ARTIGO
A direita brasileira em perspectiva histórica
The Brazilian Right in historical perspective
Fabio Gentilea
Resumo O objetivo deste trabalho é pensar o fenômeno da direita brasileira
contemporânea numa perspectiva histórica, dado que esta tradição está fortemente
enraizada na estrutura econômico-social colonial do país. A proposta metodológicoteórica é de utilizar uma categoria de direita “plural”, caracterizada por uma
multiplicidade de experiências, cujo elemento aglutinador é a tensão liberalismoautoritarismo, que atravessa toda a história do Brasil contemporâneo.
Palavras-chave Liberalismo; Autoritarismo; Direita.
Abstract The objective of this work is to analyze the phenomenon of contemporary
Brazilian Right in historical perspective, as this tradition is strongly rooted in the
colonial economic and social structure of Brazil. The methodological-theoretical
proposal is to use a “plural” right category, characterized by a multiplicity of
experiences, whose unifying element is the liberalism-authoritarianism tension,
crossing the whole history of contemporary Brazil.
Keywords Liberalism; Authoritarianism; Right.
INTRODUÇÃO
Por um longo tempo os estudos sobre a “direita”, suas conigurações ideológicas
e organizações políticas, foram poucos e bastante frágeis tanto no peril metodológico quanto no teórico. Tratou-se, enim, de um tema bastante marginalizado
no campo das ciências sociais.
Há muitos fatores que podem explicar esta lacuna. De forma geral, pode-se
dizer que a “direita” foi apresentada como um apêndice tout court da época dos
regimes fascistas entre as duas guerras mundiais. Na área dos estudos sobre o
fascismo registrou-se um domínio do paradigma antifascista, na sua versão liberal
ou marxista, de acordo com o qual o fascismo seria um “parêntese” no caminho
progressivo da civilização ocidental. Uma vez concluído o “parêntese” do fascismo
com o im da segunda guerra mundial, os pequenos grupos que ainda se inspiravam
a Coordenador do programa de Pós Graduação em Sociologia do departamento de Ciências Sociais
da Universidade do Ceará.
PLURAL, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.92-110
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nos regimes de Mussolini e Hitler vieram a ser apresentados como sobrevivências
marginais daqueles fenômenos.
Associar a categoria de direita “monoliticamente” ao nazifascismo teve entre
as demais consequências a marginalização da experiência das direitas liberais e
conservadoras na Europa continental e aquelas de matriz anglo-saxônicas entre
o inal do século XIX e a época entre as duas guerras mundiais.
Por se considerar e ser considerada desde as suas primeiras manifestações a
herdeira do nazifascismo, um fenômeno especíico de uma época que nunca mais
ia voltar na história da humanidade, as ciências sociais atribuíram à direita uma
função exclusivamente “antissistêmica”, embora, com o início da Guerra Fria,
os movimentos espalhados de combatentes e militantes dos regimes fascistas
(sobretudo na Itália e na Alemanha), sob o controle dos serviços secretos norte-americanos, desenvolveram um papel estratégico no combate ao comunismo,
apoiando governos conservadores na Europa Ocidental1.
Enim, a ambiguidade da direita – dentro e fora do novo sistema democrático
(IgnazI, 1989)- nos anos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, levou
muitos cientistas sociais e políticos a pensarem que esta área não fosse produtora de uma especíica ideologia, embora os fundadores dos grupos de direita
reivindicassem o seu caráter de novidade e de originalidade, destacando que o
“neofascismo” não era uma simples apêndice do regime fascista. Pelo contrário, era
a realização, em um novo contexto, do programa social do movimento fascista das
origens, uma vez que o regime não conseguiu alcançar todas as metas de política
social ixadas.
Entre a segunda metade da década de 1970 e a década de 1980, o panorama
mudou sob o efeito do im da guerra fria. Novos movimentos de direita, qual a
“nouvelle droite” francesa de Alain De Benoist (1979), articulando uma relexão
bastante original na área da direita, que preigurava cenários das últimas duas
décadas (implosão da União Soviética, globalização, declínio da democracia
representativa e “antipolítica”, ascensão do neoliberalismo e crises inanceiras),
chamaram a atenção das ciências sociais sobre o tema crucial da “ideologia da
direita” (gentIle, 1979). A proposta era de abrir o campo teórico e metodológico,
cruzando o plano histórico-político com o plano ideológico. Um dos principais
resultados do renovamento do debate foi uma deinição de “ideologia da direita”,
que se tornou rapidamente um ponto de partida fundamental para uma nova
geração de analistas e cientistas sociais.
1 É o caso do Movimento Sociale Italiano. Ver Parlato, 2006; gentIle, 2013.
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É possível resumi-la desta forma: um corpus de identidades simbólicas,
mitológicas e litúrgicas manifestado na forma de redes conceituais e códigos
comunicativos, não necessariamente caracterizado por uma intrínseca originalidade, capazes, porém, de despertar os sentimentos mais profundos das massas,
visando ganhar um consenso de caráter ideísta.
Finalmente, a direita estava sendo liberada do preconceito de ser apenas um
resíduo do fascismo para se tornar um fenômeno complexo, capaz de produzir
uma ideologia autônoma.
Com o im da Guerra Fria e a queda do muro de Berlim em 1989, a direita se
reinventou em torno de novos temas: o populismo “antipolitico”, a crise da representação tradicional e a imigração, entre os principais.
