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Tempos mansos: história, socialidade e transformação no Juruá-Purus indígena. 2013

Foto da capa: Os Kulina de Maronaua pediram para serem fotografados na escola. Foto de Eduardo Viveiros de Castro (1978). ó çã á- í Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Dissertação de mestrado: Tempos Mansos história, socialidade e transformação no Juruá-Purus indígena Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Banca examinadora: Dr. Luis Abraham Cayón (orientador) Dr. Luiz Antonio Costa Dr. José Antônio Pimenta Drª. Marcela Stockler Coelho de Souza (suplente) Aline Alcarde Balestra Brasília, março de 2013 1 2 Ao meu avô João, que sempre me contou sobre como, em outros lugares e tempos, pessoas podiam pensar e viver de maneiras muito diferentes. 3 4 Resumo A presente dissertação analisa concepções de tempo e história dos Kulina (Arawá), Paumari (Arawá), Kanamari (Katukina) e Kaxinawá (Pano), que habitam a região dos rios Juruá e Purus, no Sudoeste Amazônico, nos estados brasileiros do Acre e Amazonas. Esses grupos indígenas, apesar de falarem línguas de famílias diferentes, fazem parte de um mesmo sistema regional e, ao referirem-se às suas histórias, dividem-nas similarmente em tempos ou eras. Nesta dissertação, realizo uma pesquisa bibliográfica e comparativa sobre esses tempos e mostro como eles podem ser interpretados enquanto definidores de socialidades específicas. Cada uma das eras indígenas define um caráter ou modo particular de vida, que articula características referentes à territorialidade, morfologia social, laços de parentesco, relacionamento com os “outros”, conhecimentos adquiridos, padrão de habitação, corpo, pessoa e cultura material. Assim, o tipo específico de temporalidade indígena aqui analisado aponta para histórias caracterizadas por um forte caráter de ruptura, incompatível com as ideias de cronologia e irreversibilidade que marcam outras noções de tempo. Palavras-chave: Tempo – História indígena – Juruá – Purus – Kulina – Kaxinawá – Kanamari – Paumari 5 Abstract The present dissertation analyses time and history concepts of the Kulina (Arawá), Paumari (Arawá), Kanamari (Katukina) and Kaxinawá (Pano), groups that inhabit the Juruá and Purus rivers’ region, in Southwest Amazonia, in the Brazilian states of Acre and Amazonas. These indigenous peoples, although speaking languages of different language families, are integrated into a regional system and, when referring to their histories, they similarly divide it into times or ages. In this dissertation, I do a comparative bibliographical work focused in these times to show that they can be interpreted as defining specific socialities. Each of these indigenous ages define a particular a life’s character or manner, that rejoins aspects of territoriality, social morphology, kinship bonds, relationship with “others”, acquired knowledge, habitation patterns, body, person and material culture. Thus, the kind of indigenous temporality analyzed here points to histories marked by a strong feature of disjunction, that is incompatible with ideas of chronology and irreversibility that characterize other notions of time. Keywords: Time – Indigenous history – Juruá – Purus – Kulina – Kaxinawá – Kanamari – Paumari 6 Índice Lista de mapas e fotos ......................................................................... i Agradecimentos ......................................................................................... iii Introdução...................................................................................................... 01 Um recorte regional: o Juruá-Purus indígena............................................... 06 A pesquisa e o interesse pelo tempo............................................................... 10 Apresentação dos capítulos............................................................................ 15 Capítulo 1. Entre bravos e mansos: história, amansamento e civilização................................................... 19 Índios e brancos no Juruá-Purus.................................................................. 20 “Para os civilizados trabalharem em paz”: as correrias................................ 36 O seringal: espaço, tempo e patronagem....................................................... 43 Imagens de selvageria e civilização................................................................ 51 Capítulo 2. Histórias kulina e kanamari: seus tempos e espaços de transformação................................................. 61 Vizinhança ambígua....................................................................................... 62 Tempos-espaços kulina................................................................................... 66 Do Tarauacá ao Purus: caminhos kulina............................................. 66 Os Kulina do Alto-Purus: seu tempo atual..........................................72 Ruptura entre tempos-espaços............................................................. 81 Espaço, socialidade e selvageria............................................................ 84 Subgrupos, territorialidades e as transformações dos tempos kanamari....... 100 Do Céu Antigo ao tempo de Tamakori: primeiros tempos................... 100 No tempo da borracha: a chegada de Jarado......................................... 107 O tempo da Funai: “Quando Sabá chegou”......................................... 113 Tempos-espaços, socialidades......................................................................... 118 7 Capítulo 3. Trocando de pele: tempos e socialidades kaxinawá e paumari.............................................127 O tempo como configuração........................................................................... 128 A pele e a história paumari............................................................................ 130 Os Pamoari e a “velha cultura”........................................................... 132 Do mito aos tempos antigos................................................................. 134 Orobana e a era comercial.................................................................... 137 Deus, um novo patrão.......................................................................... 142 Os Huni Kuin e seus tempos......................................................................... 146 Apresentação........................................................................................ 146 Inu e Dua, as metades.......................................................................... 151 Dos gigantes antepassados aos Kaxinawá “verdadeiros”.................... 155 O surgimento da vida e da morte......................................................... 168 A cobra e a história........................................................................................ 174 Considerações finais. Donos do tempo............................................................................................ 185 Bibliografia.................................................................................................... 195 Anexos Anexo 1.......................................................................................................... 207 Anexo 2.......................................................................................................... 213 Anexo 3.......................................................................................................... 223 8 Lista de mapas e fotos Mapa 01: Juruá, Purus e seus principais afluentes....................................... 7 Mapa 02: Interflúvio Juruá-Purus-Urubamba.............................................. 10 Mapa 03: Localização das Terras Indígenas.................................................. 67 Mapa 04: Aldeias kulina no Alto Purus........................................................ 71 Desenho 01: O seringal.................................................................................. 44 Desenho 02: Defumação da borracha.............................................................. 57 Diagrama 01: Metades matrimoniais kaxinawá (1)...................................... 151 Diagrama 02: Metades matrimoniais kaxinawá (2)...................................... 152 Foto 01: Pelas de borracha.............................................................................. 57 Foto 02: Borracha às margens do Guaporé..................................................... 57 Foto 03: Índio kulina coletando látex.............................................................. 59 Foto 04: Criança kulina em sua casa.............................................................. 123 Foto 05: Vista de uma aldeia kulina............................................................... 123 Foto 06: Aldeia de Kumaru (Kanamari)......................................................... 125 Foto 07: Menino kanamari............................................................................. 125 Foto 08: Homem paumari com “pinta”.......................................................... 131 Foto 09: Menina paumari em banho no ritual do Amamajo.......................... 181 Foto 10: Mulheres kaxinawá confeccionando cestaria.................................... 183 Foto 11: Braço de um kaxinawá com a marca de Felizardo Cerqueira (FC)... 183 i ii Agradecimentos Agradeço, primeiramente, aos meus pais, que sempre me apoiaram em minhas escolhas, pelo carinho, conforto e amor. Também a toda a minha família pelo apoio e pelo carinho, sempre presentes. Especialmente, ao meu avô João, a quem dedico esta dissertação. Desde quando eu era criança, ele me contava histórias que me intrigavam. Sua curiosidade despertou a minha. As minhas tias Flávia Maria, Glaucia Maria e Cristina Maria. À Maria, minha avó. Ao Eduardo-namorado, pelo amor e excelente companhia. Pelas inúmeras conversas a respeito desta dissertação, pelos ensinamentos de etnologia, pelo encorajamento, pela calma. Por estar aqui no momento em que mais precisei. Com ele, aprendo muito sobre a constância. Sua leitura de versões anteriores deste trabalho, sua ajuda com a revisão do texto e formatação da dissertação foram imprescindíveis. São dele também os créditos pelos mapas e desenhos. Ao Luis, meu orientador, agradeço imensamente. Ele soube me ouvir com muita paciência e ajudou-me a encontrar caminhos. Agradeço por ter sido um excelente orientador, lendo atentamente meus textos, questionando-me e tendo a calma necessária para ensinar uma iniciante nos estudos de etnologia indígena. A ele, sou grata pelo rigor e também pela liberdade. Mesmo sem os conhecer pessoalmente, agradeço também aos Kulina, Kaxinawá, Paumari e Kanamari que falaram de suas vidas e histórias àqueles que com eles conviveram. Sem suas histórias, esta dissertação não existiria. Agradeço também àqueles que as souberam ouvir e registrar com atenção e cuidado. Sou grata especialmente à Lori Altmann, ao Luiz Costa e à Oiara Bonilla por terem realizado excelentes análises dos tempos kulina, kanamari e paumari respectivamente. Seus trabalhos foram fundamentais para minha dissertação. Agradeço também pela abertura e disponibilidade que apresentaram, ajudando-me com informações ou acesso a textos. iii Durante o percurso desta pesquisa, tive dificuldade em acessar inúmeros textos e materiais. Assim, agradeço a todos que me ajudaram enviando-me livros ou cópias. Sou grata ao Donald Pollock por enviar-me, prontamente, sua tese. Ao Instituto Linguístico de Verano, pelas inúmeras publicações de qualidade que disponibilizam sobre os povos indígenas no Peru. À Lori Altmann, pelos inúmeros apoios. Sou também grata ao Eduardo Viveiros de Castro, por disponibilizar prontamente a fotografia que compõe a capa desta dissertação, e ao Instituto Socioambiental por ceder o acesso a ela. Sanderson Oliveira e Manoel Andrade ajudaram-me especialmente com informações sobre a região e acesso a textos. Clarisse Jabur foi quem primeiro me alertou sobre a existência de uma publicação em que índios do Acre falavam sobre seus tempos. Moacir Haverroth ajudou-me com informações sobre a região e sobre acesso ao campo. Muito obrigada. À Suely Kofes, por ser uma brilhante professora. Pelos ensinamentos sobre mito, rito e tempo. Pelo alerta de que, em uma história contada, cada detalhe é importante. Aos professores John Monteiro, Marcela Coelho de Souza e José Pimenta pelos ensinamentos de etnologia indígena. Ao John, por ainda na graduação, incentivar-me neste campo de conhecimento; pelo constante apoio e pelos inúmeros ensinamentos. À Marcela e ao José Pimenta também pelas conversas e ajuda no acesso a bibliografias. À Antonádia Borges, por suas aulas instigantes, pelos ensinamentos, pelas trocas e pelo apoio. Ao professor Ronaldo Almeida pelo apoio e também por suas aulas que estimularam meu interesse pela antropologia. Agradeço, igualmente, aos funcionários do Departamento de Antropologia (DAN) pelas inúmeras ajudas. Ao DAN pelos apoios financeiros concedidos ao longo do mestrado. Ao CNPq pela bolsa de mestrado. Agradeço enormemente a todos os meus amigos e amigas. Eles sempre estiveram presentes, alegrando meus dias. À Emanuele que, desde a infância até hoje, é uma grande amiga. À Marina, Amanda, Thaís, Tânia, Mariane, Rafinha, Juliana Damante, Guaraciara Maria, Larissa, Carol Parreiras, Laura, Karen, Désirée, Juliana, Gabriela, Lucas, Rodrigão, Rafael Carvão, Daniel Martini, Stella, Daniel Belik, Noemi, Joaquim, Estevão, Enaile, Luana, Andréia, Luciana, Marcelo, Bruno Falcão, Denis Alberto, Carolina Maria, Daniela Maria, Raoni, Julinha, Bruner, Rafael Pereira, Chirley Maria, Potyguara, Hugo e Rafael Almeida. iv Aos meus amigos que leram textos iniciais ou primeiras versões de capítulos, pelos excelentes comentários: ao Patrik, Daniel Belik, Dani, Chirley, Emanuele, Carol, Rafael Carvão e Rafael Pereira. Aos meus colegas de mestrado, por terem compartilhado deste percurso. A minha querida amiga Guaraciara agradeço também pelas conversas sobre tempo, filosofia, psicologia e tarot. À Carol, pela importante lembrança de que a serpente (uróboro) que comia o próprio rabo na carta “o mundo” é um ser eterno e completo também na mitologia grega. Ao Bruner e ao Rafael Carvão, por sempre me fazerem perguntas. Ao Dogercy e a Maria Rita, pelo acolhimento, almoços e apoios inúmeros. À Norma, por me ensinar, enormemente, sobre a vida, a liberdade e a paz. À vida e ao tempo. v vi Cronos então libertou seus irmãos e tornou-se soberano da Terra. Sob o seu longo e paciente reinado, o trabalho da criação foi completado. Essa época na Terra ficou conhecida como a Era de Ouro, em razão da abundância sobre a qual Cronos presidia. Como deus do Tempo, ele presidiu e administrou a passagem das estações, o nascimento e o crescimento seguidos pela morte, gestação e renascimento; era venerado tanto com o Anjo da Morte, que estabelecia os limites que o homem e a natureza não podiam ultrapassar, quanto o deus da fertilidade. Mas o próprio Cronos não podia aceitar as leis cíclicas que havia estabelecido, pois, quando foi profetizado que um dia seu filho o destronaria, como fizera com o seu próprio pai Urano, passou a engolir os seus filhos assim que nasciam, para que pudesse preservar o seu domínio. Greene & Sharman-Burke. O tarô mitológico. i ii çã Introdução A presente dissertação aborda, principalmente, a mudança. Isso porque a transformação das coisas é a maneira mais simples e fundamental pela qual o tempo pode ser percebido, seja ela de horas, de espaços, de casas, de chefes; mas, certamente, ela assume maneiras dissonantes de ser encarada e concretizada. Os grupos indígenas que abordei neste trabalho dividem sua história em tempos ou eras. Eles assumem comumente que as transformações do tempo ocorrem por rupturas, podendo as eras de sua história ser concebidas como socialidades específicas. Cada uma desses tempos define um caráter ou modo particular de vida, que articula características referentes à territorialidade, morfologia social, laços de parentesco, relacionamento com os “outros”, conhecimentos adquiridos, padrão de habitação, corpo, pessoa e cultura material. Apresento, nesta dissertação, o desenvolvimento inicial de um trabalho que busca contribuir para a compreensão de distintos modos indígenas de se conceber o tempo e a história. Por muito tempo, a antropologia circunscreveu a atribuição de histórias de longa duração ao mundo não indígena, dito “ocidental”, e reservou aos grupos indígenas histórias cíclicas. Acredito que, na base desta divisão limitadora, esteja a ideia de que “história” só se define a partir do momento em que exista a ideia de cronologia e de irreversibilidade do tempo. Diversos trabalhos antropológicos mais recentes vêm mostrando como, para os grupos indígenas, a “história” pode assumir diferentes definições. Não pretendo apresentar aqui uma definição da concepção de história no mundo “ocidental”, nem acredito que tal definição seja possível, uma vez que diversos historiadores mostram como as próprias ideias de cronologia, de progresso e de longa duração assumiram feições particulares em contextos muito específicos (cf. p. ex. Braudel, 1978 [1969]; Le Goff, 1990 [1988]). Assim, apesar de saber que, para um melhor contraste entre um tempo concebido a partir da cronologia e da irreversibilidade e as temporalidades indígenas, seria preciso um investimento analítico também neste primeiro modo de conceber a história, este não poderia ser desenvolvido na presente dissertação. Nesse sentido, este trabalho tem um interesse 1 Introdução etnológico cujo objetivo é elaborar uma análise preliminar das concepções de tempo de quatro grupos indígenas - Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá - que habitam a região do Juruá-Purus na Amazônia brasileira1. O tempo, categoria analítica central desta dissertação, é constitutivo das reflexões antropológicas desde autores mais clássicos até a atualidade, tendo sido abordado de diversas maneiras ao longo da história da disciplina. Como não é possível abranger um campo tão extenso em um estudo tão breve, apontarei apenas algumas ideias fundamentais sobre o tempo que guiaram minhas análises, para conectá-las com outras inspirações teóricas provenientes da etnologia amazônica contemporânea. Durkheim (2000 [1912]) postulou a noção de tempo como uma “categoria do entendimento”, sendo, assim, constitutiva universal do pensamento humano. Apesar de sua universalidade, o tempo era representado diferentemente por cada sociedade e expressava o ritmo da vida social, marcado pela ocorrência periódica de rituais ou cerimônias religiosas. Esta ideia de tempo enquanto alternância que gera ritmos na vida social e sua periodização foi fundamental também em estudos como os de Mauss (2003 [1904]), Evans-Pritchard (1999 [1940]) e Leach (2005 [1961]). Mauss (2003 [1904]) mostrou como variações sazonais da morfologia social dos Esquimós estavam relacionadas a alternâncias na vida religiosa, moral e jurídica desse grupo. Ele explicitou, portanto, de que maneira as variações sazonais dos Esquimós estavam associadas ao que poderíamos chamar de diferentes socialidades: cada uma das épocas do ano estava relacionada a distintos modos de habitação, parentesco, subsistência, cultura material etc. Evans-Pritchard (1999 [1940]), por sua vez, explicitou como, entre os Nuer, eram as próprias atividades humanas os pontos de referência que possibilitavam a percepção da passagem do tempo e a configuração de um ciclo anual em que se alternavam as estações seca e chuvosa. Entre os Nuer, o tempo era também marcado a partir dos relacionamentos previstos na estrutura social, a saber, o sistema de conjuntos etários, de clãs e de linhagens. Apesar de Evans-Pritchard ter chamado esses diferentes modos de marcação do tempo de “tempo ecológico” e “tempo estrutural”, em ambos os casos a estrutura social assumia uma importância fundamental. Ambos apresentavam notações limitadas e fixas, marcadas pela previsibilidade estrutural, pois (1) as mudanças de estação e de lua se repetiam ano Em relação aos Kanamari, é importante notar que, apesar de eles se encontrarem majoritariamente na região do médio Juruá, a principal fonte de informação sobre sua divisão da história em tempos vem da pesquisa de Luiz Costa (2007), o qual aborda um grupo que recentemente se mudou para o Itaquaí, afluente do Javari, mas próximo ao Juruá. 1 2 Introdução após ano; e (2) o futuro estrutural de um homem estava fixado em diversos períodos e mudanças de status previstas estruturalmente. Esses “tempos” estavam ainda diretamente relacionados tanto ao espaço ecológico quanto à distância estrutural. Evans-Pritchard mostrou, desse modo, como entre os Nuer o tempo e o espaço eram articulados e concebidos fundamentalmente a partir da estrutura social. Leach (2005 [1961]), por sua vez, argumentou a favor de um “tempo pendular”, o qual seria distintivo da vida dos “povos primitivos” e caracterizado pela alternância entre estados opostos, como, por exemplo, entre uma ordem sagrada/ritual e outra profana/cotidiana. Esses trabalhos trouxeram importantes reflexões a respeito dos ciclos da vida social e da relação dessas alternâncias ou ritmos com as concepções de tempo dos povos estudados, ressaltando como a ideia de um tempo que prossegue linearmente não era suficiente para o entendimento dos processos sociais analisados. Entretanto, se a linearidade parece não dar conta dessas vivências temporais indígenas, o enfoque no caráter cíclico e repetitivo do tempo deixa um pouco à margem a perspectiva histórica dos povos estudados e suas concepções sobre o passado. A oposição entre um tempo cíclico, sem profundidade, mistificado – “primitivo” –, e um tempo linear, com profundidade, não mistificado – “ocidental” –, acaba por se configurar como uma simplificação das diferenças entre modos dissonantes de se viver o tempo (Munn, 1992, p. 100). Durante muitas décadas, histórias que não fossem registradas de maneira escrita eram desconsideradas – reflexos de um evolucionismo que congelou os “povos primitivos” em uma eterna infância da história universal (Schwarcz, 2005). Manteve-se, assim, uma visão tradicional segundo a qual os povos indígenas estão fora da história, congelados no tempo, ou são incapazes de conceituar a “mudança” como constitutiva de algo que se possa nomear “história”. Mas, como bem mostrou Lévi-Strauss, documentos escritos constituem apenas um modo de explicação histórica, característico das ditas “sociedades quentes”. Pois, se é certo que “toda sociedade está na história e que muda”, elas “reagem de maneiras muito diferentes a essa condição comum” (LéviStrauss, 2004 [1962], p. 260). Ao mesmo tempo, como já havia notado Fabian (1983), as temporalidades indígenas são certamente contemporâneas às nossas. Nessa direção, a etnologia amazônica dos últimos vinte anos tem evidenciado as múltiplas maneiras pelas quais diferentes grupos indígenas concebem a história. O trabalho de Gow (1991) trouxe uma contribuição fundamental para o entendimento da 3 Introdução maneira pela qual a história indígena podia ser entendida em seus próprios termos. O autor rompeu, assim, com a divisão entre o estudo das noções de tempo, reservada aos grupos indígenas, e os estudos das noções de história, destinada apenas aos povos com escrita. Gow (1991) mostrou como os Piro, no tempo presente, afirmam-se positivamente como “gente civilizada”. Tal assertiva piro não se contrapõe a um suposto modo de ser “tradicional”, mas sim a um tempo anterior associado “à ignorância e ao desamparo dos antigos ancestrais moradores da floresta”, de modo que “ser civilizado” significa ser autônomo, viver em aldeias e de acordo com seus próprios valores, ao invés de viver dos caprichosos desejos de um patrão. O que eles desejam é “viver bem”: comer “comida de verdade” (os produtos de suas roças, da pesca e da caça), morar com seus parentes (que se lembrarão de sua fome e irão alimentá-los) em comunidades pacíficas e felizes, livres da opressão dos patrões (Gow, 1991, p. 198, tradução minha). Os Piro se afirmam, no tempo atual, como pessoas diferentes daquelas dos tempos antigos, sendo agora de “sangue misturado” e “civilizadas”, sem que isso represente qualquer tipo de perda de identidade. O que se percebe, portanto, é que os Piro se encaram como constantemente produzidos no tempo ou, em outras palavras, que o tempo também os constitui. Dessa forma, Gow (1991) mostrou que o modo narrativo piro sobre o passado não se constitui da memória de acontecimentos emblemáticos, mas das histórias que os mais velhos contavam sobre seus antepassados. O conhecimento histórico é, assim, transmitido em laços de parentesco, referindo-se à formação de tais laços. Trabalhos recentes sobre grupos indígenas amazônicos também questionam a oposição entre o tempo cíclico e o tempo linear. Taylor (1993, 1997) mostra como os Jívaro da Amazônia Ocidental destinam muita atividade ritual, i.e. repetitiva, ao objetivo de que os mortos permaneçam mortos. Desse modo, vemos que eventos repetitivos e não repetitivos estão conectados, sendo impossível desligar a repetição do acúmulo irreversível que ela produz. Os Jívaro, assim como os Piro, tiveram sua história marcada pela exploração seringalista. Eles passaram por uma violenta experiência de contato com os brancos no decorrer do boom da borracha (1880-1910), mas, como destaca Taylor (1997, 2007), não guardam em sua memória uma história que conceba fatos de tal episódio. Isso, entretanto, não quer dizer que eles não vivenciem essa história: dela, eles guardam o essencial, a saber, a transformação das coisas. O ritual de cura xamânica é uma dessas vivências, na qual o xamã encarna em seu corpo o homem branco. Assim, a doença é a figura privilegiada da história nessa cultura: ela 4 Introdução é vivida e conceitualizada como o processo por excelência da temporalidade dolorosa, e é ela que permite uma interiorização de alterações qualitativas da vida social. Os trabalhos de Gow (1991) e Taylor (1993, 1997) constituíram-se como inspirações fundamentais para a análise que empreendo nesta dissertação. Eles fogem da oposição entre linearidade e ciclicidade como metáforas para se pensar o tempo, notando como outras formas de conceber a história são enfatizadas tanto pelos Piro quanto pelos Jívaro. Também a abordagem das cosmo-políticas do contato (Albert; Ramos, 2002) trouxe uma importante reflexão sobre a complexidade dos modos indígenas de construção da história, uma vez que articulara os sistemas cosmológicos com as situações de contato. McCallum apresentou, neste contexto, uma análise do caso kaxinawá a partir de seus mitos, de narrativas de um “tempo histórico” e da performance comemorativa dos onze anos da compra do terreno da aldeia em que habitam — adquirida dos brancos por esse grupo indígena. Ela mostrou como a história é “vida no presente”, “construída com acontecimentos e processos que formam a socialidade, deixando suas marcas nas memórias e nos corpos dos indivíduos” (McCallum, 2002, p. 391). Desta maneira, a etnologia amazônica contemporânea vem destacando as conexões do tempo com a história, a socialidade, a construção do parentesco e a noção de pessoa. Nesse cenário, outro ponto que devemos considerar é a “revolução temporal” (Fausto; Heckenberger, 2007, p. 1) pela qual está passando a etnologia das terras baixas sul-americanas. Pesquisas recentes têm revelado uma imagem diferente da pré-história amazônica, colocando os falantes da família linguística aruak como articuladores de grandes sistemas regionais e inter-regionais de intercâmbio (Heckenberger, 2002; Hornborg, 2005; Hill; Hornborg, 2011) que, muitos séculos antes da chegada dos europeus, integraram a Amazônia com o Caribe e os Andes. Na visão destes autores, não se tratou exatamente da expansão territorial de um grande contingente populacional constituído por laços biogenéticos, uma língua e uma cultura em comum, mas sim da disseminação de alguns marcadores étnicos (i.e. elementos linguísticos e socioculturais), que se manifestam por continuidades de longa duração e por um processo multilateral de criação e recriação étnica que se vive até a atualidade. Essas novas conclusões colocam a etnologia indígena frente a desafios maiores e reforçam a importância dos recortes analíticos regionais. Desse modo, esta dissertação pretende realizar uma análise com um escopo regional, com o objetivo de investigar maneiras particulares de conceber o tempo e a história de quatro povos indígenas. 5 Introdução Um recorte regional: o Juruá-Purus indígena O estudo de concepções indígenas de tempo e história foi o fio condutor da pesquisa que desenvolvi durante o mestrado em Antropologia Social. A análise empreendida, de cunho bibliográfico e regional, compreendeu as histórias de quatro grupos indígenas distintos: os Kulina (Arawá), os Kanamari (Katukina), os Paumari (Arawá) e os Kaxinawá (Pano). Todos eles habitam exclusiva ou majoritariamente a região dos rios Juruá e Purus no Sudoeste Amazônico, compreendendo os estados do Acre e Amazonas no Brasil e estendendo-se também ao território peruano. O objetivo central da pesquisa desenvolvida foi o de compreender e analisar comparativamente as concepções de história desses quatro grupos indígenas, bem como o de realizar uma leitura inicial sobre a história da ocupação não-indígena da região dos rios Juruá e Purus. A bacia dos rios Juruá e Purus é ainda pouco conhecida no âmbito dos estudos etnológicos e também historiográficos. Sobre ela, apenas algumas esparsas análises históricas são encontradas para datas anteriores a meados do século XIX, quando teve início a instalação de uma empresa seringalista que viria marcar profundamente a história desses rios. Também no que se refere aos estudos etnográficos, foi apenas nas últimas décadas do século XX que eles começaram a ser realizados - cf. p. ex. Pollock (1985), Lorrain (1994), Altmann (1994, 2000) e Silva (1997) para os Kulina; Aquino (1977), McCallum (1989, 2001), Kensinger (1995), Lagrou (2007) e Iglesias (2010) para os Kaxinawá; Reesink (1993), Neves (1996), Carvalho (2002) e Costa (2007) para os Kanamari; Bonilla (2007) e Menendez (2011) para os Paumari; Koop & Ligenfelter (1980) para os Deni; Maizza (2009) para os Jarawara; Rangel (1994) para os Jamamadi; Kroemer (1994) para os Sorowahá; Pimenta (2002) para os Ashaninka do lado brasileiro; Schiel (1999, 2004) para os Apurinã; e Calavia Sáez (2006) para os Yaminawa. Os Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá habitam uma região identificada há muito tempo como uma área cultural. Os rios Juruá e Purus são afluentes do rio Solimões situando-se no sudoeste da Amazônia (ver mapa 1), sendo, portanto, uma zona de floresta tropical. Ela é, atualmente, habitada por grupos falantes de línguas das famílias Arawá, Aruak, Katukina e Pano – da família Arawá, os Banawá, Deni, Jamamadi, Jarawara, Kulina, Paumari, Sorowahá e Rimarimá (Hi-Merimã); da família Aruak, os Ashaninka e Apurinã; da família Katukina, os Kanamari; da família Pano, os 6 Mapa 1: Juruá, Purus e seus principais afluentes 7 Elaboração: Eduardo Nunes / Fonte: IBGE Introdução Kaxinawá, Yaminawa, Poyanawa, Yawanawa, Kontonawa, Nawa, Nukuini; dentre outros, incluindo índios isolados. Nos esquemas de Steward (1949) e Murdock (1951a; 1951b), as bacias dos rios Juruá e Purus já eram definidas como uma única região, a partir de critérios socioeconômicos e religiosos. Posteriormente, Galvão (1979 [1959]) partiu dessa classificação anterior para propor o Juruá-Purus como uma área cultural, para o que considerou a “distribuição espacial contígua de elementos culturais, tanto os de natureza ergológica como os de caráter sócio-cultural” (Galvão, 1979 [1959], p. 205). Também Melatti (2012) trata o Juruá-Purus como uma área etnográfica. Apesar de ser possível destacarmos algumas características etnográficas e históricas que marcam as bacias dos rios Juruá e Purus, essa região, especialmente no que tange aos grupos da família arawá, é ainda pouco conhecida etnograficamente. Esta foi uma das questões que levei em conta na escolha desta região de estudo. Alguns aspectos da vida social aparecem de maneira difundida entre os grupos indígenas que compõem esse sistema regional, como por exemplo, uso xamânico de rapé e ayahuasca; uso terapêutico do veneno do sapo kampô; além do feitiço por meio de substâncias que podem tomar a forma de “pedras”, as quais o xamã apresenta em seu corpo e que são lançadas como projéteis sobre suas vítimas – essas pedras ganham diferentes nomes, como, por exemplo, dori entre os Kulina, dyohko entre os Kanamari, arabani entre os Jarawara (cf. Melatti, 2012; Maizza, 2009, p. 79-81). Cabe destacar ainda que os grupos indígenas abordados na presente dissertação afirmam terem sido, no passado, habitantes de zonas de interflúvio, com a exceção dos Paumari, os quais habitam desde muito tempo as margens dos rios. Esse complexo de características que assemelham os grupos da região aponta para a existência de um sistema regional. Mas também podemos notar diferenças significativas entre essas populações indígenas como, por exemplo, seus sistemas de organização social. Veremos nesta dissertação, que os Kaxinawá, por exemplo, apresentam um sistema de metades exogâmicas, enquanto os Kanamari e Kulina apresentam uma formação social em subgrupos, os quais são ou foram idealmente endogâmicos. Um dos eventos mais marcantes para os índios dessa região refere-se à ocupação e exploração branca da bacia desses rios com vistas à atividade extrativista iniciada, sobretudo, a partir da década de 1870. É importante notar que o impacto da empresa seringalista na vida dos povos indígenas não se limitou a essa região nem às áreas vizinhas, como a Selva Central peruana (cf. p. ex. Varese, 2002 [1968] e Barclay; 8 Introdução Santos-Granero, 1998), mas abrangeu a Amazônia de uma maneira geral. O encontro entre brancos e índios, nesse contexto, foi marcado pela guerra e violência, provocando muitas mortes, dispersão e circulação de grupos indígenas, bem como o engajamento como mão-de-obra nos seringais por meio de um sistema que ficou conhecido por “aviamento”. A instalação de uma empresa seringalista submeteu esses grupos a condições semelhantes de contato. Elas serão tratadas no primeiro capítulo desta dissertação e, como veremos, são fundamentais para a compreensão das histórias recentes dos grupos indígenas inseridos nesse sistema regional. Ao realizar um levantamento bibliográfico de trabalhos sobre os Kulina, descobri que Lori Altmann havia escrito uma dissertação de mestrado sobre categorias de tempo e espaço entre esse grupo indígena. Em seu trabalho, Altmann (2000) mostrou que os Kulina dividem sua história em duas eras — o tempo dos antigos e o tempo atual — e que esta partição do tempo é muito importante em diversas dimensões da vida social kulina. Tempos antes, já havia lido o trabalho de Gow (1991) sobre os Piro do baixo Urubamba e também a tese de Bonilla (2007) a respeito dos Paumari do médio Purus. Esses dois grupos também dividem sua história em eras ou épocas: os Piro apresentam uma história quadripartida em tempo dos anciãos, tempo da borracha, tempo da fazenda e tempo atual; e os Paumari apresentam uma história tripartida em tempo dos antigos, tempo dos patrões e tempos atuais. Com o decorrer da pesquisa, fui percebendo que esse tipo de historicidade baseada em uma divisão de períodos históricos – os tempos – assumia uma importância no contexto regional indígena dos rios Juruá e Purus, sendo apresentada por diversos grupos e havendo inclusive uma publicação em que alguns representantes indígenas falavam conjuntamente a respeito dos tempos de suas histórias (cf. Maná Kaxinawá, 2002). Trabalhos etnológicos desenvolvidos na região dos rios Purus, Juruá ou ainda do Itaquaí (afluente do Javari, muito próximo ao Juruá), também apontavam direta ou indiretamente para esse tipo de concepção da história, como é o caso dos trabalhos de Costa (2007) entre os Kanamari do Itaquaí; Pimenta (2002) entre os Ashaninka do rio Amônia, afluente do alto Juruá; Aquino (1977), Iglesias (2010), Aquino & Iglesias (1994) e Weber (2006), todos entre os Kaxinawá da região do Juruá, além de Zoppi (2012) entre os Kaxinawá do alto Purus; e Schiel (1999, 2004) entre os Apurinã. Devemos observar que esse tipo de abordagem da história não se limita à região do Juruá-Purus ou ainda ao Itaquaí. Os Piro, por exemplo, habitantes do baixo curso do rio Urubamba, afluente do Ucayali na Selva Central peruana também dividem sua 9 Introdução história em tempos (cf. Gow, 1991). Não deixa de ser interessante notar que as cabeceiras dos rios Juruá e Purus encontram-se praticamente ligadas aos afluentes do Urubamba e, consequentemente, podemos considerar essas duas regiões como contíguas (ver mapa 2). Tipo semelhante de partição da história pode ser também encontrado entre grupos falantes de línguas quéchua e habitantes da Alta Amazônia, como, por exemplo, os Canelos do rio Curaray, no Equador (cf. Taylor, 2007, p. 155156; Reeve, 1988). Diante da extensão do material e da região, limitei meu recorte aos grupos citados, mas considero que seria interessante, no futuro, ampliar o escopo da comparação, contrastando as conclusões deste estudo com os trabalhos acima citados. Mapa 2: O interflúvio Juruá-Purus-Urubamba Elaboração: Eduardo Nunes / Fonte: Autoridad Nacional del Agua (Governo Peruano) A pesquisa e o interesse pelo tempo Ao entrar no mestrado, desejava iniciar um estudo na área da etnologia indígena, por estar interessada em compreender e experimentar, por meio da etnografia, um modo específico de conceber o tempo, o qual acreditava ser 10 Introdução radicalmente divergente de uma noção de tempo marcada pela ideia da cronologia e associada ao registro escrito – de anos, datas, idades. Esta, de diversas maneiras, estava mais próxima de minhas experiências cotidianas. O interesse pelo tempo era entretanto ainda latente quando buscava, de maneira algo aleatória, ler sobre grupos indígenas e temas que despertassem minha curiosidade. Nessa circunstância, pensava em estudar o tema da morte e a maneira como ela poderia ser percebida a partir de uma perspectiva indígena. Acredito que a temática da morte como ideia inicial de estudo estava relacionada tanto a minha experiência anterior de pesquisa acadêmica, quanto a um trabalho de pesquisa aplicada, desenvolvido no Ministério da Justiça2, ambos ligados de alguma maneira ao tema da morte. Esta última pesquisa tinha como objetivo analisar o modo como os crimes de homicídio eram investigados em algumas regiões do Brasil. As entrevistas realizadas com investigadores de polícia da área de homicídios chamavam a atenção para um tipo de valorização específica da vida, em que uma enorme importância era atribuída à idade das vítimas. Assim, morrer jovem e por causas consideradas não “naturais” era, em diversas circunstâncias, pensado como algo muito negativo. Na pesquisa desenvolvida durante a graduação (Universidade de Campinas, 2004-2008) – intitulada “Gênero, gerações e corporalidades nas academias de ginástica” –, realizei uma investigação etnográfica sobre gênero, corpo e envelhecimento em academias de ginástica de Campinas-SP e Agudos-SP, tendo como interlocutoras mulheres com 40 anos ou mais, que frequentavam tais espaços. Essas mulheres encaravam o exercício físico como uma prática que caminhava no sentido contrário da “idade”, ou seja, contra os efeitos da passagem do tempo. Com o “processo de envelhecimento”, seus corpos iam perdendo o movimento e a saúde que caracterizavam a juventude, sendo, portanto, importante a realização de atividades que desacelerassem tal processo e retardassem, de certa maneira, a morte3. Se a temática da morte era abordada em contextos completamente diferentes nessas duas pesquisas, em ambos os casos, a ideia de uma vida contada em anos e que deveria ser prolongada o máximo possível estava presente: morrer velho e por causas naturais era algo muito valorizado. O tempo, em ambos os casos, era contado por meio de um sistema numérico, assumindo como ponto de partida a irreversibilidade. Ainda que o processo de envelhecimento pudesse ser retardado pelas mulheres que Trabalhei no Ministério da Justiça de 2009 a 2012, de modo que, no primeiro ano do mestrado, ainda era servidora pública, conciliando portanto as duas atividades. 3 Para uma análise mais detalhada dos resultados desta pesquisa cf. Balestra (no prelo). 2 11 Introdução praticavam cotidianamente exercícios nas academias de ginástica, elas não poderiam voltar a ter uma idade menor em relação àquela que apresentavam. Nesse sentido, tais pesquisas me proporcionaram reflexões iniciais sobre um tipo específico de concepção de tempo marcado pela ideia de irreversibilidade (de causa e consequência) e também contado por meio de um sistema de datação particular. Essas reflexões despertaram o meu interesse em estudar outras maneiras de conceber o tempo, as quais não fossem marcadas pela ideia de cronologia. No decorrer de conversas com Luis Cayón, meu orientador, fui compreendendo que era, na verdade, o tempo que me interessava. A morte e o envelhecimento remeteram-me a uma maneira específica de conceber o tempo. Partindo dessa experiência anterior, senti a necessidade de estabelecer um contraste com tal modo de vivenciar o tempo e, consequentemente, de estudar grupos que elaborassem concepções de distintas de tempo e também de história. Aos poucos, fui percebendo que pensar o tempo poderia implicar igualmente em uma reflexão sobre a história, a qual, de alguma maneira, chamava mais a minha atenção. Nas leituras que vinha realizando, observei que a etnologia indígena se constituía como um campo de estudos profícuo para investigar as temáticas que me interessavam. Passei, então, a procurar um grupo específico junto ao qual poderia desenvolver minha pesquisa de mestrado. Durante a busca que realizava, fui me interessando gradativamente pelos Kulina, grupo falante de língua pertencente à família arawá e que habita atualmente as bacias dos rios Juruá e Purus. Não me lembro exatamente do conjunto de razões dessa escolha, mas alguns fatores principais foram considerados. Já havia lido a tese de Bonilla (2007) sobre os Paumari, falantes também de língua arawá, e considerado muito interessante o modo pelo qual este grupo concebia sua história, bem como a maneira pela qual entendiam questões referentes ao corpo. Pela ligação linguística, considerei que os Kulina poderiam tratar de maneira semelhante algumas questões que haviam chamado minha atenção. Além disso, uma vez que a região do Juruá-Purus, em geral, e os grupos arawá, particularmente, haviam sido pouco estudados pela etnologia, considerei que uma pesquisa com os Kulina tinha o potencial de trazer novas questões a esse campo de estudo. Entretanto, dadas as limitações de tempo e espaço envolvidas em uma pesquisa no mestrado, acabei optando por realizar uma investigação de cunho bibliográfico pois, caso me decidisse pela etnografia, teria apenas aproximadamente um mês para ir a campo – e, contando o percurso de chegada e de retorno às aldeias kulina, poderia 12 Introdução permanecer por um tempo exíguo em campo, algo em torno de duas semanas. Considerei, então, que seria melhor postergar a pesquisa etnográfica para o doutorado e usar a oportunidade do mestrado para realizar um estudo bibliográfico que serviria como uma etapa de preparação para esta pesquisa futura. Tomada essa decisão, resolvi, entretanto, alargar o escopo da pesquisa, abarcando também outros grupos indígenas. Uma vez que a concepção de uma história dividida em tempos é difundida na região dos rios Juruá e Purus e, como afirmei acima, os grupos dessa área compõem um sistema regional, além de terem vivenciado situações de contato muito semelhantes (em virtude da exploração da borracha), conclui que uma pesquisa de cunho regional possibilitaria um bom começo. A partir dela, poderia estabelecer um contato inicial com os Kulina e com a região que habitam, bem como lançaria um olhar mais abrangente sobre uma história indígena dividida em tempos. Assim, esta dissertação foi concebida dentro de um projeto maior de investigação, o qual terá continuidade no doutorado – circunstância em que terei a oportunidade de desenvolver uma investigação de maior alcance e debruçar-me com maior tempo sobre questões que foram levantadas neste trabalho inicial de mestrado. No doutorado, pretendo, portanto, realizar uma pesquisa etnográfica entre os Kulina, cujo objetivo inicial será o de explorar seus modos de vivência e concepção do tempo e da história. Desse modo, no mestrado, considerei importante realizar um trabalho que enfocasse as etnografias sobre os grupos indígenas estudados nesta pesquisa, a fim de que pudesse analisar o que entendo como um modo indígena específico de conceber o tempo e a história. Considerei, assim, que uma pesquisa de abordagem comparativa entre essas diferentes (e ao mesmo tempo próximas) histórias poderia conduzir a uma reflexão interessante sobre as concepções de tempo dos grupos indígenas estudados, articulada à história regional. Nesse sentido, realizei um trabalho de leitura e análise tanto dos registros históricos, de cronistas e viajantes, como dos estudos etnográficos, buscando perceber questões que perpassavam a região de uma maneira mais geral, aspectos semelhantes e divergentes que marcavam as histórias e socialidades dos grupos indígenas abordados, além de características importantes da história regional. Na escolha dos grupos cujas noções de tempo e história foram comparadas (Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá), dois critérios foram priorizados. Em primeiro lugar, posto meu interesse inicial pelos Kulina, tomei este grupo indígena como ponto de partida para a escolha dos demais. Por outro lado, foi também preciso selecionar povos sobre os quais existisse material etnográfico que abordasse mais 13 Introdução diretamente suas concepções de tempo e história. Os Kanamari (falantes de língua katukina) e os Kaxinawá (falantes de língua pano) são dois dos povos com os quais os Kulina estabeleceram relações sociais próximas. Como veremos no capítulo 2, os Kanamari mantiveram relações de vizinhança, proximidade e rivalidade com os Kulina no rio Juruá. Esses dois povos apresentam uma organização social em subgrupos, que eles reconhecem como idêntica ou muito semelhante. Além disso, tanto na mitologia kanamari quanto na kulina, os demiurgos de cada um desses grupos criam não apenas seus subgrupos como também subgrupos do outro povo: os heróis kanamari criam os subgrupos kanamari e kulina, e vice-versa. Também em suas mitologias, há uma explicação para o surgimento dos Kaxinawá, grupo que é considerado inimigo tanto pelos Kulina como pelos Kanamari. Ainda hoje, os Kaxinawá mantêm relações de vizinhança com os Kulina, compartilhando com eles duas Terras Indígenas (ver mapa 3), ao passo que os Kanamari abordados nesta dissertação – que hoje se encontram no Itaquaí – estabeleceram contatos passados com os Kulina, quando habitavam o Juruá. Já a escolha dos Paumari se deu pelo fato de falarem uma língua da família arawá, assim como os Kulina. Apesar da proximidade linguística, no período histórico recente, não há registros de contato direto entre eles. Outro motivo importante para a escolha dos Paumari, e não de outro grupo da família arawá, foi a existência dos trabalhos de Bonilla (2005, 2007, 2009), os quais descrevem e analisam detalhadamente as diferentes eras paumari. Os Kaxinawá, por sua vez, constituem um grupo amplamente estudado (cf. p. ex. McCallum, 1989, 2001; Lagrou, 2007; Kensinger, 1995; Aquino, 1977), apesar de não existir trabalho que analise detalhadamente seus tempos. Especificamente em relação aos Kulina, Altmann (1994; 2000) foi a autora que mais abordou a questão dos tempos; mas outros trabalhos também foram fundamentais para o entendimento de sua história, em especial os de Viveiros de Castro (1978) e Pollock (1985). Nesta dissertação empreendi, portanto, uma primeira tentativa de compreensão das construções de tempo e história desses quatro grupos indígenas, os quais habitam a região dos rios Juruá e Purus desde, pelo menos, meados do século XIX. Logo no princípio das leituras a respeito dos grupos indígenas que vivem na região, percebi que havia semelhanças significativas na maneira como concebiam suas histórias, divididas em eras. Algo que, inicialmente, aproximava muito essas narrativas era a importância que a história da exploração da borracha assumia, seja como marcadora de mudanças ou ainda, em diversos outros contextos, por meio da marcante presença de figuras 14 Introdução como as dos patrões. A análise comparativa dos tempos kulina, kanamari, paumari e kaxinawá possibilitou perceber de que maneira cada uma das eras indígenas consideradas define um tipo específico de socialidade, articulando características particulares referentes ao corpo, à pessoa, ao espaço, à morfologia social, ao parentesco, dentre outras. Assim, as metáforas da linearidade e ciclicidade do tempo parecem não fazer jus ao modo pelo qual esses grupos indígenas concebem suas histórias, pois cada um dos tempos estabelecem formas muito específicas de vida, como veremos nos capítulos 2 e 3. O caráter de ruptura presente nessa maneira episódica de se conceber a história em tempos, como salientado anteriormente, já havia sido analisado por Gow (1991) entre os Piro, cujo trabalho se constitui como inspiração fundamental para minha dissertação. É importante também notar que os tempos kanamari e paumari já haviam sido abordados como constituidores de “socialidades” específicas por Costa (2007) e Bonilla (2007) respectivamente. O que realizo neste trabalho é, assim, um desenvolvimento dessa ideia, buscando, por meio da comparação entre tempos de diferentes grupos indígenas inseridos em um mesmo contexto regional, compreender de que maneira esses grupos concebem e vivenciam suas histórias. A análise das histórias indígenas, bem como da história regional, constituiu-se como uma porta de entrada para questões importantes no contexto indígena da região. Muitas dessas questões apreendidas, já presentes neste trabalho, ganharão desenvolvimento mais concreto no decorrer de minha pesquisa de doutorado. Com este trabalho comparativo, espero ainda contribuir para a percepção de questões e aspectos da vida social que extrapolam o contexto específico de uma única etnia indígena. Os grupos indígenas aqui abordados não se constituem enquanto totalidades isoladas: costumes e percepções semelhantes apontam para trocas culturais, sociais, físicas e espaciais que descaracterizam qualquer isolamento, seja no relacionamento entre os próprios grupos indígenas, como na relação destes para com os regionais. Apresentação dos capítulos Esta dissertação foi divida em três capítulos intitulados, segundo a sua ordem de apresentação, “Entre bravos e mansos”, “Histórias kulina e kanamari” e “Trocando de pele”. No primeiro deles, realizo uma leitura sobre a história da ocupação branca da região dos rios Juruá e Purus e sobre seu impacto nas histórias dos grupos indígenas 15 Introdução que habitavam, então, aquele território. Por sua vez, os capítulos 2 e 3 foram dedicados às eras indígenas. Em cada um desses dois capítulos, são comparadas as divisões da história em tempos conforme concebidas por dois grupos indígenas distintos. No capítulo 2, foram comparadas as concepções de história kulina e kanamari, ao passo que o capítulo 3 foi dedicado à análise dos tempos paumari e da divisão entre o tempo do mito e o tempo atual kaxinawá. Ao realizar uma primeira leitura dos tempos que constituiriam o foco de análise desta pesquisa, observei que a história da exploração da borracha e dos diversos envolvimentos que os Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá tiveram com a empresa seringalista foram marcantes nas histórias desses grupos indígenas, bem como caracterizavam importantes transformações ocorridas nos tempos conforme concebidos por eles. Considerei necessário escrever um capítulo dedicado principalmente à história da ocupação branca da bacia dos rios Juruá e Purus no contexto da exploração seringalista, iniciada em meados do século XIX. O primeiro capítulo é, desse modo, dedicado a uma leitura da história da região com especial enfoque na história da borracha a partir da análise de registros históricos e etnográficos. Foi fornecida especial atenção a processos sociais decorrentes da presença branca na região a partir de fins do século XIX, que marcaram as histórias dos grupos indígenas locais. O título do capítulo, “Entre bravos e mansos”, faz referência a imagens ocidentais de selvageria e civilização empregadas na colonização branca da região e que, atualmente, assumem importantes significados nas histórias indígenas, certamente divergentes daqueles empregados pelos colonizadores. No capítulo 2, a escolha de comparar as histórias kulina e kanamari esteve relacionada a uma enorme proximidade social entre esses grupos. Essa proximidade ganha reflexos nas histórias desses grupos, as quais enfatizam a importância do território e do subgrupo como modo de concepção do parentesco e da chefia. Mas, enquanto a história kanamari conta com uma análise mais aprofundada realizada por Costa (2007), no caso dos Kulina, foi necessário empreender uma busca maior em trabalhos etnográficos distintos com a finalidade de dar sentido a aspectos específicos de sua história. Acredito que uma das vantagens analíticas da comparação entre os Kulina e os Kanamari refere-se ao fato de que a história de cada um desses grupos ajuda-nos a compreender melhor aspectos da história do outro, pela enorme proximidade de questões que trazem consigo. Neste capítulo, aspectos sociológicos das transformações operadas pelos tempos são enfatizados. As histórias kulina e kanamari 16 Introdução mostram como as transformações implicadas em suas diferentes eras estão diretamente relacionadas a mudanças nas concepções do espaço e da pessoa; na morfologia social; nas relações de parentesco e com os brancos; e também na chefia. Cada uma das eras indígenas articula, assim, alterações em aspectos inúmeros da vida social, constituindose enquanto socialidades específicas. Neste capítulo, será também desenvolvida a ideia de que cada tempo pode ser encarado como um modo indígena de refletir sobre a história e sobre possibilidades de vida a serem consideradas em um momento presente, orientando, assim, escolhas e caminhos futuros. Já no capítulo 3, “Trocando de pele”, são consideradas a história tripartida dos Paumari e a maneira pela qual os Kaxinawá concebem a divisão entre o mundo mítico e o mundo atual. Diferentemente dos Kulina e Kanamari, esses grupos aparentemente não estabeleceram relações de proximidade social, ao menos desde meados do século XIX. Entretanto, para ambos, a troca de pele aparece como um modo de operação da transformação, bem como mudanças no corpo são tematizadas enquanto transformações da história. Nesse sentido, o capítulo 3 enfatiza aspectos cosmológicos e também corporais implicados nas mudanças dos tempos. Este capítulo proporciona, igualmente, uma reflexão sobre a passagem do tempo mítico kaxinawá ao seu tempo atual. Considerei importante analisar quais seriam as características distintivas do tempo mítico, pois, se em certo sentido, este tempo pode ser também encarado como constituinte de uma socialidade específica – sendo ele próprio uma era –, alguns aspectos particulares pareciam marcá-lo em oposição aos demais tempos. Convém, ainda, esclarecer que as ênfases cosmológicas e sociológicas as quais associo aos capítulos 2 e 3 referem-se apenas a destaques analíticos que certamente não esgotam as comparações realizadas em cada um desses capítulos. No capítulo 3, por exemplo, as transformações espaciais continuam presentes e destacadas com a mudança dos tempos kaxinawá. E, no capítulo 2, se as transformações no corpo não são consideradas como transformações da pessoa, elas certamente estão presentes no nível da aldeia, a qual pode ser também considerada um corpo, como veremos adiante. 17 Entre bravos e mansos: história, amansamento e civilização Neste capítulo, apresento uma leitura da história da região dos rios Juruá e Purus a partir de registros escritos: históricos, etnográficos, de cronistas e viajantes. Certamente, a leitura que realizo é panorâmica e explora pontos específicos que considerei importante compreender no desenvolvimento deste trabalho. Desse modo, a história que é aqui contada guarda uma relação intrínseca com as narrativas indígenas que serão apresentadas nos capítulos seguintes. Como ficará perceptível, a história da exploração da borracha é de particular interesse, pois, além de ser narrada nos registros históricos como o ponto alto da ocupação branca desta região amazônica, fez parte, em grande medida, de transformações importantes ocorridas nas histórias indígenas – pelos diversos tipos de engajamentos e relações estabelecidas desde então entre brancos (patrões, seringueiros, dentre outros) e índios. Entretanto, enquanto nos registros escritos, esses relatos aparecem associados a uma história datada, sequencial e contínua, nos relatos indígenas, são perceptíveis histórias relacionadas a tempos específicos que não são contados de igual maneira. Os brancos - fossem eles missionários, viajantes, patrões - logo estabeleceram uma dicotomia fundamental entre índios bravos e mansos e esta classificação dependia de uma série de fatores, alguns dos quais serão abordados neste capítulo. Ainda hoje, tal diferença é estabelecida na região, não apenas entre os brancos, mas também entre os próprios grupos indígenas, assumindo diferentes significados. Desse modo, o objetivo do presente capítulo é o de realizar uma leitura dos registros históricos que permita ao mesmo tempo ampliar e complexificar os sentidos das histórias indígenas que comporão os capítulos 2 e 3. Tais registros remetem-nos a processos históricos fundamentais que implicaram em mudanças de socialidade, espacialidade e temporalidade indígenas. Neste capítulo, será enfocado especificamente o contexto geral no qual teve lugar o chamado “amansamento”, processo em que “bravos” tornavam-se “mansos”. 19 Entre bravos e mansos Índios e brancos no Juruá-Purus Pouco se sabe sobre a história dos rios Juruá e Purus antes de meados do século XIX, quando teve início na região uma exploração seringalista de longa duração. Também se pode afirmar que, mesmo após tal data, ainda há pouco conhecimento etnológico sobre os habitantes indígenas da região, sendo que as primeiras pesquisas etnográficas datam das últimas décadas do século XX. Em 1975, Delvair e Julio Melatti (1975, p. 3) chamavam a atenção para a significativa ausência de informações disponíveis sobre a região denominada por Galvão de “Juruá-Purus”1: era, dentre todas, a menos conhecida. Os próprios Métraux (1948) e Galvão (1979 [1960]), ao identificarem a área do Juruá-Purus, ressaltaram o caráter arbitrário dessa classificação, a qual refletia a ausência de informações etnográficas sobre a região. Diferentemente da bacia contígua do rio Ucayali, onde os grupos indígenas começaram a ser descritos por missionários em séculos anteriores, nas bacias do Juruá e do Purus, a maioria dos registros de viajantes, exploradores e missionários são mais recentes, datando apenas da segunda metade do século XIX e contendo informações mais fragmentárias sobre os índios (Métraux, 1948, p. 658). Apesar do caráter recente e não sistemático das informações disponíveis, a análise das mesmas chama a atenção para o registro de uma intensa movimentação e circulação dos grupos indígenas pelas margens e cabeceiras do Juruá, do Purus e de seus afluentes, traduzindo-se em uma distribuição algo irregular das famílias linguísticas indígenas nessa área (Métraux, p. 657). Segundo Métraux, o caráter heterogêneo da distribuição espacial das famílias linguísticas pano, aruak2 e katukina seria provavelmente decorrente da fácil comunicação possibilitada pela existência de inúmeros cursos d’água conectados. Nesta região, são também notáveis as semelhanças no que se refere à organização social dos grupos, as quais começaram a ser tematizadas muito recentemente, e que ainda necessitam de estudos comparativos mais aprofundados. Costa (2007, p. 16-17), por exemplo, chamou a atenção para o fato de que, ao longo de toda a área do Juruá-Purus, pode ser encontrada uma série de nomes de grupos que Galvão toma como ponto de partida para a elaboração das “áreas culturais indígenas do Brasil” (compreendendo os anos de 1900 a 1959) os esquemas anteriores de Steward (1949) e Murdock (1951a; 1951b), nos quais a área definida como “Juruá-Purus” já aparecia. 2 Métraux (1948, p. 660) considerava a família arawá como um subgrupo da família linguística aruak. Como veremos a seguir, apenas recentemente, o anterior subgrupo “Arawá” passou a ser classificado como uma família linguística diferenciada. 1 20 Capítulo 1 terminam com alguns sufixos recorrentes: -dyapa; -deni/-madi/-madiha; -nawa. Esses sufixos apontam para a existência de organização em subgrupos e estão geralmente associados à família linguística: grupos falantes de língua katukina têm nomes com o sufixo –dyapa; etnônimos arawá terminam em –deni, -madi, e –madiha; e grupos falantes de língua pano apresentam nomes terminados em –nawa. Mas, não só os cursos dos rios parecem ter facilitado as comunicações e trocas entre grupos como também a inserção da empresa seringalista na região, a qual inegavelmente submeteu os povos indígenas locais a condições semelhantes de existência após o contato mais sistemático com os brancos. Um dos resultados dessas condições comuns foi certamente uma alta mobilidade dos grupos indígenas pelo território, muitas vezes em fuga das chamadas “correrias” – as quais consistiam em expedições organizadas geralmente pelos proprietários de seringais, objetivando o extermínio das populações indígenas ou a sua captura para o trabalho. Desse modo, a ocupação da região pelos exploradores brancos – bolivianos, brasileiros e peruanos –, no contexto da exploração da borracha, teve reflexos no mapa etnológico do JuruáPurus, ocasionando transformações na ocupação do espaço pelos diversos grupos indígenas que lá habitavam, além do desaparecimento de inúmeras etnias. A instalação da empresa seringalista, que marcou a história da região, teve início na segunda metade do século XIX, como veremos em maior detalhe a seguir. Atualmente, a bacia dos rios Juruá e Purus é habitada por grupos indígenas falantes de línguas pertencentes às famílias pano, aruak, arawá e katukina. Mas é apenas a respeito dos grupos falantes de línguas aruak e pano que encontramos bibliografia disponível a ponto de se poder traçar etno-histórias anteriores ao século XIX3. Ainda assim, a maioria desses dados não diz respeito propriamente à história desses grupos na região do Juruá-Purus, mas em outras áreas do continente sulamericano. No que se refere ao caso dos grupos falantes de línguas arawá, há uma dificuldade específica, pois apenas recentemente tal família passou a ser estudada de modo separado da família linguística Aruak. A pré-história arawá ficou, desse modo, subsumida aos estudos da diáspora aruak (cf. p. ex. Lathrap, 1970), ao passo que estudos mais atuais atestam a independência entre essas famílias (cf. Rodrigues, 1986, p. 65-72; Dixon, 1995, p. 289-291; Everett, 1995, p. 298-299). Conjugada às discrepâncias linguísticas observadas, há igualmente uma grande diferença com referência à 3 Sobre a família aruak, há um conjunto de estudos que abordam sua pré-história (cf. p. ex. Hill e SantosGranero, 2002; Heckenberger, 2005; Hornborg, 2005; Hill; Hornborg, 2011), mas estes não serão abordados aqui por não serem de interesse direto desta pesquisa. 