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QUADRINHOS CONCEITUAIS1 Amir Brito Cadôr EBA/UFMG amir_brito@yahoo.com.br Resumo A comunicação apresenta as semelhanças e as diferenças entre um grupo de livros de artista e quadrinhos independentes que são pensados como quadrinhos conceituais (MANOUACH, 2019) ou seja, histórias em quadrinhos que adotam procedimentos comumente usados na arte conceitual. São abordados os quadrinhos em sua relação com as artes visuais e outras linguagens, incluindo experiências intersemióticas. Apresentamos exemplos de procedimentos narrativos e de composição como o détournement e a apropriação (GILBERT, 2014), além de quadrinhos abstratos (MOLOTIU, 2009) e quadrinhos estruturais (JOOHA, 2018). A maioria dos trabalhos aqui apresentados foram publicados na última década por artistas de diferentes países que trabalham em uma zona indeterminada entre o quadrinho independente autoral e o que atualmente é conhecido como publicação de artista. Entendemos que a forma de leitura dessas obras é diferente dos quadrinhos tradicionais, exigindo em alguns casos maior participação do leitor (CARRIÓN, 2011). Palavras-chave quadrinhos conceituais; publicação de artista; livro de artista O presente texto é uma versão ampliada do texto Conceptual Comics, escrito por ocasião da exposição de mesmo nome realizada no Cabinet du Livre d’Artiste em Rennes, na França, em março de 2020. O título da exposição é uma referência à mostra de livros de artista organizada em 2006 no Canadá por AA Bronson e Max Schumann. 1 Page 1 of 15 As aproximações entre as histórias em quadrinhos e as artes visuais são bem conhecidas desde os anos 1960, quando os pintores da Arte Pop colocaram personagens de quadrinhos em suas telas. Nos livros de artista, as referências aos quadrinhos são muito comuns, seja em obras do artista conceitual Lawrence Weiner, seja na série de performances desenhadas de Ida Applebroog dos anos 1970, para ficar em apenas dois exemplos. Cada vez mais, os quadrinhos são incluídos nas exposições de livros de artista, demonstrando seu potencial crítico e expressivo2. Podemos identificar três tipos de publicações associadas aos quadrinhos, considerando sua autoria e sua circulação no campo da arte ou dos quadrinhos: livros de artista que, ocasionalmente, adotam elementos específicos da linguagem dos quadrinhos; quadrinhos independentes que adotam procedimentos das artes visuais e se aproximam dos livros de artista; e quadrinhos produzidos por autores que atuam nos dois campos até recentemente antagônicos. No campo das artes visuais, tem se tornado mais comum o uso do termo mais abrangente “publicação” para se referir ao material impresso, demonstrando uma mudança de enfoque do objeto (o livro de artista) para o seu processo de produção e circulação, de modo que a publicação é considerada um aspecto de uma atividade artística, podendo assumir formatos tão diversos como o zine, o cartaz, o folheto ou até mesmo os quadrinhos. Mas existe uma produção recente de livros de artista que se situam em uma zona de fronteira com os quadrinhos e que por isso continuam praticamente desconhecidos. A divisão que se estabeleceu entre a cultura erudita dos museus e a cultura popular da indústria cultural relegou os quadrinhos a uma categoria de itens de consumo descartáveis, muitas vezes ignorados por artistas e intelectuais. A fronteira entre esses dois mundos é o tema de uma série de trabalhos que Bertrand Lavier começou em 1984, inspirado em uma aventura de Mickey e Minnie no Museu de Arte Moderna, em meio a pinturas e esculturas abstratas. O artista deu vida a essas obras, depois reunidas em uma 2 O curador Guy Schraenen fez em 2009 na fundação Serralves em Portugal, Do rato Mickey a Andy Warhol; na Alemanha, o Weserberg Museum/Archive for artist’s