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AUSÊNCIA DE IDENTIDADE CULTURAL? O caso da cidade do Natal e sua suposta descaracterização Resumo: Esse artigo investiga a (suposta falta de) identidade cultural da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Através de uma revisão bibliográfica teórica, desenvolve-se como o tema da identidade mestiça brasileira contribui para a construção de tipos ideais. Definidos esses conceitos, o texto faz uma releitura sociológica de uma dissertação de história (GOMES NETO, 2010) sobre a falta de identidade cultural de Natal. Na conclusão, confirma-se o conceito de Identidade Cultural como uma imagem de pertencimento que, simultaneamente, exclui e inclui elementos simbólicos. A cultura da cidade do Natal (e do Brasil de forma geral) tem um lado positivo em termos de abertura ao mundo e um lado negativo relativo à auto depreciação. De um lado, a liberdade pessoal das preferências passageiras; de outro, o sentimento de não pertencimento como um estigma cultural sem solução. Palavras-chave: Estudos Culturais1; Identidade Cultural2; Natal3; LACK OF CULTURAL IDENTITY? The case of Natal city and its supposed decharacterization Abstract: This article investigates the (supposed lack of) cultural identity of the city of Natal, capital of Rio Grande do Norte. Through a theoretical literature review, it develops how the theme of Brazilian mestizo identity contributes to the construction of ideal types. Defined these concepts, the text makes a sociological rereading of a dissertation of history (GOMES NETO, 2010) about the lack of cultural identity of Natal. In conclusion, the concept of Cultural Identity is confirmed as an image of belonging that simultaneously excludes and includes symbolic elements. The culture of the city of Natal (and of Brazil in general) has a positive side to openness to the world and a negative side to self-deprecation. On the one hand, the personal freedom of passing preferences; on the other, the sense of non-belonging as an unsolved cultural stigma. Keywords: Cultural Studies Media1; Cultural Identity2; Natal (city)3; 1. Introdução Darcy Ribeiro (1996) afirma que a cultura brasileira é uma forma singular de colonização, que não segue nem o padrão de assimilação do colonizador nem o padrão de resistência cultural à colonização. Afirma ainda que essa identidade é singular em relação a de outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca; como também em relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser dominantes na identidade nacional, como os argentinos e canadenses. Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como nos países andinos e no México), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. Já nas culturas em que a identidade nativa é insignificante, como na Colômbia, todos se consideram descendentes dos colonizadores. No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora; no segundo, há, não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação completa entre a população e a cultura colonizadora. Para Ribeiro, a cultura brasileira nem rejeita (fechando-se em uma cultura de resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o colonizador. Há uma identidade cultural ‘não definida’, permitindo que o povo brasileiro se reinvente permanentemente com dois resultados: a antropofagia das elites e a ningüéndade das massas. Por um lado, a identidade brasileira assimila a cultura colonizadora e a reinterpreta. As elites devoram antropofagicamente o colonizador. Mas, por outro, há também uma massa amorfa de bastardos sem rosto, em um estado permanente de apatia indiferenciada: uma multidão de anônimos formada por pardos, morenos, mulatos e mais cinquenta e tantos tons de cinza1. A essa qualidade, Darcy Ribeiro dá o nome de ‘ningüéndade’ – a identidade da nãoidentidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se reconhece na imagem do outro, mas também ousa elaborar uma imagem própria. A cultura brasileira é um projeto aberto ao que 1 No Brasil, nos anos 20, surgiram dois projetos de identidade moderna: a antropofágica e a nacional-popular. A modernidade do ponto de vista cultural, o movimento modernismo, primeira forma de expressão da classe média urbana republicana, pode ser subdividido em dois comportamentos distintos em relação à produção de bens simbólicos: o antropofágico e o nacional-popular. O antropofágico, formalizado por Oswald de Andrade, ou a vertente da vanguarda estética brasileira de produzir uma cultura de exportação a várias outras manifestações culturais (Hélio Oiticica, a Bossa Nova, a poesia concreta, o cinema novo, o tropicalismo) mais preocupadas em se sincronizar ao cenário cultural internacional do que produzir uma identidade nacional-popular. Em oposição a esta vertente oswaldiana da modernidade brasileira, coloca-se o projeto iniciado por Mario de Andrade e pelos artistas inspirados pelas temáticas regionais e sociais (Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre tantos). Entretanto, tanto os dois projetos de produção simbólica das classes médias urbanas (o antropofágico mais voltado para as elites e o nacional-popular mais voltado para os trabalhadores) acabaram absorvidos pela industrialização cultural das massas, ou melhor, através da segmentação em públicos alvos específicos (o cult, o diet, o pop, o popular) a partir da contracultura. está por vir e não uma referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de qualidade e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia: "o país do futuro" e um eterno "gigante adormecido em berço esplêndido". Para Ribeiro, resumindo, ‘ser brasileiro’ é viver o desafio cultural de uma identidade aberta, voltada para o futuro. Ruiz Junior (2018) acredita que existem cinco níveis de apego progressivo aos sistemas de crença: a consciência livre, as preferências, a identidade, a interiorização e o fanatismo. Para ele, a consciência representa o ‘eu’ livre dos condicionamentos sociais, capaz de opções diferentes a cada vez que é consultado. No polo oposto, o fanatismo é o extremo apego às crenças, excluindo todos os outros elementos simbólicos. A identidade corresponde a um ponto intermediário. Ela uma máscara cultural, construída através de escolhas recorrentes automatizadas. Quanto maior o apego às próprias crenças, mais a identidade se aproxima do fanatismo. E, quanto mais inclusiva e aberta for a identidade, maior também será a liberdade pessoal e o poder de escolha consciente. E não se trata só de identidades culturais étnicas ou territoriais. Ruiz dá exemplos simples dos diferentes níveis de apego - como a de uma ‘mãe vegana’ ou a de um ‘torcedor de futebol’. Essas ‘identidades transversais’ também podem ir do fanatismo mais radical até a liberdade de decidir ‘sim’ ou ‘não’ no momento presente, sem preferências antecipadas recorrentes ancoradas nas crenças e na experiência passada. Várias questões nos assaltam nesta perspectiva. Será melhor não ter identidade territorial na pós-modernidade2? Será que o estudo do caso da identidade cultural da cidade de Natal ajuda a entender a identidade cultural do Brasil na globalização? Será possível não ter identidade? E, a propósito, o que é ‘identidade’? 2. Definindo identidade Toda identidade é uma dupla operação de inclusão (de produção de um reflexo singular do mundo universal) e de exclusão (de reprodução de diferenças). Há identidades mais inclusivas em sua forma de ser e outras que se fortalecem naquilo que elas não são. Mas, toda identidade tem, em maior ou menor grau, essa dupla operação simbólica de abertura e fechamento. 