Universidade do Estado de Santa Catarina
Centro de Ciências Humanas e da Educação
Programa de Pós-Graduação em História
Os riscos da democracia: da “transição lenta e gradual” à “onda
conservadora”
Relatório técnico de Estágio Pós-Doutoral
submetido ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade do Estado de
Santa Catarina.
Supervisor: Prof. Dr. Luiz Felipe Falcão
2018
Sumário
Introdução ................................................................................................................................. 3
1 A permanência de elementos autoritários na Constituição de 1988 ...................................... 7
2 Golpe de Estado: história de um conceito ............................................................................ 20
3 Possibilidades do fascismo no Tempo Presente ................................................................... 29
4 As ideias do movimento Escola Sem Partido como resquício da ditadura .......................... 37
Referências .............................................................................................................................. 45
Resumo das atividades realizadas ........................................................................................... 48
Introdução
No dia 31 de agosto de 2016, o senado brasileiro votou pelo definitivo afastamento da
presidente Dilma Rousseff. Essa votação coroava o processo de mobilização em defesa do
impeachment defendido por setores conservadores da sociedade, por meio de uma articulação
jurídica e parlamentar, com apoio de manifestações de rua que contaram com a massiva
participação da classe média, que visava a derrubada do governo encabeçado pelo Partido dos
Trabalhadores (PT). Os governos do PT, iniciados em 2003, significaram uma ruptura no
projeto político neoliberal que vinha sendo implementado pelos governos de Fernando
Henrique Cardoso (PSDB) no Brasil. Essa mudança no grupo político a governar o Estado
brasileiro significou, apesar das poucas mudanças nos princípios da macroeconomia, a
implantação de iniciativas visando melhor distribuição de renda para as populações mais
pobres, por meio de políticas de inclusão social e, no âmbito da política externa, uma tentativa
de construir alianças com os países chamados “emergentes”, como China e Índia.
O processo político de derrubada de Dilma Rousseff se deu como uma das expressões
da “onda conservadora”, ou seja, a crescente proliferação de ideias conservadoras, o
crescimento popularidade de políticos com posições de reacionárias e o crescimento de
grupos de propaganda de ideias de extrema direita. Esses elementos podem ser percebidos na
imprensa ainda em 2015. Segundo texto publicado na revista Carta Capital,
a crise política e econômica, ou o seu amálgama, para ser mais preciso, tem
impulsionado no Congresso a pauta mais reacionária desde o fim da
ditadura. Ataques a direitos trabalhistas e sociais, lobbies escancarados e
favor de empresas, projetos pessoais travestidos de interesses públicos.1
Esses setores também apresentaram pautas legislativas do que se poderia chamar de
temas comportamentais ou mesmo morais, numa clara mistura entre políticas e crenças
religiosas. Percebe-se, no âmbito da onda conservadora,
o avanço dos fundamentalistas, que tiraram da manga projetos do arco-davelha. Literalmente. Comissões especiais da Câmara dos Deputados
aprovaram textos medievais que estabelecem que a família é só aquela
formada por homem e mulher, que pretendem proibir o uso das pílulas do
dia seguinte e até que possibilitam às igrejas questionar decisões do Supremo
1
Rodrigo Martins. O elo perdido. Carta Capital, Ano XXI, Nº 875, 11 de novembro de 2015, p. 26.
Tribunal Federal. O pesadelo da transformação do Brasil em um Estado
teocrático praticamente não encontrou resistência nos tapetes embolorados
do Legislativo, mas sim nas ruas, com as mulheres à frente.2
O processo político que levou ao impeachment de Dilma Rousseff colocou em cena a
expressão de um conjunto de análises, oriundas dos mais variados segmentos sociais. Essas
diferentes percepções do processo indicam tanto bases teóricas diversas como diferentes
análises do processo que levou ao impeachment da presidente eleita. Não se trata de uma
mera dicotomia entre esquerda e direita ou governo e oposição, mas de um cenário que, além
de complexo, ainda está extremamente próximo e, por isso, gera interpretações apaixonadas,
díspares e até mesmo contraditórias. Nesse processo, “a testemunha que vê, a testemunha que
fala, a testemunha que escreve, seja o próprio historiador, desempenha claramente um papel
essencial, uma vez que é um mediador primário, para não dizer único”.3
O fenômeno político e social envolvido no impeachment foi analisado no meio
acadêmico, onde profissionais das mais diversas áreas se debruçaram sobre o tema,
expressando nesses espaços também as disputas que se vislumbram na sociedade. Entre os
historiadores, o debate acerca do Tempo Presente colocou a necessidade de compreender
historicamente os fatores que convergiram no processo político que levou à derrubada da
presidente Dilma Rousseff. Nesse processo, os próprios historiadores se colocam como parte
do processo de construção da narrativa, compartilhando percepções e memórias. Em função
disso, “o historiador que tenta apreender a história em movimento deixa-se também envolver
na marcha do tempo e deve aceitar que seu olhar é apenas parcial, limitado, frágil, bem ao
contrário da ilusão científica de dominar o sentido último da história”.4 O olhar do historiador,
portanto, também acaba por ser parcial, enfatizando certos acontecimentos e não outras e até
mesmo fortalecendo certas narrativas hegemônicas em detrimento de outros.
Para o historiador, em um processo político e social tão dinâmico, se coloca a questão
de se deve ou não se posicionar diante desses fenômenos. Não se trata de seu engajamento
individual ou de escolhas particulares, mas das opções teóricas e metodológicas na construção
da narrativa histórica, ao mesmo tempo se inserindo no processo que tenta mostrar em sua
mais ampla complexidade. Segundo Eric Hobsbawm, “o engajamento político pode servir
para contrabalançar a tendência crescente a olhar para dentro”, combatendo “a tendência a
2
Cynara Menezes. A revolução será feminina. Carta Capital, Ano XXI, Nº 882, 30 de dezembro de 2015, p. 48.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a História, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016, p.
282.
4
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a História, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016, p.
187.
3
desenvolver engenhosidade intelectual por ela mesma”.5 Nesse sentido, os historiadores,
“tendo trabalhado sobre questões terrivelmente sensíveis, tiveram de inventar, senão métodos,
pelo menos uma maneira de se colocar na paisagem. Eles tiveram de criar suas hierarquias
acerca das testemunhas, tentando dominar seus afetos sem com isso renunciar a suas
emoções”.6
O historiador acaba não assumindo uma postura panfletária ou até mesmo partidária,
mas de crítica mais ampla ao processo, em sua dinâmica política e social, analisando os
elementos para além de sua percepção individual e construindo uma interpretação que não
seja parcial nem redentora. Pode-se afirmar, nesse caso, que “a particularidade da história do
tempo presente está em que ela se interessa por um presente que é o seu, em um contexto em
que o passado não está acabado, nem encerrado”.7
Essa é a postura que mostraram alguns historiadores brasileiros, ao analisar o processo
político que levou ao impeachment de Dilma, na coletânea de ensaios Historiadores pela
democracia, publicada em 2016. Na apresentação da obra, as organizadoras do livro afirmam
que, “enquanto profissionais de história, sentimo-nos na obrigação de denunciar o golpe em
curso, tomando por base nossa experiência de pesquisa e os problemas que formulamos para
interrogar o passado”.8 Esclarecem ainda que as reflexões publicadas tomam “por base nossos
problemas de pesquisa específicos para interpretar os acontecimentos recentes e nos
posicionarmos no atual momento político”.9
A presente pesquisa procura se inserir nos debates acerca desse passado próximo. Por
um lado, busca-se contribuir na construção de uma narrativa acerca do Tempo Presente, ao
elucidar elementos dos mais diversos dos processos políticos e sociais ainda em curso no
Brasil. Por outro lado, pretende, em certa medida, intervir nesse processo, problematizando a
ação de forças políticas que vem mostrando disposição de atacar não apenas liberdades
democráticas, como direitos políticos conquistados nas últimas décadas, em especial pelos
trabalhadores. Ademais, coloca em análise o regime político dentro do qual vem ocorrendo
esse processo, mostrando as contradições dessa forma de democracia e as fragilidades que
5
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 154.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a História, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016, p.
186.
7
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a História, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016, p.
18.
8
MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz (Orgs.). Historiadores pela democracia: o golpe
de 2016 e a força do passado. São Paulo: Alameda, 2016, p. 10.
9
MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz (Orgs.). Historiadores pela democracia: o golpe
de 2016 e a força do passado. São Paulo: Alameda, 2016, p. 11.
6
foram impostos pela “transição lenta e gradual” encabeçada pelos militares ocorrida no final
da ditadura iniciada pelo golpe de 1964.
Na sequência são apresentados três ensaios que, apesar de não terem uma relação
direta entre si, refletem acerca dos processos políticos nas últimas décadas no Brasil. No
primeiro discute-se o processo de transição da ditadura para um novo regime e como as
disputas sociais e políticas se materializaram na permanência de elementos autoritários na
nova Constituição. No segundo ensaio discute-se o conceito de golpe, suas implicações
históricas e as particularidades desse fenômeno observadas nos últimos anos na América
Latina. No terceiro ensaio discute-se as possibilidades de uso do conceito de fascismo na
análise da atual situação política e social por que passa o Brasil. No último ensaio, também
discutindo o contexto da chamada “onda conservadora”, são analisados os elementos comuns
entre os discursos dos militares e do movimento Escola Sem Partido. No final apresenta-se
ainda um resumo das atividades realizadas durante o estágio pós-doutoral do qual esta
pesquisa é produto.
1 A permanência de elementos autoritários na Constituição de 1988*
Em 1988, foi aprovada a nova Constituição, substituindo o texto vigente durante a
ditadura. O novo texto, em contraste com aquele aprovado em 1967, expressava parte das
reivindicações dos movimentos sociais que se mobilizaram pelo fim da ditadura, nele ainda
permanecendo alguns elementos da legislação autoritária até então em vigor. Pode-se afirmar
que “o processo de transição não foi produto exclusivo das inciativas do governo militar e das
diversas frações do bloco no poder”, mas também “da interação entre os diversos agentes
políticos e sociais”.10 Seria possível afirmar, nesse sentido, que a propalada “transição
democrática” se constituiu em um processo inacabada, sendo possível se referir ao novo
regime como uma “democracia forte”, pondo fim apenas formalmente à ditadura civilmilitar.11
O elemento mais evidente dessa forma de democracia possivelmente é a participação
dos militares na vida política nacional. Mesmo depois da eleição de um civil como presidente
da República, os militares ainda ocupavam espaços na vida política do país e continuaram a
exercer influência sobre o Poder Executivo. Essa situação pode ser caracterizada como “tutela
militar”, ou seja, uma situação intermediária entre a democracia e a ditadura. Segundo Jorge
Zaverucha, ela é
uma condição na qual os militares continuam a se comportar autonomamente
– seja porque os civis não procuraram estabelecer o controle sobre eles,
como ocorre no Brasil, seja porque, embora tenham tentado, os civis se
revelaram incapazes de deter a autonomia dos militares, como ocorre na
Argentina.12
Nessa situação de tutela, os militares não ocupam as posições mais importantes do
Executivo, constituindo uma situação de equilíbrio instável que pode durar vários anos,
principalmente se persistirem as condições que geraram a última vitória política. Devido a
essa aliança tácita os militares defendem o status quo e não tentam dar um golpe de Estado,
desde que os civis garantam que a autonomia militar permaneça intocada. Nesse quadro, a
*
O presente ensaio desenvolve temas inicialmente desenvolvidas em SILVA, Michel Goulart da. História,
política e direitos humanos no Brasil. In: Michel Goulart da Silva. (Org.). Ensaios sobre história e política.
Florianópolis: Em Debate / UFSC, 2012, p. 184-215.
10
MACIEL, David. A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República (1974-1985). São Paulo:
Xamã, 2004, p. 25.
11
FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. 2ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982.
12
ZAVERUCHA, Jorge. Rumor dos sabres: controle civil ou tutela militar? São Paulo: Ática, 1994, p. 10.
tentativa por parte dos civis de consolidar a democracia pode fazer com que os militares
reajam com uma tentativa de golpe. Segundo Jorge Zaverucha, “no caso do Brasil, as relações
entre civis e militares são consideradas de tutela amistosa, o que significa alta conivência civil
na manutenção do comportamento autônomo militar, ou seja, preservação de enclaves
autoritários dentro do aparelho de Estado”.13 Ao final da ditadura, foi construída uma
democracia limitada, em que os militares continuaram a influenciar decisivamente na política
de Estado, enquanto parte dos governantes e parlamentares civis fizeram a opção por manter
uma relação amistosa e próxima com as Forças Armadas. Concretizou-se um pacto político
informal, no qual “os civis são governo, mas permitem que as Forças Armadas sejam também
poder, e estas em troca não golpeiam as instituições políticas, pelo contrário, garantem a
governabilidade nos momentos de crise”.14
Essa postura de civis e militares, que resulta num Estado com práticas autoritárias e
espaços restritos de democracia, foi perceptível na polêmica em torno da punição dos agentes
repressivos da ditadura e da abertura dos arquivos, que ganhou força principalmente nos
governos do presidente Lula. De um lado, alguns políticos civis, de esquerda e de direita,
procuram proteger os torturadores do passado, argumentando que a Lei de Anistia teria
garantido o perdão para os dois lados. Por outro lado, os militares fazem ameaças de
revogação da Lei de Anistia e de punição dos militantes da resistência à ditadura, inclusive
daqueles que optaram pelo pacto de silêncio para obter uma fatia no bolo da democracia
limitada.15 Como consequência, “em detrimento do debate sobre os direitos humanos, da
guerra suja, da tortura, do extermínio e dos desaparecimentos, a ‘história oficial’ resultante, de
forma geral, tentou justificar a atitude de indução da desmemoria”.16
Outra manifestação dessa tutela militar pode ser verificada também no próprio texto da
Constituição, especialmente quando se abre a possibilidade legal de uso da repressão em
conjunturas que os governantes considerem instável. Portanto, considerando as experiência
histórica das últimas décadas, não serie exagerado afirmar que “a ditadura, como constelação
social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se dissolveu”. 17 Apesar da
13
ZAVERUCHA, Jorge. Rumor dos sabres: controle civil ou tutela militar? São Paulo: Ática, 1994, p. 10.
