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EQUÍVOCOS EM TORNO DA ESCRITA: O CASO DAS DICAS DE PRODUÇÃO DE TEXTOS EM VÍDEOS DO YOUTUBE

Com este trabalho, pretendemos apontar alguns equívocos presentes em materiais voltados para o ensino de língua portuguesa, com foco na produção de textos, e disponibilizados no formato de vídeos no YouTube. Fundamentados especialmente em pressupostos da Linguística do Texto, sobretudo em estudos de Antunes (2005, 2007, 2009, 2010), em leituras de Bakhtin (2003, 2013) e Adam (2011) e em estudos e reflexões sobre ensino de língua materna, analisamos 04 vídeos voltados para a apresentação de dicas que visam à instrumentalização da escrita de textos solicitados em situações mais formais de uso da língua. Os resultados do material analisado apontam que não há propriamente instruções que focalizem a natureza do texto e que o tomem como objeto de estudo e reflexão, dada a predileção ainda pela exploração de elementos gramaticais a partir do exame de frases soltas e descontextualizadas. Concluímos que as dicas apresentadas nesses vídeos explicitam uma falta de compreensão sobre o real funcionamento do texto, da produção escrita, da atividade interativa, evidenciando, portanto, pouca ou nenhuma sintonia com as recentes contribuições da Linguística, principalmente daquelas advindas da Linguística do Texto, das Análises do Discurso e da Estilística.

DOI: 10.14393/DL28-v11n1a2017-9 Equívocos em torno da escrita: o caso das dicas de produção de textos em vídeos do YouTube Misconceptions about writing: the case of text production tips on YouTube videos José Cezinaldo Rocha Bessa * Rosângela Alves dos Santos Bernardino ** RESUMO: Com este trabalho, pretendemos apontar alguns equívocos presentes em materiais voltados para o ensino de língua portuguesa, com foco na produção de textos, e disponibilizados no formato de vídeos no YouTube. Fundamentados especialmente em pressupostos da Linguística do Texto, sobretudo em estudos de Antunes (2005, 2007, 2009, 2010), em leituras de Bakhtin (2003, 2013) e Adam (2011) e em estudos e reflexões sobre ensino de língua materna, analisamos 04 vídeos voltados para a apresentação de dicas que visam à instrumentalização da escrita de textos solicitados em situações mais formais de uso da língua. Os resultados do material analisado apontam que não há propriamente instruções que focalizem a natureza do texto e que o tomem como objeto de estudo e reflexão, dada a predileção ainda pela exploração de elementos gramaticais a partir do exame de frases soltas e descontextualizadas. Concluímos que as dicas apresentadas nesses vídeos explicitam uma falta de compreensão sobre o real funcionamento do texto, da produção escrita, da atividade interativa, evidenciando, portanto, pouca ou nenhuma sintonia com as recentes contribuições da Linguística, principalmente daquelas advindas da Linguística do Texto, das Análises do Discurso e da Estilística. * ABSTRACT: With this work, we intend to point out some misconceptions presented in Portuguese language teaching materials that focus on writing and are available in the format of videos on YouTube. Based on the assumptions of Text Linguistics, especially on the studies of Antunes (2005, 2007, 2009, 2010), on the conceptions of Bakhtin (2003, 2013) and Adam (2011) and on studies and reflections about mother tongue teaching, we analysed 04 videos which present tips that aim at developing writing in more formal situations of language usage. The results indicate that there are no proper instructions focusing on the nature of text and that take it as an object of study, and reflection as the focus still relies on grammatical elements and on the examination of decontextualized phrases. We conclude that the tips presented in these videos show a lack of understanding of the real functioning of texts, of writing, and interactive activity, showing, hence, little or no relation with recent contributions of Linguistics, especially those from Text Linguistics, Discourse Analysis and Stylistics. Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Professor do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) – Campus de Pau dos Ferros. cezinaldobessauern@gmail.com ** Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) – Campus de Pau dos Ferros. rosealves_23@yahoo.com.br José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 PALAVRAS-CHAVE: Língua Portuguesa. Produção de Textos. Dicas. Internet. YouTube. Equívocos em torno da escrita: o caso das… KEYWORDS: Portuguese Language. Writing. Tips. Internet. YouTube. Quanto a português, era com o maior tédio que eu dava regras de gramática. Depois, felizmente, vim a esquecê-las. É preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a respirar livremente. (LISPECTOR, 2008, s/p, grifos nossos) 1. Introdução É fato inconteste que o universo da internet, em suas diversas plataformas, trouxe um número incalculável de informações, que se multiplicam dia após dia à medida que o acesso a essa tecnologia se amplia e atinge mais e mais indivíduos no mundo todo. Como era de se esperar, se muitas das informações veiculadas nesse universo são fontes valiosas e imprescindíveis em nossos dias, outras tantas podem ser enquadradas no que podemos denominar de “lixo cultural” (MORAN, 1997), logo, como afirma Demo (2009, p. 97), “a internet é também um grande lixão”. Como é praticamente impossível nós humanos lidarmos com tanta informação, já que estamos no que se pode denominar de uma época de “inacessibilidade do todo” (LÉVY, 1999), é imperativo sabermos selecionar aquelas que são interessantes 1 daquelas que não são, com vistas a transformarmos informação interessante em conhecimento, compreendendo, portanto, que informação é apenas “a matéria-prima do conhecimento” (DEMO, 2009, p. 99). Tal imperativo explica o fato de se poder falar hoje de letramento informacional (BRUCE, 2000) ou de letramento digital (BUZATO, 2003), termos usados para designar o tipo de competência que o indivíduo que sabe lidar com o fluxo informacional apresenta para “sobreviver” nesses tempos de informação globalizada, instantânea, apressada e, por vezes, imprecisa, duvidosa, quando não incorreta ou falsa. 