AUSÊNCIA DE IDENTIDADE CULTURAL?
O caso da cidade do Natal e sua suposta descaracterização
Resumo:
Esse artigo investiga a (suposta falta de) identidade cultural da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte.
Através de uma revisão bibliográfica teórica, desenvolve-se como o tema da identidade mestiça brasileira
contribui para a construção de tipos ideais. Definidos esses conceitos, o texto faz uma releitura sociológica de
uma dissertação de história (GOMES NETO, 2010) sobre a falta de identidade cultural de Natal. Na conclusão,
confirma-se o conceito de Identidade Cultural como uma imagem de pertencimento que, simultaneamente, exclui
e inclui elementos simbólicos. A cultura da cidade do Natal (e do Brasil de forma geral) tem um lado positivo em
termos de abertura ao mundo e um lado negativo relativo à auto depreciação. De um lado, a liberdade pessoal
das preferências passageiras; de outro, o sentimento de não pertencimento como um estigma cultural sem
solução.
Palavras-chave: Estudos Culturais1; Identidade Cultural2; Natal3;
LACK OF CULTURAL IDENTITY? The case of Natal city and its supposed decharacterization
Abstract:
This article investigates the (supposed lack of) cultural identity of the city of Natal, capital of Rio Grande do
Norte. Through a theoretical literature review, it develops how the theme of Brazilian mestizo identity
contributes to the construction of ideal types. Defined these concepts, the text makes a sociological rereading of
a dissertation of history (GOMES NETO, 2010) about the lack of cultural identity of Natal. In conclusion, the
concept of Cultural Identity is confirmed as an image of belonging that simultaneously excludes and includes
symbolic elements. The culture of the city of Natal (and of Brazil in general) has a positive side to openness to
the world and a negative side to self-deprecation. On the one hand, the personal freedom of passing preferences;
on the other, the sense of non-belonging as an unsolved cultural stigma.
Keywords: Cultural Studies Media1; Cultural Identity2; Natal (city)3;
1.
Introdução
Darcy Ribeiro (1996) afirma que a cultura brasileira é uma forma singular de
colonização, que não segue nem o padrão de assimilação do colonizador nem o padrão de
resistência cultural à colonização. Afirma ainda que essa identidade é singular em relação a de
outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e mexicanos),
que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca; como também em
relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser
dominantes na identidade nacional, como os argentinos e canadenses.
Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como nos países andinos e no
México), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. Já nas culturas em que a identidade
nativa é insignificante, como na Colômbia, todos se consideram descendentes dos
colonizadores. No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora; no segundo, há,
não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação completa entre a população e a
cultura colonizadora.
Para Ribeiro, a cultura brasileira nem rejeita (fechando-se em uma cultura de
resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o colonizador.
Há uma identidade cultural ‘não definida’, permitindo que o povo brasileiro se reinvente
permanentemente com dois resultados: a antropofagia das elites e a ningüéndade das massas.
Por um lado, a identidade brasileira assimila a cultura colonizadora e a reinterpreta. As elites
devoram antropofagicamente o colonizador. Mas, por outro, há também uma massa amorfa de
bastardos sem rosto, em um estado permanente de apatia indiferenciada: uma multidão de
anônimos formada por pardos, morenos, mulatos e mais cinquenta e tantos tons de cinza1.
A essa qualidade, Darcy Ribeiro dá o nome de ‘ningüéndade’ – a identidade da nãoidentidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se reconhece na imagem do outro, mas
também ousa elaborar uma imagem própria. A cultura brasileira é um projeto aberto ao que
1 No Brasil, nos anos 20, surgiram dois projetos de identidade moderna: a antropofágica e a nacional-popular. A
modernidade do ponto de vista cultural, o movimento modernismo, primeira forma de expressão da classe média
urbana republicana, pode ser subdividido em dois comportamentos distintos em relação à produção de bens
simbólicos: o antropofágico e o nacional-popular. O antropofágico, formalizado por Oswald de Andrade, ou a
vertente da vanguarda estética brasileira de produzir uma cultura de exportação a várias outras manifestações
culturais (Hélio Oiticica, a Bossa Nova, a poesia concreta, o cinema novo, o tropicalismo) mais preocupadas em
se sincronizar ao cenário cultural internacional do que produzir uma identidade nacional-popular. Em oposição a
esta vertente oswaldiana da modernidade brasileira, coloca-se o projeto iniciado por Mario de Andrade e pelos
artistas inspirados pelas temáticas regionais e sociais (Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre tantos). Entretanto,
tanto os dois projetos de produção simbólica das classes médias urbanas (o antropofágico mais voltado para as
elites e o nacional-popular mais voltado para os trabalhadores) acabaram absorvidos pela industrialização
cultural das massas, ou melhor, através da segmentação em públicos alvos específicos (o cult, o diet, o pop, o
popular) a partir da contracultura.
está por vir e não uma referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem
memória, mas com grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz
um mix de qualidade e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia: "o país do futuro"
e um eterno "gigante adormecido em berço esplêndido". Para Ribeiro, resumindo, ‘ser
brasileiro’ é viver o desafio cultural de uma identidade aberta, voltada para o futuro.
Ruiz Junior (2018) acredita que existem cinco níveis de apego progressivo aos
sistemas de crença: a consciência livre, as preferências, a identidade, a interiorização e o
fanatismo. Para ele, a consciência representa o ‘eu’ livre dos condicionamentos sociais, capaz
de opções diferentes a cada vez que é consultado. No polo oposto, o fanatismo é o extremo
apego às crenças, excluindo todos os outros elementos simbólicos. A identidade corresponde
a um ponto intermediário. Ela uma máscara cultural, construída através de escolhas
recorrentes automatizadas. Quanto maior o apego às próprias crenças, mais a identidade se
aproxima do fanatismo. E, quanto mais inclusiva e aberta for a identidade, maior também será
a liberdade pessoal e o poder de escolha consciente.
E não se trata só de identidades culturais étnicas ou territoriais. Ruiz dá exemplos
simples dos diferentes níveis de apego - como a de uma ‘mãe vegana’ ou a de um ‘torcedor de
futebol’. Essas ‘identidades transversais’ também podem ir do fanatismo mais radical até a
liberdade de decidir ‘sim’ ou ‘não’ no momento presente, sem preferências antecipadas
recorrentes ancoradas nas crenças e na experiência passada.
Várias questões nos assaltam nesta perspectiva. Será melhor não ter identidade
territorial na pós-modernidade2? Será que o estudo do caso da identidade cultural da cidade de
Natal ajuda a entender a identidade cultural do Brasil na globalização? Será possível não ter
identidade? E, a propósito, o que é ‘identidade’?
2.
Definindo identidade
Toda identidade é uma dupla operação de inclusão (de produção de um reflexo
singular do mundo universal) e de exclusão (de reprodução de diferenças). Há identidades
mais inclusivas em sua forma de ser e outras que se fortalecem naquilo que elas não são. Mas,
toda identidade tem, em maior ou menor grau, essa dupla operação simbólica de abertura e
fechamento.
2 E não se trata só de identidades culturais étnicas ou territoriais. Ruiz dá exemplos simples dos diferentes níveis
de apego - como a de uma ‘mãe vegana’ ou a de um ‘torcedor de futebol’. Essas ‘identidades transversais’
também podem ir do fanatismo mais radical até a liberdade de decidir ‘sim’ ou ‘não’ no momento presente, sem
preferências antecipadas recorrentes ancoradas nas crenças e na experiência passada.
A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma
intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado ... (BAUMAN,
2005. p. 83-84).
Há um grande número de teóricos que definem ‘Identidade’. Existem duas concepções
distintas do conceito: a identidade social e a auto identidade.
