1
BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO,
José Maria [orgs.] Vários Orientes. Rio de Janeiro/União da
Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017.
ISBN: 978-85-65996-49-5
Disponível em: www.revistasobreontens.site
2
ÍNDICE
RAÍZES SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS DO TEATRO INDIANO
Ana Beatriz Pestana Gomes, 9
INFLUÊNCIA CULTURAL JAPONESA NA PERSPECTIVA DO ANIMÊ DEATH
NOTE
Angélica da Cruz Bernardo & Lúcio Reis Filho, 15
REFLEXÕES E REPRESENTAÇÕES DA ÁSIA E SUA (NÃO) UTILIZAÇÃO EM
ESPAÇO ESCOLAR
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior & Ítalo Nelli Borges, 25
FONTE DE VIDA: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE DE UMA FONTE CRISTÃ
PRODUZIDA NA ÍNDIA MOGOL NO FIM DO SÉCULO XVI
Bruna Soalheiro, 33
A SOCIEDADE JUDAICA DO PRIMEIRO SÉCULO E O DOMÍNIO ROMANO
Bruno da Silva Ogeda, 43
AS FILIPINAS, O MUNDO ASIÁTICO E A COLONIZAÇÃO ESPANHOLA,
SÉCULO XVI
Carlos Guilherme Rocha, 53
EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS E DIVULGAÇÃO DA ARTE CHINESA
Caroline Pires Ting, 65
HISTÓRIA DA ÁSIA E INTERDISCIPLINARIDADE NA EDUCAÇÃO BÁSICA:
UM DUPLO DESAFIO
Cyanna Missaglia de Fochesatto, 71
“ESMAGUEM OS QUATRO ANTIGOS”: A REVOLUÇÃO CULTURAL
PROLETÁRIA NA CHINA
Daniele Prozczinski, 77
HISTÓRIA E ANIMES: A UTILIZAÇÃO DE ANIMES PARA O ENSINO SOBRE
HISTÓRIA DO JAPÃO
Débora Dorneles Uchaski, 87
BREVE ESTUDO DO JAPÃO EDO: PODER E LEI NOS GOVERNOS DO
XOGUNATO TOKUGAWA (1603-1868)
Diego Almeida de Sousa, 97
JAPONESES NO BRASIL: UMA ANÁLISE HISTÓRICA
Douglas Augusto da Silva, 107
O NASCIMENTO DA JAPONOLOGIA
Edelson Geraldo Gonçalves, 115
3
EDUCANDO UM IMPÉRIO: UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTEXTO
HISTÓRICO EDUCACIONAL CHINÊS
Elois Alexandre De Paula, 125
O JAPÃO E O OLHAR SOBRE O “OUTRO”: O NEGRO EM PERSPECTIVA
Felipe Adriano Alves de Oliveira, 133
O COLÉGIO DE SÃO PAULO EM GOA: NOTAS PRELIMINARES SOBRE
CIÊNCIA, CURRÍCULO E ORGANIZAÇÃO
Felipe Augusto Fernandes Borges & Saulo Henrique Justiniano Silva, 141
DO EXTREMO ORIENTE AO NOVO MUNDO: CAMINHOS DA
INTERCULTURALIDADE NA MISSIONAÇÃO JESUÍTA PORTUGUESA (SÉC.
XVI E XVII)
Fernando Roque Fernandes, 153
ENTRE COLÔNIA, GUERRA INTERNA E DIVISÃO DO PAÍS: UM BREVE
PANORAMA HISTÓRICO DA CORÉIA NO SECULO XX
Flávio Moisés Soares, 163
“POVO SEM HONRA, COVARDES, BRUTAIS E CRUÉIS”: REPRESENTAÇÕES
DOS JAPONESES NO JORNAL PARAENSE FOLHA VESPERTINA (1942-1945)
Geraldo Magella de Menezes Neto
Victor Lima Corrêa, 171
RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE ORIENTAIS NA REDE
ADVENTISTA: A ABORDAGEM SOBRE ÍNDIA E CHINA EM LIVRO
EDITADO PELA CASA PUBLICADORA BRASILEIRA
Gustavo Uchôas Guimarães, 181
A LITERATURA BRASILEIRA E O ORIENTE: ENTRE A OJERIZA E A
APROPRIAÇÃO
Heraldo Márcio Galvão Júnior & Arcângelo da Silva Ferreira, 187
O POEMA DE PENTAUR: RAMSÉS II E A BATALHA DE KADESH
Isaias Holowate & Naton Joly Botogoske, 195
FRANCISCANOS NO EXTREMO ORIENTE: REPRESENTAÇÕES DO MUNDO
MEDIEVAL EM RELATOS DE VIAGEM
Israel da Silva Aquino, 205
UNESCO, YOGA E MAHÃBHÃRATA: HISTÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL
IMATERIAL DA ÍNDIA
Janaina Cardoso de Mello, 215
EXTREMO ORIENTE: DOIS OLHARES PARA O VAZIO
Jienefer Daiane Marek, 225
4
O IMPÉRIO ASIÁTICO PORTUGUÊS: UMA PERSPECTIVA
HISTORIOGRÁFICA
Jorge Lúzio, 235
EM BUSCA DOS „CHINS‟
Kamila Rosa Czepula, 243
“MUÇULMANOS X CRISTÃOS”: A CRIAÇÃO DO INIMIGO DA AL-QAEDA E A
EDUCAÇÃO PARA O ÓDIO
Katty Cristina Lima Sá, 253
REFLEXÕES SOBRE O RELATO DE UM VIAJANTE BRASILEIRO AO
EXTREMO ORIENTE NO SÉCULO XIX: DA FRANÇA AO JAPÃO DE
FRANCISCO ANTONIO DE ALMEIDA
Kelly Yshida, 263
ELEMENTOS DO XINTOÍSMO DE ESTADO NAS ESCOLAS JAPONESAS
(1890)
Leonardo Henrique Luiz, 271
MAVO: O MODERNISMO E A POLÍTICA NO JAPÃO DO SÉCULO XX
Leonardo Souza Alves, 281
O CÓDIGO DE HAMURABI: O IMPERADOR, SUA OBRA E O DIVÓRCIO NA
ANTIGUIDADE
Lucimara Andrade da Silva & Luana Aparecida da Silva, 289
O QUANTO DE ÁRABE HÁ EM NÓS?
Luciano dos Santos Ferreira, 299
A ÉTICA ECONÔMICA BUDISTA E O ESPÍRITO CAPITALISTA JAPONÊS
Luís Henrique Palácio da Silva, 309
O TIANZHU SHIYI, OU O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO SENHOR DO
CÉU: COMENTÁRIOS SOBRE SUA NATUREZA E IMPACTO
Luiz Felipe Urbieta Rego, 317
O ORIENTE MÉDIO ATRAVÉS DO CINEMA: DIÁLOGOS A PARTIR DAS
REPRESENTAÇÕES PRODUZIDAS NOS ESTADOS UNIDOS
Maicon Roberto Poli de Aguiar, 325
O OCIDENTE PELO ORIENTE: A REPRESENTAÇÃO DA SEGUNDA GUERRA
PÚNICA NO MANGÁ “HEUREKA”, DE HITOSHI IWAAKI
Maria Carolina Silva Martins Pereira & Pedro Antonio de Brito Neto, 335
A CONSTRUÇÃO DOS 47 RONIN COMO SÍMBOLO NACIONALISTA
Mariana Steiner Farias, 345
5
OS FESTIVAIS EGÍPCIOS: MITO, MAGIA E RELIGIOSIDADE
Maura Regina Petruski, 355
PIRATAS JUDEUS NA ANTIGUIDADE
Nelson Rocha Neto, 363
OLHARES CRUZADOS: JAPÃO E PORTUGAL
Newton Ribeiro Machado Neto, 371
O ORIENTALISMO E AS REPRESENTAÇÕES DO EGITO ANTIGO EM 'AGE
OF MYTHOLOGY'
Pepita de Souza Afiune & José Loures, 385
MITANI: O REINO PERDIDO
Priscila Scoville, 399
REPRESENTAÇÕES DA RAPOSA NA LITERATURA MARAVILHOSA
MEDIEVAL: UMA COMPARAÇÃO ENTRE O IMAGINÁRIO EUROPEU E O
JAPONÊS
Raphaella Ânanda Sâmsara Maia Augusto de Souza Faria, 409
A INFLUÊNCIA GEOGRÁFICA NA DEFINIÇÃO DA GUERRA NAVAL RUSSOJAPONESA (1904-1905)
Rayanne Gabrielle da Silva, 415
INTERVENÇÃO DO PIBID DE HISTÓRIA: O JAPÃO NA SALA DE AULA
Renan Lourenço da Fonseca, 425
“MIMOS INDIANOS” E “DELÍCIAS DA ÁSIA”: UM DEBATE SOBRE O
IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI
Ricardo Hiroyuki Shibata, 431
RELEITURAS DO PERÍODO “MUROMACHI BAFUKU” ATRAVÉS DO FILME
OS SETE SAMURAIS
Rodrigo Galo Quintino, 439
O PROJETO DE NAPOLEÃO BONAPARTE PARA O EGITO:
CONSIDERAÇÕES SOBRE ORIENTALISMO
Rodrigo Henrique Araújo da Costa, 451
LITERATURA COMO ABORDAGEM DO PASSADO: DEFESA DA TRADIÇÃO
JAPONESA NO ENSAIO EM LOUVOR DA SOMBRA DE JUN‟ICHIR
TANIZAKI
Ronny Costa Pereira, 463
ALÉM DA GUERRA E RADIAÇÃO - UMA ANÁLISE DA HISTÓRIA ANTIGA
DO JAPÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO DAS ESCOLAS
ESTADUAIS DE MEDIANEIRA NO PARANÁ
Sander Fernando de Paula, 471
6
ENTRE RASTROS: PISTAS SOBRE UMA PRÁTICA RITUAL DO CULTO DA
DEUSA INANNA
Simone Aparecida Dupla, 477
O SOCIAL DARWINISMO OCIDENTAL E O PROGRESSO JAPONÊS
Tiago Tormes Souza, 487
A IGREJA TENRIKYO AMAZÔNIA: A HISTÓRIA E A CULTURA DA
RELIGIÃO
Vitor Moises Nascimento Therezo, 495
OS MANGÁS COMO METODOLOGIA LÚDICA NO ENSINO-APRENDIZAGEM
Wallysson Klebson de Medeiros Silva & Camila Teixeira de Carvalho Dias, 505
7
8
RAÍZES SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS DO
TEATRO INDIANO
Ana Beatriz Pestana Gomes
Nesse breve ensaio pretende-se apresentar um panorama
sociocultural e político da História do Teatro Indiano perpassando o
teatro sânscrito, o teatro moderno no século XIX e o teatro político
no século XX. No âmbito do teatro sânscrito, será apresentada a sua
história, a dos poetas que escreveram os grandes poemas épicos
indianos e o Natyashastra. Sobre o teatro moderno será
apresentada a influência inglesa na arte teatral indiana no século
XIX, assim como, o teatro em defesa da cultura nacional. Serão
também apresentadas as tensões de natureza sociocultural e política
que influenciaram a arte teatral nas quatro primeiras décadas do
século XX e após a independência do país.
A Índia recebeu diversos povos em seu território ao longo da sua
História e vivenciou assimilações advindas de diversas culturas
(grega, turca, persa, portuguesa, francesa, inglesa e outras), o que a
caracteriza como uma “colcha de retalhos” da história e riquíssima
no âmbito cultural, artístico, religioso, linguístico, de tradições e etc.
O teatro indiano ao longo da sua história também vem sendo
agraciado e caracterizado por todas essas culturas que passaram e
deixaram as suas contribuições artísticas pelo país.
As raízes do teatro indiano são originárias de rituais religiosos e de
eventos sociais que tiveram as suas primeiras manifestações
artísticas em festivais realizados em templos, vilarejos, aldeias e etc.
Inicialmente as manifestações performáticas eram danças com
músicas em saudação a deuses (exemplo: saudação a Shiva e a
Ganesha). Com o passar do tempo, estas manifestações se
desenvolveram e ganharam a forma de espetáculos com narrativas
dramáticas que fizeram parte do teatro sânscrito.
O teatro sânscrito pode ser analisado através do âmbito popular e
clássico. O teatro popular se formou de maneiras distintas em cada
região da Índia e contempla diferentes estéticas artísticas que
contribuem até hoje para o enriquecimento da diversidade cultural e
teatral indiana (VYAS, 2008). Algumas características marcam o
teatro popular, como por exemplo: a apresentação em locais
públicos, à associação a multidões, a presença de narrativas que
9
retratam temas cotidianos e a utilização de linguagem direta e de
fácil assimilação (BANERJEE, 2011). O teatro de bonecos, por
exemplo, é uma antiga tradição do teatro popular indiano, em que
através de temas mitológicos, históricos e sociais são apresentadas
distintas características regionais da cultura indiana (BANERJEE,
2011). São algumas formas de teatro popular existentes até hoje: o
Khyal, o Maach, o Nautanki e o Swang.
A forma clássica do teatro sânscrito se desenvolveu com a integração
de formatos artísticos advindos de rituais folclóricos e rituais
religiosos. Alguns dos maiores escritores do teatro sânscrito clássico
foram: Bhasa, Kalidasa, Bhavabhuti e Vishakhadatta (VYAS,
2008). São manifestações de teatro clássico: o Kutiyattam, o
Krishnattam, o Koodiyattam, o Theyyam, o Kathakali e muitas
outras. O teatro clássico indiano também continua até hoje a ser
encenado na Índia em diferentes regiões que o realizam de acordo
com as especificidades culturais e linguísticas de cada região. O
período de prosperidade do teatro indiano sânscrito perdurou até as
incursões árabes, período em que a cultura indiana antiga foi se
transformando e a ela foram sendo integradas diferentes tradições
artísticas. (BANERJEE, 2011).
O Natyashastra é uma obra muito importante para a história do
teatro indiano e até hoje é uma fonte de inspiração para diretores de
teatro, dramaturgos, atores, dançarinos, músicos e artistas das artes
performativas (BANERJEE, 2011). Natya remete a drama e Shastra
remete a escritura, manual, assim, o Natyashastra seria um manual
para o drama indiano, que na estética artística hindu contempla o
teatro, a dança e a música. A sua origem é considerada sagrada, o
livro teria sido criado oralmente na última década antes do início do
calendário cristão e posteriormente teria sido escrito. Acredita-se
que a sua composição é originária dos Vedas, a poesia do Rig Veda,
os sons do Sama Veda, os gestos do Yajur Veda e os sentimentos do
Atharva Veda (NAG, 2013). Escrito na estrutura de uma resposta
que Bharata fornece a sábios que solicitam que ele os explique sobre
a importância de Natya, como ela surgiu, sobre o que ela deve tratar,
e para quem ela foi feita, Bharata os responde detalhadamente
sobre a arte do drama indiano, que seria importante para educar e
inspirar aqueles que não podiam ler ou compreender os conteúdos
presentes nos quatro vedas (SCHECHNER, 2001).
10
Os poetas sânscritos desenvolveram o material criativo dos épicos,
lendas, histórias e mitos que formaram a base textual do teatro
sânscrito representados até os dias atuais na Índia. Alguns dos mais
importantes foram: Kalidasa, um dos escritores clássicos mais
famosos da Índia, Valmiki, o primeiro escritor do Ramayana e
Vyasa, o autor do Mahabharata (VYAS, 2008), dentre outros.
O teatro moderno indiano foi inaugurado pela presença inglesa na
Índia e a sua gradual influência no teatro indiano desde o século
XVIII e principalmente a partir do século XIX. Este teatro
ocidentalizado acabou se desenvolvendo com maior intensidade nas
regiões em que a presença inglesa era mais significativa, como
Calcutá (NAG, 2013). Pouco a pouco o teatro britânico foi afirmando
a sua força e o teatro indiano ganhou novas criações, estruturas
arquitetônicas, começou a utilizar o palco italiano, experimentou
novas técnicas de luz, cenografia, atuação e outras inovações
(AHUJA, 2012).
Inicialmente as criações teatrais (nos moldes ocidentais) no século
XIX eram restritas aos oficiais ingleses, entretanto, aos poucos elas
foram se expandindo aos letrados e à classe alta indiana desejosa por
arte e cultura do Ocidente. Criações shakespearianas foram
utilizadas como forma de afirmar a cultura inglesa frente à indiana e
Calcutá foi crucial para o desenvolvimento do colonialismo cultural.
No final do século XIX, o rumo do teatro indiano começou a mudar
com criações repletas de conteúdos políticos, que denunciavam
opressões sofridas pelo povo indiano e defendiam ideais
nacionalistas (SINGH, 2013).
Assim, o teatro político indiano foi florescendo a partir de tensões
sociais de natureza política, sendo os abusos realizados pela Coroa
Britânica e pela classe alta indiana contra o povo os seus maiores
impulsionadores (BANARJEE, 2013). Nil Darpan (The Indigo
Planting Mirror) (MITRA, 1861), por exemplo, denunciou as
injustiças do desumano sistema de exploração dos agricultores de
índigo de Bengala e retratou as suas insatisfações e aspirações por
melhores condições de vida. Em um período em que o teatro
apresentava em cena os interesses da classe privilegiada indiana,
esta peça denunciou a falta de humanidade dos colonizadores no
relacionamento com os agricultores e se tornou um marco para a
História do teatro político indiano. Após esta peça muitas outras
11
foram escritas e encenadas como forma de protesto social, sendo
muita delas censuradas.
No século XX, a manifestação teatral política indiana intensificou-se
a partir da década de 1930 sob a influência de ideais revolucionários
que chegavam ao país através de indianos que saíam para estudar e
explorar outras culturas e estruturas socioculturais e políticas. A
Índia encontrava-se imersa em um contexto sociopolítico repleto de
movimentos civis que defendiam diversificados interesses do povo,
como por exemplo: a Indian Progressive Writer’s Association e a
Indian People's Theatre Association (IPTA), que lutaram contra o
imperialismo e o fascismo (BHATIA, 1997). A IPTA foi criada por
artistas ativistas que tinham o intuito de integrar o teatro aos demais
movimentos nacionalistas na luta contra a calamidade instalada no
país devido a sanções da Coroa britânica aos movimentos de
emancipação, as consequências da Segunda Guerra Mundial, a crise
de fome de Bengala, dentre outros fatores (AGRAWAL, 2013). Este
movimento cultural marcou a história do teatro político indiano e
serviu de base para muitos outros grupos de teatro político que
surgiram no país posteriormente.
Após a independência da Índia em 1947 e a instauração do governo
nacional,
muitas
contradições
sociopolíticas
eclodiram,
desapontando ideologicamente os movimentos revolucionários que
lutaram pela independência e por uma ideia de nação igualitária nas
décadas de 1930 e 1940. Diversos movimentos de teatro político se
enfraqueceram nos moldes em que eram realizados até então,
precisaram reformular as suas estratégias de atuação e continuaram
a praticar a arte teatral em prol da superação de desafios sociais,
econômicos, culturais e políticos, como por exemplo: transformar a
opressão do pensamento sofrida em expressão do pensamento
indiano, transformar a imposição da língua e da cultura do
dominador em afirmação das línguas e das culturas do país,
fortalecer a democracia do país, transformar as políticas de
dominação em políticas de bem-estar, transformar a ideologia da
castração para a de humanização, e muitas outras questões
(KUMAR, 2014). Atualmente muitos profissionais do teatro indiano
continuam trabalhando em prol do seu desenvolvimento em diálogo
com a multiplicidade das riquezas locais, dos mitos, épicos, lendas,
danças, da espiritualidade e etc.
12
A presente comunicação chega ao seu fim concluindo que a História
do Teatro Indiano é riquíssima artística, cultural e politicamente, e
que o que se entende hoje por Teatro Indiano é produto de milhares
de anos de história e de influências de diferentes povos e culturas
que ajudaram a construir o território das tradições artísticas do país.
Assim, para compreender com profundidade a diversidade do teatro
indiano é preciso ter em mente inúmeros fatores (diferentes crenças,
castas, rituais, contingencias sociopolíticas, culturais e econômicas,
etc.), pois desta maneira é possível realizar os mergulhos intelectuais
necessários para o entendimento das nuances artísticas encontradas
nas diferentes regiões da Índia.
Referências
Ana Beatriz Pestana é doutoranda em História Política (PPGH Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e mestre em Filosofia
(Universidade de Lisboa). Realiza pesquisas históricas e filosóficas
sobre movimentos teatrais políticos, no doutorado investiga o Teatro
Político Indiano e no mestrado investigou o Teatro Político
Alemão. Atualmente é pesquisadora do Programa de Estudos
Indianos da UERJ e membro do conselho editorial discente da
revista Dia-Logos do PPGH da UERJ. Orientador de Tese (PPGHUERJ): Professor Dr. Edgard Leite Ferreira Neto. E-mail:
anabeatrizpestana@gmail.com
AGRAWAL, B. IPTA‟s Contribution in Awakening Nationalism. The
Criterion. Maharashtra, v. 4, 2013, p. 1-5.
BANARJEE, A. Evaluating the role of street theatre for social
communication. Global Media Journal - Indian Edition.
Calcutta, v. 4, n. 2, 2013, p. 1-18.
BANERJEE, U. K. Luminous Harmony: Indian Art And
Culture. New Delhi: Niyogi Books, 2011.
BHATIA, N. Staging Resistance: The Indian People‟s Theatre
Association. In: Lisa Lowe and David Lloyd (editors). The Politics
of Culture in the Shadow of Capital. USA: Duke University
Press, 1997, p. 432-460.
KUMAR, B. Decolonizing the Indian Theatre. Language in India
– Strengh for Today and Bright Hope for Tomorrow. Uttar
Pradesh, v.: 14:4, 2014, p. 42-55.
MITRA, D. Nil Darpan or The Indigo Planting Mirror.
Translated by James Long. Calcutta: Calcutta Printing and
Publishing Press, no. 10, 1861.
13
NAG, B. Role of theatre and folk media in promoting social
development. Global Media Journal- Indian Edition. Calcutta:
Winter Issue, v. 4, n. 2, 2013, p. 1-23.
SCHECHNER, R. Rasaesthetics. The Drama Review. New York:
The New York University, v. 45, issue 3, 2001, p. 27-50.
SINGH, M. Theatre and the making of Indian Nationalism during
the colonial period. Periodic Research. Uttar Pradesh: v. II, issue
August, 2013, p. 204-209.
VYAS, R. Incredible India. Ahmedabad: Akshara Prakashan,
2008.
14
INFLUÊNCIA CULTURAL JAPONESA NA
PERSPECTIVA DO ANIMÊ DEATH NOTE
Angélica da Cruz Bernardo
Lúcio Reis Filho
O presente artigo analisará o animê Death Note (Tetsuro Araki,
2006-2007), observando os elementos que compõem seu enredo,
bem como temas filosóficos que dialogam com as três religiões
presentes no Japão: cristianismo, budismo e xintoísmo. Será alvo de
investigação também a história do animê e seu impacto sobre a
população japonesa e global. Será traçado também um breve
panorama sobre outros animês que dialogam com a filosofia.
Animê e cultura japonesa
Animê é um termo utilizado no Japão para designar todo e qualquer
tipo de animação, sendo esta de origem ocidental ou oriental. Já no
ocidente este termo é usado difusamente e exclusivamente para se
referir as animações provenientes do JapŌo. “Até a ocupaçŌo norteamericana, os desenhos animados no Japão eram em geral
chamados de dogã (...)” (SATO, 2005, p. 31). Depois da Segunda
Guerra Mundial deu-se início ao processo de ocupação dos Estados
Unidos no Japão; com a interferência estadunidense, o Japão
integrou e adaptou ao seu vocabulário algumas palavras de origem
inglesa. Podemos recorrer ao exemplo da palavra animê, que é uma
derivação da palavra inglesa animation. (SATO, 2005, p. 32)
O animê, uma importante manifestação da cultura japonesa,
converteu-se em um importante símbolo da identidade nacional.
Uma dissidência fulcral entre animês e desenhos animados
corresponde na característica que o animê é um desenho com
narrativa seriada que se deve assistir em sequência para que se possa
entender o desenrolar da trama a história e seu desfecho; já o
desenho animado ocidental é comumente caracterizado por
episódios autônomos, ou seja, cada qual conta uma história e
resolve, em si mesmo, o problema apresentado; logo, os episódios
são independentes uns dos outros e não constroem uma cronologia.
O animê contém traços idiossincráticos se comparado ao desenho
animado: principalmente a estética da ilustração, mas, acerca desses
elementos, devem ser levados em consideração o estúdio de
animação o diretor, o artista do mangá – história em quadrinhos
proveniente do Japão – se for inspirado em mangá; a própria
15
temática do animê é bem característica, de acordo com Morell os
temas discorrem sobre: “existencialismo, violência, humanidade,
humanidade, problemas psicológicos ou mesmo sexo, além de
outros temas mais típicos como o amor, a açŌo ou a fantasia.”
(MORELL, 2013, p. 13)
Para reforçar seu caráter audiovisual, sua natureza estética e
apresentação gráfica, o animê conta com uma abertura e um
encerramento. Ambos apresentam uma prévia, uma espécie de
trailer com as principais cenas do episódio, e acompanhamento
musical de fundo. Geralmente, no meio de cada capítulo é exibido
um fotograma, este em estrita relação com o mesmo, demarcando a
metade do capítulo.
O animê se tornou um importante produto do mercado interno
japonês e um produto de exportação largamente difundido em
outros países. Não somente o animê virou um produto do mercado,
os personagens, símbolos, brinquedos e outros recursos invadiram
lojas do mercado que atraem aos fãs colecionadores mais dedicados
do gênero. O consumo de mangá e animê, e outros produtos
originários do Japão, faz com que fãs, apreciadores, ou mesmos os
otakus busquem aprender a cultura japonesa e, ou até mesmo a
própria língua japonesa. O termo Otaku, foi criado no Japão para
designar “um indivíduo que vive „fechado em um casulo‟, isolado do
mundo real e dedicado a um hobby.” (NAGADO, 2005, p. 55). Este
termo foi ressignificado dentro da cultura brasileira, e atualmente é
designado para se referir aos fãs de animê e mangá.
Em pesquisa recente divulgada pela provedora de conteúdo via
streaming Netflix, durante evento Anime Slate 2017, em Tóquio, o
Brasil foi considerado um dos maiores consumidores de animê no
mundo, junto com México, Peru e Itália. “Os cerca de 400 estúdios
existentes por lá produzem mais de dois mil episódios por ano,
gerando bilhões de dólares com a transmissão dentro e fora do país,
exportando séries para todos os continentes.” (ZAGO, 2012, pág. 43)
Isso não garante apenas um lucro exorbitante para empresas
japonesas desse ramo, mas também a consolidação da rápida
difusão da cultura, mitologia e costumes japoneses através das
mídias, ou seja, que é um elemento que comprova o poder da cultura
e da indústria japonesa. Resultando que novos adeptos entrem em
16
contato com essa cultura e a propagação do conteúdo moral e ético
que é difundido nos animês e mangás e contaminam seu público.
A trilha sonora é um elemento que complementa a história do
animê, e ajuda a enriquecer e aumentar a sua propagação. A cultura
de fãs mostra devoção para com a trilha sonora de seus animês
favoritos. No Brasil, alguns hits de animê embalaram gerações que
cantam energicamente Pegasus Fantasy, de Cavalheiros do
Zodíaco, interpretada na sua versão brasileira pelo cantor Edu
Falaschi, um dos expoentes da cena nacional de heavy metal; a
trilha de abertura do Dragon Ball; “Quero mudar o mundo”, do
animê InuYasha, etc. As músicas de animês dos anos 90 e do início
dos anos 2000 causam nostalgia em fãs brasileiros, e as trilhas
sonoras de games são também sempre lembradas, como a de Snake
Eater (Metal Gear), as composições de Nobuo Uematsu para a série
de games Final Fantasy e Chrono Trigger, e de Akira Yamaoka, para
Silent Hill.
Aspectos filosóficos de alguns animês
Em muitos casos os temas filosóficos estão intrínsecos na trama do
animê e acarretam discussões calorosas entre fãs ou até mesmo
especialistas. Podemos recorrer ao exemplo de alguns animês.
Ataque dos Titãs (Shingeki No Kyojin, 2013-), por exemplo, tem um
prólogo envolvente e desperta uma incipiente curiosidade no
espectador: “E naquele dia, a humanidade se lembrou, se lembrou
do quão assustador é ser subjugado. Cercados como pássaro presos
em uma gaiola, apenas para serem destruídos!” A trama se passa no
ficcional distrito de Shiganshina, no ano de 845, onde foram
construídas 3 muralhas – Maria, Rose e Sina – para proteger os
humanos dos terríveis Titãs. Estas criaturas têm tamanhos que
podem variar de 5 metros a 60 metros, representam uma ameaça
constante aos personagens e se alimentam de carne humana. No
primeiro episódio um clérigo faz a seguinte pregaçŌo “Essas paredes
foram feitas pelo próprio Deus! Elas estão a favor de Deus!
Nenhuma das criaturas fora delas, será capaz de atravessar!”
Quando o Titã Colossal destruiu a primeira muralha, houve então
uma cisão com este imaginário religioso.
Uma outra perspectiva filosófica levantada no animê supracitado é
que Eren Jaeger, personagem principal, quer ir para além das
muralhas com intuito de saber como é a vida lá fora. Esse fato nos
rememora a filosofia de PlatŌo com o aforismo “O mito da caverna”.
17
A alegoria de Platão descreve a seguinte situação: homens dentro de
uma caverna, que se encontram ali desde a idade tenra, estão presos
por correntes que os impedem de fazer movimentos e não
conseguem enxergar alhures distantes; até um prisioneiro
porventura sair da caverna e descobrir um mundo novo totalmente
diferente da escuridão do interior da mesma. Em seu retorno à
caverna, caso comente sua nova experiência, poderá causar medo,
estranhamento para alguns ou aceitação e libertação na perspectiva
de outros. (PLATÃO, 1965, p. 105- 109)
O animê Death Note (Tetsuro Araki, 2006-2007) também suscita
uma abordagem filosófica ao apresentar um debate interessante
sobre a ética e a moralidade, que complementa e enriquece seu
enredo, e será objeto de análise deste artigo.
Surgimento e adaptação do Death Note
Death Note foi criado originalmente na forma de mangá pelo
escritor Tsugumi Ohba e sob ilustração de Takeshi Obata, tendo seu
início em dezembro de 2003 e conclusão em maio de 2006. O mangá
Death Note é composto por 12 volumes encadernados. Houve o
lançamento de um conteúdo especial no volume 13, que contém
entrevistas, informações sobre personagens, etc.
Entre os anos de 2006 e 2007 a série em mangá ganhou uma
adaptação em animê dirigida por Tetsuro Araki, com 37 episódios.
Death Note é um sucesso eminente e ganhou várias produções
derivadas. O site Supremacia GEEK nos ajuda a traçar um panorama
sobre as adaptações da animação:
“Em 2006 ainda foi lançado o primeiro filme live action
japonês baseado na série. No Japão esse filme ficou em
primeiro lugar em bilheterias, desbancando até o filme “O
Código Da Vinci”. E no mesmo ano ainda saiu à
continuaçŌo do filme, intitulado “Death Note: The Last
Name”. Em 2008 teve mais um filme em live action, “L:
Change the World”, que tem L como personagem principal.
Death Note foi um sucesso tão grande que além dessas
adaptações também virou game e até peça de teatro. Existe
também uma versão americana do filme que está sendo
produzida. E esse ano saiu a série japonesa de live action.”
(SUPREMACIAGEEK, 2015)
18
O mais recente filme em live-action foi produzido pela Netflix e
lançado em agosto de 2017, já é alvo de críticas do público devido à
caracterização dos personagens e também pela ausência de
fidelidade a história do mangá. Pelo trailer do filme já é notável que
a Netflix fez uma ocidentalização dos personagens, já que a maioria
do quadro de atores são origem estadunidense, bem como o
desfecho da história e comportamento dos personagens não são
fidedignos. Essa adaptação em live-action, no entanto, foi bem
aceita pelos criadores da franquia, que se mostraram entusiasmados.
Breve panorama do enredo de Death Note
Death Note aborda principalmente questões de ordem moral e ética,
em uma narrativa composta por vários elementos da cultura
japonesa e da cultura ocidental que enriquecem tanto sua estética
quanto seu enredo. A história começa quando o shinigami Ryuk
deixa seu Death Note cair propositalmente no mundo dos humanos.
Os shinigamis são considerados deuses da morte na mitologia
japonesa, e o Death Note, na obra de ficção, é um caderno da morte
usado para matar os seres humanos. Primeiro deve-se escrever o
nome de uma pessoa e mentalizar o rosto da mesma; dentro de 40
segundos, ela morrerá (em circunstâncias que variam de acordo com
a intenção daquele que escreveu o seu nome no caderno). Light
Yagami é um estudante exemplar, entediado com sua vida e com as
regras que regem sua sociedade. Todos os dias os noticiários
anunciavam diversos crimes e presenciar as injustiças aumentava
cada vez mais a frustraçŌo de Light, para ele “este mundo está podre,
e aqueles que o fazem apodrecer merecem morrer”, diz o
personagem.
Sua perspectiva sobre o mundo estar podre era resultado das
ocorrências diárias de crimes, assassinatos, estupros, e, para ele, era
necessário extirpar estes males do mundo. Ao encontrar o caderno,
Light lê a seguinte instruçŌo: “O humano cujo o nome for escrito no
caderno morrerá”, com atitude cética ele descarta o caderno, porém
ulteriormente o recolhe novamente. Ao usar o caderno descobre que
seu poder é real, e movido por um senso de justiça começa a matar
os criminosos, almejando assim criar um mundo ideal. Com essa
postura, Light Yagami se considera o Deus do Novo Mundo, e ele se
torna tão intimo do caderno que acaba se tornando o próprio Deus
da Morte, papel que deveria caber ao shinigami Ryuk.
19
Com o número crescente de criminosos aparecendo mortos em todos
os lugares, a imprensa e as autoridades começam a cogitar a
existência de alguém por trás dos homicídios. Agindo secretamente
em seu quarto, Light Yagami mantém a sua identidade secreta bem
protegida. Ele começa ser chamado de “Kira” (versŌo japonesa da
palavra inglesa Killer), e a partir do momento em que as autoridades
se opõem ao seu método de fazer justiça, e chegam perto de
relaciona-lo ao criminoso, Kira começa a matar inocentes que se
opõem a sua vontade, principalmente aqueles que se aproximam de
descobrir a sua verdadeira identidade. Kira se perpetua numa
posição de poder onde acaba colocando suas aspirações pessoais
acima de sua ideologia de ceifar apenas a vida de criminosos. Outro
fator importante sobre esse personagem é que ele, cada vez mais,
nŌo quer o anonimato, mas ser reconhecido como “Deus do Novo
Mundo”, uma espécie de novo Messias que vem salvar o seu povo do
sofrimento.
O principal detetive do caso, mais conhecido como “L”, L Lawliet, é
obcecado por justiça, seu nome é marcado por sua indubitável
inteligência e seu senso de dedução apurado, já que todos os casos
que assumiu conseguiu êxito. Podemos dizer que a construção de L
guarda semelhanças com detetives icônicos da ficção policial, como
Auguste Dupin, das histórias de Edgar Allan Poe, Sherlock Holmes,
de Sir Arthur Conan Doyle, e Hércule Poirot, detetive belga dos
romances de Agatha Christie; todos estes personagens, assim como
“L”, possuem senso de deduçŌo apurado e raciocínio lógico
extraordinário.
Algumas relações do animê com a filosofia
Death Note é conhecido pela torrente de temas filosóficos que
aborda. Sendo estes temas intrínsecos à sua narrativa, de modo a
enriquecerem e darem profundidade ao seu enredo, dentre eles
podemos delinear: conteúdo moral e ético, mitologia, vestígios das
três religiões presentes no Japão: budismo, xintoísmo e
cristianismo; bem como também estabelecer alguns paralelos com a
filosofia ocidental. Será alvo de análise desta seção as relações do
animê com estas religiões.
Em minutos finais do primeiro capítulo intitulado
“Renascimento” as ações de Light, o assassinato de dois
criminosos, levam-no a uma crise de consciência e,
ulteriormente, à aceitação de extirpar do mundo todo o
20
mal. Em sua fala podemos destacar o seguinte trecho: “...
esse mundo está podre, e aqueles que fazem ele apodrecer
merecem morrer. Alguém tem que fazer isso, então por que
não eu, mesmo que seja preciso sacrificar minha mente e
minha alma, vale a pena porque o mundo não pode
continuar assim.”
Essa ideia dialoga com um dos princípios da religião xintoísta que é
“subordinaçŌo do individuo ao grupo” (LITTLETON, 2010, p. 9).
Mesmo com esse aspecto, a postura de Kira se encaixa melhor na
doutrina “utilitarista”, apesar de se preocupar com o
restabelecimento da ordem, ele dá prioridade para seus próprios
interesses, esses são pertinentes aos desejos da população. O
pensamento “utilitarista” foi fundado pelo filósofo inglês Jeremy
Bentham; ele “nŌo defendeu apenas que o bem é a felicidade em
geral, mas também que cada indivíduo busca sempre o que imagina
ser a própria felicidade” (RUSSEL, 1957, p. 345)
O próprio nome do personagem Light Yagami pode ser associado ao
Lúcifer, que significa “Portador da Luz”, e também ao bosatsu do
budismo japonês que significa “ser iluminado”. Essa ideia ainda é
comprovada no animê aos 19 minutos e 30 segundos do capítulo
“Renascimento”, quando aparece um feixe de luz sobre o
personagem Light, e embalado pelo som da música Low of Solipsism
invadem a tela cenas de criminosos morrendo por ataques cardíacos.
“Por outro lado seu nome é luz, o que nŌo surpreende, já
que tanto Light como parte da sociedade que apoia Kira lhe
veem como um Messias, um salvador da humanidade que
traz à luz onde antes havia sombra.” (MORELL, 2013,
pág.35)
Já no capitulo 25, intitulado “Silêncio”, Light encontra “L” em meio
à chuva. Eles conversam e L prenuncia a própria morte: “daqui para
frente será uma solidŌo eu e você iremos nos separar em breve”. Em
seguida, ao ver Light todo encharcado, “L” se ajoelha diante dele,
colocando-se em postura de subordinação, e se oferece para secar os
pés de Light; essa cena nos faz rememorar a cerimônia de lava pés,
quando Jesus lavou os pés de seus discípulos como sinal de
humildade. Após esse acontecimento “L” morre por traiçŌo de Light.
No começo da abertura o nome do animê aparece disposto numa
cruz, que é símbolo sacro supremo da religião cristã. De acordo com
21
Serradilla os autores não apresentam apenas elementos de religiões
japonesas com intuito de conseguir conquistar público de outros
países:
Podemos dizer que como produto voltado para o mercado
internacional é interessante que sejam introduzidos elementos
característicos da cultura ocidental, para que os diversos públicos do
outro lado do oceano se familiarizem mais com o animê. Mas
devemos levar em consideração também as mediações culturais que
aconteceram ao longo das gerações, e ecoam através dos tempos
possibilitando essa gama de formas hibridas:
“...é que devemos ver as formas hibridas como resultado de
encontros múltiplos e não como um resultado de um único
encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos
elementos à mistura, quer reforcem os antigos
elementos...” (BURKE, 2003, p. 31)
O próprio shinigami é o Deus da Morte na mitologia japonesa, e ele
se torna o elemento principal da trama, pois ele deixa seu caderno
cair propositalmente no mundo dos humanos e é devido a sua ação
que Light alicerça toda sua trajetória em criar um mundo ideal.
Considerações finais
O contato do Japão com outras nações resultou na recepção de
vários elementos a sua cultura, bem como na doação de
componentes de sua cultura. Podemos observar alguns exemplos
resultantes dessas transmissões culturais: a religião cristã que
chegou devido ao intermédio de jesuítas, o budismo com raízes
chinesas, a escrita chinesa foi incorporada e também algumas
palavras inglesas com a ocupação estadunidense. Mas nem sempre
as mediações obtêm sucesso, pode acontecer de elementos de outras
culturas serem rejeitados ou até mesmo causar revolta. A
transculturação é fulcral e pode resultar na ressignificação de velhos
costumes, para criação de novos elementos ou até consolidar ou
reviver os antigos valores.
Um exemplo disso hoje é a tecnologia, mesmo com a modernização o
Japão não desvincula seus velhos costumes e valores, mas faz uso da
confluência enriquecendo mais ainda sua cultura, e os japoneses
lutam para suas tradições não evanescerem.
22
O animê, um importante produto da sua cultura, é uma das
engrenagens que movimentam o mercado japonês. Além de
movimentar o mercado global ele é um importante propagador
dessa cultura híbrida. Death Note é um bom exemplo, além de ser
sucesso em muitos países ajuda a divulgar traços da cultura
nipônica. Os fãs fazem uso desse consumismo resultando
consolidação e expansão desse mercado. Isso só prova que a cultura
popular japonesa se tornou um importante elemento nos dias de
hoje, e está cada vez mais presente e influente na cultura de vários
países devido ao fenômeno da globalização e ao dialogo
intercultural.
Referências
Angélica da Cruz Bernardo é graduanda em História pela
Universidade Estadual de Minas Gerais.
Email: angel.angelicacruz@hotmail.com
Lúcio Reis FIlho é Doutorando em Comunicação (Cinema e
Audiovisual) pela UAM, Mestre nessa mesma área pela UFJF e
historiador. Bolsista CAPES-PROSUP.
Email: luciusrp@yahoo.com.br
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unisinos,
2003.
DEATH NOTE. Direção: Tetsur Araki. Produção: Toshio Nakatani,
Manabu Tamura , Masao Maruyama. Madhouse, 2006-2007. (37
episódios).
LITTLETON, C. Scott. Conhecendo o xintoísmo: origens,
crenças práticas, festivais, espíritos, lugares sagrados. Tradução de
Vera Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
MORELL, Carla Tomé. Narratividad, ética y moralidad em la serie
de animación japonesa Death Note. Trabajo final de grado.
Universidad Politecnica de Valencia: Gandia, 2013.
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Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. Disponível em:
<https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/arepc3bablica-parte-ii.pdf> Acesso em: 31 de agosto de 2017.
RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Tradução de
Brenno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
23
Disponível em: <http://asdfiles.com/9mn> Acesso em: 01 de
setembro de 2017.
SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN,
Sonia M. Bibe. (Orgs.). Cultura pop japonesa. São Paulo: Hedra,
2005, p. 27-42.
SHINGEKI NO KYOJIN. DireçŌo: Tetsur Araki. ProduçŌo: George
Wada, Tetsuya Kinoshita. Wit Studio Production I. G, 2013.(30
episódios).
SUPREMACIA GEEK. Vamos falar de série: Death Note. Disponível
em:
<http://www.supremaciageek.com.br/vamos-falar-de-seriedeath-note/> Acesso em: 14 de agosto de 2017.
ZAGO, Bruno. O poder dos mangás e animês no Brasil.
Revista digital, SuperMag. Ano 1. Setembro, 2012. Disponível em:
<http://supernovo.net/supermag/001-supermagsetembro2012.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2017.
24
REFLEXÕES E REPRESENTAÇÕES DA ÁSIA E SUA
(NÃO) UTILIZAÇÃO EM ESPAÇO ESCOLAR
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior
Ítalo Nelli Borges
Durante as ultimas décadas os historiadores passaram a
problematizar espaços e campos por muito tempo não estudados, ou
sedimentados a partir de visões estereotipadas. Nessa perspectiva, a
história de espaços como os continentes africano e asiático, que por
muito tempo ficaram restritos à visões externas sobre suas inúmeras
relações de força e conjunturas instaladas nesses locais sobe a
perspectiva europeia passaram a ser problematizadas.
Sendo assim, durante séculos o vocabulário eurocêntrico foi aplicado
nas abordagens históricas realizadas sobre aqueles povos por muito
tempo representados como inferiores e/ou sem uma história de
grandes feitos. Logo, durante longa data a abordagem sobe a história
desses espaços impregnou-se de valores ocidentais, onde conceitos
como evolução e modernidade passaram a ser observados a partir de
uma ótica externa, algo dotado de estereótipos em muitos casos de
atraso e frágil em relação aos europeus.
Com a predominância de tais visões, estas receberam força e se
cristalizaram, algo que podemos perceber em produções literais e até
livros didáticos, algo que difunde ainda mais tais diferenças,
reforçando a visão do europeu em relação ao outro (MARGARIDA
CORREA, 1997). Dessa forma, é de extrema importância tecermos
relações com os processos de predominância política e cultural de
um lugar sobre o outro, destacando as relações de força existentes.
Onde o historiador bem como qualquer estudioso precisa estar
atento às interpretações que se aplicam a distintas realidades, a
exemplo do conceito de nação, algo que esta estritamente
relacionado aos ditos Estados-modernos europeus, classificando os
Estados Áfricanos-Asiáticos como inferiores. Como destaca Jéssica
Santos (2013), o evolucionismo será de grande justificativa para a
tentativa de implantação de sua cultura e de sua observação sobe os
demais povo.
“O pensamento evolucionista veio como uma justificativa e
legitimação dos processos de dominação político,
econômico e ideológico por parte de países europeus que já
25
haviam acontecido e dos que estavam ocorrendo no século
XIX, pois, tais teorias afirmavam que dentre a humanidade
havia raças biologicamente distintas que se encaixavam
numa hierarquia do mais simples ao mais complexo e que,
portanto, a colonização traria desenvolvimento e progresso
para os demais povos tidos como inferiores (SANTOS,
2013, p. 123)”.
Dessa forma, observamos que o historiador precisa estar atento a
compreender o vocabulário no qual se aplica o tempo e o espaço que
se propõe a problematizar. Teorias Marxistas-leninistas, por
exemplo, foram adotadas em movimentos Afro-asiáticos, porém,
sofrendo adaptações e ainda que não tão destoantes, adaptaram-se a
movimentos sociais e conjunturas locais, diferentes de acontecidos
na Europa. Logo, é preciso fazer uma abordagem das tradições e
observar as influências culturais as quais as sociedades estão
inseridas e sair de uma visão puramente eurocêntrica.
Nessa tentativa, a partir da década de 60 alguns estudos passaram a
problematizar a visão do europeu sobre os outros, como os de LeviStrauss e Boas trazendo grandes contribuições. Outro fator que
permitiu o avanço nos estudos sobre o continente Asiático se deu
com o avanço econômico de países advindos deste local,
principalmente o Asiático, o que levantou novas discussões em torno
de seu desenvolvimento político, cultural e histórico (SANTOS,
2013).
Quanto a sala de aula, gostaríamos de ressaltar o pouco espaço
destinado ao continente asiático quando tratado na educação
fundamental e média, dando destaque apenas para as participações
do Japão na guerra e as revoluções chinesas, algo pouco em relação à
suas inúmeras abordagens possíveis. Além disso, podemos refletir
sobre quais espaços de apresentação ou discussão as universidades
brasileiras dão para o continente asiático, sejam como disciplina ou
tópicos especiais? Em nossas formações, não tivemos qualquer
tocante ao referido continente, eis algo de certa forma deprimente de
se mencionar.
Reflexões de uma Ásia distante
Nos últimos anos, países como a China e o Japão passaram a ter um
olhar diferente, principalmente dos meios de comunicação em voga
de seu desenvolvimento econômico. Se este último já é visto como
26
uma da grande potencia mundial, o primeiro vem tendo grande
desenvolvimento nas ultimas décadas.
Como destaca Everaldo Andrade (2016), durante séculos a China foi
vista como grande civilização do extremo oriente, dominando quase
toda Ásia no século XVI e XVII, onde a cultura do arroz, além do
desenvolvimento da agricultura gerou uma considerável expansão
demográfica chinesa, chegando a 430 milhões de habitantes em
1850. Logo, este país não era vista como uma civilização atrasada na
época, mas apenas no século XIX quando do contato com as
potencias europeias.
Dessa forma, importante destacarmos que o que definiu a diferença
na evolução das sociedades europeias e a chinesa foi o processo
industrial. Ao passo que enquanto a europeia soube equilibrar o
desenvolvimento de sua agricultura e o avanço industrial, levando à
Revolução Industrial, mediante, principalmente a sua enorme
população, a agricultura se predominou, não se encaixando no
modelo de civilização e evolutivo eurocizante (ANDRADE, 2006).
Ainda no âmbito da história chinesa, se torna imprescindível
ressaltar que inúmeras revoltas e ideologias políticas se deram
naquele território, a exemplos da Rebelião Taiping (1850-1864),as
guerras do Ópio (1840-1860), “Os cem dias de Pequim” (1898) e a
tão mencionada Revolução Chinesa de 1949.
Embora que não tenha tido uma participação tão efetiva como em
outros movimentos, a campesinato chinês foi de suma importância
para as medidas pensadas por Mao Tse-tung ao assumir o poder em
1949. Em 1950, por exemplo, o governo confiscou terras de grandes
proprietários e redistribuiu para cerca de 300 milhões de
camponeses pobres e médios, reduzindo de 60 para 30% o número
de camponeses pobres. Longe de ser bondade do novo chefe de
Estado, a estratégia de fortalecer o setor mais importante para um
país agrário, bem como o número de pessoas envolvidas traziam ao
governo o estado de bem estar social e de controle estatal.
Destacamos isto devido, principalmente ao “grande Salto para
frente” e o deslocamento da industrializaçŌo para o campo, onde
terras, equipamentos, gado e moradias passaram a ser coletivizados.
Assim a produção aumentou 65% em um ano, mas em contrapartida
as tensões e conflitos também, principalmente a partir da formação
de comunas, como a de Xangai em 1967.
27
Já Japão, tão representado em animes e filmes de ação, trazem em
sua história não apenas o pioneirismo nas artes marciais, mas fatos
políticos e econômicos de reverberações para o mundo. Em uma
análise mais minuciosa, podemos observar que uma das primeiras
aparições nos livros didáticos de história sobre o Japão se refere a
sua inserção na segunda guerra mundial no apoio às tropas
nazifascistas. Assim,
“O Japão, tradicionalmente, tem sido caracterizado pela
antiga antropologia e pelo eurocentrismo como o Oriente
Distante. Nessa acepção, passam pela palavra “distante”
vários verbetes: incomum, indecifrável, inominável e
aquém do desejo de interpretações mais profundas
(THOMAS BAPTISTA, 2010, p.1)”.
Logo, observamos o quanto o continente Asiático, que obviamente
não se resume ao Japão e a China, precisa ser melhor debatida e
apresentada não apenas nos cursos básicos, mas no superior,
permitindo um ganho ímpar para estudantes e professores, algo que
pretendemos elucidar no tópico que se sucede.
Possibilidades de utilização em sala de aula
No intuito de auxiliar professores, estudantes e pessoas que gostam
de tal temática, tencionamos aqui fazer algumas sugestões/
considerações sobre as possibilidades de se usar a Ásia em sala de
aula. O grande desafio para trabalhar com a Ásia em sala de aula não
é diferente quando comparado a outros continentes, pois se trata de
como os professores de história acessam o passado. Neste ponto, o
historiador francês Michel de Certeau (1982) nos lembra que este
acesso se dá através de uma inversão cronológica onde o presente
pretende atingir o passado e o presente, evidentemente, é construído
através de vários valores e dimensões do mundo social. Isto faz com
que, enquanto sujeitos professores, jamais nos descolemos de nossas
próprias realidades para pensar um passado histórico. Nossas
angústias, conjunturas sociopolíticas, apreciação ou depreciação
artística e orientações ideológicas são elementos ativos na apreensão
que fazemos diária e profissionalmente da história.
Como então, sabendo desta interferência do presente, historiadores
ocidentais carregados de formações eurocêntricas poderão trabalhar
com a Ásia em espaço escolar? Embora tenhamos dito acima que os
28
desafios ao trabalhar Ásia ou outros continentes sejam os mesmos,
podemos complementar que em se tratando de lugares que, por um
longo tempo, não fizeram parte de nossa formação escolar, este
desafio se torna muito mais intenso. A nosso ver, dois aspectos
devem ser levados em conta neste exercício; a identidade e a
alteridade. A identidade, obviamente, é elemento chave nas
abordagens do ensino de história, se ela (a história) parte do
presente, claramente contará com aspectos identitários referentes a
realidade de quem a busca compreender. No entanto, a alteridade ou
o esforço de compreender o outro, é definitivamente uma atividade
necessária sobretudo se pensarmos que muitas nações asiáticas,
como China e Japão, têm histórias milenares possuidoras de valores
específicos estranhos ao ocidente.
Ainda que seja impossível despir-se completamente do olhar
ocidental eurocêntrico para analisar estas histórias tão diferentes da
nossa, é salutar o esforço de tornar sensível este mesmo olhar ao que
é específico do oriente. Uma eficaz forma de equilíbrio entre
identidade e alteridade pode acontecer através de abordagens de
representações artísticas asiáticas.
Em se tratando de China, uma nação que segundo Rogério Hasbaert
(1994) é composta por uma multiplicidade de espaços que estabelece
uma grande variedade étnico-linguística, podemos pensar este
exercício através do cinema via filmes chineses e filmes de outras
localidades que chegam a China. Dois exemplos interessantes de
filmes chineses que tratam de temas explicitamente históricos são
“Herói” dirigido por Zhang Yimou lançado em 2002 e “O Tigre e o
DragŌo” do cineasta Ang Lee lançado em 2000. As duas obras nos
apresentam uma china antiga permeada por intrigas políticas e
emocionais nos governos e sociedades daquela temporalidade.
Lembrando que tendo em mente o exercício da crítica, não devemos
tomar o filme como ilustrador da realidade, mas sim como um
discurso sobre a história, tanto do período apresentado quando do
período em que foi lançado. Existem dados que também nos
permitem perceber uma forte interlocução entre oriente e ocidente
vendo alguns números de bilheterias na China de filmes norteamericanos de poderoso orçamento. Filmes como “Transformers: A
Era da ExtinçŌo” (2014), “Os Mercenários 3” (2014) e “Exterminador
do Futuro: Gênesis” (2015) tiveram faturamentos em bilheterias
consideravelmente superior na China em relação aos Estados
Unidos, país de origem das obras. Isto faz com que a própria
29
indústria do cinema americano atente-se para o mercado chinês
que, num mundo cada vez mais globalizado, os denominadores
comuns da cultura ficam mais intensos.
Quando o assunto é Japão ocorre uma importante peculiaridade no
mundo da cultura e das linguagens artísticas que são os Animês, os
conhecidos popularmente como desenhos animados. Sandra Monte
(2010) dedica um livro para analisar a presença dos animês na TV
brasileira. Ela usa obras que marcaram geração como “Cavaleiros do
Zodíaco”, “Samurai X”, “Pokemon”, “Dragonball Z”, entre outras,
para construir uma análise concluindo que a presença deste tipo de
produto artístico e cultural se consolida na TV brasileira a partir dos
anos 2000 embora já tenha frequência por aqui desde a década de
1960. Numa perspectiva analítica, temos que levar em consideração
que muitos dos próprios animês são produzidos para que possam
circular o mundo e, assim, são dotados de aspectos globais em suas
narrativas e estéticas, entretanto, através da análise dos animês, é
possível também identificar e estudar elementos específicos da
cultura pop e história japonesa como respectivamente em obras a
exemplo de “Pokemon” que movimenta até hoje uma poderosa
indústria no Japão e no mundo organizando elementos simbólicos e
materiais de consumo e “Samurai X” que apresenta elementos do
Japão feudal e de algumas especificidades da história japonesa como
os samurais e o contexto histórico que os cerca.
Literatura, música, artes plásticas e visuais, teatro, etc, são também
linguagens artísticas que, mediante uma boa metodologia, podem
ser importantes recursos pedagógicos para compreender melhor a
história da Ásia. Aqui direcionamos a abordagem para China e Japão
mostrando caminhos de análise para cinema e animês. De todo
modo, o mais importante é a compreensão de que as dimensões da
identidade e alteridade vem coexistir para que este tema seja
adequadamente trabalhado em espaço escolar levando em
consideração que, sem exceção, as realidades do presente se impõem
fortemente em qualquer exercício histórico que nos propusermos a
realizar.
Dessa forma, esperamos que através deste breve texto possamos
contribuir não apenas nas reflexões a cerca do milenar histórico e
cultural que cerca do continente asiático, mas de como sua
representação, bem como sua utilização no espaço escolar traz
problematizações importantes.
30
Referências
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior é doutorando em História pela
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Bolsista CAPES.
E-mail: academicoary@gmail.com
Ítalo Nelli Borges é doutorando em História pela Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), e-mail: italo.nborges@gmail.com
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A revolução chinesa. In: As
revoluções contemporâneas paradigmáticas. (Org)
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estudos de caso. Salvador. EDUFBA. 2013
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Interdisciplinar da Graduação. Ano 4 - Edição 1 – SetembroNovembro de 201o
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ed. São Paulo: Contexto, 2008
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1982
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europeu sobre o novo
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ocidental sobre o outro: um paradigma da ciência. Sem
Aspas, Araraquara, v. 2, n. 1, 2, p. 121-126, 2013
31
OLIVEIRA, Henrique Altemani de. MASIERO, Gilmar. Estudos
Asiáticos no Brasil: contexto e desafios. Revista Brasileira de
política internacional. 48 (2): 5-28, 2005
32
FONTE DE VIDA: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE
DE UMA FONTE CRISTÃ PRODUZIDA NA ÍNDIA
MOGOL NO FIM DO SÉCULO XVI
Bruna Soalheiro
A presente reflexão tem como objetivo apresentar uma possibilidade
de análise para uma obra jesuíta que a compreenda para além das
tradições cristãs que a conformaram. Propomos uma abordagem que
insira o texto no contexto em que foi produzido, entendendo a fonte
como um produto de um processo de acomodação próprio dos
missionários da Companhia de Jesus, porém fundamentalmente
marcado por um ambiente de negociação político-religiosa. Ainda
que representativa de uma estratégia de comunicação
evangelizadora, Fonte de Vida apresenta traços estilísticos e
temáticos - o lirismo e o tema da unidade de Deus - que só podem
ser devidamente apreciados se confrontados com a literatura Akhlaq
e com uma determinada vertente do islamismo: o sufismo.
Fonte de Vida foi escrita por Jerônimo Xavier, nascido em 1549,
sobrinho-neto de Franciso Xavier. Jerônimo, antes de ingressar na
Ordem, havia estudado na Universidade de Alcalá e, quando
admitido na Companhia de Jesus (1568), adotou o nome de família
do tio. Chegou a Goa no ano de 1581 e dez anos depois, a pedido do
soberano mogol Akbar, foi enviado à sua corte, acompanhado de um
padre e um irmão: Bento de Góis e Manuel Pinheiro. Compunha-se
assim o terceiro grupo de missionários que foram enviados ao norte
da Índia. Foi nessa ocasião que Xavier escreveu Fonte de Vida, obra
de que trataremos aqui, lida a partir de sua publicação
contemporânea, em espanhol.
Fonte de Vida possui a seguinte estrutura geral: a obra divide-se em
cinco livros, que tratam respectivamente dos seguintes temas: 1. o
conhecimento de Deus e de sua verdadeira lei; 2. as coisas que de
Deus ensina, a lei dos cristãos e quão conforme são à razão; 3. a
divindade de Cristo; 4. os mandamentos da lei cristã e da lei dos
mouros; 5. as ajudas que se dão na lei dos cristãos para viver a
serviço do Criador e a vantagem em que nisso leva da lei dos mouros
e das outras. Estes cinco livros são antecedidos pela apresentação da
fé cristŌ “em modo de oraçŌo” e pela dedicatória do tratado, feita a
Akbar. Xavier incluiu ainda, na parte introdutória de sua obra, uma
seçŌo chamada “Al curioso lector y deseoso de la verdad”. Nela, o
33
missionário faz uma brevíssima introdução, anunciando os
propósitos de seu livro. No presente momento, teremos como foco a
oração que apresenta a fé cristã e a dedicatória.
É preciso dizer ainda que, durante o reinado de Akbar, foi
estimulado na Índia um ciclo de debates e a produção de textos, tais
como comentários e traduções de obras sagradas. Este estímulo
institucional deve ser compreendido como meios para fazer
convergir os projetos políticos de Akbar (KOCH, 2012: 547). Uma
vez compreendido que seu governo fora cenário de negociações
sociais, políticas e estéticas que apontavam para a elaboração de um
novo discurso que respaldasse sua soberania sobre os territórios e
populações em áreas por eles recém-conquistadas no subcontinente
indiano, nós devemos aqui prosseguir, atribuindo um lugar aos
jesuítas nesse ambiente.
Foi nesse contexto, mais precisamente no ano de 1596, que o
missionário Jerônimo Xavier escreveu uma obra intitulada Fonte de
Vida, dirigida ao imperador. Ao elaborar esse tratado, o jesuíta
dedicou-se principalmente a dois objetivos: apresentar a
“Verdadeira Lei” ao soberano mogol e demonstrar a superioridade
da lei cristã sobre o Islamismo.
Maijastina Khalos, tratando dos debates que envolveram, ao longo
da antiguidade, cristãos e não-cristão, enfatiza que os diálogos
travados entre eles
“NŌo significava uma busca mútua por uma verdade que
pudesse existir, em algum lugar, para ambos encontrarem;
mas sim implicava que os cristãos já haviam entendido a
verdade e deveriam comunicá-la a não-crentes” (KAHLOS,
2007: 79).
Sendo assim, definir esses objetivos não confere nenhuma
especificidade à fonte acima, apenas a insere em um amplo conjunto
de obras chamadas de tratados apologéticos, isto é, textos cuja
intenção é apresentar e defender o cristianismo frente a outro
sistema de crenças. A Apologética é uma disciplina teológica cara
aos cristiãos, que rendeu obras como De Civitate Dei contra
Paganos, escrita no início do século V por Aurélio Agostinho,
conhecido como Santo Agostinho, e Summa contra Gentiles, escrita
por Tomás de Aquino na segunda metade do século XIII.
34
No caso da fonte aqui destacada, reiteramos que o formato de
diálogo exacerba o caráter argumentativo e dialético da literatura
apologética, projetando na voz do outro as questões a serem
refutadas pelo cristão.
Não obstante, o que conferiu especificidade a Fonte de Vida
enquanto tratado apologético foi, justamente, o contexto em que foi
produzido e seu objetivo mais imediato: apresentar a Akbar
argumentos de forma a convencê-lo da superioridade do
cristianismo frente ao islamismo. O tratado, portanto, além de ter
finalidade apologética, serviu como meio para os jesuítas se fazerem
presentes nas instituições de debate inter-religioso patrocinadas
pelo soberano.
No contexto multilinguístico mogol de negociação de tradições éticoreligiosas distintas, observamos serem significativas a produção e
circulação de textos de conteúdo político, isto é, que tratavam do
tema da governança. Estamos fazendo referência aqui ao que
Muzaffar Alam chama de “literatura Akhlaq”: a tradiçŌo literária
composta por escritos ético-políticos influenciados pela obra
Akhlaq-e Nasiri, escrita por Nasir al-Din al-Tusi no século XIII.
Nesse gênero, a “correta conduta” de um régulo era um dos objetos
principais, de maneira que o tratado escrito por Xavier e destinado a
Akbar possuiria um propósito proselitista cristão inegável, mas
associado a tal literatura política indo-persa. Dessa forma, para além
de seu caráter apologético, Fonte de Vida assumiria, em alguma
medida, papel análogo ao de obras da tradição turco-mogol, as quais
articulavam religião, ética e política. Assim sendo, supomos que a
obra de Jerônimo Xavier tenha sofrido alguma influência da
produção textual especialmente destinada aos governantes.
De todo modo, vale ressaltar que, ainda segundo Alam, o tema da
governança encontrava-se atrelado a um determinado entendimento
da Sharia, especialmente no que diz respeito à relação entre
governantes muçulmanos e governados não muçulmanos.
“[A] Sharī'a passou a ter mais de um significado durante
este encontro entre árabes e não árabes; a língua do Leste
Islâmico começou a se tornar uma mistura sincrética; um
legado de cooperação e assimilação desenvolvido desde a
época do Sultanato até o final do reino mogol; e situações
35
de conflito tinham a tendência a serem resolvidas de
acordo com um padrão formado por uma forte tradição
política de acomodaçŌo do islamismo medieval” (ALAM,
2004: 12).
Um entendimento mais flexível e menos jurídico da Sharia
propiciaria uma convivência mais tranquila entre muçulmanos e não
muçulmanos, na mesma medida em que quão mais estrita fosse essa
concepção, mais tensas seriam as relações sociais e políticas entre os
seguidores de Maomé e os demais povos:
“Ainda assim, fica claro que a Shari‟a, que guiava o padrŌo
de governo mogol, tinha impacto na tradição de Nasirean
Akhlaq, o que era reforçado pelo mundo que poetas e sufis
haviam, em seus domínios, delineado em persa, um mundo
em que era possível usar o termo shari‟a não
necessariamente, ou apenas, em um sentido legal limitado”
(ALAM, 2004: 77).
No trecho acima, percebemos que o mesmo autor introduz ainda um
outro elemento ao contexto político de que tratamos aqui. Ao lado da
tradição persa de uma literatura ético-política que se debruçava
sobre o tema da governança, Alam ressalta ainda a presença do
sufismo nesse cenário. Ele acrescenta:
“Foi a crença sufista de unidade em multiplicidade,
conhecida como waḥdat al- wujūd (Unidade do Ser), que
forneceu a base da doutrina para todos esses
desenvolvimentos no processo de síntese religiosa e
amálgama cultural” (ALAM, 2004: 91).
Assim sendo, o conceito por nós grifado no extrato acima - waḥdat
al- wujūd – é fundamental para que possamos prosseguir com nossa
análise da obra de Xavier. Ele condensa nossas hipóteses acerca do
uso de conceitos fundantes do islamismo e de sua vertente sufista ter
emprestado a Akbar subsídios retóricos e ideológicos que
viabilizassem e justificassem sua soberania e seu governo.
Um outro autor, Jonardon Ganeri, reitera as relações entre sufismo e
política:
36
“A ideia que diferentes pontos de vista coabitam uma única
matriz e que, nessa medida, são susceptíveis ao
sincretismo, é o que difere a visão cosmopolita de
pluralismo, cujo princípio cardinal é que a falta
irreconciliável de consenso é, por si só, algo com valor
político, social ou filosófico. Na Índia da Idade Moderna,
esses pensamentos assumiram uma importância tanto
política quanto filosófica. Por boa parte dos séculos
dezesseis e dezessete (…) a doutrina sufista de wahdat alwujud guiou uma busca por uma única visão espiritual que
seria a base de todas as religiões” (GANERI, 2011: 32).
Propomos, desta forma, que Fonte de Vida deve ser necessariamente
entendido em diálogo com a tradição jurídica, ética e políticoreligiosa que séculos antes da chegada dos missionários já tratava do
tema da governança, com ênfase no desenrolar do conceito de
Shari‟a tal qual exposto por Alam. Além disso, é preciso considerar a
presença importante de uma corrente específica do pensamento
islâmico, chamada de sufismo, cujo papel de mediação nas relações
entre muçulmanos e não muçulmanos na Índia mogol foi
determinante. Temos, portanto, dois elementos indispensáveis a
serem considerados quando analisamos o contexto de produção de
Fonte de Vida: a literatura Akhlaq e o sufismo.
Assim, é preciso ter em mente que Xavier escreve para uma Índia
perso-islamizada, na qual várias linguagens políticas dialogam. Para
Alam, o papel do idioma persa na estruturação do poder político
mogol na Índia, bem como para a criação de uma espécie de
amálgama social que pudesse dar conta das diferenças socioculturais
e religiosas, foi decisivo. “O persa, entŌo, forneceu as condições para
que os mogóis pudessem construir uma classe de aliados a partir de
grupos sociais e religiosos heterogêneos” (ALAM, 1998: 324). Sendo
assim, é sintomático, do ponto de vista político, que Fonte de Vida
tenha sido escrita em persa, pois insere o jesuíta no contexto político
estruturante de que falamos.
Feitas todas estas observações preliminares e contextuais, o que nos
interessa no presente momento é apenas indicar uma possibilidade
de análise de uma fonte cristã que seja pautada não somente na
inserçŌo desta fonte na tradiçŌo apologética “ocidental” ou latina
que necessariamente a configurou, mas fundamentalmente entender
este texto de época como um texto que dialoga com distintas
37
tradições político-religiosas não cristãs. Dito de outra forma, uma
leitura de “Fonte de Vida” que desconsiderasse sua intenção
adaptativa – para usar um termo que se remete justamente à
acomodação jesuítica – perderia de vista justamente a natureza de
sua produção, de sua finalidade, de sua conformação e de seu
conteúdo.
Sustentamos, portanto, que esse tratado apologético, ainda que
possua inúmeras semelhanças com os tradicionais tratados cristãos
tomistas (em especial Summa Contra Gentiles e De Rationibus
Fidei), foi produzido num contexto estético-estilístico misto e
negociado. Desta forma, se o conteúdo é tomista e representativo da
segunda escolástica, a forma lírica, a opção pela forma dialógica e a
ênfase em determinadas questões em detrimento de outras refletem
necessariamente tal contexto de produção negociado e proselitista.
Pontuadas as características gerais do contexto no qual Fonte de
Vida foi escrita, é necessário, complementarmente, buscar estes
pontos de “negociaçŌo” no próprio texto.
Conforme dito acima, os cinco livros que compõem Fonte de Vida
são antecedidos por duas seções a serem aqui analisadas: (1) a
apresentaçŌo da fé cristŌ “em modo de oraçŌo”; e (2) a dedicatória
da obra, feita a Akbar.
Ambas as partes são importantes para nossa análise. A primeira
porque apresenta, de forma um tanto poética, os mistérios do
cristianismo. A segunda porque apresenta o livro e seu propósito a
Akbar, defendendo a importância de se manter uma relação próxima
entre reis e sábios. Em conjunto, sua relevância reside no fato de
destoarem – principalmente no que diz respeito aos aspectos
formais e estilísticos do texto – do corpo da obra propriamente dito,
isto é, do tratado em formato dialógico contido nos cinco livros
seguintes.
Passemos a uma sucinta descrição destes elementos pré-textuais. Na
primeira parte de sua obra, Jerônimo Xavier apresenta o princípio, o
progresso e o fim de todas as coisas – isto é, Deus. Suas perfeições
são enumeradas: Ele tudo sabe, tudo pode, tudo tem; é eterno,
infinito e incompreensível; sua natureza é distinta da natureza das
criaturas. É perfeito sem qualidade e por isso é sumo. Está em todo
lugar, sem ser compreendido, e por isso é universal. Tudo obra sem
38
mudança e por isso é imutável. Em seguida, Xavier aborda o
mistério da Santíssima Trindade. O autor acrescenta ainda que Deus
deu os profetas para que nos ensinassem, os anjos para que nos
guardassem e seu único filho natural para que, feito homem,
pudéssemos ver, ouvir, seguir e imitar (XAVIER, 2007 [1600]: 624).
Ao longo dessa espécie de preâmbulo, percebemos que o autor ainda
se utiliza de algumas imagens um tanto paradoxais para alguém que
se dedica a debater e escrever em nome da verdadeira lei. Xavier nos
diz que Deus ensina sem ruído de palavras, sem tinta e sem livros.
Ensina e dá entendimento para ser entendido. Dá doutrina e a
capacidade para entendê-la. No entanto, ele também diz que não se
conhece Deus pelo entendimento, já que quem mais alcança Deus é
aquele que, quanto mais se chega Dele, mais distante fica de Seu
entendimento (XAVIER, 2007 [1600]: 62-5).
Gostaríamos de ressaltar a semelhança desta proposição de Xavier
com o que São Tomás de Aquino recomenda no capítulo segundo de
De rationibus fidei, intitulado Qualiter sit disputandum contra
infideles (Como se deve disputar com os infiéis). No entanto,
percebemos também que a semelhança no conteúdo se choca com a
distinção na forma. Afinal, é de maneira um tanto lírica, com
imagens, metáforas e paradoxos, que Jerônimo Xavier abre a sua
obra, como podemos perceber já no extrato destacado no alto desta
página: “Al princípio, sin princípio, de quien depende el princípio,
progresso e fin de todas las cosas, que al Dios alto, soberano y todo
poderoso, sean dadas gracias infinitas” (XAVIER, 2007 [1600]: 61).
O lirismo de Xavier aparece, pois, como uma alternativa, ou
adaptação, à opção estilística escolástica de Tomás de Aquino.
Esse tom poético distingue-se da linguagem dos tratados
apologéticos tomistas ou escritos metafísicos em geral, distinguindose também do estilo de escrita dos cinco livros principais de Fonte de
Vida. Na parte introdutória de Fonte de Vida, não há definição
dialética e racional de Deus. Ao contrário, trata-se de apresentar a
Doutrina, isto é, essencialmente as mesmas ideias presentes na
Suma de Aquino, em uma forma não dialética, não racional, mas
sensível, metafórica, poética, sinestésica.
Partindo da identificação desses elementos estilísticos e da ausência
de um rigor escolástico, nosso único e exclusivo objetivo aqui é
39
indicar que, nessa parte do texto, ao contrário de recorrer a uma
retórica dialética, o autor faz uso de figuras de linguagem, as quais
conferem a sua “oraçŌo” outros resultados retóricos e estéticos. Tal
análise, contudo, encontra dois limites. Por um lado, não
procuramos defender que não existe lirismo em escritos cristãos, por
outro, não temos a intenção de afirmar que o caráter poético desta
parte de Fonte de Vida é resultado exclusivo da influência
muçulmana sufi.
Nossa hipótese, localizada entre esses dois polos, é a de que Xavier
abre dessa forma sua obra para atingir um determinado tipo de
leitor. Seria uma espécie benevolentiae captati, ou seja, uma
“ordenaçŌo das palavras para influir com eficácia na mente do
receptor” (PÉCORA, 2001: 20) para alcançar o círculo de leitores
composto por cortesãos sufis ou pessoas politicamente influentes,
além, evidentemente, do próprio Akbar.
Gostaríamos de ressaltar que já no segundo fólio de sua obra, Xavier
aborda a questão central da divergência teológica cristo-islâmica: a
natureza única de Deus e, ao mesmo tempo, o mistério da
Santíssima Trindade. O missionário faz questão de afirmar a
unicidade de Deus e, no mesmo parágrafo, inserir as três pessoas
divinas: Pai, Filho e Espírito Santo. Além disso, ele já antecipa nesse
mesmo extrato que a grandeza infinita de Deus vence a capacidade
de entendimento do homem. Ou seja, nesse momento, Xavier não
inicia um debate racional e dialético sobre a natureza de Deus. Ele
apenas afirma, simultaneamente, a ideia central do wahdat alwujud e o mistério da Santíssima Trindade.
Assim, nessas primeiras páginas, o jesuíta apresenta algumas das
ideias principais da Doutrina católica, sem opô-las à crença sufi
fundamental da unidade de Deus. Além disso, esse extrato deixa
claro que o objetivo da parte inicial de Fonte de Vida não é defender
apologeticamente, recorrendo ao entendimento e à razão, à
superioridade da lei cristã. Ao contrário, nos parece evidente, pelo
uso de paradoxos e metáforas, que Xavier, nesse momento, não tem
interesse em argumentar, debater, convencer ou dissuadir. Seu
principal objetivo, acreditamos, é convidar seu “público alvo” a ler o
seu tratado. Para isso, a aproximação com as ideias e com o que
supomos, baseando-nos na bibliografia, ser um certo lirismo sufi, foi
fundamental.
40
Reiteramos, portanto, o duplo caráter da obra de Xavier. Por um
lado, trata-se de um tratado apologético, destinado, por definição, à
argumentação a favor da superioridade da lei cristã em detrimento
da lei islâmica, o que ficará bem claro nos cinco livros que se
seguem. Mas, além disso, trata-se de um tratado com um
destinatário específico: Akbar, o imperador mogol, cujos projetos
políticos passavam por patrocinar a produção de obras escritas e
pictóricas, as quais criariam um substrato discursivo para sua
soberania política entre uma população composta por diferentes
grupos linguístico-culturais e religiosos.
Para que seu objetivo de ser fazer ouvir fosse atingido, Jerônimo
Xavier optou por acomodar estilisticamente a apologética tomista às
linguagens perso-islamizadas da Índia dos tempos de Akbar. Longe
de ignorar a tradição escolástica que respalda a formação do jesuíta,
nosso objetivo foi, simplesmente, lançar alguma luz a elementos não
necessariamente cristãos que também compõe Fonte de Vida,
indicando uma possibilidade de análise desta fonte.
Referências
Bruna Soalheiro é bolsista de pós-doutorado PNPD-CAPES no
programa de pós-graduação em História da UERJ.
Fonte:
XAVIER, J. Fuente de Vida: Tratado apologético dirigido al Rey
Mogol de la India en 1600. San Sebastián: Universidad de Deusto,
2007.
Bibliografia:
ALAM, M. Languages of Political Islam in India. Orient
Blackswan, 2004.
____________. The Pursuit of Persian: Language in Mughal
Politics. Modern Asian Studies, vol. 32, n. 2, p. 324, maio 1998.
GANERI, J. The Lost Age of Reason: Philosophy in Early Modern
India 1450-1700. EUA: Oxford University Press, 2011.
KAHLOS, M. Debate and Dialogue: Christian and Pagan
Cultures. Aldershot: Ashgate, 2007.
KOCH, E. Jahangir as Francis Bacon's Ideal of the King as an
Observer and Investigator of Nature. Journal of the Royal
Asiatic Society, v. 19, n. 3, p. 297, 2009. Disponível em
<http://journals.cambridge.org/abstract_S1356186309009699>.
Acessado em 3/09/2017.
41
PÉCORA, A. Máquina de gêneros
Universidade de São Paulo, 2001.
42
São
Paulo:
Editora
A SOCIEDADE JUDAICA DO PRIMEIRO SÉCULO E
O DOMÍNIO ROMANO
Bruno da Silva Ogeda
Este breve trabalho busca apresentar os principais movimentos
sociais de cunho político e religioso que convulsionaram a população
da Judeia no primeiro século de nossa era. Para isso, buscamos
interpretar as causas que levaram a população a se mobilizar
durante o período da dominação romana.
Contexto Histórico
A tradição bíblica aponta Israel como a nação eleita de Deus, povo
que Ele tirou da escravidão no Egito. Porém, ao longo de sua história
vemos que os israelitas foram subjulgados por diversos povos. Todas
essas dominações estrangeiras causaram choques culturais,
principalmente no quesito religioso, devido à especificidade do
judaísmo.
Entre os diversos momentos em que os judeus lutaram pela sua
independência e para manter sua religião, podemos destacar a
Revolta dos Macabeus em 167 a.C. que os libertou do domínio dos
selêucidas. Apesar da grande vitória, cem anos mais tarde, os judeus
cairiam nas mãos dos romanos, que ocuparam a Judeia no ano de
63. Inicialmente, houve uma política de “coexistência pacífica”, os
novos senhores da Palestina criaram decretos que permitiam aos
judeus “seguirem os ensinamentos de seus pais”.
Em 40 a.C. subiu ao poder Herodes considerado “rei amigo” pelos
romanos, mas contestado pelos judeus, já que era de origem
edomita. O governo de Herodes foi marcado pelas grandes obras,
que agradavam aos olhos das elites e dos estrangeiros, mas que
pesavam sobre os bolsos da população que arcou com pesados
aumentos de impostos, resultando após a morte de Herodes, em 4
a.C., num terreno fértil para o acontecimento de movimentos sociais.
Banditismo social
Uma das formas assumidas pelos movimentos sociais na Judeia do
primeiro século foi o banditismo social que surge de uma realidade
onde o “que é imposto pelo Estado ou pelos governantes locais é
percebido como injusto ou intolerável” [Horsley; Hanson, 1995]. A
dominação romana impunha uma dura coleta de impostos e taxas
43
especiais que pesavam sobre a população, assim o banditismo social
cresceu em larga escala como uma alternativa de luta contra a
aristocracia que cooperava com a dominação estrangeira. Os
bandidos sociais eram perseguidos pela elite e protegidos pelo povo
da zona rural da Judeia que entendiam esse movimento como uma
justiça divina.
Há registro da ação de salteadores desde o reinado de Herodes (37
a.C – 4 a.C.), onde percorriam as cidades e os campos praticando
violência contra a nobreza local. Esta era uma forma de exercer uma
constante resistência ao governo. Neste período o rei Herodes
exerceu forte controle social apoiado em um grande aparelho de
repressão e do próprio exército romano.
Posteriormente, no período do primeiro século depois de Cristo, os
salteadores continuaram na ativa. Um dos grupos dos quais citam as
fontes é aquele liderado por Tolomau que agia na região da Iduméia.
Outra grande “tropa de salteadores” é a comandada por Eleazar ben
Dinai que agiu cerca de vinte anos. Muitos outros surgiram durante
as décadas de 40 e 50 do primeiro século devido a grande fome que
assolou a Palestina. Os bandidos não agiam apenas contra a
exploração econômica e as desigualdades sociais, durante o governo
do procurador Cumano houve um incidente em que um soldado
romano desrespeitou os judeus na entrada do Templo, durante a
festa dos Ázimos. Apesar dos cuidados que os romanos procuravam
ter com as particularidades religiosas dos judeus, as ofensas
acabavam ocorrendo. Em resposta a esta provocação, Josefo afirma
que
“(...) os bandos de ladrões provocaram outra revolta. No
caminho público que conduz a Betorão alguns bandidos
saíram ao encontro de um tal Estevão, escravo de César, e
roubaram o que ele levava.” [Guerra dos Judeus 2:228].
As tensões entre os judeus e os romanos chegaram ao seu clímax
na década de 60, culminando na revolta judaica no ano 66 d.C. e
neste enfrentamento direto, os bandidos sociais estiveram presentes
na guerrilha da zona rural, chegando inclusive a empreender
algumas derrotas ao todo poderoso exército romano. Assim, os
grandes bandos se armaram com equipamentos abandonados pelos
dominadores e se fortaleceram ainda mais.
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No ano de 67 d.C. , os romanos iniciaram o processo de reconquista
e logo tomaram a Galileia, fazendo com que muitos camponeses
deixassem suas propriedades para trás e se juntassem aos bandidos,
aumentando ainda mais os contingentes revoltosos. “Uma grande
coalizão desses grupos de salteadores que penetrou em Jerusalém no
inverno de 67-68 e formou o partido chamado de os
Zelotas”[Horsley e Hanson, 1995]. Esses grupos foram a grande
parte da resistência durante o conflito e também forneceram
algumas lideranças, como João de Gíscala, líder de 400 salteadores,
que ao chegar a Jerusalém, se aliou a outros grupos e procurou
assumir a liderança da resistência.
Movimentos messiânicos
Os movimentos messiânicos formam outra tipo de reação a tudo o
que acontecia na Palestina. Para entender esses movimentos
devemos voltar à tradição de Israel. Uma parte da população
aguardava uma figura messiânica, aquele que seria um “rei ungindo”
para resgatar o povo das mazelas e recolocar os israelitas na rota da
independência novamente. O grande modelo de rei ungido esperado
pelos judeus era sem dúvida o modelo dávidico já que no tempo de
Davi, Deus havia libertado e restaurado a sorte de Israel. Por muito
tempo essa esperança real esteve adormecida no povo, mas diante
das injustiças esse sentimento já retornava ao povo que buscava um
rei justo e que respeitasse o sumo sacerdócio.
Essas esperanças permeavam vários setores sociais e sofriam
alterações de acordo com a classe. Por exemplo, para os essênios,
grupo letrado religioso que analisaremos posteriormente, esperavase um líder político ungido e um messias sumo sacerdote
considerado agente escatológico. O ungido para os essênios viria do
ramo de Davi e libertaria Israel do domínio estrangeiro e venceria as
nações. Vale ressaltar que para os essênios, apesar desse papel
importante, o ungido não era o personagem principal, mas sim, o
sumo sacerdote messias.
Outros grupos letrados também mantinham esperanças reais,
aguardavam o “filho de Davi” que governaria com justiça, livraria
Israel da opressão estrangeira e por fim subjulgaria as nações
injustas. Ele era considerado o veículo pelo qual o Reino de Deus
seria implantado.
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Para o povo a esperança de realeza ungida reaparece porque logo
após a invasão romana e a entronização de Herodes I, o novo
governo era considerado ilegítimo, já que o rei era “meio judeu” e,
além disso, havia sido colocado no poder por Roma e não pela unção
de Deus. Além desses contras, Herodes era um rei opressor, e assim,
“o povo estava preparado para um líder carismático „ungido‟ surgido
no meio camponês, como o antigo Davi.” [Horsley e Hanson, 1995].
Diante desse quadro e apoiados em seus escritos sagrados, os judeus
acreditavam firmemente que um rei ungido viria da Judeia e
governaria o mundo inteiro.
Durante a primeira metade do século I houve o movimento
messiânico mais conhecido do mundo, Jesus de Nazaré, nascido em
uma família pobre pregava uma mensagem de esperança que ia de
encontro às aspirações de justiça do povo, ele “parece representar
uma piedade judaica mais típica da Galileia, localidade rural”
[Vermes, 1983], por isso seus ensinamentos iam de encontro aos
anseios do povo. Logo as multidões atribuíram a ele o título de
messias, aquele que lutaria e livraria Israel do julgo romano, mas
Jesus disse: “deem ao imperador o que pertence ao imperador. E
deem a Deus o que pertence a Deus!” [Marcos 12:17] Demonstrando
assim que ele não iria comandar nenhuma revolução armada contra
Roma. O que de fato não tirava de sobre ele seu messianismo.
Quando foi levado a julgamento, “Pilatos lhe fez a seguinte pergunta:
„Você é o rei dos judeus? ‟ Yeshua (Jesus) lhe respondeu: „As
palavras sŌo suas‟”. [Marcos 15:2] Podemos concluir que Jesus
dispensava o título real no sentido político, ele poderia ser um líder
religioso, mas não um líder político.
Jesus foi condenado e morto crucificado ao lado de dois ladrões, o
que faz acreditar que para os romanos e para as elites judaicas que
não aceitaram sua mensagem, ele não passava de um agitador social,
assim como aqueles que participavam do banditismo social.
Após a morte de Jesus aconteceria dois movimentos de reis
messiânicos muito fortes. O primeiro deles foi liderado pelo sicário
Manaém durante o ano de 66 d.C., num momento onde a revolta
judaica estava no começo. Contrariando as características dos
sicários que nŌo eram ligados ao messianismo, o “mestre” Manaém,
como era chamado, reivindicou para si o messianismo em um tempo
onde parecia que o cumprimento escatológico estava próximo.
46
O outro movimento foi liderado por Simão bar Giora que foi o
principal comandante da rebelião popular em Jerusalém. Ele
começou liderando um grupo de salteadores que “nŌo só saqueava a
as casas dos ricos, mas também maltratava as pessoas.” [Josefo apud
Horsley e Hanson, 1995] Mas logo estendeu seu poderio e
consolidou o domínio sobre a Judeia e a Iduméia, antes de chegar a
Jerusalém. A cada cidade encontrava novos adeptos, segundo
Horsley e Hanson [1995] ele chegou a ter 40 mil seguidores além dos
seus homens armados, Simão passava a ser aclamado com um
verdadeiro rei de todos os descontentes e oprimidos. Todo o
movimento era impulsionado pela exploração praticada pelos ricos e
pelos estrangeiros, tinha como princípio a restauração da justiça
social e se inspirava no reinado de Davi.
A utopia de Simão bar Giora acabaria em 70 d.C. quando os
romanos destruíram Jerusalém, ele e seus principais colaboradores
são presos e levados a Cesareia Marítima e depois a Roma, onde
Simão participa da parada triunfal como o prisioneiro principal,
sendo executado em seguida. Ele cria que de fato era o próprio
messias e os romanos o reconheciam como líder dos judeus.
O último movimento com características messiânicas do primeiro
século foi a revolta liderada por Simão bar Kökeba que recebeu
apoio do respeitado Rabi Akiba que afirmava ser Simão o verdadeiro
messias, o enviado de Deus, que libertaria o povo de Israel e de fato,
ele e seus seguidores desafiaram os romanos. Com a estratégia de
guerrilha nas fortalezas e montanhas conseguiram lutar contra o
grande poderio do exército de Roma. Porém, o movimento foi
derrotado e Simão bar Kökeba foi executado, encerrando assim as
esperanças messiânicas naquele período.
Grupos sociais
A sociedade judaica do primeiro século estava dividida em quatro
grupos político-religiosos com concepções próprias e algumas
divergências. Iremos apresentar de forma resumida estas correntes e
sua atuação na sociedade.
Os saduceus
Consideravam-se descendentes de Sadoc e por isso detentores do
sacerdócio legítimo. Eram muito apegados a Torá (Pentateuco) e
contrários a toda novidade na religião. Acreditavam estar guardando
a aliança que Deus havia feito com seus pais e por isso eram
abençoados com a riqueza e o poder.
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Politicamente estiveram alinhados com os reis asmoneus, mas
durante o século I d. C., tiveram seus poderes políticos esvaziados
pelos romanos. Buscavam manter o povo longe das revoltas e por
inúmeras vezes negociavam com os dominadores estrangeiros, já
que entendiam que sua riqueza dependia da manutenção do status
quo, até por isso, foram os principais responsáveis pela morte de
Jesus, considerado por eles, um revolucionário. Também tiveram
responsabilidade em um dos principais eventos que desencadeou a
revolta de 66 d.C., quando proibiram o sacrifício que o imperador
romano mandava oferecer a Deus. Com a destruição do Templo em
70 d.C. acabaram desaparecendo.
Os fariseus
As origens dos fariseus remontam ao tempo de Esdras, o sacerdote
(457 a.C.). Procuravam viver os preceitos da Torá de forma exemplar
e dedicavam-se em ensiná-la ao povo, buscando a salvação do
mesmo. Não discutiam a legitimidade do sumo sacerdote
independente de quem ocupasse o cargo.
Este grupo tinham uma “desconfiança do poder e zelo pela educaçŌo
das massas” que “vŌo dar aos fariseus uma audiência enorme junto
do povo miúdo.” [Salnier, 1983]. Apesar de serem bem vistos pela
população, eles faziam questão de mostrar que eram superiores, já
que se consideravam mais santos e mais puros que o restante das
pessoas comuns.
Este grupo representou o “primeiro partido que é ao mesmo tempo
político e religioso” (Salnier, 1983) e que conquistou uma base
sólida, sendo o único grupo judaico que sobreviverá após a
destruição do Templo. Por isso serão eles os responsáveis pela
formação do judaísmo rabínico que vai dar vida a religião judaica,
agora sem seu maior símbolo, o Templo.
Os essênios
Sua origem não está muito clara, mas ao que tudo indica estão
ligados ao tempo da perseguição empreendidas pelos Macabeus.
Alguns descendentes da linha sadoquita se refugiaram no deserto.
Desenvolveram uma sociedade peculiar, com grande apego as regras
religiosas e constante busca pela santidade, tomavam diversos
banhos frios por dia para conservar a pureza e recusavam o Templo
e seu sumo sacerdote ilegítimo, buscavam agradar a Deus mantendo
sua santidade.
48
Além do apego as várias regras de convivência e santidade, podemos
perceber que os essênios eram um grupo comunitário que buscava o
bem comum e partilhava seus bens e sua produção, como afirma
Josefo:
Depreciavam a riqueza, e entre eles existia uma admirável
comunhão de bens. Não se pode encontrar a ninguém que seja mais
rico que os outros, pois têm uma lei segundo a qual os que entram na
seita entregam suas posses à ordem, de modo que não existe em
nenhum deles nem a humilhação da pobreza e nem a vaidade da
riqueza, sendo que o patrimônio de cada um forma parte de uma
comunidade de bens, como se todos fossem irmãos. [Guerra dos
Judeus 2:122].
Era um grupo muito fechado, uma sociedade alternativa, para
aqueles que queriam de fato dedicar toda sua vida a Deus.
Trabalhavam e estudavam as sagradas escrituras em busca de
encontrar a verdadeira vontade do Eterno. Por causa de seu
aprofundamento nos livros sagrados e nos ensinamentos dos
profetas, alguns essênios previam o futuro e detinham uma visão
escatológica que chegaria um momento em que eles seriam
chamados por Deus para aniquilar todos os ímpios. Para alguns esse
combate era a guerra judaica de 66 d. C., por isso, lutaram ao lado
dos zelotas e acabaram desaparecendo no fim do conflito.
Os Zelotas
Este grupo era uma coalizão de camponeses que haviam migrado
para o banditismo, surgida durante a reconquista romana da Judeia
(em 67-68 d.C.). Seu principal palco de ações foi a cidade de
Jerusalém onde atacaram pessoas da nobreza ligada aos reis
herodianos e investiram um camponês no cargo de sumo sacerdote.
Esse sumo sacerdote eleito pelos zelotas foi escolhido por sorteio, o
que demonstra que o grupo era democrático, fato corroborado pela
falta de uma liderança única no movimento. O comando era exercido
de forma coletiva, o que faz lembrar à tradição judaica anterior a
realeza, onde o verdadeiro líder de Israel era Deus e por isso não
havia uma pessoa específica no comando.
Dentre todas as facções da sociedade judaica era a considerada mais
política e representavam o nacionalismo judaico em sua forma mais
feroz. Praticavam crimes de toda espécie, segundo o historiador
Flávio Josefo [1986].
49
Os sicários
O nome do grupo vinha da palavra sica em latim que significava
punhal, nome atribuído por causa da tática utilizada por esse grupo
em seus ataques contra pessoas da elite judaico-romana. Estas
pessoas também foram recrutadas no proletariado rural da Palestina
e representavam apenas uma pequena parcela da resistência judaica.
Conclusão
Acreditamos que a dura realidade enfrentada pelos camponeses
judeus no primeiro século foi fator fundamental para o surgimento
dos movimentos sociais nesta região. A situação foi agravada pelos
períodos de dominação estrangeira, principalmente o romano, onde
a elite judaica cooperou com os invasores e consequentemente
agravou os quadros de desigualdade social, acentuando o abismo
econômico. Stegemann [2004] afirma que o camponês e o pescador
da Judeia dificilmente conseguia extrair de sua atividade o
necessário para a subsistência de sua família, em contraste a essa
situação de miséria, a casa real herodiana e a aristocracia
desfrutavam dos benefícios econômicos de sua cooperação com os
romanos. Esse foi o terreno fértil onde o banditismo social, os
movimentos messiânicos e os partidos judaicos floresceram.
Angariaram muito apoio entre as classes mais pobres da sociedade
que habitavam o campo e que viam nesses a esperança de se livrar
do peso dos impostos e da dominação romana, o que culminou com
a grande participação de camponeses no conflito de insurreição
contra os romanos. Apesar de todo engajamento, a resistência dos
oprimidos não foi capaz de frear o avanço do maior império da
antiguidade que aplicou uma derrota severa aos insurgentes,
destruindo a sua principal cidade e seu principal prédio religioso.
A destruição de Jerusalém e do Templo na trágica derrota dos
judeus em 70 foi uma grande marca do primeiro século. A ausência
do Templo obrigou o judaísmo a se “reinventar” e acabou por
transformar de alguma forma a relação dos judeus com a cidade
santa.
50
Referências
Bruno da Silva Ogeda é aluno do curso de pós-graduação lato sensu
de História Antiga e Medieval – Religião e Cultura da Faculdade de
São Bento do Rio de Janeiro (FSB/RJ).
e-mail: brunoogeda2004@hotmail.com
Josefo, Flávio. Guerra dos Judeus: Livro II. 1ª ed. (ano 2002),
4ª tir. Curitiba: Juruá, 2006. 122p.
_____, ______. Uma testemunha do tempo dos Apóstolos.
1ª ed. (ano 1986), 10ª tir. São Paulo: 2016.
HORSLEY, Richard; Hanson, John S. Bandidos, profetas e
messias: Movimentos populares no tempo de Jesus. 1ª ed.
(ano 1995), 4ª tir. São Paulo: Paulus, 2015.
STEGEMANN, Ekkerhard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História
social do protocristianismo: Os primórdios no judaísmo e
as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. 1ª ed.
São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.
SAULNIER, Christiane; Bernard Rolland. A Palestina no tempo
de Jesus. 1ª ed. (ano 1983), 10ª tir. São Paulo: Paulus, 2014.
Vermes, Geza. Jesus e o mundo do judaísmo. 1ª ed. São Paulo:
Loyola, 1996.
Bíblia Judaica Completa: o Tanakh [AT] e a B’rit Hadashah
[NT]. Tradução do original para o inglês David H. Stern; Tradução
do inglês para o português Rogério Portella; Celso Eronides
Fernandes. São Paulo: Editora Vida, 2010.
51
52
AS FILIPINAS, O MUNDO ASIÁTICO E A
COLONIZAÇÃO ESPANHOLA, SÉCULO XVI
Carlos Guilherme Rocha
Como na maior parte dos locais colonizados por europeus a partir do
século XV, a investida europeia não foi simples. As relações de força
no movimento colonial não seguem uma direção constante. No
arquipélago filipino o contexto foi ainda mais complexo, pois não se
trata de apenas uma força colonizadora sobre nativos de uma região.
As Filipinas coloniais são marcadas pelo encontro de distintas forças
políticas e culturais.
A colonização espanhola foi marcante, mas a última a chegar de fato
ao arquipélago. Antes dos castelhanos encontram-se próximos ou
assentados nas Filipinas, portugueses, japoneses, chineses e
muçulmanos, além de variados grupos nativos de tradição hindomalasiana. A colonização castelhana foi condicionada por essas
presenças. [Ollé Rodríguez, 2001, p. 59]
Por volta do ano mil, temos os primeiros relatos confiáveis sobre o
arquipélago, por fontes muçulmanas e chinesas. O contato dessas
duas culturas com as ilhas, porém, era marginal. Nessa época, os
muçulmanos estabeleceram uma verdadeira talassocracia no oceano
Índico, isto é, um império comercial. Comerciantes árabes e persas,
impulsionados também pelo proselitismo religioso, se tornaram
figuras frequentes na China e na Índia. Portos comerciais islâmicos
eram cada vez mais numerosos na região. Como explica Isaac
Donoso Jiménez [2011, p. 174], a chave do avanço muçulmano
estava no desenvolvimento de laços clientelares. Para os
muçulmanos, as barreiras étnicas ficavam em segundo plano, eles se
importavam com a questão religiosa. Dessa forma, estimulavam as
elites locais a se converterem ao islã, para – entre outros motivos –
gozar de benefícios comerciais.
No fim do século IX, uma troca dinástica na China provocou
importantes mudanças na economia da região, com o país se
fechando a navios estrangeiros. Com isso os muçulmanos tiveram
que buscar novos entrepostos no sudeste asiático. Os comerciantes
chineses passaram a ser mais ativos e a dominar o comércio na
região, aproximando-se de locais então ignorados pelos
muçulmanos, como Borneo e as Filipinas. Mesmo com o fim do
53
isolacionismo chinês, em 960, o comércio continuou a ser dominado
por comerciantes da China. [Ibid., p. 185-188]
Essa oposição entre chineses e muçulmanos não era certa. Para os
primeiros valia o critério étnico, já para estes a questão era a
profissão religiosa. Assim, muitos comerciantes chineses, envolvidos
com negociantes muçulmanos, aderiram à fé islâmica. Os membros
desse grupo eram conhecidos na China como Hui e tiveram grande
influência econômica e política, especialmente a partir do século
XIV, com a ascensão da dinastia Ming. No plano econômico, o poder
Ming significou novo fechamento da China a comerciantes
estrangeiros. [Ollé Rodríguez, 1998, p. 5-10]
Os Hui se localizavam principalmente em Guandong e Fujián. Desta
última estabeleciam importante comércio com Borneo e a ilha de
Luzón (atual Filipinas, onde está localizada a cidade de Manila).
A ascensão Ming coincide com o desmoronamento da unidade do
poder muçulmano, que conectava Ásia, África e Europa. [Donoso
Jiménez, 2011, p. 285-287] Curiosamente, nesse período de franca
crise dos poderes islâmicos, a religião muçulmana entra em um ciclo
de avanço nas ilhas e arquipélagos do sudeste asiático. Os
comerciantes muçulmanos buscavam novos entrepostos na região.
Os poderes locais, visando atrair esse comércio se convertiam à
religião islâmica, almejando benefícios econômicos, prestígio e
poder. O proselitismo religioso também foi importante. A partir do
século XIII, registra-se uma intensa ação de majdumunus –
missionários muçulmanos – no sudeste asiático. Esses missionários
avançavam junto com os comerciantes muçulmanos e eram
sustentados por estes, inclusive pelos Hui da China. [Ibid., p. 213284]
A primeira região islamizada foi Malaca, com a fundação do
sultanato em 1414. O sultanato era uma nova forma de governo
adotada em regiões islâmicas, substituta do califado. O sultão tinha
sua legitimidade exclusivamente pelo poder temporal, o que
permitia a hereditariedade e a inclusão de novas lideranças.
54
In: Newson, 2009, p. 2
Na região das Filipinas foram estabelecidos dois sultanatos, Sulu e
Mindanao, entre os séculos XV e XVI. Os sultanatos filipinos
55
possuíam características particulares, por se instituir com base no
sistema de datos, as lideranças tribais locais. Portanto, o sultão não
era um líder absoluto, mas chefe de um conselho de datos, com
poderes limitados. [Ibid., p. 401-412] Nesse contexto, Luzón passa a
ser o eixo que ligava os navios de Fujián aos entrepostos
muçulmanos do sul. Esse contato foi bastante vívido e
economicamente virtuoso, diversas cidades islâmicas da região
chegaram a registrar mais de 50 mil habitantes. [Ollé Rodríguez,
2001, p. 62] Número que chama a atenção se tivermos em mente
que o barangay, unidade tradicional filipina, era composto por uma
população que raramente excedia 200 pessoas. [AGI, Fil., 84, 2;
AGI, Fil. 84, 46]
Nesse contexto, que as forças castelhanas se inserem no oceano
Pacífico, com a expedição de Fernão de Magalhães, entre 1519 e
1521. O interesse castelhano na expedição de Magalhães era
estabelecer bases na região, rompendo com o monopólio de
Portugal. [Oliveira, 2003]
Luzón era importante elo para as conexões lusitanas entre Macau,
Malaca e o Japão. O grande trunfo português na região era atuar
como elo entre China e Japão, que então não mantinham relações
diplomáticas ou comerciais. [Ollé Rodríguez, 2001, p. 66] O sucesso
de portugueses e muçulmanos era favorecido pelo contexto de
reclusão comercial, determinado pela dinastia Ming.
Em 1565, quando os espanhóis de fato passaram a ocupar parte do
território filipino, com o sucesso da expedição Legazpi-Urdaneta,
notaram forte presença muçulmana em Luzón, especialmente no
comércio. Os anos seguintes foram marcados pelo debate do lado
espanhol: se os nativos de Luzón eram ou não mouros.
Miguel Legazpi, primeiro governador espanhol do arquipélago,
escreveu que os muçulmanos impediam a presença espanhola,
sugerindo que tivessem licença para escravizá-los. [Donoso Jiménez,
2011, p. 371] Segundo o frei agostiniano Diego de Herrera, os
mouros que lá viviam “no tienen mas q el nonbre y no comer
puerco”, pois tinham tomado essa fé havia pouco tempo. Sequer
havia sacerdotes na região. [AGI, Fil, 84, 1] De acordo com Herrera,
a definição dos nativos como mouros serviria apenas para justificar
os roubos e escravidão contra os nativos. Em 1578, o governador
Francisco de Sande, organizou uma jornada contra Borneo, Joló e
56
Mindanao, a fim de combater a influência islâmica nas ilhas. [AGI,
Fil., 6, r. 3, 34; AGI, Fil., 6, r. 3, 35] Os religiosos agostinianos, no
entanto, opuseram-se a tal política de conquista.
O que se passava em Luzón era um processo de islamização,
impulsionado pelos interesses religiosos e comerciais do sultanato
de Borneo. Através de laços matrimoniais, comerciais e
diplomáticos, o sultão de Borneo tentava tornar Manila e Sulu suas
áreas de influência. [Donoso Jiménez, 2011, p. 454-464] Como já
explicamos, para as elites locais do sudeste asiático converter-se ao
islamismo era um importante passo para garantir contatos
econômicos favoráveis com comerciantes muçulmanos, tanto com os
de Borneo quanto os Hui.
A presença espanhola no oriente mostrou-se determinante para o
desenvolvimento histórico do arquipélago filipino. A jornada a
Borneo executada por Sande não resultou em uma conquista
territorial. No entanto, o ataque ao sultanato rompeu
definitivamente as relações muçulmanas entre Luzón e Borneo. As
elites nativas de Luzón e Sulu interromperam o processo de
islamização e voltaram-se a um de cristianização, que não foi só
compulsoriamente imposto pelas forças espanholas, mas também
uma escolha interessada por parte destas mesmas elites. [Ibid., p.
467-469]
O estabelecimento castelhano no arquipélago foi favorecido por um
contexto positivo, pois coincide com a monetarização da economia
chinesa. Nesse processo, os chineses sofreram com uma crise de
superprodução de papel-moeda. Para sanar o problema os
governantes Ming exigiam pagamento de impostos em metal. Assim,
depois de anos de limitação comercial, o imperador chinês Long
Qing, em 1567, aprovou abertura parcial para comerciantes de
Fujián, o que também se fez por pressão dos comerciantes e elite
política dessa região, incluindo os Hui. [Crewe, 2015, p. 345-346]
Esse fato favoreceu o restabelecimento de relações comerciais
regulares entre as ilhas Filipinas e o Celeste Império, desta vez entre
espanhóis e chineses. Estes tinham grande interesse na prata
mexicana, que chegava pelo Galeão de Manila. Já os comerciantes
americanos ofereciam grandes quantidades de prata por porcelana,
seda, jade, marfim e temperos.
57
A abertura de Fujián foi essencial para o estabelecimento espanhol
no arquipélago filipino. [Ollé Rodríguez, 2001] Para os chineses a
chegada dos espanhóis também foi muito interessante. Até 1640, o
fluxo de prata para a China superava a quantidade remetida para a
Europa. [Crewe, 2015]
Consequência desse contato foi a grande presença chinesa no
arquipélago. Com as frotas anuais, mais chineses passavam a residir
no arquipélago. Estes foram chamados pelos espanhóis de
sangleyes. Tal população foi essencial para Manila, não só pelo
abastecimento que proviam anualmente, mas também por alimentar
as rendas municipais com o aluguéis, taxas e licenças. [GarcíaAbásolo González, 2008] Em suas lojas e oficinas, os sangleyes
ofereciam à comunidade serviços diversos: chapeleiros, sapateiros,
alfaiates, carpinteiros, pedreiros etc. O jesuíta Pedro Chirino [1890,
p. 18] afirmou que os chineses eram “todo el servicio de la
republica”.
Em 1571, quando da conquista de Manila, cerca de 40 chineses
residiam na região. Um informe de 1586 alertava que os sangleyes
eram mais de 10 mil. Vinte anos depois a população sangleye era
próxima de 25 mil pessoas, o que superava em muito os cerca de mil
hispânicos estabelecidos no arquipélago. [García-Abásolo González,
2004]
Apesar de importantes, havia certa desconfiança, o que fez o governo
castelhano nas ilhas adotar algumas medidas de controle. Em 1580,
por influência dos agostinianos, o governo Gonzalo Ronquillo de
Peñalosa ordenou a criação do Parián em Manila, bairro específico
para os chineses, nos quais teriam suas casas, lojas e ficariam sob
jurisdição de alcaide. [AGI, Fil., 84, 24] Nem todos os sangleyes
viviam no Parián. Havia, nas áreas rurais, pescadores, criadores de
gado e agricultores. Os que se convertiam ao cristianismo poderiam
residir em qualquer lugar.
Se por um lado a presença chinesa foi alavancada pela colonização
espanhola, por outro, os povos nativos sofreram com grande declínio
demográfico a partir de 1565. Os dados propostos pela geógrafa
Linda Newson confirmam que a entrada dos espanhóis nas ilhas
provocou mudanças drásticas. Em 1565, a população das regiões de
Luzón e Visayas – o que exclui Mindanao, que estava sob controle
dos muçulmanos – seria de aproximadamente 1,6 milhão de
58
pessoas. Passados 35 anos de presença espanhola no arquipélago,
esse número teria caído para cerca de 1 milhão de pessoas, uma
queda de 36%. Nas áreas com maior presença colonial essa queda
beirou os 45%. Diferente da América, as doenças e epidemias não
foram as principais causas desse declínio populacional, mas sim a
ação colonial propriamente dita. [Newson, 2009]
A população das ilhas Visayas vivia, em geral, em pequenos grupos
populacionais, chefiados por um dato, líder hereditário, mas que
tinha seu poder legitimado também por seu carisma, poder militar e
riqueza. Esses dois últimos estavam diretamente relacionados ao
número de dependentes e escravos sujeitos ao dato.
Como o poder estava ligado à riqueza, as famílias tendiam a ser
pequenas, para não dividir a herança em muitas partes (pois deveria
ser dividida igualmente entre os herdeiros). Segundo o relato de
Miguel de Loarca, não havia pobreza entre os pintados (forma como
os espanhóis chamavam os cebuanos, por conta de suas tatuagens),
pois eram acolhidos pelos ricos. Muitos sujeitavam-se a modalidades
de escravidão para serem sustentados pelo dato. [AGI, Patronato,
23, 9] Portanto, nota-se que a escravidão vai muito além de uma
situação de exploração do trabalho, era um meio de afirmação e
social política. Era uma obrigação do dato acolher, sustentar e
defender não só os escravos, mas também os livres, os timaguas.
Cebu foi local do primeiro assentamento espanhol. Lá ocorreram as
primeiras atividades militares hispânicas, tanto para submeter os
nativos quanto para tomar riquezas e recursos de subsistência. Os
religiosos agostinianos foram enfáticos ao denunciar a violência e
abusos cometidos pelos colonos. [Rocha, 2016] O frei Diego Herrera
afirmou que as atitudes dos espanhóis eram de pouco serviço a Deus
e também ao monarca, “pues le destruyen buenas tierras”. [AGI, Fil,
84, 1] Explicou o frei que as estratégias indígenas para resistir à
violência espanhola eram a fuga para o interior das ilhas e “no
binefiçiar sus sementeras”. [AGI, Patronato, 24, 16]
Um dos principais fatores para as frequentes fomes que ocorreram
na região foi a alienação da terra. Tradicionalmente a terra era bem
coletivo, apenas seu produto era controlado pelo dato. Assim,
grande maioria dos nativos tinha acesso à terra. Com a política de
alienação, incentivada pela colonização espanhola, os datos e ordens
religiosas passaram a monopolizar o acesso às áreas de cultivo,
59
ficando restritas a grande parcela da população. [Newson, 2009, p.
105-106]
A colonização também influenciou estruturas políticas e sociais
locais. Como já dito, o dato era um posto hereditário. As autoridades
hispânicas acabaram alterando essa estrutura, indicando para o
posto quem lhes mais interessava, oferecendo privilégios e
benefícios, como a propriedade da terra e isenções fiscais. Essa elite
nativa, era chamada pelos espanhóis de cabezas de barangay.
Selecionados pelo governo colonial, auxiliavam nos abusos e na
extorsão fiscal.
Outro efeito da presença espanhola no arquipélago que influenciou
no despovoamento de Visayas são ataques dos muçulmanos de
Mindanao e Sulu. O objetivo era o apresamento de indígenas, para
serem vendidos como escravos a outros mercados como sultanatos
vizinhos, navegantes neerlandeses e comerciantes chineses. Como a
presença hispânica em Luzón e Visayas confirmou-se como um
entrave à expansão comercial dos sultanatos de Mindanao e Sulu, a
escravização e comércio de escravos tornaram-se alternativas
econômicas relevantes para a manutenção da presença muçulmana
nas ilhas do sul do arquipélago. Anualmente, cerca de mil nativos de
Visayas eram capturados por essas incursões muçulmanas. [Newson,
2009, p. 33-34; 75; 85]
Em Visayas os espanhóis fundaram duas cidades, Arévalo e Cebu.
Mas tratavam-se de pequenos povoados. A população espanhola
estava concentrada na cidade de Manila, na ilha de Luzón, para onde
a colonização espanhola dirigiu efetivo em 1571.
Luzón era uma região muito mais povoada e que também chamava a
atenção por suas potenciais riquezas. [AGI, Patronato, 23, 21] Além
disso, Manila era uma região em franco processo de islamização, o
que aumentava o interesse e justificava espanhol na conquista da
região.
Em Luzón os espanhóis tiveram contato com o grupo cultural
conhecido como Tagalog, um dos quais possuímos mais
informações. Os tagalog habitavam barangays, comunidade
autônoma, em geral, em conflito com outras unidades. Cada
barangay era comandado por um dato, que tinha seu poder
60
vinculado às habilidades de comandar seu povo em guerra e de
garantir sucesso comercial.
Ponto de importante distinção entre os nativos de Visayas e os
tagalog é a estrutura familiar. Para os tagalog uma família extensa
era sinal de poder, isso refletia-se numa população muito mais densa
e com maior capacidade de recuperação demográfica. [Newson,
2009, p. 136-137]
A escravidão era uma instituição presente para em Luzón. O poder
dos datos estava diretamente ligado ao maior número de pessoas
sobre sua dependência, especialmente os escravos. Essa
característica foi uma das que provocou mais conflitos entre o clero
estabelecido nas ilhas e os poderes civis das Filipinas. Os colonos
espanhóis justificavam que a escravidão era uma instituição própria
dos nativos, assim, era justo que eles os comprassem. [AGI, Fil., 6, 1,
16] No entanto, como explicaram os freis agostinianos, a escravidão
entre os tagalog possuía significados e práticas distintas do modelo
europeu. Segundo frei Martin de Rada “los esclavos [sŌo] los mas
libres que puede” [AGI, Fil. 79, 1], pois não tinham que obedecer em
tudo a seu senhor.
Os termos da escravidão eram distintos da tradição jurídica romanoocidental. Os escravos (alipin) eram divididos em duas classes:
namamahay e gigilid. Namamahay eram devedores de tributos a
quem era cedido um pedaço de terra para que ele pagasse com parte
da produção a seu senhor. Os gigilid viviam sob o teto de seu amo.
Eram serviçais domésticos, mas tratados como membros da família.
No caso de serem prisioneiros, o tratamento era mais rígido. Os
gigilid passavam ao status de namamahay ao contraírem
matrimônio, e então poderiam trabalhar por sua liberdade. Além de
prisioneiros de combate e devedores, a escravidão era transmitida
hereditariamente, caso os pais estivessem em débito. [Nadeau,
2008]
Para os cebuanos a escravidão também era diferenciada em grupos.
O ayuey era o mais explorado por seu amo, devendo prestar três
dias de serviço para este, tendo na sequência um para si. O
tumaranpoc possuía sua própria casa, servindo a seu senhor por um
dia, tendo três para si. Os tomatabanes não realizam trabalham
agrícola, apenas serviam nos banquetes e bebedeiras (que não eram
raros), mas também participavam do evento. [AGI, Patronato, 23, 9]
61
Apenas o endividamento tornava alguém em escravo, e quando a
dívida era paga o indivíduo e sua família voltavam a ser livres.
O processo de alienação, ocorrido com a terra, também ocorreu em
relação aos escravos, que passaram a ser comercializados, por conta
da presença espanhola. Além do apresamento direto, a opressão
fiscal ampliava a instituição da escravidão entre os nativos, pelo
endividamento e pelo fato de muitos datos pagarem os tributos
exigidos com seus escravos, que até então não eram considerados
propriedades. [AGI, Fil., 84, 4; AGI, Fil., 84, 15]
Além da escravidão e do pagamento dos tributos, os nativos estavam
sujeitos à prestação de serviços compulsórios, no regime
denominado polo. Este sistema foi largamente denunciado pelos
religiosos estabelecidos no arquipélago. [AGI, Fil. 84, 13; AGI, Fil.
84, 3] O instituto do polo foi o principal provocador de fugas e do
declínio da população nativa.
Apesar de muitos relatos destacarem a passividade e temor que os
nativos tinham, submetendo-se facilmente à dominação espanhola,
as revoltas e resistências foram constantes. A parte norte da ilha de
Luzón, nas regiões de Ilocos e Pangasinan, por exemplo, foi
conquistada apenas no século XIX. Descritos como belicosos e
violentos, os relatos de suas atitudes provocavam temor nos colonos.
A presença espanhola no oriente, durante quase quatro séculos, não
foi fruto da mera construção dos galeões que viajavam entre
Acapulco e Manila. O sustento dos colonos espanhóis nas Filipinas
foram semeados por muçulmanos, cultivados por sangleyes e
regados a sangue de tagalos, negros, cebuanos, sambales,
catanduanes, tinguianes e muitos outros povos nativos do
arquipélago.
Referências
Carlos Guilherme Rocha é mestre em História pela Unicamp e cursa
doutorado em História no PPGH-UFF, onde desenvolve a tese
“ExpansŌo da fé e justiça: o corpo eclesiástico e o governo das Ilhas
Filipinas, 1565-1610”, sob orientaçŌo do prof. Dr. Marcelo da Rocha
Wanderley. Esta pesquisa conta com bolsa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Email: carlosgrocha@yahoo.com.br
62
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CHIRINO, Pedro. Relación de las Islas Filipinas y de lo que
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63
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governo civil e defesa dos nativos nas Filipinas. A época missionária,
1565-1581. Diálogos, Maringá, v. 20, n. 2, 2016.
64
EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS E
DIVULGAÇÃO DA ARTE CHINESA
Caroline Pires Ting
佛(fó) 朗(lǎng) 机(jī) fora o nome dado a Portugal, a primeira nação
europeia a chegar à China, por via marítima. Como parte integrante
do mundo colonial deste país, Macau integrava um complexo
sistema que articulava territórios na Índia, na Indonésia, em vários
pontos da África, além da América. Se as trocas culturais e as
influências artísticas mútuas entre as colônias lusas, as quais
certamente existiram, ainda estão por merecer estudos mais
aprofundados, é fato que não foi empenho da Coroa portuguesa a
divulgação de notícias, fosse em forma de textos ou de imagens, dos
povos e das terras sob sua soberania. Segundo Valeria Piccoli, “as
informações eram tratadas como segredo de Estado e tinham
alcance restrito, circulando preferencialmente como manuscritos, na
forma de relatos ou peças cartográficas” (in BARCINSKI, 2015, p.
63). Essa política é refletida numa escassez de estudos sobre as artes
coloniais ultramarinas de Portugal, de modo geral.