publications apresentou a mostra Kaboom!: Comic in der Kunst em 2013 e na Espanha o Museu Nacional Reina Sofia apresentou Cómics: una nueva lectura em 2018. Page 2 of 15 exposição como a que estava no gibi. O registro da mostra deu origem em 2012 ao livro Walt Disney Productions, com detalhes dos quadrinhos originais ao lado de fotografias das obras em exposição. Mais do que a mera transposição de um fragmento de um quadrinho para a pintura, o universo dos quadrinhos aparece com frequência na produção de artistas plásticos, como na exposição de Fernando Lindote, D.C.I. (Dispositivo de Circulação de Imagem), realizada em 2014. A exposição reuniu seis telas e cinco esculturas formadas por pilhas de revistas de história em quadrinhos criadas pelo artista, que o público podia retirar e levar para casa. As pinturas do artista remetem a desenhos impressos em páginas dos quadrinhos apresentados na exposição, entre eles um gibi chamado Três Papagaios, uma homenagem a seu professor Renato Canini, desenhista responsável pela revista Zé Carioca publicada pela Disney nos anos 1970. Lindote foi cartunista em jornais do sul do Brasil antes de se dedicar às artes visuais. As revistas publicadas por Lindote, apesar do formato, tipo de papel e aparência semelhante ao de um gibi comum são na verdade publicações de artista, ou seja, obras criadas para a reprodução técnica, em edições que podem variar de poucas dezenas a milhares de cópias. Humor Alguns artistas combinam elementos associados ao cartum e à crítica de arte em sua produção artística, de modo que não há uma distinção formal ou conceitual entre os trabalhos publicados como ilustração em jornais e revistas e os trabalhos apresentados em exposições em museus e galeria de arte. Um exemplo pioneiro é o do pintor Ad Reinhardt que publicou a página How to Look em que apresenta, em forma de cartum, as mesmas ideias sobre arte que ele havia publicado em artigos e ensaios. Na verdade, o humor é “uma arte das artes, um diálogo entre códigos verbais e visuais” (LEMINSKI, 1977, p. 12) e está presente também na poesia e nas artes plásticas. Como afirma o poeta Paulo Leminski: Page 3 of 15 Humor é uma palavra ruim. Dá a impressão que é pra dar risada. Não é nada disso. É outra coisa. É poesia. Com palavras. Ou sem palavras. Os maiores poetas foram humoristas. Não há poesia sem humor. Todo humor é poesia. [...] Os maiores talentos poéticos desta geração desertaram e foram para a música popular ou para o cartum. (LEMINSKI, 1977, p. 12). O britânico Glen Baxter publicou diversos livros de artista com seus desenhos no estilo de quadrinhos de aventura. Ele mistura intelectuais, cowboys e gângsteres em situações absurdas e um texto breve acompanha cada desenho, à maneira de legenda ou comentário. O burlesco da situação descrita é respondido pelo grotesco de um comentário expresso da maneira mais séria do mundo. O choque entre o texto e as imagens é outra característica do trabalho de Baxter, que levanta questões sobre as estruturas sociais subjacentes aos valores estéticos. Usando a mesma linguagem característica de suas ilustrações publicadas em jornais e livros infantis, Marcelo Cipis transita pelo universo da arte em Some Contemporary Art Themes, de 2010. Ele faz uma interpretação bem humorada de assuntos como “beleza”, “site-specific” e “novas mídias” entre outros. O artista gráfico, que também é conhecido por suas pinturas, mostra em uma de suas páginas que a distância entre o ilustrador e o artista plástico não é tão grande como se imagina. Metalinguagem Alguns elementos são específicos da linguagem formal dos quadrinhos, como a presença de onomatopéias gráficas, os balões de diálogo ou a divisão da página em quadros. No final da década de 1960, os artistas do movimento poema/processo incorporaram elementos da