QUADRINHOS CONCEITUAIS1
Amir Brito Cadôr
EBA/UFMG
amir_brito@yahoo.com.br
Resumo
A comunicação apresenta as semelhanças e as diferenças entre um grupo de
livros de artista e quadrinhos independentes que são pensados como
quadrinhos conceituais (MANOUACH, 2019) ou seja, histórias em quadrinhos
que adotam procedimentos comumente usados na arte conceitual. São
abordados os quadrinhos em sua relação com as artes visuais e outras
linguagens, incluindo experiências intersemióticas. Apresentamos exemplos de
procedimentos narrativos e de composição como o détournement e a
apropriação (GILBERT, 2014), além de quadrinhos abstratos (MOLOTIU, 2009)
e quadrinhos estruturais (JOOHA, 2018). A maioria dos trabalhos aqui
apresentados foram publicados na última década por artistas de diferentes
países que trabalham em uma zona indeterminada entre o quadrinho
independente autoral e o que atualmente é conhecido como publicação de
artista. Entendemos que a forma de leitura dessas obras é diferente dos
quadrinhos tradicionais, exigindo em alguns casos maior participação do leitor
(CARRIÓN, 2011).
Palavras-chave
quadrinhos conceituais; publicação de artista; livro de artista
O presente texto é uma versão ampliada do texto Conceptual Comics, escrito por
ocasião da exposição de mesmo nome realizada no Cabinet du Livre d’Artiste em
Rennes, na França, em março de 2020. O título da exposição é uma referência à
mostra de livros de artista organizada em 2006 no Canadá por AA Bronson e Max
Schumann.
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As aproximações entre as histórias em quadrinhos e as artes visuais são
bem conhecidas desde os anos 1960, quando os pintores da Arte Pop
colocaram personagens de quadrinhos em suas telas. Nos livros de artista, as
referências aos quadrinhos são muito comuns, seja em obras do artista
conceitual Lawrence Weiner, seja na série de performances desenhadas de Ida
Applebroog dos anos 1970, para ficar em apenas dois exemplos.
Cada vez mais, os quadrinhos são incluídos nas exposições de livros de
artista, demonstrando seu potencial crítico e expressivo2. Podemos identificar
três tipos de publicações associadas aos quadrinhos, considerando sua autoria
e sua circulação no campo da arte ou dos quadrinhos: livros de artista que,
ocasionalmente, adotam elementos específicos da linguagem dos quadrinhos;
quadrinhos independentes que adotam procedimentos das artes visuais e se
aproximam dos livros de artista; e quadrinhos produzidos por autores que
atuam nos dois campos até recentemente antagônicos.
No campo das artes visuais, tem se tornado mais comum o uso do termo
mais abrangente “publicação” para se referir ao material impresso,
demonstrando uma mudança de enfoque do objeto (o livro de artista) para o
seu processo de produção e circulação, de modo que a publicação é
considerada um aspecto de uma atividade artística, podendo assumir formatos
tão diversos como o zine, o cartaz, o folheto ou até mesmo os quadrinhos. Mas
existe uma produção recente de livros de artista que se situam em uma zona
de fronteira com os quadrinhos e que por isso continuam praticamente
desconhecidos.
A divisão que se estabeleceu entre a cultura erudita dos museus e a
cultura popular da indústria cultural relegou os quadrinhos a uma categoria de
itens de consumo descartáveis, muitas vezes ignorados por artistas e
intelectuais. A fronteira entre esses dois mundos é o tema de uma série de
trabalhos que Bertrand Lavier começou em 1984, inspirado em uma aventura
de Mickey e Minnie no Museu de Arte Moderna, em meio a pinturas e
esculturas abstratas. O artista deu vida a essas obras, depois reunidas em uma
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O curador Guy Schraenen fez em 2009 na fundação Serralves em Portugal, Do rato Mickey a
Andy Warhol; na Alemanha, o Weserberg Museum/Archive for artist’s publications apresentou
a mostra Kaboom!: Comic in der Kunst em 2013 e na Espanha o Museu Nacional Reina Sofia
apresentou Cómics: una nueva lectura em 2018.
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exposição como a que estava no gibi. O registro da mostra deu origem em
2012 ao livro Walt Disney Productions, com detalhes dos quadrinhos originais
ao lado de fotografias das obras em exposição.