O novo desaio das ciências sociais e políticas era então a compreensão deste
variado arquipélago de direita, enquanto os “think tanks” orgânicos à nova ordem
“neoliberal”, hegemonizada pelos EUA, celebravam o “im da história” e o triunfo
histórico deinitivo do capitalismo e da democracia representativa, capazes de
derrotar todos os inimigos ideológicos após o 1989 (Fukuyama, 1992).
Contra os perigos de ser absorvido pelo pensamento único globalizado,
caraterizado pela extinção das categorias direita-esquerda (Sternhell, 1989),
fascismo-antifascismo – reduzidas a velhas categorias do século XX e, portanto,
não adequadas para compreender a nova ordem mundial –, Norberto Bobbio
reairmava a necessidade de manter a dicotomia direita-esquerda (1995), dado
que elas são portadoras de duas Weltanschauung totalmente opostas, elaboradas
como fundamento de um projeto ideológico-político bem deinido, que vai até
além do campo político para caracterizar uma diferente visão das relações sociais
quotidianas (PIeruccI, 1990, p. 11).
À luz destas considerações, precisamos ainda manter direita e esquerda contra
o pensamento único neoliberal globalizado, que pretende se airmar também
absorvendo qualquer oposição num comunitarismo indistinto, sem classes sociais.
Nesta perspectiva, o fenômeno da direita brasileira contemporânea, suas
configurações ideológicas e suas organizações políticas se torna um laboratório privilegiado para pensar a ascensão das direitas na América Latina e no
Ocidente capitalista (lóPez Segrega, 2016). Se por um lado ela reproduz de forma
atualizada a peculiar convivência de princípios liberais e práticas autoritárias
características da história do Brasil contemporâneo, por outro está reproduzindo
na sociedade brasileira um aspecto importante do desequilíbrio das sociedades
“pós-democráticas” (crouch, 2004): a aliança entre movimentos neoliberais e a
direita nacionalista, criando coalizões ou até convivendo no mesmo partido. Para
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dar um exemplo, os movimentos neoliberais brasileiros estão entre os principais
defensores da globalização, implementada por meio de uma agenda de políticas
transnacionais, portanto não compartilham o programa racista e homofóbico do
movimento de Bolsonaro, porém o consideram útil para desviar as críticas dos
interesses que representam.
Pensar a direita brasileira contemporânea como laboratório original de
alianças entre pensamento neoliberal globalizado e práticas autoritárias pode
também proporcionar um avanço importante no campo do pensamento político-social brasileiro, em direção de um novo caminho metodológico e teórico trilhado
pela construção de “redes de interdependências que necessitam ser recompostas
por uma sociologia interessada na transnacionalização da cultura” (BorgeS leão,
2018, p. 27). Assim, o foco não vai ser mais sobre a lógica tradicional de um centro
criador de ideologia e de uma periferia meramente reprodutora. Pelo contrário,
o objetivo é criar novos espaços transnacionais de circulação de ideias, interação
e comparação entre fenômenos que compartilham a mesma raiz ideológica e
política. Nesta perspectiva, o desaio é pensar as matrizes teóricas da nova direta
“plural” numa circulação transnacional de ideias, compatibilizando o autoritarismo
“instrumental” de Oliveira Vianna, na década de vinte, com a aliança entre neoliberalismo e ditadura militar “provisória”, teorizada pelo pensamento autoritário
brasileiro da década de 1950, e corroborada na década de Sessenta pelo pensamento
liberal-conservador de Von Hayek e, sobretudo, pela doutrina neoliberal de Milton
Friedman, inspirador da ditadura de Pinochet no Chile, a “[...] primeira experiência
neoliberal sistemática do mundo” na década de 1970 (a nderSon, 1995, p. 19) .
As ciências sociais brasileiras ainda estão num nível pioneiro de estudos e
relexões sobre a direita. Provavelmente porque a coniança de muitos analistas
na transição pela democracia, juntamente com a exigência de pensar um modelo
constitucional e institucional democrático das relações Estado-sociedade, tem
longamente marginalizado o tema do autoritarismo, até reduzir a direita, como
aconteceu na Europa após a Segunda Guerra, a uma persistência marginal de um
passado que nunca mais iria voltar na história do país.
O ciclo de protestos iniciado em Junho de 2013 e culminado com o impeachment de Dilma Roussef mostrou a consolidação de uma “nova” direita, tanto
sob o peril ideológico quanto sob o peril organizativo. Foram visualizados três
grandes vertentes da nova direita: os pentecostais, que passaram a interagir na
política institucional desde a década de 1970, os institutos liberais, criados por
forças empresariais para difundir o neoliberalismo no Brasil desde a década de
1980 (groS, 2004, p. 143-159), e o movimento articulado em torno da igura de
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Jair Bolsonaro. A diiculdade de muitos analistas em tentar deinir algo que se
apresentava como “novo” no panorama político social brasileiro levou a destacar
principalmente os elementos de novidade da direita na onda do que estava acontecendo desde a década de 1990 nos EUA. Um novo modelo de luta ideológica e de
organização política tendo como pauta as grandes questões da “pós-modernidade”.
Sem ainda ter esgotado os temas clássicos do Estado e do desenvolvimentismo, a
nova direita pareceu estar projetada nas redes sociais lidando com questões como
a liberalização de algumas drogas e o debate sobre uma nova geração de direitos,
além de um novo discurso racial.
