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Eduardo Guimaraens e Dante

Resumo: Em 1916, Eduardo Guimaraens publica a obra Divina Quimera, cujo título já alude a uma relação direta com o autor da Divina Comédia. Contudo, Dante não é a única parceria que a obra convoca: o título escolhido para o livro permite ainda entrever alusões a Nerval ea Mallarmé.

XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil Eduardo Guimaraens e Dante Prof. Dr. Francine Fernandes Weiss Ricieri1 (UNICAMP/ FAPESP) Resumo: Em 1916, Eduardo Guimaraens publica a obra Divina Quimera, cujo título já alude a uma relação direta com o autor da Divina Comédia. Contudo, Dante não é a única parceria que a obra convoca: o título escolhido para o livro permite ainda entrever alusões a Nerval e a Mallarmé. O objetivo desta comunicação é examinar aspectos da concepção da escrita poética na obra de Guimaraens, a partir da discussão de alguns de seus poemas e do modo de estruturação do livro mencionado que, em seu conjunto, organiza-se, entre outros processos, pela alusão a diversos textos poéticos e pelo acionamento de linguagens e procedimentos compositivos que se entrecruzam. Dante será priorizado na discussão que, no entanto, pretende explorar o modo pelo qual o escritor atualiza parcerias textuais múltiplas, caras ao referencial simbolista/decadente, tais como Poe, Baudelaire, Verlaine, o próprio Mallarmé, além do mencionado Dante. Palavras-chave: Eduardo Guimaraens, Dante, simbolismo, decadentismo, poesia. Introdução Já na escolha do título da obra que publica em 1916, Eduardo Guimaraens (1892-1928) atualiza algumas operações em que se podem apontar elementos constitutivos de sua concepção do poético em geral e particularmente do modo pelo qual atualizou tal concepção em seus escritos. A Divina Quimera, livro de um bibliotecário que é também um tradutor, evoca, não apenas no título, um amplo leque de alusões e referências, elas próprias, alusões e referências, constituindo-se como o tecido a partir do qual este texto poético organiza sua específica urdidura. Uma primeira operação discernível na recuperação do texto de Dante, marcada já no frontispício do objeto, parece ser a de indicar alguns dos modelos estruturais em torno dos quais o livro estaria organizado: o próprio Dante da Divina Comédia, Gérard de Nerval do livro Les Chimères1, Mallarmé, com suas “chimères” e sonhos de estruturação infinitamente perfeccionável. Para além do título, o modo de apresentação dos poemas no livro permite recuperar, ainda, outro modelo decisivo: Baudelaire, com suas flores concebidas em seqüenciamentos e divisões numeradas e orgânicas. Que, por sua vez, faz acordar na constituição de algumas imagens e na preferência por determinados recursos formais o Poe de Baudelaire e Mallarmé. Adiante-se que, na Divina Quimera, a concepção orgânica da obra é muito evidente. O autor não apenas a divide em cinco partes, como também numera seus poemas e os distribui em blocos que partilham delineamentos temáticos e imagéticos e desempenham funções específicas no conjunto. O poema de abertura, intitulado “Prelúdio”, é composto a partir da repetição sistemática de determinados versos, entre outros procedimentos, de modo que a referencialidade do texto se perturba2, gerando uma dificuldade que devolveria o leitor a sua estruturação rítmica em vários níveis, musical, sob diversas das acepções em que se poderia entender o termo, quando associado aos experimentos simbolistas. Em especial, a possibilidade de associação com a música é bastante significativa, já que empresta a “Prelúdio” o caráter de introdução à peça musical que seria a Divina Quimera. 