1 Aquilo que o pesquisador e pensador americano Waters (2006), autor do livro Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição, diz sobre a cultura acadêmica de publicar livros a todo custo, serve também para pensar esse fenômeno de multiplicação de informações disponíveis na internet e suas consequências para os consumidores dessas informações. Eis as palavras do autor: “Não estou dizendo que não haja boas publicações – isso está muito longe de ser o caso –, mas o que as boas publicações têm de bom se perde em meio a tantas produções que são apenas competentes e muitas mais que não são nem isso.”. (WATERS, 2006, p. 25). Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 175 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… Nesse contexto, um trabalho de reflexão e crítica em relação a certos conteúdos, em especial em relação àqueles que se pretendem educativos 2, “de divulgação, de pesquisa, de apoio ao ensino e de comunicação” (MORAN, 1997, s/p), que circulam nesse universo, é determinante para um uso mais produtivo e eficaz da tecnologia em benefício da produção do conhecimento e, por conseguinte, do desenvolvimento humano. Quando esses conteúdos envolvem o terreno dos estudos da linguagem, um trabalho de reflexão e crítica não só é fundamental, como também imprescindível, já que, como sabemos, são muitos e recorrentes os equívocos que pairam sobre fatos linguísticos nas diversas esferas da vida social, especialmente quando os discursos sobre esses fatos são proferidos por aqueles que não são especialistas no assunto, em uma clara evidência de que “há, portanto, muito ainda a se fazer no destrinçamento dos dizeres sociais sobre a língua.” (FARACO, 2004, p. 37). É inserido nessa ordem de multiplicação de informações que surge também o fenômeno dos materiais educativos com dicas do “bom português”, do “escrever bem”, da “boa redação” e do “português para concursos”, por exemplo, disponibilizadas na internet. Antes mais restritas a guias gramaticais e aos famosos manuais de redação, tais como “para escrever bem” e “a arte de escrever”, “fórmula para escrever” e a um ou outro programa televisivo, materiais com esse tipo de dicas começam agora a se manifestar e a proliferar em canais na internet sob o formato de vídeos disponíveis no YouTube. Se os objetivos desse tipo de proposta podem ser bem intencionados, uma análise mais cuidadosa pode mostrar, porém, que há muitos equívocos nesses materiais em relação às dicas sobre língua(gem), em especial sobre aquelas voltadas para explicar questões de variação linguística, norma culta, noção de erro, textualidade, entre outras. É bom esclarecermos, de antemão, que, se consideradas de um ponto de vista mais estritamente gramatical, muitas das dicas apresentadas têm algum fundamento e podem ser bastante úteis. Porém, se vistas na perspectiva da linguagem em funcionamento, suas consequências podem ser danosas para os propósitos de uma compreensão mais adequada do fenômeno linguístico. Isso posto, pretendemos aqui lançar um olhar sobre alguns desses vídeos, disponíveis no YouTube, que se voltam para apresentar conteúdos de língua portuguesa, com o propósito 2 Com a ampliação dos canais educativos no YouTube, é comum verificarmos instituições preocupadas em indicar os melhores canais do YouTube para que os alunos selecionem os mais adequados para realizarem os seus estudos, como podemos constatar nessa notícia: “Melhores canais para estudar no YouTube”, disponível em: <http://www.colegioweb.com.br/curiosidades/melhores-canais-para-estudar-youtube.html>. Acesso em: 26 jul. 2014. Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 176 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… de ensinar o internauta (leitor/interlocutor) a “escrever bem”. Nosso olhar se inclina para problematizar as dicas, mais precisamente seu conteúdo 3, apresentadas nesses vídeos, pelo fato de constatarmos que elas se sustentam em uma visão estritamente gramatical (de gramática normativa, que se diga) e de uma explicação descontextualizada do uso linguístico, por desconsiderar, por exemplo, as possibilidades dos usos expressivos da linguagem. A questão é que, se tais dicas não têm um alcance para se pensar a escrita de textos em funcionamento na forma de gêneros, em contextos reais, a “expectativa” de aprender a escrever bem acaba sendo um tanto frustrada, já que, com esse viés, pouco se consegue ultrapassar um dos aspectos da revisão textual, aquele que recobre o nível mais superficial da escrita, cuidando de sua higienização em relação aos problemas gramaticais e ortográficos. Com isso, nossa intenção é contribuir com os debates atuais do campo da Linguística e da Linguística Aplicada sobre a escrita e seu ensino no contexto de uso das novas tecnologias. Para atendermos aos propósitos desse empreendimento analítico, de natureza críticoreflexiva, com enfoque qualitativo, selecionamos 04 dentre os vários vídeos 4 que compõem um programa televisivo denominado Nova ortografia 5, exibido por um professor que se apresenta também como consultor de língua portuguesa e revisor 6. Os vídeos que ilustrarão a análise disposta a seguir foram: “Evite repetir palavras” (3min21), “Evite repetir expressões supérfluas” (3min28), “Evite a primeira pessoa gramatical” (1min56) e “Menos é mais” (2min47). 