A primeira se refere às características atribuídas a um indivíduo pelos outros, em
vários níveis (a nacionalidade, a classe social, a profissão). A identidade aqui é compreendida
como um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve a
partilha de bens simbólicos (a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas) e a
exclusão de outras características. A identidade social é o social refletido em cada indivíduo
ou o conjunto de coerções e restrições modeladoras da subjetividade. Este conceito é utilizado
pela sociologia durkheiniana e pelo estruturalismo.
Já a auto identidade (ou identidade pessoal) é uma imagem que atribuímos a nós
mesmos e à nossa relação individual com a sociedade e com meio ambiente. E esse diálogo do
mundo interior com o exterior molda o sujeito que se forma a partir de suas escolhas no
decorrer da vida. A sociologia compreensiva weberiana e seus diferentes seguidores (Schult,
Goffman, Giddens, entre outros) é a principal adepta dessa definição. A ‘identidade cultural’ é
resultante de uma dialética entre a identidade social imposta e a auto identidade criativa, entre
as estruturas objetivas e a imaginação. Há também um consenso de que as identidades eram
mais espaciais e fixas; porém, com a globalização, as regiões passaram a interagir mais e as
identidades parcialmente se desterritorializaram. Bauman (2005, 30) afirma que a questão da
identidade só se coloca a partir do aumento do intercâmbio cultural e do declínio da
identidade geográfica. O auto reconhecimento só faz sentido frente ao diferenciado.
Até os anos 70, o imperialismo cultural e a destruição das identidades locais foram
amplamente denunciadas por autores marxistas simpáticos a noção de cultura popular e contra
a ‘indústria cultural’ – conceito desenvolvido por Adorno. Nesse contexto, também Bourdieu
(2007) afirmava que os meios de comunicação, principalmente a TV, está promovendo uma
padronização cultural em massa, num ato expresso de violência simbólica e dominação
ideológica.
Nos anos 80 e 90, Stuart Hall (2002) contesta essa tese de que a globalização promova
a padronização cultural em massa, ressaltando que os indivíduos não são consumidores
passivos e que é preciso considerar os usos e apropriações que eles fazem dos bens culturais.
E a proatividade dos consumidores teria, segundo Canclini (2000), como consequência um
mundo de culturas heterogêneas e híbridas. Assim, a globalização não é uma mera
homogeneização das representações culturais e identitárias locais. O que está em curso é um
redimensionamento, ou fragmentação dessas identidades, até então tidas como fechadas e
homogêneas. Uma cultura será mais ou menos homogênea em função da proatividade de seus
adeptos. Uma cultura de pessoas passivas será facilmente uniformizada pela globalização
cultural, enquanto uma cultura de pessoas participativas preserva suas tradições.
Na prática, todas as culturas são ‘glocais’, isto é, híbridas em diferentes graus de
combinação. Mas, existem sempre os dois extremos: há locais que foram completamente
colonizados, em que seus habitantes não têm nenhuma caraterística cultural que os defina e
diferencie dos outros. Como também há locais em que a preservação da identidade territorial
colide com valores universais, como a defesa do meio ambiente e os direitos das crianças, das
mulheres e dos idosos.
3.
Estudo de caso: ‘Não há tal’
A ‘falta de identidade cultural’ da cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte, é
considerada um fato, tanto pelo senso comum popular, quanto pela intelectualidade local. A
própria cultura se considera inautêntica e artificial. Essa ausência é constantemente
naturalizada pela reclamação recorrente de que a cidade só valoriza o que vem de fora e que
os artistas e intelectuais Natalenses nunca são reconhecidos pelos seus conterrâneos, não
importa quão talentosos sejam. Será que os potiguares não se imaginam pertencentes a uma
comunidade? Por que as pessoas não se sentem representadas por uma identidade?
Para descrever e analisar esse fenômeno, revisando suas principais referências teóricas
e culturais, procede-se aqui a releitura sociológica de uma dissertação de história: Entre a
ausência declarada e a presença reclamada: a identidade potiguar em questão (GOMES
NETO, 2010). Uma releitura é mais do que uma mera resenha, pois não se trata de resumir,
mas também de comentar, destacar, comparar, criticar e, sobretudo, inserir novas referências
teóricas, ampliando o alcance de interpretação.
O potiguar transita assim num espaço indefinido. É, segundo alguns interlocutores,
um espaço fadado a um devir que é sempre devir, que nunca se cumpre; é sempre o
que deveria ser em detrimento do que é, pois o ser que ele é desagrada. Percebe-se
aqui um dilema nas suas representações: reclama-se com frequência da abertura, da
sedução ao que vem de fora de suas fronteiras, pois esta postura age de forma tal que
o impediria de criar laços identitários com as coisas da terra, com os valores
genuinamente locais. Em outras palavras, deve existir um modo de ser, um ethos
que, devido ao desapego dos norte-rio-grandenses, não se faz ver nem ouvir. É como
se, enfeitiçados pelo outro, recusassem a si mesmos. Seriam estrangeiros em sua
própria terra (GOMES NETO, 2010, 47).
Além de uma revisão bibliográfica completa sobre a identidade da cidade, Gomes
Neto faz também uma investigação em fontes contemporâneas: blogs, entrevistas e textos dos
agentes culturais atuais da cidade sobre “a falta de identidade Natalense”. Há falas de vários
intelectuais e artistas da cidade polarizados entre os que consideram a ‘falta de identidade’
uma atitude colonizada e os que defendem que ela expressa uma atitude moderna e
cosmopolita3. Tornou-se lugar comum afirmar que a principal causa histórica da
supervalorização do estrangeiro/auto depreciação do Natalense é resultante da presença dos
americanos em Parnamirim, durante a guerra. Segundo essa explicação, a admiração dos
Natalenses pelos EUA tornou-se uma ‘recorrência cultural’ e isto levou à desvalorização
crônica da própria cultura.
E um dos méritos do Gomes Neto é justamente - seguindo os trabalhos mais recentes
(EMERENCIANO, 2007) - demonstrar com fatos e fontes consistentes que, em Natal, a
supervalorização dos estrangeiros e a desvalorização dos conterrâneos é anterior aos anos 40 e
à presença dos americanos.
Natal foi fundada no natal de 15994 e passou quase um século e meio sendo o único
município da capitania do Rio Grande. Praticamente só se chegava de navio, não havia
estradas e local era comprimido entre o rio, o mar e as dunas, que constantemente ameaçavam
cobrir a cidade. Imaginem nesse contexto uma comunidade em que os visitantes/novidades
eram sempre acolhidos com alegria e que os moradores se boicotavam uns aos outros,
disputando oportunidades e vantagens cartoriais entre si (concessões de venda e
representações comerciais). Este padrão cultural de rivalidade interna e valorização externa
perdurou durante 300 anos, até a abertura efetiva de estradas e ferrovias em 1915. No século
3 Embora Gomes Neto pretenda fazer análise discursiva, o procedimento básico da investigação é
histórico/historiográfico, através de pesquisa bibliográfica. Aliás, o trabalho não é propriamente histórico, mas
sim temático, isto é: ao invés de investigar o processo histórico como um todo contínuo, ele analisa um aspecto
social como uma sobreposição de simultaneidades recorrentes. “Tomando as discussões sobre o potiguar como
recorte temático, a presente pesquisa busca problematizar os deslocamentos, os impasses nas suas
representações, as quais, via de regra, costumam apresentá-lo como um ser que não é, constantemente seduzido
pelos encantos do outro, pelos valores que vêm de fora de suas fronteiras” (GOMES NETO, 2010, 10).
4 Mas, há controvérsias. Para Rocha Pombo, a Vila dos Reis foi fundada em 24 de dezembro de 1599 por
Jerônimo de Albuquerque (filho) e o lugarejo só atingiu o status de cidade, em 06 de janeiro de 1611.Para não
contrariar ninguém comemora-se o aniversário da cidade durante os doze dias entre as duas datas (Natal e o dia
de Reis), em um projeto da prefeitura chamado ‘Natal em Natal’.
XVII, chegava-se a Mossoró por Aracati no Ceará e a Caicó por Campina Grande na Paraíba
(CASCUDO, 1984: 309 Apud GOMES NETO, 107).