1 Incluído na obra Les filles du feu, de 1854, o conjunto de 12 poemas que compõe “Les Chimères” estrutura-se, por sua vez, em torno de um sem número de referências míticas e religiosas, em um uso específico das tendências esotéricas que será particularmente retomado por alguns poetas na segunda metade do XIX. 2 Para uma análise do poema, remeto a SCHÜLLER (1986). XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil Maria Luísa Berwanger da Silva, em seu livro, Paisagens reinventadas: traços franceses no simbolismo sul-rio-grandense (1999) estuda o modo pelo qual a poética simbolista, no Rio Grande do Sul, teria sido construída a partir de um intenso e significativo diálogo com poetas franceses. Na análise de Maria Luísa, no entanto, tal diálogo não estaria limitado ao campo poético, sendo possivel observar, ainda, uma intensa relação com músicos como Chopin, Beethoven, Schumann e Debussy. Nesse processo seriam resgatadas “percepções distintas, mas aproximadas”, possibilitadas pelo efeito musical. O projeto poético de Guimaraens, especificamente, seria definido enquanto projeto de uma poesia que se estrutura pela mescla, pela mistura, pela incorporação plural de linguagens e por diálogos textuais múltiplos. Nesse sentido, seu cuidado com a musicalidade do poema ultrapassaria a sonoridade mais evidente das aliterações e assonâncias, mesmo estando elas presentes. Eventualmente, o processo estaria revelado na sistemática utilização dos pontos de exclamação, ou pela alternância, em posições diferenciadas, dos mesmos versos, criando-se efeitos que se alternam em processo ritmado e musical, como em “Prelúdio”. Na impossibilidade de uma discussão de toda a Divina Quimera, pretendo, no espaço desta comunicação, esboçar uma análise das articulações entre alguns dos poemas que constituem a segunda parte do livro, em que um conjunto de nove composições explicita precisamente as relações com os modelos anteriormente mencionados, incorporando a seu discurso poético homenagens, imagens e alusões a textos dos escritores já mencionados. O primeiro dos textos desta seção do livro, “Dante”, faz-se seguir, sucessivamente, por “Chopin, Prelúdio nº 4”, “Túmulo de Baudelaire”, “A Stéphane Mallarmé”, “De profundis clamavi”, “Sobre o Cantico delle Creature”, “Nox”, “Tudo o que faz da carne um mistério inquietante” e “Misterium”. 1 Alguns poemas da Divina Quimera “Dante” abre a segunda parte da Divina Quimera. A escolha do título remete à Comédia dantesca, que ficou conhecida como Divina. De suas páginas, Guimaraens resgata o Virgílio que acompanha a travessia de Dante pelo Inferno e pelo Purgatório. Resgata também esta Beatriz associada, no livro, sobretudo ao Paraíso, além de Ugolino, e dos amantes Paolo e Francesca. Mansueto Bernardi, ao organizar, em 1944, a edição então definitiva da obra de Guimaraens (GUIMARAENS, 1944), acompanhou a publicação de um extenso prefácio, em que realizou, entre outros, um levantamento minucioso da presença de Dante na obra daquele escritor. No texto, Bernardi afirma ser a Divina Quimera uma espécie de Vita Nuova, o equivalente na obra do poeta simbolista, ao canto do amor de Dante por Beatriz. Desta perspectiva, sua argumentação, de fundo biografista, como seria mais ou menos previsível então, associa episódios da vida dos dois poetas e arrola poemas do escritor que prefacia em que aparecem as recorrentes alusões à Beatriz do Vita Nuova, bem como a outras reminiscências da Comédia. O prefácio de Bernardi, contudo, não se dedica a uma análise mais atenta dos dados que inventaria, tarefa proposta em uma pesquisa em andamento, de que aqui se relatam dados parciais (especificamente voltados para a produção de Eduardo Guimaraens). Em seu conjunto, a mencionada pesquisa objetiva examinar possíveis implicações deste tipo de diálogo entre poéticas para os projetos literários particulares de alguns dos escritores brasileiros entre os últimos anos do século XIX e o início do XX. 3 Nesse sentido, a primeira estrofe do poema de Eduardo Guimaraens pontua-se de imagens associáveis a Dante e igualmente parece elogiar a beleza da linguagem do escritor italiano, na alusão aos “lírios de luz”. Nas estrofes seguintes, imagens e referências