comunicação de massa em seus poemas, cartazes e livros de artista, buscando alcançar um público mais amplo. Alguns desses poemas quase abolem a palavra escrita, usando apenas códigos em vez de texto. A preferência pelos quadrinhos se explica porque a imagem quadrinizada “oferece-nos um recorte do objeto desenhado com idênticas implicações verbais e não-verbais” (CIRNE, 1972, p. 35). Page 4 of 15 O uso da metalinguagem como forma de crítica e reflexão sobre o meio é outro ponto de contato entre os livros de artista e alguns quadrinhos contemporâneos. É o caso do livro Poemics (1991), de Alvaro de Sá, produzido inteiramente com balões de diálogo, cujo título é uma combinação de "poemas" e “quadrinhos". Ao longo do livro, o autor desenha diversos tipos de balões, como se fizesse um inventário das possibilidades gráficas, apresentando algumas das 72 espécies de balões registradas pelo pesquisador Robert Benayoun: censurado, personalizado, mudo, atômico, sonolento, glacial, agressivo, onomatopaico, pop, tradutor, interrogativo, infantil, exibicionista, estéril etc (apud CIRNE, 1972, p. 33). Como uma referência direta aos Poemics de Alvaro de Sá, Omar Khouri publicou em 2017 um conjunto de 18 trabalhos chamado simplesmente Quadrinhos. São poemas visuais que têm como material estruturante vinhetas e balões de diálogo, feitos apenas com as linhas de contorno, sem nenhum preenchimento. Cada desenho ocupa uma página, com os títulos em uma folha em separado, permitindo combinações diversas que alteram o significado inicial, ampliando as possibilidades de leitura. Uma das propostas do poema-processo consistia em poemas sem nenhum recurso textual, a não ser os títulos ocasionais, utilizando convenções cartográficas (diagramas e legendas explicativas) ou recursos de histórias em quadrinhos. Alguns poemas eram apresentados como uma sequencia nãoverbal, que pode ocupar uma única página ou um conjunto de páginas, introduzindo o tempo de leitura como mais um elemento do poema (CADOR, 2020). As sequencias podem acontecer como um deslocamento das formas ou signos no espaço, mas também podem ser criadas por metamorfose, um tipo de transformação de um signo em outro, que inclui técnicas de câmera como a ampliação ou redução de um signo, que produz o efeito cinematográfico de zoom in e zoom out. Este tipo de poema sem palavras que aproxima o poema da linguagem cinematográfica era chamado pelos próprios artistas de “poemas de animação”. Estão entre os mais conhecidos poemas do movimento “Signo”, de Dailor Varela; “Ego”, de Hugo Mund Junior; “Work in Progress”, de Sebastião Nunes e Unir, um conjunto de cinco poemas de Walter Carvalho. Page 5 of 15 A metalinguagem também é o tema de trabalhos de artistas mais jovens. O argentino Martín Vitaliti publicou em 2009 dois livros nos quais isola os elementos gráficos considerados secundários nos quadrinhos de super-heróis para torná-los os personagens principais das histórias. Em Líneas Cinéticas, apresenta os recursos usados nos quadrinhos para representar o movimento; as linhas cinéticas foram isoladas usando o apagamento digital dos outros elementos no restante da página. O livro Didascalia é uma seleção de vinhetas retangulares com informações temporais que são comumente usadas para incluir a voz do narrador, equivalentes às direções de palco usadas em textos teatrais. O procedimento de seleção de figuras também foi usado no Vocabulário de Aline Dias, feito com elementos recortados de revistas da Turma da Mônica, do Maurício de Sousa. A autora brinca com a ambiguidade dos desenhos padronizados do estúdio, pois certas figuras, quando retiradas do contexto, mudam de significado, de modo que uma nuvem pode ser confundida com uma moita. Outras mídias Aproximações entre os quadrinhos e outros tipos de arte são muito comuns, sendo