ZAVERUCHA, Jorge. Frágil democracia: Collor, Itamar FHC e os militares (1990-1998). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000, p. 309.
15
Cf. SILVA, Michel Goulart da. Os militares brasileiros e a "grande mentira". In: Fernando Ponte de Sousa e
Michel Goulart da Silva. (Org.). Ditadura, repressão e conservadorismo. Florianópolis: Em Debate / UFSC,
2011.
16
PADRÓS, Enrique. Memória e esquecimento das ditaduras de segurança nacional: os desaparecidos políticos.
História em Revista, Pelotas, nº 10, dez, 2004, p. 153.
17
FERNANDES, Florestan. O significado da ditadura militar. In Caio Navarro de Toledo (Org.). 1964: visões
críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: UNICAMP, 1997, p. 147.
14
constituição de um regime político com características democráticas, a própria permanência
do sistema econômico criou atritos, que colocaram para o Estado, a despeito das liberdades
democráticas, a necessidade de defender a propriedade privada, caso estivesse ameaçada por
forças sociais e políticas consideradas subversivas e perigosas. No processo de transição,
a institucionalidade autoritária exerceu a função de domesticação do conflito
político, amortecendo as contradições sociais que dividiam a sociedade de
alto a baixo através da relativa imunização da arena da disputa política
diante delas. Esta, por sua vez, adquiria progressiva capilaridade e
permeabilidade diante dos diversos interesses presentes no bloco no poder,
limitando-se ao seu horizonte histórico e impedindo que suas contradições
internas explodissem numa crise de hegemonia de consequências
imprevisíveis para o caráter autocrático do Estado e do padrão de
transformação capitalista.18
Essa análise de um regime tutelado pelos militares dialoga com a ideia de “democracia
blindada”, formulada por Felipe Demier. Para o historiador, a partir da década de 1980, se
constituiu
uma
democracia
liberal
que
apresenta
“estruturas
de
funcionamento
hermeticamente fechadas às pressões populares, preservando seus núcleos institucionais
decisórios como espaços exclusivos dos interesses da classe dominante”.19 Esses regimes se
utilizam de mecanismos econômicos, políticos e culturais que dificultam ou impedem a
concretização de demandas populares reformistas que possam adentrar a cena política
institucional. O regime democrático-liberal blindado “progressivamente se desfaz de garantias
e liberdades democráticas, eliminando, até mesmo no plano jurídico, os elementos objetivos,
reais, que sustentam, em toda democracia liberal, a ficção democrática da igualdade e
liberdade”.20
Essa compreensão acerca do regime democrático dialoga também com Rancière,
quando afirma que a “sociedade democrática” seria “apenas uma pintura fantasiosa, destinada
a sustentar tal ou tal princípio do bom governo”.21 Rancière aponta que as sociedades são
organizadas a partir do “jogo das oligarquias”, entendido como “uma representação das
minorias que têm título para se ocupar dos negócios comuns”.22 Nesse processo, cria-se “uma
18
MACIEL, David. A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República (1974-1985). São Paulo:
Xamã, 2004, p. 323.
19
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 33.
20
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 52.
21
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 68.
22
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 69.
cultura do consenso que repudia os conflitos antigos, habitua a objetivar sem paixão os
problemas de curto e longo prazo que as sociedades encontram, a pedir soluções aos
especialistas e discuti-las com os representantes qualificados dos grandes interesses sociais”.23
Os limites da transição democrática
Na política contemporânea brasileira ainda é possível ver que importantes figuras que
atuara em governos da ditadura influem, direta ou indiretamente, em diferentes níveis da
política brasileira, entre as quais José Sarney, Delfin Neto, Jorge Bornhausen e Jarbas
Passarinho. Por outro lado, em diferentes processos políticos, ainda é possível perceber a
presença de militares no cenário político. Com uma análise da história recente do país,
percebe-se que “os militares, mesmo não tendo o comando do Executivo, ainda são parte do
governo e continuam detendo postos-chave do aparato de poder”.24
Um dos debates mais sensíveis acerca do período tem relação com a Lei de Anistia,
um processo ainda não concluído. Promulgada em 1979, a Lei da Anistia permitiu que os
militantes da resistência contra a ditadura saíssem da clandestinidade ou voltassem do exílio,
embora a lei não contemplasse a totalidade das reivindicações dos movimentos de resistência
à ditadura, cujo eixo passava por uma anistia ampla, geral e irrestrita. Sabe-se que
antes mesmo de anunciar o projeto de lei que versaria sobre a anistia, o
governo militar – especialmente os idealizadores do ato, Petrônio Portela e
Figueiredo – já havia definido que teria ela um caráter restrito, eis que
seriam excluídos todos aqueles que estavam sendo condenados por delitos
comuns – como o assalto a banco e crimes de sangue – e por atos de
terrorismo. Na verdade, a proposta do governo militar previa a anistia
somente para os crimes considerados políticos, que, portanto, vinham
definidos na Lei de Segurança Nacional.25
Por outro lado, segundo a interpretação da Lei da Anistia difundida por governantes
civis e militares, o uso da expressão “crime conexo” em sua redação abarcaria os crimes
praticados pelos agentes estatais. Com isso, veiculou-se a interpretação de que essa lei
23
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 96.
ZAVERUCHA, Jorge. Frágil democracia: Collor, Itamar FHC e os militares (1990-1998). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000, p. 296.
25
PRADO, Larissa Brizola Brito. Estado democrático e políticas de reparação no Brasil: tortura,
desaparecimentos e mortes no regime militar. Universidade Estadual de Campinas, Dissertação (Mestrado em
Ciência Política), Campinas, 2004, p. 54.
24
também perdoaria os supostos “crimes políticos” daqueles que perseguiram, torturaram e
assassinaram trabalhadores e estudantes. Conforme foi aprovada, a nova lei
acabou por contemplar aqueles que cometeram “crimes conexos”. Na
verdade, o caráter pouco preciso desta expressão foi a brecha da qual os
militares e os civis ligados à repressão necessitavam para que seus atos
excessivos e/ou arbitrários tivessem o benefício do esquecimento. Com
efeito, se o projeto de distensão pretendia imprimir uma abertura “lenta,
gradual e segura”, especialmente o quesito “segurança” deveria ser
interpretado como um retorno pacífico à democracia.26
Contudo, essa interpretação ainda corrente a respeito da Lei de Anistia há anos vem
sendo questionada. Segundo as discussões travadas no âmbito do Direito,
as atitudes praticadas pelos setores militares ligados à repressão –
evidenciadas, sobretudo, na existência de torturas – não foram conexas aos
crimes políticos (praticados pelos opositores do regime militar), eis que com
estes não possuíam qualquer relação causal teleológica, consequencial ou
mesmo ocasional. Aliás, os crimes políticos, formalmente passíveis de
anistia são aqueles cometidos contra o status quo vigente. Tanto isso é certo
que até mesmo os militares ou agentes civis que se engajaram contra o
regime e por isso foram demitidos ou aposentados compulsoriamente
receberam o beneplácito da anistia de 1979.27
Essa é, no entanto, apenas uma dimensão do problema relacionado aos limites da
transição e da constituição de um novo regime político. Outra questão que também vem
mobilizando uma diversidade de setores, contra e a favor, tem relação com o acesso aos
documentos produzidos pelos órgãos de repressão e pelas Forças Armadas no período
compreendido entre 1964 e 1985.28 Os arquivos atualmente disponíveis possibilitam a
documentação de uma pequena parcela das informações acerca dos processos, das mortes e
dos desaparecimentos, e são
basicamente os papéis dos Departamentos de Ordem Política e Social
(Dops), que eram estaduais, e da Justiça Militar. Os centros de informações
do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, muito ativos na repressão, não
abriram seus arquivos. Tampouco os Destacamentos de Operações de
26
PRADO, Larissa Brizola Brito. Estado democrático e políticas de reparação no Brasil: tortura,
desaparecimentos e mortes no regime militar. Universidade Estadual de Campinas, Dissertação (Mestrado em
Ciência Política), Campinas, 2004, p. 61.
27
PRADO, Larissa Brizola Brito. Estado democrático e políticas de reparação no Brasil: tortura,
desaparecimentos e mortes no regime militar. Universidade Estadual de Campinas, Dissertação (Mestrado em
Ciência Política), Campinas, 2004, p. 63-4.
28
FERRAZ, Joana. Arquivos da Ditadura: memória que aterroriza quem? GTNM/RJ, Rio de Janeiro, jun., 2008.
Informações (DOIs) e os Centros de Operação e Defesa Interna (Codis). Ou
o Conselho de Segurança Nacional (CGI). No caso do Serviço Nacional de
Informação (SNI), o acesso é limitado.29
Os limites da Lei de Anistia e a impossibilidade de acessar arquivos produzidos no
período da ditadura são expressão do processo que ficou conhecido como “abertura lenta,
gradual e segura”. Ainda no governo do general Médici (1969-1974), “a cúpula dirigente da
ditadura militar começou a debater a questão de uma transição controlada a uma democracia
de cunho restrito”.30 No período final da ditadura, “as pressões econômicas advindas das
novas condições externas”, o “recrudescimento do processo inflacionário”, “a crise social
marcada pelas explosivas manifestações das massas populares e a redefinição política da
oposição legal pelo novo papel do MDB”, foram fatores que “contribuíram para trazer à tona
as fissuras existentes no interior das classes dominantes e para demonstrar o ponto de inflexão
do modelo político até então vigente”.31
Um conjunto de fatores marcaram as contradições do processo de transição. Demier
aponta que “a divisão política no interior da classe dominante e suas frações proporcionada
pela abertura política, somou-se a uma imensa mobilização popular de conteúdo democráticoradical”.32 O processo de abertura esteve marcado por “um vasto quadro de oposições, tanto
da parte de segmentos militares que identificavam o deslocamento no eixo do poder à ideia de
confronto, quanto de lideranças empresariais que questionavam o Estado como promotor
único do interesse nacional”.33
Diante dos avanços e reveses, embora governantes civis tenham assumido
sucessivamente, por meio do voto da população, a presidência do país, o regime político
constituído a partir da transição lenta e gradual permanece com a mesma composição de
classe do regime ditatorial, ou seja, o controle das instituições do Estado continua nas mãos
dos diferentes grupos burgueses, geralmente associados ao capital externo, que definem as
ações e os rumos dos governos que vêm sendo eleitos nesses últimos anos. Essa forma de
organização das instituições do Estado parece estar em consonância com o que o bloco de
SCHLEGEL, Rogério. A história em prateleiras. Aventuras na História, São Paulo, nº 4, Especial “Ditadura no
Brasil”, 25 abr. 2005, p. 8.
30
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 55.
31
FONTES, Virginia; MENDONÇA, Sônia. História do Brasil recente (1964-1992). 4ª ed. São Paulo: Ática,
2004, p. 73.
32
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 57.
33
FONTES, Virginia; MENDONÇA, Sônia. História do Brasil recente (1964-1992). 4ª ed. São Paulo: Ática,
2004, p. 74.
29
poder hegemônico da ditadura buscava por meio da transição. Segundo Antonio Delfim
Netto, um dos principais nomes da ditadura, escrevendo recentemente,
um Estado forte, constitucionalmente limitado, é fundamental não apenas
para garantir o direito de propriedade e o bom funcionamento dos
“mercados”, mas também para controlar os inevitáveis abusos da
organização do capital que distorcem os mercados e, no limite, podem
comprometer o papel do grande instrumento civilizador do capitalismo: o
sufrágio eleitoral cada vez mais universal.34
A partir destes elementos, pode-se afirmar que a abertura democrática deu origem a
uma “democracia forte”, entendida como
uma variedade de república burguesa na qual a vigência de mecanismos
específicos de segurança em favor dos estratos estratégicos das classes
capitalistas não adquira muita saliência e tais mecanismos possam ser
concentrados em certas funções do Estado, sem que assuma o caráter
explícito de ditadura e seja combatido como tal.35
Se na transição optou-se por uma saída conciliada, não seria possível haver pessoas
consideradas criminosos, de um lado ou de outro. Nessa compressão, os militares estariam
defendendo os interesses nacionais e os militantes da esquerda se colocavam na luta contra o
regime de exceção. Uma forma de garantir a estabilidade passa por silenciar a oposição,
inclusive boa parte da esquerda. Para Criméia Almeida, sobrevivente da guerrilha do
Araguaia, “houve um acordo tácito da esquerda com os militares”, que tinha como objetivo
“garantir uma certa liberdade sindical e partidária em troca do silêncio sobre a violência da
repressão, a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos”.36 Esse silêncio acabou
significando a não punição dos torturadores e demais responsáveis por crimes do regime e a
não abertura dos arquivos.
A transição controlada e os limites da Constituição de 1988
O produto da transição pactuada foi um novo texto constitucional, promulgado em
34
Antonio Delfim Netto. Que sociedade queremos? Carta Capital, Ano XXI, Nº 873, 28 de outubro de 2015, p.
65.
35
FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. 2ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 10.
36
ALMEIDA, Criméia. Abertura de arquivos pode revelar pouco sobre a ditadura (entrevista). Carta Maior, São
Paulo, 22 nov. 2005.
