Foto da capa: Os Kulina de Maronaua pediram
para serem fotografados na escola. Foto de
Eduardo Viveiros de Castro (1978).
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Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais
Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Dissertação de mestrado:
Tempos Mansos
história, socialidade e transformação no
Juruá-Purus indígena
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa
de
Pós-Graduação
em
Antropologia Social do Departamento de
Antropologia da Universidade de
Brasília.
Banca examinadora:
Dr. Luis Abraham Cayón (orientador)
Dr. Luiz Antonio Costa
Dr. José Antônio Pimenta
Drª. Marcela Stockler Coelho de Souza (suplente)
Aline Alcarde Balestra
Brasília,
março de 2013
1
2
Ao meu avô João, que sempre me contou
sobre como, em outros lugares e tempos,
pessoas podiam pensar e viver de maneiras
muito diferentes.
3
4
Resumo
A presente dissertação analisa concepções de tempo e história dos Kulina
(Arawá), Paumari (Arawá), Kanamari (Katukina) e Kaxinawá (Pano), que habitam a
região dos rios Juruá e Purus, no Sudoeste Amazônico, nos estados brasileiros do Acre
e Amazonas. Esses grupos indígenas, apesar de falarem línguas de famílias diferentes,
fazem parte de um mesmo sistema regional e, ao referirem-se às suas histórias,
dividem-nas similarmente em tempos ou eras. Nesta dissertação, realizo uma pesquisa
bibliográfica e comparativa sobre esses tempos e mostro como eles podem ser
interpretados enquanto definidores de socialidades específicas. Cada uma das eras
indígenas define um caráter ou modo particular de vida, que articula características
referentes à territorialidade, morfologia social, laços de parentesco, relacionamento
com os “outros”, conhecimentos adquiridos, padrão de habitação, corpo, pessoa e
cultura material. Assim, o tipo específico de temporalidade indígena aqui analisado
aponta para histórias caracterizadas por um forte caráter de ruptura, incompatível com
as ideias de cronologia e irreversibilidade que marcam outras noções de tempo.
Palavras-chave:
Tempo – História indígena – Juruá – Purus – Kulina – Kaxinawá – Kanamari – Paumari
5
Abstract
The present dissertation analyses time and history concepts of the Kulina
(Arawá), Paumari (Arawá), Kanamari (Katukina) and Kaxinawá (Pano), groups that
inhabit the Juruá and Purus rivers’ region, in Southwest Amazonia, in the Brazilian
states of Acre and Amazonas. These indigenous peoples, although speaking languages
of different language families, are integrated into a regional system and, when
referring to their histories, they similarly divide it into times or ages. In this
dissertation, I do a comparative bibliographical work focused in these times to show
that they can be interpreted as defining specific socialities. Each of these indigenous
ages define a particular a life’s character or manner, that rejoins aspects of territoriality,
social morphology, kinship bonds, relationship with “others”, acquired knowledge,
habitation patterns, body, person and material culture. Thus, the kind of indigenous
temporality analyzed here points to histories marked by a strong feature of disjunction,
that is incompatible with ideas of chronology and irreversibility that characterize other
notions of time.
Keywords:
Time – Indigenous history – Juruá – Purus – Kulina – Kaxinawá – Kanamari – Paumari
6
Índice
Lista de mapas e fotos ......................................................................... i
Agradecimentos ......................................................................................... iii
Introdução...................................................................................................... 01
Um recorte regional: o Juruá-Purus indígena............................................... 06
A pesquisa e o interesse pelo tempo............................................................... 10
Apresentação dos capítulos............................................................................ 15
Capítulo 1.
Entre bravos e mansos:
história, amansamento e civilização...................................................
19
Índios e brancos no Juruá-Purus.................................................................. 20
“Para os civilizados trabalharem em paz”: as correrias................................ 36
O seringal: espaço, tempo e patronagem....................................................... 43
Imagens de selvageria e civilização................................................................ 51
Capítulo 2.
Histórias kulina e kanamari:
seus tempos e espaços de transformação................................................. 61
Vizinhança ambígua....................................................................................... 62
Tempos-espaços kulina................................................................................... 66
Do Tarauacá ao Purus: caminhos kulina............................................. 66
Os Kulina do Alto-Purus: seu tempo atual..........................................72
Ruptura entre tempos-espaços............................................................. 81
Espaço, socialidade e selvageria............................................................ 84
Subgrupos, territorialidades e as transformações dos tempos kanamari....... 100
Do Céu Antigo ao tempo de Tamakori: primeiros tempos................... 100
No tempo da borracha: a chegada de Jarado......................................... 107
O tempo da Funai: “Quando Sabá chegou”......................................... 113
Tempos-espaços, socialidades......................................................................... 118
7
Capítulo 3.
Trocando de pele:
tempos e socialidades kaxinawá e paumari.............................................127
O tempo como configuração........................................................................... 128
A pele e a história paumari............................................................................ 130
Os Pamoari e a “velha cultura”........................................................... 132
Do mito aos tempos antigos................................................................. 134
Orobana e a era comercial.................................................................... 137
Deus, um novo patrão.......................................................................... 142
Os Huni Kuin e seus tempos......................................................................... 146
Apresentação........................................................................................ 146
Inu e Dua, as metades.......................................................................... 151
Dos gigantes antepassados aos Kaxinawá “verdadeiros”.................... 155
O surgimento da vida e da morte......................................................... 168
A cobra e a história........................................................................................ 174
Considerações finais.
Donos do tempo............................................................................................ 185
Bibliografia.................................................................................................... 195
Anexos
Anexo 1.......................................................................................................... 207
Anexo 2.......................................................................................................... 213
Anexo 3.......................................................................................................... 223
8
Lista de mapas e fotos
Mapa 01: Juruá, Purus e seus principais afluentes....................................... 7
Mapa 02: Interflúvio Juruá-Purus-Urubamba.............................................. 10
Mapa 03: Localização das Terras Indígenas.................................................. 67
Mapa 04: Aldeias kulina no Alto Purus........................................................ 71
Desenho 01: O seringal.................................................................................. 44
Desenho 02: Defumação da borracha.............................................................. 57
Diagrama 01: Metades matrimoniais kaxinawá (1)...................................... 151
Diagrama 02: Metades matrimoniais kaxinawá (2)...................................... 152
Foto 01: Pelas de borracha.............................................................................. 57
Foto 02: Borracha às margens do Guaporé..................................................... 57
Foto 03: Índio kulina coletando látex.............................................................. 59
Foto 04: Criança kulina em sua casa.............................................................. 123
Foto 05: Vista de uma aldeia kulina............................................................... 123
Foto 06: Aldeia de Kumaru (Kanamari)......................................................... 125
Foto 07: Menino kanamari............................................................................. 125
Foto 08: Homem paumari com “pinta”.......................................................... 131
Foto 09: Menina paumari em banho no ritual do Amamajo.......................... 181
Foto 10: Mulheres kaxinawá confeccionando cestaria.................................... 183
Foto 11: Braço de um kaxinawá com a marca de Felizardo Cerqueira (FC)... 183
i
ii
Agradecimentos
Agradeço, primeiramente, aos meus pais, que sempre me apoiaram em minhas
escolhas, pelo carinho, conforto e amor. Também a toda a minha família pelo apoio e
pelo carinho, sempre presentes. Especialmente, ao meu avô João, a quem dedico esta
dissertação. Desde quando eu era criança, ele me contava histórias que me intrigavam.
Sua curiosidade despertou a minha.
As minhas tias Flávia Maria, Glaucia Maria e Cristina Maria. À Maria, minha
avó.
Ao Eduardo-namorado, pelo amor e excelente companhia. Pelas inúmeras
conversas a respeito desta dissertação, pelos ensinamentos de etnologia, pelo
encorajamento, pela calma. Por estar aqui no momento em que mais precisei. Com ele,
aprendo muito sobre a constância. Sua leitura de versões anteriores deste trabalho, sua
ajuda com a revisão do texto e formatação da dissertação foram imprescindíveis. São
dele também os créditos pelos mapas e desenhos.
Ao Luis, meu orientador, agradeço imensamente. Ele soube me ouvir com
muita paciência e ajudou-me a encontrar caminhos. Agradeço por ter sido um
excelente orientador, lendo atentamente meus textos, questionando-me e tendo a calma
necessária para ensinar uma iniciante nos estudos de etnologia indígena. A ele, sou
grata pelo rigor e também pela liberdade.
Mesmo sem os conhecer pessoalmente, agradeço também aos Kulina,
Kaxinawá, Paumari e Kanamari que falaram de suas vidas e histórias àqueles que com
eles conviveram. Sem suas histórias, esta dissertação não existiria. Agradeço também
àqueles que as souberam ouvir e registrar com atenção e cuidado. Sou grata
especialmente à Lori Altmann, ao Luiz Costa e à Oiara Bonilla por terem realizado
excelentes análises dos tempos kulina, kanamari e paumari respectivamente. Seus
trabalhos foram fundamentais para minha dissertação. Agradeço também pela
abertura e disponibilidade que apresentaram, ajudando-me com informações ou acesso
a textos.
iii
Durante o percurso desta pesquisa, tive dificuldade em acessar inúmeros textos
e materiais. Assim, agradeço a todos que me ajudaram enviando-me livros ou cópias.
Sou grata ao Donald Pollock por enviar-me, prontamente, sua tese. Ao Instituto
Linguístico de Verano, pelas inúmeras publicações de qualidade que disponibilizam
sobre os povos indígenas no Peru. À Lori Altmann, pelos inúmeros apoios.
Sou também grata ao Eduardo Viveiros de Castro, por disponibilizar
prontamente a fotografia que compõe a capa desta dissertação, e ao Instituto
Socioambiental por ceder o acesso a ela.
Sanderson Oliveira e Manoel Andrade ajudaram-me especialmente com
informações sobre a região e acesso a textos. Clarisse Jabur foi quem primeiro me
alertou sobre a existência de uma publicação em que índios do Acre falavam sobre seus
tempos. Moacir Haverroth ajudou-me com informações sobre a região e sobre acesso ao
campo. Muito obrigada.
À Suely Kofes, por ser uma brilhante professora. Pelos ensinamentos sobre
mito, rito e tempo. Pelo alerta de que, em uma história contada, cada detalhe é
importante.
Aos professores John Monteiro, Marcela Coelho de Souza e José Pimenta pelos
ensinamentos de etnologia indígena. Ao John, por ainda na graduação, incentivar-me
neste campo de conhecimento; pelo constante apoio e pelos inúmeros ensinamentos. À
Marcela e ao José Pimenta também pelas conversas e ajuda no acesso a bibliografias.
À Antonádia Borges, por suas aulas instigantes, pelos ensinamentos, pelas
trocas e pelo apoio. Ao professor Ronaldo Almeida pelo apoio e também por suas aulas
que estimularam meu interesse pela antropologia.
Agradeço, igualmente, aos funcionários do Departamento de Antropologia
(DAN) pelas inúmeras ajudas. Ao DAN pelos apoios financeiros concedidos ao longo
do mestrado. Ao CNPq pela bolsa de mestrado.
Agradeço enormemente a todos os meus amigos e amigas. Eles sempre
estiveram presentes, alegrando meus dias. À Emanuele que, desde a infância até hoje, é
uma grande amiga. À Marina, Amanda, Thaís, Tânia, Mariane, Rafinha, Juliana
Damante, Guaraciara Maria, Larissa, Carol Parreiras, Laura, Karen, Désirée, Juliana,
Gabriela, Lucas, Rodrigão, Rafael Carvão, Daniel Martini, Stella, Daniel Belik, Noemi,
Joaquim, Estevão, Enaile, Luana, Andréia, Luciana, Marcelo, Bruno Falcão, Denis
Alberto, Carolina Maria, Daniela Maria, Raoni, Julinha, Bruner, Rafael Pereira, Chirley
Maria, Potyguara, Hugo e Rafael Almeida.
iv
Aos meus amigos que leram textos iniciais ou primeiras versões de capítulos,
pelos excelentes comentários: ao Patrik, Daniel Belik, Dani, Chirley, Emanuele, Carol,
Rafael Carvão e Rafael Pereira. Aos meus colegas de mestrado, por terem
compartilhado deste percurso.
A minha querida amiga Guaraciara agradeço também pelas conversas sobre
tempo, filosofia, psicologia e tarot.
À Carol, pela importante lembrança de que a serpente (uróboro) que comia o
próprio rabo na carta “o mundo” é um ser eterno e completo também na mitologia
grega.
Ao Bruner e ao Rafael Carvão, por sempre me fazerem perguntas.
Ao Dogercy e a Maria Rita, pelo acolhimento, almoços e apoios inúmeros.
À Norma, por me ensinar, enormemente, sobre a vida, a liberdade e a paz.
À vida e ao tempo.
v
vi
Cronos então libertou seus irmãos e tornou-se soberano
da Terra. Sob o seu longo e paciente reinado, o trabalho
da criação foi completado. Essa época na Terra ficou
conhecida como a Era de Ouro, em razão da abundância
sobre a qual Cronos presidia. Como deus do Tempo, ele
presidiu e administrou a passagem das estações, o
nascimento e o crescimento seguidos pela morte,
gestação e renascimento; era venerado tanto com o Anjo
da Morte, que estabelecia os limites que o homem e a
natureza não podiam ultrapassar, quanto o deus da
fertilidade. Mas o próprio Cronos não podia aceitar as
leis cíclicas que havia estabelecido, pois, quando foi
profetizado que um dia seu filho o destronaria, como
fizera com o seu próprio pai Urano, passou a engolir os
seus filhos assim que nasciam, para que pudesse
preservar o seu domínio.
Greene & Sharman-Burke. O tarô mitológico.
i
ii
çã
Introdução
A presente dissertação aborda, principalmente, a mudança. Isso porque a
transformação das coisas é a maneira mais simples e fundamental pela qual o tempo
pode ser percebido, seja ela de horas, de espaços, de casas, de chefes; mas, certamente,
ela assume maneiras dissonantes de ser encarada e concretizada. Os grupos indígenas
que abordei neste trabalho dividem sua história em tempos ou eras. Eles assumem
comumente que as transformações do tempo ocorrem por rupturas, podendo as eras
de sua história ser concebidas como socialidades específicas. Cada uma desses tempos
define um caráter ou modo particular de vida, que articula características referentes à
territorialidade, morfologia social, laços de parentesco, relacionamento com os
“outros”, conhecimentos adquiridos, padrão de habitação, corpo, pessoa e cultura
material.
Apresento, nesta dissertação, o desenvolvimento inicial de um trabalho que
busca contribuir para a compreensão de distintos modos indígenas de se conceber o
tempo e a história. Por muito tempo, a antropologia circunscreveu a atribuição de
histórias de longa duração ao mundo não indígena, dito “ocidental”, e reservou aos
grupos indígenas histórias cíclicas. Acredito que, na base desta divisão limitadora,
esteja a ideia de que “história” só se define a partir do momento em que exista a ideia
de cronologia e de irreversibilidade do tempo. Diversos trabalhos antropológicos mais
recentes vêm mostrando como, para os grupos indígenas, a “história” pode assumir
diferentes definições. Não pretendo apresentar aqui uma definição da concepção de
história no mundo “ocidental”, nem acredito que tal definição seja possível, uma vez
que diversos historiadores mostram como as próprias ideias de cronologia, de
progresso e de longa duração assumiram feições particulares em contextos muito
específicos (cf. p. ex. Braudel, 1978 [1969]; Le Goff, 1990 [1988]). Assim, apesar de saber
que, para um melhor contraste entre um tempo concebido a partir da cronologia e da
irreversibilidade e as temporalidades indígenas, seria preciso um investimento
analítico também neste primeiro modo de conceber a história, este não poderia ser
desenvolvido na presente dissertação. Nesse sentido, este trabalho tem um interesse
1
Introdução
etnológico cujo objetivo é elaborar uma análise preliminar das concepções de tempo de
quatro grupos indígenas - Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá - que habitam a
região do Juruá-Purus na Amazônia brasileira1.
O tempo, categoria analítica central desta dissertação, é constitutivo das
reflexões antropológicas desde autores mais clássicos até a atualidade, tendo sido
abordado de diversas maneiras ao longo da história da disciplina. Como não é possível
abranger um campo tão extenso em um estudo tão breve, apontarei apenas algumas
ideias fundamentais sobre o tempo que guiaram minhas análises, para conectá-las com
outras inspirações teóricas provenientes da etnologia amazônica contemporânea.
Durkheim (2000 [1912]) postulou a noção de tempo como uma “categoria do
entendimento”, sendo, assim, constitutiva universal do pensamento humano. Apesar
de sua universalidade, o tempo era representado diferentemente por cada sociedade e
expressava o ritmo da vida social, marcado pela ocorrência periódica de rituais ou
cerimônias religiosas. Esta ideia de tempo enquanto alternância que gera ritmos na
vida social e sua periodização foi fundamental também em estudos como os de Mauss
(2003 [1904]), Evans-Pritchard (1999 [1940]) e Leach (2005 [1961]). Mauss (2003 [1904])
mostrou como variações sazonais da morfologia social dos Esquimós estavam
relacionadas a alternâncias na vida religiosa, moral e jurídica desse grupo. Ele
explicitou, portanto, de que maneira as variações sazonais dos Esquimós estavam
associadas ao que poderíamos chamar de diferentes socialidades: cada uma das épocas
do ano estava relacionada a distintos modos de habitação, parentesco, subsistência,
cultura material etc. Evans-Pritchard (1999 [1940]), por sua vez, explicitou como, entre
os Nuer, eram as próprias atividades humanas os pontos de referência que
possibilitavam a percepção da passagem do tempo e a configuração de um ciclo anual
em que se alternavam as estações seca e chuvosa. Entre os Nuer, o tempo era também
marcado a partir dos relacionamentos previstos na estrutura social, a saber, o sistema
de conjuntos etários, de clãs e de linhagens. Apesar de Evans-Pritchard ter chamado
esses diferentes modos de marcação do tempo de “tempo ecológico” e “tempo
estrutural”, em ambos os casos a estrutura social assumia uma importância
fundamental. Ambos apresentavam notações limitadas e fixas, marcadas pela
previsibilidade estrutural, pois (1) as mudanças de estação e de lua se repetiam ano
Em relação aos Kanamari, é importante notar que, apesar de eles se encontrarem majoritariamente na
região do médio Juruá, a principal fonte de informação sobre sua divisão da história em tempos vem da
pesquisa de Luiz Costa (2007), o qual aborda um grupo que recentemente se mudou para o Itaquaí,
afluente do Javari, mas próximo ao Juruá.
1
2
Introdução
após ano; e (2) o futuro estrutural de um homem estava fixado em diversos períodos e
mudanças de status previstas estruturalmente. Esses “tempos” estavam ainda
diretamente relacionados tanto ao espaço ecológico quanto à distância estrutural.
Evans-Pritchard mostrou, desse modo, como entre os Nuer o tempo e o espaço eram
articulados e concebidos fundamentalmente a partir da estrutura social. Leach (2005
[1961]), por sua vez, argumentou a favor de um “tempo pendular”, o qual seria
distintivo da vida dos “povos primitivos” e caracterizado pela alternância entre
estados opostos, como, por exemplo, entre uma ordem sagrada/ritual e outra
profana/cotidiana.
Esses trabalhos trouxeram importantes reflexões a respeito dos ciclos da vida
social e da relação dessas alternâncias ou ritmos com as concepções de tempo dos
povos estudados, ressaltando como a ideia de um tempo que prossegue linearmente
não era suficiente para o entendimento dos processos sociais analisados. Entretanto, se
a linearidade parece não dar conta dessas vivências temporais indígenas, o enfoque no
caráter cíclico e repetitivo do tempo deixa um pouco à margem a perspectiva histórica
dos povos estudados e suas concepções sobre o passado. A oposição entre um tempo
cíclico, sem profundidade, mistificado – “primitivo” –, e um tempo linear, com
profundidade, não mistificado – “ocidental” –, acaba por se configurar como uma
simplificação das diferenças entre modos dissonantes de se viver o tempo (Munn, 1992,
p. 100).
Durante muitas décadas, histórias que não fossem registradas de maneira
escrita eram desconsideradas – reflexos de um evolucionismo que congelou os “povos
primitivos” em uma eterna infância da história universal (Schwarcz, 2005). Manteve-se,
assim, uma visão tradicional segundo a qual os povos indígenas estão fora da história,
congelados no tempo, ou são incapazes de conceituar a “mudança” como constitutiva
de algo que se possa nomear “história”. Mas, como bem mostrou Lévi-Strauss,
documentos escritos constituem apenas um modo de explicação histórica, característico
das ditas “sociedades quentes”. Pois, se é certo que “toda sociedade está na história e
que muda”, elas “reagem de maneiras muito diferentes a essa condição comum” (LéviStrauss, 2004 [1962], p. 260). Ao mesmo tempo, como já havia notado Fabian (1983), as
temporalidades indígenas são certamente contemporâneas às nossas.
Nessa direção, a etnologia amazônica dos últimos vinte anos tem evidenciado
as múltiplas maneiras pelas quais diferentes grupos indígenas concebem a história. O
trabalho de Gow (1991) trouxe uma contribuição fundamental para o entendimento da
3
Introdução
maneira pela qual a história indígena podia ser entendida em seus próprios termos. O
autor rompeu, assim, com a divisão entre o estudo das noções de tempo, reservada aos
grupos indígenas, e os estudos das noções de história, destinada apenas aos povos com
escrita. Gow (1991) mostrou como os Piro, no tempo presente, afirmam-se
positivamente como “gente civilizada”. Tal assertiva piro não se contrapõe a um
suposto modo de ser “tradicional”, mas sim a um tempo anterior associado “à
ignorância e ao desamparo dos antigos ancestrais moradores da floresta”, de modo que
“ser civilizado” significa ser autônomo, viver em aldeias e de acordo com seus próprios
valores, ao invés de viver dos caprichosos desejos de um patrão. O que eles desejam é
“viver bem”: comer “comida de verdade” (os produtos de suas roças, da pesca e da
caça), morar com seus parentes (que se lembrarão de sua fome e irão alimentá-los) em
comunidades pacíficas e felizes, livres da opressão dos patrões (Gow, 1991, p. 198,
tradução minha). Os Piro se afirmam, no tempo atual, como pessoas diferentes daquelas
dos tempos antigos, sendo agora de “sangue misturado” e “civilizadas”, sem que isso
represente qualquer tipo de perda de identidade. O que se percebe, portanto, é que os
Piro se encaram como constantemente produzidos no tempo ou, em outras palavras,
que o tempo também os constitui. Dessa forma, Gow (1991) mostrou que o modo
narrativo piro sobre o passado não se constitui da memória de acontecimentos
emblemáticos, mas das histórias que os mais velhos contavam sobre seus antepassados.
O conhecimento histórico é, assim, transmitido em laços de parentesco, referindo-se à
formação de tais laços.
Trabalhos recentes sobre grupos indígenas amazônicos também questionam a
oposição entre o tempo cíclico e o tempo linear. Taylor (1993, 1997) mostra como os
Jívaro da Amazônia Ocidental destinam muita atividade ritual, i.e. repetitiva, ao
objetivo de que os mortos permaneçam mortos. Desse modo, vemos que eventos
repetitivos e não repetitivos estão conectados, sendo impossível desligar a repetição do
acúmulo irreversível que ela produz. Os Jívaro, assim como os Piro, tiveram sua
história marcada pela exploração seringalista. Eles passaram por uma violenta
experiência de contato com os brancos no decorrer do boom da borracha (1880-1910),
mas, como destaca Taylor (1997, 2007), não guardam em sua memória uma história que
conceba fatos de tal episódio. Isso, entretanto, não quer dizer que eles não vivenciem
essa história: dela, eles guardam o essencial, a saber, a transformação das coisas. O
ritual de cura xamânica é uma dessas vivências, na qual o xamã encarna em seu corpo
o homem branco. Assim, a doença é a figura privilegiada da história nessa cultura: ela
4
Introdução
é vivida e conceitualizada como o processo por excelência da temporalidade dolorosa,
e é ela que permite uma interiorização de alterações qualitativas da vida social.
Os trabalhos de Gow (1991) e Taylor (1993, 1997) constituíram-se como
inspirações fundamentais para a análise que empreendo nesta dissertação. Eles fogem
da oposição entre linearidade e ciclicidade como metáforas para se pensar o tempo,
notando como outras formas de conceber a história são enfatizadas tanto pelos Piro
quanto pelos Jívaro. Também a abordagem das cosmo-políticas do contato (Albert;
Ramos, 2002) trouxe uma importante reflexão sobre a complexidade dos modos
indígenas de construção da história, uma vez que articulara os sistemas cosmológicos
com as situações de contato. McCallum apresentou, neste contexto, uma análise do
caso kaxinawá a partir de seus mitos, de narrativas de um “tempo histórico” e da
performance comemorativa dos onze anos da compra do terreno da aldeia em que
habitam — adquirida dos brancos por esse grupo indígena. Ela mostrou como a
história é “vida no presente”, “construída com acontecimentos e processos que formam
a socialidade, deixando suas marcas nas memórias e nos corpos dos indivíduos”
(McCallum, 2002, p. 391). Desta maneira, a etnologia amazônica contemporânea vem
destacando as conexões do tempo com a história, a socialidade, a construção do
parentesco e a noção de pessoa.
Nesse cenário, outro ponto que devemos considerar é a “revolução temporal”
(Fausto; Heckenberger, 2007, p. 1) pela qual está passando a etnologia das terras baixas
sul-americanas. Pesquisas recentes têm revelado uma imagem diferente da pré-história
amazônica, colocando os falantes da família linguística aruak como articuladores de
grandes sistemas regionais e inter-regionais de intercâmbio (Heckenberger, 2002;
Hornborg, 2005; Hill; Hornborg, 2011) que, muitos séculos antes da chegada dos
europeus, integraram a Amazônia com o Caribe e os Andes. Na visão destes autores,
não se tratou exatamente da expansão territorial de um grande contingente
populacional constituído por laços biogenéticos, uma língua e uma cultura em comum,
mas sim da disseminação de alguns marcadores étnicos (i.e. elementos linguísticos e
socioculturais), que se manifestam por continuidades de longa duração e por um
processo multilateral de criação e recriação étnica que se vive até a atualidade. Essas
novas conclusões colocam a etnologia indígena frente a desafios maiores e reforçam a
importância dos recortes analíticos regionais. Desse modo, esta dissertação pretende
realizar uma análise com um escopo regional, com o objetivo de investigar maneiras
particulares de conceber o tempo e a história de quatro povos indígenas.
5
Introdução
Um recorte regional: o Juruá-Purus indígena
O estudo de concepções indígenas de tempo e história foi o fio condutor da
pesquisa que desenvolvi durante o mestrado em Antropologia Social. A análise
empreendida, de cunho bibliográfico e regional, compreendeu as histórias de quatro
grupos indígenas distintos: os Kulina (Arawá), os Kanamari (Katukina), os Paumari
(Arawá) e os Kaxinawá (Pano). Todos eles habitam exclusiva ou majoritariamente a
região dos rios Juruá e Purus no Sudoeste Amazônico, compreendendo os estados do
Acre e Amazonas no Brasil e estendendo-se também ao território peruano. O objetivo
central da pesquisa desenvolvida foi o de compreender e analisar comparativamente as
concepções de história desses quatro grupos indígenas, bem como o de realizar uma
leitura inicial sobre a história da ocupação não-indígena da região dos rios Juruá e
Purus.
A bacia dos rios Juruá e Purus é ainda pouco conhecida no âmbito dos estudos
etnológicos e também historiográficos. Sobre ela, apenas algumas esparsas análises
históricas são encontradas para datas anteriores a meados do século XIX, quando teve
início a instalação de uma empresa seringalista que viria marcar profundamente a
história desses rios. Também no que se refere aos estudos etnográficos, foi apenas nas
últimas décadas do século XX que eles começaram a ser realizados - cf. p. ex. Pollock
(1985), Lorrain (1994), Altmann (1994, 2000) e Silva (1997) para os Kulina; Aquino
(1977), McCallum (1989, 2001), Kensinger (1995), Lagrou (2007) e Iglesias (2010) para os
Kaxinawá; Reesink (1993), Neves (1996), Carvalho (2002) e Costa (2007) para os
Kanamari; Bonilla (2007) e Menendez (2011) para os Paumari; Koop & Ligenfelter
(1980) para os Deni; Maizza (2009) para os Jarawara; Rangel (1994) para os Jamamadi;
Kroemer (1994) para os Sorowahá; Pimenta (2002) para os Ashaninka do lado
brasileiro; Schiel (1999, 2004) para os Apurinã; e Calavia Sáez (2006) para os Yaminawa.
Os Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá habitam uma região identificada há
muito tempo como uma área cultural. Os rios Juruá e Purus são afluentes do rio
Solimões situando-se no sudoeste da Amazônia (ver mapa 1), sendo, portanto, uma
zona de floresta tropical. Ela é, atualmente, habitada por grupos falantes de línguas das
famílias Arawá, Aruak, Katukina e Pano – da família Arawá, os Banawá, Deni,
Jamamadi, Jarawara, Kulina, Paumari, Sorowahá e Rimarimá (Hi-Merimã); da família
Aruak, os Ashaninka e Apurinã; da família Katukina, os Kanamari; da família Pano, os
6
Mapa 1: Juruá, Purus e seus principais afluentes
7
Elaboração: Eduardo Nunes / Fonte: IBGE
Introdução
Kaxinawá, Yaminawa, Poyanawa, Yawanawa, Kontonawa, Nawa, Nukuini; dentre
outros, incluindo índios isolados. Nos esquemas de Steward (1949) e Murdock (1951a;
1951b), as bacias dos rios Juruá e Purus já eram definidas como uma única região, a
partir de critérios socioeconômicos e religiosos. Posteriormente, Galvão (1979 [1959])
partiu dessa classificação anterior para propor o Juruá-Purus como uma área cultural,
para o que considerou a “distribuição espacial contígua de elementos culturais, tanto
os de natureza ergológica como os de caráter sócio-cultural” (Galvão, 1979 [1959], p.
205). Também Melatti (2012) trata o Juruá-Purus como uma área etnográfica. Apesar de
ser possível destacarmos algumas características etnográficas e históricas que marcam
as bacias dos rios Juruá e Purus, essa região, especialmente no que tange aos grupos da
família arawá, é ainda pouco conhecida etnograficamente. Esta foi uma das questões
que levei em conta na escolha desta região de estudo.
Alguns aspectos da vida social aparecem de maneira difundida entre os grupos
indígenas que compõem esse sistema regional, como por exemplo, uso xamânico de
rapé e ayahuasca; uso terapêutico do veneno do sapo kampô; além do feitiço por meio
de substâncias que podem tomar a forma de “pedras”, as quais o xamã apresenta em
seu corpo e que são lançadas como projéteis sobre suas vítimas – essas pedras ganham
diferentes nomes, como, por exemplo, dori entre os Kulina, dyohko entre os Kanamari,
arabani entre os Jarawara (cf. Melatti, 2012; Maizza, 2009, p. 79-81). Cabe destacar ainda
que os grupos indígenas abordados na presente dissertação afirmam terem sido, no
passado, habitantes de zonas de interflúvio, com a exceção dos Paumari, os quais
habitam desde muito tempo as margens dos rios.
Esse complexo de características que assemelham os grupos da região aponta
para a existência de um sistema regional. Mas também podemos notar diferenças
significativas entre essas populações indígenas como, por exemplo, seus sistemas de
organização social. Veremos nesta dissertação, que os Kaxinawá, por exemplo,
apresentam um sistema de metades exogâmicas, enquanto os Kanamari e Kulina
apresentam uma formação social em subgrupos, os quais são ou foram idealmente
endogâmicos.
Um dos eventos mais marcantes para os índios dessa região refere-se à
ocupação e exploração branca da bacia desses rios com vistas à atividade extrativista
iniciada, sobretudo, a partir da década de 1870. É importante notar que o impacto da
empresa seringalista na vida dos povos indígenas não se limitou a essa região nem às
áreas vizinhas, como a Selva Central peruana (cf. p. ex. Varese, 2002 [1968] e Barclay;
8
Introdução
Santos-Granero, 1998), mas abrangeu a Amazônia de uma maneira geral. O encontro
entre brancos e índios, nesse contexto, foi marcado pela guerra e violência, provocando
muitas mortes, dispersão e circulação de grupos indígenas, bem como o engajamento
como mão-de-obra nos seringais por meio de um sistema que ficou conhecido por
“aviamento”. A instalação de uma empresa seringalista submeteu esses grupos a
condições semelhantes de contato. Elas serão tratadas no primeiro capítulo desta
dissertação e, como veremos, são fundamentais para a compreensão das histórias
recentes dos grupos indígenas inseridos nesse sistema regional.
Ao realizar um levantamento bibliográfico de trabalhos sobre os Kulina,
descobri que Lori Altmann havia escrito uma dissertação de mestrado sobre categorias
de tempo e espaço entre esse grupo indígena. Em seu trabalho, Altmann (2000)
mostrou que os Kulina dividem sua história em duas eras — o tempo dos antigos e o
tempo atual — e que esta partição do tempo é muito importante em diversas dimensões
da vida social kulina. Tempos antes, já havia lido o trabalho de Gow (1991) sobre os
Piro do baixo Urubamba e também a tese de Bonilla (2007) a respeito dos Paumari do
médio Purus. Esses dois grupos também dividem sua história em eras ou épocas: os
Piro apresentam uma história quadripartida em tempo dos anciãos, tempo da borracha,
tempo da fazenda e tempo atual; e os Paumari apresentam uma história tripartida em
tempo dos antigos, tempo dos patrões e tempos atuais.
Com o decorrer da pesquisa, fui percebendo que esse tipo de historicidade
baseada em uma divisão de períodos históricos – os tempos – assumia uma importância
no contexto regional indígena dos rios Juruá e Purus, sendo apresentada por diversos
grupos e havendo inclusive uma publicação em que alguns representantes indígenas
falavam conjuntamente a respeito dos tempos de suas histórias (cf. Maná Kaxinawá,
2002). Trabalhos etnológicos desenvolvidos na região dos rios Purus, Juruá ou ainda do
Itaquaí (afluente do Javari, muito próximo ao Juruá), também apontavam direta ou
indiretamente para esse tipo de concepção da história, como é o caso dos trabalhos de
Costa (2007) entre os Kanamari do Itaquaí; Pimenta (2002) entre os Ashaninka do rio
Amônia, afluente do alto Juruá; Aquino (1977), Iglesias (2010), Aquino & Iglesias (1994)
e Weber (2006), todos entre os Kaxinawá da região do Juruá, além de Zoppi (2012)
entre os Kaxinawá do alto Purus; e Schiel (1999, 2004) entre os Apurinã.
Devemos observar que esse tipo de abordagem da história não se limita à região
do Juruá-Purus ou ainda ao Itaquaí. Os Piro, por exemplo, habitantes do baixo curso
do rio Urubamba, afluente do Ucayali na Selva Central peruana também dividem sua
9
Introdução
história em tempos (cf. Gow, 1991). Não deixa de ser interessante notar que as
cabeceiras dos rios Juruá e Purus encontram-se praticamente ligadas aos afluentes do
Urubamba e, consequentemente, podemos considerar essas duas regiões como
contíguas (ver mapa 2). Tipo semelhante de partição da história pode ser também
encontrado entre grupos falantes de línguas quéchua e habitantes da Alta Amazônia,
como, por exemplo, os Canelos do rio Curaray, no Equador (cf. Taylor, 2007, p. 155156; Reeve, 1988). Diante da extensão do material e da região, limitei meu recorte aos
grupos citados, mas considero que seria interessante, no futuro, ampliar o escopo da
comparação, contrastando as conclusões deste estudo com os trabalhos acima citados.
Mapa 2: O interflúvio Juruá-Purus-Urubamba
Elaboração: Eduardo Nunes / Fonte: Autoridad Nacional del Agua (Governo Peruano)
A pesquisa e o interesse pelo tempo
Ao entrar no mestrado, desejava iniciar um estudo na área da etnologia
indígena, por estar interessada em compreender e experimentar, por meio da
etnografia, um modo específico de conceber o tempo, o qual acreditava ser
10
Introdução
radicalmente divergente de uma noção de tempo marcada pela ideia da cronologia e
associada ao registro escrito – de anos, datas, idades. Esta, de diversas maneiras, estava
mais próxima de minhas experiências cotidianas. O interesse pelo tempo era entretanto
ainda latente quando buscava, de maneira algo aleatória, ler sobre grupos indígenas e
temas que despertassem minha curiosidade. Nessa circunstância, pensava em estudar
o tema da morte e a maneira como ela poderia ser percebida a partir de uma
perspectiva indígena.
Acredito que a temática da morte como ideia inicial de estudo estava
relacionada tanto a minha experiência anterior de pesquisa acadêmica, quanto a um
trabalho de pesquisa aplicada, desenvolvido no Ministério da Justiça2, ambos ligados
de alguma maneira ao tema da morte. Esta última pesquisa tinha como objetivo
analisar o modo como os crimes de homicídio eram investigados em algumas regiões
do Brasil. As entrevistas realizadas com investigadores de polícia da área de
homicídios chamavam a atenção para um tipo de valorização específica da vida, em
que uma enorme importância era atribuída à idade das vítimas. Assim, morrer jovem e
por causas consideradas não “naturais” era, em diversas circunstâncias, pensado como
algo muito negativo. Na pesquisa desenvolvida durante a graduação (Universidade de
Campinas, 2004-2008) – intitulada “Gênero, gerações e corporalidades nas academias
de ginástica” –, realizei uma investigação etnográfica sobre gênero, corpo e
envelhecimento em academias de ginástica de Campinas-SP e Agudos-SP, tendo como
interlocutoras mulheres com 40 anos ou mais, que frequentavam tais espaços. Essas
mulheres encaravam o exercício físico como uma prática que caminhava no sentido
contrário da “idade”, ou seja, contra os efeitos da passagem do tempo. Com o
“processo de envelhecimento”, seus corpos iam perdendo o movimento e a saúde que
caracterizavam a juventude, sendo, portanto, importante a realização de atividades que
desacelerassem tal processo e retardassem, de certa maneira, a morte3.
Se a temática da morte era abordada em contextos completamente diferentes
nessas duas pesquisas, em ambos os casos, a ideia de uma vida contada em anos e que
deveria ser prolongada o máximo possível estava presente: morrer velho e por causas
naturais era algo muito valorizado. O tempo, em ambos os casos, era contado por meio
de um sistema numérico, assumindo como ponto de partida a irreversibilidade. Ainda
que o processo de envelhecimento pudesse ser retardado pelas mulheres que
Trabalhei no Ministério da Justiça de 2009 a 2012, de modo que, no primeiro ano do mestrado, ainda era
servidora pública, conciliando portanto as duas atividades.
3 Para uma análise mais detalhada dos resultados desta pesquisa cf. Balestra (no prelo).
2
11
Introdução
praticavam cotidianamente exercícios nas academias de ginástica, elas não poderiam
voltar a ter uma idade menor em relação àquela que apresentavam. Nesse sentido, tais
pesquisas me proporcionaram reflexões iniciais sobre um tipo específico de concepção
de tempo marcado pela ideia de irreversibilidade (de causa e consequência) e também
contado por meio de um sistema de datação particular. Essas reflexões despertaram o
meu interesse em estudar outras maneiras de conceber o tempo, as quais não fossem
marcadas pela ideia de cronologia.
No decorrer de conversas com Luis Cayón, meu orientador, fui compreendendo
que era, na verdade, o tempo que me interessava. A morte e o envelhecimento
remeteram-me a uma maneira específica de conceber o tempo. Partindo dessa
experiência anterior, senti a necessidade de estabelecer um contraste com tal modo de
vivenciar o tempo e, consequentemente, de estudar grupos que elaborassem
concepções de distintas de tempo e também de história. Aos poucos, fui percebendo
que pensar o tempo poderia implicar igualmente em uma reflexão sobre a história, a
qual, de alguma maneira, chamava mais a minha atenção. Nas leituras que vinha
realizando, observei que a etnologia indígena se constituía como um campo de estudos
profícuo para investigar as temáticas que me interessavam. Passei, então, a procurar
um grupo específico junto ao qual poderia desenvolver minha pesquisa de mestrado.
Durante a busca que realizava, fui me interessando gradativamente pelos
Kulina, grupo falante de língua pertencente à família arawá e que habita atualmente as
bacias dos rios Juruá e Purus. Não me lembro exatamente do conjunto de razões dessa
escolha, mas alguns fatores principais foram considerados. Já havia lido a tese de
Bonilla (2007) sobre os Paumari, falantes também de língua arawá, e considerado
muito interessante o modo pelo qual este grupo concebia sua história, bem como a
maneira pela qual entendiam questões referentes ao corpo. Pela ligação linguística,
considerei que os Kulina poderiam tratar de maneira semelhante algumas questões que
haviam chamado minha atenção. Além disso, uma vez que a região do Juruá-Purus,
em geral, e os grupos arawá, particularmente, haviam sido pouco estudados pela
etnologia, considerei que uma pesquisa com os Kulina tinha o potencial de trazer
novas questões a esse campo de estudo.
Entretanto, dadas as limitações de tempo e espaço envolvidas em uma pesquisa
no mestrado, acabei optando por realizar uma investigação de cunho bibliográfico
pois, caso me decidisse pela etnografia, teria apenas aproximadamente um mês para ir
a campo – e, contando o percurso de chegada e de retorno às aldeias kulina, poderia
12
Introdução
permanecer por um tempo exíguo em campo, algo em torno de duas semanas.
Considerei, então, que seria melhor postergar a pesquisa etnográfica para o doutorado
e usar a oportunidade do mestrado para realizar um estudo bibliográfico que serviria
como uma etapa de preparação para esta pesquisa futura. Tomada essa decisão,
resolvi, entretanto, alargar o escopo da pesquisa, abarcando também outros grupos
indígenas. Uma vez que a concepção de uma história dividida em tempos é difundida
na região dos rios Juruá e Purus e, como afirmei acima, os grupos dessa área compõem
um sistema regional, além de terem vivenciado situações de contato muito semelhantes
(em virtude da exploração da borracha), conclui que uma pesquisa de cunho regional
possibilitaria um bom começo. A partir dela, poderia estabelecer um contato inicial
com os Kulina e com a região que habitam, bem como lançaria um olhar mais
abrangente sobre uma história indígena dividida em tempos. Assim, esta dissertação foi
concebida dentro de um projeto maior de investigação, o qual terá continuidade no
doutorado – circunstância em que terei a oportunidade de desenvolver uma
investigação de maior alcance e debruçar-me com maior tempo sobre questões que
foram levantadas neste trabalho inicial de mestrado. No doutorado, pretendo,
portanto, realizar uma pesquisa etnográfica entre os Kulina, cujo objetivo inicial será o
de explorar seus modos de vivência e concepção do tempo e da história.
Desse modo, no mestrado, considerei importante realizar um trabalho que
enfocasse as etnografias sobre os grupos indígenas estudados nesta pesquisa, a fim de
que pudesse analisar o que entendo como um modo indígena específico de conceber o
tempo e a história. Considerei, assim, que uma pesquisa de abordagem comparativa
entre essas diferentes (e ao mesmo tempo próximas) histórias poderia conduzir a uma
reflexão interessante sobre as concepções de tempo dos grupos indígenas estudados,
articulada à história regional. Nesse sentido, realizei um trabalho de leitura e análise
tanto dos registros históricos, de cronistas e viajantes, como dos estudos etnográficos,
buscando perceber questões que perpassavam a região de uma maneira mais geral,
aspectos semelhantes e divergentes que marcavam as histórias e socialidades dos
grupos indígenas abordados, além de características importantes da história regional.
Na escolha dos grupos cujas noções de tempo e história foram comparadas
(Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá), dois critérios foram priorizados. Em
primeiro lugar, posto meu interesse inicial pelos Kulina, tomei este grupo indígena
como ponto de partida para a escolha dos demais. Por outro lado, foi também preciso
selecionar povos sobre os quais existisse material etnográfico que abordasse mais
13
Introdução
diretamente suas concepções de tempo e história. Os Kanamari (falantes de língua
katukina) e os Kaxinawá (falantes de língua pano) são dois dos povos com os quais os
Kulina estabeleceram relações sociais próximas. Como veremos no capítulo 2, os
Kanamari mantiveram relações de vizinhança, proximidade e rivalidade com os Kulina
no rio Juruá. Esses dois povos apresentam uma organização social em subgrupos, que
eles reconhecem como idêntica ou muito semelhante. Além disso, tanto na mitologia
kanamari quanto na kulina, os demiurgos de cada um desses grupos criam não apenas
seus subgrupos como também subgrupos do outro povo: os heróis kanamari criam os
subgrupos kanamari e kulina, e vice-versa. Também em suas mitologias, há uma
explicação para o surgimento dos Kaxinawá, grupo que é considerado inimigo tanto
pelos Kulina como pelos Kanamari. Ainda hoje, os Kaxinawá mantêm relações de
vizinhança com os Kulina, compartilhando com eles duas Terras Indígenas (ver mapa
3), ao passo que os Kanamari abordados nesta dissertação – que hoje se encontram no
Itaquaí – estabeleceram contatos passados com os Kulina, quando habitavam o Juruá.
Já a escolha dos Paumari se deu pelo fato de falarem uma língua da família
arawá, assim como os Kulina. Apesar da proximidade linguística, no período histórico
recente, não há registros de contato direto entre eles. Outro motivo importante para a
escolha dos Paumari, e não de outro grupo da família arawá, foi a existência dos
trabalhos de Bonilla (2005, 2007, 2009), os quais descrevem e analisam detalhadamente
as diferentes eras paumari. Os Kaxinawá, por sua vez, constituem um grupo
amplamente estudado (cf. p. ex. McCallum, 1989, 2001; Lagrou, 2007; Kensinger, 1995;
Aquino, 1977), apesar de não existir trabalho que analise detalhadamente seus tempos.
Especificamente em relação aos Kulina, Altmann (1994; 2000) foi a autora que mais
abordou a questão dos tempos; mas outros trabalhos também foram fundamentais para
o entendimento de sua história, em especial os de Viveiros de Castro (1978) e Pollock
(1985).
Nesta dissertação empreendi, portanto, uma primeira tentativa de compreensão
das construções de tempo e história desses quatro grupos indígenas, os quais habitam
a região dos rios Juruá e Purus desde, pelo menos, meados do século XIX. Logo no
princípio das leituras a respeito dos grupos indígenas que vivem na região, percebi que
havia semelhanças significativas na maneira como concebiam suas histórias, divididas
em eras. Algo que, inicialmente, aproximava muito essas narrativas era a importância
que a história da exploração da borracha assumia, seja como marcadora de mudanças
ou ainda, em diversos outros contextos, por meio da marcante presença de figuras
14
Introdução
como as dos patrões. A análise comparativa dos tempos kulina, kanamari, paumari e
kaxinawá possibilitou perceber de que maneira cada uma das eras indígenas
consideradas define um tipo específico de socialidade, articulando características
particulares referentes ao corpo, à pessoa, ao espaço, à morfologia social, ao
parentesco, dentre outras. Assim, as metáforas da linearidade e ciclicidade do tempo
parecem não fazer jus ao modo pelo qual esses grupos indígenas concebem suas
histórias, pois cada um dos tempos estabelecem formas muito específicas de vida, como
veremos nos capítulos 2 e 3.
O caráter de ruptura presente nessa maneira episódica de se conceber a história
em tempos, como salientado anteriormente, já havia sido analisado por Gow (1991)
entre os Piro, cujo trabalho se constitui como inspiração fundamental para minha
dissertação. É importante também notar que os tempos kanamari e paumari já haviam
sido abordados como constituidores de “socialidades” específicas por Costa (2007) e
Bonilla (2007) respectivamente. O que realizo neste trabalho é, assim, um
desenvolvimento dessa ideia, buscando, por meio da comparação entre tempos de
diferentes grupos indígenas inseridos em um mesmo contexto regional, compreender
de que maneira esses grupos concebem e vivenciam suas histórias. A análise das
histórias indígenas, bem como da história regional, constituiu-se como uma porta de
entrada para questões importantes no contexto indígena da região. Muitas dessas
questões apreendidas, já presentes neste trabalho, ganharão desenvolvimento mais
concreto no decorrer de minha pesquisa de doutorado. Com este trabalho comparativo,
espero ainda contribuir para a percepção de questões e aspectos da vida social que
extrapolam o contexto específico de uma única etnia indígena. Os grupos indígenas
aqui abordados não se constituem enquanto totalidades isoladas: costumes e
percepções semelhantes apontam para trocas culturais, sociais, físicas e espaciais que
descaracterizam qualquer isolamento, seja no relacionamento entre os próprios grupos
indígenas, como na relação destes para com os regionais.
Apresentação dos capítulos
Esta dissertação foi divida em três capítulos intitulados, segundo a sua ordem
de apresentação, “Entre bravos e mansos”, “Histórias kulina e kanamari” e “Trocando
de pele”. No primeiro deles, realizo uma leitura sobre a história da ocupação branca da
região dos rios Juruá e Purus e sobre seu impacto nas histórias dos grupos indígenas
15
Introdução
que habitavam, então, aquele território. Por sua vez, os capítulos 2 e 3 foram dedicados
às eras indígenas. Em cada um desses dois capítulos, são comparadas as divisões da
história em tempos conforme concebidas por dois grupos indígenas distintos. No
capítulo 2, foram comparadas as concepções de história kulina e kanamari, ao passo
que o capítulo 3 foi dedicado à análise dos tempos paumari e da divisão entre o tempo
do mito e o tempo atual kaxinawá.
Ao realizar uma primeira leitura dos tempos que constituiriam o foco de análise
desta pesquisa, observei que a história da exploração da borracha e dos diversos
envolvimentos que os Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá tiveram com a empresa
seringalista foram marcantes nas histórias desses grupos indígenas, bem como
caracterizavam importantes transformações ocorridas nos tempos conforme concebidos
por eles. Considerei necessário escrever um capítulo dedicado principalmente à
história da ocupação branca da bacia dos rios Juruá e Purus no contexto da exploração
seringalista, iniciada em meados do século XIX. O primeiro capítulo é, desse modo,
dedicado a uma leitura da história da região com especial enfoque na história da
borracha a partir da análise de registros históricos e etnográficos. Foi fornecida especial
atenção a processos sociais decorrentes da presença branca na região a partir de fins do
século XIX, que marcaram as histórias dos grupos indígenas locais. O título do
capítulo, “Entre bravos e mansos”, faz referência a imagens ocidentais de selvageria e
civilização empregadas na colonização branca da região e que, atualmente, assumem
importantes significados nas histórias indígenas, certamente divergentes daqueles
empregados pelos colonizadores.
No capítulo 2, a escolha de comparar as histórias kulina e kanamari esteve
relacionada a uma enorme proximidade social entre esses grupos. Essa proximidade
ganha reflexos nas histórias desses grupos, as quais enfatizam a importância do
território e do subgrupo como modo de concepção do parentesco e da chefia. Mas,
enquanto a história kanamari conta com uma análise mais aprofundada realizada por
Costa (2007), no caso dos Kulina, foi necessário empreender uma busca maior em
trabalhos etnográficos distintos com a finalidade de dar sentido a aspectos específicos
de sua história. Acredito que uma das vantagens analíticas da comparação entre os
Kulina e os Kanamari refere-se ao fato de que a história de cada um desses grupos
ajuda-nos a compreender melhor aspectos da história do outro, pela enorme
proximidade de questões que trazem consigo. Neste capítulo, aspectos sociológicos das
transformações operadas pelos tempos são enfatizados. As histórias kulina e kanamari
16
Introdução
mostram como as transformações implicadas em suas diferentes eras estão diretamente
relacionadas a mudanças nas concepções do espaço e da pessoa; na morfologia social;
nas relações de parentesco e com os brancos; e também na chefia. Cada uma das eras
indígenas articula, assim, alterações em aspectos inúmeros da vida social, constituindose enquanto socialidades específicas. Neste capítulo, será também desenvolvida a ideia
de que cada tempo pode ser encarado como um modo indígena de refletir sobre a
história e sobre possibilidades de vida a serem consideradas em um momento
presente, orientando, assim, escolhas e caminhos futuros.
Já no capítulo 3, “Trocando de pele”, são consideradas a história tripartida dos
Paumari e a maneira pela qual os Kaxinawá concebem a divisão entre o mundo mítico
e o mundo atual. Diferentemente dos Kulina e Kanamari, esses grupos aparentemente
não estabeleceram relações de proximidade social, ao menos desde meados do século
XIX. Entretanto, para ambos, a troca de pele aparece como um modo de operação da
transformação,
bem
como
mudanças
no
corpo
são
tematizadas
enquanto
transformações da história. Nesse sentido, o capítulo 3 enfatiza aspectos cosmológicos
e também corporais implicados nas mudanças dos tempos. Este capítulo proporciona,
igualmente, uma reflexão sobre a passagem do tempo mítico kaxinawá ao seu tempo
atual. Considerei importante analisar quais seriam as características distintivas do
tempo mítico, pois, se em certo sentido, este tempo pode ser também encarado como
constituinte de uma socialidade específica – sendo ele próprio uma era –, alguns
aspectos particulares pareciam marcá-lo em oposição aos demais tempos.
Convém, ainda, esclarecer que as ênfases cosmológicas e sociológicas as quais
associo aos capítulos 2 e 3 referem-se apenas a destaques analíticos que certamente não
esgotam as comparações realizadas em cada um desses capítulos. No capítulo 3, por
exemplo, as transformações espaciais continuam presentes e destacadas com a
mudança dos tempos kaxinawá. E, no capítulo 2, se as transformações no corpo não
são consideradas como transformações da pessoa, elas certamente estão presentes no
nível da aldeia, a qual pode ser também considerada um corpo, como veremos adiante.
17
Entre bravos e mansos:
história, amansamento e civilização
Neste capítulo, apresento uma leitura da história da região dos rios Juruá e
Purus a partir de registros escritos: históricos, etnográficos, de cronistas e viajantes.
Certamente, a leitura que realizo é panorâmica e explora pontos específicos que
considerei importante compreender no desenvolvimento deste trabalho. Desse modo, a
história que é aqui contada guarda uma relação intrínseca com as narrativas indígenas
que serão apresentadas nos capítulos seguintes. Como ficará perceptível, a história da
exploração da borracha é de particular interesse, pois, além de ser narrada nos
registros históricos como o ponto alto da ocupação branca desta região amazônica, fez
parte, em grande medida, de transformações importantes ocorridas nas histórias
indígenas – pelos diversos tipos de engajamentos e relações estabelecidas desde então
entre brancos (patrões, seringueiros, dentre outros) e índios. Entretanto, enquanto nos
registros escritos, esses relatos aparecem associados a uma história datada, sequencial e
contínua, nos relatos indígenas, são perceptíveis histórias relacionadas a tempos
específicos que não são contados de igual maneira.
Os brancos - fossem eles missionários, viajantes, patrões - logo estabeleceram
uma dicotomia fundamental entre índios bravos e mansos e esta classificação dependia
de uma série de fatores, alguns dos quais serão abordados neste capítulo. Ainda hoje,
tal diferença é estabelecida na região, não apenas entre os brancos, mas também entre
os próprios grupos indígenas, assumindo diferentes significados. Desse modo, o
objetivo do presente capítulo é o de realizar uma leitura dos registros históricos que
permita ao mesmo tempo ampliar e complexificar os sentidos das histórias indígenas
que comporão os capítulos 2 e 3. Tais registros remetem-nos a processos históricos
fundamentais que implicaram em mudanças de socialidade, espacialidade e
temporalidade indígenas. Neste capítulo, será enfocado especificamente o contexto
geral no qual teve lugar o chamado “amansamento”, processo em que “bravos”
tornavam-se “mansos”.
19
Entre bravos e mansos
Índios e brancos no Juruá-Purus
Pouco se sabe sobre a história dos rios Juruá e Purus antes de meados do século
XIX, quando teve início na região uma exploração seringalista de longa duração.
Também se pode afirmar que, mesmo após tal data, ainda há pouco conhecimento
etnológico sobre os habitantes indígenas da região, sendo que as primeiras pesquisas
etnográficas datam das últimas décadas do século XX. Em 1975, Delvair e Julio Melatti
(1975, p. 3) chamavam a atenção para a significativa ausência de informações
disponíveis sobre a região denominada por Galvão de “Juruá-Purus”1: era, dentre
todas, a menos conhecida. Os próprios Métraux (1948) e Galvão (1979 [1960]), ao
identificarem a área do Juruá-Purus, ressaltaram o caráter arbitrário dessa classificação,
a qual refletia a ausência de informações etnográficas sobre a região. Diferentemente
da bacia contígua do rio Ucayali, onde os grupos indígenas começaram a ser descritos
por missionários em séculos anteriores, nas bacias do Juruá e do Purus, a maioria dos
registros de viajantes, exploradores e missionários são mais recentes, datando apenas
da segunda metade do século XIX e contendo informações mais fragmentárias sobre os
índios (Métraux, 1948, p. 658).
Apesar do caráter recente e não sistemático das informações disponíveis, a
análise das mesmas chama a atenção para o registro de uma intensa movimentação e
circulação dos grupos indígenas pelas margens e cabeceiras do Juruá, do Purus e de
seus afluentes, traduzindo-se em uma distribuição algo irregular das famílias
linguísticas indígenas nessa área (Métraux, p. 657). Segundo Métraux, o caráter
heterogêneo da distribuição espacial das famílias linguísticas pano, aruak2 e katukina
seria provavelmente decorrente da fácil comunicação possibilitada pela existência de
inúmeros cursos d’água conectados.
Nesta região, são também notáveis as semelhanças no que se refere à
organização social dos grupos, as quais começaram a ser tematizadas muito
recentemente, e que ainda necessitam de estudos comparativos mais aprofundados.
Costa (2007, p. 16-17), por exemplo, chamou a atenção para o fato de que, ao longo de
toda a área do Juruá-Purus, pode ser encontrada uma série de nomes de grupos que
Galvão toma como ponto de partida para a elaboração das “áreas culturais indígenas do Brasil”
(compreendendo os anos de 1900 a 1959) os esquemas anteriores de Steward (1949) e Murdock (1951a;
1951b), nos quais a área definida como “Juruá-Purus” já aparecia.
2 Métraux (1948, p. 660) considerava a família arawá como um subgrupo da família linguística aruak.
Como veremos a seguir, apenas recentemente, o anterior subgrupo “Arawá” passou a ser classificado
como uma família linguística diferenciada.
1
20
Capítulo 1
terminam com alguns sufixos recorrentes: -dyapa; -deni/-madi/-madiha; -nawa. Esses
sufixos apontam para a existência de organização em subgrupos e estão geralmente
associados à família linguística: grupos falantes de língua katukina têm nomes com o
sufixo –dyapa; etnônimos arawá terminam em –deni, -madi, e –madiha; e grupos falantes
de língua pano apresentam nomes terminados em –nawa.
Mas, não só os cursos dos rios parecem ter facilitado as comunicações e trocas
entre grupos como também a inserção da empresa seringalista na região, a qual
inegavelmente submeteu os povos indígenas locais a condições semelhantes de
existência após o contato mais sistemático com os brancos. Um dos resultados dessas
condições comuns foi certamente uma alta mobilidade dos grupos indígenas pelo
território, muitas vezes em fuga das chamadas “correrias” – as quais consistiam em
expedições organizadas geralmente pelos proprietários de seringais, objetivando o
extermínio das populações indígenas ou a sua captura para o trabalho. Desse modo, a
ocupação da região pelos exploradores brancos – bolivianos, brasileiros e peruanos –,
no contexto da exploração da borracha, teve reflexos no mapa etnológico do JuruáPurus, ocasionando transformações na ocupação do espaço pelos diversos grupos
indígenas que lá habitavam, além do desaparecimento de inúmeras etnias. A instalação
da empresa seringalista, que marcou a história da região, teve início na segunda
metade do século XIX, como veremos em maior detalhe a seguir.
Atualmente, a bacia dos rios Juruá e Purus é habitada por grupos indígenas
falantes de línguas pertencentes às famílias pano, aruak, arawá e katukina. Mas é
apenas a respeito dos grupos falantes de línguas aruak e pano que encontramos
bibliografia disponível a ponto de se poder traçar etno-histórias anteriores ao século
XIX3. Ainda assim, a maioria desses dados não diz respeito propriamente à história
desses grupos na região do Juruá-Purus, mas em outras áreas do continente sulamericano. No que se refere ao caso dos grupos falantes de línguas arawá, há uma
dificuldade específica, pois apenas recentemente tal família passou a ser estudada de
modo separado da família linguística Aruak. A pré-história arawá ficou, desse modo,
subsumida aos estudos da diáspora aruak (cf. p. ex. Lathrap, 1970), ao passo que
estudos mais atuais atestam a independência entre essas famílias (cf. Rodrigues, 1986,
p. 65-72; Dixon, 1995, p. 289-291; Everett, 1995, p. 298-299). Conjugada às discrepâncias
linguísticas observadas, há igualmente uma grande diferença com referência à
3
Sobre a família aruak, há um conjunto de estudos que abordam sua pré-história (cf. p. ex. Hill e SantosGranero, 2002; Heckenberger, 2005; Hornborg, 2005; Hill; Hornborg, 2011), mas estes não serão abordados
aqui por não serem de interesse direto desta pesquisa.
21
Entre bravos e mansos
ocupação territorial: enquanto os Aruak apresentam a maior dispersão territorial do
continente americano, os Arawá estão concentrados na região dos rios Juruá e Purus.
Os grupos falantes de línguas da família Arawá – Banawá (Banawá-Jafí), Deni,
Jamamadi, Jarawara, Kulina, Paumari, Sorowahá e provavelmente os Rimarimá (HiMerimã)4 – estão concentrado a oeste dos Apurinã (Aruak) e apresentam idiomas
muitos semelhantes. Os Paumari são os que apresentam idioma mais diferenciado e
estudado, estando também em contato mais próximo com os Apurinã, o que
possivelmente gerou empréstimos linguísticos e erros na classificação da família arawá
(Florido, 2008, p. 49). A dispersão Aruak e concentração Arawá apontam para situações
muito discrepantes, como sugerido por Florido (2008), mas, infelizmente, pouco se sabe
sobre os Arawá, inclusive em decorrência da submissão dos estudos dessa família à
Aruak. Também sobre a família Katukina as informações históricas estão mais
limitadas ao século XIX, com a chegada da empresa seringalista na região (cf. Costa,
2007).
Já no que se refere aos grupos de família pano, encontramos dados a respeito de
sua presença no Alto Amazonas, especialmente no rio Ucayali. Pode-se afirmar, com
alguma precisão, que os antigos pano teriam migrado em massa a partir da região do
Beni e do Guaporé, na Amazônia boliviana, em direção ao Ucayali por volta de 100-300
D.C. (Erikson, 1992, p. 244). Os Pano produziam cerâmica do tipo “pacacocha” –
caracterizada por motivos zoomorfos e pela simplicidade de suas formas – e eram
pouco orientados em direção aos rios, ocupando preferencialmente as regiões de
interflúvio. Entretanto, rapidamente se acostumaram ao meio ribeirinho, exercendo um
domínio sobre todo o Ucayali, o qual teria durado até meados de 700-800 D.C.
(Erikson, 1992, p. 245).
Dois acontecimentos parecem estar relacionados ao fim do domínio exclusivo
dos Pano sobre o Ucayali: a entrada dos Aruak na região – episódio sobre o qual pouco
se sabe até o momento – e, um pouco mais tarde, o aparecimento da cerâmica do tipo
“cumancaya”5. Cumancaya foi também o nome de uma localidade do médio Ucayali,
onde podiam ser encontrados, além das cerâmicas de estilo homônimo e pacacocha,
machados de cobre, cuja presença na região aponta para uma conexão andina. É
também notável a semelhança entre esse novo tipo de cerâmica e a de Sangay, no
Bonilla (2007, p. 20) e Everett (1955, p. 299) mencionam este grupo indígena como possivelmente
existente e não contatado. Everett acrescenta a informação de que os Banawá afirmam a existência dos
Rimarimá e também dizem que estes falam uma língua semelhante ao Banawá.
5 Estudos glotocronológicos sugerem ter sido por volta desta época que a família pano teria perdido sua
antiga homogeneidade linguística (D’Ans, 1973 apud Erikson, 1992, p. 245).
4
22
Capítulo 1
Equador, indicando igualmente a existência de conexões hidrográficas com as
civilizações das terras altas (Erikson, 1992, p. 245).
Tais dados arqueológicos apontam para uma presença temporária de chefia
indígena de origem andina implantada no médio Ucayali, a qual teria durado até
aproximadamente o ano de 1.300 (Erikson, 1992, p. 246). Apesar do debate sobre a
existência de tal chefia no Ucayali ainda estar em aberto, certamente as ocasiões de
contato direto e indireto entre Pano e “Inka” (heróis culturais pano) foram muitas,
sendo que a própria conexão entre Andes e Ucayali parece anteceder a chegada dos
Pano na região. Além da presença dos “Inka” em mitologias Pano – dentre as quais a
mitologia Kaxinawá é um exemplo (ver cap. 3) –, outras características presentes em
grupos dessa família linguística apontam para uma extensa influência andina: práticas
rituais, como os sacrifícios animais, a valorização do derramamento ritual de sangue, a
divinização do sol; técnicas de tecelagem, música e sistema de medidas; sem falar nos
numerosos empréstimos linguísticos (Erikson, 1992, p. 246)6.
No Ucayali, os primeiros encontros entre europeus e Pano aconteceram
provavelmente na segunda metade do século XVI quando, em 1557, uma expedição
conduzida por Juan Salinas de Loyola subiu esse rio. Os encontros com os brancos
muitas vezes suscitaram nos Pano associações com a figura do Inka. Isso ocorreu com
muitos que sucederam Salinas na região pano (Erikson, 1992, p. 248) e é ainda uma
associação feita por esses grupos indígenas, conforme nos mostram etnografias atuais
(cf. McCallum, 1996; Lagrou, 2007; Calavia Sáez, 2000). Este tema será tratado com
mais detalhes no capítulo 3.
Infelizmente, não é possível precisar quando contatos iniciais com os brancos
aconteceram na região do Juruá-Purus; sabemos contudo que foram anteriores aos
contatos decorrentes da exploração da borracha. Segundo Castello Branco (1950, p. 14),
naquela época, “os silvícolas” daquelas terras ou seus antepassados já tinham estado
em contato com os civilizados, sendo “conhecedores do sistema de agarramento feito
por êstes, não só para o serviço do govêrno, como dos próprios agenciadores ou
catequistas, escravizando-os, vendendo-os, roubando-lhes as mulheres e filhas”. Tal
conhecimento anterior estava na base de uma evitação dos Pano em relação aos
brancos que já tinha raízes profundas (Castello Branco, 1950, p. 14).