vão sendo evocadas, o que parece conferir ao poema um tom de reminiscência quase teatral, em que reanima o poema narrativo com o 3 Pesquisa de pós-doutoramento: Poesia brasileira do final do XIX: historiografia, crítica, teorias do poético. Em desenvolvimento no Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil qual dialoga e que se encerra com um pedido, uma específica solicitação ao homenageado, já indiciado no título organizador da peça de Guimaraens: DANTE Pelo divino horror de um desespero eterno e pelo ardor febril a que a alma nos conduz, florindo para o azul, irrompendo do inferno, Dante evoca um abismo onde há lírios de luz. Cada verso revela um fundo imenso de erma tristeza em que uma voz alucinada clama: e ora, inútil, recorda a asa de uma águia enferma, ora a ascensão brutal de uma língua de chama. Dá-me, agora, o terror de uma visão que assombra. Torvo, Ugolino sofre a sua fome atroz; tem Virgílio a expressão sagrada de uma Sombra; uiva um blasfemo! E a selva é lúgubre e feroz. Lembra, após, o esplendor pesadelar de um sonho magnífico e sangrento, em que anjos maus esvoaçam, quando por mim, à flor do turbilhão tristonho, enlaçados e nus, Paolo e Francesca passam... Dante! — Quero-o, porém, mais doloroso e terno, mais humano, a compor, torturado e feliz, sob a angústia mortal do seu secreto inferno, uma canção de amor em louvor de Beatriz! O elogio ao poeta anterior (de que se recuperam não apenas imagens, referências históricas ou mitológicas, mas procedimentos compositivos, bem como intuições teóricas sobre a escrita poética) é, como se pode observar na lista dos poemas que compõem a segunda parte da Divina Quimera, um recurso organizador do livro de 1916. Sendo as imagens e alusões significativas para a constituição do universo poético do novo livro (a sessão em questão tem nove poemas, o que pode, por exemplo, levar a pensar na simbologia do número em Dante), é decisivo assinalar que tais imagens e alusões estão longe de se constituírem no elemento mais notável deste tipo de espelhamento entre escritas e escritores. Dante, assim como Chopin, Baudelaire e Mallarmé (para nos atermos apenas aos casos mais evidentes), ressurgem, portanto, como fontes de imagens, temas ou alusões, mas, sobretudo, por sua presença enquanto arcabouços teóricos sem os quais esta poética particular não se constitui em si mesma. Sua possibilidade de erigir um projeto de escrita deriva precisamente deste diálogo, deste entrecruzamento em que valores técnicos e procedimentos criativos (ressalto: muito mais que imagens ou referências) hauridos em escritas diferentes e díspares entrelaçam-se de modo peculiar, compondo uma escrita que se fundamenta, que se organiza, segundo valores compostos a partir de valores que o desfilar de antecessores ajuda a perfilar na estruturação do livro. Assim, se a variedade compositiva, a alternância entre formas e mesmo um certo caráter experimental que se pode depreender da variabilidade formal dos poemas presentes no conjunto da Divina Quimera (baladas, sonetos e canções), pode, de fato remeter ao modo de constituição do Vita Nuova (igualmente composto por baladas, sonetos e canções, como já assinalou Mansueto Bernardi), não deixa de ser curioso observar que a abertura do livro de Guimaraens, parece, em contrapartida, dialogar especificamente com a Comédia, fazendo-o a partir de um tom específico, que se pretende discutir aqui. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil Antes de mais nada, o livro de Guimaraens se abre com duas epígrafes: Io son Beatrice che ti faccio andare, Vegno di loco ove tornar disio. Amor mi mosse che mi fa parlare. (Dante) Quelque chose d´ardent et de triste, quelque chose d´um peu vague... (Baudelaire) (GUIMARAENS, 1944, p.131) A primeira foi extraída do Inferno (2º, 70-73) e nela uma Beatriz por amor movida desce diretamente do Paraíso (a que pretende retornar) para o cumprimento da tarefa de convencer Virgílio a acompanhar Dante, a demovê-lo de suas hesitações, a incitá-lo à caminhada que a ele se oferece e que constitui a Comédia. A segunda procede de um livro de 1851, de Baudelaire, intitulado Fusées, em que, a certo trecho, o francês declara ter encontrado sua definição de Belo: Encontrei uma definição de Belo – do que é Belo para mim. É algo simultaneamente ardente e triste, um pouco vago, que deixa sempre lugar para a conjectura. Se o quiserem, procurarei aplicar o meu conceito a um objeto sensível – um rosto de mulher, por exemplo, o objeto mais capaz de nos interessar no dia-adia. Uma cabeça bela e sedutora, isto é, uma cabeça de mulher, é algo que nos conduz ao mesmo tempo – embora de maneira confusa – a sensações mistas de tristeza e de volúpia; que comporta em si tanto uma impressão de melancolia, lassidão ou mesmo de saciedade, como a sua impressão contrária – ou seja, um grande desejo de viver, ou entusiasmo, a que de qualquer modo se associa um constante fluxo de amargura, feita de privação e de desespero. O mistério e o sentimento de pena também são caracteres da Beleza. (BAUDELAIRE, 1995, p. 509) Uma análise minuciosa da específica equação montada pela presença simultânea destas duas epígrafes, assim na abertura da obra, não parece uma operação realizável no espaço desta comunicação. Contudo, alguns dos elementos aí implicados podem ser esboçados. A estas epígrafes segue-se o poema “Prelúdio’’4. O vocábulo prelúdio pode designar aquilo que precede ou anuncia, como um prenúncio. No entanto, apresenta também uma conotação relativa à Música, sendo a introdução instrumental ou orquestral de uma obra musical. “Prelúdio” é um poema de nove estrofes, estruturado a partir da repetição sistemática do primeiro verso, que, em cada estrofe, sempre reaparece como último, inserindo-se em uma tradição de experimentalismos quanto ao que seriam as potencialidades musicais da linguagem, em especial a linguagem poética. Considerando o fato de que alguns poetas associáveis à tradição simbolista/decadente (como o discípulo confesso de Edgar Allan Poe, Stéphanne Mallarmé) trabalharam no sentido de incorporar a lógica estrutural da música ao poético, os procedimentos utilizados em “Prelúdio” são bastante significativos, emprestando ao poema o caráter de introdução à peça musical que seria a Divina Quimera. A estrofe final do referido poema encerra-se, de resto, com uma clara alusão musical, antecipada na construção do poema. Ocorre que esta específica construção final espelha, ainda, a tristeza, o vago e o mistério, por Baudelaire associados ao Belo na epígrafe anteposta ao texto do livro, assim como clarões de estrelas presentes igualmente tanto no Paraíso, loco a que pertence Beatriz, quanto nos versos de “Ulalume”, de Poe: 4 Que, por sua vez, vem acrescido de uma epígrafe de Poe: “Psyche, my soul”. O fragmento de verso foi extraído do controvertido poema “Ulalume”, que tem na repetição parcial ou total de versos um dos procedimentos centrais de sua configuração formal. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil - Das vozes deste amor a musical tristeza por que, por esta noite azul de outono frio, vem embalar, da sombra, a tua morbideza que ouve e sofre, a um clarão de estrelas erradio, das vozes deste amor a musical tristeza? (GUIMARAENS, 1944, p.136) Em que termos, em que tons, portanto, pretendem-se associar, na Divina Quimera, o ardente, e triste, e vago, que Baudelaire assimila ao Belo (a que não se furta, ainda, a racionalidade da conjectura) e a Beatriz cuja presença, ou cuja imagem sinaliza este caminho rumo ao Paraíso, livro que, em Dante, constitui um esforço da inteligência criadora empenhada na representação do irrepresentável? Precisamente por essa espécie de busca formal, ou por esse desejo de formalização que, entre simbolistas e/ou decadentes, delineou-se enquanto tentativa de conquista das possibilidades do musical para o poético, tentativa