Mais do que a mera transposição de um fragmento de um quadrinho
para a pintura, o universo dos quadrinhos aparece com frequência na produção
de artistas plásticos, como na exposição de Fernando Lindote, D.C.I.
(Dispositivo de Circulação de Imagem), realizada em 2014. A exposição reuniu
seis telas e cinco esculturas formadas por pilhas de revistas de história em
quadrinhos criadas pelo artista, que o público podia retirar e levar para casa. As
pinturas do artista remetem a desenhos impressos em páginas dos quadrinhos
apresentados na exposição, entre eles um gibi chamado Três Papagaios, uma
homenagem a seu professor Renato Canini, desenhista responsável pela
revista Zé Carioca publicada pela Disney nos anos 1970. Lindote foi cartunista
em jornais do sul do Brasil antes de se dedicar às artes visuais. As revistas
publicadas por Lindote, apesar do formato, tipo de papel e aparência
semelhante ao de um gibi comum são na verdade publicações de artista, ou
seja, obras criadas para a reprodução técnica, em edições que podem variar
de poucas dezenas a milhares de cópias.
Humor
Alguns artistas combinam elementos associados ao cartum e à crítica de
arte em sua produção artística, de modo que não há uma distinção formal ou
conceitual entre os trabalhos publicados como ilustração em jornais e revistas e
os trabalhos apresentados em exposições em museus e galeria de arte. Um
exemplo pioneiro é o do pintor Ad Reinhardt que publicou a página How to
Look em que apresenta, em forma de cartum, as mesmas ideias sobre arte que
ele havia publicado em artigos e ensaios.
Na verdade, o humor é “uma arte das artes, um diálogo entre códigos
verbais e visuais” (LEMINSKI, 1977, p. 12) e está presente também na poesia e
nas artes plásticas. Como afirma o poeta Paulo Leminski:
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Humor é uma palavra ruim. Dá a impressão que é pra dar risada. Não é nada
disso. É outra coisa. É poesia. Com palavras. Ou sem palavras. Os maiores
poetas foram humoristas. Não há poesia sem humor. Todo humor é poesia. [...]
Os maiores talentos poéticos desta geração desertaram e foram para a música
popular ou para o cartum. (LEMINSKI, 1977, p. 12).
O britânico Glen Baxter publicou diversos livros de artista com seus
desenhos no estilo de quadrinhos de aventura. Ele mistura intelectuais,
cowboys e gângsteres em situações absurdas e um texto breve acompanha
cada desenho, à maneira de legenda ou comentário. O burlesco da situação
descrita é respondido pelo grotesco de um comentário expresso da maneira
mais séria do mundo. O choque entre o texto e as imagens é outra
característica do trabalho de Baxter, que levanta questões sobre as estruturas
sociais subjacentes aos valores estéticos.
Usando a mesma linguagem característica de suas ilustrações
publicadas em jornais e livros infantis, Marcelo Cipis transita pelo universo da
arte em Some Contemporary Art Themes, de 2010. Ele faz uma interpretação
bem humorada de assuntos como “beleza”, “site-specific” e “novas mídias”
entre outros. O artista gráfico, que também é conhecido por suas pinturas,
mostra em uma de suas páginas que a distância entre o ilustrador e o artista
plástico não é tão grande como se imagina.
Metalinguagem
Alguns elementos são específicos da linguagem formal dos quadrinhos,
como a presença de onomatopéias gráficas, os balões de diálogo ou a divisão
da página em quadros. No final da década de 1960, os artistas do movimento
poema/processo incorporaram elementos da comunicação de massa em seus
poemas, cartazes e livros de artista, buscando alcançar um público mais
amplo. Alguns desses poemas quase abolem a palavra escrita, usando apenas
códigos em vez de texto. A preferência pelos quadrinhos se explica porque a
imagem quadrinizada “oferece-nos um recorte do objeto desenhado com
idênticas implicações verbais e não-verbais” (CIRNE, 1972, p. 35).
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O uso da metalinguagem como forma de crítica e reflexão sobre o meio
é outro ponto de contato entre os livros de artista e alguns quadrinhos
contemporâneos. É o caso do livro Poemics (1991), de Alvaro de Sá, produzido
inteiramente com balões de diálogo, cujo título é uma combinação de "poemas"
e “quadrinhos". Ao longo do livro, o autor desenha diversos tipos de balões,
como se fizesse um inventário das possibilidades gráficas, apresentando
algumas das 72 espécies de balões registradas pelo pesquisador Robert
Benayoun: censurado, personalizado, mudo, atômico, sonolento, glacial,
agressivo, onomatopaico, pop, tradutor, interrogativo, infantil, exibicionista,
estéril etc (apud CIRNE, 1972, p. 33).