Até meados do século XIX, havia uma abundante documentação
burocrática, mas escassa em termos de entendimento cultural da
civilização chinesa. A obra Historical Sketch of the Portuguese
Settlements in China (Publisher Boston, J. Munroe & co.), publicada
em 1836 por Anders Ljungstedt (1759-1835), atendia às necessidades
dos colonialistas ocidentais do século XIX, que pretendiam conhecêla melhor com o objetivo de expandir a sua presença naquele
território. Seriam poucos os intelectuais que buscariam estudá-la em
caracteres mais amplos, sobretudo culturais. Assim, nosso estudo
trata da participação efetiva de um acadêmico lusófono que se
dedicou a superar a incompreensão do Leste Asiático: o macaense
José Vicente Jorge exerceu notável trabalho, sobretudo, em prol da
divulgação da cultura do País do Meio.
Em seu prólogo, J. V. Jorge explica os motivos que o levaram a
redigir sua obra Notas sobre a arte chinesa: o autor se considera
imbuído do dever de "facultar a compreensão do belo" (JORGE,
1995, p.28). Tarefa essa, a seu ver, “é de todo aquele que cuida dos
assuntos de arte”. Jorge critica a persistência da dificuldade lusitana
em entender e interessar-se, de modo amplo, pela produção artística
colonial: "a causa do desinteresse é geralmente a falta do
65
conhecimento", escreve o autor (Ibid., p.28). Segundo o
colecionador de arte e escritor, passara-se o tempo em que os
portugueses fizeram de Macau “um centro de exportaçŌo das belezas
da China”, movidos pela expansŌo comercial ou pela apreciaçŌo do
novo e do exótico, das identificações curiosas e singulares. J. V.
Jorge afirma que tal procedimento teria marcado uma época e que,
se tal interesse fora reduzido em Portugal, ocorrera de maneira
diferente nas demais nações europeias, onde as artes locais, em suas
diversas manifestações, sofreram influências do contato com o
Oriente:
“O Oriente, como é sabido, foi sempre uma fonte de
inspiração inesgotável e a Europa, por vezes, quando
cansada de motivos demasiadamente explorados, encontra
nestas regiões distantes uma razão de ser diferente e
estranha e recebe sofregamente o que de exótico e belo lhe
emprestam as artes primitivas. Assim vamos encontrar, em
muitas épocas e em muitas escolas, a bem acentuada
influência das artes orientais, na música, na pintura, na
escultura, na dança, no teatro, na cerâmica, etc., etc”.
(JORGE, 1995, p.28)
É importante conhecer mais a respeito do pano de fundo que se
presta aos assuntos coloniais que se articula à estruturação de uma
cultura visual, a qual deveria conservar “o sentimento nacional da
arte”, como enunciado por Jorge. O livro Notas sobre a arte chinesa
se inscreve cronologicamente na promoção das manifestações e
produções artísticas coloniais da Exposição do Mundo Português de
1940, durante o regime político do Estado Novo, que vigorou em
Portugal durante 41 anos sem interrupção, desde a aprovação da
Constituição de 1933 até ao seu derrube pela Revolução de 25 de
Abril de 1974.
Nas palavras do autor: “Uma das obras interessantes do Estado
Novo tem sido promover as manifestações artísticas e literárias de
assuntos coloniais. Lembrando-me de que Macau é uma colónia
portuguesa, há cerca de 400 anos, e de que não tem características
próprias, mas sim aquelas que lhe vêm da civilização chinesa, julgome na obrigação de concorrer com os meus modestos
conhecimentos das artes chinesas para despertar o interesse
adormecido” (Ibid., p.29).
66
Macau teve presença marcante na exposição: foi recriada em Lisboa
uma rua movimentada típica da cidade portuguesa na China". A
entrada para a mesma ainda pode ser apreciada no local onde fora
construída:
Fonte da imagem:
http://antoniodeoliveirasalazar.blogspot.com.br/2015/12/guiaoficial-para-exposicao-do-mundo.html
Salazar desejava uma “grande exposiçŌo histórica” que
exemplificasse a “açŌo civilizatória” e traçava “cada passo e vestígio”
de Portugal pelo Globo. Ele propôs ainda a reprodução da
“arquitetura característica de cada uma das 21 províncias
portuguesas” com seus habitantes em vestimentas típicas. (Diário de
Notícias, 27 de março de 1938, in DE MATOS; AYTON, 2013. p.
198).
Fonte da imagem:
http://macauantigo.blogspot.com.br/2013/07/exposicao-domundo-portugues-1940-fotos.html. Descrição: "Recordação:
fotografia tirada na Exposição do Mundo Português na Rua de
Macau com trajos chineses (...) 26 de Julho de 1940" - o estúdio
fotográfico (que fez a revelação) ficava no nº 29 da Rua da
Felicidade.
67
A Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa entre junho e
dezembro de 1940, foi, além do primeiro grande evento cultural da
ditadura do Estado Novo, o cume de sua propaganda "nacionalistaimperialista". A exposição tinha o duplo objetivo de comemorar a
fundação da nação portuguesa (em 1140) e sua independência da
Espanha (em 1640), tornando-se um veículo para a difusão e a
legitimação da ideologia e dos valores da ditadura em que a ideia de
nação foi (re)construída através de imagens, mitos e símbolos. A
exemplo, a imagem abaixo apresenta a capa do livro sobre a Secção
Colonial com uma das telas de Fausto Sampaio, escolhida para
figurar na Exposição do Mundo Português, em Lisboa, em 1940,
mesmo ano de publicação da obra de J. V. Jorge, com quem o pintor
estabelecera relações amistosas.
Exposição do Mundo Português: Secção Colonial, 1940, Lisboa.
Precisamente 91 obras de arte de Sampaio foram ali expostas.
Fonte da imagem:
http://wolfsonian.fiu.edu/explore/collections/exposi%C3%A7%C3%
A3o-do-mundo-portugues-sec%C3%A7%C3%A3o-colonial-1940lisboa-exposition-portuguese-w.
José Vicente Jorge estabeleceu relações amistosas com o pintor
português Fausto Sampaio durante o ano de 1936, em que este
residiu em Macau e lá estabeleceu um ateliê.
Devemos enfatizar que, ao contrário do que se poderia pensar, a
obra de Jorge não estava enraizada em uma pesquisa puramente
antropológica ou etnográfica. Ao juntar uma grande variedade de
abordagens e referências, provenientes tanto de autores europeus
quanto asiáticos, ele introduziu em seu livro inúmeras questões
sobre a produção e a circulação dos objetos de arte chinesa elevando
o status da estética chinesa. Sua análise acadêmica desta cultura,
testemunhada por meio de seus ensaios e comentários, não se
68
prende à compreensão do orientalismo sob o viés do exotismo.
Ainda parcamente estudada, sua obra é merecedora de maior
atenção nos domínios da história da arte e da sinologia lusófona.
Referências
Caroline Ting é Pesquisadora-Jr. do Real Gabinete Português de
Leitura ̸ Instituto Internacional de Macau; Doutoranda em História e
Crítica da Arte – UERJ. Mail: carolting18@hotmail.com.
Meus sinceros votos de agradecimentos a meus valiosos
orientadores:
- André Bueno, Prof. Dr. de Antiguidade Oriental – UERJ;
- Vera Siqueira, Profa. Dra. de História da Arte – UERJ.
BARCINSKI, Fabiana Werneck (org.). Sobre a arte brasileira da
pré-história aos anos 1960. São Paulo, Sesc São Paulo : Editora
WMF Martins Fontes, 2015.
JORGE, José Vicente. Notas sobre a arte chinesa; Introdução de
Pedro barreiros. - 2. Ed. rev. e aum. il. Macau : Instituto Cultural de
Macau, 1995.
LJUNGSTEDT, Anders. Historical Sketch of the Portuguese
Settlements in China. Publisher Boston, J. Munroe & co., 1836.
DE MATOS, Patrícia Ferraz; AYTON, Mark. The Colours of the
Empire. Racialized Representations during Portuguese
Colonialism. New York ; Oxford Berghahn cop. 2013.
69
70
HISTÓRIA DA ÁSIA E INTERDISCIPLINARIDADE
NA EDUCAÇÃO BÁSICA: UM DUPLO DESAFIO
Cyanna Missaglia de Fochesatto
A interdisciplinaridade atualmente é uma palavra que se encontra
irrevogavelmente aliada ao ensino. Proliferam pesquisas e trabalhos
que colocam a interdisciplinaridade no centro da atuação decente
como forma de dinamizar e enriquecer a educação. Observa-se ainda
que este aspecto passou a ser contemplado há alguns anos pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) fomentando o diálogo
com outras disciplinas. Muito mais se aprende – especialmente na
área das Ciências Humanas – quando se relaciona a disciplina e a
matéria ministrada à outras áreas do saber. O ensino da história da
Ásia vem recentemente crescendo na preocupação dos formadores
educacionais, pois é recente a obrigatoriedade desta disciplina nos
currículos escolares. Fato esse que colaborou, entre outros fatores,
para colocar em discussão as falhas curriculares, indo desde a sua
construção e seleção das disciplinas até uma visão – ainda –
extremamente eurocêntrica de ensino da história. Há apenas alguns
anos a história da Ásia, juntamente com história da África e o ensino
de Libras, vêm sendo pensados dentro da perspectiva de novas
formas de adaptação curricular que abordem estes temas, embora as
próprias licenciaturas apresentem uma dificuldade em situar seu
ensino nesses eixos, já que as formações de docentes especialistas
nessas temáticas apresentam-se deficitárias.
As exigências oriundas do MEC fizeram muitas licenciaturas
reformularem seus currículos na busca de adaptar o ensino às essas
novas demandas, enfatizando principalmente as relações étnicoraciais, o que claramente se configura em um avanço quando se visa
uma educação integradora, humanizada, questionadora e reflexiva.
No entanto, um dos problemas configura-se na formação de
especialistas nestas áreas – África e, especialmente, Ásia, no Brasil.
Portanto, é nesse contexto que buscamos abrir o diálogo para
verificar alguns pontos sobre o ensino da história da Ásia na
educação básica, sempre trazendo o olhar interdisciplinar dentro do
debate, uma vez que é patente a relevância deste processo para
pensar um ensino e uma educação de qualidade. Assim, esta breve
reflexão configura-se em duas vias de análise, ou melhor, configurase num duplo desafio. O primeiro seria o desafio de ensinar a
história da Ásia para alunos da educação básica e o segundo seria
71
relacionar este ensino à interdisciplinaridade. Pois, se esta palavra
está diretamente ligada a uma nova visão de educação e ensino,
torna-se também um desafio na formação profissional encontrar
cursos de níveis superior que estejam colaborando de forma efetiva
para o desenvolvimento de docentes interdisciplinares.
O desafio de ensinar uma história asiática, enquanto as próprias
graduações são precárias no ensino e na formação profissional de
seus professores, eleva a reflexão para além da sala de aula escolar,
pois uma boa formação, e também a busca de uma formação
continuada seria o caminho para que o ensino desses “novos”
conteúdos possa ser pensando de forma mais assertiva em diversos
pontos. Como exemplo podemos citar a elaboração de um plano de
ensino que possua um olhar menos generalista e voltado quase que
completamente à uma visão eurocêntrica sobre questões tão
particulares e complexas como se apresentam no enorme continente
asiático. E, nesse caso, reforça-se a importância da
interdisciplinaridade – tanto na formação do docente quanto do
discente – para ensinar uma história oriental, considerando que ela
perpassa pelas artes plásticas, literatura, teatro, música, matemática,
sociologia, antropologia, geografia e inúmeros eixos de análise que
só podem ser compreendidos de forma mais ampla quando se utiliza
as diversas áreas do conhecimento como suporte. Enfim, são vastas
as possibilidades de diálogo com todas as disciplinas que colaborem
para uma dinâmica do conhecimento e do entendimento do mundo e
da cultura asiática pelos alunos.
Atualmente diversos estudos apontam que a utilização de diferentes
fontes, temas, metodologias, disciplinas condicionam um ensino de
qualidade na área da história, especialmente em terrenos poucos
explorados como é o caso da história da Ásia, que embora desperte
curiosidade, pouco ainda se produz na historiografia brasileira sobre
o tema. Contudo, os problemas da formação docente, aliados a
diversos outros fatores acabam por apresentarem um quadro
desmotivacional no ambiente escolar. Seria possível pensar a
interdisciplinaridade como uma ponte para um entendimento mais
completo do conteúdo. Pois, através dela, torna-se possível fomentar
um ensino mais crítico e globalizante, e os alunos mais conscientes e
questionadores da sua própria realidade, especialmente quando
conseguem fazer vínculos e associações com outras culturas e
sociedades. Nesse caso, é possível observar que: “[...] a
interdisciplinaridade implica, portanto, alguma reorganização do
72
processo de ensino/aprendizagem e supõe um trabalho continuado
de cooperação dos professores envolvidos”. (POMBO, 1993, p. 13).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio incentivam
o uso da interdisciplinaridade como catalizador para explicar,
compreender, intervir, mudar, prever, e até superar o saber – o que
apenas uma disciplina sozinha muitas vezes fica impossibilitada. Ao
estudar a interdisciplinaridade aliada a história ambiental, Enrique
Leff (2000) destacou a importância de uma prática multidisciplinar
que parte do diálogo colaborativo entre os diferentes saberes e
formações disciplinares:
“A interdisciplinaridade implica assim um processo de
inter-relação de processos, conhecimentos e práticas que
transborda e transcende o campo da pesquisa e do ensino
no que se refere estritamente às disciplinas científicas e a
suas possíveis articulações. Dessa maneira, o termo
interdisciplinaridade vem sendo usado como sinônimo e
metáfora de toda interconexŌo e “colaboraçŌo” entre
diversos campos do conhecimento e do saber dentro de
projetos que envolvem tanto as diferentes disciplinas
acadêmicas, como as práticas não científicas que incluem
as instituições e atores sociais diversos”. (LEFF, 2000, p.
22).
O ensino da história asiática por si já se configura em um grande
desafio uma vez que especialistas em história oriental são poucos no
Brasil. O ensino da Ásia muitas vezes acaba ficando relegado a
pequenos recortes e algumas atividades deslocadas – quando o tema
não é ministrado como uma história menos importante e afastada da
realidade do aluno, esquecendo que esse trata-se do maior
continente da Terra, e que é possuidor de uma cultura peculiar, de
um modo de vida que desperta a curiosidade, de produções artísticas
ricas em termos de arquitetura e artes plásticas, de distinções
comportamentais, estruturas políticas, econômicas e sociais que são
complexas de compreender, especialmente por apontarem tantos
elementos diferentes em relação – especialmente – ao continente
americano. Essa carga de informações acaba, por motivos diversos,
muitas vezes, caindo no erro de criar estereótipos ou simplificar uma
cultura que passa longe de ser homogênea, aliás, como qualquer
outra cultura ela é possuidora de particularidades específicas de sua
formação estrutural, geográfica e social. Mas, ainda no pior dos
cenários é possível que a má formação profissional, aliada a uma
73
formação que não é estimulada a ser continuada, que não é
valorizada e aos demais fatores que formam o atual quadro docente
no Brasil, possam vir a criam preconceitos sobre as diferenças
culturais, especialmente a asiática, por ser tŌo “distante” da
brasileira, em termos geográficos e culturais, e causar
estranhamento. É possível perceber uma dificuldade inclusive na
produção de materiais didáticos de apoio para o ensino de uma
história da Ásia de qualidade. Por ser uma região tão grande e tão
peculiar, muitas vezes encontram-se simplificações e erros que
partem de determinados sensos comuns de todos os tipos, quando
não julgam e condenam aspectos da cultura asiática, sem dar as
bases para um ensino crítico.
É preciso determinados cuidados para tratar de temas como por
exemplo, o imperialismo, o colonialismo europeu na Ásia, bem como
sua partilha, o resultado das Revoltas e das Guerras, como a Revolta
do Cipaios na Índia, a Guerra do Ópio na China e demais conflitos
armados, tal qual o impacto de todos esses eventos ainda nos dias de
hoje no continente asiático, cuidado especialmente no ensino de
forma deslocada do restante das sociedades. Por isso, sempre se faz
necessário associar os processos políticos, sociais e econômicos,
ocorridos em qualquer ponto do planeta, à realidade do aluno. Essa
barreira só se vence através do intenso diálogo entre as diversas
áreas do saber. E, talvez por isso, ocorra uma dificuldade maior em
entender uma história asiática e vinculá-la não apenas ao presente,
mas também relacioná-la de forma crítica a realidade dos alunos. O
processo de colonização deixou um amplo rastro de pobreza visível
ainda nos dias atuais, e não foi diferente no continente africano e na
América do Sul, sendo este um desafio de ensaiar sem cair nos
sensos comuns e principalmente em um ensino acrítico da realidade
que os processos políticos deixaram em alguns países ao longo dos
últimos séculos. É necessária uma grande sensibilidade para tratar
essa e outras temáticas referentes ao ensino da Ásia e, portanto, a
relevância de um ensino interdisciplinar e que se utiliza de diversas
fontes, como filmes, documentários, imagens, documentação tornase fundamental para enriquecer a educação visando diminuir as
lacunas nos conteúdos e no entendimento das matérias. Nesse caso,
atenta-se que: “[...] os alunos já chegam à escola com um acúmulo de
experiências vivenciadas em múltiplos espaços, através das quais
podem elaborar uma cultura própria, uns „óculos‟ pelo qual vêem,
sentem e atribuem sentido e significado ao mundo, à realidade onde
se inserem”. (DAYRELL, 1996, p. 140). Dessa forma, o ensino de
74
uma história asiática crítica é fundamental, tanto do ponto de vista
do conteúdo quando da própria necessidade de não subestimar a
capacidade de entendimento do docente em nenhum espaço e em
nenhuma área do conhecimento. Está posto o maior desafio: um
ensino da história da Ásia interdisciplinar, crítico e relacional.
A realidade do ensino é exposta principalmente quando
encontramos as dificuldades de tratar determinados temas.
Atualmente é um desafio ser professor em um país que parece
retroceder a passos largos em relação a uma educação –
especialmente pública e de qualidade. No entanto, o foco desta breve
reflexão se situa no ensino da história asiática e na relação desta com
a interdisciplinaridade. Tratamos, dessa forma, essas questões como
um duplo desafio. O desafio de ensinar aquilo que muitas vezes não
estamos formados ou preparados, sem cair no engano de simplificar
e generalizar questões tão amplas como a cultura asiática; e, o outro
desafio seria ensinar uma história asiática usufruindo de diversas
fontes e disciplinas, buscando uma visão mais ampla através de um
trabalho interdisciplinar, uma vez que os estudos mais recentes,
incluindo aí as indicações e referências do Ministério da Educação
(MEC) e da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) que o ensino interdisciplinar agrega, dinamiza, enriquece e
estimula uma educação de maior qualidade.
O ensino de uma história asiática não é trabalho fácil, tampouco o
ensino de uma história da África, tudo aquilo que se afasta da
cultura vivenciada é um desafio de se entender. Nesse caso, o apoio
de outras disciplinas, a busca de cursos de especialização e de
extensão que estejam relacionados as novas demandas curriculares
– focando no ensino étnico-racial e no ensino da África e da Ásia –
pode ser uma forma de não cair em pequenos erros que ocorrem ao
longo do processo de ensino-aprendizagem. A busca constante por
fontes de informações diversas, a “sede” de saber docente e discente
é o caminho mais seguro para traçar um ensino qualificado e
também em fazer resistência àqueles que teimam em desqualificar o
papel do educador em nossa sociedade. E, por fim, nada mais
enriquecedor, em termos de cidadania e humanidade, do que o
ensino crítico de diferentes culturas. Sendo essa a base da tolerância,
do conhecimento e do debate.
75
Referências
Cyanna Missaglia de Fochesatto é graduada em História pela
PUCRS; Especialista em Estudos Culturais nos Currículos Escolares
Contemporâneos na Educação Básica, pela UFRGS; Mestre em
História pela Unisinos e Doutoranda em História pela Unisinos,
onde é bolsista CAPES/Prosup. Possui interesses na área da
educação e ensino, imagens e história.
E-mail: cyanna.mf@gmail.com
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: História. Brasília:
MEC/SEF, 1998. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf> Acesso
em: 20 ago. 2017.
DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In.
DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre a educação
e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
LEFF, Enrique. Interdisciplinaridade em ciências
ambientais. São Paulo: Signus Editora, 2000.
POMBO, Olga. O Conceito de Interdisciplinaridade e Conceitos
Afins. In: POMBO, Olga; GUIMARÃES, Henrique M.; LEVY, Teresa.
A Interdisciplinaridade: reflexão e experiência. Lisboa: Texto
Editora, 1993.
76
“ESMAGUEM OS QUATRO ANTIGOS”: A
REVOLUÇÃO CULTURAL PROLETÁRIA NA CHINA
Daniele Prozczinski
Os antecedentes da Revolução Cultural Proletária
“A revoluçŌo democrática nŌo está concluída, pois as forças
feudais, cheias de ódio ao socialismo, estão despertando
problemas, sabotando as forças produtivas socialistas.”
Mao Zedong (DIKÖTTER, 2016, p. 71)
A Revolução Cultural Proletária correspondeu à fase mais radical da
liderança de Mao Zedong, onde muitas pessoas foram perseguidas,
torturadas e mortas injustamente. Com o desastre das políticas
económicas do Grande Salto Adiante (1958-1962), que resultou em
cerca de quarenta e cinco milhões de mortes (DIKOTTER, 2017, p.
10), havia grande insatisfação e divisão dentro do Partido Comunista
Chinês (PCC). Todos os dias, chegavam notícias da devastação
causada pelo Grande Salto Adiante. Pela primeira vez desde a
tomada do poder em 1949, ecoavam dúvidas sobre a capacidade de
liderança de Mao. Em 1962, Liu Shaoqi, presidente da República
Popular da China (RPC), afirmou, na conferência de trabalho, com
sete mil pessoas presentes, que a culpa do desastre absoluto do
Grande Salto Adiante devia-se 70% ao homem e apenas 30% às
calamidades naturais. Este encontro também foi muito importante
para que as diferentes províncias da China pudessem comparar o
que aconteceu, já que muitas apontavam para um desastre 100%
humano. Neste momento, o partido tornou-se no maior obstáculo à
visão de Mao para a China. Por outro lado, o Grande Timoreiro
(como passou a ser aclamado), o responsável pela condução da
revolução, denunciava a burocratização crescente e a predominância
de um sistema de exclusão de cima para baixo. De nada adiantava a
revolução se as mesmas práticas feudais continuassem a vigorar na
China. Para além disso, sentia que os mais afortunados tinham
acesso a melhores oportunidades do que os mais pobres. Os filhos de
dirigentes do partido, por exemplo, tinham resultados superiores
nos exames de admissão aos cargos públicos, que excluíam os
camponeses, cuja vida não permitia a mesma preparação. Havia,
igualmente, abuso de poder entre os membros da administração
pública. Caminhava-se, segundo Mao, para a via do capitalismo, o
77
que rejeitava todos os pressupostos marxista-leninista que deram
origem à RPC. A revolução não estava indo para o caminho certo e
era preciso retomar o processo revolucionário. Desta forma, foi
lançada uma forte campanha político-ideológica, com o objetivo de
concretizar a verdadeira revolução socialista iniciada em 1949.
Conforme afirma Harry Gelber,
“aquilo de que se necessitava era de uma renovaçŌo do
espírito revolucionário em cada uma das gerações, de uma
ênfase no igualitarismo, do poder de mobilização das
massas e da revolta contra tudo o que tresandasse à velha
ordem.” (GELBER, 2008, p. 429)
Os princípios da Revolução Cultural Proletária e os
Guardas Vermelhos
“A primeira coisa é a luta, a segunda é a crítica, a terceira é
a transformação. A luta significa destruição e a
transformaçŌo significa começar algo novo.” Mao Zedong
(ZEDONG, 1966)
A Revolução Cultural Proletária foi restrita ao ambiente urbano,
onde a solução para a retomada da via revolucionária estava nos
estudantes e nos jovens descontentes. O partido estava corrompido e
precisava ser limpo pela mão da juventude, que, através da
educação, compreendia a necessidade de luta e mudança, para além
de representarem o futuro. Nas escolas, as crianças e os jovens
aprendiam que Mao Zedong era o salvador da China, o homem que
os livrou dos imperialistas ocidentais e colocou o país no caminho
para o desenvolvimento econômico. Não obstante, a verdadeira
campanha da revolução iniciou-se no exército, com o apoio do
Ministro da Defesa, Lin Biao. Este, em 1964, publicou e mandou
imprimir milhões de cópias das Citações do Pensamento de Mao
Zedong, ou, como mais conhecido, do Livro Vermelho (cartaz de
propaganda 1). A ideia era que a conscientização devia iniciar-se no
exército, passando para as fábricas e depois para as escolas,
atingindo, desta forma, um grande número de pessoas.
78
Cartaz de Propaganda 1: “Critica o mundo antigo e constrói um
mundo novo usando o pensamento de Mao Zedong como arma.”
In “Cultural Revolution Campaigns (1966-1976)”, 1966)
O pequeno Livro Vermelho é composto por citações dos escritos e
discursos de Mao, divididos por 23 temas, entre os quais o Partido
Comunista, luta de classes e o heroísmo revolucionário. Nesta última
seção, segundo Mao, “seja resoluto, nŌo tenha medo de sacrificar e
superar todas as dificuldades para atingir a vitória.” (ZEDONG,
[s.d.]) Havia também uma edição do livro com canções para alguns
pensamentos selecionados, que animavam os jovens durante as suas
jornadas.
Para que a campanha fosse eficaz, era necessário destruir os quatro
antigos: velhas ideias, velha cultura, velhos costumes e velhos
hábitos. Este era um dos slogans de campanha política, repetida e
repercutida por todo o território. Para que fosse possível construir
algo novo, era preciso abandonar completamente os hábitos feudais,
burgueses e capitalistas associados aos quatro antigos. Pensadores
como Confúcio foram considerados contrarrevolucionários e
banidos do ensino. Aliás, quem proferisse as suas ideias ou estivesse
em
posse
dos
seus
escritos,
era
considerado
um
contrarrevolucionário e punido severamente.
79
Em 1964, Mao publicou no jornal Diário do Povo um artigo onde
incitava os jovens a “aprenderem a fazer a revoluçŌo fazendo a
revoluçŌo”. “Mao acreditava que eles poderiam se tornar dignos
sucessores da revolução apenas se eles próprios participassem na
revoluçŌo”(GAO, 1987, p. 15). Era dever destes jovens acabarem com
todos que estavam seguindo o rumo capitalista e colocando em
causa o projeto socialista. Adicionalmente, os jovens foram
chamados a atacar os oficiais do partido e a substituírem-nos por
verdadeiros revolucionários. Era a primeira vez que os jovens
ocupavam o papel principal na construção do projeto maoísta, o que
teve um impacto enorme nas suas vidas. Tinham mesmo poder
contra os oficiais do PCC, representando a luta contra os inimigos de
classe, que se opunham ao Presidente Mao. Formou-se, assim, os
Guardas Vermelhos, jovens que, voluntariamente, aderiam à missão
de salvar a revolução e erradicar todos os contrarrevolucionários.
Os Guardas Vermelhos usavam braçadeiras vermelhas e deviam
dedicar a sua vida à revolução. Nesta altura, até as aulas foram
suspensas em 1966 para que os jovens pudessem dedicar-se à causa.
Viagens de trem era grátis, assim como a comida e alojamento para
todos os jovens que quisessem ir à Beijing. Pelo caminho, a sua
missão era espalhar o pensamento de Mao Zedong. As viagens eram
bastante atribuladas, com trens desumanamente cheios e
caminhadas intermináveis. No entanto, os jovens seguiam animados
e aceitavam o desafio como sendo parte de “aprender a fazer a
revoluçŌo”. Quando caminhões militares passavam e ofereciam
carona, os jovens recusavam, uma vez que deveriam andar enquanto
disseminavam a mensagem do Presidente Mao.
Nesta altura, o exército manteve-se afastado e deixou que os
Guardas Vermelhos desempenhassem o seu papel, chegando a ser
cerca de 10 milhões. Mao, aplaudia a ação dos jovens e acreditava
que o radicalismo era o caminho certo a ser seguido. A China entrou
em ebulição. Perseguições, reuniões de denúncia eram cada vez mais
frequentes, mortes e suicídios. A pressão era tanta que muitas
pessoas não aguentavam a humilhação constante e acabavam por
tirar a sua própria vida. Nesta altura, Mao era pouco visto, para além
dos seus discursos não serem transmitidos no rádio. Assim, a maior
parte da população chinesa nunca nem tinha ouvido a voz do seu
líder, apesar de lhe dever uma devoção total, como se fosse um Deus.
O culto à personalidade de Mao era cada vez mais significativo e não
havia possibilidade de contradizer essa realidade. Havia, inclusive,
80
as danças de lealdade, que deviam ser feitas duas vezes ao dia, em
qualquer lugar onde a pessoa se encontrasse no momento. Em julho
de 1966, Mao encontrava-se no norte da China e, para provar o seu
poder, atravessou a nado a rio Yangzi. “Isso significava o mesmo que
se a rainha Elizabeth II tivesse atravessado o Canal da Mancha a
nado.” (FAIRBANK; GOLDMAN, 2007, p. 359)
No cerne da revolução, estava a ideia de que a vida do campo era o
exemplo mais correto a ser seguido. Devia-se, desta forma, eliminar
todos os comportamentos claramente burgueses. Casas de jogos e
chá foram encerradas, as flores e grama foram arrancadas, estátuas e
tudo que lembrasse a China ancestral foi destruído. Livros antigos,
romances burgueses, deviam ser queimados. Quem os possuísse e
fosse
apanhado,
seria
considerado
um
burguês
contrarrevolucionário. “Escrever poesia tornou-se uma ocupação
altamente perigosa.” (CHANG, 2016, p. 462) Como pena, seria
denunciado, podendo ser destituído das suas funções e os seus bens
pessoais confiscados. Segundo Jung Chang, que viveu na altura:
“NŌo havia praticamente livros, nem filmes, nem música,
nem teatro, nem museus, nem casas de chá, quase nada em
que pudéssemos ocupar-nos – exceto os jogos de cartas
que, embora sem terem sido oficialmente sancionados,
estavam a fazer um discreto ressurgimento (...).
Naturalmente, pertencer aos Guardas Vermelhos tornou-se
a ocupação a tempo inteiro de muitos jovens. A única
maneira que tinham de libertar as suas energias e
frustrações era através de violentas denúncias e de batalhas
verbais e físicas entre grupos. (CHANG, 2016, p. 456)”
As reuniões de denúncia já existiam, mas, com a Revolução
Cultural, ganharam outro peso. O denunciado era chamado a um
local onde enfrentava, sozinho, várias pessoas que faziam as
denúncias (Imagem 1). Normalmente colocados em posições
desumanas, tendo que manter-se curvados, ou em cima de paus
instáveis, carregavam um letreiro ou tinham um chapéu de burro,
sendo acusados das maiores atrocidades. O pior é que, na maior
parte dos casos, não correspondiam à verdade. Os perseguidos,
muitas vezes, tinham feito parte da revolução que criou a República
Popular da China e agora eram colocados nesta situação. Segundo
Chang:
81
“Homens e mulheres que tinham lutado por uma China
comunista, foram classificados como “traidores e espiões” e
conheceram a prisão, brutais reuniões de denúncia e a
tortura. De acordo com o relatório oficial posterior, na
província vizinha de Sichuan, Yunnan, foram mortas mais
de 14.000 pessoas. Na província de Herbei, que circunda
Beijing, 84.000 pessoas foram presas e torturadas;
milhares delas morreram.” (CHANG, 2016, p. 445)
Imagem 1: Wang Yilun em sua reunião de denúncia, 1966
(“6 Most Evil Dictators and Their Notorious Mass Killings in
Modern History - NTD.TV”, 2017)
Muitos eram os que admitiam os crimes dos quais estavam a ser
acusados, como ter comportamento burguês, apenas para poder
acabar com a tortura física e psicológica. Uma vez condenados, toda
a sua família sofria as consequências e eram considerados
contrarrevolucionários burgueses. A solução, para algumas pessoas,
era rejeitar o familiar condenado para que o resto da família não
sofresse as consequências.
Não havia ninguém que estivesse a salvo dos Guardas Vermelhos,
não importava o quão importantes fossem dentro do partido. Liu
Shaoqi, então presidente da RPC, foi despromovido de número 2
para número 8 na hierarquia do PCC, para além de ter sido preso,
onde ficou até a sua morte. Crítico dos resultados do Grande Salto
Adiante e dos contornos da Revolução Cultural Proletária, acabou
82
por sofrer as consequências. Deng Xiaoping também foi considerado
contrarrevolucionário, e seguindo o rumo capitalista, e foi
despromovido para número 6.
Em 1967, a ação dos Guardas Vermelhos começou a sair do controle.
Mesmo dentro do grupo, havia diferentes fações, entre os quais os
que se intitulavam de Rebeldes. As fações dividiam-se, sobretudo,
entre os filhos dos funcionários do PCC e dos que ocupavam cargos
públicos, contra os de classe social mais baixa. Isto conduziu as
zonas urbanas do país a uma situação de guerra civil, levando com
que a intervençŌo militar fosse necessária. “Inevitavelmente, o fervor
dos Guardas Vermelhos acabou por voltar-se contra os seus próprios
camaradas e os grupos desenquadrados começaram a lutar uns
contra os outros, num frenesim de acusações e destruiçŌo.”
(GELBER, 2008, p. 433) Em julho de 1968, os Guardas Vermelhos
estavam controlados, depois da sua dissolução pelo seu líder, Mao.
Os jovens foram enviados para o campo, para uma reeducação
através do trabalho. Foram adicionados às unidades de produção do
campo, onde deveriam contribuir com o seu trabalho e aprender os
modos de vida dos camponeses. Igualmente, tinham que estar
presentes em reuniões de luta, onde mencionavam, em voz alta,
todos os crimes ideológicos cometidos.
“Segundo as estimativas, cerca de um milhŌo de pessoas
foram vitimadas pela Revolução Cultural e um número
considerável não sobreviveu. Para os chineses, tão sensíveis
à opinião alheia, serem espancados e humilhados perante
uma multidão escarnecedora, incluindo colegas e velhos
amigos, era como ter a pele arrancada do corpo.”
(FAIRBANK; GOLDMAN, 2007, p. 369)
Em 1968, a confiança do PCC estava desfeita. Muitos dos seus
membros foram retirados e substituídos por militares. Apesar de ter
oficialmente acabado em 1968, os ecos da Revolução Cultural
duraram até a morte de Mao Zedong, em 1976.
Os erros da Revolução Cultural Proletária foram reconhecidos pelo
próprio PCC, no documento adotado na sexta sessão plenária do
décimo primeiro Comité do PCC, em 1981. Segundo o documento, os
equívocos cometidos impediram que o país atingisse objetivos mais
elevados de desenvolvimento (“Resolution on CPC History”, [s.d.]).
Para muitas famílias que foram vítimas da Revolução, foi muito
83
importante que o partido assumisse que o caminho errado foi
tomado, foi uma forma de reconhecer todas as injustiças e
sofrimentos causados.
Conclusões
A Revolução Cultural Proletária foi o período mais radical e
turbulento de toda a história da República Popular da China. Como
futuro do país, os jovens foram incitados a fazer a revolução, tendo o
seu guia na educação fervorosa do pensamento de Mao Zedong.
Carregavam
o
grande
peso
de
exterminarem
os
contrarrevolucionários, que colocavam em causa todos os princípios
da revolução. Muitos são os historiadores que classificam essa altura
como uma autêntica lavagem cerebral, onde a glorificação de Mao e
de tudo o que dizia e pedia foi levado ao extremo. Muitos são, nos
dias de hoje, os Guardas Vermelhos que afirmam a força do
pensamento único, onde não se questionava a possibilidade de serse diferente, o que os levou a cometer grandes atrocidades, perseguir
inocentes, levar pessoas ao limite da humilhação, à tortura e à
morte. Para Chang, “A RevoluçŌo Cultural destruiu a adolescência
normal, com todas as suas armadilhas, e lançou-nos diretamente
para uma idade adulta responsável muito antes de fazermos vinte
anos.” (CHANG, 2016, p. 456) Paralelamente, arruinou a vida de
incontáveis pessoas, cujos impactos ainda hoje sofrem. Desde o seu
início, em 1966, até o seu término, em 1976, foram dez anos de
perseguições, desconfiança e medo constante.
Referências
Daniele Prozczinski é doutoranda no Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista
CAPES. E-mail: danieleprozi@gmail.com
As traduções das obras em inglês foram feitas pela autora, visando
manter a fluência textual para o leitor.
6 Most Evil Dictators and Their Notorious Mass Killings in
Modern History - NTD.TV. www.ntd.tv, 8 jan. 2017. Disponível
em: <http://www.ntd.tv/2017/01/08/6-evil-dictators-notoriousmass-killings-modern-history/>. Acesso em: 16 jan. 2017
BOYLE, J. 11 slogans that changed China. BBC News, 26 dez. 2013.
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São Paulo: Companhia de Bolso, 2016.
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American ed ed. New York: Knopf, 2005.
84
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Disponível em: <https://chineseposters.net/themes/culturalrevolution-campaigns.php>. Acesso em: 15 jan. 2017.
DIKÖTTER, F. The cultural revolution: a people’s history,
1962-1976. First U.S. edition ed. New York London Oxford New
Delhi Sydney: Bloomsbury Press, 2016.
DIKOTTER, F. A grande fome de Mao. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2017.
FAIRBANK, J. K.; GOLDMAN, M. China - uma nova história.
Tradução Marisa Mota. 2a ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.
GAO, Y. Born red: a chronicle of the Cultural Revolution.
Stanford, Calif: Stanford University Press, 1987.
GELBER, H. G. O Dragão e os Diabos estrangeiros: A China e
o mundo, de 1100 a.C. até à actualidade. Lisboa: Guerra e Paz,
2008.
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<https://www.marxists.org/subject/china/documents/cpc/history/
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SHENG, S. A história da China Popular no século XX. Rio de
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ZEDONG, M. Speech at A Meeting with Regional Secretaries
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Central Committee. Disponível em:
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85
86
HISTÓRIA E ANIMES: A UTILIZAÇÃO DE ANIMES
PARA O ENSINO SOBRE HISTÓRIA DO JAPÃO
Débora Dorneles Uchaski
Atualmente quando nós educadores da História nos deparamos com
a sala de aula, percebemos que o método tradicional tem se tornado
cada vez mais ineficaz para que o docente realize o seu processo de
ensino-aprendizagem e de formação identitária. Por tal razão, se faz
necessário a utilização de novos recursos e métodos para
acompanhar o ritmo acelerado da sociedade em que estamos
inseridos.
“Vivemos em uma sociedade audiovisual, estamos a todos
os momentos voltados para uma tela, seja de um
smartphone, computador ou televisão. Da mesma forma
que a sociedade muda, as instituições também devem se
adaptar. Não é raro observar em uma sala de aula, um
aluno voltado para o celular enquanto o professor disputa
sua atenção utilizando o livro didático. (Uchaski, Paiva.
2016)”
De acordo com Maffesoli (2004) vivemos em um “mundo imaginal”,
um mundo perpassado pela imagem, pelo simbólico, em que a
imagem se tornou o principal elemento do vinculo social. Portanto,
cabe ao professor, adaptar seus métodos e recursos, compreendendo
o papel fundamental que as mídias audiovisuais exercem na vida dos
educandos, logo, deve pensar maneiras de melhor aproveitá-las em
sala de aula. Um recurso riquíssimo, porém pouco utilizado, que
pode ser utilizado em sala de aula, é o da animação, lembrando que
se deve ter alguns cuidados.
“A desordem cultural persistirá enquanto a escola
pretender educar as crianças com instrumentos e sistemas
que tiveram validade há 50 anos (…). SubsistirŌo as lições,
os braços cruzados, as memorizações, enquanto fora da
escola haverá uma avalanche de imagens e de cinema.”
(BENCINI, 2005, p.03 apud FREINET)
Quando tratamos do ensino da História Oriental, o problema se
intensifica ainda mais, em função do ensino eurocêntrico a qual a
sociedade ocidental está inserida. Para isso, é necessário que
87
entendamos o conceito de eurocentrismo, que corresponde a uma
expressão da ideia de Europa como centro do mundo,
desclassificando o restante das culturas mundiais. Essa visão vem
sendo utilizada até hoje, tanto que criou um véu sobre a história de
outras nações, como as asiáticas e africanas. Nós ocidentais sabemos
muito pouco sobre essas outras nações, pois estamos embebidos de
fontes eurocêntricas que formam a nossa concepção de história
mundial.
“Se entende que a “Modernidade” da Europa será a
operação das possibilidades que se abrem por sua
“centralidade” na História Mundial, e a constituiçŌo de
todas as outras culturas como sua “periferia”, poder-se-á
compreender que, ainda que toda cultura seja etnocêntrica,
o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode
pretender
identificar-se
com
a
“universalidademundialidade”” (Dussel, 2005)
Porém, essa exclusão histórica é negativa já que ignora as
contribuições de outras nações para a história e diversidade
sociocultural do mundo, é este um dos principais motivadores para a
concretização deste artigo sobre a história asiática, focada
principalmente na utilização de animes como recurso didáticopedagógico nas aulas de história, para podermos tratar da História
do Japão.
O docente ao realizar o planejamento de temáticas como a História
do Japão, encontrará diversos problemas, como a falta de material
traduzido, muitas fontes criadas por ocidentais e o esvaziamento do
debate sobre o assunto. Por isto, cabe a nós professores a difícil
função de pesquisar ainda mais sobre tais temáticas e utilizarmos de
recursos didático-pedagógicos capazes de alcançar o interesse e
proporcionar o processo de ensino-aprendizagem.
O referido artigo visa contribuir com idéias e informações para a
realização do planejamento de aula sobre a História do Japão,
utilizando de animes que contam a História do Japão. Entre eles,
podemos citar: Samurai X, Sen Goku Basara, Brave 10,
Hyounge Mono, etc. Porém, para isso é necessário que
trabalhemos a História do Japão e salientando os animes que
representam determinado período.
88
É importante salientar, que para realizarmos uma atividade com o
uso de animes é necessário que se tenha um aparato, como a
utilização de roteiros e questionários, para não tornar nossa aula
uma sessŌo “pipoca”, mas buscarmos conhecimento de uma forma
divertida.
Feudalismo nipônico, de Kamakura à Tokugawa
O Xogunato também conhecido como Bakufu (que significa
“governo da tenda”) foi um período onde o JapŌo vivenciou um
governo onde houve uma duplicidade do poder e de relacionamentos
entre dois regimes, um comandado por uma elite guerreira
composta por clãs samurais e secundariamente outro liderado pelo
Imperador. O Xogunato era liderado por um Xógun que respondia
em nome do imperador, esta forma de governo se perpetuou por
setecentos anos e só foi se findar quando se iniciou a Era Meiji.
Ficou também conhecido como feudalismo nipônico.
O Xogunato é um regime baseado em relações de vassalagem e
suserania, onde o Xógun estabelece uma relação com os senhores
feudais e estes por sua vez estabelecem relações com os lavradores
em troca de terras para o cultivo e proteção. Desde que o Xogunato
foi estabelecido em 1185, ocorreram diversos conflitos entre os clãs
com o intuito de disputa de liderança deste regime. Então, em 1192,
Minamoto Yoritomo declara-se Xógun, que significa “grande general
supremo conquistador de bárbaros”, dando início ao Xogunato
Kamakura, o primeiro das três dinastias: Minamoto (1192-1333),
Ashikaga (1338-1573) e Tokugawa (1603-1868).
O primeiro contato com os portugueses se dá em 1543, uma das
embarcações em função de uma tempestade, acabam ancorando em
território japonês (Tanegashima) ao sul de Kyushu. Os portugueses
traziam consigo arcabuzes (armas de fogo) o que gera bastante
interesse por parte dos japoneses que até então não tinham contato
com esse tipo de armamento. Os daimyos se antenam em aprender o
manejo e como fabricá-las, logo teremos uma transformação
bastante expressiva da arte da guerra.
Logo, estabelecem relações comerciais com portugueses e espanhóis.
Lembrando, que os ocidentais faziam comércio e guerras com o
intuito da disseminaçŌo da “Palavra de Deus”, portanto,
evidentemente começam a chegar ao Japão membros da Companhia
89
de Jesus e Jesuítas, com o intuito de pregar o Evangelho aos
nipônicos.
Os japoneses enfrentavam nesse momento um período difícil de
intensos conflitos internos, dominado pelas guerras feudais,
causando um vazio espiritual e uma busca de respostas, já que o
budismo e o xintoísmo se encontravam em total decadência, o
cristianismo se propaga rapidamente entre os daimyos, samurais e o
povo comum do Japão.
Nobunaga, simpatiza com os missionários ocidentais, permitindo
que os jesuítas fundem igrejas e um seminário para a educação dos
filhos dos senhores feudais e dos nobres.
Após a morte de Nobunaga Oda, quem assume o poder é Hideyoshi
Toyotomi, este concluíra a obra de unificação iniciada por Oda e
caberá a ele o mérito de findar o Sengoku Jidai.
A grande maioria dos animes japoneses representam o período do
Sengoku Jidai, que representa o fim da dinastia Ashikaga, e passa-se
a um período de instabilidade e guerra civil japonesa que ocorreu em
torno de 1600, onde diversos clãs se unem para tomar o poder de
Xógun, já que a dinastia Ashikaga apresentava séria crise a quase
quatrocentos anos, na disputa Tokugawa toma o poder, iniciando a
dinastia Tokugawa que vai de 1603 à 1868. Entre os animes,
podemos citar:
Samurai Deeper Kyo é um anime que foi lançado em 2002
inspirado em um mangá escrito por Akamine Kamijou. O anime se
passa em torno de 1600, na famosa Batalha de Sekigahara, contando
a história de um samurai chamado Kyo, os olhos do demonio, assim
chamado por ter os olhos vermelhos e por ter matado mais de 1000
homens. Durante a batalha com Mibu Kyoshiro, um meteoro cai,
levando aparentemente ambos a morte. Quatro anos depois,
Kyoshiro reaparece como um vendedor, sendo perseguido por uma
caçadora de recompensas, por não ter pago uma conta de um
restaurante. Durante uma desavença com um samurai (na realidade,
um monstro), seus olhos se tornam vermelhos, percebendo que de
alguma forma, o espírito de Kyo está aprisionado no corpo de
Kyoshiro.
90
O anime Sengoku Basara foi lançado em 2009, inspirado em um
jogo eletrônico. Sua história se passa no período do Sengoku, um
período onde o Japão vivenciou um intensa disputa entre clãs pelo
domínio do Xogunato. O anime unirá diversos personagens e
eventos importantes na história do Japão em uma única história:
enfrentar Oda Nobunaga, o Demônio Rei, daymio do Estado de
Owari.
Brave 10 é um anime que foi criado por Kairi Shimotsuki sendo
lançado em 2007, inspirado em mangá. Sua história também se
passa no período do Sengoku, e o anime mostra o período histórico
onde Yukimura Sanada entra em conflito com Tokugawa Ieyasu. O
anime conta a história de Isanami, uma sobrevivente ao ataque de
Tokugawa ao templo de Izumo. Ela em fuga tenta ir a Shinshuu
pedir ajuda a Yukimura Sanada, mas no caminho se encontra um
samurai falido chamado Saizou Kirigakure, que mesmo meio contra
a sua vontade a ajuda.
Hyounge Mono provém de um mangá criado por Yoshihiro
Yamada, que foi publicado em 2011. Sua história, assim como
Sengoku Basara e Brave 10, se passa no período Sengoku, período de
conflitos internos japoneses. O anime relata a história da guerra civil
japonesa, salientando a figura “terrível” de Nobunaga Oda, nesta era
o senhor da guerra Furuta Sasuke perde sua alma para a cerimônia
do chá. Enquanto a guerra abala todo o Japão, Sasuke enfrenta seu
próprio conflito interno, entre seu desejo de promoção e seu amor
por sua arte.
Essas mudanças na realidade do Japão alterará a receptividade do
catolicismo na região. Então em 1587, Hideyoshi proibirá o
cristianismo.
“Político realista, Hideyoshi pressente o perigo da
colonização europeia. E as disputas entre as diversas
ordens religiosas católicas e entre católicos e protestantes
então travadas em diversos recantos do globo aumentam as
suspeitas do kampaku. Julga que os sacerdotes estrangeiros
não somente visam a conversão do povo japonês à religião
católica, como procuram estabelecer o poder político
lusitano ou espanhol nas ilhas nipônicas.” (Yamashiro,
1978, p.114)
91
Esse pressentimento de Hideyoshi é baseado no relato de um capitão
espanhol que conta orgulhoso como os sacerdotes os ajudaram a
aumentar o horizonte de suas fronteiras, além de relatos de
holandeses e outros. Outro fatos que colaborou foi que o Xógun ao ir
até uma das naus portuguesas para se encontrar com o Padre
Coelho, verificou que o barco estava cheio de armamentos pesados.
Neste momento (1587), o kampaku manda prender os sacerdotes
que estavam no barco do espanhol e chegando a Nagasaki os executa
juntamente a 20 (vinte) católicos nipônicos. Ainda assim, o
catolicismo já se encontra bastante arraigado entre os nipônicos, a
ponto de a ordem de Hideyoshi não conseguir sucesso em extinguir
de uma só vez o cristianismo.
“O único perigo vinha dos missionários cristŌos; (…) da
estreita ligação dos capitães portugueses com os
missionários e precisar que ela inevitável, pois a Coroa de
Portugal estava historicamente vinculada à evangelização
do Oriente, em virtude do jus patronatos; os missionários
trabalhavam pela grandeza e pela glória de Portugal: não
era de São Francisco Xavier legado do Papa e inspetor das
missões reais? A obra missionária, obra nacional
alimentada pelas rendas da Coroa, não podia deixar de
confundir-se com a obra comercial e política.”
(PANNIKAR, 1977, p.86-87)
Quando Ieyasu Tokugawa assume o poder (1603) ele tenta reatar as
relações externas permitindo o culto ao cristianismo. Porém,
novamente o Xógun começa a recear que a disseminação dos
costumes e hábitos liberais dos ocidentais venham prejudicar a
legitimação do Xogunato. Entre estes, o culto a um Deus onipotente
que ameaça diretamente à autoridade absoluta do Xógun.
Tokugawa intensifica a repressão ao cristianismo, expulsa todos os
estrangeiros do país e decreta em 1639 o ato que estabelecia o
isolacionismo do Japão. Outro fator que pode ter ocasionado a
expulsão dos estrangeiros é que durante o período Tokugawa, alguns
clãs se tornam insubmissos como os Choshu e os Satsuma, e o
Xógun receava que estes clãs se unissem aos estrangeiros e
adquirissem armamento para tentar se levantarem contra o
Xogunato.
92
Outro período importante retratado por animes da História do
Japão, é o momento onde o Xógum Tokugawa proíbe o Cristianismo
no JapŌo e inicia um “guerra santa” contra os cristŌos. Dois animes
tratam disso: Makai Tenshou (mais conhecido como Ninja
Ressurection) e Samurai Champloo.
Ninja Ressurection é um anime dirijido por Yasunori Urata,
lançado em 1998. Sua história ocorre na Era Edo, onde o Xógun
teria banido o Cristianismo e inicia-se uma perseguição a adeptos a
esta religião. Porém este anime por ter um caráter violentíssimo
acabou não sendo levado a diante devido a violenta reação do
público japonês a ele. O anime conta a história de Shiro Amakuza,
um samurai cristão, que defende uma fazenda onde se cultua a
Virgem Maria. Os cristãos o veem como seu Salvador. Porém sobre
constantes ataques, acabam sendo derrotados pelas tropas de
Tokugawa. Não recomendo o anime na íntegra para utilização em
sala de aula devido ao excesso de violência, mas alguns trechos são
interessantes.
Já Samurai Champloo criado por Shinichiro Watanabe, sendo
lançado em 2004-2005. O anime se passa na Era Edo, porém
mistura elementos históricos com alguns elementos modernos
ligados ao Hip Hop. A história retrata o período onde o Japão tinha
aplicado sua política isolacionista e iniciado a “guerra santa” contra
os cristãos. Retrata outra questão histórica importante: momento
em que os samurais e famílias respeitáveis vão transformando-se em
meros administradores e políticos. O anime conta a história de Fuu,
uma adolescente de 15 anos, que sai em busca de um “samurai que
tem cheiro de girassóis”, na sua jornada encontra-se com Mugên e
Jin, que devido a uma aposta estúpida, seguem a jornada com ela.
Da dinastia Tokugawa à era Meiji
Quando se trata da Era Meiji, temos um anime de renome para
tratar esse período de modernização do Japão. A qual os samurais
foram extintos, e o anime é o Rurouni Kenshin, ou mais
conhecido como Samurai X. Seu criador foi Nobuhiro Watsuki e foi
lançado entre os anos de 1994 e 1999, surgindo diversos filmes
posteriores. Sua história se passa no fim do Xogunato e início da Era
Meiji, em um período onde os Samurais haviam sido proibidos de
utilizar suas espadas. O anime conta a história de Kenshin Himura,
um espadachim pacífico que após a grande matança do período do
Bakumatsu, prometeu nunca mais matar. Passando a viver como
93
ronin (andarilho) até encontrar o Dojo Kamiya, onde passa a viver
junto com Kaoru Kamiya, uma professora de kendo.
Peacemaker Kurogane é um mangá e anime escrito por Nanae
Chrono, lançado pela editora Gonzo em 2003. O roteiro se passa
durante o Bakumatsu. Nesse período os irmãos Ichimura
Tetsunosuke e Ichimura Tatsunosuke, dois irmãos órfãos, se alistam
no Shinsengumi, a famosa “tropa de elite” do Xogunato no século
XIX. Tetsu quer se alistar no Shinsengumi como um Homem de
Batalhas, ele tem o intuito de se vingar pela morte de seus pais. O
objetivo de Tatsu é financeiro, procura manter uma qualidade de
vida para viver com seu irmão. Acontece que o pai dos dois irmãos
foi morto pelos Monarquistas.
Cabe salientar, que o Shinsengumi existiu realmente, sendo uma
tropa de espadachins sobre o mando do Xógun, normalmente iam ao
encontro de rebeldes e os exterminavam. Seu ápice foi no Incidente
de Ikedaya, que ocorreu em 1864, na cidade de Kyoto, onde o
Shinsengumi realiza um massacre a grupos monarquistas (rebeldes).
Esse acontecimento é retratado nos animes Peacemaker Kurogane e
no Rurouni Kenshin.
Outro anime que retrata os últimos anos da Era Edo, é o
Bakumatsu Kikansetsu Irohanihoheto, se passa no período
Bakumatsu que ocorre entre 1853 e 1867, quando o Japão acaba com
sua política isolacionista e inicia-se o período de modernização do
Japão, dando início posteriormente a Era Meiji. O anime retrata a
Guerra do ano do Dragão, ou Guerra Boshin, mostrando
personagens históricos importantes como Enomoto Takeaki
(presidente da república de Ezo) e Hijikata Toshizou (o último
membro vivo do Shinsengumi). O anime conta a história de Akizuki
Yojiro, um mercenário que possui habilidades muito especiais com
sua espada Getsuruito. Viajando pelo Japão, em busca de itens
sobrenaturais, acaba se deparando com um teatro itinerante onde
seus membros tem suas próprias obscuridades.
Considerações finais
Considero, portanto, que a utilização de animes em aulas de
História, pode ser uma grande experiência tanto para o educador
quanto para os educandos. Proporcionando uma aula diferenciada,
com recursos lúdicos, permitindo que o aluno tenha uma outra
concepção sobre o estudo da história. Porém, para que seja uma
94
experiência positiva é necessário que o professor realize um
planejamento e se prepare em nível teórico e técnico.
Conhecimentos básicos sobre animações e relação cinema-história,
sobre as teorias da comunicação e da educação, a linguagem e das
técnicas audiovisuais. Acredito que muito das técnicas se aprende
fazendo, portanto o professor tem que se arriscar e ousar em sala de
aula, mesmo não obtendo todos os conhecimentos, pois a
experiência gera o conhecimento e o aprendizado de como fazer
melhor em planejamentos futuros.
Cabe salientar, que ao trabalharmos temas como a História do
Japão, estamos rompendo com o ensino eurocêntrico, passando a
perceber o oriental como peça fundamental da história mundial. E
para isso, utilizando de recursos que geram interesse e divertimento
para nossos alunos. É bom frisarmos que o conhecimento não surge
apenas de assistirmos os animes com os alunos, mas de buscar
questionamentos e reflexões em cima destes, proponho portanto que
o professor utilize sempre de outros recursos como suporte, por
exemplo, o uso de questionários, textos, roteiros ou então incentive o
trabalho de pesquisa dos alunos. Para que não se torne, um
conhecimento vago e superficial.
Referências
Débora Dorneles Uchaski é graduanda do 8º semestre de História
pela Faculdade Porto-Alegrense.
E-mail: duchaski@gmail.com
BENCINI, Roberta. O filme na aula de História. Revista Escola,
2005.
DUSSEL, Enrique. Europa, Modernidade e Eurocentrismo: A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. CLACSO, 2005.
MAFFESOLI, M. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz
o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.
PANNIKAR, K.M. A dominação ocidental na Ásia. Rio de
Janeiro: Paz e Terra,1977.
UCHASKI, Débora. PAIVA, Ismael. História e Cinema: A utilização
de recursos cinematográficos em aulas de História. In: BUENO,
André; CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José Maria
[org.] Jardim de Histórias: discussões e experiências em
aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória:
Edição Especial Ebook LAPHIS/Sobre Ontens, pág.305- 312,2017.
95
YAMASHIRO, Jose. Pequena História do Japão. São Paulo,
1978.
96
BREVE ESTUDO DO JAPÃO EDO: PODER E LEI
NOS GOVERNOS DO XOGUNATO TOKUGAWA
(1603-1868)
Diego Almeida de Sousa
O governo Tokugawa pode ser visto como uma ruptura
acontecimental no processo histórico do Japão, devido a diversas
peculiaridades e características de um contexto de transformações e
eclosões em diversas áreas. Como a amplitude de seu poderio sem
precedentes sobre o Imperador, a Corte, os Daimiô, e sobre as
ordens religiosas. O Imperador é a fonte de legitimação política do
xogum, que noutros tempos configurava "vassalo" da família
imperial. É notável como há uma ressignificação na questão do
poder, e nas relações entre as partes em torno do mesmo, com a
ascensão sem precedentes efetuada pelo xogum neste contexto.
Deste modo diferentemente do costumeiro os Tokugawa, ou seja, o
xogunato, ajudam a família imperial a se recompor, recuperando
suas "glórias", reconstruindo seus palácios, e lhe doando territórios.
Sendo que em 1619 a neta de Ieyasu é feita consorte imperial,
aproximando ainda mais os laços entre poder militar e o símbolo do
imperador. A partir da leitura do contexto é possível inferir que
descontinuidades são cíclicas e constantes, assim como as rupturas
durante a história, e que esta não se constitui somente por meio de
continuidades e tradições, mas principalmente de ressignificações e
rearranjos.
É possível tomar algumas das diversas medidas xogunais por análise
e discorrer sobre as mesmas para elucidar como tal xogunato incide
sobre o cotidiano e expande as noções de governo. Fazendo uso da
criação de um código de leis estabelece-se meios para regular as
casas dos Daimiô e, portanto, o cotidiano, práticas e costumes. Ou
seja, dar novos tons ao meio social e cultural, incidindo diretamente
sobre a vida dos sujeitos no período.
O período Edo tem uma complexa rede de relações, e estratificações
articuladas de maneira que em similitudes e dessemelhanças os
distintos personagens são realocados socialmente. Exprimindo
distintos valores dentro da dinâmica de diálogo entre os diferentes.
Devemos nos perguntar como para além de limites se formam
caminhos? Como do "silêncio" ecoam discursos? Neste momento
97
vamos a uma melhor explanação sobre os Daimiô estratificados por
critérios estratégicos, neste caso de suma importância, pois o Japão
acabara de viver um processo de extensas batalhas e cisões sendo
sua unificação recente e ainda instável.
Podemos destacar as distinções do período Edo quanto aos Daimiô
segundo o regime Tokugawa entre os Shinpan Daimyō, ou "casas
aparentadas", próximos dos Tokugawa, constituindo vinte e três
Daimiô nas terras fronteiriças, estes eram de alguma forma
"familiares" de Ieyasu. Os shinpan eram os possuidores de títulos
mais honorários, e postos de conselheiros. Haviam também os Fudai
Daimiô ou "damiô da casa”, vassalos hereditários do clŌ Tokugawa,
os primeiros a se posicionar ao lado do clã no processo de conquista
do poder, foram recompensados com terras próximas as dos
Tokugawa, por lealdade e serviços prestados. No século XVIII, 145
fudai detinham o controle de hans sendo o maior deles avaliado por
250.000 koku. É crucial destacar que estes eram os principais
representantes presentes na maior parte dos ofícios importantes do
bakufu ou seja, ocupavam cargos de confiança no governo. O
terceiro grupo é formado por Noventa e sete hans, os Tozama
Daimyō, "vassalos de fora", constituídos por ex-inimigos e novos
aliados, que somente se aliaram após a Batalha de Sekigahara. Estes
eram localizados em grande maioria nas periferias do arquipélago e
controlavam de forma geral uma quantia de 10 milhões de koku de
terra produtiva. Por serem Daimiô "menos dignos", e de menor
confiança, eram corriqueiramente tratados com maior cautela e
"agraciados” com maior generosidade, porém ficavam excluídos em
posições no governo central.
Surgem códigos visando diversos aspectos como vestimenta e suas
características, modelos, cores, cortes, casamentos, cerimoniais e
restrições múltiplas. Sobre o número e tipos de armas permitidas e
até envolvendo a vida "privada" e a conduta a ser adotada. Com a
implementação do sistema Sankin kotai (1635-1862), "presença
alternada", que estabelecia o estado de residência rotativa
obrigatória entre a cidade de Edo e o han por parte dos Daimiô. De
forma mais simplificada podemos discorrer que se vivia um ano em
suas propriedades e o ano seguinte em uma residência que deveria
ser construída na cidade de Edo (capital do xogunato) deixando
esposa e herdeiros permanentemente em Edo.
98
O que é abordado por muitos como "estado de refém", porém vejo
algo muito mais complexo que propiciou um trânsito intenso
modificando o cotidiano e contribuindo indiretamente para o
estabelecimento de novos contatos e relações diversificadas. Para
além de ver uma opressão ou mera medida restritiva, as perspectivas
abordadas neste ensaio são as múltiplas direções que "se abrem ao
encontrar uma barreira pela frente", medidas não são totalmente
controláveis e levam sempre a outros acontecimentos. Por exemplo a
disseminação de práticas assim como a necessidade de novas
representações que dialoguem com a dinâmica do contexto, e a
proliferação cultural em meio a relações mais complexas, propiciam
diversos efeitos pois por onde o homem passa, ele não vai sozinho
pois carrega consigo uma série de signos, costumes, visões de mundo
et al.
O deslocamento mencionado envolvia gastos múltiplos e
mobilizações de grupos inteiros de servidores que acontecia de
acordo com a variável de suas próprias posses. O que devido a gastos
constantes dificultava a fabricação bélica e despesas militares.
Portanto dificultaria uma rebelião contra o xogum. Abrangendo,
porém muito além do mero controle político-administrativo
diretamente por parte do xogunato. De acordo com a relação
sujeito-outro, há uma grande preparação para tais viagens tornando
o trajeto em uma exibição de potências dentro do novo arranjo
social.
Que contribui para o desenvolvimento de uma cultura mais móvel,
menos fechada e independente, florescendo o contato entre distintos
sujeitos, principalmente com relação a grande cidade de Edo e seu
multiculturalismo efervescente. Tais procissões contínuas criaram
através de um trânsito constante a necessidade e, portanto,
estímulos às mudanças, como a construção de estradas apropriadas,
pontes (sob estrito controle xogunal), edificação de lojas que
eclodem aos montes, por todas as rotas principais e nas grandes
cidades, com destaque para Edo. Com finalidade de atender uma
nova demanda, para além do "necessário”, uma cultura comercial se
desenvolveu passando em certo ponto a ditar a demanda e não o
inverso. Tal movimentação não abarca somente os Daimiô, mas
servos e guerreiros, membros de distintas delegações além dos
"sujeitos comuns" em busca de oportunidades.
99
Os fatores acima mencionados assim como a proibição de se
construir navios com capacidade de navegar em mar aberto e
edificar pontes. Bem como a taxação e constantes solicitações para
suporte logístico e militar além de contribuições em obras "públicas"
como castelos, estradas, pontes e palácios. Essa administração
central configurava uma política que servia a diversos propósitos
dentre estes o esgotamento dos excedentes dos Daimiô.
Com o surgimento de novos papéis sociais dentro do sistema. "Os
samurais lutam com armas, os camponeses com ações judiciais."
[Tanaka Kyugu, 1721]. Os hans que eram característicos por seu
poderio, dotados de domínios altamente militares, belicosos que a
séculos assim o eram. Tornam-se unidades administrativas,
deixando o ofensivo olhar para fora, ou seja, a conquista da terra de
lado, e assumindo o controle administrativo sobre suas próprias
terras. Dispondo de uma complexa rede de burocratas, serventes e
cidadãos. O que possibilitou uma ação mais efetiva e papéis sociais
dinâmicos contribuindo para certa consciência de participação e
discursos pluralizados.
A articulação de um aparelho burocrático
Em que medida as imposições e dominações exercem seu poder?
Que poder é este que emerge do xogunato Tokugawa? Como se
articula o controle sobre a sociedade? Dentro de uma reflexão
crítica e com uma metodologia aplicada analisar as relações de poder
na sociedade Edo foi algo que no decorrer da pesquisa demonstrou
uma série de nuances e descaminhos. Para além dos conceitos o que
é discutido neste ensaio são suas implicações e desdobramentos, a
preocupação não é dizer se há ou não dominação e imposições
outrossim perceber como se articulam os diversos mecanismos de
poder. Mostrando que suas "finalidades" são tão somente as
superfícies de seus invólucros sua parte mais externa e fácil de ser
identificada. Portanto, partindo para uma análise do organismo de
poder em seu polimorfismo multifacetado.
Sendo assim ao estabelecer um sistema de equilíbrio entre
autoridade e autonomia, o xogunato Tokugawa com o uso de saberes
como o neoconfucionismo e o exercício do dever, em campos como
por exemplo educação, saúde, habitação e segurança. Com uma
rígida hierarquia no âmbito governamental e social e organizado de
maneira piramidal entre guerreiros, agricultores, artesões e
comerciantes. Criando entre seus sujeitos às Bugen, linhas de
100
demarcações que deveriam ser fortemente intransponíveis, segundo
os preceitos do contexto, mesmo que isto não se sustente no
cotidiano.
Ainda haviam os Buke, religiosos (xintoístas e budistas), e os
desconsiderados, estes eram sujeitos à margem Eta, (sujeira
abundante) e os Hinin, (não pessoas), que estavam de fora das
considerações expressas na sociedade em termos administrativos.
Tal divisão possibilitava um novo lugar para os sujeitos, e uma
identificação que como será abordado vai propiciando a construção e
eclosão de discursos que escapam do controle.
Estas divisões constituem uma medida amplamente vista como
restritiva, excludente e impositiva, assim trabalhada por diversos
estudiosos que percebiam as barreiras, mas não suas brechas.
Descrevendo o jogo, mas não seus truques, destacando as regras,
mas esquecendo, não vendo ou ocultando as transgressões. Seja por
uma questão de perspectiva, equivoco ou omissão. Algumas
superfícies deste prisma ficaram obscurecidas, mergulhadas nas
trevas do esquecimento, ou na banalidade da inexistência. O que
podemos dizer é que baseado no confucionismo, em que o direito
dos subordinados (populaçŌo) residia na obrigaçŌo “moral” do
Xogum (soberano). O neoconfucionismo japonês desenvolveu-se
tanto como um renascimento das ideias confucionistas tradicionais,
quanto uma reação às ideias religiosas do budismo e do taoísmo
sendo preciso lembrar que não existe no período Edo nenhuma
palavra que carregue consigo o conceito que entendemos como
direitos.
Vamos a análise das medidas, articulações, leis, proibições, editos,
dentre outros muitos documentos advindos do xogunato Tokugawa,
que para além de suas finalidades específicas servem como fontes
para entender o poder e suas distintas formas. Abordando as
implicações das mesmas criticamente, revisionando e produzindo
sentido para a proposta presente, procurando adentrar nas
estruturas de poder e diversos mecanismos, que se articulavam
como uma rede no sistema vigente da sociedade do período Edo.
“Os camponeses sŌo investigados todos os meses, e idas e
vindas são verificados com o templo pertinentes em cada
caso para verificar filiados. Portanto, se houver um cristão
nesta aldeia, não só a sua goningumi e o chefe, mas toda a
101
aldeia será punida”. [Goningumi Regras, Shimo-Sakurai,
Kita-Saku District, Shinano, 1640. Artigo 2.]
A citação acima é parte de um código de aldeia do distrito de
Shimano, que expressa tanto a existência de poderes em âmbitos
amplos e localizados, quanto uma coexistência de instâncias de
poder em distintos níveis. Assim como uma regulamentação
administrativa no tocante a medidas e implicações, ou seja, um
aparelhamento do "estado" que se modifica processualmente
durante o bakufu Tokugawa. Apontando para a existência de uma
jurisdição dividida em local, exercida pela aldeia e a ampla pelo
xogunato como aparato "legislativo".
Em termos de instâncias de poder maior podemos destacar algumas
subdivisões, o xogum encabeçando a estrutura, seguido do Tairo
atuando como uma espécie de "primeiro-ministro", podendo ser
chamado como regente em casos de menoridade, os Roju, anciões
que atuam como conselheiros em assuntos políticos, e os
wakadoshiyori,"anciões menores", lidando com problemas menores
da "população". Seguidos dos hyojoshu, ou conselho judicial
responsáveis por diversos nichos dentro da governabilidade, como
finanças, polícia, "prefeitura" e organizações religiosas executando
funções tanto executivas quanto jurídicas. São estas algumas
instâncias cuja própria existência é indício de uma organização
governativa que articula e divide áreas de atuações.
Legalismo normativo e "documentalização"
Outra característica pouco ou mal explorada do período Edo, é seu
caráter legalista, e a aplicação de uma "documentalização" como
prática. Os registros passam a ser parte da cultura política que se
desenvolve neste período sob o governo do bakufu Tokugawa,
começa a ser exigido que recursos legais sejam redigidos de maneira
adequada e com escrita própria ao caráter a que se referem, o que
remete a um problema ao nível das aldeias, devido ao fato de muitos
não dominarem a escrita necessária para a elaboração e leitura de
um documento legal e tantos outros que sequer sabiam escrever os
caracteres mais básicos, o que torna necessário maior instrução
educativa.
Algo de grande utilidade que surge para exercer maior controle
sobre a sociedade e que consequentemente oferece informações e
dados diversos sobre o contexto é o censo nacional de 1720, que vai
102
se constituindo através de medidas como por exemplo o kokudaka.
Assim como cópias de registros de aldeias com a finalidade de ter
controle sobre as tributações. A comunicação referente a mesma é
também oficializada por meio de nenguwaritsukejo ou "carta anual
de taxa de tributos", documento que exprime determinações a serem
seguidas de forma que as vilas deveriam por escrito e com selo de
representante, reconhecer que receberam tais documentos e que
estavam "cientes". O que aponta novamente para uma complexa
organização do governo Tokugawa, e não um simples feudalismo ou
estado pré-moderno opressor como foi descrito por muitos.
Para esclarecer certos aspectos, e ordenar de maneira bem
articulada, as documentações e respectivas ações a serem tomadas
surge o Kujikata Osadamegaki, promulgado em 1742 com
influências do ritsu-ryo, constituindo para administradores um
manual "secreto". Sendo dois tomos, o primeiro abrangendo as
oitenta e uma regras e diretrizes, enquanto o segundo lista as
penalidades por violar essas regras civis e penais. Para exemplificar
ainda mais a sistematização existente dentro do aparelho
burocrático xogunal, podemos citar o papel dos Metsuke na detecção
e investigação de casos de má administração, corrupção ou falta de
compromisso.
Sendo estes, responsáveis por todo o Japão, eram verdadeiros "olhos
móveis" do xogunato, com uma dinâmica na coleta inteligente de
informações, desempenhada de maneira notável, por esta que pode
ser vista como, a "agência de inteligência" do bakufu Tokugawa.
Para além da vistoria ou supervisão simplesmente dita, é um indício
de modificação no olhar e da forma de se exercer o poder, que busca
cada vez mais estar próximo dos sujeitos, e não somente domina
mas possibilita relações. Até mesmo quando é dito que "espionam",
há neste ato muito mais que controle. Nisto reside uma importância
depositada no que é observado, que neste caso é a sociedade, ou seja,
não se trata de um soberano governando absoluto, mas uma forma
altamente complexa de governo que se constrói no decorrer do
período Edo.
Uma medida que pode ser vista como legislação xogunal, com
finalidade de separar o estrato social guerreiro dos camponeses é a
emissão do Keian no Ofuregaki, "proclamações da era Keian", em
1649. Voltado para políticas de controle da administração rural. Este
103
compêndio delimita e organiza dentro de um discurso oficial, o que é
tido como práticas correspondentes a grupos específicos.
“Deve-se aguçar enxadas e foices todos os anos antes
décimo primeiro dia do primeiro mês "e"[...] os pobres que
não possuem grandes campos deve pensar bem sobre um
meio de viver todo o ano.; por exemplo, se há muitas
crianças em uma família, alguns podem ser doados e alguns
podem ser enviados como servos”. [Keian no Ofuregaki,
Artigos 7 e 18. ]
É possível citar o poder exercido por uma vila em termos de poderio
expresso como o okurijo, ou certificado de licença que
regulamentava o trânsito inter-vilas, exigido sempre que alguém
desejasse passar por uma vila e em casos de peregrinações. Mesmo
aqueles que desejam executar negócios temporários ou passar
somente a noite devem informar os detalhes ao goningumi.
No tocante as instâncias menores do poder analisaremos agora as
vilas quanto a seu aspeto organizacional e de poder. Podemos dizer
que as vilas eram regulamentadas pela Keian no Ofuregaki. Mas
também destacar que grande parte do poder exercido em termos
locais deve-se aos próprios costumes. Uma das forças são os
honbyakusho, camponeses que exerciam interesses mais gerais
como pastagem, ligados a terra e sistemas de irrigação, são também
distribuidores oficiais de tributos e podem ser eleitos como
Goningumi. Sendo estes um poder intra-aldeia, dotados de
autorização para resolver problemas, elaborar códigos e
regulamentar dentro da localidade. Que acabam atuando como a
"agência de inteligência" da vila, e em termos podem ser vistos como
os metsuke, ao nível local.
Os chefes de famílias Goningumi, são chamados kumi, atuando
como um conselho para o nanushi chefe da vila. Os mizunomi
byakusho, " camponeses da água potável", que formam um grupo de
inquilinos sem o direito de terra. Abaixo destes, os cho-nai, grupo
que compreende mulheres, crianças e qualquer dependentes dos
mizunomi byakusho ou honbyakusho. E por último os não
camponeses, médicos e artesãos que residem na aldeia, mas não são
detentores de terra, são aqueles que se mudam para a vila.
104
Outro ponto de expressão a ser explorado são os registros da
população da vila. Que passam a ser exigidos e atualizados
anualmente, neles deviam conter o nome da pessoa, estatuto social e
jurídico e pós 1665 sua filiação religiosa. Tais registros deveriam
conter selos oficiais e serem aprovados e legitimados, junto as leis
das vilas, zensho goningumi.
Podemos concluir que se cria preceitos a serem seguidos, e os
mesmos são afirmados pela própria cultura do cotidiano. Muitos
destes existiam já a muito tempo, porém não eram devidamente
regulamentados. Com a oficialização que acontece com a gestão
exercida pelo bakufu Tokugawa, há uma nova dinâmica expansiva
em pleno desenvolvimento que modifica as relações de poder e
movimenta os sujeitos dentro de uma lógica diferenciada, que
permite afirmar o status distinto na forma de exercer e distribuir o
poder no período Edo. Ao ponto que a cultura do cotidiano
influenciou tanto as políticas, quanto estas lhe tentavam orquestrar,
gerando um movimento cíclico entre tentativas de dominações e
micro resistências.
Cabe destacar que não me proponho, no entanto, a fazer uma análise
política ou econômica tão pouco fixar a perspectiva óptica desta
pesquisa histórica em fatos e personagens icônicas largamente
discutidos. Mas perceber as peculiaridades que lhes escapam. E
encontrar-se com os distintos sujeitos, oferecendo pontos e
posteriormente fiar pelos mesmos. Construindo uma narrativa
histórica, em busca do que perpassa, transborda, eclode, escapa,
transpassa.... Permitindo tão somente uma leitura dentre tantas
possíveis.
Referências
Diego Almeida de Sousa é Professor eventual no sistema estadual de
Minas Gerais, Formado em História pela UNIBH, atualmente é
aluno de iniciação científica de pesquisa em História Medieval pela
UFMG.
Mail: diegoalmeidadesousa@hotmail.com
DEAN, Japanese Legal System: Text and Materials, 65,
Cavendish Publishing Ltd. 1997.
FELDMAN, The Ritual of Rights in Japan: Law, Society, and
Health Policy, 16, Cambridge: Cambridge University Press 2000.
105
RAVINA, Mark, Land and Lordship in Early Modern Japan,
Stanford: Stanford University Press, 1999.
TSUKAHIRA, Toshio G., Feudal control in Tokugawa Japan:
the sankin kōtai system. Harvard: Harvard East Asian
Monographs, 20. xii, 1966
STEENBURGH, Meg van. Edo Period Japan: 250 Years of
Peace. Legal Systems Very Different From Our Own Spring, 2006
106
JAPONESES NO BRASIL:
UMA ANÁLISE HISTÓRICA
Douglas Augusto da Silva
No ano de 2008, a imigração japonesa no Brasil completou
oficialmente seu centenário. Atualmente, o Brasil conta com cerca de
1400000 nikkeis (descendentes de japoneses nascidos fora do Japão
ou japoneses que vivem regularmente no exterior). A maior
densidade da população Nikkei encontra-se nos estados de São
Paulo (1,9%), do Paraná (1,5%) e do Mato Grosso do Sul (1,4%), em
Roraima e Alagoas não são em número significativo (MORALES,
2008). Indubitavelmente, a cultura japonesa contribuiu e muito
para a formação da cultura nacional. Partindo deste princípio,
estudaremos brevemente a história dos japoneses no Brasil.
Segundo Masao Daigo (2008), foi no ano de 1819, que os primeiros
imigrantes asiáticos que chegaram ao Brasil, basicamente uma leva
de cerca de 400 a 500. Segundo o autor, vieram para o trabalho em
plantações de chá no Rio de Janeiro e nas minas de Minas Gerais,
apesar de nesta época o Brasil não ter tanta carência de mão-de-obra
imigrante. Tratando do Japão, o referido ainda não tinha relações
diplomáticas com o Brasil. O Tratado de Amizade, Comércio e
Navegação entre a República dos Estados Unidos do Brasil e o
Império do Japão foi assinado no dia 5 de novembro de 1895, em
Paris, França. O primeiro diplomata a chefiar a Legação japonesa em
território brasileiro foi o Ministro Sutemi Chinda, enquanto o
primeiro representante do governo brasileiro no Japão foi o Ministro
Henrique Carlos Ribeiro Lisboa. Aquela época já se verificava, em
ambos os países, o aumento pelo interesse na migração, mas, devido
à Crise do Café, no ano de 1897, poucos eram os imigrantes que
chegavam ao Brasil, uma vez que muitas fazendas de café não
conseguiam arcar com as folhas de pagamento dos colonos (DAIGO,
2008).
Como relata Célia Sakurai e Magda Coelho (2008), o contexto
mundial e a situação interna dos dois países beneficiaram a chegada
a um termo. Desde o ano de 1906, a vinda de colonos começava a ser
articulada com a visita ao Brasil de Ryu Mizuno, diretor da principal
companhia japonesa, que administrou a vinda dos imigrantes até
1917, a Companhia Imperial de Emigração (Kokoku Shokumin
Kaisha). Diante da revalorização dos preços do Café, decorrente do
107
Convênio de Taubaté, de 1906, e das restrições impostas à imigração
italiana, desde 1902, pelo governo da Itália, os cafeicultores paulistas
mostravam-se mais interessados na chamada de trabalhadores
alternativos (SAKURAI; COELHO, 2008).
“A história da imigraçŌo japonesa no Brasil iniciou-se
timidamente em 1908 por uma convergência de interesses
da lavoura cafeeira paulista e das companhias de emigração
nipônicas, com o beneplácito governamental de ambos os
lados.” (LEÃO, 1990, p. 13).
Os imigrantes japoneses encontraram grandes dificuldades e
situações inesperadas. Segundo Birello e Lessa (2008), os referidos
vieram para substituir mão-de-obra escrava e tinham o intuito de
enriquecer e voltar para o seu país, contudo enfrentaram grande
preconceito. Viviam nas chamadas colônias, mas não caracterizavam
um grupo homogêneo, como muitos pensam (BIRELLO; LESSA,
2008).
Como relata Daigo (2008), no dia 28 de abril de 1908, o primeiro
vapor que transportou os emigrantes japoneses para o Brasil, o
Kasato Maru, zarpou do porto de Kobe e fez escalas em Cingapura e
Cidade do Cabo e chegou ao porto de Santos no dia 18 de junho, às
nove horas e meia da manhã após 51 dias de viagem. O autor relata
que eram, ao todo, cerca de 781 emigrantes. Segundo o autor O
assunto principal dos emigrantes japoneses durante a viagem era a
discussão de qual seria a forma de ganhar dinheiro no Brasil.
(DAIGO, 2008).
Sakurai e Coelho (2008) ressaltam algumas características ao
falaram sobre a fase que cobre a primeira leva de imigrantes do
Kasato Maru até 1924. Nessa fase, a vinda dos trabalhadores
japoneses – que sempre foi assistida oficialmente pelo governo do
Japão em acordos com o Brasil, direcionando os imigrantes
marcadamente para São Paulo. Os primeiros imigrantes vinham
através do contrato entre as companhias de imigração japonesas e os
cafeicultores paulistas, que pagavam o custeio do estabelecimento
das famílias nas fazendas. O contrato previa um mínimo de três
trabalhadores para cada família em regime de trabalho assinado por
pelo menos dois anos. (SAKURAI; COELHO, 2008).
108
A situação nas colônias era complicada, devido ao choque entre
culturas:
“(...) a situaçŌo de relativo isolamento das comunidades,
em sua busca pela manutenção de seus padrões culturais,
reproduzidos nas associações, atividades sociais e no
ensino primário em Língua Japonesa, geravam tensões
com (...) os discursos eugênicos no Brasil.” (SAKURAI;
COELHO, 2008, p. 21).
“Dentro das colônias, tanto as mantidas pelo governo
japonês quanto as criadas involuntariamente, mulheres
imigrantes educavam suas crianças falando não a língua do
novo país e sim a sua língua materna. Isso muito se deve ao
pensamento de retorno ao Japão quando melhorassem de
vida. O português que aprenderam era apenas funcional
(...). (...) os japoneses não procuravam a mistura de etnias
e, portanto, não eram vistos com bons olhos pelo governo e
pelo restante da população do país (...) raramente uma
jovem japonesa se casaria com um brasileiro não
descendente.” (BIRELLO; LESSA, 2008, p. 4 – 5)
Sakurai e Coelho (2008) relatam que com o passar dos anos, o
quadro negativo das primeiras experiências foi sendo modificado, e
os imigrantes japoneses, num curto espaço de tempo, foram se
tornando pequenos proprietários de terra e novas fronteiras
agrícolas em São Paulo foram sendo abertas durante as primeiras
décadas do Século XX (SAKURAI; COELHO, 2008).
No ano de 1914 teve inicio a Primeira Guerra Mundial. Segundo
Daigo (2008), em setembro desse mesmo ano, foi aberto o
Consulado Geral do Japão na cidade de São Paulo, época em que se
verificou também no interior do estado de São Paulo, a instalação de
diversas colônias, como a de Registro, Tóquio, Cotia, Hirano etc.
Ainda em 1914, foi inaugurada a rota regular de vapores da Osaka
Shosen Lines (O.S.K.) para a América do Sul (DAIGO, 2008).
Muitos imigrantes passaram a abrir pequenos negócios com mãode-obra familiar, como tinturarias, quitandas e marcenarias.
Iniciou-se uma grande concentração de empresas de capital japonês
e seus respectivos escritórios em São Paulo, como, por exemplo, a
Kaigai Kogyô Kabushiki Kaisha (KKKK). Nos jornais da época,
109
começaram a surgir os chamados haikais e tankas, poesias escritas
pelos próprios imigrantes. Alem disso, grupos de estudos e pesquisas
de histórias antigas e a edição de revistas especializadas em
agricultura tiveram inicio. A partir de então, passou-se a assistir ao
progresso continuado da colônia japonesa no Brasil (Ibidem, 2008).
Nos anos que se passaram começou a surgir um intenso sentimento
de nacionalismo nos diversos países, o que já fazia pressentir o
advento da Segunda Guerra Mundial. O espírito nacionalista que foi
sendo adotado pelo Brasil fez com que, aos poucos, o ambiente de
vida se tornasse sufocante para os japoneses. Havia esforços
nacionalistas brasileiros de construção de uma sociedade brasileira
coesa, na qual todos os cidadãos, incluindo filhos de imigrantes das
mais diferentes procedências, deveriam adotar uma consciência
nacionalista brasileira.
Durante a Segunda Guerra Mundial, foi iniciada uma campanha
antijaponesa no Brasil, que se explica pelo fato de o Japão ter se
aliado ao Eixo na guerra, o que fez surgir uma crescente
instabilidade internacional mediante a política militarista agressiva
do Japão no continente asiático e o crescente poderio militar do
nazismo alemão e fascismo italiano (SASAKI, 2006).
“(...) foi baixado um decreto no Brasil proibindo a
circulação de jornais em língua japonesa. A partir de então,
os imigrantes não puderam mais tomar conhecimento,
através da sua língua, do que ocorria no mundo afora. Em
fins de janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações
diplomáticas com os países do eixo, o que resultou no
fechamento de repartições diplomáticas e consulares. O
Departamento de Ordem Política e Social em São Paulo
baixou uma portaria acerca dos súditos daqueles países,
proibindo a distribuição de textos nas línguas respectivas,
incluindo a japonesa, e o uso destas línguas em locais
públicos. Em Belém, capital do Pará, houve destruição e
queima de casas e lojas de propriedade dos japoneses e
alemŌes pelo povo enfurecido (...).” (DAIGO, 2008, p. 29 30).
A Segunda Guerra Mundial conheceu seu fim com a rendição
incondicional do Japão em agosto de 1945, marcando a vitoria dos
aliados. No entanto, a maioria dos imigrantes (que não sabiam ler
110
jornais brasileiros) dependia do noticiário oficial do Quartel-General
das Forças Armadas do Japão, transmitido por rádio, que ate então
informava que a batalha final contra os Estados Unidos ainda estaria
para se iniciar, mas as transmissões foram interrompidas com a
derrota do Japão. A lacuna surgida pela falta de informações foi
preenchida por falsas notícias (Ibidem, 2008).
Neste contexto, Daigo (2008) registra alguns atentados terroristas
pelas mãos dos que não acreditavam na derrota do Japao, como a
morte a tiros de pistola do diretor superintendente da cooperativa de
Bastos, em março de 1946 ou o ataque que acabou por levar à morte
o sr. Chuzaburo Nomura no dia 1 de abril, em São Paulo. Os atos
terroristas apenas cessaram em janeiro de 1947, deixando o registro
de mais de uma centena de ataques, com 23 vítimas fatais. (Ibidem,
2008).
Em 1953, no período após Segunda Guerra Mundial, o fluxo de
migrantes japoneses ao Brasil foi retomado. O governo japonês
continuou regendo a migração, e pode-se dizer que os japoneses que
imigraram ao Brasil no período pós-guerra eram diferentes dos que
vieram no pré-guerra, como relata Sazaki (2006). Parece ter havido
uma relação tensa entre os imigrantes japoneses do pré e os do pósguerra. Os imigrantes do pós-guerra eram jovens rapazes educados e
especialistas qualificados na área agrícola e também em alguns
setores da indústria (SASAKI, 2006).
Houve naquela época uma migração de noivas japonesas para se
casarem com esses rapazes e se estabelecerem nas terras brasileiras.
Os noivos não se conheciam e mais de 400 jovens japonesas vieram
para o Brasil com a finalidade de serem desposadas por esses
japoneses que vieram tentar uma vida melhor no Brasil. Elas eram
conhecidas como hana yume que literalmente quer dizer “flor do
sonho”. (BIRELLO; LESSA, 2008).
Segundo Cehoaijb (1992), nos anos 60, do século XX, o Japão
começou a prosperar e diminuiu o fluxo migratório ao Brasil a partir
desse período. O programa de imigração teve fim no ano de 1973. O
contingente japonês ao Brasil no período pós-guerra, entre 1953 e
1973, foi de aproximadamente 53 mil (CEHOAIJB, 1992).
“A presença japonesa foi se institucionalizando ao longo do
século XX, sobretudo no período pós-guerra, criando
111
inúmeras entidades associativas: culturais, religiosas,
esportivas, recreativas, agrícolas, por região de origem
(províncias no Japão), por atividades ocupacionais etc.,
além da visibilidade nipônica nas comemorações decenais
da imigraçŌo japonesa.” (SASAKI, 2006, p. 104).
No final do século XX, a colônia japonesa no Brasil, passou a ter um
perfil diferente, pois os personagens principais deixaram de ser os
isseis para, aos poucos, entrar na era dos nikkeis, ou seja,
descendentes nisseis e sanseis, de segundas e terceiras gerações
(DAIGO, 2008).
Assim, concordando com Wakisaka et al. (1992), as formações dos
núcleos de japoneses no Brasil seguiu um destes modelos: os grupos
espontâneos que se encontravam nos arredores de São Paulo, os
grupos do interior, que buscavam as grandes propriedades do
interior de São Paulo e Paraná, os grupos ijuchi, que adquiriam
terras antes de chegar ao Brasil, os grupos shokuminchi, formados
por arrendatarios e os grupos formados por incentivo do governo
estadual ou federal do Brasil, que tinham o interesse do
desenvolvimento da agricultura. No caso o primeiro e quarto grupo
citados correspondem a um periodo anterior a Segunda Guerra
(WAKISAKA et. al., 1992).
“O Brasil é um país de imigraçŌo, onde imigrantes de
diversos países e etnias vêm contribuindo em diversos
segmentos para o progresso da nação. Gostaria, porém, de
fazer uma referência especial à contribuição dos japoneses
na agricultura brasileira, uma vez que há uma relação
inquebrantável entre os imigrantes japoneses e este
progresso. A maior contribuição japonesa foi a introdução
de novas espécies e também do sistema de agricultura
intensiva.” (DAIGO, 2008, p. 37).
Alem da agricultura, os japoneses também enriqueceram e
diversificaram mais ainda a cultura brasileira, como por exemplo, as
religiões fundadas no Japão que vieram para o Brasil, como o
budismo e continuam a serem difundidas, praticadas e a conseguir
cada vez mais adeptos a crenças e tradições tipicamente da cultura
japonesa. A música também assume papel fundamental, alem das
danças típicas como o bon odori, que se traduzida literalmente quer
dizer “dança aos mortos” e outras manifestações artísticas mais
112
conhecidas como os tambores que até hoje são populares dentro da
sociedade nipo-brasileira nos diversos festivais do pais (BIRELLO;
LESSA, 2008).
A partir do final do século XX a cultura japonesa passou a adentrar
cada vez mais os costumes dos brasileiros. Exemplo disso, os
desenhos japoneses (animes) que são apresentados no Brasil desde a
década de 60.
Hoje em dia, as idas e vindas de migrantes de ambos os países,
incentivados por intercâmbios, continuam trazendo e levando as
novas formas culturais, em particular, sobre o modo de organização
familiar, posição da mulher e de desconstrução e reconstrução da
educação das crianças e jovens.
O relacionamento do Brasil e Japão vem cada vez mais sendo
alimentado pela globalização, de forma subjetiva, alem do aumento
das relações comerciais, culturais, educacionais, artísticas,
esportivas e de comunicação, que interferem diretamente na
vivência social entre ambos os povos.
Referências
Douglas Augusto da Silva é Graduado em História (Licenciatura)
pela Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) (2014 a 2016) e
Pós-graduando Lato Sensu em Metodologia do Ensino de História e
Geografia pela Faculdade de Educação São Luís. Atualmente é
professor nas escolas públicas do Estado de São Paulo, onde
ministra aulas de História, Sociologia e Filosofia e é contratado pelo
Colégio Alpha do Quatá, Sistema de Ensino Anglo, onde ministra
aulas de História e Geografia.
Email: douglassilva_das@hotmail.com.br
BIRELLO, Verônica Braga; LESSA, Patrícia. A imigração japonesa
do passado e a imigração inversa, questão gênero e gerações na
economia. Divers@!, v. 1, n. 1, 2008.
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anos da imigração japonesa no Brasil. São Paulo: Hucitec,
Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992.
DAIGO, Masao. Pequena história da imigração japonesa no
Brasil. Tradução de Masato Ninomiya. São Paulo: Associação para
113
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2008.
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Brasil, 1930-1934: contornos diplomáticos. Fundação
Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais, 1990.
MORALES, Leiko Matsubara. cem anos de imigração japonesa
no brasil: o japonês como língua estrangeira. 2008. Tese de
Doutorado. Tese (doutorado). Universidade Estadual de São Paulo
(USP).
SAKURAI, Célia; COELHO, Magda Prates. Resistência &
integração: 100 anos de imigração japonesa no Brasil. Ibge,
2008.
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20, n. 57, p. 99-117, 2006.
WAKISAKA et al. COMISSAO DE ELABORACAO DA HISTORA
DOS ANOS 80 ANOS DA IMIGRACAO NO BRASIL. Educação,
Cultura e Religião. In: Uma Epopeia Moderna: 80 Anos da
Imigração Japonesa no Brasil. São Paulo: Hucitec/Sociedade
Brasileira de Cultura Japonesa, 1992, pp. 547-549.
114
O NASCIMENTO DA JAPONOLOGIA
Edelson Geraldo Gonçalves
Introdução
A japonologia é o campo do orientalismo que tem o Japão e sua
cultura como objetos específicos de estudo. Esta comunicação será
dedicada ao relato e análise do nascimento dessa vertente acadêmica
no século XIX e início do XX, dando ênfase ao seu ramo de língua
inglesa, o maior e mais representativo desse campo.
Para isso usaremos como referenciais teóricos as definições de
“orientalismo” de Robert Irwin, e de “japonologia” de Renato Ortiz.
Como fontes estão presentes algumas das obras japonologistas da
segunda metade do século XIX e início do XX, sobretudo duas
edições do livro Things Japanese, de Basil Hall Chamberlain, as
quais nos fornecem uma base para identificar os autores mais
relevantes do período.
Por orientalismo entendemos aqui a concepção de Robert Irwin
[2008, p. 12] segundo o qual o termo “orientalista” usa-se em
“referência a quem tenha feito um estudo especial das línguas e
culturas asiáticas” (e do norte da África). Por sua vez a japonologia
pode ser definida como o estudo do Japão e de sua cultura (artes,
sociedade, história, economia, etc.), feito no Japão por estrangeiros
ou fora do Japão, seja por estrangeiros ou japoneses [Ortiz, 2000, p.
24-25].
Devemos ainda chamar atenção para o fato de que como um
domínio acadêmico a japonologia é um campo distinto do
japonismo, movimento artístico e literário predominantemente
oitocentista que teve como alguns expoentes Claude Monet (18401926), Pierre Loti (1850-1923) e Giacomo Puccini (1858-1924).
Entendidos esses pontos passaremos à abordagem direta da
japonologia.
A Japonologia
Estima-se que as primeiras palavras ocidentais sobre o Japão (ou
Cipango) tenham sido escritas no século XIII, por Marco Polo (12541324), quando registrava o desejo de Kublai Khan (1215-1294) de
anexar o arquipélago nipônico ao seu próprio império. Após a
chegada dos primeiros portugueses a Tanegashima, em 1543, e dos
115
outros ocidentais, que vieram após eles o Japão passou a figurar em
textos escritos em línguas ocidentais, compostos principalmente por
missionários, como o Tratado das Contradições e Diferenças de
Costumes entre a Europa e o Japão (1585), do jesuíta português
Luis Fróis (1532-1597), as Peregrinações (1614), do também jesuíta
português Fernão Mendes Pinto (1510-1583), o Sumário Del Japón
(1583) do jesuíta napolitano Alexandre Valignano (1539-1606) e
Hakluytus Posthumus or Purcha’s His Pilgrimes, do sacerdote
anglicano Samuel Purchas (1577-1626).
Contudo aquele que foi sem dúvidas o mais influente entre esses
primeiros escritos foi o livro The History of Japan do médico
alemão Engelbert Kaempfer (1651-1716) publicado entre 1727 e 1728,
em dois volumes [Markley, 2004, p. 54, 57]. Esse livro, cujo autor foi
capaz de escrever após uma estadia de dois anos e dois meses no
JapŌo, “compilou um trabalho que pela primeira vez deu ao mundo
uma informação razoavelmente acurada sobre a história, geografia,
crenças religiosas, maneiras e costumes, produções naturais e
mistérios do Império” [Chamberlain, 1905, p. 266].
No entanto foi apenas no século XIX que os escritos sobre o Japão se
multiplicaram, principalmente após a abertura dos portos pelos
Tokugawa em 1853.
A partir da segunda metade do século XIX escrever sobre o Japão
(principalmente em relatos de viagem) tornou-se uma moda
intelectual, tanto que o japonologista Basil Hall Chamberlain [2014,
p. 47] brinca ao afirmar que para os intelectuais da época “nŌo ter
escrito um livro sobre o Japão estava se tornando de fato um rótulo
de distinçŌo”.
De fato, muito se escreveu sobre o país nesse período, tanto que é
pouco provável que alguém consiga contar o número exato de obras
escritas sobre o tema naquele século, mas os autores de obras que se
tornaram referências no campo dos estudos japoneses são de um
número bem mais limitado, e é a estes que dedicaremos o texto
dessa comunicação.
Como critério de seleção desses autores utilizaremos principalmente
as revisões bibliográficas feitas por Basil Hall Chamberlain nas
edições de 1890 e 1905 de seu livro Things Japanese.
116
Autores relevantes escreveram em várias línguas, como por exemplo
na língua alemã onde encontramos o naturalista Phillip Franz Von
Siebold (1796-1866), além do geógrafo Johannes Justus Rein (18351918), a língua portuguesa, com o lusitano Wenceslau de Moraes
(1854-1929) e o brasileiro Oliveira Lima (1867-1928), a língua
espanhola na qual podemos destacar o diplomata espanhol de
ascendência francesa Enrique Dupuy de Lôme (1851-1904) e o
escritor guatemalteco Enrique Gomez Carrillo (1873-1927), e em
língua francesa Andre Bellessort (1866-1942) e Edmond de
Goncourt (1822-1896).
Contudo foi em língua inglesa que escreveram os mais notáveis
autores da japonologia oitocentista.
Este conjunto de autores era composto principalmente de
missionários cristãos e funcionários estrangeiros contratados pelo
governo Meiji, reunindo-se na Asiatic Society of Japan (filial da
Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, órgão britânico
destina a promover estudos sobre o Oriente) fundada em Yokohama
em 1872, e publicando seus trabalhos não apenas através de livros,
mas também pelas páginas da revista da organização, a
Transactions of Asiatic Society of Japan, publicada a partir de 1874
[Otness, 1995, p. 239; Pargiter, 1923, p. 60-61].
Os autores centrais da japonologia que aqui destacamos são Ernest
Mason Satow (1843-1929), William George Aston (1841-1911),
Algernon Bertram Freeman Mitford (1837-1916), William Elliot
Griffis (1843-1928), Alice Mabel Bacon (1858-1918), Ernest
Fenollosa (1853-1908), Percival Lowell (1855-1916), Basil Hall
Chamberlain (1850-1935) e Lafcadio Hearn (1850-1904).
Ernest Mason Satow chegou ao Japão não como diplomata, mas
como um estudante de língua japonesa buscando tornar-se um
intérprete oficial [Satow, 1921, p. 17]. Após conseguir um domínio
satisfatório da escrita e leitura japonesas, Satow usou essa
habilidade tanto no seu trabalho diplomático, quanto no seu
trabalho como japonólogo, que se concentrou em estudos
linguísticos e tradução [Satow, 1921, p. 59].
Em suas publicações como japonólogo, além de diversos artigos na
revista Transactions também escreveu um dicionário, em
colaboração com Ishibashi Masakata (An English-Japanese
117
Dictionary of Spoken Language, publicado em 1875) publicando
também as memórias de seu período no Japão (1862-1883), com o
título A Diplomat in Japan, sendo esse livro não apenas um relato
autobiográfico, mas também uma valiosa fonte para o estudo das
turbulências que levaram à Restauração Meiji, processo no qual, em
seu trabalho como intérprete, Satow participou entrando em contato
com líderes tanto do Shogunato, quanto dos partidários da
restauração imperial.
William George Aston, por sua vez, não publicou relatos pessoais de
sua estada no Japão, o que nos priva de saber tanto sobre ele quanto
podemos saber de Satow, mas sua produção como japonólogo foi
maior que a de seu colega do campo diplomático britânico e das
letras japonesas.
Indo para o Japão para trabalhar no consulado britânico, Aston não
deixou pistas claras de como exatamente foi seu processo de
aprendizado da língua japonesa, mas o fato é que se tornou um dos
maiores especialistas ocidentais nesse campo em sua época.
Como escritor japonologista Aston foi um colaborador tão frequente
quanto Satow para a revista Transactions, e entre seus livros
destacam-se o texto pioneiro sobre gramática japonesa em língua
ocidental, A Short Grammar of Japanese Language, publicado em
1869, tema no qual ainda publicou A Grammar of The Japanese
Written Language (1872) e A Grammar of Japanese Spoken
Language (1888) [Trumbull, 2008, p. 59].
Aston ainda publicou dois livros sobre a religião Shinto (Shinto: The
Way of The Gods, de 1905 e Shinto: The Ancient Religion of Japan,
de 1907), mas destacou-se principalmente por duas obras;
primeiramente a tradução do Nihon Shoki, ou Nihongi, um dos
textos mais antigos da historiografia clássica japonesa [Toda, 2004,
p. 227, 241]. A tradução desse texto foi publicada com o título
Nihongi: Cronicles of Japan em 1896. O outro livro pelo qual se
destacou foi na verdade sua obra de maior sucesso, A History of
Japanese Literature, publicado em 1899, sendo a primeira história
geral da literatura japonesa disponível em língua ocidental
[Trumbull, 2008, p. 61].
O terceiro japonólogo de língua inglesa a que daremos destaque é
Algernon Bertram Freeman Mitford (1837-1916), diplomata no
118
Japão, onde foi aprendiz (de língua japonesa) e um grande amigo de
Ernest Satow.
Em sua produção como japonologista destacam-se os livros The
Bamboo Garden (1896); um ensaio de botânica e sobre o a
simbologia do bambu na cultura japonesa; mas primeiramente e
principalmente por seu livro Tales of Old Japan publicado em 1871.
Em Tales of Old Japan Mitiford reúne narrativas de experiências
pessoais no Japão, textos religiosos, assim como histórias nativas,
tendo entre essas se destacado a sua narrativa da história dos 47
ronins, que embora não tenha sido pioneira na apresentação desse
conto ao público ocidental, foi na prática a versão que o popularizou.
Juntamente com Satow, Mitford foi uma testemunha do processo da
restauração Meiji, e dos anos posteriores a ela, e assim como seu
amigo, em suas memórias publicadas (The Garther Mission to
Japan de 1906 e Memories de 1915); segundo o próprio Mitford
[1916, p. 373] como uma “matiére pour servir à l’histoire”; fornece à
posteridade uma valiosa fonte de estudos para esse período da
história.
O Reverendo William Elliot Griffis ligado à Igreja Reformada na
América foi ao Japão para ser professor de química e de filosofia
natural no colégio de Fukui. Griffis foi ao país não apenas para servir
como educador, mas também com a intenção de exercer um papel
missionário e uma influência civilizadora sobre seus alunos
[Rosenstone, 1988, p. 12, 16, 51].
Como um autor do campo da japonologia, além de publicar artigos,
pela revista Transactions e outros periódicos, tem como destaques
os livros: The Religions of Japan (1895), The Mikado: Institution
and Person (1915) e The Mikado’s Empire (1876).
Entre esses livros, o primeiro trata de uma exposição e análise geral
da religiosidade japonesa, o segundo é tanto uma história política do
Japão centrada no papel de seus imperadores, quanto uma biografia
do Imperador Meiji, o terceiro trata-se de uma história geral do
Japão e das experiências pessoais e reflexões do autor sobre o país.
Alice Mabel Bacon, por sua vez, foi convidada ao Japão em 1888
para trabalhar com educação feminina. Nesse meio tempo, Bacon
também escreveu sobre o Japão, sendo sua principal obra o livro
Japanese Girls and Women, um texto escrito em colaboração com
119
Tsuda Umeko, que aborda as mulheres japonesas de diferentes
posições sociais [Johnson, 2012, p. 1, 6].
O próximo japonologista que se abordará é Ernest Fenollosa, que
chegou ao Japão, em 1878, para trabalhar como professor de
filosofia.
No Japão Fenollosa dedicou-se à coleção e estudo da arte japonesa
se tornando, na década de 1880, um grande apologista e divulgador
da arte japonesa tradicional, reunindo ao redor de si um amplo
círculo de artistas, intelectuais e figuras públicas do Japão, que
simplesmente concordava com suas ideias ou já militavam pela
preservação da arte tradicional, que foi rechaçada pelos líderes e
formadores de opinião dos primeiros anos da Era Meiji [Brooks,
1962, p. 5].
Com sua militância pela preservação da arte tradicional, Fenollosa
ganhou o respeito da corte imperial e dos políticos conservadores da
década de 1890, e tendo grande influência na decisão da retomada
do ensino das artes japonesas nas escolas, que ocorreu nesse
período, influenciando também a criação da lei de revalorização das
artes nacionais, promulgada em 1884 [Brooks, 1962, p. 24, 26].
Além disso, a casa de Fenollosa se tornou um centro de atração para
intelectuais estrangeiros residentes no Japão, sendo que entre os
intelectuais que firmaram amizade com ele estavam Percival Lowell
e Lafcadio Hearn [Brooks, 1962].
Como escritor japonologista, Fenollosa teve como interesse a arte
japonesa, sobretudo a pintura e o teatro Nô. Entre os livros, que
publicou nesse campo, se pode destacar: The Masters of Ukiyoe
(1896) e, principalmente, Epochs of Chinese and Japanese Art
publicado, postumamente, em 1912. O primeiro livro é um catálogo
dos principais artistas da escola popular de pintura Ukiyo-e, uma
forma de arte desprezada pelas elites do período Tokugawa, mas que
foi a responsável pela popularização da arte japonesa no Ocidente,
principalmente, nas pinturas de Hokusai [Brooks, 1962, p. 23]. O
segundo livro por sua vez é uma história geral da arte japonesa e
chinesa.
Percival Lowell chegou ao Japão em um momento que estava na
Ásia trabalhando pela missão diplomática dos EUA na Coréia.
120
Enquanto permaneceu no Japão, Lowell estudou a língua e a cultura
do país, terminando por publicar, em 1894, um livro analítico
exclusivo sobre o Japão: Occult Japan, sobre possessões, exorcismos
e milagres na religião shinto [Brooks, 1962, p. 31; Chamberlain,
1905, p. 66]. Contudo, antes desse livro houve ainda outro, que não
tinha, formalmente, o Japão como tema exclusivo, pretendendo ser
um tratado sobre o Oriente, em geral, mas que em suas abordagens
tendia a privilegiar a análise da cultura japonesa. Esse livro foi The
Soul of the Far East publicado em 1888, sendo entre as obras
orientalistas de Lowell a de maior destaque.
Por sua vez Basil Hall Chamberlain, aquele que é considerado por
Kurt Singer [1973, p. 154] o pai da japonologia moderna, foi um
estudioso britânico se tornou professor de língua japonesa e de
filologia na Universidade Imperial de Tóquio, em 1886, após uma
bem-sucedida carreira de pesquisador da língua e da literatura do
país [Chamberlain, 1905, p. 1].
Como japonologista, Chamberlain foi, provavelmente, o autor mais
erudito da primeira geração, embora não o mais popular. Seus livros
de maior destaque são o enciclopédico Things Japanese (que,
segundo o autor, pretende ser “nŌo uma enciclopédia, note, nŌo uma
vã tentativa de um homem de tratar, exaustivamente, de todas as
coisas, mas apenas esboços de várias coisas”) [Chamberlain, 1905, p.
2] e a primeira tradução do Kojiki (o mais antigo texto da
historiografia japonesa) para uma língua ocidental. Além dessas
obras, também se pode destacar suas muitas contribuições para a
revista Transactions, e os livros The Classical Poetry of The
Japanese (uma antologia de traduções de clássicos literários) e A
Handbook of Colloquial Japanese (um livro de apoio para o
aprendizado do idioma japonês).
Por fim temos Lafcadio Hearn, o mais lido dos japonologistas de sua
geração e que segundo Chamberlain [1905, p. 65] é o autor que
“entende mais o JapŌo moderno, e nos faz mais entende-lo porque o
ama mais”.
Hearn foi enviado ao Japão para atuar como correspondente
estrangeiro, mas acabou estabelecendo-se como professor, jornalista
local e pesquisador. Escreveu quatorze livros sobre o Japão,
contendo tanto ensaios com os resultados de suas pesquisas quanto
contos de ficção japonista.
121
No campo da pesquisa japonologista suas principais obras foram
Glimpses of Unfamiliar Japan (1894), em dois volumes, Out of the
East (1895), Kokoro (1896) e Japan: An Attempt at Interpretation
(1904). Entre esses os três primeiros livros combinam relatos de
viagem, contos de ficção e análises culturais, enquanto o último pode
ser tido como uma obra de história e antropologia do Japão,
sintetizando a erudição que o autor acumulou em sua vivência no
Japão, entre 1890 e 1904.
Conclusão
Neste texto pudemos ver que a abertura do Japão na segunda
metade do século XIX e as posteriores medidas modernizadoras do
governo Meiji atraíram para o Japão (principalmente como
missionários e funcionários) vários indivíduos intelectualmente
capacitados, que lançariam as bases para os modernos estudos
japoneses, delimitando esse campo do orientalismo e escrevendo
obras que viriam a inspirar e influenciar autores importantes dos
estudos japoneses pelos dois séculos seguintes, como George
Samson, Kurt Singer, Ruth Benedict, Ivan Morris e Ian Buruma.
Referências
Edelson Geraldo Gonçalves é mestre e doutorando em História
Social das Relações Políticas pela UFES, sob orientação do Prof. Dr.
Geraldo Antônio Soares. Bolsista pela Fundação de Amparo à
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Mail: edelsongeraldo@yahoo.com.br
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123
124
EDUCANDO UM IMPÉRIO: UMA REFLEXÃO DO
CONTEXTO HISTÓRICO EDUCACIONAL CHINÊS
Elois Alexandre De Paula
Contexto Histórico Educacional Chinês
A proposta aqui é analisar e abordar o contexto Histórico
educacional da China, e as transformações que este proporcionou
para a sociedade Chinesa. Destacamos aqui a importância de
compreender a dinâmica educacional e a parte da sua História, pois
reflete o atual momento em que a China vem se apresentando no
cenário mundial.
A China tem 4 mil anos de uma longa tradição de culturas e de
processos de desenvolvimento nas mais diversas áreas, e graças
também a sua civilização altamente avançada. Dentro de suas
experiências adquiridas nessa longa história, a sua sociedade
conseguiu transformar essa nação na segunda maior potencia
mundial. Desse modo a tradição educacional historicamente teve
uma grande influência no desenvolvimento das potencialidades que
a China apresenta.
Para Bueno (2013) o modelo de filosofia educacional vem sustentado
a nação por mais de 25 séculos, que vem regulando a transformando
a sociedade Chinesa por esse longo período dentro de uma
consciência crítica e um desenvolvimento em todas as áreas da
China, sendo elas na tecnologia, formação cultural ou na área
econômica.
“Desde cedo a civilização chinesa parece ter buscado
desenvolver concepções singulares sobre o domínio da vida
e do território que - concomitantemente a um complexo e
antiquíssimo sistemas de crenças xamânicas – construíram
uma cultura altamente técnica e especializada cuja ciência
desde cedo aliou a ritualização e a religiosidade como
forma de fixar os conhecimentos adquiridos através de uma
série sucessiva de modelos civilizacionais testado desde
seus períodos proto-históricos” (Bueno, 2008).
Essa dinâmica da civilização pode- se dizer que a China, apresentou
um modelo organizacional diferenciado do Ocidente, e que se pode
dizer que durante a sua longa história a sua sociedade se organizou
125
ou se adaptou dentro dos contextos e dos acontecimentos a que se
apresentavam a sua civilização. A prova que desde a dinastia Han (A. C 206 a 221. D.C.) após passar várias crises internas, nessa
dinastia a China passou por um dos momentos mais prósperos da
sua História. Bueno (2008) afirma que “essa dinastia reorganiza o
poder internacional do país, estimulando a politica comercial
expansionista, além de organizar o sistema burocrático de seu
estado, além de organizar a economia pela unificação da moeda e
empregou o confucionismo como pratica social educacional e
também religiosa”.
Dentro desse quadro podemos afirmar que a China apesar de todas
as transformações ocorridas por motivos internos e externos,
conseguiu estabelecer uma rota de desenvolvimento baseada em um
modelo educacional milenar através dos preceitos educacionais
confucionista.
A tradição Confucionista
“Mestre é Quem Sabe o Antigo e Descobre o Novo”. Usei aqui essa
mensagem inicial do pensador Confúcio (551-479 A.C)
intencionalmente para iniciar uma discussão da importância da
História não somente para o Conhecimento da sociedade, mais o
quanto a China valoriza o pensamento das suas tradições e o quanto
é significativo a sua história para sua nação. Neste contexto a
educação da China também necessita de uma análise fundamental,
Bueno (2013) afirma “que muitos pensadores contemporâneos dele
surgiram, criando as Cem escolas do pensamento”. Mais de certo
modo os ideias de Confúcio permeava uma “sociedade mais educada
com princípios na tradição moral e na dignidade Humana, Bueno
(2013)”.
Daí se dá o principio do pensamento de Confúcio pela tradição e pela
valorização da História para a China, na qual é e foi essa trajetória
histórica que construiu essa grande nação. Podemos afirmar que
esta grande naçŌo que segundo Mao JR. E Secco (1996) “Que
existem registros precisos de mais de 4 mil anos de História, e que
sua cultura teve um desenvolvimento muito além do que a Cultura
Ocidental”.
Confúcio viveu na dinastia Zhou (1027-221) em um período em que
a China estava em uma Crise sem precedentes, em que a
desorganização da sociedade era tomada também pela corrupção.
126
Para Bueno 2013, “Confúcio parte do principio Humanístico baseado
na sobrevivência da sociedade”. Desse modo apesar de seus
pensamentos serem pautados dentro de um contexto filosóficos
conseguiram desenvolver uma nova dinâmica educacional para a
civilização Chinesa.
Para Bueno (2013) “Confúcio foi muito além de um professor ou um
excelente conselheiro, pois promoveu a ideia de cidadŌo crítico”. Em
períodos de governos corruptos estes veem com maus olhos quem
atendem a criticidade, e notadamente Confúcio passou por maus
momentos quando espalhava as ideias de que o cidadão deve ser
livre e altamente crítico com a realidade da sua sociedade. Bueno
(2013) “afirma que nesse período Confúcio comeu o pŌo que o diabo
amassou”, isso nos da ideia da dificuldade de se tentar aplicar a
moralidade dentro de uma sociedade viciada pela corrupção, a
educação vem do princípio de restaurar a dignidade humana, é ela
tem o efeito de um remédio para tratar em longo prazo a cura de
uma sociedade.
Confúcio criou a possibilidade de crença infinita na educação para
restaurar essa sociedade. Diante dessa ideia ele criou mecanismos
que tinha a proposta de organizar os processos educacionais
baseados naquele contexto histórico. Algumas dessas propostas ou
métodos na qual iremos abordar aqui têm como base a
Historiografia com estudos de pesquisadores que contemplam o
orientalismo e a análise de processos do desenvolvimento
educacional Chinês Confucionista.
O primeiro método educacional apresentado pelo Confucionismo foi
a DAO ou via. Para Bueno (2011) “Confúcio partia da ideia que esta
via poderia atingir todos os seres humanos poderiam atingir esse
caminho, ou seja, o caminho da educaçŌo”. O educar seria muito
além de um aprendizado convencional, a sua perspectiva era de
analisar as deficiências dos métodos da educação da época.
Nesse contexto a pretensão de Confúcio era de estabelecer uma
educação eficaz que tinha a proposta de atingir o cerne da sociedade,
trazer para esta pela educação a cura e a recuperação contra
imoralidade e a corrupção.
Outra abordagem de Confúcio é a Centralidade e a Virtude. Bueno
(2011) exemplifica que para Confúcio “a educaçŌo deveria atingir a
127
centralidade ou o ponto comum entre-nos. A virtude e a centralidade
vêm destacadas como um alvo a ser atingido e que se dava a
condiçŌo de um ser humano melhor”. Este princípio estabelecia que
pela formação do ser humano com virtudes também refletiria e
claro, na construção de uma sociedade mais desenvolvida
moralmente.
A propensão e outra abordagem que Confúcio apresentou. Dentro
do ideograma Shi, “a propensŌo visava captar a potencialidade
individual ou o Dom de cada pessoa tem em especifico”.
Bueno(2011). A visão Confucionista com relação a propensão visa a
valorizar as potencialidades de cada individuo, tentando resgatar os
talentos individuais, assim esse modelo de educação permitiria
aperfeiçoar ainda mais suas habilidades que se apresentava cada
educando. A propensão para Confúcio é uma condição que estimula
e valoriza o que o aluno tem a apresentar. Se um aluno tem
habilidade em cálculos matemáticos, ele será estimulado a ainda
mais desenvolver essa habilidade com a matemática. Logicamente
esse trabalho educacional futuramente criava profissionais na qual
desempenhariam papeis significativos não somente para si próprio
mais para a sua sociedade.