Cf. Renard-Casevitz, Saignes & Taylor (1988) para uma análise mais detalhada das diversas relações
estabelecidas entre os Incas e os povos amazônicos.
6
23
Entre bravos e mansos
Castello Branco forneceu também algumas informações não muito detalhadas
sobre possíveis origens geográficas dos grupos indígenas habitantes do Juruá-Purus.
Na época em que escreveu, grupos da família linguística pano constituíam a população
predominante no rio Juruá, enquanto no rio Purus era mais notável a presença de
grupos de origem aruak - atuais famílias Aruak e Arawá7. Devemos notar que esta
ainda é uma configuração atual no que se refere aos grupos pano e arawá, pois os
primeiros ocupam majoritariamente o Juruá, estendendo-se ao alto Purus, enquanto os
Arawá ocupam toda a extensão do Purus, com exceção dos Kulina que encontram-se,
tal qual os Pano, no Juruá e alto Purus. Segundo Castello Branco (1950, p. 3), os Pano
seriam originários do Alto Marañon, rio peruano nascente nos Andes, e teriam
alcançado o alto e médio Juruá com escalas anteriores pelo Ucayali, Javarí e Jutaí –
principalmente pelo Ucayali, em cujas margens já se encontravam na primeira metade
do século XVII. Castello Branco levanta ainda a hipótese de que os Aruak fossem os
principais ocupantes do Juruá antes da chegada dos Pano, tendo sido, então, expulsos
por estes. Se esta hipótese for factível, então os Kulina seriam, entre os Arawá, aqueles
que teriam permanecido no Juruá, pois, como veremos no capítulo 2, o movimento dos
Kulina em direção ao alto Purus parece ser de origem mais recente.
Ao mencionar o “sistema de agarramento” feito pelos brancos, Castello Branco
(1950) refere-se à presença destes em séculos anteriores ao XIX nos rios Juruá e Purus e
às violentas relações que haviam sido estabelecidas: captura de índios para o serviço
do governo, catequese ou escravidão. Sabemos que, antes de 1689, já havia casas de
moradores portugueses no rio Purus, os quais faziam comércio com os índios e
facilitavam as excursões das “tropas de resgate” (Kroemer, 1985, p. 23). Segundo
Kroemer, a expansão territorial dos brancos nessa região vinha de dois lados: “os
espanhóis mandavam seus missionários que desciam de Quito e os portugueses
mandavam suas tropas de resgate” (Kroemer, 1985, p. 23). O que se via era uma
verdadeira competição pela catequese dos índios por missionários jesuítas, do lado
espanhol, e por carmelitas, do lado português. Neste contexto, uma verdadeira guerra
parecia ser travada, em que tropas de resgate eram utilizadas na captura de índios e
em que interesses expansionistas na busca pelo ouro8 e controle do território eram
Castello Branco não considerava a existência de uma família arawá. Desse modo, os grupos falantes de
língua desta família eram tratados como aruak.
8 O jesuíta Cristóbal de Acuña, cronista na excursão realizada por Pedro Teixeira – que tinha como motivo
o reconhecimento do rio Amazonas para a expansão portuguesa –, relatara, em 1639, a presença de ouro
em pequenas chapas pendentes no nariz e nas orelhas de índios que habitavam o rio Purus. Este fato
alimentara a ideia de que poderiam encontrar ouro na região (cf. Kroemer, 1985, p. 19-20).
7
24
Capítulo 1
confrontados pelas nações portuguesa e espanhola (cf. Kroemer, 1985, p. 17-37). Até
onde se sabe, o Purus não contava com uma missão propriamente dita dos carmelitas;
o que ocorria era o “descimento” de índios para missões instaladas em outras
localidades. Os descimentos ocorriam por meio da captura de índios do sertão, locais
de mais difícil acesso, a lugares de fácil comunicação para catequese e comércio – nas
Entradas ao sertão, os missionários eram acompanhados por tropas de resgate
(Kroemer, 1985, p. 24-25).
Também nos rios Juruá e Purus, a partir de meados do século XVIII, houve a
coleta das famosas “drogas do sertão”, além do rapto de índios para serem utilizados
como mão-de-obra escrava. No Purus, as drogas foram coletadas a partir de 1755, data
da criação da Capitania de São José do Rio Negro: lá, eram coletados, sobretudo, óleo
de tartaruga, cacau, salsaparrilha e óleo de copaíba (Kroemer, 1985, p. 28; Gonçalves,
1991, p. 18). No Juruá, sua coleta parece ter sido iniciada posteriormente, uma vez que
as primeiras notícias de comerciantes que subiam este rio datam de 1813 (Almeida et
al., 2002, p. 107). Do Juruá, saíam produtos como cacau, breu, copaíba, anil e óleos.
Apesar da generalidade desses dados e das localizações imprecisas, a presença
missionária na região do Purus no século XVII e de comerciantes nos rios Juruá e Purus
a partir do século seguinte indica que contatos diretos ou indiretos já haviam sido
estabelecidos entre brancos e índios quando, no século XIX, novamente os brancos
viriam se estabelecer nas margens destes rios com a finalidade de ali estabelecerem
uma empresa seringalista.
A ocupação branca mais intensiva das bacias desses rios teve início em meados
do século XIX. É, portanto, somente a partir desta data que encontramos um número
significativo de registros sobre a história da região, sobretudo a partir de viajantes que
exploraram os rios Juruá e Purus em busca de reconhecimento do território e de seus
habitantes. Durante praticamente cem anos, até meados do século XX, a empresa
seringalista marcou a história desses rios, bem como da Amazônia de uma maneira
mais geral: além da grande migração, sobretudo de nordestinos, os povos indígenas
habitantes da região foram engajados no trabalho nos seringais por meio de um
sistema que ficou conhecido como “aviamento”. Sua característica marcante residia no
fato de que o seringueiro se encontrava em permanente dívida para com seu patrão,
criando uma forte lógica de dependência (cf. Aquino, 1977; Altmann, 2000; Taussig,
1993; Weinstein, 1993). O seringueiro, muitas vezes, já iniciava seu trabalho
endividado, devendo pagar ao patrão sua própria mudança do lugar de origem até seu
25
Entre bravos e mansos
local de habitação no seringal, além de todos os instrumentos que utilizaria em seu
trabalho. Como se não fosse ainda suficiente, o seringueiro deveria pagar ao patrão
pelo uso das “estradas de seringa”9 (Altmann 2000, p. 101).
No final do século XIX, o etnógrafo alemão Paul Ehrenreich10 relatou que a
extração da borracha dominava toda a vida comercial da região dos rios Amazonas e
Purus. Ela acontecia unicamente nas margens baixas dos rios, de forma que toda a
parte alta, nominada por ele de “cordilheiras”, era desconhecida dos viajantes. Assim,
as zonas mais elevadas constituíam-se enquanto um local de domínio privilegiado de
grupos indígenas. A população do Purus somava naquela época – ano de 1888 - cerca
de 50.000 pessoas, ao passo que em 1871, estimava-se um número total abaixo de 2.000
(Ehrenreich, 1929, p. 280), indicando um elevado aumento populacional migratório
decorrente do comércio da borracha.
Os índios habitantes das florestas tropicais foram os primeiros a extrair e
manipular o látex da árvore da borracha, mas a ele davam um sentido diferente
daquele que lhe fora atribuído posteriormente pela indústria seringalista: produziam
objetos, sobretudo bolas e esculturas zoomorfas (Gonçalves, 1991, p. 10). O naturalista
francês Charles Marie de La Condomine quando desceu o Amazonas a partir do
Equador, em 1743, observou que os índios extraíam um líquido leitoso e viscoso dessa
árvore, o qual, depois de coagulado, produzia uma substância maleável de grande
elasticidade e impermeabilidade. La Condomine exerceu um papel primordial na
divulgação desse caoutchouc – como o chamavam na Amazônia da época –, apesar de
não ter sido o primeiro nem o único. Levou para a França uma pequena quantidade do
produto e publicou um importante trabalho sobre suas propriedades. Em fins do
século XVIII, esta substância já havia sido grandemente difundida no Velho Mundo,
com a descoberta de novas aplicações para ela (Weinstein, 1993 [1983], p. 22). Em 1800,
saíam as primeiras exportações, ainda clandestinas, de produtos elaborados a partir do
látex da borracha, de Belém com destino aos Estados Unidos: eram garrafas, sapatos,
dentre outros. A marca deste período inicial de exportação foi a predominância da
manufatura sobre a matéria prima, situação que se inverteria completamente no
período seguinte. Nesta primeira fase, a árvore da seringa era tratada como mais uma
das “drogas do sertão” e sua exploração estava circunscrita à região do Pará, sobretudo
9 Uma “estrada de seringa” é constituída, aproximadamente, de 100 árvores seringueiras desigualmente
intervaladas (Cunha, 2000 [1976], p. 65). Adiante, fornecerei uma explicação mais pormenorizada de sua
formação em um seringal.
10 Ehrenreich realizou tal viagem ao rio Purus em sua terceira e última expedição ao Brasil, no ano de 1888
(Cruz; Christino, 2005).
26
Capítulo 1
às ilhas da foz do Amazonas: “era o tempo da „borracha das ilhas’” (Gonçalves, 1991, p.
11). Apenas mais tarde, na segunda metade do século XIX (por volta de 1870), sua
exploração chegaria aos rios Juruá e Purus, assim como ao Jari, Xingú, Tapajós e
Madeira (Gonçalves, 1991, p. 11), mas já em outro contexto, quando a borracha não
seria vista como apenas um item a mais na lista daqueles que eram exportados.
Diversos gêneros de plantas produtoras de látex foram explorados nos rios
Juruá e Purus. A seringueira, cientificamente chamada de Hevea brasiliensis, figurou
como a principal árvore fornecedora de látex, mas outra importante espécie foi
extensamente explorada e ficou conhecida como caucho – trata-se da Castilla ulei (cf.
Andrade, 2004, p. 38). Essas diferentes gêneros e suas respectivas espécies ficaram
conhecidos na Alta Amazônia como caucho blanco (Hevea) e caucho negro (Castilla) (cf.
Pineda, 2000, p. 37). Uma das diferenças fundamentais entre ambas residia no fato de
que a Castilla era menos resistente à extração de seu leite quando comparada à Hevea.
Desse modo, o caucheiro – trabalhador na exploração do caucho – não a conservava em
um trabalho permanente, derrubando-a para aproveitar todo o leite que a árvore
possuía por meio de incisões circulares. Já a seringueira permitia um trabalho
prolongado e fixo, resistindo longamente aos talhos e extrações de seu leite (Cunha,
2000 [1976], p. 278; cf. também Pineda, 2000, p. 37-45). Outras distinções foram
ressaltadas entre seringueiros e caucheiros, sobretudo no que se refere aos seus modos
de lidar com a população indígena dos territórios que ocupavam: de modo geral, os
caucheiros foram tomados como “mais violentos” enquanto os seringueiros foram
considerados essenciais na ocupação do território por serem menos móveis (cf. Castello
Branco, 1950, p. 14; Tastevin, 2009 [1925], p. 149-150; Cunha 2000 [1976], p. 278-279).
Iglesias (2010, p. 66-73), entretanto, mostra como esta oposição entre caucheiros
(geralmente peruanos) e seringueiros (geralmente brasileiros) fazia também parte de
uma conjuntura geopolítica em que era importante afirmar a anterioridade da
ocupação territorial por parte dos brasileiros, ressaltando o caráter efêmero da
atividade caucheira. Como mostra Iglesias, a presença de caucheiros peruanos em
território brasileiro, mais especificamente no Alto Juruá, ocorreu com relativa
intensidade até pelo menos meados dos anos 1910.
A história da exploração mais intensiva da goma elástica ficou conhecida por
meio de seus 1º e 2º ciclos. O primeiro deles foi marcado pelo aumento significativo da
demanda pela borracha, o qual ocorreu apenas depois de 1839, ano em que Charles
Goodyear aperfeiçoou seu processo de vulcanização. Antes disso a borracha
27
Entre bravos e mansos
apresentava alta sensibilidade a mudanças de temperatura, ficando dura no frio e
grudenta no calor, fato que impedia sua larga utilização em bens industriais ou de
consumo. A exportação da borracha não teve, entretanto, um aumento imediato, mas já
significativo, se compararmos os anos de 1840 e 1850: de 388.260 Kg, passou para
1.446.550 Kg. Isso antes mesmo da popularização da bicicleta e do automóvel ocorrida
nos anos de 1890 e 1900, respectivamente (Weistein, 1993 [1983], p. 22-23).
Sendo habitat da Hevea brasiliensis, a Amazônia foi a única fornecedora da
borracha até a década de 1880. A África Ocidental ocupou o lugar, posteriormente, de
seu concorrente mais próximo, mas ainda assim distante. Foi apenas após 1912 – ano
em que terminou o primeiro boom da borracha na Amazônia -, com a aclimatação bem
sucedida da seringueira, que as plantações asiáticas ocuparam o lugar da Amazônia de
primeira produtora mundial (Weistein, 1993 [1983], p. 23). O sucesso de cultivo da
Hevea em sistema de monocultura em um ambiente que não era o de seu habitat
natural teve em sua origem o contrabando de exemplares de sua semente
encomendado pelo governo britânico: estas foram levadas da Amazônia para o Jardim
Botânico de Knew e, posteriormente, quando mudas haviam crescido, estas foram
levadas para a Ásia, onde cresceram com sucesso (cf. Dean, 1989 [1987], p. 29-60).
Assim, enquanto em 1912 a produção amazônica atingira a taxa de 42 mil
toneladas, a produção asiática atingiu, em 1915, a faixa das 100 mil toneladas (Almeida
et al., 2002, p. 117). Nesse momento, houve uma queda brusca do preço da borracha no
mercado internacional, o que gerou crises e falências em território amazônico. Almeida
et al. (2002, p. 118) relatam a ocorrência de revoltas, principalmente no momento inicial
da queda dos preços, havendo a expulsão de gerentes de seringais, o incêndio de
barracões11, suicídios e assassinato de patrões.
A enorme dependência da produção e da venda da borracha trouxe sérias
dificuldades para os seringueiros, os quais dependiam da comercialização da goma
inclusive para a alimentação, pois quase tudo adquiriam no barracão. Tal sujeição
decorria, sobretudo, das restrições estabelecidas pelos patrões, os quais desejavam
manter os seringueiros dependentes dos produtos que forneciam, chegando a proibir o
cultivo de roçados de subsistência (Almeida et al., 2002, p. 119). A crise gerou
movimentos de saída dos seringais por parte dos seringueiros nordestinos, seja para
um retorno à terra de origem – quando tinham condições financeiras para tal – ou para
O barracão era o posto mercantil central – tendo como referência um seringal específico – gerido pelo
“patrão” do seringueiro (Weinstein, 1993 [1983], p. 31).
11
28
Capítulo 1
as cidades que surgiram no vale do Juruá e Purus (Aquino, 1977, p. 50). Gerou ainda
movimentos rio acima, à procura de áreas onde a produtividade da borracha
continuava sendo alta a ponto de ainda ser compensadora (Almeida et al., 2002, p. 50).
A situação era um pouco diferente com os índios seringueiros porque, de modo
geral, sempre mantiveram seus roçados e também a prática da caça e da pesca. Com a
crise, passaram a ser requisitados para os trabalhos agrícolas, uma vez que os próprios
patrões começaram a manter grandes roçados. Para sobreviverem a este momento
crítico, os seringais precisaram expandir suas possibilidades produtivas a outros
gêneros – como os roçados, as criações domésticas de animais ou o comércio de couros
e peles –, uma vez que não tinham mais condições de importar farinha ou outros
mantimentos necessários à alimentação de seus trabalhadores (Aquino, 1977, p. 51;
Almeida et al., 2002, p. 120).
Neste primeiro ciclo da borracha, as chamadas “casas aviadoras” ou “casas
recebedoras” – que contavam com um comerciante local geralmente conhecido como
“aviador” – eram o elo mais importante da cadeia comercial da seringa na Amazônia;
situavam-se em Belém ou Manaus. Ocupavam uma posição central, pois controlavam
informalmente a produção e o comércio local da borracha, negociando a produção dos
seringueiros – geralmente de modo indireto, intermediados pelos “patrões” – e
mantendo-os abastecidos de ferramentas, víveres e outras mercadorias. A produção
dos seringueiros era, desse modo, entregue por patrões ou aviadores nas casas
aviadoras as quais tinham o poder da decisão de quando e a quem vender a borracha.
Essas casas exerciam, ainda, inúmeras outras funções: negociavam com as casas
importadoras, as mercadorias a serem repassadas aos seringais; providenciavam
créditos adicionais ou empréstimos dos bancos locais para suplementar adiantamentos
feitos pelas casas importadoras; providenciavam o transporte e a distribuição dos
migrantes que vinham do Nordeste para trabalhar nos seringais; e enviavam para o
interior seus representantes com mercadorias, ferramentas e, se necessário, também
com trabalhadores a fim de instalar novas áreas de exploração ou estabelecer contatos
comerciais com áreas incipientes (Weinstein, 1993 [1983], p. 33-34).
Para além das casas aviadoras e importadoras, havia ainda as casas
exportadoras que, em alguns casos, mas de modo limitado, atuavam também como
importadoras. Nesse circuito comercial, as transações entre aviadores e exportadores
eram as primeiras a ocorrerem necessariamente em moeda corrente. As casas
exportadoras podiam, também, funcionar como agência bancária informal, mas sua
29
Entre bravos e mansos
principal atividade era a compra da borracha e sua transferência para o exterior
(Weinstein, 1993 [1983], p. 34).
Entre os anos de 1943 a 1945, o preço da borracha voltou a crescer. Este foi o
considerado 2º ciclo, momento em que os Estados Unidos passaram a conceder créditos
para a ampliação da produção brasileira, sendo também o mercado comprador de
praticamente toda a borracha produzida na região (Aquino, 1977, p. 53). A nova alta
dos preços se deu no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando forças do Eixo
bloquearam a exportação de produtos dos seringais das colônias holandesas, britânicas
e francesas do Sudeste Asiático, fazendo com que os Estados Unidos procurassem
novamente o mercado sul-americano (Almeida et al., 2002, p. 122; Golçalves, 1991, p.
30). No ano de 1943, o Brasil, juntando-se aos Aliados, comprometeu-se a exportar toda
a sua produção de borracha para os Estados Unidos. A borracha tinha, no contexto da
guerra, uma importância estratégica devido as suas aplicações militares (Almeida et al.,
2002, p. 122).
Em 1942, foi criado o Banco de Crédito da Amazônia, com o objetivo específico
de possibilitar financiamentos visando a ampliação da produção. O banco passou a
substituir tanto as casas aviadoras como as casas exportadoras do primeiro ciclo da
borracha, concedendo financiamentos aos proprietários dos seringais – os chamados
“patrões” ou “seringalistas” -, e também garantindo o monopólio da comercialização
do produto (Aquino, 1997, p. 52-53). Neste momento, o governo brasileiro incentivou
uma nova onda migratória do Nordeste para a região amazônica, mediante intensa
propaganda e oferta de vantagens pecuniárias. Esses novos migrantes foram os
chamados “soldados da borracha” (Almeida et al., 2002, p. 122; Aquino, 1977, p. 52-53;
Gonçalves, 1991, p. 30). Neste curto período de tempo, os patrões, dispondo de fartos
financiamentos, puderam voltar a fornecer, nos barracões, todas as mercadorias
necessárias à subsistência. Desse modo, a maioria dos novos seringueiros nordestinos
passou a se dedicar de modo exclusivo à extração da seringa. O que não parece ter
ocorrido com a mão-de-obra indígena: os Kaxinawá, por exemplo, mesmo sendo muito
requisitados neste momento para o trabalho de extração da borracha, nem por isso
abandonaram seus roçados, combinando esta atividade com o trabalho nos seringais
(Aquino, 1977, p. 53).
Entretanto, com o fim da guerra, as altas do preço da seringa não
acompanharam os aumentos nos preços das mercadorias, reduzindo o poder de crédito
dos patrões. O próprio Banco de Crédito da Amazônia mudou sua orientação,
30
Capítulo 1
dificultando a realização de financiamentos e trazendo sérios empecilhos para a
continuidade do sistema de aviamento. Desse modo, nos anos de 1950 e 1960, a
empresa seringalista sofreu uma profunda estagnação, voltando a desenvolver uma
atividade econômica mista. Foi neste momento que surgiu a figura dos
“barranqueiros”, sobretudo, em decorrência das constantes crises da empresa
seringalista. O “barranqueiro” pode ser definido como um morador da “margem”12 ou
dos “barrancos” dos rios, mais como um agricultor do que propriamente um
seringueiro, apesar de não ser raro que um ou mais membros de sua família se
dedicassem ao trabalho na borracha (Aquino, 1977, p. 54-55; Gonçalves, 1991, p. 31).
Na década de 1970, o governo militar implementou dois programas buscando
incentivar a produção seringalista e retirar o Brasil da então situação de importador da
borracha asiática, mas ambos fracassaram (Gonçalves, 1991, p. 31). Neste mesmo
período, instalou-se na região a atividade agropecuária com a chegada de investidores
e grupos econômicos do sul do Brasil, os quais passaram a ser proprietários de
inúmeros seringais13. Este movimento de ocupação agropecuária e consequente
desmatamento da Amazônia foi incentivado pelo governo militar. Os primeiros a
chegar foram investidores, especuladores e grileiros de terras, seguidos posteriormente
– a partir de 1974 – de grandes grupos econômicos: Atalla-Coperçúcar, Bradesco,
Atlântica Boa-Vista, Condomínio Tarauacá, Viação Aérea Cruzeiro do Sul, Paranacre,
dentre outros (Aquino, 1977, p. 64, 68; McCallum, 2001, p. 11).
Esses novos proprietários de terras ficaram conhecidos como “paulistas”. As
“compras” de terras que realizaram nem sempre podiam ser assim nomeadas, visto
que muitos métodos foram utilizados para a efetuação de sua posse, desde pistoleiros
profissionais até a queima de barracos, prisões e ameaças de morte. Os antigos
proprietários dos seringais estavam, naquela época, totalmente endividados com o
Banco da Amazônia, sendo que muitos deles havia, inclusive, abandonado os seringais,
deixando os seringueiros e barranqueiros que lá permaneceram em uma situação
vulnerável de autênticos posseiros (Aquino, 1977, p. 64).
A “margem” e o “centro” são termos espacialmente opostos que dizem respeito à configuração de um
seringal. A “margem”, aqui mencionada, refere-se à região limítrofe de um seringal. Adiante, neste
capitulo, apresentarei uma explicação mais detalhada sobre suas características em relação com o trabalho
desenvolvido na extração da borracha.
13 Com a crise da borracha, para além da agropecuária, outro mercado que se tornou bastante cobiçado foi
o da extração madeireira. Este foi o caso da região do rio Amônia (alto Juruá), onde habitam os Ashaninka
(cf. Pimenta, 2002, p. 131-142). Os Kanamari também trabalharam na extração da madeira (ver cap. 2).
12
31
Entre bravos e mansos
O processo de venda dos seringais iniciou-se primeiramente na região do rio
Purus, em decorrência de sua proximidade da capital do Acre, Rio Branco; no Juruá,
esse processo começou pouco tempo depois. No início, as terras eram compradas a
baixos preços seja pelo risco envolvido de futuras desapropriações pelo Estado ou pela
possibilidade de conflito com seringueiros e barranqueiros que nelas haviam
permanecido (Aquino, 1977, p. 66). Aquino também atribui o baixo preço inicial da
terra a seu significado, o qual foi transformado na passagem da exploração seringalista
ao uso da terra pela nova frente agropecuária (1977, p. 65). No sistema extrativista, o
valor da terra não estava ligado à sua extensão, mas sim à quantidade e qualidade das
árvores de seringa que nela podiam ser encontradas: a medida era dada pelo número
de “estradas de seringa”. Já no caso da agropecuária, seu valor passou a ser sinônimo
de sua medida em hectares. Desse modo, a diferença entre os sistemas de contagem
teria ocasionado uma subestimação do valor pago pelas terras.
Esses primeiros “investidores” desempenharam, em grande medida, o papel de
especuladores de terra: expulsaram seringueiros e barranqueiros – índios e não-índios
– para vendê-las aos grandes grupos econômicos supramencionados já livres de
eventuais posseiros e, assim, a preços mais valorizados. Neste segundo momento, com
a chegada desses grupos e com um preço já mais elevado da terra, tiveram início
inúmeros desmatamentos na região. Muitos seringueiros e barranqueiros se
transformaram em peões ou trabalhadores braçais nos desmatamentos que eram
realizados (Aquino, 1977, p. 68).
No contexto da agropecuária, a contratação de mão-de-obra era realizada pelos
“empreiteiros”, geralmente homens de confiança dos administradores das fazendas –
“os paulistas” – e profundos conhecedores da região, não havendo, desse modo, uma
relação direta entre os empregados e os proprietários. Apesar dessas transformações
do novo sistema – intitulado “empreitada” ou “empeleita” –, muito se manteve da
anterior relação de trabalho onde o pagamento era realizado por meio do sistema de
aviamento. O pagamento de empreiteiros a peões era realizado por meio de vales,
principalmente nas fazendas mais afastadas das cidades, os quais apenas poderiam ser
trocados por mercadorias nos armazéns da própria fazenda (Aquino, 1977, p. 69-70;
Viveiros de Castro, 1978, p. 27).
Importante notar, igualmente, que a chegada das fazendas não extinguiu a
existência dos seringais; ambos continuaram se constituindo enquanto local de
trabalho e, muitas vezes, de residência para os habitantes da região. Mas, a
32
Capítulo 1
transformação do significado da terra trouxe mudanças importantes para a vida dos
grupos indígenas. A “terra”, e não mais as “estradas de seringa”, trouxe consigo uma
nova definição do espaço enquanto território contínuo, fechado e homogêneo, o qual
pouco comportou os grupos indígenas em seus interstícios (Viveiros de Castro, 1978, p.
11-12). Viveiros de Castro, que esteve na região do Alto Purus para realização de
relatório sobre os Kulina, encomendado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em
1978, observou que as alternativas colocadas para este grupo indígena eram
semelhantes àquelas notadas por Aquino (1977) para os Kaxinawá da bacia do Juruá.
Segundo Viveiros de Castro (1978), as novas condições da frente de expansão no Acre e
a entrada violenta da agropecuária ameaçavam transformar a população indígena em
peões sem terra, não sendo possível que retornassem os tempos do apogeu da empresa
seringalista – naquele momento, considerados pelos Kulina como bons, pois havia
“serviço” e mercadorias:
O tempo dos “caboclos” vai acabando; agora ou os Kulina perdem sua
identidade étnica e se dissolvem no exército de migrantes para a
periferia das cidades, ou se escravizam como peões sem terra e sem
roça; ou se transformam em índios, uma identidade étnica nova no
Acre, desde os tempos em que os índios eram exterminados à bala nas
correrias (Viveiros de Castro, 1978, p. 89).
Os grupos indígenas do Juruá e Purus, concentrados em território acreano,
eram então reconhecidos como “caboclos” e não havia, até meados da década de 70,
atuação do órgão indigenista no Acre nem existência de terras indígenas reconhecidas
pela União (Pimenta, 2007, p. 641). Foi apenas em 1976 que a Funai instalou uma
Ajudância em Rio Branco, e sua área de atuação, naquele momento, limitou-se à bacia
do rio Purus. Antes dessa data, não houve a presença do antigo SPI – Serviço de
Proteção aos Índios – e nem mesmo da Funai, criada em 1968 (Aquino, 1977, p. 1).
Na região contígua do Alto Ucayali, mais especificamente no baixo curso do rio
Urubamba, com a crise da borracha do princípio do século XX, as fazendas, centradas
na agricultura, passaram a assumir um lugar predominante no cenário regional
(muitas delas foram criadas entre os anos 1920 e 1930). O sistema de trabalho
estabelecido nas fazendas continuou baseado nas relações de débito e crédito que
caracterizavam o sistema de aviamento (“habilitación” – cf. Gow, 1991, p. 44-48), de
maneira análoga ao que ocorreu com as fazendas do Juruá-Purus. Porém, entre os Piro
do baixo Urubamba, algo foi transformado em seu relacionamento com os patrões do
“tempo da fazenda” em comparação com as relações de troca que ocorriam no tempo
33
Entre bravos e mansos
dos patrões da borracha. Como relata Gow (1991, p. 67-68), Vargas, um importante
patrão dos Piro no tempo da fazenda, não foi apenas um patrão, mas também um chefe
(curaca) deste grupo indígena. Ele dizia aos Piro o que fazer e também quando fazer,
ele organizava suas vidas e era o vínculo entre este grupo indígena e as cidades rio
abaixo, fornecedoras das mercadorias que eles desejavam. Vargas era também aquele
que coordenava a vida cerimonial dos Piro, organizando, por exemplo, tanto os rituais
de puberdade quanto os casamentos. Comparados a Vargas, os patrões da borracha
são lembrados vagamente, e de modo genérico, pela sua violência, enquanto Vargas
marcara a memória piro de modo muito mais personalizado. Em seu tempo, os Piro
tornaram-se “escravos da fazenda”, enfatizando que todos eles habitavam nas
fazendas. Foi também nesta época que os Piro afirmam terem se tornado civilizados,
em contraste com seus ancestrais que eram “pessoas ignorantes da floresta” (Gow,
1991, p. 69).
O tempo da fazenda piro tem seu fim com a morte de Vargas em 1940, momento
em que os Piro iniciaram um processo de deixar as fazendas e passar a morar em
aldeias com escolas sustentadas tanto pelos missionários do Summer Institute of
Linguistics (SIL) como por padres dominicanos (Gow, 1991, p. 69). Observamos, desse
modo, que o período em que as fazendas foram marcantes na vida deste grupo
indígena antecede o período principal de instalação das fazendas na região dos rios
Juruá e Purus, na década de 1970. Também parece ser substancialmente diferente a
maneira pela qual os grupos indígenas que habitavam os rios Juruá e Purus na época
se referem hoje às fazendas. Como veremos nos capítulos seguintes, o momento
marcante de trabalho e de relacionamento com os patrões é o período da borracha. As
fazendas não são lembradas da mesma maneira.
Esse fato nos sugere, como já delineado nas observações de Viveiros de Castro
(1978) entre os Kulina do Purus e de Aquino (1977) entre os Kaxinawá do Juruá, que as
fazendas instaladas na região na década de 1970, apesar de continuarem funcionando
por meio do sistema de aviamento, diferiam substancialmente dos seringais. Ao
ocuparem o espaço de outra maneira, aparentemente também dispensaram grande
parte da mão-de-obra indígena. Razão pela qual os Kulina, por exemplo, lembravam
saudosamente dos tempos do apogeu da empresa seringalista, quando havia serviço e
mercadorias.
Esse panorama, instaurado com a decadência dos seringais e a chegada das
fazendas, pôde ser transformado, em alguma medida, a partir da década de 1980,
34
Capítulo 1
quando surgiram, na região, os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais e as
primeiras organizações indígenas. Nesta mesma década, houve um crescimento do
movimento ambientalista e da visibilidade internacional do desastre ecológico
ocasionado pelas políticas desenvolvimentistas na Amazônia, o que favoreceu as
reivindicações dessas organizações e a realização de alianças políticas. A luta pela terra
se constituiu na principal das reivindicações, sendo fundamental para a futura
demarcação de terras indígenas e também de outros territórios protegidos legalmente e
habitados por grupos indígenas e não indígenas, como reservas extrativistas, o Parque
Nacional da Serra do Divisor, dentre outros (Pimenta, 2007, p. 637-641). Atualmente, o
estado do Acre conta com 36 terras indígenas, sendo que algumas delas ainda se
encontram em processo de identificação (ISA, 2012).
Podemos, assim, delinear algumas transformações gerais que ocorreram na
ocupação do território da bacia dos rios Juruá e Purus e também nas relações entre
brancos e índios desde que se instalou na região a empresa seringalista. Em um
primeiro momento, com a chegada dos colonizadores na segunda metade do século
XIX, contatos iniciais foram estabelecidos entre os brancos e os grupos indígenas. Nos
registros referentes a viagens de reconhecimento do território (ver mais detalhes a
seguir), os brancos buscavam identificar os habitantes indígenas daquele território: os
“Catuquinas”, “Conibos”, “Paummarys”, “Juberys”, dentre inúmeros outros, muitos
deles hoje extintos (cf. p. ex. Chandless, 1866; 1869). Em um segundo momento, com a
instalação efetiva dos seringais e engajamento de muitos grupos indígenas como mãode-obra, surge uma nova identidade, a do “caboclo”. Como já tematizada por Cardoso
de Oliveira (1972 [1964]) em outra região da Amazônia (rio Solimões) e também por
Aquino (1977) e Viveiros de Castro (1978) na região do Juruá-Purus, a categoria de
“caboclo”, atribuída genericamente aos grupos indígenas, estabelecia uma diferença
étnica genérica que mascarava uma situação geral de exploração de mão-de-obra e, ao
mesmo tempo, depreciava e desumanizava aqueles incluídos sob tal denominação. Por
fim, o período mais recente é marcado pela decadência dos seringais e pela a ocupação
branca da região a partir um novo tipo de territorialidade, marcado pela instalação das
fazendas. Este momento foi seguido por ou coincidente com o início da atuação da
Funai, de missionários católicos e protestantes (cf. Viveiros de Castro, 1978; Bonilla,
2007), e com o surgimento de organizações indígenas ou de apoio aos povos indígenas.
Este foi o contexto em que muitos grupos passaram a assumir a nova identidade de
“índios” e a lutarem por suas “terras”.
35
Entre bravos e mansos
Podemos observar que as mudanças no modo de ocupação do território
estavam intrinsecamente relacionadas a outras transformações referentes aos
relacionamentos estabelecidos entre aqueles que habitavam a região, articulando
socialidades e temporalidades distintas. Os seringais proporcionavam um tipo
específico de ocupação do território o qual articulava uma temporalidade própria,
assim como modos únicos de relacionamento entre as pessoas que nele habitavam, ou
que a ele estavam relacionadas. Este ponto será mais bem desenvolvido nos próximos
tópicos, em que darei enfoque às condições e circunstâncias nas quais os grupos
indígenas passaram a ser identificados, e também a identificarem-se, enquanto
“caboclos”. Como vimos, tal nominação está diretamente associada ao engajamento de
diversos grupos indígenas como mão-de-obra nos seringais; e foi também o seringal o
espaço por excelência em que se deu o processo de “amansamento”. Desse modo,
prosseguirei a análise iniciando pelas correrias, por meio das quais se deu a captura de
inúmeros grupos indígenas para o trabalho; em seguida, abordarei os diversos tipos de
engajamento da mão-de-obra indígena no trabalho dos seringais; o caráter das relações
estabelecidas entre “patrões” e “seringueiros”; e, por fim, o modo pelo qual categorias
classificatórias opostas como as de índios “bravos” e “mansos” operavam.
“Para os civilizados trabalharem em paz”: as correrias
Em meados do século XIX, ocorreram as primeiras expedições oficiais de
reconhecimento do território da então recém-criada Província do Amazonas.14 No ano
de 1852, foi realizada a expedição comandada por Romão José de Oliveira ao rio Juruá
e, aparentemente no mesmo ano, João da Cunha Correia – também conhecido por João
Cametá – liderou viagem de reconhecimento ao rio Purus (Silva, 2010, p. 188;
Chandless, 1866, p. 86).15 Posteriormente, outras expedições oficiais foram enviadas
com intuitos que iam desde a descoberta de ligações entre rios – como, por exemplo, a
viagem de Serafim Salgado ao Purus em 1852 – até o reconhecimento de índios, o
estabelecimento de missões e o recrutamento de mão-de-obra indígena (cf. Castello
Branco, 1947, p. 108; Labre, 1872). Mas, para além das viagens oficiais, muitas outras
14 Até o ano de 1852, a região dos rios Juruá e Purus pertencera à Província do Grão Pará (Pimenta, 2002, p.
86, nota 1).
15 Chandless (1866) e outras referências à primeira viagem de João Cametá ao Purus não mencionam o ano
de sua ocorrência. Mas, pode-se inferir que esta não aconteceu em data muito anterior, sendo provável que
tenha ocorrido no mesmo ano de 1852, quando João Batista Terneiro de Aranha, presidente da Província
do Amazonas, criada neste ano, organizou as primeiras expedições aos rios Purus e Juruá.
36
Capítulo 1
incursões a estes rios já eram realizadas por regatões, pessoas que buscavam comerciar
com os índios, trocando mercadorias, e que também viriam a participar da busca e
comércio de borracha (Castello Branco, 1947, p. 162).
A inserção da empresa seringalista na região – e sua consequente ocupação
territorial – contou com uma violenta prática que ficou conhecida como “correria”. Na
região dos rios Juruá e Purus, a população indígena foi verdadeiramente cercada pelas
frentes de expansão brasileira e peruana, vindas de direções opostas (Viveiros de
Castro, 1978, p. 9). As correrias eram justificadas por aqueles que as realizavam como o
único meio de garantir “a „segurança’ dos trabalhadores e da produção”:
Durante a implantação da empresa seringalista e o principal período
da extração do caucho, com a ocupação, temporária ou definitiva, dos
antigos territórios indígenas, as “correrias” seriam justificadas por
patrões, seringueiros e caucheiros como único meio eficaz de garantir
a “segurança” dos trabalhadores e da produção. Nesse sentido, é
possível dizer, os indígenas constituíam ameaça recorrente, que
competia com os interesses daqueles que, em diferentes posições,
almejavam ocupar ou utilizar recursos extrativos para “produzir”,
borracha e caucho, e deles tirar sua sobrevivência. Pairando acima das
formas de dominação que permeavam as relações entre os patrões e
seus fregueses (fossem eles seringueiros ou caucheiros), os discursos
que deram sustentação ideológica à realização das correrias obtinham
eficácia no delineamento de uma diferenciação dos “civilizados”,
“cristãos” face aos indígenas, concebidos como não humanos, “feras
selvagens”, “irracionais”, “perigosas” e “traiçoeiras”, estabelecendo
condições de possibilidade, nessa conjuntura, para diferentes
modalidades de violência contra os indígenas (Iglesias, 2012, p. 88).
As correrias, na definição do padre Tastevin16, constituíam-se em “verdadeiras
expedições armadas para desalojar os índios de seu lugar a fogo e sangue e permitir
aos civilizados trabalhar em paz”; e a sua realização parecia não implicar em grandes
dificuldades para os “civilizados” que as efetivavam (2009 [1925], p. 145). Ainda nas
palavras de Tastevin:
Nada mais fácil do que acabar com uma tribo incômoda. Reúnem-se
de trinta a cinquenta homens, armados de carabinas de repetição e
munidos cada um com uma centena de balas, e, à noite, cerca-se a
única maloca, em forma de colmeia de abelhas, onde todo o clã dorme
em paz. No nascer do sol, na hora em que os índios se levantam para
fazer a primeira refeição e os preparativos para a caça, um grito
convencionado dá o sinal, e os assaltantes abrem fogo todos juntos e à
vontade. Pouquíssimos sitiados conseguem escapar: levam-se as
mulheres e as crianças que podem ser pegas vivas, mas não se
Que realizou viagens pela Amazônia nos períodos de 1905 a 1914 e 1919 a 1926 (Carneiro da Cunha,
2009, p. xii-xvi).
16
37
Entre bravos e mansos
perdoam os homens que, por sua vez, se mostram sem medo e
indomáveis (2009 [1925], p. 149).
A definição de Tastevin do que eram as correrias compreende uma das
possíveis formas de sua efetivação, a qual tinha como finalidade o extermínio de
populações indígenas que eram “incômodas” àqueles que desejavam ocupar o “novo”
território. Por outro lado, as correrias podiam ser utilizadas também como forma de
captura de indígenas para seu futuro amansamento e utilização como mão-de-obra nos
seringais. Um seringueiro kaxinawá do rio Jordão, na década de 1970, narrou a Aquino
os dois tipos de correrias que eram organizadas por proprietários de seringais famosos
na região. Em seu relato, pode-se perceber como o próprio amansamento decorrente do
segundo tipo de correria se constituía enquanto uma prática igualmente violenta:
Pedro Biló não amansava caboclo. Pedro Biló matava caboclo. Pedro
Biló só amansou Manel Papavô porque deu um tiro na mãe dele e ele
era bem novinho. A bala ainda marcou o braço dele. ... Felizardo
Cerqueira amansava caboclo, dava mercadoria pra nós, caboclos.
Agradava o velho, o menino. Felizardo e Angelo Ferreira amansavam
caboclo pra trabalhar pra ele. Nós todos aqui trabalhamos com
Felizardo. Ele dizia que tinha pra mais de 80 filhos com as caboclas.
Eu mesmo ele ajudou a fazer. Felizardo amansava caboclo e depois
botava a marca (F. C.) pra saber que era dele, que foi ele que amansou.
O Nicolau, o Regino, o Chico Curumim, o Romão, esses caboclos mais
velhos todos ainda carregam essa marca no braço. Picava o braço com
quatro agulhas e passava a tinta que é jenipapo misturado com
pólvora e tisna preta de sernambi (seringueiro kaxinawá, em Aquino,
1977, p. 44).
Ambas as versões das “correrias” foram realizadas, ao que tudo indica, de
modo concomitante no tempo, com variações locais dependentes do tipo de relação
estabelecida entre índios e não-índios. Os relatos de Castello Branco, que reproduzo a
seguir, demonstram essa variabilidade das relações estabelecidas entre índios e
seringueiros. Deles, também se pode perceber que, se a suposta tranquilidade das
relações estava presente em alguns momentos, em outros, ela poderia ser rapidamente
questionada, seja por ações armadas ou por doenças.
Em alguns lugares os exploradores dos seringais foram bem
recebidos, como no baixo Acre, entre os Ipurinãs, os quais, segundo
Newtel Maia, um dos primeiros desbravadores dessas selvas, eram
pacíficos e se apresentavam aos invasores para com êles trabalhar;
tendo sido dizimados pelo sarampo e exterminadas as sobras pelos
bolivianos quando se apossaram da região, no fim do século XIX para
o princípio do atual [século XX]. Avelino de Medeiros Chaves foi
auxiliado pelos Catianas, Canamaris, e outras tribos na exploração dos
seus vastos seringais no alto Iaco, mas, à proporção que os serviços
38
Capítulo 1
iam se alargando, chegaram novos colonos e entre êstes alguns maus
elementos que provocaram o desaparecimento dos indígenas (1950, p.
12).
Seringueiros e indígenas, passados os primeiros choques,
entenderam-se, chegando êstes a trabalhar na seringa ou na faina de
caça e pesca, em que eram exímios, exceto os menos cordatos que
preferiram o recôndito das matas, mas, aqueles começaram a invadir
os lares indianos, maculando-os ou carregando para suas
“colocações”17 as cunhãs e cunhantãs [meninas e moças], dando lugar
a desavenças entre as duas raças, do que resultou, em alguns lugares,
verdadeiras caçadas contra os índios, como aconteceu no alto Iaco, no
princípio deste século, em que, sob a chefia de João Alves Vieira, dono
do seringal Olinda, foi organizada uma batida contra os Catianas [...].
(1950, p. 14).
Apesar de praticadas de modo sincrônico em determinado momento, pode-se
afirmar que a maior intensidade dos massacres se deu em um período inicial da
chegada dos novos exploradores, sendo que, posteriormente, a mão-de-obra indígena
passou a ser mais demandada para o trabalho nos seringais. A partir de 1903, com a
criação do território do Acre e instalação das prefeituras no ano seguinte, as correrias
organizadas com a finalidade de extermínio começaram a ser inibidas e as prefeituras
instaladas realizaram esforços para utilizar a mão-de-obra indígena (Castello Branco,
1950, p. 22; Altmann, 2000, p. 37).
Não é possível saber até que ponto essa ação inibidora teve efeito, pois as
dificuldades pareciam ser muitas: segundo relato de um delegado de polícia do Alto
Tarauacá, afluente direito do Juruá, as correrias constituíam o “esporte predileto de
muitos seringueiros durante os lazeres da safra” (Castello Branco, 1950, p. 22). Segundo
Tastevin, em 1925, os massacres já eram história antiga, mas esta não parece ter sido
uma realidade difundida (Tastevin, 2009 [1925], p. 149). Na época em que fora criado o
território do Acre, uma drástica redução populacional indígena já era observada. E,
mesmo depois de 1920, após a unificação da administração deste território, pouco
parece ter feito o governo para a melhoria das condições de violência na região
(Castello Branco, 1950, p. 13, 24).
Dentre
as
diversas
consequências
das
correrias,
duas
importantes
transformações marcaram a vida dos povos indígenas da região. Refiro-me ao medo e
evitação que se estabeleceram por parte dos índios em relação aos brancos e também à
intensa movimentação espacial e consequente dispersão indígena. Se os grupos se
A colocação é a unidade de produção do seringal, onde reside o seringueiro acompanhado de sua
família em uma pequena clareira aberta na mata (ver a seguir).
17
39
Entre bravos e mansos
deslocavam no espaço, maior ainda parecia ser a movimentação de mulheres índias, as
quais, raptadas, iam viver com seringueiros ou mesmo acompanhar outros
exploradores da região, fornecendo informações e ensinando sua língua (cf. Chandless,
1866, p. 100; Castello Branco, 1950, p. 5; Tastevin, 2009 [1925], p. 145). Uma dessas
mulheres, pertencente ao grupo dos Naua18, capturada no Alto Juruá e batizada com o
nome Petrolina, contou a Guilherme da Cunha Correia, filho do já citado João da
Cunha Correia, que “os náuas não queriam mal aos brancos, mas êles [os brancos]
eram maus e que há muitos anos os seus avós para escapar às suas barbaridades
haviam fugido de um lugar bonito para além das nascentes do rio” (Castello Branco,
1950, p. 6). Tastevin (2009 [1925], p. 145) também ressaltou a relação de medo dos
Kaxinawá em relação aos brancos, mencionando dois episódios expressivos: em um
deles, um jovem kaxinawá do rio Muru teve que ser encorajado pelo chefe de seu
grupo para não ter medo de Tastevin; em outro, o padre observou que, quando um
seringueiro apareceu na entrada da clareira que habitavam, as mulheres kaxinawá
apressaram-se em esconder o peixe moqueado que haviam trazido na véspera.
A necessidade de deslocamento, em fuga dos brancos e também das epidemias,
deixou marcas profundas nas histórias dos povos indígenas da região, dada a sua
intensidade e recorrência, desestruturando a vida de muitos grupos. No início do
século XIX, várias localidades, antigamente ocupadas por indígenas, eram encontradas
desertas devido à expulsão de grupos inteiros e posterior abandono do local pelos
brancos, o que parece ter sido o caso do Iboiassú, afluente do rio Muru (bacia do
Juruá), principal morada dos Kaxinawá antes da chegada dos seringueiros, onde eles
aparentemente encontravam refúgio contra seus “turbulentos vizinhos”, os Kulina
(Tastevin, 2009 [1925], p. 142). Nesta época, os Kaxinawá foram encontrados povoando
principalmente os afluentes da margem direita do Médio Muru, sendo notável a sua
enorme dispersão. Existia apenas uma “tribo” organizada, estabelecida na margem
direita do Humaitá. As demais famílias Kaxinawá estavam espalhadas pelas margens
do Muru, vivendo mais ou menos misturadas com os brancos, nos seringais, sem falar
nas inúmeras índias que viviam com os seringueiros (Tastevin, 2009 [1925], p. 144-145;
cf. também Castello Branco, 1950, p. 22-23).
Para além desses Kaxinawá que foram morar nos seringais, um grupo que
havia sido concentrado em um seringal no rio Envira se mudou para o rio Curanja e
18 Os “Naua” ou “Nawa” formavam um grupo indígena habitante da região e que supostamente havia
sido extinto. Atualmente, remanescentes deste grupo, que habitam o Parque Nacional da Serra do Divisor,
reivindicam o reconhecimento de sua identidade perante o estado brasileiro (cf. ISA, 2013h).
40
Capítulo 1
cabeceiras do rio Purus, no Peru, após uma rebelião contra um seringalista
aproximadamente em meados de 1920 (Kensinger, 1995, p. 1-2). Este grupo buscou
fugir do contexto das frentes extrativistas formadas por seringueiros brasileiros e
caucheiros peruanos. Entretanto, no Curanja, no início da década de 1950, uma
epidemia dizimou parte considerável de adultos do grupo, o que fez com que alguns
retornassem ao Envira. Parte desses que retornaram, lá permaneceram, e outra parte
voltou novamente ao Curanja em fins da década de 50. Mais recentemente, na década
de 70, os Kaxinawá ocupavam uma extensa área formada pelos rios Tarauacá, Envira,
Muru, Jordão e alto Purus no estado do Acre e ao longo dos rios Curanja e alto Purus,
no sudeste do Peru (Aquino, 1977, p. 83-84; Kensinger, 1995, p. 1-3).
Tal configuração espacial dos Kaxinawá reflete as inúmeras migrações
efetuadas pelo grupo, as quais foram certamente intensificadas pelos conflitos
decorrentes da instalação da empresa seringalista na região. Grandes distâncias eram
percorridas, ocasionando igualmente mudanças de uma bacia à outra – do Juruá ao
Purus e vice-versa. A enorme circulação dos Kaxinawá pela região permitiu, por
exemplo, a existência de personagens como Carlito, um Kaxinawá que, habitando o rio
Jordão na década de 1970, impressionou Aquino pelo modo como conhecia os
problemas locais e os inúmeros seringais onde vivia dispersa a população Kaxinawá
(Aquino, 1977, p. 5).
A memória de índios Katukina (Pano), em relatos coletados em 2008 por Góes,
atesta a instabilidade provocada pelas correrias na vida social do grupo, as quais
impediam a existência de chefes, a reprodução do conhecimento, a constituição de
roçados:
Nesse tempo não existia cacique (...) Cacique não organizava nada,
nesse tempo não tinha patrão, não tinha cacique, estavam fazendo
correria, estava tudo espalhado. Como ia ter cacique? Se tivesse
cacique iam matar de bala. Que jeito ia ter cacique? Nesse tempo
(Katukina) não tem nada, não conhece nada, só anda pelo mato
mesmo. Depois que encontrou Manoel de Pinho que vão trabalhar.
Manoel de Pinho ensinava ele (Katukina). Ia pra lá só fazer roçado,
quando roçado [estava] deste tamanho o peruano fez correria nele e
deixaram sem roça: “- Vai embora pra outro canto!” (Txano e Pe’o, em
Góes, 2009, p. 92).
As fugas eram realizadas tanto em relação à ameaça de conflitos armados como
em decorrência da presença de epidemias. Em ambos os casos, os grupos indígenas
costumavam buscar refúgio no mato ou cabeceiras de rios. Os Kulina que, já na década
41
Entre bravos e mansos
de 1970, habitavam a região dos rios Purus e Chandless19, afirmam que, em tempos
antigos, vieram do Juruá, procurando o alto curso dos rios, em fuga dos seringueiros.
A fuga para as regiões que não possuíam grandes seringais ou para longe dos
principais rios foi característica das migrações Kulina e marcante em sua memória: na
época das correrias, fugiam para as cabeceiras dos rios, entrando para os “centros”, e
para áreas onde não havia seringueiras. A distinção entre “centro” e “margem”,
operada por estes índios, diferencia o meio da mata da beira dos rios. Essas categorias
apontam para uma dualidade da ocupação do espaço que nos remetem às alternativas
que se colocavam aos Kulina no contexto das correrias dos séculos XIX e XX: ou
buscavam o “centro” da mata, em fuga das condições de vida proporcionadas pela
empresa seringalista, ou iam para a “margem” dos rios, trabalhar para os patrões
(Viveiros de Castro, 1978, p. 15-16; Altmann, 2000, p. 107-110). Como veremos no
capítulo 2, esta dualidade espacial articula-se também a diferentes tempos e
socialidades.
A busca pelo meio do mato como modo de proteção foi igualmente marcante
para os Yaminawa. Hoje, eles têm sua morada junto dos rios, mas, segundo Calavia
Sáez (2006, p. 45), “o modo antigo não foi esquecido”: alarmado pelas notícias sobre
epidemia de cólera em sua região de habitação, um yaminawa contou ao antropólogo
seu projeto de se retirar com sua família para dentro do mato, “meia hora, duas horas
adentro” por dois ou três anos, até que a epidemia cedesse. Antigamente, por razões de
segurança, os Yaminawa eram habitantes do mato (Calavia Sáez, 2006, p. 45). Foram
habitantes do Alto Muru e de seus afluentes, mas, na década de 1920, teriam se
deslocado para as redondezas do Envira (Tastevin, 2009 [1925], p. 145).
Vemos, assim, como a chegada dos brancos às bacias dos rios Juruá e Purus no
âmbito da instalação da empresa seringalista e suas consequências mais imediatas, a
doença e a guerra, inseriu os grupos indígenas que lá habitavam em um contexto onde
as alternativas resumiam-se à guerra, dispersão e fuga ou ao amansamento, processo
por meio do qual, de um ponto de vista dos colonizadores, os índios tornar-se-iam
mansos o suficiente para poderem trabalhar nos seringais.
Esta região havia sido, na época dos primeiros exploradores, território dos Maxineri, Kanamari e
Katiana (Labre, 1872; Castello Branco, 1950).
19
42
Capítulo 1
O seringal: espaço, tempo e patronagem
O seringal e o trabalho que nele era desenvolvido foram os propiciadores, por
excelência, do difundido processo de amansamento, o qual contava com uma lógica
específica no espaço e no tempo do seringal: o trabalho ali desenvolvido relacionava-se
com um determinado tipo de ocupação territorial, com um controle específico do
tempo e dos suprimentos básicos utilizados na vida cotidiana.
Já na construção de um seringal, seu delineamento espacial é traçado. A
primeira vivenda do barracão é erguida à beira do rio principal e é, então, realizado um
primeiro reconhecimento do território que o rodeia. O sitiante procura um sertanista
ou mateiro, que será o abridor das estradas de seringa na mata. Este, primeiramente,
realiza um exame geral da área para, em seguida, iniciar o trabalho de construção
propriamente dito, o qual é principiado com o assinalamento do primeiro pé de
seringa. Esta é a boca da estrada. A partir deste momento, o mateiro passa a ser auxiliado
por outros trabalhadores os quais o ajudam no processo de identificação de novas
seringas e abertura da mata no caminho de uma a outra. Assim, eles vão de seringueira
em seringueira, chegando até o ponto mais distante, a volta da estrada, para, a seguir,
voltarem fechando a curva irregular que termina no ponto de partida e define a estrada
(Cunha, 2000 [1976], p. 334).
No desenho 1 (abaixo), podemos observar a configuração genérica de um
seringal amazônico, por volta de 1900. As alças em formato de gota representam as
estradas e os números indicam quantas seringueiras compunham cada uma delas. As
cabanas são, por sua vez, indicativo do local de habitação dos seringueiros.
O seringal era composto pela sede, onde se localizava a grande casa do
proprietário, o barracão, rodeada por vários ranchos construídos de maneira precária,
local em que moravam os trabalhadores. O barracão era local de moradia do patrão e
de alguns funcionários necessários para as atividades da sede. Funcionava também
como posto mercantil central de um seringal, gerido pelo patrão, sendo, assim, o local
onde se estocavam as mercadorias adquiridas por meio do comércio nas cidades
próximas e onde a borracha era entregue pelos seringueiros. Além do barracão, um
seringal era composto de várias colocações, cada qual possuindo em média quatro
estradas de seringa. A colocação se constituía na unidade de produção do seringal,
onde habitava o seringueiro acompanhado de sua família em uma pequena clareira
43
Entre bravos e mansos
aberta na mata (Ehrenreich, 1929, p. 298; Aquino, 1977, p. 4; Weinstein, 1993 [1983], p.
31; Altmann, 2000, p. 100-101).
Desenho 1: O seringal
Fonte: Weinstein, 1993 [1983], p. 32.
A coleta do látex era realizada mais intensamente na época seca, entre os meses
de junho e novembro (Chandless, 1866, p. 88). Quando a economia era sobretudo
baseada na borracha, os dias de corte eram fixos, dependendo do número de facas
disponíveis e de estradas. Havendo duas estradas, deviam ser cortadas em dias
alternados (Costa, 2002, p. 222). No início de cada dia de trabalho, o seringueiro
circulava por uma das estradas, parando em cada árvore a fim de fazer-lhe um novo
corte e fixando uma pequena tigela para onde escorria o látex. Seguindo a longa alça de
seringueiras que compunham a estrada, o seringueiro voltava à sua cabana, onde
geralmente comia sua primeira refeição do dia, aproximadamente ao meio-dia. Depois
de uma sesta, e quando o sol não estava mais a pino, refazia o mesmo percurso,
coletando o líquido acumulado nas tigelas e retornava à sua casa para a realização da
44
Capítulo 1
etapa final de seu trabalho diário: a coagulação do látex. Normalmente, eram colocadas
sementes de uricuri queimando sob um cone invertido aberto no alto. A fumaça oleosa
que saía por esta abertura coagulava pouco a pouco o látex que era derramado
lentamente sobre um cabo comprido de madeira o qual ia sendo girado. Ao final, era
formada uma bola preta, rígida, chamada de “pele”, “pela” ou “bola” (Weinstein, 1993
[1983], p. 31; Aquino, 1977, p. 46) – ver desenho 2, foto 1 e foto 2.
No sábado ou domingo, o seringueiro entregava as peles que havia produzido
na semana ou no mês no barracão mais próximo, trocando-as por mercadorias,
conforme os preços do mercado (Weinstein, 1993 [1983], p. 31-32). Estes costumavam
ser exorbitantes, levando os trabalhadores a logo caírem em dívidas das quais não
conseguiam sair facilmente, ou mesmo nunca. Por falta de crédito no barracão, muitas
vezes, os homens tinham que largar o serviço para irem à caça ou à pesca. Além disso,
cada barracão tinha como empregados uma turma de caçadores, em sua maioria
índios. Mas, a comida angariada pelos funcionários do barracão só era ofertada aos
seringueiros por preços também exorbitantes (Ehrenreich, 1929, p. 298). Tastevin assim
descrevia os impedimentos pelos quais passava um seringueiro para se dedicar em
tempo integral à extração do látex na década de 1920 no Muru:
Mas eles não podem fazer isso todo dia: o terreno extremamente
acidentado, o espaço considerável que é preciso percorrer de uma
árvore até a outra, a necessidade de prover a própria comida, os dias
de chuva e a doença obrigam-nos a repousar, a executar outros
trabalhos, e a abandonar a seringueira mais ou menos dois em cada
três dias (2009 [1925], p. 152).
A casa do seringueiro seguia em geral um modelo regionalmente difundido de
habitação, sendo de madeira de paxiúba – palmeira comum nos igapós - e construída
sobre pilotis20 (ver fotos 4, 5, 6 e 7). Com a instalação dos seringais, grande parte dos
grupos indígenas da região passou a habitar este tipo de residência. Antes, habitavam,
sobretudo, grandes malocas comunais, as quais foram geralmente destruídas pela
prática das correrias ou mesmo abandonadas.
Os seringueiros também deviam pagar ao patrão pelo arrendamento das
estradas de seringa que utilizavam (Weinstein, 1993 [1983], p. 31). As estradas eram,
desse modo, importante medida de valor de um seringal. Configuravam, também, um
modo específico de ocupação do espaço, provocando uma dispersão populacional,
Para uma descrição pormenorizada da casa do seringueiro e de seu modo de construção cf. Costa et al.,
2002, p. 233-247.
20
45
Entre bravos e mansos
certamente marcante nos modos de vida da região desses rios, uma vez que os
seringais se estendiam vastamente pelo território (cf. Cunha, 2000 [1976], p. 310, 335).
Os desenhos do seringal relacionavam-se, desse modo, a outros ordenamentos
espaciais e também de tempo, como se pode perceber rapidamente a partir da
descrição da rotina de trabalho de um seringueiro. Medida e valor desses locais, as
estradas faziam parte de uma configuração espacial que distinguia dois termos: a
margem e o centro. A margem referia-se às regiões próximas dos rios maiores e mais
navegáveis, onde as pessoas se dedicavam principalmente aos roçados – constituía-se,
desse modo, em um lugar de atração quando o preço da borracha caía. Era também o
local onde se situava o barracão do patrão. Os centros – que também ficavam à margem,
mas de igarapés menores, onde a navegação só era possível em curtos períodos do ano
– eram os locais onde as árvores de seringa abundavam e onde viviam os seringueiros
em suas colocações (Aquino, 1977, p. 59; Costa et al., 2002, p. 232). O centro do seringal
constituía-se, desse modo, do conjunto de colocações com suas estradas e, uma vez que
as seringueiras encontravam-se dispersas no território, cada colocação ficava distante
em relação às demais. “Assim, a principal característica do processo de extração e
transformação do látex é o isolamento em que fica cada unidade de produção, não só
umas em relação às outras, mas todas em relação à margem do seringal” (Zanoni, 1979,
p. 62).
O trabalho desenvolvido pelos grupos indígenas no contexto da empresa
seringalista poderia ser realizado de duas maneiras distintas: a) estando diretamente
associado ao processo de extração da borracha, b) ou assumindo uma posição mais
marginalizada (fornecendo caça para o barracão ou abrindo estradas de seringa, por
exemplo). Esses dois tipos de inserção variavam tanto de acordo com as oscilações de
preço da borracha como em decorrência da própria história de cada grupo indígena.
Os Kulina, por exemplo, apesar de terem se engajado mais fortemente no trabalho dos
seringais em um momento aparentemente coincidente com o 2º ciclo da borracha,
jamais se identificaram enquanto “seringueiros” tão amplamente como os Kaxinawá.
Esta não identificação está relacionada a um tipo de participação mais marginal na
atividade seringalista (Viveiros de Castro, 1978, p. 15-16; Altmann, 2000, p. 37, 102).
Este também foi o caso dos Paumari, que, no geral, exerceram atividades relacionadas
aos seringais, mas não diretamente extrativas (ver cap. 3). Tal fato, porém, não
implicava em um envolvimento menor em relações de patronagem, como será possível
perceber ao longo desta dissertação.
46
Capítulo 1
Quando não completamente inseridos no trabalho de extração do látex, os
grupos indígenas acabavam por se dedicar a outras atividades relacionadas ao
seringal, como a localização das árvores de seringa e abertura das estradas; o comércio
de peles; caça e pesca (cf. Ehrenreich, 1929, p. 298; Viveiros de Castro, 1978, p. 16;
Altmann, 2000, p. 37). Independentemente do nível de envolvimento com as atividades
do seringal, os grupos indígenas, de maneira geral, não abandonaram a prática da
agricultura ou de outras atividades de subsistência. Esta se constituía como uma das
diferenças do trabalho habitual de “caboclos” e “cariús”21 - “brasileiros da área que
mantinham vinculação com a extração da borracha” –, pois a maioria destes, no
apogeu da borracha, dedicava-se exclusivamente às atividades extrativas (Aquino,
1977, p. 45, 73). Mas, afora os produtos de origem vegetal, os índios dependiam
enormemente dos produtos do barracão, assim como os seringueiros nordestinos: a
munição para a caça, sal, açúcar, roupas, tabaco, remédios, terçado, machado etc. eram
ali adquiridos (cf. Aquino, 1977, p. 98-99; Viveiros de Castro, 1978, p. 28).
Tanto a dependência do barracão quanto o endividamento constante eram
fundamentais para o funcionamento do sistema extrativo da borracha, de aviamento, e
para o processo de amansamento, pois mantinham índios e nordestinos no seringal,
onde continuavam a cumprir seu trabalho22. Os modos de exploração da força de
trabalho eram inúmeros: iam desde os altos preços dos produtos e baixos preços pagos
na borracha produzida até aos registros inverídicos realizados pelos patrões em suas
cadernetas (Aquino, 1977, p. 47). Nesse sistema:
O produtor direto, o seringueiro, recebe de seu patrão tudo aquilo que
necessita para empreender a produção de “pelas de borracha”, desde
os instrumentos de trabalho (facas de seringa, baldes, tigelas, bacia, o
terçado, o machado etc), até roupas, “estivas” (o sal, o querosene, o
sab[ão,] a munição etc), alimentos e armas. O fornecimento destas
manufaturas é feito através do empenho compulsório da totalidade da
produção ao seringalista. Novo fornecimento se faz e assim o processo
continua, sem que haja a mínima circulação de dinheiro (Aquino,
1977, p. 46).
Os Kulina e os Kaxinawá se referem aos brancos como cariú. O termo paumari equivalente é jara, que
encontra provável ressonância no nome “Jarado”, como se chamava o primeiro branco que os Kanamari
contam ter conhecido. Ainda assim, os Kanamari referem-se aos brancos pelo termo kariwa, semelhante aos
utilizados pelos Kulina e Kaxinawá (ver cap. 2 e 3).
22 Taussig (1993 [1987], p. 81, 85) intitulou tal realidade no Putumayo de “instituição do endividamento
econômico”, atribuindo à “dívida” um mágico realismo que era “essencial não só à organização de mãode-obra durante o ciclo da borracha no Putumayo, mas também ao seu terror”.
21
47
Entre bravos e mansos
A partir do relato de um barranqueiro kaxinawá que vivia nas proximidades da
cidade de Tarauacá na década de 70, já “liberto” do trabalho nos seringais, pode-se
perceber a importância que a dívida adquiria no contexto de sujeição aos patrões:
É melhor viver de serviço de roçado, na agricultura, dando dia de
serviço pra um e pra outro do que trabalhá na seringa. Trabalhá na
seringa é trabalhá pros patrão. O freguês é sujeito, vive devendo pros
patrão. Na agricultura não. Vive liberto. Vendi pra quem quiser. Na
seringa não, é tudo sujeito é tudo no cabresto, devendo pros patrão.
Eu vivo bem aqui nesse barranco graças a Deus. Quer dizer eu não
tenho nada. Mas não devo pra ninguém. Tô liberto. Tudo qui nós
planta é pra nossa família. Agora trabalho na seringa é só mesmo pro
patrão, patrão roubou muito aqui. Mercadoria vendi caro. Borracha
ele paga pouco. Ainda tira a tara23, a renda. Nós aqui não sabe de
nada. Tudo é de acordo cum ele. Trabalho na seringa é um trabalho
pro patrão. Seringueiro aqui é tudo devendo (Aquino, 1977, p. 57-58).
