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UNESCO, Yoga e Mahãbhãrata: História e Patrimônio Cultural Imaterial da Índia

2017, BUENO, André et alii (Orgs.) Vários Orientes.

This chapter deals with Yoga and its seal as intangible cultural heritage by UNESCO in 2016.It deals with the History of the East and its historiography regarding the culture and practice of Yoga.

1 BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO, José Maria [orgs.] Vários Orientes. Rio de Janeiro/União da Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017. ISBN: 978-85-65996-49-5 Disponível em: www.revistasobreontens.site 2 ÍNDICE RAÍZES SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS DO TEATRO INDIANO Ana Beatriz Pestana Gomes, 9 INFLUÊNCIA CULTURAL JAPONESA NA PERSPECTIVA DO ANIMÊ DEATH NOTE Angélica da Cruz Bernardo & Lúcio Reis Filho, 15 REFLEXÕES E REPRESENTAÇÕES DA ÁSIA E SUA (NÃO) UTILIZAÇÃO EM ESPAÇO ESCOLAR Ary Albuquerque Cavalcanti Junior & Ítalo Nelli Borges, 25 FONTE DE VIDA: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE DE UMA FONTE CRISTÃ PRODUZIDA NA ÍNDIA MOGOL NO FIM DO SÉCULO XVI Bruna Soalheiro, 33 A SOCIEDADE JUDAICA DO PRIMEIRO SÉCULO E O DOMÍNIO ROMANO Bruno da Silva Ogeda, 43 AS FILIPINAS, O MUNDO ASIÁTICO E A COLONIZAÇÃO ESPANHOLA, SÉCULO XVI Carlos Guilherme Rocha, 53 EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS E DIVULGAÇÃO DA ARTE CHINESA Caroline Pires Ting, 65 HISTÓRIA DA ÁSIA E INTERDISCIPLINARIDADE NA EDUCAÇÃO BÁSICA: UM DUPLO DESAFIO Cyanna Missaglia de Fochesatto, 71 “ESMAGUEM OS QUATRO ANTIGOS”: A REVOLUÇÃO CULTURAL PROLETÁRIA NA CHINA Daniele Prozczinski, 77 HISTÓRIA E ANIMES: A UTILIZAÇÃO DE ANIMES PARA O ENSINO SOBRE HISTÓRIA DO JAPÃO Débora Dorneles Uchaski, 87 BREVE ESTUDO DO JAPÃO EDO: PODER E LEI NOS GOVERNOS DO XOGUNATO TOKUGAWA (1603-1868) Diego Almeida de Sousa, 97 JAPONESES NO BRASIL: UMA ANÁLISE HISTÓRICA Douglas Augusto da Silva, 107 O NASCIMENTO DA JAPONOLOGIA Edelson Geraldo Gonçalves, 115 3 EDUCANDO UM IMPÉRIO: UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTEXTO HISTÓRICO EDUCACIONAL CHINÊS Elois Alexandre De Paula, 125 O JAPÃO E O OLHAR SOBRE O “OUTRO”: O NEGRO EM PERSPECTIVA Felipe Adriano Alves de Oliveira, 133 O COLÉGIO DE SÃO PAULO EM GOA: NOTAS PRELIMINARES SOBRE CIÊNCIA, CURRÍCULO E ORGANIZAÇÃO Felipe Augusto Fernandes Borges & Saulo Henrique Justiniano Silva, 141 DO EXTREMO ORIENTE AO NOVO MUNDO: CAMINHOS DA INTERCULTURALIDADE NA MISSIONAÇÃO JESUÍTA PORTUGUESA (SÉC. XVI E XVII) Fernando Roque Fernandes, 153 ENTRE COLÔNIA, GUERRA INTERNA E DIVISÃO DO PAÍS: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO DA CORÉIA NO SECULO XX Flávio Moisés Soares, 163 “POVO SEM HONRA, COVARDES, BRUTAIS E CRUÉIS”: REPRESENTAÇÕES DOS JAPONESES NO JORNAL PARAENSE FOLHA VESPERTINA (1942-1945) Geraldo Magella de Menezes Neto Victor Lima Corrêa, 171 RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE ORIENTAIS NA REDE ADVENTISTA: A ABORDAGEM SOBRE ÍNDIA E CHINA EM LIVRO EDITADO PELA CASA PUBLICADORA BRASILEIRA Gustavo Uchôas Guimarães, 181 A LITERATURA BRASILEIRA E O ORIENTE: ENTRE A OJERIZA E A APROPRIAÇÃO Heraldo Márcio Galvão Júnior & Arcângelo da Silva Ferreira, 187 O POEMA DE PENTAUR: RAMSÉS II E A BATALHA DE KADESH Isaias Holowate & Naton Joly Botogoske, 195 FRANCISCANOS NO EXTREMO ORIENTE: REPRESENTAÇÕES DO MUNDO MEDIEVAL EM RELATOS DE VIAGEM Israel da Silva Aquino, 205 UNESCO, YOGA E MAHÃBHÃRATA: HISTÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA ÍNDIA Janaina Cardoso de Mello, 215 EXTREMO ORIENTE: DOIS OLHARES PARA O VAZIO Jienefer Daiane Marek, 225 4 O IMPÉRIO ASIÁTICO PORTUGUÊS: UMA PERSPECTIVA HISTORIOGRÁFICA Jorge Lúzio, 235 EM BUSCA DOS „CHINS‟ Kamila Rosa Czepula, 243 “MUÇULMANOS X CRISTÃOS”: A CRIAÇÃO DO INIMIGO DA AL-QAEDA E A EDUCAÇÃO PARA O ÓDIO Katty Cristina Lima Sá, 253 REFLEXÕES SOBRE O RELATO DE UM VIAJANTE BRASILEIRO AO EXTREMO ORIENTE NO SÉCULO XIX: DA FRANÇA AO JAPÃO DE FRANCISCO ANTONIO DE ALMEIDA Kelly Yshida, 263 ELEMENTOS DO XINTOÍSMO DE ESTADO NAS ESCOLAS JAPONESAS (1890) Leonardo Henrique Luiz, 271 MAVO: O MODERNISMO E A POLÍTICA NO JAPÃO DO SÉCULO XX Leonardo Souza Alves, 281 O CÓDIGO DE HAMURABI: O IMPERADOR, SUA OBRA E O DIVÓRCIO NA ANTIGUIDADE Lucimara Andrade da Silva & Luana Aparecida da Silva, 289 O QUANTO DE ÁRABE HÁ EM NÓS? Luciano dos Santos Ferreira, 299 A ÉTICA ECONÔMICA BUDISTA E O ESPÍRITO CAPITALISTA JAPONÊS Luís Henrique Palácio da Silva, 309 O TIANZHU SHIYI, OU O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO SENHOR DO CÉU: COMENTÁRIOS SOBRE SUA NATUREZA E IMPACTO Luiz Felipe Urbieta Rego, 317 O ORIENTE MÉDIO ATRAVÉS DO CINEMA: DIÁLOGOS A PARTIR DAS REPRESENTAÇÕES PRODUZIDAS NOS ESTADOS UNIDOS Maicon Roberto Poli de Aguiar, 325 O OCIDENTE PELO ORIENTE: A REPRESENTAÇÃO DA SEGUNDA GUERRA PÚNICA NO MANGÁ “HEUREKA”, DE HITOSHI IWAAKI Maria Carolina Silva Martins Pereira & Pedro Antonio de Brito Neto, 335 A CONSTRUÇÃO DOS 47 RONIN COMO SÍMBOLO NACIONALISTA Mariana Steiner Farias, 345 5 OS FESTIVAIS EGÍPCIOS: MITO, MAGIA E RELIGIOSIDADE Maura Regina Petruski, 355 PIRATAS JUDEUS NA ANTIGUIDADE Nelson Rocha Neto, 363 OLHARES CRUZADOS: JAPÃO E PORTUGAL Newton Ribeiro Machado Neto, 371 O ORIENTALISMO E AS REPRESENTAÇÕES DO EGITO ANTIGO EM 'AGE OF MYTHOLOGY' Pepita de Souza Afiune & José Loures, 385 MITANI: O REINO PERDIDO Priscila Scoville, 399 REPRESENTAÇÕES DA RAPOSA NA LITERATURA MARAVILHOSA MEDIEVAL: UMA COMPARAÇÃO ENTRE O IMAGINÁRIO EUROPEU E O JAPONÊS Raphaella Ânanda Sâmsara Maia Augusto de Souza Faria, 409 A INFLUÊNCIA GEOGRÁFICA NA DEFINIÇÃO DA GUERRA NAVAL RUSSOJAPONESA (1904-1905) Rayanne Gabrielle da Silva, 415 INTERVENÇÃO DO PIBID DE HISTÓRIA: O JAPÃO NA SALA DE AULA Renan Lourenço da Fonseca, 425 “MIMOS INDIANOS” E “DELÍCIAS DA ÁSIA”: UM DEBATE SOBRE O IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI Ricardo Hiroyuki Shibata, 431 RELEITURAS DO PERÍODO “MUROMACHI BAFUKU” ATRAVÉS DO FILME OS SETE SAMURAIS Rodrigo Galo Quintino, 439 O PROJETO DE NAPOLEÃO BONAPARTE PARA O EGITO: CONSIDERAÇÕES SOBRE ORIENTALISMO Rodrigo Henrique Araújo da Costa, 451 LITERATURA COMO ABORDAGEM DO PASSADO: DEFESA DA TRADIÇÃO JAPONESA NO ENSAIO EM LOUVOR DA SOMBRA DE JUN‟ICHIR TANIZAKI Ronny Costa Pereira, 463 ALÉM DA GUERRA E RADIAÇÃO - UMA ANÁLISE DA HISTÓRIA ANTIGA DO JAPÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO DAS ESCOLAS ESTADUAIS DE MEDIANEIRA NO PARANÁ Sander Fernando de Paula, 471 6 ENTRE RASTROS: PISTAS SOBRE UMA PRÁTICA RITUAL DO CULTO DA DEUSA INANNA Simone Aparecida Dupla, 477 O SOCIAL DARWINISMO OCIDENTAL E O PROGRESSO JAPONÊS Tiago Tormes Souza, 487 A IGREJA TENRIKYO AMAZÔNIA: A HISTÓRIA E A CULTURA DA RELIGIÃO Vitor Moises Nascimento Therezo, 495 OS MANGÁS COMO METODOLOGIA LÚDICA NO ENSINO-APRENDIZAGEM Wallysson Klebson de Medeiros Silva & Camila Teixeira de Carvalho Dias, 505 7 8 RAÍZES SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS DO TEATRO INDIANO Ana Beatriz Pestana Gomes Nesse breve ensaio pretende-se apresentar um panorama sociocultural e político da História do Teatro Indiano perpassando o teatro sânscrito, o teatro moderno no século XIX e o teatro político no século XX. No âmbito do teatro sânscrito, será apresentada a sua história, a dos poetas que escreveram os grandes poemas épicos indianos e o Natyashastra. Sobre o teatro moderno será apresentada a influência inglesa na arte teatral indiana no século XIX, assim como, o teatro em defesa da cultura nacional. Serão também apresentadas as tensões de natureza sociocultural e política que influenciaram a arte teatral nas quatro primeiras décadas do século XX e após a independência do país. A Índia recebeu diversos povos em seu território ao longo da sua História e vivenciou assimilações advindas de diversas culturas (grega, turca, persa, portuguesa, francesa, inglesa e outras), o que a caracteriza como uma “colcha de retalhos” da história e riquíssima no âmbito cultural, artístico, religioso, linguístico, de tradições e etc. O teatro indiano ao longo da sua história também vem sendo agraciado e caracterizado por todas essas culturas que passaram e deixaram as suas contribuições artísticas pelo país. As raízes do teatro indiano são originárias de rituais religiosos e de eventos sociais que tiveram as suas primeiras manifestações artísticas em festivais realizados em templos, vilarejos, aldeias e etc. Inicialmente as manifestações performáticas eram danças com músicas em saudação a deuses (exemplo: saudação a Shiva e a Ganesha). Com o passar do tempo, estas manifestações se desenvolveram e ganharam a forma de espetáculos com narrativas dramáticas que fizeram parte do teatro sânscrito. O teatro sânscrito pode ser analisado através do âmbito popular e clássico. O teatro popular se formou de maneiras distintas em cada região da Índia e contempla diferentes estéticas artísticas que contribuem até hoje para o enriquecimento da diversidade cultural e teatral indiana (VYAS, 2008). Algumas características marcam o teatro popular, como por exemplo: a apresentação em locais públicos, à associação a multidões, a presença de narrativas que 9 retratam temas cotidianos e a utilização de linguagem direta e de fácil assimilação (BANERJEE, 2011). O teatro de bonecos, por exemplo, é uma antiga tradição do teatro popular indiano, em que através de temas mitológicos, históricos e sociais são apresentadas distintas características regionais da cultura indiana (BANERJEE, 2011). São algumas formas de teatro popular existentes até hoje: o Khyal, o Maach, o Nautanki e o Swang. A forma clássica do teatro sânscrito se desenvolveu com a integração de formatos artísticos advindos de rituais folclóricos e rituais religiosos. Alguns dos maiores escritores do teatro sânscrito clássico foram: Bhasa, Kalidasa, Bhavabhuti e Vishakhadatta (VYAS, 2008). São manifestações de teatro clássico: o Kutiyattam, o Krishnattam, o Koodiyattam, o Theyyam, o Kathakali e muitas outras. O teatro clássico indiano também continua até hoje a ser encenado na Índia em diferentes regiões que o realizam de acordo com as especificidades culturais e linguísticas de cada região. O período de prosperidade do teatro indiano sânscrito perdurou até as incursões árabes, período em que a cultura indiana antiga foi se transformando e a ela foram sendo integradas diferentes tradições artísticas. (BANERJEE, 2011). O Natyashastra é uma obra muito importante para a história do teatro indiano e até hoje é uma fonte de inspiração para diretores de teatro, dramaturgos, atores, dançarinos, músicos e artistas das artes performativas (BANERJEE, 2011). Natya remete a drama e Shastra remete a escritura, manual, assim, o Natyashastra seria um manual para o drama indiano, que na estética artística hindu contempla o teatro, a dança e a música. A sua origem é considerada sagrada, o livro teria sido criado oralmente na última década antes do início do calendário cristão e posteriormente teria sido escrito. Acredita-se que a sua composição é originária dos Vedas, a poesia do Rig Veda, os sons do Sama Veda, os gestos do Yajur Veda e os sentimentos do Atharva Veda (NAG, 2013). Escrito na estrutura de uma resposta que Bharata fornece a sábios que solicitam que ele os explique sobre a importância de Natya, como ela surgiu, sobre o que ela deve tratar, e para quem ela foi feita, Bharata os responde detalhadamente sobre a arte do drama indiano, que seria importante para educar e inspirar aqueles que não podiam ler ou compreender os conteúdos presentes nos quatro vedas (SCHECHNER, 2001). 10 Os poetas sânscritos desenvolveram o material criativo dos épicos, lendas, histórias e mitos que formaram a base textual do teatro sânscrito representados até os dias atuais na Índia. Alguns dos mais importantes foram: Kalidasa, um dos escritores clássicos mais famosos da Índia, Valmiki, o primeiro escritor do Ramayana e Vyasa, o autor do Mahabharata (VYAS, 2008), dentre outros. O teatro moderno indiano foi inaugurado pela presença inglesa na Índia e a sua gradual influência no teatro indiano desde o século XVIII e principalmente a partir do século XIX. Este teatro ocidentalizado acabou se desenvolvendo com maior intensidade nas regiões em que a presença inglesa era mais significativa, como Calcutá (NAG, 2013). Pouco a pouco o teatro britânico foi afirmando a sua força e o teatro indiano ganhou novas criações, estruturas arquitetônicas, começou a utilizar o palco italiano, experimentou novas técnicas de luz, cenografia, atuação e outras inovações (AHUJA, 2012). Inicialmente as criações teatrais (nos moldes ocidentais) no século XIX eram restritas aos oficiais ingleses, entretanto, aos poucos elas foram se expandindo aos letrados e à classe alta indiana desejosa por arte e cultura do Ocidente. Criações shakespearianas foram utilizadas como forma de afirmar a cultura inglesa frente à indiana e Calcutá foi crucial para o desenvolvimento do colonialismo cultural. No final do século XIX, o rumo do teatro indiano começou a mudar com criações repletas de conteúdos políticos, que denunciavam opressões sofridas pelo povo indiano e defendiam ideais nacionalistas (SINGH, 2013). Assim, o teatro político indiano foi florescendo a partir de tensões sociais de natureza política, sendo os abusos realizados pela Coroa Britânica e pela classe alta indiana contra o povo os seus maiores impulsionadores (BANARJEE, 2013). Nil Darpan (The Indigo Planting Mirror) (MITRA, 1861), por exemplo, denunciou as injustiças do desumano sistema de exploração dos agricultores de índigo de Bengala e retratou as suas insatisfações e aspirações por melhores condições de vida. Em um período em que o teatro apresentava em cena os interesses da classe privilegiada indiana, esta peça denunciou a falta de humanidade dos colonizadores no relacionamento com os agricultores e se tornou um marco para a História do teatro político indiano. Após esta peça muitas outras 11 foram escritas e encenadas como forma de protesto social, sendo muita delas censuradas. No século XX, a manifestação teatral política indiana intensificou-se a partir da década de 1930 sob a influência de ideais revolucionários que chegavam ao país através de indianos que saíam para estudar e explorar outras culturas e estruturas socioculturais e políticas. A Índia encontrava-se imersa em um contexto sociopolítico repleto de movimentos civis que defendiam diversificados interesses do povo, como por exemplo: a Indian Progressive Writer’s Association e a Indian People's Theatre Association (IPTA), que lutaram contra o imperialismo e o fascismo (BHATIA, 1997). A IPTA foi criada por artistas ativistas que tinham o intuito de integrar o teatro aos demais movimentos nacionalistas na luta contra a calamidade instalada no país devido a sanções da Coroa britânica aos movimentos de emancipação, as consequências da Segunda Guerra Mundial, a crise de fome de Bengala, dentre outros fatores (AGRAWAL, 2013). Este movimento cultural marcou a história do teatro político indiano e serviu de base para muitos outros grupos de teatro político que surgiram no país posteriormente. Após a independência da Índia em 1947 e a instauração do governo nacional, muitas contradições sociopolíticas eclodiram, desapontando ideologicamente os movimentos revolucionários que lutaram pela independência e por uma ideia de nação igualitária nas décadas de 1930 e 1940. Diversos movimentos de teatro político se enfraqueceram nos moldes em que eram realizados até então, precisaram reformular as suas estratégias de atuação e continuaram a praticar a arte teatral em prol da superação de desafios sociais, econômicos, culturais e políticos, como por exemplo: transformar a opressão do pensamento sofrida em expressão do pensamento indiano, transformar a imposição da língua e da cultura do dominador em afirmação das línguas e das culturas do país, fortalecer a democracia do país, transformar as políticas de dominação em políticas de bem-estar, transformar a ideologia da castração para a de humanização, e muitas outras questões (KUMAR, 2014). Atualmente muitos profissionais do teatro indiano continuam trabalhando em prol do seu desenvolvimento em diálogo com a multiplicidade das riquezas locais, dos mitos, épicos, lendas, danças, da espiritualidade e etc. 12 A presente comunicação chega ao seu fim concluindo que a História do Teatro Indiano é riquíssima artística, cultural e politicamente, e que o que se entende hoje por Teatro Indiano é produto de milhares de anos de história e de influências de diferentes povos e culturas que ajudaram a construir o território das tradições artísticas do país. Assim, para compreender com profundidade a diversidade do teatro indiano é preciso ter em mente inúmeros fatores (diferentes crenças, castas, rituais, contingencias sociopolíticas, culturais e econômicas, etc.), pois desta maneira é possível realizar os mergulhos intelectuais necessários para o entendimento das nuances artísticas encontradas nas diferentes regiões da Índia. Referências Ana Beatriz Pestana é doutoranda em História Política (PPGH Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e mestre em Filosofia (Universidade de Lisboa). Realiza pesquisas históricas e filosóficas sobre movimentos teatrais políticos, no doutorado investiga o Teatro Político Indiano e no mestrado investigou o Teatro Político Alemão. Atualmente é pesquisadora do Programa de Estudos Indianos da UERJ e membro do conselho editorial discente da revista Dia-Logos do PPGH da UERJ. Orientador de Tese (PPGHUERJ): Professor Dr. Edgard Leite Ferreira Neto. E-mail: anabeatrizpestana@gmail.com AGRAWAL, B. IPTA‟s Contribution in Awakening Nationalism. The Criterion. Maharashtra, v. 4, 2013, p. 1-5. BANARJEE, A. Evaluating the role of street theatre for social communication. Global Media Journal - Indian Edition. Calcutta, v. 4, n. 2, 2013, p. 1-18. BANERJEE, U. K. Luminous Harmony: Indian Art And Culture. New Delhi: Niyogi Books, 2011. BHATIA, N. Staging Resistance: The Indian People‟s Theatre Association. In: Lisa Lowe and David Lloyd (editors). The Politics of Culture in the Shadow of Capital. USA: Duke University Press, 1997, p. 432-460. KUMAR, B. Decolonizing the Indian Theatre. Language in India – Strengh for Today and Bright Hope for Tomorrow. Uttar Pradesh, v.: 14:4, 2014, p. 42-55. MITRA, D. Nil Darpan or The Indigo Planting Mirror. Translated by James Long. Calcutta: Calcutta Printing and Publishing Press, no. 10, 1861. 13 NAG, B. Role of theatre and folk media in promoting social development. Global Media Journal- Indian Edition. Calcutta: Winter Issue, v. 4, n. 2, 2013, p. 1-23. SCHECHNER, R. Rasaesthetics. The Drama Review. New York: The New York University, v. 45, issue 3, 2001, p. 27-50. SINGH, M. Theatre and the making of Indian Nationalism during the colonial period. Periodic Research. Uttar Pradesh: v. II, issue August, 2013, p. 204-209. VYAS, R. Incredible India. Ahmedabad: Akshara Prakashan, 2008. 14 INFLUÊNCIA CULTURAL JAPONESA NA PERSPECTIVA DO ANIMÊ DEATH NOTE Angélica da Cruz Bernardo Lúcio Reis Filho O presente artigo analisará o animê Death Note (Tetsuro Araki, 2006-2007), observando os elementos que compõem seu enredo, bem como temas filosóficos que dialogam com as três religiões presentes no Japão: cristianismo, budismo e xintoísmo. Será alvo de investigação também a história do animê e seu impacto sobre a população japonesa e global. Será traçado também um breve panorama sobre outros animês que dialogam com a filosofia. Animê e cultura japonesa Animê é um termo utilizado no Japão para designar todo e qualquer tipo de animação, sendo esta de origem ocidental ou oriental. Já no ocidente este termo é usado difusamente e exclusivamente para se referir as animações provenientes do JapŌo. “Até a ocupaçŌo norteamericana, os desenhos animados no Japão eram em geral chamados de dogã (...)” (SATO, 2005, p. 31). Depois da Segunda Guerra Mundial deu-se início ao processo de ocupação dos Estados Unidos no Japão; com a interferência estadunidense, o Japão integrou e adaptou ao seu vocabulário algumas palavras de origem inglesa. Podemos recorrer ao exemplo da palavra animê, que é uma derivação da palavra inglesa animation. (SATO, 2005, p. 32) O animê, uma importante manifestação da cultura japonesa, converteu-se em um importante símbolo da identidade nacional. Uma dissidência fulcral entre animês e desenhos animados corresponde na característica que o animê é um desenho com narrativa seriada que se deve assistir em sequência para que se possa entender o desenrolar da trama a história e seu desfecho; já o desenho animado ocidental é comumente caracterizado por episódios autônomos, ou seja, cada qual conta uma história e resolve, em si mesmo, o problema apresentado; logo, os episódios são independentes uns dos outros e não constroem uma cronologia. O animê contém traços idiossincráticos se comparado ao desenho animado: principalmente a estética da ilustração, mas, acerca desses elementos, devem ser levados em consideração o estúdio de animação o diretor, o artista do mangá – história em quadrinhos proveniente do Japão – se for inspirado em mangá; a própria 15 temática do animê é bem característica, de acordo com Morell os temas discorrem sobre: “existencialismo, violência, humanidade, humanidade, problemas psicológicos ou mesmo sexo, além de outros temas mais típicos como o amor, a açŌo ou a fantasia.” (MORELL, 2013, p. 13) Para reforçar seu caráter audiovisual, sua natureza estética e apresentação gráfica, o animê conta com uma abertura e um encerramento. Ambos apresentam uma prévia, uma espécie de trailer com as principais cenas do episódio, e acompanhamento musical de fundo. Geralmente, no meio de cada capítulo é exibido um fotograma, este em estrita relação com o mesmo, demarcando a metade do capítulo. O animê se tornou um importante produto do mercado interno japonês e um produto de exportação largamente difundido em outros países. Não somente o animê virou um produto do mercado, os personagens, símbolos, brinquedos e outros recursos invadiram lojas do mercado que atraem aos fãs colecionadores mais dedicados do gênero. O consumo de mangá e animê, e outros produtos originários do Japão, faz com que fãs, apreciadores, ou mesmos os otakus busquem aprender a cultura japonesa e, ou até mesmo a própria língua japonesa. O termo Otaku, foi criado no Japão para designar “um indivíduo que vive „fechado em um casulo‟, isolado do mundo real e dedicado a um hobby.” (NAGADO, 2005, p. 55). Este termo foi ressignificado dentro da cultura brasileira, e atualmente é designado para se referir aos fãs de animê e mangá. Em pesquisa recente divulgada pela provedora de conteúdo via streaming Netflix, durante evento Anime Slate 2017, em Tóquio, o Brasil foi considerado um dos maiores consumidores de animê no mundo, junto com México, Peru e Itália. “Os cerca de 400 estúdios existentes por lá produzem mais de dois mil episódios por ano, gerando bilhões de dólares com a transmissão dentro e fora do país, exportando séries para todos os continentes.” (ZAGO, 2012, pág. 43) Isso não garante apenas um lucro exorbitante para empresas japonesas desse ramo, mas também a consolidação da rápida difusão da cultura, mitologia e costumes japoneses através das mídias, ou seja, que é um elemento que comprova o poder da cultura e da indústria japonesa. Resultando que novos adeptos entrem em 16 contato com essa cultura e a propagação do conteúdo moral e ético que é difundido nos animês e mangás e contaminam seu público. A trilha sonora é um elemento que complementa a história do animê, e ajuda a enriquecer e aumentar a sua propagação. A cultura de fãs mostra devoção para com a trilha sonora de seus animês favoritos. No Brasil, alguns hits de animê embalaram gerações que cantam energicamente Pegasus Fantasy, de Cavalheiros do Zodíaco, interpretada na sua versão brasileira pelo cantor Edu Falaschi, um dos expoentes da cena nacional de heavy metal; a trilha de abertura do Dragon Ball; “Quero mudar o mundo”, do animê InuYasha, etc. As músicas de animês dos anos 90 e do início dos anos 2000 causam nostalgia em fãs brasileiros, e as trilhas sonoras de games são também sempre lembradas, como a de Snake Eater (Metal Gear), as composições de Nobuo Uematsu para a série de games Final Fantasy e Chrono Trigger, e de Akira Yamaoka, para Silent Hill. Aspectos filosóficos de alguns animês Em muitos casos os temas filosóficos estão intrínsecos na trama do animê e acarretam discussões calorosas entre fãs ou até mesmo especialistas. Podemos recorrer ao exemplo de alguns animês. Ataque dos Titãs (Shingeki No Kyojin, 2013-), por exemplo, tem um prólogo envolvente e desperta uma incipiente curiosidade no espectador: “E naquele dia, a humanidade se lembrou, se lembrou do quão assustador é ser subjugado. Cercados como pássaro presos em uma gaiola, apenas para serem destruídos!” A trama se passa no ficcional distrito de Shiganshina, no ano de 845, onde foram construídas 3 muralhas – Maria, Rose e Sina – para proteger os humanos dos terríveis Titãs. Estas criaturas têm tamanhos que podem variar de 5 metros a 60 metros, representam uma ameaça constante aos personagens e se alimentam de carne humana. No primeiro episódio um clérigo faz a seguinte pregaçŌo “Essas paredes foram feitas pelo próprio Deus! Elas estão a favor de Deus! Nenhuma das criaturas fora delas, será capaz de atravessar!” Quando o Titã Colossal destruiu a primeira muralha, houve então uma cisão com este imaginário religioso. Uma outra perspectiva filosófica levantada no animê supracitado é que Eren Jaeger, personagem principal, quer ir para além das muralhas com intuito de saber como é a vida lá fora. Esse fato nos rememora a filosofia de PlatŌo com o aforismo “O mito da caverna”. 17 A alegoria de Platão descreve a seguinte situação: homens dentro de uma caverna, que se encontram ali desde a idade tenra, estão presos por correntes que os impedem de fazer movimentos e não conseguem enxergar alhures distantes; até um prisioneiro porventura sair da caverna e descobrir um mundo novo totalmente diferente da escuridão do interior da mesma. Em seu retorno à caverna, caso comente sua nova experiência, poderá causar medo, estranhamento para alguns ou aceitação e libertação na perspectiva de outros. (PLATÃO, 1965, p. 105- 109) O animê Death Note (Tetsuro Araki, 2006-2007) também suscita uma abordagem filosófica ao apresentar um debate interessante sobre a ética e a moralidade, que complementa e enriquece seu enredo, e será objeto de análise deste artigo. Surgimento e adaptação do Death Note Death Note foi criado originalmente na forma de mangá pelo escritor Tsugumi Ohba e sob ilustração de Takeshi Obata, tendo seu início em dezembro de 2003 e conclusão em maio de 2006. O mangá Death Note é composto por 12 volumes encadernados. Houve o lançamento de um conteúdo especial no volume 13, que contém entrevistas, informações sobre personagens, etc. Entre os anos de 2006 e 2007 a série em mangá ganhou uma adaptação em animê dirigida por Tetsuro Araki, com 37 episódios. Death Note é um sucesso eminente e ganhou várias produções derivadas. O site Supremacia GEEK nos ajuda a traçar um panorama sobre as adaptações da animação: “Em 2006 ainda foi lançado o primeiro filme live action japonês baseado na série. No Japão esse filme ficou em primeiro lugar em bilheterias, desbancando até o filme “O Código Da Vinci”. E no mesmo ano ainda saiu à continuaçŌo do filme, intitulado “Death Note: The Last Name”. Em 2008 teve mais um filme em live action, “L: Change the World”, que tem L como personagem principal. Death Note foi um sucesso tão grande que além dessas adaptações também virou game e até peça de teatro. Existe também uma versão americana do filme que está sendo produzida. E esse ano saiu a série japonesa de live action.” (SUPREMACIAGEEK, 2015) 18 O mais recente filme em live-action foi produzido pela Netflix e lançado em agosto de 2017, já é alvo de críticas do público devido à caracterização dos personagens e também pela ausência de fidelidade a história do mangá. Pelo trailer do filme já é notável que a Netflix fez uma ocidentalização dos personagens, já que a maioria do quadro de atores são origem estadunidense, bem como o desfecho da história e comportamento dos personagens não são fidedignos. Essa adaptação em live-action, no entanto, foi bem aceita pelos criadores da franquia, que se mostraram entusiasmados. Breve panorama do enredo de Death Note Death Note aborda principalmente questões de ordem moral e ética, em uma narrativa composta por vários elementos da cultura japonesa e da cultura ocidental que enriquecem tanto sua estética quanto seu enredo. A história começa quando o shinigami Ryuk deixa seu Death Note cair propositalmente no mundo dos humanos. Os shinigamis são considerados deuses da morte na mitologia japonesa, e o Death Note, na obra de ficção, é um caderno da morte usado para matar os seres humanos. Primeiro deve-se escrever o nome de uma pessoa e mentalizar o rosto da mesma; dentro de 40 segundos, ela morrerá (em circunstâncias que variam de acordo com a intenção daquele que escreveu o seu nome no caderno). Light Yagami é um estudante exemplar, entediado com sua vida e com as regras que regem sua sociedade. Todos os dias os noticiários anunciavam diversos crimes e presenciar as injustiças aumentava cada vez mais a frustraçŌo de Light, para ele “este mundo está podre, e aqueles que o fazem apodrecer merecem morrer”, diz o personagem. Sua perspectiva sobre o mundo estar podre era resultado das ocorrências diárias de crimes, assassinatos, estupros, e, para ele, era necessário extirpar estes males do mundo. Ao encontrar o caderno, Light lê a seguinte instruçŌo: “O humano cujo o nome for escrito no caderno morrerá”, com atitude cética ele descarta o caderno, porém ulteriormente o recolhe novamente. Ao usar o caderno descobre que seu poder é real, e movido por um senso de justiça começa a matar os criminosos, almejando assim criar um mundo ideal. Com essa postura, Light Yagami se considera o Deus do Novo Mundo, e ele se torna tão intimo do caderno que acaba se tornando o próprio Deus da Morte, papel que deveria caber ao shinigami Ryuk. 19 Com o número crescente de criminosos aparecendo mortos em todos os lugares, a imprensa e as autoridades começam a cogitar a existência de alguém por trás dos homicídios. Agindo secretamente em seu quarto, Light Yagami mantém a sua identidade secreta bem protegida. Ele começa ser chamado de “Kira” (versŌo japonesa da palavra inglesa Killer), e a partir do momento em que as autoridades se opõem ao seu método de fazer justiça, e chegam perto de relaciona-lo ao criminoso, Kira começa a matar inocentes que se opõem a sua vontade, principalmente aqueles que se aproximam de descobrir a sua verdadeira identidade. Kira se perpetua numa posição de poder onde acaba colocando suas aspirações pessoais acima de sua ideologia de ceifar apenas a vida de criminosos. Outro fator importante sobre esse personagem é que ele, cada vez mais, nŌo quer o anonimato, mas ser reconhecido como “Deus do Novo Mundo”, uma espécie de novo Messias que vem salvar o seu povo do sofrimento. O principal detetive do caso, mais conhecido como “L”, L Lawliet, é obcecado por justiça, seu nome é marcado por sua indubitável inteligência e seu senso de dedução apurado, já que todos os casos que assumiu conseguiu êxito. Podemos dizer que a construção de L guarda semelhanças com detetives icônicos da ficção policial, como Auguste Dupin, das histórias de Edgar Allan Poe, Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle, e Hércule Poirot, detetive belga dos romances de Agatha Christie; todos estes personagens, assim como “L”, possuem senso de deduçŌo apurado e raciocínio lógico extraordinário. Algumas relações do animê com a filosofia Death Note é conhecido pela torrente de temas filosóficos que aborda. Sendo estes temas intrínsecos à sua narrativa, de modo a enriquecerem e darem profundidade ao seu enredo, dentre eles podemos delinear: conteúdo moral e ético, mitologia, vestígios das três religiões presentes no Japão: budismo, xintoísmo e cristianismo; bem como também estabelecer alguns paralelos com a filosofia ocidental. Será alvo de análise desta seção as relações do animê com estas religiões. Em minutos finais do primeiro capítulo intitulado “Renascimento” as ações de Light, o assassinato de dois criminosos, levam-no a uma crise de consciência e, ulteriormente, à aceitação de extirpar do mundo todo o 20 mal. Em sua fala podemos destacar o seguinte trecho: “... esse mundo está podre, e aqueles que fazem ele apodrecer merecem morrer. Alguém tem que fazer isso, então por que não eu, mesmo que seja preciso sacrificar minha mente e minha alma, vale a pena porque o mundo não pode continuar assim.” Essa ideia dialoga com um dos princípios da religião xintoísta que é “subordinaçŌo do individuo ao grupo” (LITTLETON, 2010, p. 9). Mesmo com esse aspecto, a postura de Kira se encaixa melhor na doutrina “utilitarista”, apesar de se preocupar com o restabelecimento da ordem, ele dá prioridade para seus próprios interesses, esses são pertinentes aos desejos da população. O pensamento “utilitarista” foi fundado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham; ele “nŌo defendeu apenas que o bem é a felicidade em geral, mas também que cada indivíduo busca sempre o que imagina ser a própria felicidade” (RUSSEL, 1957, p. 345) O próprio nome do personagem Light Yagami pode ser associado ao Lúcifer, que significa “Portador da Luz”, e também ao bosatsu do budismo japonês que significa “ser iluminado”. Essa ideia ainda é comprovada no animê aos 19 minutos e 30 segundos do capítulo “Renascimento”, quando aparece um feixe de luz sobre o personagem Light, e embalado pelo som da música Low of Solipsism invadem a tela cenas de criminosos morrendo por ataques cardíacos. “Por outro lado seu nome é luz, o que nŌo surpreende, já que tanto Light como parte da sociedade que apoia Kira lhe veem como um Messias, um salvador da humanidade que traz à luz onde antes havia sombra.” (MORELL, 2013, pág.35) Já no capitulo 25, intitulado “Silêncio”, Light encontra “L” em meio à chuva. Eles conversam e L prenuncia a própria morte: “daqui para frente será uma solidŌo eu e você iremos nos separar em breve”. Em seguida, ao ver Light todo encharcado, “L” se ajoelha diante dele, colocando-se em postura de subordinação, e se oferece para secar os pés de Light; essa cena nos faz rememorar a cerimônia de lava pés, quando Jesus lavou os pés de seus discípulos como sinal de humildade. Após esse acontecimento “L” morre por traiçŌo de Light. No começo da abertura o nome do animê aparece disposto numa cruz, que é símbolo sacro supremo da religião cristã. De acordo com 21 Serradilla os autores não apresentam apenas elementos de religiões japonesas com intuito de conseguir conquistar público de outros países: Podemos dizer que como produto voltado para o mercado internacional é interessante que sejam introduzidos elementos característicos da cultura ocidental, para que os diversos públicos do outro lado do oceano se familiarizem mais com o animê. Mas devemos levar em consideração também as mediações culturais que aconteceram ao longo das gerações, e ecoam através dos tempos possibilitando essa gama de formas hibridas: “...é que devemos ver as formas hibridas como resultado de encontros múltiplos e não como um resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos elementos à mistura, quer reforcem os antigos elementos...” (BURKE, 2003, p. 31) O próprio shinigami é o Deus da Morte na mitologia japonesa, e ele se torna o elemento principal da trama, pois ele deixa seu caderno cair propositalmente no mundo dos humanos e é devido a sua ação que Light alicerça toda sua trajetória em criar um mundo ideal. Considerações finais O contato do Japão com outras nações resultou na recepção de vários elementos a sua cultura, bem como na doação de componentes de sua cultura. Podemos observar alguns exemplos resultantes dessas transmissões culturais: a religião cristã que chegou devido ao intermédio de jesuítas, o budismo com raízes chinesas, a escrita chinesa foi incorporada e também algumas palavras inglesas com a ocupação estadunidense. Mas nem sempre as mediações obtêm sucesso, pode acontecer de elementos de outras culturas serem rejeitados ou até mesmo causar revolta. A transculturação é fulcral e pode resultar na ressignificação de velhos costumes, para criação de novos elementos ou até consolidar ou reviver os antigos valores. Um exemplo disso hoje é a tecnologia, mesmo com a modernização o Japão não desvincula seus velhos costumes e valores, mas faz uso da confluência enriquecendo mais ainda sua cultura, e os japoneses lutam para suas tradições não evanescerem. 22 O animê, um importante produto da sua cultura, é uma das engrenagens que movimentam o mercado japonês. Além de movimentar o mercado global ele é um importante propagador dessa cultura híbrida. Death Note é um bom exemplo, além de ser sucesso em muitos países ajuda a divulgar traços da cultura nipônica. Os fãs fazem uso desse consumismo resultando consolidação e expansão desse mercado. Isso só prova que a cultura popular japonesa se tornou um importante elemento nos dias de hoje, e está cada vez mais presente e influente na cultura de vários países devido ao fenômeno da globalização e ao dialogo intercultural. Referências Angélica da Cruz Bernardo é graduanda em História pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Email: angel.angelicacruz@hotmail.com Lúcio Reis FIlho é Doutorando em Comunicação (Cinema e Audiovisual) pela UAM, Mestre nessa mesma área pela UFJF e historiador. Bolsista CAPES-PROSUP. Email: luciusrp@yahoo.com.br BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2003. DEATH NOTE. Direção: Tetsur Araki. Produção: Toshio Nakatani, Manabu Tamura , Masao Maruyama. Madhouse, 2006-2007. (37 episódios). LITTLETON, C. Scott. Conhecendo o xintoísmo: origens, crenças práticas, festivais, espíritos, lugares sagrados. Tradução de Vera Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. MORELL, Carla Tomé. Narratividad, ética y moralidad em la serie de animación japonesa Death Note. Trabajo final de grado. Universidad Politecnica de Valencia: Gandia, 2013. NAGADO, Alexandre. O mangá no contexto da cultura pop japonesa e universal. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe. (Orgs.). Cultura pop japonesa. São Paulo: Hedra, 2005, p. 49-57. PLATÃO. A república. 2º volume. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. Disponível em: <https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/arepc3bablica-parte-ii.pdf> Acesso em: 31 de agosto de 2017. RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Tradução de Brenno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. 23 Disponível em: <http://asdfiles.com/9mn> Acesso em: 01 de setembro de 2017. SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe. (Orgs.). Cultura pop japonesa. São Paulo: Hedra, 2005, p. 27-42. SHINGEKI NO KYOJIN. DireçŌo: Tetsur Araki. ProduçŌo: George Wada, Tetsuya Kinoshita. Wit Studio Production I. G, 2013.(30 episódios). SUPREMACIA GEEK. Vamos falar de série: Death Note. Disponível em: <http://www.supremaciageek.com.br/vamos-falar-de-seriedeath-note/> Acesso em: 14 de agosto de 2017. ZAGO, Bruno. O poder dos mangás e animês no Brasil. Revista digital, SuperMag. Ano 1. Setembro, 2012. Disponível em: <http://supernovo.net/supermag/001-supermagsetembro2012.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2017. 24 REFLEXÕES E REPRESENTAÇÕES DA ÁSIA E SUA (NÃO) UTILIZAÇÃO EM ESPAÇO ESCOLAR Ary Albuquerque Cavalcanti Junior Ítalo Nelli Borges Durante as ultimas décadas os historiadores passaram a problematizar espaços e campos por muito tempo não estudados, ou sedimentados a partir de visões estereotipadas. Nessa perspectiva, a história de espaços como os continentes africano e asiático, que por muito tempo ficaram restritos à visões externas sobre suas inúmeras relações de força e conjunturas instaladas nesses locais sobe a perspectiva europeia passaram a ser problematizadas. Sendo assim, durante séculos o vocabulário eurocêntrico foi aplicado nas abordagens históricas realizadas sobre aqueles povos por muito tempo representados como inferiores e/ou sem uma história de grandes feitos. Logo, durante longa data a abordagem sobe a história desses espaços impregnou-se de valores ocidentais, onde conceitos como evolução e modernidade passaram a ser observados a partir de uma ótica externa, algo dotado de estereótipos em muitos casos de atraso e frágil em relação aos europeus. Com a predominância de tais visões, estas receberam força e se cristalizaram, algo que podemos perceber em produções literais e até livros didáticos, algo que difunde ainda mais tais diferenças, reforçando a visão do europeu em relação ao outro (MARGARIDA CORREA, 1997). Dessa forma, é de extrema importância tecermos relações com os processos de predominância política e cultural de um lugar sobre o outro, destacando as relações de força existentes. Onde o historiador bem como qualquer estudioso precisa estar atento às interpretações que se aplicam a distintas realidades, a exemplo do conceito de nação, algo que esta estritamente relacionado aos ditos Estados-modernos europeus, classificando os Estados Áfricanos-Asiáticos como inferiores. Como destaca Jéssica Santos (2013), o evolucionismo será de grande justificativa para a tentativa de implantação de sua cultura e de sua observação sobe os demais povo. “O pensamento evolucionista veio como uma justificativa e legitimação dos processos de dominação político, econômico e ideológico por parte de países europeus que já 25 haviam acontecido e dos que estavam ocorrendo no século XIX, pois, tais teorias afirmavam que dentre a humanidade havia raças biologicamente distintas que se encaixavam numa hierarquia do mais simples ao mais complexo e que, portanto, a colonização traria desenvolvimento e progresso para os demais povos tidos como inferiores (SANTOS, 2013, p. 123)”. Dessa forma, observamos que o historiador precisa estar atento a compreender o vocabulário no qual se aplica o tempo e o espaço que se propõe a problematizar. Teorias Marxistas-leninistas, por exemplo, foram adotadas em movimentos Afro-asiáticos, porém, sofrendo adaptações e ainda que não tão destoantes, adaptaram-se a movimentos sociais e conjunturas locais, diferentes de acontecidos na Europa. Logo, é preciso fazer uma abordagem das tradições e observar as influências culturais as quais as sociedades estão inseridas e sair de uma visão puramente eurocêntrica. Nessa tentativa, a partir da década de 60 alguns estudos passaram a problematizar a visão do europeu sobre os outros, como os de LeviStrauss e Boas trazendo grandes contribuições. Outro fator que permitiu o avanço nos estudos sobre o continente Asiático se deu com o avanço econômico de países advindos deste local, principalmente o Asiático, o que levantou novas discussões em torno de seu desenvolvimento político, cultural e histórico (SANTOS, 2013). Quanto a sala de aula, gostaríamos de ressaltar o pouco espaço destinado ao continente asiático quando tratado na educação fundamental e média, dando destaque apenas para as participações do Japão na guerra e as revoluções chinesas, algo pouco em relação à suas inúmeras abordagens possíveis. Além disso, podemos refletir sobre quais espaços de apresentação ou discussão as universidades brasileiras dão para o continente asiático, sejam como disciplina ou tópicos especiais? Em nossas formações, não tivemos qualquer tocante ao referido continente, eis algo de certa forma deprimente de se mencionar. Reflexões de uma Ásia distante Nos últimos anos, países como a China e o Japão passaram a ter um olhar diferente, principalmente dos meios de comunicação em voga de seu desenvolvimento econômico. Se este último já é visto como 26 uma da grande potencia mundial, o primeiro vem tendo grande desenvolvimento nas ultimas décadas. Como destaca Everaldo Andrade (2016), durante séculos a China foi vista como grande civilização do extremo oriente, dominando quase toda Ásia no século XVI e XVII, onde a cultura do arroz, além do desenvolvimento da agricultura gerou uma considerável expansão demográfica chinesa, chegando a 430 milhões de habitantes em 1850. Logo, este país não era vista como uma civilização atrasada na época, mas apenas no século XIX quando do contato com as potencias europeias. Dessa forma, importante destacarmos que o que definiu a diferença na evolução das sociedades europeias e a chinesa foi o processo industrial. Ao passo que enquanto a europeia soube equilibrar o desenvolvimento de sua agricultura e o avanço industrial, levando à Revolução Industrial, mediante, principalmente a sua enorme população, a agricultura se predominou, não se encaixando no modelo de civilização e evolutivo eurocizante (ANDRADE, 2006). Ainda no âmbito da história chinesa, se torna imprescindível ressaltar que inúmeras revoltas e ideologias políticas se deram naquele território, a exemplos da Rebelião Taiping (1850-1864),as guerras do Ópio (1840-1860), “Os cem dias de Pequim” (1898) e a tão mencionada Revolução Chinesa de 1949. Embora que não tenha tido uma participação tão efetiva como em outros movimentos, a campesinato chinês foi de suma importância para as medidas pensadas por Mao Tse-tung ao assumir o poder em 1949. Em 1950, por exemplo, o governo confiscou terras de grandes proprietários e redistribuiu para cerca de 300 milhões de camponeses pobres e médios, reduzindo de 60 para 30% o número de camponeses pobres. Longe de ser bondade do novo chefe de Estado, a estratégia de fortalecer o setor mais importante para um país agrário, bem como o número de pessoas envolvidas traziam ao governo o estado de bem estar social e de controle estatal. Destacamos isto devido, principalmente ao “grande Salto para frente” e o deslocamento da industrializaçŌo para o campo, onde terras, equipamentos, gado e moradias passaram a ser coletivizados. Assim a produção aumentou 65% em um ano, mas em contrapartida as tensões e conflitos também, principalmente a partir da formação de comunas, como a de Xangai em 1967. 27 Já Japão, tão representado em animes e filmes de ação, trazem em sua história não apenas o pioneirismo nas artes marciais, mas fatos políticos e econômicos de reverberações para o mundo. Em uma análise mais minuciosa, podemos observar que uma das primeiras aparições nos livros didáticos de história sobre o Japão se refere a sua inserção na segunda guerra mundial no apoio às tropas nazifascistas. Assim, “O Japão, tradicionalmente, tem sido caracterizado pela antiga antropologia e pelo eurocentrismo como o Oriente Distante. Nessa acepção, passam pela palavra “distante” vários verbetes: incomum, indecifrável, inominável e aquém do desejo de interpretações mais profundas (THOMAS BAPTISTA, 2010, p.1)”. Logo, observamos o quanto o continente Asiático, que obviamente não se resume ao Japão e a China, precisa ser melhor debatida e apresentada não apenas nos cursos básicos, mas no superior, permitindo um ganho ímpar para estudantes e professores, algo que pretendemos elucidar no tópico que se sucede. Possibilidades de utilização em sala de aula No intuito de auxiliar professores, estudantes e pessoas que gostam de tal temática, tencionamos aqui fazer algumas sugestões/ considerações sobre as possibilidades de se usar a Ásia em sala de aula. O grande desafio para trabalhar com a Ásia em sala de aula não é diferente quando comparado a outros continentes, pois se trata de como os professores de história acessam o passado. Neste ponto, o historiador francês Michel de Certeau (1982) nos lembra que este acesso se dá através de uma inversão cronológica onde o presente pretende atingir o passado e o presente, evidentemente, é construído através de vários valores e dimensões do mundo social. Isto faz com que, enquanto sujeitos professores, jamais nos descolemos de nossas próprias realidades para pensar um passado histórico. Nossas angústias, conjunturas sociopolíticas, apreciação ou depreciação artística e orientações ideológicas são elementos ativos na apreensão que fazemos diária e profissionalmente da história. Como então, sabendo desta interferência do presente, historiadores ocidentais carregados de formações eurocêntricas poderão trabalhar com a Ásia em espaço escolar? Embora tenhamos dito acima que os 28 desafios ao trabalhar Ásia ou outros continentes sejam os mesmos, podemos complementar que em se tratando de lugares que, por um longo tempo, não fizeram parte de nossa formação escolar, este desafio se torna muito mais intenso. A nosso ver, dois aspectos devem ser levados em conta neste exercício; a identidade e a alteridade. A identidade, obviamente, é elemento chave nas abordagens do ensino de história, se ela (a história) parte do presente, claramente contará com aspectos identitários referentes a realidade de quem a busca compreender. No entanto, a alteridade ou o esforço de compreender o outro, é definitivamente uma atividade necessária sobretudo se pensarmos que muitas nações asiáticas, como China e Japão, têm histórias milenares possuidoras de valores específicos estranhos ao ocidente. Ainda que seja impossível despir-se completamente do olhar ocidental eurocêntrico para analisar estas histórias tão diferentes da nossa, é salutar o esforço de tornar sensível este mesmo olhar ao que é específico do oriente. Uma eficaz forma de equilíbrio entre identidade e alteridade pode acontecer através de abordagens de representações artísticas asiáticas. Em se tratando de China, uma nação que segundo Rogério Hasbaert (1994) é composta por uma multiplicidade de espaços que estabelece uma grande variedade étnico-linguística, podemos pensar este exercício através do cinema via filmes chineses e filmes de outras localidades que chegam a China. Dois exemplos interessantes de filmes chineses que tratam de temas explicitamente históricos são “Herói” dirigido por Zhang Yimou lançado em 2002 e “O Tigre e o DragŌo” do cineasta Ang Lee lançado em 2000. As duas obras nos apresentam uma china antiga permeada por intrigas políticas e emocionais nos governos e sociedades daquela temporalidade. Lembrando que tendo em mente o exercício da crítica, não devemos tomar o filme como ilustrador da realidade, mas sim como um discurso sobre a história, tanto do período apresentado quando do período em que foi lançado. Existem dados que também nos permitem perceber uma forte interlocução entre oriente e ocidente vendo alguns números de bilheterias na China de filmes norteamericanos de poderoso orçamento. Filmes como “Transformers: A Era da ExtinçŌo” (2014), “Os Mercenários 3” (2014) e “Exterminador do Futuro: Gênesis” (2015) tiveram faturamentos em bilheterias consideravelmente superior na China em relação aos Estados Unidos, país de origem das obras. Isto faz com que a própria 29 indústria do cinema americano atente-se para o mercado chinês que, num mundo cada vez mais globalizado, os denominadores comuns da cultura ficam mais intensos. Quando o assunto é Japão ocorre uma importante peculiaridade no mundo da cultura e das linguagens artísticas que são os Animês, os conhecidos popularmente como desenhos animados. Sandra Monte (2010) dedica um livro para analisar a presença dos animês na TV brasileira. Ela usa obras que marcaram geração como “Cavaleiros do Zodíaco”, “Samurai X”, “Pokemon”, “Dragonball Z”, entre outras, para construir uma análise concluindo que a presença deste tipo de produto artístico e cultural se consolida na TV brasileira a partir dos anos 2000 embora já tenha frequência por aqui desde a década de 1960. Numa perspectiva analítica, temos que levar em consideração que muitos dos próprios animês são produzidos para que possam circular o mundo e, assim, são dotados de aspectos globais em suas narrativas e estéticas, entretanto, através da análise dos animês, é possível também identificar e estudar elementos específicos da cultura pop e história japonesa como respectivamente em obras a exemplo de “Pokemon” que movimenta até hoje uma poderosa indústria no Japão e no mundo organizando elementos simbólicos e materiais de consumo e “Samurai X” que apresenta elementos do Japão feudal e de algumas especificidades da história japonesa como os samurais e o contexto histórico que os cerca. Literatura, música, artes plásticas e visuais, teatro, etc, são também linguagens artísticas que, mediante uma boa metodologia, podem ser importantes recursos pedagógicos para compreender melhor a história da Ásia. Aqui direcionamos a abordagem para China e Japão mostrando caminhos de análise para cinema e animês. De todo modo, o mais importante é a compreensão de que as dimensões da identidade e alteridade vem coexistir para que este tema seja adequadamente trabalhado em espaço escolar levando em consideração que, sem exceção, as realidades do presente se impõem fortemente em qualquer exercício histórico que nos propusermos a realizar. Dessa forma, esperamos que através deste breve texto possamos contribuir não apenas nas reflexões a cerca do milenar histórico e cultural que cerca do continente asiático, mas de como sua representação, bem como sua utilização no espaço escolar traz problematizações importantes. 30 Referências Ary Albuquerque Cavalcanti Junior é doutorando em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Bolsista CAPES. E-mail: academicoary@gmail.com Ítalo Nelli Borges é doutorando em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e-mail: italo.nborges@gmail.com ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A revolução chinesa. In: As revoluções contemporâneas paradigmáticas. (Org) BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. UEM- PGH, Maringá, 2016. pp. 133-166 AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. São Paulo. Papirus. 1994 BAMBA. Mahomed. A Recepção Cinematográfica: teoria e estudos de caso. Salvador. EDUFBA. 2013 BAPTISTA, Thomas Antonio. Cinema e História: Japão, um Construto Milenar. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação. Ano 4 - Edição 1 – SetembroNovembro de 201o BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 11ª ed. São Paulo: Contexto, 2008 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Petrópolis. Vozes. 1982 CÕRREA, Margarida Maria da Silva. Da construção do olhar europeu sobre o novo mundo ao (re) descobrimento do reino tropical. (Dissertação), PPGHIS. UFG, Goiânia, 1997 EHALT, Rômulo da Silva. Notas sobre o nascimento da historiografia moderna no Japão da Era Meiji. História e historiografia. Ouro preto. n. 12, agosto, 2013, 119-136 FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. HASBAERT, Rogério. China entre o Oriente e o Ocidente. São Paulo. Ática. 1994. LAVILLE, Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, nº 38, p. 125-138. 1999 MONTE, Sandra. A Presença do Animê na TV Brasileira. São Paulo. Laços. 2010 SANTOS, Jéssica Fernandes Maia dos. O olhar europeu ocidental sobre o outro: um paradigma da ciência. Sem Aspas, Araraquara, v. 2, n. 1, 2, p. 121-126, 2013 31 OLIVEIRA, Henrique Altemani de. MASIERO, Gilmar. Estudos Asiáticos no Brasil: contexto e desafios. Revista Brasileira de política internacional. 48 (2): 5-28, 2005 32 FONTE DE VIDA: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE DE UMA FONTE CRISTÃ PRODUZIDA NA ÍNDIA MOGOL NO FIM DO SÉCULO XVI Bruna Soalheiro A presente reflexão tem como objetivo apresentar uma possibilidade de análise para uma obra jesuíta que a compreenda para além das tradições cristãs que a conformaram. Propomos uma abordagem que insira o texto no contexto em que foi produzido, entendendo a fonte como um produto de um processo de acomodação próprio dos missionários da Companhia de Jesus, porém fundamentalmente marcado por um ambiente de negociação político-religiosa. Ainda que representativa de uma estratégia de comunicação evangelizadora, Fonte de Vida apresenta traços estilísticos e temáticos - o lirismo e o tema da unidade de Deus - que só podem ser devidamente apreciados se confrontados com a literatura Akhlaq e com uma determinada vertente do islamismo: o sufismo. Fonte de Vida foi escrita por Jerônimo Xavier, nascido em 1549, sobrinho-neto de Franciso Xavier. Jerônimo, antes de ingressar na Ordem, havia estudado na Universidade de Alcalá e, quando admitido na Companhia de Jesus (1568), adotou o nome de família do tio. Chegou a Goa no ano de 1581 e dez anos depois, a pedido do soberano mogol Akbar, foi enviado à sua corte, acompanhado de um padre e um irmão: Bento de Góis e Manuel Pinheiro. Compunha-se assim o terceiro grupo de missionários que foram enviados ao norte da Índia. Foi nessa ocasião que Xavier escreveu Fonte de Vida, obra de que trataremos aqui, lida a partir de sua publicação contemporânea, em espanhol. Fonte de Vida possui a seguinte estrutura geral: a obra divide-se em cinco livros, que tratam respectivamente dos seguintes temas: 1. o conhecimento de Deus e de sua verdadeira lei; 2. as coisas que de Deus ensina, a lei dos cristãos e quão conforme são à razão; 3. a divindade de Cristo; 4. os mandamentos da lei cristã e da lei dos mouros; 5. as ajudas que se dão na lei dos cristãos para viver a serviço do Criador e a vantagem em que nisso leva da lei dos mouros e das outras. Estes cinco livros são antecedidos pela apresentação da fé cristŌ “em modo de oraçŌo” e pela dedicatória do tratado, feita a Akbar. Xavier incluiu ainda, na parte introdutória de sua obra, uma seçŌo chamada “Al curioso lector y deseoso de la verdad”. Nela, o 33 missionário faz uma brevíssima introdução, anunciando os propósitos de seu livro. No presente momento, teremos como foco a oração que apresenta a fé cristã e a dedicatória. É preciso dizer ainda que, durante o reinado de Akbar, foi estimulado na Índia um ciclo de debates e a produção de textos, tais como comentários e traduções de obras sagradas. Este estímulo institucional deve ser compreendido como meios para fazer convergir os projetos políticos de Akbar (KOCH, 2012: 547). Uma vez compreendido que seu governo fora cenário de negociações sociais, políticas e estéticas que apontavam para a elaboração de um novo discurso que respaldasse sua soberania sobre os territórios e populações em áreas por eles recém-conquistadas no subcontinente indiano, nós devemos aqui prosseguir, atribuindo um lugar aos jesuítas nesse ambiente. Foi nesse contexto, mais precisamente no ano de 1596, que o missionário Jerônimo Xavier escreveu uma obra intitulada Fonte de Vida, dirigida ao imperador. Ao elaborar esse tratado, o jesuíta dedicou-se principalmente a dois objetivos: apresentar a “Verdadeira Lei” ao soberano mogol e demonstrar a superioridade da lei cristã sobre o Islamismo. Maijastina Khalos, tratando dos debates que envolveram, ao longo da antiguidade, cristãos e não-cristão, enfatiza que os diálogos travados entre eles “NŌo significava uma busca mútua por uma verdade que pudesse existir, em algum lugar, para ambos encontrarem; mas sim implicava que os cristãos já haviam entendido a verdade e deveriam comunicá-la a não-crentes” (KAHLOS, 2007: 79). Sendo assim, definir esses objetivos não confere nenhuma especificidade à fonte acima, apenas a insere em um amplo conjunto de obras chamadas de tratados apologéticos, isto é, textos cuja intenção é apresentar e defender o cristianismo frente a outro sistema de crenças. A Apologética é uma disciplina teológica cara aos cristiãos, que rendeu obras como De Civitate Dei contra Paganos, escrita no início do século V por Aurélio Agostinho, conhecido como Santo Agostinho, e Summa contra Gentiles, escrita por Tomás de Aquino na segunda metade do século XIII. 34 No caso da fonte aqui destacada, reiteramos que o formato de diálogo exacerba o caráter argumentativo e dialético da literatura apologética, projetando na voz do outro as questões a serem refutadas pelo cristão. Não obstante, o que conferiu especificidade a Fonte de Vida enquanto tratado apologético foi, justamente, o contexto em que foi produzido e seu objetivo mais imediato: apresentar a Akbar argumentos de forma a convencê-lo da superioridade do cristianismo frente ao islamismo. O tratado, portanto, além de ter finalidade apologética, serviu como meio para os jesuítas se fazerem presentes nas instituições de debate inter-religioso patrocinadas pelo soberano. No contexto multilinguístico mogol de negociação de tradições éticoreligiosas distintas, observamos serem significativas a produção e circulação de textos de conteúdo político, isto é, que tratavam do tema da governança. Estamos fazendo referência aqui ao que Muzaffar Alam chama de “literatura Akhlaq”: a tradiçŌo literária composta por escritos ético-políticos influenciados pela obra Akhlaq-e Nasiri, escrita por Nasir al-Din al-Tusi no século XIII. Nesse gênero, a “correta conduta” de um régulo era um dos objetos principais, de maneira que o tratado escrito por Xavier e destinado a Akbar possuiria um propósito proselitista cristão inegável, mas associado a tal literatura política indo-persa. Dessa forma, para além de seu caráter apologético, Fonte de Vida assumiria, em alguma medida, papel análogo ao de obras da tradição turco-mogol, as quais articulavam religião, ética e política. Assim sendo, supomos que a obra de Jerônimo Xavier tenha sofrido alguma influência da produção textual especialmente destinada aos governantes. De todo modo, vale ressaltar que, ainda segundo Alam, o tema da governança encontrava-se atrelado a um determinado entendimento da Sharia, especialmente no que diz respeito à relação entre governantes muçulmanos e governados não muçulmanos. “[A] Sharī'a passou a ter mais de um significado durante este encontro entre árabes e não árabes; a língua do Leste Islâmico começou a se tornar uma mistura sincrética; um legado de cooperação e assimilação desenvolvido desde a época do Sultanato até o final do reino mogol; e situações 35 de conflito tinham a tendência a serem resolvidas de acordo com um padrão formado por uma forte tradição política de acomodaçŌo do islamismo medieval” (ALAM, 2004: 12). Um entendimento mais flexível e menos jurídico da Sharia propiciaria uma convivência mais tranquila entre muçulmanos e não muçulmanos, na mesma medida em que quão mais estrita fosse essa concepção, mais tensas seriam as relações sociais e políticas entre os seguidores de Maomé e os demais povos: “Ainda assim, fica claro que a Shari‟a, que guiava o padrŌo de governo mogol, tinha impacto na tradição de Nasirean Akhlaq, o que era reforçado pelo mundo que poetas e sufis haviam, em seus domínios, delineado em persa, um mundo em que era possível usar o termo shari‟a não necessariamente, ou apenas, em um sentido legal limitado” (ALAM, 2004: 77). No trecho acima, percebemos que o mesmo autor introduz ainda um outro elemento ao contexto político de que tratamos aqui. Ao lado da tradição persa de uma literatura ético-política que se debruçava sobre o tema da governança, Alam ressalta ainda a presença do sufismo nesse cenário. Ele acrescenta: “Foi a crença sufista de unidade em multiplicidade, conhecida como waḥdat al- wujūd (Unidade do Ser), que forneceu a base da doutrina para todos esses desenvolvimentos no processo de síntese religiosa e amálgama cultural” (ALAM, 2004: 91). Assim sendo, o conceito por nós grifado no extrato acima - waḥdat al- wujūd – é fundamental para que possamos prosseguir com nossa análise da obra de Xavier. Ele condensa nossas hipóteses acerca do uso de conceitos fundantes do islamismo e de sua vertente sufista ter emprestado a Akbar subsídios retóricos e ideológicos que viabilizassem e justificassem sua soberania e seu governo. Um outro autor, Jonardon Ganeri, reitera as relações entre sufismo e política: 36 “A ideia que diferentes pontos de vista coabitam uma única matriz e que, nessa medida, são susceptíveis ao sincretismo, é o que difere a visão cosmopolita de pluralismo, cujo princípio cardinal é que a falta irreconciliável de consenso é, por si só, algo com valor político, social ou filosófico. Na Índia da Idade Moderna, esses pensamentos assumiram uma importância tanto política quanto filosófica. Por boa parte dos séculos dezesseis e dezessete (…) a doutrina sufista de wahdat alwujud guiou uma busca por uma única visão espiritual que seria a base de todas as religiões” (GANERI, 2011: 32). Propomos, desta forma, que Fonte de Vida deve ser necessariamente entendido em diálogo com a tradição jurídica, ética e políticoreligiosa que séculos antes da chegada dos missionários já tratava do tema da governança, com ênfase no desenrolar do conceito de Shari‟a tal qual exposto por Alam. Além disso, é preciso considerar a presença importante de uma corrente específica do pensamento islâmico, chamada de sufismo, cujo papel de mediação nas relações entre muçulmanos e não muçulmanos na Índia mogol foi determinante. Temos, portanto, dois elementos indispensáveis a serem considerados quando analisamos o contexto de produção de Fonte de Vida: a literatura Akhlaq e o sufismo. Assim, é preciso ter em mente que Xavier escreve para uma Índia perso-islamizada, na qual várias linguagens políticas dialogam. Para Alam, o papel do idioma persa na estruturação do poder político mogol na Índia, bem como para a criação de uma espécie de amálgama social que pudesse dar conta das diferenças socioculturais e religiosas, foi decisivo. “O persa, entŌo, forneceu as condições para que os mogóis pudessem construir uma classe de aliados a partir de grupos sociais e religiosos heterogêneos” (ALAM, 1998: 324). Sendo assim, é sintomático, do ponto de vista político, que Fonte de Vida tenha sido escrita em persa, pois insere o jesuíta no contexto político estruturante de que falamos. Feitas todas estas observações preliminares e contextuais, o que nos interessa no presente momento é apenas indicar uma possibilidade de análise de uma fonte cristã que seja pautada não somente na inserçŌo desta fonte na tradiçŌo apologética “ocidental” ou latina que necessariamente a configurou, mas fundamentalmente entender este texto de época como um texto que dialoga com distintas 37 tradições político-religiosas não cristãs. Dito de outra forma, uma leitura de “Fonte de Vida” que desconsiderasse sua intenção adaptativa – para usar um termo que se remete justamente à acomodação jesuítica – perderia de vista justamente a natureza de sua produção, de sua finalidade, de sua conformação e de seu conteúdo. Sustentamos, portanto, que esse tratado apologético, ainda que possua inúmeras semelhanças com os tradicionais tratados cristãos tomistas (em especial Summa Contra Gentiles e De Rationibus Fidei), foi produzido num contexto estético-estilístico misto e negociado. Desta forma, se o conteúdo é tomista e representativo da segunda escolástica, a forma lírica, a opção pela forma dialógica e a ênfase em determinadas questões em detrimento de outras refletem necessariamente tal contexto de produção negociado e proselitista. Pontuadas as características gerais do contexto no qual Fonte de Vida foi escrita, é necessário, complementarmente, buscar estes pontos de “negociaçŌo” no próprio texto. Conforme dito acima, os cinco livros que compõem Fonte de Vida são antecedidos por duas seções a serem aqui analisadas: (1) a apresentaçŌo da fé cristŌ “em modo de oraçŌo”; e (2) a dedicatória da obra, feita a Akbar. Ambas as partes são importantes para nossa análise. A primeira porque apresenta, de forma um tanto poética, os mistérios do cristianismo. A segunda porque apresenta o livro e seu propósito a Akbar, defendendo a importância de se manter uma relação próxima entre reis e sábios. Em conjunto, sua relevância reside no fato de destoarem – principalmente no que diz respeito aos aspectos formais e estilísticos do texto – do corpo da obra propriamente dito, isto é, do tratado em formato dialógico contido nos cinco livros seguintes. Passemos a uma sucinta descrição destes elementos pré-textuais. Na primeira parte de sua obra, Jerônimo Xavier apresenta o princípio, o progresso e o fim de todas as coisas – isto é, Deus. Suas perfeições são enumeradas: Ele tudo sabe, tudo pode, tudo tem; é eterno, infinito e incompreensível; sua natureza é distinta da natureza das criaturas. É perfeito sem qualidade e por isso é sumo. Está em todo lugar, sem ser compreendido, e por isso é universal. Tudo obra sem 38 mudança e por isso é imutável. Em seguida, Xavier aborda o mistério da Santíssima Trindade. O autor acrescenta ainda que Deus deu os profetas para que nos ensinassem, os anjos para que nos guardassem e seu único filho natural para que, feito homem, pudéssemos ver, ouvir, seguir e imitar (XAVIER, 2007 [1600]: 624). Ao longo dessa espécie de preâmbulo, percebemos que o autor ainda se utiliza de algumas imagens um tanto paradoxais para alguém que se dedica a debater e escrever em nome da verdadeira lei. Xavier nos diz que Deus ensina sem ruído de palavras, sem tinta e sem livros. Ensina e dá entendimento para ser entendido. Dá doutrina e a capacidade para entendê-la. No entanto, ele também diz que não se conhece Deus pelo entendimento, já que quem mais alcança Deus é aquele que, quanto mais se chega Dele, mais distante fica de Seu entendimento (XAVIER, 2007 [1600]: 62-5). Gostaríamos de ressaltar a semelhança desta proposição de Xavier com o que São Tomás de Aquino recomenda no capítulo segundo de De rationibus fidei, intitulado Qualiter sit disputandum contra infideles (Como se deve disputar com os infiéis). No entanto, percebemos também que a semelhança no conteúdo se choca com a distinção na forma. Afinal, é de maneira um tanto lírica, com imagens, metáforas e paradoxos, que Jerônimo Xavier abre a sua obra, como podemos perceber já no extrato destacado no alto desta página: “Al princípio, sin princípio, de quien depende el princípio, progresso e fin de todas las cosas, que al Dios alto, soberano y todo poderoso, sean dadas gracias infinitas” (XAVIER, 2007 [1600]: 61). O lirismo de Xavier aparece, pois, como uma alternativa, ou adaptação, à opção estilística escolástica de Tomás de Aquino. Esse tom poético distingue-se da linguagem dos tratados apologéticos tomistas ou escritos metafísicos em geral, distinguindose também do estilo de escrita dos cinco livros principais de Fonte de Vida. Na parte introdutória de Fonte de Vida, não há definição dialética e racional de Deus. Ao contrário, trata-se de apresentar a Doutrina, isto é, essencialmente as mesmas ideias presentes na Suma de Aquino, em uma forma não dialética, não racional, mas sensível, metafórica, poética, sinestésica. Partindo da identificação desses elementos estilísticos e da ausência de um rigor escolástico, nosso único e exclusivo objetivo aqui é 39 indicar que, nessa parte do texto, ao contrário de recorrer a uma retórica dialética, o autor faz uso de figuras de linguagem, as quais conferem a sua “oraçŌo” outros resultados retóricos e estéticos. Tal análise, contudo, encontra dois limites. Por um lado, não procuramos defender que não existe lirismo em escritos cristãos, por outro, não temos a intenção de afirmar que o caráter poético desta parte de Fonte de Vida é resultado exclusivo da influência muçulmana sufi. Nossa hipótese, localizada entre esses dois polos, é a de que Xavier abre dessa forma sua obra para atingir um determinado tipo de leitor. Seria uma espécie benevolentiae captati, ou seja, uma “ordenaçŌo das palavras para influir com eficácia na mente do receptor” (PÉCORA, 2001: 20) para alcançar o círculo de leitores composto por cortesãos sufis ou pessoas politicamente influentes, além, evidentemente, do próprio Akbar. Gostaríamos de ressaltar que já no segundo fólio de sua obra, Xavier aborda a questão central da divergência teológica cristo-islâmica: a natureza única de Deus e, ao mesmo tempo, o mistério da Santíssima Trindade. O missionário faz questão de afirmar a unicidade de Deus e, no mesmo parágrafo, inserir as três pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo. Além disso, ele já antecipa nesse mesmo extrato que a grandeza infinita de Deus vence a capacidade de entendimento do homem. Ou seja, nesse momento, Xavier não inicia um debate racional e dialético sobre a natureza de Deus. Ele apenas afirma, simultaneamente, a ideia central do wahdat alwujud e o mistério da Santíssima Trindade. Assim, nessas primeiras páginas, o jesuíta apresenta algumas das ideias principais da Doutrina católica, sem opô-las à crença sufi fundamental da unidade de Deus. Além disso, esse extrato deixa claro que o objetivo da parte inicial de Fonte de Vida não é defender apologeticamente, recorrendo ao entendimento e à razão, à superioridade da lei cristã. Ao contrário, nos parece evidente, pelo uso de paradoxos e metáforas, que Xavier, nesse momento, não tem interesse em argumentar, debater, convencer ou dissuadir. Seu principal objetivo, acreditamos, é convidar seu “público alvo” a ler o seu tratado. Para isso, a aproximação com as ideias e com o que supomos, baseando-nos na bibliografia, ser um certo lirismo sufi, foi fundamental. 