associável, por sua vez, ao panorama mais amplo da modernidade, e não apenas em poesia, em que a referencialidade da linguagem encontra-se problematizada e posta em suspensão. Em outro momento da obra de Guimaraens, assim se associam esses diversos termos: (...) Ó doloroso Dante, quero o marfim da tua Vita Nuova ou dos tercetos do teu Paradiso feitos, como os missais da Idade Média, com pedras raras sobre o pergaminho, para encerrar a musical magia das Suas mãos! (...) (GUIMARAENS, 1944, p.142) O cuidado obsessivo com o elemento musical 5 leva a evidenciar, ainda, no livro de Guimaraens, aquele empenho na sofisticação da linguagem poética a ponto de convertê-la, pela relação com Mallarmé, em “símbolo”, importante conquista expressiva da poesia do período. Para o francês, o “símbolo” consistiria em “evocar um objeto pouco a pouco, para manifestar um estado de espírito ou, inversamente, selecionar um objeto e liberar um estado de espírito a partir dele, por meio de uma série de decodificações”. Não sendo possível uma demonstração mais detida, indico apenas as aproximações possíveis entre os procedimentos compositivos utilizados em “Prelúdio” e as propostas teóricas (e, sobretudo, suas atualizações poéticas) de Mallarmé. Seria possível destacar, por fim, que o modo de estruturação em partes numeradas e por seqüenciamentos que se pretendem significativos, também permite relacionar a Divina Quimera àquelas obras ou poetas com as quais epígrafes e títulos de poemas indiciam parentescos. As flores do mal, de Baudelaire, é considerado um dos livros mais rigorosamente arquitetados de toda a literatura européia. Em seus escritos, ele destacou por diversas vezes o fato de não se tratar de um simples álbum em que os poemas haviam sido inseridos aleatoriamente, alertando, pelo contrário, para o caráter estruturado da obra, com começo, desenvolvimento articulado e fim. Edgar Allan Poe, anteriormente, havia introduzido a noção de cálculo e raciocínio em sua reflexão sobre poesia. Baudelaire, por volta de 1845, esboça um molde para a primeira edição de seu livro e tudo que lhe acrescenta posteriormente guarda relação com a concepção inicial. Naquela primeira versão era decisivo até mesmo o costume antigo de numerar as composições. Edições posteriores abandonam a distribuição numérica, mas a ordem interna é reforçada. Observe-se, ainda, que a simbólica católica da Alta Idade Média também parece ter relações com a preocupação orgânica de Baudelaire, um poeta fortemente marcado pelo imaginário católico. Segundo aquela simbólica, haveria certo 5 Evita-se, aqui, o termo musicalidade, para evitar confusões com a associação mais comum que se refere à musicalidade em poesia como uma propriedade técnica obtida a partir de recursos mais recorrentes tais como aliterações, assonâncias, rimas (internas ou não), coliterações. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil reflexo, nas formas de composição, do que seria a ordem do cosmos criado, o que é evidente, por exemplo, na rigorosa estruturação por critérios numéricos da Divina Comédia, de Dante. Finalmente, como já se indicou neste texto, músicos propriamente ditos são igualmente acionados por esse conjunto de procedimentos em que se edificam poéticas e não apenas livros singulares. Na segunda seção da obra de Guimaraens, o poema anteriormente transcrito,“Dante”, vem seguido por outro que se intitula: “Chopin: Prelúdio n º4”, e no qual a aproximação com a Música se encontra sinalizada de modo ainda mais significativo: CHOPIN: PRELÚDIO, N º 4 Do fundo do salão vem-me o seu pranto sobre-humano, como do fundo irreal de um desespero hoje olvidado: dir-se-ia que estes sons têm um tom de ouro avioletado; há um anjo a desfolhar lírios de sombra sobre o piano. Doce prelúdio! Que ermo e doloroso desengano fala, através do seu vago perfume de passado? Sobre Chopin a noite abre o amplo manto constelado: um delírio de amor anda por