21 Entre bravos e mansos ocupação territorial: enquanto os Aruak apresentam a maior dispersão territorial do continente americano, os Arawá estão concentrados na região dos rios Juruá e Purus. Os grupos falantes de línguas da família Arawá – Banawá (Banawá-Jafí), Deni, Jamamadi, Jarawara, Kulina, Paumari, Sorowahá e provavelmente os Rimarimá (HiMerimã)4 – estão concentrado a oeste dos Apurinã (Aruak) e apresentam idiomas muitos semelhantes. Os Paumari são os que apresentam idioma mais diferenciado e estudado, estando também em contato mais próximo com os Apurinã, o que possivelmente gerou empréstimos linguísticos e erros na classificação da família arawá (Florido, 2008, p. 49). A dispersão Aruak e concentração Arawá apontam para situações muito discrepantes, como sugerido por Florido (2008), mas, infelizmente, pouco se sabe sobre os Arawá, inclusive em decorrência da submissão dos estudos dessa família à Aruak. Também sobre a família Katukina as informações históricas estão mais limitadas ao século XIX, com a chegada da empresa seringalista na região (cf. Costa, 2007). Já no que se refere aos grupos de família pano, encontramos dados a respeito de sua presença no Alto Amazonas, especialmente no rio Ucayali. Pode-se afirmar, com alguma precisão, que os antigos pano teriam migrado em massa a partir da região do Beni e do Guaporé, na Amazônia boliviana, em direção ao Ucayali por volta de 100-300 D.C. (Erikson, 1992, p. 244). Os Pano produziam cerâmica do tipo “pacacocha” – caracterizada por motivos zoomorfos e pela simplicidade de suas formas – e eram pouco orientados em direção aos rios, ocupando preferencialmente as regiões de interflúvio. Entretanto, rapidamente se acostumaram ao meio ribeirinho, exercendo um domínio sobre todo o Ucayali, o qual teria durado até meados de 700-800 D.C. (Erikson, 1992, p. 245). Dois acontecimentos parecem estar relacionados ao fim do domínio exclusivo dos Pano sobre o Ucayali: a entrada dos Aruak na região – episódio sobre o qual pouco se sabe até o momento – e, um pouco mais tarde, o aparecimento da cerâmica do tipo “cumancaya”5. Cumancaya foi também o nome de uma localidade do médio Ucayali, onde podiam ser encontrados, além das cerâmicas de estilo homônimo e pacacocha, machados de cobre, cuja presença na região aponta para uma conexão andina. É também notável a semelhança entre esse novo tipo de cerâmica e a de Sangay, no Bonilla (2007, p. 20) e Everett (1955, p. 299) mencionam este grupo indígena como possivelmente existente e não contatado. Everett acrescenta a informação de que os Banawá afirmam a existência dos Rimarimá e também dizem que estes falam uma língua semelhante ao Banawá. 5 Estudos glotocronológicos sugerem ter sido por volta desta época que a família pano teria perdido sua antiga homogeneidade linguística (D’Ans, 1973 apud Erikson, 1992, p. 245). 4 22 Capítulo 1 Equador, indicando igualmente a existência de conexões hidrográficas com as civilizações das terras altas (Erikson, 1992, p. 245). Tais dados arqueológicos apontam para uma presença temporária de chefia indígena de origem andina implantada no médio Ucayali, a qual teria durado até aproximadamente o ano de 1.300 (Erikson, 1992, p. 246). Apesar do debate sobre a existência de tal chefia no Ucayali ainda estar em aberto, certamente as ocasiões de contato direto e indireto entre Pano e “Inka” (heróis culturais pano) foram muitas, sendo que a própria conexão entre Andes e Ucayali parece anteceder a chegada dos Pano na região. Além da presença dos “Inka” em mitologias Pano – dentre as quais a mitologia Kaxinawá é um exemplo (ver cap. 3) –, outras características presentes em grupos dessa família linguística apontam para uma extensa influência andina: práticas rituais, como os sacrifícios animais, a valorização do derramamento ritual de sangue, a divinização do sol; técnicas de tecelagem, música e sistema de medidas; sem falar nos numerosos empréstimos linguísticos (Erikson, 1992, p. 246)6. No Ucayali, os primeiros encontros entre europeus e Pano aconteceram provavelmente na segunda metade do século XVI quando, em 1557, uma expedição conduzida por Juan Salinas de Loyola subiu esse rio. Os encontros com os brancos muitas vezes suscitaram nos Pano associações com a figura do Inka. Isso ocorreu com muitos que sucederam Salinas na região pano (Erikson, 1992, p. 248) e é ainda uma associação feita por esses grupos indígenas, conforme nos mostram etnografias atuais (cf. McCallum, 1996; Lagrou, 2007; Calavia Sáez, 2000). Este tema será tratado com mais detalhes no capítulo 3. Infelizmente, não é possível precisar quando contatos iniciais com os brancos aconteceram na região do Juruá-Purus; sabemos contudo que foram anteriores aos contatos decorrentes da exploração da borracha. Segundo Castello Branco (1950, p. 14), naquela época, “os silvícolas” daquelas terras ou seus antepassados já tinham estado em contato com os civilizados, sendo “conhecedores do sistema de agarramento feito por êstes, não só para o serviço do govêrno, como dos próprios agenciadores ou catequistas, escravizando-os, vendendo-os, roubando-lhes as mulheres e filhas”. Tal conhecimento anterior estava na base de uma evitação dos Pano em relação aos brancos que já tinha raízes profundas (Castello Branco, 1950, p. 14). Cf. Renard-Casevitz, Saignes & Taylor (1988) para uma análise mais detalhada das diversas relações estabelecidas entre os Incas e os povos amazônicos. 6 23 Entre bravos e mansos Castello Branco forneceu também algumas informações não muito detalhadas sobre possíveis origens geográficas dos grupos indígenas habitantes do Juruá-Purus. Na época em que escreveu, grupos da família linguística pano constituíam a população predominante no rio Juruá, enquanto no rio Purus era mais notável a presença de grupos de origem aruak - atuais famílias Aruak e Arawá7. Devemos notar que esta ainda é uma configuração atual no que se refere aos grupos pano e arawá, pois os primeiros ocupam majoritariamente o Juruá, estendendo-se ao alto Purus, enquanto os Arawá ocupam toda a extensão do Purus, com exceção dos Kulina que encontram-se, tal qual os Pano, no Juruá e alto Purus. Segundo Castello Branco (1950, p. 3), os Pano seriam originários do Alto Marañon, rio peruano nascente nos Andes, e teriam alcançado o alto e médio Juruá com escalas anteriores pelo Ucayali, Javarí e Jutaí – principalmente pelo Ucayali, em cujas margens já se encontravam na primeira metade do século XVII. Castello Branco levanta ainda a hipótese de que os Aruak fossem os principais ocupantes do Juruá antes da chegada dos Pano, tendo sido, então, expulsos por estes. Se esta hipótese for factível, então os Kulina seriam, entre os Arawá, aqueles que teriam permanecido no Juruá, pois, como veremos no capítulo 2, o movimento dos Kulina em direção ao alto Purus parece ser de origem mais recente. Ao mencionar o “sistema de agarramento” feito pelos brancos, Castello Branco (1950) refere-se à presença destes em séculos anteriores ao XIX nos rios Juruá e Purus e às violentas relações que haviam sido estabelecidas: captura de índios para o serviço do governo, catequese ou escravidão. Sabemos que, antes de 1689, já havia casas de moradores portugueses no rio Purus, os quais faziam comércio com os índios e facilitavam as excursões das “tropas de resgate” (Kroemer, 1985, p. 23). Segundo Kroemer, a expansão territorial dos brancos nessa região vinha de dois lados: “os espanhóis mandavam seus missionários que desciam de Quito e os portugueses mandavam suas tropas de resgate” (Kroemer, 1985, p. 23). O que se via era uma verdadeira competição pela catequese dos índios por missionários jesuítas, do lado espanhol, e por carmelitas, do lado português. Neste contexto, uma verdadeira guerra parecia ser travada, em que tropas de resgate eram utilizadas na captura de índios e em que interesses expansionistas na busca pelo ouro8 e controle do território eram Castello Branco não considerava a existência de uma família arawá. Desse modo, os grupos falantes de língua desta família eram tratados como aruak. 8 O jesuíta Cristóbal de Acuña, cronista na excursão realizada por Pedro Teixeira – que tinha como motivo o reconhecimento do rio Amazonas para a expansão portuguesa –, relatara, em 1639, a presença de ouro em pequenas chapas pendentes no nariz e nas orelhas de índios que habitavam o rio Purus. Este fato alimentara a ideia de que poderiam encontrar ouro na região (cf. Kroemer, 1985, p. 19-20). 7 24 Capítulo 1 confrontados pelas nações portuguesa e espanhola (cf. Kroemer, 1985, p. 17-37). Até onde se sabe, o Purus não contava com uma missão propriamente dita dos carmelitas; o que ocorria era o “descimento” de índios para missões instaladas em outras localidades. Os descimentos ocorriam por meio da captura de índios do sertão, locais de mais difícil acesso, a lugares de fácil comunicação para catequese e comércio – nas Entradas ao sertão, os missionários eram acompanhados por tropas de resgate (Kroemer, 1985, p. 24-25). Também nos rios Juruá e Purus, a partir de meados do século XVIII, houve a coleta das famosas “drogas do sertão”, além do rapto de índios para serem utilizados como mão-de-obra escrava. No Purus, as drogas foram coletadas a partir de 1755, data da criação da Capitania de São José do Rio Negro: lá, eram coletados, sobretudo, óleo de tartaruga, cacau, salsaparrilha e óleo de copaíba (Kroemer, 1985, p. 28; Gonçalves, 1991, p. 18). No Juruá, sua coleta parece ter sido iniciada posteriormente, uma vez que as primeiras notícias de comerciantes que subiam este rio datam de 1813 (Almeida et al., 2002, p. 107). Do Juruá, saíam produtos como cacau, breu, copaíba, anil e óleos. Apesar da generalidade desses dados e das localizações imprecisas, a presença missionária na região do Purus no século XVII e de comerciantes nos rios Juruá e Purus a partir do século seguinte indica que contatos diretos ou indiretos já haviam sido estabelecidos entre brancos e índios quando, no século XIX, novamente os brancos viriam se estabelecer nas margens destes rios com a finalidade de ali estabelecerem uma empresa seringalista. A ocupação branca mais intensiva das bacias desses rios teve início em meados do século XIX. É, portanto, somente a partir desta data que encontramos um número significativo de registros sobre a história da região, sobretudo a partir de viajantes que exploraram os rios Juruá e Purus em busca de reconhecimento do território e de seus habitantes. Durante praticamente cem anos, até meados do século XX, a empresa seringalista marcou a história desses rios, bem como da Amazônia de uma maneira mais geral: além da grande migração, sobretudo de nordestinos, os povos indígenas habitantes da região foram engajados no trabalho nos seringais por meio de um sistema que ficou conhecido como “aviamento”. Sua característica marcante residia no fato de que o seringueiro se encontrava em permanente dívida para com seu patrão, criando uma forte lógica de dependência (cf. Aquino, 1977; Altmann, 2000; Taussig, 1993; Weinstein, 1993). O seringueiro, muitas vezes, já iniciava seu trabalho endividado, devendo pagar ao patrão sua própria mudança do lugar de origem até seu 25 Entre bravos e mansos local de habitação no seringal, além de todos os instrumentos que utilizaria em seu trabalho. Como se não fosse ainda suficiente, o seringueiro deveria pagar ao patrão pelo uso das “estradas de seringa”9 (Altmann 2000, p. 101). No final do século XIX, o etnógrafo alemão Paul Ehrenreich10 relatou que a extração da borracha dominava toda a vida comercial da região dos rios Amazonas e Purus. Ela acontecia unicamente nas margens baixas dos rios, de forma que toda a parte alta, nominada por ele de “cordilheiras”, era desconhecida dos viajantes. Assim, as zonas mais elevadas constituíam-se enquanto um local de domínio privilegiado de grupos indígenas. A população do Purus somava naquela época – ano de 1888 - cerca de 50.000 pessoas, ao passo que em 1871, estimava-se um número total abaixo de 2.000 (Ehrenreich, 1929, p. 280), indicando um elevado aumento populacional migratório decorrente do comércio da borracha. Os índios habitantes das florestas tropicais foram os primeiros a extrair e manipular o látex da árvore da borracha, mas a ele davam um sentido diferente daquele que lhe fora atribuído posteriormente pela indústria seringalista: produziam objetos, sobretudo bolas e esculturas zoomorfas (Gonçalves, 1991, p. 10). O naturalista francês Charles Marie de La Condomine quando desceu o Amazonas a partir do Equador, em 1743, observou que os índios extraíam um líquido leitoso e viscoso dessa árvore, o qual, depois de coagulado, produzia uma substância maleável de grande elasticidade e impermeabilidade. La Condomine exerceu um papel primordial na divulgação desse caoutchouc – como o chamavam na Amazônia da época –, apesar de não ter sido o primeiro nem o único. Levou para a França uma pequena quantidade do produto e publicou um importante trabalho sobre suas propriedades. Em fins do século XVIII, esta substância já havia sido grandemente difundida no Velho Mundo, com a descoberta de novas aplicações para ela (Weinstein, 1993 [1983], p. 22). Em 1800, saíam as primeiras exportações, ainda clandestinas, de produtos elaborados a partir do látex da borracha, de Belém com destino aos Estados Unidos: eram garrafas, sapatos, dentre outros. A marca deste período inicial de exportação foi a predominância da manufatura sobre a matéria prima, situação que se inverteria completamente no período seguinte. Nesta primeira fase, a árvore da seringa era tratada como mais uma das “drogas do sertão” e sua exploração estava circunscrita à região do Pará, sobretudo 9 Uma “estrada de seringa” é constituída, aproximadamente, de 100 árvores seringueiras desigualmente intervaladas (Cunha, 2000 [1976], p. 65). Adiante, fornecerei uma explicação mais pormenorizada de sua formação em um seringal. 10 Ehrenreich realizou tal viagem ao rio Purus em sua terceira e última expedição ao Brasil, no ano de 1888 (Cruz; Christino, 2005). 26 Capítulo 1 às ilhas da foz do Amazonas: “era o tempo da „borracha das ilhas’” (Gonçalves, 1991, p. 11). Apenas mais tarde, na segunda metade do século XIX (por volta de 1870), sua exploração chegaria aos rios Juruá e Purus, assim como ao Jari, Xingú, Tapajós e Madeira (Gonçalves, 1991, p. 11), mas já em outro contexto, quando a borracha não seria vista como apenas um item a mais na lista daqueles que eram exportados. Diversos gêneros de plantas produtoras de látex foram explorados nos rios Juruá e Purus. A seringueira, cientificamente chamada de Hevea brasiliensis, figurou como a principal árvore fornecedora de látex, mas outra importante espécie foi extensamente explorada e ficou conhecida como caucho – trata-se da Castilla ulei (cf. Andrade, 2004, p. 38). Essas diferentes gêneros e suas respectivas espécies ficaram conhecidos na Alta Amazônia como caucho blanco (Hevea) e caucho negro (Castilla) (cf. Pineda, 2000, p. 37). Uma das diferenças fundamentais entre ambas residia no fato de que a Castilla era menos resistente à extração de seu leite quando comparada à Hevea. Desse modo, o caucheiro – trabalhador na exploração do caucho – não a conservava em um trabalho permanente, derrubando-a para aproveitar todo o leite que a árvore possuía por meio de incisões circulares. Já a seringueira permitia um trabalho prolongado e fixo, resistindo longamente aos talhos e extrações de seu leite (Cunha, 2000 [1976], p. 278; cf. também Pineda, 2000, p. 37-45). Outras distinções foram ressaltadas entre seringueiros e caucheiros, sobretudo no que se refere aos seus modos de lidar com a população indígena dos territórios que ocupavam: de modo geral, os caucheiros foram tomados como “mais violentos” enquanto os seringueiros foram considerados essenciais na ocupação do território por serem menos móveis (cf. Castello Branco, 1950, p. 14; Tastevin, 2009 [1925], p. 149-150; Cunha 2000 [1976], p. 278-279). Iglesias (2010, p. 66-73), entretanto, mostra como esta oposição entre caucheiros (geralmente peruanos) e seringueiros (geralmente brasileiros) fazia também parte de uma conjuntura geopolítica em que era importante afirmar a anterioridade da ocupação territorial por parte dos brasileiros, ressaltando o caráter efêmero da atividade caucheira. Como mostra Iglesias, a presença de caucheiros peruanos em território brasileiro, mais especificamente no Alto Juruá, ocorreu com relativa intensidade até pelo menos meados dos anos 1910. A história da exploração mais intensiva da goma elástica ficou conhecida por meio de seus 1º e 2º ciclos. O primeiro deles foi marcado pelo aumento significativo da demanda pela borracha, o qual ocorreu apenas depois de 1839, ano em que Charles Goodyear aperfeiçoou seu processo de vulcanização. Antes disso a borracha 27 Entre bravos e mansos apresentava alta sensibilidade a mudanças de temperatura, ficando dura no frio e grudenta no calor, fato que impedia sua larga utilização em bens industriais ou de consumo. A exportação da borracha não teve, entretanto, um aumento imediato, mas já significativo, se compararmos os anos de 1840 e 1850: de 388.260 Kg, passou para 1.446.550 Kg. Isso antes mesmo da popularização da bicicleta e do automóvel ocorrida nos anos de 1890 e 1900, respectivamente (Weistein, 1993 [1983], p. 22-23). Sendo habitat da Hevea brasiliensis, a Amazônia foi a única fornecedora da borracha até a década de 1880. A África Ocidental ocupou o lugar, posteriormente, de seu concorrente mais próximo, mas ainda assim distante. Foi apenas após 1912 – ano em que terminou o primeiro boom da borracha na Amazônia -, com a aclimatação bem sucedida da seringueira, que as plantações asiáticas ocuparam o lugar da Amazônia de primeira produtora mundial (Weistein, 1993 [1983], p. 23). O sucesso de cultivo da Hevea em sistema de monocultura em um ambiente que não era o de seu habitat natural teve em sua origem o contrabando de exemplares de sua semente encomendado pelo governo britânico: estas foram levadas da Amazônia para o Jardim Botânico de Knew e, posteriormente, quando mudas haviam crescido, estas foram levadas para a Ásia, onde cresceram com sucesso (cf. Dean, 1989 [1987], p. 29-60). Assim, enquanto em 1912 a produção amazônica atingira a taxa de 42 mil toneladas, a produção asiática atingiu, em 1915, a faixa das 100 mil toneladas (Almeida et al., 2002, p. 117). Nesse momento, houve uma queda brusca do preço da borracha no mercado internacional, o que gerou crises e falências em território amazônico. Almeida et al. (2002, p. 118) relatam a ocorrência de revoltas, principalmente no momento inicial da queda dos preços, havendo a expulsão de gerentes de seringais, o incêndio de barracões11, suicídios e assassinato de patrões. A enorme dependência da produção e da venda da borracha trouxe sérias dificuldades para os seringueiros, os quais dependiam da comercialização da goma inclusive para a alimentação, pois quase tudo adquiriam no barracão. Tal sujeição decorria, sobretudo, das restrições estabelecidas pelos patrões, os quais desejavam manter os seringueiros dependentes dos produtos que forneciam, chegando a proibir o cultivo de roçados de subsistência (Almeida et al., 2002, p. 119). A crise gerou movimentos de saída dos seringais por parte dos seringueiros nordestinos, seja para um retorno à terra de origem – quando tinham condições financeiras para tal – ou para O barracão era o posto mercantil central – tendo como referência um seringal específico – gerido pelo “patrão” do seringueiro (Weinstein, 1993 [1983], p. 31). 11 28 Capítulo 1 as cidades que surgiram no vale do Juruá e Purus (Aquino, 1977, p. 50). Gerou ainda movimentos rio acima, à procura de áreas onde a produtividade da borracha continuava sendo alta a ponto de ainda ser compensadora (Almeida et al., 2002, p. 50). A situação era um pouco diferente com os índios seringueiros porque, de modo geral, sempre mantiveram seus roçados e também a prática da caça e da pesca. Com a crise, passaram a ser requisitados para os trabalhos agrícolas, uma vez que os próprios patrões começaram a manter grandes roçados. Para sobreviverem a este momento crítico, os seringais precisaram expandir suas possibilidades produtivas a outros gêneros – como os roçados, as criações domésticas de animais ou o comércio de couros e peles –, uma vez que não tinham mais condições de importar farinha ou outros mantimentos necessários à alimentação de seus trabalhadores (Aquino, 1977, p. 51; Almeida et al., 2002, p. 120). Neste primeiro ciclo da borracha, as chamadas “casas aviadoras” ou “casas recebedoras” – que contavam com um comerciante local geralmente conhecido como “aviador” – eram o elo mais importante da cadeia comercial da seringa na Amazônia; situavam-se em Belém ou Manaus. Ocupavam uma posição central, pois controlavam informalmente a produção e o comércio local da borracha, negociando a produção dos seringueiros – geralmente de modo indireto, intermediados pelos “patrões” – e mantendo-os abastecidos de ferramentas, víveres e outras mercadorias. A produção dos seringueiros era, desse modo, entregue por patrões ou aviadores nas casas aviadoras as quais tinham o poder da decisão de quando e a quem vender a borracha. Essas casas exerciam, ainda, inúmeras outras funções: negociavam com as casas importadoras, as mercadorias a serem repassadas aos seringais; providenciavam créditos adicionais ou empréstimos dos bancos locais para suplementar adiantamentos feitos pelas casas importadoras; providenciavam o transporte e a distribuição dos migrantes que vinham do Nordeste para trabalhar nos seringais; e enviavam para o interior seus representantes com mercadorias, ferramentas e, se necessário, também com trabalhadores a fim de instalar novas áreas de exploração ou estabelecer contatos comerciais com áreas incipientes (Weinstein, 1993 [1983], p. 33-34). Para além das casas aviadoras e importadoras, havia ainda as casas exportadoras que, em alguns casos, mas de modo limitado, atuavam também como importadoras. Nesse circuito comercial, as transações entre aviadores e exportadores eram as primeiras a ocorrerem necessariamente em moeda corrente. As casas exportadoras podiam, também, funcionar como agência bancária informal, mas sua 29 Entre bravos e mansos principal atividade era a compra da borracha e sua transferência para o exterior (Weinstein, 1993 [1983], p. 34). Entre os anos de 1943 a 1945, o preço da borracha voltou a crescer. Este foi o considerado 2º ciclo, momento em que os Estados Unidos passaram a conceder créditos para a ampliação da produção brasileira, sendo também o mercado comprador de praticamente toda a borracha produzida na região (Aquino, 1977, p. 53). A nova alta dos preços se deu no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando forças do Eixo bloquearam a exportação de produtos dos seringais das colônias holandesas, britânicas e francesas do Sudeste Asiático, fazendo com que os Estados Unidos procurassem novamente o mercado sul-americano (Almeida et al., 2002, p. 122; Golçalves, 1991, p. 30). No ano de 1943, o Brasil, juntando-se aos Aliados, comprometeu-se a exportar toda a sua produção de borracha para os Estados Unidos. A borracha tinha, no contexto da guerra, uma importância estratégica devido as suas aplicações militares (Almeida et al., 2002, p. 122). Em 1942, foi criado o Banco de Crédito da Amazônia, com o objetivo específico de possibilitar financiamentos visando a ampliação da produção. O banco passou a substituir tanto as casas aviadoras como as casas exportadoras do primeiro ciclo da borracha, concedendo financiamentos aos proprietários dos seringais – os chamados “patrões” ou “seringalistas” -, e também garantindo o monopólio da comercialização do produto (Aquino, 1997, p. 52-53). Neste momento, o governo brasileiro incentivou uma nova onda migratória do Nordeste para a região amazônica, mediante intensa propaganda e oferta de vantagens pecuniárias. Esses novos migrantes foram os chamados “soldados da borracha” (Almeida et al., 2002, p. 122; Aquino, 1977, p. 52-53; Gonçalves, 1991, p. 30). Neste curto período de tempo, os patrões, dispondo de fartos financiamentos, puderam voltar a fornecer, nos barracões, todas as mercadorias necessárias à subsistência. Desse modo, a maioria dos novos seringueiros nordestinos passou a se dedicar de modo exclusivo à extração da seringa. O que não parece ter ocorrido com a mão-de-obra indígena: os Kaxinawá, por exemplo, mesmo sendo muito requisitados neste momento para o trabalho de extração da borracha, nem por isso abandonaram seus roçados, combinando esta atividade com o trabalho nos seringais (Aquino, 1977, p. 53). Entretanto, com o fim da guerra, as altas do preço da seringa não acompanharam os aumentos nos preços das mercadorias, reduzindo o poder de crédito dos patrões. O próprio Banco de Crédito da Amazônia mudou sua orientação, 30 Capítulo 1 dificultando a realização de financiamentos e trazendo sérios empecilhos para a continuidade do sistema de aviamento. Desse modo, nos anos de 1950 e 1960, a empresa seringalista sofreu uma profunda estagnação, voltando a desenvolver uma atividade econômica mista. Foi neste momento que surgiu a figura dos “barranqueiros”, sobretudo, em decorrência das constantes crises da empresa seringalista. O “barranqueiro” pode ser definido como um morador da “margem”12 ou dos “barrancos” dos rios, mais como um agricultor do que propriamente um seringueiro, apesar de não ser raro que um ou mais membros de sua família se dedicassem ao trabalho na borracha (Aquino, 1977, p. 54-55; Gonçalves, 1991, p. 31). Na década de 1970, o governo militar implementou dois programas buscando incentivar a produção seringalista e retirar o Brasil da então situação de importador da borracha asiática, mas ambos fracassaram (Gonçalves, 1991, p. 31). Neste mesmo período, instalou-se na região a atividade agropecuária com a chegada de investidores e grupos econômicos do sul do Brasil, os quais passaram a ser proprietários de inúmeros seringais13. Este movimento de ocupação agropecuária e consequente desmatamento da Amazônia foi incentivado pelo governo militar. Os primeiros a chegar foram investidores, especuladores e grileiros de terras, seguidos posteriormente – a partir de 1974 – de grandes grupos econômicos: Atalla-Coperçúcar, Bradesco, Atlântica Boa-Vista, Condomínio Tarauacá, Viação Aérea Cruzeiro do Sul, Paranacre, dentre outros (Aquino, 1977, p. 64, 68; McCallum, 2001, p. 11). Esses novos proprietários de terras ficaram conhecidos como “paulistas”. As “compras” de terras que realizaram nem sempre podiam ser assim nomeadas, visto que muitos métodos foram utilizados para a efetuação de sua posse, desde pistoleiros profissionais até a queima de barracos, prisões e ameaças de morte. Os antigos proprietários dos seringais estavam, naquela época, totalmente endividados com o Banco da Amazônia, sendo que muitos deles havia, inclusive, abandonado os seringais, deixando os seringueiros e barranqueiros que lá permaneceram em uma situação vulnerável de autênticos posseiros (Aquino, 1977, p. 64). A “margem” e o “centro” são termos espacialmente opostos que dizem respeito à configuração de um seringal. A “margem”, aqui mencionada, refere-se à região limítrofe de um seringal. Adiante, neste capitulo, apresentarei uma explicação mais detalhada sobre suas características em relação com o trabalho desenvolvido na extração da borracha. 13 Com a crise da borracha, para além da agropecuária, outro mercado que se tornou bastante cobiçado foi o da extração madeireira. Este foi o caso da região do rio Amônia (alto Juruá), onde habitam os Ashaninka (cf. Pimenta, 2002, p. 131-142). Os Kanamari também trabalharam na extração da madeira (ver cap. 2). 12 31 Entre bravos e mansos O processo de venda dos seringais iniciou-se primeiramente na região do rio Purus, em decorrência de sua proximidade da capital do Acre, Rio Branco; no Juruá, esse processo começou pouco tempo depois. No início, as terras eram compradas a baixos preços seja pelo risco envolvido de futuras desapropriações pelo Estado ou pela possibilidade de conflito com seringueiros e barranqueiros que nelas haviam permanecido (Aquino, 1977, p. 66). Aquino também atribui o baixo preço inicial da terra a seu significado, o qual foi transformado na passagem da exploração seringalista ao uso da terra pela nova frente agropecuária (1977, p. 65). No sistema extrativista, o valor da terra não estava ligado à sua extensão, mas sim à quantidade e qualidade das árvores de seringa que nela podiam ser encontradas: a medida era dada pelo número de “estradas de seringa”. Já no caso da agropecuária, seu valor passou a ser sinônimo de sua medida em hectares. Desse modo, a diferença entre os sistemas de contagem teria ocasionado uma subestimação do valor pago pelas terras. Esses primeiros “investidores” desempenharam, em grande medida, o papel de especuladores de terra: expulsaram seringueiros e barranqueiros – índios e não-índios – para vendê-las aos grandes grupos econômicos supramencionados já livres de eventuais posseiros e, assim, a preços mais valorizados. Neste segundo momento, com a chegada desses grupos e com um preço já mais elevado da terra, tiveram início inúmeros desmatamentos na região. Muitos seringueiros e barranqueiros se transformaram em peões ou trabalhadores braçais nos desmatamentos que eram realizados (Aquino, 1977, p. 68). No contexto da agropecuária, a contratação de mão-de-obra era realizada pelos “empreiteiros”, geralmente homens de confiança dos administradores das fazendas – “os paulistas” – e profundos conhecedores da região, não havendo, desse modo, uma relação direta entre os empregados e os proprietários. Apesar dessas transformações do novo sistema – intitulado “empreitada” ou “empeleita” –, muito se manteve da anterior relação de trabalho onde o pagamento era realizado por meio do sistema de aviamento. O pagamento de empreiteiros a peões era realizado por meio de vales, principalmente nas fazendas mais afastadas das cidades, os quais apenas poderiam ser trocados por mercadorias nos armazéns da própria fazenda (Aquino, 1977, p. 69-70; Viveiros de Castro, 1978, p. 27). Importante notar, igualmente, que a chegada das fazendas não extinguiu a existência dos seringais; ambos continuaram se constituindo enquanto local de trabalho e, muitas vezes, de residência para os habitantes da região. Mas, a 32 Capítulo 1 transformação do significado da terra trouxe mudanças importantes para a vida dos grupos indígenas. A “terra”, e não mais as “estradas de seringa”, trouxe consigo uma nova definição do espaço enquanto território contínuo, fechado e homogêneo, o qual pouco comportou os grupos indígenas em seus interstícios (Viveiros de Castro, 1978, p. 11-12). Viveiros de Castro, que esteve na região do Alto Purus para realização de relatório sobre os Kulina, encomendado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1978, observou que as alternativas colocadas para este grupo indígena eram semelhantes àquelas notadas por Aquino (1977) para os Kaxinawá da bacia do Juruá. Segundo Viveiros de Castro (1978), as novas condições da frente de expansão no Acre e a entrada violenta da agropecuária ameaçavam transformar a população indígena em peões sem terra, não sendo possível que retornassem os tempos do apogeu da empresa seringalista – naquele momento, considerados pelos Kulina como bons, pois havia “serviço” e mercadorias: O tempo dos “caboclos” vai acabando; agora ou os Kulina perdem sua identidade étnica e se dissolvem no exército de migrantes para a periferia das cidades, ou se escravizam como peões sem terra e sem roça; ou se transformam em índios, uma identidade étnica nova no Acre, desde os tempos em que os índios eram exterminados à bala nas correrias (Viveiros de Castro, 1978, p. 89). Os grupos indígenas do Juruá e Purus, concentrados em território acreano, eram então reconhecidos como “caboclos” e não havia, até meados da década de 70, atuação do órgão indigenista no Acre nem existência de terras indígenas reconhecidas pela União (Pimenta, 2007, p. 641). Foi apenas em 1976 que a Funai instalou uma Ajudância em Rio Branco, e sua área de atuação, naquele momento, limitou-se à bacia do rio Purus. Antes dessa data, não houve a presença do antigo SPI – Serviço de Proteção aos Índios – e nem mesmo da Funai, criada em 1968 (Aquino, 1977, p. 1). Na região contígua do Alto Ucayali, mais especificamente no baixo curso do rio Urubamba, com a crise da borracha do princípio do século XX, as fazendas, centradas na agricultura, passaram a assumir um lugar predominante no cenário regional (muitas delas foram criadas entre os anos 1920 e 1930). O sistema de trabalho estabelecido nas fazendas continuou baseado nas relações de débito e crédito que caracterizavam o sistema de aviamento (“habilitación” – cf. Gow, 1991, p. 44-48), de maneira análoga ao que ocorreu com as fazendas do Juruá-Purus. Porém, entre os Piro do baixo Urubamba, algo foi transformado em seu relacionamento com os patrões do “tempo da fazenda” em comparação com as relações de troca que ocorriam no tempo 33 Entre bravos e mansos dos patrões da borracha. Como relata Gow (1991, p. 67-68), Vargas, um importante patrão dos Piro no tempo da fazenda, não foi apenas um patrão, mas também um chefe (curaca) deste grupo indígena. Ele dizia aos Piro o que fazer e também quando fazer, ele organizava suas vidas e era o vínculo entre este grupo indígena e as cidades rio abaixo, fornecedoras das mercadorias que eles desejavam. Vargas era também aquele que coordenava a vida cerimonial dos Piro, organizando, por exemplo, tanto os rituais de puberdade quanto os casamentos. Comparados a Vargas, os patrões da borracha são lembrados vagamente, e de modo genérico, pela sua violência, enquanto Vargas marcara a memória piro de modo muito mais personalizado. Em seu tempo, os Piro tornaram-se “escravos da fazenda”, enfatizando que todos eles habitavam nas fazendas. Foi também nesta época que os Piro afirmam terem se tornado civilizados, em contraste com seus ancestrais que eram “pessoas ignorantes da floresta” (Gow, 1991, p. 69). O tempo da fazenda piro tem seu fim com a morte de Vargas em 1940, momento em que os Piro iniciaram um processo de deixar as fazendas e passar a morar em aldeias com escolas sustentadas tanto pelos missionários do Summer Institute of Linguistics (SIL) como por padres dominicanos (Gow, 1991, p. 69). Observamos, desse modo, que o período em que as fazendas foram marcantes na vida deste grupo indígena antecede o período principal de instalação das fazendas na região dos rios Juruá e Purus, na década de 1970. Também parece ser substancialmente diferente a maneira pela qual os grupos indígenas que habitavam os rios Juruá e Purus na época se referem hoje às fazendas. Como veremos nos capítulos seguintes, o momento marcante de trabalho e de relacionamento com os patrões é o período da borracha. As fazendas não são lembradas da mesma maneira. Esse fato nos sugere, como já delineado nas observações de Viveiros de Castro (1978) entre os Kulina do Purus e de Aquino (1977) entre os Kaxinawá do Juruá, que as fazendas instaladas na região na década de 1970, apesar de continuarem funcionando por meio do sistema de aviamento, diferiam substancialmente dos seringais. Ao ocuparem o espaço de outra maneira, aparentemente também dispensaram grande parte da mão-de-obra indígena. Razão pela qual os Kulina, por exemplo, lembravam saudosamente dos tempos do apogeu da empresa seringalista, quando havia serviço e mercadorias. Esse panorama, instaurado com a decadência dos seringais e a chegada das fazendas, pôde ser transformado, em alguma medida, a partir da década de 1980, 34 Capítulo 1 quando surgiram, na região, os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais e as primeiras organizações indígenas. Nesta mesma década, houve um crescimento do movimento ambientalista e da visibilidade internacional do desastre ecológico ocasionado pelas políticas desenvolvimentistas na Amazônia, o que favoreceu as reivindicações dessas organizações e a realização de alianças políticas. A luta pela terra se constituiu na principal das reivindicações, sendo fundamental para a futura demarcação de terras indígenas e também de outros territórios protegidos legalmente e habitados por grupos indígenas e não indígenas, como reservas extrativistas, o Parque Nacional da Serra do Divisor, dentre outros (Pimenta, 2007, p. 637-641). Atualmente, o estado do Acre conta com 36 terras indígenas, sendo que algumas delas ainda se encontram em processo de identificação (ISA, 2012). Podemos, assim, delinear algumas transformações gerais que ocorreram na ocupação do território da bacia dos rios Juruá e Purus e também nas relações entre brancos e índios desde que se instalou na região a empresa seringalista. Em um primeiro momento, com a chegada dos colonizadores na segunda metade do século XIX, contatos iniciais foram estabelecidos entre os brancos e os grupos indígenas. Nos registros referentes a viagens de reconhecimento do território (ver mais detalhes a seguir), os brancos buscavam identificar os habitantes indígenas daquele território: os “Catuquinas”, “Conibos”, “Paummarys”, “Juberys”, dentre inúmeros outros, muitos deles hoje extintos (cf. p. ex. Chandless, 1866; 1869). Em um segundo momento, com a instalação efetiva dos seringais e engajamento de muitos grupos indígenas como mãode-obra, surge uma nova identidade, a do “caboclo”. Como já tematizada por Cardoso de Oliveira (1972 [1964]) em outra região da Amazônia (rio Solimões) e também por Aquino (1977) e Viveiros de Castro (1978) na região do Juruá-Purus, a categoria de “caboclo”, atribuída genericamente aos grupos indígenas, estabelecia uma diferença étnica genérica que mascarava uma situação geral de exploração de mão-de-obra e, ao mesmo tempo, depreciava e desumanizava aqueles incluídos sob tal denominação. Por fim, o período mais recente é marcado pela decadência dos seringais e pela a ocupação branca da região a partir um novo tipo de territorialidade, marcado pela instalação das fazendas. Este momento foi seguido por ou coincidente com o início da atuação da Funai, de missionários católicos e protestantes (cf. Viveiros de Castro, 1978; Bonilla, 2007), e com o surgimento de organizações indígenas ou de apoio aos povos indígenas. Este foi o contexto em que muitos grupos passaram a assumir a nova identidade de “índios” e a lutarem por suas “terras”. 35 Entre bravos e mansos Podemos observar que as mudanças no modo de ocupação do território estavam intrinsecamente relacionadas a outras transformações referentes aos relacionamentos estabelecidos entre aqueles que habitavam a região, articulando socialidades e temporalidades distintas. Os seringais proporcionavam um tipo específico de ocupação do território o qual articulava uma temporalidade própria, assim como modos únicos de relacionamento entre as pessoas que nele habitavam, ou que a ele estavam relacionadas. Este ponto será mais bem desenvolvido nos próximos tópicos, em que darei enfoque às condições e circunstâncias nas quais os grupos indígenas passaram a ser identificados, e também a identificarem-se, enquanto “caboclos”. Como vimos, tal nominação está diretamente associada ao engajamento de diversos grupos indígenas como mão-de-obra nos seringais; e foi também o seringal o espaço por excelência em que se deu o processo de “amansamento”. Desse modo, prosseguirei a análise iniciando pelas correrias, por meio das quais se deu a captura de inúmeros grupos indígenas para o trabalho; em seguida, abordarei os diversos tipos de engajamento da mão-de-obra indígena no trabalho dos seringais; o caráter das relações estabelecidas entre “patrões” e “seringueiros”; e, por fim, o modo pelo qual categorias classificatórias opostas como as de índios “bravos” e “mansos” operavam. “Para os civilizados trabalharem em paz”: as correrias Em meados do século XIX, ocorreram as primeiras expedições oficiais de reconhecimento do território da então recém-criada Província do Amazonas.14 No ano de 1852, foi realizada a expedição comandada por Romão José de Oliveira ao rio Juruá e, aparentemente no mesmo ano, João da Cunha Correia – também conhecido por João Cametá – liderou viagem de reconhecimento ao rio Purus (Silva, 2010, p. 188; Chandless, 1866, p. 86).15 Posteriormente, outras expedições oficiais foram enviadas com intuitos que iam desde a descoberta de ligações entre rios – como, por exemplo, a viagem de Serafim Salgado ao Purus em 1852 – até o reconhecimento de índios, o estabelecimento de missões e o recrutamento de mão-de-obra indígena (cf. Castello Branco, 1947, p. 108; Labre, 1872). Mas, para além das viagens oficiais, muitas outras 14 Até o ano de 1852, a região dos rios Juruá e Purus pertencera à Província do Grão Pará (Pimenta, 2002, p. 86, nota 1). 15 Chandless (1866) e outras referências à primeira viagem de João Cametá ao Purus não mencionam o ano de sua ocorrência. Mas, pode-se inferir que esta não aconteceu em data muito anterior, sendo provável que tenha ocorrido no mesmo ano de 1852, quando João Batista Terneiro de Aranha, presidente da Província do Amazonas, criada neste ano, organizou as primeiras expedições aos rios Purus e Juruá. 36 Capítulo 1 incursões a estes rios já eram realizadas por regatões, pessoas que buscavam comerciar com os índios, trocando mercadorias, e que também viriam a participar da busca e comércio de borracha (Castello Branco, 1947, p. 162). A inserção da empresa seringalista na região – e sua consequente ocupação territorial – contou com uma violenta prática que ficou conhecida como “correria”. Na região dos rios Juruá e Purus, a população indígena foi verdadeiramente cercada pelas frentes de expansão brasileira e peruana, vindas de direções opostas (Viveiros de Castro, 1978, p. 9). As correrias eram justificadas por aqueles que as realizavam como o único meio de garantir “a „segurança’ dos trabalhadores e da produção”: Durante a implantação da empresa seringalista e o principal período da extração do caucho, com a ocupação, temporária ou definitiva, dos antigos territórios indígenas, as “correrias” seriam justificadas por patrões, seringueiros e caucheiros como único meio eficaz de garantir a “segurança” dos trabalhadores e da produção. Nesse sentido, é possível dizer, os indígenas constituíam ameaça recorrente, que competia com os interesses daqueles que, em diferentes posições, almejavam ocupar ou utilizar recursos extrativos para “produzir”, borracha e caucho, e deles tirar sua sobrevivência. Pairando acima das formas de dominação que permeavam as relações entre os patrões e seus fregueses (fossem eles seringueiros ou caucheiros), os discursos que deram sustentação ideológica à realização das correrias obtinham eficácia no delineamento de uma diferenciação dos “civilizados”, “cristãos” face aos indígenas, concebidos como não humanos, “feras selvagens”, “irracionais”, “perigosas” e “traiçoeiras”, estabelecendo condições de possibilidade, nessa conjuntura, para diferentes modalidades de violência contra os indígenas (Iglesias, 2012, p. 88). As correrias, na definição do padre Tastevin16, constituíam-se em “verdadeiras expedições armadas para desalojar os índios de seu lugar a fogo e sangue e permitir aos civilizados trabalhar em paz”; e a sua realização parecia não implicar em grandes dificuldades para os “civilizados” que as efetivavam (2009 [1925], p. 145). Ainda nas palavras de Tastevin: Nada mais fácil do que acabar com uma tribo incômoda. Reúnem-se de trinta a cinquenta homens, armados de carabinas de repetição e munidos cada um com uma centena de balas, e, à noite, cerca-se a única maloca, em forma de colmeia de abelhas, onde todo o clã dorme em paz. No nascer do sol, na hora em que os índios se levantam para fazer a primeira refeição e os preparativos para a caça, um grito convencionado dá o sinal, e os assaltantes abrem fogo todos juntos e à vontade. Pouquíssimos sitiados conseguem escapar: levam-se as mulheres e as crianças que podem ser pegas vivas, mas não se Que realizou viagens pela Amazônia nos períodos de 1905 a 1914 e 1919 a 1926 (Carneiro da Cunha, 2009, p. xii-xvi). 16 37 Entre bravos e mansos perdoam os homens que, por sua vez, se mostram sem medo e indomáveis (2009 [1925], p. 149). A definição de Tastevin do que eram as correrias compreende uma das possíveis formas de sua efetivação, a qual tinha como finalidade o extermínio de populações indígenas que eram “incômodas” àqueles que desejavam ocupar o “novo” território. Por outro lado, as correrias podiam ser utilizadas também como forma de captura de indígenas para seu futuro amansamento e utilização como mão-de-obra nos seringais. Um seringueiro kaxinawá do rio Jordão, na década de 1970, narrou a Aquino os dois tipos de correrias que eram organizadas por proprietários de seringais famosos na região. Em seu relato, pode-se perceber como o próprio amansamento decorrente do segundo tipo de correria se constituía enquanto uma prática igualmente violenta: Pedro Biló não amansava caboclo. Pedro Biló matava caboclo. Pedro Biló só amansou Manel Papavô porque deu um tiro na mãe dele e ele era bem novinho. A bala ainda marcou o braço dele. ... Felizardo Cerqueira amansava caboclo, dava mercadoria pra nós, caboclos. Agradava o velho, o menino. Felizardo e Angelo Ferreira amansavam caboclo pra trabalhar pra ele. Nós todos aqui trabalhamos com Felizardo. Ele dizia que tinha pra mais de 80 filhos com as caboclas. Eu mesmo ele ajudou a fazer. Felizardo amansava caboclo e depois botava a marca (F. C.) pra saber que era dele, que foi ele que amansou. O Nicolau, o Regino, o Chico Curumim, o Romão, esses caboclos mais velhos todos ainda carregam essa marca no braço. Picava o braço com quatro agulhas e passava a tinta que é jenipapo misturado com pólvora e tisna preta de sernambi (seringueiro kaxinawá, em Aquino, 1977, p. 44). Ambas as versões das “correrias” foram realizadas, ao que tudo indica, de modo concomitante no tempo, com variações locais dependentes do tipo de relação estabelecida entre índios e não-índios. Os relatos de Castello Branco, que reproduzo a seguir, demonstram essa variabilidade das relações estabelecidas entre índios e seringueiros. Deles, também se pode perceber que, se a suposta tranquilidade das relações estava presente em alguns momentos, em outros, ela poderia ser rapidamente questionada, seja por ações armadas ou por doenças. Em alguns lugares os exploradores dos seringais foram bem recebidos, como no baixo Acre, entre os Ipurinãs, os quais, segundo Newtel Maia, um dos primeiros desbravadores dessas selvas, eram pacíficos e se apresentavam aos invasores para com êles trabalhar; tendo sido dizimados pelo sarampo e exterminadas as sobras pelos bolivianos quando se apossaram da região, no fim do século XIX para o princípio do atual [século XX]. Avelino de Medeiros Chaves foi auxiliado pelos Catianas, Canamaris, e outras tribos na exploração dos seus vastos seringais no alto Iaco, mas, à proporção que os serviços 38 Capítulo 1 iam se alargando, chegaram novos colonos e entre êstes alguns maus elementos que provocaram o desaparecimento dos indígenas (1950, p. 12). Seringueiros e indígenas, passados os primeiros choques, entenderam-se, chegando êstes a trabalhar na seringa ou na faina de caça e pesca, em que eram exímios, exceto os menos cordatos que preferiram o recôndito das matas, mas, aqueles começaram a invadir os lares indianos, maculando-os ou carregando para suas “colocações”17 as cunhãs e cunhantãs [meninas e moças], dando lugar a desavenças entre as duas raças, do que resultou, em alguns lugares, verdadeiras caçadas contra os índios, como aconteceu no alto Iaco, no princípio deste século, em que, sob a chefia de João Alves Vieira, dono do seringal Olinda, foi organizada uma batida contra os Catianas [...]. (1950, p. 14). Apesar de praticadas de modo sincrônico em determinado momento, pode-se afirmar que a maior intensidade dos massacres se deu em um período inicial da chegada dos novos exploradores, sendo que, posteriormente, a mão-de-obra indígena passou a ser mais demandada para o trabalho nos seringais. A partir de 1903, com a criação do território do Acre e instalação das prefeituras no ano seguinte, as correrias organizadas com a finalidade de extermínio começaram a ser inibidas e as prefeituras instaladas realizaram esforços para utilizar a mão-de-obra indígena (Castello Branco, 1950, p. 22; Altmann, 2000, p. 37). Não é possível saber até que ponto essa ação inibidora teve efeito, pois as dificuldades pareciam ser muitas: segundo relato de um delegado de polícia do Alto Tarauacá, afluente direito do Juruá, as correrias constituíam o “esporte predileto de muitos seringueiros durante os lazeres da safra” (Castello Branco, 1950, p. 22). Segundo Tastevin, em 1925, os massacres já eram história antiga, mas esta não parece ter sido uma realidade difundida (Tastevin, 2009 [1925], p. 149). Na época em que fora criado o território do Acre, uma drástica redução populacional indígena já era observada. E, mesmo depois de 1920, após a unificação da administração deste território, pouco parece ter feito o governo para a melhoria das condições de violência na região (Castello Branco, 1950, p. 13, 24). Dentre as diversas consequências das correrias, duas importantes transformações marcaram a vida dos povos indígenas da região. Refiro-me ao medo e evitação que se estabeleceram por parte dos índios em relação aos brancos e também à intensa movimentação espacial e consequente dispersão indígena. Se os grupos se A colocação é a unidade de produção do seringal, onde reside o seringueiro acompanhado de sua família em uma pequena clareira aberta na mata (ver a seguir). 17 39 Entre bravos e mansos deslocavam no espaço, maior ainda parecia ser a movimentação de mulheres índias, as quais, raptadas, iam viver com seringueiros ou mesmo acompanhar outros exploradores da região, fornecendo informações e ensinando sua língua (cf. Chandless, 1866, p. 100; Castello Branco, 1950, p. 5; Tastevin, 2009 [1925], p. 145). Uma dessas mulheres, pertencente ao grupo dos Naua18, capturada no Alto Juruá e batizada com o nome Petrolina, contou a Guilherme da Cunha Correia, filho do já citado João da Cunha Correia, que “os náuas não queriam mal aos brancos, mas êles [os brancos] eram maus e que há muitos anos os seus avós para escapar às suas barbaridades haviam fugido de um lugar bonito para além das nascentes do rio” (Castello Branco, 1950, p. 6). Tastevin (2009 [1925], p. 145) também ressaltou a relação de medo dos Kaxinawá em relação aos brancos, mencionando dois episódios expressivos: em um deles, um jovem kaxinawá do rio Muru teve que ser encorajado pelo chefe de seu grupo para não ter medo de Tastevin; em outro, o padre observou que, quando um seringueiro apareceu na entrada da clareira que habitavam, as mulheres kaxinawá apressaram-se em esconder o peixe moqueado que haviam trazido na véspera. A necessidade de deslocamento, em fuga dos brancos e também das epidemias, deixou marcas profundas nas histórias dos povos indígenas da região, dada a sua intensidade e recorrência, desestruturando a vida de muitos grupos. No início do século XIX, várias localidades, antigamente ocupadas por indígenas, eram encontradas desertas devido à expulsão de grupos inteiros e posterior abandono do local pelos brancos, o que parece ter sido o caso do Iboiassú, afluente do rio Muru (bacia do Juruá), principal morada dos Kaxinawá antes da chegada dos seringueiros, onde eles aparentemente encontravam refúgio contra seus “turbulentos vizinhos”, os Kulina (Tastevin, 2009 [1925], p. 142). Nesta época, os Kaxinawá foram encontrados povoando principalmente os afluentes da margem direita do Médio Muru, sendo notável a sua enorme dispersão. Existia apenas uma “tribo” organizada, estabelecida na margem direita do Humaitá. As demais famílias Kaxinawá estavam espalhadas pelas margens do Muru, vivendo mais ou menos misturadas com os brancos, nos seringais, sem falar nas inúmeras índias que viviam com os seringueiros (Tastevin, 2009 [1925], p. 144-145; cf. também Castello Branco, 1950, p. 22-23). Para além desses Kaxinawá que foram morar nos seringais, um grupo que havia sido concentrado em um seringal no rio Envira se mudou para o rio Curanja e 18 Os “Naua” ou “Nawa” formavam um grupo indígena habitante da região e que supostamente havia sido extinto. Atualmente, remanescentes deste grupo, que habitam o Parque Nacional da Serra do Divisor, reivindicam o reconhecimento de sua identidade perante o estado brasileiro (cf. ISA, 2013h). 40 Capítulo 1 cabeceiras do rio Purus, no Peru, após uma rebelião contra um seringalista aproximadamente em meados de 1920 (Kensinger, 1995, p. 1-2). Este grupo buscou fugir do contexto das frentes extrativistas formadas por seringueiros brasileiros e caucheiros peruanos. Entretanto, no Curanja, no início da década de 1950, uma epidemia dizimou parte considerável de adultos do grupo, o que fez com que alguns retornassem ao Envira. Parte desses que retornaram, lá permaneceram, e outra parte voltou novamente ao Curanja em fins da década de 50. Mais recentemente, na década de 70, os Kaxinawá ocupavam uma extensa área formada pelos rios Tarauacá, Envira, Muru, Jordão e alto Purus no estado do Acre e ao longo dos rios Curanja e alto Purus, no sudeste do Peru (Aquino, 1977, p. 83-84; Kensinger, 1995, p. 1-3). Tal configuração espacial dos Kaxinawá reflete as inúmeras migrações efetuadas pelo grupo, as quais foram certamente intensificadas pelos conflitos decorrentes da instalação da empresa seringalista na região. Grandes distâncias eram percorridas, ocasionando igualmente mudanças de uma bacia à outra – do Juruá ao Purus e vice-versa. A enorme circulação dos Kaxinawá pela região permitiu, por exemplo, a existência de personagens como Carlito, um Kaxinawá que, habitando o rio Jordão na década de 1970, impressionou Aquino pelo modo como conhecia os problemas locais e os inúmeros seringais onde vivia dispersa a população Kaxinawá (Aquino, 1977, p. 5). A memória de índios Katukina (Pano), em relatos coletados em 2008 por Góes, atesta a instabilidade provocada pelas correrias na vida social do grupo, as quais impediam a existência de chefes, a reprodução do conhecimento, a constituição de roçados: Nesse tempo não existia cacique (...) Cacique não organizava nada, nesse tempo não tinha patrão, não tinha cacique, estavam fazendo correria, estava tudo espalhado. Como ia ter cacique? Se tivesse cacique iam matar de bala. Que jeito ia ter cacique? Nesse tempo (Katukina) não tem nada, não conhece nada, só anda pelo mato mesmo. Depois que encontrou Manoel de Pinho que vão trabalhar. Manoel de Pinho ensinava ele (Katukina). Ia pra lá só fazer roçado, quando roçado [estava] deste tamanho o peruano fez correria nele e deixaram sem roça: “- Vai embora pra outro canto!” (Txano e Pe’o, em Góes, 2009, p. 92). As fugas eram realizadas tanto em relação à ameaça de conflitos armados como em decorrência da presença de epidemias. Em ambos os casos, os grupos indígenas costumavam buscar refúgio no mato ou cabeceiras de rios. Os Kulina que, já na década 41 Entre bravos e mansos de 1970, habitavam a região dos rios Purus e Chandless19, afirmam que, em tempos antigos, vieram do Juruá, procurando o alto curso dos rios, em fuga dos seringueiros. A fuga para as regiões que não possuíam grandes seringais ou para longe dos principais rios foi característica das migrações Kulina e marcante em sua memória: na época das correrias, fugiam para as cabeceiras dos rios, entrando para os “centros”, e para áreas onde não havia seringueiras. A distinção entre “centro” e “margem”, operada por estes índios, diferencia o meio da mata da beira dos rios. Essas categorias apontam para uma dualidade da ocupação do espaço que nos remetem às alternativas que se colocavam aos Kulina no contexto das correrias dos séculos XIX e XX: ou buscavam o “centro” da mata, em fuga das condições de vida proporcionadas pela empresa seringalista, ou iam para a “margem” dos rios, trabalhar para os patrões (Viveiros de Castro, 1978, p. 15-16; Altmann, 2000, p. 107-110). Como veremos no capítulo 2, esta dualidade espacial articula-se também a diferentes tempos e socialidades. A busca pelo meio do mato como modo de proteção foi igualmente marcante para os Yaminawa. Hoje, eles têm sua morada junto dos rios, mas, segundo Calavia Sáez (2006, p. 45), “o modo antigo não foi esquecido”: alarmado pelas notícias sobre epidemia de cólera em sua região de habitação, um yaminawa contou ao antropólogo seu projeto de se retirar com sua família para dentro do mato, “meia hora, duas horas adentro” por dois ou três anos, até que a epidemia cedesse. Antigamente, por razões de segurança, os Yaminawa eram habitantes do mato (Calavia Sáez, 2006, p. 45). Foram habitantes do Alto Muru e de seus afluentes, mas, na década de 1920, teriam se deslocado para as redondezas do Envira (Tastevin, 2009 [1925], p. 145). Vemos, assim, como a chegada dos brancos às bacias dos rios Juruá e Purus no âmbito da instalação da empresa seringalista e suas consequências mais imediatas, a doença e a guerra, inseriu os grupos indígenas que lá habitavam em um contexto onde as alternativas resumiam-se à guerra, dispersão e fuga ou ao amansamento, processo por meio do qual, de um ponto de vista dos colonizadores, os índios tornar-se-iam mansos o suficiente para poderem trabalhar nos seringais. Esta região havia sido, na época dos primeiros exploradores, território dos Maxineri, Kanamari e Katiana (Labre, 1872; Castello Branco, 1950). 19 42 Capítulo 1 O seringal: espaço, tempo e patronagem O seringal e o trabalho que nele era desenvolvido foram os propiciadores, por excelência, do difundido processo de amansamento, o qual contava com uma lógica específica no espaço e no tempo do seringal: o trabalho ali desenvolvido relacionava-se com um determinado tipo de ocupação territorial, com um controle específico do tempo e dos suprimentos básicos utilizados na vida cotidiana. Já na construção de um seringal, seu delineamento espacial é traçado. A primeira vivenda do barracão é erguida à beira do rio principal e é, então, realizado um primeiro reconhecimento do território que o rodeia. O sitiante procura um sertanista ou mateiro, que será o abridor das estradas de seringa na mata. Este, primeiramente, realiza um exame geral da área para, em seguida, iniciar o trabalho de construção propriamente dito, o qual é principiado com o assinalamento do primeiro pé de seringa. Esta é a boca da estrada. A partir deste momento, o mateiro passa a ser auxiliado por outros trabalhadores os quais o ajudam no processo de identificação de novas seringas e abertura da mata no caminho de uma a outra. Assim, eles vão de seringueira em seringueira, chegando até o ponto mais distante, a volta da estrada, para, a seguir, voltarem fechando a curva irregular que termina no ponto de partida e define a estrada (Cunha, 2000 [1976], p. 334). No desenho 1 (abaixo), podemos observar a configuração genérica de um seringal amazônico, por volta de 1900. As alças em formato de gota representam as estradas e os números indicam quantas seringueiras compunham cada uma delas. As cabanas são, por sua vez, indicativo do local de habitação dos seringueiros. O seringal era composto pela sede, onde se localizava a grande casa do proprietário, o barracão, rodeada por vários ranchos construídos de maneira precária, local em que moravam os trabalhadores. O barracão era local de moradia do patrão e de alguns funcionários necessários para as atividades da sede. Funcionava também como posto mercantil central de um seringal, gerido pelo patrão, sendo, assim, o local onde se estocavam as mercadorias adquiridas por meio do comércio nas cidades próximas e onde a borracha era entregue pelos seringueiros. Além do barracão, um seringal era composto de várias colocações, cada qual possuindo em média quatro estradas de seringa. A colocação se constituía na unidade de produção do seringal, onde habitava o seringueiro acompanhado de sua família em uma pequena clareira 43 Entre bravos e mansos aberta na mata (Ehrenreich, 1929, p. 298; Aquino, 1977, p. 4; Weinstein, 1993 [1983], p. 31; Altmann, 2000, p. 100-101). Desenho 1: O seringal Fonte: Weinstein, 1993 [1983], p. 32. A coleta do látex era realizada mais intensamente na época seca, entre os meses de junho e novembro (Chandless, 1866, p. 88). Quando a economia era sobretudo baseada na borracha, os dias de corte eram fixos, dependendo do número de facas disponíveis e de estradas. Havendo duas estradas, deviam ser cortadas em dias alternados (Costa, 2002, p. 222). No início de cada dia de trabalho, o seringueiro circulava por uma das estradas, parando em cada árvore a fim de fazer-lhe um novo corte e fixando uma pequena tigela para onde escorria o látex. Seguindo a longa alça de seringueiras que compunham a estrada, o seringueiro voltava à sua cabana, onde geralmente comia sua primeira refeição do dia, aproximadamente ao meio-dia. Depois de uma sesta, e quando o sol não estava mais a pino, refazia o mesmo percurso, coletando o líquido acumulado nas tigelas e retornava à sua casa para a realização da 44 Capítulo 1 etapa final de seu trabalho diário: a coagulação do látex. Normalmente, eram colocadas sementes de uricuri queimando sob um cone invertido aberto no alto. A fumaça oleosa que saía por esta abertura coagulava pouco a pouco o látex que era derramado lentamente sobre um cabo comprido de madeira o qual ia sendo girado. Ao final, era formada uma bola preta, rígida, chamada de “pele”, “pela” ou “bola” (Weinstein, 1993 [1983], p. 31; Aquino, 1977, p. 46) – ver desenho 2, foto 1 e foto 2. No sábado ou domingo, o seringueiro entregava as peles que havia produzido na semana ou no mês no barracão mais próximo, trocando-as por mercadorias, conforme os preços do mercado (Weinstein, 1993 [1983], p. 31-32). Estes costumavam ser exorbitantes, levando os trabalhadores a logo caírem em dívidas das quais não conseguiam sair facilmente, ou mesmo nunca. Por falta de crédito no barracão, muitas vezes, os homens tinham que largar o serviço para irem à caça ou à pesca. Além disso, cada barracão tinha como empregados uma turma de caçadores, em sua maioria índios. Mas, a comida angariada pelos funcionários do barracão só era ofertada aos seringueiros por preços também exorbitantes (Ehrenreich, 1929, p. 298). Tastevin assim descrevia os impedimentos pelos quais passava um seringueiro para se dedicar em tempo integral à extração do látex na década de 1920 no Muru: Mas eles não podem fazer isso todo dia: o terreno extremamente acidentado, o espaço considerável que é preciso percorrer de uma árvore até a outra, a necessidade de prover a própria comida, os dias de chuva e a doença obrigam-nos a repousar, a executar outros trabalhos, e a abandonar a seringueira mais ou menos dois em cada três dias (2009 [1925], p. 152). A casa do seringueiro seguia em geral um modelo regionalmente difundido de habitação, sendo de madeira de paxiúba – palmeira comum nos igapós - e construída sobre pilotis20 (ver fotos 4, 5, 6 e 7). Com a instalação dos seringais, grande parte dos grupos indígenas da região passou a habitar este tipo de residência. Antes, habitavam, sobretudo, grandes malocas comunais, as quais foram geralmente destruídas pela prática das correrias ou mesmo abandonadas. Os seringueiros também deviam pagar ao patrão pelo arrendamento das estradas de seringa que utilizavam (Weinstein, 1993 [1983], p. 31). As estradas eram, desse modo, importante medida de valor de um seringal. Configuravam, também, um modo específico de ocupação do espaço, provocando uma dispersão populacional, Para uma descrição pormenorizada da casa do seringueiro e de seu modo de construção cf. Costa et al., 2002, p. 233-247. 