o cinema e a fotonovela as duas formas mais evidentes. A onomatopéia gráfica é uma invenção do cinema mudo, que era obrigado a achar equivalentes visuais para todos os tipos de ruídos (MOYA, 1977). São vários os processos de visualização dos sons adotados, por metáfora ou similitude. Quando surgiu o cinema falado, as convenções do cinema mudo foram adotadas pelos quadrinhos. Portanto, é natural fazer aproximações entre o cinema e os quadrinhos. O artista espanhol Francesc Ruiz publicou em 2016 uma obra em formato tabloide com a reconstituição da cena introdutória do filme Fahrenheit 451 adaptada para os quadrinhos. A adaptação de filmes e vídeos para o suporte de papel também é o ponto de partida para alguns livros de artista de Lawrence Weiner, como em Plowmans Lunch (1982) e Wild Blue Yonder (2002), por exemplo. Page 6 of 15 Como exercício narrativo, as fotonovelas foram muito populares na década de 1960, sendo utilizadas até mesmo pelo cineasta Jean-Luc Godard e se encontram também em livros de artista, como em A arma fálica, livro de Antonio Manuel de 1970, ou na paródia La Vie d’artiste (2009) de Ernest T., que se apropria de cenas de fotonovelas, com a substituição dos diálogos originais por frases absurdas sobre arte contemporânea. O uso de uma série de fotografias para descrever um evento é comum nos livros que registram performances, como as de Allan Kaprow. Em Echology de 1975 ele documenta uma ação realizada em um riacho em Nova Jersey. Formatado em painéis com uma breve descrição de texto de cada ação, o movimento do vento, água e som e a interação humana com eles, o documento é como uma fotonovela. Mais do que um mero registro, alguns trabalhos de Kaprow, como Satisfaction de 1976, realizado com a participação de atores, servem como roteiro ou partitura de uma performance. O artista utilizava uma combinação de fotografia e texto como um diagrama, suas páginas não se parecem com as páginas de quadrinhos, mas a estrutura texto/ imagem na página se baseia nas fotonovelas. O brasileiro Rettamozo produziu o que chamo de “performance para a página”, com fotografias em sequência formando uma narrativa gráfica semelhante a uma história em quadrinhos no cartaz (Ocupação para um espaço sensível a anarquigrafia: projeto para a reconstrução do gesto suspeito, 1981). Com intervenções feitas com aerógrafo sobre a imagem impressa, o artista conseguiu extrapolar os imites dos quadros individuais, chamando atenção para o espaço gráfico, o intervalo entre os quadros, outra elemento muito comum também nos quadrinhos. Neste caso, a fotografia não é o registro de uma ação ao vivo, mas o lugar de seu acontecimento. Geralmente, as associações entre quadrinhos e música estão restritas ao desenho de capas de disco, mas o trabalho pioneiro do italiano Eugenio Carmi (Stripsody, 1967) consegue ir além, é uma partitura gráfica feita exclusivamente de onomatopeias, registrada por Caty Barberian em um compacto em vinil que acompanha o livro (um CD na edição mais recente de 2013). O livro também possui um glossário das onomatopeias utilizadas, o que remete à pesquisa mais recente do russo Vadim Zakharov, um recenseamento Page 7 of 15 das onomatopeias mais utilizadas em Wörterbuch des nonverbalen Wortschatzes mit Kommentaren, de 2001. Os balões de diálogo, assim como as onomatopeias gráficas, fazem parte da linguagem verbal e da linguagem visual ao mesmo tempo, por isso são muito comuns em obras de artes visuais. O artista visual Christian Marclay, conhecido por seus trabalhos sonoros, criou uma partitura baseada em quadrinhos (To be continued, 2016), uma colagem de diversas revistas que mostram personagens de quadrinhos emitindo sons diversos - gritam, tocam instrumentos, produzem onomatopeias ao dar ou receber um golpe etc. A ideia de usar os personagens