o dom da vida que lhe é concedido [...], portanto, a pessoa depende do Autor da Vida para encontrar a plenitude e o sentido de sua existência mortal” (BRUSTOLIN, 2006, p. 454-455). Assim, a espiritualidade pode ser vista como o esforço de trazer para o cotidiano o encontro com Deus, ou seja, é a capacidade de viver cotidianamente a dimensão transcendente da existência. Com esse pressuposto a espiritualidade se torna algo exigente, uma área do conhecimento humano pautada numa construção de sentido existencial baseada na convicção de pertencer a Deus e na permissão de que Ele esteja presente e atuante em todos os setores da realidade, pois o sentido da vida está na coerência dos fatos e nas bases que sustentam cada pessoa no dia-a-dia (SANCHES, 2009, p. 296-300). A experiência com Deus não aliena o homem, mas o engaja sempre mais na vida cotidiana. Só mergulhando com Deus o homem consegue construir-se a si mesmo e descobrir a própria dignidade humana. Sentir-se habitado por Deus é uma alegria, que não pode ser manifestada com palavras, mas transparece na sua vida (ZSCHORNACK, 2006, p. 22). A partir do encontro com a espiritualidade a pessoa pode se reencontrar, reconstruir ou identificar sua imagem com Deus, seus valores religiosos, restabelecer sua relação com o divino e com o próximo, e assim, estabelecer uma relação com o mais íntimo de seu ser através da oração (ROESE, 2010, p. 303). O ser humano é um microcosmo que possui em sua essência e formação uma força vital e uma alma, que o diferencia das coisas materiais. A força vital, a alma faz do corpo humano um organismo, caso cesse a vida, continua sendo apenas uma coisa material como as outras. Possuir uma alma significa possuir um centro interior para onde converge sensivelmente tudo aquilo que provém de fora e de onde partem as atitudes do corpo vivente. Há nesse núcleo um espaço de troca entre sensações, reações e impulsos. A alma fala por meio do corpo vivente. É no corpo vivente que se dá a manifestação da interioridade; nele, o ser humano manifesta seu caráter e se modo de ser. O corpo vivente é expressão da interioridade. A alma é vida e a vida é a força vital que se articula na força psicofísica e espiritual. É o modo de ser peculiar de cada um que se manifesta na sua estrutura corpórea animal e no seu caráter psíquico, constituindo a natureza da espécie. Os indivíduos são exemplares imperfeitos ou menos completos da espécie e se distinguem um do outro. É a individualidade do ser humano que estabelece os limites entre o ser animal e o ser humano (PERETTI, 2010, p. 60). A reflexão sobre a vida das pessoas não deixa de contemplar o limite e as perdas como forma de compreender o mistério da existência. A sociedade consumista ensina que para viver uma vida cheia de sentido necessita explorar tudo que há o 542 máximo de satisfação e prazer. “O doente, o agonizante, o indesejado e tantos outros sujeitos humanos são excluídos dessa lógica”, assim, a doença e a morte constituem “lugares teológicos” (BRUSTOLIN, 2006, p. 455). O tempo vivido neste mundo faz com que a pessoa sempre esteja em profundas mudanças, passando por crises, novas experiências, limitações físicas e psíquicas. A valorização da vida e o reconhecimento de sua dignidade fazem surgir uma visão consciente da realidade humana, pautada no acolhimento ou rejeição do ser humano, definindo as relações de cooperação ou de dominação, e definindo critérios que permitam cuidar da vida (BRUSTOLIN, 2006, p. 456). Para tanto, as pessoas precisam admitir suas dificuldades diante da emotividade própria do seu ser. “É preciso reconhecer no ser humano sua totalidade tanto racional quanto emotiva, e dar sentido ao todo da pessoa: emocional, psicológico, moral e intelectual, para que ela tenha uma saúde de vida integral” (ZSCHORNACK, 2006, p. 18). É através do acompanhamento terapêutico e espiritual que a pessoa pode ter a possibilidade de ser restaurada em sua dimensão pessoal e espiritual, buscando novas direções para a vida relacional, despertando sua integridade pessoal, cuidando da dimensão psicológica, social, corporal, política e econômica, além de abrir espaço para a presença divina, para a sabedoria de Deus e para a sabedoria humana (ROESE, 2010, p. 303). Zschornack (2006, p. 20) enfatiza que o medo é um dos obstáculos que impede a pessoa de uma doação plena a Deus, e consequentemente ao bloqueio de viver nossas emoções. As pessoas tem medo de não serem aceitas, merecedoras ou dignas de ter uma experiência com Deus, por serem pecadoras ou ocupadas. Por outro lado, a concepção que as pessoas tem de Deus pode estar baseada em experiências negativas vividas na família, entre amigos ou até mesmo na comunidade cristã. “O medo paralisa as pessoas, não permitindo que elas ajam por si mesmas, [...] procuram a fuga e logo caem na crise, na escuridão. Neste sentido, a maioria das pessoas [...] prefere procurar o que ameniza, o que ajuda a fazer de conta que está bem” (RANGEL, 2002, p. 37). 543 A pessoa não encontra a cura ou a felicidade sem agir, sem movimentar, ou seja, buscar a cura é descobrir, encontrar e conhecer o cuidado especial e integral. A doença pode ser um indicativo de um caminho de saúde, é a doença que nos faz parar e refletir do que estamos fazendo com nosso corpo e que o predispõe adoecer com tanta facilidade. Muitas vezes as doenças são vozes gritando para dizer que existem algumas coisas erradas no nosso modo de viver, e que carecemos de cuidados. A doença é sempre uma situação de crise, um acontecimento estressor, que produz efeitos na vida do doente e da família. Apesar das alterações das funções e estruturas familiares registradas nas últimas décadas, continuam a serem, na maioria dos casos, os familiares diretos do gênero feminino que maioritariamente apoiam estes doentes, desempenhando assim o papel de cuidadores informais. O desempenho deste papel interfere com aspectos da vida pessoal, familiar, laboral e social dos cuidadores informais predispondo-os a conflitos (MARTINS, RIBEIRO e GARRETT, 2003, p. 132). O impacto de todo esse processo de estresse mediante uma doença cria um desequilíbrio entre os membros da família. Um membro não funciona mais, a rotina do dia-a-dia é interrompida e outros assumem os cuidados especiais. A insegurança sobre diagnósticos e prognósticos causam inquietações, medos, angústias e preocupações, principalmente quando o doente está em uma fase terminal. Quando uma pessoa fica doente, sua família é afetada e, percebendo isto, o doente se perturba. As mudanças na rotina familiar podem criar tensões que podem ocasionar fadiga, irritabilidade e preocupação. Numa tentativa de se animar e evitar a preocupação, o doente e a família podem se recusar a discutir seus verdadeiros temores e sentimentos uns com os outros, e como resultado, cada um sofre sozinho. A dor física, as emoções do doente e as reações da família, nos dão a impressão de um quadro sombrio da doença, mas em todas as fases do estágio da doença, o doente passa pelo sentimento de esperança, pois é ela que sustenta e encoraja para a busca de um novo sentido para a vida. (MACHADO, 2014, p. 173). A experiência do sagrado e da espiritualidade é algo essencial e vital na vida de qualquer pessoa e em qualquer tempo ou cultura, especialmente as pessoas doentes e 544 as pessoas que lidam com o cuidado diário e contínuo, pois pode moldar as ações e reações das pessoas frente às circunstâncias da vida, formando novas perspectivas de tomar iniciativas e respostas com novas inspirações e esperança, além da capacidade de autotranscendência do ser humano. (MACHADO, 2014, p. 178). O pleno cuidado à saúde das pessoas cuidadoras está intimamente ligado a sua qualidade de vida e ao seu bem-estar em todas as suas dimensões, seja emocional, social, psíquica, mental e espiritual, conduzindo a pessoa ter a capacidade de atravessar dificuldades e situações agressoras e ter o controle e o equilíbrio de voltar à qualidade satisfatória de vida. O pleno cuidado à saúde das pessoas cuidadoras está também intimamente ligado ao saber cuidar de si, não basta apenas cuidar do doente e conviver com o sofrimento do outro, não pode deixar de cuidar de si, de ter uma íntima relação saudável consigo mesmo e com a transcendência, pois este é o grande segredo para que a pessoa cuidadora possa se relacionar bem com o outro e cuidar do outro, ou seja, quando se relaciona o cuidado de si com o cuidado do outro. Pode-se dizer que a relação do cuidado ao outro assume uma perspectiva sublime quando há o autoconhecimento e o cuidado de si e assim o outro se desenvolve a partir do desenvolvimento do conhecimento e da práxis do cuidar humano conquistado e adquirido pela pessoa cuidadora. Portanto, o cuidar humano tem princípios essenciais que estão grandemente relacionados com o ser, com a totalidade do ser, com as interrelações do ser e das relações do ser com os ambientes ou espaços do cuidar, regidos pela promoção a saúde, a qualidade de vida, a ética e estética na presença do cuidar de si e do outro (MACHADO, 2014, p. 214). A saúde é o que a pessoa vivencia e vive no cotidiano presente e que interessa apenas por quem vive o momento, proporciona às pessoas um suposto bem-estar em suas funções morfofuncionais; já a doença para muitas pessoas, quase a maioria, é constituída como algo capaz de provocar uma ruptura das certezas da vida, desencadeando nas pessoas uma angústia por tal ameaça e a possibilidade de não ser mais uma pessoa no mundo existencial como era antes. 