2. Os manuais de redação e o emprego de uma estratégia “infalível” para ensinar a “escrever bem” 3 É importante ressaltar que nosso foco está centrado especificamente no conteúdo que os vídeos veiculam, e que, portanto, não é nosso interesse, dados os propósitos desse trabalho, realizar uma análise textual, discursiva e/ou multimodal do gênero do discurso vídeo, que implicaria, evidentemente, explorar outros aspectos de seu funcionamento. Assim sendo, destacamos que, na exposição que segue, procuramos recortar trechos em que o apresentador, com o auxílio de imagens/telas (que utilizaremos como ilustração), discute e exemplifica o conteúdo. 4 Esses vídeos, originalmente produzidos para serem exibidos em um programa televisivo denominado “Nova ortografia”, são disponibilizados no YouTube. É necessário destacar que, para os propósitos do presente trabalho, centramo-nos na análise das dicas dos vídeos tais como eles se encontram disponibilizados no YouTube, mesmo cientes de que possam ter passado por um processo de edição em relação ao material utilizado no programa televisivo. Destacamos ainda que a escolha desses vídeos se deu justamente porque eles estão disponíveis em duas mídias, em um programa de TV de uma cidade do interior de São Paulo, e no formato de vídeos no YouTube, o que pode, a nosso ver, potencializar o seu alcance, junto ao público, dos conteúdos que veicula. 5 O título do programa já se constitui em um bom indício dos equívocos que podemos esperar das orientações sobre a escrita presentes nesses vídeos. 6 Em virtude da ética na pesquisa, não identificaremos aqui o nome do apresentador/expositor, por entendermos que a revelação do nome pode comprometer, em alguma medida, a sua atividade profissional. Por isso, ele será tratado aqui sempre como apresentador ou consultor de língua portuguesa. Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 177 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… Como observamos uma relação muito próxima entre as dicas apresentadas nesses vídeos do YouTube e aquelas dicas que constam em guias e manuais que ensinam a “escrever bem e melhor”, entendemos ser produtivo recuperarmos aqui um pouco do tipo de proposta apresentada, especialmente nos manuais mais recentes, para termos em vista qual é, em linhas gerais, o seu foco. Para nossos propósitos neste trabalho, selecionamos dois deles, quais sejam: A arte de escrever bem: um guia para jornalistas e profissionais do texto e Escrever melhor: guia para passar os textos a limpo, ambos das autoras Dad Squarisi e Arlete Salvador. Em uma rápida folheada nesses manuais, é possível aprender, com uma boa dose de humor, algumas técnicas para driblar “as ciladas da língua” e, consequentemente, “melhorar os textos”. Afinal, se acredita que, com a ajuda dessas técnicas, “sempre é possível encontrar uma palavra mais específica, uma estrutura mais precisa, uma frase mais objetiva” (SQUARISI; SALVADOR, 2008a, p. 12). Observemos atentamente que não se fala aí da unidade texto, ainda que se possa alegar que não se pode pensar o texto sem unidades como a frase, por exemplo. Como veremos mais adiante, isso tem consequências para o trabalho com a escrita, seja na escola, seja fora dela. “Ajudar estudantes a escrever melhor” é o horizonte sob o qual se fundamentam as orientações do tipo das que estão listadas abaixo, encontradas no manual “A arte de escrever bem – um guia para jornalistas e profissionais do texto”: Dê passagem às frases curtas. Prefira palavras curtas e simples. Fique com as palavras concretas. O objetivo de fazer com que o “recado” chegue “sem ruídos ao destinatário” é, por sua vez, o ponto de partida de “Escrever melhor – guia para passar textos a limpo”. Squarisi e Salvador (2008b) pontuam, nesse guia, que a melhoria da escrita passa pelo aprimoramento de técnicas e pelo trabalho de passar o texto a limpo, vislumbrando-se sempre a correção, a clareza e a objetividade da mensagem. Nele também, em nome da “limpeza”, é necessário, por exemplo, saber que existe “a palavra perfeita”, que é preciso se precaver contra “os pronomes, calos nos pés” e com o uso da crase em “palavras repetidas, a tentação do diabo”, etc. Essa folheada e esses recortes são necessários para explicitar que, apesar desses dois manuais terem como objetivo colaborar com a melhoria da escrita de textos, o que prevalece neles ainda é o tom prescritivo, como atestam ainda o uso das construções imperativas (ver Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 178 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… destaque em negrito). Apostando no humor 7 como uma perfeita e infalível estratégia (ver destaque sublinhado), as autoras usam, quase sempre, frases soltas (ver destaque em itálico), para “tirar a dúvida” quanto ao uso adequado de determinado fato gramatical. Um bom exemplo para ilustrar o que vimos dizendo é a dica que se apresenta para o uso da crase no contexto de palavras repetidas: Que tentação! Certas construções dão coceira na mão. Diante delas, o desejo parece irresistível. Ao menor descuido, lá está o acentinho comprometedor. Seguuuuuuuuuuuuuuuuuura! Tentação satânica são as palavras repetidas. Ao vê-las, dobre os cuidados. Pare, pense e controle-se. Lembre-se de que as duplinhas têm alergia à crase. Não aceitam o sinalzinho nem a pedido dos deuses do Olimpo.  