1988, que “assegurou conquistas expressivas por parte de trabalhadores e dos movimentos
sociais, mas deixou clara, também, a capacidade de pressão e a intransigência das forças
conservadoras”.37 O novo texto constitucional expressa “um conteúdo híbrido, contraditório,
mesclando aspectos progressistas e conservadores”.38 Essa nova Constituição, além de
defender a propriedade privada, não garante aos trabalhadores plenos direitos de organização
e de mobilização por suas reivindicações. Ou seja, apesar da retórica em torno a uma
“abertura democrática”, não se superou a ordem repressiva que prioriza a defesa dos
interesses da burguesia, dando origem a um texto constituinte que expressa os limites do
pacto entre “democratas” e “ditadores”. O sociólogo e deputado constituinte Florestan
Fernandes, fazendo um balanço desse processo, afirmou que “o texto definitivo brotou do
consenso militar, não da vontade dos constituintes”.39 Para o sociólogo, a nova Constituição
“não responde às exigências da situação histórica”, tendo sido
sufocada pelo poder do dinheiro; tisnada por uma hegemonia de classe, que
sequer se deteve diante da mercantilização do voto; oprimida pelo arbítrio de
uma “Nova República”, que prolonga a ditadura através de seus métodos,
práticas políticas, militares e policiais; vergada pela corrupção, manejada
pelo Governo e pelo grande capital nacional e estrangeiro; incapaz de
sustentar-se sobre um poder originário e soberano.40
Nas primeiras páginas da nova Constituição, no Art. 5º, garante-se a inviolabilidade do
direito à vida e à liberdade, mas também do direito à propriedade. 41 Não se trata, portanto, de
uma Constituição que aponte para a emancipação humana, tendo como passo a superação da
propriedade privada dos meios de produção. Não se pode ameaçar essa forma de propriedade.
Percebe-se isso, por exemplo, no Art. 9º, que assegura o direito de greve, mas afirma, no
caput 2º, que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”. 42 No Art. 5º,
incisos XVI e XVII, também está prevista a possibilidade de reunião e organização, mas fazse ressalvas quanto ao porte e ao uso de armas, em alusão ao terrorismo.43 No inciso XLIII do
mesmo artigo, o terrorismo, termo que fez parte dos discursos repressivos utilizados para
37
FONTES, Virginia; MENDONÇA, Sônia. História do Brasil recente (1964-1992). 4ª ed. São Paulo: Ática,
2004, p. 91.
38
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 58.
39
FERNANDES, Florestan. O significado da ditadura militar, In Caio Navarro de Toledo (Org.). 1964: visões
críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: UNICAMP, 1997, p. 142.
40
FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação
Liberdade, 1989, p. 360.
41
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 15.
42
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 22-3.
43
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 16.
massacrar as oposições durante a ditadura, é enquadrado entre os “crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia”, ao lado da prática de tortura e do tráfico de drogas. 44 No
inciso seguinte o terrorismo é definido como “ação de grupos armados, civis e militares,
contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.45 Por meio desse texto, abrem-se
brechas que podem ser utilizadas para reprimir, a qualquer momento, movimentos sociais e
organizações de esquerda, garantindo ao Estado o monopólio do uso de armas.
Além disso, é necessária a existência de órgãos que garantam a propriedade privada e
mantenham a ordem social. Dessa forma, no Art. 144, afirma-se que a segurança pública “é
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio”, sendo as diferentes polícias responsáveis por garantir abstrações como “ordem
política e social” e “ordem pública”.46 Quanto às Forças Armadas, estão “sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.47 Portanto, a
Constituição prevê a existência de órgãos permanentes cuja função é a repressão, autorizando
o uso legal da força diante de qualquer ocorrência que coloque em risco o que os governantes
consideram a normalidade da “ordem política e social”.
A Constituição também prevê o “Estado de defesa” e o “Estado de sítio”, caso os
órgãos de repressão não consigam garantir a “ordem pública”. No Art. 136 garante-se ao
Presidente da República, depois de ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa
Nacional, poderes para decretar o Estado de Defesa, com fins a “preservar ou prontamente
restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas
por graves e iminentes instabilidades institucionais ou atingidas por calamidades de grandes
proporções na natureza”.48 Se esse mecanismo, que restringe os direitos de reunião e de sigilo
em correspondências e comunicação telegráfica e telefônica, não surtir efeito, apela-se ao
Estado de Sítio, que pode ser decretado apenas com autorização do Congresso Nacional, e
que, entre outras coisas, obriga as pessoas a permanecerem em localidades determinadas,
suspende o direito de reunião e permite a busca e apreensão em domicílios. 49 Essas formas de
restrição ou mesmo de suspensão dos direitos políticos foram usadas para conter mobilizações
44
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 17.
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 17.
46
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 88-9.
47
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 87.
48
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 85.
49
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 86.
45
de trabalhadores na Argentina, em dezembro de 2001, e na Bolívia, em 2005, resultando
centenas de mortos e feridos.
Esses elementos autoritários presentes na Constituição promulgada em 1988 têm fortes
ligações com a Constituição vigente durante a maior parte do período ditatorial, promulgada
em 1967. A Constituição dos governos militares também apontava, em seu Art. 153, o direito
à propriedade, assim como à vida e à liberdade.50 A greve era apresentada no Art. 165, inciso
XX, como um direito dos trabalhadores, mas naquela Constituição, como na atual, eram feitas
ressalvas quanto às greves do serviço público.51 No Art. 153 até mesmo a liberdade de
“manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica” está prevista, ainda que
também com ressalvas.52 Hoje a Constituição apresenta ressalvas quanto ao porte e uso de
armas, enquanto o texto constitucional da ditadura afirma que não seriam “toleradas a
propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de
classe”.53
No entanto, é preciso destacar significativas diferenças entre ambas as Constituições.
No texto hoje vigente, por exemplo, não consta a possibilidade de cassação dos direitos
políticos, enquanto que no texto constitucional da ditadura, afirmava-se que “o abuso de
direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de
corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos”.54 Há também
diferença com relação ao Estado de Sítio, pois enquanto hoje é necessário que seja aprovado
pelo Congresso Nacional, no período ditatorial seu estabelecimento poderia dar-se por
decreto, que após no máximo cinco dias deveria ser submetido à apreciação dos
congressistas.55
Mesmo que não seja correto igualar as duas cartas constitucionais, é possível perceber
semelhanças entre ambas, ou melhor, de que forma se faz a segurança da propriedade privada
em regimes jurídicos aparentemente opostos. Há evidentemente formas diferentes de se
encarar a coerção e os mecanismos de repressão. Na ditadura os limites da liberdade jurídica
eram muito mais estreitos do que aqueles propostos na Constituição de 1988. Também na
ditadura o uso das forças repressivas poderia se dar de forma mais constante, sem necessitar
de um maior controle do Legislativo ou mesmo do Executivo. Mas, mesmo havendo uma
50
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 1978, p. 72.
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 1978, p. 79.
52
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 1978, p. 73.
53
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 1978, p. 73.
54
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 1978, p. 75.
55
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 1978, p. 76.
51
ampliação das liberdades democráticas, no texto constitucional vigente desde 1988 a
população não tem garantias jurídicas sólidas de respeito aos seus direitos nem está isenta de
sofrer as consequências da violência do Estado, bastando para isso pôr em risco a ordem
instituída na defesa da propriedade privada.
Os dois textos constitucionais estão baseados em interesses de classe, e em ambos o
Estado tem a função precípua de pôr fim a qualquer forma de questionamento ao domínio
promovido pela de propriedade burguesa. Segundo Florestan Fernandes, escrevendo em julho
de 1987 para o Boletim Nacional da CUT, a Constituição
organiza, sanciona e legitima a distribuição da riqueza e do poder na
sociedade capitalista, não ‘igualmente’ para todo o Povo, porém
desigualmente, seguindo o modelo de desigualdade econômica, cultural e de
dominação da classe imperante na sociedade civil.56
Portanto, a despeito de incorporar significativas conquistas dos movimentos sociais
que se mobilizaram pelo final da ditadura, o novo texto constitucional responde aos interesses
de classe. Contudo, com o fim da ditadura, abandonou-se o uso explícito da violência na
política, optando pela concessão de alguns direitos políticos e sociais, mantendo-se a mesma
estrutura de exploração econômica, que se relaciona diretamente com a manutenção do poder
pela burguesia. No que se refere à violência institucional, a diferença mais significativa entre
os dois regimes é tão somente a forma como se emprega a repressão para defender a
propriedade privada. Nesse processo, sendo o Estado sempre o defensor dos interesses de uma
classe, “quando a violência institucional do poder estatal extrapola os atributos coercitivos
constitucionais, é porque se reconhece que os mecanismos daquela são insuficientes na ação
persuasiva e de neutralização dos descontentamentos sociais”.57
A coerção e a repressão, na forma como aparecem nos dois textos constitucionais,
fazem parte da natureza de um Estado hegemonizado pela burguesia, seja no regime ditatorial,
seja no regime democrático. Para os governantes da Nova República e para os militares que
objetivam manter escondidas as ações de repressão dar Forças Armadas, pela manutenção da
Lei de Anistia ou pela ausência de acesso aos arquivos da ditadura, a ordem e a normalidade a
serem mantidas são aquelas da transição pactuada entre os ditadores, as frações da burguesia e
56
FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação
Liberdade, 1989, p. 116-7.
57
PADRÓS, Enrique. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latinoamericanas. In Carlos Fico (Org.), Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas.
Rio de Janeiro: FGV, 2008, p. 153.
os diferentes setores da oposição. Em sua lógica de raciocínio, se o perdão foi dado a todos, o
passado deve ser esquecido.
Considerações finais
Em grande medida o que se tem contemporaneamente é um desdobramento dos limites
da transição “lenta e gradual”. Na medida em que ela não colocou em xeque o domínio da
burguesia, mas apenas buscou fazer uma transição que mantivesse intacta a organização
econômica, os elementos “seguros” do novo regime pouco mudaram com o novo texto
constitucional. Isso quer dizer que, a despeito de garantir liberdades democráticas, se
deixaram elementos autoritários no texto da Constituição de 1988. Para os governantes
colocava-se a necessidade de ter instrumentos legais que, caso necessário, poderiam ser
utilizados para impedir ou pelo menos controlar as manifestações populares. Esses talvez seja
o melhor sentido para a ideia de democracia blindada.
O caso de 2013 é bastante exemplar nesse aspecto. Naquele processo, ficaram claros
dois aspectos. Por um lado, que uma parcela da sociedade, em especial da classe média, se
mostrava disposta de se mobilizar de forma massiva, diante da insatisfação que vivenciavam
em seu cotidiano. Esses setores, que pareciam experenciar uma revolta latente bastante
profunda, acabaram por, em sua maioria, aderir a um programa conservador. Por outro lado, o
processo de mobilizações mostrou que as organizações tradicionais da esquerda não tinham
mais condições de influenciar ou mesmo de dirigir as ações dos movimentos sociais
organizados, colocando em risco a hegemonia burguesa, na hipótese de se constituir uma nova
direção política que herdasse a base social do PT.
Com isso se observa duas reações. Primeiro, da parte de Dilma, em um primeiro
momento, a ampliação do diálogo, com novas e antigas organizações, dos mais variados
segmentos. Essa postura logo acaba dando lugar a acordos com setores conservadores, que
viriam a ganhar mais espaço no segundo mandato de Dilma. Segundo, da burguesia e seus
representantes, vê-se progressivamente o fechamento de espaços e a aplicação de medidas de
austeridade, que se manifestou, entre outros aspectos, no combate parlamentar contra o
governo e, mais à frente, no impeachment. Portanto, paralelamente à crescente aplicação de
uma agenda econômica liberal, se observou o crescimento do conservadorismo na sociedade
e, principalmente, o fechamento e o combate aos espaços de participação popular, por parte
do governo e da oposição de direita.
Nesses cerca de trinta anos passou-se da situação de tutela, na qual os militares
influenciam sobre o novo regime, a uma democracia blindada, na qual os governantes
diminuam os espaços de participação popular para garantir a aplicação de seu programa
econômico conservador, utilizando-se também, se necessário, das forças militares. Neste caso,
coloca-se a necessidade de debater e construir alternativas tanto para o Estado com para as
direções políticas que possam escabeçar transformações.
2 Golpe de Estado: história de um conceito*
O processo que levou à destituição de Dilma Rousseff tem suscitado grandes
polêmicas, à esquerda e à direita, acerca do uso do termo “golpe”. Os setores alijados do
poder, bem como a maior parte da esquerda, têm feito uso do referido termo, entendendo que
teria havido uma ruptura da ordem legal. Por outro lado, os setores de direita e um setor
minoritário da esquerda têm optado por polemizar com a ideia de que teria ocorrido um golpe,
entendendo, no caso dos conservadores, que todo o processo teria sido feito dentro da
legalidade, enquanto a parcela da esquerda que discorda da tese de golpe o faz a partir da
interpretação de que o governo Michel Temer seria uma mera continuidade da gestão Dilma
Rousseff. Entendo, a partir de um breve estudo acerca da construção do conceito de golpe ao
longo dos séculos, que é possível a utilização do termo, ainda que os diversos usos do
conceito na disputa política em andamento possam apresentar problemas de interpretação.
Apesar de suas peculiaridades, não se trata exatamente uma novidade o golpe ocorrido
no Brasil. Em 2012, no Paraguai, o presidente Fernando Lugo também foi afastado por meio
de uma articulação jurídico-parlamentar, sem que houvesse o uso de forças militares. No
entanto, essa não foi a forma mais recorrente de golpes ocorridos no continente. Considerando
as três experiências mais estudadas – Brasil em 1964, Chile em 1973 e Argentina em 1976 –
todos foram marcados pelo uso de grande violência pelas forças golpistas. Além disso, nos
anos recentes da América Latina, há pelo menos uma experiência do que se poderia chamar
de tentativa de golpe clássico, como o corrido na Venezuela, na tentativa de derrubar o
presidente Hugo Chávez, em 2002.