545 Todo ser humano tem um limite pessoal para lidar com as adversidades, considera-se que a superação de uma situação traumática ou adversa em sua vida faz crescer a resiliência contribuindo no amadurecimento das pessoas, como ser humano, e também na descoberta de um sentido mais profundo às coisas e à vida, e na percepção de valores e visão do mundo (MACHADO, 2014, p. 215). A resiliência convida as pessoas a olharem positivamente para quem passa por situações de risco e adversidades sérias modificando as práticas educativas, o enfoque do trabalho social ou da saúde, começando por observar, identificar e usar melhor os recursos daqueles que sofrem. No entanto, a resiliência não pode ser vista com um fator de proteção absoluta nem invulnerabilidade, mas sim uma possibilidade de enfrentamento, adaptação e superação, ligada não só as características pessoais, mas também a fatores ambientais, sociais e circunstâncias do cotidiano; assim, uma pessoa pode ser resiliente frente a uma situação e não resiliente frente à outra situação. Nesse sentido, para que uma pessoa torne resiliente é preciso que reconheça o problema em sua real dimensão, e assim estabeleça a forma de enfrentamento e objetivos para serem atingidos (MACHADO, 2014, p. 217-218). Afinal, o cuidado é respeito e valorização da dignidade humana, é no cuidado que as pessoas mais expressam sua solidariedade para com as outras pessoas, e é por esse caminho na dimensão do cuidado que toda relação terapêutica deveria se caracterizar. Não apenas no cuidado com o outro, mas também no cuidado de si, abrindo novos canais para a recepção do seu eu, inundando sua essência com a virtude do que necessariamente precisa, retirando de dentro de si as falhas e os erros, aliviando sofrimentos, ganhando experiência e conhecimento, na promoção ao poderser com saúde, paz, alegria, harmonia, amor, equilíbrio, coragem e fé numa condição de ressignificação e reencontro com sua energia vital e essencial ao existir humano, sempre percorrendo e caminhando em Verdade (MACHADO, 2014, p. 221). O ser vivo é um ser em constante interação tanto interna quanto externa. O ser vivo complexo homeotérmico é um sistema estruturalmente aberto para o meio externo do qual depende para manter o seu alto grau de rendimento biológico, depende da manutenção das suas próprias constantes, do seu meio interno. O bem-estar exige a 546 homeostase não somente do funcionamento do corpo físico – o funcionamento das matrizes mapeadas do corpo vital, mas também do corpo vital (SALGADO, 2013, p. 19). Todo ser vivo é capaz de autopoiese, o que quer dizer que é capaz de fazer algo por ele mesmo e para ele mesmo usando sua capacidade de autogestão e de autocorreção, que é a base da cicatrização ou da imunologia. O corpo pode reconhecer seu agressor (antígeno) e se defender (anticorpos). Quando a agressão é muito forte ou quando chega de surpresa e o corpo não reconhece o agente agressor, esta capacidade de autopoiese não se manifesta e os sintomas da doença se instalam. A cicatriz patológica é o vestígio deixado pelo agressor no corpo. Quando o corpo tenta reparar uma agressão, mas não consegue eliminar o agente agressor por uma deficiência do sistema imunológico ou porque a agressão foi muito forte, é formada uma cicatriz patológica, que por sua vez desequilibra as células e tecidos atrapalha as funções gerando sintomas, causando diminuição ou perda da vitalidade. Cada vez que um indivíduo é submetido a um fenômeno apresentando semelhanças com um evento registrado anteriormente, é despertado uma memória tecidual. Este despertar leva uma reação de defesa da parte do corpo, traduzindo-se por vários bloqueios em função das fraquezas próprias de cada um. Esta natureza de agressão é qualificada de “virtual” por oposição as agressões reais. Virtuais ou reais, as agressões são traduzidas por um fenômeno reativo do organismo para se proteger e manter seu equilíbrio de vida, pelas quais surgirão desordens físicas e psíquicas (SALGADO, 2013, p. 209). Para tanto, pensamentos podem estimular comportamentos com mais eficiência que as moléculas físicas, ou seja, quando a mente humana consciente tem uma crença que entra em conflito com as verdades armazenadas no seu subconsciente, o resultado é o enfraquecimento dos músculos do corpo. Assim, muitas doenças e dores se devem a pequenas disfunções que se acumulam durante nossa existência e terminam por enfraquecer o organismo. Essas disfunções podem ter como causa uma frustração, intoxicação e até mesmo as memórias hereditárias. O organismo ao fazer sua reconstituição e sua ressignificação pode evacuar vestígios tanto emocionais como traumáticos, conduzindo ao pleno processo natural 547 para a cura de doenças e como consequência aumentar a vitalidade da pessoa propiciando um padrão apropriado de saúde. Referências AUSTIN, J. K.; McBRIDE, A. B.; DAVIS, H. W. Parental attitude and adjustment in childhood epilepsy. Nurse Research, 1984. BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Tradução de José Carlos Barcellos. São Paulo: Paulinas, 1985. BRUSTOLIN, Leomar Antônio. A vida: dom e cuidado – antropologia teológica e ética do cuidado. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 36, n. 152, p. 441-460, jun. 2006. LEMOS, C. T. O sagrado e a experiência religiosa. In: RICHTER REIMER, I.; SOUZA, J. O. (Orgs.). O sagrado na vida: subsídios para aulas de teologia. Goiânia: Ed. da UCG, 2009. p. 17-23. LUZARDO, Adriana Remião. Características de idosos com doença de Alzheimer e seus cuidadores: uma série de casos em um serviço de neurogeriatria. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. MACHADO, E. P. Espitualidade e saúde: uma dimensão de cuidado na vida de cuidadores familiares de pessoas com doença crônica. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2014. MARTINS, Teresa; RIBEIRO, José L. Pais; GARRETT, Carolina. Estudo de validação do questionário de avaliação da sobrecarga para cuidadores informais. Psicologia, saúde e doenças. v. 4, n. 1, p. 131-148, 2003. PERETTI, Clélia. Gênero: perspectivas antropológicas e fenomenológicas em Edith Stein. Estudos teológicos, São Leopoldo, v. 50, n. 1, p. 54-68, jan./jun. 2010. RANGEL, Alexandre. Jonas: cuidar do ser, cuidar do outro. Estudos Bíblicos, Petrópolis, v. 72, p. 35-48, 2002. ROESE, A. A abordagem feminista do cuidado espiritual e psicoterapêutico. Estudos teológicos, São Leopoldo, v. 50, n. 2, p. 288-305, jul./dez. 2010. SALGADO, A. S. I. Saúde integral: fisioterapia corpo e mente. 3. ed. São Paulo: Andreoli, 2013. SALGUEIRO, Jennifer Braathen; GOLDIM, José Roberto. As múltiplas interfaces da bioética com a religião e a espiritualidade. In: GOLDIM, José Roberto (Org.). Bioética e espiritualidade. Porto Alegre: Ed. da PUC/RS, 2007, p. 11-27. SANCHES, Mário Antonio. Espiritualidade e ciência na sociedade do conhecimento. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 49, n. 2, p. 291-304, jul./dez. 2009. SCHOSSLER, T. Cuidador domiciliar do idoso: cuidando de si e sendo cuidado pela equipe de saúde – uma análise através da teoria do Cuidado Humano de Jean Watson. 548 Dissertação (Mestrado em Enfermagem). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. ZSCHORNACK, Ilaine. A experiência com o sagrado e o resgate da espiritualidade no aconselhamento pastoral. Monografia (Especialização em Aconselhamento e Psicologia Pastoral) – Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2006. ___________________________________________________________________ GT 17: LITERATURA SAGRADA, SAÚDE E GÊNERO Coordenadores: Profa. Dra. Ivoni Richter Reimer/PUC Goiás Doutoranda Carolina Bezerra de Souza/ Bolsista CAPES/PUC Goiás Doutorando Danilo Dourado Guerra/ Bolsista CAPES/PUC Goiás Ementa: Os textos sagrados contêm narrativas que refletem experiências de doença e cura vivenciadas por crianças, mulheres e homens, muitas geradas em contextos socioculturais de discriminação, exploração e exclusão. O processo terapêutico pode ser visto como um espaço contracultural de solidariedade e resistência e acontece em dinâmicas relacionais. Propomos reunir e colocar em diálogo trabalhos de pesquisa que englobem a temática da saúde na literatura sagrada, utilizando a categoria de gênero e demais perspectivas interdisciplinares (cultura, história, literatura, hermenêutica) para entender interconexões e inter-relações dessas situações com os fenômenos religiosos, construção de identidades e as relações de poder refletidas nesses relatos. Palavras-chave: textos sagrados, saúde, gênero, hermenêutica, história. Comunicações: 1. GÊNERO, UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E RELACIONAL Nome: Lindinalva Gomes da Silva Titulação: Mestranda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: Nesta comunicação, partimos do pressuposto de compreender relações de gênero como uma construção relacional. Historicamente, o conceito de gênero surgiu para contrapor a uma visão que enfatizava as diferenças biológicas, ou sexuais, entre homens e mulheres, que acabavam naturalizando a dominação masculina. Sabendo que não é novo e nem consensual o debate em torno de tal conceituação, procuramos compreender como ocorrem os elementos fundamentais na construção de relações 549 entre as pessoas. Para isso, percorremos alguns textos de Joan Scott e a sua influência, com algumas críticas que são direcionadas a construções de tais relações. Em trabalhos que discutem experiências das mulheres em suas relações sociais, constatamos que a maior parte de posicionamentos dos autores e das autoras que enfatizam tal assunto gira em torno de análises que partem de estudos sobre gênero ou de contextos sobre a história de mulheres. Historicamente, o conceito de gênero surgiu para contrapor a uma visão que enfatizava as diferenças biológicas, ou sexuais, entre homens e mulheres, que acabavamnaturalizandoa dominação masculina. Sabendo que não é novo e nem consensual o debate em torno de tal conceituação, percorremos alguns textos de Joan Scott e a sua influência, com algumas críticas que são direcionadas a construções de tais relações. Em trabalhos que discutem experiências das mulheres em suas relações sociais, constatamos que a maior parte de posicionamentos dos autores e das autoras que enfatizam tal assunto gira em torno de análises que partem de estudos sobre gênero ou de contextos sobre ahistória de mulheres. Joan Scott, professora de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados em Princeton, historiadora e militante feminista Norte-Americana,em seu artigo: “Gênero uma categoria útil para análise histórica” (1995), propõe uma busca pela historicização e desconstrução, pautadas no paradigma pós-moderno, dos termos que procuram denominar a diferença sexual. Neste sentido, podemos dizer que a própria história sofre uma mudança radical, uma vez que abandona a busca pelas origens dos acontecimentos, reconhecendo a complexidade dos tempos e dos lugares históricos enquanto elementos interrelacionados. Para essa autora, gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças que distinguem os sexos, assim, caracterizariam os estudos de gênero a análise de como