Tabela do crescimento populacional de Natal e do RN
Ano
População Natal
1805
6.393
1808
5.919
População
RN
49.250
1844
149.072
6.454
1855
1870
+ ou - 160 mil
8.909
233.979
Fonte: GOMES NETO, 2010, 99.
A colonização do sertão se deu através de outros estados - não apenas através de
mercadorias no comércio (a produção do interior era drenada para outros portos), mas
também através da circulação das informações (jornais, correspondência, pessoas) - teve
como resultado o desenvolvimento da região Oeste e do Seridó5. E enquanto a capital
permanecia pequena e isolada, um entreposto do comércio pernambucano. Desta situação de
atraso surgiram várias frases repetidas por diferentes comentaristas ao longo de séculos:
‘cidade só no nome’; o ‘corpo sem cabeça’; ‘Tal não há’.
Gomes Neto detalha três momentos históricos marcantes que reforçaram essa ‘nãoidentidade’ na formação da cultura Natalense: os heróis derrotados, Felipe Camarão e André
de Albuquerque; os intelectuais futuristas, Eloy de Souza e Manoel Dantas; e as oligarquias
rurais pretensamente progressistas em relação à modernidade.
O índio Poti é um personagem-símbolo da submissão dos índios potiguaras aos
portugueses e da expulsão dos holandeses. Os potiguaras eram antropófagos, haviam
devorado dois filhos de João de Barros, primeiro governador da capitânia. Foram pacificados
graças a Jerônimo de Albuquerque (o filho), que era potiguar por parte de mãe e português
por parte de pai, homônimo, colonizador da capitania de Pernambuco. Depois de lutar ao lado
dos colonos pela expulsão dos holandeses, anos depois, seu líder, Poti foi batizado Antônio
Felipe Camarão, sendo alçado à condição de herói. Camarão representa um nativo fiel à
Coroa portuguesa, convertido ao cristianismo. Era a vitória não apenas sobre os holandeses,
mas da colonização portuguesa através de uma identidade local. Ao mesmo tempo que se
constrói uma narrativa heroica e cívica do personagem, o termo ‘potiguar’ (comedor de
5 Sobre as identidades culturais fortes dessas regiões do interior do RN, ver MACÊDO, 2005 sobre o Seridó; e
FELIPE, 2001 sobre Mossoró.
camarão), referente à tribo de Poti, torna-se sinônimo de norte-rio-grandense. Gomes Neto
considera a antropofagia violência simbólica, um rito de destruição de alteridade, decorrente
da “dificuldade em aceitar o outro” e não como a incorporação honrosa das qualidades do
outro em si mesmo. Para ele, o personagem do Índio Poti/Felipe Camarão é uma “inversão de
papeis entre agente e paciente da ação” dos rituais antropofágicos dos potiguares.
Neste sentido, quando deglute os valores culturais adventícios, o potiguar não
eliminaria a existência do outro, como outrora fazia. Ele, nesse processo,
contraditoriamente, eliminaria a si mesmo. Em outras palavras, ao levar a cabo esse
novo “rito canibal”, passou de agente a paciente da ação. Assim, toda vez que se
abre aos “valores culturais” do outro, em detrimento daqueles que supostamente
seriam dos seus, ele se imiscui ao adventício, negando a si mesmo. O curioso nesse
processo é que, para conseguir sobreviver, os poucos índios potiguar que restaram à
empreitada colonizadora branca tiveram de fazer o rito inverso da antropofagia, ou
seja, desfizeram-se de seus valores culturais e “deglutiram” os modos de vida
europeus, para terem assegurado o direito de continuar existindo. (…) Assim,
quando, na contemporaneidade, multiplicam-se os discursos que reclamam uma
identidade ao potiguar, sob o argumento de que estes valoram em demasia tudo que
vem de fora de suas fronteiras, não mostrando apego por suas cultura e história, é
como se acusassem a repetição do ritual antropofágico, só que na condição de
pacientes no processo, não mais como agentes. (…) Seriam os potiguares hodiernos
também canibais, a exemplo de seus antepassados? Teriam eles legado o desejo de
fazer do adventício seu alimento? Num processo menos sanguinolento que o de
outrora, é como se cumprissem certa predestinação à antropofagia, dispostos a
deglutir aquilo que adentra suas fronteiras. De um canibalismo que pressupunha a
recusa e destruição do outro, a uma antropofagia que parece esquecer-se de si pelo
encantamento ao novo, pelos valores de fora. De entrave à obra civilizatória
portuguesa a ente conivente com as “interferências” culturais de outras plagas. E,
desta maneira, foram se somando as narrativas que situam na interrogação, no
campo da dúvida, a existência da identidade potiguar (GOMES NETO, 2010, 5657).
Essa inversão simbólica da antropofagia arcaica em submissão voluntária moderna é
operada por Alberto Maranhão, no perfil biográfico (na verdade, apologia heroica) de Felipe
Camarão, feita para combater o escritor cearense José de Alencar e os historiadores
paraibanos e pernambucanos que queriam usurpar o herói potiguar, afirmando que ele não
teria nascido no Rio Grande (Idem, 2010, 90).
Outro episódio histórico de reforço da identidade cultural potiguar se deu por ocasião
da revolução de 1817. André de Albuquerque, senhor do engenho de Cunhaú e governador da
provincial do Rio Grande, resolve aderir ao levante pernambucano, liderado por outro
Potiguar, Frei Miguelino, contra a Coroa portuguesa. Porém, o nobre é traído por seus aliados
conterrâneos e morto com requintes de crueldade na Fortaleza dos Reis Magos. Embora
alguns historiadores enalteçam a luta pela liberdade civil, pela autonomia regional e o
sacrifício do mártir republicano (tais como Manoel Ferreira Nobre, Tavares de Lyra); outros
(como Cascudo, Rocha Pombo) ressaltam a punição do rebelado e colocam a adesão do RN à
revolução de 1817 como uma travessura “inútil” de um oligarquia idealista.
Acrescente-se a isso, a forma como a revolução de 1817 é hoje ensinada em sala de
aula e pelo senso comum em geral. Reforça-se, assim, a ideia do déficit identitário, baseada na
obediência ao exterior e no arrivismo interno, sempre disposto a destruir os que se destacam
e/ou tentam empreender mudanças.
Uma Identidade Cultural é feita de memória social (de seus heróis, vítimas e inimigos)
mas também de esquecimento e omissões. Lembramos de Felipe Camarão para esquecer
escravidão ‘voluntária’ dos potiguares e tabajaras nos primeiros engenhos; lembramos dos
mártires de Cunhaú e Uruaçu6 para esconder o genocídio indígena da confederação dos
Cariris7. A identidade cultural é uma ilha da memória social em um mar de esquecimento,
recalques, silenciamentos discursivos, omissões históricas ...
E, assim, Gomes Neto analisa os principais historiadores do RN, no período colonial e
no império, sempre destacando a necessidade de produção de uma identidade, ora artificial e
cívica, ora crítica e inexistente.
6 Mártires de Cunhaú e Uruaçu é o título dado pela Igreja Católica aos trinta católicos martirizados, no interior
do Rio Grande do Norte. Foram vítimas de dois morticínios, ambos no ano de 1645, no contexto das invasões
holandesas no Brasil. No dia 23 de março de 2017 o Papa Francisco autorizou a canonização dos trinta mártires
do Rio Grande do Norte. A canonização ocorreu em 15 de outubro de 2017. No dia 3 de outubro, a lei Nº
8.913/2006 instituiu a data como feriado estadual.