40 Reiteramos, portanto, o duplo caráter da obra de Xavier. Por um lado, trata-se de um tratado apologético, destinado, por definição, à argumentação a favor da superioridade da lei cristã em detrimento da lei islâmica, o que ficará bem claro nos cinco livros que se seguem. Mas, além disso, trata-se de um tratado com um destinatário específico: Akbar, o imperador mogol, cujos projetos políticos passavam por patrocinar a produção de obras escritas e pictóricas, as quais criariam um substrato discursivo para sua soberania política entre uma população composta por diferentes grupos linguístico-culturais e religiosos. Para que seu objetivo de ser fazer ouvir fosse atingido, Jerônimo Xavier optou por acomodar estilisticamente a apologética tomista às linguagens perso-islamizadas da Índia dos tempos de Akbar. Longe de ignorar a tradição escolástica que respalda a formação do jesuíta, nosso objetivo foi, simplesmente, lançar alguma luz a elementos não necessariamente cristãos que também compõe Fonte de Vida, indicando uma possibilidade de análise desta fonte. Referências Bruna Soalheiro é bolsista de pós-doutorado PNPD-CAPES no programa de pós-graduação em História da UERJ. Fonte: XAVIER, J. Fuente de Vida: Tratado apologético dirigido al Rey Mogol de la India en 1600. San Sebastián: Universidad de Deusto, 2007. Bibliografia: ALAM, M. Languages of Political Islam in India. Orient Blackswan, 2004. ____________. The Pursuit of Persian: Language in Mughal Politics. Modern Asian Studies, vol. 32, n. 2, p. 324, maio 1998. GANERI, J. The Lost Age of Reason: Philosophy in Early Modern India 1450-1700. EUA: Oxford University Press, 2011. KAHLOS, M. Debate and Dialogue: Christian and Pagan Cultures. Aldershot: Ashgate, 2007. KOCH, E. Jahangir as Francis Bacon's Ideal of the King as an Observer and Investigator of Nature. Journal of the Royal Asiatic Society, v. 19, n. 3, p. 297, 2009. Disponível em <http://journals.cambridge.org/abstract_S1356186309009699>. Acessado em 3/09/2017. 41 PÉCORA, A. Máquina de gêneros Universidade de São Paulo, 2001. 42 São Paulo: Editora A SOCIEDADE JUDAICA DO PRIMEIRO SÉCULO E O DOMÍNIO ROMANO Bruno da Silva Ogeda Este breve trabalho busca apresentar os principais movimentos sociais de cunho político e religioso que convulsionaram a população da Judeia no primeiro século de nossa era. Para isso, buscamos interpretar as causas que levaram a população a se mobilizar durante o período da dominação romana. Contexto Histórico A tradição bíblica aponta Israel como a nação eleita de Deus, povo que Ele tirou da escravidão no Egito. Porém, ao longo de sua história vemos que os israelitas foram subjulgados por diversos povos. Todas essas dominações estrangeiras causaram choques culturais, principalmente no quesito religioso, devido à especificidade do judaísmo. Entre os diversos momentos em que os judeus lutaram pela sua independência e para manter sua religião, podemos destacar a Revolta dos Macabeus em 167 a.C. que os libertou do domínio dos selêucidas. Apesar da grande vitória, cem anos mais tarde, os judeus cairiam nas mãos dos romanos, que ocuparam a Judeia no ano de 63. Inicialmente, houve uma política de “coexistência pacífica”, os novos senhores da Palestina criaram decretos que permitiam aos judeus “seguirem os ensinamentos de seus pais”. Em 40 a.C. subiu ao poder Herodes considerado “rei amigo” pelos romanos, mas contestado pelos judeus, já que era de origem edomita. O governo de Herodes foi marcado pelas grandes obras, que agradavam aos olhos das elites e dos estrangeiros, mas que pesavam sobre os bolsos da população que arcou com pesados aumentos de impostos, resultando após a morte de Herodes, em 4 a.C., num terreno fértil para o acontecimento de movimentos sociais. Banditismo social Uma das formas assumidas pelos movimentos sociais na Judeia do primeiro século foi o banditismo social que surge de uma realidade onde o “que é imposto pelo Estado ou pelos governantes locais é percebido como injusto ou intolerável” [Horsley; Hanson, 1995]. A dominação romana impunha uma dura coleta de impostos e taxas 43 especiais que pesavam sobre a população, assim o banditismo social cresceu em larga escala como uma alternativa de luta contra a aristocracia que cooperava com a dominação estrangeira. Os bandidos sociais eram perseguidos pela elite e protegidos pelo povo da zona rural da Judeia que entendiam esse movimento como uma justiça divina. Há registro da ação de salteadores desde o reinado de Herodes (37 a.C – 4 a.C.), onde percorriam as cidades e os campos praticando violência contra a nobreza local. Esta era uma forma de exercer uma constante resistência ao governo. Neste período o rei Herodes exerceu forte controle social apoiado em um grande aparelho de repressão e do próprio exército romano. Posteriormente, no período do primeiro século depois de Cristo, os salteadores continuaram na ativa. Um dos grupos dos quais citam as fontes é aquele liderado por Tolomau que agia na região da Iduméia. Outra grande “tropa de salteadores” é a comandada por Eleazar ben Dinai que agiu cerca de vinte anos. Muitos outros surgiram durante as décadas de 40 e 50 do primeiro século devido a grande fome que assolou a Palestina. Os bandidos não agiam apenas contra a exploração econômica e as desigualdades sociais, durante o governo do procurador Cumano houve um incidente em que um soldado romano desrespeitou os judeus na entrada do Templo, durante a festa dos Ázimos. Apesar dos cuidados que os romanos procuravam ter com as particularidades religiosas dos judeus, as ofensas acabavam ocorrendo. Em resposta a esta provocação, Josefo afirma que “(...) os bandos de ladrões provocaram outra revolta. No caminho público que conduz a Betorão alguns bandidos saíram ao encontro de um tal Estevão, escravo de César, e roubaram o que ele levava.” [Guerra dos Judeus 2:228]. As tensões entre os judeus e os romanos chegaram ao seu clímax na década de 60, culminando na revolta judaica no ano 66 d.C. e neste enfrentamento direto, os bandidos sociais estiveram presentes na guerrilha da zona rural, chegando inclusive a empreender algumas derrotas ao todo poderoso exército romano. Assim, os grandes bandos se armaram com equipamentos abandonados pelos dominadores e se fortaleceram ainda mais. 44 No ano de 67 d.C. , os romanos iniciaram o processo de reconquista e logo tomaram a Galileia, fazendo com que muitos camponeses deixassem suas propriedades para trás e se juntassem aos bandidos, aumentando ainda mais os contingentes revoltosos. “Uma grande coalizão desses grupos de salteadores que penetrou em Jerusalém no inverno de 67-68 e formou o partido chamado de os Zelotas”[Horsley e Hanson, 1995]. Esses grupos foram a grande parte da resistência durante o conflito e também forneceram algumas lideranças, como João de Gíscala, líder de 400 salteadores, que ao chegar a Jerusalém, se aliou a outros grupos e procurou assumir a liderança da resistência. Movimentos messiânicos Os movimentos messiânicos formam outra tipo de reação a tudo o que acontecia na Palestina. Para entender esses movimentos devemos voltar à tradição de Israel. Uma parte da população aguardava uma figura messiânica, aquele que seria um “rei ungindo” para resgatar o povo das mazelas e recolocar os israelitas na rota da independência novamente. O grande modelo de rei ungido esperado pelos judeus era sem dúvida o modelo dávidico já que no tempo de Davi, Deus havia libertado e restaurado a sorte de Israel. Por muito tempo essa esperança real esteve adormecida no povo, mas diante das injustiças esse sentimento já retornava ao povo que buscava um rei justo e que respeitasse o sumo sacerdócio. Essas esperanças permeavam vários setores sociais e sofriam alterações de acordo com a classe. Por exemplo, para os essênios, grupo letrado religioso que analisaremos posteriormente, esperavase um líder político ungido e um messias sumo sacerdote considerado agente escatológico. O ungido para os essênios viria do ramo de Davi e libertaria Israel do domínio estrangeiro e venceria as nações. Vale ressaltar que para os essênios, apesar desse papel importante, o ungido não era o personagem principal, mas sim, o sumo sacerdote messias. Outros grupos letrados também mantinham esperanças reais, aguardavam o “filho de Davi” que governaria com justiça, livraria Israel da opressão estrangeira e por fim subjulgaria as nações injustas. Ele era considerado o veículo pelo qual o Reino de Deus seria implantado. 45 Para o povo a esperança de realeza ungida reaparece porque logo após a invasão romana e a entronização de Herodes I, o novo governo era considerado ilegítimo, já que o rei era “meio judeu” e, além disso, havia sido colocado no poder por Roma e não pela unção de Deus. Além desses contras, Herodes era um rei opressor, e assim, “o povo estava preparado para um líder carismático „ungido‟ surgido no meio camponês, como o antigo Davi.” [Horsley e Hanson, 1995]. Diante desse quadro e apoiados em seus escritos sagrados, os judeus acreditavam firmemente que um rei ungido viria da Judeia e governaria o mundo inteiro. Durante a primeira metade do século I houve o movimento messiânico mais conhecido do mundo, Jesus de Nazaré, nascido em uma família pobre pregava uma mensagem de esperança que ia de encontro às aspirações de justiça do povo, ele “parece representar uma piedade judaica mais típica da Galileia, localidade rural” [Vermes, 1983], por isso seus ensinamentos iam de encontro aos anseios do povo. Logo as multidões atribuíram a ele o título de messias, aquele que lutaria e livraria Israel do julgo romano, mas Jesus disse: “deem ao imperador o que pertence ao imperador. E deem a Deus o que pertence a Deus!” [Marcos 12:17] Demonstrando assim que ele não iria comandar nenhuma revolução armada contra Roma. O que de fato não tirava de sobre ele seu messianismo. Quando foi levado a julgamento, “Pilatos lhe fez a seguinte pergunta: „Você é o rei dos judeus? ‟ Yeshua (Jesus) lhe respondeu: „As palavras sŌo suas‟”. [Marcos 15:2] Podemos concluir que Jesus dispensava o título real no sentido político, ele poderia ser um líder religioso, mas não um líder político. Jesus foi condenado e morto crucificado ao lado de dois ladrões, o que faz acreditar que para os romanos e para as elites judaicas que não aceitaram sua mensagem, ele não passava de um agitador social, assim como aqueles que participavam do banditismo social. Após a morte de Jesus aconteceria dois movimentos de reis messiânicos muito fortes. O primeiro deles foi liderado pelo sicário Manaém durante o ano de 66 d.C., num momento onde a revolta judaica estava no começo. Contrariando as características dos sicários que nŌo eram ligados ao messianismo, o “mestre” Manaém, como era chamado, reivindicou para si o messianismo em um tempo onde parecia que o cumprimento escatológico estava próximo. 46 O outro movimento foi liderado por Simão bar Giora que foi o principal comandante da rebelião popular em Jerusalém. Ele começou liderando um grupo de salteadores que “nŌo só saqueava a as casas dos ricos, mas também maltratava as pessoas.” [Josefo apud Horsley e Hanson, 1995] Mas logo estendeu seu poderio e consolidou o domínio sobre a Judeia e a Iduméia, antes de chegar a Jerusalém. A cada cidade encontrava novos adeptos, segundo Horsley e Hanson [1995] ele chegou a ter 40 mil seguidores além dos seus homens armados, Simão passava a ser aclamado com um verdadeiro rei de todos os descontentes e oprimidos. Todo o movimento era impulsionado pela exploração praticada pelos ricos e pelos estrangeiros, tinha como princípio a restauração da justiça social e se inspirava no reinado de Davi. A utopia de Simão bar Giora acabaria em 70 d.C. quando os romanos destruíram Jerusalém, ele e seus principais colaboradores são presos e levados a Cesareia Marítima e depois a Roma, onde Simão participa da parada triunfal como o prisioneiro principal, sendo executado em seguida. Ele cria que de fato era o próprio messias e os romanos o reconheciam como líder dos judeus. O último movimento com características messiânicas do primeiro século foi a revolta liderada por Simão bar Kökeba que recebeu apoio do respeitado Rabi Akiba que afirmava ser Simão o verdadeiro messias, o enviado de Deus, que libertaria o povo de Israel e de fato, ele e seus seguidores desafiaram os romanos. Com a estratégia de guerrilha nas fortalezas e montanhas conseguiram lutar contra o grande poderio do exército de Roma. Porém, o movimento foi derrotado e Simão bar Kökeba foi executado, encerrando assim as esperanças messiânicas naquele período. Grupos sociais A sociedade judaica do primeiro século estava dividida em quatro grupos político-religiosos com concepções próprias e algumas divergências. Iremos apresentar de forma resumida estas correntes e sua atuação na sociedade. Os saduceus Consideravam-se descendentes de Sadoc e por isso detentores do sacerdócio legítimo. Eram muito apegados a Torá (Pentateuco) e contrários a toda novidade na religião. Acreditavam estar guardando a aliança que Deus havia feito com seus pais e por isso eram abençoados com a riqueza e o poder. 47 Politicamente estiveram alinhados com os reis asmoneus, mas durante o século I d. C., tiveram seus poderes políticos esvaziados pelos romanos. Buscavam manter o povo longe das revoltas e por inúmeras vezes negociavam com os dominadores estrangeiros, já que entendiam que sua riqueza dependia da manutenção do status quo, até por isso, foram os principais responsáveis pela morte de Jesus, considerado por eles, um revolucionário. Também tiveram responsabilidade em um dos principais eventos que desencadeou a revolta de 66 d.C., quando proibiram o sacrifício que o imperador romano mandava oferecer a Deus. Com a destruição do Templo em 70 d.C. acabaram desaparecendo. Os fariseus As origens dos fariseus remontam ao tempo de Esdras, o sacerdote (457 a.C.). Procuravam viver os preceitos da Torá de forma exemplar e dedicavam-se em ensiná-la ao povo, buscando a salvação do mesmo. Não discutiam a legitimidade do sumo sacerdote independente de quem ocupasse o cargo. Este grupo tinham uma “desconfiança do poder e zelo pela educaçŌo das massas” que “vŌo dar aos fariseus uma audiência enorme junto do povo miúdo.” [Salnier, 1983]. Apesar de serem bem vistos pela população, eles faziam questão de mostrar que eram superiores, já que se consideravam mais santos e mais puros que o restante das pessoas comuns. Este grupo representou o “primeiro partido que é ao mesmo tempo político e religioso” (Salnier, 1983) e que conquistou uma base sólida, sendo o único grupo judaico que sobreviverá após a destruição do Templo. Por isso serão eles os responsáveis pela formação do judaísmo rabínico que vai dar vida a religião judaica, agora sem seu maior símbolo, o Templo. Os essênios Sua origem não está muito clara, mas ao que tudo indica estão ligados ao tempo da perseguição empreendidas pelos Macabeus. Alguns descendentes da linha sadoquita se refugiaram no deserto. Desenvolveram uma sociedade peculiar, com grande apego as regras religiosas e constante busca pela santidade, tomavam diversos banhos frios por dia para conservar a pureza e recusavam o Templo e seu sumo sacerdote ilegítimo, buscavam agradar a Deus mantendo sua santidade. 48 Além do apego as várias regras de convivência e santidade, podemos perceber que os essênios eram um grupo comunitário que buscava o bem comum e partilhava seus bens e sua produção, como afirma Josefo: Depreciavam a riqueza, e entre eles existia uma admirável comunhão de bens. Não se pode encontrar a ninguém que seja mais rico que os outros, pois têm uma lei segundo a qual os que entram na seita entregam suas posses à ordem, de modo que não existe em nenhum deles nem a humilhação da pobreza e nem a vaidade da riqueza, sendo que o patrimônio de cada um forma parte de uma comunidade de bens, como se todos fossem irmãos. [Guerra dos Judeus 2:122]. Era um grupo muito fechado, uma sociedade alternativa, para aqueles que queriam de fato dedicar toda sua vida a Deus. Trabalhavam e estudavam as sagradas escrituras em busca de encontrar a verdadeira vontade do Eterno. Por causa de seu aprofundamento nos livros sagrados e nos ensinamentos dos profetas, alguns essênios previam o futuro e detinham uma visão escatológica que chegaria um momento em que eles seriam chamados por Deus para aniquilar todos os ímpios. Para alguns esse combate era a guerra judaica de 66 d. C., por isso, lutaram ao lado dos zelotas e acabaram desaparecendo no fim do conflito. Os Zelotas Este grupo era uma coalizão de camponeses que haviam migrado para o banditismo, surgida durante a reconquista romana da Judeia (em 67-68 d.C.). Seu principal palco de ações foi a cidade de Jerusalém onde atacaram pessoas da nobreza ligada aos reis herodianos e investiram um camponês no cargo de sumo sacerdote. Esse sumo sacerdote eleito pelos zelotas foi escolhido por sorteio, o que demonstra que o grupo era democrático, fato corroborado pela falta de uma liderança única no movimento. O comando era exercido de forma coletiva, o que faz lembrar à tradição judaica anterior a realeza, onde o verdadeiro líder de Israel era Deus e por isso não havia uma pessoa específica no comando. Dentre todas as facções da sociedade judaica era a considerada mais política e representavam o nacionalismo judaico em sua forma mais feroz. Praticavam crimes de toda espécie, segundo o historiador Flávio Josefo [1986]. 49 Os sicários O nome do grupo vinha da palavra sica em latim que significava punhal, nome atribuído por causa da tática utilizada por esse grupo em seus ataques contra pessoas da elite judaico-romana. Estas pessoas também foram recrutadas no proletariado rural da Palestina e representavam apenas uma pequena parcela da resistência judaica. Conclusão Acreditamos que a dura realidade enfrentada pelos camponeses judeus no primeiro século foi fator fundamental para o surgimento dos movimentos sociais nesta região. A situação foi agravada pelos períodos de dominação estrangeira, principalmente o romano, onde a elite judaica cooperou com os invasores e consequentemente agravou os quadros de desigualdade social, acentuando o abismo econômico. Stegemann [2004] afirma que o camponês e o pescador da Judeia dificilmente conseguia extrair de sua atividade o necessário para a subsistência de sua família, em contraste a essa situação de miséria, a casa real herodiana e a aristocracia desfrutavam dos benefícios econômicos de sua cooperação com os romanos. Esse foi o terreno fértil onde o banditismo social, os movimentos messiânicos e os partidos judaicos floresceram. Angariaram muito apoio entre as classes mais pobres da sociedade que habitavam o campo e que viam nesses a esperança de se livrar do peso dos impostos e da dominação romana, o que culminou com a grande participação de camponeses no conflito de insurreição contra os romanos. Apesar de todo engajamento, a resistência dos oprimidos não foi capaz de frear o avanço do maior império da antiguidade que aplicou uma derrota severa aos insurgentes, destruindo a sua principal cidade e seu principal prédio religioso. A destruição de Jerusalém e do Templo na trágica derrota dos judeus em 70 foi uma grande marca do primeiro século. A ausência do Templo obrigou o judaísmo a se “reinventar” e acabou por transformar de alguma forma a relação dos judeus com a cidade santa. 50 Referências Bruno da Silva Ogeda é aluno do curso de pós-graduação lato sensu de História Antiga e Medieval – Religião e Cultura da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (FSB/RJ). e-mail: brunoogeda2004@hotmail.com Josefo, Flávio. Guerra dos Judeus: Livro II. 1ª ed. (ano 2002), 4ª tir. Curitiba: Juruá, 2006. 122p. _____, ______. Uma testemunha do tempo dos Apóstolos. 1ª ed. (ano 1986), 10ª tir. São Paulo: 2016. HORSLEY, Richard; Hanson, John S. Bandidos, profetas e messias: Movimentos populares no tempo de Jesus. 1ª ed. (ano 1995), 4ª tir. São Paulo: Paulus, 2015. STEGEMANN, Ekkerhard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: Os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. 1ª ed. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004. SAULNIER, Christiane; Bernard Rolland. A Palestina no tempo de Jesus. 1ª ed. (ano 1983), 10ª tir. São Paulo: Paulus, 2014. Vermes, Geza. Jesus e o mundo do judaísmo. 1ª ed. São Paulo: Loyola, 1996. Bíblia Judaica Completa: o Tanakh [AT] e a B’rit Hadashah [NT]. Tradução do original para o inglês David H. Stern; Tradução do inglês para o português Rogério Portella; Celso Eronides Fernandes. São Paulo: Editora Vida, 2010. 51 52 AS FILIPINAS, O MUNDO ASIÁTICO E A COLONIZAÇÃO ESPANHOLA, SÉCULO XVI Carlos Guilherme Rocha Como na maior parte dos locais colonizados por europeus a partir do século XV, a investida europeia não foi simples. As relações de força no movimento colonial não seguem uma direção constante. No arquipélago filipino o contexto foi ainda mais complexo, pois não se trata de apenas uma força colonizadora sobre nativos de uma região. As Filipinas coloniais são marcadas pelo encontro de distintas forças políticas e culturais. A colonização espanhola foi marcante, mas a última a chegar de fato ao arquipélago. Antes dos castelhanos encontram-se próximos ou assentados nas Filipinas, portugueses, japoneses, chineses e muçulmanos, além de variados grupos nativos de tradição hindomalasiana. A colonização castelhana foi condicionada por essas presenças. [Ollé Rodríguez, 2001, p. 59] Por volta do ano mil, temos os primeiros relatos confiáveis sobre o arquipélago, por fontes muçulmanas e chinesas. O contato dessas duas culturas com as ilhas, porém, era marginal. Nessa época, os muçulmanos estabeleceram uma verdadeira talassocracia no oceano Índico, isto é, um império comercial. Comerciantes árabes e persas, impulsionados também pelo proselitismo religioso, se tornaram figuras frequentes na China e na Índia. Portos comerciais islâmicos eram cada vez mais numerosos na região. Como explica Isaac Donoso Jiménez [2011, p. 174], a chave do avanço muçulmano estava no desenvolvimento de laços clientelares. Para os muçulmanos, as barreiras étnicas ficavam em segundo plano, eles se importavam com a questão religiosa. Dessa forma, estimulavam as elites locais a se converterem ao islã, para – entre outros motivos – gozar de benefícios comerciais. No fim do século IX, uma troca dinástica na China provocou importantes mudanças na economia da região, com o país se fechando a navios estrangeiros. Com isso os muçulmanos tiveram que buscar novos entrepostos no sudeste asiático. Os comerciantes chineses passaram a ser mais ativos e a dominar o comércio na região, aproximando-se de locais então ignorados pelos muçulmanos, como Borneo e as Filipinas. Mesmo com o fim do 53 isolacionismo chinês, em 960, o comércio continuou a ser dominado por comerciantes da China. [Ibid., p. 185-188] Essa oposição entre chineses e muçulmanos não era certa. Para os primeiros valia o critério étnico, já para estes a questão era a profissão religiosa. Assim, muitos comerciantes chineses, envolvidos com negociantes muçulmanos, aderiram à fé islâmica. Os membros desse grupo eram conhecidos na China como Hui e tiveram grande influência econômica e política, especialmente a partir do século XIV, com a ascensão da dinastia Ming. No plano econômico, o poder Ming significou novo fechamento da China a comerciantes estrangeiros. [Ollé Rodríguez, 1998, p. 5-10] Os Hui se localizavam principalmente em Guandong e Fujián. Desta última estabeleciam importante comércio com Borneo e a ilha de Luzón (atual Filipinas, onde está localizada a cidade de Manila). A ascensão Ming coincide com o desmoronamento da unidade do poder muçulmano, que conectava Ásia, África e Europa. [Donoso Jiménez, 2011, p. 285-287] Curiosamente, nesse período de franca crise dos poderes islâmicos, a religião muçulmana entra em um ciclo de avanço nas ilhas e arquipélagos do sudeste asiático. Os comerciantes muçulmanos buscavam novos entrepostos na região. Os poderes locais, visando atrair esse comércio se convertiam à religião islâmica, almejando benefícios econômicos, prestígio e poder. O proselitismo religioso também foi importante. A partir do século XIII, registra-se uma intensa ação de majdumunus – missionários muçulmanos – no sudeste asiático. Esses missionários avançavam junto com os comerciantes muçulmanos e eram sustentados por estes, inclusive pelos Hui da China. [Ibid., p. 213284] A primeira região islamizada foi Malaca, com a fundação do sultanato em 1414. O sultanato era uma nova forma de governo adotada em regiões islâmicas, substituta do califado. O sultão tinha sua legitimidade exclusivamente pelo poder temporal, o que permitia a hereditariedade e a inclusão de novas lideranças. 54 In: Newson, 2009, p. 2 Na região das Filipinas foram estabelecidos dois sultanatos, Sulu e Mindanao, entre os séculos XV e XVI. Os sultanatos filipinos 55 possuíam características particulares, por se instituir com base no sistema de datos, as lideranças tribais locais. Portanto, o sultão não era um líder absoluto, mas chefe de um conselho de datos, com poderes limitados. [Ibid., p. 401-412] Nesse contexto, Luzón passa a ser o eixo que ligava os navios de Fujián aos entrepostos muçulmanos do sul. Esse contato foi bastante vívido e economicamente virtuoso, diversas cidades islâmicas da região chegaram a registrar mais de 50 mil habitantes. [Ollé Rodríguez, 2001, p. 62] Número que chama a atenção se tivermos em mente que o barangay, unidade tradicional filipina, era composto por uma população que raramente excedia 200 pessoas. [AGI, Fil., 84, 2; AGI, Fil. 84, 46] Nesse contexto, que as forças castelhanas se inserem no oceano Pacífico, com a expedição de Fernão de Magalhães, entre 1519 e 1521. O interesse castelhano na expedição de Magalhães era estabelecer bases na região, rompendo com o monopólio de Portugal. [Oliveira, 2003] Luzón era importante elo para as conexões lusitanas entre Macau, Malaca e o Japão. O grande trunfo português na região era atuar como elo entre China e Japão, que então não mantinham relações diplomáticas ou comerciais. [Ollé Rodríguez, 2001, p. 66] O sucesso de portugueses e muçulmanos era favorecido pelo contexto de reclusão comercial, determinado pela dinastia Ming. Em 1565, quando os espanhóis de fato passaram a ocupar parte do território filipino, com o sucesso da expedição Legazpi-Urdaneta, notaram forte presença muçulmana em Luzón, especialmente no comércio. Os anos seguintes foram marcados pelo debate do lado espanhol: se os nativos de Luzón eram ou não mouros. Miguel Legazpi, primeiro governador espanhol do arquipélago, escreveu que os muçulmanos impediam a presença espanhola, sugerindo que tivessem licença para escravizá-los. [Donoso Jiménez, 2011, p. 371] Segundo o frei agostiniano Diego de Herrera, os mouros que lá viviam “no tienen mas q el nonbre y no comer puerco”, pois tinham tomado essa fé havia pouco tempo. Sequer havia sacerdotes na região. [AGI, Fil, 84, 1] De acordo com Herrera, a definição dos nativos como mouros serviria apenas para justificar os roubos e escravidão contra os nativos. Em 1578, o governador Francisco de Sande, organizou uma jornada contra Borneo, Joló e 56 Mindanao, a fim de combater a influência islâmica nas ilhas. [AGI, Fil., 6, r. 3, 34; AGI, Fil., 6, r. 3, 35] Os religiosos agostinianos, no entanto, opuseram-se a tal política de conquista. O que se passava em Luzón era um processo de islamização, impulsionado pelos interesses religiosos e comerciais do sultanato de Borneo. Através de laços matrimoniais, comerciais e diplomáticos, o sultão de Borneo tentava tornar Manila e Sulu suas áreas de influência. [Donoso Jiménez, 2011, p. 454-464] Como já explicamos, para as elites locais do sudeste asiático converter-se ao islamismo era um importante passo para garantir contatos econômicos favoráveis com comerciantes muçulmanos, tanto com os de Borneo quanto os Hui. A presença espanhola no oriente mostrou-se determinante para o desenvolvimento histórico do arquipélago filipino. A jornada a Borneo executada por Sande não resultou em uma conquista territorial. No entanto, o ataque ao sultanato rompeu definitivamente as relações muçulmanas entre Luzón e Borneo. As elites nativas de Luzón e Sulu interromperam o processo de islamização e voltaram-se a um de cristianização, que não foi só compulsoriamente imposto pelas forças espanholas, mas também uma escolha interessada por parte destas mesmas elites. [Ibid., p. 467-469] O estabelecimento castelhano no arquipélago foi favorecido por um contexto positivo, pois coincide com a monetarização da economia chinesa. Nesse processo, os chineses sofreram com uma crise de superprodução de papel-moeda. Para sanar o problema os governantes Ming exigiam pagamento de impostos em metal. Assim, depois de anos de limitação comercial, o imperador chinês Long Qing, em 1567, aprovou abertura parcial para comerciantes de Fujián, o que também se fez por pressão dos comerciantes e elite política dessa região, incluindo os Hui. [Crewe, 2015, p. 345-346] Esse fato favoreceu o restabelecimento de relações comerciais regulares entre as ilhas Filipinas e o Celeste Império, desta vez entre espanhóis e chineses. Estes tinham grande interesse na prata mexicana, que chegava pelo Galeão de Manila. Já os comerciantes americanos ofereciam grandes quantidades de prata por porcelana, seda, jade, marfim e temperos. 57 A abertura de Fujián foi essencial para o estabelecimento espanhol no arquipélago filipino. [Ollé Rodríguez, 2001] Para os chineses a chegada dos espanhóis também foi muito interessante. Até 1640, o fluxo de prata para a China superava a quantidade remetida para a Europa. [Crewe, 2015] Consequência desse contato foi a grande presença chinesa no arquipélago. Com as frotas anuais, mais chineses passavam a residir no arquipélago. Estes foram chamados pelos espanhóis de sangleyes. Tal população foi essencial para Manila, não só pelo abastecimento que proviam anualmente, mas também por alimentar as rendas municipais com o aluguéis, taxas e licenças. [GarcíaAbásolo González, 2008] Em suas lojas e oficinas, os sangleyes ofereciam à comunidade serviços diversos: chapeleiros, sapateiros, alfaiates, carpinteiros, pedreiros etc. O jesuíta Pedro Chirino [1890, p. 18] afirmou que os chineses eram “todo el servicio de la republica”. Em 1571, quando da conquista de Manila, cerca de 40 chineses residiam na região. Um informe de 1586 alertava que os sangleyes eram mais de 10 mil. Vinte anos depois a população sangleye era próxima de 25 mil pessoas, o que superava em muito os cerca de mil hispânicos estabelecidos no arquipélago. [García-Abásolo González, 2004] Apesar de importantes, havia certa desconfiança, o que fez o governo castelhano nas ilhas adotar algumas medidas de controle. Em 1580, por influência dos agostinianos, o governo Gonzalo Ronquillo de Peñalosa ordenou a criação do Parián em Manila, bairro específico para os chineses, nos quais teriam suas casas, lojas e ficariam sob jurisdição de alcaide. [AGI, Fil., 84, 24] Nem todos os sangleyes viviam no Parián. Havia, nas áreas rurais, pescadores, criadores de gado e agricultores. Os que se convertiam ao cristianismo poderiam residir em qualquer lugar. Se por um lado a presença chinesa foi alavancada pela colonização espanhola, por outro, os povos nativos sofreram com grande declínio demográfico a partir de 1565. Os dados propostos pela geógrafa Linda Newson confirmam que a entrada dos espanhóis nas ilhas provocou mudanças drásticas. Em 1565, a população das regiões de Luzón e Visayas – o que exclui Mindanao, que estava sob controle dos muçulmanos – seria de aproximadamente 1,6 milhão de 58 pessoas. Passados 35 anos de presença espanhola no arquipélago, esse número teria caído para cerca de 1 milhão de pessoas, uma queda de 36%. Nas áreas com maior presença colonial essa queda beirou os 45%. Diferente da América, as doenças e epidemias não foram as principais causas desse declínio populacional, mas sim a ação colonial propriamente dita. [Newson, 2009] A população das ilhas Visayas vivia, em geral, em pequenos grupos populacionais, chefiados por um dato, líder hereditário, mas que tinha seu poder legitimado também por seu carisma, poder militar e riqueza. Esses dois últimos estavam diretamente relacionados ao número de dependentes e escravos sujeitos ao dato. Como o poder estava ligado à riqueza, as famílias tendiam a ser pequenas, para não dividir a herança em muitas partes (pois deveria ser dividida igualmente entre os herdeiros). Segundo o relato de Miguel de Loarca, não havia pobreza entre os pintados (forma como os espanhóis chamavam os cebuanos, por conta de suas tatuagens), pois eram acolhidos pelos ricos. Muitos sujeitavam-se a modalidades de escravidão para serem sustentados pelo dato. [AGI, Patronato, 23, 9] Portanto, nota-se que a escravidão vai muito além de uma situação de exploração do trabalho, era um meio de afirmação e social política. Era uma obrigação do dato acolher, sustentar e defender não só os escravos, mas também os livres, os timaguas. Cebu foi local do primeiro assentamento espanhol. Lá ocorreram as primeiras atividades militares hispânicas, tanto para submeter os nativos quanto para tomar riquezas e recursos de subsistência. Os religiosos agostinianos foram enfáticos ao denunciar a violência e abusos cometidos pelos colonos. [Rocha, 2016] O frei Diego Herrera afirmou que as atitudes dos espanhóis eram de pouco serviço a Deus e também ao monarca, “pues le destruyen buenas tierras”. [AGI, Fil, 84, 1] Explicou o frei que as estratégias indígenas para resistir à violência espanhola eram a fuga para o interior das ilhas e “no binefiçiar sus sementeras”. [AGI, Patronato, 24, 16] Um dos principais fatores para as frequentes fomes que ocorreram na região foi a alienação da terra. Tradicionalmente a terra era bem coletivo, apenas seu produto era controlado pelo dato. Assim, grande maioria dos nativos tinha acesso à terra. Com a política de alienação, incentivada pela colonização espanhola, os datos e ordens religiosas passaram a monopolizar o acesso às áreas de cultivo, 59 ficando restritas a grande parcela da população. [Newson, 2009, p. 105-106] A colonização também influenciou estruturas políticas e sociais locais. Como já dito, o dato era um posto hereditário. As autoridades hispânicas acabaram alterando essa estrutura, indicando para o posto quem lhes mais interessava, oferecendo privilégios e benefícios, como a propriedade da terra e isenções fiscais. Essa elite nativa, era chamada pelos espanhóis de cabezas de barangay. Selecionados pelo governo colonial, auxiliavam nos abusos e na extorsão fiscal. Outro efeito da presença espanhola no arquipélago que influenciou no despovoamento de Visayas são ataques dos muçulmanos de Mindanao e Sulu. O objetivo era o apresamento de indígenas, para serem vendidos como escravos a outros mercados como sultanatos vizinhos, navegantes neerlandeses e comerciantes chineses. Como a presença hispânica em Luzón e Visayas confirmou-se como um entrave à expansão comercial dos sultanatos de Mindanao e Sulu, a escravização e comércio de escravos tornaram-se alternativas econômicas relevantes para a manutenção da presença muçulmana nas ilhas do sul do arquipélago. Anualmente, cerca de mil nativos de Visayas eram capturados por essas incursões muçulmanas. [Newson, 2009, p. 33-34; 75; 85] Em Visayas os espanhóis fundaram duas cidades, Arévalo e Cebu. Mas tratavam-se de pequenos povoados. A população espanhola estava concentrada na cidade de Manila, na ilha de Luzón, para onde a colonização espanhola dirigiu efetivo em 1571. Luzón era uma região muito mais povoada e que também chamava a atenção por suas potenciais riquezas. [AGI, Patronato, 23, 21] Além disso, Manila era uma região em franco processo de islamização, o que aumentava o interesse e justificava espanhol na conquista da região. Em Luzón os espanhóis tiveram contato com o grupo cultural conhecido como Tagalog, um dos quais possuímos mais informações. Os tagalog habitavam barangays, comunidade autônoma, em geral, em conflito com outras unidades. Cada barangay era comandado por um dato, que tinha seu poder 60 vinculado às habilidades de comandar seu povo em guerra e de garantir sucesso comercial. Ponto de importante distinção entre os nativos de Visayas e os tagalog é a estrutura familiar. Para os tagalog uma família extensa era sinal de poder, isso refletia-se numa população muito mais densa e com maior capacidade de recuperação demográfica. [Newson, 2009, p. 136-137] A escravidão era uma instituição presente para em Luzón. O poder dos datos estava diretamente ligado ao maior número de pessoas sobre sua dependência, especialmente os escravos. Essa característica foi uma das que provocou mais conflitos entre o clero estabelecido nas ilhas e os poderes civis das Filipinas. Os colonos espanhóis justificavam que a escravidão era uma instituição própria dos nativos, assim, era justo que eles os comprassem. [AGI, Fil., 6, 1, 16] No entanto, como explicaram os freis agostinianos, a escravidão entre os tagalog possuía significados e práticas distintas do modelo europeu. Segundo frei Martin de Rada “los esclavos [sŌo] los mas libres que puede” [AGI, Fil. 79, 1], pois não tinham que obedecer em tudo a seu senhor. Os termos da escravidão eram distintos da tradição jurídica romanoocidental. Os escravos (alipin) eram divididos em duas classes: namamahay e gigilid. Namamahay eram devedores de tributos a quem era cedido um pedaço de terra para que ele pagasse com parte da produção a seu senhor. Os gigilid viviam sob o teto de seu amo. Eram serviçais domésticos, mas tratados como membros da família. No caso de serem prisioneiros, o tratamento era mais rígido. Os gigilid passavam ao status de namamahay ao contraírem matrimônio, e então poderiam trabalhar por sua liberdade. Além de prisioneiros de combate e devedores, a escravidão era transmitida hereditariamente, caso os pais estivessem em débito. [Nadeau, 2008] Para os cebuanos a escravidão também era diferenciada em grupos. O ayuey era o mais explorado por seu amo, devendo prestar três dias de serviço para este, tendo na sequência um para si. O tumaranpoc possuía sua própria casa, servindo a seu senhor por um dia, tendo três para si. Os tomatabanes não realizam trabalham agrícola, apenas serviam nos banquetes e bebedeiras (que não eram raros), mas também participavam do evento. [AGI, Patronato, 23, 9] 61 Apenas o endividamento tornava alguém em escravo, e quando a dívida era paga o indivíduo e sua família voltavam a ser livres. O processo de alienação, ocorrido com a terra, também ocorreu em relação aos escravos, que passaram a ser comercializados, por conta da presença espanhola. Além do apresamento direto, a opressão fiscal ampliava a instituição da escravidão entre os nativos, pelo endividamento e pelo fato de muitos datos pagarem os tributos exigidos com seus escravos, que até então não eram considerados propriedades. [AGI, Fil., 84, 4; AGI, Fil., 84, 15] Além da escravidão e do pagamento dos tributos, os nativos estavam sujeitos à prestação de serviços compulsórios, no regime denominado polo. Este sistema foi largamente denunciado pelos religiosos estabelecidos no arquipélago. [AGI, Fil. 84, 13; AGI, Fil. 84, 3] O instituto do polo foi o principal provocador de fugas e do declínio da população nativa. Apesar de muitos relatos destacarem a passividade e temor que os nativos tinham, submetendo-se facilmente à dominação espanhola, as revoltas e resistências foram constantes. A parte norte da ilha de Luzón, nas regiões de Ilocos e Pangasinan, por exemplo, foi conquistada apenas no século XIX. Descritos como belicosos e violentos, os relatos de suas atitudes provocavam temor nos colonos. A presença espanhola no oriente, durante quase quatro séculos, não foi fruto da mera construção dos galeões que viajavam entre Acapulco e Manila. O sustento dos colonos espanhóis nas Filipinas foram semeados por muçulmanos, cultivados por sangleyes e regados a sangue de tagalos, negros, cebuanos, sambales, catanduanes, tinguianes e muitos outros povos nativos do arquipélago. Referências Carlos Guilherme Rocha é mestre em História pela Unicamp e cursa doutorado em História no PPGH-UFF, onde desenvolve a tese “ExpansŌo da fé e justiça: o corpo eclesiástico e o governo das Ilhas Filipinas, 1565-1610”, sob orientaçŌo do prof. Dr. Marcelo da Rocha Wanderley. Esta pesquisa conta com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Email: carlosgrocha@yahoo.com.br 62 Fontes primárias Archivo General de Indias (AGI) – Unidade “Audiencia de Filipinas” CHIRINO, Pedro. Relación de las Islas Filipinas y de lo que en ellas han trabajado los padres de la Compañia de Jesús. Imprenta de D. Esteban Balbás: Manila, 1890. [1610] Bibliografia ALVA RODRÍGUEZ, Inmaculada. Vida municipal en Manila (siglos XVI y XVII). Córdoba (ES): Universidad de Córdoba, 1997. CREWE, Ryan Dominic. Pacific Purgatory: Spanish dominicans, chinese sangleys, and the entanglement of mission and commerce in Manila, 1580-1620. Journal of Early Modern History, 19, 2015. DONOSO JIMÉNEZ, Isaac. El islam en Filipinas (siglos XXIX). Tese de doutorado. San Vicente del Raspeig: Universidad de Alicante, 2011. GARCÍA-ABÁSOLO GONZÁLEZ, Antonio. Relaciones entre españoles y chinos em Filipinas. Siglos XVI y XVII. In: Anais do Congresso España y el Pacífico. Legazpi. Ed. L. Cabrero, Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, Tomo II, 2004. GARCÍA-ABÁSOLO GONZÁLEZ, António. El mundo chino del imperio español (1570-1755). In: Un océano de intercambios. 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Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2001. 63 ROCHA, Carlos. “Para a conversŌo das almas‟: conquista espiritual, governo civil e defesa dos nativos nas Filipinas. A época missionária, 1565-1581. Diálogos, Maringá, v. 20, n. 2, 2016. 64 EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS E DIVULGAÇÃO DA ARTE CHINESA Caroline Pires Ting 佛(fó) 朗(lǎng) 机(jī) fora o nome dado a Portugal, a primeira nação europeia a chegar à China, por via marítima. Como parte integrante do mundo colonial deste país, Macau integrava um complexo sistema que articulava territórios na Índia, na Indonésia, em vários pontos da África, além da América. Se as trocas culturais e as influências artísticas mútuas entre as colônias lusas, as quais certamente existiram, ainda estão por merecer estudos mais aprofundados, é fato que não foi empenho da Coroa portuguesa a divulgação de notícias, fosse em forma de textos ou de imagens, dos povos e das terras sob sua soberania. Segundo Valeria Piccoli, “as informações eram tratadas como segredo de Estado e tinham alcance restrito, circulando preferencialmente como manuscritos, na forma de relatos ou peças cartográficas” (in BARCINSKI, 2015, p. 63). Essa política é refletida numa escassez de estudos sobre as artes coloniais ultramarinas de Portugal, de modo geral. Até meados do século XIX, havia uma abundante documentação burocrática, mas escassa em termos de entendimento cultural da civilização chinesa. A obra Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China (Publisher Boston, J. Munroe & co.), publicada em 1836 por Anders Ljungstedt (1759-1835), atendia às necessidades dos colonialistas ocidentais do século XIX, que pretendiam conhecêla melhor com o objetivo de expandir a sua presença naquele território. Seriam poucos os intelectuais que buscariam estudá-la em caracteres mais amplos, sobretudo culturais. Assim, nosso estudo trata da participação efetiva de um acadêmico lusófono que se dedicou a superar a incompreensão do Leste Asiático: o macaense José Vicente Jorge exerceu notável trabalho, sobretudo, em prol da divulgação da cultura do País do Meio. Em seu prólogo, J. V. Jorge explica os motivos que o levaram a redigir sua obra Notas sobre a arte chinesa: o autor se considera imbuído do dever de "facultar a compreensão do belo" (JORGE, 1995, p.28). Tarefa essa, a seu ver, “é de todo aquele que cuida dos assuntos de arte”. Jorge critica a persistência da dificuldade lusitana em entender e interessar-se, de modo amplo, pela produção artística colonial: "a causa do desinteresse é geralmente a falta do 65 conhecimento", escreve o autor (Ibid., p.28). Segundo o colecionador de arte e escritor, passara-se o tempo em que os portugueses fizeram de Macau “um centro de exportaçŌo das belezas da China”, movidos pela expansŌo comercial ou pela apreciaçŌo do novo e do exótico, das identificações curiosas e singulares. J. V. Jorge afirma que tal procedimento teria marcado uma época e que, se tal interesse fora reduzido em Portugal, ocorrera de maneira diferente nas demais nações europeias, onde as artes locais, em suas diversas manifestações, sofreram influências do contato com o Oriente: “O Oriente, como é sabido, foi sempre uma fonte de inspiração inesgotável e a Europa, por vezes, quando cansada de motivos demasiadamente explorados, encontra nestas regiões distantes uma razão de ser diferente e estranha e recebe sofregamente o que de exótico e belo lhe emprestam as artes primitivas. Assim vamos encontrar, em muitas épocas e em muitas escolas, a bem acentuada influência das artes orientais, na música, na pintura, na escultura, na dança, no teatro, na cerâmica, etc., etc”. (JORGE, 1995, p.28) É importante conhecer mais a respeito do pano de fundo que se presta aos assuntos coloniais que se articula à estruturação de uma cultura visual, a qual deveria conservar “o sentimento nacional da arte”, como enunciado por Jorge. O livro Notas sobre a arte chinesa se inscreve cronologicamente na promoção das manifestações e produções artísticas coloniais da Exposição do Mundo Português de 1940, durante o regime político do Estado Novo, que vigorou em Portugal durante 41 anos sem interrupção, desde a aprovação da Constituição de 1933 até ao seu derrube pela Revolução de 25 de Abril de 1974. Nas palavras do autor: “Uma das obras interessantes do Estado Novo tem sido promover as manifestações artísticas e literárias de assuntos coloniais. Lembrando-me de que Macau é uma colónia portuguesa, há cerca de 400 anos, e de que não tem características próprias, mas sim aquelas que lhe vêm da civilização chinesa, julgome na obrigação de concorrer com os meus modestos conhecimentos das artes chinesas para despertar o interesse adormecido” (Ibid., p.29). 66 Macau teve presença marcante na exposição: foi recriada em Lisboa uma rua movimentada típica da cidade portuguesa na China". A entrada para a mesma ainda pode ser apreciada no local onde fora construída: Fonte da imagem: http://antoniodeoliveirasalazar.blogspot.com.br/2015/12/guiaoficial-para-exposicao-do-mundo.html Salazar desejava uma “grande exposiçŌo histórica” que exemplificasse a “açŌo civilizatória” e traçava “cada passo e vestígio” de Portugal pelo Globo. Ele propôs ainda a reprodução da “arquitetura característica de cada uma das 21 províncias portuguesas” com seus habitantes em vestimentas típicas. (Diário de Notícias, 27 de março de 1938, in DE MATOS; AYTON, 2013. p. 198). Fonte da imagem: http://macauantigo.blogspot.com.br/2013/07/exposicao-domundo-portugues-1940-fotos.html. Descrição: "Recordação: fotografia tirada na Exposição do Mundo Português na Rua de Macau com trajos chineses (...) 26 de Julho de 1940" - o estúdio fotográfico (que fez a revelação) ficava no nº 29 da Rua da Felicidade. 67 A Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa entre junho e dezembro de 1940, foi, além do primeiro grande evento cultural da ditadura do Estado Novo, o cume de sua propaganda "nacionalistaimperialista". A exposição tinha o duplo objetivo de comemorar a fundação da nação portuguesa (em 1140) e sua independência da Espanha (em 1640), tornando-se um veículo para a difusão e a legitimação da ideologia e dos valores da ditadura em que a ideia de nação foi (re)construída através de imagens, mitos e símbolos. A exemplo, a imagem abaixo apresenta a capa do livro sobre a Secção Colonial com uma das telas de Fausto Sampaio, escolhida para figurar na Exposição do Mundo Português, em Lisboa, em 1940, mesmo ano de publicação da obra de J. V. Jorge, com quem o pintor estabelecera relações amistosas. Exposição do Mundo Português: Secção Colonial, 1940, Lisboa. Precisamente 91 obras de arte de Sampaio foram ali expostas. Fonte da imagem: http://wolfsonian.fiu.edu/explore/collections/exposi%C3%A7%C3% A3o-do-mundo-portugues-sec%C3%A7%C3%A3o-colonial-1940lisboa-exposition-portuguese-w. José Vicente Jorge estabeleceu relações amistosas com o pintor português Fausto Sampaio durante o ano de 1936, em que este residiu em Macau e lá estabeleceu um ateliê. Devemos enfatizar que, ao contrário do que se poderia pensar, a obra de Jorge não estava enraizada em uma pesquisa puramente antropológica ou etnográfica. Ao juntar uma grande variedade de abordagens e referências, provenientes tanto de autores europeus quanto asiáticos, ele introduziu em seu livro inúmeras questões sobre a produção e a circulação dos objetos de arte chinesa elevando o status da estética chinesa. Sua análise acadêmica desta cultura, testemunhada por meio de seus ensaios e comentários, não se 68 prende à compreensão do orientalismo sob o viés do exotismo. Ainda parcamente estudada, sua obra é merecedora de maior atenção nos domínios da história da arte e da sinologia lusófona. Referências Caroline Ting é Pesquisadora-Jr. do Real Gabinete Português de Leitura ̸ Instituto Internacional de Macau; Doutoranda em História e Crítica da Arte – UERJ. Mail: carolting18@hotmail.com. Meus sinceros votos de agradecimentos a meus valiosos orientadores: - André Bueno, Prof. Dr. de Antiguidade Oriental – UERJ; - Vera Siqueira, Profa. Dra. de História da Arte – UERJ. BARCINSKI, Fabiana Werneck (org.). Sobre a arte brasileira da pré-história aos anos 1960. São Paulo, Sesc São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2015. JORGE, José Vicente. Notas sobre a arte chinesa; Introdução de Pedro barreiros. - 2. Ed. rev. e aum. il. Macau : Instituto Cultural de Macau, 1995. LJUNGSTEDT, Anders. Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China. Publisher Boston, J. Munroe & co., 1836. DE MATOS, Patrícia Ferraz; AYTON, Mark. The Colours of the Empire. Racialized Representations during Portuguese Colonialism. New York ; Oxford Berghahn cop. 2013. 69 70 HISTÓRIA DA ÁSIA E INTERDISCIPLINARIDADE NA EDUCAÇÃO BÁSICA: UM DUPLO DESAFIO Cyanna Missaglia de Fochesatto A interdisciplinaridade atualmente é uma palavra que se encontra irrevogavelmente aliada ao ensino. Proliferam pesquisas e trabalhos que colocam a interdisciplinaridade no centro da atuação decente como forma de dinamizar e enriquecer a educação. Observa-se ainda que este aspecto passou a ser contemplado há alguns anos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) fomentando o diálogo com outras disciplinas. Muito mais se aprende – especialmente na área das Ciências Humanas – quando se relaciona a disciplina e a matéria ministrada à outras áreas do saber. O ensino da história da Ásia vem recentemente crescendo na preocupação dos formadores educacionais, pois é recente a obrigatoriedade desta disciplina nos currículos escolares. Fato esse que colaborou, entre outros fatores, para colocar em discussão as falhas curriculares, indo desde a sua construção e seleção das disciplinas até uma visão – ainda – extremamente eurocêntrica de ensino da história. Há apenas alguns anos a história da Ásia, juntamente com história da África e o ensino de Libras, vêm sendo pensados dentro da perspectiva de novas formas de adaptação curricular que abordem estes temas, embora as próprias licenciaturas apresentem uma dificuldade em situar seu ensino nesses eixos, já que as formações de docentes especialistas nessas temáticas apresentam-se deficitárias. As exigências oriundas do MEC fizeram muitas licenciaturas reformularem seus currículos na busca de adaptar o ensino às essas novas demandas, enfatizando principalmente as relações étnicoraciais, o que claramente se configura em um avanço quando se visa uma educação integradora, humanizada, questionadora e reflexiva. No entanto, um dos problemas configura-se na formação de especialistas nestas áreas – África e, especialmente, Ásia, no Brasil. Portanto, é nesse contexto que buscamos abrir o diálogo para verificar alguns pontos sobre o ensino da história da Ásia na educação básica, sempre trazendo o olhar interdisciplinar dentro do debate, uma vez que é patente a relevância deste processo para pensar um ensino e uma educação de qualidade. Assim, esta breve reflexão configura-se em duas vias de análise, ou melhor, configurase num duplo desafio. O primeiro seria o desafio de ensinar a história da Ásia para alunos da educação básica e o segundo seria 71 relacionar este ensino à interdisciplinaridade. Pois, se esta palavra está diretamente ligada a uma nova visão de educação e ensino, torna-se também um desafio na formação profissional encontrar cursos de níveis superior que estejam colaborando de forma efetiva para o desenvolvimento de docentes interdisciplinares. O desafio de ensinar uma história asiática, enquanto as próprias graduações são precárias no ensino e na formação profissional de seus professores, eleva a reflexão para além da sala de aula escolar, pois uma boa formação, e também a busca de uma formação continuada seria o caminho para que o ensino desses “novos” conteúdos possa ser pensando de forma mais assertiva em diversos pontos. Como exemplo podemos citar a elaboração de um plano de ensino que possua um olhar menos generalista e voltado quase que completamente à uma visão eurocêntrica sobre questões tão particulares e complexas como se apresentam no enorme continente asiático. E, nesse caso, reforça-se a importância da interdisciplinaridade – tanto na formação do docente quanto do discente – para ensinar uma história oriental, considerando que ela perpassa pelas artes plásticas, literatura, teatro, música, matemática, sociologia, antropologia, geografia e inúmeros eixos de análise que só podem ser compreendidos de forma mais ampla quando se utiliza as diversas áreas do conhecimento como suporte. Enfim, são vastas as possibilidades de diálogo com todas as disciplinas que colaborem para uma dinâmica do conhecimento e do entendimento do mundo e da cultura asiática pelos alunos. Atualmente diversos estudos apontam que a utilização de diferentes fontes, temas, metodologias, disciplinas condicionam um ensino de qualidade na área da história, especialmente em terrenos poucos explorados como é o caso da história da Ásia, que embora desperte curiosidade, pouco ainda se produz na historiografia brasileira sobre o tema. Contudo, os problemas da formação docente, aliados a diversos outros fatores acabam por apresentarem um quadro desmotivacional no ambiente escolar. Seria possível pensar a interdisciplinaridade como uma ponte para um entendimento mais completo do conteúdo. Pois, através dela, torna-se possível fomentar um ensino mais crítico e globalizante, e os alunos mais conscientes e questionadores da sua própria realidade, especialmente quando conseguem fazer vínculos e associações com outras culturas e sociedades. Nesse caso, é possível observar que: “[...] a interdisciplinaridade implica, portanto, alguma reorganização do 72 processo de ensino/aprendizagem e supõe um trabalho continuado de cooperação dos professores envolvidos”. (POMBO, 1993, p. 13). Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio incentivam o uso da interdisciplinaridade como catalizador para explicar, compreender, intervir, mudar, prever, e até superar o saber – o que apenas uma disciplina sozinha muitas vezes fica impossibilitada. Ao estudar a interdisciplinaridade aliada a história ambiental, Enrique Leff (2000) destacou a importância de uma prática multidisciplinar que parte do diálogo colaborativo entre os diferentes saberes e formações disciplinares: “A interdisciplinaridade implica assim um processo de inter-relação de processos, conhecimentos e práticas que transborda e transcende o campo da pesquisa e do ensino no que se refere estritamente às disciplinas científicas e a suas possíveis articulações. Dessa maneira, o termo interdisciplinaridade vem sendo usado como sinônimo e metáfora de toda interconexŌo e “colaboraçŌo” entre diversos campos do conhecimento e do saber dentro de projetos que envolvem tanto as diferentes disciplinas acadêmicas, como as práticas não científicas que incluem as instituições e atores sociais diversos”. (LEFF, 2000, p. 22). O ensino da história asiática por si já se configura em um grande desafio uma vez que especialistas em história oriental são poucos no Brasil. O ensino da Ásia muitas vezes acaba ficando relegado a pequenos recortes e algumas atividades deslocadas – quando o tema não é ministrado como uma história menos importante e afastada da realidade do aluno, esquecendo que esse trata-se do maior continente da Terra, e que é possuidor de uma cultura peculiar, de um modo de vida que desperta a curiosidade, de produções artísticas ricas em termos de arquitetura e artes plásticas, de distinções comportamentais, estruturas políticas, econômicas e sociais que são complexas de compreender, especialmente por apontarem tantos elementos diferentes em relação – especialmente – ao continente americano. Essa carga de informações acaba, por motivos diversos, muitas vezes, caindo no erro de criar estereótipos ou simplificar uma cultura que passa longe de ser homogênea, aliás, como qualquer outra cultura ela é possuidora de particularidades específicas de sua formação estrutural, geográfica e social. Mas, ainda no pior dos cenários é possível que a má formação profissional, aliada a uma 73 formação que não é estimulada a ser continuada, que não é valorizada e aos demais fatores que formam o atual quadro docente no Brasil, possam vir a criam preconceitos sobre as diferenças culturais, especialmente a asiática, por ser tŌo “distante” da brasileira, em termos geográficos e culturais, e causar estranhamento. É possível perceber uma dificuldade inclusive na produção de materiais didáticos de apoio para o ensino de uma história da Ásia de qualidade. Por ser uma região tão grande e tão peculiar, muitas vezes encontram-se simplificações e erros que partem de determinados sensos comuns de todos os tipos, quando não julgam e condenam aspectos da cultura asiática, sem dar as bases para um ensino crítico. É preciso determinados cuidados para tratar de temas como por exemplo, o imperialismo, o colonialismo europeu na Ásia, bem como sua partilha, o resultado das Revoltas e das Guerras, como a Revolta do Cipaios na Índia, a Guerra do Ópio na China e demais conflitos armados, tal qual o impacto de todos esses eventos ainda nos dias de hoje no continente asiático, cuidado especialmente no ensino de forma deslocada do restante das sociedades. Por isso, sempre se faz necessário associar os processos políticos, sociais e econômicos, ocorridos em qualquer ponto do planeta, à realidade do aluno. Essa barreira só se vence através do intenso diálogo entre as diversas áreas do saber. E, talvez por isso, ocorra uma dificuldade maior em entender uma história asiática e vinculá-la não apenas ao presente, mas também relacioná-la de forma crítica a realidade dos alunos. O processo de colonização deixou um amplo rastro de pobreza visível ainda nos dias atuais, e não foi diferente no continente africano e na América do Sul, sendo este um desafio de ensaiar sem cair nos sensos comuns e principalmente em um ensino acrítico da realidade que os processos políticos deixaram em alguns países ao longo dos últimos séculos. É necessária uma grande sensibilidade para tratar essa e outras temáticas referentes ao ensino da Ásia e, portanto, a relevância de um ensino interdisciplinar e que se utiliza de diversas fontes, como filmes, documentários, imagens, documentação tornase fundamental para enriquecer a educação visando diminuir as lacunas nos conteúdos e no entendimento das matérias. Nesse caso, atenta-se que: “[...] os alunos já chegam à escola com um acúmulo de experiências vivenciadas em múltiplos espaços, através das quais podem elaborar uma cultura própria, uns „óculos‟ pelo qual vêem, sentem e atribuem sentido e significado ao mundo, à realidade onde se inserem”. (DAYRELL, 1996, p. 140). Dessa forma, o ensino de 74 uma história asiática crítica é fundamental, tanto do ponto de vista do conteúdo quando da própria necessidade de não subestimar a capacidade de entendimento do docente em nenhum espaço e em nenhuma área do conhecimento. Está posto o maior desafio: um ensino da história da Ásia interdisciplinar, crítico e relacional. A realidade do ensino é exposta principalmente quando encontramos as dificuldades de tratar determinados temas. Atualmente é um desafio ser professor em um país que parece retroceder a passos largos em relação a uma educação – especialmente pública e de qualidade. No entanto, o foco desta breve reflexão se situa no ensino da história asiática e na relação desta com a interdisciplinaridade. Tratamos, dessa forma, essas questões como um duplo desafio. O desafio de ensinar aquilo que muitas vezes não estamos formados ou preparados, sem cair no engano de simplificar e generalizar questões tão amplas como a cultura asiática; e, o outro desafio seria ensinar uma história asiática usufruindo de diversas fontes e disciplinas, buscando uma visão mais ampla através de um trabalho interdisciplinar, uma vez que os estudos mais recentes, incluindo aí as indicações e referências do Ministério da Educação (MEC) e da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que o ensino interdisciplinar agrega, dinamiza, enriquece e estimula uma educação de maior qualidade. O ensino de uma história asiática não é trabalho fácil, tampouco o ensino de uma história da África, tudo aquilo que se afasta da cultura vivenciada é um desafio de se entender. Nesse caso, o apoio de outras disciplinas, a busca de cursos de especialização e de extensão que estejam relacionados as novas demandas curriculares – focando no ensino étnico-racial e no ensino da África e da Ásia – pode ser uma forma de não cair em pequenos erros que ocorrem ao longo do processo de ensino-aprendizagem. A busca constante por fontes de informações diversas, a “sede” de saber docente e discente é o caminho mais seguro para traçar um ensino qualificado e também em fazer resistência àqueles que teimam em desqualificar o papel do educador em nossa sociedade. E, por fim, nada mais enriquecedor, em termos de cidadania e humanidade, do que o ensino crítico de diferentes culturas. Sendo essa a base da tolerância, do conhecimento e do debate. 75 Referências Cyanna Missaglia de Fochesatto é graduada em História pela PUCRS; Especialista em Estudos Culturais nos Currículos Escolares Contemporâneos na Educação Básica, pela UFRGS; Mestre em História pela Unisinos e Doutoranda em História pela Unisinos, onde é bolsista CAPES/Prosup. Possui interesses na área da educação e ensino, imagens e história. E-mail: cyanna.mf@gmail.com BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: História. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf> Acesso em: 20 ago. 2017. DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In. DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre a educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996. LEFF, Enrique. Interdisciplinaridade em ciências ambientais. São Paulo: Signus Editora, 2000. POMBO, Olga. O Conceito de Interdisciplinaridade e Conceitos Afins. In: POMBO, Olga; GUIMARÃES, Henrique M.; LEVY, Teresa. A Interdisciplinaridade: reflexão e experiência. Lisboa: Texto Editora, 1993. 76 “ESMAGUEM OS QUATRO ANTIGOS”: A REVOLUÇÃO CULTURAL PROLETÁRIA NA CHINA Daniele Prozczinski Os antecedentes da Revolução Cultural Proletária “A revoluçŌo democrática nŌo está concluída, pois as forças feudais, cheias de ódio ao socialismo, estão despertando problemas, sabotando as forças produtivas socialistas.” Mao Zedong (DIKÖTTER, 2016, p. 71) A Revolução Cultural Proletária correspondeu à fase mais radical da liderança de Mao Zedong, onde muitas pessoas foram perseguidas, torturadas e mortas injustamente. Com o desastre das políticas económicas do Grande Salto Adiante (1958-1962), que resultou em cerca de quarenta e cinco milhões de mortes (DIKOTTER, 2017, p. 10), havia grande insatisfação e divisão dentro do Partido Comunista Chinês (PCC). Todos os dias, chegavam notícias da devastação causada pelo Grande Salto Adiante. Pela primeira vez desde a tomada do poder em 1949, ecoavam dúvidas sobre a capacidade de liderança de Mao. Em 1962, Liu Shaoqi, presidente da República Popular da China (RPC), afirmou, na conferência de trabalho, com sete mil pessoas presentes, que a culpa do desastre absoluto do Grande Salto Adiante devia-se 70% ao homem e apenas 30% às calamidades naturais. Este encontro também foi muito importante para que as diferentes províncias da China pudessem comparar o que aconteceu, já que muitas apontavam para um desastre 100% humano. Neste momento, o partido tornou-se no maior obstáculo à visão de Mao para a China. Por outro lado, o Grande Timoreiro (como passou a ser aclamado), o responsável pela condução da revolução, denunciava a burocratização crescente e a predominância de um sistema de exclusão de cima para baixo. De nada adiantava a revolução se as mesmas práticas feudais continuassem a vigorar na China. Para além disso, sentia que os mais afortunados tinham acesso a melhores oportunidades do que os mais pobres. Os filhos de dirigentes do partido, por exemplo, tinham resultados superiores nos exames de admissão aos cargos públicos, que excluíam os camponeses, cuja vida não permitia a mesma preparação. Havia, igualmente, abuso de poder entre os membros da administração pública. Caminhava-se, segundo Mao, para a via do capitalismo, o 77 que rejeitava todos os pressupostos marxista-leninista que deram origem à RPC. A revolução não estava indo para o caminho certo e era preciso retomar o processo revolucionário. Desta forma, foi lançada uma forte campanha político-ideológica, com o objetivo de concretizar a verdadeira revolução socialista iniciada em 1949. Conforme afirma Harry Gelber, “aquilo de que se necessitava era de uma renovaçŌo do espírito revolucionário em cada uma das gerações, de uma ênfase no igualitarismo, do poder de mobilização das massas e da revolta contra tudo o que tresandasse à velha ordem.” (GELBER, 2008, p. 429) Os princípios da Revolução Cultural Proletária e os Guardas Vermelhos “A primeira coisa é a luta, a segunda é a crítica, a terceira é a transformação. A luta significa destruição e a transformaçŌo significa começar algo novo.” Mao Zedong (ZEDONG, 1966) A Revolução Cultural Proletária foi restrita ao ambiente urbano, onde a solução para a retomada da via revolucionária estava nos estudantes e nos jovens descontentes. O partido estava corrompido e precisava ser limpo pela mão da juventude, que, através da educação, compreendia a necessidade de luta e mudança, para além de representarem o futuro. Nas escolas, as crianças e os jovens aprendiam que Mao Zedong era o salvador da China, o homem que os livrou dos imperialistas ocidentais e colocou o país no caminho para o desenvolvimento econômico. Não obstante, a verdadeira campanha da revolução iniciou-se no exército, com o apoio do Ministro da Defesa, Lin Biao. Este, em 1964, publicou e mandou imprimir milhões de cópias das Citações do Pensamento de Mao Zedong, ou, como mais conhecido, do Livro Vermelho (cartaz de propaganda 1). A ideia era que a conscientização devia iniciar-se no exército, passando para as fábricas e depois para as escolas, atingindo, desta forma, um grande número de pessoas. 