Podemos destacar aqui inúmeras transformações em que o
Confucionismo apresentou dentro do viés Histórico da China, e que
muito desses pensamentos ainda é a base para o modelo educacional
Chinês. Mais não podemos destacar o quanto Confúcio projetou
dentro de o seu pensar sobre o educador e qual é a função e o
trabalho do professor para com o educando.
“Ao ensinar o mestre orienta seus alunos sem arrastá-los;
convida-os a avançar mais não coage; abre-lhes o caminho
mais não os força a caminhar. Orientando sem arrastar
torna o aprendizado agradável convidando sem coagir
torna o aprendizado fácil, abrindo a caminho sem forçar a
caminhada, faz que com os alunos pensem por si mesmos.
Ora alguém que torne agradável e fácil aprendizado e faz os
estudantes pen sem por si mesmos será que é chamado de
bom professor”. [Trecho de Liji- Recordações dos Rituais].
(Bueno, 2011)
Esse trecho de Liji remonta a ideia de um modelo educacional da
China, que já demonstrava que há 2500 anos já existia um política
128
ou parâmetros para o desenvolvimento do educando e da
importância do educador. O educador neste viés não seria apenas o
transmissor do conhecimento, mais aquele que apresentava o aluno
o caminha da retidão, usando a reflexão para com o aluno ao invés
da força. Deste modo o professor dentro do contexto Confucionismo
é uma autoridade do conhecimento e não um autoritário.
Essa questão da valorização do educador pode-se afirmar que a
China e os países orientais tem uma visão muito diferenciada com
relação ao próprio ocidente. Em comparação com os países do
ocidente ou com o Brasil a China como exemplo está a léguas a
distancia da valorização do professor. Enquanto as sociedades dos
países orientais apostam em incentivos aos professores e o próprio
respeito aos seus mestres, o Brasil por outro lado e visível o descaso
do estado com o profissional de educação. Os professores além de
serem poucos valorizados financeiramente em nosso país recebem
todo o tipo de violência do próprio estado e também dos próprios
alunos, como mostra a atual realidade da educação brasileira. Isso
prova que não se valorizar a educação, se cria um ambiente de crise
dentro da sociedade.
Diante dos aspectos da importância do professor aqui mencionados,
são estas discussões que remete a um modelo histórico educacional e
que durante a dinastia Han (221 A.C-206 DC) o Confucionismo
desenvolveu um pensamento de desenvolvimento de novos
paradigmas da educação da Civilização Chinesa. Confúcio
empreendeu uma nova ideia sobre a sociedade da época, mas o que
mais surpreende em sua trajetória foi a ideia da valorização do ser
humana pelo conhecimento. O desenvolvimento moral e do
conhecer se dava indiscutivelmente pela ação da busca do conhecer,
pelo esforço fato de dedicar-se em estudar, isso para Confúcio era o
método mais realista para o homem desenvolver a sua consciência.
Dentro dessa análise a trajetória do modelo Confucionista
educacional tem sido um dos lemes que transformaram e
desenvolveram a sociedade na China em todos os aspectos.
Reescrever a trajetória de uma história educacional Chinesa requer
analisar os resultados e as práticas aplicadas nos estabelecimentos
de ensino na China.
129
Entre o passado e o futuro:
A influência da Educação no
desenvolvimento da sociedade Chinesa
Dentro do contexto Histórico é fato que pelo modelo educacional os
Chineses não somente tiveram um avanço no desenvolvimento no
contexto social, mais também um grande avanço tecnológico em sua
trajetória histórica como já abordamos aqui. Foram os Chineses
inventores da Pólvora, da bussola, da imprensa e do papel. Sem
deixar de lado o desenvolvimento da Filosofia tendo como um
grande ícone Confúcio (551-479 A.C), que segundo Mao JR. E Secco
(1996), “Confúcio foi um idealizador de regras de conduta para a
Harmonia Social”. Confúcio aplicou suas ideias conforme Bueno
(2013) “em um período de Crise na China”, manchada pela
corrupção e o caos político, veio então a solução por Confúcio, a
sobrevivência da sociedade pela educação.
Esses acontecimentos como a exemplo as ideias de Confúcio, desde a
Dinastia Zhou, percebemos não somente seu desenvolvimento da
cultura na China, mais como sua sociedade conseguiu transformarse ou reerguer-se em momentos de crise. A sua trajetória histórica
vem repletas de grandes realizações, mais de transformações
importantes que poucas pessoas se atentam à descobrir ou entender.
Para Bueno (2011) “desde a antiguidade a clareza e a profundidade
do pensamento Confucionista influenciou diretamente na
mentalidade Chinesa”. É notório que a tradiçŌo milenar de Confúcio
ainda vem sendo um método para construir um modelo educacional
da China na atualidade. Essa longa tradição de manter os costumes e
tradições culturais somado com a tradição educacional vem
transformando e readequando a sociedade Chinesa nesses 25 séculos
das ideias Confucionistas.
A China para Bueno (2011) tem o grande dom para se reconstruir
após as crises. “Sua experiência milenar salvou das grandes Crises, e
permitiu que sua cultura atravessasse séculos”. Desse modo a longa
tradição educacional Chinesa parece ainda regulando os métodos de
ensino nos seus estabelecimentos educacionais.
Citando um exemplo que pode até nos deixarmos pasmos, é a
relação do professor e pais de alunos. A cultura familiar da China
tem como padrão exigir uma melhor educação de seus filhos. Para
Bueno (2011) “é fato corriqueiro os pais exigirem dos mestres de
130
seus filhos a estimula-los a estudar e se dedicar assim ao
aprendizado. Existe até fatos de um suborno (suborno até positivo)
por partes dos pais aos seus mestres em exigirem maior empenho de
seus filhos com relação aos estudos. Essa cultura e tradição visam
unicamente a dedicação no aprendizado cada vez melhor para seus
filhos, visando assim futuro melhor para seus infantes.
Este exemplo são características de um modelo educacional em que
muitas vezes críticos do ocidente levantam questões ou afirmações
ou até estereótipos sobre a maneira do tratamento do professor com
aluno. Alguns comentários abordam que a China tem uma exigência
autoritária dentro das escolas, ou outro exemplo na área de esportes
em que os atletas são exigidos ao extremo. Mais esquecem que sem
um comprometimento do atleta nŌo será nunca um “bom atleta”, ou
sem estudar nŌo haverá o “bom aluno”.
O fato e que a China vem tendo e superando suas crises e tendo
grandes resultados em varias áreas graças a sua tradição milenar de
educação. Muito dessa tradição tem contribuído para o
desenvolvimento de sua nação e muito de aspectos dessa tradição
vem sendo aplicadas ate mesmo pelo ocidente. Um exemplo essa
tradição comparamos ao Brasil. Na China durante a dinastia Han,
muitos alunos eram preparados para servirem a sua sociedade,
ocupando cargos públicos desde que prestasse uma prova que
provaria que estava apto a atuar tal função. No Brasil o exemplo que
se assemelha é o concurso público nos quais muitos de nós
prestamos e tentamos a aprovação em provas.
Independente de muitas situações que a China atravessa como no
modelo político socialista em que muitos consideram como um país
fechado, ela mantém ainda viva sua tradição educacional, contendo
grande parte dos fundamentos filosóficos de Confúcio. Uma tradição
educacional que resiste há séculos, e que ainda se percebe
resultados, que em comparativo ao modelo educacional brasileiro
dos últimos 3 ou 4 séculos, foram criados vários modelos de ensino e
que não surgiram o efeito desejado para um desenvolvimento
educacional que atingisse resultados satisfatórios.
Neste contexto a História da educação confucionista vem
perpetuando essa longa tradição Chinesa. A questão que a China tem
uma complexa e organizada sociedade, que difere das tradições
Historiográficas e filosóficas da Europa na qual somos acostumados
131
a debater repetidamente no contexto educacional, pela ideia da
ocidentalização da História, encontradas inclusive nos livros
didáticos. A História da China e de seu modelo de educação não
deveria ficar desfocada tanto da realidade do aprendizado Histórico,
quanto é tão distante a sua posição geográfica. Conhecer China a sua
cultura, tradições e sua civilização e seu modelo educacional dentro
do modelo Confucionista certamente vai muito além do habitual
conhecimento sobre a China, como exemplo da visão de sua própria
muralha.
Referências
Elois Alexandre de Paula é Funcionário da Secretária Municipal de
Educação de São Mateus do Sul, Paraná. Graduado em História pela
Fafiuv, Especialista em Gestão Publica Municipal, Unicentro e Pós
Graduando Em História Cultura e Arte, pela Uepg, Ponta Grossa.
Email para contato: eloialexandredepaula@hotmail.com
BUENO, André. Educarte: A Educação Chinesa na Visão
Confucionista. Rio de Janeiro, 2011.
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Jardim dos Livros, 2013.
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132
O JAPÃO E O OLHAR SOBRE O “OUTRO”:
O NEGRO EM PERSPECTIVA
Felipe Adriano Alves de Oliveira
O presente ensaio tem como proposta inicial apresentar brevemente
os estereótipos que envolvem a imagem construída do negro pelos
ocidentais, como uma herança de um pensamento eurocêntrico
amplamente disseminado nos séculos de ampliação do poder
europeu, principalmente após seu estabelecimento no continente
americano, onde é o foco do artigo. Ainda nesse sentido, é
apresentada uma das resistências culturais africanas como meio de
manutenção dessa cultura e do reconhecimento de seus valores,
além das influências que tem marcado as sociedades americanas.
O ensaio propõe também a apresentação contextualizada de uma
forma panorâmica da história do Japão já no final do período
Tokugawa. O ensaio discorre brevemente abordando os processos da
aproximação japonesa com os Estados Unidos já após os anos de
1945, bem como o envolvimento cultural entre eles, tendo como foco
principal a análise da imagem do negro apresentada diante da
perspectiva japonesa por meio do entretenimento, sendo eles os
mangás, animes e o ambiente que envolve estilo musical.
A construção de uma imagem nos moldes eurocêntricos
O termo “estereótipo” caracterizou-se inicialmente com intuito de
estabelecer uma forma, um padrão por meio da representação, mas
aos poucos tomou uma conotação negativa o que possibilitou o
fortalecimento do preconceito e a descriminação. Santoro (2014)
esclarece que essa forma de estereótipo se forma com sentido de
preconceituar, o que acaba prejudicando uma pessoa, um ofício, ou
determinados grupos sociais. Os meios de comunicação de massa
como a televisão e internet propiciam propagandas ou até mesmo
músicas, filmes, seriados e animações que são elementos do
entretenimento, em que tais agentes ou certas atividades são
submetidas a representações estereotipadas de forma caricata
(SANTORO, 2014).
Pessoas que não pertencem a determinados lugares sendo então
estrangeiros ou até mesmo migrantes, são vítimas desse processo,
vistos como “estranhos” acabam sendo caracterizados seja pelo
sotaque, pelos comportamentos, ou características físicas com
133
objetivo de selecioná-los e subjugá-los. Na atualidade é comum
observarmos essas ações, no Brasil, por exemplo, os migrantes
provindos da região nordeste são descriminados pelos costumes ou
sotaques pelas demais regiões do país, nos Estados Unidos, os
imigrantes latino-americanos, africanos e asiáticos sofrem com
ações xenofóbicas e às vezes violenta, o que resulta em um ambiente
hostil para ambos, e isso pode ser analisado também nos demais
países tais como europeus.
Um dos grupos étnicos que mais sofrem com o preconceito no
ocidente sendo representados de forma estereotipada pela mídia são
os negros, tendo uma força maior nos países americanos, sendo o
continente que mais recebeu contingente de africanos escravizados
para mão de obra a partir do século XVI (SILVA, 2012). Não é
preciso citar infinidades de exemplos culturais do quanto que a
influência africana tenha se consolidado de forma significativa em
nosso continente, influenciando desde as miscigenações até mesmo
nos idiomas, seja inglês, francês, espanhol ou português.
Claramente o continente americano sendo dominado e ocupado por
europeus e seus descendentes deixaram marcas culturais e
principalmente a herança de conceitos, sendo uma delas o
eurocentrismo. Os indígenas e principalmente os negros vistos como
instrumento de trabalho sofreram uma tentativa de supressão de
suas culturas, e foram retratados séculos mais tarde de forma
caricata em anúncios publicitários do século XIX até a segunda
metade do século XX como forma de inferiorizá-los. Apesar de que
ainda hoje alguns meios de publicidade os apresentam de forma
preconceituosa, mas discreta, já que medidas são tomadas para
evitar esse tipo de propaganda.
Nesse sentido, de acordo com Alakija (2012, p. 120), a mídia pode
ser um produto nocivo dependendo da forma que ela apresenta
determinadas pessoas, pois altera os comportamentos e compromete
a identidade do grupo em questão. Por mais que atualmente os
negros
tenham
alcançado
conquistas
em
participações
cinematográficas de destaque, programas de televisão, e na música,
ainda há muito para trabalhar em prol da conscientização étnicosocial. Mas tais conquistas foram possíveis por meio de
manifestações, apelos, lutas constantes para encontrarem o seu
devido lugar (BORGES, R. C; BORGES, R. 2012).
134
Todas essas marcas da constante luta dos negros pela sua
valorização e reconhecimento participativo na sociedade americana
no geral, são representadas tanto no meio cinematográfico quanto
nas animações inspiradas em histórias em quadrinhos, sempre com
um adendo crítico social, aproveitando dessa forma o impacto que as
mídias e o entretenimento têm na sociedade como uma maneira de
conscientização (GUERRA, 2011).
Pelo menos esse é o ponto de vista ocidental, mas e o lado oriental?
Essa é uma questão que precisa ser abordada, já que a cultura afroamericana em nome da luta contra a discriminação no ocidente – tal
como o Hip-Hop - tem ultrapassado as barreiras geográficas graças
ao desenvolvimento da informação e o fortalecimento da
globalização.
O negro no entretenimento japonês
“Padre Alexandre trouxe um escravo [...], era tŌo negro
quanto aos etíopes ou os que estão em Guiné [...]. Quando
chegou a casa, a cidade inteira correu para vê-lo (escravo)
[...]. O Padre Organtin levou-o a Nobunaga que fez uma
grande festa, ele não acreditou que a cor da pele fosse
natural e que uma pintura tivesse feito na pele, mas depois
de havendo feito o escravo se despir completamente,
considerou e reconheceu a veracidade [...]”. (SOLIER, F.
1627, p. 444, tradução nossa).
A citação acima se refere à obra do padre jesuíta francês François
Solier, na qual narra os acontecimentos que envolveram a visita do
padre jesuíta italiano Alexandre Valignano ao Japão em 1579, onde
se encontrou com o daymio Oda Nobunaga. Durante essa visita o
padre Valignano trouxe um escravo africano que de acordo com
Solier (1627), era de Moçambique. O fato que deixou os padres
jesuítas surpresos foi a admiração de Nobunaga com relação à cor da
pele do africano chegando a solicitar que este se despisse por
duvidar da veracidade de sua cor, além da curiosidade dos
moradores da província onde o africano esteve hospedado com os
padres (SOLIER, 1627).
Obras acadêmicas em japonês, programas de TV, e mangá como a
obra de Kuruso Yoshio (1968) intitulada “kurosuke”, descrevem que
Nobunaga se interessou pelo africano chamando-o de “Yasuke”, e
135
que fez parte da guarda pessoal aprendendo técnicas do uso de
espadas. O Diário de Notícias de Portugal postou em seu site no dia
29 de março de 2017, um projeto cinematográfico da Lionsgate
tendo como base para a narrativa fílmica a história de Yasuke.
Tais fatos mostram a diferença do olhar dos japoneses sobre o negro
com relação ao olhar do europeu marcado pelo eurocentrismo. Ora,
os europeus já tinham um longo histórico de relações comerciais
com os africanos além do tráfico de escravos na África, enquanto os
japoneses apenas mantinham relações com seus vizinhos Coreia e
China, permanecendo “isolados” com o restante do mundo. De fato o
contato com povos de outras etnias eram novidades, sendo que os
portugueses como um dos primeiros europeus a terem relações com
os japoneses foram recebidos com admiração por uns e suspeita por
outros (HENSHALL, 2014). O que temos aqui é uma sociedade que
via os estrangeiros como uma unidade “desconhecida” sendo suas
diferenças étnicas motivo de novidade tanto com relação aos
europeus quanto com Yasuke enquanto africano.
Determinados fatores tendo como resultado a expansão do
cristianismo e o descontentamento da população considerando a
estadia portuguesa, e a nova religião como ameaças, contribuíram
para que o Japão se fechasse quase que completamente à presença
estrangeira durante o período Tokugawa, mais precisamente na
primeira metade do século XVII. O fechamento à presença
estrangeira foi algo que fez com que o Japão iniciasse seu
renascimento econômico-social e também cultural. As artes
floresceram como parte do entretenimento, sendo a pintura um dos
que mais se destacaram, por exemplo, os e-makimono e ukiyo-e
(pintura em rolos de papel e em madeira respectivamente) se
baseavam na representatividade cotidiana da vida, desde a natureza
até na política (LUYTEN, 2000).
Mas a “pax nipônica” começou a ruir pelas crises na estrutura
política e econômica, o que resultou resumidamente na reabertura
para o comércio com os estrangeiros e o início de uma nova era, a de
Meiji, facilitando a entrada do Japão na corrida imperialista, se
estabelecendo posteriormente como uma das potências mundiais.
Novamente durante a Era Showa o país viu sua potência abalada
pela Segunda Guerra Mundial, e a transformaçŌo do “deus
Imperador” Hirohito em um humano comum, o que permitiu mais
uma nova fase na história do Japão (HENSHALL, 2014). Dessa vez,
136
essa fase além de recolocá-lo como uma das potências econômicas,
marcou a aproximação com outra potência, os Estados Unidos,
permitindo a influência ocidental em todos os campos da sociedade
japonesa, Henshall (2014) coloca como uma “ocidentalizaçŌo” do
Japão.
Já no final do século XX, extensas transformações no processo da
comunicação e da tecnologia da informação ultrapassaram todas as
fronteiras entre países, fazendo com que a distância entre eles fosse
praticamente nula, iniciava-se o período da cultura da informação, o
que garantia a interação em tempo real entre pessoas em qualquer
lugar do mundo (LÉVY, 1999; JHONSON, 2001; BRIGGSS; BURKE,
2006).
O extenso conjunto de conhecimento digitalizado e disponível ao
acesso transformava o conceito de cultura garantindo a
popularização das produções voltadas ao entretenimento, é nesse
ponto que surge o termo “cultura pop” que ganhou força no início do
século XXI, e se caracterizou como uma cultura em torno do
entretenimento, classificada por Adorno (2002), como indústria
cultural, sendo a “cultura pop” um termo mais popular para se
referir às produções que ganham mais popularidade (STOREY,
2009; ADORNO, 2002).
Diante disso o Japão veio a se destacar também com as produções
voltadas ao entretenimento, e já o fazia inicialmente com os mangás
logo após a sua expansão tanto no oriente quanto no ocidente após a
década de 1950, que com a popularização do termo cultura pop veio
a fazer parte dos elementos que compõe a chamada, “cultura pop
japonesa”, e sŌo eles os tokusatsu (séries de heróis japoneses),
anime (animações), mangá (histórias em quadrinhos japonesas),
jogos, filmes, e músicas (LUYTEN, 2000; 2014).
Como mencionado anteriormente, a consolidação das relações entre
Estados Unidos e Japão nos pós Segunda Guerra veio a se fortificar,
e assim como boa parte dos países do ocidente, a cultura norteamericana também influenciou a sociedade japonesa, e os mangás
são uma amostra disso, pois os personagens ganharam
características físicas ocidentalizadas, traços esses realizados
pioneiramente por Osamu Tezuka na década de 50 (LUYTEN,
2000). Essas características foram passadas para os animes já que
137
estes estão diretamente relacionados com os mangás enquanto
adaptação.
As caracterizações dos personagens dessas duas produções
possibilitaram a introdução de negros como personagens de
destaque em suas narrativas, e são diversas produções das mais
variadas temáticas onde eles estão representados. Fazendo uma
análise sobre como os personagens negros são retratados nessas
produções alguns deles são apresentados como exímios lutadores e
no manejo de espadas, como em Bleach com o personagem Kaname
Tousen, e Zommari Runereaux, Afro Samurai com o protagonista
Afro, e Naruto Shippuden com o personagem Killer Bee. Vale
destacar que esse gênero de mangá/anime é ambientado no Japão
feudal.
Os personagens citados ocupam postos de importância e são
retratados com princípios que se baseiam nos princípios do bushidô,
que valoriza a autodisciplina, o fortalecimento da mente, do corpo e
do espírito para alcançar seus objetivos. Todos os personagens
negros assim como os demais, seguem esses princípios de
moralidade, seja nesse gênero apresentado ou em outros que
valorizam o “ser japonês” (Yamato Damashii) (LUYTEN, 2000).
Portanto, a representação do negro nos mangás e nos animes se dá
de uma forma que o coloca na condição típica de um japonês,
“niponizando-o”. Essa relaçŌo se aplica dessa forma, pois a visão que
os japoneses têm sobre o negro não é uma visão eurocêntrica, que
como se sabe, resultou em representações carregadas de estereótipos
com sentido de subjugá-lo. Como mencionado, a experiência social,
e os valores japoneses foram completamente diferentes da dos
europeus.
Para Eisner (1989) e McCloud (1995), as experiências de uma
determinada sociedade ao longo de sua história influenciam na
mentalidade e ficam visíveis em suas produções artísticas, sejam elas
cinematográficas ou quadrinísticas. Chartier (2002) esclarece que o
processo de representação se dá por meio das características que
uma sociedade carrega, ou seja, suas vivências. É exatamente por
esse motivo que as produções da cultura pop japonesa são muitas
vezes vista com singularidade.
138
Outra manifestação que ocorre na sociedade japonesa voltada à
música e estilo Hip-Hop sŌo as do grupo chamado “B-Stylers” em
que os jovens se identificam com a cultura afro-estadunidense tendo
apreço pelo Rap. Eles se vestem, se comportam, e alteram o visual
para ficarem parecidos com negros, utilizando métodos de
bronzeamento de pele e modificações no penteado (STOFFELS,
2014).
Tal comportamento social baseia-se no sentido de identidade, onde
determinada pessoa ou grupo adere determinada postura de acordo
com aquilo que mais lhe agrada com objetivo de fornecer identidade
própria, com maneiras próprias de se expressar, ou de se vestir,
oferecendo uma distinção dos demais (BAUMAN, 2012).
De certa forma há uma percepção distinta do olhar japonês sobre o
negro, representando-o de uma maneira que o insere em seu modelo
de vida como ocorre nas produções narrativas dos animes e dos
mangás, desconstruindo assim um estereótipo criado por um
modelo etnocêntrico como a do europeu, e remodelando-o conforme
os princípios que a sociedade japonesa está adequada
tradicionalmente, ao mesmo tempo em que esse “outro”, ou seja, o
negro é motivo de admiração por determinado grupo social como
abordado brevemente sobre os B-Stylers. Isso não significa que
todos os japoneses têm essa facilidade em assimilar a figura do
“outro”, a resistência é rigorosamente presente para boa parcela da
sociedade, principalmente para aqueles mais conservadores.
Referências
Felipe Adriano Alves de Oliveira é graduado em História pelas
Faculdades Integradas de Itararé (FAFIT).
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<https://www.vice.com/en_us/article/9bzqdp/b-style-japan-desirvan-den-berg-photos>. Acesso em: 20 jul. 2017.
140
O COLÉGIO DE SÃO PAULO EM GOA: NOTAS
PRELIMINARES SOBRE CIÊNCIA, CURRÍCULO E
ORGANIZAÇÃO
Felipe Augusto Fernandes Borges
Saulo Henrique Justiniano Silva
Introdução
Este trabalho busca sintetizar conclusões parciais da pesquisa de
doutoramento intitulada “O Seminário de Santa Fé e o Colégio de
São Paulo de Goa: trajetórias de uma instituição portuguesa na Índia
(1541-1558)”.
A Companhia de Jesus configurou-se ao longo de sua existência
como uma ordem fortemente ligada às práticas de educação e
ensino, seja por meio do ensino das primeiras letras e da catequese,
da evangelização ou mesmo por meio dos colégios. Conforme Costa
(2004), as atividades educacionais não figuravam entre os objetivos
que impulsionaram Loyola e seus companheiros a fundarem a
ordem. Todavia, à medida que a Companhia ampliou seu raio de
atuação, principalmente nas obras e missões do Padroado
Português, a educação foi se tornando uma marca dos jesuítas.
A partir do desenvolvimento de suas atividades educacionais, a
Companhia busca também a sua institucionalização. Esta forma de
institucionalização dar-se-á por meio da fundação e atribuição de
Colégios à Companhia de Jesus. A partir das primeiras experiências,
os Colégios passam a ser espaços institucionais de grande
importância para a ordem, visto que para além de instituições
apenas ligadas ao ensino tornavam-se centros de propagação da
doutrina cristã e ainda da cultura ocidental. Os números nos
mostram a relevância dada aos colégios na trajetória jesuítica dos
séculos XVI a XVIII. Ainda citando Costa (2004, p.219), em 1556
existiam 35 colégios em funcionamento; em 1615 o número era de
372 e, em 1773 (ano da extinção da Companhia) os colégios eram
546 na Europa e 123 fora dela, em um total de 669. O crescimento
numérico de colégios e seminários nos dá a visão de como a
Companhia julgou importantes tais instituições para o
desenvolvimento das missões, principalmente as do Ultramar.
141
Convertidos em centros unificadores do planejamento e ação da
Companhia de Jesus, os colégios desempenhavam importante papel
de formação cultural tanto para nativos das missões fora da Europa
quanto para a formação de novos padres. No caso da formação de
sacerdotes, podiam eles ser destinados à própria Companhia ou
mesmo à formação de um clero nativo, como aconteceu no caso da
Índia.
As principais fontes documentais utilizadas na pesquisa consistem
nas coletâneas: “Documenta Índica”, organizada pelo padre jesuíta
Joseph Wicki, e “DocumentaçŌo para a História do Padroado
Português do Oriente”, organizada e comentada pelo padre António
da Silva Rego.
A expansão ultramarina portuguesa
Um elemento essencial na história de Portugal é seu processo
expansionista, iniciado no século XV, consolidando as suas feições
de “império” alcançadas no século XVI. Sobre o caráter da expansão
lusa, Coelho (2000) no diz que:
“Na expansŌo portuguesa houve de tudo um pouco:
descobrimentos, em absoluto, e não apenas para os
europeus, de novas terras, novos mares, novas estrelas,
como diria Pedro Nunes, e viagens de descobrimento;
evangelização com mão armada e também com martírio e
novos métodos linguísticos; transfega e troca de riquezas,
de ideias, de técnicas, de animais e de plantas; guerra e paz
armada com violência extrema de todas as partes; fome de
honra; coragem para além do que pode a força humana;
altruísmo, sacrifício; antropofagia no limite e recusa dela;
troca de ideias, de cerimônias, de vocábulos; confronto de
culturas.” (Coelho, 2000, p. 60-61)
A expansão portuguesa provocou profundas mudanças de cunho
político, econômico, religioso e cultural, advindas principalmente
dos contatos e trocas com culturas, religiões e costumes até então
pouco conhecidos dos portugueses, e mesmo dos europeus de forma
geral.
A partir da tomada de Ceuta, em 1415, as viagens dos
descobrimentos propriamente ditas têm início: em 1419, os
portugueses descobrem o arquipélago da Madeira, em 1424 as Ilhas
142
Canárias, em 1427 aos Açores e, em 1434, Gil Eanes atinge o Cabo
Bojador. Essas viagens estendem-se durante o século XV: Cabo
Verde em 1456, Ilhas do Príncipe e São Tomé, em 1471, seguido da
conquista de Tânger, culminando com a passagem pelo Cabo das
Tormentas (depois rebatizado de Cabo da Boa Esperança) por Vasco
da Gama, em 1499, e a chegada e instalação dos domínios
portugueses no Brasil, em 1500 (Boxer, 2002).
A partir da viagem de Vasco da Gama, em 1499, estabeleceu-se uma
hegemonia lusitana no Atlântico Sul e em seus territórios costeiros.
A partir de então se inaugura um novo caminho para as Índias,
caminho este que ficou conhecido como a Rota do Cabo da Boa
Esperança, ou simplesmente, a Rota do Cabo.
A partir de 1499 os portugueses estabeleceram a chamada Carreira
da Índia. Navios carregados de mercadores, negociantes e padres,
estabeleceram uma nova rota comercial que estreitou os contatos
entre o Ocidente e o Oriente. No entanto, os interesses dos
portugueses não se limitavam as especiarias. A esse respeito é
importante lembrar o diálogo estabelecido entre o degredado que
Vasco da Gama – o primeiro português a navegar até a Índia –
enviou à terra quando chegou a Calicute e “dois mouros de Tunes,
que sabiam falar castelhano e genovês” (Velho, 1998, p.75). Segundo
o autor do “Diário da Viagem de Vasco da Gama”, os mouros
perguntaram ao degredado o que os portugueses vinham buscar tão
longe. A essa indagaçŌo o degredado teria respondido: “viemos
buscar cristãos e especiarias” (Velho, 1998, p.75).
De forma predominante, a historiografia tem interpretado a resposta
do degredado sobre a busca de CristŌos como uma “justificativa”,
uma desculpa para os interesses econômicos dos portugueses. No
entanto, estudos mais recentes têm procurado mostrar a
importância da religião, e mais especificamente do messianismo,
como motivadores da expansão portuguesa (Menezes, 2015). Assim,
além dos inegáveis interesses despertados pelo comércio de
especiarias e a busca por metais preciosos, os ideais cruzadísticos, a
busca de uma aliança com o mítico Reino de Preste João e o desejo
de expandir a fé cristã, foram poderosos motores da expansão.
O Colégio de São Paulo em Goa
Embora membros do clero estivessem sempre presentes nos navios
portugueses, é somente em 1542 que desembarcam na Índia os
143
primeiros jesuítas. Liderados pelo padre Francisco Xavier, os
primeiros membros da Companhia desembarcaram no Oriente, em
6 de maio daquele ano, momento em que estavam acompanhados
pelo então novo governador geral, Martin Afonso de Souza.
As missões orientais, inicialmente na Índia, foram as primeiras do
Ultramar a receber os padres da Companhia e foram também as
primeiras assumidas por eles. Lá, como posteriormente também nas
demais possessões portuguesas, os inacianos fundaram e assumiram
colégios e seminários.
Na cidade de Goa, centro de propagação das atividades da
Companhia de Jesus na Índia, foi fundado, antes mesmo da sua
chegada, o Seminário de Santa Fé, que seria o germe de criação do
futuro Colégio de São Paulo. O seminário não foi fundado pelos
membros da Companhia, “mas passou a ser administrado por eles,
após instâncias das autoridades civis e eclesiásticas de Goa junto ao
próprio Francisco Xavier” (Tavares, 2004, p.112).
O seminário de Santa Fé em Goa foi fundado no ano de 1541,
portanto antes da chegada dos padres da Companhia de Jesus, por
iniciativa do então Vigário Geral, padre Miguel Vaz, unido ao padre
franciscano Diogo de Borba. De início eles se juntaram a outras
autoridades religiosas e civis da cidade para fundação da Confraria
da Conversão à Fé. Refletindo o esforço de ambos, já em 25 de julho
do mesmo ano foram publicados os estatutos da Confraria, que, na
cláusula de número 12 externava o compromisso de que ela teria a
responsabilidade de criar e manter um seminário, a fim de formar
um clero local (Tavares, 2007).
Inicialmente, a ideia era de que os franciscanos assumissem o
cuidado do seminário, tendo sido tal plano, porém, inviabilizado
com o tempo. Concomitante a esta situação, ocorre a chegada dos
jesuítas, liderados por Francisco Xavier, em 1542. Ainda nesse ano,
em carta datada de 20 de setembro, Xavier escreve a Inácio de
Loyola, demonstrando que já havia uma solicitação em aberto, por
parte do governador, para que os padres da Companhia servissem de
“edifficios espirituales deste tan santo collegio” (In: Rego, 1950,
p.37). Ou seja, já havia, naquele momento, um desejo das
autoridades civis e eclesiásticas para que os jesuítas servissem,
inicialmente, como professores no seminário.
144
Francisco Xavier não assumiu prontamente o seminário, talvez por
ainda não possuir pessoal em quantidade suficiente para isso, ou
mesmo por questionar a pertinência de tal empreitada para a missão
jesuítica no Oriente (Tavares, 2007). Ainda assim, mesmo sem
assumir a administração direta do Seminário, os inacianos foram,
paulatinamente, tornando-se maioria. Francisco Xavier, em carta
datada de 15 de janeiro de 1544, dirigida aos confrades de Roma,
afirma que deixara o Padre Paulo Camarte – ou Micer Paulo, como
era conhecido e é chamado nas cartas – no Seminário, onde ele
“tiene cargo de los studiantes”, ao passo em que ele e o padre
Francisco de Mansilhas foram para o Cabo de Camorim (In: Rego,
1950, p. 55). Segundo Tavares (2007), de início, os jesuítas
assumiram a administração espiritual do Seminário, no entanto, a
administração financeira teria sido assumida apenas depois de 1549.
A essa altura, o já citado padre Miguel Vaz estava em Portugal, em
tentativas de, junto ao rei D. João III, viabilizar as condições para
perpetuação do Seminário. Ao retornar a Goa, em 1546, o padre
havia obtido a autorização real de rendas para o Colégio, cujo
regulamento é datado de 27 de junho do mesmo ano (In: Rego, 1950,
p. 353-362).
No regulamento fica claro que os jesuítas são os escolhidos para a
administração do Colégio, mas não se coloca ainda, de forma clara, a
sua completa autoridade sobre a instituição.
No ano de 1547 faleceram os padres Miguel Vaz e Diogo de Borba,
pioneiros e idealizadores do Seminário. Em seguida, mediante
aprovações do vice-rei D. João de Castro, do superior da Companhia
de Jesus, Inácio de Loyola e do próprio rei D. João III, o total
controle do seminário passa finalmente para a Companhia de Jesus
(Tavares, 2007).
A experiência da Companhia de Jesus no comando do Seminário de
Santa Fé foi o germe de criação, em 1548, do Colégio de São Paulo, o
principal colégio jesuítico da Índia (Manso, 2009). A partir da
criação do colégio, o Seminário de Santa Fé lhe ficou anexo,
mantendo, ainda, sua vocação inicial, que era a de formar um clero
local. Já o Colégio de São Paulo tinha estrutura mais complexa, pois
“era destinado a alunos de Filosofia e Teologia da Companhia e para
todos aqueles que frequentavam outros colégios e manifestassem
capacidades para estudos de Filosofia” (Manso, 2009, p. 170).
145
Segundo Tavares (2007), o que se pretendia é que o Colégio de São
Paulo fosse o equivalente oriental, no que se refere à formação
intelectual dos alunos, ao Colégio de Santo Antão, em Lisboa.
Colégio de São Paulo, funcionamento, currículo e ciência
Como mostrado anteriormente, as ações de membros do clero que
antecederam os jesuítas foram importantes para a fundação do
Colégio de São Paulo. Nesse movimento, em 1540 foi fundada a
chamada Confraria da Santa Fé, apossando-se (por meio de decreto
régio) de bens confiscados após a destruição dos templos hindus de
Goa, na década de 40 do século XVI. Em 1542 a Confraria funda o
Seminário de Santa Fé, destinado a formar nativos para o clero local.
Quando Francisco Xavier chega a Goa e tem os primeiros contatos
com o Seminário, constata que a maioria dos alunos apenas sabia
ler, escrever e rezar. Mesmo antes da Companhia de Jesus ser
investida do controle do Seminário, Xavier já opina sobre a
instituição, aconselhando que fossem introduzidas no ensino as
matérias de Sacramentos e de Sagrada Escritura (Manso, 2005).
Inicialmente, o Seminário aceitava apenas alunos nativos puros,
deixando de fora mestiços e portugueses. Essa política de admissão
era justificada sob o argumento de que a convivência entre alunos
mestiços, portugueses e indianos poderia resultar em discussões,
brigas e desentendimentos (Wicki, 1948, p. 142). Os alunos
entravam no Seminário entre os treze e quinze anos de idade para
que fossem investidos do sacerdócio e retornassem para trabalhar
como padres em suas comunidades nativas (Manso, 2005).
Ao assumirem a administração do seminário os jesuítas deram
continuidade a essa diretriz, mantendo como objetivo do Seminário
de Santa Fé formar clérigos nativos para atuarem na Índia. Não era
objetivo preparar padres nativos regulares, mas sim padres
seculares. Tudo indica que o clero nativo, formado no seminário,
destinava-se apenas para o atendimento dos povos da Índia e, no
máximo, de mestiços. Os portugueses seriam “atendidos” apenas por
padres europeus. A corroborar essa constatação o padre Francisco
Xavier, afirma que:
“[...] había dos razones por las que nom se podia reclutar de
entre los nativos la Companhia de Jesús em la Índia:
primeira, siendo La mayoria de ellos de carácter débil, nada
se podria conseguir sin portugueses; y segunda, por que los
146
portugueses de la India solo querian confesarse com Padres
portugueses y nunca com indios e mestizos [...]” (In:
Schurhammer, 1992, p.446)
Assim, a crença na necessidade de formar um clero indígena para
atuação local fortalece a ideia da fundação do Colégio de São Paulo
em Goa. Segundo Manso (2005), o Colégio de São Paulo, ao lado do
Colégio da Madre de Deus em Macau, foram os dois principais
centros de difusão da cultura europeia na Ásia. Em sua fundação,
pretendia-se que o Colégio de São Paulo formasse intelectualmente
um clero indígena capaz de atender as comunidades cristãs em toda
região das missões asiáticas. De forma distinta ao que ocorria no
seminário, o Colégio de São Paulo passou a admitir não apenas
nativos e mestiços, mas também alunos portugueses. Além disso, o
colégio passou a admitir alunos da própria Companhia, para os
estudos de Filosofia e Teologia. Mesmo aqueles que porventura
tivessem frequentado outros colégios e manifestassem interesse e
capacidade para cursar os estudos de Filosofia poderiam ser aceitos
(Manso, 2005).
Em 1548, o então Reitor, padre António Gomes, empreendeu uma
reorganização do Colégio. Tendo por justificativa aquilo que
considerou como baixo rendimento pedagógico e moral dos alunos
indígenas, optou por separá-los dos alunos portugueses. Além disso,
para o padre António Gomes o colégio deveria ser destinado apenas
à formação superior. Esse procedimento fez com que os alunos
nativos passassem a um plano secundário e muitos desistiram dos
estudos no Colégio. Essas alterações, com o estabelecimento de
restrições aos nativos, teve grandes proporções e causou grandes
conflitos na cidade de Goa. Com a chegada do novo governador,
Garcia de Sá, ainda em 1548, a normalidade foi restaurada, e os
indígenas voltaram a ser admitidos no Colégio (Manso, 2009).
Posteriormente, António Gomes seria ainda demovido do cargo de
reitor e expulso da Companhia por Francisco Xavier.
Pela especificidade do local, no Colégio de São Paulo falava-se de
oito a dez línguas ou dialetos distintos, o que inicialmente
apresentou-se como uma barreira aos padres e professores. No
início, enquanto os alunos ainda não falavam português, as aulas
consistiam em ouvir e repetir aquilo que o professor falava. Em
alguns momentos, utilizavam-se intérpretes para facilitar a
comunicação entre os professores e alunos. Em 1548, o Padre
147
Nicolau Lancelote escreve instruções em que descreve esta situação,
uma verdadeira barreira linguística, e pede aos padres que
aprendam as línguas locais, a fim de poder lançar mão do trabalho
dos intérpretes o mais rápido possível (In: Schurhammer, 1992, p.
326-329).
O conjunto dos estudos no Colégio de São Paulo era formado por:
três classes de latinidade, um curso de Artes (Filosofia), três lições
de Teologia especulativa e moral, além de uma lição de Escritura
Sagrada. Além disso, havia também aulas abertas a jesuítas e
seculares onde se ensinavam as primeiras letras, ler, escrever e
contar.
Vale lembrar que, na época a que estamos nos referindo neste
trabalho, a Ratio Studiorum ainda não havia sido escrita e aprovada.
Não obstante, acreditamos que as experiências vivenciadas no
Colégio de São Paulo, bem como os planos de estudos que aí se
desenrolavam contribuíam conjuntamente com o grande debate de
formação de um plano ou linha geral de atuação educacional dentro
da própria Companhia. Ainda, acreditamos que as linhas gerais da
Ratio já estavam presentes na própria formação do jesuíta, no
próprio modus operandi da Companhia, de modo que se pode dizer
que os princípios fundamentais da Ratio já faziam parte da forma
como se estruturava o ensino no Colégio de São Paulo, mesmo que o
documento em si ainda não existisse em sua forma acabada (Manso,
2005). No entanto,não temos acesso a informações que permitam
um aprofundamento sobre a forma como eram conduzidos os
estudos, ou mesmo sobre a “natureza dos currículos”. Ainda a esse
respeito, lemos em Teotónio Souza que:
“Mas nas escolas mais desenvolvidas, a cargo das ordens
religiosas na Velha Goa, dos Jesuítas em Rachol, e dos
Franciscanos em Reis Magos, o currículo incluía língua e
literatura latina, conhecimentos religiosos artes liberais,
incluindo música vocal e instrumental. Havia igualmente
lições na língua vernácula, destinadas a formar catequistas,
que depois regressavam às suas aldeias e auxiliavam os
sacerdotes das suas paróquias na conversão dos outros
aldeões. Na escola de S. Paulo, para rapazes, dirigida pelos
jesuítas na cidade de Goa, prestava-se atenção especial à
aritmética, porque essa era uma área muito apreciada pelos
nativos de mente voltada para os negócios. Os relatos de
148
Jesuítas da época dizem que não era raro encontrar adultos
nas aulas de aritmética.” (Souza, 1994, p. 91)
Há divergências entre os autores a respeito do que era ensinado no
Colégio de São Paulo, e de como era ensinado. No entanto Manso
(2005) e Teotónio Souza (1994) concordam que as fontes para
compreensão dos currículos em si são poucas e escassas. Manso
(2005) afirma que, na prática, parece que existiam dois cursos, ou
duas linhas de formação no Colégio de Goa: uma destinada àqueles
que desejavam tornar-se padres, incluindo então os estudos o latim
clássico, a Filosofia e Teologia Moral. Numa segunda linha, haveria
um curso para aqueles que desejassem se tornar literatos e aprender
Matemática.
As fontes e os analistas nŌo mencionam o termo “Matemática”
diretamente. Souza (1994) no excerto supracitado aponta uma
“atençŌo especial à aritmética” enquanto em outros autores
encontramos referência a “ensinar a contar”. Segundo Baldini “toda
província missionária deveria dispor de um cursus studiorum
completo” (1998, p.205), o que no caso, englobava três anos de
Filosofia, com um ensino anual de Matemática. Segundo o mesmo
autor, porém, durante muito tempo isso não foi uma completa
realidade. Ainda assim, por vezes,
“[...] como nos colégios ibéricos, os professores de filosofia
supriram a ausência da matemática inserindo um tratado
da „esfera‟ no curso de filosofia natural, mas semelhantes
tratados elementares nŌo davam uma preparaçŌo técnica”
(Baldini, 1998, p.206).
Sendo assim, segundo o autor, ainda no século XVIII – e neste artigo
estamos nos referindo ao século XVI – as missões dependiam da
Europa no que tange ao pessoal preparado em Matemática e quase
que totalmente para professores de Filosofia e Teologia.
Considerações Finais
A atuação da Companhia de Jesus no Oriente, principalmente na
Índia, foi ampla e abrangente. Dentre todas as estratégias jesuíticas
utilizadas para a conversão dos gentios e a difusão de uma cultura
ocidental, os Colégios e Seminários se destacavam, pois estavam
sempre presentes. Lembramos que “em todo o espaço ultramarino a
Companhia propunha-se catequizar, ocidentalizar, sendo os
149
seminários e colégios meios para obter tais objectivos” (Manso,
2005, p. 174).
Os colégios funcionavam como centros de uma tentativa de
imposição da cultura ocidental. A princípio, o Seminário de Santa Fé
e posteriormente o Colégio de São Paulo cumprem esse papel ao
recrutar uma parcela da população nativa e formá-la sob matrizes de
estudos e culturas europeias, ordenar alguns como padres e, então,
enviá-los de volta às suas comunidades, esperando (e acreditando)
em uma multiplicação desse esforço de cristianização da Índia.
O Colégio de São Paulo e o Seminário de Santa Fé foram um dos
principais centros de propagação da cultura europeia na Índia. Ao
fazermos esta afirmação, não pretendemos inferir que tenha havido
uma sobreposição da cultura europeia às culturas locais, embora
esse fosse o objetivo dos jesuítas.
Nesse sentido, pode-se falar de uma interação cultural ou de uma
influência mútua de culturas entre portugueses e os povos da Índia.
A interação cultural que ocorre nos colégios não é simétrica, pois
aquele era um local privilegiado para a tentativa de imposição da
cultura cristã ocidental. Contudo, os portugueses e os próprios
jesuítas não eram imunes a cultura local. Isso pode ser observado no
fato de que os padres e professores, por força das necessidades
catequéticas, buscavam conhecer as culturas, as línguas e, dessa
forma, conseguir um contato mais efetivo com seus estudantes.
Analisar a história do Colégio de São Paulo em Goa é buscar a
compreensão da interação entre as culturas, da adaptação dos
jesuítas, da receptividade que os povos nativos da Índia
dispensavam àquelas novas culturas que os colonizadores
portugueses, padres e seculares, tentavam lhes impor.
Referências
Felipe Augusto Fernandes Borges é doutorando em História pelo
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual
de Maringá. Atualmente trabalha como Pedagogo da Universidade
Federal do Paraná em Jandaia do Sul - PR.
Contato: professorfelipeborges@gmail.com
Saulo Henrique Justiniano Silva é doutorando em História pelo
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual
de Maringá. Atua como professor da rede estadual de ensino do
150
estado do Paraná e como professor da Faculdade Alvorada em
Maringá – PR.
Contato: saulojusti@gmail.com
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152
DO EXTREMO ORIENTE AO NOVO MUNDO:
CAMINHOS DA INTERCULTURALIDADE NA
MISSIONAÇÃO JESUÍTA PORTUGUESA
(SÉC. XVI E XVII)
Fernando Roque Fernandes
O presente texto contém algumas reflexões sobre os fenômenos de
expansão marítima iniciados ainda no século XV. Ao contrário do
que afirmam alguns estudos, os chineses foram pioneiros na
navegação em grande escala. Já os portugueses, empreenderam
grandes conquistas. Com o auxílio das caravelas, instrumentos de
navegação e especialmente dos missionários, os portugueses
estabeleceram colônias e empreenderam missões religiosas.
Conforme se verá, China, Japão e Amazônia estiveram entre as
principais rotas da expansão marítima portuguesa entre os séculos
XVI e XVII. Tais regiões estabeleceram particulares relações, cada
uma a seu modo, com os projetos de missionação da Companhia de
Jesus no Ultramar.
Considerações Iniciais
Entre os séculos XV e XVII, o mundo se viu transformado por uma
expansão marítima europeia que alcançou diferentes partes do globo
terrestre. O crescimento significativo das técnicas de navegação,
aliados à conhecimentos tecnológicos trazidos do Oriente se
conformou por características socioculturais que impactaram a
humanidade. Instrumentos como o Astrolábio, originário do mundo
árabe, e a Bússola, de origem chinesa, se constituíram como
importantes elementos que possibilitaram uma ampliação das
conexões marítimas europeias. A presença de tais instrumentos na
Europa Moderna nos informa dos indícios interculturais refletidos
na articulação da cultura material de diferentes povos e como esta
interação influenciou, muitas vezes de modo significativo, os
empreendimentos expansionistas daquelas sociedades.
Expansão Marítima Chinesa no Século XV
É bem verdade que, antes mesmo de os europeus se lançarem aos
mares, os chineses já desenvolviam uma intensa navegação,
inclusive de caráter político e comercial, pelas águas africanas e
asiáticas. A China, ainda no século XV, já se constituía como
importante nação expansionista naquelas águas. O período
153
denominado de Expansão Chinesa Quinhentista detém implicações
históricas particulares no que diz respeito às conjunturas políticas,
tecnológicas, econômicas e sociais que possibilitaram àquela nação
tal empreendimento.
Zheng He (1371-1433/6) foi o mais conhecido navegador chinês
daquele período, sendo considerado por muitos estudiosos do
assunto como o maior navegador da história da China. Zheng He
teria comandado sete expedições marítimas num período de quase
trinta anos (1405-1433). Em expedições compostas por números de
marinheiros que chegavam a trinta mil homens, Zheng teria
navegado pela costa da Ásia, Oceano Índico e pela Costa Oriental da
África. Infelizmente, muitos dos registros sobre tais expedições não
estão acessíveis, assim como de muitas outras ocorridas. Daí a
dificuldade em desenvolver estudos relacionados ao período que
poderíamos denominar de tempo de ouro na história da navegação
oriental.
Quando os portugueses chegaram em 1517 e os holandeses em 1601 à
China, esta já havia se fechado para a expansão marítima em larga
escala. As razões para tal procedimento estariam relacionadas aos
constantes ataques de piratas, inclusive japoneses, que saqueavam
suas embarcações. Há relatos também de profundas reformas
ocorridas durante o Império da Dinastia Ming (1368-1644).
Contudo, apesar das mudanças na relação com o mundo externo, o
Extremo Oriente não ficaria fora da expansão europeia que se
processavam a partir do século XV, empreendida, especialmente,
por Portugal e Espanha. Mesmo aparentemente desconectadas, estas
diferentes nações estabeleceriam relações por outros caminhos.
Expansão Marítima Europeia
O contexto da expansão marítima europeia, iniciada
concomitantemente à retração na navegação marítima chinesa, está
relacionado a diferentes fatores ocorridos na Europa: Renascimento
Intelectual Italiano, Reformas e Contrarreformas Religiosas,
“Descoberta” do Novo Mundo, expansŌo marítimo-comercial
mercantilista, descoberta de novas rotas marítimas para as Índias,
dentre outros fatores. No que concerne às reformas e
contrarreformas religiosas a expansão e o rápido crescimento do
protestantismo se constituíram como elementos radicais na
percepção religiosa medieval que se processavam deste o colapso do
Império Romano.
154
Dentre as alternativas encontradas pela Igreja Católica para a
manutenção da religiosidade que conformava a sua base, emergiram
procedimentos como a Restauração do Tribunal da Inquisição, a
criação do Índex de livros proibidos e a criação da Companhia de
Jesus. Este último mecanismo demonstrou, ao longo do tempo, ser
uma ferramenta indispensável, rapidamente conectada aos
interesses colonizadores dos países católicos ibéricos.
A Companhia de Jesus na Expansão Marítima
A chegada dos portugueses no Extremo Oriente concorreu para um
processo de evangelização cristã em larga escala. Os desafios
demonstraram desde cedo serem dos mais diversos. A Companhia
de Jesus se apresentou como a ordem religiosa melhor preparada
para desempenhar a funçŌo de “converter” novos fiéis à fé Católica.
Bem longe dali, no Novo Mundo, também se processavam grandes
empreendimentos coloniais. A cobiça dos impérios católicos fez com
que a Igreja dividisse o novo mundo. A Bula Inter Coetera, assinada
em 1493, por não promover os anseios portugueses, foi no ano
seguinte substituída pelo Tratado de Tordesilhas (1494). O novo
mundo, dividido entre Portugal e Espanha refletia a busca material
daquelas potências e, por outro lado, os anseios de manutenção da fé
religiosa ameaçada pelo protestantismo.
Por várias partes do mundo, os portugueses, religiosamente,
representados pela Ordem Jesuíta, mas não somente, empreendiam
uma colonização com bases cristãs que, aliava os interesses de
salvação aos interesses mercantis, conectando a metrópole e suas
colônias por razões comerciais e espirituais. Poderíamos dizer que a
salvação de muitas almas submetidas às autoridades coloniais,
especialmente na Ásia, África e na América ocorreu numa
conjuntura de grandes mudanças no mundo ocidental. Muitos dos
novos conversos cristãos foram levadas a crer que a salvação era
basicamente sinônimo de trabalho.
Obviamente, que não se pode generalizar tais afirmações, e muito
menos reduzir a importância das missões jesuítas, assim como seu
significado, à questões unicamente políticas e mesmo econômicas.
Há um elemento espiritual que dimensiona o sucesso da Companhia
de Jesus por onde quer que empreendesse a missionação.
Ressalvadas as características estratégicas da ordem Jesuíta, a
apropriação do significado desta instituição religiosa tendia a ser
155
condicionada ao próprio ambiente cultural no qual se inseria. De
todo modo, a relação entre salvação e trabalho se projetava como
pano de fundo da expansão marítima que se processou no Mundo
Moderno.
Jesuítas na China
Conforme aponta Palazzo (2011), os jesuítas iniciaram a missionação
na China a partir de Macau. Esta cidade se constituía como
entreposto comercial português desde a chegada destes na região,
em 1517. A partir de Macau, os jesuítas teriam se constituído como a
comunidade religiosa mais influente da região. Ainda para Palazzo
(2011), em Macau, “a Companhia de Jesus estabeleceu uma base
importante não apenas para a missionação [...] mas para, a partir
dela, penetrar no território chinês, no coração do Império, chegando
até Beijing”.
Apesar de se constituírem como importantes intelectuais, aliados
dos confucionistas e articulados com a população local, os jesuítas
alcançaram seus empreendimentos missionários apenas em pequena
escala. O lugar que os inacianos passaram a ocupar, após sua
inserção no ambiente cultural chinês rendeu-lhes certo prestígio e o
reconhecimento de grandes intelectuais. Tendo a catequese como
objetivo maior, a grande contribuição dos jesuítas em Macau esteve
mesmo relacionada às suas atividades acadêmicas e artísticas.
As pesquisas de fôlego que dizem respeito a este capítulo da história
jesuítica ainda são escassas. De todo modo, é possível considerar
que, na China, apesar de se constituírem como importantes agentes
culturais intermediadores entre os europeus e os chineses e de
serem reconhecidos por seus conhecimentos científicos e
habilidades artísticas, os inacianos também passaram por profundas
influências da cultura chinesa.
Em comparativo com as colônias portuguesas na América, o
estabelecimento jesuíta na China foi dimensionado pelo modo de
governo daquele lugar. Se na América os portugueses estabeleceram
a colonização a partir das relações diversas situadas entre as
múltiplas organizações indígenas localizadas no território e que
detinham certa autonomia umas das outras, permitindo aos
portugueses instaurarem alianças e/ou conflitos em escalas locais e
ir conquistando o território, na China, os portugueses, assim como
os jesuítas se depararam com um vasto Império, governado por uma
156
forte e consolidada dinastia, especialmente no decorrer dos séculos
XVI e XVII.
Jesuítas no Japão
Conforme aponta Hichmeh (2013), os primeiros contatos entre
portugueses e japoneses ocorreram, também no século XVI. No
entanto, a chegada dos portugueses ocorreu em um contexto de
intensos conflitos. Desde fins do século XV, o Japão passava por
uma situaçŌo de “guerra civil”, iniciada por conta do colapso do
poder central, dando vazão ao fortalecimento de poderes locais. À
época, a figura do imperador detinha uma representação de caráter
simbólico.
A chegada dos portugueses concorreu para acirrar as disputas.
Muitos poderes locais, intencionados a acessar as armas de fogo
portuguesas, a estes se aliaram para fortalecer seus poderios bélicos.
Apesar dos contatos pacíficos iniciais, estes não duraram por muito
tempo. Os conflitos foram desencadeados, justamente, pela chegada
dos jesuítas ao Japão, em 1549. Conforme aponta Hichmeh (2013), a
chegada do padre Francisco Xavier inauguraria o período
denominado por Charles Boxer (1951) de “século cristŌo do JapŌo”.
Esse período foi marcado por três fases: 1. O sucesso da missionação
jesuíta; 2. O fortalecimento da crítica japonesa quanto aos
procedimentos concernentes à fé cristã e 3. A perseguição dos
jesuítas por conta de suas práticas contraditórias à tradição
japonesa.
Procedimentos de reunificação iniciados a partir desse período
concorreram para o enfraquecimento do prestígio alcançado pelos
jesuítas no primeiro século da presença da ordem no Japão. Apesar
das tentativas de manutenção das relações com os portugueses, sem
que se incluísse aí o aspecto religioso, e concorrendo para a expulsão
dos jesuítas, o governo japonês não empreendeu um processo de
perseguição aos inacianos, o que lhes permitiu permanecerem ali
oficialmente até 1640, quando um édito imperial proibiu qualquer
prática cristã em todo o império japonês.
Com a proibição do culto cristão em terras japonesas e a
oficialização do confucionismo como doutrina oficial, os
ensinamentos dos inacianos foram gradualmente adquirindo
diferentes representações.
157
Jesuítas na Amazônia Portuguesa
As missões religiosas desempenharam papel importante no processo
de cooptação dos índios na Amazônia. O auxílio no processo de
expansão territorial, a arregimentação de mão de obra para
desempenhar atividades no dia a dia e o processo de
estabelecimento das fronteiras coloniais, foram algumas das funções
desempenhadas pelas ordens missionárias. Hoornaert (1990)
chamaria o período compreendido entre 1607 e 1661 de “o período
profético das missões na Amazônia Brasileira”. Para Moreira Neto
(1990), o período profético” teria ocorrido entre os anos de 1607 e
1686. O autor observou que os jesuítas foram os pioneiros nas
entradas que constituiriam os territórios pertencentes ao Maranhão
e Grão-Pará.
A presença dos jesuítas na Amazônia passaria a ser constante a
partir de 1637 quando o padre jesuíta Luís Figueira, vindo do
Maranhão, chegaria a Belém e daria início ao trabalho missionário,
“percorrendo o Tocantins, o Pacajá e o Baixo Xingu” (Moreira Neto,
1990). Foi neste mesmo ano que os dois irmãos leigos espanhóis e
padres franciscanos, Brieva e Toledo, chegaram a Belém descendo
da cidade de Quito, no Vice-Reino do Peru, pelo rio Napo com
apenas seis soldados em uma canoa, seguindo todo o curso do “Rio
de las Amazonas” (Rabelo, 2015). A chegada dos franciscanos
espanhóis teria estimulado os colonos portugueses a facilitar o
assentamento de missionários oriundos de Portugal na Amazônia
(Fernandes, 2015).
A partir desses acontecimentos, os colonos passaram a dar maior
liberdade aos missionários jesuítas, especialmente no que envolvia o
desenvolvimento de suas missões. Aproveitando tal ocasião, os
jesuítas logo fundaram casas em São Luís, Belém e Cametá (Moreira
Neto, 1990). O crescimento econômico na região e a presença dos
portugueses acentuou conflitos que já se processavam antes mesmo
da chegada dos europeus. Com a chegada destes, os territórios e suas
potencialidades também passaram a ser cobiçadas em perspectivas
mercantilistas, o que concorreu para a escravidão dos nativos.
A forma como este processo ocorreu em fins do século XVII
demonstra que os jesuítas sempre foram a força responsável por
grande parte da missionação na Amazônia, assim como a ordem
detentora de maior prestígio político junto à Coroa. É bem verdade
que passaram por alguns momentos angustiantes. Foram expulsos
158
da região em 1661 e em 1684, mas retornaram. A partir de 1686,
empreenderiam grandes projetos de missionação que só
derrocariam com as reformas pombalinas da segunda metade do
século XVIII. Mas, apesar dos conflitos políticos, econômicos e
religiosos entre colonos portugueses, a presença estrangeira também
se constituiu como importante tônica dos embates que envolveram,
inclusive, povos indígenas pelas conquistas da Amazônia no século
XVII.
Considerações Pontuais
Com base nas informações apresentadas, pode-se considerar que os
jesuítas se constituíram como importantes elementos da expansão
marítima portuguesa no período moderno, tendo conectado
diferentes partes do mundo a partir de seus ideais de missionação.
Deve-se também considerar que a expansão marítima portuguesa foi
antecedida por um processo expansionista de proporções
intercontinentais iniciado anos antes pelos chineses.
Tais processos concorreram para a conexão de diferentes partes do
globo entre os séculos XV e XVII da era cristã. Observa-se que
apesar de se constituir como elemento importante de conexão, tendo
se estabelecido em importantes regiões do Extremo Oriente, as
conjunturas nas quais os missionários jesuítas empreenderam a
evangelização foram dimensionadas pelas características políticas,
econômicas e culturais de povos com os quais estabeleceram
contatos.
As diferenças dos resultados alcançados na China, no Japão e na
Amazônia Portuguesa, conforme se pôde observar, foram
condicionados por características sócio históricas que estavam para
além das bases criadas pela Companhia de Jesus. Esbarrando
naquilo que poderíamos denominar de barreiras culturais, em
alguns empreendimentos, os jesuítas demonstraram a incapacidade
de construir um império cristão de proporções globais naquele
período.
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161
162
ENTRE COLÔNIA, GUERRA INTERNA E DIVISÃO
DO PAÍS: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO DA
CORÉIA NO SÉCULO XX
Flávio Moisés Soares
A Coréia do Norte na mídia internacional sempre relacionada a
ameaças de mísseis, conflitos com outras nações e o governo guiado
a mão de ferro pelo líder Kim Jon-il; enquanto a Coréia do Sul, lida
com as consequências de um impeachment de sua presidente
envolvida em escândalos de corrupção. O intuito deste artigo é
mostrar como uma, antes unificada, península se separou em dois
regimes político-econômicos tão diferentes entre si.
Em resumo a história coreana do século passado é o período sobre
domínio japonês, seguido pela Guerra da Coréia e finalizado com
reestruturação e ascensão.
Início do século XX
Por uma posição estratégica, a península coreana sempre foi
desejada pelas potencias asiáticas (China, Japão e Rússia). Sendo
território sobre forte influência, cultural (confucionismo), religiosa
(budismo), econômica e politicamente chinesa durante boa parte de
sua história (MONTEIRO, 2014, p. 14); as diversas invasões
japonesas à península coreana durante a história, causaram
dificuldades para os nipônicos estabelecerem relações com seu
vizinho mais próximo, por fim em 1876 um trato conseguiu ser
firmado (YAMASHIRO, 1986, p.231).
O Japão foi controlado por muito tempo pelos Shogunatos, sistemas
de governo assemelhados aos feudos da Idade Média Ocidental, até
que em 1853 uma esquadra norte americana, forçou a abertura dos
portos, depois de tentativas recusadas da Rússia e Holanda para tal
fato, e uma coleção de eventos levou ao final do período Shogun e
início do período Meiji. As mudanças político-sociais instauradas,
pelo príncipe Mutsuhito, com intuito de modernizar o país nipônico
levou a mudanças drásticas na vida da população; ocorreram uma
reforma agrária, a criação do Iene, do Banco do Japão, o surgimento
dos zaibatsus – empresas viriam a ser grandes conglomerados
industriais e financeiros (como a Mitsubishi, Mitsui, entre outros)
que eram clãs familiares durante o período anterior, criação do cargo
de dajo-daijin (equivalente ao primeiro-ministro) (YAMASHIRO,
163
1986, p.212-4) . A modernização chegou, como era de se esperar, aos
militares que modernização o exército japonês, assim aposentando,
de fato, os samurais e as katanas (espadas samurais, símbolos de
seu status na sociedade feudal).
Durante o período de 1894 e 1895 a Primeira Guerra Sino-japonesa,
que ocorre na Coréia, se desenrola, coreanos se dividiam em
apoiadores da cooperação com o Japão e xenófobos (como diz
Yamashiro, 1986), as tensões entre os primeiros, logicamente,
apoiados pelo Império do Sol Nascente e os segundos apoiados pelo
Império Celeste (China) levaram ao conflito armado. A vitória foi
dos japoneses, que deixaram a Coréia independente da influência
chinesa, anexaram territórios e abriram rios chineses para o
comercio estrangeiro. Ainda segundo Yamashiro (1986) o mundo
todo foi pego de surpresa por essa vitória. “Em 1987, o Rei Gojong
pressionado pelas forças externas e pela opinião pública coreana
pró-Independência, fundou o Grande Império Coreano, anunciando
o fim dos laços políticos como um Estado Tributário da Dinastia
Qing” (MONTEIRO, 2014, p. 14-15) marcando assim o final da
influência direta chinesa na política coreana de maneira direta,
entretanto o governo socialista chinês vai ser um grande
influenciador e aliado para a formação da Coréia do Norte.
Conflitos de interesses entres súditos dos czares e aqueles que
serviam ao Imperador Meiji levaram a Guerra Russo-japonesa, de
1904 a 1905, pelo controle da Coréia e da Manchúria. O império dos
Czares teve que lidar com crises sociais internas, frota naval velha e
desatualizada, enquanto os japoneses contavam com uma frota mais
poderosa e moderna, embora com navios menores que seus
inimigos. Como resultado final o Império do Sol Nascente venceu
essa guerra, mostrando seu poderio de potência. A Rússia ficou
desprestigiada perante o globo. “O JapŌo, por sua vez, firmou um
tratado com a Coréia e, depois de novas negociações, resolveu
anexar a península, com o consentimento do seu governo (1910) ”
(YAMASHIRO, 1964, p. 163), era a firmação do império nipônico no
continente.
Período de colônia
O período como colônia é contrastante para o povo coreano, por um
lado os colonizadores investiram na construção de indústrias
(principalmente no norte da península), estradas, portos e ferrovias;
por outro lado, o governo foi extremamente autoritário e violento
164
com a oposição e impunha políticas para a niponização dos coreanos
(como a obrigatoriedade de uso de nomes japoneses e o ensino da
língua dos conquistadores). Visentini et al (2015) nos dizem que as
políticas aplicadas criaram uma discriminação racial que colocava os
coreanos como cidadãos de segunda classe em seu próprio país (pág.
33). A metrópole estabeleceu uma divisão de trabalhos, ao norte por
sua geografia e recursos geográficos foi concentrado a para a
indústria pesada e atividades de mineração, ao sul, pelos mesmos
motivos, foi responsável pela produção de alimentos, têxteis e outros
bens de consumo (Visentini et al, 2015; Monteiro, 2014). A
construção de uma rede de ferrovias e rodoviárias e rotas marítimas
acabam com o problema de isolamento dentro da península.
Alguns grupos apoiavam os japoneses e as suas decisões, entre uma
delas a de enviar coreanos para trabalhar como escravos em outras
colônias ou no Japão (MONTEIRO, 2014, p. 15). Em Gen: Pés
descalços – Hadashi no Gen ( だし ゲン) no original – de Keiji
Nakazawa (2002), um dos personagens sobreviventes a bomba
atômica é um coreano de nome Pak, ele é ridicularizado pelos
nativos da cidade e até mesmo o protagonista se nega a ser visto com
ele pela cidade antes dos eventos trágicos que colocaram Hiroshima
na história mundial, mas depois da explosão da bomba o coreano
ajuda Gen e outros sobreviventes. Essas memórias de Nakazawa nos
mostram a extradição de coreanos para o território insular japonês
para fazer trabalhos braçais e as relações que colocavam os coreanos
como humanos de segunda categoria aos olhos da população
japonesa. É desse período que muitas mulheres serão usadas como
mulheres de conforto para os soldados japoneses, em outras
palavras, eram moças e mulheres retiradas de suas cidades – por
maneiras coercitivas, enganadas com propostas de emprego ou
raptadas (OKAMOTO, 2013, p. 94-95) – para serem usadas de alivio
sexual para os soldados da metrópole nos lugares onde se
instalavam; situação delicada que gera desconforto entre as nações
até os dias atuais (BBC BRASIL, 2015; FELDEN, 2013)
Entre as revoltas da população - por vezes com inspiração
estadunidense por outras com chinesa, mas ambos com forte
espírito nacionalista visando à expulsão do invasor - existiam grupos
que apoiavam o colonialismo imposto ao povo coreano.
165
Guerra da Coréia
Com a derrota dos japoneses foi devolvida a independência à Coréia;
como segundo país mais industrializado da Ásia na época (a antiga
metrópole era o primeiro), mas com uma moral nacional abalada e
fisicamente marcada. O contexto global era de um mundo pósguerras com tensões políticas em alta e acordos diplomáticos
delicados sendo estabelecidos. O mundo estava sendo divido em
duas ideologias: o capitalismo e o comunismo (tendo como seus
maiores entusiastas os Estados Unidos da América e a URSS,
respectivamente); em outras palavras era o início da Guerra Fria. A
população estava assombrada pelo fantasma atômico, representado
pelo medo das potencias usarem armas nucleares em conflitos
próximos ou para mostrar superioridade - durante a Guerra das
Coréias se cogitou, pelo lado estadunidense, usar tais armas, porém,
felizmente, essa ideia foi logo abandonada.
Como nos é dito por Visentini et al (2015), aquilo que viria a ser a
Coréia do Norte já estava com bases solidas do que viria a ser o
socialismo Zuche – proposta de socialismo auto suficiente,
representada por uma política de autopreservação que não pretende
ser imposta a outras nações, embora tenha cooperação com vários
estados em desenvolvimento (VISENTINI et al, 2015, p. 24) – , Kim
Il Sung (avô do atual presidente da Coréia do Norte, Kim Jong-um) e
vários membros do futuro Partido dos Trabalhadores já haviam
estabelecidos contatos e apresentado as ideias socialistas,
principalmente vindas da China, a incontável número pessoas,
principalmente no norte da península.
De 1945 a 1949 a península coreana foi dividida entre os russos e os
estadunidenses, por acordos diplomáticos decididos anteriormente,
é de importância dizer que a nação não foi consultada sobre as
diversas decisões tomadas pelos novos invasores, o que resultou em
uma desaprovação do povo que fez protestos pedindo autonomia,
alguns grupos pegaram em armas para tal. Com a marca de divisão
feita no Paralelo 38, o norte ficou sobre a influência da URSS e o Sul
sobre a influência dos EUA, obviamente cada um dos ocupadores
adotaram políticas para que a população ficasse de acordo com sua
visão
econômica-política
(socialismo
e
capitalismo,
respectivamente). Era esperado um processo para reunificação da
Coréia, mas a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não
permitiu que as Nações Unidas acompanhassem o processo para
eleições únicas, em 10 de maio de 1948 a República da Coréia
166
(Coréia do Sul) convocou eleições para presidente, com a vitória de
Syngman Rhee, processo que a URSS também foi contra, em 25 de
agosto do mesmo ano a República Popular Democrática da Coréia
(Coréia do Norte) convocou suas eleições presidenciais, com a
vitória de Kim Il Sung.
Como ambos os presidentes eleitos queriam unificar o país segundo
sua ideologia, houve conflitos e perseguições tanto no Norte como
no Sul, e a região do Paralelo 38, se tornou uma área de conflitos
armados. No final de 1948 e início de 1949 os ocupadores retiraram
seus exércitos da península, deixando um sul sem armas e
treinamento e um norte com treinamento de guerrilha – Os nortes
coreanos durante o período de ocupação nipônica tiveram muito
apoio da China e da URSS para enfrentar os colonizadores, esse
apoio vinha como armas, treinamento em táticas de guerrilha,
abrigo e esconderijo para foragidos (VISENTINI et al, 2015;
FERREIRA, SENHORA, 2013) e armas soviéticas. No ano seguinte
surgem os primeiros conflitos da Guerra das Coréias.
Pequenos conflitos na região da fronteira já haviam acontecido, mas
nada que deflagrasse uma guerra. O exército do Norte, com grande
apoio chinês foi o primeiro a se mover em manobras de guerra, em
cerca de três dias depois Seul foi tomada em 1950. A invasão
orquestrada pelo Norte chamou a atenção dos Estados Unidos para o
conflito que se formara e o receio do avanço do comunismo fez com
que interviessem em favor do sul. Conflitos e grandes batalhas se
seguiram no correr do ano, o apoio norte americano fez com que o
Sul recuperasse boa parte do seu território e conquistasse Seul (em
25 de setembro de 1950). As vitorias nos avanços do Sul levou até a
região da fronteira – e General Douglas MacArthur recebeu a
autorização do presidente Truman para seguir além do Paralelo 38,
enquanto a China fez um aviso dizendo que se o exército americano
ultrapassasse a fronteira iria intervir diretamente.
As forças chinesas foram mobilizadas por Mao Tsé Tung, em
outubro de 1950, para conflito com as forças das Nações Unidas,
lideradas pelos americanos - aqui cabe salientar que a intervenção
chinesa acontece também por retaliação ao governo americano por
intervirem na questão entre o governo da República Popular da
China e a Republica Nacionalista da China (Taiwan). Em 19 de
outubro de 1950, Pyongyang, capital do Norte, foi tomada pelas
forças do sul. O governo soviético a partir desse ponto mudou de
167
opinião e começou a intervir mais ostensivamente no conflito,
destacando aviões, soldados e mais munições e suprimentos para
apoiar os norte-coreanos e chineses. A consequência de todas essas
atitudes foi a derrota das forças da ONU em vários fronts até que se
estabelecessem pela volta da fronteira entre as Coréias em meados
de dezembro.
No início de 1951, Seul foi tomada pelos norte coreanos novamente.
O acumulo de derrotas fez com que Mac Arthur considerasse o uso
de armas nucleares contra a China e a Coréia do Norte, mas a
chegada do general Matthew Ridgway fez com que mudasse de ideia.
Batalhas se seguiram, novamente, com os civis sofrendo os maiores
impactos. MacArthur foi afastado do cargo e investigado por ter
desobedecido a ordens presidenciais e infligidos a constituição
americana, general Ridgway e depois o general James van Fleet
assumiram o controle das forças dos capacetes azuis.
Em julho de 1951, começaram os diálogos para uma trégua, ao
fundo, bombardeiros assolavam o solos e famílias de ambos os lados
do Paralelo. Por mais dois anos esse impasse (sem avanços notórios
em campo de batalha e uma população passando por uma crise
humanitária) se seguiu; o armistício foi oficialmente assinado em 27
de julho de 1953, mas como foi dito acima, nenhum acordo de paz
entre as Coréias foi assinado até os dias atuais.
Hobsbawn (1995) considerou a Guerra das Coréias um subproduto
da Segunda Guerra Mundial. Considerada uma guerra civil
(DZELEPY E STONE, 196?), o evento que levou a população a
enfrentar irmãos e vizinhos (KIM, 1991) em defesa de ideologias.
É possível dizer que o conflito corrido na península coreana era uma
"encarnação" da Guerra Fria. Algo semelhante, guardadas as devidas
proporções, viria a acontecer no Vietnã (1955-1975), novamente o
sofrimento dos civis é gritante e marcante para o mundo todo.
Pós-Guerra e tempos de ―paz‖
Assinado o armistício, ambos lados começaram a se reconstruir, o
ônus da guerra para os dois lados foi dois países destruídos e em
ruínas. Dessas ruínas, materiais e morais, surgiu um forte
sentimento de nacionalismo e orgulho, tanto ao norte como ao sul. O
contato com tantos grupos étnicos, em especial os estadunidenses
(que ficaram em território sul-coreano mesmo depois do armistício),
168
como o ocorrido no referido século ajudou a formar o espírito
nacionalista.
A Coréia do Sul enfrentou tempos ditadura militar entre 1960 e 1987
(MONTEIRO, 2014, p. 18); embora o governo suprimisse qualquer
oposição a ele, o desenvolvimento econômico foi uma marca forte do
período. “Laços entre o Estado, o setor bancário e os chaebols
(conglomerados de empresas multinacionais que atualmente
dominam a economia sul-coreana e que prosperaram no período
pós-guerra) foram a chave-mestra para dar suporte a tais planos
[planos quinquenais]” (MONTEIRO, 2014, p.18), tais acordos
levaram a um rápido desenvolvimento econômico. Nos anos de
1990, o país ao sul da península já constava como um dos mais
desenvolvidos do mundo. Esse desenvolvimento econômico, levou o
nome de “milagre do rio Han”. Em 1987, a democracia volta ao
poder e um novo momento de abertura cultural se forma, em pouco
tempo o fenômeno da onda Coreana – hallyu (hangul: 한류),
movimento cultural de exportação de cultura (filmes, dramas,
novelas e música) para o mundo, começando pela Ásia – começasse
a se espalhar pelo mundo.
O período entre o armistício e cancelamento do mesmo pela Coréia
do Norte em 2013 (TREVISAN, 2013) foi marcado por um grande
desenvolvimento sul coreano, após investimentos pesado em
educação, se tornando uma dos Novos Tigres Asiáticos. Por outro
lado, o país acima do Paralelo 38 se fechou de contatos com o
mundo exterior voltando a mídia nos dias.
Referências
Flávio Moisés Soares é mestrando em História, pela Universidade
Estadual de Paulista (UNESP) campus de Assis, orientando do Prof.
Drº. Wilton Carlos Lima Da Silva.
Contato: flaviomoisessoares@gmail.com
BBC BRASIL. A vida das coreanas escravizadas por japoneses em
bordéis militares durante a Segunda Guerra. In BBC Brasil. 28 de
dezembro de 2015. Disponível em
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151228_escrav
as_sexuais_japao_rs>. Acessado em 22 de novembro de 2016
DZELEPY, E. N. STONE, I. F. A verdade sobre a Guerra da
Coréia. Rio de Janeiro: Andes Editorial, [196? ].
169
FELDEN, Esther. "Muitas meninas cometiam suicídio", relata exescrava sexual na 2ª Guerra. In DW. 03 de setembro de
2013.Disponível em < http://p.dw.com/p/19aQm> acessado em 22
de novembro de 2016.
FERREIRA, Rita de C. e SENHORAS, Eloi. Guerra da Coréia:
Sessenta anos de um conflito latente (1953-2013). In Folha de Boa
Vista. Boa Vista, 27 de maio de 2013. Disponível em <
http://works.bepress.com/eloi/301/ >. Acessado em 18 de agosto de
2017.
HOBSBAWN, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 19141991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KIM, Marcos. Bala não tem olho: a guerra civil da Coréia contada
pelos ex-combatentes. Trabalho de Conclusão de Curso Departamento de Jornalismo e Editoração/Escola de Comunicações
e Artes, USP, 1991.
MONTEIRO, Daniela de S. M. A Onda Coreana e a
Representação do Passado em ―Reply 1997‖. Trabalho de
Conclusão de Curso de Estudos de Mídia, Universidade Federal
Fluminense, 2014.
NAKAZAWA, Keiji. Gen: pés descalços. Vol.1-4. São Paulo:
Editora Conrad do Brasil. 2002. Quarta Edição.
OKAMOTO, Julia Y. As 'mulheres de conforto' da Guerra do
Pacífico. In Revista de Iniciação Científica em Relações
Internacionais, v. 1, p. 91-108, 2013.
VISENTINI, Paulo G. F. PEREIRA, Analúcia D. MELCHIONNA,
Helena H. A Revolução Coreana: o desconhecido socialismo
zuche. 1ª edição. São Paulo: Editora UNESP, 2015
TREVISAN, C. Coréia do Norte revoga armistício que pôs fim à
guerra com vizinho do Sul. In O Estado de São Paulo. Pequim, 6
de março de 2013. Disponível em <
http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,Coréia-do-norterevoga-armisticio-que-pos-fim-a-guerra-com-vizinho-do-sul-imp,1004992> acessado em 14 de agosto de 2017.
YAMASHIRO. José. Japão: passado e presente. 2ª edição. São
Paulo: IBRASA, 1986.
YAMASHIRO. José. Pequena história do Japão. 2ª edição. São
Paulo: Editora Herder, 1964.
170
“POVO SEM HONRA, COVARDES, BRUTAIS E
CRUÉIS”: REPRESENTAÇÕES DOS JAPONESES
NO JORNAL PARAENSE „FOLHA VESPERTINA‟
(1942-1945)
Geraldo Magella de Menezes Neto
Victor Lima Corrêa
Introdução
“Povo sem honra: Os japoneses, além de covardes, de
brutais e de cruéis, ignoram todos os sentimentos de
honra.” (FOLHA VESPERTINA, 1 fev. 1944, p. 1).
Na manchete acima, o jornal paraense Folha Vespertina publicava
uma notícia no ano de 1944 de que o então secretário de Estado
norte-americano Cordell Hull acusava o Japão de violar todos os
tratados internacionais sobre prisioneiros, no contexto da Segunda
Guerra Mundial. Hull denunciava as crueldades e torturas as quais
eram submetidos os prisioneiros americanos e filipinos, que estavam
sob o domínio dos japoneses. Notícias como essa, muitas de
correspondentes internacionais, eram amplamente divulgadas pelos
jornais brasileiros na época da Segunda Guerra. O que nos chama a
atenção é o destaque negativo dado aos japoneses nas manchetes,
sobretudo a partir de janeiro de 1942, quando o Brasil rompe
relações diplomáticas com os países do Eixo após o ataque japonês à
base norte-americana de Pearl Harbor. Nesse sentido, o objetivo
deste texto é analisar as representações dos japoneses no jornal
paraense Folha Vespertina, entre os anos de 1942 e 1945.
O jornal Folha Vespertina e o contexto do Estado Novo
O jornal Folha Vespertina, de Belém do Pará, foi fundado pelo
diretor Paulo Maranhão. Seu primeiro número foi publicado em 1º
de fevereiro de 1941, sendo o segundo jornal do grupo Folha, cujo
principal era o Folha do Norte. O jornal era diário, e circulava no
horário das 11 horas ou das 16 horas, criado talvez em função do
volume de notícias que chegavam sobre os acontecimentos da
Segunda Guerra, sendo necessário um jornal que atualizasse as
notícias pelo turno vespertino. O slogan adotado pelo jornal era:
“vespertino, quotidiano e independente”. (BIBLIOTECA PÚBLICA
DO PARÁ, 1985, p. 271).
171
A Folha Vespertina surgiu no contexto do regime do Estado Novo
(1937-1945) de Getúlio Vargas. Um dos órgãos do regime era o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Criado em
dezembro de 1939, sob a direção de Lourival Fontes, o DIP viria
materializar toda a prática propagandista do governo, abarcando os
setores de divulgação, radiodifusão, teatro, cinema, cinema, turismo
e imprensa. Em relação à imprensa, esta era subordinada ao poder
público conforme dispositivo da Constituição de 1937. Francisco
Campos, autor da Constituição, defendia a função pública da
imprensa, argumentando que o controle do Estado é que irá garantir
a comunicação direta entre o governo e o conjunto da sociedade.
(VELLOSO, 2015, p. 158)
Assim, o regime impôs a censura à imprensa, que deveria, segundo
Maria Celina D‟Araujo, “ter a funçŌo pública de apoiar o governo e
auxiliar no projeto nacional”; quem assim nŌo agisse “poderia ser
punido inclusive com a desapropriaçŌo de seus bens.” (ARAUJO,
2000, p. 38). Tania Regina de Luca aponta que tentava-se “tanto
cercear a divulgaçŌo daquilo que nŌo fosse de interesse do poder”,
quanto ”enfatizar as realizações do regime e sua adequaçŌo à
realidade nacional, sem se descurar da promoção pessoal e política
do chefe do governo.” (LUCA, 2013, p. 172).
Nesse contexto, a Folha Vespertina era mais um dos jornais que
sofriam a censura do regime varguista, e, num período como a
Segunda Guerra, deveria publicar notícias de acordo com as políticas
adotadas pelo governo. Dessa forma, a partir de 1942 o discurso
nacionalista passa a ser mais forte, com o Brasil sendo divulgado
como um país que lutava pela liberdade junto aos países do grupo
dos Aliados (EUA, Inglaterra, URSS) contra o Eixo (Alemanha, Itália
e Japão), representados como países totalitários que queriam
subjugar todas as nações.
Segundo Tania Regina de Luca, o pesquisador dos jornais precisa
“dar conta das motivações que levaram à decisŌo de dar publicidade
a alguma coisa”, “atentar para o destaque conferido ao
acontecimento” e verificar se o “assunto retorna à baila ou foi
abandonado logo no dia seguinte”. (LUCA, 2005, p. 140).
Relacionarmos as notícias sobre os japoneses na Folha Vespertina
com a política do Estado Novo nos ajuda a entender as
172
representações negativas dos japoneses amplamente difundidas pelo
jornal paraense.
Representações dos japoneses na Folha Vespertina
Para analisar as representações dos japoneses na Folha Vespertina,
nos baseamos teoricamente nas ideias do campo da história cultural,
de Roger Chartier. Para Chartier, a história cultural tem por
principal objeto “identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler”. (CHARTIER, 1990, p. 16-17). Um conceito importante
na proposta de Chartier é o de “representaçŌo”, que se refere às
“representações do mundo social”, que seriam as “classificações,
divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social
como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do
real.” Chartier aponta ainda que as percepções do social produzem
“estratégias e práticas” que tendem a “impor uma autoridade à custa
de outros”, a “legitimar um projeto reformador” ou a “justificar, para
os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas”. (CHARTIER,
1990, p. 17).
Entendemos que a construção negativa da imagem dos países do
Eixo, inimigos do Brasil, era um meio do jornal, seguindo a política
do Estado Novo, de estimular o nacionalismo, promovendo a união
interna contra um inimigo comum. E quais as formas de representar
especificamente o japonês?
Em primeiro lugar, o recurso mais utilizado é o de evidenciar as
diferenças do japonês em relação ao ocidental na questão da raça, o
japonês é classificado como sendo da “raça amarela”. Conforme Lilia
Schwarcz, o termo raça é introduzido na literatura mais
especializada em inícios do século XIX, por Georges Cuvier,
“inaugurando a ideia da existência de heranças físicas permanentes
entre os vários grupos humanos.” (SCHWARCZ, 1993, p. 63). Um
dos teóricos raciais do século XIX é Ernest Renan (1823-1892), que
apontava a existência de três grandes raças: branca, negra e amarela.
Para Renan, os grupos negros, amarelos e miscigenados “seriam
povos inferiores não por serem incivilizados, mas por serem
incivilizáveis, nŌo perfectíveis e nŌo suscetíveis ao progresso.”
(RENAN apud SCHWARCZ, 1993, p. 82).
No contexto da Segunda Guerra, o japonês é representado como
“raça amarela”, e por conta disso, uma série de preconceitos sŌo
173
associados a eles. Várias notícias e artigos publicados na Folha
Vespertina reforçam características que seriam inatas à “raça
amarela”. Um exemplo disso é o texto “O japonês é inimigo da raça
branca”, de Ciro Egberto Cabral, de janeiro de 1942. O autor aponta
que “o japonês é perigoso porque odeia a raça branca. Ele nunca
pode admitir que os brancos tenham o domínio do mundo.”
(CABRAL, 19 jan. 1942, p. 1). Por supostamente odiar a raça branca,
o japonês possui alguns comportamentos dissimulados para
derrotar o ocidental. O ato de se curvar, de demonstrar
cavalheirismo, na verdade esconde o “punhal e a traiçŌo”. Utilizando
como exemplo o ataque japonês à base norte-americana de Pearl
Harbor em dezembro de 1941, Cabral afirma que “ninguém pode ter
confiança num amarelo. Ele é falso, é demoníaco.” (CABRAL, 19 jan.
1942, p. 1). Para resumir, o “amarelo” é visto como um traidor, como
alguém em quem não se pode confiar. Não por acaso, muitos foram
considerados como “quinta-colunistas”, espiões que mandavam
informações para os submarinos do Eixo sobre a saída dos navios
mercantes brasileiros. Após os afundamentos de vários navios, os
japoneses que viviam em Belém foram alvos de agressões da
população. (MENEZES NETO, 2013).
A partir daí, o termo “amarelo” vai ser constantemente utilizado pela
Folha Vespertina nas mais variadas notícias relacionadas aos
japoneses: “A situaçŌo dos amarelos é desesperadora” (FOLHA
VESPERTINA, 4 jan. 1943, p. 4); “o exército japonês de Papua, na
Nova Guiné, foi destruído pelos aliados, que demonstraram
qualidades militares superiores às dos amarelos”; (FOLHA
VESPERTINA, 18 jan. 1943, p. 4); “Os objetivos do Mikado: os
amarelos pretendem obter o apoio dos Birmanos e Filipinos.”
(FOLHA VESPERTINA, 8 fev. 1943, p. 4); “calcula-se entre cem e
duzentos mil homens o efetivo das forças amarelas concentradas em
Luzon.” (FOLHA VESPERTINA, 10 jan. 1945, p. 1).
Cabe ressaltar que a representação negativa do japonês pela questão
racial aparece na imprensa paraense já na década de 1920 quando
do início da imigração japonesa para a Amazônia. Nesse contexto,
segundo Tatsuo Ishizu, o movimento contrário a imigração japonesa
ficou conhecido como “amarellophobos”. Augusto Meira, em artigo
de 1924 no jornal Folha do Norte, dizia que a Amazônia precisava
importar valores antropológicos de raças superiores e similares à
nossa”, e que a uniŌo com os japoneses poderia causar “perversŌo e
degeneraçŌo étnicas”; já o padre Dubois, em artigo do mesmo ano,
174
dizia que povo japonês é perigoso, “degenerando a raça e
propagando infinidade de doenças exóticas como o tracoma que cega
a gente”. (ISHIZU, 2011, p. 42).
No contexto da Segunda Guerra, a representação negativa do
japonês como uma raça que traz prejuízos ao ocidental e à população
brasileira é recorrente em vários jornais brasileiros. Segundo
Rosangela Kimura, em São Paulo atribuía-se comumente aos
japoneses a culpa de todas as privações que a guerra impunha aos
brasileiros, até mesmo o racionamento de alimentos. De acordo com
alguns jornais, os japoneses eram “vampiros do solo”, praticantes de
uma “agricultura predatória”, sendo eles os principais responsáveis
pela escassez de gêneros de primeira necessidade de que sofria a
população. (KIMURA, 2007, p. 27).
Em uma outra forma de representação negativa, a Folha Vespertina
trata de desumanizar os nipônicos. Sendo considerado de uma raça
inferior, o japonês tinha atitudes consideradas bárbaras, não
humanas. Em janeiro de 1942, o jornal paraense trazia a manchete:
“Cruelmente desumanos os nipônicos”, referindo-se à acusação das
autoridades chinesas de que os japoneses teriam lançado “germens
de peste bubônica em Chang Têh, província de Hunan ocidental.”
(FOLHA VESPERTINA, 15 jan. 1942, p. 1).
As representações das atitudes desumanas vinham principalmente
nas notícias que abordavam o tratamento dos japoneses em relação
aos prisioneiros de guerra:
“Bárbaros e covardes! Os japoneses submetem a
desumanos suplícios os prisioneiros Aliados. Mais de cinco
mil e duzentos soldados norte-americanos e um número
mais elevado de filipinos pereceram de fome ou em
consequência de atrozes torturas nos campos de
concentração
japoneses
das
Filipinas.”
(FOLHA
VESPERTINA, 28 jan. 1944, p. 1).
A manchete acima, da agência de notícias em Washington, foi
produzida a partir de depoimentos do comandante Mc Coy, do
tenente coronel Melnit e do aviador Dyess, que dariam conta de
“uma série inominável de barbaridades cometidas pelos japoneses
nos campos de concentraçŌo das ilhas Filipinas.” (FOLHA
VESPERTINA, 28 jan. 1944, p. 1). Os relatos, segundo o jornal,
175
apontavam que soldados norte-americanos que pesavam mais de
cem quilos “ficaram convertidos em esqueletos ambulantes, ou
pereceram de inaniçŌo devido à falta de alimentos”. Uns que
reclamaram água ou comida foram fuzilados; outro soldado que
ficou dois dias exposto ao sol foi decapitado por um soldado japonês;
feridos e enfermos são obrigados “a fazer serviços pesados ou a
marchar até caírem mortos.” (FOLHA VESPERTINA, 28 jan. 1944,
p. 1). Outro que denunciava as práticas dos japoneses, segundo a
Folha Vespertina, era Anthony Eden, ministro do Exterior da
Inglaterra:
“O chanceler britânico, referiu-se, também, a inúmeras
atrocidades contra os prisioneiros, muitos dos quais, depois
de barbaramente torturados, foram assassinados a tiros de
revolver ou a golpes de baioneta.” (FOLHA VESPERTINA,
28 jan. 1944, p. 1).
O que se percebe nessa notícia é que o jornal Folha Vespertina
procura se utilizar dos chamados discursos de autoridade, de
pessoas ligadas ao grupo dos Aliados que tiveram contato ou que
souberam de informações acerca das práticas dos japoneses em
relação aos prisioneiros de guerra, para reforçar ainda mais as
concepções negativas dos nipônicos. O uso de adjetivos como
“bárbaros”, “covardes”, “cruéis”, eram formas de se destacar que os
da “raça amarela” nŌo tinham nenhum conceito de humanidade,
adotando comportamentos desumanos, diferenciando-se cada vez
mais da “raça branca” e ocidental. Assim, a necessidade de derrotar
os japoneses era cada vez mais urgente, para acabar com esses atos
de “atrocidade”.
Por ser visto como alguém que não possui atos de humanidade, o
japonês é também visto como alguém que não respeita os acordos
negociados entre as nações, como destaca a seguinte manchete:
“Para o JapŌo nŌo há convenções nem tratados: Tudo é „farrapo de
papel‟”. (FOLHA VESPERTINA, 13 jan. 1944, p. 1). Aqui o jornal
fazia referência à acusação do Departamento de Estado americano
de que o Japão recusou facilitar a troca de cidadãos americanos por
japoneses, violando a convenção de Genebra de 1929.
O japonês também é apresentado pelo jornal paraense como um
imperialista, cuja intenção é o domínio mundial, como no artigo de
Ciro Cabral:
176
“Ele nunca pode admitir que os brancos tenham o domínio
do mundo. Esse domínio não é contemplação divina. É
trabalho, seriedade, honestidade, dedicação e inteligência.
Ao passo que os nipônicos querem adquirir progresso
industrial com produtos frágeis e sem duração, querem
predomínio através de sistemas pouco lisonjeiros e querem
superar os brancos empregando processos ridículos. O
catecismo japonês proíbe ser amigo do branco. A obrigação
de todo japonês é trabalhar para o futuro domínio mundial
do JapŌo.” (CABRAL, 19 jan. 1942, p. 1).
Interessante notar que neste artigo o autor rebaixa a capacidade
industrial do JapŌo, cuja produçŌo de “produtos frágeis e sem
duraçŌo” nŌo se compara com a do branco ocidental, que trabalha e
é honesto. O que o artigo deixa transparecer é a ideia de que o
japonês quer conquistar o mundo por meios sujos, por trapaça, ao
contrário do ocidental.
Já em 1944, a Folha Vespertina utiliza uma fala do embaixador
britânico Lord Halifax para reforçar a ideia do imperialismo e do
totalitarismo dos japoneses, que ao lado dos alemŌes: “defendem a
completa subordinação do indivíduo ao Estado e a escravização da
verdade a supostas afirmações de ideologias políticas”. (FOLHA
VESPERTINA, 13 jan. 1944, p. 1). O japonês aparece como sendo
uma antítese do branco ocidental, alguém desprovido de todos os
escrúpulos para atingir o seu objetivo de dominação mundial.
Considerações finais
As representações negativas dos japoneses também se deram em
outros meios de comunicação, como na literatura de cordel.
(MENEZES NETO, 2008). No folheto O Brasil rompeu com eles, de
1943, por exemplo, o poeta paraense Zé Vicente escreve:
“Japonês foi traiçoeiro
contra a America do Norte,
mas na sua falsidade
o Japão não teve sorte.
Agora, é vivo, ele vai
sentir o frio da morte.
Japonês andou fingindo
177
que era um anjo de candura,
mas de repente mostrou
quanto tem a cara dura,
agredindo de emboscada
pensando que era bravura.” (VICENTE, 1943, pp. 5-6).
Os versos de Zé Vicente expressam a representação do japonês como
um traidor, um falso. Esses termos eram os mesmos utilizados no
Folha Vespertina, que pode ter sido a fonte na qual o poeta leu as
notícias sobre a guerra para escrever sobre o tema em formato de
versos de cordel. O jornal, assim, era um meio de divulgação que
influenciava outros veículos, propagando dentre outras coisas, uma
imagem negativa do japonês entre os anos de 1942, quando do
rompimento das relações diplomáticas do Brasil com os países do
Eixo, e 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial.
Retomando as ideias de Chartier acerca da representação, a
abordagem negativa dos japoneses na Folha Vespertina tinha
objetivos bem claros: era uma estratégia para desviar o foco da
oposição ao regime do Estado Novo, ignorando as contradições de
um governo ditatorial que dizia lutar ao lado dos Aliados pela
liberdade, procurando um inimigo facilmente identificável, no caso
os japoneses, para unir a população em prol do governo no esforço
de guerra; legitimar as práticas adotadas pela ditadura do Estado
Novo como sendo a única forma de derrotar um inimigo capaz de
todas as “barbaridades” e “atrocidades” possíveis. Dessa forma, o
Estado Novo justificava a sua existência, cabendo à população apoiálo. Caso isso não acontecesse, o Brasil poderia ser dominado pelos
japoneses, que conforme as representações dos jornais, tinham
ambição de domínio mundial e tinham práticas consideradas
desumanas e cruéis para com os seus prisioneiros. Assim, analisar as
representações dos japoneses na Folha Vespertina é identificarmos
as percepções de mundo que se pretendiam inculcar na população
em relação aos inimigos num contexto de conflito mundial, no qual
as ideias raciais são retomadas para justificar o comportamento
“bárbaro” e “cruel” dos japoneses.
Referências
Geraldo Magella de Menezes Neto é Professor da graduação e da
pós-graduação em História da Faculdade Integrada Brasil Amazônia
(FIBRA), e do ensino fundamental da Secretaria Municipal de
Educação de Belém (SEMEC). Doutorando em História Social da
178
Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
geraldoneto53@hotmail.com
Victor Lima Corrêa é Graduando em Licenciatura em História da
Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA). E-mail:
victorlcorrea.01@gmail.com
Fontes
Acervo Vicente Salles do Museu da Universidade Federal do Pará
(UFPA)
Folheto de cordel:
VICENTE, Zé. O Brasil rompeu com eles. 2. ed. Belém:
Guajarina, 20 jun. 1943.
Fundação Cultural do Pará – CENTUR. Biblioteca Pública Arthur
Vianna
Jornais:
CABRAL, Ciro Egberto. O japonês é inimigo da raça branca. Folha
Vespertina, 19 jan. 1942, p. 1.
Cruelmente desumanos os nipônicos. Folha Vespertina. 15 jan.
1942, p. 1.
A situação dos amarelos é desesperadora. Folha Vespertina. 4 jan.
1943, p. 4.
O exército japonês de Papua foi destruído. Folha Vespertina. 18
jan. 1943, p. 4.
Os objetivos do Mikado. Folha Vespertina. 8 fev. 1943, p. 4.
Os alemães e os japoneses defendem a completa subordinação do
individuo ao Estado e a escravização da verdade a supostas
afirmações de ideologias politicas, declara Lord Halifax. Folha
Vespertina. 13 jan. 1944, p. 1.
Para o JapŌo nŌo há convenções nem tratados, tudo é “farrapo de
papel”. Folha Vespertina. 13 jan. 1944, p. 1.
Bárbaros e Covardes: os japoneses submetem a desumanos suplícios
os prisioneiros aliados. Folha Vespertina. 28 jan. 1944, p. 1.
Povo sem Honra: os japoneses, além de covardes, de brutais e de
cruéis, ignoram todos os sentimentos de Honra. Folha
Vespertina. 1 fev. 1944, p. 1.
Os nipônicos vão jogar a ultima cartada pelo domínio das Filipinas.
Folha Vespertina. 10 jan. 1945, p. 1.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
180
RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE
ORIENTAIS NA REDE ADVENTISTA: A
ABORDAGEM SOBRE ÍNDIA E CHINA EM LIVRO
EDITADO PELA CASA PUBLICADORA
BRASILEIRA
Gustavo Uchôas Guimarães
Nesta análise, abordaremos a forma como as antigas civilizações da
Índia e da China são mostradas em um livro produzido e distribuído
pela Casa Publicadora Brasileira, que fornece o material didático das
escolas da Rede Adventista. Esta abordagem é feita no livro de
História direcionado a alunos do 6º ano do Ensino Fundamental,
constituindo material para entendimento dos contextos históricos
iniciais das civilizações que habitaram as regiões em torno dos rios
Indo, Amarelo e Azul, bem como da formação de tradições religiosas
que ainda hoje constituem fortes elementos culturais de indianos e
chineses (hinduísmo, budismo, taoísmo e confucionismo).
O livro didático
A abordagem que analisaremos aqui faz parte da Coleção Interativa,
que tem livros para alunos de 6º a 9º ano do Ensino Fundamental. O
livro para o 6º ano (Prestes Filho e Xavier, 2014) é dividido em 12
capítulos, abordando desde os primeiros grupos humanos até os
povos que invadiram o Império Romano.
O capítulo 5 é intitulado "Índia e China", tratando da história das
civilizações que se desenvolveram em torno dos grandes rios que
hoje cortam os territórios indiano e chinês. Esta história tratada no
livro detalha o surgimento destas civilizações e seus aspectos
culturais, sociais, econômicos, políticos e religiosos, apontando
traços presentes até hoje nas culturas que compõem as sociedades
indiana e chinesa.
Quadros explicativos e imagens chamam a atenção para o que é
ensinado nos textos, fazendo ligações entre elementos culturais
antigos e atuais na Índia e na China. Os textos são entremeados e
finalizados com exercícios nos quais os alunos deverão revisitar os
textos para responder questionamentos sobre o que foi estudado,
181
além das propostas de pesquisa sobre temas relacionados a China e
de análise de imagens.
O conhecimento sob o prisma da Educação Adventista
Antes de analisarmos a forma como um livro produzido para a Rede
Adventista aborda temas relacionados à religiosidade indo-chinesa,
é preciso entender um pouco sobre como a educação e o
conhecimento são tratados por Ellen White, que está na origem da
Igreja Adventista do Sétimo Dia e cujos escritos são valorizados
pelos membros da igreja em suas ações missionárias, educacionais,
institucionais e cotidianas.
A respeito da educação escolar, White destaca sua função de
aproximar as pessoas de Deus: "A obra mais importante de nossas
instituições de educação no tempo atual é colocar perante o mundo
um exemplo que honre a Deus" (White, 2000, p.57).
Sobre o conhecimento e sua produção e transmissão, Ellen White
aborda que é obra da educação "adestrar os jovens para que sejam
pensantes e não meros refletores do pensamento de outrem" (White,
1996, p. 17), ou seja, o conhecimento produzido e transmitido deve
ser capaz de instrumentalizar os indivíduos para não serem apenas
repetidores de ideias alheias, já que são dotados de "certa faculdade
própria do Criador - a individualidade - faculdade esta de pensar e
agir" (White, op. cit., p. 17).
Tasso (2003, p. 66), ao abordar o conhecimento organizado nos
currículos da Educação Adventista, aponta que
"A Educação Adventista não despreza os conteúdos das
várias áreas do conhecimento humano. Todo conhecimento
acumulado pelo homem no decorrer da história representa
marcos sinalizadores das escolhas feitas pela humanidade.
Esse conhecimento deve contribuir para formação do
caráter do estudante. Por isso, o estudo deve ser
contextualizado e com aplicação à vida".
Tradições religiosas indianas e chinesas
No livro de História voltado para o 6º ano do Ensino Fundamental,
o capítulo sobre Índia e China explica os pormenores básicos de
quatro antigas tradições religiosas e filosóficas: hinduísmo,
budismo, taoísmo e confucionismo.
182
Sobre o hinduísmo, é feita apenas uma breve explanação a respeito
do período védico, explicando a dependência da natureza como um
dos fatores para o surgimento dos deuses nas tradições hindus. Além
disso, o livro explica a origem e significado da palavra "hinduísmo" e
o sistema de castas presente na Índia (apesar da proibição oficial
pelo governo indiano, em 1950). Após a explanação, o livro traz duas
atividades: na primeira, é pedido ao aluno que complete uma
pirâmide com os nomes das castas e quem compõe cada uma; na
segunda, o aluno é levado a pensar sobre o paralelismo entre os
relatos diluvianos na história de Manu, na Bíblia e na Epopeia de
Gilgamesh, tendo esta proposta a ideia de fazer o aluno
compreender que houve realmente uma grande inundação em nosso
planeta, o que seria evidenciado pelas semelhanças entre as histórias
de Manu, Noé e Gilgamesh.
O livro se detém um pouco mais na explicação das origens e
ensinamentos do budismo: conta a história de Sidarta Gautama,
explica as quatro nobres verdades e o Caminho Óctuplo e relata
brevemente o processo de expansão budista para outros lugares do
continente asiático. Ao final, atividades propostas objetivam levar o
aluno a pensar sobre valores e situações da vida: Na primeira
atividade, o aluno deve escrever com as próprias palavras alguns
princípios do Caminho Óctuplo; na segunda, é convidado a refletir
sobre uma frase atribuída a Sidarta e que trata das dualidades
felicidade/infelicidade e conhecimento/ignorância.
Taoísmo e confucionismo são explicados no livro estando em
quadros separados do texto geral sobre Índia e China. São
explanadas muito brevemente suas origens e pensamentos. Além
disso, o livro didático faz uma reflexão sobre estas duas tradições e o
budismo, apontando o que os três têm em comum em seus
pressupostos e ensinamentos e comparando-os rapidamente a
pensamentos básicos do monoteísmo e do politeísmo, apresentando
a possibilidade de considerarmos taoísmo, confucionismo e budismo
como filosofias místicas e não propostas religiosas, conforme o
trecho a seguir:
"Segundo essas ideias, a inerente capacidade humana de
entrega e aprendizado conduzirá a humanidade a algo
melhor, tanto nesta vida como em outra. Dessa forma, não
há a ideia de uma força superior que possa ajudar o ser
183
humano em suas debilidades" (Prestes Filho e Xavier,
2014, p. 93).
As abordagens sobre as quatro tradições religiosas acima referidas
contém traços em comum:
1. São breves, dada a característica própria de um livro didático que
precisa abordar, para alunos de 6º ano do Ensino Fundamental e em
apenas um ano letivo, diversas civilizações que viveram ao longo de
milhares de anos. Esta brevidade na explanação também segue a
tendência geral de livros didáticos que, ao tratar da Antiguidade,
destacam mais as civilizações ocidentais (gregos e romanos) do que
as orientais.
2. Apresentam apenas o básico dos ensinamentos e pensamentos
religiosos e filosóficos (ligamos isto à brevidade referida há pouco),
sem estabelecer paralelos diretos com as doutrinas cristãs
adventistas.
A menção ao fato de que taoístas, confucionistas e budistas não
idealizam uma força superior que os ajudem em suas dificuldades
soa equivocada se considerarmos que, ao longo da História, algumas
destas tradições adotaram formas de culto e de reverência a
divindades:
- o taoísmo reverencia mestres que são claramente chamados de
"divindades" (Sociedade Taoísta do Brasil, s/d);
- certas correntes budistas aceitam, por exemplo, divindades
protetoras cujas funções podem ser ativadas com recitações e
orações (Brasil Seikyo, 2016).
Considerações finais
O trabalho com livros didáticos exige do professor capacidade crítica
e analítica, para que sua prática docente ganhe em qualidade e o
próprio livro didático seja melhor aproveitado com materiais
complementares que enriquecem as aulas.
No caso do livro brevemente analisado neste texto, pode-se perceber
que houve uma transmissão de informações em conformidade com o
ensinamento de Ellen White, quando a Rede Adventista, em sintonia
com seus escritos, entende o conhecimento produzido ao longo da
184
história como resultado das escolhas da humanidade e a transmissão
deste conhecimento como uma forma de mostrar ao indivíduo tais
escolhas e auxiliar na construção de seu pensar e agir. Esta
transmissão de informações sobre tradições indianas e chinesas,
apesar de breve, mostra o espaço que vem sendo dado à História
Oriental nos livros didáticos, mesmo os produzidos para redes de
escolas confessionais.
O papel do professor é importante na mediação entre o livro e o
aluno, apontando possibilidades de aprendizagem e reflexão sobre
diversos pontos que tocam o cotidiano do aluno, sua visão de mundo
e sua forma de perceber a multiplicidade do pensamento humano.
Referências
Gustavo Uchôas Guimarães é professor na Rede Pública do Estado
de Minas Gerais e na Rede Adventista.
Mail: virginenseuchoas@bol.com.br
BRASIL SEIKYO. O que são divindades celestiais ou deuses
budistas? Disponível em:
<http://www.seikyopost.com.br/budismo/o-que-sao-divindadescelestiais-ou-deuses-budistas> Acesso em: 03 set.2017. Publicado
em: 16 jun.2016.
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Publicadora Brasileira, 2014. 2ª ed. Coleção Interativa. P. 81-100.
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<http://sociedadetaoista.com.br/rj/?page_id=521> Acesso em: 03
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TASSO, R. F. O trabalho do professor e a educação voltada
ao ensino de valores. Dissertação de Mestrado. Franca: UNESP,
2003. Disponível em:
<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/98544/tass
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WHITE, E. G. Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes.
Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2000.
185
186
A LITERATURA BRASILEIRA E O ORIENTE:
ENTRE A OJERIZA E A APROPRIAÇÃO
Heraldo Márcio Galvão Júnior
Arcângelo da Silva Ferreira
O modernismo brasileiro teve sua fase de configuração nas duas
primeiras décadas do século XX e de maneiras diversas nas várias
regiões do país, embora estes conversassem entre si. A característica
principal que criou o elo de correspondência entre tais modernismos
é a busca pela brasilidade na arte, o encontro do Brasil
essencialmente brasileiro, sem as amarras europeizantes
decorrentes de sua colonização física, ideológica, religiosa, cultural e
intelectual. Ao contrário do elemento modernista vinculado à
tradição, como o caso da antiga capital Rio de Janeiro (VELOSO,
1996) e da Amazônia belenense e amazonense (FIGUEIREDO,
2012), o modernismo paulista fez referência direta ao aspecto
moderno, modernizante e modernizador da capital nacional do café
e seus reflexos urbanos.
A busca pela brasilidade passava, necessariamente, pela negação do
elemento português na cultura brasileira, o que os fez, inicialmente,
se aproximarem da França que, nos dizeres de Paulo Prado no
prefácio de Pau-Brasil, era o “umbigo do mundo” em relaçŌo à
cultura e intelectualidade, ou seja, período em que as pessoas, ao se
cruzarem nas ruas e praças, ao invés de trocarem um “boa tarde”,
trocavam um “Viva a França”; enfim, época em que “Quand la
France joue du violon, tout le monde se met a danser” (SEVCENKO,
2003, p. 30). É interessante notar que este período coincide com o
surgimento, na França, do movimento artístico chamado de
cubismo, cujo olhar deixava de se direcionar ao conhecido e passava
a ir em direção ao exótico, à África e à Ásia. Sendo assim, cabe aqui
uma indagação importante: se estes artistas e intelectuais franceses
buscavam no oriente estudos e sentidos para as suas produções e o
brasileiros baseavam-se nas maneiras de pensar e analisar destes
franceses, qual imagem acerca do oriente foi construída pela arte
brasileira do período? E mais: houve apropriação, por parte dos
modernistas brasileiros, das técnicas e formas de fazer arte e ver o
mundo das sociedades orientais? Como isso ocorreu?
187
Longe de responder tais questões de maneira aprofundada neste
trabalho, propõe-se dar pistas e promover uma discussão a esse
respeito a partir de Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida.
Ambos escreveram, em 1916, à quatro mãos, duas peças de teatro em
francês em que podemos averiguar melhor tais questões propostas,
assim como em Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald, em que
um capítulo todo se passa em viagens pelo Oriente, e em Haicais
Completos, de Guilherme de Almeida, cujo título dispensa
explicações pormenorizadas no momento. Para que fique mais
didático, a proposta é dividir a exposição em três momentos
principais. O primeiro consiste em compreender as visões
construídas pelos intelectuais modernistas acerca do oriente. Em um
segundo momento será verificado se os autores utilizaram ideias,
ideologias e/ou formas de escrever características de algum pais
oriental. Finalmente, será feito um balanço das abordagens
proferidas anteriormente a fim de concluir a real importância que a
cultura oriental teve para o movimento modernista, questão essa
raramente explorada pela crítica literária, de arte, por historiadores
e estudiosos do assunto.
Dois dos primeiros trabalhos tanto de Oswald de Andrade quanto de
Guilherme de Almeida, identificados como “homens sem profissŌo”
por Sérgio Miceli por pertencerem a famílias abastadas e
especializadas há gerações em funções culturais, econômicas e
políticas, foram Mon Coeur Balance e Leur ame, peças de teatro
escritas a quatro mãos e em francês no ano de 1916. A primeira peça
passa-se em um hotel luxuoso de uma das praias mais elegantes de
São Paulo à época, o Guarujá. Há um fio de enredo que liga as três
personagens principais: Marcela, considerada uma flirting-girl,
transita entre o amor de Gustavo, um jovem blagueur, e seu amigo
mais velho, Luciano. O conflito ocorre quando, no terceiro ato,
Gustavo descobre que o amigo também ama Marcela, enquanto esta
afirma que, entre os dois, seu coração balança e some fisicamente de
cena até o fim da peça. As demais personagens gravitam em torno
delas e são reflexos do contexto interno paulista, de afirmação
“cosmopolita”, e externo, essencialmente em relaçŌo à Primeira
Guerra Mundial. A segunda transita entre uma faustuosa casa em
Higienópolis, bairro paulistano elitizado, uma garçonnière, uma sala
de fumar de um grande clube requintado da cidade e uma casa de
campo. Há novamente um triângulo amoroso, entretanto não mais
no plano mental, como em Mon coeur balance, mas a tradicional
história de marido, mulher e amante, assunto recorrente em peças
188
teatrais dessa fase. Natália é casada com George, tem um caso
amoroso com Gastão e foge com um caixeiro viajante. O casal, ligado
pelos laços do matrimônio, possui duas filhas: Emma, mais velha, e
Carlotinha, levada por sua mãe ao sumir. Os dois homens se
enfurecem, separadamente, pela impossibilidade de possuir a
mulher amada por inteiro, gerando discussões de caráter romântico,
psicológico e filosófico. Entre as personagens secundárias, há: um
filósofo, um “bom burguês” e seu filho, um padre, um criado
japonês, dois clubmen, um garçom, um carregador, clientes e
criados.
As peças, em si, não tratam do universo oriental especificamente no
enredo, mas trazem caracterizações de personagens e cenas que
deixam entrever suas visões estigmatizadas, principalmente quando
interpretadas segundo os padrões em que foram escritas, ou seja, o
simbolismo.
Na primeira peça, primeiro ato, cena III, em uma discussão sobre a
(i)moralidade do tango e do maxixe, Gustavo, uma das personagens
principais, zomba de uma “chinezinha dançando tango” e trata tudo
com muita normalidade, inclusive quando expulsa-a do salão,
proferindo a frase “Chispa, chinesa!”. Com esta atitude, vinda de um
homem da elite e tratada com normalidade pelas personagens
também elitizadas, percebe-se a animalização do estrangeiro
proveniente do oriente, pois a personagem nem sequer ganha um
nome e é tratada como um bicho, tocada pra fora de um ambiente
que não lhe pertencia.
Estes aspectos nos fazem, inevitavelmente, considerar a presença do
cientificismo francês entre a intelectualidade e os artistas brasileiros
de fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.
Representado por Taine, Comte e Ernest Renan, o cientificismo foi
incorporado pelos brasileiros, assim como os naturalistas Flaubert,
Bernad e Zola, que influenciaram obras como O Mulato, de Aluísio
de Azevedo. Tais teorias, moldadas às discussões acerca da raça,
preconizavam a inferioridade brasileira devido ao problema da
intensa miscigenação, que geraria a degeneração humana e
justificaria os problemas sociais encontrados no país.
Lilia Moritz Schwarcz, na obra O espetáculo das raças: cientistas,
instituições e a questão racial no Brasil, comenta sobre a
hierarquização de negros e brancos, mas afirma que, em muitos
189
casos, os chineses eram considerados pelos intelectuais brasileiros
da época ainda mais degenerados, fato que explica esta aversão da
personagem acima citado pela dançarina oriental. Além disso, a
autora afirma que havia intensos debates sobre a “qualidade da
imigraçŌo” que deveria vir para o Brasil, ocorrendo campanhas para
que fosse proibida a entrada dos “chins”. Um artigo publicado pelo
jornal Correio Paulistano, citado pela autora, traz as seguintes
considerações:
“Os escravos (...) nŌo foram tŌo perniciosos como a
contratação dos chineses... (...) os chineses são gente
lasciva ao último grão, escoria acumullada de países de
rachadíssimos costumes... São todos ladrões, jogadores a
um grão incompreensível (...) leprosos de alma e corpo (...)
[gerando o] aumento da criminalidade”.
Entretanto, os objetos vindos da china eram tidos como exóticos e
desejáveis pela elite, como é visto nas cenas VI, VII e VIII do
primeiro ato de Leur Âme. Nelas, George, marido de Natália, a
presenteia com um biombo japonês, embora ela quisesse um persa.
Ela elogia os “mandarinzinhos” desenhados no objeto, exclama “sŌo
mesmo espantosos esses chineses!” e, em seguida, pede-lhe um
quimono novo, de seda azul-marinho, com salgueiros, garças e
musmês, “um pequeno museu de “chinoiseries”.
Assim, fica claro que ocorria, por um lado, aversão ao imigrante
estrangeiro chinês que traria mais degeneração à raça brasileira – já
degenerada pela mestiçagem – e, por outro, que a posse de objetos
decorativos e têxteis de origem chinesa – exóticos – representava
luxo e status social para a elite brasileira. Com um pé no
cientificismo vigente, constata-se, a partir das peças, que uma raça
inferior deveria atuar como produtora e prestadora de serviços
braçais, apresentando sua cultura excêntrica e, em contrapartida,
tais objetos deveriam ser produzidos de preferência em seus locais
de origem, ou seja, fora do país para que se mantivesse uma pretensa
superioridade racial.