7 O extermínio da nação Tapuia é conhecido por Guerra do Recôncavo (em menção ao recôncavo baiano, onde
aconteceram as primeiras lutas armadas), Guerra do Bárbaros (em referência à região do Açu, no Rio Grande do
Norte, onde ocorreram os principais conflitos) e Confederação dos Cariris (por terem sido esses indígenas um
dos mais combatentes). ‘Tapuia’ é nome genérico e pejorativo que os índios tupis (potiguares e tabajaras) davam
aos seus rivais de origem não-tupi, que se aliaram aos holandeses e impediam a colonização do sertão. A guerra
de extermínio durou de 1650 e 1720, e cobriu uma área que correspondia a um território da Bahia até o
Maranhão. A historiografia do RN limita o genocídio dos Cariris, no vale do Açu, mas os estudos atuais
demonstram que o conflito foi bem mais extenso (PIRES, 2004).
4.
A província cosmopolita
Em 1898, Natal já sofria deste encantamento pelo outro que até hoje a caracteriza.
Polycarpo Feitosa8, em crônica publicada no ano de 1898, fala do suposto bairrismo potiguar:
“Por índole, por educação ou pelo que for, não há alguém mais apreciador do que é
de fora, pessoa ou coisa estrangeira, e, como consequência mais depreciador do que
é da terra, que ele. (FEITOSA, 2007: 31 Apud GOMES NETO, 122).
No começo do século XX, após três séculos de estagnação, as elites potiguares tinham
fome de modernidade e a sonhavam com entusiasmo. Duas conferências proferidas em 1909
por Eloy de Souza (Costumes Locais) e Manoel Dantas (Natal daqui a cinquenta anos),
constroem representações projetando o futuro da cidade. Essa representação expressam o
desejo de desenvolvimento social em todos os sentidos.
Eloy de Souza fala sobre a ‘província cosmopolita’ e o processo histórico de
transformações econômicas, políticas e sociais que se aproximavam com a modernidade. Já
Manoel Dantas sonha abertamente com o futuro, em uma narrativa imaginativa e intertextual,
misturando suas esperanças reais de desenvolvimento com narrativas de ficção, humor e
poesia mitológica.
Manoel Dantas é um personagem singular nesse contexto: um sertanejo com sede de
modernidade. E é aqui que se evidencia a aporia apresentada por Tarcísio Gurgel, o
qual situa Dantas entre a tradição e a vanguarda (GOMES NETO, 62).
Além de sonhar o futuro, Dantas também poetiza o passado, escrevendo o Auto de
fundação da cidade do Natal por Jerônimo de Albuquerque. A cidade “escolhida para dar
louvor ao Salvador” também foi amaldiçoada: as dunas, os “ciclopes de areia” na narrativa
mítico-poética de Dantas, continuavam ameaçando, mantendo-a em castigo no isolamento,
sob o constante risco de ser “soterrada” pele areia das dunas (ASSAD & SOUZA, 2009)9.
Outro aspecto evidente da como as elites rurais do RN aspiravam com paixão por
modernidade na primeira metade do século XX, valorizando o externo e diminuindo o local, é
o comportamento pretensamente moderno dos governantes.
Esse comportamento pode ser observado tanto na oligarquia Albuquerque Maranhão
como no governador Juvenal Lamartine, representante das oligarquias do Seridó, que
governou o estado de 1928 até a ser deposto pela revolução de 1930. Do começo do século
8 Pseudônimo de Antônio José de Melo e Souza, deputado e senador, governou o estado em duas oportunidades
e também atuou como Procurador da República, além de sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico/RN,
escritor, jornalista, poeta, historiador, contista e romancista.
9 Em homenagem a Manoel Dantas, a revista nome dado aos ciclopes de areia – publicou vários textos sobre a
identidade cultural de Natal.
passado até 1928, o Rio Grande do Norte foi governado pela mesma oligarquia do fundador
da cidade (Jerônimo de Albuquerque) e do principal mártir da revolução de 1817 (André
Albuquerque): Pedro Velho (primeiro governador republicano em 1889 e duas outras vezes
em 90 e 92); Alberto Maranhão em 1895 e em 1908; Tavares de Lyra; entre outros. Apesar
formarem uma oligarquia rural esses homens foram republicanos extremamente cultos, sendo
responsáveis pela construção da principal narrativa historiográfica de nossa identidade
cultural arcaica.
Há também a versão contra hegemônica de Rocha Pombo, simpatizante das
oligarquias do Seridó e da vida sertaneja como ‘identidade estadual do RN’. Rocha Pombo
discorda da data de fundação de Natal e minimiza o sacrifício republicano de André de
Albuquerque, diminuindo o papel de sua família na história do RN.
As elites seridoenses (vinculadas à pecuária e ao cultivo do algodão) que sucederam a
dinastia Albuquerque Maranhão eram tão modernas quanto às natalenses. Os governadores
Antônio José de Melo e Sousa (Polycarpo Feitosa) e José Augusto Medeiros (que governaram
de 1921 a 1927) também eram homens doutos modernos.
O governador Juvenal Lamartine de Faria (que governou de 1928 até ser deposto pela
revolução de 30) também é frequentemente descrito como visionário, vanguardista e até
feminista, responsável pelo voto feminino e a efetiva inclusão participativa da mulher na
política.
Juvenal Lamartine também é apresentado como um pioneiro da aviação civil no
estado, com a construção de mais de 20 pistas de pouso no interior do estado, além de
fundador do Aeroclube de Natal.
Tanta modernidade era combinada com uma submissão canina ao governo federal e à
repressão implacável aos que lhes fizeram oposição. Durante o governo de Juvenal Lamartine
os espancamentos, prisões e invasões a sindicatos e jornais pela polícia eram frequentes.
Enquanto posava de feminista a nível nacional, Lamartine perseguia Sandoval Wanderley e
Café Filho (GOMES NETO, 2010, 141).
Aliás, a revolução de 1930 e o levante comunista de 1937 em Natal – não estudados
por Gomes Neto em relação à identidade Natalense (ou sua ausência) – vão aprofundar ainda
mais a sede de modernidade da cidade.
Para investigar a entrada do RN na modernidade, no entanto, vamos pausar um pouco
nossa releitura histórica e introduzir alguns conceitos necessários a ampliação sociológica de
perspectiva.
5.
A modernidade inautêntica
A identidade moderna exclui o que é pessoal, antigo, tradicional; e deseja incluir tudo
que for novo, urbano, tecnológico, sempre de modo uniformizado e universal. Ser moderno
mais do que ser progressista e laico, significa ter uma visão objetiva de si como produto da
sociedade industrial; é acreditar que a natureza e o corpo são máquinas biológicas; é viver em
um universo mecânico formado por coisas e objetos. As identidades modernas são
domesticações simbólicas das antigas identidades tradicionais, colonizações cívicas das
mitologias locais.
A identidade nacional, ancorada no estado territorial, é expressão principal deste auto
reconhecimento de modernidade. As identidades nacionais são permeáveis a elementos
simbólicos distantes e rejeita os elementos culturais de seus vizinhos.
Ser moderno é ainda viver voltado para o futuro, enquanto as tradições são identidades
voltadas para o passado. A identidade moderna implica no risco de escrever a própria história,
na dúvida sistemática, no ‘universal-cosmopolita’ dos centros urbanos, a identidade indefinida
das massas culturalmente industrializadas.
Em uma perspectiva histórica mais ampla, há também vários autores que sugerem que
a modernização cultural brasileira não foi autêntica, mas “para inglês ver” – como se diz
popularmente. Por detrás de uma identidade de fachada moderna, continuamos ‘índios’
afetuosos e idiotas: “cordiais” e incapazes de racionalidade objetiva (HOLLANDA, 1987);
culturalmente corruptos, que não distinguem entre a esfera pública e a vida privada de sua
família (FAORO, 1979); ou ainda pessoas sem igualdade individual, que dão um ‘jeitinho’
para se colocar acima de todas as regras (DAMATTA, 1997). Para esses autores, o colono
português no Brasil foi mais promiscuo, sentimental, já era mestiço de várias etnias, católico
por conveniência, preguiçoso, socialmente irresponsável e outras tantas características
negativas responsáveis por nossa desgraça cultural.