Como uma referência direta aos Poemics de Alvaro de Sá, Omar Khouri
publicou em 2017 um conjunto de 18 trabalhos chamado simplesmente
Quadrinhos. São poemas visuais que têm como material estruturante vinhetas
e balões de diálogo, feitos apenas com as linhas de contorno, sem nenhum
preenchimento. Cada desenho ocupa uma página, com os títulos em uma folha
em separado, permitindo combinações diversas que alteram o significado
inicial, ampliando as possibilidades de leitura.
Uma das propostas do poema-processo consistia em poemas sem
nenhum recurso textual, a não ser os títulos ocasionais, utilizando convenções
cartográficas (diagramas e legendas explicativas) ou recursos de histórias em
quadrinhos. Alguns poemas eram apresentados como uma sequencia nãoverbal, que pode ocupar uma única página ou um conjunto de páginas,
introduzindo o tempo de leitura como mais um elemento do poema (CADOR,
2020). As sequencias podem acontecer como um deslocamento das formas ou
signos no espaço, mas também podem ser criadas por metamorfose, um tipo
de transformação de um signo em outro, que inclui técnicas de câmera como a
ampliação ou redução de um signo, que produz o efeito cinematográfico de
zoom in e zoom out. Este tipo de poema sem palavras que aproxima o poema
da linguagem cinematográfica era chamado pelos próprios artistas de “poemas
de animação”. Estão entre os mais conhecidos poemas do movimento “Signo”,
de Dailor Varela; “Ego”, de Hugo Mund Junior; “Work in Progress”, de
Sebastião Nunes e Unir, um conjunto de cinco poemas de Walter Carvalho.
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A metalinguagem também é o tema de trabalhos de artistas mais jovens.
O argentino Martín Vitaliti publicou em 2009 dois livros nos quais isola os
elementos gráficos considerados secundários nos quadrinhos de super-heróis
para torná-los os personagens principais das histórias. Em Líneas Cinéticas,
apresenta os recursos usados nos quadrinhos para representar o movimento;
as linhas cinéticas foram isoladas usando o apagamento digital dos outros
elementos no restante da página. O livro Didascalia é uma seleção de vinhetas
retangulares com informações temporais que são comumente usadas para
incluir a voz do narrador, equivalentes às direções de palco usadas em textos
teatrais.
O procedimento de seleção de figuras também foi usado no Vocabulário
de Aline Dias, feito com elementos recortados de revistas da Turma da Mônica,
do Maurício de Sousa. A autora brinca com a ambiguidade dos desenhos
padronizados do estúdio, pois certas figuras, quando retiradas do contexto,
mudam de significado, de modo que uma nuvem pode ser confundida com uma
moita.
Outras mídias
Aproximações entre os quadrinhos e outros tipos de arte são muito
comuns, sendo o cinema e a fotonovela as duas formas mais evidentes. A
onomatopéia gráfica é uma invenção do cinema mudo, que era obrigado a
achar equivalentes visuais para todos os tipos de ruídos (MOYA, 1977). São
vários os processos de visualização dos sons adotados, por metáfora ou
similitude. Quando surgiu o cinema falado, as convenções do cinema mudo
foram adotadas pelos quadrinhos. Portanto, é natural fazer aproximações entre
o cinema e os quadrinhos.
O artista espanhol Francesc Ruiz publicou em 2016 uma obra em
formato tabloide com a reconstituição da cena introdutória do filme Fahrenheit
451 adaptada para os quadrinhos. A adaptação de filmes e vídeos para o
suporte de papel também é o ponto de partida para alguns livros de artista de
Lawrence Weiner, como em Plowmans Lunch (1982) e Wild Blue Yonder
(2002), por exemplo.
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Como exercício narrativo, as fotonovelas foram muito populares na
década de 1960, sendo utilizadas até mesmo pelo cineasta Jean-Luc Godard e
se encontram também em livros de artista, como em A arma fálica, livro de
Antonio Manuel de 1970, ou na paródia La Vie d’artiste (2009) de Ernest T., que
se apropria de cenas de fotonovelas, com a substituição dos diálogos originais
por frases absurdas sobre arte contemporânea.