2 E não se trata só de identidades culturais étnicas ou territoriais. Ruiz dá exemplos simples dos diferentes níveis de apego - como a de uma ‘mãe vegana’ ou a de um ‘torcedor de futebol’. Essas ‘identidades transversais’ também podem ir do fanatismo mais radical até a liberdade de decidir ‘sim’ ou ‘não’ no momento presente, sem preferências antecipadas recorrentes ancoradas nas crenças e na experiência passada. A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado ... (BAUMAN, 2005. p. 83-84). Há um grande número de teóricos que definem ‘Identidade’. Existem duas concepções distintas do conceito: a identidade social e a auto identidade. A primeira se refere às características atribuídas a um indivíduo pelos outros, em vários níveis (a nacionalidade, a classe social, a profissão). A identidade aqui é compreendida como um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve a partilha de bens simbólicos (a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas) e a exclusão de outras características. A identidade social é o social refletido em cada indivíduo ou o conjunto de coerções e restrições modeladoras da subjetividade. Este conceito é utilizado pela sociologia durkheiniana e pelo estruturalismo. Já a auto identidade (ou identidade pessoal) é uma imagem que atribuímos a nós mesmos e à nossa relação individual com a sociedade e com meio ambiente. E esse diálogo do mundo interior com o exterior molda o sujeito que se forma a partir de suas escolhas no decorrer da vida. A sociologia compreensiva weberiana e seus diferentes seguidores (Schult, Goffman, Giddens, entre outros) é a principal adepta dessa definição. A ‘identidade cultural’ é resultante de uma dialética entre a identidade social imposta e a auto identidade criativa, entre as estruturas objetivas e a imaginação. Há também um consenso de que as identidades eram mais espaciais e fixas; porém, com a globalização, as regiões passaram a interagir mais e as identidades parcialmente se desterritorializaram. Bauman (2005, 30) afirma que a questão da identidade só se coloca a partir do aumento do intercâmbio cultural e do declínio da identidade geográfica. O auto reconhecimento só faz sentido frente ao diferenciado. Até os anos 70, o imperialismo cultural e a destruição das identidades locais foram amplamente denunciadas por autores marxistas simpáticos a noção de cultura popular e contra a ‘indústria cultural’ – conceito desenvolvido por Adorno. Nesse contexto, também Bourdieu (2007) afirmava que os meios de comunicação, principalmente a TV, está promovendo uma padronização cultural em massa, num ato expresso de violência simbólica e dominação ideológica. Nos anos 80 e 90, Stuart Hall (2002) contesta essa tese de que a globalização promova a padronização cultural em massa, ressaltando que os indivíduos não são consumidores passivos e que é preciso considerar os usos e apropriações que eles fazem dos bens culturais. E a proatividade dos consumidores teria, segundo Canclini (2000), como consequência um mundo de culturas heterogêneas e híbridas. Assim, a globalização não é uma mera homogeneização das representações culturais e identitárias locais. O que está em curso é um redimensionamento, ou fragmentação dessas identidades, até então tidas como fechadas e homogêneas. Uma cultura será mais ou menos homogênea em função da proatividade de seus adeptos. Uma cultura de pessoas passivas será facilmente uniformizada pela globalização cultural, enquanto uma cultura de pessoas participativas preserva suas tradições. Na prática, todas as culturas são ‘glocais’, isto é, híbridas em diferentes graus de combinação. Mas, existem sempre os dois extremos: há locais que foram completamente colonizados, em que seus habitantes não têm nenhuma caraterística cultural que os defina e diferencie dos outros. Como também há locais em que a preservação da identidade territorial colide com valores universais, como a defesa do meio ambiente e os direitos das crianças, das mulheres e dos idosos. 3. Estudo de caso: ‘Não há tal’ A ‘falta de identidade cultural’ da cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte, é considerada um fato, tanto pelo senso comum popular, quanto pela intelectualidade local. A própria cultura se considera inautêntica e artificial. Essa ausência é constantemente naturalizada pela reclamação recorrente de que a cidade só valoriza o que vem de fora e que os artistas e intelectuais Natalenses nunca são reconhecidos pelos seus conterrâneos, não importa quão talentosos sejam. Será que os potiguares não se imaginam pertencentes a uma comunidade? Por que as pessoas não se sentem representadas por uma identidade? Para descrever e analisar esse fenômeno, revisando suas principais referências teóricas e culturais, procede-se aqui a releitura sociológica de uma dissertação de história: Entre a ausência declarada e a presença reclamada: a identidade potiguar em questão (GOMES NETO, 2010). Uma releitura é mais do que uma mera resenha, pois não se trata de resumir, mas também de comentar, destacar, comparar, criticar e, sobretudo, inserir novas referências teóricas, ampliando o alcance de interpretação. O potiguar transita assim num espaço indefinido. É, segundo alguns interlocutores, um espaço fadado a um devir que é sempre devir, que nunca se cumpre; é sempre o que deveria ser em detrimento do que é, pois o ser que ele é desagrada. Percebe-se aqui um dilema nas suas representações: reclama-se com frequência da abertura, da sedução ao que vem de fora de suas fronteiras, pois esta postura age de forma tal que o impediria de criar laços identitários com as coisas da terra, com os valores genuinamente locais. Em outras palavras, deve existir um modo de ser, um ethos que, devido ao desapego dos norte-rio-grandenses, não se faz ver nem ouvir. É como se, enfeitiçados pelo outro, recusassem a si mesmos. Seriam estrangeiros em sua própria terra (GOMES NETO, 2010, 47). Além de uma revisão bibliográfica completa sobre a identidade da cidade, Gomes Neto faz também uma investigação em fontes contemporâneas: blogs, entrevistas e textos dos agentes culturais atuais da cidade sobre “a falta de identidade Natalense”. Há falas de vários intelectuais e artistas da cidade polarizados entre os que consideram a ‘falta de identidade’ uma atitude colonizada e os que defendem que ela expressa uma atitude moderna e cosmopolita3. Tornou-se lugar comum afirmar que a principal causa histórica da supervalorização do estrangeiro/auto depreciação do Natalense é resultante da presença dos americanos em Parnamirim, durante a guerra. Segundo essa explicação, a admiração dos Natalenses pelos EUA tornou-se uma ‘recorrência cultural’ e isto levou à desvalorização crônica da própria cultura. E um dos méritos do Gomes Neto é justamente - seguindo os trabalhos mais recentes (EMERENCIANO, 2007) - demonstrar com fatos e fontes consistentes que, em Natal, a supervalorização dos estrangeiros e a desvalorização dos conterrâneos é anterior aos anos 40 e à presença dos americanos. Natal foi fundada no natal de 15994 e passou quase um século e meio sendo o único município da capitania do Rio Grande. Praticamente só se chegava de navio, não havia estradas e local era comprimido entre o rio, o mar e as dunas, que constantemente ameaçavam cobrir a cidade. Imaginem nesse contexto uma comunidade em que os visitantes/novidades eram sempre acolhidos com alegria e que os moradores se boicotavam uns aos outros, disputando oportunidades e vantagens cartoriais entre si (concessões de venda e representações comerciais). Este padrão cultural de rivalidade interna e valorização externa perdurou durante 300 anos, até a abertura efetiva de estradas e ferrovias em 1915. No século 3 Embora Gomes Neto pretenda fazer análise discursiva, o procedimento básico da investigação é histórico/historiográfico, através de pesquisa bibliográfica. Aliás, o trabalho não é propriamente histórico, mas sim temático, isto é: ao invés de investigar o processo histórico como um todo contínuo, ele analisa um aspecto social como uma sobreposição de simultaneidades recorrentes. “Tomando as discussões sobre o potiguar como recorte temático, a presente pesquisa busca problematizar os deslocamentos, os impasses nas suas representações, as quais, via de regra, costumam apresentá-lo como um ser que não é, constantemente seduzido pelos encantos do outro, pelos valores que vêm de fora de suas fronteiras” (GOMES NETO, 2010, 10). 