Em Serafim Ponte Grande Oswald trata de um funcionário público
não muito exemplar, Serafim, casado, com filhos. Na primeira parte
do livro narra infância, adolescência e sua união com Lalá, com
quem é obrigado a casar na delegacia. O pano de fundo é a
Revolução de 1924 e tudo é tratado com imenso erotismo, o que
190
inclui traições e aventuras sexuais. Em plena Revolução, Serafim
rouba um dinheiro deixado pelos revolucionários a um de seus filhos
e foge para a Europa. Na Europa é confundido com um músico e
convidado a ir ao Oriente por duas mulheres homossexuais, as “girld‟hoj‟em-dia”, Pafuncheta e Caridad-Caridad. Esta parte do livro é
intitulada “Os esplendores do Oriente”.
Em carta a Mario de Andrade, em 1926, Oswald confessa que
escreveu esta parte de Serafim a partir de suas memórias, pois havia
feito uma viagem semelhante, naquele ano, na companhia de Tarsila
e um grupo de amigos, em que passaram pelo Egito, Grécia, Chipre,
Israel, Turquia e Líbano. No livro, ao visitar o Oriente, Serafim
descobre, desconcertado, que o Santo Sepulcro nunca existiu e que
Cristo nasceu na Bahia. Entretanto, prossegue para conhecer o local
conhecido como Santo Sepulcro e é informado que tem que ir
embora cedo porque um turco é que possui a chave da porta, já que
os cristãos não se entendem sobre a posse das verdades e das
capelas.
O texto é bastante descritivo, como que um guia de viagem e, entre
aventuras sexuais narradas explícita e comicamente, a personagem
deixa o oriente: “tudo desapareceu como a cidade no mar, seus
brilhos, seus brancos, suas pontas de terra, esfinges, caftãs, fezes,
camelos, dragomãs, pirâmides, haréns, minaretes, abaias, pilafs,
desertos, mesquitas, templos, tapetes, acrópoles, ingleses, inglesas”.
Assim, no livro, o autor deixa entrever sua visão sobre o oriente, qual
seja, a de local de monumentos, vestimentas, comidas, desertos,
religiões e dominação inglesa. Praticamente não se fala de seu povo,
de aspectos negativos ou positivos.
Quando se fala em Japão há uma maior identidade e caracterização
das personagens, sugerindo menos aversão das personagens e
autores. Um exemplo é Yato que, mesmo sendo “um criado japonês”,
recebe dos autores um nome, figura entre as personagens principais
e tem várias aparições em Leur âme, embora não participe dos
diálogos e das cenas mais relevantes.
Em 1914 Guilherme de Almeida publica, na revista O Pirralho, de
Oswald de Andrade, uma série de onze sonetos intitulado Perfis
Femininos. No dia 05 de dezembro são publicados dois perfis, entre
eles A JAPONEZA. Nele, o autor descreve uma mulher envolta em
“sedas baralhadas” com seu leque esvoaçante que passa em
191
murmúrios como um “Chrysantemo que abriu nas alvoradas das
amarellas bandas do Levante!”. Gueixa miúda, “flor mimosa de
Tókio”, de pés pequenos, “fôrma delicada”, olhar “oblíquo” e
provocante definem a japonesa que em um “quimono esguio, todo
de seda e marfim”, toma chá e reconhece que é “Filha do sol”. A sua
descrição ocorre essencialmente em relação ao seu exterior, seu
formato, suas vestimentas; é um objeto sensível comparado a um
“bibelot de porcelana”. Faltam caracterizações psicológicas, como
encontradas nas descrições de outras mulheres, como A INGLEZA e
A PORTUGUEZA.
Findada a análise acerca da representação do oriente – chinês e
japonês – nas primeiras obras de Almeida e Andrade, é necessário
refletir sobre a presença da cultura oriental no modernismo
brasileiro. O termo presença foi usado em substituição ao influência
pois o segundo denota uma cópia de jeito, ideias e estilos; já o
primeiro reflete o uso de ideias, jeitos e estilos adaptados à realidade
nacional. Nesse sentido, o artigo O HAIKAI NO BRASIL, de Paulo
Franchetti (2008), dá um caminho seguro a seguir.
Segundo o autor, a partir da poesia Pau-Brasil, prefaciada por Paulo
Prado, ocorrera a libertação do verso brasileiro. Paulo Prado, ao
citar um haicai em francês no prefácio, dá a entender que esta forma
de escrever advinda do Japão seria o ideal de coloquialidade, de
registro direto e de sentimento adequada à nova realidade urbana de
velocidade e rapidez, assim como seria um modelo literário nãoeuropeu como projeto nacionalista.
O Japão, aberto ao Ocidente a partir da segunda metade do século
XIX, com samurais, etiquetas, nobreza feudal, senso de decoração,
gosto pela vida, banhos coletivos, pratos e copos pequenos, grilos em
gaiolas, maquiagem, gueixas e hábitos alimentares fascinaram os
viajantes. Segundo o autor, a partir deste momento têm-se dois tipos
diferentes de viajante: os que buscavam valorizar a superioridade do
ocidente tinham o Japão pitoresco e os que o consideravam como
paraíso perdido pré-industrial valorizavam sua arte e cultura.
Franchetti coloca que a primeira apropriação do haicai na literatura
brasileira ocorreu por meio do modernismo paulista, mas o
modernismo ligado às tradições e não sua ala mais revolucionária.
Nesse sentido, Guilherme de Almeida, que produziu obras marcadas
pelo parnasianismo, simbolismo e modernismo foi o autor que mais
192
se dedicou ao haicai e o fez em direção oposta ao estranhamento
exotista.
Guilherme de Almeida, em boa parte de sua vida manteve relações
próximas com a comunidade japonesa de São Paulo e com sua
cultura. Foi também um dos fundadores e o primeiro presidente da
Aliança Cultural Brasil-Japão, criada em 1956. O autor, em
entrevista Genésio Pereira Lima para a Gazeta Magazine, de 29 de
abril de 1941 afirma:
“é preciso, naturalmente, para produzir o haikai, uma
grande iniciação. Eu a tive aqui em São Paulo quando fui
conduzido pelo então cônsul do Japão em São Paulo e
poeta distintíssimo, KozoItigê, ao Clube Japonês, cuja sede
era na Rua da Liberdade. Nesse clube se realizavam
verdadeiros “jogos florais”. Doze poetas reunidos em torno
de uma mesa, na terceira quarta-feira de cada mês,
apresentavam cada um o seu haikai sobre um tema
sorteado com um mês de antecedência. Esses haikais eram
postos em concurso, sendo premiado o melhor”.
Ao adaptar, Guilherme aproveitou duas características formais do
poema japonês: distribuição das palavras em três seguimentos e
composição por justaposição de duas frases. Como as 17 sílabas
originais não produziam rima, o autor inseriu duas rimas a unir o
primeiro com o terceiro verso e uma interna no segundo verso, na
segunda e última sílaba (FRANCHETTI, 2008). Perceba no
exemplo:
“Um gosto de amora
Comida com sol. A vida
Chamava-se: “Agora”.”
Além disso, inseriu nos haikais um título para eliminar o sentido
enigmático. Segundo Franchetti, a inserção do título fez com que o
poema perdesse o sentido de haicai, pois retira a característica de
percepção súbita a partir de uma sensação concreta e muda-se a
compreensão e intenção. Para simplificar, um dos exemplos
utilizados é o haikai acima, que lido sem o título dá a impressão de
que a amora está no presente, o que muda ao se inserir o título dado
a ele por Guilherme de Almeida: “infância”.
193
De acordo com o proposto, analisou-se a partir de um projeto
modernista de nacionalização da literatura, em que os intelectuais
buscavam modelos que extrapolassem a antiga forma de pensar e
fazer europeia, o papel que o oriente teve para estes, verificando sob
qual ótica o oriente foi observado e interpretado pelos intelectuais e
artistas, assim como de que maneira utilizaram os exemplos, a
cultura e a literatura japonesa para criarem uma arte adaptada à
realidade nacional.
Referências
Heraldo Márcio Galvão Júnior é docente do ensino superior da
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Graduado em
História pela Unesp. Mestre em História pela Unesp. Doutorando
em História pela UFPA.
e-mail: heraldogalvao@unifesspa.edu.br
Arcângelo da Silva Ferreira é docente do ensino superior da
Universidade do Estado do Amazonas. Graduação em História pela
UFAM. Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM.
Doutorando em História pela UFPA
e-mail: asf1969@outlook.com
ANDRADE, Oswald de. Mon coeur balance; Leur âme: em
coautoria com Guilherme de Almeida. São Paulo: Globo, 2003.
_____. Serafim ponte grande. São Paulo: Globo, 2007.
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Os vândalos do apocalipse e outras
histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: Instituto de
Artes do Pará, 2012.
FRANCHETTI, Paulo. O Haicai no Brasil. Alea, Rio de Janeiro , v.
10, n. 2, p. 256-269, Dec. 2008.
PRADO, Paulo. "Poesia Pau Brasil". In: ANDRADE, Oswald de. Pau
Brasil. Paris: Sans Pareil, 1925 - repr. fac-similar EDUSP/Imprensa
Oficial, 2004: 10.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas,
instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEVCENKO, N. Literatura como Missão: tensões sociais e
criação cultural na Primeira República. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro.
Turunas e quixotes. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1996.
194
O POEMA DE PENTAUR: RAMSÉS II E A
BATALHA DE KADESH
Isaias Holowate
Naton Joly Botogoske
Nas paredes do templo de Abu Simbel encontra-se uma inscrição ao
lado de uma imagem. A imagem retrata um guerreiro em seu carro
de guerra esmagando seus inimigos. Cavalo à galope, arco esticado,
o guerreiro é representado com tamanho superior a todos. Não se
trata de um personagem comum, mas de um ser superior,
divinizado, um faraó. O homem retratado não é ninguém menos que
Ramsés II, um dos mais poderosos líderes do Egito antigo, no
momento mais dramático de sua carreira: A batalha de Kadesh,
travada em 1286 A.C. (Servajean, 2012, p.1).
As inscrições sobre a batalha, gravadas na ala direita da sala
hipóstila do templo, constituem o chamado Poema de Pentaur,
nome do escriba responsável pela inscrição.
Nas paredes do templo, à primeira vista tem-se a impressão de estar
diante de um boletim informativo da campanha militar que
culminou na batalha, a qual é ricamente detalhada. Porém, trata de
uma ressignificação do confronto, construída em um período
historicamente datado e que atende a interesses específicos. O
objetivo da produção da representação sobre o confronto é
apresentado já no início da inscrição: contar sobre a vitória do Rei
Ramsés II sobre Kheta (Hititas) e seus aliados:
“Aqui começa a vitória do Rei Usermare-Setepnere Ramses
II, que vive eternamente, que ele conquistou sobre a terra
de Kheta e Naharin, Arvad, Pedes, Derden, Mesa, Kelekesh,
Carchemish, Kode, Kadesh, Ekereth, e Mesheneth.”
Entretanto, o documento, embora tenha sido produzido não
propriamente com um interesse historiográfico, possui informações
sobre um acontecimento histórico e possibilita a compreensão do
fato e da reconstrução feita pelo poder egípcio em um processo de
produção de representações sobre o fato.
Por conseguinte, nessa análise, utiliza-se do Poema de Pentaur como
fonte, sendo, portanto, ele um vestígio do passado. Contudo, para a
195
compreensão dos fatos e da reconstrução dos acontecimentos, a
análise historiográfica leva em conta não apenas o documento por si
só, mas também a presença de outras fontes sobre o tema e a
compreensão do contexto de produção da inscrição, além das
modificações históricas ocorridas no ambiente em disputa naquele
período. Em consequência disso, o estudo analisa as fontes em
relação à historiografia presente sobre a batalha de Kadesh e o
poema de Pentaur.
No estudo das relações entre a inscrição e o confronto, chama a
atenção as divergências entre ambas e especialmente, a parte final
da inscrição em relação aos resultados do confronto. Contada como
uma vitória estrondosa de Ramsés II, os fatos que ocorreram em
seguida à batalha tornam questionáveis algumas afirmações
presentes na inscrição, levando a crer que mais provável que o
resultado do confronto fosse um empate.
De fato, essas inscrições obedeciam a uma espécie de modelo de
glorificação do faraó, vencedor de seus inimigos, e abençoado pelos
deuses, da qual ele também era um, e, portanto, em muito superior
às pessoas comuns, como era o caso de seu inimigo “que se atreveu a
se colocar contra ele”.
Mesmo assim, a inscrição carrega momentos bem-humanos do
faraó, quando abandonado por todos, cercado e com medo, ele teme
que Amon tenha o abandonado.
Tal como nota-se no início da inscrição, os relatos do poema de
Pentaur buscam contar uma vitória egípcia. Porém, o contexto da
guerra torna a designação de uma vitória bem mais imprecisa. Os
fatos posteriores a Kadesh apontam que ela não foi uma batalha
definitiva. Revoltas na Palestina contra a presença egípcia marca o
período imediatamente posterior a batalha e quinze anos depois, a
assinatura de um tratado de paz entre os contendores ao qual se
soma também um acordo de assistência mútua, apontam para um
equilíbrio de poder nas relações entre os dois países no período
posterior do confronto (Almeida, 2010).
A descrição egípcia da batalha é rica em detalhes e apresenta
descrições que auxiliam na compreensão do desenrolar do combate.
O autor, mesmo louvando a vitória incontestável do faraó, aponta
196
para momentos de tensão e perigo na batalha que são essenciais
para compreensão do desenrolar do confronto.
O pressuposto teórico que orienta a pesquisa é que a inscrição
representa uma realidade ocorrida em um determinado contexto
histórico, e, portanto, além de ser uma ressignificação produzida por
atores sociais interessados em construi-las, também dialogava com a
cultura em que fazia parte. A representaçŌo “entendida, deste modo,
como relacionamento de uma imagem presente e de um objeto
ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme” (Chartier,
1991, p. 184).
Em concordância a isso, o objetivo do presente ensaio é analisar as
relações entre a representação construída no poema de Pentaur e a
batalha de Kadesh, buscando compreender a reconstrução
acontecimental presente na inscrição.
As relações políticas
hitito-egípcias no início do século XIII A. C.
Em inícios do século XIII A. C., a região Sírio-Palestina era um
importante entroncamento comercial por onde passavam alguns dos
principais caminhos de comércio do Oriente Próximo. Entre as rotas
comerciais mais importantes, a rota Fenícia era a responsável pela
importação de cobre do Chipre, essencial para a produção e
armamentos, além de madeira do Líbano e vasos gregos e a rota de
Punt, de onde eram comprados incenso, ébano, aves, peles e animais
selvagens. Além disso, haviam também importantes rotas terrestres,
como as de caravanas do Oriente Médio vindos do Afeganistão, que
transportavam no lombo de burros o lápis-lazuli para os templos
egípcios, e a das riquezas da Arábia carregadas por mercadores.
Assim, havia rotas que ligavam desde o atual Afeganistão até Egito,
passando por cidades importantes naquele período como Kadesh,
Megido e Gaza.
Nesse contexto em que o Egito era uma potência comercial
(Murnane, 1990, p.3), Kadesh também era estrategicamente
essencial para o controle da Sírio-Palestina, pois era rota de marcha
de um exército egípcio em direção ao rio Eufrates e por outro lado,
seu controle bloquearia o avanço de qualquer exército que
pretendesse aprofundar-se na região mediterrânea.
197
“Kadesh sempre foi um ponto forte vital, porque situado no
extremo norte do vale B'kaa, ele era um ponto que qualquer
exército egípcio tinha que atravessar se aproximando do
Sul ao longo do vale - A rota óbvia” (Cottrel, 1968, p112).
A política faraônica adotada no início do Novo Império (1570 A.C.)
foi a de estabelecimento de um cordão de isolamento contra as
ameaças externas. Duzentos anos antes de Kadesh, o faraó Tutmés I
(1493 A. C. a 1482 A.C.), proclamara o Rio Eufrates como a fronteira
da ocupação egípcia. Já no reinado de Tutmés III (1479 A.C. a 1425
A. C.) as campanhas se intensificam, tendo havido o estabelecimento
de uma sólida rede de relações comerciais e de influência
diplomática egípcia na área.
Porém, a política da região modificou-se no século XIV com a
decadência do Império Mitani, cuja base central ficava no norte do
Eufrates e a ascensão do poder dos Hititas, estabelecidos a partir de
um centro de poder da Ásia Menor.
O Estado Hitita consistia de uma organização política concentrada
nas mãos de um chefe apoiado por pequenos senhores que possuíam
em seu controle exércitos que marchavam unidos em caso de guerra
e constituíam uma força militar poderosa para ser utilizada em um
confronto (Batista e Selvatici, 2016, p. 831).
Isso contrastava com o poder militar egípcio, que embora houvesse
passado por transformações em decorrência da guerra de libertação
contra os Hicsos com, por exemplo, o estabelecimento de divisões do
exército, compunha, em sua maioria de jovens recrutados em
ocasiões de confronto (Arrais, 2011, p. 66).
O Poema de Pentaur e a batalha de Kadesh
Duas linhas narrativas se entrelaçam na inscrição de Pentaur: Na
primeira, o escriba começa fazendo um elogio ao soberano e em
seguida inicia história da batalha do faraó contra seus inimigos,
contando os feitos da campanha contra os Hititas e seus aliados. Tal
como apontado nas primeiras linhas, a campanha é a priori
vitoriosa, ao qual o escriba vai explicar como essa vitória se deu. A
segunda linha é composta pela fala do próprio Ramsés, que vai
descrevendo as dificuldades ao qual vai enfrentando no decorrer da
batalha e forma com que vai encontrando resoluções para os
mesmos. O faraó vive momentos de terror na batalha, invoca a
198
proteção dos deuses, ironiza a forma com que seus soldados se
comportam em combate e aponta a si mesmo como o único vencedor
da batalha. (Carreira, 2006, p. 184)
O exército hitita em Kadesh certamente era superior, “uma multidŌo
tŌo numerosa quanto a areia” de possivelmente 35 mil de infantaria
e 2500 carros, contra 20 mil egípcios, divididos em quatro corpos de
exército, Amon, Rá, Ptah e Seth, relativo a quatro dos principais
deuses do panteão egípcio.
O texto de Pentaur se refere ao exército hitita da seguinte maneira:
“Eis que o miserável chefe vencedor de Kheta estava
estacionado no meio da infantaria que estava com ele, e ele
não veio para lutar, por medo de sua majestade. Então ele
fez para ir o povo da carruagem, uma multidão
extremamente numerosa como a areia, sendo três pessoas
para cada intervalo. [...] eles tinham feito suas combinações
assim: entre cada três jovens era um homem do vencedor
(guerreiro) de Kheta, equipado com todas as armas de
batalha. Eis que eles os tinham posto em batalha,
escondidos a noroeste da cidade de Kadesh.”
Assim, a força principal do exército hitita era composta por carros de
combate tripulados por três soldados cada um. Enganado por falsos
informantes, o faraó havia conduzido os quatro corpos de seu
exército separado até kadesh muito distantes para poderem se
apoiar em caso de um ataque rápido e acabou sendo surpreendido
pelos carros hititas A parte central da batalha consistiu de uma
manobra de movimentação rápida dos carros hititas que atacaram a
divisão de Rá pelo flanco dizimando suas forças. Em movimentação
seguinte, os carros hititas foram quebrando as divisões egípcias
antes que pudessem se colocar me posição de combater.
O relato de Pentaur possui linhas comoventes sobre o momento em
que o acampamento estava sendo tomado e o faraó se encontrava
cercado pelos carros hititas:
“Sim, e nenhum dos meus príncipes, dos meus principais e
dos meus grandes, estava comigo, nenhum capitão, nem
um cavaleiro; Pois meus guerreiros e carros me deixaram
199
ao meu destino. Ninguém estava lá para tomar sua parte
em luta "
“NŌo há ninguém ao meu lado, meus guerreiros e carros
foram afugentados, abandonaram-me, ninguém ouviu
minha voz quando aos covardes eu, seu rei, por socorro,
implorei. ”
Desesperado, Ramsés pede ajuda aos deuses, em meio a batalha:
“Pai Amon, onde você está? Será que um pai esquece seu
filho? Há algo sem o seu conhecimento que eu fiz? Dos
julgamentos de sua boca quando eu esqueci? Eu
transformei-me sua palavra? Desobedeci ou quebrei algum
voto? ”
E então, animado com a fúria de Amon, o Rei decide partir para a
frente de combate em direção aos seus inimigos, crente na sua
vitória.
“EntŌo, tudo isso aconteceu, eu fui mudado em meu
coração Como Monthu, Deus da guerra, eu fui feito, Com a
mão esquerda joguei o dardo, Com a direita, eu balancei a
lâmina, forte como Baal em seu tempo, antes de sua visão.
Dois mil e quinhentos pares de cavalos estavam por aí, e eu
voei no meio deles, pelos cascos do meu cavalo foram
quebrados todos em pedaços no chão. Nenhum levantou a
mão na luta, pois a coragem em seus seios tinha
mergulhado bastante; E seus membros foram soltos por
medo, e eles não podiam atirar o dardo, e eles não tinham
nenhum coração para usar a lança; E eu os joguei na água,
assim como os crocodilos caíram, entŌo eles afundaram. ”
Os fatos ocorridos na batalha são bem menos heróicos do que o
poema de Pentaur leva a crer. No momento crucial da batalha, os
soldados hititas, experimentados em combates, deixaram se cair
pela possibilidade de saquear o campo, desorganizando-se e
atrasando o golpe final que esmagaria o exército egípcio. Isso
impediu a aniquilação do exército egípcio e permitiu a chegada de
um pequeno corpo de exército profissional egípcio – os Ne‟arin –,
que mudou a situação da batalha. Descansados e organizados, eles
chegaram em um momento em que ambos os lados estavam em
200
estado de desorganização. A atuação desse corpo de elite permitiu as
tropas do faraó contra-atacar as desorganizadas e espalhadas tropas
hititas e reassumir o controle do campo.
Com as tropas de volta aos seus campos, a batalha estava indecisa.
Os egípcios haviam perdido uma grande quantidade de soldados,
enquanto as perdas hititas eram inferiores. Poderia haver a
possibilidade de um novo combate no dia seguinte, mas isso não
ocorreu. O exército egípcio se retirou, clamando a vitória, porém, as
rebeliões posteriores na região e o recuo egípcio apontam para pelo
menos, um empate na batalha. Tal como aponta Santosuosso:
“Os egípcios nŌo conseguiram garantir uma regiŌo mais ao
norte como fronteira contra a influência hitita, como pode
ser mostrado por campanhas posteriores de Ramsés II,
provavelmente durante os anos 5 a 7 de reinado, com prova
clara de outra campanha no ano 8 (Breasted 1906, p. 157;
Schmidt 1973, p. 30). A revolta da cidade de Askalon contra
o controle egípcio provavelmente também ocorreu durante
esse período. Os Hititas empurraram os egípcios para o sul
depois da batalha de Kadesh e ocuparam temporariamente
a região de Tabor, de onde que Ramsés depois os expulsou
(Breasted, 1906, p159). No mínimo, o controle hitita de
Amurru e Upe parece ter sido restabelecido logo após a
Batalha de Kadesh” (Santosuosso, 1996, pp. 443-444).
Considerações Finais
A batalha de Kadesh foi um dos maiores confrontos da História da
humanidade, opondo a duas maiores potências de seu tempo. O
resultado do confronto não foi positivo para nenhum dos lados, que
viram o poder Assírio crescer nas décadas seguintes. Ramsés, ao
retornar ao Egito, mandou proclamar a sua vitória, embelezando os
templos com reconstruções da batalha.
Porém, segundo Askurgal (2001, p. 90) a própria presença de
escritos e imagens nos templos egípcios relativos à batalha apontam
para uma necessidade do faraó de reconstrução do fato. Para o
pesquisador, a batalha foi um desastre para ambos os lados, mas foi
o rei hitita que soube aproveitar da situação.
“[...] foi Muwattali que aproveitou esta situaçŌo. Após a
batalha, Ramsés recuou; Os hititas apareceram em
201
Damasco e saquearam a área. O estado de Amurru, um
vizinho do Egito, novamente tornou-se um satélite dos
hititas; Bentesina, o rei desleal de Amurru foi deposto e
levado para a terra de Hatti como um prisioneiro. Depois
disso, não havia mais menção aos egípcios na Síria
(Akurgal, 2001, p. 90).
Kadesh foi um ponto marcante do expansionismo egípcio no Novo
Império, freando os avanços de Ramsés II, que posteriormente
abandonaria a região da Síria, contentando-se com uma linha de
defesas na região e um relacionamento pacífico com o poderio hitita.
Anos depois, um tratado de paz e aliança foi assinado entre os dois
povos.
O poema de Pentaur ressignificou o combate, dando ao faraó o
status de não apenas o que guia seus exércitos para a vitória, mas
também como o único vencedor da mesma. A realidade egípcia
produzia determinações que atentavam para a necessidade de uma
reconstrução de tal forma. O faraó foi glorificado, na inscrição, mas
mesmo sendo considerado como “filho de Hórus”, a sua humanidade
está muito presente na inscrição, e quando pensada em relação aos
fatos de Kadesh, chamam a atenção. Ramsés é enganado, tem medo,
chora e se sente abandonado pelos deuses e por seus soldados. O
“filho de Hórus” também é humano.
Referências
Isaias Holowate é acadêmico do Mestrado em História pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Mail:
isaiasholowate@gmail.com
Naton Joly Botogoske é acadêmico do bacharelado em Educação
Física pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Mail:
natonjoly@gmail.com.
ALMEIDA, Júlia Pereira de. O tratado entre Ramsés II e
Hattusili III. Lisboa, Centro de História da Universidade de
Lisboa, 2010.
AKURGAL, Ekrem The Hattian and Hittite Civilizations,
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ARRAIS, Nely Feitoza. Os feitos militares nas biografias do
Reino Novo: Ideologia militarista e identidade social sob a
XVIII dinastia do Egito Antigo. Tese de doutorado. Niterói,
UFF, 2011.
202
BATISTA, Leonardo Candido; SELVATICI, Monica. A formação da
identidade entre os Hititas. Anais do IX SEPECH. Londrina:
UEL, 2012.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos
Avançados, v.5, n.11, jan/abr. 1991. p. 173-191.
COTTREL, L. The Warrior Pharaohs. London, Evans Brothers,
1968
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Pentaur. Disponível
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FERGUSON. James. Kinglists and Archives, Epics and
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MURNANE, Williams J. The road to Kadesh: A historical
interpretation of the batlle reliefs of king Sety at Karnak.
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SANTOSUOSSO, Antonio “Kadesh Revisited: Reconstructing the
Battle Between the Egyptians and the Hittites”. Journal of
Military History, v.60 n. 3, Jul 1996.
SERVAJEAN, Frédéric. Quatre études sur la bataille de
Qadech. CENiM 6, Montpellier, 2012. Disponível em:
http://www.enimegyptologie.fr/cahiers/6/Servajean_CENIM6.pdf>. Acesso em 29
mai. 2017.
203
204
FRANCISCANOS NO EXTREMO ORIENTE:
REPRESENTAÇÕES DO MUNDO MEDIEVAL EM
RELATOS DE VIAGEM
Israel da Silva Aquino
Os relatos de viagem medievais são carregados das formas de
representação do mundo de seus autores. Por vezes, é comum que
certas expressões desses viajantes nos causem estranheza. O papel
do historiador, no entanto, não é opor simplesmente esses textos a
uma visão de mundo construída no presente, mas procurar
compreender as transformações e permanências que se operam, as
possibilidades de apropriação e, principalmente, explorar o
potencial que estes documentos trazem para a pesquisa histórica. O
presente trabalho busca analisar as transformações nas formas de
representação do mundo em relatos medievais de frades
franciscanos e a adoção de um discurso baseado numa forma de
representação do mundo bastante descritiva e racionalizada.
Representações do mundo e do outro
O conceito de representação, conforme compreendido por Roger
Chartier, remete a “(...) esquemas intelectuais, que criam as figuras
graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se
inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990: 17),
constituindo um aparato mental que dá sentido ao mundo e permite
sua compreensão.
O Oriente então era pensado como a terra do extraordinário; já seus
habitantes eram menosprezados pela visão ocidental de civilização,
ganhando forma a figura do bárbaro, juízo moral que constrói a
imagem do outro enquanto selvagem, sem lei e sem humanidade. O
conceito de barbárie servia para designar aqueles que “lançam os
outros para fora da humanidade, ou os julgam radicalmente
diferentes de si mesmo” (TODOROV, 2010: 29). Esta figura indica
de forma muito apropriada a imagem construída pelos cristãos
ocidentais do medievo sobre árabes e mongóis, por exemplo.
Para “dizer o outro”, nas palavras de François Hartog, emprestando
confiabilidade a seu relato no mundo de seus leitores, o viajante
medieval necessitava remeter o que a princípio era diferente, o
“bárbaro”, para os códigos de inteligibilidade de seus semelhantes.
Esse é o “problema de traduçŌo” de que nos fala Hartog: quais sŌo as
205
regras através das quais a construçŌo do “outro” é realizada, a fim de
torná-lo inteligível para o mundo do “mesmo”, no caso o mundo
ocidental? (HARTOG, 1999: 229; 250). Hartog busca discutir as
regras através das quais se opera a fabricação do outro, descrevendo
essa retórica da alteridade como “uma operação de tradução [que]
visa transportar o outro ao mesmo” (Idem, 250). Seguindo seu
raciocínio, esse processo se faria operar através de três operações
básicas: a inversão – na qual a alteridade é simplificada na figura do
“antipróprio”: nŌo existe mais a figura do outro, apenas do mesmo e
do inverso dele (Idem, 229-230) –, a analogia e a comparação –
operando-se aí a aproximação entre os dois mundos, e
possibilitando a leitura do outro “filtrado” pelo mesmo (Idem, 240241).
Outro elemento importante nesses escritos está relacionado à
descrição da Mirabília, ou o que Hartog chama de “medida do
thôma” (Idem, 245). Antes do que uma reproduçŌo acrítica do
imaginário, esta é uma rubrica que emprestava credibilidade ao
relato e contribuía para aumentar o interesse de seus leitores. O
leitor / ouvinte medieval procura busca justamente o diferente, a
referência às maravilhas com que o viajante se deparou (AQUINO,
2016: 134). Textos como „Il Milione‟, de Marco Polo, e o Livro de
Viagens de Jean de Mandeville são exemplos que tornaram essa
prática bastante difundida.
Nossos primeiros exemplos estão nos relatos dos freis franciscanos
João de Pian del Carpine e Benedito da Polônia, que visitaram juntos
o Império Mongol no século XIII. Carpine era uma diplomata
experiente, enviado em missão pela cúria papal, e produz um relato
que se tornaria conhecido por sua objetividade crítica. Seu relato é
um verdadeiro esforço de produzir um tratado que servisse como
referência para o Ocidente sobre este Império ainda obscuro:
“Querendo, pois, relatar os fatos que dizem respeito aos
tártaros, para que os leitores possam orientar-se mais
facilmente, descreveremos por capítulos da seguinte forma.
No primeiro, falaremos da terra; no segundo, dos homens;
no terceiro, do culto; no quarto dos costumes; no quinto,
do seu império; no sexto, das guerras; no sétimo, das terras
[...]; no oitavo, como guerreiam; no último, do itinerário
que percorremos [...]. (CARPINE, 2005: 30)”
206
A narrativa busca criar um quadro detalhado da viagem do autor.
Vejamos agora um trecho do curto relato do companheiro e
intérprete dessa mesma viagem, frei Benedito da Polônia. Esse frei
descreve alguns dos povos das regiões atravessadas em sua viagem:
“Antes, nas Rússia, à esquerda, estiveram os morduanos,
que são pagãos e, atrás, têm a maior parte da cabeça
raspada; os bileros, que são pagãos, e depois os bascardos,
que são antigos húngaros; depois os cynocephalos, que têm
cabeça de cão; depois os parocítas, que têm boca pequena e
estreita e nada podem mastigar, mas tomam caldo e se
nutrem com vapores de carnes e frutos liquefeitos”.
(POLÔNIA, 2005: 101)
Trata-se aqui de um relato que remete para a mesma viagem, mas
traduz uma experiência distinta. O primeiro é permeado por um
pensamento metódico e uma descrição prática e objetiva. No
segundo já podemos constatar a presença de uma abstração, retirada
do imaginário, que nos dá uma ideia de como podem ser diferentes
as representações construídas pelos atores, ainda que em uma
mesma situação.
Benedito da Polônia provavelmente não encontrou em sua viagem
com a famosa figura do cinocéfalo (do grego kunoképhalos, “que tem
cabeça ou face de cŌo”), criatura mítica recorrente na Mirabília
antiga e medieval. O mais certo é que tenha ouvido histórias a
respeito de tais criaturas, que resolveu incluir em seu relato
(SILVEIRA, 2005: 99). Mas, de todo modo, sua narração apresenta
uma prática comum às narrativas de viagem medievais: as
referências míticas.
É possível que uma das motivações para isso esteja relacionada à
experiência de vida dos viajantes. Carpine, por exemplo, quando da
viagem, era já um homem experiente. Estivera na ordem dos
franciscanos desde sua fundação, e fora um dos discípulos de São
Francisco. Pregara, antes de realizar sua viagem ao Oriente, na
Alemanha, e estava encarregado de uma importante missão
diplomática: fora enviado pelo Vaticano aos mongóis a fim de traçar
um quadro detalhado desse povo desconhecido, o que tornava a
exatidão de seu relato uma exigência ainda mais premente. Assim, o
frei descrevia os detalhes dos povos e sociedades pelos quais
207
passava, recorrendo a comparações e analogias quando sentia
dificuldade em explicar suas experiências para o leitor ocidental.
Seu companheiro, frei Benedito, provavelmente não possui a mesma
trajetória. Assim, ao tentar descrever sua viagem, entende ser lícito
incluir narrativas maravilhosas das quais ouve falar. Parece tomar
forma à figura da inversão que Hartog nos fala: diante de uma maior
dificuldade em lidar com o outro, o autor desse relato o transforma
em um antipróprio, um antagonista do ocidental civilizado, um
bárbaro, enfim, um monstro.
Outro elemento que nos interessa na presente reflexão diz respeito à
tradição do Contemptus Mundi - a negação do mundo -, cuja prática
implicava na falta de informações sobre o mundo material
percorrido por estes viajantes. Ao concentrar-se exclusivamente em
sua viagem espiritual, esses religiosos não registravam o percurso de
sua viagem, seus encontros, paisagens, a própria materialidade do
caminho percorrido.
Muito comum em outras ordens, os escritos de viagem de
franciscanos tratam a questão de forma bastante diferente. Ao
mesmo tempo em que o conceito de negação do mundo é repensado
através das práticas de mendicância e pregação, a atenção dos
viajantes se volta vivamente para o mundo percorrido.
Por outro lado, podemos inferir que a negação do mundo seja
também uma forma de lidar com a alteridade: ela torna-se também
uma negação do outro, o desprezo pela possibilidade da diferença,
em um momento em que se presume como correta uma - e apenas
uma - forma de espiritualidade e salvação. Mas embora a concepção
que a Ordem Franciscana adotaria não diferisse fundamentalmente
quanto à forma de lidar com essa alteridade – como combater a fé
muçulmana, por exemplo –, sua atuação seria diferenciada, ao
abandonar-se uma postura de abstração, partindo para uma prática
fundada na pregação.
O relato de viagem de Guilherme de Rubruck
O relato de viagem do franciscano Guilherme de Rubruck, em sua
viagem ao império mongol no século XIII, também ficou conhecido
pela objetividade com a qual descreve a viagem e as experiências que
nela viveu. Rubruck inicia seu relato descrevendo a paisagem, a
geografia e as sociedades com que se depara. Ele não deixa de fazer
comparações das paisagens pelas quais passa com paisagens
208
europeias, procurando tornar seu relato mais compreensível. Por
duas vezes compara os rios com o Sena, de Paris. Da mesma forma,
compara a cidade de Karakorum e o palácio do Grande Khan com
prédios da capital francesa.
“Quanto à cidade de Caracarum, sabei que, excluindo o
palácio do Chan, não é tão boa quanto o burgo de São
Dionísio; o mosteiro de São Dionísio vale dez vezes mais
que aquele palácio.” (RUBRUCK, 2005:, 208).
O relato produzido permite ao seu leitor uma ideia do caminho
percorrido pelo autor e de suas experiências na viagem. Contudo, o
maior desafio do Itinerarium, nos parece, fora o de traçar uma
representação das sociedades humanas encontradas no trajeto e o de
lidar com as questões de alteridade que se apresentaram. Distintas
em diversos aspectos da sociedade de que Rubruck era proveniente,
o encontro com estas pessoas apresentou o desafio de lidar com o
diferente; tentar compreendê-lo, ao mesmo tempo em que buscava
traduzi-lo para que outros pudessem também “ver” o que ele via.
Podemos notar que esses dois processos cognitivos - a relação com a
alteridade e o esforço de tradução - transcorrem em paralelo,
deixando marcas no texto que é produzido. Mesmo no caso do
Itinerarium, que é escrito depois de sua viagem e, portanto, a partir
de suas memórias, nos parece possível perceber o esforço mental
realizado pelo autor em executar essas duas tarefas, ao tentar traçar
o quadro demonstrativo de suas experiências entre os mongóis e
outros povos encontrados em seu percurso.
“Quando entrei em seu território, tive a certeza de ter
entrado em outro mundo. Descrevo como posso a sua vida
e os seus costumes (...). Em lugar algum têm eles cidade
permanente, mas ignoram a futura”. (RUBRUCK, 2005:
120).
A passagem acima é começo da descrição de Rubruck sobre os povos
mongóis, com quem trava contato já no princípio de sua jornada. A
partir daí, seu relato passa a ser um esforço descritivo que nos
apresenta a sociedade mongol em seus mais diversos aspectos,
passando por suas moradias, vestuários, alimentos, a organização
das cortes e as suas práticas sociais. Nesse ínterim, ganham corpo
diferentes representações que buscam dar conta de apresentar a
209
percepção que o frei vai construindo, dando-nos uma ideia de suas
formas de visão do mundo e do outro com que se depara.
Recuperando a ideia de uma retórica da alteridade, podemos pensar,
por exemplo, na comparação classificatória, utilizada sobretudo para
descrever os hábitos e costumes, assinalando as semelhanças e,
sobretudo, os desvios, em relação aos referenciais culturais de
Rubruck. Nas palavras de Hartog:
“Na narrativa de viagem, funcionando como traduçŌo, a
comparação estabelece semelhanças e diferenças entre
„além‟ e „aquém‟, esboçando classificações. Para que a
comparação tenha efeito, convém que o segundo termo
pertença ao saber compartilhado pelas pessoas a quem se
dirige o viajante.” (HARTOG, 1999: 240)
A comparação exerce, portanto, uma função interpretativa que
permite ao autor do relato transmitir a seus leitores uma ideia mais
clara de sua experiência. Poderá ser direta ou indireta, ou ainda, nos
casos em que o termo não possui um equivalente direto no mundo
do destinatário, assumir a forma de analogia (Idem, 241).
Importante notar que, por outro lado, a figura da inversão - negação
da alteridade - aparecerá igualmente ao longo do texto, sendo por
vezes mesclada às outras, ou ambas conjugadas em paralelo.
Tais operações podem ser encontradas em abundância nos relatos de
viagem, valendo igualmente para o Itinerarium de Rubruck. O autor
busca apresentar os hábitos e costumes dos mongóis de forma
inteligível, assim como ocorre a comparação para descrever a
geografia das paisagens percorridas:
“Todas as mulheres montam a cavalo como os homens, de
pernas abertas, e amarram suas vestes sobre os rins, com
um pano de seda (...). As mulheres são espantosamente
gordas, e aquela que tem o nariz menor é considerada a
mais bela. Desfiguram-se de modo feio, pintando o rosto.
Para dar à luz, nunca se deitam.” (RUBRUCK, 2005: 129)
Pode-se perceber aqui uma comparação com os padrões ocidentais
que Rubruck conhece. Embora não sejam explicitados, intuem-se os
costumes ocidentais, que provavelmente não compartilham desses
hábitos. Ao destacar as diferenças de costumes, o autor não deixa de
210
classificar as práticas das mulheres mongóis, demonstrando certa
reprovação, ao formular um juízo de valor que dá a entender os
hábitos dos orientais como menos civilizados.
Não se desfez, em seu pensamento, a figura do bárbaro; pelo
contrário, ela permanece presente durante todo o seu percurso.
Diante de práticas que não coincidem com os hábitos e costumes do
Ocidente, Rubruck visualiza os componentes básicos da barbárie, a
saber, a falta de humanidade, a falta de pudor, a ruptura com a
sociedade dos homens e com os sistemas de leis (TODOROV, 2012:
25-27).
“Quando penetramos em território desses bárbaros,
pareceu-me que entrava em outro mundo, como disse
acima. Cercaram-nos a cavalo, depois de nos terem feito
esperar (...) por muito tempo. (...) Depois que respondemos
(...), desavergonhadamente começaram a pedir os nossos
mantimentos.” (RUBRUCK, 132-133)
A questão religiosa é outro ponto que possui relevância no relato de
Rubruck. Frei Guilherme dá centralidade à discussão acerca da
religião dos mongóis e dos outros povos com que tem contato. Por
diversas vezes fala de seus encontros com os “sarracenos”, foco de
suas críticas e dos principais embates teológicos que trava. Mas
também descreve seu contato com cristãos nestorianos, com monges
budistas, e com sacerdotes das cortes mongóis, que o frei denomina
“adivinhos” (RUBRUCK, 2005: 220).
Este é um ponto importante para tentar compreender as relações
que Rubruck constrói com a alteridade ao longo de sua viagem, pois
a questão religiosa lhe é muito cara. Por isso, em diversos momentos
o frei constrói figuras que vão da comparação à negação,
relacionando as diferentes crenças com que se depara, e sempre
valorizando a sua crença sobre as demais. De todo o modo, é
possível perceber que o mesmo constrói gradações entre umas e
outras, construindo comparações.
Isso ocorre, por exemplo, em relação à fé muçulmana, que é sempre
a mais combatida pelo frei. Mesmo ao descrever os sacerdotes
budistas de Catai, o frei não se mostra tão intransigente como
quando trata da fé islâmica, demonstrando o quanto pesava ainda
neste momento a questão da Cruzada.
211
“Os sacerdotes dos ídolos das mencionadas nações têm
largas capas amarelas; conforme eu soube, há também
entre eles alguns eremitas nas florestas e montanhas,
admiráveis pela vida e pela austeridade.” (Idem, 170)
Por outro lado, Guilherme tende a se aproximar, durante a sua
estada em Karakorum, dos sacerdotes da crença nestoriana, seja
pela unidade compartilhada pela fé cristã, seja pela busca identitária
de uma sociabilidade com pessoas que compartilhassem de um
mínimo de valores sociais, culturais e, no caso específico da
descrição do frei, de um idioma comum. Alguns deste nestorianos
dominavam o latim, e o frei encontra-se também, na capital mongol,
com um ourives francês que se torna seu amigo:
“Além disso, contou-nos que, em Caracarum, havia um
mestre ourives, chamado Guilherme, oriundo de Paris (...).
Escrevi então ao mencionado mestre sobre a minha
chegada, pedindo-lhe que, se fosse possível, me enviasse o
seu filho [como intérprete].” (RUBRUCK, 2005: 182)
Finalmente, tem destaque a disputa teológica que Rubruck participa
no final de sua estada em Karakorum. Convocado pelo Grande Khan
Mangu, esse debate reuniu representantes de três crenças distintas:
cristãos (no caso, representados pelas duas vertentes, ocidental e
nestoriana), muçulmanos e budistas.
“Na manhŌ seguinte, mandou-me seus escrivães, que
disseram: (...) Aqui há cristãos, sarracenos e tuinos, e cada
um afirma que a sua religião é melhor, e que os seus
escritos (...) são os mais verdadeiros. Por isso, [nosso
senhor] quer que vos reunais, façais um confronto, cada um
escreverá os seus ditos, para que ele possa conhecer a
verdade.” (RUBRUCK, 2005: 213)
Neste momento, Rubruck estabeleceu uma estratégia de atuar em
conjunto com os nestorianos, e admite a possibilidade também de se
aliar aos muçulmanos, pois estes compartilham também de uma
crença monoteísta, em contraponto à crença dos “tuínos”, os monges
budistas presentes na corte. Portanto, a estratégia do monge passa
pela afirmação de uma crença una, como forma de reforçar sua
posição no debate. Assim, os momentos mais relevantes da descrição
da disputa ocorrem durante a discussão entre os budistas e Rubruck
212
sobre a onipotência de Deus e a existência do mal (ÁLVAREZCIENFUEGOS FIDALGO, 2006: 154). Contudo, ao fim da disputa,
apesar de avaliar sua atuação estratégica como acertada, Rubruck
afirma que ela não surtiu o efeito esperado de sua missão, qual seja,
a conversão de mongóis e membros de outras crenças. O frade acaba
percebendo a forma pragmática como os mongóis e seu Khan
utilizam a religião, pois toleram a presença de sacerdotes de diversas
crenças em suas cortes, principalmente em funções burocráticas e
administrativas. Ao fim, Rubruck percebe que esse fato não colabora
para sua missão e expressa sua descrença na conversão dos mongóis
ao cristianismo (RUBRUCK, 2005: 221-216).
Considerações finais
A análise destes relatos de viagem permitiu-nos perceber que estes
se inserem em um período marcado por mudanças que, de certo
modo, foram refletidas na forma como os mesmos se produziram.
Isso pode ser notado nas práticas descritivas adotadas, que
abandonam certas características presentes nos relatos do medievo
– a saber, a larga utilização da Mirabília e a negação do mundo
material enquanto prática religiosa. Por outro lado, é possível
perceber que as relações que se estabeleciam ainda eram marcadas
pelo estranhamento e resistência ao tratarem de questões de
alteridade, constituindo-se assim uma rede de relações que correm
em paralelo, uma relação ambígua ao lidar com a figura do outro
para a qual não se alcança uma solução, mas que permeava suas
experiências.
Referências:
Israel Aquino é mestrando em História na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. E-mail: israel.aquino@ufrgs.br
Fontes primárias publicadas:
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Tradução de Ildefonso Silveira. In: CARPINE et. al. Crônicas de
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(1245-1330). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 115-243. (Coleção
Pensamento Franciscano).
RUBRUCK, Guilherme de. The Journal of friar William of
Rubruquis a French man of the order of the minorite
friars, into the East parts of the world. An. Dom. 1253.
University of Adelaide, 2010. Disponível em:
213
<http://ebooks.adelaide.edu.au/h/hakluyt/voyages/rubruquis/>.
Acesso em 03/12/2012.
Bibliografia
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cercanias del Cipango. Relaciones. Ciudad de Mexico (Mexico), v.
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AQUINO, Israel da Silva. Relatos de viagem no medievo: análise de
uma perspectiva muçulmana. Revista Trilhas da História, v. 5,
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CARPINE, João de Pian del. História dos Mongóis. In: CARPINE et.
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CHARTIER, Roger. Por uma Sociologia Histórica das Práticas
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Representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 13-28, 1990,
GONÇALVES, Rafael Afonso. O despertar dos mendicantes
para os outros mundos (séculos XIII e XIV). 2011. 156 p.
Dissertação (Mestrado em História) - UNESP. Franca. Disponível
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08/08/2017.
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O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro.
Belo Horizonte: UFMG, p. 229-271, 1999.
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(1245-1330). Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 99-104, 2005.
SILVEIRA, Ildefonso. Guilherme de Rubruck - vida e obra. In:
CARPINE et. al. Crônicas de Viagem: Franciscanos no Extremo
Oriente antes de Marco Polo (1245-1330). Porto Alegre: EDIPUCRS,
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SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do
ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque
das civilizações. Petrópolis: Vozes, 2010.
214
UNESCO, YOGA E MAHÃBHÃRATA: HISTÓRIA E
PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA ÍNDIA
Janaina Cardoso de Mello
Em dezembro de 2016, a imprensa europeia anunciou ao mundo que
o Yoga da Índia fora declarado Patrimônio Imaterial da
Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e a Cultura (UNESCO), durante a reunião do Comité
Intergovernamental em Adis Abeba, na Etiópia. Considerou-se ter a
filosofia vinculada à prática influenciado: “[...] numerosos aspectos
da sociedade deste país, que vão desde a saúde à medicina, até à
educaçŌo e as artes” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 01/12/2016).
Guardiã das memórias, histórias e culturas dos povos, como viés de
educação, turismo e ciência,
“A UNESCO destacou ainda a „unificaçŌo da mente, do
corpo e da alma para melhorar o bem-estar mental, físico e
espiritual das pessoas‟ para quem exercita esta prática. Esta
prática cultural é transmitida segundo o modelo de
ensinamento mestre-aluno, mas atualmente existem
mosteiros, instituições educativas e centros comunitários
que também contribuem para a sua transmissŌo”
(OBSERVADOR, 01/12/2016).
Deve-se recordar o fato de ter sido o patrimônio imaterial
chancelado na 32ª Sessão da Conferência Geral das Nações Unidas,
de 17 de outubro de 2003 na Convenção para Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial que resultou na Carta Patrimonial
conhecida como a Recomendação de Paris.
O documento retoma outros dois momentos importantes desse
processo: a Recomendação da UNESCO sobre a salvaguarda da
cultura tradicional e popular, de 1989, assim como a Declaração
Universal da UNESCO abordando a Diversidade Cultural de 2001, e
a Declaração de Istambul, de 2002 (IPHAN, 2017, p.1).
A Recomendação de Paris de 2003, além de ressaltar a necessidade
de conscientização sobre o valor do patrimônio imaterial e seu
mútuo reconhecimento (local, nacional e internacional), além do
215
exercício de cooperação e assistência internacionais, trouxe ainda o
conceito de “patrimônio imaterial” como:
“[...]
as
práticas,
representações,
expressões,
conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos,
objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as
comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos
reconhecem como parte integrante de seu patrimônio
cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é constantemente
recriado pelas comunidades e grupos em função de seu
ambiente, de sua interação com a natureza e de sua
história, gerando um sentimento de identidade e
continuidade, contribuindo assim para promover o respeito
à diversidade cultural e à criatividade humana” (IPHAN,
2017, p.2-3).
Importante também é ressaltar a Declaração de Issyk-Kul sobre o
Diálogo entre Culturas e Civilizações na Eurásia, de 2004, por
reafirmar que é através do diálogo e interação entre distintos vetores
culturais que se sobressai “[...] a capacidade humana e social para a
criaçŌo, expressŌo e inovaçŌo, bem como para a reconciliaçŌo”
(CABRAL, 2011).
Por isso, nada mais justo do que contemplar com uma chancela
patrimonial um dos subcontinentes asiáticos mais criativos, tanto
em suas concepções religiosas e filosóficas, quanto em seus
vocábulos originários de idiomas, em sua gastronomia, sua arte, seu
vestuário, músicas, modos de ser, viver e ver o mundo.
Demarcada ao note pelo Himalaia, a Índia superou seu isolamento
geográfico através de suas costas banhadas pelo Oceano Índico,
cujas rotas marítimas possibilitou o contato com Ocidente e Oriente.
E como salientou o historiador Edgard Leite (1997, p.7):
“[...] é na regiŌo compreendida entre o Ganges e o seu
grande tributário, o rio Yamuna, que encontramos o
coração da Índia, ou melhor, da cultura que consolidou, ao
longo dos séculos, a identidade cultural-religiosa de grande
parte da população do subcontinente. Foi essa a região que
em tempos pretéritos tornou-se conhecida como
Aryavarta, a terra dos aryas, ou seja, o local onde se
216
estabeleceram os míticos fundadores da cultura védica, os
ários ou arianos”.
A Índia nŌo é uma “ilustre desconhecida”, pois em período anterior e
posterior à Heródoto apareceu em vários relatos. Missionários
jesuítas e mercadores visitaram seu território. Portugueses,
franceses, neerlandeses e ingleses também não a ignoravam.
Embora, somente no século XVIII surge a figura do historiador da
história da Índia, em Calcutta (FONSECA, 1999, p.208).
Grandes riquezas da cultura indiana podem ser encontradas nas
narrativas históricas, mitológicas e identitárias da literatura védica.
Mas o que são os escritos védicos? De acordo com Gosvãmi (1986,
p.1) “as escrituras védicas compreendem um todo harmonioso com
uma conclusŌo harmoniosa” tendo como marco original o siddhãnta
(conclusão filosófica) védico. Assim,
“As escrituras védicas sŌo de amplo escopo. Só o Rig Veda
contém 1.017 hinos, o Mahãbhãrata consiste em 110.000
dísticos e os dezoito Purãnas principais que contêm
centenas e milhares de versos” (GOSVÃMI, 1986, p.2).
Salienta-se, no entanto, que a história da Índia tem sido
tradicionalmente referenciada em seus períodos religiosos que
compreendem além do védico, a presença dos períodos bramânico e
do clássico (bramânico renovado). Entretanto, a primeira leva de
produções historiográfica sobre a Índia, ao serem oriundas de
intelectuais ingleses terminaram por acentuar preconceitos e marcas
colonizadoras.
A construção de um tipo de representação da Índia como um
território da “espiritualidade” sem o aprofundamento de seu viés
político, econômico e social, reduzindo os elementos culturais à
religiosidade e à visão de um tempo imóvel e sem mudanças
caracterizou as primeiras obras produzidas por James Mill (“History
of British India”, de 1817), Vincent Smith (“Early History of India”,
de 1904) e Hermann Oldenberg (“A Literatura da Índia Antiga”, de
1956) onde, nesta última, até o Mahãbhãrata é comparado de modo
depreciativo com as epopeias gregas (FONSECA, 1999, p.210).
Somente na virada do século XX, as primeiras gerações de
historiadores indianos assumem o protagonismo dos escritos de si,
217
de seu tempo e de seu espaço, entretanto, intelectuais como R. G.
Bhandarkar ainda reproduziam as influências inglesas em seus
trabalhos, cujas fontes eram predominantemente a literatura
sânscrita, proveniente da elite cultural dominante indiana
(FONSECA, 1999).
Entre as décadas de 1920 e 1930, uma segunda onda de
historiadores indianos, sob a égide dos movimentos nacionalistas e
de independência, à exemplo de K. P. Jayaswal e A. K.
Coomaraswami, buscaram erigir a narrativa de um “passado
glorioso”, com muitas manifestações da cultura grega em sua
própria trajetória, assim, afirmava-se que:
“se à Índia faltavam o racional e o pragmático, era
necessário afirmar que a cultura indiana era
essencialmente espiritualista, oposta à civilização ocidental
materialista, e por isso era superior a ela” (FONSECA,
1999, p.211).
Consolidada a independência, um novo horizonte surgiu para o
trabalho historiográfico na Índia. As investigações deixaram de se
concentrar apenas nas fontes literárias e passaram a buscar dados
contidos em pesquisas arqueológicas, etnológicas, epigráficas,
numismáticas, dentre outras, além de novas metodologias de
tratamento e análise da informação. Com isso, ocorre um
aprofundamento do sentido da escrita histórica e
“[...] reconhece-se como fio condutor a ideia de que
mudanças no sistema político estão inextricavelmente
entretecidas com mudanças na estrutura econômica, que,
por sua vez, influenciam as relações sociais; que, se um
movimento religioso, por exemplo, se arraiga, então a
atração que ele exerce deve guardar uma relação com o
lugar social dos que o apoiam; que, se um dialeto adquire
foros de língua e se uma literatura se formaliza nessa
língua, então algo profundamente significativo aconteceu
não só linguística e literariamente com os falantes dessa
língua” (FONSECA, 1999, p.212).
Variações regionais e históricas do padrão cultural, com mudanças
que nem semelhantes e nem simultâneas são descortinadas a partir
da redução da escala do olhar de pesquisa para as histórias locais e
218
regionais, escapando-se à homogeneização das generalizações
habitais até então. Assim, tanto no Norte como no Sul da Índia, os
centros de estudos passaram a guiar-se pela compreensão, com
influência nas leituras de Marx, de que
“O estudo sistemático das relações entre a organizaçŌo
social, política e econômica e seus efeitos sobre os eventos
históricos levou ao estabelecimento de relações de causa e
efeito entre esses elementos e ao desenvolvimento da ideia
de que é a inter-relação de uma variedade de forças que
determina os eventos, cuja chave é os meios de produçŌo”
(FONSECA, 1999, p.212).
A ideia de periodização começou a ser relegada ao passado
historiográfico, tendo-se me conta que distintas fases históricas
ocorreram nas sociedades sem necessariamente aplicarem-se ao
mesmo tempo e de igual forma. Essa nova fase dos escritos
históricos sobre a Índia é fortemente representada pela obra
“History of India” (1966) de Romila Thapar (FONSECA, 1999,
p.213).
Mas onde os Vedas, o Mãhãbhãrata e o Yoga entram nessa cadeia
de acontecimentos mutatis mutandi? De acordo com Heinrich
Zimmer (1986, p.238) o surgimento da filosofia hindu ortodoxa
provém da religião ária dos Veda, com seu panteŌo que “projetavam
as experiências e ideias do homem sobre si mesmo”.
Os seguidores de Vishnu (uma entidade que auxiliou os deuses a
livrarem-se de um inimigo, o rei Bali), os cantos de 25 a 42 do
Mãhãbhãrata configuram-se como os textos fundamentais para sua
prática religiosa. Esse texto foi denominado Bhagavad-Gita, ou, “o
canto do senhor” (LEITE, 1997, p.61).
“O Bhagavad-Gita é a passagem do Mahabharata que
transcorre pouco antes da batalha de Kurukshetra, na qual
se enfrentarão Pandavas e Kauravas, primos, mas
adversários na luta pelo poder. Arjuna, um dos irmãos
Pandava, está em um carro de guerra, pronto para o início
do confronto, junto com seu auriga, Krishna- que Arjuna
entende ser um poderoso príncipe. No limiar do combate,
no entanto, Arjuna é tomado de remorsos e dúvidas e se
questiona sobre o significado daquela luta fraticida.
219
Krishna, então, momentaneamente interrompendo o
conflito, inicialmente passa a explicar a Arjuna os seus
deveres como integrante da varna kshatrya e, logo a
seguir, passa a expor a natureza da condição humana e dos
caminhos que devem ser seguidos para a libertação.
Primeiro, explica Krishna, é necessário entender a Jñana
yoga, a „disciplina do conhecimento‟ e a Karma yoga, a
„disciplina da açŌo‟” (LEITE, 1997, p.62).
A literatura védica, através do conhecimento sobre autorrealização,
busca apresentar o caminho para a libertação do sofrimento.
Pretende-se alcançar a transformação do ser, sendo o Bhagavad-Gita
o baluarte da verdade (GOSVÃMI, 1986, p.2).
Os estudos de Leite (1997, p.61-62) sobre o Bhagavad-Gita
aprofundam mais a compreensão da divindade manifesta em
Krishna, que incentiva Arjuna a seguir seu dharma, além de
defender “que a mais levada forma de Yoga é aquela que tem na
contemplação desse senhor supremo, infinitamente poderoso, o seu
mais alto objetivo”. Assim, seria o bhakti-yoga uma forma de
libertação para todos os seres, independentemente de sua condição
social.
“NŌo se pode perceber a verdadeira forma desta árvore
neste mundo. Ninguém pode compreender onde ela acaba,
onde começa, ou onde ela se alicerça. Mas com
determinação deve-se derrubar com a arma do desapego
esta árvore fortemente arraigada. Em seguida, deve-se
procurar aquele lugar do qual ninguém volta após ter
chegado lá e render-se a esta Suprema Personalidade de
Deus de quem tudo começou e de quem tudo emana desde
tempos imemoriais” (MAHÃBHÃRATA, Bhagavad-Gita,
15.4).
A passagem acima do Bhagavad-Gita refere-se à figueira-de-bengala,
nutrida pela natureza material, cujos brotos são objetos dos sentidos
e distintos subprodutos que variam entre o prazer e o sofrimento,
atuando na renovação do karma. Por isso, põem-se a necessidade de
cortar essa ligação, buscando o verdadeiro conhecimento para se
chegar até Deus. Através do serviço devocional (ouvir, cantar),
desapegando-se, encontra-se Krishna e sua libertação.
220
Para entender melhor o significado das palavras proclamadas no
Mahãbhãrata, é necessário compreender o significado do Yoga como
um conjunto de conhecimentos filosóficos imiscuídos na vida do
povo indiano, constituindo seus valores éticos, morais, atitudinais,
preceitos e técnicas espirituais, bem como seus procedimentos
frente à natureza (saúde física, mental e espiritual). Através do
cuidado com o “homem integral” exercia-se o cultivo do sagrado, a
harmonia e a plenitude da vida (ELIADE, 2009, p.40).
O Yoga, enquanto prática ritual, aplicava técnicas adequadas de
liberação do desejo e do medo que se davam pelo controle da
respiração e da ampliação da consciência espiritual através da
concentração e da meditação (acesso ao subconsciente)
(CAMPBELL, 1990).
A pesquisadora Lilian Gulmini (2002) chama a atenção para essa
relação da experiência do sagrado do homem indiano através do
Yoga refletida não apenas na ritualística do processo místico, mas na
própria forma de lidar com a passagem do tempo (cíclico) e assim
com a própria natureza da vida e da morte (ciclo das reencarnações).
A partir dessa rápida explanação da essência histórica do Yoga e sua
relação com a divindade via Baghavad-Gita, compreende-se melhor
a importância desse “modo de ser e de viver” gerador de uma visŌo
de mundo que transpassa o tempo e o espaço, do Oriente ao
Ocidente, para se tornar uma prática que embora tenha se tornado
culturalmente multifacetada coligiu uma coletividade.
A inscrição do Yoga na lista de bem representativo do patrimônio
imaterial da humanidade, chancelado pela UNESCO em 2016, o
define como
“[...] uma série de poses, meditação, controle da respiração,
palavras cantadas e outras técnicas para auxiliar os
indivíduos à alcançarem a autorrealização, liberando-se de
qualquer sofrimento. Sua prática realizada por jovens ou
idosos sem discriminação de gênero, classe ou religião
tornou-o popular em outras partes do mundo” (UNESCO,
2016).
É esse aspecto que a UNESCO levou em consideração no momento
da chancela desse bem imaterial enquanto patrimônio da
humanidade. Ressalta-se que a Índia já possui uma extensa lista de
221
bens classificados como patrimônio material. São 35 bens materiais
com chancela concedidas, sendo os primeiros de 1983 – a Forte de
Agra, as Grutas de Ajanta, a Grutas de Ellora e o Taj Mahal – e o
último, o Centro histórico de Ahmadabad, de 2017 (UNESCO, 2017).
“[...] a Unesco e as políticas patrimoniais adotadas pelos
diversos países do mundo, nas últimas décadas do século
XX e nos anos iniciais do século XXI, empreenderam
esforços no sentido de retificar a perspectiva
monumentalista atribuída ao patrimônio desde meados do
século XIX na França e buscaram valorizar a diversidade
cultural” (PELEGRINI; FUNARI, 2008, p.43).
A lista de patrimônio imaterial da humanidade é muito recente, mas
já é alvo de grande procura de inscrições. Em 2011, houve 213
elementos inscritos, sendo 96 oriundos da região da Ásia e Pacífico
(CABRAL, 2011). Atualmente mais de 90 tradições possuem o selo
de patrimônio imaterial da humanidade, compreendendo práticas
ancestrais, músicas, danças e línguas antigas, estando mais de 26
localizadas na Ásia e no Pacífico.
A premissa das candidaturas junto à UNESCO requer que a
identificação, a valorização e a promoção do patrimônio cultural
imaterial venha a emergir dos detentores do patrimônio reconhecido
e eleito pela própria comunidade para a manutenção de sua
identidade, memória e salvaguarda, engajando-se em sua
transmissão às gerações futuras.
Sob esse aspecto a decisão do Comitê avaliador da UNESCO
ressaltou o papel da Sangeet Natak Akademi, que mantém o
Inventário Nacional do Patrimônio Cultural Imaterial e Diversas
Tradições Culturais, com a participação e consentimento dos
profissionais e das partes interessadas. O Sangeet Natak Akademi
também atualiza regularmente o Inventário Nacional (UNESCO,
2016).
As tradições culturais indianas têm um impacto grande também no
modo de vida ocidental e isso está comprovado na decisão do Comitê
avaliador da UNESCO. O Yoga por sua ancestralidade histórica, por
sua tradição sagrada de bem-estar físico e espiritual, por sua
vinculação com textos identitários referenciais, reunindo toda uma
coletividade sem preconceitos reafirma a força da pluralidade no
222
patrimônio cultural imaterial, bem como a necessidade de sua
salvaguarda e difusão.
Os estudos de acadêmicos brasileiros a respeito dessa prática como
objeto de pesquisa ainda é muito pouco referenciado, entretanto
deve-se destacar a dissertação de Mestrado em Ciência das Religiões
na UFPB, intitulada “O Yoga como caminho de elevaçŌo na
espiritualidade e na saúde” de autoria de Vânia Cristina Lucena
Lima, defendida em 2010. A pesquisadora utilizou a história oral de
vida como metodologia e historicizou o Yoga em suas diferentes
temporalidades da Índia até sua inserção no Brasil.
Referências
Janaina Cardoso de Mello é Pós-Doutoranda em Estudos Culturais
(PACC-UFRJ); Doutora em História Social (UFRJ); Professora
Adjunta de História do DHI na Universidade Federal de Sergipe
(UFS), onde ministra a disciplina História e Patrimônio Cultural,
docente do Mestrado Profissional em Ensino de História
(ProfHistória-UFS) e do Mestrado Acadêmico em História da
Universidade Federal de Alagoas (PPGH-UFAL).
E-mail: janainamello.ufs@gmail.com
CAMPBELL, J. As transformações do mito através do tempo.
Trad. Heloysa Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1990.
CABRAL, C. B. Patrimônio Cultural Imaterial. Convenção da
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http://www.dn.pt/sociedade/interior/unesco-declara-yoga-daindia-patrimonio-imaterial-da-humanidade-5529222.html, Acesso
em: 15/08/2017.
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Velloso. 4ª Ed. São Paulo: Palas Athena, 2009.
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por si mesma. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1986.
GULMINI, L. C. O Yogasutra de Patañajali – tradução e análise
da obra, à luz de seus fundamentos contextuais, intertextuais e
linguísticos. Dissertação de Mestrado em Linguística. São Paulo:
FFLCH-USP, 2002.
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Bhaktivedanta Swami Prabhupãda. Lisboa: Printer Portuguesa,
1995.
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LIMA, V. C. L. O Yoga como caminho de elevação na
espiritualidade e na saúde. Dissertação de Mestrado em Ciência
da Religião. João Pessoa: UFPB, 2010.
OBSERVADOR. UNESCO declara yoga Património Imaterial
da Humanidade. 01/12/2016. Disponível em:
http://observador.pt/2016/12/01/unesco-declara-yoga-patrimonioimaterial-da-humanidade/, Acesso em: 15/08/2017.
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imaterial. São Paulo: Brasiliense, 2008 (Col. Primeiros Passos,
331).
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11.COM 10.B.17. Takes note that India has nominated Yoga
(No. 01163) for inscription on the Representative List of the
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https://ich.unesco.org/en/decisions/11.COM/10.B.17, Acesso em:
22/08/2017.
UNESCO. WHC (World Heritage Convention). Região Ásia e
Pacífico (Lista Geral). Disponível em: http://whc.unesco.org,
Acesso em: 20/08/2017.
ZIMMER, H. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 1986.
224
EXTREMO ORIENTE:
DOIS OLHARES PARA O VAZIO
Jienefer Daiane Marek
Uma das mais notáveis características da arte oriental é a presença
do traço caligráfico nas produções pictóricas. Isso se deve ao fato de
que a caligrafia é uma disciplina de grande importância na educação
oriental, de modo que esta não pode estar dissociada da pintura,
muito ao contrário, ela a complementa. Sendo assim, cada artista
possui um traço caligráfico singular, por mais que possa ser
considerado semelhante ao de outros artistas. Porém, essa
semelhança permanece somente no plano visual, pois a composição
das formas e escrita são carregadas de subjetividade.
Ambos os artistas apresentados possuem traços finos, delicados e
elegantes, porém a diferença é percebida no modo de composição
intrínseco a cada um. Enquanto um trabalha com hachuras
aglomeradas ocupando um espaço significativo na tela, o outro
preocupa-se com a organização dos elementos, propondo através
dos traços sinuosos e delicados, dois lados distintos em uma mesma
imagem.
Traço a traço: Jeong Seon [1676 – 1759]
e Ma Yuan [1160 – 1225]
Jeong Seon nasceu no dia 16 de fevereiro de 1676 no distrito de
Jongno, Seul, no bairro de Cheongun-dong. Ele também é conhecido
pelo seu nome de canção [mesmo sentido que pseudônimo]
Kyomjae, que significa “estudo humilde” [CHUNG, 2009]. Assim
como alguns pintores coreanos da época, Jeong Seon nasceu em
uma família de linhagem nobre; em sua vida adulta, tornou-se um
funcionário do governo coreano, serviu como magistrado local três
vezes [CHUNG, 2009], fato este que não o impediu de pintar
diariamente.
Ao longo do tempo, Jeong Seon tonou-se um dos artistas mais
importantes e eminentes da pintura de paisagem coreana no final da
dinastia Joseon [1700-1850] [PARK, 2011]. Em suas obras de estilo
realista, segundo Park [2011] o pintor retrata e explora a beleza
cênica dos lugares pelos quais viajou [idem, 2011], como é o caso do
Monte Geumgang, localizado atualmente na Coréia do Norte. Assim,
é perceptível que o artista sempre retrata temas relacionados à
225
história, cultura e características geográficas do país em suas obras
de modo mais realista possível [idem, 2011].
Suas pinceladas fortes transformam esses cenários magníficos, além
de que sua visão realista sobre as paisagens faz com que as pinturas
acabem tornando-se diferentes daquelas produzidas por artistas
coreanos que ainda se utilizam das técnicas e dos estilos tradicionais
chineses. Segundo Ahn [2000] a maior aplicação técnica coreana era
conhecida como pintura de visão verdadeira, tendo Jeong Seon o
seu praticante mais importante. Suas primeiras obras possuem
profunda relação com o estilo de pintura da escola Wu da dinastia
Ming, cujos principais proponentes eram Wen Zhengming e Shen
Zhou [1427-1509] [AHN, 2000].
A pintura “Vista Geral do Monte Geumgangsan” [General View of
Mt. Geumgangsan, 1734] de Jeong Seon, é um exemplo dessa
pintura de visão verdadeira, a obra revela uma das maiores belezas
do país coreano, sendo representada artisticamente diversas vezes
tanto pelo artista quanto pelos seus seguidores. A partir dessa obra,
é perceptível o modo como o artista buscava retratar cenas de seu
país e cultura, porém ainda há a presença dos traços provenientes do
estilo artístico chinês, que ainda predominava na arte coreana
[AHN, 2000].
Figura 1. Vista Geral do Monte Geumgangsan (General View of Mt.
Geumgangsan). Jeong Seon, 1734, Tinta e cor clara sobre papel,
59cm x 130.7cm. Dinastia Joseon. Leeum Samsung Museum of Art.
226
Fonte:
<http://leeum.samsungfoundation.org/html_eng/search/main.asp
>. Acesso em: 27 Agosto de 2017.
Na obra em questão [figura 1], Jeong Seon retrata doze mil picos que
ocupam grande porcentagem do espaço da tela. Ao analisar a
composição de elementos presentes na obra, partindo do pico mais
alto denominado Birobong Peak, flui uma cascata de água que cai ao
longo do vale chamado Manpokdong, que então se dividirá
verticalmente ao lado esquerdo e direito [Administração do
Patrimônio Cultural, 2006]. Os caracteres chineses presentas na
obra indicam o título da obra e o pseudônimo [chamado de penname] do artista, Kyomjae [ibidem, 2006]. Também há a presença
de um pequeno texto escrito pelo artista com sua caligrafia graciosa,
localizado no lado superior direito da tela.
Não foi possível encontrar a tradução do que viria a ser o texto
presente na pintura de Jeong Seon. No entanto, pela localização que
a mesma ocupa na tela, traz a sensação de completude à imagem;
onde os traços caligráficos dos caracteres chineses complementam
as linhas traçadas que formam as curvas sinuosas dos picos. É
possível então perceber com clareza a semelhança do traço presente
tanto na escrita quando nas linhas que constituem as formas do
cenário.
Se considerarmos que a primeira forma de escrita do homem foi a
imagem pintada [DERRIDA, 2011], constatamos que a escrita está
ligada intimamente à pintura, seja ela através dos traços presentas
nas formas ou na própria palavra. No que diz respeito à escrita
chinesa, alguns estudiosos afirmam que um dos possíveis
surgimentos dos caracteres chineses seja por meio do registro de
sinais deixados pelos elementos da natureza, como exemplo: o dos
animais [ANDRADE, 2013].
Percebe-se a presença de dois traços característicos do artista na
construção das formas presentes na obra. Os traços verticais
predominantes conferem a impressão de altitude aos numerosos
picos acidentados e de efeito penetrante; e em contraste com eles, há
a presença de „manchas‟ que insinuam a forma de árvores e arbustos,
construídos a partir de hachuras e pontapés de pinceladas, criando o
relevo do elemento.
227
As cores predominantes na obra são tons pastéis o que reforça a
ideia de realismo. Os tons de azul presentes no entremeio dos picos
cria a sensação de uma névoa calma, juntamente com as nuvens de
mesmo tom que amplia a grandiosidade do cenário e atribui
profundidade. Aqui as partes centrais da imagem são destacadas
principalmente pelas cores relativamente fortes e as linhas pretas
que contornam os picos, criando consequentemente o sombreado
nas partes menos importantes da imagem. Ao mesmo tempo em que
a tela é repleta de traços fortes e intensos, ela é vazia de presença
humana; aqui a contraposição à grandiosidade dos picos, conduz o
espectador a sentir esse vazio diante da amplitude das formas,
transmitindo a sensação de que o vazio está de certo modo,
intrínseco ao homem frente à imensidão da natureza.
Nota-se que mesmo sem a utilização da perspectiva ocidental na
pintura, Jeong Seon conseguiu através da composição de linhas
verticalizadas e hachuras, criar a sensação de profundidade e
grandeza nas formas, trazendo para a obra sua „visŌo verdadeira‟ do
cenário coreano; seus traços precisos transmitem as características
físicas e ressonância emocional desse cenário majestoso,
expressando a topografia real do lugar, e embutido nela, as camadas
de significados psicológicos e artísticos [LEE, 2004]. Outro ponto
interessante a ser ressaltado, é o modo como o artista retratou a
cena, como se o mesmo estive olhando para o Monte de cima para
baixo, assim como fazem as aves; esse fato faz com a idealização da
paisagem montanhosa fosse maximizada por meio das diferentes
pinceladas e das cores.
Embora suas obras tenham características técnicas das escolas
chinesas “o estilo de visŌo verdadeira de Jeong Seon parece ter
surgido de sua incorporação dessas várias fontes em sua própria e
única visŌo artística” [AHN, 2000, p. 323]. Desse modo, pode-se
dizer que Jeong Seon criou um novo estilo da pintura coreana ao
incorporar sua visão única, na qual retratava com traços finos e
negritos as virtudes da Coréia.
É evidente na pintura de Jeong Seon, no que confere a fatura da sua
pintura, a mistura de áreas claras e escuras, sensação criada através
de camadas de tinta e das pinceladas fibrosas, recurso favorecido na
pintura pela maioria dos literatos chineses. Ao incorporar essas
técnicas em sua pintura, Jeong Seon “coreanizou” o estilo pictórico
da Dinastia Joseon [AHN, 2000, p. 323], influenciando
228
consequentemente novas gerações de artistas coreanos, o que o
transformando em um ícone do nacionalismo artístico coreano.
Jeong Seon faleceu no dia 20 de abril de 1759, com os seus então 83
anos de idade.
Já Ma Yuan, um pintor chinês muito influente da Dinastia Song
[960 – 1279], capta a atmosfera da paisagem de um modo mais
elegante. Seu estilo artístico, em conjunto com o artista Xia Gui,
formou a base para a Escola de Pintura Ma-Xia, grande referência na
pintura chinesa [SULLIVAN, 2017]. Sua descendência é de uma
família de pintura proeminente, onde alguns de seus parentes
serviram na Academia de pintura imperial. Conforme Sullivan
[2017], Ma Yuan iniciou sua carreira artística durante o domínio do
imperador Xiaozong, tornando-se daizhao [servente de éditos]
durante o imperador Guangzong; recebeu a mais alta honra chinesa,
o cinto dourado, sob o imperador Ningzong.
O gênio da pintura de Ma Yuan estava principalmente nos temas de
paisagens; sua técnica foi inicialmente inspirada por seu predecessor
Li Tang, o paisagista sénior da Academia Imperial, Dinastia Song
[SULLIVAN, 2017]. Eventualmente, Ma Yuan acabou desenvolvendo
um estilo de pintura próprio, povoando suas obras com elementos
decorativos marcantes. Além disso, suas pinturas possuem a notável
característica da composição de um canto, onde os temas
trabalhados na pintura são impelidos para uma extremidade da tela,
restando assim, o outro lado nu ou ligeiramente matizado; o golpe
de textura na pintura cria um contraste significativo, mantendo o
foco em apenas um dos cantos [QIYI et al, 2017]. Em suas obras, é
possível perceber que Ma Yuan utiliza o vazio como um elemento
compositivo, resultando num efeito sugestivo de um vazio tanto
físico quanto emocional/ espiritual no espectador.
A obra “Caminho na Montanha na Primavera” [Walking on a
Mountain Path in Spring, 1190] [figura2], apresenta nitidamente
esse enfoque. O valor da pintura está tanto nos elementos figurativos
presentes na parte inferior esquerda da tela, quanto no quase vazio
que compõe o restante da mesma, criando um cenário sugestivo a
variadas interpretações.
229
Figura 2. Caminho de Montanha na Primavera (Walking on a
Mountain Path in Spring), Ma Yuan, 1190. Folha de álbum, tinta
sépia sobre seda. Altura 27,4 cm. Museu do Palácio Nacional, Taipé,
Taiwan. Disponível em:
<http://www.chinaonlinemuseum.com/painting-ma-yuan-6.php>.
Acesso em: 27 de agosto de 2017.
O poema inscrito com caligrafia elegante e sofisticada ocupa espaço
na extremidade superior direita, e tem como autor o imperador
Ningzong [1168-1224], Dinastia Song. Há varias traduções desse
poema, mas todos trazem em si sua essência; dessa forma o mesmo
pode ser lido como: “As flores selvagens dançam quando sŌo
escovadas pelas minhas mangas. Os pássaros reconfortantes não
fazem som porque evitam a presença de pessoas” [MORRISON,
2016].
Na composição dos elementos, há a presença de um homem,
diferente da obra de Seon que exclui a figura, bem vestido [podendo
ser interpretado como um estudioso], a caminhar por uma trilha
próximo à um riacho juntamente com outro indivíduo,
possivelmente seu ajudante/ acompanhante. O homem toca sua
barba enquanto contempla a natureza e a presença dois pássaros,
um sobrevoando o lugar e o outro pousado no galho de uma árvore,
supostamente um salgueiro; a posição de apreciação tomada pelo
personagem estabelece de certa forma, relação com o poema inscrito
acima. Criando assim, outra possibilidade visível de interpretação:
de que homem e pássaro estejam a apreciar as palavras escritas pela
caligrafia refinada e graciosa do artista. É evidente a semelhança
230
presente nos traços que compõe os elementos da pintura com
aqueles que se unem para formar os caracteres.
Os tons pastéis conferem destaque aos traços suaves e sinuosos que
dão forma aos elementos da obra; as linhas que constituem as
montanhas no fundo da imagem, gradativamente vão desaparecendo
no vazio, transformando-se em névoa até sumir completamente.
Essa impressão é causada em parte pela técnica aplicada à cor, onde
o artista ao criar um degrade de tons, leva a entender a dissipação
das formas. A forma como o artista configurou os elementos dentro
da tela, equilibrando-os entre máximo e mínimo, gera o
pressentimento de calmaria e compreensão do estado natural das
coisas.
É notável o modo com que Ma Yuan utiliza o vazio como um
elemento importante para a composição figurativa da obra, e não
como consequência da falta de outros elementos na cena. Essa
ressignificação do vazio dentro do cenário pictórico do artista,
possibilita a compreensão da relação existente entre homem e
natureza, momento este que o artista conseguiu captar a essência e
trazê-la para a bidimensionalidade. O único elemento que infringe o
espaço ocupado pelo vazio é o poema, que ao invés de parecer
deslocado da cena, a torna completa.
De acordo com Sullivan [2017], em virtude da utilização dessa
técnica, algumas obras de Ma Yuan são repletas de um sentimento
melancólico representado de forma poética, fato que insinua a
possível decadência cultural da dinastia Song, além de ser bem
convencional o modo como o artista expressa esse sentimento na
pintura. Suas pinturas muitas vezes eram consideradas elegantes e
refinadas, além de que as produções da família Ma traziam em si a
sensação de quietude filosófica [QIYI et al, 2017].
No entanto, esse estilo romantizado e sonhador, presente nas obras
de Ma Yuan e de seus seguidores perdeu-se por um tempo após a
queda da Dinastia Song, sendo revivido mais tarde na Dinastia Ming
[1368-1644]. O artista faleceu em 1225, deixando um amplo legado
artístico, que futuramente também iria influenciar produções
artísticas japonesas.
Como já apresentado, os artistas aqui citados possuem
características caligráficas semelhantes, entretanto distintas quando
231
aplicadas à pintura; quanto à abordagem do vazio presente nas
obras, em ambas é representado de modo distinto bem como
possuem relações e interpretações diferentes de acordo com a
subjetividade de cada artista.
Com relação tanto aos traços que compõe as figuras quanto ao texto
presente em ambas as obras, podemos considera-los como
escrituras, segundo o pensamento do filósofo francês Jacques
Derrida [1930-2004], no sentido de um rastro de linguagem [de
presença do artista?]; “a escritura é um representante do rastro em
geral, ela nŌo é o rastro mesmo. O rastro mesmo nŌo existe.”
[DERRIDA, 2011, p. 204]. Aqui a escrita vem como um registro
empírico do artista, está mais para um suplemento da experiência do
que para um gerador de sentido.
A ligação existente entre escrita/ texto e a imagem na obra vai além
de uma complementação teórica, ela é uma constatação do
movimento e da presença do artista. Assim como na antiguidade do
surgimento da escrita chinesa [base para a então escrita japonesa e
coreana], os primeiros homens observaram os rastros dos animais e
os registraram por meio da escrita [DERRIDA, 2011], aqui o artista
registra esse mesmo rastro empírico, a essência do lugar e do
movimento de modo singular e subjetivo.
Referências
Jienefer Daiane Marek é acadêmica do terceiro ano do Curso de
Licenciatura em Arte na Universidade Estadual do Centro-Oeste
(UNICENTRO). Mail: jienefer97marek@gmail.com.
Sob Orientação da Professora Clediane Lourenço, Mestre em Artes
Visuais, e Doutoranda em Artes Visuais pela mesma instituição.
Possui graduação em Arte-Educação pela Universidade Estadual do
Centro-Oeste (2006). Atualmente é professora no curso de
graduação em Artes na mesma instituição.
ANDRADE, Cleyton Sidney de. A interpretação analítica e a
escrita poética chinesa. Belo Horizonte, 2013. Disponível em:
<http://www.fafich.ufmg.br/pospsicologia/attachments/article/232
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CHUNG, Ah-Young. Jeong Seon’s Paintings Brought to Life.
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Republic of Korea, 2006. Disponível em:
<http://www.cha.go.kr/chaen/search/selectGeneralSearchDetail.do
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DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo, Editora
Perspectiva, 2011.
LEE, Soyoung. Montanha e Água: Pintura de Paisagem Coreana,
1400-1800. Baseado no trabalho original de Hwi-Joon Ahn.
"Montanha e Água: Pintura de Paisagem Coreana, 14001800". Universidade Nacional Hwi-Joon Ahn Seoul, 2004.
Disponível em:
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painting. Encyclopædia Britannica Inc. Encyclopædia Britannica
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MORRISON, Chris. Looking at Ma Yuan’s Walking on a path
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<https://32minutes.wordpress.com/2016/09/15/looking-at-mayuans-walking-on-a-path-in-spring/>. Acesso em: 28 de agosto de
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SULLIVAN, Michael. Ma Yuan. Encyclopædia Britannica Inc.
Encyclopædia Britannica Online. Maio , 2017. Disponível em:
<https://www.britannica.com/biography/Ma-Yuan-Chinesepainter>. Acesso em: 23 de agosto de 2017.
233
234
O IMPÉRIO ASIÁTICO PORTUGUÊS: UMA
PERSPECTIVA HISTORIOGRÁFICA
Jorge Lúzio
O breve texto aponta para a relevância da obra de Sanjay
Subrahmanyam, destacando-a em suas inovações e nos aspectos que
a caracterizam como um marco sobre a historiografia do Império
português. Desta perspectiva emerge a clareza de quão
imprescindível se faz o alargamento de pesquisas e a produção
historiográfica em língua portuguesa sobre a História da Ásia, cada
vez mais determinante para os estudos em História Medieval,
Moderna e Contemporânea, bem como para as questões geopolíticas
em pauta na agenda global.
O historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, com doutoramento
em economia pela Universidade de Delhi em pesquisa voltada ao
comércio na Índia colonial, nos séculos XVI e XVII, tem como obra
de referência em língua portuguesa “O Império Asiático Português
1500-1700. Uma História Política e Económica”. O texto, quando
publicado, polemizou ao trazer abordagens e percepções dissonantes
das mais clássicas visões historiográficas sobre o Império português,
consolidadas até então. Questionou o conceito de império na
História de Portugal, interrogando-o quanto ao seu sentido político e
quanto à sua relevância histórica frente às fontes asiáticas analisadas
em seu trabalho. O seu criticismo confrontou uma mentalidade que
exaltou a presença portuguesa na Ásia e a sua soberania oceânica no
Oriente do século XVI, em detrimento de um continente
supostamente vulnerável à Conquista que, todavia, possuía grandes
centros urbanos nas mesmas dimensões que as grandes cidades da
Europa nos séculos XVI e XVII, exemplificados por Delhi e Agra, na
Índia, entre outros. Atualizou as simplificações comerciais criadas a
respeito das redes do Índico, associadas ao domínio árabe,
apresentando a atuação mercantil efetiva dos comerciantes indianos
Baneanes e Bohras, do Guzerate, os Chettis e os muçulmanos
Mappila e Maraikkayar, do sul do subcontinente, os chineses do
Fukien e das demais províncias do Império Celeste, além dos
iranianos Tujjier. Mantendo as análises com suporte nas fontes
asiáticas destacou o papel dos contextos regionais nas dinâmicas
políticas ocorridas entre europeus e asiáticos naquele continente.
Desta forma, assimilou aquilo que já fora apontado nos trabalhos
que o antecederam por identificação das problemáticas que levaram
235
o Império português ao declínio na Ásia. Sua argumentação
observou o nacionalismo dos cronistas oficiais, as relações mercantis
entre Europa e Ásia através da consolidação das Companhias de
Comércio nos séculos XVII e XVIII, contrapondo com um sistema
econômico arcaico em Portugal. As alianças regionais e o comércio
intra-asiático na conjuntura comercial ultramarina intensificaram a
circulação dos produtos asiáticos nas redes oceânicas, já que os
portugueses encontraram o continente asiático com economias
desenvolvidas e sedimentadas em praças conectadas ou localizadas
nas delimitações do Índico. Outro dado relevante proposto pelo
autor apontou o favorecimento dos europeus face às oscilações
políticas que ocorreram na Ásia entre os séculos XVI e XVIII, como o
avanço do Império Mogol na Índia e a derrocada do Império de
Vijayanagar – ou Reino de Bisnaga, nos relatos portugueses.
Sustentou também que os quadros políticos de disputas internas
possibilitaram o crescimento comercial dos portugueses a se
efetivarem nas redes afro-asiáticas. Numa análise de viés econômico,
seguindo as reflexões de João Gabriel A. Leite, podemos considerar
que:
“Nos séculos que precedem a viagem de Vasco da Gama, os
fluxos de comércio haviam mudado do sentido leste-oeste,
que passava pela rota das caravanas, como a rota da seda,
para o eixo norte-sul, que alimentava os portos da orla do
Oceano Índico. Essa mudança coincide também com o
estabelecimento do domínio árabe e de populações
costeiras islamizadas sobre as rotas de comércio marítimo
na região. Essas tendências teriam, assim, aumentado o
volume de comércio na região e tornado mais lucrativo a
incursão portuguesa. A entrada dos portugueses também
coincide com a reconfiguração dos reinos na Ásia. O
Império Otomano expandia-se para o Oeste, o Império
Persa Safávida estava em processo de consolidação, o
Império Mugal apenas se estabelecia e os demais reinos
centravam-se em cidades portuárias que viviam do
comércio. Os portugueses, então, não enfrentaram forte
resistência de reinos maiores, bastando desalojar os árabes
e outros competidores locais das rotas de comércio
asiáticas.” [Leite, s/d, p.15]
Das inúmeras contribuições da obra de Subrahmanyam, a
perspectiva transoceânica, a circulação de pessoas, de ideias, de
236
práticas culturais e de cultura material, que se configuram no
conceito de Histórias Conectadas, proporcionou uma inovação nas
discussões sobre o Império português no Oriente, com uma
abordagem que diluiu o protagonismo europeu outrora centralizado
no que ficou compreendido como uma perspectiva eurocêntrica. A
concepção, segundo o próprio autor [Subrahmanyam, 2012, p.16]
recuperou o conceito de uma história “integrativa”, noçŌo criada por
Joseph F. Fletcher (1934-1984), historiador americano cujo
trabalho, na Universidade de Harvard, foi desenvolvido sobre o leste
da Ásia, nas interações entre a China e o Hindustão. O renomado
historiador indiano não abandonou sua orientação economicista e,
ainda assim, deslocou sua reflexão para o âmbito da cultura e da
identidade em problematizações levantadas ao longo dos seus
escritos. Nesse sentido, os textos que debatem temáticas coloniais
num diálogo estabelecido com a produção historiográfica de Sanjay
Subrahmanyam, como os reunidos entre as Histórias conectadas e
as dinâmicas pós-coloniais [Macagno, Ribeiro, Schermann; 2008]
ampliaram as discussões propondo uma metodologia de
interlocução entre as pesquisas produzidas nos antigos espaços
coloniais, atualmente deparados com os desafios de uma revisão do
seu passado colonial. Como instrumentação epistêmica e
metodológica o historiador Fernando R. Ribeiro inicialmente
verificou na percepção subrahmaniana que:
“Em lugar de fazer um tipo mais clássico de historiografia,
faz uma história mais nitidamente transregional – do Golfo
de Bengala, do mundo persianizado, dos impérios
eurasianos da era moderna e seu milenarismo, do comércio
internacional, entre outros temas que têm abordado em
suas obras. Seu trabalho enfatiza que, em realidade, não é
possível fazer uma história da Índia sem fazer uma história
das companhias comerciais europeias na Ásia; do Estado
da Índia; das redes de portugueses e luso-asiáticos; das
redes de religiosos europeus e muçulmanos; das influências
milenaristas eurasianas; do trânsito de idéias e pessoas no
mundo persianizado; dos vínculos e influências do Sudeste
Asiático; das ligações com o Novo Mundo; do comércio
com a costa africana; dos vínculos com a Ásia Central e
assim por diante”.[Ribeiro; 2008, p.18]
Dessa forma, uma compreensão completa da complexa interação
entre as sociedades do Império asiático português implica no diálogo
237
com as fontes históricas localizadas em seus próprios contextos e
interpretadas à luz das suas epistemologias. No tocante ao Reino de
Portugal e sua crise no Oriente acentuada nos séculos XVII e XVIII,
outros fatores deverão ser considerados, além das competições com
as demais companhias de comércio europeu, a instabilidade
econômica na metrópole, as intensas disputas com os holandeses, o
enfraquecimento da estrutura náutica e militar, e a alternância de
foco para o Brasil com a exploração da cana de açúcar e do mercado
aurífero. Claro está que já no século XVII, a perda de Ormuz, as
tensões com o Império Mugal, a expulsão em Myanmar, o
enfraquecimento das bases no Golfo de Bengala, a expulsão do
Japão e o fortalecimento da presença britânica na Índia, estiveram
entre as principais causas que agravaram as crises do Império
português na Ásia.
Nesse contexto, o teórico indiano inferiu que a tomada de Malaca
pelos holandeses, em 1641, só foi possível com o apoio do Sultanato
de Johore, ao passo que o ataque holandês a povoados portugueses
na costa ocidental da Índia, Negapatão, em 1642, e Tuticorin, em
1649, só foi repelido com a ajuda dos reinos locais (Nayaka de
Tanjavur e Nayaka de Madurai, respectivamente) [Leite; pp 15-16].
Nas diversas inferências que decorrem sobre Goa nas
contextualizações do Estado da Índia, ficaram demonstradas as
várias ocorrências que, centralizadas naquela que era a sede
administrativa do Império no Oriente, estiveram diretamente
expostas às constantes ameaças enfrentadas pelos portugueses e às
oscilações que sofreu a principal rota do império, a Carreira da
Índia. Com uma análise do relato de um cronista mogol Khafi Khan,
descrevendo a fragilidade em que o império se encontrava,
Subrahmanyam comentou que:
“A visŌo a partir da corte mogol era assim a de um Estado
da Índia indianizado, algo semelhante ao que escreveu o
anônimo malaio Dato Bendhara, que se preocupou muito
pouco com a existência de Portugal ao descrever os
portugueses! Despojado das suas antigas pretensões
imperiais, os portugueses pareciam estar reduzidos à
dimensŌo dos zamindars concanis.” [Subrahmanyam;
2012, p. 266]
Em seguida, contestou o escritor ao lembrar que Goa desempenhava
a força dos Vice-reis da Índia no quadro geopolítico do Índico
238
através da sua autoridade sobre Damão, Diu, Chaul, na Índia
portuguesa, Kung, no Golfo Pérsico e as bases da África índica. As
transformações nos espaços asiáticos com os conflitos entre
Portugal, Holanda e Inglaterra determinariam novos rumos para o
Império asiático português que sofreu o impacto dos processos de
reconfiguração política na Ásia, das tensões e diversidades entre os
reinos locais a competir pelo controle dos portos e das redes de
mercadorias.
A historiografia subrahmaniana engendrou a difícil tarefa de
compreender os encontros culturais com as suas equivalências
evoluindo aos paralelismos das aculturações e incorporações que
sucederam sobre a História Moderna na Ásia, na África e nas
Américas. Propôs reflexões sobre temporalidades e periodizações e o
comprometimento com uma leitura sobre o Império português
plenamente inserido nos processos asiáticos, como citou Ângela
Xavier, “olhar as conexões entre estes impérios, e a maneira como se
foram moldando mutuamente [...], significa fazer, ao mesmo tempo,
a história de “vários” impérios em “vários” tempos” [Xavier; 2012.
P.13]. Em relação ao seu modus operandi, observa-se uma visão
coletiva e interimperial, cuja metodologia recuperou a ausência das
fontes asiáticas de modelos historiográficos anteriores, equiparandoas às fontes europeias nas análises sobre os portugueses no Oriente.
Para Sanjay, as crônicas Hadrami, do sul da Arábia ou crônicas
otomanas do século XVI, oriundas do norte da Índia, do Decão, da
Birmânia, da Malásia, bem como as correspondências diplomáticas,
as cartas indo-persas, os papéis administrativos correntes sobre
coletas de impostos, os rendimentos, os diários de viagens e
memórias dos mercadores asiáticos, além dos literatos e religiosos
em sua produção de textos que circularam no Império Mogol são
fontes imprescindíveis na História do Império asiático português. As
fontes orais posteriormente registradas, os relatos, as canções e
tradições orais como as preservadas entre os mapilas do Malabar, no
sul da Índia, no âmbito de uma etnohistoriografia, e outros modos
de criação literária, conforme já apontara o próprio autor, compõem
uma espécie de tipologia, um aglomerado de fontes autenticamente
orientais. Nessa concepção integram-se o patrimônio artístico e
cultural, os monumentos, os conjuntos iconográficos, a cultura
material, os tratados milenares ou textos religiosos preservados e
citados no medievo indiano.
239
Claro está que nas fontes orientalistas dos séculos XVI ao XVIII,
suas imagens e representações encontradas em textos de religiosos
franciscanos, dominicanos e jesuítas [Calazans;2009, 87-92], nos
roteiros da Pérsia (Frei Tomé Pires), Etiópia (Pe Francisco Álvares),
Índia / Tibet (António Tenreiro e António de Andrade), Ásia/China
(António de Gouveia e Frei Gaspar da Cruz), Japão (Pe. António de
Andrade), além da “Gramática do Concani”, língua falada em Goa,
do Pe. Lourenço Peres, “Noticia Sumaria do Gentilismo da Azia”, um
texto anônimo do século XVII ou XVIII com gravuras coloridas das
divindades hindus atribuídas a Carlos Julião – artista luso-italiano
que serviu como inspetor na Índia, cuja cópia e tradução teria sido
obra de um religioso da Companhia de Jesus, são fontes
fundamentalmente importantes para uma leitura da Ásia lusófona.
Nesta relevância, juntam-se os manuscritos “TraduçŌo em summa
do Livro, que os Gentios chamŌo Bagavata Guita”, atribuído a um
desconhecido jesuíta, e “Compendio dos Misterios da Fee”, ordenado
em “Lingua Bengalla”, com traduçŌo do Frei Manuel da AssumpçŌo
da Ordem de Santo Agostinho, entre tantas outras obras produzidas
ou traduzidas pelos missionários que atuaram no sul da Índia. A
contribuição decisiva da experiência de Subrahmanyam para uma
historiografia do Império asiático português concentra-se na
predisposição da mudança de um paradigma engessado no
eurocentrismo para reconhecer, numa atitude coerente, que uma
História da Ásia, inevitavelmente, passa por um diálogo pautado
pela equivalência, isonomia e equidade.
Referências
Jorge Lúzio – Pós-doc em História da Ásia com pesquisa voltada à
Índia, desenvolvida no LEOA – Laboratório de Estudos Orientais e
Asiáticos, na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.
Docente em História no Dpto. de Pós-Graduação do UNIFAI /
Centro Universitário Assunção - SP, e no Museu de Arte Sacra de
São Paulo.
Este ensaio é um subcapítulo da tese “As bailadeiras. Devadasis,
dança e colonialidade na Índia portuguesa – século XVIII. No corpo
iconografado uma categoria histórica”. Doutorado em História
Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, São
Paulo, 2016.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português
1500-1700. Uma História Política e Económica. Lisboa: Difel.
Edição/reimpressão: 1993. 452 p.
240
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Ibdem. 1993, p 41.
LEITE, João Gabriel Ayello. Competição, Instituições e o
Declínio do Império Português na Ásia. Universidade de
Brasília. FACE – Departamento de Economia, p.15. S/D Disponível
em www.angelfire.com/ky2/mueller/Portugalindia.pdf Acesso em
03/09/17, 21h40.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Impérios em concorrência.
Histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS
Imprensa de Ciências Sociais, 2012, p. 16.
MACAGNO, Lorenzo; RIBEIRO, Fernando R.; SCHERMANN,
Patrícia S. (Patrícia Teixeira Santos). (Orgs). Histórias
conectadas e dinâmicas pós-coloniais. Curitiba: Fundação
Araucária. 2008. 306 p.
RIBEIRO, Fernando R. Históricas Conectadas: uma proposta teórica
e metodológica a partir da Índia. In MACAGNO, Lorenzo; RIBEIRO,
Fernando R.; SCHERMANN, Patrícia S. (Patrícia Teixeira Santos).
Orgs. Histórias conectadas e dinâmicas pós-coloniais.
Curitiba: Fundação Araucária. 2008, p. 18.
LEITE, João Gabriel Ayello. Ibdem. pp. 15-16.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Ibdem. 2012, p. 266
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Impérios em concorrência.
Histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS
Imprensa de Ciências Sociais. 2012, pp 40-46.
CALAZANS, José Carlos. As Primeiras Traduções Ocidentais
de Textos Indianos na Língua Portuguesa. Babilónia n.º6/7
pp. 87 – 92. Disponível em www.revistas.ulusofona.pt Acesso em
01/08/2015. 20:42hs
241
242
EM BUSCA DOS „CHINS‟
Kamila Czepula
Em nosso breve texto, exploraremos a discussão sobre a importação
dos „Chins‟ como substituiçŌo da mŌo de obra escrava no Brasil, que
se desenrolou em 1879. „Chim‟ era o designativo para chineses no
século 19 [„chins‟ no plural], e a contrataçŌo dos mesmos por
diversos países da América tornara-se uma tendência. Para tal,
acompanharemos o debate vinculado pela Gazeta de Notícias,
periódico carioca que foi fundamental para o desdobramento da
questão na época.
A Gazeta de Notícias
Foi em dois de agosto de 1875 que chegava às ruas do Rio de Janeiro
o primeiro exemplar da Gazeta de Notícias, fundada pelos editores
Ferreira de Araújo, Manuel Carneiro e Elísio Mendes, e pelos
redatores Henrique Chaves e Lino de Assunção. A folha, que
aparentemente era muito semelhante aos demais jornais, propunha
inovar e queria pra si as nomenclaturas de popular, barato, e liberal.
A Gazeta de Notícias rompia cada dia mais as fronteiras do centro
chegando aos cortiços, estalagens, bondes, barcas, bares, e em todas
as estações da Estrada de Ferro [Barbosa, 1996; Asperti, 2006]. Com
uma tiragem de 12 mil exemplares, a Gazeta de Notícias deixava
claro para os seus concorrentes que “vinha para ficar”; por
consequência da sua forte proposta literária, passou a empregar os
escritores mais estimados da época, como Coelho Neto, Eça de
Queiroz, Ferreira de Meneses, Aluísio Azevedo, Pardal Mallet e José
do Patrocínio, que juntamente com outros colaboradores de renome,
almejavam conquistar um público ainda mais amplo para o jornal.
Para isso, além de um ótimo folhetim romance, a Gazeta de Notícias
apresentaria todos os dias “um folhetim da atualidade. Arte,
literatura, teatros, modas, acontecimentos notáveis, de tudo a
Gazeta de Notícias se propõem a trazer ao corrente dos seus leitores”
(Gazeta, 02/08/1875, p.1). José do Patrocínio tornar-se-ia também
um dos mantenedores do jornal, e publicaria uma coluna dedicada
inteiramente à política.
A Gazeta de Notícias tinha orgulho de se propor uma “imprensa
imparcial”, que cumpria com o seu compromisso de informar seus
leitores sem tomar partido. Na prática, entretanto, como destaca
Marialva Barbosa (1996, p.65) nem essa imparcialidade existia,
243
como também não havia a sua tão proclamada independência frente
a grupos e facções políticas. Um exame mais detalhado das notícias
anteriormente vinculadas pelo periódico, sobre a questão dos
“chins”, revelaria que o jornal estava longe de ser neutro...
Os ―chins‖ Sob a Prensa da Gazeta de Notícias
A partir, de setembro de 1879, os debates sobre a imigração chinesa
na Câmara dos Deputados ganharam uma postura cada vez mais
agressiva. Havia uma proposta em curso para que a mão de obra
escrava fosse gradualmente substituída pela mão de obra asiática, o
que partira ao meio a opinião pública da sociedade imperial
brasileira. A Gazeta de Noticias, com a sua coluna fixa Diário das
Câmaras, fornecia para seu público um resumo detalhado de todos
os embates ocorridos nas sessões. Mas certa de que seu papel
perante a sociedade ia pra além de apenas anunciar notícias e
debates, a Gazeta se insere na discussão. José Patrocínio e Ferreira
de Menezes, em suas primeiras alusões sobre o tema, deixariam
evidente que precisavam opinar sobre o assunto.
José do Patrocínio, utilizando do pseudônimo Proudhomme, foi um
dos primeiros a escrever sobre a questão. Lembremos que ele era um
dos mantenedores do jornal, e possuía uma coluna apenas para si.
Em sua visão, os resultados tanto do Congresso Agrícola de 78
quanto os atuais debates da câmara apontavam para uma
manutenção do sistema escravocrata por meio da mão de obra chim.
Patrocínio utilizava um tom irônico para demonstrar seu
posicionamento, como podemos ver nesse fragmento:
“É crença geral que os chins não repugnarão trabalhar ao
lado dos nossos escravos e sob as ordens dos nossos
senadores. Não podemos, portanto, desejar mais. O próprio
Sr. Martim Francisco terá ensejo de continuar a trazer para
a tribuna o seu abdômen abbacial, e emittir as suas
indigestões em forma de discursos onde a ideia definha e os
arrotos gordurosos abundam. O neto de José Bonifacio
poderá amanhã gritar: - morte aos chins, do mesmo modo
que hoje grita: - chicote, prisão cellular, forca aos escravos.
(17 de março de1879)”
Esse trecho poderia nos fazer supor algum tipo de preocupação
humanística da parte do periódico, mas os autores da Gazeta não
haviam mudado seu posicionamento em relação ao sentimento anti244
chinês. Nos fragmentos subseqüentes, de autoria de Ferreira de
Menezes, observamos que toda a carga de preconceito, longamente
trabalhada e manifesta nas reportagens anteriores a 1878, é
sintetizada em discursos francos e diretos sobre o receio do
“contágio asiático”.
“O honrado Sr. conselheiro Sinimbu trata de salvar o futuro
d”esta terra, mandando desde já contratar chins. Não serei
eu quem censurea inoculação da gotta de chá no sangue
nacional, todo de capilé ou de infusão de couves, ao que se
diz. O chim não nos trará pouca cousa nas baforadas do seu
ópio. O imperador agradecido pelo serviço prestado pelo
Sr. Sinimbu, instituirá em sua honra a ordem da laranja da
China e com tal augmentarão as rendas e os
commendadores, que é do que precisamos, e não de
doutores. (...) Fallando sério. Há objecções a oppôr ao Sr.
de Sinimbú. A colonisação só tem razão de ser, com o
colono que se assimile com o colonisador. Ora o chim se
misturará ou não com o brazileiro. No caso affirmativo é
um mal: no outro caso não vem prestar serviço algum a
esta nacionalidade, porque do que precisamos é de
trabalhadores, que sejam amanhã cidadãos e produsam
cidadãos. Isto de viver e vêr-se o paiz dividido entre
homens que trabalhem e outros que nada fazem. É
acabrunhador e dizemos: é vergonhoso. Contra a syphilis
nacional é de mister outras injecções, que não a do povo da
porcellana, do arroz do ópio e o povo que atira os filhos aos
porcos, quando entede que os filhos são por demais. Seja,
portanto, feito, o Sr. Sinimbu com mantador da laranja da
China e a esta vá sómente buscar-se o segredo da
porcellana. Nós estamos antes no caso de mandarmos para
lá certa gente, Juro que não vai allusão nem ao Sr. Sinimbú
nem ao Sr. Gaspar (23/03)
Esse trecho nos apresenta, de forma direta, a construção de um
discurso contra os “chins”, assentado nos expedientes consagrados
do Orientalismo do século 19 [Said, 1998]: os chins são fumadores
de ópio, desonestos, propagadores de doenças, e contribuiriam para
a “degeneraçŌo da raça”. Há uma preocupaçŌo notável com a
possibilidade deles se estabelecerem e se misturarem com os
brasileiros. Os trabalhos científicos da época corroboravam tais
245
afirmativas, demonstrando que a perspectiva de importação dos
chins seria uma verdadeira ameaça a nação brasileira.
De modo hábil, o jornal conseguia também direcionar suas críticas
contra aquele que considerava o personagem central da proposta, o
Ministro Sinimbú. Embora ele estivesse articulando a construção de
um projeto nesse sentido, ele não era o único a pensar na viabilidade
da mão de obra chinesa para o Brasil. Como vimos anteriormente,
iniciativas diversas foram feitas nesse sentido, incluso por
particulares. O Visconde Mauá, por exemplo, tentou empregar a mão
de obra chinesa na construção de ferrovias, tal como nos Estados
Unidos. Fundou uma colônia de coolies, na fazenda Atalaia, que foi
noticiada na Gazeta como lugar de violência e morte, onde os
chineses organizavam tribunais internos e executavam-se uns aos
outros (20/07/1877). Esse tipo de noticiário simplesmente
reproduzia o senso comum que se tinha dos chins. No entanto, os
ataques centrados contra Sinimbú visavam desarticular essas
iniciativas. É possível que, sem o apoio do império, se tornasse
inviável continuar com a campanha pela vinda dos chineses ao
Brasil; e nesse sentido, a Gazeta atuava de forma constante,
tentando incutir um sentimento alarmista e catastrofista no público
leitor.
Investindo em outro aspecto, Patrocínio (usando novamente seu
pseudônimo de Proudhomme), apela para um “uso da inteligência”
daqueles que promoviam o trabalho agrícola no Brasil:
“Uma observaçŌo, porém, impô-se desde já. Uma questão
vital vem incidentemente á discussão do parlamento. Pela
gravidade do assumpto era de suppôr que o ministério
tomasse pelo menos a deliberação do dia, em que decidiuse a elevar a rolha a altura de uma instituição parlamentar.
A questão é nada mais nem menos do que saber se a grande
propriedade deve ou não continuar por mais tempo a
conservar-se pelo tremendo sacrifício dos nossos brios-a
escravidão. (...) Por outro lado, a colonisação chineza
desperta a maior resistência por parte d”aquelles que, pelo
seu caracter e pelo seu talento, maior influencia podem ter
juízo do paiz. (31/03)”
Habilmente, Patrocínio desvia a discussão para o problema fulcral
sobre a Escravidão no país e a manutenção das grandes
246
propriedades; do mesmo modo, ele usa uma estratégia de acinte
contra aqueles que não concordavam com sua opinião. De certa
forma, pois, ele deixava entender que aqueles que defendiam a
imigraçŌo chinesa seriam ignorantes, e os possuídos de “juízo” nŌo
concordariam nunca com essa proposta.
Ainda assim, a Gazeta era um espaço de notícias que dependia de
assinantes e de propagandas para sobreviver. Sua tão propalada
“neutralidade” deveria ser mantida a algum custo, e isso pode
explicar o surgimento de uma reportagem absolutamente destoante
dessa linha central de argumentação. Um autor identificado como
Luiz Morreau fez publicar, em 15/06/1879 o seguinte texto:
“O remédio de que se lançará mŌo nŌo será novo, porque já
foi experimentado com feliz êxito em grande numero de
localidades, ainda menos necessitadas, inclusive nos
Estados do Sul da grande Confederação Americana: é a
introducção dos coolies ou trabalhadores asiáticos. Máo
grado as disposições hostis da maioria dos nossos
legisladores, philosophos que sacrificam a gloria da espécie
a riqueza do paíz, não vemos outro recurso prompto, fácil e
immediato; e, se o houvesse, já teria sido trazido para
derrotar os panegyristas da emigração asiática. No
entretanto, nações mais avisadas, do que nós, com tantas
pretenções, não duvidaram abraçar o expediente. Foi por
elle que se evitou o aniquilamento das grandes culturas da
Havana, da Goyana e das Trindades. (...) Só com auxilio
dos coolies se levantará a grande cultura brazileira; só com
elles
poder-se-há
empregar
capitaes
para
as
transformações que o nosso trabalho necessita em mais de
uma de suas applicações. Para comprovar a acceitação que
tem tido a emigração basta considerar-se que desde 1855 a
1860 a média annual dos chins desembarcados em S.
Francisco da Califórnia foi de 4, 530. De 1860 a 1865 foi 6,
600; de 1865 a 1870 attingiu essa média a 9, 311; de 1870 a
1875 passou a média de 13,000 e hoje a população chineza
na Califórnia vai a mais de 150,00 almas, como de tudo
nos dá noticia a Revista dos dous Mundos de 1º de outubro
de 1878. (..) Não é provável que as raças se fundam,
havendo tanta tenacidade na raça asiática e a crença
religiosa para impedil-o; mas ainda quando o facto se desse
só poderia trazer-nos vantagens.”
247
Morreau se manifesta absolutamente favorável a imigração dos
chineses, apresentando inclusive alguns dados sobre a situação dos
mesmos na Califórnia – uma das experiências, junto com Cuba e
Peru, as quais os defensores costumavam recorrer. Mas não
devemos nos enganar: a Gazeta publicou esse texto na página 2 (ou
seja, fora da capa), e Luiz Morreau não era um de seus repórteres ou
colaboradores costumeiros, o que nos leva a acreditar que, muito
provavelmente, a matéria foi paga para ser publicada.
O exemplo de Morreau nos mostra que a Gazeta era capaz de
construir complexos expedientes para fazer valer sua argumentação.
Seu texto passou pelas mãos da redação do jornal, e provavelmente
não foi publicado sem antes ter se planejado uma resposta a altura.
Com isso, é provável que o periódico estivesse dando espaço a um
texto defensor da imigração chinesa apenas, e tão somente, para
desconstruir essa proposta. O texto de Morreau não trazia
acréscimos relevantes ao que já tinha sido discutido no Congresso
Agrícola ou na Câmara. Também não fazia frente aos discursos de
Nabuco, exaustivamente reproduzidos na Gazeta. Ao que tudo
indica, pois, além de matéria paga, podemos supor que o texto foi
publicado com a intenção deliberada, por parte dos editores, de ser
desconstruído. Inócuo, ele desapareceria em meio a avalanche de
matérias contra a imigração chim que ainda percorreriam as páginas
no ano de 1879.
Em setembro, José do Patrocínio voltaria à carga contra os
aparentes avanços dos defensores da imigração chinesa. Disparando
à torto e a direito contra diversos parlamentares, que vão sendo
citados ao longo do texto, Patrocínio enquadrinhava vários deles
numa nota depreciativa, utilizando um recurso de aviltamento e
escárnio para desvalorizar essa proposta (Gazeta, 08/09/1879). A
retórica de Patrocínio consiste em desqualificar o projeto do governo
de constituir uma comissão para avaliar a questão da imigração
chinesa, incluindo uma missão ao país.
Assim, a Gazeta transitava numa dualidade argumentativa patente:
ora o chim seria escravizado, ora o chim vinha acabar com a
escravidão. Por um lado, pois, o chim era uma preocupação
“humanística” e/ou higienista e racialista; por outro, ele era
desinteressante aos donos das grandes lavouras. Parece evidente,
aqui, a inspiração na retórica estratégica de Nabuco: separando a
matéria principal em diversos pontos diferentes, poder-se-ia
248
argumentar contra cada um deles de forma direta, sem que o
conjunto precisasse apresentar uma coerência maior. Eliminando
cada um dos argumentos segundo uma afirmação particular, ter-seia sua anulação e, consequentemente, o desmonte gradual da
proposta como um todo. Um exemplo claro dessa estratégia fica
evidente nesse outro trecho, quando o autor – anônimo – nos
informa que o governo não é capaz de responder as suas objeções, de
acordo como expediente comumente empregado pelos detratores da
imigração:
“Se cada vez que se discute a questão da embaixada á
China, mais nos aprofunda no espírito a convicção de que o
governo não tem juízo formado a tal respeito. (...) A lavoura
precisa de capitaes e braços, disse-se no congresso; o
governo não tem capitaes para dar á lavoura, pensou em
dar braços. Mas, como? O escravo escasseia, e em breve
acabará; o europeu não emigra para aqui em escala
sufficiente; o demais todas as nações da Europa procuram
afastar d”aqui a emigraçŌo; occorreu entŌo ao espírito do
governo o trabalhador chinez, com uma qualidade
predominante: é barato! E sem mais exame, sem mais
estudo agarrou-se o governo ao trabalhador chinez. Em
balde se lhe tem dito que a experiência, a melhor de todas
as mestras, demonstra que o trabalho do chinez é má; que é
péssimo o contacto do chinez, filho de uma raça degradada,
rotineira, egoísta, atrasada. Nada importa, o governo quer o
trabalhador chinez. E quando se lhe pergunta porque,
quando se espera que elle opponha argumento a
argumento, facto a facto, o governo ladeia a questão, deixa
sem resposta as objecçoes e segue o um caminho atraz do
ideal do barato: o trabalhador chinez. Ainda há três dias na
camara, depois de um discurso notável do Sr. Manuel
Pedro, digno deputado da Parahyba, discurso em que a
questão foi encarada sob um ponto de vista muito elevado,
pois que o hábil orador demonstrou que a importação
chineza era um prolongamento da escravidão, o Sr,
presidente do conselho respondeu com logares communs e
nem ao menos disse qual o programa do governo na
questão, programa que parece nunca tivera existido, pois
que só agora, no fim da discussão, quando já está votado o
credito, só agora diz que o chinez virá introduzir no paiz a
cultura de chá e bicho da seda! (11/10/1879)
249
Duas passagens são importantes aqui: a primeira, consistindo no
argumento bem pensado de afirmar que, se o governo sabia o que
estava fazendo, tentando trazer os chineses, então porque enviaria
uma missão até a China para conhecer melhor a estrutura do tráfico
de coolies? Obviamente, havia uma literatura disponível para
embasar argumentos de ambos os gêneros (prós e contras), e uma
missão de reconhecimento in loco era uma medida razoável.
Todavia, a retórica aqui presente era de fazer supor que a dúvida não
era companheira do bom senso, mas sim, da fraqueza e da incerteza.
A segunda passagem, como dissemos, aponta para o problema dos
representantes governamentais não serem capazes de responder as
questões colocadas pelos opositores: “E quando se lhe pergunta
porque, quando se espera que elle opponha argumento a argumento,
facto a facto, o governo ladeia a questão, deixa sem resposta as
objecçoes”. Os apoiadores da imigraçŌo eram eles, também,
conhecedores em geral desses recursos retóricos, e provavelmente
evitavam tais armadilhas – embora seu silêncio fosse entendido
como sinal de anuência com as críticas. Mas qual silêncio? Afinal,
era a Gazeta tinha por costume não lhes dar espaço.
Conclusão
A má fama do Brasil como um país escravocrata desestimulava
fortemente a emigração, e no caso dos chineses não seria diferente.
Com base em informações colhidas junto a ingleses e brasileiros
(Lesser, 2001, p.57-8) – que contaram com apoio decisivo da Gazeta
-, o Marquês Tseng (Zeng), na segunda semana de outubro (ou seja,
poucas semanas depois da resposta de Sinimbú na Gazeta), rejeitou
formalmente qualquer acordo de emigração para o Brasil,
praticamente batendo o último prego no caixão deste projeto.
Apesar de Sinimbú ainda tentar insistir na questão, os apoiadores do
projeto de imigração chinesa enfraqueceram tremendamente, e a
questŌo começou a ser tratada pelo viés do humor e do escárnio: “A
Imigração asiática passou a ser na imprensa oposicionista objeto de
ridículo. O humorismo nacional fartou-se em demonstrações
jocosas” (Costa, 1937, p.318).