O uso de uma série de fotografias para descrever um evento é comum
nos livros que registram performances, como as de Allan Kaprow. Em Echology de 1975 ele documenta uma ação realizada em um riacho em Nova
Jersey. Formatado em painéis com uma breve descrição de texto de cada
ação, o movimento do vento, água e som e a interação humana com eles, o
documento é como uma fotonovela. Mais do que um mero registro, alguns
trabalhos de Kaprow, como Satisfaction de 1976, realizado com a participação
de atores, servem como roteiro ou partitura de uma performance. O artista
utilizava uma combinação de fotografia e texto como um diagrama, suas
páginas não se parecem com as páginas de quadrinhos, mas a estrutura texto/
imagem na página se baseia nas fotonovelas.
O brasileiro Rettamozo produziu o que chamo de “performance para a
página”, com fotografias em sequência formando uma narrativa gráfica
semelhante a uma história em quadrinhos no cartaz (Ocupação para um
espaço sensível a anarquigrafia: projeto para a reconstrução do gesto suspeito,
1981). Com intervenções feitas com aerógrafo sobre a imagem impressa, o
artista conseguiu extrapolar os imites dos quadros individuais, chamando
atenção para o espaço gráfico, o intervalo entre os quadros, outra elemento
muito comum também nos quadrinhos. Neste caso, a fotografia não é o registro
de uma ação ao vivo, mas o lugar de seu acontecimento.
Geralmente, as associações entre quadrinhos e música estão restritas
ao desenho de capas de disco, mas o trabalho pioneiro do italiano Eugenio
Carmi (Stripsody, 1967) consegue ir além, é uma partitura gráfica feita
exclusivamente de onomatopeias, registrada por Caty Barberian em um
compacto em vinil que acompanha o livro (um CD na edição mais recente de
2013). O livro também possui um glossário das onomatopeias utilizadas, o que
remete à pesquisa mais recente do russo Vadim Zakharov, um recenseamento
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das onomatopeias mais utilizadas em Wörterbuch des nonverbalen
Wortschatzes mit Kommentaren, de 2001.
Os balões de diálogo, assim como as onomatopeias gráficas, fazem
parte da linguagem verbal e da linguagem visual ao mesmo tempo, por isso
são muito comuns em obras de artes visuais. O artista visual Christian Marclay,
conhecido por seus trabalhos sonoros, criou uma partitura baseada em
quadrinhos (To be continued, 2016), uma colagem de diversas revistas que
mostram personagens de quadrinhos emitindo sons diversos - gritam, tocam
instrumentos, produzem onomatopeias ao dar ou receber um golpe etc. A ideia
de usar os personagens de quadrinhos em uma partitura parece ter sido usada
pela primeira vez pelo compositor brasileiro Willy Correa de Oliveira, por
ocasião da 8ª Bienal de São Paulo em 1965, em que apresentou a peça
Ouviver Música, escrita para instrumentos de corda e piano, e que em seu 3º
movimento tinha como partitura para os músicos personagens de quadrinhos:
“cada músico recebeu uma folha com figuras diferentes e, a uma indicação do
regente, deveria executar o que fosse sugerido por elas durante 10
segundos” (Amarante, 1989, p. 150).
Detournement
Quando se trata de determinados quadrinhos independentes ou
trabalhos mais experimentais, é difícil apontar, do ponto de vista formal, alguma
diferença entre livros de artista e quadrinhos. O termo Quadrinhos Conceituais
é usado para se referir a obras "não filiadas à história geralmente aceita do
mundo das histórias em quadrinhos” (MANOUACH, 2019), reunindo obras
conceituais e práticas não convencionais pouco conhecidas fora da
comunidade de especialistas (em geral, leitores e pesquisadores são os
próprios autores, formando uma comunidade fechada, como também é o caso
dos livros de artista). Esses trabalhos, embora se assemelhem formalmente
aos quadrinhos, usam procedimentos de edição e apropriação que são mais
comuns nas artes visuais.
O romeno Ciprian Mureșan se apropria de imagens da cultura de
massas e da história da arte redesenhando tudo a lápis. Ele criou um painel
com a sobreposição de todas as 282 páginas do volume 3 do mangá Akira. Por
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ocasião de uma exposição em 2015 foi publicado um livro com os detalhes do
palimpsesto de Mureșan, reproduzindo todo o trabalho em um único volume
que se baseia no formato original dos quadrinhos publicados no Japão. O
desenho de Mureșan é um painel de 165 x 137 cm que recontextualiza a
história de poder e corrupção do mangá de Katsuhiro Otomo e a publicação em
livro coloca os desenhos novamente em circulação, podendo alcançar o
mesmo público do mangá.