Diante de uma galáxia tão diversiicada, o primeiro grande desaio para estudar
em profundidade este complexo fenômeno é achar uma categoria de direita rigorosa
e versátil ao mesmo tempo, capaz então, por um lado, de colher os elementos que
podem ser conduzidos ao nível de interpretação geral, mas por outro lado, capaz
de destacar os traços especíicos das diferentes famílias e experiências políticas
que se colocam na área da direita brasileira.
Sob peril metodológico e teórico, nossa proposta é de utilizar uma categoria
de direita “plural” (caldIron, 2001), caracterizada por uma multiplicidade de experiências, cujo elemento aglutinador é a tensão liberalismo-autoritarismo, traço
marcante de toda a história do Brasil contemporâneo. Ao mesmo tempo, como
destacado anteriormente, estudar a direita brasileira proporciona também uma
melhor compreensão de tendências políticas, econômicas e sociais do mundo atual.
Tendo em vista o nosso objetivo de apresentar uma teoria da compatibilidade
entre neoliberalismo e autoritarismo, focada no estudo especiico da direita “plural”
brasileira, reunida em torno da tensão liberalismo-autoritarismo, é preciso em
via preliminar deinir, embora essencialmente, o que entendemos por “neoliberalismo” e quais suas aproximações e diferenças com o liberalismo clássico, uma vez
que o neoliberalismo é utilizado para deinir um amplo espectro de experiências,
gerando também muitos desentendimentos, sobretudo a respeito da sua relação
com o liberalismo.
Por um lado, não há como negar as profundas diferenças entre liberalismo e
neoliberalismo. Diante o rumo economicista que o neoliberalismo está tomando
desde a década de Sessenta do século XX, muitos pensadores liberais se concentram
mais sobre o tema político-jurídico da justiça, revertendo a relação tradicional
de subornação que ela tem com a liberdade e colocando-a no foco do liberalismo
político.
Porém e para ins de nossa análise é mais profícuo se focar sobre as aproximações entre liberalismo e neoliberalismo. Do ponto de vista das ideias, o
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neoliberalismo – bem como todas as doutrinas que pretendem se apresentar como
“novas” – se caracteriza por um resgate em um contexto diferente de uma matriz
liberal originária comum (mercado livre, empresa livre, trabalho livre, eiciência,
bem estar e felicidade coletiva etc.), que nunca realizou-se plenamente - nem no
século XIX, ápice do liberalismo -, dado que a partir do 1870 as relações internacionais tomaram o rumo do protecionismo, e que a reconstrução após a segunda
guerra mundial foi atuada com base na teoria keynesiana de apoio ao gasto público
e aos investimentos nas infraestruturas. Nesta perspectiva, não há conlito teórico
entre liberalismo e neoliberalismo a respeito da mesma raiz comum e dos ins a
serem alcançados.
Nem o caminho metodológico do liberalismo e do neoliberalismo é muito
diferente. Se no liberalismo “clássico” há uma preocupação em recompor a
ruptura epistemológica entre a “ciência positiva” preocupada em sistematizar o
que “positum” na realidade, e uma “ciência normativa” criadora de um sistema de
regras para alcançar um determinado im, o neoliberalismo compartilha a mesma
preocupação no seu método de investigação da economia. Neste horizonte, Milton
Friedman, na década de cinquenta, airmava que as conclusões da economia positiva são de fundamental relevância para importantes problemas normativos (1953).
O papel da economia “positiva” é de apresentar um conjunto de generalizações
a serem utilizadas para fazer previsões corretas sobre as consequências de uma
eventual mudança das circunstâncias. Friedman manifesta uma postura realista
nas questões da ética. Uma desconiança nas capacidades do processo deliberativo
e normativo no esforço de achar uma raiz comum objetiva capaz de levar todos os
indivíduos para a uniformidade.
Tentando exempliicar estas ideias no caminho do liberalismo ao neoliberalismo, é necessário destacar a aproximação entre o liberalismo clássico de
Benedetto Croce e o neoliberalismo de Milton Friedman. Se no pensamento de
Croce, a analise “positiva” da realidade após a primeira guerra mundial levava
a teorizar que o fascismo poderia ser uma “parêntese” aceitável, desde que ele
cumprisse o papel de criar as condições de reconduzir a crise da sociedade liberal
no caminho certo do progresso civilizatório liberal (croce, 1973), diante o avanço
ameaçador do comunismo totalitário; da mesma forma, Milton Friedman constrói
sobre a ciência “positiva” a sua proposta político-normativa (1962). Se o objetivo
inal do neoliberalismo é a realização da sociedade de mercado, e o modelo institucional é apenas um instrumento para alcançar este objetivo, segue-se que uma
ditadura “transitória” (Pinochet no Chile) se torna perfeitamente compatível com
o liberalismo, uma vez que o Welfare State democrático, de matriz keynesiana é
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totalmente inconciliável com a teoria da estabilidade econômico-monetária da
Escola de Chicago, e o comunismo soviético é – nesta visão - o regime totalitário
mais opressivo da historia da humanidade, até mais que o nazifascismo.