em diversas sociedades um dado grupo dá significação ao feminino e ao masculino, elegendo o particular para a explicação das diferenças sexuais. Joan Scott alinha-se entre as historiadoras que se propõem ultrapassar os usos descritivos do gênero, buscando a utilização de formulações teóricas. Uma voz dissonante, nesse aspecto, foi a da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias que discordou da necessidade da construção imediata de uma teoria feminista. A seu ver, tal reconstrução significava substituir um sistema de dominação cultural por outra 550 versão das mesmas relações talvez investida de poder que segundo ela, o saber teórico implicaria também um sistema de dominação (DIAS, 1992, p. 39). Na relação existente entre gênero e poder, Michel Foucault (1979, p. 179) apresenta elementos para a sua discussão, devido ao significado que ele dá aos micropoderes, analisando que o poder circula sobre o funcionamento do discurso, o que auxilia na apreensão da violência de gênero e de seus mecanismos na sociedade. Por meio de Foucault, torna-se possível analisar os documentos que se têm a partir de outra ótica, que não seja a visão tradicional da História, já que ele se propõe analisar o exercício do poder nos seus mais variados discursos. Afinal, o poder não se dá somente de maneira formal, via Estado, mas pelo cotidiano das pessoas, é regido por relações de poder, vinculando-se a um discurso que o norteia: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo se luta, o poder do qual nós queremos apoderar” (FOUCAULT, 1996, p. 10). Tais jogos de poder referidos por Foucault ultrapassam as ideias préestabelecidas que perpassam as estruturas de poder político, de governos, de classes dominantes, de nações imperialistas, de chefes em relação aos seus empregados, de senhores e seus escravos. As relações de poder podem ser vistas em quaisquer relações humanas, institucionais, econômicas, entre outras, em diferentes situações e contextos, sob diferentes ecomplexas formas. Na perspectiva foucaltiana, liberdade e poder não são elementos mutuamente excludentes, na medida em que as relações de poder só se processam quando existe algum grau de liberdade e de resistência entre as pessoas envolvidas. A ideia de que onde há relações de poder não há liberdade é, para ele, completamente falsa. Se existem relações de poder é exatamente porque há possibilidades de liberdade por todas as partes, ou seja, a resistência é um elemento constitutivo de tal relação de poderio. Assim, nas relações de poder, existem possibilidades de resistência, pois existe propensão de fuga, de reação violenta, de subterfúgios, de estratégias para inverter a situação, se não houvesse essas possibilidades não existiriam essas relações. Contudo, existem diferenças significativas entre relações de poder e estados de dominação. Um estado de dominação é o total bloqueio de um campo de relações de poder, tornando essas relações imóveis e fixas, dessimétricas, com limitada margem de liberdade, impedindo qualquer reversibilidade. 551 Scott (1991) argumenta que, no seu uso descritivo, o gênero é apenas um conceito associado ao estudo das coisas relativo às mulheres, mas não tem força suficiente para interrogar e mudar os paradigmas históricos resistentes. Ressalta também a defasagem entre a alta qualidade dos trabalhos da história das mulheres e seu estatuto, que permanece marginal em relação ao conjunto da disciplina - o que poderia ser aperfeiçoado pelos manuais, programas universitários e monografias. Ficam assim, segundo Scott, demonstrados os limites das abordagens descritivas que não questionam os conceitos dominantes no seio da disciplina ou, pelo menos, não os questionam de forma a abalar o seu poder e talvez transformá-los. Assim, não teria sido suficiente aos historiadores/as das mulheres provarem que elas tiveram uma história ou que as mulheres participaram das mudanças políticas principais da civilização ocidental. Podemos certificar que a maioria dos historiadores/as descartou a história das mulheres e colocou-a em um domínio separado: “as mulheres têm uma história separada da dos homens, portanto, deixemos as feministas fazerem a história das mulheres que não nos pertence necessariamente”. Quanto à participação das mulheres na história, a reação foi de um interesse mínimo: “a compreensão de um determinado acontecimento, a Revolução Francesa, por exemplo, não mudou com a descoberta de que as mulheres dela participaram”. Esse tipo de reação encerra um desafio teórico: ela exige a análise não só da relação entre experiências masculinas e femininas no passado, mas também a ligação entre a história do passado e as práticas históricas atuais (SCOTT, 1991, p. 3). Possivelmente, a polêmica maior, "conquistada" por Joan Scott, consiste no acirrado debate com os historiadores/as que fazem parte da chamada História Social, em especial com a historiadora Louise A. Tilly. Para essa estudiosa, em seu artigo “Gênero, História das mulheres e História social”, os estudos de gênero, embora tenha contribuído para novas perspectivas de compreensão, subestima a ação humana. Para a autora, a desconstrução pode propiciar para a explicitação de significados ocultados, mas não permite contribuir com novos. Ao se referir sobre a História social das mulheres, Tilly defende: Isto não é um apelo para integrar a história das mulheres a uma outra história, o que poderia significar apenas acrescentar materiais sobre mulheres e gênero sem analisar suas implicações, mas é um apelo para escrever uma história analítica das mulheres e para vincular seus problemas àqueles das outras histórias. É 552 exclusivamente através desta confrontação que a história das mulheres terá possibilidades de modificar o quadro geral da história no seu conjunto (TILLY, 1994, p. 29). Para Tilly, a história das mulheres contribuiu para identificar e expandir nossa compreensão sobre os novos fatos do passado, no entanto, os historiadores e historiadoras das mulheres deveriam tornar sua metodologia mais analítica e mostrar como seus trabalhos contribuíram para a explicação de problemas mais gerais. Para fazer isso, ela propõe a utilização do gênero enquanto categoria de análise. Enfim, a autora discorda de Joan Scott, quando considera que a História social pretende explicar a diferença entre os gêneros pelo seu próprio quadro de explicação: o econômico. A história social das mulheres permitiu, mesmo em seus trabalhos mais descritivos, uma compreensão sobre a sociedade de uma forma mais completa e sistemática. Segundo Scott, gênero pode ser definido como um "elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos". Por fim, "gênero é um primeiro modo de dar significados às relações de poder". Portanto, a autora entende que a categoria gênero requer um novo paradigma da História, uma nova demarcação dos métodos, um diálogo constante com outras áreas das ciências humanas (SCOTT, 1991, p. 5-22). Em outro viés de pensamento, Ivone Gebara reflete sobre a significação histórica do conceito de gênero e sua importância como instrumento de interpretação. Esclarece que sobre gênero, a partir da década de 80,entendeu-se ser um meio de avaliar a multiplicidade das diferenças “entre homens e mulheres, entre homens e homens, entre mulheres e mulheres”, como também de compreender a multiplicidade e a diversidade dos relacionamentos humanos, especialmente as relações de poder, a alteridade e as suas contradições e conflitos. Assim, tal conceituação é mais do que instrumento de análise, é mediação na “autoconstrução feminina e tentativa de construção de relações sociais mais fundadas na justiça e na igualdade, a partir do respeito pela diferença”. (GEBARA, 2000, p. 105). A utilização do conceito de gênero questiona as relações de poder consolidadas histórica e institucionalmente, e tende a propor outras maneiras de configuração nas relações interpessoais.Neste sentido, a entrevistada Luzia fala em depoimento sobre as desigualdades de gênero, percebidas a partir das experiências de inserção 553 missionária nas CEB’s, no bairro Cidade Livre, em Aparecida de Goiânia, década de 80, Nós começamos a perceber as dominações e as necessidades de igualdade de gênero, no relacionamento com os padres e outros homens da comunidade. Porque tinha um padre lá, nem vou dizer o nome porque não é o caso. Mas então, ele começou a ter ciúmes e a provocar complicações porque nós falávamos que foram as mulheres que tinham lutado e conquistado aquele terreno para a comunidade. Porque tivemos muito trabalho ali, organizamos projetos de horta comunitária, da costura, de artesanato, de reforço escolar e outros. Então ele começou a falar que nós juntamente com as outras mulheres da comunidade, não estávamos valorizando o que ele tinha feito, (risos). Era ele quem queria aparecer e as mulheres era quem apareciam, neste caso. Então a necessidade de igualdade de gênero se tornou visível a partir daí. Tinha reações contrárias, as mulheres falavam que elas eram quem tinham enfrentado na linha de frente os perigos e muito machismo dos homens, dos maridos. O machismo, gente, era uma coisa horrível, essa mulher que era a líder principal, a dona Raimunda, ela sofria muito pelo machismo do marido dela, e depois ele acabou sendo assassinado, não por isso mais por outras questões. Mas ela era uma mulher corajosa e sempre lutou e hoje quando a gente vai visitá-la, falamos que ela é uma mulher ressuscitada e também foi a força da fé desta mulher que levou adiante a comunidade. Então eu fiquei muito feliz quando voltei agora para celebração dos 25 anos da comunidade ao ver aquelas mulheres que lutaram, desde o início, se reuniram conosco e acreditaram na Palavra de Deus como instrumento de libertação. Essa narrativa apresenta um posicionamento das mulheres inseridas na realidade de dominação em que viviam as mulheres. A entrevistadase inclui nesse coletivo de mulheres, apresenta-se como integrante dessa organização de mulheres e explicita sobre a consciência da importância da luta pela equidade nas relações de gênero, na sociedade e, principalmente, em relação aos padres e à Igreja. Enfatiza também o sofrimento de algumas integrantes do grupo pela dominação machista dos maridos e deixa transparecer uma atitude de liderança que anima as outras mulheres a acreditarem na luta. O posicionamento de Luzia reflete nos conceitos de Gebara. Esta diz que gênero é um modo de ser, de sentir, de viver num mundo de condicionantes e determinações socioeconômicas e políticas e de elementos que influenciam as relações entre homens e mulheres, seres humanos nas suas diferenciações. Ela destaca características de gênero como o modo específico do ser, além do biológico, como o fator de cultura, história, sociedade, religião, ideologia, política e como construção de sujeitos históricos subjugados “sexualidade é culturalizada a partir das relações de poder” (GEBARA, 2000, p. 106). Gebara (2000, p. 109) ainda afirma que gênero é plural pela diversidade de culturas e vivencias, é alteridade. É também mediação para entender aspectos específicos das relações humanas. “Sair do universalismo do discurso masculino [...]