Face a face cara a cara semana a semana frente a frente uma a uma gota a gota No caso, o artigo não tem vez. Se tivesse, o primeiro par viria devidamente acompanhado. Não vem. Sem artigo, nada de crase. Deixe a tentação para apelos mais fortes. (SQUARISI; SALVADOR, 2008a, p. 155, grifos nossos) Poder-se-ia dizer que se trata, então, de um modelo de manual com uma roupagem nova? Pode-se dizer que é um manual inovador na proposta de centrar-se na escrita de textos, porque já não se apresenta mais simplesmente como um guia de dicas gramaticais estritamente, mas como um guia para exploração de qualidades do texto, como clareza, objetividade e correção, com vistas a dar conta de melhorar a escrita. Nas informações contextuais de identificação do referido manual, as autoras são bastante enfáticas ao dizerem que “não se trata de corrigir erros gramaticais como pode parecer à primeira vista. Passar a limpo é reescrever o original para torná-lo fiel à ideia do autor” (Cf. quarta capa). Porém, observamos que a exploração dessas qualidades se dá, em grande medida, com base na apresentação de dicas gramaticais, em tom prescritivo, ou pelo menos não consegue avançar tanto nesse aspecto. Assim, o trabalho de revisão textual que permeia as dicas para “escrever melhor”, isto que as autoras pensam como “passar a limpo”, carece de uma 7 O tom humorístico é explicitado logo nas informações contextuais dos dois manuais em análise: “Escrever exige 10% de inspiração e 90% de transpiração. Sim, senhor, escrever é trabalho árduo.” [...] Na rabeira, trazemos ciladas da língua capazes de nocautear até renomados autores” (SQUARISI; SALVADOR, 2008a); “Este livro, inicialmente destinado a jornalistas e profissionais do texto, é o mais claro e bem-humorado que qualquer um que precise escrever bem pode obter.” (SQUARISI; SALVADOR, 2008b). Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 179 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… investida não apenas em níveis mais profundos do texto 8 (sua textura, as proposições e períodos, e sua estrutura composicional, as sequências textuais e planos de texto), mas também nos aspectos contextuais, relativos ao gênero, à situação comunicativa, às finalidades comunicativas, aos interlocutores etc. Na verdade, o mais adequado seria assumir que esse tipo de trabalho recobre apenas uma das dimensões da escrita, no caso a revisão, e esta, por sua vez, demonstra uma preocupação muito maior com a correção, no sentido de “limpeza” da versão final. Trata-se, pois, de um guia que, estranhamente, pretende ensinar a escrever textos com base em frases soltas, sem mencionar relação alguma com um cotexto ou com o contexto de onde foram retiradas. Embora não se possa conceber um texto sem gramática, o exemplo apresentado acima confirma a posição de Antunes (2005, p. 90), segundo a qual nos faltam, e não apenas na escola, “uma exploração textual da gramática, o que significa dizer um estudo de como as categorias e as regras gramaticais devem ocorrer nos textos para que eles resultem bem construídos”. Além disso, esse exemplo não deixa de reproduzir a ideia equivocada 9 de que há algum tipo de correspondência natural entre saber gramática e saber escrever corretamente (ANTUNES, 2007), ou, no contexto desses manuais, uma certeira correlação entre dominar um conjunto de dicas sobre como “escrever melhor” e o saber produzir eficientemente um conjunto de gêneros textuais, tais como “relatórios, documentos, reportagens, dissertações, teses e petições” etc. O toque de humor parece ser o elemento que, de fato, diferencia este de outros manuais, numa demonstração de que o riso parece funcionar aí tanto como uma forma de tornar mais leve o aprendizado do conteúdo gramatical, tido, por natureza, como enfadonho, cansativo, como, quem sabe, uma estratégia de propiciar uma maior aproximação com o leitor. É evidente que, em linhas gerais, esse modelo encontra eco e se reproduz em outros suportes. Esse é o caso dos programas televisivos, assim como dos vídeos disponibilizados no YouTube que analisaremos aqui. Os quatro vídeos 10 selecionados apresentam dicas que podem ser agrupadas 8 Neste trabalho, a ancoragem teórica acerca dos níveis ou planos de análise do texto foi retomada do trabalho de Adam (2011 [2008]), em seu livro “Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos”. 9 A distinção entre o domínio da gramática e o da língua em uso já está mais do que clara e amplamente debatida no campo da Linguística, basta consideramos os trabalhos desenvolvidos na área da Sociolinguística. Ver, por exemplo, as discussões de autores como Bagno (2004, 2011), Faraco (2004), Scherre (2005), sobre língua e norma. 