4 Mas, há controvérsias. Para Rocha Pombo, a Vila dos Reis foi fundada em 24 de dezembro de 1599 por Jerônimo de Albuquerque (filho) e o lugarejo só atingiu o status de cidade, em 06 de janeiro de 1611.Para não contrariar ninguém comemora-se o aniversário da cidade durante os doze dias entre as duas datas (Natal e o dia de Reis), em um projeto da prefeitura chamado ‘Natal em Natal’. XVII, chegava-se a Mossoró por Aracati no Ceará e a Caicó por Campina Grande na Paraíba (CASCUDO, 1984: 309 Apud GOMES NETO, 107). Tabela do crescimento populacional de Natal e do RN Ano População Natal 1805 6.393 1808 5.919 População RN 49.250 1844 149.072 6.454 1855 1870 + ou - 160 mil 8.909 233.979 Fonte: GOMES NETO, 2010, 99. A colonização do sertão se deu através de outros estados - não apenas através de mercadorias no comércio (a produção do interior era drenada para outros portos), mas também através da circulação das informações (jornais, correspondência, pessoas) - teve como resultado o desenvolvimento da região Oeste e do Seridó5. E enquanto a capital permanecia pequena e isolada, um entreposto do comércio pernambucano. Desta situação de atraso surgiram várias frases repetidas por diferentes comentaristas ao longo de séculos: ‘cidade só no nome’; o ‘corpo sem cabeça’; ‘Tal não há’. Gomes Neto detalha três momentos históricos marcantes que reforçaram essa ‘nãoidentidade’ na formação da cultura Natalense: os heróis derrotados, Felipe Camarão e André de Albuquerque; os intelectuais futuristas, Eloy de Souza e Manoel Dantas; e as oligarquias rurais pretensamente progressistas em relação à modernidade. O índio Poti é um personagem-símbolo da submissão dos índios potiguaras aos portugueses e da expulsão dos holandeses. Os potiguaras eram antropófagos, haviam devorado dois filhos de João de Barros, primeiro governador da capitânia. Foram pacificados graças a Jerônimo de Albuquerque (o filho), que era potiguar por parte de mãe e português por parte de pai, homônimo, colonizador da capitania de Pernambuco. Depois de lutar ao lado dos colonos pela expulsão dos holandeses, anos depois, seu líder, Poti foi batizado Antônio Felipe Camarão, sendo alçado à condição de herói. Camarão representa um nativo fiel à Coroa portuguesa, convertido ao cristianismo. Era a vitória não apenas sobre os holandeses, mas da colonização portuguesa através de uma identidade local. Ao mesmo tempo que se constrói uma narrativa heroica e cívica do personagem, o termo ‘potiguar’ (comedor de 5 Sobre as identidades culturais fortes dessas regiões do interior do RN, ver MACÊDO, 2005 sobre o Seridó; e FELIPE, 2001 sobre Mossoró. camarão), referente à tribo de Poti, torna-se sinônimo de norte-rio-grandense. Gomes Neto considera a antropofagia violência simbólica, um rito de destruição de alteridade, decorrente da “dificuldade em aceitar o outro” e não como a incorporação honrosa das qualidades do outro em si mesmo. Para ele, o personagem do Índio Poti/Felipe Camarão é uma “inversão de papeis entre agente e paciente da ação” dos rituais antropofágicos dos potiguares. Neste sentido, quando deglute os valores culturais adventícios, o potiguar não eliminaria a existência do outro, como outrora fazia. Ele, nesse processo, contraditoriamente, eliminaria a si mesmo. Em outras palavras, ao levar a cabo esse novo “rito canibal”, passou de agente a paciente da ação. Assim, toda vez que se abre aos “valores culturais” do outro, em detrimento daqueles que supostamente seriam dos seus, ele se imiscui ao adventício, negando a si mesmo. O curioso nesse processo é que, para conseguir sobreviver, os poucos índios potiguar que restaram à empreitada colonizadora branca tiveram de fazer o rito inverso da antropofagia, ou seja, desfizeram-se de seus valores culturais e “deglutiram” os modos de vida europeus, para terem assegurado o direito de continuar existindo. (…) Assim, quando, na contemporaneidade, multiplicam-se os discursos que reclamam uma identidade ao potiguar, sob o argumento de que estes valoram em demasia tudo que vem de fora de suas fronteiras, não mostrando apego por suas cultura e história, é como se acusassem a repetição do ritual antropofágico, só que na condição de pacientes no processo, não mais como agentes. (…) Seriam os potiguares hodiernos também canibais, a exemplo de seus antepassados? Teriam eles legado o desejo de fazer do adventício seu alimento? Num processo menos sanguinolento que o de outrora, é como se cumprissem certa predestinação à antropofagia, dispostos a deglutir aquilo que adentra suas fronteiras. De um canibalismo que pressupunha a recusa e destruição do outro, a uma antropofagia que parece esquecer-se de si pelo encantamento ao novo, pelos valores de fora. De entrave à obra civilizatória portuguesa a ente conivente com as “interferências” culturais de outras plagas. E, desta maneira, foram se somando as narrativas que situam na interrogação, no campo da dúvida, a existência da identidade potiguar (GOMES NETO, 2010, 5657). Essa inversão simbólica da antropofagia arcaica em submissão voluntária moderna é operada por Alberto Maranhão, no perfil biográfico (na verdade, apologia heroica) de Felipe Camarão, feita para combater o escritor cearense José de Alencar e os historiadores paraibanos e pernambucanos que queriam usurpar o herói potiguar, afirmando que ele não teria nascido no Rio Grande (Idem, 2010, 90). Outro episódio histórico de reforço da identidade cultural potiguar se deu por ocasião da revolução de 1817. André de Albuquerque, senhor do engenho de Cunhaú e governador da provincial do Rio Grande, resolve aderir ao levante pernambucano, liderado por outro Potiguar, Frei Miguelino, contra a Coroa portuguesa. Porém, o nobre é traído por seus aliados conterrâneos e morto com requintes de crueldade na Fortaleza dos Reis Magos. Embora alguns historiadores enalteçam a luta pela liberdade civil, pela autonomia regional e o sacrifício do mártir republicano (tais como Manoel Ferreira Nobre, Tavares de Lyra); outros (como Cascudo, Rocha Pombo) ressaltam a punição do rebelado e colocam a adesão do RN à revolução de 1817 como uma travessura “inútil” de um oligarquia idealista. Acrescente-se a isso, a forma como a revolução de 1817 é hoje ensinada em sala de aula e pelo senso comum em geral. Reforça-se, assim, a ideia do déficit identitário, baseada na obediência ao exterior e no arrivismo interno, sempre disposto a destruir os que se destacam e/ou tentam empreender mudanças. Uma Identidade Cultural é feita de memória social (de seus heróis, vítimas e inimigos) mas também de esquecimento e omissões. Lembramos de Felipe Camarão para esquecer escravidão ‘voluntária’ dos potiguares e tabajaras nos primeiros engenhos; lembramos dos mártires de Cunhaú e Uruaçu6 para esconder o genocídio indígena da confederação dos Cariris7. A identidade cultural é uma ilha da memória social em um mar de esquecimento, recalques, silenciamentos discursivos, omissões históricas ... E, assim, Gomes Neto analisa os principais historiadores do RN, no período colonial e no império, sempre destacando a necessidade de produção de uma identidade, ora artificial e cívica, ora crítica e inexistente. 6 Mártires de Cunhaú e Uruaçu é o título dado pela Igreja Católica aos trinta católicos martirizados, no interior do Rio Grande do Norte. Foram vítimas de dois morticínios, ambos no ano de 1645, no contexto das invasões holandesas no Brasil. No dia 23 de março de 2017 o Papa Francisco autorizou a canonização dos trinta mártires do Rio Grande do Norte. A canonização ocorreu em 15 de outubro de 2017. No dia 3 de outubro, a lei Nº 8.913/2006 instituiu a data como feriado estadual. 