XXX Colóquio CBHA 2010
Anais do XXX
Colóquio do
Comitê Brasileiro
de História
da Arte
Arte > Obra > Fluxos
Local: Museu Nacional de Belas Artes,
Rio de Janeiro,
Museu Imperial, Petrópolis, RJ
Data: 19 a 23 de outubro de 2010
Organização:
Roberto Conduru
Vera Beatriz Siqueira
1
XXX Colóquio CBHA 2010
Comitê Brasileiro de História da Arte
Diretoria
Presidente: Maria de Fátima Morethy Couto
Vice-presidente: Ana Maria Tavares Cavalcanti
Secretária: Elisa de Souza Martinez
Tesoureira: Marize Malta
Conselho Deliberativo
Almerinda Lopes
Luiz Alberto Freire
Maria Lucia Bastos Kern
Roberto Conduru
Sonia Gomes Pereira
Tadeu Chiarelli
XXX Colóquio do CBHA
Comitê de Organização
Roberto Conduru (Presidente – UERJ/CBHA)
Ana Cavalcanti (UFRJ/CBHA)
Arthur Valle (UFRRJ/CBHA)
Camila Dazzi (CEFET)
Maria Inês Turazzi (IBRAM/CBHA)
Maria Luisa Távora (UFRJ/CBHA)
Marize Malta (UFRJ/CBHA)
Sonia Gomes Pereira (UFRJ/CBHA)
Vera Beatriz Siqueira (UERJ/CBHA)
Comitê Científico
Luiz Alberto Freire (Presidente – UFBA /CBHA)
Alexandre Santos (UFRGS/CBHA)
Claudia Valladão de Mattos (Unicamp/CBHA)
Elisa de Souza Martinez (UnB/CBHA)
Vera Beatriz Siqueira (UERJ/CBHA)
2
X X X Colóquio CBHA 2010
Sumário
Apresentação
10
Apresentação para Anais do XXX Colóquio CBHA
Roberto Conduru
Palestras
13
CIHA and Globalization
Jaynie Anderson
20
Across the Indian Ocean: Visual Culture as Object of Desire
Rick Asher
26
(Un)making art history: the South African Visual Arts Historians (SAVAH)
and the question of globalisation
Federico Freschi
35
La historia del arte global y sus provocaciones
Rita Eder
42
La survie de l’œuvre et ses acteurs
Jean Marc Poinsot
53
Arte Colonial Brasileira: lacunas e abrangência; análise e métodos de aproximação
Yacy-Ara Froner
Arte e imagem - contextos, migrações, contaminações
60
Obra, fluxo, acontecimento
Alexandre Emerick Neves
71
Micro-narrativas fluidas: Arthur Rimbaud em Nova York e Jean Genet em Porto Alegre
Alexandre Santos
79
Imagens Tautológicas
Almerinda da Silva Lopes
89
Ver para crer, crer pra ver: relações entre fotografia e texto na arte contemporânea
Camila Monteiro Schenkel
98
A fotografia e a construção de uma nova visualidade nas revistas Madrugada e Máscara
Charles Monteiro
105
Deslocamentos do trompe-l’oeil à virtualidade
Cristina Pierre de França
111
John Ruskin, Arte e Fotografia: aceitação e resistência
Daniela Kern
118
Cultura visual moderna O caso de o perfeito cozinheiro das almas deste mundo
Éder Silveira
126
Deslocamentos na obra de Lenora de Barros
Eduardo de Souza Xavier
135
O Hibrido na Arte de Eduardo Kac: Mutações e Convergências Estéticas da Arte
Prof. Dr. Fabio Pezzi Parode
Profa. Dra. Ione Benz
Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva
146
Autorretratos móveis na era líquida
Flavya Mutran Pereira
155
Imagens em trânsito:lições de uma mostra norte-americana em São Paulo (1947)
Helouise Costa
162
A fotografia de Luiz Braga: uma discussão da pintura numa perspectiva conceitual
Joaquim Cesar da Veiga Netto
167
Arte e Design: contaminações e destempos
Luciane Ruschel Nascimento Garcez
Sandra Makowiecky
3
X X X Colóquio CBHA 2010
176
A figura humana: traços, medidas e proporções
Manoel Silvestre Friques
186
Janelas transitórias
Mauro Trindade
194
Arte e tecnologia digital: uma abordagem metodológica
Nara Cristina Santos
203
Conjunções de sintaxes: o fotográfico e o pictórico na obra de Marco Giannotti
Niura Legramante Ribeiro
210
A revista Madrugada (1926) e a modernização da arte e da visualidade sul-rio-grandense
Paula Ramos
221
Blindspot: uma parceria entre arte e ciência
Rosana Horio Monteiro
227
A repetição de imagens na obra de Almeida Junior
Tania Maria Crivilin
233
“Fotografias sobre telade pintor”: apropriações às fotopinturas
Vladimir Machado
241
Arthur Omar e as pulsações da imagem: a experiência do cinema na arte contemporânea
Wagner Jonasson da Costa Lima
249
A cidade nos álbuns fotográficos
Zita Rosane Possamai
A transferência da tradição Clássica entre Europa e América Latina
256
Margherita Sarfatti e o Brasil: a coleção Francisco Matarazzo Sobrinho enquanto
panorama da pintura moderna
Ana Gonçalves Magalhães
267
A Capela de Chapingo e a re-significação da tradição
Antônio Leandro Gomes de Souza Barros
273
O retrato luso-brasileiro: a representação do poder ultramarino
Breno Marques Ribeiro de Faria
280
Dois nus polêmicos: ‘Le lever de la bonne’, de Eduardo Sívori e ‘Estudo de Mulher’,
de Rodolpho Amoêdo
Camila Dazzi
290
As Monções como tema: Almeida Jr. e Oscar Pereira da Silva; uma análise comparativa
Carlos R. Lima Jr
297
Martin Wackernagel: a história da arte e o “espaço de vida” dos artistas
Cássio da Silva Fernandes
304
Alexander von Humboldt e as pinturas de Johann Moritz Rugendas na América
Claudia Valladão de Mattos
313
Grandjean de Montigny e Zucchi: arquitetos de tradição clássica na América Latina
Elaine Dias
319
Eugenio Battisti e o L’Antirinascimento:uma nova proposta historiográfica
Fernanda Marinho
325
O Neoclássico na Igreja do Bom Jesus de Crisópolis: Uma obra do Antônio Conselheiro
Jadilson Pimentel dos Santos
335
A pintura de paisagem gaúcha na Primeira República Análise de obras
de Pedro Weingärtner e Libindo Ferrás
Prof. Dr. José Augusto Avancini
345
Vicente do Rego Monteiro e as figurações do indígena
Leticia Squeff
354
Heróis imóveis na pintura indigenista da América Latina
Maraliz de Castro Vieira Christo
364
Design de interior: breve panorama das artes decorativas no ensino da Aiba até a EB
Marcele Linhares Viana
371
Um monumento ao Brasil: a repercussão do álbum de Victor Frond e Charles Ribeyrolles
Maria Antonia Couto da Silva
4
X X X Colóquio CBHA 2010
380
Tensões entre a tradição clássica e o nacionalismo português do Renascimento a 1808
Maria Berbara
390
Escultura e literatura nacional: o monumento a José de Alencar de Bernardelli
Maria do Carmo Couto da Silva
400
Theon Spanudis e Torres Garcia: definições de Construtivismo
Maria Izabel Branco Ribeiro
407
Eliseu Visconti: os caminhos de uma visualidade nova
Mirian Nogueira Seraphim
417
Le Breton, os ideólogos e o Instituto de França: modelos artísticos para o Brasil
Paulo M. Kühl
424
Poéticas pictóricas do tempo: paisagens, anacronismos e ruínas entre Europa e Américas
Dayane de Souza Justino
Renato Palumbo Dória
430
O architecto moderno no Brasil: tradição e modernidade euro-brasileira
Rita Lages Rodrigues
438
Título de Imperial e a produção de bens simbólicos: Imperial Instituto Artístico
Rogéria de Ipanema
444
Diálogos e reapropriações: um artista e sua produção gráfica no Brasil
Rosangela de Jesus Silva
455
Os estudos de Portinari para os murais Ciclos Econômicos
Taís Gonçalves Avancini
466
Raymond Quinsac Monvoisin: a trajetória do artista no Continente
Americano (1842-1857 )
Valéria Alves Esteves Lima
476
Carlos Julião e o mundo colonial português
Valéria Piccoli
486
A forma dinâmica do Clássico: a dança na coleção Castro Maya
Vera Beatriz Siqueira
487
[ERRATA] Entre Livros e Pincéis: A Tradição emblemática na América Portuguesa
Renata Maria de Almeida Martins
Distensões curatoriais - fluxos e acasos
496
Costurando diálogos entre obras da 7ª Bienal do Mercosul: o brilho da estrela I e II
Ana Méri Zavadil Machado
505
O choque desviado: estranhamentos na mostra Absurdo
Bettina Rupp
515
Arte brasileira nas bienais do mercosul: dissensos, afirmações e tolerâncias
Profª Drª Bianca Knaak
522
O caráter emancipatório de Hélio Oiticica em debate: os bólides e os parangolés
Carla Hermann
529
Curadoria e espaço: descontexto ou lócus da obra de arte?
Elisa de Souza Martinez
539
Tradição e Contradição: a identidade da arte paranaense em questão
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
547
A Concepção artística/curatorial na Produção de Arte, Ciência e Tecnologia
Franciele Filipini dos Santos
554
A exposição “O corpo na cidade” e uma reflexão sobre História da Arte brasileira.
Paulo Roberto de Oliveira Reis
560
Exposição LOJA: pesquisa acadêmica e (seus) modos de apresentação
Regina Melim
Identidades locais na arte colonial brasileira
567
Contribuição ao estudo da pintura colonial: Manoel Ribeiro Rosa(1758/1808)
Adalgisa Arantes Campos
578
O Estilo Nacional Português em Minas Gerais: Abrangência e Modelos
Alex Fernandes Bohrer
589
O acervo iconográfico do antigo Convento de São Francisco de Vitória – ES
5
X X X Colóquio CBHA 2010
Profª Ms. Andrea Aparecida Della Valentina
600
Santana Mestra e seu trono em miniatura
Angela Brandão
607
Portadas barrocas e o tratado de borromeo: alegorias e símbolos no Brasil colonial
Carla Mary S. Oliveira
616
Repercussões do discurso modernista no estudo da cantaria mineira setecentista
Daniela Viana Leal
Celinea Pons
623
Os gradis entalhados nas igrejas baianas no século XIX
Luiz Alberto Ribeiro Freire
633
A Arte Sacra Franciscana na Cidade de São Paulo: Séculos XVIII e XIX
Maria Lucia Bighetti Fioravanti
641
Desenho e composição em Filipe Nunes: subsídios para se definir artista colonial
Raquel Quinet Pifano
647
[ERRATA] Tintas da Terra, Tintas do Reino: As Artes nas Missões Jesuítas do Grão-Pará
Renata Maria de Almeida Martins
Livro de artista - da modernidade à contemporaneidade
658
Os Limites do Livro
Amir Brito Cadôr
670
Além do códice: a presença do livro nos trabalhos de Leila Danziger e Edith Derdyk
Cristiana Nogueira Menezes Gomes
677
O problema da gaveta dos guardados
Dalila dos Santos Cerqueira Pinto
Maria Luisa Luz Tavora
682
Experimentalismo editorial: O Livro de Artista no NAC/UFPB
Fabrícia Cabral de Lira Jordão
Marta Penner
690
Brasil constrói Brasília, por Mary Vieira, 1959
Heloisa Espada
696
A forma-colagem nas Notas de temporalidades inconciliáveis
Isabel Almeida Carneiro
703
Uma abordagem intermidiática do livro de artista
Maria do Carmo de Freitas Veneroso
714
Torres-García: livros-objetos e a criação da linguagem visual
Maria Lúcia Kern
721
Gestos do contato: dois livros de artista e sua relação com a fotografia
Mariana Silva da Silva
727
O livro de artista na Galeria Livrobjeto
Marília Andrés Ribeiro
736
A reedição como operação artística: apontamentos
Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira
e nos diários de bordo
Sobre posições - objetos em fluxo, espaços em refluxo
744
O espaço poético da Arquitetura do Papelão
Aissa Afonso Guimarães
756
No lugar certo: o Museu Universitário da UFSC e a obra de Franklin Joaquim Cascaes
Aline Carmes KrügerSandra Makowiecky
767
Moriconi: escultor da luz, do ar e do aço
Angela Ancora da Luz
774
Instalação e Usos do Espaço nas Exposições Gerais de Belas Artes, 1894-1930
Arthur Valle
785
Representações contemporâneas: Arte e Natureza no desenho da paisagem
Carlos Gonçalves Terra
791
Olhar em movimento: desconstruindo o conceito de Ecletismo
6
X X X Colóquio CBHA 2010
Denise Gonçalves
800
O NAC/UFPB como espaço de promoção, pesquisa e divulgação da arte contemporânea.
Elane Teles Carneiro
Thaís Catoira
806
As [re] significações das obras de Athos Bulcão na cidade de Brasília.
Fabiana Carvalho de Oliveira
816
A contingência do objeto artístico em Yves Klein, Robert Smithson e Hélio Oiticica
Fernanda Lopes Torres
823
Lugares de reencontro e formas da desaparição: o contorno do feminino
por Ana Mendieta
Isabela Frade
832
Cildo Meireles: aproximações à Bachelard
Marco Antonio Pasqualini de Andrade
839
As primeiras encomendas portuguesas em porcelana azul e branco da China
Mag. Maria Fernanda Lochschmidt
849
Djalma da Fonseca Hermes: um colecionador de arte brasileira
Maria Helena da Fonseca Hermes
860
Transformações e sentidos do espaço
Marina Pereira de Menezes
867
Imagens atrás da porta: arte na domesticidade e a domesticidade na arte finissecular
Marize Malta
874
A exposição de Wilhelm Sasnal no K21
Pedro Meyer Barreto
884
Fluxo de objetos no tempo e no espaço: a trajetória da coleção Ferreira das Neves
Sonia Gomes Pereira
895
Fundação Iberê Camargo: Interrelações pintura-arquitetura, corpo narrativo edificado
Valquíria Guimarães Duarte
Trânsitos entre arte e política
902
Experiências Estéticas do Comum
Barbara Szaniecki
909
Ebulições da performance brasileira nos anos 1950 a 1970
Bianca Tinoco
915
A mecânica da arte frente a indústria da consciência e vice versa
Camilla Rocha Campos
921
Experiências com o vídeo no Brasil anos 1950-60: Carvalho, Oiticica e Duke Lee
Christine Mello
928
Lindonéia “linda/feia”: diferenças com a Pop Art
Cristina Mura
936
João Zeferino da Costa e o ensino de pintura na segunda metade
do século XIX no Rio de Janeiro
Cybele V. N. Fernandes
943
A matéria, o processo e o tempo: experiências poéticas
Dária Jaremtchuk
950
Auto-retratos: panorama da repressão política nas obras de Antonio Dias e Carlos Zilio
Felipe Scovino
956
Mário Pedrosa e a dimensão cultural latino-americana: aproximações conceituais
Gabriela Borges Abraços
Profª Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves
964
Arquivos de artistas: pastas mortas e arquivos vivos
Ines Linke
974
SITE-SPECIFIC: aspectos da microfísica revelada nos arquivos e documentos de artistas
José Cirillo
984
A dimensão política da experiência
Luciano Vinhosa Simão
7
X X X Colóquio CBHA 2010
992
Considerações de Mário Pedrosa sobre a crise da arte
Marcelo Mari
1005
Alberto Greco y el Brasil: Contactos regionales y abordajes comparativos
María Amalia García
1015
Chile, 1953: resonancias al sur O modelo gaúcho y el Club de Grabado en Mendoza
Mariana Serbent
1020
Cildo Meireles e Waltércio Caldas: considerações sobre a política na arte brasileira
Martha Telles
1026
Coletivos de Arte: Kaza Vazia, entre sacada e dispensa
Melissa Rocha
Tales Bedeschi
1032
A rede como suporte da obra de arte
Paula Braga
1041
Desestabilizando estruturas: Os muros da cidade invadidos por Fierce Pussy
Renata Biagioni Wrobleski
1046
Conjugando (subvertendo?) o glocal a partir do Benim: Hazoumé, Quenum, Zinkpé
Roberto Conduru
1053
Antonio Manuel no Salão da Bússola: o debate crítico de um imaginário urbano
Rodrigo Krul
1060
A representação brasileira na Bienal de Paris de 1969
Rosana de Freitas
1069
Nos mecanismos da cidade: Aporias políticas da intervenção urbana
Samira Margotto
Priscila Rossinetti Rufinoni
1081
Arte (e acontecimento) nos anos 60 e 70: pública e comum
Sheila Cabo Geraldo
1088
Poesía, gráfica y compromiso. Edgardo Vigo y la red contracultural de los años ‘60s
Silvia Dolinko
1095
O programa iconográfico do palácio capanema: conciliação entre modernismo
e política (1936-1945)
Sônia Maria Fonseca
1102
A “elasticidade” da arte para com a política: breves bases críticas
Stéphane Huchet
Trânsitos entre criação, crítica e história da arte
1112
Didi-Huberman: Reflexões sobre a Síntese e o Sintoma na Teoria da Arte
Altamir Moreira
1120
Uma fisionomia da Semana de Arte Moderna: o Retrato de Lourival Gomes Machado
Ana Cândida de Avelar
1130
Eliseu Visconti, a história da arte no Brasil e o discurso crítico entre 1901 e 1967
Ana Maria Tavares Cavalcanti
1140
Geraldo Ferraz: literatura, jornalismo cultural e crítica de arte
Ana Maria Pimenta Hoffmann,
1150
Por uma abstração construída: fluxos da obra (1948/1952)
Angela GrandoUFES/CBHA
1158
Arquivo, memória e espacialidade no estudo da obra de Paulo Bruscky
Cíntia Guimarães Santos Sousa
Prof. Dr. Márcio Pizarro Noronha
1164
Enunciados imperativos em Cildo Meireles (1969-2009)
Eduardo Veras
1171
Espaço, forma e função: diálogo com Frank Lloyd Wright e Gordon Matta-Clark
Elena O’Neill
1178
O texto de Artista na Arte Conceitual: aproximações discursivas
Juliana Gisi Martins de Almeida
1185
Os arquivos e documentos dos artistas e a produção da história da arte
Lilian Maus Junqueira
8
X X X Colóquio CBHA 2010
1193
Revolução Plástica na Arte brasileira: textos de Flexa Ribeiro na Ilustração Brasileira
Luciene Lehmkuhl
1200
Relações entre a historiografia da arte no Brasil e arte contemporânea brasileira
Luís Edegar Costa
1209
Estética ou cosmética? A arte abjeta de Nicola Constantino
Maria Angélica Melendi
1216
Vanguarda e subdesenvolvimento ou a arte da guerrilha e o artista como guerrilheiro
Maria de Fátima Morethy Couto
1226
A produção de sentidos para o Informalismo: a crítica de arte e a gravura (1950/60)
Maria Luisa Tavora
1236
Reinterpretando Soto: conceitos e métodos da ciência no estudo da arte cinética
Mariela Brazón Hernández
1246
Pintura e documentos de trabalho: considerações sobre uma relação dinâmica
Marilice Villeroy Corona
1253
Fluxos na obra e na trajetória de Antonio Dias
Fernanda Pequeno da SilvaMarina Pereira de Menezes
1263
Arquivos de artistas: Fluxos entre identidade, memória e história
Mônica Zielinsky
1268
Poesia, Crítica & História no Programa em Progresso de Hélio Oiticica
Patrícia Dias Guimarães
1276
O Boicote à Bienal de São Paulo de 1969
Renata Cristina de Oliveira Maia Zago
1283
Persistências formais e alterações modernistas nas pinturas latino-americanas
Rosângela Miranda Cherem
1294
Academicismo e Modernismo em Santa Catarina
Sandra Makowiecky
1302
A arte das novas mídias contextualizada no museu do século XXI
Silvana Boone
1300
As novas relações da Estética
Silvia Meira
1309
Arquivos da arte: entre a subjetividade e a objetividade históricas
Vinícius Oliveira Godoy
1315
Estruturalismo: por um sistema de significações do sensível
Yacy-Ara Froner
9
X X X Colóquio CBHA 2010
Apresentação
Na organização do XXX Colóquio do CBHA, estiveram envolvidas as seguintes instituições: o Comitê Brasileiro de História da Arte; o Instituto de Artes
da Uerj, a Escola de Belas Artes da UFRJ, a Faculdade de Artes da UFRRJ, o
Centro Federal de Educação Tecnológica em Nova Friburgo, o Museu Nacional
de Belas Artes e o Museu Imperial. Para a realização do evento foram obtidos
apoios financeiros das seguintes agências de fomento: o Comité International de
l’Histoire de l’Art – CIHA, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Capes, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPq, e a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
no Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. A estas instituições e aos profissionais
nelas atuantes, nossos agradecimentos.
É preciso agradecer, também, ao comitê de organização, constituído por
Vera Beatriz Siqueira, Maria Luisa Távora, Artur Valle, Camila Dazzi, Maria
Inez Turazzi, Ana Cavalcanti, Sonia Gomes Pereira, Marize Malta e Roberto
Conduru. E à equipe de organização, composta por Mariana Maia e estudantes
dos cursos de História da Arte da Uerj e da UFRJ.
Seguindo a decisão de sua Assembléia Geral realizada no XXIX Colóquio do CBHA, em Vitória, em 2009, o XXX Colóquio do CBHA teve como
tema Arte > Obra > Fluxos. A idéia geral do Colóquio era discutir o trânsito da
arte nos fluxos artísticos e culturais globais, aprofundando a discussão sobre as
obras artísticas e os processos de produção, difusão e fruição das mesmas. Pares
ou trios de membros do CBHA elaboraram e encaminharam propostas de sessões temáticas, com recortes conceituais mais específicos, que foram selecionadas
por um Comitê Científico (diferente do Comitê de Organização e tirado na Assembléia Geral do CBHA, realizada em Vitória, em 2009).
Portanto, são devidos agradecimentos aos membros do CBHA que compuseram o Comitê Científico do Colóquio e selecionaram as propostas de sessões
temáticas: Luiz Alberto Freire, Alexandre Santos, Cláudia Valladão de Mattos,
Elisa de Sousa Martinez e Vera Beatriz Siqueira. E aos coordenadores das sessões
temáticas – Ana Maria Albani de Carvalho, Alexandre Santos, Tadeu Chiarelli,
Dária Jaremtchuk, Sheila Cabo Geraldo, Ana Magalhães, Cláudia Valladão de
Mattos, Letícia Squeff, Maria de Fátima Morethy Couto, Mônica Zielinsky, Denise Gonçalves, Marize Malta, Maria Luia Bastos Kern, Marília Andrés Ribeiro,
Blanca Brittes, Elisa de Souza Martinez, Adalgisa Campos, Luiz Alberto Ribeiro
Freire e Márcia Bonnet – pelas propostas de sessões temáticas e pela seleção dos
trabalhos inscritos.
10
X X X Colóquio CBHA 2010
Assim, o XXX Colóquio do CBHA foi estruturado em oito sessões temáticas, a saber:
Arte e imagem: contextos, migrações, contaminações;
A Transferência da Tradição Clássica entre Europa e América Latina;
Distensões curatoriais: fluxos e acasos;
Identidades locais na arte colonial brasileira;
O livro de artista - da modernidade à contemporaneidade;
Sobre posições - objetos em fluxo, espaços em refluxo;
Trânsito entre arte e política
Trânsitos entre criação, crítica e história da arte nos séculos XX e XXI.
Para essas sessões temáticas, foram selecionadas 204 propostas de comunicação entre as 240 inscritas por doutores, pós-doutorandos, doutorandos,
mestres e mestrandos atuantes, membros do CBHA e de diversas instituições de
ensino superior e pesquisa (universidades e instituições culturais do Brasil, da
Argentina, do Equador e da Austrália), que têm atuações relevantes no campo da
História da Arte. O conjunto de comunicações apresentadas ofereceu um mapa
abrangente das pesquisas em andamento no CBHA, no país e no exterior, a partir dos eixos determinados pelas sessões temáticas.
Houve 204 apresentações de trabalhos feitas por representantes de todas
as regiões do Brasil – Norte: Amapá, Pará e Rondônia; Nordeste: Bahia e Paraíba; Centro-Oeste: Goiás, Distrito Federal, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul;
Sudeste: Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo; Sul: Paraná,
Rio Grande do Sul e Santa Catarina –, além de pesquisadores de Buenos Aires
(Argentina), Quito (Equador) e Melbourne (Austrália), sendo 147 doutores, 39
mestres e/ou doutorandos e 18 graduados e/ou mestrandos, vinculados a 43 instituições, entre universidades e instituições de arte e cultura (museus e outras instituições de pesquisa e preservação do patrimônio cultural). O Colóquio contou
com 140 participantes inscritos, mais cerca de 30 ouvintes livres, já que a entrada
foi franqueada para estudantes do CEFET/RJ-NF, UERJ, UFRJ e UFRRJ, bem
como para funcionários do MNBA e do Museu Imperial. Entre os inscritos predominaram os oriundos da região Sudeste, principalmente do Rio de Janeiro,
mas também do Espírito Santo e de São Paulo.
A mesa de abertura do evento, realizada no Museu Nacional de Belas
Artes – MNBA, no Rio de Janeiro, e organizada para debater o tema da História
da Arte Global, um desafio no campo atualmente, contou com cinco palestrantes
estrangeiros convidados: Jaynie Anderson, professora da Universidade de Melbourne e presidente do CIHA; Frederick Asher, professor da Universidade de
Minnesota e membro do Comitê Norte-Americano de História da Arte; Federico
Freschi, professor da Universidade de Witwatersrand e presidente do Comitê Sul
Africano de História da Arte; Howayda-Al-Harithy, professora da Universidade
Americana de Beirute; Rita Eder, professora da Universidad Autonoma de Mexico. Para realização dessa mesa, foi fundamental o apoio do CIHA, por meio
de sua presidente, Jaynie Anderson, de seu tesoureiro, Peter Schneeman, e de seu
representante na América Latina, Peter Krieger, bem como os esforços de Maria
Berbara, da Uerj, e Jens Baumgarten, da Unifesp, aos quais estendemos os nossos
agradecimentos.
11
X X X Colóquio CBHA 2010
Na sessão de encerramento do evento, que ocorreu no Museu Imperial,
em Petrópolis, os comentadores convidados de algumas das sessões temáticas do
colóquio proferiram suas palestras abordando o tema geral do colóquio a partir
do tema da sessão temática da qual cada um deles participou. Assim, agradecemos a colaboração de Jean-Marc Poinsot (Universidade de Rennes, França), Luciano Migliaccio (USP), Paulo Bruscky (artista de Recife, PE) e Yaci-Ara Froner
(UFMG). Como é costume nos colóquios do CBHA, foi feita ainda uma visita
técnica ao Museu Imperial, em Petrópolis.
Todos os trabalhos apresentados e enviados à organização do evento em
tempo hábil foram incluídos nos Anais do XXX Colóquio do CBHA, que devem contribuir para a divulgação das pesquisas em curso em diferentes regiões e
instituições, aprofundando a reflexão teórica na historiografia da arte, no Brasil
e internacionalmente.
12
X X X Colóquio CBHA 2010
Palestras
13
X X X Colóquio CBHA 2010
CIHA and Globalization
Jaynie Anderson
University of Melbourne
President of CIHA
I am honoured to have been invited by your President Roberto Conduru to the
annual meeting of the Brazilian art historians to discuss the role of the International Committee of the History of Art (CIHA) in the globalization of art
history, and to examine what has happened in the years following the 32nd International Congress in the History of Art held at Melbourne in January 2008.
Many of you may know that CIHA is the oldest international organization of art history in the world, and since its inception at Vienna in 1873 has
been pre-eminently concerned with an agenda for globalization in various ways.
From 1873 CIHA held quadrennial congresses –known colloquially as the art
history Olympics that represent the state of art history throughout the world,
which were and are open to all nationalities. Well before it became fashionable
CIHA was global, and the concerns of CIHA remain global in a very special
way. The publications of these early congresses are basically European in their
outlook, revealing that art history was a western discipline. The last congress at
Melbourne in was: Crossing Cultures, Conflict, Migration and Convergence. As the
convenor of the International Congress, I chose a theme that was of local significance but also related to international politics. The strength of CIHA is that
it encourages multiple views and perspectives that could never be achieved in a
single authored book. Much of the success of the congress was due to its location,
to the fact that it took place in a country that was south of the equator, a country
that has many nationalities in it.
Until the 1960’s global art history was always seen in a Eurocentric or
Euroamerican fashion. There was Europe and the rest of the world that somehow was dependent on EuroAmerica in one way or another. The two congresses
that attempted to change this were those convened by Irving Lavin, World Art:
Themes of Unity in Diversity1 and Thomas Gaehtgens, Artistic Exchange2, Berlin
1991. But the geographical location of a CIHA congress south of the equator in
Melbourne with a concept that was more southern than northern enticed many
countries to participate for the first time. Since then the ambitions of CIHA to
become global have developed in a special way.
As President of CIHA I have asked myself what will art history be in
ten, twenty, fifty or a hundred year’s time? What strategic role should CIHA
play in national and international developments? What is art history in different
countries? Is it always a European practice? What makes art history authoritative
in western and non-western locations? How, why and who answers the ques1
World Art: Themes of Unity in Diversity, Acts of the 27th Internatonal Congress of Art, edited by Irving
Lavin, Pennsylvania State University Press, 1989.
2
Artistic Exchange, Acts of the 28th International Congress, edited by Thomas W. Gaehtgens, Berlin,
1992.
14
X X X Colóquio CBHA 2010
tion of what is art history? Are there alternatives to art history? How can we
translate artistic experience into different languages? How can we have dialogues
with different audiences and in diverse languages? What roles should translation
play? Who has made art history and who will make art history? Between the
global and the local whose art history is it? For the next international congress
at Nuremberg, The Challenge of the Object, in June 2012, I will chair a session
with Thomas Gaehtgens on ‘CIHA as the object of Art History’ where we will
confront these questions and I invite you to submit proposals that will create new
forms of art history.
Globalization is not a research project that I would have personally chosen, but is something that I have engaged with as a consequence of my presidency
of the International Committee of Art (CIHA). In Melbourne, 700 art historians participated from 50 countries. Despite the fact that Australia is a long way
from the rest of the world, the call for papers resulted in a truly global expression
of the subject, the concept enticing many contributions from countries south of
the equator, notably papers of considerable quality from Latin America. In the
publication, some, 220 papers are published by art historians from 25 countries.
It is not my intention to review the publication in its entirety but the quality and
significance of contributions from Latin America is considerable. In the session
entitled: Global Modern Art: The World Inside Out and Upside Down, chaired by
Anthony White from the University of Melbourne and Andrea Giunta, now at
Texas, In their introduction the authors explicitly aimed to present an alternative
history of twentieth century art to that furnished by twenty first century international scholarship. They particularly focused on the practice and reception of
modern art in countries lying south of the equator. Were there enduring traditions of modernism in Argentina, Brazil, Australia and New Zealand? Contributions from the University of Bueonos Aires by Laura Malosetti Costa, and by
Isabel Planta, the paper by Maria de Fátima Morethy Couto, from the University
of Campinas, as well as from other scholars made the section on modernism
visually and intellectually unlike anything before. No other art history book has
shown such a variety of subjects within the covers of one book that demonstrate
a global argument. One of the strengths of CIHA was and is that it has the potential to have such a global approach.
Presidents of CIHA come and go. Their office is for four years. It is the
French Secretary and the Swiss Treasurer who administer the organization. In
my presidency I have had significant support from two remarkable colleagues
in these roles, Thierry Dufrêne and Peter Schneemann, both of whom have an
expertise in contemporary art. Something of the genial collaboration I have had
with them is shown in this photograph of my two colleagues in the back of a
taxi at Mexico City for a colloquium organized by Peter Krieger. Until recently
Peter Krieger has been the only member of the Bureau who has informed us
about Latin America. One of my aims as President has been to construct a system whereby all parts of the world are represented on our central executive, the
Bureau. In an interim solution, we have elected Roberto Conduro as an observer
to the Bureau and at the Nuremberg Congress and we hope to have an elected
representative from Latin America formally made a member of our Bureau., to
15
X X X Colóquio CBHA 2010
assist us with such an important constituency of world art history. We have also
invited as observers, representatives from the People’s Republic of China, and
from Africa, Professor Lao Zhu from Beijing, and Professor Federico Freschi
from Johannesburg. Although this may seem a very obvious step forward it has
only been achieved recently in order to attempt to represent all the worlds of art
history on a central committee.
The documentation of CIHA and our meetings is something that we
would like to achieve. Thierry Dufrêne maintains the archive, and I am preparing a publication that is a visual analysis of the practice of global art history. For
me CIHA has been an enormously stimulating experience. It has allowed me to
take part of events like a seminar on the connoisseurship of silk painting from
the thirteenth century, held at Kyoto in June 2008, which is a subject I would
know nothing about were it not for the CIHA experience. There have been many
other life enhancing experiences including this trip to Latin America.
What remains about CIHA in the country that holds the conference? In
Melbourne my University has encouraged the initiative to create an Institute of
Art History for advanced research. We have created a website, have held a series
of strategic conferences on Curatorship, the Art Market, Architectural Historiography, Contemporaneity, and Art Historiography, to demonstrate the strategic
necessity for such an institution. We are now creating an endowment.
It is our intention to develop an association of art history institutes south
of the equator, provisionally entitled APIAH, the Asian Pacific Institutes of Art
History. In Europe there is the existence of RIHA, and in America ARIAH, and
we would like to create an equivalent institution south of the equator. I would
welcome comments in the discussion about this initiative. I believe that if the
agenda for international art history is set by an organization within Euroamerica
then there will be inevitably only international developments that favour the creation of Eurocentric canons, that purport to integrate other cultures, but already
the selection process is determined by Euroamerican values and experience.
Apart from the four yearly congresses, CIHA’s role has been to stimulate
international meetings of art historians, with more frequent annual colloquia,
held in different countries throughout the globe, and to publish the proceedings
as a record of the state of art history. Some 34 countries belong to CIHA and the
number is increasing. Representatives from local national committees constitute
the General Assembly, and we will have general assemblies at two of our colloquia in 2011 at Johannesburg and South Africa.
A smaller executive, called the Bureau, is responsible for the direction
of colloquia. At this conference we have Federico Freschi, who is the convener of
the first CIHA art history colloquium, Other Views: Art History in (South) Africa
and the Global South, 12-15 January 2011. This is a highly significant colloquium
for it is the first time that CIHA will hold a meeting in Africa.
Later in the year Marjeta Ciglenečki, (Art And Architecture Around
1100, Global And Regional Perspectives, Maribor, 10-14 May 2011), will convene
a congress that is about mediaeval central Europe. Slovenia has had a challenging political history in recent decades, and important monuments are not well
known or studied. The intention of our Slovenian colleagues is to create new
16
X X X Colóquio CBHA 2010
art history departments, one at Maribor, and to create an international interest
in their heritage. They enter the CIHA arena to make known what is local in a
global arena.
Also next year is a colloquium has been devised by Marzia Faietti, head
of prints and drawings at the Uffizi, Florene, and Gerhard Wolf, director of the
Kunsthistorisches Institut in Florence. The call for papers was on the website
of the Kunsthistorisches Institut and we await the program. The colloquium is
planned to coincide with the conclusion of an extraordinarily successful exhibition of Italian drawing from the British Museum and the Uffizi, which has been
held in both museums. The theme of the conference is Lines between drawing and
writing, and in the lengthy call for papers, only a part of which is reproduced
here, the excitement global potential is defined:
‘The conference will discuss the differences, similarities and open borders between writing
and drawing, their techniques and aesthetics, especially in European, Islamic and East Asian
cultures. Given that lines play an important but not exclusive role in this relationship, papers
could discuss the limits of linear systems or explore alternative models as for example the transition between line, brush stroke, mark or spot. The major aim of the conference is to envisage
a dialogue among specialists of different cultures and academic fields, questioning the role of
lines in an intercultural perspective, from an historical as well as theoretical point of view.‘
One of the major strategic issues for a President of CIHA and the Bureau is where should the next CIHA congresses be held. Latin America has often
been considered, but we have never received a serious bid. The growth and vitality of Brazilian art history which is demonstrated in this conference suggests that
we could hope in the future to have a major conference in Latin America. Colleagues from the People’s Republic of China participated in the Melbourne congress as shown in the publication. Last month I was in China for the preparation
of their bid for the congress in 2016. At my suggestion they held a colloquium
on the subject of ‘Art Curatorship in the East and the West’ at the National Museum of China, and at presented a joint program for 2016 between the National
Academy of Fine Arts, the National Museum of China and Peking University,
with three convenors and impressive resources. Our Chinese colleagues will
present their bid at the Nuremberg Congress in 2016.
To conclude my short presentation I should like to examine some aspects of global art history that are about the phenomenon of artists who travel
between countries, whose work has in the past resisted analysis because of their
peripatetic careers and because their legacy is fragmented internationally. Today
given the aesthetic of globalisation that dominates our experience, these artists
who move between countries are not problematic. We are now all fascinated by
biennales. Perhaps some of you are writing books on the subject. As a Venetian
scholar, I find that the oldest and most successful model for a Biennale is the
Venetian one, which has the well known system of national pavilions, in ever
increasing numbers as the Venetians appropriate more of the Aresenale area to
create new spaces. The Venice Biennale has endured for more than a century and
17
X X X Colóquio CBHA 2010
is accompanied by related, and equally successful biennales of theatre, film, and
architecture.
At the recent 17th Sydney Biennale selected by David Elliott, The Beauty
of Distance. Songs of Survival in a Precarious Age, Kader Attia presents an installation piece, from wood, corrugated iron, tv antennas, satellite dishes, found
materials, entitled Kasbah, 2010. He was born to Algerian parents in 1970 at
Dugny, Paris, and now lives and works in Berlin. His work is on the one hand
presented as a local image of a shanty town in South Africa, but at the same time
has a global affinity with other shanty towns, like the favelle in Rio. Kader Attia
is characteristic of an artist of the twenty first century.
Other Biennales can be less successful such as the current Beijing Biennale, that in many spaces resemble a fifties installation, a reminder that international art fairs may be limited in terms of patronage and reach. One invited
exhibit within the Beijing Biennale was conceived by two curators from the National Museum of Fine Arts, at Santiago, Chile, Patrizio M. Zárate and Karin
Zimmer: Inhabiting Biodiversity: The Special Exhibition of Contemporary Art of
Chile. The twelve artists represented were responding to the theme of the Biennaale but more significantly to the earthquake on February 27th 2010.
What concerns me are the ancestors of these artists, travellers who
moved between countries, and whose careers are partially documented on one
continent of another, but rarely presented as a project. On Thursday my colleague Mary Eagle will present in this conference on Augustus Earle, a painter
and lithographer born in London of American parents in 1793. He is a travelling
artist who moves between continents, and especially between Latin America,
Britain and Australia, and whose works are widely dispersed. Between 1815-17
Earle travelled and painted extensively in the Mediterranean and in 1818 he
set sail for North America. In 1820, he visited Chile, Lima and Rio de Janiero,
where he settled until 1824. In 1824 Earle set sail aboard the ‘Duke of Gloucster’
for Calcutta, via the Cape of Good Hope. Unfortunately however the ship was
forced to berth temporarily at the remote island of Tristan da Cunha, in the
south Atlantic ocean, and Earle was accidentally abandoned on shore.
Earle remained on Tristan da Cunha for eight months, from January
- November 1824, accompanied only by its six adult inhabitants and his dog
‘Trim’. While on the island Earle painted a number of images detailing its barren
landscape and inclement weather conditions with considerable accuracy, until
eventually running out of materials. He noted in his diary of the island’s black
volcanic rocks, ‘All the rocks on the island are of the same dismal hue, which
gives a most melancholy aspect to all its scenery’. Of the island’s misty summit,
depicted in Tristan da Cunha 1824, he also noted: ‘The sterile and cindery peak,
with its venerable head, partly capped with clouds, partly revealing patches of
red cinders, or lava, intermingled with the black rock, produced a most extraordinary and dismal effect. It seemed as though it were still actually burning, to
heighten the sublimity of the scene’.
Earle accompanied HMS ‘Beagle’ in 1832 as its resident artist. Accompanied by naturalist Charles Darwin, the voyage’s aim was to survey the southern coast of America, including Tierra del Fuego. Upon reaching Rio de Janeiro
18
X X X Colóquio CBHA 2010
in April 1832, however, ill health forced Earle to resign from his post and return
to London. It is not my intention to recount any more of Earle’s career than
this, but to ask for information about him, to know if your museums contain
works by him, or other documentation. Mary Eagle’s project is financed by the
Australian Research Council and will have significant outcomes, including a
monograph and an exhibition.
We have also a related project about the Swiss born artist Louis Bouvelot
who lived for a considerable amount of time in Rio, and ended his life in Australia. His life is characteristic of many artists, who well before the aesthetic of
globalization moved between different countries. We know that there are holdings of Buvelot’s work in Latin American collections, especially in Brazil and
would be grateful for any information for these research projects. We are looking
for collaborators to create an aesthetic of globalization for nineteenth century
traveler artists between Australia and Brazil.
I shall now conclude by looking at one of the new forms of signification
that emerge with what we have called cross cultural art history in Australia as
exemplified by the recent exhibition of the work of Emily Kame Kngwarreye in
Japan in 2008. In February 2008, the largest solo exhibition by an Australian
artist ever to travel abroad was shown at the National Museum of Art, Osaka
(26 February to 13 April), and the National Art Centre, Tokyo (28 May to 28
July), and subsequently at the National Museum of Australia, Canberra. Two
hundred works chosen by Akira Tatehata, Director at Osaka, were shown in the
most successful blockbuster ever held in Japan, with 134,000 visitors over two
months. Emily’s exhibition had a greater visitation than the exhibition on Italian
marriage and sexuality which had as its centre piece, Titian’s Venus of Urbino,
from the Uffizi, Florence, held at the same time in the same city. A documentary
by Andrew Pike, Emily in Japan. The Making of an Exhibition, 2008, explores the
synergies experienced by Japanese visitors of all ages with Aboriginal spirituality,
and how Emily’s imagery translated into Japanese signification. As in Aboriginal
art there is no distinction between art and craft in Japan. The emotional response
was independent of the Indigenous context. The Japanese were fascinated with
the story of a female camel driver, who became an international celebrity in the
last decade of her life. It was an exhibition that inspired a primordial response to
Emily, from respect for her age, a love of brilliance in her paintings, and admiration for the rituals that were associated with her creations.
If Australia’s presidency of CIHA has resulted in one thing I hope that
it would be a changing of values that give authority to countries outside the conventional paradigms of Euro American traditions.
19
X X X Colóquio CBHA 2010
Across the Indian Ocean:
Visual Culture as Object
of Desire
Rick Asher
University of Minnesota
President of The National Comitee
for the History of Art,
United States of America
I see three ways to think about World Art History. One builds on the comparative basis of the discipline, but instead of looking at forms to define individual
styles or the styles of cultural time periods, as Wolfflin did, it would look, rather,
across national and cultural narratives. It would be, in other words, a spatial,
rather than chronological, art history. The second, which will be the basis of my
comments today, looks at the dynamic interaction among cultures to discover
the diverse ways in which the visual travels. And finally – though I know no
scholar who practices this form of World Art History – it could be an examination of the globally diverse approaches to the visual. Generally we can say that
whether one scholar looks at the art of the Renaissance in Italy or I look at the
art of a particular period in India, we use most of the same methodological and
theoretical tools, all of them grounded in the Euro-American foundation of the
discipline. That doesn’t have to be, however. I could look at the Indian material
from perspectives dictated in traditional Indian approaches to the visual, and,
at an extreme, I could apply those approaches to works from the Italian Renaissance.1
Here I look at the results of several ways in which India has responded
to the larger world in which it is situated and, in turn, some ways in which the
world has responded to India’s visual culture.
I would argue that long before the modern capitalist age, India was
part of a world system. It was not the world system that Wallerstein conceives^F,
one based in the modern capitalism of colonialist Europe. Rather, India was
intimately connected by the Indian Ocean to an area extending from east Africa
to the South China Sea and, in some cases, even beyond, that is, to the Mediterranean. The examples I cite allow us to think about why artists borrowed ideas
from distant places and why consumers – not always the exceedingly wealthy
who commissioned specific works of art – sought, and still seek, works from
cultures centered far away. So I’ll examine some categories – not rigid ones and
in many cases overlapping categories – of cross-cultural movement of the visual:
Appropriation of the Other, pilgrimage, trade in luxury goods, war, colonialism,
and diasporas.
My first example seeks to understand why some third-century BCE Indian monuments use motifs unambiguously borrowed from the Mediterranean,
1
See the arguments of James Elkins, Chinese Landscape Painting as Western Art History. Hong Kong:
Hong Kon University Press, 2010. Also see Jennifer Purtle’s Foreword to this book.
20
X X X Colóquio CBHA 2010
that is, appropriated from the Other. At that time, during the reign of one of
India’s most famous premodern rulers, the emperor Ashoka (c. 262-239 BCE),
pillars were erected at the site of Buddhist monasteries. They were tall monolithic
shafts crowned with an animal on a plinth and intended to carry the emperor’s
edicts, essentially the laws he sought to promulgate across an empire vastly greater than the modern Republic of India, an empire extending from Afghanistan
in the west to the Bay of Bengal in the east. In the case of several pillar capitals,
such as one from the site of Rampurva, the pedestal is decorated with distinctively Mediterranean motifs, here the palmette and acanthus. But why? Writers
in the 19th century understood this in colonialist terms. They asserted that India
was too impoverished artistically to develop an independent visual vocabulary
and turned to Greece, the most compelling source of inspiration. The understanding of India as impoverished in diverse ways justified Britain’s colonial authority. That is, if India had so little imagination, so little creativity, so little
initiative, there was an obvious and urgent need for an authority to intervene, in
this case the British crown. True, during an extraordinarily long period of time,
from about 1900 BCE to the time these pillars and their capitals were erected in
the third century BCE, not a single work of Indian art survives. Thus it is not
altogether unreasonable to look beyond India for the source of these pillars.
The explanation, however, is not India’s dependency on foreign sources.
Rather, we might look toward a model from the adjacent Persian Empire. In
an inscription from Susa, the Achaemenid king Darius the Great, proclaims
with pride the source of his building materials. His fine cedar timber came from
Lebanon, his gold from Lydia, and his ivory from India, his brick workers were
Babylonians, and the artists who adorned the walls came from Egypt^F. In other
words, Darius had such power and influence, to say nothing of wealth, that he
could commandeer the very best materials and workers available anywhere in the
civilized world. And that, I would argue, set the model for Ashoka, who could
make a visual claim to authority by the use of foreign designs on at least some
of his capitals. Since the symbolism of the pillars as well as the animal motifs
on the capital suggest universality, implying the universality of Ashoka’s authority and the laws promulgated on the pillars, these appropriated Mediterranean
motifs were but one other way to express clearly and powerfully the extent of his
authority.
A similar discourse surrounded the understanding of Buddhist sculpture
from the region of Gandhara, a region corresponding with much of modern-day
Pakistan and Afghanistan. Buddhist images from this region dating between the
first and third centuries are widely recognized as indebted to Greek and Roman
models. To quote Alfred Foucher, writing at the beginning of the twentieth century, “Your European eyes have…no need of the help of any Indianist, in order
to appreciate…the hand of an artist from some Greek studio”. And he adds, “…
It will doubtless seem to you proved that this figure of Buddha, which, smiling at us from the depths of the Far East, represents for us the culmination of
what is exotic, nevertheless came from a Hellenistic studio”^F. What Foucher was
suggesting, as others of his time did as well, is that India was dependent on the
West for things inventive. But there are far less colonialist ways of understand-
21
X X X Colóquio CBHA 2010
ing the appearance of these earliest Buddha images. Prior to the first century,
the Buddha was not rendered in anthropomorphic form. Thus when a change in
Buddhism developed about the first century, one that required depictions of the
Buddha in human form, artists and their patrons had to turn to older models.
In north central India, there had been a long tradition of sculptural renderings
of human figures, though not of the Buddha. These easily could serve as models
for representations of the Buddha. In the northwest, however, that is, the region
of Gandhara, there were no such models, indeed no earlier sculptural tradition
at all. But Buddhism was a faith that was especially attractive to merchants, as
pilgrims’ inscriptions make clear. Among these merchants were surely ones who
engaged in long-distance trade, across the Hellinistic kingdoms of West Asia and
as far as Greece and Rome. For them to bring in sculptors from areas to the west
would not be an especially radical act, nor would it be an acknowledgement of
incompetence at home. Rather, as with trade itself, which transports desirable
commodities, people move over great distances, and for sculptors to travel and
relocate at the behest of a merchant community would be anything but surprising.
A sense of power in appropriating the styles and motifs, even the specific
imagery, of distant places, is made especially clear by several Mughal paintings,
ones mostly dating to the late sixteenth and early 17th centuries. In some cases,
for example, those of the artist Basawan, I am quite sure his use of Christian imagery was intended both for his own delight and to please patrons who had considerable curiosity about the styles and ideas of visitors from Europe. But other
cases clearly were intended to serve as expressions of power. For example, power
is surely suggested by a painting showing the Indian Mughal emperor Jahangir,
who ruled from 1605 to 1627, embracing his Persian Safavid rival, Shah Abbas.
It is hardly an even embrace, for Jahangir towers over his rival and stands on the
back of a lion whose body extends well into the Persian emperor’s territory. But to
my point, Shah Abbas is rendered not in the Mughal style but rather in the style
of Safavid Persia. In other words, the artist has appropriated Shah Abbas via his
image into a Mughal context, as if not just incorporating him – quite literally –
into a Mughal painting but bringing him into the Mughal court, which he never
visited, and bringing him in an entirely subservient position.
Much the same may be said for another painting, also depicting the
Mughal emperor Jahangir. Relegated to the lower left corner is James I of England. Jahangir, on the other hand, controlling time as the hour-glass serves as his
throne, is vastly larger than the English king he could only imagine, the ruler of a
small island a great distance from the powerful Mughal empire. More important
to Jahangir, it would seem, was the Sufi saint with whom he is visually engaged.
Jahangir did, however, seek luxury goods from the English in exchange for trading rights that Sir Thomas Roe sought to negotiate with the emperor. Jahangir
wrote King James, “For confirmation of our love and friendship, I desire your
Majesty to command your merchants to bring in their ships of all sorts of rarities
and rich goods fit for my palace; and that you be pleased to send me your royal
letters by every opportunity, that I may rejoice in your health and prosperous
affairs; that our friendship may be interchanged and eternal”^F.
22
X X X Colóquio CBHA 2010
Somewhat different from the appropriation of styles and motifs is the
trade in luxury goods, a significant factor in the creation of networks involving
the visual much as it was in the creation of modern capitalist colonialism. While
India imported such goods as olive oil and wine, it exported spices, silk and ivory
products. So much, in fact, traveled from India to Rome that Pliny the Elder
complained that Roman fondness for Indian pepper drained the Empire of fifty
million sesterces, about a ninth of the cost of supporting the entire Roman army.
But finished Indian ivory products were highly prized luxury goods. The ruins of
Pompeii, for example, yielded a beautifully carved female figurine that is clearly
of Indian origin, one that probably served as a mirror handle. Other ivory works
were positioned to be sent to Rome or some other distant and sophisticated center of consumption. These were ones – several dozens of them – discovered by
French archaeologists at the site of Begram^F, today the site of the major U.S.
airbase in Afghanistan, one that threatens the integrity of the archaeological site.
People traveled with the goods, of course, creating networks of traders
across the Indian Ocean and along overland routes such as the so-called Silk
Route extending from China to India and onward to Rome. The maritime and
overland routes also facilitated the travel of pilgrims, primarily Buddhist pilgrims – some traveling enormous distances – to fulfill the Buddha’s admonition
to visit the places intimately associated with his life. The written accounts of several Chinese Buddhist pilgrims remain, best known among them the accounts
of Faxian, who made pilgrimage to India in the fifth century, and Xuanzang,
who made pilgrimage to Indian in the seventh century^F. Here, however, I am
not especially concerned with the account of what they saw in India but rather
what they took back to China. Manuscripts, some of them perhaps illustrated,
were their primary cargo, for each of the pilgrims traveled at least in part to study
sacred texts and bring them back to China. They also brought back both drawings of the major Buddhist deities and Indian-made images. That was especially
important because China did not have a tradition of figural sculpture and so had
to rely on models from India, the homeland of Buddhism, for religious images. It
thus does not surprise me that the earliest Chinese images, such as this one in the
Fogg Art Museum at Harvard University, so closely resemble Indian Buddhist
images that only the details reveal the hand of a Chinese artist.
Yet another way that art transcends cultural boundaries is war and the
plunder or looting perpetrated by invading armies. India is the source of the
English word “looting”. It comes from Hindi, lutna, to take, to plunder. Taking
the gods of a vanquished power was not only a way in ancient India of expressing
power in victory but also of both humiliating the defeated kingdom and diminishing the power and protection that the gods provided them. Despite the common discourse today that attributes almost all the theft and desecration to raids
by Afghan Muslims, the truth is that there had been a history of such theft and
desecration long before any Muslim ever set foot on Indian soil. For example, the
Lakshmana temple at Khajuraho, consecrated in 954, celebrates the victory of
the Chandella king Yashovarman over the Pratihara king Devapala. The image
enshrined in the temple is claimed in the long dedicatory inscription to be one of
the spoils of that battle. And the Chola dynasty monarch, Rajendra, who ruled
23
X X X Colóquio CBHA 2010
from 1012-1045, managed to take a number of images of deities from kingdoms
he vanquished, among them a powerful image of a door guardian taken from
the adjacent Chalukya kingdom. To the modern mind, thinking of present-day
nation-states, the movement of these sculptures may seem like domestic travel.
These were, however, rival kingdoms, and the subjects then spoke distinct languages, as they still do today.
Indian images did, however, reach well beyond India both as objects
of loot and, only somewhat more benignly, as part of the colonialist enterprise.
Afghan dynasties destroyed Indian temples, most notably the raids of Mahmud
of Ghazni, who sacked the Somnath temple in 1024 as well as a number of
other sites, returning with loot of considerable value. And in turn when Afghan
dynasties conquered north India, they brought with them a whole new visual
vocabulary, the structures of Islam – notably mosques and tombs – which they
planted prominently on the landscape of their principal cities. Almost surely using Indian artists, who incorporated motifs of long-standing familiarity in the
new structures, the designers of these buildings created structures that were as
much hybrid in appearance as the Buddhist sculptures of Gandhara had been a
millennium earlier.
Colonialism generated a form of looting, one that, however, may seem
somewhat more genteel than the military incursions that earlier had brought
Islam to the subcontinent or the earlier violent battles among kingdoms. Instead of destroying temples to access their riches, as the Afghan military had
done, the British colonial authorities developed collections of Indian sculptures
that they took from temples, but did so under the guise of scientific study and
collection. Some of the collections remained in India, where they served as the
basis for newly established museums such as the Imperial Museum in Calcutta;
they also served as the basis for scientific papers delivered at the Asiatic Society
in Calcutta and the Royal Asiatic Society in London, imposing Enlightenment
enquiry on these works that had been removed from their context, treating them
as if they were scientific specimens. Others among the collections were removed
to the metropole, that is, to London, where they were displayed at international
expositions and then formed the basis of the newly conceived Encyclopaedic Art
Museum, notably the British Museum. But they, like textiles that were imported
to Britain, were copied or, perhaps more accurately, incorporated into the visual
environment of Britain itself, as was architecture from the colonies.
Finally I should say a few words about diasporas as a means of fabricating a world art. From the third millennium BC, we have evidence of an Indian
diaspora. Distinctively Indian objects of that time were found at Mesopotamian
sites^F. The diaspora, in other words, is documented by visual evidence, not written evidence. Trade is almost surely the basis for that diaspora, as it was for
subsequent ones, for example, the one that in 1271 constructed a distinctively
Indian temple at Quanzhou in China, the city Marco Polo called Zayton, a
temple that must have served the religious needs of an Indian diaspora community there^F. And, of course, Indians continue to migrate, among them about
1,500 persons of Indian origin in Brazil. They bring with them not only religion
and languages, including Portuguese still spoken by many in Goa, but also visual
24
X X X Colóquio CBHA 2010
reminders of home, most notably the calendar prints that have been popular
and easily transportable objects for some 80 years. The works produced by the
Bombay press established by Raja Ravi Varma was instrumental in popularizing
prints and providing easily transportable visual material carried by Indians as
they move around the globe, for example, a print of the goddess Saraswati on
the homepage of a Hindu temple here in Rio^F. And that, of course, generates the
question: How do we categorize this temple? Must we see it as Indian, or, since it
is located in Brazil, might we recognize it as one product of the diverse population of the country and understand it as Brazilian?
As I conclude, I perhaps should ask whether the Indian examples I’ve
cited here constitute a component of world art history. Should we, rather, distinguish between world art and world art history? In one case we study the dynamics, that is, the processes, that lead to shared or borrowed or traded visual works
or their motifs. But we might want to distinguish between this, on one hand,
world art, and on the other the very practice of art history. As we who designate
ourselves art historians generally conceive our practice, it is a Euro-American
one, a discipline that has been developed and shaped by scholars writing from
the West. But is that the only way to approach the visual? Certainly in India, as
in many other parts of the world, there are aesthetic and historical practices that
represent quite different approaches to the visual. So my concluding question:
Do we admit those practices to the discipline of art history, or do they constitute
something so entirely different that we must, in the end, acknowledge art history
as a Western discipline wherever it may be practiced?
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X X X Colóquio CBHA 2010
(Un)making art history:
the South African Visual Arts
Historians (SAVAH) and the
question of globalisation
Federico Freschi
University of the Witwatersrand
President of SAVAH
Giacomo Gastaldi’s upside-down map of Africa (Figure 1), produced by the great
Venetian mapmaker for Giovanni Battista Ramusio’s Delle navigationi et viaggi
in 1557, is one of those historical curiosities that is bound to elicit a response when
viewed for the first time. Given that it looks – at least at first glance – remarkably
like modern maps of the continent, the fact that it is upside-down is unsettling.
Realising that this inversion is not the result of a careless printer’s mistake but
rather a carefully constructed cartographic device, one’s first impulse – humour,
irritation, cynicism – soon gives way to a more profound sense of the Unheimliche: the familiar is suddenly, unaccountably strange, the strange uncomfortably
familiar. The cognitive dissonance it evokes not only highlights the subjectivity
underlying the ostensibly objective act of mapping, but also serves as a clear reminder of the fragility of the consensus that constitutes received wisdom. Above
all, it begs the question: can it be that everything one holds to be true may be
literally overturned by the simple act of taking an unaccustomed point-of-view;
by entering into an imaginative space where ‘north’ becomes ‘south’ and one’s
worldview no longer conforms to any conventional truth?
The historical record provides an ostensibly simple answer for Gastaldi’s
curious device: he was simply following a convention – established by a school
of sixteenth-century Italian cartographers – of not positioning north at the top
of the map. Imaginatively inscribed with the names of fictitious mountains and
rivers and populated with mythical beasts and monsters, Gastaldi’s map presents the continent – then largely unknown to Europeans – as both a Utopian
idyll and a dangerous zone of primitive savagery. In hindsight, and given the
European conquest of Africa, it cannot but reinforce the notion of the northern
hemisphere’s privileged view from above, as it were. Extending this privileged
view from the North to encompass not only Africa but indeed those countries
and regions that are collectively known as the ‘Global South’1, it also serves as
1
Sweeping categories such as ‘Global North’ and ‘Global South’ are politically expedient terms, and as
such are clearly an over-simplification of a complex set of historical, cultural, social, political and economic circumstances. In many respects they simply – and rather unhelpfully – reproduce the binaries
of colonial Grand Narratives. In the context of an increasingly globalised world, it is also difficult to
distinguish the boundaries of what exactly constitutes ‘global north’ and ‘global south’ in the academy
(are academics in the better-funded South African universities, for example, more or less part of the ‘global south’ than their counterparts in American community colleges?). The aim of the SAVAH/CIHA
Colloquium discussed in this paper is not to accept the notion of the ‘Global South’ as an unproblematic
given, but rather to interrogate implicitly its constructedness, and in that way add context and complexity to the debate.
26
X X X Colóquio CBHA 2010
a reminder, as Ahmed Cassim Bawa and Peter Vale (2007), point out, that “the
struggle for ideas is a western-based story in which the voices of the south are
always silent: southern people emerge as objects in a project to order the outer
reaches of frontier upon frontier”.
As a visual artefact, Gastaldi’s map also reminds us of the importance
of visual culture in determining the ways in which our perceptions of the world
– and our places in it – are informed, shaped and ultimately constructed. Art
history clearly has a critical role to play in understanding and interrogating these
constructions. But art history as it was – and in some ways continues to be –
practised in the West has largely been, as Donald Preziosi (1989: 33) reminds
us, “a site for the production and performance of regnant ideology, one of the
workshops in which the idea of the folk and of the nation was manufactured”. By
extension, it has been largely complicit in the project of ordering, from a particularly Eurocentric point of view, what are legitimate objects for study.
The South African example is telling in this regard: as Anitra Nettleton
(2006: 50) points out, so in thrall were South African art schools to the Western
hegemony of art history that “none of the schools or departments of fine arts at
South African universities besides the University of the Witwatesrand 2 was to
include historical African art in their syllabi prior to the 1990s”. Instead, they
concentrated lagely on reproducing (in the case of the English speaking institutions) the formalist traditions established at institutions such as the Courtauld,
or (in the case of the Afrikaans speaking institutions) the philosophical tradition
informed by the German Kunsthistoriches model. In both cases, African art history was understood to mean contemporary South African art, produced largely
by white South African artists. In effect, “the majority of people in South Africa
were denied their own heritage, denied artistic ability or opportunity, and placed
at the very bottom of a supposed hierarchy of cultural development” (Nettleton,
2006: 41).
Happily, the situation in South Africa has, over the past two decades,
been subject to massive redress and transformation, with (South) African art
(both historical and contemporary) enjoying increasing attention in art history syllabi at both secondary and tertiary levels. However, the bigger question
remains: how do we address the unequal distribution of academic resources
around the globe and challenges from post-colonial societies to the older methods and concepts of Western art history? These are questions that the International Committee of the History of Art (CIHA) has begun to address. They were
debated at a workshop entitled ‘Art History from the International to the Global:
Imagining a New History for CIHA’ held at the Francine and Sterling Clark
Art Institute in August 2007, and at the 32nd CIHA International Congress in
Melbourne, entitled ‘Conflict, Migration and Convergence’, in January 2008.
One of the key discussion at that congress was the extent to which the discipline
of art history needed to be reconsidered “in order to establish cross-cultural dimensions as fundamental to its scope, method and vision” (Anderson, 2008).
2
African art was introduced into courses taught by the history of art department at the University of
the Witwatersrand in 1978. This coincided with the establishment of a collection of African art at the
University of the Witwatersrand Art Gallery (see Nettleton, 2006; Freschi 2009).
27
X X X Colóquio CBHA 2010
These discussions will be continued at a CIHA Colloquium, to be hosted by its
only African member association, the South African Visual Arts Historians (SAVAH), at the University of the Witwatersrand in Johannesburg, South Africa,
in January 2011.
Entitled ‘Other Views: Art History in (South) Africa and the Global
South’, the principal focus of the colloquium will be to take the ‘other view’, that
is the view from the Global South. Inspired by Gastaldi’s upside-down map of
Africa, the colloquium invites a global community of art historians to take an
unaccustomed point-of-view, and to imagine an intellectual space framed by imperatives from the ‘south’ rather than the ‘north’. It invites a leap of the imagination: What if the centres of intellectual and financial power were to be reversed?
What if the ‘developing world’ were to become the ‘first world’? If ‘South’ were
to become ‘North’? In short, it urges the imagining of a public intellectual space
where such polar reversals might happen, and in which new histories of art could
emerge; histories that are not necessarily centred on Western-based systems, nor
dependant on the West for validation.
The response to the call for papers has been gratifyingly wide-ranging
and diverse. A generous travel grant from the Getty Foundation in the United
States will enable scholars from as far afield as Cameroon, Nigeria, Ghana, Zambia, Mozambique, Zimbabwe, Jamaica, Brazil, Chile, Colombia, Mexico and India to present papers debating questions concerning various aspects of the theory
and practice of art history in the Global South. The diversity of the responses is
also an instructive insofar as it gives an insight into how a global agenda for art
history – at least as viewed from the position of (South) Africa – might be imagined, a point to which I shall return later in this paper.
The SAVAH Agenda in Context
As the largest and oldest association of professional art historians in South Africa, the question of the transformation of the discipline have been fundamental
to SAVAH – over the past decade-and-a-half – in its mission to understand what
may be at stake in practising art history in a post-colonial, post-apartheid context. Two issues are immediately apparent: first, to engage the notion of transformation as an active agent in imagining the discipline of art history as inclusive,
relevant and sustainable in an African context; and second, to re-imagine what
the role of professional art historians might be in giving substance to theoretical
notions of what constitutes the transformed intellectual spaces of visual culture
and art history.
Indeed, recent SAVAH conferences have served as platforms for critical
debates on transformation, with a focus on the extent to which these debates
have transpired within the context of institutional, historical, social and political
changes in South Africa. Of particular concern has been the need to interrogate
the ways in which the essentially Western discipline of art history is being (re)
written and studied in South Africa in relation to South Africa’s status within
a wider African and global discourse. As was clearly demonstrated at both the
Clark Workshop and the Melbourne Congress, these issues and problematics are
not, of course, unique to South Africa. However, because of South Africa’s well-
28
X X X Colóquio CBHA 2010
developed academic infrastructure and the persistent legacy of its (art) historical
ties with Europe and North America, coupled with its geographical location, it
is well positioned to serve as a platform for the ongoing debate. For SAVAH, the
debate is fuelled as much by the context of globalisation and the need to understand globalism as “art history’s most pressing issue” (Anderson, 2008) as by the
context of the changing political and academic landscape of South Africa in the
past decade-and-a-half.
For SAVAH the debate has also been driven by a process of introspection, confronting both the extent of its complicity in perpetuating the hegemony of Western art history, and the need to redress historical inequalities in
the constitution of its membership. The Association was founded as the South
African Association of Art Historians (SAAAH) in 1984, partly as a response to
a perceived need amongst the academic community of art historians to form an
organised, professional body that could facilitate debate on art and architectural
history, and partly in response to the exclusion of South African academics from
the international arena due to the cultural boycott. It must be borne in mind
that in the mid-1980s South Africa had reached a state of political crisis: the
apartheid government was using draconian measures – including the declaration of successive states of emergency – to suppress ever-increasing resistance
and popular uprising, while external pressure to dismantle apartheid took the
form of political and cultural sanctions. In this context, a professional organisation was essentially a matter of survival for South African art historians, who,
because of the country’s pariah status, found it almost impossible to access international networks, and were often denied publication in international journals
(Ramgolam, 2004: 44).
Indeed, the need to establish a peer-reviewed journal for South African
art historians was one of the first imperatives of the newly formed Association.
It was also to be the source of a major schism, with a struggle for control of the
journal and its editorial policy between English- and Afrikaans-speaking members resulting in some members from Afrikaans-language institutions breaking
away early on to form their own association, Die Kunshistoriese Werkgroep (The
Art History Workgroup), with its own journal (Nettleton, 2006: 40). Despite
these vicissitudes – including the loss of the journal in the late 1990s, due partly
to changing political circumstances and partly to lack of funding – the Association continued with a fairly stable membership. Initially membership was comprised largely of academics and museum professionals, but this soon expanded to
include practising artists, art educators and graduate students. Although formed
with funding from the national, apartheid government (Nettleton, 2006: 40),
the Association declared its left-leaning sympathies from the outset by manifestly rejecting any form of discrimination in the constitution of its membership.
Nonetheless, its membership remained overwhelmingly white, a function largely
of apartheid educational policies that did not deem the study of art suitable or
necessary for non-whites, and the consequent Eurocentric bias of the institutional approaches, as noted above.
29
X X X Colóquio CBHA 2010
Thus, although the Association continued – largely through its annual conferences3 – to promote its constitutional aims of advancing the history,
theory and criticism of art in South Africa by “promoting research and publication; encouraging liaison and discussion; acting as a co-ordinating body; [and]
participating in educational and cultural initiatives” (SAVAH 2009), it became
clear by the late 1990s and early 2000s that transformation was a key imperative
if the Association were to survive. The Constitution was amended to add the ‘addressing of historic imbalances’ as one of the Association’s central aims, and at
a workshop held at the University of the Witwatersrand early in 2005 a number
of issues were identified and debated in order to confront and assess the Association’s ongoing viability, and what transformation would entail in practice. The
outcome of that workshop, which has continued to inform the Association’s vision, was a commitment not only to continuing its activities (not least its annual
conferences and the networks – both formal and informal – that these facilitated), but also a commitment to change.
The first and most obvious of the latter was the name change from the
South African Association of Art Historians (with its echoes of the United Kingdom’s ‘Association of Art Historians’) to the South African Visual Arts Historians. This not only provided a less cumbersome acronym than ‘SAAAH’, but
was also reflective both of the global turn in the discipline of art history towards a broader and more inclusive sense of ‘visual studies’, and the fact that it
is largely this ‘visual studies’ model that dominates the teaching of the discipline
in the South African academy. Indeed, the History of Art department at the
University of the Witwatersrand in Johannesburg is the last such specialist entity
left in South Africa: at the University of Cape Town art history is taught as a
component of historical studies^F, and at Rhodes (Grahamstown) and Pretoria
Universities it is expanded to include the broader field of Visual Culture studies. As Sandra Klopper (in Elkins, 2007: 129) notes, “the reason visual studies is
triumphing in the African context is because it is abolishing hierarchies … [in
effect] including everything that was excluded from the hierarchies of modernism”, and is thus more open to allowing the acknowledgement of the cultural
value of art objects and modes of practice that were excluded from the inherited
grand narratives of the Euro-American tradition.
This is, of course, not without its problems. In its rush to revisionism
over the past 15 years it seems that there has been some confusion in South
African academe over the emergence of the so-called ‘new art history’ and the
‘visual turn’ in critical discourses with the demise of the discipline, rather than
an expanding of its frontiers. In effect, the seeming insistence that art history has
no legitimate place in the South African academy is not only debasing the discipline, but also, it seems to me, flirting dangerously with the prospect of producing a generation of under-educated graduates who can at best glibly engage with
fashionable theories of the discourse of art, but at worst have no sense of its place
3
The Association has held annual conferences, hosted at different academic institutions around the
country, since 1985. With the exceptions of two conferences, it has an unbroken record of published
conference proceedings. The 25th Anniversary of the Association was celebrated at the 2009 c o n f e rence, entitled ‘The Politics of Change: Looking Backwards and Forwards’ held at the University of
Pretoria.
30
X X X Colóquio CBHA 2010
in a broader historical and cultural context. It is also clear that this is very much
at odds with global trends: both my presence here today and the large response
to the SAVAH/CIHA Colloquium implies an international interest both in the
discipline for its own sake, and for the ways in which it is applied in (South)
Africa. On the other hand, the fact that only about one third of the papers submitted for the colloquium are by South African academics is indicative of the
extent to which the discipline in South Africa has taken a beating. This has to be
seen in light of the fact that South African universities have systematically been
downscaling, sidelining or closing down their art history departments, and in
effect leaving its histories of art to be written by scholars from elsewhere. That
this potentially constitutes a return to a form of the cultural imperialism from
which we sought to escape in the first place is deeply ironic, and deserves more
attention than I can give it here^F.
Nonetheless, the very fact of SAVAH’s continued existence attests to the
importance of art history in contemporary South Africa both inside and outside
the Academy. Indeed, the themes and debates that the Association continues
to engage at its national conferences make a substantial contribution to understanding who we are and what we do as a broader community of academics, artists, educators and citizens not only in South Africa, but also as global citizens.
It is against this background that SAVAH became a member of CIHA in 2007,
the first African country to do so. The ever-growing association with CIHA has
given SAVAH access to a global network of art historians and offers significant
potential to substantially increase its national and international footprint^F. It is
also against this backdrop that SAVAH has – somewhat audaciously, given its
ingénue status within CIHA – successfully bid to host a colloquium under the
auspices of CIHA. As noted above, by taking the position of ‘The Other View’,
the colloquium aims primarily to extend the debates that have been taking place
nationally into a global context, thus both exercising its mandate and engaging
CIHA’s increased interest in the question of the relationship between globalisation and art history.
Given its geographical location in Africa, the SAVAH/CIHA Colloquium has offered the opportunity to engage, amongst others, issues around ‘Modernist Primitivism and Indigenous Modernisms’ (Ruth Phillips); ‘Documentary
and Archival Practices in the Global South (Rory Bester, Sean O’Toole and Dilip
Menon); ‘Art as an Act of Decolonisation’ (Mario Pissarra); ‘Engagements with
Gender in the Art of the Global South’ (Brenda Schmahmann); ‘The Place of
Traditional Cultures in Art History (Kevin Murray); ‘Who is Entitled to Tell the
Black Artist’s Story?’ (David Koloane); and ‘Changing Museums, Changing Art
Histories’ (Jillian Carman). Using the notion of the ‘upside-down’ worldview
prompted by Gastaldi’s map, the colloquium thus proposes a shifting – even if
only temporarily – of the centre of discourse. The aim, ultimately, is to take the
‘other view’ and in so doing to complicate the history of art and the relationship
between histories in the Global South and the ‘North’ or ‘West’.
31
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Conclusion: ‘(Un)making Art History’
Returning to work recently from a research trip, I discovered that a graffitist had
been at work in the History of Art Department’s corridor at the Wits School
of Arts. Normally this would be source of irritation, but this was no instance
of gratuitous ‘tagging’ or wanton vandalism. Rather, the graffitist had carefully
stenciled the words ‘Make Art History’ onto the door of a colleague’s office. In
fact, so neat and carefully-drawn were the words that I assumed that they had
been intentionally placed there by my colleague, only to be informed, when I
commented on it, that he was as surprised by its appearance as I.
The notion of ‘making art history’ in the context of a department where
the bulk of undergraduate students are Fine Arts majors is as subtly ambiguous
as it is subversive. A slight shift in emphasis, and the phrase changes meaning
entirely, from an expression (celebratory? cynical?) of the kind of knowledge that
is produced in the department of history of art – i.e., we ‘make’ art history in
our lectures, seminars and research, to the subversive – and in the context of an
art school, somewhat cynical – notion of advocating the end of art (making it,
in other words, history). I found the ambiguity deeply satisfying. At once banal
and thought provoking, it seemed to suggest an active dialogue on the part of the
graffitist with art history and its relationship to the practice of art, and as such
was a heartening indication of the relevance of the discipline in a professional
and intellectual climate where, as noted above, it increasingly has to justify its
survival.
As is the nature of graffiti, it did not take long before this one was deliberately modified. For a short while a carefully cut out paper square with the letters ‘UN’ printed on it was stuck onto the door next to the stenciled words, such
that the phrase now read ‘unmake art history’. This modification disappeared
as quickly as it had appeared – perhaps the paper square fell off, or perhaps
the original graffitist objected to the intervention and removed it. Nonetheless,
during its brief existence it made a point that was unequivocally directed at art
history, clearly suggesting that it should be ‘unmade’. Given my involvement
with planning the SAVAH/CIHA colloquium, this idea resonated profoundly
with me, as it seems in some ways fundamental not only to SAVAH’s commitment to transforming the discipline in South Africa, but also to the notion of a
global art history. Taking the ‘other view’, it seems, may in some ways be akin to
‘unmaking’ art history: meaningful transformation cannot take place without a
radical rethinking – an effective ‘unmaking’ – of the consensus that has so long
separated the periphery from the centre, south from north. In so doing, we will
not only be promoting the ‘other view’, but will indeed be ‘making art history’.
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Works Cited
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CIHA Melbourne 2008: 32nd Congress of the International Committee of the
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Bawa, A. C., & Vale, P. (2007). Gathering in the footnotes of a fading narrative.
Business Day 30 October 2007, p. 15.
Elkins, J. (Ed.). (2007). Is Art History Global? New York: Routledge.
Freschi, F. (2009). The Wits Art Museum: The Continent’s Foremost collection
of African and Southern African Art. De Arte (80), 63-69.
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Renaissance in History of Art Syllabi. In J. Onians (Ed.), Compression vs. Expression: Containing and Explaining the World’s Art (pp. 39-56). Williamstown,
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Okeke-Agulu, C. (2010). Kenya and Ghanaian Artists: Reply – Okeke-Agulu. Retrieved 4 October 2010 from H-Net Network for African Expressive Culture, 26
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Preziosi, D. (1989). Rethinking Art History: Meditations on a Coy Science. New
Haven: Yale University Press.
Ramgolam, J. (2004). The Transforming Context of the South African Association
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requirements for the degree of Master of Management (in the field of Public Development and Management), University of the Witwatersrand, Johannesburg.
SAVAH. (2009). SAVAH South African Visual Arts Historians formerly known
as South African Association of Art Historians (SAAAH). Constitution adopted
at the AGM of September 2005, amended 1 February 2008, 22 May 2009. (Based
on the constitution of the South African Association of Art Historians (SAAAH)
adopted 1984, amended 1987, 1989, 1990, 1993 and 2004).
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Prima Ostro Tavoloa [‘Upside-Down’ Map of Africa]
Giacomo Gastaldi
from Vol. 1 of Ramusio’s Navagationi et viaggi.
Venice, Giunti, 1606.
Hand-coloured engraving after woodcut original (1557).
Trapezoid, 275 x (at greatest) 385mm.
Library of Parliament, Cape Town, South Africa, ref. 25881
(used with permission).
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La historia del arte global
y sus provocaciones
Rita Eder
Instituto de Investigaciones Estéticas, UNAM
La propuesta de una historia del arte global es una provocación para pensar de
nuevo la disciplina: sus bases y sus fines, su utilidad en el mundo de hoy y su
futuro. Acaso la diferencia entre el antes y el después de la globalización incita
a pensar la historia del arte desde un colocarse en el mundo, mirar hacia todos
los puntos cardinales y revisar los fundamentos de la historia del arte como una
invención de Europa occidental.
Un primer cuestionamiento
Hace tiempo que la funcionalidad de lo que hacemos, como toda cosa viva, está
en cuestión, y cito como ejemplo el momento en que T. J. Clark escribe en formato de manifiesto The conditions of artistic creation que apareció en 1974 con
visos de táctica futurista en el suplemento literario londinense The Times. Clark
fue pieza fundamental en lo que se conoce como una nueva historia del arte contraria en sus métodos a aquellas narrativas que dominaron la academia europea
y norteamericana durante las décadas del cincuenta y sesenta. Los métodos y
perspectivas de lo que se llamó formalismo en historia del arte fueron considerados por una nueva generación como ortodoxos y positivistas, concentrados en
el expertizaje (connouisership), el análisis del estilo, la iconografía y ciertamente
preocupados por nociones de calidad y genio. En contraste con aquella mirada
sobre el arte como algo privado y al margen de la sociedad, la nueva historia ubica
al arte en su nexo con el poder e intenta analizar su papel en la coyuntura de las
necesidades e identidades de diferentes grupos y clases sociales. Clark miraba el
futuro de la disciplina como una historia social centrada en las ideologías tras
la producción del arte. Ahí ideología era utilizada como el cuerpo de creencias,
imágenes, valores y técnicas de representación por medio del cual las clases en
conflicto intentan neutralizar la historia del otro. Pero Clark hizo la distinción
entre ideología y las disparidades en la representación e intentó interpretarlas por
medio de explicaciones psicosexuales, sociológicas y semióticas. Así, para lograr
hacer esta historia del arte se necesitó la interdisciplina y se importaron campos
del conocimiento que provenían de la lingüística, la psicología, la sociología y la
historia. Esto dio como resultado la atención a la necesidad de una pluralidad
teórica que hoy caracteriza el ámbito de la historia del arte. En resumen, Clark
propuso la necesidad de un nuevo episteme que mirara las obras desde nociones
como cambio social y poder, desde las fuentes documentales, pero sobre todo
desde la factura, las disparidades y las relaciones espaciales y temporales dentro
de las obras mismas. Ésa es la base de cualquier discusión sobre historia del arte
en el mundo de hoy: puede ser una práctica interdisciplinaria pero al mismo
tiempo trabaja desde su propia especificidad para no desaparecer.
35
X X X Colóquio CBHA 2010
¿Pero cuál especificidad?, he ahí el problema actual, que no el de los
años setenta y ochenta cuando se había encontrado para la historia del arte una
dirección y un entusiasmo en la pluralidad de estudios bajo la mirada de clase,
género, etnia sin base en un determinismo económico mecanicista, más bien en
la suma de aportes posestructuralistas que permitió un tiempo creativo e innovador para los estudios de arte. En América Latina desde diferentes perspectivas
y diversidades culturales se escribieron, bajo el impacto de las ciencias sociales,
nuevos aportes. Como muestra de un cambio de paradigma se pensó el arte
popular desde los mecanismos económicos y su condición de objetos desplazables que generaron estructuras alternas para su fábrica, como por ejemplo los
retablos portátiles en el Perú1 y se prestó atención a esa producción artística popular desde un contexto antropológico y político. Una estética del arte latinoamericano2 a partir de la profundización de heterogeneidades y también desde las
afinidades no podía escribirse desde las piezas maestras sino desde la diversidad
de artes cultas y populares, como se estilaba diferenciar en aquel tiempo y desde
un trabajo comparativo sobre sensibilidades diversas frente al color, la factura y
el espacio. Estos cambios en la historia del arte produjeron otras narrativas que
contribuyeron al análisis de las relaciones entre el Estado y el arte e introdujeron
la necesidad de trabajar en detalle todo lo que estaba comprimido en las historias
nacionales. Así que en cierta medida los estudios puntuales sobre objetos de estudio determinados y acotados trajeron una renovación en algunas tradiciones en el
campo de la historia del arte en Latinoamérica. Se pensó en horizontes cruzados
frente a la condición colonial, el pasado precolombino, el arte indígena actual, la
producción y la problemática del arte popular y la del arte contemporáneo. Pero
faltaría a la verdad si no añadiera que continúa la gran fascinación por el mito y la
historia y la aventura de su construcción en las diversas memorias, precisamente
por esos pasados mixtos y en capas, traslapados, eso que García Canclini describe bien en Culturas híbridas^F. Hoy la historia del arte global se plantea algunos
cuestionamientos que propuso la historia social del arte de los años setenta sobre
las tradiciones intelectuales de la disciplina, pero a la vez muestra sus desacuerdos
y apela a redefiniciones de las nociones de cultura e ideología.
Segundo cuestionamiento
Una historia del arte global actual según he leído, discute y descalifica al igual
que aquella nueva historia del arte, tradiciones académicas del pasado por su
orientación eurocéntrica, rechaza el formalismo en sentido estrecho y piensa en
cómo cruzar desde una gran teoría una inconmensurable diversidad.3 La cuestión
1
Mirko Lauer, Crítica de la artesanía, Lima, Desco, 1982.
2
Juan Acha, Las culturas estéticas de América Latina, México, UNAM, 1994.
3
Quentin Skinner se refiere a las posturas de los años sesenta contra la gran teoría, particularmente C.
Wright Mills en La imaginación sociológica (1959) quien usa este término (gran teoría) para criticar la
obra y el sistema de Talcott Parsons en su ambición de definir la naturaleza humana. Contra lo que consideró un sistema Abstracto y normativo y propone la práctica de la imaginación. Daniel Bell, desde otra
perspectiva compartía en El fin de la ideología (1960) un punto de vista que coincidía con Mills. Si bien la
noción de gran teoría como una explicación compleja y abarcadora de la vida, la historia o la experiencia
humana fue criticada por algunos en los años sesenta como una camisa de fuerza transhistórica que se
interesa en teorías Abstractas y calificadas como normativas, sin embargo, dos décadas después –al decir
de Quintin Skinner (The Return of Grand Theory, 1985)– puede advertirse un regreso de la gran teoría
36
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que ronda nuestro tema es: si, en efecto, hay una gran teoría que pueda cruzar los
diversos y complejos horizontes del quehacer humano que denominamos arte en
respuesta a la globalización, ¿cuál sería su especificidad?, ¿es sólo una perspectiva
construida desde los centros de la historia del arte, o es una preocupación visible
en lugares de producción artística notable que no necesariamente tienen una
tradición intelectual y académica en historia del arte? En mi opinión, empieza
ahí un proceso que consiste en desvestir las bases fundacionales de la disciplina
desde la pregunta por la práctica de la historia y la forma como hablamos de
y narramos el tiempo. ¿Cuál es la diferencia entre un punto de vista aéreo y el
de alguien que mira con detenimiento y quizá con lupa una sola obra desde su
lugar?, ¿de qué manera la noción de una gran mirada sobre el arte conflictúa el
cuestionamiento de las grandes narrativas como implementación del poder del
Estado, y de su contrario, las pequeñas historias, que fueron un instrumento útil
contra las construcciones culturales de los nacionalismos?
Si discutimos el tema de una historia del arte global, supongo que la mayoría quiere imaginar cómo opera y para qué sirve esa globalización en un mundo desigual que abarca el campo educativo y académico, y si es viable separar esa
realidad de un proyecto que se llama historia del arte global, y las consecuencias
del diseño económico y de otra distribución del poder a la caída del muro de
Berlín para la dinámica de las culturas en el mundo, y cuáles son las condiciones
y las reglas de la inclusión y la exclusión en este nuevo esquema global.
En esta reflexión surgen en primera línea lo que podemos llamar los
descontentos de un sector prestigiado del establishment de la historia del arte,
principalmente anglosajona, que en efecto han escrito sus historias del arte del
mundo en positivo, es decir, si se puede hacer y se hace en forma diferenciada de
las historias del arte universal que se iniciaron en el siglo XIX. La diferencia es
alejarse de la antología o aglomeración de parcialidades e intentar el encuentro
de categorías que pueden ser válidas para describir y explicar la diversidad de la
actividad humana que se conoce como arte, además de trazar esas deseadas líneas
de encuentro, traspaso y conexión. Es necesario reparar que en ese círculo de los
centros de arte y universidades del primer mundo existen disidencias, y la duda
se ha manifestado en la convocatoria para debatir, con signo de interrogación, si
realmente tal empresa es posible^F. ¿Cuáles son las piedras de tropiezo que hay
que sacar del camino para estos historiadores del arte globalista?, básicamente
hay que cuestionar cómo se han estructurado las narrativas de la historia del arte
bajo la égida de una determinada cronología que corresponde a ese momento
de cambio de las formas expresivas que se conoce como estilo que es la base de
las clasificaciones y de otros aspectos del trabajo del historiador del arte. Casi
no hace falta decir que han sido las periodizaciones con cierta referencia a las
edades del hombre que establecen una idea de tiempo predefinido y los métodos
de agrupamiento de los objetos y sus definiciones según ciertos cartabones como
con otras modalidades en las propuestas de Thomas Kuhn y su explicación de los cambios epistemológicos, en Foucault y la construcción del conocimiento en las redes del poder; la cuestión del significado
en varios pensadores o diversas modalidades del marxismo que contribuyen a explicar el resurgimiento
y vigencia de El capital para entender el funcionamiento de la economía global.
37
X X X Colóquio CBHA 2010
lo clásico y lo anticlásico lo que impide una historia del arte que funcione para
explicar culturas no occidentales.
El dilema y la ambición de cómo explicar desde una perspectiva teórica
y metodológica el arte del mundo surgieron hace tiempo con otras características pero han venido a rondar de nuevo el campo de la historia del arte. Desde
la tradición anglosajona hay textos, libros particularmente de gran tamaño y
más o menos de reciente edición que intentan fraguar una respuesta nueva que
haga posible una historia del arte que en cierta manera contenga una perspectiva mundial como es la de John Onians y su World Atlas History que requirió
la participación de sesenta colaboradores. Es un Atlas bellamente ilustrado con
mapas de la ubicación de los distintos lugares que contienen el arte del mundo,
sus traslapes y encuentros más allá del dibujo de las fronteras cambiantes de los
últimos cien años. El punto de partida teórico es que el concepto de cultura en
la medida en que es particular, entorpece; es más adecuado entender el arte en
relación con la naturaleza y la noción de hacer y apreciar esto que el hombre
hace como un desarrollo biológico que responde a la función del cerebro y su
evolución. Si bien los textos son breves cápsulas que abarcan en corto desde la
edad de las cavernas hasta tiempos recientes sin entrar en el arte contemporáneo
y que funcionarían muy bien en el History Channel, ya el hecho de una geografía artística pone de manifiesto un giro en cierta historia del arte que quiere ser
mundial al privilegiar el espacio en el que ocurre el arte y que lo contextualiza
no históricamente sino en su lugar de origen y su función. Por otra parte está un
libro de autor, el de David Summers, Real Spaces, World Art History and The Rise
of Western Modernism (2003)^F. Escrito con sensibilidad, conocimiento y buena
voluntad en el sentido de contribuir al mejor entendimiento entre culturas, Summers parte de una diferencia entre las necesidades del mundo contemporáneo y
las de la antigua historia del arte idealista, proclive a generalizar sobre visiones
del mundo, estéticas y espíritus de periodos y pueblos. ¿Cuál sería entonces la
respuesta a la pregunta de cómo articular el arte de diferentes culturas? Hay razones poderosas, dice Summers, para no hablar de diferencias culturales. Ya que no
debemos pensar en ideologías ni en la disparidad económica, es necesario mirar
la cultura como formación de grupos humanos que habitan un contexto material
específico. Se trata pues de una nueva descripción de los objetos desde su lugar
social y material, desde su ubicación espacial concretamente. Para Summers la
noción de que el arte es equivalente a artes visuales debe ser sustituida por artes
espaciales tanto en sentido real como virtual, concepto que posiciona en lo bidimensional, mientras el espacio real es más profundo. Ese espacio real es el lugar
del encuentro con los artefactos que el hombre hace y desde esa perspectiva se
dirige a la diversidad de las tradiciones artísticas para ver sus parecidos y diferencias. La idea de Summers es construir un nuevo lenguaje crítico que mire el arte
como un producto concreto, ubicado en un espacio social, su descripción debe
tener las huellas de su factura. Ese objeto se construye socialmente y esto es lo
que tiene en común con el resto de los objetos. Si trabajamos desde su existencia
objetiva y no nos entrampamos en la significación como forma es viable atravesar
y comprender otras culturas.
38
X X X Colóquio CBHA 2010
Estos debates y enfoques sobre lo global tienen un cierto origen en las
posturas de dos historiadores de arte, acérrimos críticos del hegelianismo y el
historicismo: Ernst Gombrich y George Kubler. Este último, en su Shape of Time
(1962) planteó la necesidad de dejar atrás la noción del arte y regresar a la idea
de artefactos dentro de otra consideración del tiempo que se fundamenta en su
técnica y factura, su materialidad y capacidad de ser desplazables. La función de
los artefactos es diversa: son objetos prácticos pero también estéticos o simbólicos, de condición perdurable y repetible en el tiempo. Kubler pensó, al igual
que su mentor Henri Focillon, que una historia del arte sujeta a la historia y al
determinismo había sido aliada del totalitarismo, y por otro lado reflexionó que
otra manera de explicar el arte desde su fabricación misma era una forma viable
de acercarse a las culturas no europeas desde una perspectiva sin juicios estéticos
eurocéntricos, sin periodizaciones ni clichés sobre el estilo.
Pero otras tradiciones intelectuales, las conocidas como no occidentales,
se fraguan en las universidades de un mundo distinto del euronorteamericano,
que tienen licenciaturas o posgrados en historia del arte, y que expresan una
sensación de incertidumbre sobre la noción de un conocimiento global del arte,
en particular las que hablan desde distintas periferias con carencias de infraestructura académica, que salen airosas por medio de la ironía, que miran a su
alrededor y no ven los recursos pedagógicos mínimos. Habría quizá que plantear
la pregunta si la historia del arte está amenazada frente al criterio de instituciones
financieras que tienen hoy mucho que decir sobre la educación, por no poder
mostrar su pertinencia como una disciplina global interdisciplinaria, y si la cuestión de culturas diferenciadas no crea conflicto como resistencia a los modos de
la globalización.
Dentro de este debate, con cierto corte académico y disciplinario sobre
lo global, está la interrogante del arte contemporáneo que ha logrado en cierto
sentido mundializarse, quizá sobre todo en la red y en la TV; pero a pesar de
ello el arte del tercer mundo aún no ha alcanzado a ser parte del gran circuito
de los museos fundamentales, las galerías y el mercado, quizá algo parecido a
lo que ocurrió a finales de los años sesenta cuando el desarrollismo prometió la
internacionalización del arte la cual no fue viable. Lo que parece ser cierto es que
el circuito en la red diseñado actualmente para esta legión de nuevos artistas de
muy diversas partes del mundo los ha puesto en contacto. Basta abrir el correo
electrónico y encontrarse con la difusión que los artistas y las academias hacen
sobre contactos, proyectos nómadas que se hacen con la intervención del público y enorme cantidad de eventos transculturales. Si algunos ven su condición
virtual como fantasmática, también hay artistas que privilegian el trabajo con la
materialidad; no todo el quehacer contemporáneo es bidimensional, hay también
referencia a un mundo cada vez más interconectado por el rediseño del capital, la
violencia, la guerra, las problemáticas del Estado-Nación, las migraciones masivas, la reconceptualización de las fronteras culturales y, sobre todo, el avance de
la tecnología en el ámbito de las comunicaciones y la diseminación de la información; además, hay la intención de hacer de esos contactos visiones específicas
de problemas políticos y culturales, así como conocer las miradas sobre el otro ya
no sólo desde el centro hacia la periferia sino en el sentido inverso.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Pienso en varias perspectivas vinculadas al problema que he intentado plantear tales como: a) la historiografía de la aspiración global en la historia
del arte; b) la infraestructura que sostiene el aparato académico (me refiero a
programas, condiciones de los profesores, formación de alumnos y necesidad de
recursos para profesores invitados, becas e intercambios, empoderamiento de los
programas de estudio que permitirán preparar historiadores del arte que salgan
de su historia local para escribir la de los otros), y c) la globalización y el arte
contemporáneo. Me parece que pensar desde lo global creará quizá un nuevo lenguaje en la historia del arte, y veo que la desigualdad de tradiciones académicas,
que no la diferencia, crea reflexiones críticas.
Éstos son los pensamientos que me ha provocado el tema de la historia
del arte global. He trabajado la mayor parte de mi vida profesional en el ámbito
de la crítica y de la historia del arte en México y otros países de América Latina,
he intentado desde la academia, internacionalizar programas de investigación y
docencia, así como trabajado para desmontar las tesis nacionalistas y reescribir
las historias del arte mexicano y latinoamericano. Justamente al participar en
organismos de investigación internacionales me he dado cuenta de que posiblemente quienes más historia del arte global necesitan son precisamente aquellos
fundadores de la disciplina o aquellos que han importado la historia global a sus
dominios con infinitud de recursos para profesores invitados y posibilidades para
que sus alumnos sean becados en distintos lugares del mundo. Fui estudiante en
los Estados Unidos y tuve acceso a expertos en las artes de la India, África y Europa, pero no había estudios comparativos ni relación entre un campo y otro. Las
cosas han cambiado y ahora se da mayor importancia a las diferencias, la imagen,
la forma y el espacio como idiosincrasia cognitiva del mundo.
Tengo la impresión, basada en mi experiencia y quizás en alguna mitologización con cierto aire poscolonial, que quienes vivimos en la periferia o en
el tercer o cuarto mundos tenemos mayor contacto real con la diversidad y la
necesidad de entender lo diferente porque vivimos en un ambiente lleno de disparidades y desigualdades, ya sean de carácter económico, étnico o de clase. Así
lo multicultural, lo multiétnico o si se quiere híbrido es lo cotidiano de tiempo
atrás, algo que parece entrar hoy entre tensiones ideológicas en el proceso de
ciertos países europeos y los Estados Unidos ya no como melting pot sino como
comunidades en su diversidad.
¿Cómo entramos a la problemática de la formación de estudiantes desde
la perspectiva de una historia del arte global en forma efectiva? Una respuesta
que aún es aspiración, pero cada día se trabaja más en ello y empieza a tener resultados en las nuevas generaciones, es justamente escribir la historia del arte de
los otros lo cual no invalida el hecho de que rehacer la propia historia local desde
una mirada prismática no siga teniendo enorme vigencia.
La preocupación aún está ahí, que la historia del arte global sea una
estrategia de deglución en muchos sentidos, uno de ellos es apropiarse, como
ocurre muchas veces desde el mundo académico del primer mundo, del trabajo
académico de quienes trabajan esas culturas apartadas que están por entrar en la
historia del arte global. Una historia del arte global requiere de un código de ética
en la apropiación del conocimiento.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Un balance cabal de las aristas involucradas en la problemática de lo
global en el campo del arte es una tarea compleja ya que todo conocimiento es
en cierto sentido parcial; por más que queramos no habitamos el macrocosmos
como el Fausto de Goethe, tampoco poseemos, desafortunadamente, ese cristal
que aparece en el Aleph de Borges que con ironía describe como utópico e implica la necesidad de acercarse al todo a través de un prisma en el que los acontecimientos del mundo se despliegan en forma sucesiva y simultánea. Lo que sí es
rescatable es la necesidad de horizontes cruzados y de estudios comparativos, el
cuestionamiento de lo único en términos de identidades y la atención a fenómenos de contacto entre distintas tradiciones culturales en un mismo espacio. La
lista de nuevos puntos de reflexión y práctica es enorme; reuniones como éstas
propician que las ideas entre los distintos presentadores viajen más rápido y podamos discutir afinidades, desacuerdos y propuestas. Queda pendiente ahondar
en lo que probablemente sea una aportación parcial a una historia del arte que
pueda tejer una narración de inclusiones en la que lo local y lo central puedan
fluir con sus diferencias y contradicciones, pero finalmente como un ejercicio de
integración que incluya la imposición y los límites del Estado-Nación y su transfiguración. En el caso latinoamericano, los estudios comparativos quizás podrán
beneficiarse de un método que mirará desde fuera (historia, lengua, instituciones políticas y religiosas) y desde dentro (materialidad, recursos de la imagen:
modelos, iluminación, espacialidad, emociones), sin olvidar la necesidad de una
revisión de los recursos del proceso de interpretación. Será un trabajo de casos paradigmáticos pero también implicará recursos narrativos que puedan desplazarse
más allá de los límites territoriales y las cronologías establecidas. Es el tiempo de
debatir los modelos históricos que han sujetado en cierta forma la historia del arte
en América Latina y diferenciar más a fondo la historia de la historia del arte.
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X X X Colóquio CBHA 2010
La survie de l’œuvre et ses
acteurs
Jean Marc Poinsot
Université de Rennes II
«En aucun cas, devant une œuvre d’art ou une forme d’art, la référence au récepteur ne se
révèle fructueuse pour la connaissance de cette œuvre ou de cette forme. Non seulement toute
relation à un public déterminé ou à ses représentants induit en erreur, mais même le concept
d’un récepteur «idéal» nuit à tous les exposés théoriques sur l’art, car ceux-ci ne sont tenus
de présupposer que l’existence et l’essence de l’ homme en général. De même, l’art présuppose
l’essence corporelle et intellectuelle de l’ homme, mais dans aucune de ses œuvres il ne présuppose son attention. Car aucun poème ne s’adresse au lecteur, aucun tableau au spectateur,
aucune symphonie à l’auditoire.»1
Ce propos de Benjamin introduit son article sur la traduction de 1923 dans
lequel il traite de la survie de l’œuvre au moyen de sa traduction. Il m’a semblé
qu’une telle question était au centre des interrogations que je voulais soulever
autour d’une part de l’exposition Chefs d’œuvre ? (au pluriel et avec un point
d’interrogation) organisée par le Centre Pompidou Metz pour son inauguration
en mai 2010, et, d’autre part, de l’exposition d’Yves Klein inaugurée le 25 avril
1958 à la galerie Iris Clert sans véritable titre avant qu’il la baptise dans sa conférence à la Sorbonne (3 juin 1959) du titre un peu pompeux de: La spécialisation
de la sensibilité à l’ état matière première en sensibilité picturale stabilisée.
Je me suis arrêté sur cette citation parce qu’elle formule une crainte
majeure propre à la période moderne, celle de la dépendance de l’œuvre à un
commanditaire ou pire encore à un public, au moment même où ce public se
constitue comme une composante majeure de l’espace de sociabilité de l’art. Or,
mon hypothèse est que la survie des œuvres n’existe que par l’interaction de ceux
qui contribuent à la vie de cet espace de sociabilité et par là-même à la survie de
l’œuvre. Parmi eux, les artistes, les critiques, les commissaires d’exposition et tous
ceux qui participent à l’écriture de l’histoire de l’art.
Chefs d’œuvre ? regroupe en fait toute une série d’expositions qui s’entrecroisent et se complètent. Elles y développent tant de propos parallèles que le
visiteur a quelques difficultés à les dénombrer, mais je vais essayer d’en présenter
quelques aspects.
Il y a tout d’abord quatre parcours, correspondant à des espaces d’exposition distincts: un premier autour de la notion de chef d’œuvre en général «chefs
d’œuvre dans l’ histoire» au rez-de-chaussée du bâtiment, un second intitulé «Histoire de chefs d’œuvre» qui au premier étage présente une histoire de l’art du
20ème siècle écrite avec des chefs d’œuvre, proposition assez conventionnelle pour
1
Walter Benjamin, «La tâche du traducteur», 1923, in Œuvres I, Gallimard, Folio, 2000, p.244
42
X X X Colóquio CBHA 2010
un musée. Le troisième implanté au 2ème étage met en parallèle une série de chefs
d’œuvre et leur destin sous le titre «Rêves de chefs d’œuvre» quand le quatrième,
qui termine le parcours au troisième étage, laisse penser que l’histoire continue
sous le titre «chefs d’œuvre à l’ infini».
Ces expositions mêlent de surcroit, dans chacune d’entre elles, des
œuvres dont le statut est interrogé, des considérations sur l’histoire du musée national d’art moderne et sur l’histoire des musées d’art moderne en général, et des
moments de muséographie réflexive avec l’insertion d’objets ethnographiques.
De l’ensemble de ces propositions, je ne retiendrai que l’interrogation
sur le statut des œuvres ou des chefs d’œuvre et celle qui met en regard des
œuvres l’histoire de leurs apparitions.
L’interrogation sur la notion de chef d’œuvre commence avec une
approche quasiment anthropologique. Laurent Le Bon commissaire de l’exposition et directeur du musée a réuni dans son développement sur le statut du
chef d’œuvre des objets d’artisanat renvoyant au premier usage historique de
l’expression, des objets d’art au statut hybride entre artisanat et art, des œuvres
mettant en crise la notion de chef d’œuvre comme unique objet abouti du travail
de l’artiste.
Parmi les premiers objets visibles dans l’exposition figure une copie de
La mort de Marat, effectuée dans l’atelier de David par Jérôme-Martin Langlois,
dont on apprend par le catalogue qu’elle fut commandée initialement par la
Convention, l’assemblée constituante mise en place par la Révolution, afin de
servir de modèle aux ouvriers de la manufacture des Gobelins qui souhaitaient
en produire une version en tapisserie. Plus loin dans la même partie de l’exposition se trouvent deux tapisseries; la première dans le cours de la visite est une
tapisserie reprenant à la même échelle la composition de Guernica commandée à
Picasso pour le pavillon de la République espagnole à l’exposition internationale
de 1937 à Paris, quand la seconde est un exemple, choisi dans les réserves du
musée national d’art moderne, du talent d’André Lurçat considéré au milieu du
XXème siècle comme le rénovateur de la tapisserie française. Voici trois objets
qui sont convoqués dans l’exposition à titre de substituts et qui vont être l’objet
de malentendus. Substituts d’œuvres fortes de David ou de Picasso, elles abusent
le spectateur qui a été tant préparé à reconnaître l’unicité du chef d’œuvre et de
son aura. Mais surtout ces trois objets ayant en commun l’univers de la tapisserie,
considérée pour La mort de Marat comme pour le Guernica comme un art d’interprétation, mais conçue comme une création originale avec Lurçat qui pensait
directement en terme de cartons, une grande ambiguïté plane sur la signification
de leur présence dans l’exposition, signification dont on verra qu’elle rebondira
sur d’autres objets dans d’autres espaces. La tapisserie de Lurçat, seule création
spécifique n’est en effet pas présentée comme un chef d’œuvre encore d’actualité
aujourd’hui. Elle est là pour témoigner des valeurs oubliées et oubliables avec
quelques autres tableaux d’un goût daté, et rendre compte des débuts difficiles
des collections d’art moderne au regard du développement actuel du Centre
Pompidou. (Aujourd’hui on ne se souvient plus d’André Lurçat que comme un
architecte moderniste modéré, mais marxiste engagé.)
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X X X Colóquio CBHA 2010
Art décoratif original, la tapisserie, comme d’autres métiers d’art, a fait
l’objet en France d’un investissement particulier de la part de l’Etat qui fut à
l’initiative de la création de manufactures nationales dans des domaines aussi
divers que la porcelaine, le mobilier ou la tapisserie. Cette politique a marqué
durablement la relation de l’Etat à l’art en France et la connaissance de son histoire permet de comprendre, au moins partiellement, la faiblesse du soutien à
l’art moderne jusqu’au lancement du projet du Centre Pompidou, mais, aussi,
elle permet d’expliquer indirectement certains aspects de la protection du droit
d’auteur dont les derniers développements ont pris la forme de ce que Jack Lang
a qualifié d’exception culturelle.
Ainsi, La mort de Marat par Jérôme-Martin Langlois ne servit pas de
carton et aucune tapisserie ne fut produite d’après elle. Le seul usage de cette
toile depuis le début du XXème siècle consiste à illustrer l’histoire de France au
château de Versailles. Et, il faut aller à Bruxelles pour voir son célèbre modèle.
Mais à Metz La mort de Marat témoigne de l’existence de ces copies autorisées
par les artistes à une période où la photographie ne servait pas encore de relais
auprès d’un large public. Ce type de copie comme la tapisserie de Guernica (ici
une version de 1975, mais il en existe deux autres de 1955 et de 1995) n’étaient
pratiquement jamais montrées dans le contexte des musées de Beaux-arts et a
fortiori des musées d’art moderne.
Pendant longtemps également les éditions de Marcel Duchamp n’étaient
pas considérées comme des œuvres à part entière, et plus récemment encore la réplique de La danse du pan-pan au «Monico» de 1909-1911, peinte vingt ans après
la disparition de la première version, par Gino Severini en 1959-1960, n’était pas
digne d’être montrée jusqu’alors; pourtant, elle figure aujourd’hui à Metz dans
«histoire de chefs d’œuvre».
Pour éclairer quelque peu le statut de telles œuvres, les considérations
de Walter Benjamin sur la survie des œuvres me semblent ici encore assez utiles,
si on ne les prend pas à la lettre: «L’ histoire des grandes œuvres d’art connait leur
filiation à partir des sources, leur création à l’ époque de l’artiste, et la période de leur
survie, en principe éternelle, dans les générations suivantes. Cette survie, lorsqu’elle a
lieu, se nomme gloire. Des traductions qui sont plus que des transmissions naissent,
lorsque, dans sa survie, une œuvre est arrivée à l’ époque de sa gloire.»247
Ce phénomène élémentaire de la démultiplication de l’œuvre du fait de
sa gloire qui, à la fois, conduit à la réplique, à l’interprétation, au sens de transposition dans un autre médium comme la gravure ou la tapisserie, et depuis de
nombreuses années maintenant à la pratique de la «matérialité intermittente», a
conduit à reconsidérer des œuvres passées et disparues mais non oubliées et à les
reconstituer.
Ainsi Chefs d’œuvre ? inclut aussi bien One and three chairs de Joseph Kosuth, qui fut souvent si mal présentée par le musée d’art moderne, et la maquette
du Monument à la IIIème internationale de Tatline.
La pièce de Kosuth est intégrée dans la présentation de «Rêves de chefs
d’œuvre» au 2ème étage. Elle figure sur un mur, à côté d’autres chefs d’œuvre
présentés comme tout aussi exemplaires, quand la cimaise opposée, découpée en
face de chacun d’entre eux, laisse entrevoir dans un passage parallèle un choix
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X X X Colóquio CBHA 2010
de documents principalement photographiques qui illustre diverses présentations
passées. Ainsi, d’une façon à la fois discrète et spectaculaire le commissaire de
l’exposition inscrit-il sa présentation comme une traduction nouvelle du chef
d’œuvre ainsi traité, comme un épisode de sa gloire et de sa survie.
Son intervention, celle du commissaire, est présentée comme d’autant
plus indispensable que par ailleurs l’exposition intègre l’évocation du Musée
imaginaire de Malraux. Dans une longue vitrine les livres de la bibliothèque
du célèbre auteur portent les stigmates du découpage des illustrations pour leur
montage en regard de son propre texte, et contribuent à se faire l’écho de la
dématérialisation des œuvres revendiquée par l’écrivain.
Ce premier parcours dans l’exposition au-delà de la notion de chef
d’œuvre nous a fait faire un premier inventaire de tout ce qui démultiplie les
œuvres, de ce qui les traduit et contribue à leur gloire pour les élever au grade
de chef d’œuvre. Je pourrais être mauvaise langue en soulignant combien la problématique présente l’avantage de pouvoir sortir des réserves des travaux que le
centre Pompidou n’aurait pas jugé digne d’exposer sur ses cimaises parisiennes.
Mais il me semble qu’au-delà des qualités réelles de ces objets, ce que propose
ce choix d’œuvres et de documents tend à faire prendre conscience de l’histoire
des traductions dans un monde changeant. En effet, la réplique ou la copie, la
tapisserie, l’édition comme Le Jazz de Matisse étaient autant d’effets indirects
de la gloire, où l’interprétation n’avait pour but que d’alimenter le marché sans
pour autant se substituer aux originaux que le musée devait s’efforcer de préserver
en en assurant la survie matérielle. Implicitement, le musée classait les éditions,
les esquisses, les dessins dans un département spécialisé, et les copies dans les
réserves, pour mieux valoriser les rares chefs d’œuvre survivants régulièrement
nettoyés, et entretenus. Et dans ce contexte, les œuvres ayant subi trop de restaurations étaient aussi gardées hors de la vue des visiteurs.
Puis, non pas sous l’effet de la réflexion de Malraux sur le musée imaginaire, mais sous celui de la double action de l’image photographique et de
l’effet de dématérialisation de l’exposition, et dans le contexte d’une relation plus
directe du musée avec les artistes, celui-ci a été amené, de façon quelquefois chaotique, à penser la survie des œuvres comme une production à nouveau, comme
un interprétation théâtrale.
Chefs d’œuvre? n’aborde que de façon marginale cette question avec des
exemples qui ne présentent pas trop de difficultés, comme les travaux de Martial
Raysse, Bruce Nauman ou Cadere. Pour autant, Laurent Le Bon n’est pas ignorant de travaux plus problématiques, comme par exemple l’exposition du Vide de
Klein. Il fut en effet co-commissaire de l’exposition Vides organisée par le Centre
Pompidou à Paris et la Kunsthalle de Berne en 2009. Avec la complicité de John
Armleder, Mathieu Copeland, Gustav Metzger, Mai-Thu Perret, Clive Phillpot
et Philippe Pirotte, il conçut une exposition dont les salles furent vides de toute
autre présentation que les seuls cartels de travaux évoqués de façon plus détaillée
dans un splendide et substantiel catalogue.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Vides a été présentée par le comité curatorial dans les termes suivants:
«L’exposition emblématique d’Yves Klein à Paris en 1958 à la galerie Iris Clert, un espace
essentiellement vide présenté comme tel au public, figure comme une des étapes incontournables de la modernité, à l’ instar de l’exposition des impressionnistes en 1874 chez Nadar, de
l’Armory Show de New York en 1913, de 0,10 (l’exposition futuriste avec les toiles suprématistes de Malevitch) en 1915 à Saint Petersbourg, du Cabaret Voltaire à Zurich en 1916, du
ready-made Fountain de (Duchamp-) R.Mutt réapparaissant à la galerie 291 après son rejet
du Salon de la Société des artistes indépendants à New York en 1917, ou encore de l’Exposition surréaliste de 1924 à Paris à la galerie Pierre, par exemple.»2
Bien que je ne sois pas vraiment d’accord avec l’interprétation, qui a
consisté à présenter des salles proprement vides sans s’interroger sur les conditions de réitération de telle ou telle réalisation bien concrète et datée de quelques
uns des artistes évoqués après Yves Klein comme Art & Language, Robert Barry,
Stanley Brown, Robert Irwin, Roman Ondák ou Laurie Parsons, il s’agissait là
d’un projet de première importance intervenant comme l’écrivait Walter Benjamin au moment où cette œuvre était arrivée à l’époque de sa gloire.
Une œuvre un peu particulière puisqu’elle est sans objet, listée dans
une série d’événements où précisément l’événement l’emporte sur l’objet. Une
œuvre dont personne pour autant personne ne conteste qu’il ne s’agisse pas là
d’une expérience esthétique forte dont on ne doute un instant qu’elle puisse être
vécue à nouveau. Or, la question que posait implicitement cette exposition Vides
n’était-elle pas: comment l’exposition initiale du vide pouvait survivre ? Sinon
par l’implication d’autant d’artistes, critiques, historiens d’art et commissaires
d’exposition dans l’élaboration d’une ou de plusieurs nouvelles traductions de
l’œuvre initiale.
Ce dont on prend conscience avec l’exposition Vides, et surtout après
avoir lu son catalogue, c’est que l’histoire du vide en exposition est pour le moins
plurielle.
C’est d’ailleurs ce que démontre indirectement le texte de Denys Riout
«Exaspérations, 1958» en mettant en évidence les tâtonnements d’Yves Klein et
ses difficultés à qualifier ce qu’il entreprenait en laissant formuler par Pierre Restany l’invitation sibylline suivante:
«Iris Clert vous convie à honorer, de toute votre présence affective, l’avènement lucide et positif d’un certain règne du sensible. Cette manifestation de synthèse perceptive sanctionne chez
Yves Klein la quête picturale d’une émotion extatique et immédiatement communicable».
Il devait ultérieurement dans sa conférence à la Sorbonne la nommer
«La sensibilité picturale à l’ état matière première, spécialisée en sensibilité picturale
stabilisée», puis, utiliser encore une autre formule dans son livre Le dépassement de
la problématique de l’art paru en 1959.
2
John Armleder, Mathieu Copeland, Gustav Metzger, Mai-Thu PERRET, Clive Phillpot, Vides. Une
rétrospective, Zürich, Genève, Paris: JRP/Ringier, Ecart Publications, Centre Pompidou, 2009, p.29.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Malgré ces hésitations, il apparaissait assez clairement que cette exposition avait nécessité une mise en œuvre complexe avec l’occultation de la vitrine,
la peinture de toutes les surfaces intérieures de la galerie en blanc à la manière des
monochromes, l’évacuation de tous les objets, l’accès par une porte dérobée, la
mise en place d’un cérémonial et le développement d’une dimension festive avec
la distribution d’un cocktail bleu.
Plus tard, il réalisa une autre présentation du vide lors de sa rétrospective au début de l’année 1961 à la Haus Lange à Krefeld où il s’empara de la
seule pièce sans fenêtre de la maison pour la peindre en blanc et où il céda à cette
occasion une des zones de sensibilité picturale immatérielle à Paul Wember, le
directeur du musée. Avec cette seconde présentation du vide s’ouvre l’association
entre la salle vide et la cession d’une zone de sensibilité picturale immatérielle
qui donnera lieu en mars 1962 à un décrochage de tableaux dans le cadre du
Salon Comparaisons au musée d’art moderne de la ville de Paris. Cette dernière
manifestation du vide que Mathieu Copeland considère comme la plus radicale
n’a pas marqué autant les esprits, pas plus que le théâtre du Vide qui fut l’occasion
de plusieurs développements dans le journal Dimanche publié par Yves Klein le
27 novembre 1960.
Les historiens d’art ne seront probablement jamais d’accord sur le sens
à donner à ces expositions, manifestations et déclarations, et même la conservation à Krefeld de ce cabinet blanc peint de la main de l’artiste ne suffit pas, par
sa survie matérielle, à fixer une version complète et légitime de cette irruption
inqualifiable d’Yves Klein dans l’histoire de l’art le 28 avril 1958.
En effet, si l’expérience du vide de Klein fut à la fois l’élévation de l’espace d’exposition, à celui d’espace sensoriel, l’acte radical d’éradication de toute
autre œuvre d’art que sa seule présence, ou encore le vide comme objet de transaction, mettant en balance la survie de la transaction elle-même et la destruction
de sa trace dans le cadre d’une expérience non reproductible, l’ensemble de ces
gestes furent documentés et, par là même, conservés dans la mémoire de l’art
telle qu’elle existe dans les livres et les musées.
La place que Brian O’Doherty donne à Yves Klein et à son exposition
du Vide traduit bien la fascination et l’embarras induit auprès de tous, artistes,
critiques, spectateurs. Il dresse d’abord un constat contradictoire:
«Les idées de Klein: un mélange dingo mais bizarrement persuasif de mysticisme, d’art et
de kitsch, battus ensemble. Son art, comme celui de tout illuminé qui a réussi, soulève une
fois de plus le problème de la distinction des objets d’art et des reliques d’un culte. C’est
une œuvre généreuse, riche d’utopie et d’obsession, ayant sa part de transcendance. En une
apothéose communicationnelle qui vira à la communion, il fit l’offrande de lui-même et il
fut consommé. Mais comme Piero Manzoni, il fut un initiateur, très européen, débordant
de mépris métaphysique pour le matérialisme bourgeois dernier cri -- la vie thésaurisée sur
catalogue de meubles.»3
3
Bryan 0’Doherty, White cube. L’espace de la galerie et son idéologie, Zürich: JRP/Ringier,2008, p.123
47
X X X Colóquio CBHA 2010
Et, après avoir accumulé ces compliments, O’Doherty ne peut que
s’étonner de la survie du Vide:
«Plus le temps passe plus le geste de Klein trouve son succès.»4
Ici se révèlent deux choses: d’une part la difficulté à contenir dans une
histoire la question de l’espace de la galerie saisie par les artistes et, d’autre part,
le caractère inexplicable de la survie d’un événement vide et à jamais passé, bien
que partiellement attesté par quelques traces.
Cette saisie de l’espace de la galerie comme problématique artistique
est entendue par O’Doherty comme une manifestation du modernisme tardif,
mais néanmoins son ouvrage, qui est plus complet dans sa traduction française
que dans sa version américaine, se présente comme une reprise de la même question dans une succession d’éclairages ou d’angles d’attaque différents. Après ses
«Notes sur l’espace de la galerie» publiées dans Artforum de mars 1976, suivent
«L’œil et le spectateur» en avril, puis «Le Contexte comme contenu» en novembre. Il
faut ensuite attendre 1981 pour «La galerie comme geste» où il parle de Klein avant
que ne sorte en 2007 «L’atelier et le cube». Informé de l’histoire, O’Doherty est
à la fois un théoricien qui sonde le potentiel de ces questions en tant que projets
artistiques, un critique qui redistribue le sens perçu de cette boîte blanche pour le
penser avec l’actualité de l’art dont il suit les derniers développements, mais il ne
s’érige jamais en détenteur de quelque vérité comme pourrait y aspirer l’historien
d’art.
Témoigne de cette ouverture, cette réflexion sur l’espace des musées et
galeries immédiatement formulée avec l’évocation de l’exposition de Klein:
«Les musées et les galeries occupent une position paradoxale, ils rendent publics les produits
susceptibles d’ élargir la conscience, et ils contribuent ainsi, généreusement, à l’ indispensable
anesthésie des masses – sous couvert de divertissement, à la grâce du laisser-faire appliqué au
loisir. Rien de tout cela, dois-je ajouter, ne me paraît particulièrement choquant ou nocif:
quant aux alternatives, leur volonté de réforme regorge d’ hypocrisie.»5
Par ce constat, nous voici rendu dans une zone que s’interdisait Walter
Benjamin en refusant tout public déterminé. Il nous faudra donc revenir sur le
triptyque formé par le vide, le public, et le musée.
Auparavant je voudrais évoquer deux artistes qui ont affronté cette question du vide et qui d’une certaine manière ont contribué à actualiser la proposition de Klein à leur manière. Le premier est Philippe Thomas qui, sous couvert
de l’agence Les readymade appartiennent à tout le monde©, a réalisé l’exposition Feux Pâles Une pièce à conviction au Capc/Musée d’art contemporain de
Bordeaux fin 1990, début 1991. Cette exposition présentait la particularité de
transformer tous les interlocuteurs de l’artiste (collectionneurs, critiques, commissaires, historiens d’art, marchands) en co-auteurs de son travail. Il s’y intéres4
Idem
5
Idem p.124
48
X X X Colóquio CBHA 2010
sait à la disparition de l’auteur, de l’œuvre, et de l’objet en incluant dans un même
ensemble les travaux de ses prédécesseurs et les siens propres. Aussi, l’exposition
intégrait-elle dans certaines salles thématiques, par exemple, un retour en arrière
sur la fin de l’objet d’art voire sur sa disparition. Après une salle intitulée «L’art
d’accommoder les restes» où l’on pouvait voir les travaux suivants: Der Spiegel,
saucisse littéraire, 1970 de Dieter Roth, un tableau-piège de Spoerri, Merde d’artiste de Piero Manzoni ou Fontaine de Marcel Duchamp (1917-1964), on pouvait
accéder à la salle intitulée «Le musée sans objet» qui donnait à voir un petit livre
de Jan Dibbets Domaine d’un rouge-gorge/sculpture, 1969 NewYork, Cologne:
Seth Siegelaub, Walter König, une feuille dactylographiée et signée de Ian Wilson There is a discussion, 1979, musée national d’art moderne, une photographie
de la Spiral Jetty de Smithson, 1970, collection Ludwig, Aix le Chapelle, le carton
d’invitation de l’exposition Richard Long, Konrad Fischer en 1968 à Düsseldorf
et le cahier de dessin à spirale contenant le texte de la conférence de Klein à la
Sorbonne ouvert à la page où il évoque l’exposition du vide.
Ainsi, par son choix, Philippe Thomas donnait à voir des documents
visuels, ou des récits ou des annonces, ou des certificats d’œuvres d’art absentes,
qui ne constituaient pas pour autant des objets d’art, même si depuis le musée
a fait passer ces reliques ou ces documents du côté des objets de sa collection
rendant ainsi poreux les catalogues du musée et ceux de sa bibliothèque ou documentation. Avec cette salle, Philippe Thomas rassemblait les tentatives multiples
de déplacement de l’attention hors du lieu public de l’art (quelque part dans le
paysage avec Long, Smithson, mais aussi Dibbets) sans que ce lieu ne soit accessible autrement que dans les espaces conventionnels de l’art où Ian Wilson et Yves
Klein nous disaient qu’il se passait quelque chose malgré l’absence de tout objet
proposé au regard.
Cette actualisation du Vide de Klein fut la responsabilité de Philippe
Thomas, ce n’était pas une reprise ou une réplique de l’exposition d’avril 1958,
mais je présume que je peux parler ici avec Benjamin d’une traduction contribuant à sa survie. Bien que je ne sois pas convaincu que toutes les expositions
vides ou presque vides soient une actualisation/traduction du travail de Klein,
et notamment parmi elles tous les exemples documentés dans l’exposition Vides
au Centre Pompidou, nombre d’entre elles ont indéniablement remué les mêmes
problématiques ne serait-ce que marginalement. Sur ce constat, je peux ainsi
faire la part entre tel ou tel traducteur. Ainsi Philippe Thomas agit sous sa propre
responsabilité quand il réfère au Vide de Klein, quand on doit à l’un des commissaires de Vides au Centre Pompidou la mise en relation entre Klein et par exemple
Robert Barry lâchant un gaz dans l’atmosphère. Philippe Thomas résume d’ailleurs assez bien cela dans une formule où il revendique l’importance du cartel:
«Un cartel aujourd’ hui ne réfère pas à une pièce – ou du moins il n’y réfère plus nécessairement – pour marquer l’ identité de celui qui l’a faite(une main !); mais pour établir la
responsabilité de celui qui la montre. Autrement dit: il y a comme un décollement ou un
déplacement de la relation de référence; au lieu de s’attarder sur les aléas d’une fabrication, ou
même d’une conception, dont l’artiste s’est historiquement dessaisi, celle-ci n’a d’autre solution
que de se porter sur le seul trait pertinent qui lui reste: l’exposition, qu’elle continue en effet
49
X X X Colóquio CBHA 2010
à vouloir attribuer.» 6
Je laisse la responsabilité de cette conception à Philippe Thomas, mais
elle a la redoutable efficacité de mettre en évidence qu’indirectement les cartels
de l’exposition «Vides» à Beaubourg référaient plus aux co-commissaires qu’aux
artistes évoqués par ceux-ci dans le catalogue. Le principal d’entre eux n’hésitait
à écrire, alors qu’il pouvait avoir lu l’ouvrage d’O’Doherty dans lequel celle-ci
prenait ses distances vis-à-vis de la généralisation un peu trop confortable de la
critique institutionnelle, les propos suivants:
«Le projet n’a d’ intérêt que dans sa réalisation dans une institution de renommée internationale, légitimant cinquante ans d’expériences du vide artistique, comme une rétrospective
traditionnelle.»7
Même si l’on peut considérer comme tout à fait incontournable l’exposition du Vide de 1958, tant elle est devenue emblématique, c’est-à-dire porteuse de
nombreuses questions et ambitions quant à l’espace de l’art et à sa socialisation,
je ne considère pas toutes ses citations ou actualisations comme équivalentes et
de même que Benjamin le pense à propos de la traduction je voudrais encore
examiner un exemple avant de conclure.
«Pour saisir le rapport authentique entre original et traduction, il faut procéder à un examen
dont le propos est tout à fait analogue aux raisonnements par lesquels la critique de la connaissance doit démontrer l’ impossibilité de la théorie du reflet. De même que, là, on montre qu’ il
ne saurait y avoir dans la connaissance, si elle consistait en reflets du réel, aucune objectivité,
ni même prétention à l’objectivité, ici, on peut prouver qu’aucune traduction ne serait possible si son essence ultime était de vouloir ressembler à l’original. Car dans sa survie, qui ne
mériterait pas ce nom si elle n’ était mutation et renouveau du vivant, l’original se modifie.»8
Cette modification est, je le crois, légitime, et il me semble que BenoîtMarie Moriceau l’est aussi dans son travail intitulé Novo ex Novo, réalisé à Rennes
en 2005. Son installation consistait dans l’aménagement d’un cube blanc sinon
parfait du moins plus régulier que ne l’étaient les locaux de la galerie associative
qui l’invitait. Il recouvrit ensuite la vitrine de blanc d’Espagne pour la rendre
opaque. Le visiteur qui rentrait dans cette pièce la trouvait totalement vide, mais
il pouvait deviner s’il était un peu curieux que quelque chose l’attendait derrière
la porte au fond de la pièce. S’il poussait cette porte, il tombait après un sas
devant une autre porte. En ouvrant celle-là, il pouvait pénétrer dans une nouvelle
salle complètement identique à celle qu’il venait de quitter. Par ce dédoublement
de la galerie Benoit-Marie Moriceau nous fait comprendre, avec O’Doherty, que
l’espace dans lequel il travaille est codé et que c’est la condition de l’artiste et du
spectateur de ses œuvres d’y jouer leurs rôles respectifs. Cet espace est codé et
6
Laura Carpenter, Insights, Paris: éditions Claire Burrus, 1990
7
Laurent Le Bon,”Qui ne risque rien n’a rien» in Vides, p.163
8
Walter Benjamin, «La tâche du traducteur» in Œuvres I, p.249
50
X X X Colóquio CBHA 2010
neutre à la fois. A force d’être investi en tant qu’objet de travail artistique, il est
devenu une forme signifiante habitée par d’autres. Ainsi la galerie est un cadre
ouvert et disponible, mais elle déjà occupée par quelqu’un d’autre, à savoir la
foule des prédécesseurs émules d’Yves Klein, et d’une certaine manière BenoîtMarie Moriceau nous parle de cette foule et montre à sa manière l’inanité de
nombre de ces déclinaisons du Vide ou plus exactement de son souhait de dépasser ce qui lui semble devenu une aporie. Avce Novo ex novo, Benoît-Marie Moriceau assume, pour paraphraser Yves Klein, Le dépassement de la problématique
du vide, tout en considérant que le white cube est une forme qu’il peut manipuler
et faire parler à sa manière.
Contrairement à Yves Klein, Benoît-Marie Moriceau n’a pas imaginé un
rituel particulier, la visite de Novo ex Novo se déroule comme une visite ordinaire
de galerie ou d’exposition, mais la socialisation de son travail est déjà présente
dans ce dédoublement qui parle de toutes les traductions du Vide d’Yves Klein
qui l’ont conduit à devoir affronter sans détour le cube blanc.
En tant qu’historien d’art, j’ai la profonde conviction que les œuvres ne
prennent place dans le temps que pour autant qu’elles sont socialisées, j’ai notamment la plus grande réserve vis-à-vis de toute les démarches qui essentialisent le
travail d’un artiste et il me semble que je peux tirer quelque leçon de ces propos
écrit en 1890 par Gabriel Tarde: «Le nominalisme est la doctrine d’après laquelle
les individus sont les seules réalités qui comptent; et par individus il faut entendre les
êtres envisagés par leur côté différentiel. Le réalisme, à l’ inverse, ne considère comme
dignes d’attention et du nom de réalité, dans un individu donné, que les caractères
par lesquels il ressemble à d’autres individus et tend à se reproduire dans d’autres
individus semblables.»9
Je ne transposerai pas littéralement cette distinction entre nominalisme
et réalisme, mais à l’ère de la dématérialisation de l’œuvre dans l’espace public
de la galerie ou du musée, où beaucoup conviennent qu’il est devenu difficile
de continuer à considérer les artistes comme de purs individus exceptionnels
et isolés, et leurs œuvres comme des émanations de leur pur génie, on est loin
encore de pouvoir décrire aisément comment les traducteurs multiples intercèdent ou font obstacle à notre appropriation de l’œuvre, ni comment chacun à leur
manière ils peuvent être légitimes ou au contraire trop bavards.
J’ai essayé, dans le parcours que je vous ai proposé, de mettre en évidence comment le public de masse dont nous sommes tous à la fois partie et distinct par nos compétences propres n’accède aux œuvres que pour autant qu’elles
sont interprétées, traduites, reproduites, reconstituées et que ces traductions ne se
succèdent que pour autant que nous les acceptons. On l’a vu, les artistes, les marchands, les commissaires d’exposition, les critiques sont les premiers traducteurs,
mais l’historien d’art que peut-il faire sinon articuler nominalisme et réalisme
en décrivant comment fait sens l’articulation de la dimension différentielle des
œuvres aux reproductions ou traductions qui assurent leur gloire et leur survie.
Mais même dans cette tache, qui n’est pas plus achevée que le cycle des traductions, l’historien d’art doit conjuguer la construction d’une mémoire des enjeux
9
Gabriel Tarde, Les lois de l’imitation, Paris: Les empêcheurs de penser en rond, 2001 (1890), p.67
51
X X X Colóquio CBHA 2010
initiaux de l’œuvre avec un regard critique sur les traductions nouvelles. Ainsi
s’opposent très fortement la question ouverte par le vide final de l’exposition
Chefs d’œuvre? nous renvoyant à l’histoire par l’inachèvement de son propos sur
la scénographie de la cathédrale de Metz et l’exposition This is not a void proposée
par Jens Hoffmann à la galerie Luisa Strina en 2008, en réaction au vide laissé là
encore sans contenu véritable de la 28ème Biennale de São Paulo.
52
X X X Colóquio CBHA 2010
Arte Colonial Brasileira:
lacunas e abrangência;
análise e métodos
de aproximação
Yacy-Ara Froner
UFMG
Sob quais critérios, métodos e dispositivos podemos nos aproximar da obra de
arte? Para a Filosofia, a base estética propõe uma reflexão permeada pela formalização do juízo crítico e constituição dos modelos de apreciação, parte da sistematização do pensamento e da ampliação dos seus princípios constitutivos; para
a História da Arte, a definição dos métodos de análise e sua contextualização
histórica compreendem as relações entre a produção cultural e o sistema social;
inicialmente forjada na ideia clássica de obra prima, atualmente entende a cultura material para além das relações documento, monumento e obra de arte. Tudo
é produto do suporte e da forma. É um produto da arte tudo aquilo cuja forma reside
na alma (ARISTÓTELES, Metafísica, VII). Da unidade poética aristotélica, a
Estética e a História da Arte moderna edificaram uma linha de pensamento pautado pelo espírito do tempo (zeitgeist). Desse princípio, surge a Teoria da Visibilidade Pura focada no componente expressivo construído por meio dos padrões de
representação, cuja abordagem teórica desenvolve o conceito de que a História da
Arte deveria ser fundamentalmente uma História dos Estilos, e não uma história
dos autores individuais.
O método formalista conduzido pela escola vienense teve como principais interlocutores Fiedler (1841-1891), Riegl (1858-1905), Wölfflin (1864-1945)
e Dvorak (1874-1921). Por meio desses autores, o componente visual das obras
de arte constituiria uma “gramática” sob a qual as modalidades visuais poderiam
ser sistematizadas por meio de conjuntos coesos; reunidas em condições de reciprocidade – espaço, tempo e forma –, as produções artísticas comporiam modelos observáveis, metodologicamente passíveis de análise por meio do esquema
visual. No Brasil, o estudo da arte colonial sempre esteve ancorado nos princípios
formalistas de identificação das tipologias e das diferenças regionais. Aportada
principalmente nas bases fundamentais da Escola de Viena, encontrou na sucessão dos estilos e no confronto dos sistemas visuais a base primordial de interlocução. Parte da proposição de autores formadores das estruturas conceituais da
arte brasileira, como Hanna Levy Deinhard (1912-1984), Sylvio de Vasconcellos
(1916-1979), Hélio Gravatá (1910-1994), Mário Barata (1915-1983), Carlos Ott
(1908-1997), Clarival do Prado Valladares (1919-1983), Germain Bazin (19011990), Lourival Gomes Machado (1917-1967) dentre tantos outros nomes, e sua
atuação na pesquisa, formação de arquivos e publicações em torno do patrimônio
colonial brasileiro.
53
X X X Colóquio CBHA 2010
A influência a teoria da Pura Visualidade na produção em História da
Arte do Brasil no século XX ocorre principalmente pelo trabalho da pesquisadora Hanna Levy no IPHAN. Entre suas principais contribuições – Henri Wölfflin:
As théorie. Ses prédecesseurs (1936); Sur la necessite d1une sociologie de l’art (1937),
Valor Artístico e valor histórico (1940); A propósito de três teorias sobre o barroco
(1941); A pintura colonial no Rio de Janeiro (1942); Modelos europeus na pintura
colonial (1944); Retratos coloniais (1952) e Problemas en torno de la historia del
arte brasileña (1947) – destaca-se a passagem do método formalista para o método
sociológico, sem uma estruturação de conflito1.
Contudo, estes autores, imersos na construção de uma identidade nacional – em contextos históricos distintos, o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura
Militar (1964-1985) –, procuraram nos princípios definidores da arte europeia a
base de conceituação da arte produzida no período colonial (1500-1808). Dados
a extensão territorial e o alargamento temporal deste período, muitas vezes o
princípio formalista de análise não corresponde à temporalidade dos estilos na
Europa, nem tampouco aos esquemas visuais pré-estabelecidos.
Não se trata de desmerecer a longa contribuição que o método trouxe
à compreensão da arte, mas alargar critérios que o mantenha significativo no
computo das investigações do século XXI. Sua justificativa maior é a carência de
estudos como a revisão proposta por Freire2 e a demanda de uma sistematização
ampliada das produções coloniais. Se o projeto formalista buscou ao longo da
História da Arte no Brasil a construção, ao menos, de uma identidade regional,
poucas publicações deram conta de aprofundar esta problemática.
Considerando, porém, a validade da aproximação formalista, cabe observar os limites desse princípio analítico e quais contribuições reais esse método
têm para a História da Arte Colonial Brasileira. Até que ponto os estudos acerca
das modulações das rocailles ou das bases das perspectivas proporcionam um
olhar ampliado sobre o mundo colonial português? Qual o contato e a fratura
entre os distintos espaços desse império? Toda imagem é sempre uma imagem
carregada de questões subliminares como poder, submissão e transgressão; parte
de escolhas culturais construídas na tradição e, como lembra Walter Benjamin,
nunca houve um monumento à cultura que não fosse também um monumento à barbárie3. Da dicotomia entre barbárie e civilização, poder e submissão, que os contextos coloniais possibilitam a percepção de uma circularidade e/ou hibridismo
entre a cultura popular e a cultura erudita a partir das mãos de seus produtores
das artes4.
Os registros de imagem mantêm relações complexas com a sociedade da
qual partem e por meio de mecanismos de circularidade fazem uso tanto de sistemas de representação institucionalizados pelo processo de colonização, quanto
dos sistemas advindos dos grupos que participam de sua construção material e
1
HUDSON-Wiedenmann, 2005.
2
FREIRE, 2006.
3
BENJAMIN, 1987, p.225
4
FRONER, 2004
54
X X X Colóquio CBHA 2010
ritual. Ao contrário do que afirma Argan em Arte e Persuasão5, o distanciamento
entre a matriz intelectual europeia e o mundo colonial não conduz ao esvaziamento do caráter alegórico das imagens produzidas nesse período. A arte colonial
pode ser vista por meio das contaminações, ressignificações e da capacidade de
alterar a matriz visual imagética europeia, estabelecendo uma identidade visual
com propriedades distintas e dinâmicas dentro desse meio social.
Se não há grau de comparação entre a pintura de Rubens e de Athayde, não é porque entre
ambas há uma distinção de ordem técnica-formal, mas porque partem de contextos distintos
e firmam-se através de valores circunstanciados à sua projeção de lugar 6 .