O conceito de golpe de Estado foi modificado ao longo dos últimos séculos, na maior
parte dos casos expressando particularidades sociais e políticas do contexto histórico em que
foram produzidos. Contemporaneamente, golpe de Estado pode ser entendido como “um
fenômeno político de caráter excepcional, radical e, na maioria dos casos, violento”,
constituindo-se em “uma ação liderada por políticos que atuam dentro do aparelho do
Estado”.58 Os agentes políticos e a natureza dessas situações podem mudar segundo a
conjuntura política e o quadro socioeconômico, dependendo desses fatores também a
preparação, a deflagração e a consolidação do processo golpista.
*
Este ensaio é uma versão corrigida e ampliada de SILVA, Michel Goulart da. Entre golpes y resistencias:
cultura, política y violencia en América Latina. Religación, Nº 7, p. 9-12, 2017.
58
FERREIRA, Mario; NUMERIANO, Roberto. O que é golpe de Estado. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 9.
Considerando os exemplos históricos, pode-se distinguir dois tipos de golpe, o “golpe
branco” e o “golpe clássico”. O golpe branco tem como objetivo “amortecer, pela conciliação,
crises dentro do aparelho de Estado entre seus principais grupos dominantes”.59 Esse golpe
pode acontecer com a presença de instrumentos de pressão, como a mobilização de um setor
de classe. Um exemplo desse tipo de golpe ocorreu no Brasil, em 1961, quando da renúncia
do presidente Jânio Quadros e do veto dos militares à posse de seu vice, João Goulart,
levando a uma conciliação, onde a Presidência da República foi entregue a quem de direito,
mas sob um sistema de governo parlamentarista. Por outro lado, o golpe clássico “ocorre
quando é impossível conciliar os interesses entre as facções políticas que desejam o comando
do poder do Estado”. O exemplo também se passa no Brasil, em março de 1964, com a
tomada do poder pelas Forças Armadas, como reação à mobilização popular e dos
trabalhadores em defesa das chamadas reformas de base.
Contudo, esse não é o mesmo entendimento que se tinha acerca dos golpes de Estado,
em outros momentos históricos. Em 1639, Gabriel Naudè definia golpe de Estado como
aquelas ações audazes e extraordinárias que os príncipes se veem obrigados
a executar em situações difíceis e que beiram o desespero, contra o direito
comum, e sem manter nenhuma ordem ou forma ou justiça, colocando de
lado o interesse particular em benefício do bem público.60
Para Naudè, poderiam ser considerados golpe de Estado a decisão de Catarina de
Médici, rainha católica, de eliminar protestantes dedicados à crescente contestação à Coroa,
na noite de São Bartolomeu. Naudè também considera como golpe a proibição do imperador
Tibério à sua cunhada viúva de constituir novas núpcias, para evitar o perigo de que os
eventuais filhos dela pudessem disputar a sucessão imperial com seus próprios filhos.61 Os
diferentes exemplos citados por Naudè “têm em comum o serem um ato levado a cabo pelo
soberano para reforçar o próprio poder”.62
Em 1799, ocorreu uma das mais conhecidas experiências de golpe de Estado. O
chamado “18 Brumário” foi um golpe de Estado ocorrido na França que representou a
ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder. Nesse período, a França vinha sendo governada
59
FERREIRA, Mario; NUMERIANO, Roberto. O que é golpe de Estado. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 10.
NAUDÉ, Gabriel. Consideraciones políticas sobre los golpes de Estado. Tecnos, 2011, p. 82.
61
BARBÉ, Carlos. Golpe de Estado. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. 13ª ed. Brasília: UnB, 2010, p. 545.
62
BARBÉ, Carlos. Golpe de Estado. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. 13ª ed. Brasília: UnB, 2010, p. 545.
60
por um colegiado de líderes chamado de Diretório, que enfrentava revoltas internas e a
ameaça de invasão da Segunda Coalizão, forças reunidas pelos monarcas europeus liderados
pelos Habsburgo e pela Rússia. Diante dessa crise, os deputados do Conselho dos Quinhentos
e do Conselho de Anciãos acabam nomeando um governo provisório que recebeu o nome de
Consulado, onde três membros, entre os quais Napoleão, exerciam o poder de modo
igualitário. Pouco depois, o Consulado foi reformado e deixou de ser provisório, substituindo
dois de seus membros e permanecendo Napoleão como cônsul. Não demorou muito para que
Napoleão começasse a acumular poder em detrimento dos outros dois componentes.
Esse processo viria a ser detalhadamente analisado por Curzio Malaparte, no livro
Técnico do golpe de Estado, publicado em 1931. Malaparte aponta que o 18 Brumário de
Bonaparte, ocorrido em 9 de novembro de 1899 (no calendário revolucionário francês, no dia
18 de brumário do ano IV), seria “o primeiro golpe de Estado no qual aparecem postos os
problemas da moderna tática revolucionária”.63 Além disso, segundo Malaparte, apesar dos
erros de concepção e de execução, “o 18 Brumário continua a ser um modelo de golpe
parlamentar”.64 Malaparte afirma que “o parlamento é o cúmplice necessário, não voluntário”,
que aceita “o fato consumado, e o legaliza formalmente, transformando o golpe de Estado
numa mudança de ministério”.65 Nesse modelo de golpe, segundo Malaparte, seria necessário
“manter-se a todo o custo no terreno da legalidade”, não fazendo “o uso da violência senão
para manter-se naquele terreno, ou para voltar a ele se for preciso se afastar”.66
Malaparte também analisou algumas das experiências de tomada do poder ocorridas
no começo do século XX. Os principais eventos analisados por Malaparte são a Revolução de
Outubro, ocorrida na Rússia, em 1917, considerada pelo autor como um golpe de Estado, e o
levante militar fascista, na Itália, em 1922. Nesses contextos, Malaparte analisa o que chama
de catilinários, ou seja, partidos de extrema direita ou de extrema esquerda que “põem o
problema do Estado no terreno revolucionário”.67
Posteriormente, ao longo do século XX, os golpes acabam se tornando um fenômeno
político comum, especialmente em algumas regiões. Em levantamento realizado pelo
estrategista militar Edward Luttwak, pode-se verificar que, entre 1945 e 1978, ocorreram 98
63
MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de estado. Lisboa: Europa-América, 1983, p. 84.
MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de estado. Lisboa: Europa-América, 1983, p. 85.
65
MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de estado. Lisboa: Europa-América, 1983, p. 94.
66
MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de estado. Lisboa: Europa-América, 1983, p. 94.
67
MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de estado. Lisboa: Europa-América, 1983, p. 60.
64
tentativas de golpe na África, 95 na América Latina, 78 na Ásia e 11 na Europa 11.68 Como
parte desse processo, no início da década de 1970, mais de metade dos países do mundo tinha
governos saídos de golpes de Estado, em sua maioria por ações dos chefes militares. Essa
forma de sucessão política, que parecia ser algo habitual no período, rendeu também um
conjunto de reflexões teóricas acerca da natureza e dos métodos de golpes.
Uma dessas reflexões foi produzida por Donald Goodspeed, que, em obra publicada
no começo dos anos 1960, aponta que o golpe de Estado pode ser entendido como
uma tentativa de mudança de governo pelo ataque súbito e agudo às
máquinas administrativas. Em condições favoráveis, um grupo relativamente
reduzido de pessoas pode apoderar-se do Estado, sem grande custo. Esta
possibilidade torna-se profundamente sedutora para as minorias
descontentes. Homens que seriam incapazes de levantar ou equipar exércitos
para a guerra ou controlar as forças revolucionárias veem no golpe de estado
um instrumento capaz de modificar o mundo.69
Para Goodspeed, o golpe não é apenas uma ação de força, afinal “fundamenta-se na
vida política, social e econômica da sociedade em que ocorre e é necessário conhecer esse
conjunto de fatores para poder entende-lo”.70 Por isso, segundo Goodspeed, em qualquer
golpe de Estado é preciso levar em conta as simpatias das forças armadas da nação, a opinião
pública e a situação internacional, mas “o requisito mais importante para o sucesso da
intentona é o apoio das forças armadas ou, pelo menos, a sua neutralidade”. 71 Contudo, ainda
que para Goodspeed seja menos importante do que o apoio ou neutralidade dos militares, a
opinião pública é um fator essencial, na medida em que “nenhum governo pode funcionar a
longo prazo sem um mínimo de apoio e cooperação popular”, devendo o governo assegurar de
algum modo “obediência do povo aos seus decretos. Tal apoio não precisa ser entusiástico.
Pode ser passivo – a simples aquiescência basta para manter um governo no poder”.72
No mesmo contexto, ainda que mais para o final da década de 1960, Edward Luttwak
também publicou importante obra para a o estudo dos golpes de Estado. Luttwak destaca que,
embora sejam uma ação político que possa se encontrar semelhanças com processos políticos
ocorridos desde a antiguidade, o golpe de Estado está diretamente associado à consolidação
68
Para uma lista dos golpes ocorridos no período, Cf. LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual
prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 182-197.
69
GOODSPEED, Donald. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 11-2.
70
GOODSPEED, Donald. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 14.
71
GOODSPEED, Donald. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 258.
72
GOODSPEED, Donald. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 259.
do Estado moderno,
com sua burocracia profissional e suas forças armadas permanentes. O poder
do Estado moderno depende muito dessa maquinaria permanente que, com
seus arquivos, fichas, cadastros e funcionários, pode seguir de perto e, se
assim o desejar, controlar as atividades de outras organizações e
indivíduos.73
Luttwak aponta que essa burocracia possui dois aspectos cruciais para a viabilidade do
golpe. O primeiro é “o estabelecimento de uma distinção clara entre a máquina permanente do
Estado e a liderança política” e o segundo “o fato de que, como a maioria das grandes
organizações, a burocracia possui uma hierarquia de comando muito bem definida”. 74 O
golpe, segundo Luttwak, “opera naquela área fora do governo mas dentro do Estado, que é
formada pelo funcionalismo público permanente, pelas forças armadas e a polícia”, tendo
como objetivo “desligar os funcionários permanentes do Estado da liderança política”.75 Ele
destaca também que “o golpe não conta necessariamente com intervenção das massas ou, em
grau significativo, das forças militares”.76 Partindo desses elementos, Luttwak sistematiza
uma tentativa de conceito apontando que “um golpe consiste na infiltração em um segmento
pequeno mas crítico do aparelho estatal, utilizando-o depois para tirar do governo o controle
sobre a parte restante”.77
No caso da América Latina, as experiências golpistas que colocaram em cena as forças
militares devem ser consideradas apenas como um dos exemplos possíveis de golpe de
Estado. De forma geral, quando se fala em golpe, faz-se referência à interrupção forçada no
processo institucional, provocado ou não por ações violentas, encabeçada ou apoiadas por
setores militares, em que há ou uma transformação do regime político ou, pelo menos, uma
mudança de governo.78 Esse processo não se ocorre de forma isolada, sendo necessária a
mobilização de outras forças políticas e sociais, como a ação de políticos oposicionistas, a
mobilização de setores da população ou os discursos dos órgãos de imprensa. Mesmo que não
73
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 23.
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 23.
75
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 24.
76
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 30.
77
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 30.
78
Por regime político entende-se “o conjunto de instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício,
bem como a prática dos valores que animam tais instituições” (LEVI, Lucio. Regime político. In: BOBBIO,
Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 13ª ed. Brasília: UnB,
2010, p. 1081). Governo, por outro lado, é “o conjunto de pessoas que exercem o poder político e que
determinam a orientação política de uma determinada sociedade” (LEVI, Lucio. Governo. In: BOBBIO,
Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 13ª ed. Brasília: UnB,
2010, p. 553).
74
haja mudança no regime, não dando necessariamente origem a uma ditadura, há um relativo
recrudescimento da repressão, seja pelo uso da violência aberta, seja pela mudança em
aspectos da legislação. No caso do recente golpe ocorrido no Brasil, embora o novo governo
não tenha colocado tropas militares nas ruas nem o Congresso Nacional tenha aprovado uma
nova legislação repressiva, tem sido possível ver uma ampliação da coerção, materializado
nas execuções de ativistas sociais e de jovens periféricos, na repressão estatal e em atos
arbitrários do poder judiciário.
Esses elementos teóricos, utilizados na análise da recente experiência golpista na
América Latina, considerando principalmente os casos de Brasil e Paraguai, permitem pensar
na hipótese de que estamos diante de um novo tipo de golpe ou que experiências golpistas
menos regulares podem se tornar mais frequentes. Essa característica dos golpes mais recentes
pode ter relação com o próprio regime político desses países, onde o processo de transição de
regimes ditatoriais para regimes democráticos manteve fortes características de coerção e de
repressão. No caso brasileiro, no processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, o
regime democrático existente “demonstrou dispor de mecanismos internos que lhes permitem
eliminar um governo incômodo sem ter que conjuntamente eliminar a si mesma”.79
Por se tratar de um regime característico do Estado no capitalismo, no qual prepondera
o poder econômico da burguesia, a democracia apresenta elementos de coerção e repressão,
que viabilizam a defesa da propriedade privada. Nesse sentido,
regimes democráticos-burgueses, nos quais os elementos democráticos
mostram-se, logicamente, majoritários, podem, por vezes, conter elementos
ditatoriais (residuais ou em fermentação) em proporção inferior àqueles, o
que é possível de ser percebido quando observamos democracias liberais que
apresentam aspectos como uma exagerada força do Poder Executivo e da
burocracia na condução do país, a subordinação do Legislativo e de seus
partidos às imposições do Executivo, uma participação quase incontinenti
das Forças Armadas nos assuntos políticos, e severas limitações às
atividades sindicais e políticas da classe trabalhadora por meio da repressão
policial ou de normatizações restritivas.80
Nos limites impostos aos governantes por sua disposição em defender os interesses da
propriedade privada, o uso dos elementos de repressão ou de coerção pode variar, inclusive a
partir das características de cada governo. Um exemplo são os governos progressistas ou de
79
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 16.