Existia, ainda, uma série de regras que reforçavam a condição de subordinação
dos seringueiros, além de uma aliança entre patrões, com a previsão de punição para
aqueles que não seguissem o acordo estabelecido que era o de não aceitarem “uns os
empregados de outros, antes de saldadas as dívidas” (cf. Cunha, 2000[1976], p. 129).
Desse modo, os “Regulamentos” dos seringais – mencionados por Euclides da Cunha
na década de 1900 – determinavam que qualquer freguês não poderia se retirar de um
estabelecimento sem que tivesse liquidado todas as suas dívidas. Além disso,
estipulavam multas para trabalhadores que comprassem em barracões de outros
patrões e para procedimentos errados adotados no corte das seringueiras (Cunha, 2000
[1976], p. 128-129). Estes “Regulamentos”, apesar de terem sofrido modificações, ainda
vigoravam na região do Juruá na década de 1970 (cf. Aquino, 1977, p. 47-48)24.
Em momentos de crise, algumas dessas regras ganhavam maleabilidade como,
por exemplo, o imperativo de vender as “pelas” produzidas apenas para seu próprio
patrão, mesmo porque este, muitas vezes, não contava com mercadorias. Sobretudo
nestas épocas, os seringueiros comerciavam também com os “regatões” ou
“marreteiros”, os quais eram “aviados” pelos comerciantes de cidades próximas
(Aquino, 1977, p. 51). Estes eram comerciantes móveis que também realizavam a troca
de produtos sem que houvesse a presença do dinheiro em espécie; eram, igualmente,
A tara correspondia a aproximadamente 10% do peso da borracha, a qual era retirada do valor a ser
pago pela produção do seringueiro, uma vez que, conforme argumentavam os patrões, a borracha diminui
de peso quando seca (Aquino, 1977, p. 59).
24 Cardoso de Oliveira também observou, na região do Solimões, em fins da década de 1950 e início da
década de 1960, “o conhecido procedimento patronal de estabelecerem entre si a regra de jamais
admitirem, em suas turmas de trabalho, fugitivos de outras emprêsas” (Cardoso de Oliveira, 1972 [1964],
p. 112).
23
48
Capítulo 1
reconhecidos por índios e demais seringueiros como “patrões” (cf. Viveiros de Castro,
1978, p. 3). Como explica Weinstein, o “patrão” do seringueiro poderia ser:
ou o grande proprietário da terra (seringalista) que “arrendava” as
estradas ao seringueiro, mediante uma porcentagem da borracha
extraída, ou o comerciante local [...] que controlava informalmente a
produção e o comércio da borracha na área, negociando a produção
dos seringueiros e mantendo-os abastecidos de ferramentas, víveres e
quaisquer extravagâncias a que se pudessem dar ao luxo (Weinstein,
1993 [1983], p. 31-32).
Outros personagens surgiram no contexto da crise da década de 1950 e foram
também definidos regionalmente na categoria dos patrões: eram eles o “arrendatário”
ou “patrão-chefe” e o “gerente-aviado”. Este foi o momento em que alguns
proprietários arrendavam seus seringais a terceiros exigindo como remuneração o
valor pago pelos seringueiros em decorrência do uso das estradas de seringa. Os
“patrões-chefe”, por arrendarem um grande número de seringais, contratavam
“gerentes-aviados” responsáveis por tomar conta de cada propriedade e pagar aos
seringueiros, em mercadorias, a produção de borracha que recebiam deles (Aquino,
1977, p. 60).
Independente de serem os patrões proprietários, arrendatários, gerentes ou
marreteiros, as relações estabelecidas com os patrões foram marcantes para os grupos
indígenas da região. Como veremos nos próximos capítulos, todos esses personagens
pareciam ser sempre referidos indiscriminadamente como “patrões” pelos índios. Os
Kaxinawá, segundo Aquino (1977, p. 6), “não concebia[m] um mundo onde não
existisse patrão”. Carlito – um Kaxinawá que o acompanhara durante a realização de
survey encomendado pela Funai na região onde vivia e trabalhava este grupo indígena
– considerava Aquino como um patrão. Apesar dos esforços realizados pelo
antropólogo em tratar Carlito como um amigo, este insistia em marcar entre eles
distância social semelhante a que havia entre um empregado e seu patrão (Aquino,
1977, p. 6). Bonilla (2007) também notara atitude semelhante entre os Paumari: estes
entendiam seus pedidos como ordem, colocavam-se constantemente em uma posição
de vítima e encaravam inúmeras relações sociais em termos comerciais. Por sua vez, os
Kulina do Alto Purus viram na Funai “um possível novo e poderoso patrão, que
forneceria (por aviamento, segundo o modelo clássico do seringal) os bens
indispensáveis à [sua] sociedade”. A Funai seria “um fiscal, que poria cobro aos abusos
dos velhos patrões” e que “vinha finalmente dar conta da miséria dos Kulina, da
49
Entre bravos e mansos
exploração dos patrões, da falta de remédios e de escola” (Viveiros de Castro, 1978, p.
2).
Os Kulina, quando já estavam engajados no trabalho extrativista, realizaram
migrações em decorrência da “dinâmica da patronagem”: muitos se movimentaram do
Juruá ao Purus em busca de menores preços das mercadorias, de “serviço” e de patrões
“melhores” (Viveiros de Castro, 1978, p. 16). A distinção entre bons e maus patrões
estava presente não apenas entre os Kulina, mas de maneira difundida na região dos
rios Juruá e Purus (cf. Aquino, 1977; Bonilla, 2007; Costa, 2007, p. 102; Iglesias, 2008, p.
208). De uma perspectiva kaxinawá, bons patrões eram aqueles que não açoitavam
seus fregueses, levavam os doentes para serem tratados nos hospitais, ofereciam
alimentos àqueles que visitavam seu barracão, respeitavam os chefes indígenas
(Aquino, 1977, p. 103; Iglesias, 2010, p. 358). Estes chefes indígenas eram conhecidos
regionalmente pelo nome “tuxaua” e exerciam funções de mediadores entre os índios e
os regionais, organizando, tanto o trabalho na empresa seringalista como as
empreitadas que tiveram início com o advento dos desmatamentos para instalação de
fazendas (Aquino, 1977, p. 3; Viveiros de Castro, 1978, p. 83)25.
Outra característica fundamental de um bom patrão que aparece comumente
aos quatro grupos indígenas abordados nesta dissertação refere-se à posse de
mercadorias. Um bom patrão é aquele que tem bens para trocar pelo serviço de seus
empregados. Hoje em dia, por vezes, os Paumari lembram do “bom patrão generoso”
que “aviava sem limite, mas que também cuidava dos Paumari „como de seus próprios
filhos’, compartilhando com eles sua comida, quando vinham comerciar, dando-lhes
roupas usadas e algum antitérmico quando estavam com febre” (Bonilla, 2005, p. 46).
Weber (2006) também se refere à importância das mercadorias para a qualificação de
um patrão entre os Kaxinawá:
O “bom patrão”, como se percebe na fala da Velha Chica, era aquele
que tinha e fornecia mercadorias. Dona Bibita me contou de um
patrão que não era ruim, mas enfatizou que na sua cantina “não tinha
nada”, ou seja, ele não tinha nada para oferecer e por isso não era
patrão que “prestasse”. Velho Zequinha, que não vê com bons olhos o
tempo dos patrões, disse-me assim: “- Trabalhei pros brancos a vida
inteira e nunca ganhei nada deles”(Weber, 2006, p. 73-74).
Velha Chica contou ainda a Weber que os Kaxinawá de sua geração tinham o
costume de se mudar atrás de um bom patrão (Weber, 2006, p. 74). A distinção entre
A existência do tuxaua não impedia que os índios pudessem estabelecer contratos de trabalho
individuais com os patrões (cf. Viveiros de Castro, 1978, p. 27; Aquino, 1977).
25
50
Capítulo 1
patrões bons e ruins assumia sua importância em um período em que escolhas
deveriam ser feitas em busca de melhores condições de vida no contexto dominado
pela existência de seringais. Como vimos anteriormente neste capítulo, no relato do
barranqueiro kaxinawá, a distinção entre patrões bons e ruins não extinguia reflexões
indígenas igualmente presentes segundo as quais todo trabalho para o patrão é
“sujeito”, submetendo o seringueiro a dívidas eternas.
Em tempos mais recentes, observamos os grupos indígenas desta região
buscando mediar suas relações com os patrões (ver cap. 2 e 3). Os quatro grupos
abordados nesta dissertação apresentaram, em alguma circunstância, o desejo de
aprender a ler e contar com a finalidade de melhor poder mediar sua relação com os
brancos. Os Kulina do Alto Purus desejavam, na década de 70, limitar os abusos dos
patrões e, para tal, sentiam grande necessidade de aprender a ler e a contar.
Apresentavam um “fascínio quase ritual pela escola” e esperavam ansiosamente a
chegada da Funai, na expectativa de que ela poria “cobro à exploração dos barracões”
(Viveiros de Castro, 1978, p. 86-87). O tempo atual dos Paumari trouxe, como uma de
suas importantes marcas, a aprendizagem da escrita e da matemática, de maneira
análoga ao tempo dos direitos dos kaxinawá (ver cap. 3). E, como nos relata Reesink
(1993, p. 469), os Kanamari apresentam uma “ansiedade e vontade extraordinárias
atuais de aprender matemática e ler e escrever, particularmente em português,
exprimem uma fé em si mesmos para poder superar as dificuldades por que passam”.
É por meio de tal aprendizagem que os Kanamari consideram a possibilidade de ser
revertida a “posição tensional e ambivalente dos kariwa [brancos]”.
Imagens de selvageria e civilização
O cenário indígena atual dos rios Juruá e Purus é marcado pela distinção entre
“bravos” e “mansos”, realizada tanto pelos brancos como pelos povos indígenas. Essa
polaridade classificatória aparece igualmente em regiões próximas, como é o caso da
Amazônia Ocidental peruana (cf. Gow, 1991; 1993; Taylor, 2007). Mas, se esses termos
estão sempre presentes, eles não podem ser definidos de maneira estática, uma vez que
operam distinções relacionais entre grupos, tempos e espaços, como teremos
oportunidade de analisar ao longo desta dissertação.
Como vimos neste capítulo, a diferenciação entre “bravos” e “mansos”, “não
civilizados” e “civilizados” foi intensamente articulada pelos brancos que ocuparam a
51
Entre bravos e mansos
região dos rios Juruá e Purus com fins de sua exploração econômica. As correrias e a
inserção dos grupos indígenas no trabalho nos seringais dependiam a) ou da
eliminação dos grupos de “bravos”, “não civilizados”, “selvagens”, que eram acusados
de impedir o trabalho e a produtividade pacífica; b) ou do amansamento destes
grupos, tornando-os aptos ao trabalho. A diferença entre brabos e mansos, do ponto de
vista dos viajantes e seringalistas, estava, assim, diretamente relacionada ao grau de
civilização atribuído a determinado grupo indígena. Desta perspectiva, a braveza era
vista negativamente, como um empecilho. Outros termos também eram contrapostos,
como por exemplo, de um lado “silvícolas”, “irrequietos”, “turbulentos” e, de outro,
“civilizados”, “pacíficos”, “amansados”. A distinção entre “brabos” e “mansos”
também era aplicada aos nordestinos que migravam para a região. A passagem de
“brabo” a “manso”, nos termos de Euclides da Cunha, implicava em uma
transformação que levava os “cearenses aventurosos” da esperança de fazer fortuna à
apatia “de um vencido ante a realidade inexorável” (2000 [1976], p. 335). Implicava,
desse modo, em uma aprendizagem do que seria a vida nos seringais – sendo o
“brabo” um novato.
Essas caracterizações pareciam oscilar em algumas circunstâncias, como no caso
dos Yaminawa, que, em alguns momentos, aparecem na literatura como brabos e, em
outros, como civilizados ou mansos. Castello Branco (1950, p. 29) afirmou serem os
Yaminawa a “tribo” mais “brava” do vale do Juruá, além de serem velhos inimigos dos
Kaxinawá. Por outro lado, o padre Tastevin classificou-os, ao lado dos Kaxinawá e
Katukina, na categoria “índios mansos” do Tarauacá, bacia do Juruá (2009 [1926], p.
187). Mas, se houve variações no caso Yaminawa, com os Kaxinawá, Kulina, Kanamari
e Paumari as posições ocupadas na literatura aparecem de modo mais constante. Os
Kaxinawá, como acima mencionado, foram classificados por Tastevin (2009 [1926], p.
187) na categoria dos índios mansos do Alto Tarauacá. Eram notáveis por serem
numerosos, figurando como o mais importante “clã” dos auto-denominados “Hunikui”, falantes de línguas Pano, na margem direita do Muru, afluente do Tarauacá (2009
[1925], p. 144). O delegado de polícia do Alto Tarauacá (nomeado em 1905), em sua
missão de reprimir as correrias que se faziam aos índios na região, conheceu ou teve
informações sobre mais de 20 grupos indígenas, dentre ao quais, os Kaxinawá
destacavam-se por serem os mais numerosos da vasta bacia do Juruá, além de
possuírem “índole laboriosa e pacífica” (Castello Branco, 1950, p. 23).
52
Capítulo 1
Já os Kulina eram tidos como os “turbulentos vizinhos” dos Kaxinawá,
habitando a margem esquerda do Muru, sendo seus inimigos. Eram considerados “a
mais brava” tribo do Tarauacá, sendo do interior, hostis, muito pouco trabalhadores e
demasiadamente turbulentos (Tastevin, 2009 [1925], p. 142, 147; Chandless, 1869, p.
300). Segundo Tastevin, os Kulina igualmente não estabeleciam uma relação muito
adequada com os Kanamari, agarrando-se a eles “como a uma presa valiosa” (Tastevin,
2009 [1925], p. 148). Em diversas localidades, era possível encontrá-los em contato e
luta: no Baixo e Médio Juruá; no Baixo Tarauacá; no Gregório e no Eiru (Tastevin, 2009
[1925], p. 148). Os Kanamari eram, assim como os Kaxinawá, vistos como muito
pacíficos, além de já usarem roupas na época em que os primeiros exploradores
chegaram à região (Castello Branco, 1950, p. 9; Tastevin, 2009 [1925], p. 148).
Os Paumari são também descritos vestindo roupas já em meados do século XIX,
além de possuírem muitos artigos europeus, certamente resultantes das trocas
proporcionadas pelo comércio com os brancos (Chandless, 1866; Ehrenreich, 1929).
Aparecem, na literatura, como muito pacíficos: “mortes por violência, e mesmo
ferimentos ou golpes severos são quase desconhecidos dentre eles” (Chandless, 1866,
p. 93 – tradução minha). Já em 1866, trabalhavam na coleta do látex, apesar de
“preguiçosamente”, nos termos de Chandless, mas compreendendo seu valor
comercial. Faziam parte, inclusive, da tripulação de Chandless (Chandless, 1866, p. 93,
104).
O furto se constituía como um dos elementos qualificadores da selvageria.
Tastevin estabelecia claramente a diferença ao distinguir o comportamento dos
Kaxinawá daquele dos Kulina:
O Kachinaua é trabalhador. Os seus campos de milho, de amendoim e
de mandioca estendem-se até onde alcança a vista, semeados aqui e
ali de tufos de bananeiras e de taiobas. Ele está sempre bem nutrido.
Antes da chegada dos civilizados, quando os Kurina o haviam
despojado do fruto do seu trabalho, ele passava longos dias de miséria
e se via constrangido de mendigar entre seus parentes, que os
bandidos haviam poupado (Tastevin, 2009 [1925], p. 166).
Os Kulina, exemplo de preguiça em relação ao trabalho e de “turbulência”, em
assalto aos Kaxinawá, “tiravam sem piedade tudo o que lhes caísse nas mãos, isto não
sem matar os recalcitrantes” (Tastevin, 2009 [1925], p. 147). O furto era, assim, visto
como uma prática selvagem que não respeitava as regras do trabalho e da propriedade.
Entretanto, em outros momentos, a prática do furto não aparecia como aquela que
53
Entre bravos e mansos
diferenciava os índios entre si, mas simplesmente “índios” de “brancos”, aqueles
“selvagens”, estes “civilizados”. O fato de que aqueles não consideravam “furto” a
retirada de objetos da posse de outros, tanto que o faziam inclusive na presença dos
donos, constituía-se em recorrente fonte de desentendimento entre “brancos” e
“índios” (Castello Branco, 1950, p. 13). Assim é que Tastevin mostrava seu espanto:
Será preciso se espantar agora, depois de todos esses exemplos, que
constituem o fundo da doutrina dos Kachinaua, que estes tenham se
tornado astutos e ladrões para adquirir os objetos cobiçados que os
seringueiros não podiam lhes dar? (Tastevin, 2009 [1925], p. 163).
Assim, se em algumas circunstâncias, os grupos indígenas eram diferenciados
entre bravos e mansos, em outras, todos eram “selvagens”. De um ponto de vista
externo ao dos próprios grupos indígenas, todos os “caboclos” poderiam ser
agrupados na categoria de “brabos”. O amansamento – categoria que traduzia o
processo de passagem de “brabo” a “manso” – parecia não funcionar muito com os
caboclos. O que se pode depreender de assertivas coletadas por Aquino (1977, p. 7576), como as seguintes: “caboclo é bicho desconfiado, caboclo nunca amansa,
acostuma” (colonheiro de Feijó); “caboclo é que nem jumento, deixa de ser brabo mas
não amansa direito” (seringueiro do rio Envira); ou ainda “eu nunca vi caboclo se
perder no meio do mato. Caboclo é meio brabo e meio manso” (regatão do rio Envira).
Assim, de um ponto de vista dos colonizadores, podemos concluir que os
“bravos” eram aqueles que não se prestavam a um trabalho pacífico e respeitador da
propriedade privada de acordo com a lógica ocidental de produtividade. Eles eram
associados com imagens ocidentais de selvageria, sendo sobretudo caçadores;
andavam nus, valiam-se do furto e da guerra. Por outro lado, os “mansos” eram os
“civilizados”, cristianizados, que sabiam trabalhar para os brancos e se vestirem; eram
agricultores e pacíficos.
Curiosamente, nos tempos atuais, diversos grupos indígenas habitantes da
região dos rios Juruá e Purus valem-se das imagens de selvageria e civilização que
foram primeiramente utilizadas pelos colonizadores. Os Kanamari, por exemplo,
veem-se como mansos e pacíficos em relação aos seus rivais Kulina e Kaxinawá.
Afirmam que a iniciativa de se fazer guerra era sempre dos Kaxinawá em relação a eles
(cf. Carvalho, 2002, p. 93). Defendem também, no que se refere aos Kulina, que estes
têm coragem de matar, enquanto os Kanamari têm apenas a coragem de brigar
(Carvalho, 2002, p. 91). Esta auto-imagem kanamari parece ser uma constante em sua
54
Capítulo 1
história, guardando correlatos com a maneira como os Paumari veem a si próprios (ver
cap. 3). Já os Kulina, em relação a si mesmos, realizam uma reflexão a respeito da
passagem de “bravos” a “mansos”, a qual afirmam ter percorrido: atualmente, dizem
ser “mansos”, tendo sido, no passado, “brabos”. Esta passagem opera uma
transformação fundamental entre o tempo dos antigos e o tempo atual kulina (ver capítulo
2).
Ao apontar para essas coincidências, quero sugerir um processo de confluência
entre imagens ocidentais de selvageria e civilização – expresso, por exemplo, na
oposição entre “bravos” e “mansos” - e processos de subjetivação e transformação
indígenas. Não se trata de abordar questões de perdas ou ganhos culturais, mas de
perceber trocas e relações que pautavam processos de transformação em curso. Como
afirmou Gow, seguindo Taussig (1987), os discursos coloniais são eles mesmos um
“presente de segunda mão” para os colonizados, algo a ser reformulado e remodelado
na elaboração de complexos discursos a respeito de identidades locais (Gow, 1993, p.
342). Nos próximos capítulos, teremos a oportunidade de visualizar algumas dessas
complexas classificações operadas também por meio dos polos opostos de selvageria e
civilização.
No capítulo 3, será possível observar como os Paumari colocam-se
constantemente em uma posição de presa e vítima nas relações com os “outros” e que
esta postura está diretamente associada com a marcante presença dos “patrões” em sua
história. Por outro lado, os Kaxiawá afirmam-se como “mansos” no mundo atual e, de
sua perspectiva, encontram-se ao meio de um contínuo espacial marcado pelo rio. Pois,
“rio abaixo”, na cidade, vivem os Nawa (brancos, estrangeiros) e “rio acima”, nas
cabeceiras do rio, vivem os “Brabos”. O espaço da humanidade “própria” ou
“verdadeira” é aquele do meio, onde vivem os atualmente “mansos” Kaxinawá.
No capítulo 2, que se segue, será abordada a história dos Kulina e Kanamari,
grupos que, em determinado momento, estabeleceram um contato próximo entre si. Os
Kanamari, como vimos acima, afirmam-se enquanto um povo avesso à guerra, sendo
inimigos dos “bravos” (noknim) Kaxinawá (cf. Costa, 2007, p. 233). Os Kulina, de
maneira análoga aos Kaxinawá, afirmam-se “mansos” no tempo presente, em contraste
com um tempo anterior em que foram “bravos”. A história apresentada neste primeiro
capítulo – na qual a presença dos brancos e particularmente da empresa seringalista na
região dos rios Juruá e Purus se fez marcante – encontra-se, portanto, diretamente
55
Entre bravos e mansos
associada a noções de tempo, espaço e socialidades que serão apresentadas nos
próximos capítulos.
56
57
Desenho 2: Defumação da borracha
Fonte: Reis, 1953, p. 92.
Foto 1: Pelas de borracha
Fonte: Reis, 1953, p. 129.
Foto 2: Borracha às margens do Guaporé
Fonte: Lima, 1973 apud Andrade, 2004, p. 84.
59
Foto 3: Índio kulina coletando látex
Fonte: ISA, 2012a; Foto de Heine Herner (1986).
ó
Histórias kulina e kanamari:
seus tempos e espaços de transformação
No capítulo anterior, abordei a história da ocupação branca da bacia do JuruáPurus com fins econômicos – sobretudo no que toca à extração do látex – e de como a
presença desses novos habitantes esteve relacionada a uma série de transformações na
vida dos grupos indígenas da região. Essa narrativa nos servirá como um pano de
fundo para os capítulos dois e três: neles, deter-me-ei mais pausadamente sobre cada
um dos quatro grupos abordados nessa dissertação, buscando compreender a
percepção que eles têm de sua história – como dividem seus tempos; quais as
características de cada era; quais aspectos marcam, para os índios, a diferença entre
elas.
Neste capítulo, realizarei uma análise comparativa dos tempos que marcam as
histórias dos Kulina e Kanamari. A escolha destes dois grupos tem como base sua
proximidade, a qual permite, como ficará claro a seguir, na ausência de alguns dados,
que as histórias de ambos os grupos sejam complementares, em alguma medida, no
entendimento que podemos extrair delas. A importância espacial do subgrupo e o
caráter fundamental do chefe para a continuidade física, social e territorial do grupo
são pontos de contato que aparecem de maneira destacada, como veremos a seguir.
Estes aspectos são indicadores importantes das transformações operadas ao longo dos
tempos kulina e kanamari, permitindo uma reflexão a respeito da maneira pela qual
mudança, espaço e socialidade podem estar articulados. Desse modo, na abordagem
desenvolvida no presente capítulo, serão enfatizados aspectos mais propriamente
sociológicos que estão implicados em uma concepção histórica específica marcada pela
existência de “eras” ou “tempos”. Veremos aqui como cada novo tempo é marcado por
mudanças espaciais significativas e pela emergência de uma nova possibilidade de
existência.
61
Histórias kulina e kanamari
Vizinhança ambígua
As relações de convivência entre os Kulina e Kanamari foram historicamente
registradas pelos seus caracteres de proximidade, ambiguidade e rivalidade. Tastevin
(1919), em viagens realizadas pelo Juruá, nos anos de 1908 a 1914, observou que os
Kanamari que habitavam a margem direita do Juruá eram antigos inimigos dos Kulina,
moradores, naquela época, do interior da floresta, entre as cabeceiras do rio Tapauá
(bacia do Purus) e o rio Juruá. Os Kulina seriam protegidos contra os Kanamari dos
rios Tefé e Juruá pelo “digno e generoso” coronel Contreiras, proprietário de diversos
seringais da margem direita do Juruá e de outras localidades (Tastevin, 1919, p. 146,
148). Em publicação posterior, Tastevin (2009 [1925], p. 148) nos remonta a uma relação
muito estreita e notória que se estabelecia entre esses dois grupos. Segundo ele, “os
Kurina se agarra[vam] a eles [aos Kanamari] como a uma presa valiosa”. Em todo
lugar, eram encontrados “em contato e em luta: no Baixo e no Médio Juruá; no Baixo
Tarauacá; no Gregório e no Eru”, sendo que os Kulina já haviam praticamente
desalojado os Kanamari da margem direita do Juruá. Tastevin inclusive sugere a
antiguidade das relações entre esses Kanamari da margem direita do Juruá e os Kulina
(autodenominados Madiha), indicando que o próprio nome “Kanamari” atribuído aos
autodenominados Binh dyapá (mutuns), Putchu dyapá (japós) etc. – subgrupos
kanamari, como veremos adiante – seria uma junção de duas palavras heteróclitas,
uma de origem katukina e outra de origem kulina. A primeira kana que significava
“arara azul” e a segunda mari, madi ou madiha, significando “os homens”. Do que se
conclui que o título “Kanamari” seria uma nomeação kulina atribuída aos seus
vizinhos históricos.
Tal vizinhança, proximidade e rivalidade ainda se faz presente entre esses
grupos, bem como podem ser observadas entre eles diversas práticas e mitos
semelhantes. Dentre as práticas comuns, apenas para fornecer alguns exemplos,
poderia citar a) a utilização do veneno do sapo kampô como substância curativa e b) a
concepção do enfeitiçamento por meio da inserção de projéteis-pedra no corpo da
vítima. Tanto os Kulina como os Kanamari, ao aquecerem o sapo kampô vivo, retiram
dele uma substância viscosa, que é liberada de sua pele e guardada. Tal substância é
utilizada em pequenas cicatrizes produzidas sobre o corpo de uma pessoa que,
geralmente, está com azar na caça. Acredita-se que sua má sorte (“panema”) seja
resultante de um princípio ruim que se apoderou de seu corpo, devendo ser retirado
62
Capítulo 2
por meio do referido procedimento curativo (Cf. Tastevin, 2009 [1925], p. 157-158;
Pollock, 1985, p. 49-50). Já no que se refere aos casos de enfeitiçamento, tanto os Kulina
como os Kanamari o concebem como um processo em que o feiticeiro lança projéteis
que se concretizam em “pedras” no corpo da vítima. Estas devem ser retiradas pelo
xamã, o qual se vale do rapé como uma substância fundamental no procedimento de
cura (cf. Tastevin, 1919, p. 150; Pollock, 1985).
Tais práticas podem também ser observadas em outros povos da região de
maneira mais difundida, constituindo-se enquanto elementos na constituição de um
sistema regional (cf. Tastevin, 2009 [1925], p. 157-158; Martins, 2006; Lagrou, 2007, p.
525-527, para a utilização do veneno do sapo e cf. Melatti, 2011, p. 4-5, para a prática
xamânica). Entretanto, outras características aproximam os Kulina e os Kanamari
especificamente: refiro-me às inúmeras semelhanças na organização social em
subgrupos desses dois povos; à enorme proximidade entre as histórias de criação
narradas tanto pelos Kulina como pelos Kanamari - nelas, são os mesmos heróis
Tamaco e Quira que dão origem ao mundo; e aos empréstimos linguísticos que foram
efetuados ao longo da história, como é o caso dos próprios nomes dos heróis criadores.
Os dois primeiros pontos de aproximação – os subgrupos e os complexos míticos de
origem do mundo - serão abordados ao longo deste capítulo mais detidamente. Como
observou Costa (2007, p. 92):
os dois povos são muito similares e sua história revela períodos de
contato intenso, embora ambivalente. [...] os Kanamari consideram os
subgrupos dos Kulina perfeitamente análogos aos deles, mas a
similaridade entre os dois povos não se resume a isso. Os Kulina
parecem ter aprendido a consumir caiçuma fermentada dos Kanamari
(Lorrain 1994, 132-3), chamando-a de coidsa, termo provavelmente
derivado da palavra Kanamari para caiçuma, koya. Os Kulina chamam
um ritual notavelmente similar ao Hori por esse termo, „Coidsa’ (ibid.,
53-72) [ver sobre esses rituais adiante], e outros rituais Kulina também
são comparáveis, quando não congruentes, àqueles dos Kanamari.
Ambos compartilham um complexo xamânico idêntico, e os Kanamari
admiram os xamãs Kulina ao mesmo tempo que os temem como
feiticeiros. Isso cria uma situação em que alguns Kanamari
costumavam buscar tratamento entre os xamãs Kulina, mas em que as
acusações de feitiçaria quase sempre se viravam contra eles. Os
feiticeiros Kulina eram particularmente habilidosos ao aproximaremse das aldeias Kanamari para provocar danos inserindo projéteis
xamânicos nas pessoas, e até hoje os Kulina são sempre os suspeitos
principais quando a feitiçaria ameaça os Kanamari.
Ainda hoje, as relações dos Kanamari com os Kulina parecem constituir um
caso particular de “amor e ódio”, de atração entre opostos mutuamente alimentada;
63
Histórias kulina e kanamari
pelo menos, é como “opostos” que os Kanamari dizem visualizar os Kulina (Carvalho,
2002, p.91). Eles consideram os Kulina traiçoeiros e avaros, ao passo que os Kulina
consideram os Kanamari toscos e iletrados (Costa, 2007, p. 93; Lorrain, 1994, p. 133
apud Costa, 2007, p. 93)1.
Do que se depreende do relato de Carvalho (2002, p. 91) sobre a relação entre
esses grupos indígenas há, de fato e permanentemente, uma tensão entre proximidade
e rivalidade, desconfiança e respeito. À distância, os Kanamari recobrem os Kulina de
atributos negativos, tais quais “bicho bruto”, “atrapalhação do Amazonas”, ressaltando
o caráter traiçoeiro dos Kulina. De um ponto de vista kanamari, os Kulina agiram de
modo traiçoeiro nos diversos confrontos que tiveram entre si, ao passo que os
Kanamari seriam valentes, pois “os Kulina têm coragem de matar e os Kanamari têm
coragem de brigar”. Mas, há também situações de convivência entre eles. Em presença,
nota-se certa neutralização ou contenção de hostilidade, que um observador externo
pode interpretar como resultado da presença de “algum temor difuso e generalizado”,
“de uma estratégia interacional ditada pelas circunstâncias, [...] uma cumplicidade
disfarçada” ou ainda como “uma emulação de oponentes dentro de um mesmo campo
de ação cultural” (Carvalho, 2002, p. 91).
A
mesma
relação
de
proximidade
e
desconfiança
é
expressa
nos
intercasamentos, os quais são mal vistos pelos Kanamari. Aliás, segundo um homem
kanamari, “Kanamari nunca deu mulher pra casar com Kulina” e vice-versa (Carvalho,
2002, p. 91, grifos da autora). Entretanto, é observada a ocorrência de casamentos entre
pessoas desses dois grupos, conforme relato deste mesmo homem, o qual contou a
Carvalho (2002, p. 91) o caso de uma cunhada sua que foi casada com um Kulina, mas
sem aprovação dos parentes. Ela teria fugido para viver entre os Kulina por um
período de dois anos, quando voltara de lá “toda retalhada”, vítima de esfaqueamento
de seu marido, movido pelos ciúmes que sentira dos irmãos da esposa. Ela não ouvira
os conselhos de seus parentes, os quais lhe alertaram para o fato de que os Kulina eram
“malvados” e não se davam com os Kanamari. Apesar deste desfecho que confirmava
a opinião dos Kanamari sobre o caráter traiçoeiro dos Kulina, o interlocutor de
Carvalho fez-lhe a ressalva de que esses grupos indígenas nunca gostaram de brigar
Isso não impede, entretanto, que até os dias atuais Kanamari e Kulina se encontrem ocasionalmente e
realizem rituais conjuntamente (Costa, 2007, p. 93).
1
64
Capítulo 2
“no chumbo, na flecha”, e que eles se respeitavam mutuamente (Carvalho, 2002, p.
91)2.
A relação entre esses grupos envolveu, no passado, parcerias em lutas contra os
Kaxinawá, grandes inimigos de ambos (cf. Carvalho, 2002; Costa, 2007; Tastevin, 2009
[1925], p. 142, 147). Entre os Kanamari, por exemplo, se a memória a respeito dos
Kulina reflete a ambiguidade entre convivência pacífica e rivalidade, as lembranças
que eles apresentam dos Kaxinawá são repletas de belicosidade (Carvalho, 2002, p. 92).
Um relato de guerra dos Kanamari do Juruá retrata a ocorrência de inúmeros
falecimentos de pessoas desse grupo, ao serem atacadas com arco e flecha pelos
Kaxinawá. Os Kaxinawá eram “grandes e fortes” a partir da perspectiva kanamari, de
modo que era exigido grande esforço no contra-ataque. Os Kulina, vizinhos, também
deveriam ter sofrido ataques e, juntando-se aos Kanamari, formaram uma frente e
derrotaram os Kaxinawá. Estes seriam os Kaxinawá que atualmente habitam as
cabeceiras do Purus3, segundo o relato, sendo atualmente “mansos” – não matando
mais ninguém. Tal ação defensiva parece ter se constituído em uma tentativa de barrar
o avanço dos grupos falantes de língua Pano sobre uma área tradicionalmente ocupada
por índios falantes de língua Katukina e Arawá (Carvalho, 2002, p. 92). Os Kulina, por
sua vez, consideram os Kaxinawá comedores de carne humana e, assim, qualificamnos negativamente como selvagens e de mau-odor (Pollock, 1985, p. 182). Estas são
maneiras de qualificar os Kaxinawá, as quais expressam o lugar de alteridade e
rivalidade que, para os Kulina e Kanamari, eles ocupam. Este triângulo em que os
Kulina e Kanamari aparecem como próximos enquanto os Kaxinawá são vistos como o
“outro” distante e inimigo ficará explícito no mito de criação dos Kanamari, que será
abordado adiante.
Costa (2007, p. 138) também se refere a um caso de casamento entre esses grupos, mas neste caso é um
homem kanamari que contrai casamento com uma mulher kulina. O caso também não acaba bem, com a
morte do marido supostamente decorrente de feitiço realizado pelos parentes kulina da esposa.
3 O relato reportado por Carvalho (2002, p. 92) localiza esses Kaxinawá nas cabeceiras do Purus.
Entretanto, Carvalho supõe que os Kaxinawá com os quais os Kanamari estavam em contato são os que
atualmente estão estabelecidos no Tarauacá e Envira, afluentes do Juruá, mas a autora não explica os
motivos de sua suposição (2002, p. 92).
2
65
Histórias kulina e kanamari
Tempos-espaços kulina4
Do Tarauacá ao Purus: caminhos kulina
Os Kulina, atualmente, ocupam um vasto e descontínuo território entre as
bacias dos rios Juruá e Purus na Amazônia Ocidental brasileira (estados do Acre e do
Amazonas) e peruana (Altmann, 2000)5. Sua localização atual é retrato de uma
dispersão histórica a qual está diretamente relacionada com a ocupação branca mais
intensiva das bacias do Juruá e Purus, sobretudo brasileira e peruana, realizada a partir
de meados do século XIX, quando se tem notícias dos primeiros exploradores da
borracha e do caucho na região (cf. cap. 1). Atualmente, apenas no que se refere a
Terras Indígenas (TI’s) homologadas, habitam: KL1) a TI Alto Rio Purus,
compartilhada com os Kaxinawá e Yaminawa; KL2) a TI Cacau do Tarauacá, no rio
Tarauacá (bacia do Juruá); KL3) a TI Deni, nos rios Xeruã (afluente do Juruá) e Tapauá
(afluente do Purus), compartilhada com os Deni; KL4) a TI Jaminawa/Envira, no rio
Envira (bacia do Juruá), compartilhada com os Ashaninka; KL5) a TI Kaxinawa do rio
Humaitá, no rio Humaitá (bacia do Juruá), compartilhada com os Kaxinawá,
Ashaninka e índios isolados; KL6) a TI Kulina do Igarapé do Pau, no Igarapé do Pau
(bacia do Juruá); KL7) a TI Kulina do Médio Juruá; KL8) a TI Kulina do Rio Envira; e
KL9) a TI Kumaru do Lago Ualá, no Baixo Juruá, junto a seu encontro com o Solimões
(ISA, 2012b) – ver mapa 3.
No passado, de acordo com os primeiros registros escritos, os Kulina habitavam
o rio Xeruã – afluente direito do Juruá que se aproxima das cabeceiras do rio Tapauá na
bacia do Purus – e o Tarauacá (outro afluente do Juruá), provavelmente se estendendo
a uma longa distância na direção sudoeste ao longo deste rio (Chandless, 1869, p. 300;
cf. também Rivet; Tastevin, 1921, p. 462). A presença dos Kulina na bacia do Tarauacá
em fins do século XIX é igualmente reportada por Tastevin (2009 [1925]). Segundo ele,
os vários “clãs” kulina ocupavam a margem esquerda do Muru e a margem direita do
Alto Tarauacá no momento da invasão dos seringueiros em 1890. Eles eram, então, “os
donos incontestes da margem esquerda do Muru” (Tastevin, 2009 [1925], p. 136, 147).
Estavam presentes também no Envira, outro afluente do Tarauacá (Bates, 1892, p. 370
Para facilitar a leitura, elaborei quadros-resumo dos tempos dos quatro grupos abordados na dissertação
(ver anexo 4).
5 A população kulina é estimada em 5.558 pessoas no Brasil e 417 no Peru (Funasa, 2010; INEI, 2007 apud
ISA, 2012a).
4
66
Mapa 3: Localização das Terras Indígenas
67
Elaboração: Eduardo Nunes / Fonte: IBGE;ISA
Histórias kulina e kanamari
Legenda Mapa 3: Localização das Terras Indígenas
KL – Kulina
KN – Kanamari
PA – Paumari
KX – Kaxinawá
KL1 – T. I. Alto Rio Purus,
KX1 – T. I. Alto Purus,
KN1 – T. I. Kanamari do Rio
PA1 – T. I. Caititu
compartilhada com os
compartilhada com os
Juruá
Kaxinawá
Kulina
KL2 – T. I. Cacau do Tarauacá
KN2 – T. I. Mawetek
PA2 – T. I. Paumari do Cuniuá
KX2 – T. I. Igarapé do Caucho
PA3 – T. I. Paumari do Lago
KL3 – T. I. Deni
KN3 – T. I. Vale do Javari
KX3 – T. I. Katukina/Kaxinawa
Marahã
KX4 – T. I. Kaxinawa da Colônia
KL4 – T. I. Jaminawa/Envira
KN4 – T. I. Maraã/Urubaxi
PA4 – T. I. do Lago Paricá
Vinte e Sete
KL5 – T. I. Kaxinawa do rio
PA5 – T. I. Paumari do Lago KX5 – T. I. Kaxinawa Nova
Humaitá, compartilhada KN5 – T. I. Paraná do Paricá
Manissuã
Olinda
com os Kaxinawá
KL6 – T. I. Kulina do Igarapé do
KX6 – T. I. Kaxinawa Praia do
KN6 – T. I. Patauá
PA6 – T. I. Paumari do rio Ituxi
Pau
Carapanã
KX7 – T. I. Kaxinawa Seringal
KL7 – T. I. Kulina do Médio Juruá
Independência
KX8 – T. I. Kaxinawa do baixo
KL8 – T. I. Kulina do Rio Envira
Jordão
KX9 – T. I. Kaxinawa do rio
KL9 – T. I. Kumaru do Lago Ualá
Jordão
KX10 – T.I. Kaxinawa/Ashaninka
do rio Breu
KX11 – T. I. Kaxinawa do rio
Humaitá, compartilhada
com os Kulina
68
Capítulo 2
apud Rivet; Tastevin, 1921, p. 462). A população kulina se estendia, desse modo, por
grande parte da bacia do Tarauacá – ver mapa 1.
Posteriormente, entre as duas primeiras décadas do século XX, os dois
agrupamentos kulina encontrados continuavam a concentrar-se em afluentes da
margem direita do Juruá. O primeiro deles, menos numeroso, vivia ao longo do rio
Marary6 (afluente do Juruá) e das cabeceiras do Tapauá (afluente do Purus). Era este o
local, mencionado no início deste capítulo, em que os Kulina se encontravam em
intenso conflito com os Kanamari e eram protegidos pelo já mencionado coronel
Contreiras (Rivet; Tastevin, 1921, p. 462; cf. também Tastevin, 1919, p. 146). O segundo
grupo, por sua vez, incluía numerosos “clãs” vivendo entre o rio Eru e o Gregório, de
um lado, e entre o Envira e o Tarauacá, de outro (Rivet; Tastevin, 1921, p. 462-3;
Métraux, 1948, p. 660-661). Neste momento, o Muru não era mais o rio dos Kulina,
como antes, mas “sobretudo o rio dos Kachinaua”, assim como, então, o Eiru passou a
ser o rio dos Kulina e o Juruá era o rio dos Kanamari (Tastevin, 2009 [1925], p. 158).
Este segundo grupo kulina, mais numeroso, localizado entre o Eiru e o
Gregório, de um lado, e o Envira e Tarauacá, de outro, seria provavelmente composto
de representantes daquele grupo localizado inicialmente por Chandless (1869, p. 300)
na bacia do Tarauacá. Estes se teriam deslocado para a direção oeste a fim de se instalar
na outra margem do Taraucá e do Envira, seja para fugir do contato com os Jamamadi
ou em decorrência de contatos violentos com os brancos que chegavam para trabalhar
na seringa (Rivet; Tastevin, 1921, p. 463).
Observamos, desse modo, que as principais referências aos grupos kulina os
localizavam, de maneira geral, na bacia do Juruá, no período entre fins do século XIX e
inicio do século XX. Aparecem na literatura, entretanto, rápidas referências à presença
de um grupo kulina no igarapé Santa Rosa no alto Purus aparentemente na primeira
década do século XX, mas nenhuma informação adicional é fornecida sobre os mesmos
(cf. Rivet; Tastevin, 1921, p. 463; Métraux, 1948, p. 661). A presença de um grupo kulina
no Santa Rosa não é de espantar, podendo, aliás, ser interpretada como continuidade
da ocupação do Envira, tendo em vista a enorme proximidade entre esses. Em
publicação datada de 1939, o coronel Lima Figueiredo fez nova referência a grupos
No mapa atual da região não encontramos o rio Marary a que Rivet & Tastevin (1921) fazem referência
(cf. IBGE, 2012). Entretanto, no mapa fornecido por Chandless (1869), é possível identificar o lago Marary
na região de lagos que se situa abaixo do rio Xeruã (margem direita do Juruá). Suponho que, pela
localização próxima às cabeceiras do Tapauá, era a este lago Marary que Rivet &Tastevin (1921) referiamse, localizado na margem direita do Juruá, nas proximidades do lago Juburi/Jubary, equivalendo
provavelmente ao atual lago Água Preta (cf. Chandless, 1869; IBGE, 2012).
6
69
Histórias kulina e kanamari
kulina nas margens do Purus, próximas ao Santa Rosa (Castello Branco, 1950, p. 27-28).
Em 1938, também Rivet e Tastevin (1938, p. 74) mencionaram grupos kulina no Purus e
afirmaram que corresponderiam, ao menos parcialmente, a grupos anteriormente
localizados nos altos Muru e Envira, além daqueles situados no Santa Rosa.
O estabelecimendo dos Kulina no Alto Purus7 certamente não implicou em um
apartamento em relação àqueles que permaneceram no Juruá. Como notado por Chiara
& Schultz (1955, p. 194-5), na década de 1950, existia grande mobilidade entre os índios
situados na bacia do Purus e os que estavam no Alto Juruá, principalmente nos
afluentes Envira e Tarauacá. Esses grupos atravessavam todos os anos as matas pelos
varadouros, durante dez dias ou mais, para visitas recíprocas. Nas décadas de 1970 e
1980, as relações ainda existiam. Viveiros de Castro, nos anos 1970, notou serem as
populações das aldeias que visitou no Alto Purus bastante variáveis devido à grande
circulação de pessoas não apenas naquela região, mas também no Envira e Tarauacá
(1978, p. 13 e 15). E, na década de 1980, Pollock (1985, p. 58) observou um grande
número de visitantes na aldeia de Maronaua no Alto Purus vindos da aldeia de São
Bernando (Purus peruano) e também do rio Envira.
Os Kulina que hoje habitam a região do Alto Purus, cuja história abordarei
neste capítulo, confirmam os dados escritos a respeito de sua procedência: afirmam
terem se deslocado da região do rio Tarauacá – ou simplesmente “do Juruá” (Viveiros
de Castro, 1978, p. 15) – para o Alto Purus e o rio Chandless, seu afluente, acossados
pelos exploradores da borracha e do caucho (Altmann, 2000, p. 34-35). Eles afirmam
que, em tempos antigos, vieram do Juruá, subindo os afluentes da parte alta deste rio.
“Fugindo dos seringueiros”, “buscavam o alto curso dos rios” em fins do século XIX
(Viveiros de Castro, 1978, p. 15). Segundo relatam, saíram do Tarauacá e, seguindo
pelo Envira, chegaram ao Purus, onde inicialmente viveram espalhados em pequenos
núcleos (Altmann, 2000, p. 35).
Hoje, os Kulina que vivem no Alto Purus estão organizados em aldeias, sendo
as mais antigas constituídas no lado peruano deste rio. A primeira delas, São Bernardo,
foi criada pela iniciativa de missionários do Summer Institute of Linguistics (SIL) nos
anos 1950. Os aldeamentos do lado brasileiro tiveram origem também por iniciativa
missionária, mas vinte anos depois, na década de 1970 (cf. Viveiros de Castro, 1978;
Pollock, 1985, p. 32). Quando o antropólogo Donald Pollock esteve na região, no início
O Alto Purus equivale ao trecho deste rio considerado a partir da foz do rio Acre, em território brasileiro
e peruano (Chiara; Schultz, 1955, p. 181).
7
70
Capítulo 2
da década de 1980, existiam quatro aldeias no total, São Bernado e Zapote no Peru e
Maronaua e Santo Amaro no Brasil (ver mapa 4)8.
Mapa 4: Aldeias kulina no alto Purus
Fonte: Pollock, 1985, p. 31.
Este percurso, que conduziu tais grupos kulina do Juruá ao Purus, culminando
com a organização em aldeias principiadas por iniciativa missionária9 em um espaço
8 Atualmente, existe, pelo menos, outra aldeia chamada “Santa Júlia”, onde esteve o antropólogo
Domingos Silva (1997) em 1996, mas não tive acesso a dados mais recentes a respeito da constituição ou
dissolução de aldeias.
71
Histórias kulina e kanamari
que posteriormente viria a se tornar uma Terra Indígena10, está relacionado com um
escopo maior de migrações dos Kulina, as quais se vinculam diretamente à chegada
dos brancos (cariús) no território onde se em encontravam. Os tempos kulina, como
mostrarei a seguir, tematizam as inúmeras transformações ocasionadas pelo
engajamento deste grupo indígena no trabalho nos seringais que, a partir de fins do
século XIX, tornaram-se abundantes na região dos rios Juruá e Purus.
Os Kulina do Alto Purus: seu tempo atual
A história kulina é marcada, fundamentalmente, por dois tempos ou eras. O
primeiro é o tempo passado em que viviam seus pais e avós, denominado ididenicca,
“tempo de nossos avós”, sendo também muitas vezes referido pelo advérbio
maittaccadsama, termo que pode ser traduzido por “há muito tempo”, “antigamente”. O
segundo é seu tempo atual, sendo referido pelo advérbio jidapana, que indica “hoje”,
“atualmente”, “agora” (cf. Altmann, 2000, p. 47; Monserrat; Silva, 1984). Este tempo
não recebe um nome específico, sugerindo a ideia de movimento, de um era não
acabada, que ainda está acontecendo.
Nas palavras kulina que indicam variados modos de estar na duração, fica
bastante clara a ligação próxima entre o tempo e o espaço, uma vez que, de modo
geral, os termos que se referem à temporalidade são compostos pelo radical dsama, que
significa “terra”, “território”, “mata”, “floresta”, “selva”. Assim, a título de
exemplificação, dsamassa pode significar “manhã” ou ainda “amanhã”, maittadsama
indica “ontem”, maittaccadsama indica “há muito tempo”, majidsama significa “todo o
dia” ou “diariamente”, e ojidsama significa “devagar”, “lentamente” (Altmann, 2000, p.
46; Monserrat; Silva, 1984).
A relação entre o espaço e o tempo não se observa apenas na língua, mas
também compõe diferenças importantes entre os dois tempos kulina. Ididenicca, o tempo
dos antigos e o tempo atual, são encarados pelos Kulina de modo descontínuo, sendo que
a ruptura central entre eles está associada diretamente à inserção desse grupo no
sistema extrativista da borracha. Eles, assim, refletem dois modos de vida distintos: o
Essas aldeias que tiveram sua criação impulsionada pela iniciativa missionária diferem das aldeias kulina
das décadas anteriores, por serem mais estáveis e maiores. Elas se inserem em um contexto histórico
diferente do anterior, que havia sido radicalmente marcado pelas condições de vida e residência
dependentes do trabalho nos seringais.
10 A Terra Indígena Alto Purus foi demarcada no ano de 1995 e homologada em 1996 (Aquino; Iglesias,
2006).
9
72
Capítulo 2
tempo-espaço do centro da mata, identificado como o tempo dos antigos, e o da margem
do rio, o tempo atual (Altmann, 2000, p. 47-48). Tal mudança pode ser observada em
alguns relatos, como o de Mara Kulina11: “Quando madija era brabo, morava no centro
da mata, depois quando ficou manso, veio para a beira do rio, trabalhar para o patrão”.
Este relato nos remete a uma dualidade espaço-temporal marcada por
diferentes modos de vida. Antigamente, os Kulina habitavam o centro da mata e
viviam de acordo com um ciclo específico de festas, agricultura, caça e pesca. Tratavase de um tempo em que os velhos contavam as histórias antigas e em que os Kulina
habitavam uma moradia específica, a odsa beje - grande maloca de palha12. Esta era
igualmente a época em que os Kulina eram “brabos”. Já nos tempos atuais,
“amansados”, transformaram seu modo de vida, trabalharam nos seringais,
adquiriram produtos manufaturados, aprenderam a ler, conheceram o dinheiro e
deixaram de morar em sua antiga habitação, passando a residir em casas pequenas,
construídas sobre pilotis, nos moldes regionais das habitações dos seringueiros
(Altmann, 2000, p. 48-50; Silva, 1997, p. 17).
Quando Harald Schultz e Vilma Chiara (1955) estiveram no Alto Purus nos
anos de 1950 e 1951, identificaram os índios “Kurina”, “Korina” ou “Kolina”
(atualmente “Kulina”) e os “Tukurina”13. Na época, Schultz e Chiara interpretaram os
Kurina e Tukurina como sendo grupos distintos. Posteriormente, entretanto, em sua
viagem ao Alto Purus em 1978, Viveiros de Castro (1978, p. 15) mostrou como a
distinção entre Kulina e Tukurina era problemática, pois além do fato de que esses
nomes não se referirem a uma autodenominação, os Kulina, naquele contexto,
identificaram os Tukurina como sendo um dos madihá kulina - os “dzutmí madihá”
(“nação dos quatis”), que predominavam no Zapote, Peru. Como veremos mais
detalhadamente adiante, os denominados por outros de “Kulina”, autodenominam-se
Madihá, que significa genericamente “gente”, “povo”, “nação” (Altmann, 2000, p. 10;
Viveiros de Castro, 1978, p. 18).
Os Kurina e Tukurina com os quais Schultz e Chiara estiveram em contato – os
quais adiante passarei a denominar simplesmente “Kulina” – dividiam-se em diversos
grupos que habitavam: 1) os seringais Fronteira do Cassianã e Terra Alta, próximos à
Registrada por Nelson Deicke (1990 apud Altmann, 2000, p. 37).
Casa coletiva toda coberta de palha até o chão e com apenas duas aberturas na forma de porta na frente
e atrás (Altmann, 2000, p. 48, nota 7).
13 No Alto Purus, também encontraram os “Apurinã”, “Jamamadi”, “Katiana”, “Marináua”, “Charanáua”,
“Kachináua”, “Jamináua” e “Kustanáua”.
11
12
73
Histórias kulina e kanamari
foz do rio Chandless (em torno de 20 pessoas); 2) o seringal Tabajara também no rio
Chandless (entre 30 e 40 pessoas); 3) o igarapé Santa Rosa14 e uma pequena localidade
chamada Cataya na margem direita do Purus em terras peruanas; 4) e um barranco
alto da margem direita do igarapé Cuchichá, afluente esquerdo do Chandless - estes
eram os Tukurina, na época, “a tribo mais numerosa do alto Purus”15 (Chiara; Schultz,
1955, p. 183-184).
O grupo que residia e trabalhava nos seringais Fronteira do Cassianã e Terra
Alta estava passando por uma fase de reestruturação social em decorrência de uma
recente epidemia de sarampo, que havia reduzido o grupo a quase metade de sua
população. Inclusive seu chefe havia falecido, razão pela qual decidiram abandonar a
aldeia e roças, passando a viver em papiris – habitações de simples postes e vigas,
cobertas de ralas folhas de palmeira – construídos em plena mata, não muito distante
do Purus (Chiara; Schultz, 1955, p. 183). O abandono de aldeia em decorrência da
morte do chefe político ou xamã ainda se constitui como uma prática kulina. Mas, no
caso de morte de outras pessoas, apenas os familiares mais próximos costumam se
mudar. As mortes causadas por epidemias, acentuadas no período imediato após o
contato com os brancos, constituíram-se como um fator de grande mobilidade. Nestes
casos, os Kulina sempre abandonaram coletivamente as localidades onde se
encontravam (Altmann, 2000, p. 40-41).
Esse grupo passou por um período de fome, valendo-se do saque de outras
roças como fonte de alimentos. Como muitas famílias haviam sido esfaceladas, notavase uma tentativa de formar novas unidades familiares com os membros que restaram.
Esses Kulina planejavam constituir uma nova aldeia e novos roçados do outro lado do
rio (Chiara; Schultz, 1955, p. 184). Aqueles que viviam no seringal Tabajara (grupo 2)
trabalhavam tanto na extração da borracha como na lavoura do proprietário do
seringal ou ainda em serviços de bordo de seu barco a motor. Apenas um dos grupos
mencionados, o que habitava o igarapé Santa Rosa (grupo 3) - somente atingível na
época da cheia - parecia manter maior independência econômica em relação aos
brancos (Chiara; Schultz, 1955, p. 184).
Os Kulina que estavam naquele momento situados em um barranco alto na
margem do igarapé Cuchichá (grupo 4), em um local de difícil acesso, haviam se
mudado para lá há alguns anos, quando abandonaram a aldeia que habitavam
14
15
Que atualmente faz parte da delimitação da fronteira entre o Brasil e o Peru (ver mapas 1 e 2).
Infelizmente os autores não fornecem números.
74
Capítulo 2
anteriormente, perto do seringal Carolina, e dirigiram-se para o “centro das matas” local em que agora se encontravam -, após o falecimento do antigo dono do seringal, “a
quem muito estimavam” (Chiara; Schultz, 1955, p. 185). O fato de abandonarem sua
antiga aldeia e retirarem-se para o interior da mata em decorrência da morte do patrão
estimado sugere uma associação de sua figura a de um chefe. A associação entre a
chefia e a patronagem não é de se estranhar quando consideramos a desestruturação
social pela qual passaram os Kulina em diversas circunstâncias nas situações de
contato com os brancos. Adiante, veremos o caso de um dos subgrupos kanamari que,
em determinada circunstância de sua história, em um momento crítico de ausência de
chefia, decidiram ter um chefe branco.
O tipo de relação estabelecida entre patrões e empregados neste contexto
seringalista foi marcante nos relacionamentos que os Kulina vieram a estabelecer com
outros brancos. Bonilla (2007, p. 13) observou atitude semelhante entre os Paumari a
qual foi interpretada como uma “comercialização das relações”, uma vez que estes
índios entendiam seus pedidos como ordens, colocavam-se constantemente em uma
posição de vítima e encaravam inúmeras relações sociais em termos comerciais (ver
cap. 1 e cap. 3). De maneira semelhante, Chiara e Schultz (1955, p. 187), em seu
encontro com os Kulina, relataram ser difícil conseguir com que os últimos
compreendessem que não tinham a intenção de comprar borracha, e sim, a de
participar de sua vida e obter objetos etnográficos: “insistiam em querer trocar caucho
por tecidos para mosquiteiros, roupas, armas e munições, ferramentas, bijuteria e
perfumaria”. A dependência dos produtos industrializados era enorme, obrigando os
Kulina a trabalharem demasiadamente na seringa para poderem adquirir as
mercadorias de que necessitavam - ainda que eles nunca tenham deixado de manter
roçados, frequentemente interrompendo a extração do látex a fim de caçar ou trabalhar
na lavoura. Entretanto, apesar de a troca por mercadorias industrializadas constituir
uma faceta fundamental e marcante de suas vidas, os Kulina não sabiam avaliar o seu
próprio produto e o que desejavam obter em troca. Eles não sabiam, ao certo, se eram
vítimas de exploração e, muitas vezes, chegavam a culpar o comprador de fraude
quando eram tratados com honestidade ou, ao contrário, acreditavam estar realizando
uma troca justa quando, na verdade, estavam sendo ludibriados (Chiara; Schultz, 1955,
p. 187-188).
A esperança de que a educação proporcionada por uma escola poderia auxiliálos nas relações com os brancos foi um dos motivos para a reunião de alguns Kulina na
75
Histórias kulina e kanamari
aldeia de Maronaua. A população inicial desta aldeia uniu-se no princípio da década
de 1970, quando o padre Paulino, da cidade de Sena Madureira, construiu uma escola
na localidade. A oportunidade de estudar e também de trabalhar no seringal Sobral,
que era próximo dali, atraiu muitas famílias, principalmente a de Miguel/Mai (70)16.
Eles foram os sobreviventes do grupo dizimado pelo sarampo no princípio da década
de 1950, mencionado acima. Mai e sua família abandonaram o local que habitavam
anteriormente, pois seu pai, o antigo chefe da aldeia, havia falecido em decorrência de
feitiçaria realizada contra ele. A existência de uma escola era atrativa para esses Kulina,
os quais acreditavam que a educação por ela proporcionada ajudá-los-ia a lidar com os
brasileiros da área. Eles mantinham relações com os Kulina de São Bernardo (Peru) e
sabiam dos bons resultados do processo de alfabetização na língua espanhola que
vinha sendo lá realizado pelos missionários do SIL. Além disso, o proprietário do
Sobral era considerado um “bom patrão”, usando seu avião para levar pessoas doentes
à capital Rio Branco a fim de obterem cuidados médicos (Pollock, 1985, p. 39-40).
Em 1978, quando Viveiros de Castro esteve no Alto Purus, encontrou uma
população indígena predominantemente kulina, tal qual fora observado quase 30 anos
antes por Chiara & Schutz (1955). Os grandes núcleos kulina situados entre a boca do
rio Chandless e a localidade de São Bernardo, no Peru, eram: a) Santo Amaro, às
margens do Purus e próximo à boca do Chandless, com 159 indivíduos; b) Tavaré, em
uma “volta grande” do Purus, entre os igarapés Moças e Camarão, com 23 indivíduos;
c) Maronaua, na margem direita do Purus, cerca de meia hora acima do seringal
Sobral, com 178 indivíduos; d) São Bernardo, no Peru, com aproximadamente 250
Kulina; e e) Zapote, no Peru, com aproximadamente 60 Kulina17 (Viveiros de Castro,
1978, p. 13).
Neste momento, como se pode observar, os aldeamentos kulina contavam com
um maior número de residentes do que as localidades que habitavam na década de
1950, sugerindo uma menor dispersão do grupo. Ao que tudo indica, esses
movimentos foram motivados tanto pela atividade missionária e suas escolas, como
pelas possibilidades de trabalho. O padre Paulino afirmara a Viveiros de Castro que
muitos Kulina habitantes anteriormente do Brasil mudaram-se para o Peru atraídos
Os números que se seguem aos nomes de pessoas fazem referência à identificação dos mesmos, presente
no censo realizado por Pollock (1985) na aldeia de Maronaua nos anos de 1981/1982 (ver anexo 1).
17 O cálculo do número de indivíduos mostrava-se bastante variável devido à grande circulação de pessoas
não apenas no Purus, mas também no Envira e Tarauacá, conforme mencionado anteriormente neste
capítulo (Cf. Viveiros de Castro, 1978, p. 13, 15). As informações sobre o cálculo da população kulina no
Peru foram fornecidas por Schwade (1976 apud Viveiros de Castro, 1978, p. 13).
16
76
Capítulo 2
pela atividade missionária do SIL, a qual funcionava desde o início da década de 1950.
A escola da missão, instalada em São Bernardo, parecia ser a principal motivação
(Viveiros de Castro, 1978, p. 16). Não é referida a data em que ocorreram essas
mudanças para o Peru, mas calculo que teriam acontecido no decorrer da década de
1950 e princípio da década de 1960, pois, a partir de 1968, aproximadamente, há um
movimento migratório contrário originário do Peru em direção ao Brasil. As
motivações fornecidas para tal diziam respeito à falta de “serviço” no Peru, pois, lá,
pouco caucho restava, o comércio de peles era rigorosamente proibido e o cedro e
mogno começavam a escassear. Os aldeamentos criados com o apoio do Pe. Paulino,
assim como as escolas erguidas, foram também atrativos para os Kulina (Viveiros de
Castro, 1978, p. 16).
Entretanto, pouco tempo depois, já em 1977, a Funai expulsou os missionários
das aldeias no Brasil, sem, entretanto, se fazer presente, fato que desagradou os Kulina.
Assim assinalou o antropólogo Cruvinel, para o caso específico da aldeia de Santo
Amaro no “Relatório sobre Levantamento de Áreas Indígenas nas Bacias dos rios
Purus e Iaco”:
O relacionamento com os missionários foi interrompido há alguns
meses, sendo os missionários ao que notamos, aceitos e até desejados
pelos índios. É de se esclarecer que a não ação efetiva da FUNAI e a
interrupção do relacionamento missionário deixaram os índios sem a
quem apelar. Ainda que prejudicial em muitos casos, a exemplo da
intromissão na estrutura política e religiosa, com a eleição de líderes e
a imposição de novos preceitos religiosos, a missão vinha-lhes
ajudando em alguns problemas como medicação e mesmo dando-lhes
algumas coisas, como é o caso de um caititu para ralar mandioca e
uma engenhoca para moagem de cana, bem como algum auxílio na
educação (Cruvinel, 1977, p. 38).
No ano seguinte, Viveiros de Castro observou, igualmente, o descontentamento
dos Kulina de Maronaua, os quais pareciam esperar uma alternativa à ausência dos
missionários, da escola, de remédios e da proteção contra os “abusos dos velhos
patrões” da borracha. A expulsão dos missionários, por outro lado, foi do agrado de
muitos marreteiros e donos de seringal. Viveiros de Castro foi visto como um agente
da Funai pelos habitantes (indígenas e não indígenas) da região, o que desembocou em
uma série de expectativas em relação à sua pessoa. Isso porque, após a expulsão dos
missionários, a Funai realizou algumas visitas às aldeias de Maronaua e Santo Amaro,
fato que tornou mais concreta a figura de um “Governo” que atendesse às
necessidades da população local (Viveiros de Castro, 1978, p. 2).
77
Histórias kulina e kanamari
A Funai era “o Governo”, e que vinha finalmente dar conta da miséria
dos Kulina, da exploração dos patrões, da falta de remédios e de
escola – era um possível novo e poderoso patrão, que forneceria (por
aviamento, segundo o modelo clássico do seringal) os bens
indispensáveis à reprodução da sociedade Kulina, e um fiscal, que
poria cobro aos abusos dos velhos patrões (Viveiros de Castro, 1978,
p. 2).
Mas, além dessa expectativa, outros boatos menos positivos corriam como, por
exemplo, o de que a Funai expulsaria os Kulina do Purus e reuniria todos os “caboclos”
no rio Envira; de que seria proibida a venda de peles aos marreteiros ou a venda de
jabutis, ambas essenciais fontes de renda para os Kulina na época; e, finalmente, de que
os Kulina fossem presos. Este último temor decorria de que a Funai estava associada à
Polícia Federal naquela área e, no caso específico dos Kulina, acrescentava-se o fato de
que a expulsão dos padres e agentes da pastoral fora realizada por meio de
funcionários da Funai acompanhados de policiais da Polícia Federal. A Funai e, mais
que ela, a Polícia Federal era tomada como “o Governo”, uma “entidade todopoderosa” que pairava “acima das arbitrariedades da política local e do poder dos
patrões”. Sua intervenção era temida por todos: índios, peões, barranqueiros,
marreteiros, e até mesmo gerentes de seringal (Viveiros de Castro, 1978, p. 2-3).
Nesta época, todos os habitantes de Maronaua se diziam católicos e afirmavam
que o padre Paulino os havia batizado e ensinado alguns hinos religiosos, embora a
escola da missão não tivesse chegado a alfabetizar nenhum kulina nesta aldeia.
Segundo, Viveiros de Castro (1978, p. 25-26), havia uma aprovação geral da atuação do
padre Paulino por parte dos índios e dos barranqueiros. Contrariamente, sua presença
era desaprovada violentamente pelos patrões, marreteiros e delegado de Santa Rosa. O
padre Paulino havia atuado na organização dos Kulina em aldeias, na constituição de
suas chefias e também impulsionado os Kulina na luta contra a situação de exploração
de sua força de trabalho e invasão de suas terras18 (Viveiros de Castro, 1978, p. 26). Ele
havia sido decisivo na atribuição de chefia a Manduca (47; 108) em Maronaua e a
Mariano e Dohô em Santo Amaro (cf. Cruvinel, 1977, p. 37; Viveiros de Castro, 1978, p.
26). Cruvinel havia entendido como prejudicial a ação do padre na atribuição de chefia,
como uma “intromissão inoportuna, inadequada e repugnante” (1977, p. 37; ver
também citação acima). Todavia, este não parecia ser o ponto de vista dos Kulina, que
viam na atuação do padre uma proteção contra os abusos exercidos pelos patrões.