Aliado à dificuldade de um olhar ampliado sobre o contexto, cada vez
mais o patrimônio artístico e arquitetônico do período colonial tem sofrido a
degradação devido ao abandono, descaso e falta de investimentos. Assim, mais
do que nunca a produção artística e arquitetônica do período colonial se vê fragilizada. Além disso, há nesse campo dos estudos duas lacunas exemplares: falta-nos uma revisão da literatura por meio de uma compreensão historiográfica
dos textos construídos em torno deste tema de pesquisa, considerando as bases
epistemológicas e os sistemas teóricos que subsidiaram a análise dos principais estudiosos da área; como também há um vazio em torno das análises iconográficas
e sua significação no campo das possibilidades de escolha no âmbito da devotio
moderna e da mentalidade colonial.
O método Iconológico/Iconográfico pautado pelas pesquisas de Warburg
(1866-1919), Panofsky (1892-1968), Saxl (1890-1948) e Wittkower (1901-1971)
ecoam timidamente nas pesquisas acerca da arte colonial brasileira. Naturalmente associada ao método formalista, a base iconográfica serve à identificação
da representação. Não há, porém estudos aprofundados sobre a intencionalidade
e o significado da regularidade de determinados programas, ícones, alegorias e
emblemas. Apenas um mapa conceitual sobre a primazia de determinados programas iconográficos – um projeto iconológico – poderia proporcionar uma visão
das bases ideológicas, das mentalidades e dos padrões de reflexão da arte colonial
brasileira. Não se trata de entender a realidade colonial como um universo coeso, mas, dentro da diversidade, investigar as possibilidades de manifestação no
período.
O método Iconológico/Iconográfico
Quais são os limites e as possibilidades do método Iconológico/Iconográfico no
âmbito da História da Arte atual? Como se insere na Historiografia da Arte? Sobre quais bases construiu seu discurso e quais foram seus detratores nas últimas
décadas? Em qual contexto pode ser aplicado?
Questões! Sempre são questões que nos movem na pesquisa histórica.
Destas questões, a dúvida, a crença, as tendências, a anacronia e a sintonia das
disposições...
5
ARGAN, 2004
6
FRONER, 2009, p. 49
55
X X X Colóquio CBHA 2010
Na primeira metade do século XX, estudiosos herdeiros de uma tradição wargburguiana procuraram interpretar as variadas configurações simbólicas
presentes nas artes visuais, considerando suas relações narrativas, alterações de
significado e variações iconográficas na busca de um método de análise fundamentado em bases históricas7. As fontes estruturais são anteriores, remontam
aos princípios discutidos por Filostrato no texto Imagens (Eikon, c.170 a.C.) – de
onde emerge a palavra iconografia, eikon e graphein (gravar/escrever por meio da
imagem), – no qual ele estabelece uma síntese dialética para a superação da mimesis de Aristóteles e do eidos de Platão: se a imitação ocorre no plano material, a
imagem, que é mental, ocorre no plano da consciência. Para Filostrato, a imagem
mental opera por analogia: o conceito/forma (eidos) que conforma o pensamento
parte de uma construção que depende da consciência, do conhecimento e da
experiência anterior (phainomenon). A imagem só se realiza por meio da confrontação de análogos observáveis: a imagem mental de uma cadeira demanda
a construção cognoscível de “cadeira” e a comparação analógica em relação de
visualidade do objeto adquirido pela experiência. Por analogia é que o olho reconhece na abstração bidimensional ou tridimensional da imagem – do desenho,
da pintura, da escultura – os referenciais singulares. Matéria, linha, cor, sombra,
luz e códigos são decifrados por meio da experiência visual (sensação) e convertidos em significado. Este significado pode ser apreendido pela correspondência
de função, uso e forma, como também por meio de um sentido construído culturalmente – o símbolo, a alegoria, a parábola e a metáfora. Assim, de simples
objeto uma cadeira por se tornar um signo de poder: o trono de um rei. O ícone
ou a imago é a interface entre a mimesis e o eidos; opera pela experiência do real,
mas por analogia constitui o mental. Depende da linguagem enquanto conceito
e da imagem como metáfora.
A arte da imitação é dupla, um dos seus aspectos é o uso das mãos e da mente, para produzir
imitações e outro a produção de semelhanças só pela mente. A mente do observador tem sua
parte na imitação. (...) ninguém será capaz de entender um cavalo ou um touro pintado se
nunca viu tais criaturas antes8 .
(...) Assim, por meio da arte, reúne-se em um único e mesmo objeto o
que se achava disperso em vários9.
Desta base introdutória, o componente cultural da narrativa encontrava
na dobra sobre o visível – cognoscível – e o invisível – a imaginação – os elementos essenciais de permuta que permitiam o diálogo entre a imagem e o espectador. Traduzida por meio de uma linguagem acessível sediada na tradição, a
produção artística produziria significados gerenciados em um contexto coletivo.
Desde que a modernidade rompeu com o dispositivo narrativo da obra
de arte, o componente da representação calcado no contexto da tradição cultural,
construído por meio da interpretação do texto mítico, religioso ou histórico, pa7
BIALOSTOCKI, 1973
8
FILOSTRATO apud GOMBRICH, 1986, p.159
9
PANOFSKY, 1994, p.20
56
X X X Colóquio CBHA 2010
rece invalidar a capacidade deste método alargar suas bases de projeção. No início dos anos sessenta, diversos teóricos desqualificaram o método, afirmando que
os mecanismos da língua e da figuração não são redutíveis uns aos outros10. As
mais densas críticas apontavam para os protocolos de decodificação da imagem
simbólica por meio da textualidade, e o componente de dependência que o método tinha em relação à literatura disponível. Acusado de filologismo, o método
pareceu anacrônico diante da modernidade anunciada. Se a literatura fornece a
sustentação às premissas conceituais, isto é porque em ambas as linguagens – literatura e artes visuais – encontram-se presentes os indícios de uma mentalidade,
uma estrutura e um modelo de composição narrativo-simbólica11. Em La Carne,
il Diavolo e la Morte nella letteratura romantica (1930), Praz encontra nas metáforas literárias os signos visuais de uma época12; mas é em Estudios de Emblemática
que o autor demarca o confronto de articulações entre a literatura e as artes visuais produzidas no período moderno: por meio de uma ampla seleção de imagens
fundamentalmente provenientes de tratados, percebe a extrema cumplicidade,
a aderência dos sentidos e a correspondência de significados que determinam a
reciprocidade entre distintas formas de manifestação artística.
Ao contrário do que se imagina, os tratados não são meros esquemas de
normatizações decorativas, mas testemunhos substanciais de programas filosóficos e mentais de uma época: obras fundamentais como Hieroglyphica de Horapollo (séc. IV), Hypnerotomachia Poliphili de Francesco Colonna (1467) e o Emblemata de Alciato (1531), constituem a cultura visual e filosófica de um período
fundamental da História da Arte e da tradição humanista, como foi o barroco.
A península ibérica constituía um campo privilegiado para a manifestação desse gênero literário: eruditos, como o padre jesuíta Claude-Francois Menestrier (1631-1705), Silvestro Pietrasanta (1590-1647), Giovanni Ferro (1582-1630),
Paolo Aresi (1574-1644) ou Filippo Picinelli (1604-ca. 1667), sublinhavam já
no século XVII o jogo conceitual disposto no meio intelectual a partir dessa
tipologia literária que reunia imagens e texto por meio de um projeto distinto
da iluminura medieval13. Se autores contemporâneos como Santiago Sebástian^F
dão sustentabilidade a esta tese, considerando o levantamento da tratadística em
suas pesquisas, poucos historiadores da arte portugueses ou brasileiros detêm um
levantamento substancial das bases literárias que deram suporte aos programas
visuais dispostos tanto nas artes gráficas, quanto nas artes decorativas das igrejas,
conventos ou espaços seculares. É incontestável a percepção de que as estampas,
gravuras e impressões – avulsa, em séries ou inclusa em livros (missais, breviários,
manuais...) – tenham sido um dos veículos mais importantes para a divulgação
do imaginário desse período.
No Brasil, levantamentos pontuais confirmam a presença dessa tratadística: Hannah Levy, em Modelos europeus na pintura colonial (1978); Carlos
Ott, em Escola Baiana de Pintura (1982) e Clarival do Prado Valladares, Arte e
10
FRANCASTEL, 1982
11
BARTHES, 1971
12
FRONER, 2008
13
PRAZ, 1989
57
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Sociedade nos Cemitérios Brasileiros (1972) constroem seus estudos por meio do
encontro com textos clássicos. É importante ressaltar a contribuição da análise
literária, por meio da crítica genética, ao estudo das artes visuais no período
colonial. Autores como Affonso Ávila João (1928-) – O Lúdico e as Projeções do
Barroco (1971) –, Adolfo Hansen (1942-) – Teatro da Memória: monumento barroco e retórica (1996); Alegoria construção e interpretação da metáfora (2006) – e
Alfredo Bosi (1936-) – Dialética da colonização (1992) – ampliam o panorama da
arte nesse período.
Considerações finais
Na entrada do século XXI, a História da Arte Brasileira passa por um revisionismo e uma busca de identidade. Evidentemente, a cultura do século XX que
morre com o milênio, tem a necessidade ou o gosto de fazer balanços consecutivos e
preventivos, alerta Giulio Carlo Argan14. No nosso caso, esses balanços são indispensáveis, uma vez que corremos o risco de perder subsídios para o entendimento
da produção intelectual gestada.
Não se trata da composição de bancos virtuais com verbetes aleatórios e
dados acerca da produção dos autores, mas pesquisas historiográficas que deem
conta do significado, da amplitude e dos limites, do entrecruzamento e das posições – ideológicas, conceituais e metodológicas – que configuraram toda uma
geração de estudiosos da arte colonial. Essa geração nasce na primeira metade do
século XX e, a grande maioria, morre apenas ao seu final. Atuando como professores, administradores de instituições culturais públicas, editores ou pesquisadores autônomos influenciaram e são referência para a geração atual.
Para a Historiografia da Arte, a capacidade de compreender os relatos
de um discurso interno demanda um esforço reflexivo de grande envergadura.
Foucault afirma em sua obra “As palavras e as coisas” (1989) que cada época constrói estruturas de saber constituído a partir de um repertório crítico, analítico e conceitual cognoscível,
partilhado por um mesmo sistema de ideias disponíveis naquele momento. Mesmo quando
trabalhamos com um regime de oposições, estas oposições ocorrem mediante a presença de
princípios ontológicos existentes, fazendo com que muitas questões existam de acordo com um
sistema global de ideias. Há uma dificuldade de se mapear as proposições epistemológicas em
História da Arte no Brasil, uma vez que o debate crítico, ora insipiente, ora operado por modismos de um olhar estrangeiro que “ descobre” o Brasil, ora concentrado em algumas regiões
não constrói este regime de oposições indispensável ao debate de ideias^F.
Fluxos, este é o tema do CBHA neste ano. É indispensável caminhar,
fluir por entre territórios. Direção e sentido. Saber de onde se fala, quais territórios são compartilhamos, quão distantes ou próximos estamos da circularidade
do pensamento intelectual, quais caminhos flutuam por entre as passagens, as
frestas, as veredas. Para a História da Arte Colonial, conhecer os interlocutores,
os temas exemplares, as lacunas e as bases conceituais e metodológicas sobre as
quais se estabeleceu todo o discurso forjado, significa compreender este caminho.
14
ARGAN, 1995, p.9
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Saber das lacunas e da abrangência; das possibilidades de análise e dos métodos
de aproximação, principalmente relacionados às bases introdutórias formalistas e
iconográficas/iconológicas nos possibilita ampliar as questões já postas.
A imagem é acústica, repercute, ecoa, transpassa. Não se trata de desmontar a tradição, mas de perceber em que ponto e em qual medida ela atravessa
nosso olhar.
Referências Bibliográficas
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SEBÁSTIAN, S. El Barroco ibero americano; mensaje iconográfico. Madrid: Ed.
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Arte e imagem:
contextos,
migrações,
contaminações
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Obra, fluxo, acontecimento
Alexandre Emerick Neves
UFES
Resumo
Acontecimentos em aberto e francamente subordinados ao espectador, presumindo novos acontecimentos, transmutando-se na
multiplicidade de atores e gestos prováveis e improváveis, é o que
nos sugerem boa parte das obras de arte contemporâneas. Com
as possibilidades de ações inusitadas no vídeo e no filme temos o
surgimento de acontecimentos singulares, intuímos a identificação
do tempo real como o tempo da experiência com o acontecimento.
Palavras chave
Fluxo temporal; acontecimento; Arte Contemporânea
Abstract
An happening open and directly subordinated to the viewer, assuming new happenings, transmuting the multiplicity of actors
and gestures probable and improbable, is what we suggest much
of the contemporary works of art. Taking the unusual possibilities
of actions in video and film, we sense the emergence of singular
happenings in the identification of the real time as the time of the
experience with the happening.
Keywords
temporal flux; happening; Contemporary Art
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Em nosso meio crítico Mário Pedrosa não se limita a acompanhar o amadurecimento das propostas abstracionistas em meados do século XX, assume também
o enfrentamento da voragem de tendências, Referências e experiências da Nova
Objetividade Brasileira alinhavada em Opiniões e Propostas. Pedrosa aponta um
elo de passagem que se apóia justamente nas distensões formalistas de artistas
sob a influência da arte concreta e que se desdobram nas experiências do Neoconcretismo, segundo a perspicácia do crítico, um movimento “cuja intuição fundamental esteve na descoberta do tempo”.1 Na percepção de Pedrosa, Lygia Clark
teria sido a primeira a estreitar a identificação do espaço da obra com o espaço
real, cujos desdobramentos junto a seus contemporâneos implicariam em obras
dobradiças e maleáveis, em compartimentos e labirintos, para mexer, vestir, explorar e eclodir, características exaltadas por Pedrosa de modo exemplar na arte
ambiental de Hélio Oiticica. Igualmente comparando as manifestações artísticas
contemporâneas com os aspectos plástico-formais da arte modernista, que ele
situa entre Demoiselles d’Avignon e a Pop Art, Pedrosa vislumbra no elemento
situacional o potencial daquilo que seria uma arte pós-moderna.2
Estou propondo um percurso que examine algumas características do
tratamento da questão da temporalidade na obra de arte contemporânea, o que
muitas vezes perpassa a idéia de acontecimento. O movimento ou sua possibilidade na obra de Richard Serra pode também ser assinalado neste ponto inicial da
questão. Por vezes sugerido pela tensão em algumas de suas esculturas, o movimento difere da ação como gesto humano, mas apresenta-se como um acontecimento físico autônomo. Estamos próximos da crítica de Donald Judd em relação
à escultura de Mark di Suvero - seu alvo era de fato todo o formalismo modernista - salientando que suas obras são carregadas de gestos e movimentos naturalistas, de aspecto antropomórfico. Nas relações postas, as partes constituintes das
esculturas de Serra tencionam-se, sobressai o jogo de forças, gravidade, peso, um
equilíbrio frágil que aponta para a possibilidade de uma nova configuração para
o sistema, um acontecimento possível devido às forças do sistema denunciadas
pelo arranjo. A consciência do observador é tomada por justaposições e empilhamentos tidos como possibilidades de acontecimentos autônomos.
A trama de relações estabelecida com objetos do cotidiano deriva do
repertório de ações artísticas que evocam a noção de acontecimento. A obra
FAUUFRJ69, de 1969, de Umberto Costa Barros, parece legitimar a idéia de
acontecimento, chegando a ser comentada por Ronaldo Brito como um evento^F.
Bancos ligeiramente equilibrados um sobre o outro somente apoiados pelo mínimo contato de um de seus pés, pranchetas desenvolvendo elevações instáveis com
a articulação de seus planos, arranjos atípicos que proporcionam um enlace entre
um inicial desconforto e um prazer decorrente, em derivação do embate proposto
com as ciosas e o lugar. Por tratar-se de empilhamentos de mobília típica das salas
de aula de desenho, de arte ou de arquitetura, a obra dilata o desejo do artista
em sugerir acontecimentos inusitados, além da proposição da reflexão acerca do
1
Mário Pedrosa, Da dissolução do objeto ao vanguardismo brasileiro, in: Otília Arantes (org.), Acadêmicos e
modernos, p. 361.
2
Mário Pedrosa, Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica, in: Otília Arantes (org.), Acadêmicos e
modernos, p. 354.
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mundo da arte e do estatuto da obra, pois a ordem desafiada não é apenas a da
arrumação habitual dos objetos, mas do próprio circuito das artes.
Ampliando a discussão ao permitir-se um olhar menos exclusivista que
muitos de seus pares, Harold Rosenberg previamente observou como os movimentos de vanguarda teriam como continuidade eventos performáticos de pintores, uma constatação dos desdobramentos das propostas artísticas na primeira
metade do século XX. Para Rosenberg trata-se de algo que desponta desde o Surrealismo e o Dadaísmo, o “desejo de trocar o objeto de arte pelo evento de arte”^F.
O gesto ofertório de artistas contemporâneos em instalações interativas apresenta
dimensões distintas destes eventos. A forma como trabalha Felix Gonzales-Torres não instaura apenas um acontecimento, mas presume novos acontecimentos,
como na obra Sem título (USA Today), de 1990. A obra desponta como promotora de um fluxo de acontecimentos. Com um amontoado de doces embalados com
as cores da bandeira dos Estados Unidos em um dos cantos da sala de exposição,
as ações que a obra promove são exatamente o que viria a consumi-la, o gesto do
artista vai gradualmente sendo suprimido pelos visitantes, o fluxo temporal trabalhado no dado relacional, assim como na própria estrutura física da obra, entre
supressão e reposição. A discussão acerca da tensão instaurada nas justaposições
e empilhamentos de Serra serve de comparação, por ser essa tensão sintoma de
um possível acontecimento inerente ao objeto, mas nas propostas emergentes
nos anos de 1990, nas quais a questão da temporalidade é tratada nos jogos relacionais com disposições exteriores, e não somente associações interiores à obra,
restrita à sua natureza física e aos seus aspectos visuais, os objetos certamente não
são o cerne das obras em propostas dessa ordem, senão como elementos catalisadores dos acontecimentos contíguos a eles.
O que estou apontando em particular nesta averiguação é uma identificação do tempo real como o tempo da experiência com o acontecimento. O
embate direto do corpo e da consciência com as coisas, os outros, o mundo,
pois, segundo Bergson, “eis aí o tempo real, ou seja, percebido e vivido”^F. A arte
contemporânea incorpora ao elenco de recursos artísticos a mediação pelo filme
ou pelo vídeo dos acontecimentos, o que se alcança na duração da exposição da
imagem de um acontecimento é o tempo real dessa experiência, a transmissão e
a audiência desdobrando-se em novos acontecimentos. Na videoperformance o
tempo real da ação que foi registrada passa, para então vir como uma reposição
mediada. Trata-se de uma ação programada para ser vista posteriormente, não
se trata do registro de uma performance pública, presencial, que leva em consideração a presença de uma platéia instruída ou mesmo passantes desavisados,
estes são substituídos por uma audiência indireta, sem que haja interação direta
do artista com os espectadores, eles interagem com a imagem do artista em ação
no vídeo.
Em Marca registrada, de 1975, o gesto de Letícia Parente é elevado à
obra, gesto que incide sobre o próprio corpo da artista. Imagens recorrentes na
História da Arte, o referenciado corpo de mulher, e uma tarefa peculiar ao universo feminino – como não lembrar a dignidade dos afazeres domésticos das
mulheres nas pinturas de Vermeer? Com agulha e linha preta, a artista borda na
sola do pé os dizeres MADE IN BRASIL. O corpo e o trabalho são indiscerní-
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veis nesta videoperformance, o corpo trabalha o corpo, o corpo como agente e
suporte da ação. As implicações políticas são evidentes - de posse, gênero, origem, identidade -, mas notadamente a videoperformance trabalha o tempo real
dissolvido na mediação, retomado como tempo real de audiência, do retorno do
acontecido. O saldo é certa visão do ocorrido que reaparece na audiência, visão
que traz consigo o enquadramento da ação, o plano aproximativo de aspecto
intimista, o ritmo cadenciado na duração da aparição da escrita-imagem, todo o
pensamento da artista para a imagem direcionada à audiência.
Lia Chaia também transmuta virtualmente a identidade visual de seu
corpo na obra Desenho de corpo, de 2002. Em gestos autorreferenciais e autorreceptivos, novamente o corpo da artista fica diante de uma câmera que registra
sua ação de modo direto. A artista risca seu corpo com uma caneta formando
progressivamente um emaranhado de linhas que aos poucos encobre a pele, parecendo indicar o desejo da artista de transmutar sua aparência. Como em Marca
registrada, o corpo recebe inscrições, mas as marcas no corpo de Chaia são mais
espontâneas e abstratas, sobretudo menos mordazes. Entre o espaço disposto pelas partes do corpo percorridas pela caneta e a dimensão das linhas, a duração da
imagem está diretamente associada à quantidade de tinta gasta. Aos 51 minutos
de circulação pelo corpo nu da artista por uma esferográfica vermelha, a ação se
encerra pelo esgotamento da tinta na caneta que caminhava deixando seu rastro.
Como nas performances presenciais, obras em vídeo como as de Chaia
ou Parente tem sua duração intrincada com a duração da ação ofertada à audiência. Desse modo, a duração da obra é definida pela ação do artista ou pela participação do público. Mais que o sentido cronológico do tempo, a série de performances Ritmos de Marina Abramovic exemplifica enfaticamente esses contextos
nos quais as obras trabalham a duração como tempo de um acontecimento. Por
vezes a artista assume ações exaustivas que se encerram por esgotamento, como
gritar até que lhe falte voz ou dançar até cair de cansaço, ou Abramovic convoca
o público à ação sobre seu próprio corpo, como em Ritmo 0, de 1974, que é encerrada com o gesto abusivo de um espectador que coloca na boca da artista o
cano de uma pistola, um dos 72 objetos ofertados ao público na galeria. Com a
videoperformance, entretanto, o tempo real não é mais o tempo da execução da
ação presencial, mas a duração estabelecida para a imagem, para experiência com
a recepção da obra.
Os aspectos da duração instaurados pelos ritmos dos acontecimentos
videográficos são trabalhados em particular por Eric Baudelaire. O título Sugar
Water, dado a seu vídeo de 2006, faz referência à descrição que Henri Bergson
faz da duração como um processo invisível, como o açúcar dissolvendo em um
copo de água. A obra exibe a tomada de uma estação de metrô evidencia em
primeiro plano um grande painel publicitário coberto uniformemente de azul.
Chega à estação um funcionário que imediatamente começa a preencher o painel com uma imagem que aos poucos vai se formando, conforme o homem vai
colando as partes do suposto anúncio. Concluída a colagem percebemos a imagem banal de alguns carros estacionados sobre uma ponte. Mas o funcionário,
sem descanso, recomeça seu trabalho sobrepondo à imagem inicial outra, que
logo descobrimos ser a mesma imagem em outro momento, acrescentando uma
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violenta explosão de um dos carros. A sequência continua, tanto do trabalho do
funcionário quanto do acontecimento apresentado nas imagens do painel, sendo
acrescentada uma nova camada, agora com o carro envolto em uma nuvem de
fumaça, e ainda outra na qual resta apenas a carcaça do carro consumido pelo
fogo. Por fim o homem reveste o painel com uma nova camada de papel azul,
retomando a neutralidade inicial com a homogeneidade da superfície do painel,
como se, terminado o trabalho do funcionário, o violento acontecimento apresentado no painel ficasse também no passado, uma cumplicidade da duração
da ação do trabalhador anônimo com a duração do acontecimento ofertado na
sequência fotográfica.
Com Sugar Water o surgimento da imagem fotográfica, a explosão, a
consumação do carro pelo fogo, a volta da tela azul como sinal de término de um
fato, estão em pleno acontecimento enquanto o homem reconstrói habilmente
a imagem fragmentada. Tem-se o aparecimento da imagem como um acontecimento concomitante ao andamento aparentemente normal do funcionamento da
estação metroviária, um lugar de passagem da cidade que supostamente mantém
seu fluxo cotidiano de acontecimentos. Não deixa de ser significativo, para este
ponto, lembrar que esta obra em vídeo tem pouco mais de uma hora de duração.
Mas percebe-se um andamento dissonante quanto ao ritmo, senão quanto à espera, pois em dados momentos um tipo de suspensão se impõe no acontecimento
da imagem videográfica como um todo. Soma-se o interstício entre um trem e
outro, no qual os passageiros permanecem praticamente inertes em espera, e o
tempo que a imagem no painel fica em suspensão, quando aguardamos que o
trabalhador cole um número suficiente de partes da imagem fotográfica para que
seu conteúdo se torne compreensível e o acontecimento siga seu curso. Apenas
o diligente trabalho de colagem do funcionário aprece como um movimento
mais grave, que tanto demarca mais vividamente a passagem do tempo, quanto
serve de elo dissonante entre os demais acontecimentos incorporados no vídeo:
o funcionamento normal da estação e o incidente apresentado no painel. Durante a espera, os passageiros não se dão conta do acontecimento da imagem no
painel. O enorme painel coberto uniformemente de azul passa gradativamente a
apresentar uma violenta explosão, uma vigorosa nuvem de fumaça, uma carcaça
consumida, e restabelece desapercebidamente a neutralidade de sua aparência
original. A violência muda que aos saltos vai acontecendo é ofertada a um fluxo
de audiência cega. A junção desses dois modos de espera, coletivo e individual, os
dois fluxos de imagens dados, um colhido diretamente da realidade pelo vídeo,
o outro já mediado pela fotografia e inserido no fluxo de acontecimentos do lugar, nos é dado em síntese na imagem videográfica tomada pela consciência, um
acontecimento em uníssono, de azul a azul.
Vimos algumas obras que propõem o enfrentamento direto do real, uma
experiência com o tempo do acontecimento. Mas importa ainda salientar como
os desdobramentos da videoarte potencializam as possibilidades de experiência
com o acontecimento, de modo singular com as videoinstalações. Para Peter Pál
Pelbart a busca de uma relação intensa com o acontecimento é “querer o acontecimento como tal, isto é, em querer o que acontece enquanto acontece”^F. O
meio videográfico permite a reposição direta do real, o somatório do tempo real
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do acontecimento com o tempo real da audiência, anunciando um novo acontecimento. Quando a ação captada é ao mesmo tempo repassada, registro, emissão
e recepção coincidem, emerge uma audiência em tempo real. O que de fato está
acontecendo e está sendo registrado agora é também transmitido considerando-se ínfima a defasagem de uma extremidade à outra do circuito, simultaneidade
entre captura e exposição das imagens. Nas salas preparadas por Bruce Nauman
em Obra de vídeo para vigilância (sala pública, sala privada), 1969-70, um presente é dado no qual o acontecimento dá-se com outro presente, em proximidade
com o que Peter Pál Pelbart define como “o próprio Emaranhado Virtual enfocado como um Acontecimento”^F. A videoinstalação é composta por duas salas,
uma aberta e outra fechada, com idênticos arranjos: um monitor no chão em
um dos cantos da sala, e uma câmera de vigilância no canto superior oposto ao
monitor. Cada monitor transmite simultaneamente o acontecimento da outra
sala. Assim, aquele que entra na sala aberta vê no monitor diante si a imagem do
monitor que está na sala fechada, este último exibindo justamente a imagem do
espectador que está na sala aberta. As condições e as intenções, assim como as repercussões envolvidas na captura e veiculação das imagens de circuitos fechados
de vídeo estão evidenciadas no título da obra, mas não pretendemos estender a
discussão das estâncias pública e privada, nosso maior interesse está na mediação
do presente instaurado pela obra. Visto como multiplicidade busca-se revelar no
presente o que o pensamento de Pelbart identifica como “um acontecimento que
o atravessa e o transborda, no qual justamente não há mais passado, presente,
futuro, enrolados que estão no acontecimento “simultâneo, inexplicável””^F. O
presente revisitado em um acontecimento como transbordamento, os presentes
reagrupados para além de sua linha de sucessão. As salas coexistem, as ações coexistem, estar em uma sala é experimentar um acontecimento coexistente a outra
sala. Mais que ter consciência da existência da outra sala e do que nela acontece,
tomar parte dela. Não apenas o senso comum do percurso de uma sala após a
outra, mas a desconcertante imposição de uma ordem não cronológica, a ordem
da simultaneidade.
Para além da idéia de acontecimento suscitada pelas relações internas
dos elementos constitutivos das obras de arte, a arte contemporânea promove
gestos, eventos, ambientes e trocas como obras. Levado a uma relação mais direta
e intensa com os objetos, com o ambiente e com os outros, o visitante se vê situado de modo a experimentar o que Norbert Elias realça como “poder de síntese”^F,
a saber, o exercício da capacidade natural de “estabelecimento de relações entre
os acontecimentos”^F. Mais que reveladora de imagens de acontecimentos, a obra
de arte contemporânea tida como acontecimento trabalha o tempo em fluxo, o
tempo comportando um fluxo de acontecimentos simultâneos e tangenciais.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Referências Bibliográficas
Arantes, Otília (org.). Forma e percepção estética: textos escolhidos II/Mário
Pedrosa. São Paulo: EDUSP, 1996.
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Umberto Costa Barros
FAUUFRJ69, 1969
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Eric Baudelaire
Sugar water, 2006
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Bruce Nauman
Obra de vídeo para vigilância
(sala pública, sala privada), 1969-70
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Micro-narrativas fluidas:
Arthur Rimbaud em Nova York
e Jean Genet em Porto Alegre
Alexandre Santos
UFRGS/CBHA
Resumo
Este texto se propõe a uma reflexão sobre dois artistas ligados ao
uso da imagem, trazendo, cada um à sua maneira, a preocupação
biográfica e a constituição de micro-narrativas na contemporaneidade artística pós-conceitual. Trata-se do norte-americano David
Wojnarowicz (1954-1992) e da brasileira Vera Chaves Barcellos
(1938). A análise que aqui proponho vai se concentrar mais especificamente nos trabalhos Arthur Rimbaud em Nova York, de
Wojnarowicz, e Visitando Genet, de Vera Chaves Barcellos.
Palavras chave
Arte Contemporânea; imagem; biografia
Résumé
Ce texte se propose à une réflexion sur deux artistes liés à
l’utilisation de l’image, apportant, chacun à sa manière, la préoccupation biographique et la constitution de micro-récits dans la
contemporanéité artistique post-conceptuelle. Il s’agit du nordaméricain David Wojnarowicz (1954-1992) et de la brésilienne
Vera Chaves Barcellos (1938). L’analyse que je propose ici va se
concentrer plus spécifiquement sur les travaux Arthur Rimbaud à
New York, de Wojnarowicz, et Visitando Genet, de Vera Chaves
Barcellos.
Mots-clefs
Art Contemporain; image; biographie
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As micro-narrativas fotográficas na arte contemporânea são um contraponto ao
pretenso universalismo da fotografia humanista do pós-guerra, tornando-se característica marcante em poéticas ligadas à expressão da intimidade. Este processo é concomitante ao distanciamento de um horizonte utópico como função
da arte e a consequente proximidade dos artistas no que concerne às relações
concretas e às experiências possíveis do aqui e do agora.1 À medida que avança
a visibilidade do corpo na história da cultura, principalmente com o advento da
AIDS, o aprofundamento dessas relações se amplia, reforçando o interesse pela
investigação narrativa e biográfica na arte.
Os estudos de caso que aqui proponho aproximar gravitam, de algum
modo, em torno do espaço biográfico na arte^F, remetendo ao impacto cultural
provocado pela AIDS no que tange à exposição da intimidade. Reconheço a presença do espaço biográfico nos trabalhos de Wojnarowicz e Vera Chaves Barcelos
ao buscarem, respectivamente, a reflexão sobre o biográfico através da micro-narrativa auto-referenciada ou da micro-narrativa que tem como alvo a construção de um discurso poético sobre a vida alheia. Interessa-me, ainda, abordar
a noção de fluidez como aspecto importante da própria estratégia artística de
buscar na descontinuidade dos discursos visuais as nuances biográficas da arte.
Deste modo, encontro fluidez no sentido fragmentário, descontínuo e ficcional
que acompanha os trabalhos em questão.
A obra de David Wojnarowicz é um misto de literatura e artes visuais,
aspecto que lhe imprime forte tonalidade ficcional, ainda que o artista se debruce
sobre questões autobiográficas. Wojnarowicz apareceu no cenário novaiorquino
no final dos anos 70, tendo se destacado no ativismo artístico até sua morte em
1992, vitimado pela AIDS. Como primeiro artista gay norte-americano a responder sobre a crise inaugurada pelo advento da AIDS e também por ser uma
das primeiras pessoas a expor publicamente a sua soropositividade, o trabalho de
Wojnarowicz suscitou polêmicas. Sobretudo por estar relacionado à visibilidade
de tabus considerados intransponíveis. Quando eu contei que contraí o vírus da
AIDS, escreve Wojnarovicz, não demorou para que eu percebesse que também havia contraído uma sociedade doente^F.
Depois de participar do Grand Fury – coletivo de artistas criado em
1988 que se propunha a dar visibilidade ao homoerotismo e à AIDS –, Wojnarowicz continuou a dedicar-se ao combate à indiferença do Estado e da sociedade
sobre a epidemia e a homossexualidade. A criação de um discurso que documentasse, de forma visual ou escrita, as suas idiossincrasias torna-se elemento central
do seu trabalho. Como uma reação aos discursos oficiais e preconceituosos das
mídias no contexto dos anos 80 e 90, o artista assume o papel político dos meios
técnicos e da autorreferencialidade em sua arte:
Nós temos espelhos, câmeras, máquinas de escrever e temos nós mesmos e nossos amantes e
amigos – por isso podemos documentar nossos corpos e mentes, bem como as suas funções e
diversidades. Com nossos olhos, mãos e bocas podemos lutar e transformar.2
1 ROUILLÉ, André. La photographie: entre document et art contemporain. Paris, Éditions Gallimard,
2005, p. 527.
2
WOJNAROWICZ, idem, p. 243.
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A série de fotografias em preto e branco Arthur Rimbaud em Nova York
foi realizada entre 1978 e 1979, bem antes do artista envolver-se na luta contra a
AIDS. Entretanto, a exibição mais completa deste trabalho somente vai acontecer, sintomaticamente, no ano de 1990, com o avanço de sua militância, quando
foram expostas 25 imagens em uma exposição individual na PPOW Gallery, em
Nova York. Ainda que fosse a primeira incursão do artista nas artes visuais, o
conjunto formado pelas imagens está impregnado da auto-consciência de sua
marginalidade social.
Nas imagens quase performáticas da série vemos um sujeito mascarado
com uma reprodução do rosto de Arthur Rimbaud (1854-1891) em diferentes
situações cotidianas. Apropriada de um retrato fotográfico de Rimbaud aos 16
anos, atribuído ao fotógrafo Etienne Carjat, esta imagem é a mais conhecida
do escritor e parece sintetizar a sua personalidade como um menino prodígio
de cabelo indomado, olhos azuis de husky siberiano e boca insegura^F. Trata-se de
um retrato emblemático do poeta, que parece conter a persona impetuosa que,
em meteóricos anos de escrita, abalou as estruturas burguesas do meio literário
parisiense.
Em Arthur Rimbaud em Nova York, Wojnarowicz busca evidentes cruzamentos das duas biografias em jogo, com o propósito de embaralhá-las, como a
constituir uma anti-biografia ou, melhor dizendo, uma auto-ficção sobre si mesmo,
cujo epicentro é uma construção identitária localizada nos limites da marginalidade social. Do mesmo modo que Rimbaud, Wojnarowicz teve uma história
de vida bastante peculiar: após anos de abuso e disfunção familiar, parte de sua
infância e adolescência liga-se às ruas de Nova York^F, vivendo como fugitivo,
prostituto ou aluno evadido da High School of Music and Art.
Também como Rimbaud, ele correu mundo sem rumo durante anos,
entre as duas costas dos Estados Unidos, Canadá, México e França. Nesta época, trabalhou em empregos temporários e viajou de carona ou clandestinamente
nos trens. Essas desventuras significaram a matéria-prima principal da sua arte,
ouvindo atentamente as histórias que outros vagabundos lhe contavam ou dedicando-se à leitura devota de escritores que se tornam Referências. Nesta medida,
ele se torna um narrador literário de si próprio, começando desde cedo a contar
as suas próprias memórias^F.
Depois de uma temporada em Paris, o retorno a Nova York foi catastrófico: jovem e sem dinheiro, ele volta às ruas e, premonitoriamente, parece ter certeza de que não teria uma grande sobrevida ao enfrentar novamente a vida como
homeless ou perceber que vários de seus amigos estavam viciados em heroína.
Diante deste quadro desolador, o artista decide que, através da arte, ele precisava
preservar uma autêntica versão da sua história, a qual não apenas o representaria,
mas sobreviveria a ele. Inspirado por escritores marginais cuja obra ele havia
lido com atenção, como William Burroughs, Jean Genet e, obviamente, Arthur
Rimbaud, o artista inicia a série Rimbaud em Nova York e, paralelamente, outros
trabalhos que se caracterizam como documentos pessoais de sua vida.
Conta-se que quando partira para Paris, em 1977, Wojnarowicz teria
feito um seguro de vida, ironicamente em nome de Arthur Rimbaud. Talvez já
se esboçasse aí a preocupação com a morte e o ceticismo sobre as chances de seu
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X X X Colóquio CBHA 2010
alter ego Rimbaud em Paris, antevendo a narrativa fatal da série fotográfica. Na
obra, ele enfrentaria temas ligados à sua história pessoal, como a marginalidade
e a presença da morte iminente, ao trazer pistas sobre o seu modo de vida, como
os locais que costumava frequentar em seu nomadismo sem perspectivas junto à
grande metrópole. Trata-se de imagens em preto e branco com forte densidade
dramática.
Ao inventar um cenário hipotético, a cidade de Nova York, e um alter
ego, a figura do poeta simbolista francês, o artista projeta para si mesmo uma persona além da ordem estabelecida. Na trajetória tumultuada de Rimbaud alguns
elementos recorrentes coincidem com a biografia de Wojnarowicz: as diferentes
fugas de casa e da escola ainda menino, a vida de favores alheios, o desabrigo nas
ruas de Paris onde se alimentava do resto das lixeiras, as temporadas londrinas
sem perspectiva, a fuga da realidade através do absinto... E, coroando ainda mais
a sua biografia ímpar, o instável, violento e escandaloso romance com Paul Verlaine.
Para Wojnarowicz, a apropriação da biografia de Rimbaud, ressuscitando o espírito incendiário do escritor, ajudou-o tanto a recuperar a sua memória
pretérita quanto a construir, através da arte, uma identidade queer para si próprio, na qual o passado do escritor francês se intersecciona ao seu próprio presente. Esta empreitada também trouxe a oportunidade de exercitar ficcionalmente
novas possibilidades sobre a história biográfica dos dois anti-heróis envolvidos.
Ao servir-se de Rimbaud, Wojnarowicz vê na figura do poeta um veículo para
um auto-exame de si próprio. Como uma forma de confrontar-se com os seus
desejos na construção de uma autobiografia mitificada, o artista busca a memória
que se engendra no que ele chama de sítios de atração, estes lugares que (...) recuperam o cheiro e os traços de estados anteriores do corpo e da mente há muito deixados
para trás^F.
É através da imagem fotográfica que são revisitados os lugares referenciais da vida de Wojnarowicz em sua poética auto-ficcional, como uma espécie
de consciência do poder sinestésico da fotografia, exposto nas páginas de Proust^F.
Rimbaud em Nova York cria um elo inter-biográfico que desloca o poeta francês
para Nova York, enfatizando uma micro-narrativa sobre as atividades proscritas
comuns aos dois artistas. Injetar-se heroína, masturbar-se em cenários decadentes, ameaçar alguém com uma arma ou frequentar espaços esquecidos, tornam-se sobreposições biográficas que se reforçam, malgradas as barreiras de tempo,
cultura e lugar geográfico.
Não é Wojnarowicz quem está nas fotos performáticas da série, mas o
escritor e drag queen Brian Butterick. O fato de buscar alguém que também está
envolvido com o submundo da marginalidade novaiorquina induz à construção
de mais uma camada de significação autobiográfica no trabalho. Neste sentido,
o uso da biografia é também fator que consolida a necessidade da criação de
uma narratividade artística, conduzindo à noção de marginalidade a partir dela
própria. Ao mesmo tempo, o artista revela uma realidade áspera, que confunde
efetivamente as fronteiras entre arte e vida ou entre ficção e realidade, selando
com este relato inaugural sobre si uma tendência que marcaria o conjunto da sua
trajetória artística posterior.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Aproximações e afastamentos desta perspectiva biográfica também circundam o segundo trabalho proposto como análise neste texto. No ano de 2001,
em exposição que inaugurou o Santander Cultural em Porto Alegre, Vera Chaves
Barcellos apresenta a instalação Visitando Genet^F. Na trilha do que fizera Wojnarowicz com Rimbaud, o trabalho de Vera investiga o universo complexo do
escritor francês Jean Genet, cuja atividade artística encontra-se amalgamada à
sua biografia^F.
A instalação de Vera, que explora procedimentos plásticos visuais e sonoros, não lida com o autobiográfico no sentido de Wojnarowicz. Ao contrário
disso, a artista assume o desafio de refletir, com este trabalho, sobre as noções
de distância e diferença. Ela declara 3 que a distância apareceria como elemento
poético no fato de trabalhar com e sobre o universo de Genet, sem, no entanto,
se engajar muito em sua obra. Já a diferença estaria no fato de adentrar e tentar
compreender um universo que, para ela, era não apenas estranho, mas completamente oposto. Entretanto, e até mesmo fugindo desses objetivos mais imediatos,
a incursão da artista no submundo do escritor concentra-se inevitavelmente no
espaço biográfico em diversos níveis.
A obra é dividida em quatro módulos que se sucedem num crescendo. No primeiro, encontra-se a Galeria de Retratos dos supostos personagens ou
companheiros de cárcere de Genet durante suas sucessivas temporadas em prisões européias. Os doze retratos em grande formato são apropriações fotográficas
provenientes de extensa pesquisa realizada pela artista, procurando na internet
imagens de criminosos reais da época de Genet, anos 30 e 40, os quais correspondessem, ao mesmo tempo, às minuciosas descrições físicas dos personagens
pelo escritor.
Em todos os retratos (em primeiro plano) destes criminosos há um elemento de suavidade: uma auréola de flores, que serve de moldura e fundo aos seus
rostos, por vezes até mesmo se confundindo com suas expressões embrutecidas. A
flor é elemento recorrente nos romances de Genet, expondo a afetividade pessoal
do escritor para com os protagonistas deste mundo peculiar onde estava imerso.
Como em Wojnarowicz, tratava-se efetivamente de dar foco a um mundo paralelo, dos ladrões e vagabundos, com seus cenários de masculinidade marginal: os
cárceres, os mictórios, os prostíbulos, a escuridão da noite e o clima propício às
atividades escusas – em contrapartida ao que Genet chamava de mundo de vocês,
ou seja, o mundo da legalidade e das normas instituídas.
Muitas são as Referências masculinas mitificadas na obra de Genet, sem
nenhuma censura ao desejo que por elas nutria o escritor. Aliás, era o desejo que
fazia com que nascessem como personagens de suas páginas, instauradas entre
as experiências reais vividas pelo escritor e a ficção de sua literatura: Stilitano,
Armand, Lucien, o negro Sek Gorgui, Mignon-Pé-Pequeno, entre outros. Não
interessa saber quem é quem neste mosaico de rostos criado por Vera, mas compreender a partir dele o exercício artístico de Genet, misturando ficção e biografia, do mesmo modo que misturava suavidade e brutalidade, ética e imoralidade,
3
Visitant Genet. Girona, Museu d´Art de Girona, 2001 (Catálogo de Exposição).
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prazer e desprazer no mundo contraditório da sua arte. Mundo no qual ele podia
se auto-investir como o grande demiurgo.
Ao lidar com as Referências homoeróticas do universo genetiano, tal
como o escritor, a artista dá rosto a estes seres invisíveis, ficcionalizando-os no
plano da imagem fotográfica, estratégia que remete ao Rimbaud de Wojnarowicz. Porém, a operação biográfica de Vera também é um processo de recriação da
história de Jean Genet, repetindo a sua literatura, que engendra uma biografia
idealizada de si. Por trás destas sobreposições biográficas – do escritor em seus
livros e da artista na releitura da autobiografia romanceada de Genet –, evidencia-se a construção de uma micro-narrativa fluida, descontínua e composta de
recortes parciais.
Genet tinha consciência de seu papel artístico, ainda que soubesse ser
muito tênue a sua importância política ao declarar que escrevia para si mesmo uma secreta história, com detalhes tão preciosos quanto a história dos grandes
conquistadores^F. É preciso considerar, no entanto, que esta micro-narrativa minuciosa e fragmentária empreendida por Genet não tem a intenção de ser definitiva
como a chamada história oficial. Ela foi escrita secretamente e para deleite do
próprio escritor. Segundo Sartre, os interesses maiores de Genet são sempre a liberdade e o prazer, justamente por isso os acontecimentos que narra são de interesse
secundário, pois sabemos que ele abomina a história e a historicidade^F.
No segundo módulo da obra, a artista nos apresenta o que ela chamou
de Reservoir, uma coleção pseudo-museológica de objetos pessoais pertencentes ao
escritor ou aos seus personagens/companheiros de submundo. Como destaque,
um retrato fotográfico de Genet manipulado por computador como se ele fosse a
travesti Divine, personagem central de seu primeiro romance, Nossa Senhora das
Flores, e uma espécie de alter ego do escritor. O conjunto de souvenirs ali exposto é
variado e apresenta desde objetos delicados – flores de pano, pote de chá, rede de
cabelo, lenço, espelho e bolsa femininos – pertencentes a Divine, até objetos de
caráter mais agressivo, pertencentes ao universo da masculinidade marginal. Em
primeiro lugar, a vaselina, indicando as práticas de desejo homoerótico, ponto
nevrálgico da literatura auto-referenciada de Genet. Mas também a seringa, o
molho de chaves, a lanterna e o canivete, indicando o fascínio do escritor pelas
atividades ilícitas:
O meu talento será o amor que sinto pelo que compõe o mundo das prisões e dos campos de
trabalho forçados. (...) reconheço aos ladrões, aos traidores, aos assassinos, aos malvados, aos
velhacos uma beleza profunda – uma beleza oca – que recuso a vocês.4
No pequeno reservoir de objetos, contidos em vitrines, vemos fragmentos de vidas privadas expostas de modo público. Elas apresentam a essência da
humanidade de todos nós, ainda que Genet insistisse tratar-se de um mundo
paralelo ao nosso. Contudo, mesmo nas condições mais adversas desse mundo
dos ladrões e vagabundos em seu confinamento carcerário, era possível encontrar
uma beleza especial: para o detento a prisão oferece o mesmo sentimento de seguran4
GENET, 2005, p. 100.
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ça que um palácio real para o convidado de um rei^F. Assim, ao olharmos para estes
objetos, estamos olhando também para a ambiguidade e incerteza das convicções
do nosso mundo, aqui expostas de modo cru, como verdadeiros objetos de culto,
inclusive aqueles que poderiam estar fadados à invisibilidade.
No terceiro módulo, a artista avança um pouco mais no que concerne ao
uso da imagem para reconstituir o universo desejante de Genet. Neste aspecto,
a participação do artista paulistano Hudinilson Júnior (1957) é determinante.
Como Genet, Hudinilson utiliza a arte para refletir sobre uma obsessão pessoal:
o desejo homoerótico. Trata-se de três projeções simultâneas em looping de 240
imagens diapositivas, pertencentes aos Cadernos de Referência de Hudinilson,
trabalho ininterrupto que se desenvolve há mais de 20 anos. Estes cadernos partem do exercício de colagem diária de imagens apropriadas de outros contextos.
A homenagem do artista paulistano é sempre ao corpo masculino, ora de forma
explícita, em fotografias que expõem sua nudez, ora de modo subjacente, através
de signos fálicos. Este terceiro módulo constitui a ante-sala da parte principal
da instalação, que é a visita a Genet propriamente dita. O convite a Hudinilson
resgata uma referência contemporânea ao mundo de Genet, para quem a palavra
era um exercício de liberdade: com Hudinilson esta liberdade é instaurada através da imagem.
Finalmente, no último módulo da instalação, nos deparamos com o
próprio Genet, recriado em animação digital com a idade de 30 anos. O vídeo
reconstitui o ambiente de uma prisão e nós estamos literalmente visitando-o,
como seus familiares em um dia de visitas. Esta talvez seja uma deixa da artista
ao debruçar-se sobre este universo, ao mesmo tempo tão distante e tão próximo
de nós. Inesperadamente, o escritor exclama para os seus interlocutores, em tom
sentencial, um trecho mordaz de Nossa Senhora das Flores. Este romance, escrito
no cárcere entre 1941 e 1942, não foi escolhido por acaso, pois ele é a obra inaugural de Genet como história ficcional de acentuado viés autobiográfico. Em sua
narrativa descontínua temos um texto ambíguo, como o próprio livro, escrito na
mais absoluta solidão do cárcere. O conteúdo deste fragmento textual expõe um
Genet simultaneamente agressor e frágil.
Do mesmo modo que o trabalho dos Cadernos de Referência de Hudinilson, a menção fragmentária a Nossa Senhora das Flores é um convite à evasão
desejante, ainda que esta esteja carregada de ambiguidades. Neste sentido, sem
dúvida que, ao abrirmos as páginas de Nossa Senhora das Flores estaremos também abrindo um armário de um fetichista e encontraremos aí (...) as palavras úmidas e perversas que brilham com a excitação que elas despertam..^F.
Para Sartre, o mundo enjaulou Jean Genet, isolando a sua má influência.
Entretanto, a resposta do artista foi a intensificação desta quarentena, mergulhando nas profundezas de onde ninguém seria capaz de atingi-lo ou compreendê-lo,
pois, em meio ao tumulto europeu da Segunda Grande Guerra, ele conseguiu gozar
de uma horripilante tranquilidade^F.
Os trabalhos artísticos aqui apresentados dialogam com esta condição
de resistência legada por Genet, oscilando entre o velar e o mostrar, entre a certeza e a dúvida. São, por natureza, ambíguos e banhados de circunstâncias ficcionais. Nova York pode ser de Arthur Rimbaud para David Wojnarowicz e Porto
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Alegre de Jean Genet para Vera Chaves Barcellos. Qual o sentido destes deslocamentos que propõem novos fluxos biográficos aos artistas envolvidos? Talvez
o fato de podermos refletir sobre a sua importância como relato de vidas que se
tornam fluidas, propondo intersecções através da arte. Para Leonor Arfuch, a
narrativa, enquanto dimensão configurativa da experiência, outorga ‘ forma ao
que é informe’ e adquire relevância filosófica ao postular uma relação possível entre o
tempo do mundo da vida, o tempo do relato e o tempo da leitura^F.
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Imagens Tautológicas
Almerinda da Silva Lopes
UFES/CNPq/CBHA
Resumo
Este artigo analisa as obras da série Polivisões, de Maurício Salgueiro, capixaba radicado no Rio de Janeiro. Embora seja mais conhecido pela ousadia e originalidade de suas esculturas cinéticas, entre
as décadas de 1970 e 1990 produziu também montagens que hibridizam fotografia de utensílios de cozinha, planificados e recortados,
e a sobreposição, através da colagem, desses mesmos fragmentos
de metal. O autor cria assim, imagens se oferecem à visão como
totalidades e como tautologias.
Palavra Chave
Polivisões, Imagens contaminadas, Maurício Salgueiro
Résumé
Cet article analyse la série d´oeuvres appelée Polyvisions, de Maurício Salgueiro, artiste capixaba qui vit à Rio de Janeiro. Même s´il
est plus connu par l´excellence et l´originalité de ses sculptures cinétiques, entre les annés 1970 et 1990 il a produit aussi des objets
hybrides, qui mélangent la photographie et le collage de morceaux
de métal. L´artiste construit des images qui s´offrent à la vision
comme des totalités et comme tautologies.
Mots clés
Polyvisions, Images contaminées, Maurício Salgueiro.
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O capixaba radicado no Rio de Janeiro, Maurício Salgueiro, é mais conhecido
pela ousadia criativa e singularidade das máquinas cinéticas interativas , que emitem som, luz e movimentos produzidos por artifícios eletromecânicos variados,
que foram concebidas por ele nos anos de 1960 e 1970. Construiu, também, a
partir daquela última década citada, até mais recentemente, uma série de objetos
híbridos de outra natureza, denominada Polivisões, que não foi exposta com a
mesma frequência que as esculturas cinéticas, nem mereceu, até então, nenhuma
análise específica, permanecendo por essa razão, quase desconhecida até dos especialistas. Mesmo tratando-se de objetos estáticos, as Polivisões pautam-se pela
mesma coerência, potencial criativo e viés experimental que o artista demonstrou
em toda a sua profícua trajetória. E talvez se possa mesmo afirmar que essas obras
traduzem a vontade salgueirana de diversificar a experiência e atualizar sua praxe,
sintonizando-a com as gramáticas contemporâneas.
A ação do artista remete de alguma maneira à atitude duchampiana, ao
escolher e apropriar-se de utensílios de cozinha em alumínio, desgastados pelo
uso e, por isso, descartados: panelas, caçarolas, caldeirões, bacias, escorredores.
Eleito o objeto, Salgueiro inicia a sua transfiguração, por meio de cortes e batidas de martelo sobre o metal, visando eliminar a volumetria do mesmo. Leva
às últimas consequências o processo de destruição e transformação do utensílio
doméstico, reduzindo-o a uma superfície plana. A chapa de alumínio obtida será
reutilizada, inserida e ressignificada, a seguir, na criação de imagens, que resultam, paradoxalmente, de uma ação que postula, ao mesmo tempo, destruição e
reconstrução, transformação e reordenação, morte e ressurreição.
Ao eliminar a volumetria, as características e a função do objeto, o artista não subverte, no entanto, a configuração original e a identidade visual do utensílio, cuidando, ainda, para interferir o mínimo possível nas marcas da memória
temporal impressas na superfície/pele do metal, em decorrência do uso/manuseio
ou da ação do fogo: pequenos amassados, riscos, porosidades, chamuscados, resíduos de solda, além de cabos ou alças e os respectivos parafusos que os fixavam.
O arcabouço metálico transfigurado e destituído de volumetria é fotografado1 a
seguir, em alta resolução e revelada sobre um campo de papel branco, cinza ou
preto, que será colado, sobre um suporte de Eucatex ou de madeira. A imagem
fotográfica parece assegurar a nitidez e a especificidade da matéria, ou seja, as
nuances tonais do alumínio. As texturas e as ocorrências gravadas e desveladas
na superfície metálica da peça são assim visível ou sugestivamente acentuadas, o
que amplifica a potência significativa do tempo/memória.
A superfície circular e plana de metal, após ser fotografada é cortada
pelo artista, com precisão, no sentido dos raios da estrutura circular gerada, que
retira um quarto, um terço, ou mesmo outra fração do todo. Uma das lâminas
de alumínio, correspondente à parcela do objeto recortado é superposta e colada,
1
Os primeiros objetos da série, produzidos, na década de 1970, tiveram as fotografias elaboradas pelo
artista, no seu próprio laboratório e estúdio fotográfico ou no da Universidade Federal Fluminense, na
qual ele ministrava a disciplina Fotografia. Posteriormente, contou com a colaboração de dois exímios
mestres do ofício: os fotógrafos Juliano Barreto e César Barreto. (Cf.. Depoimento de Maurício Salgueiro à autora, em 16.10.2010).
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sobre a fotografia, deixando exposta apenas a parcela que foi suprimida do todo,
gerando uma totalidade imagética que reconstrói e ressignifica o objeto utilitário,
projetado sobre um campo planar. Na próxima imagem, o processo é invertido:
a parte que fora retirada do metal é agora colada, obstruindo parte da fotografia,
de maneira que se torna possível reconhecer nessas montagens as características
icônicas ou analógicas do utensílio doméstico original. São geradas, assim, duas
ou mais imagens de um mesmo objeto que ao olho do interlocutor parecem ser
idênticas, mas que são na verdade diferentes, quanto à natureza, constituição
processual e correspondente alternância do material.
Essa montagem fotografia/fragmento do objeto concreto subverte as
peculiaridades técnicas e volumétricas da escultura convencional e mesmo simulando ser uma superfície planar, não o é, pois a espessura e a densidade do metal
permanecem. Através desse processo de experimentação, transfiguração, análise,
síntese, contaminação de processos e materiais, o pensamento do artista se clarifica e se atualiza, e a idéia estética se formaliza, pela reinvenção, ressemantização
e recontextualização de um objeto trivial, em um novo produto visual, cuja gênese remonta à assemblage e ao objet trouvé.
Apropriando-se de fragmentos de objetos e de materiais ordinários, incongruentes e incompatíveis com a pintura, o Cubismo propôs uma visão simultânea das coisas, de diferentes ângulos e a inserção de fragmentos da realidade
na arte. Por meio da colagem e da assemblage de materiais heteróclitos, cubistas
e dadaístas geraram imagens e objetos, que alargaram as possibilidades poéticas,
quebraram o monopólio da pintura a óleo e facultaram às futuras gerações de
artistas a realização de emblemáticas propostas criativas: do modernismo à contemporaneidade.
A lógica formal das Polivisões reordena o espaço, estabelecendo um jogo
entre presença e ausência, unidade e desintegração, completude e transbordamento da imagem. Através da sobreposição de meios incongruentes, hibridização, contaminação, descontinuidade e heterogeneidade, Salgueiro engendra
imagens que rompem as fronteiras entre o caráter indicial da fotografia e o objeto real, persuadindo o olho do observador a não perceber a dicotomia entre os
meios. Embora mantenham certa analogia com a fragmentação cubista, não se
trata meramente de colagens, mas de montagens ou de construções resultantes da
superposição de matérias, processos, tempos e memórias diferentes. A valorização da precisão técnica, assepsia, síntese, monocromia da imagem gerada, clareza
de linguagem, ênfase no processo de repetição, faz com que esses objetos cotejem,
em algum sentido, com as formulações minimalistas.
Apresentando-se ao olhar como todos indivisíveis, as Polivisões salgueiranas talvez possam ser entendidas na mesma acepção que Godard atribuiu à
montagem: “arte de produzir a forma que pensa”, pois estabelece “uma colisão de
imagens, de cujo entrechoque nasce outras imagens, que permitem que o pensamento tenha visualmente lugar” (apud DIDI-HUBERMAN, 2003, p.172-3).
Se as Polivisões são geradas pela montagem de meios e matérias incongruentes, o seu autor não deixa de postular ironicamente que não é a fisicalidade do metal ou o sentido icônico que lhes é atribuído pela fotografia que redimensiona a potência visual das imagens. A montagem formatada por Maurício
81
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Salgueiro é geradora de um movimento que instiga e distende os dispositivos
perceptivos. A contradição existente na formulação das Polivisões tem a intenção
de inquietar e desestabilizar o olhar, promover o transbordamento da forma e
intensificar o redimensionamento da memória.
O filósofo francês Didi-Huberman (1998, p. 29 e 53) denomina “lesa-especificidade” o processo de hibridização engendrado pela sobreposição ou
montagem de materiais e meios divergentes, observando que esse artifício permite enganar o olho, como decorrência da “cisão que separa (...) aquilo que vemos
daquilo que nos olha”. Esse mesmo postulado parece perpassar as Polivisões sagueiranas, se entendidas como tautologias visuais, isto é, como imagens que mesmo remetendo a um dado objeto não representam nada que não elas próprias, e
não significam a não ser a coisa a que se referem.
A oposição semiótica entre signo e significação destacou-se, segundo
Rosalind Kraus, nas obras de artistas americanos e europeus atuantes nas décadas de 1960 e 1970. Mas a própria teórica situa a gênese dessa oposição já no final
dos anos 50, exemplificando-a através do autorretrato de autoria de Duchamp
(1959), With My Tongue in My Cheek (equivalente à expressão “Meu olho”!),
articulado por meios e materiais estranhos ou antagônicos. Consiste no desenho
do perfil do artista em uma superfície de papel, sobre o qual o autor modelou em
argila um relevo, de volumetria irregular, ajustando-o ao contorno do queixo e
da bochecha, rebaixando-o à altura do olho e mantendo a planaridade na testa,
fronte e nariz. Essa formulação duchampeana é assim analisada por Rosalind
Kraus:
O índice se justapõe ao ícone (...), para remeter evidentemente ao registro da ironia; cujo
subtítulo reorienta esse sentido. Mas pode-se compreendê-lo literalmente, como meter a língua
na bochecha, que corresponde verdadeiramente a perder a capacidade de falar. É essa ruptura
entre a imagem e o discurso (ou mais especificamente a linguagem) que a arte de Duchamp
contempla e exemplifica (KRAUS, 1993, p. 74).
A teórica americana considera, ainda, que essa e outras obras de Duchamp estabelecem um tipo de “traumatismo” de significação, que teria sido
absorvido da pintura abstrata do início do século XX e da “expansão da fotografia”, mas que ajuda a entender, também, o interesse da geração de artistas minimalistas e conceitualistas pela fotografia, em decorrência de seu caráter indicial.
Ao efetuar uma espécie de rebatimento ou de projeção de parte de um
objeto industrializado em contiguidade à outra - sendo uma delas a representação
fotográfica de parcela do utensílio, e a outra, o complemento analógico e material
do fragmento complementar desse mesmo objeto – Maurício Salgueiro reconstrói uma imagem precisa e convincente, capaz de iludir a visão. O caráter indicial
da fotografia, o rigor impecável da junção, a lógica e inflexibilidade estrutural das
formas geradas pelas Polivisões, fazem com que o olho não perceba a incongruência entre as partes e o todo, nem a espessura, a densidade e o relevo da lâmina
de metal, de que se constitui parte da imagem.
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A semelhança entre essa série de obras e a incongruência entre os meios e
os materiais que as integram exigem uma visada tátil do interlocutor, no sentido
de que instigam e problematizam a visão e ironizam o significado e a qualidade
do que se oferece a ver, numa era dominada e regida pelo poder das imagens. Se
através dessas montagens, Salgueiro instaura uma operação que coteja de alguma
maneira com o cubismo e o minimalismo, remete igualmente às práticas conceituais, situando-se numa espécie de confluência entre uma e outra tendência.
Assim, sem desconsiderar a especificidade e a natureza dessas imagens
e conceituações, parece-nos possível estabelecer alguma analogia entre o caráter
auto-referencial ou tautológico das Polivisões, a monotonia repetitiva dos cubos
vazios minimalistas e o redobramento da linguagem postulado por Joseph Kosuth. Instigando e distendendo o conceito de arte, esse artista pôs em confronto
a presença física de um objeto analógico, a “descrição” do mesmo objeto e a
sua imagem fotográfica, enquanto tautologias, afirmando que a “idéia de arte”
e o “trabalho de arte” são da mesma natureza. A esse respeito, observa Kosuth
(2006, p. 220-221):
(...) é quase impossível discutir a arte em termos gerais sem falar de tautologias – pois tentar
´captar` a arte por meio de qualquer ´instrumento` é meramente focalizar outro aspecto
ou qualidade da proposição que, normalmente, é irrelevante para a ´condição artística` da
obra de arte. Começamos a perceber que a ´condição artística` da arte constitui um estado
conceitual.
Salgueiro não intenta remeter nas Polivisões, de maneira precisa, à questão da morfologia ou mesmo de semelhança entre as imagens, mas instiga primordialmente o conceito de arte, enquanto linguagem e experiência. Alerta para
o condicionamento da visão, que se agarra à potência figural ou à iconicidade da
forma, e tende a completar a incompletude para articular um todo imagético.
Somente a memória tátil e o olhar reflexivo possibilitarão, no entanto, desvelar a
incongruência ou a dualidade que as Polivisões postulam. Essas imagens contaminadas confirmam, em sua essência, que aquilo que é dado a ver pode não ser
exatamente o que se vê, distendendo o conceito de arte, por meio de um processo
cognitivo que confirma as possibilidades irrestritas da arte contemporânea.
Ao criar montagens com materiais densos e ao optar por identificá-las
por números seqüenciais, e não por títulos que as individualizem ou induzam a
percepção do espectador, o artista reforça o caráter arquitetônico e a corporeidade espacial de sua imagética. E ao amalgamar fotografia e colagem de matérias
espessas sobre uma superfície, atribui ao metal a potência de um corpo inscrito numa dimensão espaço/temporal ativadora da memória e de sentido figural.
Embora pareça inserir à primeira vista as Polivisões num movimento que replica
simultaneamente com a pintura, a fotografia e a escultura, esgarça e subverte a
especificidade dessas mesmas categorias.
As marcas da temporalidade escrituradas na superfície do metal, a densidade e a espessura da matéria sinalizam que, mais do que a morfologia das
formas, o que singulariza e distingue propriamente uma montagem/imagem da
outra, é o jogo ilusório da inversão e os resíduos da memória impregnados nela
83
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que mais instiga o olhar perceptivo. Esses artifícios fazem com que as Polivisões
não se subordinem simplesmente “em mostrar que o que se vê é apenas o que se
vê”, dando ressonância a uma “espécie de redobramento tautológico da linguagem sobre o objeto” (DIDI-HUBERMAN, id, p. 57).
Vale ressaltar, finalmente, que embora possuam uma concepção visual,
material e criativa diferente daquilo que Salgueiro postulou nas obras cinéticas,
não se deve entender as Polivisões como desvios de sua trajetória. O interesse
do artista por objetos de metal descartados pela sociedade de consumo, com
destaque para as ferramentas e os utensílios domésticos (pás, picaretas, enxadas,
alviões, chaves de roda, grifos, martelos, ferros de passar roupa, molas, peças de
automóvel), manifestou-se desde o início dos anos 60, época em que ele inseria
tais objetos em esculturas que antecipam as obras cinéticas. Diferentemente das
Polivisões, essas esculturas mantêm ainda alguma relação com a prática tradicional de soldar uma peça à outra, restabelecendo em sua configuração visual
analogia com os seres e os objetos do mundo objetivo, como atesta o Guerreiro pertencente à coleção do MASP. O mesmo se pode afirmar da recorrência
constante de Salgueiro à fotografia, que se manifesta, inclusive, em certas obras
cinéticas da mesma década.
Em algumas instalações ou ambientes, a exemplo de As Vizinhas, o artista lançava mão de imagens fotográficas de autoria desconhecida, extraídas de
diferentes meios, produzindo a partir delas ironia e paradoxos visuais. Nas Lâminas, da série Urbis, Salgueiro explora a projeção do retrato ou do corpo do interlocutor, na superfície espelhada de metal. Essa lâmina vertical, no ato de se movimentar, transforma-se em espelho côncavo/convexo, tragando e deformando os
corpos dos espectadores quando estes se aproximam curiosos dela, sendo dessa
maneira inseridos literalmente na obra. O artista antecipa, portanto, a praxe que
iria adotar mais tarde nas Polivisões, nas quais ironiza a nobreza, a resistência dos
materiais, a similitude do gosto e a fatura da escultura tradicional, bem como o
próprio sentido da arte, enquanto representação icônica.
Ao transformar objetos tridimensionais em imagens planares inscritas
sobre um suporte bidimensional, as quais preservam algo de sua configuração
original, o autor parece remeter à pintura. Salgueiro refuta, todavia, tanto os
materiais característicos da praxe pictórica como a tridimensionalidade, subvertendo, assim, qualquer relação com a pintura e com a escultura. Essa contradição, que põe em contiguidade códigos visuais de naturezas diferentes - a imagem
fotográfica do objeto cotidiano transfigurado e uma parcela desse mesmo objeto
real – faz com que eles percam a sua especificidade e significado, reduzindo-os à
sua pura formalidade e visibilidade tautológica.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Referências Bibliográficas
DIDI-HEBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Prefácio Stéphane Huchet;
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.
___________. Images malgré tout. Paris: Éditions de Minuit, 2003.
KOSUTH, J. “A arte depois da filosofia”, in FERREIRA, G. e COTRIM, C.
(Org.). Escritos de Artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
KRAUS, R. L´Originalité de l´avant-garde et autres mythes modernistes. Paris: Macula, 1993.
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Polivisão 2/3 (múliplo), sem data
Maurício Salgueiro
Mista s/ eucatx (alumínio e fotografia),
59,8 x 63, 7 cm
Acervo do artista (RJ)
Fotografia: Maurício Salgueiro
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Polivisão XLIX4 (3), múltiplo, (1994)
Maurício Salgueiro
Mista s/Eucatex (alumínio e fotografia)
88,5 x 87,5 cm
Acervo: Museu de Arte do ES (Vitória
Fotografia: Bárbara Queiroz da Silva
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Polivisão XLIX4 (2), múltiplo, (1994)
Maurício Salgueiro
Mista s/Eucatex (alumínio e fotografia)
85 x 79 cm
Acervo: Museu de Arte do ES.
Fotografia: Barbara Queiroz da Silva
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Ver para crer, crer pra ver:
relações entre fotografia
e texto na arte contemporânea
Camila Monteiro Schenkel
Mestranda/ UFRGS/ PUC – RS
Resumo
Partindo de trabalhos de Mike Mandel e Larry Sultan, Harrell Fletcher, Joan Fontcuberta, Albano Afonso, Vera Chaves Barcellos e
Gillian Wearing, esta pesquisa investiga como a relação instável
entre fotografia e realidade pode ser trabalhada, na arte, por meio
de elementos textuais. Serão analisadas as relações que se estabelecem entre fotografia e texto e como legendas, títulos ou inserções
de palavras dentro da imagem podem transformar sua percepção,
instaurando novos sentidos.
Palavra Chave
Fotografia; texto; Arte Contemporânea
Abstract
Based on the works of Mike Mandel and Larry Sultan, Harrell
Fletcher, Joan Fontcuberta, Albano Afonso, Vera Chaves Barcellos
and Gillian Wearing, this research investigates how the unstable
relationship between photography and reality can be approached,
in the visual arts, through the use of textual elements. It analyzes
the connections between photography and text and the effects that
captions, titles and the insertion of words have on the perception
of images, crating new meanings.
Keywords
Photography; text; Contemporary Art
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Diz um velho lema do fotojornalismo que, quando uma fotografia precisa de
uma legenda para que possa ser entendida, o melhor a fazer e descartá-la – uma
boa imagem deve falar por si própria. Purista e utópica, a lógica desse argumento
é contradita pelo papel central que a fotografia assumiu em nossas vidas ao longo
de pouco mais de um século e meio de história. Todos os dias travamos contato
com imagens fotográficas, em casa e na rua, em jornais, livros, revistas e panfletos, em cartazes ou no computador, e quase sempre elas estão acompanhadas
por textos.
Se por séculos a pintura esforçou-se para manter sua autonomia em relação à referência lingüística, os usos que foram atribuídos à fotografia, logo após
sua invenção, talvez tenham favorecido esse cruzamento. A combinação da fotografia com texto ocorre com tanta freqüência que acabamos por criar a expectativa de que esses dois elementos possam se corresponder exatamente. Ao encontrar
uma legenda abaixo de uma fotografia, esperamos que ela espelhe o que mostra
a imagem, explique ou acrescente algum tipo de informação relevante à cena,
em suma, que esteja comprometida na comunicação de algo que a imagem deve
exprimir.
Legendas e títulos funcionam como elementos legitimadores, capazes de
testemunhar o passado de determinada fotografia, mas também de transformar
esse contexto. No entanto, estamos muito mais atentos a manipulações efetuadas
através do corte, da edição e da montagem de imagens do que às distorções que
a linguagem opera.
Ainda somos, e mais do que nunca, uma civilização da escrita, escrita e
^F,
discurso afirmava Roland Barthes em 1964, recusando o rótulo de civilização
de imagens que começava então a circular^F. De lá pra cá, o mundo da comunicação foi revolucionado pela tecnologia da informação. A fotografia digital multiplicou produtores e receptores de fotografia, acelerou sua produção e circulação e
inundou a vida pública e privada com milhares de imagens. O rótulo que Barthes
recusava há quase 50 anos atrás já não parece exagerado, mas, ainda assim, essa
proliferação de fotografias acontece, na maioria das vezes, acompanhada por textos que as nomeiam, apresentam ou comentam.
Para que a imagem fotográfica possa cumprir com eficiência as funções
de informação, comprovação, reprodução e persuasão que lhe foram atribuídas,
seu caráter flexível e instável precisa ser amenizado, e uma das ferramentas mais
importantes para assegurar o valor de testemunho da imagem fotográfica é o texto ou a legenda que costuma acompanhá-la em seus usos cotidianos, mediando
realidade e ficção, combinando a eficácia do código lingüístico com a vocação da
fotografia para o testemunho visual. A legenda (...) ajuda a escolher o nível correto
de percepção, permite dar foco não apenas ao olhar, mas também à compreensão^F.
Legendas
O primeiro par de trabalhos sobre o qual gostaria de falar problematiza especificamente a questão da legenda. O primeiro chama-se Evidence, realizado pelos
artistas norte-americanos Mike Mandel e Larry Sultan em 1977. O segundo é
de um artista também norte-americano, porém de uma geração mais recente, e
foi montado como instalação em diversas cidades, sendo uma delas Porto Alegre.
90
X X X Colóquio CBHA 2010
A experiência que Mandel e Sultan realizam com Evidence comprova a
fragilidade da fotografia como documento autônomo. Em 1975, a dupla recebe
o apoio do National Endowment for the Arts para visitar, durante dois anos, os
arquivos de diferentes instituições da Califórnia, tanto públicas como privadas,
em busca de fotografias. Ao fim do período, as imagens recolhidas foram misturadas e reapresentadas, sem nenhuma referência, em formato de exposição e de
um livro, recentemente reeditado^F.
As fotografias selecionadas apresentam vestígios de presença humana
em cenários fragmentados. Nelas, vemos apenas uma fatia descolada de uma
cena-chave em algum tipo de laudo ou processo, à qual ganhamos acesso sem
referência alguma para orientar nossa leitura. Essa simples operação de seleção
e descontextualização desestabiliza por completo o teor informacional das fotografias, transformando radicalmente imagens que uma vez serviram como base
e comprovação em experimentos científicos, processos criminais ou testes industriais.
Ao destacar essas imagens de seus arquivos de origem e mostrá-las sem
qualquer legenda, Sultan e Mandel expõem a necessidade de um contexto discursivo para que a fotografia possa cumprir suas funções sociais. Nas mãos da dupla,
fotos de perícia policial, laudos industriais e testes espaciais se transformam de
evidências em imagens fragmentárias e incompreensíveis, beirando por vezes o
absurdo.
Assim como Mandel e Sultan, Harrel Fletcher, em A guerra americana,
trabalha com a apropriação de imagens. Em 2005, o artista viaja para o Vietnã
em uma espécie de retiro, querendo confrontar sua visão da guerra, marcada por
suas memórias infantis do evento e pelo que vira em filmes de Hollywood, com
a daqueles que viveram o conflito em seu próprio território. Ao chegar ao Museu
de Guerra de Ho Chi Min, Fletcher fica tão impactado pelo material ali reunido
que decide encontrar uma maneira de levá-lo de volta a seu próprio país. Para
isso, realizando uma espécie de contrabando cultural, o artista refotografa todos
os itens do museu (cujo acervo era formado basicamente por fotografias), com o
cuidado de registrar também como cada imagem era legendada, em vietnamita
e inglês. Fletcher recolhe aproximadamente 100 fotos que cobriam os 10 anos de
guerra e ainda algumas de suas conseqüências posteriores, como mutilações de
combate e os efeitos das armas químicas que marcaram o conflito. Muitas dessas
fotografias já eram conhecidas através da publicação em jornais ou revistas internacionais. No entanto, vê-las todas reunidas, acompanhadas pelos comentários
locais, tornava-as ainda mais impactantes. Como comenta o artista, “ver todas as
fotos e informações, juntas, organizadas a partir de uma perspectiva vietnamita,
foi imensamente perturbador e triste”^F.
No museu remontado pelo artista, fotografias e legendas são apresentadas lado a lado, com o mesmo tamanho e formato. Enquanto em alguns casos o
texto complementa a imagem com estatísticas, nomes e datas, dando dimensão
numérica e humana ao conflito, em outros, o texto serve, em um primeiro momento, como um escape para o olhar daqueles que não conseguem suportar a
barbárie. Algumas descrições, no entanto, são tão terríveis quanto as imagens.
91
X X X Colóquio CBHA 2010
Títulos
Nos dois próximos trabalhos analisados a interferência textual nas imagens se dá
através de um elemento que usualmente acompanha as obras de arte: o título. No
caso das artes miméticas, como a pintura e a fotografia, o título costuma servir
para assegurar que se entenda o que está sendo representado, podendo repetir em
palavras os elementos contidos na imagem ou ainda servir como um complemento, fornecendo informações extra-quadro.
Joan Fontcuberta é um artista que tem como declarada obsessão as ambigüidades das relações entre realidade e ficção, e suas obras sempre jogam com
seus limites e pontos de contato. Confrontar o espectador com suas rotinas e automatismos de interpretação da realidade para instalar a dúvida racional ^F estão entre
seus principais objetivos.
Na série Constelaciones (1993), o artista apresenta imagens que imediatamente são associadas a um céu estrelado, antes mesmo que o título seja lido.
Cada imagem recebe ainda como espécie de legenda o nome de uma constelação
ou estrela e suas coordenadas espaciais. No entanto, passada essa primeira impressão, podemos perceber a aparição de elementos cada vez mais estranhos nos
céus de Fontcuberta. Buscando mais informações sobre o trabalho, é possível
descobrir que suas estrelas são, na verdade, fotogramas dos cadáveres de insetos
esmagados contra o pára-brisa de seu carro durante uma viagem noturna. Usando a contra-informação como estratégia artística, o artista trabalha para aguçar
o senso crítico de seu espectador, alertando-o para a ambigüidade das imagens
e o jogo social e político que envolve a criação de significados. A dúvida é uma
ferramenta da inteligência^F, costuma alertar.
Constelações encontra eco em outro trabalho fotográfico que traz estrelas
no título, a série Fazendo Estrelas, realizada pelo brasileiro Albano Afonso, em
2004. Afonso não é conhecido por nenhuma particularidade em relação aos títulos que dá a suas obras, nem por trabalhar especificamente a partir da linguagem.
Normalmente, limita-se a títulos descritivos, que servem principalmente para a
identificação de seus trabalhos e para o reconhecimento das figuras que utiliza,
como acontece na série em que sobrepõe fotografias de si próprio a célebres auto-retratos em pintura.
Fazendo Estrelas tem esse lado descritivo, essa vontade de evidenciar o
processo usado pelo artista e esclarecer seu espectador, mas ao mesmo tempo
ganha uma dimensão alegórica quando visto como uma metáfora do processo
fotográfico. A primeira vista, Afonso parece assumir nessa série uma postura
contrária à de Fontcuberta, pois entrega seu artifício logo no título do trabalho.
Sua obra, no entanto, também acaba chamando a atenção, por caminhos inversos, para o processo de construção envolvido em qualquer fotografia. As estrelas
que Afonso constrói, luzes de flashes irrompendo da escuridão, são o próprio
dispositivo fotográfico em ação.
Fontcuberta estabelece um jogo que os mais ortodoxos poderiam até
mesmo considerar desleal: ele apresenta imagens que parecem estrelas, as agrupa
em uma série que chama de Constelações e lhes dá como título coordenadas espaciais, reforçando essa impressão inicial. As estrelas de Albano Afonso também
envolvem um processo ficcional, mas que se autodeclara. As luzes são mostradas
92
X X X Colóquio CBHA 2010
de perto, próximas demais uma da outra, assumindo imediatamente sua materialidade rarefeita. Entre a mentira e a denúncia, aparentemente de lados opostos, os
dois títulos são desafios à percepção, estrelas inventadas por meio do dispositivo
fotográfico, que se instalam ora como um mistério a ser desvendado, ora como
o compartilhamento de um processo lúdico. Em ambos os casos, o título não é
simplesmente narrativa ou explicação, mas um elemento do qual o artista lança
mão para a elaboração de seu trabalho. Em Constelações, ao mentir sobre o que
retrata a imagem e induzir o espectador a pensar como e a serviço de que ela é
feita, e em Fazendo Estrelas, ao assumir-se abertamente como ficção, Fontcuberta
e Afonso chegam a algo que não estava nem só na imagem, nem só no texto: o
despertar de uma consciência visual.
Texto dentro da imagem
Por fim, gostaria de trazer à discussão dois trabalhos fotográficos que apresentam
textos dentro ou contíguos à própria imagem. O primeiro é Testartes, série de
oito trabalhos que a artista gaúcha Vera Chaves Barcellos realiza entre 1974 e
1980, explorando como a visão fragmentada que a fotografia proporciona pode
ser estendida e completada mentalmente por quem a observa. Cada trabalho da
série apresenta um conjunto de imagens, ora espaços naturais, ora espaços arquitetônicos, que são sempre acompanhadas de um texto, bem à maneira de muitos
dos trabalhos fotográficos da arte conceitual. Através de perguntas dentro ou ao
lado das imagens, a artista estimula um exercício mental de posicionamento em
relação às cenas mostradas, como tocar ou não em uma planta áspera, aceitar os
limites de um muro ou descobrir o que está atrás de uma porta, ao mesmo tempo
em que evidencia a fotografia como representação. Em algumas ocasiões, a artista
chega a coletar e analisar respostas do público às perguntas e provocações que
apresenta nos textos, como em Testarte VII, de 1976, em que uma foto de um
menino correndo é proposta como tema de redação em escolas e Testarte VIII – O
Cofre (1979/80), um projeto de arte postal.1
Nesses trabalhos, é impossível reduzir a fotografia a seu tema, risco que
se corre toda vez que se toma a imagem fotográfica como registro neutro e automático da realidade. As imagens que a série Testartes apresenta não são simples
registros de uma escada, de um muro riscado ou de um arbusto, mas apontam
para a multiplicidade de imagens que uma fotografia combinada a uma incitação
textual pode engendrar.
Na série Signs that say what you want them to say and not Signs that say
what someone else wants you to say2 (1992–93), a artista inglesa Gillian Wearing
também constrói um mecanismo de crítica da fotografia através do uso de textos.
No entanto, não é a artista britânica quem os elabora, mas sim aqueles que posam para ela. Wearing aborda transeuntes para realizar seus retratos. As relações
entre fotógrafo e fotografado, no entanto, são alteradas quando ela entrega a seus
1
BARCELLOS, Vera Chaves. Imagens em migração. Porto Alegre: Fundação Vera Chaves Barcellos,
2009; BARCELLOS, Vera Chaves. O grão da imagem. Porto Alegre: Santander Cultural, 2007; VIGIANO, Cris (Org.). Vera Chaves Barcellos. Porto Alegre: Espaço N.O. – Arquivo, 1986.
2
Em português, cartazes que dizem o que você quer que elas digam e não o que os outros querem que você
diga.
93
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modelos um cartaz e uma caneta para que eles escrevam a mensagem que desejarem. A possibilidade do retratado intervir na imagem final, no entanto, não
assegura que os retratos de Wearing sejam mais ou menos fiéis a seus modelos.
Assim como a pose é um jogo de negociações entre fotógrafo e fotografado, os
cartazes, além de revelarem seus desejos e preocupações, são uma maneira dos
retratados criarem ficções de si próprios.
Trabalhos artísticos como os de Sultan e Mandel, Fletcher, Fontcuberta, Afonso, Barcellos e Wearing evidenciam o caráter polissêmico da imagem
fotográfica, isto é, sua capacidade de suscitar uma variedade (ou, como diria
Barthes, uma cadeia flutuante)3 de significados, que podem ou não ser percebidos
por aqueles que as contemplam. O recurso à linguagem, escrita ou oral, seria
uma estratégia para reter esses significados flutuantes e assegurar a efetivação
de determinada leitura. Palavras são associadas a fotografias não apenas para
evidenciar algo ali presente, mas também como armadilhas, forjando evidências,
embaralhando elementos e desestabilizando sentidos.
A visão da fotografia como um meio neutro e automático de copiar a realidade é resultado de um esforço histórico, diretamente relacionado aos interesses da ciência e da sociedade da época de seu surgimento em encontrar uma nova
visualidade capaz de ancorar suas aspirações à precisão, à neutralidade e ao rigor
científico. Se, quando apresentada ao mundo, a fotografia foi logo comparada a
um espelho, com o tempo ela mostrou-se um espelho embaçado, que trabalha e
ressalta determinadas situações, segundo as intenções do fotógrafo, e que assume
diferentes sentidos conforme seu contexto de recepção.
Em notícias e anúncios, arquivos e laudos, livros e álbuns, a fotografia
aparece associada a textos que ajudam a comunicar a informação em tese contida
na fotografia. A associação entre fotografias e texto é tão freqüente que sua relação sofreu uma espécie de naturalização, passando muitas vezes despercebida.
Operações como as que esses artistas realizam evidenciam que, muito além de
um simples reforço, a combinação texto e imagem é sempre ideológica.
3
BARTHES, op. cit., p.117.
94
X X X Colóquio CBHA 2010
Evidence, 1977
Mike Mandel e Larry Sultan
Detalhe
95
X X X Colóquio CBHA 2010
Da série Constelaciones, 1993
Joan Fontcuberta
MU DRACONIS
(Mags 5,7/5,7), AR 17h 05,3 min./ D +54º 28’
96
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Testarte VIII – O Cofre, 1979/80.
Vera Chaves Barcellos
Projeto de arte postal, impressão off set,
11 x 15 cm.
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X X X Colóquio CBHA 2010
A fotografia e a construção
de uma nova visualidade nas
revistas Madrugada e Máscara
Charles Monteiro
PUCRS
Resumo
A proposta do trabalho é discutir o estatuto da fotografia em relação
a outros tipos de imagens nas revistas ilustradas Madrugada e Máscara publicadas em Porto Alegre nos anos 1920. Problematizam-se
também os diferentes usos das fotografias nessas revistas ilustradas
no sentido de compreender a construção de uma nova imagem de
indivíduo no espaço público na sociedade urbana brasileira. Nelas
a fotografia ganha um lugar de destaque ao lado da ilustração e da
publicidade, fazendo parte de uma nova cultura visual em expansão
e uma nova pedagogia do olhar.
Palavras chave
Fotografia; Revistas Ilustradas; Visualidade Urbana
Resumé
Notre but est de discuter le statut de la photographie par rapport
à d’autres types de images dans les magazines illustrés Mascara
et Madrugada publié dnas la ville de Porto Alegre dans les annés
1920. Problématise également le usages socieux des photos afin
de comprendre la construction d’une nouvelle image de l’individu
dans la société urbaine moderne au Brésil. Ces magazines mettre
en relief les photo aux côtés de l’illustration et de la publicité dans
le cadre d’une nouvelle culture visuelle en expansion et d´une nouvelle pédagogie du voir.
Mots-clês
Photographie; magazines illustrés; visualité urbaine
98
X X X Colóquio CBHA 2010
Meneses1 propõe que o estudo desse campo se realize a partir da reflexão sobre
três domínios complementares: o visual, o visível e a visão. O domínio do visual
compreenderia os sistemas de comunicação visual e os ambientes visuais, bem
como “os suportes institucionais dos sistemas visuais, as condições técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos
visuais”, para poder circunscrever “a iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual
ela interage”2 . Para Meneses, o domínio do visível e o do invisível situa-se na esfera do poder e do controle social, do ver e ser visto, do dar-se a ver ou não dar-se
a ver, da visibilidade e da invisibilidade3. Já a visão “compreende os instrumentos
e técnicas de observação, o observador e sés papéis, os modelos e modalidades do
olhar” de uma época4.
As revistas ilustradas são fontes privilegiadas para pensar o diálogo entre
a tradição e a modernidade no processo de elaboração de uma nova cultura visual
nos anos 1920 no Brasil em processo de modificação e expansão. No contexto
das páginas das revistas ilustradas a fotografia ganha um novo espaço de circulação, amplia a gama de seus usos sociais e assume um novo estatuto em relação
às outras imagens: reprodução de pinturas, ilustrações, publicidade e cinema.
Os novos processos de reprodução fotomecânicos permitiram publicar imagens
fotográficas com melhor qualidade e menor custo na imprensa. Como observa
Ana Luiza Martins5, entre 1900 e 1930, há um verdadeiro boom com a criação
de muitas revistas ilustradas acompanhado a expansão do público de leitores.
As revistas responderam também a demanda de representação visual de
novas formas urbanas modernas de sociabilidade dos grupos sociais privilegiados
na cidade6 . A ampliação da esfera pública, a reordenação social que acompanha
a proclamação da República e sua consolidação no imaginário social ganhou
publicidade nas páginas desses periódicos.
Na Europa e no Brasil, entre 1890 e 1920, a fotografia começa a ser utilizada como um diferencial comercial na disputa entre publicações concorrentes7.
Embora ocorra uma ampliação do espaço físico da fotografia na imprensa, seu
lugar hierárquico entre as imagens é secundário. O regime de visualidade ainda é
dominado institucionalmente pela pintura e pela gravura. Segundo Maria Lucia
B. Kern, essa pintura preservava em geral o sistema de representação naturalista
1
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Rumo a uma ‘História Visual’”. In: MARTINS, José de Souza; ECKERT, Cornélia; NOVAES, Sylvia Caiuby (orgs.). O imaginário e o poético nas Ciencias Sociais. Bauru: EDUSC, 2005, p. 33-56.
2
Idem, p. 36.
3
Idem, Ibidem.
4
Idem, p. 38.
5
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República,
São Paulo (1890-1922). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
6
OLIVEIRA, Cláudia de; VELLOSO, Monica Pimenta; LINS, Vera (orgs.). O Moderno em revistas.
Representações do Rio de Janeiro de 1890
a 1930. Rio de Janeiro: Garamond; FAPERJ, 2010.
7
GRETTON, Tom. Le statut subalterne de la photographie. Étude de la présentation des images dans
les hebdomadaires illustrés (Londres, Paris, 1885-1910). In: Études Photographique, n. 20, juin 2007, p.
34-49.
99
X X X Colóquio CBHA 2010
baseado no desenho revestido de cores sóbrias em pinceladas quase invisíveis8.
Susana Gastal aponta para o predomínio na pintura do retrato, da paisagem e
a gradual inserção de temas urbanos a partir dos anos 1920 nas obras de Pedro
Weingärtener, Francis Pelicheck, Libindo Ferras, José Lutzenberg e Luiz Maristany de Trias9. A fotografia modificou a forma como os pintores representavam
a cidade e seus arredores a partir do emprego de um novo enquadramento fotográfico.
A fotografia surge como um estatuto inferior devido sua reprodutibilidade e seu estatuto majoritariamente informativo e documental ao lado das
imagens artísticas e criativas de ilustração ou reproduções de pinturas.
No entanto, foi a partir dos anos 1910 e 20 na Alemanha que as vanguardas artísticas criaram revistas e as transformaram em espaço de experimentação e
divulgação de novas linguagens. Deve-se destacar a importância de artistas gráficos na forma de integrar a fotografia na linguagem visual das publicações através
de montagens, da sobreposição de imagens e desenhos/vinhetas, da elaboração de
bordas e margens, bem como de complicadas molduras de influência Art nouveau
e Art Déco10. A dissertação e a tese de de Paula Ramos sobre a Revista do Globo
e a Editora do Globo discutem a formação de um novo campo de trabalho para
os ilustradores no Rio Grande do Sul11.
A institucionalização do campo visual se dá a partir da pintura com a
criação da Escola de Belas Artes em 1908 e a abertura do Curso de Pintura em
1910. Em segundo lugar, aparecem os ateliês fotográficos que também empregam
pintores e produziam os retratos dos políticos e das famílias das elites. Em 1922,
o Governo do Estado do Rio Grande do Sul publicou um álbum fotográfico
comemorativo com vistas urbanas comemorativo ao centenário da Independência12 . A produção dos ateliês fotográficos e dos álbuns aparece nas páginas das
revistas, especialmente as fotografias de Virgilio Galegari em Mascara. Em terceiro lugar, nesse momento estão se abrindo as primeiras salas fixas de cinema em
Porto Alegre. Em quarto lugar, então, apareceriam os livros e revistas ilustradas
com a valorização da ilustração e do design gráfico (letras, vinhetas, capas, molduras de imagens etc.).
No campo do visível, observam-se as pesquisas e as discussões do saber
médico visando ordenação dos corpos e no urbanismo visando à ordenação dos
espaços da cidade. A etiqueta social propõe uma nova pedagogia social (disci8
KERN, Maria Lúcia Bastos. A emergência da Arte Modernista no Rio Grande do Sul. In: GOMES,
Paulo (org.). Artes Plásticas no Rio Grande do Sul: uma panorâmica. Porto Alegre: Latu Sensu, 2007,
p. 56.
9
GASTAL, Susana. Arte no século XIX.. In: GOMES, Paulo (org.). Artes Plásticas no Rio Grande do
Sul: uma panorâmica. Porto Alegre: Latu Sensu, 2007, p. 40-49.
10
CARDOSO, Rafael. Uma introdução a história do design. 3. Ed. São Paulo: Edgard Blucher, 2008.
11
RAMOS, Paula V. A experiência da Modernidade na secção de desenho da Editora Globo – Revista
do Globo (1929-1939). 2002. 273
p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002; RAMOS, Paula V. Artistas Ilustradores – A Editora Globo e a constituição de uma visualidade moderna pela ilustração. Porto Alegre, 2007. 446p.
Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais.
12
Estado do Rio Grande do Sul. Obras Públicas. Primeiro Centenário da Independência. Porto Alegre:
Imprensa Oficial, 1922.
100
X X X Colóquio CBHA 2010
plinado as formas de sociabilidade) ao lado de uma nova pedagogia do olhar
ligada a nova cultura técnica - bonde e luz elétrica, automóvel, cinematógrafo,
fonógrafo, câmera fotográfica etc. - uma nova percepção do espaço urbano e das
interações sociais (disputas, tensões, conflitos entre grupos). Um olhar burguês e
republicano esta relacionado ao lugar do status socioprofissional e novos espaços
de atuação dos homens e mulheres na cultura urbana, constituindo uma nova
hierarquização social.
Em Porto Alegre, em 1918, a revista Máscara foi criada por um grupo
de jovens intelectuais. O Diretor-gerente era Wedemar Ferreira e os redatores De
Souza Júnior, Dyonélio Machado, J. L. Santana, Sócrates Diniz e Cyrino Prunes. Em seu expediente T. Caminha & Cia aparecem como os proprietários do
“Magazine Mascara”, que tinha representantes em Porto Alegre e no interior. A
revista tinha formato 27 x 18,5 cm e cerca de 100 páginas em jornal e miolo em
papel couché. A publicação era quinzenal e sua assinatura anual custava 20$000
réis na capital.
A maioria das capas apresenta um retrato em fundo neutro com o nome
da revista abaixo em letras desenhadas a mão. Algumas capas especiais apresentam molduras floreadas assinadas e até fotografias de baixo-relevos criados pelo
escultor Fernando Corona, como a capa da edição de 15 de novembro de 1919 em
homenagem às comemorações da Proclamação da República.
O logotipo da revista foi mudando ao longo do tempo. Em 1918, nos
primeiros números, observa-se uma máscara de teatro com olhos fechados com
o nome da revista desenhada acima pairando como se fosse um sol a iluminar a
cidade de Porto Alegre, sinos tocando num campanário e uma moldura de rosas
e folhagens ao redor (assinatura de Gabrielli). Ao final do mesmo ano, no número
22, a vinheta apresenta o retrato desenhado do busto de uma mulher mascarada
e com uma espécie de halo ao redor da cabeça soprando o logotipo Mascara em
letras desenhadas ao estilo art nouveau (assinada por Itag). Finalmente, em 1924,
a vinheta apresenta um carro passando ao fundo, um grupo de jovens mulheres
no footing sendo fotografadas por um homem e o titulo da revista sobreposto
ligando as moças ao fotógrafo. Observam-se diferentes significados sociais entrelaçados: o de oráculo da cidade, o de teatro social das vaidades e o de registro fiel
da vida moderna urbana.
Nas páginas da revista observam-se verdadeiros álbuns de família das
elites com retratos de belas jovens em idade de casar-se, mas também fotografias
de clubes, cafés e lojas da capital e do interior, além de feiras agropecuárias. O expediente apresentava o preço das reportagens a magnésio: 200$000 a fotografia
e 360$000 a página. A presença de retratos com molduras assinadas por artistas
(pintores ou ilustradores), coloridas e com flou que aproximam a fotografia da
revista Máscara das características da fotografia pictorialista13. A presença de fotografias de paisagens de Olavo Dutra com cenas de amanheceres, nuvens, sobras
13
MELLO, Maria Teresa Villela Bandeira de. Arte e Fotografia: o movimento pictorialista no Brasil. Rio
de Janeiro: Funarte, 1998; COSTA, Helouise. “Pictorialismo e imprensa: o caso da revista O Cruzeiro
(1928-1932)”. In: FABRIS, Annateresa (org). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo:
Edusp, 1991, pp. 261-292.
101
X X X Colóquio CBHA 2010
e reflexos de luz, também apontam para a influência da fotografia fotoclubista e
pictorialista14.
A revista faz a celebração dos administradores municipais ao estampar
na capa ou em reportagens de página inteira o Intendente Otávio Rocha e seu
vice Alberto Bins. Mascara também apresenta e divulga os planos de reformas
urbanas da administração municipal através de plantas e croquis, elencando os
efeitos positivos de tais iniciativas, engajando-se nas reformas e posicionando-se
ao lado do Intendente no processo de higienização e modernização do espaço
urbano15. Observa-se a utilização das imagens fotográficas muito próximas dos
padrões de visualidade dos álbuns fotográficos de Porto Alegre de 191216 e dos
álbuns comparativos de São Paulo17 na seção “A cidade ontem e hoje” da revista
Máscara, que comparava espaços do final do século XIX com as novas feições
desses espaços nos anos 1920. A edição comemorativa da revista de 1922 assemelha-se ao álbum editado pelo poder público em 1922 e os álbuns comerciais dos
anos 1931 e 193518. Ou seja, representam o centro da cidade, suas principais ruas
comerciais, praças e prédios públicos como o todo da cidade. A cidade urbanizada e que se pretendia moderna, expurgada do trabalho, dos conflitos e problemas
sociais. A seção “Porto Alegre de ontem e de hoje” construía a imagem de uma
cidade republicana moderna e higienizada com suas praças e áreas verdes frente a
precariedade da cidade do Império e sua herança do período colonial.
As imagens fotográficas se concentravam em algumas seções, como
“Vida Social” e “Vanity Fair”, que possuíam uma ou duas páginas com retratos
pousados de senhoritas da alta sociedade de Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande,
Bagé e Livramento, apontando para um provável público leitor da revista no
interior e também para estratégias de casamento entre famílias tradicionais do
interior e da capital. Estes retratos possuíam um efeito de flou e recebiam uma
moldura desenhada que os fazia assemelhar-se a retratos pintados, mas também a
álbuns de família pelo arranjo das fotos nas páginas. O que pode ser interpretado
como uma tentativa de valorizar uma imagem obtida por um processo mecânico
através da ação da mão do artista. Nessas fotografias de mulheres, os cabelos,
os vestidos e os adereços (colares, chapéus, fitas, etc.) recebem espacial atenção.
O retrato individual ou de grupo em recepções, casamentos ou clubes
publicados na revista faz parte de uma negociação entre o desejo de distinção e
diferenciação do indivíduo moderno e sua conformação a um padrão social e técnico de representação19. Os retratos jogam com uma complexa combinação entre
14
MAGALHÃES, Ângela; PEREGRINO, Nadja Fonseca. Fotografia no Brasil: um olhar das origens ao
contemporâneo. Rio de Janeiro: Funarte, 2004.
15
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
16
ETCHEVERRY, Carolina Martins. Visões de Porto Alegre nas fotografias dos irmãos Ferrari (c.1888)
e de Virgílio Calegari (c.1912). Porto Alegre, 2007. 160f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Instituto de Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais.
17
LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia e cidade. Da razão urbana à
lógica de consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinhas, SP: Mercado das Letras; São Paulo:
FAPESP, 1997.
18
POSSAMAI, Zita R. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922 e 1935). In: Anais do Museu
Paulista, São Paulo, 2006, v. 14, n. 1, p. 263-289..
19
FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais. Uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: UFMG,
102
X X X Colóquio CBHA 2010
encenação do/da modelo (pose, olhar, vestimenta, adereços), recursos da técnica
fotográfica (enquadramento, figura-fundo, iluminação, retoques, colorização) e
formas de edição na página (molduras, legendas com nomes, cargos, cidade de
residência e qualificativos: bela, distinta, destacado membro da nossa elite etc.).
Na edição de 6 de fevereiro de 1925, Ano VIII n. 4 retrato fotográfico
também serve para a identificação em inusitado processo de reconhecimento de
paternidade, onde os elementos fisionômicos (olhos, testa, queixo, orelhas) da
foto de uma jovem são comparados aos detalhes fisionômicos das fotos de dois
senhores. Ou seja, a foto aparece como registro fiel, documento e prova científica
do processo de identificação de paternidade.
A revista Madrugada nasceu na mesa de um café, também da reunião
de jovens escritores e artistas que buscavam um meio de divulgar suas idéias e
de expressar novos ideais estéticos relacionados às primeiras expressões artísticas
do modernismo no Rio Grande do Sul. Para Cida Golin 20, não se tratava de
uma vanguarda radical, pelo contrário, esses jovens procuravam negociar com
as elites locais um espaço de reconhecimento artístico e literário no contexto do
limitado sistema de artes existente. Madrugada se apresentava como “Revista
Semanal de Literatura, Arte e Mundanismo”, que pretendia misturar informação
cosmopolita e cultura regional. Revista mensal editat no formato 29,5 x 21,5 e
cerca de 30 a 40 páginas. Segundo Alice Truzs21, Madrugada seguiu o modelo
de suas congêneres nacionais reproduzindo certos padrões, como a capa e miolo
em papel superior e de maior gramatura, nas páginas internas o uso de papel
inferior; publicidade ilustrada em ambas as faces da contracapa (em cores), nas
páginas iniciais e finais da revista, separadas de outros conteúdos; a maioria das
fotografias aparece em conjunto em poucas páginas encartadas no meio da revista e impressas em papel superior.
As capas de Madrugada alternam o trabalho de ilustração de Sótero
Cosme com elementos de estilização de inspiração Art Déco, com grafismos, cores puras ou preto e branco, com a reprodução de retratos de senhoras da alta
sociedade do pintor João Fahrion em meios tons e efeitos de textura.
As imagens fotográficas se concentravam nas seções “A alma encantadora das ruas”, “As lindas criaturas”, “Atualidades” e “Desportos”, que eram
comentadas nos textos das seções “Festas”, “Sociedade”, “Feira das Vaidades”,
“Passeando” e “Crônica Semanal”. Estes retratos possuíam um efeito de flou e
recebiam uma moldura desenhada que os fazia assemelhar-se a retratos pintados,
mas também a álbuns de família pelo arranjo das fotos nas páginas.
Na seção “Atualidades”, figura fotos de noivos em estúdio, fotos de grupos de festas de casamento, fotos de reuniões políticas e de grupos reunidos em
clubes ou sociedades esportivas. Essas fotografias posadas eram fruto de um trabalho de organização do grupo em fileiras de mulheres sentadas, em poltronas
e cadeiras, e homens ao redor em pé. As posturas são rígidas e solenes, mulheres
2004.
20
GOLIN, Cida. Em Porto Alegre, a Madrugada literária dos modernistas. In: RAMOS, Paula Viviane
(org.). A madrugada da modernidade (1926). Porto Alegre: UniRitter, 2006, p. 32-43.
21
TRUZS, Alice. Publicidade e imprensa. In: RAMOS, Paula Viviane (org.). A madrugada da modernidade (1926). Porto Alegre: UniRitter, 2006.
103
X X X Colóquio CBHA 2010
com as mãos sobre as pernas cruzadas e os homens com as mãos para trás ou ao
lado do corpo. Algumas mulheres e homens encaram a objetiva, outros olham
sobre a câmera ou para um canto da sala. O destaque do corpo das mulheres em
sua silueta, nos contornos do corpo e na apresentação de uma sexualidade contida, que às vezes é realçada com adereços como flores, jóias e outros adornos22 .
Há os homens aparecem em poses mais frontais, com ênfase ao terço superior do
corpo (cabelo e bigode) com destaque para roupa ou elementos que destaquem
sua posição social ou atividade profissional 23.
Nesse sentido, pode-se observar a lugar da fotografia na hierarquia das
imagens, ele deve ser tratada e circunscrita pelo traço do artista gráfico para ser
valoriza, individualizada e integrada no discurso imagético da revista. Ganhado nesse processo maior valor. Observa-se também como Sotero Cósme destaca determinados elementos das fotografias e os retrabalha através de um traço
limpo e sintético, dando um toque manual e artístico às imagens técnicas. Esta
hierarquia é observada em outras revistas ilustradas até bem tarde, pois a capa é
reservada para uma charge em Careta ou para um retrato feminino pintado em
Madrugada, ou ainda para uma fotografia retocada e colorizada na em Mascara.
Em síntese, pode-se afirma que o estatuto das imagens fotográficas das
revistas Mascara e Madrugada estava subordinado aos cânones da pintura e do
desenho gráfico, cumprindo um papel informativo e documental, bem como
de construção da distinção e de prestígio das elites locais. As imagens foram
fornecidas em grande parte pelos principais estúdios da cidade, com destaque
para o de Virgílo Calegari (especialmente em Mascara). Legitimaram o projeto
de reformas da administração municipal que promoveu a segregação e a especialização social do espaço urbano. Essas revistas difundiram uma nova pedagogia
social disciplinando os usos e formas de representação do corpo e também uma
nova pedagogia do olhar. O que olhar e o que era lícito mostrar na esfera pública
dentro dos cânones de respeitabilidade social burguesa e republicana. A esfera do
visual era dominada pelas imagens da burguesia em retratos individuais ou coletivos posados em recepções, clubes e associações. Na esfera do visível observou-se
a predominância de ruas e clubes do centro da cidade, excluindo-se a periferia e
as partes ainda rurais da cidade. Trata-se da construção de uma visão burguesa
que valorizou o individuo e a elaboração de sua imagem de prestigio e de distinção de classe no espaço urbano utilizando desses novos veículos de comunicação.
22
SANTOS, Alexandre Ricardo. dos. A fotografia e as representações do corpo contido (Porto Alegre
1890-1920). Porto Alegre, 1997. 2
vol. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Instituto de Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material. São Paulo: EDUSP,
2008.
23
Idem, ibidem.
104
X X X Colóquio CBHA 2010
Deslocamentos do trompe-l’oeil
à virtualidade
Cristina Pierre de França
UFRJ
Resumo
Num momento em que tanto se discute a realidade virtual, o ponto central desta investigação se localiza na questão da ilusão e no
modo como esta se institui em produções artísticas de feição ambiental, compreendidas como formas de arte que se organizam em
escala arquitetônica, no sentido de abrigar um ser humano em seu
interior. Estas apresentam um caráter transitório, pois se caracterizam pela provisoriedade física, em virtude da possibilidade de serem desmontadas e transferidas de local.
Palavras chave
Ilusão, Trompe l’oeil, Imersão
Abstract
At a time in which virtual reality is broadly discussed, the focus
of this research lies on the issue of illusion and the way it establishes itself in the artistic feature of the environment, understood
as art forms that organize themselves into architectural scale, in
the sense of sheltering a human being inside of them. The vast
majority of these art forms have a transitional and indefinite character identified by physical temporariness owing to the possibility
of being dismantled and moved.
Keywords
Illusion, Trompe l’oeil, Immersion
105
X X X Colóquio CBHA 2010
Este texto apresenta um interesse em discutir o lugar da ilusão e sua constância
na constituição da arte.
Nas obras de arte, a ilusão está sempre dialogando e questionando a
existência do real, como um dado permanente e exclusivo de asserção no mundo. Esse processo é tanto mais perturbador na medida em que, todo o tempo,
o espectador está ciente de seu caráter de simulação de alguma realidade. Esse
aspecto é perceptível, sobretudo, nas artes que se constituem na confluência espaço-temporal, como o teatro ou o cinema e, ainda, nos meios de arte como as
Instalações e Videoinstalações. Na recepção dessas obras, pelo menos por alguns
instantes, o espectador é tragado pelo trabalho artístico, que o incorpora a seu
modus operandi. Essa conformação se conjuga a partir da simbiose entre a fisiologia e os mecanismos perceptivos, alterando a apreensão do ‘real’.
Os Panoramas - pinturas expostas em prédios circulares e obscuros,
construídos nos séculos XVIII e XIX especificamente para esse fim - e as Videoinstalações - meios artísticos que constituem um ambiente fechado, desde a
segunda metade do século XX - privilegiam e tensionam, de forma mais radical,
o aspecto ilusório da obra de arte. Podem ser categorizados como meios transitórios na constituição da ilusão ao investir sobre a exacerbação da questão fantasmagórica, agenciando não só seu caráter mimético visual, baseado na construção
da imagem, mas também outras configurações perceptivas no âmbito do tato,
do olfato ou da audição. Esses sentidos solicitam do espectador uma recepção
de feição sinestésica que desencadeia uma série de efeitos, inclusive de natureza
fisiológica.
Esse processo se constitui a partir da apreensão do visível e do uso de mecanismos como o trompe-l’oeil, a perspectiva e o faux terrain, no caso dos Panoramas, e a imagem digitalizada, por vezes em 3D, no caso das Videoinstalações.^F
Para além do significado corrente de ilusão relacionado ao engano, o
termo remete a um sentido particular no campo da arte, que desvela uma autonomia em relação à realidade. O real se funda na concretude de fatos que apresentam um caráter de generalidade, enquanto que a acepção ilusória subverte os
conceitos generalistas, pois se sustenta na ideação vivenciada pelo indivíduo em
sua particularidade.
Assim, procuramos identificar como esses meios artísticos investem na
ampliação das configurações ilusórias, caracterizando um estado imersivo.
Na arte, a imersão seria um estado amplificado, maximizado da ilusão e
do poder da mímesis, uma vez que agencia estados mentais e corporais, introduzindo o espectador mais intensamente na cena representada na obra. Esse espaço
imagético, em última instância, pode ser divisado como caminho para uma visualidade expandida.
Assim, estão em jogo duas operações: a primeira seria de fusão entre a
realidade atualizada e a representada, fundindo o espaço imaginário e o real; a
segunda seria do esmaecimento dos aspectos do mundo contingente e a emergência das qualidades intrínsecas da representação que artificialmente criam uma
realidade paralela.
Tanto os Panoramas quanto as Videoinstalações operam fortemente nesse sentido. A absorção que fazem do espectador não se funda apenas na
106
X X X Colóquio CBHA 2010
introdução do visitante na cena apresentada ou retratada, opera também sobre
aspectos fisiológicos que dependem da proposição do artista ao agenciar certos
estados e situações.
Na atualidade, pensa-se na virtualidade associada à problemática da imagem
digital, entretanto, essa potencialidade da imagem de construir uma realidade
diversa daquela que se vive é uma constante na arte e na natureza humana em
todos os seus períodos. A questão do duplo apontada por Clément Rosset1 e da
ficcionalidade da vida identificada por Jean-Marie Schaeffer2 é uma permanência
que, longe da ideia platônica de um atributo apenas de caráter sensorial, constitui
uma maneira de construção de sentido perene em todas as culturas.
Ernst Gombrich3 assinala que o primeiro ponto do caráter ilusório é
determinado por sua natureza dupla: configurada simultaneamente na junção
da habilidade manual e do pensamento plástico do artista e pela imaginação do
espectador. Dito de outra forma, essa ilusão se constitui tanto no objeto artístico
quanto na mente de seu apreciador, que coparticipa da imagem criada pelo artista. Essa parceria não só está relacionada à interpretação, mas também é auxiliada pela fisiologia perceptiva que conclui e completa imagens imprecisas, tênues
e obscuras. No caso da pintura, conclui-se que fatores como distância entre a
obra e o espectador e a utilização de formas difusas como manchas agem como
sugestões, evocações e reminiscências da memória, ativadas por lembranças que
dependem da capacidade de reconhecer, nelas, fatos ou imagens mentais armazenados que possam ser distinguidos, favorecendo o jogo imaginativo e ilusório.
Os Panoramas se incluem na linhagem de invenções e produções que
anteciparam a configuração do espaço cinematográfico com suas grandes telas.
Neles, a ilusão tem, por base inicial, as técnicas de trompe-l’oeil e da perspectiva,
potencializadas ainda por sua dimensão e a forma pela qual a tela é disposta no
espaço.
O trompe-l’oeil pode ser definido como uma forma de pintura que representa a realidade de maneira verossimilhante, sobretudo alicerçado sobre a ideia
de volumetria e da reprodução dos aspectos táteis dos objetos. Segundo Miriam
Milman4, o trompe-l’oeil apresenta uma meta mais ambiciosa do que representar
o real. Seu objetivo é substituí-lo como um sucedâneo artificial da realidade, na
medida em que está diretamente relacionado a uma extensão do entorno no qual
o espectador se encontra. O trompe-l’oeil é tão mais potente quanto mais se torne
indistinguível do real, um simulacro no sentido platônico do termo, capaz de
confundir o contingente com o representado. Essa tentativa de substituição do
real por uma imagem plana que simule os aspectos táteis e tridimensionais dos
objetos é o que determina sua qualidade técnica. Assim, muitas vezes, o espectador sente a necessidade de tocar na tela para se assegurar de sua planalidade.
1
ROSSET, Clement. O Real e o seu Duplo. Porto Alegre: L&PM, 1988.
2
SCHAEFFER,Jean-Marie. Pourquoi la fiction ? Paris: Seuil, 1999.
3
GOMBRICH, E.H. Arte e Ilusão. Tradução de Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Ed. Martins Fontes,
1986.
4
MILMAN, Miriam. Trompe-l’oeil Painting: the illusions of reality. New York:Rizolli International
Publications, 1983.
107
X X X Colóquio CBHA 2010
Segundo Oliver Grau, a fascinação do espectador nasce do reconhecimento das imagens pintadas, da admiração por sua similitude com um objeto
e finalmente com o jogo entre o artista e o espectador, no qual esse último tem
plena consciência da impossibilidade do que vê.
Ainda de acordo com esse teórico, o trompe-l’oeil utilizado no Panorama
ao qual se juntavam a questão da perspectiva e a do faux terrain era a forma mais
sofisticada, até então, de criação do espaço ilusório, isso porque encapsulava o espectador no interior de uma ficção imagética, na qual as diferenças entre interior
e exterior se desvaneciam.
A perspectiva é um dos mecanismos ou estratagemas, como Ernst Gombrich prefere denominar, mais poderosos na produção da ilusão. Apresenta um
ponto de vista peculiar aproximado da visão ordinária no agenciamento dos aspectos fisiológicos de apreensão do mundo. Fundada nessa acepção, toda a produção imagética desde o Renascimento utiliza a metáfora da janela proposta por
Leon Bapttista Alberti ainda no Quatrocentos. A partir dessa concepção, toda a
construção fica contida, de forma ideal, num espaço cúbico, ordenado e racional,
que controla todas as relações entre as várias formas inseridas nesse topos representado.
Sob essa ótica, a perspectiva se constitui na representação do espaço de
maneira racional, construída a partir de regras matemáticas que não se configuram na natureza mutável, mas na concepção de um mundo imóvel e estático,
paralelo ao mundo real e, portanto, antinatural.
Para Erwin Panofsky^F, grande parte da construção da perspectiva na era
moderna se deve a um pensamento que consubstancia essa espacialidade e que
difere da concepção espacial da antiguidade. Enquanto a compreensão espacial,
no período clássico, era descontínua, isolando cada corpo em sua essencialidade,
na modernidade, o espaço é concebido a partir da ideia de contiguidade e de relação espacial não só entre as várias medidas que compõem cada objeto representado, mas também a partir da sua relação com os outros artefatos inclusos nesse
espaço – de maneira a criar um sistema que o configure.
No jogo entre esses diversos objetos, nas relações de medidas que culturalmente se aproximam do próprio ato de ver, constitui-se a ilusão perspectiva,
que se configura, também, em relação à atmosfera que circunda cada um dos artefatos representados na obra. É dessa instância que se podem fazer as distinções
entre as grandezas para simular proximidade ou afastamento e se apresenta como
absolutamente natural um sistema de representação racionalizado e operado para
nos trazer uma otimização ilusória do espaço.
Nesse sentido, quando se tem a perspectiva aliada a uma superfície curva, como nos Panoramas ou ainda no teto dos planetários, a ilusão é potencializada, porque se apresentam duas ilusões. A primeira, que a vista do alto, é circular
ou de que o céu é redondo; a segunda é que elas se parecem mais reais.
O termo faux terrain foi cunhado para designar objetos tridimensionais
que se incorporam ou parecem se materializar a partir da superfície da pintura e
se localizam entre essa e o espectador, nesse sentido, sustêm a ilusão da existência
de uma terceira dimensão. Geralmente, esses artefatos estão próximos ao chão,
e o visitante não nota a diferença entre o pictórico e o real. Assim, por extensão,
108
X X X Colóquio CBHA 2010
não percebe a transição entre as duas dimensões que tendem a ser confundidas.
Apesar do uso no Oitocentos, Grau afirma que a origem desse estratagema ilusionista remonta ao Barroco, no contexto religioso, e pode ser exemplificada em
obras em que se misturavam afrescos, pinturas e esculturas, de modo que esses se
mesclavam no cenário soturno que atraía o peregrino para o conteúdo emocional
ao qual era exposto.
Em suas considerações sobre esse faux terrain barroco, Grau afirma que
sua intenção era de não deixar nada à imaginação, de modo que a realidade imagética tivesse uma proximidade quase que absoluta com o real. Nesse sentido, a
mímesis marcava sua presença duplicando o real.
Essa duplicação passava, no caso do Panorama, pela questão da dimensão ampliada nas representações e pela utilização de verdadeiras grandezas no
faux terrain para ampliar o caráter ilusório das representações.
Nos Panoramas, os processos utilizados para obter a imagem mais fidedigna se estendiam desde a observação direta até o uso da fotografia, a qual
possui um registro indicial que corresponde ao ápice da representação, segundo
Edmond Couchot^F. Assim, a fotografia oferecia-se como material para estudo,
pois fornecia um modelo e um ponto de vista ótico do local a ser representado.
As Instalações e as Videoinstalações são também formas de arte híbrida
que se constituem a partir da tensão ou do reposicionamento da ideia de simulacro e de realidade virtual. Nessa perspectiva, vamos encontrar alguns trabalhos
que utilizam basicamente objetos reais ou da realidade simulada na construção
de seus aparatos ilusionísticos. Segundo Oliver Grau, esses meios maximizam a
ilusão, misturando meios tradicionais, como o trompe-l’oeil e a perspectiva, e as
novas imagens sintéticas para atuar de modo multissensorial sobre o espectador,
adaptando os artefatos artísticos à fisiologia humana.
Os recursos ultrapassam a questão visual, pois a ela se juntam soluções
que apelam para os sentidos em sua totalidade, aproximando-se da esfera sensível
de apreensão do mundo.
A questão da simulação nas Videoinstalações se relaciona às possibilidades que esse meio apresenta de conjugação com as novas mídias digitais. Segundo Couchot, essas mídias apresentam uma relação diferenciada, porque suas
imagens não se constituem a partir do real como as imagens óticas. As imagens
digitalizadas são produto de programas computacionais, de números e não do
real observável.
De acordo com o autor, as questões pertinentes à imagem numérica têm
relação com os projetos de análise realizados pelos artistas e também por empreendedores do campo da imagem e do som.
A radicalização dos procedimentos da arte europeia do final do século
XIX, na busca da pureza e da essencialidade da forma, foi um dos pontos de
partida para as pesquisas que levaram à constituição do Pixel e a sua estruturação
na linguagem binária utilizada nos meios computacionais. Assim, toda imagem
digital, qualquer que seja sua natureza, passa por esse processo de decomposição
para ser redefinida no ambiente virtual. Entretanto, aqui, gostaríamos de fazer
um paralelo com a pintura, criada a partir do uso da tinta e do pincel, que também preexistem à imagem pintada sobre a superfície pictórica, e compõem-se de
109
X X X Colóquio CBHA 2010
material diverso da imagem propriamente dita. A diferença é que essa produção
apresenta uma fisicalidade, enquanto que a imagem de síntese apresenta uma
virtualidade latente, em seu sentido estrito, segundo o conceito apresentado por
Pierre Lévy^F, com potência de vir a ser.
Sob essa perspectiva, as Videoinstalações de base digital, ao trabalharem
com a concepção de simulação, constroem algo que não é mero reflexo de um
objeto real, fundam efetivamente uma realidade existente.
Apesar de estarem separados cronologicamente por, pelo menos, um século, tanto o Panorama quanto a Videoinstalação estão no limiar da conjunção
entre a arte e as tecnologias de produção imagética. No caso do Panorama, inicialmente com a fotografia e depois com o cinema; no caso da Videoinstalação,
inicialmente com o vídeo e atualmente com a utilização das imagens de síntese
de base digital.
A grande transformação no meio videográfico se inscreve na mudança
que ainda está em curso em todas as formas de produção imagética, as quais se
desenvolveram mais enfaticamente por volta da década de 1970. Nesse período,
os artistas começaram a usar tecnologia digital, que, simultaneamente, opera
com a produção, o processamento, o armazenamento e a difusão da imagem.
Uma revolução semelhante à invenção da máquina fotográfica, pois também
aqui há uma mudança no estatuto da imagem, que deixa a base indicial da fotografia, do cinema, da televisão e do vídeo e se constitui a partir de bases matemáticas, segundo vários estudiosos como André Parente, Diana Domingues,
Arlindo Machado e ainda Edmond Couchot, entre outros.
Essa transformação se configura pela utilização das imagens de síntese
não só em um local específico, a elas se reúne uma série de dispositivos, como
luvas, capacetes, entre outros, que objetivam aprofundar o caráter ilusório das
imagens, realizando não só o engano do olhar, mas, sobretudo, o engano dos
sentidos.
Referencias Bibliográficas
COUCHOT, Edmond. Da Representação à Simulação: Evolução das técnicas e
das Artes da figuração. Tradução de Rogério Luz in Imagem e Máquina. A era
das tecnologias virtuais. Org. André Parente. São Paulo: Editora 34, 1999.
GRAU, Oliver. Arte Virtual da ilusão à imersão. São Paulo: Editora
Unesp:Editora Senac São Paulo, 2007.
GOMBRICH, E.H. Arte e Ilusão. Tradução de Raul de Sá Barbosa. São Paulo:
Ed. Martins Fontes, 1986.
LEVY, Pierre O que é Virtual? São Paulo, Ed. 34, 1996.
MILMAN, Miriam. Trompe-l’oeil Painting: the illusions of reality. New
York:Rizolli International Publications, 1983.
PANOFSKY, Erwin. A perspectiva como forma simbólica. Lisboa: Edições 70.
1993
ROSSET, Clement. O Real e o seu Duplo. Porto Alegre: L&PM, 1988.
SCHAEFFER,Jean-Marie. Pourquoi la fiction ? Paris: Seuil, 1999.
110
X X X Colóquio CBHA 2010
John Ruskin, Arte e Fotografia:
aceitação e resistência
Daniela Kern
UFRGS
Resumo
O presente trabalho analisa o pensamento do crítico John Ruskin
(1819-1900) sobre as tensas relações entre arte e imagem fotográfica, desde o aparecimento do daguerreótipo. Ruskin dedicou às
artes fotográficas, entre 1843 e 1887, observações esparsas ao longo de sua obra. Pretende-se discutir a crescente preocupação de
Ruskin com relação à possibilidade de a imagem fotográfica ocupar
as posições antes ocupadas pela arte, o que o aproxima do pensamento de Baudelaire sobre o tema.
Palavras chave
John Ruskin; arte; imagem fotográfica
Abstract
This study examines the thinking of the critic John Ruskin (18191900) on the strained relations between art and photographic images, since the advent of the daguerreotype. Ruskin devoted to the
photographic arts, between 1843 and 1887, observations scattered
throughout his work. We intended to discuss the growing concern
of Ruskin regarding the possibility of the photographic image to
occupy the positions previously occupied by art, a concern that we
can also see in Baudelaire’s thinking on the subject.
Keywords
John Ruskin; art; photographic image
111
X X X Colóquio CBHA 2010
O crítico de arte vitoriano John Ruskin (1819-1900), apesar de nunca haver dedicado um ensaio integralmente à fotografia, como o fizera Baudelaire, espalhou
ao longo de sua obra, entre 1843 e 1887, observações esparsas sobre o novo médium. Estudiosos da obra de Ruskin, quando se debruçam sobre esse conjunto
de apontamentos na tentativa de sintetizar a trajetória do pensamento do crítico
a respeito da fotografia, em geral identificam um mesmo esquema evolutivo:
ele ficou encantado com os daguerreótipos na década de 1840, mas a partir da
década seguinte, ainda que colecionasse daguerreótipos e fotografias, passou a
afirmar cada vez com mais ênfase que a fotografia é utilitária enquanto registro
de arquitetura, mas nunca seria arte devido a sua natureza mecânica. Ruskin,
que teria deixado de acompanhar os progressos do novo médium em suas últimas
décadas de vida, também teria se mostrado cego à verdadeira “arte fotográfica”
que se desenvolvia diante de seus olhos, como destaca Harvey.1
Minha intenção, na presente comunicação, é refazer o caminho trilhado por aqueles que estudam o pensamento de Ruskin sobre fotografia com um
recurso maior à contextualização histórica. Acredito que, mediante a inserção de
Ruskin em alguns dos debates públicos sobre o status da fotografia que ocorriam
em sua época, poderemos compreender melhor algumas de suas afirmações sobre o tema. Insistirei ainda no aspecto “camaleônico” do pensamento de Ruskin
sobre a fotografia, intimamente relacionado à preocupação do crítico com o público a quem se dirigia e, por conseguinte, com a eficácia retórica de seu discurso
– aspecto bastante enfatizado por um de seus biógrafos, Hunt^F.
A fim de melhor situar o pensamento inicial de Ruskin sobre o daguerreótipo, recuperaremos algumas ideias fundamentais presentes já na divulgação
da nova técnica. Em 1839 a revista L’Artiste publica uma nota (M. Daguerre)
em que comenta a aprovação, na Câmara dos Deputados, do projeto relatado
por François Arago, que concedia pensão vitalícia a Daguerre e aos herdeiros
de Niépce pela invenção do daguerreótipo. Nesta pequena nota já se estabelece
uma imagem acerca do daguerreótipo que se tornará senso comum: “Não é uma
gravura, é um espelho. Nesse espelho mágico, a natureza se reflete em toda a sua
verdade ingênua e um pouco triste [...]”^F. Em outra edição do mesmo ano é publicado o detalhado relato La description du Daguérotype, de Jules Janin, enviado
especial da revista à Câmara dos Deputados. Janin acompanhou as explicações
de Arago e, depois de reproduzi-las em parte, não esconde sua decepção (e a de
vários dos presentes) com a inacessibilidade do invento. Ainda que revolucionário, o novo método é muito caro e muito difícil. Janin termina seu artigo desejando que no futuro o procedimento seja mais simples, que se torne mais fácil tirar
retratos e que seja possível tirar fotos coloridas^F.
Os primeiros daguerreótipos chegam à Inglaterra em setembro de 1839,
apenas três meses após o anúncio da invenção, e Ruskin compra os seus primeiros
exemplares em 1842. Filho de um abastado comerciante de vinhos, o alto custo
do daguerreótipo não foi para ele um problema. Em 1845, em viagem a Pádua,
Ruskin escreve ao pai e elogia as qualidades “mágicas” do daguerreótipo:
1
Cf. Harvey,1984, p. 32.
112
X X X Colóquio CBHA 2010
É quase como transportar o próprio palácio; cada pedaço de pedra e vitral está ali, e evidentemente não há erros sobre proporções. [...]. É uma nobre invenção – digam o que quiserem
dela [...]. Estou bastante encantado com meus daguerreótipos.2
Na década de 1840, conforme sustenta Corbett^F, Ruskin prepara o terreno, com o início da publicação de seu Modern Painters, para o desenvolvimento
da teoria sobre o visual na Inglaterra – entendendo-se aqui o visual como modo
de conhecimento. Ruskin defendia a “inocência do olho” e a primazia da experiência visual como formas de resistência ao que entendia como risco de marginalização da arte pelo “materialismo corruptor” da cultura burguesa. Ruskin
se preocupa cada vez mais com os danos que o materialismo poderia causar na
formação estética do grande público. Assim, se sua primeira reação é de admirar
o daguerreótipo sob o ponto de vista do artista, logo passa a analisá-lo considerando o impacto junto à educação visual do grande público, o que reorienta suas
considerações, como lemos nesse trecho de carta de 1846:
No que diz respeito à arte, desejaria que nunca tivesse sido descoberto, ele tornará o olho
exigente demais para aceitar mero trabalho manual.3
Ruskin já começa a discutir algumas questões essenciais sobre a natureza e a aplicação da fotografia na década de 1840. Este período, contudo, não é
marcado por intensa discussão teórica sobre o médium. Um momento decisivo
para a implantação das discussões teóricas sobre fotografia é o início da década
de 1850. Há uma série de novos fatores que desencadeiam a discussão acirrada
em torno do status da fotografia, discussão da qual Ruskin será, aliás, ativo participante. Do ponto de vista técnico, difunde-se a fotografia em papel, que permite
ao fotógrafo maior controle sobre o resultado final através da manipulação da
revelação. Em Paris, na esteira do movimento realista na pintura, liderado por
Courbet, fotógrafos começam a pressionar as instituições oficiais a fim de que
a fotografia seja reconhecida como arte. Denton4 expõe o caso de Gustave Le
Gray, que inscreveu nove fotografias em papel no Salon de Paris em 1850. Um
primeiro grupo de jurados aceitou as fotografias e as classificou no livret do Salão
como desenhos litografados. Mas um segundo grupo as excluiu da exposição por
considerá-las fruto da ciência.
Em 1851 morre Daguerre, e é nesse ano que surge um espaço pioneiro
para a discussão teórica da fotografia, com a criação, em Paris por um grupo de
homens cultos, abonados e sem preocupações comerciais, da Société Héliographique. Francis Wey, um dos fundadores, é amigo de Courbet e se bate pela elevação
do status da fotografia, ainda bastante confuso. Na Exposição Universal de 1851
em Londres, por exemplo, a fotografia foi alocada na seção II, de maquinaria e
invenções mecânicas.
2
Ruskin, 2010, p. 209-210.
3
Ruskin, 2010, p. 210.
4
Denton, 2002.
113
X X X Colóquio CBHA 2010
A já mencionada discussão sobre o realismo alimenta aquela sobre a
imagem fotográfica. Wey, nas primeiras edições de La Lumière, publica um artigo sobre o Naturalismo a fim de abordar, por esse viés, questões da fotografia. O
naturalismo na pintura quer “empalhar a natureza toda viva”^F, rivalizando com
o daguerreótipo ao não interpretar a natureza e ao conceder excessiva atenção
ao detalhe. Já o realismo apresenta um sistema mais complexo, de reprodução
de objetos ao acaso, sem composição nem escolha. A imagem fotográfica em
papel, também mais sistemática, implica em composição (a teoria do sacrifício
dos detalhes), logo permite que se vislumbre o estilo pessoal do fotógrafo, sendo,
portanto, artística.
Wey também se mostra consciente do papel que a Société cumpre em
relação ao estabelecimento de uma crítica de arte voltada especificamente à fotografia: “ora, a questão se colocou, o alarme soou em diversos campos; a fotografia
assumiu um lugar, graças a nosso jornal e a nossas reuniões, entre os elementos
da crítica de arte”^F. No que diz respeito às relações entre arte e fotografia, a visão
de Wey é diversa da de Ruskin: a fotografia se apodera do real, permitindo ao
artista ir mais fundo na idealidade da arte – Ruskin quer que a arte lide com o
real, e acredita que a dimensão ideal, divina, é o sentido profundo da realidade e
dela não pode ser separada pelo grande artista.
Wey também procura estimular as “viagens heliográficas”, viagens a cidades européias com patrimônio cultural digno de registro fotográfico, o que
Ruskin, aliás, já punha em prática nas suas viagens à Itália. Wey argumenta que
essa atividade, pouco dispendiosa, pode mudar os cânones vigentes na história da
arte “ao restituir uma glória legítima a gênios esquecidos”^F.
Diante do surgimento de uma crítica que apoia a fotografia como arte,
diante da crescente popularização do meio, do surgimento de fotógrafos de arte
como Rejlander^F, e sem desconsiderar que nesse período boa parte das fotografias eram produzidas a partir dos temas mais caros a Ruskin, monumentos e
paisagens, Ruskin formula de modo mais contundente sua crítica à fotografia
como arte. Uma fotografia e um desenho naturalista (segundo aquela mesma
concepção de naturalismo que já vimos em Wey) para Ruskin não são obras de
arte, conforme deixa claro em Pedras de Veneza (1853), porque a arte depende da
ação da alma, e não de uma mera atividade material^F.
No arsenal crítico de Ruskin se encontra ainda o argumento das deficiências da imagem fotográfica, de sua limitada fidelidade à natureza, argumento
também de domínio público e utilizado por vários dos primeiros críticos do novo
médium^F.
Os argumentos entre os defensores da fotografia são igualmente variados no que diz respeito ao aspecto enfocado: para Carpentier, a fotografia é superior à imprensa por sempre exprimir “a pura verdade, a verdade que pode ser
compreendida por todos os povos do mundo inteiro”^F.
E a luta pela inserção da fotografia entre as Belas Artes (ela que já era
por essa época uma das seções da Société Libre des Beaux-Arts) pode ser percebida, por exemplo, na reunião de 21 de novembro de 1856 da Société Française de
Photographie^F, quando o secretário geral lê a carta enviada por Nadar, solicitando
que se faça pressão para que os fotógrafos possam participar da Exposition des
114
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Beaux-Arts de 1857. Regnault, no entanto, o químico que fundou a sociedade em
1843, decidiu que a questão deveria ser apreciada com mais vagar, pois poderia
ser tanto vantajoso quanto desvantajoso associar a fotografia às Belas Artes. É
selecionada uma comissão para julgar a matéria, composta, entre outros, por
Eugène Delacroix e Théophile Gautier.
Os argumentos a favor e contra a fotografia como arte continuam a se
alternar. Auguste Belloc, autor de fotos eróticas muito consumidas no período,
no artigo The future of photography, publicado em tradução no The Photographic
News (1858) retoma o que havia proposto Wey, a fotografia, ao assumir a realidade, deixará a arte livre para ocupar a “mais alta esfera da invenção”. O dilema
da natureza da arte fotográfica ele resolve do seguinte modo: “Ela é, afinal de
contas, uma arte? É uma ciência? Ela participa de ambos; é a conciliação e quase
que a fusão dos dois. É arte identificada com a natureza – é ‘ciência aplicada’”.
Outro mérito que destaca na fotografia é seu alcance social: “o retrato não mais
é o privilégio do rico”^F.
É interessante chamar a atenção para o fato de que as preocupações
sociais de Ruskin rumam em outro sentido: ele aspira a uma ampla educação
estética de qualidade baseada nos meios artísticos tradicionais (ideal que será retomado, de algum modo, por William Morris). Não basta oferecer amplo acesso
a obras que ele considera de má qualidade (Ruskin em seus escritos parece mais
atento à fotografia comercial e às gravuras baratas produzidas em larga escala
do que à fotografia propriamente “de arte”). A preocupação social de Ruskin
apresenta alguns aspectos inesperados: conforme Harris, um dos motivos para
Ruskin tratar cada vez mais da arquitetura em sua obra é o fato de que a população mais pobre não possui obras de arte, mas os monumentos arquitetônicos
“pertencem” a todos aqueles que transitam pelo espaço urbano e podem vê-los,
daí sua insistência na necessidade da experiência visual realizada in loco, não mediada pelas reproduções, única garantia de uma adequada educação do olhar^F.
Afinado com Ruskin na preocupação com a deseducação do olhar que
a fotografia (comercial, mais uma vez, se considerarmos os exemplos apontados pelo poeta) pode acarretar, temos Charles Baudelaire e seu mordaz texto
O público moderno e a fotografia (1859). O título já indica uma preocupação
compartilhada com Ruskin, a da formação da capacidade de julgamento estético
de obras de arte. Baudelaire associa, como Ruskin, a fotografia à indústria e ao
materialismo em geral, e conclui o artigo em tom pessimista:
É permitido supor que um povo cujos olhos se acostumam a considerar os resultados de uma
ciência material como os produtos do belo não terá, singularmente, passado certo tempo, diminuída a faculdade de julgar, de sentir o que há de mais etéreo e de mais imaterial?5
A área de ação da fotografia se amplia, e muito, à medida que Ruskin
envelhece. Segundo Brettel, na metade da década de 1870 “virtualmente cadaurbanita de classe média no mundo possui fotografias”^F. Em Oxford, onde lecionava, Ruskin convivia com alguns bons fotógrafos, “artistas” (Dogdson e Angie
5
Baudelaire, 2010, p. 81.
115
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Acland). Havia ainda um popular estúdio fotográfico para visitantes, a fotografia
científica foi iniciada por Nevil Story-Maskelyne, colega de Ruskin, e o registro
fotográfico da história da arte, implementado e difundido em Oxford graças ao
próprio Ruskin^F. Mesmo adotando na prática a fotografia como recurso didático
e como meio de ilustrar seus livros, Ruskin continuava a criticá-la como arte. Em
Aratra Penteleci (1872) associa a fotografia às facilidades modernas (junto com
mecanismo e ferro fundido, todos pobres substitutos para, respectivamente, a
pintura, a habilidade e a escultura) e explica novamente que a imagem fotográfica
não é artística porque não permite composição, característica do intelecto ativo
que, segundo ele, pode ser percebida pelo observador e que é a essência do trabalho artístico – notemos que aqui Ruskin aplica à imagem fotográfica em papel a
lógica de “espelho” do daguerreótipo. Também critica a fotografia de paisagem,
pois ela é “natureza roubada”, o melhor ainda é a experiência real, e não virtual:
Vá e procure pela paisagem verdadeira, e cuide dela; não pense que dela você pode apreender
o bem em uma mancha negra que pode ser transportada para um folio.6
Harvey afirma que o Ruskin das últimas décadas parou de pensar seriamente a respeito da fotografia, apenas repetindo os argumentos que formulara nas décadas de 1840 e 1850. No entanto, em um texto tardio como As
artes negras: um devaneio em Strand (1887 – a Kodak portátil seria criada em
1888) localizamos uma no mínimo instigante reflexão sobre o impacto das “artes
negras” no público das grandes cidades: as fotografias e gravuras expostas em
Strand, uma rua de Londres, nunca foram tão perfeitas, várias retratam tipos
urbanos vivos e são interessantes por isso, o turista agora pode, com o auxílio do
naturalista, conhecer por meio de reproduções “grandes cenários com que nunca
havíamos sonhado”. A pergunta que se faz diante dessas constatações revela um
pensamento ainda inquieto, ainda em movimento acerca das imagens fotográficas (artísticas ou não) e seu impacto em nossas vidas, bem anterior às reflexões de
Benjamin e de Malraux:
A que tudo isso irá levar? Serão nossas vidas nesse reino de escuridão de fato vinte vezes mais
sábias e longas do que eram sob a luz? 7
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1856. Bulletin de la Société Française de Photographie. T. 2, année 1856. Paris:
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BAUDELAIRE, Charles; RUSKIN, John. Paisagem moderna: Baudelaire e
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6
Ruskin, 2010, p. 219.