7 O extermínio da nação Tapuia é conhecido por Guerra do Recôncavo (em menção ao recôncavo baiano, onde aconteceram as primeiras lutas armadas), Guerra do Bárbaros (em referência à região do Açu, no Rio Grande do Norte, onde ocorreram os principais conflitos) e Confederação dos Cariris (por terem sido esses indígenas um dos mais combatentes). ‘Tapuia’ é nome genérico e pejorativo que os índios tupis (potiguares e tabajaras) davam aos seus rivais de origem não-tupi, que se aliaram aos holandeses e impediam a colonização do sertão. A guerra de extermínio durou de 1650 e 1720, e cobriu uma área que correspondia a um território da Bahia até o Maranhão. A historiografia do RN limita o genocídio dos Cariris, no vale do Açu, mas os estudos atuais demonstram que o conflito foi bem mais extenso (PIRES, 2004). 4. A província cosmopolita Em 1898, Natal já sofria deste encantamento pelo outro que até hoje a caracteriza. Polycarpo Feitosa8, em crônica publicada no ano de 1898, fala do suposto bairrismo potiguar: “Por índole, por educação ou pelo que for, não há alguém mais apreciador do que é de fora, pessoa ou coisa estrangeira, e, como consequência mais depreciador do que é da terra, que ele. (FEITOSA, 2007: 31 Apud GOMES NETO, 122). No começo do século XX, após três séculos de estagnação, as elites potiguares tinham fome de modernidade e a sonhavam com entusiasmo. Duas conferências proferidas em 1909 por Eloy de Souza (Costumes Locais) e Manoel Dantas (Natal daqui a cinquenta anos), constroem representações projetando o futuro da cidade. Essa representação expressam o desejo de desenvolvimento social em todos os sentidos. Eloy de Souza fala sobre a ‘província cosmopolita’ e o processo histórico de transformações econômicas, políticas e sociais que se aproximavam com a modernidade. Já Manoel Dantas sonha abertamente com o futuro, em uma narrativa imaginativa e intertextual, misturando suas esperanças reais de desenvolvimento com narrativas de ficção, humor e poesia mitológica. Manoel Dantas é um personagem singular nesse contexto: um sertanejo com sede de modernidade. E é aqui que se evidencia a aporia apresentada por Tarcísio Gurgel, o qual situa Dantas entre a tradição e a vanguarda (GOMES NETO, 62). Além de sonhar o futuro, Dantas também poetiza o passado, escrevendo o Auto de fundação da cidade do Natal por Jerônimo de Albuquerque. A cidade “escolhida para dar louvor ao Salvador” também foi amaldiçoada: as dunas, os “ciclopes de areia” na narrativa mítico-poética de Dantas, continuavam ameaçando, mantendo-a em castigo no isolamento, sob o constante risco de ser “soterrada” pele areia das dunas (ASSAD & SOUZA, 2009)9. Outro aspecto evidente da como as elites rurais do RN aspiravam com paixão por modernidade na primeira metade do século XX, valorizando o externo e diminuindo o local, é o comportamento pretensamente moderno dos governantes. Esse comportamento pode ser observado tanto na oligarquia Albuquerque Maranhão como no governador Juvenal Lamartine, representante das oligarquias do Seridó, que governou o estado de 1928 até a ser deposto pela revolução de 1930. Do começo do século 8 Pseudônimo de Antônio José de Melo e Souza, deputado e senador, governou o estado em duas oportunidades e também atuou como Procurador da República, além de sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico/RN, escritor, jornalista, poeta, historiador, contista e romancista. 9 Em homenagem a Manoel Dantas, a revista nome dado aos ciclopes de areia – publicou vários textos sobre a identidade cultural de Natal. passado até 1928, o Rio Grande do Norte foi governado pela mesma oligarquia do fundador da cidade (Jerônimo de Albuquerque) e do principal mártir da revolução de 1817 (André Albuquerque): Pedro Velho (primeiro governador republicano em 1889 e duas outras vezes em 90 e 92); Alberto Maranhão em 1895 e em 1908; Tavares de Lyra; entre outros. Apesar formarem uma oligarquia rural esses homens foram republicanos extremamente cultos, sendo responsáveis pela construção da principal narrativa historiográfica de nossa identidade cultural arcaica. Há também a versão contra hegemônica de Rocha Pombo, simpatizante das oligarquias do Seridó e da vida sertaneja como ‘identidade estadual do RN’. Rocha Pombo discorda da data de fundação de Natal e minimiza o sacrifício republicano de André de Albuquerque, diminuindo o papel de sua família na história do RN. As elites seridoenses (vinculadas à pecuária e ao cultivo do algodão) que sucederam a dinastia Albuquerque Maranhão eram tão modernas quanto às natalenses. Os governadores Antônio José de Melo e Sousa (Polycarpo Feitosa) e José Augusto Medeiros (que governaram de 1921 a 1927) também eram homens doutos modernos. O governador Juvenal Lamartine de Faria (que governou de 1928 até ser deposto pela revolução de 30) também é frequentemente descrito como visionário, vanguardista e até feminista, responsável pelo voto feminino e a efetiva inclusão participativa da mulher na política. Juvenal Lamartine também é apresentado como um pioneiro da aviação civil no estado, com a construção de mais de 20 pistas de pouso no interior do estado, além de fundador do Aeroclube de Natal. Tanta modernidade era combinada com uma submissão canina ao governo federal e à repressão implacável aos que lhes fizeram oposição. Durante o governo de Juvenal Lamartine os espancamentos, prisões e invasões a sindicatos e jornais pela polícia eram frequentes. Enquanto posava de feminista a nível nacional, Lamartine perseguia Sandoval Wanderley e Café Filho (GOMES NETO, 2010, 141). Aliás, a revolução de 1930 e o levante comunista de 1937 em Natal – não estudados por Gomes Neto em relação à identidade Natalense (ou sua ausência) – vão aprofundar ainda mais a sede de modernidade da cidade. Para investigar a entrada do RN na modernidade, no entanto, vamos pausar um pouco nossa releitura histórica e introduzir alguns conceitos necessários a ampliação sociológica de perspectiva. 5. A modernidade inautêntica A identidade moderna exclui o que é pessoal, antigo, tradicional; e deseja incluir tudo que for novo, urbano, tecnológico, sempre de modo uniformizado e universal. Ser moderno mais do que ser progressista e laico, significa ter uma visão objetiva de si como produto da sociedade industrial; é acreditar que a natureza e o corpo são máquinas biológicas; é viver em um universo mecânico formado por coisas e objetos. As identidades modernas são domesticações simbólicas das antigas identidades tradicionais, colonizações cívicas das mitologias locais. A identidade nacional, ancorada no estado territorial, é expressão principal deste auto reconhecimento de modernidade. As identidades nacionais são permeáveis a elementos simbólicos distantes e rejeita os elementos culturais de seus vizinhos. Ser moderno é ainda viver voltado para o futuro, enquanto as tradições são identidades voltadas para o passado. A identidade moderna implica no risco de escrever a própria história, na dúvida sistemática, no ‘universal-cosmopolita’ dos centros urbanos, a identidade indefinida das massas culturalmente industrializadas. Em uma perspectiva histórica mais ampla, há também vários autores que sugerem que a modernização cultural brasileira não foi autêntica, mas “para inglês ver” – como se diz popularmente. Por detrás de uma identidade de fachada moderna, continuamos ‘índios’ afetuosos e idiotas: “cordiais” e incapazes de racionalidade objetiva (HOLLANDA, 1987); culturalmente corruptos, que não distinguem entre a esfera pública e a vida privada de sua família (FAORO, 1979); ou ainda pessoas sem igualdade individual, que dão um ‘jeitinho’ para se colocar acima de todas as regras (DAMATTA, 1997). Para esses autores, o colono português no Brasil foi mais promiscuo, sentimental, já era mestiço de várias etnias, católico por conveniência, preguiçoso, socialmente irresponsável e outras tantas características negativas responsáveis por nossa desgraça cultural. O sociólogo Jesse Souza (2000) é o principal crítico desta forma de pensar, a que chama “sociologia da inautenticidade”. Ela está enraizada no senso comum e é polinizada através da própria cultura brasileira, de forma ideológica, para perpetuar sutilmente nossa submissão e inferioridade em relação à modernidade ocidental, o nosso tão propalado “complexo de vira-lata”. Em sua crítica à sociologia da inautenticidade, Souza se aproxima de Gilberto Freire (1996) e Darcy Ribeiro. Enquanto Freyre coloca a miscigenação étnica como fator central da cultura brasileira; Ribeiro sugere a ‘ningüéndade’ como produto histórico desta miscigenação. Souza se aproxima desses autores por não priorizarem o papel da herança ibérica maldita e entenderem a miscigenação como um fator positivo da singularidade brasileira, mas deles se distancia em função de seu foco fechado sobre a questão escravista (a desigualdade social) como questão central. A crítica de Souza à inautenticidade moderna ajuda a entender nossa identidade em sua particularidade, como resultado de um processo histórico singular e seletivo de desenvolvimento encoberto e naturalizado no senso comum. Ele enfatiza a escravidão e a desigualdade social na raiz da organização do Brasil. Por outro lado, tanto Freyre quanto Damatta enfatizam que a família patriarcal é uma instituição anterior ao Estado e ao Mercado. 