Apesar de a organização em aldeias ter trazido outras limitações, como um futuro esgotamento da caça,
notado pelo próprio padre (Viveiros de Castro, 1978, p. 26).
18
78
Capítulo 2
Os Kulina de Maronaua, em fins da década de 70, trabalhavam no seringal
Sobral, o qual havia sido comprado por um “paulista” que conseguira crédito junto ao
Banco da Amazônia para o replantio de seringueiras e criação de gado. A mão-de-obra
do seringal – dentre as quais a dos Kulina – estava ocupada no desmatamento e no
cuidado das mudas de seringa. Os Kulina eram frequentemente requisitados para
outros serviços menores, tal qual o corte de paxiúba para o soalho das casas, dentre
outros. Também vendiam carne de caça ao seringal. Trabalhavam pelo sistema de
empreitada: o gerente do seringal contratava o serviço com um kulina – geralmente
Manduca (108) ou Miguel (70), os tamine (chefia tradicional) e também tuxauas (chefia
surgida no contexto do contato) – o qual reunia e organizava os demais para o
trabalho. Era aviada ao empreiteiro kulina determinada quantidade de mercadorias –
“sal, roupas, fumo, botas de borracha”– e instrumentos de trabalho – “terçados,
munição, peixeiras”– e este deveria distribuir o recebido19 (Viveiros de Castro, 1978, p.
27). O dinheiro não circulava no barracão, em continuidade com o sistema de
aviamento do período áureo da borracha (ver cap. 1). Era desse modo que o patrão
roubava, pagando com objetos de valor irrisório o seu dia de trabalho - “a dificuldade
em manejar os números e as contas tornava os Kulina presa fácil para o barracão”
(Viveiros de Castro, 1978, p. 27). Além disso, o barracão também explorava os Kulina
vendendo-lhes remédios errados e ineficazes (Viveiros de Castro, 1978, p. 86).
Segundo Viveiros de Castro (1978, p. 79-80), havia duas lideranças políticas que
exerciam funções distintas, uma interna e outra externa à comunidade. Uma era o
“tuxaua” (palavra usada regionalmente), chefe que falava pela comunidade no contato
com os patrões; eram mediadores com os regionais e organizavam, por exemplo, as
empreitadas. A outra, interna à comunidade, era o tamine/taminedé, associada à
imagem de um “bom patrão”. Sua função era a de “agradar o pessoal”, patrocinando
festas e promovendo a distribuição de alimentos. Ele discursava em público ao
crepúsculo exortando a comunidade ao trabalho, censurando os desvios e lembrando
os exemplos do passado; é ele também quem atuava como pacificador nos casos de
feitiçaria (dori). Assim, na posição de “bom patrão”, ele convoca a comunidade ao
trabalho e efetua a redistribuição cerimonial. O tuxaua, surgido no contexto do contato,
poderia, segundo Viveiros de Castro (1978), coincidir com a mesma pessoa do tamine.
De fato, no presente estudo, não foi observada a existência de chefes kulina que
Acontecia também de um kulina ir ao seringal alugar seu trabalho individualmente; isso se dava quando
escasseava alguma mercadoria de que carecia (Viveiros de Castro, 1978, p. 27).
19
79
Histórias kulina e kanamari
exercessem apenas uma dessas funções; todos pareciam acumular os atributos de
ambas.
Vemos, desse modo, como o tamine/tuxaua exercia um papel fundamental na
organização do trabalho para os brancos e como a desativação da escola da missão pela
Funai fora um “duro golpe para os Kulina”. Eles tinham “um fascínio quase ritual pela
escola”: “em Maronaua, estavam constantemente folheando os cadernos do SIL, as
folhas deixadas pelas professoras da missão, pedindo para posar em fotografias de
lápis e caderno na mão, em gesto de escrever” (Viveiros de Castro, 1978, p. 86; ver
fotografia da capa). A escola, e a consequente aprendizagem da leitura e contagem,
constituía-se, portanto, da perspectiva kulina, em um dos meios necessários para pôr
fim à longa exploração da qual sofriam.
Em 1980, os Kulina ainda esperavam o retorno da Funai, a qual aparecera em
suas terras nos anos de 1976 e 1977 para identificação das mesmas e dos grupos
indígenas que nela habitavam (cf. relatórios de Schwade, 1976, e Cruvinel, 1977), e não
mais retornara deste então. Nesta circunstância, os Kulina articularam-se aos
Kaxinawá, seus inimigos históricos, com os quais dividiam aquela terra, intencionando
uma maior pressão política20. Na carta, que transcrevo a seguir, direcionaram-se à
Funai requisitando seu retorno e explicitando seus desejos e necessidades de
reprodução social enquanto grupo:
Funai quer dar 5 pedaços de terra, 1 pra S. Amaro, 1 pra Fronteira, 1 pra
Maronaua. Nós Madija e Kaxinauas quer 1 pedaço todo junto. Kulinas e
Kaxinauas todo ligado. Nós queremos assim. Queremos o igarapé Canamari
até igarapé Prainha deste lado outro do igarapé Nazaré até o igarapé S.
Vicente. No fundo da Cabeceira do igarapé do Acre até igarapé Saperaí[?].
Madija e Kaxinauas quer assim pra tirar produto e viver bem. Queremos
todos juntos que nós estamos em cima de terra. Pra fazendeiros, cariús,
madeireiros, marreteiros não entrar no meio de nossa terra, terra de índio.
Quem mandar é nós. Queremos nossa terra pra cariús não expulsar mais que
explorar demais já temos. Agora não deixa mais entrar, já chega. Os cariús
falaram já muito, há tempo que índio não tem terra e já temos cariús, se
entrar mais joga fora. Cariús de fazenda já estragar nosso cemitério, nossa
terra, derrubar madeira de lei, espantar caça, estragar pirarucu pra urubu
comer. Agora malhadeira já era tudo isso em terra de madija. Único
alimento de nossa terra é carne de caça e peixe e assim mesmo mariscador
estragar tudo. Agora chega cariús. Índio aumentou mais, precisa mais
rancho pra nós, se não passa fome e morre, nós não queremos morrer.
Quando nós falamos que terra é nossa, cariú diz que índio gosta de falar
mentira. Cariú diz que índio não tem lei pra isso e que funai só pra enganar.
Funai, vamos dizer pra você escutar, vamos demarcar terra grande pra nós
trabalhar, porque nós tudo animado pra terra grande. Nós só com terra
20
Para maiores detalhes desta articulação cf. Altmann (1994).
80
Capítulo 2
grande fica alegre. Nós espera terra grande. Já começamos pique. Se nossa
área é grande, todo fica animado e alegre. Pode ler, Funai, nós todo estamos
querendo assim terra grande. Agora tem muito Carius em nossa [terra].
Precisa botar pra outro lado. Precisa mudar. Funai embora vem logo, nós
ensina medir nossa terra. Assim carius a credito[?]. Vem breve possível, já
demorar muito, já comeu muito dinheiro, já enganou muito. Já faz 4 verão
que esperamos. Será que tu com medo da onça? Não ta com medo de fome,
nos arruma rancho pra tu, macaxeira e banana madura. Quando você
apareceu aqui primeira vez falou que gosta de índio, que ajuda índio e
depois nunca mais apareceu. Porque não tem engenheiro pra medir terra
dos índios. Porque tá com medo de pagar engenheiro. Te esforça
[ininteligível] nós Funai. Nós começamos o pique de nossa terra. Agora nós
espera Funai fazer a tua parte – meu Isso[?]21 Kulinas (Kaxinwá; Kulina,
1980)22.
É de se notar a importância que atribuíam à chegada da Funai e como tal
acontecimento estava associado com perspectivas de futuro e de sobrevivência do
próprio grupo. A Funai era tratada como uma entidade personalizada, à semelhança
de um chefe ou patrão. Os Kulina e Kaxinawá perguntam-lhe sobre os motivos de sua
demora – estaria a Funai com medo de onça ou de passar fome? – ao mesmo tempo em
que esperam dela proteção, na perspectiva de poderem “viver bem”. A associação
entre chefia, patronagem e Funai era significativa para os Kulina e também para os
Kanamari, como veremos adiante neste capítulo.
Ruptura entre tempos-espaços
No tópico anterior, procurei delinear características do tempo atual dos Kulina,
enfocando particularmente os Kulina que hoje habitam o Alto Purus. Eles, como já
referido, “são unanimes em afirmar que, em tempos antigos, vieram do Juruá, subindo
os afluentes do alto Juruá. Que buscavam o alto curso dos rios, e que entraram no Peru
fugindo dos seringueiros”, em fins do século XIX (Viveiros de Castro, 1978, p. 15, grifo
meu). A fuga pelas cabeceiras dos rios constituiu o primeiro movimento espacial
relatado na história dos Kulina do Purus desde que estiveram em contato com as
frentes de expansão da borracha. Posteriormente, eles foram atraídos de suas
21 Esta palavra não está muito legível no documento original. “Isso” é, entretanto, um nome próprio kulina,
refere-se a um homem também conhecido por “Samuel” (cf. Altmann, 2000, p. 104); embora não pareça
fazer sentido este nome no contexto da carta.
22 “Carta de solicitação da união das aldeias de Santo Amaro, Fronteira e Maronaua” redigida por índios
Kulina e Kaxinawá em Maronaua na data de 7 de março de 1980. Esta carta compõe o processo de
delimitação e demarcação da T. I Alto Purus, demarcada em 1985. Na transcrição da mesma, tomei a
liberdade de inserir pontuações e realizar ligeiras correções de redação apenas com a intenção de torná-la
mais legível. A versão original pode ser lida no anexo 2.
81
Histórias kulina e kanamari
habitações no meio da mata para as margens dos rios principais em busca de
mercadorias que os seringueiros possuíam – armas, utensílios de metal, roupas, sal,
anzóis etc. (Pollock, 1985, p. 39). Desse modo, engajaram-se em trabalhos nos seringais.
A troca de sua força de trabalho por tais mercadorias ocasionaram dependência
à economia dos seringais, a qual foi, posteriormente, ameaçada pelas crises da
indústria da borracha no Brasil, com a competição ocasionada pela produção asiática
(ver cap. 1). Ao que tudo indica, no período entre o primeiro ciclo da borracha e sua
primeira crise, em 1912, os Kulina, de um modo geral, tiveram uma inserção mais
marginal no trabalho nos seringais. Segundo Manduca (47; 108), chefe da aldeia
Maronaua23, os Kulina “nos primeiros contatos [com os cariús], trabalhavam só
eventualmente para levar mercadoria para o centro da mata, onde estavam as malocas”
(Altmann, 2000, p. 104). Entretanto, o crescente interesse pelas mercadorias advindas
do contato, levou-os a se integrarem de outro modo ao trabalho no seringais, mais
intensivamente. Tal postura implicou em uma mudança de habitação, momento em
que os Kulina deixaram de morar no centro da mata para se fixarem nas margens dos
grandes rios (Altmann, 2000, p. 107). Este foi um segundo deslocamento espacial
realizado pelos Kulina desde a chegada dos brancos em seu território, o qual demarcou
a mudança entre os tempos dos antigos e o tempo atual, tempos que poderíamos, antes,
chamar de tempos-espaços, dada a intrínseca relação entre tais categorias. A mudança de
um tempo ao outro é também aquela entre espaços radicalmente divergentes de um
ponto de vista kulina.
Os grupos kulina do Purus brasileiro consideram-se de origem comum. A
maior parte dos interlocutores mais velhos de Viveiros de Castro (1978) nascera por
volta de 1905/1910 nos seringais Carolina e Sobral. Com a morte do patrão do seringal
Carolina e abandono do mesmo, dirigiram-se ao igarapé Cochichá, varando o
interflúvio Purus/Chandless, por volta de 1930. No Cochichá, dedicaram-se à caça, ao
caucho e às peles; trabalharam para um patrão de nome Chagas Sabino, o qual parece
ter sido um marreteiro que aviava mercadorias e instrumentos de trabalho a eles. A
partir do Cochichá, o grupo foi pouco a pouco descendo o Chandless, espalhando-se
por seringais no Purus - Fronteira, Terra Alta, Santa Cruz (Viveiros de Castro, 1978, p.
15). Apenas posteriormente, esses Kulina foram se reunir em Maronaua ou Santo
Manduca assumira a posição de chefia na aldeia Maronaua a partir da década de 70, quando Padre
Paulino esteve por lá (ver acima), e assim continuou ao menos durante o período em que Lori Altmann
vivera com os Kulina do Alto Purus: de 1980 a 1987 (cf. Altmann, 2000).
23
82
Capítulo 2
Amaro. A localidade de Maronaua existe desde os anos 1960, quando Codo (61) e sua
família se mudaram para lá. Os moradores mais antigos de Maronaua relembram de
quando eram crianças e viviam em aldeias no meio da floresta, “sem roupas ou potes
de metal”, antes do contato com os brasileiros. Posteriormente, entretanto, as famílias
se moveram para os rios, onde venderam seu trabalho nos seringais, estabelecendo
pequenas aldeias próximas aos locais de coleta de borracha. Durante aproximadamente
30 anos, estes pequenos grupos moveram-se subindo e descendo o Envira, o Purus e o
Chandless, seguindo os locais de coleta da seringa, os quais foram desaparecendo à
medida que a borracha brasileira foi se tornando cada vez menos valorizada (Pollock,
1985, p. 39).
Vemos, desse movo, como a história recente dos Kulina está muito atrelada à
história da borracha nesta região. Os movimentos realizados pelos Kulina coincidem,
em grande medida, com os ciclos de apogeu e decadência da empresa seringalista:
A saída do Carolina, por volta de 1920-30 deveu-se ao abandono do
seringal, que fez com que os Kulina se dedicassem a atividades
“marginais” dentro do sistema: caça, caucho, peles. A “baixada”do
Chandless e a dispersão pelos seringais do Purus nas cercanias da
boca do Chandless dá-se entre 1940-1950. Desta data em diante, os
Kulina não se referem a vinculações estáveis com nenhum grande
patrão, nem com o corte da seringa (Viveiros de Castro, 1978, p. 16).
Desse modo, dois movimentos se sucederam a partir do momento em que os
Kulina estiveram em contato com as frentes de expansão da borracha. Primeiramente,
eles fugiram para as cabeceiras dos rios, entrando para os “centros”, e para as áreas
onde não havia seringueiras, buscando fugir das correrias do final do século XIX. Mas,
em um segundo momento, a lógica que presidiu seus deslocamentos foi a do
engajamento na empresa seringalista. Nesta fase, os Kulina foram para onde havia
“serviço”, para onde os preços das mercadorias eram menores e onde havia patrões
melhores (Viveiros de Castro, 1978, p. 16). Essas duas lógicas se sucedem no tempo e
indicam a ruptura entre o tempo dos antigos (ididenicca) e o tempo atual kulina. Nelas, é
notável a dualidade de ocupação do espaço associada, em um primeiro momento, à
fuga dos brancos – de suas correrias e de uma relação mais próxima nos seringais – e,
posteriormente, à busca pelos patrões da borracha e pelas mercadorias dos cariús. A
partir do momento em que se dedicaram mais intensamente ao trabalho nos seringais,
os Kulina passaram a habitar os “centros”, mas não o “centro da mata” como
anteriormente. Desde então, começaram a residir nos “centros” dos seringais, em
83
Histórias kulina e kanamari
colocações (cf. cap. 1 para a composição espacial de um seringal). Do que se conclui
que, para os Kulina tanto o “centro” como a “margem” de um seringal, eram tomados
como a “margem” em oposição ao “centro da mata”. O seringal como um todo, e tudo
o que a ele se associava eram “margem”, nos termos kulina, e passaram a fazer parte
do um tempo atual de sua história.
O tempo dos antigos é, portanto, marcado fundamentalmente pela residência em
grandes malocas de palha localizadas no centro da mata, ao passo que o tempo atual é
aquele caracterizado pela habitação às margens dos grandes rios e em residências
menores construídas sobre pilotis, conforme o modelo adotado regionalmente. Ainda
no tempo dos antigos, os Kulina efetuaram deslocamentos em razão da chegada dos
brancos – fugiram para as cabeceiras dos rios em decorrência das correrias – e também
começaram a realizar alguns trabalhos marginais, como relatado por Manduca. Mas,
neste momento, não haviam saído do centro da mata. O tempo atual marca, portanto, a
mudança espacial de saída do centro da mata e ocupação das margens dos rios, além
de um engajamento mais efetivo no trabalho nos seringais com o consequente acesso às
mercadorias dos brancos. Este foi o segundo tipo de deslocamento efetuado pelos
Kulina desde a chegada dos cariús, mas é certamente o mais fundamental no que se
refere a categorias de espaço e residência deste grupo indígena, marcando assim uma
importante transformação em sua história – a ruptura entre diferentes tempos.
Espaço, socialidade e selvageria
Vemos, desse modo, como o tempo atual apresentava um ritmo tempo-espacial
que lhe era próprio e em muito divergia do ididenicca (“tempo dos antigos”), ao menos
em seu período de auge, quando ainda os brancos não haviam chegado no território
então habitado pelos Kulina. Como se pode observar, o tempo dos antigos kulina agrega
diversas mudanças na vida deste grupo indígena, pois foi ainda neste tempo que se deu
a chegada dos brancos e as correrias. Entretanto, o que marca uma era, do ponto de
vista indígena, parece ser um determinado caráter e configuração de relações que são
estabelecidas neste período de sua história. O tempo dos antigos kulina é, nesse sentido,
referido como aquele em que habitavam o centro da mata e em que não haviam se
engajado de maneira decisiva no trabalho nos seringais. No capítulo 3, desenvolverei
uma discussão sobre períodos de “auge” e “decadência” de determinado tempo ou era,
onde este ponto será mais bem explicitado.
84
Capítulo 2
O ritmo da vida no tempo atual kulina passou a ser compatível com o trabalho
nos seringais e em muito diferia da sazonalidade de antigamente. Em tempos antigos, as
aldeias kulina também se caracterizavam pela mobilidade, mas as razões para tal e as
próprias características dos deslocamentos eram outras. Estes eram realizados,
substancialmente, nos casos de a) esgotamento da terra para a agricultura e dos
recursos de caça, pesca e coleta; b) abandono da aldeia por ocasião da morte de
liderança política (tamine) ou religiosa (dsoppineje); c) visitas a parentes de outras
aldeias em períodos de escassez de alimentos; d) participação em festas, sobretudo a
Coidsa (ver adiante); e e) buscas por tratamento com xamã (dsoppineje) ou com
ayahuasca (rami) (Altmann, 2000, p. 40-41). Isso não significa dizer que, no tempo atual,
os Kulina tenham deixado de mudar de localidade devido a razões parecidas. Vimos,
como exemplo, o caso de abandono de aldeia no caso de morte de um tamine na década
de 1950. Mas, certamente, no tempo atual, a mobilidade kulina foi intensificada e,
sobretudo, sua dispersão em decorrência da entrada dos cariús em seu território,
ocasionando epidemias, mortes e envolvimentos diversos com a economia seringueira.
A auto-denominação kulina, Madihá, pode assumir diferentes significados
dependendo do contexto em que a palavra é empregada. Pode significar: a) “gente”, os
seres humanos; b) “caboclo”, ou seja, índio em geral em oposição aos brancos – que se
dividem em “cariús” (os brasileiros) e os “peruanos”; c) “Kulina”, em contraste com os
Kaxinawá, Kampa, Jamamadi, Kanamari etc.; d) “parente”, no contexto típico de uká
madihá (“meu parente”), em oposição a madihá waa (“outra gente”, “não-parente”); e
finalmente e) “nação” ou simplesmente gentes madihá, os subgrupos kulina (cf.
Viveiros de Castro, 1978, p. 18; Pollock, 1985, p. 63).
A origem das gentes ou nações madihá é descrita no mito dos heróis da criação
Tamaco e Quira:
Foi assim que aconteceu há muito tempo atrás:
Um homem falou ao seu povo:
– Raspem o talo da palmeira jaci, façam arcos e flechas e vamos pescar.
Acabado o trabalho os homens foram para o lago.
Chegando lá, avistaram uma criança sentada às margens do lago. Assustados com
a presença da criança desconhecida, os madihá jogaram suas flechas e mataram a
criança.
Massosso, a mãe da criança, ouvindo os gritos de seu filho, correu em seu socorro.
Mas a criança morreu.
Indignada, Massosso chorou, lamentou-se e fugiu para a mata dizendo:
– Quando chegar a lua nova eu vou voltar para vingar meu filho!
Quando chegou a lua nova Massosso voltou. Os madihá estavam para o roçado
colhendo macaxeira e quando voltaram foram para a fonte banharem-se. Massosso,
85
Histórias kulina e kanamari
que estava escondida nas proximidades do lago, agarrou uma criança que passava
e tentou arrastá-la consigo. Mas a mãe da criança tomou-a pelo braço e correu.
Massosso ficou enfurecida por não ter podido levar a criança e por isso pôs fogo na
aldeia toda. Incendiava a aldeia espremendo o seio de onde saia um leite tão
quente que onde caia pegava fogo. Esguichava leite por todos os lados e quando o
leite caia na água fazia a agua toda ferver. Massosso corria pela aldeia toda
esguichando o leite do seio aqui e acolá queimando casas e pessoas. Dessa forma
ela acabou com a aldeia toda.
Quira e Tamaco iam chegando na aldeia e um deles falou:
– Hei meu irmão! Olha, tem um caminho aqui cheio de galhos quebrados.
– Vamos ver o que houve! Respondeu o outro.
Foram então falar com o avô onça que lhes explicou:
– Os madija acabaram. Restam apenas vocês dois e a irmã de vocês.
A irmã dos dois chegou e viu o que tinha acontecido: as casas queimadas, os
caibros das casas caídos e os madihá esmagados no pátio da aldeia. Dizem que,
quando Massosso encontrava alguém ainda com vida, ela pisava sobre seu fígado
até esmagá-lo.
Aí Quira pegou um cipó e bateu em Massosso até matá-la.
Pisoteou-a até esmagá-la. E Massosso foi diminuindo, diminuindo sob os pés de
Quira e transformou-se no noma24.
Quira tomou o dori, introjetou-o em seu próprio corpo e viajou para longe.
Quira e Tamaco foram novamente ao encontro de seus avós-onça. Não os
encontrando em sua maloca, dormiram ali mesmo.
Quira dormia de forma tão profunda que a saliva lhe escorria pelo canto da boca.
O casal de onça retornou. Vovó-onça varria a maloca com galhos quando se
deparou com Quira, que dormia pesadamente.
Vovó onça provou da saliva de Quira e falou para seu marido:
– Este meu neto está bom de comer!
Mas como Quira e Tamaco demorariam alguns dias ali, o casal de onça resolveu
esperar outra oportunidade para comê-los.
Tamaco e Quira gastavam o dia brincando com seus poderes mágicos. Ora
transformavam-se em barata, ora em outro animal qualquer. Quira era
verdadeiramente sábio!
Um dia vovó-onça falou para Quira:
– Vamos à mata buscar tocadsohua?25
– Vamos vovó! Responderam eles.
Chegaram embaixo da árvore e vovó-onça falou:
– Aqui estão minhas frutas, meus netos.
Então Quira subiu na árvore. Vovó-onça ficou embaixo comendo as frutas que
Quira jogava para ela.
Aí Tamaco subiu também na árvore, apanhou um fruto, jogou na cabeça da onça e
matou-a. Morta a onça, Quira e Tamaco abriram-lhe a barriga, retiraram as víceras,
colocaram-nas num cesto e partiram para casa.
Chegando em casa colocaram a gordura em uma panela de argila, cozinharam
comeram e foram buscar alimento no roçado.
No caminho Tamaco colheu uma cabaça e transformou-a em um catatau. Os olhos
vermelhos do catatau Tamaco fez com a tinta do urucu. Quando acabou de fazer,
Tamaco falou para o catatau:
– Quando você ouvir as pisadas de meu avô bata com o bico na raiz de uma árvore
e cante: – Catatata! Catatata! Para avisar-me.
Quando vovó-onça vinha chegando o catatau deu o aviso:
– Catatata! Catatata! Catatata!
Feitiço; objeto que é introjetado no corpo para enfeitiçar; o mesmo que dori (Altmann, 1994, anexo 10, p.
5, nota 5).
25 Fruto amazônico sem identificação em português (Altmann, 1994, anexo 10, p. 6, nota 6).
24
86
Capítulo 2
Quira correu até a fonte, trouxe um pote com água para o avô e ficou escondido
esperando. Antes, porém, teve o cuidado de balançar a rede para dar ao avô a
impressão de que estava por perto.
Vovô-onça quando chegou viu a rede balançando, o pote com água e a panela com
gordura. Sem saber que eram as víceras de sua mulher, comeu-as todinhas.
Vovô-onça, dando pela falta de Quira e Tamaco, pensou consigo:
– Devem ter se transformado em barata, aranha ou outro bicho qualquer. E
começou a comer todos os insetos que encontrava à sua volta: barata, escorpião,
aranha...
Mas Quira e Tamaco estavam escondidos no teto da maloca, bem no alto. E, com
medo de serem devorados pelo avô, voaram para o céu.
Vovô-onça por ter comido a gordura das vísceras de sua mulher, transformou-se
em um uruçu26 e subiu para o tronco de uma árvore onde ficou agarrado.
Tamaco e Quira subiram para o céu. Tamaco ia na frente, seguido por Quira. Lá no
alto, Quira sentou e falou para Tamaco:
– Olha meu irmão, quanto tiver muitos madihá eles vão lembrar-se desta história.
Estavam sentados no topo de uma palmeira, quando Quira pegou um pedaço de
âmago de pau, bateu na palmeira e falou para Tamaco:
– Hei, meu irmão! Olha, eu vou jogar um pedaço deste pau na água e ele vai
transformar-se em um jacaré. E assim se fez.
– Olha mais abaixo do rio, este outro pedaço de pau vai transformar-se em arraia.
– Olha duas arraias lá na praia!
E Quira deu nome ao jacaré e à arraia.
– Vamos fazer mais. Disse Tamaco a Quira.
E Quira fez outros animais e nominou-os; a anta, o veado, o caititu, o veado-rocho,
a onça, o gato-do-mato e todos os outros. Depois disso voaram para o céu.
Sentaram-se muito longe, bem no alto e de lá desceram para o meio de um lago. Lá
Quira pegou uma cigarra, arrancou-lhe a cabeça e jogou-a no meio do lago. O lago
começou a secar e os dois apanharam muitos peixes. Depois de moquearem todos
os peixes, Quira transformou-os em todas as espécies de alimento; macaxeira,
milho, banana, abacaxi, cana e mamão.
O abacaxi ele fez com a cabeça do jacar-preto. Tamaco queimou os peixes e
transformou-os em milho.
Depois disso Quira, cansado e com muito sono, foi dormir no alto de uma árvore.
Tamaco gritou a Quira:
– Quira, acorda! Nossos peixes estão queimando!
E Tamaco, depois disso, resolveu ficar cuidando da maloca.
Colheu coco-jaci, uricuri e coco-açu e deles fez os madihá. Os coco-buriti ele
guardou entre as palhas da maloca e depois transformou-os também em madihá.
Tamaco foi quem escolheu os côcos que transformaria em madihá.
Depois de fazer os madihá, Tamaco escondeu-se atrás de uma árvore e ficou
escutando a fala de cada um. Tamaco falou a Quira:
– Olha, Quira! São outras raças de gente! Não são madihá!
Aí viram os canamari. Os caxinauá também foram feitos por Tamaco. A gente do
tucano, a gente do macaco-preto, a gente da onça, a gente da anta, a gente do
veado, a gente da batata-doce, a gente do cachorro, a gente do macaco-prego, a
gente do jacaré-preto, a gente da cutiara, a gente do jacamim e a gente do
sanhaçu27, todos foram criados por Tamaco.
Pois bem, Tamaco foi quem criou os nossos avós e foi deles que surgimos. Quira
criou os cariús. Criou os americanos, os alemães, os peruanos, os portugueses...
Estes foram criados por Quira. Acabou!
Espécie de abelha, também chamada guarapu (cf. Ferreira, 2004). Neste caso, faz referência à colmeia,
que fica agarrada a um tronco de árvore.
27 Essas são gentes madihá.
26
87
Histórias kulina e kanamari
Narrador: Itijo ette madihá28
Nesta versão, é o herói mítico Tamaco aquele que cria as diferentes gentes
madihá a partir diversos frutos de palmeiras: coco-jaci, uricuri, coco-açu e coco-buriti.
Deu origem à gente do tucano, gente do macaco-preto, gente da onça, gente do
cachorro, gente do macaco-prego etc. Foi também Tamaco que criou os Kanamari29 e
Kaxinawá, ao que tudo indica, também originados de cocos. Foi por meio da fala que
esses diferentes grupos indígenas se diferenciaram, o que é significativo para os
Kulina, os quais consideram a fala e o discurso uma importante dimensão na
constituição da pessoa; a fala sendo, portanto, um atributo fundamental da pessoa
humana (cf. Pollock, 1985). Por sua vez, foi Quira quem criou os cariús, os americanos,
os alemães, os peruanos, os portugueses30.
Tamaco e Quira deram origem também a pássaros como o catatau, a partir de
uma cabaça, e aos alimentos cultivados, surgidos a partir dos peixes. A relação
estabelecida entre os heróis míticos e o casal de onças tinha um caráter evidentemente
predatório. Consequentemente, tal relacionamento contrastava com a relação maternal
existente entre Massosso e a criança morta pelos Madihá. Foi Massosso, por sua vez,
quem pôs fim aos Madihá e, posteriormente, morta, transformou-se no dori (ou noma),
sinônimo de feitiço e de doença verdadeira entre os Kulina (cf. Pollock, 1985, p. 113114). Este mito, portanto, não trata simplesmente do surgimento dos madihá, mas
também de princípios que os ameaçam enquanto grupo social. Assim como o próprio
surgimento é, na verdade, um renascimento após a destruição que o antecedeu.
O dori é considerada uma “doença interna”31 pelos Kulina e que afeta
majoritariamente os adultos. Traduzida como “feitiço”, é sempre causada pela ação
malevolente de um feiticeiro. O termo dori refere-se tanto à substância – descrita como
uma pequena pedra - instalada na carne/corpo do xamã e que pode ser injetada no
corpo de outros, como também nomeia a doença ocasionada pela introjeção desta
28
Esta versão do mito foi reportada por Altmann (2000, p. 53-56), coletada pelo indigenista Elzário Pereira
Júnior em 1985 na aldeia kulina Ajitini no médio Juruá. Itijo é o nome de uma liderança kulina no Juruá,
pertencente à “gente do cachorro”, ette madija (Altmann, 2000, p. 56; Montserrat; Silva, 1984, p. 24).
29 Os Kulina afirmam que os Kanamari e os Jamamadi também se dividem em madihá (cf. Viveiros de
Castro, 1978, p. 19).
30 Pollock se refere a Quira como sendo o criador de todos os seres, tendo formado os humanos a partir de
troncos de palmeira (1985, p. 100).
31 Os Kulina classificam as doenças em “internas” e “externas”. As doenças externas ocorrem na pele,
podendo, desse modo, serem tratadas com propriedades aromáticas de plantas diversas. São consideradas
“brandas e curáveis com relativa facilidade”. Já as doenças internas são causadas por “substâncias
invasoras” que ameaçam a vida da vítima (Pollock, 1994, p. 145, 147; cf. também Pollock, 1985, p. 188-218).
A distinção entre “interno” e “externo” é muito significativa para os Kulina, operando para além da
classificação de doenças. Adiante, entrarei em maiores detalhes sobre este assunto.
88
Capítulo 2
substância no corpo de uma vítima. O dori é descrito como a doença verdadeira –
“doença mesma” – e seu aparecimento indica não apenas a possibilidade de morte na
aldeia como a presença de forças malevolentes que ameaçam a existência do grupo
como um todo. Além disso, sendo causada por feitiçaria, indica um rompimento de
relações sociais adequadas (Pollock, 1985, p. 113-114). Desse modo, Massosso, a mesma
que destruiu os Kulina uma vez, continuou a ameaçar a existência social dos madihá ao
se transformar no dori.
Os Madihá que, desde então, passaram a existir, dividem-se em “gentes”, cada
qual caracterizada por uma índole própria e falante de dialetos ligeiramente diferentes
entre si. Assim como em um clássico sistema totêmico australiano (cf. Durkheim;
Mauss, 1903; Lévi-Strauss, 1976 [1962]), os diversos madihá guardam semelhanças com
os animais ou plantas em que se classificam: “os dsomaji madija, „gente da onça’, são
classificados como valentes, bravos e guerreiros; os ccorobo madija, „gente do peixe
jejum’, são esquivos e silenciosos, os jomo madija, „gente do macaco-preto’, são inquietos
e conversadores” etc. (Altmann, 1994, p. 95; cf. também Viveiros de Castro, 1978, p. 19).
“Nação” é uma palavra de origem portuguesa que os Kulina utilizam para
traduzir uma subcategoria de sua identidade, nomeada a partir de um animal ou
planta e “tendencialmente associada a um local geográfico”. Os Kulina comparam os
seus subgrupos ou “nações” às identidades regionais dos cariús; eles dizem: “vocês
não têm acreano, cearense, paulista? É igual nosso madihá”. Tal comparação aponta
para a natureza local e geográfica dos madihá, como já notara Viveiros de Castro (1978,
p. 18). Todos os membros de um subgrupo madihá são considerados wemekuté,
“parentes” ou “irmãos” entre si (Viveiros de Castro, 1978, p. 19; Pollock, 1985, p. 63);
literalmente, “ponta da minha carne” (cf. Altmann, 1994, p. 96). Desse modo, os madihá
designam parentelas localizadas e uma origem comum, mais em termos geográficos
que genealógicos. A identificação por madihá (por exemplo: maká madihá, gente da
cobra) combina critérios de filiação e local de nascimento, pois “com o passar do
tempo, os filhos de pais vindos de outros locais, ao se casarem na comunidade,
transmit[em] a filiação de madihá do cônjuge que nasceu na comunidade” (Viveiros de
Castro, 1978, p. 78). Como resultado, há uma tendência de homogeneização de madihá
por localidade. O processo padrão de atribuição de madihá decorre do nascimento na
aldeia de pais de determinado subgrupo. Nesta circunstância, o normal é que as mães
deem luz a seus filhos em suas aldeias de origem. Mas, caso isso não aconteça, a
criança pode adotar o madihá de seus pais, ainda que tenha nascido em outra aldeia;
89
Histórias kulina e kanamari
adotar o madihá da aldeia em que nasceu; ou ainda ambos. Neste último caso, o
pertencimento principal a um dos subgrupos será definido pelo local em que
futuramente irá habitar (Pollock, 1985, p. 64).
A residência entre os Kulina é convencionalmente uxorilocal – é o esposo que
sai de sua casa e vai morar com a família da esposa – embora possam acontecer outras
formas de residência (Altmann, 1994, p. 66). Embora haja uma vaga ideologia
patrilinear, ela parece não operar na prática (Viveiros de Castro, 1978, p. 78). Viveiros
de Castro listou 66 subgrupos madihá, além de ter identificado outros 10 de localização
desconhecida; enquanto Pollock foi informado da existência de 70 diferentes
subgrupos, muitos deles situados no Juruá (Viveiros de Castro, 1978, p. 22; Pollock,
1985, p. 63). Na década de 80, cada uma das aldeias do Alto Purus brasileiro era
associada a um subgrupo: Maronaua era a aldeia dos kurubu madihá (gente do jeiju32) e
Santo Amaro era a aldeia do pitsi madihá (gente do macaco-de-cheiro)33. Desse modo, os
Kulina defendiam que cada aldeia era composta singularmente de um subgrupo
madihá. Isso não impedia que outras aldeias fossem também território deste mesmo
subgrupo; mas, uma única aldeia seria residência de apenas um subgrupo. Na prática,
as aldeias eram, entretanto, mais heterogêneas em sua composição. Maronaua, por
exemplo, era composta de uma população que apenas em 50% dos casos se afirmava
kurubu madihá enquanto várias outras identidades eram afirmadas pelo restante. Mas,
apesar disso, tendencialmente, todos os residentes podiam se considerar kurubu madihá
em razão de habitarem nesta aldeia (Pollock, 1985, p. 63-64).
Os Kulina, assim como os Kanamari, afirmam que, antigamente, seus
subgrupos eram endogâmicos e mais circunscritos a locais específicos; ao passo que,
nos tempos atuais, estariam “misturados” (Viveiros de Castro, 1978, p. 19). De fato, há
um modelo ideal segundo o qual os casamentos devem ocorrer internamente a um
subgrupo específico; mas não existe proibição de matrimônio entre pessoas de
subgrupos distintos; tais uniões, aliás, são muito comuns (Pollock, 1985, p. 71). Este
ideal parece também orientar a visão segundo a qual Maronaua, por exemplo, seria
“puro Kurubu madihá” (Viveiros de Castro, 1978, p. 19). Independentemente da
“mistura” dos subgrupos nos tempos atuais, a associação de um determinado madihá a
"Jeiju" ou "jeju" é o nome popular de duas espécies de peixe da família Erythrinidae: Erythrinus erythrinus
e Hoplerythrinus unitaeniatus (Soares et alli, p. 83-84).
33 Pollock usa a palavra pitsi e a traduz por “tipo de macaco”. Possivelmente o termo se refere ao “macacode-cheiro” – no dicionário kulina-português, encontramos a palavra pissi que, por sua vez, é traduzida por
“macaco-de-cheiro” (Monserrat; Silva, 1984, p. 48).
32
90
Capítulo 2
uma localidade específica é significativa, ainda que os locais a eles associados tenham
mudado ao longo do tempo. O espaço, assim, desempenha continuamente um papel
fundamental na definição e constituição dos diferentes subgrupos kulina.
Para pensarmos os tempos kulina é fundamental compreendermos a
importância atribuída aos espaços na constituição e definição dos diferentes eras.
Como mencionado anteriormente, os Kulina consideram que, no passado, quando as
suas aldeias eram situadas no meio da floresta, eles também eram “brabos” ou
“selvagens”. Desse modo, eles contrastam seu estado anterior de selvageria com seu
modo de vida atual: foram selvagens por terem habitado o interior da floresta. Tal
associação deriva, em parte, da consideração de um passado violento onde a guerra era
comum, mas também reflete a construção cultural e separação da vida social em
variados domínios, o contraste entre floresta e aldeia criando as condições ideológicas
da socialidade (Pollock, 1985, p. 182).
A associação entre espaço e pessoa não apenas se circunscreve aos tempos
kulina, sendo largamente utilizada por este grupo indígena. Os bebês, por exemplo,
são descritos como internos à casa:
Bebês estão “com a casa”34 (udzadza), o local da nutrição. Desprovidos
de tudo, com exceção dos pré-requisitos mínimos para a constituição
da pessoa, os bebês não são associados às áreas públicas nas quais a
pessoa é exposta [...] é afirmado estarem “dentro da casa” e estão
sujeitos às perigosas ameaças que afetam o lar enquanto local de
subsistência e relações de nutrição (Pollock, 1985, p. 174, tradução
minha).
Os adultos também são associados aos lugares, sobretudo em contextos rituais,
onde assumem o “centro”, que é tanto do espaço ritual quanto da posição central que
assumem neste contexto (Pollock, 1985, p. 175). Nos termos kulina, o espaço, assim
como as pessoas, é classificado a partir da distinção fundamental entre
“interno”/“privado” e “externo”/“público”.
O “interior” indica aquilo que é
selvagem, perigoso, não sociável, ao passo que o “exterior” qualifica aquilo que é
sociável e doméstico (cf. Pollock, 1985, p. 172-173). Estes dois termos são orientadores
da classificação de uma enorme gama de aspectos da vida social kulina. Há, desse
modo, doenças que são externas e outras que são internas; os homens são, em diversas
circunstâncias, aproximados a características de interioridade, enquanto as mulheres
são associadas à qualificadores de exterioridade, desempenhando inúmeras funções de
34
No original: “Babies are „with the house’”.
91
Histórias kulina e kanamari
domesticação. No âmbito das diversas classificações kulina, a aldeia “sociável” é
contraposta à floresta “selvagem” a partir de distinção semelhante à traçada para o que
é externo e o que é interno, respectivamente. A floresta é caracterizada por
qualificadores de “interiores”, a saber, por perigos potenciais, transição, socialidades
não normais. A floresta é habitada por criaturas selvagens e perigosas, muitas delas
espíritos tokorime35. É uma área com pouca sociabilidade potencial, repleta de
implicações de insociabilidade: selvagem, silenciosa, perigosa (Pollock, 1985, p. 173).
Aliás, a própria classificação entre pessoas mais ou menos completas realizada
pelos Kulina opera em termos do contínuo que liga os polos “bravo/selvagem” e
“manso”. Ao longo do ciclo de vida, diferentes habilidades marcam a passagem dos
diferentes estágios de completude da pessoa: neste contexto, a aquisição da fala e da
habilidade oratória é um importante marcador. O silencio é descrito pelos Kulina como
eminentemente anti-social (wadi), sendo, por exemplo, a aquisição da habilidade de
expressão oral uma diferença fundamental entre a criança e o adolescente. Já o
discurso/fala, assim como a música, é a característica de sociabilidade por excelência.
Assim, enquanto “a infância é associada com a fala desajeitada; a adolescência com
músicas simples tocadas em flautas; a fase adulta é associada com a fala e o cantar
completamente competentes” (Pollock, 1985, p. 168). Por sua vez, os adultos “mais
completos” são associados ao discurso elaborado e qualificado. Estes são chamados
“tamine” (chefe), mesmo quando não reivindicam formalmente tal status (Pollock, 1985,
p. 166-169).
Os Kulina classificam uma enorme gama de seres, espaços, pessoas em
“selvagens” (wadi) e “mansos” (jone). Esses conceitos não são absolutos, mas
contextuais e inseridos em um continuo, de selvagem a manso, ao longo do qual os
seres são ordenados. Também são associadas a estes termos, as características de bom e
mau cheiro: os animais carnívoros são os de pior cheiro e a função do cozimento é
transformar o mau odor em bom, ou seja, transformar alimentos não comestíveis em
comestíveis. A qualidade “selvagem”, por sua vez, está associada com perigos místicos
relacionados aos “interiores”. Estes perigos, por sua vez, são intensificados na medida
em que se manifestam publicamente: um ato que resulte em derramamento de sangue
é considerado um ato selvagem por ser a manifestação pública de uma raiva que
Os espíritos Tokorime podem ser definidos como espíritos possuidores de dori. Nos rituais de cura, os
xamãs se transformam nesses espíritos, que irão expelir o dori do doente. Tais rituais recebem o mesmo
nome do espírito, Tokorime (cf. Pollock, 1985, p. 207, 211; 1994, p. 154-155).
35
92
Capítulo 2
deveria permanecer interna e privada (Pollock, 1985, p. 180-181). Desse modo, notamos
entre os Kulina uma explícita associação entre “interior”, “selvagem” e “mau cheiro”,
por um lado, e “exterior”, “manso” e “bom cheiro” por outro.
Em geral, os bons cheiros são responsáveis por moderar o estado “selvagem”,
enquanto os maus cheiros ampliam este estado. Os adolescentes do sexo masculino
(dzabitso), por exemplo, carregam consigo folhagem de bom cheiro cuja finalidade é a
de amansar a si próprios para se tornarem seres atrativos e sociáveis na abordagem às
adolescentes do sexo feminino. Eles são considerados particularmente insociáveis e sua
capacidade para este estado deriva, na visão dos Kulina, da associação entre
masculinidade e o ato de caçar na floresta, onde os homens dispendem muito de seu
tempo. Mas, tais quais os meninos mais novos, os adolescentes ainda não aprenderam
a controlar sua natureza selvagem: esta não foi amansada por ainda não serem eles
adultos. A selvageria dos dzabitso consiste, assim, na sua falha em compreender a
sociabilidade que lhes seria pressuposto conhecer. Sua desculpa, por outro lado, deriva
do mesmo ponto, a saber, que é da natureza dos adolescentes serem selvagens. Já as
dzuato, adolescentes do sexo feminino, são consideradas menos selvagens que os
garotos, embora também o sejam. A adolescência é um estado de transição para as
garotas e, desse modo, elas são imbuídas de uma dosagem a mais de selvageria em
comparação com as mulheres adultas. Suas atitudes não são aceitas como as de um
adulto, mas toleradas pelas mesmas razões que são as dos adolescentes do sexo
masculino (Pollock, 1985, p. 184).
Os adultos, por sua vez, são considerados sociáveis ou apenas minimamente
selvagens. Os homens adultos, maki, são ocasionalmente associados à insociabilidade
por serem caçadores. Enquanto as mulheres adultas, amunahe, são mais domesticadas
por meio de sua associação com a casa e a aldeia. De fato, as mulheres socializam os
madihá, não apenas as crianças, mas também os homens, por meio do casamento. O
casamento ancora o homem em uma nova família e transforma o conjunto de relações
sociais focais que orienta o comportamento masculino. Os Kulina utilizam a metáfora
significativa do cozimento para descrever este processo: do mesmo modo que a mulher
transforma cheiros ruins e selvagens em comida, assim também transformam os
selvagens e mau cheirosos adolescentes em maridos domesticados (Pollock, 1985, p.
185).
O ritual Coidsa explicita tanto este papel das mulheres como domesticadoras,
quanto a intrínseca relação entre espaço e elementos qualificadores da pessoa kulina.
93
Histórias kulina e kanamari
Este ritual proporciona o estabelecimento de relações com outras aldeias e com pessoas
de outros subgrupos madihá, os visitantes que chegam para participar da festa36. Nele, a
bebida feita a partir da macaxeira, de mesmo nome do ritual, coidsa, é consumida
abundantemente (Altmann, 1994, p. 128). Não descreverei detalhadamente o ritual
aqui, mas desejo apenas destacar um de seus momentos: aquele no qual os homens
entram para a floresta e voltam dela “transformados em jidsama” (queixada); quando
voltam, as mulheres oferecem a eles coidsa em grande quantidade. Neste ato, vemos
reiterada a diferença entre, por um lado, a floresta (dsama) e seres que a habitam, como
o jidsama e, por outro, o terreiro da aldeia (boroni) e plantas cultivadas como a
macaxeira (poho) (Altmann, 1994, p. 129). Há, portanto, uma dramatização (cf. Turner,
2005 [1967]) da oposição fundamental entre floresta e aldeia, selvagem e manso; sendo
a coidsa é um elemento fundamental na transformação do selvagem em domesticado.
Aplicação semelhante desta bebida pode também ser observada nos rituais de cura em
que ela amansa a doença, considerada selvagem – o processo de cura envolve sempre
uma atividade de amansamento. Do mesmo modo, os Kulina afirmam que a bebida de
mandioca, em seu uso mais cotidiano, amansa o homem que voltou de uma caçada,
isto é, o homem que se tornou selvagem uma vez que caçava na floresta (Pollock, 1985,
p. 215)37.
Vemos como o estado selvagem e os aromas estão diretamente associados a
noções de espaço social. De fato, em alguns contextos, as qualidades de selvageria e de
odor são tomadas como propriedades de coisas e processos os quais são ordenados
pelos contrastes de “interno” e “externo”, “floresta” e “aldeia”. Animais da floresta são
selvagens e de mau cheiro por sua localização no espaço social, assim como os homens
adultos são selvagens e de mau cheiro quando caçam na floresta. Espaço e pessoa, por
sua vez, conectam-se aos tempos kulina, pois, como vimos anteriormente, no passado,
eram moradores da floresta e bravos; atualmente, os Kulina moram nas margens dos
rios e se dizem mansos. Desse modo, o principal marcador da mudança histórica para
os Kulina é uma transformação significativa de importantes aspectos de sua vida social
– espaço e pessoa. A passagem do tempo dos antigos ao tempo atual equivale a uma
De maneira análoga ao Hori dos Kanamari, o qual será abordado ainda neste capítulo.
Como bem observado por Pollock, o processo de feitura da bebida de macaxeira compreende um duplo
cozimento: os tubérculos crus são primeiramente fervidos a fim de amolecerem e, após a mastigação
realizada pelas mulheres, a mistura resultante é fervida mais uma vez antes de ser consumida. Desse
modo, passa duas vezes pelo procedimento que transforma alimentos de mau-odor em alimentos de bomcheiro. São considerados, portanto, duplamente de bom-cheiro e também duplamente mansos (Pollock,
1985, p. 214).
36
37
94
Capítulo 2
alteração do modo de ocupação do espaço, da morfologia social: eles passaram a
habitar as margens dos rios, reunindo um menor número de pessoas em cada
residência (agora, não mais malocas), dedicando-se sobretudo a um trabalho localizado
em um espaço específico constituído pelo seringal (ver cap. 1). Neste novo tempo
também deixaram de ser “bravos”, habitantes da mata, e passaram a ter seus
subgrupos “misturados”.
Os Piro, habitantes do Baixo Urubamba na Amazônia Peruana, também se
referem à sua história dividindo-a em tempos ou épocas específicas – “tempo dos
anciãos”, “tempo da borracha”, “tempo da fazenda” e o tempo atual (“estes tempos”).
O “tempo dos anciãos” é um tempo do qual os Piro buscam, atualmente, distanciar-se
de maneira qualitativa. Neste tempo, seus acestrais viviam na floresta, sem ainda terem
estabelecido contato com os brancos, e se constituíam enquanto um determinado tipo
de pessoa que muito se diferenciava dos Piro atuais. Particularmente, faltava-lhes
grande parte do conhecimento atualmente adquirido, pois ignoravam instrumentos de
metais, espingardas, “roupas de verdade”, dentre outros bens. O tempo dos anciãos
era também marcado por constantes guerras e violências. De maneira contrastante, os
Piro se encaram, nestes tempos, enquanto pessoas “civilizadas”, e tal modo de ser é
encarado positivamente por eles. Esse estado não se opõe a um suposto modo de ser
“tradicional”, mas sim a um tempo associado “à ignorância e ao desamparo dos
antigos ancestrais moradores da floresta”, de modo que, “ser civilizado” significa ser
autônomo, viver em aldeias e de acordo com os valores considerados apropriados,
comer “comida legítima”, etc. Assim, os Piro se afirmam, “no tempo atual”, como
pessoas diferentes daquelas dos tempos antigos, sendo agora pessoas misturadas e
civilizadas (Gow, 1991, p. 62-63).
Os Kulina, diferentemente dos Piro, parecem vivenciar, no tempo atual, uma
posição ambígua em relação ao seu tempo dos antigos. Mesmo que hoje habitem a
margem de rios maiores, tendo inclusive aprendido a construir canoas, eles, ainda
assim, se veem como “moradores da mata” (dsama abari). Os Kulina se identificam ao
mutum como sendo habitantes da floresta que apenas recentemente se adaptaram a
uma vida à beira dos grandes rios (Altmann, 2000, p. 85). São caçadores, considerando
a carne de caça sua comida por excelência (Pollock, 1985, p. 34, 48). Em meados do
século XIX, eram conhecidos mais por rumores, de acordo com o explorador William
Chandless, uma vez que eles preferiam viver no meio da mata, evitando aparecer às
margens dos grandes rios (Chandless, 1969, p. 300). Os Kulina identificam sua origem
95
Histórias kulina e kanamari
“no coração da mata” ou “em direção ao interior da mata”, apesar de viverem nas
margens dos rios. Segundo Altmann (2000, p. 63), “a floresta ainda hoje permanece
como espaço de reserva para o seu abastecimento físico e simbólico”.
Por outro lado, foram os próprios Kulina que, em determinado momento,
viram-se desejosos dos bens que os brancos possuíam. Certamente, esta atração
exercida pelas mercadorias não deve ser vista de maneira isolada, mas inserida num
contexto em que o território antes ocupado pelos Kulina estava, agora, também
povoado pelos cariús. Como vimos no cap. 1 e também neste, a chegada dos brancos à
região provocou inúmeras transformações no espaço, com a instalação de seringais, a
ocorrência de doenças decorrentes do contato e de correrias que ameaçaram, quando
não exterminaram, muitos povos indígenas que lá habitavam. Desse modo, a saída do
centro da mata para a margem foi também o encontro com a “civilização”38. Este
encontro produziu diversas modificações na vida kulina, sendo significativas as
rupturas entre seus diferentes tempos. Em 1999, o SIL do Peru produziu uma
publicação de relatos kulina sobre o tempo de seus antepassados, intitulada Ididenicca
ima. O conjunto desses relatos chama a atenção para o fato de que o tempo atual muitas
vezes é visto como o sinônimo do acesso a bens industrializados e às transformações a
eles associadas. Como afirma Jaimoda (Madihá), “desde que nossos antepassados
saíram para o grande rio e entraram em contato com a civilização, usamos coisas
fabricadas”. Antes, viviam “na floresta”, não usavam roupas, dormiam em qualquer
lugar, usavam conchas como talher, moravam em malocas, não conheciam o algodão,
usavam vasilhas de cerâmica e palitos velhos de cana brava para fazer fogo. Hoje,
vivem “no rio”, andam vestidos, dormem em casas, usam colheres, moram em casas
menores39, conhecem o algodão, utilizam fósforos e vasilhas fabricadas (cf. Ididenicca
ima, 1999, p. 42-68).
Chiara & Schultz (1955, p. 186) relataram, na década de 1950, que o contato
entre os Kulina e os seringueiros já havia provocado transformações nas percepções e
costumes desse grupo: nunca se despiam diante de um visitante e distinguiam-se com
orgulho dos “caboclos brabos” que não usavam roupas. Por outro lado, notaram que já
não lhes era mais possível suprir a todas as suas necessidades recorrendo às fontes da
natureza, “mesmo se quisessem voltar ao sistema primitivo da sua vida econômica”.
Como afirmou Viveiros de Castro (1978, p. 10): “a margem é o locus da civilização para os Kulina”.
Trata-se de casas pequenas quando comparadas com as malocas de antigamente, construídas sobre
pilotis, nos moldes regionais das habitações dos seringueiros (Altmann, 2000, p. 46-47; Silva, 1997, p. 17).
38
39
96
Capítulo 2
Pois, “com a invasão das matas por levas de seringueiros, madeireiros, comerciantes e
caçadores”, os recursos naturais tinham sido diminuídos ou até esgotados (Chiara;
Schultz, 1955, p. 188). O fato de que os Kulina distinguiam-se dos “caboclos brabos”
com orgulho contrasta com a outra postura observada entre este grupo: a saber, o fato
de se afirmarem moradores da mata, mesmo que, hoje, não mais a habitem. O contraste
é radical e, ao mesmo tempo, equivalente à ruptura entre os diferentes tempos-espaços
de sua história.
Esta ambiguidade foi mantida nas décadas posteriores, como podemos
observar nos relatos de Pollock (1985) e Altmann (1994) a respeito da posição ocupada
por este grupo. A este respeito, Pollock afirmara na década de 1980:
Atualmente, os Kulina se veem entre a fidelidade a uma economia de
subsistência tradicional e o desejo de produzir excedentes ou uma
renda extra, muitas vezes sacrificando a primeira em detrimento do
segundo. O dilema fundamenta uma séria divisão na aldeia entre
aqueles que desejam maximizar o potencial produtivo do trabalho da
aldeia por meio, por exemplo, da atividade seringalista, e aqueles
mais conservadores que rejeitam o estabelecimento de relações
econômicas permanentes com os brasileiros, nos termos estabelecidos
por estes últimos, e a ruptura cultural e social que este tipo de
interação já produziu (Pollock, 1985, p. 55, tradução minha).
Altmann acentuou ambiguidade semelhante: “o Kulina vive a contradição de
ser morador da água/terra por um lado [...], e morador do ar/mata, por outro [...]. Esta
contradição integra sua dinâmica de vida no atual momento histórico” (Altmann, 1994,
p. 115-116). A contradição observada na dinâmica da vida parece ser, entretanto,
recolocada sem ambiguidade nos tempos em que os Kulina dividem sua história. Eles
apontam para dois modos contrastantes de se viver, para duas socialidades distintas.
Em cada uma delas, mudam os espaços e também os próprios Madihá. Os tempos, desse
modo, apontam para duas diferentes possibilidades de existência social. Os Kulina,
nesse sentido, reportam-se ao ididenicca como um tempo-espaço ideal, associado a
aspectos cruciais da sua identidade – caçadores, moradores do centro da mata. Assim,
os tempos, ao totalizarem sem ambiguidades socialidades divergentes, parecem
também operar como um modo específico de reflexão sobre a história, uma vez que
encarnam diferentes possibilidades de existência experimentadas pelos Kulina, a partir
das quais podem ser pensadas alternativas futuras.
Nesse sentido, a possibilidade de morarem em uma terra demarcada parece ter
suscitado neles a ideia de poderem “viver como antigamente”. O relato de Bosi Cacoari
97
Histórias kulina e kanamari
Madija, registrado no Juruá na década de 80, é expressivo desta esperança e em muito
se assemelha às expectativas dos Kulina do Purus em relação à demarcação de sua
terra no mesmo período, expressa na carta redigida em conjunto com os Kaxinawá. Em
ambos os relatos, notamos a importância atribuída à terra para a constituição de uma
nova vida como também à aprendizagem da escrita e do cálculo, mediadores da
relação com os brancos. Assim afirmou Bosi Cacoari Madija:
Antigamente, nesta terra toda só morava índio.
Morava bonito. Cantava, fazia festa, caçava e pescava.
Família morava tudo junto numa maloca que kulina chama odsa beje
Na maloca os velhos contavam história antiga.
História antiga ensinava kulina viver bonito.
Não tinha fofoca.
A terra era de todos.
Depois chegou o branco.
Branco queria terra de kulina para cortar seringa, para botar fazenda.
Branco matou muito kulina.
Abusou de mulher de kulina.
Levou criança para criar.
Kulina quase que acaba.
Sobrou pouco e virou escravo de seringueiro.
Agora kulina é pouco.
Mora tudo longe, em casa pequena.
Agora velho não pode mais contar história antiga.
Agora kulina quer mercadoria, quer roupa, quer munição, quer sal.
Kulina tem que trabalhar duro para comprar mercadoria.
Se kulina não conhece dinheiro, branco engana, não paga certo.
Quando kulina aprende ler, fazer cálculo, aí branco não pode mais enganar
kulina.
Quando terra estiver demarcada, aí kulina vai viver bonito como
antigamente40.
De fato, desde que se viram concentrados em aldeias maiores nos tempos atuais,
ao invés de dispersos em colocações nos seringais, os Kulina consideraram aumentadas
suas possibilidades de organização e sobrevivência. No alto Purus, desde a década de
1970, pelo menos, não estavam mais inseridos na economia regional estritamente como
“seringueiros”, identidade a qual nunca adotaram para si tão amplamente como os
Kaxinawá, por exemplo. Nesta época, os Kulina de Maronaua podiam mais ser vistos
como um misto de “barranqueiro” – camponês que ocupa terras de seringais
desativados – e “peão”, dada a forma com a qual se ligavam ao seringal Sobral; mas
nunca deixaram de manter seus roçados (Viveiros de Castro, 1978, p. 28). A anterior
impossibilidade de fixidez na terra estava diretamente vinculada à busca por novos e
Relato registrado por Abel Silva na aldeia do Igarapé do Anjo, no Rio Envira (Silva, 1984 apud Altmann,
2000, p. 48-49).
40
98
Capítulo 2
bons patrões (cf. Altmann, 2000, p. 109) e à desestruturação da chefia indígena. Não ter
um espaço próprio significou não ter um chefe e também uma desorganização do
modo de vivência anterior dos subgrupos madihá. Como vimos, no tempo dos antigos,
antes da chegada dos brancos, os Kulina pareciam ter certa fixidez em seu território,
uma vez que não precisavam realizar deslocamentos em função de fugas e epidemias
constantes.
Um bom chefe (tamine) nos termos kulina é aquele que, “mesmo nos períodos
de crise, ainda tem algo a oferecer”. Um bom chefe seria uma espécie de “chefeconselheiro-pajé-cantador” (Altmann, 1994, p. 92), exercendo também atividades
xamânicas, sendo um bom orador/cantador e mantendo o povo unido. Pois o discurso
– assim como o canto –, para os Kulina, é a característica de sociabilidade por
excelência, sendo elemento diferenciador entre tipos de pessoas, entre aquelas menos e
mais completas. Como vimos antes, a competência linguística é uma importante
característica que diferencia as pessoas ao longo do ciclo de vida.
Pessoas completas como o tamine eram as que deveriam, idealmente, estabelecer
contatos com os cariús41. O tamine é entendido pelos Kulina como o “patrão” que chefia
os dzutupéi (chefiados/ fregueses): sua figura é associada à do “bom patrão”. Sua
função é a de “agradar o pessoal”, patrocinando festas e promovendo a distribuição
alimentar. Ele discursa em público ao crepúsculo exortando a comunidade ao trabalho,
censurando os desvios e lembrando os exemplos do passado; é ele também quem atua
como pacificador nos casos de feitiçaria (dori). Assim, na posição de “bom patrão”, ele
convoca a comunidade ao trabalho e efetua a redistribuição cerimonial (Viveiros de
Castro, 1978, p. 79). A busca por bons patrões foi uma constante na história recente dos
Kulina. Eles estavam, como procurei mostrar, associados com as possibilidades de
existência social dos Madihá enquanto grupo. De maneira análoga a de um chefe, um
bom patrão é aquele que, ao organizar o trabalho, torna uma forma específica de vida
social possível.
A destruição parece ter sido sempre um horizonte possível para os Kulina.
Trata-se de um acontecimento relatado pelo próprio mito de origem dos Madihá,
Os Kulina classificam as doenças advindas do contato com os brancos como doenças externas, que
ocorrem na pele, podendo, desse modo, serem tratadas com propriedades de plantas e cheiros. O lócus
externo dessas doenças, como o sarampo, indica que elas são causadas por contatos impróprios com uma
influência anti-social ou selvagem; neste caso são os brasileiros que representam tal influência. Na
perspectiva kulina, os contatos ideais com os brasileiros deveriam ser sempre estabelecidos por pessoas
consideradas completas, mais preparadas para lidar com influências exteriores ao grupo - as crianças
representariam o extremo oposto desta escala (Pollock, 1985, p. 197-198).
41
99
Histórias kulina e kanamari
quando Massosso colocou fim à existência anterior dos Kulina. É igualmente um
horizonte aventado na carta endereçada à Funai, quando consideraram necessário
afirmar “nós não queremos morrer”. A Funai aparece, desse modo – tal qual sugerido
no início deste capítulo –, como um possível futuro novo patrão. O relato de Bosi
Cacoari Madija aponta para a importância da terra e para a esperança de mudança dos
tempos quando os Kulina tivessem uma terra demarcada. E, como vimos, nada melhor
do que um novo espaço para a constituição de um novo tempo. Desse modo, o
ididenicca não parece ser encarado como um passado irreversível, mas como um tempoespaço no qual se poderia voltar a viver; um passado que se concretiza como
perspectiva de futuro.
Subgrupos, territorialidades e as transformações dos tempos kanamari
Do Céu Antigo ao tempo de Tamakori: primeiros tempos
Os Kanamari, falantes de uma língua da família Katukina, formam uma
população de aproximadamente 3.167 indivíduos (FUNASA, 2010 apud ISA, 2013e)
que habitam majoritariamente o médio Juruá. Recentemente, houve migrações dos
Kanamari para a região do baixo Japurá, afluente do Solimões e também para o médio
Jaravi, passando antes pelo alto Itaquaí (Costa, 2007, p. 19). No que se refere a Terras
Indígenas homologadas, atualmente, os Kanamari habitam: KN1) a TI Kanamari do
Rio Juruá; KN2) a T. I. Mawetek, na margem esquerda do Juruá, de onde vieram os
Kanamari que habitam atualmente o alto Itaquaí; KN3) a T I Vale do Javari,
compartilhada com os Korubo, Marubo, Kulina Pano, Matis, Matsés, Tsohom-dyapa e
outros grupos isolados; KN4) a TI Maraã/Urubaxi e KN5) a TI Paraná do Paricá,
ambas na bacia do Solimões; e, por fim, KN6) a TI Patauá, na região da confluência
entre os rio Solimões e Madeira, compartilhada com os Mura (ISA, 2013) – ver mapa 3.
Na atual Terra Indígena do Vale do Javari, existem três núcleos Kanamari: um
no alto Itaquaí, outro no alto Jutaí e um terceiro no médio Javari. Neste capítulo,
abordarei particularmente os Kanamari do alto Itaquaí, estudados pelo antropólogo
Luiz Costa nos anos de 2002 a 2006. Estes Kanamari migraram para este rio a partir dos
afluentes da margem esquerda do Juruá no final da década de 1930. O alto Itaquaí se
situa muito próximo do alto curso destes afluentes, mais ou menos a um dia de
caminhada (Costa, 2007, p. 19). Antes da migração de 1930, muitos Kanamari já
100
Capítulo 2
visitavam o Itaquaí, possivelmente estabelecendo lá algumas aldeias (Tastevin s.d.1, p.
12, 17 apud Costa, 2007, p. 19).
Os Kanamari que, hoje, habitam o alto Itaquaí dividem sua história em três
tempos: tempo de Tamakori, tempo da Borracha e tempo da Funai42. Eles narraram diversas
histórias (ankira) a Costa (2007) e sempre situavam cada uma delas em um desses
tempos. Cada uma das eras é inaugurada por uma figura paradigmática que sintetiza
tipos específicos de relações que marcam a vida dos Kanamari no tempo em questão,
“como se as interações dos Kanamari com cada uma dessas figuras se prolongasse após
sua ausência, desembocando na socialidade que os sucede” (Costa, 2007, p. 32). Para
cada tempo, há uma história (ankira) que explica a origem da era em questão e que
narra as atividades de seus personagens prototípicos durante sua estadia entre os
índios43.
Há, ainda, um quarto tipo de histórias, as chamadas “Histórias do Céu Antigo”
que não se situam em nenhum desses tempos, havendo apenas um consenso entre os
Kanamari de que elas teriam ocorrido antes do tempo de Tamakori. Elas narram como
surgiu um mundo dividido em tempos (Costa, 2007, p. 32) e, desse modo, trazem
consigo certa ideia de atemporalidade, de algo que existiu e continua existindo fora das
transformações do tempo e da história44. As Histórias do Céu Antigo narram, por meio
de um conjunto de mitos, como o modelo de endogamia do subgrupo passou a existir.
Neste mundo, o “mundo mítico”, tudo o que existia estava contido por uns poucos
jaguares. O mundo era caracterizado pela continuidade e eternidade. Foi apenas com a
queda do Céu Antigo sobre a terra que este mundo foi fragmentado em unidades
menores, i. e. discretas; sendo os subgrupos uma delas. Foram Tamakori e Kirak, irmãos
e heróis criadores que estabeleceram os componentes finais deste novo mundo surgido,
no decorrer de uma longa viagem que realizaram pelo Juruá (Costa, 2007, p. 209).