20 45 Entre bravos e mansos certamente marcante nos modos de vida da região desses rios, uma vez que os seringais se estendiam vastamente pelo território (cf. Cunha, 2000 [1976], p. 310, 335). Os desenhos do seringal relacionavam-se, desse modo, a outros ordenamentos espaciais e também de tempo, como se pode perceber rapidamente a partir da descrição da rotina de trabalho de um seringueiro. Medida e valor desses locais, as estradas faziam parte de uma configuração espacial que distinguia dois termos: a margem e o centro. A margem referia-se às regiões próximas dos rios maiores e mais navegáveis, onde as pessoas se dedicavam principalmente aos roçados – constituía-se, desse modo, em um lugar de atração quando o preço da borracha caía. Era também o local onde se situava o barracão do patrão. Os centros – que também ficavam à margem, mas de igarapés menores, onde a navegação só era possível em curtos períodos do ano – eram os locais onde as árvores de seringa abundavam e onde viviam os seringueiros em suas colocações (Aquino, 1977, p. 59; Costa et al., 2002, p. 232). O centro do seringal constituía-se, desse modo, do conjunto de colocações com suas estradas e, uma vez que as seringueiras encontravam-se dispersas no território, cada colocação ficava distante em relação às demais. “Assim, a principal característica do processo de extração e transformação do látex é o isolamento em que fica cada unidade de produção, não só umas em relação às outras, mas todas em relação à margem do seringal” (Zanoni, 1979, p. 62). O trabalho desenvolvido pelos grupos indígenas no contexto da empresa seringalista poderia ser realizado de duas maneiras distintas: a) estando diretamente associado ao processo de extração da borracha, b) ou assumindo uma posição mais marginalizada (fornecendo caça para o barracão ou abrindo estradas de seringa, por exemplo). Esses dois tipos de inserção variavam tanto de acordo com as oscilações de preço da borracha como em decorrência da própria história de cada grupo indígena. Os Kulina, por exemplo, apesar de terem se engajado mais fortemente no trabalho dos seringais em um momento aparentemente coincidente com o 2º ciclo da borracha, jamais se identificaram enquanto “seringueiros” tão amplamente como os Kaxinawá. Esta não identificação está relacionada a um tipo de participação mais marginal na atividade seringalista (Viveiros de Castro, 1978, p. 15-16; Altmann, 2000, p. 37, 102). Este também foi o caso dos Paumari, que, no geral, exerceram atividades relacionadas aos seringais, mas não diretamente extrativas (ver cap. 3). Tal fato, porém, não implicava em um envolvimento menor em relações de patronagem, como será possível perceber ao longo desta dissertação. 46 Capítulo 1 Quando não completamente inseridos no trabalho de extração do látex, os grupos indígenas acabavam por se dedicar a outras atividades relacionadas ao seringal, como a localização das árvores de seringa e abertura das estradas; o comércio de peles; caça e pesca (cf. Ehrenreich, 1929, p. 298; Viveiros de Castro, 1978, p. 16; Altmann, 2000, p. 37). Independentemente do nível de envolvimento com as atividades do seringal, os grupos indígenas, de maneira geral, não abandonaram a prática da agricultura ou de outras atividades de subsistência. Esta se constituía como uma das diferenças do trabalho habitual de “caboclos” e “cariús”21 - “brasileiros da área que mantinham vinculação com a extração da borracha” –, pois a maioria destes, no apogeu da borracha, dedicava-se exclusivamente às atividades extrativas (Aquino, 1977, p. 45, 73). Mas, afora os produtos de origem vegetal, os índios dependiam enormemente dos produtos do barracão, assim como os seringueiros nordestinos: a munição para a caça, sal, açúcar, roupas, tabaco, remédios, terçado, machado etc. eram ali adquiridos (cf. Aquino, 1977, p. 98-99; Viveiros de Castro, 1978, p. 28). Tanto a dependência do barracão quanto o endividamento constante eram fundamentais para o funcionamento do sistema extrativo da borracha, de aviamento, e para o processo de amansamento, pois mantinham índios e nordestinos no seringal, onde continuavam a cumprir seu trabalho22. Os modos de exploração da força de trabalho eram inúmeros: iam desde os altos preços dos produtos e baixos preços pagos na borracha produzida até aos registros inverídicos realizados pelos patrões em suas cadernetas (Aquino, 1977, p. 47). Nesse sistema: O produtor direto, o seringueiro, recebe de seu patrão tudo aquilo que necessita para empreender a produção de “pelas de borracha”, desde os instrumentos de trabalho (facas de seringa, baldes, tigelas, bacia, o terçado, o machado etc), até roupas, “estivas” (o sal, o querosene, o sab[ão,] a munição etc), alimentos e armas. O fornecimento destas manufaturas é feito através do empenho compulsório da totalidade da produção ao seringalista. Novo fornecimento se faz e assim o processo continua, sem que haja a mínima circulação de dinheiro (Aquino, 1977, p. 46). Os Kulina e os Kaxinawá se referem aos brancos como cariú. O termo paumari equivalente é jara, que encontra provável ressonância no nome “Jarado”, como se chamava o primeiro branco que os Kanamari contam ter conhecido. Ainda assim, os Kanamari referem-se aos brancos pelo termo kariwa, semelhante aos utilizados pelos Kulina e Kaxinawá (ver cap. 2 e 3). 22 Taussig (1993 [1987], p. 81, 85) intitulou tal realidade no Putumayo de “instituição do endividamento econômico”, atribuindo à “dívida” um mágico realismo que era “essencial não só à organização de mãode-obra durante o ciclo da borracha no Putumayo, mas também ao seu terror”. 21 47 Entre bravos e mansos A partir do relato de um barranqueiro kaxinawá que vivia nas proximidades da cidade de Tarauacá na década de 70, já “liberto” do trabalho nos seringais, pode-se perceber a importância que a dívida adquiria no contexto de sujeição aos patrões: É melhor viver de serviço de roçado, na agricultura, dando dia de serviço pra um e pra outro do que trabalhá na seringa. Trabalhá na seringa é trabalhá pros patrão. O freguês é sujeito, vive devendo pros patrão. Na agricultura não. Vive liberto. Vendi pra quem quiser. Na seringa não, é tudo sujeito é tudo no cabresto, devendo pros patrão. Eu vivo bem aqui nesse barranco graças a Deus. Quer dizer eu não tenho nada. Mas não devo pra ninguém. Tô liberto. Tudo qui nós planta é pra nossa família. Agora trabalho na seringa é só mesmo pro patrão, patrão roubou muito aqui. Mercadoria vendi caro. Borracha ele paga pouco. Ainda tira a tara23, a renda. Nós aqui não sabe de nada. Tudo é de acordo cum ele. Trabalho na seringa é um trabalho pro patrão. Seringueiro aqui é tudo devendo (Aquino, 1977, p. 57-58). Existia, ainda, uma série de regras que reforçavam a condição de subordinação dos seringueiros, além de uma aliança entre patrões, com a previsão de punição para aqueles que não seguissem o acordo estabelecido que era o de não aceitarem “uns os empregados de outros, antes de saldadas as dívidas” (cf. Cunha, 2000[1976], p. 129). Desse modo, os “Regulamentos” dos seringais – mencionados por Euclides da Cunha na década de 1900 – determinavam que qualquer freguês não poderia se retirar de um estabelecimento sem que tivesse liquidado todas as suas dívidas. Além disso, estipulavam multas para trabalhadores que comprassem em barracões de outros patrões e para procedimentos errados adotados no corte das seringueiras (Cunha, 2000 [1976], p. 128-129). Estes “Regulamentos”, apesar de terem sofrido modificações, ainda vigoravam na região do Juruá na década de 1970 (cf. Aquino, 1977, p. 47-48)24. Em momentos de crise, algumas dessas regras ganhavam maleabilidade como, por exemplo, o imperativo de vender as “pelas” produzidas apenas para seu próprio patrão, mesmo porque este, muitas vezes, não contava com mercadorias. Sobretudo nestas épocas, os seringueiros comerciavam também com os “regatões” ou “marreteiros”, os quais eram “aviados” pelos comerciantes de cidades próximas (Aquino, 1977, p. 51). Estes eram comerciantes móveis que também realizavam a troca de produtos sem que houvesse a presença do dinheiro em espécie; eram, igualmente, A tara correspondia a aproximadamente 10% do peso da borracha, a qual era retirada do valor a ser pago pela produção do seringueiro, uma vez que, conforme argumentavam os patrões, a borracha diminui de peso quando seca (Aquino, 1977, p. 59). 24 Cardoso de Oliveira também observou, na região do Solimões, em fins da década de 1950 e início da década de 1960, “o conhecido procedimento patronal de estabelecerem entre si a regra de jamais admitirem, em suas turmas de trabalho, fugitivos de outras emprêsas” (Cardoso de Oliveira, 1972 [1964], p. 112). 23 48 Capítulo 1 reconhecidos por índios e demais seringueiros como “patrões” (cf. Viveiros de Castro, 1978, p. 3). Como explica Weinstein, o “patrão” do seringueiro poderia ser: ou o grande proprietário da terra (seringalista) que “arrendava” as estradas ao seringueiro, mediante uma porcentagem da borracha extraída, ou o comerciante local [...] que controlava informalmente a produção e o comércio da borracha na área, negociando a produção dos seringueiros e mantendo-os abastecidos de ferramentas, víveres e quaisquer extravagâncias a que se pudessem dar ao luxo (Weinstein, 1993 [1983], p. 31-32). Outros personagens surgiram no contexto da crise da década de 1950 e foram também definidos regionalmente na categoria dos patrões: eram eles o “arrendatário” ou “patrão-chefe” e o “gerente-aviado”. Este foi o momento em que alguns proprietários arrendavam seus seringais a terceiros exigindo como remuneração o valor pago pelos seringueiros em decorrência do uso das estradas de seringa. Os “patrões-chefe”, por arrendarem um grande número de seringais, contratavam “gerentes-aviados” responsáveis por tomar conta de cada propriedade e pagar aos seringueiros, em mercadorias, a produção de borracha que recebiam deles (Aquino, 1977, p. 60). Independente de serem os patrões proprietários, arrendatários, gerentes ou marreteiros, as relações estabelecidas com os patrões foram marcantes para os grupos indígenas da região. Como veremos nos próximos capítulos, todos esses personagens pareciam ser sempre referidos indiscriminadamente como “patrões” pelos índios. Os Kaxinawá, segundo Aquino (1977, p. 6), “não concebia[m] um mundo onde não existisse patrão”. Carlito – um Kaxinawá que o acompanhara durante a realização de survey encomendado pela Funai na região onde vivia e trabalhava este grupo indígena – considerava Aquino como um patrão. Apesar dos esforços realizados pelo antropólogo em tratar Carlito como um amigo, este insistia em marcar entre eles distância social semelhante a que havia entre um empregado e seu patrão (Aquino, 1977, p. 6). Bonilla (2007) também notara atitude semelhante entre os Paumari: estes entendiam seus pedidos como ordem, colocavam-se constantemente em uma posição de vítima e encaravam inúmeras relações sociais em termos comerciais. Por sua vez, os Kulina do Alto Purus viram na Funai “um possível novo e poderoso patrão, que forneceria (por aviamento, segundo o modelo clássico do seringal) os bens indispensáveis à [sua] sociedade”. A Funai seria “um fiscal, que poria cobro aos abusos dos velhos patrões” e que “vinha finalmente dar conta da miséria dos Kulina, da 49 Entre bravos e mansos exploração dos patrões, da falta de remédios e de escola” (Viveiros de Castro, 1978, p. 2). Os Kulina, quando já estavam engajados no trabalho extrativista, realizaram migrações em decorrência da “dinâmica da patronagem”: muitos se movimentaram do Juruá ao Purus em busca de menores preços das mercadorias, de “serviço” e de patrões “melhores” (Viveiros de Castro, 1978, p. 16). A distinção entre bons e maus patrões estava presente não apenas entre os Kulina, mas de maneira difundida na região dos rios Juruá e Purus (cf. Aquino, 1977; Bonilla, 2007; Costa, 2007, p. 102; Iglesias, 2008, p. 208). De uma perspectiva kaxinawá, bons patrões eram aqueles que não açoitavam seus fregueses, levavam os doentes para serem tratados nos hospitais, ofereciam alimentos àqueles que visitavam seu barracão, respeitavam os chefes indígenas (Aquino, 1977, p. 103; Iglesias, 2010, p. 358). Estes chefes indígenas eram conhecidos regionalmente pelo nome “tuxaua” e exerciam funções de mediadores entre os índios e os regionais, organizando, tanto o trabalho na empresa seringalista como as empreitadas que tiveram início com o advento dos desmatamentos para instalação de fazendas (Aquino, 1977, p. 3; Viveiros de Castro, 1978, p. 83)25. Outra característica fundamental de um bom patrão que aparece comumente aos quatro grupos indígenas abordados nesta dissertação refere-se à posse de mercadorias. Um bom patrão é aquele que tem bens para trocar pelo serviço de seus empregados. Hoje em dia, por vezes, os Paumari lembram do “bom patrão generoso” que “aviava sem limite, mas que também cuidava dos Paumari „como de seus próprios filhos’, compartilhando com eles sua comida, quando vinham comerciar, dando-lhes roupas usadas e algum antitérmico quando estavam com febre” (Bonilla, 2005, p. 46). Weber (2006) também se refere à importância das mercadorias para a qualificação de um patrão entre os Kaxinawá: O “bom patrão”, como se percebe na fala da Velha Chica, era aquele que tinha e fornecia mercadorias. Dona Bibita me contou de um patrão que não era ruim, mas enfatizou que na sua cantina “não tinha nada”, ou seja, ele não tinha nada para oferecer e por isso não era patrão que “prestasse”. Velho Zequinha, que não vê com bons olhos o tempo dos patrões, disse-me assim: “- Trabalhei pros brancos a vida inteira e nunca ganhei nada deles”(Weber, 2006, p. 73-74). Velha Chica contou ainda a Weber que os Kaxinawá de sua geração tinham o costume de se mudar atrás de um bom patrão (Weber, 2006, p. 74). A distinção entre A existência do tuxaua não impedia que os índios pudessem estabelecer contratos de trabalho individuais com os patrões (cf. Viveiros de Castro, 1978, p. 27; Aquino, 1977). 25 50 Capítulo 1 patrões bons e ruins assumia sua importância em um período em que escolhas deveriam ser feitas em busca de melhores condições de vida no contexto dominado pela existência de seringais. Como vimos anteriormente neste capítulo, no relato do barranqueiro kaxinawá, a distinção entre patrões bons e ruins não extinguia reflexões indígenas igualmente presentes segundo as quais todo trabalho para o patrão é “sujeito”, submetendo o seringueiro a dívidas eternas. Em tempos mais recentes, observamos os grupos indígenas desta região buscando mediar suas relações com os patrões (ver cap. 2 e 3). Os quatro grupos abordados nesta dissertação apresentaram, em alguma circunstância, o desejo de aprender a ler e contar com a finalidade de melhor poder mediar sua relação com os brancos. Os Kulina do Alto Purus desejavam, na década de 70, limitar os abusos dos patrões e, para tal, sentiam grande necessidade de aprender a ler e a contar. Apresentavam um “fascínio quase ritual pela escola” e esperavam ansiosamente a chegada da Funai, na expectativa de que ela poria “cobro à exploração dos barracões” (Viveiros de Castro, 1978, p. 86-87). O tempo atual dos Paumari trouxe, como uma de suas importantes marcas, a aprendizagem da escrita e da matemática, de maneira análoga ao tempo dos direitos dos kaxinawá (ver cap. 3). E, como nos relata Reesink (1993, p. 469), os Kanamari apresentam uma “ansiedade e vontade extraordinárias atuais de aprender matemática e ler e escrever, particularmente em português, exprimem uma fé em si mesmos para poder superar as dificuldades por que passam”. É por meio de tal aprendizagem que os Kanamari consideram a possibilidade de ser revertida a “posição tensional e ambivalente dos kariwa [brancos]”. Imagens de selvageria e civilização O cenário indígena atual dos rios Juruá e Purus é marcado pela distinção entre “bravos” e “mansos”, realizada tanto pelos brancos como pelos povos indígenas. Essa polaridade classificatória aparece igualmente em regiões próximas, como é o caso da Amazônia Ocidental peruana (cf. Gow, 1991; 1993; Taylor, 2007). Mas, se esses termos estão sempre presentes, eles não podem ser definidos de maneira estática, uma vez que operam distinções relacionais entre grupos, tempos e espaços, como teremos oportunidade de analisar ao longo desta dissertação. Como vimos neste capítulo, a diferenciação entre “bravos” e “mansos”, “não civilizados” e “civilizados” foi intensamente articulada pelos brancos que ocuparam a 51 Entre bravos e mansos região dos rios Juruá e Purus com fins de sua exploração econômica. As correrias e a inserção dos grupos indígenas no trabalho nos seringais dependiam a) ou da eliminação dos grupos de “bravos”, “não civilizados”, “selvagens”, que eram acusados de impedir o trabalho e a produtividade pacífica; b) ou do amansamento destes grupos, tornando-os aptos ao trabalho. A diferença entre brabos e mansos, do ponto de vista dos viajantes e seringalistas, estava, assim, diretamente relacionada ao grau de civilização atribuído a determinado grupo indígena. Desta perspectiva, a braveza era vista negativamente, como um empecilho. Outros termos também eram contrapostos, como por exemplo, de um lado “silvícolas”, “irrequietos”, “turbulentos” e, de outro, “civilizados”, “pacíficos”, “amansados”. A distinção entre “brabos” e “mansos” também era aplicada aos nordestinos que migravam para a região. A passagem de “brabo” a “manso”, nos termos de Euclides da Cunha, implicava em uma transformação que levava os “cearenses aventurosos” da esperança de fazer fortuna à apatia “de um vencido ante a realidade inexorável” (2000 [1976], p. 335). Implicava, desse modo, em uma aprendizagem do que seria a vida nos seringais – sendo o “brabo” um novato. Essas caracterizações pareciam oscilar em algumas circunstâncias, como no caso dos Yaminawa, que, em alguns momentos, aparecem na literatura como brabos e, em outros, como civilizados ou mansos. Castello Branco (1950, p. 29) afirmou serem os Yaminawa a “tribo” mais “brava” do vale do Juruá, além de serem velhos inimigos dos Kaxinawá. Por outro lado, o padre Tastevin classificou-os, ao lado dos Kaxinawá e Katukina, na categoria “índios mansos” do Tarauacá, bacia do Juruá (2009 [1926], p. 187). Mas, se houve variações no caso Yaminawa, com os Kaxinawá, Kulina, Kanamari e Paumari as posições ocupadas na literatura aparecem de modo mais constante. Os Kaxinawá, como acima mencionado, foram classificados por Tastevin (2009 [1926], p. 187) na categoria dos índios mansos do Alto Tarauacá. Eram notáveis por serem numerosos, figurando como o mais importante “clã” dos auto-denominados “Hunikui”, falantes de línguas Pano, na margem direita do Muru, afluente do Tarauacá (2009 [1925], p. 144). O delegado de polícia do Alto Tarauacá (nomeado em 1905), em sua missão de reprimir as correrias que se faziam aos índios na região, conheceu ou teve informações sobre mais de 20 grupos indígenas, dentre ao quais, os Kaxinawá destacavam-se por serem os mais numerosos da vasta bacia do Juruá, além de possuírem “índole laboriosa e pacífica” (Castello Branco, 1950, p. 23). 52 Capítulo 1 Já os Kulina eram tidos como os “turbulentos vizinhos” dos Kaxinawá, habitando a margem esquerda do Muru, sendo seus inimigos. Eram considerados “a mais brava” tribo do Tarauacá, sendo do interior, hostis, muito pouco trabalhadores e demasiadamente turbulentos (Tastevin, 2009 [1925], p. 142, 147; Chandless, 1869, p. 300). Segundo Tastevin, os Kulina igualmente não estabeleciam uma relação muito adequada com os Kanamari, agarrando-se a eles “como a uma presa valiosa” (Tastevin, 2009 [1925], p. 148). Em diversas localidades, era possível encontrá-los em contato e luta: no Baixo e Médio Juruá; no Baixo Tarauacá; no Gregório e no Eiru (Tastevin, 2009 [1925], p. 148). Os Kanamari eram, assim como os Kaxinawá, vistos como muito pacíficos, além de já usarem roupas na época em que os primeiros exploradores chegaram à região (Castello Branco, 1950, p. 9; Tastevin, 2009 [1925], p. 148). Os Paumari são também descritos vestindo roupas já em meados do século XIX, além de possuírem muitos artigos europeus, certamente resultantes das trocas proporcionadas pelo comércio com os brancos (Chandless, 1866; Ehrenreich, 1929). Aparecem, na literatura, como muito pacíficos: “mortes por violência, e mesmo ferimentos ou golpes severos são quase desconhecidos dentre eles” (Chandless, 1866, p. 93 – tradução minha). Já em 1866, trabalhavam na coleta do látex, apesar de “preguiçosamente”, nos termos de Chandless, mas compreendendo seu valor comercial. Faziam parte, inclusive, da tripulação de Chandless (Chandless, 1866, p. 93, 104). O furto se constituía como um dos elementos qualificadores da selvageria. Tastevin estabelecia claramente a diferença ao distinguir o comportamento dos Kaxinawá daquele dos Kulina: O Kachinaua é trabalhador. Os seus campos de milho, de amendoim e de mandioca estendem-se até onde alcança a vista, semeados aqui e ali de tufos de bananeiras e de taiobas. Ele está sempre bem nutrido. Antes da chegada dos civilizados, quando os Kurina o haviam despojado do fruto do seu trabalho, ele passava longos dias de miséria e se via constrangido de mendigar entre seus parentes, que os bandidos haviam poupado (Tastevin, 2009 [1925], p. 166). Os Kulina, exemplo de preguiça em relação ao trabalho e de “turbulência”, em assalto aos Kaxinawá, “tiravam sem piedade tudo o que lhes caísse nas mãos, isto não sem matar os recalcitrantes” (Tastevin, 2009 [1925], p. 147). O furto era, assim, visto como uma prática selvagem que não respeitava as regras do trabalho e da propriedade. Entretanto, em outros momentos, a prática do furto não aparecia como aquela que 53 Entre bravos e mansos diferenciava os índios entre si, mas simplesmente “índios” de “brancos”, aqueles “selvagens”, estes “civilizados”. O fato de que aqueles não consideravam “furto” a retirada de objetos da posse de outros, tanto que o faziam inclusive na presença dos donos, constituía-se em recorrente fonte de desentendimento entre “brancos” e “índios” (Castello Branco, 1950, p. 13). Assim é que Tastevin mostrava seu espanto: Será preciso se espantar agora, depois de todos esses exemplos, que constituem o fundo da doutrina dos Kachinaua, que estes tenham se tornado astutos e ladrões para adquirir os objetos cobiçados que os seringueiros não podiam lhes dar? (Tastevin, 2009 [1925], p. 163). Assim, se em algumas circunstâncias, os grupos indígenas eram diferenciados entre bravos e mansos, em outras, todos eram “selvagens”. De um ponto de vista externo ao dos próprios grupos indígenas, todos os “caboclos” poderiam ser agrupados na categoria de “brabos”. O amansamento – categoria que traduzia o processo de passagem de “brabo” a “manso” – parecia não funcionar muito com os caboclos. O que se pode depreender de assertivas coletadas por Aquino (1977, p. 7576), como as seguintes: “caboclo é bicho desconfiado, caboclo nunca amansa, acostuma” (colonheiro de Feijó); “caboclo é que nem jumento, deixa de ser brabo mas não amansa direito” (seringueiro do rio Envira); ou ainda “eu nunca vi caboclo se perder no meio do mato. Caboclo é meio brabo e meio manso” (regatão do rio Envira). Assim, de um ponto de vista dos colonizadores, podemos concluir que os “bravos” eram aqueles que não se prestavam a um trabalho pacífico e respeitador da propriedade privada de acordo com a lógica ocidental de produtividade. Eles eram associados com imagens ocidentais de selvageria, sendo sobretudo caçadores; andavam nus, valiam-se do furto e da guerra. Por outro lado, os “mansos” eram os “civilizados”, cristianizados, que sabiam trabalhar para os brancos e se vestirem; eram agricultores e pacíficos. Curiosamente, nos tempos atuais, diversos grupos indígenas habitantes da região dos rios Juruá e Purus valem-se das imagens de selvageria e civilização que foram primeiramente utilizadas pelos colonizadores. Os Kanamari, por exemplo, veem-se como mansos e pacíficos em relação aos seus rivais Kulina e Kaxinawá. Afirmam que a iniciativa de se fazer guerra era sempre dos Kaxinawá em relação a eles (cf. Carvalho, 2002, p. 93). Defendem também, no que se refere aos Kulina, que estes têm coragem de matar, enquanto os Kanamari têm apenas a coragem de brigar (Carvalho, 2002, p. 91). Esta auto-imagem kanamari parece ser uma constante em sua 54 Capítulo 1 história, guardando correlatos com a maneira como os Paumari veem a si próprios (ver cap. 3). Já os Kulina, em relação a si mesmos, realizam uma reflexão a respeito da passagem de “bravos” a “mansos”, a qual afirmam ter percorrido: atualmente, dizem ser “mansos”, tendo sido, no passado, “brabos”. Esta passagem opera uma transformação fundamental entre o tempo dos antigos e o tempo atual kulina (ver capítulo 2). Ao apontar para essas coincidências, quero sugerir um processo de confluência entre imagens ocidentais de selvageria e civilização – expresso, por exemplo, na oposição entre “bravos” e “mansos” - e processos de subjetivação e transformação indígenas. Não se trata de abordar questões de perdas ou ganhos culturais, mas de perceber trocas e relações que pautavam processos de transformação em curso. Como afirmou Gow, seguindo Taussig (1987), os discursos coloniais são eles mesmos um “presente de segunda mão” para os colonizados, algo a ser reformulado e remodelado na elaboração de complexos discursos a respeito de identidades locais (Gow, 1993, p. 342). Nos próximos capítulos, teremos a oportunidade de visualizar algumas dessas complexas classificações operadas também por meio dos polos opostos de selvageria e civilização. No capítulo 3, será possível observar como os Paumari colocam-se constantemente em uma posição de presa e vítima nas relações com os “outros” e que esta postura está diretamente associada com a marcante presença dos “patrões” em sua história. Por outro lado, os Kaxiawá afirmam-se como “mansos” no mundo atual e, de sua perspectiva, encontram-se ao meio de um contínuo espacial marcado pelo rio. Pois, “rio abaixo”, na cidade, vivem os Nawa (brancos, estrangeiros) e “rio acima”, nas cabeceiras do rio, vivem os “Brabos”. O espaço da humanidade “própria” ou “verdadeira” é aquele do meio, onde vivem os atualmente “mansos” Kaxinawá. No capítulo 2, que se segue, será abordada a história dos Kulina e Kanamari, grupos que, em determinado momento, estabeleceram um contato próximo entre si. Os Kanamari, como vimos acima, afirmam-se enquanto um povo avesso à guerra, sendo inimigos dos “bravos” (noknim) Kaxinawá (cf. Costa, 2007, p. 233). Os Kulina, de maneira análoga aos Kaxinawá, afirmam-se “mansos” no tempo presente, em contraste com um tempo anterior em que foram “bravos”. A história apresentada neste primeiro capítulo – na qual a presença dos brancos e particularmente da empresa seringalista na região dos rios Juruá e Purus se fez marcante – encontra-se, portanto, diretamente 55 Entre bravos e mansos associada a noções de tempo, espaço e socialidades que serão apresentadas nos próximos capítulos. 56 57 Desenho 2: Defumação da borracha Fonte: Reis, 1953, p. 92. Foto 1: Pelas de borracha Fonte: Reis, 1953, p. 129. Foto 2: Borracha às margens do Guaporé Fonte: Lima, 1973 apud Andrade, 2004, p. 84. 59 Foto 3: Índio kulina coletando látex Fonte: ISA, 2012a; Foto de Heine Herner (1986). ó Histórias kulina e kanamari: seus tempos e espaços de transformação No capítulo anterior, abordei a história da ocupação branca da bacia do JuruáPurus com fins econômicos – sobretudo no que toca à extração do látex – e de como a presença desses novos habitantes esteve relacionada a uma série de transformações na vida dos grupos indígenas da região. Essa narrativa nos servirá como um pano de fundo para os capítulos dois e três: neles, deter-me-ei mais pausadamente sobre cada um dos quatro grupos abordados nessa dissertação, buscando compreender a percepção que eles têm de sua história – como dividem seus tempos; quais as características de cada era; quais aspectos marcam, para os índios, a diferença entre elas. Neste capítulo, realizarei uma análise comparativa dos tempos que marcam as histórias dos Kulina e Kanamari. A escolha destes dois grupos tem como base sua proximidade, a qual permite, como ficará claro a seguir, na ausência de alguns dados, que as histórias de ambos os grupos sejam complementares, em alguma medida, no entendimento que podemos extrair delas. A importância espacial do subgrupo e o caráter fundamental do chefe para a continuidade física, social e territorial do grupo são pontos de contato que aparecem de maneira destacada, como veremos a seguir. Estes aspectos são indicadores importantes das transformações operadas ao longo dos tempos kulina e kanamari, permitindo uma reflexão a respeito da maneira pela qual mudança, espaço e socialidade podem estar articulados. Desse modo, na abordagem desenvolvida no presente capítulo, serão enfatizados aspectos mais propriamente sociológicos que estão implicados em uma concepção histórica específica marcada pela existência de “eras” ou “tempos”. Veremos aqui como cada novo tempo é marcado por mudanças espaciais significativas e pela emergência de uma nova possibilidade de existência. 61 Histórias kulina e kanamari Vizinhança ambígua As relações de convivência entre os Kulina e Kanamari foram historicamente registradas pelos seus caracteres de proximidade, ambiguidade e rivalidade. Tastevin (1919), em viagens realizadas pelo Juruá, nos anos de 1908 a 1914, observou que os Kanamari que habitavam a margem direita do Juruá eram antigos inimigos dos Kulina, moradores, naquela época, do interior da floresta, entre as cabeceiras do rio Tapauá (bacia do Purus) e o rio Juruá. Os Kulina seriam protegidos contra os Kanamari dos rios Tefé e Juruá pelo “digno e generoso” coronel Contreiras, proprietário de diversos seringais da margem direita do Juruá e de outras localidades (Tastevin, 1919, p. 146, 148). Em publicação posterior, Tastevin (2009 [1925], p. 148) nos remonta a uma relação muito estreita e notória que se estabelecia entre esses dois grupos. Segundo ele, “os Kurina se agarra[vam] a eles [aos Kanamari] como a uma presa valiosa”. Em todo lugar, eram encontrados “em contato e em luta: no Baixo e no Médio Juruá; no Baixo Tarauacá; no Gregório e no Eru”, sendo que os Kulina já haviam praticamente desalojado os Kanamari da margem direita do Juruá. Tastevin inclusive sugere a antiguidade das relações entre esses Kanamari da margem direita do Juruá e os Kulina (autodenominados Madiha), indicando que o próprio nome “Kanamari” atribuído aos autodenominados Binh dyapá (mutuns), Putchu dyapá (japós) etc. – subgrupos kanamari, como veremos adiante – seria uma junção de duas palavras heteróclitas, uma de origem katukina e outra de origem kulina. A primeira kana que significava “arara azul” e a segunda mari, madi ou madiha, significando “os homens”. Do que se conclui que o título “Kanamari” seria uma nomeação kulina atribuída aos seus vizinhos históricos. Tal vizinhança, proximidade e rivalidade ainda se faz presente entre esses grupos, bem como podem ser observadas entre eles diversas práticas e mitos semelhantes. Dentre as práticas comuns, apenas para fornecer alguns exemplos, poderia citar a) a utilização do veneno do sapo kampô como substância curativa e b) a concepção do enfeitiçamento por meio da inserção de projéteis-pedra no corpo da vítima. Tanto os Kulina como os Kanamari, ao aquecerem o sapo kampô vivo, retiram dele uma substância viscosa, que é liberada de sua pele e guardada. Tal substância é utilizada em pequenas cicatrizes produzidas sobre o corpo de uma pessoa que, geralmente, está com azar na caça. Acredita-se que sua má sorte (“panema”) seja resultante de um princípio ruim que se apoderou de seu corpo, devendo ser retirado 62 Capítulo 2 por meio do referido procedimento curativo (Cf. Tastevin, 2009 [1925], p. 157-158; Pollock, 1985, p. 49-50). Já no que se refere aos casos de enfeitiçamento, tanto os Kulina como os Kanamari o concebem como um processo em que o feiticeiro lança projéteis que se concretizam em “pedras” no corpo da vítima. Estas devem ser retiradas pelo xamã, o qual se vale do rapé como uma substância fundamental no procedimento de cura (cf. Tastevin, 1919, p. 150; Pollock, 1985). Tais práticas podem também ser observadas em outros povos da região de maneira mais difundida, constituindo-se enquanto elementos na constituição de um sistema regional (cf. Tastevin, 2009 [1925], p. 157-158; Martins, 2006; Lagrou, 2007, p. 525-527, para a utilização do veneno do sapo e cf. Melatti, 2011, p. 4-5, para a prática xamânica). Entretanto, outras características aproximam os Kulina e os Kanamari especificamente: refiro-me às inúmeras semelhanças na organização social em subgrupos desses dois povos; à enorme proximidade entre as histórias de criação narradas tanto pelos Kulina como pelos Kanamari - nelas, são os mesmos heróis Tamaco e Quira que dão origem ao mundo; e aos empréstimos linguísticos que foram efetuados ao longo da história, como é o caso dos próprios nomes dos heróis criadores. Os dois primeiros pontos de aproximação – os subgrupos e os complexos míticos de origem do mundo - serão abordados ao longo deste capítulo mais detidamente. Como observou Costa (2007, p. 92): os dois povos são muito similares e sua história revela períodos de contato intenso, embora ambivalente. [...] os Kanamari consideram os subgrupos dos Kulina perfeitamente análogos aos deles, mas a similaridade entre os dois povos não se resume a isso. Os Kulina parecem ter aprendido a consumir caiçuma fermentada dos Kanamari (Lorrain 1994, 132-3), chamando-a de coidsa, termo provavelmente derivado da palavra Kanamari para caiçuma, koya. Os Kulina chamam um ritual notavelmente similar ao Hori por esse termo, „Coidsa’ (ibid., 53-72) [ver sobre esses rituais adiante], e outros rituais Kulina também são comparáveis, quando não congruentes, àqueles dos Kanamari. Ambos compartilham um complexo xamânico idêntico, e os Kanamari admiram os xamãs Kulina ao mesmo tempo que os temem como feiticeiros. Isso cria uma situação em que alguns Kanamari costumavam buscar tratamento entre os xamãs Kulina, mas em que as acusações de feitiçaria quase sempre se viravam contra eles. Os feiticeiros Kulina eram particularmente habilidosos ao aproximaremse das aldeias Kanamari para provocar danos inserindo projéteis xamânicos nas pessoas, e até hoje os Kulina são sempre os suspeitos principais quando a feitiçaria ameaça os Kanamari. Ainda hoje, as relações dos Kanamari com os Kulina parecem constituir um caso particular de “amor e ódio”, de atração entre opostos mutuamente alimentada; 63 Histórias kulina e kanamari pelo menos, é como “opostos” que os Kanamari dizem visualizar os Kulina (Carvalho, 2002, p.91). Eles consideram os Kulina traiçoeiros e avaros, ao passo que os Kulina consideram os Kanamari toscos e iletrados (Costa, 2007, p. 93; Lorrain, 1994, p. 133 apud Costa, 2007, p. 93)1. Do que se depreende do relato de Carvalho (2002, p. 91) sobre a relação entre esses grupos indígenas há, de fato e permanentemente, uma tensão entre proximidade e rivalidade, desconfiança e respeito. À distância, os Kanamari recobrem os Kulina de atributos negativos, tais quais “bicho bruto”, “atrapalhação do Amazonas”, ressaltando o caráter traiçoeiro dos Kulina. De um ponto de vista kanamari, os Kulina agiram de modo traiçoeiro nos diversos confrontos que tiveram entre si, ao passo que os Kanamari seriam valentes, pois “os Kulina têm coragem de matar e os Kanamari têm coragem de brigar”. Mas, há também situações de convivência entre eles. Em presença, nota-se certa neutralização ou contenção de hostilidade, que um observador externo pode interpretar como resultado da presença de “algum temor difuso e generalizado”, “de uma estratégia interacional ditada pelas circunstâncias, [...] uma cumplicidade disfarçada” ou ainda como “uma emulação de oponentes dentro de um mesmo campo de ação cultural” (Carvalho, 2002, p. 91). A mesma relação de proximidade e desconfiança é expressa nos intercasamentos, os quais são mal vistos pelos Kanamari. Aliás, segundo um homem kanamari, “Kanamari nunca deu mulher pra casar com Kulina” e vice-versa (Carvalho, 2002, p. 91, grifos da autora). Entretanto, é observada a ocorrência de casamentos entre pessoas desses dois grupos, conforme relato deste mesmo homem, o qual contou a Carvalho (2002, p. 91) o caso de uma cunhada sua que foi casada com um Kulina, mas sem aprovação dos parentes. Ela teria fugido para viver entre os Kulina por um período de dois anos, quando voltara de lá “toda retalhada”, vítima de esfaqueamento de seu marido, movido pelos ciúmes que sentira dos irmãos da esposa. Ela não ouvira os conselhos de seus parentes, os quais lhe alertaram para o fato de que os Kulina eram “malvados” e não se davam com os Kanamari. Apesar deste desfecho que confirmava a opinião dos Kanamari sobre o caráter traiçoeiro dos Kulina, o interlocutor de Carvalho fez-lhe a ressalva de que esses grupos indígenas nunca gostaram de brigar Isso não impede, entretanto, que até os dias atuais Kanamari e Kulina se encontrem ocasionalmente e realizem rituais conjuntamente (Costa, 2007, p. 93). 1 64 Capítulo 2 “no chumbo, na flecha”, e que eles se respeitavam mutuamente (Carvalho, 2002, p. 91)2. A relação entre esses grupos envolveu, no passado, parcerias em lutas contra os Kaxinawá, grandes inimigos de ambos (cf. Carvalho, 2002; Costa, 2007; Tastevin, 2009 [1925], p. 142, 147). Entre os Kanamari, por exemplo, se a memória a respeito dos Kulina reflete a ambiguidade entre convivência pacífica e rivalidade, as lembranças que eles apresentam dos Kaxinawá são repletas de belicosidade (Carvalho, 2002, p. 92). Um relato de guerra dos Kanamari do Juruá retrata a ocorrência de inúmeros falecimentos de pessoas desse grupo, ao serem atacadas com arco e flecha pelos Kaxinawá. Os Kaxinawá eram “grandes e fortes” a partir da perspectiva kanamari, de modo que era exigido grande esforço no contra-ataque. Os Kulina, vizinhos, também deveriam ter sofrido ataques e, juntando-se aos Kanamari, formaram uma frente e derrotaram os Kaxinawá. Estes seriam os Kaxinawá que atualmente habitam as cabeceiras do Purus3, segundo o relato, sendo atualmente “mansos” – não matando mais ninguém. Tal ação defensiva parece ter se constituído em uma tentativa de barrar o avanço dos grupos falantes de língua Pano sobre uma área tradicionalmente ocupada por índios falantes de língua Katukina e Arawá (Carvalho, 2002, p. 92). Os Kulina, por sua vez, consideram os Kaxinawá comedores de carne humana e, assim, qualificamnos negativamente como selvagens e de mau-odor (Pollock, 1985, p. 182). Estas são maneiras de qualificar os Kaxinawá, as quais expressam o lugar de alteridade e rivalidade que, para os Kulina e Kanamari, eles ocupam. Este triângulo em que os Kulina e Kanamari aparecem como próximos enquanto os Kaxinawá são vistos como o “outro” distante e inimigo ficará explícito no mito de criação dos Kanamari, que será abordado adiante. Costa (2007, p. 138) também se refere a um caso de casamento entre esses grupos, mas neste caso é um homem kanamari que contrai casamento com uma mulher kulina. O caso também não acaba bem, com a morte do marido supostamente decorrente de feitiço realizado pelos parentes kulina da esposa. 3 O relato reportado por Carvalho (2002, p. 92) localiza esses Kaxinawá nas cabeceiras do Purus. Entretanto, Carvalho supõe que os Kaxinawá com os quais os Kanamari estavam em contato são os que atualmente estão estabelecidos no Tarauacá e Envira, afluentes do Juruá, mas a autora não explica os motivos de sua suposição (2002, p. 92). 2 65 Histórias kulina e kanamari Tempos-espaços kulina4 Do Tarauacá ao Purus: caminhos kulina Os Kulina, atualmente, ocupam um vasto e descontínuo território entre as bacias dos rios Juruá e Purus na Amazônia Ocidental brasileira (estados do Acre e do Amazonas) e peruana (Altmann, 2000)5. Sua localização atual é retrato de uma dispersão histórica a qual está diretamente relacionada com a ocupação branca mais intensiva das bacias do Juruá e Purus, sobretudo brasileira e peruana, realizada a partir de meados do século XIX, quando se tem notícias dos primeiros exploradores da borracha e do caucho na região (cf. cap. 1). Atualmente, apenas no que se refere a Terras Indígenas (TI’s) homologadas, habitam: KL1) a TI Alto Rio Purus, compartilhada com os Kaxinawá e Yaminawa; KL2) a TI Cacau do Tarauacá, no rio Tarauacá (bacia do Juruá); KL3) a TI Deni, nos rios Xeruã (afluente do Juruá) e Tapauá (afluente do Purus), compartilhada com os Deni; KL4) a TI Jaminawa/Envira, no rio Envira (bacia do Juruá), compartilhada com os Ashaninka; KL5) a TI Kaxinawa do rio Humaitá, no rio Humaitá (bacia do Juruá), compartilhada com os Kaxinawá, Ashaninka e índios isolados; KL6) a TI Kulina do Igarapé do Pau, no Igarapé do Pau (bacia do Juruá); KL7) a TI Kulina do Médio Juruá; KL8) a TI Kulina do Rio Envira; e KL9) a TI Kumaru do Lago Ualá, no Baixo Juruá, junto a seu encontro com o Solimões (ISA, 2012b) – ver mapa 3. No passado, de acordo com os primeiros registros escritos, os Kulina habitavam o rio Xeruã – afluente direito do Juruá que se aproxima das cabeceiras do rio Tapauá na bacia do Purus – e o Tarauacá (outro afluente do Juruá), provavelmente se estendendo a uma longa distância na direção sudoeste ao longo deste rio (Chandless, 1869, p. 300; cf. também Rivet; Tastevin, 1921, p. 462). A presença dos Kulina na bacia do Tarauacá em fins do século XIX é igualmente reportada por Tastevin (2009 [1925]). Segundo ele, os vários “clãs” kulina ocupavam a margem esquerda do Muru e a margem direita do Alto Tarauacá no momento da invasão dos seringueiros em 1890. Eles eram, então, “os donos incontestes da margem esquerda do Muru” (Tastevin, 2009 [1925], p. 136, 147). Estavam presentes também no Envira, outro afluente do Tarauacá (Bates, 1892, p. 370 Para facilitar a leitura, elaborei quadros-resumo dos tempos dos quatro grupos abordados na dissertação (ver anexo 4). 5 A população kulina é estimada em 5.558 pessoas no Brasil e 417 no Peru (Funasa, 2010; INEI, 2007 apud ISA, 2012a). 4 66 Mapa 3: Localização das Terras Indígenas 67 Elaboração: Eduardo Nunes / Fonte: IBGE;ISA Histórias kulina e kanamari Legenda Mapa 3: Localização das Terras Indígenas KL – Kulina KN – Kanamari PA – Paumari KX – Kaxinawá KL1 – T. I. Alto Rio Purus, KX1 – T. I. Alto Purus, KN1 – T. I. Kanamari do Rio PA1 – T. I. Caititu compartilhada com os compartilhada com os Juruá Kaxinawá Kulina KL2 – T. I. Cacau do Tarauacá KN2 – T. I. Mawetek PA2 – T. I. Paumari do Cuniuá KX2 – T. I. Igarapé do Caucho PA3 – T. I. Paumari do Lago KL3 – T. I. Deni KN3 – T. I. Vale do Javari KX3 – T. I. Katukina/Kaxinawa Marahã KX4 – T. I. Kaxinawa da Colônia KL4 – T. I. Jaminawa/Envira KN4 – T. I. Maraã/Urubaxi PA4 – T. I. do Lago Paricá Vinte e Sete KL5 – T. I. Kaxinawa do rio PA5 – T. I. Paumari do Lago KX5 – T. I. Kaxinawa Nova Humaitá, compartilhada KN5 – T. I. Paraná do Paricá Manissuã Olinda com os Kaxinawá KL6 – T. I. Kulina do Igarapé do KX6 – T. I. Kaxinawa Praia do KN6 – T. I. Patauá PA6 – T. I. Paumari do rio Ituxi Pau Carapanã KX7 – T. I. Kaxinawa Seringal KL7 – T. I. Kulina do Médio Juruá Independência KX8 – T. I. Kaxinawa do baixo KL8 – T. I. Kulina do Rio Envira Jordão KX9 – T. I. Kaxinawa do rio KL9 – T. I. Kumaru do Lago Ualá Jordão KX10 – T.I. Kaxinawa/Ashaninka do rio Breu KX11 – T. I. Kaxinawa do rio Humaitá, compartilhada com os Kulina 68 Capítulo 2 apud Rivet; Tastevin, 1921, p. 462). A população kulina se estendia, desse modo, por grande parte da bacia do Tarauacá – ver mapa 1. Posteriormente, entre as duas primeiras décadas do século XX, os dois agrupamentos kulina encontrados continuavam a concentrar-se em afluentes da margem direita do Juruá. O primeiro deles, menos numeroso, vivia ao longo do rio Marary6 (afluente do Juruá) e das cabeceiras do Tapauá (afluente do Purus). Era este o local, mencionado no início deste capítulo, em que os Kulina se encontravam em intenso conflito com os Kanamari e eram protegidos pelo já mencionado coronel Contreiras (Rivet; Tastevin, 1921, p. 462; cf. também Tastevin, 1919, p. 146). O segundo grupo, por sua vez, incluía numerosos “clãs” vivendo entre o rio Eru e o Gregório, de um lado, e entre o Envira e o Tarauacá, de outro (Rivet; Tastevin, 1921, p. 462-3; Métraux, 1948, p. 660-661). Neste momento, o Muru não era mais o rio dos Kulina, como antes, mas “sobretudo o rio dos Kachinaua”, assim como, então, o Eiru passou a ser o rio dos Kulina e o Juruá era o rio dos Kanamari (Tastevin, 2009 [1925], p. 158). Este segundo grupo kulina, mais numeroso, localizado entre o Eiru e o Gregório, de um lado, e o Envira e Tarauacá, de outro, seria provavelmente composto de representantes daquele grupo localizado inicialmente por Chandless (1869, p. 300) na bacia do Tarauacá. Estes se teriam deslocado para a direção oeste a fim de se instalar na outra margem do Taraucá e do Envira, seja para fugir do contato com os Jamamadi ou em decorrência de contatos violentos com os brancos que chegavam para trabalhar na seringa (Rivet; Tastevin, 1921, p. 463). Observamos, desse modo, que as principais referências aos grupos kulina os localizavam, de maneira geral, na bacia do Juruá, no período entre fins do século XIX e inicio do século XX. Aparecem na literatura, entretanto, rápidas referências à presença de um grupo kulina no igarapé Santa Rosa no alto Purus aparentemente na primeira década do século XX, mas nenhuma informação adicional é fornecida sobre os mesmos (cf. Rivet; Tastevin, 1921, p. 463; Métraux, 1948, p. 661). A presença de um grupo kulina no Santa Rosa não é de espantar, podendo, aliás, ser interpretada como continuidade da ocupação do Envira, tendo em vista a enorme proximidade entre esses. Em publicação datada de 1939, o coronel Lima Figueiredo fez nova referência a grupos No mapa atual da região não encontramos o rio Marary a que Rivet & Tastevin (1921) fazem referência (cf. IBGE, 2012). Entretanto, no mapa fornecido por Chandless (1869), é possível identificar o lago Marary na região de lagos que se situa abaixo do rio Xeruã (margem direita do Juruá). Suponho que, pela localização próxima às cabeceiras do Tapauá, era a este lago Marary que Rivet &Tastevin (1921) referiamse, localizado na margem direita do Juruá, nas proximidades do lago Juburi/Jubary, equivalendo provavelmente ao atual lago Água Preta (cf. Chandless, 1869; IBGE, 2012). 6 69 Histórias kulina e kanamari kulina nas margens do Purus, próximas ao Santa Rosa (Castello Branco, 1950, p. 27-28). Em 1938, também Rivet e Tastevin (1938, p. 74) mencionaram grupos kulina no Purus e afirmaram que corresponderiam, ao menos parcialmente, a grupos anteriormente localizados nos altos Muru e Envira, além daqueles situados no Santa Rosa. O estabelecimendo dos Kulina no Alto Purus7 certamente não implicou em um apartamento em relação àqueles que permaneceram no Juruá. Como notado por Chiara & Schultz (1955, p. 194-5), na década de 1950, existia grande mobilidade entre os índios situados na bacia do Purus e os que estavam no Alto Juruá, principalmente nos afluentes Envira e Tarauacá. Esses grupos atravessavam todos os anos as matas pelos varadouros, durante dez dias ou mais, para visitas recíprocas. Nas décadas de 1970 e 1980, as relações ainda existiam. Viveiros de Castro, nos anos 1970, notou serem as populações das aldeias que visitou no Alto Purus bastante variáveis devido à grande circulação de pessoas não apenas naquela região, mas também no Envira e Tarauacá (1978, p. 13 e 15). E, na década de 1980, Pollock (1985, p. 58) observou um grande número de visitantes na aldeia de Maronaua no Alto Purus vindos da aldeia de São Bernando (Purus peruano) e também do rio Envira. Os Kulina que hoje habitam a região do Alto Purus, cuja história abordarei neste capítulo, confirmam os dados escritos a respeito de sua procedência: afirmam terem se deslocado da região do rio Tarauacá – ou simplesmente “do Juruá” (Viveiros de Castro, 1978, p. 15) – para o Alto Purus e o rio Chandless, seu afluente, acossados pelos exploradores da borracha e do caucho (Altmann, 2000, p. 34-35). Eles afirmam que, em tempos antigos, vieram do Juruá, subindo os afluentes da parte alta deste rio. “Fugindo dos seringueiros”, “buscavam o alto curso dos rios” em fins do século XIX (Viveiros de Castro, 1978, p. 15). Segundo relatam, saíram do Tarauacá e, seguindo pelo Envira, chegaram ao Purus, onde inicialmente viveram espalhados em pequenos núcleos (Altmann, 2000, p. 35). Hoje, os Kulina que vivem no Alto Purus estão organizados em aldeias, sendo as mais antigas constituídas no lado peruano deste rio. A primeira delas, São Bernardo, foi criada pela iniciativa de missionários do Summer Institute of Linguistics (SIL) nos anos 1950. Os aldeamentos do lado brasileiro tiveram origem também por iniciativa missionária, mas vinte anos depois, na década de 1970 (cf. Viveiros de Castro, 1978; Pollock, 1985, p. 32). Quando o antropólogo Donald Pollock esteve na região, no início O Alto Purus equivale ao trecho deste rio considerado a partir da foz do rio Acre, em território brasileiro e peruano (Chiara; Schultz, 1955, p. 181). 7 70 Capítulo 2 da década de 1980, existiam quatro aldeias no total, São Bernado e Zapote no Peru e Maronaua e Santo Amaro no Brasil (ver mapa 4)8. Mapa 4: Aldeias kulina no alto Purus Fonte: Pollock, 1985, p. 31. Este percurso, que conduziu tais grupos kulina do Juruá ao Purus, culminando com a organização em aldeias principiadas por iniciativa missionária9 em um espaço 8 Atualmente, existe, pelo menos, outra aldeia chamada “Santa Júlia”, onde esteve o antropólogo Domingos Silva (1997) em 1996, mas não tive acesso a dados mais recentes a respeito da constituição ou dissolução de aldeias. 71 Histórias kulina e kanamari que posteriormente viria a se tornar uma Terra Indígena10, está relacionado com um escopo maior de migrações dos Kulina, as quais se vinculam diretamente à chegada dos brancos (cariús) no território onde se em encontravam. Os tempos kulina, como mostrarei a seguir, tematizam as inúmeras transformações ocasionadas pelo engajamento deste grupo indígena no trabalho nos seringais que, a partir de fins do século XIX, tornaram-se abundantes na região dos rios Juruá e Purus. Os Kulina do Alto Purus: seu tempo atual A história kulina é marcada, fundamentalmente, por dois tempos ou eras. O primeiro é o tempo passado em que viviam seus pais e avós, denominado ididenicca, “tempo de nossos avós”, sendo também muitas vezes referido pelo advérbio maittaccadsama, termo que pode ser traduzido por “há muito tempo”, “antigamente”. O segundo é seu tempo atual, sendo referido pelo advérbio jidapana, que indica “hoje”, “atualmente”, “agora” (cf. Altmann, 2000, p. 47; Monserrat; Silva, 1984). Este tempo não recebe um nome específico, sugerindo a ideia de movimento, de um era não acabada, que ainda está acontecendo. Nas palavras kulina que indicam variados modos de estar na duração, fica bastante clara a ligação próxima entre o tempo e o espaço, uma vez que, de modo geral, os termos que se referem à temporalidade são compostos pelo radical dsama, que significa “terra”, “território”, “mata”, “floresta”, “selva”. Assim, a título de exemplificação, dsamassa pode significar “manhã” ou ainda “amanhã”, maittadsama indica “ontem”, maittaccadsama indica “há muito tempo”, majidsama significa “todo o dia” ou “diariamente”, e ojidsama significa “devagar”, “lentamente” (Altmann, 2000, p. 46; Monserrat; Silva, 1984). A relação entre o espaço e o tempo não se observa apenas na língua, mas também compõe diferenças importantes entre os dois tempos kulina. Ididenicca, o tempo dos antigos e o tempo atual, são encarados pelos Kulina de modo descontínuo, sendo que a ruptura central entre eles está associada diretamente à inserção desse grupo no sistema extrativista da borracha. Eles, assim, refletem dois modos de vida distintos: o Essas aldeias que tiveram sua criação impulsionada pela iniciativa missionária diferem das aldeias kulina das décadas anteriores, por serem mais estáveis e maiores. Elas se inserem em um contexto histórico diferente do anterior, que havia sido radicalmente marcado pelas condições de vida e residência dependentes do trabalho nos seringais. 10 A Terra Indígena Alto Purus foi demarcada no ano de 1995 e homologada em 1996 (Aquino; Iglesias, 2006). 9 72 Capítulo 2 tempo-espaço do centro da mata, identificado como o tempo dos antigos, e o da margem do rio, o tempo atual (Altmann, 2000, p. 47-48). Tal mudança pode ser observada em alguns relatos, como o de Mara Kulina11: “Quando madija era brabo, morava no centro da mata, depois quando ficou manso, veio para a beira do rio, trabalhar para o patrão”. Este relato nos remete a uma dualidade espaço-temporal marcada por diferentes modos de vida. Antigamente, os Kulina habitavam o centro da mata e viviam de acordo com um ciclo específico de festas, agricultura, caça e pesca. Tratavase de um tempo em que os velhos contavam as histórias antigas e em que os Kulina habitavam uma moradia específica, a odsa beje - grande maloca de palha12. Esta era igualmente a época em que os Kulina eram “brabos”. Já nos tempos atuais, “amansados”, transformaram seu modo de vida, trabalharam nos seringais, adquiriram produtos manufaturados, aprenderam a ler, conheceram o dinheiro e deixaram de morar em sua antiga habitação, passando a residir em casas pequenas, construídas sobre pilotis, nos moldes regionais das habitações dos seringueiros (Altmann, 2000, p. 48-50; Silva, 1997, p. 17). Quando Harald Schultz e Vilma Chiara (1955) estiveram no Alto Purus nos anos de 1950 e 1951, identificaram os índios “Kurina”, “Korina” ou “Kolina” (atualmente “Kulina”) e os “Tukurina”13. Na época, Schultz e Chiara interpretaram os Kurina e Tukurina como sendo grupos distintos. Posteriormente, entretanto, em sua viagem ao Alto Purus em 1978, Viveiros de Castro (1978, p. 15) mostrou como a distinção entre Kulina e Tukurina era problemática, pois além do fato de que esses nomes não se referirem a uma autodenominação, os Kulina, naquele contexto, identificaram os Tukurina como sendo um dos madihá kulina - os “dzutmí madihá” (“nação dos quatis”), que predominavam no Zapote, Peru. Como veremos mais detalhadamente adiante, os denominados por outros de “Kulina”, autodenominam-se Madihá, que significa genericamente “gente”, “povo”, “nação” (Altmann, 2000, p. 10; Viveiros de Castro, 1978, p. 18). Os Kurina e Tukurina com os quais Schultz e Chiara estiveram em contato – os quais adiante passarei a denominar simplesmente “Kulina” – dividiam-se em diversos grupos que habitavam: 1) os seringais Fronteira do Cassianã e Terra Alta, próximos à Registrada por Nelson Deicke (1990 apud Altmann, 2000, p. 37). Casa coletiva toda coberta de palha até o chão e com apenas duas aberturas na forma de porta na frente e atrás (Altmann, 2000, p. 48, nota 7). 13 No Alto Purus, também encontraram os “Apurinã”, “Jamamadi”, “Katiana”, “Marináua”, “Charanáua”, “Kachináua”, “Jamináua” e “Kustanáua”. 11 12 73 Histórias kulina e kanamari foz do rio Chandless (em torno de 20 pessoas); 2) o seringal Tabajara também no rio Chandless (entre 30 e 40 pessoas); 3) o igarapé Santa Rosa14 e uma pequena localidade chamada Cataya na margem direita do Purus em terras peruanas; 4) e um barranco alto da margem direita do igarapé Cuchichá, afluente esquerdo do Chandless - estes eram os Tukurina, na época, “a tribo mais numerosa do alto Purus”15 (Chiara; Schultz, 1955, p. 183-184). O grupo que residia e trabalhava nos seringais Fronteira do Cassianã e Terra Alta estava passando por uma fase de reestruturação social em decorrência de uma recente epidemia de sarampo, que havia reduzido o grupo a quase metade de sua população. Inclusive seu chefe havia falecido, razão pela qual decidiram abandonar a aldeia e roças, passando a viver em papiris – habitações de simples postes e vigas, cobertas de ralas folhas de palmeira – construídos em plena mata, não muito distante do Purus (Chiara; Schultz, 1955, p. 183). O abandono de aldeia em decorrência da morte do chefe político ou xamã ainda se constitui como uma prática kulina. Mas, no caso de morte de outras pessoas, apenas os familiares mais próximos costumam se mudar. As mortes causadas por epidemias, acentuadas no período imediato após o contato com os brancos, constituíram-se como um fator de grande mobilidade. Nestes casos, os Kulina sempre abandonaram coletivamente as localidades onde se encontravam (Altmann, 2000, p. 40-41). Esse grupo passou por um período de fome, valendo-se do saque de outras roças como fonte de alimentos. Como muitas famílias haviam sido esfaceladas, notavase uma tentativa de formar novas unidades familiares com os membros que restaram. Esses Kulina planejavam constituir uma nova aldeia e novos roçados do outro lado do rio (Chiara; Schultz, 1955, p. 184). Aqueles que viviam no seringal Tabajara (grupo 2) trabalhavam tanto na extração da borracha como na lavoura do proprietário do seringal ou ainda em serviços de bordo de seu barco a motor. Apenas um dos grupos mencionados, o que habitava o igarapé Santa Rosa (grupo 3) - somente atingível na época da cheia - parecia manter maior independência econômica em relação aos brancos (Chiara; Schultz, 1955, p. 184). Os Kulina que estavam naquele momento situados em um barranco alto na margem do igarapé Cuchichá (grupo 4), em um local de difícil acesso, haviam se mudado para lá há alguns anos, quando abandonaram a aldeia que habitavam 14 15 Que atualmente faz parte da delimitação da fronteira entre o Brasil e o Peru (ver mapas 1 e 2). Infelizmente os autores não fornecem números. 74 Capítulo 2 anteriormente, perto do seringal Carolina, e dirigiram-se para o “centro das matas” local em que agora se encontravam -, após o falecimento do antigo dono do seringal, “a quem muito estimavam” (Chiara; Schultz, 1955, p. 185). O fato de abandonarem sua antiga aldeia e retirarem-se para o interior da mata em decorrência da morte do patrão estimado sugere uma associação de sua figura a de um chefe. A associação entre a chefia e a patronagem não é de se estranhar quando consideramos a desestruturação social pela qual passaram os Kulina em diversas circunstâncias nas situações de contato com os brancos. Adiante, veremos o caso de um dos subgrupos kanamari que, em determinada circunstância de sua história, em um momento crítico de ausência de chefia, decidiram ter um chefe branco. O tipo de relação estabelecida entre patrões e empregados neste contexto seringalista foi marcante nos relacionamentos que os Kulina vieram a estabelecer com outros brancos. Bonilla (2007, p. 13) observou atitude semelhante entre os Paumari a qual foi interpretada como uma “comercialização das relações”, uma vez que estes índios entendiam seus pedidos como ordens, colocavam-se constantemente em uma posição de vítima e encaravam inúmeras relações sociais em termos comerciais (ver cap. 1 e cap. 3). De maneira semelhante, Chiara e Schultz (1955, p. 187), em seu encontro com os Kulina, relataram ser difícil conseguir com que os últimos compreendessem que não tinham a intenção de comprar borracha, e sim, a de participar de sua vida e obter objetos etnográficos: “insistiam em querer trocar caucho por tecidos para mosquiteiros, roupas, armas e munições, ferramentas, bijuteria e perfumaria”. A dependência dos produtos industrializados era enorme, obrigando os Kulina a trabalharem demasiadamente na seringa para poderem adquirir as mercadorias de que necessitavam - ainda que eles nunca tenham deixado de manter roçados, frequentemente interrompendo a extração do látex a fim de caçar ou trabalhar na lavoura. Entretanto, apesar de a troca por mercadorias industrializadas constituir uma faceta fundamental e marcante de suas vidas, os Kulina não sabiam avaliar o seu próprio produto e o que desejavam obter em troca. Eles não sabiam, ao certo, se eram vítimas de exploração e, muitas vezes, chegavam a culpar o comprador de fraude quando eram tratados com honestidade ou, ao contrário, acreditavam estar realizando uma troca justa quando, na verdade, estavam sendo ludibriados (Chiara; Schultz, 1955, p. 187-188). A esperança de que a educação proporcionada por uma escola poderia auxiliálos nas relações com os brancos foi um dos motivos para a reunião de alguns Kulina na 75 Histórias kulina e kanamari aldeia de Maronaua. A população inicial desta aldeia uniu-se no princípio da década de 1970, quando o padre Paulino, da cidade de Sena Madureira, construiu uma escola na localidade. A oportunidade de estudar e também de trabalhar no seringal Sobral, que era próximo dali, atraiu muitas famílias, principalmente a de Miguel/Mai (70)16. Eles foram os sobreviventes do grupo dizimado pelo sarampo no princípio da década de 1950, mencionado acima. Mai e sua família abandonaram o local que habitavam anteriormente, pois seu pai, o antigo chefe da aldeia, havia falecido em decorrência de feitiçaria realizada contra ele. A existência de uma escola era atrativa para esses Kulina, os quais acreditavam que a educação por ela proporcionada ajudá-los-ia a lidar com os brasileiros da área. Eles mantinham relações com os Kulina de São Bernardo (Peru) e sabiam dos bons resultados do processo de alfabetização na língua espanhola que vinha sendo lá realizado pelos missionários do SIL. Além disso, o proprietário do Sobral era considerado um “bom patrão”, usando seu avião para levar pessoas doentes à capital Rio Branco a fim de obterem cuidados médicos (Pollock, 1985, p. 39-40). Em 1978, quando Viveiros de Castro esteve no Alto Purus, encontrou uma população indígena predominantemente kulina, tal qual fora observado quase 30 anos antes por Chiara & Schutz (1955). Os grandes núcleos kulina situados entre a boca do rio Chandless e a localidade de São Bernardo, no Peru, eram: a) Santo Amaro, às margens do Purus e próximo à boca do Chandless, com 159 indivíduos; b) Tavaré, em uma “volta grande” do Purus, entre os igarapés Moças e Camarão, com 23 indivíduos; c) Maronaua, na margem direita do Purus, cerca de meia hora acima do seringal Sobral, com 178 indivíduos; d) São Bernardo, no Peru, com aproximadamente 250 Kulina; e e) Zapote, no Peru, com aproximadamente 60 Kulina17 (Viveiros de Castro, 1978, p. 13). Neste momento, como se pode observar, os aldeamentos kulina contavam com um maior número de residentes do que as localidades que habitavam na década de 1950, sugerindo uma menor dispersão do grupo. Ao que tudo indica, esses movimentos foram motivados tanto pela atividade missionária e suas escolas, como pelas possibilidades de trabalho. O padre Paulino afirmara a Viveiros de Castro que muitos Kulina habitantes anteriormente do Brasil mudaram-se para o Peru atraídos Os números que se seguem aos nomes de pessoas fazem referência à identificação dos mesmos, presente no censo realizado por Pollock (1985) na aldeia de Maronaua nos anos de 1981/1982 (ver anexo 1). 17 O cálculo do número de indivíduos mostrava-se bastante variável devido à grande circulação de pessoas não apenas no Purus, mas também no Envira e Tarauacá, conforme mencionado anteriormente neste capítulo (Cf. Viveiros de Castro, 1978, p. 13, 15). As informações sobre o cálculo da população kulina no Peru foram fornecidas por Schwade (1976 apud Viveiros de Castro, 1978, p. 13). 