De qualquer forma, as tentativas de trazer chineses diminuíram
significativamente depois disso, e o assunto gradualmente caiu no
esquecimento. Podemos considerar que a Gazeta teve um papel
crucial no desenvolvimento dessa questão, mobilizando a opinião
pública e organizando a edição dos materiais que seriam
250
disponibilizados para discussão. Ao construir uma ponte entre os
leitores e os bastidores da política, bem como divulgando os
pareceres de intelectuais do período, a Gazeta conseguiu articular
um discurso amplo e multifacetado, que trafegava entre as opiniões
eruditas, o relato jornalístico e as considerações derivadas do senso
comum.
A ação disseminada pela imprensa – da qual a Gazeta era a
expressão mais popular -, conjugada com as opiniões abalizadas,
criou um paradigma importante nos debates acerca da imigração,
com o qual todos os povos não-europeus teriam que lidar
posteriormente. Tal consideração nos revela que, desde o século
XIX, a imprensa possuía um importante papel como formador de
opinião. O distanciamento histórico nos permite contemplar as
divergências e incoerências dos seguidos discursos vinculados pelo
periódico contra a imigração chinesa: no entanto, a compreensão
mais complexa e abrangente de todo o quadro do problema chinês
não era uma tarefa fácil, e a velocidade das informações vinculadas
atrelava o leitor – e por conseguinte, os debatedores – ao
movimento e ao tempo das reportagens. Pode-se afirmar que a
Gazeta alcançou um notável sucesso em enfraquecer o projeto
imigratório asiático, bem como seria uma das principais articulistas
contra a escravidão nos anos seguintes.
Referências
Kamila Rosa Czepula é mestre em História pela UNESP-Assis, SP.
Agradecemos a Orientação do Prof. Dr. José Carlos Barreiro e ao
financiamento da pesquisa pela CAPES.
A Gazeta de Notícias foi obtida junto a Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional, no site www.memoria.bn.br
ASPERTI, Clara. A vida carioca nos jornais: Gazeta de
Notícias e a defesa da crônica. Revista Contemporânea, nº 7,
2006.
BARBOSA, Marialva. Impresa, Poder e Público: os diários do
Rio de Janeiro (1880-1920). (Tese de Doutorado) Rio de
janeiro: UFF, 1996.
COSTA, Craveiro. O Visconde de Sinimbu. Rio de janeiro:
Nacional, 1937.
CASTILHO, Marilena dos Santos Ferreira. Imigração chinesa
para o Brasil: o discurso parlamentar. Assis: Tese, Unesp,
2000.
251
LESSER, J. A negociação da identidade nacional: minorias e
a luta pela etnicidade no Brasil. Editora Unesp, SP, 2001.
NABUCO, Joaquim. Discursos Parlamentares 1879. Câmara
dos Deputados Centro de documentação e informação-Coordenação
de Publicações. Brasília, 1983.
SAID, Edward. Orientalismo – A invenção do Oriente pelo
Ocidente. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1998.
252
“MUÇULMANOS X CRISTÃOS”:
A CRIAÇÃO DO INIMIGO DA AL-QAEDA E A
EDUCAÇÃO PARA O ÓDIO
Katty Cristina Lima Sá
A Al-Qaeda foi fundada no Paquistão em 1989 pelo saudita Osama
Bin Laden [1957-2011], e diferente de grupos extremistas islâmicos
como a Jihad Islâmica Egípcia, não desejava agir em âmbito
nacional para a instauração de um governo islâmico local. Seu
campo de atuação transcende as fronteiras nacionais do mundo
islâmico com o objetivo de expulsar as interferências ocidentais
naquela região, sendo os principais pontos de sua agenda política: a]
o fim de Israel e a criação de um Estado palestino; b] a retirada de
tropas americanas da Península Arábica; c] o fim dos governos
considerados apóstatas [renunciadores da religião] por apoiarem os
EUA, como a Arábia Saudita, Egito, Jordânia e Kuwait [BRAGA,
2009, p 211].
Em suas três décadas de existência a Al-Qaeda passou por diversas
transformações ideológicas, estruturais e estratégicas a começar pelo
alvo de seus ataques: durante a década de 1990 estavam
direcionados a alvos norte-americanos no Oriente Médio e nordeste
da África, como foram os casos dos ataques as embaixadas norteamericanas no Quênia e Tanzânia [1998], e ao destroyer USS Cole
da Marinha dos Estados Unidos na costa do Iêmen [2000]. A partir
do 11 de setembro de 2001, o campo de operação se estendeu ao
Ocidente e aos seus cidadãos, como visto nos ataques de Madrid
[2004] e Londres [2005].
Escolher um alvo não é um algo feito ao acaso, sendo necessárias
justificativas que expliquem suas razões e significados,
principalmente quando “dirige-se contra pessoas remota ou
absolutamente nŌo envolvidas nos processos conflituosos em curso”
[SILVA, 2004, p.181], ou seja, civis não combatentes. A partir disso,
presente trabalho, analisaremos a apresentação dos países
ocidentais como inimigo da Al-Qaeda e como isto legitima a morte
de civis em seus atentados através da Inspire Magazine, periódico
produzido pela franquia da organização na Península Arábica para
instruir na realização ações terroristas no Ocidente. Para tanto,
atentaremos ao histórico de transformações desta rede terrorista, a
história política do Oriente Médio, em especial no tocante as
253
intervenções dos Estados Unidos e aliados na região a partir da
segunda metade do século XX e ao processo de construção do outroalvo dos Fundamentalismos expressa por Francisco Carlos Teixeira
Da Silva [2004].
Embora tenha sido planejada para ser um exército mujahidin [de
“guerreiros santos”], a Al-Qaeda se estruturou como uma rede
composta por grupos terroristas e indivíduos simpatizantes que
agem de modo independente entre si e em relação ao núcleo da
organização. No entanto, os todos permanecem ligados pelo
juramento de fidelidade feito antes a Bin Laden e agora ao seu
sucessor Ayman Al-Zawahiri [1951-], ou simplesmente por se
sentirem contemplados pelos ideais e táticas propostas pela
organização [BARBER, 2011]. Deste modo, ela deve ser
compreendida como “uma rede de informações, de financiamento,
de logística e uma espécie de caixa de pensões e salários para
militantes e suas famílias, em especial para aqueles que se
transformam em mártires de Alah” [SILVA, 2009, p.13]
Esta estrutura descentralizada começou a ser moldada durante a
década de 1990 com o firmamento de alianças entre Bin Laden e
grupos jihadistas locais no Oriente Médio [MIGAUX, 2007], porém
foi acentuada com a Guerra do Afeganistão [2001-] e a destruição de
campos de treinamento e do quadro de comando da Al-Qaeda pelas
forças armadas dos EUA. Como afirmou Peter Bergen [2007], tal
reformulação estrutural não deve ser compreendida como um
enfraquecimento, pois permitiu a organização flexibilidade para
sobreviver em contextos variados, ainda que lhe tenha sido tirado os
meios necessários para o planejamento e a execução de grandes
ações como o atentado as torres do World Trade Center.
Com isso, as operações no Ocidente passaram a ser atividade de
pequenas células ou de “lobos solitários” – terroristas que agem
sem ligações com grupos extremistas. Como exemplo deste último,
temos os atentados na Maratona de Boston no ano de 2013 e contra
os editores do periódico francês Charlie Hebdo em 2015.
Destacamos estes dois casos pela existência de uma característica
presente em ambos: seus autores tiveram como guia para os
atentados a Inspire Magazine.
Confeccionada pela Al-Malahem Midia, setor midiático da AQPA, a
Inspire foi lançada em junho de 2010 e, até o momento em que este
254
texto está sendo escrito, conta com dezessete edições, sendo a mais
recente de Agosto de 2017. O periódico é confeccionado em inglês e
no formato PDF, o que permite a leitura em vários tipos de
aparelhos eletrônicos e sistemas operacionais.
Nela são
disponibilizados vários assuntos relacionados a jihad [nesse
contexto entendida como a guerra santa para defender o Islã
[THACKRAH, 2004]], como análises das táticas utilizadas e
resultados de ações terroristas, homenagens aos mujahidin mortos,
interpretações de clérigos extremistas acerca de tópicos da doutrina
islâmica, técnicas para o planejamento e execuções de ataques
terroristas no Ocidente entre outros. Todos os textos são assinados
por nomes proeminentes da AQPA e/ou por pessoas próximas a AlZawahiri.
A publicaçŌo se propõe a expor “as injustiças impostas à
comunidade islâmica pelos Estados Unidos e governos aliados”, seja
através das guerras que possuem como arena de batalha o Oriente
Médio, ou com as “tentativas de destruiçŌo da cultura islâmica e dos
ensinamentos de Alá” [Inspire Magazine, n° 08, 2012, p.09.
Tradução nossa]. Além disso, também oferecer táticas para o ataque
ao Ocidente. Deste modo, o público-alvo da Inspire são os
“mulçumanos, porém ocidentais”, como sŌo chamados os recémconvertidos ou os filho de imigrantes islâmicos que nasceram ou
residem desde a infância no Ocidente e não possuem conhecimentos
aprofundados na religião islâmica.
A escolha por destinar-se a pessoas com pouco conhecimento
religioso foi explicada no manual para o recrutamento lançado pela
Al-Qaeda do Iraque [AQI] em 2009, onde se justificou a predileção
por candidatos “nŌo-religiosos” por acreditar que estes se adequarŌo
mais fácil ao discurso fundamentalista que lhe será ensinado, uma
vez que não sabem como contestá-lo. A Inspire não se propôs a ser
um manual para a versão mais conservadora e extremista do Islã,
mas apresenta interpretações com esta tônica para justificar a
realização de atos terrorista ensinados pela mesma a um público que
considera “inexperiente”, “uma vez que ao viverem fora de sua
região ancestral precisam abdicar de parte de sua tradição religiosa,
para torna-se um „moderado‟” [Inspire Magazine, n° 08, 2012, p.09.
Tradução nossa].
Segundo os editores da Inspire, o Ocidente desvia os muçulmanos
dos costumes da religião ao impor sua forma de governo e de
255
comportamento. Isto vale tanto para os que estão em países
islâmicos como para aqueles que residem na América ou na Europa.
No entanto, nŌo sŌo os hábitos “imorais”, como a liberdade sexual e
o uso do álcool, que incitaram esses porta-vozes da Al-Qaeda, e sim
questões de ordem política, como as guerras no Oriente Médio e a
situação dos palestinos. Em tornos destes temas é ressaltada a ideia
de que a democracia e os direitos humanos sŌo armas para “ferir a
ummah” [comunidade muçulmana].
Assim, constantemente artigos como a “A Message to our muslim
brothers in America” [Uma mensagem para nossos irmŌos na
América], de Abd Allah Al-Murabit publicado na décima sexta
edição da Inspire [2016,p.36-37], ressaltam que episódios como a
Invasão da Somália [1993], a Guerra na Líbia [1973], e a crise
humanitária provocada pelo embargue econômico americano ao
Iraque em 1990 foram resultantes de intervenções norte-americanas
e de seus aliados – França, Inglaterra, Austrália, Arábia Saudita etc.
– que levantavam o ideal de defesa da liberdade e a democracia.
Em outro texto, Ibrahim bin Hassan afirmou: “a „justiça‟ americana
manifestou-se por si mesma quando o povo iraquiano sofreu a
invasão e foi morto, detido, torturado e teve sua honra violada aos
milhares” [Inspire Magazine, n° 16, 2016, p. 42] .
Os argumentos para o ódio não ficaram restritos a questões
longínquas no tempo ou no espaço em relação público-alvo da
Inspire. Os casos de intolerância contra muçulmanos que residem
no Ocidente foram citados como a comprovação de as sociedades
americanas e europeias não toleraram os islâmicos e seus costumes
mesmo que estes sejam “moderados” para se adequar a realidade
laica e democrática. Lembremos que nos últimos anos houveram
várias manifestações de intolerância contra muçulmanos em todo
mundo, expressas em ataques contra mesquitas no Canadá e em
Londres em 2017 e nos discursos de políticos ligados a extremadireita, como francesa Marine Le Pen e o presidente norteamericano Donald Trump.
Ainda o argumento central da Al-Qaeda para seu embate com o
Ocidente seja em maior parte político e econômico, o uso de
precedentes históricos longínquos, e anacrônicos, para fundamentar
seu discurso de ódio não foi renunciado. Deste modo, as desavenças
entre os extremistas seguidores de Al-Zawahiri e os governos
ocidentais possui a mesma explicação dos casos de intolerância
256
contra muçulmanos que vivem em sociedades ocidentais: o ódio
“natural” entre Ocidente e Oriente, ou cristãos e muçulmanos,
provenientes das Cruzadas ocorridas entre os séculos XI e XIV.
Nas edições analisadas não foi encontrado um texto especifico que se
dedique a fazer uma analise aprofundada acerca da analogia entre as
Cruzadas e as ações de contraterrorismo atuais. Essa ideia perpassa
os artigos e se manifesta na recorrente utilizaçŌo do termo “cruzado”
para nomear políticos e as forças armadas ocidentais.
Segundo Bruno Mendelsk de Souza [2012], essa terminologia tem
por objetivo explicar uma situação contemporânea através de fatos
do passado, como estes fossem atemporais e naturais, ou seja,
procura-se criar uma visŌo de que “sempre foi assim” [SOUZA,
2012]. Com isso, o sentido político e de segurança nacional das
atividades militares de contenção ao terrorismo islâmico é
substituído pela versão de uma guerra religiosa entre Ocidente e
Islã, que envolvem inocentes e os separam em muçulmanos contra
cristãos e judeus.
Tornar o passado atemporal e o ódio naturalizado justifica o
processo de desumanização do inimigo, onde se despe a vitima de
sua individualidade e de suas qualidades [SILVA, 2004]. Deste
modo, enxergar-se apenas o “nós”, os “fiéis” providos das qualidades
consideradas humanas que lutam pelo estabelecimento da religião
contra a tirania, contra os “outros”, considerados o antônimo do
primeiro.
Uma vez feita a dicotomia, todos aqueles que não concordam com a
ideologia expressa pela Inspire perdem o direito a vida. Pela
frequência que este assunto aparece na revista, percebemos que não
é uma temática fácil de ser assimilada pelos calouros da Al-Qaeda.
O tema apareceu em questões enviadas por leitores, perpassou
artigos que não tem como foco este assunto e, já foi debatido por
pelo menos dois autores – tendo em vistas as edições analisadas –
em três textos separados publicados em edições diferentes. Tanto
Anwar Al-Awlaki [1971-2011] na oitava edição, quanto Hammed alTameemi nas décima sexta e na décima sétima edição realizam sua
argumentação acerca deste tema com citações da sharia [conjunto de
leis islâmicas] e em trechos de textos de pensadores islâmicos
medievais.
257
Al-Tameemi [Inspire Magazine, n° 16, 2016,p. 29] afirmou que seus
textos eram uma resposta ao aumento no número de operações
realizadas por Lone Mujahidin [mesma definiçŌo de “lobos
solitários”] e tinham o objetivo de tirar o temor de futuros
mujahidin em cometer algum pecado ao alvejar civis durante sua
operações. Depois de dividir os “infiéis” em quatro categorias
expressas na sharia, al-Tameemi afirma que só aqueles com quem
foi selado um acordo de paz não são considerados alvos legítimos, o
que não vem a ser o caso dos americanos e europeus do século XXI,
que segundo o texto iniciaram “a luta e o ataque contra os
muçulmanos”, estimulando uma jihad defensiva [Inspire Magazine,
n° 16, 2016,p. 29]
Já Anwar Al-Awlaki [1971-2011], em “Targeting the Populations of
Countries that are at War with the Muslims” [Mirando as
populações de países que estão em guerra com os muçulmanos]
afirma que é preciso atacar as sociedades “infiéis” para que elas
“despertem” e se voltem contra seu governo, como foi com a
Espanha, cuja opinião publica forçou a retirada de tropas do Iraque
após os atentados de Madrid em 2004. Se após o ataque persistir o
apoio da população ao governo, ela se torna efetivamente culpada e
considerada como combatente, pois na lógica apresentada na
Inspire toda a nação que concordou com as decisões empregadas
pelo seu presidente de algum modo participou ativa e
conscientemente do confronto:
“Mas todos [os estudiosos islâmicos] concordam que se as
mulheres, idosos, agricultores, comerciantes ou escravos
que participam da guerra com qualquer esforço contra os
muçulmanos, seja com a participação real na luta,
contribuição financeira ou parecer, tornam-se alvos
legítimos”. [Inspire Magazine, nº8, 2011, p. 22. TraduçŌo
nossa].
A partir dos textos publicados na Inspire, percebemos o esforço para
tornar qualquer cidadão ocidental um combatente, e assim, justificar
sua morte em atentados terroristas. Mesmo mulheres, idosos e
crianças que não participam ativamente das decisões políticas acerca
dos conflitos internacionais são colocados como alvo porque não há
espaço para o individuo, mesmo para aqueles que discordam da
política externa de seu país ou que não discriminam muçulmanos
por sua nacionalidade ou escolha religiosa. Há apenas a
258
homogeneização de um grupo com características adversas àquelas
consideradas desejáveis pela Al-Qaeda e seus simpatizantes e
participantes ativos do processo que gerou o mal-estar entre a
população islâmica.
Se voltarmos na história política recente do Oriente Médio,
perceberemos que ela está repleta de intromissões estrangeiras, a
começar pelas fronteiras nacionais decididas pelo tratado francobritânico Sykes-Picot de 1916. Com o processo de descolonização da
região após a Segunda Guerra Mundial [1939-1945] os novos
Estados que surgiram “adotaram, ou foram exortados a adotar,
sistemas político derivados dos antigos senhores imperiais, ou
daqueles que os haviam conquistado” [HOBSBAWM, 1995], ou seja,
o capitalismo norte-americano ou o comunismo soviético.
Entretanto, Francisco Carlos Teixeira da Silva [2004] aponta que
esses sistemas políticos e projetos de modernização foram falhos em
solucionar os problemas sociais e econômicos do Oriente Médio ao
mesmo tempo procuraram diluir valores tradicionais das
comunidades locais.
Todo este processo gerou uma massa de indivíduos que não se
sentem beneficiados pela modernização imposta pela globalização
ao mesmo tempo em perderam a proteção que a tradição lhes
proporcionava [SILVA, 2004, p. 183]. Mesmo aqueles imigraram
para o Ocidente e que se mostram mais abertos a se apropriar de
elementos do mundo globalizado são excluídos da sociedade
globalizada quando são vitimas de xenofobia e intolerância religiosa
em países que exaltam justamente as ideias de liberdade e respeito.
O sentimento de despertencimento e a desestabilidade política no
mundo islâmico que abriram espaço para os fundamentalismos
desde a década de 1980 foi canalizado pela Inspire Magazine para
ensinar e guiar possíveis Lone Mujahidin que residem no Ocidente a
atacar seu próprio país e, com isso, ferir aqueles que financiam
“balas e mísseis que penetram os corpos e casas dos oprimidos
muçulmanos palestinos” [Inspire Magazine, n° 08, 2011, p.03.
Tradução nossa] e realizam ações de ódio contra muçulmanos.
Ainda que a Inspire afirme que o ódio entre cristãos [ocidentais] e
muçulmanos seja natural, ele é sim ensinado para os intolerantes de
ambos os lados através de uma “educaçŌo autoritária” [SILVA,
2004, p.139], violenta, repressiva, agressiva.
259
Referências
Katty Cristina Lima Sá é graduada em História pela Universidade
Federal de Sergipe e integrante do Grupo de Estudos do Tempo
Presente [GET/UFS]. Email: katty@getempo.org Orientador: Prof.
Dr. Dilton Cândido Santos Maynard [PPGED/UFS]
Fontes
AL-MALAHEM MIDIA . Inspire Magazine – Targeting Dâr alHarb populations, nº8, 2011.
AL-MALAHEM MIDIA. Inspire Magazine – 9/17 Operation
[edição especial], nº 16, 2016.
BARBER, Victoria. The Evolution of Al Qaeda‟s Global Network and
Al Qaeda Core‟s Position Within it: A Network Analysis. In:
Perspective of Terrorism, volume 9, nº 06, dezembro de 2016.
ISSN 2334-3745, p. 02-35
BERGEN, Peter; HOFFMAN. Bruce; SIMON, Steve. A Al-Qaeda
então e agora. In: GREENBERG, Karen [Org]. Al-Qaeda. Lisboa:
Editorial Estampa, 2007, p. 29-54
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos – O breve século XX
[1914-1991]. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MIGAUX, Philippe. A Al-Qaeda. In: In: CHALIAND, Gérard; Blin
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QA'IDY, Abu Amru. A Course in the Art of Recruiting: A
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SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Revoluções Conservadoras, Terror
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Neoterrorismo: Reflexões e Glossário. Rio de Janeiro:
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SOUZA, Bruno Mendelsk de Souza. A construção do conceito de
inimigo nos discursos de Bin Laden no período de 1996 a
2004, 2012, 283 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal
260
do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais. Porto Alegre, 2012.
THACKRAH, John Richard. Dictionary of Terrorism. Nova
York: Routledge, 2004.
261
262
REFLEXÕES SOBRE O RELATO DE UM VIAJANTE
BRASILEIRO AO EXTREMO ORIENTE NO
SÉCULO XIX: DA FRANÇA AO JAPÃO DE
FRANCISCO ANTONIO DE ALMEIDA
Kelly Yshida
“Acaba de publicar-se um precioso volume intitulado Da
França ao Japão pelo nosso amigo Dr. Francisco Antonio
de Almeida. Compendía esta importante obra a narração de
viagem e descripção histórica, usos e costumes dos
habitantes da China, do Japão e de outros paizes da Asia. O
autor trata d‟estes assumptos com a critica e a observação
que pôde exercer, quando, como adido á comissão do
governo francez foi ao Japão em 1874 acompanhar as
observações da passagem de Venus. A obra é ilustrada, e
contém uma minuciosa carta do Imperio do Japão,
excelentemente gravada.” (Gazeta de Notícias, 12.01.1879)
Assim foi anunciado o livro Da França ao Japão: narração de
viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da
China, do Japão e de outros países da Ásia, publicado em 1879 pela
Typographia do Apóstolo e Imperial Lithographia de A. Speltz. Este
foi, de acordo com a produção acadêmica, o primeiro relato de
viagem de um brasileiro sobre o Japão. O autor, Francisco Antônio
de Almeida, foi um astrônomo enviado pelo diretor do Observatório
Nacional, Conde de Prados, para estudar na França e que, por
solicitação do governo imperial brasileiro, participou da missão
francesa ao Japão para observação da passagem de Vênus diante do
Sol, em 1874. Na obra foram apresentadas questões como a
curiosidade pelo exótico, o interesse científico, os costumes e
cenários pelo seu caminho ao oriente, bem como notas sobre o
próprio Brasil e a conjuntura internacional.
Almeida foi um viajante de curta estadia, diferente de Aluisio
Azevedo ou Oliveira Lima, que residiram no país por conta dos seus
serviços diplomáticos. Isto implica que o então cientista construiu
sua imagem do Japão na sequência das observações que fez durante
o percurso do navio. Suas considerações são de uma vivência
específica. Provável que não tenha vivido o cotidiano como fez
263
Azevedo, tampouco tenha tido relações afetivas intensas como
Wenceslau de Moraes.
Não há dúvidas de que quando um viajante, anterior ao século XX,
propunha-se a participar de uma jornada intercontinental o cenário
era bastante distinto do atual. O longo período em navios, a
distribuição da alimentação e as condições de higiene, bem como a
relação que se estabelecia com a tripulação e os diversos encontros
ocorridos nos locais em que atracavam, tornavam não apenas a
chegada, mas a própria viagem capaz de estabelecer relações e
produzir diversos materiais. Diante de um mundo em que havia
muito a ser conhecido e onde o excêntrico fascinava, os relatos se
tornam objetos que permitem questionarmos tanto o local de origem
quanto o cenário que se abria aos olhos dos que partiam.
Mesmo considerando a potencialidade criativa, há um vínculo entre
a obra e o autor que não é, de forma alguma, alheio à sociedade e ao
tempo em que vive. O escritor tem seus limites, suas condições, vive
determinada realidade, e aquilo que produz não é imune a isto.
Imerso neste meio, ele o referencia mesmo sem predisposição em
fazê-lo. No caso do relato, entende-se que há a pretensão de escrever
sobre o outro, mas há também referências que não precisam ser
premeditadas. Neste sentido, é alguém que compreende a realidade,
transforma e exprime de acordo com os valores, linguagens e modos
de apresentação que lhes eram familiares.
O astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão foi o pesquisador
que mais se dedicou sobre a trajetória de Almeida, ele demonstra
que sua atividade foi de notória importância para a astronomia
brasileira. Na descrição do verbete sobre o autor, no seu Dicionário
enciclopédico de Astronomia e Aeronáutica, está que era doutor em
ciências físicas e matemática e que regeu a cadeira do Curso de
Minas da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Além disso, comenta
“o escritor e astrônomo francês C. Flammarion, em Etudes
eu Lectures sur l’Astronomie, no volume 8, publicado em
1877, exclusivamente dedicado ao histórico das passagens
de Vênus, cita Almeida Jr. como colaborador do astrônomo
francês J. Janssen nas experiências efetuadas com o
revólver fotográfico, em Nagasaki” (MOURÃO, 1987, p.2324).
264
No século XIX, a passagem de Vênus ocorreu duas vezes, 1874 e
1882. Contudo foi na primeira que ocorreu a atuação do astrônomo
brasileiro: “During the occasion of the Venus transit in 9 December
1874 in Nagasaki, Japan, a young brazilian astronomer, Francisco de
Almeida participates in the French mission operating the French
astronomer Jules Janssen‟s (1824-1907) astronomical revolver,
considered the predecessor of the movie system” (MOURÃO, 2004,
p.154).
Anterior a esta é a descrição de Augusto Victorino Alves Sacramento
Blake, presente no Diccionario Bibliographico Brazileiro, publicado
ainda durante a vida de Almeida, em 1893, pela Imprensa Nacional.
Detalhava:
―Francisco Antonio de Almeida – Filho do coronel Francisco
Antonio de Almeida, doutor em sciencias physicas e mathematicas e
cavaleiro da ordem da Rosa, regeu interinamente a segunda cadeira
do curso de minas da escola polytechnica; viajou pela Europa e, a
convite do governo imperial, foi addido à comissão do governo
francez encarregada de observar a passagem de Venus no Japão em
1874. Exercia o cargo de diretor do Diario Official e dele foi
exonerado, quando o general Deodoro deixou a presidência da
Republica; depois, acusado de entrar na conspiração de 10 de abril
de 1892, foi preso e recolhido à fortaleza de S. João. Escreveu:
- Noticia sobre as minas de ferro de Jacupiranguinha e bases de um
projecto de exploração: memoria apresentada a S. Ex. o Sr. Visconde
do Rio Branco, diretor da escola polytechnica. Rio de Janeiro, 1878,
40 pags, in-8º
- A paralaxe do sol e as passagens de Venus, acompanhadas de uma
carta para a passagem do mesmo planeta a 6 de dezembro de 1882,
que será visto no Brazil; organizada para o meridiano do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 1878.
- Da França ao Japão: narração de viagem e descripção histórica,
usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros
paizes da Asia. Rio de Janeiro, 1879, 236 pags. In-4º - Este livro é
nitidamente impresso, ilustrado com varias estampas, precedido do
retrato do autor e tem no fim a:
- Carta do império do Japão, organizada segundo documentos
officiaes. Rio de Janeiro, 1878.
- A federação e a república. Rio de Janeiro, 1889. (BLAKE, 1970, p.
390)”
265
Estas são as principais descrições sobre o autor. A produção foi
comentada e propagandeada em periódicos da época. As imagens
foram produzidas pela Imperial Lithographia de A. Speltz, e a parte
textual foi impressa pela Typographia do Apostolo. Estes desenhos
eram assinados pelo próprio Speltz, em conjunto com Bordallo
Pinheiro e Joseph Mill. Os três artistas eram estrangeiros, tendo em
vista que na primeira metade do século XIX a atividade gráfica era
marcadamente exercida por europeus que, na sequência, formaram
os ilustradores nacionais; vale perceber que nestes anos 1870 estes
estrangeiros eram atacados por suas críticas à realidade brasileira.
As imagens presentes no livro eram um chamariz para a obra, ainda
mais por algumas serem coloridas e contarem com assinatura de
homens reconhecidos por atuarem nos periódicos ilustrados da
época. Segue abaixo a lista das ilustrações com suas temáticas:
Título
China
Aden
Aden
Ceylão
Ceylão
Ceylão
Ceylão
China
Japão
China
Japão
Japão
Japão
Japão
Japão
Japão
Legenda
Mandarim civil
Jovem criado de Aden
Musicos de Aden
Lettrado indiano
Pollotiqueiro indiano
Nogociante do Ceylão
Mulher cinguleza
Manifesto publicado
pelos chins contra os
estrangeiros
Mulher china
Imperantes do Japão
Dama chineza e sua
criada
Principe Japonez
Barbeiro japonez
Jovens japonezas
tocando bandolim
Dama japoneza
dormindo a sesta
Barca de passeio
tripulada por
mulheres japonezas
Jovem dama japoneza
266
Tipo
Colorida
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Colorida
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Monocromática
Colorida
Colorida
e sua criada
Carta do Imperio do
Japão org. segundo
documentos officiaes
Colorida
O livro trazia temáticas que já estavam nos debates nacionais, como
a possível imigração asiática, mas seu suposto pioneirismo em
descrever a experiência de quem presenciou a realidade do Extremo
Oriente dava subsídios para novas argumentações. Almeida trouxe
em seu livro a trajetória desde Marselha, de cujo porto saiu no dia 19
de agosto de 1874 a bordo do Ava, da francesa Compagnie des
messageries maritimes. Neste meio, nos dezoito capítulos que
compõem o relato, tratou da passagem por lugares como a Itália,
Egito, Aden (Iêmen), Ceylão (Sri Lanka), Malacca (Malásia),
Singapura, Conchinchina (Vietnã), Hong-Kong, Macau, China,
Japão. A chegada ao destino é apresentada a partir do nono capítulo.
O Egito foi a primeira parada fora da Europa. Foi também onde o
autor começou a apresentar a relação e a interferência ocidental no
oriente.
“Infelizmente, quando pelo incessante trabalho do
progresso, era de esperar a regeneração das grandes nações
da
antiguidade,
vemos,
ao
contrario,
que o
engrandecimento dos paizes novos importa na ruina
d‟aquelles, que dispoem de uma seiva mais pobre, e de cuja
circulação mais lenta resulta atraso para suas artes e
sciencias.
Será esta a justa explicação da decadencia dos antigos
povos, outr‟ora capazes de grandes commettimentos, como
demonstrão seos monumentos, e hoje, apologistas
empedernidos das velhas instituições, e intolerantes
sectários da escola de Epicuro?
De certo, esta causa não se opporia á marcha triumphante
da civilização moderna se, em nome do seo mais forte
baluarte, a liberdade, ambiciosas nações não excogitassem
pérfidas ardilezas para assenhorearem-se, pela força ou
astucia, arbítrios supremos de seos destinos.”
É marcante a imagem de um “velho mundo” que se opõe a um
mundo “novo” e supostamente “civilizado”. Em Da França ao Japão
a passagem de Vênus ou os debates científicos não são centrais,
embora o autor não deixe de comentar questões da astronomia,
267
fauna, flora e do desenvolvimento tecnológico. Mas são os costumes
das comunidades que encontra, bem como os exotismos, que
formam os principais comentários de Almeida. Isto faz com que a
narrativa seja acessível ao leitor alfabetizado, mas sem
conhecimentos específicos; diferente de A paralaxe do sol, outra
obra do autor elaborada a partir da viagem.
Alguns temas são recorrentes no relato, como as diversas
populações, suas estéticas, costumes e atividades. Também importa
ao viajante questões como a alimentação, os cenários das cidades, as
manifestações artísticas e religiosas, partindo de uma perspectiva
que coloca o desenvolvimento europeu como a base de comparação.
Além disso, é presente seu debate sobre a Igreja Católica,
especialmente quando comenta os movimentos de expansão à China
e ao Japão praticados por jesuítas. São pontos importantes não
apenas para Almeida, mas também em outros relatos, como o de
Aluísio Azevedo e Wenceslau de Moraes.
Impressiona o viajante a diversidade étnica em Port Said, a
sensualidade das dançarinas do Egito, a expansão da arquitetura
europeia em Saigon, a diversidade da população chinesa, a
intensidade do comércio em Singapura. Não menos impressionante
era a expansão imperialista, especialmente da Inglaterra.
No Japão, os viajantes do Ava encontraram uma sociedade
adaptando-se a uma nova configuração. Afinal, a partir de 1868 o
país estava na Era Meiji, período marcado por um processo de
“modernizaçŌo” aos olhos do Ocidente. Deixava de ter uma política
caracterizada pelo isolacionismo vigente no Shogunato Tokugawa
(1600-1868). A Restauração Meiji trazia uma ruptura política,
econômica e social; isto, a partir de um esforço de urbanização,
industrialização, porém com reestruturação política, econômica e
mudanças de costumes.
Francisco Antonio de Almeida tinha uma compreensão positivada do
japonês, o que contribuía para a imagem favorável diante da
diversidade asiática. Além deste livro, a sua trajetória pública
continuou após esta empreitada que lhe garantiu certo
reconhecimento social. Posteriormente, lecionou no Curso de Minas
da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e, a partir daí, atuou em
diversos meios. Foi nomeado tenente coronel e delegado de polícia
em Niterói em 1890 e diretor do Diário Official até 1892, quando
268
exonerado por participar de conspiração contra o governo. Colocavase como crítico de Floriano Peixoto e foi apresentado como
participante da mobilização em 10 de abril de 1892, motivo pelo qual
foi preso na Fortaleza de Villegagnon. Portava-se como republicano,
abolicionista e contrário à atuação daquele governo.
Falar do Japão nesta obra implica, sem dúvidas, em falar do Brasil.
Além disso, compreender estes trâmites é uma busca pelo cenário do
século XIX e pelo modo como o relato de viagem foi um meio
importante de espraiamento e formação de visões de mundo.
Entram nessa narrativa o cotidiano, a política e a consequente
surpresa ao verem o Japão se aproximar da cultura Ocidental, pelo
seu caráter “modernizador” e, em visões mais críticas, nocivo.
As fontes mostram dois países em busca da construção de suas
identidades nacionais, suas diferenciações e afirmações no cenário
internacional. A obra de Almeida acompanha o processo de
aproximação do Brasil durante sua transição política com o Japão
também em profunda modificação. Se a própria diferença de Oriente
e Ocidente é criada por indivíduos, temos que levar em conta que
nessa falta de espontaneidade estão interesses variados. Os viajantes
e seus relatos tiveram importante papel na constituição de um
imaginário e vocabulário sobre os lugares que passaram a ter
“presença no e para o Ocidente” (SAID, 2001, p.31). Com isso já
havia ocorrido invasões, estabelecidas rotas comerciais, trânsitos, de
modo a elaborar, dominar e torna útil o “outro”. A favor desta ideia,
“Todo um arquivo internamente estruturado é construído a partir da
literatura que pertence a essas experiências. Disso surge um número
restrito de condensações típicas: a viagem, a história, a fábula, o
estereótipo, o confronto polêmico. Essas são as lentes pelas quais o
Oriente é vivenciado, e elas moldam a linguagem, a percepção e a
forma do encontro entre o Leste e o Oeste.” (SAID, 2001, p.96)
O novo é reelaborado como conhecido a ser explorado, cada vez mais
familiar, mas ainda não totalmente, pois interpretado e apropriado
pela cultura do observador. É o que Said considera como uma
categoria mediana, cuja efetividade é ser “menos um modo de
receber novas informações do que um método de controlar o que
parece ser uma ameaça a alguma visŌo estabelecida das coisas”
(SAID, 2001, p.97).
269
Aquele que tem contato e escreve também “fala” pelo outro, faz uma
distinção geográfica, psicológica, sociológica, considerando que todo
conhecimento produzido interfere no meio que se insere. O relato
não está alheio às concepções de raça, poder, gênero, cultura, valores
nos quais o viajante se constituiu enquanto indivíduo socialmente
atuante. Pensar sobre os relatos é uma forma de compreender a
“estrutura de dominaçŌo cultural” (SAID, 2001, p.56) ainda
relevante, seja em questões mais abrangentes como políticas sociais
e acordos internacionais, quanto sobre relações entre indivíduos em
um mundo onde os trânsitos são cada vez mais constantes.
Referências
Kelly Yshida. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes.
E-mail: kellyshida@gmail.com
ALMEIDA, Francisco Antonio de. Da França ao Japão:
Narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes
dos habitantes da China, do Japão e de outros países da
Ásia. Rio de Janeiro: Typ. Do Apostolo e Imperial Lithographia de
A. Speltz, 1879.
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionário
Biliographico Brasileiro, Vol. 2: Letras C-Fr. Rio de Janeiro:
Conselho Federal de Cultura, 1970.
DEZEM, Rogério. Matizes do Amarelo: a gênese dos
discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São
Paulo, Associação Editorial Humanitas, 2005.
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Dicionário
Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1987.
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. The brazilian contribution to
the observations of the transit of Venus. In: KURTZ, D. W. (ed.).
Transit of Venus: New views of the solar system and
galaxy. Proceedings IAU Colloquim. No. 196, Cambridge University
Press: Reino Unido, 2004
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 2001.
270
ELEMENTOS DO XINTOÍSMO DE ESTADO NAS
ESCOLAS JAPONESAS (1890)
Leonardo Henrique Luiz
Entre os autores que discutem as transformações na sociedade
japonesa após a Restauração Meiji (1868) destaca-se o esforço para
compreender como foram construídas as ideias que fundamentaram
e legitimaram o novo regime. Nesse sentido, o estudo da "invenção
da tradição" apresenta uma possibilidade de análise, no qual as
reformas educacionais a partir de 1890 podem ser apontadas como o
principal caminho pelo qual o governo Meiji se legitimou. Partimos
da constatação de que esse movimento foi envolvido de
características nacionalista, sendo intimamente conectado com o
papel desempenhado pelo Estado xintoísta como discurso
dominante que se estendeu em toda a sociedade japonesa até 1945.
Diante desse quadro, buscamos analisar qual como a ideia de
"espírito japonês" penetrou na vida cotidiana, principalmente tendo
em vista as práticas nacionalistas presentes nas escolas, como a
leitura do Edito Imperial de Educação (Kyoiku ni Kansuru Chokugo
- 教育ニ関スル勅語), o culto aos retratos imperiais e a reverência ao
hino e a bandeira imperial.
Esses objetos são abordados como formas de cultura material, pois
foram transformados em símbolos que exerciam o papel de
catalisadores, fomentando as atitudes nacionalistas no ambiente da
vida cotidiana. Tais materiais formavam um conjunto que ao serem
analisados expõem as relações sociais que foram construídas a partir
da conexão dos súditos com o imperador soberano, evidenciando a
ideia constatada por Ruth Benedict (1972) de que o Japão não pode
ser imaginado sem a figura do Imperador. Devemos levar em conta
que os valores simbólicos atribuídos a esses objetos foram mutáveis
no interior da sociedade japonesa ao longo do tempo, além disso, as
apropriações dos subgrupos (homens e mulheres; jovens e velhos,
etc.) foram diferentes. Esses aspectos fogem da abrangência do
presente texto, pois nosso objetivo aqui é discutir as estratégias
empregadas pelos políticos a partir da era Meiji e não tanto as táticas
formadas pelos indivíduos (CERTEAU, 2014). Dessa forma,
buscamos compreender as relações sociais a partir dos objetos da
cultura material (Rede, 1996, p. 274)
271
Reformas educacionais a partir de 1890
O Japão permaneceu relativamente isolado até a abertura dos portos
em meados do século XIX, esse processo marca o fim da era
Tokugawa e do governo dos xoguns. Sucessivamente a sociedade
japonesa passa por uma crescente ocidentalização, em meio a qual é
restabelecido o poder da Casa Imperial, a questão que segue é a
crescente tentativa de legitimar o regime Meiji e a própria nação
japonesa. De acordo com Joseph Kitagawa (1990), entre 1868 a 1945
o Japão legitimou a nação (ou a identidade nacional) pelo sistema de
crenças imperiais, sendo significativo o papel da educação como
alicerce para essas ideias.
Conforme aponta Shimazono Susumu (2009), até a Restauração
Meiji a relação entre o Estado e os eventos escolares não era clara,
mas a partir do contato com os modelos políticos do Ocidente
percebe-se a gradativa preocupação em construir a identidade
nacional japonesa. É processo de promulgação da Constituição
Imperial em 1889 que o sistema de governo e a identidade nacional
foram reunidos na ideia de kokutai 国体 (literalmente: corpo
nacional) e se tornaram inseparáveis da reverência ao Imperador.
De acordo com Susumu (2009), as primeiras iniciativas de eventos
escolares que reverenciavam o Imperador são datadas da segunda
metade da década de 1880 sendo encontradas de maneira
padronizada no "Rules Related to the Rituals of Holidays and
Festivals at Elementary Schools (Sh gakk ni okeru shukujitsu
taisaijitsu no gishiki ni kansuru kitei 小学校 於け
日
大祭日 儀式 関す 規程)" de 1891 (SUSUMU, 2009, p. 102), no
qual a ideia de "'holidays' refers to days when important rituals
related to Court Shinto were performed." [“„feriados‟ referem-se aos
dias em que importantes rituais foram realizados na Corte Xintoísta”
– Tradução nossa].
Esses rituais envolveram o uso dos retratos imperiais, o "Kimigayo
君が代" (hino japonês) e o Edito da Educação. Segundo Susumu
(2009, p. 103), todos esses objetos eram recentes para os japoneses,
"The imperial image was first presented in 1882; its distribution to
the schools in the provinces of the country started from 1888, and
most elementary schools had received one by the end of the 1890s"
[“A imagem imperial foi apresentada pela primeira vez em 1882; sua
distribuição para as escolas nas províncias do país começaram a
partir de 1888, e a maioria das escolas primárias receberam uma a
272
partir do fim da década de 1890” – Tradução nossa], o hino
“'Kimigayo' was first performed in 1878 and was recognized as the
national anthem beginning in 1888" [“„Kimigayo‟ foi realizado pela
primeira vez em 1878 e reconhecido como hino nacional em 1888” Tradução nossa] e o Edito foi promulgado em 1890.
Um aspecto importante para entender essa sequencia de publicações
desse período é a argumentação apresentada por Mark Linciome
(1999) sobre o movimento que culminou no Kyoiku Chokugo, para o
autor
"Having ushered in a hasty program of Westernization
during the first decade after the Meiji Restoration including the establishment of Asia's firts system of
universal, compulsory schooling, in which Neo-Confucian
metaphysics gave way to Western positivism and
utilitarianism - the Meiji oligarchs, we are told, were
persuaded by conservative elites that the pendulum had
swung too far. This prompted a 'conservative counterattack'
that culminated in such measures as: promulgation of the
Imperial Rescript on Education, a stronger emphasis on
moral education, and the reintroduction of Confucian
ethics into the curriculum; the introduction of military style physical education (heishiki taiso) to instill discipline
and respect for authority; and increased government
control over curricula and textbooks" (LINCIOME, 1999, p.
340-341).
[“Tendo
inaugurado
um
rápido
programa
de
Ocidentalização durante a primeira década depois da
Restauração Meiji – incluindo o estabelecimento do
primeiro sistema de educação universal e obrigatória na
Ásia, no qual a metafísica Neo-Confuciana deu lugar ao
positivismo e ao utilitarismo – as oligarquias Meiji, somos
informados, foram persuadidas pela elites conservadoras
de que o pêndulo tinha oscilado muito longe. Isso provocou
um „contra-ataque conservador‟ que culminou nas
seguintes medidas: promulgação do Edito Imperial de
Educação, uma maior ênfase em educação moral e a
reintrodução da ética Confuciana nos currículos; a
introdução do militarismo – no estilo de educação física
(heishiki taiso) para incutir disciplina e respeito pela
273
autoridade; e o aumento do controle do governo sobre os
currículos e livros didáticos” – Tradução nossa].
É no centro desse contrataque conservador que esses objetos de
culto nacionalista foram estabelecidos. Entretanto, é preciso lembrar
também que esses programas conservadores não foram aceitos de
maneira unânime. Linciome (1999, p. 339), argumenta que o
"'international education movement' (kokusai kyoiku undo)" foi um
importante evento na história japonesa que surgiu entre 1905-1931,
no qual propunha uma alternativa ao projeto conservador, com
menos tempo de ensino em torno da lealdade e patriotismo e de um
novo nacionalismo. Os defensores desse movimento não pretendiam
estabelecer práticas revolucionárias, mas sim reformas, sendo que
todos se viam como súditos do Imperador e visavam à manutenção
do sistema imperial.
Ao analisar esse tipo de movimento podemos ampliar o
entendimento de nacionalismo e olhar as disputas de múltiplos
programas de nacionalismos brigando por legitimidade. Dentre os
membros desse movimento devemos destacar a atuação, por
exemplo, de Saionji Kinmochi (1849-1940) que atuou como Ministro
da Educação em duas oportunidades (1894-96 e 1898), além de
Primeiro Ministro em 1906. De acordo com Linciome (1999, p. 343)
Saionji "[...] eventually resigned his ministerial post over a proposal
he made to replace the 1890 Imperial Rescript on Education with a
new one that would recognize egalitarian principles and promote a
morality that accorded greater respect for all peoples [...]" [“...
eventualmente renunciou seu cargo de ministro por uma proposta
que ele fez para substituir o Edito Imperial de Educação de 1890 por
um novo que reconhecia os princípios igualitários e promovia uma
moral que concede um maior respeito para todos os povos” –
Tradução nossa], a existência de mais de uma proposta oficial de
Kyoiku Chokugo é expressivo da preocupação com o papel da
educação para os japoneses.
A promulgação do Kyoiku Chokugo pelo Imperador Meiji em 1890
representa a tentativa de estimular as crenças xintoístas na vida das
pessoas. Entendemos estimular no sentido de enfatizar o papel
central do próprio Imperador como figura que liga toda a nação,
sendo seguro afirmar que o repertório das crenças locais xintoísta
eram comum aos japoneses. Abordamos o xintoísmo a partir da
definição proposta por Toshio Kuroda (1981, p. 1) que contesta a
274
visŌo consagrada segundo a qual “Shinto is viewed as the indigenous
religion of Japan, continuing in an unbroken line from prehistoric
times down to the present” [“O Xintoísmo é visto como a religião
indígena do Japão, continuando uma linhagem inquebrável desde a
pré-história até o presente” – Tradução nossa]. Para Kuroda, o
conceito de “xintoísmo” foi desenvolvido a partir do fragmentado
culto aos kamis –
– que foram apropriados e transformado em
um sistema ritual autônomo: o xintoísmo. Com base nas
argumentações apresentadas por Kuroda, Bernhard Scheid e Mark
Teeuwen (2002, p. 200) sugerem o emprego do termo xintoísmo
apenas a partir do século XIV, mas para os autores, o que importa é
abordar o xintoísmo como uma realidade histórica e não como algo
que existiu de maneira inquebrável durante toda a história japonesa.
Fontes
Toda essa relação do xintoísmo com o sistema educacional que é
materializado pelos objetos cultuados nas escolas se torna evidente
com a análise do conteúdo. Abaixo segue a letra do hino japonês:
Letra:
君が代
千代 八千代
細 石
いわお 巌
こけ 苔
生すま
Tradução:
Que o reinado do Imperador
Dure por mil, oito mil gerações
Até que os pequenos seixos
Se tornem fortes rochas
E os musgos venham a cobrí-las
O conteúdo é abundante de elementos que compuseram o xintoísmo
de Estado no qual o “reinado do Imperador” pode ser lido como a
própria soberania do Japão. Como lembra Benedict (1972, p. 34) ao
estudar o Japão (a pedido do governo dos Estados Unidos em 1944
como forma de melhor combatê-lo),
“O prisioneiro de guerra japonês explicitamente separava a
Família Imperial do militarismo e das agressivas políticas
275
de guerra. [...] Entretanto, para eles o Imperador era
inseparável do JapŌo. „Um JapŌo sem o Imperador nŌo é
JapŌo.‟ „O JapŌo sem o Imperador nŌo pode ser imaginado.‟
„O Imperador japonês é o símbolo do povo japonês, o
centro de sua vida religiosa. É um objeto super-religioso.‟
Nem tampouco seria culpado pela derrota, se o Japão
perdesse a guerra. „O povo nŌo considera o Imperador
responsável pela guerra.‟ „Em caso de derrota o ministério e
os líderes militares é que levariam a culpa, e não o
Imperador.‟”.
Além disso, para Benedict Anderson (2008, p. 143) o nacionalismo
japonês foi focado na figura do Imperador mais pelo aspecto
ininterrupto da dinastia,
“[...] a antiguidade exclusiva da casa imperial (o JapŌo é o
único país em que a monarquia foi monopolizada por uma
só dinastia ao longo de toda a história documentada) e sua
identidade nipônica (à diferença dos Bourbom e dos
Habsburgo) simplificavam muito a utilização da figura do
imperador para finalidades nacionalistas oficiais.”.
Da mesma forma, se analisarmos o Kyoiku Chokugo podemos
observar elementos do xintoísmo de Estado (a tradução que segue
foi realizada pelo autor a partir da tradução em inglês usada por
Masako Shibata (2008, p. 175)):
Sabei, Nossos súditos:
Nossos Ancestrais Imperiais fundaram Nosso Império em
amplas e eternas bases e implantaram profunda e
firmemente a virtude; Nossos súditos sempre unidos em
lealdade e piedade filial tem, de geração a geração,
ilustrado essa beleza. Esta é a característica fundamental da
gloria de Nosso Império, e também é a fonte da Nossa
educação. Vós, Nossos súditos, sejam filiais para com seus
pais, afetuosos com seus irmãos e irmãs; como marido e
esposa sejam harmoniosos, e como verdadeiros amigos;
Porte-se em modéstia e moderação; estenda sua
benevolência para todos; persiga o aprendizado e cultive as
artes, e assim, desenvolva as faculdades intelectuais e
perfeitos poderes morais; além disso, advogue pelo bem
público e promova os interesses em comuns; sempre
276
respeite a Constituição e observe as leis; em caso de
emergência, ofereça-se corajosamente ao Estado; e dessa
forma, guarde e mantenha a prosperidade do Nosso Trono
Imperial coeso com o céu e a terra. Então, você não será
apenas Nosso bom e fiel súdito O Caminho até aqui e
adiante é certamente o ensino legado por Nossos
Ancestrais Imperiais, para ser observado igualmente por
seus descendentes e súditos, infalível para todas as eras e
verdadeiro para todos os lugares. É Nosso desejo
estabelecer no coração com toda reverência, em comum
com você. Nossos súditos, que todos possamos alcançar a
mesma virtude. 30° dia do 10°mês do 23° ano de Meiji
[1890]. [Assinatura Imperial. Selo Imperial.]
Assim como no hino, apesar de não ser mencionado explicitamente o
xintoísmo, existem vários indícios que apontam para características
xintoístas. Devemos abordar essa discussão a partir das propostas
realizadas por Ginzburg (1989), no qual esses indícios devem ser
analisados dentro de um contexto no qual tais materiais circularam.
Dessa forma, podemos perceber a questão da piedade filial, o
incentivo à conduta moral, a preocupação de ressaltar os
antepassados (partilhados por todos) fundadores do império, entre
outras coisas.
De acordo com Sharon Nolte (1983), o edito foi publicado como
forma de circunscrever o debate em torno dos deveres dos súditos
em termos de moral e comportamento social sem precisar das
estruturas constitucionais da lei, pois a maneira com que foi
publicado “[...] without the countersignature of a minister of state
[...]” (NOLTE, 1983, p. 284) indica como a palavra imperial superava
em alguns casos a força da lei. Esse elemento moral está nitidamente
presente ao longo do edito que deixa claro como a piedade filial para
com os pais se estende também para o Imperador, sendo um aspecto
essencial de ser passado de geração a geração. De acordo com Nolte,
“By this procedure its framers clearly meant to define the Rescript as
moral rather than legal or political; doubtless, they failed to envision
the full range of its later ideological uses.” (NOLTE, 1983, p. 284)
[“Por este procedimento, seus autores pretendiam claramente
definir o Edito como moral, em vez de legal ou político; sem dúvida,
eles não conseguiram imaginar o alcance de seus usos idióticos
posteriores.” – Tradução nossa].
277
Outros dois pontos importantes de serem destacados no conteúdo
do edito sŌo: primeiramente, a que se refere ao trecho “[...] em caso
de emergência, ofereça-se corajosamente ao Estado [...]”, devemos
salientar que o contexto de 1890 foi marcado pelas tensões entre
Japão e China pelo controle da Coreia, nesse sentido, sugerimos que
possivelmente a idealização de uma expansão militar pela Ásia já
estivesse no horizonte de possibilidades dos lideres Meiji. Em
segundo lugar, é interessante notar como, durante todo o edito, os
ancestrais que teriam fundado o Império são compartilhados por
todos os japoneses, sendo algo “verdadeiro para todos os lugares”,
esse é o centro da ideia de kokutai cujo ponto mais alto é a
reverência ao Imperador. São todos esses aspectos que formam a
noção de espírito japonês, nas palavras do antropólogo Takashi
Maeyama (1973, p. 245 – grifo no original) “Todos estes fatores
contribuíram para que a identificação de grupo dos japoneses fosse
fundamentada na etnicidade de em [sic.] termos de „niponicidade‟
dramatizada no culto ao imperador.”.
Considerações finais
Conforme sugerido ao longo do texto, essas práticas nacionalistas
descritas foram incorporadas nas escolas japonesas, sendo diária a
obrigação da recitação do Kyoiku Chokugo. O impacto da repetição
dessas atividades foi enorme na sociedade japonesa, pois, como
argumentam Hobsbawm e Ranger (2015) é por meio da repetição
que as tradições são inventadas. Podemos, inclusive, ampliar esse
quadro e sugerir que a constante renovação e adaptação dessas
práticas foram incorporadas como habitus (BOURDIEU, 1989, p.
82-83), que é o “[...] produto de uma aquisiçŌo histórica que permite
a apropriaçŌo do adquirido histórico.” isto é, o emprego de noções
ou atitudes por meio das incorporações historicamente adquiridas. É
dessa forma que as práticas xintoístas foram exercidas
independentes da religião individual, tendo impactos que podem ser
vistos em termos de longa duração.
Um exemplo significativo são os imigrantes japoneses no Brasil, que
mesmo após o abandono dessas práticas no Japão (durante a
ocupaçŌo Aliada o Kyoiku Chokugo foi “revogado”) os imigrantes
ainda realizavam essas atividades até as décadas de 1970 e 1980. De
acordo com Maeyama (1973, p. 437 – grifos no original)
“Nas comunidades japonesas no Brasil, a escola japonesa
servia como centro espiritual, emprestando uma atmosfera
278
religiosa pelas práticas do culto ao Imperador,
convertendo-se, consequentemente, em um tipo de
santuário do ujigami (deidade padroeira) da comunidade.
Ela era sagrada. A escola era o santuário, o Imperador a
deidade, e a sutra sagrada era a Escritura Imperial sobre
Educação. Dessa maneira, o culto ao Imperador se
assemelhava estritamente ao culto aos antepassados.
Mesmo nos anos de 1950 e 1960, em diversas escolas
japonesas ainda se observavam essas mesmas práticas
(Koya no Hoshi, n°42, junho de 1957; n°55, agosto de 1959;
e muitas outras fontes em publicações, observações e
entrevistas.).”.
Ao encararmos o fenômeno dessa maneira, as abordagens e
desenvolvimentos possíveis são enormes, pois se amplia o horizonte
das formas de religiosidade japonesa, podendo sugerir a maneira
pela qual o xintoísmo de Estado existiu e sobreviveu tardiamente em
terras brasileiras.
Referências
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Universidade Estadual de Londrina. Bolsista Fundação
Araucária/CAPES.
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280
MAVO: O MODERNISMO E A POLÍTICA NO
JAPÃO DO SÉCULO XX
Leonardo Souza Alves
As três primeiras décadas do período Meiji (1868-1912), entraram
para a história como um milagre econômico do Japão. O rápido
plano de modernização e adaptações políticas e culturais da nação,
impactaram de forma estrondosa todos os setores da sociedade
japonesa. A rápida modernização, que incluiu a industrialização
combinada com um grande êxodo rural, e fluxos de emigração do
povo japonês. As mudanças sociais e políticas ocorridas, tiveram
grande influência de pensamentos da filosofia e doutrina ocidental,
as quais foram utilizadas e absorvidas para uma adaptação da
cultura e da sociedade japonesa às normas formas de pensar. Tais
transformações, dividiram a nação entre aqueles abertos às novas
mudanças, e aqueles que enxergavam que uma parte da identidade
japonesa estava sendo perdida, para a construção de algo
completamente novo.
A mesma visão aplicou-se às transformações culturais do período.
Artistas japoneses abraçaram novas formas de escrita e pintura,
ainda que estilos tradicionais ainda tivessem grande espaço. A
preocupação com a ocidentalização do país começou a surgir com
grande intensidade nas duas últimas décadas do século XIX. Esta
preocupação fez com que intelectuais japoneses, preocupados com o
senso de ordem e desafios políticos, pensassem um novo conceito de
tradição. Inazo Nitobe (1862-1933) e Kakuzô Okakura (1862-1913)
foram expoentes de como o pensamento ocidental expandiu-se no
japão. Na obra de Nitobe (NITOBE, 1905), é visível um discurso de
caráter conservador, que expressa um saudosismo da extinta casta
samurai, que exerceu grande influência e poder nos regimes feudais.
Há uma busca de valores nobres nesta casta de guerreiros e líderes,
buscando encontrar nela a evolução do homem, um estado muito
próximo de perfeição moral, que, influenciado pelo Darwinismo
social, mostraria que a sociedade nipônica estaria em um processo
de evolução. Assim, o Samurai exerce um papel de herói e exemplo
máximo de vida ética. O uso desta imagem positiva dos samurais, foi
utilizado para a criação de uma unidade e identidade nacional com
um suposto “respaldo histórico”, que praticamente tornou-se clichê,
e atrelado a uma ideia universal de educação e polidez geral do povo
japonês.
281
“Os líderes Meiji mesclaram passado e futuro na estratégia
de construção da modernidade japonesa. Em torno da
concepção do Império do Grande Japão, sedimentaram-se
ideologicamente os interesses da nação em formação em
conformidade com os outros do Estado. „capitalizaçŌo do
passado‟, como diz Lévi-Strauss, no sentido de glorificar a
história do povo japonês para fomentar o orgulho nacional.
O alicerce da argumentação baseava-se na ideia da
uniqueness, exclusividade, da cultura japonesa e a história
foi amplamente usada para justificá-la” (SAKURAI, 2008
p. 147)
A preocupação com a modernização do Japão levou ao governo Meiji
à criação da Escola de Arte Técnica (Kobu Bijutsu Gakko) em 1876
como a primeira escola oficial para o estudo do Y ga (pinturas de
estilo ocidental), onde consultores estrangeiros foram contratados
para o ensino das técnicas de pinturas ocidentais. De acordo com a
sua constituiçŌo, sua proposta era “Trazer as técnicas da arte
ocidental para a arte japonesa como um auxílio para os artistas
japoneses”; sua missŌo era ensinar “Aspectos teóricos e técnicos da
arte moderna ocidental para complementar as lacunas da arte
japonesa e construir uma escola no mesmo nível das melhores
academias de arte do ocidente estudando correntes do realismo”.
Nas últimas décadas do século XIX porém, a hostilidade contra o
Y ga o crescimento do movimento Nihonga (pinturas do estilo
japonês), liderado por Okakura Tenshin, que procurava estabelecer
uma reaçŌo nacionalista ao Y ga, buscando uma arte feita em
conformidade com as convenções artísticas, técnicas e materiais
japoneses, causou o declínio temporário do Yoga, e Kobu Bijutsu
Gakko foi obrigada a fechar em 1883.
“Na década de 1880, a mudança radical na política também
alterou o equilíbrio de poder Entre yoga e nihonga. O Yoga
tornou-se cada vez mais duvidado e, após 1882. foi excluído
dos pavilhões japoneses em exposições internacionais.
Além disso, a grande popularidade do „tradicional‟ O
artesanato japonês (kogei) que começou com os burocratas
liderados pela exposição de Viena de 1873 Para enfatizar
artesanato e pintura em tinta e pigmentos opacos sobre
ioga. Enquanto yoga foi exibida Em feiras nacionais
282
patrocinadas pelo Ministério da Indústria e da Agricultura,
essas As exposições de artes industriais foram concebidas
para promover a indústria japonesa e tratadas Pintura e
artesanato como outros produtos industriais, não como
artefatos culturais. Em 1882 o governo Patrocinou sua
primeira exposição nacional de pintura, mas foi
intencionalmente omitido, e a nihonga promovida.
Somente em 1900, na exposição de Paris, ioga foi
totalmente introduzida em Exposições internacionais. Em
1887, a recém-fundada Escola de Belas Artes de Tóquio
(onde Okakura serviu como diretor) inicialmente se
recusou a incluir ioga em seu currículo. Embora o estilo
ocidental A pintura persistiu em estúdios privados, o
estabelecimento oficial de arte começou a reconhecer o
movimento apenas quando o artista de yoga Kuroda Seiki
voltou da França em 1893. Em 1894, a Escola de Belas
Artes de Tóquio começou a ensinar yoga; Dois anos depois,
uma seção completa dedicada à pintura ao estilo ocidental
foi criada, com Kuroda responsável.” (WEISENFIELD,
2002 p. 14)
Com o fim da primeira guerra mundial, na breve era Taishô (19121926), o cenário ideológico e artístico nipônico sofre uma mudança.
Aos poucos artistas passaram a adotar práticas tanto características
de Yoga, como sombra e clareamento, e Nihonga. Aos poucos
tornou-se muito difícil realizar uma separação concreta entre ambas.
As ambições de um projeto imperialista na Ásia proporcionaram ao
Japão uma recuperação econômica além de desenvolver uma
indústria bélica forte. Contudo, a mesma expansão gerou conflitos
com as nações vizinhas, e no jogo político, uma aliança entre os
partidos nacionais e zaibatsus, entrega o poder aos militares (com
grande apoio das massas) com a promessa de uma guerra
expansionista. Pouco da prosperidade nacional no entanto, chegou
às classes trabalhadoras. A inflação dos tempos de guerra reduziu
ainda mais os salários, que, combinados com uma grande massa
urbana vivendo nessas condições, levou a um descontentamento
geral. Em resposta, em um período de conflito para os intelectuais
japoneses, a resposta foi o início de uma mentalidade de esquerda
no cenário nipônico. Em 1922 é criado o Nihon Kyosanto (partido
comunista japonês), que é declarado ilegal pela lei de preservação da
paz (Hoan Jorei) que buscava barrar movimentos de esquerda e
democráticos em geral.
283
Em 1923, Takamizawa Michinao, membro de um grupo artístico
chamado de Mavo, atirou pedras pelo teto de vidro de uma exibição
de arte, com obras escolhidas pela Nika-kai (A segunda sociedade),
uma organização de pinturas de estilo ocidentais, que eram oposição
aos tradicionalistas da competição anual de artes do governo,
chamada Bunten. O ato, era em resposta à rejeição da Nika-kai em
aceitar as obras de arte dos artistas Mavo, criticando a tendência
conservadora da organização.
O movimento Mavo, começou em 1923 como um renascimento da
associação de arte futurista (que havia sido abandonada) e estava em
conflito com a mídia e com a lei de pacificação social. Influenciados
por movimentos europeus, e também com a vinda dos artistas
expoentes do Futurismo russo David Burliuk (1882-1967) and Victor
Palmov (1888-1929). Tomoyoshi Murayama (1901-77), a maior
figura do movimento e líder do grupo, também trouxe consigo a
influência adquirida no período que morou em Berlim de 1921 até
1923. Onde estudou arte e teatro na universidade de Humboldt em
Berlim. No seu retorno ao Japão, introduziu elementos dos
elementos de vanguarda europeus na arte japonesa, e deu atenção
especial aos teatros, onde ajudou na construção de teatros, e no
movimento de arte proletária da década de 20. Também criou
panfletos de teatro e escreveu peças baseadas em Robin Hood e Dom
Quixote com inspiração Marxista.
“Os artistas Mavo nŌo queriam limitar o alcance da arte;
Eles procuraram Quebrar as fronteiras entre a arte e a vida
cotidiana. Como Okada escreveu no Yomiuri Shinbun: „a
arte está agora separada da suposta „arte‟ e é algo com
significado intrínseco à nossa vida cotidiana. Em outras
palavras, exige mais prática conteúdo.‟” (WEISENFIELD,
1996 p. 66)
Para este fim, os artistas Mavo utilizaram-se de materiais que
envolviam desde objetos encontrados, objetos produzidos pela
indústria, e reproduções de imagens usadas em combinações com
pintura ou impressões para evocar um senso de vida cotidiana
(seikatsu no kanjo). Murayama por meio da sua teoria chamada
Construtivismo consciente, exposta no seu artigo de 1923 “Sugiyuku
hyogenha” (Expressionismo expirando), insistiu na negaçŌo dos
modos tradicionais de representação, sugerindo a expressão da vida
moderna por meio de formas abstratas ou não objetivas. Seu
284
construtivismo, era baseado puramente em justaposição de objetos
combinados com camadas e colagens, em detrimento à
representação mimética. Sua teoria tornou-se um princípio do
próprio movimento, ainda que passível de críticas por alguns dos
membros.
O grande terremoto de Kanto em 1924, trouxe para o Mavo uma
vertente proletária e socialista (WEISENFIELD,2012), que incluia o
design e construção de áreas exteriores de prédios.
“Como muitos outros artistas na época, os membros do
Mavo foram levados para um movimento para a
reconstrução da cidade, resumido pelo grito „Do atelier
para as ruas‟ (atorie kara gairo e). Um repórter observou
que „o primeiro passo para a reconstruçŌo era aliviar o
espírito danificado [da cidade e seu povo] através da arte‟.
Para os artistas Mavo, as condições pós-terremoto
simbolizavam a próxima revolução social: a A limpeza de
estruturas danificadas ofereceu uma oportunidade sem
precedentes para reconstruir a capital fisicamente e o país
de forma ideológica.” (WEISENFIELD, 2002 p.80)
Os elementos da esquerda mavo entrariam em choque porém, no
que viria a ser a chamado de debate ana-boru (anarquista e
bolchevique), acende um debate entre o marxismo socialista e o
anarquismo nipônico, que polarizou-se ainda mais com a criação do
partido comunista japonês em 1922. As discussões acerca da
negação do individualismo do socialismo soviético, seriam alvo de
críticas por parte dos anarquistas, ainda que não houvesse um
rompimento imediato entre os dois setores.
“Uma das diferenças fundamentais entre as facções
anarquistas e marxistas, tal como articulada nos debates
públicos, girava em torno dos anarquistas japoneses; A
suspeita e antipatia em relação ao estado proletário cada
vez mais autoritário e opressivo recentemente estabelecido
na Rússia soviética. Os anarquistas japoneses sentiram que
o marxismo era apenas um novo modo de autoritarismo,
que acabaria por oprimir o indivíduo. Eles ainda apoiam a
ação direta, o individualismo irrestrito, o antiestatismo e
uma postura geralmente anti-social. Essas preocupações
285
também caracterizaram a
(WEISENFIELD, 2002 p. 161)
literatura
anarquista.”
Murayama, apesar de ainda estar mais alinhado ao anarquismo,
considerou e foi influenciado pela tendência marxista do momento,
influenciando no seu questionamento do método e eficácia dos
elementos expressionistas e destrutivos do seu trabalho. A influência
do construtivismo russo ainda afetou a sua visão sobre os efeitos da
tecnologia e as bonécias das máquinas. O seu construtivismo não era
apenas uma forma de arte revolucionária, mas uma arte socialista
para a construção de uma nova sociedade. Enquanto o resto do
grupo Mavo continuou com as táticas anarquistas, mesmo após o
seu fim, Murayama continuou com uma visão orientada ao
socialismo e proletária.
Apesar do imaginário de esquerda do movimento, a ideia da
utilização de elementos artísticos na propaganda e design gráfico
não eram completamente antagônicas à visão artística e política do
movimento (WEISENFIELD, 2009). Esta esfera de cultura de
massas, na concepção dos mavoístas ofereciam grandes
oportunidades e modos libertadores de expressão. A arte comercial
(shogyo bijutsu) apresentavam uma visão progressista e eram
simpáticas à estética e ao expressionismo Mavo. Em especial, a
gigante empresa de cosméticos Shiseido, originária de Ginza, era
pioneira em uma nova estética do design gráfico nipônico,
construindo um próprio ideal cosmopolita artístico de beleza e
sofisticação. Fukuhara Shinzo (1883-1944), o segundo presidente da
companhia, foi o idealizador desta nova estética após retornar dos
seus estudos no exterior em 1913, onde transitou pela Europa e
Estados Unidos, familiarizando-se com o tipo de propagandas e
designs.
“Um estudo da interaçŌo dos artistas Mavo com novas
formas de cultura de consumo revela a relação mutuamente
influente e muitas vezes recíproca entre a arte (bijutru) e a
chamada cultura de massa (taishu bunka) no Japão
moderno. O vínculo entre a arte e a indústria cultural era
bastante evidente nas afiliações complementares da
produção de arte, exposição de arte, comércio e
entretenimento que emergiram no século XVII. Exposições
públicas como misemono (freak shows e entretenimento de
rua), kaicho (exposições do templo exibindo imagens e
286
tesouros religiosos), e shogakai ou shoga tenrankaji
(exposições de caligrafia e pintura) foram consolidadas, seu
patrocínio em grande parte assumido pelo Estado ou local
Governo e substituído por feiras domésticas e
internacionais (hakurankai). As exposições oficiais de arco
(kanten), como o Bunten, foram complementares deste
fenômeno, com ênfase na era moderna ao cultivar uma
sensibilidade artística refinada no público como meio de
afirmar a civilização japonesa. Estes locais culturais
ficaram intimamente ligados à ideologia da construção da
naçŌo.” (WEISENFIELD 2002, p. 157)
A própria revista Mavo, era de certa forma um esforço coletivo do
grupo para o uso da mídia para a arte. Ao mesmo tempo, muitos dos
artistas, incluindo Murayama, frequentemente promoviam a si
mesmos, incluindo seus trabalhos em materiais de grande
circulação. O próprio design do logo foi criado com intenções de
circulação, assim como toda a tipografia e escolhas estéticas dos
materiais e manifestos. Os mavoístas consideravam a cultura de
massas como algo separado do Estado. Ela representaria o sentido
prático da arte, e integrada à vida cotidiana. No fim, as tensões entre
a esquerda radical e a cultura burguesa permaneceram não
resolvidas nos trabalhos do movimento, ao passo que os artistas
tanto manipulavam quanto eram manipulados pela cultura de
massas.
Referências
Leonardo Souza Alves é graduando em história pela Unesp.
Email: souza_leo@outlook.com
NITOBE, Inazo. Bushido: The Soul of Japan. Londres: G.P
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SAKURAI, Célia. Os Japoneses, São Paulo: Contexto, 2008
288
O CÓDIGO DE HAMURABI: O IMPERADOR, SUA
OBRA E O DIVÓRCIO NA ANTIGUIDADE
Lucimara Andrade da Silva
Luana Aparecida da Silva
Introdução
Este artigo tem por objetivo apresentar uma contextualização
referente ao código de Hamurabi, conjunto de leis escritas na
Mesopotâmia, provavelmente pelo rei Hamurabi, durante o império
babilônico. Discutiremos sobre a dinastia babilônica, pensando na
constituição das leis, baseadas na de Talião, talhadas no monumento
histórico monolítico, em rocha de diorito com escrita cuneiforme,
que buscavam unificar o reino por meio do código de leis comuns
com regras e punições. Ressaltaremos também, o caráter literário do
código, os tramites para a legalização da união, o divórcio, as leis
referentes as esposas de cativos, aspectos sobre o adultério, a
esterilidade e a poligamia. Analisaremos essas questões, através da
revisão bibliográfica, discutindo o caráter literário da obra proposto
por Bouzon (2003), abarcando também as leis de fidelidade,
poligamia e os outros aspectos por meio dos estudos Azevedo (1996).
Utilizaremos como base o estudo sobre o divórcio na antiguidade
Correia (2014). Através da bibliografia citada, pretendemos analisar
o contexto histórico em torno das leis de Hamurabi e da figura
imperador. “Os principais temas do Código de Hamurabi são o
direito penal, o direito da família, a regulamentação profissional,
comercial, agrícola e administrativa” (SILVA; ALVARENGA, 2017
p.1). Buscando, descrever e analisar essa memória, tendo em vista
que são poucas informações que o historiador consegue recuperar e
formar uma narrativa a partir da análise de documento escritos e
dos vestígios arqueológicos, estudados pela epigrafia, que analisa
escritas em materiais pesados. É em razão da importância do código
de leis, como parte da cultura material e também como um registro
da civilização e do cotidiano nesse período da dinastia. Aliás, o
código detém valor histórico “pelo fato de ter se tornado a fonte
jurídica na qual se basearam as leis de praticamente todos os povos
semitas da Antiguidade, incluindo os assírios, os caldeus e os
próprios hebreus”. (SILVA; ALVARENGA, 2017 p.1)
O estudo da história antiga da civilização do oriente médio, é
essencial, pois mostra a existência de leis antigas que já visavam
questões como o divórcio, que em países como o Brasil demoraram a
289
serem legalizadas, o divórcio somente foi instituído com a emenda
constitucional nº 9 em 1977. Ou mesmo em parte do leste asiático
que consideram ainda o casamento como união sagrada indissolúvel,
cujo divórcio é muito discutido, devido a diversidade cultural, sendo
assim as leis de separação ficam complicadas. Aliás, mesmo tendo
sido “formulado acerca de 4000 anos, apresenta algumas tentativas
iniciais de garantia dos direitos humanos” (BOUZON, 1993, p.36).
Analisando o código percebemos segundo Pinsky (2005 apud
TUPICH, 2009, p. 19), “a existência de três classes distintas: ricos,
povo e escravos, em relação às quais delimita os privilégios, direitos
e obrigações”. Dessa forma, “as punições e direitos criados por essa
lei, levavam em consideração a posição social dos que estavam
envolvidos em cada uma das situações descritas pelo texto”
(BOUZON, 1993, p.36). Nesse sentido, os ricos pagavam impostos
mais altos e se fossem cometidos crimes contra eles, a punição seria
severa, sendo assim, as punições não eram iguais em crimes entre
escravos e de escravos contra senhores.
Estudar o código de Hamurabi e a dinastia babilônica, nos faz
refletir sobre o presente, a história do homem possibilita entender
como funcionava a legislação e o cotidiano de civilizações antigas,
sendo passiveis de estudo através da problematização com o auxílio
de fontes materiais e imateriais sobre o período.
Hamurabi
Nascido em Babel, sexto rei da dinastia babilônica dos Amoritas,
Hamurabi, sucessor e filho de Sin-Muballit, chegou ao reino de
Babel em 1792 após a morte de seu pai. Assumiu o trono em meio a
um processo de expansão territorial, sendo peça fundamental para o
grande crescimento que culminaria na instauração do primeiro
Império Babilônico. Uniu amplamente o mundo mesopotâmico, com
os semitas e os sumérios, no que formou uma unidade política e civil
que levou ao auge de sua grandeza, não só pela força das armas, mas
também pela administração pacificadora, conquistou dessa forma,
com acordos e guerras os territórios da Mesopotâmia. Com notável
habilidade política Hamurabi preferiu, inicialmente, governar à base
de alianças e pactos com os grandes reis do período, tais como,
Rimsin de Larsa, Samsi-Adad I da Assíria e, depois da morte deste,
também com o rei de Mari, que lhe permitiu não só assegurar uma
relação de amizade com a Assíria como também coexistir com Larsa
e Eshnunna. Tendo iniciado seu domínio pelo Sul ao conquistar Ur e
Isin, até então regidos por Larsa, conseguiu, quatro décadas depois,
290
ter sob seu comando também Suméria, Acádia, Larsa, Eshnunna e
assim a Mesopotâmia central e meridional. Seu nome é associado na
história ao código de leis, pois este consolidou a tradição jurídica,
estendendo os direitos e leis a todos os súditos do reino. Contudo,
“nŌo foi apenas um grande conquistador, um estrategista excelente,
um rei poderoso. Ele foi, antes de tudo, um exímio administrador”
(BOUZON, 2003, p. 20). Nos territórios conquistados, “preocupouse, sempre, em reconstruir as cidades vencidas e em reedificar e
ornamentar ricamente os templos dos deuses locais” para que assim
conseguisse também ganhar a confiança e simpatia daqueles
viventes (BOUZON, 2003, p. 20). Seu reinado durou 43 anos,
ascendeu a Babilônia como centro de império efêmero, mas extenso.
Hamurabi era igualmente ligado à justiça e tratou de estabelecer o
direito e a ordem como fundamentos para a promoção da unidade
territorial do império. Ao criar novas leis e compila-las as que já
existiam, este imperador deu origem ao que hoje conhecemos como
o Código de Hamurabi, um conjunto de leis que regiam a vida
cotidiana no império.
O Código de Hamurabi
Baseado na lei do taliŌo, o famoso “olho por olho, dente por dente”,
o código foi escrito numa estela negra de diorito em três alfabetos
distintos, entre eles o arcádico, por volta de 1700 a.c. Tem mais de
dois metros de altura, cerca de um metro e meio de circunferência
na parte de cima e um metro e noventa centímetros na base. No alto
da estela é possível ver a imagem de Hamurabi diante do deus do
sol, Shamash, deus da justiça. Foi encontrada durante uma
expedição francesa no ano de 1901, comandada por Jacques de
Morgan, nas ruinas em Susa na região da antiga Mesopotâmia. É
constituída de 46 colunas com 282 leis e 3600 linhas. Sendo que foi
transportada para o museu do Louvre em Paris. Cópias do código,
feitas pelos escribas, foram espalhadas por várias partes do império
a pedido de Hamurabi para que todos vivessem sob as mesmas leis.
Escrito em caracteres cuneiformes, traz punições a serem
sentenciadas em situações comuns da vida cotidiana em que as
regras não forem cumpridas. Segundo o historiador Luiz Marques,
segue o princípio da lei do taliŌo para garantir que “a pena nŌo seria
uma vingança desmedida, mas proporcional à ofensa cometida pelo
criminoso” (MARQUES, 2009, nº50). De acordo com Bouzon
(2003), os documentos do tempo de Hamurabi deixam claro como
ele se preocupava de fato com a justiça e usava suas sentenças para
291
assegurar o direito de seus concidadãos. As leis registradas na estela
são como sentenças proferidas pelo próprio Hamurabi e foram
organizadas de acordo com as semelhanças entre si, dos temas
tratados. Dessa forma, acabam sendo em sua maior parte de
interesse do governo. Entre as leis estabelecidas no código são
tratadas também regras de vida e propriedade, questões que
abordam o falso testemunho, roubo, estupro, família, escravos e
divórcio.
O “Código de Hamurabi” pode ser dividido da seguinte forma:
Do 1º ao 5º parágrafo, determina as penas a ser impostas em
alguns delitos praticados durante um processo judicial;
Do 6º ao 126º parágrafo, regulamenta o direito patrimonial;
Do 127º ao 195º parágrafo, regulamenta o direito de família,
filiação e heranças;
Do 196º ao 214º parágrafo, determina as penas por lesões
corporais;
Do 215º ao 223º parágrafo, regulamenta a atuação dos
médicos;
Do 224º ao 225 parágrafo, regulamenta a atuação dos
veterinários;
Do 226º ao 227º parágrafo, regulamenta a atuação dos
barbeiros;
Do 228º ao 233º parágrafo, regulamenta a atuação dos
pedreiros;
Do 234º ao 240º parágrafo, regulamenta a atuação dos
barqueiros;
Do 241º ao 277º parágrafo, regulamenta preços e salários;
Do 278º ao 282º parágrafo, contêm leis adicionais sobre a
propriedade de escravos;
No “Código de Hamurabi” a sociedade babilônica é dividida em três
camadas. A camada de homens livres, ou awilum, como os
funcionários, escribas, sacerdotes, comerciantes, trabalhadores
rurais, militares até governantes influentes. Havia a camada escrava,
ou wardum, composta pelos prisioneiros de guerra. E uma terceira
camada, conhecida pelo termo sumério MAS.EN.KAK, para indicar
uma classe profissional específica, considerada como intermediária
entre os homens livres e os escravos.
292
Caráter Literário
A obra o código de Hamurabi é um gênero literário encontrado no
Antigo Oriente Próximo, cogita-se que tenha sido escrito nos últimos
anos de seu reinado, pois as conquistas são descritas no prólogo e o
código é finalizado no epílogo e destinado aos futuros reis. De
acordo com Finkelstein (1961, p.19):
“O propósito do código nŌo era legislativo. Era o
representante de um gênero literário distinto, a saber, a
apologia real, e sua principal intenção era exibi-la ao
público, à posteridade, a futuros reis e, acima de tudo,
prova do mandato que foi decretado divinamente e
realizado pelo rei”.
O primeiro editor da estela V. Scheil nomeou código, considerando o
mesmo como leis, seu valor moral é inestimável, mesmo que não
seja um livro de leis valido e que todo juiz deva seguir ao decidir
sentenças. Embora seja extenso é sem dúvida o código de leis mais
conhecido, escrito na língua arcádica, sendo aceito como melhor
texto de leis do antigo oriente já transmitido. Segundo F.P. Klaus
(VIII, p. 292), “o texto contido na estela do Código de Hamurabi
deve ser considerado uma obra literária da escola babilônica e não
um código de leis como é conhecido”. Sendo assim, o código é uma
literatura particular caracterizada como tratado cientifico:
“Por ter o estilo casuístico, de presságios no qual ambos os textos sŌo
situados, era um estilo científico por excelência – transferindo o caso
concreto individual para a esfera da regra impessoal” (BOTTERO,
1982 apud BOUZON, 2000, p. 16).
Era uma atividade cientifica desenvolvida pelos escribas nas escolas,
trabalhos de literatura teórica que ilustravam a sabedoria. Segundo
Bouzon para Kraus F.R:
“SŌo exercícios da escola de escribas, cuja finalidade é
aprender os ofícios da língua. Já E R. Westbrook as
classifica como coleções de decisões judiciais anteriores que
deveriam servir de base para novas e complicadas
situações” (2000, p.17).
Através da análise da estela percebemos um sistema que inclui o
código de leis na categoria literária, a tríade: prólogo, corpo das leis
e epílogo. No prólogo do “Código de Hamurabi” este se declara como
293
escolhido dos deuses "para fazer surgir justiça na terra, para
eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco,
para, como o sol, levantar-se sobre os cabeças-pretas e iluminar o
país” (BOUZON, 2003, p. 26). No epílogo é feito um relato sobre
suas ações para promover a justiça e o bem-estar da população e
ainda pede bênçãos àqueles que obedecerem às leis registradas no
código e maldições aos que não as seguissem. Para Bouzon (2000),
um dos objetivos da obra literária é enaltecer o rei e no prólogo é
possível perceber uma questão não só legal, mas moral empenhado
por ele quando este deixa claro que:
“O homem oprimido, que está implicado em um processo,
venha diante de minha estátua de rei da justiça, leia
atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras
preciosas. Que minha estela escrita resolva sua questão, ele
veja o seu direito, o seu coraçŌo se dilate” (BOUZON, 2003,
p. 28).
Dessa forma, o “código” nŌo era só uma base legal à qual os juízes
deviam recorrer para resolver pendências judiciais, mas também era
um alicerce moral para o Império e foi muito estudado pelos
escribas.
O Casamento, o divórcio e o ―Código de Hamurabi‖
Na Babilônia, de acordo com o parágrafo 128 do “Código de
Hamurabi”, para se constituir um matrimônio era necessária a
formalidade instituída por um contrato escrito. Segundo Bouzon
(2003), a família era patriarcal, a poligamia não era proibida, mas o
casamento era geralmente monogâmico, no caso de se ter várias
mulheres, apenas a primeira era considerada a principal e seus filhos
os herdeiros legítimos. O pai do noivo era quem escolhia a esposa do
filho e pagava o dote ou terhatum, estipulado pelo pai da noiva em
prata, o qual ficava sob a administração do marido, sendo que, em
caso de morte era repassado aos filhos se houvesse ou retornava a
sua família. Depois de pago era redigido o contrato matrimonial
validando o casamento. Porém o marido podia repudiar sua mulher,
isso consta no parágrafo 138, “se um awilum quer abandonar sua
primeira esposa, que não lhe gerou filhos, dar-lhe-á prata
correspondente a seu dote e então poderá abandoná-la". De acordo
com Bouzon (2003), a escrava que gerava filhos no lugar da esposa
principal, estéril ou impossibilitada pela lei de procriar, gozava de
uma situação privilegiada e, caso não conseguisse gerar filhos, seria
294
vendida pela patroa, como consta nos parágrafos 146 e 147. Em caso
de abandono de sacerdotisas como consta no parágrafo 137, além da
devolução do dote, a mulher tinha direito à metade do campo, do
pomar e dos bens móveis e poderá se casar com o marido do seu
coração.
Com relação aos cativos, tendo na casa do prisioneiro comida
suficiente, sua mulher não poderia ir buscar alimento na casa de
outro homem. Uma vez que se ausentasse o dever de coexistência o
casamento podia ser rompido sem que houvesse culpa por parte do
prisioneiro inadimplente. Verifica-se assim que na babilônia já
existia noção do rompimento matrimonial, pela interrupção da vida
em comum.
Sobre o adultério, este sempre foi razão para diversas e severas
punições impostas à esposa, no entanto, o marido, por instrumentos
legais, poderia agora escolher perdoá-la. “Se a esposa de alguém for
surpreendida em flagrante com outro homem, ambos devem ser
amarrados e jogados dentro d'água”, mas o marido pode perdoar a
sua esposa, assim como o rei perdoa a seus escravos. (Código
parágrafo 129). Já no parágrafo 143 do código, sugere a pena de
morte para a mulher que desonrasse o casamento. E se a esposa
adquirir repulsa ou aversão ao marido, está pode voltar para a casa
do pai e levar consigo seus bens. "Se uma mulher tomou aversão a
seu esposo e disse-lhe: 'tu não terás relações comigo”, seu caso será
examinado em seu distrito. Se ela se guarda e não tem falta e o seu
marido é um boêmio e a despreza muito, essa mulher não tem culpa,
ela tomará seu dote e irá para a casa do seu pai". Ocorre também a
lei referente à recusa de habitação conjugal, expressa no parágrafo
149, em que a mulher pode se divorciar sem punição e pode levar
consigo seu dinheiro. "Se essa mulher não concordou em morar na
casa de seu marido, ele lhe restituirá, integralmente, o dote que ela
trouxe da casa de seu pai e ela irá embora". A morte era uma das
grandes causas da dissolução dos casamentos na época, o direito
concedido à mulher de se casar novamente foi um grande passo
dado em favor da mulher.
Sendo assim, podemos afirmar que no código de Hamurabi o
divórcio tinha como requisito a comprovação judicial de
determinados fatos para que entrasse em vigor como, por exemplo,
apropriação indevida de bens, aversão pelo marido e o desprezo pela
mulher.
295
Considerações finais
Concluímos que, o código de lei serviu de alicerce as leis dos povos
da antiguidade. Representando uma transformação nos costumes e
tradições dos povos da Mesopotâmia, principalmente por ser
baseado na lei bíblica de talião, que demonstra para alguns
estudiosos, preocupações com direitos humanos e pode ser
interpretado como um progresso social no antigo oriente, pois
restringia a vingança exagerada. Além disso, a codificação buscava a
justiça, a prevenção da opressão e regulamentava os privilégios,
direitos, deveres e as punições. Havia também a pena de morte "lex
talionis", podendo ser na fogueira, forca, afogamento ou empalação.
O princípio de talião, atingia não só o transgressor, mas também os
filhos, as sentenças do código ficavam entre os excessos de violência
nas punições físicas das leis da Mesopotâmia.
Referências
Lucimara Andrade da Silva, Graduanda de licenciatura em História
na Universidade Estadual de Londrina (UEL), bolsista de iniciação
científica Fundação Araucária.
Luana Aparecida da Silva, Graduada em Letras Vernáculas e
Clássicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
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Petrópolis: Vozes, 2003.
BOUZON, Emanuel. Lei, ciência e ideologia na composição
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Universidade de Lisboa. Disponível em:
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<http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67326/69936
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MARQUES, Luiz. A solução das disputas. Revista História Viva,
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296
SILVA, Claudio Herbert Nina; ALVARENGA, Lenny Francis
Campos. A importância Histórica e as principais
características dos códigos de Hamurabi e de Manu.
REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA: Universidade de Rio Verde.
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TUPICH, Barbosa, Michele. Do antigo Oriente Próximo a
Roma: uma abordagem da antiguidade. Guarapuava: Ed.
Unicentro, 2009.
297
298
O QUANTO DE ÁRABE HÁ EM NÓS?
Luciano dos Santos Ferreira
Com os recentes acontecimentos envolvendo terrorismos ao redor
do mundo, a demonização ao islã e ao povo portador da palavra de
Allah, os atentados radicais da Al-Qaeda e do Estado Islâmico
formaram uma imagem deturpada do muçulmano e do árabe, que
ora é mostrado como sofrido e simples, por causa das suas grandes
áreas desérticas, dos beduínos, ainda nômades que insistem na vida
no deserto; ora como reacionários, conservadores, além de fonte de
atos cruéis e sanguinários. Mas será que o quê a imprensa ocidental,
principalmente a americana, nos passa é a verdade? Ou devemos
buscar além da mídia convencional e formar nossa própria opinião
sobre os conflitos que envolvem árabes, judeus, palestinos,
americanos e europeus? Ou então continuemos a ouvir a história dos
vencedores.
Na verdade, há muita dificuldade em aceitar o comportamento dos
árabes islâmicos por parte do ocidente, visto que o imperialismo
praticado pelas nações europeias e os norte americanos gerou e
geram descontentamentos que não são expostos quando as
consequências aparecem. Não é o caso de legitimar a violência de
quaisquer das partes, mas se fizer um exame de retrospectiva,
perceberá como se deram as explorações e legitimações propostas
pelos europeus para expandir seus mercados de capitais, esse pode
ser um bom exemplo de política intervencionista em países
autônomos para favorecimento próprio, acreditar que esse tipo de
política não teria reações mais cedo ou mais tarde, é no mínimo
ingenuidade. Por outro lado, intervir impondo hábitos e culturas
como modelos a serem seguidos é, no mínimo, um exercício
perigoso, há quem cultive sua autonomia e liberdade.
As grandes transformações de áreas desérticas em exuberantes
centros urbanos requintados e luxuosos, a exemplo de Dubai ou Abu
Dhabi provam que há muito além das notícias massificadas, que
mostram apenas uma face estereotipada dessa gente de
conhecimento milenar, que já foi a fonte de conhecimento científico
e a referência de civilidade da humanidade. As contribuições do
Oriente Próximo remontam milênios em diversas áreas do saber
como a literatura, a matemática e a medicina, mesmo que esse
299
legado não lhe seja reconhecido com explicitude, o etnocentrismo
praticado pelos ocidentais é algo difícil de desfazer.
Pode parecer estranho afirmar que nós brasileiros temos
considerável influência moura, não a influência da imigração do
início do século XX, principalmente na região sudeste e que hoje
possui a comunidade árabe enraizada e reconhecida na cidade de
São Paulo, mas muito anterior. Os árabes já foram um dos povos
mais avançados do mundo, deram considerável contribuição para
desenvolvimento da matemática, os números tal como conhecemos e
utilizamos foram criados por eles, além de contribuições na álgebra e
na geometria; a astronomia enquanto ciência teve seus primeiros
passos dados pelos árabes; sua medicina muito contribuiu para que
o ocidente tivesse o desenvolvimento que possui hoje, e por aí vai.
Mas não há gratidão, sequer reconhecimento, ao contrário os
europeus se apossaram de muitos dos inventos dos orientais em
geral, bem descrito por Jack Goody em O Roubo da História. E as
influências não param por aí, a literatura mundial está permeada de
estórias como Ali Babá e os Quarenta Ladrões, As Aventuras de
Sinbad, etc.
Formação do Povo Português
As grandes navegações seriam improváveis sem o compartilhamento
de conhecimento e tecnologia árabe, e conhecimento judeu, como a
que Abraão Zacuto, espanhol judeu a serviço da corte portuguesa
que aperfeiçoou o astrolábio planisférico, o que parece ser uma
evolução do antigo kamal, utilizado para navegação pelos árabes
antigos, ou Abrão Ibn Ezra, também judeu, que desenvolveu tábuas
astronômicas utilizadas na navegação, isso entre os séculos XI e XII
(ALMEIDA, 2000, p. 81), o que possibilitou a chegada às Índias,
também ao Brasil, mesmo que ainda insistam em se referir a esse
evento como um “acidente”; o quadrante e a balestrilha sŌo outros
exemplos desse legado, desenvolvidos séculos antes:
“Guy Beaulouan inventariou no acervo que pertenceu à
livraria do Colégio Viejo de San Bartolomeo, de Salamanca,
entre outros, o Tratado da Esfera de Sacrobosco e um
comentário redigido por Roberto Inglês; o Tratado do
Quandrante Novo de Profatio.” (ALMEIDA, 2000, p. 82).
É a partir dessas contribuições que se começa a compreender a
primazia dos portugueses nas Grandes Navegações e sua intrepidez
300
no singrar dos mares desconhecidos, na verdade eles estavam muito
bem aparelhados de conhecimento técnico e informações precisas,
ainda que fosse um conhecimento pré-científico; a experiência
adquirida dos navegadores, como informações geográficas de
comerciantes do Oriente Próximo forneceram subsídio para uma
busca técnica e objetiva.
Sabe-se que a conquista da Península Ibérica pelos árabes e berberes
faz parte de um contexto expansionista que se inicia a partir da
integração religiosa em torno da pregação do profeta Maomé, que
uniu os povos nômades, estes em eternas disputas entre si, em torno
da crença num único deus, Allah. Com a congregação e
fortalecimento militar em obediência a jihad, se inicia o processo de
rápida expansão muçulmana, conversão de povos e conquistas
territoriais, passando pela região do Oriente Próximo, o norte da
África, chegando à Península Ibérica, por volta de 711, quando
atravessam o Estreito de Gibraltar (GOMES, 2013, p. 31), com pouca
resistência os visigodos caem diante do domínio árabe. A
historiografia mostra que ainda que houvesse invasão e violência,
muito mais houve acordos e negociações entre árabes e nobres
visigodos, estes, preocupados em manter alguma autonomia em
troca de submissão e pagamento de tributos, o que de fato
aconteceu. Clérigos católicos com medo de represálias fugiram, em
geral para o Reino Franco ou para o extremo norte, nas Astúrias,
única região que permaneceu sob o domínio cristão. Com o tempo a
sociedade de al-Andaluz, como ficou conhecida pelos
conquistadores, ou Andaluzia para os nativos, foi acomodando
interesses de um mosaico de etnias e religiões, desde o próprio
europeu cristão, aos árabes recém chegados, judeus e africanos.
A expansão muçulmana só foi barrada na Europa por Carlos Martel
na Batalha de Tours, também conhecida por Batalha de Poitiers, por
tem ocorrido entre essas duas cidades em 732, onde os muçulmanos
se restringiram apenas à Ibéria (GOMES, 2013, p. 28), o que não pôs
fim ao seu domínio, que só acontecerá definitivamente em 1492,
com a expulsão dos árabes do último reduto em Granada, reino
espanhol. Mas num domínio de quase oito séculos, a integração da
sociedade medieval europeia e os moldes culturais árabes
transformaram profundamente as monarquias de Portugal e
Espanha, com todo um incremento técnico e de conhecimento
acumulado no oriente em milênios, e que vão irrigar os europeus nas
diversas levas de imigrantes que constituíram o domínio sarraceno;
301
a resultantes desse processo são as chamadas Grandes Navegações,
que é o que mais comumente nos chega através dos livros didáticos,
ainda que sem o devido contexto.
Portugal ou o Reino Portucalense consegue a expulsão dos árabes do
seu território bem antes dos espanhóis, em 1249 na batalha da
conquista da cidade de Faro, no Algarve por D. Henrique III; essa
unificação e centralização do poder político propiciaram as
condições necessárias para que o país, agora, uma monarquia
centralizada, pudesse desenvolver seus interesses como nação
(MARTINS, p. 19). Mas a grande questão é que Portugal, após mais
de meio século de ocupação e convívio com a cultura árabe, era uma
nação profundamente transformada tanto culturalmente como
socialmente, ainda que isso tenha sido pouco explorado pela
historiografia brasileira, talvez por pertencer a um contexto
português e europeu.
Mas o fato, é que para além da cultura moçárabe, e também por ela,
o português pós-ocupaçŌo possui uma consciência mais “plástica” e
susceptível às miscigenações, o palco desse reflexo foi a colonização
das terras do “Novo Mundo”, onde a influência árabe nŌo é
explicitada, sequer perceptível sem um olhar atento, percebido pelo
sociólogo Gilberto Freyre e pelo historiador e folclorista Câmara
Cascudo, ambos do início do século XX. Daí surgiu toda a saga
portuguesa nas Grandes Navegações, como resultado do conjunto
das transformações das mentalidades do povo português, acrescido
pelo incremento técnico náutico oriental. Isso é explicado por Freyre
quando analisa a guinada da concepção cultural do Brasil colonial
luso-oriental para a influência franco-inglesa após a vinda da família
real para o Rio de Janeiro (SILVA apud OLIVEIRA, 2013, p. 181).
Nisso a vocação de Portugal para o mar não era simplesmente
natural, quase obrigatória, visto que suas fronteiras eram com a
Espanha, ainda de domínio sarraceno, voltar-se para o mar era
quase um estigma.
As raízes culturais do povo brasileiro
Quando se inicia a colonização portuguesa na América, ainda que
não houvesse objetivamente intensão de civilizar ou colonizar
propriamente dito, mas de assegurar a posse, e se incentivou a
imigração voluntária mediante concessão das Capitanias
Hereditárias, os portugueses iniciaram a colonização via empresa
açucareira. A influência dos mouros, como os portugueses
302
costumavam rotular o árabe, veio impregnada na mentalidade e nos
costumes, ainda que despercebidos, como ilustra Câmara Cascudo
em Vaqueiros e Cantadores:
“Uma tradiçŌo árabe, anterior a Maomé, determinava ao
peregrino voltando de Meca não entrar em casa pela porta
por onde saíra. Faziam uma abertura na traseira das
residências, respeitando o preceito. O profeta condenava o
costume com reminiscência idólatra: “A piedade nŌo
consiste em que entreis em vossas casas por uma abertura
feita atrás delas!”. Ano 624 de Cristo. NŌo desapareceu no
mundo islâmico e foi plantada na Península Ibérica
durante o domínio mouro. Resiste no Brasil, com as
naturais adaptações.” (CASCUDO, 2012, p. 150).
No referido livro, Cascudo elenca uma série de gestos ritualísticos
com profunda raiz moura, transpassados inclusive na tradição
católica (CASCUDO, 2012, p. 161):
“O beijo era homenagem de veneraçŌo submissa. A missiva
na altura da cabeça significava a disposição de perder a
vida antes que desobedecesse e não cumprisse, fiel e
completamente, tudo quanto a ordem contivesse. Esses
gestos se tornaram instintivos, maquinais, inevitáveis. Do
Pasquitão, Pérsia, toda a Ásia Menor e África do Norte,
conheceram e acataram a praxe que se transmitiu ao
Império Bizantino. Árabes e mouros levaram-no à
península Ibérica. Veio ter, oficialmente, ao Brasil. É de
fácil encontro nas coleções das Mil e Uma Noites,
repositário de usos e costumes do Mundo islâmico desde o
século X. Da primeira Visitação do Santo Ofício às partes
do Brasil, julho de 1591, apresenta-se a provisão do Cardeal
Inquisidor-Mor, Arquiduque Alberto, ao Bispo do Brasil,
Dom Antonio Barreiros, e o ditto senhor Bispo leo e despois
de lida a beijou.”
Mas não são os atos solenes ou sacralizados que fazem parte do
habitus do brasileiro e que suas raízes estão no oriente apenas, até
cuspir no chão com conotação nojo ou repugnância pode ter raízes
distantes, como ainda ressalta Câmara:
303
“No Brasil, o gesto perdeu a intençŌo esconjurativa ainda
viva em Portugal, Espanha, Itália. Com o escarro
eliminava-se o malefício atuante através da visão. Gregos e
Romanos cuspiam afastando o encantamento do fascínio.
Constituía um amuleto mímico. O Doutor Braz Luís de
Abreu ensinava evitar o Mau-Olhado dizendo-se uma frase
evocativa, “Benza-o Deus! Agouro, para o teu coro!” etc.,
“ou também cuspir logo fora; porque tinham para si, que o
cuspo tinha a virtude para impedir toda a fascinação ou
Natural, ou Mágica”. Árabes, Mouros, Turcos cospem
valendo escárnio ou repulsa pela aproximação de algum
cristão, fanatismo presentemente atenuado. O brasileiro do
povo cospe à vista de asquerosidade ou ouvindo referências
repugnantes.” (CASCUDO, 2012, p. 66).
Há ainda inúmeras outras referências gestuais que comprovam as
ascendências árabes trazidas pelos lusitanos na referida obra.
Evidentemente o Brasil é um “caldeirŌo” que abarca uma infinidade
de culturas desde sua gênese, se no início os milhões de indígenas de
inúmeras etnias já povoavam o território do que veio a ser chamado
de Brasil; acrescentou-se a esses elementos, o português, já fruto de
uma miscigenação com árabes, com costumes arraigados e diluídos
na mentalidade cuja resultante é o intrépido navegador das Grandes
Navegações, e ainda os africanos que vieram a partir da segunda
metade do século XVI nos navios negreiros, para substituir a mão de
obra escrava indígena, este, alvo da catequese, portanto protegidos
pelos jesuítas, aliás, é essa ordem religiosa quem solicitou a Tomé de
Souza, primeiro governador geral, a importação de negros africanos
em substituição ao índio, aí começou o martírio dos africanos, no
maior êxodo forçado de todos os tempos. Mas é importante não usar
dos tradicionais anacronismos ou juízos de valor para atribuir culpa
a quem quer que seja, originado de fatos tão longínquos, até porque
seria muito simplismo atribuir aos clérigos a culpa por todo o
processo que já se encaminhava.
Por causa desse “caldeirŌo cultural” que é o Brasil, as culturas se
misturaram e se ressignificaram, tornando-se uma mescla de ambas,
que com o passar do tempo perde-se a especificações da origem,
portanto, sem o “fio da meada”; daí a dificuldade de identidade do
indivíduo com uma cultura específica. Outra problemática, são as
ondas de novas influências, como a já citada anteriormente e
304
estudada por Gilberto Freyre. Quando a família real portuguesa veio
para cá fugindo das tropas de Napoleão, o Brasil era uma colônia
dilapidatória, sem nenhum conforto ou requinte para uma
monarquia, ainda mais europeia, cujos hábitos climáticos eram
outros. No tocante às instituições brasileiras, tudo era muito arcaico
e precisou se construir tudo em função da corte portuguesa, que não
veio sozinha. À época, Portugal vivia uma profunda dependência
financeira dos ingleses, iniciados ainda na falência da corte pelos
tantos resgates de fidalgos pagos após o desastre de Al-Cácer-Quibir,
pela profunda influência da Igreja que condenava o lucro e pela
ingerência de tantos reis sustentando uma nobreza mórbida e
indolente, e por aí vai. Os franceses ditaram as tendências do que
seria valioso, luxuoso e requintado, às outras nações cabiam segui-la
e por sobre si o rótulo de “civilizada”. Portanto Portugal abandonara
suas raízes medievais e mourescas, e se “contaminava” com a
influência anglo-francesa (SILVA apud OLIVEIRA, 2013), e para
acomodar os milhares de súditos que o seguiu desde Lisboa,
transformaram o Rio de Janeiro aos moldes principalmente
franceses para reproduzir os ares da cidade, do luxo e da moda
Europeia.
Os rincões mais distantes dos conturbados, “contaminados” e
efervescestes centos urbanos foram os locais onde a memória e as
reminiscências mais remotas se preservaram. A partir do
desenvolvimento do café no eixo sul-sudeste e da decadência do
açúcar do Nordeste, o foco econômico e posteriormente industrial se
voltou inteiramente para essa região. As regiões mais distantes, com
populações humildes, em geral iletradas, é que guardaram a herança
luso-mouresca por longos séculos e sem nenhuma consciência da
riqueza guardada na ignorância. Uma das manifestações mais
marcantes no sertão nordestino, principalmente no interior de
Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe, o aboio do vaqueiro que
tange o gado com seu canto; que sem palavras expressa uma
melancolia atonal excetuada da estrutura físico-musical conhecida
legada pelos gregos, que nem ele mesmo é consciente das origens
mourescas do seu canto; do canto sem contracanto, do som agudo
rasgado e sem métrica rígida e simétrica, num lamurioso canto
micro tonal, que se bem comparado, se assemelham aos fados
portugueses, também de origem árabe e que, nem um nem outro é
“aprendido”, faz parte de um ethos, geralmente desconhecido ou
pouco lembrado pelos mais jovens e que muitos estudiosos
esqueceram.
305
Há ainda inúmeras questões sem resposta, ou ao menos de difícil
resolução, uma delas se trata de questão chave na nossa história: a
escravidão no Brasil, trauma coletivo dos mais cruéis na história da
humanidade, e que até hoje não é uma questão resolvida na
sociedade brasileira, quiçá no mundo, foi aprendida pelos
portugueses no Périplo Africano, ou já havia um antecedente na
miscigenação cultural com mouros e europeus na Península Ibérica?
Curiosamente Câmara Cascudo afirma:
“Qualquer livro de viagens na África dos séculos XVIII e
XIX regista a obrigação do negro prosternar-se aos pés do
seu Rei e não fitar para os olhos majestáticos. Certamente a
influência árabe reforçara, se não determinara, a fórmula
humilde de deitar-se por terra para saudar o Soberano.”
(CASCUDO, 2012, p. 328).
Outra: os Estados português e espanhol, tão católicos que, de difícil
separação Estado/Igreja, seria uma resultante dos esforços em negar
a influência árabe, que corria no sangue, principalmente português?
Ou ainda: Se se argumenta ainda hoje, que Carlos Martel impediu o
avanço das conquistas muçulmanas na Europa, e que esse
continente só não se prostra a Allah cinco vezes ao dia, graças a sua
vitória em Poitiers, como os ibéricos passaram quase oito séculos
sob sua tutela e posteriormente se tornaram os países mais católicos
da Europa? Várias questões ainda poderiam ser elencadas, seja qual
for a vertente, seria fruto de muito estudo e de enormes
controvérsias, seja como for, eis um campo de estudo pouco
explorado e que merece aprofundamentos, pois ainda existem
inúmeras lacunas sobre temas tão familiares aos brasileiros, mas
que permanecem na penumbra.
Referências
Luciano é professor de história do ensino médio da rede pública e
mestrando do Profhistoria da UFS.
Mail: luciano.sferreira@hotmail.com
ALMEIDA, Antônio Augusto Marques de. Saberes e Práticas de
Ciência no Portugal dos Descobrimentos. In: TENGARRINHA, José
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307
308
A ÉTICA ECONÔMICA BUDISTA E O ESPÍRITO
CAPITALISTA JAPONÊS
Luís Henrique Palácio da Silva
Introdução
O Japão - país esse que será o objeto de nossas colocações no
presente projeto de pesquisa - graças a Restauração Meiji do século
XIX, passou de um simples complexo de ilhas feudais a um país que
rivalizava com grandes potências militares como a China e a Rússia.
Para entendermos esse potencial dos japoneses de assimilação, será
necessário uma compreensão e explicação histórica que remonta à
sua formação ético-cultural a partir das influências budistas.
Em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2006)
o sociólogo alemão Max Weber analisa a religião como uma
poderosa orientadora da vida diária e das práticas econômicas dos
indivíduos em sociedade, onde Capitalismo e religião se interligam.
Weber encontra, em seu livro, uma explicação histórica para o
triunfo do Capitalismo: origina-se no protestantismo e seu ascetismo
laico.
Nosso objetivo com essa pesquisa – baseada na metodologia
weberiana – foi analisar a relação entre a religião budista e a
prosperidade econômica do Japão, especialmente em um monge da
seita budista Zen do século XVI - Suzuki Shôsan. Iremos buscar
aspectos no budismo japonês que, segundo Weber em sua obra Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo (2006), estão contidos no
Protestantismo e presentes para o sucesso do Capitalismo: A
racionalidade (rentabilidade, lucro, vida regrada), o laicismo
(desvalorização de todos os meios de salvação, ascetismo laico) e o
secularismo (trabalho no mundo profano, predestinação).
A partir de uma profunda análise bibliográfica, embasamos a nossa
pesquisa. Uma pesquisa bibliográfica (Gil, 2008) é quando esta é
desenvolvida com base em material já elaborado, constituído
principalmente de livros e artigos científicos – dos quais partiremos.
Neste estudo de caso, levantamos algumas questões e análises sobre
como uma religião pode influenciar o comportamento econômico de
uma sociedade, realizando um estudo como uma pesquisa
exploratória (Gil, 2008).
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Contexto histórico do Japão e o Budismo
O Budismo japonês está associado a uma grande divisão do Budismo
continental chamada Mahayana. (Frédéric, 2008). Mahayana difere
da outra divisão budista - o Hinayana - sobre os termos da salvação
dos ciclos de renascimentos e morte. No Budismo Mahayana se
prega que todos os humanos podem salvar a si mesmo apenas
ajudando outras pessoas sem necessitar de ser monge ou viver uma
vida ascética. (Akira, 1990). Ambas denominam de veículo os
ensinamentos de Budha. Mesmo com tal adesão, o budismo japonês
difere muito das seitas budistas do continente asiático pois, quando
atinge o território japonês, um ambiente completamente diferente
da sua matriz indiana, o budismo se funde com os deuses e
elementos autóctones, reavivando e os conservando. (Frédéric,
2008).
O Budismo chega ao Japão, oficialmente, no século VI d.C. Um rei
de um dos reinos coreanos (Kudara, ou Paekche) envia a corte dos
Yamatos vários livros budistas, sutras em chinês e uma imagem de
Buda em bronze. Quase que de imediato, toda corte se converte a
nova religião. Imitando a corte, vários clãs japoneses se convertem.
(Frédéric, 2008). Entre os anos 593 até 622, reina o famoso príncipe
Shotoku que reforma a máquina governamental aos moldes da
administração chinesa e adota o Budismo como religião oficial
(Yamashiro, 1985).
Laicização e secularização da sociedade japonesa:
vida e obra de Suzuki Shôsan
Desde o século XIII, no início dos Shogunatos samurais, já vinha
ocorrendo um clima de secularização na sociedade nipônica e que se
acentua com a Guerra Civil, no século XV e XVI. Antes disso, a
religião - no caso o budismo e o shintoísmo - ditavam os valores e
ideias das pessoas. Grandes correntes do Budismo japonês, o Zen e o
Amidismo,
contemplativo
e
devocional
respectivamente,
incentivavam a vida laica e pregavam que esta era tão importante
quanto os mosteiros. Na prática, muitos monges saíram dos
mosteiros para auxiliar governantes como conselheiros. (Gonçalves,
2007, p.49-50).
Suzuki Shôsan nasceu em 1579, durante o processo de unificação do
Japão por Oda Nobunaga e com os portos japoneses abertos ao
mundo. Cresceu e foi educado para ser samurai, vida essa que levou
por 40 anos ao servir o clã Tokugawa. Em 1648, se muda para Edo,
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atual Tokyo, e se mantém ali até 1655, quando morre. (Gonçalves,
2007. p. 52-55).
A doutrina de Shôsan é eclética e dialoga com várias seitas do
budismo como as mais populares: a seita Zen que pregava um
budismo contemplativo e monástico, desprezando o budismo
devocional pois argumentava que esta vertente seria um caminho
mais fácil para se ter uma vida ligada aos prazeres; e o budismo
Amidista que pregava que a salvação poderia vir somente da fé e, por
consequência, os monastérios e a contemplação seriam práticas
inúteis. Ao invés de ter uma visão de mundo como verdadeiro e
negar as outras visões, como as seitas citadas comumente faziam,
Shôsan foge desse sectarismo pregando o Zen aos guerreiros e
nobres e, ao mesmo tempo, o Amidismo aos camponeses. Ou seja,
utilizava ambas as seitas em suas pregações, sem distinções. Além
disso, sua meditação é particular e diferente das outras tradições
budistas de sua época. Diferentemente das outras seitas, Shôsan não
se concentra nos Patriarcas das escolas budistas, mas sim no própria
Sidarta Gautama. (Gonçalves, 2007, p. 58-60). Outro grande avanço
de Shôsan é sua relação do mundo laico com a salvação. Outros
autores budistas anteriores a ele, oriundos da laicização da
sociedade japonesa desde o século XIII, haviam somente
demonstrado que não havia contradição da vida laica com a vida
religiosa. (Gonçalves, 2007, p. 85)
Contudo, isso não é novo no Budismo, não pelo menos no Budismo
indiano. Sidarta Gautama, o Buda, mesmo negando o trabalho
produtivo no mundo a Sanga, comunidade budista, ele compara seu
trabalho ascético ao trabalho mundano:
“Disse o brâmane: -Vós afirmais que sois cultivador, mas
jamais vos vi cultivar a terra. Explicai de que modo vós
cultivais, para que eu possa entender. Respondeu o Buda: A fé é a semente, o ascetismo é a chuva, a Sabedoria é a
minha enxada e meu arado. A autocrítica é a haste do
arado, a vontade a corda que o amarra, o pensamento é a
ponta do arado e a lâmina da enxada. Controlo o corpo e os
pensamentos e sou moderado nas refeições. Com a verdade
eu corto as plantas daninhas. Com a brandura eu solto os
bois do arado. O esforço é o boi atrelado ao arado, que me
conduz diretamente a um lugar seguro e tranquilo, sem
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jamais retroceder. Quem cultiva desta maneira se liberta de
todos os sofrimentos.” (Gonçalves, 2007, p. 88).
Como vemos, Buda não negava a vida laica como algo que impedisse
o desenvolvimento religioso. Shôsan, seguindo essa linha de
pensamento, vai adiante fazendo da vida laica um caminho
espiritual em si. Pregando ao guerreiro, ao artesão, o agricultor e ao
comerciante, Shôsan diz que as atividades desses indivíduos são
uma verdadeira ascese que conduz à realização espiritual e que eles
não precisariam se engajar em exercícios espirituais. A santificação
do trabalho é o principal marco do pensamento de Suzuki Shôsan:
"[...]o trabalho agrícola já é a própria Prática Búdica. [...]
todas as atividades profissionais são a própria Prática
Búdica [...] os homens deverão se realizar como Budas
através de suas próprias atividades pelo mundo."
(Gonçalves, 2007, p.85).
Outro aspecto referente a vida laica e a realização religiosa em Buda
e no budismo indiano, foi que o trabalho sempre foi visto como um
complemento da vida ascética e de uma maneira positiva. A própria
tradição Mahayana, ao qual o Budismo japonês faz parte, incentiva o
trabalho no mundo e o compara à realização búdica. O budismo
indiano, encorajava as atividades econômicas, principalmente as de
caráter mercantil. Aos leigos era permitido se aplicarem no trabalho
para acumularem bens (Gonçalves, 2007, p. 89-90):
“Ó monges, há comerciantes que nŌo se esforçam nem pela
manhã, nem pelo meio dia, nem à tarde. Aqueles que assim
fazem não obterão novos bens, nem multiplicarão os que já
possuem…Há comerciantes que se esforçam pela manhŌ,
pelo meio-dia e pela tarde. Aqueles que assim fazem
obterão novos bens e multiplicarão os que já possuem.
(Gonçalves,2007, p. 89). ”
Shôsan, como já dito, ultrapassando a própria fala de Buda que o
trabalho é um complemento para a vida ascética, diz que o trabalho
é a própria ascese.
“A lei búdica e a lei profana sŌo uma só. Buda disse que
aquele que mergulhar no mundo profano e domina-lo
plenamente realizará a Lei de Buda com total perfeição.
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Tanto a Lei de Buda como a profana consistem apenas em
retificar a vida, praticar a justiça e usar a honestidade.
(Gonçalves, 2007, p. 97).”
Em uma fala ao agricultor, em um dos seus livros (Nônin Nichiyo),
Shôsan incentiva converter o trabalho duro no aqui e agora numa
ascese espiritual:
“É necessário enfrentar a faina penosa no frio e no calor
extremo e, com arados, enxadas e foices, enfrentar nossos
inimigos, o corpo e a mente, onde crescem as ervas
daninhas das paixões. Eles devem ser revolvidos, limpos e
cultivados com a máxima atenção e o máximo de cuidado.
Quando o homem se distrai, as ervas daninhas das paixões
crescem e aumentam. Quando, entregando-se à faina
penosa, o homem com ela adestra seu corpo e sua mente,
não haverá angústia em seu coração. O agricultor que se
entrega a essa Prática Búdica durante as quatro estações do
ano não tem precisão de outras práticas...a cada golpe de
enxada deverá ele recitar a invocação a Amida. Deverá
integrar-se em cada golpe de foice, sem desviar os
pensamentos. Desta forma, a roça se converterá na Terra
Pura e os cereais, em alimento puro, em um remédio que
eliminará todas as paixões daquele que o comer.
(Gonçalves,2007, p. 97-98).”
Ao contrário da sociedade de sua época, gerida pelos militares e que
veem o trabalho como algo a ser desprezado e classificava algumas
profissões como vis, Shôsan mostra a importância de todos eles e
critica tal posicionamento social:
“Existem também os benefícios que recebemos dos seres
viventes: benefícios recebidos dos agricultores, dos
artesãos, dos alfaiates, dos tecelões e dos comerciantes.