6. A encruzilhada do mundo Então, quando os americanos chegaram para estabelecer uma base área em Parnamirim, Natal já tinha apreço pelo estrangeiro e baixa estima pelo próprio. Mas, isso não diminuiu o impacto da presença americana, que transformou uma ‘fazenda iluminada’ na encruzilhada do mundo. Três grandes caminhos aéreos convergem para Natal: do Norte procedente do Amazonas e dos Estados Unidos; do leste, procedente da África, da Europa e do Médio e do Extremo Oriente; e do Sul, procedente do Rio, das Repúblicas platinas e outras sul-americanas. Sob esse aspecto, Natal é, talvez, atualmente, a mais importante encruzilhada do mundo [...]. Viajantes de todos os pontos do mundo chegam diariamente a Natal, há muito tempo. Aqui, estiveram presentes Getúlio Vargas, o presidente Roosevelt, o primeiro ministro Churchill, o Sr. Wendell Wilkie, a Sra. Chiang-Kai-Shek, a Sra. Eleonor Roosevelt. Por aqui tem passado embaixadores e representantes diplomáticos de quase todos os países: turcos, mulçumanos, suíços, australianos. Muitos deles são jornalistas ou escritores, que andam anotando, comentando e comprando, e que mais tarde desejarão prestar depoimento sobre essas viagens – o que eles dirão do Brasil? É esta a nossa preocupação. Muitos viram senão esta pequena e risonha cidade do Natal. (NATAL, ENCRUZILHADA DO MUNDO apud OLIVEIRA, 2008: 212- 213 apud GOMES NETO, 2010, 77). Algumas autobiografias afirmam que a presença estadunidense acabou com as tradições locais, com hábitos e costumes que influenciaram no modo como o RN se relaciona com seus bens culturais. O imperialismo cultural dos EUA transformou a cidade em uma ‘Londres nordestina’: a população local mimetizou hábitos alimentares (consumo de enlatados, da goma de mascar, da Coca-Cola), dança e música, gestos, modos de vestir e falar dos americanos. Segundo essas análises, o potiguar perdeu grande parte de seus referenciais identitários, em um “encantamento” pelo outro que perdura até hoje. Representantes de todos os países, gente de todas as raças, crentes de todas as religiões, altas patentes de todos os exércitos, ministros, heróis, aventureiros, já passaram por Natal, encruzilhados de milhões de destinos. As ruas da cidade, em certos dias, se enfeitam de tipos exóticos, de esquisitas indumentárias, de perfis latinos, anglo-saxônico, eslavos, semitas, negros e amarelos (Djalma MARANHÃO Apud SILVA, 1998: 66-67). Por outro lado, para Câmara Cascudo (1999), esse era o destino histórico e mítico da cidade, seu devir, sonhado por Antônio de Souza em 1898, projetado por Eloy de Souza e Manoel Dantas, em 1909. O futuro tinha enfim chegado. A fazenda iluminada acordara de “seu sono três vezes secular” para se tornar o que sempre tinha sido: uma babel multicultural. Entre os trabalhos acadêmicos mais recentes, apenas a professora Costa da Silva (1998) segue a perspectiva otimista de Cascudo. Oliveira (2008) e Sá Pedreira (2005) são críticas em relação à entrada na modernidade e apresentam um saldo social e cultural negativo da presença americana em Natal. Oliveira estima que a população da capital potiguar à época era de aproximadamente 50 mil habitantes e que entre 10 e 15 mil militares estrangeiros estiveram nela só no período de 1942 a 1943, quando o tráfego foi maior: O impacto de viver sob a iminência de abrigar as batalhas da Segunda Guerra Mundial e a rapidez como as mudanças ocorreram no espaço da cidade certamente influíram na maneira como as elites políticas registraram o vivido, assim, as transformações trouxeram uma nova realidade que pode ter provocado mudanças na constituição da identidade da cidade, assim como as transformações podem ser responsabilizadas pelas intervenções ocorridas, pela cristalização de sua configuração espacial e pelo seu desenvolvimento econômico e social (OLIVEIRA, 2008: 19). Ao mesmo tempo em que se internacionalizava, a cidade também desenvolveu um processo de segregação social interna, em virtude da chegada de retirantes da seca do interior atraídos pelo clima de prosperidade das elites com os soldados estrangeiros. A concentração das vítimas das secas evitará que repitam os abusos até ontem verificados, e nesse sentido a polícia tomará medidas enérgicas de repressão, não consentindo que continue o espetáculo constrangedor de que vínhamos sendo testemunhas [...]. Com estas providências [concentrar os imigrantes em palhoças, num acampamento afastado da cidade] o problema encontrou sua solução mais lógica e eficiente. (MEDIDAS NECESSÁRIAS Apud OLIVEIRA, 2008: 195.) Outra medida do poder público local para amenizar a superlotação na cidade, foi enviar parte dos retirantes como ‘soldados da borracha’ para os seringais da Amazônia (PEREIRA SÁ, 2005: 110). Um aspecto importante nesse processo de aculturação das elites/segregação das classes populares é o carnaval. Não é por acaso que o Rio de Janeiro, Salvador e Recife têm as identidades culturais mais antropofágicas do Brasil, mas sim devido à inclusão das identidades negra e nativa na cultura através do carnaval. Reparem que a participação popular no carnaval faz a identidade antropofágica se ampliar deixando de ser elitista para incluir todos. Durante o estado novo, as escolas de samba e outras manifestações culturais populares foram proibidas. Natal era um lugar de divertimento durante a guerra para os estrangeiros e as elites que lhes imitavam os costumes. Para a população mais pobre, no entanto, não havia nenhum tipo de entretenimento. Pode-se dizer que Oliveira e Pereira Sá correspondem a uma interpretação mais próxima da de Jesse Souza sobre a suposta inautenticidade cultural da modernidade brasileira (relacionando-a com a desigualdade e com a exclusão social); enquanto Costa da Silva e Câmara Cascudo enfatizam mais a ‘tradição cosmopolita’, o encontro da vocação antropofágica com o destino multicultural da cidade. Surgem, então, dois discursos explicativos gêmeos, de polaridades opostas mas que reforçam a mesma hipótese da falta de identidade: a) Natal é um caso crônico de uma cultura descaracterizada sem memória, nem ‘raízes históricas’ - ela não se reconhece como parte de uma comunidade de pertencimento; e b) Natal tem múltiplas identidades: a “cidade presépio” é aquela que está sempre nascendo, sua identidade está sempre porvir, sua cultura voltada para o futuro. O certo é que a presença norte-americana contribuiu bastante para aprofundar as características de identidade cultural da cidade. Nesse sentido, a construção da potiguaridade vai sendo mapeada e circunscrita dentro de um discurso da ausência, de falta. Vai sendo desenhado a partir do que ele não é, em detrimento daquilo que deveria ser. E, neste cenário, seja para projetar uma identidade – moderna e cosmopolita – ou para negar a existência dela, a presença estadunidense nestas plagas é sempre destacada. GOMES NETO, 2010, 81. 