16 76 Capítulo 2 pela atividade missionária do SIL, a qual funcionava desde o início da década de 1950. A escola da missão, instalada em São Bernardo, parecia ser a principal motivação (Viveiros de Castro, 1978, p. 16). Não é referida a data em que ocorreram essas mudanças para o Peru, mas calculo que teriam acontecido no decorrer da década de 1950 e princípio da década de 1960, pois, a partir de 1968, aproximadamente, há um movimento migratório contrário originário do Peru em direção ao Brasil. As motivações fornecidas para tal diziam respeito à falta de “serviço” no Peru, pois, lá, pouco caucho restava, o comércio de peles era rigorosamente proibido e o cedro e mogno começavam a escassear. Os aldeamentos criados com o apoio do Pe. Paulino, assim como as escolas erguidas, foram também atrativos para os Kulina (Viveiros de Castro, 1978, p. 16). Entretanto, pouco tempo depois, já em 1977, a Funai expulsou os missionários das aldeias no Brasil, sem, entretanto, se fazer presente, fato que desagradou os Kulina. Assim assinalou o antropólogo Cruvinel, para o caso específico da aldeia de Santo Amaro no “Relatório sobre Levantamento de Áreas Indígenas nas Bacias dos rios Purus e Iaco”: O relacionamento com os missionários foi interrompido há alguns meses, sendo os missionários ao que notamos, aceitos e até desejados pelos índios. É de se esclarecer que a não ação efetiva da FUNAI e a interrupção do relacionamento missionário deixaram os índios sem a quem apelar. Ainda que prejudicial em muitos casos, a exemplo da intromissão na estrutura política e religiosa, com a eleição de líderes e a imposição de novos preceitos religiosos, a missão vinha-lhes ajudando em alguns problemas como medicação e mesmo dando-lhes algumas coisas, como é o caso de um caititu para ralar mandioca e uma engenhoca para moagem de cana, bem como algum auxílio na educação (Cruvinel, 1977, p. 38). No ano seguinte, Viveiros de Castro observou, igualmente, o descontentamento dos Kulina de Maronaua, os quais pareciam esperar uma alternativa à ausência dos missionários, da escola, de remédios e da proteção contra os “abusos dos velhos patrões” da borracha. A expulsão dos missionários, por outro lado, foi do agrado de muitos marreteiros e donos de seringal. Viveiros de Castro foi visto como um agente da Funai pelos habitantes (indígenas e não indígenas) da região, o que desembocou em uma série de expectativas em relação à sua pessoa. Isso porque, após a expulsão dos missionários, a Funai realizou algumas visitas às aldeias de Maronaua e Santo Amaro, fato que tornou mais concreta a figura de um “Governo” que atendesse às necessidades da população local (Viveiros de Castro, 1978, p. 2). 77 Histórias kulina e kanamari A Funai era “o Governo”, e que vinha finalmente dar conta da miséria dos Kulina, da exploração dos patrões, da falta de remédios e de escola – era um possível novo e poderoso patrão, que forneceria (por aviamento, segundo o modelo clássico do seringal) os bens indispensáveis à reprodução da sociedade Kulina, e um fiscal, que poria cobro aos abusos dos velhos patrões (Viveiros de Castro, 1978, p. 2). Mas, além dessa expectativa, outros boatos menos positivos corriam como, por exemplo, o de que a Funai expulsaria os Kulina do Purus e reuniria todos os “caboclos” no rio Envira; de que seria proibida a venda de peles aos marreteiros ou a venda de jabutis, ambas essenciais fontes de renda para os Kulina na época; e, finalmente, de que os Kulina fossem presos. Este último temor decorria de que a Funai estava associada à Polícia Federal naquela área e, no caso específico dos Kulina, acrescentava-se o fato de que a expulsão dos padres e agentes da pastoral fora realizada por meio de funcionários da Funai acompanhados de policiais da Polícia Federal. A Funai e, mais que ela, a Polícia Federal era tomada como “o Governo”, uma “entidade todopoderosa” que pairava “acima das arbitrariedades da política local e do poder dos patrões”. Sua intervenção era temida por todos: índios, peões, barranqueiros, marreteiros, e até mesmo gerentes de seringal (Viveiros de Castro, 1978, p. 2-3). Nesta época, todos os habitantes de Maronaua se diziam católicos e afirmavam que o padre Paulino os havia batizado e ensinado alguns hinos religiosos, embora a escola da missão não tivesse chegado a alfabetizar nenhum kulina nesta aldeia. Segundo, Viveiros de Castro (1978, p. 25-26), havia uma aprovação geral da atuação do padre Paulino por parte dos índios e dos barranqueiros. Contrariamente, sua presença era desaprovada violentamente pelos patrões, marreteiros e delegado de Santa Rosa. O padre Paulino havia atuado na organização dos Kulina em aldeias, na constituição de suas chefias e também impulsionado os Kulina na luta contra a situação de exploração de sua força de trabalho e invasão de suas terras18 (Viveiros de Castro, 1978, p. 26). Ele havia sido decisivo na atribuição de chefia a Manduca (47; 108) em Maronaua e a Mariano e Dohô em Santo Amaro (cf. Cruvinel, 1977, p. 37; Viveiros de Castro, 1978, p. 26). Cruvinel havia entendido como prejudicial a ação do padre na atribuição de chefia, como uma “intromissão inoportuna, inadequada e repugnante” (1977, p. 37; ver também citação acima). Todavia, este não parecia ser o ponto de vista dos Kulina, que viam na atuação do padre uma proteção contra os abusos exercidos pelos patrões. Apesar de a organização em aldeias ter trazido outras limitações, como um futuro esgotamento da caça, notado pelo próprio padre (Viveiros de Castro, 1978, p. 26). 18 78 Capítulo 2 Os Kulina de Maronaua, em fins da década de 70, trabalhavam no seringal Sobral, o qual havia sido comprado por um “paulista” que conseguira crédito junto ao Banco da Amazônia para o replantio de seringueiras e criação de gado. A mão-de-obra do seringal – dentre as quais a dos Kulina – estava ocupada no desmatamento e no cuidado das mudas de seringa. Os Kulina eram frequentemente requisitados para outros serviços menores, tal qual o corte de paxiúba para o soalho das casas, dentre outros. Também vendiam carne de caça ao seringal. Trabalhavam pelo sistema de empreitada: o gerente do seringal contratava o serviço com um kulina – geralmente Manduca (108) ou Miguel (70), os tamine (chefia tradicional) e também tuxauas (chefia surgida no contexto do contato) – o qual reunia e organizava os demais para o trabalho. Era aviada ao empreiteiro kulina determinada quantidade de mercadorias – “sal, roupas, fumo, botas de borracha”– e instrumentos de trabalho – “terçados, munição, peixeiras”– e este deveria distribuir o recebido19 (Viveiros de Castro, 1978, p. 27). O dinheiro não circulava no barracão, em continuidade com o sistema de aviamento do período áureo da borracha (ver cap. 1). Era desse modo que o patrão roubava, pagando com objetos de valor irrisório o seu dia de trabalho - “a dificuldade em manejar os números e as contas tornava os Kulina presa fácil para o barracão” (Viveiros de Castro, 1978, p. 27). Além disso, o barracão também explorava os Kulina vendendo-lhes remédios errados e ineficazes (Viveiros de Castro, 1978, p. 86). Segundo Viveiros de Castro (1978, p. 79-80), havia duas lideranças políticas que exerciam funções distintas, uma interna e outra externa à comunidade. Uma era o “tuxaua” (palavra usada regionalmente), chefe que falava pela comunidade no contato com os patrões; eram mediadores com os regionais e organizavam, por exemplo, as empreitadas. A outra, interna à comunidade, era o tamine/taminedé, associada à imagem de um “bom patrão”. Sua função era a de “agradar o pessoal”, patrocinando festas e promovendo a distribuição de alimentos. Ele discursava em público ao crepúsculo exortando a comunidade ao trabalho, censurando os desvios e lembrando os exemplos do passado; é ele também quem atuava como pacificador nos casos de feitiçaria (dori). Assim, na posição de “bom patrão”, ele convoca a comunidade ao trabalho e efetua a redistribuição cerimonial. O tuxaua, surgido no contexto do contato, poderia, segundo Viveiros de Castro (1978), coincidir com a mesma pessoa do tamine. De fato, no presente estudo, não foi observada a existência de chefes kulina que Acontecia também de um kulina ir ao seringal alugar seu trabalho individualmente; isso se dava quando escasseava alguma mercadoria de que carecia (Viveiros de Castro, 1978, p. 27). 19 79 Histórias kulina e kanamari exercessem apenas uma dessas funções; todos pareciam acumular os atributos de ambas. Vemos, desse modo, como o tamine/tuxaua exercia um papel fundamental na organização do trabalho para os brancos e como a desativação da escola da missão pela Funai fora um “duro golpe para os Kulina”. Eles tinham “um fascínio quase ritual pela escola”: “em Maronaua, estavam constantemente folheando os cadernos do SIL, as folhas deixadas pelas professoras da missão, pedindo para posar em fotografias de lápis e caderno na mão, em gesto de escrever” (Viveiros de Castro, 1978, p. 86; ver fotografia da capa). A escola, e a consequente aprendizagem da leitura e contagem, constituía-se, portanto, da perspectiva kulina, em um dos meios necessários para pôr fim à longa exploração da qual sofriam. Em 1980, os Kulina ainda esperavam o retorno da Funai, a qual aparecera em suas terras nos anos de 1976 e 1977 para identificação das mesmas e dos grupos indígenas que nela habitavam (cf. relatórios de Schwade, 1976, e Cruvinel, 1977), e não mais retornara deste então. Nesta circunstância, os Kulina articularam-se aos Kaxinawá, seus inimigos históricos, com os quais dividiam aquela terra, intencionando uma maior pressão política20. Na carta, que transcrevo a seguir, direcionaram-se à Funai requisitando seu retorno e explicitando seus desejos e necessidades de reprodução social enquanto grupo: Funai quer dar 5 pedaços de terra, 1 pra S. Amaro, 1 pra Fronteira, 1 pra Maronaua. Nós Madija e Kaxinauas quer 1 pedaço todo junto. Kulinas e Kaxinauas todo ligado. Nós queremos assim. Queremos o igarapé Canamari até igarapé Prainha deste lado outro do igarapé Nazaré até o igarapé S. Vicente. No fundo da Cabeceira do igarapé do Acre até igarapé Saperaí[?]. Madija e Kaxinauas quer assim pra tirar produto e viver bem. Queremos todos juntos que nós estamos em cima de terra. Pra fazendeiros, cariús, madeireiros, marreteiros não entrar no meio de nossa terra, terra de índio. Quem mandar é nós. Queremos nossa terra pra cariús não expulsar mais que explorar demais já temos. Agora não deixa mais entrar, já chega. Os cariús falaram já muito, há tempo que índio não tem terra e já temos cariús, se entrar mais joga fora. Cariús de fazenda já estragar nosso cemitério, nossa terra, derrubar madeira de lei, espantar caça, estragar pirarucu pra urubu comer. Agora malhadeira já era tudo isso em terra de madija. Único alimento de nossa terra é carne de caça e peixe e assim mesmo mariscador estragar tudo. Agora chega cariús. Índio aumentou mais, precisa mais rancho pra nós, se não passa fome e morre, nós não queremos morrer. Quando nós falamos que terra é nossa, cariú diz que índio gosta de falar mentira. Cariú diz que índio não tem lei pra isso e que funai só pra enganar. Funai, vamos dizer pra você escutar, vamos demarcar terra grande pra nós trabalhar, porque nós tudo animado pra terra grande. Nós só com terra 20 Para maiores detalhes desta articulação cf. Altmann (1994). 80 Capítulo 2 grande fica alegre. Nós espera terra grande. Já começamos pique. Se nossa área é grande, todo fica animado e alegre. Pode ler, Funai, nós todo estamos querendo assim terra grande. Agora tem muito Carius em nossa [terra]. Precisa botar pra outro lado. Precisa mudar. Funai embora vem logo, nós ensina medir nossa terra. Assim carius a credito[?]. Vem breve possível, já demorar muito, já comeu muito dinheiro, já enganou muito. Já faz 4 verão que esperamos. Será que tu com medo da onça? Não ta com medo de fome, nos arruma rancho pra tu, macaxeira e banana madura. Quando você apareceu aqui primeira vez falou que gosta de índio, que ajuda índio e depois nunca mais apareceu. Porque não tem engenheiro pra medir terra dos índios. Porque tá com medo de pagar engenheiro. Te esforça [ininteligível] nós Funai. Nós começamos o pique de nossa terra. Agora nós espera Funai fazer a tua parte – meu Isso[?]21 Kulinas (Kaxinwá; Kulina, 1980)22. É de se notar a importância que atribuíam à chegada da Funai e como tal acontecimento estava associado com perspectivas de futuro e de sobrevivência do próprio grupo. A Funai era tratada como uma entidade personalizada, à semelhança de um chefe ou patrão. Os Kulina e Kaxinawá perguntam-lhe sobre os motivos de sua demora – estaria a Funai com medo de onça ou de passar fome? – ao mesmo tempo em que esperam dela proteção, na perspectiva de poderem “viver bem”. A associação entre chefia, patronagem e Funai era significativa para os Kulina e também para os Kanamari, como veremos adiante neste capítulo. Ruptura entre tempos-espaços No tópico anterior, procurei delinear características do tempo atual dos Kulina, enfocando particularmente os Kulina que hoje habitam o Alto Purus. Eles, como já referido, “são unanimes em afirmar que, em tempos antigos, vieram do Juruá, subindo os afluentes do alto Juruá. Que buscavam o alto curso dos rios, e que entraram no Peru fugindo dos seringueiros”, em fins do século XIX (Viveiros de Castro, 1978, p. 15, grifo meu). A fuga pelas cabeceiras dos rios constituiu o primeiro movimento espacial relatado na história dos Kulina do Purus desde que estiveram em contato com as frentes de expansão da borracha. Posteriormente, eles foram atraídos de suas 21 Esta palavra não está muito legível no documento original. “Isso” é, entretanto, um nome próprio kulina, refere-se a um homem também conhecido por “Samuel” (cf. Altmann, 2000, p. 104); embora não pareça fazer sentido este nome no contexto da carta. 22 “Carta de solicitação da união das aldeias de Santo Amaro, Fronteira e Maronaua” redigida por índios Kulina e Kaxinawá em Maronaua na data de 7 de março de 1980. Esta carta compõe o processo de delimitação e demarcação da T. I Alto Purus, demarcada em 1985. Na transcrição da mesma, tomei a liberdade de inserir pontuações e realizar ligeiras correções de redação apenas com a intenção de torná-la mais legível. A versão original pode ser lida no anexo 2. 81 Histórias kulina e kanamari habitações no meio da mata para as margens dos rios principais em busca de mercadorias que os seringueiros possuíam – armas, utensílios de metal, roupas, sal, anzóis etc. (Pollock, 1985, p. 39). Desse modo, engajaram-se em trabalhos nos seringais. A troca de sua força de trabalho por tais mercadorias ocasionaram dependência à economia dos seringais, a qual foi, posteriormente, ameaçada pelas crises da indústria da borracha no Brasil, com a competição ocasionada pela produção asiática (ver cap. 1). Ao que tudo indica, no período entre o primeiro ciclo da borracha e sua primeira crise, em 1912, os Kulina, de um modo geral, tiveram uma inserção mais marginal no trabalho nos seringais. Segundo Manduca (47; 108), chefe da aldeia Maronaua23, os Kulina “nos primeiros contatos [com os cariús], trabalhavam só eventualmente para levar mercadoria para o centro da mata, onde estavam as malocas” (Altmann, 2000, p. 104). Entretanto, o crescente interesse pelas mercadorias advindas do contato, levou-os a se integrarem de outro modo ao trabalho no seringais, mais intensivamente. Tal postura implicou em uma mudança de habitação, momento em que os Kulina deixaram de morar no centro da mata para se fixarem nas margens dos grandes rios (Altmann, 2000, p. 107). Este foi um segundo deslocamento espacial realizado pelos Kulina desde a chegada dos brancos em seu território, o qual demarcou a mudança entre os tempos dos antigos e o tempo atual, tempos que poderíamos, antes, chamar de tempos-espaços, dada a intrínseca relação entre tais categorias. A mudança de um tempo ao outro é também aquela entre espaços radicalmente divergentes de um ponto de vista kulina. Os grupos kulina do Purus brasileiro consideram-se de origem comum. A maior parte dos interlocutores mais velhos de Viveiros de Castro (1978) nascera por volta de 1905/1910 nos seringais Carolina e Sobral. Com a morte do patrão do seringal Carolina e abandono do mesmo, dirigiram-se ao igarapé Cochichá, varando o interflúvio Purus/Chandless, por volta de 1930. No Cochichá, dedicaram-se à caça, ao caucho e às peles; trabalharam para um patrão de nome Chagas Sabino, o qual parece ter sido um marreteiro que aviava mercadorias e instrumentos de trabalho a eles. A partir do Cochichá, o grupo foi pouco a pouco descendo o Chandless, espalhando-se por seringais no Purus - Fronteira, Terra Alta, Santa Cruz (Viveiros de Castro, 1978, p. 15). Apenas posteriormente, esses Kulina foram se reunir em Maronaua ou Santo Manduca assumira a posição de chefia na aldeia Maronaua a partir da década de 70, quando Padre Paulino esteve por lá (ver acima), e assim continuou ao menos durante o período em que Lori Altmann vivera com os Kulina do Alto Purus: de 1980 a 1987 (cf. Altmann, 2000). 23 82 Capítulo 2 Amaro. A localidade de Maronaua existe desde os anos 1960, quando Codo (61) e sua família se mudaram para lá. Os moradores mais antigos de Maronaua relembram de quando eram crianças e viviam em aldeias no meio da floresta, “sem roupas ou potes de metal”, antes do contato com os brasileiros. Posteriormente, entretanto, as famílias se moveram para os rios, onde venderam seu trabalho nos seringais, estabelecendo pequenas aldeias próximas aos locais de coleta de borracha. Durante aproximadamente 30 anos, estes pequenos grupos moveram-se subindo e descendo o Envira, o Purus e o Chandless, seguindo os locais de coleta da seringa, os quais foram desaparecendo à medida que a borracha brasileira foi se tornando cada vez menos valorizada (Pollock, 1985, p. 39). Vemos, desse movo, como a história recente dos Kulina está muito atrelada à história da borracha nesta região. Os movimentos realizados pelos Kulina coincidem, em grande medida, com os ciclos de apogeu e decadência da empresa seringalista: A saída do Carolina, por volta de 1920-30 deveu-se ao abandono do seringal, que fez com que os Kulina se dedicassem a atividades “marginais” dentro do sistema: caça, caucho, peles. A “baixada”do Chandless e a dispersão pelos seringais do Purus nas cercanias da boca do Chandless dá-se entre 1940-1950. Desta data em diante, os Kulina não se referem a vinculações estáveis com nenhum grande patrão, nem com o corte da seringa (Viveiros de Castro, 1978, p. 16). Desse modo, dois movimentos se sucederam a partir do momento em que os Kulina estiveram em contato com as frentes de expansão da borracha. Primeiramente, eles fugiram para as cabeceiras dos rios, entrando para os “centros”, e para as áreas onde não havia seringueiras, buscando fugir das correrias do final do século XIX. Mas, em um segundo momento, a lógica que presidiu seus deslocamentos foi a do engajamento na empresa seringalista. Nesta fase, os Kulina foram para onde havia “serviço”, para onde os preços das mercadorias eram menores e onde havia patrões melhores (Viveiros de Castro, 1978, p. 16). Essas duas lógicas se sucedem no tempo e indicam a ruptura entre o tempo dos antigos (ididenicca) e o tempo atual kulina. Nelas, é notável a dualidade de ocupação do espaço associada, em um primeiro momento, à fuga dos brancos – de suas correrias e de uma relação mais próxima nos seringais – e, posteriormente, à busca pelos patrões da borracha e pelas mercadorias dos cariús. A partir do momento em que se dedicaram mais intensamente ao trabalho nos seringais, os Kulina passaram a habitar os “centros”, mas não o “centro da mata” como anteriormente. Desde então, começaram a residir nos “centros” dos seringais, em 83 Histórias kulina e kanamari colocações (cf. cap. 1 para a composição espacial de um seringal). Do que se conclui que, para os Kulina tanto o “centro” como a “margem” de um seringal, eram tomados como a “margem” em oposição ao “centro da mata”. O seringal como um todo, e tudo o que a ele se associava eram “margem”, nos termos kulina, e passaram a fazer parte do um tempo atual de sua história. O tempo dos antigos é, portanto, marcado fundamentalmente pela residência em grandes malocas de palha localizadas no centro da mata, ao passo que o tempo atual é aquele caracterizado pela habitação às margens dos grandes rios e em residências menores construídas sobre pilotis, conforme o modelo adotado regionalmente. Ainda no tempo dos antigos, os Kulina efetuaram deslocamentos em razão da chegada dos brancos – fugiram para as cabeceiras dos rios em decorrência das correrias – e também começaram a realizar alguns trabalhos marginais, como relatado por Manduca. Mas, neste momento, não haviam saído do centro da mata. O tempo atual marca, portanto, a mudança espacial de saída do centro da mata e ocupação das margens dos rios, além de um engajamento mais efetivo no trabalho nos seringais com o consequente acesso às mercadorias dos brancos. Este foi o segundo tipo de deslocamento efetuado pelos Kulina desde a chegada dos cariús, mas é certamente o mais fundamental no que se refere a categorias de espaço e residência deste grupo indígena, marcando assim uma importante transformação em sua história – a ruptura entre diferentes tempos. Espaço, socialidade e selvageria Vemos, desse modo, como o tempo atual apresentava um ritmo tempo-espacial que lhe era próprio e em muito divergia do ididenicca (“tempo dos antigos”), ao menos em seu período de auge, quando ainda os brancos não haviam chegado no território então habitado pelos Kulina. Como se pode observar, o tempo dos antigos kulina agrega diversas mudanças na vida deste grupo indígena, pois foi ainda neste tempo que se deu a chegada dos brancos e as correrias. Entretanto, o que marca uma era, do ponto de vista indígena, parece ser um determinado caráter e configuração de relações que são estabelecidas neste período de sua história. O tempo dos antigos kulina é, nesse sentido, referido como aquele em que habitavam o centro da mata e em que não haviam se engajado de maneira decisiva no trabalho nos seringais. No capítulo 3, desenvolverei uma discussão sobre períodos de “auge” e “decadência” de determinado tempo ou era, onde este ponto será mais bem explicitado. 84 Capítulo 2 O ritmo da vida no tempo atual kulina passou a ser compatível com o trabalho nos seringais e em muito diferia da sazonalidade de antigamente. Em tempos antigos, as aldeias kulina também se caracterizavam pela mobilidade, mas as razões para tal e as próprias características dos deslocamentos eram outras. Estes eram realizados, substancialmente, nos casos de a) esgotamento da terra para a agricultura e dos recursos de caça, pesca e coleta; b) abandono da aldeia por ocasião da morte de liderança política (tamine) ou religiosa (dsoppineje); c) visitas a parentes de outras aldeias em períodos de escassez de alimentos; d) participação em festas, sobretudo a Coidsa (ver adiante); e e) buscas por tratamento com xamã (dsoppineje) ou com ayahuasca (rami) (Altmann, 2000, p. 40-41). Isso não significa dizer que, no tempo atual, os Kulina tenham deixado de mudar de localidade devido a razões parecidas. Vimos, como exemplo, o caso de abandono de aldeia no caso de morte de um tamine na década de 1950. Mas, certamente, no tempo atual, a mobilidade kulina foi intensificada e, sobretudo, sua dispersão em decorrência da entrada dos cariús em seu território, ocasionando epidemias, mortes e envolvimentos diversos com a economia seringueira. A auto-denominação kulina, Madihá, pode assumir diferentes significados dependendo do contexto em que a palavra é empregada. Pode significar: a) “gente”, os seres humanos; b) “caboclo”, ou seja, índio em geral em oposição aos brancos – que se dividem em “cariús” (os brasileiros) e os “peruanos”; c) “Kulina”, em contraste com os Kaxinawá, Kampa, Jamamadi, Kanamari etc.; d) “parente”, no contexto típico de uká madihá (“meu parente”), em oposição a madihá waa (“outra gente”, “não-parente”); e finalmente e) “nação” ou simplesmente gentes madihá, os subgrupos kulina (cf. Viveiros de Castro, 1978, p. 18; Pollock, 1985, p. 63). A origem das gentes ou nações madihá é descrita no mito dos heróis da criação Tamaco e Quira: Foi assim que aconteceu há muito tempo atrás: Um homem falou ao seu povo: – Raspem o talo da palmeira jaci, façam arcos e flechas e vamos pescar. Acabado o trabalho os homens foram para o lago. Chegando lá, avistaram uma criança sentada às margens do lago. Assustados com a presença da criança desconhecida, os madihá jogaram suas flechas e mataram a criança. Massosso, a mãe da criança, ouvindo os gritos de seu filho, correu em seu socorro. Mas a criança morreu. Indignada, Massosso chorou, lamentou-se e fugiu para a mata dizendo: – Quando chegar a lua nova eu vou voltar para vingar meu filho! Quando chegou a lua nova Massosso voltou. Os madihá estavam para o roçado colhendo macaxeira e quando voltaram foram para a fonte banharem-se. Massosso, 85 Histórias kulina e kanamari que estava escondida nas proximidades do lago, agarrou uma criança que passava e tentou arrastá-la consigo. Mas a mãe da criança tomou-a pelo braço e correu. Massosso ficou enfurecida por não ter podido levar a criança e por isso pôs fogo na aldeia toda. Incendiava a aldeia espremendo o seio de onde saia um leite tão quente que onde caia pegava fogo. Esguichava leite por todos os lados e quando o leite caia na água fazia a agua toda ferver. Massosso corria pela aldeia toda esguichando o leite do seio aqui e acolá queimando casas e pessoas. Dessa forma ela acabou com a aldeia toda. Quira e Tamaco iam chegando na aldeia e um deles falou: – Hei meu irmão! Olha, tem um caminho aqui cheio de galhos quebrados. – Vamos ver o que houve! Respondeu o outro. Foram então falar com o avô onça que lhes explicou: – Os madija acabaram. Restam apenas vocês dois e a irmã de vocês. A irmã dos dois chegou e viu o que tinha acontecido: as casas queimadas, os caibros das casas caídos e os madihá esmagados no pátio da aldeia. Dizem que, quando Massosso encontrava alguém ainda com vida, ela pisava sobre seu fígado até esmagá-lo. Aí Quira pegou um cipó e bateu em Massosso até matá-la. Pisoteou-a até esmagá-la. E Massosso foi diminuindo, diminuindo sob os pés de Quira e transformou-se no noma24. Quira tomou o dori, introjetou-o em seu próprio corpo e viajou para longe. Quira e Tamaco foram novamente ao encontro de seus avós-onça. Não os encontrando em sua maloca, dormiram ali mesmo. Quira dormia de forma tão profunda que a saliva lhe escorria pelo canto da boca. O casal de onça retornou. Vovó-onça varria a maloca com galhos quando se deparou com Quira, que dormia pesadamente. Vovó onça provou da saliva de Quira e falou para seu marido: – Este meu neto está bom de comer! Mas como Quira e Tamaco demorariam alguns dias ali, o casal de onça resolveu esperar outra oportunidade para comê-los. Tamaco e Quira gastavam o dia brincando com seus poderes mágicos. Ora transformavam-se em barata, ora em outro animal qualquer. Quira era verdadeiramente sábio! Um dia vovó-onça falou para Quira: – Vamos à mata buscar tocadsohua?25 – Vamos vovó! Responderam eles. Chegaram embaixo da árvore e vovó-onça falou: – Aqui estão minhas frutas, meus netos. Então Quira subiu na árvore. Vovó-onça ficou embaixo comendo as frutas que Quira jogava para ela. Aí Tamaco subiu também na árvore, apanhou um fruto, jogou na cabeça da onça e matou-a. Morta a onça, Quira e Tamaco abriram-lhe a barriga, retiraram as víceras, colocaram-nas num cesto e partiram para casa. Chegando em casa colocaram a gordura em uma panela de argila, cozinharam comeram e foram buscar alimento no roçado. No caminho Tamaco colheu uma cabaça e transformou-a em um catatau. Os olhos vermelhos do catatau Tamaco fez com a tinta do urucu. Quando acabou de fazer, Tamaco falou para o catatau: – Quando você ouvir as pisadas de meu avô bata com o bico na raiz de uma árvore e cante: – Catatata! Catatata! Para avisar-me. Quando vovó-onça vinha chegando o catatau deu o aviso: – Catatata! Catatata! Catatata! Feitiço; objeto que é introjetado no corpo para enfeitiçar; o mesmo que dori (Altmann, 1994, anexo 10, p. 5, nota 5). 25 Fruto amazônico sem identificação em português (Altmann, 1994, anexo 10, p. 6, nota 6). 24 86 Capítulo 2 Quira correu até a fonte, trouxe um pote com água para o avô e ficou escondido esperando. Antes, porém, teve o cuidado de balançar a rede para dar ao avô a impressão de que estava por perto. Vovô-onça quando chegou viu a rede balançando, o pote com água e a panela com gordura. Sem saber que eram as víceras de sua mulher, comeu-as todinhas. Vovô-onça, dando pela falta de Quira e Tamaco, pensou consigo: – Devem ter se transformado em barata, aranha ou outro bicho qualquer. E começou a comer todos os insetos que encontrava à sua volta: barata, escorpião, aranha... Mas Quira e Tamaco estavam escondidos no teto da maloca, bem no alto. E, com medo de serem devorados pelo avô, voaram para o céu. Vovô-onça por ter comido a gordura das vísceras de sua mulher, transformou-se em um uruçu26 e subiu para o tronco de uma árvore onde ficou agarrado. Tamaco e Quira subiram para o céu. Tamaco ia na frente, seguido por Quira. Lá no alto, Quira sentou e falou para Tamaco: – Olha meu irmão, quanto tiver muitos madihá eles vão lembrar-se desta história. Estavam sentados no topo de uma palmeira, quando Quira pegou um pedaço de âmago de pau, bateu na palmeira e falou para Tamaco: – Hei, meu irmão! Olha, eu vou jogar um pedaço deste pau na água e ele vai transformar-se em um jacaré. E assim se fez. – Olha mais abaixo do rio, este outro pedaço de pau vai transformar-se em arraia. – Olha duas arraias lá na praia! E Quira deu nome ao jacaré e à arraia. – Vamos fazer mais. Disse Tamaco a Quira. E Quira fez outros animais e nominou-os; a anta, o veado, o caititu, o veado-rocho, a onça, o gato-do-mato e todos os outros. Depois disso voaram para o céu. Sentaram-se muito longe, bem no alto e de lá desceram para o meio de um lago. Lá Quira pegou uma cigarra, arrancou-lhe a cabeça e jogou-a no meio do lago. O lago começou a secar e os dois apanharam muitos peixes. Depois de moquearem todos os peixes, Quira transformou-os em todas as espécies de alimento; macaxeira, milho, banana, abacaxi, cana e mamão. O abacaxi ele fez com a cabeça do jacar-preto. Tamaco queimou os peixes e transformou-os em milho. Depois disso Quira, cansado e com muito sono, foi dormir no alto de uma árvore. Tamaco gritou a Quira: – Quira, acorda! Nossos peixes estão queimando! E Tamaco, depois disso, resolveu ficar cuidando da maloca. Colheu coco-jaci, uricuri e coco-açu e deles fez os madihá. Os coco-buriti ele guardou entre as palhas da maloca e depois transformou-os também em madihá. Tamaco foi quem escolheu os côcos que transformaria em madihá. Depois de fazer os madihá, Tamaco escondeu-se atrás de uma árvore e ficou escutando a fala de cada um. Tamaco falou a Quira: – Olha, Quira! São outras raças de gente! Não são madihá! Aí viram os canamari. Os caxinauá também foram feitos por Tamaco. A gente do tucano, a gente do macaco-preto, a gente da onça, a gente da anta, a gente do veado, a gente da batata-doce, a gente do cachorro, a gente do macaco-prego, a gente do jacaré-preto, a gente da cutiara, a gente do jacamim e a gente do sanhaçu27, todos foram criados por Tamaco. Pois bem, Tamaco foi quem criou os nossos avós e foi deles que surgimos. Quira criou os cariús. Criou os americanos, os alemães, os peruanos, os portugueses... Estes foram criados por Quira. Acabou! Espécie de abelha, também chamada guarapu (cf. Ferreira, 2004). Neste caso, faz referência à colmeia, que fica agarrada a um tronco de árvore. 27 Essas são gentes madihá. 26 87 Histórias kulina e kanamari Narrador: Itijo ette madihá28 Nesta versão, é o herói mítico Tamaco aquele que cria as diferentes gentes madihá a partir diversos frutos de palmeiras: coco-jaci, uricuri, coco-açu e coco-buriti. Deu origem à gente do tucano, gente do macaco-preto, gente da onça, gente do cachorro, gente do macaco-prego etc. Foi também Tamaco que criou os Kanamari29 e Kaxinawá, ao que tudo indica, também originados de cocos. Foi por meio da fala que esses diferentes grupos indígenas se diferenciaram, o que é significativo para os Kulina, os quais consideram a fala e o discurso uma importante dimensão na constituição da pessoa; a fala sendo, portanto, um atributo fundamental da pessoa humana (cf. Pollock, 1985). Por sua vez, foi Quira quem criou os cariús, os americanos, os alemães, os peruanos, os portugueses30. Tamaco e Quira deram origem também a pássaros como o catatau, a partir de uma cabaça, e aos alimentos cultivados, surgidos a partir dos peixes. A relação estabelecida entre os heróis míticos e o casal de onças tinha um caráter evidentemente predatório. Consequentemente, tal relacionamento contrastava com a relação maternal existente entre Massosso e a criança morta pelos Madihá. Foi Massosso, por sua vez, quem pôs fim aos Madihá e, posteriormente, morta, transformou-se no dori (ou noma), sinônimo de feitiço e de doença verdadeira entre os Kulina (cf. Pollock, 1985, p. 113114). Este mito, portanto, não trata simplesmente do surgimento dos madihá, mas também de princípios que os ameaçam enquanto grupo social. Assim como o próprio surgimento é, na verdade, um renascimento após a destruição que o antecedeu. O dori é considerada uma “doença interna”31 pelos Kulina e que afeta majoritariamente os adultos. Traduzida como “feitiço”, é sempre causada pela ação malevolente de um feiticeiro. O termo dori refere-se tanto à substância – descrita como uma pequena pedra - instalada na carne/corpo do xamã e que pode ser injetada no corpo de outros, como também nomeia a doença ocasionada pela introjeção desta 28 Esta versão do mito foi reportada por Altmann (2000, p. 53-56), coletada pelo indigenista Elzário Pereira Júnior em 1985 na aldeia kulina Ajitini no médio Juruá. Itijo é o nome de uma liderança kulina no Juruá, pertencente à “gente do cachorro”, ette madija (Altmann, 2000, p. 56; Montserrat; Silva, 1984, p. 24). 29 Os Kulina afirmam que os Kanamari e os Jamamadi também se dividem em madihá (cf. Viveiros de Castro, 1978, p. 19). 30 Pollock se refere a Quira como sendo o criador de todos os seres, tendo formado os humanos a partir de troncos de palmeira (1985, p. 100). 31 Os Kulina classificam as doenças em “internas” e “externas”. As doenças externas ocorrem na pele, podendo, desse modo, serem tratadas com propriedades aromáticas de plantas diversas. São consideradas “brandas e curáveis com relativa facilidade”. Já as doenças internas são causadas por “substâncias invasoras” que ameaçam a vida da vítima (Pollock, 1994, p. 145, 147; cf. também Pollock, 1985, p. 188-218). A distinção entre “interno” e “externo” é muito significativa para os Kulina, operando para além da classificação de doenças. Adiante, entrarei em maiores detalhes sobre este assunto. 88 Capítulo 2 substância no corpo de uma vítima. O dori é descrito como a doença verdadeira – “doença mesma” – e seu aparecimento indica não apenas a possibilidade de morte na aldeia como a presença de forças malevolentes que ameaçam a existência do grupo como um todo. Além disso, sendo causada por feitiçaria, indica um rompimento de relações sociais adequadas (Pollock, 1985, p. 113-114). Desse modo, Massosso, a mesma que destruiu os Kulina uma vez, continuou a ameaçar a existência social dos madihá ao se transformar no dori. Os Madihá que, desde então, passaram a existir, dividem-se em “gentes”, cada qual caracterizada por uma índole própria e falante de dialetos ligeiramente diferentes entre si. Assim como em um clássico sistema totêmico australiano (cf. Durkheim; Mauss, 1903; Lévi-Strauss, 1976 [1962]), os diversos madihá guardam semelhanças com os animais ou plantas em que se classificam: “os dsomaji madija, „gente da onça’, são classificados como valentes, bravos e guerreiros; os ccorobo madija, „gente do peixe jejum’, são esquivos e silenciosos, os jomo madija, „gente do macaco-preto’, são inquietos e conversadores” etc. (Altmann, 1994, p. 95; cf. também Viveiros de Castro, 1978, p. 19). “Nação” é uma palavra de origem portuguesa que os Kulina utilizam para traduzir uma subcategoria de sua identidade, nomeada a partir de um animal ou planta e “tendencialmente associada a um local geográfico”. Os Kulina comparam os seus subgrupos ou “nações” às identidades regionais dos cariús; eles dizem: “vocês não têm acreano, cearense, paulista? É igual nosso madihá”. Tal comparação aponta para a natureza local e geográfica dos madihá, como já notara Viveiros de Castro (1978, p. 18). Todos os membros de um subgrupo madihá são considerados wemekuté, “parentes” ou “irmãos” entre si (Viveiros de Castro, 1978, p. 19; Pollock, 1985, p. 63); literalmente, “ponta da minha carne” (cf. Altmann, 1994, p. 96). Desse modo, os madihá designam parentelas localizadas e uma origem comum, mais em termos geográficos que genealógicos. A identificação por madihá (por exemplo: maká madihá, gente da cobra) combina critérios de filiação e local de nascimento, pois “com o passar do tempo, os filhos de pais vindos de outros locais, ao se casarem na comunidade, transmit[em] a filiação de madihá do cônjuge que nasceu na comunidade” (Viveiros de Castro, 1978, p. 78). Como resultado, há uma tendência de homogeneização de madihá por localidade. O processo padrão de atribuição de madihá decorre do nascimento na aldeia de pais de determinado subgrupo. Nesta circunstância, o normal é que as mães deem luz a seus filhos em suas aldeias de origem. Mas, caso isso não aconteça, a criança pode adotar o madihá de seus pais, ainda que tenha nascido em outra aldeia; 89 Histórias kulina e kanamari adotar o madihá da aldeia em que nasceu; ou ainda ambos. Neste último caso, o pertencimento principal a um dos subgrupos será definido pelo local em que futuramente irá habitar (Pollock, 1985, p. 64). A residência entre os Kulina é convencionalmente uxorilocal – é o esposo que sai de sua casa e vai morar com a família da esposa – embora possam acontecer outras formas de residência (Altmann, 1994, p. 66). Embora haja uma vaga ideologia patrilinear, ela parece não operar na prática (Viveiros de Castro, 1978, p. 78). Viveiros de Castro listou 66 subgrupos madihá, além de ter identificado outros 10 de localização desconhecida; enquanto Pollock foi informado da existência de 70 diferentes subgrupos, muitos deles situados no Juruá (Viveiros de Castro, 1978, p. 22; Pollock, 1985, p. 63). Na década de 80, cada uma das aldeias do Alto Purus brasileiro era associada a um subgrupo: Maronaua era a aldeia dos kurubu madihá (gente do jeiju32) e Santo Amaro era a aldeia do pitsi madihá (gente do macaco-de-cheiro)33. Desse modo, os Kulina defendiam que cada aldeia era composta singularmente de um subgrupo madihá. Isso não impedia que outras aldeias fossem também território deste mesmo subgrupo; mas, uma única aldeia seria residência de apenas um subgrupo. Na prática, as aldeias eram, entretanto, mais heterogêneas em sua composição. Maronaua, por exemplo, era composta de uma população que apenas em 50% dos casos se afirmava kurubu madihá enquanto várias outras identidades eram afirmadas pelo restante. Mas, apesar disso, tendencialmente, todos os residentes podiam se considerar kurubu madihá em razão de habitarem nesta aldeia (Pollock, 1985, p. 63-64). Os Kulina, assim como os Kanamari, afirmam que, antigamente, seus subgrupos eram endogâmicos e mais circunscritos a locais específicos; ao passo que, nos tempos atuais, estariam “misturados” (Viveiros de Castro, 1978, p. 19). De fato, há um modelo ideal segundo o qual os casamentos devem ocorrer internamente a um subgrupo específico; mas não existe proibição de matrimônio entre pessoas de subgrupos distintos; tais uniões, aliás, são muito comuns (Pollock, 1985, p. 71). Este ideal parece também orientar a visão segundo a qual Maronaua, por exemplo, seria “puro Kurubu madihá” (Viveiros de Castro, 1978, p. 19). Independentemente da “mistura” dos subgrupos nos tempos atuais, a associação de um determinado madihá a "Jeiju" ou "jeju" é o nome popular de duas espécies de peixe da família Erythrinidae: Erythrinus erythrinus e Hoplerythrinus unitaeniatus (Soares et alli, p. 83-84). 33 Pollock usa a palavra pitsi e a traduz por “tipo de macaco”. Possivelmente o termo se refere ao “macacode-cheiro” – no dicionário kulina-português, encontramos a palavra pissi que, por sua vez, é traduzida por “macaco-de-cheiro” (Monserrat; Silva, 1984, p. 48). 32 90 Capítulo 2 uma localidade específica é significativa, ainda que os locais a eles associados tenham mudado ao longo do tempo. O espaço, assim, desempenha continuamente um papel fundamental na definição e constituição dos diferentes subgrupos kulina. Para pensarmos os tempos kulina é fundamental compreendermos a importância atribuída aos espaços na constituição e definição dos diferentes eras. Como mencionado anteriormente, os Kulina consideram que, no passado, quando as suas aldeias eram situadas no meio da floresta, eles também eram “brabos” ou “selvagens”. Desse modo, eles contrastam seu estado anterior de selvageria com seu modo de vida atual: foram selvagens por terem habitado o interior da floresta. Tal associação deriva, em parte, da consideração de um passado violento onde a guerra era comum, mas também reflete a construção cultural e separação da vida social em variados domínios, o contraste entre floresta e aldeia criando as condições ideológicas da socialidade (Pollock, 1985, p. 182). A associação entre espaço e pessoa não apenas se circunscreve aos tempos kulina, sendo largamente utilizada por este grupo indígena. Os bebês, por exemplo, são descritos como internos à casa: Bebês estão “com a casa”34 (udzadza), o local da nutrição. Desprovidos de tudo, com exceção dos pré-requisitos mínimos para a constituição da pessoa, os bebês não são associados às áreas públicas nas quais a pessoa é exposta [...] é afirmado estarem “dentro da casa” e estão sujeitos às perigosas ameaças que afetam o lar enquanto local de subsistência e relações de nutrição (Pollock, 1985, p. 174, tradução minha). Os adultos também são associados aos lugares, sobretudo em contextos rituais, onde assumem o “centro”, que é tanto do espaço ritual quanto da posição central que assumem neste contexto (Pollock, 1985, p. 175). Nos termos kulina, o espaço, assim como as pessoas, é classificado a partir da distinção fundamental entre “interno”/“privado” e “externo”/“público”. O “interior” indica aquilo que é selvagem, perigoso, não sociável, ao passo que o “exterior” qualifica aquilo que é sociável e doméstico (cf. Pollock, 1985, p. 172-173). Estes dois termos são orientadores da classificação de uma enorme gama de aspectos da vida social kulina. Há, desse modo, doenças que são externas e outras que são internas; os homens são, em diversas circunstâncias, aproximados a características de interioridade, enquanto as mulheres são associadas à qualificadores de exterioridade, desempenhando inúmeras funções de 34 No original: “Babies are „with the house’”. 91 Histórias kulina e kanamari domesticação. No âmbito das diversas classificações kulina, a aldeia “sociável” é contraposta à floresta “selvagem” a partir de distinção semelhante à traçada para o que é externo e o que é interno, respectivamente. A floresta é caracterizada por qualificadores de “interiores”, a saber, por perigos potenciais, transição, socialidades não normais. A floresta é habitada por criaturas selvagens e perigosas, muitas delas espíritos tokorime35. É uma área com pouca sociabilidade potencial, repleta de implicações de insociabilidade: selvagem, silenciosa, perigosa (Pollock, 1985, p. 173). Aliás, a própria classificação entre pessoas mais ou menos completas realizada pelos Kulina opera em termos do contínuo que liga os polos “bravo/selvagem” e “manso”. Ao longo do ciclo de vida, diferentes habilidades marcam a passagem dos diferentes estágios de completude da pessoa: neste contexto, a aquisição da fala e da habilidade oratória é um importante marcador. O silencio é descrito pelos Kulina como eminentemente anti-social (wadi), sendo, por exemplo, a aquisição da habilidade de expressão oral uma diferença fundamental entre a criança e o adolescente. Já o discurso/fala, assim como a música, é a característica de sociabilidade por excelência. Assim, enquanto “a infância é associada com a fala desajeitada; a adolescência com músicas simples tocadas em flautas; a fase adulta é associada com a fala e o cantar completamente competentes” (Pollock, 1985, p. 168). Por sua vez, os adultos “mais completos” são associados ao discurso elaborado e qualificado. Estes são chamados “tamine” (chefe), mesmo quando não reivindicam formalmente tal status (Pollock, 1985, p. 166-169). Os Kulina classificam uma enorme gama de seres, espaços, pessoas em “selvagens” (wadi) e “mansos” (jone). Esses conceitos não são absolutos, mas contextuais e inseridos em um continuo, de selvagem a manso, ao longo do qual os seres são ordenados. Também são associadas a estes termos, as características de bom e mau cheiro: os animais carnívoros são os de pior cheiro e a função do cozimento é transformar o mau odor em bom, ou seja, transformar alimentos não comestíveis em comestíveis. A qualidade “selvagem”, por sua vez, está associada com perigos místicos relacionados aos “interiores”. Estes perigos, por sua vez, são intensificados na medida em que se manifestam publicamente: um ato que resulte em derramamento de sangue é considerado um ato selvagem por ser a manifestação pública de uma raiva que Os espíritos Tokorime podem ser definidos como espíritos possuidores de dori. Nos rituais de cura, os xamãs se transformam nesses espíritos, que irão expelir o dori do doente. Tais rituais recebem o mesmo nome do espírito, Tokorime (cf. Pollock, 1985, p. 207, 211; 1994, p. 154-155). 35 92 Capítulo 2 deveria permanecer interna e privada (Pollock, 1985, p. 180-181). Desse modo, notamos entre os Kulina uma explícita associação entre “interior”, “selvagem” e “mau cheiro”, por um lado, e “exterior”, “manso” e “bom cheiro” por outro. Em geral, os bons cheiros são responsáveis por moderar o estado “selvagem”, enquanto os maus cheiros ampliam este estado. Os adolescentes do sexo masculino (dzabitso), por exemplo, carregam consigo folhagem de bom cheiro cuja finalidade é a de amansar a si próprios para se tornarem seres atrativos e sociáveis na abordagem às adolescentes do sexo feminino. Eles são considerados particularmente insociáveis e sua capacidade para este estado deriva, na visão dos Kulina, da associação entre masculinidade e o ato de caçar na floresta, onde os homens dispendem muito de seu tempo. Mas, tais quais os meninos mais novos, os adolescentes ainda não aprenderam a controlar sua natureza selvagem: esta não foi amansada por ainda não serem eles adultos. A selvageria dos dzabitso consiste, assim, na sua falha em compreender a sociabilidade que lhes seria pressuposto conhecer. Sua desculpa, por outro lado, deriva do mesmo ponto, a saber, que é da natureza dos adolescentes serem selvagens. Já as dzuato, adolescentes do sexo feminino, são consideradas menos selvagens que os garotos, embora também o sejam. A adolescência é um estado de transição para as garotas e, desse modo, elas são imbuídas de uma dosagem a mais de selvageria em comparação com as mulheres adultas. Suas atitudes não são aceitas como as de um adulto, mas toleradas pelas mesmas razões que são as dos adolescentes do sexo masculino (Pollock, 1985, p. 184). Os adultos, por sua vez, são considerados sociáveis ou apenas minimamente selvagens. Os homens adultos, maki, são ocasionalmente associados à insociabilidade por serem caçadores. Enquanto as mulheres adultas, amunahe, são mais domesticadas por meio de sua associação com a casa e a aldeia. De fato, as mulheres socializam os madihá, não apenas as crianças, mas também os homens, por meio do casamento. O casamento ancora o homem em uma nova família e transforma o conjunto de relações sociais focais que orienta o comportamento masculino. Os Kulina utilizam a metáfora significativa do cozimento para descrever este processo: do mesmo modo que a mulher transforma cheiros ruins e selvagens em comida, assim também transformam os selvagens e mau cheirosos adolescentes em maridos domesticados (Pollock, 1985, p. 185). O ritual Coidsa explicita tanto este papel das mulheres como domesticadoras, quanto a intrínseca relação entre espaço e elementos qualificadores da pessoa kulina. 93 Histórias kulina e kanamari Este ritual proporciona o estabelecimento de relações com outras aldeias e com pessoas de outros subgrupos madihá, os visitantes que chegam para participar da festa36. Nele, a bebida feita a partir da macaxeira, de mesmo nome do ritual, coidsa, é consumida abundantemente (Altmann, 1994, p. 128). Não descreverei detalhadamente o ritual aqui, mas desejo apenas destacar um de seus momentos: aquele no qual os homens entram para a floresta e voltam dela “transformados em jidsama” (queixada); quando voltam, as mulheres oferecem a eles coidsa em grande quantidade. Neste ato, vemos reiterada a diferença entre, por um lado, a floresta (dsama) e seres que a habitam, como o jidsama e, por outro, o terreiro da aldeia (boroni) e plantas cultivadas como a macaxeira (poho) (Altmann, 1994, p. 129). Há, portanto, uma dramatização (cf. Turner, 2005 [1967]) da oposição fundamental entre floresta e aldeia, selvagem e manso; sendo a coidsa é um elemento fundamental na transformação do selvagem em domesticado. Aplicação semelhante desta bebida pode também ser observada nos rituais de cura em que ela amansa a doença, considerada selvagem – o processo de cura envolve sempre uma atividade de amansamento. Do mesmo modo, os Kulina afirmam que a bebida de mandioca, em seu uso mais cotidiano, amansa o homem que voltou de uma caçada, isto é, o homem que se tornou selvagem uma vez que caçava na floresta (Pollock, 1985, p. 215)37. Vemos como o estado selvagem e os aromas estão diretamente associados a noções de espaço social. De fato, em alguns contextos, as qualidades de selvageria e de odor são tomadas como propriedades de coisas e processos os quais são ordenados pelos contrastes de “interno” e “externo”, “floresta” e “aldeia”. Animais da floresta são selvagens e de mau cheiro por sua localização no espaço social, assim como os homens adultos são selvagens e de mau cheiro quando caçam na floresta. Espaço e pessoa, por sua vez, conectam-se aos tempos kulina, pois, como vimos anteriormente, no passado, eram moradores da floresta e bravos; atualmente, os Kulina moram nas margens dos rios e se dizem mansos. Desse modo, o principal marcador da mudança histórica para os Kulina é uma transformação significativa de importantes aspectos de sua vida social – espaço e pessoa. A passagem do tempo dos antigos ao tempo atual equivale a uma De maneira análoga ao Hori dos Kanamari, o qual será abordado ainda neste capítulo. Como bem observado por Pollock, o processo de feitura da bebida de macaxeira compreende um duplo cozimento: os tubérculos crus são primeiramente fervidos a fim de amolecerem e, após a mastigação realizada pelas mulheres, a mistura resultante é fervida mais uma vez antes de ser consumida. Desse modo, passa duas vezes pelo procedimento que transforma alimentos de mau-odor em alimentos de bomcheiro. São considerados, portanto, duplamente de bom-cheiro e também duplamente mansos (Pollock, 1985, p. 214). 36 37 94 Capítulo 2 alteração do modo de ocupação do espaço, da morfologia social: eles passaram a habitar as margens dos rios, reunindo um menor número de pessoas em cada residência (agora, não mais malocas), dedicando-se sobretudo a um trabalho localizado em um espaço específico constituído pelo seringal (ver cap. 1). Neste novo tempo também deixaram de ser “bravos”, habitantes da mata, e passaram a ter seus subgrupos “misturados”. Os Piro, habitantes do Baixo Urubamba na Amazônia Peruana, também se referem à sua história dividindo-a em tempos ou épocas específicas – “tempo dos anciãos”, “tempo da borracha”, “tempo da fazenda” e o tempo atual (“estes tempos”). O “tempo dos anciãos” é um tempo do qual os Piro buscam, atualmente, distanciar-se de maneira qualitativa. Neste tempo, seus acestrais viviam na floresta, sem ainda terem estabelecido contato com os brancos, e se constituíam enquanto um determinado tipo de pessoa que muito se diferenciava dos Piro atuais. Particularmente, faltava-lhes grande parte do conhecimento atualmente adquirido, pois ignoravam instrumentos de metais, espingardas, “roupas de verdade”, dentre outros bens. O tempo dos anciãos era também marcado por constantes guerras e violências. De maneira contrastante, os Piro se encaram, nestes tempos, enquanto pessoas “civilizadas”, e tal modo de ser é encarado positivamente por eles. Esse estado não se opõe a um suposto modo de ser “tradicional”, mas sim a um tempo associado “à ignorância e ao desamparo dos antigos ancestrais moradores da floresta”, de modo que, “ser civilizado” significa ser autônomo, viver em aldeias e de acordo com os valores considerados apropriados, comer “comida legítima”, etc. Assim, os Piro se afirmam, “no tempo atual”, como pessoas diferentes daquelas dos tempos antigos, sendo agora pessoas misturadas e civilizadas (Gow, 1991, p. 62-63). Os Kulina, diferentemente dos Piro, parecem vivenciar, no tempo atual, uma posição ambígua em relação ao seu tempo dos antigos. Mesmo que hoje habitem a margem de rios maiores, tendo inclusive aprendido a construir canoas, eles, ainda assim, se veem como “moradores da mata” (dsama abari). Os Kulina se identificam ao mutum como sendo habitantes da floresta que apenas recentemente se adaptaram a uma vida à beira dos grandes rios (Altmann, 2000, p. 85). São caçadores, considerando a carne de caça sua comida por excelência (Pollock, 1985, p. 34, 48). Em meados do século XIX, eram conhecidos mais por rumores, de acordo com o explorador William Chandless, uma vez que eles preferiam viver no meio da mata, evitando aparecer às margens dos grandes rios (Chandless, 1969, p. 300). Os Kulina identificam sua origem 95 Histórias kulina e kanamari “no coração da mata” ou “em direção ao interior da mata”, apesar de viverem nas margens dos rios. Segundo Altmann (2000, p. 63), “a floresta ainda hoje permanece como espaço de reserva para o seu abastecimento físico e simbólico”. Por outro lado, foram os próprios Kulina que, em determinado momento, viram-se desejosos dos bens que os brancos possuíam. Certamente, esta atração exercida pelas mercadorias não deve ser vista de maneira isolada, mas inserida num contexto em que o território antes ocupado pelos Kulina estava, agora, também povoado pelos cariús. Como vimos no cap. 1 e também neste, a chegada dos brancos à região provocou inúmeras transformações no espaço, com a instalação de seringais, a ocorrência de doenças decorrentes do contato e de correrias que ameaçaram, quando não exterminaram, muitos povos indígenas que lá habitavam. Desse modo, a saída do centro da mata para a margem foi também o encontro com a “civilização”38. Este encontro produziu diversas modificações na vida kulina, sendo significativas as rupturas entre seus diferentes tempos. Em 1999, o SIL do Peru produziu uma publicação de relatos kulina sobre o tempo de seus antepassados, intitulada Ididenicca ima. O conjunto desses relatos chama a atenção para o fato de que o tempo atual muitas vezes é visto como o sinônimo do acesso a bens industrializados e às transformações a eles associadas. Como afirma Jaimoda (Madihá), “desde que nossos antepassados saíram para o grande rio e entraram em contato com a civilização, usamos coisas fabricadas”. Antes, viviam “na floresta”, não usavam roupas, dormiam em qualquer lugar, usavam conchas como talher, moravam em malocas, não conheciam o algodão, usavam vasilhas de cerâmica e palitos velhos de cana brava para fazer fogo. Hoje, vivem “no rio”, andam vestidos, dormem em casas, usam colheres, moram em casas menores39, conhecem o algodão, utilizam fósforos e vasilhas fabricadas (cf. Ididenicca ima, 1999, p. 42-68). Chiara & Schultz (1955, p. 186) relataram, na década de 1950, que o contato entre os Kulina e os seringueiros já havia provocado transformações nas percepções e costumes desse grupo: nunca se despiam diante de um visitante e distinguiam-se com orgulho dos “caboclos brabos” que não usavam roupas. Por outro lado, notaram que já não lhes era mais possível suprir a todas as suas necessidades recorrendo às fontes da natureza, “mesmo se quisessem voltar ao sistema primitivo da sua vida econômica”. Como afirmou Viveiros de Castro (1978, p. 10): “a margem é o locus da civilização para os Kulina”. Trata-se de casas pequenas quando comparadas com as malocas de antigamente, construídas sobre pilotis, nos moldes regionais das habitações dos seringueiros (Altmann, 2000, p. 46-47; Silva, 1997, p. 17). 38 39 96 Capítulo 2 Pois, “com a invasão das matas por levas de seringueiros, madeireiros, comerciantes e caçadores”, os recursos naturais tinham sido diminuídos ou até esgotados (Chiara; Schultz, 1955, p. 188). O fato de que os Kulina distinguiam-se dos “caboclos brabos” com orgulho contrasta com a outra postura observada entre este grupo: a saber, o fato de se afirmarem moradores da mata, mesmo que, hoje, não mais a habitem. O contraste é radical e, ao mesmo tempo, equivalente à ruptura entre os diferentes tempos-espaços de sua história. Esta ambiguidade foi mantida nas décadas posteriores, como podemos observar nos relatos de Pollock (1985) e Altmann (1994) a respeito da posição ocupada por este grupo. A este respeito, Pollock afirmara na década de 1980: Atualmente, os Kulina se veem entre a fidelidade a uma economia de subsistência tradicional e o desejo de produzir excedentes ou uma renda extra, muitas vezes sacrificando a primeira em detrimento do segundo. O dilema fundamenta uma séria divisão na aldeia entre aqueles que desejam maximizar o potencial produtivo do trabalho da aldeia por meio, por exemplo, da atividade seringalista, e aqueles mais conservadores que rejeitam o estabelecimento de relações econômicas permanentes com os brasileiros, nos termos estabelecidos por estes últimos, e a ruptura cultural e social que este tipo de interação já produziu (Pollock, 1985, p. 55, tradução minha). Altmann acentuou ambiguidade semelhante: “o Kulina vive a contradição de ser morador da água/terra por um lado [...], e morador do ar/mata, por outro [...]. Esta contradição integra sua dinâmica de vida no atual momento histórico” (Altmann, 1994, p. 115-116). A contradição observada na dinâmica da vida parece ser, entretanto, recolocada sem ambiguidade nos tempos em que os Kulina dividem sua história. Eles apontam para dois modos contrastantes de se viver, para duas socialidades distintas. Em cada uma delas, mudam os espaços e também os próprios Madihá. Os tempos, desse modo, apontam para duas diferentes possibilidades de existência social. Os Kulina, nesse sentido, reportam-se ao ididenicca como um tempo-espaço ideal, associado a aspectos cruciais da sua identidade – caçadores, moradores do centro da mata. Assim, os tempos, ao totalizarem sem ambiguidades socialidades divergentes, parecem também operar como um modo específico de reflexão sobre a história, uma vez que encarnam diferentes possibilidades de existência experimentadas pelos Kulina, a partir das quais podem ser pensadas alternativas futuras. Nesse sentido, a possibilidade de morarem em uma terra demarcada parece ter suscitado neles a ideia de poderem “viver como antigamente”. O relato de Bosi Cacoari 97 Histórias kulina e kanamari Madija, registrado no Juruá na década de 80, é expressivo desta esperança e em muito se assemelha às expectativas dos Kulina do Purus em relação à demarcação de sua terra no mesmo período, expressa na carta redigida em conjunto com os Kaxinawá. Em ambos os relatos, notamos a importância atribuída à terra para a constituição de uma nova vida como também à aprendizagem da escrita e do cálculo, mediadores da relação com os brancos. Assim afirmou Bosi Cacoari Madija: Antigamente, nesta terra toda só morava índio. Morava bonito. Cantava, fazia festa, caçava e pescava. Família morava tudo junto numa maloca que kulina chama odsa beje Na maloca os velhos contavam história antiga. História antiga ensinava kulina viver bonito. Não tinha fofoca. A terra era de todos. Depois chegou o branco. Branco queria terra de kulina para cortar seringa, para botar fazenda. Branco matou muito kulina. Abusou de mulher de kulina. Levou criança para criar. Kulina quase que acaba. Sobrou pouco e virou escravo de seringueiro. Agora kulina é pouco. Mora tudo longe, em casa pequena. Agora velho não pode mais contar história antiga. Agora kulina quer mercadoria, quer roupa, quer munição, quer sal. Kulina tem que trabalhar duro para comprar mercadoria. Se kulina não conhece dinheiro, branco engana, não paga certo. Quando kulina aprende ler, fazer cálculo, aí branco não pode mais enganar kulina. Quando terra estiver demarcada, aí kulina vai viver bonito como antigamente40. De fato, desde que se viram concentrados em aldeias maiores nos tempos atuais, ao invés de dispersos em colocações nos seringais, os Kulina consideraram aumentadas suas possibilidades de organização e sobrevivência. No alto Purus, desde a década de 1970, pelo menos, não estavam mais inseridos na economia regional estritamente como “seringueiros”, identidade a qual nunca adotaram para si tão amplamente como os Kaxinawá, por exemplo. Nesta época, os Kulina de Maronaua podiam mais ser vistos como um misto de “barranqueiro” – camponês que ocupa terras de seringais desativados – e “peão”, dada a forma com a qual se ligavam ao seringal Sobral; mas nunca deixaram de manter seus roçados (Viveiros de Castro, 1978, p. 28). A anterior impossibilidade de fixidez na terra estava diretamente vinculada à busca por novos e Relato registrado por Abel Silva na aldeia do Igarapé do Anjo, no Rio Envira (Silva, 1984 apud Altmann, 2000, p. 48-49). 40 98 Capítulo 2 bons patrões (cf. Altmann, 2000, p. 109) e à desestruturação da chefia indígena. Não ter um espaço próprio significou não ter um chefe e também uma desorganização do modo de vivência anterior dos subgrupos madihá. Como vimos, no tempo dos antigos, antes da chegada dos brancos, os Kulina pareciam ter certa fixidez em seu território, uma vez que não precisavam realizar deslocamentos em função de fugas e epidemias constantes. Um bom chefe (tamine) nos termos kulina é aquele que, “mesmo nos períodos de crise, ainda tem algo a oferecer”. Um bom chefe seria uma espécie de “chefeconselheiro-pajé-cantador” (Altmann, 1994, p. 92), exercendo também atividades xamânicas, sendo um bom orador/cantador e mantendo o povo unido. Pois o discurso – assim como o canto –, para os Kulina, é a característica de sociabilidade por excelência, sendo elemento diferenciador entre tipos de pessoas, entre aquelas menos e mais completas. Como vimos antes, a competência linguística é uma importante característica que diferencia as pessoas ao longo do ciclo de vida. Pessoas completas como o tamine eram as que deveriam, idealmente, estabelecer contatos com os cariús41. O tamine é entendido pelos Kulina como o “patrão” que chefia os dzutupéi (chefiados/ fregueses): sua figura é associada à do “bom patrão”. Sua função é a de “agradar o pessoal”, patrocinando festas e promovendo a distribuição alimentar. Ele discursa em público ao crepúsculo exortando a comunidade ao trabalho, censurando os desvios e lembrando os exemplos do passado; é ele também quem atua como pacificador nos casos de feitiçaria (dori). Assim, na posição de “bom patrão”, ele convoca a comunidade ao trabalho e efetua a redistribuição cerimonial (Viveiros de Castro, 1978, p. 79). A busca por bons patrões foi uma constante na história recente dos Kulina. Eles estavam, como procurei mostrar, associados com as possibilidades de existência social dos Madihá enquanto grupo. De maneira análoga a de um chefe, um bom patrão é aquele que, ao organizar o trabalho, torna uma forma específica de vida social possível. A destruição parece ter sido sempre um horizonte possível para os Kulina. Trata-se de um acontecimento relatado pelo próprio mito de origem dos Madihá, Os Kulina classificam as doenças advindas do contato com os brancos como doenças externas, que ocorrem na pele, podendo, desse modo, serem tratadas com propriedades de plantas e cheiros. O lócus externo dessas doenças, como o sarampo, indica que elas são causadas por contatos impróprios com uma influência anti-social ou selvagem; neste caso são os brasileiros que representam tal influência. Na perspectiva kulina, os contatos ideais com os brasileiros deveriam ser sempre estabelecidos por pessoas consideradas completas, mais preparadas para lidar com influências exteriores ao grupo - as crianças representariam o extremo oposto desta escala (Pollock, 1985, p. 197-198). 