Devemos saber que todas as atividades se beneficiaram,
auxiliando-se mutuamente e por isso não devemos
estabelecer discriminações entre as pessoas. Ao tratar com
o amo, devemos compreender o coração do amo e tomar
consciência da imperfeição de nossos atos. Ao tratar com as
pessoas de condição inferior devemos compreender seu
coração e perceber o quanto elas sofrem. Lembremo-nos
que dia e noite elas enfrentam o calor extremo e frio
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rigoroso, sem interrupção e sem descanso para suas mentes
ou para seus corpos. Os camponeses dia e noite penam
mental e fisicamente com sua faina, produzindo cereais
para alimentar os habitantes do país. Dizem que cem mãos
são necessárias para produzir uma pequena medida de
arroz. Devemos ter em mente todo esse sofrimento. Além
disso, com seu trabalho uma pessoa alimenta numerosos
dependentes. Mal consegue o trabalhador garantir sua
sobrevivência, o alimento é pouco e a preocupação é
intensa. [...] (Gonçalves, 2007 p. 98-99).”
O discípulo de Shôsan, Echû (1628-?), ao escrever a biografia do
mestre, revela seu verdadeiro objetivo:
“A ascese está nas diferentes atividades profissionais do
mundo profano. Shôsan, ao esclarecer esse ponto, tinha em
vista o benefício geral de todo o mundo profano. Mostrou
ele que a essência do Mahayana está na doutrina da
inexistência de obstruções separando a Lei de Buda da Lei
do mundo profano e que o Ensinamento do Pequeno
Veículo (Hinayana) que manda abandonar o mundo
profano não passa de um ensinamento provisório. Esse
ponto foi minuciosamente esclarecido nos textos sobre os
preceitos diários para os diferentes profissionais.
Particularmente em nosso país considera-se Verdadeira Lei
tudo o que auxilia o desenvolvimento da bravura militar.
Shôsan declarou que os ensinamentos que levam ao
enfraquecimento da coragem guerreira não pertencem à
Verdadeira Doutrina. [...] (Gonçalves,2007 p. 99-100). ”
Com suas críticas, Shôsan não somente defende os trabalhadores
braçais como também rebate a crítica e rebaixamento social em que
estavam os comerciantes. Estes ocupavam o mais baixo degrau da
sociedade por causa da influência confucionista do Japão sob os
Tokugawas. A terra e não o trabalho era vista como fonte de riqueza.
Contudo, Shôsan os rebate:
“Aquele que se ocupa do comércio deve em primeiro lugar
se exercitar no sentido de desenvolver a preocupação de
aumentar seus lucros. Essa preocupação nada mais é senão
entregar incondicionalmente sua vida ao Caminho Celeste e
estudar com afinco o caminho da honestidade. O homem
314
honesto é beneficiado profundamente pelos Devas,
consegue a proteção dos Budas e dos Deuses, afasta as
calamidades e, de maneira espontânea e natural, aumenta
sua felicidade. É amado e respeitado pelas pessoas e, de
uma maneira profunda, todas as coisas se realizam
conforme suas intenções. (Gonçalves, 2007, p. 110-111).”
Para Shôsan, todo lucro é licito desde que alcançado honestamente.
Para Shôsan, a essência da desonestidade está no egoísmo. Assim,
no comércio, a honestidade gera felicidade e prosperidade, enquanto
a desonestidade atrai infortúnio e desastre. (Gonçalves,2007, p.
112):
“Ser da nobreza ou da plebe, superior ou inferior, rico ou
pobre, ter uma vida longa ou breve, são coisas
condicionadas pelas vidas passadas. Se de maneira egoísta
almejamos conseguir honrarias e riquezas, não obteremos
nenhum resultado. Em suma, aumentará a influência das
más ações que nos ligará aos planos do mal, estaremos em
oposição ao Caminho Celeste e certamente iremos receber a
devida sanção. (Gonçalves, 2007, p. 112-113).”
Também há em seu pensamento um certo determinismo: o homem
tem sua posição social e profissão como parte da ordem cósmica prédeterminada e tendo de cumprir suas tarefas:
“O Buda Uno do Real e da IluminaçŌo Original se subdivide
em centenas de milhões de emanações para beneficiar o
mundo...Existem assim, inumeráveis atividades diferentes
que beneficiam o mundo, mas todas elas são manifestações
da Virtude do Buda Uno. (Gonçalves, 2007, p. 115).”
Por fim, após toda essa explanação, podemos concluir que o
pensamento de Shôsan é favorável ao desenvolvimento do
Capitalismo pelos motivos de valorizar o lucro e oferecer uma
motivação religiosa para busca do mesmo e desencorajar o egoísmo;
além de criar um clima favorável ao revestimento do lucro em novos
empreendimentos mercantis. (Gonçalves, 2007, p. 127).
Portanto, tentamos verificar os sustentáculos históricos e sociais
para o sucesso econômico japonês que não somente se verifica pelos
intensos investimentos em educação e infraestrutura, mas também
315
na mentalidade progressista e aberta para a acumulação de capital
respaldada na ideologia religiosa. Suzuki Shôsan é a síntese de um
contexto espiritual e material, onde encontramos a semente que será
plantada e desabrochada em meados do século XIX, quando o país
irá se abrir ao exterior e adotar o Capitalismo com muita facilidade.
Conclusão
Acreditamos haver demonstrado que o sucesso e o protagonismo
japonês em sua rápida adesão ao capitalismo, ao entrar no quadro
de nação imperialista no século XIX, quando se desvestia de
centenas de anos de Feudalismo, está ligado à sua tradição milenar
budista. Logo, o Budismo japonês e suas seitas apresentaram uma
nova forma complementar de libertação e de vida espiritual: o
trabalho. A síntese desse movimento espiritual laico se deu com o
monge Suzuki Shôsan, que colocou o trabalho no mesmo nível que a
vida ascética. Shôsan argumentava que o trabalhador e o monge
realizavam o serviço búdico de devoção em diferentes áreas.
Referências
Luís Henrique Palácio da Silva é graduado em História pela
Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) e Pós-Graduando na
mesma universidade no curso de História, Sociedade e Cultura.
[Contato]: luis.henrique.palacio.22@gmail.com
AKIRA, H. A History of Indian Buddhism from Sakyamuni
to Early Mahayana. Havaí: Asian Sutudies at Hawaii, n° 36.
University of Hawaii Press, 1990. Disponível em:
<http://www.ahandfulofleaves.org/documents/A%20History%20of
%20Indian%20Buddhism_From%20Sakyamuni%20to%20Early%2
0Mahayana_Akira.pdf> Acesso em: 03/03/2016.
FRÉDÉRIC. L. O Japão: dicionário e civilização. São Paulo:
Globo, 2008.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2008.
Gonçalves. R. M. A ética budista e o espírito econômico do
Japão. São Paulo: Elevação, 2007.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2006.
Yamashiro. J. História da cultura japonesa. São Paulo: IBRASA,
1985.
316
O TIANZHU SHIYI, OU O VERDADEIRO
SIGNIFICADO DO SENHOR DO CÉU:
COMENTÁRIOS SOBRE SUA NATUREZA E
IMPACTO
Luiz Felipe Urbieta Rego
Livro lançado na China em 1603, o Tianzhu Shiyi foi um marco que
cristalizou o modelo de evangelização jesuíta no Sudeste Asiático.
Falar desta obra é falar da trajetória da Companhia de Jesus na Ásia.
Seu autor Matteo Ricci, foi um dos primeiros cristãos do século XVI
a ter permissão para pregar o Cristianismo no Império Ming. E
embora a personalidade e trajetória individual de Ricci sejam
centrais para explicar as particularidades da missão chinesa, é
impossível falar de um jesuíta sem se remeter ao quadro maior e a
natureza da organização a qual ele pertence.
Fundada em 1534 e reconhecida em 1540 a Companhia de Jesus
desde sua fundação fez de seu objetivo central a missionação
estrangeira. Entretanto, ao contrário das diversas ordens que a
precederam a ênfase no estudo das letras, erudição e dos nascentes
novos conhecimentos desenvolvidos em luz das redescoberta dos
clássicos da Antiguidade fez com seus membros fossem um elemento
novo dentro do contexto religioso europeu marcado pelos debates da
Reforma Protestante (1517-1648).
Em 1552 Francisco Xavier lançou seu ultimo fôlego na pequena ilha
de Shengchuan no litoral da costa chinesa. Com isso ele insuflou
toda uma geração de missionários europeus a se aventurar no
Império do Meio. Em pouco mais de dois anos (1549-1550) Xavier
conseguira estabelecer uma rica comunidade cristã no Japão,
composta tanto dos mais humildes camponeses aos mais poderosos
senhores feudais. E mesmo com as limitações lingüísticas Xavier
rapidamente percebeu que todo referencial para debate religioso dos
japoneses tinha como base a autoridade chinesa. Foi da China que
viera o Budismo. E embora ele tenha adquirido características locais
próprias, como o zen budismo, os textos sagrados mais antigos eram
todos de origem chinesa. Para garantir o sucesso da missão católica
no Sudeste Asiático era então vital estabelecer uma forte base na
China. E com a fundação do colégio de São Paulo em Macau em 1594
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ficou estabelecida uma base fixa para planejar a invasão evangélica
ao Império da Dinastia Ming.
A freqüente comparação da Companhia de Jesus como uma
companhia militar explica-se devido a origem de seu fundador
Inácio de Loyola (1491-1556) .Ele foi um fidalgo espanhol que passou
por um experiência de profunda revelação religiosa enquanto se
recuperava de um ferimento de batalha. Após um breve retiro na
cidade de Manresa ele abdicou das armas e ambições mundanas
para fundar uma ordem religiosa que dispusesse a espalhar o
Evangelho onde quer que o Papa ordenasse.
A estrutura da Companhia de Jesus teve uma clara inspiração
militar em vista na ênfase dada por Loyola e os outros membros
fundadores na disciplina e obediência hierárquica. Entretanto,
devido a própria natureza itinerante, a manutenção de práticas por
demais rígidas condenaria ao fracasso quaisquer esforços
evangélicos em espaços que estivessem fora da esfera de proteção
imediata da Coroa Lusa. Portanto, quer estivessem cercados de
nativos brasileiros ou mandarins os jesuítas deviam recorrer a sua
própria inventividade para superar quaisquer obstáculos que
encontrassem. Uma forma de compensar a adversidade externa era a
prática da recitação silenciosa dos Exercícios Espirituais, obra
escrita por Loyola entre 1522 e 1524 como um manual de meditação
para interiorização da fé.
A escrita de cartas era outro elemento central da identidade jesuíta.
Elas seguiam um código especifico de composição, orientado nas
Constituições da ordem, no qual deveria conter tanto as informações
mais acuradas possíveis da situação pelo que passavam os jesuítas,
como também uma versão "edificante", escrita tendo em mente
divulgar os sucessos e méritos da ordem na Europa. A grande
maioria das correspondências era vertida para o português, embora
o latim fosse a língua corrente do meio erudito.
É por isso que a versão ocidental do Tianzhu Shiyi foi encontrada
em latim e existam diversas variações entre a versão européia e a
original chinesa e mesmo diferenças entre versões chinesas
manuscritas e impressas. Esse tratado reflete também a
especificidade dos jesuítas em sua relação com as letras e
correspondências. Pensando no horizonte das grandes navegações e
as constantes intrigas entre as coroas européias pela controle das
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lucrativas rotas orientais todo o cuidado era pouco e quaisquer
deslize ou interpretação errônea dos textos jesuítas poderia colocar
em risco toda a missão.
Mesmo com esses cuidados quando a obra chegou ao Ocidente, ela
despertou grande polêmica. Vale lembrar que o monopólio da Coroa
Portuguesa por volta de 1603 já mostrava sinais de desgaste e
Espanha, França e Holanda já buscavam se estabelecer no Sudeste
Asiático. E embora teoricamente a lealdade da Companhia de Jesus
estivesse sempre com Roma, a sua associação com a Coroa
Portuguesa e a sua importância estratégica no tratamento
diplomático com as nações estrangeiras orientais tornavam todas as
suas ações e publicações alvos de profundo escrutínio dos poderes
europeus, eclesiásticos ou não.
Apesar das crescentes tensões na Europa a missão oriental ainda
seguia sob a proteção do Padroado Português e qualquer jesuíta que
fosse para a Ásia deveria se apresentar ao Rei de Portugal e
embarcar em uma nau portuguesa que seguia a Rota das Índias. A
missão estava então sujeita ao fluxo das rotas comerciais, mas
também as orientações e experiências dos predecessores da
Companhia. Antes de morrer Francisco Xavier escreveu uma carta
ao Rei de Portugal pedindo não apenas o envio de mais
missionários, mas de membros dotados de uma profunda formação
intelectual. Eis uma das razões da centralidade de Ricci na missão,
pois ele fora um dos membros da ordem que se destacava no estudo
das ciências matemáticas e na astronomia, tendo privilegio de ter
lições com Kepler e Galileu após seu noviciado em Roma.
Ainda assim ele não estava sozinho e antes de chegar a Macau ele
passou um período em Goa lecionando retórica e aprendendo
teologia. Enquanto isso seu colega Michele Ruggieri (1543-1607) já
se encontrava em Macau e dedicava-se ao aprendizado da língua
chinesa segundo a orientação do Superior da Missão no Oriente
Alessandro Valignano (1539-1606).
Ruggieri desempenhou um papel tão importante quanto Ricci, pois
foram seus escritos inicias em chinês que serviram de base para
Ricci produzir os textos que seriam aclamados pela elite chinesa. Foi
Ruggieri que escrevera a primeira versão dos Dez Mandamentos, do
Credo e da Ave Maria em chinês. Ele fora auxiliado pelo padre Pedro
Gómez (1533-1600) que o ajudou a desenvolver um catecismo para
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os chineses. Esse catecismo foi o predecessor do Tianzhu Shiyi e fora
descartado em 1596 em vista da nova compreensão dos jesuítas do
ambiente e da sociedade chinesa.
Instalados na China continental desde 1583 na Província de
Guandong, Ricci e seus colegas puderam experimentar a sociedade
chinesa e suas sutilezas. Ricci se dedicou avidamente aos estudos
dos clássicos confucianos e já em 1593 ele comunicava ao Superior
Geral da Companhia, Claudio Acquaviva (1543-1615) a necessidade
de traduzir os Clássicos Quatro Livros de Confúcio para o latim. O
estudo do Confucionismo foi acompanhado de uma radical mudança
de atitude e imagem dos jesuítas. Antes de 1595 os membros da
Companhia adotavam as vestimentas dos monges budistas e se
apresentavam como membros de uma seita budista do Oeste. Mas ao
perceber o desdém das elites intelectuais para com os budistas Ricci
e seus sucessores passaram a se vestir e se apresentar como eruditos
confucianos.
Saindo de Guandong, a Companhia de Jesus buscou estabelecer
bases no interior da China, tendo como objetivo final a capital
Beijing. Nesse processo Ricci passou pelas províncias de Nanchang e
Nanjing onde construiu uma reputação como erudito de memória
prodigiosa. Ele impressionou a elite chinesa com seus
conhecimentos matemáticos e astronômicos, mas foi apenas em
1595 com a publicação de um pequeno tratado sobre o tema da
amizade que ele demonstrou o seu domínio da escrita chinesa
clássica. O Jiaoyou lun, ou Tratado da Amizade, foi uma compilação
de cerca de cem citações de pensadores da Antiguidade adaptados
para o estilo clássico chinês.
O sucesso dessa obra fez com que Ricci procurasse enfatizar as
semelhanças entre os pensamentos ocidental e oriental como base
para o proselitismo religioso. Ele também reflete a importância da
sinicização para garantir o sucesso da inserção dos jesuítas no meio
intelectual. Foi nessa obra que Ricci usa seu nome chinês, Li Madou,
e se apresenta como um erudito segundo estilo confuciano clássico.
Ricci rapidamente percebeu que o estudo e domínio dos clássicos
confucianos era um elemento vital para compreender a complexa
burocracia estatal e se inserir no meio intelectual chinês. Se ele
conseguisse estabelecer uma ligação entre os textos clássicos
confucianos e a presença histórica de um culto chinês ao Deus
hebraico na antiguidade, ele estabeleceria uma base sólida para
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relações e debates com os chineses, que eram extremamente avessos
a elementos estrangeiro não sinicizados.
A principal crítica ocidental em relação à obra era sua proposta de
explicar que uma antiga divindade chinesa, venerada nas Dinastias
Zhou, e a própria referencia ao Céu (Tian) em cultos rituais
poderiam ser considerados como cultos ao Deus dos cristãos e
judeus. Essa interpretação foi resultado dos profundos estudos de
Matteo Ricci sobre os textos confucianos. Confúcio, entretanto,
nunca foi um autor especializado na temática religiosa. Mas sua
dedicação e respeito aos hábitos e costumes das dinastias ancestrais,
tidas como exemplares, o coloca em uma perspectiva de defesa e
resgate dos "bons costumes" e tolerância a qualquer assunto de
natureza espiritual. Entretanto, para Confúcio mundano e
sobrenatural não deveriam se misturar. Por serem de naturezas
intrinsecamente diversas, ao homem deveria apenas se concentrar
no cultivo pessoal para garantir uma existência pacifica para si e
seus semelhantes. Sua preocupação não era o pós-vida, mas garantir
a manutenção de uma sociedade harmônica. E para isso ele defendia
que quaisquer rituais que fossem necessários para manter o
equilíbrio entre o mundo natural e sobrenatural deveriam ser
realizados.
Entretanto, com o advento da expansão do Budismo na China, bem
como do Taoísmo, as gerações de filósofos posteriores a Confúcio
reinterpretaram seu pensamento à luz do Tao e dos ensinamentos de
Sidarta Gautama. A relação entre os mundos espiritual e natural foi
altamente problematizada sendo vista como interligados, reflexivos
e complementares. Em contraste com a percepção ocidental que,
monopolizada pelo Cristianismo, estabeleceu uma visão hierárquica
e dogmática, os orientais nunca se preocuparam em impor um
sistema absoluto de relação com o sagrado.Ricci, por sua vez,em sua
leitura de Confúcio filtrou os seus escritos segundo a influência do
Escolasticismo, ignorando os debates mais recentes dos textos
confucianos. Impressionado com a desenvoltura do seu pensamento,
Ricci o considerou um filósofo "natural" colocando ao lado dos
grandes pensadores da Grécia Antiga. O sucesso de Ricci entre os
chineses se deveu ao fato dele apresentar o Cristianismo como uma
doutrina harmônica e complementar ao Confucionismo. Porém ao
mesmo tempo Ricci procurava eliminar as influências do Taoísmo e
do Budismo
321
O Tianzhu Shiyi inclusive busca emular um diálogo clássico entre ele
(Ricci) e um chinês interessado no Cristianismo. A escolha desse
modelo não foi uma originalidade de Ricci, mas uma retomada da
obra original proposta por Ruggieri.
Exceto pela questão do "nome chinês de Deus", o debate
desenvolvido na obra é de natureza mais filosófica que religiosa.
Embora Ricci ataque com firmeza aspectos da religião budista como
a reencarnação, ele se concentra mais em expor para o chinês, em
seus termos, as bases do pensamento filosófico ocidental clássico,
inclusive citando pensadores romanos como Demócrito.
Não sem motivo os jesuítas contemporâneos tratam esta obra de
Ricci como um "diálogo pré-evangélico". A história de Cristo é
apresentada de forma bastante resumida e o batismo é apenas
mencionado. A idéia do livro é que ele fosse uma ferramenta de
introdução ao Cristianismo voltada para elite letrada chinesa. Cada
um dos seis capítulos deveria ser apresentado e comentado uma vez
em cada dia, ao longo de seis dias seguidos. E ao final desse período,
caso se verificasse um legitimo interesse, seriam apresentados os
pontos mais profundos e complexos da doutrina cristã.Dentre eles
estaria a questão da crucificação de Cristo, algo que não era visto
com bons olhos pela elite chinesa, que associava o sofrimento físico
como uma punição destinada a plebe ignorante.
O Tianzhu Shiyi tido um grande sucesso evangélico pelo fato de ter
sido a sua leitura responsável pela conversão do mandarim Xu
Guanqxi, tido como um dos pilares do Catolicismo na China. Ele
também entrou na história como a causa do evento que veio a ser
conhecido como a Polêmica dos Ritos Chineses. Mesmo com sua
morte em 1605, Ricci havia deixado um rico legado e uma
comunidade florescente de convertidos. Entretanto, a nova geração
de jesuítas entrou em conflito com seus antecessores devido a
mudança geopolítica que veio com a ascensão da França e queda de
Portugal em termos de poder e influência. Diante disso, a questão do
"nome chinês de Deus" foi utilizada como justificativa para
questionar o método acomodativo desenvolvido por Ricci e seus
contemporâneos, sendo atacado principalmente por franciscanos e
ordens religiosas ligadas a França e Espanha. A tolerância para com
o culto aos ancestrais e a Confúcio, tidos para Ricci como práticas de
cunho mais patriótico que religioso, assim como a permissividade do
termo dos temos Tian como sinônimo de Deus foram as concessões
322
que garantiram um espaço para evangelizar no Império do Meio. E
após passar pelo crivo de dois Papas que se mantiveram neutros, a
questão do nome chinês de Deus foi tratada como uma heresia pela
Propaganda Fide.
Os católicos chineses deveriam destruir seus altares pessoais a
Confúcio e aos seus ancestrais e substituir as doações aos templos
por esmolas aos pobres. Os termos Tianzhu, Shangdi ou Tian
deveriam ser substituídos por Deus. Um enviado papal chegou a ser
preso e morreu de inanição em uma prisão em Macau por tentar
implementar essas bulas papais. O Imperador Wanli promulgou um
édito que expulsava todos os jesuítas que não respeitassem o modelo
traçado pelo eminente Li Madou, ou Matteo Ricci, o primeiro
ocidental a ter permissão de ser enterrado nos arredores da capital
Beijing. A era de ouro do Catolicismo na China chegava ao fim ao
mesmo tempo que os movimentos antijesuítas se espalhavam pela
Europa, em especial Portugal. A Companhia de Jesus foi suprimida
em toda Europa exceto na Rússia dos czares, aonde recebeu proteção
especial. Ela só seria restabelecida em 1814. Quanto à polêmica dos
Ritos Chineses, em 1938 uma bula papal retificou os julgamentos
anteriores, permitindo a manutenção do culto confuciano e do uso
do termo nativo Tianzhu.
O Tianzhu Shiyi se estabelece, portanto como um testamento de seu
tempo e do esforço de inserção por parte da Companhia de Jesus de
um legítimo debate intercultural. Religião e filosofia andam lado a
lado nessa obra singular que buscou apresentar os princípios do
Cristianismo em um diálogo filosófico que aborda questões
profundas como a própria natureza de Deus junto com elementos
mais superficiais e práticos da fé católica, como as razões da prática
do jejum durante a Quaresma.
Referências
Luiz Felipe Urbieta Rego, Mestre em História pela PUC-RIO.
E-mail: pelifzuilraubiet@gmail.com
BUENO, André. Mas, Confúcio era religioso?
http://sinografia.blogspot.com.br/2012/02/mas-confucio-era.html.
Artigo acessado em 03/09/2017.
REGO, Luiz Felipe Urbieta. A China dos Jesuítas: o Tratado da
Amizade de Matteo Ricci e sua contribuição para o diálogo
323
cultural entre Oriente e Ocidente. Dissertação de Mestrado.Rio
de Janeiro .PUC-RIO 2012
RICCI, Matteo. On Friendship: one hundred maxims for a
Chinese prince. Translated by Timothy Billings. Columbia
University Press, 2009.
RICCI, Matteo. The True Meaning of the Lord of Heaven.
Instittue of Jesuit Sources. Boston College, 2016.
SPENCE, Jonathan D. O palácio da Memória de Matteo Ricci:
a historia de uma viagem: da Europa da Contra-Reforma a
China da dinastia Ming. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
TRIGAULT, Nicolas. China in the Sixteenth Century: The
Journals of Mathew Ricci: 1583-1610.Translated from Latin by
Louis J. Gallagher. Random House: New York, 1953.
324
O ORIENTE MÉDIO ATRAVÉS DO CINEMA:
DIÁLOGOS A PARTIR DAS REPRESENTAÇÕES
PRODUZIDAS NOS ESTADOS UNIDOS
Maicon Roberto Poli de Aguiar
O debate acerca do outro é uma das questões que mais urge em
nosso cotidiano, principalmente no contexto de crise econômica,
política, social e cultural em que nosso país e o mundo estão
inseridos. É nesse momento que alguns grupos com agendas
próprias, compartilhando de interesses particulares acima do bem
coletivo, discursam com palavras de ordem contra inimigos por eles
apontados, generalizando culturas e povos, incentivando a xenofobia
e praticando atos de violência. O outro é visto como o culpado pelos
problemas e para tanto deve ser extirpado, humilhado, ter sua
dignidade desrespeitada, a fim de atender os princípios morais de
um determinado grupo, o qual se auto intitula defensor do que é o
certo e combatente do que foge de sua linha de pensamento ou
tradição.
Saber sobre o outro exige tempo, pesquisa, diálogo e análise.
Compreender o outro é um ato de investigação que não pode ser
respondida por um artigo de revista, uma notícia de jornal, um
documentário de televisão ou um comentário compartilhado numa
rede social. É necessário analisar os diversos discursos produzidos,
nas mais diversas fontes de informação, pelos próprios autores ou
por aqueles que transformaram os mesmos em objeto de estudo. É
fundamental identificar seus lugares de fala, com todos os seus
interesses e concepções. E todo esse processo leva tempo, que
muitas vezes não é permitido em sua totalidade, dada a forma como
muitos, em especial os (as) estudantes, lidam com o mesmo
atualmente. Mais do que nunca, a
“realidade de hoje exige cada vez mais que os sujeitos saibam lidar
com uma imensa gama de informações que invadem diariamente
sua vida cotidiana, de forma desconhecida para nossas gerações
precedentes. Lidar com o impacto desse fluxo acelerado de
informações e, principalmente, dar-lhes um significado, ou seja,
interpretá-las, integrando-as em sua visão de mundo, é uma tarefa
inevitável dos sujeitos modernos”. [GUARESCHI, 2006, p.29-30]
325
O discurso sobre o outro deve ser compreendido dentro do seu
contexto, visualizando-se o que se apresenta de dentro para fora das
culturas em questão, mas principalmente, nos interesses de
representação do outro feito por agentes externos. Quando lidamos
com uma região como o Oriente Médio, o primeiro embate se
configura na delimitação desse espaço. O mapa abaixo apresenta as
principais versões acerca dos países que se inserem na região. Essa
diferença não foi construída ao acaso, ela consiste numa seleção feita
a partir de critérios estabelecidos não apenas de forma geográfica,
como também política e economicamente. Em torno dos eventos
atrelados à temática „Primavera Árabe‟, relacionar as estruturas
governamentais de alguns países do Oriente Médio em sua divisão
tradicional, com países da parte norte continental da África, atrelada
à uma divisão proposta pelo G8 – grupo que engloba, teoricamente,
as oito maiores economias do mundo – foi uma escolha
desenvolvida e, que para o público sem uma compreensão mais
fundamentada pode ter servido para a mesma classificação de países
em guerra pertinentes à divisão tradicional.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Culin%C3%A1ria_do_Oriente_M%C
3%A9dio#/media/File:GreaterMiddleEast2.png
Ao abordarmos uma outra região, suas culturas, devemos ter em
mente que a relação que as mesmas tiveram entre si e com a nossa
própria cultura ou região trazem vestígios de disputa. O olhar sobre
o outro muitas vezes traz o embate de valores, o desejo de domínio,
que muitas vezes ultrapassa o limite do bom convívio, o que permite
o surgimento da violência, da guerra e da exploração. Segundo
Albuquerque, precisamos entender que a história da
326
“dominaçŌo espacial capitalista é uma história geopolítica,
mas também uma história de colonização ou de catequese
de subjetividades. O capitalismo coloniza não apenas os
espaços externos aos homens, mas coloniza seus corpos,
suas mentes, suas subjetividades. A região não é uma
realidade natural, econômica ou política apenas: ela é uma
construção cultural que se faz a partir e levando em conta
estas outras dimensões do sublunar”. [ALBUQUERQUE,
2008, p.60]
A partir disso, é perceptível que o historiador e/ou o professorhistoriador tem em suas mãos uma tarefa das mais importantes:
trazer essas questões para debate. Há muito tempo compreendemos
que a escola não mais se configura no único espaço de acesso ao
conhecimento. Os meios de comunicação, a rua, a família e as
demais instituições concorrem diretamente com a sala de aula na
elaboração dos saberes que estudantes das mais diversas culturas e
classe sociais internalizam sobre as temáticas que permeiam o seu
cotidiano. Cabe ao professor abordar os conceitos, questionar as
verdades ditas absolutas, desconstruir os discursos que defendam a
supremacia de uma cultura sobre a outra. Com base nos argumentos
de Jörn Rüsen, Maria Lima afirma que,
“o homem só pode viver no mundo relacionando-se com a
natureza, com outros homens e consigo mesmo se não
tomar esse universo como dado puro. É preciso que o ser
humano interprete em função de suas intenções e se sua
ação, espaço dentro do qual se representa algo que difere
da própria realidade. A conjugação de interpretação,
intenção e ação constitui o sentido da história na vida
humana prática e, para o sujeito, ela ganha sentido quando
é importante e significativa para entender e para lidar com
circunstâncias da vida contemporânea”. [2014, p.61]
Desta forma, pensando a importância de trazer a temática ao debate,
para além dos poucos conteúdos específicos, em que a disciplina
histórica aborda a região do Oriente Médio, inserimos a mesma
dentro de um projeto inter e multidisciplinar intitulado „Festival de
Cinema‟, anualmente desenvolvido pela Escola de Ensino Médio
Professora Elza Henriqueta Techentin Pacheco, localizada na cidade
de Blumenau/SC. Neste, uma determinada temática é debatida com
todas as turmas da unidade escolar através de obras
327
cinematográficas selecionadas pelo corpo docente, envolvendo
concomitantemente a realização de diversas atividades como a
elaboração de pesquisas, produções textuais e audiovisuais. Este
ano, a temática central selecionada foi „Diversidades‟, tendo como
uma das sub-temáticas a „Diversidade Cultural no Oriente Médio‟.
A metodologia de desenvolvimento de todo o projeto partir da
realização de um questionário inicial, como parâmetro acerca dos
conhecimentos trazidos pelo corpo discente acerca da região, o qual
diagnosticou que a grande maioria dos (as) estudantes reproduz um
conjunto de discursos construídos a partir de estereótipos veiculados
pelos jornais, revistas, redes sociais, bem como por séries e filmes
produzidos nos Estados Unidos. Essas representações se configuram
num posicionamento, – construído dentro do contexto em que
foram produzidas – colaborando muitas vezes com interesses de
Estado ao atrelar à região a um constante espaço de conflitos
causados pelas disputas econômicas (terras/petróleo) e religiosas
(cristãos x judeus x muçulmanos), invisibilizando outros cotidianos
e culturas. Desta forma, precisamos reconhecer que os
“melhores espectadores do mundo nŌo podem interpretar
senão os programas que podem ver. Sua capacidade
interpretativa é, de outro lado, submissa a limites internos.
Esses limites são os registros culturais disponíveis ou
indisponíveis às diferentes comunidades interpretativas. A
recepção depende de um leque de recursos culturais que o
espectador pode dispor ou nŌo dispor”. [DAYAN, 2009,
p.67]
Com os resultados levantados a partir do questionário aplicado,
construímos um primeiro diálogo acerca da região, debatendo os
mapas e reportagens impressas ou televisionadas pela imprensa
brasileira. A premissa inicial era reconhecer como os discursos
vinculados a essas fontes contribuíram para a perpetuação de uma
visão estereotipada acerca da região, impossibilitando qualquer
concepção que não atrelasse àquelas populações à guerra, à religião
ou ao petróleo. A primeira distinção que enfatizamos para
iniciarmos a desconstrução da falácia da cultura única,
reconhecendo as identidades dos mais diversos grupos inseridos na
região foi de que
328
“nem todos os árabes sŌo muçulmanos, e nem todos os
muçulmanos são árabes. Assim, de um modo geral, são
árabes aqueles que se identificam com a língua, a cultura e
os valores dos árabes, e são muçulmanos aqueles que
seguem a religiŌo do islŌ, fundada por Maomé”.
[GRINBERG, 2000, p.100-101]
A análise das notícias trouxe a percepção que as principais
informações trazidas pelas mesmas relatam a ocorrência de algum
conflito, seja este o ataque suicida de um homem-bomba, a
retaliação governamental ou de um grupo terrorista, porém de
forma rápida, superficial, banalizando a situação como se fosse
corriqueira e comum ao dia-a-dia das populações inseridas na
região. Segundo Edward Said, a partir de uma ampla análise em
obras literárias, documentários e nos noticiários
“o árabe é sempre mostrado em grandes números. Nada de
individualidade, nem de características ou experiências
pessoais. A maioria das imagens representa fúria e
desgraça de massas, ou gestos irracionais [...]. Espreitando
por trás de todas essas imagens está a ameaça da jihad.
Consequência: o medo de que os muçulmanos (ou árabes)
tomem conta do mundo”. [2007, p.383]
Num segundo passo de desenvolvimento do projeto, inserimos uma
análise de fontes com base nos discursos produzidos por palestinos e
israelenses acerca do conflito que atinge ambos desde meados do
século XX. O objetivo dessa etapa era compreender as razões do
conflito a partir de pontos de vista distintos inseridos dentro dos
dois lados da guerra, de maneira a desconstruir a pretensão de
verdade única de um discurso ou de outro. A partir desse diálogo,
coube aos estudantes posicionarem-se acerca da temática,
construindo uma dissertação-argumentativa que abordasse a
temática a partir da figura abaixo, buscando analisar os princípios e
ações empreendidas por todos os atores envolvidos.
329
http://www.carlosgeografia.com.br/2014/07/e-se-fosse-nobrasil.html.
Com uma maior fundamentação teórica acerca da região, o que
incluiu a indicação de obras cinematográficas produzidas na região,
tais como Lemon Tree [Eran Riklis, 2008] e Cinco Câmeras
Quebradas [Emad Burnat, Guy Davidi, 2011], selecionamos para o
dia específico da temática, dentro da semana do projeto „Festival de
Cinema‟, na qual as atividades escolares regulares sŌo interrompidas
para a exibição de filmes e vídeos que servem de base para o debate,
os filmes Paradise Now [Hany Abu-Assad, 2005] e Filmes Ruins,
Árabes Malvados: como Hollywood vilificou um povo [Jack
Shaheen, 2006], além do vídeo The DNA Journey. A utilização
dessas obras leva em consideração a perspectiva atual da prática
historiográfica, na qual
“nenhum documento fala por si mesmo, ainda que as
fontes primárias continuem sendo a alma do ofício do
historiador. Assim, as fontes audiovisuais e musicais são,
como qualquer outro tipo de documento histórico,
portadoras de uma tensão entre evidência e representação.
Em outras palavras, sem deixar de ser representação
construída socialmente por um ator, por um grupo social
ou por uma instituição qualquer, a fonte é uma evidência
de um processo ou de um evento ocorrido, cujo
estabelecimento do dado bruto é apenas o começo de um
processo de interpretaçŌo com muitas variáveis”.
[NAPOLITANO, 2005, p.240]
Em Paradise Now é retratada a estória de dois rapazes palestinos
que são recrutados para um ataque suicida em Tel Aviv, capital
israelense. A abordagem principal utilizada a partir do filme foi a
desmistificação da visão – muito presente nos discursos coletados a
partir do questionário inicial realizado com os (as) estudantes – de
que aqueles que executam tal ato são desprovidos de sentimento ou
330
de opinião própria, sendo meras marionetes nas mãos de grupos
extremistas que os usariam a fim de alcançar seus objetivos
econômicos e de poder. Das falas exibidas através do filme,
selecionamos algumas como contraponto aos discursos produzidos
pela mídia televisiva ou impressa, principalmente quando um dos
protagonistas acusa o mundo de ver, passivamente, as atrocidades
que ocorrem na região, não agindo para impedir a continuidade das
mesmas.
A mesma dinâmica utilizamos com o filme de Jack Shaheen.
Focamos as discussões acerca dos estereótipos apresentados pelo
próprio documentário, abordando as mais diversas representações
pejorativas acerca das populações do Oriente Médio. Em Filmes
Ruins, Arábes Malvados: como Hollywood vilificou um povo,
baseado no livro do mesmo diretor, torna-se evidente o quanto “as
representações possuem uma energia própria, e tentam convencer
que o mundo, a sociedade ou o passado é exatamente o que elas
dizem que é”. [CHARTIER, 2011, p.23]. De maneira gritante, outras
vezes de maneira sutil, os mesmos estereótipos são constantemente
reproduzidos. Nas palavras do próprio diretor:
“„Árabe Land‟, um parque temático mítico e, em „Árabe
Land‟, você sabe, você tem a música de suspense, você tem
o deserto. Começamos com o deserto, sempre o deserto
como um lugar ameaçador. Nós adicionamos um oásis,
palmeiras, um palácio que tem uma câmara de tortura no
porão. O Pasha fica lá em suas almofadas luxuosas, com um
harém de donzelas circundando ele. Nenhuma das donzelas
do harém conseguem agradá-lo então eles raptam a heroína
loira do Oeste que não quer ser seduzida. Quando visitar
„Árabe Land‟ devemos estar conscientes do kit Ali Baba. O
que temos, temos os mestres de propriedade de Hollywood
indo ao redor e eles estão revestindo as mulheres em calças
transparentes, roupas de dança do ventre, eles estão dando
os vilões árabes cimitarras - você sabe, essas longas,
cimitarras longas. Vemos pessoas se deslocando ao redor
em tapetes mágicos, encantadores de turbantes incitando
cobras para dentro e fora de cestas. A „Árabe Land‟ do
passado é „Árabe Land‟ de hoje”. [SHAHEEN, 2006]
Por fim, utilizamos o pequeno vídeo The DNA Journey, a qual
realizou um experimento com pessoas de diversas culturas e países,
331
questionando previamente as mesmas sobre suas origens e
posteriormente lhes apresentando um mapa de seus laços culturais
através de uma análise genética. A abordagem científica, trouxe à
tona a percepção de como podemos estar conectados com as mais
diversas culturas e povos, incluindo àqueles que julgamos,
aparentemente, muito distantes de nós.
A análise das obras cinematográficas não encerra a discussão,
apenas insere a discussão no cotidiano do corpo discente, abrindo o
caminho para que percebam que
“o que chamamos de “realidade”, e que se coloca no plural,
concerne às elaborações práticas conduzidas pelas
diferentes narrativas dos diferentes polos do poder. [...]
Cada qual com sua realidade, cada qual com sua narrativa.
Isso coincide ou não. Isso se confirma. Isso se disputa. Mas
continuamos no domínio da narrativa, em representações”.
[COMOLLI, 2008, p.100]
Há muito por conhecer ainda acerca dos povos do Oriente Médio – e
sobre nós mesmos –, o que não pode ser reduzido a um pequeno
conjunto de informações repetidas por uma mesma gama de
veículos de imprensa e estúdios de cinema. A guerra existe, as
consequências ruins que dela resultam também devem ser vistas,
mas a região e a população nela inserida é muito mais ampla e
diversa. Precisamos deixá-los serem ouvidos, pois assim muitos
estereótipos se esfacelarão. Precisamos ver para além de nossas
diferenças, precisamos exercer a atitude cotidiana de estranhar
aquilo que nos é dito sobre o outro, precisamos conhecer melhor o
outro, para assim conhecermos melhor a nós mesmos.
Referências
Maicon Roberto Poli de Aguiar é professor da Escola de Ensino
Médio Professora Elza Henriqueta Techentin Pacheco; graduado em
História pela Fundação Universidade Regional de Blumenau
(FURB); mestre em Ensino de História pela Universidade Estadual
de Santa Catarina (ProfHistória/UDESC); membro do Laboratório
de Didática de História (LADIH).
Mail: maicon_poly@yahoo.com.br
332
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O objeto em fuga:
algumas reflexões em torno do conceito de região. In: Revista
Fronteiras. – Dourados/MS, v. 10, mº 17, p.55-67, jan./jun. 2008.
CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de
representação. In: Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n. 23,
jan./jun. 2011.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida:
cinema, televisão, ficção, documentário. Trad. Augustin de
Tugny, Oswaldo Teixeira, Ruben Caixeta. – Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008.
DAYAN, Daniel. Os Mistérios da Recepção. In: Cinematógrafo:
um olhar sobre a história. Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato,
Kristian Feigelson (orgs.). – Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. Da
UNESP, 2009.
GRINBERG, Keila. O mundo árabe e as guerras árabeisraelenses. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge;
ZENHA, Celeste. O tempo das dúvidas: do declínio das utopias às
globalizações. O século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000. p.100-131.
GUARESCHI, Pedrinho A. Mídia e Cidadania. In: Conexão –
Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 27-40,
jan./jun. 2006.
LIMA, Maria. Consciência histórica e educação histórica:
diferentes noções, muitos caminhos. In: Ensino de História:
usos do passado, memória e mídia. Marcelo De Souza Magalhães,
Helenice Aparecida Bastos Rocha, Jayme Fernandes Ribeiro,
Alessandra Ciambarella [orgs.] – São Paulo: FGV, 2014.
NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: Fontes
Históricas. Carla Bassanezi Pinsky [org]. – São Paulo: Contexto,
2005.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente. Tradução Rosaura Eichengerg – São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
SHAHEEN, Jack. Filmes Ruins, Árabes Malvados: como
Hollywood vilificou um povo. Jack Shaheen. E.U.A. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=Im5qQ9s-ohA>. Acesso
em: 20.02.2015.
The DNA Journey. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=aCyhIhVfUYQ>. Acesso em:
26.01.2017.
333
334
O OCIDENTE PELO ORIENTE: A
REPRESENTAÇÃO DA SEGUNDA GUERRA
PÚNICA NO MANGÁ “HEUREKA”,
DE HITOSHI IWAAKI
Maria Carolina Silva Martins Pereira
Pedro Antonio de Brito Neto
Este breve ensaio irá analisar como ocorreu a disputa pela cidade de
Siracusa (fato histórico que ocorreu na Segunda Guerra Púnica
durante a República Romana), que foi abordada pelo mangaká
Hitoshi Iwaaki em seu mangá “Heureka”. Utilizando de técnicas
como o anacronismo e o estereótipo, examinaremos como o autor, a
partir de sua visão oriental, adaptou um fragmento da História
Antiga do Ocidente, de modo que facilitasse a compreensão e
assimilação do público japonês.
Introdução
O capitalismo e a dinâmica econômica que ele proporciona, gerou
mudanças significativas no mundo. Somando-se a isso, o
“encurtamento” das fronteiras espaciais, intensificado com o
fenômeno da globalização, permitiu que a sociedade experimentasse
um ilimitado número de encontros culturais provocados,
principalmente, pela atuação dos meios de comunicação de massa.
Neste sentido, Douglas Kellner (2001, p. 09) irá afirmar que
“As narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem
os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir
uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em
muitas regiões do mundo de hoje. A cultura veiculada pela
mídia fornece material que cria as identidades pelas quais
os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas
contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura
global”.
Ou seja, na atual sociedade capitalista, verifica-se que os indivíduos
sofrem influência direta da mídia e o seu conteúdo. Este último traz
símbolos e novas significações para a cultura, deixando com que esta
permaneça restrita a um espaço local, expandindo-se para todo o
globo.
335
É a partir da premissa acima que se observa que as culturas do
Ocidente e do Oriente, de certa forma, atravessaram fronteiras,
inserindo-se uma no cotidiano da outra, a partir dos veículos de
comunicação de massa. Entre estes veículos, verifica-se o objeto de
estudo desse ensaio: os mangás.
Para compreender melhor, Will Eisner (2005) afirma que a leitura
visual se tornou obrigatória para a sociedade contemporânea. As
imagens sempre fizeram parte da produção cultural da humanidade,
mas, de acordo com o autor acima, são as histórias em quadrinhos o
foco da linguagem visual neste século. Essa alteração de perspectiva
fez com que os mangás (e os quadrinhos em geral) procurassem
mudanças dentro do seu conteúdo, permitindo ampliar o número de
consumidores, especialmente a partir da segunda metade do século
XX:
“entre 1965 e 1990 os quadrinhos começaram a procurar
um conteúdo literário. [...] Autobiografias, protestos
sociais, relacionamentos humanos e fatos históricos foram
alguns dos temas que passaram a ser abraçados pelas
histórias em quadrinhos” (EISNER, 2005, p. 08).
Sobre essa questão, Sonia B. Luyten (2005, p. 08) explica que
“atualmente, as imagens dos mangás, consumidos por milhares de
pessoas semanalmente, mostram uma mudança de ideias políticas e
culturais do oriente para o ocidente”. Desta forma, há uma
convergência de ideias que são difundidas através dos mangás, que
influenciam pessoas tanto no Oriente quanto no Ocidente, visto que
neste último os quadrinhos japoneses possuem uma popularidade
alta.
―Heureka‖ e o seu cenário histórico
“Heureka” é um mangá lançado no ano de 2002 pela editora Jets
Comics e é escrito desenhado pelo japonês Hitoshi Iwaaki (o
mangaká é mais conhecido no Brasil e no mundo por outra obra, o
mangá Parasyte). Este é o primeiro mangá de cunho histórico do
autor que possui como plano de fundo a Antiguidade Clássica
Ocidental, especificamente, Segunda Guerra Púnica, datada entre
218-201 a. C. O enredo acompanha o conflito que se estabeleceu
entre a República Romana e a República de Cartago em torno da
conquista da cidade de Siracusa, na Ilha da Sicília, localizada no Mar
Mediterrâneo.
336
O ponto de destaque da obra é como se desenvolveu o conflito entre
as duas repúblicas e como Siracusa manteve a vantagem sobre Roma
a partir das invenções do físico, engenheiro e matemático
Arquimedes. Sobre isto, João Monteiro (2015, p. 180) explana que
Arquimedes “[...] inventou uma série de dispositivos engenhosos que
frustraram os planos romanos”. Atenua-se no mangá a utilização
massiva pelo exército cartaginês dos dispositivos elaborados por
Arquimedes, derrotando, assim, uma quantidade excessiva de
homens do exército romano, culminando na vitória dos cartagineses
em primeiro momento. A narrativa se desenvolve em cima do
argumento de como Roma conseguiu dominar Siracusa. Dentre as
armas retratadas no mangá, podemos destacar as gruas, capazes de
quebrar barcos ao meio e alçá-los a uma grande altura; as serras,
responsáveis por cortar soldados romanos pela metade, e a roda de
Euríalo, uma espécie de catapulta capaz de decepar corpos humanos
e animais, bem como a capacidade de destruir armas romanas.
Grua. Fonte: http://www.dm5.com/m47618/#ipg36
337
Serra. Fonte: http://www.dm5.com/m47618-p68/#ipg43
Roda de Euríalo. Fonte: http://www.dm5.com/m47618-p68/#ipg66
Todavia, não é Arquimedes o protagonista da história, e sim,
Damipo, um espartano que possui a amizade de Cláudia, uma
romana que habita a cidade. Mesmo que a trama se concentre nos
personagens acima, Iwaaki traz para o leitor as principais figuras
históricas envolvidas nas narrativas relacionadas às Guerras
Púnicas, como o comandante do exército cartaginês Aníbal, o
general Marcelo, de Roma e o próprio Arquimedes. Já Damipo e
Cláudia possuem uma origem histórica contestável, ou seja, não se
pode afirmar se estas personagens realmente existiram.
O conflito ocorrido entre as forças romanas e cartaginesas pelo
domínio do Mediterrâneo, tornou-se conhecido na historiografia
338
como as Guerras Púnicas, as quais se dividiram em três etapas: a
Primeira Guerra Púnica (264-241 a. C.) centrada na Ilha da Sicília; a
Segunda Guerra Púnica (218-201 a. C.), que serviu de plano de fundo
para a história do mangá; e a Terceira Guerra Púnica (149-146 a. C.),
que se estendeu por somente três anos em uma região ao Norte da
África.
A Segunda Guerra Púnica retratada em “Heureka” traz consigo
alguns elementos já citados acima, como o comandante cartaginês
Aníbal Barca e sua estratégia a partir da Hispânia, passando pelos
Alpes para chegar ao Norte da Itália, e atacá-la por terra.
Aníbal Barca. Fonte: http://www.dm5.com/m47618-p36/#ipg6
O general Marcelo e o próprio Arquimedes completam os elementos
históricos centrais, assim como suas ações no desenrolar do enredo,
que irá terminar na conquista da cidade de Siracusa pelos romanos,
como descreve Monteiro (2015, p. 181):
“Em finais de 212 a. C., Marcelo conseguiu, pois, tomar
Siracusa, tendo Arquimedes sido morto na mesma ocasião.
Na sequência deste sucesso, Roma pôde ampliar a sua rede
de alianças na Sicília, ficando a resistência cartaginesa
polarizada”.
O Ocidente pelo Oriente: a dinâmica do Outro
Peter Burke (2004) debate como as imagens podem ser utilizadas
como fonte histórica e, ademais, como estas proporcionam, na
contemporaneidade, a criação de uma perspectiva do que seria o
passado, os povos que já existiram com sua cultura, relações sociais
e conflitos. Neste sentido,
339
“Pinturas, estátuas, publicações e assim por diante
permitem a nós, posteridade, compartilhar as experiências
não-verbais ou o conhecimento de culturas passadas.
Trazem-nos o que podemos ter conhecido, mas não
havíamos levado tão a sério antes. Em resumo, imagens
nos permitem „imaginar‟ o passado de forma mais vívida”
(BURKE, 2004, p. 16 - 17).
Para o autor, o passado pode ser visualizado melhor com a
representação das imagens. Elas proporcionam pensar o passado de
“forma mais vívida”. E os mangás, enquanto veículo de comunicaçŌo
que se utiliza de texto e imagens realiza isso muito bem, pois estas
imagens não fazem apenas o registro dos costumes e cultura das
sociedades, como também carregam a impressŌo do “outro”.
Os artistas, quando recriam a cultura material, não estão trazendo
consigo a verdade/realidade. Todo o cenário é ressignificado
baseado nas suas intenções ao desenhar/fotografar o ambiente. Ou
seja, uma imagem nŌo é só um registro “cru” do espaço; ela carrega
mensagens dos seus autores. Burke (2004) afirma que o artista não é
uma máquina que faz a impressão do ambiente; antes de tudo, ele é
um comunicador e as imagens são o seu veículo. É neste sentido que
se pode considerar o funcionamento dos quadrinhos. Ademais,
Barbosa (2005, p. 115) afirma que:
“para a construçŌo do quadrinho histórico nŌo é o caráter
histórico o guia para a sua confecção, mas sua
humanização, sua forma de comportamento que nos leva
ao presente, criando assim um tipo. Nesse ponto podemos
dizer que a „história oficial‟ serve como pano de fundo para
a ficçŌo”.
A história oficial e os seus fatos retratados em “Heureka” nŌo sŌo o
elemento principal do enredo, e sim, o plano de fundo. Verifica-se,
então, que o mangaká constrói uma mensagem para o público
contemporâneo. Sendo assim, o passado é utilizado para realçar
elementos do presente. É desta forma que se encontram
anacronismos na história, da mesma forma que estereótipos
relacionados aos personagens.
Anacronismo e personagens estereotipados são fundamentais para
facilitar a associação dos elementos colocados no roteiro do mangá,
340
pois para assimilar o Outro, os leitores precisam de elementos nos
quais eles reconheçam como pertencentes a sua cultura, uma vez
que, para Burke (2004, p. 154) “é através da analogia que o exótico
se torna inteligível, domesticado”. Desta forma, nota-se, por
exemplo, que a estética dos personagens de “Heureka” se aproxima
dos filmes hollywoodianos. O cinema, assim como os quadrinhos, é
um veículo de comunicação que difunde costumes e hábitos
culturais. Como também se utiliza da imagem para formar a sua
narrativa, ele possibilita formar figuras que permanecem no
imaginário popular.
Batalha entre Cartago e Roma. Fonte:
http://www.dm5.com/m47618-p36/#ipg5
Neste caminho, Peter Burke aprofunda questão dos estereótipos
entre culturas:
“em outras palavras, quando ocorrem encontros entre
culturas, é provável que a imagem que cada cultura possui
da outra seja estereotipada. A palavra „estereótipo‟, como a
palavra clichê, é um sinal claro da ligação entre imagens
visuais e mentais. O estereótipo pode não ser
completamente falso, mas frequentemente exagera alguns
traços da realidade e omite outros. O estereótipo pode ser
mais ou menos tosco, mais ou menos violento” (BURKE,
2004, p. 155 -156).
341
O estereótipo, portanto, é algo recorrente entre culturas diferentes.
A imagem do “outro” é construída a partir de elementos que foram
difundidos na cultura popular, seja pelos meios de comunicação ou
narrativas orais. O estereótipo nunca vai apresentar a real imagem
dessa ou daquela sociedade. Será sempre superficial.
Complementando, Alexandre Barbosa (2005) afirma que para os
autores japoneses é até mais prático criar uma ficção histórica a
partir da história do Ocidente, visto que para eles a cultura ocidental
é exótica e fantasiosa; sendo assim, os autores teriam mais liberdade
para a criação do enredo.
Outro elemento que se percebe na obra é a presença da imagem do
herói tradicional japonês, que pode ser definido como “[...] a
construção do herói histórico japonês não busca a divindade, mas a
humanidade” (BARBOSA, 2005, p. 108). O herói de Heureka,
Damipo, não é um general ou o matemático genial. Ele é um rapaz
grego simples que se envolve no conflito ao acaso. Ele não busca
salvar a cidade, não tem força ou belezas extraordinárias. É uma
pessoa comum que acaba mudando os rumos do conflito.
Damipo e Arquimedes. Fonte: http://www.dm5.com/m47618p36/#ipg26
Eisner (2005) elucida que os leitores de quadrinhos necessitam que
a narrativa lhes tenha elementos familiares. Se a história lhe trouxer
elementos dos quais não reconhece, a reação a ela pode ser outro
efeito, no qual o autor não espera. É importante que o formato lhe
apresente signos reconhecíveis, pois a narrativa não irá fazer
sentido. Barbosa (2005, p. 107) afirma que “os artistas japoneses
souberam trabalhar os elementos ficcionais com os documentos
históricos, criando junto ao público leitor um forte elo entre o real e
o imaginário popular”. Os mangakás conseguem criar um equilíbrio
342
entre os fatos históricos, imaginário popular e ficção. É esse
equilíbrio que permite com que a história do Ocidente adentre ao
Oriente na forma de narrativa gráfica. O quadrinho histórico passa a
ter outro sentido. Ele não é apenas uma imagem que retrata a
imaginação sobre um passado distante, como também é uma
ferramenta para discussão de elementos da sociedade, assim como
representação da cultura de um povo.
Conclui-se, então, que Hitoshi Iwaaki constrói uma narrativa gráfica
consistente em torno da Segunda Guerra Púnica, apresentando as
figuras históricas envolvidas de forma estereotipada. Percebe-se
ainda o vigente anacronismo que o autor em sua pesquisa adaptou
para o mangá. E vemos que, sendo o estereótipo e o anacronismo
elementos comuns nas histórias em quadrinhos, o “olhar” oriental
no mangá sobre a história do Ocidente é ainda fantástica, exótica,
curiosa e essencialmente elaborada para atender ao público japonês.
Referências
Maria Carolina Silva Martins Pereira é graduada em Comunicação
Social (habilitação em Jornalismo) e acadêmica do curso de
Licenciatura em História da Estácio – polo Castanhal/PA.
E-mail: mcarolinasmp@gmail.com
Pedro Antonio de Brito Neto é acadêmico do curso de Licenciatura
em História da Estácio – polo Castanhal/PA.
E-mail: anthonionetto9@gmail.com
BARBOSA, A. Quadrinhos Japoneses: uma perspectiva histórica e
ficcional. In: LUYTEN, S. B. (org). Cultura pop japonesa: mangá
e animê. São Paulo: Hedra, 2005, p. 107 – 118.
BURKE, P. Testemunha Ocular: história e imagem. Tradução:
Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004
EISNER, W. Narrativas Gráficas de Will Eisner. Tradução:
Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005.
KELLNER, D. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade
e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001,
p. 09 – 21.
LYUTEN, S. B. Introdução. In: ______ (org). Cultura pop
japonesa: mangá e animê. São Paulo: Hedra, 2005, p. 07 – 13.
MONTEIRO, J. G. Expansão no Mediterrâneo. In: BRANDÃO, J. L.;
OLIVEIRA, F. de (coord). História de Roma Antiga: das origens
à morte de César. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
2015, p. 145 – 219.
343
344
A CONSTRUÇÃO DOS 47 RONIN COMO SÍMBOLO
NACIONALISTA
Mariana Steiner Farias
Introdução
O objeto deste ensaio é a construção cultural no entorno do
acontecimento histórico conhecido como “A vingança dos 47 ronin”.
Segundo Turnbull, “essa versŌo desavergonhadamente ficcional da
história, envolve mudanças de nomes, datas e locais, é
universalmente reconhecida pelo que ela realmente é: um clássico
drama baseado em um relato ficcional de um acontecimento
histórico real” (1970, p. 9)
O relato ocorreu no período histórico japonês conhecido como
Xogunato, estima-se que tenha transcorrido entre 1701 e 1703, e foi
transformado em um símbolo nacional na era Meiji, quando o
governo japonês precisou recorrer ao “JapŌo tradicional” para
“resgatar”, reler, reutilizar e reciclar símbolos, tradições e elementos
culturais de períodos históricos anteriores ao período Meiji para
criar uma identidade nacional perante a abertura das portas do país
para o mundo ocidental.
O relato retrata a morte de Asano Takuminokami, um jovem
daimyo, ou seja, um senhor de terras, cujas funções incluíam
preparativos rituais e apoio militar ao Xogum. Ele havia sido
ordenado pelo Xogum para realizar as festividades dos convidados
do Imperador, vindos de Kyoto para visitar Edo. Asano procurou
orientações com o conselheiro Kira Kozuke-no-suke, mestre de
cerimônias do Xogum e cujo poder de influência era de um nível
hierárquico superior. Kira, entretanto, tratou-o com malícia,
manchando sua honra de samurai. Incapaz de aguentar o insulto,
Asano desembainhou a espada contra ele, sem matá-lo. Na época,
era estritamente proibido de sacar a espada dentro do castelo de
Edo. Asano foi imediatamente preso e condenado ao seppuku, um
ritual samurai de suicídio onde o condenado procura manter sua
honra. Sua morte resultou na degradação de seus samurais a
condição de ronin, que são samurais que perderam seus mestres.
Com isso, os 47 ronin de Asano esperaram por quase dois anos após
a sua morte para vingá-lo. Após a vingança, os ronin se entregaram
ao Xogum, alegando terem finalizado seu legado como samurai,
sendo, também, sentenciados ao seppuku.
345
Essa história foi popularizada por meio de um kabuki conhecido
como Kanadehon Chushingura, a peça surge em 1748, produzido no
período Edo. Kabuki é uma forma de teatro muito popular entre
todas as classes sociais, fazendo assim, com que um conto que tenha
sido adaptado para o formato de kabuki, se tornando extremamente
conhecido.
A história dos 47 ronin tem sua importância, também, fora dos
kabuki. Em Sengaku-ji – templo budista localizado em Tokyo, onde
os restos mortais dos ronin e seu mestre se encontram – ocorrem
entre 1 a 7 de Abril e 14 de Setembro festejos pela bravura, lealdade e
honra dos ronin. Este ensaio trata da transformação de um
acontecimento vingativo, violento e de desobediência ao governante
em um símbolo de lealdade, dedicação, paciência e honra. Para isso,
deve-se compreender alguns conceitos referentes a “nacionalismo”,
“tradições”, “reciclagem de tradições” e “símbolos nacionalistas” em
cada um dos períodos apresentados, Xogunato e Meiji.
Benedict Anderson (1983) define a “naçŌo” como “uma comunidade
política imaginada – e que é imaginada ao mesmo tempo como
intrinsecamente limitada e soberana”, sendo imaginada como uma
“imagem de comunhŌo” entre os seus membros, mesmo que esses
conheçam apenas uma pequena parcela dos integrantes de sua
“própria naçŌo”.
Segundo Anne-Marie Thiesse (1999), a criação do nacionalismo é
composta de vários elementos de um “check list” dos itens
“necessários”. Um desses elementos apresentados pela autora é o
Bildungsroman, onde a narrativa de formação do país é elaborada,
dando um cenário e uma narrativa aos heróis e símbolos nacionais
escolhidos. É a forma como o país será representado, a identidade
que ele apresentará para si e para outros. No caso deste ensaio, a era
Meiji utiliza dos “ heróis nacionais”, representados pelos 47 ronin,
para auxiliar na elaboração do nacionalismo japonês.
Ao analisar o surgimento e a criação de uma nação, deve-se ter em
mente que os elementos que a formam foram cuidadosamente
selecionados, deixando assim, outras características e elementos
esquecidos.
346
Utilizando as ideias de Hobsbawm (1997) em “A invençŌo das
Tradições”, pode-se concluir que a “tradiçŌo” é uma forma de
“continuidade em relaçŌo ao passado”, onde a “continuidade” pode
ocorrer de forma artificial quando essa “tradiçŌo” está ameaçada ou
perdida, ou de forma mais natural, quando ela é reciclada ou
adaptada as mudanças na comunidade, sem perder sua essência. O
período Meiji busca essa “continuidade” das “tradições” japonesas
ao sentir que as mesmas estão ameaçadas pela cultura “ocidental”
que estava sendo apresentada e absorvida pelo “JapŌo” em formaçŌo
como nação.
Para que a tradição possa se tornar inventada, deve ocorrer uma
ruptura entre o período em que ela era ativa e o período em que ela
foi resgatada e reutilizada. Ao analisar o caso dos 47 ronin, deve-se
entender que a “cultura samurai” ainda existia e estava em conflito
com a nova forma de governo Meiji.
Mas, o que é um samurai?
Os “samurais” tiveram sua origem aproximadamente em 930 d.C.
Eram originalmente coletores de impostos e servidores civis do
império. Tinham ainda a capacidade de lidar com o campesinato,
seja for força ou por respeito.
Apenas no século X o termo “samurai” recebe um significado, e o
indivíduo samurai passa a ter funções militares, onde todos que
tivessem condições de seguir os ensinamentos do Kobudo –
conhecido como “arte marcial samurai” - seguir a moral da época e
atender, por contrato, as demandas de seu senhor feudal.
O termo “samurai” significa “aquele que serve”. Seu papel era seguir
rigidamente e moralmente seu dever para com os senhores feudais e
o Imperador, em troca de pagamentos em terras, arroz ou
privilégios, o que posteriormente facilitou sua transformação em
uma classe social de alto nível.
É importante ressaltar que a “moral” do período se baseava em o
indivíduo realizar e seguir as “regras” e atividades que sua classe
social e seu trabalho demandavam. Caso isso não fosse feito, o
samurai seria castigado e sentenciado ao seppuku.
“No período de Tokugawa, o seppuku era usado para punir
guerreiros que haviam cometido ofensas graves. Mas era
347
considerado uma maneira digna de morrer; de fato,
samurais cometiam rituais de suicídio por livre e
espontânea vontade para defender sua honra, para provar
sua sinceridade ou protestar contra ações injustas de seus
superiores”. (HANE, 1992, p. 29)
Xogunato do clã Tokugawa
Para melhor entender a utilização dos 47 ronin como símbolo
nacional, uma rápida explicação sobre a era Tokugawa e a era Meiji é
necessária.
O Xogunato de Tokugawa inicia em 1603, quando o jovem daimio
Iyeyasu Tokugawa auxilia no golpe contra o Imperador e assume o
poder como Xogum. Iyeyasu passou a governar com punho de ferro,
implantando medidas que dificultaram a tomada do poder por
apoiadores do Imperador e outros. Neste período, o Japão acaba
tendo duas capitais, Kioto, onde vivia a família do Imperador e Yedo
(atual Tóquio), onde ocorriam todas as decisões administrativas. A
estrada que unia as capitais passou a ser ocupada militarmente.
As alianças entre os daimios, foram enfraquecidas, afinal, “como os
daimios fossem a eterna ameaça ao bakufu, coagiu-os a passarem
um ano sim um ano não em Yedo. Essa ausência dos grandes
senhores de seus castelos tirava-lhes grande parte da força e os
dividia” (PALMARY, 1959, p. 39).
Além dessas medidas, o Xogum decidiu tornar os limites entre
classes mais rígidas, para que houvesse um maior controle e uma
menor comunicação entre elas fora da relação servo-senhor. No caso
dos samurais, o Xogum transformou-os em uma classe social, uma
casta, onde o título era passado de geração em geração, acabando
com a possibilidade de qualquer indivíduo se tornar um samurai.
“Uma das separações mais importantes era a que existia
entre samurais e os não samurais. Os samurais
representavam apenas cerca de 6% da população e
incluíam sobretudo burocratas, porque, de facto, foi nisso
que se tornaram. Os não samurais estavam basicamente
divididos entre os que viviam no campo e os que viviam nas
cidades”. (HENSHALL, 2008, p.81).
348
O período Tokugawa durou 210 anos, com aberturas e fechamentos
das portas japonesas para o mundo “ocidental”. Ainda no governo de
Iyeyasu, ocorreu uma breve abertura, quando houve uma melhoria
na frota marítima japonesa com a ajuda do capitão inglês William
Adams. Com a constante pressão do mundo ocidental e do
cristianismo, as postas haviam sido fechadas de forma brusca.
Segundo Palmary “Os descendentes de Iyeyasu iriam levar o
feudalismo e o isolamento japonês a um excesso que, por uma
contradição clássica da História, abriria por fim o Japão
inteiramente ao mundo” (1959, p. 41).
Em 1750, a escolaridade japonesa cresce, apesar de as classes sociais
mais baixas terem possibilidades menores de obter uma educação
básica. Mesmo assim, o número de instituições educacionais básicas
cresceu, já a educação dos nobres e samurais se torna mais refinada,
com o foco nas artes. Realizavam-se torneios poéticos, sendo o poeta
mais famoso na época o samurai Basho. Foi um período de “paz”,
quando os samurais acabaram perdendo sua função militar,
predominando funções administrativas e cerimoniais.
A pressão industrial europeia e americana aumentou. Em 1792, os
russos tentam invadir Hokaido sem sucesso, mas deixando o Xogum
alerta. Nos anos seguintes, a costa japonesa passa a ser fortemente
armada. A crise econômica e agrária que atingia o Império piorou, os
intelectuais e os comerciantes queriam a abertura das fronteiras
japonesas para o “Ocidente”, e a nobreza estava descontente, em
suma, o Xogum perdeu todo seu apoio.
“Os daimios, cansados da mŌo de ferro do Shogunato
Tokugawa, começavam a rebelar-se. Os samurais, com 200
anos de paz, viam a perda do gume das catanas juntar-se à
própria pobreza. Os chomins prosperavam mas sabiam que
o intercâmbio mundial iria transformá-los de mercadores
ricos em comerciantes milionários. Os intelectuais sentiamse inquietos com a inferioridade científica japonesa ante os
milagres que a técnica européia criava. Os políticos, sob a
influência filosófica de Motori e Hirata, viam na pobreza do
Imperador a marca da ururpação do clã Tokugawa. O povo,
sabendo vagamente das conquistas políticas da Revolução
Francesa, começava a amadurecer políticamente. A família
imperial, cansada do astracismo político, da penúria
econômica e da prisão sem grades em que vivia, aguardava
349
com impaciência a queda do Bakufu” (PALMARY, 1959, p.
50)
Neste mesmo período, a China estava perdendo a guerra contra a
abertura dos portos para a Inglaterra, que utilizava o ópio e o vício
chinês como arma principal. O temor japonês de passar por algo
semelhante cresceu, fazendo com que, de muito malgrado,
aceitassem o Tratado de Kanagawa em 1854 com os Estados Unidos
da América.
“O tratado, junto com outros que se lhe seguiram,
concertados com nações europeias, punha fim às
perseguições religiosas, abria os portos japoneses ao
mundo e dava extraterritorialidade aos nacionais dos
países signatários” (PALMARY, 1959, p. 51)
Assim ocorre a abertura completa das portas japonesas para o
“mundo ocidental”, apesar disso, ainda há uma resistência em
relação aos novos costumes.
Em 1868 morre o Imperador Komei, assumindo seu filho Meiji. “O
novo imperador torna-se a esperança do país” (PALMARY,1959,
p.52). O último Xogum abdica e “entrega” o poder administrativo ao
novo Imperador, Meiji.
O Império Meiji
Oficialmente, a era Meiji começa em 1867, com as portas do Japão
abertas, novas possibilidades políticas e reformas em todas as áreas.
Ocorre uma tentativa frustrada de transformar o Japão em uma
democracia capitalista, os samurais mais tradicionalistas se uniram
em uma causa comum: evitar a entrada total do “Ocidente” no país,
causando uma guerra civil.
Apesar disso, o Imperador conseguiu criar diversos ministérios, criar
um sistema monetário – cuja moeda era o yen – os impostos
passaram a ser cobrados com mais facilidade e organização, facilitou
o comércio internacional e organizou o ensino básico para todo o
JapŌo, “O Imperador decreta que a educaçŌo deve visar o amor à
pátria e a veneraçŌo ao trono” (PALMARY, 1959, p.59). Começou
uma forte campanha para que a população em geral aprendesse o
máximo possível com o mundo Ocidental, além de contratar
estrangeiros para auxiliar na modernização do país, “Contrata-se
350
ingleses para as estradas de ferro, alemães para a medicina e higiene
pública, americanos para a instrução, italianos para a arte. Por sua
vez, a nata dos estudantes do país é enviada à Europa para aprender
tudo que possa interessar à naçŌo” (PALMARY, 1959, p.58) e
implantou o serviço militar obrigatório.
Com essa última medida, os samurais perdem seu status social de
guerreiros e deixaram de ser uma classe social, uma casta. “A lei de
serviço militar obrigatório deu uma sacudida nos antigos samurais,
pois ela questionou sua razão de ser, o significado de sua existência
como classe privilegiada” (DUUS, 1976, p. 81). “Em 1876 todos os
estipêndios foram obrigatórios e os samurais foram finalmente
proibidos de usar as duas espadas que, há séculos, os separaram da
gente comum. A abolição do samurai como uma classe estava
completa. ” (DUUS, 1976, p. 83). Tornaram-se, então, magnatas da
indústria e integrantes do governo.
Em 1904, o Japão entra em guerra com a Rússia e vence, mas o
período de “paz” japonês estava oficialmente acabado. Em 1912
morre o Imperador Meiji.
Samurai em dois tempos
Ao analisar o caminho do samurai no último Xogunato e na era
Meiji, deve-se analisar alguns fatos importantes. Os samurais
“perdem” sua funçŌo militar pelo longo período de “paz” durante o
Xogunato, por isso, acabaram virando burocratas, administradores e
mestres de cerimônias. “As suas guerras passaram a ser meras
guerras de papel” (HENSHALL, 2008, p. 87). Com essa crescente
perda de importância militar, surgiu uma imagem romantizada do
samurai.
“Durante os anos de paz no período Tokugawa, os filósofos
guerreiros começaram a formular o que consideravam o
modo ideal de conduta para o samurai. Claro que, mesmo
antes de Tokugawa, uma conduta do que é certo e errado
tinha sido definida, e era esperado do samurai viver esses
princípios de dever, lealdade, integridade, honra, justiça,
fidelidade e coragem”. (HANE, 1992, p. 28)
O Bushido (O caminho do guerreiro) era utilizado como “guia” para
o samurai voltar a seguir os passos de guerreiro, inspirado nessa
visão romantizada dos samurais. “Ao narrar contos de guerreiros
351
que estavam envolvidos nas batalhas de poder no período Heian e
posteriores, os contadores de história geralmente idealizavam a
conduta do guerreiro, descritos como cavalheirescos, altruístas e
heroicos. ” (HANE, 1992, p. 28).
Uma definição que deve ser deixada bem clara é a da “moral”, que
neste caso “nŌo é uma questŌo de bem e de mal, mas de fazer o que é
esperado, no contexto das relações sociais e da ordem”
(HENSHALL, 2008, p.88).
Existia ainda uma influência do séc. XVI sobre as ações de certos
samurais, o Zen. Este era um estudo que se baseava em
pensamentos profundos e meditações longas sobre o nascimento e a
morte, “infelizmente, essa crença reforçou a atitude de “sangue frio”
dos samurais sobre o assassinato de pessoas, apesar disso,
idealmente, o samurai deveria se comportar de forma compassiva e
magnânima” (HANE, 1992, p.29).
“Havia alguns no JapŌo dos Togukawa que perambulavam
pelo país, causando perturbações aos aldeãos e inquietando
as autoridades. Os quarenta e sete em questão, no entanto,
sŌo vistos como a encarnaçŌo das virtudes do samurai”
(HENSHALL, 2008, p. 87)
Conclusão
Com base nos conteúdos apresentados acima, conclui-se que a
imagem do samurai já havia sido perdida no período do Xogunato,
sendo então reinventada neste mesmo período. Com o início da era
Meiji, a necessidade de criação de símbolos e heróis nacionais foi
gigantesca, o que incentivou uma busca no passado por estes
elementos.
Os samurais continuavam existindo no período do Império Meiji, o
que resulta em uma falsa ilusão de uma reciclagem direta da imagem
dos samurais, portanto, dos 47 ronin. No caso dos 47 ronin, acabou
sendo um elemento que ”restaurava” o “caminho do samurai”. Por
ter existido uma perda do “real samurai” ainda no Xogunato, a era
Meiji utiliza uma reciclagem de uma tradição reinventada baseada
no causo da “vingança dos 47 ronin”.
352
Referências
Mariana Steiner Farias, aluna da graduação em bacharelado em
História da PUCRS.
mariana.steiner@acad.pucrs.br
ALLYN, John; TURNBULL, Stephen. 47 Ronin. Singapore: Tuttle
Publishing, 1970.
ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections
on the Origin and Spread of Nationalism. Rev. ed. ed. London:
Verso. 1991.
DUUS, Peter. The Rise of Modern Japan. Boston: Houghton
Mifflin Company, 1976.
HANE, Mikiso. Modern Japan: A historical survey. Boulder:
Westview Press, 1992.
HENSHALL, Kenneth G.. História do Japão. Lisboa: ed. 70,
2008.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das
Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
PALMARY, Luiz. Pequena História do Japão. Rio de Janeiro:
Irmãos Pongetti, 1959.
THIESSE, Anne-Marie. A Criação das identidades nacionais:
Europa, séculos XVIII-XX. Anos 90, Porto Alegre, n.15,
2001/2002.
353
354
OS FESTIVAIS EGÍPCIOS:
MITO, MAGIA E RELIGIOSIDADE
Maura Regina Petruski
O Egito antigo está presente na contemporaneidade sob as mais
diferentes formas, contextos e interesses, isso não podemos negar.
Mas o que faz com que essa sociedade desperte o fascínio dos
hodiernos, que continuam buscando explicações a partir da
materialidade de vários suportes por eles deixados, tentando
entender o mundo por eles almejado e construído? A resposta talvez
esteja na força dos sujeitos que ali viveram e partilharam, cada qual
a sua maneira, ao deixaram suas marcas e contribuições no espaço
que elevaram essa sociedade a condição de atemporal predominada
pela referência da estruturação de uma realidade conduzida pela
diferença e rotulados de distintas formas pelos seus posteriores que
tentaram compreendê-los.
Símbolos, traços e particularidade de uma cultura foram eternizados
em artefatos que serviram de inspiração que foram apropriados e
ressignificados ao longo do tempo, que reafirmam sua
monumentalidade diante dos olhos dos observadores, os quais
trazem à tona a história de uma sociedade que não se deixou apagar
sob o território árido do nordeste africano.
Rosalie David, faz menção a essa perspectiva quando escreveu que,
“os antigos egípcios deixaram um rico legado, o qual, além
de monumentos bem-preservados, artefatos e restos
humanos, inclui uma extensa literatura religiosa e secular.
Todas essas fontes nos possibilitam compreender e
interpretar ideias e conceitos que, em alguns casos, se
originaram há 5000 anos” (2011, p.40).
E, de certa forma, é a sua perspectiva religiosa que mais despertou a
curiosidade, visto que construíram concepções de crenças atreladas
a dimensões políticas e sociais que transformaram sua trajetória em
práticas de um porvir sustentadas e organizadas num complexo
sistema que lhes assegurava a continuação da vida fundamentando
condutas e modos para sua existência na tentativa de busca pela
imortalidade.
355
Um amplo panteão de deuses com características antropozomórficas
onde homens, animais e forças ocultas se misturavam e estabeleciam
um conjunto de crenças transformadas em representações
imagéticas que criava uma identidade religiosa, que foram
construídas para serem lidas simbolicamente. De acordo com
Filoramo e Prandi,
“os comportamentos e sinais, as linguagens e os símbolos
são o objeto privilegiado da antropologia religiosa, para a
qual a experiência do sagrado interessa não só em suas
origens, mas também na sua explicação em mitologias e
cosmogonias, crenças e rituais observáveis como
experiência humanas” (2003, p.205).
Eram os deuses que concediam benesses aos mortais, sendo que no
decorrer da história dessa sociedade, uns foram ganhando mais
visibilidade e relevância em relação aos demais, como também o
inverso, quando outros foram perdendo o lugar alcançado sendo
substituídos.
E para honrá-los os egípcios criaram várias formas de
intermediação, dentre elas estão os festivais que refletiam anseios de
indivíduos que canalizavam para esses momentos suas forças na
busca pela atuação desses seres superiores no mundo terreno.
Tais comemorações foram organizados pelos sacerdotes como forma
de ordenar a vida civil e religiosa do Egito faraônico, que eram
celebrados tendo como parâmetro de referência três modalidades de
calendários: o primeiro; o calendário Lunar, de 30 dias dividido em
três semanas de 10 dias, o segundo; o calendário civil, de 365 dias,
tendo como base o sol e possuindo três divisões: Akhet ( inundação),
Peret (semeadura) e Shemu ( colheita); e o terceiro, o calendário
sótico, baseado no ciclo da estrela Sótis.
Contudo, sua estruturação foram advindas de duas instâncias, do
faraó e de alguns representantes da classe sacerdotal, que
estabeleceram e configuraram quais seriam as honras festivas que
deveriam ser oferecidas aos deuses, observando-as, podemos
enquadrá-las em três categorias; os dedicados a um deus(a), para
homenagear os mortos e os dos ciclos do trabalho agrário.
356
Esses eventos eram aguardados com entusiasmo pelos nilóticos e
poderiam durar um dia somente ou mais, variando com as intenções
das comemorações. Além de que, ao longo do tempo, dias foram
acrescentados a temporada festiva, chegando a alcançar até o
número de doze, dependendo da relação e proximidade que o faraó
tinha para com o deus homenageado em função de seu devotamento,
pois nesse caso a honraria se dava com mais grandiosidade,
brilhantismo e pompa.
Nem sempre o representante do Estado faraônico se fazia presente
nesses períodos de solenidades, em muitos casos ele designava
outros para representá-lo, sendo que em sua grande maioria o
escolhido era integrante da classe sacerdotal, fato esse justificado
porque alguns rituais só poderiam ser consumados por pessoas
desse segmento.
Era por intermédio das festas que os moradores da terra da esfinge
chegavam próximos dos seus deuses, isso porque em outros
momentos de sua religiosidade lhes era proibido o acesso ao interior
do templo e seus arredores, dada a importância desse espaço para os
egípcios e a organização da sua sociedade que vetava essa
possibilidade. Assim, no conjunto festivo, temos dois momentos; a
fração privada e restrita das celebrações que se davam no interior
templário que contava com a presença dos sacerdotes, sacerdotisas,
algumas dançarinas e músicos, sendo que cada segmento desses
ocupava um lugar específico no espaço sagrado, porém somente os
religiosos adentravam na sala do deus(a). E a outra, a parcela visível
e pública, quando a população se juntava a esses formando o
coletivo.
E, diante da impossibilidade de participação total nos festivais, os
indivíduos compartilhavam a presença materializada dos deuses
quando acontecia a sua exibição pública, a partir de sua saída oficial
do templo, etapa ímpar e esperada por todos.
Nessa perspectiva, Julio Gralha registrou que,
“Em vários festivais durante o ano egípcio, sobretudo o de
Opet, as imagens das divindades deixavam os templos e,
em pequenos santuários em forma de barca, eram
carregadas nos ombros dos sacerdotes de onde, de acordo
com o ritual, estariam acessíveis aos outros segmentos da
357
sociedade egípcia. Entretanto, a imagem do deus não era
visível, com a exceção possível do deus Min (divindade
parecida com Amon tendo o falo ereto). Durante o festival
de Opet, que anualmente rejuvenescia o deus e o rei,
Amon-Ra do templo de Karnak viajava até o templo de
Luxor (a poucos quilômetros) e, em cortejo, o santuário da
barca no qual o deus estava encerrado, podia ser visto pela
população que acompanhava o cerimonial; em dado
momento, Amon-Ra fornecia respostas através de oráculos
e era acessível às preocupações humanas. Mesmo assim,
esta imagem do deus nŌo podia ser vista” (2016, p. 268).
A parte processional era uma característica comum nos festivais,
sendo que o trajeto percorrido era variado podendo ser realizado
entre dois pontos estabelecidos ou então visitar outros templos
próximos ao seu.
Quando cumprida em solo, o percurso poderia ser subdividido com o
estabelecimento de paradas obrigatórias que se davam por um curto
espaço de tempo para a realização de rituais, sendo que algumas das
estruturas eram montadas especialmente para essa circunstância.
Entretanto, outras, eram integrantes do próprio espaço, de caráter e
uso permanente pelos moradores locais sendo incorporadas e
desfrutadas como fração do caminho do séquito. Essas serviam
também como descanso para os carregadores que se restabeleciam
do cansaço do peso sobre seus ombros.
Uma das vias processionais mais grandiosa trilhada durante os
festejos era a do trajeto que ligava Karnak a Luxor, utilizada durante
festa de Opet, a qual contava com uma avenida ladeada com várias
esfinges que culminava com o templo do deus Amon.
Temos também as procissões fluviais que se davam nas águas
sagradas do rio Nilo, quando inúmeros barcos se moviam seguindo a
barca que transportava a imagem do deus(a). Muitas saíam do ponto
inicial, outras, ficam esperando no meio do percurso integrando-se
as demais. A que acontecia em honra a deusa gato Bastet, na cidade
de Bubástis, era nessa perspectiva.
Para participarem dessas horas de laudação muitos indivíduos se
deslocavam de longas distâncias, fazendo com que o festejar se
transmutassem muitas vezes em „festas de peregrinaçŌo', pois
358
pessoas de várias partes do território saíam em direção ao local da
celebração, sendo que nesse caso não eram as estradas ou caminhos
que eles utilizavam, mas sim o rio Nilo o qual servia de elo ligação
entre o ponto de partida e o de chegada.
Destaca-se que essas não eram as únicas oportunidades de
comemoração que estavam presente entre os egípcios, pois também
encontramos outras modalidades de festas, ou heb, que poderiam
ser de cunho privado ou público, civil ou particular.
Um elemento que deve ser lembrado em relação a intensidade dos
festejos é que ela não era a mesma nas várias localidades egípcias,
referência cuja explicação pode ser estabelecida a partir de sua
configuração urbana, pois a mesma estava dividida em cidades
(niwt) e aldeias (dmi), visto que possuíam funções distintas no
conjunto do Estado faraônico e, consequentemente, sua própria
estrutura já era uma restrição para que algumas das fases
comemorativas acontecessem. Nesse caso temos como referência a
supremacia dos festivais que se davam em cidades como Tebas,
Bubástis e Menfis.
Outro aspecto a salientar no que se refere a intensidade das
comemorações, é que elas intercorriam de forma sincrônica, ou seja,
aconteciam em distintos lugares numa mesma temporalidade o que
contribuía para que a sua grandeza se fizesse nos centros maiores
em detrimento das menores.
Essas eram bastante musicalizadas com sons provenientes de
instrumentos como sistros, crotálos, pandeiros, tamborins, harpas e
flautas, que proporcionavam inspiração às dançarinas que
esbanjavam sensualidade nos movimentos corporais quando braços
e pernas executavam coreografias e performances num jogo de
sentidos estimulando a atenção dos presentes. Tanto a música
quanto a dança eram utilizadas como forma de comunicação
renovando os laços entre os terrenos com os seus superiores. Muitos
hinos eram recitados em vários momentos, visto que através da
música se afastava e acalmava forças temíveis que tentassem agir
durante a realização dos ritos, chamando para a presença do divino.
E é, a partir das inscrições contidas no interior dos templos, nas
estelas, estátuas, túmulos, papiros e ostracas que obtemos
informações a respeito dos antigos festivais egípcios, cujos
359
calendários festivos mais antigos conhecidos remontam ao período
da quinta dinastia (2479-2311), sendo que o mais completo e
preservado é o que se encontra registrado no Templo de Milhões de
Anos do faraó Ramsés III (1194-1163), em Medinet Habu.
Na obra de Heródoto intitulada Histórias, também encontramos
menção às comemorações festivas religiosas que se passaram em
algumas das cidades da terra dos faraós. Assim escreveu o autor:
“Os Egípcios celebram todos os anos grande número de
festas. A mais importante e cujo cerimonial é observado
com maior zelo é a que se realiza em Bubástis, vindo em
segundo lugar Heliópolis, em honra a Ísis. Em Bubástis,
situada no meio do delta, existe um grande templo
consagrado à referida deusa, que em grego se denomina
Deméter. A festa de Minerva, celebrada em Saís, é a
terceira em importância. A quarta se realiza em Heliópolis,
em honra ao Sol; a quinta em Buto, em louvor de Latona, e,
finalmente, a sexta em Paprémis, dedicada a Marte” (1964,
p. 139).
Outro documento que ficou registrado sobre os festivais é a Estela de
Ikhernofret, que traz informações a respeito do Festival de Osíris
que acontecia na cidade de Abidos, na qual encontramos elementos
relacionados a preparação da comemoração que se subdivide em três
etapas: a batalha travada pelo deus e a derrota dos seus inimigos, a
sua morte e a transferência de seu corpo ao túmulo em Peker, e o seu
renascimento ao amanhecer.
A interpretação que se dá a esse festival é que com a derrota dos
inimigos de Osíris, confirmaria a elevação do faraó como o único e
legítimo herdeiro de sua posiçŌo como o „Senhor dos egípcios‟. Essas
passagens relatadas na estela foram encenadas durante todo o
período que o evento foi realizado, ou seja, ao longo de quase dois
mil anos, como forma de rememorar a importância e a força desse
personagem na sociedade faraônica.
Joaquím Barceló, quando analisou as celebrações festivas que se
passaram nas sociedades do mundo antigo, escreveu que
“el sentido originário de la celebración festiva exige
entender la acción humana em relación directa com lo
360
divino, porque sin la intervención de los dioses los esfurzos
humanos no puedem prosperar ni dar frutos” (1998, p.81).
Ainda, de acordo com o autor,
“en la fiesta correspondiente, al hombre se le brinda la
oportunidad de participar en una obra divina, la de re-crear
una realidad y de restablecer su orden originario,
haciéndole así colaborador de los dioses” (1998, p.81).
Normalmente, os festivais religiosos eram regados pelo consumo
exacerbado de bebidas, tais como o vinho e cerveja, como também
de pão, carne e frutas, sendo que os alimentos, algumas vezes, eram
oferecidos pelos sacerdotes. Nessa ocasião, havia a liberação para o
consumo de peixe, o que não acontecia no restante do ano, pois a
ingestão desse animal aquático era restringida em diversas partes do
território egípcio, devido ao tabu imposto fundamentado pelo mito
de Osíris, pois foi um peixe que comeu o falo dessa divindade.
Por fim, vale dizer que os festivais eram uma forma de transmissão
de elementos da religiosidade egípcia, na preservação de valores e
crenças de uma sociedade que muito foi buscada no sentido de
compreensão, além de que, eram aplicados como um instrumento de
legitimação do poder por parte de poucos numa terra de muitos.
Referências
Maura Regina Petruski é professora doutora do departamento de
História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Email: mpetruski@uol.com.br
BARCELÓ, Joaquim. El Sentido Religioso de la Fiesta em el
Mundo Antiguo. In: GRAMMATICO, G. et alli. (eds.). La Fiesta
como el Tiempo del Dios. Santiago: CEC, 1998. p.77-86.
DAVID, A. Rosalie & MACHADO, Angela. Religião e Magia no
Egito Antigo. Rio de Janeiro:Difel, 2009.
FILORAMO, Giovanni e PRANDI, Carlo. As ciências das
religiões. 3ª ed. SP: Paulus, 2003.
GRALHA, Júlio. Aspectos da divindade no Egito (Reino Novo)
Iconografia e a imagem como elemento de culto nas relações deus
humanidade e deus-faraó. Revista Mundo Antigo – Ano V,
Volume V, Número 09, 2016. p. 265- 280.
HERÓDOTO. Histórias. Clássicos Jackson, 1964.
361
362
PIRATAS JUDEUS NA ANTIGUIDADE
Nelson Rocha Neto
O termo Hebreu tem origens obscuras em Éber ou Heber,
designação para uma região da Síria e da Palestina, como também
um povo. Em seu sentido primitivo foi proposta a etimologia Ibri,
"aquele que vem do outro lado" (dos rios Eufrates ou Jordão). O
historiador Isaías Golgher, apropriou-se deste pensamento para
ilustrar o ato de "atravessar ou transpor", dando-lhes igualmente o
sentido de "emigrante”, “apátrida" ou "escravo", evidenciando a
linhagem de Abraão como semelhante à Habiru. Os Habirus ou
Hapirus constam em variada documentação como distintos
agrupamentos, semitas ou não. No entanto, as sociedades acadianas,
ugaríticas e egípcias designavam “estrangeiros” os grupos sociais
considerados intoleráveis e impossibilitados de estabelecerem-se
como povo. [Guérios, 1987, p. 14].
Ao longo da Antiguidade Oriental, o convívio com os povos
dominantes proporcionou aos viandantes hebreus transitarem
dentre os muitos grupos: escravizados, comerciantes, tropas
soldadescas, saqueadores, etc., até estabelecerem o laço de unidade
grupal, formulando novas concepções de mundo. Assim, a
proximidade com os fenícios “escumadores dos mares”, progrediu
em meio à diplomacia. Os primeiros reis israelitas abasteciam-se de
matéria-prima e negociavam a mão de obra na construção de
embarcações com o povo que ultrapassou as “Colunas de Hércules”.
Porquanto, desde a Antiguidade, as três vocações interdependentes
coexistiram no mesmo indivíduo: marinheiro-pirata-mercador.
Contudo o rei Davi, filho de Jessé, edificou o sentimento unitário
entre os judeus, embora houvesse divergências entre as tribos desde
os tempos do rei Saul. Unificou o reino de Judá, cineus, iemareus e
demais povos não hebreus. Após a conquista de Jerusalém, a
manutenção do Estado tornou-se instável: os mercenários exigiam
pagamento e os recursos para as obras escasseavam. Assim, o
desenlace foi perpetuar uma política expansionista, subjugando e
despojando os inimigos. Cabe ressaltar a débil territorialidade do
reino de Davi, se comparado aos impérios egípcios, babilônicos ou
hititas. Porém, atingiu o ápice da região em séculos. [Pinsky, 2001].
363
Somente por volta da Dinastia Hasmoneana (140-37 a.e.c.), os
judeus puderam desfrutar de um porto marítimo. Desejosos em
estender os domínios de Israel, iniciaram o processo de conversão
obrigatória aos povoados subjugados. Simão Macabeu, sumo
sacerdote e general, após conquistar o porto de Jope, desempenhou
um importante papel na implementação da vocação marítima
[Cohén, 2010]:
“[...] este puerto, el principal de los Asmoneos, sirvió
efectivamente de asilo a las fortificaciones piratas. En cierto
modo la misma piratería puede juzgarse un hecho
"oriental" por sus orígenes y vínculos portuarios, pero
sobre todo por la explicación política de sus diversas
funciones: em cuanto tal, la piratería se ajustaba a la
doctrina política esencialmente "oriental" de Alejandro
Janeo”. [Paul, 1986, p. 187].
Logo, um dos seus filhos, João Hircano tomou o porto de Asdode,
“antigua ciudad filistea situada a cuatro kilómetros del litoral
meridional [...] fue capital de la región y fortaleza hasta los
Asmoneos”. [Paul, 1982, p. 194]. Em seguida, o primeiro rei da
dinastia, Alexandre Janeu, anexou os portos de Gaza e da Torre de
Strato (ou Cesarea). [Cohén, 2010]. Desta forma, recrutaram uma
tropa de marinheiros para préstimo real:
“[...] los piratas se reclutaban sobre todo en Cilicia, donde
estaban sus bases de adiestramiento (“cilicio” era sinônimo
de “pirata”). Pues bien, entre los mercenarios de Alejandro
Janeo abundaban los naturales de Cilicia”. [Paul, 1986, p.
187].
O historiador Flávio Josefo, judeu helenizado, pormenorizou em sua
obra, Antiguidades dos Judeus, as escaramuças dos piratas judeus
contra os romanos e a transição para uma vida marinheiresca como
uma subdivisão da sociedade:
“[...] um grande número de judeus, tanto dos que se haviam
revoltado contra os romanos, como dos que haviam fugido
para as cidades de que se haviam apoderado, reconstruíram
Jope, que Céstio havia destruído e, não podendo encontrar
com o que viver em terra, por causa da devastação dos
campos, construíram um grande número de pequenos
364
navios, puseram-se ao mar e percorrendo as costas da
Fenícia, da Síria e mesmo do Egito, perturbaram com sua
pirataria, todo o comércio daqueles mares”. [Josefo, 2004,
cap. 29].
Destarte, Josefo menciona a acusação de Hircano II, direcionada ao
seu irmão Aristóbulo II envolvido em atos de pirataria. Os filhos do
rei Alexandre Janeu disputavam um litígio sobre a forma de governo
que adotariam. Para Pompeu: “[...] equivalía a identificar su
actividad con la de los reyes antirromanos, Tigrano y Mitrídates que
mantenían estrechos lazos con los piratas”. [Paul, 1986, p. 186]. Por
conseguinte, formou-se na cidade de Damasco uma assembleia
mediada por Pompeu, onde se reuniram os embaixadores de toda a
Síria, do Egito e da Judéia:
“[...] Hircano queixava-se de que, sendo o mais velho,
Aristóbulo queria privá-lo do que lhe pertencia por direito
de nascimento e obrigá-lo a se contentar com uma pequena
parte, usurpando todo o resto; que ele fazia incursões pelas
terras contra os povos vizinhos e praticava a pirataria nos
mares; que não se precisava de outra prova de seu mau
caráter, de sua violência e de seu partidarismo senão o fato
de haver levado o povo a se revoltar [...]”. [Josefo, 2004,
cap. 5].
Não obstante, outra evidência da pirataria judaica do período
Macabeu, século I a.e.c., encontra-se gravada na câmara funerária de
Jasão, em Jerusalém. Dentre as lamentações grafadas em grego e
aramaico, há uma menção sobre a travessia de Jasão para a costa do
Egito. Também, um mural em carvão vegetal evoca a imagem de
dois navios de guerra perseguindo uma embarcação. Estudiosos
especulam que Jasão, filho de Pinhas, possa ter sido um comandante
saduceu, marinheiro, comerciante ou pirata. [Schmidt, 1998].
Outro episódio de pirataria está na descrição de Josefo sobre Anileu
(Anilaios) e Asineu (Asinaios), irmãos órfãos judeus oriundos de
Neerda, na província da Babilônia. Margeada pelo rio Eufrates e
fortificada, a cidade servia como entreposto de todo o erário que
destinava a Jerusalém, pois não estava à mercê dos inimigos. Neerda
contava com a proteção da cidade de Nisibe, ambas anexadas ao
Império Parta (ou Arsácida). [Sommer, 2009].
365
As façanhas dos mandriões relatadas pelo cronista, contam que após
serem espancados pelo seu senhor ao chegarem repetidamente
atrasados para o trabalho, Anileu e Asineu, voltam-se para o
banditismo, refugiam-se nos pântanos do Eufrates e lideram um
grande número de judeus renegados, fundando um principado de
piratas:
“Construíram depois um forte, de onde mandavam pedir
aos habitantes dos países vizinhos uma contribuição, tanto
em gado como quanto em outras coisas necessárias para a
sua subsistência, com a promessa de defendê-los contra os
que os quisessem atacar, se os atendessem, e com ameaça
de matar os seus rebanhos, caso nŌo o fizessem”. [Josefo,
2004, cap. 12].
Ao ser noticiado sobre o despotismo dos irmãos e seus partidários, o
rei parta Artabano II, destacou soldados para que os eliminassem
em um sábado. Não obtendo sucesso em seu intento, Artabano II
estabeleceu uma aliança com os piratas judeus para manter os
sátrapas sob vigilância, preservado de ladrões e outras
“calamidades”, confiando-lhes o controle do território babilônico
que já ocupavam. Assim, formaram um Estado semi-autônomo ao
longo de quinze anos.
A ruína da “colônia pirata” iniciou com o casamento de Anileu com a
viúva de um general parta, o qual matou em batalha. Os costumes
pagãos da esposa de Anileu encontraram a desaprovação entre o
bando e semeou dissensões. Asineu acabou envenenado pela
cunhada por causa de suas declarações a respeito dos seus hábitos.
Logo, Anileu acumulou toda autoridade e liderança das tropas,
entrando em confronto com Mitrídates:
“[...] que era uma das principais autoridades entre os
partos e genro do rei Artabano. Saqueou o seu território,
tomando um grande número de despojos, tanto em
dinheiro quanto em escravos, animais e outras coisas de
valor. Mitrídates, que então não estava afastado dali, ao ser
informado de que Anileu tomara as suas vilas sem motivo,
ficou enfurecido com aquela injúria e reuniu o maior
número possível de soldados [...]”. [Josefo, 2004, cap. 12].
366
Após submeter Mitrídates à humilhaçŌo como “montar nu sobre um
burro, o que entre os partos é a maior das ignomínias” [Josefo,
2004, cap. 12], Anileu poupou a vida daquele que considerava um
dos maiores generais e receava uma vingança desproporcional por
parte do rei aos judeus da Babilônia, onde estava homiziado:
“[...] investiam contra alguns castelos e devastavam toda a
região ao redor. Os babilônios, vendo-se tratados daquela
maneira, solicitaram aos judeus de Neerda que lhes
entregassem Anileu. Estes, porém, responderam que isso
não estava em seu poder, e os babilônios insistiram em que
pelo menos tratassem com ele algumas condições de paz.
Os judeus o prometeram e enviaram imediatamente a ele
alguns deputados, acompanhados por representantes dos
babilônios. Estes, após observar o lugar para onde Anileu
se retirava, mataram-no durante a noite, bem como aos que
estavam com ele. Nisso não correram risco algum, porque
aqueles homens estavam todos embriagados”. [Josefo,
2004, cap. 12].
Portanto, a multiplicidade das práticas e leis exacerbou contínuas
divergências nas relações entre babilônios e judeus. Após o
assassinato de Anileu e a desarticulação do seu bando, o receio dos
seus adversários findou. Artabano nomeou os irmãos piratas como
generais com o intuito de frear uma conspiração sátrapa e
aristocrática. Oferecendo apoio a comunidade judaica na Babilônia,
Artabano preservou o seu poder e jogou vários grupos rivais uns
contra os outros. O casamento de Anileu com a viúva de um oficial
parto constituiu uma tentativa de se lançar à política dinástica.
Finalmente, a apostasia de Anileu, instigada por sua esposa, e suas
ações posteriores, indica que os irmãos fomentavam o judaísmo
hostilmente em seu território. [Sommer, 2009].
Finalmente, os homens do mar ao longo da história distinguiram-se
pela insatisfação social, instabilidade entre as relações de poder,
insubmissão as leis e a servidão. Embora não estivessem apartados
inteiramente da sociedade, a infração de transporem-se da terra
para a água constituiu no domínio do antimundo, um lugar
malfadado pela imaginação dos povos. O limiar dessa transição pela
água representa a dualidade da visão da vida pirática:
367
“O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira
que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal
onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode
efetuar a passagem do mundo profano para o mundo
sagrado. [...] É também no limiar que certas culturas
paleoorientais (Babilônia, Egito, Israel) situavam o
julgamento. O limiar, a porta, mostra de uma maneira
imediata e concreta a solução de continuidade do espaço
[...]”. [Eliade, 1992, p. 19].
Entretanto, numa sociedade pirata, as relações sociais se
reproduziam
na
embarcação,
sua
revolta
interpretada
descompassadamente no tempo marítimo, na violência, na divisão
de trabalho, despontando um mundo flutuante, representação dos
devaneios coletivos em terra firme: hierarquia, subserviência e
escravidão. Não fixar-se num território veiculava a ideia de
transgressão e insurgência, tanto para a comunidade como para o
indivíduo. O dilaceramento das relações entre as sociedades
possibilitou aos piratas transformarem o madeirame das
embarcações num mundo edênico no qual se optou socializar por
vias turvas. Dividindo um enorme contingente, condensavam as
incoerências da vida em sociedade. Além das violências contra as
populações costeiras, os saques as embarcações, proliferações de
moléstias, deserções e pagamentos por serviços prestados, grosso
modo, a pirataria revelou uma faceta da condição humana sob a
indiferença das regras de condutas sociais ou sagradas. Os conveses
transformaram-se em espaços de socialização para variadas etnias
relegadas às margens sociais. Sem demora ligaram os continentes,
desbravando as relações humanas a partir do momento em que os
primeiros piratas, “que vieram do outro lado”, removeram a rocha
que obstruía a “boca de Tehom”.
Referências
Nelson Rocha Neto é graduado em História e especialista em
História Cultural pela Universidade Tuiuti do Paraná.
E-mail: nelsonrochaneto@gmail.com
COHÉN, José Chocrón. Historias de piratas, corsarios y bucaneros.
Maguén-Escudo. Revista trimestral de la Asociación israelita de
Venezuela y el centro de estudios sefardíes de Caracas. n. 156,
jul./sep. 2010. p. 32-38.
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Fontes, 1992.
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. São Paulo: CPAD, 2004.
GUÉRIOS, R. F. Mansur. As línguas semíticas. Revista Letras.
Curitiba: UFPR, v. 36, 1987. p. 3-23.
PAUL, Andre. El mundo judío en tiempos de Jesús. Historia
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PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Contexto,
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SOMMER, Michael. In the twilight. Hatra between Rome and Iran.
In: DIRVEN, Lucinda. Hatra: politics, culture and religion between
Parthia and Rome. University of Amsterdam, 2009. p. 33-42.
369
370
OLHARES CRUZADOS: JAPÃO E PORTUGAL
Newton Ribeiro Machado Neto
No século XVI, o Japão era um lugar lendário nos confins da Ásia,
do qual pouco se sabia. Marco Polo o descreveu como um lugar rico
em ouro e pérolas, habitado por pessoas educadas e belicosas. Seu
relato estimulou Cristóvão Colombo a buscar uma rota ocidental
para o fabuloso arquipélago. Contudo, somente em 1543 os
portugueses conseguiriam enfim chegar ao Japão, iniciando uma
história de encontros, conflitos e aprendizados.
Portugal no século XVI
Ao final do século XV, a Península Ibérica vivia um momento de
transformação. Os portugueses iniciaram em 1415 sua expansão
marítima, com a conquista de Ceuta, no norte da África. Os
espanhóis haviam retomado Granada, último reduto mouro na
península. Em 1494, os dois reinos dividiram as terras “descobertas
e a descobrir” no Tratado de Tordesilhas. A descoberta do caminho
marítimo para as Índias por Vasco da Gama em 1499 permitiu o
acesso às riquezas da Ásia, expandindo as rotas comerciais até a
Malásia, Indonésia e China.
Com a expansão do comércio, expandiu-se o cristianismo. Segundo o
Padre Antonio Vieira, “os pregadores levam a Fé aos reinos
estranhos, e o comércio leva às costas os pregadores” [Vieira, 1718]
Esta associação entre comércio e religião marcaria a presença
portuguesa no mundo, em especial no Japão. Os vínculos entre
Igreja e Estado fortaleceram-se com a criação da Companhia de
Jesus em 1534. O rei Dom João II acolheu a nova ordem religiosa e
incorporou os jesuítas nos planos de expansão portuguesa,
estabelecendo-os nos pontos mais distantes do Império Português.
O Japão no século XVI
Enquanto os portugueses avançavam pelos mares, o Japão vivia o
final de um longo período de conflitos internos. O imperador era
apenas uma figura decorativa; o poder político de facto passou às
mãos da classe guerreira desde o estabelecimento do shogunato
Kamakura em 1135. Com sua queda em 1333, o Japão entrou em
permanente estado de guerra, com os senhores feudais lutando entre
si pelo comando do país. No final do século XVI, emergiram três
daimyos que contribuíram para unificar o país e encerrar o longo
371
período de guerra: Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa
Ieyasu, os três unificadores, que tiveram papel relevante no
relacionamento entre portugueses e japoneses.
Primeiros Contatos
O “século cristŌo do JapŌo” [Boxer, 1967] começou com a chegada
dos primeiros portugueses em 1543. Fernão Mendes Pinto, ao
descrever seus habitantes, diz que “toda a gente do JapŌo é
naturalmente bem inclinada e conversadora” [Pinto, 1614, 134],
acrescentando que eram corteses, hospitaleiros e curiosos em
conhecer mais sobre os bárbaros que chegaram em suas praias. Os
japoneses são menos elogiosos: as Crônicas Teppo-Ki (“Relatos das
Armas de Fogo”), escritas em 1606, relatam que
“sŌo comerciantes, compreendem até certo ponto a
distinção entre inferior e superior, mas não sei se existe
entre eles um sistema próprio de etiqueta. [...] São gente
que passa a vida errando de aqui para além, sem morada
certa, e trocam as coisas que possuem pelas que não têm,
mas no fundo são gente que não faz mal” [Sadler, 2016].
Neste primeiro contato, um fato marcou a história do Japão. Ao
presenciar um dos portugueses caçando com um arcabuz, que
desconheciam, os japoneses perceberam sua utilidade e insistiram
em adquirir alguns. Fernão Mendes Pinto descreve a descoberta das
armas de fogo pelos japoneses:
“um dos três que éramos, por nome Diogo Zeimoto, tomava
algumas vezes por passatempo tirar com uma espingarda
que tinha de sua [...] e na qual era assaz destro. E acertando
um dia de ir ter a um pau onde havia grande soma de aves
de toda a sorte, matou nele com a munição umas vinte e
seis marrecas. Os Japões vendo aquele novo modo de tiros
[...] não se sabiam determinar com que aquilo era, nem
entendiam o segredo da pólvora, e assentaram todos que
era feitiçaria” [Pinto, 1614].
Os japoneses aprenderam a utilizar os arcabuzes e a fabricá-los; após
alguns anos, estimava-se que havia no Japão mais de 30.000 deles
[Pinto, 1614, 294]. As armas de fogo transformaram as táticas
militares e permitiram que o unificador Oda Nobunaga superasse
seus rivais e consolidasse seu poder sobre o Japão. O sucesso dos
372
japoneses na produção de armamentos foi tão grande que, séculos
depois, os vendiam aos próprios portugueses, como relatou o
escritor Wenceslau de Moraes:
“[...] tendo vindo ao Japão em 1893, comissionado pelo
governo de Macau, para comprar, num dos arsenais do
império, algumas peças de artilharia de montanha para
aquela colónia portuguesa, não pode reter neste momento
um sorriso, considerada a circunstância de ter vindo ele
pedir armas de fogo aos japoneses, quando foi Diogo
Zeymoto quem ofereceu aos japoneses a primeira arma de
fogo que eles viram!... [Moraes, 2004].
A Chegada dos Jesuítas
Em 1549, chegou ao Japão outra personagem de profunda relevância
no relacionamento entre portugueses e japoneses: o padre jesuíta
espanhol Francisco de Jasso y Azpilicueta, hoje conhecido como São
Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia de Jesus e o
principal responsável pela difusão do cristianismo na Ásia.
Acompanhado de um japonês convertido, Xavier desembarcou com
o intuito de disseminar o catolicismo, reforçando a posição da Igreja
e fortalecendo as relações comerciais entre Portugal e Japão.
A recepção inicial aos ensinamentos de Xavier foi promissora. Os
japoneses, interessados no comércio com os portugueses,
mostravam-se ansiosos por se converterem ao catolicismo. O
sucesso surpreendeu Xavier, ao ponto de declarar, de forma
otimista, que os japoneses eram “la mejor [gente] que hasta agora
está descubierta” [Xavier, 1549]. Ao deixar o Japão em 1551, havia
ali um pequeno grupo de cerca de mil convertidos, que em pouco
tempo se tornaria uma das maiores comunidades católicas da Ásia.
A vinda dos navios portugueses permitiu aos daimyos japoneses
obterem mercadorias como seda armamentos, além de produtos da
Ásia, Índia e Europa. Para assegurar esse lucrativo comércio, os
daimyos competiam entre si para oferecer aos portugueses
condições privilegiadas como ancoradouros e terrenos para a
construção de feitorias. A própria conversão ao catolicismo do
daimyo e de seus vassalos foi utilizada como moeda de troca, para
assegurar a boa vontade dos padres jesuítas e suas conexões com os
comerciantes portugueses.
373
Os japoneses nunca haviam visto embarcações do porte dos galeões
portugueses. Os costumes, trajes e diversidade étnica da tripulação,
que incluia portugueses, malaios, indianos e africanos, causavam
curiosidade e estranhamento, registrados em uma vertente da arte
japonesa dos séculos XVI e XVII, denominada a Arte Nanban, ou a
“arte dos bárbaros do sul”.
A Arte Nanban
A temática Nanban introduziu no cenário artístico japonês situações
do cotidiano, em uma arte então caracterizada por temas religiosos
ou literários. Segundo a historiadora Alexandra Curvelo, da
Universidade Nova de Lisboa, os artistas retratavam o exotismo dos
portugueses, sem qualquer intervenção destes, o que realça o
aspecto documental da arte nanban [Pereira, 2017]. Os objetos
nanban são registros detalhados da aparência dos portugueses do
período, sua indumentária, costumes e até o desenho de seus navios.
Biombos Nanban
As melhores representações dos portugueses no Japão são os
biombos Nanban. Nestas obras, as técnicas de desenho e pintura
japonesa são utilizadas para retratar a chegada dos navios europeus.
Cada painel conta uma parte da história, como se observa no
conjunto formado por dois painéis de seis folhas do Metropolitan
Museum of Art de Nova Iorque. São um registro fiel do momento e
permitem conhecer detalhadamente os trajes, a hierarquia e os
costumes dos portugueses, pela ótica dos japoneses.
https://goo.gl/3XYCsu
374
O Nanban nas Artes Decorativas
As peças decoradas com motivos europeus tornaram-se populares na
elite japonesa. Além dos biombos, a arte nanban passou a decorar
outros objetos da vida cotidiana, como caixas, frascos, bolsas e
acessórios de vestuário.
Armamentos
Outra aplicação da temática nanban ocorreu no desenho e na
decoração de armamentos. Mesmo itens tradicionalmente
japoneses, como espadas e armaduras, foram afetadas pelo contato
com os portugueses. A produção de arcabuzes tornou-se uma
indústria de grandes proporções. Baseando-se nos modelos
europeus, os armeiros japoneses criaram seus próprios arcabuses, de
qualidade superior à dos originais [Perrin, 1988].
https://goo.gl/1rswpf
As armas de fogo transformaram a estratégia militar japonesa. Na
batalha de Nagashino, ocorrida em 1575, Oda Nobunaga venceu o clã
Takeda, famoso pelo poderio de sua cavalaria, ao utilizar armas de
fogo de forma similar à empregada pelos exércitos ocidentais. Este
375
ponto de inflexão na arte da guerra japonesa foi imortalizado pelo
cineasta Akira Kurosawa no filme Kagemusha (1980).
As armas de fogo também afetaram a produção de armaduras
samurais. Os modelos tradicionais, feita de placas de metal unidas
por fios de seda, eram ineficazes contra as balas dos arcabuzes.
Assim, os armeiros japoneses passaram a incorporar elementos das
armaduras utilizadas pelos soldados portugueses, com as placas de
metal substituídas por uma couraça inteiriça cobrindo toda a região
do tórax. Os elaborados elmos deram lugar a modelos cônicos e
lisos, semelhantes aos usados pelos portugueses. Itens como as
guardas de espada também incorporaram a estética nanban.
https://goo.gl/EkMnx3
Viajantes Japoneses na Europa
O intercâmbio entre Japão e Europa não se limitou ao comércio. Nos
navios portugueses viajaram também os primeiros japoneses a
visitar a Europa. O primeiro japonês a fazer a longa viagem até a
Europa foi Bernardo de Kagoshima, convertido por São Francisco
376
Xavier. Bernardo acompanhou o missionário e chegou a Lisboa em
1553, onde tornou-se noviço jesuíta e iniciou estudos em Coimbra.
Visitou Roma em 1555 e conheceu Ignácio de Loyola, o fundador da
Companhia de Jesus. Faleceu em Lisboa em 1557, sem voltar ao
Japão.
Em 1582, uma missão composta por quatro adolescentes japoneses
convertidos ao cristianismo visitou a Europa. Os jovens deixaram
Nagasaki e passaram por Macau e Goa, chegando a Lisboa em 1584.
Foram recebidos na Espanha pelo rei Felipe II, então soberano de
Portugal, e pelo Papa Gregório XIII em Roma, ao qual entregaram
um presente de Oda Nobunaga: um biombo da mesma Escola Kano
que produziu as peças retratando os portugueses. Este biombo foi
provavelmente a primeira obra de arte japonesa a chegar à Europa.
https://goo.gl/tuQyBN
A embaixada gerou as primeiras representações de japoneses por
artistas europeus. Na gravura alemã acima, observa-se a dificuldade
em registrar os traços faciais e a testa raspada dos jovens de famílias
samurai, que aparecem vestidos com roupas européias da época. Em
sua longa viagem pela Europa, os jovens visitaram 70 cidades em
Portugal, Espanha e Itália. Retornaram ao Japão carregados de
presentes, além de uma prensa e muitos livros e pinturas, que
seriam reproduzidas e usadas na catequização.
As pinturas européias trazidas pelos jovens destinavam-se a um
seminário de pintura. Este seminário, fundado em Kagoshima pelo
377
jesuíta italiano Giovanni Niccolò em 1590, ensinava técnicas
ocidentais de pintura em aquarela e óleo e produzia as imagens
religiosas que os missionários tanto necessitavam. Ao contrário da
arte nanban, concebida sob uma perspectiva japonesa, as imagens
produzidas pelos aprendizes de Niccolò seguiam os padrões da
pintura sacra européia.
No relatório de 1593, os jesuítas afirmam que as obras produzidas no
Seminário eram de excelente qualidade, a ponto de não serem
diferenciáveis das produzidas na Europa. Apesar de seu objetivo ser
a reprodução em massa de modelos europeus, logo as técnicas
ocidentais foram dominadas pelos aprendizes, introduzindo um
estilo japonês na representação das imagens sacras. Segundo a
historiadora Alexandra Curvelo, tinha
“vários alunos japoneses a aprender pintura com
iconografia ocidental, a modulação do claro escuro, da luz e
da sombra, a adoção da perspetiva ocidental, com ponto de
fuga: as implicações que isto tem, inclusivamente da
representaçŌo do mundo, sŌo imensas” [Pereira, 2017].
Algumas pinturas produzidas no Seminário foram enviadas à
Europa para comprovar a habilidade dos aprendizes japoneses.
Talvez hoje repousem em alguma igreja portuguesa, sem que os fiéis
conheçam sua origem. No Japão poucos exemplares sobreviveram à
feroz perseguição movida contra os católicos em meados do século
XVII. Os que restaram, contudo, são magníficos exemplos da
aplicação dos padrões artísticos europeus no ambiente japonês,
formando uma mescla de estilos que torna a arte nanban apreciada
não apenas pela importância histórica, mas também pela elevada
qualidade estética.
378
https://goo.gl/28kqoU
Em 1613, uma nova embaixada japonesa foi enviada para estabelecer
relações comerciais com a Espanha e reforçar o cristianismo no
Japão. O samurai Hasekura Tsunenaga foi escolhido para liderar a
missão. Chegando à Europa, Hasekura converteu-se ao catolicismo e
encontrou-se com o Rei Felipe III da Espanha e com o Papa Paulo V.
Quando a embaixada iria retornar ao Japão, em 1616, o ambiente
político havia mudado radicalmente. O shogunato Tokugawa havia
determinado a expulsão dos missionários católicos e passou a
perseguir e executar seus seguidores. Alguns dos integrantes da
embaixada, convertidos ao catolicismo, preferiram ficar na Espanha
por temerem as perseguições. Ainda hoje seus descendentes, que
adotaram o sobrenome Japón, moram em Coría del Rio, próximo de
Sevilha. Hasekura, porém, retornou apesar das ameaças, tendo sido
martirizado com sua família. A Embaixada Hasekura foi esquecida
no Japão, até que em 1873 uma nova missão, enviada após a
reabertura do país ao mundo, espantou-se ao saber que japoneses
haviam visitado a Europa séculos antes.
A visita de Hasekura foi registrada em várias obras. A mais notável é
o retrato pintado por Claude Deruet em 1615. Um dos expoentes do
Barroco francês, Deruet estudava na Itália quando a embaixada
japonesa chegou ao país. O retrato, de elevada qualidade técnica, é
um excelente registro da visita de Hasekura, equilibrando o
exotismo da indumentária com elementos tradicionais da pintura
européia.
379
https://goo.gl/kyMUxs
O Fim do Século Católico
Toyotomi Hideyoshi, o segundo unificador do Japão, permitiu que a
atividade religiosa prosseguisse, para não prejudicar o comércio com
os europeus. Contudo, em 1597, determinou a execução de religiosos
e leigos em Nagasaki. Estes foram denominados os 26 Mártires do
Japão, posteriormente beatificados em 1627 e canonizados em 1862.
A partir deste incidente, “as imagens felizes do encontro dos
portugueses com os japoneses foram apagadas pelas imagens
sangrentas das perseguições” [Kuniyoshi, 1998].
A ascensão de Tokugawa Ieyasu, o terceiro unificador, intensificou
as perseguições aos católicos. Embora tentassem manter o comércio
com os portugueses, os governantes japoneses ampliaram as
restrições, culminando com a expulsão dos religiosos. Uma prática
foi criada para identificar os fiéis: o ritual do fumie. Neste ritual,
oficiais do shogunato exigiam que os suspeitos de serem católicos
380
pisassem numa imagem de metal retratando algum tema religioso.