10 É importante destacar que os vídeos examinados aqui constituem uma espécie de aula expositiva na qual o apresentador explica o conteúdo. No seu exercício expositivo, que geralmente demora entre 1 e 4 minutos, o professor conta com o apoio de um computador e de um telão para fazer a projeção do conteúdo. Como o que interessa aos propósitos do trabalho é o conteúdo dessa espécie de aula expositiva, não fazemos uma transcrição Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 180 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… nas qualidades textuais da concisão, da clareza e da correção observados nos manuais descritos acima. Em relação a essas dicas paira uma série de equívocos, que tentaremos explicitar e esclarecer a seguir. 3. Um estratagema ainda mais infalível: aprenda a escrever textos com dicas de vídeo Se os manuais de redação analisados apostaram, em boa medida, no humor como uma estratégia para ensinar a escrever de forma mais prazerosa e “sedutora”, há também, no chamado mercado livre, uma forte aposta no atrativo que as denominadas novas tecnologias representam. O apelo aos recursos tecnológicos aparece como facilitador para aqueles que buscam aprender algo de forma mais dinâmica, rápida e prática. A “onda” de vídeos em circulação na internet, com viés educativo, é uma clara demonstração do sucesso obtido por esse tipo de recurso, tendo alcance sob os mais variados públicos. O produto que se oferece nesses vídeos, no caso em análise, o saber, aparece quase sempre como algo de difícil acesso, até que um novo método mais eficaz surge para resolver o problema. É o que vemos, por exemplo, nas dicas para se aprender uma segunda língua de forma rápida, para se aprender o uso da vírgula definitivamente, para nunca mais cometer erros de português, para escrever corretamente, e tantas outras. Nesse contexto, quando o assunto é escrever bem, a orientação mais corriqueira ainda é a dos “males” a se evitar. Com foco na exploração da clareza, há um dos vídeos selecionados para análise neste trabalho em que a atenção se volta mais diretamente para o aspecto da repetição. No vídeo intitulado “Evite repetir palavras”, o conteúdo apresentado traz uma breve descrição da proposta, focalizando a ideia de que repetir palavras empobrece o texto e demonstra limitação vocabular do produtor. A essa descrição, o professor/apresentador acrescenta um exemplo (a parte destacada na cor azul), para ilustrar o que expressa: Figura 1 – Evite repetir palavras. dos vídeos e nos limitamos a reproduzir a parte do conteúdo que o apresentador reproduz no telão, recorrendo à parte oral da exposição quando julgarmos pertinente. Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 181 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… Fonte: vídeo do YouTube. Não se pode negar que, em certas circunstâncias – como no exemplo que o apresentador toma como ilustração – a repetição de palavras representa, sim, um empobrecimento do texto. Mas, sobretudo, em certas circunstâncias do tipo dessas que o apresentador descreve. Dizer, pois, que a repetição é “ruim”, que deve ser evitada, sem fazer as devidas ressalvas, no sentido de advertir que há circunstâncias em que ela não só é aceitável, como também desejável, tendo em vista os efeitos estilístico e argumentativo do seu uso (cf. KOCH; ELIAS, 2009), é cometer um equívoco grosseiro em relação ao seu funcionamento textual. Como lembra Antunes (2005, p. 78), “a generalização pura e simples de não repetir palavras não tem sentido e perde sua função de nos orientar na escrita de textos adequados”. Esquece-se ou se desconhece aí que, no funcionamento textual, e mesmo de textos formais, como editoriais de jornais, a repetição tem, seguindo o pensamento de Antunes (2005), várias funções, tais como marcar uma ênfase, assinalar um contraste de ideias, fazer uma correção, marcar uma continuidade do tema, o que atesta seu papel importante como forma de progressão textual (KOCH; ELIAS, 2009). Observamos um equívoco também na solução que o apresentador propõe, em sua fala/explicação, para que o aluno evite a repetição, como se tal procedimento fosse sempre um indício de pobreza vocabular. Ao sugerir que o aluno “Utilize sinônimos” tão somente, o apresentador parece esquecer ou desconhecer mais uma vez que a língua oferece, por exemplo, expressões referenciais que colaboraram com a substituição de palavras (ANTUNES, 2005), permitindo-nos evitar o uso das mesmas palavras no decorrer de um texto. Tudo isso mostra que o apresentador desconhece ou ignora a função textual/discursiva da repetição de palavras, melhor dizendo, desconhece que a repetição é, como afirma Antunes (2010, p. 122), um “recurso textual e discursivamente funcional, que não acontece por acaso ou aleatoriamente”. Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 182 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… Se o propósito das dicas é contribuir para que se aprenda a escrever melhor, por que não mostrar esse outro aspecto da repetição? Por que, ao invés de utilizar exemplos “inventados”, não trazer excertos de textos concretos, em circulação nos mais variados contextos, para análise dos efeitos da repetição nos textos formais? A ideia de correção parece ser a tônica do conteúdo presente no vídeo intitulado “Evite a primeira pessoa gramatical”. Esse vídeo focaliza o uso das pessoas gramaticais, sugerindo expressamente que, na escrita de textos formais, mais monitorados, o telespectador/internauta 11 tenha predileção pelo uso do impessoal. Figura 2 – Evite a primeira pessoa gramatical. Fonte: vídeo do YouTube. Em casos como o reproduzido acima, o que justifica tal predileção é, conforme a explicação do apresentador, que a segunda opção “A Planeta é a maior editora