O sociólogo Jesse Souza (2000) é o principal crítico desta forma de pensar, a que
chama “sociologia da inautenticidade”. Ela está enraizada no senso comum e é polinizada
através da própria cultura brasileira, de forma ideológica, para perpetuar sutilmente nossa
submissão e inferioridade em relação à modernidade ocidental, o nosso tão propalado
“complexo de vira-lata”. Em sua crítica à sociologia da inautenticidade, Souza se aproxima de
Gilberto Freire (1996) e Darcy Ribeiro. Enquanto Freyre coloca a miscigenação étnica como
fator central da cultura brasileira; Ribeiro sugere a ‘ningüéndade’ como produto histórico
desta miscigenação. Souza se aproxima desses autores por não priorizarem o papel da herança
ibérica maldita e entenderem a miscigenação como um fator positivo da singularidade
brasileira, mas deles se distancia em função de seu foco fechado sobre a questão escravista (a
desigualdade social) como questão central.
A crítica de Souza à inautenticidade moderna ajuda a entender nossa identidade em
sua particularidade, como resultado de um processo histórico singular e seletivo de
desenvolvimento encoberto e naturalizado no senso comum. Ele enfatiza a escravidão e a
desigualdade social na raiz da organização do Brasil. Por outro lado, tanto Freyre quanto
Damatta enfatizam que a família patriarcal é uma instituição anterior ao Estado e ao Mercado.
6.
A encruzilhada do mundo
Então, quando os americanos chegaram para estabelecer uma base área em
Parnamirim, Natal já tinha apreço pelo estrangeiro e baixa estima pelo próprio. Mas, isso
não diminuiu o impacto da presença americana, que transformou uma ‘fazenda iluminada’
na encruzilhada do mundo.
Três grandes caminhos aéreos convergem para Natal: do Norte procedente do
Amazonas e dos Estados Unidos; do leste, procedente da África, da Europa e do
Médio e do Extremo Oriente; e do Sul, procedente do Rio, das Repúblicas platinas e
outras sul-americanas. Sob esse aspecto, Natal é, talvez, atualmente, a mais
importante encruzilhada do mundo [...]. Viajantes de todos os pontos do mundo
chegam diariamente a Natal, há muito tempo. Aqui, estiveram presentes Getúlio
Vargas, o presidente Roosevelt, o primeiro ministro Churchill, o Sr. Wendell Wilkie,
a Sra. Chiang-Kai-Shek, a Sra. Eleonor Roosevelt. Por aqui tem passado
embaixadores e representantes diplomáticos de quase todos os países: turcos,
mulçumanos, suíços, australianos. Muitos deles são jornalistas ou escritores, que
andam anotando, comentando e comprando, e que mais tarde desejarão prestar
depoimento sobre essas viagens – o que eles dirão do Brasil? É esta a nossa
preocupação. Muitos viram senão esta pequena e risonha cidade do Natal. (NATAL,
ENCRUZILHADA DO MUNDO apud OLIVEIRA, 2008: 212- 213 apud GOMES
NETO, 2010, 77).
Algumas autobiografias afirmam que a presença estadunidense acabou com as
tradições locais, com hábitos e costumes que influenciaram no modo como o RN se relaciona
com seus bens culturais. O imperialismo cultural dos EUA transformou a cidade em uma
‘Londres nordestina’: a população local mimetizou hábitos alimentares (consumo de
enlatados, da goma de mascar, da Coca-Cola), dança e música, gestos, modos de vestir e falar
dos americanos. Segundo essas análises, o potiguar perdeu grande parte de seus referenciais
identitários, em um “encantamento” pelo outro que perdura até hoje.
Representantes de todos os países, gente de todas as raças, crentes de todas as
religiões, altas patentes de todos os exércitos, ministros, heróis, aventureiros, já
passaram por Natal, encruzilhados de milhões de destinos. As ruas da cidade, em
certos dias, se enfeitam de tipos exóticos, de esquisitas indumentárias, de perfis
latinos, anglo-saxônico, eslavos, semitas, negros e amarelos (Djalma MARANHÃO
Apud SILVA, 1998: 66-67).
Por outro lado, para Câmara Cascudo (1999), esse era o destino histórico e mítico da
cidade, seu devir, sonhado por Antônio de Souza em 1898, projetado por Eloy de Souza e
Manoel Dantas, em 1909. O futuro tinha enfim chegado. A fazenda iluminada acordara de
“seu sono três vezes secular” para se tornar o que sempre tinha sido: uma babel multicultural.
Entre os trabalhos acadêmicos mais recentes, apenas a professora Costa da Silva
(1998) segue a perspectiva otimista de Cascudo. Oliveira (2008) e Sá Pedreira (2005) são
críticas em relação à entrada na modernidade e apresentam um saldo social e cultural negativo
da presença americana em Natal. Oliveira estima que a população da capital potiguar à época
era de aproximadamente 50 mil habitantes e que entre 10 e 15 mil militares estrangeiros
estiveram nela só no período de 1942 a 1943, quando o tráfego foi maior:
O impacto de viver sob a iminência de abrigar as batalhas da Segunda Guerra
Mundial e a rapidez como as mudanças ocorreram no espaço da cidade certamente
influíram na maneira como as elites políticas registraram o vivido, assim, as
transformações trouxeram uma nova realidade que pode ter provocado mudanças na
constituição da identidade da cidade, assim como as transformações podem ser
responsabilizadas pelas intervenções ocorridas, pela cristalização de sua
configuração espacial e pelo seu desenvolvimento econômico e social (OLIVEIRA,
2008: 19).
Ao mesmo tempo em que se internacionalizava, a cidade também desenvolveu um
processo de segregação social interna, em virtude da chegada de retirantes da seca do interior
atraídos pelo clima de prosperidade das elites com os soldados estrangeiros.
A concentração das vítimas das secas evitará que repitam os abusos até ontem
verificados, e nesse sentido a polícia tomará medidas enérgicas de repressão, não
consentindo que continue o espetáculo constrangedor de que vínhamos sendo
testemunhas [...]. Com estas providências [concentrar os imigrantes em palhoças,
num acampamento afastado da cidade] o problema encontrou sua solução mais
lógica e eficiente. (MEDIDAS NECESSÁRIAS Apud OLIVEIRA, 2008: 195.)
Outra medida do poder público local para amenizar a superlotação na cidade, foi
enviar parte dos retirantes como ‘soldados da borracha’ para os seringais da Amazônia
(PEREIRA SÁ, 2005: 110). Um aspecto importante nesse processo de aculturação das
elites/segregação das classes populares é o carnaval. Não é por acaso que o Rio de Janeiro,
Salvador e Recife têm as identidades culturais mais antropofágicas do Brasil, mas sim devido
à inclusão das identidades negra e nativa na cultura através do carnaval. Reparem que a
participação popular no carnaval faz a identidade antropofágica se ampliar deixando de ser
elitista para incluir todos. Durante o estado novo, as escolas de samba e outras manifestações
culturais populares foram proibidas. Natal era um lugar de divertimento durante a guerra para
os estrangeiros e as elites que lhes imitavam os costumes. Para a população mais pobre, no
entanto, não havia nenhum tipo de entretenimento.
Pode-se dizer que Oliveira e Pereira Sá correspondem a uma interpretação mais
próxima da de Jesse Souza sobre a suposta inautenticidade cultural da modernidade brasileira
(relacionando-a com a desigualdade e com a exclusão social); enquanto Costa da Silva e
Câmara Cascudo enfatizam mais a ‘tradição cosmopolita’, o encontro da vocação
antropofágica com o destino multicultural da cidade. Surgem, então, dois discursos
explicativos gêmeos, de polaridades opostas mas que reforçam a mesma hipótese da falta de
identidade: a) Natal é um caso crônico de uma cultura descaracterizada sem memória, nem
‘raízes históricas’ - ela não se reconhece como parte de uma comunidade de pertencimento; e
b) Natal tem múltiplas identidades: a “cidade presépio” é aquela que está sempre nascendo,
sua identidade está sempre porvir, sua cultura voltada para o futuro.