de quadrinhos em uma partitura parece ter sido usada pela primeira vez pelo compositor brasileiro Willy Correa de Oliveira, por ocasião da 8ª Bienal de São Paulo em 1965, em que apresentou a peça Ouviver Música, escrita para instrumentos de corda e piano, e que em seu 3º movimento tinha como partitura para os músicos personagens de quadrinhos: “cada músico recebeu uma folha com figuras diferentes e, a uma indicação do regente, deveria executar o que fosse sugerido por elas durante 10 segundos” (Amarante, 1989, p. 150). Detournement Quando se trata de determinados quadrinhos independentes ou trabalhos mais experimentais, é difícil apontar, do ponto de vista formal, alguma diferença entre livros de artista e quadrinhos. O termo Quadrinhos Conceituais é usado para se referir a obras "não filiadas à história geralmente aceita do mundo das histórias em quadrinhos” (MANOUACH, 2019), reunindo obras conceituais e práticas não convencionais pouco conhecidas fora da comunidade de especialistas (em geral, leitores e pesquisadores são os próprios autores, formando uma comunidade fechada, como também é o caso dos livros de artista). Esses trabalhos, embora se assemelhem formalmente aos quadrinhos, usam procedimentos de edição e apropriação que são mais comuns nas artes visuais. O romeno Ciprian Mureșan se apropria de imagens da cultura de massas e da história da arte redesenhando tudo a lápis. Ele criou um painel com a sobreposição de todas as 282 páginas do volume 3 do mangá Akira. Por Page 8 of 15 ocasião de uma exposição em 2015 foi publicado um livro com os detalhes do palimpsesto de Mureșan, reproduzindo todo o trabalho em um único volume que se baseia no formato original dos quadrinhos publicados no Japão. O desenho de Mureșan é um painel de 165 x 137 cm que recontextualiza a história de poder e corrupção do mangá de Katsuhiro Otomo e a publicação em livro coloca os desenhos novamente em circulação, podendo alcançar o mesmo público do mangá. A alteração de uma história em quadrinhos conhecida é um trabalho de détournement, um procedimento usado pelo situacionismo na década de 1960 que consiste na apropriação crítica a fim de subverter uma imagem ou situação cotidiana, trazendo-lhe novos sentidos, às vezes opostos ao original. O italiano Lamberto Pignotti em sua Biblia Pauperum (1977) mudou o significado de uma série de gravuras com cenas do Antigo e do Novo Testamento pelo acréscimo de um balão de diálogo, com texto que remete a questões sociais3. Ricardo Macêdo substituiu os diálogos de uma das aventuras do guarda florestal Tex Willer por textos críticos sobre arte, como os de Clement Greenberg, no trabalho chamado Tax: o texano tachista e o curador indígena contemporâneo, publicado em 2018. A reorganização dos quadros e outros procedimentos narrativos de cópia, seleção, alteração ou apagamento são uma forma atual de détournement realizada pelo grupo OuBaPo (Oficina de Quadrinhos Potencial, na sigla em francês: Ouvroir de la Bande Dessinée Potentielle), cujo representante mais conhecido é Jochen Gerner, que fez uma “leitura cromática das aventuras de Tintin”, RG: Renseignements Généraux (2015). Um exemplo de narrativa criada pelo deslocamento e repetição de cenas, o livro de artista 360o de Martín Vitaliti foi baseado em uma única página de La Banda del Missouri, criada pelo reconhecido italiano Hugo Pratt. A grade de treze painéis foi reproduzida quarenta e uma vezes, enquanto as respectivas cenas foram “expandidas” por Vitaliti, o que resultou em treze vistas panorâmicas de cada cena. A narrativa em si - índios e guardas florestais que descobrem um cavalo sem cavaleiro e um corpo morto flutuando no rio Biblia Pauperum ou a Bíblia dos Pobres é uma edição ilustrada com xilogravuras das Escrituras Sagradas e utilizada nas paróquias mais pobres da Idade Média. É considerada um tipo de precursora dos quadrinhos modernos. 