Como veremos ao longo do trabalho, o pensamento de Oliveira Vianna,
moldado no positivismo castilhista, antecipa a teoria liberal da “ditadura autoritária” como “parêntese”. Já na primeira grande obra Populações Meridionais do
Brasil (1987) não haveria então incompatibilidade entre liberalismo e autoritarismo,
desde que o autoritarismo fosse pensado como um “instrumento transitório” para
dar estrutura, educação e consciência coletiva à sociedade brasileira, de modo tal
que ela pudesse apoiar a introdução de instituições genuinamente liberais no Brasil2.
AS RAÍZES DA DIREITA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: LIBERALISMO,
CONSERVADORISMO E AUTORITARISMO
Entender as conigurações ideológico-políticas da direita no Brasil requer uma
perspectiva histórica, dado que esta tradição está fortemente enraizada na própria
estrutura econômico-social colonial do país, consolidada em torno da ascensão ao
poder de uma elite de proprietários e comerciantes, depositários de uma tradição
patrimonialista e oligárquica herdada da dominação portuguesa, articuladores de
um mecanismo de cooptação das clientelas ligado à economia agroexportadora e
aos defensores da propriedade da terra e da escravidão.
A combinação de liberalismo e escravidão só pode aparentemente parecer
uma contradição. Um olhar mais profundo mostra, porém, que na sociedade pós-colonial brasileira o liberalismo não tomou a forma do pacto da tradição política
moderna, nem se associou à ética burguesa da livre iniciativa (BoSI, 1992).
Se por um lado, o liberalismo “heróico” das origens se airmou como a ideologia
da independência, por outro lado - observa Alfredo Bosi - o conceito de liberal,
consolidada a independência, logo assumiu o signiicado de “conservador de um
complexo de liberdade”, desde a iniciativa econômica gratuita, passando pelo
direito de voto baseado no censo até a liberdade de ter trabalhadores escravos em
regime de coerção legal (BoSI, 1992, p. 199-200).
2 Como o mesmo Vianna esclarece desde sua primeira obra: “Dar consistência, unidade, consciência comum a uma vasta massa social ainda em estado ganglionar, subdividida em quase duas
dezenas de núcleos provinciais, inteiramente isolados entre si material e moralmente: - eis o
primeiro objetivo. Realizar, pela ação racional do Estado, o milagre de dar a essa nacionalidade
em formação uma subconsciência jurídica, criando-lhe a medula da legalidade; os instintos
viscerais da obediência à autoridade e à lei, aquilo que Ihering chama “o poder moral da ideia
do Estado”; - eis o segundo objetivo” (olIveIra vIanna, 1987, p. 275-276).
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Não houve, portanto, nenhuma incompatibilidade entre ser liberal e ser dono
de escravos, dada a ausência de uma relação necessária entre o liberalismo e a
abolição da escravidão. Os ideais burgueses, liberais e republicanos icaram no nível
da “consciência possível” (Faoro, 1994), sendo assim rapidamente sufocados por
um autoritarismo clânico-oligárquico, de cunho hierárquico, e baseado em laços
de idelidade material e simbólica a uma elite homogênea, defensora do centralismo estadual, como pode se observar no sistema político imperial, ratiicado
pela constituição de 1824, e pela criação dos dois grandes partidos - o liberal e o
conservador - que, além de algumas diferenças ideológicas, representavam os interesses de grupos sociais similares (murIlo de carvalho, 1981). A conciliação entre
liberalismo e conservadorismo encontrava seu momento de expressão máxima no
modelo de Estado “Saquarema” (lynch, 2010), representado pelos grandes teóricos
do Estado imperial centralizador, eiciente e criador do povo brasileiro, dentre as
quais se destaca a igura do Visconde do Uruguai (nuneS FerreIra, 1999).
Entre a proclamação da Primeira República e a Revolução de 1930, época rica
em novas expressões em todos os campos (o modernismo no campo artístico, por
exemplo), vão se estruturando as conigurações ideológicas e políticas da direita
brasileira.
De acordo com o historiador argentino Beired, a análise da formação de um
pensamento de direita nos sugere pensá-la como um “campo” de relações intelectuais e políticas polarizadas em torno de um conjunto de problemas que vão desde
questões de longo prazo do pensamento brasileiro (a ausência de uma consciência
nacional e a centralidade do Estado na criação da sociedade) até os desaios da
modernização, ligada à crise do modelo agroexportador no contexto mais amplo
da crise do Estado liberal, pensado como inadequado a soldar o país legal das
elites com o país real da pobreza e do atraso (BeIred, 1999).
Entre a década de 1920 e a “Era Vargas”, a direita “plural” brasileira se articula em três linhagens ideológicas e políticas principais: o nacional-autoritarismo
cientiicista, herdeiro da tradição positivista brasileira; a direita católica; a direita
fascista, representada pelo integralismo, que de acordo com uma análise consolidada seria o movimento ideológico e político mais próximo ao fascismo europeu
(trIndade, 1974).
Embora caracterizadas por um conjunto diferenciado de relexões teóricas
e políticas (o autoritarismo como manifestação dos interesses das classes dominantes ou como resposta elitista à desarticulação da sociedade civil, a mobilização
católico-fundamentalista das massas), as três correntes da direita brasileira entre a
segunda metade dos anos 1920 e os 1930 vieram a compartilhar a visão “normativa”
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do Estado autoritário, pensado como a única maneira de corrigir os desequilíbrios
de longo prazo do Brasil. Como observa Bolívar Lamounier, a “ideologia do Estado
autoritário brasileiro” não era uma mera cópia do fascismo europeu, dado que
foi alimentada desde o início do século XX por uma síntese entre o pensamento
conservador brasileiro do século XIX e uma bagagem de ideias “protofascistas”
que há muito tempo estavam circulando no Brasil: do autoritarismo ao corporativismo, do anti-liberalismo ao anti-socialismo, ao centralismo e ao nacionalismo
(l amounIer, 1977).