78 Cartaz de Propaganda 1: “Critica o mundo antigo e constrói um mundo novo usando o pensamento de Mao Zedong como arma.” In “Cultural Revolution Campaigns (1966-1976)”, 1966) O pequeno Livro Vermelho é composto por citações dos escritos e discursos de Mao, divididos por 23 temas, entre os quais o Partido Comunista, luta de classes e o heroísmo revolucionário. Nesta última seção, segundo Mao, “seja resoluto, nŌo tenha medo de sacrificar e superar todas as dificuldades para atingir a vitória.” (ZEDONG, [s.d.]) Havia também uma edição do livro com canções para alguns pensamentos selecionados, que animavam os jovens durante as suas jornadas. Para que a campanha fosse eficaz, era necessário destruir os quatro antigos: velhas ideias, velha cultura, velhos costumes e velhos hábitos. Este era um dos slogans de campanha política, repetida e repercutida por todo o território. Para que fosse possível construir algo novo, era preciso abandonar completamente os hábitos feudais, burgueses e capitalistas associados aos quatro antigos. Pensadores como Confúcio foram considerados contrarrevolucionários e banidos do ensino. Aliás, quem proferisse as suas ideias ou estivesse em posse dos seus escritos, era considerado um contrarrevolucionário e punido severamente. 79 Em 1964, Mao publicou no jornal Diário do Povo um artigo onde incitava os jovens a “aprenderem a fazer a revoluçŌo fazendo a revoluçŌo”. “Mao acreditava que eles poderiam se tornar dignos sucessores da revolução apenas se eles próprios participassem na revoluçŌo”(GAO, 1987, p. 15). Era dever destes jovens acabarem com todos que estavam seguindo o rumo capitalista e colocando em causa o projeto socialista. Adicionalmente, os jovens foram chamados a atacar os oficiais do partido e a substituírem-nos por verdadeiros revolucionários. Era a primeira vez que os jovens ocupavam o papel principal na construção do projeto maoísta, o que teve um impacto enorme nas suas vidas. Tinham mesmo poder contra os oficiais do PCC, representando a luta contra os inimigos de classe, que se opunham ao Presidente Mao. Formou-se, assim, os Guardas Vermelhos, jovens que, voluntariamente, aderiam à missão de salvar a revolução e erradicar todos os contrarrevolucionários. Os Guardas Vermelhos usavam braçadeiras vermelhas e deviam dedicar a sua vida à revolução. Nesta altura, até as aulas foram suspensas em 1966 para que os jovens pudessem dedicar-se à causa. Viagens de trem era grátis, assim como a comida e alojamento para todos os jovens que quisessem ir à Beijing. Pelo caminho, a sua missão era espalhar o pensamento de Mao Zedong. As viagens eram bastante atribuladas, com trens desumanamente cheios e caminhadas intermináveis. No entanto, os jovens seguiam animados e aceitavam o desafio como sendo parte de “aprender a fazer a revoluçŌo”. Quando caminhões militares passavam e ofereciam carona, os jovens recusavam, uma vez que deveriam andar enquanto disseminavam a mensagem do Presidente Mao. Nesta altura, o exército manteve-se afastado e deixou que os Guardas Vermelhos desempenhassem o seu papel, chegando a ser cerca de 10 milhões. Mao, aplaudia a ação dos jovens e acreditava que o radicalismo era o caminho certo a ser seguido. A China entrou em ebulição. Perseguições, reuniões de denúncia eram cada vez mais frequentes, mortes e suicídios. A pressão era tanta que muitas pessoas não aguentavam a humilhação constante e acabavam por tirar a sua própria vida. Nesta altura, Mao era pouco visto, para além dos seus discursos não serem transmitidos no rádio. Assim, a maior parte da população chinesa nunca nem tinha ouvido a voz do seu líder, apesar de lhe dever uma devoção total, como se fosse um Deus. O culto à personalidade de Mao era cada vez mais significativo e não havia possibilidade de contradizer essa realidade. Havia, inclusive, 80 as danças de lealdade, que deviam ser feitas duas vezes ao dia, em qualquer lugar onde a pessoa se encontrasse no momento. Em julho de 1966, Mao encontrava-se no norte da China e, para provar o seu poder, atravessou a nado a rio Yangzi. “Isso significava o mesmo que se a rainha Elizabeth II tivesse atravessado o Canal da Mancha a nado.” (FAIRBANK; GOLDMAN, 2007, p. 359) No cerne da revolução, estava a ideia de que a vida do campo era o exemplo mais correto a ser seguido. Devia-se, desta forma, eliminar todos os comportamentos claramente burgueses. Casas de jogos e chá foram encerradas, as flores e grama foram arrancadas, estátuas e tudo que lembrasse a China ancestral foi destruído. Livros antigos, romances burgueses, deviam ser queimados. Quem os possuísse e fosse apanhado, seria considerado um burguês contrarrevolucionário. “Escrever poesia tornou-se uma ocupação altamente perigosa.” (CHANG, 2016, p. 462) Como pena, seria denunciado, podendo ser destituído das suas funções e os seus bens pessoais confiscados. Segundo Jung Chang, que viveu na altura: “NŌo havia praticamente livros, nem filmes, nem música, nem teatro, nem museus, nem casas de chá, quase nada em que pudéssemos ocupar-nos – exceto os jogos de cartas que, embora sem terem sido oficialmente sancionados, estavam a fazer um discreto ressurgimento (...). Naturalmente, pertencer aos Guardas Vermelhos tornou-se a ocupação a tempo inteiro de muitos jovens. A única maneira que tinham de libertar as suas energias e frustrações era através de violentas denúncias e de batalhas verbais e físicas entre grupos. (CHANG, 2016, p. 456)” As reuniões de denúncia já existiam, mas, com a Revolução Cultural, ganharam outro peso. O denunciado era chamado a um local onde enfrentava, sozinho, várias pessoas que faziam as denúncias (Imagem 1). Normalmente colocados em posições desumanas, tendo que manter-se curvados, ou em cima de paus instáveis, carregavam um letreiro ou tinham um chapéu de burro, sendo acusados das maiores atrocidades. O pior é que, na maior parte dos casos, não correspondiam à verdade. Os perseguidos, muitas vezes, tinham feito parte da revolução que criou a República Popular da China e agora eram colocados nesta situação. Segundo Chang: 81 “Homens e mulheres que tinham lutado por uma China comunista, foram classificados como “traidores e espiões” e conheceram a prisão, brutais reuniões de denúncia e a tortura. De acordo com o relatório oficial posterior, na província vizinha de Sichuan, Yunnan, foram mortas mais de 14.000 pessoas. Na província de Herbei, que circunda Beijing, 84.000 pessoas foram presas e torturadas; milhares delas morreram.” (CHANG, 2016, p. 445) Imagem 1: Wang Yilun em sua reunião de denúncia, 1966 (“6 Most Evil Dictators and Their Notorious Mass Killings in Modern History - NTD.TV”, 2017) Muitos eram os que admitiam os crimes dos quais estavam a ser acusados, como ter comportamento burguês, apenas para poder acabar com a tortura física e psicológica. Uma vez condenados, toda a sua família sofria as consequências e eram considerados contrarrevolucionários burgueses. A solução, para algumas pessoas, era rejeitar o familiar condenado para que o resto da família não sofresse as consequências. Não havia ninguém que estivesse a salvo dos Guardas Vermelhos, não importava o quão importantes fossem dentro do partido. Liu Shaoqi, então presidente da RPC, foi despromovido de número 2 para número 8 na hierarquia do PCC, para além de ter sido preso, onde ficou até a sua morte. Crítico dos resultados do Grande Salto Adiante e dos contornos da Revolução Cultural Proletária, acabou 82 por sofrer as consequências. Deng Xiaoping também foi considerado contrarrevolucionário, e seguindo o rumo capitalista, e foi despromovido para número 6. Em 1967, a ação dos Guardas Vermelhos começou a sair do controle. Mesmo dentro do grupo, havia diferentes fações, entre os quais os que se intitulavam de Rebeldes. As fações dividiam-se, sobretudo, entre os filhos dos funcionários do PCC e dos que ocupavam cargos públicos, contra os de classe social mais baixa. Isto conduziu as zonas urbanas do país a uma situação de guerra civil, levando com que a intervençŌo militar fosse necessária. “Inevitavelmente, o fervor dos Guardas Vermelhos acabou por voltar-se contra os seus próprios camaradas e os grupos desenquadrados começaram a lutar uns contra os outros, num frenesim de acusações e destruiçŌo.” (GELBER, 2008, p. 433) Em julho de 1968, os Guardas Vermelhos estavam controlados, depois da sua dissolução pelo seu líder, Mao. Os jovens foram enviados para o campo, para uma reeducação através do trabalho. Foram adicionados às unidades de produção do campo, onde deveriam contribuir com o seu trabalho e aprender os modos de vida dos camponeses. Igualmente, tinham que estar presentes em reuniões de luta, onde mencionavam, em voz alta, todos os crimes ideológicos cometidos. “Segundo as estimativas, cerca de um milhŌo de pessoas foram vitimadas pela Revolução Cultural e um número considerável não sobreviveu. Para os chineses, tão sensíveis à opinião alheia, serem espancados e humilhados perante uma multidão escarnecedora, incluindo colegas e velhos amigos, era como ter a pele arrancada do corpo.” (FAIRBANK; GOLDMAN, 2007, p. 369) Em 1968, a confiança do PCC estava desfeita. Muitos dos seus membros foram retirados e substituídos por militares. Apesar de ter oficialmente acabado em 1968, os ecos da Revolução Cultural duraram até a morte de Mao Zedong, em 1976. Os erros da Revolução Cultural Proletária foram reconhecidos pelo próprio PCC, no documento adotado na sexta sessão plenária do décimo primeiro Comité do PCC, em 1981. Segundo o documento, os equívocos cometidos impediram que o país atingisse objetivos mais elevados de desenvolvimento (“Resolution on CPC History”, [s.d.]). Para muitas famílias que foram vítimas da Revolução, foi muito 83 importante que o partido assumisse que o caminho errado foi tomado, foi uma forma de reconhecer todas as injustiças e sofrimentos causados. Conclusões A Revolução Cultural Proletária foi o período mais radical e turbulento de toda a história da República Popular da China. Como futuro do país, os jovens foram incitados a fazer a revolução, tendo o seu guia na educação fervorosa do pensamento de Mao Zedong. Carregavam o grande peso de exterminarem os contrarrevolucionários, que colocavam em causa todos os princípios da revolução. Muitos são os historiadores que classificam essa altura como uma autêntica lavagem cerebral, onde a glorificação de Mao e de tudo o que dizia e pedia foi levado ao extremo. Muitos são, nos dias de hoje, os Guardas Vermelhos que afirmam a força do pensamento único, onde não se questionava a possibilidade de serse diferente, o que os levou a cometer grandes atrocidades, perseguir inocentes, levar pessoas ao limite da humilhação, à tortura e à morte. Para Chang, “A RevoluçŌo Cultural destruiu a adolescência normal, com todas as suas armadilhas, e lançou-nos diretamente para uma idade adulta responsável muito antes de fazermos vinte anos.” (CHANG, 2016, p. 456) Paralelamente, arruinou a vida de incontáveis pessoas, cujos impactos ainda hoje sofrem. Desde o seu início, em 1966, até o seu término, em 1976, foram dez anos de perseguições, desconfiança e medo constante. Referências Daniele Prozczinski é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista CAPES. E-mail: danieleprozi@gmail.com As traduções das obras em inglês foram feitas pela autora, visando manter a fluência textual para o leitor. 6 Most Evil Dictators and Their Notorious Mass Killings in Modern History - NTD.TV. www.ntd.tv, 8 jan. 2017. Disponível em: <http://www.ntd.tv/2017/01/08/6-evil-dictators-notoriousmass-killings-modern-history/>. Acesso em: 16 jan. 2017 BOYLE, J. 11 slogans that changed China. 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Quotations from Mao Tse Tung — Chapter 19. Disponível em: <https://www.marxists.org/reference/archive/mao/works/redbook/ch19.htm>. Acesso em: 16 jan. 2017. 85 86 HISTÓRIA E ANIMES: A UTILIZAÇÃO DE ANIMES PARA O ENSINO SOBRE HISTÓRIA DO JAPÃO Débora Dorneles Uchaski Atualmente quando nós educadores da História nos deparamos com a sala de aula, percebemos que o método tradicional tem se tornado cada vez mais ineficaz para que o docente realize o seu processo de ensino-aprendizagem e de formação identitária. Por tal razão, se faz necessário a utilização de novos recursos e métodos para acompanhar o ritmo acelerado da sociedade em que estamos inseridos. “Vivemos em uma sociedade audiovisual, estamos a todos os momentos voltados para uma tela, seja de um smartphone, computador ou televisão. Da mesma forma que a sociedade muda, as instituições também devem se adaptar. Não é raro observar em uma sala de aula, um aluno voltado para o celular enquanto o professor disputa sua atenção utilizando o livro didático. (Uchaski, Paiva. 2016)” De acordo com Maffesoli (2004) vivemos em um “mundo imaginal”, um mundo perpassado pela imagem, pelo simbólico, em que a imagem se tornou o principal elemento do vinculo social. Portanto, cabe ao professor, adaptar seus métodos e recursos, compreendendo o papel fundamental que as mídias audiovisuais exercem na vida dos educandos, logo, deve pensar maneiras de melhor aproveitá-las em sala de aula. Um recurso riquíssimo, porém pouco utilizado, que pode ser utilizado em sala de aula, é o da animação, lembrando que se deve ter alguns cuidados. “A desordem cultural persistirá enquanto a escola pretender educar as crianças com instrumentos e sistemas que tiveram validade há 50 anos (…). SubsistirŌo as lições, os braços cruzados, as memorizações, enquanto fora da escola haverá uma avalanche de imagens e de cinema.” (BENCINI, 2005, p.03 apud FREINET) Quando tratamos do ensino da História Oriental, o problema se intensifica ainda mais, em função do ensino eurocêntrico a qual a sociedade ocidental está inserida. Para isso, é necessário que 87 entendamos o conceito de eurocentrismo, que corresponde a uma expressão da ideia de Europa como centro do mundo, desclassificando o restante das culturas mundiais. Essa visão vem sendo utilizada até hoje, tanto que criou um véu sobre a história de outras nações, como as asiáticas e africanas. Nós ocidentais sabemos muito pouco sobre essas outras nações, pois estamos embebidos de fontes eurocêntricas que formam a nossa concepção de história mundial. “Se entende que a “Modernidade” da Europa será a operação das possibilidades que se abrem por sua “centralidade” na História Mundial, e a constituiçŌo de todas as outras culturas como sua “periferia”, poder-se-á compreender que, ainda que toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender identificar-se com a “universalidademundialidade”” (Dussel, 2005) Porém, essa exclusão histórica é negativa já que ignora as contribuições de outras nações para a história e diversidade sociocultural do mundo, é este um dos principais motivadores para a concretização deste artigo sobre a história asiática, focada principalmente na utilização de animes como recurso didáticopedagógico nas aulas de história, para podermos tratar da História do Japão. O docente ao realizar o planejamento de temáticas como a História do Japão, encontrará diversos problemas, como a falta de material traduzido, muitas fontes criadas por ocidentais e o esvaziamento do debate sobre o assunto. Por isto, cabe a nós professores a difícil função de pesquisar ainda mais sobre tais temáticas e utilizarmos de recursos didático-pedagógicos capazes de alcançar o interesse e proporcionar o processo de ensino-aprendizagem. O referido artigo visa contribuir com idéias e informações para a realização do planejamento de aula sobre a História do Japão, utilizando de animes que contam a História do Japão. Entre eles, podemos citar: Samurai X, Sen Goku Basara, Brave 10, Hyounge Mono, etc. Porém, para isso é necessário que trabalhemos a História do Japão e salientando os animes que representam determinado período. 88 É importante salientar, que para realizarmos uma atividade com o uso de animes é necessário que se tenha um aparato, como a utilização de roteiros e questionários, para não tornar nossa aula uma sessŌo “pipoca”, mas buscarmos conhecimento de uma forma divertida. Feudalismo nipônico, de Kamakura à Tokugawa O Xogunato também conhecido como Bakufu (que significa “governo da tenda”) foi um período onde o JapŌo vivenciou um governo onde houve uma duplicidade do poder e de relacionamentos entre dois regimes, um comandado por uma elite guerreira composta por clãs samurais e secundariamente outro liderado pelo Imperador. O Xogunato era liderado por um Xógun que respondia em nome do imperador, esta forma de governo se perpetuou por setecentos anos e só foi se findar quando se iniciou a Era Meiji. Ficou também conhecido como feudalismo nipônico. O Xogunato é um regime baseado em relações de vassalagem e suserania, onde o Xógun estabelece uma relação com os senhores feudais e estes por sua vez estabelecem relações com os lavradores em troca de terras para o cultivo e proteção. Desde que o Xogunato foi estabelecido em 1185, ocorreram diversos conflitos entre os clãs com o intuito de disputa de liderança deste regime. Então, em 1192, Minamoto Yoritomo declara-se Xógun, que significa “grande general supremo conquistador de bárbaros”, dando início ao Xogunato Kamakura, o primeiro das três dinastias: Minamoto (1192-1333), Ashikaga (1338-1573) e Tokugawa (1603-1868). O primeiro contato com os portugueses se dá em 1543, uma das embarcações em função de uma tempestade, acabam ancorando em território japonês (Tanegashima) ao sul de Kyushu. Os portugueses traziam consigo arcabuzes (armas de fogo) o que gera bastante interesse por parte dos japoneses que até então não tinham contato com esse tipo de armamento. Os daimyos se antenam em aprender o manejo e como fabricá-las, logo teremos uma transformação bastante expressiva da arte da guerra. Logo, estabelecem relações comerciais com portugueses e espanhóis. Lembrando, que os ocidentais faziam comércio e guerras com o intuito da disseminaçŌo da “Palavra de Deus”, portanto, evidentemente começam a chegar ao Japão membros da Companhia 89 de Jesus e Jesuítas, com o intuito de pregar o Evangelho aos nipônicos. Os japoneses enfrentavam nesse momento um período difícil de intensos conflitos internos, dominado pelas guerras feudais, causando um vazio espiritual e uma busca de respostas, já que o budismo e o xintoísmo se encontravam em total decadência, o cristianismo se propaga rapidamente entre os daimyos, samurais e o povo comum do Japão. Nobunaga, simpatiza com os missionários ocidentais, permitindo que os jesuítas fundem igrejas e um seminário para a educação dos filhos dos senhores feudais e dos nobres. Após a morte de Nobunaga Oda, quem assume o poder é Hideyoshi Toyotomi, este concluíra a obra de unificação iniciada por Oda e caberá a ele o mérito de findar o Sengoku Jidai. A grande maioria dos animes japoneses representam o período do Sengoku Jidai, que representa o fim da dinastia Ashikaga, e passa-se a um período de instabilidade e guerra civil japonesa que ocorreu em torno de 1600, onde diversos clãs se unem para tomar o poder de Xógun, já que a dinastia Ashikaga apresentava séria crise a quase quatrocentos anos, na disputa Tokugawa toma o poder, iniciando a dinastia Tokugawa que vai de 1603 à 1868. Entre os animes, podemos citar: Samurai Deeper Kyo é um anime que foi lançado em 2002 inspirado em um mangá escrito por Akamine Kamijou. O anime se passa em torno de 1600, na famosa Batalha de Sekigahara, contando a história de um samurai chamado Kyo, os olhos do demonio, assim chamado por ter os olhos vermelhos e por ter matado mais de 1000 homens. Durante a batalha com Mibu Kyoshiro, um meteoro cai, levando aparentemente ambos a morte. Quatro anos depois, Kyoshiro reaparece como um vendedor, sendo perseguido por uma caçadora de recompensas, por não ter pago uma conta de um restaurante. Durante uma desavença com um samurai (na realidade, um monstro), seus olhos se tornam vermelhos, percebendo que de alguma forma, o espírito de Kyo está aprisionado no corpo de Kyoshiro. 90 O anime Sengoku Basara foi lançado em 2009, inspirado em um jogo eletrônico. Sua história se passa no período do Sengoku, um período onde o Japão vivenciou um intensa disputa entre clãs pelo domínio do Xogunato. O anime unirá diversos personagens e eventos importantes na história do Japão em uma única história: enfrentar Oda Nobunaga, o Demônio Rei, daymio do Estado de Owari. Brave 10 é um anime que foi criado por Kairi Shimotsuki sendo lançado em 2007, inspirado em mangá. Sua história também se passa no período do Sengoku, e o anime mostra o período histórico onde Yukimura Sanada entra em conflito com Tokugawa Ieyasu. O anime conta a história de Isanami, uma sobrevivente ao ataque de Tokugawa ao templo de Izumo. Ela em fuga tenta ir a Shinshuu pedir ajuda a Yukimura Sanada, mas no caminho se encontra um samurai falido chamado Saizou Kirigakure, que mesmo meio contra a sua vontade a ajuda. Hyounge Mono provém de um mangá criado por Yoshihiro Yamada, que foi publicado em 2011. Sua história, assim como Sengoku Basara e Brave 10, se passa no período Sengoku, período de conflitos internos japoneses. O anime relata a história da guerra civil japonesa, salientando a figura “terrível” de Nobunaga Oda, nesta era o senhor da guerra Furuta Sasuke perde sua alma para a cerimônia do chá. Enquanto a guerra abala todo o Japão, Sasuke enfrenta seu próprio conflito interno, entre seu desejo de promoção e seu amor por sua arte. Essas mudanças na realidade do Japão alterará a receptividade do catolicismo na região. Então em 1587, Hideyoshi proibirá o cristianismo. “Político realista, Hideyoshi pressente o perigo da colonização europeia. E as disputas entre as diversas ordens religiosas católicas e entre católicos e protestantes então travadas em diversos recantos do globo aumentam as suspeitas do kampaku. Julga que os sacerdotes estrangeiros não somente visam a conversão do povo japonês à religião católica, como procuram estabelecer o poder político lusitano ou espanhol nas ilhas nipônicas.” (Yamashiro, 1978, p.114) 91 Esse pressentimento de Hideyoshi é baseado no relato de um capitão espanhol que conta orgulhoso como os sacerdotes os ajudaram a aumentar o horizonte de suas fronteiras, além de relatos de holandeses e outros. Outro fatos que colaborou foi que o Xógun ao ir até uma das naus portuguesas para se encontrar com o Padre Coelho, verificou que o barco estava cheio de armamentos pesados. Neste momento (1587), o kampaku manda prender os sacerdotes que estavam no barco do espanhol e chegando a Nagasaki os executa juntamente a 20 (vinte) católicos nipônicos. Ainda assim, o catolicismo já se encontra bastante arraigado entre os nipônicos, a ponto de a ordem de Hideyoshi não conseguir sucesso em extinguir de uma só vez o cristianismo. “O único perigo vinha dos missionários cristŌos; (…) da estreita ligação dos capitães portugueses com os missionários e precisar que ela inevitável, pois a Coroa de Portugal estava historicamente vinculada à evangelização do Oriente, em virtude do jus patronatos; os missionários trabalhavam pela grandeza e pela glória de Portugal: não era de São Francisco Xavier legado do Papa e inspetor das missões reais? A obra missionária, obra nacional alimentada pelas rendas da Coroa, não podia deixar de confundir-se com a obra comercial e política.” (PANNIKAR, 1977, p.86-87) Quando Ieyasu Tokugawa assume o poder (1603) ele tenta reatar as relações externas permitindo o culto ao cristianismo. Porém, novamente o Xógun começa a recear que a disseminação dos costumes e hábitos liberais dos ocidentais venham prejudicar a legitimação do Xogunato. Entre estes, o culto a um Deus onipotente que ameaça diretamente à autoridade absoluta do Xógun. Tokugawa intensifica a repressão ao cristianismo, expulsa todos os estrangeiros do país e decreta em 1639 o ato que estabelecia o isolacionismo do Japão. Outro fator que pode ter ocasionado a expulsão dos estrangeiros é que durante o período Tokugawa, alguns clãs se tornam insubmissos como os Choshu e os Satsuma, e o Xógun receava que estes clãs se unissem aos estrangeiros e adquirissem armamento para tentar se levantarem contra o Xogunato. 92 Outro período importante retratado por animes da História do Japão, é o momento onde o Xógum Tokugawa proíbe o Cristianismo no JapŌo e inicia um “guerra santa” contra os cristŌos. Dois animes tratam disso: Makai Tenshou (mais conhecido como Ninja Ressurection) e Samurai Champloo. Ninja Ressurection é um anime dirijido por Yasunori Urata, lançado em 1998. Sua história ocorre na Era Edo, onde o Xógun teria banido o Cristianismo e inicia-se uma perseguição a adeptos a esta religião. Porém este anime por ter um caráter violentíssimo acabou não sendo levado a diante devido a violenta reação do público japonês a ele. O anime conta a história de Shiro Amakuza, um samurai cristão, que defende uma fazenda onde se cultua a Virgem Maria. Os cristãos o veem como seu Salvador. Porém sobre constantes ataques, acabam sendo derrotados pelas tropas de Tokugawa. Não recomendo o anime na íntegra para utilização em sala de aula devido ao excesso de violência, mas alguns trechos são interessantes. Já Samurai Champloo criado por Shinichiro Watanabe, sendo lançado em 2004-2005. O anime se passa na Era Edo, porém mistura elementos históricos com alguns elementos modernos ligados ao Hip Hop. A história retrata o período onde o Japão tinha aplicado sua política isolacionista e iniciado a “guerra santa” contra os cristãos. Retrata outra questão histórica importante: momento em que os samurais e famílias respeitáveis vão transformando-se em meros administradores e políticos. O anime conta a história de Fuu, uma adolescente de 15 anos, que sai em busca de um “samurai que tem cheiro de girassóis”, na sua jornada encontra-se com Mugên e Jin, que devido a uma aposta estúpida, seguem a jornada com ela. Da dinastia Tokugawa à era Meiji Quando se trata da Era Meiji, temos um anime de renome para tratar esse período de modernização do Japão. A qual os samurais foram extintos, e o anime é o Rurouni Kenshin, ou mais conhecido como Samurai X. Seu criador foi Nobuhiro Watsuki e foi lançado entre os anos de 1994 e 1999, surgindo diversos filmes posteriores. Sua história se passa no fim do Xogunato e início da Era Meiji, em um período onde os Samurais haviam sido proibidos de utilizar suas espadas. O anime conta a história de Kenshin Himura, um espadachim pacífico que após a grande matança do período do Bakumatsu, prometeu nunca mais matar. Passando a viver como 93 ronin (andarilho) até encontrar o Dojo Kamiya, onde passa a viver junto com Kaoru Kamiya, uma professora de kendo. Peacemaker Kurogane é um mangá e anime escrito por Nanae Chrono, lançado pela editora Gonzo em 2003. O roteiro se passa durante o Bakumatsu. Nesse período os irmãos Ichimura Tetsunosuke e Ichimura Tatsunosuke, dois irmãos órfãos, se alistam no Shinsengumi, a famosa “tropa de elite” do Xogunato no século XIX. Tetsu quer se alistar no Shinsengumi como um Homem de Batalhas, ele tem o intuito de se vingar pela morte de seus pais. O objetivo de Tatsu é financeiro, procura manter uma qualidade de vida para viver com seu irmão. Acontece que o pai dos dois irmãos foi morto pelos Monarquistas. Cabe salientar, que o Shinsengumi existiu realmente, sendo uma tropa de espadachins sobre o mando do Xógun, normalmente iam ao encontro de rebeldes e os exterminavam. Seu ápice foi no Incidente de Ikedaya, que ocorreu em 1864, na cidade de Kyoto, onde o Shinsengumi realiza um massacre a grupos monarquistas (rebeldes). Esse acontecimento é retratado nos animes Peacemaker Kurogane e no Rurouni Kenshin. Outro anime que retrata os últimos anos da Era Edo, é o Bakumatsu Kikansetsu Irohanihoheto, se passa no período Bakumatsu que ocorre entre 1853 e 1867, quando o Japão acaba com sua política isolacionista e inicia-se o período de modernização do Japão, dando início posteriormente a Era Meiji. O anime retrata a Guerra do ano do Dragão, ou Guerra Boshin, mostrando personagens históricos importantes como Enomoto Takeaki (presidente da república de Ezo) e Hijikata Toshizou (o último membro vivo do Shinsengumi). O anime conta a história de Akizuki Yojiro, um mercenário que possui habilidades muito especiais com sua espada Getsuruito. Viajando pelo Japão, em busca de itens sobrenaturais, acaba se deparando com um teatro itinerante onde seus membros tem suas próprias obscuridades. Considerações finais Considero, portanto, que a utilização de animes em aulas de História, pode ser uma grande experiência tanto para o educador quanto para os educandos. Proporcionando uma aula diferenciada, com recursos lúdicos, permitindo que o aluno tenha uma outra concepção sobre o estudo da história. Porém, para que seja uma 94 experiência positiva é necessário que o professor realize um planejamento e se prepare em nível teórico e técnico. Conhecimentos básicos sobre animações e relação cinema-história, sobre as teorias da comunicação e da educação, a linguagem e das técnicas audiovisuais. Acredito que muito das técnicas se aprende fazendo, portanto o professor tem que se arriscar e ousar em sala de aula, mesmo não obtendo todos os conhecimentos, pois a experiência gera o conhecimento e o aprendizado de como fazer melhor em planejamentos futuros. Cabe salientar, que ao trabalharmos temas como a História do Japão, estamos rompendo com o ensino eurocêntrico, passando a perceber o oriental como peça fundamental da história mundial. E para isso, utilizando de recursos que geram interesse e divertimento para nossos alunos. É bom frisarmos que o conhecimento não surge apenas de assistirmos os animes com os alunos, mas de buscar questionamentos e reflexões em cima destes, proponho portanto que o professor utilize sempre de outros recursos como suporte, por exemplo, o uso de questionários, textos, roteiros ou então incentive o trabalho de pesquisa dos alunos. Para que não se torne, um conhecimento vago e superficial. Referências Débora Dorneles Uchaski é graduanda do 8º semestre de História pela Faculdade Porto-Alegrense. E-mail: duchaski@gmail.com BENCINI, Roberta. O filme na aula de História. Revista Escola, 2005. DUSSEL, Enrique. Europa, Modernidade e Eurocentrismo: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. CLACSO, 2005. MAFFESOLI, M. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004. PANNIKAR, K.M. A dominação ocidental na Ásia. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1977. UCHASKI, Débora. PAIVA, Ismael. História e Cinema: A utilização de recursos cinematográficos em aulas de História. In: BUENO, André; CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José Maria [org.] Jardim de Histórias: discussões e experiências em aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Ebook LAPHIS/Sobre Ontens, pág.305- 312,2017. 95 YAMASHIRO, Jose. Pequena História do Japão. São Paulo, 1978. 96 BREVE ESTUDO DO JAPÃO EDO: PODER E LEI NOS GOVERNOS DO XOGUNATO TOKUGAWA (1603-1868) Diego Almeida de Sousa O governo Tokugawa pode ser visto como uma ruptura acontecimental no processo histórico do Japão, devido a diversas peculiaridades e características de um contexto de transformações e eclosões em diversas áreas. Como a amplitude de seu poderio sem precedentes sobre o Imperador, a Corte, os Daimiô, e sobre as ordens religiosas. O Imperador é a fonte de legitimação política do xogum, que noutros tempos configurava "vassalo" da família imperial. É notável como há uma ressignificação na questão do poder, e nas relações entre as partes em torno do mesmo, com a ascensão sem precedentes efetuada pelo xogum neste contexto. Deste modo diferentemente do costumeiro os Tokugawa, ou seja, o xogunato, ajudam a família imperial a se recompor, recuperando suas "glórias", reconstruindo seus palácios, e lhe doando territórios. Sendo que em 1619 a neta de Ieyasu é feita consorte imperial, aproximando ainda mais os laços entre poder militar e o símbolo do imperador. A partir da leitura do contexto é possível inferir que descontinuidades são cíclicas e constantes, assim como as rupturas durante a história, e que esta não se constitui somente por meio de continuidades e tradições, mas principalmente de ressignificações e rearranjos. É possível tomar algumas das diversas medidas xogunais por análise e discorrer sobre as mesmas para elucidar como tal xogunato incide sobre o cotidiano e expande as noções de governo. Fazendo uso da criação de um código de leis estabelece-se meios para regular as casas dos Daimiô e, portanto, o cotidiano, práticas e costumes. Ou seja, dar novos tons ao meio social e cultural, incidindo diretamente sobre a vida dos sujeitos no período. O período Edo tem uma complexa rede de relações, e estratificações articuladas de maneira que em similitudes e dessemelhanças os distintos personagens são realocados socialmente. Exprimindo distintos valores dentro da dinâmica de diálogo entre os diferentes. Devemos nos perguntar como para além de limites se formam caminhos? Como do "silêncio" ecoam discursos? Neste momento 97 vamos a uma melhor explanação sobre os Daimiô estratificados por critérios estratégicos, neste caso de suma importância, pois o Japão acabara de viver um processo de extensas batalhas e cisões sendo sua unificação recente e ainda instável. Podemos destacar as distinções do período Edo quanto aos Daimiô segundo o regime Tokugawa entre os Shinpan Daimyō, ou "casas aparentadas", próximos dos Tokugawa, constituindo vinte e três Daimiô nas terras fronteiriças, estes eram de alguma forma "familiares" de Ieyasu. Os shinpan eram os possuidores de títulos mais honorários, e postos de conselheiros. Haviam também os Fudai Daimiô ou "damiô da casa”, vassalos hereditários do clŌ Tokugawa, os primeiros a se posicionar ao lado do clã no processo de conquista do poder, foram recompensados com terras próximas as dos Tokugawa, por lealdade e serviços prestados. No século XVIII, 145 fudai detinham o controle de hans sendo o maior deles avaliado por 250.000 koku. É crucial destacar que estes eram os principais representantes presentes na maior parte dos ofícios importantes do bakufu ou seja, ocupavam cargos de confiança no governo. O terceiro grupo é formado por Noventa e sete hans, os Tozama Daimyō, "vassalos de fora", constituídos por ex-inimigos e novos aliados, que somente se aliaram após a Batalha de Sekigahara. Estes eram localizados em grande maioria nas periferias do arquipélago e controlavam de forma geral uma quantia de 10 milhões de koku de terra produtiva. Por serem Daimiô "menos dignos", e de menor confiança, eram corriqueiramente tratados com maior cautela e "agraciados” com maior generosidade, porém ficavam excluídos em posições no governo central. Surgem códigos visando diversos aspectos como vestimenta e suas características, modelos, cores, cortes, casamentos, cerimoniais e restrições múltiplas. Sobre o número e tipos de armas permitidas e até envolvendo a vida "privada" e a conduta a ser adotada. Com a implementação do sistema Sankin kotai (1635-1862), "presença alternada", que estabelecia o estado de residência rotativa obrigatória entre a cidade de Edo e o han por parte dos Daimiô. De forma mais simplificada podemos discorrer que se vivia um ano em suas propriedades e o ano seguinte em uma residência que deveria ser construída na cidade de Edo (capital do xogunato) deixando esposa e herdeiros permanentemente em Edo. 98 O que é abordado por muitos como "estado de refém", porém vejo algo muito mais complexo que propiciou um trânsito intenso modificando o cotidiano e contribuindo indiretamente para o estabelecimento de novos contatos e relações diversificadas. Para além de ver uma opressão ou mera medida restritiva, as perspectivas abordadas neste ensaio são as múltiplas direções que "se abrem ao encontrar uma barreira pela frente", medidas não são totalmente controláveis e levam sempre a outros acontecimentos. Por exemplo a disseminação de práticas assim como a necessidade de novas representações que dialoguem com a dinâmica do contexto, e a proliferação cultural em meio a relações mais complexas, propiciam diversos efeitos pois por onde o homem passa, ele não vai sozinho pois carrega consigo uma série de signos, costumes, visões de mundo et al. O deslocamento mencionado envolvia gastos múltiplos e mobilizações de grupos inteiros de servidores que acontecia de acordo com a variável de suas próprias posses. O que devido a gastos constantes dificultava a fabricação bélica e despesas militares. Portanto dificultaria uma rebelião contra o xogum. Abrangendo, porém muito além do mero controle político-administrativo diretamente por parte do xogunato. De acordo com a relação sujeito-outro, há uma grande preparação para tais viagens tornando o trajeto em uma exibição de potências dentro do novo arranjo social. Que contribui para o desenvolvimento de uma cultura mais móvel, menos fechada e independente, florescendo o contato entre distintos sujeitos, principalmente com relação a grande cidade de Edo e seu multiculturalismo efervescente. Tais procissões contínuas criaram através de um trânsito constante a necessidade e, portanto, estímulos às mudanças, como a construção de estradas apropriadas, pontes (sob estrito controle xogunal), edificação de lojas que eclodem aos montes, por todas as rotas principais e nas grandes cidades, com destaque para Edo. Com finalidade de atender uma nova demanda, para além do "necessário”, uma cultura comercial se desenvolveu passando em certo ponto a ditar a demanda e não o inverso. Tal movimentação não abarca somente os Daimiô, mas servos e guerreiros, membros de distintas delegações além dos "sujeitos comuns" em busca de oportunidades. 99 Os fatores acima mencionados assim como a proibição de se construir navios com capacidade de navegar em mar aberto e edificar pontes. Bem como a taxação e constantes solicitações para suporte logístico e militar além de contribuições em obras "públicas" como castelos, estradas, pontes e palácios. Essa administração central configurava uma política que servia a diversos propósitos dentre estes o esgotamento dos excedentes dos Daimiô. Com o surgimento de novos papéis sociais dentro do sistema. "Os samurais lutam com armas, os camponeses com ações judiciais." [Tanaka Kyugu, 1721]. Os hans que eram característicos por seu poderio, dotados de domínios altamente militares, belicosos que a séculos assim o eram. Tornam-se unidades administrativas, deixando o ofensivo olhar para fora, ou seja, a conquista da terra de lado, e assumindo o controle administrativo sobre suas próprias terras. Dispondo de uma complexa rede de burocratas, serventes e cidadãos. O que possibilitou uma ação mais efetiva e papéis sociais dinâmicos contribuindo para certa consciência de participação e discursos pluralizados. A articulação de um aparelho burocrático Em que medida as imposições e dominações exercem seu poder? Que poder é este que emerge do xogunato Tokugawa? Como se articula o controle sobre a sociedade? Dentro de uma reflexão crítica e com uma metodologia aplicada analisar as relações de poder na sociedade Edo foi algo que no decorrer da pesquisa demonstrou uma série de nuances e descaminhos. Para além dos conceitos o que é discutido neste ensaio são suas implicações e desdobramentos, a preocupação não é dizer se há ou não dominação e imposições outrossim perceber como se articulam os diversos mecanismos de poder. Mostrando que suas "finalidades" são tão somente as superfícies de seus invólucros sua parte mais externa e fácil de ser identificada. Portanto, partindo para uma análise do organismo de poder em seu polimorfismo multifacetado. Sendo assim ao estabelecer um sistema de equilíbrio entre autoridade e autonomia, o xogunato Tokugawa com o uso de saberes como o neoconfucionismo e o exercício do dever, em campos como por exemplo educação, saúde, habitação e segurança. Com uma rígida hierarquia no âmbito governamental e social e organizado de maneira piramidal entre guerreiros, agricultores, artesões e comerciantes. Criando entre seus sujeitos às Bugen, linhas de 100 demarcações que deveriam ser fortemente intransponíveis, segundo os preceitos do contexto, mesmo que isto não se sustente no cotidiano. Ainda haviam os Buke, religiosos (xintoístas e budistas), e os desconsiderados, estes eram sujeitos à margem Eta, (sujeira abundante) e os Hinin, (não pessoas), que estavam de fora das considerações expressas na sociedade em termos administrativos. Tal divisão possibilitava um novo lugar para os sujeitos, e uma identificação que como será abordado vai propiciando a construção e eclosão de discursos que escapam do controle. Estas divisões constituem uma medida amplamente vista como restritiva, excludente e impositiva, assim trabalhada por diversos estudiosos que percebiam as barreiras, mas não suas brechas. Descrevendo o jogo, mas não seus truques, destacando as regras, mas esquecendo, não vendo ou ocultando as transgressões. Seja por uma questão de perspectiva, equivoco ou omissão. Algumas superfícies deste prisma ficaram obscurecidas, mergulhadas nas trevas do esquecimento, ou na banalidade da inexistência. O que podemos dizer é que baseado no confucionismo, em que o direito dos subordinados (populaçŌo) residia na obrigaçŌo “moral” do Xogum (soberano). O neoconfucionismo japonês desenvolveu-se tanto como um renascimento das ideias confucionistas tradicionais, quanto uma reação às ideias religiosas do budismo e do taoísmo sendo preciso lembrar que não existe no período Edo nenhuma palavra que carregue consigo o conceito que entendemos como direitos. Vamos a análise das medidas, articulações, leis, proibições, editos, dentre outros muitos documentos advindos do xogunato Tokugawa, que para além de suas finalidades específicas servem como fontes para entender o poder e suas distintas formas. Abordando as implicações das mesmas criticamente, revisionando e produzindo sentido para a proposta presente, procurando adentrar nas estruturas de poder e diversos mecanismos, que se articulavam como uma rede no sistema vigente da sociedade do período Edo. “Os camponeses sŌo investigados todos os meses, e idas e vindas são verificados com o templo pertinentes em cada caso para verificar filiados. Portanto, se houver um cristão nesta aldeia, não só a sua goningumi e o chefe, mas toda a 101 aldeia será punida”. [Goningumi Regras, Shimo-Sakurai, Kita-Saku District, Shinano, 1640. Artigo 2.] A citação acima é parte de um código de aldeia do distrito de Shimano, que expressa tanto a existência de poderes em âmbitos amplos e localizados, quanto uma coexistência de instâncias de poder em distintos níveis. Assim como uma regulamentação administrativa no tocante a medidas e implicações, ou seja, um aparelhamento do "estado" que se modifica processualmente durante o bakufu Tokugawa. Apontando para a existência de uma jurisdição dividida em local, exercida pela aldeia e a ampla pelo xogunato como aparato "legislativo". Em termos de instâncias de poder maior podemos destacar algumas subdivisões, o xogum encabeçando a estrutura, seguido do Tairo atuando como uma espécie de "primeiro-ministro", podendo ser chamado como regente em casos de menoridade, os Roju, anciões que atuam como conselheiros em assuntos políticos, e os wakadoshiyori,"anciões menores", lidando com problemas menores da "população". Seguidos dos hyojoshu, ou conselho judicial responsáveis por diversos nichos dentro da governabilidade, como finanças, polícia, "prefeitura" e organizações religiosas executando funções tanto executivas quanto jurídicas. São estas algumas instâncias cuja própria existência é indício de uma organização governativa que articula e divide áreas de atuações. Legalismo normativo e "documentalização" Outra característica pouco ou mal explorada do período Edo, é seu caráter legalista, e a aplicação de uma "documentalização" como prática. Os registros passam a ser parte da cultura política que se desenvolve neste período sob o governo do bakufu Tokugawa, começa a ser exigido que recursos legais sejam redigidos de maneira adequada e com escrita própria ao caráter a que se referem, o que remete a um problema ao nível das aldeias, devido ao fato de muitos não dominarem a escrita necessária para a elaboração e leitura de um documento legal e tantos outros que sequer sabiam escrever os caracteres mais básicos, o que torna necessário maior instrução educativa. Algo de grande utilidade que surge para exercer maior controle sobre a sociedade e que consequentemente oferece informações e dados diversos sobre o contexto é o censo nacional de 1720, que vai 102 se constituindo através de medidas como por exemplo o kokudaka. Assim como cópias de registros de aldeias com a finalidade de ter controle sobre as tributações. A comunicação referente a mesma é também oficializada por meio de nenguwaritsukejo ou "carta anual de taxa de tributos", documento que exprime determinações a serem seguidas de forma que as vilas deveriam por escrito e com selo de representante, reconhecer que receberam tais documentos e que estavam "cientes". O que aponta novamente para uma complexa organização do governo Tokugawa, e não um simples feudalismo ou estado pré-moderno opressor como foi descrito por muitos. Para esclarecer certos aspectos, e ordenar de maneira bem articulada, as documentações e respectivas ações a serem tomadas surge o Kujikata Osadamegaki, promulgado em 1742 com influências do ritsu-ryo, constituindo para administradores um manual "secreto". Sendo dois tomos, o primeiro abrangendo as oitenta e uma regras e diretrizes, enquanto o segundo lista as penalidades por violar essas regras civis e penais. Para exemplificar ainda mais a sistematização existente dentro do aparelho burocrático xogunal, podemos citar o papel dos Metsuke na detecção e investigação de casos de má administração, corrupção ou falta de compromisso. Sendo estes, responsáveis por todo o Japão, eram verdadeiros "olhos móveis" do xogunato, com uma dinâmica na coleta inteligente de informações, desempenhada de maneira notável, por esta que pode ser vista como, a "agência de inteligência" do bakufu Tokugawa. Para além da vistoria ou supervisão simplesmente dita, é um indício de modificação no olhar e da forma de se exercer o poder, que busca cada vez mais estar próximo dos sujeitos, e não somente domina mas possibilita relações. Até mesmo quando é dito que "espionam", há neste ato muito mais que controle. Nisto reside uma importância depositada no que é observado, que neste caso é a sociedade, ou seja, não se trata de um soberano governando absoluto, mas uma forma altamente complexa de governo que se constrói no decorrer do período Edo. Uma medida que pode ser vista como legislação xogunal, com finalidade de separar o estrato social guerreiro dos camponeses é a emissão do Keian no Ofuregaki, "proclamações da era Keian", em 1649. Voltado para políticas de controle da administração rural. Este 103 compêndio delimita e organiza dentro de um discurso oficial, o que é tido como práticas correspondentes a grupos específicos. “Deve-se aguçar enxadas e foices todos os anos antes décimo primeiro dia do primeiro mês "e"[...] os pobres que não possuem grandes campos deve pensar bem sobre um meio de viver todo o ano.; por exemplo, se há muitas crianças em uma família, alguns podem ser doados e alguns podem ser enviados como servos”. [Keian no Ofuregaki, Artigos 7 e 18. ] É possível citar o poder exercido por uma vila em termos de poderio expresso como o okurijo, ou certificado de licença que regulamentava o trânsito inter-vilas, exigido sempre que alguém desejasse passar por uma vila e em casos de peregrinações. Mesmo aqueles que desejam executar negócios temporários ou passar somente a noite devem informar os detalhes ao goningumi. No tocante as instâncias menores do poder analisaremos agora as vilas quanto a seu aspeto organizacional e de poder. Podemos dizer que as vilas eram regulamentadas pela Keian no Ofuregaki. Mas também destacar que grande parte do poder exercido em termos locais deve-se aos próprios costumes. Uma das forças são os honbyakusho, camponeses que exerciam interesses mais gerais como pastagem, ligados a terra e sistemas de irrigação, são também distribuidores oficiais de tributos e podem ser eleitos como Goningumi. Sendo estes um poder intra-aldeia, dotados de autorização para resolver problemas, elaborar códigos e regulamentar dentro da localidade. Que acabam atuando como a "agência de inteligência" da vila, e em termos podem ser vistos como os metsuke, ao nível local. Os chefes de famílias Goningumi, são chamados kumi, atuando como um conselho para o nanushi chefe da vila. Os mizunomi byakusho, " camponeses da água potável", que formam um grupo de inquilinos sem o direito de terra. Abaixo destes, os cho-nai, grupo que compreende mulheres, crianças e qualquer dependentes dos mizunomi byakusho ou honbyakusho. E por último os não camponeses, médicos e artesãos que residem na aldeia, mas não são detentores de terra, são aqueles que se mudam para a vila. 104 Outro ponto de expressão a ser explorado são os registros da população da vila. Que passam a ser exigidos e atualizados anualmente, neles deviam conter o nome da pessoa, estatuto social e jurídico e pós 1665 sua filiação religiosa. Tais registros deveriam conter selos oficiais e serem aprovados e legitimados, junto as leis das vilas, zensho goningumi. Podemos concluir que se cria preceitos a serem seguidos, e os mesmos são afirmados pela própria cultura do cotidiano. Muitos destes existiam já a muito tempo, porém não eram devidamente regulamentados. Com a oficialização que acontece com a gestão exercida pelo bakufu Tokugawa, há uma nova dinâmica expansiva em pleno desenvolvimento que modifica as relações de poder e movimenta os sujeitos dentro de uma lógica diferenciada, que permite afirmar o status distinto na forma de exercer e distribuir o poder no período Edo. Ao ponto que a cultura do cotidiano influenciou tanto as políticas, quanto estas lhe tentavam orquestrar, gerando um movimento cíclico entre tentativas de dominações e micro resistências. Cabe destacar que não me proponho, no entanto, a fazer uma análise política ou econômica tão pouco fixar a perspectiva óptica desta pesquisa histórica em fatos e personagens icônicas largamente discutidos. Mas perceber as peculiaridades que lhes escapam. E encontrar-se com os distintos sujeitos, oferecendo pontos e posteriormente fiar pelos mesmos. Construindo uma narrativa histórica, em busca do que perpassa, transborda, eclode, escapa, transpassa.... Permitindo tão somente uma leitura dentre tantas possíveis. Referências Diego Almeida de Sousa é Professor eventual no sistema estadual de Minas Gerais, Formado em História pela UNIBH, atualmente é aluno de iniciação científica de pesquisa em História Medieval pela UFMG. Mail: diegoalmeidadesousa@hotmail.com DEAN, Japanese Legal System: Text and Materials, 65, Cavendish Publishing Ltd. 1997. FELDMAN, The Ritual of Rights in Japan: Law, Society, and Health Policy, 16, Cambridge: Cambridge University Press 2000. 105 RAVINA, Mark, Land and Lordship in Early Modern Japan, Stanford: Stanford University Press, 1999. TSUKAHIRA, Toshio G., Feudal control in Tokugawa Japan: the sankin kōtai system. Harvard: Harvard East Asian Monographs, 20. xii, 1966 STEENBURGH, Meg van. Edo Period Japan: 250 Years of Peace. Legal Systems Very Different From Our Own Spring, 2006 106 JAPONESES NO BRASIL: UMA ANÁLISE HISTÓRICA Douglas Augusto da Silva No ano de 2008, a imigração japonesa no Brasil completou oficialmente seu centenário. Atualmente, o Brasil conta com cerca de 1400000 nikkeis (descendentes de japoneses nascidos fora do Japão ou japoneses que vivem regularmente no exterior). A maior densidade da população Nikkei encontra-se nos estados de São Paulo (1,9%), do Paraná (1,5%) e do Mato Grosso do Sul (1,4%), em Roraima e Alagoas não são em número significativo (MORALES, 2008). Indubitavelmente, a cultura japonesa contribuiu e muito para a formação da cultura nacional. Partindo deste princípio, estudaremos brevemente a história dos japoneses no Brasil. Segundo Masao Daigo (2008), foi no ano de 1819, que os primeiros imigrantes asiáticos que chegaram ao Brasil, basicamente uma leva de cerca de 400 a 500. Segundo o autor, vieram para o trabalho em plantações de chá no Rio de Janeiro e nas minas de Minas Gerais, apesar de nesta época o Brasil não ter tanta carência de mão-de-obra imigrante. Tratando do Japão, o referido ainda não tinha relações diplomáticas com o Brasil. O Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre a República dos Estados Unidos do Brasil e o Império do Japão foi assinado no dia 5 de novembro de 1895, em Paris, França. O primeiro diplomata a chefiar a Legação japonesa em território brasileiro foi o Ministro Sutemi Chinda, enquanto o primeiro representante do governo brasileiro no Japão foi o Ministro Henrique Carlos Ribeiro Lisboa. Aquela época já se verificava, em ambos os países, o aumento pelo interesse na migração, mas, devido à Crise do Café, no ano de 1897, poucos eram os imigrantes que chegavam ao Brasil, uma vez que muitas fazendas de café não conseguiam arcar com as folhas de pagamento dos colonos (DAIGO, 2008). Como relata Célia Sakurai e Magda Coelho (2008), o contexto mundial e a situação interna dos dois países beneficiaram a chegada a um termo. Desde o ano de 1906, a vinda de colonos começava a ser articulada com a visita ao Brasil de Ryu Mizuno, diretor da principal companhia japonesa, que administrou a vinda dos imigrantes até 1917, a Companhia Imperial de Emigração (Kokoku Shokumin Kaisha). Diante da revalorização dos preços do Café, decorrente do 107 Convênio de Taubaté, de 1906, e das restrições impostas à imigração italiana, desde 1902, pelo governo da Itália, os cafeicultores paulistas mostravam-se mais interessados na chamada de trabalhadores alternativos (SAKURAI; COELHO, 2008). “A história da imigraçŌo japonesa no Brasil iniciou-se timidamente em 1908 por uma convergência de interesses da lavoura cafeeira paulista e das companhias de emigração nipônicas, com o beneplácito governamental de ambos os lados.” (LEÃO, 1990, p. 13). Os imigrantes japoneses encontraram grandes dificuldades e situações inesperadas. Segundo Birello e Lessa (2008), os referidos vieram para substituir mão-de-obra escrava e tinham o intuito de enriquecer e voltar para o seu país, contudo enfrentaram grande preconceito. Viviam nas chamadas colônias, mas não caracterizavam um grupo homogêneo, como muitos pensam (BIRELLO; LESSA, 2008). Como relata Daigo (2008), no dia 28 de abril de 1908, o primeiro vapor que transportou os emigrantes japoneses para o Brasil, o Kasato Maru, zarpou do porto de Kobe e fez escalas em Cingapura e Cidade do Cabo e chegou ao porto de Santos no dia 18 de junho, às nove horas e meia da manhã após 51 dias de viagem. O autor relata que eram, ao todo, cerca de 781 emigrantes. Segundo o autor O assunto principal dos emigrantes japoneses durante a viagem era a discussão de qual seria a forma de ganhar dinheiro no Brasil. (DAIGO, 2008). Sakurai e Coelho (2008) ressaltam algumas características ao falaram sobre a fase que cobre a primeira leva de imigrantes do Kasato Maru até 1924. Nessa fase, a vinda dos trabalhadores japoneses – que sempre foi assistida oficialmente pelo governo do Japão em acordos com o Brasil, direcionando os imigrantes marcadamente para São Paulo. Os primeiros imigrantes vinham através do contrato entre as companhias de imigração japonesas e os cafeicultores paulistas, que pagavam o custeio do estabelecimento das famílias nas fazendas. O contrato previa um mínimo de três trabalhadores para cada família em regime de trabalho assinado por pelo menos dois anos. (SAKURAI; COELHO, 2008). 108 A situação nas colônias era complicada, devido ao choque entre culturas: “(...) a situaçŌo de relativo isolamento das comunidades, em sua busca pela manutenção de seus padrões culturais, reproduzidos nas associações, atividades sociais e no ensino primário em Língua Japonesa, geravam tensões com (...) os discursos eugênicos no Brasil.” (SAKURAI; COELHO, 2008, p. 21). “Dentro das colônias, tanto as mantidas pelo governo japonês quanto as criadas involuntariamente, mulheres imigrantes educavam suas crianças falando não a língua do novo país e sim a sua língua materna. Isso muito se deve ao pensamento de retorno ao Japão quando melhorassem de vida. O português que aprenderam era apenas funcional (...). (...) os japoneses não procuravam a mistura de etnias e, portanto, não eram vistos com bons olhos pelo governo e pelo restante da população do país (...) raramente uma jovem japonesa se casaria com um brasileiro não descendente.” (BIRELLO; LESSA, 2008, p. 4 – 5) Sakurai e Coelho (2008) relatam que com o passar dos anos, o quadro negativo das primeiras experiências foi sendo modificado, e os imigrantes japoneses, num curto espaço de tempo, foram se tornando pequenos proprietários de terra e novas fronteiras agrícolas em São Paulo foram sendo abertas durante as primeiras décadas do Século XX (SAKURAI; COELHO, 2008). No ano de 1914 teve inicio a Primeira Guerra Mundial. Segundo Daigo (2008), em setembro desse mesmo ano, foi aberto o Consulado Geral do Japão na cidade de São Paulo, época em que se verificou também no interior do estado de São Paulo, a instalação de diversas colônias, como a de Registro, Tóquio, Cotia, Hirano etc. Ainda em 1914, foi inaugurada a rota regular de vapores da Osaka Shosen Lines (O.S.K.) para a América do Sul (DAIGO, 2008). Muitos imigrantes passaram a abrir pequenos negócios com mãode-obra familiar, como tinturarias, quitandas e marcenarias. Iniciou-se uma grande concentração de empresas de capital japonês e seus respectivos escritórios em São Paulo, como, por exemplo, a Kaigai Kogyô Kabushiki Kaisha (KKKK). Nos jornais da época, 109 começaram a surgir os chamados haikais e tankas, poesias escritas pelos próprios imigrantes. Alem disso, grupos de estudos e pesquisas de histórias antigas e a edição de revistas especializadas em agricultura tiveram inicio. A partir de então, passou-se a assistir ao progresso continuado da colônia japonesa no Brasil (Ibidem, 2008). Nos anos que se passaram começou a surgir um intenso sentimento de nacionalismo nos diversos países, o que já fazia pressentir o advento da Segunda Guerra Mundial. O espírito nacionalista que foi sendo adotado pelo Brasil fez com que, aos poucos, o ambiente de vida se tornasse sufocante para os japoneses. Havia esforços nacionalistas brasileiros de construção de uma sociedade brasileira coesa, na qual todos os cidadãos, incluindo filhos de imigrantes das mais diferentes procedências, deveriam adotar uma consciência nacionalista brasileira. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi iniciada uma campanha antijaponesa no Brasil, que se explica pelo fato de o Japão ter se aliado ao Eixo na guerra, o que fez surgir uma crescente instabilidade internacional mediante a política militarista agressiva do Japão no continente asiático e o crescente poderio militar do nazismo alemão e fascismo italiano (SASAKI, 2006). “(...) foi baixado um decreto no Brasil proibindo a circulação de jornais em língua japonesa. A partir de então, os imigrantes não puderam mais tomar conhecimento, através da sua língua, do que ocorria no mundo afora. Em fins de janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do eixo, o que resultou no fechamento de repartições diplomáticas e consulares. O Departamento de Ordem Política e Social em São Paulo baixou uma portaria acerca dos súditos daqueles países, proibindo a distribuição de textos nas línguas respectivas, incluindo a japonesa, e o uso destas línguas em locais públicos. Em Belém, capital do Pará, houve destruição e queima de casas e lojas de propriedade dos japoneses e alemŌes pelo povo enfurecido (...).” (DAIGO, 2008, p. 29 30). A Segunda Guerra Mundial conheceu seu fim com a rendição incondicional do Japão em agosto de 1945, marcando a vitoria dos aliados. No entanto, a maioria dos imigrantes (que não sabiam ler 110 jornais brasileiros) dependia do noticiário oficial do Quartel-General das Forças Armadas do Japão, transmitido por rádio, que ate então informava que a batalha final contra os Estados Unidos ainda estaria para se iniciar, mas as transmissões foram interrompidas com a derrota do Japão. A lacuna surgida pela falta de informações foi preenchida por falsas notícias (Ibidem, 2008). Neste contexto, Daigo (2008) registra alguns atentados terroristas pelas mãos dos que não acreditavam na derrota do Japao, como a morte a tiros de pistola do diretor superintendente da cooperativa de Bastos, em março de 1946 ou o ataque que acabou por levar à morte o sr. Chuzaburo Nomura no dia 1 de abril, em São Paulo. Os atos terroristas apenas cessaram em janeiro de 1947, deixando o registro de mais de uma centena de ataques, com 23 vítimas fatais. (Ibidem, 2008). Em 1953, no período após Segunda Guerra Mundial, o fluxo de migrantes japoneses ao Brasil foi retomado. O governo japonês continuou regendo a migração, e pode-se dizer que os japoneses que imigraram ao Brasil no período pós-guerra eram diferentes dos que vieram no pré-guerra, como relata Sazaki (2006). Parece ter havido uma relação tensa entre os imigrantes japoneses do pré e os do pósguerra. Os imigrantes do pós-guerra eram jovens rapazes educados e especialistas qualificados na área agrícola e também em alguns setores da indústria (SASAKI, 2006). Houve naquela época uma migração de noivas japonesas para se casarem com esses rapazes e se estabelecerem nas terras brasileiras. Os noivos não se conheciam e mais de 400 jovens japonesas vieram para o Brasil com a finalidade de serem desposadas por esses japoneses que vieram tentar uma vida melhor no Brasil. Elas eram conhecidas como hana yume que literalmente quer dizer “flor do sonho”. (BIRELLO; LESSA, 2008). Segundo Cehoaijb (1992), nos anos 60, do século XX, o Japão começou a prosperar e diminuiu o fluxo migratório ao Brasil a partir desse período. O programa de imigração teve fim no ano de 1973. O contingente japonês ao Brasil no período pós-guerra, entre 1953 e 1973, foi de aproximadamente 53 mil (CEHOAIJB, 1992). “A presença japonesa foi se institucionalizando ao longo do século XX, sobretudo no período pós-guerra, criando 111 inúmeras entidades associativas: culturais, religiosas, esportivas, recreativas, agrícolas, por região de origem (províncias no Japão), por atividades ocupacionais etc., além da visibilidade nipônica nas comemorações decenais da imigraçŌo japonesa.” (SASAKI, 2006, p. 104). No final do século XX, a colônia japonesa no Brasil, passou a ter um perfil diferente, pois os personagens principais deixaram de ser os isseis para, aos poucos, entrar na era dos nikkeis, ou seja, descendentes nisseis e sanseis, de segundas e terceiras gerações (DAIGO, 2008). Assim, concordando com Wakisaka et al. (1992), as formações dos núcleos de japoneses no Brasil seguiu um destes modelos: os grupos espontâneos que se encontravam nos arredores de São Paulo, os grupos do interior, que buscavam as grandes propriedades do interior de São Paulo e Paraná, os grupos ijuchi, que adquiriam terras antes de chegar ao Brasil, os grupos shokuminchi, formados por arrendatarios e os grupos formados por incentivo do governo estadual ou federal do Brasil, que tinham o interesse do desenvolvimento da agricultura. No caso o primeiro e quarto grupo citados correspondem a um periodo anterior a Segunda Guerra (WAKISAKA et. al., 1992). “O Brasil é um país de imigraçŌo, onde imigrantes de diversos países e etnias vêm contribuindo em diversos segmentos para o progresso da nação. Gostaria, porém, de fazer uma referência especial à contribuição dos japoneses na agricultura brasileira, uma vez que há uma relação inquebrantável entre os imigrantes japoneses e este progresso. A maior contribuição japonesa foi a introdução de novas espécies e também do sistema de agricultura intensiva.” (DAIGO, 2008, p. 37). Alem da agricultura, os japoneses também enriqueceram e diversificaram mais ainda a cultura brasileira, como por exemplo, as religiões fundadas no Japão que vieram para o Brasil, como o budismo e continuam a serem difundidas, praticadas e a conseguir cada vez mais adeptos a crenças e tradições tipicamente da cultura japonesa. A música também assume papel fundamental, alem das danças típicas como o bon odori, que se traduzida literalmente quer dizer “dança aos mortos” e outras manifestações artísticas mais 112 conhecidas como os tambores que até hoje são populares dentro da sociedade nipo-brasileira nos diversos festivais do pais (BIRELLO; LESSA, 2008). A partir do final do século XX a cultura japonesa passou a adentrar cada vez mais os costumes dos brasileiros. Exemplo disso, os desenhos japoneses (animes) que são apresentados no Brasil desde a década de 60. Hoje em dia, as idas e vindas de migrantes de ambos os países, incentivados por intercâmbios, continuam trazendo e levando as novas formas culturais, em particular, sobre o modo de organização familiar, posição da mulher e de desconstrução e reconstrução da educação das crianças e jovens. O relacionamento do Brasil e Japão vem cada vez mais sendo alimentado pela globalização, de forma subjetiva, alem do aumento das relações comerciais, culturais, educacionais, artísticas, esportivas e de comunicação, que interferem diretamente na vivência social entre ambos os povos. Referências Douglas Augusto da Silva é Graduado em História (Licenciatura) pela Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) (2014 a 2016) e Pós-graduando Lato Sensu em Metodologia do Ensino de História e Geografia pela Faculdade de Educação São Luís. Atualmente é professor nas escolas públicas do Estado de São Paulo, onde ministra aulas de História, Sociologia e Filosofia e é contratado pelo Colégio Alpha do Quatá, Sistema de Ensino Anglo, onde ministra aulas de História e Geografia. Email: douglassilva_das@hotmail.com.br BIRELLO, Verônica Braga; LESSA, Patrícia. A imigração japonesa do passado e a imigração inversa, questão gênero e gerações na economia. Divers@!, v. 1, n. 1, 2008. CEHOAIJB – Comissão de Elaboração da História dos 80 Anos da Imigração Japonesa no Brasil. Uma epopéia moderna – 80 anos da imigração japonesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992. DAIGO, Masao. Pequena história da imigração japonesa no Brasil. Tradução de Masato Ninomiya. São Paulo: Associação para 113 Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, 2008. LEÃO, Valdemar Carneiro. A crise da imigração japonesa no Brasil, 1930-1934: contornos diplomáticos. Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 1990. MORALES, Leiko Matsubara. cem anos de imigração japonesa no brasil: o japonês como língua estrangeira. 2008. Tese de Doutorado. Tese (doutorado). Universidade Estadual de São Paulo (USP). SAKURAI, Célia; COELHO, Magda Prates. Resistência & integração: 100 anos de imigração japonesa no Brasil. Ibge, 2008. SASAKI, Elisa. A imigração para o Japão. Estudos avançados, v. 20, n. 57, p. 99-117, 2006. WAKISAKA et al. COMISSAO DE ELABORACAO DA HISTORA DOS ANOS 80 ANOS DA IMIGRACAO NO BRASIL. Educação, Cultura e Religião. In: Uma Epopeia Moderna: 80 Anos da Imigração Japonesa no Brasil. São Paulo: Hucitec/Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992, pp. 547-549. 114 O NASCIMENTO DA JAPONOLOGIA Edelson Geraldo Gonçalves Introdução A japonologia é o campo do orientalismo que tem o Japão e sua cultura como objetos específicos de estudo. Esta comunicação será dedicada ao relato e análise do nascimento dessa vertente acadêmica no século XIX e início do XX, dando ênfase ao seu ramo de língua inglesa, o maior e mais representativo desse campo. Para isso usaremos como referenciais teóricos as definições de “orientalismo” de Robert Irwin, e de “japonologia” de Renato Ortiz. Como fontes estão presentes algumas das obras japonologistas da segunda metade do século XIX e início do XX, sobretudo duas edições do livro Things Japanese, de Basil Hall Chamberlain, as quais nos fornecem uma base para identificar os autores mais relevantes do período. Por orientalismo entendemos aqui a concepção de Robert Irwin [2008, p. 12] segundo o qual o termo “orientalista” usa-se em “referência a quem tenha feito um estudo especial das línguas e culturas asiáticas” (e do norte da África). Por sua vez a japonologia pode ser definida como o estudo do Japão e de sua cultura (artes, sociedade, história, economia, etc.), feito no Japão por estrangeiros ou fora do Japão, seja por estrangeiros ou japoneses [Ortiz, 2000, p. 24-25]. Devemos ainda chamar atenção para o fato de que como um domínio acadêmico a japonologia é um campo distinto do japonismo, movimento artístico e literário predominantemente oitocentista que teve como alguns expoentes Claude Monet (18401926), Pierre Loti (1850-1923) e Giacomo Puccini (1858-1924). Entendidos esses pontos passaremos à abordagem direta da japonologia. A Japonologia Estima-se que as primeiras palavras ocidentais sobre o Japão (ou Cipango) tenham sido escritas no século XIII, por Marco Polo (12541324), quando registrava o desejo de Kublai Khan (1215-1294) de anexar o arquipélago nipônico ao seu próprio império. Após a chegada dos primeiros portugueses a Tanegashima, em 1543, e dos 115 outros ocidentais, que vieram após eles o Japão passou a figurar em textos escritos em línguas ocidentais, compostos principalmente por missionários, como o Tratado das Contradições e Diferenças de Costumes entre a Europa e o Japão (1585), do jesuíta português Luis Fróis (1532-1597), as Peregrinações (1614), do também jesuíta português Fernão Mendes Pinto (1510-1583), o Sumário Del Japón (1583) do jesuíta napolitano Alexandre Valignano (1539-1606) e Hakluytus Posthumus or Purcha’s His Pilgrimes, do sacerdote anglicano Samuel Purchas (1577-1626). Contudo aquele que foi sem dúvidas o mais influente entre esses primeiros escritos foi o livro The History of Japan do médico alemão Engelbert Kaempfer (1651-1716) publicado entre 1727 e 1728, em dois volumes [Markley, 2004, p. 54, 57]. Esse livro, cujo autor foi capaz de escrever após uma estadia de dois anos e dois meses no JapŌo, “compilou um trabalho que pela primeira vez deu ao mundo uma informação razoavelmente acurada sobre a história, geografia, crenças religiosas, maneiras e costumes, produções naturais e mistérios do Império” [Chamberlain, 1905, p. 266]. No entanto foi apenas no século XIX que os escritos sobre o Japão se multiplicaram, principalmente após a abertura dos portos pelos Tokugawa em 1853. A partir da segunda metade do século XIX escrever sobre o Japão (principalmente em relatos de viagem) tornou-se uma moda intelectual, tanto que o japonologista Basil Hall Chamberlain [2014, p. 47] brinca ao afirmar que para os intelectuais da época “nŌo ter escrito um livro sobre o Japão estava se tornando de fato um rótulo de distinçŌo”. De fato, muito se escreveu sobre o país nesse período, tanto que é pouco provável que alguém consiga contar o número exato de obras escritas sobre o tema naquele século, mas os autores de obras que se tornaram referências no campo dos estudos japoneses são de um número bem mais limitado, e é a estes que dedicaremos o texto dessa comunicação. Como critério de seleção desses autores utilizaremos principalmente as revisões bibliográficas feitas por Basil Hall Chamberlain nas edições de 1890 e 1905 de seu livro Things Japanese. 