80
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 24.
esquerda, como os que vem sendo vítimas de golpes nos anos recentes na América Latina,
que, a despeito de um eventual uso de força, normalmente optam por cooptar as lideranças das
organizações de massas dos trabalhadores, o que tem sido relativamente fácil devido ao fato
de muitos dos partidos governantes terem influência decisiva nessas organizações. Cabe
afirmar, nesse sentido, que
a gradação atingida pelos elementos ditatoriais na composição química
desses regimes democráticos-burgueses depende sempre do tipo de governo
(e, mais precisamente, da linha política implementada por este) que, por
períodos maiores ou menores, assume o controle do aparelho estatal. Não
custa lembrar que tais governos, muitas vezes, também não apresentam
naturezas politicamente puras, sendo constituídos por alianças e acordos
partidários instáveis e, por conseguinte, marcados por acalorados
tensionamentos internos.81
Outro elemento que parece ainda ser interessante nesta análise passa pelos militares,
que, no caso do recente processo golpista brasileiro. Apesar de não ter uma ação protagonista,
não se furtaram a se posicionar diante da conjuntura, manifestando de diferentes formas seu
desconforto para a situação política geral e, no caso de alguns segmentos da caserna, seu
desconforto com os governos do PT. Um dos exemplos disso foi dado pelo general reformado
Paulo Chagas, diante do início das mobilizações civis contra o governo, ainda em 2014
O debacle da Suprema Corte, desmoralizada por arranjos tortuosos que
transformaram criminosos em vítimas da própria Justiça, compromete a
crença dos brasileiros nas instituições republicanas e se soma às muitas
razões que fazem com que, com frequência e veemência cada vez maior, os
generais sejam instados a intervir na vida nacional para dar outro rumo ao
movimento que, cristalinamente, está comprometendo o futuro do Brasil. Os
militares em reserva se têm somado aos civis que enxergam em uma atitude
das Forças Armadas a tábua de salvação para a Pátria ameaçada.82
Os processos golpistas vivenciados na América Latina têm relação com a própria
construção do modelo democrático no continente, depois das ditaduras. Os processos de
transição, de forma geral, foram marcados por acordos entre segmentos dos governos
ditatórias e setores da oposição, dando origens a regimes que mantinham em maior ou me
menor grau elementos da ditadura que terminava. O caso do Brasil é bastante emblemático,
afinal se realizou um processo eleitoral indireto em que uma importante liderança da oposição
81
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 24.
82
Cynara Menezes. Fardados e farsantes. Carta Capital, Ano XX, Nº 791, 19 de março de 2014, p. 41.
da ditadura, Tancredo Neves, encabeçou uma chapa cujo vice-presidente era um importante
líder da ditadura, José Sarney. Em outros países, mesmo onde os crimes cometidos pelos
ditadores foram julgados e punidos, como na Argentina e no Chile, houve acordos que tinham
como objetivo fazer uma transição segura e lenta e, principalmente, que não colocasse em
cena o protagonismo de organizações independentes dos trabalhadores.
Uma das consequências mais evidentes dessa transição limitada se dá no legado no
que se refere à violência. Por um lado, como fenômeno mais aparente, percebe-se que a
manutenção de um regime controlado pela burguesia faz com que a violência institucional e a
repressão sejam ainda elementos predominantes nessas sociedades, permitindo poucos
espaços de atuação fora de instituições controladas pelo Estado, em grande medida se
limitando a partidos e a sindicatos. Com o retorno do Brasil a um regime democrático, foram
retirados do texto constitucional os artigos referentes à repressão que autorizavam de forma
explícita o uso do terror de Estado, mas se manteve o conteúdo de defesa incondicional da
propriedade privada. Apesar das mudanças na legislação promovidas pela chamada “transição
democrática”,
os militares continuavam no sistema compósito de poder, só que com menor
visibilidade, e a democracia desencadeava-se como um processo político
travado pelas classes dominantes (...) e por programas repressivos de
dissuasão policial-militar, camuflados ou não, conforme as circunstâncias. O
objetivo central não era a democracia e sua consolidação, mas a estabilidade
política da ordem estabelecida, com todas as distorções e iniquidades
econômicas e sociais que contivessem.83
O outro aspecto central da violência passa pela sua própria manifestação no interior da
sociedade. Os processos ditatoriais são marcados pela construção do ódio a um inimigo, o
que, no caso da América Latina, esteve constantemente associado à aproximação, na retórica
da ditadura, dos governos progressistas ou de esquerda com o comunismo. O comunismo,
enquanto grande inimigo da ordem estabelecida pelos Estados Unidos, teria seus braços nos
vários países e caberia às ditaduras, com seus setores civis e militares, derrotar em definitivo
essa perigosa ameaça. Com isso, as próprias sociedades parecem ter absorvido certa cultura da
violência, que pode se manifestar tanto simbólica como fisicamente, na qual a identificação de
qualquer inimigo deve ser motivo de uma incansável caçada. Novamente um exemplo
fundamental pode ser tirado da derrubada de Dilma:
83
FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação
Liberdade, 1989, p. 366.
O cheiro de povo acirrou, claro, o ódio ao povo, o tradicional ódio de classe
cultivado pelos estratos superiores brasileiros, e nada melhor do que a típica
figura de Lula, ou de uma mulher por ele feita presidente, para fazer verter
para si todo esse sentimento.84
Essa análise do conceito de golpe de Estado possibilita analisar historicamente a
trajetória de violência e ódio promovida pelos setores golpistas e conservadores e que, nos
anos recentes, lamentavelmente vem ganhando grande apoio de parcelas significativas da
população, em um processo que vem chamado “onda conservadora”. No que se refere ao
impeachment, parece clara a constituição de um processo golpista, no qual convergem
elementos dos mais diversos, como a não aceitação por parte da oposição do resultado que
levou à reeleição de Dilma Rousseff, as mobilizações de rua da classe média, a tentativa de
acordos do governo derrubado com setores conservadores para tentar garantir a
governabilidade e, depois da derrubada do governo, o conjunto de ataques a direitos dos
trabalhadores e até mesmo a liberdades democráticas.
84
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
2017, p. 89.
3 Possibilidades do fascismo no Tempo Presente*
Nos últimos anos, observa-se o crescimento de posições políticas de direta, que alguns
setores da esquerda vêm definindo como “onda conservadora”, que se expressa em pelo
menos três aspectos. O primeiro e mais evidente é o crescimento da popularidade de
lideranças políticas reacionárias, como Jair Bolsonaro. O segundo, mais difuso, passa pela
proliferação de ideias conservadoras, que se manifestam, entre outras formas, nas posições de
ódio contra as esquerdas e no crescimento de um moralismo religioso que defende a família
tradicional patriarcal. O terceiro aspecto tem a ver com o fato de a onda conservadora também
se manifestar no crescimento de organizações militantes, em grupos como MBL, Vem para a
Rua e até mesmo na retomada de ideias de extrema direita, como o integralismo e o
neonazismo.85 Sem risco de exagero, pode-se afirmar que “na política, na economia, nas
expressões artísticas, na educação, nas ciências, na saúde, nos esportes, nas relações afetivas e
domésticas, enfim, no ramerrão da vida cotidiana, predominam, no país, práticas e visões de
mundo profundamente conservadoras”.86 Esse cenário encontra na Alemanha pré-nazista, a
despeito da distância cronológica, algumas importantes semelhanças que podem auxiliar na
compreensão do fenômeno conservador vivenciado contemporaneamente no Brasil.
No âmbito da esquerda, com raras exceções, o debate é polarizado por duas posições
bastante problemáticas, que podem ser acompanhadas nas publicações impressas e virtuais
das diferentes organizações. Por um lado, um segmento da esquerda, normalmente associado
aos setores que foram derrubados pelo golpe jurídico-parlamentar que depôs Dilma, defende
que os ataques a eles próprios seriam a prova de um recrudescimento no regime político. Para
esses segmentos, depois da derrubada de Dilma, teria havido uma mudança qualitativa no
regime político, chegando alguns ao ponto de defenderem que o golpe não teria apenas
derrubado um governo, mas também inaugurado uma nova ditadura.87 No extremo oposto,
importantes segmentos da esquerda afirmam que não apenas não haveria onda conservadora,
como há uma ofensiva nas lutas dos trabalhadores, cujo desenvolvimento apenas não é
*
Este ensaio é uma versão corrigida de SILVA, Michel Goulart da. Wilhelm Reich e o fascismo no presente.
Espaço Acadêmico, 2018.
85
Para uma análise do crescimento das manifestações conservadoras no Brasil, Cf. FREIRE, André. Uma nota
sobre a extrema-direita no Brasil. Esquerda On Line, 22 out. 2017.
86
DEMIER, Felipe Abranches. O barulho dos inocentes: a revolta dos “homens de bem”. In: Felipe Demier;
Rejane Hoeveler. (Org.). A Onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 2016, p. 23.
87
Com algumas variações, essa é a formulação defendida pelos setores que compunham o governo Dilma, como
o PT e o PC do B, e por parte do PSOL.
alcançado justamente pelo desinteresse de mobilização das direções majoritárias. Para parte
desses setores, as mobilizações que derrubaram Dilma teriam um caráter progressista,
chegando-se a afirmar que essas ações são o sintoma de uma situação pré-revolucionária.88
Apenas um setor bastante minoritário da esquerda tem conseguido se equilibrar entre essas
duas posições extremas.89
Esse tipo de análise mecânica e simplória, expressa nos dois opostos, encontra
paralelos no marxismo criticado por Wilhelm Reich, em sua obra Psicologia de massas do
fascismo (1933), na qual busca analisar os elementos subjetivos que levaram uma parcela
massiva da população alemã a apoiar o nazismo. Com uma avaliação equivocada acerca da
situação política concreta, o Partido Comunista Alemão (PCA), ao não reconhecer o perigo do
crescimento do nazismo, acabou por ter uma parcela de responsabilidade pela vitória da
extrema direita. Segundo Trotsky, diante da vitória nazista, “os comunistas e os
socialdemocratas poderiam ter organizado a unidade defensiva”, mas “a cegueira dos
dirigentes o impediu”.90 Para Reich, o marxismo mecanicista predominante no período
limitou sua análise à esfera dos processos objetivos da economia e das políticas
governamentais, sem compreender nem estudar o desenvolvimento e as contradições do
chamado “fator subjetivo” da história.91 Essa formulação teórica predominante, chamada por
Reich de “marxismo comum”, separa a existência econômica da existência social e afirma que
a ideologia e a consciência são “determinadas exclusiva e diretamente por sua existência
econômica”.92
Segundo Reich, para compreender o processo de produção da consciência, seria
preciso levar em conta que as condições materiais não produzem mecanicamente a estrutura
psicológica das massas, ou seja, “a ideologia de cada agrupamento social tem a função não só
de refletir o processo econômico dessa sociedade, mas também – e principalmente – de inserir
esse processo econômico nas estruturas psíquicas dos seres humanos dessa sociedade”.93 Os
seres humanos estão sujeitos às condições de sua existência tanto de um modo direto, pelos
efeitos imediatos da sua situação socioeconômica, como de um modo indireto, pela estrutura
ideológica da sociedade.
O conjunto das análises da maioria da esquerda brasileira atribui às massas,
88
Com algumas variações, essa é a formulação defendida pelo PSTU e por setores do PSOL.
Esse setor inclui, além do PCB, uma parcela das organizações que compõem o PSOL.
90
TROTSKY, Leon. Escritos (1932-33). Bogotá: Pluma, 1976, tomo IV, vol. 1, p. 201.
91
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 6.
92
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13-4.
93
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 17.
89
mecanicamente, ou um caráter reacionário, por conta da manipulação da mídia, ou um caráter
revolucionário, por conta de sua situação material. Diante dessa simplificação da realidade,
Reich, analisando a Alemanha pré-nazista, lembra que “o trabalhador não é nem nitidamente
reacionário nem nitidamente revolucionário, mas está enredado nas contradições entre
tendências reacionárias e tendências revolucionárias”.94 Essa afirmação de Reich é
fundamental para não se atribuir aos trabalhadores, no atual contexto do Brasil, uma tendência
quase que natural à revolução. Reich lembra, em outro texto, que, por mais contraditório que
isso possa ser, o fascismo “tomou o poder precisamente com a ajuda dos sentimentos
anticapitalistas dos seus partidários”.95
Reich também aponta que a base social da extrema direita está centrada nos setores
médios da sociedade.96 O nazismo teria se apoiado em largas camadas das classes médias, ou
seja, em “milhões de funcionários públicos e privados, comerciantes de classe média e de
agricultores de classe média e baixa”.97 Essa classe média baixa, que antes havia apoiado a
democracia burguesa, sofreu uma transformação interna, responsável por sua mudança de
posição política. Reich afirma que “a classe média baixa fascista é igual à classe média baixa
liberal-democrática; apenas se distinguem porque vivem em diferentes fases históricas do
capitalismo”.98 Para Reich, a posição social da classe média é determinada pela sua posição
no processo de produção capitalista, pela sua posição no aparelho de Estado autoritário e pela
sua situação familiar especial.99
Para que esses elementos possam auxiliar na compreensão do atual contexto
vivenciado no Brasil, o primeiro passo é identificar a atual classe média que vem se
mobilizando na defesa de posições reacionárias. Levando em conta as manifestações que
exigiram a saída de Dilma, identifica-se que se tratam centralmente de profissionais liberais,
servidores públicos de escalões elevados e pequenos empresários, que tem como programa a
luta contra uma genérica corrupção, as políticas assistenciais levadas a cabo pelos governos
do PT e o que consideram elevados impostos.100 Embora tenha ocorrido o envolvimento de
94
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 22.