. 554 Entrar na relatividade das diferenças, ao revelar o dinamismo e a pluralidade das relações entre seres humanos, contribui para desvendar a complexidade de elaborações simbólicas que sustenta o sistema de poder construído historicamente e revela o que foi negado,encoberto, oculto em paradigmas de construções teóricas da perspectiva masculina. Nesse sentido, as ideias de Gebara dialoga com as de Teles (2006), pois sua compreensão de gênero num sentido relacional pode ser vista da seguinte forma: Gênero traz uma característica relacional. Não trata apenas das mulheres, mais inclui as relações entre as próprias mulheres, entre os próprios homens, assim como as relações entre mulheres e homens. Por isso não se pode confundir o termo gênero com mulher. Caso contrário, o conceito perde seu poder de perceber relações hierárquicas entre pessoas do mesmo e de diferentes sexos (TELES, 2006, p. 44). Diante do exposto, vemos que Teles aponta para as questões de gênero numa categorização relacional, ou seja, as imposições de uns sobre outros ocorrem entre homens sobre homens, homens sobre mulheres e mulheres subjugando outras mulheres. As hierarquias são relações de poder entre pessoas de mesmo sexo e de sexualidade distinta. Com isso, temos uma interpretação de que os interesses pela dominação ocorrem com muito mais particularidade no quesito poder do que na posição de apenas gênero em si. Nas relações de gênero, apresentamos as autoras Gebara, Teles, Joana Maria Pedro, que relacionam suas ideias com as de Scott (1990), para ressaltar que elas concordamque os debates sobre gênero procuram não focalizaras mulheres em si, já que se trata de relações entre seres humanos em sua totalidade. Assim, gênero referese, portanto, às relações sociais de poder existentes entre homens e mulheres, entre mulheres e entre homens na sociedade, onde cada um se constrói,pelo meio principal de um movimento histórico-cultural. Essa construção é cotidiana e está relacionada aos costumes de determinada sociedade. Referências FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. ______. Microfísica do poder. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 555 GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. 2. ed. Tradução de Lúcia Mahtilde E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-109. SCOTT, Joan W. História das mulheres. In. BURKE, Peter (Org.) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1991. ______. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. TILLY, Louise A. “Gênero, história das mulheres e história social”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 3, p. 29-62, 1994. 2. BÍBLIA: UM CLÁSSICO DA LITERATURA Nome: Davi Da Silva Oliveira Titulação: Mestrando Instituição: UNASP Resumo: O objetivo deste artigo é pensar a Bíblia, focalizando-a como uma obra de cunho literário, sem demovê-la do seu posto de livro devocional. Sob o ponto de vista da crítica literária, procuraremos visualizar As Sagradas Escrituras como um clássico. Para isso, além de pontuarmos algumas considerações gerais de pesquisadores que enxergam na Palavra as macas de literariedade, arrastaremos para a base de nossa pesquisa os catorze pressupostos que Ítalo Calvino elabora com o objetivo de tentar clarificar se os marcos que delimitam uma obra clássica. Palavras-chave: Bíblia. Literatura, clássico. Consideramos a Bíblia como um clássico, porque, como assevera Frye “A abordagem da Bíblia de um ponto de vista literário não é de per si ilegítimo: nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária” (2004, p. 14). Ferraz, fazendo uma leitura de Frye, destaca um pensamento deste, quando trata da influência das Escrituras: “a literatura ocidental tem sido mais influenciada pela Bíblia do que por qualquer outro livro” (apud Ferraz, 2003, p. 11). Inicialmente, torna-se imperiosa a necessidade de se conceituar o que seja um clássico. Brilhante é o excerto de Saint-Beuve que Compagnon crava nos seus comentários sobre O que é um clássico? Um verdadeiro clássico [...] é um autor que enriqueceu o espírito humano, que realmente aumentou seu tesouro, que lhe fez dar um passo a mais, que descobriu alguma verdade moral não equívoca ou apreendeu alguma paixão eterna nesse coração em que tudo já parecia conhecido e explorado; que manifestou seu 556 pensamento, sua observação ou sua invenção, não importa de que forma, mas que é uma forma ampla e grande, fina e sensata, saudável e bela em si; que falou a todos num estilo próprio, mas que é também o de todos, num estilo novo sem neologismo, novo e antigo, facilmente contemporâneo de todas as idades. (1999, p. 234) Para verificarmos o enquadramento da Bíblia como um clássico, busquemos os postulados de Ítalo Calvino como instrumento basilar. Vamos particularizar alguns itens na citados por Calvino e conferir se o livro-biblioteca pode ser visto como um clássico. 1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “estou relendo...” e nunca “estou lendo...”. Esta é a realidade para os que leem as Sagradas Escrituras. As religiões cristãs estimulam seus fiéis a lerem e relerem diuturnamente a Bíblia como uma garantia da manutenção na fé. O jargão fazer o ano bíblico é pronunciado a cada ano nas igrejas. Um grande exemplo desta prática nos tempos neotestamentários encontramos nos bereanos, sobre os quais é dito que examinavam “... as Escrituras todos os dias para ver se as cousas eram, de fato, assim.” Atos 17:11. 2. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Baseemos nossas opiniões nos pesquisadores da literatura, sociologia e antropologia sobre a influência da Bíblia na cultua ocidental: O cristianismo (cujo livro principal é a Bíblia) é tão importante para o mundo ocidental que, segundo Eliade, a religião, como forma de vida e concepção do mundo, confunde-se com o cristianismo (1992, p. 132). (apud FERRAZ, 2003, p. 10-11). 3. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Aqui cabem as palavras de João “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos.” João 21:25. 4. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. 557 Que livro foi mais perseguido, incriminado e queimado do que Bíblia. Esta perseguição prolongou-se até aos seus leitores. Jeoaquim e os príncipes do rei Zedequias rebelaram-se contra Deus queimando os escritos de Jeremias e, lançaram o profeta num calabouço. (Jr. 36:20-23). A História testemunhou os nomes dos mártires que foram os mártires do livro. No entanto, as Escrituras não saem do pódio do livro mais traduzido. 5. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. Isto poderia ser aplicado perfeitamente aos ouvintes contemporâneos de Jesus. Eles supunham ser os depositários dos preceitos do Antigo Testamento, mas Jesus revelou algo novo pela Sua leitura. A idéia que eles tinham da lei estava equivocada, faltava-lhes o conhecimento verdadeiro. Para eles, Jesus disse: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento no tribunal...” Mt. 5:21-22. 6. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs. Não precisa ir longe para saber que um talismã é um objeto ao qual se atribuem poderes de magia ativa, que possibilita a realização desejos. Não é que o volume de escritos que compreende os sessenta e seis livros tenham poderes mágicos em si, mas a Bíblia mostra o caminho do poder. A Palavra de Deus tem poder, conforme diz o salmista: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da Sua boca. Porque falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu.” Salmo 33:6 e 9. 7. O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele. A Bíblia tem um destino irrevogável: o ser humano e este se depara com o contraste: quão distante ele está do Seu Criador. Na leitura da palavra dos escritores inspirados vemos um espelho que nos mostra quem somos. O escritor alemão Goethe, referindo-se à Bíblia, declarou: “Tenho lido muitos livros sagrados; mas este livro me lê.”. (apud OLIVEIRA, 1983). 558 8. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível. Mesmo com o nosso ritmo de vida em desenfreada velocidade, a Bíblia, que retrata uma sociedade distante e diferente da nossa, não ficou ultrapassada. Parece contraditório ler o Salmo 23 de ambiente bucólico com toda a sua singeleza e leveza de vida. Mas, mesmo assim, o salmo persiste pelas suas lições tanto de vida espiritual como poéticas. Considerações finais Conforme o escrito no início, não será este o artigo o divisor entre o que a Bíblia era e o que ela é. Nossas considerações finais são que as Sagradas Escrituras talvez não tenham sido consideradas ou lidas como um clássico, aliás, não é esta sua finalidade, porque os outros a superaram não no valor, mas na preferência acadêmica e artística. Acrescente-se a isto, a fato de que ela serve à crença em um Deus e isto, num mundo tão alheio ao divino e às coisas do porvir, tem relegado esta fonte inesgotável ao nível de meras reflexões religiosas. Vale a pena ler a Bíblia, é de valor inestimável descobri-la nos clássicos da literatura, é gratificante reconhecer a sua atualidade e, compensador receber suas instruções. Barnhouse tinha razão quando disse: “Estude a Bíblia para ser sábio. Creia na mesma para se salvo. Siga os seus ditames para ser santo.” (apud OLIVEIRA, 1983, p. 38). Em outras palavras, White declara: “A Bíblia supera todos os livros e seu estudo é mais valioso do que o estudo de qualquer outra literatura para dar vigor e expansão à mente (1975, p. 394). As exigências acadêmicas cobram a leitura de Os Sertões, Olhai os Lírios do Campo, o Memorial do Convento e tantos outros marcos literários. Ela é necessária e obrigatória, pelo menos para alunos e professores, mas, uma leitura da Bíblia numa visão literária nos levaria a sorver os goles na mesma fonte onde aqueles escritores buscam ou a inspiração temática ou as expressões consagradas nesta. Referências AGUILAR, Rubem. Miscelânea. Niterói: ADOS, 2003. 