116 Autores relevantes escreveram em várias línguas, como por exemplo na língua alemã onde encontramos o naturalista Phillip Franz Von Siebold (1796-1866), além do geógrafo Johannes Justus Rein (18351918), a língua portuguesa, com o lusitano Wenceslau de Moraes (1854-1929) e o brasileiro Oliveira Lima (1867-1928), a língua espanhola na qual podemos destacar o diplomata espanhol de ascendência francesa Enrique Dupuy de Lôme (1851-1904) e o escritor guatemalteco Enrique Gomez Carrillo (1873-1927), e em língua francesa Andre Bellessort (1866-1942) e Edmond de Goncourt (1822-1896). Contudo foi em língua inglesa que escreveram os mais notáveis autores da japonologia oitocentista. Este conjunto de autores era composto principalmente de missionários cristãos e funcionários estrangeiros contratados pelo governo Meiji, reunindo-se na Asiatic Society of Japan (filial da Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, órgão britânico destina a promover estudos sobre o Oriente) fundada em Yokohama em 1872, e publicando seus trabalhos não apenas através de livros, mas também pelas páginas da revista da organização, a Transactions of Asiatic Society of Japan, publicada a partir de 1874 [Otness, 1995, p. 239; Pargiter, 1923, p. 60-61]. Os autores centrais da japonologia que aqui destacamos são Ernest Mason Satow (1843-1929), William George Aston (1841-1911), Algernon Bertram Freeman Mitford (1837-1916), William Elliot Griffis (1843-1928), Alice Mabel Bacon (1858-1918), Ernest Fenollosa (1853-1908), Percival Lowell (1855-1916), Basil Hall Chamberlain (1850-1935) e Lafcadio Hearn (1850-1904). Ernest Mason Satow chegou ao Japão não como diplomata, mas como um estudante de língua japonesa buscando tornar-se um intérprete oficial [Satow, 1921, p. 17]. Após conseguir um domínio satisfatório da escrita e leitura japonesas, Satow usou essa habilidade tanto no seu trabalho diplomático, quanto no seu trabalho como japonólogo, que se concentrou em estudos linguísticos e tradução [Satow, 1921, p. 59]. Em suas publicações como japonólogo, além de diversos artigos na revista Transactions também escreveu um dicionário, em colaboração com Ishibashi Masakata (An English-Japanese 117 Dictionary of Spoken Language, publicado em 1875) publicando também as memórias de seu período no Japão (1862-1883), com o título A Diplomat in Japan, sendo esse livro não apenas um relato autobiográfico, mas também uma valiosa fonte para o estudo das turbulências que levaram à Restauração Meiji, processo no qual, em seu trabalho como intérprete, Satow participou entrando em contato com líderes tanto do Shogunato, quanto dos partidários da restauração imperial. William George Aston, por sua vez, não publicou relatos pessoais de sua estada no Japão, o que nos priva de saber tanto sobre ele quanto podemos saber de Satow, mas sua produção como japonólogo foi maior que a de seu colega do campo diplomático britânico e das letras japonesas. Indo para o Japão para trabalhar no consulado britânico, Aston não deixou pistas claras de como exatamente foi seu processo de aprendizado da língua japonesa, mas o fato é que se tornou um dos maiores especialistas ocidentais nesse campo em sua época. Como escritor japonologista Aston foi um colaborador tão frequente quanto Satow para a revista Transactions, e entre seus livros destacam-se o texto pioneiro sobre gramática japonesa em língua ocidental, A Short Grammar of Japanese Language, publicado em 1869, tema no qual ainda publicou A Grammar of The Japanese Written Language (1872) e A Grammar of Japanese Spoken Language (1888) [Trumbull, 2008, p. 59]. Aston ainda publicou dois livros sobre a religião Shinto (Shinto: The Way of The Gods, de 1905 e Shinto: The Ancient Religion of Japan, de 1907), mas destacou-se principalmente por duas obras; primeiramente a tradução do Nihon Shoki, ou Nihongi, um dos textos mais antigos da historiografia clássica japonesa [Toda, 2004, p. 227, 241]. A tradução desse texto foi publicada com o título Nihongi: Cronicles of Japan em 1896. O outro livro pelo qual se destacou foi na verdade sua obra de maior sucesso, A History of Japanese Literature, publicado em 1899, sendo a primeira história geral da literatura japonesa disponível em língua ocidental [Trumbull, 2008, p. 61]. O terceiro japonólogo de língua inglesa a que daremos destaque é Algernon Bertram Freeman Mitford (1837-1916), diplomata no 118 Japão, onde foi aprendiz (de língua japonesa) e um grande amigo de Ernest Satow. Em sua produção como japonologista destacam-se os livros The Bamboo Garden (1896); um ensaio de botânica e sobre o a simbologia do bambu na cultura japonesa; mas primeiramente e principalmente por seu livro Tales of Old Japan publicado em 1871. Em Tales of Old Japan Mitiford reúne narrativas de experiências pessoais no Japão, textos religiosos, assim como histórias nativas, tendo entre essas se destacado a sua narrativa da história dos 47 ronins, que embora não tenha sido pioneira na apresentação desse conto ao público ocidental, foi na prática a versão que o popularizou. Juntamente com Satow, Mitford foi uma testemunha do processo da restauração Meiji, e dos anos posteriores a ela, e assim como seu amigo, em suas memórias publicadas (The Garther Mission to Japan de 1906 e Memories de 1915); segundo o próprio Mitford [1916, p. 373] como uma “matiére pour servir à l’histoire”; fornece à posteridade uma valiosa fonte de estudos para esse período da história. O Reverendo William Elliot Griffis ligado à Igreja Reformada na América foi ao Japão para ser professor de química e de filosofia natural no colégio de Fukui. Griffis foi ao país não apenas para servir como educador, mas também com a intenção de exercer um papel missionário e uma influência civilizadora sobre seus alunos [Rosenstone, 1988, p. 12, 16, 51]. Como um autor do campo da japonologia, além de publicar artigos, pela revista Transactions e outros periódicos, tem como destaques os livros: The Religions of Japan (1895), The Mikado: Institution and Person (1915) e The Mikado’s Empire (1876). Entre esses livros, o primeiro trata de uma exposição e análise geral da religiosidade japonesa, o segundo é tanto uma história política do Japão centrada no papel de seus imperadores, quanto uma biografia do Imperador Meiji, o terceiro trata-se de uma história geral do Japão e das experiências pessoais e reflexões do autor sobre o país. Alice Mabel Bacon, por sua vez, foi convidada ao Japão em 1888 para trabalhar com educação feminina. Nesse meio tempo, Bacon também escreveu sobre o Japão, sendo sua principal obra o livro Japanese Girls and Women, um texto escrito em colaboração com 119 Tsuda Umeko, que aborda as mulheres japonesas de diferentes posições sociais [Johnson, 2012, p. 1, 6]. O próximo japonologista que se abordará é Ernest Fenollosa, que chegou ao Japão, em 1878, para trabalhar como professor de filosofia. No Japão Fenollosa dedicou-se à coleção e estudo da arte japonesa se tornando, na década de 1880, um grande apologista e divulgador da arte japonesa tradicional, reunindo ao redor de si um amplo círculo de artistas, intelectuais e figuras públicas do Japão, que simplesmente concordava com suas ideias ou já militavam pela preservação da arte tradicional, que foi rechaçada pelos líderes e formadores de opinião dos primeiros anos da Era Meiji [Brooks, 1962, p. 5]. Com sua militância pela preservação da arte tradicional, Fenollosa ganhou o respeito da corte imperial e dos políticos conservadores da década de 1890, e tendo grande influência na decisão da retomada do ensino das artes japonesas nas escolas, que ocorreu nesse período, influenciando também a criação da lei de revalorização das artes nacionais, promulgada em 1884 [Brooks, 1962, p. 24, 26]. Além disso, a casa de Fenollosa se tornou um centro de atração para intelectuais estrangeiros residentes no Japão, sendo que entre os intelectuais que firmaram amizade com ele estavam Percival Lowell e Lafcadio Hearn [Brooks, 1962]. Como escritor japonologista, Fenollosa teve como interesse a arte japonesa, sobretudo a pintura e o teatro Nô. Entre os livros, que publicou nesse campo, se pode destacar: The Masters of Ukiyoe (1896) e, principalmente, Epochs of Chinese and Japanese Art publicado, postumamente, em 1912. O primeiro livro é um catálogo dos principais artistas da escola popular de pintura Ukiyo-e, uma forma de arte desprezada pelas elites do período Tokugawa, mas que foi a responsável pela popularização da arte japonesa no Ocidente, principalmente, nas pinturas de Hokusai [Brooks, 1962, p. 23]. O segundo livro por sua vez é uma história geral da arte japonesa e chinesa. Percival Lowell chegou ao Japão em um momento que estava na Ásia trabalhando pela missão diplomática dos EUA na Coréia. 120 Enquanto permaneceu no Japão, Lowell estudou a língua e a cultura do país, terminando por publicar, em 1894, um livro analítico exclusivo sobre o Japão: Occult Japan, sobre possessões, exorcismos e milagres na religião shinto [Brooks, 1962, p. 31; Chamberlain, 1905, p. 66]. Contudo, antes desse livro houve ainda outro, que não tinha, formalmente, o Japão como tema exclusivo, pretendendo ser um tratado sobre o Oriente, em geral, mas que em suas abordagens tendia a privilegiar a análise da cultura japonesa. Esse livro foi The Soul of the Far East publicado em 1888, sendo entre as obras orientalistas de Lowell a de maior destaque. Por sua vez Basil Hall Chamberlain, aquele que é considerado por Kurt Singer [1973, p. 154] o pai da japonologia moderna, foi um estudioso britânico se tornou professor de língua japonesa e de filologia na Universidade Imperial de Tóquio, em 1886, após uma bem-sucedida carreira de pesquisador da língua e da literatura do país [Chamberlain, 1905, p. 1]. Como japonologista, Chamberlain foi, provavelmente, o autor mais erudito da primeira geração, embora não o mais popular. Seus livros de maior destaque são o enciclopédico Things Japanese (que, segundo o autor, pretende ser “nŌo uma enciclopédia, note, nŌo uma vã tentativa de um homem de tratar, exaustivamente, de todas as coisas, mas apenas esboços de várias coisas”) [Chamberlain, 1905, p. 2] e a primeira tradução do Kojiki (o mais antigo texto da historiografia japonesa) para uma língua ocidental. Além dessas obras, também se pode destacar suas muitas contribuições para a revista Transactions, e os livros The Classical Poetry of The Japanese (uma antologia de traduções de clássicos literários) e A Handbook of Colloquial Japanese (um livro de apoio para o aprendizado do idioma japonês). Por fim temos Lafcadio Hearn, o mais lido dos japonologistas de sua geração e que segundo Chamberlain [1905, p. 65] é o autor que “entende mais o JapŌo moderno, e nos faz mais entende-lo porque o ama mais”. Hearn foi enviado ao Japão para atuar como correspondente estrangeiro, mas acabou estabelecendo-se como professor, jornalista local e pesquisador. Escreveu quatorze livros sobre o Japão, contendo tanto ensaios com os resultados de suas pesquisas quanto contos de ficção japonista. 121 No campo da pesquisa japonologista suas principais obras foram Glimpses of Unfamiliar Japan (1894), em dois volumes, Out of the East (1895), Kokoro (1896) e Japan: An Attempt at Interpretation (1904). Entre esses os três primeiros livros combinam relatos de viagem, contos de ficção e análises culturais, enquanto o último pode ser tido como uma obra de história e antropologia do Japão, sintetizando a erudição que o autor acumulou em sua vivência no Japão, entre 1890 e 1904. Conclusão Neste texto pudemos ver que a abertura do Japão na segunda metade do século XIX e as posteriores medidas modernizadoras do governo Meiji atraíram para o Japão (principalmente como missionários e funcionários) vários indivíduos intelectualmente capacitados, que lançariam as bases para os modernos estudos japoneses, delimitando esse campo do orientalismo e escrevendo obras que viriam a inspirar e influenciar autores importantes dos estudos japoneses pelos dois séculos seguintes, como George Samson, Kurt Singer, Ruth Benedict, Ivan Morris e Ian Buruma. Referências Edelson Geraldo Gonçalves é mestre e doutorando em História Social das Relações Políticas pela UFES, sob orientação do Prof. Dr. Geraldo Antônio Soares. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES). Mail: edelsongeraldo@yahoo.com.br BROOKS, Wick Van. Fenollosa and His Circle: With Other Essays in Biography. Nova York: E. P Dutton & Co, 1962. CHAMBERLAIN, Basil Hall. 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Dentro de suas experiências adquiridas nessa longa história, a sua sociedade conseguiu transformar essa nação na segunda maior potencia mundial. Desse modo a tradição educacional historicamente teve uma grande influência no desenvolvimento das potencialidades que a China apresenta. Para Bueno (2013) o modelo de filosofia educacional vem sustentado a nação por mais de 25 séculos, que vem regulando a transformando a sociedade Chinesa por esse longo período dentro de uma consciência crítica e um desenvolvimento em todas as áreas da China, sendo elas na tecnologia, formação cultural ou na área econômica. “Desde cedo a civilização chinesa parece ter buscado desenvolver concepções singulares sobre o domínio da vida e do território que - concomitantemente a um complexo e antiquíssimo sistemas de crenças xamânicas – construíram uma cultura altamente técnica e especializada cuja ciência desde cedo aliou a ritualização e a religiosidade como forma de fixar os conhecimentos adquiridos através de uma série sucessiva de modelos civilizacionais testado desde seus períodos proto-históricos” (Bueno, 2008). Essa dinâmica da civilização pode- se dizer que a China, apresentou um modelo organizacional diferenciado do Ocidente, e que se pode dizer que durante a sua longa história a sua sociedade se organizou 125 ou se adaptou dentro dos contextos e dos acontecimentos a que se apresentavam a sua civilização. A prova que desde a dinastia Han (A. C 206 a 221. D.C.) após passar várias crises internas, nessa dinastia a China passou por um dos momentos mais prósperos da sua História. Bueno (2008) afirma que “essa dinastia reorganiza o poder internacional do país, estimulando a politica comercial expansionista, além de organizar o sistema burocrático de seu estado, além de organizar a economia pela unificação da moeda e empregou o confucionismo como pratica social educacional e também religiosa”. Dentro desse quadro podemos afirmar que a China apesar de todas as transformações ocorridas por motivos internos e externos, conseguiu estabelecer uma rota de desenvolvimento baseada em um modelo educacional milenar através dos preceitos educacionais confucionista. A tradição Confucionista “Mestre é Quem Sabe o Antigo e Descobre o Novo”. Usei aqui essa mensagem inicial do pensador Confúcio (551-479 A.C) intencionalmente para iniciar uma discussão da importância da História não somente para o Conhecimento da sociedade, mais o quanto a China valoriza o pensamento das suas tradições e o quanto é significativo a sua história para sua nação. Neste contexto a educação da China também necessita de uma análise fundamental, Bueno (2013) afirma “que muitos pensadores contemporâneos dele surgiram, criando as Cem escolas do pensamento”. Mais de certo modo os ideias de Confúcio permeava uma “sociedade mais educada com princípios na tradição moral e na dignidade Humana, Bueno (2013)”. Daí se dá o principio do pensamento de Confúcio pela tradição e pela valorização da História para a China, na qual é e foi essa trajetória histórica que construiu essa grande nação. Podemos afirmar que esta grande naçŌo que segundo Mao JR. E Secco (1996) “Que existem registros precisos de mais de 4 mil anos de História, e que sua cultura teve um desenvolvimento muito além do que a Cultura Ocidental”. Confúcio viveu na dinastia Zhou (1027-221) em um período em que a China estava em uma Crise sem precedentes, em que a desorganização da sociedade era tomada também pela corrupção. 126 Para Bueno 2013, “Confúcio parte do principio Humanístico baseado na sobrevivência da sociedade”. Desse modo apesar de seus pensamentos serem pautados dentro de um contexto filosóficos conseguiram desenvolver uma nova dinâmica educacional para a civilização Chinesa. Para Bueno (2013) “Confúcio foi muito além de um professor ou um excelente conselheiro, pois promoveu a ideia de cidadŌo crítico”. Em períodos de governos corruptos estes veem com maus olhos quem atendem a criticidade, e notadamente Confúcio passou por maus momentos quando espalhava as ideias de que o cidadão deve ser livre e altamente crítico com a realidade da sua sociedade. Bueno (2013) “afirma que nesse período Confúcio comeu o pŌo que o diabo amassou”, isso nos da ideia da dificuldade de se tentar aplicar a moralidade dentro de uma sociedade viciada pela corrupção, a educação vem do princípio de restaurar a dignidade humana, é ela tem o efeito de um remédio para tratar em longo prazo a cura de uma sociedade. Confúcio criou a possibilidade de crença infinita na educação para restaurar essa sociedade. Diante dessa ideia ele criou mecanismos que tinha a proposta de organizar os processos educacionais baseados naquele contexto histórico. Algumas dessas propostas ou métodos na qual iremos abordar aqui têm como base a Historiografia com estudos de pesquisadores que contemplam o orientalismo e a análise de processos do desenvolvimento educacional Chinês Confucionista. O primeiro método educacional apresentado pelo Confucionismo foi a DAO ou via. Para Bueno (2011) “Confúcio partia da ideia que esta via poderia atingir todos os seres humanos poderiam atingir esse caminho, ou seja, o caminho da educaçŌo”. O educar seria muito além de um aprendizado convencional, a sua perspectiva era de analisar as deficiências dos métodos da educação da época. Nesse contexto a pretensão de Confúcio era de estabelecer uma educação eficaz que tinha a proposta de atingir o cerne da sociedade, trazer para esta pela educação a cura e a recuperação contra imoralidade e a corrupção. Outra abordagem de Confúcio é a Centralidade e a Virtude. Bueno (2011) exemplifica que para Confúcio “a educaçŌo deveria atingir a 127 centralidade ou o ponto comum entre-nos. A virtude e a centralidade vêm destacadas como um alvo a ser atingido e que se dava a condiçŌo de um ser humano melhor”. Este princípio estabelecia que pela formação do ser humano com virtudes também refletiria e claro, na construção de uma sociedade mais desenvolvida moralmente. A propensão e outra abordagem que Confúcio apresentou. Dentro do ideograma Shi, “a propensŌo visava captar a potencialidade individual ou o Dom de cada pessoa tem em especifico”. Bueno(2011). A visão Confucionista com relação a propensão visa a valorizar as potencialidades de cada individuo, tentando resgatar os talentos individuais, assim esse modelo de educação permitiria aperfeiçoar ainda mais suas habilidades que se apresentava cada educando. A propensão para Confúcio é uma condição que estimula e valoriza o que o aluno tem a apresentar. Se um aluno tem habilidade em cálculos matemáticos, ele será estimulado a ainda mais desenvolver essa habilidade com a matemática. Logicamente esse trabalho educacional futuramente criava profissionais na qual desempenhariam papeis significativos não somente para si próprio mais para a sua sociedade. Podemos destacar aqui inúmeras transformações em que o Confucionismo apresentou dentro do viés Histórico da China, e que muito desses pensamentos ainda é a base para o modelo educacional Chinês. Mais não podemos destacar o quanto Confúcio projetou dentro de o seu pensar sobre o educador e qual é a função e o trabalho do professor para com o educando. “Ao ensinar o mestre orienta seus alunos sem arrastá-los; convida-os a avançar mais não coage; abre-lhes o caminho mais não os força a caminhar. Orientando sem arrastar torna o aprendizado agradável convidando sem coagir torna o aprendizado fácil, abrindo a caminho sem forçar a caminhada, faz que com os alunos pensem por si mesmos. Ora alguém que torne agradável e fácil aprendizado e faz os estudantes pen sem por si mesmos será que é chamado de bom professor”. [Trecho de Liji- Recordações dos Rituais]. (Bueno, 2011) Esse trecho de Liji remonta a ideia de um modelo educacional da China, que já demonstrava que há 2500 anos já existia um política 128 ou parâmetros para o desenvolvimento do educando e da importância do educador. O educador neste viés não seria apenas o transmissor do conhecimento, mais aquele que apresentava o aluno o caminha da retidão, usando a reflexão para com o aluno ao invés da força. Deste modo o professor dentro do contexto Confucionismo é uma autoridade do conhecimento e não um autoritário. Essa questão da valorização do educador pode-se afirmar que a China e os países orientais tem uma visão muito diferenciada com relação ao próprio ocidente. Em comparação com os países do ocidente ou com o Brasil a China como exemplo está a léguas a distancia da valorização do professor. Enquanto as sociedades dos países orientais apostam em incentivos aos professores e o próprio respeito aos seus mestres, o Brasil por outro lado e visível o descaso do estado com o profissional de educação. Os professores além de serem poucos valorizados financeiramente em nosso país recebem todo o tipo de violência do próprio estado e também dos próprios alunos, como mostra a atual realidade da educação brasileira. Isso prova que não se valorizar a educação, se cria um ambiente de crise dentro da sociedade. Diante dos aspectos da importância do professor aqui mencionados, são estas discussões que remete a um modelo histórico educacional e que durante a dinastia Han (221 A.C-206 DC) o Confucionismo desenvolveu um pensamento de desenvolvimento de novos paradigmas da educação da Civilização Chinesa. Confúcio empreendeu uma nova ideia sobre a sociedade da época, mas o que mais surpreende em sua trajetória foi a ideia da valorização do ser humana pelo conhecimento. O desenvolvimento moral e do conhecer se dava indiscutivelmente pela ação da busca do conhecer, pelo esforço fato de dedicar-se em estudar, isso para Confúcio era o método mais realista para o homem desenvolver a sua consciência. Dentro dessa análise a trajetória do modelo Confucionista educacional tem sido um dos lemes que transformaram e desenvolveram a sociedade na China em todos os aspectos. Reescrever a trajetória de uma história educacional Chinesa requer analisar os resultados e as práticas aplicadas nos estabelecimentos de ensino na China. 129 Entre o passado e o futuro: A influência da Educação no desenvolvimento da sociedade Chinesa Dentro do contexto Histórico é fato que pelo modelo educacional os Chineses não somente tiveram um avanço no desenvolvimento no contexto social, mais também um grande avanço tecnológico em sua trajetória histórica como já abordamos aqui. Foram os Chineses inventores da Pólvora, da bussola, da imprensa e do papel. Sem deixar de lado o desenvolvimento da Filosofia tendo como um grande ícone Confúcio (551-479 A.C), que segundo Mao JR. E Secco (1996), “Confúcio foi um idealizador de regras de conduta para a Harmonia Social”. Confúcio aplicou suas ideias conforme Bueno (2013) “em um período de Crise na China”, manchada pela corrupção e o caos político, veio então a solução por Confúcio, a sobrevivência da sociedade pela educação. Esses acontecimentos como a exemplo as ideias de Confúcio, desde a Dinastia Zhou, percebemos não somente seu desenvolvimento da cultura na China, mais como sua sociedade conseguiu transformarse ou reerguer-se em momentos de crise. A sua trajetória histórica vem repletas de grandes realizações, mais de transformações importantes que poucas pessoas se atentam à descobrir ou entender. Para Bueno (2011) “desde a antiguidade a clareza e a profundidade do pensamento Confucionista influenciou diretamente na mentalidade Chinesa”. É notório que a tradiçŌo milenar de Confúcio ainda vem sendo um método para construir um modelo educacional da China na atualidade. Essa longa tradição de manter os costumes e tradições culturais somado com a tradição educacional vem transformando e readequando a sociedade Chinesa nesses 25 séculos das ideias Confucionistas. A China para Bueno (2011) tem o grande dom para se reconstruir após as crises. “Sua experiência milenar salvou das grandes Crises, e permitiu que sua cultura atravessasse séculos”. Desse modo a longa tradição educacional Chinesa parece ainda regulando os métodos de ensino nos seus estabelecimentos educacionais. Citando um exemplo que pode até nos deixarmos pasmos, é a relação do professor e pais de alunos. A cultura familiar da China tem como padrão exigir uma melhor educação de seus filhos. Para Bueno (2011) “é fato corriqueiro os pais exigirem dos mestres de 130 seus filhos a estimula-los a estudar e se dedicar assim ao aprendizado. Existe até fatos de um suborno (suborno até positivo) por partes dos pais aos seus mestres em exigirem maior empenho de seus filhos com relação aos estudos. Essa cultura e tradição visam unicamente a dedicação no aprendizado cada vez melhor para seus filhos, visando assim futuro melhor para seus infantes. Este exemplo são características de um modelo educacional em que muitas vezes críticos do ocidente levantam questões ou afirmações ou até estereótipos sobre a maneira do tratamento do professor com aluno. Alguns comentários abordam que a China tem uma exigência autoritária dentro das escolas, ou outro exemplo na área de esportes em que os atletas são exigidos ao extremo. Mais esquecem que sem um comprometimento do atleta nŌo será nunca um “bom atleta”, ou sem estudar nŌo haverá o “bom aluno”. O fato e que a China vem tendo e superando suas crises e tendo grandes resultados em varias áreas graças a sua tradição milenar de educação. Muito dessa tradição tem contribuído para o desenvolvimento de sua nação e muito de aspectos dessa tradição vem sendo aplicadas ate mesmo pelo ocidente. Um exemplo essa tradição comparamos ao Brasil. Na China durante a dinastia Han, muitos alunos eram preparados para servirem a sua sociedade, ocupando cargos públicos desde que prestasse uma prova que provaria que estava apto a atuar tal função. No Brasil o exemplo que se assemelha é o concurso público nos quais muitos de nós prestamos e tentamos a aprovação em provas. Independente de muitas situações que a China atravessa como no modelo político socialista em que muitos consideram como um país fechado, ela mantém ainda viva sua tradição educacional, contendo grande parte dos fundamentos filosóficos de Confúcio. Uma tradição educacional que resiste há séculos, e que ainda se percebe resultados, que em comparativo ao modelo educacional brasileiro dos últimos 3 ou 4 séculos, foram criados vários modelos de ensino e que não surgiram o efeito desejado para um desenvolvimento educacional que atingisse resultados satisfatórios. Neste contexto a História da educação confucionista vem perpetuando essa longa tradição Chinesa. A questão que a China tem uma complexa e organizada sociedade, que difere das tradições Historiográficas e filosóficas da Europa na qual somos acostumados 131 a debater repetidamente no contexto educacional, pela ideia da ocidentalização da História, encontradas inclusive nos livros didáticos. A História da China e de seu modelo de educação não deveria ficar desfocada tanto da realidade do aprendizado Histórico, quanto é tão distante a sua posição geográfica. Conhecer China a sua cultura, tradições e sua civilização e seu modelo educacional dentro do modelo Confucionista certamente vai muito além do habitual conhecimento sobre a China, como exemplo da visão de sua própria muralha. Referências Elois Alexandre de Paula é Funcionário da Secretária Municipal de Educação de São Mateus do Sul, Paraná. Graduado em História pela Fafiuv, Especialista em Gestão Publica Municipal, Unicentro e Pós Graduando Em História Cultura e Arte, pela Uepg, Ponta Grossa. Email para contato: eloialexandredepaula@hotmail.com BUENO, André. Educarte: A Educação Chinesa na Visão Confucionista. Rio de Janeiro, 2011. BUENO, André. Confúcio: As Lições do Mestre. São Paulo, Jardim dos Livros, 2013. GRANET, Marcel. Civilização Chinesa. Otto Pierre, Rio de Janeiro, 1979 MAO, JR JOSÉ. SECCO, LINCOLN. A Revolução Chinesa: Até onde vai a força do dragão? São Paulo, Scipione, 1996. 132 O JAPÃO E O OLHAR SOBRE O “OUTRO”: O NEGRO EM PERSPECTIVA Felipe Adriano Alves de Oliveira O presente ensaio tem como proposta inicial apresentar brevemente os estereótipos que envolvem a imagem construída do negro pelos ocidentais, como uma herança de um pensamento eurocêntrico amplamente disseminado nos séculos de ampliação do poder europeu, principalmente após seu estabelecimento no continente americano, onde é o foco do artigo. Ainda nesse sentido, é apresentada uma das resistências culturais africanas como meio de manutenção dessa cultura e do reconhecimento de seus valores, além das influências que tem marcado as sociedades americanas. O ensaio propõe também a apresentação contextualizada de uma forma panorâmica da história do Japão já no final do período Tokugawa. O ensaio discorre brevemente abordando os processos da aproximação japonesa com os Estados Unidos já após os anos de 1945, bem como o envolvimento cultural entre eles, tendo como foco principal a análise da imagem do negro apresentada diante da perspectiva japonesa por meio do entretenimento, sendo eles os mangás, animes e o ambiente que envolve estilo musical. A construção de uma imagem nos moldes eurocêntricos O termo “estereótipo” caracterizou-se inicialmente com intuito de estabelecer uma forma, um padrão por meio da representação, mas aos poucos tomou uma conotação negativa o que possibilitou o fortalecimento do preconceito e a descriminação. Santoro (2014) esclarece que essa forma de estereótipo se forma com sentido de preconceituar, o que acaba prejudicando uma pessoa, um ofício, ou determinados grupos sociais. Os meios de comunicação de massa como a televisão e internet propiciam propagandas ou até mesmo músicas, filmes, seriados e animações que são elementos do entretenimento, em que tais agentes ou certas atividades são submetidas a representações estereotipadas de forma caricata (SANTORO, 2014). Pessoas que não pertencem a determinados lugares sendo então estrangeiros ou até mesmo migrantes, são vítimas desse processo, vistos como “estranhos” acabam sendo caracterizados seja pelo sotaque, pelos comportamentos, ou características físicas com 133 objetivo de selecioná-los e subjugá-los. Na atualidade é comum observarmos essas ações, no Brasil, por exemplo, os migrantes provindos da região nordeste são descriminados pelos costumes ou sotaques pelas demais regiões do país, nos Estados Unidos, os imigrantes latino-americanos, africanos e asiáticos sofrem com ações xenofóbicas e às vezes violenta, o que resulta em um ambiente hostil para ambos, e isso pode ser analisado também nos demais países tais como europeus. Um dos grupos étnicos que mais sofrem com o preconceito no ocidente sendo representados de forma estereotipada pela mídia são os negros, tendo uma força maior nos países americanos, sendo o continente que mais recebeu contingente de africanos escravizados para mão de obra a partir do século XVI (SILVA, 2012). Não é preciso citar infinidades de exemplos culturais do quanto que a influência africana tenha se consolidado de forma significativa em nosso continente, influenciando desde as miscigenações até mesmo nos idiomas, seja inglês, francês, espanhol ou português. Claramente o continente americano sendo dominado e ocupado por europeus e seus descendentes deixaram marcas culturais e principalmente a herança de conceitos, sendo uma delas o eurocentrismo. Os indígenas e principalmente os negros vistos como instrumento de trabalho sofreram uma tentativa de supressão de suas culturas, e foram retratados séculos mais tarde de forma caricata em anúncios publicitários do século XIX até a segunda metade do século XX como forma de inferiorizá-los. Apesar de que ainda hoje alguns meios de publicidade os apresentam de forma preconceituosa, mas discreta, já que medidas são tomadas para evitar esse tipo de propaganda. Nesse sentido, de acordo com Alakija (2012, p. 120), a mídia pode ser um produto nocivo dependendo da forma que ela apresenta determinadas pessoas, pois altera os comportamentos e compromete a identidade do grupo em questão. Por mais que atualmente os negros tenham alcançado conquistas em participações cinematográficas de destaque, programas de televisão, e na música, ainda há muito para trabalhar em prol da conscientização étnicosocial. Mas tais conquistas foram possíveis por meio de manifestações, apelos, lutas constantes para encontrarem o seu devido lugar (BORGES, R. C; BORGES, R. 2012). 134 Todas essas marcas da constante luta dos negros pela sua valorização e reconhecimento participativo na sociedade americana no geral, são representadas tanto no meio cinematográfico quanto nas animações inspiradas em histórias em quadrinhos, sempre com um adendo crítico social, aproveitando dessa forma o impacto que as mídias e o entretenimento têm na sociedade como uma maneira de conscientização (GUERRA, 2011). Pelo menos esse é o ponto de vista ocidental, mas e o lado oriental? Essa é uma questão que precisa ser abordada, já que a cultura afroamericana em nome da luta contra a discriminação no ocidente – tal como o Hip-Hop - tem ultrapassado as barreiras geográficas graças ao desenvolvimento da informação e o fortalecimento da globalização. O negro no entretenimento japonês “Padre Alexandre trouxe um escravo [...], era tŌo negro quanto aos etíopes ou os que estão em Guiné [...]. Quando chegou a casa, a cidade inteira correu para vê-lo (escravo) [...]. O Padre Organtin levou-o a Nobunaga que fez uma grande festa, ele não acreditou que a cor da pele fosse natural e que uma pintura tivesse feito na pele, mas depois de havendo feito o escravo se despir completamente, considerou e reconheceu a veracidade [...]”. (SOLIER, F. 1627, p. 444, tradução nossa). A citação acima se refere à obra do padre jesuíta francês François Solier, na qual narra os acontecimentos que envolveram a visita do padre jesuíta italiano Alexandre Valignano ao Japão em 1579, onde se encontrou com o daymio Oda Nobunaga. Durante essa visita o padre Valignano trouxe um escravo africano que de acordo com Solier (1627), era de Moçambique. O fato que deixou os padres jesuítas surpresos foi a admiração de Nobunaga com relação à cor da pele do africano chegando a solicitar que este se despisse por duvidar da veracidade de sua cor, além da curiosidade dos moradores da província onde o africano esteve hospedado com os padres (SOLIER, 1627). Obras acadêmicas em japonês, programas de TV, e mangá como a obra de Kuruso Yoshio (1968) intitulada “kurosuke”, descrevem que Nobunaga se interessou pelo africano chamando-o de “Yasuke”, e 135 que fez parte da guarda pessoal aprendendo técnicas do uso de espadas. O Diário de Notícias de Portugal postou em seu site no dia 29 de março de 2017, um projeto cinematográfico da Lionsgate tendo como base para a narrativa fílmica a história de Yasuke. Tais fatos mostram a diferença do olhar dos japoneses sobre o negro com relação ao olhar do europeu marcado pelo eurocentrismo. Ora, os europeus já tinham um longo histórico de relações comerciais com os africanos além do tráfico de escravos na África, enquanto os japoneses apenas mantinham relações com seus vizinhos Coreia e China, permanecendo “isolados” com o restante do mundo. De fato o contato com povos de outras etnias eram novidades, sendo que os portugueses como um dos primeiros europeus a terem relações com os japoneses foram recebidos com admiração por uns e suspeita por outros (HENSHALL, 2014). O que temos aqui é uma sociedade que via os estrangeiros como uma unidade “desconhecida” sendo suas diferenças étnicas motivo de novidade tanto com relação aos europeus quanto com Yasuke enquanto africano. Determinados fatores tendo como resultado a expansão do cristianismo e o descontentamento da população considerando a estadia portuguesa, e a nova religião como ameaças, contribuíram para que o Japão se fechasse quase que completamente à presença estrangeira durante o período Tokugawa, mais precisamente na primeira metade do século XVII. O fechamento à presença estrangeira foi algo que fez com que o Japão iniciasse seu renascimento econômico-social e também cultural. As artes floresceram como parte do entretenimento, sendo a pintura um dos que mais se destacaram, por exemplo, os e-makimono e ukiyo-e (pintura em rolos de papel e em madeira respectivamente) se baseavam na representatividade cotidiana da vida, desde a natureza até na política (LUYTEN, 2000). Mas a “pax nipônica” começou a ruir pelas crises na estrutura política e econômica, o que resultou resumidamente na reabertura para o comércio com os estrangeiros e o início de uma nova era, a de Meiji, facilitando a entrada do Japão na corrida imperialista, se estabelecendo posteriormente como uma das potências mundiais. Novamente durante a Era Showa o país viu sua potência abalada pela Segunda Guerra Mundial, e a transformaçŌo do “deus Imperador” Hirohito em um humano comum, o que permitiu mais uma nova fase na história do Japão (HENSHALL, 2014). Dessa vez, 136 essa fase além de recolocá-lo como uma das potências econômicas, marcou a aproximação com outra potência, os Estados Unidos, permitindo a influência ocidental em todos os campos da sociedade japonesa, Henshall (2014) coloca como uma “ocidentalizaçŌo” do Japão. Já no final do século XX, extensas transformações no processo da comunicação e da tecnologia da informação ultrapassaram todas as fronteiras entre países, fazendo com que a distância entre eles fosse praticamente nula, iniciava-se o período da cultura da informação, o que garantia a interação em tempo real entre pessoas em qualquer lugar do mundo (LÉVY, 1999; JHONSON, 2001; BRIGGSS; BURKE, 2006). O extenso conjunto de conhecimento digitalizado e disponível ao acesso transformava o conceito de cultura garantindo a popularização das produções voltadas ao entretenimento, é nesse ponto que surge o termo “cultura pop” que ganhou força no início do século XXI, e se caracterizou como uma cultura em torno do entretenimento, classificada por Adorno (2002), como indústria cultural, sendo a “cultura pop” um termo mais popular para se referir às produções que ganham mais popularidade (STOREY, 2009; ADORNO, 2002). Diante disso o Japão veio a se destacar também com as produções voltadas ao entretenimento, e já o fazia inicialmente com os mangás logo após a sua expansão tanto no oriente quanto no ocidente após a década de 1950, que com a popularização do termo cultura pop veio a fazer parte dos elementos que compõe a chamada, “cultura pop japonesa”, e sŌo eles os tokusatsu (séries de heróis japoneses), anime (animações), mangá (histórias em quadrinhos japonesas), jogos, filmes, e músicas (LUYTEN, 2000; 2014). Como mencionado anteriormente, a consolidação das relações entre Estados Unidos e Japão nos pós Segunda Guerra veio a se fortificar, e assim como boa parte dos países do ocidente, a cultura norteamericana também influenciou a sociedade japonesa, e os mangás são uma amostra disso, pois os personagens ganharam características físicas ocidentalizadas, traços esses realizados pioneiramente por Osamu Tezuka na década de 50 (LUYTEN, 2000). Essas características foram passadas para os animes já que 137 estes estão diretamente relacionados com os mangás enquanto adaptação. As caracterizações dos personagens dessas duas produções possibilitaram a introdução de negros como personagens de destaque em suas narrativas, e são diversas produções das mais variadas temáticas onde eles estão representados. Fazendo uma análise sobre como os personagens negros são retratados nessas produções alguns deles são apresentados como exímios lutadores e no manejo de espadas, como em Bleach com o personagem Kaname Tousen, e Zommari Runereaux, Afro Samurai com o protagonista Afro, e Naruto Shippuden com o personagem Killer Bee. Vale destacar que esse gênero de mangá/anime é ambientado no Japão feudal. Os personagens citados ocupam postos de importância e são retratados com princípios que se baseiam nos princípios do bushidô, que valoriza a autodisciplina, o fortalecimento da mente, do corpo e do espírito para alcançar seus objetivos. Todos os personagens negros assim como os demais, seguem esses princípios de moralidade, seja nesse gênero apresentado ou em outros que valorizam o “ser japonês” (Yamato Damashii) (LUYTEN, 2000). Portanto, a representação do negro nos mangás e nos animes se dá de uma forma que o coloca na condição típica de um japonês, “niponizando-o”. Essa relaçŌo se aplica dessa forma, pois a visão que os japoneses têm sobre o negro não é uma visão eurocêntrica, que como se sabe, resultou em representações carregadas de estereótipos com sentido de subjugá-lo. Como mencionado, a experiência social, e os valores japoneses foram completamente diferentes da dos europeus. Para Eisner (1989) e McCloud (1995), as experiências de uma determinada sociedade ao longo de sua história influenciam na mentalidade e ficam visíveis em suas produções artísticas, sejam elas cinematográficas ou quadrinísticas. Chartier (2002) esclarece que o processo de representação se dá por meio das características que uma sociedade carrega, ou seja, suas vivências. É exatamente por esse motivo que as produções da cultura pop japonesa são muitas vezes vista com singularidade. 138 Outra manifestação que ocorre na sociedade japonesa voltada à música e estilo Hip-Hop sŌo as do grupo chamado “B-Stylers” em que os jovens se identificam com a cultura afro-estadunidense tendo apreço pelo Rap. Eles se vestem, se comportam, e alteram o visual para ficarem parecidos com negros, utilizando métodos de bronzeamento de pele e modificações no penteado (STOFFELS, 2014). Tal comportamento social baseia-se no sentido de identidade, onde determinada pessoa ou grupo adere determinada postura de acordo com aquilo que mais lhe agrada com objetivo de fornecer identidade própria, com maneiras próprias de se expressar, ou de se vestir, oferecendo uma distinção dos demais (BAUMAN, 2012). De certa forma há uma percepção distinta do olhar japonês sobre o negro, representando-o de uma maneira que o insere em seu modelo de vida como ocorre nas produções narrativas dos animes e dos mangás, desconstruindo assim um estereótipo criado por um modelo etnocêntrico como a do europeu, e remodelando-o conforme os princípios que a sociedade japonesa está adequada tradicionalmente, ao mesmo tempo em que esse “outro”, ou seja, o negro é motivo de admiração por determinado grupo social como abordado brevemente sobre os B-Stylers. Isso não significa que todos os japoneses têm essa facilidade em assimilar a figura do “outro”, a resistência é rigorosamente presente para boa parcela da sociedade, principalmente para aqueles mais conservadores. Referências Felipe Adriano Alves de Oliveira é graduado em História pelas Faculdades Integradas de Itararé (FAFIT). ADORNO, T. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ALAKIJA, A. Mídia e identidade negra. In:_____. BORGES, R. C. da S; BORGES, R. (orgs). Mídia e Racismo. Petrópolis: De Petrus et Alii, 2012. BAUMAN, Z. Cultura e Identidade. In:_____. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 2012. BRIGGSS, A; BURKE, P. Uma história social da mídia: de Gutemberg à Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. CHARTIER, R. A História cultural entre práticas e representações. Algés (Portugal): DIFEL, 2002. 139 EISNER, W. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989. GUERRA, F. V. Super Heróis Marvel e os conflitos sociais e políticos nos EUA (1961-1981). (Dissertação), Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2011. HENSHALL, K. G. História do Japão. Lisboa: Edições 70, LDA. 2014. JOHNSON, S. Cultura da Interface. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. LÈVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34 Ltda, 1999. LUYTEN, S. M. B. Mangá – O Poder dos Quadrinhos Japoneses. São Paulo: Hedra, 2000. MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. SANTORO, E. 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STOFFELS, T. “B-Stylers” are japanese teens who want to be Black. VICE. Disponível em: <https://www.vice.com/en_us/article/9bzqdp/b-style-japan-desirvan-den-berg-photos>. Acesso em: 20 jul. 2017. 140 O COLÉGIO DE SÃO PAULO EM GOA: NOTAS PRELIMINARES SOBRE CIÊNCIA, CURRÍCULO E ORGANIZAÇÃO Felipe Augusto Fernandes Borges Saulo Henrique Justiniano Silva Introdução Este trabalho busca sintetizar conclusões parciais da pesquisa de doutoramento intitulada “O Seminário de Santa Fé e o Colégio de São Paulo de Goa: trajetórias de uma instituição portuguesa na Índia (1541-1558)”. A Companhia de Jesus configurou-se ao longo de sua existência como uma ordem fortemente ligada às práticas de educação e ensino, seja por meio do ensino das primeiras letras e da catequese, da evangelização ou mesmo por meio dos colégios. Conforme Costa (2004), as atividades educacionais não figuravam entre os objetivos que impulsionaram Loyola e seus companheiros a fundarem a ordem. Todavia, à medida que a Companhia ampliou seu raio de atuação, principalmente nas obras e missões do Padroado Português, a educação foi se tornando uma marca dos jesuítas. A partir do desenvolvimento de suas atividades educacionais, a Companhia busca também a sua institucionalização. Esta forma de institucionalização dar-se-á por meio da fundação e atribuição de Colégios à Companhia de Jesus. A partir das primeiras experiências, os Colégios passam a ser espaços institucionais de grande importância para a ordem, visto que para além de instituições apenas ligadas ao ensino tornavam-se centros de propagação da doutrina cristã e ainda da cultura ocidental. Os números nos mostram a relevância dada aos colégios na trajetória jesuítica dos séculos XVI a XVIII. Ainda citando Costa (2004, p.219), em 1556 existiam 35 colégios em funcionamento; em 1615 o número era de 372 e, em 1773 (ano da extinção da Companhia) os colégios eram 546 na Europa e 123 fora dela, em um total de 669. O crescimento numérico de colégios e seminários nos dá a visão de como a Companhia julgou importantes tais instituições para o desenvolvimento das missões, principalmente as do Ultramar. 141 Convertidos em centros unificadores do planejamento e ação da Companhia de Jesus, os colégios desempenhavam importante papel de formação cultural tanto para nativos das missões fora da Europa quanto para a formação de novos padres. No caso da formação de sacerdotes, podiam eles ser destinados à própria Companhia ou mesmo à formação de um clero nativo, como aconteceu no caso da Índia. As principais fontes documentais utilizadas na pesquisa consistem nas coletâneas: “Documenta Índica”, organizada pelo padre jesuíta Joseph Wicki, e “DocumentaçŌo para a História do Padroado Português do Oriente”, organizada e comentada pelo padre António da Silva Rego. A expansão ultramarina portuguesa Um elemento essencial na história de Portugal é seu processo expansionista, iniciado no século XV, consolidando as suas feições de “império” alcançadas no século XVI. Sobre o caráter da expansão lusa, Coelho (2000) no diz que: “Na expansŌo portuguesa houve de tudo um pouco: descobrimentos, em absoluto, e não apenas para os europeus, de novas terras, novos mares, novas estrelas, como diria Pedro Nunes, e viagens de descobrimento; evangelização com mão armada e também com martírio e novos métodos linguísticos; transfega e troca de riquezas, de ideias, de técnicas, de animais e de plantas; guerra e paz armada com violência extrema de todas as partes; fome de honra; coragem para além do que pode a força humana; altruísmo, sacrifício; antropofagia no limite e recusa dela; troca de ideias, de cerimônias, de vocábulos; confronto de culturas.” (Coelho, 2000, p. 60-61) A expansão portuguesa provocou profundas mudanças de cunho político, econômico, religioso e cultural, advindas principalmente dos contatos e trocas com culturas, religiões e costumes até então pouco conhecidos dos portugueses, e mesmo dos europeus de forma geral. A partir da tomada de Ceuta, em 1415, as viagens dos descobrimentos propriamente ditas têm início: em 1419, os portugueses descobrem o arquipélago da Madeira, em 1424 as Ilhas 142 Canárias, em 1427 aos Açores e, em 1434, Gil Eanes atinge o Cabo Bojador. Essas viagens estendem-se durante o século XV: Cabo Verde em 1456, Ilhas do Príncipe e São Tomé, em 1471, seguido da conquista de Tânger, culminando com a passagem pelo Cabo das Tormentas (depois rebatizado de Cabo da Boa Esperança) por Vasco da Gama, em 1499, e a chegada e instalação dos domínios portugueses no Brasil, em 1500 (Boxer, 2002). A partir da viagem de Vasco da Gama, em 1499, estabeleceu-se uma hegemonia lusitana no Atlântico Sul e em seus territórios costeiros. A partir de então se inaugura um novo caminho para as Índias, caminho este que ficou conhecido como a Rota do Cabo da Boa Esperança, ou simplesmente, a Rota do Cabo. A partir de 1499 os portugueses estabeleceram a chamada Carreira da Índia. Navios carregados de mercadores, negociantes e padres, estabeleceram uma nova rota comercial que estreitou os contatos entre o Ocidente e o Oriente. No entanto, os interesses dos portugueses não se limitavam as especiarias. A esse respeito é importante lembrar o diálogo estabelecido entre o degredado que Vasco da Gama – o primeiro português a navegar até a Índia – enviou à terra quando chegou a Calicute e “dois mouros de Tunes, que sabiam falar castelhano e genovês” (Velho, 1998, p.75). Segundo o autor do “Diário da Viagem de Vasco da Gama”, os mouros perguntaram ao degredado o que os portugueses vinham buscar tão longe. A essa indagaçŌo o degredado teria respondido: “viemos buscar cristãos e especiarias” (Velho, 1998, p.75). De forma predominante, a historiografia tem interpretado a resposta do degredado sobre a busca de CristŌos como uma “justificativa”, uma desculpa para os interesses econômicos dos portugueses. No entanto, estudos mais recentes têm procurado mostrar a importância da religião, e mais especificamente do messianismo, como motivadores da expansão portuguesa (Menezes, 2015). Assim, além dos inegáveis interesses despertados pelo comércio de especiarias e a busca por metais preciosos, os ideais cruzadísticos, a busca de uma aliança com o mítico Reino de Preste João e o desejo de expandir a fé cristã, foram poderosos motores da expansão. O Colégio de São Paulo em Goa Embora membros do clero estivessem sempre presentes nos navios portugueses, é somente em 1542 que desembarcam na Índia os 143 primeiros jesuítas. Liderados pelo padre Francisco Xavier, os primeiros membros da Companhia desembarcaram no Oriente, em 6 de maio daquele ano, momento em que estavam acompanhados pelo então novo governador geral, Martin Afonso de Souza. As missões orientais, inicialmente na Índia, foram as primeiras do Ultramar a receber os padres da Companhia e foram também as primeiras assumidas por eles. Lá, como posteriormente também nas demais possessões portuguesas, os inacianos fundaram e assumiram colégios e seminários. Na cidade de Goa, centro de propagação das atividades da Companhia de Jesus na Índia, foi fundado, antes mesmo da sua chegada, o Seminário de Santa Fé, que seria o germe de criação do futuro Colégio de São Paulo. O seminário não foi fundado pelos membros da Companhia, “mas passou a ser administrado por eles, após instâncias das autoridades civis e eclesiásticas de Goa junto ao próprio Francisco Xavier” (Tavares, 2004, p.112). O seminário de Santa Fé em Goa foi fundado no ano de 1541, portanto antes da chegada dos padres da Companhia de Jesus, por iniciativa do então Vigário Geral, padre Miguel Vaz, unido ao padre franciscano Diogo de Borba. De início eles se juntaram a outras autoridades religiosas e civis da cidade para fundação da Confraria da Conversão à Fé. Refletindo o esforço de ambos, já em 25 de julho do mesmo ano foram publicados os estatutos da Confraria, que, na cláusula de número 12 externava o compromisso de que ela teria a responsabilidade de criar e manter um seminário, a fim de formar um clero local (Tavares, 2007). Inicialmente, a ideia era de que os franciscanos assumissem o cuidado do seminário, tendo sido tal plano, porém, inviabilizado com o tempo. Concomitante a esta situação, ocorre a chegada dos jesuítas, liderados por Francisco Xavier, em 1542. Ainda nesse ano, em carta datada de 20 de setembro, Xavier escreve a Inácio de Loyola, demonstrando que já havia uma solicitação em aberto, por parte do governador, para que os padres da Companhia servissem de “edifficios espirituales deste tan santo collegio” (In: Rego, 1950, p.37). Ou seja, já havia, naquele momento, um desejo das autoridades civis e eclesiásticas para que os jesuítas servissem, inicialmente, como professores no seminário. 144 Francisco Xavier não assumiu prontamente o seminário, talvez por ainda não possuir pessoal em quantidade suficiente para isso, ou mesmo por questionar a pertinência de tal empreitada para a missão jesuítica no Oriente (Tavares, 2007). Ainda assim, mesmo sem assumir a administração direta do Seminário, os inacianos foram, paulatinamente, tornando-se maioria. Francisco Xavier, em carta datada de 15 de janeiro de 1544, dirigida aos confrades de Roma, afirma que deixara o Padre Paulo Camarte – ou Micer Paulo, como era conhecido e é chamado nas cartas – no Seminário, onde ele “tiene cargo de los studiantes”, ao passo em que ele e o padre Francisco de Mansilhas foram para o Cabo de Camorim (In: Rego, 1950, p. 55). Segundo Tavares (2007), de início, os jesuítas assumiram a administração espiritual do Seminário, no entanto, a administração financeira teria sido assumida apenas depois de 1549. A essa altura, o já citado padre Miguel Vaz estava em Portugal, em tentativas de, junto ao rei D. João III, viabilizar as condições para perpetuação do Seminário. Ao retornar a Goa, em 1546, o padre havia obtido a autorização real de rendas para o Colégio, cujo regulamento é datado de 27 de junho do mesmo ano (In: Rego, 1950, p. 353-362). No regulamento fica claro que os jesuítas são os escolhidos para a administração do Colégio, mas não se coloca ainda, de forma clara, a sua completa autoridade sobre a instituição. No ano de 1547 faleceram os padres Miguel Vaz e Diogo de Borba, pioneiros e idealizadores do Seminário. Em seguida, mediante aprovações do vice-rei D. João de Castro, do superior da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola e do próprio rei D. João III, o total controle do seminário passa finalmente para a Companhia de Jesus (Tavares, 2007). A experiência da Companhia de Jesus no comando do Seminário de Santa Fé foi o germe de criação, em 1548, do Colégio de São Paulo, o principal colégio jesuítico da Índia (Manso, 2009). A partir da criação do colégio, o Seminário de Santa Fé lhe ficou anexo, mantendo, ainda, sua vocação inicial, que era a de formar um clero local. Já o Colégio de São Paulo tinha estrutura mais complexa, pois “era destinado a alunos de Filosofia e Teologia da Companhia e para todos aqueles que frequentavam outros colégios e manifestassem capacidades para estudos de Filosofia” (Manso, 2009, p. 170). 145 Segundo Tavares (2007), o que se pretendia é que o Colégio de São Paulo fosse o equivalente oriental, no que se refere à formação intelectual dos alunos, ao Colégio de Santo Antão, em Lisboa. Colégio de São Paulo, funcionamento, currículo e ciência Como mostrado anteriormente, as ações de membros do clero que antecederam os jesuítas foram importantes para a fundação do Colégio de São Paulo. Nesse movimento, em 1540 foi fundada a chamada Confraria da Santa Fé, apossando-se (por meio de decreto régio) de bens confiscados após a destruição dos templos hindus de Goa, na década de 40 do século XVI. Em 1542 a Confraria funda o Seminário de Santa Fé, destinado a formar nativos para o clero local. Quando Francisco Xavier chega a Goa e tem os primeiros contatos com o Seminário, constata que a maioria dos alunos apenas sabia ler, escrever e rezar. Mesmo antes da Companhia de Jesus ser investida do controle do Seminário, Xavier já opina sobre a instituição, aconselhando que fossem introduzidas no ensino as matérias de Sacramentos e de Sagrada Escritura (Manso, 2005). Inicialmente, o Seminário aceitava apenas alunos nativos puros, deixando de fora mestiços e portugueses. Essa política de admissão era justificada sob o argumento de que a convivência entre alunos mestiços, portugueses e indianos poderia resultar em discussões, brigas e desentendimentos (Wicki, 1948, p. 142). Os alunos entravam no Seminário entre os treze e quinze anos de idade para que fossem investidos do sacerdócio e retornassem para trabalhar como padres em suas comunidades nativas (Manso, 2005). Ao assumirem a administração do seminário os jesuítas deram continuidade a essa diretriz, mantendo como objetivo do Seminário de Santa Fé formar clérigos nativos para atuarem na Índia. Não era objetivo preparar padres nativos regulares, mas sim padres seculares. Tudo indica que o clero nativo, formado no seminário, destinava-se apenas para o atendimento dos povos da Índia e, no máximo, de mestiços. Os portugueses seriam “atendidos” apenas por padres europeus. A corroborar essa constatação o padre Francisco Xavier, afirma que: “[...] había dos razones por las que nom se podia reclutar de entre los nativos la Companhia de Jesús em la Índia: primeira, siendo La mayoria de ellos de carácter débil, nada se podria conseguir sin portugueses; y segunda, por que los 146 portugueses de la India solo querian confesarse com Padres portugueses y nunca com indios e mestizos [...]” (In: Schurhammer, 1992, p.446) Assim, a crença na necessidade de formar um clero indígena para atuação local fortalece a ideia da fundação do Colégio de São Paulo em Goa. Segundo Manso (2005), o Colégio de São Paulo, ao lado do Colégio da Madre de Deus em Macau, foram os dois principais centros de difusão da cultura europeia na Ásia. Em sua fundação, pretendia-se que o Colégio de São Paulo formasse intelectualmente um clero indígena capaz de atender as comunidades cristãs em toda região das missões asiáticas. De forma distinta ao que ocorria no seminário, o Colégio de São Paulo passou a admitir não apenas nativos e mestiços, mas também alunos portugueses. Além disso, o colégio passou a admitir alunos da própria Companhia, para os estudos de Filosofia e Teologia. Mesmo aqueles que porventura tivessem frequentado outros colégios e manifestassem interesse e capacidade para cursar os estudos de Filosofia poderiam ser aceitos (Manso, 2005). Em 1548, o então Reitor, padre António Gomes, empreendeu uma reorganização do Colégio. Tendo por justificativa aquilo que considerou como baixo rendimento pedagógico e moral dos alunos indígenas, optou por separá-los dos alunos portugueses. Além disso, para o padre António Gomes o colégio deveria ser destinado apenas à formação superior. Esse procedimento fez com que os alunos nativos passassem a um plano secundário e muitos desistiram dos estudos no Colégio. Essas alterações, com o estabelecimento de restrições aos nativos, teve grandes proporções e causou grandes conflitos na cidade de Goa. Com a chegada do novo governador, Garcia de Sá, ainda em 1548, a normalidade foi restaurada, e os indígenas voltaram a ser admitidos no Colégio (Manso, 2009). Posteriormente, António Gomes seria ainda demovido do cargo de reitor e expulso da Companhia por Francisco Xavier. Pela especificidade do local, no Colégio de São Paulo falava-se de oito a dez línguas ou dialetos distintos, o que inicialmente apresentou-se como uma barreira aos padres e professores. No início, enquanto os alunos ainda não falavam português, as aulas consistiam em ouvir e repetir aquilo que o professor falava. Em alguns momentos, utilizavam-se intérpretes para facilitar a comunicação entre os professores e alunos. Em 1548, o Padre 147 Nicolau Lancelote escreve instruções em que descreve esta situação, uma verdadeira barreira linguística, e pede aos padres que aprendam as línguas locais, a fim de poder lançar mão do trabalho dos intérpretes o mais rápido possível (In: Schurhammer, 1992, p. 326-329). O conjunto dos estudos no Colégio de São Paulo era formado por: três classes de latinidade, um curso de Artes (Filosofia), três lições de Teologia especulativa e moral, além de uma lição de Escritura Sagrada. Além disso, havia também aulas abertas a jesuítas e seculares onde se ensinavam as primeiras letras, ler, escrever e contar. Vale lembrar que, na época a que estamos nos referindo neste trabalho, a Ratio Studiorum ainda não havia sido escrita e aprovada. Não obstante, acreditamos que as experiências vivenciadas no Colégio de São Paulo, bem como os planos de estudos que aí se desenrolavam contribuíam conjuntamente com o grande debate de formação de um plano ou linha geral de atuação educacional dentro da própria Companhia. Ainda, acreditamos que as linhas gerais da Ratio já estavam presentes na própria formação do jesuíta, no próprio modus operandi da Companhia, de modo que se pode dizer que os princípios fundamentais da Ratio já faziam parte da forma como se estruturava o ensino no Colégio de São Paulo, mesmo que o documento em si ainda não existisse em sua forma acabada (Manso, 2005). No entanto,não temos acesso a informações que permitam um aprofundamento sobre a forma como eram conduzidos os estudos, ou mesmo sobre a “natureza dos currículos”. Ainda a esse respeito, lemos em Teotónio Souza que: “Mas nas escolas mais desenvolvidas, a cargo das ordens religiosas na Velha Goa, dos Jesuítas em Rachol, e dos Franciscanos em Reis Magos, o currículo incluía língua e literatura latina, conhecimentos religiosos artes liberais, incluindo música vocal e instrumental. Havia igualmente lições na língua vernácula, destinadas a formar catequistas, que depois regressavam às suas aldeias e auxiliavam os sacerdotes das suas paróquias na conversão dos outros aldeões. Na escola de S. Paulo, para rapazes, dirigida pelos jesuítas na cidade de Goa, prestava-se atenção especial à aritmética, porque essa era uma área muito apreciada pelos nativos de mente voltada para os negócios. Os relatos de 148 Jesuítas da época dizem que não era raro encontrar adultos nas aulas de aritmética.” (Souza, 1994, p. 91) Há divergências entre os autores a respeito do que era ensinado no Colégio de São Paulo, e de como era ensinado. No entanto Manso (2005) e Teotónio Souza (1994) concordam que as fontes para compreensão dos currículos em si são poucas e escassas. Manso (2005) afirma que, na prática, parece que existiam dois cursos, ou duas linhas de formação no Colégio de Goa: uma destinada àqueles que desejavam tornar-se padres, incluindo então os estudos o latim clássico, a Filosofia e Teologia Moral. Numa segunda linha, haveria um curso para aqueles que desejassem se tornar literatos e aprender Matemática. As fontes e os analistas nŌo mencionam o termo “Matemática” diretamente. Souza (1994) no excerto supracitado aponta uma “atençŌo especial à aritmética” enquanto em outros autores encontramos referência a “ensinar a contar”. Segundo Baldini “toda província missionária deveria dispor de um cursus studiorum completo” (1998, p.205), o que no caso, englobava três anos de Filosofia, com um ensino anual de Matemática. Segundo o mesmo autor, porém, durante muito tempo isso não foi uma completa realidade. Ainda assim, por vezes, “[...] como nos colégios ibéricos, os professores de filosofia supriram a ausência da matemática inserindo um tratado da „esfera‟ no curso de filosofia natural, mas semelhantes tratados elementares nŌo davam uma preparaçŌo técnica” (Baldini, 1998, p.206). Sendo assim, segundo o autor, ainda no século XVIII – e neste artigo estamos nos referindo ao século XVI – as missões dependiam da Europa no que tange ao pessoal preparado em Matemática e quase que totalmente para professores de Filosofia e Teologia. Considerações Finais A atuação da Companhia de Jesus no Oriente, principalmente na Índia, foi ampla e abrangente. Dentre todas as estratégias jesuíticas utilizadas para a conversão dos gentios e a difusão de uma cultura ocidental, os Colégios e Seminários se destacavam, pois estavam sempre presentes. Lembramos que “em todo o espaço ultramarino a Companhia propunha-se catequizar, ocidentalizar, sendo os 149 seminários e colégios meios para obter tais objectivos” (Manso, 2005, p. 174). Os colégios funcionavam como centros de uma tentativa de imposição da cultura ocidental. A princípio, o Seminário de Santa Fé e posteriormente o Colégio de São Paulo cumprem esse papel ao recrutar uma parcela da população nativa e formá-la sob matrizes de estudos e culturas europeias, ordenar alguns como padres e, então, enviá-los de volta às suas comunidades, esperando (e acreditando) em uma multiplicação desse esforço de cristianização da Índia. O Colégio de São Paulo e o Seminário de Santa Fé foram um dos principais centros de propagação da cultura europeia na Índia. Ao fazermos esta afirmação, não pretendemos inferir que tenha havido uma sobreposição da cultura europeia às culturas locais, embora esse fosse o objetivo dos jesuítas. Nesse sentido, pode-se falar de uma interação cultural ou de uma influência mútua de culturas entre portugueses e os povos da Índia. A interação cultural que ocorre nos colégios não é simétrica, pois aquele era um local privilegiado para a tentativa de imposição da cultura cristã ocidental. Contudo, os portugueses e os próprios jesuítas não eram imunes a cultura local. Isso pode ser observado no fato de que os padres e professores, por força das necessidades catequéticas, buscavam conhecer as culturas, as línguas e, dessa forma, conseguir um contato mais efetivo com seus estudantes. Analisar a história do Colégio de São Paulo em Goa é buscar a compreensão da interação entre as culturas, da adaptação dos jesuítas, da receptividade que os povos nativos da Índia dispensavam àquelas novas culturas que os colonizadores portugueses, padres e seculares, tentavam lhes impor. Referências Felipe Augusto Fernandes Borges é doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente trabalha como Pedagogo da Universidade Federal do Paraná em Jandaia do Sul - PR. Contato: professorfelipeborges@gmail.com Saulo Henrique Justiniano Silva é doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Atua como professor da rede estadual de ensino do 150 estado do Paraná e como professor da Faculdade Alvorada em Maringá – PR. Contato: saulojusti@gmail.com BALDINI, Ugo. As Assistências ibéricas da Companhia de Jesus e a actividade científica nas missões asiáticas (1578-1640). Alguns aspectos culturais e institucionais. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, Abril-Junho, Tomo LIV, Fasc. 2, 1998. BOXER, C. R. O Império Marítimo Português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. COELHO, António Borges. 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Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1948. 