Assim, no Brasil, entre as duas guerras mundiais não se conigura uma relação
necessária entre modernização e Estado autoritário, embora o próprio Getúlio
Vargas e os próprios colaboradores da ‘Revolução de 30’ nunca tenham feito segredo
sobre terem sido inspirados pelas ideias de Alberto Torres ou de Oliveira Vianna.
Mas é preciso pensar a época varguista como um “campo aberto” de propostas,
caracterizadas pela tensão liberalismo-autoritarismo. Conforme destacado por
Ângela de Castro Gomes, na década de 1930, houve várias propostas em confronto
sobre a relação Estado-mercado-indivíduo (gomeS, 2003, p. 112-145), algumas das
quais suportadas por uma ideologia nacionalista e autoritária, mas também outras
que airmavam uma perspectiva essencialmente liberal, reletindo a complexidade
do campo intelectual da época (correa, 2016, p. 955-966).
A TENSÃO LIBERALISMO-AUTORITARISMO NO PENSAMENTO DE OLIVEIRA VIANNA
Para tentar abordar a tensão permanente autoritarismo-liberalismo, que
acompanha toda a trajetória da direita brasileira, precisamos utilizar o conceito
de “autoritarismo instrumental” em uma nova perspectiva analítica (gentIle,
2018, p. 27-46).
Teorizado pelo cientista brasileiro W. G. dos Santos na década de 1970, o
“autoritarismo instrumental” tornou-se, desde aquela época, uma categoria fundamental do pensamento político-social brasileiro (SantoS, 1978). Visando diferenciar
o autoritarismo de Oliveira Vianna das outras famílias do pensamento autoritário
brasileiro (o integralismo, o catolicismo e o tenentismo), o cientista político elabora
um conceito capaz de dar conta do sentido mais profundo do pensamento do sociólogo, ideólogo do Estado autoritário e consultor jurídico do Ministério do Trabalho
na década de 1930. Nesta perspectiva, o “autoritarismo instrumental” é pensado
como um instrumento transitório, cuja utilização é limitada ao cumprimento da
sua tarefa de criar as condições para a implantação de uma sociedade liberal no
Brasil. É uma explicação parcialmente satisfatória. O “autoritarismo instrumental”
formulado por Santos a partir de uma hipótese de convivência ambígua entre
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autoritarismo e liberalismo não explica de forma adequada as causas e as trajetórias do complexo processo de assimilação na legislação trabalhista brasileira do
modelo fascista corporativista, de cunho totalitário.
Em outras palavras, a questão central é como foi possível no pensamento de
Oliveira Vianna adaptar para a sociedade brasileira o Estado corporativo, pensado
como o melhor e mais moderno “instrumento” na época entre as duas guerras
mundiais para pôr ordem na crise do Estado liberal, sem necessariamente cair
na teoria da “ditadura permanente” do totalitarismo fascista.
Para que o conceito ainda mantenha o seu fecundo potencial analítico na área
dos estudos e das relexões sobre o autoritarismo e a direita brasileira é preciso
fundamentá-lo com novos elementos teóricos, devendo ser repensado tendo em
vista mais dois fatores:
1. O autoritarismo se caracteriza como “instrumental” para uma futura
sociedade liberal não apenas porque, como observa Murilo de Carvalho, “Oliveira
Vianna absorveu muitos temas do liberalismo conservador do Império” (murIlo
de carvalho, 1993, p. 22), mantendo de qualquer forma um diálogo sempre aberto
com o liberalismo. Mas, sobretudo, porque busca a sua legitimidade no afastamento do Estado totalitário (fascista ou comunista) europeu, caracterizado por
uma visão teleológica do Estado, pelo anti-liberalismo radical e pela simbiose
partido único–Estado.
Uma vez afastado do totalitarismo, o “autoritarismo instrumental” pode ser
então apresentado como o mais “adequado” para sustentar a nova ordem industrial
do País, e ao mesmo tempo, dado o seu caráter “instrumental” e transitório, ele
apresentaria sempre uma possibilidade em cada fase da ditadura varguista de se
abrir para uma sociedade liberal, enquanto no caso europeu não é possível alguma
compatibilidade entre liberalismo e totalitarismo.
Esta tensão permanente entre autoritarismo e liberalismo na década de 1930
ajuda também a ditadura varguista a se manter estável e longamente no poder.
2. No pensamento nacional-autoritário brasileiro, o autoritarismo se vincula
à teoria do “desenvolvimento tardio” em sua variante nacionalista, segundo a qual
alguns países da “periferia” do capitalismo privilegiaram o Estado autoritário como
centro organizador da nação em todos os seus aspectos, tendo em vista superar
o atraso e cortar a dependência dos países mais desenvolvidos (cardoSo; Faletto,
1970)3. Então ele é “instrumental” não apenas porque é “transitório”, visando
3 Embora o pensamento econômico teórico desenvolvimentista stricto sensu, articulado em torno
a um conjunto de propostas a serem implementadas mediante políticas publicas, consolidou-se
nas décadas de cinquenta e sessenta, tendo como sua referência a Cepal, centro catalizador e
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construir as condições estruturais para uma democracia liberal, mas sobretudo
porque é o mais “adequado” para misturar alguns elementos totalitários de matriz
europeia com o liberalismo.
