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PSICOTERAPIA, IDENTIDADE E NEOESOTERISMO: CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS RESUMO: Em razão de um crescente processo de globalização e pluralismo culturais que têm caracterizado o mundo contemporâneo, observam-se fortes desenraizamento e horizontalidade em diversas crenças e práticas religiosas. Tais características não só refletem a diversidade do campo religioso brasileiro, como também sugerem uma significativa influência da mentalidade new age, o que Magnani (1996) chama de neoesoterismo. Trata-se de uma forma de identidade religiosa fluida, nômade, que se liga a tudo e não se liga a coisa alguma em específico, mas que carrega consigo, a cada passo dado, tudo aquilo que adquiriu ao longo de seu caminho. Nesse cenário, o indivíduo acaba por adquirir primazia como objeto de análise, uma vez que é ele quem constrói muito de sua relação particular com o sagrado ao consumir diversas crenças e práticas. Os indivíduos contemporâneos tendem a tomar suas decisões com base em critérios disponíveis na sociedade tecnológica e científica em que vivem, aproximando, assim, sua fé de um discurso científico, o que inclui tentativas de incorporação da psicologia, visando certa legitimação para suas crenças. Esse trabalho procura discutir os desafios epistemológicos e sociais enfrentados pela Psicologia nesse contexto, em sua relação com os saberes alternativos e práticas religiosas, bem como tece reflexões sobre a viabilidade ou inviabilidade da noção de transdisciplinaridade. PALAVRAS-CHAVE: Psicoterapia; identidade; neoesoterismo; transdisciplinaridade. PSICOLOGIA, ESPIRITUALIDADE E EPISTEMOLOGIAS NÃO HEGEMÔNICAS Everton de Oliveira Maraldi1 Leonardo Breno Martins2 135 1 2 Doutor e mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo. Psicólogo pela Universidade Guarulhos (CRP-06/94052). Pesquisador de pós-doutorado na Universidade de São Paulo com bolsa da FAPESP (Processo n° 2015/05255-2). Membro do Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais (Inter Psi) e do Laboratório de Estudos em Psicologia Social da Religião, ambos da USP.. E-mail: evertonom@usp.br Doutor e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Psicólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais (Inter Psi), do Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. E-mail: leobremartins@usp.br COLEÇÃO PSICOLOGIA, LAICIDADE E AS RELAÇÕES COM A RELIGIÃO E A ESPIRITUALIDADE 136 INTRODUÇÃO Em um survey on-line com mais de 1.400 respondentes de diferentes cidades brasileiras, conduzido pelo primeiro autor como parte de sua tese de doutorado (MARALDI, 2014), um dado interessante parecia se impor: a dificuldade, em alguns momentos, de classificar de modo preciso a religião ou filosofia de vida a que pertenceriam os participantes. Muitos se afirmavam ao mesmo tempo católicos, espíritas, umbandistas etc. Outros escolhiam, além de algumas das afiliações listadas no questionário, a seguinte opção de resposta: “Tenho um lado espiritual que tenta integrar as visões de diferentes religiões e filosofias. Creio que há certa verdade ou unidade por trás de todas elas”. O estudo em questão, que buscava compreender a relação entre certas variáveis psicológicas e a adesão a crenças e práticas religiosas e paranormais, incluiu também uma frente de coleta de dados qualitativos, visando compreender o impacto dessas práticas na vida dos respondentes, seus usos e sentidos. A análise dos discursos de 22 entrevistados parecia indicar a presença de critérios maleáveis de conversão religiosa, incluindo a tendência a fusionar, de modo pessoal e sincrético, elementos de afiliações anteriores com as afiliações recém-adquiridas. O que significavam, afinal, esses reincidentes e crescentes exemplos de múltiplas afiliações e graus de pertencimento religioso? No caso daqueles que professaram apenas uma afiliação, poder-se-ia efetivamente afirmar que se achavam isentos de outras influências ideológicas? E, diante do momento atual em que a Psicologia busca dialogar com saberes diversos e culturalmente relevantes, o que esse cenário ambivalente no contexto urbano lança como desafio e como possibilidade para a Psicologia? DISCUSSÃO Esses casos ilustram o desenraizamento e a horizontalidade que têm caracterizado as crenças religiosas em razão do crescente pluralismo e globalização. Tais características não só refletem a diversidade do campo religioso brasileiro, como também sugerem uma significativa influência da mentalidade new age, o que Magnani (1996) chama de neoesoterismo. Trata-se de uma forma de identidade religiosa