7
Ruskin, 2010, p. 229.
116
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hebdomadaire. Beaux-Arts – Héliographie – Sciences. Première Anée, n. 8, p. 31,
Dimanche, 30 Mars 1851.
WEY, Francis. Du naturalisme dans l’art. De son principe et de ses consequences
(a propos d’un article de M. Delécluse) (fin). La Lumière: journal non politique
hebdomadaire. Beaux-Arts – Héliographie – Sciences. Première Anée, n. 9, p.
34-35, Dimanche, 6 Avril 1851.
WEY, Francis. Un voyage héliographique a faire. La Lumière: journal non politique hebdomadaire. Beaux-Arts – Héliographie – Sciences. Première Anée, n. 7,
p. 25-26, Dimanche, 23 Mars 1851.
117
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Cultura visual moderna
O caso de o perfeito cozinheiro
das almas deste mundo
Éder Silveira
FAPA
Resumo
O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, caderno-livro-montagem, criado coletivamente na garçonière de Oswald de Andrade
no ano de 1918, será a pedra de toque da análise que proponho
aqui sobre a cultura visual moderna da São Paulo começo do século
XX. A partir desse documento, serão discutidos elementos como a
reprodução técnica de imagens, as relações entre imagem, texto e
criação artística, bem como processos de criação que dialogam com
os procedimentos da imprensa, como a charge e o reclame.
Palavras chave
Oswald de Andrade, modernismo, cultura visual.
Abstract
O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (1918), notebook-bookassembly, created collectively in Oswald de Andrade’s garçonière,
will be the touchstone of the analysis I propose here about modern
visual culture in Sao Paulo in early twentieth century. From this
document, we will discuss details such as the technical reproduction of images, the relationship between image, text and artistic
creation, and creation processes that dialogue with the procedures
of the press, like the cartoon and the placard.
Keywords
Oswald de Andrade; Modernism; Visual Culture
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Oswald de Andrade, modernism, visual culture.
A alegria é a prova dos nove.
Oswald de Andrade
Em Cinematógrafo de Letras, Flora Süssekind discute o impacto da modernização
no Brasil da passagem do século XIX ao XX, assim como o fascínio pela técnica
que é expresso na criação literária e visual. Desde o século XIX, a sensação era
de que a roda da história começava a girar mais rápido. Essa sensação pode ser
traduzida na seguinte passagem, encontrada na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro: “Na era da eletricidade e do vapor, a década substitui ao
século”.1 A sensibilidade dos moradores dos grandes centros urbanos se transformava no ritmo do deslanchar de uma série de processos de modernização técnica.
Nas páginas da obra de Süssekind sucedem-se os exemplos da relação entre a
mudança dos ritmos sociais com a criação artística.
A expansão das linhas férreas, o uso da iluminação elétrica nos teatros, a
tração elétrica dos bondes, balões, os primeiros aeroplanos e o aumento significativo da frota de automóveis oferecem aos moradores dos grandes centros urbanos
a sensação de velocidade e o ritmo frenético da vida na urbe. Isso se associa aos
avanços na imprensa, que nos primeiros anos do século XX multiplica-se em um
sem-número de publicações que procurarão dar uma forma a esse modo de vida
urbano^F. Esse novo ritmo social tem, segundo Süssekind, “na difusão da telefonia, do cinematógrafo e do fonógrafo, na introdução de novas técnicas de registro sonoro e de impressão e reprodução de textos, desenhos e fotos, na expansão
da prática do reclame, fatores decisivos para sua configuração”^F.
A partir dessa hipótese, a autora procura articular e demonstrar as relações entre o “horizonte técnico” e a criação artística. O impacto, por exemplo,
da fotografia. Ela influenciou, entre outros, artistas como Vítor Meireles em seus
panoramas, Roberto Mendes em suas paisagens e Eliseu Visconti e suas pinturas
ao ar livre. Ao lado do cinema, influenciou a prosa, kodakizada 2, feita de flashes e
de frases secas. Influenciou a imprensa, com a publicidade, que a utiliza na criação dos reclames; na redação das matérias, que em jornais e revistas do começo
do século XX chegam a subordinar o texto à imagem, na ficção, que procura se
tornar ágil como os fotogramas. Além, é claro, da criação de postais a partir de
cenas brasileiras, que se difunde a partir de 1900.
Ao pensar a passagem do século XIX ao século XX, em especial desde o ponto de vista da cultura visual, necessariamente é preciso considerar essa
equação montada entre os meios de reprodução técnica e a criação artística, seja
ela literária ou visual. No caso do documento caleidoscópico que é “O perfeito
cozinheiro das almas deste mundo”, as imagens reproduzidas mecanicamente a
partir da imprensa, o desenho, em especial a caricatura e a prosa “kodakizada”
de seus participantes são alguns dos elementos que deverão ser analisados nas
páginas que seguem.
1
Revista do IHGB, t. XXII, 1859, p. 683.
2
Gonzaga Duque utiliza o verbo “kodakizar” para falar de uma exposição de José Malhoa. Cf. DUQUE,
1910, p. 40.
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O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. Livro-diário-colagem criado
coletivamente entre 30 de maio e 12 de setembro de 1918. Trata-se de um caderno em formato grande, de 33x28 cm, de aproximadamente duzentas páginas. É
um livro tombo, esses com as páginas numeradas, que se tornou um testemunho
da boemia da belle époque paulistana e da trágica história de amor de Oswald de
Andrade e Deise, ou melhor, Maria de Lourdes Castro. Em suas páginas, encontramos poemas, trocadilhos, recados e imagens. Estas são fotografias, caricaturas
e ilustrações de jornais que, ao passar pelas mãos dos cozinheiros tornam-se objeto de reinvenção, mediante colagens e montagens variadas.
O contexto em que essa obra coletiva é criada merece algumas palavras,
pois não é exatamente um objeto conhecido, mesmo por apreciadores da obra de
Oswald de Andrade e do “modernismo brasileiro”, dadas as suas idas e vindas
entre familiares e colecionadores. Antes de qualquer coisa, O perfeito cozinheiro
das almas deste mundo é o testemunho dos habitués da garçonière de Oswald de
Andrade. Como o próprio diria em suas memórias:
Alugo uma garçonière, à Rua Líbero Badaró, nos fundos de um terceiro andar. Estamos no
ano de 17. Dessa época, do ano de 18 e até 19, componho com os freqüentadores da garçonière
e com Deisi, que se tornou minha amante, um caderno enorme que Nonê conserva. Chama-se – uma idéia de Pedro Rodrigues de Almeida – “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste
Mundo^F.
Ali se reuniam, entre outros, Inácio Costa Ferreira (Ferrignac), Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Léo Vaz, Edmundo Amaral, Sarti Prado, Vicente
Rao, Guilherme de Almeida, Pedro Rodrigues de Almeida e Deise, a Miss Cíclone, “acentuando na primeira sílaba”3, como fez questão de ressaltar Oswald. Única mulher e musa do grupo. Amante, primeira esposa e uma espécie de imagem
constante em muito do que Oswald viria a escrever ao longo da vida. Todos os
autores desse diário coletivo usam pseudônimos em profusão, um procedimento
bastante comum na imprensa brasileira do começo do século XX.
Além de alguns poucos móveis, de uma fonola e de alguns discos, decoravam o ambiente uma tela de Di Cavalcanti e outra de Anita Malfatti. A
garçonière mantida por Oswald tornou-se um ponto de encontro de jornalistas,
escritores e artistas visuais que, naquele momento, iniciavam-se no métier. À época dos encontros aconteciam movimentações importantes entre os novatos das
artes e das letras que por ali passavam. Durante o período que Oswald manteve
a garçonière, Di Cavalcanti se instalava em São Paulo, Anita Malfatti abria a sua
polêmica exposição individual, Monteiro Lobato, freqüentador assíduo da garçonière e personagem freqüente do livro, publicava seu conhecido ensaio sobre a
exposição Malfatti, respondido por Oswald.
Para Mário de Andrade, o modernismo paulista foi, em grande medida,
fruto dos salões de mecenas como Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado, para
não falar da influente Villa Kyrial, animada e mantida pelo senador gaúcho Freitas Valle^F. O perfeito cozinheiro... é um inventário de um espaço de sociabilidade
6 ANDRADE, 1990, p. 108.
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de menor alcance mas ainda assim de grande importância nos momentos que antecederam a Semana de Arte Moderna de 1922, o ambiente boêmio que em geral
caracteriza a belle époque, uma “rica sociedade burguesa, brilhante e fútil, amante
do luxo, do conforto, dos prazeres”, no dizer de José Paulo Paes^F.
O livro em questão está longe de ser um objeto canônico dos estudos
sobre o modernismo brasileiro. Foi mesmo por muito tempo considerado pouco
mais do que uma curiosidade, objeto de desejo de bibliófilos guardado como uma
espécie de relíquia pela família de Oswald de Andrade. No entanto, pensar O
Perfeito cozinheiro... a partir de algumas formulações caras aos divulgadores dos
estudos de cultura visual, permite utilizá-lo como uma porta de entrada para a
reflexão sobre a natureza das imagens consumidas e reelaboradas pelos comensais
desse banquete pré-antropofágico, formadoras da sensibilidade de uma época.
A emergência dos estudos de cultura visual, conceito bastante amplo e
ainda envolto em disputas por uma definição mais clara, está diretamente relacionada ao questionamento das fronteiras disciplinares, em especial aquelas que
separam de maneira excessivamente clara as fine arts e a cultura de massas.
Por um lado, primar o “significado cultural” da obra para além do seu valor “artístico” (o
qual supõe reivindicar trabalhos que tradicionalmente haviam sido excluídos do cânone das
“grandes obras de arte” como as imagens fílmicas ou as televisivas) e segundo, explicar as
“obras canônicas” segundo vias distintas a seus inerentes valores estéticos, mas sem eliminá-los.
O importante já não é buscar o valor estético da “arte erudita” mas examinar o papel da imagem “na vida da cultura” ou, dito com outras palavras, considerar que o valor de uma obra
procede (não apenas) de suas características intrínsecas e imanentes, mas de uma apreciação
de seu significado (e aqui é tão importante uma imagem televisiva como uma obra de arte),
tanto dentro do horizonte cultural da sua produção como da sua recepção^F.
Nesse movimento de questionamento, percebe-se claramente que as
problematizações dos estudos de cultura visual se tornam não só um caminho
para as pesquisas em andamento como uma estratégia de releitura da tradição
historiográfica e mesmo de temas de história da arte. Esta tendência está presente
em Readers como aqueles organizados por Stuart Hall e Jessica Evans, por Nicholas Mirzoeff e aquele de Bryson, Holly e Moxey, assim como obras introdutórias
ao tema, como aquelas de Mirzoeff e de Dikovitskaya^F. Esse movimento, a um
só tempo de interpretação de novos objetos de pesquisa e de releitura da tradição
historiográfica permitem compreender alguns dos motivos que levaram pesquisadores por muito tempo a deixar de lado o estudo das artes menores, como a
ilustração, a caricatura e os quadrinhos, mesmo que nessas formas de expressão
tenham atuado artistas que se consagraram em suportes tradicionais, como é o
caso de Di Cavalcanti, por exemplo, cuja obra como ilustrador tem apenas recentemente recebido atenção. Trata-se da aceitação de uma fronteira, criada artificialmente e mantida na base das matrizes curriculares na área de humanidades,
que divide a imagem e a palavra ou a imagem técnica e a pintura.
A obra em questão traduz de maneira exemplar os estereótipos de sua
época e aponta para as relações dos seus muitos autores com a imagem, uma relação via-de-regra mediada pela reprodução técnica. Emergem nas páginas de O
121
X X X Colóquio CBHA 2010
perfeito cozinheiro..., além de diversas caricaturas, em especial de frequentadores
da garçonière e de figuras públicas que se tornavam alvo de suas blagues, as ilustrações de jornais e revistas. Diga-se de passagem, ilustração que era o ofício de
alguns dos frequentadores, como Ferrignac, que colaborou com diversas publicações da época e expôs na Semana de Arte Moderna de 1922. Seja nos pequenos
textos e excertos, seja nas Referências ao cinema e à música ali foram traduzidas
a experiência a um só tempo literária, visual e sonora que formava a sensibilidade
de seus autores.
Se frente à massa de trabalhos produzidos sobre o modernismo brasileiro, apontar uma tendência dominante na interpretação é uma temeridade, é
possível destacar ao menos o fato de que nas últimas duas décadas se avolumam
as interpretações que procuram sublinhar a sua timidez formal frente às experiências das vanguardas européias. A dicotomia apresentada por Rodrigo Naves
em A forma difícil entre a “renitente timidez formal de nossos trabalhos de arte”
e a produção moderna internacional, caracterizada “por uma aparência forte,
devida sobretudo a uma significativa redução da natureza representativa de seus
elementos”, ainda que não seja um consenso, representa uma forma corrente de
pensamento sobre as relações entre a cultura nacional e aquilo que é produzido
em outras partes do ocidente^F.
Vistas e revistas, as obras produzidas nas primeiras décadas do século
XX, justamente aquelas que deveriam ser representativas do diálogo dos artistas
brasileiros com temas e técnicas desenvolvidos no velho mundo, são lidas por
conta de suas estreitas relações com convenções, técnicas e temas caros ao oitocentos brasileiro.
No entanto, explicar a relação existente entre o convencionalismo das
“obras sérias”, aquelas que entravam no circuito existente de exposições e as atitudes pouco convencionais e mais ousadas de artistas como Di Cavalcanti ou
como Ferrignac em seus “trabalhos menores” não deixa de ser uma tarefa interessante. No objeto híbrido de escrita, desenho e vários tipos de montagem que é O
perfeito cozinheiro se forma um todo peculiaríssimo que ajuda a compreender as
diferenças entre os registros e experiências de linguagem que ocorrem no Brasil
simultaneamente no “circuito oficial” das artes (exposições, obras produzidas por
encomenda) e nos circuitos mais informais (jornal, diários, obras de circulação
mais restrita).
A “timidez fornal” de parte dos nossos artistas se devia a quais fatores?
Ao desconhecimento do que se fazia no exterior? Ao despreparo técnico? Ao respeito a certa tradição local? Ou simplesmente ao conhecimento dos temas e tipos
de trabalho que poderiam cair nas graças dos poucos compradores com os quais
eles podiam contar? Muitas vezes são justamente os trabalhos estudados com menor atenção pelos historiadores da arte que estão algumas das melhores soluções
formais de artistas como, por exemplo, Di Cavalcanti.
Aqui, gostaria de destacar dois momentos altos das “brincadeiras sérias”
que emergem das páginas do livro, antes de uma sistematização que gostaria de
propor dos principais motivos que são nele encontráveis. São as diversas colagens
que são aparecem ao longo do livro-diário e jogos de palavras, em especial aqueles criados por Oswald de Andrade, que misturam a palavra e a imagem, em um
122
X X X Colóquio CBHA 2010
procedimento semelhante àquele que encontraríamos, décadas depois, em certos
poemas concretos.
As montagens são realizadas a partir de imagens recortadas das páginas
de revistas e jornais que, ao serem coladas nas páginas do caderno sofrem intervenções de um ou mais dos participantes do “projeto”. Nelas são inseridos diálogos, são realizados “retoques” e recriações, em especial afim de criar inversões
de sentido. É escusado falar sobre a importância da colagem como procedimento
artístico característico das vanguardas históricas, em especial dos cubistas e dos
futuristas.
Os “jogos de palavras”, na realidade as combinações de som e imagem
na criação de novos sentidos, característico da poesia de Oswald de Andrade,
não por acaso eleito pelos concretos paulistas como o seu precursor, são surpreendentes. As brincadeiras verbais com seu pseudônimo Miramar já dariam a
pensar, mas o uso do carimbo Amaral e Co. para criar palavras e jogos de sentido
com Miramar merece destaque, até mesmo pela semelhança com o uso que Saul
Steinberg fez de carimbos em um desenho constante de sua agenda do ano de
1954^F.
É possível folhear o livro como um diário, como a crônica de uma época
específica ou como uma grande coleção de impressões, que se expressam como
palavra e como imagem. Alguns temas e alguns recursos expressivos são recorrentes e poderiam, esquematicamente, ser agrupados em três grandes grupos:
a) as caricaturas
Abundantes e presentes ao longo de todo o livro, as caricaturas formam uma
ligação direta entre O perfeito cozinheiro e as publicações da imprensa da época.
Além de apresentar o panteão dos frequentadores da garçonière, as caricaturas
eram parte da crônica (do dia ou da semana).
Via de regra assinadas por Ferrignac, elas apresentam vários dos elementos mais destacados do desenho da época. Forte linearidade e economia nos gestos, com grande capacidade de estilização. São recorrentes as representações de
Miss Cíclone, a musa dos freqüentadores-autores. Tanto no traço de Ferrignac,
presente na obra coletiva, como em outros artistas que produziam para a imprensa, são identificáveis vários dos elementos que permitem falar da influência artenovista, visível nas publicações ilustradas da época. Um elemento sempre presente nas caricaturas e que não seria preciso destacar é a sua a forte veia satírica.
Como já sublinharam, entre outros, José Paulo Paes e Haroldo de Campos, a caricatura à época não se tratava de um recurso apenas imagético, mas
também narrativo. Várias das passagens do Perfeito cozinheiro que depois seriam
refundidas por Oswald de Andrade em suas obras ficcionais são “caricaturais”.
b) técnica e modernização
Aspecto central do ensaio de Flora Süssekind, Cinematógrafo das Letras, as relações entre a escrita, a imagem e a modernização técnica é recorrente nas páginas de O perfeito cozinheiro. O cinema, os reclames publicitários, a maquinaria
moderna que invadia as casas e as redações de jornais. Havia uma sensação de
velocidade, de mudança, que não escapava aos participantes da obra-coletiva.
123
X X X Colóquio CBHA 2010
Inúmeras são as notas que fazem referência aos progressos técnicos que
se faziam notar na cidade de São Paulo de então, assim como imagens da fonola,
imagens que tentavam traduzir-lhe os sons. Um aspecto da modernização técnica
que aparece, aqui e ali, como uma nota sombria é o avanço e os estragos causados
pela Primeira Guerra Mundial, naquele momento em curso. O uso de aviões, os
zepelins e outros recursos técnicos não passava incólume.
c) a figura da mulher
Miss Cíclone, a normalista amante de Oswald de Andrade, é o centro da obra. O
perfeito cozinheiro acabou se tornando a história da vida e da morte da normalista
que representava a mulher moderna, pela inteligência evidente em suas anotações, pela sua independência, pela sua forma de viver a sexualidade. Como afirmou José Paulo Paes, o “art nouveau esplende no estereótipo da mulher moderna,
liberta dos preconceitos da vida burguesa, ainda que o preço dessa liberdade seja
a prostituição mais ou menos de alto bordo, gerou toda uma literatura de garçonière”. Cita alguns exemplos desse tipo de criação literária, como os romances
de Benjamin Costallat e Hilário Tácito, além dos dois primeiros volumes de Os
condenados, trilogia romanesca de Oswald de Andrade, sem saber àquela altura
(o ensaio de Paes é de maio de 1983 e a primeira oportunidade em que O perfeito
cozinheiro se torna público é 1987), que a inspiração para a personagem feminina
desses dois romances é Deisi.
Ainda que brevemente e de maneira um tanto esquemática, minha intenção com a presente comunicação foi apontar na cultura visual perceptível em
O Perfeito cozinheiro vários dos princípios criativos mais característicos das vanguardas históricas, que convivem lado a lado com passagens de evidente tradicionalismo. A transição evidente nas páginas dessa peculiar obra ajuda a compreender a difusão da arte moderna no Brasil e suas tantas vezes ignoradas relações
com os meios de comunicação de massas.
124
X X X Colóquio CBHA 2010
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125
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Deslocamentos na obra
de Lenora de Barros
Eduardo de Souza Xavier
Mestrando/ UFRGS
Resumo
A obra de Lenora de Barros apresenta deslocamentos entre distintos contextos artísticos, colocando em tensão os limites dos meios
pelos quais transita a imagem na arte contemporânea. Sua produção dá continuidade a questões abertas pela poesia concreta brasileira da década de 1950. Nesta perspectiva, discute-se a relação
da obra da artista com este momento histórico, sua atuação no
campo cultural e apresenta-se um estudo de caso que deflagra estes
deslocamentos.
Palavras chave
Lenora de Barros, imagem, deslocamentos de contexto.
Abstract
Lenora de Barros’ work sheds light on the shifts between different
artistic contexts, putting strain on the limits of the medium in
contemporary art. The artists’ production continues the discussions opened by Brazilian concrete poetry in the 1950s. In this
perspective, we discuss the relation of the artist’s work with this
historical moment, its role in the cultural field and present a case
study that triggers these shifts.
Key-words
Lenora de Barros, image, shifts of context.
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O objetivo deste texto é discutir os deslocamentos da imagem na obra de Lenora
de Barros. Esta artista, atuante em São Paulo no circuito da arte contemporânea,
traz em seus trabalhos importantes reflexões sobre a imagem e seus deslocamentos nos diversos contextos da produção artística. Busca-se, em especial, pensar a
produção da artista sob a ótica dos deslocamentos da imagem através dos espaços
da visualidade e dos gêneros artísticos.
As obras de Lenora de Barros apresentam, muitas vezes, deslocamentos
de temáticas entre o visual e o sonoro; entre a palavra e a imagem; entre a poesia
e as artes visuais; entre a linguagem, a arte e o design gráfico. Suas obras são frequentemente classificadas como multimídia ou intermídia, mas tendem a ultrapassar a maioria das tentativas de categorização. Desenvolvem-se, muitas vezes, a
partir de uma origem verbal – um poema, um jogo de palavras, uma frase –, passando depois para outros meios, como a fotografia e o vídeo. Esta característica,
que aqui se denomina como “deslocamento”, aponta para os diferentes contextos
que fazem parte da produção contemporânea em arte. Além disso, no caso de Lenora de Barros, coloca em tensão os meios pelos quais transita a imagem – no que
diz respeito principalmente à fotografia e o vídeo e as relações que estabelecem
com a performance e a instalação no âmbito das artes visuais.
A artista iniciou sua trajetória como poeta em meados dos anos 1970,
quando também formou-se em Lingüística pela USP. É característica de sua geração, no campo da poesia, um experimentalismo relativo aos aspectos visuais
dos poemas. Estes se juntavam a meios como fotografia, desenho e experimentações gráficas e foram também apresentados em um livro, intitulado Onde se
vê, de 1983. Os poemas foram publicados em revistas de poesia visual que circulavam na época, como Poesia em Greve, da qual a artista foi uma das editoras.
Outras revistas como Corpo Estranho, Código e Artéria também faziam parte
deste contexto. Estes poemas eram apresentados principalmente com fotografias
de caráter performático e com influências da arte pop e conceitual das décadas de
1960 e 1970, como pode ser observado em Homenagem a George Segal, de 1975
e refeita em 1990.
A poesia e a visualidade dos poemas iniciais de Lenora de Barros foram,
ao longo do tempo, fundindo-se com questões próprias das artes visuais. O que
pode ser observado pela maneira como a obra é apresentada no espaço expositivo, muitas vezes enquanto uma instalação que congrega fotografias, vídeos,
performances sonoras e corporais feitas pela artista. Evidencia-se, na produção
das últimas décadas de Lenora de Barros, uma pesquisa mais centrada na imagem, que questiona a unicidade dos meios da arte e a própria separação entre os
gêneros artísticos.
Este debate, atualmente reacendido justamente pelas inúmeras confluências apresentadas tanto nos campos culturais como nas obras artísticas, tem
sua referência mais marcante no século XVIII com o Laocoonte de Lessing. A
proposta do autor de distinção entre a poesia e as artes plásticas se dá pela relação
que os dois campos possuiriam com o espaço e com o tempo. De acordo com
este pensamento, as artes plásticas concentrariam um único momento, de forma
estática, desenvolvendo-se no espaço. A poesia, por outro lado, poderia conduzir
uma ação por sua duração, de forma linear e progressiva, desenvolvendo-se no
127
X X X Colóquio CBHA 2010
tempo ao longo de sua leitura^F. Esta abordagem está ancorada em uma noção
que não corresponde ao atual campo ampliado das artes visuais, mas nos serve
como contraponto. Mesmo que cada área tenha suas especificidades, sabe-se que
atualmente tempo e espaço confundem-se e não são parâmetros estáveis para a
delimitação de um campo.
No caso de Lenora de Barros, um aspecto importante que deflagra os
deslocamentos entre campos, questões artísticas e contextos, é a ligação que a
sua obra possui com um determinado momento histórico na arte. Filha do artista Geraldo de Barros, Lenora é herdeira de uma conquista moderna na arte
brasileira, que se deu a partir da arte concreta da década de 1950 (especialmente
com as pesquisas de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari na poesia).
Esta conquista diz respeito ao espaço que a poesia concreta abriu para pesquisa
em um campo atualmente bastante explorado nas artes visuais: a relação entre
arte e palavra.
Com a referência básica sendo Mallarmé e seu Un coup de dés – obra que
foi o estopim para que o pensamento visual entrasse na poesia – os autores do
movimento concreto fizeram uma ampla revisão de seus antecedentes históricos
no campo da poesia e, em menor escala, outros das artes visuais. Abriram, assim,
um leque de Referências para as gerações de artistas que vieram posteriormente.
Ao estabelecer criteriosamente seus pares e traduzir textos que eram fundamentais para o movimento concreto, além de inéditos no Brasil, os poetas concretos
acabaram por aproximar a poesia da visualidade, estreitando as relações mantidas entre os dois campos no Brasil.
A poesia concreta da década de 1950 buscou deixar aparente a estrutura
da própria poesia através da exploração de aspectos gráficos que levariam o leitor
a fazer uma leitura descentralizada, através da estrutura relacional do poema. O
espaço desta poesia, assim como o da arte concreta da época, deveria ser quantificável, seriado, geometrizado, pensado através de cálculos matemáticos e não
mais hierarquizado através da representação espacial perspectiva e de temática realista. A leitura da obra seria, então, como nos termos de Ronaldo Brito, proposta
pelo espectador, que deveria “romper os esquemas convencionas de percepção e
exercitar-se na nova ordem proposta”1.
Um conceito fundamental para os poetas concretos – e enfatizado também por Lenora de Barros – é o de verbivocovisual. O termo está no Finnegans
Wake de James Joyce e foi amplamente apropriado pelos concretos em seus textos
críticos e manifestos para demonstrar sua concepção de poesia. As características semânticas (verbi), sonoras (voco) e visuais (visual) dão ao poema concreto
“uma estruturação ótico-sonora”, segundo Augusto de Campos2 . É principalmente pela concepção verbivocovisual da poesia que a obra de Lenora de Barros
conecta-se com este momento histórico da arte concreta. O termo aponta para a
1
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 36.
2
CAMPOS, Augusto de. Poesia concreta. In: CAMPOS, Augusto de.; CAMPOS, Haroldo de.; PIGNATARI, Decio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 4º ed. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2006. p. 55-56.
128
X X X Colóquio CBHA 2010
maior amplitude buscada nas experimentações e reflexões propostas pelos poetas
concretos, e que estão presentes na produção da artista.
A questão verbivocovisual pode ser encontrada nas operações utilizadas
por Lenora de Barros ao longo de sua trajetória. Nela, as palavras figuram não
só como peças de um jogo de sentidos, poético e visual, mas também enquanto
elemento sonoro, explorado em suas performances vocais. Paul Zumthor, autor
dedicado ao estudo das poéticas da voz, propõe que toda leitura implica um corpo que lê, compondo, assim, uma performance. O autor diferencia o texto escrito
do texto lido, dando ênfase para a presença corporal da voz (seja ela mediada pela
tecnologia ou presencial) e seu impacto na leitura de um texto3. O corpo que lê, e
os deslocamentos de sentido que esta leitura causa, é uma discussão trazida para
o campo das artes visuais na obra de Lenora de Barros.
Inversamente, a artista pensa também a poesia através da imagem. Em
Poema, obra de 1980, a artista joga com a uma possível “linguagem” da poesia e
com o próprio ato criativo. Aqui Lenora realiza algo próximo de um ato sexual
com a máquina de escrever, excitando-a, passando sua própria língua pelas teclas
da máquina, como se a língua fecundasse o material que origina a poesia. A fricção da língua (órgão corporal) com a língua (ligada à sintaxe) é o que cria tanto
o poema quanto a imagem.
Esta característica múltipla, de uma obra que se dá na confluência entre
questões da poesia e das artes visuais, é marcante em Lenora de Barros. Não só
ela é visível nas próprias obras e nas falas da artista, mas também na atuação de
Lenora no meio cultural. A artista foi curadora da mostra Poesia Concreta in Brasile, realizada na Itália no início da década de 1990; da exposição Poesia concreta:
o projeto verbivocovisual, realizada em 2007 em São Paulo e Belo Horizonte; e
organizou, junto com João Bandeira, a exposição e o livro Noigandres, que trazem documentos sobre o grupo que originou o movimento da poesia concreta
no Brasil.
Além desta atuação no campo cultural, que indica suas ligações com a
poesia concreta, Lenora de Barros também atuou no campo do design gráfico
como diretora de arte em jornais e revistas. Durante a década de 1990, assinou
uma coluna no Jornal da Tarde. Intitulada Umas, a coluna era publicada semanalmente e possuía forte caráter experimental, pois se distanciava da habitual
crônica escrita dos jornais. Nelas, a artista desenvolvia a criação em um espaço
gráfico livre, que articulava imagens, textos, palavras e poesias, unidas por um
tema em cada coluna. Lenora apropriava-se de imagens de outros artistas, da
mídia, do cinema, de outros poemas seus, utilizando também imagens de suas
performances e outros trabalhos. A observação das edições desta coluna aponta
para a origem de diversos temas retomados pela artista em obras apresentadas nos
contextos de exposição de artes visuais.
Considera-se, portanto, que na produção artística de Lenora de Barros,
estas colunas atuam como documentos de trabalho, de acordo com a definição
3
“Estou particularmente convencido de que a idéia de performance deveria ser amplamente estendida; ela
deveria englobar o conjunto de fatos que compreende, hoje em dia, a palavra recepção, mas relaciono-a ao
momento decisivo em que todos os elementos cristalizam- em uma e para uma percepção sensorial – um
engajamento do corpo”. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify,
2007. p. 18.
129
X X X Colóquio CBHA 2010
dada pelo pesquisador Flávio Gonçalves. Estes documentos são materiais que
o artista possui e que constituem uma espécie de fonte de trabalho no processo
de criação da obra. Seus estudos apontam para o processo e não para a obra finalizada e permitem encontrar a “referência de uma origem possível da criação
artística”4. Ou seja, um material que “testemunha o momento de instauração de
uma idéia”5, que depois será desenvolvida em um trabalho artístico. O estudo
destas colunas pode apontar para a origem de certas escolhas feitas pela artista,
para retomadas de temas que ocorrem ao longo dos anos e, principalmente, para
os deslocamentos de contexto que ocorrem quando questões inicialmente apresentadas em uma coluna de jornal (um contexto ligado à comunicação) são apresentadas no espaço expositivo de artes visuais (um contexto artístico).
A seguir, apresenta-se o deslocamento de uma questão artística presente
na obra de Lenora de Barros. A série Não quero nem ver foi exposta inicialmente
2005 (no Paço das Artes – SP e na 5º Bienal do Mercosul – RS) e posteriormente
em outros contextos expositivos. A série desenvolveu-se sobre diferentes formatos: fotografia, vídeo, performance, poesia e instalação. Ela nos dá características
comuns à obra de Lenora de Barros, tais quais: o uso da fotografia e do vídeo; a
realização de uma performance da própria artista, feita para a câmera; o uso da
poesia num contexto de artes visuais; exploração das potencialidades sonoras das
palavras, através de instalações sonoras e performances vocais. Em Escrever por
dentro, apresentada no Paço das Artes, as fotografias foram apresentadas junto a
estas peças sonoras realizadas pela artista.
Na istalação da 5º Bienal do Mercosul, uma série de quatro vídeos foi
apresentada cada um em uma cabine, disposta numa seqüência linear. Aqui a palavra aparece em sua forma escrita (gráfica, visual) e verbalizada (enquanto performance sonora, ou poema oralizado). Destes vídeos, trataremos do que abria
a instalação, Tato do olho. Nele as palavras apresentadas são intercaladas com
imagens em close-up do rosto da artista. Estas palavras remetem a uma noção
de espaço gráfico contido no vídeo. O jogo de sentidos operado por Lenora de
Barros fica claro quando juntamos os fragmentos lançados ao longo do trabalho,
formando a frase, “a mão que tapa o tato do olho não vê que o olho não vive sem
toque”. Este cruzamento de sentidos na concepção de um “olho” que tem “tato”
é análogo ao que se dá entre as confluências dos aspectos das artes visuais com
outros próprios da poesia. Ele simboliza uma tensão, ou mesmo fricção, entre os
campos, que é resolvida no âmbito artístico e no domínio da visualidade e que
muito remete ao conceito de verbivocovisual anteriormente apresentado.
Neste vídeo, um importante deslocamento acontece. A frase utilizada
pela artista já havia sido publicada anteriormente na coluna Umas, em 1994.
A coluna De olho na mão foi publicada 11 anos antes da apresentação do vídeo. Nela é possível observar claramente a relação entre coluna e obra. O poema
fragmentado que aparece na coluna, junto com imagens apropriadas de diversos
contextos que mostravam pessoas com o rosto coberto pelas próprias mãos, é o
mesmo que será visto no vídeo, realizado cerca de dez anos depois: “a mão que
4
GONÇALVES, Flávio. Uma visão sobre os documentos de trabalho. Panorama crítico, n. 2, sem página. Ago – Set 2009. Sem numeração.
5
Idem, Ibidem.
130
X X X Colóquio CBHA 2010
tapa o tato do olho não vê que o olho não vive sem toque”. O gesto de cobrir
o rosto com as mãos repete-se no vídeo e na coluna. Esse gesto funciona como
possível metáfora para a junção do tato (presente através da mão) com o olho,
permitindo a experiência de um toque no olho.
O jogo de palavras operado pela artista tanto no título da coluna, “De
olho na mão”, quanto no do vídeo, “Tato do olho”, são percepções da obra que
apontam para os detalhes da própria imagem e para as diferenças contidas em
cada formato de apresentação. O gesto de tapar os olhos, e no vídeo “tapear” os
olhos, é também enfatizado na obra. Há uma diferença de apresentação destas
ideias artísticas quando ela é apresentada na página do jornal, junto com todas
as informações do Caderno no qual era publicada semanalmente, e na vídeo-instalação trazida aqui como exemplo.
Estes deslocamentos oferecem questões de pesquisa que serão aprofundadas na dissertação de mestrado do autor, ainda em fase inicial. Eles possibilitam a leitura de fragmentos que irão se complementar ao longo da trajetória
da artista, que ora aparecerão em uma poesia, ora em uma coluna, ora em uma
obra. Ao mesmo tempo, dão a ver retomadas de temas e proposições artísticas
constantes na produção de Lenora de Barros. Assume-se, então, como hipótese
de trabalho que as edições da coluna Umas arquivadas pela artista funcionam
como documentos de trabalho em seu processo artístico.
A partir desta breve exposição, podemos concluir também que a obra
da artista tangencia nossa tradição de maneira não simplista ou escapista. Não
busca apenas situar o debate tradição/ contemporaneidade através de citações
históricas. Utiliza, pelo contrário, criticamente e produtivamente aspectos históricos da nossa arte. É uma obra que leva adiante pressupostos da poesia concreta
em conjunto com a questão relacional proposta pelo Neoconcretismo carioca e
o espaço que abriu para a expressão, por exemplo. Coloca em cena a discussão
de nossas matrizes construtivas e as relações da história local de nossa arte com
a história da arte internacional, através das Referências às vanguardas históricas
do início do século XX, a arte pop, conceitual e performática dos anos 1960/70
– características da geração que surgiu em meados dos anos 1970 no Brasil. Da
mesma maneira, esta reflexão coloca em discussão a condição de abertura da arte
contemporânea e sua possibilidade de vincular-se de forma crítica aos diversos
momentos de nossa cultura, assim como às questões artísticas e contextos de
produção diferenciados presentes no campo cultural.
131
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Homenagem a George Segal
Lenora de Barros
Fotografia
1990
132
X X X Colóquio CBHA 2010
Poema
Lenora de Barros
Fotografia
1980
133
X X X Colóquio CBHA 2010
Tato do olho
Lenora de Barros
Still de vídeo
2005
134
X X X Colóquio CBHA 2010
O Hibrido na Arte de Eduardo
Kac: Mutações e Convergências
Estéticas da Arte
Prof. Dr. Fabio Pezzi Parode
UNISINOS
Profa. Dra. Ione Benz
UNISINOS
Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva
UFRGS
Resumo
O foco deste trabalho são as traduções intersemióticas que partem
de uma imagem que migra – a do coelho – por diferentes suportes:
o livro de Lewis Carroll; os registros plásticos de Eduardo Kac,
criador de Alba, e o filme de Tim Burton, Alice. A intertextualidade de Alba de Kac com Alice de Lewis Carroll é reveladora de
uma lógica que busca lançar questões sobre os processos do real e
a representação, nos limites entre o dentro e o fora, entre as contrações e expansões dos fluxos dos corpos. De que modo a arte
contemporânea tem expressado o intertextual como modalidade
de experimentação?
Palavra Chave
imagem, arte, mídia, intertextualidade, contaminação
Resumé
L’objectif de cet article sont des traductions intersémiotique partant d’une image qui migre - le lapin - pour différents médias: le
livre Lewis Carroll, les dossiers plastiques d’Eduardo Kac, créateur
d’Alba, et le film de Tim Burton, Alice. L’intertextualité de Kac
avec Alba et Alice de Lewis Carroll révèle une logique qui vise à
lancer des questions sur les processus du réel et de la représentation, les frontières entre intérieur et l’extérieur, entre les contractions et des expansions des corps. Comment l’art contemporain
exprime l’intertextualité comme une forme de l’expérimentation?
Mots-clés
image, art, médias, intertextualité, la contamination
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X X X Colóquio CBHA 2010
A inusitada relação dos transgênicos com a arte, evidenciada particularmente
na obra de Eduardo Kac, permite-nos indagar não apenas sobre as fronteiras e
escansões da matéria, mas também sobre as potencialidades da tecnologia, em
especial da biologia molecular que abre novos campos de experimentação para a
arte. A partir desses avanços, as fronteiras entre arte e ciência, para além dos contos fantásticos, entraram em tal ordem de interação que concretizam a religação
dos saberes, ideal postulado pelos desdobramentos da teoria da complexidade.
De modo mais específico, Alba1 não é exclusivamente filha nem de um cientista
nem de um artista, mas do encontro de disposições de criação entre arte e ciência.
Diga-se que é um agenciamento coletivo (Deleuze, 1980, p. 51), que levou um projeto de arte para dentro de um laboratório, cujo protótipo não resultou somente
em experiência científica, mas também em experiência artística.
Arlindo Machado, no texto Repensando Flusser e as imagens técnicas2,
problematiza as relações entre os aparelhos técno-tecnológicos e seus impactos na
produção de arte contemporânea. Para Machado, o tempo do gênio criador estaria definitivamente encerrado por não responder mais aos desafios da contemporaneidade. Cita o exemplo de Harold Cohen, criador de Aaron, um programa
que capacita o computador a pintar como um artista plástico, para demonstrar
de que modo parcerias entre artistas, engenheiros e cientistas estariam aptas a
romper com a racionalidade instrumental agindo sobre (e contra) os códigos da
Caixa Preta.
Um coelho verde e fluorescente? Algo totalmente anti-natural? Porque não,
responde o artista. Ainda, do ponto de vista de outras implicações desse tipo de
arte, aparece o eventual compromisso com o contexto sócio-cultural, e as atuais
questões sobre meio-ambiente e direitos dos animais. Essa obra levanta questionamentos sobre ética e indústria de artefatos sintéticos, debate necessário para
compreender a nova ordem que se estabelece a partir das descobertas científicas
que têm para o mundo atual igual impacto ao produzido pela era das navegações marítimas ou da revolução industrial, com o agravante de ter um potencial
de velocidade e abrangência nunca antes imaginado. E são as bases conceituais
oriundas da teoria da informação e da engenharia genética, de repercussão sobre
todos os ramos do conhecimento, as quais inscrevem essa arte em uma dinâmica
de produção transdisciplinar, cujos princípios ordenadores se assemelham a dos
sistemas abertos, vivos, mutantes. Como diz Morin,
1
Alba, cujo nome enquanto obra de arte é GFP Bunny, foi criada artificialmente, utilizando uma mutação sintética do gen GFP da fluorescência da medusa Aquerea Victoria e é um dos primeiros exemplos
de arte transgênica: a criação, por meio da genética, de um ser vivo orgânico complexo, artificial, para
fins artísticos. (Concinnitas - Revista do Instituto de Artes da Uerj, n. 4, ano 4, Mar 2003, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.) www.concinnitas.uerj.br/Resumos4/apresentacao.pdf (acessado em
26.06.2010)
2
Ensaio apresentado no evento Arte en la Era Electrónica - Perspectivas de una nueva estética, realizado
em Barcelona, no Centre de Cultura Contemporania de Barcelona, de 29.01 a 01.02.97. Organização:
Claudia Giannetti. Promoção: Goethe-Institut Barcelona e Diputació de Barcelona. Disponível no site:
www.fotoplus.com/flusser/vftxt/vfmag/vfmag002/vfmag002.htm; (criado em 30.05.1997, acessado em
18.11.2005)
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“ desde que se estabeleceu que a auto-reprodução da célula (ou do organismo) podia ser concebida a partir de uma duplicação de um material genético ou DNA, (...) cujo conjunto podia
constituir uma quase-mensagem hereditária, então a reprodução pode ser concebida como a
cópia de uma mensagem, (...) O mesmo esquema informacional pode ser aplicado ao próprio
funcionamento da célula, onde o DNA constitui uma espécie de ‘programa’ orientando e
governando as atividades metabólicas. Assim, a célula podia ser cibernetizada, e o elemento-chave desta explicação cibernética se encontrava na informação”. (Morin, 2006, p. 25)
Nessa perspectiva, uma primeira analogia é permitida. Um coelho verde, luminoso, mutante, segue os parâmetros da criação literária, mais precisamente da obra Alice no país das maravilhas em que não apenas se esgarçam as
fronteiras entre o real e o imaginário, mas rompem-se os limites lógicos em que
a hegemonia humana é submetida aos sentidos produzidos pelo mundo animal
e vegetal. São essas criaturas imaginárias que exercem a mais acerbada crítica
sobre o mundo das regras e convenções humanas que não chegam a produzir
um coelho verde e híbrido, mas um Coelho Branco, de olhos cor de rosa, sempre
preocupado com o relógio de bolso do colete, a olhar as horas, preocupado com
os possíveis atrasos, e, sistematicamente, saindo em disparada. Ocorre, a contragosto, a imagem do homem moderno, em estressante fuga permanente não se
sabe bem de quem ou do quê, em velocidade acima de suas condições de sobrevivência saudável e inteligente. Alice mostra um caminho, ao fugir do mundo real
das convenções sociais e inserir-se em um buraco desconhecido que se mostrou
surpreendente. A arte, sempre a arte, a romper os limites que a sociedade cuidadosamente cultiva para sua própria opressão. Para Alice “raríssimas coisas eram
realmente impossíveis” (Carroll, 2009, p. 18).
Tal agentividade encontra na figura do paradoxo seu mais alto grau de
expressividade. Adiantado e atrasado, muito grande e muito pequena, e agora no
filme de Burton criança e moça apontam para a constituição de uma existência
cujas regras são as da própria arte, em sua potência virtual, e não mais as da racionalidade, em sua clausura entre os possíveis. É justamente nesta medida que
se podem articular diferentes linhas de força - as da ciência, as da arte, as das
engenharias; mas também as da produção plástica, literária e cinematográfica –
capazes de no nível da experiência paradoxal fornecer respostas inovadoras aos
velhos problemas de nosso tempo.
Conceitualmente, a possibilidade da transgenia ou do hibridismo já está
presente na arte como decorrência de mais uma de suas capacidades: a simulação. O hibridismo, como efeito plástico obtido tecnicamente entre o desenho
e a combinação de matérias pictóricas, produz rupturas sistêmicas ou formais,
descontinuando os limites entre a materialização de uma forma – sua desmaterialização -, e a afirmação de outra. Estaríamos propriamente em uma dimensionalidade da ordem da transcendência, para antes e para além da ordem disciplinar,
da ordem do até então possível. Talvez o pintor flamengo Hieronymus Bosch, no
século XV, tenha sido um precursor nesse gênero de arte, o que muito contribuiu
com o desenvolvimento do surrealismo no século XX.
Contudo, de um ponto de vista menos simulado e mais pragmático,
somente com os avanços tecnológicos é que essa ficção se tornou possível no pla-
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no de realidade. A mistura entre os corpos, a deformação e a geração de um ser
recodificado entre um gênero e outro podem produzir uma espécie de Frankenstein, saindo dos contos de Mary Schelley, passando por Aaron, para chegar em
Alba e alterar a ordem dos significantes em arte. Do ponto de vista teórico, é a
possibilidade de operar com uma cadeia de significantes infinita (Peirce, 2000)
que liberta o signo de seu compromisso com a referência e com a dicotomia auto-definidora e lhe permite descolar-se da ordem da referencialidade para a ordem
do simbólico. É nessa cadeia que se alternam sucessiva e desordenadamente o
crescimento de Alice e sua interação com os seres imaginários do mundo das
maravilhas. É passagem do mundo real para o mundo possível, porque não dizer
desejável, porque, embora estranho e amedrontador, abre espaço para uma nova
ordem de relações inusitadas, de hierarquia social e de exercício do direito. Assim, as palavras de ordem operam máquinas de guerra (Deleuze e Guattari, 1995,
1997) rumo a desterritorializações inusitadas agenciadas por vetores dos mais diversos matizes – físicos, biológicos, técnicos, culturais – e que se reterritorializam
como diferentes formas sociais, econômicas, políticas e artísticas. O ato criador
de tais reterritorializações parece-nos ser o problema fundamental da estética
contemporânea que, tanto Kac quanto em Cohen, ensaiam uma modalidade
de produção complexa, na exata medida em que se tornam capazes de articular
diferentes ordens de saberes – a transgenia em Kac e a engenharia em Cohen.
A produção das obras transgênicas de Kac são exemplos marcantes de
uma ruptura ainda mais radical. Não se trata apenas de uma construção de primeira ordem em que o real é submetido aos efeitos da imaginação, mas de uma
ordem segunda em que a própria tecnologia motiva uma nova passagem agora
do virtual a uma nova ordem do real. Trata-se de ruptura, quebra de paradigma,
transgressão. O paradigma que se quebrou foi da ordem da unidade dos códigos
informativos e diretivos do desenvolvimento celular de um indivíduo. Há um
sistema interventor que se interpõe entre o artista e a sua obra, agora da ordem
das tecnologias que mimetizam a natureza. É a composição biológica que inspira
o homem; é, quem sabe, a estrutura molecular e evolucionista que comandará as
relações sociais. Será possível deter o avanço das ciências exatas e seu poder explicativo? Que nova revolução virá no período pós Fisica e Biologia? Que ordem
de alterações serão possíveis nas marcas deixadas por essa nova forma de compreender o mundo? São perguntas a que a arte não precisa responder, mas consegue
instigar, suscitar, produzir. Na esteira do mimetismo biológico e celular, talvez o
laço de religação da linguagem com as tecnologias esteja no conceito chomskiano
de inatismo da linguagem e consequente compreensão de seu funcionamento
como um organismo vivo.
Nesse sentido, podemos afirmar que a matéria que dá visibilidade à obra
do artista, nesse caso, assume dimensões invisíveis a olho nu, e carece de aparelhos e ferramentas de precisão, equipes sofisticadas de cientistas encarregados
da modelagem do protótipo idealizado pelo artista. A obra no seu conjunto é resultado de um coletivo, de um coletivo de artistas e cientistas. A expressão desse
signo, o Coelho, é apenas o resultado de uma articulação bem mais profunda. O
coelho verde não seria apenas um ícone da arte, mas um índice de valores engendrados pela estética. Tendo em conta que a obra obtida é uma peça laboratorial,
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experimento científico cujos passos de experimentação, análise e obtenção de resultados foram meticulosamente registrados, deduz-se, portanto, que o processo
possa ser replicado. E temos aqui uma problemática que se desdobra através das
implicações sócio-técnicas dessa obra e que poderia representar uma nova fase da
era da reprodutibilidade. Para Benjamin (1983, p. 5), “a obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução”. É verdade que se tratava de outro tipo
de reprodução, mas que permite essa apropriação, agora em uma nova dimensão
tecnológica. A questão continua atual e instigante.
Um dos importantes questionamentos que se abre é a possibilidade de
desenhar o devir morfogenético de seres vivos em laboratório, cujo método, no
limite, seria passível de ser replicado à dimensão de seres humanos. A obra de Kac
recupera a perplexidade e o fascínio diante do poder manipulador do homem,
transgressor e produtor de quimeras cujas implicações transbordam a individualidade, na mesma medida em que reafirmam um modelo amplamente criticado
pelos teóricos do pós-modernismo: a razão instrumentalizada. De fato, algumas problemáticas surgem dessa possibilidade de designar e enganar a natureza,
como diria Flusser (2007). Qual a racionalidade que está por trás de Alba?
Essa plataforma de inventividade entre arte e ciência descortina um universo fantástico de flutuações e dobras de sentido. Essa possibilidade, por analogia, nos aproxima do fantástico mundo imaginado por Lewis Carroll, em As
aventuras de Alice no País das Maravilhas. Um mundo concebido como cenário
artificial onde forças assimétricas articulam-se e jogam com seus personagens,
com formas que respondem a lógicas distorcidas, percepções afetadas pela interação com o mágico, porém tudo codificado em padrões regulados por uma
ordem implícita, hierarquizada. Uma ordem que satisfaz tanto necessidades de
dominação e afirmação de corpos em universos modulados, como do instinto
preservado na matriz da natureza, onde se combinam as forças pela vida e pela
morte, Eros e Thanatos. Natureza como cadeia de compósitos químicos e forças
físicas sem propósito nem fim senão sua própria presença e existência, como diria
Spinosa (2007, p. 265). Que propósito move Alice em sua viagem pelo mundo da
fantasia? Que propósito move Kac pelo da arte e da genética? O híbrido nessas
obras emerge do próprio transbordamento de limites, transgessor de fronteiras
e de formas, postulando transdisciplinaridade e religação de saberes através da
arte como modus operandi na produção do conhecimento contemporâneo. Entre
os artistas que se destacaram historicamente por suas incursões em um mundo
fantástico e rico em hibridismo, citamos Hyeronimus Bosch entre o século XV e
XVI, Marcel Duchamp e Francis Bacon no século XX. Estaria Eduardo Kac no
século XXI na mesma esteira de transgressão e hibridismo? O que há de híbrido
na obra desses aristas.
No horizonte das mutações produzidas no corpo da arte, há que se distinguir aquelas que se restringem aos modelos de simulação, alguns deles inclusive, computadorizados, daquelas que efetivamente causam efeitos diretos na
matéria viva, gerando impacto para além de uma mera representação conceitual,
portanto, afetando efetivamente, por composição ou aniquilamento, uma cadeia
genética de uma espécie viva, a ponto de gerar um híbrido. Seria esse o caso
do coelho fluorescente, Alba? O que essa obra está deixando no seu rastro? Se-
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ria simplesmente a possibilidade de apropriação e legitimação da tecnologia da
transgenia por sistemas transversais como o mercado e a indústria? Talvez essa
não seja propriamente uma questão que afete a arte na sua legitimidade, mas seguramente trata-se de uma questão que envolve a arte na sua dimensão de agente
operador sociocultural, podendo ser transgressiva, operadora de mediações e de
construção de sentidos, rompendo ou ligando camadas como tecnologias de poder e inteligência.
As obras dos artistas, tal como diria Foucault (1996) com relação aos
discursos, são carregadas de valores simbólicos e intencionalidades muitas vezes não explícitas, sentidos subjacentes à obra. A capacidade transformadora da
linguagem vem-se comprovando ao longo dos tempos. Contudo, na expressão
artística a liberdade atingiria seu grau máximo de experiência, uma vez que a arte
é o lugar legitimado da criatividade simbólica. A essa capacidade estrutural de
produção de sentidos, agrega-se o componente de auto-poiesis trazida pela teoria
da complexidade, segundo a qual os elementos se sobrepõem às estruturas e, tal
qual na natureza, são auto-geradores de novos sentidos. Sua força gerativa se dá
pela produção de instabilidade e do caos na ordem da natureza. É na esfera do
acaso e da necessidade, assim compreendidas, que se pode compreender a nova
ordem de produção de sentidos. Como ressalta Prigogine (1994), a flecha do tempo e a irreversibilidade são variáveis fundamentais para se projetar o movimento
em termos de probabilidade.
Considerações finais
Talvez a obra de Kac possa sugerir uma ausência de propósito, uma falta de finalidade, evidenciando-nos apenas o devir de nossos agenciamentos sócio-técnicos
coletivos face a uma máquina desejante em mutação, o próprio homem. Ou talvez possa na gratuidade do coelho verde fazer a crítica de uma sociedade contemporânea egóica, superficial e veloz.
A partir das traduções intersemióticas, procurou-se resgatar a polifonia
e intertextualidade imanente à obra dos artistas Hieronymus Bosch, Marcel Duchamp, Francis Bacon e Eduardo Kac, projetando no horizonte dessa tradução
uma reflexão sobre a problemática da imagem e a atualidade das teses sobre produção de sentido através da transgressão, ruptura ou non-sense, o que é evidenciado através da imagem do Coelho, na obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis
Carroll e mais recentemente, no filme de Tim Burton, baseado nessa obra.
Para a tradução intersemiotica, observou-se o modo como se constitui
nessas obras a polifonia através do coelho, revelando-nos um processo de construção de imagem e de sentidos relativos a transgressão e ao hibridismo. Nesse
processo analítico, partimos de algumas categorias semióticas, taxionômicas que
nos permitiram uma leitura do dialogismo da imagem Coelho e sua polifonia nos
diferentes meios e formatos sobre os quais ela aparece. Para tal, nos servimos de
Referências retóricas da imagem, tal como analogias, metáforas ou metonímias,
o suporte e, finalmente, os materiais utilizados, todos esses, recursos utilizados
na composição dessa grande alegoria que se constrói na imagem do coelho, seja
ele branco ou seja ele verde. Consideramos ainda os traços definidores da imagem
do Coelho nas obras referidas. O coelho, seu movimento e sua presença icônica,
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sugerem a tentativa de controle do tempo, seja pela posse de um relógio ou da
tecnologia genética. Esse traço revela-nos a ditadura do tempo, o primado da
temporalidade. Também a velocidade marca o imaginário da narrativa Alice
e a obra de Kac, uma vez que as corridas pelos corredores e cercas, laboratórios
ou galerias, se sucedem com freqüência permitindo aparecer e desaparecer significantes e significados, todos como em um passe de magia. Eis outro traço
importante de construção simbólica evidenciado através da imagem do coelho:
o eventual, o transitório, a instabilidade, a não-permanência. É a expressão da
transitoriedade que evidencia-se na imagem do coelho. Por outro lado, há também a reificação que disputa espaço com a humanização e que se manifesta nos
espaços-coisa como covas, aberturas, mesas e chaves, laboratórios, galerias de
arte, museus, todas possíveis e antagônicas ao mesmo tempo, tanto no protagonismo de Alice quanto no de Kac. Especialmente, nessa modernidade líquida,
parece que a sociedade, cada vez mais desencantada e nostálgica, não se identifica
na imaterialidade vigente. Para tantas interdições e faltas, resta a transgressão e a
fuga para o espaço das vidas sonhadas e dos valores perdidos.
Alba expande algumas fronteiras da arte, gera instabilidade e altera em
uma perspectiva de tempo no espaço que se convenciona chamar arte. Contudo,
Alba também reinscreve a arte, reterritorializa-a nos escaninhos descontínuos de
laboratórios científicos, assim como nas delimitações de espaço, tempo e inteligência agenciados pelos poderes executivo e sócio-técnico das propriedades capitalisticas. Nesse sentido, conclui-se que essa obra, ambiguamente, sobrecodifica
a arte através da ciência, porém através de um processo redutor e distanciador do
ponto de vista operacional entre artista e matéria. Opera sobre o fazer artístico,
tornando-o descontínuo, afirmando uma tradição já evidenciada após Duchamp,
no rastro dos ready-made. Uma obra que apresenta tal dinâmica na sua produção
requer contratos e hierarquizações que só seriam possíveis na perspectiva de obra
como mercadoria, portanto, no enquadramento da lógica empresarial.
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Ilustração
John Tenniel
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O Coelho Branco
Alice Alba
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O coelho
Eduardo Kac
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Autorretratos móveis
na era líquida
Flavya Mutran Pereira
Mestranda/UFRGS
Resumo
Tendo como mote do conceito de Rostidade de Gilles Deleuze e
Félix Guattari, este artigo analisa a relação ambígua que o artista e o
homem comum nutrem com a própria imagem frente ao seu papel
social, sua identidade privada e sua conduta coletiva. Associado à
Identidade, adota-se o termo liquidez de Zigmund Bauman quanto
ao comportamento do indivíduo na sociedade contemporânea, que
ao contrário da sociedade moderna anterior está sendo permanentemente desmontado.
Palavra Chave
Autorretratos, Fotografia, Rostidade.
Abstract
From the concept of faciality of Gilles Deleuze and Felix Guattari,
this article examines the ambiguous relationship that the artist
and the common man feeds with his own image against the social
role, his private identity and their collective behavior. Associated to
identity, adopts the term ‘liquidity’ from Zigmund Bauman about
the behavior of the individual in contemporary society which unlike previous modern society is being permanently dismantled.
Keywords
Faciality, Photography, Self-Portrait.
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Rosto e lugar são temas recorrentes da história da arte e das civilizações, e não
é difícil misturar os atributos ontológicos de ambos de diferentes maneiras. E
qual seria o lugar do rosto, ou do eu, ao final da primeira década do Séc.XXI?
Segundo a revista americana TIME - que tradicionalmente elege as figuras que
mais afetam nossas vidas a cada ano -, o lugar do rosto é o topo, a capa, o foco
das atenções. Em 2006, o rosto anônimo do homem comum foi o principal responsável pelas transformações na era da informação.
A capa espelhada da ‘Time’ nos remete ao célebre ensaio de Michel
Foucault1 sobre as relações que se constroem em torno do autorretrato de Diego
Velázquez em ‘Las Meninas’. O autor alerta que ao se colocar como protagonista
junto aos reis Velázquez reivindicou seu próprio lugar e seu papel social frente
às classes dominantes que o cercava. Foucault foi ao cerne do problema que gira
em torno do sujeito que se autorretrata figurativamente, pois trata da ambigüidade que os artistas e o homem comum mantêm com a própria imagem, frente
aos seus papéis sociais, suas identidades privadas e suas condutas coletivas. Ele
destacou ainda a importância do espelho no fundo da sala, como o elemento que
restituía o que faltava a cada olhar das personagens em cena.
O lugar onde impera o rei com sua esposa é também o do artista e o do
espectador: No fundo do espelho poderia aparecer – deveriam aparecer – o rosto
anônimo do transeunte e o de Velázquez. Pois a função desse reflexo é atrair para
o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou
e aquele para o qual ele se desdobra.’ (FOUCAULT, 1981, p. 30)
Se Velázquez reivindicou seu lugar na cena social de seu tempo usando
sua paleta de tintas, hoje o homem contemporâneo o faz com sua câmera fotográfica, criando seu próprio espaço de encenação na blogsfera. Após o advento
da fotografia e dos demais meios de reprodutibilidade de imagens técnicas, o que
se desdobrou foi a possibilidade de outros sujeitos entrarem em cena no jogo das
representações. Isto porque autorretratar-se, antes das técnicas de produção de
imagens mecanizadas do Séc.XIX, era privilégio ou atribuição dos que possuíam
talento e habilidades para as artes. Desde que Eastman Kodak lançou a KODAK
N°01 e com ela o slogan ‘você aperta o botão, nós fazemos o resto’, a máquina fotográfica pode ser manuseada indiscriminadamente, mesmo por aqueles sem o
domínio de todas as etapas do processamento da imagem. A iniciativa da Kodak
foi decisiva para a massificação da fotografia em larga escala, principalmente
dando a chance de o autorretrato chegar às mãos do homem comum, aquele fora
do circuito das Academias de Belas Artes.
No que pese a importância dos pioneiros da fotografia oitocentista para
a evolução técnica e conceitual da linguagem, há que se reconhecer que a primeira câmera voltada para o amador foi um passo decisivo para a democratização
do uso da fotografia na sociedade, além de diversificar o mercado de trabalho e
a própria indústria fotográfica, tornando-a instrumento de múltiplos usos e funções. Poderíamos considerar a fotografia como um grande campo democrático
em que se pratica uma verdadeira linguagem universal, progressivamente cada
1
FOUCAULT, Michel. ‘Las Meninas’ in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes 1981. (pp.1931)
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vez mais acessível, comparável a um daqueles lugares próprios ao campo da arte
citados por Pierre Bourdieu 2 como atraentes e acolhedores
(...) desses lugares incertos do espaço social que oferecem postos mal definidos, antes por fazer
que feitos e, nessa medida mesma, extremamente elásticos e pouco exigentes, e também futuros
muito incertos e extremamente dispersos. (BOURDIEU, 1996, p.256-257)
Como autor/narrador das histórias que testemunha ou que inventa, o
fotógrafo instaura a relação conjetural da illusio bourdieriana enquanto conhecimento prático (e não propriamente racional) que o permite mobilizar ações
organizadas em seu habitus e gerar estratégias de inserções sociais para si e para
a coletividade, dando-lhe a concessão (ou impressão) de ser o produtor de bens
culturais, internos e externos ao próprio campo, alcançando eventualmente alguma autonomia.
Para Andy Grundberg3, o uso de imagens técnicas, com base na câmera, é um elemento essencial de vínculo com a cultura contemporânea que veio
a ser chamada de pós-moderna. Para ele a maior influência sobre os artistas da
Pós-Modernidade foi a experiência de contato visual com a cultura de massa, a
publicidade, a cultura popular através da TV, do cinema, e hoje, da internet, que
se tornou um território de convergência entre todas estas formas de visualidade.
Mais de um século depois da Kodak N°01, a automatização e barateamento de
câmeras fotográficas digitais apresentam-se como extensões artificiais do olhar
humano, espécie de prótese que expande horizontes a partir do próprio umbigo
do operador. Autorretratar-se é a palavra de ordem a partir dos anos 2000. Fotografar o território íntimo e, principalmente, a si próprio tornou-se um fenômeno
que vai muito além de moda ou de uma onda adolescente, e para Paula Sibilia4
vêm se transformando em uma característica preeminente da cultura contemporânea, apresentando-se em diferentes manifestações em toda a mídia, principalmente na televisiva e cinematográfica, com os realities-shows e os documentários
em primeira pessoa.
A reivindicação pelo direito de ser filmado, como uma das conquistas
da modernidade prevista por Walter Benjamin5 tornou-se um fato. Vivemos cercados de câmeras e lentes, e nossa imagem se reproduz às centenas e milhares,
sem que a maioria delas seja sequer impressa ou mesmo saia dos dispositivos
eletrônicos que a produzem. Benjamin afirmava que o rádio e o cinema seriam
responsáveis por uma modificação no comportamento do intérprete (ator e atriz)
profissional, e também mudariam a maneira pela qual o homem comum repre-
2
BOURDIEU, Pierre. ‘O ponto de vista do autor’ in As Regras da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. (pp.243-281)
3
GRUNDBERG, Andy. Crisis Of The Real: Writings on Photography, 1974-1989. NEW YORK: APERTURE, 1990.
4
SIBILIA, Paula O show do eu: A intimidade como espetáculo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
2008.
5
BENJAMIN, Walter. ‘A Obra de Arte na era da de sua reprodutibilidade técnica’. In: Magia e Técnica,
Arte e Política: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 7ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
(Obras Escolhidas; v.01) (pp.165-196).
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sentaria a si próprio diante desses dois veículos de comunicação. Na era digital
isso se confirma e se amplia a cada dia.
O olhar do transeunte ao qual Foucault se referiu como o reflexo invisível na tela de Velázquez se multiplicou aos milhões. Tornou-se a massa que Benjamin visionou, controlando e sendo controlada pelo imperativo da superexposição. Quase duzentos anos antes da invenção da fotografia, Velázquez construiu
um flagrante típico de Paparazzi e cenas como a de ‘Las Meninas’ são produzidas
e investigadas até hoje, mesmo em face de tantas mudanças tecnológicas e sociais.
Imagens assim são consumidas pelo apetite insaciável que abastece a indústria
audiovisual, motivada pelo desejo de invadir vidas alheias. Para Sibilia essas modalidades de autoexibição e a crescente exteriorização do eu sugerem também que
o eixo em torno do qual as subjetividades modernas costumavam se edificar estaria se deslocando, ‘pois a intimidade se evadiu do espaço privado e passou a invadir
aquela esfera que outrora se considerava pública’ (SIBILIA, 2008, p.77).
Diferentemente das histórias do início da era moderna quando a democratização de modelo de sucesso pessoal era inspirada em fábulas de ascensão
milagrosa, as aspirações dos grupos sociais do Séc.XXI encontram ressonância
no que Zigmund Bauman6 chama de era liquido-modernas, cujo trabalho árduo
e autossacrifício necessários para se chegar ao sucesso, caíram em descrédito.
Bauman usa a metáfora da liquidez referindo-se à sociedade contemporânea – e
não o termo pós-moderno -, pois acredita que ao contrário da sociedade moderna
anterior, tudo agora está sendo permanentemente desmontado, sem perspectiva
de permanência alguma. Para o autor7, hoje tudo é temporário
A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as
tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições.’ (BAUMAN apud PALLARES-BURKE, 2004, documento consultado via web).
Os registros automáticos que trafegam livremente nas Redes Sociais,
ilustram e modelizam figurativamente esse ideal de felicidade e sucesso desejado
pelo homem contemporâneo. O artista da vida, citado por Bauman, é o homem
comum que estende sua mão e programa sua câmera para ser ao mesmo tempo,
produtor, roteirista, diretor e ator principal do discurso visual que cria. A alternância nos papéis da interlocução corre na velocidade da inconstante fluidez que
o identifica na cena contemporânea.
As identidades física, biológica e sócio-cultural dos indivíduos são em
parte construções contínuas e permanentemente em fluxo, e no caso da fotografia, afirma Annateresa Fabris8, a identidade não deixa de ser a questão central
na relação do indivíduo com sua própria imagem. Ainda que longe de afirmar a
autossuficiência do eu, essa relação remeta mesmo é para a ausência de plenitude
do sujeito.
6
BAUMAN, Zigmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 2009.
7
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Tempo Social Entrevista com Zigmunt Bauman. vol.16, no.1, São Paulo, June. 2004. Disponível em www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20702004000100015&script=sci_arttext
8
FABRIS, Annateresa. A identidade virtual. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
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A impermanência e fragmentação que artistas e internautas veiculam
dentro e fora da web parecem ilustrar as formulações de Gilles Deleuze e Félix
Guattari9, sobre o complexo conceito de Rostidade. Em suas articulações teóricas, os autores formularam a idéia de uma máquina abstrata que seria responsável
pela rostificação de todo o corpo, de suas funções e dos objetos que nos cercam.
Funcionando como uma espécie de biopoder introjetado em diferentes camadas
sociais, esse mecanismo mental teria iniciado seu trabalho ao longo da história
e nos dias de hoje seria responsável pela tessitura das redes de conexões na sociedade. Deleuze e Guattari estabelecem ‘o muro branco e o buraco negro’ como
abstrações opostas e complementares de construção e desconstrução de anseios
individuais e coletivos. E alertam
Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidades, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões
rebeldes às significações conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, consciência
ou paixão, permaneceria absolutamente vazia se os nossos rostos não formassem lugares de
ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente conforme
uma realidade dominante. (...) O rosto escava o buraco de que a subjetividade necessita para
atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a câmera,
o terceiro olho. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.32)
Que outro dispositivo se aproximaria mais da máquina abstrata de rostidade que a fotografia? É através do muro branco da superfície sensível à imagem
e do buraco negro de subjetivação do obturador que o homem relaciona-se figurativamente com o mundo e consigo mesmo, tendo a fotografia como mediadora.
As possibilidades simulatórias da imagem digital têm permitido que
artistas investiguem sua própria imagem de maneiras diversas e singulares. A
artista japonesa Tomoko Sawada, por exemplo, produziu um ‘verdadeiro exercito
de si’ em ID-400, de 2000. São 400 autorretratos automáticas em P&B típicos de
fotos para documentos como os ‘photo-stands’ feitos em cabines públicas de Andy
Warhol. Suas fotos expõem a mudança sutil no seu rosto com poucos recursos de
maquiagem e figurino, sem nenhuma manipulação digital posterior. Ela brinca
com suas características raciais e expressões faciais de forma tão variada que seus
disparos se tornaram um curioso estudo sobre a fisionomia humana. Nos últimos 10 anos a artista tem renovado seu repertório de autorrepresentações com o
mesmo vigor que as antecessoras Cindy Sherman e Claude Cahun o fizeram nas
últimas décadas do Séc.XX, além de atualizar as tensões entre a imagem exterior
da mulher e sua busca pela verdade interior.
No Brasil, os autorretratos de Helga Stein seguem outra linha de exploração da autoimagem. Na série Narkes, de 2003, ela volta-se para o mito de
Narciso preso em seu torpor e solidão observando o mundo através de um espelho, numa instalação que é a metáfora para ‘o corpo aprisionado na tela de bordas
claramente definidas, em um não-lugar desprovido de espacialidade, tratado com
9
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol.4. Rio de Janeiro:
Ed.34, 1996.
150
X X X Colóquio CBHA 2010
particular descaso.’ 10 Em Andros Hetz, de 2004, ela explora a androginia robotizada de personagens criados a partir de deformações extremas do próprio rosto,
que vão além das interferências tidas como aceitáveis, evidenciando o excesso
da autoexibição, mobilidade e artificialidade dos perfis da era do cristal líquido.
As reconfigurações geopolíticas, socioambientais e tecnológicas das últimas décadas ampliaram a concepção geral de território, enquanto conjunto de
elementos naturais e artificiais que os caracterizavam antes de forma geral. Hoje
o território é analisado conforme o ponto de vista da abordagem, e é ai que a idéia
do rosto como paisagem-mapa para os fluxos de subjetividade que se processam
no meio social pode ser interpretado como área que se amplia e se bifurca a partir
da ergonomia do sujeito que se autorrepresenta. Para o espanhol Joan Fontcuberta o corpo é referência do lugar e só a memória justifica e sustenta a paisagem.
No trabalho ‘Landscapes without Memory’, de 2005, Fontcuberta faz
uma analogia sobre o nomadismo como condição para delimitação territorial,
tal como o previsto por Deleuze e Guattari. Usando um software geográfico que
constrói digitalmente paisagens hiperrealistas a partir de Referências de mapas,
desenhos ou fotografias, Fontcuberta subverte o aplicativo substituindo os pontos geográficos iniciais por coordenadas imaginárias extraídas de detalhes do seu
umbigo, orelha ou mão. Suas paisagens artificiais sugerem que toda imagem é
um ente ficcionador que ativa mecanismos simbólicos que nos conectam a realidade, ainda que brincando com nossos horizontes visuais.
Ao se autorretratar e inserir-se de forma serial nos circuitos em rede, os
artistas e os internautas quebram limitações espaciais que vão além de estruturas
visíveis e funcionais. Uma vez flutuando pela ubiqüidade da web, suas autoimagens ativam os fluxos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização
previstos por Deleuze & Guattari, gerando significados novos para velhos temas.
10
Trecho do texto da artista, disponível em www.projecto.com.br/andros/index.htm
151
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Série ID400 #1-100,(1998-2001)
Tomoko Sawada
100 gelatin silver prints, 50 x 39-1/4 inches - edition of 15.
Disponível em www.daraho.wordpress.com/2007/02/
152
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Os autorretratos
Helga Stein
Nas séries Narkes, de 2003 e Andros Hetz, de 2004.
Disponível em www.flickr.com/photos/
hastein/3385848964/in/contacts/
153
X X X Colóquio CBHA 2010
Imagens da série ‘Landscapes
without Memory’, de 2005.
Joan Fontcuberta
À esquerda, em P&B, a imagem que serve de referência
para o software usado para criar as paisagens virtuais,
neste caso, um detalho do umbigo do autor.
154
X X X Colóquio CBHA 2010
Imagens em trânsito:
lições de uma mostra
norte-americana
em São Paulo (1947)
Helouise Costa
MAC-USP
Resumo
No ano de 1947 a Biblioteca Municipal de São Paulo apresentou a
exposição Fotografia Artística idealizada por Andreas Feininger para
o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Esta comunicação visa analisar a produção e recepção desta mostra projetada nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial para
itinerância internacional. Vinculada ao programa de propaganda
política do governo norte-americano, Fotografia Artística foi uma
exposição didática que valeu-se da reprodutibilidade fotográfica e
do entendimento da exposição como múltiplo para disseminar sua
mensagem.
Palavra Chave
Fotografia artística; Museu de Arte Moderna de Nova York; Biblioteca Municipal de São Paulo.
Abstract
In 1947 the Municipal Library of São Paulo presented Photography
as Art exhibition designed by Andreas Feininger for the Museum
of Modern Art of New York (MoMA). This paper aims to analyze
the production and reception of this exhibition designed in the
United States during World War II for international exchange.
Linked to the program of political propaganda of the U.S.A. government, Photography as Art was a didactic exhibition which drew
on the reproducibility and understanding of photography as a
multiple artifact to spread its message.
Keywords
Photography as art; Museum of Modern Art of New York; Municipal Library of São Paulo.
155
X X X Colóquio CBHA 2010
No ano de 1947 a Biblioteca Municipal de São Paulo apresentou a exposição
Fotografia Artística idealizada por Andreas Feininger a pedido do Museu de Arte
Moderna de Nova York. Tratava-se de uma mostra didática de reproduções fotográficas impressas acompanhadas de textos. A exposição, trazida ao Brasil pelo
esforço conjunto da União Cultural Brasil-Estados Unidos, do Foto Cine Clube
Bandeirante, do Clube de Cinema de São Paulo e da revista Íris, reunia imagens
de fotógrafos como Ansel Adams, Erich Salomon e Henri Cartier-Bresson, entre
outros.
Esta comunicação visa analisar a mostra Fotografia Artística, buscando
identificar o contexto de sua produção, os seus objetivos, o público alvo ao qual
se destinava e sua recepção local, a fim de avaliar a suposta influência que ela
teria exercido sobre a fotografia produzida a partir do final da década de 1940
no Foto Cine Clube Bandeirante. Esta hipótese tem sido levantada por diversas
pesquisas acadêmicas realizadas nos últimos anos1, daí a pertinência de se analisar esta exposição mais detidamente. A análise aqui apresentada apoiou-se na
documentação depositada nos arquivos do Museu de Arte Moderna de Nova
York, nos escritos de Andreas Feininger e no material divulgado na imprensa
brasileira da época.
O contexto da exposição no Brasil
A exposição Fotografia Artística, foi apresentada no Brasil em 1947, embora tenha
sido produzida dois anos antes pelo Department of Circulating Exhibitions do
Museu de Arte Moderna de Nova York com o título original de Creative Photography. Entre 1945 e 1946 a National Gallery de Washington, que juntamente com o MoMA, apoiava as iniciativas culturais do governo norte-americano,
preparou versões da exposição, em espanhol e português, para itinerância na
América Latina. Sendo assim, a itinerância da mostra para o Brasil deve ser entendida no contexto da Política da Boa Vizinhança implementada pelo governo
norte-americano com o objetivo de consolidar a hegemonia política e econômica
dos Estados Unidos na América Latina por meio, entre outras, de ações artistico-culturais. O Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), agência governamental encarregada deste programa, seria extinto em maio de 1946
o que, no entanto, não faria cessar a atuação norte-americana no Brasil. Diversas ações culturais na América Latina tiveram continuidade e outras chegaram
mesmo a ser iniciadas após esta data em função dos interesses de determinados
grupos que mantiveram em pauta o discurso em defesa do pan-americanismo2 .
Um dos mais importantes passos para materializar tal aliança deu-se
com a vinda de Nelson Rockefeller ao Brasil, em novembro de 1946, quando
trouxe treze obras a serem doadas aos futuros museus de arte moderna do país.
Naquele momento Rockefeller atuava na Secretaria de Estado para Assuntos Latino-Americanos e era presidente do Museu de Arte Moderna de Nova York. A
1
Cf: ESPADA, Heloísa. “Panamericanismo e Straight Photography como impulsos da fotografia moderna
paulistana”. Boletim n.1 - Grupo de Estudos do Centro de Pesquisas em Arte & Fotografia. São Paulo: Escola
de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo, 2006, p. 48-57.
2
Cf: TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda
Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
156
X X X Colóquio CBHA 2010
visita rendeu uma reunião com a comunidade local de artistas e intelectuais na
Biblioteca Municipal de São Paulo, instituição na qual foi realizada a cerimônia
de doação simbólica das obras. No bojo destas articulações destaca-se o papel
exercido por Sérgio Milliet, então diretor da Biblioteca Municipal onde havia criado a Seção de Arte em 1945. Milliet nutria grande simpatia pela cultura norteamericana e já havia viajado aos Estados Unidos a convite do governo daquele
país, em 1943, incumbindo-se posteriormente de divulgar a arte americana no
Brasil. Desse modo não devemos considerar casual a realização da exposição
Fotografia Artística na Biblioteca Municipal, em julho de 1947, sete meses após
a visita de Rockefeller ao Brasil, ou seja, durante o período preparatório para a
criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Fotografia artística: o perfil da exposição apresentada em São Paulo
Fotografia Artística constituiu-se em uma mostra didática composta por doze painéis com reproduções fotográficas e textos explicativos. Os painéis contavam com
25 fotografias, consideradas artísticas, em sua maioria pertencentes ao acervo do
MoMA, além de 21 fotos em pequeno formato, de autoria diversa, que visavam
ilustrar aspectos específicos da técnica fotográfica. As 25 imagens pertenciam aos
seguintes fotógrafos: Andreas Feininger, Ansel Adams, Arthur Rothstein, Barbara Morgan, Berenice Abbott, Cedric Wright, Charles Sheeler, Edward Weston,
Erich Salomon, Helen Lewitt, Henri Cartier-Bresson, Louise Dahl-Wolfe, Paul
Strand, Ralph Steiner e Walker Evans. Já as fotos ilustrativas foram produzidas
pelo próprio Feininger e por fotógrafos amadores e/ou anônimos.
Se compararmos os painéis da exposição apresentados no MoMA com
a versão enviada ao Brasil constataremos algumas pequenas modificações como
a troca do título (Creative Photography foi substituído por Fotografia Artística),
e a supressão de uma imagem de Weegee, no lugar da qual entrou uma foto de
Cartier-Bresson ausente da primeira versão. Em que pesem essas mudanças a
mensagem original não foi alterada. Uma edição especial da revista Íris veiculou
as reproduções dos doze painéis apresentados em São Paulo, cujos títulos dão
conta do caráter didático da exposição:
1.Fotografia Artística; 2.O fotógrafo é um artista; 3.Trabalha com um aparelho mecânico;
4.O seu meio de expressão é uma escala de valores; 5.Escolhe o seu assunto; 6.Compõe com a
sua máquina fotográfica; 7.Escolhe o momento; 8.A máquina fotográfica reproduz detalhes
infinitos; 9.A máquina fotográfica cria sua própria perspectiva; 10.A máquina fotográfica
comprime ou amplia o espaço; 11.A máquina fotográfica paralisa ou prolonga o movimento;
12.A máquina fotográfica traduz as cores em branco e negro3 .
A exposição contemplava, portanto, um painel sobre o caráter artístico
da fotografia, seis sobre o fotógrafo e cinco sobre a câmera fotográfica. No geral,
os textos e as fotos visavam afirmar a fotografia como arte, conferir ao fotógrafo
o estatuto de artista e apresentar a câmera fotográfica como uma poderosa ferramenta de criação. É significativo que Feininger dedicou à câmera o mesmo
3
“Reprodução dos quadros expostos na Biblioteca Municipal de São Paulo”. Íris, n.06, junho 1947, p.2940.
157
X X X Colóquio CBHA 2010
número de painéis que destinou ao fotógrafo e chama atenção o fato de que nos
títulos dos painéis a câmera fotográfica quase sempre é apresentada como sujeito
de suas ações.
Andreas Feininger e o conceito de fotografia criativa
O responsável pela curadoria da exposição Creative Photography, bem como pelo
design dos painéis, foi Andreas Feininger. Nascido em Paris, em 1906, ele era o
primogênito do pintor Leonel Feininger e ainda criança mudou-se com a família
para a Alemanha. No início da década de 1920 seu pai começou a lecionar na
Bauhaus onde Andreas frequentou a oficina de marcenaria. A partir de 1925 dedica-se ao estudo da arquitetura e da engenharia civil em Weimar e Zerbst. Data
deste período o seu interesse pela fotografia na qual se inicia como auto-didata.
Dificuldades profissionais e pessoais decorrentes de sua origem judaica fez com
que imigrasse para Nova York em 1939. Na capital norte-americana Feininger
começou a produzir fotos para a Life como freelancer, tornando-se membro permanente da equipe de fotojornalistas da revista a partir de 1943.
Dez anos após a exposição do MoMA, Andreas Feininger buscou sistematizar o seu conceito de fotografia criativa em um livro intitulado The creative
photographer4. Para ele a fotografia podia ser dividida em três grandes categorias:
utilitária, documental e criativa. A primeira teria como principal objetivo registrar, a segunda informar e educar e a terceira teria o papel de estimular e inspirar.
Para Feininger a fotografia criativa era um tipo de imagem que buscava oferecer
uma interpretação visual acerca dos acontecimentos registrados e tinha caráter
simbólico. Além disso tomava as situações particulares como indicativos de um
contexto maior e, em função de seus temas e abordagens, traduzia uma preocupação humanista. Ainda de acordo com o fotógrafo aqueles que trabalhavam
no campo da fotografia criativa eram artistas, o que justificaria a realização de
mostras desse tipo de produção em museus.
Se analisarmos a exposição cotejando as fotos com o texto de Feininger
veremos que ele buscou reunir exemplos de uma fotografia direta, de cunho humanista, com ênfase em efeitos gráficos e em composições de caráter geométrico.
Além disso o fotógrafo demonstra interesse em apresentar as diferentes possibilidades expressivas oferecidas pela tecnologia fotográfica, basta verificar que dedica
à câmera o mesmo número de painéis que destina ao fotógrafo na exposição
apresentada na Biblioteca Municipal de São Paulo. O termo fotografia criativa,
portanto, possibilitava abarcar as mais diversas experiências não só da fotografia de vanguarda, como também da fotografia moderna, fosse ela norte-americana ou européia. Esse amplo guarda-chuva possibilitou que fossem incluídos
na mostra, por exemplo, o fotojornalismo representado por Eric Salomon, uma
paisagem de Ansel Adams ou ainda uma foto abstrata de Barbara Morgan. Em
suma, a flexibilidade e a amplitude do conceito de fotografia criativa de Feininger
adequavam-se perfeitamente aos objetivos propalados pelo MoMA para suas exposições didáticas.
4
FEININGER, Andreas. The creative photographer. New Jersey (USA): Prentice-Hall Inc. Englewood
Cliffs, 1955.
158
X X X Colóquio CBHA 2010
“O Museu de Arte Moderna anuncia Creative Photography, a terceira de uma série de exposições produzidas em quantidade para venda. Projetadas especialmente para organizações
comunitárias e instituições educacionais, estas exposições tem sido consideradas úteis para
museus, faculdades, escolas, livrarias, hospitais e outros grupos interessados em artes contemporâneas. Em termos compreensíveis para o amador, Creative Photography aponta para uma
ampla gama de oportunidades abertas a pessoa que entende as potencialidades da câmera e
sabe como fazer uso delas. Ela é ilustrada pelo trabalho de notáveis fotógrafos americanos e
europeus (...)” 5.
Tratava-se de uma mostra destinada a um público leigo, interessado em
iniciar-se na fotografia ou, quando muito, a fotógrafos amadores principiantes.
Alguns fatores foram ressaltados pelo MoMA no material de divulgação que
circulou por ocasião do lançamento desse programa de exposições. Primeiro, a
condição de múltiplo das mostras, o seu baixo custo e a facilidade de transporte,
o que permitia ao Museu atender simultaneamente a inúmeros solicitantes. Além
disso, era enfatizada a qualidade das reproduções utilizadas, anunciadas como
sendo muito próximas das cópias fotográficas consideradas originais.
Aspectos da divulgação da mostra Fotografia Artística em São Paulo
Para tentarmos dimensionar a recepção da exposição enviada pelo MoMA a São
Paulo devemos ter em mente que as discussões acerca do estatuto artístico da
fotografia, naquele momento no Brasil, estavam restritas ao ambiente fotoclubista. No ano de 1947, em especial, a produção fotoclubista brasileira ainda estava
fortemente marcada pelo ideário pictorialista que definia a fotografia artística
praticada no país. A exceção ao pictorialismo reinante ficava por conta dos pioneiros da fotografia moderna - os fotógrafos José Yalenti, Thomaz Farkas, German Lorca e Geraldo de Barros - que já em meados da década de 1940 haviam se
voltado para uma produção de cunho modernista. Foi nesse contexto a exposição
Fotografia Artística contou com duas frentes de divulgação principais: a publicação de artigos em periódicos e a realização de um ciclo de palestras como evento
complementar.
Dentre as publicações destaca-se uma edição da revista Íris, na época
a única revista comercial voltada à fotografia no país que dedicou um número
especial aos Estados Unidos. Além da reprodução dos painéis da exposição, publicou diversos textos que se caracterizavam pela exaltação da supremacia dos
Estados Unidos na área de produção de imagens, a começar pelo editorial que
ressaltava a suposta influência da fotografia norte-americana no Brasil. O texto
não cita exemplos da produção local em que a referida influência poderia ser comprovada e nem aponta quais características especificamente americanas poderiam
ser identificadas aqui. Na publicação o que se pode verificar é que a mostra de
fotografia foi utilizada como mero pretexto para a veiculação de um discurso ufanista sobre a hegemonia política norte-americana no pós-guerra. Nesse sentido
5
Texto do folder de divulgação do lançamento da exposição. O folder inclui um cupom destacável para
o eventual preenchimento e aquisição de uma cópia da exposição, que era vendida por U$25. The Museum of Modern Art Archives, NY, CEII.1.49.1.1.
159
X X X Colóquio CBHA 2010
é significativo que nenhum dos artigos publicados tenha analisado a exposição
propriamente dita, nem comentado as fotografias apresentadas.
Já as palestras sobre fotografia, realizadas no evento paralelo à exposição, foram “O pictorialismo na arte fotográfica” por Jacob Polacow e “A fotografia é uma arte?” por Valêncio de Barros. Os dois palestrantes eram fotógrafos
associados do Foto Cine Clube Bandeirante e adeptos do pictorialismo, tema
sobre o qual discorreram em suas apresentações6 . A mediação com o público,
portanto, realizada por fotógrafos locais, oriundos dos dois maiores centros do
fotoclubismo nacional – as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo – passou ao
largo das questões abordadas por Andreas Feininger. Este episódio só vem confirmar a grande defasagem existente entre o conteúdo da exposição Fotografia
Artística e sua recepção local.
Por fim, não podemos deixar de analisar os aspectos materiais da mostra norte-americana Fotografia Artística, se quisermos tentar dimensionar a sua
recepção pelo público local. Ao recuperarmos imagens de divulgação do MoMA
veremos que a exposição Fotografia Artística era composta de pranchas impressas
de médio formato, coladas sobre suportes rígidos7. Elas precisavam ser fixadas
nas paredes ou em outros locais disponíveis no espaço expositivo e sua aparência
se remetia à configuração das páginas de certos livros ilustrados da época, com a
vantagem de que as imagens eram impressas junto com os textos, diferentemente
de muitas publicações, em que eram coladas nas páginas. As imagens eram todas
em preto e branco, como as fotografias originais, e foram introduzidos detalhes
gráficos em azul e vermelho nos painéis, alternadamente, com o intuito de conferir maior dinamismo visual à mostra.
Considerações finais
A documentação presente no arquivo do MoMA revela que Creative Photography
foi realizada sob a supervisão de Edward Steichen, o que esclarece uma série de
questões a respeito da exposição8. Tanto Feininger quanto Steichen eram fotógrafos com intensa atuação comercial que entendiam a fotografia como veículo de
comunicação, segundo uma perspectiva muito distante daquela defendida pelo
primeiro curador do Departamento de Fotografia do museu americano. Beaumont Newhall considerava a fotografia a partir de critérios estéticos, advindos da
história da arte, e demitiu-se do cargo em maio de 1946 justamente por discordar
da nova orientação dada à fotografia no Museu pela atuação de Steichen9. Creative Photography esteve, portanto, perfeitamente integrada à política do MoMA
de apoio ao esforço de guerra no período da Segunda Guerra Mundial. Não se
tratava exatamente de fazer propaganda da fotografia norte-americana por meio
do conteúdo da exposição, mas de propagar um certo liberalismo político materializado na defesa da popularização do acesso ao fazer fotográfico e do entendi6
Frederico R. Geiringer descreve em detalhes o conteúdo de cada uma das palestras e afirma que atraíram
grande público. “À margem do ciclo de conferências”. Íris, n.7, ano I, São Paulo, jul. 1947, p.16-25.
7
Segundo o folder de divulgação da exposição as pranchas mediam 30x 40 polegadas, o que corresponde
a cerca de 0,76m x 1,0m. Cf. The Museum of Modern Art Archives, NY, CEII.1.49.1.1.
8
Cf. The Museum of Modern Art Archives, NY, CE II.1.49.1.
9
NEWHALL, Beaumont. Focus. Memoirs of a life in photography. Boston: Bulfinch Press Book, 1993.
160
X X X Colóquio CBHA 2010
mento do Museu como veículo de difusão de conteúdos pertinentes ao sistema de
comunicação de massas para um público entendido como consumidor.
Por fim, a pesquisa nos permite afirmar que o conteúdo e a abordagem
da exposição Fotografia Artística, assim como o seu aspecto material, provavelmente restringiram o interesse que poderia despertar nos fotoclubistas de São
Paulo, habituados a apreciar cópias fotográficas de grande qualidade técnica em
outros espaços da cidade. Lembremos que o Clube organizava anualmente, desde
1942, o Salão Internacional de Arte Fotográfica na Galeria Prestes Maia, onde
se podia ter acesso a vintage prints enviadas por fotógrafos dos mais diversos países. Nestas exposições as vintage prints, em sua maioria, obedeciam ao tamanho
padrão oficial dos salões de fotografia, de 30 x 40 cm, e eram montadas com
passe-partouts e molduras como indicam os registros fotográficos disponíveis. Os
salões internacionais constituíam-se em importante evento para a fotografia paulistana e costumavam atrair grande contingente de público.
Se do ponto de vista político é difícil avaliar o alcance da exposição Fotografia Artística, bem como a sua penetração junto ao público leigo para o qual se
destinava, no que se refere aos rumos da fotografia moderna praticada pelo Foto
Cine Clube Bandeirante, podemos afirmar que seu papel foi bastante limitado.
Tendo em vista, ainda, que o Clube nunca organizou ou promoveu, nem antes
nem depois de 1947, exposições didáticas desta natureza podemos supor que o
apoio dado pelo Bandeirante à vinda da mostra norte-americana ao Brasil teve
motivações extra-artísticas.
161
X X X Colóquio CBHA 2010
A fotografia de Luiz Braga:
uma discussão da pintura numa
perspectiva conceitual
Joaquim Cesar da Veiga Netto
Doutorando/ UFRJ
Resumo
Este texto se propõe discutir as correspondências entre fotografia
e pintura nos trabalhos do fotógrafo paraense Luiz Braga. Busca
situar tal relação no limiar do espírito que considera a presença do
fotográfico na arte contemporânea. Procura refletir sobre a visibilidade das imagens na fronteira do pictórico, onde questiona os
limites entre realidade e ficção, entre arte do fotografo e fotografia
do artista, entre pintura e fotografia.
Palavras chave
fotografia contemporânea,cultura visual, imagem
Abstract
This paper aims to discuss the connections between photography
and painting in the work of photographer Luiz Braga who lives in
the state of Pará. Seeks to situate this relationship on the threshold of the spirit which considers the presence of photography in
contemporary art. Attempts to reflect on the visibility of the images on the border of the pictorial, which questions the boundaries between reality and fiction, art of the photographer and artist
photography, between painting and photography.
Keywords
contemporary photography, visual culture, picture
162
X X X Colóquio CBHA 2010
Este trabalho aborda questões relacionadas ao campo da fotografia recuperando
o que autores fundamentais têm apresentado como contribuição para se pensar
este assunto, entre eles: Barthes, Dubois, André Rouillé, Jacques Aumont, Jean-Claude-Lemagny, Charlotte Cotton, Nelson Brissac, Arlindo Machado, entre
outros. Neste sentido, a nossa ambição consiste no estudo de um recorte da produção fotográfica de Luiz Braga, procurando situar tais questões no limiar desse
espírito que considera a presença do fotográfico na arte contemporânea, onde a
fotografia deixou de ser apenas um processo técnico/químico de reprodutibilidade, documentação e registro para se tornar um processo artístico que busca
desconstruir a normatização presente nos equipamentos e deles tirar partido.
Assim, vale lembrar da formulação de Walter Benjamin em A pequena história
da fotografia, onde comenta que “Não se pergunta mais se a fotografia é arte, mas
se a arte, hoje, trabalha fotograficamente”.
Luiz Braga nasceu em Belém (Pará) em 1956, e iniciou-se na fotografia
aos 11 anos. Além das cenas de família e paisagens, ilustrava os relatórios médicos de seu pai. Neste período, Braga revelava suas fotos em laboratórios improvisados no porão de sua casa. Em 1975, ele inicia a trajetória profissional nas áreas
de retrato, publicidade e ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade
Federal do Pará (UFPA), onde se forma em 1983. Atua como colaborador no
jornal O Estado do Pará, em 1978, e cria o tablóide Zeppelin, no qual exerce as
funções de editor e fotógrafo até 1980. Em 1979, Luiz Braga realiza sua primeira
mostra individual, I Portifólio, com retratos, cenas de rua e de trabalhadores
ribeirinhos em preto-e-branco. Integra o projeto Visualidade Popular na Amazônia, promovido pela Fundação Nacional de Arte - FUNARTE, em 1982. Com
base nessa experiência, seus ensaios tornam-se predominantemente coloridos e
passam a enfocar a cultura visual, a população, a luz e as cores dos portos, barcos,
periferias, bares, mercados tradicionais, parques, balneários e elementos visuais
da paisagem amazônica.
A questão mais evidente no cometário da crítica de arte nacional e internacional, na última decada, é que Luiz Braga possui uma produção fotográfica
que discute a pintura a partir de um ponto de vista conceitual. Isto é, uma produção onde os apelos sintáticos e semânticos presentes no campo da visualidade popular, são redimensionados (traduzidos) para o campo da visualidade fotográfica,
através de um percurso particular que acentua o procedimento adotado, a técnica
e as questões peculiares na constituição de seus trabalhos, no qual uma região de
limites delicados entre a pintura e a fotografia ganha um aspecto sublime.
Luiz Braga tem uma técnica experimental e uma forma de enquadramento clássico. Ele é o fotografo atento, que registra a região amazônica e seus
habitantes sem o exotismo do olhar estrangeiro. E, como diz Fernandes Junior
(1992), Luiz Braga trabalhando a questão da cor com domínio, síntese e maturidade, ele consegue evidenciar uma luz misteriosa que estimula a imaginação.
Desta forma, sua produção, através do confronto da luz natural com luz artificial
registra a ambigüidade do momento da passagem da luz do dia para a luz da
noite, e provoca a incômoda sensação de questionar as fronteiras entre a realidade
e a ficção, entre a arte do fotógrafo e a fotografia do artista, entre fotografia e a
pintura a partir da articulação da luz e cor. Com relação a esta questão podemos
163
X X X Colóquio CBHA 2010
considerar o que Ivo Mesquita (curador da 28a Bienal de São Paulo) apresenta,
ao justificar a escolha do fotógrafo Luiz Braga para compor a mostra do Pavilhão
Brasileiro da 53a Bienal de Veneza:
“A fotografia de Braga é sobre pintura pela maneira que constrói e articula suas imagens,
distanciando-se dos conteúdos sociológicos ou antropológicos que se poderia esperar de um
artista da Amazônia”. (MESQUITA, 2009, p. E11, grifo nosso)
A produção fotográfica deste artista ao se inserir na fronteira do pictórico numa perspectiva conceitual deixa de ser a materialização de uma idéia
relacionada com aquela visualidade amazônica para transformar-se na concepção
que ele enquanto artista tem da fotografia e da arte. A matéria arte se reafirma
como algo mental e, mais especificamente, com limites tênues na relação entre
a pintura e a fotografia, num contra ponto com uma idéia mais tradicional, que
envolveu a arte e fotografia no século XIX e meados do século XX, onde a imagem se opõe a obra de arte, produto do trabalho, do gênio e do talento manual
do artista.
Sem dúvida o efeito da ‘realidade’ das fotografias deste artista tendem
sempre a se superpor à percepção dos arranjos e normatização que a câmera impões. Luiz Braga busca uma conjugação entre a técnica fruto de ‘muita pesquisa
e experimentação’ e o enquadramento clássico que muitas vezes lembra a solução
de algumas composições articuladas no campo da pintura e emblemáticas na história da arte ocidental. Neste sentido, podemos afirmar que ele, em muitos trabalhos, consegue soluções a partir de arquétipos pictóricos ‘construído ao longo de
suas vivências’, ou da vivência coletiva ocidental. Considerando estes aspectos da
subjetividade, Arlindo Machado, em A ilusão especular: introdução à fotografia
(1984), expôs que todo fotógrafo, quando cria uma imagem técnica, utiliza sua
bagagem cultural e ideológica, consciente ou inconscientemente, e ressalta que
algumas imagens parecem mostrar que boa parte das fotografias tenha depositado seu impacto na coincidência com certos arquétipos pictóricos que povoam
o inconsciente da civilização (MACHADO, 1984: 62). E, ainda, Flusser (2002:
14) afirmou que “a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na
realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens. Devem ser decifradas
por quem deseja captar-lhes o significado”.
Com estas constatações não queremos retornar ao dilema se a fotografia
dos artistas tem poucos pontos em comum com a fotografia dos fotógrafos, que
continua polarizada na questão da representação - esforçando-se, literalmente,
para reproduzir as aparências (como a fotografia documento); ou afasta-se delas
(como a fotografia expressão); ou deliberadamente as transformar (como a fotografia artística). Embora distintas, a fotografia dos fotógrafos e a fotografia dos
artistas, uma e outra têm em comum o fato de serem evidentemente plurais. E,
ainda, Rouillè (2009:287-288) afirma que antes de tornar-se material da arte
contemporânea (desde os anos 1970, Christian Boltanski afirmava “pintar com
a fotografia”), a fotografia desempenhou, alternadamente, o papel de refugo da
arte (com o impressionismo), de paradigma da arte (com Marcel Duchamp), de
ferramenta da arte (com Francis Bacon e, de modo diverso, com Andy Warhol) e
164
X X X Colóquio CBHA 2010
de vetor da arte (nas artes conceitual e corporal e na land art), ou seja, preencheu
funções utilitárias, veiculares, analíticas, críticas e pragmáticas.
Luiz Braga ao focalizar a cultura visual amazônica, a luz e as cores dos
portos, barcos e elementos visuais desta paisagem, mostra, simultaneamente a
sua dimensão comprobatória (a de ser uma prova da existência “ontológica” de
um objeto), e outra dimensão, a puramente simbólica, que desarticula o real (viciado na tradição figurativa), ao promover e incentivar laços com o inconsciente.
Assim, suas fotografias não deixam de perturbar a consciência dos espectadores
com visões menos oficiais daquilo que foi retratado, e passam a ser “menos ameaçadoras” ao se afastar de um supra-realismo advindo do obturador. Há, portanto,
uma trama de relações entre o realismo fotográfico, o efeito do inesperado provocado pelo obturador, e o ato de pintar com a luz e a cor. Em outras palavras, é
o conflito entre a cena registrada e o que ela carrega de memória e de associações
que possibilita este ato de refinada experimentação técnica em suas fotografias.
Desta forma, considerando a leitura do sujeito espectador, por intermédio da separação, deste olhar interminável que se evolui, outro elemento atravessa
a relação da fotografia com a memória e com o imaginário do fotógrafo. O ato
fotográfico não tem aparentemente condições de controlar por completo o instante exato em que o obturador dispara. Isso significa que o momento do clic é
por natureza ‘acidental’, uma vez que carrega sempre detalhes imprevisíveis ou
indesejáveis àquilo que o fotografo enquadrou, selecionou ou viu. Barthes (1984:
46) nomeia este instante de punctum, momento singular, surpreendente, muito
próximo do aleatório e do acaso.
Enfim, se assim for, como diz Arlindo Machado (1984:62) é possível que
estejamos superpondo à foto determinados protótipos iconográficos acumulados
ao longo de quase cinco séculos da imagem figurativa, como parecia intuitivo
a Berger e a Sontag. E, tendo em vista, as fotografias de Luiz Braga, podemos
dizer que o artista opera na fronteira do pictórico, isto é, provoca uma incômoda
sensação de questionar as fronteiras entre a realidade e a ficção, entre a arte do
fotografo e a fotografia do artista, entre a pintura e a fotografia, numa articulação
que envolve o realismo fotográfico, o efeito do inesperado provocado pelo obturador e o ato de pintar com a luz e cor.
165
X X X Colóquio CBHA 2010
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166
X X X Colóquio CBHA 2010
Arte e Design:
contaminações e destempos
Luciane Ruschel Nascimento Garcez
Mestranda UDESC
Sandra Makowiecky
UDESC/ CBHA
Resumo
Este artigo pretende discutir a relação existente entre a obra do
joalheiro russo Carl Fabergé e seus Ovos Imperiais, a dois trabalhos
do artista plástico Hubert Duprat, seus Casulos de ouro e Nord.
Ambos trilham uma poética do precioso, da sofisticação, ambos
percorrem uma poética do revestimento. Ambos produziram imagens que provocaram distensões no sistema de arte, ampliaram territorialidades da imagem na arte, potências de imagem que trazem
o eterno devir na arte.
Palavras chave
Carl Fabergé; Hubert Duprat; casulos.
Abstract
This paper intends to discuss the existing relation between the
work of the Russian jeweler Carl Fabergé and his Imperial Eggs,
and two works of the plastic artist Hubert Duprat, his gold Cocoons and Nord. Both thrash a precious, sophistication’s poetics,
both thrash a revetment’s poetics. Both produced images that provoked distensions in art system, enlarged territorialities in the art
image; potencies of image that bring the eternal recurrence in art.
Keywords
Carl Fabergé; Hubert Duprat; cocoons.
167
X X X Colóquio CBHA 2010
Este artigo pretende discutir a relação existente entre a obra do joalheiro russo
Carl Fabergé e seus Ovos Imperiais, a dois trabalhos do artista plástico contemporâneo Hubert Duprat, seus Casulos de ouro e Nord, uma forma ovóide, espécie de
casulo, feita de âmbar. Ambos trilham uma poética do precioso, da sofisticação,
ambos percorrem uma poética do revestimento. Ambos produziram imagens que
provocaram distensões no sistema de arte, ampliaram territorialidades da imagem na arte, potências de imagem que trazem o eterno devir na arte.
Um artista, um artesão ou designer? Fabergé descrevia a si mesmo como
um artista-joalheiro, o que é uma indicação de como ele via seu próprio trabalho
(BOOTH, 1996, p. 29)1. Carl Fabergé nasceu em 1846, em São Petersburgo,
Rússia. Renascença, Barroco e arte do Século XVIII são influências reconhecidas
em sua obra. O artista se encarregava pela criação da peça, mas sua confecção ficava a cargo de alguns experientes e meticulosos joalheiros de sua fábrica. Fabergé partilhava de prática muito usual na arte contemporânea, que é a de criar sua
obra e deixar a confecção da mesma para hábeis artesãos, não isentando o artista,
entretanto, de acompanhar e, de certa forma, dirigir o processo de produção.
Afirmando a importância da qualidade estética no design, chega-se ao seguinte questionamento: se ao design a estética é fundamental, o que o diferencia da arte? Para esta questão é
pertinente enfatizar que a estética deve existir tanto em arte quanto em design com equivalente consciência, o que os distingue é como a função estética participa em cada um deles, no
que Mukarovský (1981) oferece inestimável auxílio, segundo o qual quando a função estética
está presente, mas não é a principal intenção, dizemos que o resultado é um objeto ou imagem
estético – como no caso do design; quando a função estética é a principal intenção, o resultado
é um objeto ou imagem artístico – o que, evidentemente, ocorre em arte [...] A arte, pensada
ou produzida, não é design e, por fim, o design não é arte (REIS; In: MAKOWIECKY e
OLIVEIRA, 2008, p. 124-25)2 .
Tratar-se-á Fabergé como um designer, que foi um gênio no uso das
cores, um mestre no uso dos esmaltes e na transformação das cores do ouro. No
século XVIII um número relativamente pequeno de cores era usado na joalheria,
e ele introduziu mais de 140 tons diferentes; suas experiências em ouro, misturando outros materiais, como o cobre e a prata em sua liga, também faziam parte
de suas inovações, que podem ser vistas em seus trabalhos em todas as fases de
criação.
Mas suas maiores e mais famosas obras são os Ovos Imperiais. Existem
incertezas acerca do primeiro deles, mas uma pesquisa feita na Rússia recentemente, por Marina Lopato, do Museu Hermitage em Leningrado, faz crer que
foi uma encomenda de 1885 feita pelo Czar Alexandre III para sua mãe como
presente de Páscoa. Era um costume muito comum na época a troca de ovos ricamente ornados. Existem registros de ovos pintados por artistas como Watteau
e Boucher. Os ovos surpresa surgiram no reinado de Luís XVI, no século XVIII,
durante este período os ovos eram trocados pela aristocracia e realeza.
1
BOOTH, John. The Art of Fabergé. New Jersey, USA: Wellfleet Press, 1990.
2
REIS, Alexandre Amorim dos. Design não é arte. In: MAKOWIECKY, S. e OLIVEIRA, S. R. R.
Ensaios em torno da arte. Chapecó, Editora Argos, 2008, p. 99 – 126.
168
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Do primeiro Ovo Imperial, em 1885, Fabergé criou um total de 54 ovos
(ou 56 se incluir os dois produzidos no ano de 1917, entretanto eles foram perdidos e não existem evidências de que tenham sido sequer entregues ao Czar
e sua família). Sabe-se que dos 54 ovos criados, 47 ainda existem e podem ser
localizados. Mas acredita-se que alguns colecionadores, por receio e privacidade,
e dado o valor atual destas peças, não admitem serem proprietários de algumas.
Um de seus exemplos mais famosos, para alguns a maior obra de Fabergé, é sem dúvida o Ovo da Coroação, de 1897, com o qual o imperador Nicolau II
presenteou sua esposa, imperatriz Alexandra na primeira Páscoa após sua coroação. Rico em detalhes e nos materiais com os quais foi fabricado, é uma recordação do poder da dinastia Romanov. O esquema de cores deste ovo é baseado
na veste usada por Nicolau II no dia de sua coroação. Feito em ouro amarelo,
trabalhado com esmaltes desenhando a águia negra imperial, cada qual com um
diamante no ponto de encontro dos cordéis, fazendo o desenho de uma treliça
com raios de sol no seu centro. No topo do ovo está o monograma da Imperatriz
em diamantes e rubis cabochons. Dentro se encontra uma perfeita miniatura da
carruagem real usada na coroação. O veludo púrpura da carruagem original é reproduzido em esmalte, a madeira da estrutura é feita em ouro amarelo, os vidros
das janelas são cristais de rocha; o interior é decorado em esmaltes azuis para as
cortinas e turquesa para o teto e em cima da carruagem está a coroa imperial em
diamantes. É uma cópia perfeita em cada detalhe, até mesmo os degraus da carruagem descem quando as portas desta se abrem. Com muita paciência, talento e
criação esta peça alcançou a perfeição, tanto por sua forma, composição de cores
e também pela destreza nos detalhes de engenharia.
Outro de seus ovos que se tornou famoso foi o Ovo da Renascença, de
1894, um objeto suntuoso em ágata acinzentada com esmalte branco, decorado
com ouro amarelo, diamantes e rubis, ao redor, motivos renascentistas trabalhados em esmaltes brilhantes vermelho, verde e azul, decorados com diamantes e
rubis cabochons. A inspiração para esta peça veio de uma caixa de jóias do joalheiro Le Roy, que se encontra na Green Vaults Collection, em Dresden. A surpresa
deste ovo foi perdida, fato que ocorreu com diversos dos Ovos Imperiais. Mesmo
tendo algumas de suas peças sido claramente inspiradas por objetos de arte e joalheria, algumas sendo consideradas quase cópias, a verdade é que Fabergé ainda
assim mantinha sua originalidade. Como diz John Booth em seu livro sobre o
artista/joalheiro: “Verdade ou não, o fato é que a criação de Fabergé não é uma
cópia, mas um trabalho de arte altamente original” (BOOTH, 1996, p. 97)3.
Didi-Huberman, no livro Ante el Tiempo (2006)4, questiona a relação da
história com o tempo que nos impõe a imagem, diz que estar diante da imagem é
estar diante do tempo (p. 11), e pergunta: Que tipo de tempo? De que plasticidades e
de que faturas, de que ritmos e de que golpes de tempo podem tratar-se esta apertura
da imagem? (p. 11). Afirma que a imagem é mais carregada de memória do que de
história, propõe um novo modelo de temporalidade, no qual a imagem seria formada por uma montagem de tempos heterogêneos e descontínuos que se conec3
BOOTH, John. The Art of Fabergé. New Jersey, USA: Wellfleet Press, 1990.
4
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Argentina: Adriana Hidalgo editora S. A., 2006.
169
X X X Colóquio CBHA 2010
tam. Coloca a imagem no centro do pensamento sobre o tempo, o qual seria da
ordem do anacrônico por ser formado pelos elementos que sobrevivem e que retornam nesta conexão de tempos distintos, comenta que diante de uma imagem,
de repente o presente se vê capturado e exposto à experiência do olhar. Neste momento existe um atravessamento que traz consigo tantas memórias e tantos véus
quantos o espectador permita aproximarem-se e enriquecerem esta experiência
do olhar. Este é o tempo impuro que vem contaminado de outros tempos, outros
passados. O autor segue dizendo que diante de uma imagem, por mais antiga que
seja, o presente não cessa jamais de reconfigurar-se. E então pergunta: Como se
pode estar à altura de todos os tempos que esta imagem diante de nós conjuga
sobre tantos planos? O que se pode entender é que todos os tempos são atravessados por outras temporalidades, e é isto que permite fazer um leque de conexões e
relacionar uma imagem à outra, sendo que uma é contemporânea e a outra existe
há mais de mil anos, mas ambas falam de maneira similar, existem proximidades
em seus diálogos. Este tipo de experiência faz compreender que certas questões
retornam na arte, não são esquecidas, muito menos ultrapassadas, é o sintoma
que volta e volta questionando, problematizando olhares e conceitos, sempre atuais, olhar o passado, olhar outros tempos, para poder entender este tempo, esta
realidade. Olhar o passado com o olhar que ressignifica, traz outros códigos de
leitura na mesma obra, é impossível alcançar a obra de arte como no tempo em
que foi criada, mas se podem alcançar outras potências, outras questões.
Em matéria de construção do objeto, a grande preocupação de Duprat
é a confecção de seus trabalhos. Os Casulos é um trabalho realizado a partir de
1983, onde o artista usou um tipo de larva aquática, as tricópteras, que tecem
seus casulos com os materiais que encontra à sua disposição nos leitos dos rios.
Duprat as encerra em aquários com água a 4º C e disponibiliza, a princípio,
alguns fios e pepitas de ouro. Durante o processo, conforme o desenvolvimento
do casulo, ele vai agregando ao material disponível para as larvas, as pedras preciosas para que teçam seus casulos como se fossem jóias. As fotos são expostas
em galerias, assim como o filme que mostra as larvas trabalhando, os próprios
casulos são expostos fazendo Referências a jóias; em algumas mostras o artista
coloca os aquários pendurados nas paredes, à altura dos olhos do espectador, contendo as larvas em seu interior em pleno processo de confecção, como se fossem
quadros. Neste procedimento o artista levanta uma reflexão sobre o espaço expositivo artístico, o “cubo branco”, a sobrevivência da arte em museus e galerias
no formato mais tradicional até meados do século XX, e que na atualidade tem
sido discutido em várias instâncias da arte contemporânea, e também a questão
da autoria, tão presente nos ovos de Fabergé. Não só o resultado de seu trabalho e
processo de criação são polêmicos, a maneira como ele revela suas larvas também
provoca o espectador a pensar um pouco mais sobre a arte no século XXI. Não
só o procedimento aproxima os casulos aos ovos imperiais, também o resultado
suntuoso, a forma e o material utilizado.
Toda obra produz uma espécie de aparição, um certo assombro que
imobiliza o espectador, algumas vezes este assombro perdura por muitos anos,
questões que permanecem latentes por muito tempo. É assim que a arte dialo-
170
X X X Colóquio CBHA 2010
ga. Não existe concordância entre os tempos (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 18)5.
Obras de arte que são objetos de tempos complexos, tempos impuros, montagens
de tempos heterogêneos que formam anacronismos (2006, p. 19), um olhar contemporâneo que ressignifica o passado num eterno devir, um sintoma que retorna
recodificado pelo contemporâneo. A este respeito Didi-Huberman segue falando
sobre os tempos da imagem, sobre a história da imagem, ele diz: Muito antes de
a arte ter uma história, as imagens têm tido, têm levado, têm produzido a memória
(2006, p. 22). Pensar relações na arte entre tempos, fazer conexões de obras de
diversos períodos da história da arte não é um exercício que acontece por acaso,
nem frente a qualquer imagem
É necessário, me atreveria a dizer, uma estranheza a mais, na qual se confirme a paradoxal
fecundidade do anacronismo. Para aceder aos múltiplos tempos estratificados, às sobrevivências, às largas durações do mais-que-passado mnésico, é necessário o mais-que-presente de um
ato: um choque, um rasgo do véu, uma erupção ou aparição do tempo (DIDI-HUBERMAN,
2006, p. 23 – 24) 6 .
Na visão destes trabalhos, absorvidos com este olhar contemporâneo
que os coloca em uma constelação de imagens atemporais, se encontram os sintomas que os conectam a inúmeras imagens através da história da arte, sintomas
que são como fendas repentinas que conjugam diferenças, onde todos os tempos
se encontram e as latências aparecem, incontroláveis, intempestivas. As grandes
questões humanas sobrevivem nas imagens, é através delas que se conhecem outras culturas, outros povos, e é na imagem, imagem como noção operatória e não
como mero suporte iconográfico, que aparecem as sobrevivências, anacrônicas,
atemporais, memórias enterradas e que ressurgem.
Nord (1997 – 1998) trata-se de uma forma ovalada, constituída de placas de âmbar amarelo, uma resina que provém de coníferas que cresciam há
trinta milhões de anos no leito do atual mar Báltico. Os pequenos fragmentos
(centenas deles) de resina fossilizada são polidos em uma de suas faces, depois minuciosamente colados sobre uma camada de poliestireno, que ao fim do processo
é destruído. O volume oval e fechado corresponde à estrutura do casulo de ouro,
e ao ovo imperial. Ambos se relacionam pela forma e pelo caráter do material
escolhido, pelo insólito e extraordinário. Um volume vazio, mas que contém
no interior de sua matéria, a resina fóssil, restos de insetos e vegetais, memória
de tempos passados, vida retida na matéria. O artista usa do revestimento total
de uma superfície para revelar um volume, só que neste caso é o vazio que está
sendo moldado, nos ovos era uma surpresa a ser revelada. As superfícies polidas
e lisas do mineral se juntam de maneira que a organização de planos distintos
forme curvas. Mas longe de estar perfeitamente unificada, a superfície mostra
as irregularidades do corte, da cor, da densidade e da pureza de cada placa. Sua
transparência cor de mel permite que a luz que perpassa os interstícios da meticulosa composição ilumine a obra do interior para torná-la uma bola de fogo,
5
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Argentina: Adriana Hidalgo editora S. A., 2006.
6
Idem.
171
X X X Colóquio CBHA 2010
ainda que sua origem nórdica seja o gelo. Aparece assim como um conjunto de
facetas que difratam a luz, o que faz com que se assemelhe a uma pedra preciosa,
um enorme topázio. Como em toda obra de Duprat, a manufatura meticulosa, a
técnica que busca a perfeição no resultado, o olhar aguçado que busca materializar uma idéia, estão aí presentes.
Tanto Nord como os casulos têm uma relação direta com os ovos imperiais, falam de acúmulo, dos fragmentos que formam o todo; ambos falam de
tempos imemoriais. Como em vários de seus trabalhos, neste Duprat também
levanta uma discussão sobre luz e brilho, refração da superfície, entretanto em
Nord a luz atravessa a peça, além de refletir seu brilho, fala de um volume onde
o vazio é preenchido pela luminosidade que o âmbar proporciona, luminosidade
que é característica potente nos ovos de Fabergé. Oscilação constante entre natural e artificial, real e ficção, extra-sensível e mental, idéia e coisa.
Não é a prerrogativa do mais recente, nem do nunca visto que faz a
diferença em Hubert Duprat, são as diferentes inquietações que incidem sobre
seus trabalhos e problematizam conceitos da imagem que permitem pensar a
obra como deslocamento e destempo, trabalhos que relacionam o mais remoto ao
mais contemporâneo. Há, no centro da obra de Duprat, como que uma essência
do obscuro, do mistério, e uma singular univocidade, uma poética da perplexidade, onde o artista coloca um enigma, e na obra se encontram a solução e a
evidência. De que se tratam suas obras próximas das formas naturais, reconhecíveis, mas transformadas, enganadoras, extraídas do mundo como ele é, senão
pela simples ostentação que responde à experiência estética mais primitiva e que
constitui o gesto fundador de toda criação? Independente do material utilizado,
a obra resulta do acordo formal com movimento, com a luz, com a própria aparição e surpresa que ela revela, tanto para o artista como para seu público, objeto
dentre os objetos improváveis. Assim como os Ovos Imperiais.
172
X X X Colóquio CBHA 2010
Ovo da Coroação, 1897.
Carl Fabergé
Fonte da imagem: BOOTH, John. The Art of Fabergé. New
Jersey, USA: Wellfleet Press, 1990.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Casulos, 1983 – 2010
Hubert Duprat
Fonte da imagem enviada pelo artista.
174
X X X Colóquio CBHA 2010
Nord, 1997-98
Hubert Duprat
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X X X Colóquio CBHA 2010
A figura humana: traços, medidas
e proporções
Manoel Silvestre Friques
SENAI/ Cetiqt
Resumo
No presente artigo, são analisados alguns trabalhos da artista plástica brasileira Letícia Parente, em especial, o vídeo Preparação I,
a série de colagens Mulheres e a exposição Medidas (MAM - RJ,
1976). Tais obras são relacionadas aos sistemas de proporção e estudos anatômicos e fisionômicos desenvolvidos ao longo da história
da arte e analisadas sob o viés da cirurgia plástica, em comparação
com trabalhos recentes de artistas contemporâneos (Orlan, Stelarc
e Valerie Belin).
Palavras chave
Videoarte, representação, arte contemporânea
Abstract
In this paper we analyze some works of Brazilian artist Leticia Parente, in particular, the video Preparação I, a series of collages Mulheres, and the exhibition Medidas (MAM - Rio de Janeiro, 1976).
Such works are related to systems of proportion and anatomical
studies of physiognomy developed throughout the history of art
and analyzed under the bias of plastic surgery, compared with recent works by contemporary artists (Orlan, Stelarc and Valerie Belin).
Keywords
Videoart, representation, contemporary art
176
X X X Colóquio CBHA 2010
A verificação do humano sem proselitismo
Ou dogmatização pode bem ser
a preocupação mais contínua e presente
Letícia Parente
Pregos e grampos prendem em um papel amarelado recortes fotográficos de
olhos, nariz e boca. Alfinetes atravessam olhos e boca. A série intitulada Mulheres
apresenta rostos femininos construídos a partir de recortes, perfurações e colagens de imagens de revistas. Problematiza-se a fisionomia feminina: ao recortar
representações das partes mais significativas da face (olho, nariz e boca) e inseri-las em um novo rosto cru e pálido, fixando-as por meio de furos e junções visíveis a olho nu, Letícia parece querer desnudar o caráter publicitário de tais imagens. Ou melhor, a artista concede às faces femininas de revistas e jornais uma
profundidade superficial proveniente dos atravessamentos dos metais. Os olhos
claros e os lábios rosados das modelos contrastam com o branco amarelado do
papel, evidenciando o processo construtivo a que estão submetidos. A utilização
de ferramentas perfurantes, como o prego, o grampo e o alfinete, cuja serventia
é justamente fixar objetos objetualiza as imagens das mulheres ao mesmo tempo
em que as permite continuar olhando fixa e sedutoramente para seu observador.
Neste novo rosto, os traços fisionômicos (possíveis rugas, marcas ou cicatrizes)
são metais cuja função é unir olhos, nariz e boca ideais (das modelos femininas)
à superfície crua e pálida do papel. No trabalho de Letícia, as fisionomias de alguns mitos contemporâneos de beleza e de juventude, em especial relacionados à
imagem da mulher, são decompostas por meio de gestos, a princípio, agressivos,
como perfurações e recortes.
Há ainda um papel onde se observam duas colunas contendo explicações sintéticas sobre a cirurgia plástica nos seios e no rosto, acompanhadas de
suas respectivas representações gráficas. Aqui, os grampos e pregos cedem lugar
à linha responsável pela nova modelagem plástica das partes do rosto. Na parte
inferior da folha, Letícia costurou horizontalmente no papel, a partir das representações das cicatrizes colocadas acima, três caminhos distintos: enviezado,
trançado e linear. Neste trabalho, aborda-se também o processo de construção e
de configuração da figura humana. Isto é, os trabalhos de Letícia focalizam antes
os processos reformatórios e reconfiguradores da figura humana (o corpo, no
caso da cirurgia plástica, e a imagem do corpo, no caso da fotografia) do que os
produtos finais destas transformações (o novo rosto, o novo seio, o novo corpo).
A apropriação de imagens femininas encontradas em anúncios publicitários complementa-se, no trabalho de Letícia, ao interesse da artista pela
cirurgia plástica. Quando ela decompõe as faces de mulheres encontradas nas
revistas para posteriormente recompor um novo rosto em que a cola, os pregos e
os grampos atuam como elementos responsáveis por uma nova configuração, Letícia produz operações plásticas nas imagens humanas, operações essas que não
são disfarçadas (como é o caso da cirurgia plástica que esconde as cicatrizes sob
os cabelos), que impedem a produção de um efeito de naturalização. O interesse
pelas cicatrizes resultantes das cirurgias plásticas, em que tanto a pele quanto o
177
X X X Colóquio CBHA 2010
papel são tratados como superfície de costura, sublinha o interesse de Letícia pelo
processo e não pelo produto resultante das manipulações cirúrgicas.
Os metais utilizados para prender e reconfigurar as partes do corpo podem ser relacionados, por exemplo, às manifestações da body modification, nas
quais os corpos são modificados intencionalmente por meio de inúmeras técnicas
de transformações corporais, tais como tatuagens, piercings e outras perfurações,
implantes estéticos e escarificações. Os adeptos da body modification se diferem
daqueles indivíduos que modificam seus corpos com o intuito de adequá-los aos
padrões de beleza vigentes. Não se trata de cirurgias corretivas, como o implante
de silicone, a lipoaspiração e o rejuvenescimento cirúrgico. São indivíduos que,
em eventos e apresentações públicas, transformam radicalmente seus corpos.
Fakir Musafar, um dos expoentes da body modification, já reduziu sua cintura de
73 cm para 47 cm, aplicou em seu corpo 24 pesos de 500g presos em sua pele
com anzóis e também foi submetido a suspensões verticais, por meio de ganchos
de açougue, dentre outras experiências.
Além de Musafar, dois artistas propõem modificações corporais como
experiências artísticas: o australiano Stelarc e a francesa Orlan. Stelarc, que já
realizou cerca de vinte e cinco suspensões de seu próprio corpo, descreve uma
série de experimentos onde o corpo humano e a máquina (computadores, robôs
e outros) são articulados de modo a criar seres híbridos. Orlan também propõe modificações corporais como experiência estética, como a sua série de nove
operações cirúrgicas performáticas, realizadas entre 1990 e 1993, onde realizava
modificações de sua face a partir de cânones da história da arte ocidental. Estes
artistas criam situações performáticas nas quais seus respectivos corpos são submetidos a uma série de experiências cirúrgicas, eletrônicas, robóticas e virtuais.
De modos diversos e variados, os artistas submetem seus corpos a uma série de
radicalizações anatômicas, tornando-os locais híbridos e passíveis de contínuas
reconfigurações. O modo como se relacionam com as colagens, os recortes e as
perfurações de Letícia Parente reside na evidenciação dos artifícios e dos processos de modificação corporal. Apesar de apresentarem implicações diversas,
é possível enxergar um elo entre os trabalhos, a partir da investigação do corpo
como elemento artístico híbrido, construído e manipulado.
Em outra colagem da Série Mulheres, Letícia propõe ao espectador um
tipo de experiência visual: a da indistinção entre rostos de modelos e de manequins femininos. Três folhas apresentam colagens de fotografias de jornal de
mulheres vestidas com perucas, justapostas a imagens de manequins igualmente
portando cabelos falsos. A indistinção entre as modelos associa este trabalho de
Letícia às fotografias da artista contemporânea francesa Valerie Belin. Em sua exposição1, o espectador passeia por uma série de fotografias de manequins e mestiças tratadas digitalmente, realizada em 2006 pela artista. As imagens apresentam
rostos de mulheres jovens, de peles macias, sem cicatrizes ou marcas. A ausência
de cicatrizes, as feições e poses faciais apáticas e neutras criam um jogo visual
onde o olho pergunta a todo momento quais daquelas mulheres perfeita são “de
verdade”^F. A cirurgia plástica, encarada como manipulação digital da imagem
1
Oi Futuro, entre Abril e Junho de 2009, na exposição intitulada Meias Verdades.
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fotográfica, é então utilizada por Belin como operação que permita ao espectador
duvidar do que vê, ao se deparar com o fenômeno da semelhança entre os rostos
perfeitos. Os procedimentos fotográficos e digitais da artista francesa, ao tornarem indiscerníveis e extremamente semelhantes modelo e manequim, dirigem ao
espectador a pergunta a respeito dos limites e das fronteiras entre o ser humano e
a coisa. No caso de Letícia, manequins e modelos femininos dispostos lado a lado
parecem produzir a mesma natureza de conflito visual. Entretanto, em Letícia a
cirurgia plástica não é apenas utilizada na produção de conflitos e desconfianças
visuais por parte do espectador. A artista brasileira, de fato, se apropria dos procedimentos médicos próprios à cirurgia plástica, os inserindo em seus trabalhos de
modo a revelá-los nas obras. Diferentemente de Belin, na maioria dos trabalhos
de Letícia as operações cirúrgicas são apropriadas e reveladas: as cicatrizes não
estão disfarçadas.
Se em Mulheres a artista lança mão de imagens publicitárias para compor, recompor e decompor o rosto feminino, em Preparação I ela as substitui por
sua própria face. Nesta performance em vídeo, visualiza-se a artista pintando a si
mesma. A tensão desta preparação reside justamente no bloqueio do sentido e da
função de cada parte pintada. Ao colocar sobre a boca um esparadrapo, Letícia
cria uma impossibilidade desta mesma boca falar e respirar. A boca se cala, tem
o seu movimento e função interrompidos, bloqueados. Não obstante, sobre a tira
de esparadrapo, é pintada outra boca, uma figura (ou representação) elaborada
pela própria artista. A tira de esparadrapo tem sobre e sob si uma boca: uma real e
uma figurada. Aquilo que é realmente uma boca é escondido para que seja pintada uma boca bidimensional, superficial, de batom. O que some, porém, é apenas
a imagem da boca real, pois o seu volume permanece aparecendo e é justamente
sobre ele que a pintura é realizada.
Em Preparação I, quando o corpo da artista se coloca voluntariamente
como suporte físico das ações empreendidas por Letícia, surge aí um jogo de
visões em que dois processos entram em diálogo. Diante do espelho o indivíduo
molda a sua face, de modo a fazer coincidir a imagem pretendida com a auto-anulação proveniente desta preparação. Neste estranho ritual de beleza, no momento exato em que os olhos e a boca são pintados, estes mesmos olhos e boca
são bloqueados em suas funções naturais. Aqui, o gesto de pintar adquire dupla
função: por um lado, diz respeito aos hábitos femininos de cuidado com o corpo,
por outro lado, Letícia pinta não sobre uma tela, nem sobre uma parede, mas
sobre si própria. Tal pintura não é um quadro, apesar de estar enquadrada pela
câmera. Também não é realizada com pincéis e tinta, mas com batom e lápis de
olho. Além disso, o “processo pictórico” deste vídeo faz coincidirem o pintor e
o objeto pintado: a artista não desenha a partir de um modelo nu que, por sua
vez, posa diante da pintora. A sua visão apreende a sua própria imagem. Pintora e
pintura revelam-se, com isso, como duas faces de um mesmo processo. O pintar
de Letícia age diretamente sobre a visão de sua imagem: a cada traço pintado,
surge uma nova pintora-pintura. Neste vídeo, o sujeito que cria representações (o
pintor) é o objeto e suporte das mesmas (a própria pintura).
As questões aqui levantadas são trabalhadas por Letícia em sua primeira
exposição individual, Medidas, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
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em 1976. Nela, os participantes eram impelidos a realizar uma série de medidas
a respeito de seus próprios corpos e tipos físicos. Caminhando por sete estações
distintas, o participante era convidado a realizar uma série de classificações a
seu respeito, levando em conta alguns parâmetros. De acordo com a proposta
da exposição descrita por Letícia, o jogo proposto aos participantes da exposição
seria a produção de medidas relativas ao próprio corpo. Ao transformá-las em
dados, ao preencher uma ficha com informações referentes à própria carne, cada
participante pode constatar a transformação de sua subjetividade complexa e
inconstante em padrões e rótulos estatísticos objetivos e imutáveis, em registros
de desempenho.
Em Medidas, os corpos dos participantes assumem o lugar do corpo da
artista. Sabe-se que Letícia, além de artista plástica, era professora doutora em
química na PUC do Rio de Janeiro. Este fato é significativo por dois motivos: em
primeiro lugar, como tal, Letícia provavelmente ministrava aulas em laboratórios, onde o professor costuma orientar os alunos em experiências práticas. Aqui,
tudo é calculado: forças, velocidades, acelerações, tempos das reações, dilatações
térmicas, freqüências, períodos etc. Nestes laboratórios, os estudantes participam de experiências e elaboram relatórios onde devem produzir um conjunto
de medições que excluem, no entanto, aquelas referentes a seus próprios corpos.
Outro aspecto do qual Letícia, com absoluta certeza, tinha consciência, refere-se
ao princípio da incerteza de Heinsenberg, um enunciado da mecânica quântica
formulado por Werner Heinsenberg em 1927. Nele, o autor constata uma série de
restrições aos processos de medições de partículas subatômicas: em termos gerais,
para se encontrar a posição de um elétron, é preciso criar uma interação, direta
ou indireta, entre este e algum instrumento de medida. Esta interação entre o
elétron e o instrumento verificador da posição da partícula influi na própria posição desta. Decorre daí que o processo de radiação que mede a posição do elétron
produz um recuo do próprio elétron, interferindo em sua posição. A realização da
medida, portanto, influi diretamente no estado e na posição daquilo que mede.
Não é possível aplicar o princípio da incerteza de Heinsenberg a não ser
para partículas subatômicas. Nem seria plausível considerar Medidas como uma
experiência laboratorial absolutamente idêntica às disciplinas de química e de
física. É possível, no entanto, pensar as variáveis científicas (e parece ser este o
enfoque de Letícia) em um contexto artístico, justamente na fronteira que une e
separa a arte da ciência. Se há uma diferença de grandeza brutal entre elétrons e
corpos, os mesmos podem ser, em alguma medida, associados. Analogamente,
Letícia quis lidar com o princípio da incerteza: elaborando todo um aparato experimental e um sistema de mensuração para corpos humanos, a artista propõe
que cada participante crie dados pessoais a serem tabelados e comparados com os
de outros indivíduos. A proposta, porém, não se encerra aí: trata-se de um sistema de medidas que, tal como o princípio de Heisenberg enuncia, deseja influir
diretamente no estado daquilo que está sendo mensurado.
O laboratório proposto por Letícia, portanto, desconfia de sua própria
eficácia e eficiência. Nesse sentido, a artista convida os participantes de sua exposição a executarem duas naturezas distintas de performance. Em primeiro lugar, a performance é abordada como um desempenho eficiente, tal como sugere
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Jean-François Lyotard em A condição pós-moderna: quer-se registrar a performance dos corpos, transformando-a em dados, inputs, de um sistema classificatório composto por dispositivos de mensuração que funcionam como indicadores
de otimização. Surgem daí as competições e hierarquias, visando, a partir da
comparação, a definição das performances mais otimizadas: quem respira mais
rápido, quem possui maior acuidade visual, quem não resiste muito à dor, e assim por diante. Esta performance, no entanto, está a serviço de outra, a arte-performance, na qual os corpos desprendem-se das meras medições, através da
formulação de uma consciência crítica a respeito do próprio processo no qual
estes estão inseridos. A arte-performance dos participantes (não mais observadores e espectadores) choca-se, portanto, com a performance-desempenho destes.
Nos trabalhos aqui descritos e analisados, percebe-se uma investigação
em torno das proporções fisionômicas e dos dispositivos de mensuração, investigação esta na qual Letícia problematiza os sistemas de representação e de classificação da figura humana, em especial do corpo feminino. Sob esta perspectiva,
Preparação I, Mulheres e Medidas se inserem em um debate tão tradicional quanto
significativo no âmbito da história ocidental da arte, a saber, aquele referente aos
estudos das proporções determinantes da representação da figura humana. Preocupações a cerca das proporções, da fisionomia e da anatomia do corpo humano
remontam aos escritos do arquiteto e engenheiro militar Marco Vitrúvio Pollio,
nascido no século I a.C. Os cânones das proporções, em geral, oscilam entre dois
pólos: por vezes, busca-se a beleza ideal produzida por meio da combinação dos
traços mais belos de diversos indivíduos, por vezes, quer-se a construção da ilusão
de presença de um personagem real, por meio de uma verdade da representação.
Tanto em um caso, como em outro, o que se almeja é uma figuração humana
cujo princípio subjacente é o construtivo. Deseja-se representar a criatura por
meio da construção de seu corpo, seja idealmente, seja ilusionisticamente. Para
tanto, cada sistema elabora o seu corpo, por meio de procedimentos figurativos: modelos algébricos ou fracionários respondem aos anseios de cada época. O
sistema proposto por Letícia Parente, no entanto, diverge radicalmente de seus
antepassados canônicos.
Retomemos, por exemplo, a busca pela beleza ideal do corpo humano
a partir dos traços mais belos de vários indivíduos. Em Memoráveis (sec IV a.C.)
de Xenofonte, Sócrates mostra que a pintura, ao copiar as formas belas, reúne “de
todos, as partes mais belas de cada um” de modo a apresentar corpos que pareçam inteiramente belos. Na antiguidade, os mais belos corpos eram construídos
a partir da superposição, ou da articulação, entre as partes corporais encontradas
em vários indivíduos. Atualmente, observa-se um transbordamento deste princípio para além dos limites da figuração artística do corpo humano. A cirurgia
plástica, como exemplo notório deste momento, procede de modo a corrigir imperfeições humanas, de acordo com um ideal de beleza. Num certo sentido, a
cirurgia plástica é, ela mesma, uma atualização do princípio da beleza ideal preconizado por Sócrates nos corpos humanos representados. Letícia, ao lidar com
a cirurgia plástica, não o faz tanto para persistir na busca da beleza ideal. Pelo
contrário, seus trabalhos aproximam-se, de certo modo, das body modifications,
uma vez que a ênfase destes recai na evidenciação dos procedimentos cirúrgicos,
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das operações de corte e de costura das articulações entre as partes corporais.
Tanto Letícia quanto os adeptos das transformações corporais apresentam publicamente as suas marcas e cicatrizes.