Aqueles que se recusassem a pisar eram imediatamente executados.
O fumie e as perseguições sofridas pelos católicos japoneses são
mostrados de forma dramatizada no filme “Silêncio”, de Martin
Scorcese (2016).
https://goo.gl/zLJ8R2
Muitos exemplares dessas imagens sobreviveram no Japão,
atestando seu uso disseminado. O que distingue os fumie é o fato de
serem uma forma de arte religiosa, feita no Japão e por artistas
japoneses. Pela variedade e detalhamento das imagens, os fumie
foram certamente inspirados em modelos europeus. Contudo, ao
contrário das imagens produzidas no Seminário de Giovanni
Niccolò, os fumie destinavam-se não à adoração ou à decoração, mas
sim à apostasia, ou seja, à manifestação da renúncia à fé católica.
A repressão pelo shogunato Tokugawa levou ao surgimento de um
novo movimento entre os católicos japoneses: os Kakure Kurishitan,
ou “cristŌos ocultos”. Praticavam o catolicismo em segredo,
enquanto diziam-se budistas e realizavam o fumie sempre que
requerido. Os cristãos ocultos seguiam o calendário religioso,
batizavam seus filhos e reuniam-se para orações em grupo.
Espantosamente, mantiveram sua fé por mais de 250 anos, mesmo
sem a presença da Igreja.
381
https://goo.gl/MJnFcH
Com a proibição do catolicismo, ter qualquer artefato católico era
punido com a morte. Mesmo assim, muitos japoneses desafiavam
esta regra ao disfarçar imagens sacras como divindades budistas.
Um exemplo é a transformação sincrética da Virgem na divindade
budista Avalokiteshvara, conhecida entre os japoneses como Kannon
Bosatsu, a deusa da misericórdia. Por ser uma das divindades mais
populares do panteão budista, as imagens de Kannon são frequentes
nas casas, templos e espaços públicos japoneses.
Ao produzir imagens de Kannon com atributos da Virgem, como o
Jesus Menino no colo ou a suástica budista transformada em cruz,
os kakure kurishitan mantinham sua devoção sem despertar
suspeitas nos oficiais do shogunato. Estas estátuas, conhecidas como
Maria Kannon, são frequentes no sul do Japão, onde a ação dos
missionários católicos foi mais intensa. As imagens de Maria
Kannon formam um contraponto aos fumie, como duas formas de
expressão artística de caráter oposto, mas com a mesma origem: a
perseguição aos católicos pelas autoridades japonesas.
O período católico e a presença portuguesa no Japão terminaram de
forma trágica, com a revolta de Shimabara em 1637. Durante meses,
cerca de 37 mil camponeses católicos ocuparam um castelo
abandonado e resistiram até serem totalmente exterminados.
Iemitsu, o terceiro shogun da dinastia Tokugawa, expulsou os
europeus remanescentes. A presença de estrangeiros no Japão foi
proscrita, e qualquer japonês que estivesse no exterior foi proibido
de retornar. Nos dois casos, a punição era a morte. Iniciou-se um
período no qual o Japão permaneceu isolado do mundo exterior,
382
exceto por um pequeno entreposto holandês na ilha de Dejima, no
porto de Nagasaki.
Conclusão
Em 1647, fracassou a última tentativa de restabelecer o comércio
entre Portugal e Japão [Boxer, 1967, 388]. Na segunda metade do
século XVII, poucos vestígios restavam da presença portuguesa no
Japão. Dos 300.000 fiéis, poucos milhares resistiam nas ilhas e
povoados em torno de Nagasaki. Para o império português, a
expulsão do Japão coincidiu com um refluxo em sua expansão, que
nem mesmo a recuperação da autonomia diante da Espanha em
1640 conseguiria reverter.
Contudo, a presença portuguesa no Japão resistiu ao período de
fechamento, não apenas na culinária e nas palavras incorporadas ao
idioma japonês. Em 1875, quando o Japão voltara a permitir a
liberdade religiosa, o padre francês Bernard Petitjean ficou surpreso
ao ser abordado em Nagasaki por um grupo de japoneses que
identificaram-se como católicos, fazendo o sinal da cruz e
pronunciando algumas orações em latim.
Os contatos, aproximações e afastamentos entre portugueses e
japoneses foram eternizados nas manifestações artísticas geradas
por esse encontro de culturas tão diversas. Os biombos nanban e as
pinturas barrocas européias testemunham um momento em que
dois mundos distantes estiveram em contato, enxergaram-se
mutuamente e puderam aprender um com o outro.
Referências
Newton Ribeiro Machado Neto é aluno do curso de Museologia da
Universidade de Brasília (DF).
Mail: newtonribeiromachado@gmail.com
Trabalho elaborado sob orientação da professora Celina Kuniyoshi,
da Faculdade de Ciência da Informação – UnB.
BOXER, C.R. The Christian Century in Japan 1549-1650.
Berkeley: University of California Press, 1967.
COOPER, Michael. Spiritual Saga: When Four Boys Went to
Meet the Pope, 400 Years Ago. The Japan Times, Tokyo, 21
fev.1982.
KUNIYOSHI, Celina. Imagens do Japão – Uma Utopia de
Viajantes. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
383
MORAES, Wenceslau de. Fernão Mendes Pinto no Japão.
Lisboa: Instituto Camões, 2004.
PERRIN, Noel. Giving up the gun: Japan's reversion to the
sword, 1543-1879. Boston: David E. Godine, 1988.
PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação, Lisboa, 1614.
SADLER, Darlene J. The Portuguese-Speaking Diaspora:
Seven Centuries of Literature and the Arts. Austin: University
of Texas Press, 2016.
VIEIRA, Antonio. História do Futuro, Livro II. Lisboa, 1718.
XAVIER, Francisco, Carta escrita em Kagoshima em novembro de
1549, apud CABELLO, Blai Guarné. L'escriptura de l'aliè.
Representació i alteritat en el katakana japonès. 1995. Tese
(Doutorado em História) - Universitat de Barcelona. 2001.
PEREIRA, Mariana. Cinco obras do Japão, país onde os exóticos
éramos nós. Diário de Notícias, Lisboa, 14 jan. 2017.
384
O ORIENTALISMO E AS REPRESENTAÇÕES DO
EGITO ANTIGO EM AGE OF MYTHOLOGY
Pepita de Souza Afiune
José Loures
Introdução
A cultura egípcia antiga exerce um fascínio no Ocidente atualmente.
Exposições itinerantes atraem estudantes e curiosos, filmes trazem
entretenimento e ao mesmo tempo invocam um Egito mágico, e
muitas edificações urbanas inspiram-se em formatos piramidais ou
obeliscos. Essa interação com culturas milenares habita o imaginário
de muitas pessoas na contemporaneidade. Propomos estabelecer
uma breve análise das representações do Egito Antigo no jogo
eletrônico Age of Mythology (AoM), considerando suas visualidades
e narrativas, vestuários, figuras míticas, edifícios, cenários e
desenvolvimento da civilização egípcia.
O Egito é apresentado nos games desde o surgimento dos primeiros
videogames. Alguns jogos exploraram a cultura egípcia de maneira
complexa, apresentando a sociedade e cultura como: Civilization
(1991), Age of Empires (1999) e Assassin's Creed Origins (2017).
Outros games apresentam a cultura egípcia como parte de sua
narrativa, parcialmente em cenários e personagens, como:
Darkstalkers (1995), Castlevania: Portrait of Ruin (2006), Plants
vs. Zombies 2: It's About Time (2013) e Overwatch (2016). Contudo,
o diferencial de AoM e os jogos citados, é um desenvolvimento e
aprofundamento nos mitos do Egito Antigo.
Consideramos o processo de pré-produção do jogo, porque este
momento envolve elementos como o design instrucional e a pesquisa
histórica. Compreendemos estas representações do Egito Antigo
como uma manifestação da Egiptomania.
A Egiptomania é hoje um ramo de pesquisas mais específico no
âmbito da Egiptologia, sendo uma prática que inicialmente teria
começado com os próprios gregos antigos, teria se afamado depois
com os franceses e posteriormente se espalhou pelo mundo todo.
Após a empreitada de Napoleão Bonaparte ao Egito essas
representações intensificaram-se.
385
Dentro do contexto de intriga entre franceses e ingleses está o Egito,
que em pleno século XIX era uma colônia, na verdade entendida
como uma extensão da Europa. Essas e muitas outras
representações que surgem neste período, principalmente na
literatura, marcaram o que Edward Said denomina de Orientalismo
Moderno, uma invenção do Oriente a partir do olhar europeu
colonizador. O Egito foi o protagonista das representações
ocidentais a respeito do Oriente Próximo e suscitou paixões de
muitos aventureiros.
Egiptomania e Orientalismo
De acordo a pesquisadora referência em Egiptomania no panorama
brasileiro, Margaret Bakos (2014), o Egito Antigo promoveu seu
legado na contemporaneidade a partir das apropriações de suas
simbologias que foram readaptadas e ressignificadas em diversos
suportes, como na arquitetura, na mídia e nas novas religiosidades.
Os estudos sobre a Egiptomania no Brasil foram iniciados pelo
Laboratório de História Antiga da Universidade Federal do Rio de
Janeiro baseando-se em experiências realizadas em países europeus.
Muitas destas pesquisas abordaram a manifestação da Egiptomania
em várias regiões do Brasil, como no Rio Grande do Sul, na Paraíba,
no Amazonas e no Paraná. Também há pesquisas que analisaram a
Egiptomania em cemitérios, coleções, acervos, e em grupos
esotéricos dentre os quais se destaca a Ordem Rosacruz.
Jean-Marcel Humbert cunhou o termo Egiptomania (1994, p. 21),
definindo essa prática como a interpretação das imagens do Egito
readaptadas na atualidade. A Egiptomania para Bakos (2007, p. 05)
é “o agente de um dos mais longos fenômenos de transferência
cultural já contabilizado, matriz de valores e de gostos estéticos
mundiais contemporâneos”. A Egiptomania é um novo ramo de
pesquisa que aborda as práticas culturais que retomam elementos do
Egito Antigo, analisando a permanência de certos valores e suas
transformações ou adaptações (Ibidem, p. 02).
Segundo Bakos, a Egiptomania tem origem no século IV a.C.,
quando Alexandre o Grande conquista o Egito, saqueando peças
egípcias que depois alastraram-se para outros países. A
historiografia grega também atribui ao Egito uma imagem
fascinante como pode-se perceber nos relatos de Heródoto: “Todo
homem sensato que ainda não tenha ouvido falar nisso notará,
386
visitando o país, ser o Egito uma terra nova e um presente do Nilo”
(HERÓDOTO, 2006, p. 136);
“Estender-me-ei mais no que concerne ao Egito, por
encerrar ele mais maravilhas do que qualquer outro país; e
não existe lugar onde se vejam tantas obras admiráveis,
não havendo palavras que possam descrevê-las” (Ibidem, p.
149).
A Egiptomania se intensificou a partir das expedições de Napoleão
Bonaparte, Champollion e Howard Carter. Em 1798 a Campanha de
Napoleão no Egito tornou ainda mais populares as práticas da
Egiptomania, alocando este estudo a um novo ramo da Egiptologia.
Napoleão sonhou com uma reconquista ao Egito, como um novo
Alexandre.
Nesse período, o Egito ocupava uma posição central nas relações
entre Europa, África e Ásia, passando a ser um anexo da Europa a
partir de um projeto civilizador. Esse projeto visava a sua grandeza
clássica, sendo colocado dentro do contexto da antiguidade europeia
clássica. Esse discurso foi difundido através da publicação da obra
de NapoleŌo “Descríption de l’Égypte” em 1809. Esse
empreendimento de Napoleão estimulou a chegada de muitos
europeus para o Egito com interesse científico ou literário.
Pensando nessa fascinação ocidental pelo Oriente que perdurará
pelo século XX, remetemos aos estudos sobre o Orientalismo, a
partir de Edward Said (1990). O autor procura realizar uma
genealogia do Orientalismo, mostrando que o mesmo surgiu dentro
do pensamento colonialista eurocêntrico. Partimos da ideia de que
houve a priori, a criação do que nós, ocidentais, entendemos por
“Oriente”. O Orientalismo surge entŌo como um ramo de estudos
dentro da academia que aborda essa relação estabelecida entre
Ocidente-Oriente. O Orientalismo entende que foram criadas
concepções sobre o Oriente, mas recheadas de ideais eurocêntricos.
Said afirma que:
“Orientalismo é o termo genérico que venho usando para
descrever a abordagem ocidental do Oriente. É a disciplina
por meio da qual o Oriente é abordado sistematicamente,
como um tema de erudição, de descobertas e de prática.
Mas, além disso, eu tenho usado a palavra para designar
387
aquela coleção de sonhos, imagens e vocabulários
disponíveis para qualquer um que tenha tentado falar sobre
o que está ao Leste da linha divisória” (SAID, 1990, p. 82).
A chegada de viajantes aventureiros ou escritores interessados no
exotismo destes países foi a responsável pelas novas atribuições
dadas ao Oriente no século XIX. Afinal, neste momento, o Egito
passa a ser colônia britânica, propriamente em 1882, o que perdurou
até 1954. Até o século XIX essa dominação francesa e inglesa no
Egito foi a responsável pela criação de um olhar romântico que
denota um Egito exótico e mágico. Ao mesmo tempo em que ele era
dominado, sendo sujeito à imposição de uma sensação de
superioridade europeia, que se mostrava nos quesitos além do
militar, econômico mas até mesmo cultural, o Egito por outro lado,
seduzia esses europeus de alguma forma.
Após o longo contexto das independências asiáticas e africanas,
tendo o Egito o nosso foco, vislumbramos neste momento que se
inicia no decorrer do século XX, uma nova posição do Oriente. Agora
ele se posiciona contra a colonização europeia, mas acabou sendo
atraído por um outro imperialismo, o norte-americano. Este novo
imperialismo manteve esse olhar orientalista romântico, como uma
herança colonial.
A partir da década de 60 houve um adentramento da cultura oriental
nos Estados Unidos possibilitada pelas imigrações de indianos e pelo
surgimento do movimento de contracultura. Com o aumento desse
fluxo entre Oriente e Ocidente, podemos perceber uma conexão
entre as sabedorias orientais que irão se difundir pelo país. Dentro
deste contexto podemos perceber o Egito sendo representado
amplamente na indústria cinematográfica, como os filmes César e
Cleópatra (1945), O egípcio (1954), Terra dos Faraós (1955) e
Cleópatra (1963). Posteriormente com o advento dos jogos
eletrônicos, também podemos encontrar várias representações do
Egito que se popularizaram em várias mídias.
388
Age of Mythology (AoM)
In techtudo.com.br
Age of Mythology é um game do gênero RTS – real time strategy,
desenvolvido pela Ensemble Studios e publicado pela Microsoft
Game Studios em 2002. Este gênero é baseado no desenvolvimento
e administração de recursos encontrados pelo mapa, esses recursos
financiam a construção de novos edifícios e unidades. Além disso, os
combates acontecem dentro de uma narrativa linear ou contra a
inteligência artificial (I.A) e outros jogadores. Essas batalhas
acontecem em termo real, diferente de outros jogos de estratégia que
funcionam através de turnos. O jogo Age of Mythology é um
derivado da série Age of Empires (1999), entretanto, em vez de focar
em acontecimentos históricos e personalidades históricas, AoM se
baseia nos mitos das culturas egípcias, gregas e nórdicas. Em 2014
foi lançado uma versão em alta resolução do jogo – esta versão foi
utilizada para a construção do artigo. Desde então, estima-se que até
o momento, as versões de AoM tenham vendido aproximadamente 9
milhões de cópias.
AoM é um jogo preocupado em trazer informações históricas sobre
as civilizações retratadas. No menu inicial, há informações sobre o
que é mitologia, explicando de forma didática a sua importância no
estudo de uma determinada civilização. Justifica que a análise da
mitologia é importante para se compreender a mentalidade de uma
época, a sua forma de tentar explicar determinados fenômenos
naturais e a origem de um povo.
389
A narrativa é permeada pela presença dos deuses Isis, Rá, Seth,
Anúbis, Bastet, Ptah, Hathor, Néftis, Sekhmet, Hórus, Osíris e Thot.
As suas cidadelas devem adorar aos deuses para receber bênçãos
importantes para sobrevivência em determinadas fases da
campanha.
A Isis é retratada como a deusa mãe e do casamento. Conhecida pela
sua manipulação da magia e ressurreição de seu marido Osíris. É
comumente retratada amamentando Hórus. É filha de Geb e Nut,
uma união entre a terra e o céu. Seth por sua vez é retratado como o
deus das tempestades e do deserto, e a sua inveja de seu irmão
Osíris. O jogo relata sobre os fatos ao redor da morte de Osíris e a
consequente retomada da vingança pelo seu filho Hórus. Assim, o
jogo chama Seth de “Deus do mal”.
Os egípcios aparecem dentro de um panorama maior da campanha
do jogo, a épica jornada de Arkantos (personagem ficcional), um
herói atlante que participou da Guerra de Troia ao lado dos gregos.
Ao passar pelo mundo inferior e conseguir sair dele juntamente com
Ájax e Quíron, Arkantos se encontra em uma outra parte do mundo.
Perdidos, deparam-se com Amanra, uma heroína egípcia e outra
personagem ficcional. Ajax é um conhecido personagem da
mitologia grega, um herói importante na guerra de Troia, explorado
pela Ilíada; Quíron é um centauro pupilo de Apolo, que tornou-se
um sábio e posteriormente doutrinou heróis como o próprio Aquiles.
Amanra precisa da ajuda destes heróis para desenterrar a espada do
Guardião, aquela mesma utilizada por Hórus para matar Seth.
O antagonista da história é Kemsyt (personagem ficcional), um
antigo inimigo de Amanra que pretende pegar a espada e destruir os
pedaços de Osíris. Para impedi-lo, os heróis precisam resgatar a
espada e posteriormente a caixa funerária contendo os pedaços de
Osíris.
A caracterização das cidadelas egípcias é uma procura por um
retrato fiel ao que se conhece pela historiografia, algumas fases se
passam em regiões desérticas e alguns oásis. Seus cidadãos são
negros, diferente de muitas produções cinematográficas que
insistem em apresentar egípcios com feições de um europeu. Ciro
Flamarion problematizou essa questão da cor da pele entre os
egípcios antigos:
390
“Esta visŌo, que assegurava serem “caucasoides” (brancos)
em forma predominante os antigos egípcios, foi fortemente
atacada por historiadores negro-africanos - C. Anta Diop e
T. Obenga -, que com argumentos lingüísticos (semelhança
entre o antigo egípcio e línguas negro-africanas de hoje) e
de outros tipos trataram de provar que os egípcios da
Antigüidade eram negros. [...] Foi lembrado também que o
Egito, situado na confluência da África e da Ásia, nunca
esteve isolado, sendo inaceitável pretender que sua
populaçŌo foi exclusiva ou predominantemente “branca”,
tanto quanto “negra” já que tudo indica ter sido sempre
muito mesclada, pelo menos desde o Neolítico”
(CARDOSO, 1982, p. 04-05).
Os aldeões trabalham compulsoriamente em minas de ouro,
fazendas, construção de edifícios e cortam lenha. Mas esta
característica não os diferencia das demais civilizações retratadas em
AoM. O jogador necessita impor este trabalho aos seus aldeões para
se ter recursos para as guerras.
“A base da mŌo-de-obra do antigo Egito eram os
camponeses, maioria absoluta da população. Viviam em
aldeias, pagavam impostos ao Estado (em certos casos, a
um templo ou senhor que gozasse de imunidade fiscal) em
forma de cereais, linho, gado e outros produtos, e também
se prestavam a corveias ou trabalhos forçados, a nível local
(obras de irrigaçŌo) ou nas obras públicas” (CARDOSO,
1982, p. 15).
A caracterização dos faraós é detalhista, pois eles possuem o cetro,
conhecido como heqa, um símbolo de autoridade. Esse é um tipo de
cajado utilizado por pastores de ovelhas para ordenhá-las. Esse é o
símbolo da ordem e da lei que está sob a autoridade do faraó. Ele
ordenha e cuida de seu povo. O faraó também apresenta a barba de
cerimônia que é trançada e postiça, elemento comumente presentes
em representações de faraós. Outro elemento importante que
aparece em AoM é a utilização da saia, vestimenta muito comum no
Egito Antigo, que de acordo Brancaglion (2009) era o item principal
utilizado nas indumentárias masculinas no período do Médio
Império (2134 – 1784). O faraó também usa a coroa militar, de cor
391
azul, que era utilizada apenas nas ocasiões de guerra, sendo
conveniente ser retratado com ela no jogo.
“A vestimenta era, antes de tudo, um símbolo de prestígio.
Podemos dizer que quanto mais elevada fosse a posição
social de um egípcio antigo mais as roupas eram volumosas
e numerosas” (BRANCAGLION, 2009, p. 01).
Caracterização do faraó Sobekhotep in game.
Brancaglion também analisa a questão da indumentária afirmando
que o branco era uma cor sempre presente, e isso podemos também
verificar na saia dos nossos faraós de AoM, e o linho era na maior
parte das vezes o material. O autor afirma que a vestimenta dos
trabalhadores homens também poderia ser saia, como podemos
perceber nos aldeões representados pelo jogo.
Caracterização dos aldeões egípcios in game.
392
“Dessa forma as vestimentas traduziam as funções que o
homem e a mulher ocupavam na sociedade e juntamente
com os seus títulos a roupa era um identificar da situação
social de um egípcio” (BRANCAGLION, 2009, p. 02).
Ainda sobre os faraós, temos alguns retratados pelo jogo como é o
caso de Sobekhotep, faraó da 12ª ou 13ª dinastia (não há consenso
entre os historiadores). Pouco se conhecia sobre esse faraó, até que
um grupo de arqueólogos norte-americanos encontrou uma tumba e
no local havia uma inscrição em seu nome. Haviam muitos objetos e
urnas funerárias, o que possibilitou o início de muitas pesquisas
para se conhecer melhor este faraó.
Outro faraó retratado no jogo é Neferhotep III que também deixou
dúvidas entre os historiadores se seria da 13ª ou 16ª dinastia.
Governante de Tebas, Neferhotep III ficou conhecido como aquele
que salvou a sua cidade da fome e também teria se envolvido em
uma guerra para defendê-la (RYHOLT, 1997, p. 202).
No quesito arquitetura, a maravilha egípcia, o principal edifício de
cada civilização em AoM, é um templo semelhante ao Templo de
Luxor (1.400 a.C.), localizado na cidade da antiga Tebas, atual
Luxor, na margem do rio Nilo. É dedicado ao deus Amon, obra do
faraó Ramsés II, e um dos edifícios mais importantes da arquitetura
do Egito Antigo. Foi declarado Patrimônio Mundial da UNESCO em
1979.
Templo de Luxor. In http://www.penaestrada.blog.br
393
Maravilha egípcia in game
As cidades são repletas de estátuas de deuses e obeliscos. Nos
templos o jogador pode criar seres mitológicos. Dentre eles está o
Anúbis, o próprio deus dos mortos e da mumificação, mas que nesse
caso aparece como unidade mítica para ser empregada nas guerras.
Esfinge, escaravelho, homem-escorpião, fênix, múmia e tartaruga
são outras unidades míticas empregadas nas batalhas. Cada um
possui determinados poderes, dos quais pode-se perceber que o jogo
utilizou de sua liberdade criativa.
É necessário que o jogador construa estátuas de deuses, para que ele
obtenha “favor”, que seriam poderes sobrenaturais para criar
unidades míticas e aperfeiçoá-las, tendo destaque a estátua de Isis. O
jogo apresenta Isis em uma de suas várias representações clássicas,
quando ela recebeu uma influência de elementos da deusa Hathor,
com os cornos de uma vaca e um disco solar. Apresenta as asas de
falcão, visto que ela pode se transformar neste animal. Suas asas
estão relacionadas a seus poderes mágicos como a ressurreição dos
mortos. Os adornos de ouro na estátua compõem as paisagens das
cidades repletas deste minério. Enquanto os aldeões trabalham nas
minas, o ouro adorna templos, esculturas e os faraós, conferindo
uma imagem de riqueza e poder.
394
Estátua de Isis in game.
Uma das preocupações dos desenvolvedores era criar uma narrativa
imersiva, por isso a campanha solo se tornou tão importante. Os
personagens apresentam personalidade e contam também com
dublagem. Antes do lançamento oficial, os programadores estavam
empolgados com as possibilidades da tecnologia 3D aplicada aos
games. Em entrevista o programador chefe Robert Fermier afirmou
que a intenção era transformar a série Age of em um produto mais
cinematográfico, algo até então inédito na série (HeavenGames LLC,
2002).
Para conseguir imergir o jogador naquele universo mitológico, a
imagem é um elemento importante, mas a trilha sonora é
indispensável para a ambientação do jogador. O artista de som
Kevin McMullan questionado sobre o processo criativo das
composições em AoM diz o seguinte:
“Para Age of Mythology, tivemos que ajustar nosso
pensamento um pouco, porque simplesmente não há uma
grande quantidade de material de referência sobre as
tradições musicais dessas culturas antigas. Para esta trilha
sonora, expandimos os temas que foram apresentados nos
jogos anteriores, enquanto incluímos uma interpretação
ampla das culturas, pois sentimos que elas são
apresentadas no jogo” (IGN, 2002, s/p).
De acordo com o compositor, mesmo sem ter uma referência das
músicas da época, houve uma tentativa de interpretação. Assim,
foram utilizados instrumentos característicos de cada civilização,
395
como um alaúde egípcio e conchas marinhas. O processo para criar
som e imagem que remetam a uma era mitológica, é apenas possível
através da imaginação de artistas junto à tecnologia, como os
videogames.
Considerações Finais
Age of Mythology não deixa de ser uma narrativa a partir de olhares
imperialistas, que manteve uma concepção orientalista romântica
nos mínimos detalhes, não esquecendo de enfatizar o caráter mágico
que permeia a mitologia egípcia e imagem de grandeza e poder de
seus deuses. O jogo evoca um egípcio mágico da mesma forma que
muitos filmes hollywoodianos. Sempre retratado lado a lado com as
civilizações da antiguidade europeia, o Egito Antigo é comumente
entendido como parte deste contexto, o que não considera as suas
especificidades.
Mas por outro lado, podemos perceber que Age of Mythology é além
de entretenimento, um dispositivo que possibilita o conhecimento
da mitológica egípcia sem abrir mão da liberdade criativa. A
campanha de Amanra em sua jornada pela busca dos pedaços de
Osíris mostra que durante o desenvolvimento do jogo, houve uma
pesquisa sobre o que se retratar, o que se divagar e o que deixar por
livre interpretação do jogador.
Pode ser uma ferramenta poderosa nas mãos do docente que souber
empregá-la como recurso metodológico, visto que, o jogo é uma
mídia presente na vida de crianças e adolescentes dos dias de hoje.
Assim, muitas discussões ainda podem ser desenvolvidas a este
respeito.
Referências
Pepita de Souza Afiune é doutoranda em História pela Universidade
Federal de Goiás. Mestra em Ciências Sociais e Humanidades
(UEG). Contato: pepita_af@hotmail.com
José Loures é artista multimídia, doutorando e bolsista CAPES no
Programa de Pós-graduação em Arte pela Universidade de Brasília.
Mestre em Arte e Cultura Visual. Contato: jloures-arte@hotmail.com
BAKOS, Margaret. A Egiptomania na América do Sul: um estudo
multidisciplinar e comparativo. In: XXIV Simpósio Nacional de
História. História e Multidisciplinaridade: territórios e
396
deslocamentos. São Leopoldo (RS): UNISINOS, 2007. Disponível
em:
http://anais.anpuh.org/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S24.1196.pdf. Acesso em 31 de
julho de 2017.
_____________. Fatos e mitos do Egito Antigo. 3ª ed. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2014.
BRANCAGLION, Antônio Junior. Os trajes no Egito faraônico: uso,
função e representação. In: Estética – Revista Eletrônica do
Coletivo Estudos de Estética. N. 2. São Paulo: USP, jun/ 2009.
p. 01 – 12. Disponível em:
http://citrus.uspnet.usp.br/estetica/2011/index.php?option=com_c
ontent&view=article&id=14:2009-2art4&catid=36:revista02&Itemid=37. Acesso em 31 de julho de 2017.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo,
Brasiliense, 1982. [Tudo é História nº 36].
HEAVENGAMES LLC. XGR Interview with Rob Fermier and
Jerome Jones, 2002. Disponível em:
http://aom.heavengames.com/gameinfo/interviews/xgr-08-162002.html. Acesso em 21 de agosto de 2017.
HERÓDOTO. História Heródoto (484 A.C. – 425 A.C.).
Traduzido do grego por Pierri Henri Larcher. Volumes XXIII e
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eBooks Brasil, 2006. Disponível em:
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/historiaherodoto.pdf.
Acesso em 01 de agosto de 2017.
HUMBERT, Jean-Marcel. Egyptomania: Egypt in Western Art,
1730 – 1930. Ottawa: National Gallery of Canada, 1994.
IGN. The Age of Myth team talks about scoring the game,
2002. Disponível em:
http://www.ign.com/articles/2002/09/06/age-of-music-2. Acesso
em 21 de agosto de 2017.
RYHOLT, Kim. The political situation in Egypt during the
second intermediate period. C.1800-1550 B.C. Copenhagen,
DK: Museum Tusculanum Press, 1997.
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do
Ocidente. 1ª reimp. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
397
398
MITANI: O REINO PERDIDO
Priscila Scoville
Ao pensarmos em grandes reinos da antiguidade alguns nomes logo
vem à mente. Entre os orientais, pensamos em hititas, fenícios,
persas, babilônicos, assírios e, muitas vezes, egípcios, mas Mitani
não é um nome comum a nós. A própria Academia ainda está
redescobrindo essa região. Destarte, Mitani foi uma das maiores
potências no Antigo Oriente Próximo durante o século XIV AEC. Por
isso, busco, aqui, trazer um panorama sobre a História de Mitani e
seus estudos. Este trabalho é parte resultada da minha pesquisa de
mestrado e visa apresentar Mitani, suas particularidades e suas
possibilidades, apontando caminhos para o estudo da sociedade
mitânia.
Os debates acadêmicos
Pesquisadores interessados em Mitani enfrentam alguns obstáculos
em diferentes âmbitos, e, mais do que superá-los, deve-se entender
que muitos desses empecilhos não poderão ser, ao menos por hora,
resolvidos.
Para além dos limites da própria História enquanto disciplina,
outros elementos criam fronteiras específicas quando se pretende
traçar uma trajetória de Mitani. Até os dias atuais, por exemplo, não
conhecemos a delimitação geográfica exata deste reino, nem sequer
sabemos onde foi situada sua capital, Washukanni. Temos, é claro,
algumas estimativas. Sabemos, por exemplo, que Mitani se
localizava ao norte da Mesopotâmia e ao leste da Anatólia.
Washkanni, possivelmente poderá ser encontrada, após escavações,
na região da atual Tell Fakhariyah. Outras cidades reais, porém, já
foram encontradas, como a antiga Taide, hoje chamada de Tell alHamidiya, situada no norte da Síria, perto da fronteira com o Iraque
e a Turquia [EVANS: 2008, p. 195]. Uma estimativa das fronteiras
de Mitani no momento de sua maior extensão pode ser visto no
mapa a seguir:
399
In: VAN DE MIEROOP, 2007, p. 151.
Como podemos perceber, Mitani estava situado em uma região que
hoje enfrenta disputas e confrontos, o que dificulta a expedição de
campanhas arqueológicas e pesquisas na área. Consequentemente,
os estudos de campo são interrompidos e novas documentações ou
vestígios não são encontradas.
As fontes disponíveis, portanto, são limitadas e, em muito,
dependem de referências estrangeiras sobre o reino. Dentre estas
referências, o conjunto que reúne a maior documentação em
linguagem hurrita (língua oficial) descoberta até hoje foi encontrado
em Amarna, no Egito [FREU, 2003, p. 9]. A necessidade de
referências externas para o estudo de Mitani, nos reflete outra
dificuldade a ser enfrentada pelo pesquisador, como afirma Jacques
Freu:
“conhecido por fontes exteriores ao seu território, Mitani,
não poderia se apresentar, até agora, como objeto nem
como a entidade política que as pesquisas indiretas
tornaram possível [de se conhecer] por meio das
numerosas menções feitas em textos egípcios, hititas e
assírios” [FREU, 2003, p. 15. Tradução da autora].
400
Isto é, não podemos entender toda a complexidade de Mitani
somente pelo que outros locais nos apresentam. O trabalho de Freu
é um dos poucos disponíveis atualmente que se focam na História de
Mitani e não nas relações entre mitânios e outros reinos. Contudo,
dada a realidade das fontes, não podemos ignorar os contatos
exteriores, e por isso as Cartas de Amarna (cuja tradução em
português está disponível em SCOVILLE, 2017), e outros
documentos de teor parecido são comumente referenciados.
Além da limitação de materiais, tanto em relação à documentação
como a trabalhos que abordem o tema, Mitani ainda é alvo de
debates sobre sua própria identidade étnica.
Existem referências a povos de territórios chamados de Mitani e
Hurri. Há, ainda, outros nomes, como Nahrin e Hanigalbat, que hoje
entendemos como variações locais para Mitani. Contudo, a
discussão sobre Hurri ainda é mais acalorada.
A ideia de que Mitani e Hurri eram territórios separados foi
proposta por Goetze. Segundo ele, Mitani foi uma unidade política
incapaz de unificar os territórios hurritas, tendo, então, que dividir a
região com Hurri [GOETZE, 1957, pp. 67 – 68]. Em contrapartida, a
teoria mais aceita, defendida por pesquisadores como Freu e
Liverani, afirma que Hurri e Mitani são o mesmo território, sendo o
primeiro o nome que representa a realidade étnica (por abrigar
povos hurritas) e o segundo a qualidade política [LIVERANI, 1962].
Acredita-se que Mitani tenha se formado a partir da união de povos
hurritas, presentes na região, e grupos indo-arianos, que teriam
chegado no norte da Mesopotâmia no mesmo momento em que os
cassitas entravam na Babilônia (no século XVI AEC). Os indoarianos teriam formado a aristocracia de Mitani, enquanto a
população teria origem hurrita.
Essa perspectiva, porém, não pode ser confirmada e estudiosos
ainda discutem sobre o grau e as formas de influência indo-ariana
em Mitani. A teoria sobre reis indo-arianos é defendida com
argumentos que apontam para a presença de elementos linguísticos,
em especial em relação aos nomes destes reis, e para deuses
estranhos aos hurritas no panteão. Entre as divindades podemos
encontrar, por exemplo, Mitra, Varuna, Indra, e os Nasatyas,
401
descritas em correspondências hititas [Kbo 1.1. In: BECKMAN, 1996,
pp. 37 – 50].
Em relação aos nomes reais, Garelli [1982, p. 144] e Wilhem [1989,
p. 18] apontam a influência indo-arianda, explicando-os por meio do
Veda: Artatama (Ṛta-dhāma), que significa “aquele cuja residência é
a lei divina”; Parsashatar (Para-sastar), “o que castiga os inimigos”;
e Tushratta (Tuiš-ratta), “o que possui o carro de esplendor”. A
presença de nomes indo-arianos, porém, não reflete um domínio
cultural. Nesse sentido, a língua oficial e a maior parte dos nomes
(inclusive o de alguns membros da família real) são hurritas.
Wilhem [1989, p. 18], em contrapartida, aponta que o próprio
contato de mensageiros com outros povos (e línguas) poderia ser
uma explicação para a existência de nomes indo-arianos em um
território hurrita. Já a pesquisadora Podany [2010, p. 154], aponta
que a maioria dos reis mitânios tiveram nomes hurritas antes de
assumir ao trono e muitos membros da família real tinham nomes
que homenageavam os deuses hurritas. Aliado a isso, temos a pouca
expressividade de deuses indo-arianos na religião [WILHEM, 1989,
pp. 18-19; e PODANY, 2010, p. 155].
Para Von Dassown [2014, pp. 12-13], por outro lado, não há material
linguístico suficiente que ateste, ou não, um domínio indo-ariano.
Uma possibilidade é a ocorrência de um costume. Nesse caso, os reis
não seriam indo-arianos, mas descendentes que se consideravam
hurritas. Nesse sentido, os nomes representariam uma tradição, não
a realidade individual [PODANY, 2010, pp. 154-155]. Outra
possibilidade, é que não haja uma relação direta, mas que, por
algum motivo, esses governantes queriam se identificar com indoarianos, e os nomes, seriam usados como elemento de distinção
social [MARTINO, 2014, p. 69].
A teoria mais bem aceita, porém, como apontada por Podany [2010,
p. 154] e Freu [2003, pp. 16-17], é a de que rei mitânios descendiam
de grupos falantes de alguma língua parecida com o sânscrito. Tais
grupos teriam se assentado no norte da Mesopotâmia em meados do
século XVI AEC.
A formação de Mitani também é alvo de discussão entre os
pesquisadores. Uma hipótese afirma que o reino já existia de forma
concreta e influente no final do século XVII ou início do século XV
402
AEC. Contudo, as fontes desse período não nos trazem o topônimo
“Mitani”, apenas mencionam o “rei das tropas hurritas”; “o inimigo
hurrita”; e “as tropas de Hanigalbat” – sendo essa última usada
apenas em uma referência babilônica [MARTINO, 2014, pp. 62-63].
Uma segunda hipótese, por outro lado, defende que um vácuo de
poder criado no norte da Síria, no século XVI AEC, teria
possibilitado o surgimento (e fortalecimento) de Mitani. Segundo
Martino [2014, pp. 64-66], a população hurrita anterior a esse
momento, apesar de organizada, não formava um grupo unitário,
tendo diversas tribos sob diferentes regimes. O autor aponta que
quando o rei hitita, Hattusili I, encontrou resistência na Síria
durante suas campanhas, ele contou com a ajuda de um rei hurrita
de Tikunani. Aliado a isso, temos a ausência do topônimo “Mitani” e
uma grande variedade de títulos para governantes hurritas. Esses
fatores nos levam a crer, então, em uma fragmentação do território.
A primeira referência a Mitani, como tal, na tumba de um
funcionário egípcio, Amenenhet, sendo Mitani colocado em
referência ao reinado de Tothmés I.
Uma breve história
Traçar a História de Mitani é, então, uma tarefa difícil. A obra de
Freu [2003] a divide em seis momentos principais: formação (c.
1560 – 1500 AEC), desenvolvimento imperial (c. 1500 – 1450 AEC),
crise (c. 1450 – 1430 AEC), apogeu (c. 1430 – 1340 AEC), final do
império (c. 1340 – 1325 AEC), e fragmentação territorial entre
assírios e hititas (c. 1325 – 1260 AEC).
A provável origem de Mitani é datada, então, de meados do século
XVI AEC, quando, supostamente, grupos estrangeiros teriam
chegado na região. Essa estimativa se dá porque os primeiros
registros indo-arianos, até hoje encontrados, são dessa época, tendo
se intensificado no século seguinte [GARELLI, 1982, p. 145].
Aparentemente, o primeiro rei mitânio foi Kirta, encontrado em
referências bibliográficas, mas sem documentação ou comentários
aprofundados, possivelmente por falta de vestígios. O primeiro rei
de quem temos registros é Parattarna I e, de antes dele, Shuttarna I,
do qual só possuímos um selo usado posteriormente por
Shaushtatar. [MARTINO, 2004, p. 36]. Uma datação específica para
o reinado desses reis inicias é complicada, estima-se que Kirta seria
de algum momento entre 1600-1560AEC; Shuttarna I de cerca de
1560 AEC; Parattarna, c. 1500 AEC; e Shaushtatar, c. 1475 AEC.
403
Mesmo partindo apenas de aproximações, podemos entender que o
momento de expansão mitânia acontece em um período de choques
no Oriente Próximo. Na Babilônia os cassitas formavam uma nova
dinastia; os hititas expandiam suas fronteiras em todas as direções;
os egípcios lidavam com os últimos resquícios hicsos e lançavam
militares campanhas ao leste. Mitani, portanto, esteve, desde seu
surgimento, intimamente ligada com embates militares e, tendo
desenvolvido uma noção diversa, conseguiu prevalecer e crescer
rapidamente.
“Os cassitas nŌo aparentaram ter tido algum projeto para
os territórios ao redor deles de nenhuma forma, e a ideia de
conquista dos hititas, até então, era para atacar, saquear e
sair. Tothmés I era agressivo, mas ainda não tinha um
sistema bem-sucedido para impor seu governo nas terras
estrangeiras. Os reis de Mitani, em contraste, claramente
queriam controlar um império, permitindo que reis
vassalos permanecessem no trono enquanto controlava – e
compensava – esses vassalos por meio de negociações
formais” [PODANY, 2010, p. 156. TraduçŌo da autora].
Com essa abordagem, o território mitânio se expandiu e, em adição,
tributos de diferentes cidades chegavam a Mitani, contribuindo para
um rápido enriquecimento local e segurança para seus
subordinados. Mitani, assim, logo se tornou um reino perigoso para
os seus vizinhos, Hatti e Egito, em especial. Mitani possivelmente
teria acabado de conquistar a Síria quando Tothmés I iniciou suas
campanhas na região.
A relação com Hatti se manteve conflituosa, mas o Egito logo
formou uma aliança com Mitani. Os acordos diplomáticos entre reis
egípcios e mitânios aconteceram desde, pelo menos, os tempos de
Artatama (c. 1400 – 1375 AEC) e Tothmés IV (c. 1400 – 1390 AEC),
segundo nos informa Tushratta (c. 1352 – 1335 AEC), em uma das
Cartas de Amarna [EA29, linhas 16-20. In: SCOVILLE, 2017, pp.
203-2012].
A natureza das relações entre Egito e Mitani pode ser estudada a
partir das Cartas de Amarna. Contudo, essa documentação ainda é
bastante limitada: temos apenas cartas enviadas por Tushratta, rei
de Mitani, ao Egito. As correspondências, porém, ainda podem nos
404
relevar alguns aspectos dessa amizade, que, aparentemente, teve
altos e baixos.
Tushratta se correspondeu com os faraós Amenhotep III (c. 1390–
1353 AEC) e Akhenaton (c. 1353–1336 AEC), além de uma carta
enviada para a Rainha Tiye. A análise das cartas pode nos levar a
algumas conclusões. Destaco, aqui, apenas um aspecto: o apelo
militar [para debates maiores sobre a análise das cartas ver
SCOVILLE, 2017]. Isso porque, como dito, as relações com Hatti não
eram amistosas, deixando a região sob ameaça constante.
Os desentendimentos com Hatti são evidentes, por exemplo, em
uma correspondência do rei hitita Suppiluliuma I (c. 1344-1322
AEC), que relata conflitos nas margens do Eufrates [CTH 51, KBo 1 1.
In: BECKMAN, 1996, p. 38]. Guerras, porém, custam caro e exigem
muitas pessoas. Nesse sentido, uma relação amistosa com o Egito
era vantajosa, uma vez que esse reino possuía uma forte equipe
militar, tendo conquistado grande parte da Síria, e era conhecido
como um fornecedor de ouro para o Oriente Próximo.
Podemos entender, então, que Tushratta pretendia manter a aliança
com o Egito como uma forma de segurança militar, diante a um
confronto iminente, mesmo que as cartas não mencionem o assunto
de forma direta.
Não cabe a este trabalho o aprofundamento no modo como as
relações se desenvolveram, contudo, cabe dizer que Hatti e Mitani,
de fato, tiveram embates diretos. O primeiro deles foi repelido por
Tushratta, mas o segundo chegou de surpresa, por um caminho não
esperado. Consequentemente, muitos territórios mitânios foram
sendo agregados às terras hititas [LIVERANI, 2016, p. 405].
Aliado a isso, temos uma virtual instabilidade interna em Mitani e
Tushratta é assassinado possivelmente por um dos seus filhos, ainda
que apoiado por forças estrangeiras [FREU, 2003, pp. 133-138]. A
partir desse momento, a ascensão no trono mitânio se torna uma
disputa constante entre hititas e assírios. Os hititas tiveram a
vantagem inicial, mas paulatinamente a Assíria foi ganhando espaço,
em especial por estar em uma posição geográfica mais estratégica.
[LIVERANI, 2016, p. 405]
405
Foram apenas três séculos de História, mas Mitani, ainda assim,
deixou sua marca. Graças a esse reino, a cultura hurrita, até então
deixada em segundo plano, pode ser unificada, fortificada e
difundida. Além disso, Mitani contribuiu com suas técnicas militares
e novas formas de organização do Oriente Próximo, sendo atribuída
aos mitânios, por exemplo, o uso de bigas puxadas por cavalos –
tecnologia essa disseminada a ponto de se tornar um marco
“patrimonial” do Oriente Próximo.
Novos caminhos
Muitos são os obstáculos no estudo de Mitani, mas também, muitas
são as possibilidades. Uma vez que as limitações sejam aceitas,
podemos trabalhar com diferentes aspectos que temos disponíveis,
desde elementos partindo de representações estrangeiras e
correspondências até o estudo da tradição hurrita, por meio de
territórios como Nuzi. É claro, o estudo direto é dificultado, mas
podemos entender alguns fenômenos a partir desses estudos
externos e, elencando os dados, criar uma noção de como seria a
vida dos mitânios – esperando que, um dia, a arqueologia nos
apresente novos documentos.
No começo deste texto, comentei sobre a Academia ainda estar
dando seus primeiros passos em relação aos estudos mitânios. Isso
resulta em uma quantidade tímida de trabalhos sobre o tema e,
como dito, muitos trazendo questões sobre os contatos com Mitani
(como foi o caso da minha própria dissertação de mestrado).
Contudo, isso também significa que muitas coisas ainda podem ser
expandidas e abordadas e que cada novo olhar contribui para o
amadurecimento das pesquisas.
Estudar as sociedades antigas nos propões diferentes formas de se
pensar a vida e a existência humana. Quanto mais pudermos
entender os moldes antigos, mais poderemos, também, entender a
nossa própria trajetória. Por mais que Mitani tenha sido um reino
esquecido por muitos anos, e redescoberto apenas recentemente, ele
teve um impacto fundamental na vida dos antigos e no próprio
desenvolvimento do homem, como apontado anteriormente. O fato
de não termos materiais suficientes sobre ele certamente dificulta,
mas não nos impede de tentar entendê-lo. O estudo do passado é
incessante e, como afirma Marc Bloch, “o bom historiador se parece
com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a
sua caça” [BLOCH, 2002, p. 54]
406
Referências
Priscila Scoville é mestra em História e bacharela em História
Memória e Imagem pela Universidade Federal do Paraná.
Representante do Association for Students of Egyptology - ASE.
E-mail: pcnlscoville@gmail.com
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407
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408
REPRESENTAÇÕES DA RAPOSA NA LITERATURA
MARAVILHOSA MEDIEVAL: UMA COMPARAÇÃO
ENTRE O IMAGINÁRIO EUROPEU E O JAPONÊS
Raphaella Ânanda Sâmsara
Maia Augusto de Souza Faria
Identificando-se as possíveis representações da raposa no
imaginário popular, constata-se que algumas delas foram
influenciadas por imaginários construídos ainda na Idade Média.
Sempre vista de forma negativa, a raposa desempenhava o papel de
vilã no imaginário medieval europeu, posto esse em que se manteve
através dos séculos. No Japão, ela é interpretada de maneira
diferente, nem sempre sendo vista de forma negativa. Ela mantém a
dualidade de animal real e animal maravilhoso que possui no
imaginário europeu, porém essa dualidade se estende à sua
natureza. Ao analisar as características das raposas com base em
quatro contos é possível definir modelos de raposas europeia e
japonesa. Assim sendo, diferenças e semelhanças podem ser
consideradas para uma possível comparação entre as distintas
representações e interpretações relativas a esse animal, ao seu
comportamento e sua dualidade.
Contos europeus, contos japoneses
Os dois contos europeus escolhidos por sua proximidade dentro do
recorte temporal apresentam raposas más, vis, desordeiras e
aproveitadoras. Em The History of Reynard, The Fox, tradução do
Francês Roman de Renart, o mais famoso conjunto de histórias de
animais produzidas na Idade Média - cuja origem remete ao
conjunto de versos escrito por Pierre de Saint-Cloud em 1170 -, a
raposa é convocada pela corte a se explicar quanto às reclamações de
outros animais, que a acusavam de diversos crimes. Utilizando-se
de sua astúcia, Renart consegue enganar o rei, clamando seu temor a
Deus e pedindo perdão àqueles a quem tenha causado algum mal.
Entretanto, a raposa continua a pregar peças e aterrorizar os outros
animais da corte, armando ciladas e mais de uma vez eliminando
quem o desafiava. Após inúmeras artimanhas, assassinatos e injúrias
causadas aos outros animais da corte, Renart se apresenta à corte e
confessa seus crimes perante o rei, porém, astuto, ele novamente
convence o rei de sua inocência. Tempos depois, Renart arma contra
Isengrin, o lobo, e então o rei lhes permite uma batalha. A raposa
409
provoca o lobo até que, em um vacilo de Isengrin, Renart desfere o
golpe final. Convencido pelo julgamento por batalha, o rei então
perdoa Renart, que retorna a seu castelo, assegurando as vidas de
sua mulher e filhos e finalmente livrando-se de suas penas. No
Livro das Bestas, escrito por Ramon Lull entre 1288-1289, a raposa,
infeliz com a escolha do novo rei, faz de tudo para usurpá-lo, agindo
de forma sorrateira para não atrair atenção para si. Ela convence
outros animais da injustiça de se haver um rei e um conselho real
composto por carnívoros enquanto a maioria dos animais da corte é
herbívora. Utilizando-se de todas as artimanhas possíveis, ela
consegue se infiltrar no conselho, pregando em nome dos animais
mais fracos. Ao afastar os membros mais perigosos do conselho real,
Dona Raposa convence alguns animais a ajudarem em sua
empreitada, porém não revela a nenhum deles que seu objetivo é o
assassinato do rei. Entretanto, com o retorno do conselho e suas
acusações, o rei pressiona os outros animais para que revelem a
verdade. Temendo mais o rei do que a raposa, os animais relatam a
ele o medo que sentiam de se oporem à Dona Raposa, despertando a
ira do rei. Ela então é descoberta a tempo e, diferente de Renart que
escapou sem penalidade por seus atos bárbaros, foi morta pelo
próprio rei diante de toda a corte. Ambos os contos, apesar das
diferenças em seus desfechos, relatam raposas similares, que visam
objetivos semelhantes.
Entretanto, os contos japoneses apresentam raposas com
características diversas. O primeiro conto escolhido, Tamamo-nomae, também conhecido como The Lady of the Jewels, que se passa
por volta do ano 1155 durante a Era Heian no Japão (794-1185) e
encontra-se presente no Otogi Zoshi, um conjunto de prosas reunido
e escrito durante o período Muromachi (1336-1573), traz um relato
de uma raposa que assume a forma de uma bela e jovem mulher
para encantar o imperador. Tendo vivido anteriormente na China e
lá morta por sua extrema crueldade, a raposa teria renascido no
Japão, buscando novamente uma posição de poder. Ao ser notada
pelo Imperador por sua extrema beleza e sabedoria, ele a incorpora à
corte. Porém, a presença maligna da raposa o adoece e, ao ser
descoberta foge, assassinando muitos homens em seu caminho até,
por fim, ser morta. Já o conto The Fox in the Brothel, de autoria
desconhecida porém proveniente da mesma época, presente no livro
Tales from the Japanese Storytellers de Post Wheeler, trata de uma
raposa que, liberta de uma armadilha por um camponês, resolve
recompensá-lo. Após se oferecer a ele como esposa e ser negada, se
410
faz passar por sua filha para que ele possa vendê-la por uma boa
quantia. Após retornar e se oferecer novamente, para mais uma vez
ser negada, ela desaparece em um turbilhão de luzes, abençoando o
camponês por sua pureza de caráter. É possível notar as diferenças
entre as raposas dos contos japoneses, sua dualidade estendida não
apenas para sua natureza de animal real e imaginário, mas também
para o conceito entre bem e mal.
Análise e comparação
Tomando por base as características destas raposas, é possível
chegar a um modelo europeu e um modelo japonês. Utilizando o
método proposto por Marcel Detienne em Comparar o
Incomparável, institui-se uma comparação entre cada raposa dentro
de suas respectivas culturas. Para tanto, as características
compreendidas pelos textos seriam o alicerce para tal comparação.
Em The History of Reynard, The Fox, a raposa é identificada como
astuta, traiçoeira, orgulhosa e persuasiva. No Livro das Bestas, ela
se mantém astuta e traiçoeira, porém também eloquente e
manipuladora. Sendo essas as principais características de ambas as
raposas, é possível traçar um modelo, em que as semelhanças são
muito próximas tornando essas raposas exemplos de uma visão
unificada de sua interpretação na época e localidade.
Tamamo-no-mae é descrita como cruel, nociva, impiedosa,
extremamente bela e sábia. A raposa de The Fox in the Brothel se
mostra grata, piedosa, extremamente bela e astuta. Também aqui se
traça um modelo, porém seus moldes se divergem, demonstrando
suas diferenças e a dualidade na percepção da raposa no Japão
feudal.
Algo que também pode ser citado é a forma como, nos contos
europeus, a raposa é vista de forma masculina – Renart é um
raposo, que possui mulher e filhos, e mesmo a Dona Raposa do
Livro das Bestas demonstra atitudes mais condizentes com o
comportamento masculino da época – enquanto nos contos
japoneses ela é uma manifestação feminina, sendo descrita em
ambos os contos como capaz de se transformar em belas mulheres.
A partir de tal análise, chegamos ao modelo final de raposa com base
em cada localidade. Comparada ao diabo tanto no Phisiologus de
Theobald quanto no The Aberdeen Bestiary da Universidade de
411
Aberdeen, a raposa europeia nos idos dos séculos XII e XIII possui
uma imagem profana. Como Renart e Dona Raposa, é uma figura
extremamente racional, sua astúcia se sobrepondo à sua sabedoria.
Má por natureza, imoral, sua visão implica fraqueza de caráter, e seu
aspecto é masculino. Considerada como tanto divina quanto
demoníaca por Kincaid em seu livro Come and Sleep: The Folklore
of the Japanese Fox e como símbolo do deus Inari – divindade do
arroz – ao mesmo tempo em que um ser vingativo e brincalhão por
Kiyoshi Nozaki em Kitsune: Japan’s fox of Mistery, a raposa feudal
japonesa possui uma imagem sagrada. Como Tamamo-no-mae e a
raposa sem nome de The Fox in the Brothel, é um ser emocional de
profunda sabedoria, porém igualmente astuta. Amoral por não
compreender a noção de moral humana, é um ser dúbio, transitando
entre o bem e o mal, entre crueldade, travessura e piedade, em
comportamentos considerados então femininos.
Por fim, concluímos que a raposa medieval europeia é
intrinsecamente negativa, de natureza maldosa e interpretação
masculina, cuja dualidade apenas se aplica à sua existência no
mundo real e no maravilhoso, enquanto a raposa medieval japonesa
possui naturezas distintas, sendo possível a dualidade entre o bem e
o mal, o real e o maravilhoso, representando “a alma japonesa e os
caminhos obscuros da humanidade” [Kincaid, 2016], seu aspecto
feminino ressaltado por sua interpretação emocional. Opostos, os
modelos de raposa se fazem presentes em ambos os mundos, real e
maravilhoso. Suas características tornam-se traços marcantes de
suas respectivas, tão diferentes culturas, e suas estruturas, enquanto
por vezes semelhantes, apresentam diferentes aspectos e
interpretações, ressaltando as diferentes noções de moral presentes
em cada cultura.
Referências
Raphaella Ânanda Sâmsara é graduanda em História pela UNIRIO.
É membro do Laboratório de Estudos Medievais do Núcleo de
Estudos e Referências da Antiguidade e do Medievo (NERO-LEM/
UNIRIO) e sua pesquisa é orientada pelo Professor Dr. Paulo André
Leira Parente.
Mail: ananda.samsara@ymail.com
412
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413
414
A INFLUÊNCIA GEOGRÁFICA NA DEFINIÇÃO DA
GUERRA NAVAL RUSSO-JAPONESA (1904-1905)
Rayanne Gabrielle da Silva
Conflito pouco comentando por autores brasileiros, a Guerra RussoJaponesa, ou Nipo-Russa, ocorreu entre fevereiro de 1904 e maio de
1905, caracterizado pelo uso das forças navais entre a potência russa
em declínio sociopolítico e o ascendente império japonês, bem como
pelo controle das regiões continentais da Coreia e da China, ambas
enfraquecidas político e economicamente dentro do quadro de
disputas internas, rebeliões civis e projeções imperialistas dos
vizinhos asiáticos. Os objetivos da Rússia e do Japão com esse
conflito tornam-se claros na medida em que se delineiam suas
necessidades de obtenção de matérias-primas, inexistentes ou
escassos em seus territórios, alargamento das fronteiras e
consequente busca por saídas terrestres e/ou marítimas mais viáveis
para a realização das negociações econômico-comerciais,
principalmente com o Ocidente.
A Guerra Russo-Japonesa está inserida no contexto das guerras
asiáticas ocorridas no final do século XIX e início do XX, cujas
consequências, desenvolvidas mais adiante neste trabalho, terão
reflexos indiretos sobre as duas Grandes Guerras Mundiais que se
seguirão. Entre essas guerras estão as duas Guerras do Ópio (18391842 e 1856-1860), na China, e a Primeira Guerra Sino-Japonesa
(1894-1895), as primeiras permitindo a abertura chinesa ao
comércio Ocidental e a segunda marcada pela afirmação de
soberania entre a China e o Japão, este último saindo vencedor e
enfrentando, por quase os mesmos motivos, a Rússia uma década
depois. Difícil será compreender a eclosão das contendas entre a
gigante euro-asiática e o pequeno, mas ocidentalizado, império
nipônico, sem conhecer, ainda que brevemente, os conflitos
anteriores.
Antecedentes da Guerra Russo-Japonesa
No século XIX, o Extremo Oriente estava passando por uma pressão
enorme das potências ocidentais para abrir seus portos ao mercado
externo. A China, o Japão e a Coreia detinham tradições políticas e
culturais muito fortes e arraigadas, primando pela preservação
dessas tradições ao fechar suas fronteiras às influências ocidentais,
cada vez mais impositivas e imperialistas. A Rússia era o único
415
Estado a participar ativamente da vida ocidentalizada que os seus
vizinhos tanto tentavam evitar, através de escaramuças por
territórios, adesão às ideologias e filosofias em voga na Europa e
alianças estratégicas por meio de acordos ou casamentos entre
membros da realeza.
Mapa do Extremo Oriente no século XIX. Observação para o avanço
da colonização europeia no Pacífico. Fonte:
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=252
Contudo, a Europa tinha a pretensão de dar continuidade as suas
influências e expansões territoriais, além de ampliar seus mercados,
vendo no Extremo Oriente um fornecedor comercial em potencial.
Como as conversações pacíficas não dessem frutos satisfatórios, em
quase todos os casos, decidiu-se usar a força das armas. Na China,
por exemplo, as forças britânicas obrigaram os chineses a abrir seus
portos para os navios ocidentais, na disputa pelo mercado do ópio.
Os Estados Unidos, vizinho americano do outro lado do Pacífico,
também deu mostras de intenção colonizadora e obrigou o Japão,
em 1853, a fazer o mesmo, sob a ameaça dos canhões das frotas
navais (ALBUQUERQUE, 2009, p. 327). Enquanto a China tentava
aliar seu tradicionalismo às intervenções estrangeiras em seu
território, o Japão optou pela modernização, bem-vinda com o fim
da dinastia Tokugawa e o início da era Meiji, pró-Ocidente, em 1868.
As consequências dessa súbita modernização refletiram-se,
principalmente, na educação, inclusive militar, e na aquisição e
posterior desenvolvimento da indústria bélica japonesa. A Coreia,
416
por sua vez, manteve-se subordinada economicamente à China,
preservando a alcunha de “reino-eremita”, pela continuidade de sua
política de isolamento do resto do mundo (SAKURAI, 2007, p. 138).
Além dessa alcunha, a Coreia era tida como um dos vários estadosvassalos chineses, ou seja, possuía independência e administração
autônoma, mas reconhecia a supremacia do imperador chinês
(CHANG, 2014, p. 168).
Mas o Japão não pararia por aí. Sua súbita modernização cobrou um
preço considerável do império. Como afirma Albuquerque (2009, p.
329),
“Tóquio sabia que sua industrializaçŌo tinha um ponto
fraco, que era a falta de matérias-primas. Estas estavam no
continente asiático, nas ilhas indonésias ou do outro lado
do mundo, como nos Estados Unidos da América. Tendo
consciência clara disso, o governo japonês viu a grande
importância de sua marinha de guerra, pois do ponto de
vista estratégico o Japão tinha situação análoga à da GrãBretanha. Ambos dependiam fortemente de seu poder
naval para garantir as comunicações marítimas.”
Portanto, o império nipônico precisava garantir a sobrevivência de
sua indústria explorando outros territórios que tivessem aquilo do
qual precisava, isto é, carvão e minérios de ferro principalmente. E a
Coreia parecia ser perfeita para dar início a essas conquistas no
Extremo
Oriente,
localizada
estrategicamente
a
oeste.
Geograficamente, o Japão estava cercado por territórios
pertencentes à Rússia – ao norte, a parte sul da ilha Sacalina, e as
ilhas Ryukyu, ao sul – e à China – as ilhas Pescadores e Formosa,
ambas também no sul. Para tanto, sabia que entraria em conflito
com os dois países, os quais tinham pretensões econômicas sobre a
Coreia tal como o rival japonês (ALBUQUERQUE, loc. cit.).
O caso da Rússia era semelhante. O império detinha um território
tão vasto quanto à China. A diferença entre os dois é que o segundo
não sabia controlar politicamente o seu, enquanto o primeiro
preocupava-se com o avanço modernizador da pequena ilha
nipônica, localizada a sudeste do território. Sua limitação com a
Europa se dá através dos montes Urais, tendo toda a costa leste
banhada pelo oceano Pacífico. Subindo para o norte, defronta-se
com o inverno rigoroso da Sibéria e a noroeste com o
417
frequentemente congelado mar Branco. Dessa forma, faltava aos
russos uma saída navegável para águas quentes em seu litoral,
contando apenas com a base naval de Vladivostok, ao sul, cujas
águas eram normalmente navegáveis, além de limitadas pelo mar do
Japão (ALBUQUERQUE, 2009, p. 330). Em decorrência da sua
política expansionista asiática – e aproveitando-se da fraqueza
chinesa em manter-se intacta territorialmente –, a Rússia deu início
à construção da ferrovia transiberiana, em 1861, ligando o sul da
Sibéria, passando pela região da Manchúria Russa (a Manchúria era
dividida entre russos e chineses) e alcançando a base naval de
Vladivostok, ignorando, por ora, o interesse por espaços na Europa.
Em 1894 inicia-se a Primeira Guerra Sino-Japonesa (haveria outra
na altura da Segunda Guerra Mundial), em virtude da invasão à
Coreia pelo Japão, cuja vitória esmagadora sobre a China, decidida
através da batalha naval de Yalu (1895), surpreendeu o Império
Russo e acendeu o sinal de alerta para a política expansionista
nipônica no Pacífico. Além disso, o Japão obteve dos chineses a
Manchúria Chinesa, as ilhas Pescadores e Formosa, e parte do
território coreano, em troca da manutenção parcial da
independência da Coreia através do Tratado de Shimonoseki
(SAKURAI, 2007, p. 139). Nesse ínterim, a Rússia tomou o lado do
partido coreano contrário a ocupação japonesa, enviando colonos ao
país, e junto à China, em 1898, passou a operar uma base naval na
altura do mar Amarelo chamada de Port Arthur, ao sul da
Manchúria Chinesa. A escolha da enseada para a construção da base
se deu por ser o único porto no Pacífico que não congela no inverno,
o que facilita a navegabilidade, algo caro na busca por saídas
marítimas pelos russos (SAKURAI, op. cit., p. 140; DARÓZ, 2009).
No mesmo período, os russos também aceleraram a construção da
ferrovia, agora ampliando o percurso até Port Arthur, gerando a
insatisfação, tal como a construção da base na região, dos japoneses.
Estes, por volta de 1902, deram início às negociações, mediadas pela
Grã-Bretanha, para a retirada dos colonos russos da Coreia e das
tropas russas da Manchúria Chinesa, o que não ocorreu até 1904,
quando, sem declaração prévia de guerra, o Japão iniciou o conflito.
A Guerra Naval Russo-Japonesa: consequências
territoriais e geopolíticas decorrentes
Os japoneses tinham como objetivo essencial “[...] obter o domínio
do mar e fazer a guerra também no continente” (ALBUQUERQUE,
op. cit., p. 340), isto é, conquistar e consolidar o domínio sobre todo
418
o Pacífico e controlar os territórios conquistados com a Primeira
Guerra Sino-Japonesa, incluindo a Manchúria – rica em recursos
minerais, como o gás natural, o petróleo e o diamante -, de modo a
impedir o avanço russo. Só assim conseguiria suprir suas carências
materiais e fortalecer seu poderia militar, de forma a intimidar
quaisquer outras pretensões imperialistas na região, um recado claro
às potências europeias, aos Estados Unidos, do outro lado do
oceano, e a própria Rússia.
O bloqueio e ataque a Port Arthur (Batalha de Port Arthur) e o
afundamento de couraçados russos em Inchon, na Coreia, marcaram
o início das hostilidades navais, caracterizando o conflito como uma
guerra naval. Segundo a Enciclopédia de Guerras e Revoluções Vol. I
(2015), uma guerra naval “é a parte da guerra constituída por ações
militares realizadas predominantemente em áreas marítimas e/ou
águas interiores”, porém, tal conceito aplicado ao presente objeto de
estudo não exclui o uso da força terrestre por ambos os beligerantes
em batalhas que mobilizaram grandes contingentes, uso em larga
escala, pela primeira vez na História, da metralhadora e a adoção de
trincheiras, como visto nas batalhas de Yalu – próximo ao rio de
mesmo nome onde, dez anos antes, o Japão obteve uma expressiva
vitória em campanha naval contra a China – e, principalmente, a de
Mukden, esta última, decisiva para o domínio pleno da Manchúria
pelos nipônicos. Tais ações prenunciaram o que viria a ser a
caracterização da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
(SONDHAUS, 2013).
Liderados pelo almirante Heihachiro Togo, os japoneses detinham o
que era considerada a frota naval mais poderosa do Pacífico,
enquanto a frota russa era a mais numerosa, porém menos
modernizada e espalhada em missões no Báltico e no Mar Negro,
além da que já estava estacionada no Pacífico. Uma observação a
respeito da composição das frotas destacada por Freire (2004),
indica que a geografia dos países em guerra influenciou na formação
de seus marinheiros. Enquanto os russos passavam pouco tempo a
bordo de suas embarcações, além daqueles que nunca tinham visto o
mar devido às dificuldades territoriais impostas, os japoneses, ao
contrário, viviam intensamente em contato com suas belonaves de
guerra e com o próprio mar, muitos tendo nascido na costa ou perto
dela, sendo pescadores ou até mesmo piratas. Lembrando que a
Rússia é um território extremamente continental, enquanto o Japão
419
é um arquipélago, cujas quatro principais ilhas que a compõem
constituem o império propriamente dito e conhecido.
A frota russa, de início, foi liderada pelo vice-almirante Stepan
Makarov, morto quando seu navio capitânia, o encouraçado
Petropavlovsk, afundou ao bater numa mina japonesa. Seu sucessor,
o contra-almirante Vilgelm Vitgeft, teve o mesmo destino, sendo
então substituído pelo vice-almirante Zinovi Rodjestivensk,
comandante do Segundo Esquadrão do Pacífico e que levou a guerra
até o fim. Completado um ano do conflito, Rússia e Japão viram-se
diante de um impasse, com perdas importantes de navios por causa
das minas submarinas e da ausência de vantagens táticas (DARÓZ,
2009).
Almirante Togo.
In http://www.oexplorador.com.br/togo-heihachiro-comandantedas-forcas-japonesas-na-batalha-de-tsushima/
No dia 25 de maio de 1905, a frota russa dirigiu-se para o estreito de
Tsushima, localizado entre a ilha de Tsushima e a ilha Honshiu, a
principal do arquipélago japonês, localizada ao sul. Segundo
Albuquerque (2009, p. 347), no local “o tempo apresentava-se ruim,
com fortes ventos e uma chuva fina; a neblina espessa tornava nula a
visibilidade”, condições meteorológicas consideradas favoráveis
pelos russos para iludir a frota japonesa em aproximação e atacá-la.
O plano não deu certo e na madrugada do dia 27 para o dia 28 de
maio, foram avistados por um navio mercante armado japonês, que
informou imediatamente a frota naval de Togo, resultando no ataque
que garantiu a vitória japonesa e a rendição da frota russa,
colocando fim ao conflito armado. Tal feito ficou conhecido como
420
Batalha Naval de Tsushima ou Batalha do Mar do Japão, cujo
impacto gerou comparações com a vitória obtida pelo Almirante
Nelson em Trafalgar em 1805 contra as forças napoleônicas cem
anos antes (YAMASHIRO, 1964, p. 162).
Vice-Almirante Rodjestivensk.
In https://laguerrarusojaponesa19041905.wordpress.com/tag/vigo/
A paz foi assinada por meio de um tratado, na cidade de Portsmouth,
nos Estados Unidos, tendo sido mediada por este último a partir de
conversações iniciadas pelos japoneses. Através desse tratado, “[...] a
Rússia foi coagida a abrir mão de seus direitos sobre Port Arthur,
evacuar a Manchúria e reconhecer a Coréia como área de influência
japonesa” (SAKURAI, 2007, p. 140). O JapŌo ainda obteve os
direitos sobre o sul da ilha Sacalina, anexando finalmente a Coreia a
seu território em 1910. Já o Império Russo, após sofrer uma derrota
naval e territorial considerada vergonhosa, obteve os direitos de
pescar comercialmente na costa da Sibéria oriental, sem anular suas
pretensões colonialistas (FREIRE, 2004; SAKURAI, loc. cit.;
SONDHAUS, 2013). O clima político e socioeconômico interno
estava fragilizado, agravado com o início da primeira revolução
socialista no mesmo ano de término da guerra, cujo auge em 1917
resultou na queda da monarquia e na retirada imediata da Rússia da
Primeira Guerra Mundial. Para John Darwin (2015, p. 319),
“Nem mesmo o desastre da Guerra Russo-Japonesa (19041905) [...] conseguiu quebrar a pretensão da Rússia a ser
uma potência do Pacífico ou fazer recuar a sua expansão no
Norte da Ásia Oriental. Assim, apesar da instabilidade do
seu sistema imperial, do seu atraso tecnológico, fragilidade
421
económica e fraco magnetismo cultural, a Rússia
conseguira acompanhar os Estados mundiais rivais.
Seguira a sua própria trajetória para o colonialismo
mundial.”
Mapa apresentando as áreas de influência russa (cor escura) e as
áreas de influência japonesa (cor clara) durante a Guerra RussoJaponesa. In ALBUQUERQUE (2009, p. 353).
Em termos geopolíticos, o Japão tornou-se a potência inconteste do
Pacífico. Suas necessidades prementes de matéria-prima e de
comunicações marítimas traduziram-se em algo maior, capaz de lhe
assegurar o controle total da região extremo-oriental, inclusive do
oceano ao seu redor, com grande potencial estratégico, assim como
dos territórios adjacentes, capazes de lhe fornecer as bases
necessárias para continuar a fazer frente às grandes potências
mundiais. Com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, voltara suas
intenções para a fragilizada China e demonstrara hostilidade e uma
política dura de não-intervenção no Pacífico contra o gigante
Estados Unidos até a Segunda Guerra Mundial, quando atacaram a
base naval de Pearl Harbor, no ano de 1941. As bombas atômicas
lançadas pelos americanos sobre as ilhas nipônicas em agosto de
1945 foram as consequências do imperialismo desenfreado
promovido pelo Trono do Crisântemo.
422
A Rússia, desde a revolução bolchevique que derrubara a monarquia
imperial, viu-se diante do desafio de crescer frente ao Ocidente
capitalista sob a condução pesada do comunismo ditatorial. Seu
projeto de expansão posterior caracterizou-se pela subjugação de
quase toda a Ásia através da ideologia vermelha, resultando na
bipolarização tensa, com os Estados Unidos como adversário, logo
após a Segunda Guerra, no que ficou conhecida na História como
Guerra Fria. Isso não excluiu a possessão de boa parte dos territórios
do leste europeu, alargando sobremaneira suas fronteiras,
ampliando sua produção e manobras militares e usufruindo das
riquezas minerais, como o urânio e o petróleo, capazes de abastecer
sua indústria armamentista em crescente produção.
Em síntese, a Guerra Russo-Japonesa dependeu exclusivamente das
condições existentes para sobreviver economicamente e se
comunicar estrategicamente dos países beligerantes nos espaços
geográficos em que estavam inseridos. A necessidade de matériasprimas para abastecer a industrialização, a busca por canais de
comunicação além dos meios restritos, a procura por saídas, tanto
terrestres quanto para a navegabilidade comercial e militar, as
condições meteorológicas adversas e o uso do poder naval para a
conquista foram determinantes para definir o resultado do conflito e
possibilitar a reflexão sobre as consequências das ações dos rivais
em questão ao longo do tumultuado século XX.
Referências
Rayanne Gabrielle da Silva é pós-graduanda em História Militar pela
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
E-mail: rayannegabrielle_28@hotmail.com.
CHANG, J. A Imperatriz de Ferro: a concubina que criou a China
moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
SILVA, F. C. T. et alli (Orgs.). Enciclopédia de Guerras e
Revoluções Vol. I (1901-1919): a época dos imperialismos e da
Grande Guerra (1914-1919). Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.
YAMASHIRO, J. Pequena História do Japão. 2 ed. São Paulo:
Herder, 1964.
ALBUQUERQUE, A. L. P. e. Batalha de Tsushima: surge uma nova
potência. In: VIDIGAL, A.; ALMEIDA, F. E. A. de (Orgs.). Guerra
no mar: batalhas e campanhas navais que mudaram a história. Rio
de Janeiro: Record, 2009. p. 327-56.
423
DARWIN, J. Os limites do império. In: ______. Ascensão e
queda dos impérios globais (1400-2000). Lisboa: Edições 70,
2015. Versão digital.
SAKURAI, C. Ambições territoriais e o Japão guerreiro. In: ______.
Os Japoneses. São Paulo: Contexto, 2007. Versão digital.
SONDHAUS, L. O mundo em 1914 e as origens da guerra. In:
______. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Contexto,
2013. Versão digital.
FREIRE, J. M. M. Há cem anos a Guerra Russo-Japonesa.
Consequências diplomáticas. Equilíbrio internacional e europeu.
Revista Militar, n. 2427, abr. 2004. Disponível em:
<https://www.revistamilitar.pt/artigo/394>.
DARÓZ, C. Batalha de Porto Arthur (1904): a vez das minas. Blog
Carlos Daróz – História Militar. 26 mar. 2009. Disponível em:
<http://darozhistoriamilitar.blogspot.com.br/2009/03/batalha-deporto-arthur-1904-vez-das.html>.
424
INTERVENÇÃO DO PIBID DE HISTÓRIA:
O JAPÃO NA SALA DE AULA
Renan Lourenço da Fonseca
A cultura japonesa, bem como a cultura oriental como um todo, é
desprivilegiada no que diz respeito ao repertório de conhecimentos
básicos existentes em materiais didáticos, livros de história, revistas,
etc. Tanto no ensino básico como nas universidades, a cultura
nipônica passa por meras menções, dificultando uma melhor
compreensŌo dessa civilizaçŌo de alicerces “milenares”, como
sempre o é destacado ao tratar deste assunto. Sobre o
eurocentrismo, Barbosa nos diz que
“Existem diversas formas de caracterizar o chamado
eurocentrismo. Por vezes, ele é visto como mero fenômeno
etnocêntrico, comum aos povos em outras épocas
históricas. Mas para a maioria dos autores que tratam
atualmente da questão, o eurocentrismo deveria ser
caracterizado, diferentemente, como um etnocentrismo
singular, entendido como uma ideologia, paradigma e/ou
discurso” [BARBOSA, 2008, p. 46].
O Brasil teve um contato significativo com o Japão durante as
grandes guerras mundiais, e os japoneses que aqui vieram durante
esse período são responsáveis, assim como muitos dos imigrantes
advindos do outro lado do Pacífico, por parcelas de mudanças na
estrutura sociocultural brasileira. Logo seriam responsáveis por
traçar novos caminhos para a história de nossa nação. Porém, em
alguns momentos da história, houve considerável distanciamento
entre brasileiros e japoneses. Segundo Teles, com base em Sousa, o
Brasil marginalizou os descendentes japoneses durante Segunda
Guerra Mundial, pois estes foram declarados inimigos dos Estados
Unidos, logo, inimigos de nosso país. Nesse sentido o autor diz que
“como política de combate, o JapŌo foi rechaçado, uma vez que fazia
parte do lado contrário, o Eixo, e assim, romperam-se todas as
relações possíveis” [TELES, 2010].
Com o decorrer das décadas, novas roupagens surgiram, e a relação
Japão-Brasil tornou-se mais íntima e, portanto, é muito importante
que analisemos e compartilhemos desta aproximação histórica entre
os dois países.
425
O PIBID de História da UNESPAR, campus de Campo Mourão, se
preocupando com as demandas do ensino, nas suas mais variadas
abordagens, deu condições para que alunos da graduação
realizassem intervenções, que colaborassem com o processo de
ensino e aprendizagem de alunos da escola do Ensino Básico. Nosso
grupo, que na época era composto pelos discentes Alisson Amaro
Fernandes, Anna Karina Firmo de Lima Alves, Daiane Aparecida
Freita dos Santos, Polyana de Paula Ramos e eu, Renan Lourenço da
Fonseca, realizamos a execuçŌo de atividades, na temática “JapŌo”,
que serão descritas a seguir. Foram seguidas as orientações dos
coordenadores do PIBID de História, os professores Dr. Fábio André
Hanh e Dr. Bruno Flávio Lontra Fagundes, contando também com a
supervisŌo do professor Lincoln D‟Avila Ferreira. Nosso objetivo era
propor a reflexão histórica de alguns elementos da história japonesa,
dialogando com a cultura, religião, filosofia, comportamento,
culinária e outros componentes que colaborem com a desconstrução
de estereótipos que são comuns em nossa sociedade.
As intervenções foram realizadas em duas turmas de 2º ano, do
período matutino, no colégio Estadual Doutor Osvaldo Cruz, do
município de Campo Mourão. O total de aulas utilizadas foi de 9
aulas por turma, distribuídas no decorrer do segundo semestre do
ano de 2016. Nossas ações foram executadas em três etapas
distintas: aplicação de questionários (1), exposição de conteúdo (2) e
Atividade Final (3).
Os questionários foram aplicados em dois momentos. Os primeiros
foram aplicados antes das exposições de conteúdo e os demais foram
aplicados depois de realizadas todas as intervenções, como uma
última ação dos bolsistas no colégio. Para melhor análise das
informações, foram estruturados dois tipos de questionário: abertos
e fechados. A intençŌo dos questionários “abertos” foi de coletar
informações mais personalizadas de cada aluno, referente ao tema
Japão. As questões contidas nos questionários deveriam ser
respondidas em pequenos textos, que apresentariam noções
interessantes sobre o assunto. Os questionários “fechados” tiveram
como objetivo a coleta de dados específicos, contendo informações
sobre o aluno, sobre suas aulas de História e sobre o Japão. Neste
modelo, as questões foram objetivas. Num primeiro momento, com
a posse dos questionários respondidos, analisamos conjuntamente
os dois tipos, que acabavam por complementar o raciocínio das
respostas. Foi uma estratégia interessante para perceber tanto as
426
conexões como também as contradições existentes em cada
argumento em função dos dados e vice-e-versa. O segundo momento
dos questionários foi realizado no final das intervenções. Por meio
dos mesmos procedimentos da primeira etapa, aplicamos os dois
tipos de questionário e analisamos as respostas. Com as
considerações de ambos os momentos – após análise dos
questionários aplicados no início e no fim das intervenções –
identificamos ligeiras mudanças nas visões dos alunos, referente ao
Japão e sua cultura.
A partir, do dia 12 de setembro, em sala de aula, os pibidianos
começaram a abordar as principais Eras do Japão, partindo da PréHistória japonesa, seguidos das Eras Jomon, Yayoi, Kofun, Nara,
Heian, Kamakura, Muromatchi, Azutchi-Momoyama, Edo, Meiji,
Taisho e Showa, sempre fazendo ligações com temas atuais, além de
fazer conexões do tema com animes japoneses, aspectos culturais
(yoga, karaokê), que, segundo as informações coletadas nos
questionários, estão presentes no cotidiano dos alunos. A proposta
de apresentarmos essa divisão de 12 Eras, mais a pré-história, teve
como objetivo demonstrar que as formas de divisão da História
podem acontecer de várias formas, dependo dos critérios baseados
na cultura local ou até da seleção das mais sofisticadas teorias e
metodologias historiográficas, que geralmente partem do referencial
da História “quadripartite” (Antiga, Medieval, Moderna e
Contemporânea), baseada numa espécie de “tronco” da história, que
sustentaria os “galhos” e “ramos” feitas de histórias paralelas e
simultâneas. Posto isso, achamos mais interessante estudar a
história do Japão vista pelo ângulo japonês. A maior parte do
material foi retirada da Internet, principalmente do site intitulado
“Cultura Japonesa”. Como recurso ilustrativo, utilizamos o livro
“História do JapŌo em Imagens”, de Shigeo Nishimura. Utilizamos
também, ao final de cada exposição, alguns objetos típicos dos Japão
(veja um exemplo na Figura 1), que serviram como complemento de
todo conteúdo.
427
Figura 1 – Leque
Fonte: Do autor (2016)
O uso dessa última ferramenta não foi meramente decorativo, pois
acredito que o processo de ensino e aprendizagem deve munir-se de
qualquer tipo de recurso, seja ele material ou não, que corrobore
com a assimilação dos conteúdos. Como diz Siman:
“A presença de outros mediadores culturais, como os
objetos da cultura, material, visual ou simbólica, que
ancorados nos procedimentos de produção do
conhecimento histórico possibilitarão a construção do
conhecimento pelos alunos, tornando possível “imaginar”,
reconstruir o não vivido diretamente, por meio de variadas
fontes documentais”. [SIMAN, 2004, p. 88]
No caso do uso dos objetos típicos, pensamos que os conhecimentos
adquiridos em sala poderiam ser depositados em um receptáculo
material, que carregado de simbologias, faria relação direta com os
conteúdos estudados.
Ao todo, as exposições duraram três semanas. No dia 21 de
novembro, retomamos as atividades, dando início a um conteúdo
complementar sobre a religião no Japão, seguido de um segundo
encontro, sob a temática dos animes e da culinária japonesa.
Ao fim das exposições em sala de aula, finalizamos nossas
atividades, num penúltimo encontro (o último foi com a aplicação da
segunda fase dos questionários) com a “Sala Temática” (Figura 2), a
atividade final.
428
Figura 2 – Sala temática
Fonte: Do autor (2016)
Teve como objetivo instigar os alunos à reflexão sobre o tema de
uma forma dinâmica, divertida e atrativa. Assim, os alunos puderam
ter um contato direto com alguns dos assuntos abordados nas
intervenções em sala de aula. Começamos as interações com a sala
propondo uma gincana com perguntas e respostas. A gincana
consistia numa espécie de “prender o rabo no burro”, que foi
adaptada tematicamente na construção do rosto de uma gueixa.
Foram colados um cartaz com duas imagens em uma parede para
que dois grupos pudessem competir. Tinha direito de colar uma
parte do rosto da gueixa aquele que acertasse a resposta da
pergunta. As perguntas foram baseadas no conteúdo das exposições
em sala de aula. Num segundo momento, reproduzimos em um
televisor alguns trechos da animação japonesa do Studio Ghibli, “O
Conto da Princesa Kaguya”, que baseada no folclore O Conto do
Cortador de Bambu, apresentava particularidades dos costumes
japoneses e da religião xintoísta, que foram debatidas em sala de
aula, anteriormente. Após a reprodução da animação abrimos para
uma vivência mais livre, por meio da manipulação de objetos,
jornais e mangás dispostos em uma mesa, acompanhados da
degustação voluntária de Senbeis (biscoitos a base de arroz).
Encerramos a atividade com uma breve discussão e agendamos
nosso último encontro para aplicação da segunda fase dos
questionários, que já foram descrevidas mais acima.
Considerando que o nosso intuito foi o de introduzir uma reflexão da
importância das outras culturas, além da nossa cultura, bem como
da europeia, da qual temos grande influência, quisemos propor
transformações, compartilhando dos conhecimentos históricos.
Esperamos que os alunos tenham aguçado seus olhares críticos
429
sobre importância de se dar atenção ao que está distante, ao
diferente. E pela análise dos últimos questionários, foi possível
perceber a transformação na mentalidade dos alunos,
principalmente no que diz respeito aos estereótipos que envolvem o
Japão.
Referências
Renan Lourenço da Fonseca é do 3º ano de História, bolsista do
PIBID, da UNESPAR, campus de Campo Mourão, Paraná.
Mail: renan.l.fonseca@gmail.com
BARBOSA, M. S. Eurocentrismo, história e história da
África. Sankofa - Revista de História da África e de Estudos da
Diáspora Africana, n. 1, p. 46-63, jun. 2008.
TELES, M. G.. Os valores japoneses e sua influência no
comportamento cultural corporativo brasileiro. C@LEA – Revista
Cadernos de Aulas do LEA, Ilhéus, n. 3, p. 75 – 87, nov. 2014.
NISHIMURA, Shigeo. História do Japão em Imagens.
Campinas, SP: Editora Unicamp, 2008.
SIMAN, Lana Mara de Castro. ―O papel dos mediadores
culturais e da ação mediadora do professor no processo de
construção do conhecimento histórico pelos alunos‖. In:
ZARTH, Paulo A. e outros (orgs). Ensino de História e Educação.
Ijuí: Ed. UNIJUÍ: 2004.
O Conto da Princesa Kaguya. Direção: Isao Takahata. Japão:
Studio Ghibli, 2015. 1 DVD.
430
“MIMOS INDIANOS” E “DELÍCIAS DA ÁSIA”:
UM DEBATE SOBRE O IMPÉRIO ULTRAMARINO
PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI
Ricardo Hiroyuki Shibata
O percurso literário do topos da “Idade de Ferro”, que traz consigo,
para uns, a derrocada do império português no século XVI (se é que
um dia foi mesmo um verdadeiro império), e, para outros, o
empobrecimento da vida social, pode se lastreado desde as críticas
de Sá de Miranda e sua retirada da corte, passando pelas queixas de
Gil Vicente a respeito da perda da alegria de viver do povo português
até a tŌo famosa “austera, apagada, e vil tristeza” no gosto da cobiça
de Camões (Os Lusíadas X.145) (RAMALHO, 1997, p.17). Para o
pensamento moral que subjaz a todos eles, a degradação das
virtudes e dos laços sociais que transformam os súditos em uma
verdadeira comunidade política são conseqüência da expansão
marítima e desses “fumos da Índia” – ou para dizer com Miranda,
desses “mimos indianos” –, que se deu progressivamente do reinado
de D. Manuel para o de D. João III.
Em verdade, era ao bom exemplo do reinado de D. João II a que se
referia Sá de Miranda, na carta “A El Rei nosso senhor”, quando
admoestava a D. João III das mazelas que grassavam no reino:
Do vosso nome um gram rei
Neste reino lusitano.
Se pos essa mesma lei:
Que diz o seu pelicano:
Pola lei e pola grei. (MIRANDA, 1989, p.204)
Dante, na Divina Comedia (XXV, 112), comparava a figura do
pelicano que se volta para os filhos para alimentá-los com seu
próprio sangue com a figura do Cristo. Essa comparação, que parece
por demais mundana, foi estabelecida através de três fontes: a Bíblia
(Salmo 101.7-8), que representa o pelicano como animal do desterro
e da solidão; a retomada dos bestiários medievais; e do Horopollon,
muito em voga no século XVI. É assim que se dissemina a associação
do auto-sacrifício do pelicano com o de Cristo que salva seus filhos,
imolando-se na cruz e que ressuscita após três dias, como
representação da Caridade e do Amor de Deus pelos homens
(BONARDI, 1990), ou, como esclarece Emile Male, como sinal da
431
Ressurreição e da virtude teologal da esperança (MÂLE, 1948,
p.91s).
Por ocasião das cortes de 1490, segundo informa Manuela
Mendonça, as reformas empreendidas por D. João II, em nome do
amor aos súditos, deram tanto resultado que os povos de muito bom
grado resolveram contribuir voluntariamente com todas as despesas
do casamento de príncipe D. Afonso, indicando, com isso, que se
vivia numa época próspera em Portugal. As bodas do príncipe
português com a filha dos Reis Católicos seriam o espelho do
reinado de D. João II e um signo a mais da magnificência régia, além
da construção da fortaleza da Graciosa no interior do Marrocos, da
sagração do conde de Vila Real como Marquês e da visita triunfante
ao “reino do Algarve”.
Como diz Garcia de Resende, em sua Crônica de D. João II, para as
Cortes o rei nŌo estipulou quantia certa, contudo antes “o que elles
por suas vontades quisessem, e podessem boamente fazer”. Uma
solicitação que punha à prova a situação econômica dos súditos e a
popularidade do monarca. É ainda Garcia de Resende que apresenta
a resposta dos estados do Reino: “os procuradores todos pollo muyto
amor que os povos a el Rey tinhão (...) fizerão a el Rey serviço de
cem mil cruzados” (MENDONÇA, 1991, pp.411-412).
No entanto, durante o século XVI, a sorte de Portugal mudara. Pelo
menos duas vezes, em 1542 e novamente em 1570, levantou-se a
possibilidade de desistir do estado da Índia, a fim de levar a cabo a
conquista de Marrocos, foi seriamente discutida por escritores
(moralistas, sobretudo) portugueses e mesmo no conselho régio
(THOMAZ, 1994, p.191). D. João III havia herdado uma situação
fiscal complicadíssima. D. João II deixara para D. Manuel enormes
dívidas fiscais, que, por sua vez, foram acrescidas pelos gastos com a
descoberta da Índia (ALBUQUERQUE, 1884, p.34). Além disso,
acrescentarem-se dois erros cruciais: a expulsão dos judeus e a
renúncia fiscal dos impostos do estado eclesiástico, das ordens
militares e seus respectivos criados.
De fato, os produtos vindos da Índia traziam enormes dividendos ao
Reino, porém esse comércio dependia de substanciais investimentos
em navios e na construção de fortificações, o que levou o monarca
português a contrair empréstimos e antecipar os lucros com os
contratos, fragilizando ainda mais o Fisco e aumentando as despesas
432
públicas. Portugal também atuava em várias frentes de expansão e
conquista (Índia, Brasil, Norte da África) e, devido aos precários
instrumentos de fiscalização, havia o comércio ilícito que burlava o
monopólio régio. Por volta de 1524, com a forte expansão do poderio
muçulmano no Norte da África, as praças portuguesas, até então
auto-suficientes, começaram a sofrer problemas de abastecimento e
de proteção, necessitando, portanto, maiores investimentos.
É basicamente por essa data que se levanta a solução de abandonar
as praças do Marrocos. A conjuntura desfavorável contribuía para
isso: estado de guerra permanente, abastecimentos locais muito
dependentes da metrópole, deficiências portuárias, guerra de corso,
falta de organização militar, aliado à vasta extensão pelas quais se
dispersavam as possessões portuguesas. Para a mentalidade
nobiliárquica da época, abandonar qualquer praça que havia sido
conquistada era, sem dúvida alguma, um opróbrio difícil de aceitar.
Todavia, a queda de Santa Cruz do Cabo de Gué em 1541, vai mostrar
a D. João III o caminho a seguir. Como se sabe, abandona-se, na
África, as praças de Safim, Azamor (1541), Alcácer Céguer (1549) e
Arzila (1550) (FONTOURA, 1999, p.8).
O projeto de conquista de Azamor na África, cuja praça traria
enormes dividendos a D. Manuel – cereais, peixes, tecidos, cavalos e
porto para a navegação atlântica –, foi empreendida em 1512 pelo
duque de Bragança, D. Jaime. Muitos nobres concorreram para tal
empreendimento a partir do clima cavalheiresco e de cruzada, cuja
partida foi celebrada pela representação nos Paços da Ribeira da
Exortação da Guerra de Gil Vicente.
A praça de Azamor era protegida pela fortaleza de Mazagão, cuja
situação privilegiada permitia controlar as vias marítimas e
comerciais do Algarve, Açores e costa marroquina, além disso era
rica em trigo e pastagens. Como diz Joaquim SerrŌo: “a construçŌo
de uma fortaleza ou „presídio‟ integrava-se no plano de defesa das
outras praças do Ocidente marroquino” (SERRÃO, 1980, p.24).
No entanto, ainda com Veríssimo Serrão, as praças de além-mar
herdadas por D. João III de D. Manuel causavam enormes despesas
para o reino, além do que Portugal teve de pagar exorbitante
indenização para Carlos V para garantir o direito às ilhas Molucas a
partir do que foi acordado no Tratado de Saragoça (1529),
conseqüência da viagem de circum-navegação de Fernão de
433
Magalhães e Sebastián del Cano. Os conselheiros de D. João III
desde o início de seu reinado, levantaram a questão do abandono de
certas praças no além-mar. Vasco da Gama e D. Jaime, duque de
Bragança, aconselharam a abandonarem-se Ormuz e Malaca,
mantendo apenas Goa e Cochim. Outros defendiam o das praças
marroquinas, mais dispendiosas e difíceis de defender de ataques.
Em 1529, D. João III pede novo parecer a seus conselheiros. O
duque de Bragança era favorável a entrega ao imperador Carlos V,
por ser impossível a conquista do reino de Fez, das fortalezas no
estreito de Gibraltar, mantendo-se apenas Azamor e Safim. Por
razões religiosas e políticas, eram contrários António Leite (defendia
tomar o porto de Salé e isolá-lo do comércio mouro e turco), Simão
Gonçalves da Costa (devia-se manter a fortaleza de Santa Cruz para
proteger as outras praças fortes) e Gonçalo Mendes Çacoto (o norte
da África tinha sido tomado em serviço de Deus e abandoná-lo traria
conseqüências terríveis ao resto do império).
A mesma questão retorna em 1534 quando do problema de se
abandonar Safim e Azamor. Foram desfavoráveis o Infante D.
Fernando, D. Pedro de Meneses, marquês de Vila Real, D. Rodrigo
de Lima, Visconde de Vila Nova de Cerveira, Cristóvão da Távora, D.
João de Melo Barreto, Fernão Vaz de Sampaio, João Mendes de
Vasconcelos, D. Fradique Manuel, Nuno Rodrigues Barreto e
Manuel de Sousa; pelo total abandono, afirmavam-se D. Fernando
Coutinho, bispo do Algarve, D. Fernando de Meneses, bispo de
Lamego, D. Jorge, mestre da Ordem de Sant‟Iago, Francisco Lobo e
Francisco Perreira. Absteve-se o bispo-conde de Coimbra, D. Jorge
de Almeida. Já antes em 1532, D. João III pensara em guardar
apenas Ceuta, Tânger e Arzila, para então empreender a conquista a
conquista de Fez.
Em 1541, à força das circunstâncias e da premência da situação, os
que eram partidários da manutenção das praças no Marrocos
perderam voz no conselho régio. Abandonaram-se as possessões de
Safim e de Santa Cruz e manteve-se Mazagão. Em 1548, o Infante D.
Luís propõe a retirada de Arzila e Alcácer Ceguer. Assim, “o domínio
português ficava reduzido a Ceuta e Tânger, portas do Estreito e de
mais fácil manutenção dada a sua proximidade do Algarve, e ao
presídio de Mazagão, que podia servir de apoio à navegação do
Atlântico. Em pouco mais de um século desfizera-se o projeto de um
Portugal marroquino que o Reino não tinha meio de conservar,
atendendo a que o esforço ultramarino da Nação se encaminhara
434
para a empresa do Oriente. Pela mesma época começava também a
política de governo e colonização que permitiu o surto do Brasil
português” (Idem, ibidem).
Diogo do Couto era da opinião que se deveria ficar na Índia e
abandonar as praças africanas. Diz ele, em seu O Soldado Prático
(III. IV), que um Reino para ser próspero deve possuir, primeiro,
“fructos e gados em abundância para sustentaçŌo dos povos”, e,
segundo, “minas de ouro e prata, e outros metais, para sustentação
da paz e prosseguimento da guerra”. Aqui, a verdadeira
contraposiçŌo se dá entre o “ouro da Mina” e as “drogas da Índia”. A
conquista da África sempre fora muito difícil: os romanos nunca
conseguiram um domínio estável da região, os imperadores alemães
e outros potentados europeus nunca se atreveram a tal empresa e
mesmo os portugueses controlam suas praças com o enorme esforço
da ajuda externa tanto de armas como de provisões, a despeito da
grande quantidade de ouro que se retira dali. Por outro lado, os
reinos europeus sempre se interessaram pelas riquezas e diversos
produtos da Índia.
Para Couto, apenas as possessões indianas preenchiam os dois
requisitos fundamentais para a prosperidade de um Reino, porque,
além da existência de enormes quantidades de metais e pedras
preciosas, “Na Índia, [existem] os mais puros ares do Mundo,
fructas, águas de fontes e rios, as melhores e mais salutíferas de toda
a terra, pão, cevada, todos os legumes, todas as hortaliças, gado
grosso e miúdo, que pode sustentar o mundo, tudo o mais
maravilhoso”. Ademais, nŌo se poderia abdicar da missŌo investida
por Cristo aos portugueses de dilatar a fé cristã naquela parte do
mundo; muito menos, perder-se a ocasião propícia para se mostrar
feitos de armas dignos de memória, sobretudo para uma parte da
representativa da nobreza de Portugal (“A muitos deu a Índia muitos
haveres e riquezas; mui ricos homens foram de lá; mas em nenhuma
das histórias achareis feita memória destes, por muito alevantados
que fossem em sangue e dignidades; e muitos vereis de mediano
nascimento, sublimados nelas por seus feitos, que lhe podem ter
grandes invejas os mais ricos do Mundo”) (COUTO, 1937, pp.204216).
Em sentido complementar, o parecer anônimo de 1543 acerca da
permanência dos portugueses nas praças da Índia argumenta que,
de nenhum modo, pode-se atribuir a derrocada do Reino, primeiro,
435
a “defficuldade da navegaçŌo como de conquista”, nem, segundo, ao
“pouco proveito que deste descobrimento e conquista se esperava”,
muito menos ainda às “delicias Indianas” que poderiam “affiminar
os animos Varonis dos Portuguezes, e com a cobiça as riquezas da
Asia despovoar-se o Reyno de Lavradores” (CRUZ, 1997, p.123).
Quanto à primeira razão, está mais do que provado que a navegação
tinha vencido a contento inúmeros obstáculos, inclusive contra a
opinião corrente dos geógrafos antigos e dos autores de fábulas.
Quanto à segunda, os dividendos trazidos da Índia possibilitaram a
várias casas senhoriais manterem-se com dignidade, além de ter
proporcionado ganhos para muitos outros vassalos, e “o que se
allega das delicias Asianas algu[m]a mostra e apparencia tem de
rasão, mas tudo se remedea facilmente com os Reys não uzarem
dellas, de maneira que primeiro percão o esforço e animo varonil”
(Idem, ibidem, p.159).
Desde o início, o objetivo da conquista da Índia foi o comércio e,
nunca, a colonização; aqueles que defendiam a retirada do Oriente,
por ser um sorvedouro de gente, e ao mesmo tempo argumentavam
a favor da colonizaçŌo da África diziam que: “Conquista para povoar
he muy differente da conquista para comercio”, pois “com aquella se
despovoa a própria pátria e se cultiva terra estranha, com esta se
enriquece e se conserva a pátria à custa da Estranha” (Idem, ibidem,
p.161). E aos que insistiam que “o Reyno se despovoa ao cheiro da
canella”, basta observar que Lisboa está repleta de gente e as cidades
do Reino nunca tiveram tantos moradores.
Um outro parecer de 1543, contrário ao anterior, admite como
solução mais viável o abandono das praças indianas e a manutenção
das possessões africanas. Começa por concordar com a opinião geral
de que é necessário “que se deixe uma delas por nŌo perder ambas”
(Idem, ibidem, p.135). O argumento de maior força persuasiva é que
a conquista do norte da África foi realização ilustre dos reis antigos
e, portanto, faz parte integrante do “tempo da memória” da dinastia
régia. Para a mentalidade fortemente tradicional como a do Antigo
regime, isto significaria introduzir uma “novidade” nas práticas de
excelência da realeza, colidindo de frente com vários privilégios
assentados no estado da nobreza.
Num desdobramento muito semelhante ao que Diogo do Couto
utilizara para defender a manutenção da Índia, o parecerista
436
anônimo argumenta que a África preenche todas os requisitos que
fazem um reino riquíssimo: frutos, gado e metais preciosos. Mais
ainda: não há dúvida da legitimidade da conquista africana, uma vez
que se trata de combater os muçulmanos e cumprir a missão
providencial destinada aos portugueses, confirmada por todos os
reinos da cristandade e pelas bulas papais.
No entanto, continua o parecerista anônimo, argumentando de
modo semelhante às epístolas de Sá de Miranda, o maior impacto
dessas “delicias da Asia” é que causaram enorme prejuízo para o
Reino (daí, a exaustŌo do Fisco) e a “ruyna da parcimónia e
corrupçŌo da natureza humana”, ou seja, o comércio dos “pannos de
algodŌo, sedas, aljofres, perfumes e outras couzas desta callidade”
lançaram “a perder os bons costumes antigos e introduzindo outros
affiminados pera perdiçŌo total de toda a republica” (Idem, ibidem,
p.141). No pensamento moral do século XVI, o luxo e a riqueza
excessivos conduzem à cobiça e à concupiscência, abrindo caminho
para todos os vícios morais; é por isso que é freqüente encontrarmos
o topos da retidão das virtudes em oposição aos argumentos de
ordem epicurista, isto é, os deleites e os prazeres estão ligados à
parte material, finita e perecível do ser humano (ao corpo), enquanto
que, a partir da lei natural, inscrita por Deus nos homens, a razão
pertence à alma, cujo aperfeiçoamento é o objetivo central de todo
cristão. Nesse sentido, dedicar-se às delicias corporais é ao mesmo
tempo moral e racionalmente reprovável, pois todos os que levam a
vida em busca da satisfação dos desejos do corpo estão mais
próximos às bestas feras (Idem, ibidem, pp.141-142).
Além dos danos no âmbito moral, os “mimos indianos”, ainda em
modo semelhante aos de Sá de Miranda, também causam a
despovoamento dos campos e da agricultura, pois prejudicam
“defençŌo da Patria” (Idem, ibidem, p.152). Ora, esse aspecto da
“defençŌo da Patria”, que pode ser entendido como uma das
realizações do topos humanista do louvor das armas, ao lado dos
temas do cultivo dos campos (a agricultura) e do povoamento,
consiste num dos argumentos principais da “literatura econômica”
do século XVI, isto é, aqueles discursos que tratam estrategicamente
do “governo da casa e da família”. No Libro dela Economica, de
Xenofonte, uma das atividades que se considera decorosa ao “pai de
família” é a “arte militar”, ou seja, “las cosas dela guerra”, ao mesmo
tempo que todas artes mecânicas estão absolutamente proibidas por
serem baixas e diminuírem a dignidade do chefe da casa.
437
Referências
Ricardo Hiroyuki Shibata é Prof. Dr. de Literatura Portuguesa da
Unicentro
Email: rd.shibata@gmail.com
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438
RELEITURAS DO PERÍODO “MUROMACHI
BAFUKU” ATRAVÉS DO FILME OS SETE
SAMURAIS
Rodrigo Galo Quintino
Introdução
Os temas e conteúdos históricos são recorrentes as salas de cinema
desde os primórdios da sétima arte, tornando a ficção histórica um
dos gêneros mais apreciados entre os espectadores. Kornis (1992)
ressalta, no entanto, que ao abordarem determinados períodos ou
acontecimentos históricos, os filmes não retratam a realidade em si,
mas trazem uma reconstrução desta utilizando uma linguagem
artística própria, construída de acordo com o contexto histórico no
qual são produzidos.
O presente trabalho busca uma breve reflexão sobre o filme Os sete
samurais (1954) dirigido pelo celebre cineasta japonês Akira
Kurosawa, com o objetivo de analisar as releituras apresentadas a
respeito do período histórico apresentado. Também é proposto
verificar quais foram as influencias do diretor para o
desenvolvimento de tal representação da realidade.
Desta forma se fazem necessárias algumas abordagens e técnicas
específicas para tomar um filme como material de pesquisa. Vanoye
e Goliot-Lete (2002) argumentam que para uma melhor analise é
necessário à desconstrução, de forma mais ou menos aprofundada,
do filme, obtendo assim os diversos elementos distintos que formam
a obra em conjunto. Napolitano (2015) aponta também três
possíveis abordagens para trabalhar a relação entre História e
cinema, sendo elas: Cinema na História, História no cinema e
História do cinema.
O filme e as influencias de Akira Kurosawa
Lançado em 1954, Os sete samurais é um filme japonês dirigido por
Akira Kurosawa, considerado um dos maiores cineastas da história
do Japão, produzido pela empresa Toho sob o comando de Sojiro
Motoki, e com a distribuição brasileira pela Europa Filmes.
O filme se passa no inicio do século XVI, período no qual o Japão
passava por uma violenta guerra civil. É apresentada uma aldeia de
produtores rurais constantemente atacada por saqueadores. Em
439
uma medida desesperada para não morrerem de fome, os moradores
decidem contratar samurais para defender o vilarejo.
Com três atos bem definidos, o filme retrata a busca dos aldeões
pelos samurais e as motivações pessoais de cada um para entrar na
causa até chegar a um total de sete, a elaboração de um plano e o
treinamento dos camponeses para enfrentar os saqueadores e a
batalha final e decisiva. A película se divide em dois momentos,
separados por uma inscrição acompanhada de trilha sonora, que
dura cerca de 10min.
Kurosawa desenvolve muito bem a relação entre os personagens,
mostrando aspectos do cotidiano do vilarejo e apresentando uma
possível interpretação acerca da figura do samurai dentro do
imaginário popular do período. Aspectos a respeito da cultura e
mentalidade dos samurais também são evidenciados.
As atuações carregam um elevado grau de intensidade, o que indica
uma possível influencia do teatro tradicional japonês, em especial o
teatro de comedia chamado de kyôguen.
A presença de elementos dos westerns, filmes que retratam a
expansão para o oeste dos Estados Unidos, também pode ser
observada, sobretudo o trabalho do diretor norte-americano John
Ford.
A respeito das influencias dos westerns na cinematografia mundial
Vugman (2006) argumenta que “[...] o sucesso do gênero nŌo se
limitou ao público; sua influência sobre a cinematografia de outros
países pode ser observada em filmes de samurais japoneses [...]”.
Vieira e Alencar (2016, p. 272) também discorrem a respeito do
assunto:
“Durante toda a sua história, o cinema de samurai
influenciou e foi influenciado pela cinematografia
ocidental. Essa troca pode ser vista de forma clara na
relação entre os filmes de samurai e os de faroeste. Tanto
Akira Kurosawa quanto Masaki Kobayashi, dois
importantes diretores de filmes de chanbara, por exemplo,
citam John Ford como uma influência importante para
suas obras. Os filmes de Kurosawa em particular foram
440
fonte de inspiração para uma grande variedade de filmes de
faroeste.”
Os sete samurais serviria futuramente de inspiração para outro
western, a produção Sete homens e um destino (1960). O mesmo
movimento pode ser observado em outras obras do diretor, como
Yojimbo – O guarda costas (1961), que serviu de base para o filme
Por um punhado de dólares (1964), dirigido pelo italiano Sérgio
Leone (THORNE, 2008).
Os aspectos interculturais apresentados em sua obra tornaram
Kurosawa extremamente bem sucedido fora do contexto japonês,
como destaca Novielli (2007, p. 192):
“Kurosawa é, sem dúvida, o mais conhecido de todos os
diretores japoneses no Ocidente, e seus filmes sempre
tiveram as maiores probabilidades de distribuição em todos
os países; talvez esteja também entre os principais objetos
de estudo e fontes de inspiração para os diretores
ocidentais”.
O período Muromachi Bakufu
Durante o chamado período Kamakura (1192-1333 d.C), conhecido
como período dos governos militares, o Japão sofreu com tentativas
de invasões mongóis, forçando os governantes a investir fortemente
em seu exercito. Destaca-se no período que o poder político não se
encontrava no imperador, mas nos membros da família Hojo
(YAMASHIRO, 1964).
Yamashiro (1964) argumenta que após a expulsão dos invasores,
devido aos muitos gastos bélicos, o governo entrou em uma fase de
instabilidade econômica, sem poder premiar os samurais que se
destacaram nas batalhas e passavam dificuldades devido aos gastos
de guerra.
Aproveitando-se da situação, o Imperador Godaigo Tenno, sob o
auxilio de Takauji Ashikaga, um general que se rebelou contra o
governo vigente, consegue reconquistar o poder político pondo fim
ao xogunato de Kamakura.
O mesmo autor (1964) afirma que Takauji Ashikaga por sua vez,
após não ter seu pedido de se tornar xogum atendido, se rebelou
441
novamente, agora contra o próprio imperador, colocando um
membro da família Komyo, rival da família imperial, no titulo de
imperador em Kyoto e conquistando o titulo de desejado. Com isso
Godaigo foi forçado a fugir para Yoshino, levando o exemplar
verdadeiro do cetro real e fundando sua própria corte que rivalizava
com a de Kyoto.
Segundo Henshall (2014) Godaigo fugiu de Kyoto para Yoshino,
onde estabeleceu sua corte, deixando o Japão com dois imperadores.
A dualidade prosseguiu até Yoshimitsu (1358-1408 r. 1369-1395),
neto de Takauji, reunificar as duas prometendo aos membros da
corte de Yoshino, chamada de corte do sul, que alternariam no poder
com os de Kyoto, ou corte do Norte. A linhagem da corte do Sul,
porém, deixou de existir em pouco tempo, pois Yoshimitsu não
cumpriu sua promessa.
Com a unificação das cortes do Norte e do Sul se consolidou o
xogunato de Ashikaga, período conhecido como Muromachi Bakufu,
datado de aproximadamente 1333 a 1568 d.C. e marcado por uma
grande desorganização administrativa.
Como apresenta Yamashiro (1964, p. 81) “[...] o shogunato de
Ashikaga, que governou o Japão por cerca de 250 anos, foi
caracterizado por um caos quase permanente e intermitente guerra
civil”. Tal característica se evidenciou devido ao estilo de vida caro e
o descuido com a administração pública por parte dos xoguns,
iniciado por Yoshimitsu, que se entregou a um luxo excessivo
causando um déficit no tesouro, forçando o xogunato a aumentar a
cobrança de impostos e causando um grande descontentamento da
população.
Segundo Sakurai (2007), tanto os camponeses, que tinham seus
produtos e terras taxados, como os comerciantes, obrigados a pagar
impostos e pedágios pelo transporte de suas mercadorias,
demonstraram insatisfação com as politicas adotadas pelo xogum, se
rebelando em uma série de levantes e revoltas e ocasionando o
enfraquecimento político e econômico. A mesma autora (2007)
afirma que os gastos para conter as manifestações acabavam por
forçar a cobrança de mais impostos, gerando assim um circulo
vicioso.
442
Para Henshall (2014), a maior das revoltas é a chamada guerra civil
de Onin, que durou aproximadamente de 1467 a 1477, revelando a
incapacidade do xogunato de conter a agitação da sociedade e
inaugurando um período de distúrbios civis conhecido como Era dos
Sengoku, ou estados em guerra.
As representações apresentadas no filme
O filme se inicia mostrando os saqueadores sondando o vilarejo
agrícola onde se desenvolve grande parte da trama. Kurosawa opta
por introduzir os antagonistas primeiro, passando a sensação de real
ameaça para o vilarejo, que é apresentado como imerso na pobreza.
Os habitantes do local em um ato desesperado, após se reunirem
para debater o assunto e consultarem o patriarca do local, decidem
por contratar samurais para defendê-los contra os invasores.
Durante os períodos compreendidos antes da restauração Meiji, as
famílias entre os agricultores possuíam uma estrutura patriarcal,
onde os chefes das famílias as representavam nos conselhos das
aldeias (SAKURAI, 2007). Tais características se evidenciam nas
cenas iniciais, onde, após uma longa discussão, os habitantes
buscam o conselho do patriarca mais velho da aldeia para decidir
qual medida deve ser tomada.
Outro aspecto introduzido no inicio, e que é revisitado diversas vezes
durante o filme, é o aparente temor por parte de alguns camponeses
para com os samurais. Observa-se uma clara objeção por parte de
alguns com o conselho do ancião da aldeia de contratar samurais
para defendê-los.
Alguns personagens mostram também uma relativa aceitação com a
situação em que se encontra a aldeia, que é evidenciada pelo
discurso por eles empregado de que essa seria sua sina, e que
camponeses são destinados a sofrer. O diretor introduz assim a ideia
de diferença de classes sociais no Japão do período abordado.
Sobre isso, Yamashiro (1964) afirma que desde o período Kamakura
já havia se estabelecido uma divisão composta por classes sociais
distintas.
Mesmo com a aparente divergência de opiniões, o conselho é
acatado, e um grupo de quatro camponeses liderado por Rikichi
(Yoshiro Tsuchiya) vai até a cidade mais próxima à procura dos
443
samurais, tarefa que se mostra difícil uma vez que teriam de
encontrar guerreiros saudáveis e dispostos a lutar apenas por
comida.
O primeiro samurai a se juntar ao grupo é Kambei, interpretado por
Takeshi Shimura. Na cena de introdução do personagem, para
realizar o resgate de uma criança que foi feita refém por um bandido,
Kambei se disfarça de monge tendo que raspar seu cabelo. Fingindo
oferecer comida ao sequestrador, ele rapidamente entra no local
onde a criança estava preza e a salva.
O ato de astucia e habilidade chama atenção dos camponeses e do
jovem Katsushiro, interpretado por Isao Kimura, que deseja se
tornar um samurai e passa a caminhar com Kambei. Os aldeões
veem a oportunidade e os convidam para a missão. Após ponderar
Kambei aceita o desafio, traçando um plano de defesa no qual deduz
que seriam necessários sete samurais.
Com a ajuda de Katsushiro, Kambei recruta outros samurais para a
missão, sendo eles: Gorobei Katayama, interpretado por Yoshio
Inaba; Shichiroji, amigo de Kambei vivido por Daisuke Kato; Minoru
Chiaki, interpretado por Hayashida Heihachi e Kyūz , por Seiji
Miyaguchi.
O último a se juntar ao grupo é Kikuchiyo, vivido por Toshiro
Mifune em grande atuação. Esse, embora se apresente como um
samurai e carregue uma espada, é extremamente desajeitado, bruto
e temperamental.
A questão do temor pelos samurais é novamente abordada na
película. Em um ato extremo, a personagem Shino, interpretada por
Keiko Tsushima, é forçada por seu pai, Manzo (Kamatari Fujiwara) a
cortar o cabelo, se vestir como um homem e se esconder na floresta.
Os demais moradores se escondem em suas casas, de modo que os
samurais, ao chegarem ao vilarejo, o encontram vazio e com
aparência de desabitado.
O panorama muda rapidamente quando, enquanto os recémchegados estão em uma audiência com o patriarca do vilarejo, é
ouvido o barulho do sino que avisa da chegada dos invasores. Os
moradores, em desespero, saem apressadamente de suas casas se
aglomerando em volta dos samurais e suplicando por ajuda.
444
Kikuchiyo revela então que não existia invasão, e ele próprio havia
soado o alerta para forçar os aldeões a sair de suas casas, e expor
para todos sua indignação com a maneira que foi recebido.
O temor e desconfiança da população se justificam pelo fato do
Muromachi Bakufu ser comandado exatamente por samurais. O
próprio Takauji Ashikaga participava da classe dos bushi (IBID,
1964).
Observa-se tal aspecto em outra cena apresentada posteriormente
no filme, na qual Kikuchiyo encontra armaduras e diversas
vestimentas de guerra escondidas com Manzo e as leva para os
demais bushi, para que possam utiliza-las na batalha. Logo que
veem o encontrado, eles o repreendem dizendo que é desonroso para
um samurai utilizar as vestimentas de um companheiro morto. Fica
implícito que os pertences eram de samurais mortos pelos próprios
aldeões. Kikuchiyo se irrita, alegando que os camponeses eram sim
astutos, mesquinhos, oportunistas e assassinos, e que quando
farejam a batalha, caçam o derrotado. Mas que, quem os havia
deixado daquela maneira eram os próprios samurais. Após a
situação se estabilizar, os samurais traçam um plano de defesa
iniciam o treinamento com os aldeões.
Henshall (2014) diz que durante o período em questão, interesse e
medo eram mais determinantes que lealdade. Tal característica pode
ser observada tanto no comportamento de alguns samurais do
período, quanto dos camponeses.
Durante todo o segundo ato do filme, Kurosawa desenvolve a relação
entre os samurais, e a interação com os moradores da aldeia. A
película utiliza da caracterização do passado para tratar de diversos
temas pertinentes ao período em que foi produzida, característica
originaria das peças de teatro jidaimono, originarias do século XVII
(VIEIRA E ALENCAR, 2016).
Enquanto Kambei e Shichiroji analisam a aldeia, Katsushiro
encontra Shino na floresta. O jovem, em uma luta corporal, percebe
que se trata de uma garota e passa a visita-la periodicamente,
chegando a lhe oferecer o arroz que recebia como pagamento. Shino
opta por levar o alimento até uma idosa que vivia sozinha, cujos
parentes foram mortos pelos saqueadores. Katsushiro é visto por
Kyuzo entregando seu arroz a Shino. O jovem revela então a situação
445
da senhora aos demais samurais, que passam a ajuda-la. Velhice,
morte e miséria, temas comuns à sociedade japonesa na década de
cinquenta, em reconstrução após o fim da segunda guerra mundial,
são trabalhados através desta senhora.