559 BARROS, Diana Luz Pessoa; FIORIN, José Luiz (orgs). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003. BÍBLIA SAGRADA. 2ª ed. Sociedade Bíblica do Brasil: São Paulo, 1993. CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CAMPAGNON, Antonie. O Demônio da Teoria – literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 199. COMFORT, Philip Wesley. Editor. A origem da Bíblia. Rio de Janeiro: CPAD, 2001. FARIAS, José Niraldo de; MALUF, Sheila D. (orgs.) Literatura, Cultura e Sociedade. Maceió: EDUFAL/PPGLL, 2001. FERRAZ, Salma. As faces de Deus na obra de um ateu – José Saramago. Juiz de Fora; Blumenau: UFJF/EDIFURB, 2003. FRYE, Northrop. Código dos códigos - A Bíblia e a literatura. São Paulo: Boitempo. 2004. GABEL, John B; WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 1993. GRANGEIRO, Cláudia Rejanne Pinheiro. O discurso religioso na Literatura de Cordel de Juazeiro do Norte. Crato: A Província, 2002. JORGE, Silvio Renato org. Literatura de Abril e outros estudos. Niterói: EdUFF, 2002. KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras. São Paulo: Loyola, 1999. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro, Objetiva, 2002. MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras – teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. MILLER, Stephen M., HUBER, Robert V. A Bíblia e sua história – o surgimento e o impacto da Bíblia. Barueri, SP: Sociedade Bíblia do Brasil, 2006. OLIVEIRA, Moysés Marinho. Mil ilustrações e pensamentos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Juerp, 1983. PAULO GUIRALDELLI JR. Pós-modernidade propõe leitura laica. In: A BÍBLIA – muito além da fé. Ano I, nº 2, 2006. p. 86- 97. PFANDL, Gerhard (org.). Interpretando as Escrituras. Trad. José Barbosa da Silva. 2015.Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira. 560 PINHEIRO, Hélder; LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula. São Paulo: Duas Cidades, 2001. REIS, Edílson dos. Introdução geral à Bíblia. Engenheiro Coelho: Imprensa Universitária Adventista, 2002. RYKEN, Leland. The literature of the Bible. Michegan: Zondervan, ? SARAMAGO, José. Levantado do Chão. 12ª ed. Rio de Janeiro: Bertrhand Brasil, 2005. SPROUL, R.C. Filosofia para iniciantes. Trad. Hans Udo Fuches. São Paulo: Vida Nova, 2002. WHITE, Ellen G. Fundamentos da Educação Cristã. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1975. ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2001. 2. A CURA COMO INTERAÇÃO SOCIAL COM BASE EM LC 4,38-40: ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS PROMOVIDAS PELAS AÇÕES TAUMATÚRGICAS DE JESUS Nome: Hamilton Matheus da Silva Ribeiro Titulação: Mestrando Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: O texto de Lc 4,38-40 através de sua narrativa apresenta uma interação social que visivelmente foi determinada pela ação taumatúrgica de Jesus. A partir desta evidência podemos adentrar os fatos na busca das categorias sociais que se enquadram nas relações promovidas pela cura, com o intuito de propor paradigmas que podem identificar as relações de afinidade e de interesses que se encontram naqueles que, inseridos na perícope, cercam o contexto de Jesus. Nesse panorama o espaço de tempo que é demonstrada a ação de cura trancende um momento particular e individual e vai em direção a uma interação social alimentada pela transmissão das informações na comunidade na busca de atender necessidades diversas. Esta transmissão pode nos levar a entender como as pessoas se relacionam afim de encontrar, na busca da cura, soluções que atendam não só interesses individuais, mas sim comunitários. Palavras-chave: Cura; Interação; Comunidade; Transmissão. A pesquisa bíblica desde o século XIX, através do método histórico-crítico, verificou que na história da recepção do pensamento paulino, pode se obervar uma escola paulina. A pesquisa trabalha com o pressuposto que das treze cartas atribuídas a Paulo, sete são autênticas e seis são deuteropaulinas. O motivo da elaboração desta literatura pseudepigráfica foi à necessidade de responder á novas atualizações, 561 objetivando uma busca de adaptação da religião cristã, procurando torna-la aceitável para os padrões culturais do ambiente cultural romano e a legitimação de doutrinas eclesiásticas, utilizando o nome de Paulo com o objetivo de dar autoridade a esses escritos. A escola paulina: avaliação de uma hipótese Definição do termo escola paulina Os escritos conhecidos como deuteropaulinos são o resultado de um processo de recepção intensa e variada da pessoa de Paulo e sua teologia (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 439). A pesquisa tem trabalhado que desde o século XIX, encontra-se a inserção do apóstolo em tradições de escola, objetivando a sustentação e atualização da tradição paulina (SCHNELLE, 2010, p. 175), A escola paulina designa um círculo de portadores de tradição que, em parte, provavelmente influenciada por colaboradores de Paulo, desenvolveu uma atividade de manutenção da herança paulina, fazendo referência à figura de Paulo, em particular ao seu apostolado: coleção e redação de seus escritos, desenvolvendo ao mesmo tempo sua própria atividade literária (produção de literatura deuteropaulina). Por falta de dados, esse grupo de portadores de tradição, não pode ser sociologicamente identificado com suficiente precisão (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 440). Um paradigma: Escolas Judaicas e Filosóficas da Antiguidade As pesquisas sobre escolas de tradição veterotestamentária-judaica possuem resultados modestos. No rabínismo pode ser identificada uma escola com bons resultados (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 439). Paulo, de tradição oriunda dos fariseus, passou por uma tradição de escola (SCHNELLE, 2010, p.175). Suas cartas nos indicam que ele, como um judeu do ambiente da diáspora, provavelmente não desconhecia as escolas filosóficas da antiguidade, tendo acesso e condições de cooptar estruturas literárias do helenismo (SCHNELLE, 2010, p. 175), Semelhanças entre antigas escolas filosóficas e a escola de Paulo são evidentes: personagem fundador, discussão e interpretação de escritos, comensalidades, ideal de amizade, construção de identidade em delimitação ao mundo exterior, atividade de ensino em vários lugares, viagens acompanhadas por discípulos, fundação de círculos de simpatizantes (SCHNELLE, 2010, p. 175-176). Dettwiller (2011, p. 442) entende que o ambiente das escolas filosóficas do mundo greco-romano seria o terreno mais promissor para a pesquisa acerca da escola 562 paulina. “Entre as escolas filosóficas mais importantes – a escola pitagórica, a Academia de Platão, o Λύκειον de Aristóteles, o “Jardim de Epicuro” e a escola da Stoa –, as duas últimas parecem ter tido a maior popularidade na época de Paulo” (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 442). A Educação e a Formação Teológica de Paulo A língua materna de Paulo foi o grego, sendo criado em Tarso, seu trabalho missionário se estendeu em sua maior parte na Ásia Menor e na Grécia, isso indica uma cultura helenística sobre o apóstolo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p, 439; SCHNELLE, 2010, p. 85). Paulo recebeu uma educação no farisaísmo, como atestam indiretamente Filipenses 3.5-6 e Gálatas 1.14 (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 449). A informação lucana em Atos 22.3; 26.4-5 é bastante questionável. De acordo com Bultmann (2001, p. 81), Antes de sua conversão, Paulo talvez jamais tenha estado em Jerusalém, e é uma lenda aquilo que At 7.58-8.3 relata a respeito de sua participação no apedrejamento de Estevão, assim como a informação de At 22.3 de que ele teria sido discípulo de Gamaliel. Todavia, é bastante provável, que Paulo não poderia ter adquirido uma formação farisaica fora de Jerusalém. As notícias sobre escolas superiores judaicas fora de Jerusalém são bastante escassas (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 439; SCHNELLE, 2010, p. 446). Além, do mais, Jerusalém era o centro da formação dos fariseus (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 446; VERMES, 2006, p. 271). Após os acontecimentos de Damasco, entre os anos 30 e 48, Paulo foi se familiarizando com as tradições da fé cristã. A comunidade Antioqueana parece ter tido influência sobre sua identidade teológica. Algumas tradições pré-paulinas encontradas em certas cartas autênticas, demonstram que Paulo absorveu tradições eclesiásticas nos cristianismos originários (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 446). Estruturas da Escola Paulina Paulo como “pai” fundador das comunidades cristãs, “Não vos escrevo estas coisas para vos envergonhar; pelo contrário, para vos admoestar como a filhos meus amados. Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores [παιδαγωγοὺς] em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus”. (I Co 4.14-15). 