Quando Letícia retoma o estudo das proporções, não o faz para reatar o elo perdido da história dos sistemas anatômicos e fisionômicos. Em sua
apropriação de fotografias e imagens de modelos femininas, a artista opera uma
desmontagem dos mitos contemporâneos de beleza, na medida mesma em que
altera, lacera, recorta, fura, cola e costura os clichês da publicidade. A resposta
de Letícia à mensagem publicitária não é, portanto, uma recusa ou obliteração de
sua mensagem, mas um roubo, uma falsificação, em que a artista combina “de
um modo novo as unidades que compõem [a mensagem] de maneira, à primeira vista, natural”^F. O furto de Letícia configura-se, com isso, como um ato de
ironia profunda, que, segundo Barthes, é o único meio que temos de falar, por
nossa vez, a língua das comunicações de massa. Nesse sentido, a publicidade é
apropriada por Letícia como uma citação: as deformações, recortes e perfurações
resultantes da apropriação das imagens publicitárias sistematizadas em modelos
de proporções constituem menos uma recusa do que a colocação das obras publicitárias entre aspas. Aspas metálicas, cruas e cortantes.
Os trabalhos de Letícia aqui analisados não se configuram apenas como
a construção de uma contra-imagem publicitária. A exposição Medidas e a performance em vídeo Preparação I, em especial, revelam também a relação ambígua que o ser humano mantém com os processos representacionais de sua figura.
O olho pintado de Letícia não substitui seu olho fisiológico: utiliza-se de seu
volume e tamanho, anulando, no entanto, o seu campo de visão. Nesse sentido, a elaboração de um sistema de representação é também a produção de uma
anulação. Os contra-sistemas elaborados por Letícia Parente tratam de verificar
o humano, não no intuito de encerrá-lo em padrões, mas no sentido de flagrar a
dinâmica ambígua que caracteriza a sua definição. Revela-se, nesta dinâmica, a
preocupação de Letícia Parente enunciada na epígrafe: verifica-se o ser humano,
sem proselitismo nem dogmatização.
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Acervo de Letícia Parente
sob coordenação de André Parente.
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Acervo de Letícia Parente
sob coordenação de André Parente.
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Acervo de Letícia Parente
sob coordenação de André Parente.
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Janelas transitórias
Mauro Trindade
Doutorando/ UFRJ
Resumo
Janelas Transitórias, série fotográfica de Ricardo Fasanello, é o ponto de partida para uma reflexão a respeito da fotografia contemporânea. Uma vez acionados os sensores CCD – núcleos da digitalização –, quaisquer variações de movimento passam a ser captadas.
Nesse sentido, toda a câmera fotográfica digital é uma câmera de
vídeo, cujas imagens passam a fazer parte de um continuum. Janelas
Transitórias reflete esta incerteza temporal. São vídeos estáticos, fragmentos do tempo sem cronologia.
Palavras chave
Fotografia, digitalização, fluxo
Résumé
Fenêtres transitoires, série photographique de Ricardo Fasanello,
est le point de départ d’une réflexion à propos de la photographie
contemporaine. Une fois mis en action les senseurs CCD – centres
de numérisation –, toutes les variations de mouvement sont captées. En ce sens, toute la caméra photographique numérique est
une caméra de vidéo, dont les images passent à faire partie d’un
continuum. Fenêtres transitoires est le reflet de cette incertitude
temporelle. Ce sont des vidéos statiques, des fragments du temps
sans chronologie.
Mots-cléf
Photographie, numérisation, flux
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Trens sempre foram um tema querido entre os fotógrafos, do qual Richard
Steinheimer foi o grande cultor, seguido por Henry Griffiths Jr, Charles Clegg,
Lesley Suprey e outros pioneiros. As locomotivas fumacentas, os comboios elegantes e as linhas de trilhos a criar na fotografia um campo expressivo de ação e
velocidade foram trabalhados por artistas tão diferentes quanto Cartier-Bresson
e Alfred Stieglitz. As fotografias do artista Ricardo Fasanello, ponto de partida
dessa comunicação, se inserem nesse universo temático, que conserva seu interesse quase dois séculos após a invenção das primeiras locomotivas a vapor.
O encanto tem suas razões. No universo em transformação da sociedade industrial do século XIX, a estrada de ferro representou uma intersecção de
múltiplos fatores da modernidade, com novas formas de circulação de mercadorias e pessoas, aumento na velocidade e eficiência do transporte, uma concepção
urbanística inédita baseada em uma otimização viária, intensificação do tráfego
e uma radical transformação da percepção do tempo e do espaço, graças à força
dos grandes cavalos de aço. Tom Gunning, da Universidade de Chicago, nota
que o trem condensa as novas percepções do corpo e do ambiente geradas pela
aceleração dos deslocamentos^F.
De certa forma, foi o trem uma das primeiras experiências da modernidade de um espectador frente a uma tela com imagens em movimento: a janela
dos vagões. Grandes distâncias podiam ser agora cobertas em um intervalo de
tempo reduzido, numa nova experiência sensorial que alterava a apreensão da
realidade e reduzia o espaço em paisagem. E, como salienta o historiador da
arte Carl Einstein, “transformando a visão, transforma todas as coordenadas do
pensamento”1.
A partir do século XIX, uma nova forma de entendimento do espaço-tempo se desenhava com novos meios de comunicação e com um novo urbanismo, a serviço de uma população cada vez maior. Com o adensamento populacional das grandes metrópoles, foram rasgadas longas avenidas que passam a ser
percorridas a velocidades cada vez maiores.
Não é de admirar, portanto, que muito dos primeiros filmes tratem exatamente dos rápidos deslocamentos das viagens de trem, entre os quais, L’Arrivée
d’un train à la Ciotat, dos Irmãos Lumière, é paradigmático.
Outras formas de se aproximar o impacto visual e corpóreo da viagem
de trem com o cinema seriam realizadas com passeios-fantasma, nos quais as
câmeras de cinema instaladas na proa de barcos ou à frente das locomotivas
gravavam imagens velozes. De forma bastante significativa, décadas antes da invenção do filme e do cinema, diversos panoramas também tematizaram a experiência dos meios de transportes. Instalações constituídas por cenografia, pintura
e arquitetura em ambientes fechados, os panoramas eram ambientes de imersão
ilusionista, no qual o espectador adentrava e participava de uma experiência totalizante, no qual a pintura do panorama não era limitada por molduras, mas
ocupava todo o campo visual do observador2 . Entre os mais famosos panoramas
1
Apud DIDI-HUBERMAN, Georges. O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl
Einstein, in Zielinsky, Mônica (org.). Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2003, p. 24.
2
BARBUY, Heloisa. A Exposição Universal de 1889 em Paris: visão e representação na sociedade. São
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da Exposição Universal de 1889, em Paris, estava o da Compagnie Générale
Transatlantique, o primeiro a reproduzir movimento. A réplica do navio mais
importante da Companhia, o La Touraine, recebeu mais de 1,3 milhão de espectadores naquele ano, encantados com o balançar provocado pelas “ondas” e
as paisagens pintadas por Poilpot, que se sucediam conforme o “movimento” do
navio. A fotografia, a construção de torres de observação, como a Eiffel, o uso de
balões e visitas a necrotérios e museus de cera também integravam uma grande
transformação da percepção ocorrida no século XIX, na qual a preponderância
da visualidade está intrinsecamente ligada à sociedade do espetáculo, na expressão do escritor Guy Debord 3.
Com o progressivo desaparecimento dos panoramas durante o século
XX, foi o cinema que passou a ser encarado como a forma de registro definitiva
de imagens em movimento. Entretanto já existia uma pesquisa do movimento na
fotografia antecessora ao cinema. Em 1872, o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge iniciou um trabalho com fotos seqüenciais que acabariam tornando-se
o tema principal de suas imagens. Às suas observações, reuniu-se a pesquisa do
pintor, escultor e fotógrafo americano Thomas Eakins, que também se dedicou
ao estudo das imagens em movimento. A obra desses artistas seria fundamental
para os Irmãos Lumière e Thomas Edison desenvolverem o cinema.
Como vimos, porém, a noção de movimento já estava associada à fotografia bem antes da chegada do cinema. Assim como a noção de que a fotografia
foi associada a uma ideia de representação do real e de objetividade, ela passou
a ser considerada inapetente em representar o movimento, ante as imagens cinéticas do cinema. A concepção da fotografia como uma imagem retirada do
fluxo do tempo e imobilizada em um passado perpétuo não deve, portanto, ser
considerada de forma natural ou absoluta.
O entendimento do que é a fotografia sofreu grandes modificações ao
longo de quase dois séculos de história. Em um primeiro momento, chegou a ser
duramente criticada por seu “realismo” – aqui dito entre aspas – pois era entendida como mímesis instantânea de acontecimentos registrados com neutralidade
absoluta. Caso de célebre texto de Charles Baudelaire, a respeito do Salon de
1859, quando compara a utilidade da fotografia às artes à importância da impressão e da estenografia à literatura4. Para o escritor, o excesso de realismo da
fotografia seria um inimigo da imaginação presente na pintura.
Entretanto, antes mesmo da chegada das técnicas digitais de processamento da imagem, a capacidade da fotografia de indexar o real em uma objetividade essencial, como pretende André Bazin5, ou o “análogo perfeito”, como o
quer Roland Barthes6 , passou a ser considerada altamente discutível. Na verdade,
a própria máquina fotográfica tradicional é baseada na câmara escura, conhecida
Paulo: USP/Loyola, 1999, p. 98.
3
DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1997.
4
Charles BAUDELAIRE, Le public moderne et la photographie. Disponível em: fr.wikisource.org/wiki/
Page:Baudelaire_-_Curiosit%C3%A9s_esth%C3%A9tiques_1868.djvu/261.Acessado em 10/03/2009.
5
B, André. O que é o cinema. Lisboa: Livros Horizonte, 1997.
6
BARTHES, Roland. A mensagem fotográfica (1961) in O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
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desde a Antiguidade por gregos e outros povos. Ela impõe um campo de enquadramento e um campo de exclusão definidos pelo observador que a ajusta conforme seu interesse. Assim, mesmo em sua estrutura mais básica, o fotográfico
se insere em contextos técnicos e culturais muito anteriores à própria fotografia.
Outras variantes podem ser discutidas, ainda do ponto de vista material, a respeito dos processos ópticos e termoquímicos que intermedeiam, em todas as etapas
de seu processamento, a imagem real à imagem reproduzida.
O advento da fotografia digital, portanto, não deve ser entendido meramente como o fim da objetividade fotográfica e de seu caráter documental, já
posto em suspensão ainda com o uso da película fotossensível e das máquinas
fotográficas tradicionais por críticos e historiadores com abordagens tão variadas
quanto Rudolf Arheim, Jean-Louis Baudry e Hubert Damish.
Antes de se compreender o que há ou não de artístico na produção fotográfica, é preciso entender a câmera fotográfica como um dispositivo de efeitos
deliberados. E, nesse sentido, a câmera digital se constitui de forma inteiramente
diversa da analógica.
O que torna a fotografia digital tão impactante é sua radical transformação no processo de captação e reprodução de imagens, agora desvinculados de
qualquer caráter indicial que a fotografia analógica pudesse apresentar. Sequer o
conceito de fotografia como escrita da luz parece se ajustar ao digital, muito mais
próximo da ideia de interpretação do sinal.
A antiga câmara escura das máquinas fotográficas na qual repousava
uma superfície recoberta de substância fotossensível, foi substituída por um novo
sistema de captação de freqüências eletromagnéticas, em cujo cerne está o CCD,
acrônimo inglês de Charge Coupled Device, ou Dispositivo de Carga Acoplada.
O aparelho foi desenvolvido em 1969 por George Smith and Willard
Boyle. Na época, os Laboratórios Bell, nos Estados Unidos, onde trabalhavam,
direcionavam suas pesquisas para holografia, diodos de silícios, laser sólido e
outras tecnologias que viriam a ser aplicadas em larga escala em computadores e
outros equipamentos digitais. Entre eles, semicondutores associados a circuitos
elétricos distintos cujas tensões e correntes tornavam-se informação relevante.
Foi essa a base para o desenvolvimento dos captadores de imagem das câmeras
digitais.
A despeito do caráter eminentemente técnico da descrição, ele é fundamental para a compreensão das bases nas quais a fotografia digital se estabelece.
Não há, rigorosamente, nenhuma relação entre a imagem visível e a captação
digital, que sequer trabalha com imagem e sim com variações luminosas – ou fótons – colhidas por um sensor fotossensível. O espectro eletromagnético captado
pode, inclusive, incluir frequências não visíveis pelo olho humano, como os raios
infravermelhos e o ultravioleta. Por isso mesmo o sensor CCD tem múltiplas
funções que ultrapassam os limites fotográficos mais tradicionais, como medicina de imagem e astronomia7.
Quando a luz incide na superfície do sensor CCD, elétrons são produzidos e coletados por um eletrodo ligado a uma área do sensor. A superfície do
7
FILHO, Kleper de Souza Oliveira; SARAIVA, Maria de Fátima Oliveira. Observações com câmeras CCD.
Disponível em astro.if.ufrgs.br/index.htm. Acessado em 20/02/2010.
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CCD é constituída por várias dessas áreas, chamadas pixels. E, por isso, quanto
mais pixels uma câmera apresenta, maior é qualidade de imagem gerada. Ao término da exposição, os elétrons são transmitidos para um amplificador e para um
conversor analógico-digital, que transforma a carga em um número binário a ser
lido pelo computador e, finalmente, transformado em imagem.
Nessa descrição resumida, o mais importante é perceber que a imagem
virtual não mantém vínculos com a imagem real e que a imagem resultante se
aproxima mais ou menos de seu referente conforme o processamento ao qual as
cargas elétricas foram submetidas. Nesse sentido não há diferença entre a modalidade de imagem a ser gerada, seja uma fotografia estática ou um vídeo. Apenas
que, no segundo caso, um tempo maior de exposição é armazenado pela memória digital da câmera. O trabalho do sensor CCD é rigorosamente o mesmo.
Câmeras com visor LCD – Liquid Crystal Display ou Monitor de Cristal Líquido – são capazes de captar, exibir e gravar imagens, em movimento
ou não. A decisão fica por conta de qual programa será ou não requisitado no
processamento da informação digital. Nesse sentido toda a imagem gerada por
câmera digital pode ser entendida como um frame – um quadro – de uma gravação em fluxo, com suas características intensificadas ou atenuadas conforme os
programas utilizados.
É o que o fotógrafo Ricardo Fasanello classifica como “vídeo congelado”, um segmento de imagem capturada em contínuo e convertido em imagem
única. Sua série Janelas Transitórias, realizada em 2008 nos Estados Unidos, trabalha exatamente com essa concepção temporal. São fotografias realizadas dentro de trens entre Miami e Nova Iorque de forma aleatória, muitas vezes sem a
interferência do artista quanto ao tema registrado e o enquadramento conferido.
No alto da imagem, um céu azul que parece mergulhar – ou sair – da escuridão.
Abaixo as imagens são tomadas por uma sombra maciça. Somente ao centro
das fotografias podemos observar vagões, containeres e viadutos nas proximidades das linhas férreas, em ambientes deteriorados pela ocupação industrial e
esvaziados de quaisquer Referências topográficas mais significativas. Um campo
desterritorializado, sem identidade, habitantes ou relação com os nômades que o
atravessam em comboios, isolados pelo aço e vidro dos vagões: um não-lugar, na
definição proposta por Marc Augé8.
Se o espaço se colapsa na fotografia, é a ideia do tempo que se destaca.
A fotografia tradicional emulava com uma visão perspéctica, na qual o espaço
trazia em si uma concepção da própria realidade, a fotografia digital traria a percepção do tempo, antes figurado na pintura ou na fotografia tradicional e agora
inserido na própria visualidade. A imagem-movimento congela-se em um frame,
um fragmento sem cronologia. É momento. Não é memória. A ausência de Referências nas Janelas Transitórias intensifica a sensação de estranhamento. Aqui
o espaço não nos fornece a concepção de tempo, pois, se não podemos medir
distâncias, o próprio tempo se esgarça. O agora, que é a duração e a materialidade de nossa existência, parece não se fechar em passado atrás de nós, enquanto a
8
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus,
1994.
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iminência de um futuro não se realiza em paisagens tediosamente iguais. É um
eterno presente.
A metáfora da locomotiva avançando em direção ao futuro pode aqui
ser substituída pelo artista contemplativo cercado pelas imagens do mundo, sem
se saber ao certo se o que se move é a paisagem ou o vagão. Mesmo o que há
dentro e o que está fora se misturam em uma única visão, num jogo de reflexos
que duplica a própria fotografia e inverte o sentido do olhar. As Meninas também
andam de trem.
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Sem título
Ricardo Fasanello
Impressão de jato de tinta mineralizado sobre algodão.
Alemanha: 2010
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Sem título
Ricardo Fasanello
Impressão de jato de tinta mineralizado sobre algodão.
França: 2010
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X X X Colóquio CBHA 2010
Arte e tecnologia digital:
uma abordagem metodológica
Nara Cristina Santos
PPGART/UFSM
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar uma abordagem metodológica experienciada no projeto de pesquisa História da Arte Contemporânea no Rio Grande do Sul: uma abordagem a partir da
produção em arte, tecnologia e mídias digitais, desenvolvido entre
2007 e 2010. Portanto, a ênfase neste artigo não está nos resultados
da pesquisa realizada, mas na maneira como ela foi desenvolvida,
o que permitiu uma aproximação da produção em arte digital na
contemporaneidade.
Palavras chave
arte digital; Arte Contemporânea; imagem
Resumé
Cet article vise à présenter une approche méthodologique expérimenté dans le projet de recherche Histoire de l’art contemporain
dans le Rio Grande do Sul: une approche basée sur la production
de l’art, la technologie et les médias numériques, développés entre
2007 et 2010. Par conséquent, l’accent dans cet article ne sont pas
les résultats de recherche, mais la façon dont il a éte développé, ce
qui a permis un rapprochement de la production en arts contemporains numériques.
Mots-clés
art numérique; Art Contemporain; image
194
X X X Colóquio CBHA 2010
Constantemente temos nos questionado sobre como pensar a história da arte
em um contexto contemporâneo abrangendo a tecnologia e as mídias digitais,
principalmente quanto ao modo de investigar a arte digital1, enquanto imagem
virtual e simulada. Acreditando que a História da Arte pode ser interdisciplinar,
a ampliação de seus limites teóricos em intersecções com outras áreas do conhecimento, como a comunicação, a informática e a ciência, por exemplo, podem
contribuir para pensarmos outros parâmetros metodológicos e teorias de investigação da imagem na arte digital.
Nesse sentido, considerando o cenário da produção artística brasileira
no sul do país, iniciamos em 2007 uma pesquisa para reconhecer a produção em
arte, tecnologia e mídias digitais no estado do Rio Grande do Sul, através das
exposições, artistas e obras, que vem contribuindo para a discussão da arte digital. Baseamo-nos na experiência adquirida nesta pesquisa, para apresentar uma
abordagem metodológica que possibilita uma aproximação da produção em arte
digital na contemporaneidade. Em um primeiro momento, a base da pesquisa
sobre a produção artística no estado; em segundo, a abordagem das obras a partir
dos cinco momentos e, por último, análise a partir dos conceitos emergentes das
obras.
A pesquisa História da Arte Contemporânea no Rio Grande do Sul:
uma abordagem a partir da produção em arte, tecnologia e mídias digitais, desenvolvida no LABART2, teve como objetivo primeiro reconhecer a produção
no estado, através de artistas e obras, e analisá-la considerando as interrelações
com o meio digital e questões emergentes a partir das três regiões em que o
estado foi dividido. Esta pesquisa desenvolveu-se de 2007 a 2010, sob a minha
coordenação, e contou com a participação de oito bolsistas do Bacharelado em
Artes Visuais da UFSM^F. Os relatórios3 de cada grupo de bolsistas, um relatório
correspondente para cada região, trazem dados referentes às regiões, às instituições de ensino e de cultura, às exposições, aos artistas e obras, e apresentam
análises de pelo menos uma obra de cada artista a partir de cinco momentos:
criação, produção, visualização, disponibilização e manutenção. Consideramos
fundamental evidenciar um conceito que se mostrou pertinente na abordagem de
todas as obras, o de hibridação, e outro que se mostrou parcialmente presente, o
de interatividade, no contexto da arte e da tecnologia digital.
Para uma organização mais eficiente da pesquisa, estabelecemos como
referência temporal, a produção a partir dos anos de 1990, considerando que
a produção em arte vinculada à tecnologia computacional teve início no final
da década de 1960 no Brasil e que a popularização dos computadores pessoais
deu-se a partir dos anos de 1980, mas efetivamente se democratizou o acesso a
1
Arte digital é o termo assumido pelo Ministério da Cultura em 2009, a partir do GT-Arte Digital, para
uma nova área de apoio e fomento.- culturadigital.br/arteemidiasdigitais/. Neste artigo, entendemos a
arte digital como toda a produção que em algum momento passa pelo computador.
2
O LABART (Laboratório de Pesquisa em Arte Contemporânea, Tecnologia e Mídias Digitais), conta
com 10 alunos de graduação e pós-graduação/mestrado, além de participantes externos, desenvolvendo
pesquisa junto ao Grupo Arte e Tecnologia/CNPq. UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), CAL
(Centro de Artes e Letras), Prédio 40, Sala 1228, 55-3220-9496, labart@mail.ufsm.br.
3
Os relatórios com resultados parciais desta pesquisa foram apresentados conjuntamente orientador/
orientandos na SBPC, na ANPAP, na ANPUH e eventos de iniciação científica entre 2007 e 2010.
195
X X X Colóquio CBHA 2010
partir de 1990. Como referência espacial, dividimos o estado em três regiões,
para facilitar o acesso aos dados e otimizar o trabalho in-loco: 1. Metropolitana,
2. Centro-Sul e 3. Norte, Serra e Vale.
Considerando que historicamente a produção em arte, tecnologia e mídias digitais deu-se junto aos centros de ensino e laboratórios de pesquisa, em
função da necessidade de equipamento, infraestrutura e apoio econômico, para o
início do trabalho foi considerada a produção vinculada às instituições de ensino
superior do estado, que oferecem cursos de Artes Visuais. Na sequência também
os espaços culturais em que os eventos significativos na área, locais, nacionais
e internacionais, vêm ocorrendo para, a partir desses, chegarmos aos artistas e
obras. Convém destacar que foram considerados todos os eventos significativos
para o estudo e parcialmente a Bienal do Mercosul^F.
Dos artistas que integram a pesquisa a partir das exposições selecionadas, há aqueles nascidos no estado, residentes e não mais residentes, e artistas
nacionais e internacionais que expuseram no estado. A classificação deu-se deste
modo para verificar se a formação no RS contribuiu em parte para a produção
ou não, em arte digital. Os locais onde a formação efetivamente contribui são
fundamentalmente a UFRGS e a UCS, e demais IEFs do estado, UFSM, UFPEL
e FURG. A articulação entre a produção local e a produção nacional e internacional mostrou-se fundamental para o crescimento dos projetos de arte e tecnologia
digital no estado, sobretudo daqueles artistas mais envolvidos prioritariamente
com a pesquisa em poéticas digitais. Diante deste mapeamento observou-se que
o estado tem uma produção emergente nas duas últimas décadas, com artistas
que tem um percurso e produção em arte digital, como Diana Domingues, Ronaldo Kiehl, mais recentemente Andrei Thomaz, e artistas bem jovens como
Cláudia Loch, por exemplo. Outros cuja produção tem interlocução com a arte
digital, como a pesquisa com a linguagem digital na fotografia de Sandra Rey,
no vídeo de Marcelo Gobatto, na performance de Cláudia Schulz, por exemplo.
Por outro lado percebeu-se uma variada e multifacetada produção que vai desde
a manipulação simples de imagens no computador até o desenvolvimento de
programas específicos para arte digital.
Esta produção está alicerçada pela atuação de artistas precursores que,
embora não tenham trabalhado ou trabalharam parcialmente com a arte e tecnologia digital, contribuíram para abrir espaço às pesquisas com outras linguagens,
sobretudo fotografia e vídeo, como Regina Silveira, Mário Ramiro e Vera Chaves
Barcellos, entre outros.
O desenvolvimento e uso da ciência e da tecnologia por artistas sempre foi e sempre será parte
integrante do processo de fazer arte. Não obstante isso, o cânone da história da arte ocidental
não enfatizou suficientemente a centralidade da ciência e da tecnologia como co-inspiradoras,
fontes de idéias e/ou mídia artística. Para aumentar o problema, temos o fato de que não existe
um método claramente definido para analisar o papel da ciência e da tecnologia na história da
arte. Na ausência de uma metodologia estabelecida (ou de uma constelação de métodos) e de
uma história abrangente que ajudasse a esclarecer a interrelação entre ACT e a comandar uma
revisão, sua exclusão e marginalidade deverá persistir. (Shanken in: Domingues, 2009: 140-141).
196
X X X Colóquio CBHA 2010
Dinâmica/Cinco Momentos
Pensando em uma abordagem metodológica na análise das obras selecionadas,
para nos aproximarmos da produção em arte, tecnologia e mídias digitais, que
pudesse colaborar para problematizar esta produção, nos detivemos inicialmente, entre outras questões, na dinâmica dos cinco momentos, criação, produção,
visualização, disponibilização e manutenção (Santos, 2004). Convém destacar
que este cinco itens são um desdobramento atualizado e mais coerente com a
produção contemporânea em arte digital, daqueles defendidos por Couchot
(1998): produção, visualização e distribuição. Ao pensarmos na produção em
arte e tecnologia digital, não podemos entendê-la dentro dos processos tradicionais de produção de uma obra de arte, mas sim de uma obra/projeto, ou seja, obra
enquanto projeto, em processo. Para analisarmos as obras, partimos de cinco momentos que nos permitem uma aproximação desse processo: a criação consiste na
idéia inicial que dá origem à obra, onde o artista, ou a equipe, começa a elaborar
as questões em torno da obra, propor sua concepção e tratar do planejamento
para a realização do trabalho; a produção consiste em colocar em prática o que
foi planejado na fase da criação, trata da construção da obra, do modo como é
executado o trabalho e quais os materiais, técnicas e tecnologias utilizadas para a
realização da obra; a visualização é o terceiro momento e corresponde ao modo
pelo qual o projeto é dado a ver, seja impresso, seja projeção virtual, no espaço
expositivo, onde a obra é apresentada. Tal espaço pode ser tanto uma galeria,
museu ou um site da internet; a disponibilização geralmente acontece na internet
ou através de CD-ROM, para quem não teve a oportunidade de estar presente
durante a exposição. Quando a obra não é possível de ser acessada fora do local
onde foi exposta, sua disponibilização passa a ser no mesmo local de sua visualização; e, a manutenção que abrange as condições necessárias para que o trabalho
permaneça “funcionando”, seja hardware, software, configuração e sustentação
de web site, assim como as condições do próprio espaço expositivo. Um exemplo
é a revisão constante que ocorre nos programas que proporcionam interatividade
entre o sistema computacional e o usuário, além da conservação do espaço físico
e dos objetos que integram uma instalação.
Conceitos Emergentes/Hibridação E Interatividade
Ainda visando a problematização, buscamos os conceitos ou concepções emergentes das obras, entendidas como projetos em processo, imagens em fluxo, a
partir das proposições que cada uma delas poderia colaborar para a problematização da arte digital e contribuir com um estudo crítico na arte contemporânea.
Na exploração das mídias digitais e na formação de uma obra, o artista se aproxima de modo diferenciado do público e propõe novas situações em torno do
conceito de hibridação, norteador da produção contemporânea. Esta abordagem
consistiu em analisar de que modo a hibridação ocorre nas produções artísticas
e compreender como essa questão é redimensionada a cada novo projeto de arte
digital. Para a abordagem em torno das obras a hibridação surge como conceito.
Couchot (1998) defende que a arte numérica [digital] é antes de tudo uma arte
de Hibridação, entre as próprias formas constituintes da imagem sempre em processo, entre dois estados possíveis, e hibridação entre todas as imagens: ópticas e
197
X X X Colóquio CBHA 2010
numéricas [digitais]. Fica claro que, diante do advento da tecnologia informática
alguns artistas se encontram em um processo de experimentação, de uma nova
linguagem, a digital. Neste sentido, consideramos relevante o reconhecimento de
situações distintas que ocorrem na produção artística: a hibridação entre tecnologia analógica e tecnologia digital, a hibridação tecnológica da própria informática
e a hibridação entre campos distintos do conhecimento. A maioria dos artistas
que vem trabalhando com a tecnologia digital utiliza o mesmo referencial analógico, mas sobre um suporte diferente, o computador.
Todo processo digital, sobre o qual o criador/interator tem a chance de
intervir, é, por definição, interativo. Convém destacar que o conceito de interatividade é recente e surge no campo da informática e da comunicação, enquanto a
concepção de interação, mais antiga e mais ampla, diz respeito às relações mútuas entre dois ou mais seres, fatores, e surge no campo da física. A interatividade
vem sendo estudada na arte contemporânea por vários autores. Um deles é Edmond Couchot (1998), que defende a existência de dois tipos de interatividade,
os quais ele relaciona com a primeira e a segunda lei da Cibernética: a exógena,
onde o autor aponta a existência de um diálogo homem/máquina, defendendo
que ocorre uma troca de informações entre ambos e, a interatividade endógena,
na qual os paradigmas computacionais interagem entre si. No processo criativo
em arte e tecnologia a interatividade impõe outra dimensão vinculada à virtualidade. Uma obra interativa deve ser explorada e manipulada pelo interator integrado à proposta artística, cuja interatividade é fundamental para a existência
virtual da obra, no processo emergente do seu acontecimento. Convém destacar
que a realidade virtual, a vida artificial e a inteligência artificial como sistemas
incorporados à arte estabelecem novas experiências participativas interativas, que
permitem integrar o espectador [interator] no contexto da obra (GIANNETTI,
2002:14). Esta realidade, compreendida aqui como a realidade simulada, pode
ser acessada através de vários dispositivos de entrada, que não somente o mouse,
o teclado, a tela, mas também máscaras e luvas, objetos e ambientes sensibilizados. A interatividade só se torna possível através de um programa com rapidez
suficiente para permitir a troca de informação entre o homem e a máquina, em
tempo (quase) real. Surge, então, uma concepção de tempo e de espaço diferente,
porque se permite, em um mesmo instante, a troca imediata, entre perceber e ser
percebido, subordinando a contemplação à interação.
Imagens em Fluxo: Instalações Interativas
Neste artigo apresentamos inicialmente uma visão geral sobre a pesquisa, para
depois nos determos em uma abordagem metodológica de duas obras, das artistas
gaúchas Sandra Rey e Diana Domingues, como possibilidade de aproximação da
arte, tecnologia e mídias digitais. Fixamo-nos nas duas artistas que compreendem o computador como um sistema de exploração do imaginário permitindo,
pelos seus dispositivos híbridos, experiências multissensoriais, não apenas híbridas, mas interativas. Sandra com experiência maior no campo da hibridação, na
manipulação e digitalização das imagens, a partir da fotografia, nem por isso
menos interessante, e Diana com maior experiência no campo da interatividade,
com pesquisa mais sustentável em arte, tecnologia e mídias digitais.
198
X X X Colóquio CBHA 2010
Realizada pelos participantes do projeto de pesquisa “Interfaces Digitais
na Arte Contemporânea”, Interfaces Digitais_POA_VAL propunha uma instalação interativa de maneira a conectar pontos de vista entre diferentes cenário
urbanos. Exposta na Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS, em 2007, a
proposta de criação da obra foi coletiva e procurava relacionar alguns cenários
das duas cidades sedes do projeto - Porto Alegre, Brasil e Valência, Espanha – a
fim de trazer os aspectos do cotidiano e do urbano em torno dos quais se organizam as coletividades. A obra foi produzida a partir de tomadas fotográficas, de
vídeo, edição e animação de imagens digitais. Oito panoramas interativos foram
construídos, propondo aos espectadores algumas descobertas sobre relações sociais, arquitetônicas e políticas que permeiam as duas cidades. As imagens foram
manipuladas digitalmente de modo a fundir as paisagens das duas cidades. A
visualização da obra ocorreu somente no espaço expositivo onde foi apresentada
e dividia-se em dois espaços. O primeiro apresentava fotografias impressas de
locais das cidades de Porto Alegre e Valência. As fotografias foram expostas em
toda a extensão da parede, parecendo formar uma paisagem contínua. No segundo espaço encontrava-se uma instalação interativa onde era possível visualizar
oito panoramas das cidades de Porto Alegre e Valência, projetados em duas paredes. Alguns desses panoramas mostravam paisagens e cenas do cotidiano dessas
cidades. Utilizando a interface do mouse para interagir com a obra, era possível
percorrer todo o panorama que estava projetado, fazer a imagem acelerar, retroceder e parar. Havia pontos escondidos em cada um dos cenários que ao serem
acessados pelo mouse, levariam o interator a outro panorama, mas esses pontos
deveriam ser descobertos pelo usuário durante a interação. Nem todos os pontos
escondidos levavam a um panorama distinto, simplesmente criavam pequenas
animações. A disponibilização da obra ocorreu somente no espaço expositivo
onde foi apresentada. A manutenção da obra ocorreu somente no espaço expositivo onde foi apresentada. A proposta desta instalação traz a hibridação com
diferentes linguagens como a fotografia, o vídeo, e a arte digital, propondo uma
ação interativa. A pretensão da interatividade concentra-se em alguns pontos da
tela que precisam ser buscados, e que clicados encaminham para outra imagem
e assim sucessivamente.
A obra foi baseada em três estágios de um transe xamânico. Em cada
estágio, estados alternados de consciência conseguem se comunicar e intervir no
mundo real. A ideia inicial para a criação do projeto partiu da convivência da
artista com índios Kuiukurus, no Xingu, interior do Mato Grosso. Diana teve
acesso aos rituais de xamanismo, através de um contato direto com os indígenas
e a proposta da obra era levar o participante a experienciar um transe eletrônico. A produção da obra é híbrida, pois se deu tanto em meio digital, quanto
analógico. Foram produzidas e captadas imagens, para posterior projeção, além
do desenvolvimento de programas computacionais específicos para captação de
movimentos. A visualização se deu no espaço expositivo onde foi apresentada,
através de uma instalação interativa, onde o espectador devia inserir-se. Em uma
sala escura, com duas grandes telas - uma a própria parede e outra transparente
- eram projetadas imagens exibindo metamorfoses em inscrições rupestres da
Pedra do Ingá do Norte do Brasil, de acordo com os três estágios de transe xa-
199
X X X Colóquio CBHA 2010
mânico. O movimento dos interatores na instalação era captado por sensores no
piso que alternavam as imagens, e o som insistente de um tambor se misturava
aos batimentos cardíacos alterados. A disponibilização da obra se deu apenas no
espaço expositivo, através de sua montagem como instalação interativa. A manutenção ocorreu no espaço expositivo e consistiu na sustentação técnica referente
aos dispositivos eletrônicos e digitais presentes na obra.
Para finalizar, considerando a experiência de pesquisa a partir da produção em arte e tecnologia no Rio Grande do Sul, para uma abordagem metodológica, percebeu-se inicialmente no contexto do estado que os artistas em sua
maioria, trabalham inicialmente com linguagens tradicionais para mais tarde
passar a utilizar as mídias digitais em suas pesquisas. Por exemplo, a produção
em fotografia é a mais difundida, tendo sido amplamente explorada digitalmente
como imagem híbrida. As instalações de vídeo interativas estão em crescente
processo de sedimentação e ainda são poucos os artistas que realizam obras interativas. Tal fato ocorre devido ao alto valor dos equipamentos e programas que
elas demandam para sua execução, o que inviabiliza o trabalho dos artistas fora
do espaço das instituições de apoio, pois uma produção arte e tecnologia digital
requer considerável investimento financeiro, geralmente obtido por parte de órgãos de fomento e das universidades. Este também é o caso das artistas Sandra
Rey e Diana Domingues, de cujas obras/projetos em processo, híbridas e interativas, foi possível nos aproximarmos considerando os cinco momentos abordados e
os conceitos destacados. Acreditamos que este artigo sobre uma investigação que
abrange o entrecruzamento da arte, tecnologia e mídias digitais, apresenta alguns
parâmetros metodológicos distintos para abordar a imagem na arte, que podem
contribuir para melhor entendimento da produção em arte digital, na área da
História da Arte Contemporânea.
Referências Bibliográficas:
COUCHOT, Edmond. La Tecnologie Dans L’ Art. Paris: Chambon, 1998.
GIANNETTI, Cláudia. Estética digital. Barcelona: L’Angelot, 2002.
SHANKEN, Edward. Historicizar Arte e Tecnologia: fabricar um método e estabelecer um cânone. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, Ciência e Tecnologia – passado, presente e desafios.
SANTOS, Nara Cristina. Arte (e) Tecnologia em sensível emergência com o
entorno digital. Tese de Doutorado UFRGS, 2004.
WITT, Anelise; TELLES NETO, Henrique; DONADUZZI, Carlos. Relatório
PIBIC/CNPq – História da Arte Contemporânea no Rio Grande do Sul: uma
abordagem a partir da produção em arte, tecnologia e mídias digitais. LABART/
UFSM, 2008, 2009, 2010.
200
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Exposição Interfaces Digitais_POA_VAL (2007)
Sandra Rey e Grupo
Instalação Interativa
201
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TRANS-E: meu corpo, meu sangue
Diana Domingues
II Bienal do Mercosul, em Porto Alegre (1999).
202
X X X Colóquio CBHA 2010
Conjunções de sintaxes:
o fotográfico e o pictórico
na obra de Marco Giannotti
Niura Legramante Ribeiro
Doutoranda/UFRGS
Universidade Feevale
Resumo
Este artigo analisa as conjunções de sintaxes entre as linguagens do
fotográfico e do pictórico em determinadas obras do artista Marco
Giannotti. É justamente por trabalhar com os dois campos que
se pretende verificar como a linguagem plástica de um meio pode
se reverberar em outro. A abordagem a partir da fotografia se estrutura em dois eixos: como subsídio visual e, por vezes, material
para suas composições pictóricas e como obra de arte que reverbera
problemáticas de sua pintura.
Palavras chave
fotografia, pintura, sintaxes
Abstract
This paper analyzes syntax conjunctions between the photographic and pictorial languages in certain works by Marco Giannotti.
As the artist works in both fields, this paper aims at verifying how
the plastic language of one means may reflect the other. The approach stemming from photography has been structured in two
axes: as a visual, sometimes material aid to pictorial compositions
and as a work of art that reflects problematic issues of his painting.
Keywords
photography, painting, syntaxes
203
X X X Colóquio CBHA 2010
Um olhar mais atento percebe que a abordagem da História da Arte tem sido realizada por linguagens autônomas, o que parece paradoxal quando se constata que
a história da fotografia e da pintura foi marcada por tangências de procedimentos
plásticos e aportes conceituais, constituindo-se numa via de mão dupla, como
demonstram as pesquisas de Aaron Scharf e Van Deren Coke. Se a fotografia,
ao subsidiar a pintura com fontes visuais, contribui para colocar determinadas
questões à pintura, da mesma forma o pictórico empresta seus paradigmas à iconografia fotográfica.
Sendo a mestiçagem, segundo Icleia Cattani, da ordem do heterogêneo^F,
o histórico cliché-verre já conjugava a sintaxe de desenho, de pintura e de impressão fotográfica ao realizar um desenho sobre uma camada de tinta opaca aplicada
sobre uma placa de vidro, cuja imagem era impressa por contato. O resultado era
mais gráfico ou mais pictórico, dependendo de como era trabalhado.
Outros indícios de conjunções de sintaxes foram as intervenções pictóricas em superfícies fotográficas, como o retoque de negativos e de cópias, a coloração de retratos e de cenas de paisagens: ferrótipos, papel albumina e impressões
em sépia foram coloridos para simular retratos pintados a mão, mudando, assim,
a aparência da fotografia para uma versão pictórica. A veracidade que a visualidade fotográfica impôs ao olhar afetou diretamente a mudança estilística das
pinturas de retratos em miniaturas realizadas diretamente sobre uma base fotográfica reforçando, desse modo, sua sintaxe de realismo. Os artistas modernos
e contemporâneos incorporaram elementos da visualidade fotográfica em suas
pinturas, como tonalidades visuais, assimetrias, deformações, cortes, enquadramentos inusitados, fotografias publicitárias, entre outros procedimentos.
Observando-se que os códigos fotográficos vêm afetando a natureza de
determinadas obras pictóricas e que procedimentos plásticos pictóricos reverberam no campo fotográfico, seria possível indagar: de que forma, na contemporaneidade, um artista como Marco Giannotti, que atua tanto no meio pictórico
quanto no fotográfico, lida com as possíveis conjunções de sintaxes entre os dois
meios? Como se processam as decisões plásticas do artista ao migrar de uma
linguagem a outra e quais problemáticas podem gerar?
A imersão de Giannotti na fotografia como obra de arte somou-se à sua
trajetória de pintor a partir das exposições Quadrante, em 2009, no Centro Cultural Maria Antônia, e da exposição no Mosteiro São Bento, em 2010, ambas em
São Paulo. Porém, a visualidade fotográfica sempre esteve presente nos bastidores
de suas pinturas. Assim, a fotografia comparece em seu trabalho em dois eixos:
como subsídio visual e, por vezes, material para suas composições pictóricas e
como obra de arte que reverbera as problemáticas de sua pintura.
O acesso ao pensamento teórico-plástico de Giannotti se faz pela sua
citação da frase de Picasso Je suis les cahiers^F. Os cadernos do artista revelam os
percursos de seus processos de criação e permitem identificar as conjunções entre
os seus estudos fotográficos e suas pinturas. Ao fotografar, o artista já busca o
assunto e a tipologia formal, conforme o seu interesse pictórico. São enquadramentos de tomadas muito aproximadas de estruturas de janelas envidraçadas e
fechadas, por vezes, com grades e cortinas. O seu olhar esbarra nos planos, não
atravessa a vidraça, não busca o infinito, não retém interesse pelo assunto que
204
X X X Colóquio CBHA 2010
está para além das molduras, postura esta justificada pelo artista como originária
do seu contexto de vivência na cidade de São Paulo, onde o olhar parece estar
desprovido de linha de horizonte. Assim, o seu repertório de pintura já incide nos
estudos fotográficos.
Essa percepção planar dos motivos da realidade é reforçada ao pintar
sobre esses apontamentos fotográficos em pxb, largas pinceladas em diferentes
cores que anulam as aparências de volumetrias tão caras aos atributos de cientificidade designados à fotografia na sua origem. A cor, na convicção do artista, “visa
um pouco a desestruturar a fotografia, criar outra temporalidade”^F. Se a coloração, na história da fotografia, tinha por função tornar a imagem mais realista, a
cor, nos apontamentos fotográficos de Giannotti, ao contrário, visa a amenizar
o caráter de realidade. Esse gesto que encobre a objetividade da imagem técnica
faz lembrar a sua condição de pintor, assim como Rauschenberg não esconde sua
origem pictórica ao pincelar diferentes cores sobre os seus transfers fotográficos.
Porém, à diferença do pintor americano, a cor em Giannotti não tem a função
de unir blocos de imagens, mas de desobjetivar detalhes que não lhe interessam.
Ao pintar sobre os estudos fotográficos, ressalta o eixo de sua poética pictórica:
cor e estrutura.
As Referências fotográficas migram dos cadernos para suas telas nos trabalhos realizados a partir de 1991, como na série Janelas, seja como elemento material ou como visualidade para processos pictóricos, mas sem qualquer resquício
de mimetismo, como ele afirma: “a relação que eu sempre tive com a fotografia
não foi de mimetismo (...). Na verdade, eu sempre pensei como dois meios de
linguagem que têm as suas particularidades”^F.
A obra Terraço Italia, de 1992, foi originada de fotografias que o artista
fez de uma janela do edifício paulistano. Através da técnica do fotolito, imprimiu
essas imagens em entretela e agregou outros materiais, como cera, parafina, papéis e muitas camadas de pintura, de modo a retirar ao máximo a literalidade da
imagem fotográfica, excluindo, portanto, sua dimensão narrativa original. Para
Nelson Brissac Peixoto, persistem, apenas nos interstícios da superfície, restos de
imagens fotográficas, indícios de paisagens, fragmentos de molduras que fazem
os procedimentos pictóricos se sobreporem aos da imagem técnica1 – no dizer do
artista, “era uma forma de pensar a pintura quase como um palimpsesto”^F.
Na série Fachadas, 1993, que demonstra uma afeição pela obra de Volpi, já se constata o interesse plástico que reaparece em vários trabalhos de sua
trajetória: a percepção de estruturas planares do espaço. A fotografia que realizou de uma parede do MuBE, 2002, com forte acento de planos, reverbera,
por exemplo, em suas pinturas Passagens I, de 2003, e em Passagem em Azul e
Marrom e Passagem em Magenta, ambas de 2007. Nestes trabalhos, o modo como
potencializa os planos e as estruturas pode evocar sua longa experiência com a
visualidade fotográfica 2, onde o visor da câmera como uma janela, possivelmente,
habilitou o seu olhar a uma disciplina seletiva de enquadramentos e aproximações de assuntos, visíveis, sobretudo, quando resgata da fotografia a capacidade
1
PEIXOTO, Nelson B. Marco Giannotti. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.13.
2
Idem. O artista lembra que fotografava, como diletante, desde a sua adolescência, quando ganhou uma
câmera fotográfica, cujas imagens passaram a mediar sua relação com o real.
205
X X X Colóquio CBHA 2010
de ampliar fragmentos em all-over. “A operação de enquadramento, qualquer que
seja o momento em que ocorra (na tomada de vista ou, mais tarde, na impressão),
introduz uma ruptura nos hábitos perceptivos..”.^F, conforme lembra Régis Durand. Os planos de determinadas obras da série Estruturas Espaciais I, 1999, se
comparados aos estudos fotográficos dos cadernos, assemelham-se às divisórias
verticais internas das janelas como um olhar em zoom. Portanto, os elementos
estruturantes que seccionam as superfícies de cores em seus quadros provêm da
visualidade fotográfica das janelas.
Ao realizar Fachadas, conforme informou o artista, estava impactado
pelas estruturas de planos e cores das fotografias de Anna Mariani, como se
pode constatar, aproximando a sua pintura Sem título, 1999, da Série Estruturas
Espaciais I, com Caratacá, 1986, de Mariani. Esta série, assim como nos demais
trabalhos do artista, confirma a sua intenção de não incorrer em mimetismo
fotográfico, pois entende que a fotografia fortalece o seu universo visual. O dispositivo da fotografia atua, em suas pinturas, como referencial de registro e de
seleção dos enquadramentos de estruturas espaciais, porém sem recorrer à função
descritiva da imagem técnica. Os estudos fotográficos para as pinturas têm semelhante economia de planos que se observa em suas pinturas.
O assunto da grade presente na exposição de pinturas Contraluz, 2009,
assim como pode ser decorrente dos elementos estruturantes das janelas com
grades, também surgiu depois que fotografou esse elemento num ferro velho. A
estratégia de enquadrar o motivo em all-over nessas fotografias também é reverberada nas pinturas com esse tema. É significativo que o nome da exposição de
pinturas seja Contraluz se for observado que o ângulo escolhido para determinadas fotografias dessas grades foi tomado em contraluz de forma a criar silhuetas
que aplainam os volumes e enfatizam as linhas estruturais do assunto, o que, em
certa medida, faz lembrar as pesquisas com grades e sombras de alguns trabalhos
de Geraldo de Barros.
Quando o artista passa a utilizar a própria grade ao modo de uma
máscara, não é mais a imagem que se interpõe entre o seu olhar e o mundo
real. No entanto, ainda guarda uma relação com o processo fotográfico, como
bem detectou Ronaldo Brito ao dizer que esses trabalhos parecem um “negativo
fotográfico”^F, um processo de matriz e reprodução. Pode-se acrescentar a esta observação que o procedimento de execução dessas obras remete à similaridade com
a técnica do fotograma: ao colocar a grade sobre a tela, registra o vestígio destas
com spray. A marca do contorno da grade na superfície pictórica é a presença da
luz; nos espaços entre as linhas da grade, fica mais escuro, como se a superfície
tivesse sido queimada pela cor. Quando a grade deixa seu vestígio sobre a tela,
implícita está, portanto, a idéia de matriz e reprodução, como no fotograma, em
que os objetos matrizes são colocados sobre o papel fotográfico e também deixam
suas marcas de luzes. Além dessa relação, é preciso considerar que a idéia de matriz e reprodução pode também ser originária dos seis anos de experiência com
gravura no ateliê do artista Sergio Fingermann.
O encantamento que o artista diz ter com a imagem que vai se revelando na fotografia de base química, que vai aparecendo como numa cena do filme
Blow-up, algo que se perdeu com o mundo digital, como ele lembra, tem uma
206
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conexão direta com outro procedimento de sua pintura das grades, quando, ao
procurar pelo tom desejado, ele passa uma esponja umedecida com água sobre
superfície pictórica de têmpera de um determinado quadro e, como numa revelação fotográfica, a imagem da grade vai aparecendo e tornando-se evidente: “o
que eu faço é muito da experiência da revelação, na minha intuição, eu acho que
preciso revelar um pouquinho mais da grade de baixo, então, retiro um pouco da
matéria”^F. Assim, as visualidades fotográficas permeiam seus processos pictóricos
como subsidiárias de uma disciplina do olhar para as platitudes e enquadramentos dos espaços de suas pinturas.
Assim como na pintura Giannotti trabalha com estruturas de espaços
planares, nas fotografias que realiza como obra, também seu olhar em platitude incide nesse sentido. Nas suas séries fotográficas, seja pelos cortes, seja pelos
enquadramentos aproximados e em contraluz, procura amenizar a aparência de
volumetria das formas e, assim, distancia-se do caráter narrativo da imagem,
conforme esclarece: “eu gosto literalmente da imagem plana e da ambiguidade;
a profundidade imaginada é muito mais interessante do que ela pronta”^F. Se, em
estudos de fotografias para pinturas, as imagens apresentam anteparos visuais,
também nas séries fotográficas o artista busca filtrar o que está além da moldura:
em uma de suas obras da série Quadrante, 2009, as cortinas das janelas apenas
insinuam planos de luzes; em obras de Outside Chelsea, 2007, a retícula no vidro
transforma a vista exterior em silhuetas que retiram o caráter de volumetria do
assunto.
Pode-se dizer que o artista não busca o que se chama, em fotografia, de
profundidade de campo de uma imagem – seu olhar esbarra na proximidade do
assunto. Na série Outside Chelsea, o enquadramento e o corte de letras adesivadas sobre um vidro é tão aproximado que estas viram estruturas planificadas,
perdendo o seu referencial semântico, e o fundo, entrevisto por entre os planos
de letras, torna-se desfocado; por vezes, mesmo que a geometria de um prédio
ainda seja visível, o olho que enquadra o motivo parece encostar-se ao vidro para
potencializar uma letra em vermelho que se impõe a toda a composição, onde
a cor reaviva a trajetória do artista como pintor. O ângulo aproximado do enquadramento e a luz negam a aparência de volumetria das colunas, em Bernini,
2009, e as listras da fachada do edifício, em Orvieto, 2009, reforçam a idéia de
planaridade.
Além desse enquadramento aproximado, outras estratégias também desfazem o aspecto de tridimensionalidade do motivo: o enquadramento em contraluz aplaina a representação das grades em obra de Quadrante; a névoa presente
em Luz+Luz, 2009, retira as informações de detalhes e da profundidade da paisagem, unificando a composição do primeiro ao último plano.
Em algumas das quatro partes das séries Quadrante e nas imagens de
Orvieto, embora a iconografia da imagem evoque uma possível montagem de planos, isso não acontece. Segundo o artista, tudo já é decidido no ato fotográfico,
no instante em que seu olho encontra o assunto: “quando tem que mexer muito,
é porque a foto está ruim, o enquadramento tem que estar no olho (...), por isso
que eu gosto de uma máquina ágil, porque tem quase a mesma velocidade do
meu olhar”^F. Cada um dos trabalhos de Quadrante foi organizado por aproxima-
207
X X X Colóquio CBHA 2010
ção de quatro imagens, separadas por um espaço branco em cruz que lembra as
estruturas das janelas dos estudos fotográficos, o que é corroborado pelo artista,
que declara ter pensado em trazer o universo do caderno para tal montagem.
O procedimento de dividir a imagem em quatro partes e o intenso cromatismo
encontram ressonância em sua pintura Quatro Fachadas, 1993.
Mesmo que a pintura esteja materialmente ausente nessas séries fotográficas, seu olhar dialoga, num certo sentido, com a pintura modernista, por seu
caráter planar, pela exacerbação de superfície e por certa autonomia do caráter
de realidade das imagens. Além disso, há uma sensibilidade pictural nos motivos
escolhidos para as composições fotográficas.
A cor tem um papel muito significativo em sua trajetória, a começar pela
sua atuação como pintor: “começo um quadro pela cor, nunca pelo desenho”, e
“um quadro está bom quando a cor vence a estrutura”^F. Em muitas séries pictóricas, adiciona nomes de cores aos títulos dos trabalhos, dentre outros: Fachada
Amarela, 1993; Sala Vermelha, 1994; Cromo em Azul e Amarelo Canário, 1997;
Relevo em Amarelo Preto e Azul, 2000; Passagem em Verde e Azul da Prússia, 2007.
A formação acadêmica e a atuação profissional aprofundam seu conhecimento de cores, como revelam seu estudo sobre A Doutrina das Cores, de
Goethe^F, e o livro Reflexões sobre a Cor^F, que o artista organizou; já em outro
livro^F, um capítulo contempla a relação entre pintura e fotografia. É natural,
portanto, que a questão cromática tenha impregnado seu olhar fotográfico.
A fotografia interessa-lhe enquanto mais um suporte para a cor:
A mim, me interessa muito a questão da estampa, agora em jato de tinta, a impressão parece
mais estampa de pigmento jogado (...) me interessa a partir desse instante em que ela vira,
efetivamente, um suporte para a cor, um suporte para a pigmentação.3
Esta declaração do artista confirma o que muitas de suas fotografias
evidenciam: um caráter pictórico. Tais visualidades pictóricas, nas quais a “impressão parece mais estampa de pigmento”, resultam, portanto, em conjunções
de sintaxes entre seus dois campos de produção artística: a pintura e a fotografia.
Como lembra Laura Flores, William Crawford aplica o termo linguístico para
a fotografia e, nessa linguagem, “a ´sintaxe` é tecnologia”. Existem a sintaxe da
câmera (tudo que é relativo à estrutura da câmera) e a sintaxe da impressão da
imagem (tudo que é relativo à estrutura da cópia)^F. A preferência do artista pela
impressão em jato de tinta ocasiona uma visibilidade de superfície da imagem
que a conjuga a uma sintaxe pictórica.
Podem-se detectar conjunções de sintaxes entre suas fotografias e pinturas. As visibilidades de superfícies fotográficas das colunas de Bernini se assemelham ao tratamento de matéria da cor, em camadas de cinzas, brancos, ocres, e
de estruturas verticais a uma pintura da exposição Contraluz, 2009. Assim como
cobriu de cores seus estudos fotográficos, parece fazer o mesmo ao registrar as
paisagens de Luz+Luz, 2009, onde a névoa que se interpõe ao assunto espalha
uma tonalidade azulada, cuja cor e estrutura parecem reavivar suas pinturas Sem
3
GIANNOTTI, M. op.cit.
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Título, 1999, e Relevos em dois azuis, 2000. Em Travessia, as tonalidades ocres das
pedras e da areia, somadas à luz difusa, denunciam um caráter pictórico, além
da sombra de um corpo impressa sobre a paisagem que reafirma a condição de
imagem; um cromatismo de cores organiza os planos e estruturas espaciais de
uma obra de Quadrante. Portanto, as fotografias das séries Quadrante, Outside
Chelsea, Bernini, Orvieto, Travessia e Luz+Luz e alguns trabalhos de Quadrante,
além de planares, são pictóricos, e de imediato já se detecta um olhar de pintor,
pois, como o próprio artista observa, pensa a fotografia como pintura:
Eu penso a fotografia como pintura. A fotografia vem porque tem essa relação com a pintura.
Uma das coisas mais fascinantes da pintura é que ela ensina você a olhar, essa dimensão mais
tátil, mais aproximada. Essa questão tátil é uma experiência muito forte da pintura, você está
o tempo todo lidando com a cor, o pigmento, a matéria.4
Assim, tanto em suas fotografias quanto em suas pinturas, pode-se encontrar um olhar em platitudes de superfícies cromáticas e espaciais. Pode-se
dizer que as conjunções de sintaxes entre o fotográfico e o pictórico, na produção
de Giannotti, operam de modo transversal, pois migram o tempo todo de uma
linguagem a outra, numa relação dialética entre cor e estrutura planar que questiona o sistema de valores de uma visão perspectivista histórica da fotografia e
da pintura.
4
GIANNOTTI, M. op.cit.
209
X X X Colóquio CBHA 2010
A revista Madrugada (1926)
e a modernização da arte e da
visualidade sul-rio-grandense
Paula Ramos
UFRGS
Resumo
Circulando entre setembro e dezembro de 1926, com apenas cinco
edições e tendo à frente nomes como Theodemiro Tostes, Augusto
Meyer e Raul Bopp, a revista Madrugada propunha-se ser o veículo
da modernização da literatura e das artes visuais no Rio Grande do
Sul. Embora de vida curta, firmou-se como o mais arrojado magazine do período no Estado, estabelecendo padrões por reiterados
anos. O artigo discute sua importância no processo de modernização da arte e da visualidade sul-rio-grandense.
Palavras chave
revista Madrugada; revistas ilustradas; modernidade gráfica e visual
Abstract
Edited between September and December 1926 with only five
editions and having Theodemiro Tostes, Augusto Meyer and
Raul Boop ahead, the magazine Madrugada proposed to be the
media for the modernization of literature and the visual arts in
Rio Grande do Sul. Although short-lived, was established as the
boldest magazine of the period in the State, setting standards for
repeated years. This article discusses its relevance in the modernization process of art and visuality in Rio Grande do Sul.
Key-words
Madrugada magazine; illustrated magazines; visual and graphic
modernity.
210
X X X Colóquio CBHA 2010
É notório o quanto o gênero revista foi importante na modernização das práticas
culturais brasileiras, principalmente no início do século XX (BELLUZZO, 1992;
MARTINS, 2001; CARDOSO, 2005; RAMOS, 2002). Títulos como Fon-Fon!
(Rio de Janeiro, 1907-1958), Careta (Rio de Janeiro, 1908-1960), Paratodos (Rio
de Janeiro, 1918-1932), O Cruzeiro (Rio de Janeiro, 1928-1975) e a Revista do
Globo (Porto Alegre, 1929-1967) marcaram gerações e documentaram um país
que paulatinamente se transformava.
No seu formato de publicação condensada, ligeira e de fácil consumo, a
revista, notadamente a revista ilustrada, foi a grande responsável pela conquista
de um novo público leitor, o feminino, ao mesmo tempo em que abriu espaço
para a divulgação do trabalho de artistas plásticos e de escritores. Lima Barreto,
por exemplo, durante anos escreveu para a Fon-Fon, sendo pago por isso. Da
mesma forma Olavo Bilac, que publicou artigos em O Pirralho, ou Oswald de
Andrade, que o fez n´A Cigarra, e mesmo Di Cavalcanti, que imprimiu seu traço
em diversos magazines do início do século passado. Tal segmento editorial beneficiou-se, portanto, do incipiente campo artístico brasileiro, tendo intelectuais e
artistas dispostos a lhe fornecer material, quando esses não almejavam criar suas
próprias publicações, como aconteceu com os jovens gaúchos que, em meados da
década de 1920, lançaram em Porto Alegre a revista Madrugada.
O magazine teve somente cinco edições, circulando entre setembro e
dezembro de 1926 ^F. Referência obrigatória quando o assunto é modernidade no
Rio Grande do Sul, Madrugada construiu sua notoriedade, histórica e paradoxalmente, pela ausência, uma vez que até pouco tempo inexistiam exemplares
preservados, inclusive junto às mais importantes instituições museológicas do
Estado. Em 2006, 80 anos após seu surgimento, a revista retornou ao convívio de
pesquisadores e leitores, em edição fac-similar (RAMOS, 2006). Tal empreendimento tem permitido perceber, entre outros, a gênese de uma linguagem gráfica
que não somente oxigenou a visualidade sulina, como encontraria eco na produção de diversos artistas locais, em especial daqueles ligados à Seção de Desenho
da Livraria do Globo, que congregava nomes como João Fahrion (1898-1970),
Edgar Koetz (1914-1969) e Nelson Boeira Faedrich (1912-1994).
A revista “do grupo”
Moderna, elegantíssima, com um jeito de rapariga que nem está ligando a morte de Rudolph
Valentino, apareceu em Porto Alegre uma revista. Chama-se “Madrugada”. E vem lindamente acompanhada. Pertence à turma na qual sorriem, pensam, dizem e fazem coisas J. M.
de Azevedo Cavalcanti, Theodemiro Tostes, Augusto Meyer, João Sant’Anna, Dr. Miranda
Netto, Sotéro Cosme. “Madrugada” é tão bonita, tão inteligente, que excita o bairrismo dos
seus patrícios afastados das cismas do Guaíba e dos crepúsculos daquele céu sem fim. Vendo-a, mostrando-a aos outros, cada um diz, vaidoso: “É da minha terra... Ela nasceu lá onde
eu nasci..”..1
1
MADRUGADA. Porto Alegre, 4 dez. 1926. Ano 1, nº 5.
211
X X X Colóquio CBHA 2010
Publicada na edição nº 5, a declaração vinha com a assinatura do prestigiado magazine carioca Para Todos. De certa forma, a mensagem laudatória
serviu como terno epitáfio a uma revista que nascera, sim, com algumas pretensões. A presença eloqüente de anúncios publicitários nos dois primeiros números
e a efusiva programação de saraus e de encenações protagonizadas pelos próprios
dirigentes do magazine parecem atestar que Madrugada não se imaginava pequena. Ainda no volume nº 5, o depoimento acerca do sucesso do segundo sarau,
realizado em 6 de novembro no Theatro São Pedro e tendo como destaque a
apresentação, pela primeira vez, do poema lírico As Máscaras, de Menotti Del
Picchia, permite entrever alguns dos objetivos do “grupo”, bem como as “certezas” quanto ao futuro de Madrugada:
[...] Em Porto Alegre, todas as tentativas generosas que visem intercalar na cotidianidade
prosaica da vida uma expressão superior de arte e de beleza, costumam perecer de início,
estarrecidas, sobre a estepe gelada da indiferença geral. Os aplausos quentes que saudaram a
execução do programa da nossa festa autorizam-nos a esperar um destino melhor para a longa
série de tentativas audaciosas que premeditamos. Não contávamos com eles, e só podem ter o
efeito de firmar-nos em nosso propósito, como um incentivo exterior, valiosíssimo, à infinita
confiança que temos no êxito final da nossa aventura atrevida.2
Provavelmente de autoria de Augusto Meyer, o texto sugere uma vida
longa ao magazine, mas aquele seria seu último respiro. O precoce padecimento
não fugiu ao que parecia ser uma regra daqueles idos: a vida curta das publicações. Isso se dava ora devido ao reduzido público, ora à falta de anunciantes,
ora ao primitivo sistema de distribuição. No Rio Grande do Sul, em particular,
apesar de todas essas dificuldades, desde o século XIX havia um histórico de investidas no setor. Athos Damasceno Ferreira, em seu Imprensa Literária de Porto
Alegre no Século XIX, aponta que entre 1856 e 1899 circularam na capital gaúcha
90 títulos de jornais e revistas apenas de conteúdo literário (FERREIRA, 1975).
Quase todos estavam ligados a agremiações que faziam dos impressos um espaço
de afirmação coletiva, legitimidade social e construção de identidade. Não foi
diferente com Madrugada.
Seu nascimento conceitual foi na mesa cativa que um grupo de velhos
amigos e jovens literatos mantinha no Café Colombo. Atentos ao seu tempo e à
construção de uma relação particular com a cidade, eles pareciam interessados
em identificar-lhe os ritmos e mudanças. No exercício da flânerie, perambulavam
pela urbe que se modernizava, pelos cafés, cinemas, livrarias e, é claro, pelas
praças e ruas do centro, reestruturadas a partir das reformas empreendidas pelos
governos de Otávio Rocha e Alberto Bins (MONTEIRO, 2006, in RAMOS,
2006). Ao assumirem o papel de cronistas da nova paisagem local, acabaram
retratando a si mesmos como personagens privilegiados de uma cidade em mutação.
Faziam parte desse “grupo” os poetas Augusto Meyer e Theodemiro
Tostes, os jornalistas João Santana e J.M. de Azevedo Cavalcanti, além do músi2
Texto reproduzido sob o título Página de Arte. MADRUGADA. Porto Alegre, 4 dez. 1926. Ano 1, nº 5.
212
X X X Colóquio CBHA 2010
co e artista gráfico Sotéro Cosme, responsável pela edição de arte. Revezavam-se
no expediente Miranda Netto, Vargas Neto e João Fahrion. Um outro integrante
foi Paulo de Gouvêa, que publicou O Poema da Raça na edição nº 3. É ele quem
narra como Madrugada teria surgido:
[...] A idéia foi recebida com toda a reserva de que era capaz a natural propensão de fugir
a mais e maiores encargos intelectuais, pois que dos materiais J.M. se encarregaria. [...] Era
impressa nas oficinas da Escola de Engenharia. Um primor gráfico. [...] Seu pecado foi inserir
em seu conteúdo perfeito algumas crônicas sociais e tantas outras esportivas. Mas era uma
concessão obrigatória, o sine qua non dramático das suas possibilidades de sobrevivência: uma
publicação puramente literária não tinha chance. (GOUVÊA, 1976, p. 51)
Se o perfil editorial assumido, inclusive expresso no slogan Revista semanal de literatura, artes e mundanismo, reduziu o impacto literário de Madrugada,
a revista descortinou, por outro lado, novos interlocutores, bem como o imaginário de uma cidade que, mesmo de longe, ensaiava o ritmo das grandes capitais
da época e dos valores e desejos de uma burguesia em ascensão.
Entre a tradição e a vanguarda
Nos três primeiros números, Madrugada foi semanal; nos outros dois, quinzenal. Sua proposta editorial pouco destoava dos magazines ilustrados e de forte
apelo mundano que circulavam na cidade, como Mascara (1918-1928) e Kosmos
(1926-?). Folheando-a, o leitor encontraria desde poemas e crônicas, passando
por participações sociais, anúncios de chegada ou partida de pessoas chic para
o Rio de Janeiro, Europa ou até mesmo para Dom Pedrito, culminando com a
programação dos clubes. A revista também poderia priorizar, numa página, o
desenho requintado de Sotéro Cosme, como poderia, na seguinte, apresentar um
mosaico de fotografias das jovens moçoilas, as lindas criaturas, que certamente
eram motivo de alguma disputa entre os rapazes da redação. E o que dizer das
publicidades estampadas em Madrugada, um misto de reclames de profissionais
liberais e do comércio local, com propagandas de joalherias, automóveis e confeitarias, chegando até mesmo ao Centro dos Caçadores, a principal casa noturna
masculina da região?
A revista era, de fato, um produto híbrido e, ao que parece, seus diretores não alimentavam a menor inquietação quanto a isso. Pelo contrário. Tudo
leva a crer que eles percebiam no convívio franco e estreito entre a cultura erudita
e o mundanismo uma possibilidade de mudança de mentalidade. A irreverência
transparece já na primeira edição, com a nota explicativa quanto ao atraso do
lançamento:
[...] Pontualidade é defeito de burgueses. Marcar uma entrevista para as 8 e chegar às 8
é uma coisa absurda e condenável. Ninguém, absolutamente ninguém, que se preze de ter
bom-gosto, entrará antes das 11 num baile que principie às 9 horas. “Madrugada” é assim.
Perfeitamente civilizada e revista de linha, não quis sair no dia fixado. Fez-se mais desejada,
213
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mais preciosa... Sai hoje, catorze dias depois do que marcara.3
O tom debochado do texto se firmou como característica de Madrugada. Mas não era o único. Como aponta Cida Golin, ao longo de suas cinco
edições, é possível perceber, inclusive, as linhas mestras do modernismo literário
no Rio Grande do Sul: o interesse pelo regionalismo, a influência da escola simbolista, a divulgação dos novos autores e o intercâmbio com estados vizinhos,
sobretudo com os modernistas do centro do país. Augusto Meyer, por exemplo,
já em 1926 trocava correspondências com Mario de Andrade, Tristão de Athayde, Guilherme de Almeida e o santa-mariense Raul Bopp (GOLIN, 2006, in
RAMOS, 2006).
Um projeto gráfico inovador
Se a leitura se encontra num segundo momento de apreciação de qualquer impresso, sendo o tratamento visual o elemento de maior impacto, este foi bem
explorado por Sotéro Cosme (1901-1978), o diretor artístico. A inconfundível
linguagem visual do magazine foi tanto influenciada pelas publicações cariocas
em voga, como, sobretudo, pelos padrões de revistas estrangeiras a que Cosme
tinha acesso, como a francesa L’Illustration, na qual, inclusive, viria a publicar
mais tarde vários de seus desenhos.
Com capa colorida, impressa em papel couché e medindo 31 x 22,5
cm, Madrugada variava entre 28 e 36 páginas. A capa da primeira edição, de
Cosme, já mostrava uma audaciosa composição: centralizada, no espaço branco
da página, apenas a estilização geométrica e alongada de uma figura humana,
bem ao gosto art deco, em cores chapadas; no alto, o logotipo da revista que, em
sua essência, nunca mudou. Nos números seguintes, sempre o fundo alvo, com
uma imagem essencialmente gráfica – exceção para as capas desenhadas por João
Fahrion, de viés pictórico – e o anguloso logotipo.
Como aponta Norberto Bozzetti, na busca por um estilo particular, Sotéro Cosme apoiou seu projeto gráfico em quatro propostas bastante ousadas
para o período: (1) as capas seguiam uma estrutura pré-estabelecida de distribuição dos componentes visuais, sendo que as únicas palavras escritas eram o
nome da revista, o ano e o número da edição; com esse layout limpo e simétrico,
ela passava uma conotação de ordem e rigor, incomuns na quase totalidade das
capas de magazine da época; (2) o nome da revista era sempre grafado na parte
superior da capa, de forma marcante e padronizada; (3) o logotipo comparecia
também nas páginas do miolo, ao lado do número de página; (4) o mesmo estilo
de traçado do logotipo da revista se estenderia ao logotipo das principais seções
(BOZZETTI, 2006, in RAMOS, 2006). Ao criar essa identidade, Cosme assumiu, portanto, o precoce papel do designer gráfico, numa época antes do design,
para usar a expressão de Rafael Cardoso (CARDOSO, 2005).
Também a escolha das fontes tipográficas foi coerente, privilegiando
os tipos sem serifa. Mesmo assim, é de se deduzir que havia limitações técnicas,
uma vez que as fontes art deco estavam sendo recém criadas e produzidas. Para
3
MADRUGADA. Porto Alegre, 25 set. 1926. Ano 1, nº 1, p. 9.
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X X X Colóquio CBHA 2010
compensar tais limitações, Cosme desenhou muitos títulos à mão, enfatizando as
linhas retas e os ângulos agudos nas junções dos traços.
Além do projeto gráfico, Sotéro Cosme ficou particularmente conhecido por suas caricaturas de qualidade singular e que apareceram em todos os
números da revista. Não se trata, porém, de caricaturas que ridicularizam o retratado, mas que idealizam o modelo, com graça e um fino senso de humor.
Curiosamente, ele não indicava o nome das pessoas representadas, mas dava
pistas, nas legendas, acerca da identidade das mesmas, deixando para o leitor o
“desvendamento do enigma”.
Tanto as caricaturas, como as ilustrações de capa, eram feitas em nanquim e guache e, em muitas delas, encontramos o scratchboard. Hoje praticamente abandonada, esta técnica parte de um cartão gessado e coberto com nanquim que, tal como na xilogravura, é raspado em busca da imagem. Vale apontar
que as proximidades formais do scratchboard com a gravura e a sua ampla adoção
nos ambientes artístico e jornalístico sulinos ao longo das décadas de 1920 e 1930
podem colaborar nos estudos acerca do desenvolvimento da tradição da gravura
no Rio Grande do Sul (SCARINCI, 1982).
Nas duas últimas edições de Madrugada, Cosme dividiu o ofício com
outro jovem e talentoso artista, João Fahrion4, que havia retornado há poucos
anos da Alemanha, onde fizera formação complementar em litografia. Fahrion
era artista premiado no Salão Nacional de Belas Artes (Medalha de Prata, 1924)
e trazia como principal característica de sua poética uma fatura essencialmente pictórica. As duas capas que assinou, inclusive, rompem totalmente com o
grafismo de Cosme. São capas de um pintor que ilustrava. Como lembra Paulo
Gomes, ao publicá-las, o magazine guarda o mérito de ter projetado João Fahrion
(GOMES, 2006 in RAMOS, 2006), figura paradigmática das artes sul-rio-grandenses ao longo do século XX e que se notabilizou como o principal ilustrador da
antiga Livraria e Editora Globo, além de ter sido professor, durante décadas, do
IBA, o Instituto de Belas Artes, atual Instituto de Artes da UFRGS.
Madrugada: repercussões e permanência
Madrugada termina no mesmo ano em que nascera: 1926. Os motivos do fechamento nunca foram externados, mas imagina-se que passem pelas dificuldades
de comercialização, haja vista a diminuição gradativa dos anúncios ao longo das
três últimas edições. Com o encerramento das atividades, seus idealizadores encontraram um novo porto na Página Literária do jornal Diário de Notícias, publicada a partir de 1927 e que igualmente emanava um frescor art deco.
Ao mesmo tempo, eles passariam a publicar suas criações nos impressos da Livraria e Editora Globo. E se coube a Sotéro Cosme a primeira capa da
Revista do Globo (1929-1967), foi Fahrion5 quem ganhou notoriedade por meio
4
Fahrion aparece já na edição de nº 4 da revista, tendo produzido as capas para as edições nº 4 e nº 5.
Porém, seu nome somente é indicado como diretor de arte, dividindo essa função com Sotéro Cosme, na
edição nº 5.
5
Fahrion permanece na Globo, como funcionário, de 1925 até 1937. Neste ano, é contratado como professor de Desenho da Figura Humana junto ao Instituto Livre de Belas Artes (atual Instituto de Artes da
UFRGS), onde permanece até 1970, ano de seu falecimento. E embora tenha se desligado formalmente
da Globo, ele continuou produzindo uma série de trabalhos em regime free-lancer.
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da editora. Observando, em especial, as capas que produziu para o quinzenário,
notadamente em seus dez primeiros anos (1929-1939), é possível perceber o quão
distante elas estavam de suas pinturas do mesmo período. Talvez tal característica tenha se dado pela necessidade de diferenciar o “Fahrion artista” do “Fahrion
ilustrador”. Com o tempo, no entanto, encontraremos elementos gráficos em
suas pinturas; são eles que transformarão sua obra, numa tendência que se acentua a partir de meados da década de 1930 e que atesta a característica profícua de
tal tessitura (RAMOS, 2007).
Considerações finais
Fonte para pesquisadores com distintos interesses, Madrugada fornece, a cada
página, um plural e curioso panorama acerca dos hábitos culturais, das novas
sociabilidades, dos choques entre tradição e modernidade, num momento nevrálgico para a sociedade sul-rio-grandense, os anos 1920. Em seu amálgama
editorial, é possível detectar as características refratárias e pouco radicais do modernismo no Rio Grande do Sul, assim como a articulação do incipiente sistema
de cultura local e o quanto o exercício diletante do jornalismo foi uma estratégia
segura para a visibilidade dos novos grupos de escritores e artistas (GOLIN &
RAMOS, 2007).
Ao dar-lhe corpo, ansiosos pela modernidade social e artística, pela possibilidade de experimentar formatos originais para velhos temas, seus idealizadores introduziram novos padrões de texto e de imagem no cenário local. O resultado é que, em sua efemeridade, a revista foi um “laboratório do moderno”. Suas
linhas angulosas e rápidas, suas caricaturas leves, conclamando a participação
do espectador, suas fontes tipográficas ágeis e suas audaciosas capas certamente
estão entre o que de mais arrojado se produziu em termos visuais no Rio Grande
do Sul durante o período assinalado. E, não apenas isso: influenciaram toda uma
produção posterior, que ganhou o Brasil com o selo da referencial Editora Globo.
216
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Referências Bibliográficas
BELLUZZO, Ana Maria. Voltolino e as Raízes do Modernismo. São Paulo: Editora Marco Zero, 1992.
CARDOSO, Rafael (org.). O Design Brasileiro antes do Design – Aspectos da História Gráfica, 1870-1960. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
FERREIRA, Athos Damasceno. Imprensa Literária de Porto Alegre no Século
XIX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1975.
GOLIN, Cida; RAMOS, Paula. Jornalismo Cultural no Rio Grande do Sul: a
Modernidade nas Páginas da Revista Madrugada. Revista FAMECOS, v. 33, p.
106-114, 2007.
GOUVÊA, Paulo de. O Grupo – Outras Figuras – Outras Paisagens. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; Editora Movimento, 1976.
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista – Imprensa e Práticas Culturais em
Tempos de República Velha (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001.
RAMOS, Paula (Org.). A Madrugada da Modernidade. Porto Alegre: Editora
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RAMOS, Paula. A Experiência da Modernidade na Secção de Desenho da Editora
Globo – Revista do Globo (1929-1939). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre:
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS, 2002.
RAMOS, Paula. Artistas Ilustradores – A Editora Globo e a Constituição de uma
Visualidade Moderna pela Ilustração. Tese de Doutorado. Porto Alegre: Programa
de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS, 2007.
SCARINCI, Carlos. A Gravura no Rio Grande do Sul (1900-1980). Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1982.
217
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Capa para edição nº 1 de Madrugada
Porto Alegre, 25 de setembro de 1926
Sotéro Cosme, (1901 – 1978)
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Capa para edição nº 5 de Madrugada
João Fahrion , (1898 – 1970)
Porto Alegre, 4 de dezembro de 1926
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Página interna da edição nº 3 de Madrugada
Porto Alegre, 9 de outubro de 1926
220
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Blindspot: uma parceria entre
arte e ciência
Rosana Horio Monteiro
UFG
Resumo
Esse artigo apresenta observações de uma pesquisa em andamento,
cujo objetivo é identificar as aproximações e hibridações entre os
saberes produzidos por artistas e cientistas, através do acompanhamento do processo de criação desenvolvido no interior de laboratórios científicos. Como o saber científico é lido e reconfigurado
pela arte é uma das questões a serem investigadas. Apresento nesse
trabalho o projeto Blindspot, desenvolvido pelo austríaco Herwig
Turk, um dos artistas estudados.
Palavras chave
Arte e ciência; Blindspot; Herwig Turk
Abstract
This paper presents some notes of a still work in progress, which
explores collaborative works between artists and scientists, following the process of creation developed inside scientific laboratories. How scientific knowledge is read and rewritten by art is
one of the issues to be investigated. I introduce the art project
“Blindspot”, produced by Herwig Turk, one of the artists under
study.
Keywords
Art and science, Blindspot, Herwig Turk
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Introdução
Nos últimos anos tem-se observado um número crescente de artistas migrando
de seus ateliês para o interior de laboratórios científicos, sobretudo na área de biologia molecular. A arte contemporânea tem retomado a complexa relação entre
arte e ciência, a partir do uso de tecnologias controversas como as desenvolvidas
pela engenharia genética e novas formas de arte, como a arte transgênica e a bioarte, emergem do interior de laboratórios científicos.
Esse cruzamento entre arte e ciência, entre arte e ciências da vida, principalmente, consolidou-se como uma espécie de fenômeno na arte contemporânea,
sobretudo a partir dos anos 90 do século XX, quando placas de Petri, ratinhos
de laboratórios e outros instrumentos científicos passaram a figurar nos festivais
de media art e nas galerias de arte em diferentes partes do mundo. Dois artistas
seminais dentro desse contexto são o brasileiro Eduardo Kac e o norte-americano
Joe Davis. O primeiro, com a apresentação de uma coelhinha bioluminescente,
Alba, como obra de arte, em 2000; o segundo, exibindo obras que resultaram
de anos de trabalho no departamento de biologia do MIT, cujo início deu-se em
1992. Em Portugal, Marta de Menezes, que se dedica há alguns anos a estudar a
interação entre arte e biologia, produziu sua primeira experiência em bioarte, em
1999. A obra intitulada Nature? foi fruto de um trabalho de colaboração com o
cientista Paul Brakefield, da Universidade de Leiden, na Holanda^F.
Alguns artistas, ao transformarem as técnicas de ciência em seus próprios meios, aproximam-se e apropriam-se das práticas da zoologia, botânica,
ornitologia, criando complexas visualidades e narrativas, como é o caso das obras
dos norte-americanos Walton Ford e Catherine Chalmers e da portuguesa Gabriela Albergaria.
Outros artistas, ainda, utilizam os princípios, instrumentos, ou contextos institucionais da ciência para criar instalações e ambientes, como, entre outros, Eva Andrée Laramée, Spencer Finch, Mattew Ritchie, Mark Dion e Herwig
Turk, austríaco residente em Lisboa.
Além dos artistas citados, muitos outros, em diferentes partes do mundo, trabalham atualmente com materiais e métodos de laboratórios de ciência e
colaboram com cientistas, construindo o que se convencionou chamar de trabalhos colaborativos entre artistas e cientistas, desenvolvendo suas pesquisas em
centros especialmente criados para esse fim, através de programas de residência
artística em laboratórios científicos (artists-in-labs).
O presente trabalho faz parte de minha pesquisa de pós-doutoramento,
desenvolvida na Universidade de Lisboa no período de agosto de 2009 a julho de
2010, com financiamento da Capes, e cujo título é “(Re)configurações de saberes.
Um estudo de trabalhos colaborativos entre artistas e cientistas”. O objetivo principal da pesquisa foi identificar as aproximações e hibridações entre os saberes
produzidos por artistas e cientistas, acompanhando o processo de criação desenvolvido no interior de laboratórios científicos, através de visitas regulares a seus
espaços de convivência e criação e de entrevistas. De que maneira o saber científico é lido e reconfigurado pela arte, como a arte pode contribuir para a construção
do conhecimento científico; como os espaços de produção e sociabilidade são (re)
definidos — ateliê e laboratório; como se desenvolvem os processos de criação
222
X X X Colóquio CBHA 2010
de artistas e cientistas. Essas são algumas questões investigadas, a partir de um
diálogo entre a história da arte e a história da ciência.
Para tanto, defini como objeto de estudo artistas que participam do
segundo programa da “Rede de Residências: Experimentação, Arte, Ciência e
Tecnologia”. Acompanho, em particular, o austríaco Herwig Turk, selecionado
para o segundo programa de residências (2009/2010), e seu trabalho nos laboratórios do Instituto de Medicina Molecular (IMM), da Universidade de Lisboa.
Inspirada em outros laboratórios artísticos, tais como o australiano
Symbiotica^F, a “Rede de residências: Experimentação, arte, ciência e tecnologia”
foi criada pelo programa “Ciência Viva”, em parceria com o Dgartes (Direção
Geral de Artes), órgãos ligados ao governo português. Através desse programa
de residências foi definida uma rede de instituições científicas de acolhimento
para artistas, nas quais é possível desenvolver projetos artísticos de caráter experimental e transdisciplinar, utilizando ferramentas e processos próprios dos laboratórios de investigação científica. Em cada centro de acolhimento o trabalho do
artista é acompanhado por um investigador durante o período de residência. As
áreas artísticas contempladas pelo programa são arquitetura, artes visuais, dança,
design, música, teatro, performance.
Para a primeira edição do programa (2007/2008), foram apresentados
33 projetos, dos quais 8 foram selecionados. Os resultados dessas parcerias foram
tornados públicos através de um ciclo de palestras “Falar sobre arte e ciência” e
pela exposição “Experimentação arte, ciência e tecnologia”, eventos que aconteceram no decorrer de 2008. O segundo programa de residências recebeu 53 inscrições e foram selecionados 10 projetos artísticos, que deveriam ser desenvolvidos
entre dezembro de 2009 e agosto de 2010.
Ainda em Portugal foi criado em 2006 o Ectopia (do grego, fora do lugar), definido por sua criadora, a artista portuguesa Marta de Menezes, como um
espaço para a criação de arte experimental em institutos de investigação científica. Ectopia oferece a artistas portugueses e estrangeiros residências artísticas em
locais de investigação científica, formando uma rede de conexões que permite o
trabalho colaborativo entre artista e cientista. Ectopia proporciona aos artistas residentes acesso à pesquisa biológica, que é desenvolvida no Instituto Gulbenkian
de Ciência, em Oeiras. Durante o período de residência, os artistas são expostos
à pesquisa através de seminários e discussões informais com cientistas, sendo encorajados a desenvolverem projetos em parceria. Além disso, os pesquisadores são
convidados a trabalharem com os artistas em seus projetos científicos.
Laboratório invisível
Como o projeto de Turk no IMM ainda está em andamento, o que apresento
nesse artigo é o resultado de uma parceria anterior do artista com o cientista
Paulo Pereira, biólogo molecular, pesquisador do Centro de Oftalmologia do
Instituto de Pesquisa Biomédica em Luz e Imagem da Universidade de Coimbra, Portugal.1 Os dois vêm trabalhando desde 2004 no projeto “Blindspot”.
1
Em Portugal, muitos espaços dedicados à ciência, tais como museus, têm recebido exposições de arte
contemporânea. Um exemplo é o Museu de História Natural de Lisboa e sua sala do Veado. Para conferir
a programação, ver www.mnhn.ul.pt/. Por outro lado, espaços de arte, como o Centro de Arte Manuel
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X X X Colóquio CBHA 2010
As obras apresentadas nesse trabalho foram reunidas recentemente na exposição
“Laboratório invisível”.
As obras
Uncertainty
Nesta instalação, uma câmera registra os movimentos de uma solução de fluoresceína colocada num agitador orbital. A câmera encontra-se também apoiada
num agitador orbital, que se move com a mesma velocidade, procurando reproduzir os movimentos exatos da solução de fluoresceína. O que se pretende aqui
é alterar as Referências estáveis de inércia e perturbar o sentido de percepção do
observador. Como os movimentos dos dois agitadores não podem ser sincronizados de forma perfeita, numa das telas o movimento foi artificialmente sincronizado de modo que a solução de fluoresceína apareça imóvel. Entre a teoria científica
e o experimento realizado no contexto de um dado laboratório existem incertezas
inerentes às contigências em que essa tradução se processa. São essas incertezas
que Turk e Pereira procuram evidenciar visualmente nessa obra.
Tools (2009)
As fotografias da série “tools” descrevem e resumem, como um manual de instruções ou um “story board”, as várias fases de um “western blot”, uma técnica
de biologia celular que permite a detecção e a identificação de proteínas. Pediu-se
a um cientista para reproduzir os diferentes passos desta técnica na ausência das
ferramentas normalmente necessárias e os gestos foram fotografados, compondo
uma coreografia. Os gestos, desprovidos de seus suportes materiais, criam outras
redes de significação, a partir de uma nova realidade criada.
Agents
Série de seis retratos de equipamentos de um laboratório de investigação. Retirados dos seus contextos usuais, esses equipamentos ganham um estatuto de
objeto escultórico. Composto por três vistas (uma frontal e outras duas de perfil),
cada retrato, segundo Turk e Pereira, parece também “inspirar-se nas técnicas de
identificação antropométrica utilizadas para identificar criminosos reincidentes”.
Gaps (2009)
A obra é a reprodução tridimensional do modelo da proteína conexina 43, desenhado pelo pesquisador da Universidade de Coimbra, Steve Catarino. As conexinas participam na formação das “gap-junctions”, canais que atravessam as membranas das células e permitem a passagem de nutrientes e de pequenas moléculas
sinalizadoras, assegurando a comunicação entre elas.
de Brito (CAMB), também oferecem atividades científicas, promovidas por instituições como o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) e o Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB). IGC e ITQB
já ofereciam programas de residência artística antes da criação da rede de residências. Ver www.itqb.unl.
pt/science-and-society (ITQB) e www.igc.gulbenkian.pt/node/view/117(IGC).
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X X X Colóquio CBHA 2010
DNA film (2008)
DNA Film é a projeção de uma sequência genética sobre o solo, com trilha sonora criada a partir da medição da luminosidade dos frames. As imagens das
sequências de DNA são organizadas em filas verticais de pequenos quadrados,
ligeiramente desfocados, pretos e brancos, similares a fotogramas que poderiam
ter sido retirados do início ou do fim de uma bobina de um filme mudo em preto
e branco. Daí o título da obra.
Referenceless (1998-2003)
Série de quatro fotografias que foram integralmente criadas por Herwig Turk a
partir de uma tela de computador vazia, sem a presença de qualquer imagem.
Esta criação foi possível graças a um programa de edição de imagem e a aplicação
sucessiva e aleatória das suas ferramentas. As imagens produzidas foram enviadas
para diversos cientistas, que, sem saber a sua origem ou o modo como foram
produzidas, concordaram que elas representavam tecidos biológicos ou células
ampliadas por técnicas de microscopia.
Todos os trabalhos que integram o projeto “Blindspot” foram criados no
contexto de um determinado laboratório científico, em colaboração com cientistas, sendo a maioria deles no laboratório coordenado por Paulo Pereira. Produzindo vídeos, fotografia e instalações, em “Blindspot”, diferentemente da maioria
dos trabalhos colaborativos entre artistas e cientistas, são abordadas questões relacionadas à percepção pública da ciência e à produção do conhecimento.
Em “Blindspot”, questiona-se o valor da percepção “enquanto parte integrante e contaminante dos processos de construção do conhecimento científico” e, ao isolarem e destacarem aspectos geralmente invisíveis e periféricos do
processo de produção científica, artista e cientista conferem “um protagonismo
dramatúrgico às contingências, aos determinismos e às circunstâncias que influenciam a formação/construção de uma observação/representação, explorando,
em termos artísticos, os fundamentos epistemológicos da ciência”, explicam os
autores.
Nas séries que compõem “Blindspot”, os equipamentos de laboratório
mais do que simplesmente objetos são apresentados como personagens. Também diferentemente da maioria dos ditos trabalhos colaborativos, Paulo Pereira
assume-se como co-autor em algumas obras. Artista e cientista definem de fato
uma parceria em que ambos voltam seus olhares para a prática científica, para o
que (e como) os cientistas de fato fazem, e não mais somente para os produtos da
ciência, especialmente o seu produto intelectual, o conhecimento.
O projeto “Blindspot”, segundo Herwig Turk e Paulo Pereira, promove
uma articulação integrada e construtiva entre arte e ciência enquanto atividades
que partilham métodos, procedimentos e uma determinação em encontrar novas
formas de representação da realidade.
225
X X X Colóquio CBHA 2010
Referências Bibliográficas
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York: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 2003.
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York: Zone Books, 2004.
EDE, Siân. Art & science. London: IB Taurus, 2005.
REICHLE, I. (ed.) Art in the age of technoscience. Genetic engineering, robotics
and artificial life in contemporary art. Springer Wien NewYork, 2009.
Scott, Jill (eds.) Artistsinlabs. Processes of inquiry. Springer Wien NewYork, 2006
STURKEN, M. and Cartwright, L. Practices of looking: an introduction to visual culture. London: Oxford University Press, 2001.
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X X X Colóquio CBHA 2010
A repetição de imagens na obra
de Almeida Junior
Tania Maria Crivilin
UFES
Resumo
A partir de questões que se tornaram visíveis à obra de Almeida
Junior (1850-1899), a saber, a repetição de imagens em telas distintas. São analisadas obras priorizando a repetição da paleta de tintas
e da bilha de água. Usamos o conceito de repetição do filósofo
francês Étienne Souriau em Vocabúlaire d’Estétique e nos estudos
de Gilles Deleuze, principalmente em Diferença e Repetição, onde
o autor discorre sobre o tema a partir do pensamento dos filósofos
David Hume e Kierkegaard.
Palavras- chave
Almeida Junior; Pintura brasileira
Abstract
From the questions that became visibles in the Almeida Junior
(1850-1899) pictures, as a repetition of images in the differents
canvas, We analysed works with special attention for the repetition of the inks palette and objects like the flask. We used the
concept of repetition from the french philosopher Étienne Souriau
in “Vocabulaire d’Estétique” and studys from Gilles Deleuze into
“Différence et Répétition”.
Keywords
Almeida Junior; Brazilian painting
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X X X Colóquio CBHA 2010
Almeida Junior (Itu, SP, 1850-1899), importante artista brasileiro, iniciou a sua
formação artística na Academia Imperial de Belas Artes, RJ (1869-1875) e posteriormente na Escola Superior de Belas Artes de Paris, onde permaneceu até 1882.
Retornou ao Brasil fixando residência no interior de São Paulo. Consideramos
ainda que o pintor na França vivenciou a força dos acontecimentos artísticos que
se passavam fora da academia. Em trinta anos de produção, deixou-nos um legado de temática variada. Produziu retratos, temas religiosos, paisagens, natureza
morta, pinturas de gênero, alegóricas e históricas, criando uma fatura pessoal.
Dentro de sua fortuna crítica foi considerado o mais brasileiro dos pintores do
século XIX, por representar temas relativos à vida interiorana, denominada de
temática regionalista, onde retratou as figuras dos caipiras, como também pelo
recurso técnico de trazer nas pinturas a intensidade de luz que se aproximava da
luz do sol comum ao Brasil.
Discorrendo sobre a obra do pintor de maneira particular, em 1882,
quando a tela Fuga para o Egito, 1881, foi apresentada na primeira mostra individual de Almeida Júnior na Academia Imperial de Belas Artes, Rio de Janeiro, a
crítica de arte, na figura de Gonzaga Duque, ressaltou especialmente o tratamento dado ao grupo de pessoas representadas que compõem a cena religiosa. Estas se
distanciavam de imagens bíblicas estereotipadas pela academia e se aproximavam
a um grupo de gente sadia que poderia habitar um território real, tanto que as auréolas reluzentes, comuns nessas representações, não tiveram lugar nesta pintura.
Gonzaga Duque comenta ainda que nesta tela, apesar de ser um tema pertinente
à Academia, Almeida Junior traz uma compreensão artística mais adequada ao
seu tempo1. Esta adequação se faz presente principalmente no tratamento dado à
luminosidade, na qual trabalhou “contra a luz”, bem como utilizou a valorização
do reflexo da luz na água. Vale ressaltar que esta tela foi produzida no período em
que o pintor se encontrava em Paris vivenciando o momento no qual a pintura
estava atenta às questões da luz e da visualidade, em voga pelo Impressionismo.
Reportando-nos à tela Fuga para o Egito, a fim de compreendermos as
observações de Gonzaga Duque, encontramos para além de elementos como,
o grupo de pessoas, o animal e a luminosidade, a representação de um objeto
que nos chamou a atenção. Uma cabaça, que se trata do fruto da cabaceira, usado na confecção de diferentes utensílios, mas principalmente como reservatório
de água. Estes eram utilizados pelos trabalhadores, cumprindo a função de um
cantil, chamado por Maria Cecília Lourenço, em sua dissertação de mestrado
Revendo Almeida Junior, de bilha de água 2, denominação que também usaremos
nesta comunicação. Em verdade, o uso da cabaça é observado ainda na vida dos
grupos étnicos brasileiros, tanto na confecção de utensílios como de instrumentos musicais como as maracas, práticas bem demonstradas por Darcy Ribeiro
na Suma etnológica brasileira 3. Assim, pelo seu tamanho e formato com aspecto
bojudo de gargalo fino, local onde se passa uma corda, a bilha de água é de fácil
1
DUQUE-ESTRADA. 2001, p. 63.
2
LOURENÇO. 1980, p. 83.
3
RIBEIRO. 1986, p. 89.
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transporte e muito usado por pessoas que trabalham no campo, onde a atividade
exercida gera sede com mais frequência.
Observando questões internas da obra de Almeida Junior, vale refletir
sobre aspectos que se tornaram visíveis, a saber, a repetição de imagens. Assim,
nas pinturas, Derrubador Brasileiro, 1879, Amolação interrompida, 1894, Batismo
de Jesus, 1895 e Partida da Monção, 1897, perceber-se a representação da bilha
de água, assim como em Fuga para o Egito, citada anteriormente. O francês,
Étienne Souriau (1892 - 1979), filósofo e especialista em estética, trabalha dentre
outras coisas, em Vocabulário da Estética, o conceito de repetição como a ação
de refazer a mesma coisa, a repetição da coisa em si mesma ou o ato da revisita4.
Para o autor, o termo possui vários sentidos, dos quais ressaltaremos, de início, a
idéia de que a imagem representada pode conter o mesmo sentido atravessando
de uma obra a outra.
Para tanto, retornaremos a Gonzaga Duque em Impressões de um Amador, organização de Júlio Guimarães e Vera Lins, onde o crítico comentou que
na tela Fuga para o Egito, podemos perceber que o grupo representado se trata de
um grupo real. O que havia ali de real que chamou a atenção do crítico? Afinal,
se observarmos o tratamento da luz em tons amarelados, a presença da esfinge e
de pirâmides ao fundo, percebemos na pintura uma atmosfera romântica e teatralizada, nada real! De certo, ele se referiu ao aspecto físico e gestual das figuras
no primeiro plano. Acrescentaremos ainda, que a possibilidade da representação
religiosa citada de se aproximar à realidade é reforçada pela retratação da bilha de
água. Assim como nas telas Derrubador Brasileiro, Amolação interrompida e Partida da Monção, a presença deste utensílio registra o caráter de um grupo do qual
Almeida Junior, por sua origem e vivência, conhecia bem os hábitos e aparentemente lhes era próximo, e ao qual pertenciam também José, Maria e o menino.
Efeito semelhante acontece com a tela Batismo de Jesus. Vejamos inicialmente a organização composicional da pintura: esta nos proporciona uma
experiência visual que nos introduz na obra através da representação da água,
localizada na parte inferior da composição, local onde nos deparamos com a
figura de Jesus, o que firma uma posição de destaque na hierarquia da tela. A
maneira como Almeida Junior escolhe o ponto de vista promove uma extensão
do espaço da tela até o espaço onde se encontra o espectador. Em seguida faz a
transferência para um espaço de vegetação, parte intermediária da tela, ou seja,
saímos do espaço da água e entramos em um espaço terreno. Deste, então, o
pintor nos conduz para a parte superior da obra, onde está o céu com o Espírito
Santo na figura da pomba.
Assim, visualmente caminhamos da água para terra e chegamos ao ar.
Vale ressaltar que a figura do Cristo, colocada em primeiro plano, é apresentada
de maneira tal, que também faz este mesmo percurso: na parte inferior vemos
seus pés imersos no rio Jordão, a parte dos joelhos até o pescoço está contida em
uma massa de vegetação e sua cabeça reluz na claridade do céu. Diferente da imagem de João Batista, que está sobreposto a uma densa e escura vegetação, exceto
sua mão direita que transpassa da escuridão para a luz, quando esta se posiciona
4
SOURIAU. 1998, p. 945-947.
229
X X X Colóquio CBHA 2010
para o ato do batismo. As figuras são retratadas de maneira idealizada e com
gestos teatralizados. A luminosidade da tela é trabalhada em tons rosado e azulado, o que confere uma atmosfera romântica. Esta ainda é valorizada pelo uso do
reflexo da luz na água, usado mais uma vez, assim como em Fuga para o Egito.
Dentro deste clima simbólico identificamos a presença da bilha de água
trazida por João Batista, pendurada em seu ombro direito. Porque Almeida Junior não representou a figura do evangelista com os elementos que o identificam:
as roupas de couro, o cajado em forma de cruz, quando envolvido com pastoreio
ou com o cajado e a concha nas representações do batismo? Afinal, foi assim que
a história da arte nas pinturas de Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, Caravaggio,
entre outros, nos apresentaram. Porque teria acrescentado a bilha de água? Quem
era aquele João Batista que tinha o costume de carregar uma bilha de água? Aqui
possivelmente encontramos de novo a representação de um elemento que contém
o significado de marcar características de um determinado grupo de pessoas,
ou ainda diria que, marcar a característica de um pintor que nacionalmente se
diferenciou pelo seu trabalho. Talvez, João Batista fosse alguém como o caipira
representado em Amolação interrompida, assim como, as figuras que compõem a
cena de Partida da Monção, onde pessoas do convívio do pintor e personalidades
públicas foram identificadas por Lourenço em seu grande estudo sobre o Almeida Junior5.
Se retornarmos a Souriau, podemos dizer que a representação da bilha
de água perpassa por telas de temáticas distintas, como: regionalistas, religiosas
e históricas, mas em todas reafirma o caráter de um grupo de pessoas. A bilha
não adquire outro significado senão o de utensílio usado por pessoas simples
de hábitos interioranos. Buscando ainda outras reflexões encontramos em Gilles Deleuze em Diferença e Repetição, quando o autor inicia o capítulo dois – A
repetição para si mesma - com o pensamento do filósofo escocês, David Hume
(1711-1776) A repetição nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa
no espírito que a contempla. Deleuze considera que aí está a essência do que vem
a ser repetição6 .
Uma vez despertado o olhar para a “repetição” na obra de Almeida Junior, cabe um pequeno paralelo com outras telas, desta vez focalizando a paleta
de tintas, onde esta foi identificada em seis obras do pintor, a saber, O pintor,
1880, Descanso do modelo, 1882, O modelo, 1897, A pintura (alegoria) 1892, No
atelier, 1892, O importuno, 1898, as quais suscita uma atenção maior.
Iniciaremos com as telas No atelier, O pintor, Descanso do modelo e O
modelo, onde a paleta de tintas figura como ferramenta de trabalho do artista.
Esta confirma a ação do pintor e é suporte de suas escolhas cromáticas. Assim,
nas três primeiras telas, a paleta confirma a ação da pintura, juntamente com outros objetos que desempenham o mesmo papel, como o cavalete, a tela e o pincel;
sendo assim, a paleta é um elemento secundário. Na tela O modelo, a paleta atua
como indicativo de que a figura masculina que se encontra de costas, sentada no
primeiro plano da pintura, trata-se trata de um pintor; afinal ele expõe a paleta
5
LOURENÇO. 1980, p. 67.
6
DELUEZE. 2009, p.111.
230
X X X Colóquio CBHA 2010
para o espectador, quase até como uma oferenda. Embora tenhamos uma série
de quadros pendurados nesta cena de interior, uma das quais até reconhecemos,
como por exemplo, a figura de um velho magro, de longas barbas, pendurado no
canto esquerdo - catalogação de número 21 Figura (Academia, estudo de nu) s/d,
da Pinacoteca do Estado de São Paulo -, devemos lembrar que este é um dado
de conhecimento restrito, quando pensamos na dimensão de uma exposição que
recebe a visita de um público diverso. Neste caso, entende-se que a paleta ganhou
um significado que norteia o espectador, mas ainda de elemento secundário.
Passamos então para as telas A pintura (Alegoria) e O importuno. A primeira traz a figura de uma mulher nua, que com os braços levantados eleva a
imagem da paleta de tintas para o alto de sua cabeça. A pintura apresenta um
cromatismo variado, simbolizado inclusive na superfície da paleta. É visível o
rigor do estudo anatômico, através do corpo da mulher, na qual identificamos as
fontes francesas de Almeida Junior, principalmente o mestre Cabanel. Destaca-se
também a luminosidade distribuída por toda a obra, bem como a textura registrada pela marca das pinceladas, um recurso usado pelo pintor na representação
de retratos.
Assim como em o Batismo de Jesus, percebe-se que a cena transcorre
entre a terra e o céu, mas em A pintura, diante do tratamento pictórico dado, não
conseguimos identificar tempo nem espaço. A obra A pintura (alegoria), como
o próprio nome suscita, é uma alegoria. Almeida Junior, através da figura da
mulher, faz alusão a outro tema, no caso a própria pintura. Acreditamos que se o
pintor tivesse retratado a figura da mulher sem a paleta, e mantivesse o nome da
tela, estaria ainda metaforicamente falando da pintura. Da mesma forma que se
tivesse representado a paleta sem a figura da mulher e mantivesse o nome, estaria
também falando metaforicamente da pintura, e o mesmo aconteceria se retirasse
as duas, a mulher e a paleta, deixando só o fundo da pintura. Mas, temos clareza
de que o conjunto de elementos reforça a proposta do pintor: a musa exaltando
algo que materializa a sua existência, no caso a paleta de tintas. Uma relação de
dependência que se transforma no território da pintura.
As ressonâncias da repetição chegam a tela O importuno, 1898. Obra
de caráter narrativo que discorre sobre o tema de ateliê. Almeida Junior utiliza
sua qualidade técnica para organizar a composição da cena, visando conduzir o
espectador ao contato com a intimidade da personagem ou com o acontecimento
que pode envolver o que se passou antes e depois da cena. Nas obras narrativas,
o pintor retrata episódios do cotidiano, momentos menos idealizados que, nos limites de uma cena, revelam sua beleza, junto ao improviso e a naturalidade. Aqui
encontramos um caso particular: a paleta de tintas aparece representada duas
vezes: uma na mão do jovem pintor, que aparentemente estava fazendo pleno uso
da ferramenta, se não fosse importunado, e outra fixada na parede logo acima da
porta, figurando entre duas armas que se entrecruzam.
A postura do pintor de representar a paleta em funções distintas nos
possibilita entender que, o mesmo objeto adquire sentidos diferentes à medida
que interferimos em seu significado. Para Kierkegaard não devemos tirar da repetição algo novo, pois só a contemplação, o espírito que a contempla de fora,
231
X X X Colóquio CBHA 2010
extrai7. Assim, concorda com Hume, Deleuze e Souriau, quando este último se
refere à repetição como o ato da revisita.
Deste modo, sabemos que uma paleta de tintas sempre será uma paleta de tintas. Quando a vemos nos ateliês dos artistas a reconhecemos como
ferramenta de trabalho comum à pintura. Mas, quando a vemos pendurada em
uma parede, sobre uma porta, ou seja, um local não muito prático para ser tirada e colocada a toda hora, ação comum na prática da pintura, tendemos a não
reconhece-la mais como instrumento de trabalho. Ao pensarmos nesta paleta
colocada entre duas armas entrecruzadas, como falado anteriormente, tendemos
ainda a visualizar as pinturas do período vitoriano, onde a caça era exercida com
importância. Nestas telas encontramos registros de cenas onde os caçadores colocavam em suas salas, normalmente entre as armas entrecruzadas, as cabeças de
suas caças embalsamadas, ou mesmo o troféu referente à caça, como uma confirmação de seu sucesso. Entendemos assim, que no momento que o pintor coloca
a paleta de tintas pendurada no meio das duas armas, esta se configura como um
troféu de seu sucesso.
Entendemos ainda através de Deleuze que desde o mito, passando pelo
eterno retorno de Heráclito até Nietzsche, o tema da repetição atravessa a história
do pensamento ocidental. Assim, acreditamos que existam exemplos melhores do
que estes para ilustrar a complexidade que envolve o tema “repetição” nas obras
de arte.
No caso a obra de Almeida Junior, cabe talvez questões como: repetição
de tema, no caso cenas de atelier, como as telas: O ateliê, s/d, O modelo, 1897,
No atelier, 1894, cabe ainda pontuar a repetição de tela, como o caso da tela O
garoto, 1882 e 1886. Mas, para nós, tanto a bilha como a paleta de tintas, são reveladoras. São elementos, como vimos, que conduzem discussões sobre a pintura
em si, como também revelam as particularidades de um pintor.
Referências Bibliográficas
DELUEZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 2009.
DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. Impressões de um amador: textos esparsos
de crítica (1882-1911)/ Gonzaga Duque; organização de Júlio Castañon Guimarães, Vera Lins. Belo Horizonte: UFMG, fundação Casa Rui Barbosa, 2001.
LOURENÇO, Maria Cecília França. Revendo Almeida Junior. Dissertação de
mestrado para a Escola de Comunicação e Artes – USP. 1980.
RIBEIRO, Darcy. Suma etnológica brasileira. V. 1. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
SOURIAU, Étienne. Dicionário Akal de Estética. Madrid: Akal, 2010.
7
DELEUZE. 2009, p. 25.
232
X X X Colóquio CBHA 2010
“Fotografias sobre tela
de pintor”: apropriações
às fotopinturas
Vladimir Machado
UFRJ
Resumo
O conhecimento da foto-pintura sobre tela no Brasil está situado
entre 1861 e 1866. A contribuição nova é a descoberta de uma exibição pública desta técnica na Academia Imperial do RJ em 1859.
Os fotógrafos expunham um retrato fotográfico fixado na tela,
como um esboço prévio a ser coberto posteriormente pela pintura
final a óleo. Esses avanços técnicos da fotografia se dirigiam para
oferecer serviços e facilitar o trabalho dos pintores.
Unitermos
Fotopintura; Séc. Xix; Brasil
Résumé
“Photographies sur toile de peintre”: appropriations des photo-peintures. Le savoir sur les photo-peintures sur toile au Brésil se situe
entre 1861 et 1866. La nouvelle contribution réside dans la découverte d´une exhibition de cette technique lors de l´Académie
Impériale de Rio de Janeiro, en 1859. Les photographes exposaient
un portrait photographié fixé sur une toile, à titre d´ébauche qui
devrait être recouvert par la peinture finale à l´huile.
Mot clé
Photo-Peinture; Xixéme Siéc; Brésil
233
X X X Colóquio CBHA 2010
Muitos livros e artigos foram escritos sobre arte e fotografia no Brasil. Mas mesmo em edições recentes, estes estudos não chegaram a se ocupar da questão da
fotografia impressa sobre tela de pintor, uma técnica mais avançada da chamada
foto-pintura, objetivo deste trabalho. Os estudos em sua maioria, ou tratavam
somente das artes plásticas ou da fotografia sem contextualizar ambas a partir
de suas próprias peculiaridades. Destas publicações é de se destacar que tanto
as pesquisas dos anos 1940 de Gilberto Ferrez, quanto as mais recentes de Pedro Karp Vasquez e Boris Kossoy trouxeram contribuições significativas mas
sem uma maior abrangência sobre esta grande novidade técnica para a época,
enquanto Maria Inês Turazzi, contribuiu com importantes dados sobre a foto-pintura.
Diante disso, o caminho de nossa investigação foi consultar a indispensável bibliografia nacional e estrangeira sobre o tema, mas sobretudo, realizar
uma ampla pesquisa em fontes originais de época (1855-1875). O eixo central foi
a tecnologia empregada pelos fotógrafos em um diálogo com a arte da pintura.
Em busca dessas informações recorremos às mais variadas fontes, desde os anúncios dos fotógrafos em jornais, almanaques e periódicos publicados no Segundo
Reinado, até as fontes de escritas impressas mais gerais, como as crônicas, revistas
ilustradas, a prosa de ficção, biografias, romances, as críticas em jornais e relatórios em catálogos sobre as exposições públicas da fotografia e pintura. Nesse
passo, examinamos também o material iconográfico das foto-pinturas e as fotografias nos Arquivos do Museu Imperial de Petrópolis-RJ e Biblioteca Nacional.
Nos arquivos do Museu Nacional de Belas Artes-RJ verificamos a documentação
de cartas manuscritas e sobre a participação dos fotógrafos nas Exposições Gerais
da Academia Imperial de Belas Artes.
Neste artigo não pretendemos fazer uma recapitulação histórica nem
entrar nas velhas discussões teóricas sobre se a fotografia ou a técnica da foto-pintura eram arte ou não. O que vamos abordar é este momento de apropriação
pelos pintores dos grandes avanços técnicos e visuais na representação das aparências da realidade. Pelas informações novas o resultado apresentado permite
várias interpretações e reflexões no campo da história da fotografia. As várias
fontes relacionadas sobre o tema nos levaram à descoberta de que a técnica da
fixação fotográfica sobre tela, chamada Photo-painting, “inventada” por um artista-fotógrafo norte-americano em 1859, de maneira similar estava sendo praticada
no Rio de Janeiro nesse mesmo ano. De alguma forma ainda desconhecida em
seus detalhes, a fotografia sobre tela de pintor estava exposta na principal instituição de arte no Brasil, a Academia Imperial de Belas Artes, como veremos adiante.
Nas décadas de 1850-1870, a fotografia e a foto-pintura haviam se transformado em um instrumento imprescindível de trabalho, reconhecido pelos pintores europeus, norte-americanos e também pelos pintores brasileiros, os quais
procuravam estarem atualizados com as técnicas fotográficas. É exemplar um
anúncio de 1858, onde o fotógrafo e também pintor Insley Pacheco (?-1912) alem
de anunciar suas ricas “Galerias de quadros” de foto-pinturas divulgava seu aperfeiçoamento técnico investindo em viagens aos Estados Unidos da América para
observação, estudo, contínuos experimentos e uma “(...) manipulação apurada e
234
X X X Colóquio CBHA 2010
exacta das substâncias chimicas, segundo as descobertas e processos mais adiantados
da época actual(...)”1
Chaix & Zeferino: a pioneira demonstração pública no Brasil, da “fotografia
sobre tela de pintor colorida a óleo”.
Em 1859 no Rio de Janeiro, tem lugar um acontecimento relativo aos avanços
técnicos da foto-pintura o qual acreditamos até agora, inédito. Verificando o
catálogo da Exposição Geral da Academia Imperial, na Seção Exposição de Artefatos da Indústria Nacional e Aplicações de Belas Artes, constava a participação
dos fotógrafos Chaix & Zeferino com quatro trabalhos2 . A montagem sugeria
uma sequência evolutiva das técnicas fotográficas. Um painel continha “ diversas
fotografias e ambrótipos” enquanto o segundo mostrava exemplos já convencionais
da técnica da foto-pintura sobre “três ambrótipos coloridos a óleo, e uma fotografia
colorida à aquarela” 3 .
Mas o que passou despercebido pela historiografia, é que estes fotógrafos pioneiros, exibiam na Academia outros dois quadros especificamente com a
técnica revolucionária da Photo-painting norte-americana. Não se tratava aqui de
pintar sobre as fotografias em vidro (ambrotypos) ou papel como de costume e
expostos nos outros dois painéis citados acima, mas sim uma fotografia obtida
diretamente “sobre tela de pintor” e depois colorida com as técnicas de pintura a
óleo. Convém notar que a própria forma de expor as foto-pinturas era nitidamente didática. Para deixar claro a grande novidade técnica da photo-painting eles
dispuseram as duas telas lado a lado, exibindo um quadro só com a ampliação
fotográfica sobre a tela com o título “ fotografia obtida sobre tela de pintor” e ao
lado o mesmo processo, acrescido da pintura a óleo sobre a fotografia com o título “Fotografia obtida sobre tela de pintor, colorida a óleo”4.
Este novo processo só seria conhecido internacionalmente mais tarde,
divulgada pela revista americana Photographic News, em 1863 com o título “Photography on Canvas”. Como salientamos, esta técnica já estava em exposição pública em uma instituição oficial no Brasil, quatro anos antes dessa revista publicar
uma carta de negócios do estúdio fotográfico de André Disdéri (1819-1890) em
Paris.O objetivo de Disdéri era propor sociedade a um artista norte-americano-o
suposto descobridor do processo- para realizarem as photo-paintings. É importante ressaltar que um correspondente da revista, reclamava contestando que esse
artista fosse o “inventor”, já que ele próprio havia “aperfeiçoado esse mesmo processo
no inicio de março de 1859” e insistia que essa técnica era conhecida desde 1855
ou 1856. A partir de 1859 a foto-pintura não tardou em difundir-se devido à necessidade prática dos pintores, na competição com a fotografia, em ganhar tempo
1
Almanaque Laemmertz,1858, Seção Especial Notabilidades, p.90. Mantivemos a ortografia original em
todas as citações de fontes impressas de época.
2
Havia duas grafias para o nome do fotógrafo: Chaise e Chaix. Cf.KOSSOY, Boris–Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: Fotógrafos e ofício da Fotografia no Brasil(1833-1910), ed. Instituto Moreira Salles,
S.P.-2002, 405 pp.il.pp.105,108,206,221.
3
Catálogo da Exposição Geral da AIBA, 1859. in LEVY, Carlos:Exposições Gerais da Academia Imperial e da
Escola Nacional de Belas Artes-(AIBA) período monárquico-Catálogo de artistas e obras entre 1840e 1884.
Ed. Pinakotheke, RJ, 1990. 287 pp. p.113.
4
Idem, p.113.
235
X X X Colóquio CBHA 2010
na execução e garantindo exatidão na aparência mais real dos modelos retratados
tal como descreve o Le Monde Illustré de 9 de setembro de 1865:
“Uma simples fotografia de carte-de-visite ampliada pelo aparato aperfeiçoado pela Disdéri
Company, permite ao artista pintar – depois de somente uma ou duas poses – um retrato cuja
semelhança está naturalmente garantida e realçada por brilhante colorido...Convém lembrar
que em uma Era como a nossa, em que a expressão ‘tempo é dinheiro’ se torna cada vez mais
certa, o uso da photo-painting produz uma notável economia” 5.
Chamamos a atenção de que em1861, quatro anos antes dessa notícia do
Le Monde, os fotógrafos Chaix e Zeferino também divulgavam em um anúncio
na Seção Artes e Offícios as mesmas técnicas de “photographias, ambrotypos”
conhecidas da exposição na Academia de Belas Artes em 1859, mas com outra
novidade pioneira para a época e mais extraordinária ainda: Chaix, assinando-se Chaise & Zeferino ofereciam “retratos photographados sobre tela de pintor,
coloridos a óleo, do tamanho natural”^F.
É conveniente refletir, ainda que brevemente, sobre essa questão da ampliação fotográfica com a câmara solar, realizada desde a década de 1840 usando
lentes, espelhos e a luz do sol. Esta câmara e as técnicas eram constantemente
aperfeiçoadas até culminar com a foto-pintura, divulgada e registrada por Disdéri a qual permitia uma pintura rápida e com todos os detalhes. Na década de
1860 essa ampliação era feita a partir de um negativo de pequeno formato (cerca
de 6X9 cm) do qual obtinha-se um positivo ampliado com a câmara solar chamados extra-plaque ou de “tamanho natural”, sobre papel albuminado ou sobre
a tela de pintor.
É possível que essa experimentação e aperfeiçoamento tivesse acontecido
paralelamente em vários lugares sem existir nenhuma divulgação pública anterior à de Disdéri. Pouco tempo depois de 1859, iniciava-se uma divulgação mais
ampla e a surgir “inventores” do processo como o missivista norte-americano citado. Outro americano M.A.Root no seu livro The Câmera and the Pencil (1864)
escreveu que também transferira fotografias sobre telas de pintor^F. Na Alemanha
Franz Lenbach dizia haver fotografado e ampliado a imagem sobre tela e a partir
de 1865 “várias notícias podiam ser encontradas nos jornais fotográficos, tanto na
Inglaterra como na França, os quais descreviam de forma semelhante seus métodos”^F.
Podemos acrescentar nessa história a surpreendente difusão pública da
photo-painting em 1859 pela própria Academia e dois anos depois, em 1861, pelo
anuncio ainda mais audacioso no almanaque Laemmertz, dos fotógrafos Chaix
& Zeferino, como vimos acima. É notável a sintonia cosmopolita dos artistas e
fotógrafos no Brasil com as novidades tecnológicas e artísticas internacionais. No
Rio de Janeiro, um ano depois das notícias sobre a photo-painting no Le Monde
Illustré, o fotógrafo Cristiano Jr. também destacava em um anúncio de 1866 que
possuía um “magnífico aparelho solar com proporções de fazer retratos em tamanho
natural, de pé ou sentado”6
5
SCHARF,Aaron,“Art and photography”-Pelican Books,Inglaterra, 2a ed. revisada,1974, 397 pp. p. 57:il.
tradução e grifos nossos.
6
LISSOWSKY e AZEVEDO, Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Cristiano Jr. Ed. Ex-Libris,
236
X X X Colóquio CBHA 2010
O anúncio da câmara solar e da nova dimensão dos retratos deve ter
deixado os pintores da Academia apreensivos e preocupados com a sobrevivência.
Até então, a pintura detinha algumas vantagens sobre a fotografia, como a matéria pictórica das cores, a “durabilidade” da tela e, principalmente, a exclusividade
de fazer retratos em tamanho natural. Na década de 1860, não só a fotografia
ampliada sobre papel atingia o tamanho de 200 cmX135 cm mas principalmente, porque estas fotografias eram também ampliadas e fixadas na “durável” tela
de pintor na qual se concluía com a pintura à óleo. Em 1867, o fotógrafo José
Ferreira Guimarães (1841-1924), exibia publicamente e de forma desafiadora seus
avanços técnicos, tanto para os seus concorrentes como para o Júri de Premiação
na XIX Exposição Geral de Belas Artes da Academia Imperial, para onde enviou
um “retrato de grandeza natural” (200 cm X 135 cm), e assinalou com orgulho
no catálogo ser “a primeira feita no Rio de Janeiro em tais dimensões” e a fotografia
feita “sem retoque”, sendo distinguido pelo júri acadêmico com a Medalha de
Prata^F. Também na Segunda Exposição Nacional de 1866 no Rio de Janeiro, os
retratos expostos pelo pintor Auguste–Moreau foram feitos sobre fotografias de
José Ferreira Guimarães, ampliadas sobre a tela, ao que parece, processo idêntico
seguido pelos pintores Jean Courtois (fotos de Carneiro & Gaspar) e Ulrich Steffen (fotos de Stahl & Wahnschaffe) entre muitos outros7.
Certamente, foi a leitura de notícias em livros e revistas fotográficas da
Inglaterra e da França, como o Le Monde Illustré, o que levou o pintor Victor
Meirelles (1832-1903) a juntar-se à crítica internacional contra a proliferação desta prática. A fotografia resolvia a parte mais difícil: reproduzia fiel e rapidamente
a fisionomia do retratado e servia como suporte para a pintura, a qual podia ser
“feita por qualquer um”, sem os cinco anos de sofisticados conhecimentos artísticos no curso de Pintura de História da Academia de Belas Artes carioca. O artista, quando jurado na Exposição Nacional de 1866, citado acima, considerava essa
moda, como sendo a decadência da pintura imaginativa e de técnica sofisticada:
“Trata-se da arte de fazer um retrato a óleo, de dimensão natural, sem grande incômodo
para a pessoa que deseja ser retratada, sendo bastante o tempo indispensável de alguns minutos, a fim de obter-se unicamente um retrato nas dimensões de um cartão de visita, [6 X9cm]
que depois serve para reprodução em grande [ou seja, com o ampliador da câmara-solar]
sobre papel ou diretamente sobre a tela.
Este primeiro trabalho obtido é entregue ao pintor que, considerando-o já como um esboço,
encarrega-se de colorir. Esta arte de retratar, que está hoje tão em moda, tem desgraçadamente de contribuir para o regresso da verdadeira arte, a qual só deveria ser exercida segundo seus indeclináveis preceitos. Por este novo meio, conhecido pelo nome foto-pintura,
foram executados todos os retratos que ali vimos expostos entre a fotografia e que, se
algum merecimento pode ter é certamente devido ao pintor e não ao fotógrafo”^F.
SP, 1988. il p.11.
7
Relatório da Segunda Exposição Nacional de 1866. Rio de janeiro, Typ. Nacional, 1869, 2ª parte, citado
por TURAZZI, Maria Inez: Poses e Trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo-1839/1889.
Ed.Rocco, RJ, 1985, 309 p: il. p.126-127.
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X X X Colóquio CBHA 2010
É fácil notar a preocupação de Victor Meirelles com o perigo da “verdadeira arte” da Pintura de História, de artesanato lento e cuidadoso, vir a cair em
desgraça diante das vantagens de rapidez de execução e fidelidade na aparência
realista dos retratados, oferecidas pelo novo meio da foto-pintura. Observe-se
que todos os retratos da Exposição Nacional foram feitos com o hibridismo da
ampliação fotográfica sobre tela ou papel e depois pintados com a colaboração de
um pintor. A prática generalizada da foto-pintura pelos pintores e pelos fotógrafos, tanto medíocres como de grande talento, tornou-se moda na pintura de retratos, fossem nas Exposições Nacionais ou na Academia Imperial de Belas Artes.
Mas, mesmo Victor Meirelles, artista que conseguiu pintar painéis de
história importantes, como a “Batalha do Riachuelo” exposta na Exposição Geral
da Academia em 1872, parece ter praticado a foto-pintura. Nessa Exposição, em
relação aos três retratos expostos em tamanho natural, o artista não escapou de
ser sarcasticamente criticado no Jornal do Commércio, porque seus retratos eram
“sempre –mal posés-”:
“(...)Parecem cópias fiéis de photographia em que se attende mais à exigência do apparelho
photográphico para se evitar as aberrações do que a boa disposição e elegância do modelo que
se pretende transportar ao papel(...)”^F. O crítico ia mais longe afirmando que estas observações ele já havia feito diante de outros trabalhos do pintor mas que era “(...)ainda bem patente nos retratos expostos do Sr. João Baptista da Silva e conselheiro Paulino; pressente-se,
advinha-se alli o -oppus tête- do fotógrafo por trás da cabeça dos retratados8”.
Nesse contexto das apropriações e resistências à moda febril da foto-pintura, podemos afirmar que o crítico com todas as letras, denunciava que
Víctor Meirelles havia pintado os retratos sem recorrer ao desenho prévio tradicional, mas pintando por cima de retratos feitos por um fotógrafo e já ampliados
“sobre tela de pintor”, ou seja uma photo-painting. O crítico afirmava ainda que a
moda dos clientes que encomendavam um retrato a um pintor, por comodidade
e rapidez, quase sempre era remeter “uma photographia para copiar”:
“(...) Será que o artista ou porque os modelos se não prestam a conceder-lhe algumas horas
de sessão, ou por outras circunstâncias a nós desconhecidas, se limita a copiar fielmente uma
prova fotográfica abstraindo do modelo vivo? (...)” 9
O crítico resistia condenando a arte praticada dessa forma no Brasil e
se lastimava porque esta atitude levava o artista a não ser bastante independente
“para não subjugar o seu talento a estas e iguais exigências que só attestão o atrazo
das bellas-artes no país” e já que Victor Meirelles, continuava ele, tinha que fazer
como seus colegas pintores “... de curvar o seu gênio às imperiosas necessidades da
vida,” que o artista então fizesse um esforço para escravizar-se menos à fidelidade
da cópia fotográfica. Esta é uma revelação pública importante, nos sugerindo que
os pintores, mesmo os que pareciam devotos dos princípios de pureza pictórico8
Idem, ibidem. Grifos nossos.
9
Idem, ibidem.
238
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-artesanal acadêmica como fez Victor Meirelles em 1866, utilizavam-se das facilidades do território da fotografia para pintar um retrato. Desde copiar e ampliar
manualmente uma imagem, até a foto-pintura de uma fotografia ampliada “em
tamanho natural” e transferida sobre tela-de-pintor pela câmara solar. É o caso
também do pintor Pedro Américo que utilizou à larga, fotografias como modelos
para pintar retratos na Batalha de Campo Grande em 1870 e na Batalha do Avaí
de 1876 e é possível que projetasse fotografias com a lanterna mágica, para facilitar a ampliação10.
Os artistas que tinham raras encomendas para a Pintura de História, as
quais lhes dariam fama e glória, já sentiam uma possível crise em ter de “curvar o
seu gênio” para dedicar-se à pintura de retratos das vaidades, gênero considerado
menor, mas que lhes garantiam a sobrevivência. Diante dessa concorrência com
os fotógrafos, tentavam chamar a atenção do público, como fez Victor Meirelles
no texto acima, para as qualidades do valor artístico da pintura sobre a fotografia.
Porém, era inegável a vantagem dos preços mais acessíveis a uma grande clientela
das foto-pinturas, enquanto o preço de uma obra única e original era caro, de
lenta execução e reservada a poucos. A apropriação da nova tecnologia da fotografia ampliada sobre tela de pintor, a qual ficava oculta sob a pintura a óleo, mantinha a subjetividade expressiva da mão do artista, a aparência fiel do retratado, a
rapidez na execução, e o mais importante para sobreviver: a satisfação da clientela
e a garantia de novas encomendas.
Nas exposições da Academia no Rio de Janeiro, esta prática apareceu na
maioria das mostras, cada vez apresentando alguma novidade tecnológica, como
a mostrar o seu constante “progresso” em acompanhar as tecnologias fotográficas
européias e norte-americanas. Estes exemplos pesquisados nos parecem bastante
significativos para compreendermos que o uso das fotografias como modelo para
pintar com inegável realismo e imaginação plástica, os retratos, paisagens e cenas
históricas, era bastante difundido no Brasil e principalmente na Corte do Rio de
Janeiro. Os pintores copiavam as fotos diretamente, ou de segunda mão a partir
das fotografias desenhadas pelos litógrafos e impressas nos jornais ilustrados ou
pintavam sobre as fotografias em papel, procurando aumentar a rapidez e eficácia
na representação mimética dos retratados.
Desse modo, os artistas-pintores com a colaboração dos fotógrafos, conseguiram avançar ainda mais, ao ampliarem uma fotografia até o tamanho natural da escala humana “sobre tela de pintor’, concluindo a obra com as técnicas e
materiais tradicionais da pintura. Tudo para obterem a máxima aparência de real
a partir de uma fotografia em preto-e-branco pintada com o “brilhante colorido”
da natureza, como se estivessem diante de um ser vivo “verdadeiro”, cujo silêncio
e mistério nas pinturas ecoam até os dias de hoje.
10
Ver a Tese de Doutorado do autor “Do esboço pictórico às rotundas dos Dioramas: a fotografia na pintura
de batalhas de Pedro Américo” –FFLCH-USP-2002,283pp.il. Orientação Prof. Dr. Elias Thomé Saliba.
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1859, “Fotografia obtida sobre tela de pintor, colorida a
.
óleo”: apropriações e resistências às fotopinturas
240
X X X Colóquio CBHA 2010
Arthur Omar e as pulsações da
imagem: a experiência do cinema
na arte contemporânea
Wagner Jonasson da Costa Lima
Mestrando/ UDESC
Resumo
O presente texto visa analisar a convergência entre o cinema e arte
contemporânea na produção de Arthur Omar, abordando a sua
atuação no campo do cinema experimental, em instalações de vídeo e na exposição Zooprismas. Realizada em 2006, a exposição
promove um deslocamento das funções do dispositivo-cinema assim como uma transformação do espaço arquitetônico do ambiente expositivo, determinando formas particulares de convergência
entre o cinema e as artes visuais.
Palavras chave
Cinema; Arte contemporânea; Arthur Omar.
Abstract
This present text aims to analyze the convergence between cinema
and contemporary art in the production of Arthur Omar, addressing his performance in the field of experimental cinema from video
installations and in the exhibition Zooprismas. Held in 2006, the
exhibition promotes a shift of the cinema apparatus and a transformation in the architectural space of the exhibition setting, determining particular forms of convergence between cinema and visual
arts.
Keywords
Cinema; Contemporary art; Arthur Omar.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Desde o seu surgimento o cinema deslocaria as fronteiras da arte, rompendo com
modelos de representação e instaurando novas formas de percepção. O advento
do vídeo e a conseqüente introdução do computador permitiram uma entrada
mais insistente da imagem em movimento no ambiente de galerias e museus
de arte. Na arte contemporânea, o crescente uso de dispositivos audiovisuais
inspirados pelos efeitos e formas cinematográficas, vem colocando em questão
algumas premissas fundamentais tanto da produção artística quanto do campo
do audiovisual.
O presente texto tem por objetivo analisar a relação entre cinema e arte
contemporânea a partir da produção artística de Arthur Omar (1948). Aborda a
sua atuação - caracterizada pelo constante diálogo entre linguagens e suportes no campo do cinema experimental e da instalação de vídeo. Em 2006, o artista
realiza a exposição Zooprismas - Ciência Cognitiva dos Corpos Gloriosos, que se
vincula a experiências de transposição da linguagem cinematográfica para galerias e museus, determinando formas particulares de convergência entre o cinema
e as artes visuais.
Do Antidocumentário à Instalação Cinematográfica
O início da trajetória artística de Arthur Omar e a construção de sua obra fílmica são marcados pelo movimento de ruptura com o cinema documentário
tradicional. Em seu ensaio O antidocumentário, provisoriamente (1972), Omar
considera que este modelo de cinema não tem a capacidade para realizar a sua
proposta, pois o mecanismo de apresentação do objeto “é rigorosamente idêntico
ao do filme de ficção”. Alega que o documentário não existe como “linguagem
autônoma”, dividindo com o filme narrativo de ficção a mesma “mística” de “um
continuum fotografável que pode ser dado à visão, uma verdade que se apreende
imediatamente”. 1
O ensaio de Omar é fruto da realização de seu filme experimental Congo (1972, 35 mm, 11min.), “quase todo construído com letreiros que ocupam o
lugar das imagens”2 . Segundo Bernardet3, o filme sonega radicalmente o referente, investindo em uma linguagem baseada no fragmento e na justaposição,
deixando assim de acreditar no documentário como reprodução do real. Não há
nenhuma imagem sobre o tema do filme, a congada, e alguns planos são constituídos por fotografias fixas, páginas de livros e fotogramas pretos ou brancos. O
documentarista assume aqui o caráter de discurso do filme, problematizando a
sua realização.
Para Guiomar Ramos, a base inicial da inventividade do cinema de
Omar é construída a partir da assimilação do documentário tradicional. Nesta
absorção toda a ordem e subordinação se desfazem. Elementos como voz off, voz
over, imagens de fundo e de frente, música e ruídos passam a ter o mesmo espaço
dentro da construção fílmica. Em Congo, por exemplo, “textos que seriam uma
1
OMAR, A. O antidocumentário, provisoriamente. Revista de Cultura Vozes. Rio de Janeiro, ano 72,
n.6, ago. 1978. p.6
2
Id. A lógica do êxtase: filmes & vídeos. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2000.
3
BERNARDET, J. C. Cineastas e imagens do povo: uma aventura documentária no Brasil, 1960-1980.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
242
X X X Colóquio CBHA 2010
fonte de pesquisa e, portanto, estariam invisíveis dentro do filme, tomam conta
da tela”^F. Assim o cineasta experimenta as mais diversas inversões e criações, seguindo a direção contida no manifesto “Montagem de atrações” (1923), redigido
por Sergei Eisenstein no período de suas atividades no teatro político.
Em oposição ao teatro naturalista, o novo espetáculo defendido por
Eisenstein, está baseado na combinação de elementos heterogêneos livremente
associados. O programa de Eisenstein4 consiste “na própria abolição da instituição teatro enquanto tal”, substituindo-a por um local de apresentação de “experiências”. O espectador passa a constituir “o material básico do teatro”. Como no
Construtivismo, principal interlocutor de Eisenstein no período5, predominam
diretivas que dissolvem as distinções tradicionais entre arte e vida, assim como
entre contemplação e produção, culminando na atribuição para os artistas da
tarefa de revolucionar a percepção e a consciência da maioria.
De forma semelhante Arthur Omar argumenta em seu ensaio que, “a
questão do real dentro do cinema é a questão do cinema dentro do real”6 . A partir
da necessidade de trabalhar na desarticulação da linguagem do documentário,
o artista anuncia o surgimento de “espécies de antidocumentários, que se relacionariam com seu tema de modo mais fluido e constituiriam objetos em aberto
para o espectador manipular e refletir”^F. Propõe-se, deste modo, o filme não
como objeto estético acabado, mas como “experimento”, aproximando o cineasta
do ideário contido no projeto da “Nova objetividade” de Hélio Oiticica^F.
De acordo com Favaretto7, o imaginário da revolução mobiliza o sentido político da vanguarda nos anos de 1960. Enquanto pretendem liberar suas
atividades do ilusionismo, os artistas intervêm nos debates do tempo, fazendo das
propostas estéticas propostas de intervenção cultural. Hélio Oiticica radicalizaria
a situação com a proposta da “antiarte”, apontando outra inscrição do estético. O
essencial das manifestações antiartísicas é a confrontação dos participantes com
as situações. Essas manifestações seriam “desnormatizantes”, pois questionam as
significações correntes e interferem nas expectativas dos protagonistas.
Em conformidade com as pesquisas das artes visuais, que redimensiona
suas ações estéticas e se expande do plano da tela para o plano ambiental, Omar
sustenta que “o cinema é a arte de gerar posições no corpo do espectador” e que
a sua informação “não é gerada exclusivamente dentro da tela”8. Um exemplo é o
seu curta-metragem Vocês (1979, 35 mm, 6 min.), criado com o objetivo de “provocar uma espécie de comoção sensorial no público das salas de cinema”9. No
4
EISENSTEIN, S. Montagem de atrações. In: XAVIER, I. (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008. p.187-198.
5
ALBERA, F. Eisenstein e o construtivismo russo: a dramaturgia da forma em “Stuttgart”. São Paulo:
Cosac & Naify, 2002.
6
OMAR, op. cit., 1978, p. 18.
7
FAVARETTO, C. Inconformismo estético, inconformismo social, Hélio Oiticica. In: BRAGA, P.
(org.). Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008. p.15-22.
8
OMAR, A. O exibicionismo do fotógrafo e o pânico sutil do cineasta - entrevista a Revista Cinemais.
Disponível em: www.museuvirtual.com.br. Acesso em: 25 de mar. 2009.
9
OMAR, op.cit., 2000.
243
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curta um personagem dispara sua metralhadora de madeira em todas as direções
enquanto uma sucessão de claros e escuros acompanha os tiros fictícios.
Assim, descreve Omar, “as imagens passavam violentamente do branco
para o negro, as paredes do cinema pareciam se comprimir e se dilatar ao sabor
dos tiros, o olho perdia a sensação de estabilidade e mergulhava no jorro de luz
intermitente”. Para Omar Vocês é “muito mais do que um filme, é uma espécie
de instalação cinematográfica a ser montada no recinto dos próprios cinemas”10.
Seus efeitos acabam por romper com um dos aspectos que caracteriza a situação
cinematográfica - a separação do espaço percebido na tela do espectador – ao
interferir na própria arquitetura do cinema onde está sendo exibido.