Esse “ecletismo” manifesta-se claramente no processo de apropriação criativa
que Oliveira Vianna faz dos modelos econômicos, políticos e sociais mais modernos
da época, compatibilizando-os com a realidade brasileira. Isso explicaria porque
nos anos 1930 os teóricos autoritários se apropriam do modelo corporativo fascista
para industrializar o país, mas também ajuda a entender porque nos anos 1960
uma das vertentes mais importantes do autoritarismo procura compatibilizar
ditadura autoritária, totalitarismo e neoliberalismo, como mostram as trajetórias
dos economistas Eugênio Gudin e Roberto Campos.
Ademais, não foi à toa que o general Golbery do Couto e Silva utilizou Oliveira
Vianna como grande referência no seu trabalho sobre a geopolítica do Brasil, um
dos documentos fundamentais da doutrina da segurança nacional (couto e SIlva,
1981; trevISan, 1985). E, indo mais à frente, o “ecletismo” econômico e político-social brasileiro, visando dar prioridade ao desenvolvimento do país, pode até
explicar porque o processo de redemocratização da década de 1980 deixa a ambígua
convivência entre os princípios básicos da liberal-democracia e a estrutura sindical-corporativa de cunho fascista, herança do autoritarismo varguista, incorporada
na ditadura militar.
AS DÉCADAS DE 1950 E 1960: DIREITA, NEOLIBERALISMO E DITADURA “PROVISÓRIA”
Seguindo a nossa análise, a época que vai da democracia populista até a
ditadura militar (1945-1964) se apresenta como o laboratório da tensão liberalismo-autoritarismo, além de antecipar uma das tendências atuais da globalização, quer
dizer, a aliança entre o neoliberalismo e a direita nacionalista.
A recusa do estado totalitário, nazifascista ou comunista abre um espaço de
relexão sobre o conservadorismo de tradição anglo-americana, também sob o
difusor das teorias elaborada por Raul Prebisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto, Osvaldo Sunkel,
Maria da Conceição Tavares e José Medina Echevarría, entre outros, o desenvolvimentismo tem
uma longa tradição ideológico-politica, abrangendo não apenas escolas econômicas mas também
autores e correntes voltados para o estudo das sociedades pós-coloniais subdesenvolvidas. No
caso brasileiro basta pensar aos primeiros teóricos da organização nacional da questão social
brasileira na segunda metade do século XIX, quais Silvio Romero e Alberto Torres, precursores
de um pensamento nacional-desenvolvimentista que se tornou um projeto material de politicas
polarizadas em torno do Estado interventor. De acordo com Ricardo Bielschowsky (1988), é
legitimo então, pensar o desenvolvimentismo como um ciclo que inicia com a “Era Vargas” e
chega até o 1964, tendo como seu foco a ideologia da transformação da sociedade brasileira
por meio da industrialização, do planejamento e dos investimentos, embora não haja na época
varguista uma teoria econômica desenvolvimentista “cientiica”.
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efeito da diáspora de muitos intelectuais europeus fugitivos da Alemanha para os
centros universitários dos EUA. É uma geração (Hannah Arendt, Leo Strauss etc.)
que assume a experiência dos Estados nazistas e estalinistas dentro da mesma
categoria de totalitarismo, apagando todas as diferenças histórico-genéticas,
ideológicas e econômicas entre os dois modelos. Diante da tragédia das duas
experiências totalitárias, o pensamento liberal conservador defende os valores
do liberalismo político-econômico, seguindo duas vertentes: o conservadorismo
liberal-constitucional (Michael Oakeshott), que recusa o racionalismo universalista
e o coletivismo. Argumenta que a política serve apenas para manter um sistema
de normas nas quais o indivíduo é livre para buscar seus objetivos, ao passo que
o governo pode até ter um papel econômico-social, porém não pode de forma
alguma mexer na estabilidade monetária do país (oakeShott, 1962); e, sobretudo,
a escola econômica da nova direita (Hayek), cujo argumento central é que uma
sociedade livre necessita de um livre mercado, ou, em outras palavras. a política
“limitada” do pensamento conservador é possível apenas num sistema capitalista
(hayek, 1944, 1960).
As novas direitas anglo-americanas foram bastante utilizadas pela direita
brasileira após a Segunda Guerra mundial. É o caso de Roberto Campos, discípulo
de Hayek.
De acordo com Hélgio Trindade, a época que vai da “redemocratização” sob
a égide do populismo varguista até o golpe militar de 1964 relete a persistência
de um “hibridismo” brasileiro, combinando formas de pensamento liberal com
práticas autoritárias e corporativistas, de cunho fascista (trIndade, 1985, p. 46-72).
É um ponto crucial para entender as relações de continuidade entre a primeira
geração de pensadores autoritários (Torres, Vianna, Amaral, Campos) e a segunda
geração, representada, sobretudo, pelos economistas Roberto Campos e Eugênio
Gudin, dois dos principais teóricos e colaboradores da ditadura militar.