7. A cidade do Sol Com o turismo, a partir dos anos 80, a prefeitura e o governo do estado investiram bastante na imagem da cidade, com campanhas publicitárias ressaltando os elementos simbólicos e cívicos; os monumentos históricos; o meio ambiente; tradições culturais quase extintas; e, sobretudo, a celebração dos mártires de Cunhaú. Tais elementos, no entanto, são totalmente artificiais e sem raízes, criadas para dar uma face externa à cidade, mas sem que seus integrantes se sintam por ela representados. A globalização parece ter tido um efeito contrário, desencadeando um movimento regionalista tardio, midiático e artificial. Por exemplo: a chegada da rede internacional do Carrefour, nos anos 90, à cidade levou aos supermercados locais, a financiar campanhas publicitárias com slogans regionalistas: “Orgulho de ser nordestino”, ou ainda, “Gente da terra da gente”. O recrudescimento das relações parentesco (das famílias locais defendendo seus privilégios diante de uma nova invasão estrangeira) pode ser observado em vários eventos, como a tentativa de criar uma cota de vagas estaduais para ingresso na universidade federal. Finalmente, os Natalenses começaram a se defender culturalmente dos estrangeiros e não a festeja-los em detrimento de si mesmos. Mas, já era tarde! Com o turismo, muitas pessoas saíram dos grandes centros urbanos e vieram morar na cidade atraídos pela qualidade de vida e hoje a maioria dos residentes não são mais de nativos da cidade. E as novas gerações natalenses não tem sotaque regional, mas imitam em sua fala o chiado carioca e o ‘r’ caipira do interior de São Paulo, adquiridos através da mídia. Natal desde então passa a encarnar a simbologia sol/mar, converte-se em Cidade do Sol e se consolida como destino turístico no cenário nacional, fortalecendo as políticas públicas para dotar a capital com uma maior infraestrutura turística nas áreas mais requisitadas. Tendo como consequência a segregação espacial da cidade. Surge a Natal espetáculo, cidade vitrine, cidade exportação. Toda identidade é construída, nas três últimas décadas o poder público e parte da iniciativa privada obtiveram êxito em nos definir como uma cidade vitrine, voltada para fora, mas e nós? Quando olhamos para dentro, o que enxergamos? (MADSON, 2016) 10 A globalização e a internet permitem a participação em uma multiplicidade de novas comunidades de pertencimento não locais, compartilhando diferentes formas de ser e estar no mundo. Há um sentimento de pertencimento mútuo vinculando esses indivíduos a essas novas comunidades de referência, mas isto não significa necessariamente uma alienação da comunidade local. Natal parece cidade de partida, nunca de chegada. Ou se chega para partir depois. Se visita, portanto. É que nada aqui dura muito. Bares da moda, bandas da moda, estéticas da moda. Diógenes da Cunha Lima já poetizou que na Ribeira só o que passa, permanece. Natal toda guarda esse princípio. (...) Talvez sejam as dunas móveis onde nada se sustenta. Talvez seja a extensão litorânea com o além-mar a apontar sempre novas possibilidades. Talvez seja a saudade eterna dos norteamericanos que vieram, chacoalharam a cidade e foram embora em debandada. Fato é que Natal vive de história e imaginário, de nostalgia e ilusão. (...) Natal vive do ontem. Na política coronelista. Na economia atrasada. Nos movimentos sociais torpes. Vive de lendas. Da presença de Exupéry. Da Cidade Espacial de Manoel Dantas. Da cidade cosmopolita. O escritor Pablo Capistrano foi certeiro: “Natal é cidade formada por matutos cosmopolitas e sertanejos que moram na praia”. E François Silvestre comprova: “O mapa do RN se parece muito mais com um caranguejo, mas não, queremos ser o elefante” (VILAR, 2017). Ao longo de sua história, pode-se perceber que mais do que uma ‘falta de identidade’, Natal sofre de ‘excesso de identidade’. A cidade coleciona várias alcunhas: cidade presépio (em virtude do simbolismo de fundação); Nova Amsterdã (durante o período holandês); ‘Não há tal’ (devido ao isolamento colonial); província cosmopolita (pela elite rural republicana); encruzilhada do mundo, cidade trampolim da vitória, esquina do continente (pelo sua 10 O texto faz, de forma resumida, um precioso relato histórico do desenvolvimento cultural de Natal em relação ao turismo a partir dos anos 60, destacando a questão da identidade da cidade. localização estratégica durante a guerra); e, finalmente, Cidade do Sol (identidade publicitária produzida no contexto turístico). Encerrando as linhas últimas dessa escritura, pergunta-se: então, existe identidade potiguar? A indagação não é absurda, tendo vista toda ação que despendeu ao curso de mais de dois anos, tendo envolvido investimentos públicos, tomado tempo de atores sociais diversos e ocupado o espaço que poderia ter sido utilizado por outra pesquisa. Mas esperar e, sobretudo, fornecer respostas conclusivas a ela seriam ações demasiadamente arriscadas, precipitadas. Mesmo assim, há pelo menos duas maneiras de respondê-la. A primeira, mas curta e enganosamente mais fácil: não existe identidade potiguar. Mas há outra possível. Menos fatalista, mais complexa e, por natureza, mais movediça: a identidade potiguar é justamente não ter identidade. Ela existe porque se afirma um eu em contraposição a um outro, porque está eivada de alteridade. Dito de outra maneira, habitam tantas identidades no que se convencionou de identidade potiguar que por motivos de ordem variada, não se construiu um discurso homogêneo sobre ela, apesar das tentativas difícil de serem enumeradas (GOMES NETO, 2010, 140). 8. Enquadramento sociológico da identidade cultural É possível uma cidade não ter identidade cultural? Não. E ter várias, escondendo assim seu vazio? Também não. Essas opções são metáforas poéticas, absurdos conceituais do ponto de vista da teoria sociológica. Durval Muniz, em pesquisa de doutorado, A Invenção do Nordeste e Outras Artes (1999) desmascara o engendramento de determinada espacialidade por uma rede discursiva que trabalhava para barrar o avanço das relações capitalistas de produção. Para ele, o nordeste é “uma formação discursiva”, um contrapeso ao desenvolvimento industrial do Sudeste, uma estratégia das elites rurais para perpetuar seu poder frente as classes sociais modernas. E, dito isso, é preciso também dizer que cada elite estadual encontrou uma forma particular de se subdesenvolver. Impossível entender uma cultura estadual fora de seu contexto regional, levando em conta apenas sua história intrínseca. Por outro lado, a comparação sem parâmetros leva sempre a generalizações simplificadas. Por exemplo, a afirmação de que: a) o Rio Grande do Norte não tem identidade cultural; b) na Paraíba, ao contrário, a identidade cultural é ultra regionalista; e c) apenas Pernambuco tem uma relação recíproca desejada entre identidade cultural e trocas simbólicas. Essa forma de pensar, apesar de apresentar alguma coerência para o senso comum, é uma simplificação grosseira de uma realidade bem mais complexa. Tomamos emprestado alguns conceitos de Lévi-Strauss (1958), conceitos inadequados quando utilizados dentro de sua noção original de estrutura social, muito fixa e dura para entender as culturas contemporâneas. Nos referenciamos na proposta de ‘estruturação’ de Giddens (1986), em que as práticas sociais vão gerando recorrências históricas – de onde podemos pensar ‘princípios e regras estruturais’. A cultura para Strauss é formada por três sistemas de trocas: o sistema econômico (troca de bens), o sistema linguístico (troca de signos) e o sistema de parentesco (troca de mulheres). Pode-se dizer que a cultura Natalense coloca o sistema de parentesco acima dos sistemas de econômico (segundo lugar) e linguístico. A cultura potiguar contrasta com as de seus vizinhos. A cultura de João Pessoa, na Paraíba, enfatiza mais o sistema de troca de signos do que os de genes (segundo lugar) e bens11. Também contrasta com a de Fortaleza, capital do Ceará, que prioriza a economia e o parentesco (em segundo lugar), invertendo os fatores principais e deprecia a produção simbólica. Seguindo esses parâmetros, a cultura potiguar se assemelha a de Maceió, em Alagoas. Em ambos os casos, a herança colonial da família patriarcal, como instituição anterior ao mercado e ao estado é ‘sobredeterminante’12 das relações sociais. Como se definiu antes, há três posições distintas para a noção de identidade: a) a identidade social imposta para descaracterizar a pessoa, transformando-a em um indivíduo uniforme e submisso; b) a identidade auto definida de resistência (não apenas à colonização cultural, mas, também e sobretudo, à domesticação disciplinar dos corpos); e c) a identidade mestiça ou híbrida (antropofágica), a metamorfose permanente da consciência, sempre em 11 Também é possível comparar as culturas paraibana e pernambucana, ambas com ênfase na produção simbólica, mas com diferenças em relação aos fatores secundários e terciários invertidos. 