A Situação vídeo e o Cinema de atrações
Na passagem de Arthur Omar do cinema para o vídeo, a desconstrução mais radical de seus filmes cede ao fluxo audiovisual e a idéia de êxtase, baseada na vertiginosidade e na inconsciência. Sua obra videográfica fundamenta-se na tentativa
de gerar “conceitos não-verbalizáveis”, produzidos “através da fusão de imagens,
ou de uma sucessão rápida e paradoxal delas” e por meio do “ralentamento do
movimento” 11. Em vídeos como O Nervo de Prata (1987), As férias do Investigador (1994) e Derrapagem no Éden (1997), o espectador participaria de “um
turbilhão sensorial” e de “uma narração sem história”. A partir dos recursos da
linguagem videográfica Omar visa desencadear no outro “uma emoção forte e
violenta”.
Segundo Ivana Bentes12, o vídeo aparece como potencializador do cinema e a videoarte recriaria procedimentos de linguagem que remontam às vanguardas históricas e ao cinema experimental dos anos 1960 e 1970. Já Flávia
Cesarino Costa13 estabelece paralelos entre as mídias contemporâneas que nasceram a partir dos meios audiovisuais eletrônicos e o período inicial do cinema, o
chamado “primeiro cinema”, que aparece misturado a outras formas de diversão
populares, como feiras, circo, espetáculos de magia e de aberrações, ou integrado
aos círculos científicos. Para a autora, algumas características apontadas como
sendo típicas do vídeo, como as formas alternativas de recepção, lembram imediatamente o primeiro cinema.
O historiador Tom Gunning denomina o cinema anterior a 1906 de
“cinema de atrações”. O cinema de atrações é um cinema que se baseia na sua
habilidade de mostrar alguma coisa, em contraste com o aspecto voyeurista do cinema narrativo. É um cinema exibicionista, disposto a romper o mundo ficcional
autosuficiente. O autor utiliza o termo “atração” para sublinhar a relação que o
primeiro cinema estabelecia com o espectador e que seria posteriormente retomado por Sergei Eisenstein e as vanguardas históricas. O Futurismo de Marinetti
valorizava a estética do espanto e da estimulação, assim como o fato de que ela
10
Ibid., s/p
11
OMAR, op. cit., 2009.
12
BENTES, I. Vídeo e cinema: rupturas, reações e hibridismo. In: MACHADO, A. (org.). Made in Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2007. p.111-128.
13
COSTA, F. C. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.
244
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cria um novo espectador, que contrasta com o voyeur estático do teatro tradicional. “Atração”, portanto, são performances cujo objetivo é espantar o espectador e
cuja aparição é, em si, um acontecimento^F.
Para Omar, o espectador “é a meta fundamental”14. O artista declara
que o seu objetivo é “criar atrações que coloquem esse espectador num permanente turbilhão sensorial e emocional”. Um exemplo é a sua instalação de vídeo
Inferno (1994), apresentada no Matadouro Municipal de São Paulo, durante o
projeto Arte/Cidade. A instalação era composta por uma linha horizontal com
17 monitores e por 4 monitores dispostos em formato de cruz, onde surgiam
imagens de chamas superpostas a cenas de bois em um abatedouro, cenas do carnaval e filmes de família. Aqui interessa ao artista “esse elemento siderante do cinema que na instalação Inferno estava representado pela pulsação do fogo”, assim
como era fundamental o “elemento da sala obscura pulsando sobre o espectador”.
Segundo Anne-Marie Duguet15, foi por meio das experimentações relativas aos dispositivos que o vídeo contribui de maneira mais viva para o desenvolvimento de novas concepções da obra de arte contemporânea, onde a percepção
da obra e sua experiência pelo espectador constituem a questão dominante. O
dispositivo eletrônico oferecia aos artistas grande liberdade no agenciamento dos
diferentes elementos que o constituem (autonomia da câmara e do monitor, objeto-imagem que pode ser deslocado e colocado em qualquer lugar) e uma gama
mais ampla de modalidades de difusão (vídeo projetores que reproduziam as condições do cinema e monitores cuja imagem era independente da luz ambiente).
Para a autora, “o vídeo opera principalmente pela mise-en-scène. (...) Ao
dramatizar o dispositivo, ao considerá-lo por meio de diversos papéis, constitui o
teatro do ver/perceber”16 . A instalação é o meio privilegiado dessa reflexão porque
pode “expor” o próprio processo de produção da imagem, ou seja, porque trabalha sua ficção num espaço real. Como no objeto minimalista, a imagem é posta
em situação. A arquitetura desempenha um papel essencial na concepção de cada
obra, que exige a elaboração de um espaço específico, engajando determinada
experiência de imagem. O desafio consiste em produzir certos efeitos sobre o
comportamento do visitante.
14
OMAR, op. cit., 2009.
15
DUGUET, A. M. Dispositivos. In: MACIEL, K. (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 2009. p.49-70.
16
Ibid., p.51-56.
245
X X X Colóquio CBHA 2010
A Exposição Zooprismas e o Efeito Cinema na Arte Contemporânea
É cada vez mais freqüente no contexto da arte contemporânea a presença de
instalações audiovisuais que remetem ao dispositivo cinematográfico. De acordo
com Philippe Dubois17, o espaço expositivo encontra-se marcado pelo efeito cinema. Este efeito pode ser entendido através de um conjunto de propostas de artistas que procuram, através da apropriação ou da citação, utilizar filmes específicos
em sua obra. Em um plano mais técnico e teórico, trata-se de pensar as obras e
sua produção em correspondência com o dispositivo do cinema, principalmente instalações que privilegiam questões relacionadas à projeção e a imagem em
movimento.
A exposição Zooprismas - Ciência Cognitiva dos Corpos Gloriosos, de Arthur Omar, é um exemplo desta relação. Realizada entre os dias 19 de setembro
e 29 de outubro de 2006, ocupou três andares e a fachada do prédio do Centro
Cultural Telemar, hoje Oi Futuro, no Rio de Janeiro. Foi constituída por 14
obras que articulavam figuras de linguagem videográfica, projeções e músicas
compostas pelo próprio artista; além de séries fotográficas expostas em caixas de
luz. A exposição foi pensada como “um conceito móvel, que unifica diferentes
instalações, distribuídas em espaços contíguos” e “a cada nova apresentação, a
combinação dos elementos se transforma e o percurso do espectador se torna
mais complexo”^F.
Para Pimentel18, a exposição promovia uma articulação temporal entre
as obras, compondo uma narrativa que se desdobraria através de seus três andares ou níveis. Isso acabava por transformar o espaço expositivo numa espécie de
equivalente espacial das formas temporais do cinema. Podemos observar que, em
determinadas exposições, as relações entre as imagens são descritas em termos
de montagem, de seqüência. Porém, enquanto na sala tradicional de exibição o
espectador está submetido a um discurso fílmico linear, em Zooprismas o corpo e
o olhar do espectador transitavam livremente, permitindo escolhas que determinam experiências cognitivas distintas.
Segundo memorial descritivo19, a exposição apresenta-se como “uma
homenagem aos dez mil anos do cinema” e tem como ponto de partida “a idéia
do movimento, da transformação da energia cinética, o ritmo, a intensidade, a
aceleração e desaceleração dos corpos”, produzindo “alterações na percepção”.
Com este objetivo foram exploradas pelo artista diversas figuras de linguagem
videográfica, como a pulsação das imagens, a aceleração e a câmera lentíssima.
Na videoinstalação Esferas em fuga, exposta no primeiro andar, bolas de metal
compacto perdiam sua densidade através do efeito de aceleração vertiginosa da
imagem.
17
DUBOIS, P. Sobre o “efeito cinema” nas instalações contemporâneas de fotografia e vídeo. In: MACIEL, K. (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2009.
18
PIMENTEL, M. Zooprismas: por uma cosmogonia imagética. Disponível em: www.arthuromar.com.
br/textos.html; Acesso em: 15 de dez. 2009.
19
ZOOPRISMAS, op. cit., 2009.
246
X X X Colóquio CBHA 2010
Para Dubois20, o movimento é o operador mais revelador de todo o processo de colocar em dúvida a experiência do olhar, freqüentemente concebido
como uma evidência ou uma certeza. Neste sentido, o cinema representou um
papel primordial tanto histórica como esteticamente. Com a chegada do vídeo
e, posteriormente, dos videoprojetores, vemos o deslocamento da imagem em
movimento e a sua projeção nas paredes do museu e da galeria. Ao introduzir a
imagem em movimento nos lugares da arte, o vídeo levaria o cinema com ele;
como linguagem, como potência e como dispositivo, ou seja, o movimento, a luz,
a projeção e a imaterialidade.
Encontramos todos esses elementos na videoinstalação Zootrópio, composta por projeções de grandes dimensões onde “a idéia de Cinema e Guerra
se confundem formando um grande caleidoscópio”^F. Segundo Pimentel, a obra
funcionava como espinha dorsal da exposição, sendo constituída por imagens
que piscavam incessantemente, produzindo um incômodo no olhar. Para a autora, “a instalação é pura potência luminosa”, onde “a percepção enquadrante é
suspensa, obrigando o espectador a imergir nesse universo luminoso”21. Como
no curta Vocês, rompe-se com a idéia de um observador distanciado, agora incorporado fisicamente no espaço da imagem.
Arthur Omar também experimenta, nas instalações fotográficas La Verité e Balada para os Sete Sims, um dispositivo da imagem em seqüência: caixas
de luz onde são dispostas fotografias serializadas. Para Bentes22, explora-se aqui
“a vibração da matéria fotográfica” e “suas qualidades cinéticas”. As imagens,
em seqüência, formam a narrativa virtual de um instante. Com pequenas variações (mudança de ângulo, enquadramento, aproximação e afastamento) de
um mesmo motivo, a captação de um instante ganha a “qualidade paradoxal de
fotograma”. A instalação, portanto, faz da aparente oposição entre imobilidade e
movimento o centro de seu dispositivo.
Desde o fim dos anos 1920, tentou-se imaginar formas de apresentar os
filmes que não fossem a da projeção temporal em sala escura, como na célebre
exposição Film und Foto, realizada em Stuttgart em 1929. O espaço exibia fotogramas ampliados de filmes de cineastas como Eisenstein, Pudovkin e Vertov
e caixas fechadas contendo projetores de cinema que possibilitavam a visão de
trechos de filmes sobre um vidro polido. Dubois reconhece que, atualmente, as
obras tentam ser cada vez mais “conjuntos articulados, multiplicados, agenciados, organizados no espaço e no tempo”23. Observamos também a mescla entre
diversas formas e matérias, assim como o trânsito entre dispositivos.
20
DUBOIS, P. Movimentos improváveis: o efeito cinema na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Centro
Cultural Banco do Brasil, 2003.
21
PIMENTEL, op. cit., 2009.
22
BENTES, I. Frações de luz. Disponível em: www.arthuromar.com.br/textos-txt7.html; Acesso em: 15
de dez. 2009.
23
DUBOIS, Philippe. Sobre o “efeito cinema” nas instalações contemporâneas de fotografia e vídeo. In:
MACIEL, Katia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2009.
247
X X X Colóquio CBHA 2010
Considerações Finais
Ao propor a noção de antidocumentário, Arthur Omar visa, através de um ato
crítico, a anulação de um modelo. Trata-se de um saber que se constrói mediante
a destruição da organicidade interna do documentário padrão. O cineasta realiza
esta desmontagem em função de uma nova montagem, levando em consideração
aspectos ligados tanto à produção quanto ao efeito da obra. Neste sentido, acaba
por romper com a situação cinematográfica convencional, que coloca o espectador à margem do acontecimento fílmico, em um movimento destinado a fazer
coincidir o político, a renovação da sensibilidade e o deslocamento da arte.
Posteriormente, operando com o meio videográfico, Omar radicaliza o
seu trabalho sobre os limites e as passagens de fronteiras. A exposição Zooprismas realiza o confronto e combinação do cinema e das artes, elaborando formas
de apresentação que misturam projeções, fotogramas e imagem em movimento.
Trata-se igualmente de uma reflexão sobre o lugar do espectador de arte. Na
exposição de Omar ocorre um deslocamento das funções do dispositivo-cinema
assim como uma transformação do espaço arquitetônico do ambiente expositivo,
influindo na relação entre o espaço do espectador e o espaço plástico da imagem.
248
X X X Colóquio CBHA 2010
A cidade nos álbuns fotográficos
Zita Rosane Possamai
UFRGS
Resumo
Investigo os álbuns fotográficos de vistas urbanas produzidos em
Porto Alegre, entre o final do século XIX e primeiras décadas do
século XX. Pude observar características distintivas entre as criações
autorais, realizadas por artistas fotógrafos, e aquelas produzidas por
editores, que passaram a assumir a responsabilidade pela seleção de
imagens, pela concepção final e comercialização ou distribuição da
publicação. Ainda investigo as representações visuais da cidade presentes nos álbuns e a relação dos fotógrafos com o campo artístico
no contexto estudado.
Palavra Chave
Fotografia, cidade, álbum fotográfico
Abstract
I investigate the photograph albums of urban views produced in
Porto Alegre between the end of the nineteenth century and the
first decades of the twentieth century. I could observe distinctive
characteristics among the works of the photographer authors and
the ones made by editors which were responsible for the selection
of the images, for the final conception and the trade or distribution
of the publication. I am still investigating the visual representations
of the city which appear in the albums and the relationship the
photographers have with the artistic field in the studied context.
Keywords
Photography, City, Photograph Album.
249
X X X Colóquio CBHA 2010
As vistas urbanas ganharam o formato de álbuns, sendo sua produção e difusão
responsável pela intensificação da circulação das imagens das cidades no final dos
novecentos. Concebidos por diversas razões, os álbuns de vistas são elementos
interessantes para a investigação histórica e lançam indagações que contribuem
para a história do urbano e para a história visual1, que tem a fotografia como um
objeto de investigação. O álbum é por um lado, artefato, inserindo-se no circuito
social de produção e circulação das fotografias2 . Por outro lado, reúne um determinado número de imagens, permitindo uma leitura visual de conjunto.
Em Porto Alegre, cidade localizada na parte mais meridional do Brasil,
os álbuns tiveram sua produção a partir do final do século XIX. Os Irmãos Ferrari, fotógrafos italianos radicados na cidade, foram os primeiros a produzirem
vistas urbanas sob encomenda e mediante assinatura mensal. Ao finalizar a produção do conjunto, uma caixa acondicionava essas fotografias. Foram várias as
edições de vistas sob esse formato, demonstrando que o consumo da fotografia e
das vistas urbanas era hábito entre os porto-alegrenses, ao menos entre um seleto
grupo de compradores.
Os primeiros álbuns fotográficos de vistas urbanas produzidos pelo estúdio fotográfico dos Ferrari foram seguidos nas décadas seguintes por aqueles
de impressão tipográfica. O fotógrafo Virgílio Calegari, contemporâneo dos Ferrari e também italiano, teria sido o pioneiro em produzir um álbum com vistas
urbanas através de impressão e não de reprodução fotográfica, como era tradicionalmente feito pelos Irmãos. Para realizar tal intento, o autor recorreu a um
grande centro gráfico europeu, Milão, provavelmente para garantir a qualidade
requerida pelo artista e diminuir os custos de produção.
A consideração de Jacinto Ferrari e Virgilio Ferrari pelos jornais e revistas ilustradas corrobora a idéia de inserção dos fotógrafos no campo artístico,
distinguindo sua produção daquelas criadas por qualquer pessoa através das câmeras portáteis, amplamente difundidas pela publicidade entre o final do século
XIX e início do século XX.
Assim, os álbuns de vistas de Ferrari e Calegari podem ser inseridos
na produção artística do período, assim atestada por diferentes expedientes de
consagração artística, entre os quais se encontravam as exposições. Athos Damasceno3 mostra que desde a primeira mostra coletiva de artes plásticas, realizada no Rio Grande do Sul em 1875, a fotografia esteve presente. Nas exposições
subseqüentes, os mais importantes fotógrafos do estado fizeram-se representar,
sendo em várias delas premiados.
A associação dos fotógrafos aos artistas, por outro lado, afirmava o estúdio fotográfico como lócus do fazer artístico. Luiz Terragno era associado do
1
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Rumo a uma história visual. In: MARTINS, José de Souza.
ECKERT, Cornelia. NOVAES, Sylvia (Org.). O imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru, SP:
EDUSC, 2005. p. 33-56.
2
FABRIS, Annateresa. A invenção da fotografia: repercussões sociais. In: ________. Fotografia: usos e
funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991. P. 11-37; LIMA, Solange Ferraz de. O circuito social
da fotografia: estudo de caso II. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Fotografia: usos e funções no séc. XIX.
São Paulo: EDUSP, 1991. P. 59-82.
3
DAMASCENO, Athos. Artes plásticas no Rio Grande do Sul (1755-1900): contribuição para o estudo do
processo cultural sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1971.
250
X X X Colóquio CBHA 2010
desenhista e pintor Bernardo Casseli; Virgilio Calegari teve ao seu lado por muitos anos o professor e artista Vicenzo Cervásio; os Ferrari atuaram ao lado de
Boscagli, Carlos Fontana, Frederico Trebbi e Ricardo Albertazzi; este último
artista também atuou com o fotógrafo espanhol Francisco Iglesias. Dessa forma,
o estúdio fotográfico pode ser considerado como lugar de produção artística e de
exposição de arte, conforme atestam os convites publicados nos jornais para as
mostras ali realizadas. No entanto, o acesso especialmente ao retrato fotográfico
produzido em estúdio era, certamente, restrito a determinado segmento da sociedade. Quase sempre os retratos4 à mostra nos estúdios ou nas vitrines das lojas
da Rua da Praia referem-se a personagens políticos, pessoas públicas ou damas
da sociedade.
Na direção contrária, a produção de vistas urbanas e sua comercialização podem ser pensadas como estratégia de disseminação das imagens fotográficas entre uma parcela maior de porto-alegrenses. Os álbuns, dessa forma,
permitiriam a maior circulação das imagens e a viabilidade econômica de um
ofício que tentava diferenciar-se, a partir da disseminação das câmeras portáteis
e do acesso a um maior número de pessoas à criação de imagens fotográficas.
A forma de divulgação das vistas dos Ferrari – comercializadas por encomenda – permite perceber a aura envolvida na criação da imagem fotográfica, nos mesmos moldes da obra de arte. Era produzida e colocada à disposição
dos assinantes apenas uma imagem por mês, sendo esta exposta nas vitrines das
principais lojas do centro da cidade. Os jornais tratavam de potencializar a divulgação de uma única imagem fotográfica por vários dias durante o mês, até ser
produzida a imagem seguinte. Finalmente, ao final da coleção, eram colocadas à
disposição dos assinantes as caixas do “álbum-pasta”.
Essa característica altera-se consideravelmente com os álbuns editados
na cidade nos anos 1920 e 19305. Essas primeiras vistas e álbuns de Porto Alegre
eram elaborados pelos próprios profissionais fotógrafos, ao passo que os álbuns
produzidos nas décadas seguintes eram impressos tipograficamente e editados
por um órgão oficial do governo ou por um editor privado. Ao contrário dos
álbuns de estúdios que privilegiavam, única e exclusivamente, as vistas urbanas em alguns casos associadas apenas às legendas - os álbuns impressos continham
textos, geralmente dispostos no início e no final da edição, que forneciam informações sobre a cidade em seus variados aspectos. As imagens fotográficas eram
impressas em frente e verso da folha, sendo que uma única página poderia conter
várias imagens. As imagens eram em tamanho menor e a qualidade do papel
também era inferior, diminuindo, conseqüentemente, ainda mais o seu custo,
o que leva a pensar que estes tenham tido uma maior circulação em relação aos
4
Sobre os retratos fotográficos produzidos em Porto Alegre, ver SANTOS, Alexandre Ricardo dos. A
fotografia e as representações do corpo contido (Porto alegre 1890-1920). Porto Alegre: UFRGS, 1997.
Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997, 2.v. Il e SANTOS, Alexandre Ricardo dos. O
gabinete do Dr. Calegari: considerações sobre um bem-sucedido fabricante de imagens. In: ACHUTTI,
Eduardo Robinson. (Org.). Ensaios (sobre o) fotográfico. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1998. P. 23-35.
5
Para maiores informações, consultar POSSAMAI, Zita Rosane. Cidade fotografada: memória e esquecimento nos álbuns fotográficos – Porto Alegre, décadas de 1920 e 1930. 2 v. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
251
X X X Colóquio CBHA 2010
primeiros álbuns de vistas urbanas, acessíveis a poucos. A profusão de imagens,
apresentadas em variados tamanhos e associados a textos marca os álbuns editoriais.
O álbum fotográfico poderia ser produzido com finalidade de divulgação dos feitos realizados pelos governantes, como é a característica de Obras
Públicas, editado pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1922. Nele
estão reunidas imagens localizadas em Porto Alegre, tais como as obras de construção do Cais do Porto e de edificações públicas, como escolas, prisões, hospitais, quartéis.
Diferentemente, os álbuns Porto Alegre Álbum, editado em 1931, e Recordações de Porto Alegre, editado em 1935, foram produzidos por editor privado.
O primeiro foi editado pelo escritor Pedro Carvalho nas Officinas Graphicas do
jornal A Noite, em sistema de rotogravura; o segundo teve edição realizada e
comercializada pela Livraria do Globo, importante casa editorial do sul do país,
no contexto estudado.
Eram oferecidos em Porto Alegre os serviços de tipografia, fotogravura
e rotogravura, conforme atestam os anúncios publicitários publicados nos jornais
de circulação no período. As diversas revistas ilustradas que circularam na cidade
desde o início do século XX demonstram a capacidade técnica de impressão das
imagens fotográficas. Os sistemas mecânicos de fotogravura e rotogravura permitiam a impressão de ilustrações e imagens e foram largamente utilizadas no
início do século xx para edição das revistas ilustradas, álbuns e jornais.
A fotogravura surgiu juntamente com a fotografia, tendo como base a
gravura em metal e a xilogravura, processos artísticos existentes. Trata-se de um
processo de gravação fotoquímica em relevo realizada sobre metal, em geral zinco ou cobre, para impressão tipográfica. A rotogravura ou heliogravura consiste
na gravação da imagem em cilindro de cobre para impressão rotativa. Os dois
processos foram utilizados no Brasil para indicar os procedimentos de gravura
química através da luz para impressão tipográfica ou calcográfica. Como esses
processos tecnológicos eram novidade na cidade, os editores dos álbuns faziam
questão de ressaltá-los na elaboração de suas publicações. Dessa forma, demonstravam a qualidade técnica da impressão das imagens fotográficas.
Embora esses serviços estivessem disponíveis, era vantajoso realizar as
impressões na Europa. Mesmo no centro do Brasil, assim procedia um dos maiores editores de livros do país do país no início do século XX, Francisco Alves. Isso
explica a iniciativa do fotógrafo Virgilio Calegari de buscar um centro europeu
para imprimir seu álbum de vistas. Essa situação altera-se, no entanto, com a
Primeira Guerra Mundial, levando ao encarecimento da produção impressa.
252
X X X Colóquio CBHA 2010
Os álbuns editados a partir dos anos 1920 são impressos no Brasil. Porto
Alegre Álbum é impresso na década de 1930, nas oficinas do jornal carioca A Noite. Na Livraria do Globo, onde foi editado Recordações de Porto Alegre e impresso
o álbum da Diretoria de Obras. A casa oferecia os serviços de fotogravura e o
manejo técnico da impressão de imagens, motivo pelo qual era procurada para a
realização desse tipo de trabalho.
A edição de Recordações de Porto Alegre é uma edição realizada e comercializada pela Livraria do Globo, editora que se tornara a mais importante
do Brasil fora do eixo Rio-São Paulo nos anos 1930 e 1940, editando autores
nacionais e também traduzindo clássicos da literatura universal. Um dos carros-chefes da editora era a Revista do Globo, editada pelo jovem Érico Veríssimo
que apresentava abundantes fotorreportagens sobre o cotidiano da cidade, além
de matérias sobre outras regiões brasileiras e do exterior.
Enquanto as imagens fotográficas dos Ferrari e de Calegari eram comercializadas como obras autorais desses artistas, os álbuns editoriais continham
imagens produzidas por diferentes fotógrafos. Além disso, a autoria perde-se no
conjunto de imagens, pois estas não são informadas pelo editor. Apenas às imagens assinadas é possível atribuir autoria. Essa característica mostra a diluição da
relevância da autoria do fotógrafo no contexto de edição dos álbuns, onde o conjunto da obra e a temática exaltada são preponderantes. Os álbuns, dessa forma,
passam a obedecer aos ditames da produção e consumo de livros.
Ainda pode-se estabelecer um diálogo dos álbuns editoriais com as revistas ilustradas em relação à qualidade estética das imagens fotográficas, embora
o viés da fotorreportagem e do instantâneo não sejam características dos álbuns
de vistas estudados. No caso de Recordações de Porto Alegre é facilmente perceptível o acesso às imagens por parte de seus editores, uma vez que a editora produzia
também a Revista do Globo, podendo, dessa forma, dispor de uma quantidade
de imagens para seleção.
Dessa forma, as vistas urbanas presentes nos álbuns editoriais ganham
maior significado a partir das relações estabelecidas no interior do conjunto. Os
motivos fotografados e as opções técnicas e estéticas dos fotógrafos devem ser observados a partir de um conjunto criado com objetivos de elaboração de sentidos
pelo editor, seu produtor visual.
Destacam-se, como características de enquadramento em grande parte
das imagens reunidas nestes álbuns, as tomadas realizadas a partir do ponto de
vista central e tomadas com câmera alta, ideal para captar um maior número de
elementos do espaço urbano, como no caso de ruas, praças, largos ou confluência
de avenidas. Neste caso, o fotógrafo posiciona-se em torres de igrejas ou nas sacadas e janelas de edifícios situados nas proximidades do motivo a ser registrado.
Algumas vistas aéreas permitem visualizar panoramas da cidade, privilegiando
especialmente a área central e a orla do lago Guaíba que margeia Porto Alegre.
Destacam-se algumas fotografias noturnas, que procuram ressaltar com atenção
os aspectos modernizantes trazidos ao espaço urbano pela iluminação elétrica.
253
X X X Colóquio CBHA 2010
No álbum editado pelo Governo do Estado e Porto Alegre Álbum a tônica gira em torno de imagens em formato horizontal, com destaque, neste último,
para as edificações apresentadas verticalmente, principalmente aquelas de altura
mais elevada. Já em Recordações de Porto Alegre a presença de edificações de vários
pavimentos é uma marca da publicação, multiplicando-se, desta forma, o formato vertical das mesmas, por este permitir tecnicamente a visualização integral da
construção. Os altos edifícios, considerados pelos idealizadores da publicação
como “magníficos arranha-céus e prédios suntuosos”, são fotografados em tomadas diagonais - feitas em geral nas esquinas, quando a localização do mesmo o
permite - que valorizam a volumetria arquitetônica dos mesmos.
Nessas imagens, elementos móveis, como transeuntes e automóveis, são
incluídos na cena fotografada de modo a conferir maior dinamismo à imagem,
contribuindo para a construção de sentidos ligados ao objetivo de apresentar uma
cidade de feições modernizantes. Assim, as tomadas são orientadas de acordo
com o propósito não apenas de atestar a presença desses elementos concebidos
como paradigmáticos da urbe moderna - como os altos edifícios, a iluminação
elétrica, o serviço de bondes - mas também de maximizar sua valorização na
perspectiva de construção de um ideário do moderno.
Esse imaginário, além de nortear a concepção e elaboração das imagens
por seus criadores, está explícito na reunião dessas imagens em um álbum. Assim, o objetivo de divulgar a cidade de Porto Alegre está presente no texto de
apresentação dos editores das duas publicações de caráter privado analisadas,
aspecto que as diferencia em relação à publicação oficial. Este último não contém textos, apenas títulos dispostos na parte superior das imagens e legendas
colocadas na parte inferior, mostrando ser um formato mais próximo aos álbuns
editados pelos estúdios fotográficos no século XIX. Nos textos são enfatizados
os melhoramentos pelos quais está passando a cidade nos últimos dez anos, enumerando as benfeitorias realizadas, aspectos que poderiam ser visualizados nas
imagens fotográficas que valorizam as características concernentes ao ideário de
uma cidade moderna, higiênica e bela.
É possível encontrar nesses álbuns vestígios sobre o público consumidor
almejado pelos editores. De acordo com os textos neles presentes, os álbuns têm
como alvo preferencial o público brasileiro e estrangeiro, vindo a se constituir,
inclusive, em um convite à visitação, no caso de Porto Alegre Álbum, ou em uma
lembrança de viagem, no caso de Recordações de Porto Alegre. Neste último, a
edição visa especialmente os forasteiros que por ventura visitassem a cidade por
ocasião dos festejos relacionados à Comemoração do Centenário da Epopéia Farroupilha, em 1935. Várias imagens da Grande Exposição organizada no Parque
da Redenção contidas no álbum mostram que a publicação do mesmo ocorreu
durante o próprio evento, provavelmente tendo sido comercializado no mesmo
local.
Editado com a finalidade especial de divulgar a cidade aos visitantes da
mostra em comemoração ao Centenário da Revolução Farroupilha, aberta em 20
de setembro de 1935, o álbum configurou-se, tal como a própria exposição, como
veículo a contribuir na construção de uma visualidade da modernidade urbana
através das imagens fotográficas. O sucesso da mostra foi tão expressivo - inclu-
254
X X X Colóquio CBHA 2010
sive pelo número significativo de visitantes - que é plausível supor o sucesso alcançado na comercialização de Recordações de Porto Alegre por seus idealizadores.
O álbum fotográfico, nesse contexto, colocou-se como artefato perene
a ser levado pelos visitantes da mostra e da cidade; como objeto de recordação,
conforme seu próprio título sugere. Finda a mostra e finda a visita, permaneceria a imagem de uma cidade bela, higienizada e moderna. A mostra, e o álbum
constituíram-se como balizadores de um momento definido a ser eternizado
como memória. Foram transformadas em peças comemorativas não apenas do
episódio histórico ao qual se refere o título da grande exposição, mas também do
progresso e da modernidade urbana alcançados pelo estado do Rio Grande do
Sul nas primeiras três décadas do século XX.
255
X X X Colóquio CBHA 2010
A transferência
da tradição
clássica entre
Europa e América
Latina
256
X X X Colóquio CBHA 2010
Margherita Sarfatti e o Brasil:
a coleção Francisco Matarazzo
Sobrinho enquanto panorama da
pintura moderna
Ana Gonçalves Magalhães
MAC USP/ CBHA
Resumo
Esta comunicação apresenta as primeiras reflexões sobre as relações
entre a crítica italiana Margherita Sarfatti (1880-1961), fundadora
do grupo Novecento na Itália, e o meio artístico brasileiro. O ponto de partida foi a análise de seu livro Espejo de la Pintura Actual,
publicado na Argentina em 1947, momento em que Sarfatti auxilia Francisco Matarazzo Sobrinho a adquirir o primeiro núcleo de
obras italianas para o acervo do antigo Museu de Arte Moderna de
São Paulo (em fase de criação).
Palavra Chave
Grupo Santa Helena;Museu de Arte Moderna de São Paulo
Abstract
This paper presents a reflection on the relation between the Italian
critic Margherita Sarfatti (1880-1961), founder of the Novecento
group, and Brazilian artistic milieu. The starting point of this
analysis is based on the reading of her book Espejo de la Pintura
Actual, published in Argentina in 1947, when Sarfatti was guiding
the industrial Francisco Matarazzo Sobrinho to acquire the first
nucleus of Italian works for the collection of the former São Paulo
Museum of Modern Art (under creation).
Keywords
Santa Helena Group; São Paulo Museum of Modern Art
257
X X X Colóquio CBHA 2010
Essa comunicação resulta da análise do texto Espejo de la Pintura Actual, de
autoria da crítica italiana Margherita Sarfatti (1880-1961), no contexto de meu
projeto de pesquisa em andamento, que contempla o estudo das obras italianas
presentes nas coleções Francisco Matarazzo Sobrinho e Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado, do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo (MAC USP). Tais coleções, parte das quais foi adquirida entre
1946 e 1947, constituíram o primeiro núcleo de acervo do antigo Museu de
Arte Moderna de São Paulo (MAMSP), e são as primeiras a serem transferidas
à Universidade de São Paulo, em 1963. Margherita Sarfatti desempenhou papel
fundamental nessas aquisições, e seu livro Espejo de la Pintura Actual é escrito e
publicado no momento em que ela está em contato com o casal Matarazzo para
a realizá-las1.
Margherita Sarfatti era jornalista e crítica de arte, de uma proeminente
família judia vêneta. Em 1902, depois de se casar com o advogado Cesare Sarfatti, fixa residência em Milão, onde convive com um ciclo de artistas e intelectuais
de vertentes socialistas e colabora com o jornal Avanti!, no qual a partir de 1909,
tem uma coluna sobre arte. Em 1912, conhece Benito Mussolini, com quem
inicia uma relação amorosa, que duraria até 1933. Como crítica de arte, é fundamental seu papel na criação do grupo Novecento, em 1922. O grupo se reformula
em 1925, e passa a ser conhecido como Novecento Italiano. Em 1924, dedica-se a
escrever a biografia de Mussolini, Dux, e no ano seguinte assina o Manifesto degli
Intteletuali Fascisti. Com a aproximação de Mussolini ao governo de Hitler, e a
implementação das Leis Raciais na Itália, em 1938, Sarfatti é obrigada a deixar o
país. As biografias da crítica apontam que entre 1938 e 1947, Sarfatti viveu entre
a Argentina e o Uruguai (Liffran 2009; Gutman 2006). Na literatura internacional, pouco se sabe sobre suas atividades na América Latina, e seus contatos com
o meio artístico latino-americano. No caso argentino, tais relações já começaram
a ser analisadas, principalmente a partir do contexto de uma exposição do grupo
Novecento Italiano, em Buenos Aires, ocorrida em 1930.
Suas relações com o Brasil ainda estão por serem devidamente estudadas, pois embora não se saiba de nenhuma itinerância da exposição portenha
de 1930 ao Brasil, há outros indícios significativos dos contatos da crítica e do
grupo de artistas a sua volta com o meio artístico brasileiro, a exemplo de Hugo
Adami2 e de Paulo Rossi Osir, que foram para a Itália em busca de aperfeiçoar
sua formação a partir da segunda metade da década de 1920.
Apesar de sua atuação como crítica, inicialmente no jornal Avanti! e
posteriormente no jornal Il Popolo d’Iltalia (fundado e dirigido por Benito Mussolini, em 1914) nas décadas de 1910 e 20, bem como sua intensa participação
nos júris de seleção e premiação da Bienal de Veneza ao longo dos anos 1920, são
1
Cf. telegrama de Margherita Sarfatti a Francisco Matarazzo Sobrinho, datado de 16 de setembro de
1946, de Montevidéu: “Ruego telegrafiar directamente Gaetani Cavallasca como dirección italiana Ciccillo ademas telegrafiar Ciccillo relacionarse Gaetani compras terminada decisiones urgentes telegrafiame confirmandome telegrafiastes gracias Sarfatti hotel Parque”. [grifo meu] Seção de Catalogação,
MAC USP. Sarfatti coloca Matarazzo em contato com seu genro, Livio Gaetani, que atuaria como seu
representante para as aquisições em galerias milanesas e romanas, até julho de 1947.
2
Hugo Adami, assim como Ernesto de Fiori, participa de uma das mostras do grupo Novecento Italiano,
em Milão, em 1929. Cf. catálogo da exposição Mostra Novecento Italiano, Milão, 1929.
258
X X X Colóquio CBHA 2010
poucas as publicações de Sarfatti que organizam sua reflexão sobre arte moderna.
Seu livro Storia della Pittura Moderna (Sarfatti 1930), publicado como volume de
uma coletânea de ensaios dirigida por ela, pode ser entendido como sua primeira
tentativa de analisar a evolução da pintura moderna e elaborar uma teoria da arte
a partir da produção dela oriunda. Dividido em 22 capítulos, Storia della Pittura
Moderna procura mapear a produção modernista por países, concentrando-se
no continente europeu, mas com menções relevantes, no capítulo XII, à pintura
dos Estados Unidos, da Argentina e do Japão. Um enorme destaque é dado à
Itália, como modelo privilegiado de uma arte de síntese – em oposição àquele
de análise -, fundamentada na tradição clássica, tal como elaborada a partir do
Renascimento italiano, sobretudo o florentino. Ao todo, são sete os capítulos
que Sarfatti dedica à pintura moderna na Itália, reservando um capítulo para os
futuristas, e um para o grupo Novecento Italiano. É justamente em relação a esse
último que ela elabora o conceito de síntese, da forma arquitetônica, bem como
daquilo que ela chama de “classicità moderna”: para ela, não uma imitação da
pintura dos grandes mestres do Renascimento, mas sua reinterpretação guiada
pelos elementos mais essenciais de constituição da forma: o desenho e sua estrutura compositiva.
Os capítulos que abrem Storia della Pittura Moderna parecem inspirar-se na tratadística renascentista de base Vasariana – autor que é citado com certa
freqüência ao longo do livro – e procuram construir um conceito de estilo, muito
semelhante ao que podemos apreender das Vite de Vasari, para quem este se constitui a partir do desenho, capaz de dar a ver a marca do artista, suas características
pessoais, por assim dizer, bem como os traços de sua vinculação ao seu próprio
território (as escolas de pintura, por região). Há ainda um aspecto que Sarfatti
parece retomar de uma historiografia formalista, da virada do século XIX para
o século XX, isto é, a oposição entre períodos de análise e períodos de síntese ou
escolas de análise e escolas de síntese. O estilo da síntese está diretamente ligado
à tradição clássica, à cultura mediterrânea e aos territórios do sul da Europa, de
predominância católica. A arte analítica é expressão de territórios afastados da
tradição mediterrânea, sobretudo o norte da Europa – bárbara, anglo-saxã – e
de predominância protestante. Também, o fato dela organizar os capítulos que
tratam da pintura moderna por escolas nacionais parece repetir o esquema sobre
estilo da historiografia tradicional italiana, fundamentada na tratadística vasariana. Finalmente, o capítulo III desenvolve-se sobre um argumento lançado pelo
Paragone de Leonardo, isto é, o da primazia da pintura sobre as demais formas
de manifestação artística.
Em Espejo de la Pintura Actual, publicado em Buenos Aires, em 1947
(Sarfatti 1947)3, Sarfatti retoma os mesmos argumentos do livro de 1930. Os
quatro capítulos iniciais são exatamente os mesmos do texto de 1930, e a autora
inicialmente também aborda a pintura a partir de escolas nacionais. Mas há,
3
O livro é publicado dentro de uma coletânea de ensaios organizada por Jorge Romero Brest, Luiz M.
Baudizzone e José Romero, com uma tiragem especial de 50 exemplares numerados, e termina de ser
impressa em 25 de julho de 1947 – momento em que a autora já está de volta à sua terra natal. Cf. Carta
de Livio Gaetani a Francisco Matarazzo Sobrinho, de 14 de julho de 1947, encerrando as aquisições para
a coleção Matarazzo, falando do despacho das obras e dando notícias sobre a chegada de Margherita
Sarfatti à Itália. Seção de Catalogação, MAC USP.
259
X X X Colóquio CBHA 2010
pelo menos, dois elementos novos em relação a Storia della Pittura Moderna. Em
primeiro lugar, a autora incorpora novos países à sua análise, merecendo destaque
os países latino-americanos, em especial o México, o Brasil e a Argentina4. Para
introduzir o continente americano, ela toma os Estados Unidos e sua tradição
recente de pintura mural, para daí, ir ao México e os grandes projetos de Diego
Rivera. É nesse contexto, que o capítulo XV, “Terra do Brasil” (deliberadamente
escrito em português, e não em castelhano), aparece. Sarfatti assim compara a
pintura mural norte-americana e a mais recente mexicana, com aquela que ela vê
ser produzida no Brasil:
El ejemplo de mecenatismo oficial, dado en América por Méjico y sus pinturas murales, arraigó en Estados Unidos, como hemos visto, y luego rebrotó en Brasil.
Ya le he reprochado a la pintura mural de hoy su naturaleza artificiosa, de arboleda de copa
arrogante que fluctúa según los vientos políticos y burocráticos, sin arraigo em el terruño de
la realidad cotidiana.
Esta posición paradójica de vértice de una pirámide sin bases, o de escalera que empieza y
termina con los últimos y encumbrados peldaños de la decoración de grandes edificios públicos, resulta de mayor evidencia en Brasil por la distribución geográfica, es decir, netamente
política, de su pintura mural. Hay mucha en Río de Janeiro, pero en la segunda capital de
la república, San Pablo, no hay, que yo sepa, sino en el salón de Radio Tupí, pintado por
Cândido Portinari. (Sarfatti 1947: 105)
O que muda substancialmente aqui na análise da pintura mural é seu
engajamento ideológico, em 1947, condenado por Sarfatti. De qualquer modo,
é a partir das vinculações que ela vê entre a pintura mural de Rivera e a de
Portinari, que ela parte para analisar o continente latino-americano e a pintura
brasileira. Rivera seria, para ela, a ponte entre a pintura do Novecento Italiano
e a América Latina, através da influência da pintura mural de Mario Sironi. E é
pelos filtros da pintura do Novecento Italiano que ela analisa a produção latino-americana.
Na concepção de seu livro portenho, é possível pensar em três níveis de
aproximação de Margherita Sarfatti ao meio artístico brasileiro, que nos revelam,
inclusive, um contato anterior e mais duradouro do grupo Novecento Italiano e
da crítica com o meio artístico brasileiro.
O primeiro nível de aproximação está expresso no capítulo dedicado ao
Brasil, em que há indícios de sua visita ao país e de sua predileção por São Paulo
– que ela chama de “segunda capital da República”, e “o mais importante centro
artístico do Brasil”. Na instância da pintura mural, dá grande destaque para os
projetos decorativos de Cândido Portinari, sobretudo aquele para o Ministério
de Educação e Cultura – hoje Palácio Gustavo Capanema -, no Rio de Janeiro.
Aborda de passagem a pintura de Emiliano di Cavalcanti, para terminar com os
pintores do grupo Santa Helena, sobretudo Paulo Rossi Osir e Alfredo Volpi. No
caso de Rossi Osir, ela destaca as atividades do ateliê Osirarte, que no seu entender, inspira-se na bottega de artista do Renascimento. Já Alfredo Volpi é, para ela,
4
A Argentina, juntamente com o Uruguai, aparece minuciosamente analisada no apêndice final intitulado “La pintura en Río de la Plata”.
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X X X Colóquio CBHA 2010
um artista de maior relevância. Ele aparece aqui e no capítulo sobre a pintura italiana contemporânea, e nos dois momentos, é comparado à figura de Carlo Carrà, por seu domínio do métier, pela retomada de técnicas tradicionais da pintura
e sua relação com a pintura de Giotto e os mestres italianos do Renascimento.
O segundo nível de apreensão da pintura brasileira e sua vinculação com
a moderna pintura italiana pode ser observado no capítulo que Sarfatti dedica
justamente aos pintores italianos contemporâneos (capítulo XXII). Ela abre o capítulo abordando os italianos que atuaram no ambiente da Escola de Paris, principalmente Massimo Campigli, Gino Severini e Giorgio de Chirico, sem falar de
Amedeo Modigliani – analisado por ela no capítulo anterior. Em seguida, divide
a produção italiana em cinco escolas, respectivamente: Florença, Roma, Veneza,
Turim e Milão. A primeira e a última parecem refletir sua teoria sobre o estilo e a
intepretação da tradição clássica da arte: neste esquema, Florença é a raiz de todo
bom estilo de pintura, e Milão é a ponta de lança da produção modernista mais
internacional, que foi responsável por disseminar esses ideais.
Esse capítulo é revelador de seu envolvimento com as aquisições de Matarazzo entre 1946 e 1947. Na página 80 de seu livro, ela reproduz “Ponte de
Zoagli”, de Arturo Tosi, hoje no acervo do MAC USP, já como coleção Francisco Matarazzo Sobrinho. Já sua análise da pintura de Giorgio de Chirico está
baseada, menos na fase metafísica do artista, e mais nas obras da década de 1930.
Ao falar do artista como “arqueólogo que povoa as ruínas com criaturas míticas,
com cavalos de imensas melenas, rosadas, azuis e verdes”, como não pensar em
“Cavalos à Beira-Mar” (1932/32, óleo sobre tela) e nas duas versões sobre o tema
dos gladiadores (“Gladiadores”, c. 1935, óleo sobre tela; e “Gladiadores com seus
troféus”, c. 1927, óleo sobre tela), da coleção Matarazzo, hoje no acervo do MAC
USP? Retomando a pintura metafísica de De Chirico e de Carrà, Sarfatti destaca
o período dos dois artistas em Ferrara e a pintura que ela chama de “Realismo
Mágico”, da qual Achille Funi é um expoente, como no caso patente de “A Advinha” (1924, óleo sobre madeira), também da coleção do MAC USP^F.
Quando trata das diferentes escolas italianas contemporâneas, Sarfatti
destaca os artistas que entre 1946 e 1947 foram sistematicamente adquiridos para
a coleção Matarazzo e passariam a integrar o acervo do antigo MAMSP. Os casos
de Ardengo Soffici, Ottone Rosai (como representantes da pintura florentina)
e Felice Casorati (como único e mais alto representante da pintura de Turim)
merecem uma análise. No caso de Soffici e Rosai, Sarfatti associa a produção dos
dois artistas ao contexto das revistas La Voce e Lacerba (das quais Soffici, ao lado
de Giovanni Papini e Giuseppe Prezzolini, era editor) e da emergência da noção
de Strapaese, em oposição a Stracittà, ou seja, o retorno à vida da província e à
cultura da província contra absorção das grandes cidades monopolizadoras. “O
Caminho” (1908, óleo sobre papelão), de Ardengo Soffici, e “Paisagem” (1938,
óleo sobre tela) e “Estalagem” (1932, óleo sobre tela), de Ottone Rosai, da coleção
Matarazzo (hoje acervo MAC USP), parecem ilustrar essa pintura florentina, tal
como concebida por Margherita Sarfatti. Em relação ao turinese Felice Casorati,
como não pensar em seu “Nu Inacabado” (1943, óleo sobre tela), do acervo do
MAC USP, quando ela assim define sua obra?
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X X X Colóquio CBHA 2010
(...) el más notable de los torineses. Menos plástico, menos preocupado del tono y del cuerpo,
más lineal y esquemático que los demás italianos, Casorati traza con mano firme y con color
vivo y frío los rasgos morales de sus personajes y ahonda con pérfida curiosidad la pesquisa
psicológica a través de los rasgos físicos acentuados y hasta grotescos. (Sarfatti 1947: 150)
Os pintores citados por Sarfatti das escolas romana, veneziana e milanesa também estão sistematicamente presentes no primeiro núcleo da coleção
Matarazzo.
Finalmente, o terceiro nível de aproximação de Sarfatti ao meio artístico
brasileiro se dá pelo paralelo entre os valores por ela resgatados na tradição clássica da pintura e o debate sobre arte no contexto paulistano entre os anos de 1937
e 1947. Esse momento, em São Paulo, é marcado pela afirmação do grupo Santa
Helena, através de resenhas em jornal de Mário de Andrade e principalmente de
Sérgio Milliet. Se considerarmos os escritos desse último autor, que fazem a defesa dos pintores do Grupo Santa Helena e preparam as teses de seu “Marginalidade da Pintura Moderna”5, veremos o quanto de sua visão da evolução da história
da pintura reverbera as idéias de Margherita Sarfatti. Há pelo menos dois aspectos da história da pintura moderna para Sarfatti que são retomados pela crítica de
Milliet. O primeiro deles diz respeito à compreensão da evolução da pintura em
ciclo de declínio e auge, que para Milliet também são denominados períodos de
análise e síntese. Como em Sarfatti, para Milliet, os períodos de síntese se caracterizam pela retomada do desenho, da boa forma e de alguns elementos reinterpretados a partir da tradição clássica da arte. O segundo, vincula-se às noções de
coletividade e individualidade, isto é, a boa pintura é aquela que se fundamenta
na dimensão humana da vida e cujo “grau de comunicabilidade” (para usar uma
expressão de Milliet) com seu público é efetivo e legítimo; o contrário, ou seja, a
expressão de individualidade na pintura corresponde aos momentos de crise – de
marginalidade, para Milliet -, em que a pintura distancia-se de seu público. Essa
noção está diretamente ligada ao binômio síntese/análise, em que a expressão da
coletividade se manifesta na pintura de síntese, e a da individualidade, na pintura
de análise.
A crítica de Sarfatti, ao que parece reinterpretada por Sérgio Milliet,
constituiu um núcleo inicial de acervo para o antigo MAMSP que estava baseado
nas experiências plásticas da década de 1930 e no contexto dos ciclos debruçados
na retomada da tradição clássica da pintura, de raiz mediterrânea/italiana, em
que os conceitos de desenho, estilo, escola ainda exprimiam a realidade desses
grupos de artistas. Olhando para a coleção italiana oriunda da doação Matarazzo, é essa imagem da pintura moderna que temos: o que Margherita Sarfatti
chamou de “classicità moderna” [classicismo moderno], e Sérgio Milliet, de “classicismo despido”.
5
Originalmente publicado pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em 1942, em seguida incorporado à coletânea de textos de Pintura Quase Sempre (1944), para ser por fim proferido como
conferência no primeiro congresso da AICA em Paris, em 1949.
262
X X X Colóquio CBHA 2010
Referências Bibliográficas:
GUTMAN, Daniel. El amore judío de Mussolini. Margherita Sarfatti, del fascismo al exilio. Buenos Aires: Lumière, 2006.
LIFFRAN, Françoise. Margherita Sarfatti: L’Égérie du Duce. Paris: Éditions du
Seuil, 2009.
MILLIET, Sérgio. Pintura Quase Sempre. Porto Alegre: O Globo, 1944.
SARFATTI, Margherita. Storia della Pittura Moderna. Roma: Cremonese, 1930.
___________________. de. Espejo de la Pintura Actual. Buenos Aires: Argos
(coleção El Arte y los Artistas), 1947.
263
X X X Colóquio CBHA 2010
A Capela de Chapingo
e a re-significação da tradição
Antônio Leandro Gomes de Souza Barros
Mestrando / UERJ
Resumo
Durante o século XVIII, sobre um antigo local de culto asteca, foi
construída a Capela de Chapingo pela Companhia de Jesus, porém,
entre os anos de 1922 e 1926, a capela sofreu nova apropriação e foi
completamente transformada pelos murais de Diego Rivera. O artista concebeu o novo espaço da capela como a grande escritura da
Revolução Mexicana de 1910. A partir de então, a capela assumiu
a proposta de uma re-significação possível da iconologia religiosa.
Palavra Chave
Chapingo, capela, Rivera
Abstract
During the eighteenth century on an ancient place of worship
Aztec, were build the chapel of Chapingo by the Companion of
Jesus, however, between the years 1922 and 1926, the chapel has
undergone new ownership and has been completely transformed
by the murals of Diego Rivera. The artist designed the new space
of the chapel as the great book of the Mexican Revolution of 1910.
Since then, the chapel took up the proposal of a possible re-signification of religious iconology.
Key-words
Chapingo, chapel, Rivera
267
X X X Colóquio CBHA 2010
Atualmente, a Capela de Chapingo é, nas questões referentes à sua história e
contextos, um complexo jogo de apropriações. Assim, faz-se necessário para sua
melhor compreensão que abordemos ponto a ponto as recepções envolvidas neste
cenário, desde o seu intrincado processo construtivo.
Por longo período, no mesmo local da capela eram organizados cultos
astecas. Após a conquista espanhola, os cultos foram banidos e o terreno permaneceu vago. Somente no século XVIII a Companhia de Jesus tornou-se proprietária de todo o terreno dando origem a Hacienda de Chapingo. Disto resultou um
verdadeiro refúgio jesuíta, pois, além de vasto o terreno, a fazenda permanecia
consideravelmente afastada da capital mexicana, e, contudo, não demasiadamente longe. Foram os jesuítas que construíram o atual prédio no qual encontramos
a capela, que é de um estilo simples de rococó, e que nesta época abrigava poucos
ornamentos internos (em razão da austeridade da companhia).
No começo do século XX, porém, uma revolução tomou o país de assalto opondo-se principalmente as autoridades civis e religiosas. Liderada majoritariamente por homens do campo, como E. Zapata e Pancho Villa, a Revolução
Mexicana alcançou o poder em apenas um ano, em 1911; entretanto somente em
1917 o país teve uma nova constituição promulgada, na qual constavam artigos
como: educação laica em todas as escolas, liberdade de crença, e apropriação de
todos os bens da Igreja. Em suma, neste novo contexto, no início da década de
1920, a Hacienda de Chapingo transformou-se na Universidade Autônoma de
Chapingo tendo como destaque a faculdade de Agronomia (símbolo da nova
mentalidade nacional). O edifício principal, de construção jesuítica, foi remodelado como reitoria da universidade; todavia, o espaço da capela passou a representar um enorme problema para a nova administração – a capela simplesmente
não tinha mais sentido algum.
Durante o governo de Álvaro Obregón, que iniciou a década de 1920,
foi nomeado para a Secretaria de Educação Pública o escritor, filósofo e antigo
reitor da Universidade da Cidade do México, José Vasconcelos, que sonhava com
uma virada cultural no México. Para tanto, Vasconcelos elaborou um amplo
programa cultural regido por uma ideologia reconhecida como “indigenismo”,
a qual buscava raízes culturais e artísticas mexicanas anteriores a colonização
espanhola. O método seguido pelo governo federal foi custear obras públicas de
arte que se relacionassem com a cultura mexicana, com a vida social e política do
país, e com a população. Como resultado houve uma explosão de obras murais,
caracterizando a chamada “renascença mexicana”. A atuação destacada de Vasconcelos deve-se ao fato de que ele pessoalmente foi à caça de artistas que se comprometessem com esta vanguarda artística nacionalizante. Dessa forma, entre
visitas a estações arqueológicas e exaltações às obras e artefatos pré-colombianos,
o secretário estimulou nomes como Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José
Clemente Orozco a aceitarem o desafio de remodelar as artes plásticas no país.
Durante todo este período revolucionário, Diego Rivera esteve na Europa estudando pintura, debatendo influências e misturando-se aos nomes que
estabeleceram a arte moderna. O artista deixou o país em 1907 rumo a Espanha,
e, após um curto retorno ao México entre 1910 e 1911, permaneceu circulando
pela Europa até 1921. No começo Diego viveu em Paris (então a capital mundial
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X X X Colóquio CBHA 2010
da arte de vanguarda) experimentando tendências variadas. Através de alguns
anos dedicou-se ao cubismo, alcançando um considerável sucesso. Contudo, seus
dois últimos anos no velho continente foram dedicados exclusivamente ao estudo
da arte italiana dos séculos XIII, XIV, XV e especialmente as obras de Giotto di
Bondone. Enfim, na volta ao México Diego encantou-se com a proposta de um
muralismo mexicano – um programa feito sob medida para as suas afinidades
artísticas. Logo, seu primeiro trabalho mural foi “La Creacíon”, na Escuela Nacional Preparatória, mesclando seus estudos da arte italiana com os modelos e
cores tipicamente mexicanos, realizando uma cena mais mística do que propriamente religiosa. É importante ressaltar que este mural, terminado em 1922, fez
de Rivera o primeiro artista moderno a retomar não só os motivos como também
os temas religiosos; pois apesar de Kandinsky ter publicado o livro Do Espiritual
na Arte ainda em 1917, outros nomes de importância na vanguarda artística (tais
como Matisse, Chagall e Dalí) só retomariam em suas obras tais temas e motivos
após a Segunda Guerra Mundial.
Outro fato que fazia de D. Rivera um nome importante e fundamental
para a tal “renascença mexicana” era sua paixão pela arte pré-colombiana. Neste
período de boom do interesse pelos astecas e outros povos antigos descobrem-se
milhares de peças, artefatos e ruínas anteriores a chegada espanhola, e desde então Diego tornou-se um insaciável colecionador e um estudioso da cultura e das
práticas astecas. Essa relação tão íntima fez com que artista na década de 1950
gastasse todo o seu dinheiro para construir o Museu Anahuacalli (com todas as
devidas características e particularidades da lógica e influência asteca), na Cidade
do México – museu que abriga a maior coleção de artefatos pré-colombianos do
mundo.
Portanto, no momento em que a Capela de Chapingo tornou-se uma
grave questão a ser elucidada no México pós-revolução, o nome de Diego Rivera
surgiu adaptado perfeitamente como salvação, e podemos afirmar que o próprio
Rivera muito se entusiasmou com o projeto, pois: Diego já estava trabalhando
em um enorme projeto mural na Secretaria de Educação Pública (vale lembrar: o
espaço de maior prestígio entre intelectuais mexicanos após a revolução) e ainda
assim aceitou o desafio de cobrir inteiramente de murais a capela em Chapingo;
o fez em tempo recorde, começando a concepção e os primeiros esboços em 1923
e concluindo os murais em 1927 – sem, contudo, abandonar os trabalhos na
S.E.P.; ademais, há relatos de que o artista trabalhava na capela em jornadas de
até vinte horas ininterruptas. Ademais, segundo Octávio Paz, Rivera é o modelo
de um específico projeto artístico: organizar ou dar sentido à construção de uma
tradição pictórica. Assim, tendo abordado todos estes tópicos podemos apresentar a relação destes murais com a recepção da tradição, seja da arte italiana,
asteca, ou católica.
Havia uma prática entre os pintores renascentistas de retratar, em imagens religiosas, personalidades contemporâneas influentes ou significativas entre os personagens representados – os exemplos são inúmeros. Todavia, Rafael
Sanzio estabeleceu uma nova possibilidade em “A Escola de Atenas”: ele fez da
representação de cada um dos “personagens da filosofia” o retrato de um artista,
isto é, fez de cada personagem dois personagens; assim, grosso modo, “Platão”
269
X X X Colóquio CBHA 2010
é também “Leonardo Da Vinci”, “Euclides” é “Bramante”, e “Heráclito” é “Michelangelo”. Esta tradição é a primeira problematizada por Rivera no projeto
da capela, ainda na concepção; Diego traça um programa pictural em que uma
mesma imagem possa ser duplamente religiosa/mística e política/social, ou seja,
na prática o artista justapõe motivos religiosos com temas sociais. Tal justaposição também advém da recepção da tradição cultural asteca, que não fazia clara
distinção entre assuntos e motivos religiosos ou políticos, tendo no cotidiano
uma esfera confundida com a outra. Ocorrem então releituras, em que a figura
dos profetas se desdobra em “guardiões da revolução”, ou a estrela-guia que passa
a ser vermelha; e também em sentido contrário, por exemplo, as representações
do martelo e da foice deixam de caracterizar um único símbolo comunista para
retomarem suas antigas interpretações – com o martelo simbolizando a potência
criadora, o inicio, o pólo masculino, e a foice simbolizando a potência ceifadora,
o fim, o pólo feminino. O que ocorre na estrutura mental destes murais é um
jogo de metáforas, sendo a principal delas a figura do líder. Seguindo uma visão
social, facilmente reconhecemos a figura do “líder dos oprimidos”, que veste tanto o macacão operário quanto o chapéu camponês, ou seja, um revolucionário.
Numa visão mística, porém, esta é a figura do “líder espiritual”, capaz de se relacionar com todos e de contestar os valores vigentes, ou seja, um revolucionário
também.
Quanto à estruturação pictórica da capela, o artista foi claramente inspirado na estruturação arquitetônica pintada no teto da Capela Sistina. Rivera
utilizou-se dos meios arquitetônicos presentes em Chapingo para realçá-los com
pintura, remodelando e criando novas estruturas visuais. O teto de Chapingo é
a melhor representação disto: em tons marmóreos o artista concebeu toda uma
abóbada, criando espaços para a encenação de imagens distintas; entretanto, o
intuito é apenas estabelecer um esqueleto arquitetônico que possibilite a visão do
céu – bastante diferente do projeto de Michelangelo, que era conferir materialidade ao próprio teto.
Nos aspectos formais ocorre toda uma referência as figuras pré-colombianas. O corpo humano, por exemplo, tem uma anatomia pouco “científica” ou
matemática, ou mesmo ideal. Trata-se de uma anatomia que procura respeitar
somente a proporcionalidade corporal, evitando criar violências visuais, o que
replica a mesma configuração dos personagens de murais astecas, além de ambos delimitarem as figuras humanas com longas curvas. Excetuando a imagem
“Morte do Camponês”, que faz evidente alusão a composição do afresco “A Lamentação” de Giotto, em Pádua, todas as outras imagens tem composições bastante
curiosas: desconsiderando a noção de perspectiva e apresentando ambientes ao
invés de cenários, posto que quase em sua totalidade estes murais não demonstram nenhuma preocupação em uma legitimação espacial.
No que se refere às cores empregadas, estas são totalmente ameríndias,
por assim dizer. Os tons europeus tradicionais de azul, dourado e branco, são
substituídos por cores vibrantes ao estilo mexicano, como o verde e o amarelo,
além das cores terrosas que dão vida ao tema agrícola por toda a capela. Em especial, percebe-se um vermelho muito forte em diversos momentos: em estrelas;
em roupas; como cor de fundo; e até nos detalhes arquitetônicos, o que é bastante
270
X X X Colóquio CBHA 2010
significativo pois na arte européia, e especialmente católica, a cor vermelha sofria
certo recalque pelas suas associações com o martírio de Cristo, as chagas e sangue
divino. Em Chapingo, está lógica “anti-vermelho” é invertida conferindo à cor
uma pulsação gritante como um fluxo extraordinário oferecendo vida ao longo
do espaço. Outras cores também se destacam pela relação direta com os murais
astecas, como, por exemplo, o verde, que em Chapingo é exatamente o verde asteca, produzido quase da mesma maneira e com os pigmentos da mesma planta:
o napal, uma espécie de cacto típico da região.
Finalmente, a iconologia da capela também tem uma intricada rede de
relações. Como exemplo, consideraremos a imagem da parede do altar. Na tradição católica, este é um espaço especial, dedicado a representações como o Céu,
Jesus Cristo (na cruz é o mais comum), a Ave Maria, a Santíssima Trindade ou
o Apocalipse. Chapingo, por sua vez, nos apresenta uma cena estranha e definitivamente fora dos padrões da igreja romana. Para um melhor entendimento
talvez seja necessário uma curta descrição sobre a natureza de Quetzalcoalt, a
figura mais importante do panteão asteca. Do conjunto de crenças, hieróglifos
e rituais náhuatl resulta que o grande deus verdadeiro é o “Sol” – as outras entidades aparecem como simples aspectos desta figura central. Entretanto, este
único deus tem origem humana, é um homem que se converteu em Sol (e não
Deus que se fez homem, como no cristianismo), portanto não se trata de uma
divindade distribuidora de graças, mas de um mortal que descobriu uma nova
dimensão humana, o chamado Quetzalcoalt, ou “Serpente-emplumada”. Por
esta razão é que o hieróglifo do Sol sempre tem um rosto humano, e o nome da
cidade de Teotihuacán significa “lugar onde se fazem deuses”. De volta ao altar
em Chapingo, não há representação de Deus, segundo a lógica judaico-cristã, e
nem mesmo a representação de Jesus, o que vemos são representações dos quatro
elementos naturais reverenciando o homem-deus. O homem nu de costas para
nós é o homem feito divindade, aquele que atravessou toda a narrativa da capela e
alcançou outro grau de “humanidade”, e por isso ele pode conferir o fogo divino
ao “Prometeu-vulcão”. Em outras palavras, a mitologia abandona seu status de
passado para ser a garantia de um futuro melhor. Por fim, este último mural nos
explica ainda outra alteração quanto a tradição: enquanto Giotto concebeu uma
narrativa circular na capela dos Scrovegni conforme a circularidade dos mundos
descritos na Divina Comédia, Rivera concebeu uma narrativa em linha espiral
percorrendo toda a capela e desenhando um serpentear voador, exatamente como
a realização de Quetzalcoalt.
Todavia, é na questão narrativa que Diego mais se debruça sob a tradição
clássica da pintura italiana. O pintor mexicano preencheu a capela com murais
que sustentam uma narrativa ao longo de todas as imagens, à maneira da Capela
de Scrovegni, em Pádua. O interessante é que ainda assim cada uma das imagens
guarda uma independência ou sua própria narrativa, bem como a elaboração de
Giotto. Porém, a arte italiana concedia grande importância à narrativa de uma
história, e normalmente uma história famosa ou popular como temas bíblicos ou
mitológicos. Em Chapingo isto não ocorre – apesar da estrutura narrativa dever-se ao modelo de Giotto. Estes murais não contêm uma história propriamente,
não apresentam fatos, não ilustram nenhuma circunstancia precisa. Portanto,
271
X X X Colóquio CBHA 2010
também aqui a tradição clássica da narrativa tem ares modernistas representando
somente motivos, possibilidades, especulações, ou melhor, nada “comprovável” –
permitindo inclusive uma identificação quase religiosa.
Assim, a atitude de re-significação da tradição, em Chapingo, não é outra senão a de uma hagiografia – a criação de uma narrativa mítica, ou beatífica.
E o mais surpreendente é que não se trata da vida de um santo, mas da vida de
uma nova sociedade, de uma revolução. Se a Capela de Chapingo pode ser entendida como o grande livro da revolução mexicana, ela com certeza não é uma
“biografia”, ela não se apresenta como biografia da revolução porque lhe faltam
fatos, todos os fatos. A Capela Scrovegni, em Pádua, é muito mais biográfica do
que a mexicana. Esta, é uma biografia sem fatos, é precisamente a hagiografia da
revolução mexicana – e isto é possivelmente uma nova tradição: Chapingo faz da
Revolução Mexicana um acontecimento divino.
Referências Bibliográficas
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Chapingo, 2007.
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México, 2008.
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3, 2002.
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2002.
272
X X X Colóquio CBHA 2010
O retrato luso-brasileiro:
a representação do poder
ultramarino
Breno Marques Ribeiro de Faria
Mestrando / UNICAMP
Resumo
Propõe-se interpelar a origem, procedência e fim do acervo brasileiro de retratos setecentistas a partir dos que se encontram atualmente em Minas Gerais (Museu da Inconfidência, Museu Mineiro,
Museu do Ouro e Câmara Municipal de Mariana) e no Rio de
Janeiro (Museu Histórico Nacional, Biblioteca Nacional e Câmara
Municipal do Rio de Janeiro). A pesquisa se baseia na busca de
(re)constituir a rede de imagens que possibilitou a execução dos
retratos em questão.
Palavra Chave
Retratística, pintura luso-brasileira, iconografia do poder.
Abstract
It is proposed to question the source, origin and end of the Brazilian collection of portraits from the seventeenth century that are
currently found in Minas Gerais (Museu da Inconfidência, Museu
Mineiro, Museu do Ouro e Câmara Municipal de Mariana) and
Rio de Janeiro (Museu Histórico Nacional, Biblioteca Nacional e
Câmara Municipal do Rio de Janeiro). The research is based on
the search for (re) constitute the network of images that enabled
the making of the pictures in question.
Keywords
Portraiture, luso-brazilian painting and iconography of power.
273
X X X Colóquio CBHA 2010
O poder dificilmente poderia ser definido como algo material, tangível e palpável, mais apropriado seria entendê-lo como uma força, uma prática ou um ato.
O poder não é algo estático, mas uma relação de algo ou alguém com outro ser
e, nesse sentindo, pensamos na sua representação não somente como uma “ilustração”, mas como uma manifestação do mesmo. O fato uma força se dar a ver é
parte constitutiva de sua existência, não sendo assim possível separar o poder de
sua representação.
Nesse caso a definição de Pierre Bourdieu de poder simbólico se torna
particularmente elucidativa:
O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer irreconhecível,
transfigurada e legitimada, das outras formas de poder: só se pode passar para além da alternativa dos modelos energéticos que descrevem as relações socais como relações de força e dos
modelos cibernéticos que fazem delas relações de comunicação, na condição de se descreverem
as leis de transformação que regem a transmutação das diferentes espécies de capital em capital
simbólico e, em especial, o trabalho de dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de
eufemização) que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo
“ ignorar-reconhecer” a violência que elas encerram objectivamente e transformando-as assim
em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio de energia.1
Adotada essa premissa para o entendimento do universo cultural no
qual se inseria Portugal, bem como o Brasil no século XVIII, e que produziu
os retratos em questão, podemos considerar o Absolutismo como mais que uma
teoria política. É relevante retomarmos o estudo A Sociedade de Corte de Nobert
Elias sobre a cultura que emergiu em torno da figura de Luís XIV da França
(1638 - 1715) e que imputou grande parte do significado histórico aos retratos do
tipo sobre os quais nos debruçaremos.
A proposta do trabalho de Elias é analisar a corte do Ancien Régime que
acumulava as funções de estrutura da família real e administração do Estado e
para tal, ele introduz o conceito de figuração, que pretende dar conta dos indivíduos em seus contextos específicos de atuação histórica. Situando o cortesão para
além do livre-arbítrio, no espaço da corte, entendida como matriz social e local
privilegiado da sociedade, a existência desses personagens é regida pelo luxo, entendido não como falta de racionalidade e propósito no consumo e costumes,
mas sim, como forma de afirmação social de valores.
Formações culturais das quais temos uma percepção meramente estética – na maior parte das
vezes como variantes de um determinado estilo – são percebidas por quem conviveu com elas
como expressão bastante diversificada de qualidades sociais^F.
A etiqueta nesse espaço é uma estrutura simbólica na qual as normas
servem para (re)criar a hierarquia dos privilégios concedidos pelo rei aos nobres.
Dentre os cortesãos há uma necessidade de constante afirmação da sua posição
dentro do grupo e no cerimonial há uma competição por prestígio visando à
1
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 15.
274
X X X Colóquio CBHA 2010
confirmação do status dessa posição. “A prática da etiqueta consiste, em outras
palavras, numa auto-apresentação da sociedade de corte”^F. A etiqueta deve ser entendida não como uma prática meramente formal, mas como estrutural e estruturante da vida em corte. “Não se trata de mera cerimônia, mas de um instrumento
de dominação dos súditos. O povo não acredita num poder que, embora existindo de
fato, não apareça explicitamente na figura do seu possuidor”^F.
Luís XIV foi o mais evidente exemplar europeu de monarca absolutista
e além de uma cultura cortesã a sua volta foi produzido todo um sistema de
produção e disseminação de imagens áulicas. O intento de aclamar o rei foi de
tal modo planejado e bem sucedido que serviu de modelo a outros monarcas. A
prática de difusão da imagem desse soberano entre seus contemporâneos caracterizava-se pela ânsia de persuadir e visava exaltar a figura do rei, essa cumpria
simultaneamente uma dupla função: criar e aumentar a sua glória.
A opulência dentro da cultura barroca tinha associação direta com o poder, sendo esperado que ele se manifestasse de maneira espetacular. A representação do rei instrumentaliza a manifestação do poder de forma persuasiva, este é
exercido e representado de forma teatralizada, com reforço à carga simbólica das
imagens associadas à figura do monarca.
Dentro dessa dimensão da cultura visual do período se inserem de forma proeminente as pinturas de retrato. A função dessas pinturas era de acalentar
em seus espectadores as sensações esperadas em relação ao monarca. A representação do rei deve estar de tal modo associada ao mesmo que deve o tornar
presente na sua ausência, sua contigüidade com os objetos de culto religioso não
é casual. Os retratos de Luís XIV, excetuando os para exposição privada, se enquadram no gênero conhecido como retrato solene, retrato de Estado ou retrato
oficial representativo.
Para a pintura narrativa e os retratos solenes, o estilo apropriado era chamado maneira
“grandiosa” ou “magnífica” (...) Esse estilo envolve a idealização. Como Bernini observou
enquanto trabalhava num busto do rei, “O segredo nos retratos é aumentar a beleza e emprestar grandiosidade, diminuir o que é feio ou mesquinho, ao até suprimi-lo, quando é possível
fazê-lo sem incorrer em servilismo” 2
O entendimento do caso francês não é meramente exemplar, pois, em
Portugal, D. João V (1689 – 1750) se espelhou na figura de Luís XIV para construir a sua própria imagem. Aclamado dia primeiro de janeiro de 1707, com 17
anos tinha como modelo vivo o rei da França. O pintor francês Ranc, homem
da corte espanhola que havia estado em Lisboa com o objetivo de fazer retrato
das reais pessoas – e por isso, naturalmente conhecia o rei em privado – afirma
que D. João V lhe havia feito muitas perguntas acerca da pessoa de Luis XIV, tal
como lhe dissera que “tinha grande veneração pela memória de Luís XIV, porque
fora um monarca capaz de servir de exemplo não só aos Reis seus sucessores, mas
ainda a todos os Soberanos da Europa”3.
2
BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar ed., 1994. p. 36.
3
BEBIANO, Rui. D. João V: poder e espetáculo. Aveiro: Estante, 1987. p. 89.
275
X X X Colóquio CBHA 2010
Em 1708 casa-se com D. Maria Ana de Áustria e então se desenvolve
um elaborado ritual palaciano, tudo é minuciosamente regulado por meio de
princípios e de normas, muitas vezes escritas, de etiqueta social e comportamento
pessoal. Tais regras, procurando essencialmente proteger e isolar a sagrada pessoa
do rei, visam também a construção da imagem fictícia de mundo exemplar e perfeitamente ordenado. O vestuário da corte, exemplarmente usado pelo rei, segue
à moda francesa da corte de Versailles. Bem como, a decoração dos aposentos
régios, tem origem ou inspiração na França. Essa busca de um modelo na França
possivelmente foi engendrada para distanciar-se da recém opressora Espanha. A
influência francesa instalar-se-ia porém, ainda que limitada à formação cultural
dos grupos dominantes (nomeadamente ao nível de criação e de consumo literários) e a um genérico ascendente no campo da moda e da etiqueta. É que no
domínio da arquitetura e das artes plásticas (e em menor escala no das artes decorativas), áreas indispensáveis a um adequado enquadramento cenográfico do cerimonial barroco, as ideias e os homens vieram de outras paragens, excetuando-se
pintores franceses como Quillard e Duprat. A este nível, conhece-se a preferência
do rei pela Itália e por Roma, o brilho do barroco romano combinado com uma
austeridade pós-tridentina, tão de agrado de mentalidade dominante na Igreja
portuguesa, faria determinar essa primazia.
Os processos de construção do poder e da imagem têm uma relação próxima, pois, ambos necessitam de um tempo histórico longo. A formação dessas
duas dimensões do social prescreve um esforço de gerações, a fim de proporcionar uma solidez que suplante a efemeridade dos contextos aos quais elas devem
sobreviver. O discurso visual em função do poder deve resistir às mudanças políticas, pois mesmo com a permuta do soberano a imagem do poder monárquico
deve ser perene. Sendo parte de um código social da cultura ocidental moderna
na representação do poder, o retrato régio ocupa o ponto mais alto da hierarquia
“atraindo por gradual imitação os de quem sucede na escala social”4.
Em 1730 é produzida uma ilustração pelo flamengo F. Harrewyn, uma
representação de D. João V na pose de Luís XIV na pintura executada por Rigaud, que dentro dos códigos de comunicação da época é capaz de transmitir
uma declaração de poder inequívoca. Apesar de outras imagens serem produzidas do monarca com tema alegórico ou mitológico, é evidente a “necessidade
histórica de uma perspectiva clássica do poder”^F. Pois a altivez monárquica se impõe
sobre o espetáculo barroco, sendo a composição da obra submetida a função
social da mesma.
A necessidade de produzir imagens do soberano e da família real apresenta caráter político, sendo estas expostas em embaixadas, enviadas para outras
cortes em vista de noivado ou mesmo para materializar o poder régio nas colônias. “Entre Duprà e Quillard, teve D. João V a sua figuração assegurada e repetida
em múltiplas cópias para vários destinos políticos”^F.
Para o estudo do acervo brasileiro de pinturas da família real portuguesa devemos de maneira inequívoca começar pelo artigo intitulado Retratos
Colônias de Hannah Levy, no qual a autora faz uma análise inicial dos retratos
4
FRANÇA, José-Augusto. O retrato na Época Joanina. In: A pintura em Portugal ao tempo de D. João V.
1706– 1750: Joanni V Magnifico. Lisboa. 1994. p. 97.
276
X X X Colóquio CBHA 2010
“brasileiros”5. Destacam-se três categorias principais de acordo com certa homogeneidade e observando a ausência de retratos de famílias no período colonial: O
grupo retrato de burguês, o grupo retrato de erudito e a categoria do retrato da real
família portuguesa é o retrato oficial representativo, que são “exemplos típicos do
estilo internacional barroco” 6 com a linguagem visual grandiloqüente, predicado
das representações absolutistas. Mas esse tipo de retrato não se restringe exclusivamente a realeza, sendo também utilizado para pessoas as quais se desejava
destacar a alta posição na hierarquia social, como governadores e vice-reis.
A questão da autoria se coloca de maneira proeminente nessa categoria
de retrato, pois a determinação de origem dos quadros é complexa. Esses retratos
podem ter origem metropolitana, sendo enviados para a colônia para ocupar
lugar de destaque em edifícios da administração colonial ou executados por pintores locais, através da cópia de uma pintura portuguesa ou a partir de estampas,
gravuras, etc.
As características visuais dos quadros que se encontram no Brasil se assemelham as dos pintores das cortes européias, mas “não poderiam rivalizar com
obras de Rubens, Velásquez, Rigaud, etc”^F. Embora a qualidade da execução seja
inferior, estilisticamente eles se encontram próximos. As pinturas de ambos os
espaços se valem de uma linguagem comum para representação dos personagens
da família real e sua posição econômica, social e principalmente política. Essas
representações são elaboradas objetivando despertar no observador a admiração,
sua linguagem pictórica utiliza recursos que visam causar impacto. A dimensão
social do retratado é traduzida visualmente por elementos referentes ao poder
real. O súdito reconhece a imagem de majestade, pela postura, pelo olhar altivo,
pelo vestuário, e por objetos ligados domínio monárquico, como a coroa, o cetro
e as insígnias reais. O suntuoso domina a composição, a pompa se materializa nas
vestimentas e no ambiente.
O trabalho dos artistas que executavam essas pinturas estava submetido a algumas restrições no campo técnico e material, bem como na dimensão
artística e criativa. A falta de perícia concomitante com a necessidade de fidelidade limitava as possibilidades exploração estética. Os retratos brasileiros devem
ser confrontados com as pinturas portuguesas do mesmo período para melhor
apreensão de seu valor artístico, pois de qualquer modo, persiste uma ligação
direta entre ambas. As pinturas brasileiras, em sua maioria do século XVIII, se
apresentam como uma continuidade da pintura de retrato portuguesa do século
XVII, se for observada entre outras características a austeridade da composição.
Na pesquisa o levantamento de quadros começou por Minas Gerais,
pelos dos seis retratos D. JOÃO V; D. JOSÉ; D. MARIA I; D. MARIA I. D.
JOSÉ, PRINCÍPE DO BRASIL, D. PEDRO III de Belo Horizonte que se en5
LEVY, HANNAH; JARDIM, LUIS; INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (BRASIL); UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Pintura e escultura I. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; [São Paulo]: USP, Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, 1978. p. 147.
6
LEVY, HANNAH; JARDIM, LUIS; INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (BRASIL); UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Pintura e escultura I. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; [São Paulo]: USP, Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, 1978. p. 165.
277
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contram no Museu Mineiro. Em Sabará, no Museu do Ouro, foi localizado um
retrato do Marquês de Pombal, sem autoria ou procedência. O próximo
grupo a ser levantado foi o de Ouro Preto, com quatro retratos D. PEDRO
III, REI DE PORTUGAL; D. JOSÉ, PRÍNCIPE DO BRASIL; D. MARIA
I, RAINHA DE PORTUGAL e D. MARIANA VITÓRIA, que se encontram
no Museu da Inconfidência. Os últimos dois retratos DONA MARIA I e DOM
JOSÉ I encontrados em Minas Gerais então em Mariana, na Câmara Municipal.
Prosseguimos com a pesquisa no Rio de Janeiro onde foram localizados retratos
de interesse para a pesquisa em quatro instituições: o Museu Histórico Nacional
(MHN), o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) a Câmara Municipal do
Rio de Janeiro e a Biblioteca Nacional (BN). No MHN foram encontradas oito
telas D. JOSÉ I; D. MARIA I; MARIANA VITÓRIA DE BOURBON; JOSÉ
DE BRAGANÇA, PRÍNCIPE DO BRASIL; D. LUÍS DE VASCONCELOS;
MARQUÊS DE POMBAL; FRANCISCO XAVIER DE TÁVORA; JOSÉ
LUIZ DE CASTRO, SEGUNDO CONDE DE RESENDE que apresentam
níveis diferentes de relevância e de informações. No MNBA foi encontrado um
quadro, um retrato de D. João V. Na Câmara Municipal também foi encontrada
uma tela o retrato de Gomes Freire da Andrada, Conde de Bobadela de autoria
atribuída a Manoel da Cunha. Na BN foi pesquisada a Coleção Diogo Barbosa
Machado confeccionada em meados do século XVIII em Lisboa pelo abade que
dá nome a mesma e foi adquirida, junto com a biblioteca de aproximadamente
4.3000 obras do bibliófilo, por D. José I para recompor a Biblioteca Real após o
terremoto de 1755. Veio para o Brasil junto com a família real e ficou como parte
dos acordos da independência. A coleção é constituída de seis grandes álbuns,
sendo os dois primeiros dedicados aos reis, rainhas e príncipes de Portugal, com
414 estampas. Quatro referem-se aos varões portugueses insignes: em virtudes e
dignidades (tomo III), em artes e ciências (tomo IV), e em campanha e gabinete
(tomos V e VI), totalizando 544 estampas. Dentro desse montante foram selecionadas 25 gravuras que auxiliarão na composição do esquema de transposição
das imagens de Portugal para o Brasil. A pesquisa no Rio de Janeiro levantou
questões completares as apresentadas pelo acervo mineiro, possibilitando vislumbrar o arquipélago de imagens (Figura 1) que forma a retratística setecentista
brasileira. Mas, ao fim dessa etapa da pesquisa se tornou óbvia a necessidade de
confrontar o acervo brasileiro com português ajustar os modelos, a sistemática de
produção dessas imagens e principalmente entender quais obras encontradas nos
Brasil foram enviadas da metrópole e quais foram produzidas aqui.
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Painel de associação visual do acervo brasileiro
de retratos setecentistas.
279
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Dois nus polêmicos:
‘Le lever de la bonne’,
de Eduardo Sívori e ‘Estudo de
Mulher’, de Rodolpho Amoêdo
Camila Dazzi
CEFET/RJ-UnED Nova Friburgo
UFRJ/ Doutoranda
Resumo
O presente artigo analisa como Eduardo Sívori (Buenos Aires,
1847-1918) e Rodolpho Amoêdo (Rio de Janeiro, 1857-1941)
entram em contato, na Europa, com as contemporâneas representações do nu feminino e a maneira como estas respresentações
são apropriadas por estes artistas. O artigo igualmente discute a
recepção de suas pinturas em jornais brasileiros e argentinos. As
duas pinturas escolhidas para esta análise são: Le lever da la bonne
(1887), de Sívori e Estudo de Mulher (1884), de Amoêdo.
Palavra Chave
Rodolpho Amoêdo; Eduardo Sívori, Nu feminino na Arte.
Abstract
The present paper analyzes as Eduardo Sívori (Buenos Aires, 18471918) and Rodolpho Amoêdo (Rio de Janeiro, 1857-1941) enter
in contact, in Europe, with the contemporaries representations of
naked female bodies and the way as these representations are appropriate for these artists. The paper also discusses the reception
of their art in Brazilian and Argentinian journals and newspapers.
The two paintings chosen for this analysis are: Le lever da la bonne
(1887), by Sívori and Estudo de Mulher (1884), by Amoêdo.
Key-words
Rodolpho Amoêdo; Eduardo Sívori, Nude Female Art
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Ao folhearmos os catálogos das exposições de arte do século XIX é possível perceber uma crescente presença de nus femininos, realizados por artistas das mais
diversas procedências. Não raro, alguns desses nus suscitavam polêmicas e acaloradas acuações de “mal gosto” e “pornografia”. É o caso de telas como ‘Vénus
et Psyché’ de Gustave Courbet, rejeitada pelo juri do Salon de 1864, por motivo
de imoralidade1 ou ‘Rolla’, de Henri Gervex, “recusada pelo salon de 1878 pelo
acento explicitemente érotico da representação”2 . Já outras telas, a grande maioria
delas, foram apreciadas e admiradas pelos críticos e pelo público. Basta lembrarmos de nomes como Cabanel, Bouguereau, Chaplin e Jules Lefvebre, louvados
pelas “idealização de peles nacaradas” e o pelo clima sensualista” de suas pinturas. Não sejamos, no entanto inocentes. Houve quem elogiasse o despudor
imperfeito das mulheres de Courbet, assim como houve quem criticasse, e não
pouco, todas as vénus rosadas que desfilaram pelos salões oitocentistas.
Os países da América do Sul, sempre a par das últimas tendências artísticas, também tiveram os seus escândalos. Ou, reformulando a frase, tiveram
telas que entraram para a História da Arte como escândalos. É o caso do ‘Estudo
de Mulher’(1884) de Rodolpho Amoêdo e de ‘Le lever de la bonne’(1887), de
Eduardo Sívori. Vamos nos deter brevemente no primeiro caso.
São com essas palavras que Gonzaga-Duque, em seu livo ‘Arte Brasileira’
(1888), se refere à primeira exposição de ‘Estudo de Mulher’ no Brasil, em 1884:
E para qualificar o poder de realidade que tem este quadro, a estranha vida que anima esta
obra-prima, apenas encontro como forma clara e única a frase dita por uma senhora diante
dessa figura:
- Que mulher sem-vergonha!
Este quadro que, na exposição de 1884 foi o mais bem pintado, o que resumia mais conhecimento de modelado e maior savoir faire, isto é, espontaneidade, segurança e elegância de
toque, mereceu da congregação acadêmica uma censura por... ser imoral!3
As palavras do crítico fazem parecer que a tela foi excessivamente ousada
para os professores da Academia e para o público carioca. Mas teria de fato o
evento ocorrido desta forma? Aqueles que estudam a produção artística brasileira do século XIX já sabem, por experiencia própria, que Gonzaga Duque não
pode ser inocentemente tido como senhor da ‘verdade absoluta’. Vejamos então
o que foi dito, em 1884, sobre o ‘Estudo de Mulher’, por outro articulista, Oscar
Guanabarino:
[Estudo de Mulher] é o trabalho mais delicado que temos visto neste gênero entre nós, e a
mais exata reproducção da côr da carne humana.
O tom roseo que predomina em toda a figura talvez pareça um tanto exagerado aos que estão
habituados a vêr as falsas côres do nú, que geralmente se nos apresentão.
1
LARAN, Jean; GASTON-DREYFUS, Philippe; BENEDITE, Léonce. L`Art de Notre temps- Courbet.
Paris : La Renaissance du livre, J. Gillequin, 1911.
2
BROOKS, Peter. Le corps-récit, ou Nana enfin dévoilée. Romantisme, 1989, n°63. p. 75.
3
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. A arte brasileira. Rio de Janeiro: H. Lombaerts, 1888. Texto com
ortografia atualizada, disponível no site http://www.dezenovevinte.net/
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[...] A cabeça, os cabellos, o tronco, as pernas, os pés, tudo emfim denuncia acurado estudo e
vontade firme de vencer algumas difficuldades sérias, como, por exemplo, esta: fazer destacar
os pés, que são de uma finura extrema, sobre as dobras de uma colcha de nobreza clara.
Mas ainda não é tudo. [...] Todo o quadro tem muita luz e sobretudo muito ar (duas qualidades excellentes). E os accessorios são de tal ordem que não podem passar desapercebidos.4
Oscar Guanabarino não parece em sua crítica, publicada em um dos
mais lidos jornais do período, minimamente chocado pela forma como foi exposto o corpo nu da modelo.
E a Academia? Se o quadro foi condenado por ser imoral, não deveriam
ter sido os professores da AIBA a ‘lançar a primeira pedra’? E, de fato, Amoêdo
não poderia ter se esquivado do crívo dos professores daquela instituição, uma
vez que ‘Estudo de Mulher’ era um dos envios do seu quarto ano como pensionista da AIBA na Europa. Vejamos o parecer dos professores Victor Meirelles e
José Maria de Medeiros sobre a tela, redigido em setembro de 1884:
A Comissão encarregada de dar parecer sobre os trabalhos do pensionista Rodolpho Amoêdo,
tendo examinado as quatro telas, que constituem a nova remessa, vê nesses estudos que representam: 1.A partida de Jacob; 2.Esboceto de Cristo em Cafarnaum; 3.Esboceto de Tiepolo; 4.
Grande estudo de mulher nua vista de dorso. Que estes trabalhos revelam grande aproveitamento, deixando antever o resultado final de seus esforços, que por certo atingirão; libertando-se mais tarde, da situação transitória e dependente, que o estudo, a prática e os preceitos da
Escola francesa contemporânea, tanto influem e o induzem a sentir desse modo5.
Também não vemos aqui, por parte dos professores responsáveis pelo
parecer, qualquer crítica provocada por excesso de pudor. A crítica é feita à adoção, por parte do artista, dos ‘preceitos da Escola francesa contemporânea’. Já as
palavras do Vice-Diretor da Academia, Ernesto Gomes Moreira Maia, no seu
relatório sobre o ano de 1884 ao Ministro do Império6 , reforçam o embate entre
‘escola clássica’ e ‘escola realista’, não uma aversão púdica ao corpo nú de uma
burguesa:
Os últimos trabalhos quo enviou e que foram recebidos durante a Exposição Geral das Belas
Artes, justificam o juízo que em princípio emiti sobre este pensionista. Todavia me parece
que um desses trabalhos (estudo de mulher de grandeza natural), conquanto bem observado e
cuidadosamente feito, não lhe teria valido a recompensa que obteve na prorogação da pensão;
porque nele, arrastado pelo furor da moda e pela onda do realismo exagerado, afastou-se muito dos bons princípios da escola clássica, que não cessamos de recomendar aos nossos alunos.
4
Edição de 26 de setembro de 1884 - Jornal do Commercio - Ano 63 N. 269 - página 1. FOLHETIM
DO JORNAL DO COMMERCIO. BELLAS-ARTES. Rio, 25 de Setembro de 1884.
5
- Academia Imperial das Belas Artes - 3 de Setembro de 1884”- Victor Meirelles - José Maria de Medeiros”. Academia das Belas Artes, 13 de Setembro de 1884.
6
Relatório do ano de 1884, por Ernesto Gomes Moreira Maia, Vice-diretor da AIBA, em substituição a
Antonio Nicolao Tolentino, que então se encontrava gravemente infermo. Redigido em em 13 de abril
de 1885. Arthur Valle e Camila Dazzi. Texto com grafia atualizada, disponível em: www.dezenovevinte.
net/
282
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Mas teria sido o intuito de Amoêdo chocar, expondo uma tela imoral?
Cremos que não. O artista, juntamente com o envio das quatro telas referidas no
parecer, solicitava uma prorrogação de dois anos da sua estadia em Paris, como
pensionista. Ele sabia depender do parecer favorável dos ‘velhos’ professores da
Academia para alcançar os seus objetivos. Sendo assim, podemos deduzir que
o intuito de Amoêdo era demostrar, com ‘Estudo de Mulher’, que ele estava à
altura das expectativas nele depositadas. Os professores, de fato, ainda que ‘torcendo um pouco o nariz’, reconhecem as qualidades do artista e são favoráveis a
continuidade da pensão. Sorte de Amoêdo não ter contado com Gomes Moreira
Maia entre os pareceristas.
A edesão de Amoêdo aos ‘preceitos da Escola francesa contemporânea’,
foco de crítica dos professores da AIBA, não foi, no entanto, suficiente pra suscitar o louvor absoluto dos críticos. Um artigo, publicado na Revista Illustrada de
Angelo Agostini, que sabemos ter sido um dos principais defensores dos jovens
artistas que tinham a possibilidade de modernizar a Academia, é bastante duro
ao comentar a tela:
Gostamos muito da maneira franca como está pintada essa tela, menos a cor da mulher, da
cintura para baixo. Aquella cor que termina nos pés não nos parece natural, nem está de accordo com a das costas. A cabeça é admiravel porém o cabello deixa muito a desejar: falta-lhe
luz. O braço, apezar de ser um pouco fino, está bem modelado: outro tanto não podemos dizer
das pernas, nem das... (ó diabo!) Onde acabam as costas emfim.
A ser realista, é preciso sel-o devéras. Perdoariamos a ousadia de uma posição como a d’essa
mulher, se a sua execução chegasse a provocar, da parte de quem olha, o desejo de dar-lhe uma
palmada. Então sim!...7
Amoêdo, em sua tela, ao mesmo tempo que mantinha um vínculo com
os modelos da tradição clássica, (perceptível em obras como o Hermaphroditus
Borghese, a ‘Vénus ao Espelho’, de Velázquez e a ‘Grande Odalisca’, de Ingres),
assimilava as novidades da “Escola Francesa” dos anos de 1880. O exagero de
certas linhas presentes em ‘Estudo de Mulher’ nos leva a arriscar, ainda, que a
tela possui uma interessante conexão com as primeiras fotografias pornográficas
do século XIX. Surgidas em uma época em que as mulheres burguesas eram prisioneiras do corset “droit-devant” e do faux-cul, a fotografia pornográfica, através
de principiantes como Auguste Belloc ou o escritor Pierre Louÿs 8, nos revelam
o verdadeiro gosto masculino da época, e ele não tendia às silhuetas tubulares
e andróginas. Nádegas redondas e proeminentes, acentuada por cinturas extremamente finas, como aquelas apresentadas em Estudo de Mulher, ecarnavam,
na década de 80 do séc. XIX, o corpo feminino erotizado. As formas do corpo
apresentadas em Estudo de Mulher, parecem ter encantado, por exemplo, Guanabarino, que procurou justificá-las, no seguinte comentário:
A mimosa côr de rosa pallida impera em todo o corpo, modificando-se aqui, alli, para contor7
Salão de 1884– III. Ano IX, n.392, p.3 e 6.
8
POCHON, Caroline; ROTHSCHILD, Allan. La face cachée des fesses. Paris: ARTEEditions/Democratic Books, 2009.
283
X X X Colóquio CBHA 2010
nar os membros ou accentuar um musculo.
Talvez pareção exageradas certas linhas desse corpo nú; mas, como não se trata de uma creação, porém sim da reproducção da um modelo vivo, nada temos que vêr com isso. E ainda que
tivessemos, a molleza daquella carnadura e a flexibilidade de todos os seus membros fazem
desculpar esse defeito, se defeito é.
Com tudo o que foi dito sobre a tela, Estudo de Mulher não causaria
grandes “exclamações” se tivesse sido exposta no Salon parisiense de 1884, fazendo par com uma série de obras que ali foram expostas, onde figuravam belas
mulheres de corpos acetinados, jovens burguesas em poses da tradição clássica.
Mas não só de beldades se constituia a arte dos anos de 1880. E as
disparidades que surgiam, essas sim causavam algum impacto, como podemos
perceber na leitura da crítica que se segue, dirigida à uma tela exposta no Salon
parisience de 1887:
La mujer de piel negruzco, despojada de toda vestidura, tiene la vulgaridad de contornos y
de color que es la ostentación de su situación social. Al vela, vadie se siente con ganas de ir a
acompanharla.9
A crítica publicada no parisiense ‘Memorial Diplomatique’, por Roger-Míles, e posteriormente traduzida e publicada no jornal argentino ‘El Diário’
fazia refrencia à pintura Le lever da la bonne, ou o El despertar de la Criada,
do artista argentino Eduardo Sívori10. O quadro, como podemos perceber pelas
palavras do articulista, vai em um sentido completamente oposto daquele adotado em ‘Estudo de Mulher’. Ao ambiente luxuoso se contrapõe à simplicidade
de um quarto cuja mobília se constitui de uma cama de ferro e uma mesinha. A
suavidade rosada da pele nacarada é substituída por um tom amarelado e doentio. A silhueta em S de fins de século, que correspondia a uma mulher de cintura
finíssima, é substituída pela robustez. À rigidez da carne, à flacidez. É assim que
surgia diante dos contemporâneos de Sívori o “Despertar da Criada’, nos dizeres
dos críticos da época, uma ‘mulher feia e suja’, que assumia a sua nudez com a
maior naturalidade.
Para explicarmos o motivo da tela ter sido um ‘escandalo’, podemos
começar mencionando que ela dificilmente poderia estar inserida, sem chamar
alguma atenção, no contexto de Exposição de 1887, na qual foi exibida. De fato,
o “Despertar da Criada” recebeu alguma atenção dos jornais franceses. Nada
menos que onze deles dedicaram algum comentário ao quadro do desconhecido
argentino, como:
- Emery del ‘Seine’: Muy natural esta pobre y fea chica, sentada en una miserable cama de
hierro, disponiéndose á calzar sus medias inmundas. El “Lever de Bonne” de M. Sivori, es
una grosera y fuerte moza, acostumbrada al trabajo, con su garganta siempre colgando y con
sus miembros fuertes y musculosos.
9
El Diario, 2 de Julio de 1887.
10
COSTA, Laura Malosetti. Los primeros modernos. Arte y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo
XIX (reimpresion). Buenos Aires: Editorial FCE, 2001.
284
X X X Colóquio CBHA 2010
- Ripoult del “Petit Bordeaux” se expressa en los siguientes términos:[...] Parece que es muy
natural, esa muchachota de pechos caídos con su pelo en desorden, de limpieza dudosa, la
camisa está ausente, no quiero saber porqué; el caso es que no gusto de estas intromisiones, por
muy naturales que quieran ser, en un arte que a mi modo de ver debe dirigirse tan sólo a lo
bueno y a lo bello11.
Tais comentários se explicam pelo contexto no qual foi exibido ‘Le lever
de la bonne’ no Salon de 1887. Por um lado, o Salon contava com muitos quadros
que, ainda que entendidos como ‘realistas’, acentuavam aspectos sentimentais e
melodramáticos: camponeses pobres dedicados ao seu trabalho, crianças órfãs,
mães virtuosas, como aquelas apresentadas nas telas de Warrener, Venat e Carré-Soubiran12 . Um tipo de pobreza que “entusiasmava a burguesia”. A pobreza do
quadro de Sívore não possuía o encanto anteriormente mencionado. Basta compará-la com algumas telas que foram expostas no Salon de 1887, mulheres em
interiores humildes, mas dotadas de dignidade e, por vezes, de um sentimento
de tristeza e abandono. Mas, certamente nenhuma delas nua. O mais perto que
essas telas chegavam, no Salon de 1887, de apresentar mulheres das ditas “classes
inferiores”, camponesas ou citadinas, dotadas de sensualidade era em telas como
‘Pensierosa’ de E. H. Sain, na qual uma pobre moça de pés descalços penteia os
longos e negros cabelos, ou ainda na ‘Ignorance’, de Comerré-Paton, onde uma
jovem, também descalça, está deitada de bruços a beira de um lago, tendo a
cabeça coberta por um lenço. As mulheres pobres, as criadas, mesmo em representações sensuais, foram representadas vestidas na Salon de 1887.
Mas e os nús femininos expostos no Salon de 1887? Havia vários naquele ano, de artistas renomado e desconhecidos, nas mais diversas poses, em interiores requintados ou em meio a natureza. Fez especial sucesso aquele ano tela de
Charles Chaplin, ‘Dans les Réves’, posteriormente conhecida como ‘Depois do
Baile’. A feminilidade açucarada que a tela apresenta, é talvez o exemplo máximo
do que o público estava acostumado a ver nas paredes dos Salons13. ‘A criada’,
no contexto dos demais nus femininos expostos no Salon de ´87, se apresentava
como um nu imperfeito, destituido do erotismo elegante e adocicado que caracterizava as demais telas. O contraste, para o publico abitué dos Salons é evidente,
basta vermos lado a lado uma tradicional cena de toilet, como a tela Después del
Baño, de Raimundo de Madrazo e a ‘Criada’ de Sívori.
Sívori não somente representou uma mulher do povo nua, a fez possuidora de um corpo bastante ‘imperfeito’. Podemos pensar, nesse sentido, que
o artista procurava se inserir em uma tradição que tem como exemplo mais conhecido ‘As Banhistas’ (1853), de Gustave Courbet, tela que provocou reações
negativas devido a representação do corpo femino, obeso e disforme, o que possibilitou ao então jovem Courbet se destacar na sena artística parisiense. Os co-
11
Primeros Modernos en Buenos Aires (1876 – 1896). Buenos Aires, Museo Nacional de Bellas Artes,
2007. p. 52. (Catálogo da exposição).
12
Salon de 1887– Catalogue Illustré. Peinture & Sculpture.Paris : Librairie d`Arte/Ludovic Baschet Éditeur, 1887 (vendu ao salon et referermant la list des exposants)
13
GYP. Au Salon. L’Univers illustré, 7 de maio 1887, p.296
285
X X X Colóquio CBHA 2010
mentários depreciativos dirigidos em 1853 às Banhistas nos lembram bastante
aqueles posteriormente direcionados à ‘Criada’ de Sívori:
Quelle a été l’ idée du peintre en exposant cette surprenante anatomie? […] Pose-t-il dans cette
Baigneuse son idéal de beauté, ou s’est-il contenté decopier une créature obèse, à la graisse mal
distribuée, déshabillée sur la table de l’atelier? (Théophile Gautier)14
Ou ainda :
Que veulent ces deux figures? Une grosse bourgeoise, vue par le dos et toute nue sauf un lambeau de torchon négligemment peint quicouvre le bas des fesses, sort d’une petite nappe d’eau
qui ne semble pas assez profonde seulement pour un bain de pieds. (Delacroix)15
O El Censor publicará uma crítica feroz dirigida a “Le lever de la bonne”,
que em nada perde para aquelas dirigidas às Banhistas de Courbet:
“¿A quién se le ocurre pintar semejante majadería, sobre todo cuando la sirvienta es tan fea,
tan desgreñada y tan sucia como la que él ha elegido de modelo? [..] El cuerpo, como anatomía
y como color, es soberbio; pero más que cuerpo de mujer parece el de un mozo de cordel. Las
mechas sucias del pelo y lo feo y soñoliento de la cara, no quitan el que toda la cabeza esté
pintada con fuerza, con verdad, pero el arte no consigue aquí vencer la repulsión que inspira
lo grosero. [...] Los pies de la sirvienta son todo un poema bestial. ¡Qué juanetes más abultados
y violáceos, qué callos más geológicos, qué uñas más córneas y amarillentas! Eso de elegir un
tema sucio para limitarse a la reproducción de algo repugnante, es un error en que caen los
principiantes en su entusiasta radicalismo [...].16
Outra provocação de Sívori ao público e aos articulistas da época foi
ressignificar um tema clássico de uma maneira bastante provocativa. A criada
com as pernas cruzadas, em meio a sua toilete, ocupa o lugar daquelas que sempre representaram na pintura o ideal de beleza feminino: ‘Susanna’, ‘Bathsheba’ e
‘Diana’. No lugar das longas sedosas cabeleiras e dos seios firmes e rosados a feia
e flácida criada.
Colocar lado a lado ‘la Bonne’ com telas como Susanna e i vecchioni
(1650), de Guido Cagnacci; Bathsheba (1832), de Karl Brulloff; Diane sortant
du bain (1742), de Francois Boucher, ou, ainda, a Bathseba in her bath (1612), de
Hans von Aachen para percebemos as semelanças e diferenças entre as imagens.
Para além da substituição do corpo humano jovem e rijo, na tela de Sívore só
temos um personagem, já que a a presença da criada, que ajuda a ama na toillet,
seria impossível em uma tela que representa a criada fazendo a própria toillet. No
entanto, vários elementos permanecem, notadamente o tecido branco próximo
14
La Galerie Bruyas, Alfred Bruyas, Paris, 1876.
15
LAMBERTI, Maria Mimita. Du réalisme et du fromage de Brie. Actes de la recherche en sciences
sociales. Vol. 66-67, mars 1987. p 81.
16
COSTA, Laura Malosetti. Los primeros modernos. Arte y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo
XIX (reimpresion). Buenos Aires: Editorial FCE, 2001. p. 216.
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ao copo feminino que pode ser interpretado como uma indicação de inocencia,
pureza ou, simplesmente limpeza.
Mas, o que mais parece ter ofendido aos contemporâneos de Sivori são
os pés. Pés que são tão linda, pura e delicadamente representados, muitas vezes
objeto de maior atenção da toilete, (notar a Bethseba im Bade, de von Aachen),
na criada de Sívori, parecem sujos e mal cuidados, um ‘poema bestial’ com “callos
geológicos” e “uñas amarillentas” como disse o crítico argentino do ‘El Diário’.
Como se não fossem suficientes todas essas trasgressões, a tela foi igualmente tida como pornográfica. Flácida, feia e com pés horrorosos, ou não, ao
representar o toillet de uma criada, Sívori se conectava a uma tradição erótica de
longa data. O queadro chegou a receber, após a sua exibição em Buenos Aires, o
seguinte comentário de crítico:
Ahora bien ¿debe clasificarse la pintura de pornográfica? Pensamos que se puede
clasificar de tal, sin que esto afecte en lo más mínimo el valor intrínseco de la obra
que es realmente notable como factura. Es de sentir que el realismo del asnto no permita
exhibir al público esta muestra de un talento que se desarolla tan ventajosamente para el
arte nacional.17
Pintar uma crianda nua ou semi-nua ao fazer a sua toillet não foi um
ato criação desconectado de uma tradição por parte de Eduardo Sívori. As representações de criadas em seus comodos simples, momentos antes de se vestirem
(ou momentos depois de se despirem) podem ser encontradas em telas dedicadas
ao deleite privado, e possuiam forte conotação sexual, não somente por expor o
corpo feminino nu ou semi-nu, mas também pela presença na tela de conhecidos
fetiches masculino, como as meias e sapatinhos ou sandálias. Tal combinação
de elemntos rendeu telas famosas, como Toilet pela manhã (1660), de Jan Steen,
‘Le Lever de Fanchon’ (1773), de Nicolas-Bernard Lépicié e La Femme aux bas
blancs (1861), de Courbet.
Nos anos de 1880, com o iníco da fotografia erótica, também circulavam imagens de criadas semi-nuas, em interiores que denunciavam suas posições
sociais e, não raro, estavam presentas na imagem as meias e os sapatinhos.
Concluindo, através dessa breve análise foi possivel verificar não somente como se deu a recepção dessas duas telas, reforçando ou desfazendo mitos
de escandalo na arte oitocentista da América do Sul. Igualmente esparamos ter
colaborado para a compreensão de como Eduardo Sívori e Rodolpho Amoêdo se
apropriaram, na Europa, dos modelos da tradição clássica e das contemporâneas
representações do nu feminino, inclusive aquelas disponibilizadas pala técnica
fotográfica.
17
Sud-America, 6.IX.1887,p.1,c.5.
287
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Foto, c.1850
Auguste Belloc
Estudo de mulher, 1884
Rodolfo Amoêdo
Ost, 150 x 200 cm. MNBA /RJ.
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Ilustração contrastando o velho corset victoriano com a
nova silhueta proporcionada pelo corset droit-levant;
Rodolfo Amoêdo: Estudo de mulher, 1884. Ost, 150 x 200
cm. MNBA /RJ
289
X X X Colóquio CBHA 2010
As Monções como tema:
Almeida Jr. e Oscar Pereira
da Silva; uma análise
comparativa
Carlos R. Lima Jr
Mestrando /PUC/SP
Resumo
A Partida da Monção, de Almeida Jr. e a série de telas encomendadas pelo Museu Paulista a Oscar Pereira da Silva, sobre o tema das
Monções, estavam inseridas em um discurso das elites paulistas de
fins do século XIX e inícios do XX de legitimar diante a nação a
importância de São Paulo na construção do país. Ao analisar essas
representações idealizadas, atenta-se para as fontes que ambos os
pintores se basearam, e deste modo, apontar as possíveis convergências e divergências entre as elas.
Palavra Chave
Monções, pintura de história, representação.
Abstract
The Departure of Mansoons, by Almeida Jr., and the series of canvases done by Oscar Pereira da Silva ordered from Paulista Museum, about the theme of Mansoons, were inserted in the paulistas
elites’ speech from the late of XIXth and the beginning of XXth
century, to legitimate up against the nation the importance of São
Paulo in the construction of the country. Analyzing these idealized representations, focusing on the sources that both painters
used, in order to point out the possible convergences and divergences among them.
Key-words
Mansoons, history painting, representation.
290
X X X Colóquio CBHA 2010
Essa apresentação visa fomentar uma análise comparativa entre as telas Partida
da Monção (1897, 390 x 640 cm), de José Ferraz de Almeida Jr. (1850-1899) e a
série composta de três obras encomendadas pelo Museu Paulista, em 1920: Carga
das Canoas (140 x 110 cm), Encontro de duas monções no Sertão (95 x 172 cm) e
Partida de Porto Feliz (130 x 86) realizada por Oscar Pereira da Silva (1867-1939)
a partir dos desenhos de Hercules Florence (1804-1879) e Aimé-Adrien Taunay
(1803-1828), produzidos em 1826. Tais obras, pertencentes ao acervo do Museu
Paulista1, possuem em comum o tema das Monções – expedições comerciais
fluviais que partiam da cidade de Porto Feliz (SP) em direção à Cuiabá (MT),
através do rio Tietê, entre 1718 e 1838.
A execução dessas telas estava em perfeita consonância com a historiografia produzida em fins do século XIX e inícios do XX por intelectuais ligados
ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), que lançava luz sobre
a temática do bandeirantismo e das monções como ações determinantes não apenas da história de São Paulo, como também da do próprio país^F. Outra Instituição determinante para a efetivação desse discurso foi o Museu Paulista, aberto ao
público em 1895, e que a partir de 1917, com a direção de Afonso d’ Escragnolle
Taunay (1876-1958) - que visou recuperar o caráter de memorial do edifício para
as celebrações do Centenário da Independência em 1922 - passou a encomendar
diversas telas com temas relativos à história de São Paulo e do país^F.
Atenta-se para a realização dessa análise comparativa para as possíveis
fontes visuais e textuais que ambos os pintores – Almeida Jr. e Oscar Pereira da
Silva - se basearam para a construção de suas telas dedicada às Monções; sobretudo as produzidas pelo desenhista francês Hercules Florence que relatou por meio
de anotações e desenhos, a sua viagem, de Porto Feliz a Cuiabá, em 1826, como
membro da Expedição Langsdorff ao Brasil.
Entre os esboços e o relato da viagem: a problemática das fontes nas telas
das Monções
Partida da Monção, única tela de tema histórico do pintor ituano Almeida Jr., formado pela Academia Imperial de Belas Artes (1876) e bolsista do Imperador Pedro II em Paris, foi possivelmente fomentada dentro do IHGSP, da qual
o pintor também era membro e possuía uma relação estreita com Cesário Motta
Jr., influente político na época e primeiro presidente da Instituição, e encorajador
da idéia da produção do quadro2 . Percebe-se que Almeida Jr. tinha intenções de
que a sua tela fosse adquirida pelo Governo do Estado e depois exposta no recém-criado Museu Paulista.
No período em que a tela foi engendrada, a pintura de história, dentro
do sistema de valores propagados pela Academia Imperial de Belas Artes, era
1
A autorização da reprodução das imagens para este Colóquio foi gentilmente cedida pelo Museu Paulista da USP. Créditos Fotográficos: José Rosael e Hélio Nobre. Agradeço aos funcionários do Museu
pela gentileza e atenção dispensada no acesso às correspondências e às telas, em especial Shirlei Ribeiro,
Tatiana Vasconcelos, Márcia Morgan (Setor de Documentação), Prof. Dr. Paulo César Garcez Marins
e Ernandes Evaristo Lopes (Divisão Cultural). Agradeço às Profas. Ana Paula Cavalcanti Simioni e
Fernanda Mendonça Pitta pela leitura atenta e sugestões precisas para a escrita desse texto, e a Tathiana
Anselmo Segolim na digitalização das imagens.
2
SINGH JR. O. Partida da Monção: tema histórico em Almeida Júnior. Dissertação (Mestrado em
História da Arte). Campinas: IFCH/ Unicamp, 2004. p. 8-9.
291
X X X Colóquio CBHA 2010
considerada hierarquicamente superior às outras faturas menores – retrato, paisagem e natureza-morta^F. Ao seguir as regras do decorum propostos pela Academia,
o quadro deveria demonstrar uma única ação (de caráter moralizante), realizada
num único momento, em um único cenário onde todas as figuras deveriam estar
voltadas para a ação do herói3. Como destaca Mattos, a pintura de história não
deveria reproduzir a história propriamente dita, mas sim extrair dela o seu caráter perene e portanto ideal4, e tinha por condição imanente apoiar-se em fontes
históricas. Neste sentido, essas obras eram consideradas na época, como uma
tradução visual desses documentos^F. Entretanto, a tela de Almeida Jr. Partida da
Monção promovia um olhar renovado sobre os exemplos do patriotismo e sacrifício no momento em que foi realizada, como bem observou Lourenço, o pintor
atentou-se principalmente ao aspecto do sentimento humano do tema, analisando
a partida sob o impacto emocional daqueles que ficavam, preocupados e saudosos
na margem do rio^F. Vale notar também que na obra de Almeida Jr. não temos
a imagem do herói, figura central na composição dessas telas; nela, a ação geral,
que fora heroicizada.
Vale notar que Almeida Jr. não se atentou somente ao literário ao produzir a sua tela, apesar de ter contato com uma documentação textual para realizar a composição. É possível supor que para a execução da obra o pintor tenha
tomado contato com o relato “Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825
a 1829” escrito por Hercules Florence, o desenhista francês que participou da
Expedição científica Russa pelo Brasil entre os anos de 1825 e 1829 chefiada
pelo Barão Langsdorff e que possuía como primeiro desenhista, Aimé-Adrien
Taunay^F. Além de relatar a viagem de Porto Feliz à Cuiabá, pelo rio Tietê, Florence realizou diversos desenhos de caráter documental retratando através de
imagens aquilo que presenciou durante a viagem5. Pode-se notar que a fatura
desse relato estava inserido em uma tradição de livros de viagem, segundo Lima,
“literatura em voga desde meados do século XVIII, que tornava acessível aos
europeus informações a respeito dos povos que habitavam o restante do mundo
desconhecido”^F. Tal relato foi traduzido somente em 1875, na Revista Trimestral
do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil (tomos 38 e 39) e não
incluía as imagens^F.
O historiador da arte Oséas Singh Jr. no seu recente estudo sobre a tela,
chama-nos a atenção para uma informação largamente reproduzida e que merece
ser olhada com uma certa desconfiança no que se refere à afirmação do uso por
parte de Almeida Jr. das imagens produzidas por Hercules Florence como suporte visual para a elaboração da tela Partida da Monção. Para Singh Jr., não foi
3
MATTOS, C. V. de. Imagem e Palavra. In: OLIVEIRA, C. H. S. O Brado do Ipiranga. São Paulo:
Edusp, 1999. p. 123. De acordo com a autora eram essas regras básicas de composição de quadros históricos, desenvolvidas ao longo da prática de ensino acadêmico, que entrariam em crise no final do século
XIX, com o nascimento de uma concepção de pintura de história como registro fiel do fato histórico. (p.
123;125). Ainda segundo Mattos, a discussão sobre a função e a forma que esse gênero deveria assumir
na contemporaneidade dividia as opiniões no mundo acadêmico, gerando um debate que ficou conhecido na história da arte como o confronto entre “realistas” e “idealistas” p. 120.
4
Idem, ibidem. p. 120.
5
BELLUZO, A. M. A Expedição do Barão de Langsdorff, 1822-1829. In: O Brasil dos Viajantes. São
Paulo: Metalivros, 1994. p. 127.
292
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possível na época da composição da tela que Almeida Jr. tivesse algum contato
com os desenhos de Florence, já que esses somente apareceriam na reedição de
1941, com a tradução completa do texto e legendas dos desenhos^F.
O arquivo do Museu Paulista possui uma correspondência trocada entre
Afonso Taunay e o pintor Benedito Calixto6 que pode contribuir para esse debate
sobre a questão do contato de Almeida Jr. com os desenhos de Florence. Calixto
relata ao diretor uma lista de desenhos de autoria de Hercules que ele possuía,
e sugere a Taunay que represente em tela para o Museu um desses desenhos, e
acrescenta interessantes informações sobre este:
[...] e finalmente um outro [desenho] estando muito interessante que não tem título nem data
e que parece uma Partida de Monção de Ararytaguaba [atual Porto Feliz] ou qualquer outro
ponto do Tietê que bem merece ser reproduzido. Representa o “acto da Benção das canoas” e o
grupo que cerca o sacerdote – senhoras [ilegível] e povo – são bem estudados.
Se o meu amigo estimado e finado colega Almeida Jr. tivesse visto este bello estudo de Florence
dir-ce-hia que foi este croqui que inspirou a produzir a sua famosa tela Partida da Monção^F.
Reconhece-se que afirmar somente a partir deste pequeno excerto o
uso ou não por parte de Almeida Jr. dos desenhos de Florence, é ser muito precipitado. Porém, contrapor essa afirmação com a de Afonso Taunay que, segundo
ele: “Para executar a sua obra prima inspirou-se Almeida Junior nos desenhos
do illustre viajante francez, durante a sua jornada de Porto Feliz e Cuiabá, em
1826”7 parece, no mínimo, contraditório. Contanto, a possibilidade de Almeida
Jr. ter visto os desenhos nas mãos dos familiares de Florence em Campinas, é
uma possibilidade sem nenhuma referência clara ou registro documental até o
momento estudado.
Almeida Jr. apoiou-se possivelmente em algumas referências visuais para
compor os personagens da tela, pode-se levantar a hipótese de que as suas próprias obras, e figuras contemporâneas a ele^F, foram citadas na composição como
Mendigo da Tabatinguera (1890), Padre Miguel Correa Pacheco (1890), a imagem
de seu próprio pai José Ferraz de Almeida; políticos da época, como Campos Salles
(1894) e, além de telas de outros pintores, em âmbito internacional, com que
Almeida Jr. travou um possível contato visual, como é o caso da tela O pobre
pescador (1881) de Puvis de Chavannes (1824-1898), exposta no período em que
Almeida Jr. estudava em Paris, onde nota-se que o tratamento do espaço e do
enquadramento do horizonte são pontos de convergência entre as duas telas^F. A
paleta clara também é outro aspecto presente em ambas as obras^F.
6
Benedito Calixto (1853-1927) foi um pintor atuante no Museu Paulista. Taunay e o pintor eram muito
próximos, possivelmente já se conheciam do IHGSP, frequentado por ambos. Cf. ALVES, C. F. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. São Paulo: Edusc, 2003. p. 231.
7
TAUNAY, A. d’ E. Guia de Secção Histórica do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Official, 1937.
p. 71.
293
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Como se pode averiguar além do relato de Florence, Almeida Jr. baseou-se em outras referências textuais e iconográficas para a composição de sua tela.
Diferentemente do que vai acontecer com o pintor carioca Oscar Pereira da Silva 8, formado pela Academia Imperial de Belas-Artes entre os anos de 1880, bolsista na Europa e radicado na cidade de São Paulo desde 1896, que realizou para
o Museu Paulista a série de telas dedicada ao tema das monções sob encomenda
durante a gestão de Afonso Taunay. De acordo com Brefe, na confecção de toda
iconografia do Museu, foi intensa a intervenção direta por parte do diretor no
trabalho dos artistas, chegando a pedir alterações sempre que achava necessário^F.
Taunay em 1929 dedicou uma sala do Museu às Monções, e para a composição
desta complementou o espaço com as telas encomendadas a Oscar Pereira da
Silva, ainda em 1920, e as realizadas pelos outros pintores, como Aurélio Zimmermann. Na confeccção das obras, o diretor forneceu alguns dos desenhos dos
dois artistas (Aimé-Adrien Taunay e H. Florence) para serem transpostas para
as telas. Porém, além de colorir os desenhos, podemos notar algumas alterações
realizadas no momento da transposição do desenho para as telas realizadas pelo
pintor - inclusive modificando os próprios títulos originalmente dados a elas - a
fim de atender possivelmente as expectativas do diretor.
Carga de Canoas, produzida por Oscar P. da Silva foi baseado no desenho Expedição Mercantil de Porto Feliz para Cuiabá, de Florence. A cena do quadro, como expressa o próprio título alterado, representa o momento de preencher
as canoas com os objetos que seriam utilizados durante a viagem, o destaque na
imagem recai sobre os tipos de embarcações dos monçoeiros e o movimento
destes para carregá-las. Nota-se que uma das embarcações carrega a bandeira do
Brasil Imperial, já no desenho de Florence a bandeira que aparece é a da Rússia.
A modificação na tela aqui atende possivelmente aos anseios de Taunay, a obra
deveria representar uma Monção, realizada no rio Tietê, portanto não ficaria
bem didaticamente aos olhos daquele que iria observar a tela – o público - dentro
do Museu Paulista, uma bandeira da Rússia na ponta da canoa.
Aimé-Adrien Taunay também documentou o momento da partida de
uma monção, porém de forma totalmente diversa da “Partida” de Almeida Jr.,
como podemos observar através da tela de Oscar P. da Silva, intitulada Partida
de Porto Feliz à Cuiabá, realizada a partir do desenho de Taunay, Partida de Porto
Feliz. Pode-se notar que as técnicas e recursos utilizados foram bem diferentes,
o momento da partida retratado por Aimé Taunay e transposto por Pereira da
Silva, retratam a canoa já em movimento e não parada no porto, este, se encontra do outro lado do rio onde se pode ver a cidade, com a presença da igreja e
de algumas casas; o sentido do drama do sentimento humano da despedida no
momento da partida não foi ressaltado como na Partida da Monção, de Almeida
Jr. O desenho por ter o seu caráter documental registra a posição dos proeiros
sobre a canoa, enfileirados, seguindo a tradição da navegação indígena, aspecto
que Taunay conseguiu captar no seu desenho.
8
Sobre a trajetória do pintor, ver: TARASANTCHI, R. S. Oscar Pereira da Silva. São Paulo: Mercado
das Artes, 2006.
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Em Encontro de duas Monções no Sertão, desenho de Florence transplantado para a tela por Oscar Pereira da Silva, retrata possivelmente o encontro
da Expedição brasileira comandada pelo Tenente Coronel Jerônimo contra os
índios guaicurus e a outra Expedição Russa, chefiada por Langsdorff. Se nos
dois quadros anterior temos as trocas das bandeiras, russa pela brasileira, nesse
quadro não temos o porquê da modificação, já que se refere ao encontro dessas
duas expedições. A luz na representação incide sobre as embarcações e as pessoas
conversando, sobretudo sobre o grupo formado por cinco homens reunidos, estes
se diferenciam na cena devido aos seus trajes refinados se compararmos com os
outros indivíduos que vestem apenas calças dobradas abaixo do joelho; outro destaque seria em relação à mulher no centro da tela que está cozinhando e o homem
ao seu lado que está descamando um peixe; a partir desses elementos, nota-se que
a imagem retrata a pausa para a alimentação em uma Monção.
De um modo geral, podemos notar que as telas de Oscar Pereira da
Silva sobre a temática das Monções possui uma concentração maior no desenho
do que na cor, como ocorre na tela de Almeida Jr., além de que esse caráter do
sentimento humano expresso na obra do pintor ituano está ausente nas telas de
Oscar Pereira da Silva, as telas deste, feitas a partir dos desenhos de Florence e
Aimé-Adrien Taunay, estavam de acordo com os propósitos no momento em que
foram realizados, ou seja, para uma expedição científica, onde o caráter documental do desenho detalhado era requisitado.
Afonso Taunay em seus escritos enfatizava que Florence era o “Pai da
Iconografia Paulista” devido aos seus desenhos produzidos que tanto contribuíram para um maior conhecimento em relação aos aspectos da vida dos paulistas no século XIX^F. Neste sentido, é interessante confrontar as afirmações de
Taunay com a de um membro do IHGSP, Alberto Rangel9, que estava em Paris
e a pedido do diretor havia pesquisado na Biblioteca Nacional os desenhos de
Florence. A opinião de Rangel expressa em uma carta enviada a Afonso Taunay,
é totalmente oposta do diretor em relação ao desenhista francês e o seu legado:
[...] O Hercules parece que era um mandrião de marca. [...] O desenhista mostra-se neste álbum um arrasado de tédio, incapaz de continuar os seus esforços. Borboleteia pelos assumptos,
quer representá-los e a mão deixa o lapis para tomar o pincel, que logo substitui pela penna.
São traços sem genio de um enfadado ou impotente. Essas páginas representam bem o destroço
do naufrágio Langsdorffiano. Com certeza a fatal preguiça brasileira paralysou o modesto artista estrangeiro, que tendo podido deixar aspectos preciosos de sua odyissea, legou-nos apenas
um livro de rabiscos e borrões quase sem valor [...].10
9
Alberto do Rego Rangel (1871-1945) foi engenheiro, historiador e ficcionista. Era freqüentador assíduo
de arquivos europeus em busca de documentos relativos à história do Brasil. cf. TONIN, F. B. Águas
revessas: confluências da memória, literatura e história nas memórias inéditas de Alberto Rangel. Dissertação (mestrado em Teoria e Estudos Literários) Campinas: IEL-Unicamp, 2009.
10
Carta de Alberto Rangel a Afonso Taunay, datada de 13. 09. 1920. Fundo Museu Paulista: Série Correspondências. Pasta 112. Grifos meus.
295
X X X Colóquio CBHA 2010
Pode-se notar que tanto os desenhos, como o relato realizado pelo desenhista francês, selecionados e utilizados constantemente como fontes em relação às Monções nesse período, reportam a problemática da escassez de imagens
relacionadas ao passado paulista, e que a produção legada por esses “artistas-viajantes” que passaram por São Paulo poderiam de uma certa forma preencher
essa carência iconográfica, já que a partir delas novas representações poderiam
ser (re)construídas. Essas telas - construções imagéticas e idealizadas sobre as
Monções - consolidaram um imaginário que ainda ecoa na memória coletiva do
país, evocando um passado glorificado, daquele tempo, idealizado, da “Raça de
Gigantes”.
296
X X X Colóquio CBHA 2010
Martin Wackernagel:
a história da arte
e o “espaço de vida”
dos artistas
Cássio da Silva Fernandes
UFJF
Resumo
Detendo-nos especialmente no livro que Martin Wackernagel edita
em 1938, Der Lebensraum des Künstlers in der florentinischen Renaissance: Aufgaben und Auftraggeber, Werkstatt und Kunstmarkt
intentaremos estabelecer as relações que aproximam e distanciam o
autor da escola de Wölfflin, buscando, por outro lado, sua relação
com a obra histórico-artística de Burckhardt e de um importante
personagem para a história da arte do séc. XX, várias vezes citado
no livro de Wackernagel: Aby Warburg.
Palavra Chave
Wackernagel, Historiografia da Arte, Renascimento
Abstract
Analyzing the Martin Wackernagel’s book from 1938, Der Lebensraum des Künstlers in der florentinischen Renaissance: Aufgaben
und Auftraggeber, Werkstatt und Kunstmarkt, we will try to establish the relationship that approximate and the differences between
the author and the Wölfflin’s school, looking for, on the other side,
its relationship with the historic artistic opera from Burckhardt and
un important personage to the art history from the XX century many
times mentioned in Wackernagel’s book: Aby Warburg.
Keywords
Warckernagel, Art History, Renaissance
297
X X X Colóquio CBHA 2010
Nas últimas décadas do século XX, ocorre um renovado interesse pelo ramo dos
estudos histórico-artísticos preocupados em compreender a arte a partir de um
conjunto de elementos que, direta ou indiretamente, possam ter participado de
sua concepção. Este esforço conduzia inevitavelmente o historiador a sondar o
objeto artístico de um ponto de vista que ligava o artista a seu mundo circundante e abria a história da arte a uma apreciação preocupada com o entorno social do
qual a obra da arte emerge. Este interesse, entretanto, não conduziu os estudos
histórico-artísticos a retomar teorias que, no passado, perseguiam a conexão da
arte com um abstrato espírito de época ou mesmo com a concepção das “mentalidades”. Ao contrário, o impulso em direção ao ambiente dos artistas conduziu
um ramo da historiografia da arte a compreender de modo muito concreto a
relação entre os artistas e seu mundo circundante.
É com base nesse interesse que ganha importância no Brasil, por exemplo, um estudo como o de Michael Baxandall sobre o Renascimento na Itália. O
livro de Baxandall, O Olhar Renascente: pintura e experiência social na Itália
da Renascença, editado em Oxford em 1972, aparece no Brasil em 1991^F. É
também nesse sentido que se pode ler um dos últimos livros de um historiador da
arte tão significativo ao longo de quase todo o século XX, como é o caso de Ernst
Gombrich. Em O Uso das Imagens1, editado em 1999, Gombrich ressaltava a
importância do estudo sobre a comitência, o colecionismo artístico e o mercado
de arte como forma de compreender a arte do passado. Sob certo aspecto, é de
fato nessa trilha que se pode perceber uma retomada do interesse pela obra de
Jacob Burckhardt, então uma renovada importância concedida a seus últimos
escritos, sobre a arte italiana do Renascimento. Também nesse caminho, verifica-se a retomada dos escritos de Aby Warburg, com novas edições em várias partes
da Europa, além de novos estudos sobre a sua obra. É nesse contexto que advém
nosso interesse por Martin Wackernagel, cuja obra conhece, a partir da última
década do século XX, novas edições, especialmente na Itália.
Suíço de Basiléia, Martin Wackernagel (1882-1962) insere-se na historiografia da arte da primeira metade do século XX com uma obra dedicada ao
período que engloba o Renascimento e o Barroco. Professor na Universidade de
Münster a partir de 1920, a formação de Wackernagel, entretanto, deveu muito
à atmosfera acadêmica de Basiléia, de onde emergia naquele momento a obra de
dois historiadores da arte: Jacob Burckhardt e o jovem Heinrich Wölfflin.
Burckhardt era professor de história na Universidade de Basiléia, e ali
criara, em 1874, a cátedra de História da Arte, ocupando-a, ele próprio, até a
aposentadoria, em 1893. Porém, um ano depois de sua morte, em 1898, sairia
editado, em Basiléia, um livro que reunia ensaios histórico-artísticos escritos por
Burckhardt nos últimos anos de sua vida. O livro intitulado Contribuições à
História da Arte na Itália2 era dividido em três partes (“O retrato na pintura”,
“O retábulo de altar” e “Os colecionadores”) e apresentava a arte italiana do
1
GOMBRICH, E. H. The Uses of Images. London: Phaidon Press, 1999.
2
Uma reedição revista desse escrito de Jacob Burckhardt saiu recentemente como parte do trabalho de
edição das obras completas do historiador. BURCKHARDT, Jacob. Beiträge zur Kunstgeschichte Von
Italien: das Altarbild; das Porträt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhardt Werke. Band 6.
München; Basel: C. H. Beck; Schwabe & Co., 2000.
298
X X X Colóquio CBHA 2010
Renascimento a partir de um estudo pioneiro sobre a relação entre artistas, comitentes, gosto artístico e colecionismo. A essa época, Martin Wackernagel ainda
não havia iniciado seus estudos acadêmicos.
Entretanto, quando Wackernagel decide-se pela história da arte, o catedrático da disciplina em Basiléia era o sucessor e ex-aluno de Burckhardt, Heinrich Wölfflin. Nessa época, Wölfflin era conhecido como autor de dois livros:
Renascimento e Barroco (1888) e A Arte Clássica (1899). Wackernagel, entretanto, conclui sua formação na Universidade de Berlin, onde, em 1905, apresenta
a tese de título Representação e idealização da vida de corte nas xilogravuras do
Imperador Maximiliano I. Seu orientador foi o próprio Wölfflin, que ensinava em
Berlin desde 1901.
Entretanto, Martin Wackernagel é especialmente referido como autor
de um livro, editado em 1938, sob o sugestivo título Lebensraum des Künstlers
in der florentinischen Renaissance: Aufgaben und Auftraggeber, Werkstatt und
Kunstmarkt (O espaço de vida dos artistas no Renascimento florentino: tarefas e
comitentes, oficina e mercado de arte)^F. O termo utilizado no título, Lebensraum
des Künstlers, traduzido na edição italiana como Il mondo degli artisti, numa versão literal em português pode ser definido como “o espaço de vida dos artistas”.
Este termo é empregado por Wackernagel em seus escritos apenas após 1935.
Em 1917, numa conferência na Universidade de Leipzig, o historiador utiliza um
termo paralelo: das italienische Kunstleben (a vida artística italiana). A referida
conferência, então, teve o título: “A vida artística italiana e a oficina de arte na
época do Renascimento”. O termo Kunstleben (vida artística) apareceria em seus
textos editados na Suíça após 1928. A partir de 1935, no entanto, ele passa a utilizar a palavra Lebensraum (espaço de vida), ao mesmo tempo em que transfere
cada vez mais seu interesse da biografia dos artistas, em direção a uma história
do ambiente dos artífices, de seu mundo circundante. Portanto, seu interesse
pelo “espaço de vida” dos artistas traduz-se em seu estudo sobre a relação entre
artistas e comitentes, as formas de colecionismo, os modos de funcionamento das
oficinas e do mercado de arte, a educação e a posição social dos artífices.
O próprio Martin Wackernagel, no prefácio à edição de 1938, revela sua
busca pelo espaço de vida dos artífices no Renascimento florentino ao afirmar:
Assim, com a ajuda de testemunhos trazidos das fontes contemporâneas, esperava conseguir
obter uma representação (a mais clara possível) da situação geral de uma civilização particular, compreender em que modo certas condições e certas relações que resultam familiares
em nossa sociedade contemporânea (o método de trabalho do artista, a estrutura do mercado
de arte, as inter-relações entre o artista e o público), possam ter se manifestado no passado^F.
Na verdade, o propósito principal de Wackernagel era compreender as
condições materiais sob as quais se movia a vida artística florentina ao longo do
século XV, sem descuidar, entretanto, de perceber seu desenvolvimento e suas
modificações durante este período. Sondando de modo muito concreto o ambiente de onde emerge a criação artística no mundo florentino no Quattrocento,
Wackernagel pretendia tocar elementos essenciais ao processo de criação artística
nesse contexto. Ele próprio o esclarece:
299
X X X Colóquio CBHA 2010
Os fatores determinantes e fundamentais para a produção da obra de arte encontram-se,
ao contrário, fora do artista. Trata-se dos dois elementos que constituem a “encomenda”: o
“pedido”, a necessidade de obra de arte que o artista era chamado a satisfazer e o “comitente”,
que ao mesmo tempo era o fruidor da obra, cuja presença ativa era indispensável para que a
habilidade inventiva do artista tomasse forma e a obra de arte fosse materialmente realizável.
A obra, então, [continua Wackernagel] não tinha origem apenas por
iniciativa do artista e, considerando o problema do ponto de vista teórico, não
tinha fim em si mesma^F.
E, longe de querer demonstrar originalidade em sua abordagem, Wackernagel preferiu, ao contrário, esclarecer ao leitor os modelos historiográficos
de sua indagação científica. Após o trecho acima mencionado, ele abre uma nota
de rodapé e cita a passagem escrita por Aby Warburg na introdução ao estudo
de 1902, Arte do Retrato e Burguesia Florentina. Neste ensaio, em que analisa a
pintura de Domenico Ghirlandaio na Capela Sassetti da Igreja de Santa Trinità,
em Florença, Warburg afirmara o que segue:
É um fato fundamental da civilização do primeiro Renascimento florentino que as obras de
arte devem a sua origem à colaboração compreensiva entre comitentes e artistas, e devem,
portanto, ser consideradas desde o início, de certo modo, produtos da ação comum entre comitente e artista executor.3
O ensaio de Aby Warburg tinha sido, para Wackernagel, uma inspiração, e ele próprio o atestava. Warburg, por sua vez, no mesmo ensaio de 1902,
tinha composto um prefácio em forma de dedicatória a Burckhardt, no qual
apresentava, ele próprio, as raízes de sua indagação histórico-artística. Assim afirmara Warburg:
A nossa consciência da superior personalidade de Jacob Burckhardt não nos deve impedir de
continuar pela via por ele indicada. Uma estadia de anos em Florença, estudos naquele Archivio, os progressos da fotografia, e a delimitação local e cronológica do tema encorajam-me
a publicar no presente escrito uma nota ao ensaio burckhardtiano sobre “o retrato” nas [...]
Contribuições à história da arte na Itália.4
O referido livro de Burckhardt apresentava o desfecho da obra do historiador sobre a arte italiana do Renascimento. Todavia, a abordagem privilegiava
o conhecimento material das obras de arte, a maneira como tinham sido criadas, colecionadas e avaliadas. Burckhardt recusava a explicação generalizada do
fenômeno artístico e partia, ao contrário, da obra entendida como testemunho
individualizado de um contexto histórico-cultural. Além do mais, o livro editado
em 1898 continha o teor derradeiro da intenção de Burckhardt de conceber a
pintura italiana do Renascimento, como ele próprio afirmou mais de uma vez,
3
Tradução livre: WARBURG, Aby. Bildniskunst und florentinisches Bürgertum. In: WARBURG, Aby.
Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I, op. cit., p. 95.
4
WARBURG, Aby. Bildniskunst und florentinisches Bürgertum. In: WARBURG, Aby. Die Erneuerung
der Heidnischen Antike. Band I, op. cit., pp. 93-94.
300
X X X Colóquio CBHA 2010
segundo “os temas e as tarefas” (nach Gegenständen und Aufgaben) e “os meios e
as capacidades” (nach Mittel und Kräften). Burckhardt chegou mesmo a definir
o seu papel no estudo histórico-artístico a partir de uma frase, elaborada no crepúsculo de sua vida: “Die Kunst nach Aufgaben, das ist mein Vermächtnis” (A
arte segundo as tarefas, eis o meu legado). Com a frase, o historiador pretendeu
revelar exatamente o seu interesse em compreender a arte italiana do Renascimento de acordo com a origem das comitências. Se tomarmos o exemplo de seu
ensaio sobre os colecionadores no Renascimento italiano, ouviremos do próprio
Burckhardt:
O capítulo de história da arte italiana que aqui tem início é muito mais amplo e importante
do que se possa pensar. Por decênios, o peso maior da produção artística – não tanto pela
quantidade, quanto pelo significado interno – devia à comitência e à possessão privadas. [...]