REICH, Wilhelm. O que é consciência de classe? São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 14.
96
Essa análise da composição social do fascismo também é apresentada em outras análises, como em Trotsky,
quando afirma: “Os principais efetivos do fascismo continuam a ser constituídos pela pequena burguesia e pela
nova classe média que se formou: pequenos artesãos e empregados do comércio nas cidades, funcionários,
empregados técnicos, intelectuais, camponeses arruinados” (TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na
Alemanha. São Paulo: Sundermann, 2011, p. 45).
97
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 37.
98
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 37.
99
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 40.
100
ANTUNES, Ricardo. Fenomenologia da crise brasileira. Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.35, p.09-26,
95
alguns grandes empresários, o número mais significativo de participantes das manifestações
encontra-se nos segmentos médios. Ademais, em uma análise mais atenta do eleitorado de Jair
Bolsonaro ou de alternativas de extrema direita, pode-se encontrar o apoio dos mesmos
segmentos de classe média.101
Outro aspecto relevante da análise de Reich que pode contribuir para uma leitura da
atual situação do Brasil foi a sua crítica às interpretações do PCA. Segundo Reich, escrevendo
no começo da década de 1930, o “marxismo comum”, representado pelo PCA, afirmava que a
crise econômica então vivenciada “conduziria necessariamente a uma orientação ideológica
esquerdista das massas por ela atingidas”.102 Contudo, a esperada virada à esquerda na
ideologia das massas acabou conduzindo a uma virada para a direita inclusive em setores das
camadas proletárias da população, resultando em “uma clivagem entre a base econômica, que
pendeu para a esquerda, e a ideologia das largas camadas da sociedade, que pendeu para a
direita”.103 O fato de setores de massas penderem para a direita não se opera a partir de uma
força sobrenatural inexplicável, mas de um amálgama de sentimentos, preocupações e
perspectivas em meio à situação concreta de crise. Embora nesse processo possa-se observar a
ligação das massas com a figura de Hitler, esse fato sozinho não explica o processo como um
todo. Segundo Reich, o representante de uma ideia só pode ter êxito “quando a sua visão
individual, a sua ideologia ou o seu programa encontram eco na estrutura média de uma
ampla camada de indivíduos”.104 Nesse sentido, segundo Reich, referindo-se ao êxito do
nazismo, “foi a estrutura humana autoritária, que teme a liberdade, que possibilitou o êxito de
sua propaganda. Por isso, a importância de Hitler, do ponto de vista sociológico, resulta, não
da sua personalidade, mas da importância que lhe conferem as massas”.105
Essa análise apresenta pelo menos dois elementos fundamentais para pensar a atual
situação brasileira. Primeiro, a necessidade de realizar análises de forma cuidadosa acerca da
realidade concreta, ou, mais precisamente, segundo Trotsky, acerca “das relações das três
classes da sociedade atual: da grande burguesia, que é dirigida pelo capital financeiro; da
pequena burguesia, que oscila entre os dois campos fundamentais e, enfim, do
proletariado”.106 Em uma análise das classes na atualidade do Brasil, pode-se identificar uma
jul./dez. 2015, p. 22.
101
Em pesquisas de sondagem eleitoral realizadas, cerca de 47% daqueles que declaram voto em Jair Bolsonaro
possuem renda de três ou quatro salários mínimos (Data Folha, abril de 2017).
102
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 7.
103
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 7.
104
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 32.
105
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 32.
106
TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Sundermann, 2011, p. 52.
ofensiva da burguesia contra direitos sociais, capitaneada pela subida de Temer ao poder
depois do golpe jurídico-parlamentar, o apassivamento dos trabalhadores diante desses
ataques, tanto pelas derrotas sofridas nos últimos anos como pelas sistemáticas traição de suas
direções, e a expectativa eleitoral de parcela da classe média e da pequena burguesia, que
veem fortalecida sua agenda reacionária centrada em um limitado combate contra a
corrupção.
No atual contexto, para muitos setores da esquerda, o principal sintoma da
possibilidade de avanço das lutas é o descrédito das instituições burguesas, em especial depois
de junho de 2013. Essa crise teria sua manifestação mais evidente no descrédito das eleições,
que se materializa principalmente no número de abstenções, votos nulos e brancos nas duas
últimas eleições.107 Contudo, na própria Alemanha pré-nazista as eleições viram um
gigantesco número de abstenções, num quadro que foi superado somente quando o Partido
Nazista voltou a participar dos pleitos e conquistou um rápido crescimento no número de
votos.108 Nesse processo, segundo Trotsky, “a pequena burguesia se inclina não para a
revolução proletária, mas para a reação imperialista mais extremada, arrastando consigo
importantes camadas do proletariado”.109 Ademais, outro dado importante para a análise
daquele contexto é que, diferente do Brasil, que conta apenas com um partido reformista de
massas na esquerda, a Alemanha contava, além do SPD, com o PCA, que, além de uma
grande inserção social, também tinha boas votações nas eleições.110
Por outro lado, no atual contexto do Brasil, é comum analisar a questão eleitoral
apenas como um crescimento isolado de Jair Bolsonaro, o que faz a esquerda priorizar o
desmascaramento do deputado federal. Bolsonaro tem uma “retórica nacionalista exasperada,
seus discursos exaltados em defesa da repressão, suas posições anticomunistas primitivas são
107
Para uma análise dessa crise das instituições, Cf. ORTELLADO, Pablo; SOLANO, Esther. Nova direita nas
ruas? Uma análise do descompasso entre manifestantes e os convocantes dos protestos antigoverno de 2015.
Perseu, v. 11, 2016, p. 171.
108
No primeiro turno das eleições presidenciais de 1925, sem a participação do Partido Nazista, a abstenção
chegou a 31,5%, diminuindo para 13,80% e 16,50%, respectivamente, no primeiro e no segundo turno, em 1932,
quando os nazistas obtiveram 30,1% e 36,8%. Nas eleições legislativas de 1928 a abstenção chegou a 24,4% e,
em 1930, a 18,05%. Nesses dois processos eleitorais, os nazistas obtiveram, respectivamente, 2,63% e 18,25%.
109
TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Sundermann, 2011, p. 53. No
mesmo sentido, Reich destaca que, nas eleições de 1930, dos votos recebidos pelos nazistas, “cerca de três
milhões eram de trabalhadores, dos quais 60% a 70% eram empregados e 30% a 40%, operários (REICH,
Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13).
110
No Brasil, atualmente o PT é o único partido com massiva com base operária. Outros partidos de esquerda,
como PC do B e PSOL, não possuem a mesma influência política. Além disso, partidos como o PSB e o PDT,
embora eventualmente se utilizem de discursos progressistas, estão muito mais vinculados a setores da burguesia
do que ao movimento organizado dos trabalhadores.
expressão do fascismo contemporâneo em um país dependente”.111 A ação da esquerda de
priorizar as denúncias contra Bolsonaro, que de fato precisa ser feita, é bastante limitada,
afinal, como na Alemanha pré-nazista, a figura desse líder salvacionista não está isolada da
dinâmica das classes sociais. Bolsonaro é a figura que parte considerável dos setores que se
mobilizaram contra Dilma escolheram para representar o projeto que eles defendiam nas ruas.
O centro da questão não é a figura de Bolsonaro, que, diante de alguma crise, poderia vir até
mesmo a ser abandonada, sendo substituída por outra no médio prazo. O centro da questão é
compreender que a revolta de alguns setores sociais, materializada nas manifestações que
associavam a corrupção a um governo de esquerda, agora dirigem suas forças para a
construção de um projeto político diferente do que esteve colocado nas últimas décadas pela
Nova República. Esse projeto poderia vir a se materializar em um governo Bolsonaro ou
poderia ganhar outra face, ainda mais reacionária, não sendo possível, nas avaliações da
conjuntura, reduzir o embate político a uma mera polarização eleitoral.
O terceiro elemento que aproxima os contextos do Brasil contemporâneo e da
Alemanha pré-nazista tem a ver com a ligação do conservadorismo da população com o
discurso religioso e a defesa da família patriarcal. Segundo Reich, “o objetivo da moralidade é
a criação do indivíduo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do sofrimento e da
humilhação”, sendo a família “o Estado autoritário em miniatura, ao qual a criança deve
aprender a se adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que será exigido dela
mais tarde”.112 Reich afirma que o combate à sexualidade das crianças e dos adolescentes na
sociedade autoritária “processam-se no quadro da família autoritária, que se tem revelado a
melhor instituição para levar a cabo esse combate com êxito”.113 O medo da “liberdade
sexual”, que nas concepções reacionárias “se confunde com o caos sexual e a dissipação”,
inibe o “desejo de libertação do jugo da exploração econômica”. 114 Nessa relação de fatores
tanto econômicos como estruturais, “a família autoritária apresenta-se como a principal e a
mais essencial fonte reprodutora de todo o pensamento reacionário; é a fábrica onde a
ideologia e a estrutura reacionária são produzidas”.115
Em grande medida, a atual retórica conservadora se baseia em uma exacerbada defesa
de um modelo patriarcal de família. Uma das principais ferramentas programáticas disso é o
programa Escola Sem Partido, cujo objetivo é impedir a liberdade de expressão dos
111
FREIRE, André. Uma nota sobre a extrema-direita no Brasil. Esquerda On Line, 22 out. 2017.
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 28.
113
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 51.
114
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 55.
115
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 55.
112
professores nas escolas.116 Além disso, há uma campanha aberta contra o debate sobre
identidade de gênero e sexualidade, que se manifestou principalmente na aprovação dos
planos municipais de educação, onde movimentos políticos ligados a diferentes religiões se
mobilizaram pela exclusão desse tema.117 Em diferentes espaços, de forma aberta ou sutil, se
coloca uma condenação a sexualidades não normativas ou a políticas que visam permitir às
mulheres maiores liberdades sobre seus corpos. Ademais, no final do ano passado, houve um
debate extremamente puritano confundindo nudez com sexo nas obras artísticas e afirmando
que a mera exibição do corpo poderia afetar a educação dos mais jovens.118
Esses elementos possibilitam refletir acerca de outros aspectos, também na
comparação entre as duas conjunturas. Uma delas seria a tendência de enxergar na extrema
direita um movimento homogêneo conservador. Reich afirma que o fascismo “não é, como
geralmente se crê, um movimento exclusivamente reacionário, mas sim um amálgama de
sentimentos de revolta e ideais sociais reacionários”.119 Na base dos movimentos de extrema
direita encontra-se sentimento de mudança diante da crise social, o que não necessariamente
leva a uma mudança progressista. A situação econômica não se traduz automaticamente em
consciência política pelo fato “de que as contradições da estrutura econômica da sociedade
estão enraizadas na estrutura psicológica das massas oprimidas”.120 Nesse sentido, para
analisar a atual situação, é preciso compreender que “a construção de hegemonia das ideias
conservadoras na sociedade brasileira é um processo que abarca várias dimensões e áreas da
vida social”.121
O fato de se apontar semelhanças entre os dois contextos não significa defender que os
mesmos acontecimentos se repetirão. O chamado à atenção se deve centralmente à
necessidade de aprender com os erros cometidos pela esquerda alemã diante do nazismo, que
foi principalmente o de menosprezar a força do inimigo e de superestimar suas próprias
Para uma discussão acerca do movimento Escola Sem Partido, Cf. PENNA, Fernando. “Escola Sem Partido”
como ameaça à Educação Democrática: fabricando o ódio aos professores e destruindo o potencial educacional
da escola. In: MACHADO, André Roberto & TOLEDO, Maria Rita (Org.). Golpes na História e na Escola. São
Paulo: Cortez: ANPUH SP, 2017.
117
Para uma discussão acerca dos embates em torno da discussão de gênero, Cf. FRANCO, Stella Maris. Do
arco-íris à monocromia: o Movimento Escola Sem Partido e as reações ao debate sobre gênero nas escolas. In:
MACHADO, André Roberto & TOLEDO, Maria Rita (Org.). Golpes na História e na Escola. São Paulo: Cortez:
ANPUH SP, 2017.
118
Para uma discussão acerca dos ataques à liberdade artística, Cf. MATTOS, Cláudia. Livre expressão e
democracia. Cult, São Paulo, Nº 230, dez. 2017.
119
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. XVIII.
120
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 22.
121
DEMIER, Felipe Abranches. O barulho dos inocentes: a revolta dos “homens de bem”. In: Felipe Demier;
Rejane Hoeveler. (Org.). A Onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 2016, p. 22.