3 Page 9 of 15 Missouri - não tem um significado importante. O que se torna significativo é o vazio da vasta paisagem criada pela intervenção de Vitaliti. Um fenômeno ainda pouco estudado no campo dos quadrinhos é a apropriação integral de um álbum já existente, uma prática que, no entanto, é bastante comum nos livros de artista criados a partir de obras literárias. Em um estudo de Annette Gilbert (2014) a respeito de apropriação, o deslocamento do campo literário para as artes visuais é um tipo de relação intertextual, uma espécie de comentário crítico a respeito do trabalho, cuja interpretação depende do conhecimento prévio da obra que foi apropriada. O leitor não precisa nem mesmo ler o livro inteiro para entender a obra (Carrión, 2011), que existe como a materialização de uma ideia. Mas a apropriação de uma história em quadrinhos inteira parece permanecer no limbo, ignorada pelo público em geral e pela maioria dos pesquisadores das artes visuais. Ilan Manouach é um artista grego importante nesse campo das apropriações, sempre realizadas com um viés político. Uma de suas obras mais famosas, Katz (2011), é baseada no álbum Maus de Art Spiegelman, com a única diferença que ele redesenhou os personagens, substituindo todos os ratos, cães e porcos do quadrinho original por gatos. O editor europeu da obra processou o artista, forçando-o a destruir todas as cópias. Para não deixar essa iniciativa desaparecer da memória, Manouach relatou em Metakatz o processo de criação e destruição da edição. Em outro projeto, ele publicou em lingala, a língua oficial do Congo, uma edição pirata de Tintin au Congo, refletindo sobre as relações entre o consumo de bens culturais e o racismo, como uma crítica ao colonialismo europeu e sua visão estereotipada de outras culturas. Para evitar novos problemas jurídicos com os editores, a edição pirata Tintin Akei Kongo de 2015 estava à venda apenas no continente africano. Uma abordagem mais formal foi utilizada pelo suíço Niklaus Rüegg, que criou uma narrativa visual sem a presença de figuras ou textos no livro Spuk (2004). O artista apagou os textos e personagens de quatro histórias do Pato Donald desenhadas por Carl Barks, deixando apenas os cenários formados por planos de cor, acompanhados ocasionalmente por móveis e objetos. Em alguns quadros, uma única cor preenche toda a área. Traços da vida humana são abundantes, mas nenhuma pessoa é vista. Page 10 of 15 Quadrinhos abstratos Outro tipo de quadrinho experimental é conhecido como “Quadrinhos Abstratos”. Os exemplos de quadrinhos abstratos remontam ao início do século XX, mas o conceito se tornou mais conhecido com a publicação da antologia Abstract Comics, organizada pelo russo Andrei Molotiu (2009). São sequências criadas sem apoio textual, que colocam em destaque os elementos da linguagem gráfica: linhas, texturas, formas e cores. Para o pesquisador russo, os quadrinhos abstratos se distinguem em dois tipos, as sequências de desenhos abstratos e as sequencias de desenhos que contêm elementos figurativos mas que não produzem uma narrativa coerente. O trabalho de Rüegg poderia ser enquadrado nesta segunda definição, assim como certos livros e cartazes de Stefanie Leinhos. A narrativa visual também pode ser feita com manchas de tinta que remetem à pintura do expressionismo abstrato e à gestualidade da escrita, como no trabalho 100 scenes: a graphic novel do australiano Tim Gaze, publicado em 2011. Cada página mostra uma mancha de tinta semelhante a uma monotipia, em que a tinta espalhada em uma superfície é transferida por pressão para uma folha de papel, deixando por conta do leitor "ler" cada página e determinar o que vê. A ausência de palavras e de narrativa levam o leitor a se concentrar