Assim, tudo o que era encomendado pela casa e oferecido à consideração próxima e atenta de
numerosas famílias, reivindicava uma execução totalmente particular. De tal modo, formou-se progressivamente um gosto privado que exigia da arte propriamente aquilo que a comitência não podia, nem queria garantir.5
Burckhardt, portanto, estabelecia conexão entre o gosto dos comitentes
e as formas artísticas, ampliando a compreensão histórico-artística em direção
ao mundo dos artistas. Aby Warburg, por seu turno, já havia buscado a relação
entre artista e comitência em sua tese de 1893, sobre o Nascimento de Vênus e
a Primavera de Sandro Botticelli. Em 1902, como vimos, Warburg retornaria
ao problema da relação entre encomenda e execução artística em Arte do Retrato e Burguesia Florentina. E ainda em 1902, no texto intitulado Arte flamenga
e primeiro Renascimento florentino, o gosto artístico de um círculo de mecenas
florentinos é observado como elemento central da recepção da arte flamenga em
Florença e de sua conseqüente influência sobre a produção artística da cidade. E
Warburg, já na primeira página, citara o volume de Burckhardt sobre os colecionadores para afirmar a importância da circulação em Florença de tapetes, de
tecidos e de quadros a óleo, e de seu colecionismo por parte de um refinado ramo
da burguesia florentina.
Anos depois, Martin Wackernagel iria se debruçar de maneira sistemática sobre o papel das encomendas, dos comitentes, dos colecionadores na produção artística no Renascimento florentino, mas também sobre os métodos de trabalho nas oficinas, as características do mercado de arte e sobre a posição social
do artista. Wackernagel estava preocupado ainda com a função extra-artística
realizada pela obra de arte. Ele queria desvendar, então, os motivos precisos e os
pressupostos gerais que sustentavam o que ele chama “necessidade de arte” no
mundo florentino do Renascimento. Ele pretendia desvendar como esta “necessidade” se manifestara na vida privada, familiar, nas mais variadas posições sociais,
mas também nas corporações de ofício e nas organizações da vida pública. Wackernagel desejava compreender as particularidades, naquele contexto preciso,
5
Tradução livre: BURCKHARDT, Jacob. Beiträge zur Kunstgeschichte Von Italien: das Altarbild; das
Porträt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhardt Werke. Band 6. München; Basel: C. H. Beck;
Schwabe & Co., 2000, p. 291.
301
X X X Colóquio CBHA 2010
da “necessidade de imagens para se olhar”^F. Nesse conjunto de preocupações é
que entrava a figura do comitente, que, nesse momento, pela primeira vez, carregava também, ao lado do colecionador e do entendedor, uma preocupação com
o valor formal da obra de arte. Uniam-se, então, na apreciação historiográfica
de Wackernagel, a função e a forma, como elementos indissociáveis do processo
criativo. E é no mínimo curioso que Wackernagel procurasse resolver um problema de história da arte oriundo da escola formalista de Viena, a “necessidade – ou
desejo - de arte” (então, o “Kunstwollen”), com um aparato de compreensão da
arte na história tomado de outros modelos historiográficos.
Certamente, as obras de Burckhardt e de Warburg não eram, naquele
momento, suas únicas referências para desvendar a concretude do mundo artístico florentino de então. Porém, não é pouco significativo que ele tenha recorrido
ao próprio Warburg para sustentar, logo na introdução, as bases de seu estudo. A
primeira nota aberta por Wackernagel em seu livro é exatamente uma referência
ao ensaio warburguiano, Arte do Retrato e Burguesia Florentina. Além disso, ao
tratar da relação entre comitência e produção artística, Wackernagel utiliza-se do
termo criado por Burckhardt para compreender o assunto: a palavra em alemão
“Aufgabe” (tarefa). Ao pretender elucidar elementos do processo de criação da
obra de arte, Wackernagel compreendia o artista como executante de uma tarefa
a ele imposta pelos encomendantes da obra. E para isso era necessário desvendar
o problema dos artistas enquanto grupo social, compreendendo sua organização,
seu comportamento, sua importância no universo concreto no qual participava.
Era preciso conhecer também o funcionamento do trabalho nas oficinas. É assim
que seu livro se dividiu em três grandes partes: “As encomendas”, “Os comitentes” e “A oficina do artista e o mercado de arte”.
Mas, é preciso não esquecermos, Wackernagel tinha sido aluno de
Heinrich Wölfflin. Em 1938, quando Wackernagel edita O espaço de vida dos
artistas no Renascimento florentino, Wölfflin já tinha ensinado em Berlim e em
Munique e já havia redigido os seus livros mais importantes. Certamente seus
anos de aprendizado com Wölfflin não tinham passado em vão. Na verdade, Wackernagel guarda na mente o modelo histórico-artístico wölffliniano e se debate
com ele ao longo do livro. Wackernagel não se furtou a citar a obra do mestre,
demonstrando sua gratidão, entretanto sem deixar de afirmar suas diferenças.
O método de pesquisa e de observação aqui seguido [afirma Martin Wackernagel] não pretende, de modo algum, opor-se à pesquisa sobre o Renascimento de Wölfflin, a cujo ensinamento o autor é grato pelos fundamentos adquiridos durante e depois dos anos de estudo. Este
livro busca, sobretudo, completar, de outro ponto de vista, os conhecimentos obtidos com o
método histórico-estilístico na acepção wölffliniana, de pô-lo em termos histórico-gerais e de
inseri-lo no complexo dos pressupostos e das circunstâncias que definiam e determinavam o
mundo no qual o artista florentino vivia, um mundo do qual num certo sentido é buscada
também a essência formal e espiritual de seus produtos.
302
X X X Colóquio CBHA 2010
Sua indagação histórico-artística parecia distanciar-se conscientemente
da proposta histórico-estilística de Wölfflin, ao mesmo tempo em que se espelhava numa história da arte que buscava mergulhar o objeto artístico no campo
mais vasto da cultura. Para Wackernagel, então, o imediato e concreto mundo
do artista (o “espaço de vida do artífice”, como ele próprio denominou) era o elemento de onde devia emergir a compreensão da arte como fenômeno da história.
Ele próprio o afirma:
Neste livro, a história da arte não será concebida e tratada nem simplesmente como história
do estilo – história da criação de formas e história da visão –, nem simplesmente ligada à
história das idéias; será considerada, sobretudo, enquanto ‘ história da inteira vida artística’,
dando conta o máximo possível de todos os concomitantes fatores materiais e culturais.6
E, mais à frente, conclui:
Já que nos pusemos este tipo de objetivo, será necessário examinar, enfim, os ‘artistas como
grupo’ no âmbito das oficinas e do mercado e, em geral, a inteira economia da arte.7
Era, portanto, uma discussão com a história dos estilos de Wölfflin
e o conseqüente formalismo de sua perspectiva histórico-artística. Wackernagel,
ao contrário, queria seguir as etapas do processo criativo para, com os olhos voltados para a obra de arte, desvendar as relações mais diretas entre a própria obra
artística e o entorno mais próximo de sua criação. Era este um modo de atentar
para a concretude da vida citadina, e em seu interior, para as peculiaridades das
relações do artífice em seu campo de ação mais direto. Ao procurar o sentido da
compreensão histórico-artística no concreto ambiente do artista no seio da vida
citadina, Wackernagel certamente mirava o sentido mais profundo da civilização do Renascimento tecida pelas mãos de Burckhardt. Ao mesmo tempo, seu
esforço apresentava uma maneira de restituir a conexão entre história da arte e
história da cultura. E a especificidade da busca de Wackernagel em estabelecer
esta relação apontava para um passado recente, apontava para uma construção
historiográfica em que se podia ouvir as vozes de Burckhardt e de Warburg,
como um grito na já obscura noite da Europa de 1938.
6
Idem, ibidem, p. 35.
7
Idem, ibidem.
303
X X X Colóquio CBHA 2010
Alexander von Humboldt
e as pinturas de Johann Moritz
Rugendas na América
Claudia Valladão de Mattos
Unicamp
Resumo
Entre 1831 e 1847, Rugendas realiza uma segunda viagem às Américas, em um projeto desenvolvido com o auxilio de Humboldt. As
obras produzidas durante esta viagem possuem um caráter muito
diverso das anteriores do artista. O presente artigo propõe-se investigar essas pinturas, entendendo-as à luz dos comentários históricos
e políticos que podem ser encontrados em vários textos de Alexander von Humboldt, particularmente em seus escritos sobre Cuba,
sobre os Estados Unidos e sobre o México.
Palavra Chave
Rugendas, Humboldt, Pinturas
Summary
Between 1831 and 1847 Rugendas travels for the second time to
America in an ambitious Project developed with Humboldt’s help.
The works produced during this trip have a very diverse character,
when compared to his previous production. The present paper proposes to investigate these paintings, seeing them through the light
of a series of Humboldt texts, particularly those writings on Cuba,
the US and México.
Key-words
Rugendas, Humboldt, Paintings
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X X X Colóquio CBHA 2010
O artista alemão Johann Moritz Rugendas esteve por duas vezes no Brasil. Realizou uma primeira viagem entre 1821 e 1825 como membro da Expedição Langsdorff e, mas tarde, retornou às Américas, viajando pelos territórios de língua
hispânica e pelo Brasil, entre 1831 e 1847. A produção do artista correspondente
a esses dois momentos é, no entanto, muito diferente. Comparando as imagens
que ele produziu como membro da expedição Langsdorff e as da segunda viagem americana, temos a impressão de estar diante de dois artistas totalmente
distintos. Como exemplo, tomemos duas vistas do Rio de Janeiro: uma primeira
publicada em seu livro Viagem Pitoresca através do Brasil, editado em seguida ao
seu retorno à Europa (Figura 1) e outra criada durante o período de sua segunda
estada no Brasil (Figura 2). Enquanto a primeira imagem pertence de forma
evidente à tradição do registro científico, popularizado através da produção de
viajantes, como o próprio Rugendas, a segunda é realizada em óleo, sendo a
principal intenção transmitir, não os detalhes da paisagem, mas uma visão dinâmica e envolvente da cena. Nesta segunda obra, Rugendas substitui a precisão
das folhagens delineadas no papel com cuidado e exatidão, por uma pintura de
pinceladas largas e visíveis, que parecem sugerir uma unidade dinâmica. Poderia-se argumentar que a comparação de dois gêneros tão distintos, isto é, pintura à
óleo, de um lado, e gravura impressa, de outro, é inadequado. Porém, neste caso,
a mudança de técnica não se relaciona à atuação do artista em campos diferentes
da arte. Ao contrário, Rugendas parece emprestar a técnica do óleo, pertencente
à “alta pintura” para dar conta do registro da paisagem exótica dos trópicos.
De fato, para compreendermos essa profunda mudança em sua abordagem da realidade nos dois momentos em que esteve viajando na América, é
preciso levar em conta o período que Rugendas permanece na Europa, entre as
duas viagens. Como veremos, nesses seis anos em que ele se dedicou principalmente à organização e publicação de seu livro, experiências importantes levaram
à profunda transformação das referências teóricas do artista.
Uma vez de volta à Europa, em 1825, Rugendas inicia, em Paris, o desenvolvimento de seu projeto de publicação das suas experiências de viagem,
associando-se ao escritor V.A. Huber, que, ao que tudo indica, foi o responsável
pela composição do texto. Nesses mesmos anos ele conhece o naturalista Alexander von Humboldt, que o contratará para realizar uma série de desenhos
para sua publicação sobre A Fisionomia das Plantas1. Os resultados produzidos
por Rugendas agradaram tanta a Humboldt que ele passou a colaborar de forma
mais sistemática com o artista, apoiando-o inclusive na publicação de seu livro.
Por sua vez, a convivência com Humboldt desencadeou uma grande mudança
em Rugendas, no que diz respeito à compreensão da tarefa do artista viajante. Ao
decidir por uma segunda viagem às Américas, pretendia agora não só registrar
a natureza, mas, como Humboldt em seu livro Vistas das Cordilheiras e dos Monumentos dos Povos Indígenas das Américas, fazer um levantamento arqueológico
das antigas civilizações do continente. Em 1828, durante um período de viagem
à Itália, Rugendas escreveria a Humboldt sobre seus planos, recebendo apoio do
1
Sobre as relações entre Rugendas e Humboldt ver: Renate Löchner, Johann Moritz Rugendas no México.
Um pintor nas pegadas de Alexander von Humboldt, cat. de exposição Memorial da América Latina, São
Paulo, 2002.
305
X X X Colóquio CBHA 2010
naturalista 2 . Em 1831, após uma nova estada em Paris, Rugendas consegue dinheiro suficiente para empreender sua segunda viagem. Nesta, ele essencialmente
seguiria os percursos anteriormente traçados por Humboldt.
Para compreendermos a importância do contato de Rugendas com os
textos e com a pessoa de Alexander von Humboldt, faz-se necessário expormos
alguns aspectos centrais da teoria do famoso naturalista alemão.
Humboldt é em geral lembrado como o grande naturalista, explorador
das Américas que, com seus relatos de viagem publicados entre 1805 e 1839 em
Paris, revelou ao mundo a riqueza do clima e da vegetação do continente americano e sua variada paisagem. A visão desse explorador aventureiro que serviu de
modelo para tantos viajantes que cruzaram a América ao longo do século XIX,
em geral deixa de lado um aspecto de grande relevância de seu pensamento: a
estreita relação entre natureza e história.
Uma parte considerável da obra de Humboldt, que inclui alguns de seus
livros mais populares, como os Ensaios Políticos sobre o Reino da Nova Espanha,
que veio a público entre 1808 e 1810, seus comentários sobre Cuba, ou Vistas das
Cordilheiras, publicado entre 1810 e 1813 (todos incorporados aos 29 volumes
das “Viagens” de Humboldt e Bonpland)3, dedica-se a reflexões sobre a relação
entre homem e natureza, estabelecendo conexões entre geografia e história que
foram, como veremos, modelos de grande relevância para sua época.
Impulsionado pelo interesse contemporâneo nos estudos ecológicos, a
obra de Humboldt tem merecido novas leituras que enfatizam sua visão unificadora, de raiz goethiana^F. De acordo com esses autores, seu estudo obsessivo e
minucioso das diversas facetas do mundo natural visava, em última instância,
entender a unidade e interdependência das diversas manifestações da natureza.
Nas palavras de Aaron Sachs: “Ele desejava obter flashes – e ele só pedia isso – da
magia que une todos os seres, que conecta a vegetação ao clima, rios a árvores,
homens a animais”^F. Essa visão, surpreendentemente contemporânea, do mundo
como um grande ser vivo conectado por redes sutis de mutua dependência, incluía, evidentemente o homem. Em uma carta a Caroline von Wolzogen, datada
de 14 de maio de 1806, Humboldt escreveria: “Nas florestas do rio Amazonas,
assim como nas encostas dos altos Andes, reconheci como apenas uma vida se
esparrama, animada de pólo a pólo, em pedras, plantas e animais, assim como
no peito inflado dos homens”^F.
Assim, em sua viagem pela América, Humboldt realizou observações
minuciosas, não apenas sobre a natureza do continente, suas elevações e variações
climáticas, mas também das diferentes culturas, atuais e antigas, com as quais
entrou em contato.
Em seu Ensaio Político sobre o México, ele procura compreender a relação entre geografia, recursos naturais, história e economia, ao mesmo tempo
em que faz duras críticas ao sistema colonial ali implantado: “Todos os vícios de
2
De acordo com Renate Löchner, no entanto, Humboldt insiste para que ele se concentre na representação das florestas tropicas, desaconselhando-o, por exemplo, a ir ao Chile. Rugendas, no entanto, mantém seu interesse pelos povos americanos, viajando também ao Chile para pesquisar os Araucanos. Cf.
Löchner, op.cit., p.21-22.
3
Alexander von Humboldt, Werke, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2008.
306
X X X Colóquio CBHA 2010
governos feudais, passaram de um hemisfério a outro [...] As propriedades da
Nova Espanha, como aquelas da velha Espanha, estão em larga medida nas mãos
de poucas famílias poderosas que lentamente absorvem as propriedades menores. Na América, assim como na Europa, largas quantidades de terra são entregues a pastagem e à esterilidade perpétua”^F. Humboldt igualmente questionava
a dependência da economia do México do comércio exterior, especialmente as
riquezas fáceis geradas pela exploração de minas. Para ele, uma nação que optava
por deixar seu povo faminto para ganhar fortuna com exploração de minérios,
jamais teria condição de tornar-se uma nação autônoma e soberana. Sua crítica
dirigia-se às elites coloniais que, de acordo com seu julgamento, não tinham sentimento de nação e só perseguiam lucro pessoal, às custas da exploração dos recursos naturais do país: “Toda vez que o solo pode produzir tanto índigo, quanto
milho, dá-se preferência ao primeiro, ainda que o interesse geral exigiria que a
preferência fosse dada ao vegetal que pode alimentar os homens sobre aquele que
é simples objeto de troca com estrangeiros”^F.
O interesse de Humboldt pelo estado das sociedades e pelo destino político das Américas também pode ser confirmado pela sua troca de correspondências com Simon Bolívar. De acordo com a tradição, teria sido Humboldt que, em
conversas com o jovem Bolívar em Paris e Roma, o convencera da necessidade
de libertar o continente americano. De fato, ainda que tal lenda não possa ser
definitivamente comprovada, as correspondências de várias décadas entre os dois
contêm passagens que sugerem conversas sobre o destino político dos territórios
das Américas. Em carta dirigida a Bolívar e datada de 29 de Julho de 1822, por
exemplo, Humboldt faz referência à “época em que fizemos promessas em favor
da liberdade e da independência do novo Continente”4
Vale mencionar também a esperança depositada por Humboldt no novo
modelo de governo republicano adotado pelos Estados Unidos. Ao final de sua
viagem pelo continente americano, em 1804, Humboldt viaja à América do Norte, tendo sido recebido pelos principais políticos do país, inclusive pelo então
presidente Thomas Jefferson. Sua admiração pelo estado de direito ali instaurado
era explicito: “Não pude resistir o interesse moral de ver os Estados Unidos e
apreciar o aspecto reconfortante de um povo que sabe valorizar o dom precioso
da liberdade”, escreveria ele a Jefferson logo antes de sua visita. Tal admiração
pela nação americana o teria levado inclusive a ceder informações importantes
recolhidas no México sobre as suas fronteiras com os Estados Unidos, informações essas que seriam úteis no processo de expansão do território dos Estados
Unidos em direção ao oeste. Apesar das muitas críticas recentes dirigidas contra
Humboldt, especialmente no campo dos estudos pós-coloniais, como diz Ingo
Schwarz, “É bastante evidente que Humboldt não tinha a menor dúvida que ele
estava fazendo a coisa certa”^F. Humboldt via os Estados Unidos como um exemplo para toda a América.
4
Fred Rippy e E.R. Brown, “Alexander von Humboldt and Simon Bolivar”, in: The American Historical
Review, vol 52, n.4, jul. 1947, p. 697-703. Aqui cit. P.701.
307
X X X Colóquio CBHA 2010
O interesse de Humboldt sobre a política no continente não se dissociava, no entanto, de suas pesquisas como naturalista. Ao contrário, Humboldt
compreendia as esferas política e econômica como diretamente associada à geografia e aos aspectos culturais de um território. As transformações produzidas
pela intervenção humana sobre a natureza eram para ele objeto de reflexão constante, tornando-se o tema principal de seu livro Idéias sobre uma Geografia das
Plantas (Ideen zu einer Geographie de Pflanzen), publicado em 1807. Ao final
do texto, Humboldt escreveria: “Assim as plantas intervém ao mesmo tempo na
história política e moral dos homens. [...] O conhecimento sobre o caráter natural
de partes diferentes do mundo está intimamente vinculado à história da humanidade e suas culturas”^F.
De volta a Paris, Humboldt acompanha com grande interesse as transformações que ocorrem no continente americano e tais assuntos certamente eram
discutidos em seu círculo de amizade mais próximo. Como vimos, em 1825,
exatamente no momento em que Humboldt preparava uma nova edição de seu
livro sobre a Geografia das Plantas, Johann Moritz Rugendas passa a integrar
esse círculo, tornando-se amigo e discípulo de Humboldt.
Como vimos, Rugendas parte uma segunda vez para as Américas em
1831, agora sob os auspícios de Humboldt, permanecendo no continente até
1847. Esta viagem incluiu os territórios do México, Chile, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai e novamente ao Brasil. O projeto desta viagem havia sido concebido
e desenvolvido em conjunto com Humboldt. Na produção que dela resultou,
podemos observar mudanças significativas. Como dissemos, o uso de pintura a
óleo chama a atenção, assim como seu interesse pela questão da relação entre homem e paisagem, um tema ainda menor no contexto de sua primeira expedição
brasileira. Esse interesse pela intervenção da história na paisagem desdobra-se
também em uma série de quadros históricos. Nesses, dois temas predominam:
por um lado cenas ligadas às Independências de países americanos, como nas
pinturas retratando a “Batalha de Maipú” (1835-37), que marcou a vitória dos
chilenos contra os espanhóis, ou o “Regresso de Garibaldi depois da Batalha de
Santo Antônio” (1846), episódio retirado da história de independência do Uruguai. Por outro lado, Rugendas também aborda o drama do enfrentamento entre
nativos e europeus, construindo uma narrativa sobre a conquista e a constituição
étnico-cultural das Américas, como no caso do quadro a “Batalha de Otumba”
(1831-34), que representa a vitória de Cortez contra os Astecas no México, ou o
ciclo de pinturas sobre os raptos de mulheres brancas por parte dos araucanos, na
Argentina (A série inicia-se com o quadro “O rapto de Trinidad Salcedo”, datado
de 1836 e que retrata um episódio divulgado pela imprensa da época.). Trata-se,
portanto, de um discurso sobre a história da constituição dos povos americanos
a partir do enfrentamento de diferentes raças e culturas, muito próximo ao desenvolvido por Humboldt.
A visão dinâmica da relação entre homem e natureza defendida por
Humboldt em seus trabalhos não está presente apenas nos quadros de História
produzidos pelo artista. Durante sua viagem, Rugendas também realizará uma
série de obras que procuram integrar a produção humana à paisagem. As pinturas produzidas durante sua passagem pelo México são especialmente significati-
308
X X X Colóquio CBHA 2010
vas nesse sentido. Em “A Pirâmide do Sol de San Juan Teotihuacan” (1831-34,
fig. 3), vemos como Rugendas integra a pirâmide, obra humana monumental, à
paisagem, medindo-a com as montanhas ao fundo. É como se essas maravilhas
da arquitetura antiga fossem parte da própria natureza. O uso do óleo sobre papel, uma técnica que começa a usar ao chegar no México, ajuda na construção de
uma cena dinâmica, reveladora de uma sublime unidade. A figura do indígena,
que pisa aquela terra com pés descalços, acentua sua pertença àquela paisagem.
Para além da representação de um trecho das Américas, Rugendas promove uma
reflexão a respeito da memória e da relação entre cultura e natureza. O mesmo
ocorre com a presença hispânica nesses territórios. Uma série de quadros do artista dispõe a arquitetura colonial espanhola contra o cenário árido do México,
acentuando as adaptações realizadas nos edifícios para integrarem-se àquelas
paisagens. Quadros como “Um Poço no Povoado de Texcoco” (1831-34), ou “O
Vale do México desde a altura de Nostra Señora de los Remédios”, produzido no
mesmo período, são excelentes exemplos desta nova concepção histórica, dinâmica e unificadora que o artista integra à sua poética. Também Humboldt, ao viajar
por essas terras, havia enfatizado a unidade entre natureza e cultura retratada
nos quadros de Rugendas. Ao tratar da paisagem de Veracruz, o naturalista escreveria: “Quando se vai à Veracruz até o planalto de Perote, pode-se reconhecer
imediatamente a maravilhosa ordem em que os diferentes tipos de vegetação
estão dispostos, como se fossem classificados em diversas camadas. A cada passo
pode-se contemplar, então, a mudança que ocorre na fisionomia da paisagem,
no aspecto do céu, no desenvolvimento das plantas, na figura dos animais e nas
formas de vida e cultura humana”^F.
Com o auxílio de Alexander von Humboldt, Rugendas foi capaz de
inovar a tradição da produção de viajantes, rompendo com a suposta “distância”
entre o país visitado e o artista “estrangeiro”. Em vários locais por onde passou,
sua obra tornou-se um verdadeiro testemunho de época, lançando as bases para
a construção do imaginário dessas jovens nações.
Também sua segunda visita ao Rio de Janeiro revelou-se muito mais
envolvente do ponto de vista da política local. Durante esta segunda estada na
capital do Brasil, o artista realizou retratos da família imperial e participou ativamente das exposições da Academia Imperial de Belas Artes. Ainda pouco estudada, esta estada de Rugendas no Rio de Janeiro, em 1847, poderia fornecer uma
chave importante para compreendermos os caminhos de contato intelectual e os
debates partilhados entre diversos países do continente americano em meados do
século XIX.
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Vista do Rio de Janeiro Tomada do Aqueduto
Litografia, 23,9 x 35,3 cm,
Johann Moritz Rugendas
in: Viagem Pitoresca através do Brasil, 1835.
310
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Pedra da Gávea no Rio de Janeiro
óleo sobre tela, 24,5 x 32,5 cm, 1846
Johann Moriz Rugendas
Instituto Ricardo Brennand, Recife.
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A Pirâmide do Sol de San Juan Teotihuacan, 1831-34,
óleo sobre papel, 25,2 x 40,0 cm
Johann Moritz Rugendas
Instituto Ibero-Americano, Patrimônio Cultural Prussiano,
Berlim.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Grandjean de Montigny e Zucchi:
arquitetos de tradição clássica
na América Latina
Elaine Dias
UNIFESP
Resumo
Este artigo propõe uma análise das trajetórias dos dois arquitetos
de tradição clássica, o francês Grandjean de Montigny e o italiano
Carlo Zucchi, respectivamente no Rio de Janeiro e na região do
Prata, no século XIX, comentando o projeto do Teatro Nuevo, el
Solís, em Montevidéu, enviado por Zucchi à Academia Imperial de
Belas Artes em 1841 para ser julgado por Grandjean e Félix-Émile
Taunay, além de analisarmos os projetos de monumentos públicos
para o Rio de Janeiro igualmente de sua autoria.
Palavra Chave
Granjean de Montigny, Carlo Zucchi, arquitetura
Résumé
Cet article propose une analyse des trajectoires des deux architectes de tradition classique, le français Grandjean de Montigny
et l’italien Carlo Zucchi, respectivement à Rio de Janeiro et dans
la Região do Prata, au XIXeme siècle, tout en analysant le projet du Teatro Nuevo, el Solís, à Montevideu, envoyé par Zucchi à
l’Académie Imperial de Beaux-Arts en 1841, pour être jugé par
Grandjean et Félix-Émile Taunay, ainsi comme les projets des
monuments publics pour Rio de Janeiro également réalisé par
Zucchi.
Mots Clés
Grandjean de Montigny, Carlo Zucchi, architecture
313
X X X Colóquio CBHA 2010
As atas da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro revelam que a
trajetória destes dois arquitetos neoclássicos – Zucchi e Grandjean - se cruza, por
meio de projetos, em 1841.
Carlo Zucchi, arquiteto italiano e atuante na Região do Prata, mais
precisamente na Argentina e no Uruguai, envia ao Brasil o projeto de um teatro
a ser construído em Montevidéu, hoje conhecido como Teatro El Solís. Zucchi
pedia aos acadêmicos brasileiros, provavelmente por afinidade e proximidade a
Grandjean de Montigny, sua opinião sobre o projeto e a decoração. Naquele
momento, a Academia tentava se impor no contexto das construções públicas
do Rio de Janeiro. Acabava de concluir o projeto da praça semicircular em frente
à Academia, enviava a proposta de ampliação do entorno da instituição com a
abertura da rua perpendicular, cuidava da reforma do Chafariz da Carioca e
de sua decoração, entre outros. O envio do projeto de Zucchi ao Brasil revela a
ampliação da atuação da Academia e o estreitamento de relações com arquitetos
neoclássicos de outros países, denotando uma certa importância ao juízo dos
acadêmicos brasileiros e a afirmação daquela instituição no meio público.
Zucchi nasceu na Emília Romagna em 1789, ano da Revolução. Era
gravador, cenógrafo, tendo provavelmente estudado na Academia de Milão, fato
não ainda comprovado por seus estudiosos. Durante o período napoleônico, passa uma temporada em Paris, possivelmente frequentando a Academia de arquitetura, ligando-se aos arquitetos Charles Percier e Pierre Fontaine e também a
Vivant Denon. Após a queda de Napoleão, volta à Itália, onde se envolve com
questões políticas de caráter revolucionário, retornando obrigatoriamente à França em caráter de exílio para, em 1826, dez anos depois da chegada dos artistas
franceses ao Brasil, cruzar o Atlântico e iniciar sua trajetória na Argentina.
A proposta inicial era trabalhar na Universidade de Buenos Aires junto
com outros italianos imigrados, como o engenheiro Carlos Pellegrini e o matemático Pietro de Angelis. Por razões políticas, dirige-se prontamente ao Uruguai,
onde participa de alguns projetos como a decoração da capela do Santíssimo
Sacramento da Catedral, transitando pela Região do Prata onde pretende, novamente em Buenos Aires, organizar uma escola de desenho e arquitetura ou uma
escola particular de artes aplicadas, com o professor de desenho e pintor Pablo
Caccianiga. Em razão do pequeno número de alunos, a escola é incorporada a
posteriori à Universidade de Buenos Aires e Zucchi inicia, então, sua carreira
como Inspetor no Departamento de Engenheiros durante a ditadura de Rosas,
tornando-se posteriormente arquiteto da Comissão Topográfica e de Higiene e
Obras Públicas, já fora de Buenos Aires.
Este período na Argentina foi muito marcado pela organização de festas
públicas e cenografias, como as Festas Mayas e as Festas da Federação, além da
organização dos funerais de Manuel Dorrego e de seu mausoléu, em estreita
relação com sua estadia em Paris ao lado de Charles Percier e Pierre Fontaine.
Assim como Grandjean, muitos foram os projetos não concluídos na Argentina,
contando-se pontes, edifícios públicos, residências privadas, teatros, igrejas e monumentos, entre outros, conforme relata Aliata^F. Porém, ao contrário de Grandjean, Zucchi teve um trânsito maior por outras cidades, concluindo projetos de
capelas em San José, San Vicente e Quilmes, por exemplo, em 1834. Ainda em
314
X X X Colóquio CBHA 2010
Buenos Aires, realiza um interessante projeto de pantéon para homens ilustres
da República que, como vemos, mostra também sua identificação ao classicismo
do Renascimento italiano, o qual Grandjean também se aproximava. A idéia de
um panteão para homens ilustres revela sua ligação ao ideal das luzes, ao “grande
homem” ou o “homem ilustre” associado à idéia de progresso, à sabedoria do homem ilustrado formador da pátria, em estreita relação com Plutarco e suas vidas
dos homens ilustres, exemplo fortemente ligado à construção histórica e literária
de diversas nações. Esta era uma noção cara ao ambiente europeu e comum no
início do século XIX, sobretudo no âmbito da estatuária, em razão da glorificação de seus homens ilustres, imortalizados através dos monumentos públicos,
de resto também uma pretensão de Félix-Émile Taunay na academia brasileira.
Na Itália, Antonio Canova colocará, no Campidoglio, uma série de bustos dos
grandes homens ilustres que antes figurava no Panthéon, das mais diversas áreas,
das artes às ciências, na chamada Protomotheca, exaltando os grandes personagens da história italiana, à maneira antiga1. Na Alemanha, o templo clássico de
Walhalla2, em Regensburg, na Baviera, projetado pelo arquiteto Leo Von Klenze
em 1830, apresenta os bustos em mármores dos grandes homens ilustres, como
Frederico, o Grande, primeiro rei da Prússia, Goethe e Haydn, consagrando a
memória daqueles que se dedicaram à política, às ciências, às artes naquele país.
O projeto de Zucchi não se realiza e, como destaca Aliata, sua intenção em honrar os homens ilustres e mártires da pátria permanece apenas nas festas comemorativas e funerárias, enfrentando dificuldades concretas para inserir os edifícios
na realidade urbana da Argentina.^F
Seu retorno a Montevideu em 1836 deve-se, entre outros, às dificuldades de colocar em prática seus planos durante a ditadura de Rosas. E, de fato, no
Uruguay, conclui alguns projetos muitos interessantes, como aquele da Praça da
Independência e do Teatro, iniciando um dos primeiros planos de organização
urbana na América Latina.
O projeto incluía a construção de edifícios, a zona portuária, a Casa
Consular, o hospital, a prisão, a praça da Independência e o teatro cujo projeto
foi posteriomente enviado ao Brasil, entre outros concluídos. Zucchi pensa na
questão urbana ligada à criação dos seus edíficios, no entorno, na circulação,
planejando também a construção de espaços comerciais e um teto com arcos
para o trânsito das pessoas à maneira de Percier e Fontaine na Rue de Rivoli, em
Paris^F. Ressalta Aliata:
“La reorganización de la futura Plaza Independencia - Zucchi imagina la importância del
sítio como ‘ futuro punto céntrico y más vivificado de la ciudad y que la hará conspicua entre
las de esta parte de América’ – que amplía la mezquina plaza imaginada por la Comisión
Topográfica, se estructura a partir de una nueva fachada aporticada (1837), colocando en su
centro un monumento conmemorativo, un paseo público arbolado y la construcción, en sus
aledaños, del nuevo teatro (El Solís)” 3
1
QUATREMÈRE DE QUINCY, 1834, p.174 e p. 354 e CICOGNARA, 1824.
2
MIGLIACCIO, 2000.
3
ALIATA, 1998, p. 18 in ALIATA, LACASA, 1998.
315
X X X Colóquio CBHA 2010
O teatro apresentava certa semelhança com o Scala de Milão e com
Carlo Felice de Genova, segundo nos destaca Loustau, um de seus estudiosos.
Foi encomendado pela Sociedad de Accionistas de Montevidéu e concebido “em
forma oval [...] e se preocupou, especialmente, de dotar o recinto de uma boa acústica y excelente visibilidade, de forma que desde qualquer das 1600 localidades se
pudera ouvir e ver, em condições ótimas, as apresentações e concertos que nela se
realizassem”^F.
A ata da Academia brasileira revela a chegada dos papéis de Zucchi em
6/11/1841, e sua análise realizada em 12/03/1842. Antes, em outubro de 1841,
Zucchi já envia enviado à Academia suas memórias sobre o projeto do Monumento a Napoleão. Antes, porém, em 1839, há a notícia da vinda de Zucchi ao Rio,
quando realiza uma visita à Academia, precisamente no mês de agosto, tornando-se membro correspondente do IHGB neste mesmo ano.
Havia certamente entre os dois arquitetos uma aproximação de caráter
neoclássico, mas uma certa distância em relação à atuação. Apesar das dificuldades, Zucchi colocava em prática seus projetos na Região do Prata, contratado
para tanto e ativo em seus princípios. Grandjean, neste período de sua trajetória,
tentava recuperar o tempo perdido, desde seu último projeto realizado em 1826,
o edifício da Academia, com aqueles realizados naqueles anos, como a praça semicircular, o projeto de abertura da rua, os chafarizes, entre outros.
Zucchi envia “os desenhos, seis folhetos impressos e um memorial sobre o
projeto”, conforme a ata de novembro de 1841. A congregação brasileira fornece o
parecer a partir de quatro quesitos: a “solidez”, as “despesas de construção”, a “disposição geral do plano e distribuição”, e a decoração externa e interna. Sobre os dois
primeiros tópicos, incluindo a natureza dos materiais e a qualidade do terreno, a
Academia não se acha apta a julgar em razão da falta de dados, conforme explica
o próprio autor do projeto. Quanto ao plano e sua distribuição
“a comissão atribui ao plano pela correspondência das diversas partes, acertada amplidão
dos vestíbulos e corredores, e pelas qualidades ópticas e acústicas das linhas gerais adotadas,
fazendo-se todavia observar que boa parte dos sons se perderia pelos fundos abertos do teatro,
e outra se sumiria nos ângulos das grandes saídas dos camarotes, debaixo dos quais, segundo
a prática recomendada por Patte4 , deviam existir abóbadas. Aquelas deficiências seriam sem
dúvida supridas ou emendadas na execução da obra; elas apenas dão lugar a uma indicação,
e não a uma censura”.
No que se refere à decoração, a Academia destaca que devem ser observados os princípios clássicos, condenando desvios voluntários, admitidos por
Zucchi, como aqueles referentes à fachada e a elevação lateral, destituídas do
“caráter atribuído a qualquer das ordens”. Diz ainda o parecer:
“A Academia conscia de que o seu dever, na qualidade de corpo ensinante não lhe permitte
transigir, com os puros princípios clássicos, condena francamente uma desviação deles manifesta e voluntária, pois o autor mesmo declara que a sua fachada é um capricho. Tanto ela
4
Pierre Patte publica em 1765 Monuments érigés en France à la gloire de Louis XV e, em 1769 Mémoires sur
les importants objets de l’architecture.
316
X X X Colóquio CBHA 2010
como a elevação lateral são destituídas do caráter attribuído a qualquer das ordens. Entretanto, um teatro, templo de Apollo e das musas, reclamaria a aplicação da arquitetura grega,
ainda quando todo o outro monumento a dispensasse: não que seja necessário o emprego das
colunas e dependências ornamentais, mas deve sempre se sentir a proporção fundamental, e
com ela a unidade das linhas, o balanço das partes cheias e vazias, a tranqüilidade de aspecto
se produzem infalivelmente. [...]Outras obras do autor também prometiam superior fruto das
suas vigílias; e até certos detalhes da decoração interior apesar de confusamente indicados,
atestam reminiscências de um gosto mais severo”. 5
Apesar das disposições contrárias, o projeto de Zucchi é aprovado no
Brasil mas foi recusado por seus financiadores, que consideraram os gastos com
a construção muito além do orçamento pretendido. Esta foi uma questão que a
Academia brasileira se recusou a discutir na reunião, conforme consta na ata, por
não estar apta a opinar sobre “a complicação do problema da maior economia com
o da melhor construção possível”. Os estudiosos de Zucchi relatam ainda que as
razões para a recusa passam por questões políticas no Uruguai, que levaram o
arquiteto a não receber nada pelo projeto e pelos gastos que havia tido para sua
concepção. Finalmente, o projeto é passado a outro arquiteto, Francisco Xavier
de Garmendia, que realizou um novo plano extremamente próximo àquele de
Zucchi, com poucas modificações, sendo aquele que está hoje construído em
Montevidéu.
Em razão de problemas políticos no Prata, Zucchi deixa esta região em
1842, e vive no Rio de Janeiro até sua partida definitiva à Europa. No ano seguinte, exibe na Exposição Geral da Academia o “Projeto de um panteón para os
homens ilustres da Confederação Argentina”, um “arco de triunfo a ser erigido na
Praça da Aclamação em memória do consórcio de Sua Majestade D. Pedro II com
a Sereníssima Senhora D. Teresa Cristina Maria, Princesa de Nápoles”; entre outros. Este último projeto ganhou elogios da crítica brasileira na Revista Minerva
Brasiliense:
“o primeiro projeto que chama a atenção do espectador, entre as obras do senhor Zucchi, é seu
arco triunfal. Esta concepção de proporções gigantescas, este sonho poético [...], tem um caráter
grandioso: ele nos lembra as ruínas gigantescas da arquitetura romana, [...] e que sempre
serviram de norma aos arquitetos que querem seguir a arte antiga, digno de preferência em
todos os monumentos”.6
Sabe-se também que realizou um plano topográfico para a Praça da
Constituição do Rio neste mesmo ano, além do plano geral e topográfico para o
campo de Sant’Anna, no mesmo projeto para o arco do triunfo. Em 1844, expõe
outros projetos, como aquele de uma catedral para Assunção, encomendado em
1842, além do Palácio do Bispo e Seminário para esta mesma cidade. Há ainda
o projeto de um monumento comemorativo dedicado a D. Pedro II^F, representado
por uma grande coluna ambasada por leões decorativos, à semelhança de seu
5
Ata de 21/3/1842. Arquivo Museu D. João VI, EBA- UFRJ.
6
Bellas Artes, Exposição de 1843. III. Minerva Brasiliense, no. 5, vol. 1, 1844, p. 151. In ALIATA, LACASA, 1998.
317
X X X Colóquio CBHA 2010
monumento à Confederação Argentina, também apresentado no Rio de Janeiro
nas exposições de 1843 e 1844. Há certamente uma grande proximidade ao projeto de monumento a erigir no Campo da Honra em memória ao dia 7 de abril
de 1831, para ser erigido no Campo de Sant’Anna7, realizado por Grandjean,
revelando a estreita relação neoclássica com o uso da grande e clássica coluna
comemorativa pelos dois arquitetos.
Ao contrário de Grandjean, Zucchi termina por retornar à Europa após
sua curta estadia no Rio de Janeiro, publicando em Paris seus projetos concebidos em Buenos Aires e Montevidéu, vindo a falecer na Itália em 1849. Algumas
semelhanças existem entre os dois arquitetos: a relação com o renascimento italiano e o neoclassicismo francês e, sobretudo, com Percier e Fontaine; a vinda à
América com a intenção de participar de um projeto de ensino artístico; a realização de projetos de urbanização e monumentos, além dos edifícios públicos.
Embora esquecido pela historiografia, como ressalta Fernando Aliata em seus
estudos em Buenos Aires, Zucchi deixou sua marca em publicações, nas exposições do Rio, em projetos para Buenos Aires, e nas construções de Montevidéu.
Grandjean não foi esquecido pela historiografia, mas, como destaca Félix-Émile
Taunay em seu discurso de homenagem ao arquiteto recém-falecido, “decorreu
um quarto de século sem que fosse chamado!”^F.
À parte as dificuldades enfrentadas por ambos, os nomes de Grandjean e Zucchi constituíram, assim, etapas importantes da história da arquitetura
neoclássica e da circulação e trânsito de projetos de caráter clássico na América
do Sul.
Referências Bibliográficas
ALIATA, Fernando. “Carlo Zucchi y el neoclasicismo en el Rio de la Plata” in
ALIATA, Fernando e LACASA, María Lía Munilla (org). Carlo Zucchi y el neoclasicismo en el Rio de la Plata. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos
Aires, Sociedad de Economía Mixta, 1998.
CONDURU, Roberto. “Um acadêmico na selva” in BANDEIRA, Júlio; CONDURU, Roberto; XEXEO, Pedro Martins Caldas. A Missão Francesa no Brasil.
RJ: Editora Sextante, 2004.
QUATREMÈRE QUINCY, A.. Canova et ses ouvrages ou Mémoires Historiques
sur la vie et les travaux de ce célèbre artiste. Paris, Imprimerie d’Adrien Leclere,
1834.
CICOGNARA, Leopoldo. Storia della scultura dal suo risorgimento in Italia fino
al secolo di Canova: per servire di continuazione all’opere di Winckelmann e di
d’Agincourt. Veneza, Giachetti, 1824, vol. 7
MIGLIACCIO, Luciano. Século XIX. Catálogo Mostra do Redescobrimento Brasil
+ 500. SP: Fundação Bienal, 2000.
LOUSTAU, Cesar J. “Carlo Zucchi en Uruguay” in ALIATA, Fernando e LACASA, María Lía Munilla (org). Carlo Zucchi y el neoclasicismo en el Rio de la
Plata. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, Sociedad de Economía Mixta, 1998.
7
CONDURU, 2003. In CONDURU, XEXÉO, BANDEIRA, 2003.
318
X X X Colóquio CBHA 2010
Eugenio Battisti
e o L’Antirinascimento:
uma nova proposta
historiográfica
Fernanda Marinho
Doutoranda/ UNICAMP
Resumo
L’Antirinascimento, de Eugenio Battisti pertence a uma época de
intensas manifestações culturais da vanguarda italiana o que nos
leva a ponderar uma insurgente postura política inserida nesta obra
frente os congelados esquemas teóricos de crítica e história da arte,
ressaltando a vontade do autor da renovação dos paradigmas teóricos frente o conservadorismo da historiografia tradicional.
Palavra Chave
Eugenio Battisti; Antirrenascimento; Historiografia
Abstract
Eugenio Battisti’s L’Antirinascimento belongs to a time of intense
cultural manifestations of the Italian avant-garde which leads us
to consider an insurgent political stance inserted in this work forward the frozen theoretical schemes of criticism and art history,
highlighting the desire of the author of the renewal theoretical
paradigm forward the conservatism of traditional historiography.
Key-words
Eugenio Battisti; Anti-renaissance; Historiography
319
X X X Colóquio CBHA 2010
Eugenio Battisti (1924 – 1989) foi um profícuo historiador da arte italiano que
transitou em outras áreas do conhecimento como, por exemplo, arqueologia industrial e indústria do trabalho. Lecionou história da arte na Universidade de
Gênova, na Pennsylvania State University, na Universidade da Carolina do Norte; arquitetura nas universidades de Milão, Florença, Reggio Calábria e Roma.
Fundou sociedades como o Istituto per la Storia dell’Arte Lombarda, a Società
Italiana per Archeologia Industriale e a revista Marcatrè.
A primeira publicação de L’Antirinascimento data de 1962 pela editora
Feltrinelli, mas sua pesquisa é iniciada no final da década de 50 em determinados artigos que posteriormente foram desenvolvidos nos capítulos do livro.
Este teve ainda duas outras edições: a segunda de 1989 pela editora Garzanti
na qual foi incluído um segundo volume dedicado aos acréscimos e atualizações
do autor à primeira edição; e a terceira de 2005 pela Nino Aragno Editore que
manteve o conteúdo deste segundo volume. O livro é dividido em doze capítulos
e a sua questão central é anunciada em seu título: as manifestações antirrenascentistas no seio da tradição clássica italiana, especialmente entre os séculos XV
e XVI. Trata-se de uma análise desta aparente contradição entre as produções
fantásticas, profanas, ditas anticlássicas e o fascínio da Itália renascentista “della
prospettiva e dell’ordine, della consapevolezza razionale e dell’acutezza lógica”^F,
procurando desta maneira refletir a respeito de uma historiografia menos sistemática e classificatória.
O prefixo “anti” anuncia duas possíveis leituras, uma relativa à produção
historiográfica sobre o Renascimento e outra ao recorte espaço-temporal do seu
objeto de análise. Em relação à primeira dialoga com o termo counter renaissance
utilizado por Hiram Haydn ao tratar de Shakespeare e sugere uma aproximação
com o problemático conceito de maneirismo. O anti, desta maneira, consistiria
na ironia do discurso de Battisti ao anunciar um conceito contrário àquele para
o qual a historiografia direciona o seu norte magnético. A definição mais abrangente do Renascimento está relacionada ao significado do próprio termo que o
denomina: o resgate do mundo antigo no planejamento cultural do período moderno. Tal interesse pela Antiguidade pressupõe uma postura otimista anunciada
desde o deslumbramento de Petrarca pelas ruínas romanas e na admiração de
Boccaccio pelas obras de Giotto, que marcariam o resgate do homem das trevas
medievais à luz promissora do conhecimento. Desta maneira, o que poderemos
esperar por antirrenascimento? Nos capítulos introdutórios ao livro – Alcune riflessioni dieci anni dopo – Battisti comenta a escolha do termo e o seu ineditismo
em relação a outros que pretendem exprimir ideias correlatas à sua, como tardo-renascimento, anticlassicismo, maneirismo, que possuem uma maior tradição e
significado mais amplo, de origem mais antiga e coeva. Para ele tardo-renascimento limita-se a uma definição temporal; anticlassicismo, usado por Friedländer
em um artigo de 1925, se aproxima mais do seu ponto de interesse, mas parece
negar a presença do clássico na revolução artística do século XV, o que pode ser
uma afirmação perigosa, uma vez que mesmo no período barroco é impossível
negarmos o classicismo a ele inerente; maneirismo, por sua vez, também se aproxima de seu ponto de interesse, mas é muito utilizado como um termo correlato
ao tardo-renascimento, definido apenas como um marco temporal; contrarrenas-
320
X X X Colóquio CBHA 2010
cimento, aplicado por Haydn em relação a Shakespeare como dito anteriormente,
sugere um significado de resistência, de um movimento oposto a uma corrente
cultural preponderante. Desta forma, justifica que antirrenascimento mostra-se
como o termo mais adequado para a definição de seus estudos por haver uma
extensão ideológica maior, por criar um espaço que abrange diversidade de estilos
e pesquisa que eram quase autônomas, como a magia e a bruxaria, a classificação
da biologia e da zoologia, o experimento social de novas comunidades e formas
de governo, e a invenção de uma verdadeira e própria arte conceitual.
Ao propor este novo conceito Battisti introduz novos questionamentos
no âmbito das pesquisas relativas ao Renascimento, uma nova leitura sobre um
período extensamente estudado. O prefixo anti, além de sugerir uma inversão
dos valores, estando desta maneira mais próximo a uma determinada ironia frente à historiografia tradicional, acaba por sua vez ampliando o universo cultural
renascentista. Podemos dilatar a sua tropologia ao tratarmos propriamente do
conteúdo de sua pesquisa, ou seja, do Antirrenascimento. Este propõe um olhar
antitético diante do já conhecido, a proposta acaba sendo tornar exótico o familiar, tratar de manifestações culturais não legitimadas pela historiografia ou
analisar por outro ângulo as já conhecidas.
Nos primeiros parágrafos do livro, com a intenção de mapear o conceito
de antirrenascimento, Battisti descreve a cidade de Florença sob os seus aspectos
culturais, seus planejamentos arquitetônicos, uma cidade protegida pela monumental sombra da cúpula do Duomo projetada por Brunelleschi que se estrutura
no início do quatrocentos a partir de uma moralidade civil muito marcante. No
entanto, ressalta o início de uma decadência, datada já a partir da metade deste
mesmo século, da sua estrutura clássica que quando transferida à corte papal em
Roma transforma-se em símbolo de uma ditadura política e religiosa. O triunfo
do classicismo pleno tão característico do Renascimento teria, portanto, durado
muito pouco em relação ao arco de aproximadamente três séculos do que hoje se
denomina período renascentista. Por este motivo Battisti acredita ser complicado
determinar o maneirismo ou o anticlassicismo como definições cronológicas, uma
vez que as suas raízes já estavam presentes desde o século XIV. Tais conceitos são
antes de tudo componentes estilísticos intrínsecos a este período cultural que
conviveram constantemente com o clássico. Segundo o autor, Florença permaneceu por todo o Renascimento uma criação espontânea, “dalla punta di freccia preistorica alla macchina sperimentale”^F, sendo a arquitetura deste contraste
sempre a testemunha fiel.
Desde 1956 percebe-se na Itália um movimento de resistência cultural
que viria culminar em importantes resultados artísticos. Com a revista Il Verri,
publicada neste ano, o teórico e crítico Luciano Ancheschi abriu caminho para
a antologia I Novissimi, poesie per gli anni 60, com direção de Alfredo Giuliani.
Nos cinco primeiros anos da década de 60 a cultura italiana viveu um período
muito singular, como descreve Vilma de Katinszky:
321
X X X Colóquio CBHA 2010
“uma situação com caracteres antinômicos, de um lado a força da estabilidade e da convenção
literária que atrai os escritores não vanguardistas, de outro, o grupo 63 com seus 34 escritores,
cuja união conquista por si a função de signo opositor” 1.
Battisti fez parte deste grupo juntamente com outros nomes importantes como Edoardo Sanguineti, Nanni Balestrini, Alfredo Giuliani, Umberto
Eco, etc. No momento desta efervescência cultural participou da fundação do
Museo Sperimentale d’Arte Contemporânea que consistiu inicialmente em uma
exposição de arte contemporânea em Gênova, que contava com a doação das
obras dos artistas que expunham e tinha a sua sede no Piccolo Teatro, passando
depois ao Teatro del Falcone no Palazzo Reale de Gênova. Posteriormente sua
coleção foi transferida à Galeria Cívica d’Arte Moderna de Turim. Em uma carta
a Aldo Passoni, Battisti relata suas ideias relativas à criação e funcionamento dos
museus:
“Credo che sia sopratutto indispensabile di rompere il concetto di museo come raccolte d’opere
d’arti, cioè come cose da vedere. Penso che dovreste includere riproduzione di poesie contemporane, concerti registrate di musiche contemporane, oggeto di disegno industriale. Esso deve
funzionare come un modo di conoscenza. Dovrebbe essere una specie de catalogo vivente, ad
esempio: presso in opera sposta dovrebbe esserci una lunga didascalia esplicativa e semplicissime dichiarazione dei artisti. Altra cosa che vorrei consigliarvi é di fare un breve film su come
un artista oggi esegue una scultura, pittura, disegno de modo da fare entrare la gente dentro
la creazione delle arte e non solo assistere da di fuori” 2 .
Percebemos aqui que os conceitos de experimentação e novidade eram
os motores criativos desta cultura. Pretendia-se um afastamento dos valores convencionais, criar uma oposição às tradições sem, no entanto, renegá-las. É, portanto, no fluxo destas atividades que se contextualiza o L’Antirinascimento, o que
pode enriquecer esta pesquisa se refletirmos a respeito desta relação entre a efervescência cultural da época e o interesse pela temática antirrenascentista pouco
conhecida e não suficientemente explorada. Não parece, portanto, hipótese descabida discernir nessa obra uma postura política face aos congelados esquemas
teóricos aplicados às produções de crítica e história da arte e ao conservadorismo
da historiografia tradicional.
1
KATINSZKY, Vilma. Uma Itália superlativa: os “novissimi” na Idade Moderna. In: Fragmentos, número 21, p. 217/231 Florianópolis/ jul - dez/ 2001
2
Texto retirado do filme Museu Sperimentale d’Arte Moderna di Turino/ Torino Sperimentale 19591969 – Una storia della cronaca: il sistema delle arti come avanguardia (curadoria e edição: Giorgina
Bertolino e Francesca Pola) – vídeo realizado na ocasião da mostra Sala Bolaffi, Torino 19 de fevereiro
a 9 de maio de 2010 – Texto de Eugenio Battisti retirado de: lettera ad Aldo Passoni, 12 maggio 1967.
www.youtube.com/watch?v=uwmGULFDNl0/ “Creio que seja, sobretudo, necessário romper com a
ideia de museu como agrupamento de obras de arte, ou seja, como o lugar de coisas para serem vistas.
Penso que deveriam ser incluídas, por exemplo, poesias contemporâneas, concertos registrados de música contemporânea, objetos de design industrial. Isso deve funcionar como forma de conhecimento. Deveria existir uma espécie de catálogo vivo, por exemplo, junto a cada obra deveria ter uma longa legenda
explicativa e uma curta explicação do artista. Outra coisa que lhes aconselho é de fazer um breve filme
de como os artistas hoje executam uma pintura, uma escultura ou um desenho, de modo que nos faça
adentrar na própria criação da arte e não só assistir de fora”. (Tradução livre)
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X X X Colóquio CBHA 2010
Este cenário cultural italiano justifica a elaboração de um novo olhar
às tradições, às raízes históricas. Não caberia pensarmos em um movimento de
vanguarda que repetisse as estruturas de análise relativas ao passado. Os estudos
históricos estão sempre imbuídos pelas preocupações presentes. Em relação às
pesquisas sobre o Renascimento poderíamos comparar o L’Antirinascimento de
Battisti com A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de
François Rabelais, de Mikhail Bakhtin. Este segundo, publicado pela primeira
vez na Rússia em 1965. Rabelais é tido recorrentemente como um autor satírico,
e é contra esta concepção que Bakhtin formula a sua tese defendendo a interpretação dele segundo o “realismo grotesco”, como um ponto de encontro entre a
cultura popular e a erudita, de caráter essencialmente contrastante. Este interesse
pela comédia, pelo riso rabelaisiano como chave de leitura para a compreensão
da cultura da Idade Média e do Renascimento é o aspecto no qual o seu estudo
converge com o de Battisti: manifestações culturais de maior efemeridade, de
criação mais espontânea e menos regrada e, portanto, de difícil catalogação e
compreensão. Este é um dos exemplos que pode ilustrar o despertar do interesse
pela cultura não oficial, da escrita da história a partir de perspectivas menos
exploradas. Este é um dos exemplos que pode ilustrar o despertar do interesse
pela cultura não oficial, da escrita da história a partir de perspectivas menos
exploradas. As pesquisas de Battisti apresentam, grosso modo, uma preocupação
com a renovação da história em prol de uma revelação constante e insuperada do
conhecimento. No primeiro volume da Marcatrè, Battisti escreveu:
“Il ‘Marcatré’ nasce con um programma assai modesto ed elastico, d’ iformazione. Anni fa si
parlava della coincidenza di critica e di storia, cioè della necessità di storicizzare un giudizio
primo di pronunziarlo; oggi il problema pare poporsi in termini quantitativi: come necessità
di sospendere ogni affermazione e giudizio prima di aver raggiunto un grado di conoscenze
estensive e comparato attorno ai fatti che si vogliono esaminare. Ciò valle sia per il passato, che
per la cronaca contemporanea. Quello che unisce i redattori ed i collaboratori del ‘Marcatré’,
è appunto la consapevolezza di questo bisogno, e l’abitudine diretta alla ricerca filologica e
storica. A nessuno di essi, anche se milatano nell’avanguardia letteraria, o musicale, o architettonica, manca infatti la conoscenza specializzata d’un grande ‘momento’ antico; anzi
con lo stesso team si potrebbe, volendo, realizzare una storia globale della cultura europea del
tardo antico ad oggi” 3
3
ECO, Umberto. “Um ricordo di Eugenio Battisti”. In: Atti Del Congresso Internazionale in onore di
Eugenio Battisti. Metodologia della Ricerca: Orientamenti Attuali. Rivista Arte Lombarda, 1993/2-34; pg. 169./ “A ‘Marcatré’ nasce com um programa muito modesto e elástico de informação. Há uns
anos se falava da coincidência de crítica e história, isto é, da necessidade de historicizar um juízo antes
de pronunciá-lo; hoje o problema se apresenta em termos quantitativos: como necessidade de suspender
todas as afirmações e juízos antes de ter atingido um grau de conhecimento extensivo e comparado aos
fatos que se pretende examinar. Isto vale seja para o passado, seja para a notícia contemporânea. Aquilo
que une os redatores e os colaboradores da ‘Marcatré’ é precisamente a consciência desta necessidade,
hábito constante na pesquisa filológica e histórica. A nenhum desses, mesmo se militam na vanguarda
literária, musical ou arquitetônica falta o conhecimento especializado de um grande ‘momento’ antigo;
e com o mesmo time se poderia realizar uma história global da cultura europeia do tardo antigo a hoje”.
(Tradução livre)
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Umberto Eco em Un ricordo di Eugenio Battisti, publicado nas atas do
Congresso Internazionale de 1993 ressalta a atenção de Battisti pelo aspecto maravilhoso e simbólico da criação artística, o definindo como um “explorador das
margens”. Uma atitude de inspiração motivada por uma curiosidade pelo obscuro, por um renascimento secreto, pelo Antirrenascimento, que na época, segundo
Eco, ainda apresentava-se como uma abordagem pioneira e que principalmente
na Itália teve um sabor de provocação. Como narrado por Giuseppa Saccaro Battisti, sua mulher: “La ‘nuova frontiera storiografica’ che egli intravvedeva, avrebbe richiesto, sosteneva ora, di trasformare L’Antirinascimento in Antieuropa”^F.
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O Neoclássico na Igreja
do Bom Jesus de Crisópolis:
Uma obra do Antônio
Conselheiro
Jadilson Pimentel dos Santos
UFBA
Resumo
A obra erguida por Conselheiro revela que este fora arquiteto nos
sertões. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar uma das edificações do beato anterior à construção do arraial
do Belo Monte: Igreja do Bom Jesus. Como a edificação permanece intacta, é possível, reconstituir a memória de Canudos e de
outras cidades onde o Conselheiro edificou obras. Os retábulos do
interior dessa igreja são de influência neoclássica e comprovam o
interesse do beato em mostrar o novo estilo.
Palavra Chave
Igreja do Bom Jesus, arte religiosa do Antônio Conselheiro, neoclassicismo.
Abstract
The work erected by Conselheiro reveals that he was a architect in
the hinterland of Bahia. In that sense, this paper aims to examine
one of the buildings of blessed prior to construction of the camp
of the Belo Monte: Church of Bom Jesus. As the building remains
intact, it is possible a reconstruction the memory of Canudos and
other cities where the Conselheiro built works. The altarpieces of
the interior of this church are of neoclassical influence and attest
the interest of blessed to show the new style.
Keywords
Church of Bom Jesus, religious art of Antonio Conselheiro, neoclassicism.
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X X X Colóquio CBHA 2010
O Arraial do Bom Jesus
O antigo povoado do Bom Jesus, cujo nome na atualidade é Crisópolis, guarda
ainda na etmologia do seu nome uma forte relação com a religiosidade cristã.
O primeiro topônimo da localidade, certamente cunhado pelo beato Antônio
Conselheiro, era uma homenagem, desse religioso leigo, ao Cristo Crucificado.
De acordo com Galvão (2001, p. 37) a igreja do Bom Jesus, situada na
fazenda Dendê de Cima, nas adjacências de Itapicuru, foi erguida a partir do
zero, pois nos anos 80 do século XIX, o Conselheiro decidira assentar-se ali, tendo ordenado a seus prosélitos que limpassem a área, levantassem casas, erguessem um barracão para romeiros e escavassem um tanque para o fornecimento
de água. Foi ele, quem deu o nome de Bom Jesus ao arraial, embora ali não se
demorasse e acabasse indo embora com sua grei, em episódio pouco conhecido.
Depois de haver perigrinado por variados estados e cidades do Nordeste
do Brasil, o penitente Antônio Vicente Mendes Maciel, posteriormente denominado de Antônio Conselheiro escolheu como estabelecimento derradeiro o solo
baiano. Nessas terras, desbravou territórios inóspitos, deu assistência espiritual
aos desvalidos e criou obras de cunho caritativo: criação de açudes, caçimbas, estradas, etc. Foi um benemérito por excelência, pois constata-se, ainda, enquanto
sujeito fundador de cidades, criador e restaurador de igrejas, cemitérios e cruzeiros.
Assim, na sua longa marcha de mais de duas décadas, foi arrebanhando
multidões e conclamando as massas ao trabalho de obras pias num sistema denominado mutirão.
Concorriam para este tipo de trabalho as mais variadas gentes que se
abalaram de inúmeras cidades do Nordeste do Brasil. E foi assim que, dando
corpo a esse tipo de operação terminaram por edificar o conjunto arquitetônico
do Bom Jesus, o qual deu origem ao arraial de Crisópolis.
Dentre os vários profissionais que se destacaram, nas artes manuais,
figura um no panteão conselheirista: o mestre de obras e entalhador Manuel
Faustino.
Faustino, além de trabalhar nos templos do Belo Monte, foi o responsável pelo desenho e pelo trabalho em talha da igreja de Crisópolis.
Benício (1897, p. 168) diz em sua obra o Rei do Jagunços que, pouco
depois de instalar-se em Canudos para onde começaram a convergir famílias de
todos os sertões, Antônio Conselheiro deu início à Igreja Nova sob a direção do
mestre de obras por nome Faustino.
Em entrevista concedida a Nertan Macedo, em época posterior, Honório Vilanova comerciante no Belo Monte, citou o nome do mestre Faustino.
Fez umas rosas douradas no altar da igreja, que era a dmiração do povo.
Um velho de sessenta anos que sempre arranjava uma maneira de tomar uma
“bicada” descumprindo a lei do agrupamento. Foi proibido de beber. Ficou triste
e magro. Depois se consolou no trabalho. (MACEDO, 1983, p.68).
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X X X Colóquio CBHA 2010
Não se sabe ao certo quando foram iniciadas as obras da igreja do Bom
Jesus. Constata-se num ofício, que em 1886 o delegado do Itapicuru denunciou a
obra, considerando-a dispendiosa e desnecessária. Certamente ela só ficou pronta
em 1892, pois este é o ano que aparece gravado em seu frontispício. Conclui-se
que seja, também, a data da consagração, a qual, conforme atestam as vozes
locais, ocorreu com grandes festas, música e foguetório, à moda do séquito do
beato.(Figura 1)
O Templo do Bom Jesus
Dos templos concebidos e dirigidos pelo beato Antônio Vicente Mendes Maciel
que se propagaram até os nossos dias, sejam através de algumas fotografias existentes ou através da materialidade dos mesmos, somente três deles comunicam
por completo os estilos que ele propagou.
Os demais edifícios embora apresentem traços dos feitos conselheiristas,
foram sensivelmente alterados, destruídos, ou levemente reformados quando da
passagem do beato pelas vilas e povoados. O restante figura como obras apenas
atribuídas ao missionário; histórias versadas na oralidade, sem contudo haver
comprovação.
Nesse sentido, foram os exemplares encontrados nas cidades de Chorrochó (Igreja do Senhor do Bonfim), Belo Monte – destruída, (Igreja do Santo
Antônio) e Crisópolis (Igreja do Bom Jesus) os que disseminaram as tipologias
artísticas e arquitetônicas idealizadas pelo beato, tornando-se, posteriormente,
recorrentes em outras localidades.
Nesses três exemplares podemos constatar os pricípios básicos que compuseram a estilística conselhirista: igrejas de pequeno porte, quase do tamanho
de capelas, exceto a Igreja do Bom Jesus do Belo Monte, a ausência de torres
sineiras – o sino geralmente é colocado num prolongamento da parede no lado
direito da fachada, num vão de abertura que imita o vão das janelas, exceto a
do Bom Jesus do Belo Monte, marcação de datas no frontispício, utilização de
monogramas e letras, uso frequente de pináculos, etc.
Todavia, o ponto alto dessas edificações é a utilização do cruzeiro, que
é fornteiriço so santuário e apresenta um tratamento especial. Geralmente é posicionado numa distância de 10 à 15 metros da fachada assentado em plataforma
que lembra um palanque, numa área ampla que forma a praça.
No geral, essas sobras não se enquadram profundamente num tipo de
estilo. São antes, fruto da miscigenação da grei conselheirista, onde negros, índios, brancos e suas variações étnicas, partilhavam o mesmo ideal: a edificação
da Casa do Senhor.
Por seu turno, embora recaiam em suas obras, influências do gótico, do
barroco e do rócoco, que se misturaram aos aspectos da arte popular, na igreja do
Bom Jesus é o neoclássico, o estilo que mais repercutirá.
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Cabe enfatizar que muitos dos artífices que nesse templo trabalharam,
trouxeram em seu repertório a linguagem desse último estilo, pois certamente
como atestam alguns teóricos, esses indíviduos tiveram contato com o neoclássico, o qual se fazia presente na capital da Bahia, no século XIX, irradiando-se por
outras cidades, iclusive as do interior.
Certamente as influências desse vertente, dado as proximidades com o
estado do Sergipe, incursionaram pelas terras do norte da Bahia via Itabaiana,
alcançando, com sua gramática, cidades como Inhambupe, Itapicuru e, posteriormente, a Vila do Bom Jesus.
Bazin (1983, p. 310) assevera que existiram nas terras da Bahia inúmeras
escolas de entalhadores neoclássicos, capazes de criar formas novas e elegantes,
ao ponto de se criar um estilo autóctone. Segundo ele, a Bahia juntamente com
o Rio, foi a única região do Brasil que assimilou com uma força viva esse estilo
neoclássico que em todos os lugares provocou a morte do rococó, sem substituí-lo
por um valor equivalente.
O autor prossegue afirmando que foi tão próspera essa escola de talha
neoclássica na Bahia que ela se ramificou pela região vizinha de Sergipe, espécie
de dependência provincial desse Estado.
Na segunda metade do século XIX, os jornais de Sergipe e da Bahia
anunciam o aparecimento de um peregrino que vive transitando pelo sertão.
Certamente já arrebanhando sua gente, para cumprir uma promessa que teria
feito: a de erguer vinte e cinco igrejas.
É bem provável, que na década de 70 do século XIX, o beato que por ali
perigrinava e esmolava tenha se impressionado com a obra da matriz de Itabaiana, cujo padroeiro era o mesmo de sua cidade natal, e seu preferido santo de devoção. Para esse orago dedicaria anos depois, um de seus templos mais elegantes:
A igreja de Santo Antônio do Belo Monte.
Dessa cidade levaria uma certa influência do neoclássico que se faria
presente, de forma modificada na ornamentação do interior da igreja do Bom
Jesus e ainda aproveitaria a fachada para influenciar levemente o partido da Igreja
Nova do Belo Monte.
Mesmo apresentando um caráter híbrido em sua frontaria, dadas as fusões estilísticas, as reverberações neoclássicas ainda se impõem. Nela detectam-se
a presença de vasos coroando as torres, a utilização do arco pleno em um dos
vãos, das linhas retas, e dos florões com finalidade drcorativa.
Entretanto, o que mais impressiona no frontíspicio é a qualidade do
trabalho em talha da porta e das janelas superiores. Vê-se nessa composição um
prolongamento da decoração interior e uma das marcas do mestre Faustino.
Cabe ressaltar que esse trabalho apresenta uma força expressiva considerável no conjunto da obra. É um exemplar único no que concerne às obras
conselheiristas. Sua originalidade ultrapassa mesmo as fronteiras do “sertão do
Conselheiro”.
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Verificando detalhadamente essa porta, bem como as janelas, costatamos imediatamente que as palavras proferidas por Honório Vilanova a Nertan
Macedo se confirmam. As flores que ainda se fazem presentes ali, foram cuidadosamente trabalhadas, formando em cada lado quatro placas retangulares em
relevo, proporcionalmente distribuídas. (Figura 02 e 03)
A Ornamentação
Quando verificamos a decoração dos templos religiosos católicos do oitocentos,
sobretudo os da Bahia, remetemo-nos imediatamente às reformas ornamentais
que substituíram a talha de feição barroca e rococó por aquela de influência
neoclássica.
Desde o início do oitocentos, em Salvador, que as irmandades, ordens
terceiras e ordens regulares empreenderam reformas no interior de seu templos.
Essa transformação consistia na modificação da talha existente por outra que
fosse condizente com as novas tendências daqueles tempos.
A respeito das primeiras reformas ornamentais nos templos soteropolitanos, escreve Freire (2006, p.23).
[...] Pela falta de documentos, é um tanto difícil precisar quando e onde ocorreu a primeira
reforma em Salvador que tenha resultado em um arrajo ambiental que entendamos como
neoclássico. Mas podemos supor que foi na capela do Santíssimo Sacramento da antiga Sé,
demolida em 1933. [...] Definitivamente, esse décor não reverbera na Bahia. A reforma que
parece ter desencadeado a onda de reforma nas ornamentações sacras católicas foi a Igreja de
Nosso Senhor do Bonfim, iniciada pelo retábulo-mor em 1813.
Ainda de acordo com o mesmo autor, identifica-se a reforma do Bonfim
como a que provocou as reformas em outros templos, isso devido ao fato de seu
retábulo ter inaugurado um tipo que será muito difundido na Bahia oitocentista
e pela importância do culto ao Senhor do Bonfim.
Seguindo a tradição estilística que repercutiu na talha da Bahia do século XIX, o sertão também lançou mão dos novos modelos implantados na capital.
Na segunda metade do século XIX duas igrejas da zona do semi-árido, localizadas às margens do Rio Itapicuru adotou um altar com baldaquino arrematado
por cúpula vazada sobre volutas.
No final da década de setenta desse mesmo século, a matriz de Nossa
Senhora de Nazaré do Itapicuru passou por reformas. Conta-se na tradição oral
que o beato teria ajudado o padre Agripino, vigário da freguesia, nesse mister.
Embora não saibamos acerca de sua naturalidade e trajetórias, é bem
provável que a essa altura, o entalhador Manuel Faustino já se fizesse presente no
grupo Conselheirista, pois mesmo não existam documentos que comprovem sua
presença, vamos encontrar, por outro lado, na decoração da talha desse templo,
uma de suas peculiaridades: a flor como tema recorrente em toda a sua produção
em talha.
A tipologia das peças ornamentais dessa igreja é uma derivação, ainda
que bastante simplificada, do exemplar encontrado na Matriz do Nosso Senhor
do Bonfim de Salvador. Por sua vez, no final do século XIX, esse mesmo enta-
329
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lhador, que nessa freguesia trabalhou, irá confeccionar um modelo tipológico
semelhante no arraial do Bom Jesus.
Em sua obra A talha noclássica na Bahia, Freire (2006, p,203) cita os seguintes exemplares encontrados no interior do estado que adotaram esse mesmo
modelo: retábulo-mor da Igreja de Nossa Senhora da Madre de Deus de Pirajuía,
retábulo-mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira e retábulo-mor da Igreja Matriz de Crisópolis.
O interior do templo do Bom Jesus é modesto e delicado. A estrutura
interior, embora pequena, foi concebida com três naves, e, além de apresentar
um arco cruzeiro, contam-se ainda mais quatro arcos, sendo dois em cada lado.
No concernente a ornamentação ganha destaque o conjunto da talha
de influência neoclássica executado pelo Mestre Faustino: o retábulo-mor e os
retábulos colaterais.
O retábulo-mor é simples. A base é retangular e constituída de unidades
ornamentais que contém filetes e motivos fitomórficos. A mesa do altar apresenta
a forma trapezoidal com um florão centrado em ramicelos e volutas. Três colunas
distribuem-se de cada lado e apresentam fustes canelados com o terço inferior
marcado por uma anel de moldura e que por sua vez se assentam numa base
retangular ornada por cartelas que lembram liras.
Os capitéis, embora desajeitados, em consonância com a arte popular,
são compósitos e estão arrematados por cúpula vazada sobre volutas de curvaturas abruptas e um trono eucarístico de cinco degraus.
Levando em consideração todos os detalhes, consta-se um empenho
sem tamando do artífice e do beato em propiciar tudo quanto fosse possível para
glorificar o Bom Jesus, e, com isso, tornar muito mais formosa a Casa do Senhor.
Dadas as cinrcunstâncias em que foram executadas, contando-se com as
adversidades que afligem sempre a região do semiárido, o que ali se observa é um
verdadeiro milagre da expessão religiosa dos sertanejos, e, de certa forma, atesta
o gosto do beato Antônio Conselheiro, e do mestre de obras e artífice, Manuel
Faustino, em seguir e possibilitar aos fiéis, o que de melhor e mais moderno no
assunto estava ocorrendo na capital da Bahia.
A utilização da cúpula vazada que coroa o altar é o ponto áureo do
repertório do Bom Jesus e aí está impregnada de elementos desse repertório estilístico. Dela pendem festões ornados de flores que se ligam às volutas; aliás, os
temas florais se repetem em variados elementos dos altares: nos capitéis, nas bases
das colunas, nas faces dos degraus do trono, na mesa do altar, no sacrário, etc.
As cores dispostas nesse ambiente são bem equilibradas: o azul, o rosa,
o verde, o branco e o dourado enfestam o templo de singeleza e dão a tônica do
sentido neoclássico.
Pelo que se pode apurar, os templos de cariz conselheirista não legaram
para a história pinturas figurativas de teto, ou em qualquer outra superfície. Certamente em seu séquito não abundavam pintores desse naipe.
Sendo assim, não existe pintura de painel no teto da Igreja do Bom Jesus
de Crisópolis. Contudo, para suprir essa ausência o mestre Faustino esforçou-se
em dar a esse espaço um tratamento à guisa do neoclássico, onde o mesmo deve-
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ria testemunhar o reino celestial, ou seja, deveria evocar a abóbada celeste com
sua tonalidade azul salpicada de estrelas.
Encerra o partido ornamental em talha da Igreja do Bom Jesus um pequeno medalhão que arremata o arco cruzeiro. Foi caprichosamente esculpido
em madeira e pintado nas cores: azul, rosa e dourado. Está ali resistindo ao tempo
e ao esquecimento, e conclamando a todos a uma reflexão profunda. É, entretanto, mais que um item decorativo, pois carrega em si uma mensagem grandiosa,
proclamada diuturnamente pelo Conselheiro: SÓ DEUS É GRANDE.
331
X X X Colóquio CBHA 2010
Conjunto do Bom Jesus de Crisópolis – Igreja e cruzeiro
século XIX
Manuel Faustino e Antônio Conselheiro
Fonte: Jadilson Pimentel dos Santos, 2009
332
X X X Colóquio CBHA 2010
Porta entalhada em madeira com flores em alto relevo.
século XIX
Manuel Faustino
Fonte: Jadilson Pimentel dos Santos, 2009
333
X X X Colóquio CBHA 2010
Retábulo-mor e colaterais da Igreja do Bom Jesus de
Crisópolis
Século XIX
Manuel Faustino
Fonte: Jadilson Pimentel dos Santos, 2009
334
X X X Colóquio CBHA 2010
A pintura de paisagem gaúcha
na Primeira República
Análise de obras de Pedro
Weingärtner e Libindo Ferrás
Prof. Dr. José Augusto Avancini
UFRGS/CNPq/CBHA
Resumo
O conjunto das obras de Pedro Weingärtner e Libindo Ferrás permitem um exame mais minucioso do grau de incorporação de
modelos europeus de pintura de paisagem por esses dois pintores. Tentaremos aferir o grau de adesão de suas obras aos padrões
acadêmicos vigentes então no país e na Europa, para podermos
avaliar como adaptaram os modelos visuais europeus a um cenário
nacional.
Nossos paisagistas mantiveram-se fiéis aos ensinamentos recebidos,
com o predomínio entre nós de um realismo-acadêmico que se julgava continuador da tradição européia implantada aqui e garantida
pelos estágios e estudos realizados na Europa.
Palavra Chave
Arte brasileira; pintura de paisagem; academismo
Abstract
The ensemble of Pedro Weingärtner and Libindo Ferrás’
works allow a closer examination of the degree of incorporation of European models for landscape painting by
these two painters. We will try to assess the degree of compliance of their work to academic standards then prevailing in the country and in Europe, so we can evaluate how the
European visual patterns are adapted to a national scene.
Our landscapists have remained faithful to the teaching received,
with the prevalence among us of a realist academicism who was
follower of the European tradition here established and secured for
internships and studies in Europe.
Keywords
Brazilian art; Landscape painting; Academicism
335
X X X Colóquio CBHA 2010
Na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929) a pintura de paisagem ocupa um lugar proeminente, seja por ela própria ou com suporte para cenas variadas, em especial as de gênero. Dedicou um bom número de obras ao tema paisagem, como
ficou evidente com a grande exposição de sua obra em 2009/ 2010, que coletou
um número apreciável de obras. E há um conjunto de trabalhos que tem o Rio
Grande do Sul como temática. Dentre esses, se destaca as de temática gauchesca
e alguns que seriam “pura” paisagem, onde a preocupação com a composição é
visível na busca de um bom resultado plástico.
Seguindo a tradição verista, o pintor gaucho pintou vários cenários locais com o agudo senso de exatidão, procurando fixar o que via com uma grande
acuidade. Contudo também abordou a paisagem em grandes traços e zonas de
cor, diminuindo a representação pormenorizada dos objetos e aspectos da paisagem, sem abandonar sua veia realista, mas dando um tratamento mais solto a
pintura. Exemplo disso é a tela de 1918, intitulada Barra do Ribeiro, que recebeu
esse tipo de tratamento plástico. A cena é construída em linha horizontal, como
se o espectador estivesse atrás da menina que pesca com um caniço, tendo como
companheiro um cão sentado. A água e o céu tomam conta de toda a tela marcando a duas áreas de maior interesse, entremeadas por um faixa verde de mato e
areia que baliza a separação entre as partes inferior e superior da tela.
Uma grande figueira se eleva sobre o mato e situa na lateral esquerda
do quadro, formando o eixo vertical mais importante. Estando em paralelo com
a menina de pé na beira do lago. Esses eixos acentuam a profundidade, pois se
colocam em diferentes posições de proximidade do olho do espectador. A areia
branca nos dois planos, intercalada pelo azul da água, encontra rebatimento na
faixa de nuvens brancas num céu de intenso azul. A faixa verde da mata separa a
areia das nuvens e emenda no canto superior esquerdo com a imagem difusa de
morros já em tom azulado, para dar a distancia e remeter a um plano recuado.
As cores são claras e os tons frios acentuam a tranqüilidade da cena e
aumentam a sensação de distancia e profundidade. A massa da vegetação é tratada com realismo, mas sem detalhes, uma vez que está situada na linha horizontal
que divide o quadro num ponto mais distante do olhar do espectador.
Outro elemento importante é as nuvens, agrupadas numa grande massa
branca, que lembram cúmulos. Com duas mais altas e soltas no céu azul. As nuvens fazem contraponto com a vegetação e as areias e complementa a água pela
idéia de leveza e movimento que passa ao espectador.
A presença humana é dada pela figura da menina, de costas a pescar tendo um cão ao lado, as figuras se integram na paisagem numa escala menor, sem,
contudo, perderem a importância uma vez que baliza uma das linhas verticais
do quadro. Elas estão muito bem integradas e em harmonia com o conjunto da
tela. Toda a composição transmite uma sensação de tranqüilidade, paz e harmonia evocando uma visão amena da paisagem, reforçando as qualidades de um
cenário paradisíaco.
Na segunda tela de 1913, temos o predomínio da descrição quase minuciosa da paisagem. Todos os elementos são descritos com cuidado quase de miniaturista, numa iluminação quase zenital, deixando a mostra todos os elementos
336
X X X Colóquio CBHA 2010
do cenário, como a casa à esquerda da composição, em laranja claro e quente,
cercada dos verdes da vegetação, e do azul e branco do céu.
Num primeiro plano vemos um capim ralo formando uma depressão
no terreno dentro de uma grande elipse que realça o segundo plano mais elevado
e dentro dele um segundo semi-circulo que destaca uma touceira de vegetação a
lembrar cactos. No segundo plano, onde se situa a casa no canto médio à esquerda, temos a curva superior da elipse dirigindo o olhar para casa cercada de matos,
e colocada num plano mais elevado, estando posicionada em diagonal junto com
uma mancha de mato em posição enviesada em relação com os limites da tela e a
linha horizontal do lago emoldurado por um conjunto de colinas distantes num
azul diluído, encimada pelas nuvens brancas que acompanham essa linha que
atravessa o quadro.
Acompanhando a margem do lago uma porção de mato que corre para
a esquerda da composição é balizada por duas arvores colocadas como marcos
demarcadores, uma bem à esquerda, cortada ao meio pelo limite da tela, e a outra
à direita, entre o centro e a margem direita da tela. Essa grande arvore delimita
o espaço que se abre para o lago e a margem de areia que o contorna até a extremidade da tela. É nesse espaço aberto que o pintor coloca as duas únicas figuras
da composição, são duas mulheres que conversam a luz de sol forte, tendo suas
sombras delineadas na areia, uma mais jovem e descalça de frente para o espectador e outra em perfil mais velha que depositou um cesto de verduras a seus pés.
As figuras são complementos secundários, na trilha da pintura de gênero, ao conjunto da composição, emolduradas que estão pela areia creme que se
estende até a borda do lago, cuja linha demarcadora passa acima das cabeças das
mulheres. A faixa azul do lago tendo nele refletido a sombra da nuvem branca,
ressalta ainda mais a posição das figuras no canto inferior esquerdo da composição sem, contudo diminuir a importância da paisagem como tema dominante.
A tela tem uma composição bem urdida, onde cada parte se encaixa e
complementa as outras. Novamente o resultado plástico evoca um lugar tranqüilo, ensolarado e acolhedor nos remetendo ao pitoresco das cenas e a sua localização geográfica precisa, já que aponta não só pelo título com também pelo cenário
as margens do lago Guaíba.
Barra do Ribeiro, indicada nos títulos, é uma localidade na margem
ocidental sul do lago e lugar tradicional de pecuária com suas extensas fazendas.
Hoje continua a ter como atividade econômica importante essa criação. A relativa proximidade dessa localidade de Porto Alegre facilitou as visitas que Pedro
Weingärtner fez a região, tendo como resultado uma série de quadros que tem
como cenário esse lugar.
Cenas a beira de um lago foram freqüentes na pintura ocidental desde
o Renascimento, e ganharam maior destaque com o romantismo no século XIX,
período que valorizou esse tipo de temática em variados tratamentos, uma vez
que a pintura romântica atribuía sentidos e sentimentos humanos a paisagem,
antropomorfizando-a, e criando telas com características que ora acenavam para
o pitoresco, ora para o sublime, categorias estéticas do século XVIII que ordenavam a apreciação da paisagem criando dois tipos básicos de tratamento da
pintura desse gênero. O primeiro associado ao característico, ao específico, ao
337
X X X Colóquio CBHA 2010
particular aos quais se associavam atributos de mistério, lembrando o jardim inglês em seu formato caótico e cheio de referencias a outras culturas, como falsas
ruínas, pagodes, obeliscos e elementos escultóricos ou arquitetônicos de povos
remotos no tempo e no espaço. O segundo tipo buscava fixar o maravilhoso, o
extraordinário como tempestades, avalanches, desastres de grande envergadura
que despertassem sentimentos de medo, horror, ou de maravilhamento diante de
fenômenos naturais, que encareciam a pequenez e fragilidade humana diante das
forças da natureza.
As paisagens de Pedro Weingärtner se encaixariam na classificação do
pitoresco, pois abordavam um cenário geográfico específico, complementado
muitas vezes pela presença de personagens que atuavam como índices das obras,
nos remetendo a paisagens específicas do lugar em que se inspiravam.
Seja na produção de paisagens e temas afins que fez na Europa, seja na
produção que realizou no Brasil, Weingärtner sempre precisava a geografia do
lugar, fixando todas as características do ambiente, permitindo com isso a pronta
identificação da cena abordada. No geral reforçava a identificação com a presença humana característica do lugar, não deixando dúvidas quanto à localização a
que se referia o quadro. Assim procedeu nos dois quadros examinados, nos quais
fixou a paisagem característica do entorno ao Guaíba.
As obras de Libindo Ferrás (1877-1951) se associam as de Pedro Weingärtner por abordarem a temática da paisagem do lago e de fixarem uma paisagem conhecida e significativa para os gaúchos e em especial pelos porto-alegrenses, o Guaíba.
Selecionamos duas telas dos anos de 1920, em que Libindo fixou as
águas calmas e tranqüilas que margeiam a cidade e seu entorno, como exemplo
de seu apreço pelo tema. As telas são uma de 1918, sem título, e outra chamada
Fim de Tarde no Guaíba de 1925. Ambas em pequenas dimensões, na técnica do
óleo sobre tela. Era prática de Libindo pintar ao ar livre, disso ficou depoimento
de alunos e fotografia de sua prática costumeira de se exercitar diante do natural.
Como diretor e professor do Curso de Artes Plásticas do Instituto Livre de Belas
Artes de Porto Alegre, entre 1910-1936, tinha como procedimento didático praticar a pintura diante do natural, levando os alunos em excursões pelos arredores
da cidade. Com isso Libindo produziu um bom número de paisagens ao longo
de seu vida ativa, principalmente em óleo e aquarela.
A tela de 1918, mostra as margens do lago com um pequeno barco ancorado, tendo um céu branco e violáceo, com nuvens cinzentas cerradas, deixando
ver pedaços de céu. A linha do horizonte é baixa e mostra a margem oposta
emoldurada por colinas tratadas em cor azulada, para acentuar a distância entre
o primeiro plano e este em terceiro, mediados por um segundo, as águas do lago.
Essas três faixas de cor e área organizam a tela, acentuando a horizontalidade e a
relativa proximidade da cena diante do espectador colocado na primeira área ou
plano. Como linhas verticais, temos uma árvore colocada à esquerda e o mastro
do pequeno barco a direita. Essas linhas dão o enquadramento da zona central do
quadro. Esta se abre para o lago e o fundo do terceiro plano, tendo como linha
em movimento a posição do barco em diagonal dentro do espaço central.
338
X X X Colóquio CBHA 2010
No primeiro plano em tamanho maior e jogando com a proximidade
do espectador, a estrada de terra que conduz o olhar para o lago, formando uma
forma trapezoidal entre o limite inferior da tela e a margem do lago, é complementada por um caminho de terra na mesma cor da estrada à direita, acentuando
o delineamento da margem, e reforçando com isso a horizontalidade do plano.
Tudo sugere calma e quietude, a natureza está como que parada, num
intervalo de tempo que pode ser o amanhecer ou entardecer, momentos em tudo
se aquieta e temos a sensação de perenidade. Contudo, o movimento está presente na forma que Libindo representou as nuvens. Elas estão em movimento
e fazem um contraponto ao restante da paisagem. Movimento e repouso estão
tensamente equilibrados na tela. Terra, água e céu se complementam e se correspondem, dando uma imagem de uma natureza harmoniosa.
O segundo quadro a ser examinado é um óleo, intitulado Fim de Tarde
no Guaíba, de 1925. Tela de pequenas dimensões que alberga uma vista larga do
lago e do entardecer.
Com menos elementos e atingindo uma síntese maior do que na tela anterior, procura centralizar a atenção do espectador no por do sol, e de seus efeitos
na atmosfera e na paisagem. O pintor coloca a linha do horizonte na relação 1/3
– 2/3 da altura da tela. Ela é preenchida com a vegetação ribeirinha abundante
no conjunto de ilhas situadas entre o delta do rio Jacuí e o lago Guaíba. O único
personagem da cena é um pequeno barco a remo que navega calmamente pelo
lago transportando o que parece ser verduras para o abastecimento da cidade,
fato comum na época, quando o rio Jacuí e o lago Guaíba eram usados como vias
naturais de escoamento e comunicação entre diversas cidades e regiões.
A cor é o elemento dominante da composição, certamente pelo pintor
procurar representar o por de sol, com seus variados efeitos e matizes de cor, ela
varia do azul, quase violeta ao dourado refletido na água, passando pelos rosas e
brancos do lago e do céu. O por de sol se abre num leque invertido com tons de
dourado e rosa, invadindo o céu e dourando a água no espaço onde desliza o barco. O movimento da cor atinge e tinge o plano inferior e superior da tela, dando
à composição o movimento necessário ao percurso que o olho faz na superfície
do quadro, na representação de um instante irrepetível e fugaz como o de um
por de sol, fenômeno meteorológico passageiro. O uso dos azuis acentua um tom
de irrealidade e faz do por de sol um momento mágico e único da natureza e o
desejo e o empenho em fixá-lo corresponde tanto a um elemento de sensibilidade,
aguçada pela época romântica, como pelo fenômeno conhecido e comentado dos
belos por de sóis sobre o Guaíba, que essa sensibilidade ajudou a valorizar até
hoje. Um pouco do sublime se faz presente nessa pequena tela que mantém seu
toque de pitoresco pela presença do pequeno barco, num cenário amplo onde a
natureza domina soberana.
As quatro telas examinadas apresentam algumas características comuns,
o verismo das obras de Weingärtner e da de Libindo de 1918, se contrapõe a tela
de Libindo de 1925, de fatura mais solta, menos detalhista, tratando as zonas
do quadro com grandes superfícies de cor. Entretanto o tema não é perdido e o
título da tela é confirmado pela própria imagem que permite uma identificação
com o sítio geográfico mencionado. Vemos nos trabalhos de Libindo uma pas-
339
X X X Colóquio CBHA 2010
sagem do registro mais verista para uma apreensão da imagem mais moderna,
se aproximando dos pintores pós-impressionistas, no uso da cor como elemento
estruturante da forma. Weingärtner tem seu estilo já fixado e a ele permanecerá
fiel até o fim de sua vida. São duas gerações diferentes e que se sucederam no tempo e foram diferentemente marcadas pelas épocas e modas pelas quais passaram.
Libindo ainda experimenta e realiza inovações, absorvendo parcimoniosamente
as novidades vindas da Europa, Weingärtner se atém ao que apreendeu em seus
estágios europeus e dentro da estrita tradição acadêmica do final do século XIX.
O grande motivo comum é o lago Guaíba e seu entorno, seja Barra
do Ribeiro ou Porto Alegre, onde o tema além de fixar a imagem da terra é o
da tradição poética do bucolismo que remete a Virgílio e as suas Geórgicas, é a
busca do lugar ameno, da Arcádia tal como foi imaginada pelos poetas latinos.
Um pouco, senão muito do jardim do Éden, do jardim paradisíaco, lugar onde
se encontrava a harmonia perdida e se religava o artista e o espectador com uma
totalidade já desfeita e atualizada pela visão poética dos artistas.
340
X X X Colóquio CBHA 2010
Barra do Ribeiro, 1913
Pedro Weingärtner
Óleo/ tela
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X X X Colóquio CBHA 2010
Barra do Ribeiro, 1918
Pedro Weingärtner
Óleo/ tela
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X X X Colóquio CBHA 2010
Fim de Tarde no Guaíba, 1925
Libindo Ferrás
Óleo/ tela
343
X X X Colóquio CBHA 2010
Sem título, 1918
Libindo Ferrás
Óleo/ tela
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X X X Colóquio CBHA 2010
Vicente do Rego Monteiro
e as figurações do indígena
Leticia Squeff
UNIFESP
Resumo
Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) é um dos mais complexos artistas brasileiros. Sua produção estende-se pela escultura, a
pintura e a poesia, a ilustração de livros, entre muitas outras. Nesta
comunicação, pretendo discutir sobre os diálogos que o artista estabelece com linguagens tidas como “primitivas”, tendo em vista não
apenas as demandas colocadas pelo nacionalismo que permeava o
modernismo brasileiro no período, como também o forte interesse
que havia, na Europa, pelas chamadas “culturas primitivas”.
Palavra Chave
Vicente do Rego Monteiro (1899-1970); modernismo brasileiro;
vanguardas
Abstract
Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) is an important artist of
the brazilian modernism. His production extends for the sculpture, the painting and the poetry, the book ilustration, among
many others. I want to discuss on the relationship that the artist
establishes with languages held as “primitive”, tends in view not
just the nationalism from this period, as well as the interests that
there was, in Europe, for the calls “primitive cultures”.
Keywords
Vicente do Rego Monteiro (1899-1970); brazilian modernism;
avant -garde
345
X X X Colóquio CBHA 2010
Vicente do Rego Monteiro é um dos mais complexos artistas brasileiros. Sua produção estende-se pela escultura, a pintura e a poesia, a ilustração de livros, entre
muitas outras. Tendo passado boa parte da vida na França, sua atuação artística
e cultural se projeta sobre dois países.1
O artista não estava no Brasil por ocasião da Semana de 1922, mas participou dela com dez obras. A produção pictórica de Rego Monteiro dialogou inicialmente com o art déco e o cubismo, sendo pautada pela simplificação formal.
Incorporando o rigor estrutural do cubismo classicizante de Léger e outros, suas
criações estiveram alinhadas, por um lado, àquilo que já foi chamado de “modernidade conservadora”, que caracterizou a arte dos pós-guerra, particularmente
os anos 1920. Por outro, estudou longamente a arte indígena, interessando-se
também pelos mitos e lendas dos índios brasileiros. Esses temas foram explorados
na segunda exposição do artista no Rio de Janeiro, já em 1921. Em aquarelas e
desenhos de pequeno formato, Rego Monteiro criou figuras que demonstram a
familiaridade do artista com ilustradores como Beardsley, e de refinado tratamento cromático.^F Algumas das figuras seriam utilizadas, mais tarde, nas ilustrações das Lendas, Crenças e Talismãs da Amazônia, livro publicado em francês,
em Paris em 1923.
As personagens, bem como o bailado encenado durante a exposição,
indicam o interesse do artista não apenas pelo aspecto decorativo e formal da
arte indígena, como também seus estudos no âmbito da história da colonização
da América, da Etnologia, a leitura de cronistas e viajantes estrangeiros^F. Esses
temas parecem ter sido longamente estudados por Vicente entre os anos de 1915 e
1921, período em que visitou o Museu Nacional e bibliotecas em busca de fontes
para suas pesquisas. Joaquim do Rego Monteiro, retratando o ateliê do irmão
em Paris, mostra os desenhos com cópias de padronagens indígenas feitas por
Vicente^F. O que indica um interesse profundo do artista por essas linguagens,
que seriam, aliás, desenvolvidas em pinturas de cavalete e em outras ilustrações
que o artista produziu^F. Motivos decorativos indígenas também atraíram as atenções de outros artistas brasileiros na época, como Regina Graz, Manoel Santiago
ou mesmo Vitor Brecheret, entre outros.
Nesta comunicação, pretendo discutir algumas criações de Rego Monteiro que têm como tema lendas indígenas ou o próprio índio em seus hábitos e
valores. Em primeiro lugar, quero refletir sobre os diálogos que o artista estabelece com linguagens tidas como “primitivas”. Aqui, busco aproximar as realizações de Rego Monteiro da pintura rupestre e da cerâmica indígena, entre outros.
Além disso, importa compreender essas criações de um ponto de vista mais amplo, que leve em conta não apenas as demandas colocadas pelo clima de forte
nacionalismo que permeava o modernismo brasileiro no período, como também
o forte interesse que havia, na Europa, pelas chamadas “culturas primitivas”.
Estudos recentes vêm demonstrando o enorme peso que a literatura e atividades
1
“Mais do que qualquer artista brasileiro, ele viveu intensamente duas culturas: a brasileira e a francesa.
Não como um simples regionalista exótico, no primeiro caso, nem como um cosmopolita provinciano,
no segundo. Mas como um integrado, um participante ativo e atípico. Toda a sua vida oscilou em longas
temporadas entre o Recife e Paris e, assim, terminou por ser um divulgador dos mais apaixonados das
duas culturas”. Vicente: poeta, tipógrafo, pintor. Organizadores Paulo Bruscky et al. Recife: CEPE [Compahia Editora de Pernambuco], 2004, p.18.
346
X X X Colóquio CBHA 2010
ligadas à imprensa tiveram na vida do artista, principalmente após seu retorno ao
Brasil, em 1930 ^F. Sendo assim, restringirei minha discussão às seguintes realizações do artista: as ilustrações feitas para a obra Quelques Visages de Paris (Paris,
em 1925)^F, alguns desenhos e estudos feitos pelo artista.
Escrito e ilustrado por Rego Monteiro, Quelques Visages de Paris mostra
vistas dos principais monumentos de Paris acompanhados por pequenos poemas.
O autor dos textos e dos desenhos é um índio ficcional que, deixando sua aldeia
no meio da floresta Amazônica, teria passado alguns dias na capital francesa. Os
desenhos, feitos em nanquim sobre fundo creme do papel vergé, descrevem os
principais monumentos da cidade. Vejamos alguns exemplos.
A paródia dos livros de viagem
Na representação do Louvre texto e imagem parecem criar dissonâncias. O poema, bastante curto, afirma: “Loja do mais rico marchand da França. É pena q ele
não ponha preço nos quadros”. Se não deixa de evocar a ingenuidade do índio, ao
achar que o Museu é uma loja, o pequeno texto desconcerta, também, o leitor.
Para que um índio selvagem quereria comprar quadros?
Já a imagem traz uma complexidade inesperada, que pode ser melhor
compreendida ao compará-la com uma vista panorâmica do edifício e seu entorno. (Figura 1) O desenho congrega diferentes pontos de vista numa mesma imagem. O edifício do museu está delineado em planta-baixa. O Arco do Carrossel
(Arc du Triomphe du Carroussel) é delineado em perfil, mas de ponta-cabeça, no
canto inferior do desenho. Ao redor deles, construções estilizadas, signos de árvores e da água. Novamente aqui, estilização e representação figurativa se aliam.
Dessa miscelânia de linguagens plásticas, ermerge algo novo. É fácil esquecer o
que a imagem referencia – um edifício, o Louvre – e enxergar apenas um padrão
decorativo parecido com aqueles da cestaria ou das cerâmicas indígenas.
Deve-se acrescentar, porém, que enquanto o texto fala em loja de quadros – uma referência civilizada -, a mão do índio desenha arabescos. Pelas mãos
de seu índio/artista/ilustrador, o Louvre - grande centro da arte ocidental, destino de peregrinação de artistas europeus e não europeus há décadas – é transformado num grafismo, um traçado “primitivo”, misturado a outros. Haveria aqui
uma brincadeira com a demanda por arte primitiva de setores das vanguardas européias? Ou simplesmente uma inversão, maliciosa, dos valores associados à arte?
Nessa inversão Rego Monteiro também seguia a trilha de mais de um
contemporâneo. Desde o começo do século, certa saturação com a cultura européia motivava alguns artistas a buscarem inspiração em tudo aquilo que era
exótico – entendido aqui como o que estava fora dos parâmetros de civilização
e alta cultura, segundo uma perspectiva eurocêntrica. As manifestações exóticas
pareciam abrir um novo eixo criativo para artistas e intelectuais. É nesse contexto
que as atenções de artistas e literatos europeus se voltam para a chamada ‘arte
africana’, para as sociedades tribais da Oceania, Ásia e África, e também para a
América. É essa crença o que motiva a viagem de tantos contemporâneos para
fora do continente europeu^F.
Para entender a ilustração do Trocadéro, foi preciso comparar o desenho
com uma foto do antigo edifício (Figura 2). Numa construção fortemente ge-
347
X X X Colóquio CBHA 2010
ometrizada, a zona escura no fundo estrutura o perfil do monumento. É como
se a intenção fosse criar um efeito de profundidade por alguém que não domina
o desenho. Mas o contraponto entre zonas escuras e claras indica, também, o
partido adotado pelo ilustrador.
Não é o edifício em estilo mourisco, construído para sediar a Exposição
Universal de 1878, que interessa. Ao contrário, os arabescos enfatizam os espelhos d´água, os recantos com árvores e águas que fazem o entorno ao monumento. Aqui, pelo deslocamento de ponto de vista, do palácio construído por mãos
humanas para a água e as plantas, o narrador demarca o olhar do indígena.
Também o poema que acompanha a imagem reforça esse olhar não-europeu^F. Em suas considerações, o selvagem-poeta acha que o Trocadéro é a
casa de um grande guerreiro, e que, a julgar por seus troféus, é alguém competente na arte de embalsamar e empalhar os corpos de seus inimigos. Para entender o comentário do personagem, é preciso investigar as funções que o edifício
desempenhava no período. Em 1925 o Trocadéro sediava algumas instituições de
cultura e ciência tais como: um museu de escultura comparada, um museu indo-chinês e um museu de etnografia no primeiro andar. Pode-se aventar, assim, que
o poema se refere ao Museu de Etnografia. Essa hipótese é reforçada pelo que
afirma o índio no final do poema:
“Foi com o maior aperto no coração que vi meus ancestrais em posturas tão estranhas”.
Aqui, pela primeira vez, o texto opõe de modo explícito europeus e índios, evocando não apenas o processo da colonização, como invertendo um dos
grandes discursos que o embasou - o do processo civilizador. Ele começa traçando um curioso paralelo entre eles: ambos vêm o corpo como sinal da “vitória
sobre os inimigos”. É isso que justifica, aos olhos do índio, o fato de que também
em Paris ele encontra corpos embalsamados. Mas esses “troféus” trazidos pelo
europeu de suas incursões pelo território americano são um indício da destruição
a que foram submetidos os índios. Se também os europeus se apropriam dos
corpos de seus inimigos, expondo-os, porém, aos olhos de quem quiser ver, onde
está a civilização? A imagem, ao enfatizar o que resta de natural desse cenário
todo construído pelo homem civilizado, reforça a negação da cultura européia
manifestada pelo poema. E aqui, a sombra do edifício ganha também um sentido
metafórico: como ameaça ao resto de natureza que ainda resiste fora das paredes
do Museu de História Natural.
Já a ilustração do Jardin des Plantes é a única, em toda a obra, em que
estão representadas pessoas. Essa instituição, que funciona até hoje, possui jardim botânico, um museu de história natural e um minizoológico. A ilustração
centra-se especificamente nesse zoológico, representando mães e filhos, crianças
brincando, em torno de um grande eixo circular. Grossas linhas quadriculadas
separam os espaços ocupados pelos humanos, daqueles em que estão confinados
os animais. Em desenhos sem profundidade, sem volume, estão desenhadas girafas, tartarugas, macacos, aves e outros. A representação dos animais lembra,
em sua simplicidade, pinturas rupestres, ou ainda decorações encontradas em
objetos cerâmicos criados por índios no Brasil (Figura 3).
348
X X X Colóquio CBHA 2010
O poema corrobora a representação, levantando uma série de questões.
O índio pergunta, por exemplo, se já houve plantas naquele lugar estranho, e se
os “pobres animais” as devoraram. A seguir, o narrador se pergunta como eles
vieram parar lá. Para terminar, questiona: “uma coisa me intriga: por que colocaram grades separando-os?”
E aqui, as grossas linhas que separam homens e animais ganham sentido: são as correntes que separam homens e animais. Como enfatiza o poema,
essa separação parece, na visão do índio, uma violência contra a natureza. E
aqui, poesia e imagem confluem numa discussão sobre a artificialidade da vida
civilizada. A cultura européia separa o que é “da natureza” do que é humano. As
correntes separam uns e outros. Mas apenas os animais estão acorrentados? O
confinamento também não poderia se referir às pessoas, constrangidas a caminhar por caminhos estreitos, delimitados por essas correntes?
Ao transformar a topografia que cerca o Louvre em padronagem indígena, ao explorar as estruturas coercitivas da cultura européia, explicitando a separação entre o homem europeu e os espaços ‘naturais’ – o dos homens “primitivos”
empalhados no Trocadéro, ou dos animais no zoológico do Jardin das Plantes -, o
livro de Rego Monteiro opera no registro da paródia.
Se, como já foi apontado, Quelques Visages de Paris é um “livro de artista”, a obra traz para o leitor brasileiro, contudo, uma veia interpretativa muito
mais interessante. Pode-se apontar por exemplo, a relação da obra com as narrativas de viagem sobre o Brasil, comuns na cultura francesa desde o século XVI,
com relatos como os de Jean de Léry e André Thevet. Estão no livro de Rego
Monteiro alguns dos atributos típicos daquele gênero literário: um narrador que
comenta suas impressões sobre uma terra estranha, uma obra que alia texto e
imagens, feitas de memória, dos lugares e personagens observados. Contudo,
aqui, os eixos se invertem.
O narrador não é europeu, mas um índio. E a terra estranha não é a
América selvagem, mas a capital mais civilizada da Europa. Essa inversão aproxima o livro de Rego Monteiro de obras como As Cartas Persas/Lettres Persanes
(1721), de Montesquieu. Desse ponto de vista, pode-se entender Quelques Visages
de Paris como uma espécie de paródia dos livros de viagem. Ao inverter os eixos do discurso, Rego Monteiro critica a colonização e a destruição da natureza
selvagem. Lamenta que índios estejam embalsamados, e que plantas e animais
fiquem presos em jaulas ou estufas artificiais. Ele inverte a lógica da sociedade
européia, mostrando sua brutalidade.
E a obra de Monteiro opera ainda outras paródias. Monumentos históricos e edifícios urbanos conhecidos são parodiados ao ganhar de Rego Monteiro
uma aparência diferente, entre “supermoderna” e/ou arcaizante. E aqui as referências cruzadas e a paródia se sobrepõem e multiplicam: o ilustrador ora transforma o traço geometrizante em síntese formal refinada, alinhada às vanguardas
do século XX, ora faz com que linhas estilizadas lembrem a fatura artesanal da
cerâmica indígena pré-histórica.
Geralmente se diz que essa obra, como a anterior, Légendes, são formas
de Rego Monteiro se adequar ao interesse da École de Paris pelas culturas exóticas. Mas não seria o contrário? Ao mostrar a cidade européia como foco de um
349
X X X Colóquio CBHA 2010
olhar indígena, o artista está subvertendo a lógica do exótico da école. Sob o olhar
do índio fictício de Rego Monteiro, é a cidade de Paris que se torna exótica. É a
lógica européia, que empalha pessoas e animais, que se torna estranha.
Em 1930 Oswald de Andrade convidou Rego Monteiro a tomar parte
do movimento antropofágico. Este se recusou, indignado por não reconhecerem
nele o papel de precursor. A questão divide, de fato, a historiografia. Para alguns,
Rego Monteiro foi realmente um precursor do movimento mais tarde capitaneado por Oswald de Andrade. Para outros, ele pode ser visto sobretudo como um
indianista.
Na obra Quelques Visages de Paris, Rego Monteiro vai, de fato, além do
indianismo. A obra mantém uma grande distância do próprio índio enquanto
figura literária, personagem tão comum na literatura brasileira desde o romantismo. Afinal, seu “chefe selvagem” escreve em francês. Seria possível dizer que
o índio ficcional de Monteiro realiza mesmo um ato de canibalismo visual e
cultural. Afinal, ele transforma os monumentos franceses em arabesco tribal, usa
a língua civilizada – o francês – para explorar o que há de bárbaro, violento, na
cultura européia.
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X X X Colóquio CBHA 2010
O Louvre, in Quelques Visages de Paris
Vicente do Rego Monteiro
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O Trocadéro, in Quelques Visages de Paris
Vicente do Rego Monteiro
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O Jardin de Plantes, in Quelques Visages de Paris
Vicente do Rego Monteiro
353
X X X Colóquio CBHA 2010
Heróis imóveis na pintura
indigenista da América Latina1
Maraliz de Castro Vieira Christo
UFJF/ CBHA
Resumo
Estudaremos comparativamente as obras Caupolicán, jefe de los
Araucanos, prisionero de los españoles, do francês Raimundo Monvoisin, datada de 1859; Os funerais de Atahualpa, do peruano Luis
Montero, de 1867; O último Tamoio, do brasileiro Rodolpho Amoêdo, de 1883; e El suplicio de Cuauhtémoc, do mexicano Leandro
Izaguirre, de 1893. Nelas são representados mortos ou prisioneiros
quatro dos mais resistentes chefes indígenas: o mapuche Caupolicán, o inca Atahualpa, o tamoio Aimberê e o asteca Cuaultémoc.
Palavra Chaves
Pintura histórica, indigenismo, arte latino-americana.
Abstract
We will study comparatively the works Caupolicán, jefe de los
Araucanos, prisionero de los españoles (Caupolicán, Leader of the
Araucanians, Prisoner of the Spaniards), by France’s Monvoisin
Raymond, dated 1859; Os funerais de Atahualpa (Funeral of Atahualpa), by Peru’s Luis Montero, 1867; O último Tamoio (The Last
Tamoio), by Brazil’s Amoêdo Rodolpho, 1883; and El suplicio de
Cuauhtémoc (The Torture of Cuauhtémoc), by Mexico’s Leandro
Izaguirre, 1893. Four of the most enduring Indian chiefs are represented as dead or prisoners in these works: the Mapuche Caupolicán, the Inca Atahualpa, the Tamoio Aimberê, and the Aztec
Cuauhtémoc.
Keywords
Historical painting, indigenization, Latin American art.
1
O presente texto foi escrito com base em pesquisa realizada durante o período de pós-doutoramento,
desenvolvido com o apoio da CAPES e da FAPEMIG.
354
X X X Colóquio CBHA 2010
Importantes representações artísticas de líderes indígenas surgem na América
Latina durante o século XIX.
Quatro dentre elas mostram pontos de contato significativos. São elas:
Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles, do francês Raymond
Monvoisin (1790-1870), datada de 1859; Los funerales de Atahualpa2, do peruano
Luis Montero (1826-1869), de 1867; O último Tamoio3, do brasileiro Rodolpho
Amoêdo (1857-1947), de 1883; e El suplicio de Cuauhtémoc4, do mexicano Leandro Izaguirre, de 1893.
São quadros de grande formato e expressiva qualidade técnica. Expostos
internacionalmente, receberam críticas positivas, foram premiados e adquiridos
por instituições oficiais nos países de origem. Suas imagens circularam das mais
diferentes formas.
Uma primeira observação é evidente: a imobilidade dos corpos. Nas
telas, os chefes indígenas são prisioneiros; corpos impedidos de qualquer movimento pela morte ou pelas cordas que os prendem. No século XIX, heróis indígenas em luta não são quase representados. Quando aparecem cenas de conflito,
revelam uma visão oposta: o índio como selvagem anônimo, raça degenerada
ameaçadora do progresso.
Caupolicán
Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles5 é obra de
Raymond Monvoisin (1790-1870), artista francês que trabalhou no Chile entre
1843 e 1858 (Figura 1).
Caupolicán era líder dos mapuche, que viviam nos territórios hoje conhecidos como Chile e Argentina. Resistiu aos avanços dos colonizadores, porém, traído, foi capturado, batizado e executado pelos espanhóis, por empalamento. Sua luta foi tema do poema épico La Araucana, do espanhol Alonso de
Ercilla y Zuñiga (1533-1594).
Monvoisin lê La Araucana, mas, não enfatiza a coragem do líder mapuche nas batalhas ou na morte. O pintor fixa-se na reação da esposa do herói,
Fresia, ao vê-lo prisioneiro6 .
O artista realizou duas versões para o tema. Uma, sob encomenda de
Manuel Solar Gorostiaga, hoje exposta no Museu Histórico Nacional, e outra
executada quando de seu retorno definitivo a Paris.
Na segunda versão, Caupolicán encontra-se em primeiro plano, atado,
deitado sobre uma espécie de liteira no chão, rodeado por índios, também pri-
2
Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867. Óleo sobre tela, 350 x 430 cm. Museu de Arte de
Lima, Peru.
3
Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883. Óleo sobre tela, 180 x 261 cm. Museu Nacional de Belas
Artes.
4
Leandro Izaguire, El suplicio de Cuauhtémoc, 1893. Óleo sobre tela, 294,5 x 454 cm., Museo Nacional
de Arte, México-DF.
5
Raymond Monvoisin, Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles, 1859. Óleo s/tela, 220
x 277, Museo O’Higginiano Y Bellas Artes de Talca, Chile.
6
La Araucana, canto XXXIII.
355
X X X Colóquio CBHA 2010
sioneiros. Do lado esquerdo, sua mulher lhe estende o filho, revoltada por ele se
deixar capturar vivo, recusando-se a ser mãe do filho de um covarde.
No quadro, o gesto de Fresia provoca visível constrangimento, obrigando Caupolicán a abaixar o olhar. É Fresia, não os conquistadores, que faz de
Caupolicán um derrotado.
O perfil, os cabelos, o brinco, o colo à mostra e a instabilidade da criança em muito lembram a Medeia, pintada em 1838, por Delacroix, antigo colega
de Monvoisin no atelier de Guerin, em Paris. Transmudada em Medeia, Fresia
se universaliza.
A tela pintada na França contrasta com a primeira versão da prisão
de Caupolicán, executada no Chile em 18547. Apesar de assinada pelo artista,
apresenta composição e técnica muito inferiores, sugerindo pouco empenho do
pintor^F. Na composição chilena, Caupolicán está de pé, com mãos atadas às
costas, entre índios e espanhóis, enquanto Fresia, de joelhos, em primeiro plano,
externa sua dor e repulsa. Na tela parisiense, Monvoisin surpreende ao inverter
as posições de Fresia e Caupolicán, colocando-o em posição inferior à esposa, ou
seja, deitado e imóvel, a seus pés.
Tal desconstrução do herói cantado por Ercílla surge no início da segunda metade do século XIX, principalmente em discursos liberais, como os de Benjamín Vicuña Mackenna, como justificativa da pacificação militar dos mapuche.
A segunda versão, hoje no museu de Talca, foi realizada para ser exposta
no Salon de Paris de 1859, onde recebeu a terceira medalha, e oferecida à venda
ao governo do Chile. Em publicação explicativa das obras do Salon, constam três
telas de Monvoisin:8 Casal paraguaio, Caupolican, chefe dos araucanos, prisioneiro
dos espanhóis e Uma chilena prisioneira dos índios das costas da Araucânia (América
do Sul.)
O conjunto dos três quadros, revela a existência de três casais, recordando antigas pinturas de castas do período colonial: um casal branco, entristecido e
impotente face ao assassinato dos filhos pelos índios; um casal mestiço, composto
por um cacique assassino, travestido de camponês, e uma mulher branca raptada,
violentada, mãe de mestiços; por fim, um casal indígena, composto por um covarde e uma mulher vingativa. Monvoisin explorou o exótico e apresentou o povo
americano com extremo pessimismo. A inserção de Caupolicán no conjunto dos
casais do Salon de 1859 reforça a leitura negativa, que o artista apresenta do herói
dos mapuche.
Atahualpa
Luis Montero (1826-1869) pintou Los funerales de Atahualpa9 em 1867, em Florença, sob encomenda do governo peruano (Figura 2).
7
Monvoisin, La captura de Caupolicán, 1854. Óleo s/tela, 297 x 386 cm., Museo Histórico Nacional de
Chile.
8
Explication des ouvrages de peinture et dessins, sculpture, architecture et gravure et architecture exposis au
Palais des Champe-Elysées le 15 avril 1859. Ministère de la Maison de L`Empereur. Direction générale des
Musées Impériaux. Exposition publique des ouvrages des artistes vivants pour l’année 1859. BNF.
9
Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867. Óleo sobre tela, 350 x 430 cm., Museu de Arte de
Lima, Peru.
356
X X X Colóquio CBHA 2010
Atahualpa (1502-1533) foi o último imperador inca, traído e aprisionado por Francisco Pizarro. Em troca da liberdade, Atahualpa ofereceu-lhe ouro e
prata. Pizarro recebeu o resgate, mas não o libertou, condenando-o a ser queimado vivo na fogueira. No momento da execução, o padre Vicente Valverde
teria conseguido que Atahualpa aceitasse ser batizado para atenuar-lhe a pena,
transformando-a em morte por garroteamento, aplicada em 26 de julho de 1533.
A exemplo de Monvoisin, Montero não pintou o imperador inca em
luta, como grande líder, mas seu cadáver em poder dos conquistadores. O artista
baseou-se na leitura de La historia de la conquista del Perú, do historiador americano William Prescott, publicada em 1847-1848^F. Montero escolheu uma cena
de forte impacto, dada a estranheza causada pela intenção das mulheres, não
apenas em resgatar o corpo de Atahualpa e reverenciá-lo segundo as próprias tradições, mas de acompanhá-lo post-mortem. Em oposição ao mundo sentimental
e primitivo feminino, o pintor criou um espaço masculino, pertencente aos conquistadores; um mundo da razão e da ordem. Nele, contraste maior reside entre
conquistador e conquistado, vencedor e vencido, Pizarro e Atahualpa.
A imobilidade natural do cadáver é reforçada pela horizontalidade e pela
corrente, que ainda lhe prende os pulsos. Vencido e morto, Atahualpa encontra-se à mercê de outras vontades. Trata-se agora de submetê-lo ao ritual cristão, de
conquistar-lhe a alma, último reduto. Montero reforça a idéia de Atahualpa ter
sido ingênuo ao extremo para cair na armadilha de Pizarro e, por medo de morte
ainda mais dolorosa, ter aceitado o batismo.
Luis Montero ambicionava apresentar a obra na Exposição Universal de
Paris de 1867. A ausência de recursos para a viagem até a capital francesa o impediu de fazê-lo, limitando-se a expô-la em Florença, com grande repercussão. O
artista planejou exibi-la também no Rio de Janeiro, Montevidéu e Buenos Aires,
antes de chegar a Lima.
Nesses países a crítica lhe foi muito favorável, salientando as qualidades
de grande pintura e o tema escolhido, revelador da crueldade dos conquistadores.
Em 1868, Montero chega apoteoticamente a Lima, premiado pelo
governo com medalha de honra e vinte mil soles. Adquirida pelo Estado, a obra
circulou como imagem, reproduzida nas notas de quinhentos soles.
Roberto Miró Quesada assinalou a identificação de Luis Montero
com projetos crioulos e liberais de seu tempo, nos quais se reconhece a importância do indígena do passado, a ser, não obstante, superado, objetivando a construção de um novo Peru, a partir da herança hispânica10.
10
Roberto Miró Quesada. “Los funerales de Atahualpa”. El Caballo Rojo. Suplemento del Diario Marka
13-11-1983, 10-11. Ensaio reproduzido em: Pueblo Indio, n° 1, 1985, 37-40 e em: Márgenes. Encuentro y
Debate. Año VI, N° 10-11 Oct. 1993,107-114.
357
X X X Colóquio CBHA 2010
Aimberê
O último Tamoio11, tela exposta no Salon de 188312, pintada por Rodolpho Amoêdo (1857-1947), em Paris, é obra singular. Retrata o corpo do índio Aimberê devolvido à praia e amparado pelo padre Anchieta. O tema integra o poema épico
A Confederação dos Tamoios, publicado em 1856, por Gonçalves de Magalhães.
Gonçalves de Magalhães apresenta Aimberê como chefe dos tamoios,
opondo-se aos vis portugueses, descreve batalhas, o ataque de Aimberê a Piratininga para resgatar a amada Iguaçu, sequestrada, e muitos outros feitos do
guerreiro até a morte. Na batalha que levou à expulsão dos franceses, Iguaçu é
ferida, morrendo aos pés de Aimberê que, ao reagir, fere Estácio de Sá com flecha
envenenada. Diante da derrota inevitável, Aimberê toma o cadáver da esposa nos
braços e brada feroz:
“Tamoio sou, Tamoio morrer quero,
E livre morrerei. Comigo morra
O último Tamoio; e nenhum fique
Para escravo do Luso. A nenhum deles
Darei a gloria de tirar-me a vida.
Rápido e cego, meneando a maça, Foi abrindo uma estrada de cadáveres Por entre o inimigo,
ao mar lançou-se” 13 .
Nas exposições da Academia Imperial de Belas Artes, os personagens indígenas não eram guerreiros em busca da liberdade, antes mulheres apaixonadas
pelos colonizadores, que por esse amor morreram^F..
Rodolpho Amoêdo fez surpreendente escolha representando Aimberê,
chefe indígena que não se opôs apenas aos portugueses, mas ao futuro Brasil,
aliando-se ao invasor francês, entre 1554 e 1567, contrapondo-se também à Igreja
católica, por serem os franceses em parte hereges protestantes.
Como Monvoisin e Montero, Amoêdo não apresenta Aimberê em luta.
O artista o exibe morto, nos braços da Igreja conciliadora. A colonização pode
ter sido cruel, provocando a justa reação de virtuosos guerreiros, mas a civilização
cristã a todos recebe14.
Na tela, o padre jesuíta Anchieta, responsável pelas negociações de paz
entre índios e portugueses, acolhe nos braços, solitário, o corpo de Aimberê, cujo
sacrifício é associado ao cristão, seguindo a iconografia de uma pietá�. Na verdade, a posição de Anchieta no conflito era ambígua, por permitir aos portugueses
informações estratégicas sobre os índios e objetivar a divisão interna da Confe11
Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883. Óleo sobre tela, 180 x 261 cm. Museu Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro, Brasil.
12
COLI, Jorge, A Batalha de Guararapes de Victor Meirelles e suas relações com a pintura internacional. Tese
de Livre docência, UNICAMP, 1995.
13
Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios. Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura do Estado
do Rio de Janeiro, 1994, p. 208.
14
O canibalismo dos tupinambás tornou-se muito conhecido após a publicação do livro de Hans Staden,
Viagens e aventuras no Brasil, 1557. O alemão, contratado pelos portugueses para lutar contra a Confederação dos Tamoios, foi feito prisioneiro e permaneceu vários meses entre os tupinambás, presenciando
rituais antropofágicos, posteriormente narrados em suas memórias.
358
X X X Colóquio CBHA 2010
deração dos Tamoios15. Para o jesuíta, Aimberê era o próprio demônio, como o
considerava em peças teatrais^F.
O jesuíta poderia ser protagonista do quadro, caso o artista não o tivesse
denominado O último Tamoio e imposto a presença realisticamente notável do
cadáver a atrair todos os olhares.
Cuauhtémoc
No século XIX, o aprisionamento de Cuauhtémoc, o último imperador asteca,
significa o início de relato épico de martírio e morte, exaltando-se as virtudes de
um vencido16 .
O livro de William H. Prescott, História antigua de México y la de su conquista, traduzido para o espanhol em 1844, apresentava a valorização moral de
Cuauhtémoc. Após a independência do México, intelectuais passaram a destacar
o mundo pré-hispânico, ensejando, na segunda metade do século XIX, grande
número de representações sobre o período. Nos anos oitenta, o governo de Porfírio Díaz mandara erigir vários monumentos aos heróis nacionais, destacando-se o dedicado a Cuauhtémoc, inaugurado em 1887, de autoria dos escultores
Miguel Noreña, Gabriel Guerra e Epitacio Calvo, além do engenheiro Francisco
Jiménez. O monumento é encimado por grande escultura de Cuauhtémoc, em
atitude altiva, durante o sítio de Tenochtitlan, a cidade asteca^F.
Em contraste com a imagem do defensor da cidade, na base do monumento encontram-se o relevo de Noreña, representando a rendição do último
imperador asteca a Cortés, e, na face oposta, o de Gabriel Guerra sobre o suplício
imposto ao herói.
Esses mesmos temas foram explorados em telas monumentais por Joaquín Ramírez (filho), Rendictión de Cuauhtémoc a Cortés17, e Leandro Izaguirre
(1867-1941)18, El suplicio de Cuauhtémoc19, ambas executadas em 1893, visando
participar da Exposição Universal Colombiana de Chicago20 (Figura 3). Na rendição, Cuauhtémoc pede a Cortés que o mate. Cortéz se compromete a respeitar-lhe a vida e a posição hierárquica. Não obstante, Cuauhtémoc será torturado
para confessar a localização de supostos tesouros, em flagrante desrespeito à palavra empenhada por Cortés. A escolha dos dois momentos representados enfatiza
o destemor e a nobreza dos atos de Cuauhtémoc, em contraste com as atrocidades
15
Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Belo Horizonte - Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2000, p. 364.
16
Citlali Salazar Torres, “Cuauhtémoc: Raza, Resistencia y Territorios”, en El Éxodo. Los héroes en la mira
del arte. México, DF: INBA/UNAM, 2010, p. 400-439. Agradeço a Citlali a possibilidade da leitura de
seu texto, mesmo antes de publicado.
17
Joaquin Ramírez, La rendición de Cuauhtémoc, 1893. Óleo sobre tela, 200 x 350 cm., Palácio Nacional,
México.
18
Leandro Izaguire era então jovem professor de desenho de modelos de gesso da Escola Nacional de Belas
Artes.
19
Leandro Izaguire, El suplicio de Cuauhtémoc, 1893. Óleo sobre tela, 294,5 x 454 cm., Museo Nacional
de Arte, México-DF.
20
Fausto Ramirez, El suplicio de Cuauhtémoc, In: Catálogo comentado del acervo del Museo Nacional de
Arte, Pintura, siglo XIX, Tomo I. México: Instituto Nacional de Bellas Artes, 2002, p. 329-342.
359
X X X Colóquio CBHA 2010
dos conquistadores espanhóis. A imagem do último imperador asteca sintetizará,
a partir de então, as virtudes e o nacionalismo do povo mexicano.
As obras de Gabriel Guerra e Leandro Izaguirre possuem pontos em comum. Ambos representam Cuauhtémoc de perfil, atado a um assento, estendendo corajosamente os pés sobre as chamas de um braseiro, enquanto olha duramente para o algoz. Seu comportamento contrapõe-se ao do outro nobre asteca,
Tetlepanquetzal, submetido a igual tormento, que retrai os pés, contorcendo-se
de dor e pedindo ajuda.
Além da exposição de Chicago, o quadro de Izaguirre esteve presente
na exposição da Escola Nacional de Belas Artes de 1899, atraindo a atenção da
crítica, adquirido pelo governo mexicano em 1901 e incorporado ao acervo da
antiga academia.
Conclusão
Todas as telas aqui apresentadas figuram chefes guerreiros opositores à conquista:
Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc. Mortos ou quase.
Há, contudo, variações.
Monvoisin e Luis Montero exploraram o estranhamento entre culturas
diferentes e a encenação teatral, quase operística, contrapondo a imobilidade dos
chefes ao destempero feminino na manifestação da dor ou da cólera. Rodolpho
Amoêdo e Leandro Izaguirre, mais comedidos, revestiram as respectivas telas de
solene austeridade.
Cuauhtémoc é o único que reage, enfrentando a tortura e olhando frontal e altivamente o algoz. Atahualpa e Aimberê estão mortos, enquanto Caupolicán abaixa o rosto, constrangido frente às acusações da esposa. A representação
do líder mapuche não se coaduna com a figura de um herói.
As representações de Aimberê e Atahualpa enfatizam a determinação
dos conquistadores em controlar corpo, alma e memória dos líderes vencidos. O
caso de Aimberê é extremo. O último tamoio não se rendeu, não se converteu,
não se deixou aprisionar e matou o opositor. A fórmula encontrada para a representação aceitável deste herói, impossível a uma nação que se projetava branca e
cristã, consistiu na apropriação do cadáver por uma igreja conciliadora.
As telas poderiam ser, em parte, explicadas pela sensibilidade oitocentista quanto ao herói vencido21. Na América Latina tal fato parece mais evidente na estreita relação entre o civil e o religioso, valorizando-se o martírio.
Nos quadros analisados representaram-se o último mapuche, o último inca, o último tamoio e o último asteca. Está definido o lugar que devem
ocupar: o passado longínquo. A não-ênfase da valentia na luta ou da liderança
na resistência e a reiteração da imobilidade, associadas ao fato de estarem todos,
mortos ou não, no plano horizontal, deixam nu o processo de desmonte dos heróis.
Juiz de Fora, inverno de 2010.
21
Maraliz de C. V.Christo, Pintura, história e heróis: Pedro Americo e “Tiradentes esquartejado”, Campinas,
Tese de doutoramento em História, UNICAMP, 2005.
360
X X X Colóquio CBHA 2010
Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los
españoles, 1859.
Raymond Monvoisin
Óleo sobre tela, 220 x 277
Museo O’Higginiano Y Bellas Artes de Talca, Chile.
361
X X X Colóquio CBHA 2010
Los funerales de Atahualpa, 1864-1867
Luis Montero
Óleo sobre tela, 350 x 430 cm.
Museu de Arte de Lima, Peru.
362
X X X Colóquio CBHA 2010
El suplicio de Cuauhtémoc, 1893
Leandro Izaguire
Óleo sobre tela, 294,5 x 454 cm.
Museo Nacional de Arte, México-DF.
363
X X X Colóquio CBHA 2010
Design de interior:
breve panorama das artes
decorativas no ensino
da Aiba até a EB
Marcele Linhares Viana
Doutoranda/ UFRJ
CEFET – RJ
Resumo
Este trabalho apresenta uma pesquisa inicial sobre a história das
Artes Decorativas no Brasil a partir do ensino artístico da Academia
Imperial de Belas Artes até a atual Escola de Belas Artes da UFRJ,
nos séculos XIX e XX. Com enfoque na proposta do ensino da arte
vinculada à técnica através das Artes Decorativas, buscamos investigar o seu desenvolvimento e crescimento no ensino da instituição
até resultar na criação dos cursos de Design, em fins da década de
1970.
Palavra Chave
Design de Interior; Artes Decorativas; Ensino
Summary
This paper presents an initial research on the history of Decorative
Arts in Brazil from the artistic education of the Imperial Academy
of Fine Arts until the current School of Fine Arts at UFRJ in the
nineteenth and twentieth centuries. Focusing on the proposal of
teaching art linked to technique through Decorative Arts, we investigate its development and growth at this teaching institution,
which resulted in the creation of Design courses in the late 1970s.
Keywords
Interior Design; Decorative Arts; Teaching
364
X X X Colóquio CBHA 2010
A partir do estudo da História dos Interiores e Mobiliário deparei-me com uma
seara das artes em que objetos do uso cotidiano assumiam papel de objetos artísticos e apresentavam-se tão vinculados ao contexto artístico dos períodos correspondentes quanto as ditas belas artes – escultura, pintura e arquitetura.
As pesquisas acerca do mobiliário brasileiro e seus desdobramentos através do Neocolonial no início do século XX foram fundamentais para a iniciativa
de um aprofundamento nos meus estudos sobre as artes decorativas no Brasil e
principalmente dentro da instituição que foi berço do ensino artístico no país, a
Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). A trajetória das artes decorativas na
AIBA iniciou-se ainda em seu projeto inicial documentado pelos manuscritos
feitos por Joaquim Lebreton em 1816 e na proposta – que acabou não sendo
desenvolvida – de se instaurar no Rio de Janeiro uma dupla escola de artes: uma
voltada para o ensino das Belas Artes e outra para o de Artes e Ofícios. Esta
segunda instituição incluiria o ensino das Artes Decorativas no sentido de aliar
os princípios da arte aos da técnica, inclusive com os mesmos professores de arte
da primeira escola.
Após os primeiros passos do estudo da figura, vem o desenho de ornato
(grifo meu), de aplicação tão variada e tão útil em todos os ofícios em que o gosto
pode ornamentar e embelezar, seja pela escolha das formas, seja nos acessórios. Aqui
a escola passa quase que inteiramente para a influência do professor de arquitetura;
porque os móveis, vasos, objetos de ourivesaria e bijuteria, marcenaria (grifo
meu), etc., são de sua competência (...)1
Dessa maneira, na proposta de Lebreton, que utiliza como argumento
e exemplo o modelo de academia semelhante implantada na cidade do México,
ao mesmo tempo em que se formaria na Academia uma classe de estudantes de
artes, através da Escola de Artes e Ofícios se investiria na formação de artesãos
para o mercado das artes utilitárias, no sentido de fazer “caminhar a indústria
nacional”. Atento para os possíveis questionamentos, Lebreton destacou o baixo
custo desta escola de artes e ofícios para o governo relatando que “será no máximo um aumento a fazer-se nos salários dos srs Debret (professor de desenho) e
Grandjean (professor de arquitetura) e um salário moderado para os dois alunos
(artesãos) do professor de arquitetura”^F.
No entanto, os argumentos de Lebreton não foram suficientes. O estatuto dos professores Jean-Baptiste Debret, Grandjean de Montigny e dos Irmãos
Ferrez serviu de base para instaurar a AIBA em 1826, e somente em fins da
década de 1850 foi criado o Liceu de Artes e Ofícios (LAO) na cidade do Rio
de Janeiro. Ambas as instituições com propostas já reformuladas e distintas da
inicial presente no manuscrito citado.
Assim, o ensino da AIBA desvinculou no país o estudo da arte atrelada
à técnica, e as artes decorativas passaram a ocupar um espaço secundário dentro
da instituição. O pensamento de Lebreton, no entanto, aponta-nos para questões
fundamentais de reflexão sobre a arte e sua relação direta com o desenvolvimento
industrial que ocorria na Europa no início do século XIX e que já se fazia sentir
necessária na discussão sobre o tema, sobretudo no que se referia a não deixar
1
BARATA, Mario Barata. Manuscrito Inédito de Lebreton. IN Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, p300.
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o país em atraso em relação às demais nações, sobretudo às regiões de domínio
espanhol na América Latina.
No Brasil, no entanto, a indústria levou quase um século para se instalar efetivamente, enquanto isso, o ensino das belas artes foi ganhando vulto na
AIBA e passou a desenvolver, em diferentes etapas, suas propostas e reformulações de acordo com os desdobramentos da história da arte no país.
O ensino das Artes Decorativas com foco na arte vinculada à técnica só
apareceu na grade curricular da AIBA quando esta se tornou ENBA, já na virada do século XIX para o século XX, a partir das implantações modernizadoras
promovidas pela Reforma Pedreira em 1855. Essa fase2 da AIBA ficou marcada
pela proposta de Dom Pedro II para resgatar justamente o decreto de 1816 que se
baseava na instituição focada no ensino das ciências, artes e ofícios. O desejo de
criação de uma identidade nacional circulava pelos corredores da Academia que
já possuía no seu corpo docente um número crescente de professores brasileiros.
O então diretor, Manuel de Araújo Porto-Alegre, destacava em suas propostas de
mudança a preparação dos brasileiros jovens para servirem à pátria como artistas ou artífices, interligando assim a arte à produção industrial que se almejava
alcançar no país.
A defesa do ensino técnico no Brasil se respaldava em movimentos que
já ocorriam na Europa. Sobre essa questão, Rafael Cardoso esclarece que:
O ensino artístico não podia deixar de sentir o impacto dessas discussões européias e dos seus
reflexos na imprensa nacional. Um dos primeiros comentaristas a tratar do assunto entre
nós foi o então diretor da AIBA Manuel de Araújo Porto-Alegre que publicou na revista
Guanabara ainda em 1850 um longo artigo sobre a relação entre arte e indústria, no qual
argumentava que a academia deveria privilegiar o ensino de ofícios e não o de belas-artes.3
A Reforma deu novo impulso à Academia a partir de meados do século
XIX quando foram incluídas as disciplinas teóricas de História da Arte, Estética
e Arqueologia, e foram instituídos os prêmios de viagem. As cadeiras teóricas
contribuíram com as discussões sobre o projeto nacionalista que marcou o Segundo Império e que foram decisivas para a concepção de uma arte nacional
mais voltada para as questões locais e conectada com o contexto de independência que ocorreu no final do século.
O crescente número de alunos em disciplinas como “desenho industrial” demonstrava que a demanda pelos cursos na AIBA que ligavam arte à indústria era real do mercado. Não obstante, cabe-nos destacar que a preocupação
pela formação de mão-de-obra técnica e do ensino técnico-artístico se reforçou
2
“(...) pode-se acompanhar a história [da Academia] a partir de uma primeira fase (1826 a 1831) orientada
pelo estatuto elaborado por Debret, Montigny e os Irmãos Ferrez e publicado em 1827; umaa segunda
fase (1831 a 1855), referente ao estattuto modificado ainda modificado por sugestões de Debret; uma terceira fase (1855 a 1890) quando foi introduzida a Reforma Pedreira; uma quarta fase (1890 em diante)”
FERNANDES, Cybele. A Reforma Pedreira de 1855 na AIBA e sua relação com o panorama internacional
do ensino nas academias de arte. IN 180 Anos de Escola de Belas Artes. Anais do Seminário EBA 180.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p149.
3
CARDOSO, Rafael (Org.). O Design Brasileiro antes do Design: aspectos da história gráfica, 18701960. São Paulo: Cosac Naïfy, 2005, p14.
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com a criação em 1858 do Liceu de Artes e Ofícios que embora tivesse enfoque
diferenciado, foi de fundamental importância na época para a formação profissional. O Liceu tinha por missão “propagar e desenvolver, pelas classes operárias,
a instrução indispensável ao exercício racional da parte artística e técnica das
artes, ofícios e indústrias”4, o que fazia através do ensino gratuito de artes e ciências em aulas noturnas. Dessa maneira, o LAO apresentou ao longo da segunda
metade do século XIX mais representatividade no ensino técnico-artístico do
que a própria Academia que, mesmo passando por reformas, ainda mantinha na
prática o ensino das belas artes como foco principal.