41 99 Histórias kulina e kanamari quando Massosso colocou fim à existência anterior dos Kulina. É igualmente um horizonte aventado na carta endereçada à Funai, quando consideraram necessário afirmar “nós não queremos morrer”. A Funai aparece, desse modo – tal qual sugerido no início deste capítulo –, como um possível futuro novo patrão. O relato de Bosi Cacoari Madija aponta para a importância da terra e para a esperança de mudança dos tempos quando os Kulina tivessem uma terra demarcada. E, como vimos, nada melhor do que um novo espaço para a constituição de um novo tempo. Desse modo, o ididenicca não parece ser encarado como um passado irreversível, mas como um tempoespaço no qual se poderia voltar a viver; um passado que se concretiza como perspectiva de futuro. Subgrupos, territorialidades e as transformações dos tempos kanamari Do Céu Antigo ao tempo de Tamakori: primeiros tempos Os Kanamari, falantes de uma língua da família Katukina, formam uma população de aproximadamente 3.167 indivíduos (FUNASA, 2010 apud ISA, 2013e) que habitam majoritariamente o médio Juruá. Recentemente, houve migrações dos Kanamari para a região do baixo Japurá, afluente do Solimões e também para o médio Jaravi, passando antes pelo alto Itaquaí (Costa, 2007, p. 19). No que se refere a Terras Indígenas homologadas, atualmente, os Kanamari habitam: KN1) a TI Kanamari do Rio Juruá; KN2) a T. I. Mawetek, na margem esquerda do Juruá, de onde vieram os Kanamari que habitam atualmente o alto Itaquaí; KN3) a T I Vale do Javari, compartilhada com os Korubo, Marubo, Kulina Pano, Matis, Matsés, Tsohom-dyapa e outros grupos isolados; KN4) a TI Maraã/Urubaxi e KN5) a TI Paraná do Paricá, ambas na bacia do Solimões; e, por fim, KN6) a TI Patauá, na região da confluência entre os rio Solimões e Madeira, compartilhada com os Mura (ISA, 2013) – ver mapa 3. Na atual Terra Indígena do Vale do Javari, existem três núcleos Kanamari: um no alto Itaquaí, outro no alto Jutaí e um terceiro no médio Javari. Neste capítulo, abordarei particularmente os Kanamari do alto Itaquaí, estudados pelo antropólogo Luiz Costa nos anos de 2002 a 2006. Estes Kanamari migraram para este rio a partir dos afluentes da margem esquerda do Juruá no final da década de 1930. O alto Itaquaí se situa muito próximo do alto curso destes afluentes, mais ou menos a um dia de caminhada (Costa, 2007, p. 19). Antes da migração de 1930, muitos Kanamari já 100 Capítulo 2 visitavam o Itaquaí, possivelmente estabelecendo lá algumas aldeias (Tastevin s.d.1, p. 12, 17 apud Costa, 2007, p. 19). Os Kanamari que, hoje, habitam o alto Itaquaí dividem sua história em três tempos: tempo de Tamakori, tempo da Borracha e tempo da Funai42. Eles narraram diversas histórias (ankira) a Costa (2007) e sempre situavam cada uma delas em um desses tempos. Cada uma das eras é inaugurada por uma figura paradigmática que sintetiza tipos específicos de relações que marcam a vida dos Kanamari no tempo em questão, “como se as interações dos Kanamari com cada uma dessas figuras se prolongasse após sua ausência, desembocando na socialidade que os sucede” (Costa, 2007, p. 32). Para cada tempo, há uma história (ankira) que explica a origem da era em questão e que narra as atividades de seus personagens prototípicos durante sua estadia entre os índios43. Há, ainda, um quarto tipo de histórias, as chamadas “Histórias do Céu Antigo” que não se situam em nenhum desses tempos, havendo apenas um consenso entre os Kanamari de que elas teriam ocorrido antes do tempo de Tamakori. Elas narram como surgiu um mundo dividido em tempos (Costa, 2007, p. 32) e, desse modo, trazem consigo certa ideia de atemporalidade, de algo que existiu e continua existindo fora das transformações do tempo e da história44. As Histórias do Céu Antigo narram, por meio de um conjunto de mitos, como o modelo de endogamia do subgrupo passou a existir. Neste mundo, o “mundo mítico”, tudo o que existia estava contido por uns poucos jaguares. O mundo era caracterizado pela continuidade e eternidade. Foi apenas com a queda do Céu Antigo sobre a terra que este mundo foi fragmentado em unidades menores, i. e. discretas; sendo os subgrupos uma delas. Foram Tamakori e Kirak, irmãos e heróis criadores que estabeleceram os componentes finais deste novo mundo surgido, no decorrer de uma longa viagem que realizaram pelo Juruá (Costa, 2007, p. 209). Foram, desse modo, os mesmos heróis culturais, acima referidos como Tamaco e Quira, que criaram os madihá dos Kulina45. Infelizmente, não tivemos acesso aos nomes dos tempos kanamari na língua indígena. Segundo Costa (2007), os Kanamari costumam se referir a esses tempos em português, mesmo no contexto de um discurso proferido na língua kanamari. Assim, por exemplo, ao afirmarem que determinada história se sucedeu “quando era o Tempo de Tamakori”, dizem “Tempo de Tamakori toninim anim” (cf. Costa, 2007, p. 32). 43 Os tempos Paumari também são caracterizados por apresentarem histórias inaugurais de personagens prototípicos (ver cap. 3). 44 No próximo capítulo abordarei mais detidamente maneiras possíveis de se pensar o tempo mítico com relação aos demais tempos não míticos. 45 Carvalho (2002, p. 90-91) já havia atentado pela enorme semelhança entre os subgrupos e histórias de criação dos Kulina e Kanamari. 42 101 Histórias kulina e kanamari As Histórias do Céu Antigo não devem ser entendidas como um dos tempos kanamari, por serem justamente descaracterizadas de um tempo e espaço circunscrito e ter como qualidade fundamental a atemporalidade. Os Kanamari, como esclarece Costa (2007, p. 210), não sentem a necessidade de enumerar uma época equivalente aos seus demais tempos para este conjunto mítico. Enquanto esses mitos narram uma história que parece ter ocorrido em um passado distante, precedente à chegada de Tamakori, “eles não são nem temporais nem tampouco contêm referentes geográficos precisos. Ao invés disso, eles se situam em um mundo que continua vindo a existir, fora da história e além do tempo”46. Eles expressam antes um “potencial de mundo” e “virtualidades sociais” (Costa, 2007, p. 210). O mundo mítico kanamari é povoado por personagens-jaguar (Pidah), os quais se relacionam a dois princípios fundamentais. O primeiro deles, muito semelhante ao aventado pelos Kulina, reconhece nos jaguares a antítese do mundo que desejam para si próprios, pois representam o princípio da não sociabilidade por excelência: eles estão associados à raiva, à avareza e à solidão. Com eles, a única relação possível a se estabelecer é a de guerra. Os Kulina, de modo análogo, atribuem aos jaguares o princípio de wadi (são selvagens, insociáveis). As almas dos mortos (tabari) que não são conduzidas para o mundo subterrâneo e transformadas, adequadamente, em espíritos de queixada – processo auxiliado pelo xamã –, são transformadas em espíritos de jaguar (dzumahe tokorime), passando a habitar uma das camadas do céu (patso dazamarini). Essas duas alternativas pós-morte refletem não simplesmente funerais própria ou impropriamente realizados como pessoas impróprias/bruxos e pessoas normais. Os espíritos-queixada, sendo gregários, são associados a características humanas. Já os espíritos-jaguar são tomados como selvagens, caçadores solitários, seres temerosos que incorporam as capacidades destrutivas dos feiticeiros (cf. Pollock, 1985, p. 101-102, 180). O segundo princípio incorporado por esses jaguares antigos refere-se à mestria: o Jaguar é o mestre (-warah) de tudo, qualidade que atrai os Kanamari, embora igualmente os assuste (Costa, 2007, p. 211). –Warah significa, simultaneamente, “chefe”, “corpo” e “dono”: A palavra –warah precisa ser prefixada por um sujeito, de modo que uma pessoa sempre será “chefe/corpo/dono” em relação a alguma A passagem de um mundo mítico a uma era inserida no tempo e no espaço será mais bem trabalhada no cap. 3, onde abordarei esta transição para o caso específico dos Kaxinawá. 46 102 Capítulo 2 coisa, alguém ou algumas pessoas. Este termo pode, portanto, se referir a qualquer corpo vivo, e um corpo humano é dito tukuna-warah, “pessoa-corpo”. A palavra também pode ser empregada de um modo parecido com o verbo „ter’ em português, mas, nesse caso, indica-se que alguém é “dono” de alguma coisa. A afirmação “oba-warah anyan bo”, por exemplo, pode ser glosada como “ele tem tabaco”, mas literalmente quer dizer algo como “ele é dono do tabaco”. Os chefes são chamados de tyo-warah, “nosso corpo/dono” por aqueles de quem eles são chefes (Costa, 2007, p. 47). A ideia transmitida pelo termo é a de fornecimento de estabilidade a algo que é potencialmente fluido: –warah afirma-se como “um” àquilo que é potencialmente “muitos” (Costa, 2007, p. 47). O mundo atual dos Kanamari surgiu através de repetidos ataques ao corpo (warah) do Jaguar – equivalente ao mundo então existente –, o qual começou a se esvair, “tornando-se sucessivamente menos Jaguar” (Costa, 2007, p. 211). Um desses mitos, no qual o Jaguar era o “mestre dos peixes” mostra como um corpo-Jaguar se transformou em diversos aspectos do mundo humano, tais quais os seringais (cf. Costa, 2007, p. 216217). Foi também o Jaguar que nomeou o Juruá, o qual é frequentemente referido como “o rio do Jaguar” (Pidah nawa wah). A associação entre o Juruá e o Jaguar é significativa, pois, para os Kanamari, o Juruá – além de ser o -warah de todos os outros rios, seus afluentes, nos quais passaram a habitar os subgrupos kanamari no tempo de Tamakori – é um rio ambivalente. Ao mesmo tempo em que respeitado e imponente, o Juruá era, naquele tempo de Tamakori, o rio no qual não se poderia viver, “fluindo em águas barrentas, repletas de mosquitos, e povoado por perigosos povos de língua Pano”, dentre os quais, os Kaxinawá47 (Costa, 2007, p. 225). Com o surgimento do mundo atual, os Kanamari passaram a existir por meio de seus subgrupos –dyapa organizados, cada qual, em um conjunto de aldeias. Cada aldeia emerge como uma unidade por meio de um –warah (chefe/corpo/dono) que dá forma ao conjunto de pessoas que dela fazem parte, estabilizando-o, por assim dizer. Segundo os Kanamari, sem um chefe essas pessoas não poderiam viver juntas em aldeias. Os habitantes de uma aldeia podem, então, ser referidos pelo nome do chefe seguido pelo termo –warah. Se tomarmos „X’ como o nome do chefe de uma aldeia, dizer que determinadas pessoas são „X’-warah significa que elas são aqueles cujo „corpo’ é „X’. O chefe é a razão pela O Juruá sempre fora evitado pelos Kanamari (Costa, 2007, p. 227). Mas, no tempo da borracha, como veremos adiante, suas margens passaram e ser habitadas por este grupo indígena, fato que esteve associado com uma enorme desorganização social em suas vidas. 47 103 Histórias kulina e kanamari qual essas pessoas vivem em um dado lugar. É a comida que ele redistribui que as mantém ali e a morte dele significa a dispersão da aldeia (Costa, 2007, p. 48). De maneira análoga, cada subgrupo – formado pelo conjunto das aldeias de uma bacia hidrográfica de um afluente do Juruá, cada qual com seu chefe – também tinha um “chefe de subgrupo”. Os Kanamari reconheciam explicitamente que o chefe de subgrupo era a fonte a partir da qual todas as outras pessoas do subgrupo desejavam viver próximas umas das outras (Costa, 2007, p. 48). O -warah era, desse modo, literalmente, o corpo que dava sustentação a uma determinada unidade, tal qual o tronco de uma árvore – a palavra –maita, traduzida por “tronco” podia ser também empregada como referência ao chefe de subgrupo. A “gente-animal” que povoava o mundo mítico kanamari, com a queda do Céu Antigo, transformou-se, em última instância, nos diferentes tipos de animais que povoam o mundo atual (Costa, 2007, p. 229). As “gentes” humanas, por sua vez, foram criadas pelos heróis míticos Tamakori e Kirak a partir de sementes de palmeira (caso também dos Kulina) ou ainda de seu tronco – que é o caso dos Dyapa, nome conferido pelos Kanamari aos povos falantes de língua pano48: Tamakori fez (-bu) os primeiros Kanamari (tukuna) da semente da palmeira jaci (poro em Kanamari, Lat. Attalea butyracea). Ele os fez com a ajuda de seu irmão (em outras versões “companheiro”) Kirak, que trepou na palmeira e atirou as sementes sobre as costas de Tamakori. Impressionado, Kirak quis fazer igual. Então Tamakori trepou em uma palmeira diferente, a karatyi49, e atirou as sementes em Kirak, que, desajeitado, se atrapalhou e as derrubou todas no chão, sem conseguir apanhar sequer uma delas. Dessas sementes surgiram os Kulina, e porque elas se espalharam pelo mundo, os Kulina são numerosos e ocupam extensas porções de terra. Tamakori então prosseguiu para fazer os Ameríndios de língua Pano, os Dyapa, a partir do tronco da jaci. Porque se originaram do tronco, e não das sementes, os Dyapa são ferozes e duros (Costa, 2007, p. 230). Vemos, desse modo, como o próprio mito já estabelece uma diferença entre as gentes a partir do fato de se originarem de sementes (apesar de serem de palmeiras diferentes) ou do tronco: os Kulina e Kanamari são constituídos a partir de sementes de palmeira, ao passo que os Dyapa se originaram do tronco, sendo, por isso, “ferozes” e “duros”. O mito estabelece, assim, uma proximidade entre os Kulina e os Kanamari Sendo que os Kaxinawá e os Korubo são exemplos prototípicos da qualidade Dyapa de um ponto de vista kanamari (Costa, 2007, p. 41-42). 49 Segundo Costa (2007, p. 230, nota 178), trata-se, provavelmente, da palmeira inajá (Maximiliana maripa). 48 104 Capítulo 2 enquanto coloca os Dyapa em local mais distanciado. Todos eles foram, entretanto, criados no médio Juruá (Costa, 2007, p. 272). De fato, tanto os Kulina como os Kanamari veem os Kaxinawá – que fazem parte dos chamados Dyapa pelos últimos – como inimigos por excelência, havendo uma desigualdade na relação entre eles. Os Dyapa são feitos do tronco (warah) e, como vimos anteriormente, também habitam o rio Juruá, o rio do Jaguar e das ambiguidades a ele associadas. Os Kulina, por sua vez, são, nas palavras dos próprios Kanamari, “quase iguais aos Kanamari”: apesar de “traiçoeiros”, partilham com eles uma divisão em subgrupos, um complexo xamânico e mantêm a possibilidade de inter-casamentos (Costa, 2007, p. 274). É, portanto, Tamakori, acompanhado de seu irmão (ou companheiro), que, ao longo de viagens pelo Juruá, cria um tempo no qual é possível aos Kanamari se reproduzirem enquanto grupo, rompendo, igualmente, com o mundo mítico que o precedia. Neste tempo, os Kanamari passam a viver organizados em subgrupos, cada qual habitando um tributário diferente do Juruá e preconizando a endogamia de subgrupo. Cada –dyapa era, assim, caracterizado por uma “base geográfica própria” e pela “autonomia matrimonial” (Carvalho, 2002, p. 87). Na versão do mito de criação dos subgrupos reportada por Carvalho (2002), Tamakori deixa cada um dos –dyapa em uma colocação, acentuando o caráter geográfico dos subgrupos kanamari: Quando já vinha de volta, conhecer o pessoal, era T3k3na [Tukuna], já tinha índio. Hitsan, Potso Djapa, Bem Djapa (...) Cada um, uma colocação. Muita gente mesmo. Deixar cada um numa colocação pra não misturar. Quer dizer, Tamakori deixou cada um só numa colocação, foi num dia só, deixar Bem Djapa, Hodja Djapa (...) até na cabeceira do rio50. Ou, como afirmou um Kanamari: “em cada um igarapé mora um Djapa. Dessa tribo mesmo, mesmo índio. Espalhado pra não morar junto, porque ele é assim mesmo, costume” (apud Carvalho, 2002, p. 87). Os subgrupos viviam, então, nos tributários do Juruá, localizados em bacias hidrográficas específicas das quais eram “donos”. Nesta época, nenhum Kanamari habitava as margens do Juruá, o que aconteceu apenas com a chegada posterior dos brancos. Havia, então, uma enorme associação entre os –dyapa e o espaço que habitavam: “o subgrupo era contido pela bacia hidrográfica e, por sua vez, a definia, de modo que as duas coisas vieram a significar uma só” (Costa, 2007, p. 42). Em cada bacia 50 Este é apenas um trecho do mito. A versão completa pode ser conferida em Carvalho, 2002, p. 89-90. 105 Histórias kulina e kanamari hidrográfica, existia certo número de aldeias, algumas situadas no curso principal do tributário e outras nos igarapés que desembocavam nele. Todos os habitantes das aldeias de uma mesma bacia se consideravam parentes (wihnim) entre si. Ainda assim, havia uma distância mínima que se estabeleciam entre as aldeias, de modo que os casamentos deveriam ser preferencialmente estabelecidos com parentes de outras aldeias, denominados “parentes distantes” (wihnim parara); mas sempre circunscritos ao nível local e endogâmico da bacia hidrográfica habitada (Costa, 2007, p. 44-45). Desse modo, as relações entre os subgrupos eram claras, segundo os Kanamari, seguindo um padrão estável no qual “todos sabiam quem era parente, aliado e inimigo” (Costa, 2007, p. 39). Este tipo de relação presente no tempo de Tamakori foi de longa duração, somente sendo rompido no tempo da Borracha. O tempo de Tamakori era, assim, caracterizado por uma territorialidade específica, um modo particular de ocupação do espaço. O fato de que os Kanamari podiam saber com segurança quem era inimigo e quem era aliado tinha também uma importância morfológica, uma vez que o subgrupo e a bacia hidrográfica definiam-se mutuamente e a distância entre as aldeias implicava igualmente na distância correta para o estabelecimento de relações de aliança por meio do matrimônio. Parentesco e território estavam mutuamente implicados. Nesta época, cada bacia hidrográfica, i. e. subgrupo, tinha pelo menos uma maloca (hak nyanim), pertencente ao -warah (Costa, 2007, p. 52). No período da seca, os Kanamari se aglomeravam ao seu redor em habitações mais ou menos temporárias, feitas com folha de jarina (chamadas dyaniohak). Neste período, realizavam os rituais Kohana e Pidah51. Os rituais Hori aconteciam, provavelmente, na época das chuvas, quando a pupunha estava madura e a bebida feita dela (tyo-koya, caiçuma de pupunha) poderia ser servida aos convidados (Costa, 2007, p. 50). Estes rituais assemelhavam-se ao ritual Coidsa dos Kulina, na medida em que ambos proporcionavam o encontro entre pessoas de diferentes subgrupos, mediadas por seus chefes52. Chefes se reuniam nos rituais Hori na posição de –tawari, termo que pode ser traduzido por “amigo”, “companheiro”. –Tawari são pessoas com as quais especificamente se realizam rituais Hori, isso porque os –tawari “„conhecem’ (tikok) uns aos outros, e, portanto, sentem-se relativamente seguros visitando-se” (Costa, 2007, p. 46). Esses rituais, segundo os Kanamari, ajudam a assegurar a continuidade da produtividade das capoeiras (para maiores detalhes sobre eles, cf. Costa, 2007). 52 O Coidsa ainda é realizado pelos Kulina; mas o Hori, segundo afirmam os Kanamari do Itaquaí, deixou de ser realizado por estes (cf. Altmann, 1994, p. 87-92; Costa, 2007, p. 79). 51 106 Capítulo 2 Nas viagens realizadas para o Hori, era o Juruá que servia de caminho e coordenada53, sendo ele, claramente, o chefe/corpo/dono de todos os outros rios. Articulava, desse modo, tanto as bacias hidrográficas quando os subgrupos. Essas viagens nunca eram feitas por terra, mas descendo-se ao Juruá e novamente subindo para seu outro afluente, local anfitrião do ritual (Costa, 2007, p. 57). O tempo de Tamakori era, ainda, um tempo de muitas guerras e conflitos com outros grupos indígenas. Nelas, os Kanamari se diziam frequentemente vítimas, surpreendidos em emboscadas. Segundo eles, sua reação não era a vingança, mas antes a fuga e a dispersão54. Entretanto, apesar dos conflitos recorrentes, os Kanamari lembram-se desse tempo como um no qual “as pessoas podiam viver com seus parentes, fixadas a uma área, interagindo com outros grupos de parentes” (Costa, 2007, p. 34). Tais interações eram consideradas adequadas, mais ou menos pacíficas, marcadas pela presença dos encontros rituais Hori. Os Kulina, como vimos, aproximam-se dos Kanamari neste ponto, pois veem seu tempo dos antigos como um tempo ideal, no qual viviam em um espaço adequado à sua reprodução social. Ambos, assim, divergem dos Piro que não guardam boas lembranças de seu tempo inicial – o tempo dos anciãos –, o qual consideram marcado negativamente pela guerra e pela ignorância. No tempo da borracha: a chegada de Jarado Segundo contam os Kanamari, foi a chegada de Jarado, o primeiro kariwa (“branco”) conhecido por eles, o evento que deu início ao tempo da borracha (Costa, 2007, p. 36). Este foi o período em que eles trabalharam juntos, iniciaram intercasamentos entre os subgrupos e tiveram acesso à mercadoria ocidental. Neste tempo, as atividades dos brancos, das quais, posteriormente, os Kanamari começaram a participar, passaram pela extração do caucho, seguido da borracha e da madeira. Estes índios têm poucas lembranças da extração do caucho, que caíra em desuso na região, cedendo lugar à borracha, a qual, depois, perdeu seu valor de mercado. Atualmente, é o comércio da madeira que predomina no Vale do Javari, onde estão estabelecidos Os Kanamari localizam espacialmente diversos lugares em relação ao Juruá. Mesmo áreas que ficam para além de sua bacia, como o Itaquaí e o Jutaí, são referenciadas como rio acima ou rio abaixo de um lugar situado ao longo do Juruá (Costa, 2007, p. 58). 54 Tais afirmações de passividade devem ser, em certa medida, questionada, já que sabemos que colocando-se na posição de “mansos” os grupos indígenas da região certamente se viam mais aceitos pelos brancos. 53 107 Histórias kulina e kanamari esses Kanamari. Ainda assim, eles nunca deixaram de coletar borracha, mesmo quando a extração de madeira veio a se tornar predominante (Costa, 2007, p. 61). Conforme narrado na “história de Jarado”55, Jarado foi o primeiro branco criado por Tamakori em Manaus que se aventurou a subir o Juruá, em seu batelão56 durante a estação da pupunha, a fim de conhecer os Kanamari. Segundo contam, ele subiu o Juruá marcando o território com estacas de pau, estabelecendo os locais a serem ocupados pelos seringais que, futuramente, ali ganhariam existência. Quando chegou à boca do igarapé Toriwá (chamado Curumim pelos brancos), foi recepcionado pelos Japó-dyapa, que se mostraram felizes ao recebê-lo. Embora tenham encontrado Jarado naquele local, os Japó-dyapa não moravam ali, habitavam as cabeceiras. Jarado chamou o chefe pelo seu nome, tuxaua Porina; ele entendia a língua kanamari. Os Japó-dyapa o chamaram de –tawari e, da mesma maneira, Jarado retribuiu o chamado. Jarado desceu de seu batelão para fora do rio e deu aos ancestrais dos atuais kanamari presentes: trouxe pregos de ferro, anzóis, panelas de pressão etc. Mas, desta primeira vez, não lhes trouxera nenhuma espingarda. Jarado comeu carne de queixada defumada e bebeu bebida de mandioca: comeu e bebeu o mesmo que os índios57. Jarado, então, deixou os Kanamari e continuou viajando rio acima até chegar a Cruzeiro do Sul. Lá, não havia brancos ainda. Jarado “começou”58 a cidade ali: “é aqui que Cruzeiro ficará”, ele disse. Depois disso, seguiu rio abaixo, dando nome às cidades e barracões ao longo do caminho por que passava, até chegar em Manaus. Tempos depois, Jarado voltou à boca do Toriwa, mas os Japó-dyapa não o viram lá, pois estavam todos nas cabeceiras do rio. Jarado conheceu os Dyapa ali perto, os raivosos, mas pensou que fossem os Kanamari. Logo percebeu que estava equivocado, pois os Dyapa começaram a atirar com flechas: eles eram os Kaxinawá. Alguns homens que estavam com Jarado foram atingidos. Eles revidaram atirando com armas de fogo, vencendo os Dyapa. Estavam ansiosos por encontrar seu –tawari novamente. Os Kanamari também estavam esperando por ele: “Ihh, o Kariwa está vindo de novo. Nosso patrão está subindo o rio!”. Jarado, então, voltou a encontrar os Japódyapa de antigamente. Os Kanamari, diferentemente dos Kaxinawá, “não são ferozes”59. É por esta razão que Jarado não atirou contra eles, mas deu-lhes coisas. Desta segunda vez, Jarado trouxe espingardas, facas, machados, roupas. Se ele não tivesse chegado, os Kanamari não teriam essas coisas. Alguns Kanamari se referem a Jarado como “Jara”, palavra que significa “branco” na língua Katukina do rio Biá (J. Deturche, em comunicação pessoal a Costa, 2007, p. 63) e também na língua falada pelos Paumari (cf. Bonilla, 2007, p. 77), habitantes do médio Purus. Jarado é, portanto, um personagem que sintetiza, para os Esta é uma versão resumida da história. A versão completa pode ser encontrada em Costa (2007, p. 5961), o qual a compôs a partir de várias versões narradas a ele. 56 Denominação regional para um grande barco, sem motor, usado no comércio fluvial na Amazônia desde o século XIX. 57 O narrador kanamari, aqui, usa o termo em português índio. 58 Makoni é a palavra kanamari traduzida por “começar”; ela literalmente significa “dizer em [dado] lugar” (ver Costa, 2007, p. 59, nota 35). 59 Os Dyapa são seres não plenamente sociais, contrastando significativamente com o modo kanamari de ser (cf. Costa, 2007, p. 62): são “raivosos”, ao passo que os Kanamari se veem como pacíficos. 55 108 Capítulo 2 Kanamari, a chegada dos brancos que se estabeleceriam na região em seringais e iniciariam um período no este grupo indígena teria acesso às suas mercadorias. Jarado, na história, agiu como um –tawari, ao estabelecer um vínculo positivo com os Kanamari, em que relações de troca eram possíveis. Ele era um patrão, de acordo com a história; certamente, seria reconhecido como um bom patrão. Este tipo de relação entre os kariwa e os Kanamari não era, entretanto, mais do que uma relação buscada e idealizada pelos últimos. Tal qual os Kulina, eles, em um primeiro momento de contato com os kariwa/cariús, evitaram a proximidade com estes. Desse modo, os Kanamari passaram a evitar o leito principal do Juruá, local em que os brancos iniciaram sua ocupação. Não trabalharam inicialmente para os brancos, mantendo-se distantes nos tributários do Juruá, estabelecendo apenas contatos esporádicos. O Juruá, por sua vez, era o caminho seguido pelos Kanamari nos encontros estabelecidos entre os –dyapa, mas, com a chegada dos brancos, eles se viram obrigados a buscar outros caminhos. A alteração deste percurso, que se fez necessária, esteve na fonte de mudanças ocorridas na configuração endogâmica de seus subgrupos – pois, como vimos, a territorialidade e os subgrupos estavam mutuamente implicados. Este foi o caso dos Mutum-dyapa que habitavam o igarapé Komaronhu e dos Macaco de Cheiro-dyapa que habitavam o igarapé Mucambi, afluentes da margem esquerda do Juruá60. Esses subgrupos eram geograficamente próximos e consideravam uns aos outros –tawari seguros. A relação entre –tawari era especificamente aquela estabelecida entre homens que viviam em bacias hidrográficas diferentes. Mas, como explicitado anteriormente, não se tratava de quaisquer homens, devendo ser uma relação necessariamente estabelecida entre chefes de subgrupos que se encontravam, acompanhados de seus respectivos parentes, no contexto do ritual Hori (Costa, 2007, p. 75, 77). Anteriormente, o Hori entre esses subgrupos seguia uma rota específica: “os visitantes desciam os seus rios em canoas e depois subiam (Mutum-dyapa) ou desciam (Macaco de Cheiro-dyapa) o Juruá até a boca do rio do outro subgrupo”. Deste ponto em diante, eles subiam o rio em território de seu anfitrião, soando a corneta hori, que exercia a função de avisar os donos do território da chegada dos visitantes (Costa, 2007, p. 66). Cito o exemplo dos Mutum-dyapa e dos Macaco de Cheiro-dyapa a fim de explicitar o processo de coresidência que provocou uma “mistura” desses subgrupos. Mas atento para o fato de que este foi um processo mais geral que afetou os Kanamari neste período de sua história. Costa (2007, p. 64-78) fornece outro exemplo que aponta para a maior abrangência desta transformação nos subgrupos. 60 109 Histórias kulina e kanamari Entretanto, como o Juruá se tornara um perigoso caminho, as trilhas pela mata passaram a se constituir como o percurso mais seguro para o encontro entre estes subgrupos. Houve, assim, uma alteração no caminho percorrido para a realização do Hori, pois, não sendo impossível que tais trilhas já existissem antes da chegada dos brancos, elas não eram utilizadas para esse tipo de encontro. Mas, tal alteração de percurso provocou uma consequente mudança na própria dinâmica do encontro. Com o passar do tempo, eles foram se tornando mais frequentes e perdendo seu aspecto ritualizado: “pessoas antes não consideradas parentes chegavam, às vezes sem avisar” (Costa, 2007, p. 66). Aos poucos, o caráter ritual que marcava os encontros Hori deixou de existir, assim como as relações do tipo –tawari: as visitas passaram a ocorrer como se fossem entre aldeias de uma mesma bacia hidrográfica. Foi por volta de 1930 que esses dois subgrupos começaram a interagir mais intensivamente, de modo que a coresidência entre pessoas que, antes, não eram parentes, tornou-se possível. Dessa maneira, os Mutum-dyapa e os Macaco de Cheiro-dyapa se tornaram parentes (-wihnim) por meio, inicialmente, de visitas não rituais mais frequentes e, posteriormente, da coresidência – embora não estivesse claro que tipo de parentes eles seriam (Costa, 2007, p. 64-70). O fato de que a co-residência acabasse por se tornar parentesco não é de se estranhar, pois, como vimos, tanto entre os Kulina como entre os Kanamari, os subgrupos assumem um forte caráter espacial, o qual está diretamente relacionado com o processo de aparentamento. No tempo da borracha, portanto, os subgrupos –dyapa realizaram processos migratórios ocasionando “misturas” entre eles. A endogamia afirmada no tempo de Tamakori foi transformada: os rios que habitavam já não eram mais território exclusivo de um subgrupo61. Este foi um período em que foram ampliadas as possibilidades de se “re-desenhar as unidades e de mudar aqueles com quem se co-residia em uma escala que, antes, o modelo de endogamia do subgrupo não permitia” (Costa, 2007, p. 78), transformando a própria territorialidade, o modo de ocupação espacial dos Kanamari. A esta altura, faz-se necessário um esclarecimento sobre o que se quer dizer com a afirmação de que a cada subgrupo estava destinada uma bacia hidrográfica. Não há dados disponíveis para se afirmar em que medida o ideal de endogamia de subgrupo era realmente seguido no tempo de Tamakori, mas sabemos que, no tempo da borracha, mesmo antes da considerada co-residência entre subgrupos, havia pessoas de determinados subgrupos morando em rios de subgrupos diferentes do seu. Alguns Kanamari alegavam, por exemplo, que havia Sapo-dyapa casados com Mutum-dyapa nesta época. De qualquer modo, a presença de outros subgrupos em bacias diferentes da sua não contradiz o fato de que cada rio define um subgrupo, concepção persistente até os dias atuais (Costa, 2007, p. 71), e também de que a presença do chefe é necessária para a continuidade de um subgrupo. 61 110 Capítulo 2 Os Mutum-dyapa e os Macaco de Cheiro-dyapa, por exemplo, criaram um novo espaço de convivência e transformação: não mais estavam circunscritos em suas bacias hidrográficas de maneira isolada e haviam se misturado. O tempo mudara, assim como o espaço e a própria configuração do subgrupo. Neste novo espaço, mais amplo que o ideal kanamari pregava – como bem assinalado por Costa (2007, p. 72) –, pessoas dos diferentes subgrupos podiam mudar-se constantemente e estabelecer residência. Esta nova configuração espacial certamente ocasionou mudanças com relação à chefia de subgrupo, antes restrita a apenas um -dyapa; mas não é possível saber ao certo como passou a operar. Sabemos, entretanto, que, no caso específico da nova configuração Mutum-dyapa/Macaco de Cheiro-dyapa, os chefes do Mutum-dyapa, Kaninana e Kadoxi, e os chefes do Macaco de Cheiro-dyapa, Dyori e Hiwa, começaram a agir como o –warah múltiplo dessa nova configuração (Costa, 2007, p. 70). De fins da década de 1930 ao início da década de 1940, alguns Kanamari da margem esquerda do Juruá começaram a considerar mover-se para o Itaquaí (na bacia do rio Javari), local que visitavam com certa frequência nos meses de verão, pois lá já habitavam outros Kanamari. Sua mudança, iniciada aproximadamente no ano de 1940, estava diretamente associada ao aumento da presença dos brancos – provavelmente decorrente do novo movimento migratório do segundo ciclo da borracha (ver cap. 1) –, os quais começaram a adentrar também os tributários do Juruá. No Itaquaí, naquele momento, ainda não havia uma presença significativa de brancos, embora esta situação não tenha durado muito (Costa, 2007, p. 98). Nesta época, os Kanamari já trabalhavam para os brancos no Juruá. Foram Ioho, um macaco de cheiro-dyapa, e Dyaho, um mutum-dyapa, os precursores da mudança para o Itaquaí. Eles se chamavam de irmão (-dya) – provavelmente em decorrência da co-residência na nova configuração desses subgrupos – e, desde crianças, eram muito próximos. Quando jovens, em um episódio em que haviam descido o igarapé Komaronhu para pegar ovos de tracajá, encontraram um kariwa chamado Preto Português. Preto Português teve dó dos jovens kanamari que estavam nus e espantados e decidiu ajudá-los levando-os para a escola na cidade. Ioho decidiu que deveriam ir com ele e seu irmão, embora relutante, acabou por aceitar. Com os brancos, Ioho e Dyaho estudaram e trabalharam; aprenderam português, matemática e também a trabalhar na seringa e na madeira. Passado cinco anos que moravam com os brancos, foram tomados pela saudade de seus parentes e decidiram voltar. Fugiram e conseguiram os encontrar. Com o retorno de Ioho e Dyaho e o conhecimento que 111 Histórias kulina e kanamari haviam adquirido, aqueles Kanamari decidiram trabalhar para os brancos62 (Costa, 2007, p. 98-101). Os Kanamari estavam, então, fascinados pelo poder que creditavam aos brancos e pelas mercadorias que dele emergiam. Foram, desse modo, atraídos para um contato mais direto com os barracões (Costa, 2007, p. 103). Em um primeiro momento, os Kanamari interpretaram sua relação com os brancos como uma do tipo –tawari, iniciada pelos chefes – Ioho e Dyaho, que se transformaram naqueles que “fazem as pessoas fazerem coisas”63 –, tal qual havia sido a relação com Jarado. Mas, aos poucos, este tipo de relação começou a se deteriorar e os Kanamari passaram a conceituar os brancos como “espíritos imprestáveis”, os adyaba64 (Costa, 2007, p. 104-105). Neste segundo momento, os brancos começaram a minar a autoridade dos chefes kanamari, os quais passaram a ser incapazes de situar seus parentes em aldeias por um longo período de tempo. [...] novas relações significavam que os bens não eram exclusivamente guardados pelos chefes e conseqüentemente não eram redistribuídos, levando a acusações amplamente difundidas de „avareza’; a cachaça tornou as brigas entre eles mais freqüentes; as aldeias começaram a se esvaziar e novas aldeias foram sendo criadas longe dos chefes e perto dos brancos (Costa, 2007, p. 104-105). Este período é lembrado pelos Kanamari como de intenso fluxo e dispersão quando não era possível a eles viver de maneira adequada, com um chefe e aldeia fixa. Não ter uma terra para se morar contrastava com o seu ideal de vida, como podemos ver expresso no caráter local dos subgrupos. O próprio processo de se “aprender a viver bem” (ityonim tikok) pode ser traduzido literalmente da língua kanamari por “conhecer a terra” (cf. Costa, 2007, p. 227). A mudança para o Itaquaí não resolveu tais problemas, pois, logo, os brancos também chegaram intensamente naquela bacia. Foi apenas com a chegada de Sabá e da Funai, que os tempos puderam ser mudados. “Considerados chefes dos Kanamari”, “instauram o processo pelo qual a mistura anterior pôde ser organizada”, dando origem a aldeias que não dependiam tanto dos Esta é uma versão sumária da história de Ioho e Dyaho. Para uma versão mais completa e detalhada cf. Costa, 2007, p. 99-101. 63 Kadoxi, um dos –warah daquela nova configuração de Mutum-dyapa e Macaco de Cheiro-dyapa, transformou Ioho em Dyaho também em chefes. Os irmãos, nesta posição, eram aqueles que organizavam o trabalho (Costa, 2007, p. 104). 64 Os adyaba são espíritos que, aparentemente, existem na terra desde o começo do mundo e que assumem muitas formas, sendo geralmente descritos pelos Kanamari como sendo espíritos canibais e monstruosos (Costa, 2007, p. 107). 62 112 Capítulo 2 brancos e reintroduzindo a distância entre os núcleos de aldeias associados aos subgrupos (Costa, 2007, p. 34). O tempo da Funai: “Quando Sabá chegou” Sabá Manso era o apelido regionalmente reconhecido de Sebastião Amâncio, um empregado da Funai que fora chefe da antiga Base Avançada do Solimões (BFSOL). Sua presença no rio Itaquaí estava relacionada à construção do Posto de Atração Marubo em 1972. Este é também o ano que muitos dos Kanamari identificam como a data de sua chegada entre eles (Costa, 2007, p. 1, 141). Quando Sabá chegou, os Kanamari contam que viviam “no meio dos brancos” (Kariwa wakonaki). Os brancos haviam dividido o Itaquaí em propriedades e colocações, das quais extraíam borracha, cortavam madeira, criavam animais e plantavam suas roças. Os patrões se diziam donos de todo o rio. Os Kanamari viviam uns quatro dias a montante de onde Sabá construíra sua Base (em viagem de barco a motor), mas souberam de sua chegada por meio de Adalberto, um homem branco que vivia perto dos Kanamari. Adalberto alertou-os para irem até o novo “Inspetor de Índios” a fim de receberem mercadorias. Poroya, um Kanamari, decidiu enviar-lhe uma carta. Pediu a Raimunda, filha de um patrão da região chamado Chico Teixeira, que escrevesse: “Eu quero chamar nossa pessoa. Venha ver-nos aqui também”. Poucos dias depois, quando Poroya estava fazendo uma canoa que devia ao seu patrão, Sabá apareceu em uma voadeira e perguntou a Poroya porque ele estava trabalhando. Poroya explicou que estava fazendo uma canoa para Sebastião Bezerra. Sabá perguntou se o patrão lhe pagava bem. Poroya respondeu: “Não, não muito, uma cinco balas, cinco quilos de sal, trezentos gramas de pólvora... é isso”. Sabá, então, disse-lhe: “Bem, hoje o seu chefe/corpo/dono chegou. Os brancos não mais enganarão vocês. Agora é só a Funai que vai tomar conta de vocês”. Poroya disse ainda que trabalhavam para os brancos porque seus pais, os chefes, morreram todos. Sabá, então, visitou aldeias kanamari do Itaquaí distribuindo diversas mercadorias: espelhos, panelas, anzóis, linhas de pescar, cartuchos etc. Ele insistiu que tudo o que os Kanamari produzissem deveria ser trocado com ele e não mais com os outros brancos, pois estes estavam mentindo para eles. Sabá viajou pelo rio muitas vezes distribuindo mercadorias. Como conta Poroya, Sabá “perguntou sobre velhas capoeiras e cacos de cerâmica e levou tudo isso para Brasília para mostrar para o nosso chefe (-warah) que é a Funai”. Quando voltou, trouxe muitas mercadorias para trocar pela produção dos Kanamari. Notou que eles estavam dispersos e nomeou novos chefes para tomar conta de todos: Dyumi, João Pidah, Hiwu, Dyo’o, Nohin. Poroya já era ativo como chefe e, desse modo, Sabá nomeou-o “Fiscal do Índio” e disse que todos os outros chefes deveriam ajudá-lo. Sabá decidiu que os Kanamari não deveriam permanecer no Itaquaí, mas se mudar para o médio Javari, onde já havia outros Kanamari. Mas estes últimos não queriam a Funai: “nós só queremos nossos motores e cachaça. Nós não queremos a Funai”65. Ainda assim, Sabá queria todos os Kanamari reunidos lá, pois desse modo poderiam ficar mais perto dele (uma vez que o Médio Javari fica próximo à cidade de Atalaia do Norte). Os Kanamari do Estes Kanamari foram para o Javari quando resolveram aceitar Júlio Tavares, um branco, como seu chefe/corpo/dono. Eles, desse modo, iniciaram um processo de “tornar-se branco” (kariwa-pa) (Costa, 2007, p. 138-139, p. 145, nota 110). 65 113 Histórias kulina e kanamari Itaquaí foram para lá, mas, depois de algum tempo, o próprio Sabá decidiu que seria bom eles voltarem para o Itaquaí66, onde a Funai iria bloquear o rio contra a presença dos brancos. Eles voltaram, embora alguns tivessem permanecido no Javari. Para o Itaquaí, vieram alguns Kanamari do Juruá também. Entretanto, o posto de Sabá fora atacado pelos Korubo e seu chefe partiu rio abaixo; nunca mais os Kanamari o viram. Depois de algum tempo, um homem branco que havia bebido muita cachaça matou um Kanamari no rio Pedra, afluente do Itaquaí. Este evento parece ter sido um propulsor da expulsão definitiva dos brancos do território kanamari no Itaquaí 67. A história de “Quando Sabá chegou” é narrada pelos Kanamari como sendo a história inaugural do tempo da Funai. A expulsão dos brancos, referida ao final da narrativa, esteve inserida no contexto de demarcação da Reserva Indígena do Vale do Javari. A área foi reconhecida em 1985, tendo a demarcação se concretizado apenas no ano de 2000 (Costa, 2007, p. 149). A chegada de Sabá inaugura uma nova era da história kanamari. Ela significou a possibilidade de viver novamente sob o comando de um chefe e de pôr fim à dispersão e confusão que marcara suas vidas no tempo da borracha. Um pouco antes de Sabá chegar, Ioho havia morrido e, logo depois, o mesmo acontecera com Dyaho. Ioho falecera em fins da década de 50 e sua morte é, ainda hoje, cercada de mistério, mas o que se afirma é que provavelmente morrera enfeitiçado pelos Kulina68. Ioho era, então, considerado, pelos Kanamari, o “dono” do Itaquaí. Ele centralizava a produção de borracha a fim de trocá-las por mercadorias dos brancos. Estas eram passadas a Ioho por meio dos chefes de aldeias – eram seis aldeias69 sendo que Dyaho era um desses chefes, da aldeia que levava seu nome, “aldeia Dyaho” (Costa, 2007, p. 133). A morte de Ioho deixou os Kanamari do Itaquaí “insanos” (parok) nas palavras de Poroya, eles não sabiam onde e com quem viver, como interagir com os brancos e nem para quem se voltar. Houve, desse modo, uma dispersão do grupo em diversas direções. Alguns voltaram ao Juruá e ainda outros fizeram uma escolha, A memória do tempo que passaram no Javari é ambígua: alguns se lembram como um tempo bom em que viveram juntos e em que havia muitas danças e comida para todos; outros não entendiam muito bem porque Sabá os queria lá e rememoram muitas disputas, brigas e acusações de feitiçaria (Costa, 2007, p. 145). 67 Esta é uma versão sumária da história conhecida como “Quando Sabá chegou”, narrada pelos Kanamari a Costa (2007). A versão mais completa é encontrada em Costa, 2007, p. 142-146. 68 Ioho se casara com uma mulher kulina, a qual, dizem, nunca se desvinculou de seus parentes, sempre retornando à aldeia deles. Ioho falecera após uma briga que teve com sua esposa, quando ela voltou para a aldeia de seus parentes no Juruá (Costa, 2007, p. 137-138). 69 As aldeias eram seringais que pertenciam a diferentes donos (Costa, 2007, p. 133). No sentido rio Itaquai abaixo, a aldeia Pontão era a mais a montante, seguida da aldeia chamada Lugar do Koral. Em Botim, havia a aldeia Dyum; em Samaúma, a aldeia Dyori; em Kumaru, a aldeia Brai; e a aldeia Dyaho em Santa Fé (cf. Costa, 2007, p. 133). 66 114 Capítulo 2 sem precedentes, de aceitarem um patrão branco, Júlio Tavares, como seu -warah; moveram-se para o médio rio Curaçá e, de lá, para o médio Javari (Costa, 2007, p. 138139). São os remanescentes deste grupo que aparecem na história de “Quando Sabá Chegou” recusando o auxílio da Funai. Eram “remanescentes”, pois, no começo da década de 1960, Júlio Tavares morrera e a maioria dos Kanamari que eram seus “fregueses” voltaram ao Itaquaí (cf. Costa, 2007, p. 137-139). Os Kanamari começaram, desse modo, a viver muito próximos dos brancos e não, apropriadamente, em aldeias kanamari. Os Kanamari tinham começado mais uma vez a estabelecer relações duais diretas com os patrões brancos, relações que não eram mediadas pelos chefes, já que estes não existiam. Isso levou os Kanamari para fora de suas aldeias e em direção aos barracões dos patrões, onde muitos cresceram (Costa, 2007, p. 140). Os Kanamari dizem que, se Sabá não tivesse chegado, todos eles teriam morrido. Os kariwa do Itaquaí já vinham ameaçando-os de morte: desejavam o retorno de todos os Kanamari ao Juruá. Após a partida de Sabá, foi instalado um posto da Funai na aldeia kanamari chamada Massapê. Este posto foi administrado por uma série de chefes que, segundo os Kanamari, “trabalhavam para Sabá”. De seu ponto de vista, os funcionários da Funai, chamados “soldados da Funai”, eram quem assegurava que sua terra não fosse invadida (Costa, 2007, p. 146). Hoje, eles consideram que toda a área do rio Itaquaí, desde a foz do Rio Branco até sua nascente, como seu território –“nossa terra”, ityowa ityonim (Costa, 2007, p. 152). No Itaquaí, os subgrupos kanamari passaram a morar todos à margem de um mesmo rio e não mais em tributários distintos, como acontecera no Juruá no tempo de Tamakori. Atualmente, os deslocamentos desse grupo indígena variam entre serem a) curtos e de caráter mais individual e b) serem coletivos, onde se percorre distâncias maiores. No primeiro caso, pessoas visitam regularmente seus familiares e bebem caiçuma com eles. No segundo, grupos maiores se deslocam a Massapê – aldeia central onde se localiza o posto da Funai e também local em que se realizam trocas comerciais com os brancos – ou ainda à cidade de Atalaia do Norte, onde vendem seus produtos (canoas, remos, artesanato), porcos e frangos, animais que criam (Costa, 2007, p. 158159). Seus deslocamentos atuais diferem, assim, substancialmente do caráter dispersivo das migrações realizadas no tempo da borracha. 115 Histórias kulina e kanamari Os Kanamari consideram que, no Tempo da Funai, conseguiram re-introduzir diferenças entre os subgrupos, a partir de um modelo vigente no tempo de Tamakori. Certamente, os subgrupos já não eram mais os mesmos, pois não seguiam a regra de endogamia, estando “misturados”. Mas, a disposição das aldeias no Itaquaí é explicitamente reconhecida pelos Kanamari como uma réplica da distribuição anterior dos subgrupos pelos afluentes do Juruá. Os Kanamari afirmam viver, hoje, distribuídos em um grupo Macaco de Cheiro-dyapa no ponto mais alto do Itaquaí (aldeias Kumaru e Alzira), seguido por um de Mutum-dyapa (aldeias Massapê, Três Bocas e Sibélio), outro de Caititu-dyapa (aldeias Beija-Flor, Arara e Panema) e, por fim, no ponto mais baixo desta sequência, os Japó-dyapa (aldeias Estreito, Remansinho e Bananeira). Essas posições seguem a mesma disposição dos tributários do Juruá associados a cada um desses subgrupos no passado; do mais alto para o mais baixo: Mucambi, Komaronhu, Toriwá e Mawetek (Costa, 2007, p. 165). Mas a história tornou os subgrupos kanamari todos aparentados entre si, ainda que este modelo seja divergente daquele que os Kanamari ainda defendem como ideal para si (Costa, 2007, p. 166). De fato, todas essas aldeias encontram-se atualmente interrelacionadas por meio de casamentos entre pessoas de diferentes subgrupos. Muitas das crianças, quando nascem, não têm subgrupos; posteriormente acabam por adotar o subgrupo do pai. Entretanto, esta não é uma regra fixa, podendo também adotar o subgrupo do local onde cresce. Algumas pessoas, inclusive, adotam uma identidade subgrupal múltipla: dizendo-se “misturadas”, são uma mistura de um subgrupo com outro (Costa, 2007, p. 180). É inegável, entretanto, que a chegada de Sabá tenha criado novos tipos de relações onde os Kanamari puderam novamente voltar a viver em aldeias relativamente pacíficas, encontrando, nas palavras de Costa (2007, p. 207), “um espaço para se tornarem parentes”. Como se vê, este espaço é literal, pois os Kanamari puderam se reunir em aldeias mais estáveis onde voltaram a ver perspectivas de se reproduzirem socialmente enquanto grupo. Este novo espaço difere substancialmente do tempo anterior. A esta nova terra e a uma nova organização dos subgrupos, coube um novo –warah. A Funai é reconhecida como o único –warah que existe nos dias de hoje no Itaquaí. O próprio Sabá já havia sido recebido como um –warah pelos Kanamari: Diferentemente de Jarado, Sabá agia como chefe; visitava as aldeias, comia com os ameríndios (em vez de estabelecer trocas com eles), e 116 Capítulo 2 cancelava as dívidas que eles tinham com os patrões. Ele também deu início à remoção dos brancos, e permitiu, assim, que os Kanamari reconstruíssem suas aldeias. Mais importante, ele „deu’ (nuhuk) mercadorias ocidentais em quantidades que os Kanamari desconheciam, e de uma qualidade muito superior à que eles costumavam obter em „trocas’ (hom) com os brancos locais. Se ele não os „alimentou’, conforme o teria feito um chefe de subgrupo, ele certamente os muniu de instrumentos para que se auto-alimentassem, providenciou terçados e machados, distribuiu rifles, munição e anzóis (Costa, 2007, p. 196). Na ausência de Sabá, a Funai se tornou o novo –warah dos Kanamari. Sabá nomeou novos chefes kanamari, como vimos relatado na história de quando ele chegou, mas estes não se constituíram enquanto –warah, e sim como “tuxauas” ou “caciques”. Os Kanamari não se mostram certos quanto a que tipo de chefes são esses. Eles são menosprezados em relação à lembrança que os Kanamari têm dos –warah de antigamente. Estes “sempre tomavam conta de sua gente, conduziam-na na direção correta, provinham-na de tudo e propiciavam a constituição das aldeias como unidades de „verdadeiro parentesco’”. Os tuxauas dos tempos atuais, conforme afirmam os Kanamari, apenas se preocupam consigo mesmos (Costa, 2007, p. 195-196). Poroya, por exemplo, é considerado um bom chefe, pois é hábil em reunir gente para viver em sua aldeia, mantendo essas pessoas unidas, mas nunca é referido como um – warah. Poroya é um funcionário da Funai e, desse modo, exerce um papel de distribuidor de mercadorias; ele “paga” o trabalho realizado pelos kanamari. Na época em que verdadeiros –warah existiam, não havia relações de compra e nem mercadorias no sentido em que hoje elas existem (Costa, 2007, p. 198). No passado, o trabalho realizado pelos kanamari teria sido feito em nome do –warah, que incluía a todos, “teria sido iniciado e coordenado pelo chefe do subgrupo em pessoa, enquanto hoje as pessoas geralmente têm de exigir retribuição em vez de serem providas do que deveria ser dado a elas” (Costa, 2007, p. 204). A Funai, desse modo, é o único –warah em seu tempo: ela distribui mercadorias aos Kanamari que ajudam no cotidiano da aldeia, como ferramentas para o cultivo da lavoura. O chefe de posto, quando vai a Massapê, sempre distribui munição aos Kanamari, que, por sua vez, o alimentam com carne de caça. O chefe também distribui outras mercadorias que devem ser pagas pelos índios com produtos da roça e artesanato (Costa, 2007, p. 198). Como se deve observar, as críticas que os Kanamari dirigem atualmente aos tuxauas poderiam, em grande medida, ser também dirigidas à Funai, pois as relações com este –warah guarda as características de compra e 117 Histórias kulina e kanamari pagamento semelhante às daqueles. A Funai parece ser uma imagem um pouco deteriorada de Sabá. Ela, ao que tudo indica, já não mais distribui mercadorias com a mesma generosidade de Sabá. E, como salientou Costa (2007, p. 207), “se o chefe do subgrupo „alimentava’ os Kanamari por meio de comida que eles mesmos levavam para ele e o ajudavam a cultivar, a maior parte do que a Funai distribui vem da terra distante e misteriosa de Brasília”, onde, na opinião destes índios, reside o verdadeiro poder dos brancos70. Tempos-espaços, socialidades Neste capítulo, procurei analisar de que maneira as histórias kulina e kanamari eram concebidas em tempos por esses grupos indígenas. Afinal, o que poderia significar uma divisão da história em eras marcadamente distintas? De que maneira esses tempos poderiam ser pensados? De que modo, o passado, o presente e o futuro poderiam ser organizados e concebidos por meio deles? Acredito que a análise desenvolvida tenha salientado aspectos comuns e fundamentais aos tempos kulina e kanamari. O primeiro deles refere-se ao caráter de ruptura que apresentam, pois, mais do que tratar de continuidades, cada tempo instaura novos tipos e possibilidades de relações sociais que contrastam significativamente com a socialidade que o antecedia. Os tempos instauram, igualmente, uma nova morfologia social caracterizada por distintos modos de residência e de territorialidade. Os Kulina antes habitavam o interior da mata em grandes malocas de palha, tendo atualmente passado a residir em casas menores nas beiras dos rios; e os Kanamari, ao longo de seus tempos, viram alteradas as distintas configurações de seus subgrupos – ainda que mantivessem um modelo ideal segundo o qual estes deveriam operar. Os Kanamari, no tempo de Tamakori, organizavam sua vida social de maneira completamente distinta do que vieram a fazer posteriormente no tempo da borracha. Antes viviam de acordo com um modelo de endogamia do subgrupo que fazia de Os Kanamari dizem que a mercadoria distribuída pela Funai vem de Brasília ou do “Federal”, conceitos importantes que vieram juntos com Sabá. “Eles indicam um grau de poder que os Kanamari até então não poderiam ter imaginado: uma habilidade de manter todos os brancos situados e realocados por meio de relações de distribuição. É isso que o Federal faz. Provém a Funai com mercadoria que ela pode dar aos ameríndios, além de remédios, motores e rifles para ajudar na vigilância sobre o Vale do Javari. Também mune alguns deles de dinheiro, em forma de benefícios de bem-estar social e de aposentadorias. Além disso, „o Federal’ não beneficia apenas os Kanamari, também é „dono’ de todos os brancos” (Costa, 2007, p. 196). 70 118 Capítulo 2 todos os habitantes de uma bacia hidrográfica parentes. Posteriormente, com a chegada dos brancos, essas relações se transformaram substancialmente, assim como também começaram a ter acesso às mercadorias trazidas pelos kariwa. Algo semelhante acontece às eras kulina, pois a quebra temporal entre o tempo dos antigos e o tempo atual está relacionada a modos bastante distintos de ocupação do espaço-tempo, de alimentação, de vestuário e de mobilidade. Os próprios Kulina também se transformam na mudança dos tempos: antes “selvagens”, tornam-se “mansos”. Os tempos kulina, assim como todo um elaborado modo segundo o qual dividem aspectos do mundo em “selvagens” e “mansos”, expressam o estreito vínculo entre a mudança de tempos e de espaços. Este é um segundo ponto que gostaria de destacar, pois não apenas as eras kulina tematizam a estreita relação entre tempo e espaço – no tempo dos antigos, habitavam o centro da mata e eram brabos; no tempo atual, habitam a margem do rio e são mansos –, como também cada mudança histórica kanamari está também vinculada a transformações espaciais. Estas transformações na ocupação do espaço, cumpre assinalar, não se separam de mudanças ocorridas na configuração dos subgrupos e também da chefia. No tempo de Tamakori, cada subgrupo se definia e circunscrevia por seu próprio rio, onde todos eram parentes. No tempo da borracha, os subgrupos começaram a realizar intercasamentos e, igualmente, a serem co-residentes. Dessa maneira, uma bacia hidrográfica não era mais o espaço destinado a um único subgrupo. Depois, após a mudança para o Itaquaí, trabalhando para os brancos, passaram a habitar muito próximo a estes, perderam seus chefes e não conseguiam mais se fixar em aldeias estáveis, nas quais poderiam se reproduzir socialmente de maneira adequada. Finalmente, no tempo da Funai, os Kanamari, com a chegada do órgão indigenista, puderam habitar uma “Terra Indígena”, estando mais protegidos da presença dos brancos. Agora, seus subgrupos já estavam, de algum modo, misturados, mas, ainda assim, puderam organizar aldeias de maneira a reestabelecer certa distância social, i.e., espacial, entre eles. Neste contexto, o chefe aparece como personagem fundamental na organização, estabilidade e continuidade de um determinado agrupamento de pessoas. A história kanamari torna clara como há sempre uma dimensão de poder associada a todo chefe. Esta dimensão se estende de variados modos também aos patrões. A posição do chefe kulina, assim como a do chefe kanamari, é aquela de fornecimento de sustento e estabilidade às pessoas que estão ao seu redor. Entre os Kulina, o falecimento de um chefe provoca a dispersão da aldeia, ao passo que a aldeia kanamari é aquela que 119 Histórias kulina e kanamari emerge como uma unidade por meio de um –warah (chefe/corpo/dono) que dá forma ao conjunto de pessoas que dela fazem parte, estabilizando-o. Os patrões aproximam-se dos chefes sob muitos aspectos. Vimos que os Kulina também abandonaram o seringal em que residiam em razão do falecimento de um patrão estimado por eles. Por sua vez, um “bom patrão” era aquele que cuidava dos que trabalhavam para ele (por exemplo, usando seu avião para levar pessoas doentes à capital Rio Branco a fim de obterem cuidados médicos). Bons patrões, assim como os chefes, também congregam pessoas ao seu redor – os Kulina, por exemplo, realizaram movimentos em busca de “serviço” e de patrões melhores. A Funai parece ser tratada pelos mesmos Kulina como uma entidade personalizada e associada a uma dimensão de poder, tal qual um chefe ou patrão. E esta mesma Funai foi considerada como um novo –warah pelos Kanamari. Mas, como tematizado pelos últimos, algo parece ter sido alterado na posição de chefia ao longo do tempo. Atualmente, a função do chefe parece ter ganhado um acento no ato de “fazer as pessoas fazerem coisas”, ou seja, na organização do trabalho e na distribuição das mercadorias. A ausência de um espaço adequado para viver e, igualmente, de chefes que constantemente organizassem a vida em aldeias foi marcante tanto para os Kulina como para os Kanamari a partir do momento em que entraram em contato mais intensivo com os brancos (kariwa/cariús) – os quais chegaram à região onde habitavam e, lá, construíram seringais. Tal ausência relacionou-se com um período de intenso fluxo e mobilidade, em que os Kulina e Kanamari tiveram que fugir das correrias, ou, já inseridos no trabalho nos seringais, sair em busca de “bons patrões”. A chegada do primeiro branco, Jarado, é aquela que marca o início do tempo da borracha kanamari: ela transforma os tempos. Diferentemente da história kanamari, o tempo dos antigos kulina não terminou logo no momento em que o primeiro branco chegou, mas quando se envolveram de maneira intensiva no trabalho nos seringais. Mesmo depois de os seringais se instalarem na região, os Kulina ainda fugiam buscando os centros da mata. Apenas quando se engajaram efetivamente no trabalho extrativo, passaram a habitar as margens: e é aí que começa o tempo atual. Podemos considerar que o tempo da borracha dos Kanamari é relatado de maneira que percebemos um período de auge e outro em que as formas instauradas começam a se deteriorar. Num primeiro momento desta era, os Kanamari conseguiram manter certa distância dos patrões, sendo bem-sucedidos, consequentemente, no fortalecimento do modo de vida do tempo anterior, o tempo de Tamakori. Tiveram acesso 120 Capítulo 2 às mercadorias ocidentais, cuja distribuição “acabou por estruturar as relações internas ao sub-grupo”. Mas, num segundo momento, com a intensificação da presença dos brancos, as formações sociais dos Kanamari começaram a se transformar. A morte de alguns chefes desencadeou um processo de fluxo, mobilidade e violência, fazendo com que toda a semelhança com o modo de vida do tempo de Tamakori desaparecesse (Costa, 2007, p. 35). Como vimos, os Kanamari afirmam que, se Sabá não tivesse chegado, todos eles teriam morrido. Assim, o tempo da Funai aparece como uma nova possibilidade de existência social, implicando na possibilidade de reorganização da grande mistura anterior em que se encontraram os subgrupos. Passaram a não depender tanto dos brancos e conseguiram reestabelecer certa distância entre os núcleos de aldeias associados aos subgrupos. De maneira semelhante a dos Kulina, os Kanamari adotaram um de seus tempos enquanto modelo ideal de vida e de socialidade a ser seguido. Os Kulina, como vimos, veem seu tempo dos antigos como um tempo-espaço ideal, o qual ainda procuram vivenciar, com a conquista de uma nova terra, demarcada. Os Kanamari, no atual tempo da Funai, permanecem ainda “tentando recriar seu mundo tendo o Tempo de Tamakori como modelo” (Costa, 2007, p. 35). A história kanamari narra uma era inicial onde o mundo estava organizado em subgrupos e espaços circunscritos (tempo de Tamakori), seguida de um processo de mistura/caos (tempo da borracha) e, posteriormente, de nova organização de formas sociais (tempo da Funai). Nas palavras de Costa (2007): A história levou os Kanamari de um contexto onde eles, segundo dizem, viviam com parentes em aldeias contidas por chefes que, por sua vez, eram contidas em bacias hidrográficas, a um contexto onde as fronteiras entre estes níveis se confundem e onde eles perderam, literalmente, seu norte. [...] Assim, o movimento ao qual a história lhes submeteu é resistido no nível local, nos pequenos movimentos sazonais e à medida que as pessoas nascem, crescem e morrem. O problema que os Kanamari colocam ao narrar a sua história é o mesmo que lhes atormenta a todo momento: como viver com parentes num mundo que se encontra misturado? (Costa, 2007, p. 36). Vemos, assim, que tanto o tempo dos antigos como o tempo de tamakori são tomados como ideais e constituem modelos de vivência desejados pelos Kulina e Kanamari, respectivamente. Os tempos, ao narrarem histórias específicas, fornecem modelos e experiências de como socialidades particulares podem tomar forma. Eles fornecem padrões de vivência e perspectivas do que é bom ou ruim para o futuro. 121 Histórias kulina e kanamari Constituindo-se, assim, enquanto modos experimentados de se pensar tanto o passado como o presente e o futuro. No próximo capítulo, serão analisados os tempos dos Paumari e Kaxinawá. Como será possível perceber, ambos estes grupos indígenas não encontram nos tempos de seus antepassados um modelo de vida a ser seguido. Os antigos paumari viviam em constante estado de guerra, em um tempo marcado pela antropofagia, pelas doenças e pelo medo. Por sua vez, os antepassados dos Kaxinawá eram ignorantes, não detendo o conhecimento necessário para viverem de maneira “verdadeira” (kuin) ou apropriada. Nesse ponto, portanto, esses grupos divergem dos Kulina e Kanamari, uma vez que os últimos assumem as épocas em que seus antepassados viveram como um tempo ideal, que buscam reconstituir, de alguma maneira, no presente. Por outro lado, as eras paumari estabelecem uma forte continuidade comparativa com as dos Kanamari, já que a figura de um personagem que inaugura um novo tempo faz-se sempre presente, bem como as eras são marcadas por um período de auge e posterior decadência. Desse modo, os tempos paumari agregam características marcantes de duas distintas eras kanamari. Pois, como mostrado acima, o tempo da borracha kanamari é caracterizado pelos momentos de auge e decadência, bem como pela chegada de Jarado. Por sua vez, o tempo da Funai é narrado por meio da história de “quando Sabá chegou”, sendo Sabá o inaugurador de um novo tempo. Esses paralelos serão, entretanto, melhor explicitados no capítulo a seguir. Dediquei-me, aqui, principalmente à relação entre tempo e espaço. No capítulo seguinte, serão enfatizados outros aspectos dos tempos pensados e vividos por estes grupos, notadamente, a maneira como as mudanças de tempo implicam em transformações corporais, formuladas pelos Paumari e Kaxinawá como uma troca de pele. 122 123 Foto 4: Criança kulina em sua casa. Fonte: Zwetsch, 1992, p. 28. Foto 5: Vista de uma aldeia kulina. Fonte: Zwetsch, 1992, p. 13. 