12 Termo lacaniano que o marxista Althusser adaptou para justificar o determinismo estrutural econômico em uma última instância. Segundo ele, a ‘sobredeterminação’ é uma determinação estrutural em primeira instância ou imediata – que não exclui o determinismo econômico histórico. interação com outras identidades e com o ambiente. Essas três posições, no entanto, são tipos ideais e estão presentes simultaneamente, em diferentes graus, em todas identidades reais. Cabe, então, usá-las como parâmetros de análise, observando em que medida cada uma atua nas próprias crenças e na imagem de pertencimento a um grupo. Há uma dialética entre a identidade imposta e a auto definida, com resultados simultaneamente colonizados e antropofágicos em diferentes graus. A identidades finais são diferentes arranjos (de inclusão e exclusão de elementos simbólicos) em torno da contradição entre o imposto e o exposto, entre o social e o pessoal, entre o arbitrário e o subversivo 13. A identidade antropofágica é a resiliência (adaptação criativa) do colonizado à colonização, o equilíbrio dinâmico entre a identidade social atribuída por outros e a auto identidade. O movimento Armorial e Manguebeat, por exemplo, são manifestações culturais antropofágicas da elite cultural nordestina. Já o ‘forró eletrônico’ (e toda uma cultura popular artificial) consumido pelas massas, funciona como a velha indústria cultural de homogeneização simbólica – mesmo sendo ‘regionalista’. 9. O Homo Ludens No livro Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem (1998), Vilém Flusser14 caracteriza o 'modo de ser brasileiro' como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos. Flusser vê o brasileiro de modo semelhante a Darci Ribeiro descrevendo três estratégias de jogo colonial. A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo arriscando a derrota – como os norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos que jogam para não perder, 13 A africanização simbólica dos negros americanos como identidade cultural, por exemplo. Nos EUA, a identidade negra norte-americana é resultante de uma dialética entre a conquista da igualdade, ponto de vista representado por Martin Luther King; e a ênfase na construção de uma identidade própria, defendida por Malcolm X. Luther King enfatizava os direitos civis e a cidadania americana para todos os afrodescendentes, materializada no direito ao acesso de banheiros, escolas, transportes e espaços públicos – em pé de igualdade com os americanos brancos – o que corresponde democratizar a identidade socialmente imposta. Já Malcolm X defendia a criação de uma identidade negra americana própria – valorizando a auto definição da própria identidade. As duas proposições, juntas, formaram e ainda formam uma subcultura dominante, em que a identidade negra, por um lado, é mais enquadrada do que integrada; por outro, estabelece um padrão ético e estético superior ao da cultura colonizadora. 14 Vilém Flusser (1920-1991) é um pensador tcheco naturalizado brasileiro que teve seus pais mortos em campos de concentração nazistas e conseguiu fugir, vivendo no Brasil de 1940 a 1972. País em que tornouse um filósofo singular, 'excêntrico', sendo marginalizado no mundo acadêmico. Seus textos não tinham notas de rodapé, citações ou referências bibliográficas; seu estilo era simples e poético; seus temas incomuns: o diabo em sua luta contra a eternidade, o significado da natureza para ciência, a fotografia como novo paradigma cultural, a dúvida como uma singularidade humana. Flusser, então, voltou à Europa, onde conquistou a consagração internacional como um “filósofo da nova mídia” a partir da ótica do “canibalismo brasileiro”. Morreu em Praga, dia 21 de dezembro de 1991, em decorrência de um acidente automobilístico. buscando reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso – como a maioria dos povos latinos americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam para mudar o jogo, que caracteriza o 'modo brasileiro'. A estratégia três corresponde a uma forma de resistência criativa à aculturação colonizadora, uma identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita a cultura do colonizador: a absorve e a recria com sua própria linguagem. Não se trata mais de identidade de um povo ou estratégia de sobrevivência dos dominados, mas sim de um modelo de comportamento cultural resiliente a ser adotado por todos os povos em um futuro global. As alteridades, aproximações, estranhamentos e a maneira como os grupos interagem ao longo da história acabam criando relações de poder de acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro. Flusser reconhece que, para os povos colonizados, afirmar sua identidade cultural é um ato de resistência muito doloroso porque implica em superar o não reconhecimento do outro (e de si mesmo projetado no colonizador), mas também compreende a antropofagia como um método de diálogo dentro de um contexto da interculturalidade, reconhecendo que cada um tem sua história e uma identidade própria a ser respeitada, cultivada e celebrada. Muitos autores contemporâneos alertam para os problemas recentes resultantes das identidades pós-modernas atuais. John B. Thompson (1998), por exemplo, diz que uma nova experiência do Self em um mundo mediado e globalizado decorre de uma nova ancoragem das tradições e das identidades culturais territoriais. As culturas de diferentes locais se interpretam e interpenetram a distância, formando identidades híbridas globais. Outros - como Giddens (2003) e Castells (2008) - apontam o fenômeno do ‘fanatismo’ (de diferentes sistemas de crenças) como o agravamento simbólico das identidades fechadas à hibridação cultural. Nessa lógica, apenas as identidades inclusivas e resilientes se adaptam e sobrevivem. As identidades que celebram sua suposta superioridade e/ou inferioridade são isoladas, ou melhor, se isolam em seu fanatismo. Assim, ou a cultura global com a uniformização das culturas regionais ou o fanatismo das identidades fortes. Darcy Ribeiro e Vilém Flusser sugerem uma terceira estratégia: nem sucumbir ao Alzheimer cultural da própria história, nem retroceder às identidades territoriais, a inclusão cultural das camadas populares pela educação15 pode gestar uma identidade híbrida global. 10. Identidade, memória e narrativa Entre as imagens autodepreciativas que os Natalenses utilizam para explicar seu modo de ser, há a afirmação de que eles se comportam como goiamuns presos no cesto. Quando um tenta sair do balaio, se destacando do coletivo, outros o puxam de volta, como se dissessem “é o melhor o fracasso de todos que a vitória de um”. É a prática de “pagar três mil para que o outro não ganhe trinta” (de impedir que seus iguais não conquistem autonomia do grupo) ou a síndrome de caranguejo. Trata-se de um dispositivo16 - uma configuração do inconsciente grupal - e não de uma patologia, nem muito menos de ‘falta’ de identidade cultural. Quando não se define a própria identidade, os outros tratam de impor uma definição depreciativa. O encantamento pelo outro e a auto depreciação local tornaram-se um habitus17, “uma ação automatizada como prática social”, que continua a se perpetuar, reproduzindo um comportamento xenólatra, cada vez mais reforçado pela situação. Por um lado, Natal sempre foi habitada por estrangeiros, ou melhor, somos todos estrangeiros ou descendentes de estrangeiros. Daí também a alcunha: “terra de estrangeiros”. E esse era o sonho de Câmara Cascudo: Se essa é nossa natureza, esse é nosso destino – o projeto de que nossa natureza antropofágica determine nosso destino cosmopolita; de que esse foi, é e será nosso devir. Por outro lado, é inegável que a descaracterização de elementos simbólicos da identidade Natalense leva à baixa estima cultural, à prostituição e à ‘inautenticidade’. Quando se fala de identidade, sempre pensamos que ela é a imagem sintética de uma 15 Em conjunto com a inclusão social no mercado consumidor via um programa de distribuição de renda (como o Bolsa-família) e outros programas sociais. 