O certo é que a presença norte-americana contribuiu bastante para aprofundar as
características de identidade cultural da cidade.
Nesse sentido, a construção da potiguaridade vai sendo mapeada e circunscrita
dentro de um discurso da ausência, de falta. Vai sendo desenhado a partir do que ele
não é, em detrimento daquilo que deveria ser. E, neste cenário, seja para projetar
uma identidade – moderna e cosmopolita – ou para negar a existência dela, a
presença estadunidense nestas plagas é sempre destacada. GOMES NETO, 2010, 81.
7.
A cidade do Sol
Com o turismo, a partir dos anos 80, a prefeitura e o governo do estado investiram
bastante na imagem da cidade, com campanhas publicitárias ressaltando os elementos
simbólicos e cívicos; os monumentos históricos; o meio ambiente; tradições culturais quase
extintas; e, sobretudo, a celebração dos mártires de Cunhaú. Tais elementos, no entanto, são
totalmente artificiais e sem raízes, criadas para dar uma face externa à cidade, mas sem que
seus integrantes se sintam por ela representados.
A globalização parece ter tido um efeito contrário, desencadeando um movimento
regionalista tardio, midiático e artificial. Por exemplo: a chegada da rede internacional do
Carrefour, nos anos 90, à cidade levou aos supermercados locais, a financiar campanhas
publicitárias com slogans regionalistas: “Orgulho de ser nordestino”, ou ainda, “Gente da
terra da gente”. O recrudescimento das relações parentesco (das famílias locais defendendo
seus privilégios diante de uma nova invasão estrangeira) pode ser observado em vários
eventos, como a tentativa de criar uma cota de vagas estaduais para ingresso na universidade
federal. Finalmente, os Natalenses começaram a se defender culturalmente dos estrangeiros e
não a festeja-los em detrimento de si mesmos.
Mas, já era tarde! Com o turismo, muitas pessoas saíram dos grandes centros urbanos
e vieram morar na cidade atraídos pela qualidade de vida e hoje a maioria dos residentes não
são mais de nativos da cidade. E as novas gerações natalenses não tem sotaque regional, mas
imitam em sua fala o chiado carioca e o ‘r’ caipira do interior de São Paulo, adquiridos
através da mídia.
Natal desde então passa a encarnar a simbologia sol/mar, converte-se em Cidade do
Sol e se consolida como destino turístico no cenário nacional, fortalecendo as
políticas públicas para dotar a capital com uma maior infraestrutura turística nas
áreas mais requisitadas. Tendo como consequência a segregação espacial da cidade.
Surge a Natal espetáculo, cidade vitrine, cidade exportação. Toda identidade é
construída, nas três últimas décadas o poder público e parte da iniciativa privada
obtiveram êxito em nos definir como uma cidade vitrine, voltada para fora, mas e
nós? Quando olhamos para dentro, o que enxergamos? (MADSON, 2016) 10
A globalização e a internet permitem a participação em uma multiplicidade de novas
comunidades de pertencimento não locais, compartilhando diferentes formas de ser e estar no
mundo. Há um sentimento de pertencimento mútuo vinculando esses indivíduos a essas novas
comunidades de referência, mas isto não significa necessariamente uma alienação da
comunidade local.
Natal parece cidade de partida, nunca de chegada. Ou se chega para partir depois. Se
visita, portanto. É que nada aqui dura muito. Bares da moda, bandas da moda,
estéticas da moda. Diógenes da Cunha Lima já poetizou que na Ribeira só o que
passa, permanece. Natal toda guarda esse princípio. (...) Talvez sejam as dunas
móveis onde nada se sustenta. Talvez seja a extensão litorânea com o além-mar a
apontar sempre novas possibilidades. Talvez seja a saudade eterna dos norteamericanos que vieram, chacoalharam a cidade e foram embora em debandada. Fato
é que Natal vive de história e imaginário, de nostalgia e ilusão. (...)
Natal vive do ontem. Na política coronelista. Na economia atrasada. Nos
movimentos sociais torpes. Vive de lendas. Da presença de Exupéry. Da Cidade
Espacial de Manoel Dantas. Da cidade cosmopolita. O escritor Pablo Capistrano foi
certeiro: “Natal é cidade formada por matutos cosmopolitas e sertanejos que moram
na praia”. E François Silvestre comprova: “O mapa do RN se parece muito mais
com um caranguejo, mas não, queremos ser o elefante” (VILAR, 2017).
Ao longo de sua história, pode-se perceber que mais do que uma ‘falta de identidade’,
Natal sofre de ‘excesso de identidade’. A cidade coleciona várias alcunhas: cidade presépio
(em virtude do simbolismo de fundação); Nova Amsterdã (durante o período holandês); ‘Não
há tal’ (devido ao isolamento colonial); província cosmopolita (pela elite rural republicana);
encruzilhada do mundo, cidade trampolim da vitória, esquina do continente (pelo sua
10 O texto faz, de forma resumida, um precioso relato histórico do desenvolvimento cultural de Natal em relação
ao turismo a partir dos anos 60, destacando a questão da identidade da cidade.
localização estratégica durante a guerra); e, finalmente, Cidade do Sol (identidade publicitária
produzida no contexto turístico).
Encerrando as linhas últimas dessa escritura, pergunta-se: então, existe identidade
potiguar? A indagação não é absurda, tendo vista toda ação que despendeu ao curso
de mais de dois anos, tendo envolvido investimentos públicos, tomado tempo de
atores sociais diversos e ocupado o espaço que poderia ter sido utilizado por outra
pesquisa. Mas esperar e, sobretudo, fornecer respostas conclusivas a ela seriam
ações demasiadamente arriscadas, precipitadas. Mesmo assim, há pelo menos duas
maneiras de respondê-la. A primeira, mas curta e enganosamente mais fácil: não
existe identidade potiguar. Mas há outra possível. Menos fatalista, mais complexa e,
por natureza, mais movediça: a identidade potiguar é justamente não ter identidade.
Ela existe porque se afirma um eu em contraposição a um outro, porque está eivada
de alteridade. Dito de outra maneira, habitam tantas identidades no que se
convencionou de identidade potiguar que por motivos de ordem variada, não se
construiu um discurso homogêneo sobre ela, apesar das tentativas difícil de serem
enumeradas (GOMES NETO, 2010, 140).
8.
Enquadramento sociológico da identidade cultural
É possível uma cidade não ter identidade cultural? Não. E ter várias, escondendo
assim seu vazio? Também não. Essas opções são metáforas poéticas, absurdos conceituais do
ponto de vista da teoria sociológica.
Durval Muniz, em pesquisa de doutorado, A Invenção do Nordeste e Outras Artes
(1999) desmascara o engendramento de determinada espacialidade por uma rede discursiva
que trabalhava para barrar o avanço das relações capitalistas de produção. Para ele, o nordeste
é “uma formação discursiva”, um contrapeso ao desenvolvimento industrial do Sudeste, uma
estratégia das elites rurais para perpetuar seu poder frente as classes sociais modernas.
E, dito isso, é preciso também dizer que cada elite estadual encontrou uma forma
particular de se subdesenvolver. Impossível entender uma cultura estadual fora de seu
contexto regional, levando em conta apenas sua história intrínseca. Por outro lado, a
comparação sem parâmetros leva sempre a generalizações simplificadas. Por exemplo, a
afirmação de que: a) o Rio Grande do Norte não tem identidade cultural; b) na Paraíba, ao
contrário, a identidade cultural é ultra regionalista; e c) apenas Pernambuco tem uma relação
recíproca desejada entre identidade cultural e trocas simbólicas.
Essa forma de pensar, apesar de apresentar alguma coerência para o senso comum, é
uma simplificação grosseira de uma realidade bem mais complexa.