125 Foto 6: Aldeia de Kumaru (Kanamari). Fonte: ISA, 2013e; foto de Luiz Costa, 2004. Foto 7: Menino kanamari. Fonte: ISA, 2013e; foto de Luiz Costa, 2004. Trocando de pele: tempos e socialidades kaxinawá e paumari Diferentemente dos Kulina e Kanamari, os Kaxinawá e Paumari não parecem ter estabelecido relações sociais diretas entre si, ao menos desde o século XIX, pelo que se depreende da leitura dos registros escritos. Isso, certamente, não implica dizer que não seja profícua a comparação entre os modos de conceber transformações que marcam suas histórias. Como procurei mostrar no capítulo 1, esses grupos indígenas fazem parte de um mesmo complexo regional, tendo sido submetidos a condições similares de exploração, trabalho e contato com os brancos desde, ao menos, fins do século XIX. Lá, também foi mencionada a importância da patronagem nas concepções atuais de vida desses grupos. As relações entre patrão e empregado marcaram, entretanto, de uma maneira muito específica os modos de vida paumari e suas concepções sobre o mundo, como veremos a seguir. O eixo central da comparação desenvolvida neste capítulo não se foca, todavia, na relação estabelecida entre esses grupos indígenas e os patrões – esta é uma questão subjacente –, mas em um modo específico de concepção da transformação histórica. Se no capítulo anterior foram destacados aspectos mais sociológicos das transformações temporais (organização em subgrupos, ideal endogâmico, morfologia e localização das aldeias, territorialidade, chefia, etc.), neste, serão mais enfatizadas características relacionadas à cosmologia. Nas histórias paumari e kaxinawá, os tempos assumem um caráter de ruptura em que vida, morte e trocas de pele ganham destaque. Na história paumari, percebemos que a troca de pele não é apenas a imagem da transformação, mas o fato gerador de mudanças sociais. Mas, para que cada novo tempo surja, parece ser igualmente imprescindível novos personagens criadores de mundos, novos demiurgos. Este também é o caso do tempo atual dos Kaxinawá que surge a partir do fim do mundo mítico e das ações da criadora Nete. Portanto, minha intenção não será a de realizar uma análise pormenorizada dos deslocamentos kaxinawá ou paumari. Pois, diferentemente do capítulo anterior - onde foram exploradas as transformações históricas dos tempos também enquanto 127 Trocando de pele transformações espaciais e de territorialidades -, aqui, buscarei encontrar caminhos que auxiliem na reflexão sobre que tipo de concepção está envolvido em tempos ou eras que se transformam radicalmente, constituindo formas substancialmente distintas de socialidade, ou seja, de conjuntos específicos de possibilidades de ação. Ao abordar parte da história kaxinawá, pretendo analisar de que maneira ocorreu a passagem de sua era mítica para seu tempo atual; o que caracteriza a mudança de uma era a outra; ou ainda, o que substancialmente define cada uma dessas épocas. A escolha de tratar da divisão entre o mundo do mito e o que vim a chamar de tempo atual (ver definição adiante) é reflexo principalmente do fato de que as transformações implicadas neste período da história kaxinawá tornam claro um dos aspectos que considero fundamental para se pensar uma noção específica de historicidade que me propus a investigar ao longo desta dissertação. Esta característica, já delineada no capítulo anterior, refere-se à concepção da mudança social como processos de transformação caracterizados pela ruptura com um mundo antecedente e pela constituição de socialidades radicalmente distintas. Cada era ou tempo, pode ser assim pensado como uma configuração de relações que constituem, literalmente, uma nova socialidade. Cada uma das eras implica em modos distintos de se viver, de relacionamento com os distintos “outros”, de territorialidades e de pessoas diferentes. Isso não significa dizer, entretanto, que, quando falo de transformações radicais entre tempos, não haja qualquer tipo de continuidade entre eles; para citar apenas um exemplo, o mundo mítico kanamari continua se fazendo presente em seu mundo atual, como vimos no capítulo anterior. O tempo como configuração Como veremos a seguir, os Paumari elaboram a passagem de um tempo a outro de sua história como uma transformação que se dá na pele. Trata-se, portanto, de uma mudança corporal que é operada na passagem entre eras de sua história, de maneira análoga à passagem do mundo mítico ao mundo atual dos Kaxinawá, como veremos a adiante. Cada era estabelece, portanto, uma nova socialidade, um novo modo de estabelecimento de relações sociais, de possibilidades de ação, de existência do corpo. Utilizei, no início deste capítulo, a ideia de configurações de relações específicas que marcam uma época, um tempo da história. Considero importante explicitá-la neste momento. 128 Capítulo 3 Bateson articulou o conceito do Zeitgeist, o espírito da época, a um conceito correlato desenvolvido por Ruth Benedict, o da “configuração cultural” (Bateson, 2008 [1958], p. 166-168). Benedict mostrou, por exemplo, que a recusa dos Zuni em adotar o peiote1 ou bebidas alcoólicas era condicionada por uma configuração apolínea de sua cultura, que contrastava com as culturas de outros povos vizinhos, as quais eram dionisíacas e adotavam, com entusiasmo, esses dois estimulantes (Cf. Benedict, 2000 [1934]). Por sua vez, como nos reporta Bateson (2008 [1958], p. 166), a escola filosófica de Dilthey e Spengler sugeriu, por meio do conceito de Zeitgeist, que a ocorrência de mudanças culturais é “em parte controlada por alguma propriedade abstrata da cultura, que pode variar de período para período de tal forma que em uma época determinada mudança seja apropriada e ocorra facilmente”, mesmo que, muitos anos antes, a mesma inovação possa ter sido rejeitada por ser inadequada. A definição de Hegel do conceito de Zeitgeist nos auxilia na exposição da ideia. Segundo ele, o espírito do tempo é sempre um determinado modo de ser, um determinado caráter, que invade todas as diversas partes e se manifesta tanto nas formas políticas como nas demais formas culturais, fundindo num todo as várias partes; e estas, por sua vez, não contêm coisa alguma de heterogêneo à condição fundamental dele, pois que podem aparecer diversas e acidentais, embora se afigure que muitas delas se contradizem mutuamente (Hegel, 1980, p. 362). A elaboração dos tempos indígenas que venho analisando nesta dissertação pode ser pensada pela articulação dessas noções, que abordei como uma configuração de relações. Cada era é sempre “um determinado modo de ser”, “um determinado caráter” que se estende para todas as esferas da vida social. A passagem de uma época a outra parece exigir uma configuração cultural e histórica específica que dê margem a tal mudança. Mostrei, no capítulo anterior, que os Kanamari decidiram, em determinada circunstância, trabalhar para os patrões da borracha. Esta decisão, certamente, não pode ser vista de maneira isolada. Segundo a história que os Kanamari contam, no tempo da borracha, eles adquiriram o conhecimento da extração da seringa e, assim, puderam começar a se relacionar de outra maneira com os brancos. No tempo anterior, eles não tinham este conhecimento, mas também não estavam à sua procura. Antes, sua configuração sociocultural era outra e não se articulava com o trabalho na borracha. Cada uma das épocas pode ser assim pensada, por meio do conceito de Peiote (Lophophora williamsii) é um pequeno cacto cuja ingestão provoca efeitos alucinógenos. É nativo da região que se estende do sudoeste dos Estados Unidos até o centro do México. 1 129 Trocando de pele Zeitgeist, como uma configuração de possibilidades da existência, como um determinado caráter ou configuração cultural que orienta a organização de todos os aspectos da vida e marca diferentes formas de socialidade. As eras dos Paumari nos remetem a uma situação análoga, como veremos a seguir, em que cada qual indica uma configuração específica de relações. A pele e a história paumari Os Paumari são falantes da língua paumari, pertencente à família linguística Arawá2. Segundo Florido (2008, p. 49), o paumari é a língua mais diferenciada no conjunto da família Arawá, o que provavelmente estaria associado ao fato de viverem em contato muito próximo com os Apurinã, falantes de uma língua da família aruak. De fato, em quatro das seis TI’s (homologadas) ocupadas atualmente pelos Paumari, encontramo-los próximos aos Apurinã. Os Paumari dividem a PA1) TI Caititu com os Jamamadi (também falantes de língua da família Arawá e os Apurinã; as PA2) TI Paumari do Cunuiá, PA3) TI Paumari do Lago Marahã e PA4) TI do Lago Paricá (este, às margens do rio Tapauá, afluente do Purus) também são compartilhadas com os Apurinã. Habitam ainda a PA5) TI Paumari do Lago Manissuã, situado às margens do rio Tapauá, afluente do Purus; e PA6) a TI Paumari do rio Ituxi, também afluente do médio Purus (ISA, 2013b) - ver mapa 3. Todas essas terras estão localizadas na região do médio rio Purus, em suas margens ou afluentes. Foi também o médio Purus o local em que viajantes, desde fins do século XIX, localizaram os Paumari. Labre3 (1872, p. 27) – em um texto-notícia escrito em 1872, destinado àqueles que desejavam se estabelecer no Purus – descreveu os Paumari vivendo em todo o médio Purus, mas afirmou que, em tempos anteriores, eles teriam habitado o baixo Purus. Esta informação é condizente com a afirmação de Chandless (1866, p. 92) segundo a qual os Paumari seriam uma subdivisão dos antigos “Puru-purûs”, naquela época já extintos. De acordo com Métraux (1948, p. 661), os antigos “Purupuru”, no século XVII, se estendiam até a boca do rio Purus. O próprio nome do rio Purus parece ter origem no termo “Purupuru” o qual, em língua geral, significava “gente pintada” (Labre, 1872, p. 8; Castelnau, 1851 apud A população estimada dos Paumari é de 1.559 pessoas no estado do Amazonas, Brasil (FUNASA, 2010 apud ISA, 2013d). 3 Segundo Castello Branco (1947, p. 104), Labre, em sua época, foi um dos maiores conhecedores do rio Purus, tendo nele habitado por muitos anos, fundando vilas, povoados e explorando seus afluentes desde 1871. 2 130 Capítulo 3 Bonilla, 2007, p. 66). Esta era a maneira como, “em tempos idos”, “as gentes do Amazonas e rio Negro” chamavam os antigos Paumari por serem eles pintados ou manchados de branco. Tais manchas decorriam da moléstia de pele que marcara os Paumari por um longo período de sua história. Com o passar dos anos este nome teria sido simplificado e resultado no termo “Purus” que passou, então, a designar o rio (Labre, 1872, p. 8). A doença que marcou os Paumari, reconhecida posteriormente Foto 8: Homem puru-puru com a pele manchada como a “pinta”4 (cf. Bonilla, 2007, p. 70), era caracterizada por ferimentos na pele, os quais provocavam enorme coceira (ver tornavam os foto 8). As feridas Paumari de caráter asqueroso e repelente, segundo Labre (1872, p. 27-28), o qual defendia que elas poderiam ser transmitidas pelo contato com estes índios. Schultz & Chiara (1955, p. 192-193) referiram-se à pinta como uma doença autóctone e muito frequente entre vários grupos indígenas do Purus, manifestando-se por manchas claras e escuras em todo o corpo, tanto em bebês como em adultos. No alto Purus, observaram que esta doença havia sido espalhada entre os regionais que apontavam como transmissores os índios. Consideraram a pinta como uma doença hereditária, possivelmente Fonte: Martius; Spix, 1981 [1831] apud Bonilla, 2007, p. 68. também transmitida por ocasião da “festa do peixe boi”, ritual de flagelação recíproca que reunia grande número de índios; sendo, portanto, transmitida pelo sangue. Doença não venérea provocada por uma bactéria do tipo espiroqueta, Treponema carateum (cf. Avalleira; Botinno, 2006, p. 112; Wong, 2013). 4 131 Trocando de pele A pinta foi certamente um fator de estigmatização dos Paumari perante os regionais, tendo importantes repercussões, como veremos adiante. Os próprios Paumari afirmam que a pinta os desfigurava e lembram que muitos brancos fugiam quando os viam (Bonilla, 2007, p. 66). É importante destacar, entretanto, que os Paumari oferecem a tais manchas na pele uma conceituação única, não as classificando no escopo de suas doenças, chamadas kavamoni5. Elas são consideradas uma marca de identidade de nome ajobi. Segundo eles, ajobi tem uma origem mítica, uma vez que, nos tempos míticos, os Paumari recusaram banhar-se no sangue da sucuri (mabidiri), e todos os outros povos o fizeram. Assim, foram penalizados com o surgimento de manchas em sua pele; a continuidade das manchas é explicada por eles como resultado de transmissão por meio do sangue materno (Bonilla, 2007, p. 67-70). O fim da pinta marcou uma importante transformação na história paumari, como veremos a seguir. Diferentemente dos Kulina e Kanamari, os Paumari são descritos, desde aquela época, como um grupo indígena fluvial, sendo exímios remadores e canoeiros e alimentando-se especialmente de peixes e tartarugas (cf. Labre, 1872, p. 27). Como mencionado no capítulo 1, desde meados do século XIX, já estavam envolvidos no comércio com os brancos, sendo muito conhecidos na região, por não abandonarem as margens dos rios (Chandless, 1866; Labre, 1872; Ehrenreich, 1929). Pois, como vimos, as margens foram as primeiras a serem ocupadas pelos brancos em decorrência de sua vinda à região com fins de exploração do território. Desse modo, os Paumari, divergindo dos demais grupos indígenas abordados nesta dissertação, foram aqueles que aparentemente realizaram menores deslocamentos desde a chegada dos brancos no contexto da exploração da borracha, tendo se envolvido cedo com o comércio e exploração do látex. Os Pamoari e a “velha cultura” Pamoari é o termo utilizado para designar “cliente” ou “freguês” na língua Paumari e é também a autodenominação deste grupo indígena (Bonilla, 2009, p. 130). Tal coincidência reflete um importante aspecto da maneira pela qual esses índios encaram sua posição no mundo. É provável que a denominação “pamoari” tenha se Aliás, as enfermidades que afetam a pele, de maneira geral, nunca são classificadas como kavamoni (doenças). Cada uma delas recebe um nome próprio e várias afetaram os Paumari: varodaha (despigmentação da pele após o tratamento da pinta), samosamo (impetigo), sakahai (micoses), baijo (leishmaniose cutânea) etc. (cf. Bonilla, 2007, p. 67, nota 63). 5 132 Capítulo 3 tornado um sinônimo de “freguês” em decorrência da enorme inserção dos Paumari no sistema comercial da região (Bonilla, 2005, p. 46). Um dos fatos que mais chamou a atenção de Oiara Bonilla, a qual teve os Paumari como interlocutores de pesquisa, foi o comportamento de constante submissão de indivíduos deste grupo indígena frente aos brancos: eles colocavam-se insistentemente em uma posição de vítima, forçando seus interlocutores a assumirem o lugar do “patrão” (Bonilla, 2007, p. 13). Os Pamoari insistiam em transformar as relações com os “outros” em relações de cunho comercial do tipo patrão-empregado, fossem eles seus vizinhos Apurinã (viporina), outros índios (joima), regionais (jara), estrangeiros (americano) ou mesmo parentes provenientes de um grupo local mais distante. Colocavam-se, ainda, sempre na posição de presas ou vítimas nas relações com esses outros – “índios vindos de longe para devorá-los ou brancos vindos para matá-los ou escraviza-los” (Bonilla, 2005, p. 41-42; cf. também Bonilla, 2007). Esta perspectiva dos Paumari sobre si próprios está diretamente associada com sua busca por bons patrões e às transformações de seus tempos, sempre relacionadas a heróis inaugurais que os “adotam” para, posteriormente, abandoná-los. Os Paumari narram sua história a partir da descrição de três épocas distintas: os “tempos antigos” (pamoanina kari)6, o “tempo dos patrões” e o “tempo presente”, a que Bonilla (2007) chamou de “era cristã”7. Eles referem-se a três grandes rupturas temporais, que implicam em mudanças no que toca à socialidade, ao modo de vida, às perspectivas, aos comportamentos e hábitos, ao corpo e aos interlocutores dos Paumari (Bonilla, 2007, p. 30-31). Cada um dos tempos ou eras é inaugurado por uma personagem que estabelece novos padrões de existência. É ainda fundamental precisar que os Paumari jamais contam essas três narrativas uma seguida da outra, como se tratasse de um encadeamento linear de eventos. Ao contrário, é quando se fala da mudança e da transformação que os Paumari se lembram de uma ou de outra narrativa evocando então seja “o tempo dos antigos”, “o tempo dos patrões” ou aquele a que nós chamamos “a era cristã”, que corresponde ao tempo presente (Bonilla, 2007, p. 30, tradução minha). A tradução de “tempos antigos” como “pamoanina kari” provém do dicionário bilíngue nas línguas paumari e portuguesa, organizado por Chapman & Salzer (1998, p. 82). Bonilla (2007, p. 65) traduz “tempos antigos”por “'bo'dakari”, termo que, segundo Chapman & Salzer (1998, p. 51), equivale ao advérbio “há muito tempo atrás” ou “antigamente”. 7 Infelizmente, não é oferecido na literatura consultada o termo pelo qual os Paumari se referem ao “tempo dos patrões” em sua língua. Já o “tempo presente”, chamado por Bonilla (2007) de “era cristã”, não recebe, por parte dos próprios Paumari, uma nomeação específica (ver citação que se segue no corpo do texto). 6 133 Trocando de pele Um dos aspectos que mais chamou a atenção de Bonilla (2007, p. 30; 2009, p. 128) logo no início de seu trabalho de campo foi a insistência paumari em tentar dissuadi-la a não mais perguntar sobre mitos, rituais e xamanismo, porque eles já não eram mais como os antigos, não pertenciam à “velha cultura”, ao modo de vida dos antigos, pamoari „bo’da kahojai (“pamoari „bo’da” designa “antigos”, “ancestrais”, ao passo que “kahojai” indica uma prática, uma atitude). Importante notar que há diferenças entre os Paumari que se afirmam enquanto “crentes” – seguidores de uma doutrina evangélica – e aqueles que se dizem “católicos”. Os crentes associam os católicos como mais ligados à “velha cultura” e são mais enfáticos em afirmar-se como não mais pertencentes a ela (Bonilla, 2009, p. 128-129). Entretanto, não temos dados para analisar como os Paumari que se dizem católicos consideram tal opinião dos crentes e como os posicionam, embora saibamos que tanto católicos quanto crentes se diferenciam de seus ancestrais que viviam “na velha cultura” (cf. Bonilla, 2009, p. 128-129, 132). Dois tipos de missões realizaram atividades entre os Paumari em tempos recentes: a católica, desde os anos 1980, por meio da presença da OPAN (Operação Amazônia Nativa) e do CIMI (Conselho Indigenista Missionário); e a protestante, desde 1963, na presença do SIL (Bonilla, 2009, p. 127). O trabalho da antropóloga Oiara Bonilla é a principal fonte utilizada por mim para a análise que venho empreendendo a respeito da história Paumari. Sua pesquisa de campo foi realizada na região do Lago Marahã tendo como foco a aldeia Crispim. É nesta aldeia que vivem a maioria dos Paumari evangélicos. Por outro lado, a maioria dos católicos está nas aldeias Santa Rita, São Clemente e na área ao redor (Bonilla, 2009, p. 128). Assim, veremos aqui expresso, sobretudo, o relato daqueles que afirmam seguir o protestantismo. Do mito aos tempos antigos No princípio de tudo (kama’dani), os Paumari já existiam, eles sempre existiram, mas não sabiam comer, não tinham armas, tabaco, manchas na pele, nem roupas, não conheciam os nomes dos frutos e não podiam caçar nem pescar, porque as presas e seus predadores não existiam como tal. De uma maneira geral, os humanos e não humanos viviam sob uma forma humana, seu pamoarihi (Bonilla, 2007, p. 33, tradução minha). Contudo, o nascimento de sete irmãos permitiu a emergência do modo de vida dos antigos. O mais conhecido deles se chamava Kahaso. Assim, a narrativa inaugural dos tempos antigos traz à tona as condições primeiras de existência social dos Paumari, por meio de seus heróis-transformadores primordiais. O mito conta como sete irmãos, 134 Capítulo 3 nascidos de Jakoniro – a primeira mulher mitológica – e cuidados pela velha fêmea jaguar, foram responsáveis por ensinar aos Paumari como serem pessoas “verdadeiras” (Bonilla, 2009, p. 132). No princípio, o mundo era marcado pela predação. Jakoniro, filha da Chuva (Bahi kapamoarihi), mantinha relações sexuais com homens, depois, matava-os para poder alimentar a grande e constante fome de seu pai, o Espírito da Chuva. Esta mulher tinha um ventre muito grande, mas, dentro dele, não havia bebês. Ele estava repleto de predadores (tapo’ija): sucuris, arraias, jacarés, serpentes e inclusive peixes, como as piranhas (Bonilla, 2007, p. 34). Após Jakoniro ser devorada pelos jaguares, nascem de seu ventre sete ovos de ave. Os jaguares não comiam ovos e, assim, jogaram-nos contra o tronco de uma árvore. Desses ovos nasceram pequenos pássaros e a velha fêmea jaguar resolveu alimentá-los. Interessante notar que os pássaros são concebidos pelos Paumari como o protótipo da presa domesticada: a palavra igitha – presa/animal doméstico – designa também os pássaros, chamados igitha raboki, presa voadora (Bonilla, 2007, p. 37, nota 26; 2009, p. 133, nota 11). Kahaso, cujo nome significa “pele áspera” (Bonilla, 2007, p. 37, nota 27), era o mais jovem dos filhotes, sendo pequeno, feio e cheio de feridas, mas possuidor de enormes poderes. Passado algum tempo, Kahaso e seus irmãos decidem se vingar, matando os jaguares. A característica mais marcante de sua ação vingativa é a sagacidade com que agem, sendo a brutalidade, a idiotice ou a falta de jeito do inimigo os fatores responsáveis por seu aniquilamento (Bonilla, 2007, p. 41-42). Os sete irmãos iniciaram, então, uma longa jornada pela floresta à procura de um fruto que fosse capaz de curar os ferimentos e coceiras de Kahaso. Nomearam os frutos comestíveis encontrados na floresta e também deram origem às diferentes gentes que habitam o mundo atual, assim como às manchas que marcavam a pele dos Paumari: Eles decidiram fabricar vasilhas a fim de enchê-las de nozes [que haviam acabado de nomear]. Eles cortaram cipó e começaram a trançar cestos. Kahaso trançou a si mesmo na trama do cesto, o qual se transformou em sucuri e caiu na água. Os irmãos tentaram parar a criatura que se conduzia pela água. Pediram a ajuda de vários pássaros de bico longo, mas finalmente foi o menor deles, o martimpescador anão, que arpoou a sucuri por trás de sua cabeça e furou o ventre de Kahaso. Desde então todo mundo tem um umbigo. A sucuri foi arrastada para a margem do rio e eles abriram seu ventre, que formava, assim, um rio de sangue. Mas, para tirar Kahaso de lá, era preciso ajuda. Então, os seis irmãos bateram sobre as árvores a fim de extrair delas as gentes (ija’ari), em pares. Com todas as gentes, foi possível tirar Kahaso do ventre da sucuri. Ele saiu de lá como um recém-nascido e seus ferimentos haviam desaparecido (Bonilla, 2007, p. 38-39, tradução minha). 135 Trocando de pele Após tirarem Kahaso do ventre da sucuri que havia o engolido, os seis irmãos mais Kahaso, pediram a todas as gentes para que se banhassem no sangue da sucuri. Kahaso, que havia tido anteriormente sua pele coberta de feridas, saíra do ventre da cobra rejuvenescido, como se houvesse renascido, com uma pele limpa e clara. Mas, ainda assim, os Paumari, acharam a ideia repulsiva e passaram apenas uma pequena quantidade do sangue em seus corpos, recusando-se a submergirem completamente nele. É por esta razão que sua pele ficou coberta de manchas. Depois disso os sete irmãos foram definitivamente para o céu e se transformaram nas Plêiades. Alguns interlocutores de Bonilla dizem ainda que, antes de irem para o céu definitivamente, os sete irmãos passaram todo o seu conhecimento técnico aos brancos, o que explica a sua atual superioridade tecnológica (Bonilla, 2009, p. 133)8. Foram esses sete irmãos que legaram aos Paumari todas as técnicas necessárias à sua sobrevivência e que lhes forjaram uma identidade: marcas étnicas; nominação dos frutos; ensinamento de alimentação adequada e de técnicas de caça, peça e coleta; armas; instrumentos xamânicos; técnicas de parto (Bonilla, 2007, p. 34-40). Além disso, quando os irmãos se transformaram em estrelas, instauraram o ciclo das águas que regra a temporalidade cotidiana e ritual dos Paumari (Bonilla, 2007, p. 42-43). Essa transformação inaugural fez-se também por meio de uma transformação corporal sofrida por Kahaso, o qual renasceu do ventre de uma sucuri mítica com sua pele renovada, sem as feridas que antes possuía. Vemos também como a doença de pele e a procura pela cura aparecem como o motor da metamorfose e transformação (Bonilla, 2009, p. 133). Foi no percurso em busca da cura das feridas de Kahaso que os sete irmãos deram nome aos frutos, origem às cestas, às ferramentas e também às gentes que existem no mundo atual. Por outro lado, foi porque os Paumari se recusaram a entrar no sangue da sucuri mítica, que sua pele ficou manchada e ferida. Assim, o mito que estabelece o princípio do tempo dos antigos narra o estabelecimento de uma vida em sociedade entre os Paumari e também de uma pele marcada pela pinta, que se torna uma “marca visual” de sua identidade (Bonilla, 2009, p. 133). Segundo contam os Paumari, a época em que seus ancestrais viveram foi marcada por constantes mudanças de lugar relacionadas às perseguições que sofriam por parte de outros grupos indígenas, os Joima. De acordo com Bonilla (2007, p. 49), esse termo designa provavelmente os Juma, grupo falante de língua pertencente à família Tupi-guarani, hoje reduzidos a quatro indivíduos (cf. ISA, 2013f). Hoje, Joima 8 Esta é uma versão resumida da longa narrativa mítica reportada por Bonilla (2007, p. 34-40). 136 Capítulo 3 designa genericamente os outros índios; eles vêm sempre de longe e, ainda hoje, aparecem rumores de que possam atacar os Paumari (Bonilla, 2007, p. 49). Naquela época, os Joima (índios selvagens) rodeavam-nos durante nossas festas e nos matavam. Eles também ficavam em canoas, escondidos sob esteiras, esperando nossa aproximação. Quando chegávamos perto, eles atiravam suas flechas e nos matavam aos golpes. Então, eles nos comiam (T., 01/02/2001, em Bonilla, 2009, p. 133, tradução minha). Este fora, portanto, um período dominado pela guerra, pela antropofagia, pelo medo e por doenças, sobretudo as doenças de pele. Este tempo é visto pelos Paumari atuais como um período perigoso em que eles foram incansavelmente perseguidos por outros índios e dizimados pelas doenças, forçando-os a confiar exclusivamente em seus poderosos xamãs (Bonilla, 2009, p. 133). A atividade xamânica excessiva era uma das características da velha cultura. Os Paumari contam ainda que, antes da chegada dos Jara (brancos), mais especificamente dos kariva (patrões), “viviam como as gaivotas (tihi) que se instalam no início do verão amazônico nas praias do Purus”. Eram mais numerosos do que são nos dias atuais e, nessa época do ano, ao ocuparem as praias que iam do Tapauá ao Sepatini (rio abaixo e rio acima respectivamente) ficavam expostos aos ataques dos Joima. Mas, depois da chegada dos kariva e dos Jara, os Paumari deixaram de frequentar as praias, que eram muito expostas, e entraram para a floresta, ocupando preferencialmente as cabeceiras. Estes locais na floresta eram, ainda assim, sempre próximo aos lagos e igarapés, “onde circulavam sazonalmente entre várias moradias” (Bonilla, 2005, p. 44). A chegada dos patrões e dos Jara deu-se, assim, ainda nos tempos antigos. Neste período, as relações estabelecidas com os brancos foram também marcadas pela guerra e pelas correrias. Foi apenas com a chegada de Orobana que os Paumari puderam transformar suas relações com os brancos e também seu modo de vida. Orobana e a era comercial No tempo dos patrões, é Orobana quem aparece como herói transformador. De modo semelhante a Kahaso, esse homem veio interferir no curso da história paumari e permitiu uma mudança de posições fundamental para lidar com uma desgraça possível. Ele foi enviado pelo governo dos Jara e salvou os Paumari da destruição, 137 Trocando de pele trazendo a eles uma opção à guerra: a troca, que foi acompanhada da instalação da era comercial (Bonilla. 2007, p. 77-78). Orobana fora enviado pelo governo dos brancos para conhecer os Paumari; ele pensava, então, que os Paumari eram bravos. Antes de partir, ele decidira caçar por alguns dias para que sua família tivesse o que comer em sua ausência. Sua esposa foi com ele. Mas Orobana não caçou nada, ele ouviu o canto do mutum e decidiu o seguir. Perseguiu o mutum com a intenção de matá-lo, entretanto acabou chegando até a casa de um homem. Quando Orobana tirou sua espingarda para atirar, uma voz lhe disse: “Por favor, não o mate, este pássaro é meu xerimbabo”. Ele se assustou e obedeceu. Então, o homem convidou Orobana para subir em sua casa. Eles começaram a conversar e se entendiam bem. O homem mandou sua esposa Maria fazer um café para eles. Orobana chamou sua esposa (que também se chamava Maria), a qual ainda o procurava na floresta. Ela subiu e se sentou perto da esposa de seu anfitrião. Depois de tomarem café, o homem começou a lhe falar em Paumari e a descrever como era a vida entre eles. Disse a Orobana: “Orobana, estes Índios não são selvagens, eles são pacíficos, são vocês, os Brancos, que os perseguem sem cessar, vocês os matam e eles se vingam graças a seu xamã chamado Avô Titxatxa”. Orobana estava muito atento a tudo o que este homem lhe contava. Enquanto isso, as duas Marias teciam esteiras, como aquelas que nós fazemos para cobrir as redes e nos proteger do sol. Bebendo café, Orobana aprendeu Paumari e Maria aprendia a tecer (cestos, esteiras) (Bonilla, 2007, p. 78, tradução minha). Este homem, segundo a memória paumari, era branco e vinha de Manaus e sabia falar paumari. Como vimos, ele havia aprendido a língua após tomar café oferecido por uma pessoa que parecia ser o “dono dos animais”, segundo Bonilla (2009, p. 134), uma vez que possuía um recipiente que continha todo tipo de animal de caça. Orobana, que desejava se aproximar dos Paumari, foi instruído por este homem sobre o modo de vida deste povo e, quando chegou entre eles, fingiu ser também um paumari. De fato, em um primeiro momento, os Paumari acreditaram ser Orobana um parente que vinha de longe, pois ele se portava como um deles e sabia falar a língua. Entretanto, ao anoitecer, perceberam que este homem também portava objetos manufaturados. Orobana teve, então, que se explicar e mostrou-lhes que também sabia falar o português: “Eu vim para vos conhecer e quero que vocês me conheçam também. Eu não vim para lhes fazer mal, eu desejo que vocês pesquem para que eu leve sua produção para o governador para que ele tenha a prova de que vocês não são ferozes”. Assim, Orobana estabeleceu uma relação de troca com os Paumari. Realizou várias viagens a Manaus para onde levava sua produção e de onde trazia mercadorias para 138 Capítulo 3 trocar. Ele ensinou-lhes também a usar roupas e redes protetoras contra os mosquitos e também adotou uma criança paumari. Mas, depois, Orobana não podia mais fazer as viagens e mandou seu filho em seu lugar. Durante um ano, seu filho realizou as viagens, mas um dos xamãs paumari sabia que ele não lhes queria bem. Como o Avô Titxaxa, o grande xamã, havia morrido, eles não sabiam como iriam se defender. Depois de um ano, o filho de Orobana perdeu a paciência com os Paumari porque eles bebiam muito (foi também com a chegada de Orobana que os Paumari conheceram o álcool). Aquilo semeou a discórdia entre eles e, então, “ele decidiu que iria nos exterminar novamente”. Mas, o afilhado de Orobana que estudava em Manaus o denunciou a seu pai e disse que os Paumari se vingariam de seu filho se ele fizesse mal a eles. Então, Orobana chamou seu filho de volta e foi a partir deste momento que os Brancos começaram a se instalar nas margens do Purus. Foi então que eles começaram a nos amansar. Os patrões começaram a nos vender coisas e nós começamos a os conhecer melhor e a trabalhar com eles. Um dia, um homem paumari desejava comprar mercadorias de um patrão que recusou vendê-las a ele porque este paumari já vendia sua produção a outro patrão. Ele quis fazer mal ao homem paumari, mas os Paumari não revidaram mais porque queriam que os massacres cessassem. Foi assim que os índios Paumari foram amansados pelos Brancos. Este é o fim da história, do que eu me lembro dela (F., 19/09/01, Crispim, em Bonilla, 2007, p. 80, tradução minha)9. A chegada de Orobana é o marco, como vemos, para diversas transformações que aconteceram na vida dos Paumari, uma vez que ela estabelece o momento em que os brancos começaram a se estabelecer ao longo das margens do Purus e também quando os Paumari começaram a trocar com os Jara. Estes já estavam na região, mas, antes, apenas relações de violência e morte podiam ser estabelecidas entre eles. Orobana é hoje visto como um herói pelos Paumari e é considerado seu primeiro patrão, o inaugurador da era comercial no Purus. Sua chegada foi aquela que pôs fim aos tempos antigos, inaugurando a era dos patrões. Ele iniciou a pacificação da região e possibilitou aos Paumari sobreviverem aos incessantes ataques de índios bravos e da população regional, ensinando-os a comerciar com os brancos (Bonilla, 2007, p. 95; 2009, p. 133). Os Paumari se tornaram, assim, fornecedores de peixes e quelônios no comércio regional. Trocaram com os brancos, principalmente, peixe salgado (pirarucu), quelônios ou madeira e, em menor intensidade, produtos extrativos como a castanha, a 9 A história completa, da qual apresentei aqui uma versão resumida, foi descrita em Bonilla, 2007, p. 78-80. 139 Trocando de pele andiroba, a copaíba, a seringa ou a sorva10. Desse modo, conseguiram ter acesso a roupas, sal, açúcar, café, farinha de mandioca e instrumentos de trabalho – terçados, munições, armas, anzóis e linha (Bonilla, 2005, p. 45). A narrativa em que sabemos da história deste personagem faz lembrar um pedido Paumari para que os brancos não os matem. Já em seu princípio, vemos o homem que morava na floresta orientando Orobana sobre a vida dos Paumari e explicando-lhe que este povo não era bravo, mas pacífico. No fim, são os próprios Paumari que parecem desistir de uma atitude vingativa para com o patrão que recusou comerciar, motivados pelo medo de que os massacres voltassem a acontecer. A possibilidade do extermínio aparece como eminente, devendo ser evitada, ainda que para isso devessem sacrificar a vingança. Devemos observar que o narrador da história afirma que o filho de Orobana decidiu que iria os exterminar novamente. A ideia de uma repetição do extermínio liga esta ameaça a uma experiência real e anterior com os brancos em geral e não com o filho do herói especificamente. A chegada de Orobana marca, portanto, a pacificação dos Paumari, quando eles deixaram de ser selvagens, tornando-se mansos. Como bem observado por Bonilla, “índios mansos” significa índios vestidos, preferencialmente convertidos e batizados com nomes cristãos, capazes de comerciar, ou seja, “capazes de serem explorados sem reagirem violentamente” (2009, p. 135, tradução minha). Foi assim, por meio do processo de pacificação, que os Paumari aprenderam a relacionar-se de outra maneira com os brancos da região. A era dos patrões dos Paumari assemelha-se à era dos patrões dos Kanamari, pois ambas iniciam com a presença anterior dos brancos na região e com uma aprendizagem indígena de um modo possível de comerciar com esses estrangeiros ou de trabalhar na borracha. Entre os Paumari também vemos a transformação da relação com os brancos ao longo deste tempo. Na narrativa, o filho de Orobana já não é como o pai: enquanto o primeiro ensinou os Paumari a trocarem, seu filho não lhes desejava o bem e, em determinado momento decidiu que os iria exterminar. Por outro lado, o tempo dos patrões é também aquele que inicia com um personagem que salva os Paumari da morte eminente no fim do tempo anterior, mas termina com a submissão dos Paumari a condições de exploração e aos abusos dos patrões da borracha. 10 “Árvore da família das apocináceas (Couma guianensis), da floresta úmida, que se caracteriza pelos frutos bacáceos, comestíveis, de pequeno tamanho, e cujo látex é amargo, não servindo para beber” (Ferreira, 2004, p. 1878). 140 Capítulo 3 O princípio deste tempo é relatado pelos Paumari, portanto, como uma salvação à morte eminente da era anterior, mas seu fim assemelha-se ao fim dos tempos antigos. A chegada de Orobana ocasionou uma era de relativa paz no dia-a-dia (Bonilla, 2009, p. 134). O tempo dos antigos foi “um tempo marcado pelo terror infligido de toda parte”: “pelas perseguições dos Joima, pela estigmatização da pinta e pelos diversos flagelos que atingiram as populações do Purus no momento da colonização da região” e também “pelo medo suscitado pelo poder de vida e morte dos xamãs” (Bonilla, 2009, p. 79). Assim como no tempo dos antigos, quando Kahaso e a sucuri mítica inauguraram um novo ciclo temporal provocando uma transformação na pele, com Orobana, passa-se algo do mesmo gênero: ele põe fim ao tempo de terror entrando em uma era relativamente pacífica do comércio e do patronato. A transformação se dá, de igual maneira, na pele, porque nesta nova época são adotadas roupas (makari) e mosquiteiros (motokiro), que a protegem tanto dos olhares exteriores como dos mosquitos, abundantes na região (Bonilla, 2007, p. 84). Estes objetos foram também trazidos por Orobana. Ao contrário do que acontece com o tempo dos antigos, os Paumari, por vezes, lembram com nostalgia do tempo dos patrões, considerado como uma época de paz e de abundância de mercadorias. Recordam-se do bom patrão generoso que se ocupava dos Paumari “como de seus próprios filhos”, que partilhava com eles de seus alimentos quando iam comerciar e que lhes dava roupa usada ou algum analgésico para acalmar a febre (Bonilla, 2007, p. 106). Mas, em outros momentos, esta época é também descrita como um tempo remoto, relembrado como um período dominado pelos xamãs e controlado pelos patrões, em que os Paumari não se sentiam capazes de compreender adequadamente o que aconteceu quando trabalharam para pagar seus débitos ou quando se tornaram vítimas de doenças mortais. Naquele tempo, os Paumari sabiam muito pouco sobre a vida da população regional para serem capazes de controlar suas relações com os últimos: eles não sabiam escrever, ler ou contar, nem sabiam como usar os medicamentos não-indígenas (Bonilla, 2009, p. 137-138, tradução minha). Assim, se no princípio, a chegada de Orobana ocasionou uma era de relativa paz no dia-a-dia, aos poucos, esta paz foi se transformando em decorrência das doenças, da dependência e abusos dos patrões. O período que antecedeu a chegada das missionárias do SIL é considerado uma época de intensificação das doenças e também da atividade xamânica. O que não foi mera coincidência, uma vez que as epidemias 141 Trocando de pele (rubéola, varíola, meningite) são consideradas pelos Paumari como tendo em sua origem uma ação xamânica11 (cf. Bonilla, 2007, p. 73-76). Deus, um novo patrão A primeira vez que o avião veio, ele pousou na água. Ele se aproximou da margem, e então elas colocaram seus pés na terra para vir nos conhecer. Mas ninguém veio cumprimentá-las, porque nós estávamos com muito medo. Nós ficamos todos escondidos nas nossas casas ou na floresta. As mães esconderam seus filhos nas casas, em baixo de esteiras, porque elas acreditavam que os Americanos levariam as crianças para matá-las e fazer “conserva”. Tudo isso eram os medos dos mais velhos. As crianças obedeceram. Ninguém falou, ninguém se beliscou, ninguém riu. Foi meu primo que saiu para falar com o piloto. Elas queriam pedir permissão para trabalhar entre nós. No começo, eles não foram entendidos, até que meu primo entendeu e disse: - Sim, se vocês não quiserem nos fazer mal, então nós receberemos vocês, vocês e essas mulheres jovens. Depois dessa conversa, elas almoçaram, e depois voltaram para Porto Velho. O piloto nos disse que elas voltariam um ano mais tarde, depois de aprenderem português para poderem se comunicar com a gente. Elas só falavam inglês e americano. O único que podia traduzir o que elas falavam era Paulo, o piloto. Eu me lembro de seu nome. Elas foram embora (F., Crispim, 19/09/01, em Bonilla, 2007, p. 115). Quando voltaram, as missionárias do SIL foram gradualmente aceitas pelos Paumari, ao estabelecerem com eles relações de troca de roupas, utensílios e outros objetos manufaturados por seus produtos: peixe, artesanato e serviço doméstico. Elas também progressivamente introduziram o dinheiro como um meio de pagamento (Bonilla, 2009, p. 132). Assim, o tempo presente paumari é inaugurado com a presença missionária, e por essa razão Bonilla chama-o de “era cristã”; mas devemos notar que esta parece ser uma nomeação externa (cf. Bonilla, 2007, p. 32). As duas missionárias protestantes, conhecidas como Siri ou Chirley (Shirley Chapman) e Maria Bosoni (Mary Ann Odmark), chegaram à aldeia Crispim no ano de 1964 e há inúmeros relatos que fazem referência a elas. Embora não possam ser considerados mitos e nem sejam contados nas circunstâncias em que se narram os mitos, esses relatos são pronunciados e atualizados com enorme frequência (Bonilla, 2007, p. 106). Apesar de ambas terem chegado juntas ao local onde estavam os Paumari, deve-se observar que é geralmente mencionado o nome de Siri nos relatos referentes a esta era (ver relatos abaixo e cf. Bonilla, 2007). 11 As epidemias, assim como as doenças de pele, não são classificadas pelos Paumari pelo termo kavamoni, traduzido por “doença” (cf. Bonilla, 2007, p. 65). As kavamoni são ocasionadas por um acúmulo de resíduos alimentares na carne (ver adiante). 142 Capítulo 3 Elas são consideradas como as mães adotivas que salvaram o grupo, trazendo o cristianismo e um novo modo de vida aos Paumari, que vigora até os tempos atuais. Pois, uma vez que a febre da exploração da borracha definitivamente se acabou, os Paumari encontraram-se mais uma vez abandonados à sua própria sorte, segundo seus próprios relatos (Bonilla, 2007, p. 106), sendo salvos com a inauguração desta terceira nova era. A era cristã é vista como uma era sã, em que as doenças de pele e outras (como a malária) não mais assolam os Paumari e em que a prática abusiva do xamanismo também está controlada. As epidemias e doenças (kavamoni) foram neutralizadas graças aos medicamentos, antibióticos e à prática da vacinação sistemática. A missão igualmente deu aos Paumari a possibilidade de controlar suas relações comerciais, por meio do ensino da leitura, da escrita e do cálculo (Bonilla, 2007, p. 65, 139; 2009, p. 136). Esta foi também a época em que os Paumari conseguiram reestabelecer o ritmo anual de alternância entre as cabeceiras e as margens do rio, o qual ficou totalmente prejudicado no período em que os Paumari tiveram que trabalhar para os patrões (Bonilla, 2009, p. 127). Mas, dentre todas as modificações ocorridas, a cura dos ferimentos na pele que historicamente assolaram os Paumari parece ter sido a grande motivadora da conversão de grande número dos habitantes de Crispim ao protestantismo. Os modos de cura da pinta que, segundo os Paumari, tinha origem mítica e era transmitida pelo sangue materno (cf. Bonilla, 2007, p. 70), nunca tinha sido alcançada pelos métodos anteriormente utilizados: Todos os Paumari tinham o impetigo, a pinta, ela vinha do sangue da mãe. Antes da chegada de Siri, a gente cuidava dela com um remédio à base de “salsa”. (...) A gente arrancava as raízes, depois a gente a pulsava com um bastão e, dois dias depois, colocávamos isso em uma garrafa. Quando isso formava bolhas, a gente bebia uma grande dose desse suco, depois a gente tomava um banho bem cedo de manhã. (...) Todas as crianças tinham o impetigo, todos eram manchados e escuros e suas caras também. Minha mãe dizia que essas manchas haviam começado porque nós, os Paumari, recusamos nos banhar no sangue da sucuri (F., Crispim, 01/08/01, em Bonilla, 2007, p. 70, tradução minha). Segundo Bonilla (2007, p. 128), em razão desta transformação a aldeia de Crispim se proclamou “crente”, opondo-se, assim, às demais aldeias e grupos locais. Nesta aldeia, o xamanismo foi repudiado, pois, ao curarem as doenças que os afetaram por longa data, as missionárias assumiram uma posição de poder que os xamãs não puderam ocupar face à aparição de novas doenças “contra as quais eram necessários 143 Trocando de pele medicamentos, vacinas, antibióticos” (Bonilla, 2007, p. 128). Os Paumari de Crispim comparam a época em que Chirley e Maria chegaram: Na época de Chirley, os Paumari não mais tiveram que descer à Labrea em busca de medicamentos (Ch. P., 20/05/02, Crispim, em Bonilla, 2007, p. 128-129, tradução minha) Os Jara nunca nos curaram. Os Jara não gostavam da gente; nós, mulheres, nunca íamos lá (visitar os Jara ou comprar mercadorias). Mas, os próprios patrões nos deram analgésicos. Depois de sua chegada, Siri cuidou muito de nós e não deixou nos envenenarmos com os medicamentos [...]. De longe, os Jara vieram estudar com ela (F., 01/08/01, Crispim, em Bonilla, 2007, p. 129, tradução minha). Quando Bonilla esteve entre os Paumari de Crispim, as sessões de cura organizadas pela igreja por meio dos lideres evangélicos ocupavam um lugar muito importante na vida religiosa desta aldeia. Quando alguém ficava doente e nenhum tratamento médico resultava, eram organizadas orações coletivas a fim de mobilizar o poder do sangue de Jesus (Jesus amana) e, assim, auxiliar o processo de cura (Bonilla, 2007, p. 129). A cura por meio do sangue não deve nos parecer estranha, pois, como vimos no início dos tempos paumari, o sangue da sucuri foi aquele que curou Kahaso das feridas que o assolavam; e foi por não se banharem neste mesmo sangue que os Paumari tornaram-se manchados. Bonilla (2007, p. 127) também observou que a escolha ofertada aos Paumari entre a possibilidade de se converter ou não, de se submeter ou não ao poder do sangue de Jesus, lembra, “em seus termos e consequências, a escolha que eles tiveram de se banhar ou não no sangue da sucuri mítica”. Desse modo, ao curarem os Paumari, as missionárias do SIL passaram a ocupar o lugar de “heroínas mitológicas”. Inauguraram uma nova era, tornando possíveis assim as condições para uma nova socialidade (Bonilla, 2009, p. 135-136). A missão ofereceu uma alternativa viável enquanto parceira de troca, permitindo aos Paumari escapar do controle excessivo dos patrões. Os Paumari aprenderam a ler, a escrever, a contar. Conclusivamente, os Paumari passaram a viver segundo um novo modo de vida, uma nova configuração de relações possíveis – fossem elas comerciais, pessoais ou corporais – a partir de um novo conhecimento que tiveram do mundo. A missão ofereceu uma nova forma de “vida saudável”, em acordo com a interpretação evangélica da Bíblia. Como explica Bonilla (2009, p. 136), ser um “crente” significa adotar um estilo de vida “saudável”, com tudo o que isso implica para os 144 Capítulo 3 Paumari: assistência médica, rejeição do xamanismo e de restrições/tabus alimentares, retirada da vida ritual, acesso a mercadorias (sendo a missão a principal fornecedora) e submissão à “Palavra de Deus”. Neste contexto, Deus passou a ser referido como o novo patrão e os Paumari passaram a mencionar cotidianamente as missionárias e Deus como seus novos pais adotivos (Bonilla, 2007, 141; 2009, p. 136, 142)12. O tempo presente paumari é visto, portanto, como aquele em que este grupo indígena pôde levar uma “vida saudável” a partir do momento em que as enfermidades que por muito tempo o assolavam foram curadas ou amenizadas. A mais significativa delas, a pinta, foi curada; e esta é a principal marca da mudança entre o tempo dos patrões e o tempo presente. É notável a analogia que podemos traçar com suas demais eras. Como vimos, no tempo dos patrões, Orobana leva aos Paumari mosquiteiros e roupas, os quais podem ser considerados como peles, revestimentos, que cobrem seus corpos contra os mosquitos e contra os olhares estrangeiros. Devemos notar que os antigos paumari, não amansados, eram também aqueles que andavam nus. Entretanto, o paralelo mais significativo pode ser traçado com a história de Kahaso e seus irmãos, pois é procura pela cura da doença de pele de Kahaso (cujo nome significa “pele áspera”) que aparece como motor da transformação histórica. De maneira semelhante, foi a busca pela cura da pinta – cuja solução não era encontrada pelos xamãs – que levou à transformação dos tempos. Lembremos que Kahaso e seus irmãos foram à floresta em busca de frutos curativos e, neste percurso, nomearam frutos comestíveis, criaram a técnica de elaboração de cestos e também os corpos humanos – com umbigos e, implicitamente, manchados. Ao trançar cestos, Kahaso trançou a si mesmo e a trama se transformou em uma sucuri. Por fim, foi o sangue desta sucuri que curou os ferimentos do herói e rejuvenesceu sua pele, tornando-a limpa e clara. Aqueles que se banharam no sangue da sucuri também rejuvenesceram suas peles, mas os Paumari não o fizeram. Desse modo, a troca de pele é considerada pelos Paumari como um sinônimo de renovação do corpo e está diretamente articulada com a mudança de seus tempos. De maneira análoga, os Kaxinawá atribuem à troca de pele o rejuvenescimento e a renovação. Segundo eles, a cobra é um ser eterno justamente porque troca de pele. E foi porque os Kaxinawá não entenderam o pedido de seu ancestral Pukã para que Tal crença é certamente questionada pelos Paumari não-crentes. Uma das principais desconfianças levantadas contra Deus refere-se à sua invisibilidade: os xamãs ficam perplexos frente a tal impossibilidade da visão que persiste mesmo quando eles se valem de substâncias alucinógenas (cf. Bonilla, 2007, p. 124-125). 12 145 Trocando de pele mudassem de pele que, hoje, eles são mortais. O próximo tópico será dedicado a esta passagem, em que, com o fim do mundo mítico, os Huni Kuin passaram a existir, mas em um corpo mortal, que não adquiriu o conhecimento da troca de pele, diferentemente do corpo da cobra, do caranguejo, da barata, do escorpião, do grilo. Estes são considerados pelos Kaxinawá seres imortais. Os Huni Kuin e seus tempos Apresentação Os Kaxinawá13, autodenominados Huni Kuin e falantes da língua Hancha Kuin, pertencente à família linguística pano (McCallum, 2001, p. 8), localizam-se atualmente, tanto nas bacias do Juruá quanto na do Purus. Apenas no que se refere a Terras Indígenas homologadas, habitam onze. No rio Purus, residem na KX1) A TI Alto Purus, compartilhada, como vimos no capítulo anterior, com os Kulina e os Yaminawa. Na bacia do Juruá, mais especificamente na bacia do Tarauacá, habitam: KX2) a TI Igarapé do Caucho, situada entre os rios Envira a Tarauacá; KX3) a TI Katukina/Kaxinawa, compartilhada com os Shanenawa; KX4) a TI Kaxinawa da Colônia Vinte e Sete; KX5) a TI Kaxinawa Nova Olinda; KX6) a TI Kaxinawa Praia do Carapanã; KX7) a TI Kaxinawa Seringal Independência; KX8) a TI Kaxinawa do baixo Jordão; e KX9) a TI Kaxinawa do rio Jordão. Em pontos mais altos do Juruá, habitam ainda: KX10) a TI Kaxinawa/Ashaninka do rio Breu, compartilhada com os Ashaninka; e KX11) a TI Kaxinawa do rio Humaitá, compartilhada com os Kulina e Ashaninka (ISA, 2013c) – ver mapa 3. Os deslocamentos efetuados pelos Kaxinawá desde a chegada dos brancos em sua terra, no contexto da empresa seringalista são semelhantes, em grande medida, àqueles realizado pelos Kulina (ver cap. 2). Pois, assim como estes, os Kaxinawá encontravam no Muru sua principal residência no momento em que os seringueiros começaram a chegar à região e uma parte deles também realizou um deslocamento em direção à bacia do Purus, onde, hoje, compartilham a TI Alto Purus com os Kulina e Yaminawa. Segundo Tastevin (2009 [1925], p. 142), antes da chegada dos seringueiros, em fins do século XIX, os Kaxinawá tinham como principal morada o Iboiaçu, igarapé A população estimada dos Kaxinawá é de 7.535 pessoas no Acre/Brasil e 2.419 pessoas no Peru (Funasa, 2010; INEI, 2007 apud ISA, 2013d). 13 146 Capítulo 3 afluente do rio Muru. O primeiro contato entre seringueiros e os Kaxinawá do qual se tem registo ocorreu em 1892 (McCallum, 2001, p. 8)14. Aproximadamente três décadas depois, eles teriam deixado as cabeceiras do Muru, onde se localiza o Iboiaçu, passando a povoar, sobretudo, os afluentes da margem direita do médio Muru. Nesta época, Tastevin relata a existência de apenas um grupo organizado dos Kaxinawa, estabelecido na margem direita do Humaitá. As outras famílias estavam espalhadas pelas margens do Muru, vivendo “mais ou menos misturadas com os civilizados” (Tastevin, 2009 [1925], p. 144-145). Estes Kaxinawá acabaram por se vincular como mão-de-obra nos seringais, enquanto outra parte de sua população deslocou-se para o rio Curanja (Peru – ver mapa 2), ainda no princípio do século XX, em uma área onde não havia reservas de caucho. Este último grupo manteve-se, em um primeiro momento, afastado tanto dos caucheiros quanto dos seringueiros (Aquino, 1977, p. 45) – ver também cap. 1. Desse modo, os Kaxinawá habitam atualmente tanto a região fronteiriça entre Peru e Brasil nos rios Curanja e Purus, como os afluentes do rio Juruá – rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira e Humaitá (cf. Lagrou, 2007). Ao abordar a passagem do mundo do mito kaxinawá para seu mundo atual, objetivo, como afirmado na introdução deste capítulo, realizar uma reflexão sobre características que seriam específicas de mundos míticos em contraposição com aqueles a que eles dão origem. Chamo de “tempo/mundo atual” uma época que é contraposta pelos Kaxinawá ao mundo que existia anteriormente; mundo este narrado nos mitos. Neste contexto, o “tempo atual”15 a que faço referência contempla os diversos tempos kaxinawá: “tempo das malocas”, “tempo das correrias”, “tempo do cativeiro”, “tempo dos direitos” e o “novo tempo” (Xinã Bena)16 (Maná Kaxinawá et al., 2002, p. 65; Castor, 2012). McCallum (2001, p. 8), entretanto, não fornece a fonte deste registo. Como este “tempo atual” a que me refiro agrega os demais tempos kaxinawá, inclusive seu novo tempo ou Xinã Bena, ele será mencionado no texto sem ser diferenciado pelo modo em itálico, com o objetivo de tornar a leitura mais clara. 16 Não tive acesso aos nomes dos tempos na língua falada pelos Kaxinawá, com exceção do Xinã Bena, que, como veremos adiante, pode ser traduzido por “Novo tempo”, “Novo pensamento”, “Novo conhecimento” (cf. Castor, 2012, p. 104; Wise, 2008, p. 31, 405). 14 15 147 Trocando de pele O primeiro deles, o tempo das malocas17 é aquele que antecede o contato com os brancos, quando os Kaxianawá viviam juntos, antes de se dispersarem – segundo contam, viviam tranquilos e alegres. Este é o tempo do surgimento dos Huni Kuin18. Nessa época, os Kaxinawá moravam em grandes malocas de palha (shunuã ou kupixawa), que agregavam muitas famílias. Habitavam as cabeceiras dos rios e eram “brabos”, andando nus. Cada uma das malocas tinha um chefe que “mandava nos outros chefes de família”. Neste tempo, os chefes tinham o poder de organizar caçadas, trabalhos no roçado, festas e também visitas a outros povos. Não existiam seringais, nem mercadorias, e conseguir ferramentas era uma tarefa difícil. Os Kaxinawá, entretanto, já conheciam o caucho, mas usavam seu leite para fazer lamparina e iluminar o kupixawa, andar e caçar à noite. No tempo das correrias, os brancos chegaram ao território então habitado pelos Kaxinawá e os trataram “como uma ameaça à abertura dos seringais”. Assim, este grupo indígena foi perseguido pelos nawa (brancos) e, aqueles que não foram mortos, acabaram por se dispersar, fugindo para as cabeceiras dos rios. Neste momento, muitos Kaxinawá foram capturados e obrigados a trabalhar nos seringais. Por outro lado, outros dentre eles passaram a se sentir atraídos pelos produtos que os nawa traziam, aproximando-se deles sem imaginar que, posteriormente, viriam as “malditas doenças” e diversos tipos de impedimento à realização de seus rituais. O tempo do cativeiro, por sua vez, foi aquele em que os Kaxinawá trabalharam para os patrões, como “seringueiros”, extraindo látex, ou “na diária”, realizando diversos serviços: transporte de borracha e mercadorias, abertura de varadouros e O relato que passo a fazer sobre esses tempos kaxinawá tem como fontes principais o filme “Já me transformei em imagem” (2008) – em que índios kaxinawá falam sobre sua história – e a publicação realizada por diversas etnias indígenas que habitam o Acre, chamada “Índios no Acre: organização e história” (Maná Kaxinawá et. al., 2002). Outras eventuais fontes consultadas são citadas no corpo do texto. Em Maná Kaxinawá et. al. (2002), encontramos uma fonte mais sistemática de informação a respeito dos tempos kaxinawá, embora sumária e reunindo relatos de representantes de diversas etnias. Certamente, os tempos ali relatados não são equivalentes para todos os grupos indígenas que, hoje, habitam o Acre: os registros que compõem a publicação são, sobretudo, dos Kaxinawá, Apurinã, Katukina, Kaxarari, Machineri e Ashaninka. Portanto, ao utilizá-la como fonte de informação, tive a precaução de selecionar apenas registros efetuados pelos Kaxinawá. 18 Norberto Sales Tene Kaxinawá, referindo-se ao tempo das malocas, afirma ser este um tempo muito longo, tempo das histórias de antigamente, narradas nos mitos, e também do surgimento dos Huni Kuin (in Maná Kaxinawá, 2002, p. 66). Assim, ele agrupa dois diferentes tempos – o das histórias de antigamente e o do surgimento dos Huni Kuin – no tempo das malocas. Não é estranho o fato de tempos distintos serem agrupados a fim de ressaltar suas diferenças postas em relação a outro terceiro tempo. Os Paumari, por exemplo, contrapõem seu tempo atual (era em que se converteram ao cristianismo) à “velha cultura” que marcou seus dois tempos anteriores (cf. Bonilla, 2009). No filme em que os Kaxinawá contam sobre sua história, o tempo das malocas não aparece como aquele das histórias de antigamente (dos mitos), mas apenas como o tempo do surgimento dos Huni Kuin e de sua habitação coletiva em grandes malocas (cf. Já me transformei em imagem, 2008). Neste capítulo, analisarei justamente a diferença fundamental entre o tempo das histórias de antigamente (dos mitos) e o momento a partir do qual os Huni Kuin passaram a existir. 17 148 Capítulo 3 estradas de seringa ou de roçado para o patrão, além de caça e pesca para o abastecimento do barracão. Foram subordinados ao famoso esquema de aviamento que se estabeleceu na região e muitos deles tiveram sua pele marcada pelo famoso patrão Felizardo Cerqueira no rio Juruá19 (ver foto 11). Neste tempo, “os prepostos do patrão seringalista „açoitavam os fregueses’, amarravam-nos em „troncos de taxi’ e mandavam matar aqueles seringueiros que tinham saldo e queriam abandonar os seringais” (Aquino, 1977, p. 81). Desse modo, no tempo do cativeiro, os Kaxinawá passaram a habitar as margens dos grandes rios, onde se instalavam os seringais, uma vez que o transporte da mercadoria era realizado por meio fluvial. Moravam em colocações, em casas do mesmo tipo daquelas que ainda habitam, seguindo os moldes da residência dos regionais. Na década de 70, a chegada da FUNAI ao Acre marca um novo tempo, o tempo dos direitos, em que os Kaxinawá passaram a saber que tinham direito à terra perante o governo dos brancos e se organizam no sentido de “brigar com os nawá [brancos] pelas suas terras”. Os Kaxinawá aprenderam a escrita e a matemática e passaram a realizar, então, um movimento de recuperação de “suas formas tradicionais de sobrevivência”. Este foi o período da história em que os patrões foram perdendo seu poder e os Kaxinawá organizaram-se em cooperativas de extração de seringa, livres do poder dos patrões e consequentemente do roubo que exerciam, da obrigação de terem que pagar pelo uso da estrada de seringa, dentre outras. Por fim, o tempo da atualidade dos Kaxinawá é chamado Xinã Bena, que pode ser traduzido por “novo tempo”, “novo pensamento” ou “novo conhecimento” (cf. Castor, 2012, p. 104; Wise, 2008, p. 31, 405). Este é o tempo em que os Kaxinawá voltaram a “ser muitos” e em que eles trabalham para “autonomia”. Suas terras estão organizadas em associações20 e os Kaxinawá veem a possibilidade voltar a realizar práticas que, no tempo do cativeiro, não eram permitidas pelos brancos, como rituais, música ou mesmo falar a própria língua. Naquele tempo, estas atividades tinham que ser realizadas escondidas. Este é, segundo eles, o momento de recuperação e preservação de um modo próprio kaxinawá de se viver, de sua cultura, a qual desejam ver valorizada (cf. Castor, 2012). O cacique Siã, do rio Jordão (bacia do Juruá) assim Aquino (1977) e Iglesias (2010) oferecem análises sobre as relações estabelecidas entre os Kaxinawá e Felizardo Cerqueira. 20 Sabemos, entretanto, que nem todas as comunidades kaxinawá tiveram acesso a demarcação de uma TI própria. Este é, por exemplo, o caso da TI Kaxinawá do Seringal Curralinho, no município de Feijó-AC, que se encontra ainda em processo de identificação (cf. ISA, 2013g). Assim, penso que, talvez, nem todos os Kaxinawá definiriam seus tempos de maneira idêntica. 19 149 Trocando de pele explicou à pesquisadora Deborah Castor (2012, p. 105), o contexto em que as novas transformações vêm ocorrendo: Então eu acho que no passado era muito triste. A gente não mandava nada, tinha que trabalhar para ele. O presente é importante que a gente sente que a gente está na coisa da gente. De lá pra cá, a gente também enfrentou, para buscar essas coisas não foi fácil. Vocês tem o olhar indígena, ou de branco, sempre foi difícil. Índio é coisa da mata, igual bicho, não entende nada. Mas isso diminuiu muito. Então nós estamos buscando em cima disso. Como é que nós busca? É a cultura diferenciada (Siã, em Castor, 2012, p. 105). Esse investimento em recuperar a “cultura” que ficou perdida ao longo dos tempos, marca o Xinã Bena que, como vimos, pode ser significativamente traduzido como “novo conhecimento”, sendo também chamado, em outros contextos, de “tempo do governo dos índios” (cf. Maná Kaxinawá et al., 2002, p. 131). Também no Xinã Bena, os Kaxinawá não mais habitam grandes malocas. Desde o tempo do cativeiro, vivem em casas menores segundo os moldes regionais: “antigamente, os índios só moravam numa casa só. Hoje, cada índio tem sua casa separada para morar”. Vemos, portanto, como, ao longo dos tempos, os Kaxinawá realizaram movimentos muito semelhantes àqueles dos Kulina: residiam inicialmente na região de interflúvio em grandes malocas de palha e eram “brabos”; depois, com a chegada dos brancos, dispersaram-se, buscando refúgio nas cabeceiras dos rios, quando não foram capturados; no tempo do cativeiro, submeteram-se ao trabalho nos seringais, passando a habitar regiões próximas às margens dos rios, e a residir em casas menores – que não agregam várias famílias. Foram, neste período, amansados. No decorrer dos tempos, viram seus padrões de residência e local de habitação radicalmente transformados. Sua morfologia social não é mais a mesma do início dos tempos, assim como, hoje, eles não mais são “brabos”. No tempo dos direitos, lutaram por suas “terras” onde viram a possibilidade de recuperação de “suas formas tradicionais de sobrevivência”. No cap. 2, vimos a enorme importância também atribuída pelos Kanamari e Kulina na conquista de uma terra para se viver. Por fim, no novo tempo, os Kaxinawá buscam reestabelecer ou recriar algo que nos remete ao seu primeiro tempo – o tempo das malocas: refiro-me ao modo próprio kaxinawá de se viver. Mas, apesar de realizarem este movimento de “recuperação” da cultura, o modo de vida de seus antepassados não pode ser considerado adequado para se viver. Adiante, entenderemos as razões do repúdio atual dos kaxinawá pela vida levada por seus antepassados. 