152 DO EXTREMO ORIENTE AO NOVO MUNDO: CAMINHOS DA INTERCULTURALIDADE NA MISSIONAÇÃO JESUÍTA PORTUGUESA (SÉC. XVI E XVII) Fernando Roque Fernandes O presente texto contém algumas reflexões sobre os fenômenos de expansão marítima iniciados ainda no século XV. Ao contrário do que afirmam alguns estudos, os chineses foram pioneiros na navegação em grande escala. Já os portugueses, empreenderam grandes conquistas. Com o auxílio das caravelas, instrumentos de navegação e especialmente dos missionários, os portugueses estabeleceram colônias e empreenderam missões religiosas. Conforme se verá, China, Japão e Amazônia estiveram entre as principais rotas da expansão marítima portuguesa entre os séculos XVI e XVII. Tais regiões estabeleceram particulares relações, cada uma a seu modo, com os projetos de missionação da Companhia de Jesus no Ultramar. Considerações Iniciais Entre os séculos XV e XVII, o mundo se viu transformado por uma expansão marítima europeia que alcançou diferentes partes do globo terrestre. O crescimento significativo das técnicas de navegação, aliados à conhecimentos tecnológicos trazidos do Oriente se conformou por características socioculturais que impactaram a humanidade. Instrumentos como o Astrolábio, originário do mundo árabe, e a Bússola, de origem chinesa, se constituíram como importantes elementos que possibilitaram uma ampliação das conexões marítimas europeias. A presença de tais instrumentos na Europa Moderna nos informa dos indícios interculturais refletidos na articulação da cultura material de diferentes povos e como esta interação influenciou, muitas vezes de modo significativo, os empreendimentos expansionistas daquelas sociedades. Expansão Marítima Chinesa no Século XV É bem verdade que, antes mesmo de os europeus se lançarem aos mares, os chineses já desenvolviam uma intensa navegação, inclusive de caráter político e comercial, pelas águas africanas e asiáticas. A China, ainda no século XV, já se constituía como importante nação expansionista naquelas águas. O período 153 denominado de Expansão Chinesa Quinhentista detém implicações históricas particulares no que diz respeito às conjunturas políticas, tecnológicas, econômicas e sociais que possibilitaram àquela nação tal empreendimento. Zheng He (1371-1433/6) foi o mais conhecido navegador chinês daquele período, sendo considerado por muitos estudiosos do assunto como o maior navegador da história da China. Zheng He teria comandado sete expedições marítimas num período de quase trinta anos (1405-1433). Em expedições compostas por números de marinheiros que chegavam a trinta mil homens, Zheng teria navegado pela costa da Ásia, Oceano Índico e pela Costa Oriental da África. Infelizmente, muitos dos registros sobre tais expedições não estão acessíveis, assim como de muitas outras ocorridas. Daí a dificuldade em desenvolver estudos relacionados ao período que poderíamos denominar de tempo de ouro na história da navegação oriental. Quando os portugueses chegaram em 1517 e os holandeses em 1601 à China, esta já havia se fechado para a expansão marítima em larga escala. As razões para tal procedimento estariam relacionadas aos constantes ataques de piratas, inclusive japoneses, que saqueavam suas embarcações. Há relatos também de profundas reformas ocorridas durante o Império da Dinastia Ming (1368-1644). Contudo, apesar das mudanças na relação com o mundo externo, o Extremo Oriente não ficaria fora da expansão europeia que se processavam a partir do século XV, empreendida, especialmente, por Portugal e Espanha. Mesmo aparentemente desconectadas, estas diferentes nações estabeleceriam relações por outros caminhos. Expansão Marítima Europeia O contexto da expansão marítima europeia, iniciada concomitantemente à retração na navegação marítima chinesa, está relacionado a diferentes fatores ocorridos na Europa: Renascimento Intelectual Italiano, Reformas e Contrarreformas Religiosas, “Descoberta” do Novo Mundo, expansŌo marítimo-comercial mercantilista, descoberta de novas rotas marítimas para as Índias, dentre outros fatores. No que concerne às reformas e contrarreformas religiosas a expansão e o rápido crescimento do protestantismo se constituíram como elementos radicais na percepção religiosa medieval que se processavam deste o colapso do Império Romano. 154 Dentre as alternativas encontradas pela Igreja Católica para a manutenção da religiosidade que conformava a sua base, emergiram procedimentos como a Restauração do Tribunal da Inquisição, a criação do Índex de livros proibidos e a criação da Companhia de Jesus. Este último mecanismo demonstrou, ao longo do tempo, ser uma ferramenta indispensável, rapidamente conectada aos interesses colonizadores dos países católicos ibéricos. A Companhia de Jesus na Expansão Marítima A chegada dos portugueses no Extremo Oriente concorreu para um processo de evangelização cristã em larga escala. Os desafios demonstraram desde cedo serem dos mais diversos. A Companhia de Jesus se apresentou como a ordem religiosa melhor preparada para desempenhar a funçŌo de “converter” novos fiéis à fé Católica. Bem longe dali, no Novo Mundo, também se processavam grandes empreendimentos coloniais. A cobiça dos impérios católicos fez com que a Igreja dividisse o novo mundo. A Bula Inter Coetera, assinada em 1493, por não promover os anseios portugueses, foi no ano seguinte substituída pelo Tratado de Tordesilhas (1494). O novo mundo, dividido entre Portugal e Espanha refletia a busca material daquelas potências e, por outro lado, os anseios de manutenção da fé religiosa ameaçada pelo protestantismo. Por várias partes do mundo, os portugueses, religiosamente, representados pela Ordem Jesuíta, mas não somente, empreendiam uma colonização com bases cristãs que, aliava os interesses de salvação aos interesses mercantis, conectando a metrópole e suas colônias por razões comerciais e espirituais. Poderíamos dizer que a salvação de muitas almas submetidas às autoridades coloniais, especialmente na Ásia, África e na América ocorreu numa conjuntura de grandes mudanças no mundo ocidental. Muitos dos novos conversos cristãos foram levadas a crer que a salvação era basicamente sinônimo de trabalho. Obviamente, que não se pode generalizar tais afirmações, e muito menos reduzir a importância das missões jesuítas, assim como seu significado, à questões unicamente políticas e mesmo econômicas. Há um elemento espiritual que dimensiona o sucesso da Companhia de Jesus por onde quer que empreendesse a missionação. Ressalvadas as características estratégicas da ordem Jesuíta, a apropriação do significado desta instituição religiosa tendia a ser 155 condicionada ao próprio ambiente cultural no qual se inseria. De todo modo, a relação entre salvação e trabalho se projetava como pano de fundo da expansão marítima que se processou no Mundo Moderno. Jesuítas na China Conforme aponta Palazzo (2011), os jesuítas iniciaram a missionação na China a partir de Macau. Esta cidade se constituía como entreposto comercial português desde a chegada destes na região, em 1517. A partir de Macau, os jesuítas teriam se constituído como a comunidade religiosa mais influente da região. Ainda para Palazzo (2011), em Macau, “a Companhia de Jesus estabeleceu uma base importante não apenas para a missionação [...] mas para, a partir dela, penetrar no território chinês, no coração do Império, chegando até Beijing”. Apesar de se constituírem como importantes intelectuais, aliados dos confucionistas e articulados com a população local, os jesuítas alcançaram seus empreendimentos missionários apenas em pequena escala. O lugar que os inacianos passaram a ocupar, após sua inserção no ambiente cultural chinês rendeu-lhes certo prestígio e o reconhecimento de grandes intelectuais. Tendo a catequese como objetivo maior, a grande contribuição dos jesuítas em Macau esteve mesmo relacionada às suas atividades acadêmicas e artísticas. As pesquisas de fôlego que dizem respeito a este capítulo da história jesuítica ainda são escassas. De todo modo, é possível considerar que, na China, apesar de se constituírem como importantes agentes culturais intermediadores entre os europeus e os chineses e de serem reconhecidos por seus conhecimentos científicos e habilidades artísticas, os inacianos também passaram por profundas influências da cultura chinesa. Em comparativo com as colônias portuguesas na América, o estabelecimento jesuíta na China foi dimensionado pelo modo de governo daquele lugar. Se na América os portugueses estabeleceram a colonização a partir das relações diversas situadas entre as múltiplas organizações indígenas localizadas no território e que detinham certa autonomia umas das outras, permitindo aos portugueses instaurarem alianças e/ou conflitos em escalas locais e ir conquistando o território, na China, os portugueses, assim como os jesuítas se depararam com um vasto Império, governado por uma 156 forte e consolidada dinastia, especialmente no decorrer dos séculos XVI e XVII. Jesuítas no Japão Conforme aponta Hichmeh (2013), os primeiros contatos entre portugueses e japoneses ocorreram, também no século XVI. No entanto, a chegada dos portugueses ocorreu em um contexto de intensos conflitos. Desde fins do século XV, o Japão passava por uma situaçŌo de “guerra civil”, iniciada por conta do colapso do poder central, dando vazão ao fortalecimento de poderes locais. À época, a figura do imperador detinha uma representação de caráter simbólico. A chegada dos portugueses concorreu para acirrar as disputas. Muitos poderes locais, intencionados a acessar as armas de fogo portuguesas, a estes se aliaram para fortalecer seus poderios bélicos. Apesar dos contatos pacíficos iniciais, estes não duraram por muito tempo. Os conflitos foram desencadeados, justamente, pela chegada dos jesuítas ao Japão, em 1549. Conforme aponta Hichmeh (2013), a chegada do padre Francisco Xavier inauguraria o período denominado por Charles Boxer (1951) de “século cristŌo do JapŌo”. Esse período foi marcado por três fases: 1. O sucesso da missionação jesuíta; 2. O fortalecimento da crítica japonesa quanto aos procedimentos concernentes à fé cristã e 3. A perseguição dos jesuítas por conta de suas práticas contraditórias à tradição japonesa. Procedimentos de reunificação iniciados a partir desse período concorreram para o enfraquecimento do prestígio alcançado pelos jesuítas no primeiro século da presença da ordem no Japão. Apesar das tentativas de manutenção das relações com os portugueses, sem que se incluísse aí o aspecto religioso, e concorrendo para a expulsão dos jesuítas, o governo japonês não empreendeu um processo de perseguição aos inacianos, o que lhes permitiu permanecerem ali oficialmente até 1640, quando um édito imperial proibiu qualquer prática cristã em todo o império japonês. Com a proibição do culto cristão em terras japonesas e a oficialização do confucionismo como doutrina oficial, os ensinamentos dos inacianos foram gradualmente adquirindo diferentes representações. 157 Jesuítas na Amazônia Portuguesa As missões religiosas desempenharam papel importante no processo de cooptação dos índios na Amazônia. O auxílio no processo de expansão territorial, a arregimentação de mão de obra para desempenhar atividades no dia a dia e o processo de estabelecimento das fronteiras coloniais, foram algumas das funções desempenhadas pelas ordens missionárias. Hoornaert (1990) chamaria o período compreendido entre 1607 e 1661 de “o período profético das missões na Amazônia Brasileira”. Para Moreira Neto (1990), o período profético” teria ocorrido entre os anos de 1607 e 1686. O autor observou que os jesuítas foram os pioneiros nas entradas que constituiriam os territórios pertencentes ao Maranhão e Grão-Pará. A presença dos jesuítas na Amazônia passaria a ser constante a partir de 1637 quando o padre jesuíta Luís Figueira, vindo do Maranhão, chegaria a Belém e daria início ao trabalho missionário, “percorrendo o Tocantins, o Pacajá e o Baixo Xingu” (Moreira Neto, 1990). Foi neste mesmo ano que os dois irmãos leigos espanhóis e padres franciscanos, Brieva e Toledo, chegaram a Belém descendo da cidade de Quito, no Vice-Reino do Peru, pelo rio Napo com apenas seis soldados em uma canoa, seguindo todo o curso do “Rio de las Amazonas” (Rabelo, 2015). A chegada dos franciscanos espanhóis teria estimulado os colonos portugueses a facilitar o assentamento de missionários oriundos de Portugal na Amazônia (Fernandes, 2015). A partir desses acontecimentos, os colonos passaram a dar maior liberdade aos missionários jesuítas, especialmente no que envolvia o desenvolvimento de suas missões. Aproveitando tal ocasião, os jesuítas logo fundaram casas em São Luís, Belém e Cametá (Moreira Neto, 1990). O crescimento econômico na região e a presença dos portugueses acentuou conflitos que já se processavam antes mesmo da chegada dos europeus. Com a chegada destes, os territórios e suas potencialidades também passaram a ser cobiçadas em perspectivas mercantilistas, o que concorreu para a escravidão dos nativos. A forma como este processo ocorreu em fins do século XVII demonstra que os jesuítas sempre foram a força responsável por grande parte da missionação na Amazônia, assim como a ordem detentora de maior prestígio político junto à Coroa. É bem verdade que passaram por alguns momentos angustiantes. Foram expulsos 158 da região em 1661 e em 1684, mas retornaram. A partir de 1686, empreenderiam grandes projetos de missionação que só derrocariam com as reformas pombalinas da segunda metade do século XVIII. Mas, apesar dos conflitos políticos, econômicos e religiosos entre colonos portugueses, a presença estrangeira também se constituiu como importante tônica dos embates que envolveram, inclusive, povos indígenas pelas conquistas da Amazônia no século XVII. Considerações Pontuais Com base nas informações apresentadas, pode-se considerar que os jesuítas se constituíram como importantes elementos da expansão marítima portuguesa no período moderno, tendo conectado diferentes partes do mundo a partir de seus ideais de missionação. Deve-se também considerar que a expansão marítima portuguesa foi antecedida por um processo expansionista de proporções intercontinentais iniciado anos antes pelos chineses. Tais processos concorreram para a conexão de diferentes partes do globo entre os séculos XV e XVII da era cristã. Observa-se que apesar de se constituir como elemento importante de conexão, tendo se estabelecido em importantes regiões do Extremo Oriente, as conjunturas nas quais os missionários jesuítas empreenderam a evangelização foram dimensionadas pelas características políticas, econômicas e culturais de povos com os quais estabeleceram contatos. As diferenças dos resultados alcançados na China, no Japão e na Amazônia Portuguesa, conforme se pôde observar, foram condicionados por características sócio históricas que estavam para além das bases criadas pela Companhia de Jesus. Esbarrando naquilo que poderíamos denominar de barreiras culturais, em alguns empreendimentos, os jesuítas demonstraram a incapacidade de construir um império cristão de proporções globais naquele período. Referências Fernando Roque Fernandes é Doutorando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará; Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (DS-CAPES). 159 E-mail: fernando_clio@hotmail.com BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português (14141825). Lisboa, Edições 70, 1977. FERNANDES, Fernando Roque. O teatro da guerra: índios principais na conquista do Maranhão (1637-1667). Dissertação defendida no Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas. Manaus, AM. 2015. Disponível em: http://ppgh.ufam.edu.br/attachments/article/197/Fernando Fernandes_Dissert_2015.pdf Acesso em: 19 ago. 2017. HICHMEH, Yuri Sócrates Saleh. O Cristianismo no Japão: do proselitismo jesuíta à expulsão da Igreja. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo Social. Natal, julho 2013. 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Disponível em: http://slideplayer.com.br/slide/90188/ Acesso em: 20 ago. 2017. 161 162 ENTRE COLÔNIA, GUERRA INTERNA E DIVISÃO DO PAÍS: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO DA CORÉIA NO SÉCULO XX Flávio Moisés Soares A Coréia do Norte na mídia internacional sempre relacionada a ameaças de mísseis, conflitos com outras nações e o governo guiado a mão de ferro pelo líder Kim Jon-il; enquanto a Coréia do Sul, lida com as consequências de um impeachment de sua presidente envolvida em escândalos de corrupção. O intuito deste artigo é mostrar como uma, antes unificada, península se separou em dois regimes político-econômicos tão diferentes entre si. Em resumo a história coreana do século passado é o período sobre domínio japonês, seguido pela Guerra da Coréia e finalizado com reestruturação e ascensão. Início do século XX Por uma posição estratégica, a península coreana sempre foi desejada pelas potencias asiáticas (China, Japão e Rússia). Sendo território sobre forte influência, cultural (confucionismo), religiosa (budismo), econômica e politicamente chinesa durante boa parte de sua história (MONTEIRO, 2014, p. 14); as diversas invasões japonesas à península coreana durante a história, causaram dificuldades para os nipônicos estabelecerem relações com seu vizinho mais próximo, por fim em 1876 um trato conseguiu ser firmado (YAMASHIRO, 1986, p.231). O Japão foi controlado por muito tempo pelos Shogunatos, sistemas de governo assemelhados aos feudos da Idade Média Ocidental, até que em 1853 uma esquadra norte americana, forçou a abertura dos portos, depois de tentativas recusadas da Rússia e Holanda para tal fato, e uma coleção de eventos levou ao final do período Shogun e início do período Meiji. As mudanças político-sociais instauradas, pelo príncipe Mutsuhito, com intuito de modernizar o país nipônico levou a mudanças drásticas na vida da população; ocorreram uma reforma agrária, a criação do Iene, do Banco do Japão, o surgimento dos zaibatsus – empresas viriam a ser grandes conglomerados industriais e financeiros (como a Mitsubishi, Mitsui, entre outros) que eram clãs familiares durante o período anterior, criação do cargo de dajo-daijin (equivalente ao primeiro-ministro) (YAMASHIRO, 163 1986, p.212-4) . A modernização chegou, como era de se esperar, aos militares que modernização o exército japonês, assim aposentando, de fato, os samurais e as katanas (espadas samurais, símbolos de seu status na sociedade feudal). Durante o período de 1894 e 1895 a Primeira Guerra Sino-japonesa, que ocorre na Coréia, se desenrola, coreanos se dividiam em apoiadores da cooperação com o Japão e xenófobos (como diz Yamashiro, 1986), as tensões entre os primeiros, logicamente, apoiados pelo Império do Sol Nascente e os segundos apoiados pelo Império Celeste (China) levaram ao conflito armado. A vitória foi dos japoneses, que deixaram a Coréia independente da influência chinesa, anexaram territórios e abriram rios chineses para o comercio estrangeiro. Ainda segundo Yamashiro (1986) o mundo todo foi pego de surpresa por essa vitória. “Em 1987, o Rei Gojong pressionado pelas forças externas e pela opinião pública coreana pró-Independência, fundou o Grande Império Coreano, anunciando o fim dos laços políticos como um Estado Tributário da Dinastia Qing” (MONTEIRO, 2014, p. 14-15) marcando assim o final da influência direta chinesa na política coreana de maneira direta, entretanto o governo socialista chinês vai ser um grande influenciador e aliado para a formação da Coréia do Norte. Conflitos de interesses entres súditos dos czares e aqueles que serviam ao Imperador Meiji levaram a Guerra Russo-japonesa, de 1904 a 1905, pelo controle da Coréia e da Manchúria. O império dos Czares teve que lidar com crises sociais internas, frota naval velha e desatualizada, enquanto os japoneses contavam com uma frota mais poderosa e moderna, embora com navios menores que seus inimigos. Como resultado final o Império do Sol Nascente venceu essa guerra, mostrando seu poderio de potência. A Rússia ficou desprestigiada perante o globo. “O JapŌo, por sua vez, firmou um tratado com a Coréia e, depois de novas negociações, resolveu anexar a península, com o consentimento do seu governo (1910) ” (YAMASHIRO, 1964, p. 163), era a firmação do império nipônico no continente. Período de colônia O período como colônia é contrastante para o povo coreano, por um lado os colonizadores investiram na construção de indústrias (principalmente no norte da península), estradas, portos e ferrovias; por outro lado, o governo foi extremamente autoritário e violento 164 com a oposição e impunha políticas para a niponização dos coreanos (como a obrigatoriedade de uso de nomes japoneses e o ensino da língua dos conquistadores). Visentini et al (2015) nos dizem que as políticas aplicadas criaram uma discriminação racial que colocava os coreanos como cidadãos de segunda classe em seu próprio país (pág. 33). A metrópole estabeleceu uma divisão de trabalhos, ao norte por sua geografia e recursos geográficos foi concentrado a para a indústria pesada e atividades de mineração, ao sul, pelos mesmos motivos, foi responsável pela produção de alimentos, têxteis e outros bens de consumo (Visentini et al, 2015; Monteiro, 2014). A construção de uma rede de ferrovias e rodoviárias e rotas marítimas acabam com o problema de isolamento dentro da península. Alguns grupos apoiavam os japoneses e as suas decisões, entre uma delas a de enviar coreanos para trabalhar como escravos em outras colônias ou no Japão (MONTEIRO, 2014, p. 15). Em Gen: Pés descalços – Hadashi no Gen ( だし ゲン) no original – de Keiji Nakazawa (2002), um dos personagens sobreviventes a bomba atômica é um coreano de nome Pak, ele é ridicularizado pelos nativos da cidade e até mesmo o protagonista se nega a ser visto com ele pela cidade antes dos eventos trágicos que colocaram Hiroshima na história mundial, mas depois da explosão da bomba o coreano ajuda Gen e outros sobreviventes. Essas memórias de Nakazawa nos mostram a extradição de coreanos para o território insular japonês para fazer trabalhos braçais e as relações que colocavam os coreanos como humanos de segunda categoria aos olhos da população japonesa. É desse período que muitas mulheres serão usadas como mulheres de conforto para os soldados japoneses, em outras palavras, eram moças e mulheres retiradas de suas cidades – por maneiras coercitivas, enganadas com propostas de emprego ou raptadas (OKAMOTO, 2013, p. 94-95) – para serem usadas de alivio sexual para os soldados da metrópole nos lugares onde se instalavam; situação delicada que gera desconforto entre as nações até os dias atuais (BBC BRASIL, 2015; FELDEN, 2013) Entre as revoltas da população - por vezes com inspiração estadunidense por outras com chinesa, mas ambos com forte espírito nacionalista visando à expulsão do invasor - existiam grupos que apoiavam o colonialismo imposto ao povo coreano. 165 Guerra da Coréia Com a derrota dos japoneses foi devolvida a independência à Coréia; como segundo país mais industrializado da Ásia na época (a antiga metrópole era o primeiro), mas com uma moral nacional abalada e fisicamente marcada. O contexto global era de um mundo pósguerras com tensões políticas em alta e acordos diplomáticos delicados sendo estabelecidos. O mundo estava sendo divido em duas ideologias: o capitalismo e o comunismo (tendo como seus maiores entusiastas os Estados Unidos da América e a URSS, respectivamente); em outras palavras era o início da Guerra Fria. A população estava assombrada pelo fantasma atômico, representado pelo medo das potencias usarem armas nucleares em conflitos próximos ou para mostrar superioridade - durante a Guerra das Coréias se cogitou, pelo lado estadunidense, usar tais armas, porém, felizmente, essa ideia foi logo abandonada. Como nos é dito por Visentini et al (2015), aquilo que viria a ser a Coréia do Norte já estava com bases solidas do que viria a ser o socialismo Zuche – proposta de socialismo auto suficiente, representada por uma política de autopreservação que não pretende ser imposta a outras nações, embora tenha cooperação com vários estados em desenvolvimento (VISENTINI et al, 2015, p. 24) – , Kim Il Sung (avô do atual presidente da Coréia do Norte, Kim Jong-um) e vários membros do futuro Partido dos Trabalhadores já haviam estabelecidos contatos e apresentado as ideias socialistas, principalmente vindas da China, a incontável número pessoas, principalmente no norte da península. De 1945 a 1949 a península coreana foi dividida entre os russos e os estadunidenses, por acordos diplomáticos decididos anteriormente, é de importância dizer que a nação não foi consultada sobre as diversas decisões tomadas pelos novos invasores, o que resultou em uma desaprovação do povo que fez protestos pedindo autonomia, alguns grupos pegaram em armas para tal. Com a marca de divisão feita no Paralelo 38, o norte ficou sobre a influência da URSS e o Sul sobre a influência dos EUA, obviamente cada um dos ocupadores adotaram políticas para que a população ficasse de acordo com sua visão econômica-política (socialismo e capitalismo, respectivamente). Era esperado um processo para reunificação da Coréia, mas a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não permitiu que as Nações Unidas acompanhassem o processo para eleições únicas, em 10 de maio de 1948 a República da Coréia 166 (Coréia do Sul) convocou eleições para presidente, com a vitória de Syngman Rhee, processo que a URSS também foi contra, em 25 de agosto do mesmo ano a República Popular Democrática da Coréia (Coréia do Norte) convocou suas eleições presidenciais, com a vitória de Kim Il Sung. Como ambos os presidentes eleitos queriam unificar o país segundo sua ideologia, houve conflitos e perseguições tanto no Norte como no Sul, e a região do Paralelo 38, se tornou uma área de conflitos armados. No final de 1948 e início de 1949 os ocupadores retiraram seus exércitos da península, deixando um sul sem armas e treinamento e um norte com treinamento de guerrilha – Os nortes coreanos durante o período de ocupação nipônica tiveram muito apoio da China e da URSS para enfrentar os colonizadores, esse apoio vinha como armas, treinamento em táticas de guerrilha, abrigo e esconderijo para foragidos (VISENTINI et al, 2015; FERREIRA, SENHORA, 2013) e armas soviéticas. No ano seguinte surgem os primeiros conflitos da Guerra das Coréias. Pequenos conflitos na região da fronteira já haviam acontecido, mas nada que deflagrasse uma guerra. O exército do Norte, com grande apoio chinês foi o primeiro a se mover em manobras de guerra, em cerca de três dias depois Seul foi tomada em 1950. A invasão orquestrada pelo Norte chamou a atenção dos Estados Unidos para o conflito que se formara e o receio do avanço do comunismo fez com que interviessem em favor do sul. Conflitos e grandes batalhas se seguiram no correr do ano, o apoio norte americano fez com que o Sul recuperasse boa parte do seu território e conquistasse Seul (em 25 de setembro de 1950). As vitorias nos avanços do Sul levou até a região da fronteira – e General Douglas MacArthur recebeu a autorização do presidente Truman para seguir além do Paralelo 38, enquanto a China fez um aviso dizendo que se o exército americano ultrapassasse a fronteira iria intervir diretamente. As forças chinesas foram mobilizadas por Mao Tsé Tung, em outubro de 1950, para conflito com as forças das Nações Unidas, lideradas pelos americanos - aqui cabe salientar que a intervenção chinesa acontece também por retaliação ao governo americano por intervirem na questão entre o governo da República Popular da China e a Republica Nacionalista da China (Taiwan). Em 19 de outubro de 1950, Pyongyang, capital do Norte, foi tomada pelas forças do sul. O governo soviético a partir desse ponto mudou de 167 opinião e começou a intervir mais ostensivamente no conflito, destacando aviões, soldados e mais munições e suprimentos para apoiar os norte-coreanos e chineses. A consequência de todas essas atitudes foi a derrota das forças da ONU em vários fronts até que se estabelecessem pela volta da fronteira entre as Coréias em meados de dezembro. No início de 1951, Seul foi tomada pelos norte coreanos novamente. O acumulo de derrotas fez com que Mac Arthur considerasse o uso de armas nucleares contra a China e a Coréia do Norte, mas a chegada do general Matthew Ridgway fez com que mudasse de ideia. Batalhas se seguiram, novamente, com os civis sofrendo os maiores impactos. MacArthur foi afastado do cargo e investigado por ter desobedecido a ordens presidenciais e infligidos a constituição americana, general Ridgway e depois o general James van Fleet assumiram o controle das forças dos capacetes azuis. Em julho de 1951, começaram os diálogos para uma trégua, ao fundo, bombardeiros assolavam o solos e famílias de ambos os lados do Paralelo. Por mais dois anos esse impasse (sem avanços notórios em campo de batalha e uma população passando por uma crise humanitária) se seguiu; o armistício foi oficialmente assinado em 27 de julho de 1953, mas como foi dito acima, nenhum acordo de paz entre as Coréias foi assinado até os dias atuais. Hobsbawn (1995) considerou a Guerra das Coréias um subproduto da Segunda Guerra Mundial. Considerada uma guerra civil (DZELEPY E STONE, 196?), o evento que levou a população a enfrentar irmãos e vizinhos (KIM, 1991) em defesa de ideologias. É possível dizer que o conflito corrido na península coreana era uma "encarnação" da Guerra Fria. Algo semelhante, guardadas as devidas proporções, viria a acontecer no Vietnã (1955-1975), novamente o sofrimento dos civis é gritante e marcante para o mundo todo. Pós-Guerra e tempos de ―paz‖ Assinado o armistício, ambos lados começaram a se reconstruir, o ônus da guerra para os dois lados foi dois países destruídos e em ruínas. Dessas ruínas, materiais e morais, surgiu um forte sentimento de nacionalismo e orgulho, tanto ao norte como ao sul. O contato com tantos grupos étnicos, em especial os estadunidenses (que ficaram em território sul-coreano mesmo depois do armistício), 168 como o ocorrido no referido século ajudou a formar o espírito nacionalista. A Coréia do Sul enfrentou tempos ditadura militar entre 1960 e 1987 (MONTEIRO, 2014, p. 18); embora o governo suprimisse qualquer oposição a ele, o desenvolvimento econômico foi uma marca forte do período. “Laços entre o Estado, o setor bancário e os chaebols (conglomerados de empresas multinacionais que atualmente dominam a economia sul-coreana e que prosperaram no período pós-guerra) foram a chave-mestra para dar suporte a tais planos [planos quinquenais]” (MONTEIRO, 2014, p.18), tais acordos levaram a um rápido desenvolvimento econômico. Nos anos de 1990, o país ao sul da península já constava como um dos mais desenvolvidos do mundo. Esse desenvolvimento econômico, levou o nome de “milagre do rio Han”. Em 1987, a democracia volta ao poder e um novo momento de abertura cultural se forma, em pouco tempo o fenômeno da onda Coreana – hallyu (hangul: 한류), movimento cultural de exportação de cultura (filmes, dramas, novelas e música) para o mundo, começando pela Ásia – começasse a se espalhar pelo mundo. O período entre o armistício e cancelamento do mesmo pela Coréia do Norte em 2013 (TREVISAN, 2013) foi marcado por um grande desenvolvimento sul coreano, após investimentos pesado em educação, se tornando uma dos Novos Tigres Asiáticos. Por outro lado, o país acima do Paralelo 38 se fechou de contatos com o mundo exterior voltando a mídia nos dias. Referências Flávio Moisés Soares é mestrando em História, pela Universidade Estadual de Paulista (UNESP) campus de Assis, orientando do Prof. Drº. Wilton Carlos Lima Da Silva. Contato: flaviomoisessoares@gmail.com BBC BRASIL. A vida das coreanas escravizadas por japoneses em bordéis militares durante a Segunda Guerra. In BBC Brasil. 28 de dezembro de 2015. Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151228_escrav as_sexuais_japao_rs>. Acessado em 22 de novembro de 2016 DZELEPY, E. N. STONE, I. F. A verdade sobre a Guerra da Coréia. Rio de Janeiro: Andes Editorial, [196? ]. 169 FELDEN, Esther. "Muitas meninas cometiam suicídio", relata exescrava sexual na 2ª Guerra. In DW. 03 de setembro de 2013.Disponível em < http://p.dw.com/p/19aQm> acessado em 22 de novembro de 2016. FERREIRA, Rita de C. e SENHORAS, Eloi. Guerra da Coréia: Sessenta anos de um conflito latente (1953-2013). In Folha de Boa Vista. Boa Vista, 27 de maio de 2013. Disponível em < http://works.bepress.com/eloi/301/ >. Acessado em 18 de agosto de 2017. HOBSBAWN, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 19141991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. KIM, Marcos. Bala não tem olho: a guerra civil da Coréia contada pelos ex-combatentes. 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Disponível em < http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,Coréia-do-norterevoga-armisticio-que-pos-fim-a-guerra-com-vizinho-do-sul-imp,1004992> acessado em 14 de agosto de 2017. YAMASHIRO. José. Japão: passado e presente. 2ª edição. São Paulo: IBRASA, 1986. YAMASHIRO. José. Pequena história do Japão. 2ª edição. São Paulo: Editora Herder, 1964. 170 “POVO SEM HONRA, COVARDES, BRUTAIS E CRUÉIS”: REPRESENTAÇÕES DOS JAPONESES NO JORNAL PARAENSE „FOLHA VESPERTINA‟ (1942-1945) Geraldo Magella de Menezes Neto Victor Lima Corrêa Introdução “Povo sem honra: Os japoneses, além de covardes, de brutais e de cruéis, ignoram todos os sentimentos de honra.” (FOLHA VESPERTINA, 1 fev. 1944, p. 1). Na manchete acima, o jornal paraense Folha Vespertina publicava uma notícia no ano de 1944 de que o então secretário de Estado norte-americano Cordell Hull acusava o Japão de violar todos os tratados internacionais sobre prisioneiros, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Hull denunciava as crueldades e torturas as quais eram submetidos os prisioneiros americanos e filipinos, que estavam sob o domínio dos japoneses. Notícias como essa, muitas de correspondentes internacionais, eram amplamente divulgadas pelos jornais brasileiros na época da Segunda Guerra. O que nos chama a atenção é o destaque negativo dado aos japoneses nas manchetes, sobretudo a partir de janeiro de 1942, quando o Brasil rompe relações diplomáticas com os países do Eixo após o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor. Nesse sentido, o objetivo deste texto é analisar as representações dos japoneses no jornal paraense Folha Vespertina, entre os anos de 1942 e 1945. O jornal Folha Vespertina e o contexto do Estado Novo O jornal Folha Vespertina, de Belém do Pará, foi fundado pelo diretor Paulo Maranhão. Seu primeiro número foi publicado em 1º de fevereiro de 1941, sendo o segundo jornal do grupo Folha, cujo principal era o Folha do Norte. O jornal era diário, e circulava no horário das 11 horas ou das 16 horas, criado talvez em função do volume de notícias que chegavam sobre os acontecimentos da Segunda Guerra, sendo necessário um jornal que atualizasse as notícias pelo turno vespertino. O slogan adotado pelo jornal era: “vespertino, quotidiano e independente”. (BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARÁ, 1985, p. 271). 171 A Folha Vespertina surgiu no contexto do regime do Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas. Um dos órgãos do regime era o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Criado em dezembro de 1939, sob a direção de Lourival Fontes, o DIP viria materializar toda a prática propagandista do governo, abarcando os setores de divulgação, radiodifusão, teatro, cinema, cinema, turismo e imprensa. Em relação à imprensa, esta era subordinada ao poder público conforme dispositivo da Constituição de 1937. Francisco Campos, autor da Constituição, defendia a função pública da imprensa, argumentando que o controle do Estado é que irá garantir a comunicação direta entre o governo e o conjunto da sociedade. (VELLOSO, 2015, p. 158) Assim, o regime impôs a censura à imprensa, que deveria, segundo Maria Celina D‟Araujo, “ter a funçŌo pública de apoiar o governo e auxiliar no projeto nacional”; quem assim nŌo agisse “poderia ser punido inclusive com a desapropriaçŌo de seus bens.” (ARAUJO, 2000, p. 38). Tania Regina de Luca aponta que tentava-se “tanto cercear a divulgaçŌo daquilo que nŌo fosse de interesse do poder”, quanto ”enfatizar as realizações do regime e sua adequaçŌo à realidade nacional, sem se descurar da promoção pessoal e política do chefe do governo.” (LUCA, 2013, p. 172). Nesse contexto, a Folha Vespertina era mais um dos jornais que sofriam a censura do regime varguista, e, num período como a Segunda Guerra, deveria publicar notícias de acordo com as políticas adotadas pelo governo. Dessa forma, a partir de 1942 o discurso nacionalista passa a ser mais forte, com o Brasil sendo divulgado como um país que lutava pela liberdade junto aos países do grupo dos Aliados (EUA, Inglaterra, URSS) contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), representados como países totalitários que queriam subjugar todas as nações. Segundo Tania Regina de Luca, o pesquisador dos jornais precisa “dar conta das motivações que levaram à decisŌo de dar publicidade a alguma coisa”, “atentar para o destaque conferido ao acontecimento” e verificar se o “assunto retorna à baila ou foi abandonado logo no dia seguinte”. (LUCA, 2005, p. 140). Relacionarmos as notícias sobre os japoneses na Folha Vespertina com a política do Estado Novo nos ajuda a entender as 172 representações negativas dos japoneses amplamente difundidas pelo jornal paraense. Representações dos japoneses na Folha Vespertina Para analisar as representações dos japoneses na Folha Vespertina, nos baseamos teoricamente nas ideias do campo da história cultural, de Roger Chartier. Para Chartier, a história cultural tem por principal objeto “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”. (CHARTIER, 1990, p. 16-17). Um conceito importante na proposta de Chartier é o de “representaçŌo”, que se refere às “representações do mundo social”, que seriam as “classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real.” Chartier aponta ainda que as percepções do social produzem “estratégias e práticas” que tendem a “impor uma autoridade à custa de outros”, a “legitimar um projeto reformador” ou a “justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas”. (CHARTIER, 1990, p. 17). Entendemos que a construção negativa da imagem dos países do Eixo, inimigos do Brasil, era um meio do jornal, seguindo a política do Estado Novo, de estimular o nacionalismo, promovendo a união interna contra um inimigo comum. E quais as formas de representar especificamente o japonês? Em primeiro lugar, o recurso mais utilizado é o de evidenciar as diferenças do japonês em relação ao ocidental na questão da raça, o japonês é classificado como sendo da “raça amarela”. Conforme Lilia Schwarcz, o termo raça é introduzido na literatura mais especializada em inícios do século XIX, por Georges Cuvier, “inaugurando a ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos.” (SCHWARCZ, 1993, p. 63). Um dos teóricos raciais do século XIX é Ernest Renan (1823-1892), que apontava a existência de três grandes raças: branca, negra e amarela. Para Renan, os grupos negros, amarelos e miscigenados “seriam povos inferiores não por serem incivilizados, mas por serem incivilizáveis, nŌo perfectíveis e nŌo suscetíveis ao progresso.” (RENAN apud SCHWARCZ, 1993, p. 82). No contexto da Segunda Guerra, o japonês é representado como “raça amarela”, e por conta disso, uma série de preconceitos sŌo 173 associados a eles. Várias notícias e artigos publicados na Folha Vespertina reforçam características que seriam inatas à “raça amarela”. Um exemplo disso é o texto “O japonês é inimigo da raça branca”, de Ciro Egberto Cabral, de janeiro de 1942. O autor aponta que “o japonês é perigoso porque odeia a raça branca. Ele nunca pode admitir que os brancos tenham o domínio do mundo.” (CABRAL, 19 jan. 1942, p. 1). Por supostamente odiar a raça branca, o japonês possui alguns comportamentos dissimulados para derrotar o ocidental. O ato de se curvar, de demonstrar cavalheirismo, na verdade esconde o “punhal e a traiçŌo”. Utilizando como exemplo o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor em dezembro de 1941, Cabral afirma que “ninguém pode ter confiança num amarelo. Ele é falso, é demoníaco.” (CABRAL, 19 jan. 1942, p. 1). Para resumir, o “amarelo” é visto como um traidor, como alguém em quem não se pode confiar. Não por acaso, muitos foram considerados como “quinta-colunistas”, espiões que mandavam informações para os submarinos do Eixo sobre a saída dos navios mercantes brasileiros. Após os afundamentos de vários navios, os japoneses que viviam em Belém foram alvos de agressões da população. (MENEZES NETO, 2013). A partir daí, o termo “amarelo” vai ser constantemente utilizado pela Folha Vespertina nas mais variadas notícias relacionadas aos japoneses: “A situaçŌo dos amarelos é desesperadora” (FOLHA VESPERTINA, 4 jan. 1943, p. 4); “o exército japonês de Papua, na Nova Guiné, foi destruído pelos aliados, que demonstraram qualidades militares superiores às dos amarelos”; (FOLHA VESPERTINA, 18 jan. 1943, p. 4); “Os objetivos do Mikado: os amarelos pretendem obter o apoio dos Birmanos e Filipinos.” (FOLHA VESPERTINA, 8 fev. 1943, p. 4); “calcula-se entre cem e duzentos mil homens o efetivo das forças amarelas concentradas em Luzon.” (FOLHA VESPERTINA, 10 jan. 1945, p. 1). Cabe ressaltar que a representação negativa do japonês pela questão racial aparece na imprensa paraense já na década de 1920 quando do início da imigração japonesa para a Amazônia. Nesse contexto, segundo Tatsuo Ishizu, o movimento contrário a imigração japonesa ficou conhecido como “amarellophobos”. Augusto Meira, em artigo de 1924 no jornal Folha do Norte, dizia que a Amazônia precisava importar valores antropológicos de raças superiores e similares à nossa”, e que a uniŌo com os japoneses poderia causar “perversŌo e degeneraçŌo étnicas”; já o padre Dubois, em artigo do mesmo ano, 174 dizia que povo japonês é perigoso, “degenerando a raça e propagando infinidade de doenças exóticas como o tracoma que cega a gente”. (ISHIZU, 2011, p. 42). No contexto da Segunda Guerra, a representação negativa do japonês como uma raça que traz prejuízos ao ocidental e à população brasileira é recorrente em vários jornais brasileiros. Segundo Rosangela Kimura, em São Paulo atribuía-se comumente aos japoneses a culpa de todas as privações que a guerra impunha aos brasileiros, até mesmo o racionamento de alimentos. De acordo com alguns jornais, os japoneses eram “vampiros do solo”, praticantes de uma “agricultura predatória”, sendo eles os principais responsáveis pela escassez de gêneros de primeira necessidade de que sofria a população. (KIMURA, 2007, p. 27). Em uma outra forma de representação negativa, a Folha Vespertina trata de desumanizar os nipônicos. Sendo considerado de uma raça inferior, o japonês tinha atitudes consideradas bárbaras, não humanas. Em janeiro de 1942, o jornal paraense trazia a manchete: “Cruelmente desumanos os nipônicos”, referindo-se à acusação das autoridades chinesas de que os japoneses teriam lançado “germens de peste bubônica em Chang Têh, província de Hunan ocidental.” (FOLHA VESPERTINA, 15 jan. 1942, p. 1). As representações das atitudes desumanas vinham principalmente nas notícias que abordavam o tratamento dos japoneses em relação aos prisioneiros de guerra: “Bárbaros e covardes! Os japoneses submetem a desumanos suplícios os prisioneiros Aliados. Mais de cinco mil e duzentos soldados norte-americanos e um número mais elevado de filipinos pereceram de fome ou em consequência de atrozes torturas nos campos de concentração japoneses das Filipinas.” (FOLHA VESPERTINA, 28 jan. 1944, p. 1). A manchete acima, da agência de notícias em Washington, foi produzida a partir de depoimentos do comandante Mc Coy, do tenente coronel Melnit e do aviador Dyess, que dariam conta de “uma série inominável de barbaridades cometidas pelos japoneses nos campos de concentraçŌo das ilhas Filipinas.” (FOLHA VESPERTINA, 28 jan. 1944, p. 1). Os relatos, segundo o jornal, 175 apontavam que soldados norte-americanos que pesavam mais de cem quilos “ficaram convertidos em esqueletos ambulantes, ou pereceram de inaniçŌo devido à falta de alimentos”. Uns que reclamaram água ou comida foram fuzilados; outro soldado que ficou dois dias exposto ao sol foi decapitado por um soldado japonês; feridos e enfermos são obrigados “a fazer serviços pesados ou a marchar até caírem mortos.” (FOLHA VESPERTINA, 28 jan. 1944, p. 1). Outro que denunciava as práticas dos japoneses, segundo a Folha Vespertina, era Anthony Eden, ministro do Exterior da Inglaterra: “O chanceler britânico, referiu-se, também, a inúmeras atrocidades contra os prisioneiros, muitos dos quais, depois de barbaramente torturados, foram assassinados a tiros de revolver ou a golpes de baioneta.” (FOLHA VESPERTINA, 28 jan. 1944, p. 1). O que se percebe nessa notícia é que o jornal Folha Vespertina procura se utilizar dos chamados discursos de autoridade, de pessoas ligadas ao grupo dos Aliados que tiveram contato ou que souberam de informações acerca das práticas dos japoneses em relação aos prisioneiros de guerra, para reforçar ainda mais as concepções negativas dos nipônicos. O uso de adjetivos como “bárbaros”, “covardes”, “cruéis”, eram formas de se destacar que os da “raça amarela” nŌo tinham nenhum conceito de humanidade, adotando comportamentos desumanos, diferenciando-se cada vez mais da “raça branca” e ocidental. Assim, a necessidade de derrotar os japoneses era cada vez mais urgente, para acabar com esses atos de “atrocidade”. Por ser visto como alguém que não possui atos de humanidade, o japonês é também visto como alguém que não respeita os acordos negociados entre as nações, como destaca a seguinte manchete: “Para o JapŌo nŌo há convenções nem tratados: Tudo é „farrapo de papel‟”. (FOLHA VESPERTINA, 13 jan. 1944, p. 1). Aqui o jornal fazia referência à acusação do Departamento de Estado americano de que o Japão recusou facilitar a troca de cidadãos americanos por japoneses, violando a convenção de Genebra de 1929. O japonês também é apresentado pelo jornal paraense como um imperialista, cuja intenção é o domínio mundial, como no artigo de Ciro Cabral: 176 “Ele nunca pode admitir que os brancos tenham o domínio do mundo. Esse domínio não é contemplação divina. É trabalho, seriedade, honestidade, dedicação e inteligência. Ao passo que os nipônicos querem adquirir progresso industrial com produtos frágeis e sem duração, querem predomínio através de sistemas pouco lisonjeiros e querem superar os brancos empregando processos ridículos. O catecismo japonês proíbe ser amigo do branco. A obrigação de todo japonês é trabalhar para o futuro domínio mundial do JapŌo.” (CABRAL, 19 jan. 1942, p. 1). Interessante notar que neste artigo o autor rebaixa a capacidade industrial do JapŌo, cuja produçŌo de “produtos frágeis e sem duraçŌo” nŌo se compara com a do branco ocidental, que trabalha e é honesto. O que o artigo deixa transparecer é a ideia de que o japonês quer conquistar o mundo por meios sujos, por trapaça, ao contrário do ocidental. Já em 1944, a Folha Vespertina utiliza uma fala do embaixador britânico Lord Halifax para reforçar a ideia do imperialismo e do totalitarismo dos japoneses, que ao lado dos alemŌes: “defendem a completa subordinação do indivíduo ao Estado e a escravização da verdade a supostas afirmações de ideologias políticas”. (FOLHA VESPERTINA, 13 jan. 1944, p. 1). O japonês aparece como sendo uma antítese do branco ocidental, alguém desprovido de todos os escrúpulos para atingir o seu objetivo de dominação mundial. Considerações finais As representações negativas dos japoneses também se deram em outros meios de comunicação, como na literatura de cordel. (MENEZES NETO, 2008). No folheto O Brasil rompeu com eles, de 1943, por exemplo, o poeta paraense Zé Vicente escreve: “Japonês foi traiçoeiro contra a America do Norte, mas na sua falsidade o Japão não teve sorte. Agora, é vivo, ele vai sentir o frio da morte. Japonês andou fingindo 177 que era um anjo de candura, mas de repente mostrou quanto tem a cara dura, agredindo de emboscada pensando que era bravura.” (VICENTE, 1943, pp. 5-6). Os versos de Zé Vicente expressam a representação do japonês como um traidor, um falso. Esses termos eram os mesmos utilizados no Folha Vespertina, que pode ter sido a fonte na qual o poeta leu as notícias sobre a guerra para escrever sobre o tema em formato de versos de cordel. O jornal, assim, era um meio de divulgação que influenciava outros veículos, propagando dentre outras coisas, uma imagem negativa do japonês entre os anos de 1942, quando do rompimento das relações diplomáticas do Brasil com os países do Eixo, e 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial. Retomando as ideias de Chartier acerca da representação, a abordagem negativa dos japoneses na Folha Vespertina tinha objetivos bem claros: era uma estratégia para desviar o foco da oposição ao regime do Estado Novo, ignorando as contradições de um governo ditatorial que dizia lutar ao lado dos Aliados pela liberdade, procurando um inimigo facilmente identificável, no caso os japoneses, para unir a população em prol do governo no esforço de guerra; legitimar as práticas adotadas pela ditadura do Estado Novo como sendo a única forma de derrotar um inimigo capaz de todas as “barbaridades” e “atrocidades” possíveis. Dessa forma, o Estado Novo justificava a sua existência, cabendo à população apoiálo. Caso isso não acontecesse, o Brasil poderia ser dominado pelos japoneses, que conforme as representações dos jornais, tinham ambição de domínio mundial e tinham práticas consideradas desumanas e cruéis para com os seus prisioneiros. Assim, analisar as representações dos japoneses na Folha Vespertina é identificarmos as percepções de mundo que se pretendiam inculcar na população em relação aos inimigos num contexto de conflito mundial, no qual as ideias raciais são retomadas para justificar o comportamento “bárbaro” e “cruel” dos japoneses. Referências Geraldo Magella de Menezes Neto é Professor da graduação e da pós-graduação em História da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), e do ensino fundamental da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC). Doutorando em História Social da 178 Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: geraldoneto53@hotmail.com Victor Lima Corrêa é Graduando em Licenciatura em História da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA). E-mail: victorlcorrea.01@gmail.com Fontes Acervo Vicente Salles do Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA) Folheto de cordel: VICENTE, Zé. O Brasil rompeu com eles. 2. ed. Belém: Guajarina, 20 jun. 1943. Fundação Cultural do Pará – CENTUR. Biblioteca Pública Arthur Vianna Jornais: CABRAL, Ciro Egberto. O japonês é inimigo da raça branca. Folha Vespertina, 19 jan. 1942, p. 1. Cruelmente desumanos os nipônicos. Folha Vespertina. 15 jan. 1942, p. 1. A situação dos amarelos é desesperadora. Folha Vespertina. 4 jan. 1943, p. 4. O exército japonês de Papua foi destruído. Folha Vespertina. 18 jan. 1943, p. 4. Os objetivos do Mikado. Folha Vespertina. 8 fev. 1943, p. 4. Os alemães e os japoneses defendem a completa subordinação do individuo ao Estado e a escravização da verdade a supostas afirmações de ideologias politicas, declara Lord Halifax. Folha Vespertina. 13 jan. 1944, p. 1. Para o JapŌo nŌo há convenções nem tratados, tudo é “farrapo de papel”. Folha Vespertina. 13 jan. 1944, p. 1. Bárbaros e Covardes: os japoneses submetem a desumanos suplícios os prisioneiros aliados. Folha Vespertina. 28 jan. 1944, p. 1. Povo sem Honra: os japoneses, além de covardes, de brutais e de cruéis, ignoram todos os sentimentos de Honra. Folha Vespertina. 1 fev. 1944, p. 1. Os nipônicos vão jogar a ultima cartada pelo domínio das Filipinas. Folha Vespertina. 10 jan. 1945, p. 1. Bibliografia: ARAUJO, M. C. S. D‟. O Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000 179 BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARÁ. Jornais Paraoaras: catálogo. Belém: Secretaria de Estado de Cultura, Desportos e Turismo, 1985. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. ISHIZU, T. Amazônia, terra da esperança: a imigração japonesa 1924-1935. In: HOMMA, A. K. O. et al. (orgs.) 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O Brasil republicano, v. 2 – O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 180 RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE ORIENTAIS NA REDE ADVENTISTA: A ABORDAGEM SOBRE ÍNDIA E CHINA EM LIVRO EDITADO PELA CASA PUBLICADORA BRASILEIRA Gustavo Uchôas Guimarães Nesta análise, abordaremos a forma como as antigas civilizações da Índia e da China são mostradas em um livro produzido e distribuído pela Casa Publicadora Brasileira, que fornece o material didático das escolas da Rede Adventista. Esta abordagem é feita no livro de História direcionado a alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, constituindo material para entendimento dos contextos históricos iniciais das civilizações que habitaram as regiões em torno dos rios Indo, Amarelo e Azul, bem como da formação de tradições religiosas que ainda hoje constituem fortes elementos culturais de indianos e chineses (hinduísmo, budismo, taoísmo e confucionismo). O livro didático A abordagem que analisaremos aqui faz parte da Coleção Interativa, que tem livros para alunos de 6º a 9º ano do Ensino Fundamental. O livro para o 6º ano (Prestes Filho e Xavier, 2014) é dividido em 12 capítulos, abordando desde os primeiros grupos humanos até os povos que invadiram o Império Romano. O capítulo 5 é intitulado "Índia e China", tratando da história das civilizações que se desenvolveram em torno dos grandes rios que hoje cortam os territórios indiano e chinês. Esta história tratada no livro detalha o surgimento destas civilizações e seus aspectos culturais, sociais, econômicos, políticos e religiosos, apontando traços presentes até hoje nas culturas que compõem as sociedades indiana e chinesa. Quadros explicativos e imagens chamam a atenção para o que é ensinado nos textos, fazendo ligações entre elementos culturais antigos e atuais na Índia e na China. Os textos são entremeados e finalizados com exercícios nos quais os alunos deverão revisitar os textos para responder questionamentos sobre o que foi estudado, 181 além das propostas de pesquisa sobre temas relacionados a China e de análise de imagens. O conhecimento sob o prisma da Educação Adventista Antes de analisarmos a forma como um livro produzido para a Rede Adventista aborda temas relacionados à religiosidade indo-chinesa, é preciso entender um pouco sobre como a educação e o conhecimento são tratados por Ellen White, que está na origem da Igreja Adventista do Sétimo Dia e cujos escritos são valorizados pelos membros da igreja em suas ações missionárias, educacionais, institucionais e cotidianas. A respeito da educação escolar, White destaca sua função de aproximar as pessoas de Deus: "A obra mais importante de nossas instituições de educação no tempo atual é colocar perante o mundo um exemplo que honre a Deus" (White, 2000, p.57). Sobre o conhecimento e sua produção e transmissão, Ellen White aborda que é obra da educação "adestrar os jovens para que sejam pensantes e não meros refletores do pensamento de outrem" (White, 1996, p. 17), ou seja, o conhecimento produzido e transmitido deve ser capaz de instrumentalizar os indivíduos para não serem apenas repetidores de ideias alheias, já que são dotados de "certa faculdade própria do Criador - a individualidade - faculdade esta de pensar e agir" (White, op. cit., p. 17). Tasso (2003, p. 66), ao abordar o conhecimento organizado nos currículos da Educação Adventista, aponta que "A Educação Adventista não despreza os conteúdos das várias áreas do conhecimento humano. Todo conhecimento acumulado pelo homem no decorrer da história representa marcos sinalizadores das escolhas feitas pela humanidade. Esse conhecimento deve contribuir para formação do caráter do estudante. Por isso, o estudo deve ser contextualizado e com aplicação à vida". Tradições religiosas indianas e chinesas No livro de História voltado para o 6º ano do Ensino Fundamental, o capítulo sobre Índia e China explica os pormenores básicos de quatro antigas tradições religiosas e filosóficas: hinduísmo, budismo, taoísmo e confucionismo. 182 Sobre o hinduísmo, é feita apenas uma breve explanação a respeito do período védico, explicando a dependência da natureza como um dos fatores para o surgimento dos deuses nas tradições hindus. Além disso, o livro explica a origem e significado da palavra "hinduísmo" e o sistema de castas presente na Índia (apesar da proibição oficial pelo governo indiano, em 1950). Após a explanação, o livro traz duas atividades: na primeira, é pedido ao aluno que complete uma pirâmide com os nomes das castas e quem compõe cada uma; na segunda, o aluno é levado a pensar sobre o paralelismo entre os relatos diluvianos na história de Manu, na Bíblia e na Epopeia de Gilgamesh, tendo esta proposta a ideia de fazer o aluno compreender que houve realmente uma grande inundação em nosso planeta, o que seria evidenciado pelas semelhanças entre as histórias de Manu, Noé e Gilgamesh. O livro se detém um pouco mais na explicação das origens e ensinamentos do budismo: conta a história de Sidarta Gautama, explica as quatro nobres verdades e o Caminho Óctuplo e relata brevemente o processo de expansão budista para outros lugares do continente asiático. Ao final, atividades propostas objetivam levar o aluno a pensar sobre valores e situações da vida: Na primeira atividade, o aluno deve escrever com as próprias palavras alguns princípios do Caminho Óctuplo; na segunda, é convidado a refletir sobre uma frase atribuída a Sidarta e que trata das dualidades felicidade/infelicidade e conhecimento/ignorância. Taoísmo e confucionismo são explicados no livro estando em quadros separados do texto geral sobre Índia e China. São explanadas muito brevemente suas origens e pensamentos. Além disso, o livro didático faz uma reflexão sobre estas duas tradições e o budismo, apontando o que os três têm em comum em seus pressupostos e ensinamentos e comparando-os rapidamente a pensamentos básicos do monoteísmo e do politeísmo, apresentando a possibilidade de considerarmos taoísmo, confucionismo e budismo como filosofias místicas e não propostas religiosas, conforme o trecho a seguir: "Segundo essas ideias, a inerente capacidade humana de entrega e aprendizado conduzirá a humanidade a algo melhor, tanto nesta vida como em outra. Dessa forma, não há a ideia de uma força superior que possa ajudar o ser 183 humano em suas debilidades" (Prestes Filho e Xavier, 2014, p. 93). As abordagens sobre as quatro tradições religiosas acima referidas contém traços em comum: 1. São breves, dada a característica própria de um livro didático que precisa abordar, para alunos de 6º ano do Ensino Fundamental e em apenas um ano letivo, diversas civilizações que viveram ao longo de milhares de anos. Esta brevidade na explanação também segue a tendência geral de livros didáticos que, ao tratar da Antiguidade, destacam mais as civilizações ocidentais (gregos e romanos) do que as orientais. 2. Apresentam apenas o básico dos ensinamentos e pensamentos religiosos e filosóficos (ligamos isto à brevidade referida há pouco), sem estabelecer paralelos diretos com as doutrinas cristãs adventistas. A menção ao fato de que taoístas, confucionistas e budistas não idealizam uma força superior que os ajudem em suas dificuldades soa equivocada se considerarmos que, ao longo da História, algumas destas tradições adotaram formas de culto e de reverência a divindades: - o taoísmo reverencia mestres que são claramente chamados de "divindades" (Sociedade Taoísta do Brasil, s/d); - certas correntes budistas aceitam, por exemplo, divindades protetoras cujas funções podem ser ativadas com recitações e orações (Brasil Seikyo, 2016). Considerações finais O trabalho com livros didáticos exige do professor capacidade crítica e analítica, para que sua prática docente ganhe em qualidade e o próprio livro didático seja melhor aproveitado com materiais complementares que enriquecem as aulas. No caso do livro brevemente analisado neste texto, pode-se perceber que houve uma transmissão de informações em conformidade com o ensinamento de Ellen White, quando a Rede Adventista, em sintonia com seus escritos, entende o conhecimento produzido ao longo da 184 história como resultado das escolhas da humanidade e a transmissão deste conhecimento como uma forma de mostrar ao indivíduo tais escolhas e auxiliar na construção de seu pensar e agir. Esta transmissão de informações sobre tradições indianas e chinesas, apesar de breve, mostra o espaço que vem sendo dado à História Oriental nos livros didáticos, mesmo os produzidos para redes de escolas confessionais. O papel do professor é importante na mediação entre o livro e o aluno, apontando possibilidades de aprendizagem e reflexão sobre diversos pontos que tocam o cotidiano do aluno, sua visão de mundo e sua forma de perceber a multiplicidade do pensamento humano. Referências Gustavo Uchôas Guimarães é professor na Rede Pública do Estado de Minas Gerais e na Rede Adventista. Mail: virginenseuchoas@bol.com.br BRASIL SEIKYO. O que são divindades celestiais ou deuses budistas? Disponível em: <http://www.seikyopost.com.br/budismo/o-que-sao-divindadescelestiais-ou-deuses-budistas> Acesso em: 03 set.2017. Publicado em: 16 jun.2016. PRESTES FILHO, U. de F. e XAVIER, E. História. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2014. 2ª ed. Coleção Interativa. P. 81-100. SOCIEDADE TAOÍSTA DO BRASIL. História dos Mestres Taoístas. Disponível em: <http://sociedadetaoista.com.br/rj/?page_id=521> Acesso em: 03 set.2017. TASSO, R. F. O trabalho do professor e a educação voltada ao ensino de valores. Dissertação de Mestrado. Franca: UNESP, 2003. Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/98544/tass o_rf_me_fran.pdf?sequence=1> Acesso em: 31 ago.2017. WHITE, E. G. Educação. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1996. WHITE, E. G. Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2000. 185 186 A LITERATURA BRASILEIRA E O ORIENTE: ENTRE A OJERIZA E A APROPRIAÇÃO Heraldo Márcio Galvão Júnior Arcângelo da Silva Ferreira O modernismo brasileiro teve sua fase de configuração nas duas primeiras décadas do século XX e de maneiras diversas nas várias regiões do país, embora estes conversassem entre si. A característica principal que criou o elo de correspondência entre tais modernismos é a busca pela brasilidade na arte, o encontro do Brasil essencialmente brasileiro, sem as amarras europeizantes decorrentes de sua colonização física, ideológica, religiosa, cultural e intelectual. Ao contrário do elemento modernista vinculado à tradição, como o caso da antiga capital Rio de Janeiro (VELOSO, 1996) e da Amazônia belenense e amazonense (FIGUEIREDO, 2012), o modernismo paulista fez referência direta ao aspecto moderno, modernizante e modernizador da capital nacional do café e seus reflexos urbanos. A busca pela brasilidade passava, necessariamente, pela negação do elemento português na cultura brasileira, o que os fez, inicialmente, se aproximarem da França que, nos dizeres de Paulo Prado no prefácio de Pau-Brasil, era o “umbigo do mundo” em relaçŌo à cultura e intelectualidade, ou seja, período em que as pessoas, ao se cruzarem nas ruas e praças, ao invés de trocarem um “boa tarde”, trocavam um “Viva a França”; enfim, época em que “Quand la France joue du violon, tout le monde se met a danser” (SEVCENKO, 2003, p. 30). É interessante notar que este período coincide com o surgimento, na França, do movimento artístico chamado de cubismo, cujo olhar deixava de se direcionar ao conhecido e passava a ir em direção ao exótico, à África e à Ásia. Sendo assim, cabe aqui uma indagação importante: se estes artistas e intelectuais franceses buscavam no oriente estudos e sentidos para as suas produções e o brasileiros baseavam-se nas maneiras de pensar e analisar destes franceses, qual imagem acerca do oriente foi construída pela arte brasileira do período? E mais: houve apropriação, por parte dos modernistas brasileiros, das técnicas e formas de fazer arte e ver o mundo das sociedades orientais? Como isso ocorreu? 187 Longe de responder tais questões de maneira aprofundada neste trabalho, propõe-se dar pistas e promover uma discussão a esse respeito a partir de Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida. Ambos escreveram, em 1916, à quatro mãos, duas peças de teatro em francês em que podemos averiguar melhor tais questões propostas, assim como em Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald, em que um capítulo todo se passa em viagens pelo Oriente, e em Haicais Completos, de Guilherme de Almeida, cujo título dispensa explicações pormenorizadas no momento. Para que fique mais didático, a proposta é dividir a exposição em três momentos principais. O primeiro consiste em compreender as visões construídas pelos intelectuais modernistas acerca do oriente. Em um segundo momento será verificado se os autores utilizaram ideias, ideologias e/ou formas de escrever características de algum pais oriental. Finalmente, será feito um balanço das abordagens proferidas anteriormente a fim de concluir a real importância que a cultura oriental teve para o movimento modernista, questão essa raramente explorada pela crítica literária, de arte, por historiadores e estudiosos do assunto. Dois dos primeiros trabalhos tanto de Oswald de Andrade quanto de Guilherme de Almeida, identificados como “homens sem profissŌo” por Sérgio Miceli por pertencerem a famílias abastadas e especializadas há gerações em funções culturais, econômicas e políticas, foram Mon Coeur Balance e Leur ame, peças de teatro escritas a quatro mãos e em francês no ano de 1916. A primeira peça passa-se em um hotel luxuoso de uma das praias mais elegantes de São Paulo à época, o Guarujá. Há um fio de enredo que liga as três personagens principais: Marcela, considerada uma flirting-girl, transita entre o amor de Gustavo, um jovem blagueur, e seu amigo mais velho, Luciano. O conflito ocorre quando, no terceiro ato, Gustavo descobre que o amigo também ama Marcela, enquanto esta afirma que, entre os dois, seu coração balança e some fisicamente de cena até o fim da peça. As demais personagens gravitam em torno delas e são reflexos do contexto interno paulista, de afirmação “cosmopolita”, e externo, essencialmente em relaçŌo à Primeira Guerra Mundial. A segunda transita entre uma faustuosa casa em Higienópolis, bairro paulistano elitizado, uma garçonnière, uma sala de fumar de um grande clube requintado da cidade e uma casa de campo. Há novamente um triângulo amoroso, entretanto não mais no plano mental, como em Mon coeur balance, mas a tradicional história de marido, mulher e amante, assunto recorrente em peças 188 teatrais dessa fase. Natália é casada com George, tem um caso amoroso com Gastão e foge com um caixeiro viajante. O casal, ligado pelos laços do matrimônio, possui duas filhas: Emma, mais velha, e Carlotinha, levada por sua mãe ao sumir. Os dois homens se enfurecem, separadamente, pela impossibilidade de possuir a mulher amada por inteiro, gerando discussões de caráter romântico, psicológico e filosófico. Entre as personagens secundárias, há: um filósofo, um “bom burguês” e seu filho, um padre, um criado japonês, dois clubmen, um garçom, um carregador, clientes e criados. As peças, em si, não tratam do universo oriental especificamente no enredo, mas trazem caracterizações de personagens e cenas que deixam entrever suas visões estigmatizadas, principalmente quando interpretadas segundo os padrões em que foram escritas, ou seja, o simbolismo. Na primeira peça, primeiro ato, cena III, em uma discussão sobre a (i)moralidade do tango e do maxixe, Gustavo, uma das personagens principais, zomba de uma “chinezinha dançando tango” e trata tudo com muita normalidade, inclusive quando expulsa-a do salão, proferindo a frase “Chispa, chinesa!”