Através da relação entre Shino e Katsushiro, o filme explora
novamente a questão da desigualdade social. Em diversos momentos
é mostrada a dificuldade de ficarem juntos devido a pertencerem a
grupos sociais diferentes.
Em certo momento da película, três espiões são vistos próximos a
aldeia. Após Kikuchiyo ser visto por descuido, os demais bushi os
perseguem, matando dois deles e capturando o terceiro, que revela o
esconderijo dos bandidos. Os moradores da aldeia, enfurecidos,
tentam linchar o espião sobrevivente enquanto os samurais os
contem. A população só para as investidas quando a idosa surge com
um instrumento agrícola na mão. Os samurais não a impedem de
vingar a morte de seu filho.
Em uma investida com o intuito de diminuir o número de
adversários na grande batalha, Minoru Chiaki, Kikuchiyo e Kyuzo
queimam o local de estadia dos bandidos.
Na cena é revelado que Rikichi teve sua esposa, Heinachi, tomada
pelos saqueadores. Minoru Chiaki, na tentativa de impedir Rikichi
de entrar na casa em chamas e salvar sua amada, acaba sendo
atingido por um tiro. Rikihi não consegue salvar Heinachi, que
morre queimada junto a casa em chamas.
As cenas seguintes mostram também o passado de Kikuchiyo. Para
executar o plano de Kambei três casas da aldeia e o moinho no qual
o patriarca vivia precisariam ser evacuados. O patriarca, no entanto,
se recusa a deixar seu lar. Com a chegada dos bandidos, o moinho é
queimado com o patriarca, um jovem casal e seus filhos dentro.
Kikuchiyo corre para a construção tentando retirar as pessoas de lá.
Salvando uma criança, ele chora e revela que era filho de
camponeses, e que aquilo havia acontecido com ele em sua infância.
O terceiro ato inteiro é dedicado à batalha dos os camponeses e
bushis contra os saqueadores da aldeia. Kyuzo consegue sozinho
atacar os adversários em sua guarnição e pegar uma arma de fogo.
Kikuchiyo vendo a façanha decide se provar e abandona seu posto
446
tentando conseguir também uma arma. O posto em que ele era
responsável fica vazio, sendo atacado pelos saqueadores, que
conseguem matar Gorobei.
Durante a noite que antecede a batalha final, Katsushiro e Shino tem
seu amor consumado. Manzo, ao procurar sua filha para se despedir,
acaba por flagrar o casal dormindo junto. Furioso, o pai arrasta
Shino para o pátio principal da aldeia, reprimindo-a e a castigando
duramente por, segundo ele, ter sido seduzida por um samurai. A
cena aborda repressão sexual e liberdade feminina, temas
intrínsecos e pertinentes à sociedade da época de produção da
película, visto que Sakurai (2007) destaca um choque de
mentalidades a respeito do papel feminino na sociedade japonesa
pós-guerra, quando o aumento dos direitos das mulheres
contrastavam com os valores tradicionais.
Após Shichiroji tentar acalmar Manzo, Rikichi o repreende,
argumentando que os jovens se amam, e que sua filha não havia sido
entregue aos bandidos.
O filme utiliza muito bem o efeito da chuva na batalha final que
ocorre na manhã seguinte a da cena acima citada. Kyuzo morre por
um tiro. Kikuchiyo, tentando vingar companheiro, também é
acertado. Antes de morrer, porém, ainda consegue derrotar o líder
dos saqueadores.
Sobrando apenas Kambei, Shichiroji e Katsushiro, como samurais
vivos, a batalha termina com vitória dos aldeões, que conseguem se
defender.
O filme se encerra com os aldeões cantando e cultivando arroz.
Katsushiro observa Shino trabalhar na lavoura. Segundo Sakurai
(2007) o trabalho dos camponeses era efetuado tanto por homens
como por mulheres, como é evidenciado na cena.
Kambei observa o local onde foram enterrados os quatro samurais
mortos, e comenta com Shichiroji que eles haviam sido derrotados
naquela batalha, mas os aldeões ganharam, confirmando uma fala
do inicio do filme, na qual argumenta com Katsushiro que nunca
havia ganhado uma batalha.
447
Considerações Finais
A respeito de Kurosawa, Novielli (2007, p. 193) que destaca que “A
complexidade artística de sua filmografia e a extrema riqueza
estilística o tornaram um dos diretores mais importantes de toda
história do cinema [...]”.
Visualmente belo e inovador, Os sete samurais faz jus as palavras da
autora. Apresentando uma ambientação histórica extremamente
bem executada, o filme promove uma releitura interessante do
período Muromachi Bakufu ao mesmo tempo em que demonstra
sensibilidade ao tratar de temas pertinentes a sociedade japonesa da
década de cinquenta.
Referências
Rodrigo Galo Quintino é discente de Licenciatura em História pela
Universidade do Sagrado Coração (USC – Bauru/SP).
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449
450
O PROJETO DE NAPOLEÃO BONAPARTE PARA O
EGITO: CONSIDERAÇÕES SOBRE
ORIENTALISMO
Rodrigo Henrique Araújo da Costa
O presente ensaio visa pensar brevemente a noção de orientalismo
presente nas expedições/invasões napoleônicas ao Egito e como se
deram essas incursões. Para Edward Said, em Orientalismo – O
oriente como invenção do Ocidente, o orientalismo é produto de
circunstâncias que são fragmentos, ou seja, visões distorcidas da
realidade que é o Oriente. Para ele, nem o termo Oriente nem o
conceito de Ocidente têm estabilidade ontológica. No entanto,
orientalismo também pode ser uma disciplina em si. Sendo assim, as
dimensões do conceito de orientalismo podem ser entendidas no
nível acadêmico, ontológico/epistemológico e também como
discurso de dominação. Para Said, um dos projetos mais vultosos de
orientalismo a obter sucesso operacional foi aquele criado por
Napoleão Bonaparte em uma série de campanhas de dominação
sobre o Egito, entre o fim do século XVIII e o século XIX. É
importante perceber como as grandes nações européias promoveram
a destruição física, a inquietação política e uma série de choques
implacáveis e irremediáveis no mundo oriental, algo também
trabalhado em A Era das Revoluções e A Era dos Impérios, de Eric
Hobsbawm.
Para Said, existem dois tipos de conhecimento sobre o Oriente,
“existe uma diferença entre o desejo de compreender por razões de
coexistência e de alargamento de horizontes, e o desejo de
conhecimento por razões de controle e dominaçŌo externa” (2007, p.
15). Inúmeras vezes isso já ocorreu com o Oriente, esse constructo
semimítico que, desde a invasão do Egito por Napoleão, pode
inaugurar um projeto colossal do ocidente sobre o Oriente, projeto
este que já foi feito e refeito um sem-número de vezes, sempre pela
força agindo por intermédio de um tipo de conhecimento, cujo
objetivo é dizer que tal ou qual é a natureza do Oriente. Pensar de
modo totalizante e unitário o Oriente é uma ignorância frequente,
quando, na verdade, encontramos uma variedade estonteante de
povos, línguas, experiências e culturas. Para Said, as sociedades
orientais sofreram um ataque tão maciço, calculadamente agressivo
em razão de um suposto atraso, de sua falta de democracia e de sua
supressão de direitos que simplesmente esquecemos que noções
451
como modernidade, iluminismo e democracia não são conceitos
consensuais que se encontram no Ocidente. Ou seja, como os
Ocidentais poderiam, ao final do século XVIII, aplicar isso ao
Oriente? O pensamento Ocidental acreditava que podia mudar a
cultura Oriental e seus costumes. Desta forma, analisa Said, das
mesas diretoras acadêmicas e de poder político, usando de
estereótipos, agiram com as mesmas justificativas para o uso da
força e da violência. Em A invenção das tradições, de Eric
Hobsbawm e Terence Ranger, percebemos a antiga e inatacável
superioridade dos europeus, como algo inventado, construído sobre
bases não existentes, mas que pretendiam ser científicas. Portanto,
sobre a polarização oriente-ocidente, há uma responsabilidade
intelectual e moral dos acadêmicos, e é necessário desmistificar essa
polarização. Vejamos uma série de pinturas tidas como orientalistas,
de Jean-Léon Gérôme e Léon Cogniet:
1.
3.
2.
4.
Imagem 1: Napoleão diante da esfinge, de Jean-Léon Gérôme, 18671868. Imagem 2: General Bonaparte e seus funcionários no Egito, de
Jean-Léon Gérôme, 1867. Imagem 3: General Bonaparte no Cairo,
de Jean-Léon Gérôme (1824–1904), 1863. Imagem 4: A Expedição
do Egito sob as ordens de Bonaparte (em 1798), de Léon Cogniet
(1794-1880), 1835.
Johann Wolfgang von Goethe, escritor e estadista alemão, foi um
dos primeiros a pensar sobre orientalismo. Relatou que ocorre no
ocidente uma estandardização e uma homogeneidade sobre o
Oriente que devemos prevenir. Para Goethe, em seu livro O divã
452
ocidental-oriental, devia-se repensar o Oriente, pois, havia uma
avaliação superficial da intrusão imperial e uma maneira sumária de
lidar com a imensa distorção introduzida pelos impérios europeus
na vida dos povos ditos “menores”. Vários países e povos foram e
continuam sendo alvo de estereótipos e generalizações. Cada uma
das fases do orientalismo (o britânico, o francês, etc.) produziu seu
próprio conhecimento distorcido do outro, bem como suas próprias
imagens redutivas e preconceitos étnicos e religiosos. Para Said, o
orientalismo trouxe uma demonização de um inimigo que não existe
“o oriente”. Ainda para Said, estamos tratando de um conjunto de
ideias abstratas que celebram a excepcionalidade de uma suposta
civilização do mundo ocidental, denegrindo a relevância do contexto
e vendo as outras culturas com descaso. O problema também se
encontra na invenção de identidades coletivas para multidões de
indivíduos que na realidade são muito diferentes.
Para Facina e Castro, em capítulo intitulado As resistências dos
povos à partilha do mundo, a expansão imperialista do século XIX
foi um novo passo no processo de mundialização da ordem
capitalista. As populações africanas e asiáticas foram subjugadas e
incorporadas à ordem européia e tal expansão neocolonial teve
conexões profundas com o processo de desagregaçŌo da “velha
ordem” colonial, bem como com a emergência do nacionalismo entre
os povos. As conquistas não foram necessariamente militares, e não
utilizaram somente a violência aberta como meio de expressão, pois
elas também foram conquistas culturais e de cunho religioso. De
acordo com um dos primeiros historiadores a refletir sobre o
neocolonialismo, Henri Brunschwig, em A partilha da África negra,
as potências buscavam novas áreas de investimento de capitais,
motivadas pelo capitalismo industrial e financeiro. O
neocolonialismo se apresentava como altruísta e levaria aos
colonizados melhores condições de vida dados pela civilização
européia. O ideal de “levar a fé aos infiéis” na colonizaçŌo do século
XVI foi substituído pela “missŌo civilizadora” do século XIX. A
dominação imperialista era realizada por meio da administração
direta, através da exploração de terras, da mão-de-obra e do controle
da produção local. As potências contavam com o apoio das classes
dirigentes locais, mas promoviam a dependência das colônias,
assim, as disputas entre potências por áreas coloniais agravaram
conflitos e estimularam o armamentismo.
453
Foi da noção de orientalismo que surgiu a concepção de
neocolonialismo visto como “um conjunto de práticas militares e
culturais desenvolvidas por potências para exercer domínios sobre
outros estados politicamente independentes” (2006, p. 218). Em
seguida a isso, para embasar a dominação européia sobre possessões
na África e na Ásia, surgiram teorias racistas por toda a Europa, que
tentavam comprovar cientificamente a inferioridade dos povos
conquistados. Sobre o conceito de raça, Sérgio Pena e Telma Birchal
escrevem que, “nŌo existem raças humanas do ponto de vista
genético ou biológico, porém, esses mesmos autores concordam que
o conceito de raças possui existência social, daí deriva o racismo, a
transformaçŌo da diferença em desigualdade”. Explicando o ideário
civilizatório, Marc Ferro (2004, p. 22-3) reflete que os europeus
entendiam a expansão colonial como o objetivo final da política e
que ingleses e franceses foram os primeiros a associar os benefícios
do imperialismo ao triunfo da civilização, assegurados pelo avanço
da ciência e pelo sucesso da teoria da seleção natural de Darwin.
Conforme Edward Said, “Embora fossem quase imediatamente
precedidas por ao menos dois projetos orientalistas capitais, a
invasão do Egito por Napoleão em 1798 e sua posterior incursão no
Oriente teve de longe a maior consequência para a história moderna
do Orientalismo” (2007, p. 118). Antes de Napoleão, apenas dois
esforços tinham sido feitos, ambos por eruditos. O primeiro foi
realizado por Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron (1731-1805),
que viajou para a Ásia para provar a existência real de um povo
eleito por Deus e das genealogias da Bíblia. Depois de examinar uma
série de documentos, ultrapassando sua primeira meta, partiu rumo
à Índia encontrando depósitos secretos de textos avésticos e
completando sua tradução do Zend-Avesta. Pela primeira vez, o
Oriente era revelado à Europa na materialidade de seus textos,
línguas e civilizações e o Oriente adquiria a precisa dimensão
intelectual e histórica com que apoiar os mitos de sua distância
geográfica. O segundo foi William Jones (1746-1794) que, além de
abrir panoramas sobre o Oriente, codificou, tabulou e comparou
dados. Deixou a Inglaterra rumo à Índia, em 1783. Em seguida, foi
nomeado para uma posição honrosa e lucrativa na Companhia das
Índias Orientais, onde deu início a uma trajetória de estudo pessoal
que devia reunir, cercar e domesticar o oriente e transformá-lo
numa província da erudição européia. Jones adquiriu um
conhecimento efetivo do oriente e dos orientais, que mais tarde
deveria torná-lo o fundador indiscutível do orientalismo,
codificando e submetendo a infinita variedade do Oriente a um
454
“digesto completo” de leis, figuras, costumes e obras. A conclusŌo
dos dois primeiros tomada por Edward Said foi que,
“O orientalista europeu julgava ser seu dever resgatar parte
de uma perdida grandeza do passado oriental clássico para
“facilitar melhoramentos” no Oriente do presente. (...)
Anquetil e Jones, por exemplo, só adquiriram o seu
conhecimento sobre o Oriente depois de ali chegarem.
Foram como que confrontados pelo Oriente inteiro, e foi só
depois de um certo tempo e de um considerável
aperfeiçoamento que conseguiram reduzi-lo a uma
província menor (2007, p. 122-123)”.
Vejamos, abaixo, pintura de Napoleão na Batalha das Pirâmides, e
os dois sujeitos históricos tratados, acima.
5.
6.
7.
Imagem 5: A Batalha das Pirâmides, óleo sobre tela de Antoine-Jean
Gros (1771–1835), 1810. Imagem 6: Abraham Hyacinthe AnquetilDuperron ( 1731 – 1805). Imagem 7: Retratado de Sir William Jones
(1746-1794), por Joshua Reynolds (1723–1792).
Antes dos planos de Napoleão, era característico de todos os projetos
orientalistas que muito pouco podia ser feito de antemão para
preparar o seu sucesso. Essa perspectiva muda com o projeto
napoleônico. As campanhas militares da França no Egito começaram
desde a Revolução Francesa, e foram comandadas por Napoleão
Bonaparte desde os anos de 1798 e 1799. Além de ser uma campanha
militar, foi também acompanhada de grande projeto científico, no
qual se empenharam muitos acadêmicos franceses, compostos na
Comissão Francesa das Ciências e das Artes do Egito por 167
cientistas, técnicos e artistas e uma força militar de mais de 32 mil
homens.
455
A Pedra de Roseta, por exemplo, foi encontrada durante esta
campanha por um soldado de nome Bouchard, em 1799. Napoleão
acreditava que era necessário ir ao Oriente e que a Europa não lhe
proporcionaria mais glórias, como as que o Oriente podia
proporcionar. Observemos que Bonaparte relacionava as glórias dos
grandes imperadores da antiguidade a sua própria glória na
investida do Egito. A imagem do Egito era de abundância e sedução,
mas outra grande coisa interessava: as glórias do Egito Antigo.
Napoleão queria nada menos do que apoderar-se de todo o Egito, e
seus preparativos prévios foram de uma magnitude e minúcia sem
paralelo. Parecia que o caminho para o leste era inevitável tanto em
suas vantagens, como em seu objetivo de barrar os avanços da
Inglaterra.
Para Ricardo Vélez Rodriguez, no artigo Napoleão Bonaparte:
imperador dos franceses duzentos anos depois, 1804-2004,
Napoleão sentia-se atraído pelo oriente desde sua adolescência. A
ideia de invasão ao Egito foi amadurecida, tornando-se um projeto
executável. Segundo Said, “o Egito era um projeto que adquiriu
realidade na sua mente, e mais tarde nos seus preparativos para a
conquista, por meio de experiências que pertencem ao domínio das
ideias dos mitos colhidos de textos, e nŌo da realidade empírica”
(2007, p. 124). Para Nina Burleigh, tais cientistas passaram por
condições extremamente adversas, incertezas e doenças, arriscaram
suas vidas e entraram não como dominadores, mas como
especialistas, estudando desde as pirâmides até a fauna. De fato, tais
cientistas foram os primeiros do Ocidente a refletir sobre o Egito
Antigo. No entanto, a imagem dos cientistas que levavam apenas
lápis ao invés de espadas e materiais de laboratório ao invés de
canhões é romantizada e até utópica.
Napoleão confiava bastante na visão do Conde de Volney sobre o
oriente, notadamente, por conta de seu livro de nome Voyage en
Syrie et en Égypte, de 1787. Para Said, o filósofo e historiador
orientalista
“via o Oriente próximo como um lugar provável para a
realização da ambição colonial francesa. O que Napoleão
aproveitou em Volney foi a enumeração, em ordem
ascendente de dificuldades, dos obstáculos a serem
enfrentados no Oriente por qualquer força expedicionária
francesa (2007, p. 125)”.
456
Ainda, “Volney (...) considerava que havia três barreiras à
hegemonia francesa no Oriente (...): uma contra a Inglaterra, uma
segunda contra a Porta Otomana, e uma terceira, a mais difícil,
contra os muçulmanos”. (2007, p. 125). Para Said, a obra de Volney
constituía um manual para atenuar o choque humano que um
europeu sentiria diante do oriente. Segundo Edward Said (2007, p.
126), Napoleão usou eruditos para administrar seus contatos com os
nativos. Tentou provar que estava lutando pelo Islã, usando de uma
tática que parecia benigna, mas que na verdade era seletiva e
estrategicamente pensada. Para melhor desempenho da análise,
vejamos as seguintes imagens:
8.
9.
10.
Imagem 8: A Pedra de Roseta, Museu Britânico, Londres. Foi
decifrada por Jean-François Champollion, em 1822. Imagem 9:
Napoleão viajando pelo Egito. Pintura de Jean-Léon Gérôme, 1863.
Imagem
10 :
Constantin
François de Chassebœuf,
Conde
de Volney (1757– 1820). Escultura do francês David d'Angers (1825).
Quando pareceu óbvio para Napoleão que sua força era demasiado
pequena para se impor aos egípcios, ele tentou fazer com que os
grupos egípcios interpretassem o Alcorão em favor da grande
armeé. As estratégias funcionaram e logo a população do Cairo
parecia ter perdido a sua desconfiança em relação às forças de
ocupação. Depois, Napoleão deu instruções para que o Egito sempre
fosse administrado por meio dos orientalistas e dos líderes islâmicos
convencidos da glória francesa. O triunfo de Napoleão foi preparado
muito antes de uma expediçŌo militar. Para Said, “A ideia de levar
junto uma academia completa é uma aspecto dessa atitude textual
para com o oriente. (...) Muitos [orientalistas] foram politicamente
úteis, do modo como muitos tinham sido para NapoleŌo no Egito”
(2007, p. 127). Said entende que um dos objetivos principais de
Napoleão era tornar o Egito aberto, totalmente acessível ao
457
escrutínio europeu, ou seja, “o Egito deveria tornar-se um
departamento da erudiçŌo francesa” (2007, p. 128). Para Said, a
obra de Napoleão sobre o Egito deveria ser um empreendimento
universal, uma grande apropriação de um país por outro, registrado
em 23 enormes volumes na Description de l’Égypte. A singularidade
desta obra está na atitude para com o tema central, e é essa atitude
que fez o mundo se interessar pelo estudo efetuado pelos
orientalistas. Na História da Arte, encontramos uma série de
pinturas que representaram as batalhas da França no Egito,
conforme, abaixo:
11.
12.
13.
Imagem 11 : Batalha das Pirâmides, de Louis-François Baron
Lejeune, 1808. Musée National des Châteaux de Versailles, França.
Imagem 12 : A batalha das pirâmides, de François Watteau, 17981799. Museu de Belas Artes, Valença, França. Imagem 13: Batalha
Naval de Abukir. Pintura de Thomas Luny (1759–1837), de 1798.
Outro personagem importante para entendermos a conquista do
Egito é Jean-Baptiste-Joseph Fourier. Ele deixa claro no préface
historique de Description de l’Égypte que o projeto francês é que
cria o Egito. O Egito era o ponto focal das relações entre a África e a
Ásia, entre a Europa e o Oriente, entre a memória e os fatos. Uma
das citações de Fourier, apresentada por Said diz:
“Situado entre a África e a Ásia, e comunicando-se
facilmente com a Europa, o Egito ocupa o centro do antigo
continente africano. Esse país (...) é o lar das artes e
conserva inúmeros monumentos; seus principais templos e
os palácios habitados pelos seus reis ainda existem, mesmo
458
que seus edifícios menos antigos já tivessem sido
construídos na época da Guerra de Tróia (2007, p. 128129)”.
Jean-Baptiste-Joseph Fourier justifica a expedição napoleônica
como algo que precisava ser realizado no momento em que
aconteceu. A notícia de que os franceses estavam no Oriente
espantou toda a Europa. Mas, “apenas um herói poderia unir todos
esses fatores”, era o que descrevia Fourier ao avaliar NapoleŌo.
Vejamos algumas imagens:
14.
15.
16
17.
Imagem 14: Folha de rosto de Description de l‟Égypte, ediçŌo de
1809. Imagem 15: ilustração de frontispício de um dos volumes de
Description de l‟Égypte, publicado pelo governo francês entre 18091823. Imagem 16: Napoleão visitando as vítimas da peste de Jaffa.
Pintura de Antoine-Jean Gros, de 1804. Imagem 17: Jean-Baptiste
Joseph Fourier (1768-1830), retrato de 1823.
Edward Said descreve as características do projeto orientalista da
Description de l’Égypte. Para ele, “A história registrada na
Description suplanta a história egípcia e oriental, identificando-se
direta e imediatamente com a história mundial, um eufemismo para
a história européia”. (2007, p. 131). Ainda nos debruçando sobre
Said:
“[o] fracasso militar da ocupaçŌo do Egito por NapoleŌo
não destruiu a fertilidade de sua projeção global para o
459
Egito e o resto do oriente. Bem literalmente, a ocupação
deu origem a toda a experiência moderna do Oriente
interpretada a partir do interior do universo de discurso
fundado por Napoleão no Egito (...) (2007, p. 132)”.
Em concordância com Said, para os orientalistas clássicos, salvar
uma história do esquecimento equivalia a transformar o Oriente
num teatro para as representações do Ocidente. É como se descrever
o Oriente em termos Ocidentais modernos significasse retirá-lo da
obscuridade em que permaneceu negligenciado por tantos séculos e
o iluminasse na moderna ciência européia. Servia também como
contraste, como se os orientalistas quisessem acentuar a
racionalidade dos hábitos ocidentais.
Para nós, esta modesta reflexão possibilita entender também a
Conquista do Egito por Napoleão por meio das pinturas e imagens.
De fato, nos detivemos na revisão do livro de Edward Said, cujas
análises abriram espaço para todo um campo de estudos.
Notadamente, no tópico “Projetos”, do Capítulo 1, “O alcance do
orientalismo”, adentramos os detalhes do texto, compreendendo
que cada um dos sujeitos citados devem ser analisados de modo
mais relacional. O próprio Napoleão Bonaparte seria um campo à
parte, tamanha a vastidão de referências sobre ele. As pinturas sobre
Napoleão no Egito também mereceriam um estudo detido. Além do
próprio estudo do Egito Antigo, a Egiptologia, e o abre alas que
representou a Description de l’Égypte. Assim, friso que não foi nossa
intenção resumir este tema de empreendimento universal a tão
poucas palavras, mas sim o de enfatizar e refletir sobre alguns dos
principais problemas encontrados. Faltou-nos também elencar com
mais afinco as consequências mais duradouras das Campanhas,
como a idealização por Lesseps e construção do Canal de Suez, que
aproximou o Ocidente do Oriente de modo singular, representativo e
entusiasmaste.
Referências
Rodrigo Henrique Araújo da Costa é doutorando em História pela
Universidade de São Paulo. Prof. Me. em História pelo PPGH/UFPB.
Atualmente, Prof. Substituto, classe assistente, nível 1, da Unidade
Acadêmica de História da UFCG.
BRUNSCHWIG, H. A partilha da África negra. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
460
BURLEIGH, Nina. Miragem - Os Cientistas de Napoleão e
Suas Descobertas no Egito. São Paulo: Editora Landscape,
2008.
D. J. PENA, Sérgio e S. BIRCHAL, Telma. A inexistência
biológica versus a existência social de raças humanas:
pode a ciência instruir o etos social? REVISTA USP, São
Paulo, n.68, p. 10-21, dezembro/fevereiro 2005-2006.
FACINA, Adriana e CASTRO, Ricardo Figueiredo de. As resistências
dos povos à partilha do mundo. In.: O século XX / organização,
Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira, Celeste Zenha. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
FERRO, Marc. (Org.) O Livro Negro do Colonialismo. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2004.
HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das
tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Napoleão Bonaparte –
Imperador dos franceses – Duzentos anos (1804-2004).
Revista da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2004.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de
Conceitos Históricos. São Paulo: Ed. Contexto, 2006.
Filmografia consultada
O Egito sob o olhar de Napoleão - Acervo Itaú. Disponível no You
Tube: https://www.youtube.com/watch?v=H6MiYKAJiPU
Egito: A Obsessão de Napoleão. Documentário da Discovery
Civilization. Disponível no You Tube em:
https://www.youtube.com/watch?v=lWGVOpXH2n0
Construindo Um Império: Napoleão. History Channel. Disponível no
You Tube em: https://www.youtube.com/watch?v=P4Q_dU0iTAA
461
462
LITERATURA COMO ABORDAGEM DO PASSADO:
DEFESA DA TRADIÇÃO JAPONESA NO ENSAIO
EM LOUVOR DA SOMBRA DE JUN‟ICHIR
TANIZAKI
Ronny Costa Pereira
Introdução
Foi por longo tempo creditado aos documentos oficiais a
monopolização das frestas do passado da qual o historiador poderia
deslumbrar e teorizar. Ideia essa derivada das propostas cientificas
positivistas do século XIX, em que a História nasce como saber
cientifico, e passa a buscar no rigor metodológico e na objetividade,
se aproximar da verdade. Dessa forma, na tentativa de uma
neutralidade, a interpretação de fontes ou utilização de outras
formas de documentos que não fossem os institucionalmente oficiais
eram descartadas [BURKE, 2010].
Quadro esse que foi superado somente no fim dos anos 20, com a
difusão de novas propostas metodológicas e teóricas para
historiografia, feita por diversas “escolas” [Annales por exemplo]
que foram ganhando espaço e por meio de aprimoramentos e
divergências, foram se formando “várias linhas historiográficas”
[História social, cultural, econômica, de gênero, etc.] e dentro dessas
vertentes, foi se buscando diferentes formas de praticar o oficio do
historiador, tentando se distanciar muitas vezes da forma tradicional
do século XIX. E uma das formas mais utilizadas para buscar esse
distanciamento foi a abordagem e a concepção das fontes, buscando
sair do modelo tradicional das fontes oficiais propostas pelos
pesquisadores do século XIX [BURKE, 2010], foi sendo considerado
um documento não mais o que fica no passado, mas todo produto da
sociedade que se formou por meio de relações de força [LE GOFF,
1990].
E a literatura foi uma delas, que além de passar a ser considerado
um documento valido para os historiadores, é analisado
[principalmente a partir da década de 80] por novas perspectivas,
com uma maior atenção e problematização para o lugar social do
escritor, suas relações sociais, sendo pensados além do romance, e
considerados produtos sociais que são evidencias importantes para
463
melhor compreender os pensamentos, ideais e ações do tempo em
que foi escrito.
Nesse contexto, entendendo a relevância da literatura para
compreensão de concepções sociais, e buscando contribuir para os
debates acerca da história japonesa contemporânea, que esse
trabalho busca a utilização da literatura como fonte, analisando o
ensaio Em louvor da Sombra [In’ei Raisan], do japonês Jun‟ichir
Tanizaki, obra não literária mais famosa do autor, que aborda as
formas que as novas tecnologias e ideologias ocidentais implantadas
no Japão estão levando cada vez mais a escassez a cultura
tradicional nipônica . E por meio do auxílio dos estudos
historiográficos sobre o período, entender um pouco mais como as
relações culturais japonesas foram afetadas no período imperial
japonês.
O autor das sombras
Jun‟ichir Tanizaki nasceu em Tóquio em 24 de julho de 1886 e
faleceu em 30 de julho de 1965. Foi estudante de literatura japonesa
na Universidade Imperial de Tóquio [entretanto, devido à falta de
recursos financeiros se viu obrigado a abandonar o curso], sendo um
romancista bastante conceituado no meio literário em seu período.
Recebeu o prêmio imperial da literatura em 1949 e foi o primeiro
japonês a ser membro honorário da American Academy and
Institute of Arts and Letters em 1964.
Tanizaki fazia parte de uma família de mercadores e durante a sua
juventude foi grande admirador das novas influencias absorvidas
pelo Japão, do conceito de modernidade e progresso vindas do
mundo ocidental, vivendo por um curto período de tempo em uma
casa ao estilo ocidental em Yokohama. Fez parte da escola Tanbiha
que valorizava escritores ocidentais como Edgar Allan Poe e Charles
Baudelaire, que foram suas inspirações literárias ocidentais. Porém,
sua predileção pelas tendências estrangeiras, viria a se modificar
após o grande terremoto de Kanto em 1923, com sua ida para Quioto
e o desenvolvimento de um profundo interesse pela cultura japonesa
tradicional [PASTANA, 2016:22].
E é nesse período que Tanizaki modifica seu modo de escrever, ao
vivenciar de perto a destruição que o terremoto causou a população
japonesa e a arquitetura, o ainda jovem literato vê que as tecnologias
ocidentais restauravam rapidamente as construções perdidas e os
464
utensílios em abundância vindos dos mares do Oeste eram tão
baratos e eficazes que o retorno ao cotidiano por parte da população
foi rapidamente feito. E isso assombrou Tanizaki, pois ele sentiu
algo que a maioria dos japoneses atingidos pelo terremoto não
sentiram, que essa rápida restruturação teve um preço grande, a
cultura japonesa [PASTANA, 2016:23]. As casas passaram a usar
madeiras ocidentais ou cimento, aparelhos elétricos instalados em
todas casas, tecidos e roupas ocidentais se tornaram padrão no
vestuário do japonês urbano, entre outras mudanças.
E sentindo essas mudanças, Tanizaki passou a perceber que isso se
dava em todo Japão, para além dos terremotos, e que cada vez mais
se tornavam raro se encontrar objetos e hábitos tradicionais
japoneses no Japão. É nessa época que ele decide escrever folhetins
para demonstrar seu lamento aos costumes que ele via se
desvairando, e em 1933 ele escreve seu ensaio Em Louvor das
Sombras [In’ei Raisan].
As luzes que tudo ofuscam, ou os avanços do imperialismo
ocidental
Em seu ensaio, Tanizaki analisa como a incorporação de costumes e
tecnologias vindas do ocidente modificaram a arquitetura da casa
nipônica, da arquitetura da cidade e do campo, dos hábitos
cotidianos dos japoneses e os prejuízos (na concepção do autor,
irreparáveis) que essa influência ocidental gera na cultura japonesa.
E o foco de Tanizaki está na dicotomia entre luz e sombra, que para
o mesmo, é a representação perfeita do ocidente e oriente, sendo a
luz o progresso, a necessidade de embranquecer tudo e todos e as
tecnologias elétricas; enquanto as sombras são o mistério, a
tradição, a reflexão e a cor da cultura japonesa em si.
É importante contextualizar o período em que o Japão passava
durante a época em que Tanizaki sentia essas transformações em seu
pais. Desde a abertura dos portos nipônicos em 1968, o Japão, que
até então era uma ilha completamente impermeável de influências
externas devido as leis isolacionistas do Xogunato do Bakufu, passa
a ter relações culturais, políticas e econômicas com os demais países
do globo e a modernizar o pais. E esse processo leva a população
japonesa a questionamentos dos limites de influência externa que
deveria haver no pais, gerando inúmeras revoltas armadas e queima
de portos [YAMASHIRO, 1964].
465
O Japão da era Meiji se vê então em uma situação complicada, pois
os avanços da potencias imperialistas ocidentais [Alemanha, Eua,
Inglaterra e Rússia] estavam ameaçando a o controle japonês sobre
sua região, mas as tecnologias dos mesmos eram fundamentais para
o recém-formado Império [MANDEL, 1989]. Dessa maneira, é
decidido que a solução nipônica era expandir seus territórios, para
se proteger e poder ter finanças suficientes para comprar e criar
mais tecnologias.
O Império Japonês se mantém assim até o fim da grande guerra,
focalizando as tecnologias ocidentais nos aparatos de guerra, e
culturalmente somente nos setores mais abastados da sociedade.
Entretanto, a guerra e as anexações da Coreia e China ao Império
geraram muitos custos, que levou parte da população japonesa a
extrema pobreza, que acarretou na necessidade de o Império
exportar e criar diversos produtos em massa para possibilitar a
sobrevivência da população, além dos projetos modernizadores nas
grandes cidades, que faziam parte da demonstração de potência do
Império, como detalha o historiador Yamashiro:
“Com a evoluçŌo da nova cultura, os costumes sofreram,
naturalmente, sua influência e se modificaram
radicalmente. Desapareceu o hábito de trazer catana à
cintura, os homens começaram a cortar o cabelo à
ocidental, vestiram o traje europeu. Jornais e revistas
surgiram, a luz elétrica e lâmpadas a gás passaram a
iluminar as ruas das cidades, prédios de estilo ocidental
foram erguidos. Até a alimentação sofreu modificação sob o
influxo da arte culinária ocidental” [YAMASHIRO, 1964:
153].
Que considera mais fácil a incorporação das tecnologias ocidentais
[que já estavam se propagando por todo oriente] do que uma
tentativa de desenvolvimento interno da mesma, que seria lento e
arriscado. O que é nitidamente um ponto de desencanto em
Tanizaki:
“E foi nessa altura que me dei conta: luminárias,
aquecedores e aparelhos sanitários são modernidades a
cuja adoção não me oponho; mas como foi que nós, os
japoneses, não nos empenhamos em aperfeiçoa-los para
466
melhor conformá-los a nossos hábitos, gostos e modo de
vida? ” [TANIZAKI, 2007:16].
O desencanto de Tanizaki em relaçŌo a incorporaçŌo “fácil” japonesa
fazem o autor lamentar o como a tradição nipônica não buscou
desenvolver a própria ciência ao invés de buscar a ocidental. Que
para o mesmo é a diferença que leva o Japão a não valorizar sua
própria tradiçŌo “...quŌo diferente seria o aspecto atual da nossa
sociedade caso uma cultura cientifica única, diversa do ocidental,
houvesse prosperado no oriente. ” [TANIZAKI, 2007:17].
Nesse contexto, em que o Império japonês crescia territorialmente,
objetos tradicionais japoneses que remetiam ao período do xogunato
não eram bem vistos pelo governo, que aproveitando as
necessidades e vontades de modernização, incentivavam a
substituição desses objetos e hábitos do cotidiano nipônico. É esse
processo que Tanizaki sente ao se mudar para Quioto, e tenta
descrever mais tarde no seu ensaio. Ao ponto de nesse mesmo
período, suas obras recentes que possuíam esse mesmo teor de
apego a tradição são censuradas devido ao foco dado em suas
narrativas ao Japão feudal em contraste ao Japão militarizado da
época [PASTANA, 2016:23].
E esse projeto por parte do Império Japonês, implanta energia
elétrica nas cidades, para facilitar os trabalhos burocráticos do
governo, e a vida da população urbana, o que para isso necessitava a
substituição de telhados e todo tipo de ornamentos das casas,
palácios e templos tradicionais japoneses, para se adequar ao
implemento da eletricidade residencial. Que para Tanizaki,
representava as luzes do ocidente corroendo a cultura japonesa:
“Hoje em dia, qualquer indivíduo interessado em construir
sua própria casa no mais puro estilo arquitetônico japonês
procura recorrer a uma serie de estratagemas engenhosas
para harmonizar certas instalações como rede elétrica, de
agua e de luz com a sobriedade dos aposentos japoneses...”
[TANIZAKI, 2007:07].
E para o autor, a cultura japonesa não era perdida somente aos
estragos e substituição dos objetos tradicionalmente japoneses que
não se adequavam aos modos da tecnologia ocidental [que por si só
já era um dano gigantesco de acordo com o autor] mas
467
principalmente devido as modificações que isso implicaria nos
costumes nipônicos. Pois o autor considera que a cultura se constrói
por meio da interação dos grupos com a natureza e os objetos que
eles criam por meio dela. E com a retirada dos objetos
tradicionalmente japoneses das casas e ruas japonesas, os hábitos
morriam juntos, e os poucos que sobrassem, perderiam seu sentido,
se tornando vazios.
Tanizaki entretanto não se contenta em somente lamentar a
dominação ocidental e o sumiço da cultura oriental, como um bom
literato, o autor deixa explicito que entende a literatura como um
espaço em que se “salvaguarda” pensamentos e hábitos no tempo, e
sabendo da predominância irrevogável da tecnologia e progresso
ocidental, ele busca também em seu ensaio mostrar o outro lado do
Japão, as sombras escondias, valorizar a tradição e mostrar sua
beleza, “eu mesmo quero chamar de volta, pelo menos ao campo
literário, esse mundo de sombras que estamos prestes a perder.”
[TANIZAKI, 2007:63], como categoriza o próprio autor.
E essas sombras para Tanizaki são o epicentro da cultura japonesa, é
a base para toda tradição, costume, arquitetura e objeto tipicamente
japonês. Desde o teatro nó que tem sua beleza localizada na
escuridão do ambiente e dos trajes dos atores á até mesmo as
comidas japonesas, que servidas em tigelas escuras de madeira a luz
de velas, ofuscam o olhar de que se alimenta e impulsiona o olfato.
Dentre os louvores a sombras que Tanizaki faz, o mais
representativo para o mesmo está nas próprias construções
japonesas, que nas palavras do mesmo:
“...um templo em nosso pais começa a ser construído pela
cobertura, ampla e revestida de pesada telha, e na sombra
densa limitada pelo beiral recolhemos toda edificação.
Externamente, o que mais se destaca nas construções
japonesas, sejam templos, palácios ou casas populares, é o
telhado...e a espessa sombra reinante sob o beiral.”
[TANIZAKI, 2007:30].
Os telhados japoneses são a representação mais concreta para
Tanizaki pois o telhado que tudo protege e escurece, é a cultura
japonesa tradicional, que imponente é o que faz o morador se sentir
em casa, mas que está sendo substituída por telhados mais baratos,
468
ou por construções de concreto, que habitam mais pessoas em
menos espaço. E as sombras desse telhado são para o autor, a chave
da mente oriental:
“Creio que nós, os orientais, buscamos satisfaçŌo no
ambiente que nos cerca, ou seja, tendemos a nos resignar
com a situação em que nos encontramos. Não nos
queixamos do escuro, mas resignamo-nos com ele como
algo inevitável. E se a claridade é deficiente, imergimos na
sombra e descobrimos a beleza que lhe é inerente. Mas os
ocidentais, progressistas, nunca se cansam de melhorar
suas próprias condições. De vela a lampião, de lampião a
lampião de gás, de lampião de gás a lâmpada elétrica,
buscaram a claridade sem cessar, empenharam-se em
eliminar o mais insignificante traço de sombra.”
[TANIZAKI, 2007:48].
O questionamento do autor está na necessidade de se agarrar as
tecnologias ocidentais com tamanha voracidade e não buscar
desenvolver uma tecnologia que permita o japonês ter conforto sem
ter que abdicar de sua cultura; o lamento dele está em saber que isso
não é possível devido a incorporação permanente dessa cultura
ocidental em seu pais; e a felicidade dele existe em poder escrever
sobre as sombras que aliviam seu corpo e mente das luzes ferventes
do progresso.
Algumas reflexões finais
Dessa forma, fica claro o incomodo que Tanizaki passa a sentir a
partir da década de 20 em seu pais, que passa a retirar de maneira
massiva os costumes do Japão feudal para legitimar uma nova
ordem imperial. Não é possível afirmar que o autor possuía qualquer
concepção de que o Império Japonês ou o Imperialismo ocidental
possuíam projetos de modernização tão claros [já que em seu ensaio
o mesmo não menciona as posições do império em momento
nenhum], mas seu ensaio é uma prova material que o mesmo sentiu
as transformações e se incomodou com elas.
A beleza que Jun‟ichir Tanizaki enxerga nas sombras é a satisfaçŌo
que o autor sente em poder compreender que mesmo entendendo o
fim eminente de aspectos de sua cultura, é essa mesma cultura das
sombras que o permitiu descrever de maneira bela e poética os
469
aspectos dessa tradição, e permitir que ela se perpetue, ou ao menos
se mantenha eterna nas páginas de seu escrito.
Referências
Ronny Costa Pereira é estudante de graduação em Licenciatura em
História pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
E-Mail: PereiraRonny@outlook.com
BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução
Francesa da Historiografia. 2 ed: São Paulo: UNESP, 2010.
LE GOFF, J. Documento/Monumento, In: História e memória.
Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990, p.462-476.
MANDEL, E. O significado da segunda guerra mundial. São
Paulo, Ática, 1989.
PASTANA, R. D. L. O autor e sua produção literária. In: Da
polaridade a dualidade: Um estudo da obra literária Amor
insensato de Jun’ichiro Tanizaki. Dissertação de Mestrado. São
Paulo, USP, 2016, p.14-30
TANIZAKI, J. Em louvor da sombra. Tradução do japonês: Leiko
Gotoda – São Paulo, companhia das letras, 2007.
YAMASHIRO, J. Pequena História do Japão. Editora Herder,
São Paulo, 1964.
470
ALÉM DA GUERRA E RADIAÇÃO - UMA ANÁLISE
DA HISTÓRIA ANTIGA DO JAPÃO NOS LIVROS
DIDÁTICOS DO ENSINO MEDIO DAS ESCOLAS
ESTADUAIS DE MEDIANEIRA NO PARANÁ
Sander Fernando de Paula
Muito mais do que sua participação na Segunda Guerra Mundial ou
os episódios ocorridos em Hiroshima e Nagasaki, o Japão possui
uma extensa cultura que remonta dos períodos mais antigos da
humanidade. Este artigo teve por finalidade analisar cinco coleções
de livros didáticos do ensino médio distribuídos aos alunos das
Escolas Estaduais na cidade de Medianeira no Paraná pelo Plano
Nacional do Livro Didático (PNDL, 2015) procurando informações
que contam dos primórdios do Japão, influências culturais e
religiosas. O intuito é saber o quanto os alunos tem contato, através
dos livros, sobre a história antiga desse povo, sua origem, costumes e
influências com a história oriental e ocidental.
A Gênese Japonesa
Não se sabe com exatidão quando os primeiros povos surgiram no
Japão. Há muitas hipóteses de que esses primeiros habitantes são
mais antigos do que muitas outras civilizações. “Já foi defendida
uma data tão remota como 500 mil anos e alguns esperam mesmo
que se chegue a provar que essa história remonta há mais de um
milhŌo de anos” (HENSHALL, 1999).
Ainda segundo o autor, atualmente existe um consenso que delimita
uma data acerca de 200 mil anos, contudo já foram encontrados
fósseis humanos com datas superiores há 300 mil anos.
Para YAMASHIRO (1964) saber com exatidão quando os primitivos
adentraram em solo japonês é incerto e um dos lugares onde os
pesquisadores buscam estas informações são os sambaquis. “Nestes
são encontrados, além de conchas e mariscos, ossos de peixes e
animais e várias espécies de instrumentos usados pelos homens da
época”.
Ainda segundo o autor a caça e a pesca eram os principais meios de
sobrevivência. Para caçar usavam flechas feitas com pontas de
471
pedras e anzóis de chifres e para guardar a comida caçada utilizavam
vasos e utensílios fabricados de cerâmica (YAMASHIRO, 1964).
Claro que esse breve histórico é apenas superficial perante a
grandiosidade da história desse País. Ainda existe muito material a
ser estudado que vão dos seus primórdios, dinastias, lendas de
samurais e seres mitológicos, culinária singular e uma cultura única.
Mas por que incluir esse material nos livros didáticos brasileiros?
Apesar da divergência entre historiadores e pesquisadores sobre as
fases de imigração japonesa eles são unanimes em afirmar que os
primeiros imigrantes chegaram ao Brasil em 1908: “Os japoneses
radicados no Brasil comemoram o Dia dos Imigrantes na data de 18
de junho. É que nesse dia e mês de 1908 chegaram a Santos os
primeiros imigrantes do navio Kasato-Maru”[HANDA, 1987].
A data foi posteriormente oficializada a partir da lei n° 11.142 do ano
de 2005, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(BRASIL, 2017).
“Estes imigrantes enxergavam a vinda para o Brasil como
uma condição provisória (dekassegui) eles foram atraídos
pelas propagandas da companhia de imigração que de certa
forma não correspondiam com a realidade e essa motivação
inicial influenciará o processo de absorçŌo dos imigrantes”
(FILHO, 2009)
Hoje o Brasil concentra de acordo com o Consulado Geral do Japão
em São Paulo mais de 1,5 milhões de descendentes japoneses, sendo
considerada a maior comunidade japonesa fora do Japão. A região
Sul e Sudeste são as que mais se concentram esses imigrantes. Para
se ter uma ideia da grandiosidade dessa influência oriental, o Bairro
da Liberdade em São Paulo, onde a maioria dos japoneses reside,
carrega ideogramas nas fachadas e uma arquitetura estilo oriental
atraindo turistas de todo o mundo e aos finais de semana a famosa
Feira da Liberdade dá aos visitantes um pedaço do Japão aqui no
Brasil com elementos da cultura oriental, principalmente a
gastronomia (BRASIL, 2017).
Esses são alguns motivos que levam a importância do Japão aqui no
Brasil. Muitos outros motivos tanto de relevância cultural, religiosa e
comercial poderiam aqui ser citados. Mas mesmo assim os livros
472
didáticos ainda refletem um Japão atormentado pela Guerra e pela
Bomba nuclear. Há muito mais para se explorar em sala de aula.
Baseando nessa premissa, o livro didático é o veículo no qual o aluno
poderá adquirir conhecimento como relata ABUD (1986). “É ele o
construtor do conhecimento histórico cujo saber não vai além do que
lhe foi transmitido pela escola de primeiro e segundo grau”
Ainda segundo ABUD, (1986) o homem comum, no caso o aluno em
questão, vê as histórias dos livros como uma epopeia e passa a
acreditar nos fatos de heroísmo dos seus personagens. “A narraçŌo
dos feitos desses indivíduos constituiria, então, a história para este
homem comum” ABUD, (1986).
Ou seja, se o aluno aprende apenas uma parte da história de um
determinado povo, ele passa a interpretar esse povo apenas sob a
ótica que lhe foi dada. Cabe aos professore então aprofundar o
conhecimento que não se encontra nos livros didáticos? Mas qual
base metodológica ele deve usar para complementar o conteúdo que
falta nos livros didáticos?
Para SCHIMIDT & CAINELLI (2006) as relações que o docente de
História tem com relação ao livro didático pode ser baseado na sua
própria
concepção
de
ensino
e
aprendizagem
mas
fundamentalmente acaba se baseando em outra concepção: A que
estes professores tem do significado de escola.
“A clareza acerca dessas questões pode servir de referência
para que o livro didático ser visto como parte articulada e
articuladora das relações entre professor, aluno e
conhecimento histórico, e não como algo arbitrário e
compulsório” (SCHIMIDT & CAINELLI, 2006).
Metodologia
Foram analisados 5 coleções de livros didáticos do Ensino Médio
aprovados pele Plano Nacional do Livro Didático (PNDL 2015). Foi
delimitado a análise do conteúdo disponível nos livros didático que
se referem a história antiga do Japão, sua cultura e religião.
Conteúdos referentes à Segunda Guerra Mundial ou períodos
modernos e contemporâneos apesar de importantes não são
objetivos do artigo.
473
Análise
Foram analisadas as seguintes coleções: Novo Olhar da História
(PELEGRINI, 2013), História Sociedade e Cidadania (BOULOS,
2013), História em Movimento (AZEVEDO, 2013), Caminhos do
Homem (MARQUES, 2013) e Por dentro da História (SANTIAGO,
2013).
Das cinco analisadas, apenas a coleção História em Movimento
(AZEVEDO, 2013) contém material referente aos primórdios do
Japão. O conteúdo se dispõe na unidade 4 do livro I no capítulo
“civilizações asiáticas” com o subtítulo: O JapŌo dos Samurais.
AZEVEDO (2013) cita a origem do Japão nas páginas 132 e 133 do
livro em 3 parágrafos e uma imagem de uma pintura representando
o ataque noturno no palácio de sanjo. O material disposto no
capítulo é superficial quanto à origem do território japonês:
“O JapŌo é um arquipélago formado por quatro ilhas
principais e cerca de quatro mil ilhotas. Por muito tempo,
esse território fragmentado esteve dividido entre diversos
reinos, até que, por volta de 660 a.C., eles foram unificados
por um líder chamado Jimu, que recebeu o título de
imperador” (AZEVEDO, 2013).
O autor cita dinastias de imperadores protegidos por samurais. “A
proteção do imperador e de seus cortesões era garantida pelos
samurais, guerreiros que lideravam poderosos clŌs provinciais”.
Por fim AZEVEDO (2013) conclui a supremacia dos samurais como
grandes guerreiros enquanto que o poder dos imperadores se
enfraquecia passando posteriormente a ser apenas uma figura
decorativa.
Conclusão
É possível perceber que os livros didáticos citados neste artigo e
apresentados nas escolas públicas apresentam superficialmente a
origem do Japão e qualquer outra influência cultural que ele
proporciona, se limitando somente em
um conteúdo já
demasiadamente repetitivo, onde o Japão fica envolto na neblina
densa e fria da Segunda Guerra Mundial e os episódios ocorridos
Hiroshima e Nagasaki.
474
O artigo não tem por finalidade a crítica quanto ao conteúdo
disposto nos livros didáticos analisados muito menos aos autores
que com esmero e competência elaborar um material indispensável
para a educação brasileira. Que o artigo apresentando sirva de apoio
e talvez reflexão sobre a necessidade de incluir a história mais antiga
do Japão nos livros didáticos pois estes são responsáveis pela
disseminação do conhecimento histórico e muitas vezes é o único
meio de aprendizado que o indivíduo terá naquele momento.
Referências:
Sander Fernando de Paula
Graduado em História pela Universidade de Maringá,
UNICESUMAR e Pós Graduando em Docência do Ensino Superior
pela mesma Instituição.
sanderdepaula@gmail.com
ABUD, Kátia Maria. O livro didático e a popularização do
saber histórico, 1984.
AZEVEDO, Gislane Campos e SERIACOPI, Reinaldo. História em
movimento. 2. ed. São Paulo: Ática, 2013.
BOULOS JUNIOR, Alfredo . História Cidadania & Sociedade.
1. Ed. São Paulo, 2013.
BRASIL (2005).Câmara dos deputados. Lei n 11142 de 25 de
julho de 2005. Institui o dia nacional da imigração
japonesa. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2005/lei-11142-25-julho2005-537901-publicacaooriginal-31044-pl.html Diário oficial da
União. Acesso em 15/08/2017.
Brasil (2017). Brasil tem 1,5 milhão de cidadãos de origem
japonesa. Portal Brasil. Publicado: 16/06/2017. Disponível em:
http://www.brasil.gov.br/turismo/2017/06/brasil-tem-1-5-milhaode-cidadaos-de-origem-japonesa. Acesso em 15/08/2017.
Guia de livros didáticos : PNLD 2015 : história : ensino médio.
– Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2014. 140p. : il.
HANDA, Tomoo. O imigrante japonês: história de sua vida
no Brasil. TA Queiroz, Editor, 1987.
HENSHALL, Kenneth G. A History of Japan: From Stone Age
to Superpower. New York: St. 1999.
MARQUES, Adhemar e Berutti, Flávia. Caminhos do Homem –
2. Ed. Curitiba, PR. Base Editorial, 2013.
475
PELEGRINI, Marcos César, DIAS, Adriana Machado e GRINBERG,
Keila. Novo Olhar História. 2. Ed. São Paulo, 2013.
SANTIAGO, Pedro, CERQUEIRA, Célia e PONTES, Maria Aparecida
Por dentro da História. 3. Ed. São Paulo. Escala Educacional,
2013.
SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene Rosa. Ensinar
História. Scipione, 2006.
YAMASHIRO, José. Pequena História do Japão. Editora
Herder, 1964.
SOARES FILHO, Paulo José. Política Imigratória Tutelada
Japonesa: Uma política do Estado Japonês. Anpuh – xxv
simpósio nacional de história – Fortaleza, 2009, p. 03.
476
ENTRE RASTROS: PISTAS SOBRE UMA PRÁTICA
RITUAL DO CULTO DA DEUSA INANNA
Simone Aparecida Dupla
O presente ensaio pretende realizar uma breve abordagem de alguns
indícios referentes à prática do hierogamos, em que a deusa súmeria
Inanna era protagonista, e discutir até que ponto estes podem ser
considerados evidências de que tal prática constitui-se como um
ritual na Antiga Mesopotâmia, principalmente a partir do período de
Ur III (2112-2004).
A ideia do hierogamos tendo Inanna como protagonista parece fato
consumado entre os autores clássicos da Antiga Mesopotâmia, tanto
que uma das últimas obras de Samuel Noah Kramer leva exatamente
o título de O Casamento Sagrado na Antiga Suméria. Nessa obra o
autor sustenta que o hierogamos com Inanna foi celebrado por dois
mil anos e relaciona essa cerimônia ao desejo de riqueza dos
sumérios que tinham que a prosperidade era dádiva dos deuses.
Para pensar se essas relações entre a divindade e o rei, como forma
de legitimação de poder ou táticas de sobrevivência do culto, se
expressavam em forma de um ritual, cujo ápice era a consumação do
casamento, é preciso verificar até que ponto essas fontes poderiam
trazer indícios realmente de um ritual, ou seja, em que sentido a
documentação sobre Inanna nos leva a crer que haveria tal
cerimônia, se pública ou privada e qual seu papel no imaginário
religioso mesopotâmico.
Ainda sobre a obra de Kramer, os dados usados por ele, não são
concretos em relação à celebração e o próprio culto à divindade, pois
ao colocar a divindade como sendo tardiamente adorada em seu
local de culto, o Eanna, e afirmando que esta apenas foi introduzida
no local como hierodula do deus do Céu, An, ignora ou desconhece
as evidências arqueológicas que confirmam o culto a Inanna desde
meados do IV milênio antes da nossa era (SZARZYNSKA, 1993).
Embora aponte que a filha de Nanna, o deus Lua, tenha sido uma
das principais divindades adoradas nessa região desde o terceiro
milênio, diz que há indícios de que o Rito do Matrimônio Sagrado
tendo Inanna como protagonista teve lugar, na cidade de Ur,
algumas gerações antes que Dumuzi, seu consorte, possivelmente
477
uma divindade da vegetação, entrasse em cena. Essa perspectiva liga
a divindade aos monarcas de Ur, principalmente do período de Ur
III, mas não abarca períodos anteriores, onde as evidências também
se fazem presentes, como por exemplo, aquelas referentes à própria
cidade de Uruk e seu complexo templário.
Gonzalo Rubio acredita que o casamento sagrado fazia parte da
“celebração do Ano Novo a partir da segunda metade do terceiro
milênio para o início do segundo, o rei, representando Dumuzi, teria
- ou, mais provavelmente, fingia ter - relações sexuais com uma
mulher (talvez uma entu-sacerdotisa) (RUBIO, 2001, p. 268)” que
representaria a deusa Inanna. Para o autor, esta cerimônia teria
sobrevivido até o primeiro milênio, onde se encontram pistas da
celebração em textos que descrevem rituais reais tanto na Assíria
quanto na Babilônia, mas tento como protagonistas outras
divindades, como é o caso de Nabu e Nanaya (RUBIO, 2001).
Os textos do período de Ur III, da cidade de Lagash, trazem a
menção de que sacerdotisas passavam a noite no dormitório da
divindade (RUBIO, 2001), denotando uma possível relação entre
essas duas personagens. Nas fontes denominadas o Ciclo de Inanna,
as referências são mais escancaradas, as relações entre Inanna e
Dumuzi são descritas detalhadamente:
“Ele esculpiu meus quadris com suas doces mŌos,
O pastor Dumuzi encheu meu colo com creme e leite,
Ele acariciou meus pelos púbicos,
Ele aguou meu útero.
Ele tocou com suas mãos em minha sagrada vulva,
Ele alisou minha nau escura com seu creme,
Ele tocou minha nau estreita com seu leite,
Ele me acariciou-me no leito.
Então eu acariciei o alto sacerdote no leito,
Eu acariciei o fiel pastor Dumuzi,
Eu acariciei seus quadris, a força do pastoreio da terra,
Eu decretei um doce destino para ele”
(KRAMER; WOLKSTEIN, 1998, p. 4).
O trecho acima aponta para uma troca de carícias entre a divindade
e Dumuzi, seu consorte, essas “preliminares” ocorreriam em um
período específico, pois parece incorreto afirmar que a sanção do
destino real ocorresse cotidianamente e não fosse objeto de uma
478
cerimônia específica. Além disso, o leito preparado requer cuidados
para sua confecção, foi erigido especialmente para agradar a
divindade e tinha data determinada, deveria ser durante o
desaparecimento da lua, ou seja, lua nova, em dia marcado para a
inspeção do leito:
“Quando ela faz confortavelmente, quando ela faz
confortavelmente, quando ela faz confortavelmente no
leito; quando ela faz confortavelmente no leito que alegra o
coração, quando ela faz no leito confortável; quando ela faz
no leito do doce abraço confortável, quando ela faz
confortavelmente no leito; (...) ela cobre o leito para ele
......, cobre o leito para ele; ela cobre o leito para ele ......,
cobre o leito para ele; ela chama o rei para seu doce leito,
ela chama o amado (...)” ( ETCSL: T.4.08.30).
Ou ainda:
“170-180. (...) para que no dia do desaparecimento da lua
os poderes divinos possam ser aperfeiçoados, uma cama é
erigida para minha senhora .Espargida é purificada com
perfume de cedro e dispostas no leito para minha senhora,
e um lençol é alisado em cima (?) do mesmo.
181-186. A fim de encontrar doçura na cama sobre o lençol
da alegria, minha senhora banha suas santas coxas. Ela se
banha para as coxas do rei; {ela se banha para (...) com a
cabeça erguida ela vai para} as coxas de Iddin- Dagan . A
Santa Inana esfrega-se com sabão; ela borrifa de óleo e
essência de cedro no chão.
187-194. O rei vai para as coxas sagradas com a cabeça
erguida (...) Ela vai para as coxas de Iddin- Dagan , ele vai
para as coxas de Inana . Com a cabeça erguida Amaušumgal-ana deita ao lado dela e {acaricia suas coxas
sagradas} (...) (diz:) "ó minhas santas coxas O minha
Santa Inana !"}. Depois a senhora fez dele se alegrar com as
coxas sagradas sobre a cama, depois de santa Inana fez dele
se alegrar com as coxas sagradas na cama, ela relaxa com
ele em sua cama (?): Iddin-Dagan , você é realmente meu
Amado! "(ETCSL: T. 2.5.3.1).
Percebe-se que o leito desejado pela divindade não era um leito
comum, mas o leito real, onde o senhor (rei/Dumuzi) iria fazer
479
amor, um leito de rainha, ou seja, finamente elaborado, com um
lençol de linho branco, salpicado de flores que lembram o lápis
lazulli. No segundo trecho, o qual traz como avatar de Dumuzi, o rei
Iddin-Dagan, é clara a junção carnal e a purificação ritual, o gesto de
jogar perfume no chŌo e ir para “as coxas” apontam tanto a
consumação quanto a performance ritual.
Além disso, o texto menciona um lugar especial para onde o rei iria,
o Egal-Mah, para “derramar libações, para realizar rituais de
purificação, amontoar ofertas de incenso, para queimar zimbro, para
ofertar alimentos (ETCSL: T. 2.5.3.1, linhas 195-202)”. Dessa foram,
antes da consumação do casamento deveria haver uma purificação e
oferta por parte do monarca, não apenas de presentes para a noiva,
mas de sacrifícios em sua homenagem.
A cerimônia exigia também um banquete, o qual o rei preparava a
frente da divindade, essa celebração deveria demonstrar a
abundância do reino:
“Ele organiza um banquete rico para ela. O povo de cabeça
negra alinhadas à sua frente. Com instrumentos altos o
suficiente para abafar o vento sul-tempestade, com doce
sonoridade do instrumento Algar, a glória do palácio, e
com harpas, a fonte de alegria para a humanidade, os
músicos executam canções que encantam seu coração. O rei
vê o que é comido e bebido, Ama-ušumgal-ana vê o que é
comido e bebido. O palácio está em clima de festa, o rei está
alegre. As pessoas passam o dia em meio à fartura. Amaušumgal-ana está em grande alegria. Que seus dias sejam
longos no esplêndido trono! Ele orgulhosamente (?) Ocupa
o estrado real" (ETCSL: T. 2.5.3.1).
Dessa forma, o rei oferecia um banquete para Inanna, um banquete
que era reproduzido em cada lar, possivelmente como sinal de
abundância ou desejo desta e também como oferenda. Assim,
enchia-se a mesa com queijo, sete tipos de frutas, onde se oferecia os
primeiros frutos para a divindade, vertia-se cerveja escura e clara,
assavam-se bolos de mel (ETCSL: T. 2.5.3.1).
Havia o costume de realizar logo pela manhã uma espécie de rito
onde se derramava farinha, mel e vinho ao nascer do sol. O deus
pessoal dos participantes também a servia com alimentos e bebidas
480
(ETCSL: T. 2.5.3.1, linhas 150-162). A ideia de deus pessoal deve-se
ao fato dos mesopotâmicos se ligarem a apenas uma divindade
durante toda a vida, mas aceitarem a existência de outros deuses,
sendo, portanto, henoteístas. Assim, Inanna teria devotos mesmo
entre aqueles cujo deus pessoal não era ela, ou ao menos estes lhe
renderiam homenagens nessa festividade juntamente com o restante
do panteão.
Também é interessante notar que a divindade embora se prepare
para cópula com purificações, era preciso que a terra estivesse
purificada para sua descida, o texto aponta que todos (os que estão
envolvidos com a cerimônia, fieis que vem de outros lugares e
aqueles preparam a festividade) se apressam em deixar tudo
purificado e organizado para a chegada da “sagrada Inana”. Assim,
nos lugares “puros da planície, em seus lugares acolhedores, os
telhados das habitações, nos santuários da humanidade, são
oferecidos incensos, como uma floresta de cedros aromáticos são
ofertados a ela. Eles purificam a terra para a senhora” (ETCSL: T.
2.5.3.1), e a celebram em canções.
Outro elemento também atestado na documentação é a virilidade do
rei:
“12-18. Quando meu doce precioso, meu coração, deitou-se
também, beijaram-se com a língua, um de cada vez, então
meu irmão dos belos olhos fez cinquenta vezes para ela,
exaustivamente esperando por ela, enquanto ela tremia por
baixo dele em silêncio, em silêncio para ele. Minha querida
preciosa passou o tempo com o meu irmão, colocando as
mŌos nos quadris dela” (ETCSL, T.4.08.04).
Dessa forma, pode ser dado como certo, que Inanna manteve uma
relação carnal com o rei-pastor, cuja execução correta trazia
prosperidade ao povo sumério. Mas quando o monarca partia para a
terra sem retorno era preciso substituí-lo, encontrar alguém a altura
de ser o avatar de Dumuzi, o primeiro amante. Essa preocupação em
perpetuar o evento, em repetir periodicamente a cerimônia,
podemos chamar de tradição e por estar relacionada à tradição, por
manter traços, frases e atitudes da primeira cerimônia, podemos
chamar isso de ritual.
481
Como lembra Verhoeven é “através da ação ritual que as crenças
religiosas sŌo comunicadas, negociadas e transmitidas”
(VERHOEVEN, 2011, p.117). Dessa forma, é possível afirmar que
existia um ritual do casamento sagrado, voltado à crença de que os
esponsais com a divindade asseguravam a fertilidade de seres
humanos e animais, a prosperidade do povo e a proteção contra
catástrofes e guerras.
Se era uma sacerdotisa Entu, ou uma das esposas do rei, a questão
parece irrelevante, visto que geralmente as mulheres da corte
estavam envolvidas com alguma função clerical. Há dados, por
exemplo, acerca de Enheduana, neta de Sargão de Akkad, que
comprovam sua atuação como sacerdotisa de Nanna e adoradora de
Inanna, a qual recorre quando destituída de seu cargo. Ou mesmo os
hinos dedicados a reis, como é o caso de Shulgi, onde, segundo
Leick, quem escreveu foi uma de suas esposas (LEICK, 2001).
Ainda sobre o ritual, Leo Openheim, em sua obra “Mesopotâmia:
retrato de uma civilizaçŌo extinta”, acredita que em relaçŌo à
performance, nessa cultura podemos classificar três tipos de rituais
nessa categoria: orações, textos mitológicos e textos rituais
(OPPENHEIM, 2003).
Os textos mitológicos, se assim, podemos qualificá-los, visto que
esse termo se refere, a mitos e obras literárias, que evocam certa
imagem mitológica, dizem respeito, para o autor, às formulações
literárias que são obras de poetas sumérios da corte, as quais os
escribas paleobabilônicos vieram a imitar posteriormente. Essas
obras “contem adaptações feitas para um público relativamente
recente, de elementos mitológicos simples, e frequentemente
primitivos, pálidos reflexos de histórias que circulavam entre
determinados grupos da população mesopotâmica, trazidos de um
passado longínquo” (OPPENHEIM, 2003, p. 176).
O terceiro grupo apontado por Oppenheim, diz respeito às
numerosas descrições de rituais, que se executava frequentemente
nos santuários, por sacerdotes e técnicos do templo.
“Estes textos descrevem, quase sempre com muitos
detalhes, os atos particulares de um determinado ritual, as
orações e fórmulas que se deveria recitar (citadas
integralmente ou bem por seu incipit), assim como as
482
oferendas e o aparato sacrificial necessários; em resumo,
logram transmitir-nos parte das atividades que se
desenvolviam no interior de um templo mesopotâmico”
(OPPENHEIM, p. 176).
Assim, estes textos trazem de forma detalhada, a performance ritual,
como é o caso do festiva de Ano Novo babilônico, que possivelmente
tem suas raízes no período pré-sargônico, mas o qual não podemos
datar com exatidão, dado a natureza furtuita das fontes, portanto a
antiguidade a que remonta tais rituais e festividades só pode ser
pressuposta, por meio dos resquícios arqueológicos a que as fontes
estão sujeitas.
A literatura mesopotâmica era rica em material de cunho religioso,
seus mitos contavam a gesta dos deuses, explicavam a organização
do universo e davam sentido ao universo material e espiritual dessa
cultura. Nos hinos de louvor que trazem aspectos do ritual do
hierogamos, percebemos que a presença de referências a essa
festividade é uma recorrente, assim como a ideia de junção carnal
entre o rei e a divindade.
Os monarcas de Ur III quiseram deixar registradas suas relações
pessoais com a divindade, entre eles Shulgi e Naram-Sin, mesmos os
hinos que dedicados aos reis, mencionam Inanna como esposa e
protetora destes, como é o caso do hino dedicado ao Shulgi, onde
este diz ser aquele que é destinado ao deleite de Inanna (PEINADO,
1988, p. 163) ou aquele dedicado a Ishbierra, onde este diz que
construiu um leito para a divindade: “El construyó para ella um
lecho [...] y lo introdujo después en el templo de Inanna [..] [a
derecha] e izquierda él [tendió] um león” (PEINADO, 1988, p. 169).
Após os monarcas de Ur, aqueles de Isin-Larsa também disseram
amantes da divindade, como é o caso de Lipit-Ishtar, cantado como
desejado esposo de Inanna, a delícia de seu coração (PEINADO,
1988, p. 181).
“Lipit-Ishtar, el hijo de Enlil, soy yo.
Al palácio real, mi morada, yo entro:
Mi esposa, la sagrada Inanna,
ha hecho firme el fundamento de mi trono.
a la cama, el lugar de alegría de [su] corazón, [voy hacia ella]:
Para mucho tempo, para siempre me ha abrasado ella.
483
!En esse sito querría passar, en jovialidade y alegría de corazón,
los días com la dueña del cielo!” (PEINADO, 1988, p. 185).
Dessa forma, o aparato de imagens e símbolos criados em torno da
festividade, bem como as descrições detalhadas da cópula e da
relação especial com o rei apontam sempre para a consumação do
casamento. Nesse sentido, os ex-votos denominados “amantes
abraçados no leito”, que discutiremos em outro momento, parecem
vir de encontro a essa relação sexual estabelecida entre o monarca e
a divindade.
Assim, torna-se possível afirmar, que de acordo com as pistas
encontradas nas fontes, havia um ritual de hierogamos, onde Inanna
foi o objeto principal de culto e cuja magnitude em termos
estilísticos e a dimensão de tal festividade contribuiu para
perpetuação do culto, ratificou o reinando dos soberanos, além de
servir de modelo comportamental reproduzido no cotidiano das
pessoas comuns.
Referências
Simone Aparecida Dupla é doutoranda em História pela UEM, sob
orientação da professora Dra. Solange Ramos de Andrade.
E-mail: cathain_celta@hotmail.com
LEICK, G. Sex and eroticism in Mesopotamian literature.
New York: Taylor & Francis, 2003.
ETCSL, T.4.08.04. A balbale to Inana (Dumuzid-Inana D).
Disponível: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgibin/etcsl.cgi?text=t.4.08.04#
ETCSL: T. 2.5.3.1. A šir-namursaĝa to Ninsiana for IddinDagan (Iddin-Dagan A). Disponível em:
http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.2.5.3.1#
ETCSL: T.4.08.30A song of Inana and Dumuzid (Dumuzid-Inana
D1). Disponível em: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgibin/etcsl.cgi?text=t.4.08.30#
KRAMER, S.N. El Matrimonio Sagrado em la Antigua Sumer.
Barcelona: AUSA, 1999.
OPPENHEIM, A. Leo. La Antigua Mesopotamia: retrato de una
civilización extinguida. Madrid: Gredos, 2003.
484
RUBIO, Gonzalo. Inanna and Dumuzi: A Sumerian Love Story.
Journal of the American Oriental Society, Vol. 121, No. 2
(Apr. - Jun., 2001), pp. 268-274.
SZARZYNSKA, Krystyna. Offerings for the Goddess Inanna in
Archaic Uruk. In: Revue d’Assyriologie. Paris: Gabala, 87, 1993.
VERHOEVEN, Marc. The many dimensions of ritual. In: INSOLL,
Timothy. The archaeology of ritual and religion. OXFORD:
University Press, 2011.
485
486
O SOCIAL DARWINISMO OCIDENTAL E O
PROGRESSO JAPONÊS
Tiago Tormes Souza
O presente artigo tem com objetivo explicar a relação entre o
pensamento social darwinista, o Imperialismo das potências
industriais ocidentais e o Estado Japonês pós Restauração,
evidenciando as reformas na educação, na economia e no exército
decorrentes disso.
O Social Darwinismo no Ocidente
A publicação da obra A Origem das Espécies [1859], de Charles
Darwin, revolucionou as ciências naturais e a própria cultura
ocidental. Hobsbawm [2012] aponta a relevância da obra não só
para a biologia, mas para a história.
“A teoria da evoluçŌo pela seleçŌo natural ia bem mais
longe que os limites da biologia, e nisso reside sua
importância. Ela ratificava o triunfo da historia sobre todas
as ciências, embora “história” fosse nesse sentido fosse
normalmente confundida pelos contemporâneos com
„progresso‟” [HOBSBAWM, 2012, p.390]
Assim, o evolucionismo não se manteve como um conceito apenas
para as ciências biológicas. Com a ascensão da Sociologia de Augusto
Comte como ciência, e de seu positivismo como um paradigma
hegemônico, o evolucionismo passou a fazer parte das produções
acadêmicas de diversas novas ciências, que passaram a explicar
todas as sociedades pelo prisma do “progresso” e da “evoluçŌo”.
Deste modo, o "Progresso" seria alcançado pelo desenvolvimento
científico que os Estados europeus alcançaram através da Revolução
Industrial e pela liberdade individual alcançada com a Revolução
Francesa. Para isso, seria necessária uma "Ordem", de acordo com a
qual a sociedade deveria obedecer a uma hierarquia natural para
atingir o Estado Positivo.
“Pregava-se aqui a „conciliaçŌo de classes‟, na verdade a
submissão da massa de trabalhadores aos industriais que
deveriam ser os responsáveis em encaminhar o bem
ordenado progresso positivista.” [BARROS, 2014, p.95]
487
Portanto, a riqueza e a pobreza seriam apenas sinais da
diferenciação entre a burguesia e o proletariado, que estaria
relacionada a capacidade da espécie humana de se adaptar ao
ambiente. Assim sendo, algumas pessoas seriam mais evoluídas que
outras e, em consequência, a pobreza não teria causas sociais, mas
sim biológicas. Logo, o Social Darwinismo surge como uma junção
das teorias evolucionistas de Darwin com as novas ciências sociais
que surgem na segunda metade do século XIX, como a Sociologia, a
Antropologia e a Linguística. Essa nova teoria foi utilizada para
hierarquizar a sociedade e categorizar os seres humanos.
"O darwinismo social, no entanto, envolve um quinto
pressuposto crucial, isto é, que esse determinismo se
estende não apenas às propriedades físicas dos seres
humanos, mas também à sua existência social e aos
atributos psicológicos que desempenham um papel
fundamental na vida social, e.g. razão, religião e
moralidade [...] Os darwinistas sociais, no entanto,
acreditam que muitos (se não todos) os aspectos da cultura
- religião, ética, instituições políticas, o surgimento e a
queda dos impérios e civilizações, além de muitas
características psicológicas e comportamentais - podem ser
explicados pela aplicação dos primeiros quatro elementos a
esses domínios. Os darwinistas sociais, portanto, endossam
dois fatos fundamentais sobre a natureza humana: que é
contínua como a psicologia animal e que evoluiu através da
seleção natural." [HAWKINS, 1997, p.31]
O Social Darwinismo não considera apenas os aspectos biológicos
dos seres humanos, mas também a sua cultura como um todo.
Analisando as sociedades tribais como muito aquém do progresso
industrial e liberal visto no Ocidente, fora do contexto europeu, as
ciências próximas do social darwinismo passam a hierarquizar as
diferentes sociedades e relacionar seu grau de evolução com seu
desenvolvimento. Nesse momento, o conceito de “raça” passa a ser o
catalisador de todo o pensamento a respeito do Imperialismo
Ocidental imposto a outros povos.
Na Ásia, os Estados Europeus sobrepujaram as grandes civilizações
com seu armamento e tecnologia. A Índia passou a ser parte do
Império Britânico. O Império Chinês, da Dinastia Qing, sofreu
diversos boicotes econômicos e teve seu poder esfacelado, tornando488
se território dividido em diversas em áreas de influência das grandes
potências imperialistas. Em apenas um século, uma Europa que
sempre viu o Império chinês como uma grande nação civilizada e
avançadíssima passou a vê-la como uma nação semi-bárbara e muito
distante do ideal de progresso da modernidade e do liberalismo
Ocidental.
A Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), entre Inglaterra e China, foi
a primeira demonstração de que o grande império tradicional não
era páreo para o poderio militar ocidental. Uma pequena frota
inglesa de mais ou menos vinte mil homens derrotou as forças
armadas Qing e forçou a abertura econômica chinesa. A China
tentou preservar sua cultura e governos tradicionais, resistindo ao
avanço ocidental, mas foi derrotada. Logo em seguida, diversas
revoltas ocorreram, dentre as quais as principais foram a Revolta
dos Boxers (1900) e a Rebelião Taiping (1850-1864).
O Japão e a Busca pelo Progresso
Os navios negros do comodoro norte americano Matthew C. Perry
aportaram no Japão em 1853. O Bakufu Tokugawa se viu intimidado
com o poderio militar ocidental. Pela primeira vez, desde o
isolamento do Japão no século XVI, a ilha no pacifico se viu sitiada e
impossibilitada de reagir contra essas novas tecnologias.
A “diplomacia da canhoneira” surtiu efeito, os Estados Unidos
abriram o comercio japonês para o mundo e o Imperialismo
industrial finalmente tinha chegado a terras nipônicas.
Após a Restauração Meiji em 1868, o Governo Imperial enviou
diversas missões diplomáticas e intercâmbios para a Europa e a
América. Em especial a “MissŌo Iwakura” com o objetivo de
absorver novos modelos políticos, econômicos, técnicos e científicos.
O Império do Japão estava em busca do "Progresso" e diversas obras
ocidentais chegaram ao Japão, com um crescimento rápido de
traduções e produções acadêmicas em língua japonesa embasadas
nos grandes teóricos e cientistas ocidentais.
O conceito de “Progresso” estaria intimamente ligado ao conceito de
“Modernidade disponível” e nŌo uma modernidade generalizante
como os teóricos positivistas e ligados ao Social Darwinismo
propunham.
489
“Para o JapŌo, as modernidades disponíveis nas ultimas
três décadas do século XIX eram chamadas de “civilizaçŌo”
(bunmei), o que os japoneses entendiam como um estágio
universal na historia mundial, assim como o que estava
exemplificado
pelos
modelos
“euroamericanos”
contemporâneos.” [GLUCK, 2014, p.21]
Assim, a “Modernidade disponível” que existia na segunda metade
do século XIX seria ligada ao progresso industrial, ao Estado-Nação
e as políticas imperialistas. Porque não havia outra forma de manter
um Estado soberano sem interferências externas com um governo
“tradicional” e “nŌo civilizado”. Era necessário para o JapŌo buscar a
“civilizaçŌo”, reformar o seu sistema de educação pública sua
economia e suas forças armadas. Esses três pontos seriam cruciais
para que o progresso da nação fosse possível, importando diversos
modelos do ocidente.
“O modelo inglês servia naturalmente como um guia para
as estradas de ferro, telégrafo, obras públicas, indústria
têxtil e muito dos métodos de comércio. O modelo Francês
inspirava a reforma legal, e inicialmente a reforma militar,
até que o modelo prussiano veia a prevalecer (a marinha
evidentemente seguiu o exemplo inglês).” [HOBSBAWN,
2012, p.239]
As reformas da educação e da economia japonesa buscaram no
Ocidente seu modelo e, através disso, o país alcançaria o progresso.
Autores como Herbert Spencer, Mill e Comte contribuíram para que
os ideais do Ocidente fossem usados pelos japoneses que buscavam a
ascensão da Nação e o bloqueio das forças Imperialistas em seu
território por meio de uma ideologia progressista e modernizadora.
“No entanto, uma inspeçŌo das influências spencerianas no
Japão mostra que o uso conservador de Spencer, por
exemplo, está intimamente relacionado com a natureza
única da ideologia social e política conservadora japonesa e
com a complexa estrutura social do Japão da era Meiji. Isso
ilustra as maneiras pelas quais o pensamento ocidental,
recentemente introduzido, contribuiu para a ideologia dos
grupos que possuíam o poder na sociedade Meiji." [NAGAI,
1954,p.56]
490
O Código Fundamental de educaçŌo de 1872 “decretou a criaçŌo de
uma rede de oito distritos universitários e 32 distritos preparatórios,
cada um deles com uma dotaçŌo de 210 escolas primarias” [Collcutt,
Jansen, Kumakura, 2008, p.175]. Uma mudança drástica em relação
ao período Tempô, em que o ensino ainda era voltado para a classe
samurai e dos daymio. A educação formal durante a Era Meiji
incluiu lições morais, desde lealdade e patriotismo. Suas
universidades eram extremamente liberais para que os acadêmicos
japoneses pudessem rivalizar com seus pares ocidentais. O que
constituía em uma educação extremamente utilitarista, em que o
cidadão servindo a si mesmo, serviria a pátria e ao Imperador. No
mesmo Código, há um trecho que explica a busca pelo "Progresso"
por parte do governo Imperial.
"O aprendizado é a chave do êxito na vida, e nenhum
homem pode se atrever a rejeitá-lo. É a ignorância o que
impede o homem de progredir, o empobrece, dispersa a
família e termina por destruí-lo" [COLLCUTT; JANSEN;
KUMAKURA, 2008, p.175].
Deste modo, a Educação Pública seria a forma de encaminhar a
sociedade japonesa para o progresso. Porque ela seria necessária
para introduzir as pessoas ao modelo de sociedade e política
ocidental, em que a liberdade individual e a igualdade seriam
respeitadas e não atrelada aos velhos costumes e tradições presentes
no modelo social de estamentos do Bakufu Tokugawa.
A economia japonesa teve um grande crescimento desde a
Restauração através de sua política de fortalecimento o mercado
interno, da construção de ferrovias e da indústria pesada, tornando a
economia japonesa sólida e incentivando uma expansão imperialista
para outros países asiáticos, como a Coréia e a China, em busca de
matérias-primas e um mercado consumidor, seguindo o exemplo
das grandes potencias ocidentais que colonizaram a África e a Ásia
no mesmo período temporal.
“Alguns aspectos do fenômeno global e conjuntural são
coercitivos, como foi o caso do governo imperialista dos
britânicos na índia e dos japoneses na Coréia. Sob uma
coação menos direta, mas não menos poderosa, o Japão
para preservar sua soberania na ordem internacional dos
491
fins do século XIX, dominado pelo Ocidente.” [GLUCK,
2014,p.21]
O militarismo japonês é um ponto crucial para se compreender a
própria idéia de "Progresso", pois sem um exercito e uma marinha
poderosa seria impossível uma política expansionista colonial. Uma
vez que a ideia de uma classe samurai relacionada com a
fragmentação política do Bakufo Tokugawa era um empecilho para a
forma de se criar um Estado-Nação coeso.
A partir da Revolução Francesa o mundo ocidental passou a recrutar
soldados de sua própria população, abandonando exércitos menores
e extremamente profissionais. Porém, o levante de uma infantaria
das massas abre caminho para o cidadão constituir uma identidade
nacional, um nacionalismo exacerbado, o que não fazia parte da
mentalidade japonesa, em que as instituições no Período Edo eram
estamentarias e a arte bélica ainda era monopolizada por uma classe
guerreira. Jansen [2008] aponta essa questão quando trata da
“guerra boshin”, em que a apatia por parte do campesinato japonês
em relação ao conflito é notada pelo governo Meiji após o termino
do conflito.
“A guerra franco-prussiana de 1870-1871 surpreendeu
vários dirigentes restauradores na Europa, que ao regressar
compararam o alto grau de participação demonstrado pelos
cidadãos de Paris na defesa da cidade com a indiferença da
maioria dos camponeses japoneses durante as guerras de
restauração. Estava claro que o caminho para a segurança
nacional dentro do violento contexto internacional em que
o pais estava envolvido passava pela educação e instrução
do povo comum, transformando assim o Japão em uma
“naçŌo armada” em vez de depender de uma classe com
armas. Também era possível citar o respeito em relação a
tradição, já que o antigo Japão de inspiração institucional
chinesa havia contado com camponeses recrutados.”
[COLLCUT, 2008, p. 175]
Influenciado pelo Darwinismo Social, o governo Imperial passou a
perseguir grupos étnicos minoritários. O maior exemplo disso foram
os Ainu da ilha de Hokkaido, que foram obrigados a abandonar seus
costumes tradicionais e assimilar a cultura nacional.
492
Conclusão
O Social Darwinismo e o desdobramento do Imperialismo, no Século
XIX, tiveram grande influência sobre o Japão no governo Meiji.,
levando a mudanças em suas políticas publicas em relação a
educação, em sua economia e em seu militarismo. Criou-se assim as
bases para que o Império do Japão se tornasse a grande potência
econômica e militar na Ásia, aos moldes das outras potências
imperialistas ocidentais.
Referências
Tiago Tormes Souza é graduando em História/Licenciatura pela
FURG.
Email: tormes.tiago@gmail.com
BARROS, José D‟AssunçŌo. Teoria da História II. Os primeiros
paradgmas: Positivismo e Historicismo. 4.Ed . Petrópolis:
Vozes, 2014
COLLCUT, M.; JANSEN, M. B.; KIMAKURA, I. Japão. 1.Ed.
Barcelona: Ediciones Folio, S.A, 2008
HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital, 15. Ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2012
HAWKINS, Mike. Social Darwinism in European and
American Thought, 1860-1945: nature as model and nature
as threat. 1. Ed. New York: Cambridge University Press, 1997
NAGAI, Michio. Herbert Spencer in Early Meiji Japan, The
Far Eastern Quaterly, Volume. 14 No. 1, 1954. P.55-64
GLUCK, Carol. Meiji e moderninadade: da historia à teoria. In:
PEREIRA, Ronan Alves; SUZUKI, Tae. Japão no Caleidoscópio:
Estudos da Sociedade e da História Japonesa. São Paulo:
Pontes Editores, 2014. p. 15-37
493
494
A IGREJA TENRIKYO AMAZÔNIA:
A HISTÓRIA E A CULTURA DA RELIGIÃO
Vitor Moises Nascimento Therezo
Este artigo traz aspectos gerais da história da Religião Tenrikyo e da
Igreja Tenrikyo Amazônia, uma das religiões que formam o cenário
plural brasileiro. O intuito é fornecer um breve histórico da religião
de origem nipônica presente de maneira considerável no Brasil, país
com a maior colônia japonesa do mundo. Fornecendo sugestões e
percepções para entender as complexas circunstâncias em que uma
nova religião japonesa está localizada na cultura japonesa.
Introdução ao Objeto
A pesquisa sobre a cultura japonesa na Amazônia me levou a um
objeto abstrato desta comunidade, tendo como ponto de partida os
padrões ocidentais. Tal objeto é a religião. Como historiador que tem
preocupações antropológicas, acho muito inviável que seja possível
situar a cultura, e neste caso a japonesa, em relação a todas as
outras. Especialmente a quem não nasceu ou viveu nela, sempre
estando seus aspectos mais profundos inacessíveis, pois a cultura de
maneira geral é imensurável. Existe saída para esta questão? Talvez
com a mesma preocupação pode-se dizer que sim, já que boa parte
do trabalho do antropólogo está centrado em mapear culturas das
mais diversas, e muitas fora dos padrões do observador, que deve
interpretar com uma metodologia que permita a aproximação dela.
Para começar, serei claro em meu ponto de partida para pensar a
religião para os nikkeis. É um aspecto cultural, que lhe dando
profundidade histórica irá mostrar continuidades e rupturas ao
longo do tempo. Mas fica a pergunta, não devemos pensar a sua
especificidade? Antes de qualquer resposta será muito importante o
estudo cada vez mais abrangente desta especificidade, entendendo
origens, doutrinas, práticas rituais e o que considero mais
importante a relação homem/religião em meio a determinados
contextos.
Acredito que a construção deste saber, e do estudo do objeto religião,
possa ter arquétipos externos a de sua formação conceitual
ocidental. Não se trata de uma importação de outros padrões postos
em supremacia, e sim como uma percepção que pode contribuir para
495
uma analise mais próxima da especificidade, realidade e da
percepção sobre a religião.
Estes arquétipos externos seriam os costumes japoneses em lidar
com a prática religiosa, que transcendem o campo da religião
pensada e conceituada no ocidente cristão. Partido desta questão é
fundamental que se tome conhecimento destas outras
especificidades, uma delas é a Igreja Tenrikyo. Ressaltando que o
objetivo aqui não é pensar a originalidade, origens, passados ou
culturas enxergadas como estáticas, o que seria um erro. Aqui
simplesmente queremos descrever com o objetivo de informar para
se começar um processo de dialogo sem notórios estranhamentos e
desconhecimentos.
Na história religiosa do Japão, emergiram novas religiões durante
períodos de desintegração social, urbanização e guerra global (como
o período Tokugawa, as décadas de 1920 e 1930 e Segunda Guerra
Mundial). Houve um grande número de literatura americana,
europeia e japonesa sobre novos movimentos religiosos japoneses, e
o assunto pode cair em duas questões: Seu desenvolvimento
doméstico e propagação mundial. A primeira envolve uma série de
estruturas conceituais pertinentes ao nascimento e ao
desenvolvimento destes novos movimentos religiosos no Japão, e a
segunda diz respeito a sua relação com o mundo moderno e suas
transformações em outros espaços, distintos ao seu local de origem
(HUANG, 2017). Uma destas novas religiões japonesas é a Tenrikyo.
Histórico da Religião
No dia 18 de abril de 1798, em Sanmaiden, nasce Miki, condado de
Yamabe, na província de Yamato (atual prefeitura de Nara). Em
1810, ela se casou com Zenbei Nakayama de uma aldeia próxima aos
13 anos e foi encarregada de todo o trabalho doméstico da família
Nakayama em 1813. Ela deu à luz seu primeiro filho, Shuji, em 1821
e depois a cinco filhas. (ELLWOOD, 1982).
Em 1837, Shuji estava doente com dor nas pernas, e a família
Nakayama tinha Nakano Ichibei, um shugenja, praticante de um
ritual associado a uma seita de montanha, que realizava rituais de
oração para ele. No dia 23 de outubro, um encanamento (yosekaji)
foi realizado para Shuji com Miki atuando como meio espiritual,
durante o qual Deus desceu no corpo de Miki e afirmou usar Miki
como o "Santuário de Deus". Após três dias de diálogo tenso entre a
496
entidade e os membros da família, Miki Nakayama foi reconhecida
como o santuário de Deus no dia 26 de outubro de 1838 após o
consentimento de seu marido, marcando assim a fundação do ensino
(ELLWOOD, 1982).
Durante os próximos três anos, após o processo de incorporação,
Miki isolou-se em um armazém e depois começou a entregar seus
pertences e os bens da família até o final do processo de desmantelar
a construção da casa. As ações incomuns de Miki causaram
desconfiança de seus parentes e aldeões e levaram a família à
pobreza. Ela ousou quebrar alguns costumes estabelecidos e
desencadeou conflitos. Como uma maneira de evitar os confrontos,
os seguidores de Miki procuraram obter autorização oficial do
Yoshida de Shinto (Yoshida jingi kanryo) em Kyoto para que
pudessem realizar encontros em sua residência privada. Esta
autorização oficial foi concedida em 1867, mas foi posteriormente
anulada em 1870 (ELLWOOD, 1982).
Miki designou a construção do tsutome basho, lugar de realização do
serviço religioso, em 1864, e com a ajuda dos primeiros seguidores,
especialmente Iburi Izo, que era carpinteiro de profissão deu inicio
as obras (ELLWOOD, 1982). Em 1866, Miki começou a ensinar a
forma de serviço (tsutome) que deveria ser usado em seu
movimento. O serviço envolve músicas e gestos com a mão com
dança que são realizados em sintonia com as melodias de
instrumentos musicais. Este ritual viria a ser realizado em Jiba, um
espaço que Miki identificou em 1875 nas instalações da residência de
Nakayama para marcar o lugar da concepção humana original
(ELLWOOD, 1982).
Além de fazer arranjos para o ritual, Miki começou a escrever o que
mais tarde se chamaria Ofudesaki. Escrito de 1869 a 1882, o texto
contém um total de 1.711 versos em dezessete partes escritas no
estilo waka de poesia (ELLWOOD, 1982). Enquanto isso, Miki
começou a se mostrar como o santuário de Deus vestindo um pano
vermelho em 1874, e no mesmo ano ela começou a conferir de várias
formas a verdade do Sazuke (concessão divina), orações de cura para
aqueles que sofrem de doença (ELLWOOD, 1982).
Após a Restauração Meiji (1868), Miki e seu movimento entraram
em vigilância e perseguição das autoridades políticas como um
grupo religioso não autorizado, e para completar Miki sempre se
497
opôs a qualquer mudança que fosse comprometer seu ensino. Nessas
circunstâncias, Shinnosuke Nakayama, o neto de Miki que se tornou
o chefe da família Nakayama, tentou estabelecer uma igreja
independente (kyokai setsuritsu undo) em 1882. Obteve permissão
para estabelecer uma igreja sob a supervisão direta do xintoísmo em
1885, mas a autorização oficial do governo ainda não havia sido
alcançada. Em 1887, após a realização de um serviço, Miki faleceu
aos noventa anos. Na Tenrikyo, acredita-se que Miki se retirou da
vida física e ainda está viva supervisionando o movimento e
trabalhando para a salvação dos seres humanos (ELLWOOD, 1982).
Após a morte de Miki, Iburi Izo tornou-se o Honseki (pessoa que
concede o Sazuke em nome de Miki), enquanto Shinnosuke
desempenhou o papel de Shinbashira (pilar central, ou seja, o líder
espiritual e administrativo do movimento). Em 1888, o movimento
religioso obteve autorização oficial como Shinto Tenri Kyokai sob a
supervisão direta do Xintoísmo em 1888. Também em 1888, a Tenri
Kyokai publicou o Mikagura-uta (músicas do serviço), que é a
compilação das músicas ensinadas por Miki.
Como uma maneira de responder ao público e as críticas, a Tenri
Kyokai começou a fazer campanha pela independência sectária em
1899. Para atender aos critérios do governo para uma organização
religiosa legítima, o grupo desenvolveu uma organização religiosa
institucionalizada e uma doutrina sistematizada conhecida como a
“versŌo Meiji” da Tenrikyo kyoten (a doutrina da Tenrikyo), que
obedeceu ao regulamento do governo que exigia que as doutrinas
religiosas estivessem em consonância com o Shinto do Estado. Em
1908, o grupo recebeu permissão para se tornar uma organização
religiosa independente como uma das religiões reconhecidas nas
treze seitas Shinto (ELLWOOD, 1982). Depois de ganhar a
independência sectária, o grupo religioso, agora com o nome de
Tenrikyo, desfrutou de um tempo relativamente pacífico com relação
à pressão política e social sob a liderança de Shinnosuke Nakayama.
Com a oficialidade, a Tenrikyo revitalizou seus esforços de
propagação nos anos subsequentes, particularmente organizando
palestras públicas em lugares por todo o país. Como resultado dos
esforços de propagação, a Tenrikyo experimentou um rápido
crescimento nos anos que antecederam 1920, especialmente em
regiões urbanas com alto crescimento populacional devido ao fluxo
de pessoas de áreas rurais. Shozen Nakayama tornou-se o
498
Shinbashira da Tenrikyo em 1915 após a morte de Shinnosuke no
ano anterior (ELLWOOD, 1982).
Nos anos seguintes, a Tenrikyo se desenvolveu mais e estabeleceu
várias sub-organizações. Em 1925, a Escola Tenri de Línguas
Estrangeiras (Tenri Gaikokugo Gakko) foi estabelecida juntamente
com o que mais tarde se tornaria a Biblioteca Central de Tenri (Tenri
toshokan). A escola de línguas tinha como objetivo apoiar seguidores
no exterior para o trabalho missionário, que já havia começado no
final de 1890 nos países e regiões vizinhas do Japão, como Coréia e
Taiwan, bem como em regiões com imigrantes japoneses, incluindo
Hawai e Estados Unidos. A Tenrikyo também estabeleceu o
Departamento de Doutrina e Materiais Históricos (Kyogi oyobi
shiryo shuseibu), bem como instalações educacionais.
O Osashizu (uma compilação de mensagens divinas entregues
através de Iburi Iz ) e o Ofudesaki (o livro sagrado da religiŌo)
começaram a ser publicados em 1927 e 1928, respectivamente. Em
1933 e 1934, a construção do Santuário da Fundação (Kyosoden) e o
Salão do Adágio Sul do Santuário Principal (Shinden) foram
concluídos, respectivamente. Esses desenvolvimentos doutrinários e
rituais, no entanto, passaram a ser prejudicados pela iniciativa
conhecida como “adequaçŌo” (kakushin) em 1939. Para cumprir a
demanda do estado, a Tenrikyo fez várias mudanças, incluindo a
remoção de certos versos do Mikagura-Uta, além de retirar o
Ofudesaki e o Osashizu de circulação (ELLWOOD, 1982).
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 15 de agosto de 1945,
Shozen Nakayama anunciou a restauração dos ensinamentos de
Tenrikyo conforme ensinado pela fundadora. Ele restaurou o serviço
Kagura no mesmo ano e, nos anos seguintes, publicou as três
escrituras, o Ofudesaki (1948), o Mikagura-uta (1946) e o Osashizu
(1949), todas proibidas pelo governo durante a guerra. Em 1949, ele
publicou a Tenrikyo kyoten com base nas três escrituras para
substituir a versão Meiji da doutrina. Como biografia da fundadora,
ele publicou a Kohon Tenrikyo kyosoden (edição manuscrita da Vida
de Oyasama, fundadora da Tenrikyo) em 1956. Em 1953, Shozen
anunciou a construção do complexo de Oyasato-yakata (Oyasato
yakata) que rodearia o santuário em Jiba (ELLWOOD, 1982).
Com a morte do segundo Shinbashira em 1967, Zenye Nakayama,
filho de Shozen, tornou-se o terceiro Shinbashira. Sob sua liderança,
499
a Tenrikyo começou a por ênfase na educação religiosa dos membros
da igreja. Ao seguir os passos de seu antecessor que abriu um amplo
caminho para o desenvolvimento da tradição em vários campos, o
terceiro
Shinbashira
concentrou-se
principalmente
no
aprimoramento da qualidade de cada comunidade da igreja através
de seminários sobre doutrina, bem como o desempenho do serviço.
Enquanto isso, a Tenrikyo deixou a união ao Shinto definitivamente
em 1970 e depois aboliu alguns dos materiais relacionados ao
Shinto, como o himorogi (ou mais precisamente o masakaki, um par
de ramos de árvores sagradas, as roupas de seda coloridas, bem
como uma espada ritual) e Shimenawa (uma corda que marca o
espaço sagrado) em 1976 e 1986, respectivamente. Além disso, a
construção dos salões de adoração do oriente e oeste do santuário
principal foi concluída em 1984.
Em 1998, Zenye Nakayama passou a liderança o filho, Zenji
Nakayama, que agora serve como o quarto Shinbashira. Durante
esta troca de liderança, a Tenrikyo realizou dois eventos de diálogo
entre a Tenrikyo e o Cristianismo entre a Universidade Tenri e a
Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma em 1998 pela
primeira vez, e a segunda vez em Tenri, em 2002. Os dois eventos
envolveram um simpósio que reuniu acadêmicos de ambas as
universidades e alguns estudiosos externos para trocar pontos de
vista teológicos e doutrinários sobre temas comuns, incluindo
revelação, salvação, família e educação (FUSS, 2002). Em 2013,
Daisuke Nakayama, filho adotado de Zenji, tornou-se o sucessor
designado da posição da Shinbashira. Em 2014, Zenye Nakayama, o
terceiro Shinbashira, faleceu aos 80 anos.
A Tenrikyo na Amazônia
A Tenrikyo chegou ao Brasil oficialmente em 1929 com o envio de
alguns missionários, e é enquadrada dentro do grupo das novas
religiões japonesas. Dentre os primeiros missionários, estava o
primeiro primaz da Tenrikyo Brasil, o Sr. Chujiro Otake. Em 1935 foi
autorizada a fundação da primeira igreja no Brasil. Já em 1951 foi
fundada a sede missionaria da Tenrikyo do Brasil em Bauru (SP). O
reconhecimento por parte do governo brasileiro aconteceu em 1955.
A partir de 1971 se iniciou a publicação do Jornal Tenri, usado para
veicular em português a instrução religiosa e fazer divulgação as
atividades realizadas pela igreja (PEREIRA, 1992).
500
A Igreja Tenrikyo Amazônia teve sua origem nas atividades de
divulgação da Igreja-Mor de Honshiba, e foi inaugurada no dia 20 de
Agosto de 1972. O senhor Tateo Maruoka, que era o condutor do
Centro de Divulgação Amazônia e empossado como o condutor da
Igreja Tenrikyo Amazônia, faleceu um pouco antes de sua
inauguração, isso em julho de 1972. Após sua morte, seu filho Yoshio
Maruoka assumiu como o II Condutor. Atualmente, a Igreja
Tenrikyo Amazônia conta com dezoito casas de divulgação e um
centro de divulgação, situadas em diversos locais na Região Norte e
também em outras regiões do Brasil. Realiza diversas atividades
como: Divulgação de ensinamentos sócio-culturais e educativos,
implantação de escola de língua japonesa e outras atividades.
Atualmente, tem como condutor, Leonardo Maruoka, filho mais
velho do Sr. Yoshio Maruoka, que assumiu o cargo recentemente, em
novembro de 2016.
Em pesquisa recentemente realizada sobre a sonoridade japonesa e
os sentidos da prática musical (THEREZO, 2016) pude constatar
com algumas integrantes do grupo de Koto (um instrumento em
formato de prancha que tem treze cordas que são afinadas através de
cavaletes móveis) da Associação Pan-Amazônica Nipo Brasileira a
relação direta da prática musical com a prática religiosa. O grupo de
Koto em questão tem basicamente a função de divulgação da cultura
através da música, tendo por via de um instrumento musical que
remete as tradições sonoras do Japão. Porém, a fundadora do grupo
e líder do mesmo (Kuniko Maruoka) tem relação direta com o
instrumento musical em função de sua religião, a Tenrikyo, pois o
tradicional instrumento japonês faz parte das cerimônias na Igreja.
A partir do constatado comecei a pensar e investigar mais a fundo a
relação entre a prática musical e a religião.
O trabalho de campo na Tenrikyo, se iniciou com a minha
participação nas tsukinamisai (cerimonias mensais da Tenrikyo),
onde consegui manter uma boa relação com os membros daquela
instituição haja vista a minha já inserção na comunidade japonesa
há alguns anos, inclusive acompanhando o grupo de koto tocando
piano, e ainda o fato de a religião ser aberta e ter um caráter
proselitista institucionalizado.
O Mura Perpetuado
É interessante observar, que na Igreja Tenrikyo Amazônia, um grupo
típico da sociedade japonesa durante muito tempo, o mura (A
501
tradução seria vila ou vilarejos, porem pode ser utilizado com outros
sentidos semelhantes. Um grupo que é basicamente composto por
membros familiares entre si), é uma boa analogia para a organização
familiar da Igreja Tenrikyo Amazônia. Como define Kato (2012) a
sociedade japonesa tem uma tendência de viver o presente. Os
acontecimentos ocorrem no espaço de um determinado grupo. A
fronteira entre o grupo e o que está fora é latente, e a relação entre
os membros do grupo e os de fora são contrastantes. Isso não
significa que exista diretamente uma tendência de aversão a quem é
de fora na igreja, ainda mais lembrando de seu discurso proselitista
institucional. Esse contraste é na verdade indireto e ofuscado,
demostrado na utilização da língua japonesa e instrumentos típicos
japoneses nas cerimônias, além de sua ampla maioria de adeptos ser
composta de nikkeis, ou seja, de japoneses e seus descendentes. Este
pode ser o caso de outras culturas também, não sendo exclusivo da
cultura japonesa ou do caso especifico da igreja Tenrikyo Amazônia,
porém, deriva de uma tradição que é atualizada de diversas formas,
sendo parte de uma modernidade que não perde raízes. Mesmo após
a industrialização que dissolve o mura tradicional, parte daquele
senso permanece. De toda maneira, ainda sim vemos
transformações a todo momento desta realidade, mas aqui esta
questão só é lembrada para não ser acusado de não considerar as
possíveis hibridizações ou bricolagens, ou mesmo considerar a
cultura estática. Da mesma maneira a tradição não necessariamente
é um padrão inabalável, e é aí que as propostas partidas de uma
dualidade tendem a entrar em conflito interno.
Hoje ocorrem algumas transformações que são importantes a
respeito da essência desta organização da igreja, como por exemplo,
a posse do novo condutor, Leonardo Maruoka, que é filho do
fundador e missionário Yoshio Maruoka. Isso pode significar muitas
transformações a médio e longo prazo, porém, ainda seguem a
dinâmica familiar e de favorecimento do interior do grupo, sendo a
lógica do mura a constituição da vida cotidiana, com um forte senso
de integração e de uma hierarquia social conservada tanto pelos
membros como pela instituição. Por tanto a passagem de pai para
filho é no mínimo paradoxal, levando em conta o observado até aqui.
Ocorre então que o espaço constituído pela Tenrikyo ou um grupo
dentro da religião, como a Tenrikyo Amazônia, existe uma pressão
para uma adaptação a maioria. Isso é forte, apesar de as vezes
indireto, e dificulta o contato e o dialogo com o exterior da
502
instituição. Assim a visão de mundo difere segundo a cultura, logo a
religião não ultrapassa as diferenças culturais e com certeza segue
um padrão próprio em cada cultura, por mais que o discurso
incorpore aspectos aparentemente distintos a essa realidade.
O espaço da Igreja Tenrikyo Amazônia entŌo é uma “versŌo”
moderna e amazônica do mura. As fronteiras do grupo são claras e
delimitadas, de acordo com a “necessidade” abre-se ou fecha-se. Os
adeptos dentro da Tenrikyo vivem de acordo com o senso do mura.
Isso mostra uma capacidade de por o grupo e o senso da tradição em
primeiro lugar, mesmo com as suas atualizações. Inibe suas
liberdades, mas não tolhe suas transformações. Em resumo o grupo
é eficiente para atingir um objetivo, mas ineficaz de mudar de
objeto.
Assim a religião acaba por ser uma manifestação da cultura do
sagrado, e que difere segundo seus padrões próprios. Isto nos leva a
questões como: tradução religiosa; busca de significado e sentido
nestas particularidades de sagrado; contribuições para perspectivas
em colapso no ocidente; entre outras. O que pode ser considerado
classicamente nas ciências sociais como, ópio, ética normativa ou
alienação pode ter outra face, ou mesmo uma função social tão ativa
e militante quanto a sociologia de ação proposta por Bourdieu
(2007). A religião (não aquela delimita pela ortodoxia ocidental, e
sim a baseada na comutação social e ortopraxia) pode ser
libertadora. Sem a compreensão de outras mentalidades, o dialogo
torna-se impossível. Compreender é uma expressão de respeito ante
uma cultura, e que pode vir a ser uma forma de assistir e responder a
seus próprios anseios.
Referências
Vitor Moises Nascimento Therezo. Graduado em História (FIBRA),
especialista em História Contemporânea (FIBRA) e mestrando em
Ciências da Religião (UEPA). Professor na Prefeitura Municipal de
Belém, e Professor Horista da Universidade do Estado do Pará
(UEPA). vitortherezo@gmail.com.
BOURDIEU, Pierre. Pierre. A economia das trocas simbólicas.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
ELLWOOD, Robert. Tenrikyo: a pilgrimage faith. The
structure and meanings of a modern japanese religion,
Tenri, Nara, Oyasato Research Institute/Tenri University, 1982.
503
FUSS, Michael. Tenrikyo-Christian Dialogue II: Tenri
International Symposium 2002" Tenrikyo-Christian
Dialogue Religion, Education, and the Family". Tenri
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HARDACRE, Helen. "Conflict between Shugend and the New
Religions of Bakumatsu Japan." Japanese Journal of Religious
Studies, 1994.
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new religion in the UK - Tenrikyo. Cogent Social Sciences,
2017.
KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012.
PEREIRA, Ronan. Alves. Possessão por espírito e inovação
cultural: a experiência religiosa das japonesas Miki
Nakayama e Nao Deguchi. São Paulo: Aliança Cultural BrasilJapão - Massao Ohno, 1992.
THEREZO, Vitor Moises Nascimento. A Sonoridade Japonesa
em Belém. Mudanças nos Sentidos da Prática Musical e
Resistência Cultural no Contexto Imigratório do PósGuerra. Trabalho de conclusão de especialização (FIBRA), Belém,
2016.
504
OS MANGÁS COMO METODOLOGIA LÚDICA NO
ENSINO-APRENDIZAGEM
Wallysson Klebson de Medeiros Silva
Camila Teixeira de Carvalho Dias
Atualmente, o número de estudos desenvolvidos a respeito do lúdico
como metodologia empregada, para melhorar o ensino
aprendizagem do aluno, tem crescido satisfatoriamente. Isso se deve
pela relevância que a temática apresenta. Sendo assim, a finalidade
do presente trabalho corresponde a de abordar a relevância do
ensino lúdico por meio de mangás como material didático.
Mangá é uma palavra de origem japonesa que surgiu da junção de
dois vocábulos: “man” (involuntário) e “gá” (desenho, imagem),
referindo-se à história em quadrinhos. O vocábulo surgiu com base
nos trabalhos do artista de ukiyo-e Katsushika Hokusai, que
elaborou o Hokusai Manga, uma coleção de livros com ilustrações
em 15 volumes. Atualmente, os mangás consolidam-se como
fenômeno contemporâneo, devido a sua narrativa visual impressa
típica, com foco na sociedade japonesa (Vasconcellos, 2006).
Deste modo, esse artigo tem como objetivo mostrar como os mangás
podem ser usados para potencializar a aprendizagem do aluno no
ensino da história.
As principais características de um mangá que diferem dos
quadrinhos ocidentais são as representações gráficas, os ideogramas
que consistem em sons e ideias. Os traços dos desenhos são
peculiares, com olhos exagerados e corpos esguios. Outro ponto é ter
até quatro quadros em uma só página. Além disso, o sentido da
leitura do mangá é diferente do ocidental, pois começa do fim e
termina do início da nossa tradicional leitura, como mostrado da
figura. Gravett (2006) e Luyten (2005) relatam ainda que o
planejamento é primordial, haja vista o caráter corriqueiro no
período de publicação, por serem feitas pesquisas de opinião para
saber se a história está sendo bem recebida pelo público.
505
Fonte: Elaboração própria
No Brasil, os títulos mais conhecidos são: Astro Boy (Tetsuwan
Atomu, no original), Kimba, o Leão Branco (Jungle Taitei) e A
Princesa e O Cavaleiro (Ribbon no Kishi), que ajudaram a
popularizar os mangás no país. Os mangás podem ser delimitados
conforme seu público alvo, para garotas adolescentes (shoujo
mangá), cujo foco é a delicadeza nos traços, ao contrário dos
shounen mangá para os garotos, no qual os traços são carregados e
com foco em cenas de ação (Vasconcellos, 2006). O mangá também
é base de animes de sucesso no Brasil, como Cavaleiros dos zodíacos,
Dragon Ball e Sakura Card Captors.
No japão, os mangás são utilizados como principal ferramenta no
ensino aprendizagem, desde a infância, pois ajuda na compreensão
das palavras, devido à dificuldade que a língua por si só apresenta.
Desta forma, os mangás proporcionam uma capacidade para
desenvolver o raciocínio visual maior do que a da escrita alfabética
romana (Vasconcellos, 2006).
De acordo com Gravett (2006, p. 123) “os mangás de conteúdo
educativo não são um fenômeno recente no Japão. O primeiro
mangá didático data de 1939 [...]. Desde então, o mangá tem seu
lugar nas aulas e é válido transformar qualquer assunto em
quadrinhos: desde cursos de matemática e história até biografias de
personagens famosos e adaptações de obras literárias”. A partir
disso, ocorreu uma consolidação no mercado, fazendo com que
diversos livros didáticos fossem adaptados para mangás, tornandose eficaz no ensino japonês.
Portanto, os mangás, como qualquer produção cultural, possuem
historicidade, do mesmo jeito que pode ser objeto de investigação e
506
estudo no ensino da história. Na sala de aula, os mangás podem ser
estratégicos para potencializar o ensino aprendizagem.
No ensino da história, o melhor mangá para ser trabalhado são os
intitulados jidai mono mangá (mangá de relato histórico), no qual
apresenta figuras ou eventos históricos de maneira lúdica, por meio
de representações através de desenhos, relatando os eventos
ocorridos historicamente (Vasconcellos, 2006).
O mangá “Gen Pés Descalços” de Keiji Nakazawa, baseia-se nas
experiências do próprio autor, relatando a história de um
sobrevivente do ataque nuclear em Hiroshima, expondo as
relutâncias ocorridas na guerra e seus desafios. O mangá também
destaca como os lideres manipulavam a população, fazendo-nos
refletir de maneira diferente (Nakazawa, 2011).
Enquanto que o mangá “Hiroshima – a cidade da calmaria” de
Fumiyo Kouno, tem como plano de fundo o final da segunda guerra
mundial, destacando as bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki.
O mangá relata a vida de uma sobrevivente após o ataque,
mostrando as consequências e perdas de maneira afetuosa (Kuono,
2011).
Já o mangá “Zero Eterno” de Naoki Hyakuta e Souichi Sumoto, traz
de forma didática a segunda guerra, sob as compreensões atuais. O
mangá se inicia perante os questionamentos do protagonista,
interrogando os valores da sociedade para compreender a vida e
escolhas feitas pelo seu avô, que foi piloto de um caça na guerra do
pacífico (Hyakuta; Sumoto, 2015).
O mangá “Hetalia Axis Powers” de Hidekaz Himaruya destaca os
acontecimentos da segunda guerra mundial, na visão dos países do
eixo: Japão, Alemanha e Itália, mostrando desde a história antiga até
a primeira guerra mundial, sendo fundamentados fielmente os
acontecimentos nesse período (Himaruya, 2012).
Outros mangás que podem ser utilizados no ensino da história é
“Adolf”, “1945”, “Who Fighter e o coraçŌo das trevas” e “El Alamen”,
no qual abordam histórias adaptadas antes e durante a segunda
guerra mundial. Já os mangás “Vinland Saga” relata o período que a
Inglaterra tinha controle sobre a Dinamarca, “Versailles no Bara”
trata sobre a revoluçŌo francesa e “Gate 7” no qual mostra fatos
507
históricos ocorridos no oriente. Esses temas podem ser ensinados
desde o ensino fundamental ao ensino médio (Brasil, 2017).
Vale ainda ressaltar que, além do jidai mono, os mangás
proporcionam ao professor explorar temas históricos e
transdisciplinar, relacionados à pintura, teatro e artes, pois estão
presentes em quase todos os mangás, sendo uma das características
dos contos japoneses.
Deste modo, podemos dizer que um mangá é considerado um
material lúdico, já que proporciona uma maneira diferente de
aprendizado, através de uma linguagem diferenciada, permitindo ao
aluno vivenciar as histórias e contexto histórico do personagem ali
inserido.
Mediante a compreensŌo de “lúdico” defendido por Huizinga
(2000), o mesmo acredita que seja necessário ter caráter espontâneo
e não associado a um fazer produtivo, não devendo ser aplicado na
escola com finalidade didática e pedagógica, tendo em vista que,
pelo menos na teoria a finalidade está associada ao alcance de alguns
objetivos propostos, sendo um instrumento de aprendizagem
realizado para garantir um melhor desenvolvimento dos alunos, no
que se tange o conteúdo ali aplicado.
De acordo com Kishimoto (2011) o uso de atividades lúdicas no meio
escolar expressa um fator relevante para que se atinja uma
aprendizagem mais significativa. Deste modo, através dos mangás
em junção com o ensino lúdico, o educando pode melhorar a sua
afetividade, desenvolver ações sensório-motoras e vivenciam, de
forma ativa, os aspectos de participação e interação social, que são
justamente fatores que favorecem o bom desenvolvimento e uma
melhor aprendizagem. Assim, o mangá pode ser utilizado com
dimensão educativa, com o objetivo de favorecer a aprendizagem,
desde que exista um planejamento do professor.
Maluf (2008, p. 41) “propõe uma nova postura existencial, cujo
paradigma é um novo sistema de aprender brincando inspirado
numa concepçŌo de educaçŌo para além da instruçŌo”. Dessa
maneira, o lúdico rompe com abordagens tradicionais de ensino,
buscando alternativas mais dinâmicas para auxiliar no processo de
ensino- aprendizagem.
508
A partir do desenvolvimento desta pesquisa, tornou-se possível
aprofundar conhecimentos acerca da relevância do uso dos mangás
para o ensino aprendizagem. Cabe dizer, que é necessário que o
professor atue de uma maneira bastante intensa, motivando seus
alunos. Quanto à escola, necessita-se de uma maior disponibilidade
de treinamentos, capacitações direcionadas ao ensino lúdico,
entendendo o quão proveitosa essa utilização pode ser na
aprendizagem do educando. Assim, os conhecimentos e forma
diferenciada que o mangá proporciona ao educando, promovendo o
aprendizado mais significativo.
Além disso, uma boa alternativa para que os pais dos alunos se
sintam seguros em relação a esse método de aprendizagem é que a
escola integre os mesmos em algumas atividades desenvolvidas na
escola, convidando-os, para que possam ter contato com o método
de ensino e verificar com seus próprios olhos os benefícios que
podem apresentar. Outra maneira, para solidificação do uso dos
mangás vem ocorrendo na cidade de São Vicente, em São Paulo,
onde a prefeitura, vem publicando desde 1998, mangás para serem
utilizados em sala de aula.
Referências
Wallysson Klebson de Medeiros Silva é Historiador, Economista e
atualmente estuda mestrado acadêmico em Energias Renováveis
pela Universidade Federal da Paraíba. Mail: wallyssonk@gmail.com.
Camila Teixeira de Carvalho Dias é Docente do Centro Universitário
de João Pessoa e Mestre em Ciências da Educação. Mail:
camilatcs2@gmail.com.
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http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.p
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(Mestrado em Design) - Departamento de Artes & Design, Pontifícia
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YUKIMURA, Makoto. Vinland Saga. São Paulo: Panini, 2014.
510
UMA REALIZAÇÃO:
LAPHIS
Laboratório de Aprendizagem Histórica, UNESPAR
LEITORADO ANTIGUO, UPE
PROJETO ORIENTALISMO
511