do Brasil” possibilita se “referir diretamente” à editora. Ora, de um ponto de vista do funcionamento textual, é evidente que esse tipo de explicação não se sustenta. Tanto “Nossa empresa é a maior editora do Brasil” como “A Planeta é a maior editora do Brasil” são construções possíveis, com funcionamentos distintos e plenamente adequadas à comunicação. A predileção por uma ou por outra depende dos propósitos comunicativos que se tem em vista e da consideração do tipo de envolvimento que se quer marcar na relação com o interlocutor. Castilho (2010) sugere que o uso da primeira pessoa do plural representa uma forma de acentuar a presença do locutor- 11 Utilizamos a expressão telespectador/internauta porque o outro para quem o professor se dirige é tanto o telespectador, quando o programa é apresentado na TV, como o internauta, quando o vídeo é acessado no YouTube. Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 183 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… enunciador. Assim, a segunda opção tentaria “apagar”, evitar as marcas do sujeito que enuncia, sob o argumento de que a escrita deva ser objetiva e direta. O problema é que essa “dica” não faz o menor sentido quando não se sabe qual o gênero textual visado e que condições de produção estão envolvidas. Temos observado que a orientação para que a escrita seja objetiva e direta, ou seja, mais referencial e menos subjetiva, tem sido reproduzida de forma deliberada em outros tipos de materiais, como manuais de metodologia da pesquisa e da escrita acadêmico-científica, facilmente encontrados no mercado editorial brasileiro. O problema desse tipo de abordagem consiste exatamente em desconsiderar outros aspectos importantes relativos à escrita, por exemplo, a dimensão discursiva, enunciativa. O uso da primeira pessoa gramatical não é aleatório no projeto de dizer do locutor-enunciador, uma vez que pode funcionar como indicador do movimento de (não) assunção do conteúdo proposicional de um texto (Cf. ADAM, 2011 [2008]). As porções do texto em que esse locutor-enunciador emprega pronomes e formas verbais em primeira pessoa diz muito sobre o seu engajamento enunciativo e, portanto, a objetividade não deve se constituir como uma dica generalizante da escrita formal. Em um texto propagandístico, de onde parecem ter sido retiradas as frases acima, é possível que o enunciador queira marcar algum grau de proximidade com o interlocutor/consumidor, o que indica que, ao contrário do que o apresentador sustenta, a primeira pessoa do plural se apresenta como a forma mais adequada. A opção pelo Nossa empresa, em vez de A planeta, tem uma motivação que não é da ordem da prescrição gramatical propriamente, como explica o apresentador, mas da ordem da determinação do contexto e dos interlocutores envolvidos, ou seja, do uso expressivo da língua, que se dá não na oração isolada, mas no âmbito do texto como unidade da interação comunicativa. Nesse sentido, é pertinente ressaltar a posição bakhtiniana segundo a qual “a oração enquanto unidade da língua possui uma entonação gramatical específica e não uma entonação expressiva” (BAKHTIN, 2003, p. 296). Essa posição ratifica a ideia de que a explicação do uso de uma palavra ou expressão sem levar em consideração a sua entonação expressiva, que se realiza no texto como unidade de comunicação, é incorrer em uma compreensão equivocada do uso da língua. Poderíamos dizer, com base ainda em Bakhtin (2013), que, em situações como a descrita na dica em análise, a visão estritamente gramatical não é absoluta, tampouco suficiente. Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 184 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… A qualidade da concisão está contemplada no vídeo denominado “Menos é mais”. Esse vídeo propõe, como o próprio título sugere, o que podemos denominar de uma economia de palavras. Figura 3 – Menos é mais. Fonte: vídeo do YouTube. Sem entrar no mérito de questionar a afirmação segundo a qual, quando possível, se deve utilizar uma só palavra para descrever uma ação, centramos nossa atenção nos exemplos, onde, a nosso ver, está o equívoco mais perturbador. A sugestão de modificação da frase “O presidente pretende usar seu direito de veto à decisão dos diretores”, em favor da economia de palavras que se verifica em “O presidente vetará a decisão dos diretores”, revela um equívoco do apresentador, na medida em que as frases não têm o mesmo equivalente semântico, de modo a alterar o que se pretende dizer. A proposta de colocar o verbo vetar no futuro do presente faz com que a segunda frase deixe de expressar a mesma ideia da primeira. Isso porque, enquanto a segunda frase assegura a ideia de uma ação de veto que se realizará em um tempo futuro, o uso da forma verbal pretende, na primeira frase, atenua a força de vetar¸ de modo a expressar a ideia de uma intenção, de um desejo de um veto no futuro e não de que se fará o veto. Além disso, se direcionarmos a análise para um viés mais discursivo-pragmático, a primeira opção situa a figura do presidente como “mais comedido” e menos “impositivo” no uso de suas atribuições legais, uma vez que, dada a sua posição, o uso do veto está posto como um direito na primeira frase. Ao levarmos em conta a tensão que permeia as relações de trabalho, de certo os diretores Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 185 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… reagiriam de maneira diferente ao saberem que