Compartilhamos o argumento central do cientista político Ricardo Silva.
O elemento comum para as duas gerações pode se encontrar na defesa de uma
“ideologia do Estado autoritário”, organizada em torno de um conjunto de argumentos em favor da implantação do Estado autoritário como remédio aos males
do país (SIlva, 2004). Segundo Silva, no caso de Campos e Gudin, trata-se de
uma atualização, em um contexto histórico diferente, dos argumentos elaborados
pelos teóricos do Estado Novo. Se na visão dos principais teóricos da “ideologia do
Estado autoritário”, o modelo autoritário varguista foi apresentado como o mais
“adequado” naquele momento para a realidade social brasileira, Campos e Gudin,
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com diferentes modalidades, voltaram a defender o argumento do autoritarismo
como o melhor “instrumento” para alcançar uma sociedade liberal (camPoS, 1978).
De forma especíica Campos, economista “eclético” e expoente da “ala direita”
do desenvolvimentismo” (BIelSchowSky, 1988, p. 104-126), retomando as ideias dos
autoritários da década de 1930, conigura uma ditadura autoritária “provisória”
consistindo numa primazia do poder executivo, dominado pelos militares e pelos
tecnocratas, únicos depositários do “bem” e do “racional”, com base na “incapacidade” do povo brasileiro em ter instituições democrático-liberais, de acordo com
a teoria do “autoritarismo instrumental”, de matriz cientiicista e positivista.
Trata-se de uma reformulação, em um contexto diferente, da ideologia do
militar-político, que veio sendo elaborada durante a Era Vargas diante da ineiciência das elites políticas da época liberal e da suposta fragmentação do povo
brasileiro. Formulada claramente pelo general Góes Monteiro, em A Revolução de
30 e a Finalidade Política do Exército (1934) (góeS monteIro, 1934), se torna um
argumento fundamental para o golpe de 1964, que busca a legitimidade ideológica
da intervenção militar na política na doutrina da “segurança nacional”, bem como
na reelaboração do argumento do “perigo comunista”, em continuidade com o
anticomunismo varguista ixado na Lei da Segurança Nacional, reproduzindo o
discurso ideológico-simbólico “amigo-inimigo” (SchmItt, 1921), típico dos regimes
totalitários e autoritários. É o novo papel das forças armadas no processo político
brasileiro.
O Estado autoritário em Campos e Gudin tem como seu pressuposto teórico
fundamental a adesão à escola monetarista, na desconiança, compartilhada pela
maioria dos teóricos da estabilidade monetária, nas teses do estruturalismo e na
visão de que a democracia não é o melhor regime para programar políticas econômicas de cunho liberal. Nessa postura teórica há uma clara antecipação da aliança
entre neoliberalismo e direita. Se no pensamento de M. Friedman e da Chicago
School of Economics o capitalismo de livre mercado é o único sistema possível,
dado o fracasso dos modelos totalitários de direita e de esquerda, e, portanto, para
proporcionar riqueza não pode se apoiar a nenhum princípio moral ou político
humano, a democracia ou a ditadura se tornam perfeitamente compatíveis com
ele, desde que garantam “pragmaticamente” a livre circulação transnacional de
capitais inanceiros, sem fazer alguma diferença entre graus diferentes de desenvolvimento dos países.
Da mesma forma, no pensamento da direita economicista brasileira das
décadas de 1950 e 1960, conigura-se uma aliança “eclética” e pragmática entre
neoliberalismo ortodoxo, planejamento econômico “racional” e ditadura, anteci-
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pando a experiência do Chile de Pinochet e também, de certa forma, as políticas
neoliberais da década de 1980 na Inglaterra e o no EUA.
Nesta visão, a ditadura militar, por sua vez, embora mais repressiva no plano
político-social, amplia o campo das possibilidades de desenvolvimento econômico
do país, pois recupera, atualizando-a, a ideologia do Estado autoritário numa visão
mais “eclética” ou “pragmática”, que, mesmo privilegiando o estatismo autoritário
como via ao desenvolvimento brasileiro, devido também à formação dos militares
no poder, não exclui aprioristicamente a compatibilidade de intervencionismo e
corporativismo estatal dos anos 1930, estruturalismo dos anos 1950 e neoliberalismo.
A TENSÃO LIBERALISMO-AUTORITARISMO COMO ELEMENTO AGLUTINADOR DA
NOVA DIREITA “PLURAL” BRASILEIRA
Sem pretensão alguma de fazer a historia das vertentes ideológicas e políticas que se encontram na direita brasileira, o objetivo deste trabalho foi fornecer
algumas trilhas teóricas e metodológicas para entender o crescimento rápido na
atual conjuntura brasileira da “nova direita” - um movimento heterogêneo “plural”
que não compartilha uma única doutrina -, destacando como as varias tendências
que conformam a direita, mesmo reivindicando orgulhosamente a própria especiicidade, se caracterizam pela conluência no neoliberalismo, desde a segunda
metade da década de oitenta.
A hipótese sustentada ao longo do trabalho é a de que nas raízes desta conluência há uma tensão liberalismo-autoritarismo que marca toda a história da direita
brasileira, desde as origens da formação de um pensamento autoritário na Primeira
Republica, passando pela “Era Vargas” e pela ditadura militar e chegando até a
redemocratização de 1988.