Paralelamente ao desenvolvimento do Liceu e em fins do século XIX
passando de AIBA para ENBA a partir da Proclamação da República, a instituição começou a apresentar maior espaço para as artes decorativas. Durante o
século XIX dentro da Academia, o tema estava relacionado apenas às disciplinas
complementares como Desenho de Ornatos ou Desenho de Ornamentos que
era oferecida desde 1826 como matéria obrigatória para os cursos de Desenho,
Pintura e Escultura. Não podemos desconsiderar que a importância dentro da
Academia para o desenho, sobretudo no que se refere aos preceitos da tradição
artística quer relacionado à cópia de modelos quanto à concepção do belo, era
disciplina fundamental na formação de qualquer aluno da instituição.
O Desenho de Ornamento preparava o estudante para a representação
dos cenários em retratos ou narrativas históricas no caso da pintura, por exemplo, onde ressaltamos o compromisso pictórico detalhista do Neoclassicismo. Na
arquitetura, a disciplina fez-se fundamental, sobretudo nas composições de elementos arquitetônicos, equipamentos e acessórios; e sua integração com relevos e
esculturas presentes tanto nos interiores como nas fachadas.
Apesar disso, ao longo do século XIX as artes decorativas não tiveram
representatividade significativa na AIBA nem na ENBA. A partir de início do
século XX e, sobretudo, a partir da década de 1930 que as artes decorativas apareceram em disciplinas e cursos ministrados na Escola e as questões acerca do
seu ensino passaram efetivamente a serem discutidas e defendidas internamente.
Talvez o principal ponto dessa conexão com as artes decorativas tenha
se dado em 1901 com a exposição de Eliseu Visconti cujo título era: “Pintura e
Arte Decorativa”, onde o artista apresentou um total de 88 obras, sendo 28 delas
de arte decorativa^F. Visconti é representativo de um tipo de artista específico da
virada do século que teve formação técnica – estudou no LAO em 1884 – antes
de ingressar na AIBA em 1885; e em 1892 foi o primeiro aluno contemplado com
o prêmio de viagem depois de instituída a República.
Diante disso, a formação e o efetivo contato de Visconti com as artes decorativas na Europa contribuíram com um conteúdo que ele não teria acesso no
Brasil na época. Em Paris, freqüentou a École Nationale et Spéciale des Beaux-Arts
que abandonou em 1894 e inscreveu-se na École Guérin, onde foi aluno de Eugène Grasset, considerado uma das mais destacadas expressões do Art Nouveau, no
curso de Arte Decorativa. Visconti aportou na França em pela Belle Époque e no
4
BIENLISNKI, Alba. Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro – dos pressupostos aos reflexos de sua
criação – 1856 a 1900. 2003. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – EBA – UFRJ, Rio de Janeiro,
p17.
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auge do Art Nouveau que dentre suas principais características destacava-se nas
Artes Decorativas e buscava formar o “artista total”, aquele que projetava desde
a arquitetura até os detalhes construtivos, móveis, equipamentos, acessórios e
decoração de interior.
Visconti estabeleceu através do seu trabalho a conexão entre arte e técnica, configurando a atuação do “designer” nos primeiros anos do século XX.
Segundo Marize Malta, ele “apresentava práticas de um artista que trazia à tona
a multiplicidade possível da criatividade individual do gênio, a qual se permitia corporificar igualmente em objetos de uso”^F. Paralelamente à sua carreira de
pintor, Visconti produziu selos, cartazes, projetos de pratos e jarros para serem
executados em cerâmica, vitrais, marchetaria, luminárias, estamparia em tecidos
e papel de parede.
A exposição de Visconti, artista já consagrado na pintura, repercutiu
publicamente e despertou uma série de discussões sobre as artesdecorativas. Críticos como Gonzaga Duque apontavam para a falta de atenção que era concedida
às artes utilitárias no país principalmente por parte das indústrias que copiavam
modelos estéticos estrangeiros em vez de aproveitar as produções que vinham da
ENBA.
Não é de se estranhar que entre 1934 e 1936 o próprio Eliseu Visconti
tenha ministrado um curso de extensão dentro da Escola intitulado Arte Decorativa. De fato, a década de 1930 representou para a ENBA a abertura a outras
manifestações artísticas, incluindo não apenas os estilos – como a arte moderna
– mas também as disciplinas – como as artes decorativas. Segundo decreto de
1931 a Escola passou a ser dividida em dois cursos autônomos: “Arquitetura” e
“Pintura e Escultura”, e dentre as quatro disciplinas comuns obrigatórias encontramos as artes decorativas intitulada como Artes Aplicadas – Tecnologia
e Composição Decorativa5. Assim, as artes decorativas se configuraram como
uma cadeira oficial com conteúdo programático dividido em dois anos e tinha
o compromisso com a “(...) tecnologia das artes menores (mobiliário, vitrais, cerâmica, etc) e composição decorativa de todas essas modalidades de indústria”^F.
O período que se estendeu de 1930 a 1970 foi de profundas mudanças
na ENBA e as medidas de modernização do ensino iniciadas no governo de Getúlio Vargas já estavam vinculadas ao desenvolvimento industrial e à formação
de uma efetiva classe operária. Com o fim da República Velha e a base política
paulista e mineira eminentemente voltada para a produção rural, o regime da Era
Vargas inaugurou uma expansão das atividades urbanas e deslocou o eixo produtivo da agricultura para a indústria, estabelecendo novas bases para a economia
nacional.
Na ENBA, o decreto de 1931 que dividiu o ensino da ENBA em 2 segmentos, separando a arquitetura da escultura e pintura, no entanto, já anunciava
o que mais tarde ocorreria. Em 1945, foi criada a Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (FAU) dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
separando-as definitivamente, o que possibilitou, de certa maneira, a ascensão
das artes decorativas dentro da Escola. Antes, porém, do rompimento da tría5
Por vezes a disciplina era chamada de Artes Aplicadas – Composição Decorativa.
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de tradicional Arquitetura-Escultura-Pintura na ENBA, já percebemos algumas
modificações no ensino das artes decorativas.
Em 1933 o título da cadeira foi abreviado para Artes Decorativas, e
no período que se estende até 1950 dois professores atuaram no ensino antes
da contratação de Quirino Campofiorito. Entre 1933 e 1937 Roberto Lamcobe
lecionou a disciplina e, na seqüência, entre 1938 e 1950, Henrique Cavalleiro –
pintor, discípulo de Eliseu Visconti, e casado com sua filha – foi responsável pela
matéria.
A partir dos anos 1950, com a atuação de Campofiorito na Escola, principal defensor das artes decorativas, a cadeira de Composição Decorativa começou a ganhar destaque. O professor defendia uma reforma de ensino focada
na abertura para a arte do século XX, inclusive apontava o exemplo da Bauhaus
destacando que esta escola alemã “abriu caminhos outros e lógicos para o ensino
da Composição Decorativa”^F. Em seu depoimento à Fabio Macedo, ele esclareceu seu pensamento:
Eu entendi que a renovação do ensino artístico não passava apenas em pintar quadros modernos, era preciso mudar uma estrutura de profissionalização artística; começaram a procurar
minha aula profissionais para agências de publicidade, decoração e etc.
A defesa e o engajamento de Campofiorito embora consistentes renderam, só mais tarde, um posicionamento diferente da Escola frente às disciplinas
ligadas às artes decorativas. Ao longo de anos o departamento ficou à margem
das representações de Congregação e era composto por professores em sua maioria contratados e sem vínculos institucionais, além de não ser incluído nos concursos de prêmio de viagem. Em artigo escrito para a revista Arquivos da EBA,
Campofiorito demonstra sua indignação dizendo que “a arte como profissão não
existe”, que “o artista está apenas um grau acima do artífice”, que “os artistas da
Bauhaus souberam levar em conta a evolução da técnica e das ciências” e que durante o “século XIX as artes e ofícios foram deixados nas mãos da indústria e do
comércio”^F. Em seguida, definiu a cátedra de Composição Decorativa:
(...) Não seria possível ensinar esta matéria sem ligá-la à prática das seguintes especializações
conhecidas como: vitral, tapeçaria, mosaico, cenografia, cerâmica, artes gráficas (incluindo a
estampagem de tecidos), mobiliário, vidro, decoração de interiores, etc. (...) São hoje, múltiplas técnicas com o emprego dos mais variados materiais. A indústria moderna oferece sempre
novas oportunidades que urge conhecer, para que delas possa tirar o melhor partido artístico
possível.6
Mesmo diante desse panorama de vários segmentos e desdobramentos
possíveis dentro da área de artes decorativas, foi somente na década de 1970 que
a cátedra se dissolveu e deu origem a seis novos cursos de graduação na EBA,
dentre eles o de Composição de Interior que integra até os dias atuais a grade da
6
Ibdem, p51.
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instituição com crescente procura de alunos para ingresso no vestibular e vinculado a um expansivo mercado de atuação profissional.
O curso, criado em 1979, se estabeleceu na EBA localizada na Ilha do
Fundão e integrada à UFRJ já não contava mais com a atuante participação de
Campofiorito que foi aposentado pelo AI-5 com justificativa política em fins dos
anos 1960. No entanto, o mercado crescente da arte utilitária já se manifestava
no carnaval, no estilismo, na cenografia, na ilustração e fazia-se necessária a formação de mão-de-obra artística para atuar nessa seara, o que nos comprova um
processo de efetivo crescimento das artes decorativas no ensino das artes no país
e no cenário industrial do século XX.
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Um monumento ao Brasil:
a repercussão do álbum
de Victor Frond
e Charles Ribeyrolles
Maria Antonia Couto da Silva
Doutoranda/ UNICAMP
Resumo
O Brasil Pitoresco (1859-1861) de autoria dos franceses Charles
Ribeyrolles e Victor Frond, recebeu o apoio do governo imperial
e iria representar o Brasil na Exposição Universal de 1862. Em relação à repercussão do livro, duas cartas do escritor Victor Hugo
destinadas a Ribeyrolles, amplamente divulgadas em sua época, nos
levam a refletir sobre o papel relevante que as novas técnicas de
reprodução mecânica da imagem, como a fotografia e a litografia,
assumiram no campo artístico no século XIX.
Palavra Chave
Victor Frond (1821-1881), Charles Ribeyrolles (1812-1860), Arte
– Brasil - Século XIX.
Abstract
‘Brazil Picturesque’ (1859-1861), by the French Charles Ribeyrolles and Victor Frond, has received the support from the imperial government and was supposed to represent Brazil in the 1862’s
Universal Exhibition. Regarding the book’s repercussion, two letters by the writer Victor Hugo, destined to Ribeyrolles and which
were widely promoted in their times, lead us into considering the
relevant role played by the novel techniques of image mechanical
reproduction, like photography and lithography, within 19th century’s artistic field.
Key-words
Victor Frond (1821-1881), Charles Ribeyrolles (1812-1860), ArtBrazil- 19th century
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Nessa comunicação gostaria de comentar algumas das questões desenvolvidas
em minha tese de doutorado acerca do livro-álbum Brasil Pitoresco, de autoria do
escritor Charles Ribeyrolles e do fotógrafo Victor Frond (1859-1861). Ilustrada
com litografias realizadas na Maison Lemercier, em Paris, a partir das fotografias de Victor Frond, foi a primeira publicação de viajantes na América Latina
com gravuras obtidas a partir de fotografias e considerada por Alexandre Eulálio
como um dos “mais altos momentos da nossa iconografia oitocentista”.1
Durante a pesquisa foi possível levantar uma série de dados acerca da
recepção das imagens e do texto do livro, reunindo informações até então pouco
divulgadas ou desconhecidas pelos estudiosos de história da fotografia. A análise
da repercussão do Brasil Pitoresco nos permite uma maior compreensão não apenas do projeto editorial de Victor Frond, mas também da importância conferida
à fotografia no meio artístico e cultural brasileiro do século XIX^F.
Nos jornais do período foram freqüentes os comentários acerca da importância da publicação para uma necessária campanha de incentivo à imigração. Um dado relevante é que vários textos do período se referem à necessidade
de um livro que informasse sobre o real contexto social do país, sem os exageros
e a ênfase no exótico, presentes em escritos de viajantes até aquele momento^F. Alguns escritores, como François Biard e Charles Expilly foram bastante criticados
na época por divulgarem na Europa informações consideradas muito negativas
sobre o Brasil, e que prejudicariam a campanha de imigração planejada pelo
governo imperial^F.
A leitura dos jornais da época nos permite perceber que o livro O Brasil
Pitoresco foi realizado com a intenção de atualizar publicações sobre o Brasil, a
partir das obras de autores como Debret e Rugendas. Frond e Ribeyrolles colaboraram na campanha de incentivo à imigração de colonos europeus, e obtiveram o
conseqüente apoio do governo imperial. O interesse de Dom Pedro II e de membros do governo seria mostrar a exuberância e riqueza do território, o potencial
do trabalho agrícola e as instituições públicas, e ainda passar a imagem de que
o tratamento dado aos escravos era mais brando do que havia mostrado Debret.
As críticas publicadas na época destacam, de forma geral, a nitidez e
a perfeição das imagens e a perspectiva “corretíssima”. Podemos perceber que
algumas litografias foram especialmente apreciadas, como aquela que apresenta
a floresta virgem (Figura 1) Como nota Luciano Migliaccio, devemos lembrar
que a representação da floresta havia se tornado uma tradição na arte do Brasil,
desde as obras do Conde de Clarac, Debret, Rugendas, Félix Taunay e de Araújo
Porto-Alegre.^F
Além do comentado nos jornais da época um dado novo, que nos permite refletir tanto sobre o texto como sobre as imagens do livro, é o prefácio redigido por François Dabadie para o livro de Ribeyrolles intitulado Les Compagnons
de la Mort, publicação póstuma realizada na França em 1863. Dabadie informa
que ele se encontrava em Londres sem trabalho, em uma situação financeira
1
As questões tratadas neste artigo inserem-se em um trabalho mais amplo de pesquisa para tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em História da Arte do IFCH/UNICAMP), sob orientação da Prof.
Dra. Claudia Valladão de Mattos. O foco central da pesquisa é a análise do álbum Brasil Pitoresco e sua
importância em relação às artes visuais no período. A autora é bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa
do Estado de São Paulo – FAPESP.
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muito difícil, quando foi convidado por Frond a viajar ao Brasil para escrever
o texto do Brasil Pitoresco, livro que iria representar o Império na Exposição
Universal de Londres de 1862.^F A publicação teria o objetivo de apresentar as
imagens da nação no importante evento internacional, e contou com o apoio de
D. Pedro II e de setores da Corte, provavelmente ligados à aristocracia cafeeira.
Duas técnicas modernas, a litografia e a fotografia, estavam sendo utilizadas para
mostrar a modernização do império. É importante notar como a finalidade da
obra e o suposto patrocínio imperial permitem um outro olhar sobre o texto do
livro e as fotografias de Frond. O fotógrafo destacou a natureza, mas também
procurou mostrar a cidade cosmopolita, o desenvolvimento da região portuária,
os edifícios públicos e a arquitetura neoclássica (Figura 2 e 3).
Há, sobretudo, uma ausência de sintonia entre o texto de Ribeyrolles
e as ilustrações do livro. Acreditamos que o livro Brasil Pitoresco, de caráter liberal e abolicionista, apoiado, entretanto, pelo imperador, traz ambigüidades e
contradições. O livro, como nossa pesquisa tem demonstrado, teria o objetivo
de apresentar a modernidade e o potencial econômico do Brasil e incentivar a
imigração, já que o tráfico de escravos havia sido extinto e a abolição seria inevitável. O discurso de Ribeyrolles, abertamente abolicionista, não corresponde
exatamente às imagens de Frond, um pouco mais sutis, e que mostram um Brasil
moderno, e uma abordagem moderada em relação aos escravos. Frond, enquanto
editor da obra, deve ter tratado de toda a negociação com os setores da corte que
patrocinaram o livro, e procurou, a princípio, assegurar a boa aceitação da publicação. O fotógrafo, porém, dedicou boa parte das imagens do livro ao registro
do trabalho escravo, e em algumas fotografias mostrou um Brasil de grandes
contrastes sociais.
Em 1862, a fotografia integrou, pela primeira vez, a lista de produtos
com os quais o Brasil participaria das exposições universais2 . Não sabemos ao
certo se o plano inicial de Frond era o da realização das litografias em Paris, o que
garantiu a excelente qualidade das imagens do livro, mas tornou-se um obstáculo à apresentação das gravuras na Exposição Nacional de 1861, uma espécie de
mostra preparatória para a exposição de Londres no ano seguinte.^F Em Londres
a obra de Frond e Ribeyrolles teria obtido, obviamente, grande destaque, e projetado o nome dos autores no mercado de livros ilustrados.
A Exposição Nacional de 1861 e as Exposições Provinciais do mesmo
ano, preparatórias ao evento nacional, foram organizadas pela Sociedade Auxiliar da Indústria Nacional e pelo Instituto Fluminense de Agricultura.
Em relação à presença da fotografia nas Exposições Internacionais, Maria Inez Turazzi comentou a aproximação dos interesses ligados à indústria e às
exposições, que deve ser compreendida levando-se em conta o jogo de interesses
no cenário econômico e político brasileiro do período. Como nota a autora:
2
TURAZZI, Maria Inez. Poses e Trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839/1889).
Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
373
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A integração do território, a expansão das vias de comunicação, a promoção dos produtos
agrários brasileiros no exterior, a atração de capitais e de trabalhadores eram questões intimamente ligadas à realização das exposições, que se associavam também aos interesses da
cafeicultura. Convém lembrar ainda que as exposições nacionais podiam ser tão abrangentes
quanto o próprio conceito de indústria naquele contexto: entendia-se a indústria como a
“criação de todos os produtos úteis e sua apropriação usos do homem”.^F
Além da repercussão do Brasil Pitoresco nos jornais da Corte, duas cartas do escritor Victor Hugo, pouco conhecidas mesmo no cenário europeu, nos
auxiliam a compreender a importância da fotografia e da obra de Frond e de
Ribeyrolles.
Comentário acerca de duas cartas de Victor Hugo
Alexandre Eulálio, no ensaio intitulado “O século XIX”, analisou as mudanças
significativas ocorridas nos campos político, social e artístico no Brasil no século XIX, época de grandes inovações científicas, técnicas e ideológicas. O autor
procurou apontar no texto “alguns dos fermentos e tensões de ruptura” que ocorreram no território brasileiro, levando em conta nossas peculiaridades históricas
e sociais, que apenas recentemente começam a ser estudadas com critérios mais
abrangentes. Assim, o Brasil, “região periférica dos centros emissores de padrões
estéticos, imemorialmente sustentada pelo regime escravista”, passa de empório colonial a sede provisória de um defasado império mercantilista. Dirigido
por um regime monárquico-constitucional, tem uma política liberalizante, mas
mantém a escravidão....3
No campo artístico, que deve ser analisado em sua especificidade histórica, a criação estética passa a ser percebida enquanto manifestação de prestígio
da classe dirigente, uma arte, portanto, que teria de “refletir o espírito dos novos
tempos em linguagem internacional, contemporânea, que nada ficasse a dever
aos países ‘mais adiantados’”.^F
O autor tratou de questões fundamentais para a compreensão da arte
do período, e que dizem respeito diretamente ao assunto tratado nesta comunicação. A primeira é a grande importância do surgimento das técnicas inéditas de
reprodução mecânica da imagem, de rápida fatura: a litografia e a fotografia, em
especial.^F
A segunda questão colocada pelo autor é da ausência de um mercado de
arte no período:
O problema da não-existência de canais públicos e privados que absorvessem, em ritmo contínuo e com relativa rapidez, a produção de artes visuais proveniente do nosso centro de produção artística dirigida, havia preocupado seriamente, conforme já vimos, o segundo diretor
da academia Imperial. Mas a criação de um público que considerasse hábito a aquisição de
obras de arte não se generalizou entre nós com rapidez^F.
3
EULÁLIO, Alexandre. “O século XIX”. In Tradição e ruptura: síntese de arte e cultura brasileira. São
Paulo : Fundação Bienal de São Paulo, 1984, p. 117.
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Como nota Luciano Migliaccio, a difusão da imprensa ilustrada e da
fotografia mudariam radicalmente as relações entre artistas, imagem e público.
O fenômeno não é somente brasileiro, mas nas condições peculiares do Brasil é
decisivo analisar as transformações provocadas por estes novos contextos.^F
A fotografia e a litografia tornar-se-iam mais acessíveis, difundidas também nos principais periódicos da Corte, embora estudos sobre o mercado editorial indiquem que mesmo os periódicos ilustrados dirigiam-se às classes abastadas. De qualquer forma, as novas técnicas auxiliaram na divulgação também
das pinturas, além de serem empregadas pelo governo imperial para a divulgação
de imagens do império associadas à ideologia das Luzes e ao ideal de progresso,
como ocorreu com o livro-álbum de Frond e Ribeyrolles, cujas litografias foram
realizadas em Paris, centro da editoria ilustrada.
No Brasil, essas novas técnicas tiveram grande relevância no campo artístico, e pesquisas mais abrangentes sobre fotografia e litografia só recentemente
tem sido realizadas. No caso do álbum Brasil Pitoresco, é interessante notar como
Frond percebeu a importância de seu trabalho, expondo as fotografias antes de
enviá-las a Paris para serem litografadas.
Acerca da recepção do Brasil Pitoresco, além dos comentários publicados
nos principais jornais, duas cartas do escritor francês Victor Hugo a Charles
Ribeyrolles nos permitem ampliar a reflexão sobre a percepção do livro em sua
época. Estes documentos não são mencionados pelos historiadores da fotografia
no Brasil.
As duas cartas de Victor Hugo, reproduzidas em artigo de Brito Broca,
foram publicadas no jornal Courrier du Brésil em 1860, com um comentário de
Victor Frond, informando que Ribeyrolles, por modéstia, não permitiu que elas
tivessem sido divulgadas antes. Na primeira carta, datada de 7 de agosto de 1859,
Hugo afirma que Ribeyrolles, com o texto do livro, “elevara um monumento” ao
Brasil. Na segunda carta, comentou :
Vous accomplissez une grand oeuvre. En même temps que vous traduisez en pages rares, lumineuses, l’ éblouissement de ce magnifique pays, vous faites planer sur le Brésil, à la fois si vieux
et si neuf, la pensée française et la pensée démocratique, les deux ailes de l’ idée humaine ^F.
Por esta correspondência podemos notar que Hugo elogiou o livro por
ver nele expressos ideais de Rybeyrolles e de seu grupo. Ele tinha consciência da
importância da difusão e da abrangência das imagens, direcionadas a um público
europeu.
Como nota Luciano Migliaccio, é difícil não pensar que naqueles mesmos anos Louis Rochet realizaria e exporia em Paris o monumento a Pedro I,
enquanto o pintor Victor Meirelles mostraria ao público da capital francesa o primeiro quadro histórico de tema brasileiro (expôs em 1959 um esboço da Primeira
Missa). É possível, então, que Hugo comparasse indiretamente o monumento,
que ganharia o apelido de “mentira de bronze”, com a iconografia fotográfica
muito mais adequada à difusão democrática da imagem no mundo contemporâneo depois dos eventos de 1848. Entretanto, é preciso lembrar que o projeto de
Frond também era promovido pela corte, consciente da importância da difusão
375
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da imagem do país junto ao público dos possíveis imigrantes europeus. É evidente então a necessidade de compreendermos as estratégias do poder político em
relação à utilização da imagem em todos os campos.^F
É importante ressaltar que, apesar das críticas ao texto de Ribeyrolles, a
força e a boa aceitação da obra, devido em grande parte às fotografias de Frond,
foi tanta que foi aprovada pelo governo imperial uma verba para a continuação
do projeto do Brasil Pitoresco^F.
A utilização da litografia e da fotografia para a propaganda do império
podem ser vistas também em algumas fotografias de Klumb^F. Já o discurso de
Victor Hugo sobre o antigo e o moderno presentes no Brasil foi retomado por
Ângelo Agostini no quadro Interior de Floresta com índios e trem, de 1892, da
Coleção Fadel, Rio de Janeiro.
O status conferido à fotografia pode ser exemplificado também com
o ocorrido na Exposição Nacional de 1861. Na época, Frond solicitou à comissão organizadora da Exposição Nacional, considerada preparatória da Exposição
Universal do ano seguinte, autorização para “expor em quadros o álbum de estampas fotográficas do Brasil Pitoresco”. Como nota Lygia Segala sua solicitação
foi negada, não sem constrangimentos, porque as litografias não haviam sido
feitas no Brasil^F. A comissão procurou contornar a situação, convidando Frond
a integrar o júri do 5º grupo. Ele tornou-se assim o primeiro fotógrafo a integrar
um júri de Belas Artes. O fato é significativo mesmo em relação ao que ocorria
no ambiente europeu.
O Brasil Pitoresco teve, portanto, ampla repercussão em sua época, pelos temas tratados e pela abordagem crítica em relação à sociedade brasileira.
As litografias do álbum ganharam autonomia em relação ao livro e trouxeram
inovações formais que se revelaram importantes para a produção de pintores e
fotógrafos.
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Cortina da Floresta, 1859-1861.
Litografia a partir de fotografia (Tirpenne)
Victor Frond (Fotografia)
Ilustração do livro RIBEYROLLES, Charles. Brasil pitoresco.
Ilus: Victor Frond. [1861]. São Paulo : Martins, 1941.
377
X X X Colóquio CBHA 2010
Palácio Imperial no Rio de Janeiro, 1859-1861
Litografia a partir de fotografia (Aubrun)
Victor Frond (fotografia).
Ilustração do livro RIBEYROLLES, Charles. Brasil pitoresco.
Ilus: Victor Frond. [1861]. São Paulo : Martins, 1941.
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Encaixotamento e pesagem do açúcar, 1859-1861.
Litografia a partir de fotografia. (Ph. Benoist)
15,7 x 22,7 cm
Victor Frond (fotografia).
Ilustração do livro RIBEYROLLES, Charles. Brasil pitoresco.
Ilus: Victor Frond. [1861]. São Paulo : Martins, 1941.
379
X X X Colóquio CBHA 2010
Tensões entre a tradição clássica
e o nacionalismo português do
Renascimento a 1808
Maria Berbara
UERJ/ CBHA
Resumo
A presente comunicação pretende investigar distintos momentos
do trânsito de imagens e discursos relativos à ideia de império entre
Portugal, outras regiões europeias e o Brasil em diferentes contextos históricos, a saber: o período das grandes navegações; a fase da
anexação espanhola e a que se lhe sucede, e a transferência da corte
portuguesa ao Brasil.
Palavra Chave
Portugal, Imperio, tradição clássica
Abstract
This paper aims at investigating different aspects of the transit of
images and discourses related to the idea of Empire between Portugal, other European regions and Brazil. Three main historical
moments will be examined: the period of discoveries, the Iberian
union and the transfer of the Portuguese court to Brazil.
Key-words
Portugal, Empire, classical tradition
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X X X Colóquio CBHA 2010
Um dos aspectos que possivelmente chame de modo mais imediato a atenção
dos pesquisadores que se dediquem a estudar o assim chamado “Renascimento
português” é não a presença de elementos pertencentes à tradição clássica reaproveitados pela iconografia nacionalista manuelina, mas sua ausência. O renascimento de formas, conceitos e símbolos derivados de modelos greco-romanos em
momentos históricos de grandeza e reafirmação nacional é um autêntico topos
da história ocidental, detectável nas dinastias carolingia e otoniana, durante a
Revolução Francesa e as ditaduras nazi-fascistas europeias e latino-americanas
do século XX, assim como em diversos outros contextos históricos. Sobretudo
na modernidade, a utilização de aparatos retóricos e visuais originários da antiguidade clássica serviu para conferir legitimidade histórica a distintas formas de
governo, imperialistas ou não.
Durante o reinado de Dom Manuel I (1469-1521), Portugal conheceu
um período de prosperidade sem precedentes na história europeia moderna. Em
1498, Vasco da Gama aporta em Calcutá, depois de circunavegar a África; em
1500, Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil, completando em apenas dois anos o
estabelecimento de uma rede marítima comercial ativa tanto no Oriente como no
Ocidente; na primeira década do século XVI, Portugal mantém postos comerciais ativos na costa ocidental da África, no Brasil, Pérsia, Goa, Malaca e Timor.
A partir destas bases, os portugueses chegaram a estabelecer relações comerciais
com mercadores chineses. Várias outras ilhas foram descobertas no Atlântico sul
e no Índico. Na Europa, o rei soube evitar envolver-se em guerras, sobretudo as
franco-castalhanas e italianas, assegurando a estabilidade política do país.
Contrariamente a toda lógica, nem a arte portuguesa aproveitou-se sistematicamente do legado clássico, nem o humanismo lusitano, por sua parte,
vinculou-se – salvo talvez em situações muito puntuais – a projetos específicos de
iconografia nacionalista. Portugal construiu um novo ideal de império fundado
principalmente sobre o controle marítimo, o qual, até o momento presente, é
associado ao país. Esquemas iconográficos do assim chamado “estilo manuelino”,
portanto, propõem, sobretudo, elementos marítimos, alusivos às conquistas, mas
esses esquemas não se aproximam – ao menos não mais do que o estritamente
necessário – de formas e motivos derivados da antiguidade clássica. Examinemos
brevemente as ilustrações das Ordenações d’El Rei D. Manuel (Pietro da Cremona, 1514). Como bem aponta Pina Martins, destacado estudioso do humanismo
português, apesar de que o ilustrador era italiano, as gravuras representam “o
que há de mais particularmente lusíada na parte figurativa do livro portugués
antigo”1. O monarca é figurado, não como um novo César ou Augusto, mas um
arcaico rei medieval, com armadura e coroa, em edifícios de formas góticas (Figura 1). Em todas as imagens, lê-se a frase Deo in celo, tibi autem in Mundo, ou
seja, “Deus [governa] no céu, mas tu no mundo”. Também em todas as imagens,
à direita da composição, vê-se a esfera armilar, onipresente símbolo manuelino.
A esfera, que se origina na Grécia mas cujo uso foi preservado durante o medievo
por cientistas muçulmanos, aparece em praticamente todos os monumentos encomendados pelo monarca, inclusive em ornamentos arquitetônicos daquele que
1
Para a história da cultura portuguesa do Renascimento: a iconografia do livro impresso em Portugal no tempo
de Dürer (Arquivos do Centro Cultural Português, v. 5), p. 79.
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é, talvez, o mais emblemático edifício do período manuelino: o monastério dos
Jerônimos (Figura 2). Nos Jerônimos, assim como na segunda ilustração das Ordenações, vê-se a caravela, outro símbolo de um Portugal que só parece conceber-se a si mesmo sob o signo do mar. O fato de que o rei, nas distintas gravuras das
Ordenações, apareça de forma claramente distinta, deixa claro que o artista não
está, em absoluto, interessado em retratar o indivíduo, mas sim em representar
os símbolos que o acompanham e em identificá-lo não com o passado clássico,
mas com tradicionais personificações da justiça e da força 2 . Apesar de que as
Ordenações – um conjunto atualizado de códigos de direito público e privado –
representem a todos os grupos sociais que formavam a sociedade contemporânea:
cavalheiros, prelados, literatos, magistrados, comerciantes, camponeses, etc. – e
ao rei em plena execução das funções que definem um estado absoluto moderno
– legislando, julgando, dirigindo a vida econômica e comercial – visualmente as
gravuras se ancoram em valores formais característicos dos séculos precedentes.
No entanto, talvez mais do que através de imagens o rei favoreceu a distribuição de especiarias e animais exóticos obtidos durante as navegações como
forma de difusão da nova imagem de Portugal na Europa. Célebre é o episódio
do elefante Hanno (Annone), transportado a Roma durante a não menos conhecida embaixada enviada pelo rei e presidida por Tristão da Cunha por ocasião da
ascenção do papa Leão X 3. Ao sucessor de um vitorioso Júlio II, quem, aclamado como um redivivo César, havia, poucos anos antes, desfilado triunfalmente
por Roma4, Dom Manuel enviou um dos mais antigos símbolos do exotismo,
mantendo-se deliberadamente à margem de quaisquer identificações com os protagonistas latinos da histórica romana. A Santa Sé reconstruía então a si mesma,
é bem sabido, como uma Roma secunda, e tanto artistas como prelados, filósofos
e humanistas sublinham sua renovação como novo caput mundi cristianizado.
Entre as mais belas e complexas manifestações literárias do conceito de renovatio
Romae conta-se o discurso proferido pelo humanista e prior agostiniano Egidio
da Viterbo (1469-1532) por ocasião da embaixada portuguesa de 15075. Em sua
oratio, Egidio celebra que Portugal tenha possibilitado a Júlio II tomar posse de
regiões desconhecidas pelo mesmíssimo César. O humanista pretendía, assim,
demonstrar a superioridade da Roma cristã sobre a pagã, não só moral e religiosamente, mas também no âmbito militar. Sobretudo na segunda parte de seu
2
Também no frontispicio da versão alemã do Mundus Novus, de Americo Vespucci, Dom Manuel é representado por Michael Furter como um cavalheiro medieval (Basel, 1505; reproduzido por S. A. Bedini,
The Pope’s elephant. Manchester: Carcanet, 1997, p. 24). A esfera armilar, o aspecto medieval e a composição geral das gravuras reaparece em muitas outras imagens do rei, como por ejemplo na miniatura
com o seu retrato pertencente a um Livro de Horas atualmente conservado no Museo Nacional de Arte
Antiga de Lisboa (1517; Bedini, p.54).
3
Além de Hanno, um jovem elefante branco que lhe havia sido trazido da India, Dom Manuel quis que
ao Papa fossem também enviados dois leopardos, diversas araras e um cavalo persa. Cf. Bedini, op. cit. p.
28.
4
No dia 28 de março de 1507, Júlio havia comemorado sua vitória sobre Perugia e Bolonha como um
antigo conquistador, celebrando em Roma um triunfo análogo ao dos antigos. Cf. Charles L. Stinger.
The Renaissance in Rome (Indiana University Press, 1985), p. 235 e seg..
5
O manuscrito original conserva-se no arquivo de Évora, e é integralmente publicado por J. W. O’Malley
em Rome and the Renaissance Studies in Culture and Religion (Londres: Variorum Reprints, 1981), p. 417
e seg.. Egidio elaborou seu discurso em honra a Dom Manuel para celebrear a descoberta portuguesa do
Ceilão e de Madagascar e a derrota de Samorim em Calicute.
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discurso, Egidio relaciona acontecimentos ocorridos sob o pontificado de Júlio
II (entre os quais as grandes navegações ibéricas) como realizações de profecias
bíblicas e do plano divino de expansão do “império” cristão. Dom Manuel, nesse
contexto, estaria predestinado a ser o portador da palavra divina aos máximos
extremos da terra.
Se o grande humanista italiano convidava aberta e eloquentemente o
monarca português a formar parte de um plano providencial unificado pelo selo
latino, em solo lusitano foram raríssimas as vozes contemporâneas ao rei que
buscaram relações ou analogias entre as grandes façanhas portuguesas e o passado clássico. Além disso, no plano artístico, o assim chamado “estilo manuelino”
opôs-se diretamente à tradição clássica italianizante: “revestindo-se de uma argumentação nacionalista, apóia um discurso de propaganda de caráter neo-cavaleiresco, cujas raízes parecem assumidamente medievais”6 . As imagens de exaltação
lusitana e afirmação nacional não se apropriam de motivos e formas derivados da
antiguidade clássica, assim como, do ponto de vista formal, apesar de tentativas
humanistas isoladas, Lisboa não é consistentemente concebida como uma nova
Roma7; não se cria um sistema sólido de derivações e correspondências entre o
passado latino e o presente lusitano, mas este último prefere, nesse período, declarar como legítimas predecessoras suas raízes peninsulares.
É comum afirmar que, durante o Renascimento italiano, houve um movimento de cristianização do antigo; por outro lado, é possível pensar igualmente
em uma latinização do mundo cristão, o qual almeja identificar-se cada vez mais
com a grandeza e universalidade de Roma. Como dito anteriormente, Júlio II
quis identificar-se com Júlio César; a escolha de seu nome, evidentemente, não
é casual. O cenário europeu estava preparado para que Portugal ocupasse, sob
o comando do seu rei, um papel de protagonismo no renascimento cristianizado da antiguidade romana, enquanto principal emissário do novo César. Nesta
comunicação, procura-se examinar algumas das possíveis razões pelas quais isso
não ocorreu.
A busca pelo assim chamado “clássico” coincide com frequência com
o cosmopolitismo graças a sua relação intrínseca com a ideia de universalidade.
O amante da tradição clássica dificilmente se limita a uma coordenada espaço-temporal específica, pela razão evidente de que ela – a tradição clássica – não
se relaciona, por definição, apenas com uma região, e nem se limita a um único
momento histórico. A melancolia que sói acompanhar os espíritos cosmopolitas,
tomados pela soberana consciência de que, ao estar presos a uma única localização geográfica – ou, ao longo de suas vidas, a várias, mas sucessivamente
– relaciona-se à contínua sensação de perda, comparável por sua vez à perda
definitiva do passado: “Grande saudade tem dos antigos tempos todos os grandes
engenhos” – lamentar-se-ía Francisco de Holanda em seu tratado sobre a pintura.
6
Paulo Pereira, “‘Armes divines’. La propagande royale, l’architecture manuéline et l’iconologie du pouvoir”. Revue de l’Art, 133, 2001-3, p. 47.
7
A imagem da “nova Roma”, ou “segunda Roma”, aparece muitas vezes já na literatura medieval, vinculada a cidades tão díspares como Constantinopla, Trier, Aix-la-Chapelle ou Milão. O objetivo central
dessas comparações, evidentemente, é elevar as cidades em questão ao posto de herdeiras do poder imperial romano.
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O caso português, nesse sentido, foi excepcional. O Portugal renascentista experienciou uma forte tensão entre tradições “autóctones” e estrangeiras,
na qual claramente prevaleceu, assim como no assim chamado Romantismo,
séculos depois, a atração mais pelo regional do que pelo universal, mais pelo
passado gótico do que pela claridade meridional do clássico. Se as aspirações da
arte clássica são, necessariamente, universalizantes e, portanto, deixam-se perfeitamente empregar por formas de governo imperiais e/ou expansionistas, a arte
medievalizante daquele então, assim como, séculos depois, durante o Romantismo, voltava-se para aspectos regionais e para a busca de uma identidade não
universal, mas particular, específica, exclusiva. Francisco de Holanda foi talvez o
único pensador português a propor a unidade clássica da arte produzida em todos os extremos do mundo – unidade essa cujos princípios desejava ver refletidos
na própria essência da arte lusitana.
É bem conhecido que, ao menos até a primeira década do século XVI,
Portugal dividia com a Espanha um profundo arraigo na cultura visual flamenga. Sobretudo a partir da segunda década do século, porém, enquanto na
Espanha se intensificavam relações artístico-culturais bilaterais com distintas
regiões da península itálica, Portugal mantinha-se fiel aos valores formais do gótico nórdico. O renascimento espanhol, talvez ainda mais que o francês, buscou
aproximar-se diretamente da Itália e dos ideais da cultura clássica – ideais esses
que soube transportar tanto visual quanto retoricamente ao seu contexto nacional no sentido de fabricar uma imagem universal de si mesma. Portugal, por
sua vez, manteve-se indiferente às extraordinárias realizações de Michelangelo
na Sistina e Rafael nas stanze, pintadas contemporaneamente. Mesmo os Países
Baixos, nesse período, italianizavam-se consideravelmente, de modo que os modelos flamengos em voga na pintura manuelina já não correspondiam mais nem
sequer à arte flamenga contemporânea. Seria somente a partir dos anos 1550/60,
notadamente com as obras de pintores de formação romana como António Campelo e Gaspar Dias, que a pintura portuguesa haveria de afastar-se da tradição
nórdica de orientação coletivista do período manuelino através de uma produção
individual e italianizante fortemente marcada pela referência tanto a mestres de
gerações anteriores como contemporâneos.
Como dito anteriormente, os símbolos e motivos vinculados ao reinado
manuelino relacionam-se ao mar, ao passado regional, mas também a objetos
científicos – quase sempre associados às navegações – entre os quais sobressaía a
esfera armilar, autêntico emblema do monarca. O paragone com o antigo, que na
Itália manifestava-se sobretodo no campo artístico-cultural, em Portugal transferiu-se ao âmbito científico, área na qual muitos pensadores lusitanos detectaram uma marcada superioridade portuguesa. Os novos horizontes geográficos
e intelectuais abertos pelas navegações portuguesas confrontavam-se à antiqua
novitas dos humanistas, segundo a qual a renovação significava necessariamente
a restauração do passado clássico. Os descobrimentos ofereceram aos modernos a
prova incontestável de que os antigos não eram perfeitos; eles se haviam equivocado em muitos aspectos, cometendo erros que aos modernos portugueses caberia reparar. O célebre médico e naturalista Garcia d’Orta, por exemplo, orgulho-
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samente afirma em seus Colóquios8 que “se sabe mais em hum dia aguora pellos
Purtugeses, do que se sabia em cem años pollos Romanos”, enquanto João de
Barros aponta continuamente a vergonha que sentiriam Estrabão, Pompônio ou
Plínio se conhecessem as verdadeiras proporções do mundo e percebessem que
todo o globo, salvo os polos, é habitável. Simultaneamente, humanistas italianizantes, como Francisco de Holanda, mantinham a antiguidade clássica como
absoluto paradigma e ignoravam olimpicamente, em seus escritos, as navegações.
Se por um lado, assim, o profundo enraizamento de soluções estéticas tradicionais obstaculizou, sobretudo no campo visual, as relações artístico-culturais com
a Itália e a identificação com o passado clássico, por outro houve uma rejeição
consciente destas mesmas formas, a qual foi amparada tanto por um sentimento
de paragone científico quanto por um difuso instinto de preservação cultural de
caráter marcadamente provinciano.
Em 2008 comemorou-se o bicentenário da chegada da corte portuguesa
ao Brasil. Naquela ocasião, o Brasil transformou-se na capital do império português, o qual então englobava, além do Brasil e de Portugal, as colônias africanas. Esse foi um acontecimento sem precedentes na história do imperialismo
ocidental moderno. Nunca antes um governante europeu havia sequer visitado,
quanto menos residido em uma de suas colônias. A ideia da transferência da corte ao Brasil remonta a 1580, quando a anexação espanhola sepultou definitivamente qualquer esperança de recuperação do antigo brilho do império lusitano.
Uma vez que Portugal recuperou sua independência, em 1640, diversas vozes,
incluindo a do grande escritor jesuíta António Vieira, propuseram a criação não
transitória, como da primeira vez, mas definitiva, da corte americana. Com esse
propósito, Vieira recorreu à imagem da renovação imperial – ideia essa que remete, mais além do conceito de Renovatio Romae, a distintas tradições messiânicas, e que aparece diversas vezes em discursos imperialistas na modernidade. O
império, nesse sentido, surge como um fim providencial, “a culminação de uma
série de passagens por estágios históricos e espirituais”^F. Naquele contexto, Vieira
evocava a tradição messiânica portuguesa – de contornos claramente medievais –
segundo a qual a monarquia lusitana corresponderia ao quinto império do livro
de Daniel9. No segundo capítulo do livro, Daniel interpreta um sonho do rei
babilônio Nabucodonosor. Neste, o monarca via a grande estátua de um ídolo
com a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o abdômem de bronze, pernas
de ferro e pés metade de ferro e metade de barro. Em seu sonho, a estátua era
golpeada por uma enorme pedra, que a destruía; a pedra, por sua vez, convertía8
Colóquios dos simples e drogas he cousas medicinais da Índia, publicado em Goa em 1563.
9
É possível que o messianismo fosse já um dado consciente na fabricação da imagen de Dom Manuel,
talvez o primeiro monarca português efetivamente identificado com Portugal enquanto nação (esse é o
argumento central do supracitado artigo de P. Pereira). Sob seu reinado, reafirmou-se o projeto da cruzada, alimentado diversas vezes durante o medievo. Camões, em seu célebre épico, já anuncia claramente
o destino de Portugal enquanto caput do Quinto Imperio:
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente
Como é dos Fados grandes certo intento
Que por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos
(Lusíadas, I, 24)
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-se em uma montanha que ocupava a totalidade do mundo. Daniel revela que
a estátua representa uma sequência de impérios: a cabeça de ouro é o próprio
Nabucodonosor; as partes de prata são o império que se seguirá ao babilônio e
que será inferior a ele; as partes de bronze são o terceiro império, que dominará a
terra, e as pernas correspondem ao quarto império, tão forte como o ferro; os pés
de dois materiais representam um quinto império dividido, enquanto a pedra que
destrói o ídolo e se transforma em montanha é o reino de Deus.
A invasão francesa de 1808 deu novo impulso ao sebastianismo, assim
como, séculos antes, a traumática anexação de 1580. As assim chamadas Trovas
de Bandarra, poema profético de meados do Quinhentos que une tradições messiânicas a remanescentes arturianos, foram publicadas diversas vezes no século
XIX. Analogamente, durante a “catividade espanhola” os Lusíadas atingiram o
status de épico nacional – foram onze as edições entre 1581 e 1640. Uma gravura
de Domingos António de Sequeira na segunda edição da Defeza dos direitos nacionaes e reaes da monarquia portuguesa, de José António Sá (Lisboa, 1816 – 1817
segunda edição, Fig.3), representa D. João prestes a zarpar de Portugal rumo ao
Brasil; abaixo, a inscrição Exegit monumentum aere perenius - frase derivada da
XXX ode horaciana, “Produziu um monumento mais perene que o bronze” –
corrobora a idéia da renovação imperial em solo americano.
Para Vieira – que conheceu em Amsterdã o célebre rabino Menasseh
ben Israel, com o qual teve a oportunidade de discutir tradições milenaristas e
messiânicas – a conversão de todos os judeus do mundo, incluindo os das perdidas dez tribos, indicaria a consumação do quinto império – o qual sucederia o
babilônio, persa, grego e romano. Cristo reinaria inconteste através da mediação
do papa e de um rei católico. Esse rei, segundo Vieira, seria Dom João IV, uma
vez que somente Portugal, dominando a potência universalizadora do Atlântico,
estaria em posição de unificar todos os continentes e credos do mundo^F. Séculos
depois, o genial Pessoa recordaria em distintos momentos de sua abundante produção poética o sonho perdido do quinto império, sonho esse que parece haver
nascido justamente quando, paradoxicamente, não se poderia jamais realizar:
“Grécia, Roma, Cristandade,
Europa - os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vai viver a verdade.
Que morreu D. Sebastião?” 10
10
Fernando Pessoa, fragmento de “Quinto Império”.
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Representação de Dom Manuel em
Ordenações d’El Rei D. Manuel
Pietro da Cremona
Gravura, 1514
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Detalhe arquitetônico do mosteiro
dos Jerônimos (Lisboa)
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X X X Colóquio CBHA 2010
Segunda edição da Defeza dos direitos nacionaes e
reaes da monarquia portuguesa, de José António Sá
Domingos António de Sequeira
Gravura (Lisboa, 1817)
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X X X Colóquio CBHA 2010
Escultura e literatura nacional:
o monumento a José
de Alencar de Bernardelli
Maria do Carmo Couto da Silva
Doutoranda /UNICAMP
Resumo
Em nossa comunicação será abordado o Monumento a José de
Alencar de Rodolfo Bernardelli, inaugurado em 1897 na cidade
do Rio de Janeiro. O monumento é composto por uma estátua de
José de Alencar, quatro relevos e quatro medalhões em bronze, dispostos em uma base octogonal. Trata-se da primeira homenagem
realizada a um escritor brasileiro no campo monumental na cidade
do Rio de Janeiro. Será analisada a imagem do literato criada por
Bernardelli em sua obra, tanto no retrato em bronze como pela
escolha dos temas e das representações dos relevos que integram o
monumento.
Palavra Chave
Escultura, Século XIX, Rodolfo Bernardelli
Abstract
Our communication approaches the monument to José de Alencar
by Rodolfo Bernardelli, which was opened to public view in 1897
in the city of Rio de Janeiro. The monument is formed by a statue
of José de Alencar, four relieves and four bronze medals, disposed
upon an octagonal base. It is the first honor paid to a Brazilian
writer within the monumental field in the city of Rio de Janeiro.
We will analyze the literate’s image, as created by Bernardelli, both
the bronze portrait as well as the theme choice and the relieves’
representations, all belonging to the monument.
Key-words
Sculpture, 19th century, Rodolfo Bernardelli.
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O Monumento a José de Alencar, localizado na Praça José de Alencar (antiga Praça
Ferreira Viana) na cidade do Rio de Janeiro, foi inaugurado em 1897. Segundo
a Gazeta de Notícias a idéia de erigi-lo foi proposta pelos redatores do jornal o
Monitor Sul Mineiro em 1878, após o falecimento do escritor. A família Veiga
entrou em contato com a redação da Gazeta de Notícias, que popularizou a idéia,
divulgando a abertura de uma subscrição popular para o monumento a ser erguido na cidade.
Na ocasião de sua inauguração a imprensa ressaltou muito que se tratava
de uma obra de escultor brasileiro. A Gazeta de Notícias apresentou na íntegra os
discursos de intelectuais e políticos presentes no evento, como o prefeito municipal. Entre esses textos destacamos a fala de Olavo Bilac, encarregado de fazer
a homenagem ao escultor, em que o autor comenta a imagem de José de Alencar
proposta no monumento:
Bernardelli deu a José de Alencar (mais conhecido ainda hoje como político do que como
romancista) a mais bella e duradoura das consagrações, já agora é possível que a profissão das
letras mereça mais respeito, uma vez que o povo está vendo que um homem de letras merece
também a homenagem devida aos heroes e aos benfeitores da pátria”.1
No jornal O Paiz encontramos um comentário ressaltando que é o primeiro monumento voltado a homenagear um escritor: “A crítica futura saberá
apreciar o valor desse que Rodolpho Bernardelli apresentou, não como um retrato em
bronze, mas como um monumento erguido pela primeira vez na capital do Brazil
para honrar publicamente a memoria de um literato”^F. O monumento faz surgir a
discussão sobre a homenagem devida aos homens de letras: “Não há no Brazil, senhores, esse amor collectivo da arte. O mesmo facto de se erguer hoje na praça pública
a estátua de um homem de letras não prova que o Brazil comece a amar verdadeiramente aquelles que tentam fixar nas páginas de um livro, nas tintas de um quadro ou
no mármore de uma estátua, a grandeza de sua terra”^F. O motivo para Bilac seria a
demora de 12 anos para erigir o monumento a Alencar. Ressaltamos que o único
monumento a um escritor existente no país teria sido aquele em homenagem a
Gonçalves Dias, erigido por volta de 1873 no Maranhão^F.
O retrato de José de Alencar
O escultor Rodolfo Bernardelli, desde seu pensionato na Itália, volta-se seu interesse para o campo monumental, ainda muito novo no Brasil oitocentista, mas
que começava a despontar no país, com os monumentos a D. Pedro I e a José
Bonifácio, em decorrência do que acontecia em países europeus, em que foram
erigidos centenas de monumentos públicos nas últimas décadas do século XIX.
Em 1880, Bernardelli começou a pensar na criação de um monumento
a destacado escritor brasileiro, que acreditamos que seria José de Alencar, falecido
apenas três anos antes:
1
JOSÉ de Alencar. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 maio 1897, p.1.
391
X X X Colóquio CBHA 2010
Tenho também uma idéia estupenda para um monumento dos nossos maiores vultos literários, posso dizer que será novidade. O que lhe parecerá demasiada audácia! Estou pensando,
lendo e desenhando [até] mais tarde nos longos dias de verão piano piano porém [no] croqui
em execução a figura principal terá um metro, terei muito fio que torcer, porém, tenho coragem e lá irei.2
O próprio Bernardelli comenta o projeto do monumento com Ferreira
de Araújo, jornalista e um dos integrantes da Comissão:
A estatua está sentada em acto de meditação. Será de bronze florentino, a base da estatua será
redonda tendo quatro inscrições douradas sobre mármore e ornamentos de frutos e folhagens
de nosso paiz. Essa base circular pousará sobre uma outra octogonal de mármore (ilegível)
onde haverá 4 baixos relevos que poderão apresentar assuntos tirados do Guarany, Iracema,
Mãe e Tronco do Ipê. Haverá mais espaço de (ilegível) entre quatro medalhões em baixo-relevo representando Pery, Ceci, Iracema e Martin (ilegível) acabando por dois grandes degraus.
A estatua os baixos relevos as medalhas e ornamentos são de bronze e a architetura do monumento será de mármore de diferentes nuanças.3
Em relação à figura de José de Alencar, como nota Suely Weisz, há uma
grande diferença entre a postura da figura final e a da primeira maquete, em
que José de Alencar é representado cabisbaixo e “dá a impressão de estar em um
momento de pausa da leitura, descansando ou refletindo, mas mantendo o livro
entreaberto marcado por um dedo. A cena nos parece mais expressiva, intimista e
verdadeira que a da versão final”^F. Para a autora esta versão não seria aceita pela
comissão e pelo público, acostumado com uma mais representação tradicional
do literato e escritor, e apresenta como exemplo disso o artigo intitulado “Estátuas
e Monstrengos” da revista O Malho, de 1928, que coloca o monumento entre os
monstrengos da cidade: “o homem que engraxa as botinas ali em frente ao Hotel
dos Estrangeiros”^F.
Acreditamos que um das referências de Bernardelli para a concepção do
monumento possa ter sido o Monumento a Vincenzo Bellini4, de Giulio Monteverde, seu mestre em Roma^F. A obra foi descrita na revista L’Illustrazione Italiana
de 2 de setembro de 1883:
2
CARTA de Rodolfo Bernardelli a João Maximiano Mafra. Roma, 21 de março de 1880. Documento
Pertencente ao Arquivo Histórico do Museu Dom João VI/UFRJ.
3
Bernardelli, Rodolfo. [Minuta de carta a Ferreira de Araújo]. Documento do arquivo histórico do Museu Nacional de Belas Artes, pasta 27, cód.1, n.5. Citado em WEISZ, Op.cit., p.111. Grafia original foi
mantida.
4
O monumento a Vincenzo Bellini do escultor italiano Giulio Monteverde foi inaugurado em 22 de
setembro na Praça Stesicoro em Catânia. Bellini foi um dos mais importantes compositores italianos do
século XIX, compondo música sacra e principalmente óperas. No monumento de Monteverde ele foi
representado ladeado por personagens extraídos de suas mais importantes óperas.
392
X X X Colóquio CBHA 2010
O monumento merece (...) toda a admiração: é uma das obras mais belas de Monteverde.
É composta de uma base quadrada, da qual se vê uma escadaria com sete degraus, onde
existem notas musicais. As estátuas (...) representam a Norma, o Pirata, a Sonâmbula e o Puritano, e sobre um pequeno pedestal Vincenzo Bellini está sentado, com uma folha de música
sobre o joelho esquerdo e com o braço direito apoiado sobre as costas da cadeira.5
É possível que o escultor brasileiro tenha procurado uma referência formal na obra de Monteverde, por certa informalidade na postura do homenageado e por este estar ladeado por menções escultóricas de suas principais criações.
Os baixo-relevos
Os baixos-relevos do monumento constituem uma parte importante do monumento e podem ser entendidos como composições que guardam grandes relações
com o campo da pintura. Nota-se que a fase indianista do Alencar é privilegiada pelo escultor nesse monumento, principalmente pelos medalhões e em dois
relevos, que contêm representações relacionadas aos livros O Guarani (1857),
Iracema (1865). Os outros relevos contêm ilustrações dos romances O Gaúcho
(1870) e O sertanejo (1875).
Nossa análise procurou buscar as passagens dos romances a que os relevos poderiam fazer referência. No caso do relevo que trata romance Iracema, nos
servimos da análise de Alexander Miyoshi: “Iracema é provavelmente mostrada no
capítulo sete do romance, no qual enfrenta o chefe de sua tribo, o tabajara Irapuã.
(...) [ela] deveria empunhar um arco e Irapuã um tacape. Talvez eles existissem no relevo, mas não resistiram (o monumento parece ter sido vandalizado inúmeras vezes).6
Em O Guarani a passagem escolhida pelo escultor é o momento em que
os Aimorés se preparam para atacar a casa de D. Antonio de Mariz, preparando
as flechas com algodão e um produto inflamável, para incendiá-la. Peri se deixa
aprisionar pelos índios, e envenena seu corpo com curare para que, quando fosse
oferecido em banquete aos guerreiros também os matasse^F. O velho cacique dos
Aimorés então avançou sobre ele com uma imensa clava. Peri decepou então o
punho do selvagem. Em seguida, depositou sua arma no solo e quebrou a lâmina. No romance o velho cacique deu um passo à frente e fez um gesto enérgico
com o braço decepado, indicando que ele era seu prisioneiro de guerra. Acreditamos que esta seja a cena representada no relevo. Peri se mantém altivo, “ frio e
indiferente”^F,em comparação com os selvagens aimorés.
Para Alfredo Bosi os romances de José de Alencar procuram dar uma
visão conciliatória do enfrentamento entre selvagem e colonizador presente por
séculos na História do Brasil:
5
Original: “O monumento merita (...) ogni ammirazione: è uma delle più opere del Monteverde. Si compone di un basamento quadrato, dal quele si innalza una gradinata di sette gradini, quante sono le note
musicali. Le statue, che sorgono, rappresentano Norma, il Pirata, la Sonnambula e il Puritano, e su un
piccolo dado, Vicenzo Bellini sta di musica spiegata sul ginocchio sinistro e col bracio destro appoggiato
alla spalliera”. Conforme GIPSOTECA Giulio Monteverde. Collezione di Bistagno a cura di Patti Uccelli Perelli. Bistagno: Regione Piemonte: Comune di. Bistagno, 2004, p.18.
6
MIYOSHI, Alexander Gaiotto. Moema é morta. Campinas, 2010. Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas. p. 377.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Essa conciliação, dada como espontânea por Alencar, viola abertamente a história da ocupação portuguesa no primeiro século (é só ler a crônica da maioria das capitanias para saber
o que aconteceu), toca o inverossímil no caso de Peri, enfim é pesadamente ideológica como
interpretação do processo colonial.7
Considerando o aspecto formal nestes dois relevos, além de retomar o
tema indianista, o artista cria uma belíssima representação de floresta brasileira.
A personagem Iracema foi associada a uma delicada, porém corajosa imagem
feminina que enfrenta o selvagem bárbaro. No gesto de Iracema, porém, como
nota Luciano Migliaccio8, encontramos ecos da figura feminina do quadro Liberdade guiando o povo (1830), de Eugene Delacroix.
O Guarani, segundo Vaccani, era a obra em baixo-relevo que mais agradava ao artista^F. No trabalho, em que representou os Aimorés reunidos contra
Peri, Bernardelli criou algumas figuras com acentuado relevo e dispôs os personagens em planos diversos, sugerindo assim diferentes profundidades na composição. Os índios armados com tacapes, ou ainda, agachados ao pé de uma
fogueira, revelam em sua expressão e atitude um caráter de agressividade. A cena,
porém, tem algo de encenação teatral, como notou Jorge Coli^F, e parece mesmo
fazer referências aos cenários relativos à apresentação da opera Il Guarany, de
Carlos Gomes, que popularizaram o livro.
O romance O Gaúcho foi o primeiro que José de Alencar publicou depois da crise política e segundo Araripe Júnior, o personagem principal, Manuel
Canho, é esse homem singular dos pampas, triste, excêntrico, cruel e revoltado
contra a sociedade, que alimentava sistematicamente o ódio contra os homens.^F
Dessa forma, a violência presente na vida do personagem é representada por Bernardelli em seu relevo. O escultor recriou uma passagem importante da cena do
embate entre Canho e o assassino de seu pai: “Foi então uma luta de rapidez e
agilidade entre cavalos e cavaleiros”^F.
A representação da paisagem tanto a da floresta como a dos pampas é
um aspecto importante nos relevos de Bernardelli, porque demonstra a ênfase nas
diferenças regionais do Brasil, tanto em termos da geografia como nos costumes,
entre eles, as formas de vestir. Esse é um dado que marca a produção de Alencar,
cujos romances contêm longos trechos em que a autor descreve minuciosamente
os lugares onde se passam as histórias, os costumes locais e o vestuário.
No romance O sertanejo acreditamos que o momento representado
pelo escultor é uma passagem secundária no texto, mas de grande importância
por denunciar o poder da aristocracia no nordeste. É aquele em que o capitão-mor Gonçalves Campelo, saindo para uma vaquejada, depara-se com a cabana
do camponês José Venâncio com uma cumeeira de folhas de carnaúba recém-cortada. Campelo proíbe o camponês de cortar carnaúba em suas terras, pois a
palmeira serve para fazer sombra ao gado na seca. Alencar ressalta a relação de
poder entre o fazendeiro e o camponês: “O matuto curvou de leve o joelho, fazendo
submissa reverência ao capitão-mór, que prosseguiu no meio de sua comitiva”^F.
7
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.179.
8
Em conversa com a autora, set. 2010.
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Eduardo Martins Vieira afirma que comparado a Iracema ou o Guarani, O sertanejo é um dos livros menos estudados de Alencar. O texto de Araripe
Júnior seria ainda uma das referências fundamentais sobre o texto e traz uma
visão um pouco negativa sobre essa obra do escritor após sua decepção com a vida
pública e a política9. A nosso ver, Alencar cria nesse livro novamente um personagem um pouco desajustado, que é Arnaldo Louredo, como é também o gaúcho.
Nas composições em que trata de temas regionais Bernardelli parece
mesmo propor uma nova visualidade, como a pintura de Pedro Weingartner,
que encontra desenvolvimento no começo do século XX, ou em Fim de Romance (1912), de Antonio Parreiras ou Volta do Trabalho (1911), de Carlos Chambelland. Em O Sertanejo, além dessas características, a nosso ver, a figura do
miserável camponês no centro do relevo nos remete ao universo de Puvis de
Chavannes, como em Pobre Pescador (1881), pela resignação e mistério da figura.
Bernardelli realizou belíssimos medalhões para o monumento a José de
Alencar, como Peri e Iracema, obras que dialogam com trabalhos de artistas franceses como David d’Angers e Auguste Preault. O medalhão do monumento que
contém a imagem de Peri, do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, é um
trabalho que se destaca pelo volume que o artista imprime ao dorso do personagem e ao rosto do personagem, a forma como bracelete de penas alcança o círculo
que contorna o medalhão, os longos cabelos lisos, dispostos em grupos que se
confundem com o adereço de penas. Além disso, a forma como a luz incide no
relevo destaca as formas do indígena contra a floresta de grandes árvores que faz
o fundo. O rosto sério de Peri, marcado pelos traços étnicos, é outro dado que
impressiona o espectador. Sua imagem nos faz recordar o comentário de Alfredo
Bosi sobre a imagem do índio em Alencar: “a figura do índio belo, forte e livre se
modelou em um regime de combinação com a franca apologia do colonizador”10.
No medalhão Iracema o escultor propõe unicamente a representação
da personagem, sem nenhum tipo de fundo, retomando a iconografia do relevo
presente no monumento. A ornamentação da indígena nos lembra a da Faceira
(1880), pelo uso de uma grande pena para prender os cabelos e o colar de contas
ao colo. Seu rosto possui uma expressão acentuadamente dramática.
O monumento tem um grande sentido para o momento político em que
foi erigido. Por ocasião da colocação da primeira pedra o escritor Machado de
Assis proferiu um discurso em que destacava as suas qualidades de literato, embora José de Alencar tivesse atuado também como político. Arthur de Azevedo
faz um comentário similar: “se ele se limitasse a ser o romancista e o dramaturgo que
foi e o poeta que deveria ter sido, a sua obra seria um monumento ainda mais eterno
que o bronze da estátua que hoje erguemos”^F. Acreditamos que esse comentário é
devido a postura política conservadora de Alencar, em questões polêmicas como
a abolição da escravidão.
9
MARTINS, Eduardo Vieira. A imagem do sertão em José de Alencar. Campinas: [s.n.], 1997. Dissertação
de mestrado. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, p.16-17.
10
BOSI, 1992, p.177
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É importante ressaltar que a obra de Alencar é permeada por “imagens
recorrentes de poder e conflito”11, que retomam dilemas ainda presentes na sociedade brasileira. Este fato explicaria a retirada da menção no monumento à peça
Mãe (1860), que aborda a escravidão, já abolida no país, ou mesmo do Tronco do
Ipê (1871), cuja história se passava em uma fazenda do interior fluminense. Os
temas foram substituídos por outros, mais atuais e urgentes, que abordavam a
idéia da integração e da diversidade regional do nordeste e do sul do país. Esse foi
o tema principal do discurso de Machado de Assis durante a colocação da pedra
fundamental em 1891 e está presente na concepção geral do monumento, por
meio da escolha dos temas para os relevos:
O espírito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o
sertão, a mata e o pampa, fixando-as em suas páginas, compondo assim com as diferenças da
vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra.
Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só
porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá
a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas^F.
Dessa forma, em seus relevos, o monumento de Bernardelli parece retomar as relações históricas da pintura de paisagem e de gênero, voltada criar
imagens do Brasil que definam o sentimento nacional no período republicano,
partindo de obras como as de Debret e de Rugendas para alcançar as novas propostas artísticas dos anos 1890, como foi mencionado anteriormente.
11
RIZZO, Ricardo M. Entre deliberação e hierarquia: uma leitura da teoria política de José de Alencar (18291877). Dissertação de Mestrado. São Paulo, Depto. de Ciências Políticas/FFLCH/USP, 2007.p.11.
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Monumento a José de Alencar (1897)
Rodolfo Bernardelli
Rio de Janeiro (RJ)
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Iracema (1897)
Rodolfo Bernardelli
bronze
Baixo-relevo do Monumento a José de Alencar, Rio de
Janeiro
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O Sertanejo (1897)
Rodolfo Bernardelli
bronze
Baixo-relevo do Monumento a José de Alencar, Rio de
Janeiro
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Theon Spanudis e Torres Garcia:
definições de Construtivismo
Maria Izabel Branco Ribeiro
MAB FAAP/ CBHA
Resumo
Em vários textos de Theon Spanudis emerge o tema do encontro
com o numinoso como essência da experiência estética e da obra
de arte com composição estruturada para favorecimento desses aspectos. Sua análise em 1964 sobre a obra de Torres García, destaca
aspectos como a importância da submissão à geometria, o caráter
épico e fabulador. A análise de seu conceito de construtivismo e os
princípios que regeram a formação de sua coleção demonstram o
quanto era tributário daquele pintor.
Palavras chave
Torres Garcia; Theon Spanudis; Construtivismo
Abstract
Theon Spanudis had written several articles discussing the presence of the numinous in art and the highly structured work of
art as the best way to achieve it. In his article published in 1964
he analyzed the importance of geometry laws in Torres García
works, emphasizing its epic and mythical aspects. The analysis of
Spanudis concept of Constructivism and the characteristics of his
art collection are evidences of the importance of Garcia´s ideas on
his theories.
Keywords
Torres Garcia; Theon Spanudis; Constructivism
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Theon Spanudis (Esmirna, 1915 – São Paulo, 1985) chegou a São Paulo em 1951,
a convite da Sociedade Brasileira de Psicanálise como psicanalista didata, com o
prestígio de membro da Associação Psicanalítica de Viena.
Logo começou a freqüentar o ambiente artístico paulistano, visitar galerias, conhecer artistas, comprar livros e começar sua coleção de obras de arte.
Ao visitar a I Bienal de São Paulo em 1951, adquiriu a primeira obra de
arte de sua coleção, Casas de Itanhaém, 1948, de Alfredo Volpi e encontrou solução alternativa para sua aspiração de exercer uma atividade de criação poética.
Sem dependentes e de hábitos comedidos, Spanudis em 1957 conseguiu
a situação financeira confortável há muitos anos almejada: abandonou a clínica,
dedicando-se à literatura e à crítica de arte. Era sincero ao afirmar “faço crítica
de arte como hobby”, mas amo “intensamente a pintura”. Seu entusiasmo pela
atividade era inegável, como também o era o fato de ter durante a vida recolhidos
informações e sistematizado de modo peculiar, formulando conceitos de arte,
que nortearam a constituição de uma coleção de pinturas e desenhos. Legou
parte deste acervo (453 obras) ao acervo do MAC-Usp em 1979.
A partir de 1957, Spanudis produziu literatura e escreveu muito sobre
arte. O Instituto de Estudos Brasileiros da Usp conserva sua biblioteca e arquivo,
com correspondência e produção intelectual (manuscritos e publicações). Eram
textos de apresentações para catálogos de exposições de artistas, artigos de revistas, resenhas de livros, ensaios, cursos inteiros de arte, em que o autor manifesta
empenho pedagógico para divulgar aspectos das artes e da produção do século
XX.
Homem de muitas leituras e detentor de muitas informações, Spanudis
era apreciador de fato das artes e principalmente da pintura. Era autodidata no
assunto, suas colocações privilegiavam gostos e interesses pessoais, por vezes deixando de lado aspectos metodológicos. Seus escritos evidenciam, sobretudo, seu
esforço em organizar suas relações com as artes e articular seus pontos de vistas
para estabelecimentos para formulação, se não de uma teoria, pelo menos a compreensão dos fatos artísticos.
Dois tipos de textos marcam a produção do autor: as revisões da História da Arte (como o ensaio “Rumos e conquistas da pintura moderna. Uma teoria
fenomenológica e interpretativa das diversas manifestações da mesma” e análises
de artistas específicos) e exposições sobre temas específicos (como questionamentos sobre a religião e a alma do artista; ou sobre as características da obra de
arte). Em vários deles, ressaltava os caminhos necessários para o encontro com o
“numinoso”, condição que considerava parte privilegiada da experiência estética.
Em seu artigo arte e religiões lembrava que vários credos fizeram uso
de imagens para facilitar o acesso a estados especiais de consciência e comunhão
com o universo. Citava os exemplos das mandalas orientais, dos pisos das catedrais góticas e obviamente padrões geométricos da arte mourisca. Considerava a
dimensão espiritual advinda da experiência estética como a verdadeira religiosidade, sem a distorção das religiões oficialmente estabelecidas.
Insistia que o caminhar da arte a partir do século XIX favoreceu pesquisas conceituais e formais gerando obras que manifestassem o numinoso – essência do universo – de modo mais efetivo.
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Em “Rumos e conquista da arte moderna” confessava ser pouco apreciador dos pintores impressionistas, embora considerasse ter sido aquele um momento importante para a pintura, por ter evidenciado a dissolução da aparência
visível do mundo. Apreciava Seurat, por considerá-lo quem restituíra à pintura a
integridade dos sólidos, antes pulverizada pela pincelada Impressionista, além de
ser quem ressaltara o caráter geométrico das figuras e restabelecera a estrutura da
composição de acordo com os princípios da proporção áurea.
Em seu entender, o profeta da nova plástica era Cézanne. Conforme
relatou em “Manifestações Religiosas na Arte Moderna”, Spanudis considerava
que ao buscar a estrutura dos corpos, Cézanne aproximou a imagem à bi-dimensionalidade do suporte e desse modo, pintou a integridade natural dos seres, dos
objetos e da natureza, dando a todos a mesma importância espiritual.
Embora para Spanudis a passagem da figuração para a abstração não
constituísse o acesso a uma etapa de maior evolução dentro da História da Arte,
em “Rumos e Conquistas”, o autor descreveu a arte abstrata como libertação das
amarras do visível e abertura para a criação de alfabetos visuais com múltiplas
possibilidades. Spanudis levou adiante a teoria de Kandinsky, considerando a
abstração como variações entre dois pólos, colocando de um lado o uso rigoroso
da geometria, de outro “a absoluta dissolução, o caótico”, reconhecendo a existência de várias instâncias entre eles, que deveriam ser consideradas com atenção.
Spanudis considerava fundamental distinguir as definições de Concreto
e Construtivo, chegando paulatinamente ao estabelecimento desses conceitos.
Cabe lembrar que durante a formulação do processo entrou em conflito com
diversos artistas e intelectuais.
Para a formulação do conceito de “obra concreta”, comungava com Max
Bill a idéia da autonomia da forma e da obra de arte, bem como sua propriedade de dar forma visível a conceitos abstratos, advindos da vida do espírito. As
diferenças ficavam evidentes ao se levar em conta que para Bill espírito significa
atividade intelectual centralizada na razão e na lógica (Amaral: 1977,48) e para
Spanudis o termo significava a alma, a parte etérea do ser humano, capaz de
estabelecer a unidade entre o homem fragmentado e a totalidade do universo.
Exemplo desse processo gradual de formulação do conceito e amadurecimento de idéias, ocorreu em 1956, quando o MAM – SP convidou Spanudis
para proferir conferência sobre a obra de Volpi, seguida de debate, que se transformou em arena de disputa com concretistas paulistas. Claro está que o crítico
ainda não tinha explicitado aspectos que depois definiria como “Construtivismo”, em obras como as de Volpi. O estopim da discussão foi sua afirmação sobre
Volpi usar a “cor concreta”, “despida de suas utilizações secundárias”, “expressivas, afetivas ou hedonísticas – sentimentais” e concluía ser ele o único artista até
então a atingir aqueles objetivos. Recorre à publicação do crítico alemão Werner
Hoftmann A pintura do século XX de 1948 para justificar as dificuldades de
alcançar a cor concreta, decorrente de dois fatores: sua identificação como atributo do objeto ao qual está identificada e as evocações associativas que podem
determinar sentimentalismo e subjetivismo. A pintura em discussão de Volpi
estava distante da definição de cor concreta. O uso da têmpera, a vinculação com
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a imagem, o trabalho de texturas sublinhavam a subjetividade e o lirismo do
artista, tornavam frágil a tese apresentada e Spanudis alvo fácil para sua platéia.
Aos poucos o autor definiu de modo mais adequado os termos relacionados às questões presentes em obras como as de Volpi e formulou com mais
precisão os conceitos que regiam suas preocupações.
Pese suas relações tensas com Waldemar Cordeiro e alguns dos concretistas, bem como sua maior proximidade com as atividades e propostas do
Grupo Neoconcreto, por volta do início dos anos 1960, Spanudis apontava em
diversos textos de modo preciso, a importância da experiência estética para integrar o homem à totalidade e privilegiava nesse processo o papel da obra de arte
construída de acordo com determinados recursos de composição, geometria, cor,
proporções, sem muito importar se a figura estivesse presente ou ausente.
Em 1964 Spanudis chegou a uma definição dos termos “Concreto” e
“Construtivo”. De modo sucinto e dispensando citações históricas, chegou a um
conceito funcional, adequado para suas finalidades, a saber, a redação de textos
de divulgação sobre arte.
Explicava Construtivismo como o uso de elementos geométricos expressivos e cheios de cargas emocionais e na obra concreta reconhecia a exigência de
composição organizada com rigor, integrada por elementos formais severos.
É indubitável que o encontro com o pensamento e a obra de Joaquín
Torres Garcia foi fundamental para que Theon Spanudis integrasse diversos dos
grandes temas de seu interesse e formulasse seu conceito próprio de Construtivismo.
Torres Garcia comparava a inspiração ao estado de entusiasmo, conforme definido pelos antigos gregos: o estar tomado pelo deus. Estado passível de ser
comparado ao do encontro espiritual proclamado por Spanudis. Em termos menos apaixonados e, mais realista, estado correspondente a um momento de tensão
do espírito e de percepção especial da realidade. O artista uruguaio considerava
a obra estruturada como bela, e como tal, algo superior e total, não apenas como
um objeto prazeroso ou decorativo. Entendia a obra de arte como um símbolo
profundo da alma local de manifestação de instintos atávicos se manifestam,
além de símbolos triviais.
A formulação de questões sobre a dimensão “mágica” da obra de arte e
da ação do artista, assim a integração da figura dentro do conceito de Construtivismo, são aspectos do pensamento de Spanudis, que podem ter ganhado melhor
articulação depois do encontro com o texto de Torres Garcia. Segundo o artista
uruguaio, “fantasia e realismo são inimigos da arte”, pois a “fantasia é um realismo que se afasta da ordem natural” e, uma vez mantida a ordem semelhante
a do universo, pouco importa se há figuras ou formas abstratas, pois “a verdade
não está nas coisas, mas nas leis”. Dizia que por meio da geometria, pode-se chegar à idéia verdadeira das coisas do mundo e não às suas ocorrências episódicas
e ocasionais, uma vez que a alma eterna também não é episódica ou ocasional e
reconhece a verdade da geômetra, pois a permanência na verdade sempre determina o sentido transcendente de cada momento. A lei fundamental era explicada
por Torres Garcia como integração ao cosmos, isto é, respeito à estrutura, às proporções definidas e construção segundo a razão áurea. Dizia: “quem vive no espí-
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rito está no universo;... ao universal corresponde uma geometria e por aí entra a
ordem; o artista pois há de ter fé em sua arte, faça geometria e construa e aquele
conjunto plástico terá uma alma, assim como tem um corpo”. Aconselhava ao
artista sempre “ter fé cega na regra, em vez de servir-se dela, fazer-se servidor dela.
(Torres Garcia, 1984: 215). Termos traduzidos na linguagem de Spanudis por: é
a dimensão mágica da obra que permite que ela alcance a totalidade do universo,
o numinoso.
Há afinidades entre as afirmações de Torres Garcia sobre a “arte verdadeira dentro da geometria e das medidas” que tem por base a “fé religiosa: fé sem
objeto determinado, religião sem dogma, fé laica (Torres Garcia, 1984: 229) e o
tema caro a Spanudis de uma religiosidade sem mitos e ritos, contido nos textos
citados.
No manuscrito “A religiosidade dos construtivos brasileiros e em geral
sul-americanos”, Spanudis é tributário ao pintor uruguaio ao escrever: “a obra
construtiva é aquela cujos elementos visuais - e pouco interessa se são figurativos
ou abstratos e geométricos – são de tal maneira organizados, constelados e ordenados entre si e no espaço da tela, que criam um todo coerente e independente,
um novo organismo autônomo, semelhante a uma construção – um prédio por
exemplo”. Mais adiante sintetiza seu pensamento, remetendo de modo mais imediato ao autor de o “Universalismo Construtivo” ao concluir que entende por
construtivismo a organização numinosa e simbólica regida por um elemento de
ordem, metro e lei.
Em outubro de 1964, o crítico Theon Spanudis publicou artigo com
título “A significação americana e mundial de Torres Garcia”. Descrevia o artista
como pintor de figuras severamente delineadas, como se tivessem, “algo de duro,
decisivo, esculpido, como nos desenhos e esculturas dos primitivos”. Identificava
um “elemento de fabulação pictórica, uma fabulação épica que gosta da seriação
dos diversos objetos”, O hibridismo manifesto no que chamava de construtivismo sui generis, permitia a reunião de caracteres múltiplos, com contribuições
culturais e temporalmente várias, parece ter sido relevante para Spanudis, ao
facultar a organização de princípios que também lhe eram caros e aplicá-los a
outro contexto, também sul-americano – a arte brasileira – mesclando elementos
de diversas origens e condições, mas estruturalmente organizados e passíveis de
promover experiência estética, em condições que denominava de encontro com
o numinoso.
Embora Spanudis não entrasse em análise teórica, enfatizava principalmente o domínio compositivo manifesto nas obras de Torres Garcia e sua habilidade de contar histórias pelo aproveitamento “rítmico e musical dos espaços, o
colorido tenso e estrutural, a seriação gostosa”.
Spanudis estabelecia diferença entre narrativa e fabulação. Por narrativa,
entendia a descrição de situações e imagens que reproduziam a realidade e lançavam mão de procedimentos ilusionistas para representação de cores e espaço.
Por fabulação, definia “domínio compositivo, a distribuição sábia dos elementos
pictóricos, o aproveitamento rítmico e musical dos espaços, o colorido tenso e
estrutural”, em procedimento que facultava a obtenção de “sabor quase ingênuo,
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primitivo e popular de contar histórias, (...) mas de uma maneira simples e rica
ao mesmo tempo, clara e exuberante, brincalhona e séria”.
Spanudis iniciava seu artigo comparando Torres Garcia a Picasso, Klee e
Mondrian quanto à contemporaneidade de seu trabalho. Encerrava comparando
o “construtivismo sui generis” do pintor a outros “construtivismos sui generis”, de
artistas que também desenvolveram trajeto oposto ao de Colombo: “trouxeram
para o âmbito internacional da arte moderna, a arte americana(..) o melhor que
ela produziu durante séculos remotos, por povos estranhos e culturas passadas”.
A saber, “o mundo plástico sui generis, com vários elementos indígenas da paisagens e elementos étnicos da paisagem” criada por Tarsila entre 1923 e 1931; a
pintura bidimensional de Volpi a partir de 1948, de portas, janelas, fachadas de
casas e bandeirinhas”; a pintura de Arnaldo Ferrari e a de Rubem Valentim.
Vago, o termo “construtivismo sui generis”, demanda análise. Implica ter
feição própria, a partir dos exemplos absorção de traços da cultura popular, do
passado barroco, de elementos autóctones, ser resultado da fusão de elementos
plásticos realizada ao correr do tempo, ser constituído por formas geométricas,
aspectos figurativos, grafismos. Alude à caligrafia de Volpi, Tarsila, Valentim e
Ferrari. Significa fratura de métodos anteriores, manutenção de determinados
parâmetros e rearticulação do discurso. É a soma de elementos da cultura européia, transcritos à nossa maneira, transitando “o sentido inverso de Colombo”,
feitos para não só para inglês ver, mas também para francês e grego. São elementos híbridos, mestiços, dispostos em estruturas que permitam que suas formas
arcaicas se manifestem em toda sua força – a ponto da carência de informações
também ser um traço distintivo, identificada, principalmente, com a intuição,
o obscuro, o misterioso, o não relatado, o outro. O não racional da construção,
pontos de fratura da ordem ou de sua manutenção.
Conclusão
O acompanhamento dos textos sobre artes de Spanudis indicam a emergência
de alguns temas. A função da arte, as características da obra de arte e, principalmente, o encontro com o numinoso na experiência estética, favorecido pela
composição estruturada são assuntos que retornam em ocasiões diversas.
O encontro com a obra e o pensamento de Torres Garcia propiciou a
oportunidade de melhor formular alguns conceitos que intuitivamente tinha
como fundamentais dentro de seu sistema de valores dentro das artes.
Exemplar disso é sua concepção de Construtivismo, em que privilegia
aspectos relacionados com a composição bem estruturada, a seriação, a ênfase na
pintura planar, no caráter fabulador, o aspecto arcaizante, popular, mesclando
conforme o caso elementos figurativos e abstratos. Conforme suas próprias palavras ao descrever a obra de Torres Garcia, seria característico dessas manifestações o elemento teatral, festivo, barroco, híbrido, porém estruturado. Aponta
caminhos, embora não desenvolva em detalhe esse construtivismo na América
Latina. A compreensão de sua definição de um Construtivismo Fabulador é fundamental para a análise das obras reunidas na coleção Spanudis de arte brasileira
com peças de autoria de artistas como Mira Schendel, José Antonio da Silva,
Volpi, Luis Sacilotto, Rubem Valentim, Fang, Mavignier, Lori Koch, Odriozola.
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Estabelece o fio condutor em conjunto aparentemente díspar e além de propor
a melhor compreensão das razões que levaram o colecionador a também reunir
desenhos infantis e brinquedos populares.
Referências Bibliográficas
AMARAL, Aracy. Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro/ São Paulo: Mec/Funarte/ Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do
Estado de São Paulo/Estado de São Paulo, 1977.
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Ide, São Paulo, n.3 ano2, 1976.
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SPANUDIS, Theon. “A significação americana e mundial de Torres García”. Habitat, São Paulo, set/ out,1964.
_______________. “A religiosidade de construtivistas brasileiros e em geral
sul-americanos”. Texto manuscrito, caderno 8, arquivo Theon Spanudis, IEB-USP, s/d.
_______________. “Rumos e conquistas da pintura moderna. Uma teoria fenomenológica e interpretativa das diversas manifestações da mesma”, texto manuscrito, caderno 10, arquivo Theon Spanudis, IEB-USP, s/d.
TORRES GARCÍA, Joaquín. Universalismo constructivo. Vol.1 y 2 Madrid:
Alianza Forma Ed., 1984.
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Eliseu Visconti: os caminhos
de uma visualidade nova
Mirian Nogueira Seraphim
IFMT
Resumo
Visconti participou com sucesso de mostras internacionais e suas
obras circularam também reproduzidas em diversos periódicos estrangeiros. Inúmeros foram os críticos que apontaram analogias e
convergências entre ele e os mais variados artistas estrangeiros. Visconti apropriou-se de certos modelos de produção e significação
combinando-os em diversos momentos de sua carreira a uma linguagem muito particular, de forma a conseguir os efeitos desejados
à expressão de sua personalidade e visão de mundo.
Palavra Chave
Eliseu Visconti; Pintura brasileira; Influências e re-significações.
Abstract
Visconti has successfully participated in international exhibitions
and his works also circulated reproduced in several international
journals. Numerous critics have pointed out that analogies and
similarities between him and the most diverse foreign artists.
Visconti appropriated certain models of production and meaning combining them in several moments of his career to a very
particular language in order to achieve the desired effects on the
expression of his personality and worldview.
Key-words
Eliseu Visconti; Brazilian painting; Influences and re-signification.
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Provavelmente uma das primeiras cartas que Eliseu Visconti recebeu de seus
antigos professores da ENBA, quando já em Paris para o gozo de seu prêmio de
Viagem à Europa, conquistado no final de 1892, através do primeiro concurso
organizado por esta instituição, foi a enviada por Rodolpho Amoedo e datada de
10 de agosto de 1893:
Recebi com grande prazer a sua ultima contendo o certificado em regra da sua admissão à Escola de Paris. [...] Cabe-nos um pouco da gloria que tão bem soube conquistar no seu concurso
e creia que muito se orgulha a Escola de têr coroado os seus esforços concedendo-lhe a pensão
qui actualmente goza. O meu mais ardente desejo é que não deixe dormir a sua actividade
sobre esses louros e continue para honra sua e da Escola a trabalhar ainda para completar o
pouco que lhe falta.
É necessario não só conquistar a sua admissão no Salão de Paris, como e sobretudo, algum
premio; com estes elementos, a sua carreira aqui estará garantida e só de si dependerão a sua
gloria e o seu futuro.
Admissão à École des Beaux-Arts e ao Salon de Paris, e algum prêmio
obtido na Europa eram as condições julgadas necessárias para garantir o sucesso
de uma carreira artística no Brasil. Visconti, em julho de 1893 havia alcançado a
primeira e em maio do ano seguinte a segunda, tendo duas obras suas admitidas
no Salon de la Société des artistes français: A leitura e No verão. Seguiu expondo
ainda neste salão, em 1895: o Retrato de Alberto Nepomuceno e As comungantes,
esta última pintura reproduzida no catálogo oficial; e em 1896: A convalescente e
Nu deitado. No ano seguinte, passou a expor no Salon de la Société nationale des
beaux-arts, com as pinturas: Sonho místico e Fatigada, esta última reproduzida
em Le nu au Salon, acompanhada de duas poesias nela inspiradas, mas com o
título trocado. Em 1898, expôs no mesmo salão A Recompensa de São Sebastião; e
em 1899: O beijo e Gioventù, esta última também reproduzida no catálogo oficial
do Salão.
Visconti morou e trabalhou em Paris ainda por outros dois períodos.
Em 1905, lá estava ele, desde o ano anterior, quando recebeu a encomenda das
primeiras decorações do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o que lhe possibilitou estender sua permanência na Europa até 1907. Assim, expôs ainda no Salon
de la Société nationale des beaux-arts: em 1905, os retratos de Nicolina Vaz de
Assis e de Mlle B. Lindheimer, este último, reproduzido no catálogo oficial do salão; em 1906, Maternidade e Jardim de Luxemburgo; e em 1907, A carta e outro
Jardim de Luxemburgo, não identificado.
Mas Visconti participou ainda, com sucesso, desde o primeiro ano de
seu estágio na Europa, de mostras internacionais, como em Chicago, de maio a
outubro de 1893, recebendo uma medalha por oito paisagens a óleo, realizadas
no Brasil, antes de sua viagem, entre elas, pelo menos uma das várias Lavadeiras
que ele realizou em 1891. São paisagens de cunho bem brasileiro, realizadas sob o
impacto das discussões que precederam a reforma da Academia, e as orientações
dos jovens professores, tanto na experiência do Atelier Livre, em 1890, quanto
depois, na recém-criada ENBA, Entre elas possivelmente, Mamoneiras, Dia de
sol (Andaraí Grande) e com certeza, Uma rua da favela.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Outras mostras internacionais das quais Visconti participou com destaque foram: A Universal de Paris, em 1900, com Gioventù e Oréadas, conquistando por elas uma Medalha de prata, além de uma Menção honrosa na Seção de
Arte Decorativa e Artes Aplicadas. Em 1904, em Saint Louis, obteve ainda maior
sucesso: uma Medalha de ouro em Pintura por Recompensa de São Sebastião; uma
de bronze por trabalhos em aquarela; e foi o único latino-americano a conquistar
uma Medalha na categoria especial de “Objetos originais de artesanato”, apresentando, provavelmente, as peças expostas primeiramente na Individual de Visconti em São Paulo, e depois na 10ª EGBA, ambas em 1903, com o título “Cerâmica
Artística Nacional”. Ainda em Santiago do Chile, participou da Exposição Internacional que inaugurava o novo edifício do Museo Nacional de Bellas Artes,
em setembro de 1910, com Maternidade, Sonho místico e Retrato de Nicolina Vaz
de Assis, além de 14 trabalhos na categoria Arte Decorativa. Uma lista das obras
compradas pelo governo do Chile, para o museu que se inaugurava, mostra que
o quadro Sonho místico foi o único brasileiro adquirido, na ocasião, pela quantia
de 4.500 francos.
Suas obras circularam também, reproduzidas em periódicos estrangeiros. Além dos citados catálogos parisienses, ainda na Revue du Brésil nº 1, de
1896, que estampou a cópia que Visconti fez de Velásquez, como obrigação de
pensionista, e cuja capa teve desenho seu. A L’Illustration de novembro de 1904
publicou em Paris um artigo sobre os projetos de selos com os quais Visconti
venceu o concurso dos Correios, e estampou doze deles. A The Studio, de Londres, reproduziu em junho de 1902 Gioventù e Recompensa de São Sebastião; e
em março de 1906 o Retrato de Nicolina Vaz de Assis. Na coleção Louisiana and
the fair, sobre a exposição de Saint Louis de 1904, publicada no ano seguinte,
o volume VII foi totalmente dedicado à arte, e nele aparece a reprodução de A
convalescente. Visconti fazia-se conhecer assim, ainda que modestamente, não só
no contexto americano, mas também na Europa.
Esse sucesso, observado principalmente no início de sua carreira, foi
grandemente devido a certa “filiação” de Visconti a movimentos artísticos europeus da passagem do século XIX para o XX. Foram, inclusive, notadas em suas
obras ressonâncias das teorias de John Ruskin, Jean Delville e Hippolyte Taine.
O primeiro foi citado em críticas sobre obras de Visconti escritas por Gonzaga
Duque e Morales de los Rios, em 1901 e 1902, respectivamente, e o segundo por
Araujo Vianna, em 1901.
Mas o autor que mais se demorou nessas observações foi um paulista
anônimo, com relação à exposição individual que Visconti apresentou em São
Paulo, em março de 1903. Ele inicia sua crônica com uma longa explanação sobre as teorias de Taine e coloca que, dentre a atual geração de artistas brasileiros
não havia nenhum cultor de mérito para a chamada Arte Nova, mas que agora
surgia Visconti que “parece querer firmar a sua individualidade, alistando-se na
nova escola”.
Desde o nú, feito no estylo antigo, copiado simplesmente do modelo, sem idealisações, até a
figura mystica da Fé, estylisada e feita com a gamma da palheta da escola nova, desde as paizagens frescas, tocadas umas com delicadezas de Ruysdael, outras com a robustez de Turner,
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X X X Colóquio CBHA 2010
até ás manchas vaporosas, procurando a poesia do effeito de preferencia ao desenho, e por
fim, os seus trabalhos de arte decorativa, que denotam o enthusiasmo de um temperamento
de artista, procurando dar á sua arte um intuito de acção social, ou moral, emfim, todos os
trabalhos expostos mostram, para quem saiba dignamente examinal-os, a historia de uma
alma de artista rica de sentimento, em busca do seu ideal, o progressivo desenvolvimento de
um requintado temperamento artistico. [...]
Sem lançar mão das extravagancias que caracterisam a preoccupação morbida do fazer novo,
das contorções angustiadas do desenho, o exagero e a furia da movimentação das figuras, a
orquestração violenta do colorido, imprimindo, em vez disso, em quasi todos os seus trabalhos,
aquella serenidade, aquella calma que, no dizer de Ruskin, é o attributo da mais alta especie
de artes, elle soube tirar effeitos maravilhosos, evocando em quem contempla as suas télas essa
impressão que nos leva a pensar mais na alma da creatura e na sua physionomia, do que no
seu corpo^F.
Alguns comentaristas chegaram a sugerir que esta seria sua adoção
definitiva. No entanto, Visconti não parou aí. Inúmeros foram os críticos que
apontaram, não só influências, como também analogias e convergências, entre
Visconti e os mais variados artistas estrangeiros: Botticelli; El Greco; Velásquez;
Rembrandt; Puvis de Chavannes; Rossetti; Burne-Jones; Millet; Whistler; Grasset; Mucha; Segantini; Manet; Monet; Renoir; Degas; Pissarro; Seurat; Signac;
Henri Martin; Redon; Klimt; Chagall, entre outros. Em algumas obras específicas, sua palheta foi comparada até mesmo à de Delacroix, Van Gogh ou Picasso.
Porém, as opiniões de vários desses críticos são diversas e por vezes contraditórias.
Comparando-se os comentários dos principais autores e confrontando-os à análise de algumas pinturas de Visconti, é possível constatar o grau de originalidade
deste mestre.
Fléxa Ribeiro, em 1935, propõe uma divisão da carreira de Visconti em
períodos, diferente daquela mais conhecida, proposta por Lygia Martins Costa
no catálogo da Exposição Retrospectiva de 1949, no MNBA. Ele destacou as
influências recebidas e a criação de uma linguagem particular:
Por mais de um titulo Elyseu Visconti tem destacado lugar na arte brasileira. E talvez a caracteristica mais empolgante seja da technica. [...] Não seria difficil encontrar os altos de sua
evolução, nesse particular, em cinco estagios que poderiam ser assim classificados: a) periodo
inicial: caracterisa-se por influencias disciplinares que se reunem na expressão italo-francesa,
até 1890; b) periodo preraphaelita, mas de manifestação francesa, lado Rosa-Cruz, theoria
de Sar Péladan e pratica de Odilon Redon, até quase os ultimos annos do seculo; c) periodo divisionista (predominio decorativo) tendencia Seurat, Signac e particularmente Henri
Martin, a partir dos primeiros annos deste seculo, d) periodo impressionista (propriamente
dito), e que se divide ainda em duas phases: 1ª) ramo Manet, de feitio hespanhol, no sabor da
pasta por obscura interferencia de Velasquez; 2ª) ar livrismo, feição Claude Monet, e que em
diversas alternativas tem vindo até hoje, com applicação ora do divisionismo ora do impressionismo, conforme a natureza da pintura.
Mas por todos estes paises da technica, Visconti tem tido, em diversas linguas, a mesma expressão, ha mantido um cunho de evidente e inconfundivel individualidade. Taes variantes
constituem pesquisas, buscas ansiosas para encontrar a realidade profunda da vida. De tal
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X X X Colóquio CBHA 2010
sorte não se trata de um ecletismo de sentimento, como succede com os multifarios imitadores
que apenas procuram ludibriar o observador recompondo com certa habilidade o que os outros já viram, sentiram e exprimiram... [...]
Elyseu Visconti é um pintor optico, quero dizer que para elle primeiro se manifesta a côr e só
depois a linha. As formas são manchas coloridas, antes de serem estructuras desenhadas. [...]1
Carlos da Silva Araujo, em seu discurso de homenagem póstuma a Visconti, proferido na Academia Carioca de Letras, em 1945, contou que as decorações do mestre no Teatro Municipal marcaram sua adolescência, e assim ressalta
suas analogias:
Nos intervalos [...], quedava-me a mirar, a sentir, a formar o próprio sentimento estético, nas
figuras deliciosas do plafond ou do frontal do Teatro, a passarem, de leves contornos, como as
de um sonho maravilhoso, sôbre o esplendor paisagístico da Serra dos Órgãos. [...]
E porque atribuo às emoções iniciais trazidas à minha estesia pelo pincel de Visconti os sentimentos que viria a experimentar mais tarde diante dos pintores impressionistas ou daqueles
que precederam ao seu movimento (Chabas, Degas, etc.) ou dos que sofreram a influência
mais direta de sua ânsia de criação, de suas pesquisas, filiei, inversamente, a êsses artistas
renovadores a criação magnífica de Visconti, particularmente da que êle mesmo chamou sua
segunda fase e que, sem menor estima pelo resto de sua obra, eu direi: a gloriosa^F.
A grande Retrospectiva de Visconti, inaugurada em novembro de 1949,
no MNBA, produziu vários excelentes textos críticos, porém, o mais denso e
longo talvez seja o de Mário Pedrosa, publicado em janeiro do ano seguinte.
Ele analisa detalhadamente as influências que Visconti recebeu, ao longo de sua
carreira, já esquematizadas por Fléxa Ribeiro quinze anos antes, e demonstra
claramente sua predileção pelo período final:
Êste se caracteriza pela luminosidade crescente das paisagens, palpitantes nas cinzas brumosas
da atmosfera. Se os retratos, entretanto, não se harmonizam com as preocupações do paisagista de Teresópolis, todo entregue à captação do ar vaporizado da serra, os auto-retratos em
compensação se ajustam com as mesmas preocupações luminísticas. [...] Nos auto-retratos [...]
e em alguns retratos da espôsa, a veia lírica colorística prossegue desimpedida. Parece que
em se tratando de si próprio, de sua própria efígie, não se acanha em tratá-la com a mesma
matéria pictórica dos fundos. E assim êle introduz na carnação do rosto os elementos multicolores não encontrados na natureza física nem na tradição do gênero. [...] O que importa é
obter o máximo de intensidade cromática. Empresta, assim, às carnes de certos auto-retratos
a riqueza dos tons contrastados, sobretudo os verdes e rosas. Delacroix já empregara processo
semelhante nas decorações para o Senado e a Câmara francesa. Portinari também se utilizou
dêsses toques contrastados e das mesmas harmonias em verdes e rosas para algumas das cabeças
mais belas da sua Missa (Edifício do Banco da Boa Vista). Verificamos agora que, já muito
antes, Visconti lançara mão do mesmo recurso com muito mais refinamento e individualidade. Êle alcança aqui a sincronização entre o sêr humano e a natureza ambiente.2
1
Fléxa RIBEIRO. Os Mestres da Arte Brasileira: Elyseu Visconti e sua technica. Illustração Brasileira,
Anno XII, nº 7. Rio de Janeiro, nov 1935, p. 19, 20.
2
Mario PEDROSA. Visconti diante das modernas gerações. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1º jan
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X X X Colóquio CBHA 2010
Vale ressaltar ainda que os mesmos efeitos foram empregados também
em alguns retratos de sua família. Em outro trecho, Pedrosa chega a afirmar:
“Visconti não é um plástico, é um sensualista da côr. Seu desenho é insignificante”. Porém esta última assertiva não se pode verificar em toda a sua obra. Carlos
Cavalcanti, que escreveu sob o impacto da exposição de Visconti no MNBA em
1967, aborda a questão de maneira mais ampla. Comentando as diversas correntes que influenciaram a obra de Visconti, coloca que os pré-rafaelitas ingleses
pecaram pelo excesso de erudição histórica e espírito literário. E acrescenta:
O brasileiro, ao contrário, primou pela sensibilidade e imaginação. Criou corpos virginais
em movimentos gráceis que se desenvolvem em envolventes arabescos, certamente dançantes,
mas, sobretudo, musicais. Poucos souberam captar e expressar, sob formas modernas, num
linearismo floral “art-nouveau”, o espírito do pré-renascentismo florentino [...].3
Em seguida, ao falar da fase impressionista de Visconti, compara-o também aos expoentes do movimento: “Mostra-se tão seguro na técnica e autêntico
na expressão que pode ser pôsto no mesmo plano dos mestres dessa pintura de
adoradores do Sol, que começa no lírico Monet e acabará no científico Seurat”.
Narra então o depoimento do fotógrafo que registrou as pinturas para a reprodução junto ao texto: “Tudo flui [...], tudo sem contornos definidos, parecendo
fotografias fora de foco”. E ao ressaltar que este seria o melhor elogio ao impressionismo viscontiano, conclui:
Pois veja o leitor que a modernidade de Visconti está também nessa versatilidade, tão característica do pintor contemporâneo. Ainda ontem morria de amores pela linha na sua paixão
botticelliana. Agora, embriagado de luz, está destruindo a linha.
E para terminar, ao justificar o título do seu artigo, o autor compara
Visconti a outro mestre francês:
Não se acha um vinco de tristeza ou de preocupação no seu mais de meio século de olhar a
vida. A humanidade e a natureza que nos deixou são alegres e felizes. Nesse ponto é um Renoir, outro que soube pintar as alegrias da vida e, sem cessar, a família, durante outro tanto
meio século.4
Porém, o desembargador Hugo Auler, crítico de arte que na juventude
fora também jornalista, foi quem se dedicou mais a explicar a linguagem pessoal
de Visconti. Um tanto exagerado e enfático, provavelmente influenciado pelos
discursos jurídicos, compara Visconti aos mais importantes artistas europeus de
todos os tempos. Provavelmente, Auler foi o primeiro a declarar: “A tela ‘Gioventù’ de Elyseu Visconti equipara-se à ‘Gioconda’ de Da Vinci, pelo que tem de
1950, p. 10.
3
Carlos CAVALCANTI. Visconti, o pintor da alegria. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 23 set 1967, p. 30.
4
Idem, p. 31.
412
X X X Colóquio CBHA 2010
sensibilidade e de composição”5 – analogia que será repetida por outros autores.
Na segunda parte do seu artigo, Auler começa por expor as teorias impressionistas e a intenção de Cézanne de restabelecer a forma, diluída naquela estética pela
luz e pela cor, e prossegue com o cotejo:
Participando ativamente da vida artística e cultural da França, o mestre Elyseu Visconti
alargou a teoria cezaniana, por isso que, para não prejudicar a forma e o relêvo, resolveu
conjugar o linearismo de Botticelli e de Delacroix com o divisionismo das côres e dos tons [...]
Elyseu Visconti concebeu e executou o plafond do Teatro Municipal, no qual a superposição
dos planos faz lembrar El Greco; a movimentação dos nús femininos envoltos em panejamentos translúcidos com cintilações de prata e ouro, esvoaçando, suspensos, no ar, dá-nos a poética
de Chagall com a vantagem de apresentar um inédito requinte de acabamento; as bailarinas
com suas roupagens transparentes têm mais leveza e movimento do que as de Degas, e o
redemoinho das linhas concêntricas sob o fundo de tons pastel, rosa e azul, a relembrar um
Van Gogh dotado de serenidade e de equilíbrio espirituais, permitindo a percepção de mais
colorido, luminosidade, vibração e ritmo vital^F.
Descontando-se alguns excessos, Auler traz uma contribuição relevante,
ao esboçar uma descrição das adaptações feitas por Visconti para chegar a um
“impressionismo próprio”.
E quando afirmamos que criou o seu impressionismo é que temos para nós que o mestre
imortal soube, como ninguém, conjugar a perfeição da forma à plenitude da côr em tôdas as
suas decomposições para que os valores plásticos de suas obras tivessem a maior organização
sensorial. Concebeu as formas e a sua diluição como algo que surge do instinto e da emotividade através do desenho, mas fez com que a estrutura linear, o linearismo botticeliano que êle
submeteu a uma revisão substancial, fôsse absorvida pela riqueza da côr.^F
É a constatação de que Visconti se utilizou da técnica impressionista
para atender a uma necessidade de expressão muito própria, para conseguir os
efeitos de luminosidade, transparência, leveza e iridescência, mas sem chegar à
dissolução da forma, preservando o desenho, que sempre lhe foi muito caro.
Alcançou assim a uma linguagem pessoal com a qual se identificam suas obras.
Para Mário Barata, Visconti, “Artista em grande parte europeu – e disso acusado algumas vêzes – passou cêrca de 20 anos na França. Mas os longos
períodos brasileiros também contribuiram para forjar a sua visualidade”^F. Ao se
apropriar de certos modelos de produção e significação, experimentando-os livremente em diversos momentos de sua carreira e combinando-os a uma linguagem
muito particular, de forma a conseguir com eles os efeitos desejados à expressão
de sua personalidade e visão de mundo, Visconti os transformou em uma coisa
nova. Ele produziu soluções formais peculiares, cujo emprego em sua produção
alternava constantemente com técnicas tradicionais, de acordo com seu objetivo
específico, o que confundiu diversos de seus comentadores, que pretenderam, em
vão, determinar uma evolução linear em sua carreira.
5
Hugo Auler. Eliseu Visconti, precursor do modernismo no Brasil (I). Correio Braziliense (Caderno Cultural). Brasília, 14 out 1967.
413
X X X Colóquio CBHA 2010
Lavadeiras (1891)
Eliseu Visconti
Ost.; 70 x 100 cm; coleção particular, RJ.
Foto: Mirian N Seraphim.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Detalhe de A passagem do Dia (1908)
Eliseu Visconti
Ost.; teto da platéia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Foto: Mirian N. Seraphim.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Retrato de Yvonne (c.1930)
Eliseu Visconti
Osm.; 35 x 26,5 cm; coleção particular, CE
Foto: Mirian N. Seraphim.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Le Breton, os ideólogos
e o Instituto de França:
modelos artísticos
para o Brasil
Paulo M. Kühl
UNICAMP
Resumo
O artigo examina como a atividade de Le Breton na Décade Philosophique se articula com as propostas dos Ideólogos e do Instituto
de França, esclarecendo qual era o projeto para as artes e qual papel
estas teriam na sociedade. Mostra também que a combinação entre
economia política, literatura de viagem e as artes é importante para
se compreender a atuação brasileira de Le Breton, especialmente
no manuscrito sobre o estabelecimento da escola de artes no Rio
de Janeiro.
Palavra Chave
J. Le Breton; Décade Philosophique; Artes
Abstract
The paper examines how Le Breton’s activities in the Décade Philosophique relate to the Idéologues and the Institut de France, explaining their project for the arts and the purpose they should
have in society. It also shows that the combination of Political
Economy, travel literature and the arts is important to understand
Le Breton’s initiative in Brazil, especially in his manuscript letter
on the constitution of an art school in Rio de Janeiro.
Keywords
J. Le Breton; Décade Philosophique; Art
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X X X Colóquio CBHA 2010
A mais bela empresa que resta a fazer sobre o globo consiste em dar a liberdade aos povos
submissos; em difundir as artes e as luzes nas regiões que delas estão privadas; em estabelecer
relações fáceis e naturais entre os povos e suas necessidades; em melhorar tudo o que existe,
substituindo os falsos cálculos da avidez e da ambição pelos liames das reais conveniências.
Joachim Le Breton
Décade Philosophique, n. 18, 30 Ventôse, An 6 (10/03/1798), p. 530.1
No mundo das artes e da história da arte no Brasil, a produção intelectual de
Joachim Le Breton é conhecida sobretudo pelo chamado “Manuscrito inédito”,
traduzido por Mário Barata e publicado em 19592 . Há também um pequeno
livro sobre a vida de J. Haydn, publicado no Brasil em 1820 e que vem recebendo a atenção de pesquisadores, sobretudo nos últimos dez anos3. O nome de Le
Breton, no Brasil, está indissociavelmente ligado à vinda dos artistas franceses,
à tentativa de organização de uma “dupla” escola de artes no país e à história de
tal empreitada. As diversas questões relativas ao tema vêm sendo constantemente
debatidas pela literatura nos últimos cinquenta anos e centram-se, no mais das
vezes, nos últimos anos da vida de Le Breton. Pretendo, neste artigo, investigar
um momento anterior de sua vida intelectual, tentando estabelecer relações com
aquilo que Le Breton propôs-se a realizar no Brasil.
Nos anos como Secretário Perpétuo da Classe de Belas-Artes do Instituto de França, de 1803 a 1816, Le Breton produziu uma série de textos (14 elogios
ou notícias) sobre a vida de artistas, na maioria membros do Instituto; além desses, de sua autoria são também os relatórios sobre o estado das artes na França.
É neste período que vemos o autor dedicar-se especificamente a temas ligados às
artes; antes disso, quase nada em sua produção intelectual, indicava uma relação
mais próxima com as artes. O que interessa aqui, mais especialmente, é uma
fase ainda anterior, quando em um conjunto de textos podemos acompanhar o
percurso intelectual de Le Breton.
A primeira publicação de sua autoria de que se tem notícia é um pequeno volume que se destinava ao ensino de lógica e retórica4, quando Le Breton
ainda pertencia à ordem dos Teatinos e ensinava retórica em Tulle. Tampouco
é este momento que interessa, mas sim, uma etapa seguinte, quando o autor se
tornou um dos sócios fundadores5 e redator da revista La Décade Philosophique 6
1
Todas as traduções são de minha autoria.
2
Carta ao Conde da Barca, datada de 12/06/1816. In: Barata, Mário. Manuscrito inédito de Lebreton.
Sobre o estabelecimento de dupla escola de artes no Rio de Janeiro, em 1816. Revista do SPHAN, Rio
de Janeiro, n. 14, p. 283-307, 1959. A segunda versão da mesma carta, datada de 09/07/1816, foi parcialmente publicada por E. R. Peixoto. In: Exposição Le Breton e a Missão Artística Francesa de 1810.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Museu Nacional de Belas Artes, 1960, p. 7-27. Estou
trabalhando na transcrição dos manuscritos originais, em francês, que estão no Arquivo Histórico do
Palácio do Itamaraty (Rio de Janeiro).
3
Notícia histórica da Vida e das Obras de José Haydn. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1820 (edição
moderna, São Paulo: Ateliê, 2004).
4
LE BRETON, Joachim. La Logique adaptée à la Rhétorique. Paris: Pichard, 1788.
5
N. de Chamfort, que morre antes de o primeiro número ser publicado; P.-L. Ginguené, J.-B. Say, A.
Duval, F. Andrieux, G. Toscan e J. Le Breton.
6
O periódico existiu entre 29/04/1794 e 17/09/1804.
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e quando, a partir, de 1795, iniciou suas atividades como membro do Instituto
de França.
As duas atividades estavam interligadas através dos Idéologues: o Instituto era um projeto da Idéologie e a Décade, seu veículo privilegiado. É necessário,
antes de tudo, destacar a sombra de esquecimento que se estendeu sobre essa
corrente filosófica, sobre seus membros e mais especialmente sobre Le Breton.
A história da filosofia acabou rechaçando não apenas as proposições dos ideólogos, mas terminou também por sepultar sua história. São vários os motivos de
tal esquecimento: a oposição às teorias kantianas, a proximidade com o poder
político (até o início do Consulado), posteriormente a perseguição de Napoleão,
e até mesmo o uso da palavra “ideologia”, que por tantas transformações passou
nos séculos XIX e XX. Existem importantes exceções na literatura: dos estudos
pioneiros de Picavet7 e Guillois8, até os de Kitchin9, Régaldo10, Gusdorf11, Moravia12, e, mais recentemente, Boulad-Ayoub13. Mesmo dentre esses, a preocupação principal esteve ou em questões de filosofia moral ou de economia política,
nunca exatamente nas artes e, no mais das vezes, os comentários sobre Le Breton
são apenas passageiros. Se os Idéologues aparecem como “menores” dentro de
uma história mais tradicional da filosofia, Le Breton seria um “menor” dentre os
“menores”14. Para J. Kitchin, ele é um “intelectual sem originalidade mas muito
capaz em sua função de secretário”15; para Moravia, “não era um personagem
de grande estatura intelectual”16 . Como se sabe, o nome de Le Breton esteve
associado a uma polêmica que, de algum modo, também o levou ao esquecimento. Trata-se da importação (transporte, “repatriamento”) das obras de artes dos
países conquistados pela França. Desde 1796, Le Breton é um grande defensor
da transferência das obras para Paris e da criação do Muséum. Se Quatremère
de Quincy, no mesmo ano, quando publica suas Lettres à Miranda, está do lado
derrotado, a partir de 1816 a situação se inverte. Assim, tanto para o mundo
artístico francês da época quanto para as mais recentes teorias de preservação e
7
Picavet, François. Les idéologues. Essai sur l’histoire des idées et des théories scientifiques, philosophiques, religieuses, etc., en France depuis 1789 [1891]. New York : Burt Franklin, 1971.
8
Guillois, Antoine. Le salon de Madame Helvétius: Cabanis et les idéologues. Paris: Calmann Lévy,
1894.
9
Kitchin, Joanna. Un journal “philosophique”: La Décade (1794-1807). Paris: Lettres modernes, 1965.
10
Régaldo, Marc. Un milieu intellectuel: la Décade philosophique (1794-1807). Lille: Atelier Reproduction des thèses, Université de Lille III, 1976.
11
Gusdorf, Georges. La conscience révolutionnaire. Les idéologues. Paris: Payot, 1978.
12
Moravia, Sergio. Il tramonto dell’Illuminismo. Filosofia e politica nella società francese (1770-1810).
Bari: Laterza, 1986.
13
Boulad-AYOUB, Josiane. La Décade philosophique comme système, 1794-1807. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2003. 9 v.
14
Dos Idéologues, os nomes lembrados mais constantemente talvez sejam os de Volney, J.-B. Say, P. Cabanis; das outras gerações, Laplace, Pinel e o último filho ilustre, H. Taine.
15
KITCHIN, op. cit., p.15.
16
Moravia, op. cit., p. 251. O autor reconhece, porém, a “notável cultura” e a “brilhante carreira” de Le
Breton.
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X X X Colóquio CBHA 2010
de conservação do patrimônio, Le Breton estaria numa posição equivocada das
discussões, o que mais uma vez contribuiu para seu esquecimento17.
Como um dos proprietários e membros fundadores da Décade Philosophique, Le Breton trabalhou intensamente na publicação. Calcula-se que a Décade tenha tido por volta de 300 colaboradores, dos quais cerca de uma centena
foram identificados18. As assinaturas dos artigos, em geral apenas com iniciais, às
vezes com pseudônimos, só aparecem a partir do tomo V, (Germinal-Prairial do
ano III) e não são nem constantes nem parecem ser sistemáticas. É no n. 34, 10
germinal (30/03/1795), que aparece o primeiro artigo com a assinatura L. B. : na
rubrica Economia Doméstica, “Sur l’usage de la nourriture végétale”19. Seguem-se diversos artigos de Le Breton sobre os mais variados temas: alimentação de
animais, conquistas na agricultura, maneiras de se fazer sabão, panificação do
arroz, comentários sobre tratados de agricultura, fabricação de esterco, etc. Tais
temas podem soar “deslocados” num jornal “filosófico, literário e político”, mas a
ênfase na capacidade de organização das sociedades é elemento importantíssimo
para a teoria dos ideólogos e a missão do periódico era constantemente repetida:
“espalhar a luz filosófica sobre todos os temas”20. Muito podemos depreender
desses primeiros textos de Le Breton na Décade, e o princípio que mais se destaca
é a confiança quase inabalável na razão e na organização e planejamento das
atividades humanas. Este otimismo não deve ser confundido com ingenuidade;
funda-se, isto sim, na própria doutrina dos Idéologues e nos grandes projetos propostos para a sociedade francesa pelo Instituto.
Vários artigos de autoria de Le Breton continuaram a aparecer na Décade, sob as mais diversas rubricas: economia doméstica, economia rural, economia
política, economia social – vocabulário revelador e há muito em desuso – ciências
aplicadas às artes, agricultura, filosofia, estatística, geografia e viagens. Mesmo
nestes dois últimos casos, quando o autor resenha publicações, a ênfase sempre
recai sobre o que poderia ser feito para melhorar determinadas condições problemáticas: assim, preocupações que chamaríamos de “ecológicas”, ou ainda com
uma alimentação natural (vegetariana), ou até mesmo sobre a questão judaica na
Europa, sobre a população e a economia do Oriente Médio, ou sobre o destino
das colônias americanas e africanas, surgem como uma oportunidade para se
encontrarem soluções. E aquelas obras com uma abordagem histórica, por exemplo, sobre os sistemas marítimos na Europa ou os anais de agricultura, fornecem
subsídios para uma reflexão e propostas de ação.
Até 1797, apenas dois artigos de Le Breton tratam diretamente das
artes: no primeiro deles21, sob a rubrica “Política – Negócios estrangeiros”, Le
Breton comenta, em notas, as respostas às objeções contra a “importação” de
17
Há exceções, como as várias publicações de E. Pommier. Ver também Leniaud, J.-M. Joachim Le Breton
et Antoine Quatremère de Quincy, secrétaires perpétuels de l’Académie des Beaux-Arts: deux conceptions divergentes du musée. In: Caracciolo, M. T.; Toscano, G. (Org.). Jean-Baptiste Wicar et son
temps, 1762-1834. Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2007, p.79-91.
18
Cf. BOULAD-AYOUB, op. cit., v. 1, p.31.
19
p.16-18.
20
N. 35, 20 Fructidor, An VII, (06/09/1799), p.543.
21
N. 81, 30 Messidor, Ano IV (18/07/1796), p.181-186.
420
X X X Colóquio CBHA 2010
obras de arte da Itália. O autor enuncia uma idéia central para diversos escritores
daquele momento:
Já é tempo que todos os monumentos do gênio dos gregos abandonem uma terra que não é
mais digna de possuí-los. Eles foram criados em um país livre: somente na França podem hoje
reencontrar sua pátria.22
Um ano depois, na rubrica “Economia Social”, Le Breton publicou um
artigo intitulado “Da influência da liberdade sobre as letras”23, no qual defende
veementemente que o governo republicano seria o mais favorável às ciências e à
artes. Para o autor, nesse regime ninguém deveria submeter-se aos caprichos de
um príncipe e, acima dos artistas haveria apenas “a superioridade do gênio, do
talento ou das virtudes”24. Para provar sua tese, faz uma série de considerações
sobre Genebra, com uma longa lista de homens das ciências, da literatura e das
artes na cidade. O tema aqui é a relação entre a liberdade e a produção científica
e artística, tema aliás caro para os ideólogos e para a Décade Philosophique.
Os artigos sobre as artes na Décade podem ser agrupados da seguinte
forma: as artes mecânicas, as belas-artes, literatura, festas, a crítica dos espetáculos e a seção de variedades. O item mais constante é certamente a crítica dos
espetáculos: em todos os números da revista, há pelo menos um artigo sobre
teatro ou ópera, ou sobre ambos, em geral de autoria de “L.C”. (La Chabeaussière). A rubrica das artes mecânicas também é constante, trazendo notícias de
descobertas, ou ainda das escolas relacionadas às artes e ofícios. Com relação às
artes do desenho, há uma flutuação, já que a supressão da antiga academia de
belas-artes (1793) havia desestruturado o sistema artístico francês. Mas na Décade surgem considerações sobre salões e outras exposições em Paris. E na rubrica
“variedades” percebe-se o grande interesse pela “importação” e exposição das
obras vindas da Itália.
Amaury Duval é o autor que primeiramente se dedicou às questões ligadas às artes do desenho, mas não apenas a elas. De artigos sobre moda e sobre
as perucas, passando pela literatura de viagem ou por obras literárias, o autor,
às vezes sob o pseudônimo de Polyscope, fez uma série de considerações sobre os
caminhos mais recentes da arte francesa, sobre os retratos e sobre a pintura histórica. As grandes questões são quase sempre as mesmas: a emulação, como ponto
central para a produção artística, a referência ao antigo (sempre sob o crivo de
Winckelman) e a imitação da natureza. São preceitos poéticos constantemente
repetidos, mas que se combinam com uma preocupação com a reorganização do
mundo artístico na França, discutido nas relações entre arte e sociedade.
22
Nota, p. 184.
23 N. 36, 30 Fructidor, Ano V (16/09/1797), p.519-528.
24
LE BRETON, op. cit., p.519.
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X X X Colóquio CBHA 2010
Artigos do próprio Duval, mas também de J.-B. Say, e até mesmo de Le
Breton, além da publicação do livro de Chaussard 25, e as resenhas que recebeu
na Décade, versam sobre a relação entre a nova liberdade, a produção artística e
também sobre possíveis maneiras de regular as atividades ligadas às artes. A premissa básica era de que somente em uma sociedade livre as artes atingiriam seu
esplendor; os autores afirmavam então que as artes na França melhoraram após a
Revolução e tenderiam a progredir cada vez mais, rumo à perfeição. Os extratos
do De la Littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, de
Mme. de Stael, e os comentários sobre o livro também insistem nas relações entre
a sociedade e as artes.
Existe certa desconfiança, sobretudo durante o Terror, com relação ao
papel que o estado deveria ter, não no fomento à produção, mas no controle dela.
Já sob o Diretório, a idéia era de que o estado deveria fazer todo o possível para
que as artes pudessem florescer, reestruturando o ensino, promovendo um contato constante com a “boa” produção artística e também realizando encomendas.
A idéia central era sempre a da emulação: somente em contato com a grande
produção artística, as novas produções poderiam atingir a perfeição, superando
os antigos. A noção de progresso era uma constante para os ideólogos e pode ser
reconhecida em todas as atividades humanas tratadas na Décade; a emulação
não era apenas artística, mas aparecia também na agricultura, no comércio, na
navegação, na indústria, etc. No caso das artes, eram as exposições e salões, o
novo Museu, as pinturas italianas26 , gravuras que reproduzissem desenhos de
qualidade e que fossem espalhadas pelos departamentos, as esculturas antigas, os
moldes em gesso dessas mesmas esculturas a serem distribuídos por toda a França, a possível reorganização da Academia Francesa de Roma, e outros projetos,
que estimulariam os artistas. Note-se que o próprio Instituto estava interessado
em todas essas questões; a Classe de Literatura e Belas-Artes propôs (nos anos
VII e VIII) como tema de um concurso a seguinte questão: “Quais foram as causas da perfeição da escultura antiga e quais seriam os meios para atingi-la”. Não
se tratava apenas de uma discussão teórica, mas sim de uma análise histórica que
desse subsídios para a ação do estado.
Havia nas críticas da Décade, no início, certa desconfiança com relação
ao retrato, que depois acabaria se dissipando; e o gênero privilegiado era sempre
a pintura histórica. Chaussard, comentando a exposição de 1798, queixava-se:
“Contam-se poucos quadros de história, gênero que mais convém encorajar em
um estado livre, porque ele se liga às instituições e aos costumes”27 – ressaltando
assim a primazia da pintura histórica.
25
A primeira frase é emblemática: “Até hoje consideramos as artes como ornamentos do edifício social; elas
fazem parte de suas bases”. CHAUSSARD, P., Essai philosophique sur la dignité des arts. Paris: De
l’imprimerie de Sciences et Arts, 1798, p.3.
26
“Tremei, pintores franceses! Vossos juízes chegaram. O salão atual é um tribunal diante do qual sereis
um a um forçados a comparecer. Vossos quadros serão comparados com esses tipos de belo (...) O povo
que jamais tivera sob os olhos tantas e tão belas produções das famosas escolas da Itália logo começará a conceber o que deve ser a pintura”. Duval, Amaury. Beaux-Arts. N. 21, An VI, 30 Germinal
(19/04/1798), p.154.
27
N. 23, 20 Floréal, An VI, IV Trimestre, (09/05/1798), p.276
422
X X X Colóquio CBHA 2010
Reconheço ser problemático extrair de uma variedade de artigos publicados na Décade Philosophique elementos gerais que, de algum modo, traduziriam o pensamento de Le Breton sobre as artes. De fato, tal empreitada enfrenta
uma série de obstáculos, mas alguns elementos constantes aparecem ao longo da
história da publicação, bem como em determinadas diretivas do Instituto e serão
reaproveitados por Le Breton quando da redação das duas cartas ao Conde da
Barca, com o projeto da dupla escola de artes para o Brasil. Podemos destacar:
1) a crença na organização de instituições que promovessem a instrução pública,
elemento fundamental para o desenvolvimento de qualquer sociedade; 2) a íntima relação entre as artes e a sociedade, com especial ênfase na liberdade como
elemento essencial da excelência artística; 3) a interligação das várias áreas do
saber; 3) a necessidade de criar-se um meio artístico que favorecesse a emulação;
4) a presença de modelos artísticos da antiguidade e das “escolas” italianas, referências maiores da história da arte; 5) a confiança de que transposição de obras
de arte e de modelos artísticos de um país a outro (Itália-França) traria grandes
benefícios e garantiria o progresso nas artes.
Com exceção da relação entre arte e liberdade, os outros itens podem ser
reconhecidos no projeto de Le Breton. Talvez justamente o elemento mais importante para garantir a excelência artística estivesse ausente no Brasil; na Décade, é
visível em todos os autores e textos a preocupação com uma noção de arte republicana, o que certamente entraria em confronto com aquilo que existia no Brasil
no início do século XIX. O tema nunca aparece nas duas cartas de Le Breton;
assim, a leitura delas nos dá a sensação de que a instauração de uma “dupla escola
de artes” era apenas uma questão de organização de instituições, sem levar em
conta tensões políticas ou mesmo do mundo artístico carioca daquele momento.
Para Le Breton, era necessário criar do zero um sistema de ensino artístico no Brasil; o máximo que ele parecia reconhecer, pelo menos no projeto, era a
presença de Manoel Dias como bom professor de desenho. Nem as obras de arte,
nem a arquitetura, nem o mobiliário, nem as pessoas, nada do que havia no Rio
de Janeiro fazia parte da discussão de Le Breton. Claro, podemos ver com clareza, a quase dois séculos de distância, tanto o que aconteceu com o próprio autor
na França quanto as variadas desventuras do funcionamento da escola de artes
no Rio de Janeiro, e concluir que o projeto era equivocado. Não em sua estrutura,
mas por desconsiderar elementos próprios da vida, da administração e da cultura
portuguesas. Assim, a transposição dos modelos, que parecia tão racional, encontrava obstáculos que mostravam na verdade os limites do próprio modelo.
Mas na comparação dos elementos propostos por Le Breton, exaustivamente apontados pela literatura, com o que se discutia em determinado meio
artístico e político na França, percebemos uma clara equivalência. Fica também
mais patente a insistência do autor em aspectos como a primazia da pintura histórica (e suas conseqüências no ensino), a necessidade de importar esculturas em
gesso, em criar exposições e estabelecer prêmios, a tão desejada viagem à Itália,
além, é claro, da proposta não realizada de uma escola de artes e ofícios. Neste
ponto, que pode parecer apenas como uma ação “visionária” de um recém chegado ao país, ecoam na verdade as propostas centrais dos ideólogos, do Instituto
e da Décade.
423
X X X Colóquio CBHA 2010
Poéticas pictóricas do tempo:
paisagens, anacronismos
e ruínas entre Europa e Américas
Dayane de Souza Justino
Mestranda / UFU
Renato Palumbo Dória
UFU
Resumo
A pintura ruinísta atinge seu ápice na Europa do século XVIII
como aviso moral e sintoma de uma angústia cultural, em alegorias
compósitas entre a paisagem e a história, evidenciando os desgastes
da matéria arquitetural. Nas Américas as ruínas ensejarão outros
olhares e interpretações. Na pintura brasileira as tópicas gerais da
paisagem assumirão importância crescente, chegando a uma produção contemporânea que reafirma, anacronicamente, novas poéticas das ruínas.
Palavra Chave
Anacronismo; pintura; ruína
Abstract
The ruinísta painting reached its apex in eighteenth-century Europe as a warning symptom of a moral and cultural anxiety in allegories built up on the landscape and history, showing the weakness of the architectural field. In the Americas the ruins will motivate other interpretations and looks. In the Brazilian painting,
the general topic of landscape will assume increasing importance,
reaching a contemporaneous production that reaffirms, anachronistically, new poetics of the ruins.
Keywords
anachronism; painting; ruins.
424
X X X Colóquio CBHA 2010
Pensar hoje as poéticas pictóricas do tempo é pensar a sobrevivência da ruína, em
conjuntos transversais de imagens e fragmentos heterocrônicos nos quais embaralham-se, em diferentes camadas de memória, as tradições representacionais e
as dicções contemporâneas. Idéia de sobrevivência que tanto implica na pintura
como passado, com seu lugar na tradição histórica, como também na passagem e
evocação do tempo como seus problemas poéticos, enfrentados na contemporaneidade pelo cruzamento de procedimentos pictóricos e outros dispositivos imagéticos (da fotografia e cinema à instalação e aos meios digitais), renovando-se as
poéticas pictóricas do tempo e da ruína. Contexto no qual muito das tradições
da imagem retornam, levando-nos a rever o próprio conceito de anacronismo,
com a ressignificação contínua de antigas formas, tanto em em pinturas-objeto
quase cenográficas (simulando fragmentos de superfícies arruinadas), quanto em
processos de apagamento nos quais as camadas pictóricas são também referências
às camadas de tempo e memória, incorporando tanto as marcas históricas e culturais quanto as dimensões biológicas do tempo: ele também artista, ele também
escultor pelos sedimentos e pátinas que deposita sobre as coisas, pelos desgastes
que provoca nos seres. Interseção de processos humanos e naturais da qual deriva
uma pintura matérica e vitalista, com seus campos de rastros e perdas, seus campos de batalhas, ambíguos por uma insubmissão e desordem apenas aparentes,
em superfícies investidas de nostalgias fabricadas, deslocando simbolicamente
experiências interligadas de distintas temporalidades. Pintura matérica que se
quer viva, orgânica, em movimento, condensando presente, futuro e passado
como “[...]fluxo contínuo da realidade ou da existência”, ou ainda como “[...]o puro
presente”1.
Haverão outras possibilidades de se articularem poéticas pictóricas do
tempo, para além do narrativo e do alegórico, em experiências quase antagônicas,
como as pinturas de datas de On Kawara: telas lisas e limpas, minimalistas e lógicas, em um contexto flexível quanto às próprias delimitações da pintura, a exigir
uma crítica capaz de suplantar a genealogia e de, simultaneamente, lidar com o
inescapével anacronismo das imagens contemporâneas. Âmbito no qual a mera
eleição da linguagem da pintura já pode soar como equivocado, por seu imanente
historicismo. Ainda potente contudo, a pintura se encontra não em contraponto,
mas junto às práticas artísticas atuais, nas quais podemos identificar recorrências
e possibilidades tanto da forma da ruína quanto da tópica mais vasta da passagem
do tempo. Perdida contudo uma especificidade que pôde ser mantida somente
até os limites do modernismo, a pintura operaria hoje no trânsito das linguagens,
como presença a manifestar-se tanto sob o formato convencional da tela quanto
através de outros dispositivos, inexistindo uma delimitação que a defina, como
transparece no trabalho do alemão Frank Thiel, cujas fotografias-pinturas tratam
dos desgastes e erosões das fachadas e interiores das arquiteturas modernistas,
levadas, junto às utopias que as erigiram, ao abandono e ao escombro (ou mesmo
condenadas a sobreviver como memorabilia no grande museu cultural que anuncia o século XXI).
1
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.617.
425
X X X Colóquio CBHA 2010
Novos ruinísmos animados também pelo apego à dimensão estética
da decadência das próprias linguagens – em um presente cético, descrente do
progresso e hesitante quanto às possibilidades da própria história – mas pertencentes a uma extensa família de imagens, remontando à pintura ruinista do
século XVIII, subgênero da pintura de paisagem européia que sofreria intensas
metamorfoses e adaptações nas Américas, não ocorrendo neste caso apenas o
transplante de uma tradição, mas o desenvolvimento de um outro olhar a partir
do contato dos artistas europeus com os vestígios arquitetônicos frequentemente
monumentais das civilizações precolombianas. Contexto de choque e encontro
de civilizações no qual José Maria Velasco produz, no México, as telas Pirámide
del Sol en Teotihuacán e Pirámides del Sol y de la Luna en Teotihuacán (óleos sobre
tela de 1878), nas quais ambas construções figuram em tonalidades terrosas, dialogando com os ocres mais claros das áreas cultivadas, em superfícies arquitetônicas escalonadas recobertas pela mesma vegetação esparsa de seu entorno, ainda
livres das sucessivas limpezas e restauros que sofreriam ao longo do século XX
– chegando a atualidade mais como monumentos do espetáculo turístico do que
como sítio histórico e arqueológico. No século XIX entetanto, confundindo-se a
arquitetura destas pirâmides com o conjunto maior da paisagem de que tomam
parte, estas edificações seriam percebidas e apresentadas, paradoxalmente, como
ruínas naturais, e não como vestígios concretos da presença milenar, no vale do
México, de uma complexa civilização2 . Promovido em 1877 a Professor de Paisagem e Perspectiva da Escola Nacional de Belas Artes na Cidade do México,
posição na qual estimula os alunos a pintar diretamente da natureza, Velasco
aprofundaria sua colaboração para a constituição de uma iconografia histórica
e arqueologica mexicana produzindo ainda a tela Baño de Nezahuacóyotl (óleo
sobre tela de 1878) e, já na esfera da história colonial, a tela Ahuehuete de la Noche
Triste (óleo sobre tela de 1885) – imagem do cipreste que Velasco figura como
personagem central desta paisagem histórica, enfatizando a corpulência de seu
tronco retorcido, em galhos-tentáculos centenários e resistentes, em diálogo com
a arquitetura religiosa do entorno. Cipreste de la noche triste que é um testemunho e monumento vegetal de diferentes culturas e tempos, como signo e vestígio
cósmico da ruína da própria conquista. Atenção para com as ruínas e vestígios
que era, porém, anterior à colaboração do artista para com o Museu Nacional do
México, como podemos verificar nas pinturas em que retratou as seguidas demolições de igrejas e conventos empreendidas pelo governo reformista de Benito
Juárez, após a promulgação em 1859 das leis que decretavam a separação entre
igreja católica e estado mexicano. Telas como Patio del ex convento de San Agustín
(óleo sobre tela de 1860); na qual o claustro religioso recentemente profanado
converte-se em cortiço; e Templo de San Bernardo (óleo sobre tela de 1861); teatro
moderno da ruína, emergindo da igreja em demolição um inesperado proscênio,
abrindo-se sobre a paisagem urbana em mutação.
2
Pinturas que seriam parte de um conjunto maior de obras análogas, realizadas no âmbito da colaboração
entre José Maria Velasco e o Museu Nacional do México: instituição fundada em 1831 para o estudo da
história natural e para a preservação das antiguidades mexicanas. Iniciada em 1877, esta colaboração começa com Velasco atuando como desenhista para o museu, no registro dos sítios arqueológicos, códices
e esculturas pré-colombianas.
426
X X X Colóquio CBHA 2010
No Brasil a tópica da paisagem assumirá importância crescente ao longo
do século XIX, não sendo possível, contudo, a constituição, como no México,
de uma efetiva poética da ruína. Mata Reduzida à Carvão, por exemplo, óleo
realizado em 1830 por Felix Emilie Taunay, nos remete a um outro tipo de olhar,
numa paisagem sem passado, sem história, cujos clarões que se abrem em meio
ao arvoredo apontam para a emergência do presente e para um porvir em plena marcha, no ritmo de uma nação em formação, que pensava nada dever aos
originários habitantes de seu território, então compreendido como pertencente
à floresta virgem a ser desbravada, sem fragmentos ou vestígios de complexos artefatos arquitetônicos nem grandiosos monumentos em pedra – únicos signos de
civilização dignos para uma concepção eurocêntrica de cultura. Produtivo pode
ser, porém, o exame das imagens que José dos Reis Carvalho realizou como pintor oficial da Comissão Científica de Exploração do Ceará, ocorrida entre 1859
e 1861 – aquarelas contemporâneas aos retratos de igrejas arruinadas realizados
por José Maria Velasco no México. Cearense formado pelo neoclassicismo da
Imperial Academia de Bellas Artes do Rio de Janeiro, onde foi aluno e colaborador de Jean Baptiste Debret, Reis Carvalho se revela aqui como estrangeiro em
sua própria terra, plasmando imagens por princípio científicas, mas plenas de
evocações românticas. Antropólogo da paisagem, Reis Carvalho focaliza nelas
o desencontro, permeado pela natureza, entre a edificação colonial religiosa, já
em desgaste, e a arruinada choupana indígena, erigida em barro, palha e madeira
– signos arquitetônicos distintivos de culturas antagônicas, e cujo cruzamento
produziria suas próprias fraturas e contínuas ruínas.
Aviso moral diante de modernidades vorazes, angústia ante o intangível: poéticas pictóricas da ruína e do tempo que fazem pensar a própria pintura
como ruína viva e resistente, como muro de um outro tempo sobre a qual ainda
se realizam novos apagamentos e inscrições. Parede constantemente “[...]invadida, asediada por las fotos y los clichés que se instalan ya en el lienzo antes incluso de
que el pintor haya comenzado su trabajo”, sendo errôneo supor que o pintor ainda
trabalharia sobre uma superfície blanca y virgen, pois ela “[...]está ya por entero investida virtualmente mediante toda clase de clichés con los que tendrá que romper”3.
Linguagem da pintura que, com suas camadas não apagadas pelo modernismo,
soa operar na contemporaneidade como um anacronismo em si mesma – numa
contemporaneidade também anacrônica, plena de ritornelos e resiliências. Ritornelos talvez necessários por serem capazes de atuar como “[...]centro estável e
calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos”4. Agenciam-se e resignificam-se
assim, na pintura contemporânea brasileira, as dimensões poéticas da ruína, seja
de modo mais evidentemente figurativo e alegórico, como em Adriana Varejão
(cujas pinturas-objeto recriam fragmentos de superfícies arruinadas), ou como
em Daniel Senise, em processos de apagamento e desaparição cujos rastros, perdas e vazios operam como resíduos e fantasmas indiretos da passagem do tempo,
ativando mecanismos de rememoração para além do formato “quadro”, distantes
de qualquer purismo ou transcendência, vinculados a uma tradição cujo manan3
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Lógica de la sensación. Madrid: Arena, 2002, p.21.