. Com esta atitude, vinda de um homem da elite e tratada com normalidade pelas personagens também elitizadas, percebe-se a animalização do estrangeiro proveniente do oriente, pois a personagem nem sequer ganha um nome e é tratada como um bicho, tocada pra fora de um ambiente que não lhe pertencia. Estes aspectos nos fazem, inevitavelmente, considerar a presença do cientificismo francês entre a intelectualidade e os artistas brasileiros de fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Representado por Taine, Comte e Ernest Renan, o cientificismo foi incorporado pelos brasileiros, assim como os naturalistas Flaubert, Bernad e Zola, que influenciaram obras como O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Tais teorias, moldadas às discussões acerca da raça, preconizavam a inferioridade brasileira devido ao problema da intensa miscigenação, que geraria a degeneração humana e justificaria os problemas sociais encontrados no país. Lilia Moritz Schwarcz, na obra O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil, comenta sobre a hierarquização de negros e brancos, mas afirma que, em muitos 189 casos, os chineses eram considerados pelos intelectuais brasileiros da época ainda mais degenerados, fato que explica esta aversão da personagem acima citado pela dançarina oriental. Além disso, a autora afirma que havia intensos debates sobre a “qualidade da imigraçŌo” que deveria vir para o Brasil, ocorrendo campanhas para que fosse proibida a entrada dos “chins”. Um artigo publicado pelo jornal Correio Paulistano, citado pela autora, traz as seguintes considerações: “Os escravos (...) nŌo foram tŌo perniciosos como a contratação dos chineses... (...) os chineses são gente lasciva ao último grão, escoria acumullada de países de rachadíssimos costumes... São todos ladrões, jogadores a um grão incompreensível (...) leprosos de alma e corpo (...) [gerando o] aumento da criminalidade”. Entretanto, os objetos vindos da china eram tidos como exóticos e desejáveis pela elite, como é visto nas cenas VI, VII e VIII do primeiro ato de Leur Âme. Nelas, George, marido de Natália, a presenteia com um biombo japonês, embora ela quisesse um persa. Ela elogia os “mandarinzinhos” desenhados no objeto, exclama “sŌo mesmo espantosos esses chineses!” e, em seguida, pede-lhe um quimono novo, de seda azul-marinho, com salgueiros, garças e musmês, “um pequeno museu de “chinoiseries”. Assim, fica claro que ocorria, por um lado, aversão ao imigrante estrangeiro chinês que traria mais degeneração à raça brasileira – já degenerada pela mestiçagem – e, por outro, que a posse de objetos decorativos e têxteis de origem chinesa – exóticos – representava luxo e status social para a elite brasileira. Com um pé no cientificismo vigente, constata-se, a partir das peças, que uma raça inferior deveria atuar como produtora e prestadora de serviços braçais, apresentando sua cultura excêntrica e, em contrapartida, tais objetos deveriam ser produzidos de preferência em seus locais de origem, ou seja, fora do país para que se mantivesse uma pretensa superioridade racial. Em Serafim Ponte Grande Oswald trata de um funcionário público não muito exemplar, Serafim, casado, com filhos. Na primeira parte do livro narra infância, adolescência e sua união com Lalá, com quem é obrigado a casar na delegacia. O pano de fundo é a Revolução de 1924 e tudo é tratado com imenso erotismo, o que 190 inclui traições e aventuras sexuais. Em plena Revolução, Serafim rouba um dinheiro deixado pelos revolucionários a um de seus filhos e foge para a Europa. Na Europa é confundido com um músico e convidado a ir ao Oriente por duas mulheres homossexuais, as “girld‟hoj‟em-dia”, Pafuncheta e Caridad-Caridad. Esta parte do livro é intitulada “Os esplendores do Oriente”. Em carta a Mario de Andrade, em 1926, Oswald confessa que escreveu esta parte de Serafim a partir de suas memórias, pois havia feito uma viagem semelhante, naquele ano, na companhia de Tarsila e um grupo de amigos, em que passaram pelo Egito, Grécia, Chipre, Israel, Turquia e Líbano. No livro, ao visitar o Oriente, Serafim descobre, desconcertado, que o Santo Sepulcro nunca existiu e que Cristo nasceu na Bahia. Entretanto, prossegue para conhecer o local conhecido como Santo Sepulcro e é informado que tem que ir embora cedo porque um turco é que possui a chave da porta, já que os cristãos não se entendem sobre a posse das verdades e das capelas. O texto é bastante descritivo, como que um guia de viagem e, entre aventuras sexuais narradas explícita e comicamente, a personagem deixa o oriente: “tudo desapareceu como a cidade no mar, seus brilhos, seus brancos, suas pontas de terra, esfinges, caftãs, fezes, camelos, dragomãs, pirâmides, haréns, minaretes, abaias, pilafs, desertos, mesquitas, templos, tapetes, acrópoles, ingleses, inglesas”. Assim, no livro, o autor deixa entrever sua visão sobre o oriente, qual seja, a de local de monumentos, vestimentas, comidas, desertos, religiões e dominação inglesa. Praticamente não se fala de seu povo, de aspectos negativos ou positivos. Quando se fala em Japão há uma maior identidade e caracterização das personagens, sugerindo menos aversão das personagens e autores. Um exemplo é Yato que, mesmo sendo “um criado japonês”, recebe dos autores um nome, figura entre as personagens principais e tem várias aparições em Leur âme, embora não participe dos diálogos e das cenas mais relevantes. Em 1914 Guilherme de Almeida publica, na revista O Pirralho, de Oswald de Andrade, uma série de onze sonetos intitulado Perfis Femininos. No dia 05 de dezembro são publicados dois perfis, entre eles A JAPONEZA. Nele, o autor descreve uma mulher envolta em “sedas baralhadas” com seu leque esvoaçante que passa em 191 murmúrios como um “Chrysantemo que abriu nas alvoradas das amarellas bandas do Levante!”. Gueixa miúda, “flor mimosa de Tókio”, de pés pequenos, “fôrma delicada”, olhar “oblíquo” e provocante definem a japonesa que em um “quimono esguio, todo de seda e marfim”, toma chá e reconhece que é “Filha do sol”. A sua descrição ocorre essencialmente em relação ao seu exterior, seu formato, suas vestimentas; é um objeto sensível comparado a um “bibelot de porcelana”. Faltam caracterizações psicológicas, como encontradas nas descrições de outras mulheres, como A INGLEZA e A PORTUGUEZA. Findada a análise acerca da representação do oriente – chinês e japonês – nas primeiras obras de Almeida e Andrade, é necessário refletir sobre a presença da cultura oriental no modernismo brasileiro. O termo presença foi usado em substituição ao influência pois o segundo denota uma cópia de jeito, ideias e estilos; já o primeiro reflete o uso de ideias, jeitos e estilos adaptados à realidade nacional. Nesse sentido, o artigo O HAIKAI NO BRASIL, de Paulo Franchetti (2008), dá um caminho seguro a seguir. Segundo o autor, a partir da poesia Pau-Brasil, prefaciada por Paulo Prado, ocorrera a libertação do verso brasileiro. Paulo Prado, ao citar um haicai em francês no prefácio, dá a entender que esta forma de escrever advinda do Japão seria o ideal de coloquialidade, de registro direto e de sentimento adequada à nova realidade urbana de velocidade e rapidez, assim como seria um modelo literário nãoeuropeu como projeto nacionalista. O Japão, aberto ao Ocidente a partir da segunda metade do século XIX, com samurais, etiquetas, nobreza feudal, senso de decoração, gosto pela vida, banhos coletivos, pratos e copos pequenos, grilos em gaiolas, maquiagem, gueixas e hábitos alimentares fascinaram os viajantes. Segundo o autor, a partir deste momento têm-se dois tipos diferentes de viajante: os que buscavam valorizar a superioridade do ocidente tinham o Japão pitoresco e os que o consideravam como paraíso perdido pré-industrial valorizavam sua arte e cultura. Franchetti coloca que a primeira apropriação do haicai na literatura brasileira ocorreu por meio do modernismo paulista, mas o modernismo ligado às tradições e não sua ala mais revolucionária. Nesse sentido, Guilherme de Almeida, que produziu obras marcadas pelo parnasianismo, simbolismo e modernismo foi o autor que mais 192 se dedicou ao haicai e o fez em direção oposta ao estranhamento exotista. Guilherme de Almeida, em boa parte de sua vida manteve relações próximas com a comunidade japonesa de São Paulo e com sua cultura. Foi também um dos fundadores e o primeiro presidente da Aliança Cultural Brasil-Japão, criada em 1956. O autor, em entrevista Genésio Pereira Lima para a Gazeta Magazine, de 29 de abril de 1941 afirma: “é preciso, naturalmente, para produzir o haikai, uma grande iniciação. Eu a tive aqui em São Paulo quando fui conduzido pelo então cônsul do Japão em São Paulo e poeta distintíssimo, KozoItigê, ao Clube Japonês, cuja sede era na Rua da Liberdade. Nesse clube se realizavam verdadeiros “jogos florais”. Doze poetas reunidos em torno de uma mesa, na terceira quarta-feira de cada mês, apresentavam cada um o seu haikai sobre um tema sorteado com um mês de antecedência. Esses haikais eram postos em concurso, sendo premiado o melhor”. Ao adaptar, Guilherme aproveitou duas características formais do poema japonês: distribuição das palavras em três seguimentos e composição por justaposição de duas frases. Como as 17 sílabas originais não produziam rima, o autor inseriu duas rimas a unir o primeiro com o terceiro verso e uma interna no segundo verso, na segunda e última sílaba (FRANCHETTI, 2008). Perceba no exemplo: “Um gosto de amora Comida com sol. A vida Chamava-se: “Agora”.” Além disso, inseriu nos haikais um título para eliminar o sentido enigmático. Segundo Franchetti, a inserção do título fez com que o poema perdesse o sentido de haicai, pois retira a característica de percepção súbita a partir de uma sensação concreta e muda-se a compreensão e intenção. Para simplificar, um dos exemplos utilizados é o haikai acima, que lido sem o título dá a impressão de que a amora está no presente, o que muda ao se inserir o título dado a ele por Guilherme de Almeida: “infância”. 193 De acordo com o proposto, analisou-se a partir de um projeto modernista de nacionalização da literatura, em que os intelectuais buscavam modelos que extrapolassem a antiga forma de pensar e fazer europeia, o papel que o oriente teve para estes, verificando sob qual ótica o oriente foi observado e interpretado pelos intelectuais e artistas, assim como de que maneira utilizaram os exemplos, a cultura e a literatura japonesa para criarem uma arte adaptada à realidade nacional. Referências Heraldo Márcio Galvão Júnior é docente do ensino superior da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Graduado em História pela Unesp. Mestre em História pela Unesp. Doutorando em História pela UFPA. e-mail: heraldogalvao@unifesspa.edu.br Arcângelo da Silva Ferreira é docente do ensino superior da Universidade do Estado do Amazonas. Graduação em História pela UFAM. Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM. Doutorando em História pela UFPA e-mail: asf1969@outlook.com ANDRADE, Oswald de. Mon coeur balance; Leur âme: em coautoria com Guilherme de Almeida. São Paulo: Globo, 2003. _____. Serafim ponte grande. São Paulo: Globo, 2007. FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Os vândalos do apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2012. FRANCHETTI, Paulo. O Haicai no Brasil. Alea, Rio de Janeiro , v. 10, n. 2, p. 256-269, Dec. 2008. PRADO, Paulo. "Poesia Pau Brasil". In: ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. Paris: Sans Pareil, 1925 - repr. fac-similar EDUSP/Imprensa Oficial, 2004: 10. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. 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As inscrições sobre a batalha, gravadas na ala direita da sala hipóstila do templo, constituem o chamado Poema de Pentaur, nome do escriba responsável pela inscrição. Nas paredes do templo, à primeira vista tem-se a impressão de estar diante de um boletim informativo da campanha militar que culminou na batalha, a qual é ricamente detalhada. Porém, trata de uma ressignificação do confronto, construída em um período historicamente datado e que atende a interesses específicos. O objetivo da produção da representação sobre o confronto é apresentado já no início da inscrição: contar sobre a vitória do Rei Ramsés II sobre Kheta (Hititas) e seus aliados: “Aqui começa a vitória do Rei Usermare-Setepnere Ramses II, que vive eternamente, que ele conquistou sobre a terra de Kheta e Naharin, Arvad, Pedes, Derden, Mesa, Kelekesh, Carchemish, Kode, Kadesh, Ekereth, e Mesheneth.” Entretanto, o documento, embora tenha sido produzido não propriamente com um interesse historiográfico, possui informações sobre um acontecimento histórico e possibilita a compreensão do fato e da reconstrução feita pelo poder egípcio em um processo de produção de representações sobre o fato. Por conseguinte, nessa análise, utiliza-se do Poema de Pentaur como fonte, sendo, portanto, ele um vestígio do passado. Contudo, para a 195 compreensão dos fatos e da reconstrução dos acontecimentos, a análise historiográfica leva em conta não apenas o documento por si só, mas também a presença de outras fontes sobre o tema e a compreensão do contexto de produção da inscrição, além das modificações históricas ocorridas no ambiente em disputa naquele período. Em consequência disso, o estudo analisa as fontes em relação à historiografia presente sobre a batalha de Kadesh e o poema de Pentaur. No estudo das relações entre a inscrição e o confronto, chama a atenção as divergências entre ambas e especialmente, a parte final da inscrição em relação aos resultados do confronto. Contada como uma vitória estrondosa de Ramsés II, os fatos que ocorreram em seguida à batalha tornam questionáveis algumas afirmações presentes na inscrição, levando a crer que mais provável que o resultado do confronto fosse um empate. De fato, essas inscrições obedeciam a uma espécie de modelo de glorificação do faraó, vencedor de seus inimigos, e abençoado pelos deuses, da qual ele também era um, e, portanto, em muito superior às pessoas comuns, como era o caso de seu inimigo “que se atreveu a se colocar contra ele”. Mesmo assim, a inscrição carrega momentos bem-humanos do faraó, quando abandonado por todos, cercado e com medo, ele teme que Amon tenha o abandonado. Tal como nota-se no início da inscrição, os relatos do poema de Pentaur buscam contar uma vitória egípcia. Porém, o contexto da guerra torna a designação de uma vitória bem mais imprecisa. Os fatos posteriores a Kadesh apontam que ela não foi uma batalha definitiva. Revoltas na Palestina contra a presença egípcia marca o período imediatamente posterior a batalha e quinze anos depois, a assinatura de um tratado de paz entre os contendores ao qual se soma também um acordo de assistência mútua, apontam para um equilíbrio de poder nas relações entre os dois países no período posterior do confronto (Almeida, 2010). A descrição egípcia da batalha é rica em detalhes e apresenta descrições que auxiliam na compreensão do desenrolar do combate. O autor, mesmo louvando a vitória incontestável do faraó, aponta 196 para momentos de tensão e perigo na batalha que são essenciais para compreensão do desenrolar do confronto. O pressuposto teórico que orienta a pesquisa é que a inscrição representa uma realidade ocorrida em um determinado contexto histórico, e, portanto, além de ser uma ressignificação produzida por atores sociais interessados em construi-las, também dialogava com a cultura em que fazia parte. A representaçŌo “entendida, deste modo, como relacionamento de uma imagem presente e de um objeto ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme” (Chartier, 1991, p. 184). Em concordância a isso, o objetivo do presente ensaio é analisar as relações entre a representação construída no poema de Pentaur e a batalha de Kadesh, buscando compreender a reconstrução acontecimental presente na inscrição. As relações políticas hitito-egípcias no início do século XIII A. C. Em inícios do século XIII A. C., a região Sírio-Palestina era um importante entroncamento comercial por onde passavam alguns dos principais caminhos de comércio do Oriente Próximo. Entre as rotas comerciais mais importantes, a rota Fenícia era a responsável pela importação de cobre do Chipre, essencial para a produção e armamentos, além de madeira do Líbano e vasos gregos e a rota de Punt, de onde eram comprados incenso, ébano, aves, peles e animais selvagens. Além disso, haviam também importantes rotas terrestres, como as de caravanas do Oriente Médio vindos do Afeganistão, que transportavam no lombo de burros o lápis-lazuli para os templos egípcios, e a das riquezas da Arábia carregadas por mercadores. Assim, havia rotas que ligavam desde o atual Afeganistão até Egito, passando por cidades importantes naquele período como Kadesh, Megido e Gaza. Nesse contexto em que o Egito era uma potência comercial (Murnane, 1990, p.3), Kadesh também era estrategicamente essencial para o controle da Sírio-Palestina, pois era rota de marcha de um exército egípcio em direção ao rio Eufrates e por outro lado, seu controle bloquearia o avanço de qualquer exército que pretendesse aprofundar-se na região mediterrânea. 197 “Kadesh sempre foi um ponto forte vital, porque situado no extremo norte do vale B'kaa, ele era um ponto que qualquer exército egípcio tinha que atravessar se aproximando do Sul ao longo do vale - A rota óbvia” (Cottrel, 1968, p112). A política faraônica adotada no início do Novo Império (1570 A.C.) foi a de estabelecimento de um cordão de isolamento contra as ameaças externas. Duzentos anos antes de Kadesh, o faraó Tutmés I (1493 A. C. a 1482 A.C.), proclamara o Rio Eufrates como a fronteira da ocupação egípcia. Já no reinado de Tutmés III (1479 A.C. a 1425 A. C.) as campanhas se intensificam, tendo havido o estabelecimento de uma sólida rede de relações comerciais e de influência diplomática egípcia na área. Porém, a política da região modificou-se no século XIV com a decadência do Império Mitani, cuja base central ficava no norte do Eufrates e a ascensão do poder dos Hititas, estabelecidos a partir de um centro de poder da Ásia Menor. O Estado Hitita consistia de uma organização política concentrada nas mãos de um chefe apoiado por pequenos senhores que possuíam em seu controle exércitos que marchavam unidos em caso de guerra e constituíam uma força militar poderosa para ser utilizada em um confronto (Batista e Selvatici, 2016, p. 831). Isso contrastava com o poder militar egípcio, que embora houvesse passado por transformações em decorrência da guerra de libertação contra os Hicsos com, por exemplo, o estabelecimento de divisões do exército, compunha, em sua maioria de jovens recrutados em ocasiões de confronto (Arrais, 2011, p. 66). O Poema de Pentaur e a batalha de Kadesh Duas linhas narrativas se entrelaçam na inscrição de Pentaur: Na primeira, o escriba começa fazendo um elogio ao soberano e em seguida inicia história da batalha do faraó contra seus inimigos, contando os feitos da campanha contra os Hititas e seus aliados. Tal como apontado nas primeiras linhas, a campanha é a priori vitoriosa, ao qual o escriba vai explicar como essa vitória se deu. A segunda linha é composta pela fala do próprio Ramsés, que vai descrevendo as dificuldades ao qual vai enfrentando no decorrer da batalha e forma com que vai encontrando resoluções para os mesmos. O faraó vive momentos de terror na batalha, invoca a 198 proteção dos deuses, ironiza a forma com que seus soldados se comportam em combate e aponta a si mesmo como o único vencedor da batalha. (Carreira, 2006, p. 184) O exército hitita em Kadesh certamente era superior, “uma multidŌo tŌo numerosa quanto a areia” de possivelmente 35 mil de infantaria e 2500 carros, contra 20 mil egípcios, divididos em quatro corpos de exército, Amon, Rá, Ptah e Seth, relativo a quatro dos principais deuses do panteão egípcio. O texto de Pentaur se refere ao exército hitita da seguinte maneira: “Eis que o miserável chefe vencedor de Kheta estava estacionado no meio da infantaria que estava com ele, e ele não veio para lutar, por medo de sua majestade. Então ele fez para ir o povo da carruagem, uma multidão extremamente numerosa como a areia, sendo três pessoas para cada intervalo. [...] eles tinham feito suas combinações assim: entre cada três jovens era um homem do vencedor (guerreiro) de Kheta, equipado com todas as armas de batalha. Eis que eles os tinham posto em batalha, escondidos a noroeste da cidade de Kadesh.” Assim, a força principal do exército hitita era composta por carros de combate tripulados por três soldados cada um. Enganado por falsos informantes, o faraó havia conduzido os quatro corpos de seu exército separado até kadesh muito distantes para poderem se apoiar em caso de um ataque rápido e acabou sendo surpreendido pelos carros hititas A parte central da batalha consistiu de uma manobra de movimentação rápida dos carros hititas que atacaram a divisão de Rá pelo flanco dizimando suas forças. Em movimentação seguinte, os carros hititas foram quebrando as divisões egípcias antes que pudessem se colocar me posição de combater. O relato de Pentaur possui linhas comoventes sobre o momento em que o acampamento estava sendo tomado e o faraó se encontrava cercado pelos carros hititas: “Sim, e nenhum dos meus príncipes, dos meus principais e dos meus grandes, estava comigo, nenhum capitão, nem um cavaleiro; Pois meus guerreiros e carros me deixaram 199 ao meu destino. Ninguém estava lá para tomar sua parte em luta " “NŌo há ninguém ao meu lado, meus guerreiros e carros foram afugentados, abandonaram-me, ninguém ouviu minha voz quando aos covardes eu, seu rei, por socorro, implorei. ” Desesperado, Ramsés pede ajuda aos deuses, em meio a batalha: “Pai Amon, onde você está? Será que um pai esquece seu filho? Há algo sem o seu conhecimento que eu fiz? Dos julgamentos de sua boca quando eu esqueci? Eu transformei-me sua palavra? Desobedeci ou quebrei algum voto? ” E então, animado com a fúria de Amon, o Rei decide partir para a frente de combate em direção aos seus inimigos, crente na sua vitória. “EntŌo, tudo isso aconteceu, eu fui mudado em meu coração Como Monthu, Deus da guerra, eu fui feito, Com a mão esquerda joguei o dardo, Com a direita, eu balancei a lâmina, forte como Baal em seu tempo, antes de sua visão. Dois mil e quinhentos pares de cavalos estavam por aí, e eu voei no meio deles, pelos cascos do meu cavalo foram quebrados todos em pedaços no chão. Nenhum levantou a mão na luta, pois a coragem em seus seios tinha mergulhado bastante; E seus membros foram soltos por medo, e eles não podiam atirar o dardo, e eles não tinham nenhum coração para usar a lança; E eu os joguei na água, assim como os crocodilos caíram, entŌo eles afundaram. ” Os fatos ocorridos na batalha são bem menos heróicos do que o poema de Pentaur leva a crer. No momento crucial da batalha, os soldados hititas, experimentados em combates, deixaram se cair pela possibilidade de saquear o campo, desorganizando-se e atrasando o golpe final que esmagaria o exército egípcio. Isso impediu a aniquilação do exército egípcio e permitiu a chegada de um pequeno corpo de exército profissional egípcio – os Ne‟arin –, que mudou a situação da batalha. Descansados e organizados, eles chegaram em um momento em que ambos os lados estavam em 200 estado de desorganização. A atuação desse corpo de elite permitiu as tropas do faraó contra-atacar as desorganizadas e espalhadas tropas hititas e reassumir o controle do campo. Com as tropas de volta aos seus campos, a batalha estava indecisa. Os egípcios haviam perdido uma grande quantidade de soldados, enquanto as perdas hititas eram inferiores. Poderia haver a possibilidade de um novo combate no dia seguinte, mas isso não ocorreu. O exército egípcio se retirou, clamando a vitória, porém, as rebeliões posteriores na região e o recuo egípcio apontam para pelo menos, um empate na batalha. Tal como aponta Santosuosso: “Os egípcios nŌo conseguiram garantir uma regiŌo mais ao norte como fronteira contra a influência hitita, como pode ser mostrado por campanhas posteriores de Ramsés II, provavelmente durante os anos 5 a 7 de reinado, com prova clara de outra campanha no ano 8 (Breasted 1906, p. 157; Schmidt 1973, p. 30). A revolta da cidade de Askalon contra o controle egípcio provavelmente também ocorreu durante esse período. Os Hititas empurraram os egípcios para o sul depois da batalha de Kadesh e ocuparam temporariamente a região de Tabor, de onde que Ramsés depois os expulsou (Breasted, 1906, p159). No mínimo, o controle hitita de Amurru e Upe parece ter sido restabelecido logo após a Batalha de Kadesh” (Santosuosso, 1996, pp. 443-444). Considerações Finais A batalha de Kadesh foi um dos maiores confrontos da História da humanidade, opondo a duas maiores potências de seu tempo. O resultado do confronto não foi positivo para nenhum dos lados, que viram o poder Assírio crescer nas décadas seguintes. Ramsés, ao retornar ao Egito, mandou proclamar a sua vitória, embelezando os templos com reconstruções da batalha. Porém, segundo Askurgal (2001, p. 90) a própria presença de escritos e imagens nos templos egípcios relativos à batalha apontam para uma necessidade do faraó de reconstrução do fato. Para o pesquisador, a batalha foi um desastre para ambos os lados, mas foi o rei hitita que soube aproveitar da situação. “[...] foi Muwattali que aproveitou esta situaçŌo. Após a batalha, Ramsés recuou; Os hititas apareceram em 201 Damasco e saquearam a área. O estado de Amurru, um vizinho do Egito, novamente tornou-se um satélite dos hititas; Bentesina, o rei desleal de Amurru foi deposto e levado para a terra de Hatti como um prisioneiro. Depois disso, não havia mais menção aos egípcios na Síria (Akurgal, 2001, p. 90). Kadesh foi um ponto marcante do expansionismo egípcio no Novo Império, freando os avanços de Ramsés II, que posteriormente abandonaria a região da Síria, contentando-se com uma linha de defesas na região e um relacionamento pacífico com o poderio hitita. Anos depois, um tratado de paz e aliança foi assinado entre os dois povos. O poema de Pentaur ressignificou o combate, dando ao faraó o status de não apenas o que guia seus exércitos para a vitória, mas também como o único vencedor da mesma. A realidade egípcia produzia determinações que atentavam para a necessidade de uma reconstrução de tal forma. O faraó foi glorificado, na inscrição, mas mesmo sendo considerado como “filho de Hórus”, a sua humanidade está muito presente na inscrição, e quando pensada em relação aos fatos de Kadesh, chamam a atenção. Ramsés é enganado, tem medo, chora e se sente abandonado pelos deuses e por seus soldados. O “filho de Hórus” também é humano. Referências Isaias Holowate é acadêmico do Mestrado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Mail: isaiasholowate@gmail.com Naton Joly Botogoske é acadêmico do bacharelado em Educação Física pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Mail: natonjoly@gmail.com. ALMEIDA, Júlia Pereira de. O tratado entre Ramsés II e Hattusili III. Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2010. AKURGAL, Ekrem The Hattian and Hittite Civilizations, Ankara, Republic of Turkey Ministry of Culture, 2001 ARRAIS, Nely Feitoza. Os feitos militares nas biografias do Reino Novo: Ideologia militarista e identidade social sob a XVIII dinastia do Egito Antigo. Tese de doutorado. Niterói, UFF, 2011. 202 BATISTA, Leonardo Candido; SELVATICI, Monica. A formação da identidade entre os Hititas. Anais do IX SEPECH. Londrina: UEL, 2012. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, v.5, n.11, jan/abr. 1991. p. 173-191. COTTREL, L. The Warrior Pharaohs. 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Acesso em 29 mai. 2017. 203 204 FRANCISCANOS NO EXTREMO ORIENTE: REPRESENTAÇÕES DO MUNDO MEDIEVAL EM RELATOS DE VIAGEM Israel da Silva Aquino Os relatos de viagem medievais são carregados das formas de representação do mundo de seus autores. Por vezes, é comum que certas expressões desses viajantes nos causem estranheza. O papel do historiador, no entanto, não é opor simplesmente esses textos a uma visão de mundo construída no presente, mas procurar compreender as transformações e permanências que se operam, as possibilidades de apropriação e, principalmente, explorar o potencial que estes documentos trazem para a pesquisa histórica. O presente trabalho busca analisar as transformações nas formas de representação do mundo em relatos medievais de frades franciscanos e a adoção de um discurso baseado numa forma de representação do mundo bastante descritiva e racionalizada. Representações do mundo e do outro O conceito de representação, conforme compreendido por Roger Chartier, remete a “(...) esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990: 17), constituindo um aparato mental que dá sentido ao mundo e permite sua compreensão. O Oriente então era pensado como a terra do extraordinário; já seus habitantes eram menosprezados pela visão ocidental de civilização, ganhando forma a figura do bárbaro, juízo moral que constrói a imagem do outro enquanto selvagem, sem lei e sem humanidade. O conceito de barbárie servia para designar aqueles que “lançam os outros para fora da humanidade, ou os julgam radicalmente diferentes de si mesmo” (TODOROV, 2010: 29). Esta figura indica de forma muito apropriada a imagem construída pelos cristãos ocidentais do medievo sobre árabes e mongóis, por exemplo. Para “dizer o outro”, nas palavras de François Hartog, emprestando confiabilidade a seu relato no mundo de seus leitores, o viajante medieval necessitava remeter o que a princípio era diferente, o “bárbaro”, para os códigos de inteligibilidade de seus semelhantes. Esse é o “problema de traduçŌo” de que nos fala Hartog: quais sŌo as 205 regras através das quais a construçŌo do “outro” é realizada, a fim de torná-lo inteligível para o mundo do “mesmo”, no caso o mundo ocidental? (HARTOG, 1999: 229; 250). Hartog busca discutir as regras através das quais se opera a fabricação do outro, descrevendo essa retórica da alteridade como “uma operação de tradução [que] visa transportar o outro ao mesmo” (Idem, 250). Seguindo seu raciocínio, esse processo se faria operar através de três operações básicas: a inversão – na qual a alteridade é simplificada na figura do “antipróprio”: nŌo existe mais a figura do outro, apenas do mesmo e do inverso dele (Idem, 229-230) –, a analogia e a comparação – operando-se aí a aproximação entre os dois mundos, e possibilitando a leitura do outro “filtrado” pelo mesmo (Idem, 240241). Outro elemento importante nesses escritos está relacionado à descrição da Mirabília, ou o que Hartog chama de “medida do thôma” (Idem, 245). Antes do que uma reproduçŌo acrítica do imaginário, esta é uma rubrica que emprestava credibilidade ao relato e contribuía para aumentar o interesse de seus leitores. O leitor / ouvinte medieval procura busca justamente o diferente, a referência às maravilhas com que o viajante se deparou (AQUINO, 2016: 134). Textos como „Il Milione‟, de Marco Polo, e o Livro de Viagens de Jean de Mandeville são exemplos que tornaram essa prática bastante difundida. Nossos primeiros exemplos estão nos relatos dos freis franciscanos João de Pian del Carpine e Benedito da Polônia, que visitaram juntos o Império Mongol no século XIII. Carpine era uma diplomata experiente, enviado em missão pela cúria papal, e produz um relato que se tornaria conhecido por sua objetividade crítica. Seu relato é um verdadeiro esforço de produzir um tratado que servisse como referência para o Ocidente sobre este Império ainda obscuro: “Querendo, pois, relatar os fatos que dizem respeito aos tártaros, para que os leitores possam orientar-se mais facilmente, descreveremos por capítulos da seguinte forma. No primeiro, falaremos da terra; no segundo, dos homens; no terceiro, do culto; no quarto dos costumes; no quinto, do seu império; no sexto, das guerras; no sétimo, das terras [...]; no oitavo, como guerreiam; no último, do itinerário que percorremos [...]. (CARPINE, 2005: 30)” 206 A narrativa busca criar um quadro detalhado da viagem do autor. Vejamos agora um trecho do curto relato do companheiro e intérprete dessa mesma viagem, frei Benedito da Polônia. Esse frei descreve alguns dos povos das regiões atravessadas em sua viagem: “Antes, nas Rússia, à esquerda, estiveram os morduanos, que são pagãos e, atrás, têm a maior parte da cabeça raspada; os bileros, que são pagãos, e depois os bascardos, que são antigos húngaros; depois os cynocephalos, que têm cabeça de cão; depois os parocítas, que têm boca pequena e estreita e nada podem mastigar, mas tomam caldo e se nutrem com vapores de carnes e frutos liquefeitos”. (POLÔNIA, 2005: 101) Trata-se aqui de um relato que remete para a mesma viagem, mas traduz uma experiência distinta. O primeiro é permeado por um pensamento metódico e uma descrição prática e objetiva. No segundo já podemos constatar a presença de uma abstração, retirada do imaginário, que nos dá uma ideia de como podem ser diferentes as representações construídas pelos atores, ainda que em uma mesma situação. Benedito da Polônia provavelmente não encontrou em sua viagem com a famosa figura do cinocéfalo (do grego kunoképhalos, “que tem cabeça ou face de cŌo”), criatura mítica recorrente na Mirabília antiga e medieval. O mais certo é que tenha ouvido histórias a respeito de tais criaturas, que resolveu incluir em seu relato (SILVEIRA, 2005: 99). Mas, de todo modo, sua narração apresenta uma prática comum às narrativas de viagem medievais: as referências míticas. É possível que uma das motivações para isso esteja relacionada à experiência de vida dos viajantes. Carpine, por exemplo, quando da viagem, era já um homem experiente. Estivera na ordem dos franciscanos desde sua fundação, e fora um dos discípulos de São Francisco. Pregara, antes de realizar sua viagem ao Oriente, na Alemanha, e estava encarregado de uma importante missão diplomática: fora enviado pelo Vaticano aos mongóis a fim de traçar um quadro detalhado desse povo desconhecido, o que tornava a exatidão de seu relato uma exigência ainda mais premente. Assim, o frei descrevia os detalhes dos povos e sociedades pelos quais 207 passava, recorrendo a comparações e analogias quando sentia dificuldade em explicar suas experiências para o leitor ocidental. Seu companheiro, frei Benedito, provavelmente não possui a mesma trajetória. Assim, ao tentar descrever sua viagem, entende ser lícito incluir narrativas maravilhosas das quais ouve falar. Parece tomar forma à figura da inversão que Hartog nos fala: diante de uma maior dificuldade em lidar com o outro, o autor desse relato o transforma em um antipróprio, um antagonista do ocidental civilizado, um bárbaro, enfim, um monstro. Outro elemento que nos interessa na presente reflexão diz respeito à tradição do Contemptus Mundi - a negação do mundo -, cuja prática implicava na falta de informações sobre o mundo material percorrido por estes viajantes. Ao concentrar-se exclusivamente em sua viagem espiritual, esses religiosos não registravam o percurso de sua viagem, seus encontros, paisagens, a própria materialidade do caminho percorrido. Muito comum em outras ordens, os escritos de viagem de franciscanos tratam a questão de forma bastante diferente. Ao mesmo tempo em que o conceito de negação do mundo é repensado através das práticas de mendicância e pregação, a atenção dos viajantes se volta vivamente para o mundo percorrido. Por outro lado, podemos inferir que a negação do mundo seja também uma forma de lidar com a alteridade: ela torna-se também uma negação do outro, o desprezo pela possibilidade da diferença, em um momento em que se presume como correta uma - e apenas uma - forma de espiritualidade e salvação. Mas embora a concepção que a Ordem Franciscana adotaria não diferisse fundamentalmente quanto à forma de lidar com essa alteridade – como combater a fé muçulmana, por exemplo –, sua atuação seria diferenciada, ao abandonar-se uma postura de abstração, partindo para uma prática fundada na pregação. O relato de viagem de Guilherme de Rubruck O relato de viagem do franciscano Guilherme de Rubruck, em sua viagem ao império mongol no século XIII, também ficou conhecido pela objetividade com a qual descreve a viagem e as experiências que nela viveu. Rubruck inicia seu relato descrevendo a paisagem, a geografia e as sociedades com que se depara. Ele não deixa de fazer comparações das paisagens pelas quais passa com paisagens 208 europeias, procurando tornar seu relato mais compreensível. Por duas vezes compara os rios com o Sena, de Paris. Da mesma forma, compara a cidade de Karakorum e o palácio do Grande Khan com prédios da capital francesa. “Quanto à cidade de Caracarum, sabei que, excluindo o palácio do Chan, não é tão boa quanto o burgo de São Dionísio; o mosteiro de São Dionísio vale dez vezes mais que aquele palácio.” (RUBRUCK, 2005:, 208). O relato produzido permite ao seu leitor uma ideia do caminho percorrido pelo autor e de suas experiências na viagem. Contudo, o maior desafio do Itinerarium, nos parece, fora o de traçar uma representação das sociedades humanas encontradas no trajeto e o de lidar com as questões de alteridade que se apresentaram. Distintas em diversos aspectos da sociedade de que Rubruck era proveniente, o encontro com estas pessoas apresentou o desafio de lidar com o diferente; tentar compreendê-lo, ao mesmo tempo em que buscava traduzi-lo para que outros pudessem também “ver” o que ele via. Podemos notar que esses dois processos cognitivos - a relação com a alteridade e o esforço de tradução - transcorrem em paralelo, deixando marcas no texto que é produzido. Mesmo no caso do Itinerarium, que é escrito depois de sua viagem e, portanto, a partir de suas memórias, nos parece possível perceber o esforço mental realizado pelo autor em executar essas duas tarefas, ao tentar traçar o quadro demonstrativo de suas experiências entre os mongóis e outros povos encontrados em seu percurso. “Quando entrei em seu território, tive a certeza de ter entrado em outro mundo. Descrevo como posso a sua vida e os seus costumes (...). Em lugar algum têm eles cidade permanente, mas ignoram a futura”. (RUBRUCK, 2005: 120). A passagem acima é começo da descrição de Rubruck sobre os povos mongóis, com quem trava contato já no princípio de sua jornada. A partir daí, seu relato passa a ser um esforço descritivo que nos apresenta a sociedade mongol em seus mais diversos aspectos, passando por suas moradias, vestuários, alimentos, a organização das cortes e as suas práticas sociais. Nesse ínterim, ganham corpo diferentes representações que buscam dar conta de apresentar a 209 percepção que o frei vai construindo, dando-nos uma ideia de suas formas de visão do mundo e do outro com que se depara. Recuperando a ideia de uma retórica da alteridade, podemos pensar, por exemplo, na comparação classificatória, utilizada sobretudo para descrever os hábitos e costumes, assinalando as semelhanças e, sobretudo, os desvios, em relação aos referenciais culturais de Rubruck. Nas palavras de Hartog: “Na narrativa de viagem, funcionando como traduçŌo, a comparação estabelece semelhanças e diferenças entre „além‟ e „aquém‟, esboçando classificações. Para que a comparação tenha efeito, convém que o segundo termo pertença ao saber compartilhado pelas pessoas a quem se dirige o viajante.” (HARTOG, 1999: 240) A comparação exerce, portanto, uma função interpretativa que permite ao autor do relato transmitir a seus leitores uma ideia mais clara de sua experiência. Poderá ser direta ou indireta, ou ainda, nos casos em que o termo não possui um equivalente direto no mundo do destinatário, assumir a forma de analogia (Idem, 241). Importante notar que, por outro lado, a figura da inversão - negação da alteridade - aparecerá igualmente ao longo do texto, sendo por vezes mesclada às outras, ou ambas conjugadas em paralelo. Tais operações podem ser encontradas em abundância nos relatos de viagem, valendo igualmente para o Itinerarium de Rubruck. O autor busca apresentar os hábitos e costumes dos mongóis de forma inteligível, assim como ocorre a comparação para descrever a geografia das paisagens percorridas: “Todas as mulheres montam a cavalo como os homens, de pernas abertas, e amarram suas vestes sobre os rins, com um pano de seda (...). As mulheres são espantosamente gordas, e aquela que tem o nariz menor é considerada a mais bela. Desfiguram-se de modo feio, pintando o rosto. Para dar à luz, nunca se deitam.” (RUBRUCK, 2005: 129) Pode-se perceber aqui uma comparação com os padrões ocidentais que Rubruck conhece. Embora não sejam explicitados, intuem-se os costumes ocidentais, que provavelmente não compartilham desses hábitos. Ao destacar as diferenças de costumes, o autor não deixa de 210 classificar as práticas das mulheres mongóis, demonstrando certa reprovação, ao formular um juízo de valor que dá a entender os hábitos dos orientais como menos civilizados. Não se desfez, em seu pensamento, a figura do bárbaro; pelo contrário, ela permanece presente durante todo o seu percurso. Diante de práticas que não coincidem com os hábitos e costumes do Ocidente, Rubruck visualiza os componentes básicos da barbárie, a saber, a falta de humanidade, a falta de pudor, a ruptura com a sociedade dos homens e com os sistemas de leis (TODOROV, 2012: 25-27). “Quando penetramos em território desses bárbaros, pareceu-me que entrava em outro mundo, como disse acima. Cercaram-nos a cavalo, depois de nos terem feito esperar (...) por muito tempo. (...) Depois que respondemos (...), desavergonhadamente começaram a pedir os nossos mantimentos.” (RUBRUCK, 132-133) A questão religiosa é outro ponto que possui relevância no relato de Rubruck. Frei Guilherme dá centralidade à discussão acerca da religião dos mongóis e dos outros povos com que tem contato. Por diversas vezes fala de seus encontros com os “sarracenos”, foco de suas críticas e dos principais embates teológicos que trava. Mas também descreve seu contato com cristãos nestorianos, com monges budistas, e com sacerdotes das cortes mongóis, que o frei denomina “adivinhos” (RUBRUCK, 2005: 220). Este é um ponto importante para tentar compreender as relações que Rubruck constrói com a alteridade ao longo de sua viagem, pois a questão religiosa lhe é muito cara. Por isso, em diversos momentos o frei constrói figuras que vão da comparação à negação, relacionando as diferentes crenças com que se depara, e sempre valorizando a sua crença sobre as demais. De todo o modo, é possível perceber que o mesmo constrói gradações entre umas e outras, construindo comparações. Isso ocorre, por exemplo, em relação à fé muçulmana, que é sempre a mais combatida pelo frei. Mesmo ao descrever os sacerdotes budistas de Catai, o frei não se mostra tão intransigente como quando trata da fé islâmica, demonstrando o quanto pesava ainda neste momento a questão da Cruzada. 211 “Os sacerdotes dos ídolos das mencionadas nações têm largas capas amarelas; conforme eu soube, há também entre eles alguns eremitas nas florestas e montanhas, admiráveis pela vida e pela austeridade.” (Idem, 170) Por outro lado, Guilherme tende a se aproximar, durante a sua estada em Karakorum, dos sacerdotes da crença nestoriana, seja pela unidade compartilhada pela fé cristã, seja pela busca identitária de uma sociabilidade com pessoas que compartilhassem de um mínimo de valores sociais, culturais e, no caso específico da descrição do frei, de um idioma comum. Alguns deste nestorianos dominavam o latim, e o frei encontra-se também, na capital mongol, com um ourives francês que se torna seu amigo: “Além disso, contou-nos que, em Caracarum, havia um mestre ourives, chamado Guilherme, oriundo de Paris (...). Escrevi então ao mencionado mestre sobre a minha chegada, pedindo-lhe que, se fosse possível, me enviasse o seu filho [como intérprete].” (RUBRUCK, 2005: 182) Finalmente, tem destaque a disputa teológica que Rubruck participa no final de sua estada em Karakorum. Convocado pelo Grande Khan Mangu, esse debate reuniu representantes de três crenças distintas: cristãos (no caso, representados pelas duas vertentes, ocidental e nestoriana), muçulmanos e budistas. “Na manhŌ seguinte, mandou-me seus escrivães, que disseram: (...) Aqui há cristãos, sarracenos e tuinos, e cada um afirma que a sua religião é melhor, e que os seus escritos (...) são os mais verdadeiros. Por isso, [nosso senhor] quer que vos reunais, façais um confronto, cada um escreverá os seus ditos, para que ele possa conhecer a verdade.” (RUBRUCK, 2005: 213) Neste momento, Rubruck estabeleceu uma estratégia de atuar em conjunto com os nestorianos, e admite a possibilidade também de se aliar aos muçulmanos, pois estes compartilham também de uma crença monoteísta, em contraponto à crença dos “tuínos”, os monges budistas presentes na corte. Portanto, a estratégia do monge passa pela afirmação de uma crença una, como forma de reforçar sua posição no debate. Assim, os momentos mais relevantes da descrição da disputa ocorrem durante a discussão entre os budistas e Rubruck 212 sobre a onipotência de Deus e a existência do mal (ÁLVAREZCIENFUEGOS FIDALGO, 2006: 154). Contudo, ao fim da disputa, apesar de avaliar sua atuação estratégica como acertada, Rubruck afirma que ela não surtiu o efeito esperado de sua missão, qual seja, a conversão de mongóis e membros de outras crenças. O frade acaba percebendo a forma pragmática como os mongóis e seu Khan utilizam a religião, pois toleram a presença de sacerdotes de diversas crenças em suas cortes, principalmente em funções burocráticas e administrativas. Ao fim, Rubruck percebe que esse fato não colabora para sua missão e expressa sua descrença na conversão dos mongóis ao cristianismo (RUBRUCK, 2005: 221-216). Considerações finais A análise destes relatos de viagem permitiu-nos perceber que estes se inserem em um período marcado por mudanças que, de certo modo, foram refletidas na forma como os mesmos se produziram. Isso pode ser notado nas práticas descritivas adotadas, que abandonam certas características presentes nos relatos do medievo – a saber, a larga utilização da Mirabília e a negação do mundo material enquanto prática religiosa. Por outro lado, é possível perceber que as relações que se estabeleciam ainda eram marcadas pelo estranhamento e resistência ao tratarem de questões de alteridade, constituindo-se assim uma rede de relações que correm em paralelo, uma relação ambígua ao lidar com a figura do outro para a qual não se alcança uma solução, mas que permeava suas experiências. Referências: Israel Aquino é mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: israel.aquino@ufrgs.br Fontes primárias publicadas: RUBRUCK, Guilherme de. Itinerário de frei Guilherme de Rubruck. Tradução de Ildefonso Silveira. In: CARPINE et. al. Crônicas de Viagem: Franciscanos no Extremo Oriente antes de Marco Polo (1245-1330). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 115-243. (Coleção Pensamento Franciscano). RUBRUCK, Guilherme de. The Journal of friar William of Rubruquis a French man of the order of the minorite friars, into the East parts of the world. An. Dom. 1253. University of Adelaide, 2010. 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Petrópolis: Vozes, 2010. 214 UNESCO, YOGA E MAHÃBHÃRATA: HISTÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA ÍNDIA Janaina Cardoso de Mello Em dezembro de 2016, a imprensa europeia anunciou ao mundo que o Yoga da Índia fora declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO), durante a reunião do Comité Intergovernamental em Adis Abeba, na Etiópia. Considerou-se ter a filosofia vinculada à prática influenciado: “[...] numerosos aspectos da sociedade deste país, que vão desde a saúde à medicina, até à educaçŌo e as artes” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 01/12/2016). Guardiã das memórias, histórias e culturas dos povos, como viés de educação, turismo e ciência, “A UNESCO destacou ainda a „unificaçŌo da mente, do corpo e da alma para melhorar o bem-estar mental, físico e espiritual das pessoas‟ para quem exercita esta prática. Esta prática cultural é transmitida segundo o modelo de ensinamento mestre-aluno, mas atualmente existem mosteiros, instituições educativas e centros comunitários que também contribuem para a sua transmissŌo” (OBSERVADOR, 01/12/2016). Deve-se recordar o fato de ter sido o patrimônio imaterial chancelado na 32ª Sessão da Conferência Geral das Nações Unidas, de 17 de outubro de 2003 na Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial que resultou na Carta Patrimonial conhecida como a Recomendação de Paris. O documento retoma outros dois momentos importantes desse processo: a Recomendação da UNESCO sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular, de 1989, assim como a Declaração Universal da UNESCO abordando a Diversidade Cultural de 2001, e a Declaração de Istambul, de 2002 (IPHAN, 2017, p.1). A Recomendação de Paris de 2003, além de ressaltar a necessidade de conscientização sobre o valor do patrimônio imaterial e seu mútuo reconhecimento (local, nacional e internacional), além do 215 exercício de cooperação e assistência internacionais, trouxe ainda o conceito de “patrimônio imaterial” como: “[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana” (IPHAN, 2017, p.2-3). Importante também é ressaltar a Declaração de Issyk-Kul sobre o Diálogo entre Culturas e Civilizações na Eurásia, de 2004, por reafirmar que é através do diálogo e interação entre distintos vetores culturais que se sobressai “[...] a capacidade humana e social para a criaçŌo, expressŌo e inovaçŌo, bem como para a reconciliaçŌo” (CABRAL, 2011). Por isso, nada mais justo do que contemplar com uma chancela patrimonial um dos subcontinentes asiáticos mais criativos, tanto em suas concepções religiosas e filosóficas, quanto em seus vocábulos originários de idiomas, em sua gastronomia, sua arte, seu vestuário, músicas, modos de ser, viver e ver o mundo. Demarcada ao note pelo Himalaia, a Índia superou seu isolamento geográfico através de suas costas banhadas pelo Oceano Índico, cujas rotas marítimas possibilitou o contato com Ocidente e Oriente. E como salientou o historiador Edgard Leite (1997, p.7): “[...] é na regiŌo compreendida entre o Ganges e o seu grande tributário, o rio Yamuna, que encontramos o coração da Índia, ou melhor, da cultura que consolidou, ao longo dos séculos, a identidade cultural-religiosa de grande parte da população do subcontinente. Foi essa a região que em tempos pretéritos tornou-se conhecida como Aryavarta, a terra dos aryas, ou seja, o local onde se 216 estabeleceram os míticos fundadores da cultura védica, os ários ou arianos”. A Índia nŌo é uma “ilustre desconhecida”, pois em período anterior e posterior à Heródoto apareceu em vários relatos. Missionários jesuítas e mercadores visitaram seu território. Portugueses, franceses, neerlandeses e ingleses também não a ignoravam. Embora, somente no século XVIII surge a figura do historiador da história da Índia, em Calcutta (FONSECA, 1999, p.208). Grandes riquezas da cultura indiana podem ser encontradas nas narrativas históricas, mitológicas e identitárias da literatura védica. Mas o que são os escritos védicos? De acordo com Gosvãmi (1986, p.1) “as escrituras védicas compreendem um todo harmonioso com uma conclusŌo harmoniosa” tendo como marco original o siddhãnta (conclusão filosófica) védico. Assim, “As escrituras védicas sŌo de amplo escopo. Só o Rig Veda contém 1.017 hinos, o Mahãbhãrata consiste em 110.000 dísticos e os dezoito Purãnas principais que contêm centenas e milhares de versos” (GOSVÃMI, 1986, p.2). Salienta-se, no entanto, que a história da Índia tem sido tradicionalmente referenciada em seus períodos religiosos que compreendem além do védico, a presença dos períodos bramânico e do clássico (bramânico renovado). Entretanto, a primeira leva de produções historiográfica sobre a Índia, ao serem oriundas de intelectuais ingleses terminaram por acentuar preconceitos e marcas colonizadoras. A construção de um tipo de representação da Índia como um território da “espiritualidade” sem o aprofundamento de seu viés político, econômico e social, reduzindo os elementos culturais à religiosidade e à visão de um tempo imóvel e sem mudanças caracterizou as primeiras obras produzidas por James Mill (“History of British India”, de 1817), Vincent Smith (“Early History of India”, de 1904) e Hermann Oldenberg (“A Literatura da Índia Antiga”, de 1956) onde, nesta última, até o Mahãbhãrata é comparado de modo depreciativo com as epopeias gregas (FONSECA, 1999, p.210). Somente na virada do século XX, as primeiras gerações de historiadores indianos assumem o protagonismo dos escritos de si, 217 de seu tempo e de seu espaço, entretanto, intelectuais como R. G. Bhandarkar ainda reproduziam as influências inglesas em seus trabalhos, cujas fontes eram predominantemente a literatura sânscrita, proveniente da elite cultural dominante indiana (FONSECA, 1999). Entre as décadas de 1920 e 1930, uma segunda onda de historiadores indianos, sob a égide dos movimentos nacionalistas e de independência, à exemplo de K. P. Jayaswal e A. K. Coomaraswami, buscaram erigir a narrativa de um “passado glorioso”, com muitas manifestações da cultura grega em sua própria trajetória, assim, afirmava-se que: “se à Índia faltavam o racional e o pragmático, era necessário afirmar que a cultura indiana era essencialmente espiritualista, oposta à civilização ocidental materialista, e por isso era superior a ela” (FONSECA, 1999, p.211). Consolidada a independência, um novo horizonte surgiu para o trabalho historiográfico na Índia. As investigações deixaram de se concentrar apenas nas fontes literárias e passaram a buscar dados contidos em pesquisas arqueológicas, etnológicas, epigráficas, numismáticas, dentre outras, além de novas metodologias de tratamento e análise da informação. Com isso, ocorre um aprofundamento do sentido da escrita histórica e “[...] reconhece-se como fio condutor a ideia de que mudanças no sistema político estão inextricavelmente entretecidas com mudanças na estrutura econômica, que, por sua vez, influenciam as relações sociais; que, se um movimento religioso, por exemplo, se arraiga, então a atração que ele exerce deve guardar uma relação com o lugar social dos que o apoiam; que, se um dialeto adquire foros de língua e se uma literatura se formaliza nessa língua, então algo profundamente significativo aconteceu não só linguística e literariamente com os falantes dessa língua” (FONSECA, 1999, p.212). Variações regionais e históricas do padrão cultural, com mudanças que nem semelhantes e nem simultâneas são descortinadas a partir da redução da escala do olhar de pesquisa para as histórias locais e 218 regionais, escapando-se à homogeneização das generalizações habitais até então. Assim, tanto no Norte como no Sul da Índia, os centros de estudos passaram a guiar-se pela compreensão, com influência nas leituras de Marx, de que “O estudo sistemático das relações entre a organizaçŌo social, política e econômica e seus efeitos sobre os eventos históricos levou ao estabelecimento de relações de causa e efeito entre esses elementos e ao desenvolvimento da ideia de que é a inter-relação de uma variedade de forças que determina os eventos, cuja chave é os meios de produçŌo” (FONSECA, 1999, p.212). A ideia de periodização começou a ser relegada ao passado historiográfico, tendo-se me conta que distintas fases históricas ocorreram nas sociedades sem necessariamente aplicarem-se ao mesmo tempo e de igual forma. Essa nova fase dos escritos históricos sobre a Índia é fortemente representada pela obra “History of India” (1966) de Romila Thapar (FONSECA, 1999, p.213). Mas onde os Vedas, o Mãhãbhãrata e o Yoga entram nessa cadeia de acontecimentos mutatis mutandi? De acordo com Heinrich Zimmer (1986, p.238) o surgimento da filosofia hindu ortodoxa provém da religião ária dos Veda, com seu panteŌo que “projetavam as experiências e ideias do homem sobre si mesmo”. Os seguidores de Vishnu (uma entidade que auxiliou os deuses a livrarem-se de um inimigo, o rei Bali), os cantos de 25 a 42 do Mãhãbhãrata configuram-se como os textos fundamentais para sua prática religiosa. Esse texto foi denominado Bhagavad-Gita, ou, “o canto do senhor” (LEITE, 1997, p.61). “O Bhagavad-Gita é a passagem do Mahabharata que transcorre pouco antes da batalha de Kurukshetra, na qual se enfrentarão Pandavas e Kauravas, primos, mas adversários na luta pelo poder. Arjuna, um dos irmãos Pandava, está em um carro de guerra, pronto para o início do confronto, junto com seu auriga, Krishna- que Arjuna entende ser um poderoso príncipe. No limiar do combate, no entanto, Arjuna é tomado de remorsos e dúvidas e se questiona sobre o significado daquela luta fraticida. 219 Krishna, então, momentaneamente interrompendo o conflito, inicialmente passa a explicar a Arjuna os seus deveres como integrante da varna kshatrya e, logo a seguir, passa a expor a natureza da condição humana e dos caminhos que devem ser seguidos para a libertação. Primeiro, explica Krishna, é necessário entender a Jñana yoga, a „disciplina do conhecimento‟ e a Karma yoga, a „disciplina da açŌo‟” (LEITE, 1997, p.62). A literatura védica, através do conhecimento sobre autorrealização, busca apresentar o caminho para a libertação do sofrimento. Pretende-se alcançar a transformação do ser, sendo o Bhagavad-Gita o baluarte da verdade (GOSVÃMI, 1986, p.2). Os estudos de Leite (1997, p.61-62) sobre o Bhagavad-Gita aprofundam mais a compreensão da divindade manifesta em Krishna, que incentiva Arjuna a seguir seu dharma, além de defender “que a mais levada forma de Yoga é aquela que tem na contemplação desse senhor supremo, infinitamente poderoso, o seu mais alto objetivo”. Assim, seria o bhakti-yoga uma forma de libertação para todos os seres, independentemente de sua condição social. “NŌo se pode perceber a verdadeira forma desta árvore neste mundo. Ninguém pode compreender onde ela acaba, onde começa, ou onde ela se alicerça. Mas com determinação deve-se derrubar com a arma do desapego esta árvore fortemente arraigada. Em seguida, deve-se procurar aquele lugar do qual ninguém volta após ter chegado lá e render-se a esta Suprema Personalidade de Deus de quem tudo começou e de quem tudo emana desde tempos imemoriais” (MAHÃBHÃRATA, Bhagavad-Gita, 15.4). A passagem acima do Bhagavad-Gita refere-se à figueira-de-bengala, nutrida pela natureza material, cujos brotos são objetos dos sentidos e distintos subprodutos que variam entre o prazer e o sofrimento, atuando na renovação do karma. Por isso, põem-se a necessidade de cortar essa ligação, buscando o verdadeiro conhecimento para se chegar até Deus. Através do serviço devocional (ouvir, cantar), desapegando-se, encontra-se Krishna e sua libertação. 220 Para entender melhor o significado das palavras proclamadas no Mahãbhãrata, é necessário compreender o significado do Yoga como um conjunto de conhecimentos filosóficos imiscuídos na vida do povo indiano, constituindo seus valores éticos, morais, atitudinais, preceitos e técnicas espirituais, bem como seus procedimentos frente à natureza (saúde física, mental e espiritual). Através do cuidado com o “homem integral” exercia-se o cultivo do sagrado, a harmonia e a plenitude da vida (ELIADE, 2009, p.40). O Yoga, enquanto prática ritual, aplicava técnicas adequadas de liberação do desejo e do medo que se davam pelo controle da respiração e da ampliação da consciência espiritual através da concentração e da meditação (acesso ao subconsciente) (CAMPBELL, 1990). A pesquisadora Lilian Gulmini (2002) chama a atenção para essa relação da experiência do sagrado do homem indiano através do Yoga refletida não apenas na ritualística do processo místico, mas na própria forma de lidar com a passagem do tempo (cíclico) e assim com a própria natureza da vida e da morte (ciclo das reencarnações). A partir dessa rápida explanação da essência histórica do Yoga e sua relação com a divindade via Baghavad-Gita, compreende-se melhor a importância desse “modo de ser e de viver” gerador de uma visŌo de mundo que transpassa o tempo e o espaço, do Oriente ao Ocidente, para se tornar uma prática que embora tenha se tornado culturalmente multifacetada coligiu uma coletividade. A inscrição do Yoga na lista de bem representativo do patrimônio imaterial da humanidade, chancelado pela UNESCO em 2016, o define como “[...] uma série de poses, meditação, controle da respiração, palavras cantadas e outras técnicas para auxiliar os indivíduos à alcançarem a autorrealização, liberando-se de qualquer sofrimento. Sua prática realizada por jovens ou idosos sem discriminação de gênero, classe ou religião tornou-o popular em outras partes do mundo” (UNESCO, 2016). É esse aspecto que a UNESCO levou em consideração no momento da chancela desse bem imaterial enquanto patrimônio da humanidade. Ressalta-se que a Índia já possui uma extensa lista de 221 bens classificados como patrimônio material. São 35 bens materiais com chancela concedidas, sendo os primeiros de 1983 – a Forte de Agra, as Grutas de Ajanta, a Grutas de Ellora e o Taj Mahal – e o último, o Centro histórico de Ahmadabad, de 2017 (UNESCO, 2017). “[...] a Unesco e as políticas patrimoniais adotadas pelos diversos países do mundo, nas últimas décadas do século XX e nos anos iniciais do século XXI, empreenderam esforços no sentido de retificar a perspectiva monumentalista atribuída ao patrimônio desde meados do século XIX na França e buscaram valorizar a diversidade cultural” (PELEGRINI; FUNARI, 2008, p.43). A lista de patrimônio imaterial da humanidade é muito recente, mas já é alvo de grande procura de inscrições. Em 2011, houve 213 elementos inscritos, sendo 96 oriundos da região da Ásia e Pacífico (CABRAL, 2011). Atualmente mais de 90 tradições possuem o selo de patrimônio imaterial da humanidade, compreendendo práticas ancestrais, músicas, danças e línguas antigas, estando mais de 26 localizadas na Ásia e no Pacífico. A premissa das candidaturas junto à UNESCO requer que a identificação, a valorização e a promoção do patrimônio cultural imaterial venha a emergir dos detentores do patrimônio reconhecido e eleito pela própria comunidade para a manutenção de sua identidade, memória e salvaguarda, engajando-se em sua transmissão às gerações futuras. Sob esse aspecto a decisão do Comitê avaliador da UNESCO ressaltou o papel da Sangeet Natak Akademi, que mantém o Inventário Nacional do Patrimônio Cultural Imaterial e Diversas Tradições Culturais, com a participação e consentimento dos profissionais e das partes interessadas. O Sangeet Natak Akademi também atualiza regularmente o Inventário Nacional (UNESCO, 2016). As tradições culturais indianas têm um impacto grande também no modo de vida ocidental e isso está comprovado na decisão do Comitê avaliador da UNESCO. O Yoga por sua ancestralidade histórica, por sua tradição sagrada de bem-estar físico e espiritual, por sua vinculação com textos identitários referenciais, reunindo toda uma coletividade sem preconceitos reafirma a força da pluralidade no 222 patrimônio cultural imaterial, bem como a necessidade de sua salvaguarda e difusão. Os estudos de acadêmicos brasileiros a respeito dessa prática como objeto de pesquisa ainda é muito pouco referenciado, entretanto deve-se destacar a dissertação de Mestrado em Ciência das Religiões na UFPB, intitulada “O Yoga como caminho de elevaçŌo na espiritualidade e na saúde” de autoria de Vânia Cristina Lucena Lima, defendida em 2010. A pesquisadora utilizou a história oral de vida como metodologia e historicizou o Yoga em suas diferentes temporalidades da Índia até sua inserção no Brasil. Referências Janaina Cardoso de Mello é Pós-Doutoranda em Estudos Culturais (PACC-UFRJ); Doutora em História Social (UFRJ); Professora Adjunta de História do DHI na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde ministra a disciplina História e Patrimônio Cultural, docente do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória-UFS) e do Mestrado Acadêmico em História da Universidade Federal de Alagoas (PPGH-UFAL). E-mail: janainamello.ufs@gmail.com CAMPBELL, J. As transformações do mito através do tempo. Trad. Heloysa Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1990. CABRAL, C. B. Patrimônio Cultural Imaterial. Convenção da Unesco e seus contextos. Lisboa: Ed.70, 2011. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Yoga da Índia também é Património Imaterial da Humanidade. 01/12/2016. Disponível em: http://www.dn.pt/sociedade/interior/unesco-declara-yoga-daindia-patrimonio-imaterial-da-humanidade-5529222.html, Acesso em: 15/08/2017. ELIADE, M. Yoga: imortalidade e liberdade. Trad. Tereza de Barros Velloso. 4ª Ed. 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São Paulo: Palas Athena, 1986. 224 EXTREMO ORIENTE: DOIS OLHARES PARA O VAZIO Jienefer Daiane Marek Uma das mais notáveis características da arte oriental é a presença do traço caligráfico nas produções pictóricas. Isso se deve ao fato de que a caligrafia é uma disciplina de grande importância na educação oriental, de modo que esta não pode estar dissociada da pintura, muito ao contrário, ela a complementa. Sendo assim, cada artista possui um traço caligráfico singular, por mais que possa ser considerado semelhante ao de outros artistas. Porém, essa semelhança permanece somente no plano visual, pois a composição das formas e escrita são carregadas de subjetividade. Ambos os artistas apresentados possuem traços finos, delicados e elegantes, porém a diferença é percebida no modo de composição intrínseco a cada um. Enquanto um trabalha com hachuras aglomeradas ocupando um espaço significativo na tela, o outro preocupa-se com a organização dos elementos, propondo através dos traços sinuosos e delicados, dois lados distintos em uma mesma imagem. Traço a traço: Jeong Seon [1676 – 1759] e Ma Yuan [1160 – 1225] Jeong Seon nasceu no dia 16 de fevereiro de 1676 no distrito de Jongno, Seul, no bairro de Cheongun-dong. Ele também é conhecido pelo seu nome de canção [mesmo sentido que pseudônimo] Kyomjae, que significa “estudo humilde” [CHUNG, 2009]. Assim como alguns pintores coreanos da época, Jeong Seon nasceu em uma família de linhagem nobre; em sua vida adulta, tornou-se um funcionário do governo coreano, serviu como magistrado local três vezes [CHUNG, 2009], fato este que não o impediu de pintar diariamente. Ao longo do tempo, Jeong Seon tonou-se um dos artistas mais importantes e eminentes da pintura de paisagem coreana no final da dinastia Joseon [1700-1850] [PARK, 2011]. Em suas obras de estilo realista, segundo Park [2011] o pintor retrata e explora a beleza cênica dos lugares pelos quais viajou [idem, 2011], como é o caso do Monte Geumgang, localizado atualmente na Coréia do Norte. Assim, é perceptível que o artista sempre retrata temas relacionados à 225 história, cultura e características geográficas do país em suas obras de modo mais realista possível [idem, 2011]. Suas pinceladas fortes transformam esses cenários magníficos, além de que sua visão realista sobre as paisagens faz com que as pinturas acabem tornando-se diferentes daquelas produzidas por artistas coreanos que ainda se utilizam das técnicas e dos estilos tradicionais chineses. Segundo Ahn [2000] a maior aplicação técnica coreana era conhecida como pintura de visão verdadeira, tendo Jeong Seon o seu praticante mais importante. Suas primeiras obras possuem profunda relação com o estilo de pintura da escola Wu da dinastia Ming, cujos principais proponentes eram Wen Zhengming e Shen Zhou [1427-1509] [AHN, 2000]. A pintura “Vista Geral do Monte Geumgangsan” [General View of Mt. Geumgangsan, 1734] de Jeong Seon, é um exemplo dessa pintura de visão verdadeira, a obra revela uma das maiores belezas do país coreano, sendo representada artisticamente diversas vezes tanto pelo artista quanto pelos seus seguidores. A partir dessa obra, é perceptível o modo como o artista buscava retratar cenas de seu país e cultura, porém ainda há a presença dos traços provenientes do estilo artístico chinês, que ainda predominava na arte coreana [AHN, 2000]. Figura 1. Vista Geral do Monte Geumgangsan (General View of Mt. Geumgangsan). Jeong Seon, 1734, Tinta e cor clara sobre papel, 59cm x 130.7cm. Dinastia Joseon. Leeum Samsung Museum of Art. 226 Fonte: <http://leeum.samsungfoundation.org/html_eng/search/main.asp >. Acesso em: 27 Agosto de 2017. Na obra em questão [figura 1], Jeong Seon retrata doze mil picos que ocupam grande porcentagem do espaço da tela. Ao analisar a composição de elementos presentes na obra, partindo do pico mais alto denominado Birobong Peak, flui uma cascata de água que cai ao longo do vale chamado Manpokdong, que então se dividirá verticalmente ao lado esquerdo e direito [Administração do Patrimônio Cultural, 2006]. Os caracteres chineses presentas na obra indicam o título da obra e o pseudônimo [chamado de penname] do artista, Kyomjae [ibidem, 2006]. Também há a presença de um pequeno texto escrito pelo artista com sua caligrafia graciosa, localizado no lado superior direito da tela. Não foi possível encontrar a tradução do que viria a ser o texto presente na pintura de Jeong Seon. No entanto, pela localização que a mesma ocupa na tela, traz a sensação de completude à imagem; onde os traços caligráficos dos caracteres chineses complementam as linhas traçadas que formam as curvas sinuosas dos picos. É possível então perceber com clareza a semelhança do traço presente tanto na escrita quando nas linhas que constituem as formas do cenário. Se considerarmos que a primeira forma de escrita do homem foi a imagem pintada [DERRIDA, 2011], constatamos que a escrita está ligada intimamente à pintura, seja ela através dos traços presentas nas formas ou na própria palavra. No que diz respeito à escrita chinesa, alguns estudiosos afirmam que um dos possíveis surgimentos dos caracteres chineses seja por meio do registro de sinais deixados pelos elementos da natureza, como exemplo: o dos animais [ANDRADE, 2013]. Percebe-se a presença de dois traços característicos do artista na construção das formas presentes na obra. Os traços verticais predominantes conferem a impressão de altitude aos numerosos picos acidentados e de efeito penetrante; e em contraste com eles, há a presença de „manchas‟ que insinuam a forma de árvores e arbustos, construídos a partir de hachuras e pontapés de pinceladas, criando o relevo do elemento. 