Para sustentar a nossa hipótese, foi necessário analisar as aproximações entre o
liberalismo o neoliberalismo, apontando que em ambos há uma convergência sobre
a ideia do que a sociedade de mercado pode ser alcançada plenamente também
mediante um regime autoritário “instrumental”, dado o fracasso da socialdemocracia, de matriz keynesiana nos últimos trinta anos. Temos argumentado que o
“ecletismo” de Oliveira Vianna no campo sociológico e aquele de Roberto Campos
no campo econômico se encontram perfeitamente nesta compatibilidade entre
liberalismo e autoritarismo - traço permanente do pensamento, bem como da
própria estrutura do Estado brasileiro -, antecipando as teorias do neoliberalismo
na década de Sessenta e seu apoio à ditadura militar no Chile.
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Trata-se agora de fazer algumas considerações inais sobre a tensão liberalismo-autoritarismo como elemento aglutinador da nova direita “plural” brasileira.
Por um lado, a nova direita aceita os princípios do liberalismo e da democracia,
dado que se apresenta as eleições para ganhar o consenso, por outro lado ela é
“herdeira da Arena e depois do PDS, partidos de sustentação política do regime
ditatorial” (codato; BologneSI; mattoS roeder, 2015, p. 116).
Enquanto os movimentos da direita logo no inicio da redemocratização da
década de 1980 eram marcados pela manutenção da estrutura sindical-corporativista da Era Vargas, de cunho fascista (gentIle, 2014, p. 84-101), bem como pelo
apoio à ditadura (k aySel, 2015, p. 68), a nova direita já durante a fase constituinte
combinava medidas institucionais de cunho autoritário e neocorporativista com o
engajamento em politicas neoliberais, introduzidas no Brasil graças aos grandes
empresários brasileiros vinculados à rede internacional de “Think tanks, fundações e organizações neoliberais estrangeiras (...), como o Liberty Fund, a Tinker
Foundation, a Atlas Economic Research Foundation e o Center for International
Private Enterprise” (Gros, 2004, p. 145). Nas manifestações antipetistas e a favor
do impeachment, as organizações neoliberais contribuíram para construção do
discurso de odeio e de intolerância da “atual cosmovisão da direita no Brasil,
compreendida como um universo multidimensional, o qual abarca diferentes
tonalidades ideológicas e emissões discursivas” (meSSenBerg, 2017, p. 633).
Os grupos organizados protagonistas das manifestações de junho de 2013
(Revoltados Online, Nas Ruas, Vem Pra Rua, MBL e também o neofascismo
dos Carecas do ABC) se organizaram em torno de uma plataforma ideológico-politica comum, indo do antipetismo ao antibolivarianismo, renovação ideológica
do anticomunismo da década de cinquenta, passando pela antipolitica e pelo
conservadorismo moral (família tradicional, patriotismo, combate a criminalidade, oposição as cotas raciais) - reformulação nesta nova conjuntura da lógica
de inclusão-exclusão dos regimes autoritários -, até os argumentos tradicionais
do neoliberalismo (estado mínimo, sociedade de mercado, liberdade de empresa,
im do estado social) (meSSenBerg, 2017, p. 633).
Se focamos também a atenção na frente nacionalista e fascista, é possível
ver esta a tensão liberalismo-autoritarismo como traço marcante da nova direita
brasileira. O discurso de Jair Bolsonaro mistura o autoritarismo da ditadura militar
com os tópicos do neoliberalismo na economia e não parece estar em conlito
com as posições neofascistas de Levy Fidelix e do PRTB (caldeIra neto, 2016, p.
29-34). Da mesma forma, os movimentos pentecostais e neopentecostais estão se
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expandindo mediante uma tendência a amalgamar princípios do neoliberalismo
com a recusa moral dos avanços nos direitos de gênero (a lmeIda, 2017, p. 1-27).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na nossa perspectiva crítica trata-se de considerar o legado das experiências
autoritárias como ixação de aspectos que se tornaram perenes e que estão inseridos na própria redemocratização pós-ditadura, de acordo com um processo que
alguns cientistas sociais chamam de “hibridismo” da “semidemocracia” brasileira,
caracterizada por uma convivência ambígua de novos elementos democráticos e
permanências autoritárias (maInwarIng, 2001, p. 645-687).
Voltar a reletir sobre tópicos de longo prazo, quais sejam, a “ditadura republicana” de matriz positivista, a “ideologia do Estado autoritário”, o “autoritarismo
instrumental”, e o hibridismo de lógica liberal e práxis autoritária, ou sobre a
coexistência de um ideário neoliberal, difundido desde a década de 1980 no
Brasil e na América Latina por institutos liberais a serviço da burguesia brasileira
junto com o legado da Era Vargas – sindicato corporativo e formação de uma
“cidadania regulada” pelo alto, concedendo previamente direitos sociais -, cujo
modelo nacional-autoritário é incorporado ao processo de militarização do Estado
e da sociedade civil brasileira nas décadas de 1960 e 1970, é fundamental para a
compreensão tanto da tensão liberalismo-autoritarismo que permeia a ideologia da
direita brasileira contemporânea, uma mistura de princípios neoliberais e defesa
de retrocessos no campo dos direitos humanos e sociais, quanto também o papel
estratégico por ela exercido no contexto mais amplo da “pós-democracia”, marcada
pelos lobbies multinacionais, pelas mídias e por novas formas de poder oligárquico.
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