A alteração de uma história em quadrinhos conhecida é um trabalho de
détournement, um procedimento usado pelo situacionismo na década de 1960
que consiste na apropriação crítica a fim de subverter uma imagem ou situação
cotidiana, trazendo-lhe novos sentidos, às vezes opostos ao original. O italiano
Lamberto Pignotti em sua Biblia Pauperum (1977) mudou o significado de uma
série de gravuras com cenas do Antigo e do Novo Testamento pelo acréscimo
de um balão de diálogo, com texto que remete a questões sociais3. Ricardo
Macêdo substituiu os diálogos de uma das aventuras do guarda florestal Tex
Willer por textos críticos sobre arte, como os de Clement Greenberg, no
trabalho chamado Tax: o texano tachista e o curador indígena contemporâneo,
publicado em 2018.
A reorganização dos quadros e outros procedimentos narrativos de
cópia, seleção, alteração ou apagamento são uma forma atual de
détournement realizada pelo grupo OuBaPo (Oficina de Quadrinhos Potencial,
na sigla em francês: Ouvroir de la Bande Dessinée Potentielle), cujo
representante mais conhecido é Jochen Gerner, que fez uma “leitura cromática
das aventuras de Tintin”, RG: Renseignements Généraux (2015).
Um exemplo de narrativa criada pelo deslocamento e repetição de
cenas, o livro de artista 360o de Martín Vitaliti foi baseado em uma única página
de La Banda del Missouri, criada pelo reconhecido italiano Hugo Pratt. A grade
de treze painéis foi reproduzida quarenta e uma vezes, enquanto as
respectivas cenas foram “expandidas” por Vitaliti, o que resultou em treze
vistas panorâmicas de cada cena. A narrativa em si - índios e guardas florestais
que descobrem um cavalo sem cavaleiro e um corpo morto flutuando no rio
Biblia Pauperum ou a Bíblia dos Pobres é uma edição ilustrada com xilogravuras das
Escrituras Sagradas e utilizada nas paróquias mais pobres da Idade Média. É
considerada um tipo de precursora dos quadrinhos modernos.
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Missouri - não tem um significado importante. O que se torna significativo é o
vazio da vasta paisagem criada pela intervenção de Vitaliti.
Um fenômeno ainda pouco estudado no campo dos quadrinhos é a
apropriação integral de um álbum já existente, uma prática que, no entanto, é
bastante comum nos livros de artista criados a partir de obras literárias. Em um
estudo de Annette Gilbert (2014) a respeito de apropriação, o deslocamento do
campo literário para as artes visuais é um tipo de relação intertextual, uma
espécie de comentário crítico a respeito do trabalho, cuja interpretação
depende do conhecimento prévio da obra que foi apropriada. O leitor não
precisa nem mesmo ler o livro inteiro para entender a obra (Carrión, 2011), que
existe como a materialização de uma ideia. Mas a apropriação de uma história
em quadrinhos inteira parece permanecer no limbo, ignorada pelo público em
geral e pela maioria dos pesquisadores das artes visuais.
Ilan Manouach é um artista grego importante nesse campo das
apropriações, sempre realizadas com um viés político. Uma de suas obras
mais famosas, Katz (2011), é baseada no álbum Maus de Art Spiegelman, com
a única diferença que ele redesenhou os personagens, substituindo todos os
ratos, cães e porcos do quadrinho original por gatos. O editor europeu da obra
processou o artista, forçando-o a destruir todas as cópias. Para não deixar
essa iniciativa desaparecer da memória, Manouach relatou em Metakatz o
processo de criação e destruição da edição. Em outro projeto, ele publicou em
lingala, a língua oficial do Congo, uma edição pirata de Tintin au Congo,
refletindo sobre as relações entre o consumo de bens culturais e o racismo,
como uma crítica ao colonialismo europeu e sua visão estereotipada de outras
culturas. Para evitar novos problemas jurídicos com os editores, a edição pirata
Tintin Akei Kongo de 2015 estava à venda apenas no continente africano.