tudo, insone, insano! Em cada nota solta há como um lânguido lamento. – Oh, a doçura de sentir que o teu olhar, perdido, sonha, recorda e sofre, ao doce ritmo vago e lento! E o silêncio! E a paixão que abre em adeus as mãos absortas! E o passado que volta e traz consigo, inesquecido, um aroma secreto e vago e doce, a flores mortas! Chopin é um compositor cujas obras se costumam marcar por acentuada melancolia romântica, ou mesmo por pungente tristeza. Os aspectos formais de suas composições não acompanham a normativa clássica, tanto nos ritmos quanto nas harmonias. No poema, o título diretamente relacionado à música reforça uma atmosfera poética eminentemente simbolista: o salão tomado pela luz da lua vai sendo evocado a partir da conjugação de elementos sensoriais e os recursos de estruturação dos versos acionam elementos sonoros tanto nos aspectos formais (pontuação, aliterações, assonâncias) quanto nas imagens (“doce ritmo”, “lamento”). Conclusão Na segunda parte da Divina Quimera, o simples arrolamento dos títulos dos poemas que a compõem levaria o leitor a pensar em uma escrita a que são caros os diálogos intertextuais.6 Nesta mesma seção da obra, o poema “Túmulo de Baudelaire”, para citar exemplo elucidativo, remete claramente aos poemas de Mallarmé “Le tombeau de Charles Baudelaire”, “Tombeau” (a Verlaine) e “Le tombeau d´Edgar Poe” (na versão final, “Au tombeau d´Edgar Poe”). A remissão se dá não apenas a um gênero poético que se define como homenagem póstuma a escritores que se admiram. Sobretudo, remete a uma concepção de poesia como entrelaçamento de tradições. Além da homenagem ao poeta desaparecido, enunciam-se ideais poéticos caros àquele que se homenageia e que o autor da homenagem indiretamente indica partilhar. “Túmulo de Baudelaire”, assim como “A Stéphanne Mallarmé”, ambos de Eduardo Guimaraens, nesse sentido, assinalam, além de homenagens, a apropriação por parte de Guimaraens de alguns dos ideais poéticos baudelaireanos, de alguns dos 6 Ordem em que aparecem os nove poemas da segunda parte do livro: (1)“Dante”, (2)“Chopin, Prelúdio nº 4”, (3)“Túmulo de Baudelaire”, (4)“A Stéphane Mallarmé”, (5)“De profundis clamavi”, (6)“Sobre o Cantico delle Creature”, (7) “Nox”, (8)“Tudo o que faz da carne um mistério inquietante” e (9)“Misterium”. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil ideais poéticos de Mallarmé, de alguns dos ideais poéticos de Poe, de valores poéticos que fizeram da Comédia leitura obsessiva e recorrente entre simbolistas e decadentes. A Divina Quimera atualiza, enfim, e sem a mais leve pretensão a originalidade ou novidade a esse respeito, uma escrita que se ergue do tecido de outras escritas e uma poética que se enuncia na evocação e no entrelaçamento de outras poéticas. E que não deixa, a despeito disso ou precisamente por isso, de estender-se, à sua maneira, em direção aos limites e impasses com que se confrontaram as escritas de que se alimenta e em que se constitui, modulando-se, pela incorporação do patrimônio do alheio, em sua quase própria voz. Referências Bibliográficas [1] BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985 [2] BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa: volume único. Charles Baudelaire: edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 509. [3] GUIMARAENS, Eduardo. A Divina Quimera. (organização Mansuetto Bernardi) Porto Alegre: Globo, 1944. [4] SCHÜLLER, Donaldo. Eduardo Guimaraens. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1986. p. 20-22. (Coleção Letras Rio-Grandenses) [5] SILVA, Maria Luísa Berwanger da. Paisagens Reinventadas: traços franceses no simbolismo sul-rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999. Autor 1 Francine Fernandes Weiss RICIERI, Profa. Dra. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Instituto de Estudos da Linguagem – IEL Professor Colaborador Voluntário – pós-doutorando (FAPESP) E-mail – francine.idt@terra.com.br