Tomamos emprestado alguns conceitos de Lévi-Strauss (1958), conceitos inadequados
quando utilizados dentro de sua noção original de estrutura social, muito fixa e dura para
entender as culturas contemporâneas. Nos referenciamos na proposta de ‘estruturação’ de
Giddens (1986), em que as práticas sociais vão gerando recorrências históricas – de onde
podemos pensar ‘princípios e regras estruturais’. A cultura para Strauss é formada por três
sistemas de trocas: o sistema econômico (troca de bens), o sistema linguístico (troca de
signos) e o sistema de parentesco (troca de mulheres).
Pode-se dizer que a cultura Natalense coloca o sistema de parentesco acima dos
sistemas de econômico (segundo lugar) e linguístico. A cultura potiguar contrasta com as de
seus vizinhos. A cultura de João Pessoa, na Paraíba, enfatiza mais o sistema de troca de signos
do que os de genes (segundo lugar) e bens11. Também contrasta com a de Fortaleza, capital do
Ceará, que prioriza a economia e o parentesco (em segundo lugar), invertendo os fatores
principais e deprecia a produção simbólica. Seguindo esses parâmetros, a cultura potiguar se
assemelha a de Maceió, em Alagoas. Em ambos os casos, a herança colonial da família
patriarcal, como instituição anterior ao mercado e ao estado é ‘sobredeterminante’12 das
relações sociais.
Como se definiu antes, há três posições distintas para a noção de identidade: a) a
identidade social imposta para descaracterizar a pessoa, transformando-a em um indivíduo
uniforme e submisso; b) a identidade auto definida de resistência (não apenas à colonização
cultural, mas, também e sobretudo, à domesticação disciplinar dos corpos); e c) a identidade
mestiça ou híbrida (antropofágica), a metamorfose permanente da consciência, sempre em
11 Também é possível comparar as culturas paraibana e pernambucana, ambas com ênfase na produção
simbólica, mas com diferenças em relação aos fatores secundários e terciários invertidos.
12 Termo lacaniano que o marxista Althusser adaptou para justificar o determinismo estrutural econômico em
uma última instância. Segundo ele, a ‘sobredeterminação’ é uma determinação estrutural em primeira instância
ou imediata – que não exclui o determinismo econômico histórico.
interação com outras identidades e com o ambiente. Essas três posições, no entanto, são tipos
ideais e estão presentes simultaneamente, em diferentes graus, em todas identidades reais.
Cabe, então, usá-las como parâmetros de análise, observando em que medida cada uma atua
nas próprias crenças e na imagem de pertencimento a um grupo.
Há uma dialética entre a identidade imposta e a auto definida, com resultados
simultaneamente colonizados e antropofágicos em diferentes graus. A identidades finais são
diferentes arranjos (de inclusão e exclusão de elementos simbólicos) em torno da contradição
entre o imposto e o exposto, entre o social e o pessoal, entre o arbitrário e o subversivo 13. A
identidade antropofágica é a resiliência (adaptação criativa) do colonizado à colonização, o
equilíbrio dinâmico entre a identidade social atribuída por outros e a auto identidade. O
movimento Armorial e Manguebeat, por exemplo, são manifestações culturais antropofágicas
da elite cultural nordestina. Já o ‘forró eletrônico’ (e toda uma cultura popular artificial)
consumido pelas massas, funciona como a velha indústria cultural de homogeneização
simbólica – mesmo sendo ‘regionalista’.
9.
O Homo Ludens
No livro Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem (1998), Vilém
Flusser14 caracteriza o 'modo de ser brasileiro' como um protótipo do homo ludens, um novo
homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele.
A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos. Flusser vê o brasileiro de
modo semelhante a Darci Ribeiro descrevendo três estratégias de jogo colonial.
A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo arriscando a derrota – como os
norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos que jogam para não perder,
13 A africanização simbólica dos negros americanos como identidade cultural, por exemplo. Nos EUA, a
identidade negra norte-americana é resultante de uma dialética entre a conquista da igualdade, ponto de vista
representado por Martin Luther King; e a ênfase na construção de uma identidade própria, defendida por
Malcolm X. Luther King enfatizava os direitos civis e a cidadania americana para todos os afrodescendentes,
materializada no direito ao acesso de banheiros, escolas, transportes e espaços públicos – em pé de igualdade
com os americanos brancos – o que corresponde democratizar a identidade socialmente imposta. Já Malcolm X
defendia a criação de uma identidade negra americana própria – valorizando a auto definição da própria
identidade. As duas proposições, juntas, formaram e ainda formam uma subcultura dominante, em que a
identidade negra, por um lado, é mais enquadrada do que integrada; por outro, estabelece um padrão ético e
estético superior ao da cultura colonizadora.
14 Vilém Flusser (1920-1991) é um pensador tcheco naturalizado brasileiro que teve seus pais mortos em
campos de concentração nazistas e conseguiu fugir, vivendo no Brasil de 1940 a 1972. País em que tornouse um
filósofo singular, 'excêntrico', sendo marginalizado no mundo acadêmico. Seus textos não tinham notas de
rodapé, citações ou referências bibliográficas; seu estilo era simples e poético; seus temas incomuns: o diabo em
sua luta contra a eternidade, o significado da natureza para ciência, a fotografia como novo paradigma cultural, a
dúvida como uma singularidade humana. Flusser, então, voltou à Europa, onde conquistou a consagração
internacional como um “filósofo da nova mídia” a partir da ótica do “canibalismo brasileiro”. Morreu em Praga,
dia 21 de dezembro de 1991, em decorrência de um acidente automobilístico.
buscando reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso – como a maioria dos povos
latinos americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam para mudar o jogo, que
caracteriza o 'modo brasileiro'. A estratégia três corresponde a uma forma de resistência
criativa à aculturação colonizadora, uma identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita
a cultura do colonizador: a absorve e a recria com sua própria linguagem.
Não se trata mais de identidade de um povo ou estratégia de sobrevivência dos
dominados, mas sim de um modelo de comportamento cultural resiliente a ser adotado por
todos os povos em um futuro global. As alteridades, aproximações, estranhamentos e a
maneira como os grupos interagem ao longo da história acabam criando relações de poder de
acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro. Flusser reconhece que, para os
povos colonizados, afirmar sua identidade cultural é um ato de resistência muito doloroso
porque implica em superar o não reconhecimento do outro (e de si mesmo projetado no
colonizador), mas também compreende a antropofagia como um método de diálogo dentro de
um contexto da interculturalidade, reconhecendo que cada um tem sua história e uma
identidade própria a ser respeitada, cultivada e celebrada.
Muitos autores contemporâneos alertam para os problemas recentes resultantes das
identidades pós-modernas atuais.
John B. Thompson (1998), por exemplo, diz que uma nova experiência do Self em um
mundo mediado e globalizado decorre de uma nova ancoragem das tradições e das
identidades culturais territoriais. As culturas de diferentes locais se interpretam e
interpenetram a distância, formando identidades híbridas globais.
Outros - como Giddens (2003) e Castells (2008) - apontam o fenômeno do ‘fanatismo’
(de diferentes sistemas de crenças) como o agravamento simbólico das identidades fechadas à
hibridação cultural. Nessa lógica, apenas as identidades inclusivas e resilientes se adaptam e
sobrevivem. As identidades que celebram sua suposta superioridade e/ou inferioridade são
isoladas, ou melhor, se isolam em seu fanatismo. Assim, ou a cultura global com a
uniformização das culturas regionais ou o fanatismo das identidades fortes.
Darcy Ribeiro e Vilém Flusser sugerem uma terceira estratégia: nem sucumbir ao
Alzheimer cultural da própria história, nem retroceder às identidades territoriais, a inclusão
cultural das camadas populares pela educação15 pode gestar uma identidade híbrida global.
10.