150 Capítulo 3 Inu e Dua, as metades De maneira semelhante a grande parte dos Pano interfluviais, os Kaxinawá valem-se de um sistema de parentesco do tipo kariera, de dupla descendência, operando por meio de quatro seções matrimoniais que se subdividem, cada qual, em duas classes, uma referente ao sexo feminino e outra ao sexo masculino (Erikson, 1993, p. 48; Kensinger, 1995, p. 153). As quatro seções matrimoniais kaxinawá são classificadas no escopo de duas metades exogâmicas, sendo preferencial o casamento entre primos cruzados (Kensinger, 1995, p. 153). As metades são nomeadas inubake e duabake. O termo bake significa “filhos”, de modo que inubake pode ser traduzido por “filhos do jaguar” e duabake são os “filhos do brilho” ou “filhos do resplendor” (cf. Wise, 2008, p. 111, 122). Kensinger (1995, p. 152) elaborou um diagrama que permite uma melhor visualização desse sistema. Reproduzo-o a seguir: Diagrama 1: Metades matrimoniais kaxinawá (1) Fonte: Redesenhado a partir de Kensinger, 1995, p. 152. Na metade inubake, os segmentos masculinos são chamados inubake e os femininos são inanibake. Na metade duabake, os segmentos masculinos são chamados duabake e os femininos são banubake. Cada uma das metades exogâmicas inu/inani e dua/banu possui um estoque de nomes, de maneira que uma pessoa pode ser 151 Trocando de pele automaticamente identificada como pertencente a uma delas de acordo com seu “nome verdadeiro” - kena kuin (McCallum, 1989, p. 103; 2001, p. 21). Estes nomes são passados em gerações alternadas e por uma linha paralela. Em resumo, quando Ego é do sexo masculino, recebe um nome da metade de seu avô paterno; e, quando Ego é do sexo feminino, ganha um nome da metade de sua avó materna (Kensinger, 1995, p. 113; McCallum, 2001, p. 21). Aqui, uma exceção deve ser notada, pois, se uma mulher casase violando a regra de exogamia da metade, sua filha deve ser membro da metade oposta à sua, o que permite manter operante o sistema terminológico. Como se pode observar no diagrama, as metades são divididas em dois grupos geracionais alternantes: inubake é dividida em awabake (filhos da anta) e kanabake (filhos do relâmpago); duabake é dividida em yawabake (filhos do queixada) e dunubake (filhos da cobra). As metades são exogâmicas, e “vistas como estando em perpétua e simétrica troca. Assim, inubake troca esposas com duabake, awabake casa-se com yawabake e kanabake casa-se com dunubake” (Kensinger, 1995, p. 151-152; tradução minha). A figura a seguir permite ainda outra visualização. Vemos as metades inubake (lado esquerdo) e duabake (lado direito) com suas respectivas classes masculinas e femininas e, na linha horizontal, os nomes que se alternam a cada geração em cada uma das metades, awabake e kanabake para a metade inu e yawabake e dunubake para a metade dua. Diagrama 2: Metades matrimoniais kaxinawá (2) Fonte: Redesenhado a partir de Kensinger, 1995, p. 112. 152 Capítulo 3 Apesar de tal sistema proporcionar a imagem de uma sociedade autossuficiente e fechada para o exterior, preferencialmente endogâmica, esta não parece ser a realidade dos Kaxinawá. McCallum (1989, p. 115) observou como muitos casamentos aconteciam entre parentes que poderiam ser relacionados apenas de maneira distante, não seguindo, portanto, a preferência de casamento entre primos cruzados; além de uniões que não seguiam a regra de exogamia da metade. Acima também mencionei a possibilidade aventada por Kensinger (1995) de que uma mulher se casasse violando a regra de exogamia da metade. Estes fatos não impedem, entretanto, que tal sistema exogâmico de metades opere em um plano de casamentos preferenciais e na classificação de um tipo específico de pessoas, Xutanaua, “Pessoas de mesmo nome”. Assim, outros povos falantes de línguas da família Pano, tais quais os Mastanahua e Sharanahua, são considerados pelos Kaxinawá do Purus como Xutanaua, enquanto os Cariú (brancos) e os Kulina não o são (McCallum, 2001, p. 21). Os Kaxinawá de hoje em dia também recebem um nome cristão que eles chamam de navan kena (nome estrangeiro). Os pais tentam encontrar um nome único na região e convidam não-parentes para nomear seu(a) filho(a), iniciando, assim uma relação de compadrio. Navan Kena indica a posição de determinada pessoa no mundo moderno e “civilizado”. Os antigos não tinham estes nomes e esta é uma diferença marcada pelos Kaxinawá entre as pessoas de hoje e as de antigamente (McCallum, 2001, p. 27). O sistema de metades tem também sua importância no ritual. Segundo Lagrou, em todos os rituais kaxinawá, uma das metades desempenha o papel de estrangeiro, “do inimigo interiorizado”, enquanto a outra desempenha o papel do anfitrião. Durante o ritual, todo um jogo de dualismos é operado: “dualismo de gênero, jogos de inversão de papéis e antagonismo entre os sexos”, principalmente nos rituais de fertilidade (Lagrou, 2007, p. 175). O dualismo não ganha expressão apenas no sistema de metades, mas em diversos aspectos da vida social kaxinawá. Neste sentido, dua e inu podem ser concebidos como qualidades que perpassam diversos âmbitos da vida social. Entre os Kaxinawá do Alto Purus, a metade dua (brilho) encontra-se ligada ao pólo do “eu” e do “interior” e refere-se aos aspectos masculinos, às cores escuras, à noite, ao mundo aquático e ao seu ibu (pai, dono ou mestre), a cobra mítica, Yube, “dona dos líquidos doadores de vida, da chuva ao sangue e à ayahuasca”. Oposta a ela, a metade inu (jaguar) está associada ao “outro” e ao “exterior” e refere-se aos aspectos femininos, às 153 Trocando de pele cores claras, ao dia, ao domínio celeste e a seu mestre, o Inka, “dono do ouro, das contas ou miçanga (mane), do metal (mane), fogo, pedra e gelo, de tudo aquilo que sustenta a qualidade de dureza e do imperecível” (Lagrou, 2007, p. 168-169, 281-282). Interessante notar que esta qualificação das metades como associadas ao “interior” ou “exterior” é invertida entre os Kaxinawá do Peru. Lá, segundo Deshayes & Keifenheim (1982, 1994 apud Lagrou, 2007, p. 169, nota 4), a metade inu (jaguar) é associada ao pólo do “eu” e do “interior” ao passo que a metade dua (brilho) é ligada aos aspectos exteriores e relativos ao “outro”. Esta inversão está muito provavelmente associada a caminhos sociais distintos seguidos pelos Kaxinawá nestas duas localidades. A mim, não será possível aprofundar esta discussão neste trabalho; mas, cumpre ressaltar que as informações sobre os tempos mítico e atual que compõe a análise a seguir são referentes aos Kaxinawá do Alto Purus, que foram interlocutores tanto na pesquisa de McCallum (1989, 2001), quanto na de Lagrou (2007). Para os Kaxinawá, a unidade de um ser é sempre composta de duas partes, duas metades, uma delas associada ao exterior e outra ao interior. Nas palavras de Lagrou (2007, p. 170): A ontologia kaxinawa postula o intrínseco, o inerente dualismo de todos os seres. Os seres vivos e a própria vida no mundo dependem da mistura de forças e qualidades opostas. Todos os seres e coisas do mundo são o resultado do ritmo e controle da mistura e apresentam a dualidade fenomenológica do conteúdo e do continente, esqueleto e pele, semente e invólucro. Qualquer separação absoluta de classes diferentes significa ausência de vida, enquanto sua mistura induz movimento, o que indica, por sua vez, vida. A dualidade é parte constituinte da vida e do movimento. Assim, para ter forma e consistência, a matéria precisa estar impregnada de yuxin. A palavra yuxin pode ser genericamente traduzida por “alma”, “imagem”, “espírito”, “reflexo”, “fotografia” (Wise, 2008, p. 422; tradução minha). Yuxin é intangível em estados normais de consciência, associado a uma força ou poder que afeta o estado dos corpos e objetos inanimados ou substâncias que habita. Conforme relatou o kaxinawá Antonio Pinheiro a Lagrou em 1989: “sem yuxin, todas as coisas se tornam pó, somente casa vazia. Você toca nelas e elas se dissolvem e então você vê nada mais que cinzas, pó” (em Lagrou, 2007, p. 171). Mas, em estados não normais de consciência – durante o sono, em caso de doença, morte ou alucinação – yuxin é tangível, visível e assume forma humana. Também durante a noite, quando a visão é dificultada pelo escuro, os espíritos invadem o espaço ao redor dos seres viventes tornando-se audíveis e quase 154 Capítulo 3 visíveis. A palavra yuxin pode ainda ser utilizada para identificar seres invisíveis da floresta e do rio (McCallum, 1989, p. 144). Em um corpo humano, há vários yuxin associados às suas diversas partes, mas é o bedu yuxin (alma do olho) aquele que dá vida ao corpo como um todo (Lagrou, 2007, p. 293; McCallum, 2001, p. 26). Voltando às metades, é possível afirmar ainda que a metade associada ao exterior é sempre considerada o maior dos elementos que constitui um par. Passo a citar o exemplo da onça. Os Kaxinawá consideram a existência de dois tipos de onça, a onça vermelha e a onça pintada. A menor delas, a onça vermelha, é classificada como dua, a metade do brilho, ligada ao domínio aquático, às cores escuras, associada ao interior; enquanto a maior, a onça pintada, é classificada como inu, a metade do jaguar, ligada ao mundo do sol e associada ao exterior (Lagrou, 2007, p. 169). A duplicidade do Inka – importante figura mitológica kaxinawá – é outro exemplo de dualismo usado para conceituar a unicidade de um ser. Um Inka, o Inka pintsi, é aquele faminto por carne, um povo do tempo mítico que canibalizava os Kaxinawa; o outro, radicalmente divergente, é o Inka kuin, “nosso Inka, o real ou o próprio Inka, em cuja aldeia o yuxin do olho passa a viver depois da morte” (Lagrou, 2007, p. 169). Assim “o Inka pode ser tanto o avarento canibal quanto o cônjuge provedor, dependendo da relação que se estabelece: afinidade real ou afinidade potencial” (Lagrou, 2007, p. 170). Esta é uma parte da história que veremos a seguir, pois o Inka povoa as narrativas do tempo mítico kaxinawá. Dos gigantes antepassados aos Kaxinawá “verdadeiros” As histórias que os Kaxinawá contam, miyui, podem se referir tanto a eventos presenciados pelo narrador ou por uma fonte conhecida, como a acontecimentos de um passado distante, histórias dos antepassados, dos antigos Kaxinawá. Neste caso, as histórias passam a ser chamadas de xenipabu miyui, literalmente, “histórias dos antepassados” (McCallum, 2000, p. 382, 384). As xenipabu miyui podem, assim, serem consideradas mitos, narrativas de um tempo e espaço em que os antigos Kaxinawá viviam (McCallum, 2000, p. 384). Os Kaxinawá, portanto, diferenciam-nas das outras narrativas miyui que têm como uma de suas características a necessidade de um testemunho ocular ou de uma fonte conhecida que tenha participado no acontecimento (McCallum, 2000, p. 382). Essas diferenciações entre narrativas nos remetem, assim, a dois períodos distintos a partir dos quais os Kaxinawá olham para sua história: um 155 Trocando de pele tempo dos antepassados, e outro que os Kaxinawá dividem em diferentes épocas, as quais, conjuntamente, chamarei de “tempo atual” ou “mundo atual”, como mencionado no início deste capítulo. A distinção entre “interior” e “exterior” é, tal qual para os Kulina, significativa na classificação dos espaços, pessoas e tempos kaxinawá. Mas, no caso dos últimos, esta distinção parece estar invertida quando a comparamos com o interior/exterior dos Kulina: os Kaxinawá, por exemplo, associam o exterior, e não o interior, aos índios selvagens e às profundezas da floresta. Eles consideram-se “pessoas verdadeiras” (huni kuin) e estão associados ao interior. Já os “índios selvagens” (chamados “brabos”) e também os Nawa (estrangeiros não-índios) ocupam o outro extremo, sendo associados ao exterior. Neste caso, o exterior é indicado espacialmente como “rio abaixo” – na cidade, onde vivem os Nawa – e também como “rio acima” – nas cabeceiras do rio, onde vivem os “brabos”. Os Kaxinawá, por sua vez, encontram-se ao meio, neste contínuo indicado pelo caminho do rio21. Este é também o caso dos Piro, que afirmam ocupar o lugar central em um contínuo espacial e relacional identificado pelas localidades “rio acima” e “rio abaixo”. A “aldeia verdadeira” que habitam, constituída pela Comunidad Nativa e sua escola, é localizada entre os “índios selvagens” que vivem em florestas “rio acima”, “como animais”, e entre os brancos, os quais habitam cidades, onde tudo é mediado pelo dinheiro (cf. Gow, 1991, p. 81-85). O centro se constitui, portanto, como o espaço da humanidade verdadeira. “Exterior” e “interior” não estão associados, entretanto, a localidades geográficas fixas; operam como categorias relacionais de classificação dos espaços, tempos e pessoas. Assim, o “exterior”, além de indicar as localidades rio acima e rio abaixo, refere-se também a uma gama de outros lugares – o céu, o submundo, as profundezas da floresta, dos rios e lagos –, todos em contraposição ao lugar onde vivem os Huni kuin: (McCallum, 2001, p. 71-72). Estes espaços são locais onde seres que existiam no mundo do mito também encontram sua existência no mundo atual. Tais seres mitológicos são, assim, eternos, tais quais os jaguares que povoavam o Céu Antigo dos Kanamari: existem desde o princípio dos tempos até os dias de hoje, embora sua presença no mundo atual seja certamente limitada. Lembremos que os antigos personagens-Jaguar que povoavam o Céu Antigo kanamari, com a queda deste, transformaram-se em diversos aspectos do mundo humano e atual, tais quais os A humanidade ocupa também a posição de meio no que se refere à organização vertical do cosmos: “a meio caminho entre o domínio aquático e o celeste” (Lagrou, 2007, p. 268). 21 156 Capítulo 3 seringais. O Jaguar que habitava o Céu Antigo continuou, desse modo, a existir no mundo atual, embora transformado (ver cap. 2). Um dos principais personagens do mundo mítico kaxinawá é o Inka, o qual se faz presente também em rituais realizados no mundo atual. Do que explicou Moico a McCallum (2000), podemos concluir que o damiain22 é um dos rituais em que os Inka podem se fazer presentes: Perguntei de que trataria o damiain a que iríamos assistir e a resposta foi yuxin miyui: “contar uma história sobre yuxin (“almas, espíritos, fantasmas”) usando máscaras de „cabaça com dentes’ (munti xetaya)”. Perguntei a Moico, um ancião cheio de sabedoria, que história seria contada. “É possível que eles vão transformar-se (dami) em Saniunka Bane, ou talvez Kuindume Teneni”, respondeu. “Eles são Inka pintsibu [“Incas carniceiros”] que aparecem em várias xenipabu miyui [“histórias dos antigos”]. Espere e verá” (McCallum, 2000, p. 384; as observações são da autora). Com o surgimento do tempo atual, os Kaxinawá passaram a assumir uma posição ao meio da linha que liga o alto e o baixo do rio, identificada ao “interior” e contraposta aos espaços que se ligam, de diversas maneiras, ao mundo do mito e seus seres – estes, exteriores (cf. McCallum, 2001, p. 72). As cabeceiras do rio são o habitat dos índios selvagens ou “brabos”, os quais são como os ancestrais dos Kaxinawá. As regiões rio abaixo são onde residem os brancos e as pessoas da cidade. Eles são associados ao futuro, ao progresso, assim como com o perigo. Em suma: as cabeceiras associam-se com o passado (seus ancestrais), ao passo que a região mais baixa do rio liga-se ao futuro (McCallum, 2001, p. 72-73). Foi também no tempo atual que o cosmos kaxinawá passou a ser retratado como uma grande árvore. No seu ponto mais alto (1), encontra-se a terra dos mortos e domínio da imortalidade. Este é o céu, “um mundo em si mesmo, com florestas, rios e aldeias de espíritos dos mortos”, o qual pode ser atingido por meio do arco-íris. Tais quais os mortos, vários ancestrais míticos (xenipabu) habitam o céu – são vistos da terra como estrelas e lua. Abaixo do céu (2), é o lugar da camada de nuvens, o domínio do “puro vento”. O próximo nível do cosmos (3) é a terra, onde vivem os Kaxinawá atuais. Ainda, abaixo dela (4), encontramos o domínio do “puro líquido/rio” (McCallum, 2001, p. 73, tradução minha). Céu e rio parecem se ligar “rio abaixo”, onde vivem os Nawa, lugar em que “as águas se tornam barro” (McCallum, 2001, p. 73, tradução minha). Este lugar é chamado de “raiz do céu”. Lá, uma escadaria gigante (xanen tapiti) encostada a uma enorme Ritual pantomímico em que figuras mascaradas representam entes mitológicos encarnados como espíritos (McCallum, 2000, p. 384). 22 157 Trocando de pele árvore leva até o céu23. Mas, no princípio, essas diferentes localidades não se encontravam separadas e os Kaxinawá não ocupavam sua posição de “meio” – nem acima nem abaixo do rio –, assim como não viviam de maneira apropriada. No princípio do mundo, os ancestrais dos Huni kuin foram criados no buraco de uma árvore. Quando saíram de lá, viviam juntos em uma aldeia onde não havia restrições quanto à parceria sexual, uma pessoa podia fazer sexo com qualquer outra. Irmãos e irmãs viviam juntos na mesma casa e, quando uma mulher tivesse atingido determinada idade, seu irmão iria desposá-la. “Nesta época, em cada casa, habitavam apenas irmãos e irmãs” (Araguana, em Ministerio de Educación, 1973, p. 13, tradução minha). Todos os que existiam viviam com seus familiares próximos. “As pessoas cresciam e se multiplicavam indiscriminadamente, geração após geração, tornando-se numerosas e espalhando-se por todo o mundo” (McCallum, 2001, p. 146, tradução minha). Uma noite, uma mulher grávida, chamada Ixma se sentiu faminta de carne. Ela mandou seu irmão-marido Yukan ir à beira do rio pegar sapos para que ela os pudesse comer. Yukan, que também é conhecido por Binkun Chana ou Ni Nawa Dua (Espírito Dua da Floresta), acendeu sua tocha, feita de palha e borracha e desceu ao rio. Lá, o Espírito do Sapo o enganou, chamando-o para visitar sua casa subaquática. Assim, Yukan desapareceu deste mundo e foi viver com a gente do Espírito do Rio. Uma vez que Yukan não havia voltado, sua esposa e sua gente estavam consternadas e, no dia seguinte, foram procurar por ele. Foram chamando e chorando amargamente como se fossem encontrar um parente morto. Finalmente Yukan respondeu aos chamados, dizendo à sua esposa que ele iria visitá-la, mas com a condição de que ela preparasse caiçuma para toda a Gente do Rio. Ixma fez como Yukan pedira e, no dia seguinte, eles vieram: muitos da gentepeixe, todos pintados com jenipapo e decorados com penas de arara em suas narinas. Os Huni kuin ficaram aterrorizados e correram, escondendo-se em suas casas. O chefe da Gente do Rio estava furioso por causa do modo pelo qual sua gente fora tratada. Conduziu-os novamente ao rio. Mas a esposa de Yukan não desejava que seu marido partisse e o enganou, chamando-o para entrar em sua rede. Lá, ela o agarrou com toda a sua força, não o deixando partir 24. O chefe da Gente do Rio planejou uma terrível vingança. Uma vez que Yukan apenas desejava estar com sua própria gente e não mais sentia falta de seus amigos, pessoas do rio, o chefe da Gente do Rio decidira fazer com que todos fossem até ele. Assim, formou-se uma grande enchente e as águas destruíram o mundo. Os antepassados dos Huni kuin não conseguiam fugir, mesmo que subissem nas árvores, o rio os pegava e eles morriam. Ao fim do dilúvio, quando as águas do rio baixaram completamente, os Huni kuin “mudaram suas formas, convertendo-se em animais de caça” (Araguana, em Ministerio de Educación, 1973, p. 19, tradução minha). Transformaram-se também em diferentes tipos de peixe. O Espírito do Rio os engoliu e eles se converteram em grandes peixes, botos e tartarugas de rio. Não apenas os antepassados, mas igualmente os objetos que utilizavam se transformaram: banquetas baixas em Outros caminhos também podem ser adotados para se chegar até o céu: o arco-íris é um deles, também chamado de “caminho dos inimigos” ou “caminho do Estrangeiro” (nawan bai); outro é o “caminho do Inka”, Inka bai (cf. Lagrou, 2007, p. 244; McCallum, 1989, p. 178; 1996, p. 61). 24 Em outra versão do mito, coletada por D’Ans (1975 apud McCallum, 1989, p. 416-417), é a esposa de Yukan que expulsa a gente-peixe, ordenando para que partam. Yukan ficara muito bravo com sua esposa pelo seu comportamento. Ele também desejava partir, mas ela o agarrou e, transformado em muriçoca, ele voou. 23 158 Capítulo 3 tartarugas de rio; os postes das casas em grande peixes bain; os cestos grandes em grandes lagartos etc. Haviam, então, terminado a transformação em outros seres e começado e viver juntos, quando uma velha mulher chamada Nete veio descendo rio abaixo e chegou até onde eles estavam. Ela era a única sobrevivente do dilúvio 25. Este mito trata da primeira criação dos xenipabu (ancestrais) dos Kaxinawá, das condições iniciais de sua existência e também do fim desta existência, a qual apenas será recuperada em uma configuração completamente divergente. Será Nete aquela que recriará os Huni kuin dos tempos atuais, como veremos a seguir. A história de Yukan ou Ixan, outro nome atribuído àquele que foi capturado pelo Espírito do Sapo ou Espírito do Rio, é a narrativa kaxinawá do princípio e fim de um tempo distinto do atual. Cumpre aqui observar a semelhança que se destaca a partir da comparação entre os mitos cosmogônicos dos Kulina (ver cap. 2) e Kaxinawá, uma vez a criação de ambos os povos é, antes, uma recriação de sua existência. No caso dos primeiros, foi a raiva de Massosso, a mãe que teve seu filho morto pelos Kulina, o ato propiciador de sua vingança. Massosso tentara ainda raptar uma criança kulina como compensação de sua tristeza e, não conseguindo, acabou com os madihá, tendo restado apenas Tamaco, Quira e a própria Massosso. Após a matarem, foram estes irmãos que recriaram os Kulina. Foi o leite fervente de Massosso que matou os Kulina ao passo que foram as águas do rio que acabaram com os Kaxinawá. Entretanto, em ambas as histórias, a raiva e a vingança foram aquelas que colocaram fim ao mundo então existente. O Espírito do Rio, assim como Massosso, entristecera-se com a perda de um dos seus – em que Yukan se transformara – e com a impossibilidade do estabelecimento de relações de troca/afinidade com os xenipabu dos Kaxinawá. Lembremos que Massosso também buscara raptar uma criança como compensação pela morte de seu filho. Em ambos os casos, a vingança coloca um fim às condições iniciais de existência, as quais só serão reestabelecidas com uma nova criação. Esta recriação, portanto, é operada por um demiurgo. No caso dos Kaxinawá, ela é atribuída à Nete, uma mulher com poderes xamânicos. Continuemos a história. Durante a enchente, Nete conseguira se agarrar a um tronco bem grosso que flutuava nas águas e, assim, foi levada rio abaixo. Depois, o rio 25 Encontramos duas variantes da história de Yukan/Yxan ou da Primeira Criação. A mais completa é encontrada da publicação bilíngue do SIL/Peru “Ixan: cuento de los Antepassados” em que Araguana, cacique kaxinawá é o responsável pela narrativa (cf. Ministerio de Educación, 1973). Outra versão, mais curta, é oferecida por D’Ans (1975 apud McCallum, 1989, p. 416-417). A narrativa que apresento é uma versão resumida a partir tradução para o espanhol da narrativa de Araguana e também da tradução que McCallum realizou do original desta narrativa (cf. McCallum, 1989, p. 416-417; 2001, p. 146-147). 159 Trocando de pele começou a baixar até que findaram as águas. Sozinha, ela chorava muito de tristeza, pois toda a sua gente tinha morrido. As lágrimas não pararam de cair dos seus olhos e o muco escorria de seu nariz, como ocorre no choro funerário até hoje. Um enxame de vespas e abelhas (seus parentes metamorfoseados), atraído pelas lágrimas, a atacou. Nete se defendeu como pôde, mas ao final as mordidas dos insetos acabaram por cegá-la. Desta forma, Nete se tornou Nete bekun: Nete, a cega. Nete sofria muito e pensou em fazer filhos para ter companhia. Na praia, encontrou duas cuias, pegou duas abelhas, arrancou suas cabeças e as colocou em uma das cuias. Depois tirou a cabeça de duas outras abelhas e as guardou na outra cuia. Nete encheu as cuias com sua saliva, suas lágrimas e seu muco e as fechou com cera. Pôs as cuias no sol, deixando-as cozinhar (bawa) e quanto prontas, estouraram. Um casal de crianças inu/inani saiu de uma das cuias, da outra saiu um casal dua/banu. [...] Nete ensinou seus filhos a namorarem e casarem com parceiros da outra cuia e a tratarem aqueles com quem partilhavam a mesma cuia como irmãos. Quando grandes o suficiente para andar, Nete contou a seus filhos que tinham um tio, Nawa Paketawã, e que este havia saído muito tempo antes do dilúvio. Paketawã era o irmão de Nete (Lagrou, 2007, p. 425-427). Nete, portanto, cria as regras de casamento, separando quatro cabeças de abelha e colocando duas em cada cuia, a cavidade da qual saíra cada casal de crianças. As crianças nascem já organizadas em metades e suas respectivas seções masculinas e femininas: inu e inani, dua e banu. Nete, por fim, ensina os filhos a se casarem com parceiros da outra cuia e a tratarem como irmãos os da mesma cuia, inaugurando regras de consanguinidade e afinidade por meio da exogamia. As abelhas são, ainda, consideradas um forte símbolo de fertilidade pelos Kaxinawá: moram em grupo ao redor de uma liderança (feminina) e colaboram na construção de uma casa coletiva; além disso, o mel que produzem é considerado uma “poderosa poção fertilizante”, sendo consumido por mulheres que desejam engravidar (Lagrou, 2007, p. 426). Há igualmente vários elementos de fertilidade associados à própria Nete. De acordo com Lagrou (2007, p. 425), Nete, antes do dilúvio, vivia na mesma casa que Yube e foi agarrando-se a uma sapopema da samaúma que ela se salvou. Como vimos, Yube, a sucuri mítica, associada à metade Dua, é a dona dos líquidos doadores de vida; e, como veremos em maior detalhes adiante, ela detém o conhecimento da troca de pele e, portanto, do rejuvenescimento e da eternidade26. A samaúma, por sua vez, é considera pelos Kaxinawá como uma árvore que não morre facilmente, tendo o conhecimento da vida e da morte (Lagrou, 2007, p. 425, 490). Além disso, se Yube também aparece nos mitos kaxinawá como sendo lua (personagem masculina). A origem da lua está ligada à primeira menstruação das mulheres, um dom de Yube (ver versões do mito da lua em McCallum, 1989, p. 408-412). A menstruação é condição para a gravidez das mulheres e é também associada à troca de pele (cf. Lagrou, p. 113). O nome Yube liga, assim, a lua à pele da cobra, à vida e à fertilidade. 26 160 Capítulo 3 compararmos o comportamento de Nete ao de Ixma, esposa Yukan, podemos observar que elas assumem posturas completamente distintas em relação a seus respectivos irmãos. Ixma era casada com seu irmão, Yukan, e não aceitou estabelecer relações de afinidade com a gente do mundo aquático, mundo associado à vida. Sua postura pôs fim à vida dos xenipabu. Nete, contrariamente, não se refere a seu irmão, Nawa Paketawã, considerando-o como um marido, como fez Ixma. Ela o apresenta a seus filhos, criados a partir de abelhas, como um tio; portanto, um possível sogro, um afim. Podemos, assim, associar Nete tanto à fertilidade como às regras de casamento e afinidade. Na época em que Nete decide visitar Paketawã, a esposa de seu irmão tinha morrido jovem e ele, por ter ficado sozinho, estava triste. O cunhado de Paketawã tinha uma esposa, prima paralela de Paketawã. Um dia, Paketawã deitou na rede com sua prima, namorou-a e pediu para casar-se com ela. Quando o marido da prima voltou para casa, as pessoas contaram-lhe o acontecido. Assim, Paketawã e sua amante deixaram a aldeia, que era também a de Nete e viajaram rio abaixo, passando por rios de diferentes cores – branco, vermelho, amarelo27 (Lagrou, 2007, p. 427). Em cada rio por que passavam, repetiam o mesmo ritual: “Nawa Paketawã preparava o veneno de pesca (puikama) e o jogava no rio; depois se sentava à margem para olhar os pelos pubianos da mulher enquanto ela despia a saia curta e entrava, nua, na água para catar os peixes que iam boiando” (Lagrou, 2007, p. 427-428). Assim, Paketawã chega à terra do povo dos Inka, onde oferece favores sexuais às mulheres Inka. Lá também é o local onde ele finalmente se estabelece, em um barranco (mawa) perto da casa dos Inka (Lagrou, 2007, p. 430). Nete, então, decide ir visitar, com seus filhos, o irmão Nawa Paketawã. Nete Cega (Netebuekun) levou seus filhos rio acima e, no caminho, ensinou-lhes os nomes das plantas cultivadas que estavam crescendo nas praias: mandioca, milho, batata, mamão, cana-de-açúcar, amendoim. Como não enxergava, seus filhos levavam as plantas até ela, que as reconhecia e ensinava-lhes seu uso (cf. OPIAC, 2000, p. 59-60; Lagrou, 2007, p. 430-431). “Todos estes vegetais”, contou Nete, “foram plantados pelos hidi”, os gigantes, ancestrais dos Kaxinawá. Chegaram a uma clareira onde encontraram grandes ossos brancos e cacos de cerâmica. Nete sentou e chorou. Ao perguntarem à sua mãe o que aconteceu, os filhos aprenderam que este era o lugar onde seus As cores dos rios variam em diferentes versões. Na versão dos Kaxinawá autores do livro Shenipabu miyui, é Nete e seus filhos que passam pelos rios de cores preta, branca e verde no caminho para a casa de seu irmão (cf. OPIAC, 2000, p. 60). 27 161 Trocando de pele ancestrais tinham vivido28. [...] O encontro com os restos da aldeia dos hidi foi um incentivo para Nete para começar a ensinar a seus filhos a construção de casas e a arte de fazer cerâmica. [...] Depois de descansar por um tempo na antiga morada dos seus antepassados, Nete e seus filhos retomam a viagem. Ao se aproximarem da cabeceira do rio encontram-se perto o suficiente para escutar Nawa Paketawã cortando lenha. Apesar de não vê-lo, Nete sabe que é seu irmão. Chegam, finalmente, a um precipício e precisam de uma escada para subir a parede de pedra. Neste ponto, o narrador enfatiza as capacidades adivinhadoras de Nete, o fato de ela ser xamã, yuxian (Lagrou, 2007, p. 431, 433). Na versão dos autores da obra Shenipabu miyui, é esclarecido que, mesmo não sendo possível a eles ver o que tinha sobre a parte alta de terra (neste caso, não era de pedra), Nete, mesmo cega, sabia que lá havia uma escada. “A velha era tão sabida que acertava tudo. Não enxergava, mas estava no rumo” (OPIAC, 2000, p. 60-61). O irmão de Nete era também um xamã: aprendera suas artes com os Inka. “Nete sabia que ia morrer, mas mesmo assim, insistia em subir o barranco para ver seu irmão que, em suas próprias palavras, havia se tornado estrangeiro”. Por fim conseguem chegar, mas Paketawã não quer compartilhar seu conhecimento nem receber sua irmã e genros potenciais (Lagrou, 2007, p. 433). A mulher de Paketawã, por outro lado, se alegra ao ver seus daisbu (sobrinhos, filhos da irmã do marido, genros potenciais), pois desejava há muito tempo companhia e cada vez que Paketawã exagerava no agrado aos Inka, caçando mais para eles que para ela, ameaçava abandoná-lo e ir procurar seus parentes. Por isso, recebe Nete e seus filhos calorosamente e corre para levar a boa nova para o marido. O marido, porém, não para de cortar lenha e grita: “O que ela quer aqui? Não os quero aqui!” (Lagrou, 2007, p. 434). Paketawã, então, amaldiçoa sua irmã, dizendo que morrerá em três dias porque insistiu em invadir seu território (Lagrou, 2007, p. 434). Agostinho Manduca, um Kaxinawá do rio Jordão, em sua versão do mito, acrescenta detalhes a este evento. Afirma que Paketawã mata sua irmã com uma pedra de gelo que produz um vento tão frio que a congela. Ele havia recebido esta pedra de suas amantes, mulheres Inka29. Nete tinha poderes xamânicos e soube que seu irmão mandaria ventos gélidos. Seus filhos se apressaram para juntar lenha, mas foi tarde demais (Lagrou, 2007, p. 434). Eles, então, prepararam sua vingança. Em comparação com o tamanho dos filhos de Nete, Nawa Paketawã era um gigante. Consequentemente, o ataque dos filhos teve de ser similar à Segundo Lagrou (2007, p. 431), ossos excepcionalmente grandes foram, de fato, encontrados na região pelos Kaxinawá. “Estes são, junto com os machados de pedra (yami), os únicos objetos arqueológicos conhecidos pelos povos da região” ou pelos antropólogos que lá estudam. 29 Sobre o tema do poder obtido por heróis míticos ao namorarem a esposa do irmão na mitologia kaxinawá, conferir Lagrou (2007, p. 434-435). 28 162 Capítulo 3 estratégia usada por insetos (e xamãs): “aparentemente invisível e inócuo, porém, mortal” (Lagrou, 2007, p. 436). Os jovens preparam seus pequenos arcos, e fingindo brincar, atiram nos enormes testículos do gigante. No início, Paketawã sente uma coceira e, pensando que está sendo picado por formigas, coça vigorosamente. Os testículos começam a inchar, Paketawã se retira para sua rede e morre na mesma noite (Lagrou, 2007, p. 436). Nete saíra, portanto, ao encontro de seu irmão, levando seus filhos, genros potenciais de Nawa Paketawã. No longo caminho que percorrera, nomeara as plantas cultivadas que estavam crescendo na praia. Graças a seus poderes xamânicos, consegue chegar até a morada de seu irmão, que se aproximara muito dos Inka. Nete, que havia ficado muito triste com a solidão após o diluvio, criara seus filhos em cuias e buscava, então, seu irmão, a quem os apresentaria. Os filhos de Nete eram genros potenciais de Paketawã, mas este não a quis receber, negando a troca. O irmão aproximara-se demais dos Inka, era como um deles, um nawa (estrangeiro), Nawa Paketawã. Ele a mata e também é morto. Nawa Paketawã morrera, mas a criação continuara: as crianças fizeram roças, construíram casas e se multiplicaram (McCallum, 2000, p. 147). Em contraste com o tempo-mundo que o precedeu, a nova criação dos Kaxinawá possibilitou a existência sob um novo formato de relações. De casamentos estabelecidos de maneira imprópria (bemakia) entre irmãos, os Kaxinawá passaram a ter possibilidade de se casarem propriamente (kuin), com o surgimento de suas metades. Pois, de cada uma das cuias, nasceram um par de crianças, uma do sexo masculino e outra do sexo feminino, que deveriam se tratar como irmãs e se casarem com aqueles que eram da outra cuia. Nete, como nos conta o mito, ensinou isso a eles. Assim, Nete não é apenas a criadora, mas também quem ensina e dá possibilidades a um novo modo de vida. É ela quem dá origem aos primeiros humanos de verdade, os Huni kuin (Lagrou, 2007, p. 424). Como nos relata o mito, seus antepassados (xenipabu) eram os gigantes hidi. Antes de prosseguir, será necessário esclarecer o significado do termo “kuin”, “verdadeiro”, para os Kaxinawá. Sua importância é evidente nos diversos usos que este grupo indígena faz do termo: é um qualificador de desenhos, tecidos, modos de vida e também do próprio Inka, como vimos anteriormente (cf. Lagrou, 2007; McCallum, 1989, 2001; Kensinger, 1995). O uso do termo é sempre contextual e relacional e responde, muitas vezes, a uma gradação que considera também o qualificador “bemakia”, “impróprio” e “kayabi”, “bom sem ser próprio”. Além disso, 163 Trocando de pele pode ser combinado com outro qualificador, o termo “betsa”, que significa “outro” (Lagrou, 2007, p. 185-186)30. Lagrou (2007, p. 185), ao mencionar o exemplo do desenho (kene), explica que nem todo kene que não seja kuin (verdadeiro) é bemakia (impróprio). Um desenho que seja feito seguindo as regras de estilo, mas não as executando com perfeição, pode ser considerado um kena kayabi, “desenho bom, mas não próprio”. Tendo em vista essas moderações possíveis, estrangeiros também podem ser inclusos na categoria “huni kuin”. Critérios importantes para tal qualificação são a semelhança linguística, o uso correto dos nomes próprios, de acordo com o seu sistema de transmissão de nomes, alimentação, aparência física e modo de se vestir (Lagrou, 2007, p. 184). Augusto Kaxinawá, por exemplo, incluiu os Yaminawa, Katukina (Pano), Shipibo e Yuda pelo termo huni kuin, “pessoas como nós mesmos”. Os primeiros são povos falantes de língua da família Pano com os quais Augusto teve contato pessoal durante sua vida; os últimos foram recentemente contatados no Parque Manu no Peru, mas Augusto viu fotos dos mesmos e afirmou que eles lembravam seus antepassados. Entretanto, na qualificação desses grupos, utilizou o termo “betsa”: huni kuin betsaki (eles são “outros huni kuin”), nukun nabu betsaki – eles são relacionados a nós (parentes), mas são “outros” (betsa)31 (Lagrou, 2007, p. 184). A denominação “nukun yuda” (“nosso corpo”) é, entretanto, menos inclusiva. Outros povos podem ter também um corpo construído e cuidado de maneira semelhante ao dito “nosso”, mas é um corpo diferente. A expressão “nukun yuda” refere-se à constituição de um corpo específico, que não é intercambiável. Nenhum corpo é constituído de maneira idêntica ao kaxinawá, o qual alude a um processo de crescimento particular e a uma singularidade histórica (Lagrou, 2007, p. 187). Neste escopo, há ainda uma definição mais inclusiva, em nabu, aplicada em relação aos parentes próximos, indicativa de uma consubstancialidade e compartilhamento de comida, contato corporal e trabalho. No outro extremo, há aqueles que vagam sem um corpo e sem um lugar próprio, estes são os estrangeiros “verdadeiros”, os nawa e também os mortos. Estrangeiros verdadeiros não podem ser abordados pelo termo “yuda betsa” (“outro corpo”) ou “yuda bemakia” (“corpo impróprio”), pois não há referência ao seu processo de crescimento da carne e do corpo. Eles “poderiam ser Kensinger explora as diferentes e contextuais aplicações dos termos kuin, bemakia, kayabi e kuinman (não real, não verdadeiro) entre os Kaxinawá do Peru (cf. Kensinger, 1995, p. 83-94). 31 De acordo com Lagrou (2007, p. 186), quando o assunto é a diferença entre hábitos indígenas e nãoindígenas, alimentação ou política, até mesmo os Kulina podem ser inclusos na categoria “kuin”(nós) dos Kaxinawá. Entretanto, quanto o tópico é mais específico, tratando-se, por exemplo, de nomes e idioma, os Kulina são excluídos e considerados huni kuinma, ou seja, não-huni kuin. 30 164 Capítulo 3 considerados como yuxin”, pois “vagam solitários e se alimentam de farinha de mandioca e café” (Lagrou, 2007, p. 188). O surgimento de um corpo propriamente humano é uma das passagens efetuadas na mudança do mundo do mito ao mundo atual. Um corpo vivo é um corpo composto de substâncias duais e opostas, masculinas (ossos) e femininas (pele), comida amarga e doce, de qualidades dua e inu (Lagrou, 2007, p. 182). O morto é, neste contexto, um “outro” real, como os yuxin, seus familiares. Os nawa, verdadeiros estrangeiros, não vivem em corpos da mesma forma que os huni kuin: “não há o compartilhar do mingau de banana, milho, mandioca e caça e nem o viver entre os parentes próximos”, seus corpos são diferentes (Lagrou, 2007, p. 188). Os espíritos, desse modo, são o contraponto do corpo humano. Na versão mais extensa do mito de recriação do mundo kaxinawá, Lagrou (2007, p. 431) esclarece que Nawa Paketawã, o qual vivia sozinho com sua mulher no barranco, tinha um casamento estéril e sua esposa sentia falta de sobrinhos (babawan). Em razão deste desejo, quando os legumes e o milho amadureceram, ela decidiu capturar e domesticar animais. Sua esposa era uma boa caçadora, como um homem. Dessa maneira, em pouco tempo, o casal estava cercado por crias de jabuti, tartaruga e várias espécies de macaco, os quais eram alimentados com produtos do roçado. Nawa Paketawã tinha, portanto, um casamento estéril, não fértil, e alimentava com os produtos do roçado seus animais de criação e não seus filhos. Pela história contada no mito, fica evidente que o irmão de Nete se aproximara demais dos Inka, os quais são tomados como verdadeiros estrangeiros. Paketawã, qualificado como nawa, é Nawa Paketawã, aquele que explicita um comportamento avesso à socialidade kaxinawá, “casa-se demasiadamente próximo, cometendo uma versão suave do incesto, roubando a mulher do cunhado; envolve-se com o que é demasiadamente diferente, com o povo dos Inka, emblema da alteridade” (Lagrou, 2007, p. 430). Para chegar até o irmão, Nete teve que caminhar na direção de terras elevadas, para o alto e inclusive escalar uma parede de pedras. Estes são sinais de um caminhar em direção à terra dos Inka, que vivem atualmente no céu para os Kaxinawá. Sabemos também que os Incas viveram nas terras altas andinas e que dados históricos apontam para uma conexão entre o altiplano andino e as terras baixas amazônicas (ver cap. 1). No caso Kaxinawá e de seus vizinhos falantes de língua pano e aruak, “a tentação e ameaça do „Estado Nação’ é mais antiga que a primeira chegada dos espanhóis na costa peruana” (Lagrou, 2007, p. 96). Por estarem em uma posição fronteiriça entre o 165 Trocando de pele altiplano andino e a floresta Amazônica, estabeleceram contatos próximos com a expansão incaica. A pesquisa histórica sugere que alguns destes grupos – possivelmente os Kaxinawá e os Conibo – trabalhavam nas minas de Potosi quando os primeiros cronistas lá chegaram (Renard-Casevitz; Saignes; Taylor, 1988, p. 121-132 apud Lagrou, 2007, p. 96). O Inka é um personagem que povoa o tempo mítico e nele aparece como uma figura ambígua pela qual os Kaxinawá se sentem atraídos, mas de quem sentem medo; são por eles repudiados enquanto parentes ou, ainda, são mortos (como foi o caso de Nete). É evidente sua semelhança com os nawa que também são os brancos atuais, aqueles que, desde o boom da borracha, estabeleceram contato com os Kaxinawá, um encontro violento e ambíguo. Os Kaxinawá se sentem atraídos pelas mercadorias e conhecimentos dos brancos, mas os temem e sabem da dificuldade de se estabelecer relações de afinidade para com eles (cf. McCallum, 2000; Lagrou, 2007, p. 98). Os Inka são a origem de muitas coisas essenciais aos Huni Kuin e, ao mesmo tempo, são aqueles que levam as almas dos moribundos para a terra dos mortos (McCallum, 2000, p. 387). Sua figura nos remete a histórias parecidas de outros grupos indígenas sobre gigantes estrangeiros e poderosos, personificada muitas vezes pelo jaguar (ver o caso dos Kanamari e Kulina, cap. 2). O Inka é tal qual o jaguar kanamari e kulina, uma figura ambígua: ele é ao mesmo tempo atrativo e fonte de medo. Ele é uma figura mítica que se comporta como predador em relação àqueles que considera muito diferentes de si. Assim, os Kaxinawá, enquanto vivos, são presas potenciais dos Inka. Mas, uma vez mortos, se tornam iguais a eles, bonitos e luminosos, habitando também o mundo celeste. Passam da posição de presas para serem alimentados por ele (Lagrou, 2007, p. 168). Assim, a relação que Nete desejava estabelecer no mito com seu irmão, um Nawa/Inka, foi-lhe negada por este e, desde então, os Kaxinawá, apenas quando mortos, podem se relacionar com os Inka em um mesmo mundo32. A negativa de Nawa Paketawã cria o mundo da morte, pois, como veremos adiante, o fim do tempo mítico instaura o mundo dos mortos, povoado pelos Inka. A socialidade post-mortem é, assim, aquela em que os Kaxinawá tornam-se iguais aos Inka e passam a viver com eles em sociedade. O Inka pintsi (o avarento canibal) é, portanto, um ser que povoa o mundo do mito e amedronta o mundo terrestre; ele é o afim potencial. Já o Inka kuin (o Inka verdadeiro) é aquele em cuja aldeia os Kaxinawá passam a viver quando morrem, ele é 32 O relacionamento com os Inka no mundo terrestre atual é limitado, como veremos adiante. 166 Capítulo 3 o cônjuge provedor com quem se estabelece uma afinidade real. Tanto é que uma forma de se dizer “morrer”, na língua kaxinawá, é “Inka benewa-“ (casar com um marido Inka) ou “Inka ainwa-“ (desposar uma mulher Inka) (cf. McCallum, 1996, p. 63). Quando um Kaxinawá morre, na parte final de seu ritual mortuário, circunstância em que os ossos são calcinados, seu nome (kena kuin) e bedu yuxin (alma do olho), que são eternos, desligam-se dos últimos restos do corpo e seguem o caminho para o céu. O canto que os Kaxinawá dirigem ao bedu yuxin neste momento enfatiza que ele deve ir para o céu, lá vestir a roupa do Inka, ficar com o Inka e nunca mais voltar (cf. Lagrou, 2007, p. 341). Nos mitos kaxinawá, os Inka, mesmo quando não aparecem se relacionando diretamente com os antepassados (xenipabu/hidi) dos Huni Kuin, expressam-se como o avesso do estabelecimento de laços sociais adequados. No mito que relata o roubo do sol pelo urubu, o Inka vivia perto da raiz do céu e possuía o sol, o frio, o dia e a noite dentro de frascos, que abria e fechava quando bem entendia. Na casa do urubu estava sempre frio e escuro, mas o Inka não atendia aos seus pedidos de lhe dar um pouco de sol para esquentar. Ele era um personagem ao mesmo tempo, divino, poderoso e solitário; tudo o que possuía era para proveito próprio (cf. Abreu, 1914, p. 447-454; Lagrou, 2007, p. 260-263). Os Inka pintsi representam o princípio da não sociabilidade por excelência, sendo associados à raiva, à avareza e à solidão. Lembremos que Nawa Paketawã não desejava compartilhar seus conhecimentos com Nete e, não apenas a mandou embora, como a matou. Os Inka estão presentes, portanto, tanto no princípio do tempo como no fim de um ciclo vital. Mas, uma diferença deve ser destacada: se no tempo do mito, os antepassados dos Huni kuin conviviam com os Inka em um mesmo mundo, enfatizando seu lado Inka pintsi (Inka canibal), no tempo atual, o céu, a terra e as águas passaram a se constituir enquanto espaços separados e os Inka ganharam uma existência mais circunscrita. Isso não significa dizer que eles tenham deixado de amedrontar os Kaxinawá, enquanto um princípio de insociabilidade. Este princípio encontra ressonância, ou mesmo existência, em pessoas bem concretas: os brancos que chegaram com a exploração da borracha na região. Os Kaxinawá, assim como os Kulina, Kanamari e Paumari, buscaram, por muito tempo, um bom patrão (ver cap. 1). A imagem do Inka, com o qual os Kaxinawá sempre quiseram manter relações de parentesco, mas nunca conseguiram, é boa para pensar a busca por um bom patrão. McCallum (2000, p. 390), nesse mesmo sentido, explicita que: 167 Trocando de pele Nessa terra, os parentes mais próximos dos Incas são os nawa, termo que atualmente se refere aos cariús, aos brancos e aos não-índios em geral. [...] Os nawa são muito parecidos com os antigos Incas, que eram seres sociais cujos atos se enraizava numa contradição básica entre habilidades socialmente geradoras e inclinações socialmente destrutivas. Graças ao seu poder e à sua beleza, eram potencialmente os afins perfeitos [...] Se os Incas não podiam se unir verdadeiramente aos Huni Kuin por causa de seu desejo excessivo de consumir (canibalismo), os nawa não o fazem por causa de seu excessivo desejo de reter. Desse modo, os Inka pintsi ganham materialidade, no mundo atual, muitas vezes nos brancos, os quais, como vimos no início deste capítulo, perseguiram os Kaxinawá, mataram-nos e submeteram-nos a um trabalho forçado, por meio do qual os roubaram. São detentores de conhecimento, mas também da avareza, tais quais os Inka do mundo mítico. Com eles, o relacionamento propriamente social é certamente limitado. O surgimento da vida e da morte Um conjunto de mitos kaxinawá narra como este mundo anterior, o mundo do mito, foi perdendo seu formato e adquirindo as características que hoje o conforma o mundo atual. No princípio, os espaços do cosmos não se diferenciavam claramente. O mito referente à recriação dos Kaxinawá – a história de Nete que vimos acima – mostra como, antes, os mundos da terra e da água não estavam devidamente separados. Foi o conflito com a gente da água e o consequente dilúvio que estabeleceu um novo mundo, onde estes espaços dividiram-se de maneira definitiva ou estável. A distância entre o céu e a terra também não existia. “Nos velhos tempos”, comentou Augusto, “o céu não era alto. Podíamos ver os habitantes do céu do mesmo modo que eles ainda nos vêem hoje em dia” (Lagrou, 2007, p. 248). Foram os ancestrais dos Huni kuin que, por serem gigantes e baterem com frequência sua cabeça no céu, amaldiçoaram o fato de o patamar celeste estar muito próximo. Mandaram, assim, o povo celeste e sua terra para bem longe até um ponto em que não foi mais possível ouvir ou ver o povo do céu (Lagrou, 2007, p. 248). Com a separação dos espaços do cosmos surgiu também a morte. Esta é a última e importante transformação sobre a qual gostaria de me deter nesta passagem entre tempos/mundos. “Antes da terra e do céu estarem definitivamente separados, 168 Capítulo 3 existia um constante vai-e-vem entre os espaços e, consequentemente, entre a vida e a morte” (Lagrou, 2007, p. 247). Antes, as pessoas podiam realizar livremente o caminho entre o céu e a terra; e, por ocasião destas viagens, renovarem-se, trocando sua pele velha por uma nova. Tal capacidade foi perdida quando o ancestral Pukã morreu. Ele estava cansado de sua pele velha e queria morrer. Por isso, pediu a seu filho para que o matasse. Este lhe deu sapo venenoso para seu pai comer, o que o matou. Ao subir ao céu, Pukã gritou a seus filhos “Xuku xukuwe!”, “Mude de pele! Mude de pele!” (Lagrou, 2007, p. 247). Estava trovoando muito no céu. A chuva caía sem parar e ninguém conseguia ouvir sua voz direito. A cobra, a barata, a lagarta, o escorpião, o mulateiro [um tipo de árvore] e dois tipos de carangueijo (o xaka e o xai) entenderam. O camarão do rio também ouviu. Todos eles ouviram o grito “xuku xukuwe!” Por isso, somente estes trocam a pele e não morrem, sempre têm pele nova. Mas nós morremos porque txitxisapa (uma barata grande) enganou nossos antepassados. “Keyu! Keyuwe!”, ele disse. Txitxisapa disse que Pukã estava gritando: “Acabem! Acabem!” E assim foi que nossa gente começou a morrer. Queriam bater nele, mas ele estava com medo e se escondeu embaixo da madeira. Bateram e bateram sem parar. Estavam com muita raiva. É por isso que o txisapa é muito achatado. O calango nixeke também, a cobra e o grilo, eles trocam de pele, mas a gente não (Antônio Pinheiro, em Lagrou, 2007, p. 247). Assim, a morte passou a existir de maneira definitiva, sem que fosse possível a todos terem a capacidade e o conhecimento da troca de pele. O reconhecimento de que a capacidade de trocar de pele permite uma vida eterna não é exclusivo aos Kaxinawá. Lévi-Strauss (2004 [1964]), em sua análise sobre os mitos de origem da vida breve sob o código dos sentidos, mostra como é difundida entre diversos grupos indígenas a concepção da troca da pele como rejuvenescedora e como aquela que possibilita uma vida eterna. Entre os Shipaya, foi uma confusão olfativa que fez com que os homens escolhessem a canoa da morte ao invés daquela da vida eterna - do demiurgo que queria tornar os homens imortais. Assim, não puderam trocar de pele ao envelhecerem e, assim, remoçarem como as cobras (Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 186). A associação entre troca de pele e imortalidade aparece igualmente entre os Tenetehara, os Tukuna (cf. Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 187-190). Vimos também que, entre os Paumari, a troca de pele tem a capacidade curativa e rejuvenescedora. Yube, a cobra, é um ser de grande importância no mundo kaxinawá. Segundo sua concepção, a jiboia e a sucuri fazem parte de um só ser. O fato de a primeira habitar a terra e a segunda a água não implica uma diferença em suas qualidades 169 Trocando de pele inerentes, em sua espécie, mas uma diferença em termos de idade e tamanho (Lagrou, 2007, p. 213). Yube, na forma jiboia, é designada como “o maior dos xamãs”, em razão de ser um “mensageiro”, “nunca restrito a um único mundo, viajando do mundo da água para a terra e retornando, trocando de pele todo o tempo, transformando-se a si própria e o mundo a sua volta”. Isso porque a jiboia é uma das manifestações do xamã primordial Yube, mestre do mundo aquático; sendo assim, ela não é apenas um animal com yuxin, mas também possui yuxibu, o poder para transformar o mundo à sua volta (Lagrou, 2007, p. 215-216). A jiboia/sucuri é também a dona do nixi pae (ayahuasca/ cipó) (Lagrou, 2007, p. 201). Yube é considerada um ser de vida eterna. É porque muda de pele, dizem os Kaxinawá, que ela não morre (Lagrou, 2007, p. 113) e, mesmo quando sacrificada em ritual, ela apenas “descorporifica”. O fato de ela ser dona do nixi pae é significativo, uma vez que, nos tempos atuais, é por meio desta bebida que o xamã pode ter acesso a mundos distantes que, no tempo do mito, estavam próximos e acessíveis. O xamã, portanto, com a mediação da ayahuasca, é aquele que tem a capacidade de socializar em outros planos que extrapolam este da vida terrestre. À cobra também é permitido viver em todos os espaços: ela é capaz de viver na terra, nos galhos altos das grandes árvores, nos buracos e dentro da água (Lagrou, 2007, p. 213-214). Assim, podemos afirmar que, ao mediar espaços distantes, a cobra e o cipó, do qual a primeira é dona, também são mediadores de tempos. Constituem-se, portanto, enquanto um par capaz de mediar espaços e tempos. Como vimos, espaços que eram unos no tempo do mito, agora se encontram separados. A jiboia/sucuri anda por todos os espaços e, sendo eterna, percorre todos os tempos. O cipó, por sua vez, permite ao xamã ter acesso ao mundo dos mortos, espaço celeste e local da eternidade. Lembremos também que Nete tinha poderes xamânicos e, consequentemente, mesmo sendo cega, sabia onde se encontrava a escada que ligava às terras mais altas, terras dos Inka; e que a escadaria gigante localizada na raiz do céu é um dos caminhos que os mortos podem seguir no seu percurso pós-morte em direção ao céu. Porque os Kaxinawá não ouviram direito o grito de Pukã (“Mude de pele!), começaram a morrer e esta transformação é instauradora de um novo tempo, radicalmente distinto daquele dos antepassados, a começar pela finitude da vida humana. Rigorosamente, poderíamos até dizer que a morte acontecia no mundo do mito. Nete, por exemplo, foi morta pelo seu irmão que se tornara um estrangeiro, próximo ou igual aos Inka. Mas esta morte era de um tipo específico, não era definitiva, 170 Capítulo 3 porque os mundos e povos do céu, da terra e da água não estavam estavelmente separados. A gente do céu e a gente da água estabeleciam relações sociais com os Kaxinawá, como vimos narrado na história de sua recriação e também no histórico dos contatos entre Inka e os xenipabu. Ainda que elas fossem relações ambíguas, podendo ser caracterizadas antes como o avesso da sociabilidade, o trânsito e o contato entre essas gentes era fluído e contínuo. De maneira contrária, os mortos, atualmente, vão viver no céu com os Inka, e lá devem permanecer. O céu é descrito como o local em que não há mais mortes (McCallum, 2001, p. 74). Assemelha-se, desse modo, ao mundo mítico dos Kaxinawá, pois nele, assim como no mundo dos mortos, a imortalidade reina. Assim, a história da origem da morte trata, mais especificamente, do fim da capacidade de voltar da morte, do surgimento de uma morte definitiva, instaurando, portanto, outro tipo de socialidade. A eternidade só é possível por um constante trocar de peles (Lagrou, 2007, p. 254) e esta capacidade não foi adquirida pelos Kaxinawá. O que foi perdido foi a possibilidade do retorno rejuvenescido à vida, após o envelhecimento do corpo. Desse modo, as socialidades divergentes que constituem esses diferentes mundos são caracterizadas também por tipos distintos de morte. No mundo do mito, os diferentes espaços do cosmos estavam próximos e a morte se caracterizava por uma transformação que podia ser revertida, por meio de constantes rejuvenescimentos. Este era, portanto, um mundo de eternidade. No mundo atual, a transformação do espaço implicou igualmente em uma mudança da própria morte. Pois, quando os espaços do cosmos assumiram uma distância significativa entre si, a morte passou a ser definitiva, assim como a separação entre vivos e mortos. Apenas alguns seres aprenderam a trocar de pele e a ser, assim, eternos; este não foi o caso dos Kaxinawá. O mundo dos mortos, circunscrito ao céu, passou a ser espaço da eternidade, da constância infinita. Portanto, podemos afirmar que o mundo do mito continua a existir no mundo atual kaxinawá, mas sua existência é localizada, reduzida e apenas acessível a poucos seres, dentre eles, a cobra e o xamã. Isso nos faz lembrar novamente os Jaguares míticos dos Kanamari, que ainda encontram sua existência no mundo terrestre, porém de maneira reduzida, discreta. Mas é importante destacar que, em ambos os casos, o mundo mítico não se replica simplesmente no mundo atual: algo é transformado. No caso dos Kanamari, os Jaguares perderam muito de sua potência ao assumirem formas localizadas. Enquanto que no caso dos Kaxinawá, os Inka que habitam o mundo celeste são os Inka kuin, no qual os mortos kaxinawá se transformam 171 Trocando de pele e, portanto, com os quais estabelecem relações que não são marcadas pelo canibalismo e pela morte. A separação entre os espaços propulsionou, assim, o surgimento de um novo tipo de socialidade, em que seres diferentes entre si passaram a viver separados, em espaços distintos. O mundo do mito kaxinawá pode ser descrito de maneira análoga às características que Viveiros de Castro (2006, p. 322) encontrou em outros contextos indígenas: um mundo em que todos os seres compartilham uma condição geral instável, na qual aspectos humanos e não-humanos encontram-se “inextricavelmente emaranhados”. No tempo mítico, o mundo era considerado uno, em contraposição com as separações posteriores que vieram a ocorrer (Lagrou, 2007, p. 255). Estas separações foram espaciais e também visuais: quando olham para o céu, os Kaxinawá não podem mais ver a gente de lá. A humanidade foi criada simultaneamente a este mundo-tempo ou espaço-tempo; antes, não era possível falar em uma humanidade enquanto tal. “Foi com o advento da mortalidade, o traço mais característico da humanidade, que a separação entre céu e terra ocorreu” (Lagrou, 2007, p. 233). Foi também somente depois do roubo do sol que o tempo cósmico ordenou-se por meio da alternância entre dia e noite. Nete foi a criadora dos primeiros seres humanos “verdadeiros” (kuin). Para esta gente, é possível perceber como o comportamento ignorante de seus ancestrais Hidi causara a sua destruição (McCallum, 2001, p. 148). O caminho do mito de Ixan ao mito da recriação mostra a postura moralmente correta a ser seguida, aquela atribuída às pessoas do tempo atual. As divergências entre o mundo do mito e o mundo que o seguiu certamente têm diferentes ressonâncias na constituição dos corpos dos seres e também do mundo. Os seres humanos do mundo atual são compostos por um misto de substâncias masculina e feminina (ossos e pele, respectivamente) da mesma maneira que compartilham qualidades dua e inu. Na era do mito, “o estado de „pureza’ primordial era o de não-ser, um tempo de extremos, de letargia no mundo do céu e de fluidez excessiva de formas no mundo da água” (Lagrou, 2007, p. 181-182). Na passagem para o tempo atual, contrariamente, o mundo terrestre adquiriu a forma e substância que, hoje, apresenta. Como vimos no mito sobre a origem da morte, o corpo dos kaxinawá não adquiriu o conhecimento da troca de pele. Esta nova configuração está diretamente associada a uma forma apropriada de constituição de parentes, de acordo com as metades exogâmicas a que Nete dá origem. Seus antepassados viviam em um mundo de puro “interior” (McCallum, 2001, p. 151), casando-se entre si e não aceitando 172 Capítulo 3 estabelecer relações de afinidade com os outros – como no caso da Gente do Rio, relatado no mito de Nete; ou ainda não conseguindo se relacionar com seus afins ideais, os Inka. É a possibilidade de estabelecimento de afinidade que marca a passagem de um tempo a outro. Os antepassados Hidi nasceram no tronco de uma árvore selvagem, ao passo que os Huni kuin nasceram da cavidade do fruto de uma árvore cultivada, a partir de abelhas, forte símbolo de fertilidade entre os Kaxinawá. Assim, voltando à polaridade desenvolvida no começo do capítulo, os ancestrais dos Kaxinawá pertencem hoje ao “exterior”, são outros, ao passo que as pessoas recriadas são mais propriamente do “interior” (McCallum, 2001, p. 151). Os ancestrais são também do exterior por pertencerem ao tempo mítico, associado a esta localização espacial. O tempo atual, como dito anteriormente, pertence ao interior, à constituição de parentes de maneira apropriada e a um corpo mortal, que se transforma definitivamente em Inka e segue o caminho para o céu, quando sua vida na terra não pode mais ser rejuvenescida. Nos tempos atuais, os Kaxinawá relembram constantemente as diferenças entre o modo próprio e impróprio de se viver. Esta parece ser a ênfase dada em seu Novo tempo, o Xinã Bena, momento de recuperação e preservação de um modo próprio kaxinawá de se viver. Como vimos no início deste capítulo, depois de conquistarem terras onde pudessem morar de maneira autônoma, os Kaxinawá voltaram a realizar práticas que, no tempo do cativeiro, não lhes foram permitidas pelos brancos, como rituais, música ou mesmo falar a própria língua. Um exemplo é o ritual Kachanaua, de fertilidade dos alimentos, o qual opera toda uma distinção entre o mundo-tempo dos antepassados (localizado na floresta) e o mundo-tempo atual (com seu centro na aldeia), e entre as metades “interna” e “externa”. Interessante notar que este ritual é realizado após um período de dificuldades e tristeza, sendo orientado para animar as pessoas. Ele, assim, acaba por relembrar o modo adequado de se viver não seguido pelos antepassados no mito, pois “há sempre um sentido de perigo, acompanhado de uma ênfase no potencial para o desastre se o modo adequado de se viver for esquecido” (McCallum, 2001, p. 148). É a negação de um mundo que permite o estabelecimento do outro. É também a destruição factual deste primeiro tempo que permite o surgimento de novas condições de vida, de uma nova socialidade. Este é o caminho que vemos na passagem do mito de Ixan ao de Nete. No novo tempo, os Kaxinawá nascem não apenas da cavidade do fruto de uma planta cultivada, como são transformações de cabeças de abelha. Assim, 173 Trocando de pele como bem observado por McCallum (2001, p. 151) vemos as “sementes da regeneração” brotarem da destruição e dos restos do primeiro mundo kaxinawá. A cobra e a história Vimos, anteriormente, como cada um dos tempos paumari é inaugurado por um personagem que transforma um conjunto de relações responsáveis que caracterizavam um modo específico de vida, de socialidade. Nos tempos antigos é Kahaso, acompanhado de seus irmãos, que dá origem às gentes que habitam a terra e ensinam os Paumari a se alimentarem, vestirem, produzirem cestos e esteiras, necessários à sua nova vida. Entretanto, com o passar do tempo, as relações que os Paumari estabeleceram com os outros – no caso, os Joima e os Jara – começam a tornar seu modo de vida insustentável. O próprio modo de ocupação do espaço, sazonal entre cabeceira e margem do rio, começa a perder seu sentido, uma vez que expõe os Paumari a estes estrangeiros, com os quais não conseguem estabelecer outra relação que não a guerra. É necessário que chegue outro personagem transformador, Orobana, para que mudem os tempos. Orobana é um estrangeiro que se torna patrão dos Paumari, o primeiro de muitos. Mas é este primeiro que ensina a eles outra maneira, que não a guerra, de se relacionar com os Jara – e, igualmente, com os patrões (kariva). Orobana amansa os Paumari e estabelece com eles relações de compadrio, envolvendo também seu filho nas trocas comerciais instituídas. Os Paumari caracterizam as relações entre patrões e empregados diferentemente daquela entre patrões e fregueses. O freguês ou cliente (pamoari) é aquele que estabelece uma relação não muito próxima do patrão, podendo trocar sua produção com mais de um patrão. Mas, apesar desta aparente liberdade, ele acaba por se prender em relações de débito em variadas direções: o débito acaba sendo sua única conexão com o patrão. O empregado, contrariamente, estabelece uma relação fixa com determinado patrão, o que garante maior regularidade no acesso a bens, alimentação e cuidados. Estes cuidados dão-se por meio da nomeação, do apadrinhamento, do fornecimento de remédios. “„Estar servindo alguém’ é então estar sob sua proteção e ser alimentado direta ou indiretamente por ele” (Bonilla, 2005, p. 48; cf. também Bonilla, 2009, p. 130). A imagem do “bom patrão” é certamente aquela de um patrão desejado pelos Paumari. Orobana aparece como um bom patrão ao estabelecer relações de compadrio e 174 Capítulo 3 ser generoso com esses índios, ensinando-lhes um novo modo de vida e salvando-os da decadência da era anterior. Mas o mesmo não pode ser dito de seu filho e dos subsequentes abusos que eles relatam ter sofrido por parte dos patrões nesta época. A história do tempo dos patrões contém assim, tanto seu auge como sua decadência. Nesta narrativa, percebemos também os conflitos decorrentes do pacto que existia na região entre patrões, o qual impedia que um trabalhador servisse a mais de um patrão (ver cap. 1). Na história, é relatada a recusa de determinado kariva em trocar com um paumari, pois este já servia a outro patrão: consequentemente, este paumari teve dificuldades de ocupar a posição de um pamoari, cliente ou freguês. A chegada de Orobana estabeleceu um novo modo de vida possível, um novo aprendizado, uma nova configuração de relações em que foi possível aos Paumari estabeleceram trocas com os brancos, a partir de uma relação de patronagem que, antes, não havia sido possível. Importante notar que os brancos já estavam na região, mas a socialidade que marcava o tempo dos antigos não tornava possível um relacionamento de troca, contrário ao de guerra que então reinava. Por fim, é novamente na figura de estrangeiros – das missionárias e também de Deus – que trazem um novo modo de vida (a “vida saudável”) que uma era radicalmente diferente da anterior tem início. Nela, um evento marcante acontece: os Paumari foram curados das manchas na pele que desde os tempos antigos os marcaram e estigmatizaram, além da coceira e dor que provocavam. Os Paumari protestantes rejeitaram também o xamanismo, a realização de rituais e a prática de restrições alimentares. Desse modo, Siri, Maria e Deus passaram a ser concebidos como novos pais adotivos. O último tempo paumari de que temos notícia é seu tempo presente. Assim, não sabemos como será seu período de decadência e se ele existirá. Sabemos, entretanto, que as missionárias do SIL não habitam mais entre eles e que sua partida ocasionou um sentimento de abandono intensamente evocado pelos Paumari, os quais passaram a se sentir como “patinhos sem sua mãe”, em suas palavras (cf. Bonilla, 2007, p. 141, tradução minha). Os personagens inaugurais dos tempos são, portanto, aqueles que “desconcertam a ordem do mundo e estabelecem ou permitem o surgimento de uma nova socialidade” (Bonilla, 2007, p. 139). Podemos certamente considerá-los como demiurgos, pois sua chegada revoluciona as condições de vida existentes e torna possível o estabelecimento de uma nova ordem, uma nova configuração em que os 175 Trocando de pele Paumari podem se relacionar com o mundo a partir de um novo conhecimento adquirido e também de uma nova pele, um novo corpo. Eles criam novos mundos, tornam possíveis novas socialidades. O mesmo pode ser dito de Nete, a qual cria uma nova era, revolucionando as condições de vida estabelecidas no mundo dos xenipabu (ancestrais) dos Kaxinawá. A chegada de Nete, seus ensinamentos e transformações possibilitaram aos Kaxinawá viver segundo um sistema de metades, constituir-se enquanto “gente verdadeira” e, assim, relacionar-se de um modo específico com o mundo a seu redor. O mundo se tornou mais estável, com distâncias fixas entre espaços e com transformações controladas: não é qualquer humano que pode se metamorfosear em animal em qualquer circunstância e também não é todo ser que pode trocar indefinidamente de pele e ter, assim, uma vida eterna. A morte passou a ter como consequência uma mudança espacial: os mortos habitam um céu distante e são lembrados ritualmente de que não devem voltar. Com isso, não intenciono dizer que não haja continuidade ao longo dos tempos que perfazem a história desses grupos indígenas. A tese de Bonilla (2007) é, por exemplo, dedicada à analise do considerado pacifismo paumari e da constante posição de “presa” que assumem na relação com os outros. Ela demonstra que é tal posição que lhes permite, a seu modo, desarmar o outro. Constitui, assim, uma maneira de estar no mundo que perpassa as eras de sua história. Como pudemos ver, os heróis inaugurais de cada época são tomados como seus pais adotivos e, quando partem, é como abandonados que os Paumari se afirmam. De maneira análoga, os Inka que povoam o mundo mítico kaxinawá também se fazem muito presentes em sua vida atual. Eles habitam o céu, assim como os patrões divinos também estão no céu dos Paumari (ver adiante). Estas são, certamente, apenas algumas das continuidades. Mas, se falo principalmente de rupturas, é porque o interesse desta dissertação é o de analisar a maneira como a história é concebida, pensada e vivida por esses grupos indígenas. Interessa-me sua concepção de história. Gostaria, com este objetivo, de tornar claras duas características que se sobressaem a partir da análise dos tempos considerados neste capítulo. Em primeiro lugar, a transformação aparece sempre como propiciada por um poderoso criador, detentor de enorme conhecimento, que fornece as condições de surgimento de uma nova era e, posteriormente, parte ou morre. Consequentemente – no caso específico dos Paumari –, cada tempo é caracterizado por um auge e decadência de suas condições de existência. Em segundo lugar, a mudança é sempre operada de maneira radical, subvertendo a configuração de relações da era 176 Capítulo 3 anterior; de maneira que cada tempo parece ser dotado de uma existência própria, nascimento e morte. Como a primeira das características já foi explicitada acima, darei desenvolvimento à segunda. Vimos, ao longo deste capítulo, que a cada transformação de suas eras, os Paumari marcam a mudança por meio da troca de sua pele. Naquela que inaugura os tempos antigos, eles não se banharam no sangue da sucuri mítica e assim ficaram com a pele manchada, considerada uma marca de sua identidade. No tempo dos patrões, tal qual no mito de Kahaso, “a transformação e a aquisição de uma nova socialidade é inscrita na pele. Proeminentes entre os objetos trazidos por Orobana são as redes protetoras de mosquito e roupas”. Apenas para citar um exemplo, desde essa época, os mosquiteiros gradualmente substituíram o capacho de tecido que era, então, utilizado como cabana de reclusão no ritual de puberdade das meninas (amamajo). Agora, são esses objetos que as protegem da luz do sol e do olhar masculino durante a reclusão, permitindo que sua pele se torne clara (Bonilla, 2009, p. 134; 2007, p. 138). Finalmente, a cura da pinta introduziu “uma nova era entre os Paumari” – marcada pela moralidade cristã, cultivada pelos evangélicos – e a consequente ruptura com a “velha cultura” (Bonilla, 2009, p. 135). A troca de pele traz consigo o significado da renovação não apenas entre os Kaxinawá, mas também entre os Paumari. Para os últimos, trocar de pele possibilita a “renovação” (aja’diniki) da “alma-corpo”, ou seja, do “corpo animado”33, abonoi (Bonilla, 2009, p. 135; 2005, p. 47). Durante o ritual de puberdade, amamajo, acima mencionado, a reclusão permite a renovação da pele (asafi-) e remoção de resíduos (iami daini) acumulados no abonoi da menina. Pois, os Paumari consideram que tanto a ingestão diária de comida, como relações de predação – nas quais os olhares agressivos masculinos ao corpo feminino estão incluídos – constituem micro-agressões cotidianas que deixam resíduos na carne de quem se alimenta e do predador. Estes resíduos gradualmente infestam o abonoi e, devem, assim, serem regularmente removidos por meio de ações rituais. A carne ingerida deixa ossos e garras no corpo de quem os ingere, ao passo que plantas deixam pedras, espinhos e cascas. O acúmulo excessivo de resíduos na carne provoca doenças (kavamoni), envelhecimento e morte. O ritual de 33 Bonilla (2007, p. 145; 2005, p. 47) traduz o termo paumari “abonoi” por “alma-corpo”, uma vez que ele é, por excelência, o “corpo animado”. Num primeiro momento, ela afirma que abonoi indica o aspecto físico do corpo, a materialidade de um objeto ou ser. Mas, num sentido largo, segundo a autora, abonoi se refere ao conjunto corpo-alma; tanto o que entendemos por corpo como o que entendemos por alma é expresso pela palavra abonoi em Paumari. Do que entendo, acredito que “corpo animado” fornece uma boa explicação, indicando abonoi como um “corpo vivo”, ou seja, no qual a alma se faz presente. 