Foram, desse modo, os mesmos heróis culturais, acima referidos como Tamaco e Quira,
que criaram os madihá dos Kulina45.
Infelizmente, não tivemos acesso aos nomes dos tempos kanamari na língua indígena. Segundo Costa
(2007), os Kanamari costumam se referir a esses tempos em português, mesmo no contexto de um discurso
proferido na língua kanamari. Assim, por exemplo, ao afirmarem que determinada história se sucedeu
“quando era o Tempo de Tamakori”, dizem “Tempo de Tamakori toninim anim” (cf. Costa, 2007, p. 32).
43 Os tempos Paumari também são caracterizados por apresentarem histórias inaugurais de personagens
prototípicos (ver cap. 3).
44 No próximo capítulo abordarei mais detidamente maneiras possíveis de se pensar o tempo mítico com
relação aos demais tempos não míticos.
45 Carvalho (2002, p. 90-91) já havia atentado pela enorme semelhança entre os subgrupos e histórias de
criação dos Kulina e Kanamari.
42
101
Histórias kulina e kanamari
As Histórias do Céu Antigo não devem ser entendidas como um dos tempos
kanamari, por serem justamente descaracterizadas de um tempo e espaço circunscrito e
ter como qualidade fundamental a atemporalidade. Os Kanamari, como esclarece
Costa (2007, p. 210), não sentem a necessidade de enumerar uma época equivalente aos
seus demais tempos para este conjunto mítico. Enquanto esses mitos narram uma
história que parece ter ocorrido em um passado distante, precedente à chegada de
Tamakori, “eles não são nem temporais nem tampouco contêm referentes geográficos
precisos. Ao invés disso, eles se situam em um mundo que continua vindo a existir,
fora da história e além do tempo”46. Eles expressam antes um “potencial de mundo” e
“virtualidades sociais” (Costa, 2007, p. 210).
O mundo mítico kanamari é povoado por personagens-jaguar (Pidah), os quais
se relacionam a dois princípios fundamentais. O primeiro deles, muito semelhante ao
aventado pelos Kulina, reconhece nos jaguares a antítese do mundo que desejam para
si próprios, pois representam o princípio da não sociabilidade por excelência: eles estão
associados à raiva, à avareza e à solidão. Com eles, a única relação possível a se
estabelecer é a de guerra. Os Kulina, de modo análogo, atribuem aos jaguares o
princípio de wadi (são selvagens, insociáveis). As almas dos mortos (tabari) que não são
conduzidas para o mundo subterrâneo e transformadas, adequadamente, em espíritos
de queixada – processo auxiliado pelo xamã –, são transformadas em espíritos de
jaguar (dzumahe tokorime), passando a habitar uma das camadas do céu (patso
dazamarini). Essas duas alternativas pós-morte refletem não simplesmente funerais
própria ou impropriamente realizados como pessoas impróprias/bruxos e pessoas
normais. Os espíritos-queixada, sendo gregários, são associados a características
humanas. Já os espíritos-jaguar são tomados como selvagens, caçadores solitários, seres
temerosos que incorporam as capacidades destrutivas dos feiticeiros (cf. Pollock, 1985,
p. 101-102, 180).
O segundo princípio incorporado por esses jaguares antigos refere-se à mestria:
o Jaguar é o mestre (-warah) de tudo, qualidade que atrai os Kanamari, embora
igualmente os assuste (Costa, 2007, p. 211).
–Warah significa, simultaneamente, “chefe”, “corpo” e “dono”:
A palavra –warah precisa ser prefixada por um sujeito, de modo que
uma pessoa sempre será “chefe/corpo/dono” em relação a alguma
A passagem de um mundo mítico a uma era inserida no tempo e no espaço será mais bem trabalhada no
cap. 3, onde abordarei esta transição para o caso específico dos Kaxinawá.
46
102
Capítulo 2
coisa, alguém ou algumas pessoas. Este termo pode, portanto, se
referir a qualquer corpo vivo, e um corpo humano é dito tukuna-warah,
“pessoa-corpo”. A palavra também pode ser empregada de um modo
parecido com o verbo „ter’ em português, mas, nesse caso, indica-se
que alguém é “dono” de alguma coisa. A afirmação “oba-warah anyan
bo”, por exemplo, pode ser glosada como “ele tem tabaco”, mas
literalmente quer dizer algo como “ele é dono do tabaco”. Os chefes
são chamados de tyo-warah, “nosso corpo/dono” por aqueles de quem
eles são chefes (Costa, 2007, p. 47).
A ideia transmitida pelo termo é a de fornecimento de estabilidade a algo que é
potencialmente fluido: –warah afirma-se como “um” àquilo que é potencialmente
“muitos” (Costa, 2007, p. 47).
O mundo atual dos Kanamari surgiu através de repetidos ataques ao corpo (warah) do Jaguar – equivalente ao mundo então existente –, o qual começou a se esvair,
“tornando-se sucessivamente menos Jaguar” (Costa, 2007, p. 211). Um desses mitos, no
qual o Jaguar era o “mestre dos peixes” mostra como um corpo-Jaguar se transformou
em diversos aspectos do mundo humano, tais quais os seringais (cf. Costa, 2007, p. 216217). Foi também o Jaguar que nomeou o Juruá, o qual é frequentemente referido como
“o rio do Jaguar” (Pidah nawa wah). A associação entre o Juruá e o Jaguar é significativa,
pois, para os Kanamari, o Juruá – além de ser o -warah de todos os outros rios, seus
afluentes, nos quais passaram a habitar os subgrupos kanamari no tempo de Tamakori –
é um rio ambivalente. Ao mesmo tempo em que respeitado e imponente, o Juruá era,
naquele tempo de Tamakori, o rio no qual não se poderia viver, “fluindo em águas
barrentas, repletas de mosquitos, e povoado por perigosos povos de língua Pano”,
dentre os quais, os Kaxinawá47 (Costa, 2007, p. 225).
Com o surgimento do mundo atual, os Kanamari passaram a existir por meio
de seus subgrupos –dyapa organizados, cada qual, em um conjunto de aldeias. Cada
aldeia emerge como uma unidade por meio de um –warah (chefe/corpo/dono) que dá
forma ao conjunto de pessoas que dela fazem parte, estabilizando-o, por assim dizer.
Segundo os Kanamari, sem um chefe essas pessoas não poderiam viver juntas em
aldeias.
Os habitantes de uma aldeia podem, então, ser referidos pelo nome do
chefe seguido pelo termo –warah. Se tomarmos „X’ como o nome do
chefe de uma aldeia, dizer que determinadas pessoas são „X’-warah
significa que elas são aqueles cujo „corpo’ é „X’. O chefe é a razão pela
O Juruá sempre fora evitado pelos Kanamari (Costa, 2007, p. 227). Mas, no tempo da borracha, como
veremos adiante, suas margens passaram e ser habitadas por este grupo indígena, fato que esteve
associado com uma enorme desorganização social em suas vidas.
47
103
Histórias kulina e kanamari
qual essas pessoas vivem em um dado lugar. É a comida que ele
redistribui que as mantém ali e a morte dele significa a dispersão da
aldeia (Costa, 2007, p. 48).
De maneira análoga, cada subgrupo – formado pelo conjunto das aldeias de
uma bacia hidrográfica de um afluente do Juruá, cada qual com seu chefe – também
tinha um “chefe de subgrupo”. Os Kanamari reconheciam explicitamente que o chefe
de subgrupo era a fonte a partir da qual todas as outras pessoas do subgrupo
desejavam viver próximas umas das outras (Costa, 2007, p. 48). O -warah era, desse
modo, literalmente, o corpo que dava sustentação a uma determinada unidade, tal qual
o tronco de uma árvore – a palavra –maita, traduzida por “tronco” podia ser também
empregada como referência ao chefe de subgrupo.
A “gente-animal” que povoava o mundo mítico kanamari, com a queda do Céu
Antigo, transformou-se, em última instância, nos diferentes tipos de animais que
povoam o mundo atual (Costa, 2007, p. 229). As “gentes” humanas, por sua vez, foram
criadas pelos heróis míticos Tamakori e Kirak a partir de sementes de palmeira (caso
também dos Kulina) ou ainda de seu tronco – que é o caso dos Dyapa, nome conferido
pelos Kanamari aos povos falantes de língua pano48:
Tamakori fez (-bu) os primeiros Kanamari (tukuna) da semente da
palmeira jaci (poro em Kanamari, Lat. Attalea butyracea). Ele os fez com
a ajuda de seu irmão (em outras versões “companheiro”) Kirak, que
trepou na palmeira e atirou as sementes sobre as costas de Tamakori.
Impressionado, Kirak quis fazer igual. Então Tamakori trepou em
uma palmeira diferente, a karatyi49, e atirou as sementes em Kirak,
que, desajeitado, se atrapalhou e as derrubou todas no chão, sem
conseguir apanhar sequer uma delas. Dessas sementes surgiram os
Kulina, e porque elas se espalharam pelo mundo, os Kulina são
numerosos e ocupam extensas porções de terra. Tamakori então
prosseguiu para fazer os Ameríndios de língua Pano, os Dyapa, a
partir do tronco da jaci. Porque se originaram do tronco, e não das
sementes, os Dyapa são ferozes e duros (Costa, 2007, p. 230).
Vemos, desse modo, como o próprio mito já estabelece uma diferença entre as
gentes a partir do fato de se originarem de sementes (apesar de serem de palmeiras
diferentes) ou do tronco: os Kulina e Kanamari são constituídos a partir de sementes de
palmeira, ao passo que os Dyapa se originaram do tronco, sendo, por isso, “ferozes” e
“duros”. O mito estabelece, assim, uma proximidade entre os Kulina e os Kanamari
Sendo que os Kaxinawá e os Korubo são exemplos prototípicos da qualidade Dyapa de um ponto de
vista kanamari (Costa, 2007, p. 41-42).
49 Segundo Costa (2007, p. 230, nota 178), trata-se, provavelmente, da palmeira inajá (Maximiliana maripa).
48
104
Capítulo 2
enquanto coloca os Dyapa em local mais distanciado. Todos eles foram, entretanto,
criados no médio Juruá (Costa, 2007, p. 272). De fato, tanto os Kulina como os
Kanamari veem os Kaxinawá – que fazem parte dos chamados Dyapa pelos últimos –
como inimigos por excelência, havendo uma desigualdade na relação entre eles. Os
Dyapa são feitos do tronco (warah) e, como vimos anteriormente, também habitam o rio
Juruá, o rio do Jaguar e das ambiguidades a ele associadas. Os Kulina, por sua vez, são,
nas palavras dos próprios Kanamari, “quase iguais aos Kanamari”: apesar de
“traiçoeiros”, partilham com eles uma divisão em subgrupos, um complexo xamânico e
mantêm a possibilidade de inter-casamentos (Costa, 2007, p. 274).
É, portanto, Tamakori, acompanhado de seu irmão (ou companheiro), que, ao
longo de viagens pelo Juruá, cria um tempo no qual é possível aos Kanamari se
reproduzirem enquanto grupo, rompendo, igualmente, com o mundo mítico que o
precedia. Neste tempo, os Kanamari passam a viver organizados em subgrupos, cada
qual habitando um tributário diferente do Juruá e preconizando a endogamia de
subgrupo. Cada –dyapa era, assim, caracterizado por uma “base geográfica própria” e
pela “autonomia matrimonial” (Carvalho, 2002, p. 87). Na versão do mito de criação
dos subgrupos reportada por Carvalho (2002), Tamakori deixa cada um dos –dyapa em
uma colocação, acentuando o caráter geográfico dos subgrupos kanamari:
Quando já vinha de volta, conhecer o pessoal, era T3k3na [Tukuna], já
tinha índio. Hitsan, Potso Djapa, Bem Djapa (...) Cada um, uma
colocação. Muita gente mesmo. Deixar cada um numa colocação pra
não misturar. Quer dizer, Tamakori deixou cada um só numa
colocação, foi num dia só, deixar Bem Djapa, Hodja Djapa (...) até na
cabeceira do rio50.
Ou, como afirmou um Kanamari: “em cada um igarapé mora um Djapa. Dessa
tribo mesmo, mesmo índio. Espalhado pra não morar junto, porque ele é assim mesmo,
costume” (apud Carvalho, 2002, p. 87). Os subgrupos viviam, então, nos tributários do
Juruá, localizados em bacias hidrográficas específicas das quais eram “donos”. Nesta
época, nenhum Kanamari habitava as margens do Juruá, o que aconteceu apenas com a
chegada posterior dos brancos.
Havia, então, uma enorme associação entre os –dyapa e o espaço que habitavam:
“o subgrupo era contido pela bacia hidrográfica e, por sua vez, a definia, de modo que
as duas coisas vieram a significar uma só” (Costa, 2007, p. 42). Em cada bacia
50
Este é apenas um trecho do mito. A versão completa pode ser conferida em Carvalho, 2002, p. 89-90.
105
Histórias kulina e kanamari
hidrográfica, existia certo número de aldeias, algumas situadas no curso principal do
tributário e outras nos igarapés que desembocavam nele. Todos os habitantes das
aldeias de uma mesma bacia se consideravam parentes (wihnim) entre si. Ainda assim,
havia uma distância mínima que se estabeleciam entre as aldeias, de modo que os
casamentos deveriam ser preferencialmente estabelecidos com parentes de outras
aldeias, denominados “parentes distantes” (wihnim parara); mas sempre circunscritos
ao nível local e endogâmico da bacia hidrográfica habitada (Costa, 2007, p. 44-45).
Desse modo, as relações entre os subgrupos eram claras, segundo os Kanamari,
seguindo um padrão estável no qual “todos sabiam quem era parente, aliado e
inimigo” (Costa, 2007, p. 39). Este tipo de relação presente no tempo de Tamakori foi de
longa duração, somente sendo rompido no tempo da Borracha. O tempo de Tamakori era,
assim, caracterizado por uma territorialidade específica, um modo particular de
ocupação do espaço. O fato de que os Kanamari podiam saber com segurança quem
era inimigo e quem era aliado tinha também uma importância morfológica, uma vez
que o subgrupo e a bacia hidrográfica definiam-se mutuamente e a distância entre as
aldeias implicava igualmente na distância correta para o estabelecimento de relações
de aliança por meio do matrimônio. Parentesco e território estavam mutuamente
implicados.
Nesta época, cada bacia hidrográfica, i. e. subgrupo, tinha pelo menos uma
maloca (hak nyanim), pertencente ao -warah (Costa, 2007, p. 52). No período da seca, os
Kanamari se aglomeravam ao seu redor em habitações mais ou menos temporárias,
feitas com folha de jarina (chamadas dyaniohak). Neste período, realizavam os rituais
Kohana e Pidah51. Os rituais Hori aconteciam, provavelmente, na época das chuvas,
quando a pupunha estava madura e a bebida feita dela (tyo-koya, caiçuma de pupunha)
poderia ser servida aos convidados (Costa, 2007, p. 50). Estes rituais assemelhavam-se
ao ritual Coidsa dos Kulina, na medida em que ambos proporcionavam o encontro
entre pessoas de diferentes subgrupos, mediadas por seus chefes52. Chefes se reuniam
nos rituais Hori na posição de –tawari, termo que pode ser traduzido por “amigo”,
“companheiro”. –Tawari são pessoas com as quais especificamente se realizam rituais
Hori, isso porque os –tawari “„conhecem’ (tikok) uns aos outros, e, portanto, sentem-se
relativamente seguros visitando-se” (Costa, 2007, p. 46).
Esses rituais, segundo os Kanamari, ajudam a assegurar a continuidade da produtividade das capoeiras
(para maiores detalhes sobre eles, cf. Costa, 2007).
52 O Coidsa ainda é realizado pelos Kulina; mas o Hori, segundo afirmam os Kanamari do Itaquaí, deixou
de ser realizado por estes (cf. Altmann, 1994, p. 87-92; Costa, 2007, p. 79).
51
106
Capítulo 2
Nas viagens realizadas para o Hori, era o Juruá que servia de caminho e
coordenada53, sendo ele, claramente, o chefe/corpo/dono de todos os outros rios.
Articulava, desse modo, tanto as bacias hidrográficas quando os subgrupos. Essas
viagens nunca eram feitas por terra, mas descendo-se ao Juruá e novamente subindo
para seu outro afluente, local anfitrião do ritual (Costa, 2007, p. 57).
O tempo de Tamakori era, ainda, um tempo de muitas guerras e conflitos com
outros grupos indígenas. Nelas, os Kanamari se diziam frequentemente vítimas,
surpreendidos em emboscadas. Segundo eles, sua reação não era a vingança, mas antes
a fuga e a dispersão54. Entretanto, apesar dos conflitos recorrentes, os Kanamari
lembram-se desse tempo como um no qual “as pessoas podiam viver com seus
parentes, fixadas a uma área, interagindo com outros grupos de parentes” (Costa, 2007,
p. 34). Tais interações eram consideradas adequadas, mais ou menos pacíficas,
marcadas pela presença dos encontros rituais Hori. Os Kulina, como vimos,
aproximam-se dos Kanamari neste ponto, pois veem seu tempo dos antigos como um
tempo ideal, no qual viviam em um espaço adequado à sua reprodução social. Ambos,
assim, divergem dos Piro que não guardam boas lembranças de seu tempo inicial – o
tempo dos anciãos –, o qual consideram marcado negativamente pela guerra e pela
ignorância.
No tempo da borracha: a chegada de Jarado
Segundo contam os Kanamari, foi a chegada de Jarado, o primeiro kariwa
(“branco”) conhecido por eles, o evento que deu início ao tempo da borracha (Costa,
2007, p. 36). Este foi o período em que eles trabalharam juntos, iniciaram intercasamentos entre os subgrupos e tiveram acesso à mercadoria ocidental. Neste tempo,
as atividades dos brancos, das quais, posteriormente, os Kanamari começaram a
participar, passaram pela extração do caucho, seguido da borracha e da madeira. Estes
índios têm poucas lembranças da extração do caucho, que caíra em desuso na região,
cedendo lugar à borracha, a qual, depois, perdeu seu valor de mercado. Atualmente, é
o comércio da madeira que predomina no Vale do Javari, onde estão estabelecidos
Os Kanamari localizam espacialmente diversos lugares em relação ao Juruá. Mesmo áreas que ficam
para além de sua bacia, como o Itaquaí e o Jutaí, são referenciadas como rio acima ou rio abaixo de um
lugar situado ao longo do Juruá (Costa, 2007, p. 58).
54 Tais afirmações de passividade devem ser, em certa medida, questionada, já que sabemos que
colocando-se na posição de “mansos” os grupos indígenas da região certamente se viam mais aceitos pelos
brancos.
53
107
Histórias kulina e kanamari
esses Kanamari. Ainda assim, eles nunca deixaram de coletar borracha, mesmo quando
a extração de madeira veio a se tornar predominante (Costa, 2007, p. 61). Conforme
narrado na “história de Jarado”55,
Jarado foi o primeiro branco criado por Tamakori em Manaus que se
aventurou a subir o Juruá, em seu batelão56 durante a estação da pupunha, a
fim de conhecer os Kanamari. Segundo contam, ele subiu o Juruá marcando
o território com estacas de pau, estabelecendo os locais a serem ocupados
pelos seringais que, futuramente, ali ganhariam existência. Quando chegou à
boca do igarapé Toriwá (chamado Curumim pelos brancos), foi
recepcionado pelos Japó-dyapa, que se mostraram felizes ao recebê-lo.
Embora tenham encontrado Jarado naquele local, os Japó-dyapa não
moravam ali, habitavam as cabeceiras. Jarado chamou o chefe pelo seu
nome, tuxaua Porina; ele entendia a língua kanamari. Os Japó-dyapa o
chamaram de –tawari e, da mesma maneira, Jarado retribuiu o chamado.
Jarado desceu de seu batelão para fora do rio e deu aos ancestrais dos atuais
kanamari presentes: trouxe pregos de ferro, anzóis, panelas de pressão etc.
Mas, desta primeira vez, não lhes trouxera nenhuma espingarda. Jarado
comeu carne de queixada defumada e bebeu bebida de mandioca: comeu e
bebeu o mesmo que os índios57. Jarado, então, deixou os Kanamari e
continuou viajando rio acima até chegar a Cruzeiro do Sul. Lá, não havia
brancos ainda. Jarado “começou”58 a cidade ali: “é aqui que Cruzeiro ficará”,
ele disse. Depois disso, seguiu rio abaixo, dando nome às cidades e
barracões ao longo do caminho por que passava, até chegar em Manaus.
Tempos depois, Jarado voltou à boca do Toriwa, mas os Japó-dyapa
não o viram lá, pois estavam todos nas cabeceiras do rio. Jarado conheceu os
Dyapa ali perto, os raivosos, mas pensou que fossem os Kanamari. Logo
percebeu que estava equivocado, pois os Dyapa começaram a atirar com
flechas: eles eram os Kaxinawá. Alguns homens que estavam com Jarado
foram atingidos. Eles revidaram atirando com armas de fogo, vencendo os
Dyapa. Estavam ansiosos por encontrar seu –tawari novamente. Os Kanamari
também estavam esperando por ele: “Ihh, o Kariwa está vindo de novo.
Nosso patrão está subindo o rio!”. Jarado, então, voltou a encontrar os Japódyapa de antigamente. Os Kanamari, diferentemente dos Kaxinawá, “não são
ferozes”59. É por esta razão que Jarado não atirou contra eles, mas deu-lhes
coisas. Desta segunda vez, Jarado trouxe espingardas, facas, machados,
roupas. Se ele não tivesse chegado, os Kanamari não teriam essas coisas.
Alguns Kanamari se referem a Jarado como “Jara”, palavra que significa
“branco” na língua Katukina do rio Biá (J. Deturche, em comunicação pessoal a Costa,
2007, p. 63) e também na língua falada pelos Paumari (cf. Bonilla, 2007, p. 77),
habitantes do médio Purus. Jarado é, portanto, um personagem que sintetiza, para os
Esta é uma versão resumida da história. A versão completa pode ser encontrada em Costa (2007, p. 5961), o qual a compôs a partir de várias versões narradas a ele.
56 Denominação regional para um grande barco, sem motor, usado no comércio fluvial na Amazônia desde
o século XIX.
57 O narrador kanamari, aqui, usa o termo em português índio.
58 Makoni é a palavra kanamari traduzida por “começar”; ela literalmente significa “dizer em [dado] lugar”
(ver Costa, 2007, p. 59, nota 35).
59 Os Dyapa são seres não plenamente sociais, contrastando significativamente com o modo kanamari de
ser (cf. Costa, 2007, p. 62): são “raivosos”, ao passo que os Kanamari se veem como pacíficos.
55
108
Capítulo 2
Kanamari, a chegada dos brancos que se estabeleceriam na região em seringais e
iniciariam um período no este grupo indígena teria acesso às suas mercadorias. Jarado,
na história, agiu como um –tawari, ao estabelecer um vínculo positivo com os
Kanamari, em que relações de troca eram possíveis. Ele era um patrão, de acordo com a
história; certamente, seria reconhecido como um bom patrão.
Este tipo de relação entre os kariwa e os Kanamari não era, entretanto, mais do
que uma relação buscada e idealizada pelos últimos. Tal qual os Kulina, eles, em um
primeiro momento de contato com os kariwa/cariús, evitaram a proximidade com estes.
Desse modo, os Kanamari passaram a evitar o leito principal do Juruá, local em que os
brancos iniciaram sua ocupação. Não trabalharam inicialmente para os brancos,
mantendo-se distantes nos tributários do Juruá, estabelecendo apenas contatos
esporádicos.
O Juruá, por sua vez, era o caminho seguido pelos Kanamari nos encontros
estabelecidos entre os –dyapa, mas, com a chegada dos brancos, eles se viram obrigados
a buscar outros caminhos. A alteração deste percurso, que se fez necessária, esteve na
fonte de mudanças ocorridas na configuração endogâmica de seus subgrupos – pois,
como vimos, a territorialidade e os subgrupos estavam mutuamente implicados. Este
foi o caso dos Mutum-dyapa que habitavam o igarapé Komaronhu e dos Macaco de
Cheiro-dyapa que habitavam o igarapé Mucambi, afluentes da margem esquerda do
Juruá60. Esses subgrupos eram geograficamente próximos e consideravam uns aos
outros –tawari seguros. A relação entre –tawari era especificamente aquela estabelecida
entre homens que viviam em bacias hidrográficas diferentes. Mas, como explicitado
anteriormente, não se tratava de quaisquer homens, devendo ser uma relação
necessariamente estabelecida entre chefes de subgrupos que se encontravam,
acompanhados de seus respectivos parentes, no contexto do ritual Hori (Costa, 2007, p.
75, 77). Anteriormente, o Hori entre esses subgrupos seguia uma rota específica: “os
visitantes desciam os seus rios em canoas e depois subiam (Mutum-dyapa) ou desciam
(Macaco de Cheiro-dyapa) o Juruá até a boca do rio do outro subgrupo”. Deste ponto
em diante, eles subiam o rio em território de seu anfitrião, soando a corneta hori, que
exercia a função de avisar os donos do território da chegada dos visitantes (Costa, 2007,
p. 66).
Cito o exemplo dos Mutum-dyapa e dos Macaco de Cheiro-dyapa a fim de explicitar o processo de coresidência que provocou uma “mistura” desses subgrupos. Mas atento para o fato de que este foi um
processo mais geral que afetou os Kanamari neste período de sua história. Costa (2007, p. 64-78) fornece
outro exemplo que aponta para a maior abrangência desta transformação nos subgrupos.
60
109
Histórias kulina e kanamari
Entretanto, como o Juruá se tornara um perigoso caminho, as trilhas pela mata
passaram a se constituir como o percurso mais seguro para o encontro entre estes
subgrupos. Houve, assim, uma alteração no caminho percorrido para a realização do
Hori, pois, não sendo impossível que tais trilhas já existissem antes da chegada dos
brancos, elas não eram utilizadas para esse tipo de encontro. Mas, tal alteração de
percurso provocou uma consequente mudança na própria dinâmica do encontro. Com
o passar do tempo, eles foram se tornando mais frequentes e perdendo seu aspecto
ritualizado: “pessoas antes não consideradas parentes chegavam, às vezes sem avisar”
(Costa, 2007, p. 66). Aos poucos, o caráter ritual que marcava os encontros Hori deixou
de existir, assim como as relações do tipo –tawari: as visitas passaram a ocorrer como se
fossem entre aldeias de uma mesma bacia hidrográfica. Foi por volta de 1930 que esses
dois subgrupos começaram a interagir mais intensivamente, de modo que a coresidência entre pessoas que, antes, não eram parentes, tornou-se possível. Dessa
maneira, os Mutum-dyapa e os Macaco de Cheiro-dyapa se tornaram parentes (-wihnim)
por meio, inicialmente, de visitas não rituais mais frequentes e, posteriormente, da coresidência – embora não estivesse claro que tipo de parentes eles seriam (Costa, 2007,
p. 64-70). O fato de que a co-residência acabasse por se tornar parentesco não é de se
estranhar, pois, como vimos, tanto entre os Kulina como entre os Kanamari, os
subgrupos assumem um forte caráter espacial, o qual está diretamente relacionado
com o processo de aparentamento.
No tempo da borracha, portanto, os subgrupos –dyapa realizaram processos
migratórios ocasionando “misturas” entre eles. A endogamia afirmada no tempo de
Tamakori foi transformada: os rios que habitavam já não eram mais território exclusivo
de um subgrupo61. Este foi um período em que foram ampliadas as possibilidades de
se “re-desenhar as unidades e de mudar aqueles com quem se co-residia em uma
escala que, antes, o modelo de endogamia do subgrupo não permitia” (Costa, 2007, p.
78), transformando a própria territorialidade, o modo de ocupação espacial dos
Kanamari.
A esta altura, faz-se necessário um esclarecimento sobre o que se quer dizer com a afirmação de que a
cada subgrupo estava destinada uma bacia hidrográfica. Não há dados disponíveis para se afirmar em que
medida o ideal de endogamia de subgrupo era realmente seguido no tempo de Tamakori, mas sabemos que,
no tempo da borracha, mesmo antes da considerada co-residência entre subgrupos, havia pessoas de
determinados subgrupos morando em rios de subgrupos diferentes do seu. Alguns Kanamari alegavam,
por exemplo, que havia Sapo-dyapa casados com Mutum-dyapa nesta época. De qualquer modo, a presença
de outros subgrupos em bacias diferentes da sua não contradiz o fato de que cada rio define um subgrupo,
concepção persistente até os dias atuais (Costa, 2007, p. 71), e também de que a presença do chefe é
necessária para a continuidade de um subgrupo.
61
110
Capítulo 2
Os Mutum-dyapa e os Macaco de Cheiro-dyapa, por exemplo, criaram um novo
espaço de convivência e transformação: não mais estavam circunscritos em suas bacias
hidrográficas de maneira isolada e haviam se misturado. O tempo mudara, assim como
o espaço e a própria configuração do subgrupo. Neste novo espaço, mais amplo que o
ideal kanamari pregava – como bem assinalado por Costa (2007, p. 72) –, pessoas dos
diferentes subgrupos podiam mudar-se constantemente e estabelecer residência. Esta
nova configuração espacial certamente ocasionou mudanças com relação à chefia de
subgrupo, antes restrita a apenas um -dyapa; mas não é possível saber ao certo como
passou a operar. Sabemos, entretanto, que, no caso específico da nova configuração
Mutum-dyapa/Macaco de Cheiro-dyapa, os chefes do Mutum-dyapa, Kaninana e Kadoxi,
e os chefes do Macaco de Cheiro-dyapa, Dyori e Hiwa, começaram a agir como o –warah
múltiplo dessa nova configuração (Costa, 2007, p. 70).
De fins da década de 1930 ao início da década de 1940, alguns Kanamari da
margem esquerda do Juruá começaram a considerar mover-se para o Itaquaí (na bacia
do rio Javari), local que visitavam com certa frequência nos meses de verão, pois lá já
habitavam outros Kanamari. Sua mudança, iniciada aproximadamente no ano de 1940,
estava diretamente associada ao aumento da presença dos brancos – provavelmente
decorrente do novo movimento migratório do segundo ciclo da borracha (ver cap. 1) –,
os quais começaram a adentrar também os tributários do Juruá. No Itaquaí, naquele
momento, ainda não havia uma presença significativa de brancos, embora esta situação
não tenha durado muito (Costa, 2007, p. 98).
Nesta época, os Kanamari já trabalhavam para os brancos no Juruá. Foram Ioho,
um macaco de cheiro-dyapa, e Dyaho, um mutum-dyapa, os precursores da mudança
para o Itaquaí. Eles se chamavam de irmão (-dya) – provavelmente em decorrência da
co-residência na nova configuração desses subgrupos – e, desde crianças, eram muito
próximos. Quando jovens, em um episódio em que haviam descido o igarapé
Komaronhu para pegar ovos de tracajá, encontraram um kariwa chamado Preto
Português. Preto Português teve dó dos jovens kanamari que estavam nus e
espantados e decidiu ajudá-los levando-os para a escola na cidade. Ioho decidiu que
deveriam ir com ele e seu irmão, embora relutante, acabou por aceitar. Com os brancos,
Ioho e Dyaho estudaram e trabalharam; aprenderam português, matemática e também
a trabalhar na seringa e na madeira. Passado cinco anos que moravam com os brancos,
foram tomados pela saudade de seus parentes e decidiram voltar. Fugiram e
conseguiram os encontrar. Com o retorno de Ioho e Dyaho e o conhecimento que
111
Histórias kulina e kanamari
haviam adquirido, aqueles Kanamari decidiram trabalhar para os brancos62 (Costa,
2007, p. 98-101).
Os Kanamari estavam, então, fascinados pelo poder que creditavam aos
brancos e pelas mercadorias que dele emergiam. Foram, desse modo, atraídos para um
contato mais direto com os barracões (Costa, 2007, p. 103). Em um primeiro momento,
os Kanamari interpretaram sua relação com os brancos como uma do tipo –tawari,
iniciada pelos chefes – Ioho e Dyaho, que se transformaram naqueles que “fazem as
pessoas fazerem coisas”63 –, tal qual havia sido a relação com Jarado. Mas, aos poucos,
este tipo de relação começou a se deteriorar e os Kanamari passaram a conceituar os
brancos como “espíritos imprestáveis”, os adyaba64 (Costa, 2007, p. 104-105). Neste
segundo momento, os brancos começaram a minar a autoridade dos chefes kanamari,
os quais passaram a ser incapazes de situar seus parentes em aldeias por um longo
período de tempo.
[...] novas relações significavam que os bens não eram exclusivamente
guardados pelos chefes e conseqüentemente não eram redistribuídos,
levando a acusações amplamente difundidas de „avareza’; a cachaça
tornou as brigas entre eles mais freqüentes; as aldeias começaram a se
esvaziar e novas aldeias foram sendo criadas longe dos chefes e perto
dos brancos (Costa, 2007, p. 104-105).
Este período é lembrado pelos Kanamari como de intenso fluxo e dispersão
quando não era possível a eles viver de maneira adequada, com um chefe e aldeia fixa.
Não ter uma terra para se morar contrastava com o seu ideal de vida, como podemos
ver expresso no caráter local dos subgrupos. O próprio processo de se “aprender a
viver bem” (ityonim tikok) pode ser traduzido literalmente da língua kanamari por
“conhecer a terra” (cf. Costa, 2007, p. 227). A mudança para o Itaquaí não resolveu tais
problemas, pois, logo, os brancos também chegaram intensamente naquela bacia. Foi
apenas com a chegada de Sabá e da Funai, que os tempos puderam ser mudados.
“Considerados chefes dos Kanamari”, “instauram o processo pelo qual a mistura
anterior pôde ser organizada”, dando origem a aldeias que não dependiam tanto dos
Esta é uma versão sumária da história de Ioho e Dyaho. Para uma versão mais completa e detalhada cf.
Costa, 2007, p. 99-101.
63 Kadoxi, um dos –warah daquela nova configuração de Mutum-dyapa e Macaco de Cheiro-dyapa,
transformou Ioho em Dyaho também em chefes. Os irmãos, nesta posição, eram aqueles que organizavam
o trabalho (Costa, 2007, p. 104).
64 Os adyaba são espíritos que, aparentemente, existem na terra desde o começo do mundo e que assumem
muitas formas, sendo geralmente descritos pelos Kanamari como sendo espíritos canibais e monstruosos
(Costa, 2007, p. 107).
62
112
Capítulo 2
brancos e reintroduzindo a distância entre os núcleos de aldeias associados aos
subgrupos (Costa, 2007, p. 34).
O tempo da Funai: “Quando Sabá chegou”
Sabá Manso era o apelido regionalmente reconhecido de Sebastião
Amâncio, um empregado da Funai que fora chefe da antiga Base Avançada
do Solimões (BFSOL). Sua presença no rio Itaquaí estava relacionada à
construção do Posto de Atração Marubo em 1972. Este é também o ano que
muitos dos Kanamari identificam como a data de sua chegada entre eles
(Costa, 2007, p. 1, 141). Quando Sabá chegou, os Kanamari contam que
viviam “no meio dos brancos” (Kariwa wakonaki). Os brancos haviam
dividido o Itaquaí em propriedades e colocações, das quais extraíam
borracha, cortavam madeira, criavam animais e plantavam suas roças. Os
patrões se diziam donos de todo o rio.
Os Kanamari viviam uns quatro dias a montante de onde Sabá
construíra sua Base (em viagem de barco a motor), mas souberam de sua
chegada por meio de Adalberto, um homem branco que vivia perto dos
Kanamari. Adalberto alertou-os para irem até o novo “Inspetor de Índios” a
fim de receberem mercadorias. Poroya, um Kanamari, decidiu enviar-lhe
uma carta. Pediu a Raimunda, filha de um patrão da região chamado Chico
Teixeira, que escrevesse: “Eu quero chamar nossa pessoa. Venha ver-nos
aqui também”. Poucos dias depois, quando Poroya estava fazendo uma
canoa que devia ao seu patrão, Sabá apareceu em uma voadeira e perguntou
a Poroya porque ele estava trabalhando. Poroya explicou que estava fazendo
uma canoa para Sebastião Bezerra. Sabá perguntou se o patrão lhe pagava
bem. Poroya respondeu: “Não, não muito, uma cinco balas, cinco quilos de
sal, trezentos gramas de pólvora... é isso”. Sabá, então, disse-lhe: “Bem, hoje
o seu chefe/corpo/dono chegou. Os brancos não mais enganarão vocês.
Agora é só a Funai que vai tomar conta de vocês”. Poroya disse ainda que
trabalhavam para os brancos porque seus pais, os chefes, morreram todos.
Sabá, então, visitou aldeias kanamari do Itaquaí distribuindo diversas
mercadorias: espelhos, panelas, anzóis, linhas de pescar, cartuchos etc. Ele
insistiu que tudo o que os Kanamari produzissem deveria ser trocado com
ele e não mais com os outros brancos, pois estes estavam mentindo para eles.
Sabá viajou pelo rio muitas vezes distribuindo mercadorias. Como conta
Poroya, Sabá “perguntou sobre velhas capoeiras e cacos de cerâmica e levou
tudo isso para Brasília para mostrar para o nosso chefe (-warah) que é a
Funai”. Quando voltou, trouxe muitas mercadorias para trocar pela
produção dos Kanamari. Notou que eles estavam dispersos e nomeou novos
chefes para tomar conta de todos: Dyumi, João Pidah, Hiwu, Dyo’o, Nohin.
Poroya já era ativo como chefe e, desse modo, Sabá nomeou-o “Fiscal do
Índio” e disse que todos os outros chefes deveriam ajudá-lo.
Sabá decidiu que os Kanamari não deveriam permanecer no Itaquaí,
mas se mudar para o médio Javari, onde já havia outros Kanamari. Mas estes
últimos não queriam a Funai: “nós só queremos nossos motores e cachaça.
Nós não queremos a Funai”65. Ainda assim, Sabá queria todos os Kanamari
reunidos lá, pois desse modo poderiam ficar mais perto dele (uma vez que o
Médio Javari fica próximo à cidade de Atalaia do Norte). Os Kanamari do
Estes Kanamari foram para o Javari quando resolveram aceitar Júlio Tavares, um branco, como seu
chefe/corpo/dono. Eles, desse modo, iniciaram um processo de “tornar-se branco” (kariwa-pa) (Costa,
2007, p. 138-139, p. 145, nota 110).
65
113
Histórias kulina e kanamari
Itaquaí foram para lá, mas, depois de algum tempo, o próprio Sabá decidiu
que seria bom eles voltarem para o Itaquaí66, onde a Funai iria bloquear o rio
contra a presença dos brancos. Eles voltaram, embora alguns tivessem
permanecido no Javari. Para o Itaquaí, vieram alguns Kanamari do Juruá
também.
Entretanto, o posto de Sabá fora atacado pelos Korubo e seu chefe
partiu rio abaixo; nunca mais os Kanamari o viram. Depois de algum tempo,
um homem branco que havia bebido muita cachaça matou um Kanamari no
rio Pedra, afluente do Itaquaí. Este evento parece ter sido um propulsor da
expulsão definitiva dos brancos do território kanamari no Itaquaí 67.
A história de “Quando Sabá chegou” é narrada pelos Kanamari como sendo a
história inaugural do tempo da Funai. A expulsão dos brancos, referida ao final da
narrativa, esteve inserida no contexto de demarcação da Reserva Indígena do Vale do
Javari. A área foi reconhecida em 1985, tendo a demarcação se concretizado apenas no
ano de 2000 (Costa, 2007, p. 149). A chegada de Sabá inaugura uma nova era da
história kanamari. Ela significou a possibilidade de viver novamente sob o comando de
um chefe e de pôr fim à dispersão e confusão que marcara suas vidas no tempo da
borracha.
Um pouco antes de Sabá chegar, Ioho havia morrido e, logo depois, o mesmo
acontecera com Dyaho. Ioho falecera em fins da década de 50 e sua morte é, ainda hoje,
cercada de mistério, mas o que se afirma é que provavelmente morrera enfeitiçado
pelos Kulina68. Ioho era, então, considerado, pelos Kanamari, o “dono” do Itaquaí. Ele
centralizava a produção de borracha a fim de trocá-las por mercadorias dos brancos.
Estas eram passadas a Ioho por meio dos chefes de aldeias – eram seis aldeias69 sendo
que Dyaho era um desses chefes, da aldeia que levava seu nome, “aldeia Dyaho”
(Costa, 2007, p. 133). A morte de Ioho deixou os Kanamari do Itaquaí “insanos” (parok)
nas palavras de Poroya, eles não sabiam onde e com quem viver, como interagir com
os brancos e nem para quem se voltar. Houve, desse modo, uma dispersão do grupo
em diversas direções. Alguns voltaram ao Juruá e ainda outros fizeram uma escolha,
A memória do tempo que passaram no Javari é ambígua: alguns se lembram como um tempo bom em
que viveram juntos e em que havia muitas danças e comida para todos; outros não entendiam muito bem
porque Sabá os queria lá e rememoram muitas disputas, brigas e acusações de feitiçaria (Costa, 2007, p.
145).
67 Esta é uma versão sumária da história conhecida como “Quando Sabá chegou”, narrada pelos Kanamari
a Costa (2007). A versão mais completa é encontrada em Costa, 2007, p. 142-146.
68 Ioho se casara com uma mulher kulina, a qual, dizem, nunca se desvinculou de seus parentes, sempre
retornando à aldeia deles. Ioho falecera após uma briga que teve com sua esposa, quando ela voltou para a
aldeia de seus parentes no Juruá (Costa, 2007, p. 137-138).
69 As aldeias eram seringais que pertenciam a diferentes donos (Costa, 2007, p. 133). No sentido rio Itaquai
abaixo, a aldeia Pontão era a mais a montante, seguida da aldeia chamada Lugar do Koral. Em Botim,
havia a aldeia Dyum; em Samaúma, a aldeia Dyori; em Kumaru, a aldeia Brai; e a aldeia Dyaho em Santa
Fé (cf. Costa, 2007, p. 133).
66
114
Capítulo 2
sem precedentes, de aceitarem um patrão branco, Júlio Tavares, como seu -warah;
moveram-se para o médio rio Curaçá e, de lá, para o médio Javari (Costa, 2007, p. 138139). São os remanescentes deste grupo que aparecem na história de “Quando Sabá
Chegou” recusando o auxílio da Funai. Eram “remanescentes”, pois, no começo da
década de 1960, Júlio Tavares morrera e a maioria dos Kanamari que eram seus
“fregueses” voltaram ao Itaquaí (cf. Costa, 2007, p. 137-139).
Os Kanamari começaram, desse modo, a viver muito próximos dos brancos e
não, apropriadamente, em aldeias kanamari.
Os Kanamari tinham começado mais uma vez a estabelecer relações
duais diretas com os patrões brancos, relações que não eram mediadas
pelos chefes, já que estes não existiam. Isso levou os Kanamari para
fora de suas aldeias e em direção aos barracões dos patrões, onde
muitos cresceram (Costa, 2007, p. 140).
Os Kanamari dizem que, se Sabá não tivesse chegado, todos eles teriam
morrido. Os kariwa do Itaquaí já vinham ameaçando-os de morte: desejavam o retorno
de todos os Kanamari ao Juruá. Após a partida de Sabá, foi instalado um posto da
Funai na aldeia kanamari chamada Massapê. Este posto foi administrado por uma série
de chefes que, segundo os Kanamari, “trabalhavam para Sabá”. De seu ponto de vista,
os funcionários da Funai, chamados “soldados da Funai”, eram quem assegurava que
sua terra não fosse invadida (Costa, 2007, p. 146). Hoje, eles consideram que toda a área
do rio Itaquaí, desde a foz do Rio Branco até sua nascente, como seu território –“nossa
terra”, ityowa ityonim (Costa, 2007, p. 152). No Itaquaí, os subgrupos kanamari
passaram a morar todos à margem de um mesmo rio e não mais em tributários
distintos, como acontecera no Juruá no tempo de Tamakori.
Atualmente, os deslocamentos desse grupo indígena variam entre serem a)
curtos e de caráter mais individual e b) serem coletivos, onde se percorre distâncias
maiores. No primeiro caso, pessoas visitam regularmente seus familiares e bebem
caiçuma com eles. No segundo, grupos maiores se deslocam a Massapê – aldeia central
onde se localiza o posto da Funai e também local em que se realizam trocas comerciais
com os brancos – ou ainda à cidade de Atalaia do Norte, onde vendem seus produtos
(canoas, remos, artesanato), porcos e frangos, animais que criam (Costa, 2007, p. 158159). Seus deslocamentos atuais diferem, assim, substancialmente do caráter dispersivo
das migrações realizadas no tempo da borracha.
115
Histórias kulina e kanamari
Os Kanamari consideram que, no Tempo da Funai, conseguiram re-introduzir
diferenças entre os subgrupos, a partir de um modelo vigente no tempo de Tamakori.
Certamente, os subgrupos já não eram mais os mesmos, pois não seguiam a regra de
endogamia, estando “misturados”. Mas, a disposição das aldeias no Itaquaí é
explicitamente reconhecida pelos Kanamari como uma réplica da distribuição anterior
dos subgrupos pelos afluentes do Juruá. Os Kanamari afirmam viver, hoje, distribuídos
em um grupo Macaco de Cheiro-dyapa no ponto mais alto do Itaquaí (aldeias Kumaru e
Alzira), seguido por um de Mutum-dyapa (aldeias Massapê, Três Bocas e Sibélio), outro
de Caititu-dyapa (aldeias Beija-Flor, Arara e Panema) e, por fim, no ponto mais baixo
desta sequência, os Japó-dyapa (aldeias Estreito, Remansinho e Bananeira). Essas
posições seguem a mesma disposição dos tributários do Juruá associados a cada um
desses subgrupos no passado; do mais alto para o mais baixo: Mucambi, Komaronhu,
Toriwá e Mawetek (Costa, 2007, p. 165).
Mas a história tornou os subgrupos kanamari todos aparentados entre si, ainda
que este modelo seja divergente daquele que os Kanamari ainda defendem como ideal
para si (Costa, 2007, p. 166). De fato, todas essas aldeias encontram-se atualmente interrelacionadas por meio de casamentos entre pessoas de diferentes subgrupos. Muitas
das crianças, quando nascem, não têm subgrupos; posteriormente acabam por adotar o
subgrupo do pai. Entretanto, esta não é uma regra fixa, podendo também adotar o
subgrupo do local onde cresce. Algumas pessoas, inclusive, adotam uma identidade
subgrupal múltipla: dizendo-se “misturadas”, são uma mistura de um subgrupo com
outro (Costa, 2007, p. 180).
É inegável, entretanto, que a chegada de Sabá tenha criado novos tipos de
relações onde os Kanamari puderam novamente voltar a viver em aldeias
relativamente pacíficas, encontrando, nas palavras de Costa (2007, p. 207), “um espaço
para se tornarem parentes”. Como se vê, este espaço é literal, pois os Kanamari
puderam se reunir em aldeias mais estáveis onde voltaram a ver perspectivas de se
reproduzirem socialmente enquanto grupo. Este novo espaço difere substancialmente
do tempo anterior. A esta nova terra e a uma nova organização dos subgrupos, coube
um novo –warah. A Funai é reconhecida como o único –warah que existe nos dias de
hoje no Itaquaí. O próprio Sabá já havia sido recebido como um –warah pelos
Kanamari:
Diferentemente de Jarado, Sabá agia como chefe; visitava as aldeias,
comia com os ameríndios (em vez de estabelecer trocas com eles), e
116
Capítulo 2
cancelava as dívidas que eles tinham com os patrões. Ele também deu
início à remoção dos brancos, e permitiu, assim, que os Kanamari
reconstruíssem suas aldeias. Mais importante, ele „deu’ (nuhuk)
mercadorias ocidentais em quantidades que os Kanamari
desconheciam, e de uma qualidade muito superior à que eles
costumavam obter em „trocas’ (hom) com os brancos locais. Se ele não
os „alimentou’, conforme o teria feito um chefe de subgrupo, ele
certamente os muniu de instrumentos para que se auto-alimentassem,
providenciou terçados e machados, distribuiu rifles, munição e anzóis
(Costa, 2007, p. 196).
Na ausência de Sabá, a Funai se tornou o novo –warah dos Kanamari. Sabá
nomeou novos chefes kanamari, como vimos relatado na história de quando ele
chegou, mas estes não se constituíram enquanto –warah, e sim como “tuxauas” ou
“caciques”. Os Kanamari não se mostram certos quanto a que tipo de chefes são esses.
Eles são menosprezados em relação à lembrança que os Kanamari têm dos –warah de
antigamente. Estes “sempre tomavam conta de sua gente, conduziam-na na direção
correta, provinham-na de tudo e propiciavam a constituição das aldeias como
unidades de „verdadeiro parentesco’”. Os tuxauas dos tempos atuais, conforme
afirmam os Kanamari, apenas se preocupam consigo mesmos (Costa, 2007, p. 195-196).
Poroya, por exemplo, é considerado um bom chefe, pois é hábil em reunir gente para
viver em sua aldeia, mantendo essas pessoas unidas, mas nunca é referido como um –
warah. Poroya é um funcionário da Funai e, desse modo, exerce um papel de
distribuidor de mercadorias; ele “paga” o trabalho realizado pelos kanamari. Na época
em que verdadeiros –warah existiam, não havia relações de compra e nem mercadorias
no sentido em que hoje elas existem (Costa, 2007, p. 198). No passado, o trabalho
realizado pelos kanamari teria sido feito em nome do –warah, que incluía a todos, “teria
sido iniciado e coordenado pelo chefe do subgrupo em pessoa, enquanto hoje as
pessoas geralmente têm de exigir retribuição em vez de serem providas do que deveria
ser dado a elas” (Costa, 2007, p. 204).
A Funai, desse modo, é o único –warah em seu tempo: ela distribui mercadorias
aos Kanamari que ajudam no cotidiano da aldeia, como ferramentas para o cultivo da
lavoura. O chefe de posto, quando vai a Massapê, sempre distribui munição aos
Kanamari, que, por sua vez, o alimentam com carne de caça. O chefe também distribui
outras mercadorias que devem ser pagas pelos índios com produtos da roça e
artesanato (Costa, 2007, p. 198). Como se deve observar, as críticas que os Kanamari
dirigem atualmente aos tuxauas poderiam, em grande medida, ser também dirigidas à
Funai, pois as relações com este –warah guarda as características de compra e
117
Histórias kulina e kanamari
pagamento semelhante às daqueles. A Funai parece ser uma imagem um pouco
deteriorada de Sabá. Ela, ao que tudo indica, já não mais distribui mercadorias com a
mesma generosidade de Sabá. E, como salientou Costa (2007, p. 207), “se o chefe do
subgrupo „alimentava’ os Kanamari por meio de comida que eles mesmos levavam
para ele e o ajudavam a cultivar, a maior parte do que a Funai distribui vem da terra
distante e misteriosa de Brasília”, onde, na opinião destes índios, reside o verdadeiro
poder dos brancos70.
Tempos-espaços, socialidades
Neste capítulo, procurei analisar de que maneira as histórias kulina e kanamari
eram concebidas em tempos por esses grupos indígenas. Afinal, o que poderia significar
uma divisão da história em eras marcadamente distintas? De que maneira esses tempos
poderiam ser pensados? De que modo, o passado, o presente e o futuro poderiam ser
organizados e concebidos por meio deles?
Acredito que a análise desenvolvida tenha salientado aspectos comuns e
fundamentais aos tempos kulina e kanamari. O primeiro deles refere-se ao caráter de
ruptura que apresentam, pois, mais do que tratar de continuidades, cada tempo
instaura
novos
tipos
e
possibilidades
de
relações
sociais
que
contrastam
significativamente com a socialidade que o antecedia. Os tempos instauram,
igualmente, uma nova morfologia social caracterizada por distintos modos de
residência e de territorialidade. Os Kulina antes habitavam o interior da mata em
grandes malocas de palha, tendo atualmente passado a residir em casas menores nas
beiras dos rios; e os Kanamari, ao longo de seus tempos, viram alteradas as distintas
configurações de seus subgrupos – ainda que mantivessem um modelo ideal segundo
o qual estes deveriam operar.
Os Kanamari, no tempo de Tamakori, organizavam sua vida social de maneira
completamente distinta do que vieram a fazer posteriormente no tempo da borracha.
Antes viviam de acordo com um modelo de endogamia do subgrupo que fazia de
Os Kanamari dizem que a mercadoria distribuída pela Funai vem de Brasília ou do “Federal”, conceitos
importantes que vieram juntos com Sabá. “Eles indicam um grau de poder que os Kanamari até então não
poderiam ter imaginado: uma habilidade de manter todos os brancos situados e realocados por meio de
relações de distribuição. É isso que o Federal faz. Provém a Funai com mercadoria que ela pode dar aos
ameríndios, além de remédios, motores e rifles para ajudar na vigilância sobre o Vale do Javari. Também
mune alguns deles de dinheiro, em forma de benefícios de bem-estar social e de aposentadorias. Além
disso, „o Federal’ não beneficia apenas os Kanamari, também é „dono’ de todos os brancos” (Costa, 2007, p.
196).
70
118
Capítulo 2
todos os habitantes de uma bacia hidrográfica parentes. Posteriormente, com a chegada
dos brancos, essas relações se transformaram substancialmente, assim como também
começaram a ter acesso às mercadorias trazidas pelos kariwa. Algo semelhante acontece
às eras kulina, pois a quebra temporal entre o tempo dos antigos e o tempo atual está
relacionada a modos bastante distintos de ocupação do espaço-tempo, de alimentação,
de vestuário e de mobilidade. Os próprios Kulina também se transformam na mudança
dos tempos: antes “selvagens”, tornam-se “mansos”.
Os tempos kulina, assim como todo um elaborado modo segundo o qual
dividem aspectos do mundo em “selvagens” e “mansos”, expressam o estreito vínculo
entre a mudança de tempos e de espaços. Este é um segundo ponto que gostaria de
destacar, pois não apenas as eras kulina tematizam a estreita relação entre tempo e
espaço – no tempo dos antigos, habitavam o centro da mata e eram brabos; no tempo
atual, habitam a margem do rio e são mansos –, como também cada mudança histórica
kanamari está também vinculada a transformações espaciais. Estas transformações na
ocupação do espaço, cumpre assinalar, não se separam de mudanças ocorridas na
configuração dos subgrupos e também da chefia. No tempo de Tamakori, cada subgrupo
se definia e circunscrevia por seu próprio rio, onde todos eram parentes. No tempo da
borracha, os subgrupos começaram a realizar intercasamentos e, igualmente, a serem
co-residentes. Dessa maneira, uma bacia hidrográfica não era mais o espaço destinado
a um único subgrupo. Depois, após a mudança para o Itaquaí, trabalhando para os
brancos, passaram a habitar muito próximo a estes, perderam seus chefes e não
conseguiam mais se fixar em aldeias estáveis, nas quais poderiam se reproduzir
socialmente de maneira adequada. Finalmente, no tempo da Funai, os Kanamari, com a
chegada do órgão indigenista, puderam habitar uma “Terra Indígena”, estando mais
protegidos da presença dos brancos. Agora, seus subgrupos já estavam, de algum
modo, misturados, mas, ainda assim, puderam organizar aldeias de maneira a
reestabelecer certa distância social, i.e., espacial, entre eles.
Neste contexto, o chefe aparece como personagem fundamental na organização,
estabilidade e continuidade de um determinado agrupamento de pessoas. A história
kanamari torna clara como há sempre uma dimensão de poder associada a todo chefe.
Esta dimensão se estende de variados modos também aos patrões. A posição do chefe
kulina, assim como a do chefe kanamari, é aquela de fornecimento de sustento e
estabilidade às pessoas que estão ao seu redor. Entre os Kulina, o falecimento de um
chefe provoca a dispersão da aldeia, ao passo que a aldeia kanamari é aquela que
119
Histórias kulina e kanamari
emerge como uma unidade por meio de um –warah (chefe/corpo/dono) que dá forma
ao conjunto de pessoas que dela fazem parte, estabilizando-o.
Os patrões aproximam-se dos chefes sob muitos aspectos. Vimos que os Kulina
também abandonaram o seringal em que residiam em razão do falecimento de um
patrão estimado por eles. Por sua vez, um “bom patrão” era aquele que cuidava dos
que trabalhavam para ele (por exemplo, usando seu avião para levar pessoas doentes à
capital Rio Branco a fim de obterem cuidados médicos). Bons patrões, assim como os
chefes, também congregam pessoas ao seu redor – os Kulina, por exemplo, realizaram
movimentos em busca de “serviço” e de patrões melhores. A Funai parece ser tratada
pelos mesmos Kulina como uma entidade personalizada e associada a uma dimensão
de poder, tal qual um chefe ou patrão. E esta mesma Funai foi considerada como um
novo –warah pelos Kanamari. Mas, como tematizado pelos últimos, algo parece ter sido
alterado na posição de chefia ao longo do tempo. Atualmente, a função do chefe parece
ter ganhado um acento no ato de “fazer as pessoas fazerem coisas”, ou seja, na
organização do trabalho e na distribuição das mercadorias.
A ausência de um espaço adequado para viver e, igualmente, de chefes que
constantemente organizassem a vida em aldeias foi marcante tanto para os Kulina
como para os Kanamari a partir do momento em que entraram em contato mais
intensivo com os brancos (kariwa/cariús) – os quais chegaram à região onde habitavam
e, lá, construíram seringais. Tal ausência relacionou-se com um período de intenso
fluxo e mobilidade, em que os Kulina e Kanamari tiveram que fugir das correrias, ou,
já inseridos no trabalho nos seringais, sair em busca de “bons patrões”. A chegada do
primeiro branco, Jarado, é aquela que marca o início do tempo da borracha kanamari: ela
transforma os tempos. Diferentemente da história kanamari, o tempo dos antigos kulina
não terminou logo no momento em que o primeiro branco chegou, mas quando se
envolveram de maneira intensiva no trabalho nos seringais. Mesmo depois de os
seringais se instalarem na região, os Kulina ainda fugiam buscando os centros da mata.
Apenas quando se engajaram efetivamente no trabalho extrativo, passaram a habitar as
margens: e é aí que começa o tempo atual.
Podemos considerar que o tempo da borracha dos Kanamari é relatado de
maneira que percebemos um período de auge e outro em que as formas instauradas
começam a se deteriorar. Num primeiro momento desta era, os Kanamari conseguiram
manter certa distância dos patrões, sendo bem-sucedidos, consequentemente, no
fortalecimento do modo de vida do tempo anterior, o tempo de Tamakori. Tiveram acesso
120
Capítulo 2
às mercadorias ocidentais, cuja distribuição “acabou por estruturar as relações internas
ao sub-grupo”. Mas, num segundo momento, com a intensificação da presença dos
brancos, as formações sociais dos Kanamari começaram a se transformar. A morte de
alguns chefes desencadeou um processo de fluxo, mobilidade e violência, fazendo com
que toda a semelhança com o modo de vida do tempo de Tamakori desaparecesse (Costa,
2007, p. 35). Como vimos, os Kanamari afirmam que, se Sabá não tivesse chegado,
todos eles teriam morrido. Assim, o tempo da Funai aparece como uma nova
possibilidade de existência social, implicando na possibilidade de reorganização da
grande mistura anterior em que se encontraram os subgrupos. Passaram a não
depender tanto dos brancos e conseguiram reestabelecer certa distância entre os
núcleos de aldeias associados aos subgrupos.
De maneira semelhante a dos Kulina, os Kanamari adotaram um de seus
tempos enquanto modelo ideal de vida e de socialidade a ser seguido. Os Kulina, como
vimos, veem seu tempo dos antigos como um tempo-espaço ideal, o qual ainda
procuram vivenciar, com a conquista de uma nova terra, demarcada. Os Kanamari, no
atual tempo da Funai, permanecem ainda “tentando recriar seu mundo tendo o Tempo
de Tamakori como modelo” (Costa, 2007, p. 35). A história kanamari narra uma era
inicial onde o mundo estava organizado em subgrupos e espaços circunscritos (tempo
de Tamakori), seguida de um processo de mistura/caos (tempo da borracha) e,
posteriormente, de nova organização de formas sociais (tempo da Funai). Nas palavras
de Costa (2007):
A história levou os Kanamari de um contexto onde eles, segundo
dizem, viviam com parentes em aldeias contidas por chefes que, por
sua vez, eram contidas em bacias hidrográficas, a um contexto onde as
fronteiras entre estes níveis se confundem e onde eles perderam,
literalmente, seu norte. [...] Assim, o movimento ao qual a história lhes
submeteu é resistido no nível local, nos pequenos movimentos
sazonais e à medida que as pessoas nascem, crescem e morrem. O
problema que os Kanamari colocam ao narrar a sua história é o
mesmo que lhes atormenta a todo momento: como viver com parentes
num mundo que se encontra misturado? (Costa, 2007, p. 36).
Vemos, assim, que tanto o tempo dos antigos como o tempo de tamakori são
tomados como ideais e constituem modelos de vivência desejados pelos Kulina e
Kanamari, respectivamente. Os tempos, ao narrarem histórias específicas, fornecem
modelos e experiências de como socialidades particulares podem tomar forma. Eles
fornecem padrões de vivência e perspectivas do que é bom ou ruim para o futuro.
121
Histórias kulina e kanamari
Constituindo-se, assim, enquanto modos experimentados de se pensar tanto o passado
como o presente e o futuro.
No próximo capítulo, serão analisados os tempos dos Paumari e Kaxinawá.
Como será possível perceber, ambos estes grupos indígenas não encontram nos tempos
de seus antepassados um modelo de vida a ser seguido. Os antigos paumari viviam em
constante estado de guerra, em um tempo marcado pela antropofagia, pelas doenças e
pelo medo. Por sua vez, os antepassados dos Kaxinawá eram ignorantes, não detendo
o conhecimento necessário para viverem de maneira “verdadeira” (kuin) ou
apropriada. Nesse ponto, portanto, esses grupos divergem dos Kulina e Kanamari,
uma vez que os últimos assumem as épocas em que seus antepassados viveram como
um tempo ideal, que buscam reconstituir, de alguma maneira, no presente.
Por outro lado, as eras paumari estabelecem uma forte continuidade
comparativa com as dos Kanamari, já que a figura de um personagem que inaugura
um novo tempo faz-se sempre presente, bem como as eras são marcadas por um
período de auge e posterior decadência. Desse modo, os tempos paumari agregam
características marcantes de duas distintas eras kanamari. Pois, como mostrado acima,
o tempo da borracha kanamari é caracterizado pelos momentos de auge e decadência,
bem como pela chegada de Jarado. Por sua vez, o tempo da Funai é narrado por meio da
história de “quando Sabá chegou”, sendo Sabá o inaugurador de um novo tempo. Esses
paralelos serão, entretanto, melhor explicitados no capítulo a seguir.
Dediquei-me, aqui, principalmente à relação entre tempo e espaço. No capítulo
seguinte, serão enfatizados outros aspectos dos tempos pensados e vividos por estes
grupos, notadamente, a maneira como as mudanças de tempo implicam em
transformações corporais, formuladas pelos Paumari e Kaxinawá como uma troca de
pele.
122
123
Foto 4: Criança kulina em sua casa.
Fonte: Zwetsch, 1992, p. 28.
Foto 5: Vista de uma aldeia kulina.
Fonte: Zwetsch, 1992, p. 13.
125
Foto 6: Aldeia de Kumaru (Kanamari).
Fonte: ISA, 2013e; foto de Luiz Costa, 2004.
Foto 7: Menino kanamari.
Fonte: ISA, 2013e; foto de Luiz Costa, 2004.
Trocando de pele:
tempos e socialidades kaxinawá e paumari
Diferentemente dos Kulina e Kanamari, os Kaxinawá e Paumari não parecem
ter estabelecido relações sociais diretas entre si, ao menos desde o século XIX, pelo que
se depreende da leitura dos registros escritos. Isso, certamente, não implica dizer que
não seja profícua a comparação entre os modos de conceber transformações que
marcam suas histórias. Como procurei mostrar no capítulo 1, esses grupos indígenas
fazem parte de um mesmo complexo regional, tendo sido submetidos a condições
similares de exploração, trabalho e contato com os brancos desde, ao menos, fins do
século XIX. Lá, também foi mencionada a importância da patronagem nas concepções
atuais de vida desses grupos. As relações entre patrão e empregado marcaram,
entretanto, de uma maneira muito específica os modos de vida paumari e suas
concepções sobre o mundo, como veremos a seguir.
O eixo central da comparação desenvolvida neste capítulo não se foca, todavia,
na relação estabelecida entre esses grupos indígenas e os patrões – esta é uma questão
subjacente –, mas em um modo específico de concepção da transformação histórica. Se
no capítulo anterior foram destacados aspectos mais sociológicos das transformações
temporais (organização em subgrupos, ideal endogâmico, morfologia e localização das
aldeias, territorialidade, chefia, etc.), neste, serão mais enfatizadas características
relacionadas à cosmologia. Nas histórias paumari e kaxinawá, os tempos assumem um
caráter de ruptura em que vida, morte e trocas de pele ganham destaque. Na história
paumari, percebemos que a troca de pele não é apenas a imagem da transformação,
mas o fato gerador de mudanças sociais. Mas, para que cada novo tempo surja, parece
ser igualmente imprescindível novos personagens criadores de mundos, novos
demiurgos. Este também é o caso do tempo atual dos Kaxinawá que surge a partir do
fim do mundo mítico e das ações da criadora Nete.
Portanto, minha intenção não será a de realizar uma análise pormenorizada dos
deslocamentos kaxinawá ou paumari. Pois, diferentemente do capítulo anterior - onde
foram exploradas as transformações históricas dos tempos também enquanto
127
Trocando de pele
transformações espaciais e de territorialidades -, aqui, buscarei encontrar caminhos que
auxiliem na reflexão sobre que tipo de concepção está envolvido em tempos ou eras que
se transformam radicalmente, constituindo formas substancialmente distintas de
socialidade, ou seja, de conjuntos específicos de possibilidades de ação.