Uma abordagem mais formal foi utilizada pelo suíço Niklaus Rüegg, que
criou uma narrativa visual sem a presença de figuras ou textos no livro Spuk
(2004). O artista apagou os textos e personagens de quatro histórias do Pato
Donald desenhadas por Carl Barks, deixando apenas os cenários formados por
planos de cor, acompanhados ocasionalmente por móveis e objetos. Em
alguns quadros, uma única cor preenche toda a área. Traços da vida humana
são abundantes, mas nenhuma pessoa é vista.
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Quadrinhos abstratos
Outro tipo de quadrinho experimental é conhecido como “Quadrinhos
Abstratos”. Os exemplos de quadrinhos abstratos remontam ao início do século
XX, mas o conceito se tornou mais conhecido com a publicação da antologia
Abstract Comics, organizada pelo russo Andrei Molotiu (2009). São sequências
criadas sem apoio textual, que colocam em destaque os elementos da
linguagem gráfica: linhas, texturas, formas e cores. Para o pesquisador russo,
os quadrinhos abstratos se distinguem em dois tipos, as sequências de
desenhos abstratos e as sequencias de desenhos que contêm elementos
figurativos mas que não produzem uma narrativa coerente. O trabalho de
Rüegg poderia ser enquadrado nesta segunda definição, assim como certos
livros e cartazes de Stefanie Leinhos.
A narrativa visual também pode ser feita com manchas de tinta que
remetem à pintura do expressionismo abstrato e à gestualidade da escrita,
como no trabalho 100 scenes: a graphic novel do australiano Tim Gaze,
publicado em 2011. Cada página mostra uma mancha de tinta semelhante a
uma monotipia, em que a tinta espalhada em uma superfície é transferida por
pressão para uma folha de papel, deixando por conta do leitor "ler" cada página
e determinar o que vê.
A ausência de palavras e de narrativa levam o leitor a se concentrar nas
qualidades formais e nos conceitos abstratos como espaço-tempo, movimento,
signos, texturas, representação, transformação, repetição e diferença. As
sequências abstratas com foco na estrutura formal dos quadrinhos são o
material de trabalho de um grupo de artistas europeus, cujos trabalhos
poderiam ser chamados de Quadrinhos Estruturais Franceses porque “seus
trabalhos são semelhantes a obras do Cinema Estrutural” dos anos 1960
(JOOHA, 2018). Artistas como Alexis Beauclair, Antoine Orand e Sammy Stein
compartilham características formais e estruturais dos quadrinhos, além do
estilo, temas e motivos.
Na série Loto (2012-2016), Alexis Beauclair utiliza poucas figuras
geométricas para construir as narrativas. Os painéis são despojados para
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conter informações visuais pertencentes apenas ao movimento, que se realiza
no ato de leitura. Cada página encerra uma sequencia completa, o conjunto
que forma cada volume apresenta variações sobre o mesmo tema. O artista
auto-editou os primeiros volumes em fascículos de oito páginas, impressos em
risografia e depois reunidos em livro em 2019 junto com outros volumes
inéditos.
Às vezes, o assunto do livro é a apresentação de formas e cores que se
deslocam no espaço, tornando o leitor consciente da estrutura de quadros na
página, como na obra de Frédérique Rusch (Untitled Comic Book, 2009). Em
outros casos, o cenário parece explodir em um jogo de espelhos, tornando-se
cada vez mais abstrato, como acontece em Re-Forma, de Luis Aranguri (2014).
Alguns desses artistas apontam como referência para seus trabalhos os
livros de Sol LeWitt. Nas primeiras páginas de Four Basic Kinds of Lines &
Colour (1971), LeWitt apresenta todo conteúdo do livro em uma série de
painéis (linhas verticais, horizontais e diagonais em direções opostas e em
quatro cores diferentes, em todas as combinações possíveis). Ao mesmo
tempo em que constituem uma espécie de sumário visual do livro, essas duas
páginas também funcionam como uma história em quadrinhos abstrata que
exibe combinações gráficas elementares.
Outro trabalho que associa arte abstrata e quadrinhos é um livreto de
Bernard Villers, produzido por ocasião de uma exposição na Fundação
Serralves em 2009. Formado por discos coloridos com tamanhos diversos, o
título surge a partir de uma sugestão das formas, Mickey, talvez.