16 Dispositivo é um conjunto heterogêneo de pessoas, coisas e signos - uma rede formada por acontecimentos recorrentes em uma determinada correlação de forças - que formam uma estratégia dentro de uma relação de poder microfísico (AGAMBEN, 2005). 17 Os especialistas (JOURDAIN, 2017, 49-53) destacam três conceitos de habitus em Bourdieu, no decorrer da evolução do seu pensamento: o habitus determinista do livro A Reprodução (“a interiorização do exterior e a exteriorização do interior”); o habitus-inércia como uma força de resistência à mudanças em várias obras intermediárias; e, finalmente, o habitus probabilístico, formado por ‘esquemas de percepção, de julgamento e de comportamento’ incorporados semi conscientemente pelos agentes de A Distinção (2007). Essa última concepção de habitus é adequada para pensar o complexo cultural de Natal. narrativa da memória social. A identidade cultural seria assim o resultado histórico das narrativas da memória coletiva e individuais de um determinado lugar. Bergson (1999) – e a partir dele muitos outros – nos convida a pensar o reverso: a memória como uma reelaboração do passado uno presente, como a nova atualização de uma lembrança antiga. Há uma dialetica entre memória e identidade. Por um lado, a memória é a fonte de conhecimento do passado; por outro, o ato memorativo é uma revisão do passado que o atualiza segundo o contexto presente. Há vários autores que exploram essa reciprocidade entre identidade e memória (HALL, 2006; CANCLINI, 2000), em que o sujeito concebe a si mesmo através da contradição entre o passado com a interação imediata com o mundo a sua volta. A memória fundamenta historicamente a identidade e a identidade enquadra culturalmente a memória – em um circuito fechado. Uma Identidade Cultural de uma cidade é uma representação histórica de longo prazo, uma estrutura feita de memória coletiva e de esquecimento durante séculos. Porém, há também o olhar inverso de como essa identidade interpreta seu passado. Nesse sentido, os conceitos de ‘dispositivo’ e de ‘habitus’ são melhores para descrever o complexo cultural de Natal do que a noção de ‘ausência de identidade cultura’, porque eles não o eternizam do ponto de vista estrutural. As noções de dispositivo e de habitus compreendem o complexo de Natal como a formação de um padrão cognitivo, que tanto pode ser vivido de forma passiva quanto também ser transformado, a partir de suas características. Essa forma de pensar permite a possibilidade de uma virada antropofágica: que a cultura local se reinvente através da global e que a identidade seja um projeto em aberto. O ‘dispositivo goiamum’ é um complexo cultural de relações de micro poder específicas da cidade do Natal, mas, ao mesmo tempo, é também um microcosmo singular da cultura brasileira como um todo, em que algumas características de nosso ‘complexo de viralata’ nacional são ampliados: a valorização exacerbada dos favores pessoais e políticos, do nepotismo e do clientelismo, do espectro vivo da família patriarcal acima das instituições modernas, da incapacidade cultural para vida pública e para igualdade jurídica entre indivíduos em virtude da afetividade e das relações pessoais. As narrativas são mediações desta dialetica entre memória e identidade. Quando nos lembramos de um acontecimento passado para contá-lo no presente elaboramos uma narrativa. E foram justamente os autores preocupados com as narrativas autobiográficas mais recentes (CANDAU, 2018; RICOEUR, 1994) que primeiro entenderam a dimensão oculta das narrativas, os silenciamentos discursivos, as omissões históricas, ou seja: tudo aquilo que é invisível na ideia de identidade: o futuro e o outro. Para Paul Ricoeur, toda uma narrativa tem uma dimensão prescritiva implícita, a chamada “moral da história”, que corresponde a mensagem psicológica universal daquela narrativa. Essa dimensão prescritiva é invisível e corresponde a um vir a ser ou devir, a uma simulação embutida do futuro. O projeto, o destino, o sonho é a negação da negação da dialética narrativa entre memória e identidade. O lembrado e o descrito ocultam o imaginado. Tanto o passado como o presente se organizam para sua emersão do invisível, como manifestação final do inconsciente. Já para Candau, essa dimensão inconsciente da identidade nos remete ao Outro e à alteridade. A diferentes tipos de Outro. Psicologicamente, só existe ‘eu’ em função do ‘ele’; culturalmente só existem ‘nós’ em relação a ‘eles’. Nessa perspectiva, o conflito entre memória social e identidade cultural é uma negociação com os outros, com os antepassados, com os pais, com amigos e amantes, com vizinhos e estrangeiros. E deste terceiro ponto de vista, a identidade de Natal é uma utopia multicultural. Ela foi planejada para esse devir, para o acolhimento do outro e sua devoração alegre. Além disso, a ideia de uma identidade cultural fixa e imutável foi fragmentada pela globalização na pós-modernidade. Em virtude desta ‘sobredeterminação estrutural’ do parentesco e da família patriarcal como de organização das relações sociais, as culturas de Natal e do Brasil nos ensinam que a indefinição tem um lado positivo (a abertura ao mundo) e um lado negativo relativo à auto depreciação. De um lado, a liberdade pessoal das preferências passageiras; de outro, o sentimento de não pertencimento como um estigma cultural sem remédio. O tema, assim, está muito distante de ser esgotado, tanto do ponto de vista teórico como do da própria vida cultural da cidade e do País que seguem em transformação. O que nos define afinal? Ou melhor: o que me define do ponto de vista pessoal? O lugar em que nasci? Ou que adotei para morar? Meu grupo social? Minha família? Essa identidade corresponde a preencher um cadastro (nome/individualidade e família, endereço/território, profissão/lugar no mercado). É a identidade social estruturalmente imposta. Sou então definido pelo Outro e pelos outros. E como eu me defino? Através de meus sonhos e de minhas vontades? Eu sou meus gostos e minhas preferências? Escolhas recorrentes? Ou são meus relacionamentos que me definem? Meus desejos? Assim, eu me defino como alguém deseja se definir, mas ainda não se identificou com nada. Um brasileiro do passado? Alguém que se identificou com o nada e agora não consegue se definir mais. O cidadão do mundo futuro ou apenas mais um Natalense? Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Tradução: Nilceia Valdati Revista Outra travessia no. 5, páginas 09-16. Ilha de Santa Catarina - 2° semestre de 2005. ASSAD & SOUZA, Flávia e Adriano. Perigo Iminente. Natal: Flor de Sal, 2009. Em homenagem a Manoel Dantas, a revista nome dado aos ciclopes de areia – publicou vários textos sobre a identidade cultural de Natal. Disponível em: <https://issuu.com/flordosal/docs/perigo_iminente__2> Último acesso em 17/4/2019. ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago, em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, 1928. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. RJ: Jorge Zahar, 2005. BAITELLO JR, Norval. A serpente, a maça e o holograma. Esboços para uma Teoria da Mídia. SP: Paulus, 2010. BERGSON, Henri. Matéria e memória. 2. ed. 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