Ao abordar parte da história kaxinawá, pretendo analisar de que maneira
ocorreu a passagem de sua era mítica para seu tempo atual; o que caracteriza a
mudança de uma era a outra; ou ainda, o que substancialmente define cada uma dessas
épocas. A escolha de tratar da divisão entre o mundo do mito e o que vim a chamar de
tempo atual (ver definição adiante) é reflexo principalmente do fato de que as
transformações implicadas neste período da história kaxinawá tornam claro um dos
aspectos que considero fundamental para se pensar uma noção específica de
historicidade que me propus a investigar ao longo desta dissertação. Esta característica,
já delineada no capítulo anterior, refere-se à concepção da mudança social como
processos de transformação caracterizados pela ruptura com um mundo antecedente e
pela constituição de socialidades radicalmente distintas. Cada era ou tempo, pode ser
assim pensado como uma configuração de relações que constituem, literalmente, uma
nova socialidade. Cada uma das eras implica em modos distintos de se viver, de
relacionamento com os distintos “outros”, de territorialidades e de pessoas diferentes.
Isso não significa dizer, entretanto, que, quando falo de transformações radicais entre
tempos, não haja qualquer tipo de continuidade entre eles; para citar apenas um
exemplo, o mundo mítico kanamari continua se fazendo presente em seu mundo atual,
como vimos no capítulo anterior.
O tempo como configuração
Como veremos a seguir, os Paumari elaboram a passagem de um tempo a outro
de sua história como uma transformação que se dá na pele. Trata-se, portanto, de uma
mudança corporal que é operada na passagem entre eras de sua história, de maneira
análoga à passagem do mundo mítico ao mundo atual dos Kaxinawá, como veremos a
adiante. Cada era estabelece, portanto, uma nova socialidade, um novo modo de
estabelecimento de relações sociais, de possibilidades de ação, de existência do corpo.
Utilizei, no início deste capítulo, a ideia de configurações de relações específicas que
marcam uma época, um tempo da história. Considero importante explicitá-la neste
momento.
128
Capítulo 3
Bateson articulou o conceito do Zeitgeist, o espírito da época, a um conceito
correlato desenvolvido por Ruth Benedict, o da “configuração cultural” (Bateson, 2008
[1958], p. 166-168). Benedict mostrou, por exemplo, que a recusa dos Zuni em adotar o
peiote1 ou bebidas alcoólicas era condicionada por uma configuração apolínea de sua
cultura, que contrastava com as culturas de outros povos vizinhos, as quais eram
dionisíacas e adotavam, com entusiasmo, esses dois estimulantes (Cf. Benedict, 2000
[1934]). Por sua vez, como nos reporta Bateson (2008 [1958], p. 166), a escola filosófica
de Dilthey e Spengler sugeriu, por meio do conceito de Zeitgeist, que a ocorrência de
mudanças culturais é “em parte controlada por alguma propriedade abstrata da
cultura, que pode variar de período para período de tal forma que em uma época
determinada mudança seja apropriada e ocorra facilmente”, mesmo que, muitos anos
antes, a mesma inovação possa ter sido rejeitada por ser inadequada. A definição de
Hegel do conceito de Zeitgeist nos auxilia na exposição da ideia. Segundo ele, o espírito
do tempo
é sempre um determinado modo de ser, um determinado caráter, que
invade todas as diversas partes e se manifesta tanto nas formas
políticas como nas demais formas culturais, fundindo num todo as
várias partes; e estas, por sua vez, não contêm coisa alguma de
heterogêneo à condição fundamental dele, pois que podem aparecer
diversas e acidentais, embora se afigure que muitas delas se
contradizem mutuamente (Hegel, 1980, p. 362).
A elaboração dos tempos indígenas que venho analisando nesta dissertação
pode ser pensada pela articulação dessas noções, que abordei como uma configuração de
relações. Cada era é sempre “um determinado modo de ser”, “um determinado caráter”
que se estende para todas as esferas da vida social. A passagem de uma época a outra
parece exigir uma configuração cultural e histórica específica que dê margem a tal
mudança. Mostrei, no capítulo anterior, que os Kanamari decidiram, em determinada
circunstância, trabalhar para os patrões da borracha. Esta decisão, certamente, não
pode ser vista de maneira isolada. Segundo a história que os Kanamari contam, no
tempo da borracha, eles adquiriram o conhecimento da extração da seringa e, assim,
puderam começar a se relacionar de outra maneira com os brancos. No tempo anterior,
eles não tinham este conhecimento, mas também não estavam à sua procura. Antes,
sua configuração sociocultural era outra e não se articulava com o trabalho na
borracha. Cada uma das épocas pode ser assim pensada, por meio do conceito de
Peiote (Lophophora williamsii) é um pequeno cacto cuja ingestão provoca efeitos alucinógenos. É nativo da
região que se estende do sudoeste dos Estados Unidos até o centro do México.
1
129
Trocando de pele
Zeitgeist, como uma configuração de possibilidades da existência, como um
determinado caráter ou configuração cultural que orienta a organização de todos os
aspectos da vida e marca diferentes formas de socialidade. As eras dos Paumari nos
remetem a uma situação análoga, como veremos a seguir, em que cada qual indica
uma configuração específica de relações.
A pele e a história paumari
Os Paumari são falantes da língua paumari, pertencente à família linguística
Arawá2. Segundo Florido (2008, p. 49), o paumari é a língua mais diferenciada no
conjunto da família Arawá, o que provavelmente estaria associado ao fato de viverem
em contato muito próximo com os Apurinã, falantes de uma língua da família aruak.
De fato, em quatro das seis TI’s (homologadas) ocupadas atualmente pelos Paumari,
encontramo-los próximos aos Apurinã. Os Paumari dividem a PA1) TI Caititu com os
Jamamadi (também falantes de língua da família Arawá e os Apurinã; as PA2) TI
Paumari do Cunuiá, PA3) TI Paumari do Lago Marahã e PA4) TI do Lago Paricá (este,
às margens do rio Tapauá, afluente do Purus) também são compartilhadas com os
Apurinã. Habitam ainda a PA5) TI Paumari do Lago Manissuã, situado às margens do
rio Tapauá, afluente do Purus; e PA6) a TI Paumari do rio Ituxi, também afluente do
médio Purus (ISA, 2013b) - ver mapa 3.
Todas essas terras estão localizadas na região do médio rio Purus, em suas
margens ou afluentes. Foi também o médio Purus o local em que viajantes, desde fins
do século XIX, localizaram os Paumari. Labre3 (1872, p. 27) – em um texto-notícia
escrito em 1872, destinado àqueles que desejavam se estabelecer no Purus – descreveu
os Paumari vivendo em todo o médio Purus, mas afirmou que, em tempos anteriores,
eles teriam habitado o baixo Purus. Esta informação é condizente com a afirmação de
Chandless (1866, p. 92) segundo a qual os Paumari seriam uma subdivisão dos antigos
“Puru-purûs”, naquela época já extintos. De acordo com Métraux (1948, p. 661), os
antigos “Purupuru”, no século XVII, se estendiam até a boca do rio Purus.
O próprio nome do rio Purus parece ter origem no termo “Purupuru” o qual,
em língua geral, significava “gente pintada” (Labre, 1872, p. 8; Castelnau, 1851 apud
A população estimada dos Paumari é de 1.559 pessoas no estado do Amazonas, Brasil (FUNASA, 2010
apud ISA, 2013d).
3 Segundo Castello Branco (1947, p. 104), Labre, em sua época, foi um dos maiores conhecedores do rio
Purus, tendo nele habitado por muitos anos, fundando vilas, povoados e explorando seus afluentes desde
1871.
2
130
Capítulo 3
Bonilla, 2007, p. 66). Esta era a maneira como, “em tempos idos”, “as gentes do
Amazonas e rio Negro” chamavam os antigos Paumari por serem eles pintados ou
manchados de branco. Tais manchas decorriam da moléstia de pele que marcara os
Paumari por um longo período de sua história. Com o passar dos anos este nome teria
sido simplificado e resultado no termo “Purus” que passou, então, a designar o rio
(Labre, 1872, p. 8).
A
doença
que
marcou
os
Paumari, reconhecida posteriormente
Foto 8: Homem puru-puru com a pele
manchada
como a “pinta”4 (cf. Bonilla, 2007, p.
70), era caracterizada por ferimentos na
pele, os quais provocavam enorme
coceira
(ver
tornavam
os
foto
8).
As
feridas
Paumari
de
caráter
asqueroso e repelente, segundo Labre
(1872, p. 27-28), o qual defendia que
elas poderiam ser transmitidas pelo
contato com estes índios. Schultz &
Chiara (1955, p. 192-193) referiram-se à
pinta como uma doença autóctone e
muito frequente entre vários grupos
indígenas do Purus, manifestando-se
por manchas claras e escuras em todo o
corpo, tanto em bebês como em
adultos. No alto Purus, observaram
que esta doença havia sido espalhada
entre os regionais que apontavam
como
transmissores
os
índios.
Consideraram a pinta como uma
doença
hereditária,
possivelmente
Fonte: Martius; Spix, 1981 [1831]
apud Bonilla, 2007, p. 68.
também transmitida por ocasião da “festa do peixe boi”, ritual de flagelação recíproca
que reunia grande número de índios; sendo, portanto, transmitida pelo sangue.
Doença não venérea provocada por uma bactéria do tipo espiroqueta, Treponema carateum (cf. Avalleira;
Botinno, 2006, p. 112; Wong, 2013).
4
131
Trocando de pele
A pinta foi certamente um fator de estigmatização dos Paumari perante os
regionais, tendo importantes repercussões, como veremos adiante. Os próprios
Paumari afirmam que a pinta os desfigurava e lembram que muitos brancos fugiam
quando os viam (Bonilla, 2007, p. 66). É importante destacar, entretanto, que os
Paumari oferecem a tais manchas na pele uma conceituação única, não as classificando
no escopo de suas doenças, chamadas kavamoni5. Elas são consideradas uma marca de
identidade de nome ajobi. Segundo eles, ajobi tem uma origem mítica, uma vez que, nos
tempos míticos, os Paumari recusaram banhar-se no sangue da sucuri (mabidiri), e todos
os outros povos o fizeram. Assim, foram penalizados com o surgimento de manchas
em sua pele; a continuidade das manchas é explicada por eles como resultado de
transmissão por meio do sangue materno (Bonilla, 2007, p. 67-70). O fim da pinta
marcou uma importante transformação na história paumari, como veremos a seguir.
Diferentemente dos Kulina e Kanamari, os Paumari são descritos, desde aquela
época, como um grupo indígena fluvial, sendo exímios remadores e canoeiros e
alimentando-se especialmente de peixes e tartarugas (cf. Labre, 1872, p. 27). Como
mencionado no capítulo 1, desde meados do século XIX, já estavam envolvidos no
comércio com os brancos, sendo muito conhecidos na região, por não abandonarem as
margens dos rios (Chandless, 1866; Labre, 1872; Ehrenreich, 1929). Pois, como vimos, as
margens foram as primeiras a serem ocupadas pelos brancos em decorrência de sua
vinda à região com fins de exploração do território. Desse modo, os Paumari,
divergindo dos demais grupos indígenas abordados nesta dissertação, foram aqueles
que aparentemente realizaram menores deslocamentos desde a chegada dos brancos
no contexto da exploração da borracha, tendo se envolvido cedo com o comércio e
exploração do látex.
Os Pamoari e a “velha cultura”
Pamoari é o termo utilizado para designar “cliente” ou “freguês” na língua
Paumari e é também a autodenominação deste grupo indígena (Bonilla, 2009, p. 130).
Tal coincidência reflete um importante aspecto da maneira pela qual esses índios
encaram sua posição no mundo. É provável que a denominação “pamoari” tenha se
Aliás, as enfermidades que afetam a pele, de maneira geral, nunca são classificadas como kavamoni
(doenças). Cada uma delas recebe um nome próprio e várias afetaram os Paumari: varodaha
(despigmentação da pele após o tratamento da pinta), samosamo (impetigo), sakahai (micoses), baijo
(leishmaniose cutânea) etc. (cf. Bonilla, 2007, p. 67, nota 63).
5
132
Capítulo 3
tornado um sinônimo de “freguês” em decorrência da enorme inserção dos Paumari no
sistema comercial da região (Bonilla, 2005, p. 46). Um dos fatos que mais chamou a
atenção de Oiara Bonilla, a qual teve os Paumari como interlocutores de pesquisa, foi o
comportamento de constante submissão de indivíduos deste grupo indígena frente aos
brancos: eles colocavam-se insistentemente em uma posição de vítima, forçando seus
interlocutores a assumirem o lugar do “patrão” (Bonilla, 2007, p. 13). Os Pamoari
insistiam em transformar as relações com os “outros” em relações de cunho comercial
do tipo patrão-empregado, fossem eles seus vizinhos Apurinã (viporina), outros índios
(joima), regionais (jara), estrangeiros (americano) ou mesmo parentes provenientes de
um grupo local mais distante. Colocavam-se, ainda, sempre na posição de presas ou
vítimas nas relações com esses outros – “índios vindos de longe para devorá-los ou
brancos vindos para matá-los ou escraviza-los” (Bonilla, 2005, p. 41-42; cf. também
Bonilla, 2007). Esta perspectiva dos Paumari sobre si próprios está diretamente
associada com sua busca por bons patrões e às transformações de seus tempos, sempre
relacionadas a heróis inaugurais que os “adotam” para, posteriormente, abandoná-los.
Os Paumari narram sua história a partir da descrição de três épocas distintas: os
“tempos antigos” (pamoanina kari)6, o “tempo dos patrões” e o “tempo presente”, a que
Bonilla (2007) chamou de “era cristã”7. Eles referem-se a três grandes rupturas
temporais, que implicam em mudanças no que toca à socialidade, ao modo de vida, às
perspectivas, aos comportamentos e hábitos, ao corpo e aos interlocutores dos Paumari
(Bonilla, 2007, p. 30-31). Cada um dos tempos ou eras é inaugurado por uma
personagem que estabelece novos padrões de existência. É ainda fundamental precisar
que
os Paumari jamais contam essas três narrativas uma seguida da outra,
como se tratasse de um encadeamento linear de eventos. Ao contrário,
é quando se fala da mudança e da transformação que os Paumari se
lembram de uma ou de outra narrativa evocando então seja “o tempo
dos antigos”, “o tempo dos patrões” ou aquele a que nós chamamos
“a era cristã”, que corresponde ao tempo presente (Bonilla, 2007, p. 30,
tradução minha).
A tradução de “tempos antigos” como “pamoanina kari” provém do dicionário bilíngue nas línguas
paumari e portuguesa, organizado por Chapman & Salzer (1998, p. 82). Bonilla (2007, p. 65) traduz
“tempos antigos”por “'bo'dakari”, termo que, segundo Chapman & Salzer (1998, p. 51), equivale ao
advérbio “há muito tempo atrás” ou “antigamente”.
7 Infelizmente, não é oferecido na literatura consultada o termo pelo qual os Paumari se referem ao “tempo
dos patrões” em sua língua. Já o “tempo presente”, chamado por Bonilla (2007) de “era cristã”, não recebe,
por parte dos próprios Paumari, uma nomeação específica (ver citação que se segue no corpo do texto).
6
133
Trocando de pele
Um dos aspectos que mais chamou a atenção de Bonilla (2007, p. 30; 2009, p.
128) logo no início de seu trabalho de campo foi a insistência paumari em tentar
dissuadi-la a não mais perguntar sobre mitos, rituais e xamanismo, porque eles já não
eram mais como os antigos, não pertenciam à “velha cultura”, ao modo de vida dos
antigos, pamoari „bo’da kahojai (“pamoari „bo’da” designa “antigos”, “ancestrais”, ao passo
que “kahojai” indica uma prática, uma atitude). Importante notar que há diferenças
entre os Paumari que se afirmam enquanto “crentes” – seguidores de uma doutrina
evangélica – e aqueles que se dizem “católicos”. Os crentes associam os católicos como
mais ligados à “velha cultura” e são mais enfáticos em afirmar-se como não mais
pertencentes a ela (Bonilla, 2009, p. 128-129). Entretanto, não temos dados para analisar
como os Paumari que se dizem católicos consideram tal opinião dos crentes e como os
posicionam, embora saibamos que tanto católicos quanto crentes se diferenciam de
seus ancestrais que viviam “na velha cultura” (cf. Bonilla, 2009, p. 128-129, 132).
Dois tipos de missões realizaram atividades entre os Paumari em tempos
recentes: a católica, desde os anos 1980, por meio da presença da OPAN (Operação
Amazônia Nativa) e do CIMI (Conselho Indigenista Missionário); e a protestante,
desde 1963, na presença do SIL (Bonilla, 2009, p. 127). O trabalho da antropóloga Oiara
Bonilla é a principal fonte utilizada por mim para a análise que venho empreendendo a
respeito da história Paumari. Sua pesquisa de campo foi realizada na região do Lago
Marahã tendo como foco a aldeia Crispim. É nesta aldeia que vivem a maioria dos
Paumari evangélicos. Por outro lado, a maioria dos católicos está nas aldeias Santa
Rita, São Clemente e na área ao redor (Bonilla, 2009, p. 128). Assim, veremos aqui
expresso, sobretudo, o relato daqueles que afirmam seguir o protestantismo.
Do mito aos tempos antigos
No princípio de tudo (kama’dani), os Paumari já existiam, eles sempre
existiram, mas não sabiam comer, não tinham armas, tabaco, manchas na pele, nem
roupas, não conheciam os nomes dos frutos e não podiam caçar nem pescar,
porque as presas e seus predadores não existiam como tal. De uma maneira geral,
os humanos e não humanos viviam sob uma forma humana, seu pamoarihi (Bonilla,
2007, p. 33, tradução minha).
Contudo, o nascimento de sete irmãos permitiu a emergência do modo de vida
dos antigos. O mais conhecido deles se chamava Kahaso. Assim, a narrativa inaugural
dos tempos antigos traz à tona as condições primeiras de existência social dos Paumari,
por meio de seus heróis-transformadores primordiais. O mito conta como sete irmãos,
134
Capítulo 3
nascidos de Jakoniro – a primeira mulher mitológica – e cuidados pela velha fêmea
jaguar, foram responsáveis por ensinar aos Paumari como serem pessoas
“verdadeiras” (Bonilla, 2009, p. 132).
No princípio, o mundo era marcado pela predação. Jakoniro, filha da Chuva (Bahi
kapamoarihi), mantinha relações sexuais com homens, depois, matava-os para poder
alimentar a grande e constante fome de seu pai, o Espírito da Chuva. Esta mulher tinha
um ventre muito grande, mas, dentro dele, não havia bebês. Ele estava repleto de
predadores (tapo’ija): sucuris, arraias, jacarés, serpentes e inclusive peixes, como as
piranhas (Bonilla, 2007, p. 34). Após Jakoniro ser devorada pelos jaguares, nascem de
seu ventre sete ovos de ave. Os jaguares não comiam ovos e, assim, jogaram-nos contra
o tronco de uma árvore. Desses ovos nasceram pequenos pássaros e a velha fêmea
jaguar resolveu alimentá-los. Interessante notar que os pássaros são concebidos pelos
Paumari como o protótipo da presa domesticada: a palavra igitha – presa/animal
doméstico – designa também os pássaros, chamados igitha raboki, presa voadora
(Bonilla, 2007, p. 37, nota 26; 2009, p. 133, nota 11). Kahaso, cujo nome significa “pele
áspera” (Bonilla, 2007, p. 37, nota 27), era o mais jovem dos filhotes, sendo pequeno,
feio e cheio de feridas, mas possuidor de enormes poderes. Passado algum tempo,
Kahaso e seus irmãos decidem se vingar, matando os jaguares. A característica mais
marcante de sua ação vingativa é a sagacidade com que agem, sendo a brutalidade, a
idiotice ou a falta de jeito do inimigo os fatores responsáveis por seu aniquilamento
(Bonilla, 2007, p. 41-42). Os sete irmãos iniciaram, então, uma longa jornada pela
floresta à procura de um fruto que fosse capaz de curar os ferimentos e coceiras de
Kahaso. Nomearam os frutos comestíveis encontrados na floresta e também deram
origem às diferentes gentes que habitam o mundo atual, assim como às manchas que
marcavam a pele dos Paumari:
Eles decidiram fabricar vasilhas a fim de enchê-las de nozes [que haviam acabado
de nomear]. Eles cortaram cipó e começaram a trançar cestos. Kahaso trançou a si
mesmo na trama do cesto, o qual se transformou em sucuri e caiu na água. Os
irmãos tentaram parar a criatura que se conduzia pela água. Pediram a ajuda de
vários pássaros de bico longo, mas finalmente foi o menor deles, o martimpescador anão, que arpoou a sucuri por trás de sua cabeça e furou o ventre de
Kahaso. Desde então todo mundo tem um umbigo.
A sucuri foi arrastada para a margem do rio e eles abriram seu ventre, que
formava, assim, um rio de sangue. Mas, para tirar Kahaso de lá, era preciso ajuda.
Então, os seis irmãos bateram sobre as árvores a fim de extrair delas as gentes
(ija’ari), em pares. Com todas as gentes, foi possível tirar Kahaso do ventre da
sucuri. Ele saiu de lá como um recém-nascido e seus ferimentos haviam
desaparecido (Bonilla, 2007, p. 38-39, tradução minha).
135
Trocando de pele
Após tirarem Kahaso do ventre da sucuri que havia o engolido, os seis irmãos
mais Kahaso, pediram a todas as gentes para que se banhassem no sangue da sucuri.
Kahaso, que havia tido anteriormente sua pele coberta de feridas, saíra do ventre da
cobra rejuvenescido, como se houvesse renascido, com uma pele limpa e clara. Mas,
ainda assim, os Paumari, acharam a ideia repulsiva e passaram apenas uma pequena
quantidade do sangue em seus corpos, recusando-se a submergirem completamente
nele. É por esta razão que sua pele ficou coberta de manchas. Depois disso os sete
irmãos foram definitivamente para o céu e se transformaram nas Plêiades. Alguns
interlocutores de Bonilla dizem ainda que, antes de irem para o céu definitivamente, os
sete irmãos passaram todo o seu conhecimento técnico aos brancos, o que explica a sua
atual superioridade tecnológica (Bonilla, 2009, p. 133)8.
Foram esses sete irmãos que legaram aos Paumari todas as técnicas necessárias à
sua sobrevivência e que lhes forjaram uma identidade: marcas étnicas; nominação dos
frutos; ensinamento de alimentação adequada e de técnicas de caça, peça e coleta;
armas; instrumentos xamânicos; técnicas de parto (Bonilla, 2007, p. 34-40). Além disso,
quando os irmãos se transformaram em estrelas, instauraram o ciclo das águas que
regra a temporalidade cotidiana e ritual dos Paumari (Bonilla, 2007, p. 42-43). Essa
transformação inaugural fez-se também por meio de uma transformação corporal
sofrida por Kahaso, o qual renasceu do ventre de uma sucuri mítica com sua pele
renovada, sem as feridas que antes possuía. Vemos também como a doença de pele e a
procura pela cura aparecem como o motor da metamorfose e transformação (Bonilla,
2009, p. 133). Foi no percurso em busca da cura das feridas de Kahaso que os sete
irmãos deram nome aos frutos, origem às cestas, às ferramentas e também às gentes
que existem no mundo atual. Por outro lado, foi porque os Paumari se recusaram a
entrar no sangue da sucuri mítica, que sua pele ficou manchada e ferida. Assim, o mito
que estabelece o princípio do tempo dos antigos narra o estabelecimento de uma vida em
sociedade entre os Paumari e também de uma pele marcada pela pinta, que se torna
uma “marca visual” de sua identidade (Bonilla, 2009, p. 133).
Segundo contam os Paumari, a época em que seus ancestrais viveram foi
marcada por constantes mudanças de lugar relacionadas às perseguições que sofriam
por parte de outros grupos indígenas, os Joima. De acordo com Bonilla (2007, p. 49),
esse termo designa provavelmente os Juma, grupo falante de língua pertencente à
família Tupi-guarani, hoje reduzidos a quatro indivíduos (cf. ISA, 2013f). Hoje, Joima
8
Esta é uma versão resumida da longa narrativa mítica reportada por Bonilla (2007, p. 34-40).
136
Capítulo 3
designa genericamente os outros índios; eles vêm sempre de longe e, ainda hoje,
aparecem rumores de que possam atacar os Paumari (Bonilla, 2007, p. 49). Naquela
época,
os Joima (índios selvagens) rodeavam-nos durante nossas festas e nos
matavam. Eles também ficavam em canoas, escondidos sob esteiras,
esperando nossa aproximação. Quando chegávamos perto, eles
atiravam suas flechas e nos matavam aos golpes. Então, eles nos
comiam (T., 01/02/2001, em Bonilla, 2009, p. 133, tradução minha).
Este fora, portanto, um período dominado pela guerra, pela antropofagia, pelo
medo e por doenças, sobretudo as doenças de pele. Este tempo é visto pelos Paumari
atuais como um período perigoso em que eles foram incansavelmente perseguidos por
outros índios e dizimados pelas doenças, forçando-os a confiar exclusivamente em seus
poderosos xamãs (Bonilla, 2009, p. 133). A atividade xamânica excessiva era uma das
características da velha cultura.
Os Paumari contam ainda que, antes da chegada dos Jara (brancos), mais
especificamente dos kariva (patrões), “viviam como as gaivotas (tihi) que se instalam no
início do verão amazônico nas praias do Purus”. Eram mais numerosos do que são nos
dias atuais e, nessa época do ano, ao ocuparem as praias que iam do Tapauá ao
Sepatini (rio abaixo e rio acima respectivamente) ficavam expostos aos ataques dos
Joima. Mas, depois da chegada dos kariva e dos Jara, os Paumari deixaram de frequentar
as praias, que eram muito expostas, e entraram para a floresta, ocupando
preferencialmente as cabeceiras. Estes locais na floresta eram, ainda assim, sempre
próximo aos lagos e igarapés, “onde circulavam sazonalmente entre várias moradias”
(Bonilla, 2005, p. 44). A chegada dos patrões e dos Jara deu-se, assim, ainda nos tempos
antigos. Neste período, as relações estabelecidas com os brancos foram também
marcadas pela guerra e pelas correrias. Foi apenas com a chegada de Orobana que os
Paumari puderam transformar suas relações com os brancos e também seu modo de
vida.
Orobana e a era comercial
No tempo dos patrões, é Orobana quem aparece como herói transformador. De
modo semelhante a Kahaso, esse homem veio interferir no curso da história paumari e
permitiu uma mudança de posições fundamental para lidar com uma desgraça
possível. Ele foi enviado pelo governo dos Jara e salvou os Paumari da destruição,
137
Trocando de pele
trazendo a eles uma opção à guerra: a troca, que foi acompanhada da instalação da era
comercial (Bonilla. 2007, p. 77-78).
Orobana fora enviado pelo governo dos brancos para conhecer os Paumari; ele
pensava, então, que os Paumari eram bravos. Antes de partir, ele decidira caçar por
alguns dias para que sua família tivesse o que comer em sua ausência. Sua esposa foi
com ele. Mas Orobana não caçou nada, ele ouviu o canto do mutum e decidiu o seguir.
Perseguiu o mutum com a intenção de matá-lo, entretanto acabou chegando até a casa
de um homem. Quando Orobana tirou sua espingarda para atirar, uma voz lhe disse:
“Por favor, não o mate, este pássaro é meu xerimbabo”. Ele se assustou e
obedeceu. Então, o homem convidou Orobana para subir em sua casa. Eles
começaram a conversar e se entendiam bem. O homem mandou sua esposa Maria
fazer um café para eles. Orobana chamou sua esposa (que também se chamava
Maria), a qual ainda o procurava na floresta. Ela subiu e se sentou perto da esposa
de seu anfitrião. Depois de tomarem café, o homem começou a lhe falar em
Paumari e a descrever como era a vida entre eles. Disse a Orobana: “Orobana, estes
Índios não são selvagens, eles são pacíficos, são vocês, os Brancos, que os
perseguem sem cessar, vocês os matam e eles se vingam graças a seu xamã
chamado Avô Titxatxa”. Orobana estava muito atento a tudo o que este homem lhe
contava. Enquanto isso, as duas Marias teciam esteiras, como aquelas que nós
fazemos para cobrir as redes e nos proteger do sol. Bebendo café, Orobana
aprendeu Paumari e Maria aprendia a tecer (cestos, esteiras) (Bonilla, 2007, p. 78,
tradução minha).
Este homem, segundo a memória paumari, era branco e vinha de Manaus e sabia
falar paumari. Como vimos, ele havia aprendido a língua após tomar café oferecido
por uma pessoa que parecia ser o “dono dos animais”, segundo Bonilla (2009, p. 134),
uma vez que possuía um recipiente que continha todo tipo de animal de caça. Orobana,
que desejava se aproximar dos Paumari, foi instruído por este homem sobre o modo de
vida deste povo e, quando chegou entre eles, fingiu ser também um paumari. De fato,
em um primeiro momento, os Paumari acreditaram ser Orobana um parente que vinha
de longe, pois ele se portava como um deles e sabia falar a língua. Entretanto, ao
anoitecer, perceberam que este homem também portava objetos manufaturados.
Orobana teve, então, que se explicar e mostrou-lhes que também sabia falar o
português: “Eu vim para vos conhecer e quero que vocês me conheçam também. Eu
não vim para lhes fazer mal, eu desejo que vocês pesquem para que eu leve sua
produção para o governador para que ele tenha a prova de que vocês não são ferozes”.
Assim, Orobana estabeleceu uma relação de troca com os Paumari. Realizou várias
viagens a Manaus para onde levava sua produção e de onde trazia mercadorias para
138
Capítulo 3
trocar. Ele ensinou-lhes também a usar roupas e redes protetoras contra os mosquitos e
também adotou uma criança paumari.
Mas, depois, Orobana não podia mais fazer as viagens e mandou seu filho em
seu lugar. Durante um ano, seu filho realizou as viagens, mas um dos xamãs paumari
sabia que ele não lhes queria bem. Como o Avô Titxaxa, o grande xamã, havia morrido,
eles não sabiam como iriam se defender. Depois de um ano, o filho de Orobana perdeu
a paciência com os Paumari porque eles bebiam muito (foi também com a chegada de
Orobana que os Paumari conheceram o álcool). Aquilo semeou a discórdia entre eles e,
então, “ele decidiu que iria nos exterminar novamente”.
Mas, o afilhado de Orobana que estudava em Manaus o denunciou a seu pai e
disse que os Paumari se vingariam de seu filho se ele fizesse mal a eles. Então,
Orobana chamou seu filho de volta e foi a partir deste momento que os Brancos
começaram a se instalar nas margens do Purus. Foi então que eles começaram a
nos amansar. Os patrões começaram a nos vender coisas e nós começamos a os
conhecer melhor e a trabalhar com eles. Um dia, um homem paumari desejava
comprar mercadorias de um patrão que recusou vendê-las a ele porque este
paumari já vendia sua produção a outro patrão. Ele quis fazer mal ao homem
paumari, mas os Paumari não revidaram mais porque queriam que os massacres
cessassem. Foi assim que os índios Paumari foram amansados pelos Brancos. Este é
o fim da história, do que eu me lembro dela (F., 19/09/01, Crispim, em Bonilla,
2007, p. 80, tradução minha)9.
A chegada de Orobana é o marco, como vemos, para diversas transformações
que aconteceram na vida dos Paumari, uma vez que ela estabelece o momento em que
os brancos começaram a se estabelecer ao longo das margens do Purus e também
quando os Paumari começaram a trocar com os Jara. Estes já estavam na região, mas,
antes, apenas relações de violência e morte podiam ser estabelecidas entre eles. Orobana
é hoje visto como um herói pelos Paumari e é considerado seu primeiro patrão, o
inaugurador da era comercial no Purus. Sua chegada foi aquela que pôs fim aos tempos
antigos, inaugurando a era dos patrões. Ele iniciou a pacificação da região e possibilitou
aos Paumari sobreviverem aos incessantes ataques de índios bravos e da população
regional, ensinando-os a comerciar com os brancos (Bonilla, 2007, p. 95; 2009, p. 133).
Os Paumari se tornaram, assim, fornecedores de peixes e quelônios no comércio
regional. Trocaram com os brancos, principalmente, peixe salgado (pirarucu),
quelônios ou madeira e, em menor intensidade, produtos extrativos como a castanha, a
9
A história completa, da qual apresentei aqui uma versão resumida, foi descrita em Bonilla, 2007, p. 78-80.
139
Trocando de pele
andiroba, a copaíba, a seringa ou a sorva10. Desse modo, conseguiram ter acesso a
roupas, sal, açúcar, café, farinha de mandioca e instrumentos de trabalho – terçados,
munições, armas, anzóis e linha (Bonilla, 2005, p. 45).
A narrativa em que sabemos da história deste personagem faz lembrar um
pedido Paumari para que os brancos não os matem. Já em seu princípio, vemos o
homem que morava na floresta orientando Orobana sobre a vida dos Paumari e
explicando-lhe que este povo não era bravo, mas pacífico. No fim, são os próprios
Paumari que parecem desistir de uma atitude vingativa para com o patrão que recusou
comerciar, motivados pelo medo de que os massacres voltassem a acontecer. A
possibilidade do extermínio aparece como eminente, devendo ser evitada, ainda que
para isso devessem sacrificar a vingança. Devemos observar que o narrador da história
afirma que o filho de Orobana decidiu que iria os exterminar novamente. A ideia de uma
repetição do extermínio liga esta ameaça a uma experiência real e anterior com os
brancos em geral e não com o filho do herói especificamente. A chegada de Orobana
marca, portanto, a pacificação dos Paumari, quando eles deixaram de ser selvagens,
tornando-se mansos. Como bem observado por Bonilla, “índios mansos” significa
índios vestidos, preferencialmente convertidos e batizados com nomes cristãos,
capazes de comerciar, ou seja, “capazes de serem explorados sem reagirem
violentamente” (2009, p. 135, tradução minha).
Foi assim, por meio do processo de pacificação, que os Paumari aprenderam a
relacionar-se de outra maneira com os brancos da região. A era dos patrões dos
Paumari assemelha-se à era dos patrões dos Kanamari, pois ambas iniciam com a
presença anterior dos brancos na região e com uma aprendizagem indígena de um
modo possível de comerciar com esses estrangeiros ou de trabalhar na borracha. Entre
os Paumari também vemos a transformação da relação com os brancos ao longo deste
tempo. Na narrativa, o filho de Orobana já não é como o pai: enquanto o primeiro
ensinou os Paumari a trocarem, seu filho não lhes desejava o bem e, em determinado
momento decidiu que os iria exterminar. Por outro lado, o tempo dos patrões é também
aquele que inicia com um personagem que salva os Paumari da morte eminente no fim
do tempo anterior, mas termina com a submissão dos Paumari a condições de
exploração e aos abusos dos patrões da borracha.
10 “Árvore da família das apocináceas (Couma guianensis), da floresta úmida, que se caracteriza pelos frutos
bacáceos, comestíveis, de pequeno tamanho, e cujo látex é amargo, não servindo para beber” (Ferreira,
2004, p. 1878).
140
Capítulo 3
O princípio deste tempo é relatado pelos Paumari, portanto, como uma salvação
à morte eminente da era anterior, mas seu fim assemelha-se ao fim dos tempos antigos.
A chegada de Orobana ocasionou uma era de relativa paz no dia-a-dia (Bonilla, 2009, p.
134). O tempo dos antigos foi “um tempo marcado pelo terror infligido de toda parte”:
“pelas perseguições dos Joima, pela estigmatização da pinta e pelos diversos flagelos
que atingiram as populações do Purus no momento da colonização da região” e
também “pelo medo suscitado pelo poder de vida e morte dos xamãs” (Bonilla, 2009, p.
79). Assim como no tempo dos antigos, quando Kahaso e a sucuri mítica inauguraram um
novo ciclo temporal provocando uma transformação na pele, com Orobana, passa-se
algo do mesmo gênero: ele põe fim ao tempo de terror entrando em uma era
relativamente pacífica do comércio e do patronato. A transformação se dá, de igual
maneira, na pele, porque nesta nova época são adotadas roupas (makari) e mosquiteiros
(motokiro), que a protegem tanto dos olhares exteriores como dos mosquitos,
abundantes na região (Bonilla, 2007, p. 84). Estes objetos foram também trazidos por
Orobana.
Ao contrário do que acontece com o tempo dos antigos, os Paumari, por vezes,
lembram com nostalgia do tempo dos patrões, considerado como uma época de paz e de
abundância de mercadorias. Recordam-se do bom patrão generoso que se ocupava dos
Paumari “como de seus próprios filhos”, que partilhava com eles de seus alimentos
quando iam comerciar e que lhes dava roupa usada ou algum analgésico para acalmar
a febre (Bonilla, 2007, p. 106).
Mas, em outros momentos, esta época é também descrita
como um tempo remoto, relembrado como um período dominado
pelos xamãs e controlado pelos patrões, em que os Paumari não se
sentiam capazes de compreender adequadamente o que aconteceu
quando trabalharam para pagar seus débitos ou quando se tornaram
vítimas de doenças mortais. Naquele tempo, os Paumari sabiam
muito pouco sobre a vida da população regional para serem capazes
de controlar suas relações com os últimos: eles não sabiam escrever,
ler ou contar, nem sabiam como usar os medicamentos não-indígenas
(Bonilla, 2009, p. 137-138, tradução minha).
Assim, se no princípio, a chegada de Orobana ocasionou uma era de relativa paz
no dia-a-dia, aos poucos, esta paz foi se transformando em decorrência das doenças, da
dependência e abusos dos patrões. O período que antecedeu a chegada das
missionárias do SIL é considerado uma época de intensificação das doenças e também
da atividade xamânica. O que não foi mera coincidência, uma vez que as epidemias
141
Trocando de pele
(rubéola, varíola, meningite) são consideradas pelos Paumari como tendo em sua
origem uma ação xamânica11 (cf. Bonilla, 2007, p. 73-76).
Deus, um novo patrão
A primeira vez que o avião veio, ele pousou na água. Ele se aproximou da
margem, e então elas colocaram seus pés na terra para vir nos conhecer. Mas
ninguém veio cumprimentá-las, porque nós estávamos com muito medo. Nós
ficamos todos escondidos nas nossas casas ou na floresta. As mães esconderam
seus filhos nas casas, em baixo de esteiras, porque elas acreditavam que os
Americanos levariam as crianças para matá-las e fazer “conserva”. Tudo isso eram
os medos dos mais velhos. As crianças obedeceram. Ninguém falou, ninguém se
beliscou, ninguém riu.
Foi meu primo que saiu para falar com o piloto. Elas queriam pedir permissão
para trabalhar entre nós. No começo, eles não foram entendidos, até que meu
primo entendeu e disse:
- Sim, se vocês não quiserem nos fazer mal, então nós receberemos vocês, vocês e
essas mulheres jovens.
Depois dessa conversa, elas almoçaram, e depois voltaram para Porto Velho. O
piloto nos disse que elas voltariam um ano mais tarde, depois de aprenderem
português para poderem se comunicar com a gente. Elas só falavam inglês e
americano. O único que podia traduzir o que elas falavam era Paulo, o piloto. Eu
me lembro de seu nome. Elas foram embora (F., Crispim, 19/09/01, em Bonilla,
2007, p. 115).
Quando voltaram, as missionárias do SIL foram gradualmente aceitas pelos
Paumari, ao estabelecerem com eles relações de troca de roupas, utensílios e outros
objetos manufaturados por seus produtos: peixe, artesanato e serviço doméstico. Elas
também progressivamente introduziram o dinheiro como um meio de pagamento
(Bonilla, 2009, p. 132). Assim, o tempo presente paumari é inaugurado com a presença
missionária, e por essa razão Bonilla chama-o de “era cristã”; mas devemos notar que
esta parece ser uma nomeação externa (cf. Bonilla, 2007, p. 32). As duas missionárias
protestantes, conhecidas como Siri ou Chirley (Shirley Chapman) e Maria Bosoni
(Mary Ann Odmark), chegaram à aldeia Crispim no ano de 1964 e há inúmeros relatos
que fazem referência a elas. Embora não possam ser considerados mitos e nem sejam
contados nas circunstâncias em que se narram os mitos, esses relatos são pronunciados
e atualizados com enorme frequência (Bonilla, 2007, p. 106). Apesar de ambas terem
chegado juntas ao local onde estavam os Paumari, deve-se observar que é geralmente
mencionado o nome de Siri nos relatos referentes a esta era (ver relatos abaixo e cf.
Bonilla, 2007).
11 As epidemias, assim como as doenças de pele, não são classificadas pelos Paumari pelo termo kavamoni,
traduzido por “doença” (cf. Bonilla, 2007, p. 65). As kavamoni são ocasionadas por um acúmulo de resíduos
alimentares na carne (ver adiante).
142
Capítulo 3
Elas são consideradas como as mães adotivas que salvaram o grupo, trazendo o
cristianismo e um novo modo de vida aos Paumari, que vigora até os tempos atuais.
Pois, uma vez que a febre da exploração da borracha definitivamente se acabou, os
Paumari encontraram-se mais uma vez abandonados à sua própria sorte, segundo seus
próprios relatos (Bonilla, 2007, p. 106), sendo salvos com a inauguração desta terceira
nova era. A era cristã é vista como uma era sã, em que as doenças de pele e outras
(como a malária) não mais assolam os Paumari e em que a prática abusiva do
xamanismo também está controlada. As epidemias e doenças (kavamoni) foram
neutralizadas graças aos medicamentos, antibióticos e à prática da vacinação
sistemática. A missão igualmente deu aos Paumari a possibilidade de controlar suas
relações comerciais, por meio do ensino da leitura, da escrita e do cálculo (Bonilla,
2007, p. 65, 139; 2009, p. 136). Esta foi também a época em que os Paumari conseguiram
reestabelecer o ritmo anual de alternância entre as cabeceiras e as margens do rio, o
qual ficou totalmente prejudicado no período em que os Paumari tiveram que
trabalhar para os patrões (Bonilla, 2009, p. 127).
Mas, dentre todas as modificações ocorridas, a cura dos ferimentos na pele que
historicamente assolaram os Paumari parece ter sido a grande motivadora da
conversão de grande número dos habitantes de Crispim ao protestantismo. Os modos
de cura da pinta que, segundo os Paumari, tinha origem mítica e era transmitida pelo
sangue materno (cf. Bonilla, 2007, p. 70), nunca tinha sido alcançada pelos métodos
anteriormente utilizados:
Todos os Paumari tinham o impetigo, a pinta, ela vinha do sangue da
mãe. Antes da chegada de Siri, a gente cuidava dela com um remédio
à base de “salsa”. (...) A gente arrancava as raízes, depois a gente a
pulsava com um bastão e, dois dias depois, colocávamos isso em uma
garrafa. Quando isso formava bolhas, a gente bebia uma grande dose
desse suco, depois a gente tomava um banho bem cedo de manhã. (...)
Todas as crianças tinham o impetigo, todos eram manchados e
escuros e suas caras também. Minha mãe dizia que essas manchas
haviam começado porque nós, os Paumari, recusamos nos banhar no
sangue da sucuri (F., Crispim, 01/08/01, em Bonilla, 2007, p. 70,
tradução minha).
Segundo Bonilla (2007, p. 128), em razão desta transformação a aldeia de Crispim
se proclamou “crente”, opondo-se, assim, às demais aldeias e grupos locais. Nesta
aldeia, o xamanismo foi repudiado, pois, ao curarem as doenças que os afetaram por
longa data, as missionárias assumiram uma posição de poder que os xamãs não
puderam ocupar face à aparição de novas doenças “contra as quais eram necessários
143
Trocando de pele
medicamentos, vacinas, antibióticos” (Bonilla, 2007, p. 128). Os Paumari de Crispim
comparam a época em que Chirley e Maria chegaram:
Na época de Chirley, os Paumari não mais tiveram que descer à
Labrea em busca de medicamentos (Ch. P., 20/05/02, Crispim, em
Bonilla, 2007, p. 128-129, tradução minha)
Os Jara nunca nos curaram. Os Jara não gostavam da gente; nós,
mulheres, nunca íamos lá (visitar os Jara ou comprar mercadorias).
Mas, os próprios patrões nos deram analgésicos. Depois de sua
chegada, Siri cuidou muito de nós e não deixou nos envenenarmos
com os medicamentos [...]. De longe, os Jara vieram estudar com ela
(F., 01/08/01, Crispim, em Bonilla, 2007, p. 129, tradução minha).
Quando Bonilla esteve entre os Paumari de Crispim, as sessões de cura
organizadas pela igreja por meio dos lideres evangélicos ocupavam um lugar muito
importante na vida religiosa desta aldeia. Quando alguém ficava doente e nenhum
tratamento médico resultava, eram organizadas orações coletivas a fim de mobilizar o
poder do sangue de Jesus (Jesus amana) e, assim, auxiliar o processo de cura (Bonilla,
2007, p. 129). A cura por meio do sangue não deve nos parecer estranha, pois, como
vimos no início dos tempos paumari, o sangue da sucuri foi aquele que curou Kahaso
das feridas que o assolavam; e foi por não se banharem neste mesmo sangue que os
Paumari tornaram-se manchados. Bonilla (2007, p. 127) também observou que a
escolha ofertada aos Paumari entre a possibilidade de se converter ou não, de se
submeter ou não ao poder do sangue de Jesus, lembra, “em seus termos e
consequências, a escolha que eles tiveram de se banhar ou não no sangue da sucuri
mítica”.
Desse modo, ao curarem os Paumari, as missionárias do SIL passaram a ocupar
o lugar de “heroínas mitológicas”. Inauguraram uma nova era, tornando possíveis
assim as condições para uma nova socialidade (Bonilla, 2009, p. 135-136). A missão
ofereceu uma alternativa viável enquanto parceira de troca, permitindo aos Paumari
escapar do controle excessivo dos patrões. Os Paumari aprenderam a ler, a escrever, a
contar. Conclusivamente, os Paumari passaram a viver segundo um novo modo de
vida, uma nova configuração de relações possíveis – fossem elas comerciais, pessoais
ou corporais – a partir de um novo conhecimento que tiveram do mundo.
A missão ofereceu uma nova forma de “vida saudável”, em acordo com a
interpretação evangélica da Bíblia. Como explica Bonilla (2009, p. 136), ser um “crente”
significa adotar um estilo de vida “saudável”, com tudo o que isso implica para os
144
Capítulo 3
Paumari: assistência médica, rejeição do xamanismo e de restrições/tabus alimentares,
retirada da vida ritual, acesso a mercadorias (sendo a missão a principal fornecedora) e
submissão à “Palavra de Deus”. Neste contexto, Deus passou a ser referido como o
novo patrão e os Paumari passaram a mencionar cotidianamente as missionárias e
Deus como seus novos pais adotivos (Bonilla, 2007, 141; 2009, p. 136, 142)12.
O tempo presente paumari é visto, portanto, como aquele em que este grupo
indígena pôde levar uma “vida saudável” a partir do momento em que as
enfermidades que por muito tempo o assolavam foram curadas ou amenizadas. A mais
significativa delas, a pinta, foi curada; e esta é a principal marca da mudança entre o
tempo dos patrões e o tempo presente. É notável a analogia que podemos traçar com suas
demais eras. Como vimos, no tempo dos patrões, Orobana leva aos Paumari mosquiteiros
e roupas, os quais podem ser considerados como peles, revestimentos, que cobrem
seus corpos contra os mosquitos e contra os olhares estrangeiros. Devemos notar que
os antigos paumari, não amansados, eram também aqueles que andavam nus.
Entretanto, o paralelo mais significativo pode ser traçado com a história de Kahaso e
seus irmãos, pois é procura pela cura da doença de pele de Kahaso (cujo nome significa
“pele áspera”) que aparece como motor da transformação histórica. De maneira
semelhante, foi a busca pela cura da pinta – cuja solução não era encontrada pelos
xamãs – que levou à transformação dos tempos. Lembremos que Kahaso e seus irmãos
foram à floresta em busca de frutos curativos e, neste percurso, nomearam frutos
comestíveis, criaram a técnica de elaboração de cestos e também os corpos humanos –
com umbigos e, implicitamente, manchados. Ao trançar cestos, Kahaso trançou a si
mesmo e a trama se transformou em uma sucuri. Por fim, foi o sangue desta sucuri que
curou os ferimentos do herói e rejuvenesceu sua pele, tornando-a limpa e clara.
Aqueles que se banharam no sangue da sucuri também rejuvenesceram suas peles, mas
os Paumari não o fizeram.
Desse modo, a troca de pele é considerada pelos Paumari como um sinônimo de
renovação do corpo e está diretamente articulada com a mudança de seus tempos. De
maneira análoga, os Kaxinawá atribuem à troca de pele o rejuvenescimento e a
renovação. Segundo eles, a cobra é um ser eterno justamente porque troca de pele. E foi
porque os Kaxinawá não entenderam o pedido de seu ancestral Pukã para que
Tal crença é certamente questionada pelos Paumari não-crentes. Uma das principais desconfianças
levantadas contra Deus refere-se à sua invisibilidade: os xamãs ficam perplexos frente a tal
impossibilidade da visão que persiste mesmo quando eles se valem de substâncias alucinógenas (cf.
Bonilla, 2007, p. 124-125).
12
145
Trocando de pele
mudassem de pele que, hoje, eles são mortais. O próximo tópico será dedicado a esta
passagem, em que, com o fim do mundo mítico, os Huni Kuin passaram a existir, mas
em um corpo mortal, que não adquiriu o conhecimento da troca de pele,
diferentemente do corpo da cobra, do caranguejo, da barata, do escorpião, do grilo.
Estes são considerados pelos Kaxinawá seres imortais.
Os Huni Kuin e seus tempos
Apresentação
Os Kaxinawá13, autodenominados Huni Kuin e falantes da língua Hancha Kuin,
pertencente à família linguística pano (McCallum, 2001, p. 8), localizam-se atualmente,
tanto nas bacias do Juruá quanto na do Purus. Apenas no que se refere a Terras
Indígenas homologadas, habitam onze. No rio Purus, residem na KX1) A TI Alto
Purus, compartilhada, como vimos no capítulo anterior, com os Kulina e os Yaminawa.
Na bacia do Juruá, mais especificamente na bacia do Tarauacá, habitam: KX2) a TI
Igarapé do Caucho, situada entre os rios Envira a Tarauacá; KX3) a TI
Katukina/Kaxinawa, compartilhada com os Shanenawa; KX4) a TI Kaxinawa da
Colônia Vinte e Sete; KX5) a TI Kaxinawa Nova Olinda; KX6) a TI Kaxinawa Praia do
Carapanã; KX7) a TI Kaxinawa Seringal Independência; KX8) a TI Kaxinawa do baixo
Jordão; e KX9) a TI Kaxinawa do rio Jordão. Em pontos mais altos do Juruá, habitam
ainda: KX10) a TI Kaxinawa/Ashaninka do rio Breu, compartilhada com os Ashaninka;
e KX11) a TI Kaxinawa do rio Humaitá, compartilhada com os Kulina e Ashaninka
(ISA, 2013c) – ver mapa 3.
Os deslocamentos efetuados pelos Kaxinawá desde a chegada dos brancos em
sua terra, no contexto da empresa seringalista são semelhantes, em grande medida,
àqueles realizado pelos Kulina (ver cap. 2). Pois, assim como estes, os Kaxinawá
encontravam no Muru sua principal residência no momento em que os seringueiros
começaram a chegar à região e uma parte deles também realizou um deslocamento em
direção à bacia do Purus, onde, hoje, compartilham a TI Alto Purus com os Kulina e
Yaminawa. Segundo Tastevin (2009 [1925], p. 142), antes da chegada dos seringueiros,
em fins do século XIX, os Kaxinawá tinham como principal morada o Iboiaçu, igarapé
A população estimada dos Kaxinawá é de 7.535 pessoas no Acre/Brasil e 2.419 pessoas no Peru (Funasa,
2010; INEI, 2007 apud ISA, 2013d).
13
146
Capítulo 3
afluente do rio Muru. O primeiro contato entre seringueiros e os Kaxinawá do qual se
tem registo ocorreu em 1892 (McCallum, 2001, p. 8)14. Aproximadamente três décadas
depois, eles teriam deixado as cabeceiras do Muru, onde se localiza o Iboiaçu,
passando a povoar, sobretudo, os afluentes da margem direita do médio Muru. Nesta
época, Tastevin relata a existência de apenas um grupo organizado dos Kaxinawa,
estabelecido na margem direita do Humaitá. As outras famílias estavam espalhadas
pelas margens do Muru, vivendo “mais ou menos misturadas com os civilizados”
(Tastevin, 2009 [1925], p. 144-145). Estes Kaxinawá acabaram por se vincular como
mão-de-obra nos seringais, enquanto outra parte de sua população deslocou-se para o
rio Curanja (Peru – ver mapa 2), ainda no princípio do século XX, em uma área onde
não havia reservas de caucho. Este último grupo manteve-se, em um primeiro
momento, afastado tanto dos caucheiros quanto dos seringueiros (Aquino, 1977, p. 45)
– ver também cap. 1. Desse modo, os Kaxinawá habitam atualmente tanto a região
fronteiriça entre Peru e Brasil nos rios Curanja e Purus, como os afluentes do rio Juruá
– rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira e Humaitá (cf. Lagrou, 2007).
Ao abordar a passagem do mundo do mito kaxinawá para seu mundo atual,
objetivo, como afirmado na introdução deste capítulo, realizar uma reflexão sobre
características que seriam específicas de mundos míticos em contraposição com aqueles
a que eles dão origem. Chamo de “tempo/mundo atual” uma época que é contraposta
pelos Kaxinawá ao mundo que existia anteriormente; mundo este narrado nos mitos.
Neste contexto, o “tempo atual”15 a que faço referência contempla os diversos tempos
kaxinawá: “tempo das malocas”, “tempo das correrias”, “tempo do cativeiro”, “tempo
dos direitos” e o “novo tempo” (Xinã Bena)16 (Maná Kaxinawá et al., 2002, p. 65; Castor,
2012).
McCallum (2001, p. 8), entretanto, não fornece a fonte deste registo.
Como este “tempo atual” a que me refiro agrega os demais tempos kaxinawá, inclusive seu novo tempo ou
Xinã Bena, ele será mencionado no texto sem ser diferenciado pelo modo em itálico, com o objetivo de
tornar a leitura mais clara.
16 Não tive acesso aos nomes dos tempos na língua falada pelos Kaxinawá, com exceção do Xinã Bena, que,
como veremos adiante, pode ser traduzido por “Novo tempo”, “Novo pensamento”, “Novo
conhecimento” (cf. Castor, 2012, p. 104; Wise, 2008, p. 31, 405).
14
15
147
Trocando de pele
O primeiro deles, o tempo das malocas17 é aquele que antecede o contato com os
brancos, quando os Kaxianawá viviam juntos, antes de se dispersarem – segundo
contam, viviam tranquilos e alegres. Este é o tempo do surgimento dos Huni Kuin18.
Nessa época, os Kaxinawá moravam em grandes malocas de palha (shunuã ou
kupixawa), que agregavam muitas famílias. Habitavam as cabeceiras dos rios e eram
“brabos”, andando nus. Cada uma das malocas tinha um chefe que “mandava nos
outros chefes de família”. Neste tempo, os chefes tinham o poder de organizar caçadas,
trabalhos no roçado, festas e também visitas a outros povos. Não existiam seringais,
nem mercadorias, e conseguir ferramentas era uma tarefa difícil. Os Kaxinawá,
entretanto, já conheciam o caucho, mas usavam seu leite para fazer lamparina e
iluminar o kupixawa, andar e caçar à noite.
No tempo das correrias, os brancos chegaram ao território então habitado pelos
Kaxinawá e os trataram “como uma ameaça à abertura dos seringais”. Assim, este
grupo indígena foi perseguido pelos nawa (brancos) e, aqueles que não foram mortos,
acabaram por se dispersar, fugindo para as cabeceiras dos rios. Neste momento, muitos
Kaxinawá foram capturados e obrigados a trabalhar nos seringais. Por outro lado,
outros dentre eles passaram a se sentir atraídos pelos produtos que os nawa traziam,
aproximando-se deles sem imaginar que, posteriormente, viriam as “malditas
doenças” e diversos tipos de impedimento à realização de seus rituais.
O tempo do cativeiro, por sua vez, foi aquele em que os Kaxinawá trabalharam
para os patrões, como “seringueiros”, extraindo látex, ou “na diária”, realizando
diversos serviços: transporte de borracha e mercadorias, abertura de varadouros e
O relato que passo a fazer sobre esses tempos kaxinawá tem como fontes principais o filme “Já me
transformei em imagem” (2008) – em que índios kaxinawá falam sobre sua história – e a publicação
realizada por diversas etnias indígenas que habitam o Acre, chamada “Índios no Acre: organização e
história” (Maná Kaxinawá et. al., 2002). Outras eventuais fontes consultadas são citadas no corpo do texto.
Em Maná Kaxinawá et. al. (2002), encontramos uma fonte mais sistemática de informação a respeito dos
tempos kaxinawá, embora sumária e reunindo relatos de representantes de diversas etnias. Certamente, os
tempos ali relatados não são equivalentes para todos os grupos indígenas que, hoje, habitam o Acre: os
registros que compõem a publicação são, sobretudo, dos Kaxinawá, Apurinã, Katukina, Kaxarari,
Machineri e Ashaninka. Portanto, ao utilizá-la como fonte de informação, tive a precaução de selecionar
apenas registros efetuados pelos Kaxinawá.
18 Norberto Sales Tene Kaxinawá, referindo-se ao tempo das malocas, afirma ser este um tempo muito longo,
tempo das histórias de antigamente, narradas nos mitos, e também do surgimento dos Huni Kuin (in Maná
Kaxinawá, 2002, p. 66). Assim, ele agrupa dois diferentes tempos – o das histórias de antigamente e o do
surgimento dos Huni Kuin – no tempo das malocas. Não é estranho o fato de tempos distintos serem
agrupados a fim de ressaltar suas diferenças postas em relação a outro terceiro tempo. Os Paumari, por
exemplo, contrapõem seu tempo atual (era em que se converteram ao cristianismo) à “velha cultura” que
marcou seus dois tempos anteriores (cf. Bonilla, 2009). No filme em que os Kaxinawá contam sobre sua
história, o tempo das malocas não aparece como aquele das histórias de antigamente (dos mitos), mas apenas
como o tempo do surgimento dos Huni Kuin e de sua habitação coletiva em grandes malocas (cf. Já me
transformei em imagem, 2008). Neste capítulo, analisarei justamente a diferença fundamental entre o tempo
das histórias de antigamente (dos mitos) e o momento a partir do qual os Huni Kuin passaram a existir.
17
148
Capítulo 3
estradas de seringa ou de roçado para o patrão, além de caça e pesca para o
abastecimento do barracão. Foram subordinados ao famoso esquema de aviamento que
se estabeleceu na região e muitos deles tiveram sua pele marcada pelo famoso patrão
Felizardo Cerqueira no rio Juruá19 (ver foto 11). Neste tempo, “os prepostos do patrão
seringalista „açoitavam os fregueses’, amarravam-nos em „troncos de taxi’ e mandavam
matar aqueles seringueiros que tinham saldo e queriam abandonar os seringais”
(Aquino, 1977, p. 81). Desse modo, no tempo do cativeiro, os Kaxinawá passaram a
habitar as margens dos grandes rios, onde se instalavam os seringais, uma vez que o
transporte da mercadoria era realizado por meio fluvial. Moravam em colocações, em
casas do mesmo tipo daquelas que ainda habitam, seguindo os moldes da residência
dos regionais.
Na década de 70, a chegada da FUNAI ao Acre marca um novo tempo, o tempo
dos direitos, em que os Kaxinawá passaram a saber que tinham direito à terra perante o
governo dos brancos e se organizam no sentido de “brigar com os nawá [brancos]
pelas suas terras”. Os Kaxinawá aprenderam a escrita e a matemática e passaram a
realizar, então, um movimento de recuperação de “suas formas tradicionais de
sobrevivência”. Este foi o período da história em que os patrões foram perdendo seu
poder e os Kaxinawá organizaram-se em cooperativas de extração de seringa, livres do
poder dos patrões e consequentemente do roubo que exerciam, da obrigação de terem
que pagar pelo uso da estrada de seringa, dentre outras.
Por fim, o tempo da atualidade dos Kaxinawá é chamado Xinã Bena, que pode
ser traduzido por “novo tempo”, “novo pensamento” ou “novo conhecimento” (cf.
Castor, 2012, p. 104; Wise, 2008, p. 31, 405). Este é o tempo em que os Kaxinawá
voltaram a “ser muitos” e em que eles trabalham para “autonomia”. Suas terras estão
organizadas em associações20 e os Kaxinawá veem a possibilidade voltar a realizar
práticas que, no tempo do cativeiro, não eram permitidas pelos brancos, como rituais,
música ou mesmo falar a própria língua. Naquele tempo, estas atividades tinham que
ser realizadas escondidas. Este é, segundo eles, o momento de recuperação e
preservação de um modo próprio kaxinawá de se viver, de sua cultura, a qual desejam
ver valorizada (cf. Castor, 2012). O cacique Siã, do rio Jordão (bacia do Juruá) assim
Aquino (1977) e Iglesias (2010) oferecem análises sobre as relações estabelecidas entre os Kaxinawá e
Felizardo Cerqueira.
20 Sabemos, entretanto, que nem todas as comunidades kaxinawá tiveram acesso a demarcação de uma TI
própria. Este é, por exemplo, o caso da TI Kaxinawá do Seringal Curralinho, no município de Feijó-AC,
que se encontra ainda em processo de identificação (cf. ISA, 2013g). Assim, penso que, talvez, nem todos
os Kaxinawá definiriam seus tempos de maneira idêntica.
19
149
Trocando de pele
explicou à pesquisadora Deborah Castor (2012, p. 105), o contexto em que as novas
transformações vêm ocorrendo:
Então eu acho que no passado era muito triste. A gente não mandava
nada, tinha que trabalhar para ele. O presente é importante que a
gente sente que a gente está na coisa da gente. De lá pra cá, a gente
também enfrentou, para buscar essas coisas não foi fácil. Vocês tem o
olhar indígena, ou de branco, sempre foi difícil. Índio é coisa da mata,
igual bicho, não entende nada. Mas isso diminuiu muito. Então nós
estamos buscando em cima disso. Como é que nós busca? É a cultura
diferenciada (Siã, em Castor, 2012, p. 105).
Esse investimento em recuperar a “cultura” que ficou perdida ao longo dos
tempos, marca o Xinã Bena que, como vimos, pode ser significativamente traduzido
como “novo conhecimento”, sendo também chamado, em outros contextos, de “tempo
do governo dos índios” (cf. Maná Kaxinawá et al., 2002, p. 131). Também no Xinã Bena,
os Kaxinawá não mais habitam grandes malocas. Desde o tempo do cativeiro, vivem em
casas menores segundo os moldes regionais: “antigamente, os índios só moravam
numa casa só. Hoje, cada índio tem sua casa separada para morar”.
Vemos, portanto, como, ao longo dos tempos, os Kaxinawá realizaram
movimentos muito semelhantes àqueles dos Kulina: residiam inicialmente na região de
interflúvio em grandes malocas de palha e eram “brabos”; depois, com a chegada dos
brancos, dispersaram-se, buscando refúgio nas cabeceiras dos rios, quando não foram
capturados; no tempo do cativeiro, submeteram-se ao trabalho nos seringais, passando a
habitar regiões próximas às margens dos rios, e a residir em casas menores – que não
agregam várias famílias. Foram, neste período, amansados. No decorrer dos tempos,
viram seus padrões de residência e local de habitação radicalmente transformados. Sua
morfologia social não é mais a mesma do início dos tempos, assim como, hoje, eles não
mais são “brabos”. No tempo dos direitos, lutaram por suas “terras” onde viram a
possibilidade de recuperação de “suas formas tradicionais de sobrevivência”. No cap.
2, vimos a enorme importância também atribuída pelos Kanamari e Kulina na
conquista de uma terra para se viver. Por fim, no novo tempo, os Kaxinawá buscam
reestabelecer ou recriar algo que nos remete ao seu primeiro tempo – o tempo das
malocas: refiro-me ao modo próprio kaxinawá de se viver. Mas, apesar de realizarem
este movimento de “recuperação” da cultura, o modo de vida de seus antepassados
não pode ser considerado adequado para se viver. Adiante, entenderemos as razões do
repúdio atual dos kaxinawá pela vida levada por seus antepassados.
150
Capítulo 3
Inu e Dua, as metades
De maneira semelhante a grande parte dos Pano interfluviais, os Kaxinawá
valem-se de um sistema de parentesco do tipo kariera, de dupla descendência,
operando por meio de quatro seções matrimoniais que se subdividem, cada qual, em
duas classes, uma referente ao sexo feminino e outra ao sexo masculino (Erikson, 1993,
p. 48; Kensinger, 1995, p. 153). As quatro seções matrimoniais kaxinawá são
classificadas no escopo de duas metades exogâmicas, sendo preferencial o casamento
entre primos cruzados (Kensinger, 1995, p. 153). As metades são nomeadas inubake e
duabake. O termo bake significa “filhos”, de modo que inubake pode ser traduzido por
“filhos do jaguar” e duabake são os “filhos do brilho” ou “filhos do resplendor” (cf.
Wise, 2008, p. 111, 122). Kensinger (1995, p. 152) elaborou um diagrama que permite
uma melhor visualização desse sistema. Reproduzo-o a seguir:
Diagrama 1: Metades matrimoniais kaxinawá (1)
Fonte: Redesenhado a partir de Kensinger, 1995, p. 152.
Na metade inubake, os segmentos masculinos são chamados inubake e os
femininos são inanibake. Na metade duabake, os segmentos masculinos são chamados
duabake e os femininos são banubake. Cada uma das metades exogâmicas inu/inani e
dua/banu possui um estoque de nomes, de maneira que uma pessoa pode ser
151
Trocando de pele
automaticamente identificada como pertencente a uma delas de acordo com seu “nome
verdadeiro” - kena kuin (McCallum, 1989, p. 103; 2001, p. 21). Estes nomes são passados
em gerações alternadas e por uma linha paralela. Em resumo, quando Ego é do sexo
masculino, recebe um nome da metade de seu avô paterno; e, quando Ego é do sexo
feminino, ganha um nome da metade de sua avó materna (Kensinger, 1995, p. 113;
McCallum, 2001, p. 21). Aqui, uma exceção deve ser notada, pois, se uma mulher casase violando a regra de exogamia da metade, sua filha deve ser membro da metade
oposta à sua, o que permite manter operante o sistema terminológico. Como se pode
observar no diagrama, as metades são divididas em dois grupos geracionais
alternantes: inubake é dividida em awabake (filhos da anta) e kanabake (filhos do
relâmpago); duabake é dividida em yawabake (filhos do queixada) e dunubake (filhos da
cobra). As metades são exogâmicas, e “vistas como estando em perpétua e simétrica
troca. Assim, inubake troca esposas com duabake, awabake casa-se com yawabake e
kanabake casa-se com dunubake” (Kensinger, 1995, p. 151-152; tradução minha).