Super-heróis
Nas obras de artes visuais, a referência ao universo dos quadrinhos é
mais comumente associada à presença de um personagem famoso. Mesmo
nesses casos, a alusão não é desprovida de um senso crítico. Os quadrinhos
comerciais também são produzidos como um veículo ideológico, como apontou
Ariel Dorfman em seu livro Como ler o Pato Donald, proibido no Chile e
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publicado nos EUA pelo galerista Seth Siegelaub4. A mesma crítica ao
imperialismo cultural assume outros contornos na associação de super-heróis
com figuras populares mexicanas e imagens pre-colombianas no livro Codex
espangliensis: from Columbus to the border patrol, obra coletiva de Enrique
Chagoya, Felicia Rice e Guillermo Gómez-Peña.
Em outros casos, os artistas optaram por contar histórias de pessoas
comuns, sem poderes especiais. Simon Grennan e Christopher Sperandio
publicaram livros de artista produzidas como projetos colaborativos que se
parecem com as revistas de quadrinhos comuns. Eles trabalharam em parceria
com museus e escolas de arte, envolvendo pessoas convidadas a contar uma
história que, depois de selecionada, foi encenada em estúdio e fotografada. As
fotos foram então transformadas em desenhos usando um programa de
computador. Os quadrinhos da dupla conhecida como Kartoon Kings foram
distribuídos gratuitamente nessas mesmas comunidades, mas também são
vendidos em lojas especializadas ao lado das revistas de super-heróis e das
graphic novels, pois contam com uma distribuidora comercial especializada em
quadrinhos.
Conclusão
Os quadrinhos conceituais abrangem uma quantidade muito diversa de
produções formalmente muito distintas. É possível identificar algumas
tendências que já existiam anteriormente, como os quadrinhos abstratos; e
procedimentos narrativos e de composição também existentes, como o
détournement ou apropriação. A característica comum dessas obras é a
importância dada ao conceito que determina a realização da obra, tal como se
observa na arte conceitual. Por este motivo, a forma de leitura das obras
Este best-seller apareceu durante um período em que Siegelaub deu as costas à
cena artística e se estabeleceu em Paris. Lá, ele cultivou o interesse pela mídia de
massa a partir de uma perspectiva de esquerda. De acordo com a atmosfera política
da época, ele redirecionou suas atividades de publicação para pesquisas acadêmicas
e ensaios críticos sobre comunicação. Siegelaub criou uma editora para viabilizar a
publicação do livro, tão impressionado ficou com a análise de How To Read Donald
Duck: Imperialist Ideology in the Disney Comic (1976).
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também é diferente dos quadrinhos tradicionais, exigindo em alguns casos
maior participação do leitor.
A maioria dos trabalhos aqui apresentados foram publicados na última
década por artistas de diferentes países, incluindo América Latina e o leste
europeu, o que aponta para o surgimento de uma nova geração de artistas que
trabalham em uma zona indeterminada entre o quadrinho independente autoral
e o que atualmente é conhecido como publicação de artista.
Os livros de artista que também são álbuns de quadrinhos correm o
"risco de não reconhecimento de sua identidade artística” (DUPEYRAT, 2012),
caso sejam vistos fora do circuito de museus, galerias e bibliotecas
especializadas. Além disso, podem sofrer o mesmo tipo de preconceito que
ainda existe em relação aos quadrinhos, cujo potencial crítico e criativo ainda é
subestimado nas escolas de arte. Mas, para jovens artistas apaixonados por
quadrinhos e insatisfeitos com as formas tradicionais de produção e consumo
de artes visuais, os livros de artista abrem uma possibilidade de “se tornar um
produtor ou disseminador da cultura em vez de apenas ser um destinatário
dela” (DUPEYRAT, 2012).
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Referências
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CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica a narrativa
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DUPEYRAT, Jérôme. As cheap and accessible as comic books: l’utopie
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Disponível em http://f-u-t-u-r-e.org/r/12_Jerome-Dupeyrat_L-Utopiedemocratique-du-livre-d-artiste_FR.md.
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Artistic Movement. In: The Comics Journal, 2018. Disponível em http://
www.tcj.com/french-abstract-formalist-comics-french-structural-comics-anartistic-movement/
LEMINSKI, Paulo. Humor: esse duélago. Diário do Paraná. Curitiba, 12 de jul.
1977. Caderno Anexo.
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Fantagraphics Books, 2009.
MOYA, Alvaro de. Shazam!. São Paulo: Perspectiva, 1977.
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