nas qualidades formais e nos conceitos abstratos como espaço-tempo, movimento, signos, texturas, representação, transformação, repetição e diferença. As sequências abstratas com foco na estrutura formal dos quadrinhos são o material de trabalho de um grupo de artistas europeus, cujos trabalhos poderiam ser chamados de Quadrinhos Estruturais Franceses porque “seus trabalhos são semelhantes a obras do Cinema Estrutural” dos anos 1960 (JOOHA, 2018). Artistas como Alexis Beauclair, Antoine Orand e Sammy Stein compartilham características formais e estruturais dos quadrinhos, além do estilo, temas e motivos. Na série Loto (2012-2016), Alexis Beauclair utiliza poucas figuras geométricas para construir as narrativas. Os painéis são despojados para Page 11 of 15 conter informações visuais pertencentes apenas ao movimento, que se realiza no ato de leitura. Cada página encerra uma sequencia completa, o conjunto que forma cada volume apresenta variações sobre o mesmo tema. O artista auto-editou os primeiros volumes em fascículos de oito páginas, impressos em risografia e depois reunidos em livro em 2019 junto com outros volumes inéditos. Às vezes, o assunto do livro é a apresentação de formas e cores que se deslocam no espaço, tornando o leitor consciente da estrutura de quadros na página, como na obra de Frédérique Rusch (Untitled Comic Book, 2009). Em outros casos, o cenário parece explodir em um jogo de espelhos, tornando-se cada vez mais abstrato, como acontece em Re-Forma, de Luis Aranguri (2014). Alguns desses artistas apontam como referência para seus trabalhos os livros de Sol LeWitt. Nas primeiras páginas de Four Basic Kinds of Lines & Colour (1971), LeWitt apresenta todo conteúdo do livro em uma série de painéis (linhas verticais, horizontais e diagonais em direções opostas e em quatro cores diferentes, em todas as combinações possíveis). Ao mesmo tempo em que constituem uma espécie de sumário visual do livro, essas duas páginas também funcionam como uma história em quadrinhos abstrata que exibe combinações gráficas elementares. Outro trabalho que associa arte abstrata e quadrinhos é um livreto de Bernard Villers, produzido por ocasião de uma exposição na Fundação Serralves em 2009. Formado por discos coloridos com tamanhos diversos, o título surge a partir de uma sugestão das formas, Mickey, talvez. Super-heróis Nas obras de artes visuais, a referência ao universo dos quadrinhos é mais comumente associada à presença de um personagem famoso. Mesmo nesses casos, a alusão não é desprovida de um senso crítico. Os quadrinhos comerciais também são produzidos como um veículo ideológico, como apontou Ariel Dorfman em seu livro Como ler o Pato Donald, proibido no Chile e Page 12 of 15 publicado nos EUA pelo galerista Seth Siegelaub4. A mesma crítica ao imperialismo cultural assume outros contornos na associação de super-heróis com figuras populares mexicanas e imagens pre-colombianas no livro Codex espangliensis: from Columbus to the border patrol, obra coletiva de Enrique Chagoya, Felicia Rice e Guillermo Gómez-Peña. Em outros casos, os artistas optaram por contar histórias de pessoas comuns, sem poderes especiais. Simon Grennan e Christopher Sperandio publicaram livros de artista produzidas como projetos colaborativos que se parecem com as revistas de quadrinhos comuns. Eles trabalharam em parceria com museus e escolas de arte, envolvendo pessoas convidadas a contar uma história que, depois de selecionada, foi encenada em estúdio e fotografada. As fotos foram então transformadas em desenhos usando um programa de computador. Os quadrinhos da dupla conhecida como Kartoon Kings foram distribuídos gratuitamente nessas mesmas comunidades, mas também são vendidos em lojas especializadas ao lado das revistas de super-heróis e das graphic novels, pois