4
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Acerca do Ritornelo”, in Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. p. 115.
427
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cial de convenções e códigos foi desconstruído, fragmentado, havendo somente
um fio a ligar as representações alegóricas do tempo anteriores ao modernismo
aos novos modos pelos quais se vai significar e apresentar o tempo. Operação
mais de retirada do que de justaposição de novas camadas, de escavação, sob a
qual estão tanto os restos das tradições clássicas quanto os entulhos das utopias
modernistas. Operação para a qual a ruína é um signo conveniente, indicando
não apenas a melancolia diante do passado perdido mas também o fim do futuro, antevisto em 1796 na Imaginary View of the Grand Gallery of the Louvre in
Ruins, de Hubert Robert (óleo sobre tela, hoje conservado no próprio Museu do
Louvre) – cenário de um apocalipse romântico, no qual, apesar da destruição
extrema, a arte haveria de sobreviver, ainda que também como vestígio e ruína
a ser decifrada.
428
X X X Colóquio CBHA 2010
Pirámides del Sol y de la Luna, 1878.
José María Velasco
Óleo sobre tela, 32 X 46cm, Coleção particular.
429
X X X Colóquio CBHA 2010
O architecto moderno
no Brasil: tradição
e modernidade
euro-brasileira
Rita Lages Rodrigues
Doutoranda / UFMG
FUMEC/
Resumo
O objeto de análise deste artigo é o livro de modelos arquitetônicos ecléticos O architecto moderno no Brasil, do arquiteto italiano
Luiz Olivieri, publicado em Turim em 1911. Serve para compreendermos a circulação de modelos de casas e edifícios em Minas
Gerais. Suas imagens permitem-nos a reflexão sobre a relação do
desenho arquitetônico com a forma dos objetos construídos, sobre
os modelos europeus e o significado destes modelos para os arquitetos e o público consumidor da arquitetura em Belo Horizonte,
assim como sobre a referência clássica no modelo das construções
ecléticas.
Palavra Chave
Arquitetura, ecletismo, circulação
Abstract
The subject of this article is the book of architectonical ecletic
models O architecto moderno no Brasil, by Luiz Olivieri, published in Turim, in 1911. We can, by the book, comprehend houses
and buildings models circulation in Minas Gerais. Its images allow us to reflect about the relations between architectonical drawing and the built objects, about the European models and the
meaning of this models to architects and the architecture public
in Belo Horizonte, as about the classical reference in the ecletic
building models.
Keywords
architecture, ecletism, circulation.
430
X X X Colóquio CBHA 2010
O objeto de análise deste artigo é o livro O architecto moderno no Brasil, de
autoria do arquiteto italiano Luiz Olivieri, publicado em Turim no ano de 1911.
Luiz Olivieri chega a Belo Horizonte em 1897, ano de inauguração da capital de
Minas Gerais e inaugura, nesta mesma data, o primeiro escritório de arquitetura
da cidade. Falece no ano de 1937, na cidade vizinha de Contagem.
Imigrante italiano, formado na Academia de Florença, trabalhou na
construção da capital, construída a partir de um plano de clara influência francesa. Será que, aqui, as suas referências, especialmente neoclássicas, transformam-se em um ecletismo à francesa? Seria esta uma linguagem internacional, que ultrapassaria as formações primeiras dos arquitetos e construtores que chegaram à
capital? Estas referências nacionais dos imigrantes, que se tornam inter-nacionais
no convívio como outros, se apagam ou continuam presentes em vestígios de
suas obras?
Além da profissão de arquiteto, Olivieri é também artista multifacetado:
escultor, desenhista, inventor de objetos, lembra-nos outro artista famoso, Leonardo Da Vinci, que, além de pintor, era um grande inventor. Não cometo aqui
anacronismos: Olivieri, também italiano, nasceu e estudou em Florença, assim
como Da Vinci. Teve contato com as inúmeras obras de arte existentes em solo
florentino e tomou conhecimento acerca da vida e da obra deste artista, ícone
da arte renascentista. Mas sua obra e sua formação inserem-se em um outro
momento, em uma outra Florença e em um solo não europeu, sendo necessário
marcar esta diferença.
Morador de Belo Horizonte, esculpiu tipos populares da cidade, esculturas que hoje fazem parte do acervo do Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB).
Inventou máquinas que se encontram no MHAB em razão da venda, por parte
do cunhado do artista, de um acervo considerável nos anos 40. A vida de Olivieri
pode ser analisada a partir do que Loriga denomina biografia coral, em oposição
a uma biografia heróica, pois, a biografia coral concebe o singular como um elemento de tensão: o indivíduo não tem como missão revelar a essência da humanidade; ao
contrário, ele deve permanecer particular e fragmentado^F. Particular e fragmentada
também é a sua obra ou o que dela ficou na cidade. Fragmentada pelos usos que
posteriormente foram feitos: as obras arquitetônicas tornaram-se bens tombados
que merecem ser preservados no entender do discurso patrimonial; as esculturas se tornaram acervo do Museu Histórico da cidade e o sujeito e suas obras
transformam-se em objeto de um projeto de doutorado.
Arquiteto formado em Florença, cidade de intensa presença da tradição
clássica, possui em suas obras, ecléticas, claros traços do classicismo florentino.
No entanto, o objeto de estudo desta comunicação é o livro de modelos arquitetônicos O architecto moderno no Brasil que circulou no Brasil nas primeiras
décadas do século XX. O conceito de moderno presente no livro não se aplica
ao conceito de arquitetura moderna posteriormente canonizado no campo arquitetônico. Moderno pode se referir ao Modern Style, predominante em edificações em cidades européias e brasileiras nas últimas décadas do século XIX. No
ecletismo existe uma tensão entre modernidade e tradição em sua elaboração,
elementos de modernidade em conjunto com elementos da tradição arquitetônica européias. No entanto, constitui um estilo moderno, fruto da modernidade
431
X X X Colóquio CBHA 2010
do século XIX, tensa em sua relação com o passado, sem adotar um discurso de
ruptura total, mas buscando a novidade, buscando o novo na elaboração de suas
propostas.
Há um capítulo dedicado ao arquiteto na tese de doutorado de Heliana
Angotti Salgueiro que versa sobre a arquitetura da cidade no momento de construção da capital e a influência eclética nos primeiros anos de Belo Horizonte.
O propósito do texto, segundo a autora, seria “... fazer uma história da arte que
fosse também uma história da cidade na qual a arquitetura se integra ao espaço
urbano e às práticas culturais. Isto nos incita a inscrever a arquitetura em seu espaço
humano”.^FSalgueiro, ao trabalhar com a história do urbanismo e da arquitetura
em Belo Horizonte nos primeiros anos da capital, inscreve seu discurso em uma
história cultural, particularmente a história cultural francesa. Analisa a forma
em que se articulam a aparelhagem mental e a conjunção de práticas de engenheiro, de arquiteto e de mestres de obra engajados na construção de Belo Horizonte e como eles se inscrevem nas duas matrizes européias principais francesas
e italianas. Busca realizar um trabalho interdisciplinar comparativo, mostrando,
por exemplo, como se deu a apropriação do trabalho de Haussmann em Belo
Horizonte e marcando o lugar de Paris como capital cultural do século XIX: “A
cultura urbana brasileira se nutriu de modelos franceses durante todo o século
XIX”^F. É dentro destes princípios que a autora estuda a Comissão Construtora,
de Aarão Reis a José de Magalhães, perscrutando a formação original de cada um
dos atores e os usos destas formações na construção da nova capital.
Em sua análise acerca das obras arquitetônicas de Olivieri na capital,
revelam-se questões interessantes sobre o artista e sua participação no meio arquitetônico:
Em 1900 ele aparece como arquiteto-desenhista entre outros seis nomes em um recenseamento realizado em Belo Horizonte Inventariaram-se 25 construtores e um número igual
de engenheiros ao lado de ateliers de escultura, de papel de parede e de um atelier de pintura
decorativa pertencente ao alemão F. Steckel. Nós já analisamos os limites fluidos das profissões
relacionadas à construção, o meio estava pouco institucionalizado e as competências múltiplas
sobre o canteiro. 1
A participação do arquiteto é vista a partir da relação com o meio e
também da influência que vai exercer na tipologia das casas ecléticas de Belo
Horizonte em função da publicação da sua obra O architecto moderno no Brasil.
Um problema existente na análise de Salgueiro é que ela analisa a tipologia das
obras do arquiteto existentes no livro com o mesmo olhar de quem estuda as
análises das casas construídas na cidade, não fazendo distinções entre os projetos
e os objetos efetivamente construídos.
A sua obra O Architecto moderno no Brasil é de interessante documento para compreendermos a circulação de modelos de casas e edifícios em
Minas Gerais. De acordo com Heliana Angotti Salgueiro, a obra remete a um
gênero “florescente depois de fins do século XIX, os compêndios de casas, que
1
SALGUEIRO, Heliana Angotti. La casaque d’arlequin. Belo Horizonte, une capitale écletique au 19e
siècle. Paris : Éditions de l’école des hautes études en sciences sociales, 1997.p. 389)
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X X X Colóquio CBHA 2010
correspondem ao fenômeno cosmopolita da necessidade crescente dos habitantes
da cidade”^F.
As imagens arquitetônicas presentes neste compêndio permitem-nos a
reflexão sobre algumas questões como a relação do desenho arquitetônico com a
forma dos objetos construídos, os modelos europeus e o significado destes modelos para os arquitetos e o público consumidor da arquitetura em Belo Horizonte,
a referência clássica no modelo das construções ecléticas. Outro aspecto interessante trazido por estas imagens ecléticas nos remete às distintas apropriações nos
diversos espaços urbanos brasileiros e latino americanos. A obra de Olivieri foi
publicada em Turim, não se sabe muito bem qual o espaço de circulação desta,
mas pode-se, a partir da existência desta obra, pensar sobre os modelos que circulavam na América Latina e que vieram a conformar de forma distinta cidades
como Belo Horizonte, Montevidéu, Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo,
dentre outras. Na perspectiva da transferência cultural, podemos encaminhar
nossa reflexão na direção do sujeito imigrante na cidade e a adaptação de modelos
europeus à realidade belorizontina, assim como a transformação do ser arquiteto
Luiz Olivieri.
O conceito de meio arquitetônico é central para compreendermos a importância da obra O Architecto Moderno no Brasil na realidade das primeira
décadas de Belo Horizonte e de Minas Gerais. Conceito que nos leva a refletir
a respeito dos campos profissionais e da forma como eles se estabelecem é o de
campo de Pierre Bourdieu. O livro de Garry Stevens, O círculo privilegiado,
aborda o conceito de campo artístico de Bourdieu e o transfere para a arquitetura, mostrando como campo “é um conjunto de instituições sociais, indivíduos e
discursos que se suportam mutuamente. A sociedade é composta por inúmeros
campos que se superpõem: os campos da educação, da religião, das relações de
classe e assim por diante”^F. Stevens complexifica esta percepção ao mostrar que
existem dois campos, o de massas e o restrito. O primeiro refere-se à produção
em larga escala, a projetistas anônimos, a clientes com recursos médios versus
clientes ricos, a critérios econômicos e funcionais e à produção para satisfazer demandas econômicas de consumidores externos ao campo. Já o segundo campo,
o mais restrito, dos arquitetos de renome, que possuem um discurso próprio e
valores compartilhados pelos eleitos, refere-se a objetos únicos, a arquitetos de renome, a clientes ricos, a critérios estéticos e simbólicos e à produção estética para
satisfazer demandas simbólicas de consumidores inseridos no campo. O campo
da arquitetura se constituiria por “arquitetos, críticos, professores de arquitetura,
construtores, todo tipo de clientes, parcela do estado envolvida com as construções, instituições financeiras e mais o discurso arquitetônico e as exigências
legais quanto a edificações, entre outras coisas”^F. Entretanto, esta noção, como é
tratada por Bourdieu e Stevens, acaba por congelar as possibilidades de relação
sujeito e contexto.
O conceito que proponho de meio arquitetônico se mostraria mais fluido, menos determinista. O que não significa que não existam discursos que se
sobressaiam e que passem a fazer parte do discurso dos arquitetos e da linguagem
arquitetônica como sendo os específicos de um determinado momento histórico.
O meio arquitetônico está permeado de influências de outros meios ao mesmo
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X X X Colóquio CBHA 2010
tempo em que se encontra inserido em um mercado. Um mercado e um meio
arquitetônicos nos quais os padrões de apreciação de estilos e o conceito de gosto
são essenciais para conhecermos o porquê da publicação de obra deste viés, um
compêndio de edificações que sirvam como modelo: seria para formar um público ou para mostrar modelos de construções para um público com um gosto
já pré-existente?
Conceito que se aproxima da forma como percebo as relações entre os
diversos meios é o de hibridismo que, ao mesmo tempo em que considera as relações entre as diversas culturas, não desconsidera a questão da relação desigual
entre as realidades culturais.
De acordo com Burke2, são três tipos de hibridismo ou processos de
hibridização, os que envolvem respectivamente artefatos, práticas e povos. Com
relação aos artefatos híbridos, existem diferentes linguagens arquitetônicas e
referências culturais que podem existir em uma mesma edificação. Entretanto,
Burke analisa este processo de hibridização na construção inicial dos artefatos
arquitetônicos. A pesquisa que se propõe será pensada a partir de um processo
de hibridização pelo qual passam as construções ao longo da sua existência e
dos usos que estes objetos passam a ter, pensando em um hibridismo que marca
o início da realização dos artefatos, mas que se torna também um hibridismo
temporal, à medida em que tais artefatos vão sendo transformados fisicamente e
ressignificados pelas outras pessoas que deles se apropriam. No entanto, no texto
desta apresentação, o objetivo é mostrar o hibridismo existente na elaboração do
próprio livro de modelos do arquiteto, modelos que serão ou não executados no
território da cidade.
A produção do artefato provém de práticas que de acordo com Burke
“podem ser identificadas na religião, na música, na linguagem, no esporte, nas
festividades e alhures”^F. O fazer do arquiteto se constitui em uma prática híbrida. Os artefatos existem a partir das práticas que lhes dão sentido e os constroem
ou fazem com que sejam conservados ou destruídos. O hibridismo da cidade
está presente no momento em que as pessoas, provenientes de diversos lugares,
chegaram ao lugar onde posteriormente existiria Belo Horizonte. Aí chegamos
ao terceiro tipo de hibridismo: o hibridismo de povos, que também ocorreu em
Belo Horizonte, no momento inicial de formação da cidade e que é um processo
contínuo que atravessa o século XX. Refiro-me não somente a hibridismos internacionais, mas também a pessoas que, provenientes de outras lógicas culturais,
principalmente do interior de Minas Gerais, vieram para Belo Horizonte e aqui
foram obrigadas a estabelecer práticas culturais distintas das que estavam acostumadas.
Neste ponto encontra-se o cerne da pesquisa, a partir das referências de
sua formação, Olivieri deve readaptá-las à realidade de Belo Horizonte, cidade
que se deseja moderna e que, no entanto, mostra-se provinciana se comparada
com outras capitais. Em Belo Horizonte, Olivieri não irá ser considerado um
grande arquiteto nacional, mesmo porque os arquitetos mais conceituados da
comissão construtora vão, somente, passar por Belo Horizonte, deixando obras
2
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Paulo: Editora Unisinos, 2003.
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pontuais na cidade. No momento de construção do meio arquitetônico da cidade, o architecto moderno encontrará meio propício na cidade nascente, onde irá
construir a sua vida, misturando-se na constituição da própria cidade.
Ao escrever uma obra como O Architecto Moderno, que não possui por
objetivo fundar uma nova escola, ou mesmo marcar o lugar do arquiteto como
aquele que inaugura o totalmente novo, Olivieri faz novamente a ponte entre o
velho e o novo continente, pois trata-se de um compêndio de casas, como vários
publicados em solo europeu:
Contem mais de noventa desenhos de fachadas, dos quais um terço é acompanhado de pequenos planos pouco detalhados. Todos são repartidos em quarenta pranchas. Note-se que seu
local de edição é Turim, ainda que todos os títulos sejam em português. A palavra moderno
pode ter aqui um duplo significado: de um lado “ser de seu tempo”, de outro pode referir-se a
Modern Style, L’Art Nouveau Italien, que inspira grande parte dos desenhos...3
A divisão dos modelos de acordo com o uso é assim realizada: “21 edifícios de uso público, casas de comércio, escolas, mercado, etc”4. Interessante percebermos como o objetivo é oferecer modelos de construção a outros arquitetos
e construtores, pois além dos modelos de edificações públicas, existem 43 casas
de frente de rua, 15 recuadas com jardins, 14 mistos (com comércio e residência).
Podemos perceber nas obras mostradas a aproximação entre os desenhos e as construções efetivas da cidade. A presença da volumetria neoclássica é
marcante, assim como é marcante a presença dos elementos decorativos ecléticos. Olivieri formou-se em Florença, trazendo para Belo Horizonte as referências
estilísticas e construtivas de sua terra natal. Além disso, encontrou na cidade
ambiente propício para desenvolver suas obras. Em linhas gerais podemos nos
referir a seus modelos como sendo compostos de uma volumetria clássica, com
a presença de elementos decorativos mais comedidos do que outros exemplares
de arquitetura eclética, presença marcante de linhas retas, edificações com um
conjunto equilibrado, elaborados de forma simétrica.
A sua obra é interessante documento que trata da forma como um arquiteto em Belo Horizonte no século XX, trouxe referências européias ressignificando-as em outro local, com outras gentes. Não de pode omitir o grande valor que
era dado às produções do outro lado do Atlântico. Olivieri não era um simples
arquiteto. Era um arquiteto italiano, representante de uma civilização européia,
culta, que muito teria a contribuir para o desenvolvimento da pacata Belo Horizonte. Sua obra de modelos também possuía esta marca, a da autoria italiana,
presente na marca notadamente clássica de parte de suas obras ecléticas.
3
SALGUEIRO, Heliana Angotti. La casaque d’arlequin. Belo Horizonte, une capitale écletique au 19e
siècle. Paris : Éditions de l’école des hautes études en sciences sociales, 1997.p. 389.
4
SALGUEIRO, Heliana Angotti. La casaque d’arlequin. Belo Horizonte, une capitale écletique au 19e
siècle. Paris : Éditions de l’école des hautes études en sciences sociales, 1997.p. 391
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O architecto moderno no Brasil
Publicado em Turim. 1911
Luiz Olivieri
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O architecto moderno no Brasil
Publicado em Turim. 1911
Luiz Olivieri
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Título de Imperial
e a produção de bens
simbólicos: Imperial
Instituto Artístico
Rogéria de Ipanema
UFRJ
Resumo
Legitimando um empréstimo e uma troca de valores de poder, com
custos para o suplicante, o Título de Imperial, possibilitava àqueles
que atendessem às condições, tornarem-se legalmente parceiros do
projeto político do Império. Estendido inclusive à produtividade
dos bens simbólicos, o objeto desta pesquisa é o processo administrativo da sociedade de três alemães, a Fleuiss Irmãos & Linde,
proprietários do Imperial Instituto Artístico, instalado na corte do
Rio de Janeiro.
Palavra Chave
Título de Imperial; imagem impressa; Imperial Instituto Artístico
Abstract
Legitimizing a loan and an exchange of values of power, with costs
to the supplicant, the title of Imperial, allowed those that met the
conditions to become legal partners in the political project of Empire. Extended even to the productivity of symbolic goods, the object of this research is the administrative process of the company
of three Germans, Fleuiss Brothers & Linde, owners of the Imperial Instituto Artístico, at the court of Rio de Janeiro.
Key-words
Title of Imperial; printed image; Imperial
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X X X Colóquio CBHA 2010
Os números do comércio de estampas e estabelecimentos litográficos, em formação, de firmas societárias em companhias, ou de desenhistas-litógrafos autônomos, desenvolveram-se em contínua expansão ao longo de quase todo o século
XIX. Pelas impressões litográficas pioneiras de Pallière em 1817, passando pela
implantação oficial pelo Estado em 1825 por Steinmann, até os registros exigidos pela Câmara Municipal, determinados pelo artigo 303 do Código Criminal
de 1831,1 onde os “proprietários das oficinas de impressão, litografia ou gravura que se achassem estabelecidos nesta cidade” eram “obrigados num prazo de
oito dias”, a apresentarem seus “nomes, moradias e estabelecimentos”.2 Durante
todo o Império, notadamente a reprodução serial da arte da imagem impressa no
Rio de Janeiro se fez pela litografia. Tais números podem ser evidenciados pelos
anúncios do concorrido Almanak Laemmert,3 concluindo alguns totais. Além dos
4 nomes em 1832, registrados pela Relação da Câmara, no Almanak permanecerão os mesmos anunciantes, todos estrangeiros, durante os 16 anos seguintes. Em
1852 este número mais do que dobra, elevando-se para um total de 9 estabelecimentos, incluindo a forte Empresa Tipográfica Dous de Dezembro, de Francisco
de Paula Brito.4 Segue-se então com 13 identidades em 1854, 17 em 1861, ano
em que a Fleiuss Irmãos & Linde começa a anunciar, 28 no início da década de
70, até o número máximo de 32 anunciantes para o ano 1875. Fechou o século
com o número reduzido de 14 endereços.
As artes em geral constituíram-se uma grande direção da produção litográfica que fazia circular as necessidades sócio-culturais da época, enfatizadas
pelo fluxo transmigratório europeu que se intensificara desde o período joanino.
Especificamente, a litografia era portadora das narrativas paisagísticas, sociais e
políticas da cidade tropical escravocrata, apreendidas pelos olhares dos estrangeiros viajantes e estampadas em impressões européias, ou estrangeiros residentes,
e impressas por empreendimentos cariocas de instituição, mas ainda de origem
estrangeira, como o Lembranças do Brasil (1849), da firma anglo-prussiana, Ludwig & Briggs, de O Brasil pitoresco e monumental (1856), com desenhos de
Pieter Bertichen, publicado pela firma de Eduardo Rensburg, ambos holandeses,
a Galeria dos brasileiros ilustres, do alsaciano Sebastien Auguste Sisson, ou da
Revista Illustrada do ítalo-brasileiro AngeloAgostini.
A firma Fleiuss Irmãos & Linde^F, apresenta-se comercialmente em 11
de janeiro de 1860, à Rua Direita, 49, 2º andar, Freguesia de São José, sendo sua
1
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. COD 43.1.22.
2
O primeiro estabelecimento a ser registrado foi o do litógrafo suíço Johann Steinmann, contratado pelo
Arquivo Militar, em 1825, na Rua do Cano, 85 e o último em 1881, o nome de Pedro Monr, na Rua de
S. Pedro, 170.
3
Almanak Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, dos irmãos Eduardo Laemmert (Grão-Ducado de
Baden, 1806 – Rio de Janeiro, 1880), cavaleiro da Imperial Ordem Brasileira da Rosa, e Henrique Laemmert (1812-1884). Iniciou a publicação em 1843, sobrevivendo até os anos de 1940. Com volumes de
mais de 1.500 páginas alcançou enorme prestígio, e além dos números para a corte e província do Rio
de Janeiro. a publicação cobria os setores produtivos de outras províncias, em publicações individuais,
FERREZ, Gilberto. A obra de Eduardo Laemmert. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Rio de Janeiro, n. 331, p. 193-208, abr./jun. 1981.
4
No ano de 1854, a empresa está na Praça da Constituição, ns. 64, 66 e 68. Em 1856, na Rua dos Ciganos
28. Editor de grande aceitação na corte foi responsável por inúmeros títulos e periódicos, como Mulher
do Simplício, Marmota Fluminense, Mutuca Picante. Sobre Paula Brito, leia-se. GONDIM, Eunice Ribeiro. Vida e obra de Paula Brito. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1965. (Coleção Vieira Fazenda).
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primeira publicação, um título jornalístico de caricaturas, a Semana Illustrada,
com uma forte cobertura dos acontecimentos da guerra do Paraguai. Em1861
aparecerá anunciando-se já como “Instituto Artístico”, com identificação para
a pintura a óleo e aquarela, acrescentado da descrição “fazem as composições e
ilustrações de livros científicos e artísticos de qualquer maneira”.
Em documentação do Arquivo Nacional, encontra-se o processo administrativo pelo qual a firma de Henrique Fleiuss, seu irmão Carl Fleiuss e o sócio
Carl Linde, requereu à sua majestade, o imperador d. Pedro II, o Título de Imperial. Neste se comprovam o dinamismo e determinação dos empreendedores
alemães, em estabelecer com tecnologia diversificada, um lugar no comércio, na
imprensa e no ensino artístico, construindo uma marca definida no fluxo cultural do centro do poder do Império, em um Rio de Janeiro de 150 anos atrás.
A empresa Fleiuss Irmãos & Linde chegou pronta para instalação, e logo
se afirmou na corte com qualidade, justificando a imprescindibilidade da imagem
nos veículos e meios geradores e consumidores de cultura, e organizada num bem
estruturado parque gráfico. O Instituto Artístico, por ela criado, estabeleceu-se junto às práticas que se faziam mais costumeiras e necessárias no cotidiano
social, não só metropolitano como rural, uma vez que a Semana Illustrada, sua
primeira publicação, possuía assinantes em outras cidades e províncias. E agora,
com o Título de Imperial, sua produção visual representaria a coroa num papel
legitimado pelo Estado, que também nela se apoiava, imprimindo seu poder.
Três anos e meio após a fundação do estabelecimento, seus donos vêm
no Título de Imperial, sentido mais comum entre os estrangeiros, a régia distinção que este representava, apresentando o requerimento do rogo da mercê,
na Secretaria de Estado dos Negócios do Império, em 25 de agosto de 1863^F.
Ao intercurso do processo, seguiu-se a lógica burocrática competente para estes
casos. Logo à entrada, o Presidente do Conselho de Ministros, e reponsável pelo
Ministério do Império, Pedro de Araújo Lima, o marquês de Olinda, em Aviso
de 15 de setembro, solicita ao Chefe de Polícia informar “qual o objeto especial
do estabelecimento artístico, quantos empregados e suas nações, a disposição
do edifício [...] para os que neste trabalham e moram e qual a organização da
escola e mestres”. Em papel timbrado da Secretaria de Polícia, o juiz de direito
e chefe de Polícia da Corte José Caetano de Andrade Pinto, no dia 17, responde
à sua excelência, anexando uma cópia da informação “que a respeito do mesmo
Instituto prestou”, o Subdelegado do 1º distrito da Freguesia do Sacramento, dr.
Miguel da Silva Braga, “a quem disso encarreguei”, no dia anterior, dia 16, “que
tendo pessoalmente examinado aquele estabelecimento julga-o no caso de merecer o que requereram os respectivos donos”. Nos papéis remetidos à autoridade
da Polícia, no mesmo dia 17, pelo subdelegado distrital, também estão inclusas as
informações prestadas “pelos donos do dito estabelecimento”. E por fim, exatamente 30 dias após dar entrada, o Instituto Artístico da Fleiuss Irmãos & Linde
tornava-se Imperial, assumindo a coroa, nos empréstimos simbólicos de poder.
Resumindo: sua excelência o Ministro manda aviso ao Chefe de Polícia
no dia 15, no dia 16, este oficia ao Subdelegado, que responde no dia 17, quando já havia visitado o estabelecimento e recebido as informações solicitadas aos
donos, que o fazem no mesmo dia, finalmente, no dia 25 de setembro de 1863,
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X X X Colóquio CBHA 2010
o Rio de Janeiro possuía um Instituto Artístico estrangeiro, multinacional, para
expressão de uma arte brasileira?
As bases da súplica do Título estão para além do complexo parque gráfico que apresentam, apóia-se também em questões, que crêem os suplicantes, que
não estão longe de uma realidade, de relevância para o Estado e a coroa, como
a qualificação dos ofícios gráficos como um produto gerado pelo trabalho livre,
assim como declaram, de constituição especializada, por brasileiros, portugueses
e alemães. No requerimento original, demarcado por argumentos vincados no
nacionalismo, o que se comprova é que Fleiuss estava atento às perspectivas culturais que imbricavam neste destino, embebidas o quanto possível de uma estética romântica de direção nacionalista que tentava nortear as produções literárias,
teatrais e artísticas da época.
O Instituto Artístico ao se dirigir ao monarca, assim se identificou:
Fleiuss Irmãos & Linde, proprietários do Instituto Artístico, estabelecido no Largo de São
Francisco de Paula, 16, tendo concorrido, por diversas vezes, para o engrandecimento da
arte neste país, já publicando – as Recordações da Exposição Nacional, obra que [...], dará
uma idéia exata da Primeira Exposição deste Império, já publicando em cromolitografia os
estudos da Comissão Científica, que ultimamente visitou o Norte do Brasil [...] já publicando
– outros diversos trabalhos artísticos, que comemoram fatos e acontecimentos notáveis do país;
e já finalmente criando uma escola de xilografia, donde poderão sair artistas, que ganhem
honestamente o pão, dando ao mesmo tempo grande incremento a uma arte tão pouco conhecida entre nós; ousam implorar de V. M. I. Atendendo às razões que acabam de oferecer [...],
a graça de conceder ao seu [...]Instituto Artístico e, confiados no desejo que continuamente
apresenta V. M. I. de proteger as Artes do majestoso Império, que tão sabiamente Dirige, [...]
que se digne deferir benignamente aos suplicantes.
No segundo momento em que se pronuncia em resposta ao subdelegado, as descrições se fazem mais detalhadas, revelando a produtiva atividade das
impressões, a partir da identificação do auto-exame dos proprietários em sua
caracterização. Assim, dá-se conta sobre os processos artísticos com que opera,
apresentado em um texto estratificado em informações que possibilitam ricos
parâmetros de análise, interpretação e crítica.
Sobre a pintura, reporta, “O nosso Instituto Artístico ocupa-se com a
pintura em óleo e aquarela”, e que “é executada pelos proprietários do Instituto”,
descrevendo que haviam “recebido já a grande medalha de ouro pela Academia
de Belas Artes”. O que é questionável, porque além de não ter havido exposição
no ano de 1863, e de suas obras não constarem das Exposições de 1860 ou a próxima passada, de 1862, estas só estariam incluídas no Catálogo da XVI Exposição
Geral de 1864, e mesmo assim sem registro de premiação. Será que se referiam a
uma instituição européia?
Pelos, então, processos de impressão, os argumentos se ampliam, assim
que para a litografia, a praticavam “em todos os ramos artísticos, com exceção
de trabalhos mercantis,” e completa relatando que, “temos fora dos trabalhos
avulsos, uma grande quantidade de obras”, e além das já citadas em seu requerimento primeiro sobre a Exposição Nacional de 1861 e “todos os trabalhos da
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X X X Colóquio CBHA 2010
Comissão Científica contendo já mais que cento e vinte quadros executados em
cromolitografia”, acrescentam ainda, palestras, uma grande quantidade de retratos, incluindo das augustas princesas imperiais, a “Flora Brasileira do Doutor
Freire Alemão,” e o conhecido “jornal humorístico”, Semana Illustrada.
Como um preciso inventário dos recursos materiais e humanos, e da capacidade da instituição, verifica-se que a litografia respondia pela maior produtividade do Imperial Instituto Artístico. Sua execução estava a cargo de 6 pessoas,
“3 alemães, 1 brasileiro, 2 portugueses”, comportadas em duas salas “para os trabalhos feitos”, “uma para litografia” e “um laboratório”. E mais, no que se refere
aos serviços de impressão litográfica, estes se encontravam distribuídos em mais
duas salas, realizados por 9 impressores, identificados como: 4 brasileiros e 5
portugueses. Por fim, acrescentava que, “A fotografia”, em duas salas e a cargo de
1 alemão, “foi instalada para maior exatidão da litografia”, e “para fazer retratos”.
Em relação à xilogravura, reservada em um cômodo, “temos inaugurado
uma escola de gravura em madeira, que já conta oito alunos e será aumentada a
número de quinze,” dizendo que, “está se fazendo atualmente uma obra científica
do doutor Capanema e uma grande obra para [...]o Ministro da Marinha, todas
as gravuras em madeira, uma arte até agora desconhecida no Brasil”.
Para a tipografia, fazia o Instituto imprimir “obras ilustradas”, como o
título de imprensa, mapas, textos científicos, encomendas para o Ministério da
Agricultura, realizada por “2 impressores, 2 compositores”, 3 brasileiros e 1 português, mais “1 aluno” e “caixeiros de escritório”, ajustados em um sala.
Ao total, contando com mais uma sala de desenho, o Imperial Instituto
Artístico possuía um complexo parque gráfico com 12 divisões. Vale localizar
que seus concorrentes anunciantes diretos à época, somavam 17 oficinas litográficas, numa corte com cerca de 30 tipografias, publicando 23 títulos de imprensa.
Por fim termina declarando que “As publicações de nossa casa são bastante conhecidas, por isso não nos ocupamos mais com isso”., e que “Os fundos
de reserva são depositados nas casas bancárias dos Srs. Bahia e Gomes e Filhos”.,
assim “Esperamos que as informações lhe satisfaçam, e temos a honra de servir
[...] Atentos venerados criados = Fleiuss Irmãos & Linde= 17 de setembro de
1863”.
Para pensar em entender o que a fonte oferece, retiro duas consistentes
atuações. Uma é que o Imperial Instituto Artístico fez sua inscrição na historiografia da arte brasileira, para além do programa gráfico que pretendeu, pois
está inserido na prática do ensino artístico, quando desenvolveu a xilogravura,
creditada no aprendizado sistemático do processo, a partir da representação do
primeiro curso particular de gravura no Brasil, autorizado pelo Estado. Interessado em iniciar e garantir a qualificação da arte e ofício no país oferecia ao público jovem masculino anunciando que, os proprietários do Instituto “ensinariam
tudo o que fosse preciso para esta bela arte que, em um curto espaço, tornará os
moços que lhe forem confiados independentes, e cuidará com rigor da moralidade e atividade de seus discípulos”(COSTA, 1976, p. 98)^F. Algumas das peças
destes alunos encontram-se no segundo periódico editado pelo Imperial Instituto
Artístico, que a partir do término da Semana caricata, em 1876, se inclinaria em
um novo periódico, agora de abordagem multicultural e xilograficamente guar-
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necido com imagens abertas, algumas no Rio de Janeiro e as demais de matrizes
importadas, numa bela Illustração Brasileira (1876-1878)^F.
Nestas condições entende-se que, das instituições imperiais públicas das
belas artes, próprias do governo, como a Academia Imperial das Belas Artes, ou
das duas particulares, mais ainda de sua representação e com o Título de Imperial, como o Liceu de Artes e Ofícios, tornado Imperial somente em 1871^F, e o
Instituto Artístico, já Imperial oito anos antes, somente nesta última, se daria a
primeira voz de ensino sistemático da gravura na Corte e certamente no país.
Contudo, mesmo com determinante impulso, e profissionalização da mão-de-obra, a xilogravura não substituiu ou sequer igualou a arte da imagem impressa
realizada pelo processo da litografia.
Uma segunda questão é apresentada partindo de que a Coroa expandiu
seu território político e onde ela não existia, fazia-se ser através do Título de
Imperial, e uma vez ultrapassando seus próprios limites, demonstrou caminhos
de vantagens alheias. Neste momento, mais uma vez, é o Imperial Instituto Artístico que se destacaria na dimensão da produção de bens simbólicos dentro do
universo da cultura visual, com a particularidade de construir uma imprensa
político-caricata, sob a proteção do imperador. Quando Fleiuss Irmãos & Linde
suplicam a titularidade, a humorística Semana Illustrada já contava com dois
anos de existência, de uma saúde que perduraria por 16. Portanto, com a afirmação do Estado e sob o manto imperial, a arte da imagem impressa no Brasil para
os anos de 1860 a 1876, através da caricatura, existiu no mais perfeito regime da
liberdade de expressão.
443
X X X Colóquio CBHA 2010
Diálogos e reapropriações:
um artista e sua produção
gráfica no Brasil
Rosangela de Jesus Silva
Doutoranda/UNICAMP
Resumo
Este texto propõe a análise de alguns aspectos da obra gráfica de um
artista nascido na Itália, inicialmente educado na França, mas cuja
produção foi consolidada no Brasil entre 1870 e 1888. A partir de
um gênero nascido em Paris, os salões caricaturais, ou salões para
rir, Angelo Agostini(1842/3–1910) desenvolveu um estilo próprio,
totalmente engajado com a realidade política e cultural brasileira,
sem deixar de demonstrar seu conhecimento da produção artística
francesa.
Palavras chave
Angelo Agostini; Arte Brasileira; Século XIX
Resumé
Cet article propose une analyse des travaux graphiques d’un artiste
né en Italie, d’abord il a étudié en France, mais sa production a été
consolidée au Brésil entre 1870 et 1888. D›un genre né à Paris, les
salons caricaturaux, Angelo Agostini (1842/ 3-1910) a développé
son propre style, totalement en prise avec la réalité politique et
culturelle du Brésil.
Mot clé
Angelo Agostini; Art Brésilien; XIXe siècle
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Diálogos e reapropriações
Ao observar a trajetória dos caricaturistas no século XIX, e o percurso de Agostini em particular, percebe-se que todos desenvolviam outras atividades além da
caricatura. Talvez por limitações financeiras, ou por outros interesses, o fato é
que esses indivíduos conviviam com uma ampla gama social o que lhes facultava
um olhar privilegiado e amplo do ambiente no qual conviviam. Pessoas com essa
oportunidade certamente teriam predisposição e preparo para pensar em projetos de ordem estrutural e atuar em prol deles. É claro que esses projetos estavam
pautados por filiações e concepções ideológicas do indivíduo, as quais poderiam
não responder diretamente aos anseios dos leitores das revistas na qual o trabalho
era apresentado, mas certamente representavam a voz de um grupo social do qual
o artista participava ou queria participar.
Os recursos e algumas técnicas utilizadas pelos caricaturistas são bastante ilustrativos de sua originalidade e sintonia com o mundo a sua volta. A
comparação da produção de Angelo Agostini com os franceses, prováveis referências para o artista, indicam algumas aproximações, conforme sugerido anteriormente, mas há certamente criação e adaptações ao contexto brasileiro. Mesmo
quando se utilizava os mesmos recursos técnicos, a intenção não era a mesma, de
forma que não parece uma análise enriquecedora tratar essas aproximações como
reprodução, transposição ou cópia. Talvez seja mais apropriado ou mais sugestivo
pensar em citação, apropriação, reconstrução ou referência, sempre a partir de
preceitos individuais e particulares ao artista e sua criação.
A historiografia da arte tem proposto alguns conceitos para pensar esse
diálogo entre diferentes produções artísticas como o existente entre a Europa e
a América. Algumas dessas proposições, sobretudo no século XIX falavam de
relações unilaterais, onde a Europa seria o grande centro produtor e irradiador
da cultura ocidental. Nas últimas décadas há várias revisões, relativizações e ampliações em torno das relações e trocas estabelecidas entre esses dois continentes
ao longo de séculos de história.
Entre os conceitos mais atuais estão os de Geografia artística, Transferência cultural, Centro e Periferia e Mestiçagem, só para mencionar os mais
citados. Cada um desses conceitos explorado por determinados autores apresentam especificidades, todavia exibem traços em comum como o fato de proporem
analisar as relações entre diferentes culturas sem uma hierarquização ou superposição, possibilitando pensar em trocas, em diálogo, em descentralização, em
produtividade, em criatividade de ambos os lados, em um jogo onde não se fala
em termos de vencedor e vencido, dominador e dominado, metrópole e colônia.
O conceito de Transferência cultural, por exemplo, foi utilizado nos
anos de 1980 por Michel Espagne e Michael Werner, em um esforço de compreensão dos empréstimos ou trocas entre as culturas alemã e francesa no que diz
respeito à recepção e transformações ocasionadas dentro da sociedade que acolhia
elementos da outra cultura. Nesse sentido “La théorie des transfert culturels propose d’en anlyser les supports et les logiques. Elle s’intéresse à tous les domaines
possibles de l’interculturel, du métissage, zones frontières entre cultures, langues,
systèmes religieux ou politiques. (JOYEUX, 2002, 151)
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Castelnuovo e Ginzburg no texto “Domination symbolique et geographie artistique dans l’histoire de l’art italien” apresentam uma discussão sobre o
centro e a periferia. Os autores exploram uma perspectiva de questionamento das
referências. Ao se analisar uma obra produzida na periferia nem sempre é possível
ou válido partir do referencial do centro, tal atitude limitaria a análise da obra e
tiraria possibilidades de compreensão da mesma, nesse caso outros referenciais
seriam necessários. É o que tentam mostrar ao analisar a produção de arte italiana fora dos centros consagrados como Roma e Florença. Nesse sentido “(...)
Identifier puremente et simplement périphérie et retard revient donc en définitive
à resigner à écrire perpétuellment l’histoire du point de vue du vainquer”. (CASTELNUOVO; GINZBURG, 1981, 58)
Diante do que expõe esses autores não se pode pensar que Angelo Agostini tenha feito uma transposição ou cópia da produção francesa, muito menos
que estaria atrasado em relação a esta, só pelo fato de começar a fazer os salões
caricaturais no Brasil quando na França esses já não tinham a mesma importância dos anos 1850 e 1860.
Há especificidades que não podem ser ignoradas. Um primeiro elemento seria o fato de Agostini ser um europeu que migrou para o Brasil, ainda jovem.
O contexto político, econômico, social e cultural brasileiro era bastante distinto
daquele vivido na Europa. Esse fator pode ter sido determinante, por exemplo,
para que o artista aqui exercesse diversas funções como a de pintor de retratos
no início da carreira, depois jornalista, crítico, caricaturista e mantendo ainda a
atividade de pintor. A imprensa ofereceria ao jovem Agostini a oportunidade de
ter acesso a informações e discussões em torno da organização e estruturação do
país, seus problemas e forças políticas. Assim, certamente foi mais fácil se posicionar e fazer escolhas.
Dos primeiros anos na província de São Paulo onde se iniciou na imprensa com o Diabo Coxo e depois no Cabrião, seguiria para a então capital do
império onde permaneceria até o final de sua vida em 1910. No porto do Rio o
contato com a Europa era mais próximo, ali se concentravam grande número de
estrangeiros, chegavam as companhias líricas e de teatro, além de ser o centro
do poder.
Estar no centro cultural e político do país certamente contribuía para se
notabilizar naquele cenário. No entanto, nem todos se destacavam, era preciso
fazer algo que intrigasse, instigasse ou questionasse aquele meio. Agostini fez
circular suas idéias, polemizou, explorou e questionou diversos aspectos daquela
sociedade. Juntou seu conhecimento, sua vivência no Brasil, as discussões que
compartilhou e produziu textos e imagens, as quais refletiram sua visão particular e singular.
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As particularidades de um trabalho caricatural
“A caricatura, como a entende e executa o Sr. Angelo Agostini, pertence ao domínio das artes;
e com esse titulo merece a analyse e a critica.
(...) A caricatura tem isso de bom: é uma satyra que todo o mundo comprehende; é repentina,
palpa-se, faz rir ás gargalhadas toda uma cidade, a allusão é comprehendida com avidez pelo
passante. Os desenhos de Angelo tem isto de particular: fazem rir e reflectir ao mesmo tempo.
Eu procuro em vão entre os desenhistas francezes um ao qual possa comparar o caricaturista
da Revista Illustrada. O seu gênero de talento lembra-me melhor o de Hogarth. Como o
pintor inglez, Angelo quis antes de tudo ser moralista. Persegue desapiedadamente os abusos
e os tolos orgul[h]osos.
A prodigiosa semelhança de suas cargas dá um vigor extraordinário á idéia que elle quiz
materialisar”.1
O texto confere ao caricaturista o status de artista, o que oferece distinção àquela produção. Nesse sentido o trabalho de Agostini seria colocado em um
patamar elevado, alcançando o mérito de um trabalho intelectual. A qualidade
de ser artista refletiria assim no resultado, pois o caricaturista possuiria sensibilidade não apenas para “reproduzir fisionomias com sinceridade”, mas também
seria capaz de identificar o satírico em cada corpo físico e ressaltar tais características, garantido assim singularidade ao seu trabalho.
Além disso, a produção caricatural despertaria a curiosidade nas pessoas, pois seria fácil de ser compreendida. Aliada a essa vantagem, a caricatura de
Agostini além de fazer rir, também faria pensar, ou seja, o artista trazia em seu
trabalho características educacionais, o dom de ensinar, de fazer ver, conhecer,
algo certamente mais importante do que apenas fazer rir, sobretudo numa sociedade que buscava civilizar-se, como muitas vezes foi destacado pelo caricaturista.
O artigo também comenta uma possível filiação do “talento” de Angelo Agostini, aproximando-o não dos franceses, referências importantes naquele
momento, mas a um artista inglês William Hogarth (1697 – 1764). Este artista
ficou conhecido dentro e fora da Inglaterra como um artista satírico de grande
talento, muito perspicaz em desnudar as mazelas da sociedade na qual viveu.
É justamente este aspecto satírico e moralizador da produção do artista inglês
que foi destacado no texto como algo próximo do caricaturista ítalo-brasileiro.
Hogarth satirizava uma classe, um grupo, Agostini parece ter sido ainda mais
direto em suas críticas atacando, além das instituições também personalidades
no contexto político, social e artístico brasileiro.
No entanto seu conhecimento da produção francesa não pode ser descartado, certamente foi importante na sua formação, bem como houve diálogo
entre sua produção com os caricaturistas franceses. As escolhas temáticas, como
a atenção para com as exposições de belas artes, embora com diferenças na maneira de abordar as obras, certamente foi um ponto comum entre a produção
francesa com a de Agostini.
1
Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1882, N.302, p.6
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Os salões franceses não deixavam escapar nada da realização de uma exposição. Os desenhos comentavam a preparação dos artistas, as escolhas do júri
para compor a mostra, a reação dos artistas diante das escolhas do júri, o comportamento do público frente às obras, as próprias obras, bem como os artistas,
suas escolhas e a crítica. Cada exposição era comentada por vários caricaturistas,
os quais, na maioria das vezes recaiam sobre as obras ou, sobre os artistas mais
polêmicos. A riqueza de análises e a contribuição desses salões para uma compreensão da recepção das obras é indiscutível.
A partir da década de 1870, na então capital do Brasil, Agostini iniciaria, ainda que timidamente, seus salões caricaturais. Trabalho que alcançaria
seu auge em 1884, tanto pela qualidade dos desenhos e respectivos comentários,
quanto pela quantidade em que foram produzidos.
O primeiro deles foi publicado em 1872 na revista O Mosquito e o último em 1884 na Revista Illustrada. É pouco, sobretudo se compararmos com a
produção francesa que atravessou toda a segunda metade do século XIX, sendo
que as décadas de 1850 e 1860 são as consideradas pelos estudiosos como as mais
significativas dessa produção na França. Todavia é certo que as exposições aqui
não aconteciam na mesma proporção que na França. O número de artistas era
infinitamente menor, além disso, enquanto em Paris havia pelo menos quatro
nomes de destaque nesse gênero – Cham, Gill, Nadar e Bertall -, no Brasil, só
um caricaturista se interessaria em fazer tais comentários na imprensa carioca
daquele momento.
A relação com os salões cômicos franceses pode ser notada na disposição
das páginas na revista, bem como na utilização de legendas, a ironia e a sátira,
além da escolha do meio de publicação, as revistas ilustradas. Outro fator a ser
considerado é que Angelo Agostini teria vivido na França até 1859, quando os
salões caricaturais já eram amplamente divulgados, assim é certo que o autor
conhecia esses trabalhos.
Em 1872 o nome dado por Agostini ao seu salão seria em francês “Salon”. Em 1884 o nome foi então traduzido para Salão, de qualquer forma seria a
mesma nomenclatura.
Um diferencial dos salões de Agostini é que estes não faziam apenas críticas e sátiras, além de se concentrarem nas obras. Havia no trabalho de Agostini
uma clara intenção de educação do olhar do público, uma das técnicas utilizadas
para isso era justamente fazer o contraponto entre a boa arte e aquela ruim, entre
o bom artista e o artista descuidado, entre os resultados do estudo e a falta deste
para a realização de uma obra. As obras da pintora Abigail de Andrade (1864ca1890), por exemplo, foram reproduzidas, identificadas com o título das obras e
o nome da artista e receberam a seguinte apreciação:
“Esta Exma. Sra., conseguio pela perfeição de seu trabalho em numero de 14, chamar a
attenção do público e de toda a imprensa que lhe teceu os maiores louvores. Excusado é dizer
que não faremos excepção a tão merecidos ecomios a jovem e distinctissima artista”. (Revista
Illustrada, RJ, 1884, N.393, ano IX, p 4 e 5)
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Não há nenhum comentário irônico ou cômico, o caricaturista reconheceria o talento da artista e divulgaria suas obras. Nas reproduções das quatro
telas, sendo três naturezas mortas e o quadro Um canto do meu ateliê, não há nenhum traço caricatural ou deformação, pelo contrário, o que se vê é um cuidado
com a reprodução de cada detalhe, o traço do caricaturista se comparado à Joana
D’Arc de Pedro Américo, seria imperceptível, o que se observaria seria um exímio
desenhista, o qual deixaria a obra falar por si mesma. Essas telas ocupariam um
local de destaque no salão, figurando no centro superior da composição.
O salão de 1884 foi bastante ilustrativo da forma de atuação crítica de
Agostini, o qual utilizaria tanto a disposição gráfica das obras nas folhas da revista, quanto as legendas para expressar sua apreciação das obras. Assim, nos salões caricaturais a estratégia da comparação atuaria em dois momentos: primeiro
entre os dois pintores históricos, sendo que embora o crítico note problemas nos
dois artistas, em Américo reconheceria algumas qualidades, elogiando inclusive
aspectos de algumas obras expostas, o que não ocorreria com Meirelles. O Segundo momento comparativo estaria entre os dois e a nova geração de artistas
composta por ex-alunos e pensionistas da academia que estariam ou, teriam ido
estudar na Europa. Entre esses nomes figurariam os irmãos Henrique e Rodolpho Bernardelli, Almeida Júnior e Rodolpho Amoedo. De acordo com as palavras do crítico: “Le monde marche e os novos artistas também. Tanto melhor para
a arte no Brazil. Assim, ao menos, ella irá progredindo”^F. Embora em alguns momentos, nos textos, sejam empregadas palavras duras, a crítica, no geral, é bem
humorada, um outro ponto em comum com as caricaturas. Aliás, ler os textos e
acompanhar os salões é um exercício bastante divertido. Na apreciação da Judith
de Pedro Américo o crítico conseguiria levar o leitor, da tragédia que cerca a cena
da decapitação de Holofernes à comicidade absoluta:
“Na Judith do Sr. Pedro Americo tudo é sacrificado, até o proprio criterio!
Não é preciso ser artista para comprehender que aquella mulher, depois de passar a noite na
tenda de Holophernes a espera que este adormecesse, não perderia seu tempo a enfeitar-se,
antes ou depois de ter executado o seu projecto que consistia em cortar a cabeça do terrivel
guerreiro.
Ora, cortar a cabeça a um typo desses, não é a mesma cousa de que cortal-a a um frango.
Não direi que Holophernes protestasse na occasião, mas, com certeza, o corpo não ficou immovel quando Judith cortou-lhe o pescoço. Uma operação dessas, por mais habil que seja o
operador, não se faz em um segundo, e Judith não ficou repentinamente transformada em
guilhotina.
Holophernes era de carne e osso; por consequencia tinha sangue e este, sahindo simultaneamente do corpo e da cabeça, devia durante a operação, e depois desta, espirrar com força,
correr abundamente e salpicar tudo em redor de si.
Imaginamos então ver Judith sair da tenda com as feições alteradas, pallida, os cabellos em
desordem assim como as vestes, e toda ensaguentada.
Parece-nos que assim devia estar Judith e é d’este modo que o Sr. Pedro Americo a deveria ter
apresentada no seu quadro.
Infelizmente não é assim que a vimos. Calma e placida, sem a menor pinta de sangue e com
as vestes muito direitinhas, assim como o penteado e todos os enfeites que a adornam, Judith
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não parece que acabou de cortar a cabeça de Holophernes, mas sim, que se prepara a cortal-a;
por isso, levantando os braços ao céo, parece pedir a Jehovah que a auxilie em tão arriscada
empreza.”.2
A critica giraria em torno da falta de realismo que a cena apresentaria,
fato que para o crítico seria imperdoável em um quadro histórico. Na caricatura,
publicada no mesmo número do artigo, no canto superior direito da página, uma
mulher ricamente paramentada, com longos cabelos, mão e olhos erguidos para
o céu, foi representada como se estivesse totalmente ausente daquele ambiente, a
cabeça de Holofernes aos seus pés, poderia ser confundida com qualquer outro
objeto. A mulher lembra muito mais um santa em êxtase do que alguém que
acabara de decapitar um homem. Na legenda a falta de realismo seria reafirmada
com a ironia característica de Angelo Agostini: “Judith rende graças a Jehovah
por ter conseguido degolar Holophernes, sem ensangüentar, nem amarrotar o
seu bello toilette, nem as suas lindas mãos. Que limpeza!”
Ao lado dessa exposição negativa de Américo e Meirelles o crítico fez
questão de mostrar as obras dos novos artistas, conforme mencionado anteriormente, portanto, no quarto salão caricatural colocou acima do fragmento da
batalha de Meirelles a tela A fuga da sacra família para o Egito, abaixo O descanso
da Modelo, ambas de Almeida Júnior. Ao lado d’O descanso da Modelo ainda
completaria com duas telas de Rodolfo Amoedo. Essas obras já tinham recebido
uma apreciação escrita com o seguinte comentário:
“O Sr. José Ferraz de Almeida Junior e Rodolpho Amoedo são os que maior sensação tem
causado n’esta exposição.
(...)Estudaram bastante estudaram muito até em razão do pouco tempo que lá estiveram. Por
isso não se póde deixar de admirar os seus grandes progressos.
(...)O Almeida Junior já voltou ha um anno e trouxe comsigo varios quadros, dos quaes,
quatro figuram no nosso salão. São estes: o Remorso de Judas, boa tela pintada com vigor e
sentimento. O derrubador brasileiro, insignificante como composição porem bem executado.
O descanso do modelo, um quadro interessantissimo pelo assumpto e pela excellente execução.
Esse foi exposto no salão em Paris e apezar de haver lá uns tres a quatro mil quadros, conseguio chamar a attenção do publico e teve as honras da reproducção em photogravura.
Não menos digno de louvor é a Fugida para o Egypto, tão mal collocado na exposição da
Academia. A falta de inclinação, dá a esse quadro um reflexo, proveniente da clarabóia,
que não deixa ver quasi a cara da Virgem e a de S. José, e que no emtanto, são pintadas com
muito sentimento”.3
A caricaturista utilizaria nas legendas das obras informações presentes
no artigo crítico, ou alguma posição ou elemento da própria tela. No caso do
Descanso da Modelo aproveitaria o movimento das mãos do pintor, o qual aplaudiria a demonstração que a modelo faria ao piano, para comentar a tela: “um
primorsinho que obriganos a juntar nossas palmas as do pintor para applaudir o
2
Revista Illustrada, RJ, N.391, 27/09/1884, p.3, “Salão de 1884 – II”
3
Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.392, out/1884, p.3 e 6, “Salão de 1884 – III”
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Sr. Almeida Junior”. Já na Fuga da sacra família para o Egito, questionaria o fato
da água não exibir movimento após ser tocada pelos pés do animal, observação
anteriormente realizada na crítica escrita: “Houve um descuido bastante sensivel
na execução da agua. As patas do animal deveriam agital-a e ella está tranquilla”.
Sem deixar de apontar o problema, brincaria na legenda com o movimento da
cabeça do burro, como se o animal estivesse curioso: “O cuidadoso burro da
Sacra família (não é do Jinguá) procura ver de perto se aquillo em que pisa é água
ou outra cousa”.
A arte gráfica de Agostini estava pautada no seu conhecimento do Brasil
e de sua produção artística. O artista veria nessa expressão artística a possibilidade de circular nos mais diversos meios, de criticar e propor idéias aliando sátira,
humor, exemplos e contra-exemplos. É difícil avaliar o alcance do seu trabalho,
em que medida suas idéias foram ou não incorporadas, mas sua contribuição no
sentido de pensar um amplo contexto cultural, social e político, além de propor
ações, esse parece bastante evidente.
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Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.393, 1884
Fotografia de João Araújo e Ana Cavalcanti a partir do
acervo de Rogéria de Ipanema
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Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.391, 1884
Fotografia de João Araújo e Ana Cavalcanti a partir do
acervo de Rogéria de Ipanema
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Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.392, 1884
Fotografia de João Araújo e Ana Cavalcanti a partir do
acervo de Rogéria de Ipanema
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Os estudos de Portinari
para os murais Ciclos Econômicos
Taís Gonçalves Avancini
UFRJ
Resumo
O presente artigo pretende observar a produção dos murais “Ciclos
Econômicos”, 1936-44, de Portinari que estão localizados no edifício Gustavo Capanema no Rio de Janeiro. Nosso estudo abordará
a relação entre os métodos de ensino da academia e a produção artística de Candido Portinari. Desta forma, será enfatizada a questão
do desenho, da composição e da relação com a tradição na produção dos desenhos, esboços e no resultado final dos murais.
Palavra Chave
Murais, Portinari, Ensino Acadêmico.
Résumé
Cet article a pour but d’observer la production des muraux “Cycles
Économiques”, 1936-44, de Portinari, qui sont situés à l’édifice
Gustavo Capanema à Rio de Janeiro. Notre étude abordera la relation entre les méthodes d’enseignement de l’académie et la production artistique de Candido Portinari. Ainsi, on mettra l’accent
sur la question du dessin, de la composition et de la relation avec
la tradition dans la production des dessins, des croquis et dans le
résultat final des muraux.
Mots clefs
Muraux, Portinari, Enseignement académique.
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O presente artigo pretende apresentar e analisar a produção dos murais “Ciclos
Econômicos”, de Portinari, que estão localizados no edifício Gustavo Capanema
no Rio de Janeiro. O trabalho tem por objetivo destacar o ensino acadêmico
que Portinari recebeu, relacionando-o com sua metodologia de trabalho. Nosso
estudo aborda a relação destes métodos de ensino da academia com a produção
artística de Cândido Portinari tanto no aspecto do fazer artístico e de sua formação, quanto de uma análise plástico-formal de algumas obras do pintor. Desta
forma, será enfatizada a questão do desenho, da composição e da relação com a
tradição na produção dos desenhos, esboços e no resultado final dos murais. Essa
proposta pretende evidenciar as inter-relações entre ensino acadêmico e as novas
proposições da arte moderna que a geração de Portinari vivenciou no campo da
produção artística.
No final do século XIX início do século XX operou-se algumas transformações políticas no país que redundaram na abolição da escravatura e da
proclamação da republica. O país passava por um processo de modernização das
cidades e de mecanização dos meios de produção.
No âmbito do campo artístico do país, a Academia Imperial de Belas
Artes fundada em 1826, transformou-se em Escola Nacional de Belas Artes. A
Escola nesse período passou por momentos de grandes discussões sobre a atualização do ensino artístico. Segundo Gomes Pereira (2008, p.82), as discussões sobre a atualização estiveram calcadas em postulados do ensino acadêmico, como,
a adesão à tradição clássica e as concepções do belo ideal em termos formais,
técnicos e temáticos. Contudo, a decorrência destas discussões não operou uma
transformação significativa nas normas de ensino. Desta forma, como assevera
a autora, diversos conceitos e práticas do ensino acadêmico contribuíram para
a formação artística dos artistas modernos. Traços como o uso de módulos que
garantem a harmonia da composição e primazia da concepção da obra em detrimento da execução técnica. Gomes Pereira (2008, p.83) ressalta que a “questão
doutrinaria e o comportamento normativo foram comuns tanto ao academicismo quanto a grande parte das vanguardas modernas”.
A formação artística das vanguardas modernas teve em grande parte seu
referencial no ensino acadêmico, pois as transformações curriculares mais significativas foram operadas após os anos 30. Gomes Pereira (2003, p.41) propõe
que o ensino acadêmico no século XIX, em artigo escrito sobre a arquitetura e as
belas artes, possuía alguns traços fundamentais na doutrina e prática acadêmica,
a importância do desenho, a invenção de um método compositivo, a constituição
de tipologias e a relação com a tradição.
Nosso estudo abordará a relação destes métodos de ensino da academia
com a produção artística de Cândido Portinari tanto no aspecto do fazer artístico, e de sua formação, quanto de uma análise plástico-formal de algumas obras
do pintor. Traçar essa ligação entre os métodos acadêmicos de ensino vigentes
no fim do século XIX e início do XX com a produção deste pintor será possível
tendo em vista a trajetória de sua formação artística. O pintor estudou no liceu
de Artes e Ofícios a partir de 1919 e na Escola Nacional de Belas Artes a partir
de 1920. Para Ancora da Luz (IN: CAVALCANTI, 2008, p.83) “a formação
acadêmica de Portinari deu-lhe o domínio da técnica do desenho e da pintura”.
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Na Escola, teve como professores Lucílio de Albuquerque, Rodolfo Amoedo, Rodolfo Chambelland e João Batista da Costa. Esse grupo de professores atuou na
Escola em um momento, a partir de 1880, de grandes discussões e atualizações
em termos técnicos, formais e temáticos permeados pelos novos movimentos europeus da pintura, como o realismo, impressionismo, simbolismos e as vanguardas históricas. Segundo Gomes Pereira (2008, p.86), diversos artistas e professores da Escola vão transitar por uma gama variada de estilos “movimentando-se
com desenvoltura num largo campo estético”, desta forma, a arte desta época
estava ligada a uma escolha do estilo adequado à temática. Portinari aprendeu a
importância da técnica com Amoedo atento aos processos tradicionais e aos da
ciência moderna e com Lucílio de Albuquerque, aprofunda a técnica do desenho
figurado.
Dos, já citados, traços da doutrina e da prática acadêmica propostos
por Gomes Pereira será enfatizado a questão do desenho, da composição e da
relação com a tradição na produção e nos murais dos “Ciclos Econômicos” de
Portinari de 1936-44. No caso do desenho, Gomes Pereira (2001, p.80) adverte
a importância de relacionar esse método de ensino centrado no disegno e o desenvolvimento da pintura e escultura do início da modernidade. Para a autora, evidencia-se a prioridade do ensino a essa técnica não só pensando no desenho como
técnica, mas também, como projeto inicial da obra. Desta maneira, o método de
ensino possuía duas etapas, a ideia da obra e sua concretização técnica (GOMES
PEREIRA, 2003, p.41). Segundo a autora (GOMES PEREIRA, 2003, p.42):
Fica evidente que esse método de ensino pretendia desenvolver nos alunos a capacidade conceitual em primeiro lugar e a noção de que o desenho estava diretamente ligado à idéia da
obra – independentemente do tratamento plástico que ela pudesse receber na etapa seguinte.
A composição solicitava ao aluno um plano geral da pintura com todos
os detalhes do desenho figurativo, do tratamento do espaço, da distribuição dos
elementos na tela para uma disposição equilibrada das partes dentro do conjunto. Em relação à tradição clássica, observa a autora (GOMES PEREIRA, 2003,
p.46), que é evidente sua aderência no sistema acadêmico, mas que em uma
análise mais detalhada apresenta diferenciações no interior do próprio conceito
de clássico. Até o século XVIII, a ideia de clássico estava calcada no conceito,
desenvolvido por Alberti, de imitação da natureza e dos antigos. Porém, nesse
mesmo século, novas discussões sobre o modelo clássico ideal vieram à tona nas
academias da Europa. A autora (GOMES PEREIRA, 2003, p.47) observa que
a “chamada tradição clássica não era uma corrente inquebrantável, como usualmente se acredita, mas continha conflitos internos, que envolviam a reavaliação
do clássico e o próprio significado do classicismo”. Sendo assim, conclui a autora
(2003, p.48), que se clássico fosse essa concepção de mundo da ordem do imutável e da arte da imitação, o século XIX nada teria a ver com essa ideia de clássico.
Assim, nesse período, já se operava a desconstrução deste conceito.
Na produção e no fazer artístico dos murais dos “Ciclos Econômicos”,
de Portinari, podemos traçar alguns apontamentos sobre o desenho, a composição e a tradição. No caso do desenho, se evidencia uma forte questão para a
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produção dos murais, devido uma série de estudos realizados por Portinari em
diferentes técnicas crayon, têmpera, carvão, aquarela, guache e desenhos em tamanho natural para transporte na parede. Segundo Carlos Zílio (1997, p.98), o
pintor realiza estudos em que seu ponto de partida era o desenho acadêmico com
todas as regras tradicionais de claro-escuro e de proporção.
Para realização destes desenhos, Portinari realiza uma série de estudos
literários e viagens ao interior onde recolhe imagens de trabalhadores para a elaboração dos murais. Selecionamos para análise alguns murais dos “Ciclos Econômicos” juntamente com seus desenhos em carvão, esboços em guache e o mural
propriamente dito.
O primeiro conjunto de desenho, esboço e mural que será analisado é
o da “Cana de Açúcar”^F de 1938. O estudo “Mãos e Pé (estudo para Cana de
Açúcar)” de 1937/38, que podemos ver na imagem do esboço em guache, no
canto inferior direito, apresenta um desenho atento à definição do corpo humano
em movimento, músculos, articulações e veias. O artista se preocupa com um
desenho bem detalhado do corpo que possa mostrar a força e a grandiosidade do
trabalhador. Esse estudo em carvão apresenta um desenho nos moldes clássicos
demonstrando a preocupação do pintor com a técnica. No desenho do mural
de 1938, observa-se a mesma preocupação formal nos detalhes dos corpos das
figuras e na composição da cena. O desenho apresenta um tratamento de espaço
em perspectiva através da plantação de cana de açúcar que percorre todo o lado
direito até a parte superior da composição. Em diferentes planos da cena são dispostas as figuras humanas. O homem que carrega um monte de cana de açúcar
no primeiro plano é o ponto central da composição. A maquete de “Cana” já
apresenta as mudanças plásticas do mural. O mural “Cana” apresenta um tratamento mais limpo de detalhes da figuração e do próprio espaço, que começa a
ficar mais geometrizado. Ao fundo da composição a plantação de cana desaparece e é substituída por planos geométricos. O uso do branco e do cinza no jogo do
claro-escuro para dar luminosidade à composição. Todas essas mudanças trazem
um tratamento mais sintético no resultado final dos murais:
enquanto procura de uma expressão sintética, pela qual a natureza, os elementos arquitetônicos e os acessórios são índices referenciais de diferentes situações; enquanto representação
das figuras através de manchas cromáticas e não de um detalhamento realista apesar de sua
densidade escultórica. (FABRIS, 1996, p.69).
Desta forma, podemos entender o caminho compositivo que Portinari
traça até o resultado final do mural “Cana de açúcar”. No desenho temos uma
composição mais detalhada e, no mural, a síntese dos elementos plásticos. Porém
a organização da cena e dos elementos compositivos, por mais sintéticos que
sejam, são predominados por soluções renascentistas e do “retorno a ordem”.
Para Fabris (1996, p.69 e 70), o conjunto de murais dos “Ciclos Econômicos”
apresenta soluções do Renascimento italiano pela
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X X X Colóquio CBHA 2010
a síntese dos meios expressivos, a essencialidade da composição, a contenção psicológica, o despojamento de gestos e fisionomias, a espacialidade racionalizada, a temporalidade articulada
em vários momentos significativos, embora suspensos, imobilizada.
No conjunto de “Café”^F o desenho em carvão apresenta detalhamento
das figuras humanas e da cena. Ao fundo, a cena de um campo de café com
homens trabalhando na plantação. A mulher sentada, à esquerda, confere um
peso à composição, que é equilibrado pelo homem, à direita, que carrega uma
saca de café. Duas linhas verticais aparecem para emoldurar a cena, à esquerda
um monte de sacas de café e, à direita, a linha que vai do carregador de sacas, à
pilha de sacas atrás dele e de um outro trabalhador, ao fundo, na mesma linha. O
esboço em guache apresenta as soluções sintéticas que o pintor irá transpor para o
mural. O mural apresenta a mesma disposição do desenho, porém a plantação ao
fundo foi suprimida em lugar de planos geométricos de cores proporcionando a
sensação de um solo ou muro. Para Zílio (1997, p.97), nesse mural, Portinari “irá
introduzir uma divisão da superfície por planos, no qual alguns darão a sugestão
de profundidade, enquanto outros estarão no plano correspondente a superfície
do muro”.
O carregador de saca à direita apresenta pés, mãos e rosto com uma
solução diferente do desenho dando um tom de calejamento para o corpo do
homem. O pintor opta por cores terrosas e por massas de branco nas roupas dos
trabalhadores e planos geométricos de branco para realizar o efeito de luz.
Em todo o conjunto de murais percebe-se que o pintor tenta conciliar elementos da concepção de espaço do renascimento italiano com soluções
geométricas. O crítico Mario Pedrosa (1981, p.16) destaca de forma precisa as
soluções que Portinari tende a buscar “constantemente, uma síntese fugidia, dramática na sua precariedade, entre o plástico e o abstrato, entre puro pictórico e a
vida. Esse dualismo deu o drama à sua obra anterior. Dá à obra atual. E continuara a dar à sua obra futura”.
Nossa próxima análise centrar-se-á no mural “Fumo”, seu desenho em
carvão e esboço em guache. O desenho em carvão possui um detalhamento de
toda a cena, com a plantação, ao fundo, e os pés de fumo por todos os lados da
composição. O tratamento das figuras é dado de forma a demonstrar detalhes
do corpo, membros e feições do rosto. O espaço é apresentado em perspectiva e
profundidade até a plantação de fumo ao fundo. O desenho é composto por uma
mulher sentada no canto inferior esquerdo em contraposição a um grande pé de
fumo no canto inferior direito. Quase ao centro da composição, um homem que
lida com um pé de fumo e seu chapéu é o ponto de intersecção do conjunto. Ao
fundo esquerdo um homem de costas na mesma posição que o homem localizado
na parte central da composição, o que evidencia, a massa humana no centro do
quadro. No canto superior esquerdo, uma mulher que segura um jarro na cabeça,
logo atrás dela, uma casa. À direita, ao centro superior, um outro trabalhador
tomando água, sua figura contrabalança as outras duas figuras de homens na
composição formando um triângulo. Ao fundo da composição, no canto superior direito, outra mulher, que é a mesma que segura o jarro no canto superior
esquerdo. Para Zílio (1997, p.99), neste desenho de “Fumo” a solução do artista:
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X X X Colóquio CBHA 2010
“Permanecia o sentido de profundidade, as figuras mantinham uma relação em
perspectiva, bem como o fundo realista em que apareciam os detalhes da plantação, tudo isso sob a iluminação de uma fonte única”.
No esboço em guache de “Fumo” o artista apresenta as soluções da obra
toda modificada para o que seria o resultado final, o mural. O mural “Fumo”
apresenta diversas alterações plástico-formais em relação a seu desenho em carvão. O artista retira todo o detalhamento que havia dado à plantação de fumo
e aos pés de fumo. A plantação de fumo, ao fundo, é suprimida e restam apenas
três pés de fumo ao longo de toda a composição. As figuras humanas aparecem
com menos detalhes e o homem que estava de frente, no centro da composição,
também é suprimido. O espaço compositivo em perspectiva e com profundidade
do desenho, no mural, aparece em planos geométricos de cor. O mural apresenta
de forma expressiva essa inter-relação de soluções plásticas da tradição clássica
com as novas soluções advindas da arte moderna.
O presente trabalho procurou evidenciar a trajetória do fazer artístico
de Portinari em alguns murais do conjunto “Ciclos Econômicos” observando as
questões do desenho, composição e da tradição advindos do ensino acadêmico
do final do século XIX e inicio do XX. Através da análise destes murais e de seus
estudos podemos destacar alguns pontos relevantes sobre o desenho, a composição e a relação com a tradição.
No caso dos desenhos de Portinari, para os murais, destaca-se a tendência de trabalhar com o desenho como projeto inicial da obra, ou seja, toda
a concepção de como seria o conjunto da obra está detalhada no desenho. Os
desenhos apresentam a preocupação do pintor em definir a atmosfera da obra,
sua composição e todo o detalhamento figurativo. Portinari traz, de sua formação artística, essa característica de conceber a obra inicial através do desenho. O
desenho significava estudo e atenção ao tema e a técnica proposta. Portinari foi
um pintor que nunca dissociou sua obra e seu fazer artístico (labor) da realidade
social em que estava inserido. Os desenhos de Portinari trazem soluções realistas e do renascimento italiano no que concerne a um espaço em perspectiva e
profundidade. Segundo Zílio (1997, p. 92), Portinari organiza sua pintura num
espaço determinado pelo volume e ilusão de profundidade.
Diante do exposto, destacaremos alguns pontos do desenho de Portinari que se modificam no resultado final do mural, como vimos nas análises. O
pintor ao transpor o desenho em carvão para o esboço em guache, e após, para o
mural, modifica diversas soluções plásticas que inicialmente tinha concebido de
forma realista e com elementos do renascimento italiano. O pintor propõe uma
concepção de desenho mais sintética e arrojada, o espaço fica em planos geométricos e a figuração é concebida através de massas de cor nos quais os corpos são
agigantados, principalmente mãos e pés. Nesse momento, observamos a tentativa
de conciliação do pintor entre a tradição do desenho realista e renascentista e das
novas soluções plásticas advindas dos movimentos modernos. Segundo Ancora
da Luz (IN: CAVALCANTI, 2008, p.8),
460
X X X Colóquio CBHA 2010
Por um lado ele buscou o espaço cúbico, em conformidade com as regras acadêmicas, mas
por outro rompeu com estas mesmas normas em relação ao tratamento do canônico da figura
humana. Perseguiu o equilíbrio da composição, mas através da tortura das formas.
No que concerne à composição podemos observar que os desenhos para
os murais traziam soluções equilibradas em relação à disposição dos elementos
no conjunto e a concepção espacial da perspectiva e profundidade. Segundo o
próprio pintor (Portinari Apud Fabris, 1996, p.153), cada detalhe de suas composições “... são diretamente arrancados da realidade, mas o conjunto do quadro
é composto pela visão que o pintor tem dessa realidade”.
Nos murais, a composição se torna um jogo intercalado entre as figuras
humanas e os espaços em planos. As figuras humanas agigantadas são destacadas em relação ao ambiente provocando uma desarmonia na composição. Como
destacou Fabris (1979), a deformação anatômica cria um choque entre figura e o
ambiente. Desta forma, podemos observar que a composição, em Portinari, passa
por uma mudança em sua concepção, do equilíbrio a um “choque” entre os elementos. Esse “choque” despoja de forma sintética toda a composição na relação
entre figuração e espaço.
A tradição do ensino acadêmico pode ser observada na formação artística do pintor e na sua trajetória metodológica de produção dos murais. Ficou
evidenciado que Portinari busca a primazia de um método de estudo (os esboços
em desenho) e a escolha de sua paleta nos estudos em guache para concretizar
sua obra. Os estudos atentos a todos os detalhes da composição lhe dão segurança
para partir a um desenvolvimento de sua forma plástica. Portinari parte do desenho e da composição tradicional (acadêmica) para desdobrar em novas soluções
plásticas que conciliam elementos da arte moderna e do renascimento italiano.
Outro ponto importante é a questão da terra, do solo e do ambiente que
será sempre uma preocupação concreta do pintor com a realidade e, sua escolha,
nunca se desconecta da concepção espacial renascentista. Para Ancora da Luz
(IN: CAVALCANTI, 2008, p. 87),
fiel a terra, ele não eliminou as linhas de fuga e manteve o seu olhar paralelo a linha do
horizonte, conforme se observa nos estudos preparatórios que realizou para suas pinturas,
garantindo a presença do chão e, com ele o espaço perspéctico.
A busca de uma expressão mais sintética para suas obras fez o pintor despojar suas formas conciliando com sua concepção de mundo universal. Portinari
nos apresentou um trabalho permeado pelas suas experiências acadêmicas e pelo
seu espírito de renovação, demonstrando assim, sua crescente vontade de dialogar
com as tendências mais recentes em arte.
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Referências Bibliográficas:
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DAZZI, Camila e VALLE, Arthur (org). Oitocentos - Arte Brasileira do Império a Primeira República. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ/DezenoveVinte, 2008.
FABRIS, Annateresa.. Cândido Portinari. São Paulo: Ed. USP, 1996.
_________________. Portinari: estudos para os painéis do Ministério da
Educação no Rio de Janeiro. São Paulo: MAC/USP, 1979.
OLIVEIRA, Myriam Andrade; PEREIRA, Sônia Gomes e DA LUZ, Ângela
Ancora. História da arte no Brasil: textos de síntese. Rio de janeiro: Editora de
UFRJ, 2008.
PEDROSA, Mario. Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.
PEREIRA, Sônia Gomes. “Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro: revisão historiográfica e estado da questão”. Revista Arte & Ensaios, n.8,
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– uma discussão sobre o ensino acadêmico do século 19”. Revista Arte & Ensaios, n.10, 2003, p.40-49.
PEREIRA, Sônia Gomes. A questão do moderno na arte e no ensino da arte
na passagem do século XIX para o século XX. CAVALCANTI, Ana Maria
Tavares, DAZZI, Camila e VALLE, Arthur (org). Oitocentos - Arte Brasileira
do Império a Primeira República. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ/DezenoveVinte,
2008.
ZÍLIO, Carlos. A Querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira:
a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, 1922-1945. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1997.
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1938
Pintura a guache e grafite/papel
70 x 50 cm (aproximadas)
Rio de Janeiro, RJ
Sem assinatura e sem data
Números distribuídos sobre a imagem correspondendo à
numeração da escala de cores
Banco Bradesco, Osasco,SP
463
X X X Colóquio CBHA 2010
1938
Desenho a carvão/papel kraft
250 x 294 cm (estimadas)
Rio de Janeiro, RJ
Sem assinatura e sem data
Coleção desconhecida
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1938
Pintura mural a afresco
280 x 294 cm
Rio de Janeiro, RJ
Sem assinatura e sem data
Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, RJ
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Raymond Quinsac Monvoisin:
a trajetória do artista
no Continente Americano
(1842-1857)
Valéria Alves Esteves Lima
UNIMEP
Resumo
Durante dezesseis anos, o pintor francês Raymond Quinsac Monvoisin circulou entre Argentina, Chile, Uruguai, Peru e Brasil. Sua
produção artística é numerosa e sua atuação nos diversos ambientes
por onde circulou é exemplar do trânsito de artistas estrangeiros na
América do Sul durante o século XIX. Este trabalho busca mapear
a presença do pintor na América, enfatizando seu contato com grupos políticos, intelectuais e comitentes, considerando as condições
de sua atuação, os esquemas de recepção à sua obra e as características de sua produção americana.
Palavra Chave
Raymond Quinsac Monvoisin (1790-1870); pintura; arte e política.
Abstract
During sixteen years, the French painter Raymond Quinsac Monvoisin lived and worked in Chile, Argentina, Uruguay, Peru and
Brazil. His artistic production is large and its performance in each
of the many places he worked is exemplary of the presence of foreign artists in South America during the 19th century. This paper aims to map Monvisin’s presence in America, emphasizing his
contact with political groups, intellectuals and patrons, considering the conditions of his performance, the reception of his work
and the characteristics of his American production.
Key-words
Raymond Quinsac Monvoisin (1790-1870); painting; art and
politics.
466
X X X Colóquio CBHA 2010
Se há algo que se possa afirmar, com segurança, a respeito das trajetórias dos
inúmeros artistas europeus que circularam pelo continente americano durante
o longo século XIX é que tiveram a oportunidade de testar a si mesmos e à sua
arte, de rever seus pressupostos e paradigmas e, ao se submeterem a tais “provações”, acabaram por testemunhar e protagonizar momentos fundadores de uma
nova e específica maneira de inserir a arte nos movimentados contextos latino-americanos dos Oitocentos. Se, de uma parte, os cenários não pareciam “à altura” de sua experiência européia, debilitados que estavam pela longa e histórica
condição colonial, de outra parte, devemos reconhecer que a “insuficiência” ou
o “despreparo” de tais cenários podem ser avaliados em outra chave. Na quase
totalidade dos casos, os artistas que acabaram por ser reconhecidos como referências fundamentais para o desenvolvimento das artes no continente americano,
teriam certamente permanecido artistas obscuros e de tímida inserção em seus
ambientes de origem. Assim, a excelência do ambiente europeu não teria trazido,
para estes artistas, a oportunidade que conquistaram ao optarem pela experiência
do exílio, motivados pelas mais diversas e particulares razões.
Em exatos quinze anos, o artista francês Raymond Quinsac Monvoisin,
nascido em Bordeaux, em 1790, percorreu várias regiões americanas. De Buenos
Aires a Santiago, de Santiago a Lima e ao Rio de Janeiro, de volta a Santiago
para uma segunda estada, o artista também empreendeu algumas curtas viagens
e permanências em outras cidades, mas sua atuação deu-se, sobretudo, nas capitais argentina, chilena e peruana. No Brasil, sua passagem foi rápida, ainda que
tenha produzido suficiente material para polêmicas e debates no cenário artístico
do Império. Tal divisão, mais do que referir-se a um ordenamento cronológico linear, aponta para distintas condições de inserção do artista nas realidades
americanas, consideradas as especificidades históricas e sócio-culturais de cada
um destes universos. É possível, assim, identificar a forma como a presença de
Monvoisin alterava, movimentava e definia aspectos dos diversos mundos da arte
em que se inseriu.
Aproximações ao contexto da viagem
Desde as últimas décadas do século XVIII e, sobretudo, no momento de afirmação e consolidação dos novos Estados americanos, foi comum encontrar
membros das elites crioulas em centros europeus, principalmente em Paris. Tal
condição permitiu a Monvoisin contar com um forte incentivo para sua vinda
ao Chile. No final da década de 1820, o pintor, que residia em Paris desde 1816,
conheceu Mariano Egaña, Encarregado de Negócios do Chile em Paris, dando
início a um intenso contato com intelectuais e políticos chilenos que acabaria
por levá-lo à América. A alguns jovens chilenos residentes na cidade, Monvoisin
deu aulas de desenho, além de realizar importantes retratos de todas essas personalidades, alguns dos quais tiveram uma circulação no ambiente santiaguino,
a partir do final dos anos 1820. Tais contatos constituem, assim, um elemento
fundamental para iluminar a história da circulação de Monvoisin pelo continente e, particularmente, suas relações artísticas em Santiago.1
1
Estas relações estão bem tratadas em FELIÚ CRUZ, Guillermo. La sociedad chilena que conoció Monvoisin. In: VVAA. Exposición de Raymond Quinsac Monvoisin (1790-1870). Santiago: Instituto de Exten-
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X X X Colóquio CBHA 2010
Determinante, porém, para sua vinda foi a atuação de Francisco Javier
Rosales, que dirigia a Legação Chilena em Paris no ano de 1842, quando se efetivaram as condições para a sua viagem. Favorecido por um contexto de estabilidade política que inspirava realizações no campo da educação e da cultura, o governo de Manuel Bulnes havia, no ano anterior, dado os primeiros passos para a
organização de uma escola de desenho aplicado às artes e à indústria, bem como
de uma escola de pintura, enviando à Europa o jovem Antonio Gana. Financiado
pelo governo, Gana faria estudos de belas artes na França, a fim de se capacitar
para assumir a condução daqueles estabelecimentos. Em meio ao cumprimento
desse objetivo, porém, Rosales resolve apresentar Monvoisin ao governo, sugerindo que sua presença seria garantia do sucesso dos empreendimentos planejados
pela administração Bulnes. No início de 1842, Monvoisin elabora projetos para
a organização de uma escola de pintura, escultura e arquitetura em Santiago, que
logo foram encaminhados por Rosales ao Ministro das Relações Exteriores do
Chile, efetivando as condições oficiais de seu projeto americano^F.
Às condições oficiais favoráveis somaram-se necessidades pessoais e
profissionais de Monvoisin, reiteradamente consideradas nos estudos sobre o pintor. No âmbito pessoal, afirma-se que Monvoisin ressentia-se profundamente da
separação de sua mulher, a também artista Domenica Festa, miniaturista italiana
que conhecera durante sua estada em Roma, entre 1822 e 1825. Intrigas pessoais
e uma saúde debilitada complementam o quadro das necessidades privadas que
teriam levado o pintor a optar pela transferência para solo chileno. No campo
profissional, um cenário no qual se misturavam uma carreira que não decolara,
as condições adversas de um meio artístico que impunha regras às quais Monvoisin não se dignava obedecer e a impossibilidade de permanecer no ambiente
artístico que desejava sem apoio institucional, completa o quadro de motivações
para a decisão do artista, então com 52 anos, de seguir o caminho já trilhado por
diversos europeus naquele século: a jovem e promissora América independente.
A experiência americana
Buenos Aires: curta e produtiva estada
Para muitos de seus comentadores, a fase argentina de Monvoisin recolhe o melhor de sua produção artística no continente. Entre as obras que marcam este
período estão as exaustivamente reproduzidas telas encomendadas pelo Barão
Picolet d’Hermillon, à época Cônsul Geral da Sardenha e um dos primeiros
contatos de Monvoisin na capital portenha: El Gaucho Federal, Soldado de Rosas
e Porteña en el templo. O Barão pertencia à comunidade franco-inglesa residente
em Buenos Aires e que constituía, na época, importante segmento do público
capaz de admirar e estimular o trabalho de Monvoisin. Indo residir no mesmo
bairro ocupado por esta comunidade, o artista definia a escolha de seu público
e de seus comitentes, selecionados entre os membros das elites locais, das quais
sempre buscou se aproximar em todas as cidades por onde passou. Em Buenos
Aires, Monvoisin foi assíduo freqüentador da residência dos Lezica-Thompson,
sión de Artes Plásticas, UC, abril 1955, pp. 8-23. Ver, também, a biografia do artista por JAMES, David.
Monvoisin. Buenos Aires: Emécé Editores S.A., 1949.
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X X X Colóquio CBHA 2010
conhecidos por receber em seus salões – as famosas tertulias porteñas – , viajantes
das várias partes do mundo. Entre os contatos do pintor em Buenos Aires, destacam-se algumas famílias ligadas ao comércio internacional, para quem o artista
realizaria uma série de retratos. Segundo David James, biógrafo do artista, este
agrupamento de dinastias comerciais em Buenos Aires proporcionou a Monvoisin uma condição extremamente confortável, tanto no que diz respeito à sua ambientação pessoal, quanto às possibilidades de seu sucesso profissional. Também
dignas de nota são as observações feitas pelo mesmo autor referentes à circulação
das obras do Barão d’Hermillon, realizadas por Monvoisin, entre os membros
destas famílias, após a partida do Barão para o Rio de Janeiro, em 1848.2
Entre os vários retratos pintados nessa ocasião, um deles se destaca. Trata-se do retrato de Juan Manuel de Rosas em trajes gauchescos, avaliado como
um estudo, mas que é considerado um dos mais fiéis registros do ditador argentino, além de ser um excepcional exercício de retratística (Imagem 1). Alguns
autores dão notícia de que Monvoisin teria sido convocado por Rosas para pintar
o seu retrato, atitude que resultaria comum, não fosse a apregoada desconfiança
do ditador para com todos os franceses. Outras fontes atribuem a encomenda do
retrato ao mesmo Barão d’Hermillon.^F Sabe-se, todavia, que a obra apresenta
grande fidelidade com o modelo e que foi levada por Monvoisin para o Chile,
onde teria servido como modelo para a realização de um retrato eqüestre de Rosas, mais tarde desaparecido, segundo fontes contemporâneas^F.
Pereira Salas, estudioso da obra de Monvoisin3, afirma que Buenos Aires
ofereceu ao artista o primeiro e definitivo contato com o exotismo da paisagem
natural americana e com as idiossincrasias locais, momento que o artista, já tendo manifestado sua aproximação com os ideais românticos, viu-se impelido a
lidar com o incomensurável da natureza, com o arbitrário da política e com o
pitoresco social. Segundo o próprio Monvoisin, foi a ameaça rosista que o fez sair
de Buenos Aires em condições muito pouco favoráveis. Em suas notas, narra com
intenso toque romântico as vicissitudes de sua fuga pelos pampas argentinos e a
penosa travessia dos Andes, até chegar a Santiago, no final de janeiro de 1843^F.
Um artista de “reputação verdadeiramente europeia”
As palavras de Rosales fundamentam as expectativas da administração Bulnes e
do público informado da capital chilena quanto à presença de Monvoisin no país.
Se havia algo que funcionasse como uma espécie de lastro à atuação do pintor
no seio da sociedade santiaguina, este algo era certamente seu passado europeu e
sua formação no interior de uma destacada tradição artística. Na capital chilena,
Monvoisin logo foi acolhido e instalado, tendo contado com todas as facilidades
institucionais. Seu reconhecimento entre a elite local rendeu-lhe, de imediato,
várias encomendas de retratos, mas o artista deveria, também, dar conta de sua
missão oficial, função que logo lhe pareceu incompatível com seus interesses particulares. Monvoisin logo deu a ver ao governo que o empreendimento desejado
requisitaria todo o seu tempo e atenção, considerando o despreparo do meio para
2
Cf. JAMES, op. cit., p. 41.
3
Cf., em especial, PEREIRA SALAS, Eugenio. La existencia romántica de un artista neo-clásico. IN:
VVAA, op. cit., pp. 40-55.
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as questões artísticas Os projetos do governo acabaram, portanto, sendo postos
de lado, condição para a qual provavelmente deve ter contribuído a dificuldade
do governo em cumprir com os investimentos necessários aos mencionados projetos.
Mesmo desligando-se da tarefa para a qual Bulnes o designara, Monvoisin continuou, por um tempo, vinculado ao ensino artístico. Entre seus alunos
esteve a argentina Processa Sarmiento, irmã de Domingos F. Sarmiento, conhecido intelectual argentino exilado no Chile, autor de uma das mais importantes
críticas a respeito da exposição realizada por Monvoisin em Santiago, dois meses
após sua chegada ao Chile4. Considerada a primeira exposição de arte no país, o
evento, por um lado, permitiu ao público local admirar e instruir-se com obras
cuja diversidade temática, iconográfica e formal era, para a grande maioria, uma
grande novidade. Por outro lado, porém, apontava os limites de sua fruição, na
medida em que, segundo os comentadores da mostra, o público não estava capacitado para compreender tal diversidade e seus significados. O sucesso do evento,
além de render a Monvoisin uma significativa renda com a venda dos quadros,
assegurou-lhe novas encomendas^F.
Foi nessa ocasião, provavelmente, que Monvoisin associou-se a Clara
Filleul, jovem artista francesa, com quem abriu um ateliê e passou a trabalhar,
repartindo as tarefas na confecção dos retratos, apontados por muitos comentadores como produtos da “fábrica de Monvoisin”, considerando as fórmulas
e convenções estabelecidas pelos artistas para atender às contínuas encomendas.
Damas da sociedade, destacados homens da política e do mundo intelectual,
famílias tradicionais, bem como altos dignitários do Estado, ganharam versões
em suas telas, cujos tamanhos, formatos e qualidade dependiam do tipo de encomenda e da importância do retratado. O retrato do presidente Bulnes, de corpo
inteiro e em trajes oficiais, ainda que sem grandes novidades iconográficas, registra a importância da chamada “Geração de 1842”, responsável pelas iniciativas
que impulsionavam a vida social e artística chilena naquele momento (Imagem 2).
Inspirado pelo sucesso obtido no Chile e, segundo fontes, estimulado
por contatos também realizados na França com o pintor peruano Ignacio Merino, Monvoisin realiza algumas curtas estadas no Peru, entre 1845 e 1847. Consta
que, em meados de 1845, teria partido com Clara Filleul para Lima, onde realizou vários retratos, entre eles, o do presidente peruano Marechal Ramón Castilla.
Com os ganhos com sua produção em Lima, Monvoisin adquiriu, quando voltou
para o Chile, uma propriedade rural, “Los Molles”. Desejando reconstruir ali a
sua vida, o pintor decide ir a Paris, na tentativa de trazer consigo a ex-mulher e a
filha. A caminho da França, em abril de 1847, passa novamente em Lima, onde
realiza alguns trabalhos. Fracassada a iniciativa que o fez voltar a Paris, vemos
Monvoisin desembarcar no Rio de Janeiro em 15 de outubro desse mesmo ano.
4
Cuadros de Monvoisin. El Progreso, Santiago, 03 marzo 1843. Artigo reproduzido em SARMIENTO,
Domingo Faustino. Obras Completas de Sarmiento – Vol. II – Artículos críticos y literarios, 1842-1853.
Buenos Aires: Luz del Día, pp. 124-129.
470
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Rio de Janeiro: curta permanência, impacto no ambiente
Assim como em Buenos Aires, quando de sua primeira entrada em terras americanas, Monvoisin permaneceu por pouco tempo na capital do Império brasileiro,
mas provocou uma significativa movimentação no ambiente artístico carioca. O
país já contava, naquele momento, com uma academia de reconhecida importância e atuação no campo das artes, bem como com um mundo artístico que se
vinha organizando em torno não só da Academia de Belas Artes carioca, mas em
função da presença contínua de artistas estrangeiros no país e da determinante
atuação da imprensa, veículo dos mais significativos escritos de arte do período.
Dessa maneira, quando Monvoisin desembarca na baía de Guanabara,
não se vê assediado por uma elite ávida por seu talento retratista, ainda que
logo entre em contato com a Corte e execute um grande retrato de d. Pedro II
em trajes majestáticos5, que apresenta na Exposição Geral de Belas Artes, em
dezembro de 1847 (Imagem 3). A tela foi motivo de um inflamado debate travado nos jornais da época^F, em artigos que contrapunham a defesa da obra e do
artista às críticas anônimas de um articulista que insistia em afirmar que Monvoisin limitara-se a retratar os atributos da realeza, mas esquecera do principal:
“a realeza mesma, essa ficou no pincel”. O mais curioso é saber que seu defensor
foi o italiano Alessandro Ciccarelli, pintor que iria ocupar o cargo de primeiro
diretor da planejada Academia de Pintura, fundada em Santiago do Chile em
1849. Aderindo aos elogios publicados por outros articulistas, Ciccarelli enfatiza
o aspecto missionário da atuação de Monvoisin na América, chamando-o de
“apóstolo da América espanhola”, provavelmente sugerindo uma interpretação
semelhante para si e para os artistas europeus que por aqui circularam...
Da passagem de Monvoisin pelo Rio de Janeiro, três obras devem ainda
ser mencionadas: um auto-retrato ostentando a medalha da Ordem Imperial do
Cruzeiro, que lhe fora atribuída por d. Pedro II em janeiro de 1848; o retrato de
um Jovem Araucano, que consta ter sido ofertado ao Imperador pelo Cônsul Geral do Chile, em 1849, e uma paisagem, gênero pouco contemplado pelo artista,
que se mistura ao universo das vistas produzidas pelos artistas estrangeiros no
Rio de Janeiro.
O regresso ao Chile, outras impressões da América
A curta ausência de Monvoisin do solo chileno marca, porém, uma mudança notável em sua produção durante os anos de 1848 e 1857. De volta ao Chile, estabelece-se em “Los Molles”, onde executa uma série de murais com temas
mitológicos. Em paralelo, instala um ateliê em Santiago e outro em Valparaíso,
onde dá prosseguimento à produção de retratos para a elite local.
A partir da década de 1850, porém, a produção artística de Monvoisin
diversifica-se, atendendo a encomendas de temática religiosa e histórica, para
além dos retratos, que todavia seguem fazendo parte de seu exercício artístico.
5
A tela pertence ao acervo de D. João de Orleans e Bragança, a quem agradeço pela gentileza de permitir
a reprodução da obra e sua apresentação nesse trabalho. Devo, também, agradecimentos ao Setor de Museologia do Museu Imperial de Petrópolis, onde a obra esteve exposta como parte da exposição “Retratos
no estrangeiro: o Brasil imperial nos ateliês franceses”, com curadoria de Maria de Fátima Moraes Argon
e Maria Inez Turazzi (out. 2009- out. 2010).
471
X X X Colóquio CBHA 2010
Obras de temática religiosa e relacionadas à história passada e presente do Chile
complementam, então, a galeria de Monvoisin. É bem verdade que as cenas religiosas resultaram do mesmo processo dos retratos, isto é, foram encomendas que
renderam ao artista um significativo provento. Já as composições históricas, para
as quais inclusive realiza uma viagem à região de Araucânia, em busca de referências documentais, despertam o interesse para mais profundas investigações^F.
Inspirando-se em temas da história local, passada e contemporânea, Monvoisin
trabalha sobre alguns temas que funcionariam como uma espécie de vínculo
permanente com a América. Trabalhos como A abdicação de O’Higgins, as cenas
dedicadas ao episódio do naufrágio da barca Joven Daniel e à personagem lendária de Elisa Bravo, bem como aquelas inspiradas na história do chefe indígena
Caupolicán, ilustram esta fase da produção pictórica de Monvoisin, chamando
nossa atenção para os mecanismos de confecção, recepção e circulação destas
obras na Europa e na América. Depois de seu retorno definitivo à Europa, seguiu
pintando e produzindo litografias que testemunham suas derradeiras inspirações
chilenas.
472
X X X Colóquio CBHA 2010
Retrato de Juan Manuel de Rosas, 1842
Ost, 100 x 80 cm.
Museu Nacional de Belas Artes, Buenos Aires.
473
X X X Colóquio CBHA 2010
Retrato do General Manuel Bulnes Prieto, 1843
Ost, 228 x 140 cm.
Museu Histórico Nacional, Santiago do Chile.
474
X X X Colóquio CBHA 2010
Retrato de D. Pedro II em trajes majestáticos, 1847
Ost, 295 x 196 cm.
Coleção de Dom João de Orleans e Bragança.
475
X X X Colóquio CBHA 2010
Carlos Julião
e o mundo colonial
português
Valéria Piccoli
Pinacoteca do Estado de São Paulo
Resumo
Carlos Julião é um militar a serviço do exército português a quem
são atribuídos documentos iconográficos conservados em coleções
brasileiras e portuguesas. Esses documentos incorporam representações de tipos sociais do mundo colonial português, ultrapassando
o campo estrito do desenho militar e ganhando um novo interesse para os estudos da História da Arte. Especialmente no caso do
Brasil, as figurinhas desenhadas por Julião precedem o registro dos
tipos sociais operado pelos viajantes do século 19.
Palavras chave
Carlos Julião (1740-1811); Viajantes/ Brasil/ século XVIII; Arte
figurativa/ Portugal/Brasil/ século XVIII
Abstract
Carlos Julião is military man serving under the Portuguese Army
who is supposedly the author of iconographical documents in Brazilian and Portuguese collections. Once those documents are related to the depiction of social characters from different Portuguese
colonies they go beyond the specificity of the military drawing,
reaching an interesting status as Art History. Concerning Brazil,
specifically, the human figures by Julião are far ahead the social
types depicted by the traveler-artists of the 19th century.
Key-words
Carlos Julião (1740-1811); Traveller artists/ Brazil/ 18th century;
Figurative art/ Portugal/Brazil/ 18th century
476
X X X Colóquio CBHA 2010
Esta comunicação tem origem em minha tese de doutorado intitulada Figurinhas
de brancos e negros: Carlos Julião e o mundo colonial português, recentemente defendida no Departamento de História da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP. A tese se propõe à análise de documentos iconográficos cuja autoria é
atribuída a Carlos Julião (1740-1811), militar de origem piemontesa a serviço do
exército português na segunda metade do Setecentos. Integram esse conjunto
duas peças cartográficas conservadas em coleção portuguesa, um álbum de aquarelas na Biblioteca Nacional, Rio Janeiro, bem como duas pinturas pertencentes
ao Instituto Ricardo Brennand, no Recife. Na medida em que nesse corpus observamos a incorporação da representação de tipos sociais provenientes de várias
partes do mundo colonial português, o trabalho de Julião ultrapassa o campo
estrito do desenho militar e ganha um novo interesse para os estudos da História
da Arte.
Especialmente no caso do Brasil, é de se notar a precocidade de seu trabalho na prática do registro dos “tipos”. Cabe esclarecer que, pelo termo “tipos”,
refiro-me à representação isolada de uma figura humana composta a partir da
reunião de certos atributos que a tornam exemplar de um determinado grupo
social. É conhecida a importância que esta prática adquire para a constituição,
no século 19, do gênero do costumbrismo (palavra que emprestamos ao espanhol
em falta de tradução adequada em português), gênero este popularizado pela
literatura de viagem. E, de fato, as “figurinhas” de brasileiros desenhadas por
Julião antecedem em algumas décadas o registro dos tipos sociais amplamente
praticado pelos chamados “artistas viajantes” do Oitocentos. Diante disso, uma
primeira questão se apresentou ao trabalho: em que medida Julião pode ser considerado iniciador da representação de tipos sociais tendo em vista a arte no Brasil?
Por outro lado, a particularidade de tratar-se de um militar desafiava o trabalho
a responder ao menos outras duas indagações: que características específicas a
formação militar confere ao seu trabalho iconográfico? Sendo militar, como se
relacionava com tradições de um gênero artístico?
Algumas palavras sobre Carlos Julião
Julião é mais um entre os inúmeros funcionários que a Coroa portuguesa colocou “on the move” – para usar a expressão cunhada por Russel-Wood1 –, a
circular pelo espaço colonial espalhado em quatro continentes. Não é, portanto,
personagem citado em dicionários e para uma reconstituição cronológica de sua
trajetória é necessário recorrer a fontes bastante dispersas. As fontes principais
para informações sobre este oficial encontram-se no Arquivo Histórico Militar
(AHM), no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), todos em Lisboa, consultados ao longo da presente
pesquisa.
Julião nasceu na cidade de Turim, então capital do Reino da Sardegna,
em 1740. Iniciou sua carreira militar em Portugal aos 23 anos, no que parece ter
sido uma opção profissional de colocar-se a serviço da coroa lusa, pois, segundo
afirma em documento autógrafo datado de fevereiro de 1781, era “natural da
1
Russell-Wood, A.J.R. The portuguese empire 1415-1808. A world on the move. Baltimore/ Londres: The
John Hopkins University Press, 1998.
477
X X X Colóquio CBHA 2010
Corte de Turim de donde passou a esta de Lisboa, só para adequerir a gloria de
servir a V.a Mag.de Fidelíssima”2 .
A chegada e imediato início de sua carreira no exército luso num posto de oficial – o de segundo-tenente do corpo de bombeiros do Regimento de
Artilharia de Lagos – é indício de que sua formação militar se deu ainda na
Itália. Mais importante para a investigação de sua familiaridade com a esfera
da representação é a afirmação contida no mesmo documento do AHU citado
anteriormente, em que o oficial diz ter sido “constante o exercício e aplicação
que o Sup.te teve em tirar moldes, fazer debuxos, e riscos na reggia academia de
Turim”3, referindo-se à Reale Accademia di Savoia, instituição militar que ele
provavelmente freqüentou.
Esta passagem já nos dá uma idéia de que o desenho fez parte ativa no
processo de formação militar de Julião. Aliás, o conhecimento da matemática e
o exercício do desenho eram recursos de grande importância para o desenvolvimento das atividades dos oficiais da arma de artilharia, em que Julião servia,
como também para os engenheiros militares, responsáveis pelo levantamento
cartográfico, a construção civil e o desenho urbano nos territórios das Conquistas. Entretanto, ainda que Julião tenha desempenhado ao longo de sua carreira
várias atividades que tangenciam as atribuições dos engenheiros, não há um só
documento em que se afirme que ele teve, em qualquer momento de sua carreira,
exercício de engenheiro. Julião era sim um oficial habilitado para o desenho.
É justamente na primeira fase da carreira militar de Julião em Portugal
que encontramos mais evidências de atividades relacionadas ao que chamo aqui
de “esfera da representação”. A este respeito, vale recorrer ainda uma vez ao documento citado do AHU, em que Julião elenca alguns desses trabalhos. O oficial
refere-se, por exemplo, à execução de um “modelo da Fortaleza do Bugio, que
teve a honra de ofreçer ao Serniss.mo Príncipe”, provavelmente uma maquete da
fortaleza de São Lourenço da Cabeça Seca, ou do Bugio – situada no estuário do
Tejo, na altura de Oeiras –, cujo farol fora danificado pelo terremoto de 1755 e
estava sendo reconstruído na década de 1780. Menciona também um “modelo
em piqueno da Estatua Eqüestre, por Fr.co Xavier de Mendonça”, certamente
um modelo em escala da estátua eqüestre de d.José I planejada para ocupar a praça fronteiriça ao Palácio dos Governadores de Belém, edifício este projetado pelo
arquiteto bolonhês Antonio Landi (1713-1791). No mesmo documento, Julião
inclui ainda no rol de suas competências o ensino da fundição de artilharia na
Aula de São Julião da Barra, bem como habilidades de escultor, de que teria dado
provas ao fazer o “retrato em pedra do mesmo Conde de Lippe que o Sup.te aprezentou nas mãos do Snr. e Rey D.n Jozé de Gloriosa memória”.. Essas qualidades
de Julião não deixam de ser notadas, por exemplo, pelo capitão José Sanches de
Brito (?-1797), quando louva a conduta honrada do oficial, que, em sua opinião,
congrega “todas as Artes precizas a hum perfeito Militar, quaes são o desenho, a
Fortificação, a Fundição dos metaes, e a factura d’Artelharia”4.
2
AHU_ACL_CU_035, Cx.6, D.507.
3
Idem, ibidem.
4
A fonte das citações deste trecho é AHU_ACL_CU_035, Cx.6, D.507.
478
X X X Colóquio CBHA 2010
Não se conhece nenhuma outra notícia sobre as peças mencionadas pelo
oficial neste documento. Entretanto, é importante destacar que todas as demais
obras cuja autoria é atribuída a Julião, citadas no início deste texto, se referem ao
período em que o oficial serviu no Estado Português da Índia. Entre 13 de fevereiro de 1774 e 23 de julho de 1780, portanto, seguindo-se à extinção do seu regimento, Julião foi “embarcado” juntamente com outros oficiais para um período
de serviços no ultramar português. Esteve possivelmente sediado em Goa, capital
da Índia Portuguesa, tendo desenvolvido atividades também em Macau. Uma
inscrição em uma de suas obras é indício de que a nau Nossa Senhora Madre de
Deus, onde o oficial servia, tenha aportado na Bahia no retorno a Portugal.
Após 1780, data em que volta para Lisboa, desaparecem as menções de
atividades ligadas ao desenho na carreira de Julião. Em 1795, após 32 anos de
serviços no exército luso, Julião receberia sua primeira patente de oficial superior,
passando a desempenhar suas funções no Arsenal Real do Exército. Quando da
invasão de Portugal pelas tropas de Junot, Julião assumiria o cargo de Inspetor
do Arsenal no lugar do coronel Carlo Napione (1756-1814), que embarcara com
a corte para o Rio de Janeiro. No entanto, ele pouco faria nessa função, já que
o exército português foi praticamente desintegrado diante da presença francesa.
Logo após a Convenção de Sintra, Julião seria destituído do cargo de Inspetor. O
oficial faleceria em Lisboa em 1811, com patente de brigadeiro.
A figuração do espaço colonial
Na verdade, conhece-se, até o momento, apenas uma peça iconográfica assinada
por Carlos Julião, atualmente conservada no Gabinete de Estudos Arqueológicos
de Engenharia Militar (GEAEM), em Lisboa. Trata-se, conforme atesta a legenda, de uma Elevasam, Fasada, que mostra em prospeto pela marinha a Cidade do
Salvador, Bahia de todos os Santos na América Meridional aos 13 gráos de Latitude e
345 gráos e 36 minutos de Longitude, com as Plantas e Prospetos embaixo, em ponto
maior de toda a Fortificação q. defende aditta Cidade. Este prospeto foi tirado por
Carlos Julião Cap.m de Mineiros do Re.to de Artha. da Corte na ocasião que foi na
Nao N.Sa. Madre de Ds. Em Majo 1779.
Elevação e fachada é uma obra já razoavelmente tratada pela historiografia. Foi comprovado por Gilberto Ferrez5 e Nestor Reis6 que o prospecto de
Salvador, assim como as plantas e elevações dos fortes e baterias que compunham
o sistema de defesa da cidade, representados na parte superior da prancha, são
copiados de levantamentos realizados pelo engenheiro militar José Antonio Caldas (1725-1782), mais de 20 anos antes da passagem de Julião pelo Brasil. Não
se pode tomá-los, portanto, como fruto de observação feita a partir do natural.
A originalidade dessa obra no âmbito da produção iconográfica de
cunho militar no Setecentos está justamente na superposição de recortes de figuras humanas a uma vista topográfica, promovendo a identificação entre os
personagens representados e aquele “lugar”. Com exceção das representações de
5
Ferrez, Gilberto. As cidades do Salvador e Rio de Janeiro, no século XVIII. Álbum iconográfico comemorativo do bicentenário da transferência da sede do governo do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB, 1963, p.38.
6
Reis, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: Edusp/ Imprensa Oficial do
Estado/ Fapesp, 2000, p.316.
479
X X X Colóquio CBHA 2010
figurinos militares, abundantes nesta centúria, não foram encontradas outras
manifestações similares nos arquivos portugueses consultados, o que concorre
para acentuar a singularidade do trabalho de Julião. Afinal, o desenho de figura
não fazia parte do corpo de conhecimentos necessário a um militar. O desenho
ensinado nas escolas militares era essencialmente instrumental, e tencionava habilitar o aluno a traçar um perfil, reconhecer e representar acidentes de terreno e
avaliar as possibilidades de ataque e defesa de praças.
A mesma operação se realiza em outro documento não assinado, mas
atribuído ao autor da Elevação e Fachada, também conservado no GEAEM. Neste caso, estão representados na parte superior da prancha prospectos de quatro
cidades de possessão portuguesa, a saber: Goa, Diu, Rio de Janeiro e Moçambique. É fundamental notar a maneira como o autor dispõe as vistas unidas como
se fossem a representação de um mesmo território, ainda que saibamos tratar-se
de cidades geograficamente muito distantes. Na porção inferior, tipos humanos com trajes característicos de várias regiões sob domínio luso no mundo são
apresentadas em fila, como num desfile. Em conjunto, essas imagens evocam a
extensão do domínio português sobre uma diversidade de territórios e povos pelo
mundo (Figura 1).
A figura e o lugar
Texto anteriores já assinalaram a relevância da contribuição da obra atribuída a
Julião no que tange à descrição da indumentária, compreendidos aqui também
os símbolos identitários, como são os adereços e escarificações7. E não me parece casual que ele utilize o termo “traje” ou “modo de trajar” nas legendas que
atribui aos tipos humanos que representa. Para Bluteau8, o traje, ou “trajo” é o
“modo de vestir” e, portanto, se refere mais ao universo dos usos e costumes que
à vestimenta enquanto tal. Se este é o meio utilizado por Julião para representar
as diferenças entre os povos que vivem sob o governo português, esse fato merece
um exame mais detido.
Desde o século XVI, a descrição do traje tem um papel central na maneira como as culturas se decodificam umas às outras. E o entendimento do traje
naquele momento histórico compreendia mais do que simplesmente o vestuário.
Também o gesto, o porte, o decoro contribuíam para a constituição da aparência
e colaboravam para a composição de uma figura-tipo, que vinha a sinalizar o
lugar social do representado.
Conjuntamente com as transformações nos modos de vestir e de se comportar, vemos surgir no Quinhentos no meio mais popular e de maior circulação que é a gravura, coletâneas de imagens que catalogam tipos a partir de sua
vestimenta. Na falta de designação mais apropriada, Defert9 (1989) se refere a
7
Destaco aqui os textos de Lara, Silvia Hunold. “Customs and costumes: Carlos Julião and the image
of black slaves in late 18th century Brazil”. Slavery & Abolition, nr.23: 2 (agosto 2002), p.123-146; e
Tenreiro, Maria Manuela. Portraying the “castes” and displaying the “race”. The paintings of Carlos Julião
and colonial discourse in the Portuguese empire. Tese de Doutorado, Department of Art and Humanities/
School of Oriental and African Studies/ University of London, 2008.
8
Bluteau, Raphael. Vocabulário portuguez e latino, áulico, anatômico, architectonico. Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. Disponível em www.ieb.usp.br/online/index.asp
9
Defert, Daniel. “Un género etnográfico profano en el siglo XVI: los libros de trajes”. In: Histórias de la
480
X X X Colóquio CBHA 2010
essas coletâneas como “livros de trajes”, considerando que constituem propriamente um gênero da ilustração no século XVI. Contudo, adverte o autor, esses
inventários de roupas e adornos não constituem livros de moda, no sentido atual
do termo. A noção de traje no século XVI se associa à de habitus, algo que foi
adquirido e incorporado pelo sujeito por meio de suas próprias experiências. Em
última instância, o habitus implicava uma maneira de aparecer no mundo, de se
mostrar para o outro, uma vez que se reportava à aparência exterior como dimensão visível de um estado geral do sujeito.
As mais importantes coletâneas de estampas dedicadas aos trajes são publicadas entre 1560 e 1610, principalmente na França, Alemanha, Países Baixos e
Itália. Ao analisar dezesseis desses títulos, Defert chama a atenção para o caráter
universalista que eles adquirem enquanto tentativas de catalogação de um amplo
leque de “nacionalidades”. A diferenciação das “nacionalidades” nessas coleções
de estampas se efetua por meio de elementos constitutivos da cultura, quais sejam a vestimenta, o gesto, o porte, o que se cobre e o que se revela, os adornos e
mutilações. Ao decodificar para “uns” a aparência de “outros”, os livros de trajes
se tornam instrumentos da comunicação entre culturas (Figura 2).
Os livros de trajes não se propõe a um inventário completo de todas as
nacionalidades possíveis, mas são uma maneira de ordenação do conhecimento
sobre a diversidade dos povos, segundo o critério da “dignidade” ou da “semelhança”, isto é, daquilo que é mais próximo e, portanto, mais parecido, para o
mais distante e diferente. E aqui, nos parece, reside um ponto estratégico para a
compreensão da obra de Julião. Seu trabalho se ocupa da apresentação de uma
ordem social, a ordem que preside o mundo colonial português e que se constitui
pela diversidade. E, para fazê-lo, o desenhador se vale da centenária tradição dos
trajes, tomados como emblemas de identidade na representação das diferenças.
Por outro lado, não se pode desconsiderar a já citada identificação que
Julião promove entre os tipos e o lugar, representados na mesma prancha. Essa
operação certamente tem também raízes figurativas seja na literatura de viagem
do século 16, seja na cartografia Seiscentista. Basta lembrar Theodore De Bry
(1528-1598) e as ilustrações do primeiro volume das Grands Voyages, que narra
a fundação de uma colônia britânica na atual Carolina do Norte. Ou então as
ilustrações de um elenco de tipos asiáticos no Itinerário de Jan Huygen van Linschoten (1563-1611). Em ambos, coexistem as convenções posturais e gestuais dos
livros de trajes – já, por si, fundamentadas na tipificação clássica da figura – e a
paisagem, tornada um atributo do personagem.
No sentido contrário, ou seja, a figura tomada como um atributo do
território, lembro aqui as carte à figures que ilustram o Atlas major publicado pela
família Blaeu em meados do século 17. Nelas, o personagem com seu traje típico
se soma às vistas de cidades para dar efetiva visibilidade ao território, de outro
modo delineado pelo traçado abstrato da cartografia. Ou seja, ele colabora para a
“descrição” do território, no sentido dado ao termo por Alpers10. Também nesse
Antropología (siglos XVIXIX). Organização Britta Rupp-Eisenreich. Madrid: Ediciones Júcar, 1989.
10
Alpers, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999.
481
X X X Colóquio CBHA 2010
sentido, devem ser lembradas as estampas do Civitates orbis terrarum de Braun e
Hogenberg (Figura 3).
Portanto, tanto o registro dos tipos sociais particularizados por seus trajes, quanto a sua associação a um lugar de que provem, ambos modos de representação utilizados nos trabalhos de Julião, são procedimentos já sedimentados
na cultura artística européia desde o século XVI. Esses modos de representação
se fazem presentes principalmente nas gravuras de ilustração, na cartografia e
nos livros de viagem, gêneros de grande circulação e que se prestam a todo tipo
de transposições figurativas. Isso demonstra que Julião é um observador atento e
informado, sendo certa a sua familiaridade com esse repertório visual.
Os livros de trajes informam Julião na maneira de representar seus tipos
do mundo colonial português. Note-se que a forma nos desenhos de Julião segue
sendo tipicamente setecentesca. Essa “maneira de representar” implica o reconhecimento dos trajes como códigos de identidade, bem como a consciência de
que dispô-los lado a lado faz emergir um quadro da diversidade. A representação
do traje se presta à distinção das culturas, distinção essa que não é racial, mas
“nacional”, termo compreendido aqui não em seu sentido político-territorial. O
traje participa na construção da percepção das diferenças. Por outro lado, não
se pode perder de vista que a percepção das diferenças se constitui a partir do
universo das viagens. E Julião é um viajante, duplamente estrangeiro frente ao
ultramar português.
Não há dúvidas de que o trabalho de Julião é também tributário da ilustração de tipos e personagens popularizada pelo Grand Tour, o que ganha ainda
maior relevo sendo ele de origem italiana. Essa familiaridade do oficial com o
repertório derivado dessas viagens mereceria um estudo mais atento, o que não
me foi possível desenvolver até o momento.
482
X X X Colóquio CBHA 2010
Configuração da Entrada da Barra de Goa, c.1779
Grafite, tinta e aquarela sobre papel.
Carlos Julião (Atribuído a).
GEAEM, Lisboa (Cota 4757-38-3-52)
Fonte: GEAEM
483
X X X Colóquio CBHA 2010
Ilustração
Omnium pene Europae, Asiae, Aphricae atque
Americae Gentium Habitus
Abraham de Bruyn
(Antuérpia, 1581). Água-forte e aquarela sobre papel
Fonte: www.collectionsonline.lacma.org
484
X X X Colóquio CBHA 2010
Rostock
Autor desconhecido
Água-forte e aquarela sobre papel.
Ilustração de G.Braun e F. Hogenberg
Civitates orbis terrarum, vol.5, 1598
Fonte: G.Braun e F.Hogenberg. Civitates orbis terrarum.
Introd. R.A. Skelton.
Amsterdam: Theatrum Orbis Terrarum, 1965 (ed.facsimilar)
485
X X X Colóquio CBHA 2010
A forma dinâmica do Clássico:
a dança na coleção Castro Maya
Vera Beatriz Siqueira
UERJ/ CBHA
Resumo
Este texto pretende analisar a atuação de Raymundo de Castro
Maya como colecionador de arte, a partir do tema da dança. A
idéia básica é partir de certos fatos da atuação deste homem de
cultura – a apresentação do balé Tarde de um fauno or Serge Lifar
em um dos jantares que oferecia na residência do Alto da Vista, a
instalação em sua residência de Santa Teresa da escultura do deus
dançarino Shiva Natarâja, a aquisição da obra de Pablo Picasso A
dança – para pensar a sua concepção estética, na qual importa especialmente certa combinação de classicismo, monumentalidade e
élan criativo.
Palavra Chave
Coleção Castro Maya; dança; Serge Lifar; Shiva Natarâja; Pablo
Picasso
Abstract
This paper aims to analyze the art collection of Raymundo de
Castro Maya from the theme of the dance. The basic idea is to
investigate certain facts of his performance as a collector – the
presentation of the ballet Afternoon of a Faun by Serge Lifar in
one of the dinners offered at the residence of Alto da Boa Vista,
the installation in his residence of Santa Teresa of the sculpture of
the dancing god Shiva Natarâja, the acquisition of the painting
from Pablo Picasso, Dance – to consider the broader context of his
notions of beauty, in which is important the combination of classicism, monumentality and creative élan.
Key-words
Castro Maya collection; dance; Serge Lifar; Shiva Natarâja; Pablo
Picasso
486
X X X Colóquio CBHA 2010
A questão do movimento, fundamento da dança, é central nas especulações estéticas modernas. No que diz respeito especificamente ao tema das coleções, Horst
Bredekamp, em seu livro sobre os gabinetes de curiosidades, comenta o episódio
em que Cellini deslumbra o rei François I com sua estatueta de Júpiter em prata,
apoiada num plinto de ouro sob o qual se escondia uma base de madeira com
quatro esferas rolantes. Graças a esse expediente, Cellini fez seu Júpiter se mover
com uma vela na mão na contraluz de um fim de tarde de inverno em Fontainebleau em 1545, recebendo do monarca francês os mais animados elogios: “suas
obras não apenas rivalizam com aquelas dos antigos, mas as superam”. Cerca
de cinqüenta anos mais tarde, Johannes Kepler se entusiasma com relógios e
autômatos com figuras da mitologia clássica, vistos em gabinetes, utilizando-os
como modelo para a estrutura geométrica de seu diagrama do cosmo. Segundo
Bredekamp, ao serem incorporados nos gabinetes de curiosidades, os autômatos
produzem, em sua oposição tanto às criações da natureza quanto à estabilidade
das esculturas antigas, a necessidade de uma reflexão histórica dinâmica que
estabelece os elos entre natureza – esculturas antigas – obras de arte – máquinas.1
Além disso, em uma das possíveis origens do termo museu, tal como
estabelecido na Encyclopédie de 1751, está o monte em Atenas nomeado a partir
do poeta ático Musee, onde eram realizadas performances de poesia e arte, nas
quais a dança era atividade central. Meu objetivo nessa comunicação será, então,
pensar na dança não somente como um tema presente na coleção de Castro
Maya, mas como um de seus conceitos chave, estando intimamente relacionada
com suas concepções de arte e beleza.
Comecemos, então, com um dos famosos jantares que Castro Maya ofereceu na residência do Alto da Boa Vista, em 1934, brindando seus convidados
com inusitada apresentação do bailarino Serge Lifar, da companhia Ballets Russes. A festa é descrita pelo jornalista Marcos André como uma “noite de magia”
e vale a pena ser citada:
“O jardim está quase na treva para deixar aparecer em toda sua suprema beleza, um céu
crivado de estrelas, que se refletem amorosamente num imóvel tapete d’ água.
O bando elegantíssimo, conduzido por Raymundo de Castro Maya, dirige-se para o jantar
no meio do bosque.
(...) Depois do jantar (...) [o] grupo dirigiu-se para o terrase. Apagam-se as luzes. As estrelas
readquirem o seu prestígio. Des clous d’or sur le fond bleu de la nuit. De súbito, num quadrado de luz intensa aparece a estátua deitada nos degraus do lago: é um fauno que parece ter
saído de um baixo-relevo grego. No mesmo instante, as primeiras notas de L’aprés-midi d’un
faune, de Debussy, enchem o jardim, a floresta, as montanhas, a noite estranha...
A estátua se levanta lentamente. Seus movimentos lentos são de uma beleza perfeita.
É qualquer coisa como um sonho dos deuses. Cortando o frio da noite, sopros de ar morno,
sensual, correm pelo jardim, como outrora deviam correr pelos elídios de Daphnes e Chloé.
(...) As respirações estão suspensas...
O fauno envolve-se no véu azul da ninfa. Deita-se na beira do lago... O real funde-se com
a imagem refletida no espelho d’ água. (...) A sua mão crispa-se num último movimento.
1
Horst Bredekamp, The lure of Antiquity and the Cult of the machine. Princeton: Markus Wiener Publishers, 1995.
487
X X X Colóquio CBHA 2010
A treva absoluta nos olhos de todos. (...) E no lago, as estrelas tremiam ainda com saudades do
fauno que desaparecera para sempre”.2
O tom descritivo do início do texto cede lugar, aos poucos, a uma série
de frases curtas, breves, que conduzem a uma sorte de experiência do belo indefinível, apenas capturado momentaneamente pela associação de luz e movimento.
A musicalidade evocada por essas frases, porém, não é rítmica; abre-se à ondulação do sonho. O “ainda” da última frase mostra como não se trata da afirmação
peremptória de certa noção de beleza, mas da vivência fugaz de algo que desaparece para sempre, que escapa mesmo da sua descrição.
Irrealizável, o belo converte-se num ideal. Não aquele ideal grego ao
qual não deixa de se relacionar, mas algo que está no horizonte de nossas expectativas, na aparência da semelhança entre passado e futuro. Nessa presentificação
do indefinível, o fluxo temporal não é propriamente interrompido, e sim suspenso pela obrigação mimética da beleza se assemelhar ao elemento externo que lhe é
idêntico. A floresta toca música, a estátua dança, o bailarino repete o brilho dourado das estrelas, o lago captura o céu. Com a respiração presa, os espectadores
anulam-se diante da transformação da beleza em evento inédito, “nunca visto”.
A evocação de algo perdido, de experiência secreta, não é apenas o resultado da
soma de sensações e especulações sobre o tal jantar: refere-se à percepção da experiência da beleza na modernidade como “evento” único e irrepetível.
No quadro do romantismo francês, a dança passou a ocupar lugar cultural de destaque, com apresentações em feiras, na Ópera ou no Théatre des Italiens ou na Comédie Française. Constituía momento essencial dos eventos, alternando-se com as músicas, a pantomima, a acrobacia, os espetáculos pirotécnicos.
Diferentes teóricos abordaram o problema da dança ou do balé, como Rousseau,
Diderot ou o abade Du Bos, cujas Reflexões críticas sobre a poesia e sobre a pintura,
da virada do século XVIII, incluíam dois capítulos sobre a dança. Além disso,
desenvolve-se um discurso específico sobre o tema, como as Cartas sobre a dança
de Noverre (1760), que postulavam a substituição do balé de corte, cujo apogeu
fora durante o reinado de Luís XIV, pelo balé de ação, cujo objetivo era a imitação da natureza, a ilusão, a expressividade dramática. Tudo isso mostra que a
dança – e o ideal clássico de fusão entre música, poesia e dança – constitui tema
de relevo para a definição dos contornos da arte na modernidade.
O balé apresentado por Serge Lifar aos convidados de Castro Maya participa, a seu modo, desse contexto intelectual e cultural. É uma apresentação solo
intitulada Le Faune, adaptada da famosa coreografia de Nijinsky para a música
de Claude Debussy que, por sua vez, inspira-se no difícil e um tanto hermético
poema pastoral de Mallarmé, de 1876, na qual o fauno procura recriar suas memórias de um encontro com ninfas, mas não está muito certo se isso teria sido
um fato ou um sonho. E pergunta: “Foi um sonho o que amei?” ou “Quem sabe
as mulheres que glosas/são configurações de anseios que possuis?”. As fronteiras entre sonho e realidade são eliminadas. Mas as evocações do fauno não são
nostálgicas ou doces, e sim violentamente sexuais. Como na própria figura do
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Marcos André, A noite de magia. Diário da Noite. Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1934. Biblioteca
Nacional.
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fauno, metade homem, metade animal, o poema se forma por essa ambiguidade
constitutiva, entre a serenidade da tarde e a fúria de sua recordação (ou sonho).
Originalmente o poema fora escrito para o teatro, sob o nome Monologue d’un faune (1865), o que aponta para a consciência do poeta a respeito do
seu potencial cênico e dramático, além de revelar sua natureza performática.
Recusado como inapropriado, foi transformado 10 anos depois em poema, novamente rejeitado, agora pela revista à qual se destinava, a Troisième Parnasse
Contemporain. A cada recusa, Mallarmé respondia com a radicalização poética,
conduzindo à forma final, na qual “o poema ganha consciência definitiva de escritura e o fauno se realiza na página com as ninfas que modula e escreve – seres
de linguagem”^F. Coube a Manet a ilustração para a edição original do poema
pastoral em 1876.
Estimulado pelo próprio poeta e sob a encomenda da Société Nationale
de Musique, Claude Debussy compôs o Prélude à l´Aprés-midi d´un faune entre
1891 e 1894. O Prelúdio é ainda hoje considerado, por muitos estudiosos, como o
marco inicial da música moderna européia, por sua estrutura inovadora, marcada
pela repetição do solo inaugural de flauta, pelos episódios fragmentários, pelas
irregularidades métricas, pela instrumentação envolvente, pela fluidez melódica.
Em 1912, será a vez de Nijinsky, estrela dos Ballets Russes, que desde
1909 atuava com grande sucesso em Paris, relacionar-se, em sua primeira coreografia, com o tema mítico do fauno. Apresentado no dia 29 de maio, no Théâtre
du Châtelet, o balé propõe nova radicalização: usando roupa colada ao corpo,
simulando uma segunda pele, vale-se de movimentos angulares e fragmentários,
que terminam em poses escultóricas, inspirando-se nas figuras gregas arcaicas e
assírias, e não na Grécia clássica usada tradicionalmente como fonte dos balés,
especialmente os de Fokine. O uso bidimensional do espaço cênico, bem como
o deslocamento lateral dos dançarinos e o conseqüente efeito de planaridade geraram polêmica, mas não tanto quanto a cena final do balé, na qual o bailarino
enfatiza a sexualidade animal do fauno, copulando com um lenço deixado pela
ninfa. No programa do balé, destacava-se, como na descrição da festa de Castro
Maya, a associação entre a dança como realização momentânea da beleza e a sua
eternidade sensível e mnemônica: “um fauno cochila – ninfas o provocaram –
um lenço esquecido satisfaz seu sonho. A cortina desce e assim o poema pode
começar na memória de todos”.
O lenço é objeto essencial para o funcionamento da mensagem poética do balé; elemento concreto que vem do sonho para a realidade, que revela a
ambiguidade da relação com o mito clássico. Na ausência das ninfas, um tecido
leve e fluido que deve ser animado pelo movimento produzido pelo desejo. Na
impossibilidade da beleza e do lirismo existirem como fatos empíricos, resta-nos o consolo de sua experimentação como criação artística, sonho, imaginação,
memória, desejo, furor. Em suma, evento episódico e transitório que precisa se
repetir renovadamente, tendo na dança um de seus modelos privilegiados.
Na cultura indiana esse sentido criador da dança ganha outra leitura. A
figura do bailarino cósmico Natarâja – fruto da evolução do deus vedista Rudra,
o Terrível, para a divindade hinduísta de Shiva, o Benéfico – destrói o universo
da ignorância e recria-o pelo poder das vibrações de seu tamborim (Damaru) e
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pela frenética dança cósmica (o Tandavâ). Na fusão de criação e destruição, exibe sua dança em turbilhão no meio do círculo de chamas, embora mantenha o
eixo central da ordem suprema, a partir do qual dividem-se equilibradamente os
membros do deus e seus atributos^F.
Castro Maya adquire a escultura em bronze de Shiva Natarâja, produzida entre os séculos XVII e XVIII, depois de sua viagem à Índia na década
de 1930. Nesta ocasião, havia selecionado, entre a variedade de imagens desse
mundo diverso, a do deus bailarino. Nos álbuns fotográficos da viagem, várias
são as suas representações, tanto em fotos tiradas pelo colecionador quanto em
cartões postais, mostrando particular interesse por essa forma de apresentação
de Shiva. Talvez todo esse interesse tenha sido motivado por ou compartilhado
com a sua companheira de viagem: a atriz russa Ludmila Vlasto, que morava
em Paris, e que acabou por se notabilizar pelo trabalho como diretora da Société
des Spectacles Georges Vitaly, revitalizando o Théâtre La Bruyère, onde apresentou
peças famosas como a adaptação de Albert Camus para “Um caso interessante”
de Dino Buzatti.
Quando ergue a sua casa moderna no bairro de Santa Teresa no Rio,
inaugurada em 1958, Castro Maya escolhe dispor essa escultura no primeiro
patamar da escada vazada que interliga os três pavimentos. Para subir do hall de
entrada ao primeiro andar, olhava-se frontalmente para a imagem de Shiva Natarâja. A entrada no pavimento social da residência – no qual estavam localizadas
as salas de jantar e de estar (jardim de inverno), a biblioteca e o jardim de uso
exclusivo – pressupunha o contato com esse deus performático, com a passagem
da inércia ao movimento que, na imagem hinduísta, simbolizava a destruição das
trevas e a abertura para a luz da consciência.
Alguns passos depois, à frente da abertura para a sala de jantar, a unidade cósmica de opostos do deus indiano encontra a sua contraparte ideal: o torso
feminino grego colocado ao centro de um grande pano de vidro que traz para
o interior do espaço de refeições a natureza que o cerca. Castro Maya gostava
de frisar que este torso teria vindo da mesma escavação em que se encontrou
a escultura da Vitória de Samotrácia. No atestado de autenticidade, o material
usado (o mármore branco com veios verdes) é citado para garantir a origem e a
idade da peça. Há também a evocação da semelhança estilística com trabalhos
do escultor Scopas, da Macedônia. A pose hierática, as rígidas pregas da roupa,
a delicada anatomia feminina oferecem ao Shiva Natarâja o seu avesso, transformando a dinâmica complementaridade de opostos em estrutura narrativa da
própria coleção.
Um pouco mais adiante, no espaço exterior do jardim, mas possível de
ser vista pela janela da sala de jantar, outra escultura parece guardar a chave da
relação entre essas duas obras. É uma reprodução, feita na Itália na segunda metade do século XIX, da célebre obra O fauno dançando ou Fauno dançarino, que
veio a nomear a Casa do Fauno, em Pompéia, local dos mosaicos de Alexandre,
mas também daquele que retrata cena erótica entre fauno e ninfa (na qual um
lenço está presente). Desprovido de sua porção animal, como nas imagens mais
antigas de fauno (que costumavam retratá-lo como um homem barbado com
coroa de folhas sobre a cabeça, portando uma pele de animal e a cornucópia),
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a figura mítica do Fauno é animada pelo cabelo revolto, pelos braços erguidos,
pelas pernas separadas, pelos pés em ponta, pela leve torção no corpo, pela tensão
muscular que chega à superfície do bronze.
Mais um elo no discurso do colecionador, essa pequena escultura que
trouxera da casa paterna em Laranjeiras, é capaz de indicar e materializar a relação estabelecida entre a coleção e a dança – tomada como modelo da energia
criativa, da pulsão vital, da corporificação do som, da manifestação efêmera e
transitória da beleza ideal, do instante capaz de reter todo o tempo. Mas ainda
falta falar sobre mais um momento importante dessa narrativa: a tela A dança,
de Pablo Picasso.
Castro Maya interessa-se pela pintura que viu reproduzida parcialmente
na capa da revista francesa L’Oeil, de junho de 1957, que trazia reportagem de
Georges Limbour sobre a produção do artista no ateliê de La Californie. No
texto o colecionador sublinha uma citação de Kahnweiler sobre a qualidade “ingênua” da arte de Picasso, “toda espontaneidade instintiva”^F. O autor repete essa
caracterização em todo o artigo, enfatizando expressões como “gosto apaixonado
pela pintura”, “prodigiosa atividade criativa”, “ritmo de criação”, “dinamismo de
inspiração”, entre outras.
Com faz em diversas outras obras desse período, na tela da coleção Castro Maya, Picasso apropria-se de tema típico de Matisse – a dança. Mais particularmente, parece citar a dança em roda, que surge, na obra do amigo, em sua tela
La joie de vivre, de 1906. Obra que desafiara Picasso a criar a pintura que acaba
por se transformar em marco da arte do século XX, Les demoiselles d’Avignon
(1907). Na tela de Matisse – diretamente inspirada no poema de Mallarmé,
L’aprés midi d’um faune – renova-se o vínculo entre dança e mito clássico da
origem. Como na écloga original, essa visão moderna da Arcádia realiza-se como
pura linguagem, signos líricos abstratos. Para o que a dança torna-se elemento
compositivo central, reverberando seu movimento infinito nas linhas sinuosas,
nas cores estridentes, nas rimas visuais que obrigam nosso olhar a circular por
todo espaço, nos corpos fluidos, no tom geral de entusiasmo, no prazer regressivo
e básico que experimentamos.
De forma totalmente diferente, Picasso cita a dança de Matisse. O que
era fundo vem para o primeiro plano. Porém, o movimento dos corpos de mãos
dadas perde a sua fluidez, tornando-se incapaz de se espraiar pela pintura. A roda
não se fecha. A rudeza expressiva do desenho infantil, as pinceladas ágeis e brutais, os pingos de tinta e as marcas de dedos transformam corpos e paisagem em
anotações urgentes e ásperas. Cores fechadas e fundo saturado de tinta branca
sobre os quais são inscritas linhas e manchas negras, criam uma dissonância e
estridência totalmente alheia à obra de Matisse.
O fundo clássico da imagem é literalmente atacado pela energia destruidora do artista. Na Arcádia de Picasso, em seu mundo originário, a dança é signo de resistência: realiza-se no pequeno espaço livre, constrangida pela natureza
ameaçadora, resíduo de um agir livre que apenas pode resistir à sua aniquilação
inevitável enquanto se mantiver nos limites da consciência de sua própria ação:
história, e não mito. Só assim é capaz de apresentar a linguagem como memória
de liberdade, “monumento”.
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Curiosamente, essa tela de Picasso, hoje desaparecida da Biblioteca onde
ficava nos tempos do colecionador, nos faz voltar os olhos para outras duas peças
de sua coleção. A primeira delas, o pequeno ex-libris de Castro Maya, no qual
a imagem de um centauro, cujo risco original é de Carlos Oswald, aparece ao
centro da famosa máxima de Horácio, Carpe Diem. A figura olha para trás, talvez acompanhando a flecha já lançada, mas seu corpo de animal volta-se para o
outro lado. Sintetiza, assim, não apenas o conselho de Horácio para aproveitar
o momento fugaz, como também a recomendação que se segue, em suas Odes:
confiar o mínimo possível no futuro, a vontade deliberada de superar o medo do
destino pelo retorno do tempo à sua condição fugaz de instante.
A segunda peça, que repousava sobre a mesa de trabalho do colecionador
em sua Biblioteca, é um pequeno busto de Homero, no qual aparece a inscrição:
“A toi, Homère, je confie mon secret; qui seul, le poète, sache le bonheur des amants.
Schiller”. Pensemos, de início, no papel desempenhado por Homero no quadro
da utopia estética de Schiller. Atribuindo à arte um sentido social-revolucionário
– como força catalisadora e comunicativa capaz de religar numa totalidade natural as esferas da natureza e da liberdade, partidas pela modernidade decadente
–, a presença de um poeta como Homero implica na recuperação nostálgica do
caráter público de uma arte fundada na comunhão e na solidariedade. Contrapartida à fragmentação moderna, a poesia grega oferece o paradigma de uma
ati