227 As cores predominantes na obra são tons pastéis o que reforça a ideia de realismo. Os tons de azul presentes no entremeio dos picos cria a sensação de uma névoa calma, juntamente com as nuvens de mesmo tom que amplia a grandiosidade do cenário e atribui profundidade. Aqui as partes centrais da imagem são destacadas principalmente pelas cores relativamente fortes e as linhas pretas que contornam os picos, criando consequentemente o sombreado nas partes menos importantes da imagem. Ao mesmo tempo em que a tela é repleta de traços fortes e intensos, ela é vazia de presença humana; aqui a contraposição à grandiosidade dos picos, conduz o espectador a sentir esse vazio diante da amplitude das formas, transmitindo a sensação de que o vazio está de certo modo, intrínseco ao homem frente à imensidão da natureza. Nota-se que mesmo sem a utilização da perspectiva ocidental na pintura, Jeong Seon conseguiu através da composição de linhas verticalizadas e hachuras, criar a sensação de profundidade e grandeza nas formas, trazendo para a obra sua „visŌo verdadeira‟ do cenário coreano; seus traços precisos transmitem as características físicas e ressonância emocional desse cenário majestoso, expressando a topografia real do lugar, e embutido nela, as camadas de significados psicológicos e artísticos [LEE, 2004]. Outro ponto interessante a ser ressaltado, é o modo como o artista retratou a cena, como se o mesmo estive olhando para o Monte de cima para baixo, assim como fazem as aves; esse fato faz com a idealização da paisagem montanhosa fosse maximizada por meio das diferentes pinceladas e das cores. Embora suas obras tenham características técnicas das escolas chinesas “o estilo de visŌo verdadeira de Jeong Seon parece ter surgido de sua incorporação dessas várias fontes em sua própria e única visŌo artística” [AHN, 2000, p. 323]. Desse modo, pode-se dizer que Jeong Seon criou um novo estilo da pintura coreana ao incorporar sua visão única, na qual retratava com traços finos e negritos as virtudes da Coréia. É evidente na pintura de Jeong Seon, no que confere a fatura da sua pintura, a mistura de áreas claras e escuras, sensação criada através de camadas de tinta e das pinceladas fibrosas, recurso favorecido na pintura pela maioria dos literatos chineses. Ao incorporar essas técnicas em sua pintura, Jeong Seon “coreanizou” o estilo pictórico da Dinastia Joseon [AHN, 2000, p. 323], influenciando 228 consequentemente novas gerações de artistas coreanos, o que o transformando em um ícone do nacionalismo artístico coreano. Jeong Seon faleceu no dia 20 de abril de 1759, com os seus então 83 anos de idade. Já Ma Yuan, um pintor chinês muito influente da Dinastia Song [960 – 1279], capta a atmosfera da paisagem de um modo mais elegante. Seu estilo artístico, em conjunto com o artista Xia Gui, formou a base para a Escola de Pintura Ma-Xia, grande referência na pintura chinesa [SULLIVAN, 2017]. Sua descendência é de uma família de pintura proeminente, onde alguns de seus parentes serviram na Academia de pintura imperial. Conforme Sullivan [2017], Ma Yuan iniciou sua carreira artística durante o domínio do imperador Xiaozong, tornando-se daizhao [servente de éditos] durante o imperador Guangzong; recebeu a mais alta honra chinesa, o cinto dourado, sob o imperador Ningzong. O gênio da pintura de Ma Yuan estava principalmente nos temas de paisagens; sua técnica foi inicialmente inspirada por seu predecessor Li Tang, o paisagista sénior da Academia Imperial, Dinastia Song [SULLIVAN, 2017]. Eventualmente, Ma Yuan acabou desenvolvendo um estilo de pintura próprio, povoando suas obras com elementos decorativos marcantes. Além disso, suas pinturas possuem a notável característica da composição de um canto, onde os temas trabalhados na pintura são impelidos para uma extremidade da tela, restando assim, o outro lado nu ou ligeiramente matizado; o golpe de textura na pintura cria um contraste significativo, mantendo o foco em apenas um dos cantos [QIYI et al, 2017]. Em suas obras, é possível perceber que Ma Yuan utiliza o vazio como um elemento compositivo, resultando num efeito sugestivo de um vazio tanto físico quanto emocional/ espiritual no espectador. A obra “Caminho na Montanha na Primavera” [Walking on a Mountain Path in Spring, 1190] [figura2], apresenta nitidamente esse enfoque. O valor da pintura está tanto nos elementos figurativos presentes na parte inferior esquerda da tela, quanto no quase vazio que compõe o restante da mesma, criando um cenário sugestivo a variadas interpretações. 229 Figura 2. Caminho de Montanha na Primavera (Walking on a Mountain Path in Spring), Ma Yuan, 1190. Folha de álbum, tinta sépia sobre seda. Altura 27,4 cm. Museu do Palácio Nacional, Taipé, Taiwan. Disponível em: <http://www.chinaonlinemuseum.com/painting-ma-yuan-6.php>. Acesso em: 27 de agosto de 2017. O poema inscrito com caligrafia elegante e sofisticada ocupa espaço na extremidade superior direita, e tem como autor o imperador Ningzong [1168-1224], Dinastia Song. Há varias traduções desse poema, mas todos trazem em si sua essência; dessa forma o mesmo pode ser lido como: “As flores selvagens dançam quando sŌo escovadas pelas minhas mangas. Os pássaros reconfortantes não fazem som porque evitam a presença de pessoas” [MORRISON, 2016]. Na composição dos elementos, há a presença de um homem, diferente da obra de Seon que exclui a figura, bem vestido [podendo ser interpretado como um estudioso], a caminhar por uma trilha próximo à um riacho juntamente com outro indivíduo, possivelmente seu ajudante/ acompanhante. O homem toca sua barba enquanto contempla a natureza e a presença dois pássaros, um sobrevoando o lugar e o outro pousado no galho de uma árvore, supostamente um salgueiro; a posição de apreciação tomada pelo personagem estabelece de certa forma, relação com o poema inscrito acima. Criando assim, outra possibilidade visível de interpretação: de que homem e pássaro estejam a apreciar as palavras escritas pela caligrafia refinada e graciosa do artista. É evidente a semelhança 230 presente nos traços que compõe os elementos da pintura com aqueles que se unem para formar os caracteres. Os tons pastéis conferem destaque aos traços suaves e sinuosos que dão forma aos elementos da obra; as linhas que constituem as montanhas no fundo da imagem, gradativamente vão desaparecendo no vazio, transformando-se em névoa até sumir completamente. Essa impressão é causada em parte pela técnica aplicada à cor, onde o artista ao criar um degrade de tons, leva a entender a dissipação das formas. A forma como o artista configurou os elementos dentro da tela, equilibrando-os entre máximo e mínimo, gera o pressentimento de calmaria e compreensão do estado natural das coisas. É notável o modo com que Ma Yuan utiliza o vazio como um elemento importante para a composição figurativa da obra, e não como consequência da falta de outros elementos na cena. Essa ressignificação do vazio dentro do cenário pictórico do artista, possibilita a compreensão da relação existente entre homem e natureza, momento este que o artista conseguiu captar a essência e trazê-la para a bidimensionalidade. O único elemento que infringe o espaço ocupado pelo vazio é o poema, que ao invés de parecer deslocado da cena, a torna completa. De acordo com Sullivan [2017], em virtude da utilização dessa técnica, algumas obras de Ma Yuan são repletas de um sentimento melancólico representado de forma poética, fato que insinua a possível decadência cultural da dinastia Song, além de ser bem convencional o modo como o artista expressa esse sentimento na pintura. Suas pinturas muitas vezes eram consideradas elegantes e refinadas, além de que as produções da família Ma traziam em si a sensação de quietude filosófica [QIYI et al, 2017]. No entanto, esse estilo romantizado e sonhador, presente nas obras de Ma Yuan e de seus seguidores perdeu-se por um tempo após a queda da Dinastia Song, sendo revivido mais tarde na Dinastia Ming [1368-1644]. O artista faleceu em 1225, deixando um amplo legado artístico, que futuramente também iria influenciar produções artísticas japonesas. Como já apresentado, os artistas aqui citados possuem características caligráficas semelhantes, entretanto distintas quando 231 aplicadas à pintura; quanto à abordagem do vazio presente nas obras, em ambas é representado de modo distinto bem como possuem relações e interpretações diferentes de acordo com a subjetividade de cada artista. Com relação tanto aos traços que compõe as figuras quanto ao texto presente em ambas as obras, podemos considera-los como escrituras, segundo o pensamento do filósofo francês Jacques Derrida [1930-2004], no sentido de um rastro de linguagem [de presença do artista?]; “a escritura é um representante do rastro em geral, ela nŌo é o rastro mesmo. O rastro mesmo nŌo existe.” [DERRIDA, 2011, p. 204]. Aqui a escrita vem como um registro empírico do artista, está mais para um suplemento da experiência do que para um gerador de sentido. A ligação existente entre escrita/ texto e a imagem na obra vai além de uma complementação teórica, ela é uma constatação do movimento e da presença do artista. Assim como na antiguidade do surgimento da escrita chinesa [base para a então escrita japonesa e coreana], os primeiros homens observaram os rastros dos animais e os registraram por meio da escrita [DERRIDA, 2011], aqui o artista registra esse mesmo rastro empírico, a essência do lugar e do movimento de modo singular e subjetivo. Referências Jienefer Daiane Marek é acadêmica do terceiro ano do Curso de Licenciatura em Arte na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Mail: jienefer97marek@gmail.com. Sob Orientação da Professora Clediane Lourenço, Mestre em Artes Visuais, e Doutoranda em Artes Visuais pela mesma instituição. Possui graduação em Arte-Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (2006). Atualmente é professora no curso de graduação em Artes na mesma instituição. ANDRADE, Cleyton Sidney de. 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Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Ma-Yuan-Chinesepainter>. Acesso em: 23 de agosto de 2017. 233 234 O IMPÉRIO ASIÁTICO PORTUGUÊS: UMA PERSPECTIVA HISTORIOGRÁFICA Jorge Lúzio O breve texto aponta para a relevância da obra de Sanjay Subrahmanyam, destacando-a em suas inovações e nos aspectos que a caracterizam como um marco sobre a historiografia do Império português. Desta perspectiva emerge a clareza de quão imprescindível se faz o alargamento de pesquisas e a produção historiográfica em língua portuguesa sobre a História da Ásia, cada vez mais determinante para os estudos em História Medieval, Moderna e Contemporânea, bem como para as questões geopolíticas em pauta na agenda global. O historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, com doutoramento em economia pela Universidade de Delhi em pesquisa voltada ao comércio na Índia colonial, nos séculos XVI e XVII, tem como obra de referência em língua portuguesa “O Império Asiático Português 1500-1700. Uma História Política e Económica”. O texto, quando publicado, polemizou ao trazer abordagens e percepções dissonantes das mais clássicas visões historiográficas sobre o Império português, consolidadas até então. Questionou o conceito de império na História de Portugal, interrogando-o quanto ao seu sentido político e quanto à sua relevância histórica frente às fontes asiáticas analisadas em seu trabalho. O seu criticismo confrontou uma mentalidade que exaltou a presença portuguesa na Ásia e a sua soberania oceânica no Oriente do século XVI, em detrimento de um continente supostamente vulnerável à Conquista que, todavia, possuía grandes centros urbanos nas mesmas dimensões que as grandes cidades da Europa nos séculos XVI e XVII, exemplificados por Delhi e Agra, na Índia, entre outros. Atualizou as simplificações comerciais criadas a respeito das redes do Índico, associadas ao domínio árabe, apresentando a atuação mercantil efetiva dos comerciantes indianos Baneanes e Bohras, do Guzerate, os Chettis e os muçulmanos Mappila e Maraikkayar, do sul do subcontinente, os chineses do Fukien e das demais províncias do Império Celeste, além dos iranianos Tujjier. Mantendo as análises com suporte nas fontes asiáticas destacou o papel dos contextos regionais nas dinâmicas políticas ocorridas entre europeus e asiáticos naquele continente. Desta forma, assimilou aquilo que já fora apontado nos trabalhos que o antecederam por identificação das problemáticas que levaram 235 o Império português ao declínio na Ásia. Sua argumentação observou o nacionalismo dos cronistas oficiais, as relações mercantis entre Europa e Ásia através da consolidação das Companhias de Comércio nos séculos XVII e XVIII, contrapondo com um sistema econômico arcaico em Portugal. As alianças regionais e o comércio intra-asiático na conjuntura comercial ultramarina intensificaram a circulação dos produtos asiáticos nas redes oceânicas, já que os portugueses encontraram o continente asiático com economias desenvolvidas e sedimentadas em praças conectadas ou localizadas nas delimitações do Índico. Outro dado relevante proposto pelo autor apontou o favorecimento dos europeus face às oscilações políticas que ocorreram na Ásia entre os séculos XVI e XVIII, como o avanço do Império Mogol na Índia e a derrocada do Império de Vijayanagar – ou Reino de Bisnaga, nos relatos portugueses. Sustentou também que os quadros políticos de disputas internas possibilitaram o crescimento comercial dos portugueses a se efetivarem nas redes afro-asiáticas. Numa análise de viés econômico, seguindo as reflexões de João Gabriel A. Leite, podemos considerar que: “Nos séculos que precedem a viagem de Vasco da Gama, os fluxos de comércio haviam mudado do sentido leste-oeste, que passava pela rota das caravanas, como a rota da seda, para o eixo norte-sul, que alimentava os portos da orla do Oceano Índico. Essa mudança coincide também com o estabelecimento do domínio árabe e de populações costeiras islamizadas sobre as rotas de comércio marítimo na região. Essas tendências teriam, assim, aumentado o volume de comércio na região e tornado mais lucrativo a incursão portuguesa. A entrada dos portugueses também coincide com a reconfiguração dos reinos na Ásia. O Império Otomano expandia-se para o Oeste, o Império Persa Safávida estava em processo de consolidação, o Império Mugal apenas se estabelecia e os demais reinos centravam-se em cidades portuárias que viviam do comércio. Os portugueses, então, não enfrentaram forte resistência de reinos maiores, bastando desalojar os árabes e outros competidores locais das rotas de comércio asiáticas.” [Leite, s/d, p.15] Das inúmeras contribuições da obra de Subrahmanyam, a perspectiva transoceânica, a circulação de pessoas, de ideias, de 236 práticas culturais e de cultura material, que se configuram no conceito de Histórias Conectadas, proporcionou uma inovação nas discussões sobre o Império português no Oriente, com uma abordagem que diluiu o protagonismo europeu outrora centralizado no que ficou compreendido como uma perspectiva eurocêntrica. A concepção, segundo o próprio autor [Subrahmanyam, 2012, p.16] recuperou o conceito de uma história “integrativa”, noçŌo criada por Joseph F. Fletcher (1934-1984), historiador americano cujo trabalho, na Universidade de Harvard, foi desenvolvido sobre o leste da Ásia, nas interações entre a China e o Hindustão. O renomado historiador indiano não abandonou sua orientação economicista e, ainda assim, deslocou sua reflexão para o âmbito da cultura e da identidade em problematizações levantadas ao longo dos seus escritos. Nesse sentido, os textos que debatem temáticas coloniais num diálogo estabelecido com a produção historiográfica de Sanjay Subrahmanyam, como os reunidos entre as Histórias conectadas e as dinâmicas pós-coloniais [Macagno, Ribeiro, Schermann; 2008] ampliaram as discussões propondo uma metodologia de interlocução entre as pesquisas produzidas nos antigos espaços coloniais, atualmente deparados com os desafios de uma revisão do seu passado colonial. Como instrumentação epistêmica e metodológica o historiador Fernando R. Ribeiro inicialmente verificou na percepção subrahmaniana que: “Em lugar de fazer um tipo mais clássico de historiografia, faz uma história mais nitidamente transregional – do Golfo de Bengala, do mundo persianizado, dos impérios eurasianos da era moderna e seu milenarismo, do comércio internacional, entre outros temas que têm abordado em suas obras. Seu trabalho enfatiza que, em realidade, não é possível fazer uma história da Índia sem fazer uma história das companhias comerciais europeias na Ásia; do Estado da Índia; das redes de portugueses e luso-asiáticos; das redes de religiosos europeus e muçulmanos; das influências milenaristas eurasianas; do trânsito de idéias e pessoas no mundo persianizado; dos vínculos e influências do Sudeste Asiático; das ligações com o Novo Mundo; do comércio com a costa africana; dos vínculos com a Ásia Central e assim por diante”.[Ribeiro; 2008, p.18] Dessa forma, uma compreensão completa da complexa interação entre as sociedades do Império asiático português implica no diálogo 237 com as fontes históricas localizadas em seus próprios contextos e interpretadas à luz das suas epistemologias. No tocante ao Reino de Portugal e sua crise no Oriente acentuada nos séculos XVII e XVIII, outros fatores deverão ser considerados, além das competições com as demais companhias de comércio europeu, a instabilidade econômica na metrópole, as intensas disputas com os holandeses, o enfraquecimento da estrutura náutica e militar, e a alternância de foco para o Brasil com a exploração da cana de açúcar e do mercado aurífero. Claro está que já no século XVII, a perda de Ormuz, as tensões com o Império Mugal, a expulsão em Myanmar, o enfraquecimento das bases no Golfo de Bengala, a expulsão do Japão e o fortalecimento da presença britânica na Índia, estiveram entre as principais causas que agravaram as crises do Império português na Ásia. Nesse contexto, o teórico indiano inferiu que a tomada de Malaca pelos holandeses, em 1641, só foi possível com o apoio do Sultanato de Johore, ao passo que o ataque holandês a povoados portugueses na costa ocidental da Índia, Negapatão, em 1642, e Tuticorin, em 1649, só foi repelido com a ajuda dos reinos locais (Nayaka de Tanjavur e Nayaka de Madurai, respectivamente) [Leite; pp 15-16]. Nas diversas inferências que decorrem sobre Goa nas contextualizações do Estado da Índia, ficaram demonstradas as várias ocorrências que, centralizadas naquela que era a sede administrativa do Império no Oriente, estiveram diretamente expostas às constantes ameaças enfrentadas pelos portugueses e às oscilações que sofreu a principal rota do império, a Carreira da Índia. Com uma análise do relato de um cronista mogol Khafi Khan, descrevendo a fragilidade em que o império se encontrava, Subrahmanyam comentou que: “A visŌo a partir da corte mogol era assim a de um Estado da Índia indianizado, algo semelhante ao que escreveu o anônimo malaio Dato Bendhara, que se preocupou muito pouco com a existência de Portugal ao descrever os portugueses! Despojado das suas antigas pretensões imperiais, os portugueses pareciam estar reduzidos à dimensŌo dos zamindars concanis.” [Subrahmanyam; 2012, p. 266] Em seguida, contestou o escritor ao lembrar que Goa desempenhava a força dos Vice-reis da Índia no quadro geopolítico do Índico 238 através da sua autoridade sobre Damão, Diu, Chaul, na Índia portuguesa, Kung, no Golfo Pérsico e as bases da África índica. As transformações nos espaços asiáticos com os conflitos entre Portugal, Holanda e Inglaterra determinariam novos rumos para o Império asiático português que sofreu o impacto dos processos de reconfiguração política na Ásia, das tensões e diversidades entre os reinos locais a competir pelo controle dos portos e das redes de mercadorias. A historiografia subrahmaniana engendrou a difícil tarefa de compreender os encontros culturais com as suas equivalências evoluindo aos paralelismos das aculturações e incorporações que sucederam sobre a História Moderna na Ásia, na África e nas Américas. Propôs reflexões sobre temporalidades e periodizações e o comprometimento com uma leitura sobre o Império português plenamente inserido nos processos asiáticos, como citou Ângela Xavier, “olhar as conexões entre estes impérios, e a maneira como se foram moldando mutuamente [...], significa fazer, ao mesmo tempo, a história de “vários” impérios em “vários” tempos” [Xavier; 2012. P.13]. Em relação ao seu modus operandi, observa-se uma visão coletiva e interimperial, cuja metodologia recuperou a ausência das fontes asiáticas de modelos historiográficos anteriores, equiparandoas às fontes europeias nas análises sobre os portugueses no Oriente. Para Sanjay, as crônicas Hadrami, do sul da Arábia ou crônicas otomanas do século XVI, oriundas do norte da Índia, do Decão, da Birmânia, da Malásia, bem como as correspondências diplomáticas, as cartas indo-persas, os papéis administrativos correntes sobre coletas de impostos, os rendimentos, os diários de viagens e memórias dos mercadores asiáticos, além dos literatos e religiosos em sua produção de textos que circularam no Império Mogol são fontes imprescindíveis na História do Império asiático português. As fontes orais posteriormente registradas, os relatos, as canções e tradições orais como as preservadas entre os mapilas do Malabar, no sul da Índia, no âmbito de uma etnohistoriografia, e outros modos de criação literária, conforme já apontara o próprio autor, compõem uma espécie de tipologia, um aglomerado de fontes autenticamente orientais. Nessa concepção integram-se o patrimônio artístico e cultural, os monumentos, os conjuntos iconográficos, a cultura material, os tratados milenares ou textos religiosos preservados e citados no medievo indiano. 239 Claro está que nas fontes orientalistas dos séculos XVI ao XVIII, suas imagens e representações encontradas em textos de religiosos franciscanos, dominicanos e jesuítas [Calazans;2009, 87-92], nos roteiros da Pérsia (Frei Tomé Pires), Etiópia (Pe Francisco Álvares), Índia / Tibet (António Tenreiro e António de Andrade), Ásia/China (António de Gouveia e Frei Gaspar da Cruz), Japão (Pe. António de Andrade), além da “Gramática do Concani”, língua falada em Goa, do Pe. Lourenço Peres, “Noticia Sumaria do Gentilismo da Azia”, um texto anônimo do século XVII ou XVIII com gravuras coloridas das divindades hindus atribuídas a Carlos Julião – artista luso-italiano que serviu como inspetor na Índia, cuja cópia e tradução teria sido obra de um religioso da Companhia de Jesus, são fontes fundamentalmente importantes para uma leitura da Ásia lusófona. Nesta relevância, juntam-se os manuscritos “TraduçŌo em summa do Livro, que os Gentios chamŌo Bagavata Guita”, atribuído a um desconhecido jesuíta, e “Compendio dos Misterios da Fee”, ordenado em “Lingua Bengalla”, com traduçŌo do Frei Manuel da AssumpçŌo da Ordem de Santo Agostinho, entre tantas outras obras produzidas ou traduzidas pelos missionários que atuaram no sul da Índia. A contribuição decisiva da experiência de Subrahmanyam para uma historiografia do Império asiático português concentra-se na predisposição da mudança de um paradigma engessado no eurocentrismo para reconhecer, numa atitude coerente, que uma História da Ásia, inevitavelmente, passa por um diálogo pautado pela equivalência, isonomia e equidade. Referências Jorge Lúzio – Pós-doc em História da Ásia com pesquisa voltada à Índia, desenvolvida no LEOA – Laboratório de Estudos Orientais e Asiáticos, na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Docente em História no Dpto. de Pós-Graduação do UNIFAI / Centro Universitário Assunção - SP, e no Museu de Arte Sacra de São Paulo. Este ensaio é um subcapítulo da tese “As bailadeiras. Devadasis, dança e colonialidade na Índia portuguesa – século XVIII. No corpo iconografado uma categoria histórica”. Doutorado em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, São Paulo, 2016. SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português 1500-1700. Uma História Política e Económica. Lisboa: Difel. Edição/reimpressão: 1993. 452 p. 240 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Ibdem. 1993, p 41. LEITE, João Gabriel Ayello. Competição, Instituições e o Declínio do Império Português na Ásia. Universidade de Brasília. FACE – Departamento de Economia, p.15. S/D Disponível em www.angelfire.com/ky2/mueller/Portugalindia.pdf Acesso em 03/09/17, 21h40. SUBRAHMANYAM, Sanjay. Impérios em concorrência. Histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS Imprensa de Ciências Sociais, 2012, p. 16. MACAGNO, Lorenzo; RIBEIRO, Fernando R.; SCHERMANN, Patrícia S. (Patrícia Teixeira Santos). (Orgs). Histórias conectadas e dinâmicas pós-coloniais. Curitiba: Fundação Araucária. 2008. 306 p. RIBEIRO, Fernando R. Históricas Conectadas: uma proposta teórica e metodológica a partir da Índia. In MACAGNO, Lorenzo; RIBEIRO, Fernando R.; SCHERMANN, Patrícia S. (Patrícia Teixeira Santos). Orgs. Histórias conectadas e dinâmicas pós-coloniais. Curitiba: Fundação Araucária. 2008, p. 18. LEITE, João Gabriel Ayello. Ibdem. pp. 15-16. SUBRAHMANYAM, Sanjay. Ibdem. 2012, p. 266 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Impérios em concorrência. Histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS Imprensa de Ciências Sociais. 2012, pp 40-46. CALAZANS, José Carlos. As Primeiras Traduções Ocidentais de Textos Indianos na Língua Portuguesa. Babilónia n.º6/7 pp. 87 – 92. Disponível em www.revistas.ulusofona.pt Acesso em 01/08/2015. 20:42hs 241 242 EM BUSCA DOS „CHINS‟ Kamila Czepula Em nosso breve texto, exploraremos a discussão sobre a importação dos „Chins‟ como substituiçŌo da mŌo de obra escrava no Brasil, que se desenrolou em 1879. „Chim‟ era o designativo para chineses no século 19 [„chins‟ no plural], e a contrataçŌo dos mesmos por diversos países da América tornara-se uma tendência. Para tal, acompanharemos o debate vinculado pela Gazeta de Notícias, periódico carioca que foi fundamental para o desdobramento da questão na época. A Gazeta de Notícias Foi em dois de agosto de 1875 que chegava às ruas do Rio de Janeiro o primeiro exemplar da Gazeta de Notícias, fundada pelos editores Ferreira de Araújo, Manuel Carneiro e Elísio Mendes, e pelos redatores Henrique Chaves e Lino de Assunção. A folha, que aparentemente era muito semelhante aos demais jornais, propunha inovar e queria pra si as nomenclaturas de popular, barato, e liberal. A Gazeta de Notícias rompia cada dia mais as fronteiras do centro chegando aos cortiços, estalagens, bondes, barcas, bares, e em todas as estações da Estrada de Ferro [Barbosa, 1996; Asperti, 2006]. Com uma tiragem de 12 mil exemplares, a Gazeta de Notícias deixava claro para os seus concorrentes que “vinha para ficar”; por consequência da sua forte proposta literária, passou a empregar os escritores mais estimados da época, como Coelho Neto, Eça de Queiroz, Ferreira de Meneses, Aluísio Azevedo, Pardal Mallet e José do Patrocínio, que juntamente com outros colaboradores de renome, almejavam conquistar um público ainda mais amplo para o jornal. Para isso, além de um ótimo folhetim romance, a Gazeta de Notícias apresentaria todos os dias “um folhetim da atualidade. Arte, literatura, teatros, modas, acontecimentos notáveis, de tudo a Gazeta de Notícias se propõem a trazer ao corrente dos seus leitores” (Gazeta, 02/08/1875, p.1). José do Patrocínio tornar-se-ia também um dos mantenedores do jornal, e publicaria uma coluna dedicada inteiramente à política. A Gazeta de Notícias tinha orgulho de se propor uma “imprensa imparcial”, que cumpria com o seu compromisso de informar seus leitores sem tomar partido. Na prática, entretanto, como destaca Marialva Barbosa (1996, p.65) nem essa imparcialidade existia, 243 como também não havia a sua tão proclamada independência frente a grupos e facções políticas. Um exame mais detalhado das notícias anteriormente vinculadas pelo periódico, sobre a questão dos “chins”, revelaria que o jornal estava longe de ser neutro... Os ―chins‖ Sob a Prensa da Gazeta de Notícias A partir, de setembro de 1879, os debates sobre a imigração chinesa na Câmara dos Deputados ganharam uma postura cada vez mais agressiva. Havia uma proposta em curso para que a mão de obra escrava fosse gradualmente substituída pela mão de obra asiática, o que partira ao meio a opinião pública da sociedade imperial brasileira. A Gazeta de Noticias, com a sua coluna fixa Diário das Câmaras, fornecia para seu público um resumo detalhado de todos os embates ocorridos nas sessões. Mas certa de que seu papel perante a sociedade ia pra além de apenas anunciar notícias e debates, a Gazeta se insere na discussão. José Patrocínio e Ferreira de Menezes, em suas primeiras alusões sobre o tema, deixariam evidente que precisavam opinar sobre o assunto. José do Patrocínio, utilizando do pseudônimo Proudhomme, foi um dos primeiros a escrever sobre a questão. Lembremos que ele era um dos mantenedores do jornal, e possuía uma coluna apenas para si. Em sua visão, os resultados tanto do Congresso Agrícola de 78 quanto os atuais debates da câmara apontavam para uma manutenção do sistema escravocrata por meio da mão de obra chim. Patrocínio utilizava um tom irônico para demonstrar seu posicionamento, como podemos ver nesse fragmento: “É crença geral que os chins não repugnarão trabalhar ao lado dos nossos escravos e sob as ordens dos nossos senadores. Não podemos, portanto, desejar mais. O próprio Sr. Martim Francisco terá ensejo de continuar a trazer para a tribuna o seu abdômen abbacial, e emittir as suas indigestões em forma de discursos onde a ideia definha e os arrotos gordurosos abundam. O neto de José Bonifacio poderá amanhã gritar: - morte aos chins, do mesmo modo que hoje grita: - chicote, prisão cellular, forca aos escravos. (17 de março de1879)” Esse trecho poderia nos fazer supor algum tipo de preocupação humanística da parte do periódico, mas os autores da Gazeta não haviam mudado seu posicionamento em relação ao sentimento anti244 chinês. Nos fragmentos subseqüentes, de autoria de Ferreira de Menezes, observamos que toda a carga de preconceito, longamente trabalhada e manifesta nas reportagens anteriores a 1878, é sintetizada em discursos francos e diretos sobre o receio do “contágio asiático”. “O honrado Sr. conselheiro Sinimbu trata de salvar o futuro d”esta terra, mandando desde já contratar chins. Não serei eu quem censurea inoculação da gotta de chá no sangue nacional, todo de capilé ou de infusão de couves, ao que se diz. O chim não nos trará pouca cousa nas baforadas do seu ópio. O imperador agradecido pelo serviço prestado pelo Sr. Sinimbu, instituirá em sua honra a ordem da laranja da China e com tal augmentarão as rendas e os commendadores, que é do que precisamos, e não de doutores. (...) Fallando sério. Há objecções a oppôr ao Sr. de Sinimbú. A colonisação só tem razão de ser, com o colono que se assimile com o colonisador. Ora o chim se misturará ou não com o brazileiro. No caso affirmativo é um mal: no outro caso não vem prestar serviço algum a esta nacionalidade, porque do que precisamos é de trabalhadores, que sejam amanhã cidadãos e produsam cidadãos. Isto de viver e vêr-se o paiz dividido entre homens que trabalhem e outros que nada fazem. É acabrunhador e dizemos: é vergonhoso. Contra a syphilis nacional é de mister outras injecções, que não a do povo da porcellana, do arroz do ópio e o povo que atira os filhos aos porcos, quando entede que os filhos são por demais. Seja, portanto, feito, o Sr. Sinimbu com mantador da laranja da China e a esta vá sómente buscar-se o segredo da porcellana. Nós estamos antes no caso de mandarmos para lá certa gente, Juro que não vai allusão nem ao Sr. Sinimbú nem ao Sr. Gaspar (23/03) Esse trecho nos apresenta, de forma direta, a construção de um discurso contra os “chins”, assentado nos expedientes consagrados do Orientalismo do século 19 [Said, 1998]: os chins são fumadores de ópio, desonestos, propagadores de doenças, e contribuiriam para a “degeneraçŌo da raça”. Há uma preocupaçŌo notável com a possibilidade deles se estabelecerem e se misturarem com os brasileiros. Os trabalhos científicos da época corroboravam tais 245 afirmativas, demonstrando que a perspectiva de importação dos chins seria uma verdadeira ameaça a nação brasileira. De modo hábil, o jornal conseguia também direcionar suas críticas contra aquele que considerava o personagem central da proposta, o Ministro Sinimbú. Embora ele estivesse articulando a construção de um projeto nesse sentido, ele não era o único a pensar na viabilidade da mão de obra chinesa para o Brasil. Como vimos anteriormente, iniciativas diversas foram feitas nesse sentido, incluso por particulares. O Visconde Mauá, por exemplo, tentou empregar a mão de obra chinesa na construção de ferrovias, tal como nos Estados Unidos. Fundou uma colônia de coolies, na fazenda Atalaia, que foi noticiada na Gazeta como lugar de violência e morte, onde os chineses organizavam tribunais internos e executavam-se uns aos outros (20/07/1877). Esse tipo de noticiário simplesmente reproduzia o senso comum que se tinha dos chins. No entanto, os ataques centrados contra Sinimbú visavam desarticular essas iniciativas. É possível que, sem o apoio do império, se tornasse inviável continuar com a campanha pela vinda dos chineses ao Brasil; e nesse sentido, a Gazeta atuava de forma constante, tentando incutir um sentimento alarmista e catastrofista no público leitor. Investindo em outro aspecto, Patrocínio (usando novamente seu pseudônimo de Proudhomme), apela para um “uso da inteligência” daqueles que promoviam o trabalho agrícola no Brasil: “Uma observaçŌo, porém, impô-se desde já. Uma questão vital vem incidentemente á discussão do parlamento. Pela gravidade do assumpto era de suppôr que o ministério tomasse pelo menos a deliberação do dia, em que decidiuse a elevar a rolha a altura de uma instituição parlamentar. A questão é nada mais nem menos do que saber se a grande propriedade deve ou não continuar por mais tempo a conservar-se pelo tremendo sacrifício dos nossos brios-a escravidão. (...) Por outro lado, a colonisação chineza desperta a maior resistência por parte d”aquelles que, pelo seu caracter e pelo seu talento, maior influencia podem ter juízo do paiz. (31/03)” Habilmente, Patrocínio desvia a discussão para o problema fulcral sobre a Escravidão no país e a manutenção das grandes 246 propriedades; do mesmo modo, ele usa uma estratégia de acinte contra aqueles que não concordavam com sua opinião. De certa forma, pois, ele deixava entender que aqueles que defendiam a imigraçŌo chinesa seriam ignorantes, e os possuídos de “juízo” nŌo concordariam nunca com essa proposta. Ainda assim, a Gazeta era um espaço de notícias que dependia de assinantes e de propagandas para sobreviver. Sua tão propalada “neutralidade” deveria ser mantida a algum custo, e isso pode explicar o surgimento de uma reportagem absolutamente destoante dessa linha central de argumentação. Um autor identificado como Luiz Morreau fez publicar, em 15/06/1879 o seguinte texto: “O remédio de que se lançará mŌo nŌo será novo, porque já foi experimentado com feliz êxito em grande numero de localidades, ainda menos necessitadas, inclusive nos Estados do Sul da grande Confederação Americana: é a introducção dos coolies ou trabalhadores asiáticos. Máo grado as disposições hostis da maioria dos nossos legisladores, philosophos que sacrificam a gloria da espécie a riqueza do paíz, não vemos outro recurso prompto, fácil e immediato; e, se o houvesse, já teria sido trazido para derrotar os panegyristas da emigração asiática. No entretanto, nações mais avisadas, do que nós, com tantas pretenções, não duvidaram abraçar o expediente. Foi por elle que se evitou o aniquilamento das grandes culturas da Havana, da Goyana e das Trindades. (...) Só com auxilio dos coolies se levantará a grande cultura brazileira; só com elles poder-se-há empregar capitaes para as transformações que o nosso trabalho necessita em mais de uma de suas applicações. Para comprovar a acceitação que tem tido a emigração basta considerar-se que desde 1855 a 1860 a média annual dos chins desembarcados em S. Francisco da Califórnia foi de 4, 530. De 1860 a 1865 foi 6, 600; de 1865 a 1870 attingiu essa média a 9, 311; de 1870 a 1875 passou a média de 13,000 e hoje a população chineza na Califórnia vai a mais de 150,00 almas, como de tudo nos dá noticia a Revista dos dous Mundos de 1º de outubro de 1878. (..) Não é provável que as raças se fundam, havendo tanta tenacidade na raça asiática e a crença religiosa para impedil-o; mas ainda quando o facto se desse só poderia trazer-nos vantagens.” 247 Morreau se manifesta absolutamente favorável a imigração dos chineses, apresentando inclusive alguns dados sobre a situação dos mesmos na Califórnia – uma das experiências, junto com Cuba e Peru, as quais os defensores costumavam recorrer. Mas não devemos nos enganar: a Gazeta publicou esse texto na página 2 (ou seja, fora da capa), e Luiz Morreau não era um de seus repórteres ou colaboradores costumeiros, o que nos leva a acreditar que, muito provavelmente, a matéria foi paga para ser publicada. O exemplo de Morreau nos mostra que a Gazeta era capaz de construir complexos expedientes para fazer valer sua argumentação. Seu texto passou pelas mãos da redação do jornal, e provavelmente não foi publicado sem antes ter se planejado uma resposta a altura. Com isso, é provável que o periódico estivesse dando espaço a um texto defensor da imigração chinesa apenas, e tão somente, para desconstruir essa proposta. O texto de Morreau não trazia acréscimos relevantes ao que já tinha sido discutido no Congresso Agrícola ou na Câmara. Também não fazia frente aos discursos de Nabuco, exaustivamente reproduzidos na Gazeta. Ao que tudo indica, pois, além de matéria paga, podemos supor que o texto foi publicado com a intenção deliberada, por parte dos editores, de ser desconstruído. Inócuo, ele desapareceria em meio a avalanche de matérias contra a imigração chim que ainda percorreriam as páginas no ano de 1879. Em setembro, José do Patrocínio voltaria à carga contra os aparentes avanços dos defensores da imigração chinesa. Disparando à torto e a direito contra diversos parlamentares, que vão sendo citados ao longo do texto, Patrocínio enquadrinhava vários deles numa nota depreciativa, utilizando um recurso de aviltamento e escárnio para desvalorizar essa proposta (Gazeta, 08/09/1879). A retórica de Patrocínio consiste em desqualificar o projeto do governo de constituir uma comissão para avaliar a questão da imigração chinesa, incluindo uma missão ao país. Assim, a Gazeta transitava numa dualidade argumentativa patente: ora o chim seria escravizado, ora o chim vinha acabar com a escravidão. Por um lado, pois, o chim era uma preocupação “humanística” e/ou higienista e racialista; por outro, ele era desinteressante aos donos das grandes lavouras. Parece evidente, aqui, a inspiração na retórica estratégica de Nabuco: separando a matéria principal em diversos pontos diferentes, poder-se-ia 248 argumentar contra cada um deles de forma direta, sem que o conjunto precisasse apresentar uma coerência maior. Eliminando cada um dos argumentos segundo uma afirmação particular, ter-seia sua anulação e, consequentemente, o desmonte gradual da proposta como um todo. Um exemplo claro dessa estratégia fica evidente nesse outro trecho, quando o autor – anônimo – nos informa que o governo não é capaz de responder as suas objeções, de acordo como expediente comumente empregado pelos detratores da imigração: “Se cada vez que se discute a questão da embaixada á China, mais nos aprofunda no espírito a convicção de que o governo não tem juízo formado a tal respeito. (...) A lavoura precisa de capitaes e braços, disse-se no congresso; o governo não tem capitaes para dar á lavoura, pensou em dar braços. Mas, como? O escravo escasseia, e em breve acabará; o europeu não emigra para aqui em escala sufficiente; o demais todas as nações da Europa procuram afastar d”aqui a emigraçŌo; occorreu entŌo ao espírito do governo o trabalhador chinez, com uma qualidade predominante: é barato! E sem mais exame, sem mais estudo agarrou-se o governo ao trabalhador chinez. Em balde se lhe tem dito que a experiência, a melhor de todas as mestras, demonstra que o trabalho do chinez é má; que é péssimo o contacto do chinez, filho de uma raça degradada, rotineira, egoísta, atrasada. Nada importa, o governo quer o trabalhador chinez. E quando se lhe pergunta porque, quando se espera que elle opponha argumento a argumento, facto a facto, o governo ladeia a questão, deixa sem resposta as objecçoes e segue o um caminho atraz do ideal do barato: o trabalhador chinez. Ainda há três dias na camara, depois de um discurso notável do Sr. Manuel Pedro, digno deputado da Parahyba, discurso em que a questão foi encarada sob um ponto de vista muito elevado, pois que o hábil orador demonstrou que a importação chineza era um prolongamento da escravidão, o Sr, presidente do conselho respondeu com logares communs e nem ao menos disse qual o programa do governo na questão, programa que parece nunca tivera existido, pois que só agora, no fim da discussão, quando já está votado o credito, só agora diz que o chinez virá introduzir no paiz a cultura de chá e bicho da seda! (11/10/1879) 249 Duas passagens são importantes aqui: a primeira, consistindo no argumento bem pensado de afirmar que, se o governo sabia o que estava fazendo, tentando trazer os chineses, então porque enviaria uma missão até a China para conhecer melhor a estrutura do tráfico de coolies? Obviamente, havia uma literatura disponível para embasar argumentos de ambos os gêneros (prós e contras), e uma missão de reconhecimento in loco era uma medida razoável. Todavia, a retórica aqui presente era de fazer supor que a dúvida não era companheira do bom senso, mas sim, da fraqueza e da incerteza. A segunda passagem, como dissemos, aponta para o problema dos representantes governamentais não serem capazes de responder as questões colocadas pelos opositores: “E quando se lhe pergunta porque, quando se espera que elle opponha argumento a argumento, facto a facto, o governo ladeia a questão, deixa sem resposta as objecçoes”. Os apoiadores da imigraçŌo eram eles, também, conhecedores em geral desses recursos retóricos, e provavelmente evitavam tais armadilhas – embora seu silêncio fosse entendido como sinal de anuência com as críticas. Mas qual silêncio? Afinal, era a Gazeta tinha por costume não lhes dar espaço. Conclusão A má fama do Brasil como um país escravocrata desestimulava fortemente a emigração, e no caso dos chineses não seria diferente. Com base em informações colhidas junto a ingleses e brasileiros (Lesser, 2001, p.57-8) – que contaram com apoio decisivo da Gazeta -, o Marquês Tseng (Zeng), na segunda semana de outubro (ou seja, poucas semanas depois da resposta de Sinimbú na Gazeta), rejeitou formalmente qualquer acordo de emigração para o Brasil, praticamente batendo o último prego no caixão deste projeto. Apesar de Sinimbú ainda tentar insistir na questão, os apoiadores do projeto de imigração chinesa enfraqueceram tremendamente, e a questŌo começou a ser tratada pelo viés do humor e do escárnio: “A Imigração asiática passou a ser na imprensa oposicionista objeto de ridículo. O humorismo nacional fartou-se em demonstrações jocosas” (Costa, 1937, p.318). De qualquer forma, as tentativas de trazer chineses diminuíram significativamente depois disso, e o assunto gradualmente caiu no esquecimento. Podemos considerar que a Gazeta teve um papel crucial no desenvolvimento dessa questão, mobilizando a opinião pública e organizando a edição dos materiais que seriam 250 disponibilizados para discussão. Ao construir uma ponte entre os leitores e os bastidores da política, bem como divulgando os pareceres de intelectuais do período, a Gazeta conseguiu articular um discurso amplo e multifacetado, que trafegava entre as opiniões eruditas, o relato jornalístico e as considerações derivadas do senso comum. A ação disseminada pela imprensa – da qual a Gazeta era a expressão mais popular -, conjugada com as opiniões abalizadas, criou um paradigma importante nos debates acerca da imigração, com o qual todos os povos não-europeus teriam que lidar posteriormente. Tal consideração nos revela que, desde o século XIX, a imprensa possuía um importante papel como formador de opinião. O distanciamento histórico nos permite contemplar as divergências e incoerências dos seguidos discursos vinculados pelo periódico contra a imigração chinesa: no entanto, a compreensão mais complexa e abrangente de todo o quadro do problema chinês não era uma tarefa fácil, e a velocidade das informações vinculadas atrelava o leitor – e por conseguinte, os debatedores – ao movimento e ao tempo das reportagens. Pode-se afirmar que a Gazeta alcançou um notável sucesso em enfraquecer o projeto imigratório asiático, bem como seria uma das principais articulistas contra a escravidão nos anos seguintes. Referências Kamila Rosa Czepula é mestre em História pela UNESP-Assis, SP. Agradecemos a Orientação do Prof. Dr. José Carlos Barreiro e ao financiamento da pesquisa pela CAPES. A Gazeta de Notícias foi obtida junto a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, no site www.memoria.bn.br ASPERTI, Clara. A vida carioca nos jornais: Gazeta de Notícias e a defesa da crônica. Revista Contemporânea, nº 7, 2006. BARBOSA, Marialva. Impresa, Poder e Público: os diários do Rio de Janeiro (1880-1920). (Tese de Doutorado) Rio de janeiro: UFF, 1996. COSTA, Craveiro. O Visconde de Sinimbu. Rio de janeiro: Nacional, 1937. CASTILHO, Marilena dos Santos Ferreira. Imigração chinesa para o Brasil: o discurso parlamentar. Assis: Tese, Unesp, 2000. 251 LESSER, J. A negociação da identidade nacional: minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. Editora Unesp, SP, 2001. NABUCO, Joaquim. Discursos Parlamentares 1879. Câmara dos Deputados Centro de documentação e informação-Coordenação de Publicações. Brasília, 1983. SAID, Edward. Orientalismo – A invenção do Oriente pelo Ocidente. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1998. 252 “MUÇULMANOS X CRISTÃOS”: A CRIAÇÃO DO INIMIGO DA AL-QAEDA E A EDUCAÇÃO PARA O ÓDIO Katty Cristina Lima Sá A Al-Qaeda foi fundada no Paquistão em 1989 pelo saudita Osama Bin Laden [1957-2011], e diferente de grupos extremistas islâmicos como a Jihad Islâmica Egípcia, não desejava agir em âmbito nacional para a instauração de um governo islâmico local. Seu campo de atuação transcende as fronteiras nacionais do mundo islâmico com o objetivo de expulsar as interferências ocidentais naquela região, sendo os principais pontos de sua agenda política: a] o fim de Israel e a criação de um Estado palestino; b] a retirada de tropas americanas da Península Arábica; c] o fim dos governos considerados apóstatas [renunciadores da religião] por apoiarem os EUA, como a Arábia Saudita, Egito, Jordânia e Kuwait [BRAGA, 2009, p 211]. Em suas três décadas de existência a Al-Qaeda passou por diversas transformações ideológicas, estruturais e estratégicas a começar pelo alvo de seus ataques: durante a década de 1990 estavam direcionados a alvos norte-americanos no Oriente Médio e nordeste da África, como foram os casos dos ataques as embaixadas norteamericanas no Quênia e Tanzânia [1998], e ao destroyer USS Cole da Marinha dos Estados Unidos na costa do Iêmen [2000]. A partir do 11 de setembro de 2001, o campo de operação se estendeu ao Ocidente e aos seus cidadãos, como visto nos ataques de Madrid [2004] e Londres [2005]. Escolher um alvo não é um algo feito ao acaso, sendo necessárias justificativas que expliquem suas razões e significados, principalmente quando “dirige-se contra pessoas remota ou absolutamente nŌo envolvidas nos processos conflituosos em curso” [SILVA, 2004, p.181], ou seja, civis não combatentes. A partir disso, presente trabalho, analisaremos a apresentação dos países ocidentais como inimigo da Al-Qaeda e como isto legitima a morte de civis em seus atentados através da Inspire Magazine, periódico produzido pela franquia da organização na Península Arábica para instruir na realização ações terroristas no Ocidente. Para tanto, atentaremos ao histórico de transformações desta rede terrorista, a história política do Oriente Médio, em especial no tocante as 253 intervenções dos Estados Unidos e aliados na região a partir da segunda metade do século XX e ao processo de construção do outroalvo dos Fundamentalismos expressa por Francisco Carlos Teixeira Da Silva [2004]. Embora tenha sido planejada para ser um exército mujahidin [de “guerreiros santos”], a Al-Qaeda se estruturou como uma rede composta por grupos terroristas e indivíduos simpatizantes que agem de modo independente entre si e em relação ao núcleo da organização. No entanto, os todos permanecem ligados pelo juramento de fidelidade feito antes a Bin Laden e agora ao seu sucessor Ayman Al-Zawahiri [1951-], ou simplesmente por se sentirem contemplados pelos ideais e táticas propostas pela organização [BARBER, 2011]. Deste modo, ela deve ser compreendida como “uma rede de informações, de financiamento, de logística e uma espécie de caixa de pensões e salários para militantes e suas famílias, em especial para aqueles que se transformam em mártires de Alah” [SILVA, 2009, p.13] Esta estrutura descentralizada começou a ser moldada durante a década de 1990 com o firmamento de alianças entre Bin Laden e grupos jihadistas locais no Oriente Médio [MIGAUX, 2007], porém foi acentuada com a Guerra do Afeganistão [2001-] e a destruição de campos de treinamento e do quadro de comando da Al-Qaeda pelas forças armadas dos EUA. Como afirmou Peter Bergen [2007], tal reformulação estrutural não deve ser compreendida como um enfraquecimento, pois permitiu a organização flexibilidade para sobreviver em contextos variados, ainda que lhe tenha sido tirado os meios necessários para o planejamento e a execução de grandes ações como o atentado as torres do World Trade Center. Com isso, as operações no Ocidente passaram a ser atividade de pequenas células ou de “lobos solitários” – terroristas que agem sem ligações com grupos extremistas. Como exemplo deste último, temos os atentados na Maratona de Boston no ano de 2013 e contra os editores do periódico francês Charlie Hebdo em 2015. Destacamos estes dois casos pela existência de uma característica presente em ambos: seus autores tiveram como guia para os atentados a Inspire Magazine. Confeccionada pela Al-Malahem Midia, setor midiático da AQPA, a Inspire foi lançada em junho de 2010 e, até o momento em que este 254 texto está sendo escrito, conta com dezessete edições, sendo a mais recente de Agosto de 2017. O periódico é confeccionado em inglês e no formato PDF, o que permite a leitura em vários tipos de aparelhos eletrônicos e sistemas operacionais. Nela são disponibilizados vários assuntos relacionados a jihad [nesse contexto entendida como a guerra santa para defender o Islã [THACKRAH, 2004]], como análises das táticas utilizadas e resultados de ações terroristas, homenagens aos mujahidin mortos, interpretações de clérigos extremistas acerca de tópicos da doutrina islâmica, técnicas para o planejamento e execuções de ataques terroristas no Ocidente entre outros. Todos os textos são assinados por nomes proeminentes da AQPA e/ou por pessoas próximas a AlZawahiri. A publicaçŌo se propõe a expor “as injustiças impostas à comunidade islâmica pelos Estados Unidos e governos aliados”, seja através das guerras que possuem como arena de batalha o Oriente Médio, ou com as “tentativas de destruiçŌo da cultura islâmica e dos ensinamentos de Alá” [Inspire Magazine, n° 08, 2012, p.09. Tradução nossa]. Além disso, também oferecer táticas para o ataque ao Ocidente. Deste modo, o público-alvo da Inspire são os “mulçumanos, porém ocidentais”, como sŌo chamados os recémconvertidos ou os filho de imigrantes islâmicos que nasceram ou residem desde a infância no Ocidente e não possuem conhecimentos aprofundados na religião islâmica. A escolha por destinar-se a pessoas com pouco conhecimento religioso foi explicada no manual para o recrutamento lançado pela Al-Qaeda do Iraque [AQI] em 2009, onde se justificou a predileção por candidatos “nŌo-religiosos” por acreditar que estes se adequarŌo mais fácil ao discurso fundamentalista que lhe será ensinado, uma vez que não sabem como contestá-lo. A Inspire não se propôs a ser um manual para a versão mais conservadora e extremista do Islã, mas apresenta interpretações com esta tônica para justificar a realização de atos terrorista ensinados pela mesma a um público que considera “inexperiente”, “uma vez que ao viverem fora de sua região ancestral precisam abdicar de parte de sua tradição religiosa, para torna-se um „moderado‟” [Inspire Magazine, n° 08, 2012, p.09. Tradução nossa]. Segundo os editores da Inspire, o Ocidente desvia os muçulmanos dos costumes da religião ao impor sua forma de governo e de 255 comportamento. Isto vale tanto para os que estão em países islâmicos como para aqueles que residem na América ou na Europa. No entanto, nŌo sŌo os hábitos “imorais”, como a liberdade sexual e o uso do álcool, que incitaram esses porta-vozes da Al-Qaeda, e sim questões de ordem política, como as guerras no Oriente Médio e a situação dos palestinos. Em tornos destes temas é ressaltada a ideia de que a democracia e os direitos humanos sŌo armas para “ferir a ummah” [comunidade muçulmana]. Assim, constantemente artigos como a “A Message to our muslim brothers in America” [Uma mensagem para nossos irmŌos na América], de Abd Allah Al-Murabit publicado na décima sexta edição da Inspire [2016,p.36-37], ressaltam que episódios como a Invasão da Somália [1993], a Guerra na Líbia [1973], e a crise humanitária provocada pelo embargue econômico americano ao Iraque em 1990 foram resultantes de intervenções norte-americanas e de seus aliados – França, Inglaterra, Austrália, Arábia Saudita etc. – que levantavam o ideal de defesa da liberdade e a democracia. Em outro texto, Ibrahim bin Hassan afirmou: “a „justiça‟ americana manifestou-se por si mesma quando o povo iraquiano sofreu a invasão e foi morto, detido, torturado e teve sua honra violada aos milhares” [Inspire Magazine, n° 16, 2016, p. 42] . Os argumentos para o ódio não ficaram restritos a questões longínquas no tempo ou no espaço em relação público-alvo da Inspire. Os casos de intolerância contra muçulmanos que residem no Ocidente foram citados como a comprovação de as sociedades americanas e europeias não toleraram os islâmicos e seus costumes mesmo que estes sejam “moderados” para se adequar a realidade laica e democrática. Lembremos que nos últimos anos houveram várias manifestações de intolerância contra muçulmanos em todo mundo, expressas em ataques contra mesquitas no Canadá e em Londres em 2017 e nos discursos de políticos ligados a extremadireita, como francesa Marine Le Pen e o presidente norteamericano Donald Trump. Ainda o argumento central da Al-Qaeda para seu embate com o Ocidente seja em maior parte político e econômico, o uso de precedentes históricos longínquos, e anacrônicos, para fundamentar seu discurso de ódio não foi renunciado. Deste modo, as desavenças entre os extremistas seguidores de Al-Zawahiri e os governos ocidentais possui a mesma explicação dos casos de intolerância 256 contra muçulmanos que vivem em sociedades ocidentais: o ódio “natural” entre Ocidente e Oriente, ou cristãos e muçulmanos, provenientes das Cruzadas ocorridas entre os séculos XI e XIV. Nas edições analisadas não foi encontrado um texto especifico que se dedique a fazer uma analise aprofundada acerca da analogia entre as Cruzadas e as ações de contraterrorismo atuais. Essa ideia perpassa os artigos e se manifesta na recorrente utilizaçŌo do termo “cruzado” para nomear políticos e as forças armadas ocidentais. Segundo Bruno Mendelsk de Souza [2012], essa terminologia tem por objetivo explicar uma situação contemporânea através de fatos do passado, como estes fossem atemporais e naturais, ou seja, procura-se criar uma visŌo de que “sempre foi assim” [SOUZA, 2012]. Com isso, o sentido político e de segurança nacional das atividades militares de contenção ao terrorismo islâmico é substituído pela versão de uma guerra religiosa entre Ocidente e Islã, que envolvem inocentes e os separam em muçulmanos contra cristãos e judeus. Tornar o passado atemporal e o ódio naturalizado justifica o processo de desumanização do inimigo, onde se despe a vitima de sua individualidade e de suas qualidades [SILVA, 2004]. Deste modo, enxergar-se apenas o “nós”, os “fiéis” providos das qualidades consideradas humanas que lutam pelo estabelecimento da religião contra a tirania, contra os “outros”, considerados o antônimo do primeiro. Uma vez feita a dicotomia, todos aqueles que não concordam com a ideologia expressa pela Inspire perdem o direito a vida. Pela frequência que este assunto aparece na revista, percebemos que não é uma temática fácil de ser assimilada pelos calouros da Al-Qaeda. O tema apareceu em questões enviadas por leitores, perpassou artigos que não tem como foco este assunto e, já foi debatido por pelo menos dois autores – tendo em vistas as edições analisadas – em três textos separados publicados em edições diferentes. Tanto Anwar Al-Awlaki [1971-2011] na oitava edição, quanto Hammed alTameemi nas décima sexta e na décima sétima edição realizam sua argumentação acerca deste tema com citações da sharia [conjunto de leis islâmicas] e em trechos de textos de pensadores islâmicos medievais. 257 Al-Tameemi [Inspire Magazine, n° 16, 2016,p. 29] afirmou que seus textos eram uma resposta ao aumento no número de operações realizadas por Lone Mujahidin [mesma definiçŌo de “lobos solitários”] e tinham o objetivo de tirar o temor de futuros mujahidin em cometer algum pecado ao alvejar civis durante sua operações. Depois de dividir os “infiéis” em quatro categorias expressas na sharia, al-Tameemi afirma que só aqueles com quem foi selado um acordo de paz não são considerados alvos legítimos, o que não vem a ser o caso dos americanos e europeus do século XXI, que segundo o texto iniciaram “a luta e o ataque contra os muçulmanos”, estimulando uma jihad defensiva [Inspire Magazine, n° 16, 2016,p. 29] Já Anwar Al-Awlaki [1971-2011], em “Targeting the Populations of Countries that are at War with the Muslims” [Mirando as populações de países que estão em guerra com os muçulmanos] afirma que é preciso atacar as sociedades “infiéis” para que elas “despertem” e se voltem contra seu governo, como foi com a Espanha, cuja opinião publica forçou a retirada de tropas do Iraque após os atentados de Madrid em 2004. Se após o ataque persistir o apoio da população ao governo, ela se torna efetivamente culpada e considerada como combatente, pois na lógica apresentada na Inspire toda a nação que concordou com as decisões empregadas pelo seu presidente de algum modo participou ativa e conscientemente do confronto: “Mas todos [os estudiosos islâmicos] concordam que se as mulheres, idosos, agricultores, comerciantes ou escravos que participam da guerra com qualquer esforço contra os muçulmanos, seja com a participação real na luta, contribuição financeira ou parecer, tornam-se alvos legítimos”. [Inspire Magazine, nº8, 2011, p. 22. TraduçŌo nossa]. A partir dos textos publicados na Inspire, percebemos o esforço para tornar qualquer cidadão ocidental um combatente, e assim, justificar sua morte em atentados terroristas. Mesmo mulheres, idosos e crianças que não participam ativamente das decisões políticas acerca dos conflitos internacionais são colocados como alvo porque não há espaço para o individuo, mesmo para aqueles que discordam da política externa de seu país ou que não discriminam muçulmanos por sua nacionalidade ou escolha religiosa. Há apenas a 258 homogeneização de um grupo com características adversas àquelas consideradas desejáveis pela Al-Qaeda e seus simpatizantes e participantes ativos do processo que gerou o mal-estar entre a população islâmica. Se voltarmos na história política recente do Oriente Médio, perceberemos que ela está repleta de intromissões estrangeiras, a começar pelas fronteiras nacionais decididas pelo tratado francobritânico Sykes-Picot de 1916. Com o processo de descolonização da região após a Segunda Guerra Mundial [1939-1945] os novos Estados que surgiram “adotaram, ou foram exortados a adotar, sistemas político derivados dos antigos senhores imperiais, ou daqueles que os haviam conquistado” [HOBSBAWM, 1995], ou seja, o capitalismo norte-americano ou o comunismo soviético. Entretanto, Francisco Carlos Teixeira da Silva [2004] aponta que esses sistemas políticos e projetos de modernização foram falhos em solucionar os problemas sociais e econômicos do Oriente Médio ao mesmo tempo procuraram diluir valores tradicionais das comunidades locais. Todo este processo gerou uma massa de indivíduos que não se sentem beneficiados pela modernização imposta pela globalização ao mesmo tempo em perderam a proteção que a tradição lhes proporcionava [SILVA, 2004, p. 183]. Mesmo aqueles imigraram para o Ocidente e que se mostram mais abertos a se apropriar de elementos do mundo globalizado são excluídos da sociedade globalizada quando são vitimas de xenofobia e intolerância religiosa em países que exaltam justamente as ideias de liberdade e respeito. O sentimento de despertencimento e a desestabilidade política no mundo islâmico que abriram espaço para os fundamentalismos desde a década de 1980 foi canalizado pela Inspire Magazine para ensinar e guiar possíveis Lone Mujahidin que residem no Ocidente a atacar seu próprio país e, com isso, ferir aqueles que financiam “balas e mísseis que penetram os corpos e casas dos oprimidos muçulmanos palestinos” [Inspire Magazine, n° 08, 2011, p.03. Tradução nossa] e realizam ações de ódio contra muçulmanos. Ainda que a Inspire afirme que o ódio entre cristãos [ocidentais] e muçulmanos seja natural, ele é sim ensinado para os intolerantes de ambos os lados através de uma “educaçŌo autoritária” [SILVA, 2004, p.139], violenta, repressiva, agressiva. 259 Referências Katty Cristina Lima Sá é graduada em História pela Universidade Federal de Sergipe e integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente [GET/UFS]. Email: katty@getempo.org Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard [PPGED/UFS] Fontes AL-MALAHEM MIDIA . Inspire Magazine – Targeting Dâr alHarb populations, nº8, 2011. AL-MALAHEM MIDIA. Inspire Magazine – 9/17 Operation [edição especial], nº 16, 2016. BARBER, Victoria. The Evolution of Al Qaeda‟s Global Network and Al Qaeda Core‟s Position Within it: A Network Analysis. In: Perspective of Terrorism, volume 9, nº 06, dezembro de 2016. ISSN 2334-3745, p. 02-35 BERGEN, Peter; HOFFMAN. Bruce; SIMON, Steve. A Al-Qaeda então e agora. In: GREENBERG, Karen [Org]. Al-Qaeda. 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Neoterrorismo: Reflexões e Glossário. Rio de Janeiro: Gramma, 2009, p.11-40. SOUZA, Bruno Mendelsk de Souza. A construção do conceito de inimigo nos discursos de Bin Laden no período de 1996 a 2004, 2012, 283 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal 260 do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais. Porto Alegre, 2012. THACKRAH, John Richard. Dictionary of Terrorism. Nova York: Routledge, 2004. 261 262 REFLEXÕES SOBRE O RELATO DE UM VIAJANTE BRASILEIRO AO EXTREMO ORIENTE NO SÉCULO XIX: DA FRANÇA AO JAPÃO DE FRANCISCO ANTONIO DE ALMEIDA Kelly Yshida “Acaba de publicar-se um precioso volume intitulado Da França ao Japão pelo nosso amigo Dr. Francisco Antonio de Almeida. Compendía esta importante obra a narração de viagem e descripção histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros paizes da Asia. O autor trata d‟estes assumptos com a critica e a observação que pôde exercer, quando, como adido á comissão do governo francez foi ao Japão em 1874 acompanhar as observações da passagem de Venus. A obra é ilustrada, e contém uma minuciosa carta do Imperio do Japão, excelentemente gravada.” (Gazeta de Notícias, 12.01.1879) Assim foi anunciado o livro Da França ao Japão: narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia, publicado em 1879 pela Typographia do Apóstolo e Imperial Lithographia de A. Speltz. Este foi, de acordo com a produção acadêmica, o primeiro relato de viagem de um brasileiro sobre o Japão. O autor, Francisco Antônio de Almeida, foi um astrônomo enviado pelo diretor do Observatório Nacional, Conde de Prados, para estudar na França e que, por solicitação do governo imperial brasileiro, participou da missão francesa ao Japão para observação da passagem de Vênus diante do Sol, em 1874. Na obra foram apresentadas questões como a curiosidade pelo exótico, o interesse científico, os costumes e cenários pelo seu caminho ao oriente, bem como notas sobre o próprio Brasil e a conjuntura internacional. Almeida foi um viajante de curta estadia, diferente de Aluisio Azevedo ou Oliveira Lima, que residiram no país por conta dos seus serviços diplomáticos. Isto implica que o então cientista construiu sua imagem do Japão na sequência das observações que fez durante o percurso do navio. Suas considerações são de uma vivência específica. Provável que não tenha vivido o cotidiano como fez 263 Azevedo, tampouco tenha tido relações afetivas intensas como Wenceslau de Moraes. Não há dúvidas de que quando um viajante, anterior ao século XX, propunha-se a participar de uma jornada intercontinental o cenário era bastante distinto do atual. O longo período em navios, a distribuição da alimentação e as condições de higiene, bem como a relação que se estabelecia com a tripulação e os diversos encontros ocorridos nos locais em que atracavam, tornavam não apenas a chegada, mas a própria viagem capaz de estabelecer relações e produzir diversos materiais. Diante de um mundo em que havia muito a ser conhecido e onde o excêntrico fascinava, os relatos se tornam objetos que permitem questionarmos tanto o local de origem quanto o cenário que se abria aos olhos dos que partiam. Mesmo considerando a potencialidade criativa, há um vínculo entre a obra e o autor que não é, de forma alguma, alheio à sociedade e ao tempo em que vive. O escritor tem seus limites, suas condições, vive determinada realidade, e aquilo que produz não é imune a isto. Imerso neste meio, ele o referencia mesmo sem predisposição em fazê-lo. No caso do relato, entende-se que há a pretensão de escrever sobre o outro, mas há também referências que não precisam ser premeditadas. Neste sentido, é alguém que compreende a realidade, transforma e exprime de acordo com os valores, linguagens e modos de apresentação que lhes eram familiares. O astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão foi o pesquisador que mais se dedicou sobre a trajetória de Almeida, ele demonstra que sua atividade foi de notória importância para a astronomia brasileira. Na descrição do verbete sobre o autor, no seu Dicionário enciclopédico de Astronomia e Aeronáutica, está que era doutor em ciências físicas e matemática e que regeu a cadeira do Curso de Minas da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Além disso, comenta “o escritor e astrônomo francês C. Flammarion, em Etudes eu Lectures sur l’Astronomie, no volume 8, publicado em 1877, exclusivamente dedicado ao histórico das passagens de Vênus, cita Almeida Jr. como colaborador do astrônomo francês J. Janssen nas experiências efetuadas com o revólver fotográfico, em Nagasaki” (MOURÃO, 1987, p.2324). 