fluida, nômade, que se liga a tudo e não se liga a coisa alguma em específico, mas que carrega consigo, a cada passo dado, boa parte daquilo que adquiriu ao longo de seu caminho. Temos aqui uma eloquente demonstração do que Paiva (1999) definiu como conversão de tipo imaginário e sincrético. Em alguns dos casos mencionados, porém, parece mais adequado falar em identificação do que em conversão. Essa nova forma de viver o sagrado e a religiosidade desviou o interesse dos coletivos para o próprio indivíduo. Hoje, a religião já não é a principal detentora do poder sobre o discurso do sagrado; é o indivíduo quem constrói muito de sua fé, de sua relação particular com o sagrado, ao consumir diversas crenças e práticas e formar sua “colcha de retalhos” espiritual. Elas se tornaram mais céticas e questionadoras, e tendem a acreditar mais no que podem ver e experimentar. A vivência do sagrado e do transcendente por meio PSICOLOGIA, ESPIRITUALIDADE E EPISTEMOLOGIAS NÃO HEGEMÔNICAS dos rituais, do transe dissociativo, da meditação e de outros procedimentos coletivos de alteração da consciência, em diferentes contextos influenciados pelo neoesoterismo ou pela renovação carismática, desempenha um papel legitimador, tornando essa transcendência aparentemente acessível a todos. Por sua vez, pode-se especular se a experiência religiosa não estaria hoje mais a serviço da secularização do que o contrário. Uma vez que os indivíduos contemporâneos tendem a tomar suas decisões com base em critérios disponíveis na sociedade tecnológica e científica em que vivem, muitas doutrinas e movimentos religiosos se esforçam por aproximar seu discurso de algo científico (ou aparentemente científico), recorrendo a termos técnicos variados, buscando respaldo para suas crenças em estudos de Parapsicologia e Física Quântica, como os autores puderam constatar em incursões a contextos esotéricos e religiosos. Ao mesmo tempo, há uma forte tendência a deslegitimizar a ciência (então acusada de “limitada”, “arrogante”, “imperialista” etc.) quando ela aponta direções entendidas como conflituosas com sistemas simbólicos neoesotéricos (MARALDI, 2014; MARTINS, 2011/2015). Assim, desenha-se uma relação ambígua que impõe tensões diversas às tentativas de diálogo entre as partes. Mas essa aproximação de um discurso quase científico também inclui uma aproximação com a Psicologia. Em nossa contemporaneidade, mais do que em outras épocas, a religiosidade e a relação com o sagrado tornaram-se formas de recurso terapêutico; em outras palavras, elas se “psicologizaram”, e não é equivocado afirmar que elas disputam espaço com a Psicoterapia. O debate sobre as chamadas práticas alternativas, complementares ou integrativas diz respeito justamente a uma erosão dessas fronteiras, que se tornaram negociáveis e que fazem os pacientes leigos trafegarem entre diversos contextos e práticas, confundindo suas dimensões e origens. A média de visitas à Psicoterapia ou ao psiquiatra foi menor que uma (em algum momento da vida) na amostra total do referido estudo (MARALDI, 2014), o que é coerente, de certo modo, com o fato de se tratar de uma amostra não clínica. Mas essa falta de procura por auxílio psicoterapêutico implicaria a ausência de queixas psicológicas? Não é o que mostraram muitos dos relatórios de observação ou das entrevistas qualitativas. A explicação mais plausível, em muitos desses casos, era a de que esses indivíduos haviam efetivamente procurado ajuda para seus problemas, mas em diferentes contextos religiosos e paracientíficos. Nesse ponto, talvez se argumente em favor de uma tendência de nossa cultura a procurar por auxílio religioso ou espiritual em vez de (ou paralelamente a) auxílio cientificamente especializado. Muito se diz que essa religiosidade fortemente sincrética é expressão de um hibridismo próprio da cultura brasileira, mas agora ele é parte de uma tendência cada vez mais ampla de difusão de crenças e se tornou impositivo por causa da globalização e da horizontalidade que o acompanham, embora ocorra de modo particularmente visível no Brasil. (MAGNANI, 1996) Mais do que isso, porém, é preciso reconhecer que são fenômenos sociais de desarticulação do sagrado, do espiritual e do religioso no mundo contemporâneo. As religiões precisam agora tomar de empréstimo certos 137 COLEÇÃO PSICOLOGIA, LAICIDADE E AS RELAÇÕES COM A RELIGIÃO E A ESPIRITUALIDADE recursos de legitimação, validação e coerência interna de outras práticas, como a ciência e a Psicoterapia. E como as opções religiosas disponíveis no “mercado” são hoje múltiplas, cada qual teve de se adaptar a esse contexto de forma não muito