A figura a seguir permite ainda outra visualização. Vemos as metades inubake
(lado esquerdo) e duabake (lado direito) com suas respectivas classes masculinas e
femininas e, na linha horizontal, os nomes que se alternam a cada geração em cada
uma das metades, awabake e kanabake para a metade inu e yawabake e dunubake para a
metade dua.
Diagrama 2: Metades matrimoniais kaxinawá (2)
Fonte: Redesenhado a partir de Kensinger, 1995, p. 112.
152
Capítulo 3
Apesar de tal sistema proporcionar a imagem de uma sociedade autossuficiente
e fechada para o exterior, preferencialmente endogâmica, esta não parece ser a
realidade dos Kaxinawá. McCallum (1989, p. 115) observou como muitos casamentos
aconteciam entre parentes que poderiam ser relacionados apenas de maneira distante,
não seguindo, portanto, a preferência de casamento entre primos cruzados; além de
uniões que não seguiam a regra de exogamia da metade. Acima também mencionei a
possibilidade aventada por Kensinger (1995) de que uma mulher se casasse violando a
regra de exogamia da metade.
Estes fatos não impedem, entretanto, que tal sistema exogâmico de metades
opere em um plano de casamentos preferenciais e na classificação de um tipo
específico de pessoas, Xutanaua, “Pessoas de mesmo nome”. Assim, outros povos
falantes de línguas da família Pano, tais quais os Mastanahua e Sharanahua, são
considerados pelos Kaxinawá do Purus como Xutanaua, enquanto os Cariú (brancos) e
os Kulina não o são (McCallum, 2001, p. 21). Os Kaxinawá de hoje em dia também
recebem um nome cristão que eles chamam de navan kena (nome estrangeiro). Os pais
tentam encontrar um nome único na região e convidam não-parentes para nomear
seu(a) filho(a), iniciando, assim uma relação de compadrio. Navan Kena indica a
posição de determinada pessoa no mundo moderno e “civilizado”. Os antigos não
tinham estes nomes e esta é uma diferença marcada pelos Kaxinawá entre as pessoas
de hoje e as de antigamente (McCallum, 2001, p. 27).
O sistema de metades tem também sua importância no ritual. Segundo Lagrou,
em todos os rituais kaxinawá, uma das metades desempenha o papel de estrangeiro,
“do inimigo interiorizado”, enquanto a outra desempenha o papel do anfitrião.
Durante o ritual, todo um jogo de dualismos é operado: “dualismo de gênero, jogos de
inversão de papéis e antagonismo entre os sexos”, principalmente nos rituais de
fertilidade (Lagrou, 2007, p. 175).
O dualismo não ganha expressão apenas no sistema de metades, mas em
diversos aspectos da vida social kaxinawá. Neste sentido, dua e inu podem ser
concebidos como qualidades que perpassam diversos âmbitos da vida social. Entre os
Kaxinawá do Alto Purus, a metade dua (brilho) encontra-se ligada ao pólo do “eu” e do
“interior” e refere-se aos aspectos masculinos, às cores escuras, à noite, ao mundo
aquático e ao seu ibu (pai, dono ou mestre), a cobra mítica, Yube, “dona dos líquidos
doadores de vida, da chuva ao sangue e à ayahuasca”. Oposta a ela, a metade inu
(jaguar) está associada ao “outro” e ao “exterior” e refere-se aos aspectos femininos, às
153
Trocando de pele
cores claras, ao dia, ao domínio celeste e a seu mestre, o Inka, “dono do ouro, das
contas ou miçanga (mane), do metal (mane), fogo, pedra e gelo, de tudo aquilo que
sustenta a qualidade de dureza e do imperecível” (Lagrou, 2007, p. 168-169, 281-282).
Interessante notar que esta qualificação das metades como associadas ao “interior” ou
“exterior” é invertida entre os Kaxinawá do Peru. Lá, segundo Deshayes & Keifenheim
(1982, 1994 apud Lagrou, 2007, p. 169, nota 4), a metade inu (jaguar) é associada ao pólo
do “eu” e do “interior” ao passo que a metade dua (brilho) é ligada aos aspectos
exteriores e relativos ao “outro”. Esta inversão está muito provavelmente associada a
caminhos sociais distintos seguidos pelos Kaxinawá nestas duas localidades. A mim,
não será possível aprofundar esta discussão neste trabalho; mas, cumpre ressaltar que
as informações sobre os tempos mítico e atual que compõe a análise a seguir são
referentes aos Kaxinawá do Alto Purus, que foram interlocutores tanto na pesquisa de
McCallum (1989, 2001), quanto na de Lagrou (2007).
Para os Kaxinawá, a unidade de um ser é sempre composta de duas partes,
duas metades, uma delas associada ao exterior e outra ao interior. Nas palavras de
Lagrou (2007, p. 170):
A ontologia kaxinawa postula o intrínseco, o inerente dualismo de
todos os seres. Os seres vivos e a própria vida no mundo dependem
da mistura de forças e qualidades opostas. Todos os seres e coisas do
mundo são o resultado do ritmo e controle da mistura e apresentam a
dualidade fenomenológica do conteúdo e do continente, esqueleto e
pele, semente e invólucro. Qualquer separação absoluta de classes
diferentes significa ausência de vida, enquanto sua mistura induz
movimento, o que indica, por sua vez, vida.
A dualidade é parte constituinte da vida e do movimento. Assim, para ter
forma e consistência, a matéria precisa estar impregnada de yuxin. A palavra yuxin
pode ser genericamente traduzida por “alma”, “imagem”, “espírito”, “reflexo”,
“fotografia” (Wise, 2008, p. 422; tradução minha). Yuxin é intangível em estados
normais de consciência, associado a uma força ou poder que afeta o estado dos corpos
e objetos inanimados ou substâncias que habita. Conforme relatou o kaxinawá Antonio
Pinheiro a Lagrou em 1989: “sem yuxin, todas as coisas se tornam pó, somente casa
vazia. Você toca nelas e elas se dissolvem e então você vê nada mais que cinzas, pó”
(em Lagrou, 2007, p. 171). Mas, em estados não normais de consciência – durante o
sono, em caso de doença, morte ou alucinação – yuxin é tangível, visível e assume
forma humana. Também durante a noite, quando a visão é dificultada pelo escuro, os
espíritos invadem o espaço ao redor dos seres viventes tornando-se audíveis e quase
154
Capítulo 3
visíveis. A palavra yuxin pode ainda ser utilizada para identificar seres invisíveis da
floresta e do rio (McCallum, 1989, p. 144). Em um corpo humano, há vários yuxin
associados às suas diversas partes, mas é o bedu yuxin (alma do olho) aquele que dá
vida ao corpo como um todo (Lagrou, 2007, p. 293; McCallum, 2001, p. 26).
Voltando às metades, é possível afirmar ainda que a metade associada ao
exterior é sempre considerada o maior dos elementos que constitui um par. Passo a
citar o exemplo da onça. Os Kaxinawá consideram a existência de dois tipos de onça, a
onça vermelha e a onça pintada. A menor delas, a onça vermelha, é classificada como
dua, a metade do brilho, ligada ao domínio aquático, às cores escuras, associada ao
interior; enquanto a maior, a onça pintada, é classificada como inu, a metade do jaguar,
ligada ao mundo do sol e associada ao exterior (Lagrou, 2007, p. 169). A duplicidade do
Inka – importante figura mitológica kaxinawá – é outro exemplo de dualismo usado
para conceituar a unicidade de um ser. Um Inka, o Inka pintsi, é aquele faminto por
carne, um povo do tempo mítico que canibalizava os Kaxinawa; o outro, radicalmente
divergente, é o Inka kuin, “nosso Inka, o real ou o próprio Inka, em cuja aldeia o yuxin
do olho passa a viver depois da morte” (Lagrou, 2007, p. 169). Assim “o Inka pode ser
tanto o avarento canibal quanto o cônjuge provedor, dependendo da relação que se
estabelece: afinidade real ou afinidade potencial” (Lagrou, 2007, p. 170). Esta é uma
parte da história que veremos a seguir, pois o Inka povoa as narrativas do tempo mítico
kaxinawá.
Dos gigantes antepassados aos Kaxinawá “verdadeiros”
As histórias que os Kaxinawá contam, miyui, podem se referir tanto a eventos
presenciados pelo narrador ou por uma fonte conhecida, como a acontecimentos de um
passado distante, histórias dos antepassados, dos antigos Kaxinawá. Neste caso, as
histórias passam a ser chamadas de xenipabu miyui, literalmente, “histórias dos
antepassados” (McCallum, 2000, p. 382, 384). As xenipabu miyui podem, assim, serem
consideradas mitos, narrativas de um tempo e espaço em que os antigos Kaxinawá
viviam (McCallum, 2000, p. 384). Os Kaxinawá, portanto, diferenciam-nas das outras
narrativas miyui que têm como uma de suas características a necessidade de um
testemunho ocular ou de uma fonte conhecida que tenha participado no acontecimento
(McCallum, 2000, p. 382). Essas diferenciações entre narrativas nos remetem, assim, a
dois períodos distintos a partir dos quais os Kaxinawá olham para sua história: um
155
Trocando de pele
tempo dos antepassados, e outro que os Kaxinawá dividem em diferentes épocas, as
quais, conjuntamente, chamarei de “tempo atual” ou “mundo atual”, como
mencionado no início deste capítulo.
A distinção entre “interior” e “exterior” é, tal qual para os Kulina, significativa
na classificação dos espaços, pessoas e tempos kaxinawá. Mas, no caso dos últimos,
esta distinção parece estar invertida quando a comparamos com o interior/exterior dos
Kulina: os Kaxinawá, por exemplo, associam o exterior, e não o interior, aos índios
selvagens e às profundezas da floresta. Eles consideram-se “pessoas verdadeiras” (huni
kuin) e estão associados ao interior. Já os “índios selvagens” (chamados “brabos”) e
também os Nawa (estrangeiros não-índios) ocupam o outro extremo, sendo associados
ao exterior. Neste caso, o exterior é indicado espacialmente como “rio abaixo” – na
cidade, onde vivem os Nawa – e também como “rio acima” – nas cabeceiras do rio,
onde vivem os “brabos”. Os Kaxinawá, por sua vez, encontram-se ao meio, neste
contínuo indicado pelo caminho do rio21. Este é também o caso dos Piro, que afirmam
ocupar o lugar central em um contínuo espacial e relacional identificado pelas
localidades “rio acima” e “rio abaixo”. A “aldeia verdadeira” que habitam, constituída
pela Comunidad Nativa e sua escola, é localizada entre os “índios selvagens” que vivem
em florestas “rio acima”, “como animais”, e entre os brancos, os quais habitam cidades,
onde tudo é mediado pelo dinheiro (cf. Gow, 1991, p. 81-85). O centro se constitui,
portanto, como o espaço da humanidade verdadeira.
“Exterior” e “interior” não estão associados, entretanto, a localidades
geográficas fixas; operam como categorias relacionais de classificação dos espaços,
tempos e pessoas. Assim, o “exterior”, além de indicar as localidades rio acima e rio
abaixo, refere-se também a uma gama de outros lugares – o céu, o submundo, as
profundezas da floresta, dos rios e lagos –, todos em contraposição ao lugar onde
vivem os Huni kuin: (McCallum, 2001, p. 71-72). Estes espaços são locais onde seres que
existiam no mundo do mito também encontram sua existência no mundo atual. Tais
seres mitológicos são, assim, eternos, tais quais os jaguares que povoavam o Céu
Antigo dos Kanamari: existem desde o princípio dos tempos até os dias de hoje,
embora sua presença no mundo atual seja certamente limitada. Lembremos que os
antigos personagens-Jaguar que povoavam o Céu Antigo kanamari, com a queda
deste, transformaram-se em diversos aspectos do mundo humano e atual, tais quais os
A humanidade ocupa também a posição de meio no que se refere à organização vertical do cosmos: “a
meio caminho entre o domínio aquático e o celeste” (Lagrou, 2007, p. 268).
21
156
Capítulo 3
seringais. O Jaguar que habitava o Céu Antigo continuou, desse modo, a existir no
mundo atual, embora transformado (ver cap. 2). Um dos principais personagens do
mundo mítico kaxinawá é o Inka, o qual se faz presente também em rituais realizados
no mundo atual. Do que explicou Moico a McCallum (2000), podemos concluir que o
damiain22 é um dos rituais em que os Inka podem se fazer presentes:
Perguntei de que trataria o damiain a que iríamos assistir e a resposta
foi yuxin miyui: “contar uma história sobre yuxin (“almas, espíritos,
fantasmas”) usando máscaras de „cabaça com dentes’ (munti xetaya)”.
Perguntei a Moico, um ancião cheio de sabedoria, que história seria
contada. “É possível que eles vão transformar-se (dami) em Saniunka
Bane, ou talvez Kuindume Teneni”, respondeu. “Eles são Inka pintsibu
[“Incas carniceiros”] que aparecem em várias xenipabu miyui
[“histórias dos antigos”]. Espere e verá” (McCallum, 2000, p. 384; as
observações são da autora).
Com o surgimento do tempo atual, os Kaxinawá passaram a assumir uma
posição ao meio da linha que liga o alto e o baixo do rio, identificada ao “interior” e
contraposta aos espaços que se ligam, de diversas maneiras, ao mundo do mito e seus
seres – estes, exteriores (cf. McCallum, 2001, p. 72). As cabeceiras do rio são o habitat
dos índios selvagens ou “brabos”, os quais são como os ancestrais dos Kaxinawá. As
regiões rio abaixo são onde residem os brancos e as pessoas da cidade. Eles são
associados ao futuro, ao progresso, assim como com o perigo. Em suma: as cabeceiras
associam-se com o passado (seus ancestrais), ao passo que a região mais baixa do rio
liga-se ao futuro (McCallum, 2001, p. 72-73). Foi também no tempo atual que o cosmos
kaxinawá passou a ser retratado como uma grande árvore. No seu ponto mais alto (1),
encontra-se a terra dos mortos e domínio da imortalidade. Este é o céu, “um mundo
em si mesmo, com florestas, rios e aldeias de espíritos dos mortos”, o qual pode ser
atingido por meio do arco-íris. Tais quais os mortos, vários ancestrais míticos (xenipabu)
habitam o céu – são vistos da terra como estrelas e lua. Abaixo do céu (2), é o lugar da
camada de nuvens, o domínio do “puro vento”. O próximo nível do cosmos (3) é a
terra, onde vivem os Kaxinawá atuais. Ainda, abaixo dela (4), encontramos o domínio
do “puro líquido/rio” (McCallum, 2001, p. 73, tradução minha).
Céu e rio parecem se ligar “rio abaixo”, onde vivem os Nawa, lugar em que “as
águas se tornam barro” (McCallum, 2001, p. 73, tradução minha). Este lugar é chamado
de “raiz do céu”. Lá, uma escadaria gigante (xanen tapiti) encostada a uma enorme
Ritual pantomímico em que figuras mascaradas representam entes mitológicos encarnados como
espíritos (McCallum, 2000, p. 384).
22
157
Trocando de pele
árvore leva até o céu23. Mas, no princípio, essas diferentes localidades não se
encontravam separadas e os Kaxinawá não ocupavam sua posição de “meio” – nem
acima nem abaixo do rio –, assim como não viviam de maneira apropriada. No
princípio do mundo,
os ancestrais dos Huni kuin foram criados no buraco de uma árvore. Quando
saíram de lá, viviam juntos em uma aldeia onde não havia restrições quanto à
parceria sexual, uma pessoa podia fazer sexo com qualquer outra. Irmãos e irmãs
viviam juntos na mesma casa e, quando uma mulher tivesse atingido determinada
idade, seu irmão iria desposá-la. “Nesta época, em cada casa, habitavam apenas
irmãos e irmãs” (Araguana, em Ministerio de Educación, 1973, p. 13, tradução
minha). Todos os que existiam viviam com seus familiares próximos. “As pessoas
cresciam e se multiplicavam indiscriminadamente, geração após geração,
tornando-se numerosas e espalhando-se por todo o mundo” (McCallum, 2001, p.
146, tradução minha). Uma noite, uma mulher grávida, chamada Ixma se sentiu
faminta de carne. Ela mandou seu irmão-marido Yukan ir à beira do rio pegar
sapos para que ela os pudesse comer. Yukan, que também é conhecido por Binkun
Chana ou Ni Nawa Dua (Espírito Dua da Floresta), acendeu sua tocha, feita de palha
e borracha e desceu ao rio. Lá, o Espírito do Sapo o enganou, chamando-o para
visitar sua casa subaquática. Assim, Yukan desapareceu deste mundo e foi viver
com a gente do Espírito do Rio.
Uma vez que Yukan não havia voltado, sua esposa e sua gente estavam
consternadas e, no dia seguinte, foram procurar por ele. Foram chamando e
chorando amargamente como se fossem encontrar um parente morto. Finalmente
Yukan respondeu aos chamados, dizendo à sua esposa que ele iria visitá-la, mas
com a condição de que ela preparasse caiçuma para toda a Gente do Rio.
Ixma fez como Yukan pedira e, no dia seguinte, eles vieram: muitos da gentepeixe, todos pintados com jenipapo e decorados com penas de arara em suas
narinas. Os Huni kuin ficaram aterrorizados e correram, escondendo-se em suas
casas. O chefe da Gente do Rio estava furioso por causa do modo pelo qual sua
gente fora tratada. Conduziu-os novamente ao rio. Mas a esposa de Yukan não
desejava que seu marido partisse e o enganou, chamando-o para entrar em sua
rede. Lá, ela o agarrou com toda a sua força, não o deixando partir 24. O chefe da
Gente do Rio planejou uma terrível vingança. Uma vez que Yukan apenas desejava
estar com sua própria gente e não mais sentia falta de seus amigos, pessoas do rio,
o chefe da Gente do Rio decidira fazer com que todos fossem até ele. Assim,
formou-se uma grande enchente e as águas destruíram o mundo. Os antepassados
dos Huni kuin não conseguiam fugir, mesmo que subissem nas árvores, o rio os
pegava e eles morriam.
Ao fim do dilúvio, quando as águas do rio baixaram completamente, os Huni
kuin “mudaram suas formas, convertendo-se em animais de caça” (Araguana, em
Ministerio de Educación, 1973, p. 19, tradução minha). Transformaram-se também
em diferentes tipos de peixe. O Espírito do Rio os engoliu e eles se converteram em
grandes peixes, botos e tartarugas de rio. Não apenas os antepassados, mas
igualmente os objetos que utilizavam se transformaram: banquetas baixas em
Outros caminhos também podem ser adotados para se chegar até o céu: o arco-íris é um deles, também
chamado de “caminho dos inimigos” ou “caminho do Estrangeiro” (nawan bai); outro é o “caminho do
Inka”, Inka bai (cf. Lagrou, 2007, p. 244; McCallum, 1989, p. 178; 1996, p. 61).
24 Em outra versão do mito, coletada por D’Ans (1975 apud McCallum, 1989, p. 416-417), é a esposa de
Yukan que expulsa a gente-peixe, ordenando para que partam. Yukan ficara muito bravo com sua esposa
pelo seu comportamento. Ele também desejava partir, mas ela o agarrou e, transformado em muriçoca, ele
voou.
23
158
Capítulo 3
tartarugas de rio; os postes das casas em grande peixes bain; os cestos grandes em
grandes lagartos etc.
Haviam, então, terminado a transformação em outros seres e começado e viver
juntos, quando uma velha mulher chamada Nete veio descendo rio abaixo e chegou
até onde eles estavam. Ela era a única sobrevivente do dilúvio 25.
Este mito trata da primeira criação dos xenipabu (ancestrais) dos Kaxinawá, das
condições iniciais de sua existência e também do fim desta existência, a qual apenas
será recuperada em uma configuração completamente divergente. Será Nete aquela que
recriará os Huni kuin dos tempos atuais, como veremos a seguir. A história de Yukan ou
Ixan, outro nome atribuído àquele que foi capturado pelo Espírito do Sapo ou Espírito
do Rio, é a narrativa kaxinawá do princípio e fim de um tempo distinto do atual.
Cumpre aqui observar a semelhança que se destaca a partir da comparação
entre os mitos cosmogônicos dos Kulina (ver cap. 2) e Kaxinawá, uma vez a criação de
ambos os povos é, antes, uma recriação de sua existência. No caso dos primeiros, foi a
raiva de Massosso, a mãe que teve seu filho morto pelos Kulina, o ato propiciador de
sua vingança. Massosso tentara ainda raptar uma criança kulina como compensação de
sua tristeza e, não conseguindo, acabou com os madihá, tendo restado apenas Tamaco,
Quira e a própria Massosso. Após a matarem, foram estes irmãos que recriaram os
Kulina. Foi o leite fervente de Massosso que matou os Kulina ao passo que foram as
águas do rio que acabaram com os Kaxinawá. Entretanto, em ambas as histórias, a
raiva e a vingança foram aquelas que colocaram fim ao mundo então existente. O
Espírito do Rio, assim como Massosso, entristecera-se com a perda de um dos seus – em
que Yukan se transformara – e com a impossibilidade do estabelecimento de relações
de troca/afinidade com os xenipabu dos Kaxinawá. Lembremos que Massosso também
buscara raptar uma criança como compensação pela morte de seu filho. Em ambos os
casos, a vingança coloca um fim às condições iniciais de existência, as quais só serão
reestabelecidas com uma nova criação. Esta recriação, portanto, é operada por um
demiurgo. No caso dos Kaxinawá, ela é atribuída à Nete, uma mulher com poderes
xamânicos.
Continuemos a história. Durante a enchente, Nete conseguira se agarrar a um
tronco bem grosso que flutuava nas águas e, assim, foi levada rio abaixo. Depois, o rio
25 Encontramos duas variantes da história de Yukan/Yxan ou da Primeira Criação. A mais completa é
encontrada da publicação bilíngue do SIL/Peru “Ixan: cuento de los Antepassados” em que Araguana,
cacique kaxinawá é o responsável pela narrativa (cf. Ministerio de Educación, 1973). Outra versão, mais
curta, é oferecida por D’Ans (1975 apud McCallum, 1989, p. 416-417). A narrativa que apresento é uma
versão resumida a partir tradução para o espanhol da narrativa de Araguana e também da tradução que
McCallum realizou do original desta narrativa (cf. McCallum, 1989, p. 416-417; 2001, p. 146-147).
159
Trocando de pele
começou a baixar até que findaram as águas. Sozinha, ela chorava muito de tristeza,
pois toda a sua gente tinha morrido.
As lágrimas não pararam de cair dos seus olhos e o muco escorria de seu nariz,
como ocorre no choro funerário até hoje. Um enxame de vespas e abelhas (seus
parentes metamorfoseados), atraído pelas lágrimas, a atacou. Nete se defendeu
como pôde, mas ao final as mordidas dos insetos acabaram por cegá-la. Desta
forma, Nete se tornou Nete bekun: Nete, a cega. Nete sofria muito e pensou em fazer
filhos para ter companhia. Na praia, encontrou duas cuias, pegou duas abelhas,
arrancou suas cabeças e as colocou em uma das cuias. Depois tirou a cabeça de
duas outras abelhas e as guardou na outra cuia. Nete encheu as cuias com sua
saliva, suas lágrimas e seu muco e as fechou com cera. Pôs as cuias no sol,
deixando-as cozinhar (bawa) e quanto prontas, estouraram. Um casal de crianças
inu/inani saiu de uma das cuias, da outra saiu um casal dua/banu. [...] Nete ensinou
seus filhos a namorarem e casarem com parceiros da outra cuia e a tratarem
aqueles com quem partilhavam a mesma cuia como irmãos.
Quando grandes o suficiente para andar, Nete contou a seus filhos que tinham um
tio, Nawa Paketawã, e que este havia saído muito tempo antes do dilúvio. Paketawã
era o irmão de Nete (Lagrou, 2007, p. 425-427).
Nete, portanto, cria as regras de casamento, separando quatro cabeças de abelha e
colocando duas em cada cuia, a cavidade da qual saíra cada casal de crianças. As
crianças nascem já organizadas em metades e suas respectivas seções masculinas e
femininas: inu e inani, dua e banu. Nete, por fim, ensina os filhos a se casarem com
parceiros da outra cuia e a tratarem como irmãos os da mesma cuia, inaugurando
regras de consanguinidade e afinidade por meio da exogamia. As abelhas são, ainda,
consideradas um forte símbolo de fertilidade pelos Kaxinawá: moram em grupo ao
redor de uma liderança (feminina) e colaboram na construção de uma casa coletiva;
além disso, o mel que produzem é considerado uma “poderosa poção fertilizante”,
sendo consumido por mulheres que desejam engravidar (Lagrou, 2007, p. 426).
Há igualmente vários elementos de fertilidade associados à própria Nete. De
acordo com Lagrou (2007, p. 425), Nete, antes do dilúvio, vivia na mesma casa que Yube
e foi agarrando-se a uma sapopema da samaúma que ela se salvou. Como vimos, Yube,
a sucuri mítica, associada à metade Dua, é a dona dos líquidos doadores de vida; e,
como veremos em maior detalhes adiante, ela detém o conhecimento da troca de pele
e, portanto, do rejuvenescimento e da eternidade26. A samaúma, por sua vez, é
considera pelos Kaxinawá como uma árvore que não morre facilmente, tendo o
conhecimento da vida e da morte (Lagrou, 2007, p. 425, 490). Além disso, se
Yube também aparece nos mitos kaxinawá como sendo lua (personagem masculina). A origem da lua está
ligada à primeira menstruação das mulheres, um dom de Yube (ver versões do mito da lua em McCallum,
1989, p. 408-412). A menstruação é condição para a gravidez das mulheres e é também associada à troca de
pele (cf. Lagrou, p. 113). O nome Yube liga, assim, a lua à pele da cobra, à vida e à fertilidade.
26
160
Capítulo 3
compararmos o comportamento de Nete ao de Ixma, esposa Yukan, podemos observar
que elas assumem posturas completamente distintas em relação a seus respectivos
irmãos. Ixma era casada com seu irmão, Yukan, e não aceitou estabelecer relações de
afinidade com a gente do mundo aquático, mundo associado à vida. Sua postura pôs
fim à vida dos xenipabu. Nete, contrariamente, não se refere a seu irmão, Nawa Paketawã,
considerando-o como um marido, como fez Ixma. Ela o apresenta a seus filhos, criados
a partir de abelhas, como um tio; portanto, um possível sogro, um afim. Podemos,
assim, associar Nete tanto à fertilidade como às regras de casamento e afinidade.
Na época em que Nete decide visitar Paketawã, a esposa de seu irmão tinha
morrido jovem e ele, por ter ficado sozinho, estava triste. O cunhado de Paketawã tinha
uma esposa, prima paralela de Paketawã. Um dia, Paketawã deitou na rede com sua
prima, namorou-a e pediu para casar-se com ela. Quando o marido da prima voltou
para casa, as pessoas contaram-lhe o acontecido. Assim, Paketawã e sua amante
deixaram a aldeia, que era também a de Nete e viajaram rio abaixo, passando por rios
de diferentes cores – branco, vermelho, amarelo27 (Lagrou, 2007, p. 427). Em cada rio
por que passavam, repetiam o mesmo ritual: “Nawa Paketawã preparava o veneno de
pesca (puikama) e o jogava no rio; depois se sentava à margem para olhar os pelos
pubianos da mulher enquanto ela despia a saia curta e entrava, nua, na água para catar
os peixes que iam boiando” (Lagrou, 2007, p. 427-428). Assim, Paketawã chega à terra
do povo dos Inka, onde oferece favores sexuais às mulheres Inka. Lá também é o local
onde ele finalmente se estabelece, em um barranco (mawa) perto da casa dos Inka
(Lagrou, 2007, p. 430).
Nete, então, decide ir visitar, com seus filhos, o irmão Nawa Paketawã. Nete Cega
(Netebuekun) levou seus filhos rio acima e, no caminho, ensinou-lhes os nomes das
plantas cultivadas que estavam crescendo nas praias: mandioca, milho, batata, mamão,
cana-de-açúcar, amendoim. Como não enxergava, seus filhos levavam as plantas até
ela, que as reconhecia e ensinava-lhes seu uso (cf. OPIAC, 2000, p. 59-60; Lagrou, 2007,
p. 430-431).
“Todos estes vegetais”, contou Nete, “foram plantados pelos hidi”, os gigantes,
ancestrais dos Kaxinawá. Chegaram a uma clareira onde encontraram grandes
ossos brancos e cacos de cerâmica. Nete sentou e chorou. Ao perguntarem à sua
mãe o que aconteceu, os filhos aprenderam que este era o lugar onde seus
As cores dos rios variam em diferentes versões. Na versão dos Kaxinawá autores do livro Shenipabu
miyui, é Nete e seus filhos que passam pelos rios de cores preta, branca e verde no caminho para a casa de
seu irmão (cf. OPIAC, 2000, p. 60).
27
161
Trocando de pele
ancestrais tinham vivido28. [...] O encontro com os restos da aldeia dos hidi foi um
incentivo para Nete para começar a ensinar a seus filhos a construção de casas e a
arte de fazer cerâmica. [...] Depois de descansar por um tempo na antiga morada
dos seus antepassados, Nete e seus filhos retomam a viagem. Ao se aproximarem
da cabeceira do rio encontram-se perto o suficiente para escutar Nawa Paketawã
cortando lenha. Apesar de não vê-lo, Nete sabe que é seu irmão. Chegam,
finalmente, a um precipício e precisam de uma escada para subir a parede de
pedra. Neste ponto, o narrador enfatiza as capacidades adivinhadoras de Nete, o
fato de ela ser xamã, yuxian (Lagrou, 2007, p. 431, 433).
Na versão dos autores da obra Shenipabu miyui, é esclarecido que, mesmo não
sendo possível a eles ver o que tinha sobre a parte alta de terra (neste caso, não era de
pedra), Nete, mesmo cega, sabia que lá havia uma escada. “A velha era tão sabida que
acertava tudo. Não enxergava, mas estava no rumo” (OPIAC, 2000, p. 60-61). O irmão
de Nete era também um xamã: aprendera suas artes com os Inka. “Nete sabia que ia
morrer, mas mesmo assim, insistia em subir o barranco para ver seu irmão que, em
suas próprias palavras, havia se tornado estrangeiro”. Por fim conseguem chegar, mas
Paketawã não quer compartilhar seu conhecimento nem receber sua irmã e genros
potenciais (Lagrou, 2007, p. 433).
A mulher de Paketawã, por outro lado, se alegra ao ver seus daisbu
(sobrinhos, filhos da irmã do marido, genros potenciais), pois desejava
há muito tempo companhia e cada vez que Paketawã exagerava no
agrado aos Inka, caçando mais para eles que para ela, ameaçava
abandoná-lo e ir procurar seus parentes. Por isso, recebe Nete e seus
filhos calorosamente e corre para levar a boa nova para o marido. O
marido, porém, não para de cortar lenha e grita: “O que ela quer aqui?
Não os quero aqui!” (Lagrou, 2007, p. 434).
Paketawã, então, amaldiçoa sua irmã, dizendo que morrerá em três dias porque
insistiu em invadir seu território (Lagrou, 2007, p. 434). Agostinho Manduca, um
Kaxinawá do rio Jordão, em sua versão do mito, acrescenta detalhes a este evento.
Afirma que Paketawã mata sua irmã com uma pedra de gelo que produz um vento tão
frio que a congela. Ele havia recebido esta pedra de suas amantes, mulheres Inka29. Nete
tinha poderes xamânicos e soube que seu irmão mandaria ventos gélidos. Seus filhos se
apressaram para juntar lenha, mas foi tarde demais (Lagrou, 2007, p. 434). Eles, então,
prepararam sua vingança. Em comparação com o tamanho dos filhos de Nete, Nawa
Paketawã era um gigante. Consequentemente, o ataque dos filhos teve de ser similar à
Segundo Lagrou (2007, p. 431), ossos excepcionalmente grandes foram, de fato, encontrados na região
pelos Kaxinawá. “Estes são, junto com os machados de pedra (yami), os únicos objetos arqueológicos
conhecidos pelos povos da região” ou pelos antropólogos que lá estudam.
29 Sobre o tema do poder obtido por heróis míticos ao namorarem a esposa do irmão na mitologia
kaxinawá, conferir Lagrou (2007, p. 434-435).
28
162
Capítulo 3
estratégia usada por insetos (e xamãs): “aparentemente invisível e inócuo, porém,
mortal” (Lagrou, 2007, p. 436).
Os jovens preparam seus pequenos arcos, e fingindo brincar, atiram nos enormes
testículos do gigante. No início, Paketawã sente uma coceira e, pensando que está
sendo picado por formigas, coça vigorosamente. Os testículos começam a inchar,
Paketawã se retira para sua rede e morre na mesma noite (Lagrou, 2007, p. 436).
Nete saíra, portanto, ao encontro de seu irmão, levando seus filhos, genros
potenciais de Nawa Paketawã. No longo caminho que percorrera, nomeara as plantas
cultivadas que estavam crescendo na praia. Graças a seus poderes xamânicos,
consegue chegar até a morada de seu irmão, que se aproximara muito dos Inka. Nete,
que havia ficado muito triste com a solidão após o diluvio, criara seus filhos em cuias e
buscava, então, seu irmão, a quem os apresentaria. Os filhos de Nete eram genros
potenciais de Paketawã, mas este não a quis receber, negando a troca. O irmão
aproximara-se demais dos Inka, era como um deles, um nawa (estrangeiro), Nawa
Paketawã. Ele a mata e também é morto.
Nawa Paketawã morrera, mas a criação continuara: as crianças fizeram roças,
construíram casas e se multiplicaram (McCallum, 2000, p. 147). Em contraste com o
tempo-mundo que o precedeu, a nova criação dos Kaxinawá possibilitou a existência
sob um novo formato de relações. De casamentos estabelecidos de maneira imprópria
(bemakia) entre irmãos, os Kaxinawá passaram a ter possibilidade de se casarem
propriamente (kuin), com o surgimento de suas metades. Pois, de cada uma das cuias,
nasceram um par de crianças, uma do sexo masculino e outra do sexo feminino, que
deveriam se tratar como irmãs e se casarem com aqueles que eram da outra cuia. Nete,
como nos conta o mito, ensinou isso a eles. Assim, Nete não é apenas a criadora, mas
também quem ensina e dá possibilidades a um novo modo de vida. É ela quem dá
origem aos primeiros humanos de verdade, os Huni kuin (Lagrou, 2007, p. 424). Como
nos relata o mito, seus antepassados (xenipabu) eram os gigantes hidi.
Antes de prosseguir, será necessário esclarecer o significado do termo “kuin”,
“verdadeiro”, para os Kaxinawá. Sua importância é evidente nos diversos usos que
este grupo indígena faz do termo: é um qualificador de desenhos, tecidos, modos de
vida e também do próprio Inka, como vimos anteriormente (cf. Lagrou, 2007;
McCallum, 1989, 2001; Kensinger, 1995). O uso do termo é sempre contextual e
relacional e responde, muitas vezes, a uma gradação que considera também o
qualificador “bemakia”, “impróprio” e “kayabi”, “bom sem ser próprio”. Além disso,
163
Trocando de pele
pode ser combinado com outro qualificador, o termo “betsa”, que significa “outro”
(Lagrou, 2007, p. 185-186)30. Lagrou (2007, p. 185), ao mencionar o exemplo do desenho
(kene), explica que nem todo kene que não seja kuin (verdadeiro) é bemakia (impróprio).
Um desenho que seja feito seguindo as regras de estilo, mas não as executando com
perfeição, pode ser considerado um kena kayabi, “desenho bom, mas não próprio”.
Tendo em vista essas moderações possíveis, estrangeiros também podem ser
inclusos na categoria “huni kuin”. Critérios importantes para tal qualificação são a
semelhança linguística, o uso correto dos nomes próprios, de acordo com o seu sistema
de transmissão de nomes, alimentação, aparência física e modo de se vestir (Lagrou,
2007, p. 184). Augusto Kaxinawá, por exemplo, incluiu os Yaminawa, Katukina (Pano),
Shipibo e Yuda pelo termo huni kuin, “pessoas como nós mesmos”. Os primeiros são
povos falantes de língua da família Pano com os quais Augusto teve contato pessoal
durante sua vida; os últimos foram recentemente contatados no Parque Manu no Peru,
mas Augusto viu fotos dos mesmos e afirmou que eles lembravam seus antepassados.
Entretanto, na qualificação desses grupos, utilizou o termo “betsa”: huni kuin betsaki
(eles são “outros huni kuin”), nukun nabu betsaki – eles são relacionados a nós (parentes),
mas são “outros” (betsa)31 (Lagrou, 2007, p. 184).
A denominação “nukun yuda” (“nosso corpo”) é, entretanto, menos inclusiva.
Outros povos podem ter também um corpo construído e cuidado de maneira
semelhante ao dito “nosso”, mas é um corpo diferente. A expressão “nukun yuda”
refere-se à constituição de um corpo específico, que não é intercambiável. Nenhum
corpo é constituído de maneira idêntica ao kaxinawá, o qual alude a um processo de
crescimento particular e a uma singularidade histórica (Lagrou, 2007, p. 187). Neste
escopo, há ainda uma definição mais inclusiva, em nabu, aplicada em relação aos
parentes próximos, indicativa de uma consubstancialidade e compartilhamento de
comida, contato corporal e trabalho. No outro extremo, há aqueles que vagam sem um
corpo e sem um lugar próprio, estes são os estrangeiros “verdadeiros”, os nawa e
também os mortos. Estrangeiros verdadeiros não podem ser abordados pelo termo
“yuda betsa” (“outro corpo”) ou “yuda bemakia” (“corpo impróprio”), pois não há
referência ao seu processo de crescimento da carne e do corpo. Eles “poderiam ser
Kensinger explora as diferentes e contextuais aplicações dos termos kuin, bemakia, kayabi e kuinman (não
real, não verdadeiro) entre os Kaxinawá do Peru (cf. Kensinger, 1995, p. 83-94).
31 De acordo com Lagrou (2007, p. 186), quando o assunto é a diferença entre hábitos indígenas e nãoindígenas, alimentação ou política, até mesmo os Kulina podem ser inclusos na categoria “kuin”(nós) dos
Kaxinawá. Entretanto, quanto o tópico é mais específico, tratando-se, por exemplo, de nomes e idioma, os
Kulina são excluídos e considerados huni kuinma, ou seja, não-huni kuin.
30
164
Capítulo 3
considerados como yuxin”, pois “vagam solitários e se alimentam de farinha de
mandioca e café” (Lagrou, 2007, p. 188).
O surgimento de um corpo propriamente humano é uma das passagens
efetuadas na mudança do mundo do mito ao mundo atual. Um corpo vivo é um corpo
composto de substâncias duais e opostas, masculinas (ossos) e femininas (pele), comida
amarga e doce, de qualidades dua e inu (Lagrou, 2007, p. 182). O morto é, neste
contexto, um “outro” real, como os yuxin, seus familiares. Os nawa, verdadeiros
estrangeiros, não vivem em corpos da mesma forma que os huni kuin: “não há o
compartilhar do mingau de banana, milho, mandioca e caça e nem o viver entre os
parentes próximos”, seus corpos são diferentes (Lagrou, 2007, p. 188). Os espíritos,
desse modo, são o contraponto do corpo humano.
Na versão mais extensa do mito de recriação do mundo kaxinawá, Lagrou (2007,
p. 431) esclarece que Nawa Paketawã, o qual vivia sozinho com sua mulher no barranco,
tinha um casamento estéril e sua esposa sentia falta de sobrinhos (babawan). Em razão
deste desejo, quando os legumes e o milho amadureceram, ela decidiu capturar e
domesticar animais. Sua esposa era uma boa caçadora, como um homem. Dessa
maneira, em pouco tempo, o casal estava cercado por crias de jabuti, tartaruga e várias
espécies de macaco, os quais eram alimentados com produtos do roçado. Nawa
Paketawã tinha, portanto, um casamento estéril, não fértil, e alimentava com os
produtos do roçado seus animais de criação e não seus filhos. Pela história contada no
mito, fica evidente que o irmão de Nete se aproximara demais dos Inka, os quais são
tomados como verdadeiros estrangeiros. Paketawã, qualificado como nawa, é Nawa
Paketawã, aquele que explicita um comportamento avesso à socialidade kaxinawá,
“casa-se demasiadamente próximo, cometendo uma versão suave do incesto, roubando
a mulher do cunhado; envolve-se com o que é demasiadamente diferente, com o povo
dos Inka, emblema da alteridade” (Lagrou, 2007, p. 430).
Para chegar até o irmão, Nete teve que caminhar na direção de terras elevadas,
para o alto e inclusive escalar uma parede de pedras. Estes são sinais de um caminhar
em direção à terra dos Inka, que vivem atualmente no céu para os Kaxinawá. Sabemos
também que os Incas viveram nas terras altas andinas e que dados históricos apontam
para uma conexão entre o altiplano andino e as terras baixas amazônicas (ver cap. 1).
No caso Kaxinawá e de seus vizinhos falantes de língua pano e aruak, “a tentação e
ameaça do „Estado Nação’ é mais antiga que a primeira chegada dos espanhóis na
costa peruana” (Lagrou, 2007, p. 96). Por estarem em uma posição fronteiriça entre o
165
Trocando de pele
altiplano andino e a floresta Amazônica, estabeleceram contatos próximos com a
expansão incaica. A pesquisa histórica sugere que alguns destes grupos –
possivelmente os Kaxinawá e os Conibo – trabalhavam nas minas de Potosi quando os
primeiros cronistas lá chegaram (Renard-Casevitz; Saignes; Taylor, 1988, p. 121-132
apud Lagrou, 2007, p. 96).
O Inka é um personagem que povoa o tempo mítico e nele aparece como uma
figura ambígua pela qual os Kaxinawá se sentem atraídos, mas de quem sentem medo;
são por eles repudiados enquanto parentes ou, ainda, são mortos (como foi o caso de
Nete). É evidente sua semelhança com os nawa que também são os brancos atuais,
aqueles que, desde o boom da borracha, estabeleceram contato com os Kaxinawá, um
encontro violento e ambíguo. Os Kaxinawá se sentem atraídos pelas mercadorias e
conhecimentos dos brancos, mas os temem e sabem da dificuldade de se estabelecer
relações de afinidade para com eles (cf. McCallum, 2000; Lagrou, 2007, p. 98). Os Inka
são a origem de muitas coisas essenciais aos Huni Kuin e, ao mesmo tempo, são aqueles
que levam as almas dos moribundos para a terra dos mortos (McCallum, 2000, p. 387).
Sua figura nos remete a histórias parecidas de outros grupos indígenas sobre gigantes
estrangeiros e poderosos, personificada muitas vezes pelo jaguar (ver o caso dos
Kanamari e Kulina, cap. 2). O Inka é tal qual o jaguar kanamari e kulina, uma figura
ambígua: ele é ao mesmo tempo atrativo e fonte de medo. Ele é uma figura mítica que
se comporta como predador em relação àqueles que considera muito diferentes de si.
Assim, os Kaxinawá, enquanto vivos, são presas potenciais dos Inka. Mas, uma vez
mortos, se tornam iguais a eles, bonitos e luminosos, habitando também o mundo
celeste. Passam da posição de presas para serem alimentados por ele (Lagrou, 2007, p.
168).
Assim, a relação que Nete desejava estabelecer no mito com seu irmão, um
Nawa/Inka, foi-lhe negada por este e, desde então, os Kaxinawá, apenas quando
mortos, podem se relacionar com os Inka em um mesmo mundo32. A negativa de Nawa
Paketawã cria o mundo da morte, pois, como veremos adiante, o fim do tempo mítico
instaura o mundo dos mortos, povoado pelos Inka. A socialidade post-mortem é, assim,
aquela em que os Kaxinawá tornam-se iguais aos Inka e passam a viver com eles em
sociedade. O Inka pintsi (o avarento canibal) é, portanto, um ser que povoa o mundo do
mito e amedronta o mundo terrestre; ele é o afim potencial. Já o Inka kuin (o Inka
verdadeiro) é aquele em cuja aldeia os Kaxinawá passam a viver quando morrem, ele é
32
O relacionamento com os Inka no mundo terrestre atual é limitado, como veremos adiante.
166
Capítulo 3
o cônjuge provedor com quem se estabelece uma afinidade real. Tanto é que uma
forma de se dizer “morrer”, na língua kaxinawá, é “Inka benewa-“ (casar com um
marido Inka) ou “Inka ainwa-“ (desposar uma mulher Inka) (cf. McCallum, 1996, p. 63).
Quando um Kaxinawá morre, na parte final de seu ritual mortuário,
circunstância em que os ossos são calcinados, seu nome (kena kuin) e bedu yuxin (alma
do olho), que são eternos, desligam-se dos últimos restos do corpo e seguem o caminho
para o céu. O canto que os Kaxinawá dirigem ao bedu yuxin neste momento enfatiza
que ele deve ir para o céu, lá vestir a roupa do Inka, ficar com o Inka e nunca mais
voltar (cf. Lagrou, 2007, p. 341).
Nos mitos kaxinawá, os Inka, mesmo quando não aparecem se relacionando
diretamente com os antepassados (xenipabu/hidi) dos Huni Kuin, expressam-se como o
avesso do estabelecimento de laços sociais adequados. No mito que relata o roubo do
sol pelo urubu, o Inka vivia perto da raiz do céu e possuía o sol, o frio, o dia e a noite
dentro de frascos, que abria e fechava quando bem entendia. Na casa do urubu estava
sempre frio e escuro, mas o Inka não atendia aos seus pedidos de lhe dar um pouco de
sol para esquentar. Ele era um personagem ao mesmo tempo, divino, poderoso e
solitário; tudo o que possuía era para proveito próprio (cf. Abreu, 1914, p. 447-454;
Lagrou, 2007, p. 260-263). Os Inka pintsi representam o princípio da não sociabilidade
por excelência, sendo associados à raiva, à avareza e à solidão. Lembremos que Nawa
Paketawã não desejava compartilhar seus conhecimentos com Nete e, não apenas a
mandou embora, como a matou.
Os Inka estão presentes, portanto, tanto no princípio do tempo como no fim de
um ciclo vital. Mas, uma diferença deve ser destacada: se no tempo do mito, os
antepassados dos Huni kuin conviviam com os Inka em um mesmo mundo, enfatizando
seu lado Inka pintsi (Inka canibal), no tempo atual, o céu, a terra e as águas passaram a
se constituir enquanto espaços separados e os Inka ganharam uma existência mais
circunscrita. Isso não significa dizer que eles tenham deixado de amedrontar os
Kaxinawá, enquanto um princípio de insociabilidade. Este princípio encontra
ressonância, ou mesmo existência, em pessoas bem concretas: os brancos que chegaram
com a exploração da borracha na região. Os Kaxinawá, assim como os Kulina,
Kanamari e Paumari, buscaram, por muito tempo, um bom patrão (ver cap. 1). A
imagem do Inka, com o qual os Kaxinawá sempre quiseram manter relações de
parentesco, mas nunca conseguiram, é boa para pensar a busca por um bom patrão.
McCallum (2000, p. 390), nesse mesmo sentido, explicita que:
167
Trocando de pele
Nessa terra, os parentes mais próximos dos Incas são os nawa, termo
que atualmente se refere aos cariús, aos brancos e aos não-índios em
geral. [...] Os nawa são muito parecidos com os antigos Incas, que eram
seres sociais cujos atos se enraizava numa contradição básica entre
habilidades socialmente geradoras e inclinações socialmente
destrutivas. Graças ao seu poder e à sua beleza, eram potencialmente
os afins perfeitos [...] Se os Incas não podiam se unir verdadeiramente
aos Huni Kuin por causa de seu desejo excessivo de consumir
(canibalismo), os nawa não o fazem por causa de seu excessivo desejo
de reter.
Desse modo, os Inka pintsi ganham materialidade, no mundo atual, muitas
vezes nos brancos, os quais, como vimos no início deste capítulo, perseguiram os
Kaxinawá, mataram-nos e submeteram-nos a um trabalho forçado, por meio do qual os
roubaram. São detentores de conhecimento, mas também da avareza, tais quais os Inka
do mundo mítico. Com eles, o relacionamento propriamente social é certamente
limitado.
O surgimento da vida e da morte
Um conjunto de mitos kaxinawá narra como este mundo anterior, o mundo do
mito, foi perdendo seu formato e adquirindo as características que hoje o conforma o
mundo atual. No princípio, os espaços do cosmos não se diferenciavam claramente. O
mito referente à recriação dos Kaxinawá – a história de Nete que vimos acima – mostra
como, antes, os mundos da terra e da água não estavam devidamente separados. Foi o
conflito com a gente da água e o consequente dilúvio que estabeleceu um novo mundo,
onde estes espaços dividiram-se de maneira definitiva ou estável. A distância entre o
céu e a terra também não existia. “Nos velhos tempos”, comentou Augusto, “o céu não
era alto. Podíamos ver os habitantes do céu do mesmo modo que eles ainda nos vêem
hoje em dia” (Lagrou, 2007, p. 248). Foram os ancestrais dos Huni kuin que, por serem
gigantes e baterem com frequência sua cabeça no céu, amaldiçoaram o fato de o
patamar celeste estar muito próximo. Mandaram, assim, o povo celeste e sua terra para
bem longe até um ponto em que não foi mais possível ouvir ou ver o povo do céu
(Lagrou, 2007, p. 248).
Com a separação dos espaços do cosmos surgiu também a morte. Esta é a
última e importante transformação sobre a qual gostaria de me deter nesta passagem
entre tempos/mundos. “Antes da terra e do céu estarem definitivamente separados,
168
Capítulo 3
existia um constante vai-e-vem entre os espaços e, consequentemente, entre a vida e a
morte” (Lagrou, 2007, p. 247). Antes, as pessoas podiam realizar livremente o caminho
entre o céu e a terra; e, por ocasião destas viagens, renovarem-se, trocando sua pele
velha por uma nova. Tal capacidade foi perdida quando o ancestral Pukã morreu. Ele
estava cansado de sua pele velha e queria morrer. Por isso, pediu a seu filho para que o
matasse. Este lhe deu sapo venenoso para seu pai comer, o que o matou. Ao subir ao
céu, Pukã gritou a seus filhos “Xuku xukuwe!”, “Mude de pele! Mude de pele!” (Lagrou,
2007, p. 247).
Estava trovoando muito no céu. A chuva caía sem parar e ninguém
conseguia ouvir sua voz direito. A cobra, a barata, a lagarta, o
escorpião, o mulateiro [um tipo de árvore] e dois tipos de carangueijo
(o xaka e o xai) entenderam. O camarão do rio também ouviu. Todos
eles ouviram o grito “xuku xukuwe!” Por isso, somente estes trocam a
pele e não morrem, sempre têm pele nova. Mas nós morremos porque
txitxisapa (uma barata grande) enganou nossos antepassados. “Keyu!
Keyuwe!”, ele disse. Txitxisapa disse que Pukã estava gritando:
“Acabem! Acabem!” E assim foi que nossa gente começou a morrer.
Queriam bater nele, mas ele estava com medo e se escondeu embaixo
da madeira. Bateram e bateram sem parar. Estavam com muita raiva.
É por isso que o txisapa é muito achatado. O calango nixeke também, a
cobra e o grilo, eles trocam de pele, mas a gente não (Antônio
Pinheiro, em Lagrou, 2007, p. 247).
Assim, a morte passou a existir de maneira definitiva, sem que fosse possível a
todos terem a capacidade e o conhecimento da troca de pele. O reconhecimento de que
a capacidade de trocar de pele permite uma vida eterna não é exclusivo aos Kaxinawá.
Lévi-Strauss (2004 [1964]), em sua análise sobre os mitos de origem da vida breve sob o
código dos sentidos, mostra como é difundida entre diversos grupos indígenas a
concepção da troca da pele como rejuvenescedora e como aquela que possibilita uma
vida eterna. Entre os Shipaya, foi uma confusão olfativa que fez com que os homens
escolhessem a canoa da morte ao invés daquela da vida eterna - do demiurgo que
queria tornar os homens imortais. Assim, não puderam trocar de pele ao envelhecerem
e, assim, remoçarem como as cobras (Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 186). A associação
entre troca de pele e imortalidade aparece igualmente entre os Tenetehara, os Tukuna
(cf. Lévi-Strauss, 2004 [1964], p. 187-190). Vimos também que, entre os Paumari, a troca
de pele tem a capacidade curativa e rejuvenescedora.
Yube, a cobra, é um ser de grande importância no mundo kaxinawá. Segundo
sua concepção, a jiboia e a sucuri fazem parte de um só ser. O fato de a primeira
habitar a terra e a segunda a água não implica uma diferença em suas qualidades
169
Trocando de pele
inerentes, em sua espécie, mas uma diferença em termos de idade e tamanho (Lagrou,
2007, p. 213). Yube, na forma jiboia, é designada como “o maior dos xamãs”, em razão
de ser um “mensageiro”, “nunca restrito a um único mundo, viajando do mundo da
água para a terra e retornando, trocando de pele todo o tempo, transformando-se a si
própria e o mundo a sua volta”. Isso porque a jiboia é uma das manifestações do xamã
primordial Yube, mestre do mundo aquático; sendo assim, ela não é apenas um animal
com yuxin, mas também possui yuxibu, o poder para transformar o mundo à sua volta
(Lagrou, 2007, p. 215-216). A jiboia/sucuri é também a dona do nixi pae (ayahuasca/
cipó) (Lagrou, 2007, p. 201).
Yube é considerada um ser de vida eterna. É porque muda de pele, dizem os
Kaxinawá, que ela não morre (Lagrou, 2007, p. 113) e, mesmo quando sacrificada em
ritual, ela apenas “descorporifica”. O fato de ela ser dona do nixi pae é significativo,
uma vez que, nos tempos atuais, é por meio desta bebida que o xamã pode ter acesso a
mundos distantes que, no tempo do mito, estavam próximos e acessíveis. O xamã,
portanto, com a mediação da ayahuasca, é aquele que tem a capacidade de socializar
em outros planos que extrapolam este da vida terrestre. À cobra também é permitido
viver em todos os espaços: ela é capaz de viver na terra, nos galhos altos das grandes
árvores, nos buracos e dentro da água (Lagrou, 2007, p. 213-214). Assim, podemos
afirmar que, ao mediar espaços distantes, a cobra e o cipó, do qual a primeira é dona,
também são mediadores de tempos. Constituem-se, portanto, enquanto um par capaz
de mediar espaços e tempos. Como vimos, espaços que eram unos no tempo do mito,
agora se encontram separados. A jiboia/sucuri anda por todos os espaços e, sendo
eterna, percorre todos os tempos. O cipó, por sua vez, permite ao xamã ter acesso ao
mundo dos mortos, espaço celeste e local da eternidade. Lembremos também que Nete
tinha poderes xamânicos e, consequentemente, mesmo sendo cega, sabia onde se
encontrava a escada que ligava às terras mais altas, terras dos Inka; e que a escadaria
gigante localizada na raiz do céu é um dos caminhos que os mortos podem seguir no
seu percurso pós-morte em direção ao céu.
Porque os Kaxinawá não ouviram direito o grito de Pukã (“Mude de pele!),
começaram a morrer e esta transformação é instauradora de um novo tempo,
radicalmente distinto daquele dos antepassados, a começar pela finitude da vida
humana. Rigorosamente, poderíamos até dizer que a morte acontecia no mundo do
mito. Nete, por exemplo, foi morta pelo seu irmão que se tornara um estrangeiro,
próximo ou igual aos Inka. Mas esta morte era de um tipo específico, não era definitiva,
170
Capítulo 3
porque os mundos e povos do céu, da terra e da água não estavam estavelmente
separados. A gente do céu e a gente da água estabeleciam relações sociais com os
Kaxinawá, como vimos narrado na história de sua recriação e também no histórico dos
contatos entre Inka e os xenipabu. Ainda que elas fossem relações ambíguas, podendo
ser caracterizadas antes como o avesso da sociabilidade, o trânsito e o contato entre
essas gentes era fluído e contínuo. De maneira contrária, os mortos, atualmente, vão
viver no céu com os Inka, e lá devem permanecer. O céu é descrito como o local em que
não há mais mortes (McCallum, 2001, p. 74). Assemelha-se, desse modo, ao mundo
mítico dos Kaxinawá, pois nele, assim como no mundo dos mortos, a imortalidade
reina. Assim, a história da origem da morte trata, mais especificamente, do fim da
capacidade de voltar da morte, do surgimento de uma morte definitiva, instaurando,
portanto, outro tipo de socialidade. A eternidade só é possível por um constante trocar
de peles (Lagrou, 2007, p. 254) e esta capacidade não foi adquirida pelos Kaxinawá. O
que foi perdido foi a possibilidade do retorno rejuvenescido à vida, após o
envelhecimento do corpo.
Desse modo, as socialidades divergentes que constituem esses diferentes
mundos são caracterizadas também por tipos distintos de morte. No mundo do mito,
os diferentes espaços do cosmos estavam próximos e a morte se caracterizava por uma
transformação que podia ser revertida, por meio de constantes rejuvenescimentos.
Este era, portanto, um mundo de eternidade. No mundo atual, a transformação do
espaço implicou igualmente em uma mudança da própria morte. Pois, quando os
espaços do cosmos assumiram uma distância significativa entre si, a morte passou a ser
definitiva, assim como a separação entre vivos e mortos. Apenas alguns seres
aprenderam a trocar de pele e a ser, assim, eternos; este não foi o caso dos Kaxinawá. O
mundo dos mortos, circunscrito ao céu, passou a ser espaço da eternidade, da
constância infinita. Portanto, podemos afirmar que o mundo do mito continua a existir
no mundo atual kaxinawá, mas sua existência é localizada, reduzida e apenas acessível
a poucos seres, dentre eles, a cobra e o xamã. Isso nos faz lembrar novamente os
Jaguares míticos dos Kanamari, que ainda encontram sua existência no mundo
terrestre, porém de maneira reduzida, discreta. Mas é importante destacar que, em
ambos os casos, o mundo mítico não se replica simplesmente no mundo atual: algo é
transformado. No caso dos Kanamari, os Jaguares perderam muito de sua potência ao
assumirem formas localizadas. Enquanto que no caso dos Kaxinawá, os Inka que
habitam o mundo celeste são os Inka kuin, no qual os mortos kaxinawá se transformam
171
Trocando de pele
e, portanto, com os quais estabelecem relações que não são marcadas pelo canibalismo
e pela morte.
A separação entre os espaços propulsionou, assim, o surgimento de um novo
tipo de socialidade, em que seres diferentes entre si passaram a viver separados, em
espaços distintos. O mundo do mito kaxinawá pode ser descrito de maneira análoga às
características que Viveiros de Castro (2006, p. 322) encontrou em outros contextos
indígenas: um mundo em que todos os seres compartilham uma condição geral
instável, na qual aspectos humanos e não-humanos encontram-se “inextricavelmente
emaranhados”. No tempo mítico, o mundo era considerado uno, em contraposição
com as separações posteriores que vieram a ocorrer (Lagrou, 2007, p. 255). Estas
separações foram espaciais e também visuais: quando olham para o céu, os Kaxinawá
não podem mais ver a gente de lá. A humanidade foi criada simultaneamente a este
mundo-tempo ou espaço-tempo; antes, não era possível falar em uma humanidade
enquanto tal. “Foi com o advento da mortalidade, o traço mais característico da
humanidade, que a separação entre céu e terra ocorreu” (Lagrou, 2007, p. 233). Foi
também somente depois do roubo do sol que o tempo cósmico ordenou-se por meio da
alternância entre dia e noite. Nete foi a criadora dos primeiros seres humanos
“verdadeiros” (kuin). Para esta gente, é possível perceber como o comportamento
ignorante de seus ancestrais Hidi causara a sua destruição (McCallum, 2001, p. 148). O
caminho do mito de Ixan ao mito da recriação mostra a postura moralmente correta a
ser seguida, aquela atribuída às pessoas do tempo atual.
As divergências entre o mundo do mito e o mundo que o seguiu certamente
têm diferentes ressonâncias na constituição dos corpos dos seres e também do mundo.
Os seres humanos do mundo atual são compostos por um misto de substâncias
masculina e feminina (ossos e pele, respectivamente) da mesma maneira que
compartilham qualidades dua e inu. Na era do mito, “o estado de „pureza’ primordial
era o de não-ser, um tempo de extremos, de letargia no mundo do céu e de fluidez
excessiva de formas no mundo da água” (Lagrou, 2007, p. 181-182). Na passagem para
o tempo atual, contrariamente, o mundo terrestre adquiriu a forma e substância que,
hoje, apresenta. Como vimos no mito sobre a origem da morte, o corpo dos kaxinawá
não adquiriu o conhecimento da troca de pele. Esta nova configuração está diretamente
associada a uma forma apropriada de constituição de parentes, de acordo com as
metades exogâmicas a que Nete dá origem. Seus antepassados viviam em um mundo
de puro “interior” (McCallum, 2001, p. 151), casando-se entre si e não aceitando
172
Capítulo 3
estabelecer relações de afinidade com os outros – como no caso da Gente do Rio,
relatado no mito de Nete; ou ainda não conseguindo se relacionar com seus afins ideais,
os Inka. É a possibilidade de estabelecimento de afinidade que marca a passagem de
um tempo a outro.
Os antepassados Hidi nasceram no tronco de uma árvore selvagem, ao passo
que os Huni kuin nasceram da cavidade do fruto de uma árvore cultivada, a partir de
abelhas, forte símbolo de fertilidade entre os Kaxinawá. Assim, voltando à polaridade
desenvolvida no começo do capítulo, os ancestrais dos Kaxinawá pertencem hoje ao
“exterior”, são outros, ao passo que as pessoas recriadas são mais propriamente do
“interior” (McCallum, 2001, p. 151). Os ancestrais são também do exterior por
pertencerem ao tempo mítico, associado a esta localização espacial. O tempo atual,
como dito anteriormente, pertence ao interior, à constituição de parentes de maneira
apropriada e a um corpo mortal, que se transforma definitivamente em Inka e segue o
caminho para o céu, quando sua vida na terra não pode mais ser rejuvenescida.
Nos tempos atuais, os Kaxinawá relembram constantemente as diferenças entre
o modo próprio e impróprio de se viver. Esta parece ser a ênfase dada em seu Novo
tempo, o Xinã Bena, momento de recuperação e preservação de um modo próprio
kaxinawá de se viver. Como vimos no início deste capítulo, depois de conquistarem
terras onde pudessem morar de maneira autônoma, os Kaxinawá voltaram a realizar
práticas que, no tempo do cativeiro, não lhes foram permitidas pelos brancos, como
rituais, música ou mesmo falar a própria língua. Um exemplo é o ritual Kachanaua, de
fertilidade dos alimentos, o qual opera toda uma distinção entre o mundo-tempo dos
antepassados (localizado na floresta) e o mundo-tempo atual (com seu centro na
aldeia), e entre as metades “interna” e “externa”. Interessante notar que este ritual é
realizado após um período de dificuldades e tristeza, sendo orientado para animar as
pessoas. Ele, assim, acaba por relembrar o modo adequado de se viver não seguido
pelos antepassados no mito, pois “há sempre um sentido de perigo, acompanhado de
uma ênfase no potencial para o desastre se o modo adequado de se viver for
esquecido” (McCallum, 2001, p. 148).
É a negação de um mundo que permite o estabelecimento do outro. É também a
destruição factual deste primeiro tempo que permite o surgimento de novas condições
de vida, de uma nova socialidade. Este é o caminho que vemos na passagem do mito
de Ixan ao de Nete. No novo tempo, os Kaxinawá nascem não apenas da cavidade do
fruto de uma planta cultivada, como são transformações de cabeças de abelha. Assim,
173
Trocando de pele
como bem observado por McCallum (2001, p. 151) vemos as “sementes da
regeneração” brotarem da destruição e dos restos do primeiro mundo kaxinawá.
A cobra e a história
Vimos, anteriormente, como cada um dos tempos paumari é inaugurado por um
personagem que transforma um conjunto de relações responsáveis que caracterizavam
um modo específico de vida, de socialidade. Nos tempos antigos é Kahaso, acompanhado
de seus irmãos, que dá origem às gentes que habitam a terra e ensinam os Paumari a se
alimentarem, vestirem, produzirem cestos e esteiras, necessários à sua nova vida.
Entretanto, com o passar do tempo, as relações que os Paumari estabeleceram com os
outros – no caso, os Joima e os Jara – começam a tornar seu modo de vida insustentável.
O próprio modo de ocupação do espaço, sazonal entre cabeceira e margem do rio,
começa a perder seu sentido, uma vez que expõe os Paumari a estes estrangeiros, com
os quais não conseguem estabelecer outra relação que não a guerra. É necessário que
chegue outro personagem transformador, Orobana, para que mudem os tempos. Orobana
é um estrangeiro que se torna patrão dos Paumari, o primeiro de muitos. Mas é este
primeiro que ensina a eles outra maneira, que não a guerra, de se relacionar com os Jara
– e, igualmente, com os patrões (kariva). Orobana amansa os Paumari e estabelece com
eles relações de compadrio, envolvendo também seu filho nas trocas comerciais
instituídas.
Os
Paumari
caracterizam
as
relações
entre
patrões
e
empregados
diferentemente daquela entre patrões e fregueses. O freguês ou cliente (pamoari) é
aquele que estabelece uma relação não muito próxima do patrão, podendo trocar sua
produção com mais de um patrão. Mas, apesar desta aparente liberdade, ele acaba por
se prender em relações de débito em variadas direções: o débito acaba sendo sua única
conexão com o patrão. O empregado, contrariamente, estabelece uma relação fixa com
determinado patrão, o que garante maior regularidade no acesso a bens, alimentação e
cuidados. Estes cuidados dão-se por meio da nomeação, do apadrinhamento, do
fornecimento de remédios. “„Estar servindo alguém’ é então estar sob sua proteção e
ser alimentado direta ou indiretamente por ele” (Bonilla, 2005, p. 48; cf. também
Bonilla, 2009, p. 130).