contam com uma distribuidora comercial especializada em quadrinhos. Conclusão Os quadrinhos conceituais abrangem uma quantidade muito diversa de produções formalmente muito distintas. É possível identificar algumas tendências que já existiam anteriormente, como os quadrinhos abstratos; e procedimentos narrativos e de composição também existentes, como o détournement ou apropriação. A característica comum dessas obras é a importância dada ao conceito que determina a realização da obra, tal como se observa na arte conceitual. Por este motivo, a forma de leitura das obras Este best-seller apareceu durante um período em que Siegelaub deu as costas à cena artística e se estabeleceu em Paris. Lá, ele cultivou o interesse pela mídia de massa a partir de uma perspectiva de esquerda. De acordo com a atmosfera política da época, ele redirecionou suas atividades de publicação para pesquisas acadêmicas e ensaios críticos sobre comunicação. Siegelaub criou uma editora para viabilizar a publicação do livro, tão impressionado ficou com a análise de How To Read Donald Duck: Imperialist Ideology in the Disney Comic (1976). 4 Page 13 of 15 também é diferente dos quadrinhos tradicionais, exigindo em alguns casos maior participação do leitor. A maioria dos trabalhos aqui apresentados foram publicados na última década por artistas de diferentes países, incluindo América Latina e o leste europeu, o que aponta para o surgimento de uma nova geração de artistas que trabalham em uma zona indeterminada entre o quadrinho independente autoral e o que atualmente é conhecido como publicação de artista. Os livros de artista que também são álbuns de quadrinhos correm o "risco de não reconhecimento de sua identidade artística” (DUPEYRAT, 2012), caso sejam vistos fora do circuito de museus, galerias e bibliotecas especializadas. Além disso, podem sofrer o mesmo tipo de preconceito que ainda existe em relação aos quadrinhos, cujo potencial crítico e criativo ainda é subestimado nas escolas de arte. Mas, para jovens artistas apaixonados por quadrinhos e insatisfeitos com as formas tradicionais de produção e consumo de artes visuais, os livros de artista abrem uma possibilidade de “se tornar um produtor ou disseminador da cultura em vez de apenas ser um destinatário dela” (DUPEYRAT, 2012). Page 14 of 15 Referências AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo, 1951 a 1987. São Paulo: Projeto, 1989. BRONSON, AA; SCHUMANN, Max. Conceptual Comics. 2006. Disponível em https://www.printedmatter.org/catalog/tables/15. CADOR, Amir Brito. Poemics: poems + comics. In: OEI: Serier, nº 88-89, Stockholm, 2020. CARRIÓN, Ulises. A nova arte de fazer livros. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica a narrativa quadrinizada. Petropolis: Vozes, 1972. DUPEYRAT, Jérôme. As cheap and accessible as comic books: l’utopie démocratique du livre d’artiste, revue △⋔☼, n°3, octobre 2012, p.11-29. Disponível em http://f-u-t-u-r-e.org/r/12_Jerome-Dupeyrat_L-Utopiedemocratique-du-livre-d-artiste_FR.md. GILBERT, Annette (ed.). Reprint: appropriation (&) literature. Weisbaden: Lux Books, 2014. JOOHA, Kim. French Abstract Formalist Comics (French Structural Comics): An Artistic Movement. In: The Comics Journal, 2018. Disponível em http:// www.tcj.com/french-abstract-formalist-comics-french-structural-comics-anartistic-movement/ LEMINSKI, Paulo. Humor: esse duélago. Diário do Paraná. Curitiba, 12 de jul. 1977. Caderno Anexo. MANOUACH, Ilan. Conceptual Comics, 2019. Texto de apresentação da página Conceptual Comics na Monoskop. Alguns exemplos em formato PDF estão disponíveis na plataforma: https://monoskop.org/Conceptual_comics. MOLOTIU, Andrei. Abstract Comics: The Anthology 1967-2009. Seattle: Fantagraphics Books, 2009. MOYA, Alvaro de. Shazam!. São Paulo: Perspectiva, 1977. Page 15 of 15