diferente do que ocorre em outros âmbitos no interior da sociedade de consumo. Trata-se de um processo em que o aspecto afetivo do sagrado foi encapsulado por mecanismos opacos de legitimação e mercantilização que, no fundo, desvalorizam o transcendente. Trata-se daquilo que Habermas (1973) definiu como invasão (ou colonização) do sistema – isto é, da lógica instrumental da economia, da tecnologia, da ciência etc. – no mundo da vida, ou seja, o mundo das esferas sociais de reprodução simbólica, do cotidiano etc. Pode-se dizer que aquilo que se vive na religiosidade de base neoesotérica é uma relação com o sagrado parecida com a identidade líquida de Bauman (2005), uma busca impulsiva e ansiogênica por sentido. 138 CONCLUSÃO Qual deve ser o posicionamento da Psicologia diante desse cenário e como se deve dialogar com essas práticas? A possibilidade de um diálogo mais profundo se vê complicada, a partir daí, pela horizontalidade e pela banalização a que se submetem muitas dessas crenças e práticas espirituais. A mentalidade neoesotérica tenta unificar essas várias perspectivas, mas há tantas possibilidades de integração e tantos líderes autoproclamados que a ideia de uma transdisciplinaridade pode ser mais enganosa que útil. Quais são os critérios e quem decidirá os rumos de uma possível integração ou diálogo entre os saberes? Como conduzi-los sem que certas visões prevaleçam? Como conciliar certas categorias modernas e tradicionais, às vezes incomensuráveis? Como fazê-lo sem desrespeitar o método científico? Ao que parece, com a crise das metanarrativas e hegemonias discursivas que caracteriza nossos dias e ao gosto das comunidades interpretativas de Boaventura de Souza Santos (1999), diferentes grupos e contextos apresentarão diferentes sínteses, ao sabor de suas demandas, conceitos, valores, origens. Isso vale, portanto, para a Psicologia, que não precisa esperar que sua síntese com os saberes tradicionais seja equanimente aceita ou assimilada por eles, e vice-versa. Não será tal utópica homogeneidade que conferirá rigor e fertilidade a concepções psicológicas nascidas do diálogo com saberes tradicionais ou alternativos, mas sim as novidades teóricas, metodológicas e técnicas edificadas sobre o alicerce de sua aposta epistemológica científica e capazes de promover vivências que sensibilizam individualidades, justamente essas duas instâncias de superlativo valor no corrente momento histórico. Tal como a fronteira difusa incentivou o interesse científico da Psicologia por práticas alternativas, abrem-se aqui oportunidades para que estas possam também se interessar por aquela, não como recurso de legitimação, mas como exercício potencialmente crítico e reflexivo. Aproveitando-se dessa janela de oportunidades, o segundo autor tem participado frequentemente de eventos e publicações de cunho neoesotérico nos quais ele apresenta perspectivas psicológicas sobre experiências e crenças neoesotéricas. Isso tem permitido a construção de um diálogo de mão dupla com grupos interessados nesses temas e mesmo com a macrocultura, de modo a contribuir um pouco para que tais perspectivas neoesotéricas sejam mais bem conhecidas pela comunidade psicológica e para que pessoas inicialmente pouco familiarizadas com particularidades do discurso científico possam ter acesso a ele. PSICOLOGIA, ESPIRITUALIDADE E EPISTEMOLOGIAS NÃO HEGEMÔNICAS AGRADECIMENTOS Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelas bolsas de pesquisa concedidas. 139 COLEÇÃO PSICOLOGIA, LAICIDADE E AS RELAÇÕES COM A RELIGIÃO E A ESPIRITUALIDADE 140 REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. HABERMAS, J. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Trad. José Luis Etcheverry. Madrid: Cátedra, 1973. MAGNANI, J. G. C. O neo-esoterismo na cidade. Revista USP, 31:6-15, 1996. MARALDI, E. O. Dissociação, crença e identidade: uma perspectiva psicossocial. 2014. 652f. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia: Universidade de São Paulo, São Paulo. MARTINS, L. B. Contatos imediatos: investigando personalidade, transtornos mentais e atribuição de causalidade em experiências subjetivas com óvnis e alienígenas. 2011. 323f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. _______. Na trilha dos alienígenas: uma proposta psicológica integrativa sobre experiências “ufológicas” e “paranormais”. 2015. 455f. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. PAIVA, G. J. Imaginário, simbólico e sincrético: aspectos psicológicos da filiação a novas religiões japonesas. Psicologia: Reflexão e Crítica, 2(2): 1999. SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999.