o presidente fará uso de um direito ou simplesmente vetará uma decisão. Definitivamente, há aí uma incompatibilidade de sentido. O objetivo de ser conciso aqui traz um sério problema para a significação da frase, comprometendo, portanto, todo o esforço do apresentador em sua defesa da “economia linguística”. Sendo assim, o “menos” aqui é “bem mais” em deturpação da ideia que se pretende expressar, o que mostra que, “para ser eficaz comunicativamente, não basta, como já enfatizamos, saber apenas as regras específicas da gramática [...]” (ANTUNES, 2007, p. 41) e que a concisão não se faz mediante um simples exercício de troca de palavras, sem considerar as relações semânticas entre elas, até porque, de acordo com Antunes (2007, p. 43), “como unidades de sentido, as palavras constituem peças com que se vai tecendo a rede de significados do texto. São elas que vão materializando, mediando as intenções do nosso dizer”. O vídeo “Elimine expressões supérfluas” enquadra-se também na categoria de conteúdo voltado para a concisão do texto. Este último vídeo expressa claramente o apreço que se deve ter pela economia de palavras e de frases consideradas desnecessárias: Figura 4 – Evite termos supérfluos. Fonte: vídeo do YouTube. Neste recorte, como podemos ver, o tom da proposta é o corte de frases e palavras que se considera irrelevantes e que se julga atrapalhar o leitor na compreensão do texto. Se, por um lado, concordamos que informações irrelevantes devam, de fato, ser evitadas na escrita de textos, sobretudo de textos mais monitorados, é preciso, por outro lado, discordar da posição Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 186 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… do apresentador, para quem expressões como “de qualquer modo”, “por outro lado” e “por sua vez” sejam supérfluas, como ele explicita na sua fala/explicação. A justificativa de que essas expressões são mais apropriadas para a escrita do texto literário, como tenta argumentar o apresentador, não tem consistência de um ponto de vista das investigações das ciências da linguagem. Porque, como sabemos, é possível que, no funcionamento textual, o uso de por sua vez na frase “A Samsung, por sua vez, é a maior fabricante de celulares do mundo” pode ser considerado plenamente aceitável. Ele pode funcionar aí como uma expressão de transição (GARCIA, 2010) que assinala uma relação de continuação entre a ideia expressa nesse parágrafo e aquela expressa em um (suposto) parágrafo anterior. Justamente o fato de tomar o seu uso em uma frase isolada leva ao equívoco de achar que ela é uma expressão supérflua. Em se tratando de um contexto em que a superioridade de uma marca de celular parece se impor perante outras, a expressão “por sua vez” se mostra inevitável para produzir esse efeito de sentido, daí o fato de ser bastante penoso um ensino de escrita que não se paute em gêneros textuais e em condições de produção concretos. Uma crítica que se pode fazer ao conteúdo desse vídeo, e também aos demais analisados, está relacionada ao uso de frases soltas e descontextualizadas para explicar o fenômeno da língua escrita, bem como à desconsideração de que a atividade verbal ultrapassa os limites do linguístico, o que implicaria considerar a situação de interlocução, as finalidades comunicativas e os parceiros da comunicação. Ora, se a ideia dos vídeos é colaborar para que o telespectador/internauta aprenda a fazer uso da língua em situações “mais monitoradas”, “mais formais”, “do dia a dia do trabalho” onde se exige o domínio da variedade culta, bem como escrever textos conforme as exigências dos processos seletivos e da comunicação em contextos empresariais, o mínimo que se poderia esperar era que o apresentador tomasse o texto como enunciado, a unidade básica da comunicação humana (BAKHTIN, 2003), como ponto de partida de suas reflexões, tal como sugerem, desde longa data, estudiosos da linguagem como Geraldi (2002), Brito (2002) e Antunes (2003, 2009) e ainda os PCNs de Língua Portuguesa (BRASIL, 2001), principalmente aquele destinado ao ensino fundamental. Tomar o texto como unidade de reflexão poderia significar a possibilidade de enxergar também que, na atividade de produção de textos, nem sempre o estilo daquele que escreve deve ser desprezado em nome do que se julga ser um “ideal” de correção gramatical. É fundamental Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 187 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… considerar, seguindo apontamentos de Bakhtin (2003), que muitas das escolhas linguísticas 12 (dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais) que o produtor de textos faz estão diretamente relacionadas com a sua finalidade comunicativa, com os interlocutores que tem em vista e com as próprias restrições do gênero do discurso. O uso da repetição é um caso exemplar disso, porque, como discutido acima, ele pode resultar da intenção deliberada do produtor de textos de recorrer a uma mesma expressão ou palavra para atingir uma determinada finalidade comunicativa. Até porque nem sempre se repete por repetir ou sem mais nem menos, como lembra Antunes (2010). Seu uso não pode, portanto, ser condenado sem maiores explicações, sem explicitar, pois, suas possibilidades expressivas e seu funcionamento no texto. Isso mostra, portanto, que tentar explicar o uso da língua fora da unidade textual é incorrer em todo tipo de explicação equivocada sobre o fenômeno linguístico e, em última instância, uma demonstração de profundo desconhecimento das importantes e recentes contribuições das ciências da linguagem. Com isso, distanciamo-nos de um ensino de língua materna mais dinâmico e produtivo, especialmente de um ensino da produção de textos escritos “mais monitorados”, que venha a possibilitar ao aluno usar a linguagem de modo criativo (BAKHTIN, 2013) e a produzir textos comunicativamente relevantes e bem sucedidos (ANTUNES, 2003). 