563 Paulo se serve da imagem de pai para designar sua relação com seus colaboradores (I Co 4.17; Fl 2.22; II Co 12.14; I Co 9; 3.1-3; 4.21; 11.2). A construção de uma relação afetiva com suas comunidades desenvolve uma relação de afetividade entre Paulo e suas comunidades, durante toda a vida do apóstolo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 447-448). De acordo com Schnelle (2010, p. 177), Antes de sua missão independente, Paulo foi marcado em intensidade diversificada por tradições de escolas, de modo que a fundação de uma escola própria deve ser considerada apenas lógica. A argumentação em favor da existência de tal escola paulina são as observações que seguem [...] Paulo como receptor de revelação (I Co 9.1; 15.8; Gl 1.1,12), modelo normativo (I Ts 1.6s; I Co 4.16; 7.7s; 11.1; II Co 4.2; 6.11-13; Gl 4.12; Fp 4.9) e mestre inspirado (I Co 2.12016; 4.17; 7.40; 14.6,19,37; Gl 1.8; Fp 3.15). O apóstolo como modelo de vida (imitatio pauli), a correspondência coríntia, mas igualmente em Filipenses (1.12-14; 3.17) e Gálatas (4.12), a imitatio pauli é uma ideia importante. As comunidades destinatárias são chamadas a imitar Paulo como modelo de vida (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 448). O que constitui o objeto de sua imitação não é sua personalidade, mas precisamente sua conformidade com a existência do Cristo crucificado – existência que se caracteriza pela recepção do sofrimento e, finalmente, pelo amor, ou seja, a imitação de Paulo adquire toda a sua profundidade e a sua força de persuasão na perspectiva da cruz (I Co 11.1), (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 449). Paulo, seus colaboradores e colaboradoras São Paulo não era um pregador nômade, as epístolas protopaulinas mencionam cerca de quarenta personagens que devem ser consideradas como colaboradoras e colaboradores. Pertenciam ao grupo mais próximo de Paulo, primeiramente Barnabé (At 15.36-40; Gl 2.13), Silvano (I Ts 1.1), Timóteo (I Ts 1.1; II Co 1.1; Fl 1.1; Fm 1); Tito, Sóstenes (I Co 1.1) e outros (SCHNELLE, 2010, p. 177). Os colaboradores e as colaboradoras de Paulo eram, em sua maioria, delegados das comunidades fundadas pelo apóstolo. Nessa função, participavam do projeto missionário de Paulo, mantendo o vínculo com as comunidades [...] e assumindo sua tarefa, pontual de corredatores das cartas de Paulo [...] Em outras palavras: esse grupo de colaboradoras e colaboradores constitui provavelmente o grupo central da “escola paulina” (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 450-451). 564 A existência da literatura deuteropaulina; pseudepigrafia. Partimos do pressuposto exegético que seis escritos que fazem parte do corpus paulinum devem ser compreendidos como deuteropaulinos, obras que possuem a pretensão de pertencerem a Paulo, mas que foram redigidas por pessoas desconhecidas no período posterior a morte do apóstolo. Todavia, este grupo redacional estava bem familiarizado com à herança paulina (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 447-448). As cartas deuteropaulinas (Cl, Ef, II Ts, Cartas Pastorais) indicam a existência de uma escola paulina que deu continuidade ao legado do apóstolo, após sua morte (SCHNELLE, 2010, p. 179). Helmut Koester (2012, p. 317), acerca das pastorais, nos informa que “essas três cartas, que formam uma unidade em sua linguagem, conceitos teológicos e intenção, e que foram redigidas pelo mesmo autor, diferem acentuadamente de todas as outras cartas do corpus paulino”. Bornkamm (2009, p. 366) entende que na Igreja antiga circularam muitas epístolas inautênticas produzidas com o nome de Paulo. Quais eram as razões da emergência da literatura deuteropaulina? Ou seja, por que os discípulos não escreveram utilizando seu próprio nome, mas recorreram ao nome do apóstolo Paulo objetivando maior valoração e legitimação dos seus escritos? A resposta precisa ser abordada a partir do caráter transitório da pseudepigrafia do Novo Testamento, tendo em vista que estes escritos foram produzidos entre 70 e 110. Partindo deste contexto, a melhor resposta seria que literatura deuteropaulina surgiu como necessidade de resposta no ambiente das discussões eclesiológicas (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 452). Não existia outra autoridade eclesial da envergadura de Paulo nesse período. Somente falando em nome de Paulo é que se tinha a chance de ser entendido nas comunidades paulinas. Fenômeno paradoxo à primeira vista apenas: a morte de Paulo suscitou ao mesmo tempo sua ressurreição literária pela emergência da literatura deuteropaulina (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). Para as comunidades paulinas, a morte do apóstolo, que representava uma figura de estabilidade dessas respectivas igrejas, provocou insegurança (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). O processo de desenvolvimento de liderança eclesiástica estava num estágio recente e rudimentar. A manutenção e atualização da herança paulina tornava-se um problema crítico e emergente. A Igreja 565 de II Pedro se encontrava com o problema da interpretação das cartas de Paulo, em relação aos demais escritos (THEVISSEN, KAHMANN, DEHANDSCHUTTER, 1999, p. 173). Na ausência do apóstolo, os portadores da tradição paulina, aparentemente não tinham outra opção, senão a utilização da autoridade paulina para legitimar seus escritos, recorrendo a pseudepígrafia (CULLMANN, 2003, p. 65; DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). Leitura e circulação das cartas Um indício em prol da hipótese da escola paulina está vinculado à constituição do corpus paulinum, mediante o processo de cópias dos manuscritos (PAROSCHI, 2012, p. 85-86; THEVISSEN, KAHMANN, DEHANDSCHUTTER, 1999, p. 173). Desde o início, as cartas de Paulo foram lidas em voz alta nas comunidades (I Ts 5.27; Rm 16.16; Gl 1.2; Cl 4.16). Colossenses, a carta deuteropaulina mais antiga, informa à troca das cartas, “Quando tiverdes lido a minha carta, empenhai-vos para que a leiam também na Igreja de Laodiceia. Quanto a vós, lede a que vier de Laodiceia” (Cl 4.16), (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 453). II Tessalonicenses pressupõe o conhecimento de falsas cartas paulinas (II Ts 2.2; 3.17). Durante a vida de Paulo, suas cartas já apontavam autoridade (II Co 10.10), indicando o motivo para que fossem reunidas e colecionadas posteriormente. Essas observações apontam para a autoridade atribuída a Paulo nas igrejas paulinas, durante o período de vida do apóstolo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 454). Modificação redacional de cartas existentes Outro indício em favor da escola paulina é o fato de que, logo após a morte de Paulo, suas cartas passaram por ligeiras modificações. Textos ou fragmentos textuais que foram inseridos ulteriormente nas cartas de Paulo (Rm 16.25-27; I Co 14.33b-36; II Co 6.14-7.1). II Coríntios parece ser uma composição ulterior de vários fragmentos de cartas do Paulo histórico (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 334-341). Alguém teve que reunir os fragmentos da carta ou a própria carta para apresentar uma redação coerente (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 454) 566 Coleção e reunião das cartas: a construção do corpus paulinum Parece que o processo de coleção e de classificação das cartas paulinas estava bem avançado no fim do primeiro século ou início do segundo (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 455). Desde o século II, as cartas de Paulo circularam em forma de coleção, e não separadamente. Foi como coleção que os cristãos do século II em diante as conheceram (BRUCE, 2011, p. 118). A primeira evidência para a existência de uma coleção é apresentada por Marcião no século II d.C (DETTWILLER, LOYOLA, KAESTLI, 2011, p. 455) A edição de Marcião das cartas de Paulo (seu Apóstolo), publicada por volta de 144, baseou-se mais provavelmente um códice paulino que lhe era conhecido, que (semelhante à própria edição de Marcião) não incluía nem Hebreus, nem as epístolas pastorais. A inferência mais natural dessa evidência como a temos, sugere que a edição original da coleção das obras paulinas continha somente dez cartas (BRUCE, 2011, p. 119). É possível que as pastorais foram incluídas na coleção das cartas de Paulo, como resposta da igreja católica à atitude do Marcião de apresentar um “cânon” as comunidades cristãs (BRUCE, 2011, p. 120). Parece que Marcião não conhecia as cartas pastorais, Dúvidas sobre a autenticidade das Epístolas Pastorais foram levantadas já no início do século XIX; estudos recentes acumularam um número tão impressionante de argumentos conclusivos contra a contra a autenticidade dessas cartas, que só é possível manter a autoria paulina com base em hipóteses intrincadas e numa torrente de improbabilidades históricas (KOESTER, 2012, p. 317). De acordo com Crossan (CHEVITARESE; CORNELLI, 2009, p. 91), Tais julgamentos são baseados em diferenças de estilo, tom, vocabulário e conteúdo em relação às sete epístolas consideradas autênticas. As cartas póspaulinas foram escritas em nome de Paulo por uma tradição posterior e mostram-se, na realidade, antipaulinas em certos assuntos, como a escravidão e o patriarcado, assuntos em relação aos quais o radicalismo do Reino de Deus nega, muito óbvia e praticamente, a normalidade do Reino de Roma. Conclusão O elo principal de ligação entre literatura protopaulina com a literatura deuteropaulina consiste no cuidado de preservar a herança de seu fundador. Existem elementos comuns nos estágios das redações. Todavia, pode ser verificada certa diversidade nesses processos redacionais. A hipótese da escola paulina torna plausível a preservação, coleção e redação da herança da tradição paulina, objetivando 567 a organização da Igreja de acordo com os padrões de direitos e virtudes sociais dos cidadãos. As cartas pastorais com o objetivo de organizar a igreja em nome de Paulo consolidou o cristianismo como religião organizada e palatável a cultura da época, entre os anos 120-160. Valorando e legitimando comportamentos, apresentando um Paulo depois de Paulo, isto é, a escola paulina. REFERÊNCIAS BORNKAM, Günter. Paulo: vida e obra. São Paulo: Academia Cristã, 2009. BRUCE, F.F. O Cânon das Escrituras: como os livros da Bíblia vieram a ser reconhecidos como Escrituras Sagradas. São Paulo: Hagnos, 2011. BRUCE, F.F. Paulo, o apóstolo da graça: sua vida, cartas e teologia. São Paulo: Shedd, 2003. BULTMANN, Rudolf. Ensaios Selecionados: crer e compreender. São Leopoldo: Sinodal, 2001. CHEVITARESE. André; CORNELLI. Gabriele (Orgs). A descoberta do Jesus histórico. São Paulo: 2.ed. Paulinas, 2010. CULLMANN, Oscar. A Formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2001. DEHANDSCHUTTER, B. KAHMANN, J.J.A; THEVISSEN, G. As Cartas de Pedro, João e Judas. São Paulo: Loyola, 1999. DETTWILLER, Andreas; LOYOLA, Jeas; KAESTLI, Daniel. Paulo: uma Teologia em construção. São Paulo: Loyola, 2011. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento 2: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2012. PAROSCHI, Wilson. Origem e Transmissão do Texto do Novo Testamento. São Paulo: SBB, 2012. SCHNELLE, Udo. Paulo: vida e pensamento. São Paulo: Academia Cristã, Paulus, 2010. STEGEMANN, Ekkehard; STEGEMANN, Wolfgang. História Social do Protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Sinodal, Paulus, 2004. VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2006. 