A imagem do “bom patrão” é certamente aquela de um patrão desejado pelos
Paumari. Orobana aparece como um bom patrão ao estabelecer relações de compadrio e
174
Capítulo 3
ser generoso com esses índios, ensinando-lhes um novo modo de vida e salvando-os da
decadência da era anterior. Mas o mesmo não pode ser dito de seu filho e dos
subsequentes abusos que eles relatam ter sofrido por parte dos patrões nesta época. A
história do tempo dos patrões contém assim, tanto seu auge como sua decadência. Nesta
narrativa, percebemos também os conflitos decorrentes do pacto que existia na região
entre patrões, o qual impedia que um trabalhador servisse a mais de um patrão (ver
cap. 1). Na história, é relatada a recusa de determinado kariva em trocar com um
paumari, pois este já servia a outro patrão: consequentemente, este paumari teve
dificuldades de ocupar a posição de um pamoari, cliente ou freguês.
A chegada de Orobana estabeleceu um novo modo de vida possível, um novo
aprendizado, uma nova configuração de relações em que foi possível aos Paumari
estabeleceram trocas com os brancos, a partir de uma relação de patronagem que,
antes, não havia sido possível. Importante notar que os brancos já estavam na região,
mas a socialidade que marcava o tempo dos antigos não tornava possível um
relacionamento de troca, contrário ao de guerra que então reinava.
Por fim, é novamente na figura de estrangeiros – das missionárias e também de
Deus – que trazem um novo modo de vida (a “vida saudável”) que uma era
radicalmente diferente da anterior tem início. Nela, um evento marcante acontece: os
Paumari foram curados das manchas na pele que desde os tempos antigos os marcaram
e estigmatizaram, além da coceira e dor que provocavam. Os Paumari protestantes
rejeitaram também o xamanismo, a realização de rituais e a prática de restrições
alimentares. Desse modo, Siri, Maria e Deus passaram a ser concebidos como novos
pais adotivos.
O último tempo paumari de que temos notícia é seu tempo presente. Assim, não
sabemos como será seu período de decadência e se ele existirá. Sabemos, entretanto,
que as missionárias do SIL não habitam mais entre eles e que sua partida ocasionou um
sentimento de abandono intensamente evocado pelos Paumari, os quais passaram a se
sentir como “patinhos sem sua mãe”, em suas palavras (cf. Bonilla, 2007, p. 141,
tradução minha).
Os
personagens
inaugurais
dos
tempos
são,
portanto,
aqueles
que
“desconcertam a ordem do mundo e estabelecem ou permitem o surgimento de uma
nova socialidade” (Bonilla, 2007, p. 139). Podemos certamente considerá-los como
demiurgos, pois sua chegada revoluciona as condições de vida existentes e torna
possível o estabelecimento de uma nova ordem, uma nova configuração em que os
175
Trocando de pele
Paumari podem se relacionar com o mundo a partir de um novo conhecimento
adquirido e também de uma nova pele, um novo corpo. Eles criam novos mundos,
tornam possíveis novas socialidades. O mesmo pode ser dito de Nete, a qual cria uma
nova era, revolucionando as condições de vida estabelecidas no mundo dos xenipabu
(ancestrais) dos Kaxinawá. A chegada de Nete, seus ensinamentos e transformações
possibilitaram aos Kaxinawá viver segundo um sistema de metades, constituir-se
enquanto “gente verdadeira” e, assim, relacionar-se de um modo específico com o
mundo a seu redor. O mundo se tornou mais estável, com distâncias fixas entre
espaços e com transformações controladas: não é qualquer humano que pode se
metamorfosear em animal em qualquer circunstância e também não é todo ser que
pode trocar indefinidamente de pele e ter, assim, uma vida eterna. A morte passou a
ter como consequência uma mudança espacial: os mortos habitam um céu distante e
são lembrados ritualmente de que não devem voltar.
Com isso, não intenciono dizer que não haja continuidade ao longo dos tempos
que perfazem a história desses grupos indígenas. A tese de Bonilla (2007) é, por
exemplo, dedicada à analise do considerado pacifismo paumari e da constante posição
de “presa” que assumem na relação com os outros. Ela demonstra que é tal posição que
lhes permite, a seu modo, desarmar o outro. Constitui, assim, uma maneira de estar no
mundo que perpassa as eras de sua história. Como pudemos ver, os heróis inaugurais
de cada época são tomados como seus pais adotivos e, quando partem, é como
abandonados que os Paumari se afirmam. De maneira análoga, os Inka que povoam o
mundo mítico kaxinawá também se fazem muito presentes em sua vida atual. Eles
habitam o céu, assim como os patrões divinos também estão no céu dos Paumari (ver
adiante). Estas são, certamente, apenas algumas das continuidades.
Mas, se falo principalmente de rupturas, é porque o interesse desta dissertação
é o de analisar a maneira como a história é concebida, pensada e vivida por esses
grupos indígenas. Interessa-me sua concepção de história. Gostaria, com este objetivo,
de tornar claras duas características que se sobressaem a partir da análise dos tempos
considerados neste capítulo. Em primeiro lugar, a transformação aparece sempre como
propiciada por um poderoso criador, detentor de enorme conhecimento, que fornece as
condições de surgimento de uma nova era e, posteriormente, parte ou morre.
Consequentemente – no caso específico dos Paumari –, cada tempo é caracterizado por
um auge e decadência de suas condições de existência. Em segundo lugar, a mudança é
sempre operada de maneira radical, subvertendo a configuração de relações da era
176
Capítulo 3
anterior; de maneira que cada tempo parece ser dotado de uma existência própria,
nascimento e morte. Como a primeira das características já foi explicitada acima, darei
desenvolvimento à segunda.
Vimos, ao longo deste capítulo, que a cada transformação de suas eras, os
Paumari marcam a mudança por meio da troca de sua pele. Naquela que inaugura os
tempos antigos, eles não se banharam no sangue da sucuri mítica e assim ficaram com a
pele manchada, considerada uma marca de sua identidade. No tempo dos patrões, tal
qual no mito de Kahaso, “a transformação e a aquisição de uma nova socialidade é
inscrita na pele. Proeminentes entre os objetos trazidos por Orobana são as redes
protetoras de mosquito e roupas”. Apenas para citar um exemplo, desde essa época, os
mosquiteiros gradualmente substituíram o capacho de tecido que era, então, utilizado
como cabana de reclusão no ritual de puberdade das meninas (amamajo). Agora, são
esses objetos que as protegem da luz do sol e do olhar masculino durante a reclusão,
permitindo que sua pele se torne clara (Bonilla, 2009, p. 134; 2007, p. 138). Finalmente, a
cura da pinta introduziu “uma nova era entre os Paumari” – marcada pela moralidade
cristã, cultivada pelos evangélicos – e a consequente ruptura com a “velha cultura”
(Bonilla, 2009, p. 135).
A troca de pele traz consigo o significado da renovação não apenas entre os
Kaxinawá, mas também entre os Paumari. Para os últimos, trocar de pele possibilita a
“renovação” (aja’diniki) da “alma-corpo”, ou seja, do “corpo animado”33, abonoi
(Bonilla, 2009, p. 135; 2005, p. 47). Durante o ritual de puberdade, amamajo, acima
mencionado, a reclusão permite a renovação da pele (asafi-) e remoção de resíduos
(iami daini) acumulados no abonoi da menina. Pois, os Paumari consideram que tanto a
ingestão diária de comida, como relações de predação – nas quais os olhares agressivos
masculinos ao corpo feminino estão incluídos – constituem micro-agressões cotidianas
que deixam resíduos na carne de quem se alimenta e do predador. Estes resíduos
gradualmente infestam o abonoi e, devem, assim, serem regularmente removidos por
meio de ações rituais. A carne ingerida deixa ossos e garras no corpo de quem os
ingere, ao passo que plantas deixam pedras, espinhos e cascas. O acúmulo excessivo de
resíduos na carne provoca doenças (kavamoni), envelhecimento e morte. O ritual de
33 Bonilla (2007, p. 145; 2005, p. 47) traduz o termo paumari “abonoi” por “alma-corpo”, uma vez que ele é,
por excelência, o “corpo animado”. Num primeiro momento, ela afirma que abonoi indica o aspecto físico
do corpo, a materialidade de um objeto ou ser. Mas, num sentido largo, segundo a autora, abonoi se refere
ao conjunto corpo-alma; tanto o que entendemos por corpo como o que entendemos por alma é expresso
pela palavra abonoi em Paumari. Do que entendo, acredito que “corpo animado” fornece uma boa
explicação, indicando abonoi como um “corpo vivo”, ou seja, no qual a alma se faz presente.
177
Trocando de pele
reclusão das moças é, portanto, um desses momentos de remoção de resíduos. Os
xamãs também devem remover continuamente os resíduos acumulados nos corpos de
seus pacientes (Bonilla, 2009, p. 135).
A renovação do abonoi é também parte essencial do percurso pós-morte
paumari. Após a morte, o abonoi do defunto deve se banhar no Lago da Renovação
(Aja’di ka’dako) antes de se juntar à comunidade dos mortos que vive no Céu:
Após a morte, o abonoi da pessoa desprende-se de seu invólucro
corporal (toba bo’da) e segue caminho para o Lago dos mortos (ou para
a casa de Deus (Deus gorana), no caso dos evangélicos). O Lago dos
mortos (aja’di ka-„dako, o Lago da Renovação) situa-se rio acima, a
meio caminho entre as cabeceiras do Purus e o rio de cima (que corre
na parte celeste da rede fluvial cosmológica). Lá no Lago, vivem os
mortos paumari ressuscitados após um banho mágico (e após a
retirada dos resíduos alimentares acumulados ao longo da vida de
seus abonoi). Após receberem um invólucro novo (toba ja’dini), os
mortos são chamados para escolher entre dois tipos de móveis de
repouso: a esteira (jorai) ou a cadeira de balanço.
Escolhendo a esteira, o morto permanece no lago onde leva uma vida
imortal ao longo da qual poderá comer e dançar incansavelmente.
Escolhendo a cadeira de balanço (aqui, símbolo do patrão amazônico),
ele será então imediatamente empregado pelo patrão-chuva (forma
humana da chuva: bahi ka-pamoarihi), espírito meteorológico que,
como o sol, é descrito como um patrão muito poderoso34, ou seja, rico
e generoso, o que se traduz na sua aparência forte, corpulenta e no seu
caráter colérico, mas também na quantidade de barcos que possui
(uma frota inteira), todos dirigidos por seus empregados mortos
paumari que vão buscar água nos reservatórios de Manaus (no
extremo leste do espaço cosmológico), navegando pelo rio de cima,
para derramá-la sobre as terras paumari. São esses empregados do
patrão-chuva que também asseguram, através do trovão, a
comunicação regular entre os xamãs paumari e os mortos.
Interrogados sobre o interesse de estar trabalhando para um patrão
até depois de mortos, os Paumari respondem, unânimes, que o
patrão-chuva (bahi ka-pamoarihi) é não somente poderoso, mas também
bom, generoso e que possui quantidades ilimitadas e muito variadas
de mercadorias (inisika) (Bonilla, 2005, p. 48).
Deve ser esclarecido que os Paumari evangélicos podem ter a opção de escolha
entre a Casa de Deus e o Lago da Renovação e que o caminho entre esses dois lugares é
aberto de maneira que se pode sempre mudar de opção. Já os Paumari não evangélicos
vão direto para o Lago da Renovação, não tenho a possibilidade de escolha. Entre os
34
Devemos reparar que os Paumari fornecem ao sol um posto de divindade. Tal atribuição sugere algum
tipo de conexão com o império andino, pois, como vimos, uma das características dos povos andinos era a
veneração do deus sol (ver cap. 1). Segundo os Paumari, o patrão sol (safini kapamoarihi) se parece com os
Americanos, que são altos, têm olhos claros e pele avermelhada. A pele vermelha é considerada o sinal de
sua predileção pela carne humana. O patrão sol é ainda responsável por várias doenças que provocam
febre muito alta (cf. Bonilla, 2005, p. 63, nota 28). Ele assemelha-se assim ao Inka kaxinawá por ser
associado ao canibalismo e também ser divinizado, um deus poderoso.
178
Capítulo 3
crentes, a Casa de Deus não é mencionada como um local em que se dê ou não a
renovação do envelope corporal. Quando se referem a ela, eles “evocam sempre sua
beleza, seu enorme tamanho e sua incomparável luminosidade e brilho (vagaki)”
(Bonilla, 2007, p. 138-139) – sua luminosidade opõe-se à escuridão do xamanismo
(Bonilla, 2009, p. 136, nota 18). Suas características são bastante semelhantes com a
descrição kaxinawá do céu e dos Inka celestes, os quais são lembrados pelo enorme
brilho. Os Paumari não se referem aos Inka, mas a um patrão divino do qual se tornam
empregados. Ambos, entretanto, assemelham-se por serem estrangeiros que fascinam
pelo seu poder. Também entre os Kaxinawá e os Paumari, o clareamento da pele e seu
consequente rejuvenescimento trazem a ideia de renascimento.
O fato de que os crentes prescindam do banho celestial que transforma a
aparência e substância do abonoi do defunto justifica-se uma vez que sua nova “vida
saudável” proporciona transformação análoga à que ocorre no Lago da Renovação.
Este modo de vida, considerado saudável e bom (jahaki) pelos Paumari, rejeita a prática
de rituais, o xamanismo, o consumo de tabaco, de alucinógenos e de álcool (Bonilla,
2007, p. 127). Como explica uma paumari crente:
Ser crente é bom para mim, pois quando eu era mais jovem, eu
frequentava sempre os rituais, fumavam muito e dançava todo tempo.
É por isso que eu estava sempre doente. Quando eu aceitei Jesus,
parei de ficar doente. Nesta época, eu sempre tinha dor de cabeça,
febre, mas agora não sofro mais disso tudo. Naquele tempo, antes que
Siri chegasse, muita gente morria, sobretudo de febre (barava). Todo
mundo tinha a pinta. Esta é uma doença que vem do sangue das avós,
das mães. Mas elas [as missionárias] a curaram, não sei com o quê;
elas branquearam nosso sangue e é por isso que a minha neta não a
tem mais (F. Crispim, 25/06/01, em Bonilla, 2007, p. 127, tradução
minha).
Como conclui Bonilla (2009, p. 136), a “vida saudável” provavelmente ofereceu
aos Paumari crentes “uma solução à excessiva acumulação de resíduos na alma-corpo”.
Esta interpretação está de acordo com o fato de que a chegada deste novo tempo
coincidiu com a cura de inúmeras doenças (kavamoni) que assolavam os Paumari, as
quais, como vimos, são propiciadas pelo acumulo de resíduos na alma-corpo.
Consequentemente, eles passaram a realizar um clareamento da pele ainda em vida,
análogo ao que deveriam realizar quando mortos.
Do mesmo modo que o sangue da sucuri manchou os Paumari,
conferindo-lhes uma marca identitária, e assim inaugurando um novo
tempo, o dos antigos, o “branqueamento” das peles possibilitado
pelas missionárias, com a erradicação da pinta, permitiu a
179
Trocando de pele
inauguração de um novo tempo, em que os valores privilegiados são
as atitudes conformadas à moral cristã veiculada pelas missionárias e
a consequente ruptura de uma parte do grupo com a “velha cultura”
(Bonilla, 2007, p. 138, tradução minha).
Ser crente ou não era um foco de discussão permanente entre os Paumari que
adotaram este credo e os que se afirmavam católicos no início dos anos 2000. Bonilla
(2007, p. 127, nota 102) observou que a escolha ofertada a eles entre a possibilidade de
se converter ou não, de se submeter ou não ao poder do sangue de Jesus relembrava,
em seus termos e consequências, a escolha que, no passado, os Paumari tiveram entre
se banhar ou não no sangue da sucuri mítica35. Assim, o ponto que gostaria de destacar
é o de que a troca de pele ocasiona o renascimento não apenas aos corpos dos Paumari
como também a seus tempos. Tal qual uma troca de pele, um renascimento, cada um
dos tempos contempla em si um fim a partir do qual um novo nascimento ocorre, como
busquei mostrar com sua criação a partir de um demiurgo, a qual se segue um período
de auge e de decadência.
Considero, desse modo, que uma analogia pode ser traçada entre a vida de uma
cobra, tal qual descrita pelos Kaxinawá, e a concepção de história implicada nas eras
paumari. É porque os Paumari mudam de pele a cada tempo que podem sobreviver;
continuando a viver em um tempo que lhes permite relacionarem-se uns com os
outros, constituir parentes etc. A imagem kaxinawá da vida da cobra é, portanto,
aquela do percorrer dos tempos e da história dos Paumari. E, embora o tema da troca de
pele não apareça na história narrada pelos Kaxinawá, a passagem do tempo mítico ao
atual pode igualmente ser considerada como o surgimento de um tempo a partir do
esgotamento das condições de vida do mundo anterior e de sua socialidade particular.
Mas, na história kaxinawá, por sua vez, a cobra a o cipó são como a escadaria gigante
que ligam os espaços da vida, da morte e dos tempos. “Vida” e “morte” operam, assim,
como polos opostos que orientam as transformações do tempo. Cada era é introduzida
como uma recuperação ou renovação da vida, que se tornava escassa ou fortemente
ameaçada no tempo anterior. A morte aparece como o modo da transformação. Uma
morte, entretanto, que não rompe com a vida, mas sim a renova: assim como a jiboia,
em um determinado momento, troca de pele, deixando de habitar a terra e,
transformada em sucuri, passa a morar na água. Cada tempo se coloca como um modo
de vida possível, e é o novo “demiurgo” aquele que cria suas novas relações e corpos.
Bonilla (2007, p. 127, nota 102) não deixa claro, mas provavelmente este deveria ser o modo pelo qual os
Paumari convertidos ao protestantismo deveriam colocar a questão.
35
180
181
Foto 9: Menina paumari em banho no ritual do Amamajo.
Fonte: Isa, 2013i; Foto de Oiara Bonilla, 2002.
183
Foto 10: Mulheres kaxinawá confeccionando cestaria.
Fonte: Isa, 2013j; Foto de Nietta Lindenberg Monte, 1984.
Foto 11: Braço de um kaxinawá com a marca de Felizardo Cerqueira (FC).
Fonte: Iglesias, 2008, p. 404; Foto de Terri Valle de Aquino, 1981;
Acervo: CDPI - Comissão Pró-Índio do Acre.
çõ
Considerações finais:
Donos do tempo
Neste trabalho, assumi o propósito de analisar um modo específico de
historicidade concebido por grupos indígenas relacionados em um mesmo sistema
regional, tendo historicamente compartilhado conhecimentos, práticas e relações
sociais, além de processos semelhantes de contato com os brancos. O ponto mais óbvio
de semelhança entre as histórias indígenas que compõem este trabalho refere-se a uma
narrativa comum que divide a história em tempos ou eras. Este foi também o ponto de
partida desta dissertação. Mas, certamente, ao debruçarmo-nos sobre os tempos
encontramos não apenas semelhanças, como também diferenças. Nestas considerações
finais, discorrerei sobre ambas com o propósito de sumarizar o que se pôde apreender
da história e dos tempos indígenas considerados. Conforme explicitei na introdução
desta dissertação, as reflexões que apresentarei a seguir são conclusões iniciais de uma
pesquisa que terá sua continuidade no doutorado, onde terei a possibilidade de
aprimorar, por meio da etnografia, estes resultados iniciais, fornecendo a eles maior
concretude.
Como foi mostrado nos capítulos 2 e 3, as histórias kulina, kanamari, paumari e
kaxinawá foram, em um período mais recente, comumente marcadas pela chegada e
presença dos brancos em seus territórios, mais particularmente pela impactante
instalação de uma empresa seringalista na região. No primeiro capítulo, procurei
mostrar de que maneira a empresa extrativista esteve associada a um modo específico
de ocupação territorial, de controle do tempo por meio do trabalho a que submeteu
indígenas e não indígenas e de estabelecimento de relações sociais – marcadamente a
semi-escravidão pela dívida e a patronagem. Mas, como vimos nos capítulos seguintes,
se as transformações ocasionadas pela chegada dos brancos na região dos rios Juruá e
Purus são fundamentais para o entendimento das histórias indígenas, elas não as
definem. Um dos exemplos são as imagens de selvageria e civilização, como as de
“bravos” e “mansos”, que foram concebidas e empregadas pelos brancos em suas
185
Donos do tempo
diversas práticas: correrias, amansamento, trabalho, relações cotidianas. Como vimos
ao longo deste trabalho, essas imagens foram e são significadas de distintas maneiras
pelos Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá, estando na base de seus entendimentos
sobre concepções de tempo, espaço, identidade e alteridade.
Entre os Kulina, a passagem de bravo a manso relaciona-se a uma mudança
temporal e também espacial. Ela aparece de maneira muito marcada pelo caráter dual
de seus tempos: há uma identificação entre tempo dos antigos, centro da mata e bravos e
entre tempo atual, margem do rio e mansos. Desse modo, os termos “bravo” e “manso”
estão implicados na identidade kulina e a alteração entre esses polos caracteriza a
mudança entre os tempos e espaços de sua história. Semelhantemente, os Kaxinawá
também marcam a passagem de bravo a manso como a alternância entre um tempo
passado e outro presente. Mas a força dessas categorias como marcadores de tempos
perde-se um pouco por dividirem sua história em cinco tempos. Sabemos que no
passado eram bravos, mas não sabemos em qual das eras se tornaram mansos. Por
outro lado, os Kaxinawá fazem um extenso uso dessas categorias a fim de marcarem
uma distância espacial e também social com os “outros”. Com o surgimento do mundo
atual, os Huni kuin passaram a ocupar uma posição ao meio da linha que liga o alto e o
baixo do rio. As cabeceiras do rio são o habitat dos índios selvagens ou “brabos”, os
quais são como os ancestrais dos Kaxinawá. As regiões rio abaixo são onde residem os
brancos e as pessoas da cidade, associados ao futuro, ao progresso, assim como ao
perigo.
Para os Paumari, a selvageria é também uma imagem do passado. Eles
aproximam-se, nesse ponto, dos Kaxinawá, pois, enquanto os primeiros consideram
que seus antepassados viveram em um mundo marcado pela guerra e pela predação,
os últimos entendem que seus ancestrais eram bravos e ignorantes. Assim, a postura
dos Paumari e Kaxinawá com referência ao tempo de seus antepassados é divergente
da adotada pelos Kulina e dos Kanamari, uma vez que os últimos tomam seus tempos
dos antigos como modelo ideal, buscando reconstituí-los no presente. Já os Paumari e
Kaxinawá demonstram certo repudio pelo tempo de seus ancestrais, lembrando a
maneira pela qual os Piro também se referem a esta época de sua história (ver cap. 2).
Por outro lado, os Paumari e Kanamari se aproximam ao enfatizarem
continuamente o fato de serem mansos e de raramente incitarem a guerra contra seus
inimigos. Ambos esses grupos indígenas se colocam como povos pacíficos e mansos,
sendo este um aspecto de sua identidade. Embora os Paumari afirmassem ser ainda
186
Considerações finais
“selvagens” antes da chegada das missionárias do SIL, segundo eles, isso significava
simplesmente que, naquela época, ainda não haviam conhecido estrangeiros. Como
eles explicaram a Bonilla, sua selvageria não indicava que tivessem o costume de matar
pessoas (cf. Bonilla, 2007, p. 115). O fato de que não apresentassem tal costume era
certamente um atenuador de sua selvageria. Esta posição de “manso” foi importante
na relação que estabeleceram com o branco Orobana, o primeiro patrão que tiveram.
Orobana havia sido alertado pelo dono dos animais que os Paumari não eram
selvagens, mas pacíficos, e esta informação foi importante na relação que Orobana veio
a estabelecer com eles. Relação que, devemos lembrar, transformou os tempos dos
Paumari.
De maneira similar, não notamos entre os Kanamari a ênfase na afirmativa de
que foram em algum momento bravos. A selvageria aparece sempre atribuída a um
“outro”, aos inimigos. A identidade de “mansos” foi também importante a eles no
estabelecimento de relações com o primeiro branco que conheceram, Jarado. Na história
sobre Jarado percebemos que os Kanamari só puderam estabelecer com ele uma relação
de amizade (-tawari) por serem pacíficos e se afirmarem diferentes dos Djapa
(Kaxinawá), os raivosos. Jarado foi aquele que inaugurou um novo tempo no qual foi
possível aos Kanamari estabelecerem uma relação de troca com os brancos, divergente
da guerra. O mesmo podemos dizer da transformação operada por Orobana no tempo
dos patrões paumari.
Assim, entre os Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá a mansidão aparece
sempre como uma imagem da identidade e do tempo-espaço presente, muito bem
sintetizada pela narrativa kaxinawá: os Huni kuin atuais são mansos e encontram-se no
espaço do meio, para além do qual há “bravos” e estrangeiros. Além do que, como
vimos na história de Nete, rio acima é onde residem os Inka, aqueles que apresentam
um enorme poder de morte e destruição. Portanto, se a mansidão é uma imagem da
contemporaneidade de muitos grupos, ela ainda convive com os bravos, classificados
de distintas maneiras e com os quais diversos tipos de relações são estabelecidos.
Podemos também afirmar que a aprendizagem do modo de vida dos brancos
associa-se à mansidão que marca as identidades e tempos atuais dos grupos indígenas
abordados nesta dissertação. Desse modo, ser “manso” significa ter a possibilidade de
mediar as relações de poder e dominação que os brancos muitas vezes exerceram sobre
o modo de vida e sobre a existência indígena. Vimos, por exemplo, como a escola e a
aprendizagem da língua e matemática dos brancos assumem um lugar importante na
187
Donos do tempo
vida contemporânea desses grupos indígenas. A escola foi interpretada como o espaço
que possibilitaria a eles um importante aprendizado para as relações estabelecidas com
os brancos – relações estas praticamente impossíveis de evitar nos tempos atuais. No
presente, vemos esses diferentes grupos, cada qual dono de sua própria história,
buscando constituir um modo de vida próprio, relacionado a questões que os
acompanharam ao longo dos tempos. Os Kulina buscam por uma terra em que possam
viver bonito como antigamente. Os Kanamari buscam constituir aldeias estáveis em
que possam viver, reestabelecendo uma distância mínima entre elas, a qual assemelhase às distâncias entre os subgrupos no passado. Os Paumari procuram estabelecer-se
em uma “vida saudável” em que as doenças que historicamente o assolaram não mais
ganhem existência e na qual os poderes abusivos dos patrões e xamãs estejam
controlados. Por fim, os Kaxinawá desejam reestabelecer o modo próprio (kuin) de se
viver, enfatizando os valores de sua cultura.
Outra importante característica da instalação de uma empresa seringalista na
região foram as correrias realizadas pelos patrões com o objetivo do extermínio de
povos indígenas ou ainda de seu amansamento e consequente inserção como mão-deobra nos seringais. Como foi mostrado no capítulo 1, as correrias estiveram na base de
duas importantes transformações na vida indígena na região dos rios Juruá e Purus.
Uma delas refere-se ao tipo de relação que foi inicialmente estabelecida entre brancos e
índios, marcada pelo medo, prevenção e pelas guerras. Outra diz respeito à intensa
movimentação espacial realizada pelos grupos indígenas e sua consequente dispersão.
Esses dois aspectos do relacionamento entre brancos e índios estão presentes ao longo
dos capítulos seguintes (2 e 3), mas foram enfatizados sobretudo no segundo capítulo,
em que a análise desenvolvida buscou explicitar de que maneira pensar nos tempos
implicava considerar transformações na ocupação do espaço, na morfologia social, na
chefia e também na pessoa e no parentesco. As mudanças ocorridas nos subgrupos
kanamari, por exemplo, articulam laços de parentesco, chefia, territorialidade e
igualmente o tempo.
Por outro lado, no capítulo 3, ainda que as questões referentes à chefia e ao
espaço permanecessem presentes, a ênfase analítica recaiu sobre aspectos mais
cosmológicos e escatológicos presentes na reflexão acerca do tempo e da história,
sintetizados pelos temas da troca de pele, da vida e da morte. A troca de pele aparece
para os Paumari e Kaxinawá como uma forte imagem e modo de vivência da
transformação, articulando os polos da vida e da morte. Ela ocasiona tanto o
188
Considerações finais
renascimento dos corpos dos Paumari como também de seus tempos. Já os Kaxinawá
consideram a cobra (sucuri/jiboia) como um ser eterno justamente por trocar de pele.
Com o surgimento do mundo atual kaxinawá e a consequente separação dos espaços
da vida e da morte, a cobra, bem como o cipó da ayahuasca (de quem ela é dona), é
aquela que efetua a ligação entre os espaços da vida, da morte e dos tempos.
Apesar das diferenças observadas nas transformações propulsoras e criadoras
de novas eras entre os grupos indígenas abordados neste trabalho, algo se faz
constante e define um tipo específico de historicidade. Como busquei mostrar por meio
da ideia de configuração de relações, cada um dos tempos analisados estabelece uma
socialidade específica, podendo ser pensado por meio do conceito de Zeitgeist, o
espírito do tempo. Como explicitou Hegel, ele “é sempre um determinado modo de
ser, um determinado caráter, que invade todas as diversas partes e se manifesta tanto
nas formas políticas como nas demais formas culturais, fundindo num todo as várias
partes” (Hegel, 1980, p. 362). Pudemos perceber, ao longo deste trabalho, que cada uma
das eras indígenas consideradas define um caráter ou modo específico de vida: uma
possibilidade de existência que articula características referentes à territorialidade,
morfologia social, laços de parentesco, relacionamento com os “outros”, conhecimentos
adquiridos,
habitação,
corpo,
pessoa
e
cultura
material.
Esses
elementos
caracterizadores de um modo específico de vida são agrupados em um único tempo ou
era que apresenta seus limites definidos por um evento fundador – e muitas vezes um
personagem criador – e também um fim (com a óbvia exceção para os tempos que são
atuais, os quais ainda estão acontecendo).
Desse modo, as transformações da história não são marcadas em datas, mas em
diversos outros elementos, como o espaço, o corpo, o tipo de habitação, de
conhecimento adquirido, dentre outros, os quais caracterizam uma determinada
socialidade. No caso kulina, por exemplo, se, no tempo dos antigos, eles eram bravos,
não possuíam bens industrializados e moravam em malocas no centro da mata, em seu
tempo atual tornaram-se mansos, as mercadorias passaram a fazer parte de seu
cotidiano e eles se mudaram para a beira dos grandes rios, residindo em casas
semelhantes às dos regionais. Assim, cada tempo é marcado por um tipo de espaço
(centro ou margem), um conjunto de conhecimentos, uma forma de moradia. Como
ressaltou Scaglion (1999) a respeito da concepção de história dos Samukundi Abelam,
grupo que habita a Papua Nova Guiné e que também conceituam uma história
dividida em épocas:
189
Donos do tempo
Os Abelam percebem fortes descontinuidades entre as épocas. Assim
como os ocidentais mediriam os períodos históricos em anos ou
décadas independentemente do quão rápidas ou radicais foram as
mudanças por eles contemplados, pessoas com [...] um sentido
episódico do tempo não perceberiam uma continuidade ligando essas
mudanças, e os eventos associados às transformações ocorridas seriam
condensados ou aproximados no tempo a fim de acomodar a rápida
mudança associada ao cataclismo (Scaglion, 1999, p. 217).
Apesar de os grupos indígenas abordados nesta dissertação não conceituarem a
passagem entre um tempo e outro por meio de cataclismos, a história para eles, tal
como para os Abelam, é marcada por rupturas que revolucionam as condições
anteriores de existência. Assim, ao invés de marcar a mudança histórica por meio de
dias, horas e anos, esses grupos agregam os eventos em épocas.
Desse modo, não é possível afirmar que o tipo de historicidade conceituado e
vivenciado pelos Kulina, Kanamari, Paumari e Kaxinawá seja compatível com um
tempo marcado pela irreversibilidade e pela noção de progresso, em que os eventos ou
as diferentes eras sejam concebidos por meio da ideia de causa e consequência. Como
vimos, esses grupos indígenas não parecem estar pensando em modos de vida
irreversíveis e nem em um tempo que caminha de maneira progressiva. Tanto é que os
Kulina e Kanamari desejam reproduzir padrões passados em seus modos futuros, o
que implicaria em uma ideia de tempo que pode voltar a ser como antes, enquanto um
conjunto de ações e relações possíveis que constituíram certo modo de socialidade.
Nesse mesmo sentido, como já observara Bonilla (2007, p. 30), os Paumari jamais
contam as narrativas referentes a seus três tempos uma seguida da outra, como se
tratasse de um encadeamento linear de eventos. Ao contrário, é quando se fala de uma
mudança ou transformação específica que os Paumari se lembram de uma ou de outra
narrativa, evocando as respectivas eras em que ocorreram.
Há, entretanto, algo que diferencia esses tempos que chamei genericamente de
“tempos atuais” dos tempos míticos. Uma vez que falávamos de “eras” indígenas,
considerei importante investigar de que maneira poderia ocorrer a passagem do
mundo mítico ao mundo atual. Este tema foi desenvolvido de maneira mais
aprofundada no caso dos Kaxinawá. Vimos que, de modo semelhante às demais
passagens entre tempos, a passagem do mundo do mito ao mundo atual também é
marcada pela constituição de uma socialidade totalmente divergente da que a
precedeu. Os xenipabu, antepassados dos Kaxinawá, viviam em um mundo marcado
pela impossibilidade da constituição adequada de laços de parentesco: irmãos
190
Considerações finais
casavam-se entre si, vivendo em um mundo de puro interior. Contrariamente, o
mundo atual é aquele em que surgiram as regras de parentesco e os Huni kuin
passaram a ter a possibilidade de estabelecer laços de afinidade e casarem de maneira
adequada.
Mas, se a passagem do mundo do mito ao atual apresenta o mesmo caráter de
ruptura presente no estabelecimento das demais épocas, algumas características
marcam especificamente os tempos míticos. Em primeiro lugar, os fins desses tempos
não indicam que eles deixem completamente de existir. Nos tempos atuais kaxinawá e
kanamari, personagens e características que se faziam presentes no mundo do mito,
continuam a ter existência, embora de maneira mais localizada e restrita. Este é o caso
do Jaguar kanamari e do Inka kaxinawá os quais, tendo sido seres de grande poder no
tempo do mito, apresentam no tempo atual uma presença ainda marcante, mas
certamente limitada. Em segundo lugar, os mundos míticos são marcados por uma
série de indefinições que só passam a ganhar forma com o surgimento do mundo atual.
Estas indefinições estão presentes de maneira generalizada nas histórias de criação dos
tempos atuais – de Tamaco e Quira, de Kahaso e seus irmãos, e da Nete. Por meio do caso
específico dos Kaxinawá, foi possível explorar de que modo indefinições espaciais
confundem-se com misturas entre os seres, a vida e a morte. Pois, uma vez que o
tempo do mito é marcado por uma proximidade de diferentes localidades (céu, terra,
água), formando um espaço continuo, os seres que as habitam consequentemente
convivem no mundo de maneira muito próxima. Neste caso, também a vida e a morte
operam como polos intercambiáveis. O mundo do mito é, portanto, aquele em que a
humanidade não existe enquanto tal, separadamente dos demais seres.
Por fim, a passagem do tempo do mito ao tempo atual é sempre realizada por
meio de um personagem que estabelece os componentes e caracteres finais do novo
mundo que irá surgir. Este é o caso de Tamaco e Quira, de Kahaso e seus irmãos, e da
Nete. Sem tais personagens os novos mundos não seriam possíveis, eles são seus
demiurgos. Mas, como vimos, não são apenas estes personagens os responsáveis por
marcar inícios de novas eras. Jarado e Sabá entre os Kanamari, Orobana e Siri entre os
Paumari exerceram atividade semelhante: criando as condições de possibilidade do
surgimento de uma nova era, foram também demiurgos. Jarado foi recebido como um –
tawari (amigo) pelos Kanamari, sendo o primeiro dentre muitos patrões que eles
vieram a conhecer. Inaugurou uma era em que os Kanamari trabalharam e trocaram
seus produtos pelas mercadorias que os brancos traziam. Sabá, por sua vez, chegou em
191
Donos do tempo
um contexto diferente, quando os brancos haviam minado o poder de muitos chefes
kanamari e foi, assim, reconhecido como um – warah, um chefe/corpo/dono.
Com o surgimento deste novo chefe, também um novo tempo foi instituído, o
tempo da Funai. Como observou Costa (2007, p. 147), tanto Jarado como Sabá “chegaram
de lugares situados à jusante – ainda que não do mesmo rio -, de terras associadas a
um poder inacreditável”. Assim, apesar de Jarado ter sido um patrão e Sabá um chefe,
ambos associam-se a um enorme poder que atraem os Kanamari, de maneira análoga
às mercadorias que trazem consigo. Esses personagens guardam algumas semelhanças
com os Jaguares antigos que eram mestres (-warah) de tudo, qualidade que atraía os
Kanamari, embora igualmente os assustasse.
Vimos que os patrões são figuras centrais na vida paumari e não é de se
estranhar que também Orobana e Siri estejam vinculados ao mundo da patronagem.
Orobana, um branco, foi ele próprio o primeiro patrão paumari, que possibilitou uma
transformação na relação com os brancos e também no modo de vida deste grupo
indígena. Siri pertencia ao mundo dos Americanos e foi ela quem apresentou Deus, um
novo patrão, aos Paumari. A pele avermelhada dos Americanos é considerada pelos
Paumari como o sinal de sua predileção pela carne humana. Eles, aliás, parecem-se
muito com o poderoso e rico patrão sol (safini kapamoarihi) paumari, por serem altos,
terem olhos claros e a pele avermelhada.
Devemos observar que, entre os Kulina e Kaxinawá, estes personagens que
criam novos tempos não estão presentes, mas não deixa de ser notável a importância
de figuras de enorme poder que agregam e atraem pessoas para junto de si,
propiciando a constituição de uma vida em comunidade criada por meio de laços de
parentesco. Vimos que os chefes e, na sua ausência, os patrões exercem um papel
fundamental na vida kulina, na constituição de aldeias e em seus processos de
dispersão. Para além dos patrões da borracha, houve também um branco, chamado
padre Paulino, responsável por agregar os Kulina que, antes dispersos, passaram a se
reunir em uma grande aldeia. Não temos dados para afirmar com segurança, mas
talvez os Kulina o vissem de maneira algo semelhante à Siri, que chegou entre os
Paumari. Ele foi certamente um personagem que atraiu pessoas para perto de si e sua
partida “desagradou” os Kulina. Devemos ainda notar que a mudança entre o tempo
dos antigos e o tempo atual se dá quando os Kulina envolvem-se com o trabalho na
borracha. Este envolvimento mais intensivo estava diretamente relacionado aos
patrões, às mercadorias que possuíam e à atração que os Kulina sentiam por ambos.
192
Considerações finais
Lembremos que eles se mudaram para a margem dos rios atraídos por este mundo de
civilização e que, hoje, esta parece ser uma questão constante: permanecer ou não
próximos dos brancos?
Foi, igualmente, salientada a importância da busca por bons patrões pelos
Kaxinawá e apontada a semelhança desta procura com as relações estabelecidas entre
este grupo indígena e os Inka, os quais eram ao mesmo tempo atrativos, mas com quem
as relações sociais foram sempre frustradas. Exceção deve ser feita aos Inka kuin que
habitam o céu e que lá proporcionam aos mortos kaxinawá uma vida plena,
“verdadeira”. Poderíamos concluir que, no céu do mundo atual, o Inka atua como um
bom chefe para os mortos: agrega pessoas e fornecem a elas uma vida cheia de
abundância.
Há, assim, certa permeabilidade entre chefes, patrões, Jaguares e Inka. Enquanto
os chefes salientam mais o caráter agregador – o caso kanamari nos mostra claramente
que eles são a razão pela qual as pessoas vivem próximas umas das outras em aldeias –
, patrões, Jaguares e Inka são personagens poderosos que exercem atração e medo. Mas,
como vimos, esses polos são intercambiáveis. Como foi mostrado nos capítulos 2 e 3,
tais personagens são também fundamentais para se pensar os tempos. Essas figuras
agregadoras, atrativas e poderosas aparecem de maneira marcante quanto tratamos do
assunto das transformações sociais. Acredito, assim, que a imagem de chefes que são
também corpos e donos desenvolvida por Costa (2007) para se pensar o caso específico
da chefia kanamari, auxilia-nos a compreender estas interfaces, aparecendo como uma
imagem mais geral. O –warah é ao mesmo tempo chefe, corpo e dono, e devemos
lembrar que não apenas pessoas kanamari foram tomadas como –warah bem como o
Jaguar antigo (mestre/dono de tudo), Sabá e a Funai. Como vimos, os subgrupos tem
uma existência situada não apenas espacialmente, mas também pelo chefe que
constitui seu corpo. O –warah constitui a razão pela qual as pessoas vivem juntas em
uma aldeia, de maneira que seus habitantes podem ser referidos pelo nome do chefe
seguido do termo –warah. Os chefes são o corpo e o dono daqueles que agrega. É a
comida que o chefe distribui que as mantém ali e sua morte implica na dispersão
daqueles que antes viviam juntos (Costa, 2007, p. 48).
Particularmente no que se refere aos tempos, os quais nos interessaram neste
trabalho, vimos que esses personagens agregadores, atrativos e poderosos aparecem de
maneira muito marcada quando tratamos de transformações sociais. Eles, muitas
vezes, são os próprios criadores das socialidades emergentes, das novas configurações
193
Donos do tempo
de relações que possibilitam a continuidade da existência social sob um novo modo de
vida, radicalmente diferente do que o precedeu. Podemos certamente afirmar que eles
são os demiurgos e donos daquele tempo, uma vez que sua presença pessoal é de
primeira importância para a continuidade da socialidade que marca aquela época.
Vimos que, quando esses personagens inaugurais vão embora, algo se transforma no
tempo: essas mudanças foram aqui tratadas por meio das ideias de auge e decadência
de uma era. Durante o período de auge, as características inaugurais de um tempo são
fortes e permitem uma renovação dos modos de vida. Mas, no período seguinte, de
decadência, as condições de vida que haviam sido instauradas começam a se
deteriorar. Este aspecto é muito marcado pelos Paumari que afirmam sentirem-se
abandonados quando esses patrões/demiurgos partem.
Assim, podemos estabelecer uma forte analogia entre a vida em comunidade e
o tempo, bem como entre os chefes e os personagens que dão às novas eras. Cada tempo
é como uma aldeia com seu chefe: ambos estabelecem um corpo e uma socialidade, por
meio da qual é possível àquele grupo de pessoas reunidas existirem. Quando o chefe
morre ou vai embora, a aldeia ou o tempo perdem sua força, sua característica
definidora, porque a pessoa que as reunia não mais existe. Os tempos, portanto, têm
também seus donos, constituindo-se enquanto socialidades encorporadas. Eles não se
definem por datas, como vimos, mas apresentam nomes e definem-se enquanto
totalidades: são complexos de vida que articulam espaços, corpos, conhecimentos,
tipos de pessoas, tipos de objetos, habitações, dentre outros elementos. Esta deve ser
uma das razões pelas quais os tempos não podem ser pensados de maneira contínua,
pois se cada qual tem seu corpo e seu dono, não haveria razões para qualquer
estabelecimento de relações de causa e consequência entre eles.
194
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Anexo 1
Censo da aldeia Maronaua - Pollock
Censo da aldeia Maronaua
Fonte: Pollock, 1985, p. 249-256, tradução minha.
As casas são identificadas por número, referindo-se ao mapa II-3: Layout da aldeia
Maronaua [Pollock, 1985: 60]. Os indivíduos são identificados por número, referindo-se
à genealogia da aldeia que se segue a esse apêndice [ver infra]. As idades listadas são
estimadas. Esse senso inclui a população que residia na aldeia durante o mês de junho
de 1981 e aponta algumas mudanças que tiveram lugar até o mês de maio de 1982.
Nome (sexo)
idade
Casa 1
01. Manuel/Baba (m)
02. Nomiha (f)
03. Tsiko (m)
04. Iano (m)
30
30
6
3
Casa 2
05. Daminau/Katore (m)
06. Rani (f)
07. Aruki (m)
08. Tsikeno (f)
09. Rimana (m)
10. Shika/Watohe (f)
11. Tsawani (f)
60
55
20
18
3
2
11
(Faleceu em janeiro de 1982)
Casa 3
12. Dzo'i (m)
26
13. Ruma (f)
25
14. Kaina (f)
11
15. Tsike (f)
7
16. Kurawi (m)
6
17. Wawita (f)
10
(um garoto nascido nesta família morreu em janeiro de 1982)
Casa 4
18. Wara (m)
19. Uma (f)
25
22
207
20. Dzuira (f)
21. Mawira (m)
22. De'i (f)
23. Kukira (f)
24. Dato (m)
25. Dzoana (f)
26. Manuel/Piwi (m)
27. Maria (f)
28. Pitsia (f)
29. Dziniha (f)
30. Topaime (f)
1
3
4
5
55
50
18
7
6
5
4
Casa 5
31. Kuma'a (m)
32. Mumu (f)
33. Dzamawa (f)
34. Dzelha (m)
35. Mawani (f)
36. Muitsuna (f)
37. Tsabino (m)
38. Tsilda (f)
39. Hodo (m)
50
45
12
10
8
7
28
25
1
Casa 6
40. Keri (m)
41. Pahaha (f)
42. Erudza (f)
43. Mowi (f)
44. Tsupura (m)
45. Mara (m)
46. Atowi (m)
47. Ukeri (m)
45
45
23
6
10
3
2
25
Casa 7
48. Warina (m)
49. Raimunda/Nomiha (f)
50. Awano (m)
51. Erutsa (f)
45
40
3
4
Casa 8
52. Marakia (m)
53. Huma (f)
54. Mawaha (f)
55. Mowi (f)
56. Kabi (f)
57. Kurima (f)
58. Hadema (m)
59. Dahera (f)
60. Ikobo (f)
25
55
20
5
4
8
18
3
1
208
Casa 9
61. Codo (m)
62. Kaina/Joana (f)
63. Awano (m)
64. Weimo (f)
65. Jiva (f)
66. Doriko (m)
67. Ino (m)
68. Wadio (f)
69. Marahi (f)
50
50
21
19
2
10
12
5
2
Casa 10
Ocupada pelo casal de missionários
Casa 11-12
70. Miguel/Mai (m)
71. Dzoana (f)
72. Tsikima (m)
73. Kukara (m)
74. Uheta (m)
75. Bodo/Vire (m)
76. Nomiha (f)
77. Nanduka (m)
78. Dzabura (m)
79. Uratso (m)
55
55
16
13
6
25
25
4
3
2
Casa 13
80. Waki/Toniko (m)
35
81. Amo (f)
30
82. Iriki (f)
10
83. Dzuki (f)
2
Essa família mudou para a casa 21 depois de aproximadamente 2 meses. A casa
13 é de propriedade de Rimana (108), que agora vive no Sobral.
Casa 14
84. Tsami (m)
85. Kano (f)
86. Tseke (f)
87. Dzahaha (f)
88. Kuma'a (m)
89. Kaba (f)
90. Dzumari (m)
91. Horanihi (f)
45
40
20
4
2
22
4
2
Casas 15, 16, 17
Essas casas foram abandonadas, tendo sido ocupadas por pessoas que
mudaram para o Sobral. No fim desta pesquisa, estas casas já haviam desabado
e desapareceram sob a vegetação que as invadiram.
Casa 18
92. Alfredo (m)
59
209
93. Rosida (f)
94. Adelia (f)
95. Manuel (m)
96. Nuami (f)
97. Noba (m)
98. Mani (m)
99. Nazare (f)
100. Dzumo (m)
101. Erodzi (m)
102. Haimi (m)
103. Dzoau (m)
48
20
22
<1
20
18
19
5
8
10
9
Casa 19
104. Natiko (m)
105. Mitu (f)1
106. Eriho (m)
107. Kapai (f)
20
8
4
2
Casa 20
Abandonada; usada, enfim, para abrigar atividades coletivas.
Casa 21
Ver nota sobre a casa 13.
Casa 22
138. Mara (m)
139. Wawita (f)
140. Marakia (m)
141. Raimo (m)
142. Abeu
143. Akahe
144. Baubina
145. Rorival
146. Samue/Itso (m)
147. Madzia (f)
148. Duriko (f)
45
40
58
55
25
O Seringal Sobral
Dados demográficos completos sobre os residentes do Sobral não estão
disponíveis.
108. Manduka (m)
45
109. Tsidi (f)
45
110. Kukara (m)
25
111. Babina (f)
23
112. Criança desconhecida (f)
113. Criança desconhecida (m)
114. Mito (f)
6
115. Tsikeno (f)
8
116. Nehe (f)
4
117. Diari (m)
118. Mito (f)
210
119. Pahaha (f)
120. Wawita (f)
121. Noho (m)
122. Tsanto (m)
123. Mahode (m)
124. Nominha (f)
125. Cassiano/Kubi (m)
126. Nado (f)
127. Panawa (f)
128. Naso (m)
129. Pejito (m)
130. Abruzi (m)
131. Luzia (f)
132. Natiko (m)
133. Keri (m)
134. Paitsa (m)
135. Amori (m)
136. Codozi (m)
137. Manduka (m)
15
14
12
10
9
<1
65-70
50
45
5
2
25
16
10
.
211
Genealogia da aldeia Maronaua
Fonte: Pollock, 1985, p. 256
212
Anexo 2
Carta Kulina e Kaxinawá para a Funai
213
214
215
216
217
218
219
220
221
222
Anexo 3
Quadro-resumo dos tempos kulina, kanamari,
paumari e kaxinawá
223
224
Tempos kulina
Tempo dos antigos
(Ididenicca)
Evento fundador
Organização social, pessoa, conhecimento
Tamaco e Quira, heróis criadores, estabeleceram os
componentes deste tempo/mundo.
Tempo atual
Foram atraídos de suas habitações no meio da
mata para as margens dos rios principais em busca
de mercadorias que os seringueiros possuíam.
Desse modo, engajaram-se em trabalhos nos
seringais e passaram a habitar as margens dos
grandes rios.
Subgrupos misturados.
Kulina organizados em subgrupos endogâmicos.
São mansos.
Eram bravos.
Tiveram acesso a medicamentos.
Foram atingidos pelas epidemias do contato
(“doenças externas”)
Iniciaram o aprendizado do português e da
matemática.
Conheceram o dinheiro.
Habitação
Residiam na odsa beje, grande maloca de palha. Em
períodos de fuga, moraram em papiris (habitações
de simples postes e vigas, cobertas de ralas folhas
de palmeira) construídos na mata, em “qualquer
lugar” (cf. Ididenicca ima, 1999, p. 42)
Antes da chegada dos brancos: habitavam o centro
da mata em localidades mais fixas.
Depois da chegada dos brancos: houve uma
grande dispersão. Fuga para as cabeceiras dos
rios, ainda no centro da mata.
A crescente dependência das mercadorias dos
brancos levou-os a se integrarem de outro modo
ao trabalho nos seringais, mais intensivamente.
Mudaram-se para as margens dos rios, passando a
habitar os seringais e em casas de pequenas, de
tipo palafita, seguindo os moldes regionais.
Posteriormente, reuniram-se em aldeamentos
organizados por iniciativa missionária.
225
Deslocamentos
Antes da chegada dos brancos. Viviam de acordo
com um ciclo específico de festas, agricultura, caça
e pesca. Também havia deslocamentos, mas as
razões para tal eram outras: a) esgotamento de
terras cultiváveis, da caça, pesca e coleta; b)
abandono da aldeia por ocasião da morte de
liderança política ou religiosa; c) visitas a parentes
de outras aldeias em períodos de escassez de
alimentos; d) participação em festas e) buscas por
tratamento com xamã ou com ayahuasca.
Depois da chegada dos brancos: Busca pelas
cabeceiras dos rios como refúgio das epidemias e
correrias. Ou ainda deslocamentos eventuais para
as margens dos rios a fim de trocar os produtos de
seu trabalho por mercadorias dos brancos.
Cultura material
Não utilizavam produtos industrializados.
Usavam conchas para tomar sopa; não conheciam
o algodão; usavam palitos velhos e cana brava
para fazerem fogo; usavam vasilhas de cerâmica;
utilizavam sons como meio de comunicação etc.
(cf. Ididenicca ima, 1999)
Não usavam roupas.
Análises atuais dos Kulina sobre os tempos
226
Veem este tempo como um tempo ideal. Os Kulina
identificam sua origem “no coração da mata” ou
“em direção ao interior da mata”, apesar de
viverem nas margens dos rios.
Deslocaram-se do centro da mata para as margens
dos grandes rios. Este é o segundo movimento
espacial desde a chegada dos brancos.
Deslocaram-se muito em busca de serviço e de
bons patrões.
Continuaram se deslocando no caso de morte de
chefia e de ocorrência de epidemias.
Em um período mais recente: redução da
intensidade dos deslocamentos com a instalação
de aldeias organizadas pelos missionários.
Adquiriram produtos manufaturados.
Usam colheres para tomar sopa; conhecem o
algodão; o fósforo; usam vasilhas fabricadas; e
valem-se do papel como meio de envio de notícia/
comunicação (cf. Ididenicca ima, 1999).
Usam roupas.
Veem este tempo de uma maneira ambígua, uma
vez que se sentem atraídos pelas mercadorias dos
brancos. O dilema fundamenta uma séria divisão
na aldeia entre aqueles que desejam maximizar o
potencial produtivo do trabalho da aldeia e
aqueles mais conservadores que rejeitam o
estabelecimento de relações econômicas
permanentes com os brasileiros.
Tempos kanamari
Evento fundador
Organização social,
parentesco e
conhecimento
Tempo de Tamakori
Tempo da borracha
Tempo da Funai
Queda do Céu Antigo sobre a terra deu
origem a um mundo fragmentado em
unidades menores (não mais totalmente
contido pelos Jaguares), sendo os
subgrupos uma delas. Surgimento dos
variados tipos de animais. Criação das
gentes humanas que habitam o mundo
atual pelos heróis criadores Tamakori e
Kirak.
Foi a chegada de Jarado, o primeiro kariwa
conhecido por eles, o evento que deu início
ao tempo da borracha. Evento prototípico
da chegada dos brancos no território
kanamari e do estabelecimento das relações
de patronagem.
Chegada de Sabá e da FUNAI,
considerados chefes pelos Kanamari.
Os Kanamari trabalharam juntos (caucho,
borracha e madeira), iniciaram intercasamentos entre os subgrupos e tiveram
acesso à mercadoria ocidental. Chefia não
mais restrita a um subgrupo.
Surgimento de aldeias que não
dependiam tanto dos brancos e
reintrodução da distância entre os
núcleos de aldeias associados aos
subgrupos.
Subgrupos misturados.
Subgrupos misturados. Todas as
aldeias encontram-se interrelacionadas por meio de casamentos
entre pessoas de diferentes
subgrupos.
Os Kanamari passaram a existir por meio
de seus subgrupos –dyapa organizados,
cada qual, em um conjunto de aldeias.
Cada aldeia emerge como uma unidade por
meio de um –warah (chefe/corpo/dono)
que dá forma ao conjunto de pessoas que
dela fazem parte.
Subgrupos endogâmicos.
Era possível saber claramente quem era
aliado e quem era inimigo.
Primeiro momento. Evitaram a
proximidade com os brancos. Estabeleciam
apenas contatos esporádicos e começaram a
ter acesso às mercadorias. Yoho e Dyaho
aprenderam a ler, escrever e a contar.
Mudaram-se para o Itaquaí, mas logo os
brancos também chegaram àquela região.
Segundo momento. Começaram a trabalhar
para os brancos, primeiramente, fascinados
Primeiro momento. Sabá é o chefe.
Sabá nomeou novos chefes para os
Kanamari. Os chefes que nomeou
não se constituíram enquanto –warah,
mas como “tuxauas” ou “caciques”.
227
pelo seu poder e mercadoria, mas depois os
considerando espíritos imprestáveis.
Brancos começaram a minar a autoridade
dos chefes.
Os tributários do Juruá deixaram de ser
reserva exclusiva de um único subgrupo.
Mudaram-se para o Itaquaí.
Territorialidade
Cada subgrupo localizava-se um tributário
diferente do Juruá.
Nesta época, nenhum kanamari habitava as
margens do Juruá.
Primeiro momento. Passaram a evitar o
leito principal do Juruá, local em que os
brancos iniciaram sua ocupação.
Consequente alteração no caminho
percorrido para a realização do Hori.
Alteração na dinâmica do encontro:
tornaram-se mais frequentes e perderam
caráter ritualizado.
Segundo momento. Chefes incapazes de
situar os Kanamari em aldeias por um
longo período de tempo. Morte de chefes.
Processo de fluxo, instabilidade e
dispersão.
Análises atuais dos
Kanamari sobre os
tempos
228
Veem este tempo como um tempo ideal, em
que tinham um local certo para morar e
uma morfologia social específica, definida
pelos subgrupos e sua espacialidade.
Lembram saudosamente dos –warah de
antigamente. Eles tomavam conta de sua
gente, constituindo aldeias que se
traduziam em unidades de “verdadeiro
parentesco”.
O período final deste tempo é lembrado
pelos Kanamari como de intenso fluxo e
dispersão, quando não era possível a eles
viver de maneira adequada, com um chefe
e aldeia fixa.
Segundo momento. Sabá parte e a
Funai permanece como o único
-warah de seu tempo. Ela distribui
mercadorias aos Kanamari
Consideram toda a área do rio
Itaquaí como sua terra. Tem um local
para morarem e não estão mais
dispersos.
No Itaquaí, os subgrupos passaram a
morar todos à margem de um
mesmo rio.
Deslocamentos para visitas a
familiares e para acesso ao posto da
FUNAI e com o objetivo de
realizarem trocas comerciais com os
brancos.
Os Kanamari consideram que, no
Tempo da Funai, conseguiram
reintroduzir diferenças entre os
subgrupos, a partir de um modelo
vigente no tempo de Tamakori.
Tempos paumari
Tempo dos antigos
Evento fundador
Kahaso e seus irmãos dão origem às
condições primeiras de existência
social dos Paumari. Ensinaram aos
Paumari como serem pessoas
“verdadeiras”. Deram origem às
diferentes gentes que habitam o
mundo atual.
Quando os irmãos se transformaram
em estrelas, instauraram o ciclo das
águas que regra a temporalidade
cotidiana e ritual dos Paumari.
Surge o corpo dos humanos. Kahaso
ganha um umbigo e, desde então,
todo mundo tem um umbigo.
Corpo/ pele
Conhecimento, pessoa e cultura
material
Surge o corpo dos Paumari. Pele
paumari marcada pela pinta, que se
torna uma marca visual de sua
identidade.
Tempo dominado pelas doenças,
sobretudo as de pele.
Paumari têm o conhecimento sobre
todas as técnicas necessárias à sua
sobrevivência: alimentação adequada
e técnicas de caça, peça e coleta;
armas; instrumentos xamânicos;
técnicas de parto.
Eram selvagens e não se vestiam.
Tempo dos patrões
Tempo atual
Chegada de Orobana, heróitransformador e primeiro patrão.
Orobana traz o conhecimento
necessário aos Paumari a fim de que
eles pudessem transformar suas
relações com os brancos e também
seu modo de vida.
Chegada das missionárias Siri e
Maria Bosoni. Foram gradualmente
aceitas pelos Paumari ao
estabelecerem com eles relações de
troca, de roupas, utensílios e outros
objetos manufaturados. Elas são
consideradas como as mães adotivas
que salvaram o grupo, trazendo o
cristianismo e um novo modo de
vida aos Paumari.
Nesta época, são adotados roupas e
mosquiteiros, que protegem o corpo
tanto dos olhares exteriores como
dos mosquitos, abundantes na
região. Constituem-se como uma
nova pele.
Tempo marcado pelas doenças.
Aprenderam a comerciar com os
brancos.
Conheceram as roupas e redes
protetoras contra os mosquitos, o
álcool.
Era sã, em que as doenças de pele, as
epidemias e as doenças não mais
assolaram os Paumari.
Foram curados os ferimentos na pele
que historicamente assolaram os
Paumari.
Aprendem a ler, a escrever e a
contar.
Aprendem a utilizar os
medicamentos não indígenas.
Conheceram o dinheiro como um
meio de pagamento.
229
Orobana iniciou a pacificação da
região e possibilitou aos Paumari
sobreviverem aos incessantes
ataques de índios bravos e da
população regional.
Tempo dominado pela guerra, pela
antropofagia, pelo medo e por
doenças, sobretudo as doenças de
pele; e pela atividade xamânica
excessiva.
Os Paumari eram numerosos.
Organização social e parentesco
Territorialidade
Época marcada por constantes
mudanças de lugar relacionadas às
perseguições que sofriam por parte
de outros grupos indígenas. E,
posteriormente, também dos brancos
(correrias).
Primeiro momento. Ocupavam as
margens, mas ao meio, nem rio
acima, nem rio abaixo, pelo perigo
dos Joima.
Segundo momento. Chegada dos
brancos. Deixaram de frequentar as
230
Primeiro momento. A chegada de
Orobana ocasionou uma era de
relativa paz no dia-a-dia. Trocaram
peixe salgado, quelônios ou madeira
e produtos extrativos com os
brancos. Tiveram acesso a roupas,
sal, açúcar, café, farinha de mandioca
e instrumentos de trabalho.
Iniciaram relações de troca, de
adoção e de patronagem com os
brancos. Os brancos começaram a
amansar os Paumari.
Segundo momento. Aos poucos, a
paz inicial introduzida com a
chegada de Orobana foi se
transformando em decorrência das
doenças, da dependência e abusos
dos patrões. Intensificação das
doenças e também da atividade
xamânica.
Brancos começaram a povoar mais
intensamente as margens do Purus.
Os Paumari não conseguiram seguir
um ritmo anual de alternância entre
as cabeceiras e as margens do rio.
Os Paumari conseguiram controlar
suas relações comerciais, por meio
do ensino da leitura, da escrita e do
cálculo.
Prática abusiva do xamanismo foi
controlada.
Tornaram-se crentes. Ser um
“crente” significa adotar um estilo de
vida “saudável”, com tudo o que isso
implica para os Paumari: assistência
médica, rejeição do xamanismo e de
restrições/tabus alimentares,
retirada da vida ritual, acesso a
mercadorias.
Submeteram-se ao poder do sangue
de Jesus e à “Palavra de Deus”. Deus
passou a ser referido como o novo
patrão e pai adotivo.
Primeiro momento. As missionárias
estavam presentes e eram referidas
como as mães adotivas do grupo.
Segundo momento. Elas foram
embora e os Paumari relatam
sentirem-se órfãos desde que
partiram.
Os Paumari conseguiram
reestabelecer o ritmo anual de
alternância entre as cabeceiras e as
margens do rio.
praias, que eram muito expostas, e
entraram para a floresta, ocupando
preferencialmente as cabeceiras.
Estes locais na floresta eram, ainda
assim, sempre próximo aos lagos e
igarapés. Circulavam entre várias
moradias.
Os Paumari, por vezes, lembram-se
com nostalgia deste tempo,
considerado como uma época de paz
e de abundância de mercadorias.
Recordam-se do bom patrão
generoso que se ocupava dos
Paumari como de seus próprios
filhos.
Análises atuais dos paumari sobre
os tempos
Este tempo é visto pelos Paumari
como um período perigoso em que
eles foram incansavelmente
perseguidos por outros índios e
dizimados pelas doenças, forçandoos a confiar exclusivamente em seus
poderosos xamãs.
É também lembrado como um tempo
remoto, um período dominado pelos
xamãs e controlado pelos patrões, em
que os Paumari não se sentiam
capazes de compreender
adequadamente o que aconteceu
quando trabalharam para pagar seus
débitos ou quando se tornaram
vítimas de doenças mortais. Naquele
tempo, os Paumari sabiam muito
pouco sobre a vida da população
regional para serem capazes de
controlar suas relações com os
últimos: eles não sabiam escrever, ler
ou contar, nem sabiam como usar os
medicamentos não indígenas.
Consideram que, neste tempo,
conseguiram controlar suas relações
com os brancos, o excessivo poder
dos xamãs e as doenças que os
assolavam.
231
Tempos kaxinawá
Evento fundador
Inka
Tempo mítico
Mundo atual
------
Nete dá origem ao mundo atual. Nete cria as regras
de casamento: a partir de cabeças de abelha, gera
dois casais de crianças, dando início ao sistema de
metades matrimoniais: um casal de crianças era
inu/inani, e o outro era dua/banu.
Inka pintsi, povo avarento e canibal (afinidade
potencial).
Inka kuin, “nosso Inka”, o Inka “real” ou “próprio”
(kuin); é em sua aldeia que o o yuxin do olho passa a
viver depois da morte. Este Inka é o cônjuge
provedor (afinidade real).
Seus antepassados (xenipabu) eram os gigantes hidi.
Estão associados ao “exterior”.
Corpo/pessoa
Foi o comportamento ignorante de seus ancestrais
Hidi que causara sua destruição.
Todos os seres compartilham uma condição geral
instável, na qual aspectos humanos e não-humanos
encontram-se confundidos.
Surgimento de um corpo propriamente humano
(nukun yuda), de um corpo kaxinawá.
Não tinham nomes cristãos.
Os Kaxinawá passaram a se casar por meio de um
sistema exogâmico de metades e a ter, assim, o nome
verdadeiro (kena kuin). Tal sistema opera num plano
de casamentos preferenciais e na classificação de um
tipo específico de pessoas, Xutanaua, “Pessoas de
mesmo nome”.
Não era possível estabelecer laços de afinidade.
Surgimento dos laços de afinidade.
Os ancestrais dos Huni kuin foram criados no buraco
de uma árvore; viviam juntos e sem restrições quanto
à parceria sexual; ausência de regras de casamento.
Parentesco
Os Kaxinawá consideram-se “pessoas verdadeiras”
(Huni kuin) e estão associados ao “interior”.
Os Kaxinawá de hoje também recebem um nome
cristão (navan kena, “nome estrangeiro”).
232
Os domínios do céu, da terra e da água eram
próximos e ligados.
Espaço/morte
Existia um constante vai-e-vem entre os espaços e,
consequentemente, entre a vida e a morte.
O cosmos passou a ser retratado como uma grande
árvore, na qual, do ponto mais alto para o mais
baixo, encontramos: o céu, a terra dos mortos, de
vários ancestrais míticos (xenipabu) e domínio da
imortalidade, que pode ser atingido por meio do
arco-íris; o lugar da camada de nuvens, o domínio do
“puro vento”; a terra, onde vivem os Kaxinawá
atuais; e, abaixo dela, o domínio do “puro
líquido/rio”.
Mediadores entre mundo terrestre e mundo celeste:
xamã, ayahuasca; escada para o céu; cobra. O xamã,
por meio da ayahuasca, socializa em outros planos,
além da vida terrestre.
Os Kaxinawá não adquiriram o conhecimento da
troca de pele e passaram a morrer de maneira
definitiva.
233