4. Conclusão Fundamentados principalmente em estudos da Linguística do Texto, nosso propósito com este trabalho foi apontar alguns equívocos que se manifestam em materiais com conteúdos voltados para o ensino de língua portuguesa, especialmente aqueles sob a forma de dicas para a escrita de textos, disponibilizados no formato de vídeos no YouTube. A análise do conteúdo de 04 desses vídeos permitiu-nos observar que as dicas apresentadas para o aprendizado da escrita de textos mais monitorados e exigidos em situações formais de uso da língua apresentam um enfoque mais estritamente linguístico. Em outras palavras, não há propriamente instruções que focalizem a natureza do texto e que o tomem 12 Aqui nos parece pertinente e bastante elucidativo destacar uma afirmação bakhtiniana a propósito do trabalho com as questões estilísticas no ensino (no caso dele, de língua russa, que pode ser, a nosso ver, perfeitamente pensado para a língua portuguesa): “As formas gramaticais não podem ser estudadas sem que se leve em conta seu significado estilístico. Quando isolada dos aspectos semânticos e estilísticos da língua, a gramática degenera em escolasticismo.” (BAKHTIN, 2013, p. 23). Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 188 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… como objeto de estudo e reflexão, dada a predileção ainda por elementos gramaticais explorados em frases soltas e descontextualizadas. A crítica que fazemos aqui não visa, porém, querer negar o lugar e a importância da exploração de categorias e de regras gramaticais para se conceber um trabalho de revisão da escrita, mas procura alertar para a negação do texto como ponto de partida para o exame dessas categorias e regras, quando o objetivo é o desenvolvimento da capacidade de escrever textos para uma atuação verbal mais bem sucedida. Quando os propósitos de qualquer instrução fogem desse objetivo, os equívocos se sobrepõem a qualquer boa intenção de ensinar a escrever, demonstrando que o tipo de trabalho que se realiza, nos vídeos examinados, em vez de ser uma contribuição rica e proveitosa, colabora para disseminar uma compreensão distorcida sobre o real funcionamento do texto, da produção escrita, da atividade interativa, e em desacordo, portanto, com as recentes contribuições da Linguística, principalmente aquelas advindas da Linguística do Texto e das Análises do Discurso, assim como do domínio da Estilística. Na contramão das limitações apresentadas, o tipo de material aqui analisado pode ser utilizado como fonte de discussões sobre aspectos da escrita e da reescrita de textos formais, em aulas de língua portuguesa, em cursos de redação para vestibulares e para o ENEM, e mesmo em aulas de produção textual em cursos de graduação em Letras, por exemplo. Se a intenção for o aproveitamento das dicas do que se deve evitar para escrever bem, assumimos que o professor precisa superar esse tipo de abordagem e trazer exemplos de textos concretos para análise, situando cada caso em relação a situações comunicativas reais, mas sobretudo não perder de vista qual é exatamente o alcance da abordagem adotada. Afinal, apresentar dicas de revisão/correção para profissionais como jornalistas, repórteres, advogados, executivos que já cuidaram de outros aspectos do seu texto, portanto já sabem expressar um projeto de dizer, não é mesmo que promover o ensino da escrita formal para “qualquer um que precise escrever bem”. Tanto os manuais de redação quanto os vídeos, como os que analisamos, precisam de uma atenção cuidadosa de professores de língua portuguesa, para que não se caia no equívoco de acreditar que o domínio de um conjunto de boas instruções sobre a escrita favorece naturalmente o domínio de gêneros textuais necessários à atuação profissional e à interação nas diferentes esferas sociais. Sem termos, portanto, que necessariamente abandonar as regras gramaticais, “esquecêlas” um pouco e centrarmos mais no texto, como propõem as contribuições mais recentes da Domínios de Lingu@gem | Uberlândia | vol. 11 n.1 | jan./mar. 2017 ISSN 1980-5799 189 José C. R. Bessa, Rosângela A. dos S. Bernardino| p. 174-191 Equívocos em torno da escrita: o caso das… linguística do texto e do discurso, pode representar uma possibilidade de fazermos “respirar levemente” o trabalho com a produção escrita, tanto na escola, como fora dela, com perspectivas mais animadoras para o quadro atual do ensino de língua portuguesa. Referências Bibliográficas ADAM, J. M. A linguística textual: uma introdução à análise textual dos discursos. Tradução de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. Revisão Técnica: João Gomes das Silva Neto. 2. ed. revisada e aumentada. São Paulo: Cortez, 2011. ANTUNES, I. Aula de Português: encontro e Interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. ______. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. ______. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. ______. 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