568 3. QUER NOS DAR CURA? NÃO QUEREMOS “CURA”, QUEREMOS RESPEITO! PERCEPÇÕES A PARTIR DA PASTORAL EVANGÉLICA QUE “ACOLHE” PARA “CURAR” A HOMOSSEXUALIDADE Nome: Miriam Laboissiere de Carvalho Ferreira Titulação: Doutoranda Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo: Quando nos propomos à empreitada de uma pesquisa de campo em uma igreja inclusiva cristã até então, algo inimaginável para nós nos moldes das representações religiosas que a sociedade construiu sobre a homossexualidade e sobre a pessoa homossexual ao longo de séculos. Pecado nefando, sodomia, promiscuidade, doença, devassidão, pecaminoso, desvio contra a natureza entre tantos outros adjetivos negativos – assim colocamos – em torno da homossexualidade. A nossa tentativa com este ensaio é tornar perceptível até que ponto uma igreja inclusiva pode proporcionar “cura”, nomia, aos indivíduos homossexuais – quando estes/as a encontram (a igreja) anômicos, adoecidos/as ao assumirem sua identidade homossexual diante da família, da igreja, da sociedade, ou até de se manterem enrustidos para serem aceitos. De forma que, a igreja inclusiva oferece a estes/as uma identidade religiosa e ressignificada sem que eles/as tenham que abrir mão de sua orientação sexual, de sua crença religiosa a partir do sentimento de pertença, adesão, experiência junto a uma comunidade religiosa. Proposta contrária às igrejas tradicionais que propõem “curas” às pessoas homossexuais, porém, curar a homossexualidade do indivíduo homossexual a partir de campanhas, exorcismos, terapias – só assim pessoas homossexuais poderiam permanecer dentro da igreja ou serem aceitas. Igreja inclusiva, igreja tradicional ambas com seus discursos antagônicos buscam legitimar suas posturas. Palavras-chave: homossexualidade, cura, nomia, igreja inclusiva. A Igreja Inclusiva e a Teologia Inclusiva, como o próprio nome indica, estão voltadas para a inclusão e acolhimento das minorias segregadas por instituições tradicionais, apoiadas na teologia tradicional. Ela é direcionada especialmente para o segmento LGBT’s. O nascedouro dessa igreja e teologia inclusiva tem uma história recente. Surge ao final da década de 60 nos E.U.A., desde então, entre lutas (Igreja e Teologia Inclusiva) buscam encontrar seu espaço no campo religioso e mesmo na sociedade. Seu precursor foi o ex-pastor batista Troy Perry, após assumir sua homossexualidade. Conforme Musskopf (2005) a homossexualidade tem sido alvo de polêmicas nas sociedades ocidentais. Após o ‘levante’ das consideradas minorias dos movimentos Negro e Feminista, o Movimento Homossexual marca presença de forma 569 articulada trazendo à visibilidade os grupos LGBT’s abalando as estruturas não só eurocêntricas e androcêntrica, mas também de forma contundente as estruturas heterocêntricas. Trata-se de questionamentos e grupos ora assimilados, ora silenciados, mas raramente exitosos em suas reivindicações de mudança estrutural. A reivindicação de direitos civis e humanos questiona não apenas os fundamentos sociais e culturais, mas também os fundamentos da organização e prática eclesiástica, bem como o discurso teológico que a fundamenta (MUSSKOPF, 2005, p. 2). Os frequentadores de uma Igreja Inclusiva e, adeptos da Teologia Inclusiva, em sua orientação sexual, passaram por “processos de cura”, em suas igrejas de origem. Ao ingressarem em uma igreja inclusiva cristã estes/as adeptos vivenciaram anteriormente um cenário de exclusão, chegam anômicos, desprovidos de sua religiosidade. Feitosa critica a abordagem que muitos religiosos fazem em relação ao tema, o que contribuiria para um cenário de exclusão. “A homossexualidade é sempre tratada por um prisma negativo, da condenação, do inferno, da abominação. E tudo isso faz com que os cristãos LGBT’s que estão ali fiquem retraídos e cada vez mais refugiados em seus armários”, denuncia. 167 Muitas vezes sem perceber encontra-se em processo de “homofobia internalizada”, causada por rejeição, preconceito, discriminação, exclusão, são causas de adoecimento em muitos/as indivíduos de orientação homossexual. O conceito de Homofobia Internalizada tem sido apresentado por muitos autores como um factor central na manifestação de vários aspectos relacionados com a saúde e com a doença entre pessoas homossexuais. Definido como medo à própria homossexualidade, a homofobia internalizada é um fenómeno cultural, que não é universal, nem toma as mesmas formas ou o mesmo significado em diferentes grupos sociais. [...] A manifestação mais comum da internalização da estigmatização é a sensação de vergonha face à perspectiva de ser identificado como gay (Mondimore, 1998). Esta sensação de vergonha pode ser o resultado do confronto com possíveis ameaças externas e internas e o bem-estar emocional do indivíduo vai depender da maneira como ele as gere (PEREIRA e LEAL 2002, p. 107-108). A partir de uma proposta inclusiva delineada pelos seus seguidores, de forma especial pelos que estão à frente dessas igrejas, pastores e pastoras (igrejas evangélicas) atraem seu séquito religioso com essa proposta religiosa inclusiva. Aqueles/as que aderem a esta proposta se sentem ‘aliviados’ e livres da carga negativa Portal Fórum - http://www.revistaforum.com.br/2015/05/07/igrejas-inclusivas-atraem-publicolgbt-e-quebram-tabus/ - Acesso em 20/03/2016. 167 570 impingida a estes indivíduos, ao perceberem que podem ter acesso a uma prática religiosa, sem serem constrangidos pelas regras da heteronormatividade168. Entramos em contato com a liderança e membros participantes de uma igreja inclusiva, para compreender como se deu o seu caminho pessoal até chegar a esta Igreja. Qual a reação deste público ao encontrar uma igreja que os acolhe como pessoas humanas independente de sua orientação sexual, em sua identidade homossexual (assim o percebemos em contato com esta comunidade). Observamos qual o trabalho social que esta igreja acaba construindo com seus membros, ‘resgatando-os’ da própria auto-exclusão, da “homofobia internalizada” por estas pessoas. Muitos homossexuais cresceram num ambiente de isolamento emocional, social e mesmo cognitivo, que os levaram a interiorizar uma série de estereótipos, vividos como fracassos, limites, defeitos ou obstáculos (PEREIRA e LEAL, 2002, p. 111). Natividade em uma pesquisa publicada em 2009: “Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores”, quer justamente discutir a lacuna existente na literatura que tratasse do conceito teórico sobre homofobia e sua relação com a religião. Outros elementos referentes à homofobia e às vertentes ligadas a ela como os discursos religiosos, a diversidade sexual, a discriminação, os estereótipos construídos e as construções legitimadoras e ilegítimas também foram abordadas pelo autor: A categoria homofobia é tributária de um período histórico em que o termo “homossexualidade” aglutinava manifestações de disposições eróticas muito distintas sob um único rótulo. A noção, na formulação proposta pelo psicólogo norte-americano George Weinberg nos anos 1970, designava (e qualificava como sintomas de uma doença mental) sentimentos e atitudes de aversão à homossexualidade masculina e feminina, assim como à “inversão de gênero”. As motivações subjacentes a essas reações de repúdio poderiam ser muito plurais, mas seus efeitos alinhavam-se em função de demarcarem e depreciarem uma categoria de pessoas. [...] a noção de homofobia pode também ser útil para diagnosticar processos de estigmatização que incidem sobre sujeitos que exercem formas da diversidade sexual. “[...] um conjunto de práticas sociais e culturais que simultaneamente marca como “outro” e penaliza sujeitos com preferências eróticas pelo mesmo sexo” (Larvie, 1997:146), de tal modo que pode ser empregado como um analisador para situar certo tipo de práticas produtoras de estigma social (NATIVIDADE, 2009, p. 125). Em resumo, a ordem social do presente tem como fundamento o que Michael Warner (1991) denominaria de heteronormatividade. [...] A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como “natural” e, portanto, fundamento da sociedade (MISKOLCI, 2009, p. 156, grifo nosso). 168 571 Natividade (2009, p. 127) faz observações a respeito das “estratégias convergentes”, que propõe uma “homofobia cordial”. Necessariamente, seria como um “disfarce” de “acolhimento”, sob o ponto de vista da ala evangélica à qual diz admitir aos homossexuais com tal cordialidade em suas igrejas: Estratégias convergentes como a homofobia cordial, mas dotadas de efeitos muito distintos, costumam comparecer em práticas religiosas voltadas para o cuidado pastoral junto a fiéis. Uma forma particularmente insidiosa de homofobia pastoral poderia ser identificada na perspectiva evangélica de “acolhimento” aos homossexuais, sustentada por certas iniciativas religiosas, que incorpora pessoas LGBT aos cultos, visando ao seu engajamento em um projeto de regeneração moral, pela liberação do homossexualismo. Esta atitude perante a diversidade sexual transcende os efeitos da homofobia cordial, na medida em que não apenas incorpora sujeitos marcados como inferiores, mas pretende eliminar tal “marca” por meio de “exorcismos”, cura ou terapias. (NATIVIDADE, 2009, p. 127 – grifo nosso). A homossexualidade é considerada pecado, conforme as tradições religiosas e conservadoras, que tem como base legitimadora a Literatura Sagrada. A partir disto encontram respaldo, para exclusão, condenação, e até propostas de “cura gay”, como o proposto pelo Projeto 234/2011169 do dep. João Campos (Go). O qual o Conselho Federal de Psicologia (CFP) responde contrário a este projeto, esclarecendo: [...] Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades (http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/04/Parecer-PDC-234.pdf) Acesso em 18/03/2016 No Brasil, um dos personagens mais combativo das ações do segmento LGBT’s, o Pr. Silas Malafaia, como exemplo, trava uma verdadeira batalha contra a aprovação da PL 122170. Outro tema evocado recorrentemente nesses materiais diz respeito à cura da homossexualidade e às terapias reparadoras. Nas inúmeras matérias e nos textos divulgados, compartilha-se o temor de que a aprovação da Lei possa 169 Apresentação do projeto de Decreto Legislativo nº. 234/2011, pelo Deputado João Campos (PSDB-GO), que: “Susta a aplicação do parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que estabelece normas de atuação para psicólogos em relação à questão da orientação sexual”. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=505415 – Acesso em 18/03/2016. 170 O Projeto de Lei da Câmara n.º 122/06 visa criminalizar a discriminação motivada unicamente na orientação sexual ou na identidade de gênero da pessoa discriminada. Se aprovado, irá alterar a Lei de Racismo para incluir tais discriminações no conceito legal de racismo – que abrange, atualmente, a discriminação por cor de pele, etnia, origem nacional ou religião. A discriminação por orientação sexual é aquela cometida contra homossexuais, bissexuais ou heterossexuais unicamente por conta de sua homossexualidade, bissexualidade ou heterossexualidade, respectivamente. http://www.plc122.com.br/entenda-plc122/#ixzz3xSRRCQGd – acesso em 15/03/2016. 572 obstruir as atividades pastorais de “reorientação” sexual e o trabalho proselitista das igrejas na conversão e na regeneração de homossexuais. A análise de tais discursos mostra como a atuação política contra esse projeto tem extensa capilaridade. Mídia religiosa, entidades ligadas a trabalhos de “reversão” da homossexualidade, pastores e outras lideranças, padres católicos, juristas e uma ampla gama de especialistas comparecem no espaço público defendendo a liberdade de crença e expressão e o direito de “pregar contra o homossexualismo”, mobilizando sujeitos em posições sociais muito distintas, em alinhamento e articulação conjuntos (NATIVIDADE, 2009, p. 121161). Em sua pesquisa, Natividade (2009)171 também encontrou na internet uma infinidade de sites com discursos religiosos conservadores e homofóbicos. Abaixo reproduzimos um discurso de Malafaia em uma matéria da BBC/2012: "Segundo a Bíblia, homossexualidade é pecado. Na igreja evangélica, gay só entra caso queira se converter e, para isso, tem de se tornar heterossexual. É uma regra de Deus", disse à BBC Brasil Silas Malafaia, [...] de uma das principais igrejas evangélicas do Brasil, a Assembleia de Deus - Vitória em Cristo. "Tenho vários casos de ex-gays na minha igreja. Trata-se de um desvio de comportamento; afinal, gays têm a mesma ordem cromossômica que nós, heterossexuais. Depende deles, portanto, mudar sua opção sexual para serem aceitos na nossa comunidade", acrescenta. 172 As igrejas evangélicas tradicionais propõem campanhas, exorcismos, terapias, como formas de curar a pessoa homossexual. Somente assim, as pessoas homossexuais “curadas” do mal da homossexualidade poderiam ser aceitas, e ou permanecer dentro da igreja. Porém, uma igreja inclusiva também te uma proposta de “cura”. Mas a cura é de toda forma de discriminação sofrida e internalizada pela pessoa homossexual, nos ambientes de sua convivência, como família, escola, trabalho, sociedade, igrejas tradicionais. CONCLUINDO Um protesto contra a proposta foi organizado também na mídia televisiva. O Programa Vitória em Cristo, apresentado pelo pastor Silas Malafaia, exibido na Rede TV, teve uma campanha com o slogan “DIGA NÃO AO PLC-122”. Em inúmeros programas, este líder da Assembleia de Deus incentivou sua audiência a repudiar o projeto, incluindo em sua programação “esclarecimentos” à população evangélica acerca da “nocividade” da moção para as igrejas cristãs. Nos discursos conservadores divulgados pela internet, o PLC 122/2006 é retratado como um “atentado à vida e à família”, transformando um “pecado” em um suposto “direito humano”.21 O castigo de Deus que sobreveio sobre a cidade de Sodoma, em decorrência da prática da homossexualidade, poderá recair sobre o Brasil se os cristãos não se mobilizarem para deter a expansão da cidadania LGBT (NATIVIDADE, 2009, p. 121161). 172 http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/04/120329_igrejas_tolerancia_gays_lgb Acesso em 20/03/2016. 171 573 Apresentamos abaixo dados na forma de um gráfico, resultados e falas de alguns membros de uma igreja inclusiva sobre a pergunta: “Quais os motivos que fizeram você deixar as denominações anteriores?”173 Provavelmente para os membros da igreja inclusiva os motivos que os levaram a deixarem as denominações anteriores foram momentos delicados em suas vidas. As mulheres responderam 25,00% por preconceito; 25,00% por rejeição; 25,00% por não se identificarem com a Palavra pregada; 12,50% por isolamento; e 12,50% por agressão moral ou valorativa. Entre os homens 35,71% por preconceito; 21,43% por rejeição; 21,43% por não identificarem com a Palavra pregada; 14,29% por agressão moral ou valorativa; e 7,14% por isolamento. Abaixo relatos de situações de tratamento em busca de “cura” de sua homossexualidade (por exemplo) pelos quais alguns membros passaram em suas igrejas de origem (tradicional). Não obtivemos relatos de mulheres, contudo isto não quer dizer que elas não tenham passado por situações semelhantes às dos homens, pois em conversa informal com algumas delas, elas disseram que para se justificarem diante da família e sociedade se casaram, tiveram filhos/as – mas, posteriormente se separam. Uma ressalva, quando os membros relatam sobre tratamento psicológico eles não definem qual o tipo de terapia adotada em geral pela família junto a um/a profissional da psicologia. Fonte do gráfico: Ferreira, Miriam Laboissiere de Carvalho Homossexualidade e a Igreja inclusiva no Estado de Goiás [manuscrito]: igreja caminho da inclusão – um estudo de caso / Miriam Laboissiere de Carvalho Ferreira. 2016. 173 574 Fonte: Elaborado pela autora Digo – eles, pois os relatos que obtivemos neste sentido são de homens (gays): Em minha trajetória passei por tratamento psicológico, campanha de orações para libertação, fiz um caminho longo para me ‘livrar’ da homossexualidade, até casei-me com uma mulher (Entrev. 24: masc. / 30 a 39 anos / superior completo). Meus pais buscaram terapia em família para reverter o meu quadro – homossexual. Passei por tratamento psicológico. Mas nada disto adiantou, tive uma “vida no mundo”, festas, baladas. Porém, sempre tentando mudar o meu jeito de ser retornando a igreja (tradicional), orando em busca de libertação (Entrev. 28: masc. / 18 a 29 anos / superior incompleto). Passei por tratamento psicológico, por orações de liberação de minha homossexualidade, fui até orientado a fazer castração química – tomar medicações para inibir a minha libido, por fim casei-me com uma mulher, não adiantou, nos separamos (Entrev. 4: masc. / 30 a 39 anos / superior completo). De forma que, a igreja inclusiva oferece a estes/as uma identidade religiosa, e ressignificada sem que eles/as tenham que abrir mão de sua orientação sexual, de sua crença religiosa a partir do sentimento de pertença, adesão, experiência junto a uma comunidade religiosa. Por fim, podemos inferir que, a partir dos relatos destas pessoas homossexuais após passaram por processos de busca de “curas”, sejam eles (processos) quais forem 575 que relatamos acima – inferimos que estes processos em alguma medida causaram transtornos a estas pessoas, até elas compreenderem que eles/as não querem “cura”, mas sim, Respeito em sua orientação sexual. Referências BBC do Brasil. Igrejas, tolerância, gays – 2014. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120329_igrejas_tolerancia_gays_lg b.shtml> - Acesso em 28/03/2016. CONSELHO DE PSICOLOGIA. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/portal/orientacao/resolucoes_cfp/fr_cfp_001-99.aspx> Acesso em 15/03/16. – CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. O Suicídio e os Desafios para a Psicologia / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2013. Disponível em: <http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Suicidio-FINAL-revisao61.pdf> Acesso em 20/03/2016. FEITOSA, Alexandre. Bíblia e homossexualidade: verdades e mitos. Rio de Janeiro: Metanoia, 2010. FEITOSA, Alexandre. Portal Fórum – Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2015/05/07/igrejas-inclusivas-atraem-publico-lgbt-equebram-tabus/. - Acesso em 20/03/2016. FERREIRA, Miriam Laboissiere de Carvalho. Homossexualidade e a Igreja inclusiva no Estado de Goiás: Igreja Caminho da Inclusão – um estudo de caso. 130 fls. Dissertação – Programa de Pós-Graduação Ciências da Religião – Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Goiânia-Go, 12/02/2016. FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. GUIMARÃES, Anderson Fontes Passos. O desafio histórico de “tornar-se um homem homossexual”: um exercício de construção de identidades. Temas em Psicologia 2009, Vol. 17, no 2, 553 – 567. MUSSKOPF, André S. A Teologia que sai do Armário: um depoimento teológico. Impulso, Piracicaba, 14(34), 2003, p. 129-146. MUSSKOPF, André S. À meia luz: a emergência de uma teologia gay Seus dilemas e possibilidades. São Leopoldo, ano 3, nº 32, 2005, p. 1-34. (Cadernos IHU Ideias) __________. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no Brasil / André Sidnei Musskopf; Orientador Dr. Rudolf von Sinner. – Tese (doutorado) – Escola 576 Superior de Teologia. Programa de Pós-Graduação. Doutorado em Teologia São Leopoldo: EST/PPG, 2008. NATIVIDADE, Marcelo Tavares. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, p. 90121, 2010. NATIVIDADE, Marcelo Tavares. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Revista Latino Americana, n. 2, 2009, p. 121161. PARECER SOBRE O PDC nº 234/2011 - (Relativo ao parecer do deputado Roberto Lucena (PV/SP) – Comissão de Seguridade Social e Família) Conselho Federal de Psicologia – CFP. Disponível em: <http://site.cfp.org.br/wpcontent/uploads/2013/04/Parecer-PDC-234.pdf> - Acesso em 18/03/2016. PAUL BEPPLER. Seattle, Washington EUA, 2006. Disponível em: <http://karl-mariaketbeny.blogspot.com.br/> - Acesso em 18/03/2016. PEREIRA, Henrique; LEAL, Isabel. A homofobia internalizada e os comportamentos para a saúde numa amostra de homens homossexuais. Análise Psicológica [online], Lisboa, vol.20, n.1, p. 107-113. 2002. ISSN 0870-8231. PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO nº. 234/2011, pelo Deputado João Campos (PSDB-GO). Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=505415> – Acesso em 18/03/2016. PROJETO DE LEI DA CÂMARA n.º 122/06. <http://www.plc122.com.br/entenda-plc122/#axzz3xSMKvJwV> 15/03/2016. . Disponível – Acesso em: em 577