177 Trocando de pele reclusão das moças é, portanto, um desses momentos de remoção de resíduos. Os xamãs também devem remover continuamente os resíduos acumulados nos corpos de seus pacientes (Bonilla, 2009, p. 135). A renovação do abonoi é também parte essencial do percurso pós-morte paumari. Após a morte, o abonoi do defunto deve se banhar no Lago da Renovação (Aja’di ka’dako) antes de se juntar à comunidade dos mortos que vive no Céu: Após a morte, o abonoi da pessoa desprende-se de seu invólucro corporal (toba bo’da) e segue caminho para o Lago dos mortos (ou para a casa de Deus (Deus gorana), no caso dos evangélicos). O Lago dos mortos (aja’di ka-„dako, o Lago da Renovação) situa-se rio acima, a meio caminho entre as cabeceiras do Purus e o rio de cima (que corre na parte celeste da rede fluvial cosmológica). Lá no Lago, vivem os mortos paumari ressuscitados após um banho mágico (e após a retirada dos resíduos alimentares acumulados ao longo da vida de seus abonoi). Após receberem um invólucro novo (toba ja’dini), os mortos são chamados para escolher entre dois tipos de móveis de repouso: a esteira (jorai) ou a cadeira de balanço. Escolhendo a esteira, o morto permanece no lago onde leva uma vida imortal ao longo da qual poderá comer e dançar incansavelmente. Escolhendo a cadeira de balanço (aqui, símbolo do patrão amazônico), ele será então imediatamente empregado pelo patrão-chuva (forma humana da chuva: bahi ka-pamoarihi), espírito meteorológico que, como o sol, é descrito como um patrão muito poderoso34, ou seja, rico e generoso, o que se traduz na sua aparência forte, corpulenta e no seu caráter colérico, mas também na quantidade de barcos que possui (uma frota inteira), todos dirigidos por seus empregados mortos paumari que vão buscar água nos reservatórios de Manaus (no extremo leste do espaço cosmológico), navegando pelo rio de cima, para derramá-la sobre as terras paumari. São esses empregados do patrão-chuva que também asseguram, através do trovão, a comunicação regular entre os xamãs paumari e os mortos. Interrogados sobre o interesse de estar trabalhando para um patrão até depois de mortos, os Paumari respondem, unânimes, que o patrão-chuva (bahi ka-pamoarihi) é não somente poderoso, mas também bom, generoso e que possui quantidades ilimitadas e muito variadas de mercadorias (inisika) (Bonilla, 2005, p. 48). Deve ser esclarecido que os Paumari evangélicos podem ter a opção de escolha entre a Casa de Deus e o Lago da Renovação e que o caminho entre esses dois lugares é aberto de maneira que se pode sempre mudar de opção. Já os Paumari não evangélicos vão direto para o Lago da Renovação, não tenho a possibilidade de escolha. Entre os 34 Devemos reparar que os Paumari fornecem ao sol um posto de divindade. Tal atribuição sugere algum tipo de conexão com o império andino, pois, como vimos, uma das características dos povos andinos era a veneração do deus sol (ver cap. 1). Segundo os Paumari, o patrão sol (safini kapamoarihi) se parece com os Americanos, que são altos, têm olhos claros e pele avermelhada. A pele vermelha é considerada o sinal de sua predileção pela carne humana. O patrão sol é ainda responsável por várias doenças que provocam febre muito alta (cf. Bonilla, 2005, p. 63, nota 28). Ele assemelha-se assim ao Inka kaxinawá por ser associado ao canibalismo e também ser divinizado, um deus poderoso. 178 Capítulo 3 crentes, a Casa de Deus não é mencionada como um local em que se dê ou não a renovação do envelope corporal. Quando se referem a ela, eles “evocam sempre sua beleza, seu enorme tamanho e sua incomparável luminosidade e brilho (vagaki)” (Bonilla, 2007, p. 138-139) – sua luminosidade opõe-se à escuridão do xamanismo (Bonilla, 2009, p. 136, nota 18). Suas características são bastante semelhantes com a descrição kaxinawá do céu e dos Inka celestes, os quais são lembrados pelo enorme brilho. Os Paumari não se referem aos Inka, mas a um patrão divino do qual se tornam empregados. Ambos, entretanto, assemelham-se por serem estrangeiros que fascinam pelo seu poder. Também entre os Kaxinawá e os Paumari, o clareamento da pele e seu consequente rejuvenescimento trazem a ideia de renascimento. O fato de que os crentes prescindam do banho celestial que transforma a aparência e substância do abonoi do defunto justifica-se uma vez que sua nova “vida saudável” proporciona transformação análoga à que ocorre no Lago da Renovação. Este modo de vida, considerado saudável e bom (jahaki) pelos Paumari, rejeita a prática de rituais, o xamanismo, o consumo de tabaco, de alucinógenos e de álcool (Bonilla, 2007, p. 127). Como explica uma paumari crente: Ser crente é bom para mim, pois quando eu era mais jovem, eu frequentava sempre os rituais, fumavam muito e dançava todo tempo. É por isso que eu estava sempre doente. Quando eu aceitei Jesus, parei de ficar doente. Nesta época, eu sempre tinha dor de cabeça, febre, mas agora não sofro mais disso tudo. Naquele tempo, antes que Siri chegasse, muita gente morria, sobretudo de febre (barava). Todo mundo tinha a pinta. Esta é uma doença que vem do sangue das avós, das mães. Mas elas [as missionárias] a curaram, não sei com o quê; elas branquearam nosso sangue e é por isso que a minha neta não a tem mais (F. Crispim, 25/06/01, em Bonilla, 2007, p. 127, tradução minha). Como conclui Bonilla (2009, p. 136), a “vida saudável” provavelmente ofereceu aos Paumari crentes “uma solução à excessiva acumulação de resíduos na alma-corpo”. Esta interpretação está de acordo com o fato de que a chegada deste novo tempo coincidiu com a cura de inúmeras doenças (kavamoni) que assolavam os Paumari, as quais, como vimos, são propiciadas pelo acumulo de resíduos na alma-corpo. Consequentemente, eles passaram a realizar um clareamento da pele ainda em vida, análogo ao que deveriam realizar quando mortos. Do mesmo modo que o sangue da sucuri manchou os Paumari, conferindo-lhes uma marca identitária, e assim inaugurando um novo tempo, o dos antigos, o “branqueamento” das peles possibilitado pelas missionárias, com a erradicação da pinta, permitiu a 179 Trocando de pele inauguração de um novo tempo, em que os valores privilegiados são as atitudes conformadas à moral cristã veiculada pelas missionárias e a consequente ruptura de uma parte do grupo com a “velha cultura” (Bonilla, 2007, p. 138, tradução minha). Ser crente ou não era um foco de discussão permanente entre os Paumari que adotaram este credo e os que se afirmavam católicos no início dos anos 2000. Bonilla (2007, p. 127, nota 102) observou que a escolha ofertada a eles entre a possibilidade de se converter ou não, de se submeter ou não ao poder do sangue de Jesus relembrava, em seus termos e consequências, a escolha que, no passado, os Paumari tiveram entre se banhar ou não no sangue da sucuri mítica35. Assim, o ponto que gostaria de destacar é o de que a troca de pele ocasiona o renascimento não apenas aos corpos dos Paumari como também a seus tempos. Tal qual uma troca de pele, um renascimento, cada um dos tempos contempla em si um fim a partir do qual um novo nascimento ocorre, como busquei mostrar com sua criação a partir de um demiurgo, a qual se segue um período de auge e de decadência. Considero, desse modo, que uma analogia pode ser traçada entre a vida de uma cobra, tal qual descrita pelos Kaxinawá, e a concepção de história implicada nas eras paumari. É porque os Paumari mudam de pele a cada tempo que podem sobreviver; continuando a viver em um tempo que lhes permite relacionarem-se uns com os outros, constituir parentes etc. A imagem kaxinawá da vida da cobra é, portanto, aquela do percorrer dos tempos e da história dos Paumari. E, embora o tema da troca de pele não apareça na história narrada pelos Kaxinawá, a passagem do tempo mítico ao atual pode igualmente ser considerada como o surgimento de um tempo a partir do esgotamento das condições de vida do mundo anterior e de sua socialidade particular. Mas, na história kaxinawá, por sua vez, a cobra a o cipó são como a escadaria gigante que ligam os espaços da vida, da morte e dos tempos. “Vida” e “morte” operam, assim, como polos opostos que orientam as transformações do tempo. Cada era é introduzida como uma recuperação ou renovação da vida, que se tornava escassa ou fortemente ameaçada no tempo anterior. A morte aparece como o modo da transformação. Uma morte, entretanto, que não rompe com a vida, mas sim a renova: assim como a jiboia, em um determinado momento, troca de pele, deixando de habitar a terra e, transformada em sucuri, passa a morar na água. Cada tempo se coloca como um modo de vida possível, e é o novo “demiurgo” aquele que cria suas novas relações e corpos. Bonilla (2007, p. 127, nota 102) não deixa claro, mas provavelmente este deveria ser o modo pelo qual os Paumari convertidos ao protestantismo deveriam colocar a questão. 35 180 181 Foto 9: Menina paumari em banho no ritual do Amamajo. Fonte: Isa, 2013i; Foto de Oiara Bonilla, 2002. 183 Foto 10: Mulheres kaxinawá confeccionando cestaria. Fonte: Isa, 2013j; Foto de Nietta Lindenberg Monte, 1984. Foto 11: Braço de um kaxinawá com a marca de Felizardo Cerqueira (FC). Fonte: Iglesias, 2008, p. 404; Foto de Terri Valle de Aquino, 1981; Acervo: CDPI - Comissão Pró-Índio do Acre. çõ Considerações finais: Donos do tempo Neste trabalho, assumi o propósito de analisar um modo específico de historicidade concebido por grupos indígenas relacionados em um mesmo sistema regional, tendo historicamente compartilhado conhecimentos, práticas e relações sociais, além de processos semelhantes de contato com os brancos. O ponto mais óbvio de semelhança entre as histórias indígenas que compõem este trabalho refere-se a uma narrativa comum que divide a história em tempos ou eras. Este foi também o ponto de partida desta dissertação. Mas, certamente, ao debruçarmo-nos sobre os tempos encontramos não apenas semelhanças, como também diferenças. Nestas considerações finais, discorrerei sobre ambas com o propósito de sumarizar o que se pôde apreender da história e dos tempos indígenas considerados. Conforme explicitei na introdução desta dissertação, as reflexões que apresentarei a seguir são conclusões iniciais de uma pesquisa que terá sua continuidade no doutorado, onde terei a possibilidade de aprimorar, por meio da etnografia, estes resultados iniciais, fornecendo a eles maior concretude. Como foi mostrado nos capítulos 2 e 3, as histórias kulina, kanamari, paumari e kaxinawá foram, em um período mais recente, comumente marcadas pela chegada e presença dos brancos em seus territórios, mais particularmente pela impactante instalação de uma empresa seringalista na região. No primeiro capítulo, procurei mostrar de que maneira a empresa extrativista esteve associada a um modo específico de ocupação territorial, de controle do tempo por meio do trabalho a que submeteu indígenas e não indígenas e de estabelecimento de relações sociais – marcadamente a semi-escravidão pela dívida e a patronagem. Mas, como vimos nos capítulos seguintes, se as transformações ocasionadas pela chegada dos brancos na região dos rios Juruá e Purus são fundamentais para o entendimento das histórias indígenas, elas não as definem. Um dos exemplos são as imagens de selvageria e civilização, como as de “bravos” e “mansos”, que foram concebidas e empregadas pelos brancos em suas 185 Donos do tempo diversas práticas: correrias, amansamento, trabalho, relações cotidianas. Como vimos ao longo deste trabalho, essas imagens foram e são significadas de distintas maneiras pelos Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá, estando na base de seus entendimentos sobre concepções de tempo, espaço, identidade e alteridade. Entre os Kulina, a passagem de bravo a manso relaciona-se a uma mudança temporal e também espacial. Ela aparece de maneira muito marcada pelo caráter dual de seus tempos: há uma identificação entre tempo dos antigos, centro da mata e bravos e entre tempo atual, margem do rio e mansos. Desse modo, os termos “bravo” e “manso” estão implicados na identidade kulina e a alteração entre esses polos caracteriza a mudança entre os tempos e espaços de sua história. Semelhantemente, os Kaxinawá também marcam a passagem de bravo a manso como a alternância entre um tempo passado e outro presente. Mas a força dessas categorias como marcadores de tempos perde-se um pouco por dividirem sua história em cinco tempos. Sabemos que no passado eram bravos, mas não sabemos em qual das eras se tornaram mansos. Por outro lado, os Kaxinawá fazem um extenso uso dessas categorias a fim de marcarem uma distância espacial e também social com os “outros”. Com o surgimento do mundo atual, os Huni kuin passaram a ocupar uma posição ao meio da linha que liga o alto e o baixo do rio. As cabeceiras do rio são o habitat dos índios selvagens ou “brabos”, os quais são como os ancestrais dos Kaxinawá. As regiões rio abaixo são onde residem os brancos e as pessoas da cidade, associados ao futuro, ao progresso, assim como ao perigo. Para os Paumari, a selvageria é também uma imagem do passado. Eles aproximam-se, nesse ponto, dos Kaxinawá, pois, enquanto os primeiros consideram que seus antepassados viveram em um mundo marcado pela guerra e pela predação, os últimos entendem que seus ancestrais eram bravos e ignorantes. Assim, a postura dos Paumari e Kaxinawá com referência ao tempo de seus antepassados é divergente da adotada pelos Kulina e dos Kanamari, uma vez que os últimos tomam seus tempos dos antigos como modelo ideal, buscando reconstituí-los no presente. Já os Paumari e Kaxinawá demonstram certo repudio pelo tempo de seus ancestrais, lembrando a maneira pela qual os Piro também se referem a esta época de sua história (ver cap. 2). Por outro lado, os Paumari e Kanamari se aproximam ao enfatizarem continuamente o fato de serem mansos e de raramente incitarem a guerra contra seus inimigos. Ambos esses grupos indígenas se colocam como povos pacíficos e mansos, sendo este um aspecto de sua identidade. Embora os Paumari afirmassem ser ainda 186 Considerações finais “selvagens” antes da chegada das missionárias do SIL, segundo eles, isso significava simplesmente que, naquela época, ainda não haviam conhecido estrangeiros. Como eles explicaram a Bonilla, sua selvageria não indicava que tivessem o costume de matar pessoas (cf. Bonilla, 2007, p. 115). O fato de que não apresentassem tal costume era certamente um atenuador de sua selvageria. Esta posição de “manso” foi importante na relação que estabeleceram com o branco Orobana, o primeiro patrão que tiveram. Orobana havia sido alertado pelo dono dos animais que os Paumari não eram selvagens, mas pacíficos, e esta informação foi importante na relação que Orobana veio a estabelecer com eles. Relação que, devemos lembrar, transformou os tempos dos Paumari. De maneira similar, não notamos entre os Kanamari a ênfase na afirmativa de que foram em algum momento bravos. A selvageria aparece sempre atribuída a um “outro”, aos inimigos. A identidade de “mansos” foi também importante a eles no estabelecimento de relações com o primeiro branco que conheceram, Jarado. Na história sobre Jarado percebemos que os Kanamari só puderam estabelecer com ele uma relação de amizade (-tawari) por serem pacíficos e se afirmarem diferentes dos Djapa (Kaxinawá), os raivosos. Jarado foi aquele que inaugurou um novo tempo no qual foi possível aos Kanamari estabelecerem uma relação de troca com os brancos, divergente da guerra. O mesmo podemos dizer da transformação operada por Orobana no tempo dos patrões paumari. Assim, entre os Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá a mansidão aparece sempre como uma imagem da identidade e do tempo-espaço presente, muito bem sintetizada pela narrativa kaxinawá: os Huni kuin atuais são mansos e encontram-se no espaço do meio, para além do qual há “bravos” e estrangeiros. Além do que, como vimos na história de Nete, rio acima é onde residem os Inka, aqueles que apresentam um enorme poder de morte e destruição. Portanto, se a mansidão é uma imagem da contemporaneidade de muitos grupos, ela ainda convive com os bravos, classificados de distintas maneiras e com os quais diversos tipos de relações são estabelecidos. Podemos também afirmar que a aprendizagem do modo de vida dos brancos associa-se à mansidão que marca as identidades e tempos atuais dos grupos indígenas abordados nesta dissertação. Desse modo, ser “manso” significa ter a possibilidade de mediar as relações de poder e dominação que os brancos muitas vezes exerceram sobre o modo de vida e sobre a existência indígena. Vimos, por exemplo, como a escola e a aprendizagem da língua e matemática dos brancos assumem um lugar importante na 187 Donos do tempo vida contemporânea desses grupos indígenas. A escola foi interpretada como o espaço que possibilitaria a eles um importante aprendizado para as relações estabelecidas com os brancos – relações estas praticamente impossíveis de evitar nos tempos atuais. No presente, vemos esses diferentes grupos, cada qual dono de sua própria história, buscando constituir um modo de vida próprio, relacionado a questões que os acompanharam ao longo dos tempos. Os Kulina buscam por uma terra em que possam viver bonito como antigamente. Os Kanamari buscam constituir aldeias estáveis em que possam viver, reestabelecendo uma distância mínima entre elas, a qual assemelhase às distâncias entre os subgrupos no passado. Os Paumari procuram estabelecer-se em uma “vida saudável” em que as doenças que historicamente o assolaram não mais ganhem existência e na qual os poderes abusivos dos patrões e xamãs estejam controlados. Por fim, os Kaxinawá desejam reestabelecer o modo próprio (kuin) de se viver, enfatizando os valores de sua cultura. Outra importante característica da instalação de uma empresa seringalista na região foram as correrias realizadas pelos patrões com o objetivo do extermínio de povos indígenas ou ainda de seu amansamento e consequente inserção como mão-deobra nos seringais. Como foi mostrado no capítulo 1, as correrias estiveram na base de duas importantes transformações na vida indígena na região dos rios Juruá e Purus. Uma delas refere-se ao tipo de relação que foi inicialmente estabelecida entre brancos e índios, marcada pelo medo, prevenção e pelas guerras. Outra diz respeito à intensa movimentação espacial realizada pelos grupos indígenas e sua consequente dispersão. Esses dois aspectos do relacionamento entre brancos e índios estão presentes ao longo dos capítulos seguintes (2 e 3), mas foram enfatizados sobretudo no segundo capítulo, em que a análise desenvolvida buscou explicitar de que maneira pensar nos tempos implicava considerar transformações na ocupação do espaço, na morfologia social, na chefia e também na pessoa e no parentesco. As mudanças ocorridas nos subgrupos kanamari, por exemplo, articulam laços de parentesco, chefia, territorialidade e igualmente o tempo. Por outro lado, no capítulo 3, ainda que as questões referentes à chefia e ao espaço permanecessem presentes, a ênfase analítica recaiu sobre aspectos mais cosmológicos e escatológicos presentes na reflexão acerca do tempo e da história, sintetizados pelos temas da troca de pele, da vida e da morte. A troca de pele aparece para os Paumari e Kaxinawá como uma forte imagem e modo de vivência da transformação, articulando os polos da vida e da morte. Ela ocasiona tanto o 188 Considerações finais renascimento dos corpos dos Paumari como também de seus tempos. Já os Kaxinawá consideram a cobra (sucuri/jiboia) como um ser eterno justamente por trocar de pele. Com o surgimento do mundo atual kaxinawá e a consequente separação dos espaços da vida e da morte, a cobra, bem como o cipó da ayahuasca (de quem ela é dona), é aquela que efetua a ligação entre os espaços da vida, da morte e dos tempos. Apesar das diferenças observadas nas transformações propulsoras e criadoras de novas eras entre os grupos indígenas abordados neste trabalho, algo se faz constante e define um tipo específico de historicidade. Como busquei mostrar por meio da ideia de configuração de relações, cada um dos tempos analisados estabelece uma socialidade específica, podendo ser pensado por meio do conceito de Zeitgeist, o espírito do tempo. Como explicitou Hegel, ele “é sempre um determinado modo de ser, um determinado caráter, que invade todas as diversas partes e se manifesta tanto nas formas políticas como nas demais formas culturais, fundindo num todo as várias partes” (Hegel, 1980, p. 362). Pudemos perceber, ao longo deste trabalho, que cada uma das eras indígenas consideradas define um caráter ou modo específico de vida: uma possibilidade de existência que articula características referentes à territorialidade, morfologia social, laços de parentesco, relacionamento com os “outros”, conhecimentos adquiridos, habitação, corpo, pessoa e cultura material. Esses elementos caracterizadores de um modo específico de vida são agrupados em um único tempo ou era que apresenta seus limites definidos por um evento fundador – e muitas vezes um personagem criador – e também um fim (com a óbvia exceção para os tempos que são atuais, os quais ainda estão acontecendo). Desse modo, as transformações da história não são marcadas em datas, mas em diversos outros elementos, como o espaço, o corpo, o tipo de habitação, de conhecimento adquirido, dentre outros, os quais caracterizam uma determinada socialidade. No caso kulina, por exemplo, se, no tempo dos antigos, eles eram bravos, não possuíam bens industrializados e moravam em malocas no centro da mata, em seu tempo atual tornaram-se mansos, as mercadorias passaram a fazer parte de seu cotidiano e eles se mudaram para a beira dos grandes rios, residindo em casas semelhantes às dos regionais. Assim, cada tempo é marcado por um tipo de espaço (centro ou margem), um conjunto de conhecimentos, uma forma de moradia. Como ressaltou Scaglion (1999) a respeito da concepção de história dos Samukundi Abelam, grupo que habita a Papua Nova Guiné e que também conceituam uma história dividida em épocas: 189 Donos do tempo Os Abelam percebem fortes descontinuidades entre as épocas. Assim como os ocidentais mediriam os períodos históricos em anos ou décadas independentemente do quão rápidas ou radicais foram as mudanças por eles contemplados, pessoas com [...] um sentido episódico do tempo não perceberiam uma continuidade ligando essas mudanças, e os eventos associados às transformações ocorridas seriam condensados ou aproximados no tempo a fim de acomodar a rápida mudança associada ao cataclismo (Scaglion, 1999, p. 217). Apesar de os grupos indígenas abordados nesta dissertação não conceituarem a passagem entre um tempo e outro por meio de cataclismos, a história para eles, tal como para os Abelam, é marcada por rupturas que revolucionam as condições anteriores de existência. Assim, ao invés de marcar a mudança histórica por meio de dias, horas e anos, esses grupos agregam os eventos em épocas. Desse modo, não é possível afirmar que o tipo de historicidade conceituado e vivenciado pelos Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá seja compatível com um tempo marcado pela irreversibilidade e pela noção de progresso, em que os eventos ou as diferentes eras sejam concebidos por meio da ideia de causa e consequência. Como vimos, esses grupos indígenas não parecem estar pensando em modos de vida irreversíveis e nem em um tempo que caminha de maneira progressiva. Tanto é que os Kulina e Kanamari desejam reproduzir padrões passados em seus modos futuros, o que implicaria em uma ideia de tempo que pode voltar a ser como antes, enquanto um conjunto de ações e relações possíveis que constituíram certo modo de socialidade. Nesse mesmo sentido, como já observara Bonilla (2007, p. 30), os Paumari jamais contam as narrativas referentes a seus três tempos uma seguida da outra, como se tratasse de um encadeamento linear de eventos. Ao contrário, é quando se fala de uma mudança ou transformação específica que os Paumari se lembram de uma ou de outra narrativa, evocando as respectivas eras em que ocorreram. Há, entretanto, algo que diferencia esses tempos que chamei genericamente de “tempos atuais” dos tempos míticos. Uma vez que falávamos de “eras” indígenas, considerei importante investigar de que maneira poderia ocorrer a passagem do mundo mítico ao mundo atual. Este tema foi desenvolvido de maneira mais aprofundada no caso dos Kaxinawá. Vimos que, de modo semelhante às demais passagens entre tempos, a passagem do mundo do mito ao mundo atual também é marcada pela constituição de uma socialidade totalmente divergente da que a precedeu. Os xenipabu, antepassados dos Kaxinawá, viviam em um mundo marcado pela impossibilidade da constituição adequada de laços de parentesco: irmãos 190 Considerações finais casavam-se entre si, vivendo em um mundo de puro interior. Contrariamente, o mundo atual é aquele em que surgiram as regras de parentesco e os Huni kuin passaram a ter a possibilidade de estabelecer laços de afinidade e casarem de maneira adequada. Mas, se a passagem do mundo do mito ao atual apresenta o mesmo caráter de ruptura presente no estabelecimento das demais épocas, algumas características marcam especificamente os tempos míticos. Em primeiro lugar, os fins desses tempos não indicam que eles deixem completamente de existir. Nos tempos atuais kaxinawá e kanamari, personagens e características que se faziam presentes no mundo do mito, continuam a ter existência, embora de maneira mais localizada e restrita. Este é o caso do Jaguar kanamari e do Inka kaxinawá os quais, tendo sido seres de grande poder no tempo do mito, apresentam no tempo atual uma presença ainda marcante, mas certamente limitada. Em segundo lugar, os mundos míticos são marcados por uma série de indefinições que só passam a ganhar forma com o surgimento do mundo atual. Estas indefinições estão presentes de maneira generalizada nas histórias de criação dos tempos atuais – de Tamaco e Quira, de Kahaso e seus irmãos, e da Nete. Por meio do caso específico dos Kaxinawá, foi possível explorar de que modo indefinições espaciais confundem-se com misturas entre os seres, a vida e a morte. Pois, uma vez que o tempo do mito é marcado por uma proximidade de diferentes localidades (céu, terra, água), formando um espaço continuo, os seres que as habitam consequentemente convivem no mundo de maneira muito próxima. Neste caso, também a vida e a morte operam como polos intercambiáveis. O mundo do mito é, portanto, aquele em que a humanidade não existe enquanto tal, separadamente dos demais seres. Por fim, a passagem do tempo do mito ao tempo atual é sempre realizada por meio de um personagem que estabelece os componentes e caracteres finais do novo mundo que irá surgir. Este é o caso de Tamaco e Quira, de Kahaso e seus irmãos, e da Nete. Sem tais personagens os novos mundos não seriam possíveis, eles são seus demiurgos. Mas, como vimos, não são apenas estes personagens os responsáveis por marcar inícios de novas eras. Jarado e Sabá entre os Kanamari, Orobana e Siri entre os Paumari exerceram atividade semelhante: criando as condições de possibilidade do surgimento de uma nova era, foram também demiurgos. Jarado foi recebido como um – tawari (amigo) pelos Kanamari, sendo o primeiro dentre muitos patrões que eles vieram a conhecer. Inaugurou uma era em que os Kanamari trabalharam e trocaram seus produtos pelas mercadorias que os brancos traziam. Sabá, por sua vez, chegou em 191 Donos do tempo um contexto diferente, quando os brancos haviam minado o poder de muitos chefes kanamari e foi, assim, reconhecido como um – warah, um chefe/corpo/dono. Com o surgimento deste novo chefe, também um novo tempo foi instituído, o tempo da Funai. Como observou Costa (2007, p. 147), tanto Jarado como Sabá “chegaram de lugares situados à jusante – ainda que não do mesmo rio -, de terras associadas a um poder inacreditável”. Assim, apesar de Jarado ter sido um patrão e Sabá um chefe, ambos associam-se a um enorme poder que atraem os Kanamari, de maneira análoga às mercadorias que trazem consigo. Esses personagens guardam algumas semelhanças com os Jaguares antigos que eram mestres (-warah) de tudo, qualidade que atraía os Kanamari, embora igualmente os assustasse. Vimos que os patrões são figuras centrais na vida paumari e não é de se estranhar que também Orobana e Siri estejam vinculados ao mundo da patronagem. Orobana, um branco, foi ele próprio o primeiro patrão paumari, que possibilitou uma transformação na relação com os brancos e também no modo de vida deste grupo indígena. Siri pertencia ao mundo dos Americanos e foi ela quem apresentou Deus, um novo patrão, aos Paumari. A pele avermelhada dos Americanos é considerada pelos Paumari como o sinal de sua predileção pela carne humana. Eles, aliás, parecem-se muito com o poderoso e rico patrão sol (safini kapamoarihi) paumari, por serem altos, terem olhos claros e a pele avermelhada. Devemos observar que, entre os Kulina e Kaxinawá, estes personagens que criam novos tempos não estão presentes, mas não deixa de ser notável a importância de figuras de enorme poder que agregam e atraem pessoas para junto de si, propiciando a constituição de uma vida em comunidade criada por meio de laços de parentesco. Vimos que os chefes e, na sua ausência, os patrões exercem um papel fundamental na vida kulina, na constituição de aldeias e em seus processos de dispersão. Para além dos patrões da borracha, houve também um branco, chamado padre Paulino, responsável por agregar os Kulina que, antes dispersos, passaram a se reunir em uma grande aldeia. Não temos dados para afirmar com segurança, mas talvez os Kulina o vissem de maneira algo semelhante à Siri, que chegou entre os Paumari. Ele foi certamente um personagem que atraiu pessoas para perto de si e sua partida “desagradou” os Kulina. Devemos ainda notar que a mudança entre o tempo dos antigos e o tempo atual se dá quando os Kulina envolvem-se com o trabalho na borracha. Este envolvimento mais intensivo estava diretamente relacionado aos patrões, às mercadorias que possuíam e à atração que os Kulina sentiam por ambos. 192 Considerações finais Lembremos que eles se mudaram para a margem dos rios atraídos por este mundo de civilização e que, hoje, esta parece ser uma questão constante: permanecer ou não próximos dos brancos? Foi, igualmente, salientada a importância da busca por bons patrões pelos Kaxinawá e apontada a semelhança desta procura com as relações estabelecidas entre este grupo indígena e os Inka, os quais eram ao mesmo tempo atrativos, mas com quem as relações sociais foram sempre frustradas. Exceção deve ser feita aos Inka kuin que habitam o céu e que lá proporcionam aos mortos kaxinawá uma vida plena, “verdadeira”. Poderíamos concluir que, no céu do mundo atual, o Inka atua como um bom chefe para os mortos: agrega pessoas e fornecem a elas uma vida cheia de abundância. Há, assim, certa permeabilidade entre chefes, patrões, Jaguares e Inka. Enquanto os chefes salientam mais o caráter agregador – o caso kanamari nos mostra claramente que eles são a razão pela qual as pessoas vivem próximas umas das outras em aldeias – , patrões, Jaguares e Inka são personagens poderosos que exercem atração e medo. Mas, como vimos, esses polos são intercambiáveis. Como foi mostrado nos capítulos 2 e 3, tais personagens são também fundamentais para se pensar os tempos. Essas figuras agregadoras, atrativas e poderosas aparecem de maneira marcante quanto tratamos do assunto das transformações sociais. Acredito, assim, que a imagem de chefes que são também corpos e donos desenvolvida por Costa (2007) para se pensar o caso específico da chefia kanamari, auxilia-nos a compreender estas interfaces, aparecendo como uma imagem mais geral. O –warah é ao mesmo tempo chefe, corpo e dono, e devemos lembrar que não apenas pessoas kanamari foram tomadas como –warah bem como o Jaguar antigo (mestre/dono de tudo), Sabá e a Funai. Como vimos, os subgrupos tem uma existência situada não apenas espacialmente, mas também pelo chefe que constitui seu corpo. O –warah constitui a razão pela qual as pessoas vivem juntas em uma aldeia, de maneira que seus habitantes podem ser referidos pelo nome do chefe seguido do termo –warah. Os chefes são o corpo e o dono daqueles que agrega. É a comida que o chefe distribui que as mantém ali e sua morte implica na dispersão daqueles que antes viviam juntos (Costa, 2007, p. 48). Particularmente no que se refere aos tempos, os quais nos interessaram neste trabalho, vimos que esses personagens agregadores, atrativos e poderosos aparecem de maneira muito marcada quando tratamos de transformações sociais. Eles, muitas vezes, são os próprios criadores das socialidades emergentes, das novas configurações 193 Donos do tempo de relações que possibilitam a continuidade da existência social sob um novo modo de vida, radicalmente diferente do que o precedeu. Podemos certamente afirmar que eles são os demiurgos e donos daquele tempo, uma vez que sua presença pessoal é de primeira importância para a continuidade da socialidade que marca aquela época. Vimos que, quando esses personagens inaugurais vão embora, algo se transforma no tempo: essas mudanças foram aqui tratadas por meio das ideias de auge e decadência de uma era. Durante o período de auge, as características inaugurais de um tempo são fortes e permitem uma renovação dos modos de vida. Mas, no período seguinte, de decadência, as condições de vida que haviam sido instauradas começam a se deteriorar. Este aspecto é muito marcado pelos Paumari que afirmam sentirem-se abandonados quando esses patrões/demiurgos partem. Assim, podemos estabelecer uma forte analogia entre a vida em comunidade e o tempo, bem como entre os chefes e os personagens que dão às novas eras. Cada tempo é como uma aldeia com seu chefe: ambos estabelecem um corpo e uma socialidade, por meio da qual é possível àquele grupo de pessoas reunidas existirem. Quando o chefe morre ou vai embora, a aldeia ou o tempo perdem sua força, sua característica definidora, porque a pessoa que as reunia não mais existe. Os tempos, portanto, têm também seus donos, constituindo-se enquanto socialidades encorporadas. Eles não se definem por datas, como vimos, mas apresentam nomes e definem-se enquanto totalidades: são complexos de vida que articulam espaços, corpos, conhecimentos, tipos de pessoas, tipos de objetos, habitações, dentre outros elementos. Esta deve ser uma das razões pelas quais os tempos não podem ser pensados de maneira contínua, pois se cada qual tem seu corpo e seu dono, não haveria razões para qualquer estabelecimento de relações de causa e consequência entre eles. 194 Bibliografia ABREU, João Capistrano de. Rã-txa hu-ni-ku-i. A língua dos Caxinauás do Rio Ibuaçú, afluente do Muru (prefeitura de Tarauacá). Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1914. ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida. Pacificando o branco: cosmologias do contato NorteAmazônico. São Paulo: Ed. Unesp, 2002. ALMEIDA, Mauro Barbosa de; WOLFF, Cristina Scheibe; COSTA, Eliza Lozano; FRANCO, Mariana C. Pantoja. 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Paulinas, 1992. 206 Anexo 1 Censo da aldeia Maronaua - Pollock Censo da aldeia Maronaua Fonte: Pollock, 1985, p. 249-256, tradução minha. As casas são identificadas por número, referindo-se ao mapa II-3: Layout da aldeia Maronaua [Pollock, 1985: 60]. Os indivíduos são identificados por número, referindo-se à genealogia da aldeia que se segue a esse apêndice [ver infra]. As idades listadas são estimadas. Esse senso inclui a população que residia na aldeia durante o mês de junho de 1981 e aponta algumas mudanças que tiveram lugar até o mês de maio de 1982. Nome (sexo) idade Casa 1 01. Manuel/Baba (m) 02. Nomiha (f) 03. Tsiko (m) 04. Iano (m) 30 30 6 3 Casa 2 05. Daminau/Katore (m) 06. Rani (f) 07. Aruki (m) 08. Tsikeno (f) 09. Rimana (m) 10. Shika/Watohe (f) 11. Tsawani (f) 60 55 20 18 3 2 11 (Faleceu em janeiro de 1982) Casa 3 12. Dzo'i (m) 26 13. Ruma (f) 25 14. Kaina (f) 11 15. Tsike (f) 7 16. Kurawi (m) 6 17. Wawita (f) 10 (um garoto nascido nesta família morreu em janeiro de 1982) Casa 4 18. Wara (m) 19. Uma (f) 25 22 207 20. Dzuira (f) 21. Mawira (m) 22. De'i (f) 23. Kukira (f) 24. Dato (m) 25. Dzoana (f) 26. Manuel/Piwi (m) 27. Maria (f) 28. Pitsia (f) 29. Dziniha (f) 30. Topaime (f) 1 3 4 5 55 50 18 7 6 5 4 Casa 5 31. Kuma'a (m) 32. Mumu (f) 33. Dzamawa (f) 34. Dzelha (m) 35. Mawani (f) 36. Muitsuna (f) 37. Tsabino (m) 38. Tsilda (f) 39. Hodo (m) 50 45 12 10 8 7 28 25 1 Casa 6 40. Keri (m) 41. Pahaha (f) 42. Erudza (f) 43. Mowi (f) 44. Tsupura (m) 45. Mara (m) 46. Atowi (m) 47. Ukeri (m) 45 45 23 6 10 3 2 25 Casa 7 48. Warina (m) 49. Raimunda/Nomiha (f) 50. Awano (m) 51. Erutsa (f) 45 40 3 4 Casa 8 52. Marakia (m) 53. Huma (f) 54. Mawaha (f) 55. Mowi (f) 56. Kabi (f) 57. Kurima (f) 58. Hadema (m) 59. Dahera (f) 60. Ikobo (f) 25 55 20 5 4 8 18 3 1 208 Casa 9 61. Codo (m) 62. Kaina/Joana (f) 63. Awano (m) 64. Weimo (f) 65. Jiva (f) 66. Doriko (m) 67. Ino (m) 68. Wadio (f) 69. Marahi (f) 50 50 21 19 2 10 12 5 2 Casa 10 Ocupada pelo casal de missionários Casa 11-12 70. Miguel/Mai (m) 71. Dzoana (f) 72. Tsikima (m) 73. Kukara (m) 74. Uheta (m) 75. Bodo/Vire (m) 76. Nomiha (f) 77. Nanduka (m) 78. Dzabura (m) 79. Uratso (m) 55 55 16 13 6 25 25 4 3 2 Casa 13 80. Waki/Toniko (m) 35 81. Amo (f) 30 82. Iriki (f) 10 83. Dzuki (f) 2 Essa família mudou para a casa 21 depois de aproximadamente 2 meses. A casa 13 é de propriedade de Rimana (108), que agora vive no Sobral. Casa 14 84. Tsami (m) 85. Kano (f) 86. Tseke (f) 87. Dzahaha (f) 88. Kuma'a (m) 89. Kaba (f) 90. Dzumari (m) 91. Horanihi (f) 45 40 20 4 2 22 4 2 Casas 15, 16, 17 Essas casas foram abandonadas, tendo sido ocupadas por pessoas que mudaram para o Sobral. No fim desta pesquisa, estas casas já haviam desabado e desapareceram sob a vegetação que as invadiram. Casa 18 92. Alfredo (m) 59 209 93. Rosida (f) 94. Adelia (f) 95. Manuel (m) 96. Nuami (f) 97. Noba (m) 98. Mani (m) 99. Nazare (f) 100. Dzumo (m) 101. Erodzi (m) 102. Haimi (m) 103. Dzoau (m) 48 20 22 <1 20 18 19 5 8 10 9 Casa 19 104. Natiko (m) 105. Mitu (f)1 106. Eriho (m) 107. Kapai (f) 20 8 4 2 Casa 20 Abandonada; usada, enfim, para abrigar atividades coletivas. Casa 21 Ver nota sobre a casa 13. Casa 22 138. Mara (m) 139. Wawita (f) 140. Marakia (m) 141. Raimo (m) 142. Abeu 143. Akahe 144. Baubina 145. Rorival 146. Samue/Itso (m) 147. Madzia (f) 148. Duriko (f) 45 40 58 55 25 O Seringal Sobral Dados demográficos completos sobre os residentes do Sobral não estão disponíveis. 108. Manduka (m) 45 109. Tsidi (f) 45 110. Kukara (m) 25 111. Babina (f) 23 112. Criança desconhecida (f) 113. Criança desconhecida (m) 114. Mito (f) 6 115. Tsikeno (f) 8 116. Nehe (f) 4 117. Diari (m) 118. Mito (f) 210 119. Pahaha (f) 120. Wawita (f) 121. Noho (m) 122. Tsanto (m) 123. Mahode (m) 124. Nominha (f) 125. Cassiano/Kubi (m) 126. Nado (f) 127. Panawa (f) 128. Naso (m) 129. Pejito (m) 130. Abruzi (m) 131. Luzia (f) 132. Natiko (m) 133. Keri (m) 134. Paitsa (m) 135. Amori (m) 136. Codozi (m) 137. Manduka (m) 15 14 12 10 9 <1 65-70 50 45 5 2 25 16 10 . 211 Genealogia da aldeia Maronaua Fonte: Pollock, 1985, p. 256 212 Anexo 2 Carta Kulina e Kaxinawá para a Funai 213 214 215 216 217 218 219 220 221 222 Anexo 3 Quadro-resumo dos tempos kulina, kanamari, paumari e kaxinawá 223 224 Tempos kulina Tempo dos antigos (Ididenicca) Evento fundador Organização social, pessoa, conhecimento Tamaco e Quira, heróis criadores, estabeleceram os componentes deste tempo/mundo. Tempo atual Foram atraídos de suas habitações no meio da mata para as margens dos rios principais em busca de mercadorias que os seringueiros possuíam. Desse modo, engajaram-se em trabalhos nos seringais e passaram a habitar as margens dos grandes rios. Subgrupos misturados. Kulina organizados em subgrupos endogâmicos. São mansos. Eram bravos. Tiveram acesso a medicamentos. Foram atingidos pelas epidemias do contato (“doenças externas”) Iniciaram o aprendizado do português e da matemática. Conheceram o dinheiro. Habitação Residiam na odsa beje, grande maloca de palha. Em períodos de fuga, moraram em papiris (habitações de simples postes e vigas, cobertas de ralas folhas de palmeira) construídos na mata, em “qualquer lugar” (cf. Ididenicca ima, 1999, p. 42) Antes da chegada dos brancos: habitavam o centro da mata em localidades mais fixas. Depois da chegada dos brancos: houve uma grande dispersão. Fuga para as cabeceiras dos rios, ainda no centro da mata. A crescente dependência das mercadorias dos brancos levou-os a se integrarem de outro modo ao trabalho nos seringais, mais intensivamente. Mudaram-se para as margens dos rios, passando a habitar os seringais e em casas de pequenas, de tipo palafita, seguindo os moldes regionais. Posteriormente, reuniram-se em aldeamentos organizados por iniciativa missionária. 225 Deslocamentos Antes da chegada dos brancos. Viviam de acordo com um ciclo específico de festas, agricultura, caça e pesca. Também havia deslocamentos, mas as razões para tal eram outras: a) esgotamento de terras cultiváveis, da caça, pesca e coleta; b) abandono da aldeia por ocasião da morte de liderança política ou religiosa; c) visitas a parentes de outras aldeias em períodos de escassez de alimentos; d) participação em festas e) buscas por tratamento com xamã ou com ayahuasca. Depois da chegada dos brancos: Busca pelas cabeceiras dos rios como refúgio das epidemias e correrias. Ou ainda deslocamentos eventuais para as margens dos rios a fim de trocar os produtos de seu trabalho por mercadorias dos brancos. Cultura material Não utilizavam produtos industrializados. Usavam conchas para tomar sopa; não conheciam o algodão; usavam palitos velhos e cana brava para fazerem fogo; usavam vasilhas de cerâmica; utilizavam sons como meio de comunicação etc. (cf. Ididenicca ima, 1999) Não usavam roupas. Análises atuais dos Kulina sobre os tempos 226 Veem este tempo como um tempo ideal. Os Kulina identificam sua origem “no coração da mata” ou “em direção ao interior da mata”, apesar de viverem nas margens dos rios. Deslocaram-se do centro da mata para as margens dos grandes rios. Este é o segundo movimento espacial desde a chegada dos brancos. Deslocaram-se muito em busca de serviço e de bons patrões. Continuaram se deslocando no caso de morte de chefia e de ocorrência de epidemias. Em um período mais recente: redução da intensidade dos deslocamentos com a instalação de aldeias organizadas pelos missionários. Adquiriram produtos manufaturados. Usam colheres para tomar sopa; conhecem o algodão; o fósforo; usam vasilhas fabricadas; e valem-se do papel como meio de envio de notícia/ comunicação (cf. Ididenicca ima, 1999). Usam roupas. Veem este tempo de uma maneira ambígua, uma vez que se sentem atraídos pelas mercadorias dos brancos. O dilema fundamenta uma séria divisão na aldeia entre aqueles que desejam maximizar o potencial produtivo do trabalho da aldeia e aqueles mais conservadores que rejeitam o estabelecimento de relações econômicas permanentes com os brasileiros. Tempos kanamari Evento fundador Organização social, parentesco e conhecimento Tempo de Tamakori Tempo da borracha Tempo da Funai Queda do Céu Antigo sobre a terra deu origem a um mundo fragmentado em unidades menores (não mais totalmente contido pelos Jaguares), sendo os subgrupos uma delas. Surgimento dos variados tipos de animais. Criação das gentes humanas que habitam o mundo atual pelos heróis criadores Tamakori e Kirak. Foi a chegada de Jarado, o primeiro kariwa conhecido por eles, o evento que deu início ao tempo da borracha. Evento prototípico da chegada dos brancos no território kanamari e do estabelecimento das relações de patronagem. Chegada de Sabá e da FUNAI, considerados chefes pelos Kanamari. Os Kanamari trabalharam juntos (caucho, borracha e madeira), iniciaram intercasamentos entre os subgrupos e tiveram acesso à mercadoria ocidental. Chefia não mais restrita a um subgrupo. Surgimento de aldeias que não dependiam tanto dos brancos e reintrodução da distância entre os núcleos de aldeias associados aos subgrupos. Subgrupos misturados. Subgrupos misturados. Todas as aldeias encontram-se interrelacionadas por meio de casamentos entre pessoas de diferentes subgrupos. Os Kanamari passaram a existir por meio de seus subgrupos –dyapa organizados, cada qual, em um conjunto de aldeias. Cada aldeia emerge como uma unidade por meio de um –warah (chefe/corpo/dono) que dá forma ao conjunto de pessoas que dela fazem parte. Subgrupos endogâmicos. Era possível saber claramente quem era aliado e quem era inimigo. Primeiro momento. Evitaram a proximidade com os brancos. Estabeleciam apenas contatos esporádicos e começaram a ter acesso às mercadorias. Yoho e Dyaho aprenderam a ler, escrever e a contar. Mudaram-se para o Itaquaí, mas logo os brancos também chegaram àquela região. Segundo momento. Começaram a trabalhar para os brancos, primeiramente, fascinados Primeiro momento. Sabá é o chefe. Sabá nomeou novos chefes para os Kanamari. Os chefes que nomeou não se constituíram enquanto –warah, mas como “tuxauas” ou “caciques”. 227 pelo seu poder e mercadoria, mas depois os considerando espíritos imprestáveis. Brancos começaram a minar a autoridade dos chefes. Os tributários do Juruá deixaram de ser reserva exclusiva de um único subgrupo. Mudaram-se para o Itaquaí. Territorialidade Cada subgrupo localizava-se um tributário diferente do Juruá. Nesta época, nenhum kanamari habitava as margens do Juruá. Primeiro momento. Passaram a evitar o leito principal do Juruá, local em que os brancos iniciaram sua ocupação. Consequente alteração no caminho percorrido para a realização do Hori. Alteração na dinâmica do encontro: tornaram-se mais frequentes e perderam caráter ritualizado. Segundo momento. Chefes incapazes de situar os Kanamari em aldeias por um longo período de tempo. Morte de chefes. Processo de fluxo, instabilidade e dispersão. Análises atuais dos Kanamari sobre os tempos 228 Veem este tempo como um tempo ideal, em que tinham um local certo para morar e uma morfologia social específica, definida pelos subgrupos e sua espacialidade. Lembram saudosamente dos –warah de antigamente. Eles tomavam conta de sua gente, constituindo aldeias que se traduziam em unidades de “verdadeiro parentesco”. O período final deste tempo é lembrado pelos Kanamari como de intenso fluxo e dispersão, quando não era possível a eles viver de maneira adequada, com um chefe e aldeia fixa. Segundo momento. Sabá parte e a Funai permanece como o único -warah de seu tempo. Ela distribui mercadorias aos Kanamari Consideram toda a área do rio Itaquaí como sua terra. Tem um local para morarem e não estão mais dispersos. No Itaquaí, os subgrupos passaram a morar todos à margem de um mesmo rio. Deslocamentos para visitas a familiares e para acesso ao posto da FUNAI e com o objetivo de realizarem trocas comerciais com os brancos. Os Kanamari consideram que, no Tempo da Funai, conseguiram reintroduzir diferenças entre os subgrupos, a partir de um modelo vigente no tempo de Tamakori. Tempos paumari Tempo dos antigos Evento fundador Kahaso e seus irmãos dão origem às condições primeiras de existência social dos Paumari. Ensinaram aos Paumari como serem pessoas “verdadeiras”. Deram origem às diferentes gentes que habitam o mundo atual. Quando os irmãos se transformaram em estrelas, instauraram o ciclo das águas que regra a temporalidade cotidiana e ritual dos Paumari. Surge o corpo dos humanos. Kahaso ganha um umbigo e, desde então, todo mundo tem um umbigo. Corpo/ pele Conhecimento, pessoa e cultura material Surge o corpo dos Paumari. Pele paumari marcada pela pinta, que se torna uma marca visual de sua identidade. Tempo dominado pelas doenças, sobretudo as de pele. Paumari têm o conhecimento sobre todas as técnicas necessárias à sua sobrevivência: alimentação adequada e técnicas de caça, peça e coleta; armas; instrumentos xamânicos; técnicas de parto. Eram selvagens e não se vestiam. Tempo dos patrões Tempo atual Chegada de Orobana, heróitransformador e primeiro patrão. Orobana traz o conhecimento necessário aos Paumari a fim de que eles pudessem transformar suas relações com os brancos e também seu modo de vida. Chegada das missionárias Siri e Maria Bosoni. Foram gradualmente aceitas pelos Paumari ao estabelecerem com eles relações de troca, de roupas, utensílios e outros objetos manufaturados. Elas são consideradas como as mães adotivas que salvaram o grupo, trazendo o cristianismo e um novo modo de vida aos Paumari. Nesta época, são adotados roupas e mosquiteiros, que protegem o corpo tanto dos olhares exteriores como dos mosquitos, abundantes na região. Constituem-se como uma nova pele. Tempo marcado pelas doenças. Aprenderam a comerciar com os brancos. Conheceram as roupas e redes protetoras contra os mosquitos, o álcool. Era sã, em que as doenças de pele, as epidemias e as doenças não mais assolaram os Paumari. Foram curados os ferimentos na pele que historicamente assolaram os Paumari. Aprendem a ler, a escrever e a contar. Aprendem a utilizar os medicamentos não indígenas. Conheceram o dinheiro como um meio de pagamento. 229 Orobana iniciou a pacificação da região e possibilitou aos Paumari sobreviverem aos incessantes ataques de índios bravos e da população regional. Tempo dominado pela guerra, pela antropofagia, pelo medo e por doenças, sobretudo as doenças de pele; e pela atividade xamânica excessiva. Os Paumari eram numerosos. Organização social e parentesco Territorialidade Época marcada por constantes mudanças de lugar relacionadas às perseguições que sofriam por parte de outros grupos indígenas. E, posteriormente, também dos brancos (correrias). Primeiro momento. Ocupavam as margens, mas ao meio, nem rio acima, nem rio abaixo, pelo perigo dos Joima. Segundo momento. Chegada dos brancos. Deixaram de frequentar as 230 Primeiro momento. A chegada de Orobana ocasionou uma era de relativa paz no dia-a-dia. Trocaram peixe salgado, quelônios ou madeira e produtos extrativos com os brancos. Tiveram acesso a roupas, sal, açúcar, café, farinha de mandioca e instrumentos de trabalho. Iniciaram relações de troca, de adoção e de patronagem com os brancos. Os brancos começaram a amansar os Paumari. Segundo momento. Aos poucos, a paz inicial introduzida com a chegada de Orobana foi se transformando em decorrência das doenças, da dependência e abusos dos patrões. Intensificação das doenças e também da atividade xamânica. Brancos começaram a povoar mais intensamente as margens do Purus. Os Paumari não conseguiram seguir um ritmo anual de alternância entre as cabeceiras e as margens do rio. Os Paumari conseguiram controlar suas relações comerciais, por meio do ensino da leitura, da escrita e do cálculo. Prática abusiva do xamanismo foi controlada. Tornaram-se crentes. Ser um “crente” significa adotar um estilo de vida “saudável”, com tudo o que isso implica para os Paumari: assistência médica, rejeição do xamanismo e de restrições/tabus alimentares, retirada da vida ritual, acesso a mercadorias. Submeteram-se ao poder do sangue de Jesus e à “Palavra de Deus”. Deus passou a ser referido como o novo patrão e pai adotivo. Primeiro momento. As missionárias estavam presentes e eram referidas como as mães adotivas do grupo. Segundo momento. Elas foram embora e os Paumari relatam sentirem-se órfãos desde que partiram. Os Paumari conseguiram reestabelecer o ritmo anual de alternância entre as cabeceiras e as margens do rio. praias, que eram muito expostas, e entraram para a floresta, ocupando preferencialmente as cabeceiras. Estes locais na floresta eram, ainda assim, sempre próximo aos lagos e igarapés. Circulavam entre várias moradias. Os Paumari, por vezes, lembram-se com nostalgia deste tempo, considerado como uma época de paz e de abundância de mercadorias. Recordam-se do bom patrão generoso que se ocupava dos Paumari como de seus próprios filhos. Análises atuais dos paumari sobre os tempos Este tempo é visto pelos Paumari como um período perigoso em que eles foram incansavelmente perseguidos por outros índios e dizimados pelas doenças, forçandoos a confiar exclusivamente em seus poderosos xamãs. É também lembrado como um tempo remoto, um período dominado pelos xamãs e controlado pelos patrões, em que os Paumari não se sentiam capazes de compreender adequadamente o que aconteceu quando trabalharam para pagar seus débitos ou quando se tornaram vítimas de doenças mortais. Naquele tempo, os Paumari sabiam muito pouco sobre a vida da população regional para serem capazes de controlar suas relações com os últimos: eles não sabiam escrever, ler ou contar, nem sabiam como usar os medicamentos não indígenas. Consideram que, neste tempo, conseguiram controlar suas relações com os brancos, o excessivo poder dos xamãs e as doenças que os assolavam. 231 Tempos kaxinawá Evento fundador Inka Tempo mítico Mundo atual ------ Nete dá origem ao mundo atual. Nete cria as regras de casamento: a partir de cabeças de abelha, gera dois casais de crianças, dando início ao sistema de metades matrimoniais: um casal de crianças era inu/inani, e o outro era dua/banu. Inka pintsi, povo avarento e canibal (afinidade potencial). Inka kuin, “nosso Inka”, o Inka “real” ou “próprio” (kuin); é em sua aldeia que o o yuxin do olho passa a viver depois da morte. Este Inka é o cônjuge provedor (afinidade real). Seus antepassados (xenipabu) eram os gigantes hidi. Estão associados ao “exterior”. Corpo/pessoa Foi o comportamento ignorante de seus ancestrais Hidi que causara sua destruição. Todos os seres compartilham uma condição geral instável, na qual aspectos humanos e não-humanos encontram-se confundidos. Surgimento de um corpo propriamente humano (nukun yuda), de um corpo kaxinawá. Não tinham nomes cristãos. Os Kaxinawá passaram a se casar por meio de um sistema exogâmico de metades e a ter, assim, o nome verdadeiro (kena kuin). Tal sistema opera num plano de casamentos preferenciais e na classificação de um tipo específico de pessoas, Xutanaua, “Pessoas de mesmo nome”. Não era possível estabelecer laços de afinidade. Surgimento dos laços de afinidade. Os ancestrais dos Huni kuin foram criados no buraco de uma árvore; viviam juntos e sem restrições quanto à parceria sexual; ausência de regras de casamento. Parentesco Os Kaxinawá consideram-se “pessoas verdadeiras” (Huni kuin) e estão associados ao “interior”. Os Kaxinawá de hoje também recebem um nome cristão (navan kena, “nome estrangeiro”). 232 Os domínios do céu, da terra e da água eram próximos e ligados. Espaço/morte Existia um constante vai-e-vem entre os espaços e, consequentemente, entre a vida e a morte. O cosmos passou a ser retratado como uma grande árvore, na qual, do ponto mais alto para o mais baixo, encontramos: o céu, a terra dos mortos, de vários ancestrais míticos (xenipabu) e domínio da imortalidade, que pode ser atingido por meio do arco-íris; o lugar da camada de nuvens, o domínio do “puro vento”; a terra, onde vivem os Kaxinawá atuais; e, abaixo dela, o domínio do “puro líquido/rio”. Mediadores entre mundo terrestre e mundo celeste: xamã, ayahuasca; escada para o céu; cobra. O xamã, por meio da ayahuasca, socializa em outros planos, além da vida terrestre. Os Kaxinawá não adquiriram o conhecimento da troca de pele e passaram a morrer de maneira definitiva. 233