116
possibilidades. Contudo, passadas décadas desde a derrota do nazismo na Alemanha, os erros
parecem ainda se repetir. Analisando as recentes manifestações da extrema direita europeia,
Löwy aponta que, “para algumas correntes da esquerda que veem a extrema-direita como
nada mais do que um efeito colateral da crise e do desemprego, são essas as causas que devem
ser atacadas, e não o fenômeno fascista propriamente dito. Tal raciocínio tipicamente
economicista desarmou a esquerda diante da ofensiva ideológica racista, xenofóbica e
nacionalista da extrema-direita”.122
Os dois contextos aqui discutidos, da Alemanha pré-nazista e do Brasil
contemporâneo, apresentam como diferença significativa o fato de atualmente não haver um
corpo doutrinário minimamente homogêneo, como tinham os nazistas, não permitindo à
extrema direita brasileira construir um projeto político que unifique todos os segmentos
conservadores.123 Contudo, entre outros fatores, a ofensiva por parte do Estado, expressa no
recrudescimento das ações jurídicas e na intervenção militar no Rio de Janeiro, mostra que há
disposição para uma dura repressão, em especial contra a vanguarda organizada dos
trabalhadores. Refletindo acerca desses exemplos históricos, se a esquerda não tiver
disposição de compreender a fundo o inimigo, analisando de forma consistente o perigo,
pode-se estar caminhando para novas derrotas.
122
LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serviço Social & Sociedade, Nº
124, out./dez. 2015, p. 658.
123
Esse não parece ser argumento suficiente para menosprezar o crescimento do fascismo. Como ressalta Löwy,
“hoje não vemos partidos fascistas de massa comparáveis ao NSDAP na Alemanha dos anos 1930, mas já
naquele período o fascismo não se limitava apenas a esse modelo: o franquismo espanhol e o salazarismo
português eram muito diferentes dos modelos italiano e alemão. Até mesmo partidos que tentaram imitar o
exemplo alemão, como o Partido Popular Francês (PPF) fundado por Jacques Doriot em 1936 — uma
organização claramente fascista que viria a se tornar uma das principais forças colaboracionistas durante o
regime de Vichy —, dificilmente podem ser comparados ao NSDAP alemão. Seria, portanto, um erro alegar que
não existem partidos fascistas atualmente na Europa, por não termos nada equivalente aos nacional-socialistas
dos anos 1930 (LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serviço Social &
Sociedade, Nº 124, out./dez. 2015, p. 654).
4 As ideias do movimento Escola Sem Partido como resquício da ditadura*
Nos últimos anos, ganhou força em debates políticos a acadêmicos a ideia de que o
Brasil estaria vivenciando uma “onda conservadora”, terminologia utilizada possivelmente
pela primeira vez por Guilherme Boulos, depois do primeiro turno das eleições de 2014. Essa
avaliação da conjuntura parece ter se disseminado principalmente a partir das massivas
manifestações em defesa da derrubada de Dilma Rousseff, ocorridas a partir de março de
2015. Retornando às ruas, depois de décadas, a direita “demonstrou o inegável crescimento,
junto aos setores médios da sociedade brasileira, do ideário reacionário, que coaduna aspectos
ultraliberais e tradicionalistas”.124 O processo de construção da hegemonia de ideias
conservadoras abarca “várias dimensões e áreas da vida social, no qual a cultura, tomada em
um sentido amplo, aparece como espaço fundamental de atuação por parte dos ideólogos e
difusores das concepções de mundo do capital”.125 Contudo, a hegemonia conservadora é
visível também em outros aspectos da sociedade, afinal
na política, na economia, nas expressões artísticas, na educação, nas
ciências, na saúde, nos esportes, nas relações afetivas e domésticas, enfim,
no ramerrão da vida cotidiana, predominam, no país, práticas e visões de
mundo profundamente conservadoras.126
Possivelmente o movimento Escola Sem Partido é dos fenômenos mais significativos
dessa “onda conservadora” que vem se consolidando no Brasil. O movimento se constitui na
articulação de diversos segmentos sociais, entre os quais militantes de extrema direita, como o
MBL, e setores religiosos, que visa criar mecanismos de controle contra professores que
supostamente fazem doutrinação ideológica nas escolas. Essa censura aos espaços
institucionais de ensino teria como objetivo garantir que a educação fosse feita de forma
neutra, sem que uma corrente ideológica pudesse se sobrepor a outras. Em termos práticos,
*
O presente ensaio desenvolve temas inicialmente discutidos em SILVA, Michel Goulart da. Os militares
brasileiros e a “grande mentira”. In: Fernando Ponte de Sousa e Michel Goulart da Silva. (Org.). Ditadura,
repressão e conservadorismo. Florianópolis: Em Debate / UFSC, 2011.
124
DEMIER, Felipe Abranches. O barulho dos inocentes: a revolta dos “homens de bem”. In: Felipe Demier;
Rejane Hoeveler. (Org.). A Onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 2016, p. 18.
125
DEMIER, Felipe Abranches. O barulho dos inocentes: a revolta dos “homens de bem”. In: Felipe Demier;
Rejane Hoeveler. (Org.). A Onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 2016, p. 22.
126
DEMIER, Felipe Abranches. O barulho dos inocentes: a revolta dos “homens de bem”. In: Felipe Demier;
Rejane Hoeveler. (Org.). A Onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 2016, p. 23.
significaria proibir a reflexão crítica nos espaços escolares, moldando crianças e jovens para
que não problematizem os problemas que permeiam a sociedade em que vivem. Essa
preocupação estaria associada ao argumento
de que há uma conspiração de esquerda que chegou ao poder com os
governos recentes de presidentes do Partido dos Trabalhadores. Eles teriam
chegado ao poder graças a uma mudança da estratégia adotada pela esquerda
mundial e a referência para essa mudança seria o pensamento de Antonio
Gramsci, que, segundo essa narrativa, recomendaria o fim de um conflito
direto e uma lenta infiltração nas instituições.127
Essas interpretações emanadas do Movimento Escola Sem Partido em grande medida
encontram relação com os discursos de alguns setores militares, expressos principalmente em
publicações da editora Biblioteca do Exército, quando fazem um balanço acerca da ditadura e
da transição democrática. Embora se considerem vencedores da “guerra” contra as
organizações da esquerda, depois da “transição democrática” os militares entendem que
continuam a enfrentar, agora ideologicamente, essa mesma esquerda. Esses subversivos
atuariam na imprensa, nos governos e no parlamento, buscando vingança e recuando-se a
aceitar a “anistia para os dois lados”. Para os militares ainda haveria lutas a serem travadas,
dessa vez não no campo de batalhas, mas nas disputas de memória que empreendem contra
aqueles que estariam, contemporaneamente, de forma constante desqualificando suas ações do
passado.
Para esses militares, os “subversivos” do presente estariam novamente tentando tomar
o poder, mas agora por formas pacíficas.128 Na avaliação do general Antônio Jorge Corrêa,
membro do Conselho de Segurança Nacional,
hoje, não ocorre aquele comunismo burro e sanguinário que combatemos em
1964. Existe, porém, uma variedade de ideologias de mesma raiz ou
similares em seus fundamentos, frequentemente camuflados por outras
roupagens e aparências que, talvez por isso, não nos preocupemos tanto,
embora possam perturbar o até deturpar a mente e a vida dos ingênuos ou
PENNA, Fernando de Araújo. “Escola Sem Partido” como ameaça à Educação Democrática: fabricando o
ódio aos professores e destruindo o potencial educacional da escola. In: MACHADO, André Roberto &
TOLEDO, Maria Rita de Almeida (Org.). Golpes na História e na Escola. São Paulo: Cortez: ANPUH SP, 2017,
p. 258.
128
CASTRO, Celso. Comemorando a “revolução” de 1964: a memória histórica dos militares brasileiros. In:
FICO, Carlos et al. (Org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de
Janeiro: Ed. da FGV, 2008, p. 133-6; AUGUSTO, Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 2001, p. 16.
127
desprevenidos.129
Outros militares ainda apontam a suposta colaboração da mídia com os antigos
opositores dos governos militares. Segundo o Coronel Ustra, notório torturador durante a
ditadura, embora tenham vencido os supostos terroristas, “infelizmente perdemos uma batalha
muito significativa – a da comunicação de massa. Os vencidos distorcem os fatos e enganam
o povo, principalmente os jovens. Querem, através da mentira, escrever a história com a sua
versão”.130.
No caso dos militares, essas ideias aparecem difundidas de diferentes formas, embora
mais sistematizadas em revistas e livros publicados pela editora Biblioteca do Exército. Em
um desses livros, intitulado O revisionismo histórico brasileiro (2008), o autor José Maya
Pedrosa apresenta não apenas uma longa polêmica contra a escrita da história por parte do que
entende ser de esquerda, como aponta elementos que provariam a existência de uma suposta
dominação marxista no ensino.131
No processo de transição, segundo a interpretação de Maya Pedrosa, que é expressa de
forma similar pelos defensores do movimento Escola Sem Partido, algumas instituições, entre
as quais universidades e até mesmo escolas, teriam se tornado espaços de “impregnação
ideológica”.132 Segundo essa interpretação, que parte da ideia de equivocada da supremacia de
uma corrente teórica, a “cultura marxista” teria fincado “poderosas raízes na universidade e
nas escolas”.133 Essa ação faria parte de uma ação de tomada do poder, não de forma violenta,
mas a partir da ocupação de espaços no Estado. Embora a disputa eleitoral das instituições
fosse parte desse processo, também seria de fundamental importância a atuação dos
intelectuais orgânicos, que teriam a tarefa de difundir a ideologia marxista, em especial nos
espaços universitários e editoriais.134
129
General-de-Exército Antônio Jorge Corrêa, entrevista realizada em 15/03/2000. In: MOTTA, Aricildes de
Moraes (Coord.). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 2003, t. 1, p. 51.
130
Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, entrevista realizada em 12/09/2000. In: MOTTA, Aricildes de
Moraes (Coord.). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 2006, t. 5, p. 234.
131
Membro da Missão Militar Brasileira de Instrução, no Paraguai, durante dois anos, oficial de gabinete do
Ministro do Exército, comandante do 19º Batalhão de Caçadores, em Salvador, membro da Associação Alagoana
de Imprensa, sócio titular do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.
132
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 20-1.
133
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 107.
134
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 22.
Por outro lado, ao atuar como difusor cultural, formando novos profissionais, esses
intelectuais orgânicos também afetariam os espaços escolares, sendo igualmente responsáveis
pela proliferação do marxismo. Nesse processo questiona-se até mesmo a competência dos
profissionais que atuam nas escolas. Segundo os militares,
o magistério dogmático ou ideológico foi ficando mais fácil porque
persuadir pessoas ou grupos é tarefa simples e indutiva, enquanto discutir
matéria complexa como a história exige conhecimento, competência didática
e pedagógica, discernimento, maturidade, leitura, além de ajustamento
pessoal ao debate e à discordância.135
Maya Pedrosa, portanto, não apenas faz a denúncia acerca da suposta infiltração
marxista, como desqualifica os profissionais que atuam na docência, ao sugerir que faltaria a
eles a competência para o exercício de uma atuação qualificada. Parece que, para Maya
Pedrosa, é motivo para desqualificar os professores o fato de estes explanarem em sala de aula
conteúdos divergentes daqueles difundidos pelos militares, de onde subentende-se que a
versão construída a partir dos relatos dos antigos ditadores e seus aliados seria uma verdade
inabalável.
Para contrabalançar esse suposto predomínio do marxismo presente entre os
professores, “seria necessário que, ao lado deles, houvesse outros que esclarecessem o
passado sob a ótica da história moderna e eclética, evitando-se a voz exclusiva e a doutrinação
de jovens na prevalência da visão marxista sobre o mundo”.136 Segundo Pedrosa,
não é que se deva limitar a atuação dos professores, mas mostrar ao público
as grandes linhas da educação nacional no sentido dos valores democráticos
na concepção ocidental e liberal, evitando-se doutrinação política ou
ideológica sob a égide de pessoas rancorosas, sem crítica e debate.137
Embora nos currículos escolares a maioria dos autores trabalhados não sejam
marxistas, os defensores de uma suposta impregnação dessa compreensão teórica acabam
incluindo em sua lista uma diversidade bastante ampla de autores. Para Maya Pedrosa, autores
como Marc Bloch ou Sérgio Buarque de Holanda são incluídos entre os autores prejudiciais à
135
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 126.
136
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 22.
137
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 23.
construção do conhecimento.
Outro elemento que também aproxima as ideias dos militares e do movimento Escola
Sem Partido é a defesa de uma neutralidade na prática escolar. Segundo os militares,
nem sempre as pessoas adotam a análise cuidadosa e imparcial da história
como um biólogo estuda a célula ou um astrônomo, o sistema solar. Parece
atitude corriqueira o alinhamento dos humanos aos seus desejos e
inclinações pessoais ou coletivas, mais do que à razão fundamentada no
estudo isento dos fatos.138
Maya Pedrosa parece acreditar na possibilidade de que métodos neutros de pesquisa
possam chegar a resultados igualmente neutros. Contudo, essa neutralidade não se sustenta
quando Pedrosa faz um balanço da atuação dos militares, em especial quando se refere à
ditadura, em especial quando afirmar que “o pensamento salvacionista dos militares os levou
a tomar uma posição de guardiões da sociedade, preservando o regime democrático e a ordem
institucional”.139 Para ele, a oficialidade militar “sempre fora uma das bases para a arrancada
do País no sentido do desenvolvimento social, bem como de sua economia autônoma”.140
O conjunto de ideias do movimento Escola Sem Partido tem circulado em diferentes
partes do país, principalmente por meio de projetos apresentados espaços legislativos
municipais, estaduais e nacionais. O texto dos projetos se assemelha bastante, sendo muitas
vezes até mesmo igual. Pode-se analisar o Projeto de Lei Nº 193/2016, apresentado no
Senado, em cuja justificativa se encontram alguns elementos importantes do que defende o
movimento Escola Sem Partido. O projeto de lei parte da constatação de que
é fato notório que professores e autores de materiais didáticos vêm se
utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos
estudantes à determinadas correntes políticas e ideológicas para fazer com
que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente
moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou
responsáveis.141
Como no livro da Maysa Pedrosa, o movimento Escola Sem Partido se utiliza de uma
138
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 32-3.