Identidade, memória e narrativa
Entre as imagens autodepreciativas que os Natalenses utilizam para explicar seu modo
de ser, há a afirmação de que eles se comportam como goiamuns presos no cesto. Quando um
tenta sair do balaio, se destacando do coletivo, outros o puxam de volta, como se dissessem “é
o melhor o fracasso de todos que a vitória de um”. É a prática de “pagar três mil para que o
outro não ganhe trinta” (de impedir que seus iguais não conquistem autonomia do grupo) ou a
síndrome de caranguejo. Trata-se de um dispositivo16 - uma configuração do inconsciente
grupal - e não de uma patologia, nem muito menos de ‘falta’ de identidade cultural. Quando
não se define a própria identidade, os outros tratam de impor uma definição depreciativa. O
encantamento pelo outro e a auto depreciação local tornaram-se um habitus17, “uma ação
automatizada como prática social”, que continua a se perpetuar, reproduzindo um
comportamento xenólatra, cada vez mais reforçado pela situação.
Por um lado, Natal sempre foi habitada por estrangeiros, ou melhor, somos todos
estrangeiros ou descendentes de estrangeiros. Daí também a alcunha: “terra de estrangeiros”.
E esse era o sonho de Câmara Cascudo: Se essa é nossa natureza, esse é nosso destino – o
projeto de que nossa natureza antropofágica determine nosso destino cosmopolita; de que esse
foi, é e será nosso devir. Por outro lado, é inegável que a descaracterização de elementos
simbólicos da identidade Natalense leva à baixa estima cultural, à prostituição e à
‘inautenticidade’.
Quando se fala de identidade, sempre pensamos que ela é a imagem sintética de uma
15 Em conjunto com a inclusão social no mercado consumidor via um programa de distribuição de renda (como
o Bolsa-família) e outros programas sociais.
16 Dispositivo é um conjunto heterogêneo de pessoas, coisas e signos - uma rede formada por acontecimentos
recorrentes em uma determinada correlação de forças - que formam uma estratégia dentro de uma relação de
poder microfísico (AGAMBEN, 2005).
17 Os especialistas (JOURDAIN, 2017, 49-53) destacam três conceitos de habitus em Bourdieu, no decorrer da
evolução do seu pensamento: o habitus determinista do livro A Reprodução (“a interiorização do exterior e a
exteriorização do interior”); o habitus-inércia como uma força de resistência à mudanças em várias obras
intermediárias; e, finalmente, o habitus probabilístico, formado por ‘esquemas de percepção, de julgamento e de
comportamento’ incorporados semi conscientemente pelos agentes de A Distinção (2007). Essa última
concepção de habitus é adequada para pensar o complexo cultural de Natal.
narrativa da memória social. A identidade cultural seria assim o resultado histórico das
narrativas da memória coletiva e individuais de um determinado lugar. Bergson (1999) – e a
partir dele muitos outros – nos convida a pensar o reverso: a memória como uma reelaboração
do passado uno presente, como a nova atualização de uma lembrança antiga.
Há uma dialetica entre memória e identidade. Por um lado, a memória é a fonte de
conhecimento do passado; por outro, o ato memorativo é uma revisão do passado que o
atualiza segundo o contexto presente. Há vários autores que exploram essa reciprocidade entre
identidade e memória (HALL, 2006; CANCLINI, 2000), em que o sujeito concebe a si
mesmo através da contradição entre o passado com a interação imediata com o mundo a sua
volta. A memória fundamenta historicamente a identidade e a identidade enquadra
culturalmente a memória – em um circuito fechado.
Uma Identidade Cultural de uma cidade é uma representação histórica de longo prazo,
uma estrutura feita de memória coletiva e de esquecimento durante séculos. Porém, há
também o olhar inverso de como essa identidade interpreta seu passado. Nesse sentido, os
conceitos de ‘dispositivo’ e de ‘habitus’ são melhores para descrever o complexo cultural de
Natal do que a noção de ‘ausência de identidade cultura’, porque eles não o eternizam do
ponto de vista estrutural. As noções de dispositivo e de habitus compreendem o complexo de
Natal como a formação de um padrão cognitivo, que tanto pode ser vivido de forma passiva
quanto também ser transformado, a partir de suas características. Essa forma de pensar
permite a possibilidade de uma virada antropofágica: que a cultura local se reinvente através
da global e que a identidade seja um projeto em aberto.
O ‘dispositivo goiamum’ é um complexo cultural de relações de micro poder
específicas da cidade do Natal, mas, ao mesmo tempo, é também um microcosmo singular da
cultura brasileira como um todo, em que algumas características de nosso ‘complexo de viralata’ nacional são ampliados: a valorização exacerbada dos favores pessoais e políticos, do
nepotismo e do clientelismo, do espectro vivo da família patriarcal acima das instituições
modernas, da incapacidade cultural para vida pública e para igualdade jurídica entre
indivíduos em virtude da afetividade e das relações pessoais.
As narrativas são mediações desta dialetica entre memória e identidade. Quando nos
lembramos de um acontecimento passado para contá-lo no presente elaboramos uma
narrativa. E foram justamente os autores preocupados com as narrativas autobiográficas mais
recentes (CANDAU, 2018; RICOEUR, 1994) que primeiro entenderam a dimensão oculta das
narrativas, os silenciamentos discursivos, as omissões históricas, ou seja: tudo aquilo que é
invisível na ideia de identidade: o futuro e o outro.
Para Paul Ricoeur, toda uma narrativa tem uma dimensão prescritiva implícita, a
chamada “moral da história”, que corresponde a mensagem psicológica universal daquela
narrativa. Essa dimensão prescritiva é invisível e corresponde a um vir a ser ou devir, a uma
simulação embutida do futuro. O projeto, o destino, o sonho é a negação da negação da
dialética narrativa entre memória e identidade. O lembrado e o descrito ocultam o imaginado.
Tanto o passado como o presente se organizam para sua emersão do invisível, como
manifestação final do inconsciente.
Já para Candau, essa dimensão inconsciente da identidade nos remete ao Outro e à
alteridade. A diferentes tipos de Outro. Psicologicamente, só existe ‘eu’ em função do ‘ele’;
culturalmente só existem ‘nós’ em relação a ‘eles’. Nessa perspectiva, o conflito entre
memória social e identidade cultural é uma negociação com os outros, com os antepassados,
com os pais, com amigos e amantes, com vizinhos e estrangeiros. E deste terceiro ponto de
vista, a identidade de Natal é uma utopia multicultural. Ela foi planejada para esse devir, para
o acolhimento do outro e sua devoração alegre. Além disso, a ideia de uma identidade cultural
fixa e imutável foi fragmentada pela globalização na pós-modernidade.
Em virtude desta ‘sobredeterminação estrutural’ do parentesco e da família patriarcal
como de organização das relações sociais, as culturas de Natal e do Brasil nos ensinam que a
indefinição tem um lado positivo (a abertura ao mundo) e um lado negativo relativo à auto
depreciação. De um lado, a liberdade pessoal das preferências passageiras; de outro, o
sentimento de não pertencimento como um estigma cultural sem remédio.
O tema, assim, está muito distante de ser esgotado, tanto do ponto de vista teórico
como do da própria vida cultural da cidade e do País que seguem em transformação.
O que nos define afinal? Ou melhor: o que me define do ponto de vista pessoal? O
lugar em que nasci? Ou que adotei para morar? Meu grupo social? Minha família?
Essa identidade corresponde a preencher um cadastro (nome/individualidade e
família, endereço/território, profissão/lugar no mercado). É a identidade social
estruturalmente imposta. Sou então definido pelo Outro e pelos outros. E como eu
me defino? Através de meus sonhos e de minhas vontades? Eu sou meus gostos e
minhas preferências? Escolhas recorrentes? Ou são meus relacionamentos que me
definem? Meus desejos? Assim, eu me defino como alguém deseja se definir, mas
ainda não se identificou com nada. Um brasileiro do passado? Alguém que se
identificou com o nada e agora não consegue se definir mais. O cidadão do mundo
futuro ou apenas mais um Natalense?
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