139
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 129.
140
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 147.
141
Projeto de Lei Nº 193/2016.
constatação não comprovada de que os espaços educativos estariam sendo usados para
doutrinação dos jovens, enfatizando o tema da “conduta sexual”. Diante dessa realidade, os
formuladores do projeto de lei defendem que seria
necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da
doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos
pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com
suas próprias convicções.142
Como proposta concreta apresentada pelo movimento, estaria a proibição de certos
temas em sala de aula, limitando “a liberdade de expressão dos docentes em sala de aula, o
diálogo franco entre professores e alunos e o pensamento crítico”.143 Além disso, da mesma
forma como apontado no discurso dos militares, o movimento Escola Sem Partido defende
como obrigatória a apresentação de uma pluralidade de opiniões e, quando isso não for
possível, que se apresente uma análise que seja supostamente neutra. No projeto de lei
apresentado ao Senado, afirma-se também que
a doutrinação política e ideológica em sala de aula compromete gravemente
a liberdade política do estudante, na medida em que visa a induzi-lo a fazer
determinadas escolhas políticas e ideológicas, que beneficiam, direta ou
indiretamente as políticas, os movimentos, as organizações, os governos, os
partidos e os candidatos que desfrutam da simpatia do professor.144
Percebe-se nessas passagens do projeto de lei do Escola Sem Partido se pelo menos
três problemas. Primeiro, expressa a preocupação de que o debate sobre gênero e sexualidade
em sala de aula poderia levar os jovens a terem uma sexualidade fora da norma estabelecida
socialmente. Segundo, enfatiza o fato dos perigos de a escola ensinar algo que entre em
choque com a educação de casa, numa estranha perspectiva de que a escola deveria ser um
braço da casa e não espaço de discussão acerca de conhecimentos científicos. Terceiro,
menospreza as escolhas e a própria inteligência dos jovens, ao entender que a mera tomada de
contato com certas informações históricas ou filosofias os fará automaticamente aderir a
movimentos sociais e políticos.
Nessa compreensão, seja a dos militares, seja a do movimento Escola Sem Partido,
142
Projeto de Lei Nº 193/2016.
FRANCO, Stella Maris Scatena. Do arco-íris à monocromia: o Movimento Escola Sem Partido e as rações ao
debate sobre gênero nas escolas. In: MACHADO, André Roberto & TOLEDO, Maria Rita de Almeida (Org.).
Golpes na História e na Escola. São Paulo: Cortez: ANPUH SP, 2017, p. 234.
144
Projeto de Lei Nº 193/2016.
143
subjaz uma preocupação de que possam estar sendo difundidas no ambiente escolar ideologias
que eles consideram perigosas. Contudo, esse raciocínio parte de uma compreensão bastante
equivocada do que seria ideologia, considerando-a como uma espécie de fenômeno
pretensamente antagônico à neutralidade científica. Em uma definição simples, pode-se
compreender ideologia como “visão social do mundo”.145 Esse conceito de ideologia
“circunscreve um conjunto orgânico, articulado e estruturado de valores, representações,
ideias e orientações cognitivas, internamente unificado por uma perspectiva determinado, por
um certo ponto de vista socialmente condicionado”.146 Essa visão do mundo se refere a um
conjunto relativamente coerente de ideias acerca do homem, da sociedade, da história, ligadas
aos interesses e à situação de certos grupos e classes sociais. Neste caso, por mais que se
pretendem objetivos e neutros, as próprias posições dos militares e do movimento Escola Sem
Partido são ideológicas, assim como a visão de qualquer pessoa diante dos fenômenos sociais.
Como proposta para sanar esse suposto problema na educação, o movimento Escola
Sem Partido propõe o cerceamento da liberdade dos professores em sala de aula, podendo
inclusive lavá-los à prisão, caso seja provado que tenham realizado “doutrinação”. Essa
proposta em grande medida parece ser eco das elaborações militares, quando Maya Pedrosa
afirma que “a manutenção da liberdade é pressuposto básico, desde que se mostre ao jovem
estudante todas as versões e entendimentos sobre história, evitando-se a prevalência ou o
monopólio da opinião”.147 Nesse sentido, segundo Maya Pedrosa, não “se deve proibir este ou
aquele autor, professor ou corrente de pensamento, mas evitar a prevalência ou deixar sem
debate qualquer ideologia que agrida as inclinações do povo brasileiro, seu regime e suas
conquistas políticas”.148 Portanto, embora nada seja proibido, não se pode apresentar
conhecimentos científicos que mostrem as contradições do capitalismo e como as relações de
produção tornam insuportável a vida dos trabalhadores. Para os militares e para os membros
do movimento Escola Sem Partido,
tudo o que se refere a questionamentos de ordem política ou comportamental
deve ser sistematicamente ceifado, extirpado, incluindo-se aí as contestações
dos diversos movimentos sociais, os métodos educacionais construídos a
145
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão
1994, p. 12.
146
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão
1994, p. 13.
147
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 328.
148
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008, p. 23.
de Münchhausen. 5ª ed. São. Paulo: Cortez,
de Münchhausen. 5ª ed. São. Paulo: Cortez,
brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
brasileiro: uma proposta para discussão. Rio
partir de perspectivas dialógicas e as múltiplas orientações políticas de
cunho progressista.149
Essas duas manifestações de conservadorismo podem ser consideradas produto da
limitada transição de regime político no final da ditadura. Os militares se sentem confortáveis
em difundir suas ideias, afinal seus crimes nunca foram investigados a fundo, revelados em
sua totalidade, amplamente difundidos para a sociedade ou punidos seus crimes. Além disso,
na limitada transição à democracia pela qual passou o Brasil, os militares e civis que foram
governo durante a ditadura mantiveram seus postos. Com isso, a governabilidade da
República sempre esteve atrelada ao apoio de notórias figuras da ditadura, como Bornhausen,
Maluf, Sarney, entre outros.
O projeto de lei do Escola Sem Partido que estava em tramitação no Senado acabou
por ser arquivado, pois, no entender do relator Cristovam Buarque, o programa contrariava a
Constituição do país. Contudo, em diversas câmaras municipais e assembleias legislativas o
projeto continua a tramitar, sendo inclusive aprovado em algumas localidades, a despeito de
pareceres negativos dos mais diversos órgãos, como a Procuradoria Geral da República.
Seria possível pensar esses discursos militares e sua expressão no movimento Escola
Sem Partido como uma reação aos movimentos de memória da ditadura que ganharam força
nos últimos anos, materializado no trabalho das numerosas comissões da verdade instituídas
pelo país. Esses espaços de discussão e investigação, que reúnem uma diversidade de setores
da sociedade, colocaram em cheque a “anistia para os dois lados”, que permitiu aos militares
não responderem aos seus crimes cometidos durante a ditadura iniciada em 1964. Portanto, ao
buscar tolher a livre circulação de informações e o debate em sala de aula, os defensores da
mordaça nas escolas estão buscando preservar a normalidade construída depois do final da
ditadura, defendendo um falso consenso do qual a maior parte da sociedade não participou,
apontando para a necessidade de manter os antagonismos e a exploração na sociedade.
149
FRANCO, Stella Maris Scatena. Do arco-íris à monocromia: o Movimento Escola Sem Partido e as rações ao
debate sobre gênero nas escolas. In: MACHADO, André Roberto & TOLEDO, Maria Rita de Almeida (Org.).
Golpes na História e na Escola. São Paulo: Cortez: ANPUH SP, 2017, p. 234.
Referências
ANTUNES, Ricardo. Fenomenologia da crise brasileira. Lutas Sociais, São Paulo, vol.19
n.35, p.09-26, jul./dez. 2015.
BARBÉ, Carlos. Golpe de Estado. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola &
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 13ª ed. Brasília: UnB, 2010.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 1978.
CASTRO, Celso. Comemorando a “revolução” de 1964: a memória histórica dos militares
brasileiros. In: FICO, Carlos et al. (Org.). Ditadura e democracia na América Latina:
balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2008, p. 133-6; AUGUSTO,
Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2001.
DEMIER, Felipe Abranches. O barulho dos inocentes: a revolta dos “homens de bem”. In:
Felipe Demier; Rejane Hoeveler. (Org.). A onda conservadora: ensaios sobre os atuais
tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2016.
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2017.
FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada: vias históricas e significado político.
São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. 2ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982.
FERNANDES, Florestan. O significado da ditadura militar. In Caio Navarro de Toledo
(Org.). 1964: visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas:
UNICAMP, 1997.
FERRAZ, Joana. Arquivos da Ditadura: memória que aterroriza quem? GTNM/RJ, Rio de
Janeiro, jun., 2008.
FERREIRA, Mario; NUMERIANO, Roberto. O que é golpe de Estado. São Paulo:
Brasiliense, 1993.
FONTES, Virginia; MENDONÇA, Sônia. História do Brasil recente (1964-1992). 4ª ed.
São Paulo: Ática, 2004.
FRANCO, Stella Maris Scatena. Do arco-íris à monocromia: o Movimento Escola Sem
Partido e as rações ao debate sobre gênero nas escolas. In: MACHADO, André Roberto &
TOLEDO, Maria Rita de Almeida (Org.). Golpes na História e na Escola. São Paulo:
Cortez: ANPUH SP, 2017.
FREIRE, André. Uma nota sobre a extrema-direita no Brasil. Esquerda On Line, 22 out.
2017.
GOODSPEED, Donald. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LEVI, Lucio. Governo. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de política. 13ª ed. Brasília: UnB, 2010.
LEVI, Lucio. Regime político. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola &
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 13ª ed. Brasília: UnB, 2010.
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. 5ª ed.
São. Paulo: Cortez, 1994.
LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serviço Social
& Sociedade, Nº 124, out./dez. 2015.
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1991.
MACIEL, David. A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República (19741985). São Paulo: Xamã, 2004.
MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de Estado. Lisboa: Europa-América, 1983.
MATTOS, Cláudia. Livre expressão e democracia. Cult, São Paulo, Nº 230, dez. 2017.
MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz (Orgs.). Historiadores pela
democracia: o golpe de 2016 e a força do passado. São Paulo: Alameda, 2016.
MARTINS, Rodrigo. O elo perdido. Carta Capital, Ano XXI, Nº 875, 11 de novembro de
2015
MENEZES, Cynara. Fardados e farsantes. Carta Capital, Ano XX, Nº 791, 19 de março de
2014.
MENEZES, Cynara. A revolução será feminina. Carta Capital, Ano XXI, Nº 882, 30 de
dezembro de 2015.
MOTTA, Aricildes de Moraes (Coord.). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e
sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2003, t. 1.
MOTTA, Aricildes de Moraes (Coord.). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e
sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2006, t. 5.
NAUDÉ, Gabriel. Consideraciones políticas sobre los golpes de Estado. Tecnos, 2011.
NETTO, Antonio Delfim. Que sociedade queremos? Carta Capital, Ano XXI, Nº 873, 28 de
outubro de 2015.
ORTELLADO, Pablo; SOLANO, Esther. Nova direita nas ruas? Uma análise do
descompasso entre manifestantes e os convocantes dos protestos antigoverno de 2015.
Perseu, v. 11, 2016.
PADRÓS, Enrique. Memória e esquecimento das ditaduras de segurança nacional: os
desaparecidos políticos. História em Revista, Pelotas, nº 10, dez, 2004.
PADRÓS, Enrique. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas
ditaduras latino-americanas. In Carlos Fico (Org.), Ditadura e democracia na América
Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
PEDROSA, José Fernando de Maya. O revisionismo histórico brasileiro: uma proposta para
discussão. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008.
PENNA, Fernando de Araújo. “Escola Sem Partido” como ameaça à Educação Democrática:
fabricando o ódio aos professores e destruindo o potencial educacional da escola. In:
MACHADO, André Roberto & TOLEDO, Maria Rita de Almeida (Org.). Golpes na
História e na Escola. São Paulo: Cortez: ANPUH SP, 2017.
PRADO, Larissa Brizola Brito. Estado democrático e políticas de reparação no Brasil:
tortura, desaparecimentos e mortes no regime militar. Universidade Estadual de Campinas,
Dissertação (Mestrado em Ciência Política), Campinas, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
REICH, Wilhelm. O que é consciência de classe? São Paulo: Martins Fontes, 1976.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a História, o presente, o contemporâneo. Rio de
Janeiro: FGV, 2016.
SCHLEGEL, Rogério. A história em prateleiras. Aventuras na História, São Paulo, nº 4,
Especial “Ditadura no Brasil”, 25 abr. 2005.
SILVA, Michel Goulart da. Entre golpes y resistencias: cultura, política y violencia en
América Latina. Religación, Nº 7, p. 9-12, 2017.
SILVA, Michel Goulart da. História, política e direitos humanos no Brasil. In: Michel Goulart
da Silva. (Org.). Ensaios sobre história e política. Florianópolis: Em Debate / UFSC, 2012.
SILVA, Michel Goulart da. Os militares brasileiros e a “grande mentira”. In: Fernando Ponte
de Sousa e Michel Goulart da Silva. (Org.). Ditadura, repressão e conservadorismo.
Florianópolis: Em Debate / UFSC, 2011.
SILVA, Michel Goulart da. Wilhelm Reich e o fascismo no presente. Espaço Acadêmico,
2018.
TROTSKY, Leon. Escritos (1932-33). Bogotá: Pluma, 1976, tomo IV, vol. 1.
TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Sundermann,
2011.
ZAVERUCHA, Jorge. Frágil democracia: Collor, Itamar FHC e os militares (1990-1998).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
ZAVERUCHA, Jorge. Rumor dos sabres: controle civil ou tutela militar? São Paulo: Ática,
1994.