264 No século XIX, a passagem de Vênus ocorreu duas vezes, 1874 e 1882. Contudo foi na primeira que ocorreu a atuação do astrônomo brasileiro: “During the occasion of the Venus transit in 9 December 1874 in Nagasaki, Japan, a young brazilian astronomer, Francisco de Almeida participates in the French mission operating the French astronomer Jules Janssen‟s (1824-1907) astronomical revolver, considered the predecessor of the movie system” (MOURÃO, 2004, p.154). Anterior a esta é a descrição de Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, presente no Diccionario Bibliographico Brazileiro, publicado ainda durante a vida de Almeida, em 1893, pela Imprensa Nacional. Detalhava: ―Francisco Antonio de Almeida – Filho do coronel Francisco Antonio de Almeida, doutor em sciencias physicas e mathematicas e cavaleiro da ordem da Rosa, regeu interinamente a segunda cadeira do curso de minas da escola polytechnica; viajou pela Europa e, a convite do governo imperial, foi addido à comissão do governo francez encarregada de observar a passagem de Venus no Japão em 1874. Exercia o cargo de diretor do Diario Official e dele foi exonerado, quando o general Deodoro deixou a presidência da Republica; depois, acusado de entrar na conspiração de 10 de abril de 1892, foi preso e recolhido à fortaleza de S. João. Escreveu: - Noticia sobre as minas de ferro de Jacupiranguinha e bases de um projecto de exploração: memoria apresentada a S. Ex. o Sr. Visconde do Rio Branco, diretor da escola polytechnica. Rio de Janeiro, 1878, 40 pags, in-8º - A paralaxe do sol e as passagens de Venus, acompanhadas de uma carta para a passagem do mesmo planeta a 6 de dezembro de 1882, que será visto no Brazil; organizada para o meridiano do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1878. - Da França ao Japão: narração de viagem e descripção histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros paizes da Asia. Rio de Janeiro, 1879, 236 pags. In-4º - Este livro é nitidamente impresso, ilustrado com varias estampas, precedido do retrato do autor e tem no fim a: - Carta do império do Japão, organizada segundo documentos officiaes. Rio de Janeiro, 1878. - A federação e a república. Rio de Janeiro, 1889. (BLAKE, 1970, p. 390)” 265 Estas são as principais descrições sobre o autor. A produção foi comentada e propagandeada em periódicos da época. As imagens foram produzidas pela Imperial Lithographia de A. Speltz, e a parte textual foi impressa pela Typographia do Apostolo. Estes desenhos eram assinados pelo próprio Speltz, em conjunto com Bordallo Pinheiro e Joseph Mill. Os três artistas eram estrangeiros, tendo em vista que na primeira metade do século XIX a atividade gráfica era marcadamente exercida por europeus que, na sequência, formaram os ilustradores nacionais; vale perceber que nestes anos 1870 estes estrangeiros eram atacados por suas críticas à realidade brasileira. As imagens presentes no livro eram um chamariz para a obra, ainda mais por algumas serem coloridas e contarem com assinatura de homens reconhecidos por atuarem nos periódicos ilustrados da época. Segue abaixo a lista das ilustrações com suas temáticas: Título China Aden Aden Ceylão Ceylão Ceylão Ceylão China Japão China Japão Japão Japão Japão Japão Japão Legenda Mandarim civil Jovem criado de Aden Musicos de Aden Lettrado indiano Pollotiqueiro indiano Nogociante do Ceylão Mulher cinguleza Manifesto publicado pelos chins contra os estrangeiros Mulher china Imperantes do Japão Dama chineza e sua criada Principe Japonez Barbeiro japonez Jovens japonezas tocando bandolim Dama japoneza dormindo a sesta Barca de passeio tripulada por mulheres japonezas Jovem dama japoneza 266 Tipo Colorida Monocromática Monocromática Monocromática Monocromática Monocromática Monocromática Monocromática Monocromática Monocromática Colorida Monocromática Monocromática Monocromática Monocromática Colorida Colorida e sua criada Carta do Imperio do Japão org. segundo documentos officiaes Colorida O livro trazia temáticas que já estavam nos debates nacionais, como a possível imigração asiática, mas seu suposto pioneirismo em descrever a experiência de quem presenciou a realidade do Extremo Oriente dava subsídios para novas argumentações. Almeida trouxe em seu livro a trajetória desde Marselha, de cujo porto saiu no dia 19 de agosto de 1874 a bordo do Ava, da francesa Compagnie des messageries maritimes. Neste meio, nos dezoito capítulos que compõem o relato, tratou da passagem por lugares como a Itália, Egito, Aden (Iêmen), Ceylão (Sri Lanka), Malacca (Malásia), Singapura, Conchinchina (Vietnã), Hong-Kong, Macau, China, Japão. A chegada ao destino é apresentada a partir do nono capítulo. O Egito foi a primeira parada fora da Europa. Foi também onde o autor começou a apresentar a relação e a interferência ocidental no oriente. “Infelizmente, quando pelo incessante trabalho do progresso, era de esperar a regeneração das grandes nações da antiguidade, vemos, ao contrario, que o engrandecimento dos paizes novos importa na ruina d‟aquelles, que dispoem de uma seiva mais pobre, e de cuja circulação mais lenta resulta atraso para suas artes e sciencias. Será esta a justa explicação da decadencia dos antigos povos, outr‟ora capazes de grandes commettimentos, como demonstrão seos monumentos, e hoje, apologistas empedernidos das velhas instituições, e intolerantes sectários da escola de Epicuro? De certo, esta causa não se opporia á marcha triumphante da civilização moderna se, em nome do seo mais forte baluarte, a liberdade, ambiciosas nações não excogitassem pérfidas ardilezas para assenhorearem-se, pela força ou astucia, arbítrios supremos de seos destinos.” É marcante a imagem de um “velho mundo” que se opõe a um mundo “novo” e supostamente “civilizado”. Em Da França ao Japão a passagem de Vênus ou os debates científicos não são centrais, embora o autor não deixe de comentar questões da astronomia, 267 fauna, flora e do desenvolvimento tecnológico. Mas são os costumes das comunidades que encontra, bem como os exotismos, que formam os principais comentários de Almeida. Isto faz com que a narrativa seja acessível ao leitor alfabetizado, mas sem conhecimentos específicos; diferente de A paralaxe do sol, outra obra do autor elaborada a partir da viagem. Alguns temas são recorrentes no relato, como as diversas populações, suas estéticas, costumes e atividades. Também importa ao viajante questões como a alimentação, os cenários das cidades, as manifestações artísticas e religiosas, partindo de uma perspectiva que coloca o desenvolvimento europeu como a base de comparação. Além disso, é presente seu debate sobre a Igreja Católica, especialmente quando comenta os movimentos de expansão à China e ao Japão praticados por jesuítas. São pontos importantes não apenas para Almeida, mas também em outros relatos, como o de Aluísio Azevedo e Wenceslau de Moraes. Impressiona o viajante a diversidade étnica em Port Said, a sensualidade das dançarinas do Egito, a expansão da arquitetura europeia em Saigon, a diversidade da população chinesa, a intensidade do comércio em Singapura. Não menos impressionante era a expansão imperialista, especialmente da Inglaterra. No Japão, os viajantes do Ava encontraram uma sociedade adaptando-se a uma nova configuração. Afinal, a partir de 1868 o país estava na Era Meiji, período marcado por um processo de “modernizaçŌo” aos olhos do Ocidente. Deixava de ter uma política caracterizada pelo isolacionismo vigente no Shogunato Tokugawa (1600-1868). A Restauração Meiji trazia uma ruptura política, econômica e social; isto, a partir de um esforço de urbanização, industrialização, porém com reestruturação política, econômica e mudanças de costumes. Francisco Antonio de Almeida tinha uma compreensão positivada do japonês, o que contribuía para a imagem favorável diante da diversidade asiática. Além deste livro, a sua trajetória pública continuou após esta empreitada que lhe garantiu certo reconhecimento social. Posteriormente, lecionou no Curso de Minas da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e, a partir daí, atuou em diversos meios. Foi nomeado tenente coronel e delegado de polícia em Niterói em 1890 e diretor do Diário Official até 1892, quando 268 exonerado por participar de conspiração contra o governo. Colocavase como crítico de Floriano Peixoto e foi apresentado como participante da mobilização em 10 de abril de 1892, motivo pelo qual foi preso na Fortaleza de Villegagnon. Portava-se como republicano, abolicionista e contrário à atuação daquele governo. Falar do Japão nesta obra implica, sem dúvidas, em falar do Brasil. Além disso, compreender estes trâmites é uma busca pelo cenário do século XIX e pelo modo como o relato de viagem foi um meio importante de espraiamento e formação de visões de mundo. Entram nessa narrativa o cotidiano, a política e a consequente surpresa ao verem o Japão se aproximar da cultura Ocidental, pelo seu caráter “modernizador” e, em visões mais críticas, nocivo. As fontes mostram dois países em busca da construção de suas identidades nacionais, suas diferenciações e afirmações no cenário internacional. A obra de Almeida acompanha o processo de aproximação do Brasil durante sua transição política com o Japão também em profunda modificação. Se a própria diferença de Oriente e Ocidente é criada por indivíduos, temos que levar em conta que nessa falta de espontaneidade estão interesses variados. Os viajantes e seus relatos tiveram importante papel na constituição de um imaginário e vocabulário sobre os lugares que passaram a ter “presença no e para o Ocidente” (SAID, 2001, p.31). Com isso já havia ocorrido invasões, estabelecidas rotas comerciais, trânsitos, de modo a elaborar, dominar e torna útil o “outro”. A favor desta ideia, “Todo um arquivo internamente estruturado é construído a partir da literatura que pertence a essas experiências. Disso surge um número restrito de condensações típicas: a viagem, a história, a fábula, o estereótipo, o confronto polêmico. Essas são as lentes pelas quais o Oriente é vivenciado, e elas moldam a linguagem, a percepção e a forma do encontro entre o Leste e o Oeste.” (SAID, 2001, p.96) O novo é reelaborado como conhecido a ser explorado, cada vez mais familiar, mas ainda não totalmente, pois interpretado e apropriado pela cultura do observador. É o que Said considera como uma categoria mediana, cuja efetividade é ser “menos um modo de receber novas informações do que um método de controlar o que parece ser uma ameaça a alguma visŌo estabelecida das coisas” (SAID, 2001, p.97). 269 Aquele que tem contato e escreve também “fala” pelo outro, faz uma distinção geográfica, psicológica, sociológica, considerando que todo conhecimento produzido interfere no meio que se insere. O relato não está alheio às concepções de raça, poder, gênero, cultura, valores nos quais o viajante se constituiu enquanto indivíduo socialmente atuante. Pensar sobre os relatos é uma forma de compreender a “estrutura de dominaçŌo cultural” (SAID, 2001, p.56) ainda relevante, seja em questões mais abrangentes como políticas sociais e acordos internacionais, quanto sobre relações entre indivíduos em um mundo onde os trânsitos são cada vez mais constantes. Referências Kelly Yshida. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes. E-mail: kellyshida@gmail.com ALMEIDA, Francisco Antonio de. Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia. Rio de Janeiro: Typ. Do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz, 1879. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionário Biliographico Brasileiro, Vol. 2: Letras C-Fr. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1970. DEZEM, Rogério. Matizes do Amarelo: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo, Associação Editorial Humanitas, 2005. MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987. MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. The brazilian contribution to the observations of the transit of Venus. In: KURTZ, D. W. (ed.). Transit of Venus: New views of the solar system and galaxy. Proceedings IAU Colloquim. No. 196, Cambridge University Press: Reino Unido, 2004 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 2001. 270 ELEMENTOS DO XINTOÍSMO DE ESTADO NAS ESCOLAS JAPONESAS (1890) Leonardo Henrique Luiz Entre os autores que discutem as transformações na sociedade japonesa após a Restauração Meiji (1868) destaca-se o esforço para compreender como foram construídas as ideias que fundamentaram e legitimaram o novo regime. Nesse sentido, o estudo da "invenção da tradição" apresenta uma possibilidade de análise, no qual as reformas educacionais a partir de 1890 podem ser apontadas como o principal caminho pelo qual o governo Meiji se legitimou. Partimos da constatação de que esse movimento foi envolvido de características nacionalista, sendo intimamente conectado com o papel desempenhado pelo Estado xintoísta como discurso dominante que se estendeu em toda a sociedade japonesa até 1945. Diante desse quadro, buscamos analisar qual como a ideia de "espírito japonês" penetrou na vida cotidiana, principalmente tendo em vista as práticas nacionalistas presentes nas escolas, como a leitura do Edito Imperial de Educação (Kyoiku ni Kansuru Chokugo - 教育ニ関スル勅語), o culto aos retratos imperiais e a reverência ao hino e a bandeira imperial. Esses objetos são abordados como formas de cultura material, pois foram transformados em símbolos que exerciam o papel de catalisadores, fomentando as atitudes nacionalistas no ambiente da vida cotidiana. Tais materiais formavam um conjunto que ao serem analisados expõem as relações sociais que foram construídas a partir da conexão dos súditos com o imperador soberano, evidenciando a ideia constatada por Ruth Benedict (1972) de que o Japão não pode ser imaginado sem a figura do Imperador. Devemos levar em conta que os valores simbólicos atribuídos a esses objetos foram mutáveis no interior da sociedade japonesa ao longo do tempo, além disso, as apropriações dos subgrupos (homens e mulheres; jovens e velhos, etc.) foram diferentes. Esses aspectos fogem da abrangência do presente texto, pois nosso objetivo aqui é discutir as estratégias empregadas pelos políticos a partir da era Meiji e não tanto as táticas formadas pelos indivíduos (CERTEAU, 2014). Dessa forma, buscamos compreender as relações sociais a partir dos objetos da cultura material (Rede, 1996, p. 274) 271 Reformas educacionais a partir de 1890 O Japão permaneceu relativamente isolado até a abertura dos portos em meados do século XIX, esse processo marca o fim da era Tokugawa e do governo dos xoguns. Sucessivamente a sociedade japonesa passa por uma crescente ocidentalização, em meio a qual é restabelecido o poder da Casa Imperial, a questão que segue é a crescente tentativa de legitimar o regime Meiji e a própria nação japonesa. De acordo com Joseph Kitagawa (1990), entre 1868 a 1945 o Japão legitimou a nação (ou a identidade nacional) pelo sistema de crenças imperiais, sendo significativo o papel da educação como alicerce para essas ideias. Conforme aponta Shimazono Susumu (2009), até a Restauração Meiji a relação entre o Estado e os eventos escolares não era clara, mas a partir do contato com os modelos políticos do Ocidente percebe-se a gradativa preocupação em construir a identidade nacional japonesa. É processo de promulgação da Constituição Imperial em 1889 que o sistema de governo e a identidade nacional foram reunidos na ideia de kokutai 国体 (literalmente: corpo nacional) e se tornaram inseparáveis da reverência ao Imperador. De acordo com Susumu (2009), as primeiras iniciativas de eventos escolares que reverenciavam o Imperador são datadas da segunda metade da década de 1880 sendo encontradas de maneira padronizada no "Rules Related to the Rituals of Holidays and Festivals at Elementary Schools (Sh gakk ni okeru shukujitsu taisaijitsu no gishiki ni kansuru kitei 小学校 於け 日 大祭日 儀式 関す 規程)" de 1891 (SUSUMU, 2009, p. 102), no qual a ideia de "'holidays' refers to days when important rituals related to Court Shinto were performed." [“„feriados‟ referem-se aos dias em que importantes rituais foram realizados na Corte Xintoísta” – Tradução nossa]. Esses rituais envolveram o uso dos retratos imperiais, o "Kimigayo 君が代" (hino japonês) e o Edito da Educação. Segundo Susumu (2009, p. 103), todos esses objetos eram recentes para os japoneses, "The imperial image was first presented in 1882; its distribution to the schools in the provinces of the country started from 1888, and most elementary schools had received one by the end of the 1890s" [“A imagem imperial foi apresentada pela primeira vez em 1882; sua distribuição para as escolas nas províncias do país começaram a partir de 1888, e a maioria das escolas primárias receberam uma a 272 partir do fim da década de 1890” – Tradução nossa], o hino “'Kimigayo' was first performed in 1878 and was recognized as the national anthem beginning in 1888" [“„Kimigayo‟ foi realizado pela primeira vez em 1878 e reconhecido como hino nacional em 1888” Tradução nossa] e o Edito foi promulgado em 1890. Um aspecto importante para entender essa sequencia de publicações desse período é a argumentação apresentada por Mark Linciome (1999) sobre o movimento que culminou no Kyoiku Chokugo, para o autor "Having ushered in a hasty program of Westernization during the first decade after the Meiji Restoration including the establishment of Asia's firts system of universal, compulsory schooling, in which Neo-Confucian metaphysics gave way to Western positivism and utilitarianism - the Meiji oligarchs, we are told, were persuaded by conservative elites that the pendulum had swung too far. This prompted a 'conservative counterattack' that culminated in such measures as: promulgation of the Imperial Rescript on Education, a stronger emphasis on moral education, and the reintroduction of Confucian ethics into the curriculum; the introduction of military style physical education (heishiki taiso) to instill discipline and respect for authority; and increased government control over curricula and textbooks" (LINCIOME, 1999, p. 340-341). [“Tendo inaugurado um rápido programa de Ocidentalização durante a primeira década depois da Restauração Meiji – incluindo o estabelecimento do primeiro sistema de educação universal e obrigatória na Ásia, no qual a metafísica Neo-Confuciana deu lugar ao positivismo e ao utilitarismo – as oligarquias Meiji, somos informados, foram persuadidas pela elites conservadoras de que o pêndulo tinha oscilado muito longe. Isso provocou um „contra-ataque conservador‟ que culminou nas seguintes medidas: promulgação do Edito Imperial de Educação, uma maior ênfase em educação moral e a reintrodução da ética Confuciana nos currículos; a introdução do militarismo – no estilo de educação física (heishiki taiso) para incutir disciplina e respeito pela 273 autoridade; e o aumento do controle do governo sobre os currículos e livros didáticos” – Tradução nossa]. É no centro desse contrataque conservador que esses objetos de culto nacionalista foram estabelecidos. Entretanto, é preciso lembrar também que esses programas conservadores não foram aceitos de maneira unânime. Linciome (1999, p. 339), argumenta que o "'international education movement' (kokusai kyoiku undo)" foi um importante evento na história japonesa que surgiu entre 1905-1931, no qual propunha uma alternativa ao projeto conservador, com menos tempo de ensino em torno da lealdade e patriotismo e de um novo nacionalismo. Os defensores desse movimento não pretendiam estabelecer práticas revolucionárias, mas sim reformas, sendo que todos se viam como súditos do Imperador e visavam à manutenção do sistema imperial. Ao analisar esse tipo de movimento podemos ampliar o entendimento de nacionalismo e olhar as disputas de múltiplos programas de nacionalismos brigando por legitimidade. Dentre os membros desse movimento devemos destacar a atuação, por exemplo, de Saionji Kinmochi (1849-1940) que atuou como Ministro da Educação em duas oportunidades (1894-96 e 1898), além de Primeiro Ministro em 1906. De acordo com Linciome (1999, p. 343) Saionji "[...] eventually resigned his ministerial post over a proposal he made to replace the 1890 Imperial Rescript on Education with a new one that would recognize egalitarian principles and promote a morality that accorded greater respect for all peoples [...]" [“... eventualmente renunciou seu cargo de ministro por uma proposta que ele fez para substituir o Edito Imperial de Educação de 1890 por um novo que reconhecia os princípios igualitários e promovia uma moral que concede um maior respeito para todos os povos” – Tradução nossa], a existência de mais de uma proposta oficial de Kyoiku Chokugo é expressivo da preocupação com o papel da educação para os japoneses. A promulgação do Kyoiku Chokugo pelo Imperador Meiji em 1890 representa a tentativa de estimular as crenças xintoístas na vida das pessoas. Entendemos estimular no sentido de enfatizar o papel central do próprio Imperador como figura que liga toda a nação, sendo seguro afirmar que o repertório das crenças locais xintoísta eram comum aos japoneses. Abordamos o xintoísmo a partir da definição proposta por Toshio Kuroda (1981, p. 1) que contesta a 274 visŌo consagrada segundo a qual “Shinto is viewed as the indigenous religion of Japan, continuing in an unbroken line from prehistoric times down to the present” [“O Xintoísmo é visto como a religião indígena do Japão, continuando uma linhagem inquebrável desde a pré-história até o presente” – Tradução nossa]. Para Kuroda, o conceito de “xintoísmo” foi desenvolvido a partir do fragmentado culto aos kamis – – que foram apropriados e transformado em um sistema ritual autônomo: o xintoísmo. Com base nas argumentações apresentadas por Kuroda, Bernhard Scheid e Mark Teeuwen (2002, p. 200) sugerem o emprego do termo xintoísmo apenas a partir do século XIV, mas para os autores, o que importa é abordar o xintoísmo como uma realidade histórica e não como algo que existiu de maneira inquebrável durante toda a história japonesa. Fontes Toda essa relação do xintoísmo com o sistema educacional que é materializado pelos objetos cultuados nas escolas se torna evidente com a análise do conteúdo. Abaixo segue a letra do hino japonês: Letra: 君が代 千代 八千代 細 石 いわお 巌 こけ 苔 生すま Tradução: Que o reinado do Imperador Dure por mil, oito mil gerações Até que os pequenos seixos Se tornem fortes rochas E os musgos venham a cobrí-las O conteúdo é abundante de elementos que compuseram o xintoísmo de Estado no qual o “reinado do Imperador” pode ser lido como a própria soberania do Japão. Como lembra Benedict (1972, p. 34) ao estudar o Japão (a pedido do governo dos Estados Unidos em 1944 como forma de melhor combatê-lo), “O prisioneiro de guerra japonês explicitamente separava a Família Imperial do militarismo e das agressivas políticas 275 de guerra. [...] Entretanto, para eles o Imperador era inseparável do JapŌo. „Um JapŌo sem o Imperador nŌo é JapŌo.‟ „O JapŌo sem o Imperador nŌo pode ser imaginado.‟ „O Imperador japonês é o símbolo do povo japonês, o centro de sua vida religiosa. É um objeto super-religioso.‟ Nem tampouco seria culpado pela derrota, se o Japão perdesse a guerra. „O povo nŌo considera o Imperador responsável pela guerra.‟ „Em caso de derrota o ministério e os líderes militares é que levariam a culpa, e não o Imperador.‟”. Além disso, para Benedict Anderson (2008, p. 143) o nacionalismo japonês foi focado na figura do Imperador mais pelo aspecto ininterrupto da dinastia, “[...] a antiguidade exclusiva da casa imperial (o JapŌo é o único país em que a monarquia foi monopolizada por uma só dinastia ao longo de toda a história documentada) e sua identidade nipônica (à diferença dos Bourbom e dos Habsburgo) simplificavam muito a utilização da figura do imperador para finalidades nacionalistas oficiais.”. Da mesma forma, se analisarmos o Kyoiku Chokugo podemos observar elementos do xintoísmo de Estado (a tradução que segue foi realizada pelo autor a partir da tradução em inglês usada por Masako Shibata (2008, p. 175)): Sabei, Nossos súditos: Nossos Ancestrais Imperiais fundaram Nosso Império em amplas e eternas bases e implantaram profunda e firmemente a virtude; Nossos súditos sempre unidos em lealdade e piedade filial tem, de geração a geração, ilustrado essa beleza. Esta é a característica fundamental da gloria de Nosso Império, e também é a fonte da Nossa educação. Vós, Nossos súditos, sejam filiais para com seus pais, afetuosos com seus irmãos e irmãs; como marido e esposa sejam harmoniosos, e como verdadeiros amigos; Porte-se em modéstia e moderação; estenda sua benevolência para todos; persiga o aprendizado e cultive as artes, e assim, desenvolva as faculdades intelectuais e perfeitos poderes morais; além disso, advogue pelo bem público e promova os interesses em comuns; sempre 276 respeite a Constituição e observe as leis; em caso de emergência, ofereça-se corajosamente ao Estado; e dessa forma, guarde e mantenha a prosperidade do Nosso Trono Imperial coeso com o céu e a terra. Então, você não será apenas Nosso bom e fiel súdito O Caminho até aqui e adiante é certamente o ensino legado por Nossos Ancestrais Imperiais, para ser observado igualmente por seus descendentes e súditos, infalível para todas as eras e verdadeiro para todos os lugares. É Nosso desejo estabelecer no coração com toda reverência, em comum com você. Nossos súditos, que todos possamos alcançar a mesma virtude. 30° dia do 10°mês do 23° ano de Meiji [1890]. [Assinatura Imperial. Selo Imperial.] Assim como no hino, apesar de não ser mencionado explicitamente o xintoísmo, existem vários indícios que apontam para características xintoístas. Devemos abordar essa discussão a partir das propostas realizadas por Ginzburg (1989), no qual esses indícios devem ser analisados dentro de um contexto no qual tais materiais circularam. Dessa forma, podemos perceber a questão da piedade filial, o incentivo à conduta moral, a preocupação de ressaltar os antepassados (partilhados por todos) fundadores do império, entre outras coisas. De acordo com Sharon Nolte (1983), o edito foi publicado como forma de circunscrever o debate em torno dos deveres dos súditos em termos de moral e comportamento social sem precisar das estruturas constitucionais da lei, pois a maneira com que foi publicado “[...] without the countersignature of a minister of state [...]” (NOLTE, 1983, p. 284) indica como a palavra imperial superava em alguns casos a força da lei. Esse elemento moral está nitidamente presente ao longo do edito que deixa claro como a piedade filial para com os pais se estende também para o Imperador, sendo um aspecto essencial de ser passado de geração a geração. De acordo com Nolte, “By this procedure its framers clearly meant to define the Rescript as moral rather than legal or political; doubtless, they failed to envision the full range of its later ideological uses.” (NOLTE, 1983, p. 284) [“Por este procedimento, seus autores pretendiam claramente definir o Edito como moral, em vez de legal ou político; sem dúvida, eles não conseguiram imaginar o alcance de seus usos idióticos posteriores.” – Tradução nossa]. 277 Outros dois pontos importantes de serem destacados no conteúdo do edito sŌo: primeiramente, a que se refere ao trecho “[...] em caso de emergência, ofereça-se corajosamente ao Estado [...]”, devemos salientar que o contexto de 1890 foi marcado pelas tensões entre Japão e China pelo controle da Coreia, nesse sentido, sugerimos que possivelmente a idealização de uma expansão militar pela Ásia já estivesse no horizonte de possibilidades dos lideres Meiji. Em segundo lugar, é interessante notar como, durante todo o edito, os ancestrais que teriam fundado o Império são compartilhados por todos os japoneses, sendo algo “verdadeiro para todos os lugares”, esse é o centro da ideia de kokutai cujo ponto mais alto é a reverência ao Imperador. São todos esses aspectos que formam a noção de espírito japonês, nas palavras do antropólogo Takashi Maeyama (1973, p. 245 – grifo no original) “Todos estes fatores contribuíram para que a identificação de grupo dos japoneses fosse fundamentada na etnicidade de em [sic.] termos de „niponicidade‟ dramatizada no culto ao imperador.”. Considerações finais Conforme sugerido ao longo do texto, essas práticas nacionalistas descritas foram incorporadas nas escolas japonesas, sendo diária a obrigação da recitação do Kyoiku Chokugo. O impacto da repetição dessas atividades foi enorme na sociedade japonesa, pois, como argumentam Hobsbawm e Ranger (2015) é por meio da repetição que as tradições são inventadas. Podemos, inclusive, ampliar esse quadro e sugerir que a constante renovação e adaptação dessas práticas foram incorporadas como habitus (BOURDIEU, 1989, p. 82-83), que é o “[...] produto de uma aquisiçŌo histórica que permite a apropriaçŌo do adquirido histórico.” isto é, o emprego de noções ou atitudes por meio das incorporações historicamente adquiridas. É dessa forma que as práticas xintoístas foram exercidas independentes da religião individual, tendo impactos que podem ser vistos em termos de longa duração. Um exemplo significativo são os imigrantes japoneses no Brasil, que mesmo após o abandono dessas práticas no Japão (durante a ocupaçŌo Aliada o Kyoiku Chokugo foi “revogado”) os imigrantes ainda realizavam essas atividades até as décadas de 1970 e 1980. De acordo com Maeyama (1973, p. 437 – grifos no original) “Nas comunidades japonesas no Brasil, a escola japonesa servia como centro espiritual, emprestando uma atmosfera 278 religiosa pelas práticas do culto ao Imperador, convertendo-se, consequentemente, em um tipo de santuário do ujigami (deidade padroeira) da comunidade. Ela era sagrada. A escola era o santuário, o Imperador a deidade, e a sutra sagrada era a Escritura Imperial sobre Educação. Dessa maneira, o culto ao Imperador se assemelhava estritamente ao culto aos antepassados. Mesmo nos anos de 1950 e 1960, em diversas escolas japonesas ainda se observavam essas mesmas práticas (Koya no Hoshi, n°42, junho de 1957; n°55, agosto de 1959; e muitas outras fontes em publicações, observações e entrevistas.).”. Ao encararmos o fenômeno dessa maneira, as abordagens e desenvolvimentos possíveis são enormes, pois se amplia o horizonte das formas de religiosidade japonesa, podendo sugerir a maneira pela qual o xintoísmo de Estado existiu e sobreviveu tardiamente em terras brasileiras. Referências Leonardo Henrique Luiz: mestrando em História Social pela Universidade Estadual de Londrina. Bolsista Fundação Araucária/CAPES. ANDERSON, Benedict. Comunidade Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada: Padrões da Cultura Japonesa. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Memória e Sociedade, 1989. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. KITAGAWA, Joseph M. 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A rápida modernização, que incluiu a industrialização combinada com um grande êxodo rural, e fluxos de emigração do povo japonês. As mudanças sociais e políticas ocorridas, tiveram grande influência de pensamentos da filosofia e doutrina ocidental, as quais foram utilizadas e absorvidas para uma adaptação da cultura e da sociedade japonesa às normas formas de pensar. Tais transformações, dividiram a nação entre aqueles abertos às novas mudanças, e aqueles que enxergavam que uma parte da identidade japonesa estava sendo perdida, para a construção de algo completamente novo. A mesma visão aplicou-se às transformações culturais do período. Artistas japoneses abraçaram novas formas de escrita e pintura, ainda que estilos tradicionais ainda tivessem grande espaço. A preocupação com a ocidentalização do país começou a surgir com grande intensidade nas duas últimas décadas do século XIX. Esta preocupação fez com que intelectuais japoneses, preocupados com o senso de ordem e desafios políticos, pensassem um novo conceito de tradição. Inazo Nitobe (1862-1933) e Kakuzô Okakura (1862-1913) foram expoentes de como o pensamento ocidental expandiu-se no japão. Na obra de Nitobe (NITOBE, 1905), é visível um discurso de caráter conservador, que expressa um saudosismo da extinta casta samurai, que exerceu grande influência e poder nos regimes feudais. Há uma busca de valores nobres nesta casta de guerreiros e líderes, buscando encontrar nela a evolução do homem, um estado muito próximo de perfeição moral, que, influenciado pelo Darwinismo social, mostraria que a sociedade nipônica estaria em um processo de evolução. Assim, o Samurai exerce um papel de herói e exemplo máximo de vida ética. O uso desta imagem positiva dos samurais, foi utilizado para a criação de uma unidade e identidade nacional com um suposto “respaldo histórico”, que praticamente tornou-se clichê, e atrelado a uma ideia universal de educação e polidez geral do povo japonês. 281 “Os líderes Meiji mesclaram passado e futuro na estratégia de construção da modernidade japonesa. Em torno da concepção do Império do Grande Japão, sedimentaram-se ideologicamente os interesses da nação em formação em conformidade com os outros do Estado. „capitalizaçŌo do passado‟, como diz Lévi-Strauss, no sentido de glorificar a história do povo japonês para fomentar o orgulho nacional. O alicerce da argumentação baseava-se na ideia da uniqueness, exclusividade, da cultura japonesa e a história foi amplamente usada para justificá-la” (SAKURAI, 2008 p. 147) A preocupação com a modernização do Japão levou ao governo Meiji à criação da Escola de Arte Técnica (Kobu Bijutsu Gakko) em 1876 como a primeira escola oficial para o estudo do Y ga (pinturas de estilo ocidental), onde consultores estrangeiros foram contratados para o ensino das técnicas de pinturas ocidentais. De acordo com a sua constituiçŌo, sua proposta era “Trazer as técnicas da arte ocidental para a arte japonesa como um auxílio para os artistas japoneses”; sua missŌo era ensinar “Aspectos teóricos e técnicos da arte moderna ocidental para complementar as lacunas da arte japonesa e construir uma escola no mesmo nível das melhores academias de arte do ocidente estudando correntes do realismo”. Nas últimas décadas do século XIX porém, a hostilidade contra o Y ga o crescimento do movimento Nihonga (pinturas do estilo japonês), liderado por Okakura Tenshin, que procurava estabelecer uma reaçŌo nacionalista ao Y ga, buscando uma arte feita em conformidade com as convenções artísticas, técnicas e materiais japoneses, causou o declínio temporário do Yoga, e Kobu Bijutsu Gakko foi obrigada a fechar em 1883. “Na década de 1880, a mudança radical na política também alterou o equilíbrio de poder Entre yoga e nihonga. O Yoga tornou-se cada vez mais duvidado e, após 1882. foi excluído dos pavilhões japoneses em exposições internacionais. Além disso, a grande popularidade do „tradicional‟ O artesanato japonês (kogei) que começou com os burocratas liderados pela exposição de Viena de 1873 Para enfatizar artesanato e pintura em tinta e pigmentos opacos sobre ioga. Enquanto yoga foi exibida Em feiras nacionais 282 patrocinadas pelo Ministério da Indústria e da Agricultura, essas As exposições de artes industriais foram concebidas para promover a indústria japonesa e tratadas Pintura e artesanato como outros produtos industriais, não como artefatos culturais. Em 1882 o governo Patrocinou sua primeira exposição nacional de pintura, mas foi intencionalmente omitido, e a nihonga promovida. Somente em 1900, na exposição de Paris, ioga foi totalmente introduzida em Exposições internacionais. Em 1887, a recém-fundada Escola de Belas Artes de Tóquio (onde Okakura serviu como diretor) inicialmente se recusou a incluir ioga em seu currículo. Embora o estilo ocidental A pintura persistiu em estúdios privados, o estabelecimento oficial de arte começou a reconhecer o movimento apenas quando o artista de yoga Kuroda Seiki voltou da França em 1893. Em 1894, a Escola de Belas Artes de Tóquio começou a ensinar yoga; Dois anos depois, uma seção completa dedicada à pintura ao estilo ocidental foi criada, com Kuroda responsável.” (WEISENFIELD, 2002 p. 14) Com o fim da primeira guerra mundial, na breve era Taishô (19121926), o cenário ideológico e artístico nipônico sofre uma mudança. Aos poucos artistas passaram a adotar práticas tanto características de Yoga, como sombra e clareamento, e Nihonga. Aos poucos tornou-se muito difícil realizar uma separação concreta entre ambas. As ambições de um projeto imperialista na Ásia proporcionaram ao Japão uma recuperação econômica além de desenvolver uma indústria bélica forte. Contudo, a mesma expansão gerou conflitos com as nações vizinhas, e no jogo político, uma aliança entre os partidos nacionais e zaibatsus, entrega o poder aos militares (com grande apoio das massas) com a promessa de uma guerra expansionista. Pouco da prosperidade nacional no entanto, chegou às classes trabalhadoras. A inflação dos tempos de guerra reduziu ainda mais os salários, que, combinados com uma grande massa urbana vivendo nessas condições, levou a um descontentamento geral. Em resposta, em um período de conflito para os intelectuais japoneses, a resposta foi o início de uma mentalidade de esquerda no cenário nipônico. Em 1922 é criado o Nihon Kyosanto (partido comunista japonês), que é declarado ilegal pela lei de preservação da paz (Hoan Jorei) que buscava barrar movimentos de esquerda e democráticos em geral. 283 Em 1923, Takamizawa Michinao, membro de um grupo artístico chamado de Mavo, atirou pedras pelo teto de vidro de uma exibição de arte, com obras escolhidas pela Nika-kai (A segunda sociedade), uma organização de pinturas de estilo ocidentais, que eram oposição aos tradicionalistas da competição anual de artes do governo, chamada Bunten. O ato, era em resposta à rejeição da Nika-kai em aceitar as obras de arte dos artistas Mavo, criticando a tendência conservadora da organização. O movimento Mavo, começou em 1923 como um renascimento da associação de arte futurista (que havia sido abandonada) e estava em conflito com a mídia e com a lei de pacificação social. Influenciados por movimentos europeus, e também com a vinda dos artistas expoentes do Futurismo russo David Burliuk (1882-1967) and Victor Palmov (1888-1929). Tomoyoshi Murayama (1901-77), a maior figura do movimento e líder do grupo, também trouxe consigo a influência adquirida no período que morou em Berlim de 1921 até 1923. Onde estudou arte e teatro na universidade de Humboldt em Berlim. No seu retorno ao Japão, introduziu elementos dos elementos de vanguarda europeus na arte japonesa, e deu atenção especial aos teatros, onde ajudou na construção de teatros, e no movimento de arte proletária da década de 20. Também criou panfletos de teatro e escreveu peças baseadas em Robin Hood e Dom Quixote com inspiração Marxista. “Os artistas Mavo nŌo queriam limitar o alcance da arte; Eles procuraram Quebrar as fronteiras entre a arte e a vida cotidiana. Como Okada escreveu no Yomiuri Shinbun: „a arte está agora separada da suposta „arte‟ e é algo com significado intrínseco à nossa vida cotidiana. Em outras palavras, exige mais prática conteúdo.‟” (WEISENFIELD, 1996 p. 66) Para este fim, os artistas Mavo utilizaram-se de materiais que envolviam desde objetos encontrados, objetos produzidos pela indústria, e reproduções de imagens usadas em combinações com pintura ou impressões para evocar um senso de vida cotidiana (seikatsu no kanjo). Murayama por meio da sua teoria chamada Construtivismo consciente, exposta no seu artigo de 1923 “Sugiyuku hyogenha” (Expressionismo expirando), insistiu na negaçŌo dos modos tradicionais de representação, sugerindo a expressão da vida moderna por meio de formas abstratas ou não objetivas. Seu 284 construtivismo, era baseado puramente em justaposição de objetos combinados com camadas e colagens, em detrimento à representação mimética. Sua teoria tornou-se um princípio do próprio movimento, ainda que passível de críticas por alguns dos membros. O grande terremoto de Kanto em 1924, trouxe para o Mavo uma vertente proletária e socialista (WEISENFIELD,2012), que incluia o design e construção de áreas exteriores de prédios. “Como muitos outros artistas na época, os membros do Mavo foram levados para um movimento para a reconstrução da cidade, resumido pelo grito „Do atelier para as ruas‟ (atorie kara gairo e). Um repórter observou que „o primeiro passo para a reconstruçŌo era aliviar o espírito danificado [da cidade e seu povo] através da arte‟. Para os artistas Mavo, as condições pós-terremoto simbolizavam a próxima revolução social: a A limpeza de estruturas danificadas ofereceu uma oportunidade sem precedentes para reconstruir a capital fisicamente e o país de forma ideológica.” (WEISENFIELD, 2002 p.80) Os elementos da esquerda mavo entrariam em choque porém, no que viria a ser a chamado de debate ana-boru (anarquista e bolchevique), acende um debate entre o marxismo socialista e o anarquismo nipônico, que polarizou-se ainda mais com a criação do partido comunista japonês em 1922. As discussões acerca da negação do individualismo do socialismo soviético, seriam alvo de críticas por parte dos anarquistas, ainda que não houvesse um rompimento imediato entre os dois setores. “Uma das diferenças fundamentais entre as facções anarquistas e marxistas, tal como articulada nos debates públicos, girava em torno dos anarquistas japoneses; A suspeita e antipatia em relação ao estado proletário cada vez mais autoritário e opressivo recentemente estabelecido na Rússia soviética. Os anarquistas japoneses sentiram que o marxismo era apenas um novo modo de autoritarismo, que acabaria por oprimir o indivíduo. Eles ainda apoiam a ação direta, o individualismo irrestrito, o antiestatismo e uma postura geralmente anti-social. Essas preocupações 285 também caracterizaram a (WEISENFIELD, 2002 p. 161) literatura anarquista.” Murayama, apesar de ainda estar mais alinhado ao anarquismo, considerou e foi influenciado pela tendência marxista do momento, influenciando no seu questionamento do método e eficácia dos elementos expressionistas e destrutivos do seu trabalho. A influência do construtivismo russo ainda afetou a sua visão sobre os efeitos da tecnologia e as bonécias das máquinas. O seu construtivismo não era apenas uma forma de arte revolucionária, mas uma arte socialista para a construção de uma nova sociedade. Enquanto o resto do grupo Mavo continuou com as táticas anarquistas, mesmo após o seu fim, Murayama continuou com uma visão orientada ao socialismo e proletária. Apesar do imaginário de esquerda do movimento, a ideia da utilização de elementos artísticos na propaganda e design gráfico não eram completamente antagônicas à visão artística e política do movimento (WEISENFIELD, 2009). Esta esfera de cultura de massas, na concepção dos mavoístas ofereciam grandes oportunidades e modos libertadores de expressão. A arte comercial (shogyo bijutsu) apresentavam uma visão progressista e eram simpáticas à estética e ao expressionismo Mavo. Em especial, a gigante empresa de cosméticos Shiseido, originária de Ginza, era pioneira em uma nova estética do design gráfico nipônico, construindo um próprio ideal cosmopolita artístico de beleza e sofisticação. Fukuhara Shinzo (1883-1944), o segundo presidente da companhia, foi o idealizador desta nova estética após retornar dos seus estudos no exterior em 1913, onde transitou pela Europa e Estados Unidos, familiarizando-se com o tipo de propagandas e designs. “Um estudo da interaçŌo dos artistas Mavo com novas formas de cultura de consumo revela a relação mutuamente influente e muitas vezes recíproca entre a arte (bijutru) e a chamada cultura de massa (taishu bunka) no Japão moderno. O vínculo entre a arte e a indústria cultural era bastante evidente nas afiliações complementares da produção de arte, exposição de arte, comércio e entretenimento que emergiram no século XVII. Exposições públicas como misemono (freak shows e entretenimento de rua), kaicho (exposições do templo exibindo imagens e 286 tesouros religiosos), e shogakai ou shoga tenrankaji (exposições de caligrafia e pintura) foram consolidadas, seu patrocínio em grande parte assumido pelo Estado ou local Governo e substituído por feiras domésticas e internacionais (hakurankai). As exposições oficiais de arco (kanten), como o Bunten, foram complementares deste fenômeno, com ênfase na era moderna ao cultivar uma sensibilidade artística refinada no público como meio de afirmar a civilização japonesa. Estes locais culturais ficaram intimamente ligados à ideologia da construção da naçŌo.” (WEISENFIELD 2002, p. 157) A própria revista Mavo, era de certa forma um esforço coletivo do grupo para o uso da mídia para a arte. Ao mesmo tempo, muitos dos artistas, incluindo Murayama, frequentemente promoviam a si mesmos, incluindo seus trabalhos em materiais de grande circulação. O próprio design do logo foi criado com intenções de circulação, assim como toda a tipografia e escolhas estéticas dos materiais e manifestos. Os mavoístas consideravam a cultura de massas como algo separado do Estado. Ela representaria o sentido prático da arte, e integrada à vida cotidiana. No fim, as tensões entre a esquerda radical e a cultura burguesa permaneceram não resolvidas nos trabalhos do movimento, ao passo que os artistas tanto manipulavam quanto eram manipulados pela cultura de massas. Referências Leonardo Souza Alves é graduando em história pela Unesp. Email: souza_leo@outlook.com NITOBE, Inazo. Bushido: The Soul of Japan. Londres: G.P Putnam‟s Sons, 1905 WEISENFIELD, Gennifer. (1996). Mavo's Conscious Constructivism: Art, Individualism, and Daily Life in Interwar Japan. Art Journal, 55(3), 64-73. ________ MAVO: Japanese Artists and the Avant-Garde, 1905-1931. University of California Press (2002) _________.Imaging Disaster: Tokyo and the Visual Culture of Japan’s Great Earthquake of 1923. Berkeley, University of California Press, 2012. 287 ____________Publicity and Propaganda in 1930s Japan: Modernism as Method. Design Issues 25.4 (2009): 13-28 SAKURAI, Célia. Os Japoneses, São Paulo: Contexto, 2008 288 O CÓDIGO DE HAMURABI: O IMPERADOR, SUA OBRA E O DIVÓRCIO NA ANTIGUIDADE Lucimara Andrade da Silva Luana Aparecida da Silva Introdução Este artigo tem por objetivo apresentar uma contextualização referente ao código de Hamurabi, conjunto de leis escritas na Mesopotâmia, provavelmente pelo rei Hamurabi, durante o império babilônico. Discutiremos sobre a dinastia babilônica, pensando na constituição das leis, baseadas na de Talião, talhadas no monumento histórico monolítico, em rocha de diorito com escrita cuneiforme, que buscavam unificar o reino por meio do código de leis comuns com regras e punições. Ressaltaremos também, o caráter literário do código, os tramites para a legalização da união, o divórcio, as leis referentes as esposas de cativos, aspectos sobre o adultério, a esterilidade e a poligamia. Analisaremos essas questões, através da revisão bibliográfica, discutindo o caráter literário da obra proposto por Bouzon (2003), abarcando também as leis de fidelidade, poligamia e os outros aspectos por meio dos estudos Azevedo (1996). Utilizaremos como base o estudo sobre o divórcio na antiguidade Correia (2014). Através da bibliografia citada, pretendemos analisar o contexto histórico em torno das leis de Hamurabi e da figura imperador. “Os principais temas do Código de Hamurabi são o direito penal, o direito da família, a regulamentação profissional, comercial, agrícola e administrativa” (SILVA; ALVARENGA, 2017 p.1). Buscando, descrever e analisar essa memória, tendo em vista que são poucas informações que o historiador consegue recuperar e formar uma narrativa a partir da análise de documento escritos e dos vestígios arqueológicos, estudados pela epigrafia, que analisa escritas em materiais pesados. É em razão da importância do código de leis, como parte da cultura material e também como um registro da civilização e do cotidiano nesse período da dinastia. Aliás, o código detém valor histórico “pelo fato de ter se tornado a fonte jurídica na qual se basearam as leis de praticamente todos os povos semitas da Antiguidade, incluindo os assírios, os caldeus e os próprios hebreus”. (SILVA; ALVARENGA, 2017 p.1) O estudo da história antiga da civilização do oriente médio, é essencial, pois mostra a existência de leis antigas que já visavam questões como o divórcio, que em países como o Brasil demoraram a 289 serem legalizadas, o divórcio somente foi instituído com a emenda constitucional nº 9 em 1977. Ou mesmo em parte do leste asiático que consideram ainda o casamento como união sagrada indissolúvel, cujo divórcio é muito discutido, devido a diversidade cultural, sendo assim as leis de separação ficam complicadas. Aliás, mesmo tendo sido “formulado acerca de 4000 anos, apresenta algumas tentativas iniciais de garantia dos direitos humanos” (BOUZON, 1993, p.36). Analisando o código percebemos segundo Pinsky (2005 apud TUPICH, 2009, p. 19), “a existência de três classes distintas: ricos, povo e escravos, em relação às quais delimita os privilégios, direitos e obrigações”. Dessa forma, “as punições e direitos criados por essa lei, levavam em consideração a posição social dos que estavam envolvidos em cada uma das situações descritas pelo texto” (BOUZON, 1993, p.36). Nesse sentido, os ricos pagavam impostos mais altos e se fossem cometidos crimes contra eles, a punição seria severa, sendo assim, as punições não eram iguais em crimes entre escravos e de escravos contra senhores. Estudar o código de Hamurabi e a dinastia babilônica, nos faz refletir sobre o presente, a história do homem possibilita entender como funcionava a legislação e o cotidiano de civilizações antigas, sendo passiveis de estudo através da problematização com o auxílio de fontes materiais e imateriais sobre o período. Hamurabi Nascido em Babel, sexto rei da dinastia babilônica dos Amoritas, Hamurabi, sucessor e filho de Sin-Muballit, chegou ao reino de Babel em 1792 após a morte de seu pai. Assumiu o trono em meio a um processo de expansão territorial, sendo peça fundamental para o grande crescimento que culminaria na instauração do primeiro Império Babilônico. Uniu amplamente o mundo mesopotâmico, com os semitas e os sumérios, no que formou uma unidade política e civil que levou ao auge de sua grandeza, não só pela força das armas, mas também pela administração pacificadora, conquistou dessa forma, com acordos e guerras os territórios da Mesopotâmia. Com notável habilidade política Hamurabi preferiu, inicialmente, governar à base de alianças e pactos com os grandes reis do período, tais como, Rimsin de Larsa, Samsi-Adad I da Assíria e, depois da morte deste, também com o rei de Mari, que lhe permitiu não só assegurar uma relação de amizade com a Assíria como também coexistir com Larsa e Eshnunna. Tendo iniciado seu domínio pelo Sul ao conquistar Ur e Isin, até então regidos por Larsa, conseguiu, quatro décadas depois, 290 ter sob seu comando também Suméria, Acádia, Larsa, Eshnunna e assim a Mesopotâmia central e meridional. Seu nome é associado na história ao código de leis, pois este consolidou a tradição jurídica, estendendo os direitos e leis a todos os súditos do reino. Contudo, “nŌo foi apenas um grande conquistador, um estrategista excelente, um rei poderoso. Ele foi, antes de tudo, um exímio administrador” (BOUZON, 2003, p. 20). Nos territórios conquistados, “preocupouse, sempre, em reconstruir as cidades vencidas e em reedificar e ornamentar ricamente os templos dos deuses locais” para que assim conseguisse também ganhar a confiança e simpatia daqueles viventes (BOUZON, 2003, p. 20). Seu reinado durou 43 anos, ascendeu a Babilônia como centro de império efêmero, mas extenso. Hamurabi era igualmente ligado à justiça e tratou de estabelecer o direito e a ordem como fundamentos para a promoção da unidade territorial do império. Ao criar novas leis e compila-las as que já existiam, este imperador deu origem ao que hoje conhecemos como o Código de Hamurabi, um conjunto de leis que regiam a vida cotidiana no império. O Código de Hamurabi Baseado na lei do taliŌo, o famoso “olho por olho, dente por dente”, o código foi escrito numa estela negra de diorito em três alfabetos distintos, entre eles o arcádico, por volta de 1700 a.c. Tem mais de dois metros de altura, cerca de um metro e meio de circunferência na parte de cima e um metro e noventa centímetros na base. No alto da estela é possível ver a imagem de Hamurabi diante do deus do sol, Shamash, deus da justiça. Foi encontrada durante uma expedição francesa no ano de 1901, comandada por Jacques de Morgan, nas ruinas em Susa na região da antiga Mesopotâmia. É constituída de 46 colunas com 282 leis e 3600 linhas. Sendo que foi transportada para o museu do Louvre em Paris. Cópias do código, feitas pelos escribas, foram espalhadas por várias partes do império a pedido de Hamurabi para que todos vivessem sob as mesmas leis. Escrito em caracteres cuneiformes, traz punições a serem sentenciadas em situações comuns da vida cotidiana em que as regras não forem cumpridas. Segundo o historiador Luiz Marques, segue o princípio da lei do taliŌo para garantir que “a pena nŌo seria uma vingança desmedida, mas proporcional à ofensa cometida pelo criminoso” (MARQUES, 2009, nº50). De acordo com Bouzon (2003), os documentos do tempo de Hamurabi deixam claro como ele se preocupava de fato com a justiça e usava suas sentenças para 291 assegurar o direito de seus concidadãos. As leis registradas na estela são como sentenças proferidas pelo próprio Hamurabi e foram organizadas de acordo com as semelhanças entre si, dos temas tratados. Dessa forma, acabam sendo em sua maior parte de interesse do governo. Entre as leis estabelecidas no código são tratadas também regras de vida e propriedade, questões que abordam o falso testemunho, roubo, estupro, família, escravos e divórcio. O “Código de Hamurabi” pode ser dividido da seguinte forma:  Do 1º ao 5º parágrafo, determina as penas a ser impostas em alguns delitos praticados durante um processo judicial;  Do 6º ao 126º parágrafo, regulamenta o direito patrimonial;  Do 127º ao 195º parágrafo, regulamenta o direito de família, filiação e heranças;  Do 196º ao 214º parágrafo, determina as penas por lesões corporais;  Do 215º ao 223º parágrafo, regulamenta a atuação dos médicos;  Do 224º ao 225 parágrafo, regulamenta a atuação dos veterinários;  Do 226º ao 227º parágrafo, regulamenta a atuação dos barbeiros;  Do 228º ao 233º parágrafo, regulamenta a atuação dos pedreiros;  Do 234º ao 240º parágrafo, regulamenta a atuação dos barqueiros;  Do 241º ao 277º parágrafo, regulamenta preços e salários;  Do 278º ao 282º parágrafo, contêm leis adicionais sobre a propriedade de escravos; No “Código de Hamurabi” a sociedade babilônica é dividida em três camadas. A camada de homens livres, ou awilum, como os funcionários, escribas, sacerdotes, comerciantes, trabalhadores rurais, militares até governantes influentes. Havia a camada escrava, ou wardum, composta pelos prisioneiros de guerra. E uma terceira camada, conhecida pelo termo sumério MAS.EN.KAK, para indicar uma classe profissional específica, considerada como intermediária entre os homens livres e os escravos. 292 Caráter Literário A obra o código de Hamurabi é um gênero literário encontrado no Antigo Oriente Próximo, cogita-se que tenha sido escrito nos últimos anos de seu reinado, pois as conquistas são descritas no prólogo e o código é finalizado no epílogo e destinado aos futuros reis. De acordo com Finkelstein (1961, p.19): “O propósito do código nŌo era legislativo. Era o representante de um gênero literário distinto, a saber, a apologia real, e sua principal intenção era exibi-la ao público, à posteridade, a futuros reis e, acima de tudo, prova do mandato que foi decretado divinamente e realizado pelo rei”. O primeiro editor da estela V. Scheil nomeou código, considerando o mesmo como leis, seu valor moral é inestimável, mesmo que não seja um livro de leis valido e que todo juiz deva seguir ao decidir sentenças. Embora seja extenso é sem dúvida o código de leis mais conhecido, escrito na língua arcádica, sendo aceito como melhor texto de leis do antigo oriente já transmitido. Segundo F.P. Klaus (VIII, p. 292), “o texto contido na estela do Código de Hamurabi deve ser considerado uma obra literária da escola babilônica e não um código de leis como é conhecido”. Sendo assim, o código é uma literatura particular caracterizada como tratado cientifico: “Por ter o estilo casuístico, de presságios no qual ambos os textos sŌo situados, era um estilo científico por excelência – transferindo o caso concreto individual para a esfera da regra impessoal” (BOTTERO, 1982 apud BOUZON, 2000, p. 16). Era uma atividade cientifica desenvolvida pelos escribas nas escolas, trabalhos de literatura teórica que ilustravam a sabedoria. Segundo Bouzon para Kraus F.R: “SŌo exercícios da escola de escribas, cuja finalidade é aprender os ofícios da língua. Já E R. Westbrook as classifica como coleções de decisões judiciais anteriores que deveriam servir de base para novas e complicadas situações” (2000, p.17). Através da análise da estela percebemos um sistema que inclui o código de leis na categoria literária, a tríade: prólogo, corpo das leis e epílogo. No prólogo do “Código de Hamurabi” este se declara como 293 escolhido dos deuses "para fazer surgir justiça na terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco, para, como o sol, levantar-se sobre os cabeças-pretas e iluminar o país” (BOUZON, 2003, p. 26). No epílogo é feito um relato sobre suas ações para promover a justiça e o bem-estar da população e ainda pede bênçãos àqueles que obedecerem às leis registradas no código e maldições aos que não as seguissem. Para Bouzon (2000), um dos objetivos da obra literária é enaltecer o rei e no prólogo é possível perceber uma questão não só legal, mas moral empenhado por ele quando este deixa claro que: “O homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante de minha estátua de rei da justiça, leia atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha estela escrita resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coraçŌo se dilate” (BOUZON, 2003, p. 28). Dessa forma, o “código” nŌo era só uma base legal à qual os juízes deviam recorrer para resolver pendências judiciais, mas também era um alicerce moral para o Império e foi muito estudado pelos escribas. O Casamento, o divórcio e o ―Código de Hamurabi‖ Na Babilônia, de acordo com o parágrafo 128 do “Código de Hamurabi”, para se constituir um matrimônio era necessária a formalidade instituída por um contrato escrito. Segundo Bouzon (2003), a família era patriarcal, a poligamia não era proibida, mas o casamento era geralmente monogâmico, no caso de se ter várias mulheres, apenas a primeira era considerada a principal e seus filhos os herdeiros legítimos. O pai do noivo era quem escolhia a esposa do filho e pagava o dote ou terhatum, estipulado pelo pai da noiva em prata, o qual ficava sob a administração do marido, sendo que, em caso de morte era repassado aos filhos se houvesse ou retornava a sua família. Depois de pago era redigido o contrato matrimonial validando o casamento. Porém o marido podia repudiar sua mulher, isso consta no parágrafo 138, “se um awilum quer abandonar sua primeira esposa, que não lhe gerou filhos, dar-lhe-á prata correspondente a seu dote e então poderá abandoná-la". De acordo com Bouzon (2003), a escrava que gerava filhos no lugar da esposa principal, estéril ou impossibilitada pela lei de procriar, gozava de uma situação privilegiada e, caso não conseguisse gerar filhos, seria 294 vendida pela patroa, como consta nos parágrafos 146 e 147. Em caso de abandono de sacerdotisas como consta no parágrafo 137, além da devolução do dote, a mulher tinha direito à metade do campo, do pomar e dos bens móveis e poderá se casar com o marido do seu coração. Com relação aos cativos, tendo na casa do prisioneiro comida suficiente, sua mulher não poderia ir buscar alimento na casa de outro homem. Uma vez que se ausentasse o dever de coexistência o casamento podia ser rompido sem que houvesse culpa por parte do prisioneiro inadimplente. Verifica-se assim que na babilônia já existia noção do rompimento matrimonial, pela interrupção da vida em comum. Sobre o adultério, este sempre foi razão para diversas e severas punições impostas à esposa, no entanto, o marido, por instrumentos legais, poderia agora escolher perdoá-la. “Se a esposa de alguém for surpreendida em flagrante com outro homem, ambos devem ser amarrados e jogados dentro d'água”, mas o marido pode perdoar a sua esposa, assim como o rei perdoa a seus escravos. (Código parágrafo 129). Já no parágrafo 143 do código, sugere a pena de morte para a mulher que desonrasse o casamento. E se a esposa adquirir repulsa ou aversão ao marido, está pode voltar para a casa do pai e levar consigo seus bens. "Se uma mulher tomou aversão a seu esposo e disse-lhe: 'tu não terás relações comigo”, seu caso será examinado em seu distrito. Se ela se guarda e não tem falta e o seu marido é um boêmio e a despreza muito, essa mulher não tem culpa, ela tomará seu dote e irá para a casa do seu pai". Ocorre também a lei referente à recusa de habitação conjugal, expressa no parágrafo 149, em que a mulher pode se divorciar sem punição e pode levar consigo seu dinheiro. "Se essa mulher não concordou em morar na casa de seu marido, ele lhe restituirá, integralmente, o dote que ela trouxe da casa de seu pai e ela irá embora". A morte era uma das grandes causas da dissolução dos casamentos na época, o direito concedido à mulher de se casar novamente foi um grande passo dado em favor da mulher. Sendo assim, podemos afirmar que no código de Hamurabi o divórcio tinha como requisito a comprovação judicial de determinados fatos para que entrasse em vigor como, por exemplo, apropriação indevida de bens, aversão pelo marido e o desprezo pela mulher. 295 Considerações finais Concluímos que, o código de lei serviu de alicerce as leis dos povos da antiguidade. Representando uma transformação nos costumes e tradições dos povos da Mesopotâmia, principalmente por ser baseado na lei bíblica de talião, que demonstra para alguns estudiosos, preocupações com direitos humanos e pode ser interpretado como um progresso social no antigo oriente, pois restringia a vingança exagerada. Além disso, a codificação buscava a justiça, a prevenção da opressão e regulamentava os privilégios, direitos, deveres e as punições. Havia também a pena de morte "lex talionis", podendo ser na fogueira, forca, afogamento ou empalação. O princípio de talião, atingia não só o transgressor, mas também os filhos, as sentenças do código ficavam entre os excessos de violência nas punições físicas das leis da Mesopotâmia. Referências Lucimara Andrade da Silva, Graduanda de licenciatura em História na Universidade Estadual de Londrina (UEL), bolsista de iniciação científica Fundação Araucária. Luana Aparecida da Silva, Graduada em Letras Vernáculas e Clássicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). BOUZON, Emanuel. In O Código de Hamurabi. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003. BOUZON, Emanuel. Lei, ciência e ideologia na composição dos «códigos» legais cuneiformes. Instituto Oriental da Universidade de Lisboa. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10316.2/24210 >. Acesso em: 31 ago. 2017. Código de Hamurabi. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/zip/hamurabi.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2014. Código de Hammurabi, Família e Incesto na Babilônia Antiga. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.pucrio.br/10797/10797_3.PDF. Acesso em: 30 ago. 2017. MACHADO, Antônio Claudio da Costa. O casamento e o dever de coabitação no código de Hamurabi, no Pentateuco e na lei de Manu. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67326/69936 >. Acesso em: 02 nov. 2014. MARQUES, Luiz. A solução das disputas. Revista História Viva, nº 50. 296 SILVA, Claudio Herbert Nina; ALVARENGA, Lenny Francis Campos. A importância Histórica e as principais características dos códigos de Hamurabi e de Manu. REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA: Universidade de Rio Verde. Ano 6, Nº 8, 2017. TUPICH, Barbosa, Michele. Do antigo Oriente Próximo a Roma: uma abordagem da antiguidade. Guarapuava: Ed. Unicentro, 2009. 297 298 O QUANTO DE ÁRABE HÁ EM NÓS? Luciano dos Santos Ferreira Com os recentes acontecimentos envolvendo terrorismos ao redor do mundo, a demonização ao islã e ao povo portador da palavra de Allah, os atentados radicais da Al-Qaeda e do Estado Islâmico formaram uma imagem deturpada do muçulmano e do árabe, que ora é mostrado como sofrido e simples, por causa das suas grandes áreas desérticas, dos beduínos, ainda nômades que insistem na vida no deserto; ora como reacionários, conservadores, além de fonte de atos cruéis e sanguinários. Mas será que o quê a imprensa ocidental, principalmente a americana, nos passa é a verdade? Ou devemos buscar além da mídia convencional e formar nossa própria opinião sobre os conflitos que envolvem árabes, judeus, palestinos, americanos e europeus? Ou então continuemos a ouvir a história dos vencedores. Na verdade, há muita dificuldade em aceitar o comportamento dos árabes islâmicos por parte do ocidente, visto que o imperialismo praticado pelas nações europeias e os norte americanos gerou e geram descontentamentos que não são expostos quando as consequências aparecem. Não é o caso de legitimar a violência de quaisquer das partes, mas se fizer um exame de retrospectiva, perceberá como se deram as explorações e legitimações propostas pelos europeus para expandir seus mercados de capitais, esse pode ser um bom exemplo de política intervencionista em países autônomos para favorecimento próprio, acreditar que esse tipo de política não teria reações mais cedo ou mais tarde, é no mínimo ingenuidade. Por outro lado, intervir impondo hábitos e culturas como modelos a serem seguidos é, no mínimo, um exercício perigoso, há quem cultive sua autonomia e liberdade. As grandes transformações de áreas desérticas em exuberantes centros urbanos requintados e luxuosos, a exemplo de Dubai ou Abu Dhabi provam que há muito além das notícias massificadas, que mostram apenas uma face estereotipada dessa gente de conhecimento milenar, que já foi a fonte de conhecimento científico e a referência de civilidade da humanidade. As contribuições do Oriente Próximo remontam milênios em diversas áreas do saber como a literatura, a matemática e a medicina, mesmo que esse 299 legado não lhe seja reconhecido com explicitude, o etnocentrismo praticado pelos ocidentais é algo difícil de desfazer. Pode parecer estranho afirmar que nós brasileiros temos considerável influência moura, não a influência da imigração do início do século XX, principalmente na região sudeste e que hoje possui a comunidade árabe enraizada e reconhecida na cidade de São Paulo, mas muito anterior. Os árabes já foram um dos povos mais avançados do mundo, deram considerável contribuição para desenvolvimento da matemática, os números tal como conhecemos e utilizamos foram criados por eles, além de contribuições na álgebra e na geometria; a astronomia enquanto ciência teve seus primeiros passos dados pelos árabes; sua medicina muito contribuiu para que o ocidente tivesse o desenvolvimento que possui hoje, e por aí vai. Mas não há gratidão, sequer reconhecimento, ao contrário os europeus se apossaram de muitos dos inventos dos orientais em geral, bem descrito por Jack Goody em O Roubo da História. E as influências não param por aí, a literatura mundial está permeada de estórias como Ali Babá e os Quarenta Ladrões, As Aventuras de Sinbad, etc. Formação do Povo Português As grandes navegações seriam improváveis sem o compartilhamento de conhecimento e tecnologia árabe, e conhecimento judeu, como a que Abraão Zacuto, espanhol judeu a serviço da corte portuguesa que aperfeiçoou o astrolábio planisférico, o que parece ser uma evolução do antigo kamal, utilizado para navegação pelos árabes antigos, ou Abrão Ibn Ezra, também judeu, que desenvolveu tábuas astronômicas utilizadas na navegação, isso entre os séculos XI e XII (ALMEIDA, 2000, p. 81), o que possibilitou a chegada às Índias, também ao Brasil, mesmo que ainda insistam em se referir a esse evento como um “acidente”; o quadrante e a balestrilha sŌo outros exemplos desse legado, desenvolvidos séculos antes: “Guy Beaulouan inventariou no acervo que pertenceu à livraria do Colégio Viejo de San Bartolomeo, de Salamanca, entre outros, o Tratado da Esfera de Sacrobosco e um comentário redigido por Roberto Inglês; o Tratado do Quandrante Novo de Profatio.” (ALMEIDA, 2000, p. 82). É a partir dessas contribuições que se começa a compreender a primazia dos portugueses nas Grandes Navegações e sua intrepidez 300 no singrar dos mares desconhecidos, na verdade eles estavam muito bem aparelhados de conhecimento técnico e informações precisas, ainda que fosse um conhecimento pré-científico; a experiência adquirida dos navegadores, como informações geográficas de comerciantes do Oriente Próximo forneceram subsídio para uma busca técnica e objetiva. Sabe-se que a conquista da Península Ibérica pelos árabes e berberes faz parte de um contexto expansionista que se inicia a partir da integração religiosa em torno da pregação do profeta Maomé, que uniu os povos nômades, estes em eternas disputas entre si, em torno da crença num único deus, Allah. Com a congregação e fortalecimento militar em obediência a jihad, se inicia o processo de rápida expansão muçulmana, conversão de povos e conquistas territoriais, passando pela região do Oriente Próximo, o norte da África, chegando à Península Ibérica, por volta de 711, quando atravessam o Estreito de Gibraltar (GOMES, 2013, p. 31), com pouca resistência os visigodos caem diante do domínio árabe. A historiografia mostra que ainda que houvesse invasão e violência, muito mais houve acordos e negociações entre árabes e nobres visigodos, estes, preocupados em manter alguma autonomia em troca de submissão e pagamento de tributos, o que de fato aconteceu. Clérigos católicos com medo de represálias fugiram, em geral para o Reino Franco ou para o extremo norte, nas Astúrias, única região que permaneceu sob o domínio cristão. Com o tempo a sociedade de al-Andaluz, como ficou conhecida pelos conquistadores, ou Andaluzia para os nativos, foi acomodando interesses de um mosaico de etnias e religiões, desde o próprio europeu cristão, aos árabes recém chegados, judeus e africanos. A expansão muçulmana só foi barrada na Europa por Carlos Martel na Batalha de Tours, também conhecida por Batalha de Poitiers, por tem ocorrido entre essas duas cidades em 732, onde os muçulmanos se restringiram apenas à Ibéria (GOMES, 2013, p. 28), o que não pôs fim ao seu domínio, que só acontecerá definitivamente em 1492, com a expulsão dos árabes do último reduto em Granada, reino espanhol. Mas num domínio de quase oito séculos, a integração da sociedade medieval europeia e os moldes culturais árabes transformaram profundamente as monarquias de Portugal e Espanha, com todo um incremento técnico e de conhecimento acumulado no oriente em milênios, e que vão irrigar os europeus nas diversas levas de imigrantes que constituíram o domínio sarraceno; 301 a resultantes desse processo são as chamadas Grandes Navegações, que é o que mais comumente nos chega através dos livros didáticos, ainda que sem o devido contexto. Portugal ou o Reino Portucalense consegue a expulsão dos árabes do seu território bem antes dos espanhóis, em 1249 na batalha da conquista da cidade de Faro, no Algarve por D. Henrique III; essa unificação e centralização do poder político propiciaram as condições necessárias para que o país, agora, uma monarquia centralizada, pudesse desenvolver seus interesses como nação (MARTINS, p. 19). Mas a grande questão é que Portugal, após mais de meio século de ocupação e convívio com a cultura árabe, era uma nação profundamente transformada tanto culturalmente como socialmente, ainda que isso tenha sido pouco explorado pela historiografia brasileira, talvez por pertencer a um contexto português e europeu. Mas o fato, é que para além da cultura moçárabe, e também por ela, o português pós-ocupaçŌo possui uma consciência mais “plástica” e susceptível às miscigenações, o palco desse reflexo foi a colonização das terras do “Novo Mundo”, onde a influência árabe nŌo é explicitada, sequer perceptível sem um olhar atento, percebido pelo sociólogo Gilberto Freyre e pelo historiador e folclorista Câmara Cascudo, ambos do início do século XX. Daí surgiu toda a saga portuguesa nas Grandes Navegações, como resultado do conjunto das transformações das mentalidades do povo português, acrescido pelo incremento técnico náutico oriental. Isso é explicado por Freyre quando analisa a guinada da concepção cultural do Brasil colonial luso-oriental para a influência franco-inglesa após a vinda da família real para o Rio de Janeiro (SILVA apud OLIVEIRA, 2013, p. 181). Nisso a vocação de Portugal para o mar não era simplesmente natural, quase obrigatória, visto que suas fronteiras eram com a Espanha, ainda de domínio sarraceno, voltar-se para o mar era quase um estigma. As raízes culturais do povo brasileiro Quando se inicia a colonização portuguesa na América, ainda que não houvesse objetivamente intensão de civilizar ou colonizar propriamente dito, mas de assegurar a posse, e se incentivou a imigração voluntária mediante concessão das Capitanias Hereditárias, os portugueses iniciaram a colonização via empresa açucareira. A influência dos mouros, como os portugueses 302 costumavam rotular o árabe, veio impregnada na mentalidade e nos costumes, ainda que despercebidos, como ilustra Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores: “Uma tradiçŌo árabe, anterior a Maomé, determinava ao peregrino voltando de Meca não entrar em casa pela porta por onde saíra. Faziam uma abertura na traseira das residências, respeitando o preceito. O profeta condenava o costume com reminiscência idólatra: “A piedade nŌo consiste em que entreis em vossas casas por uma abertura feita atrás delas!”. Ano 624 de Cristo. NŌo desapareceu no mundo islâmico e foi plantada na Península Ibérica durante o domínio mouro. Resiste no Brasil, com as naturais adaptações.” (CASCUDO, 2012, p. 150). No referido livro, Cascudo elenca uma série de gestos ritualísticos com profunda raiz moura, transpassados inclusive na tradição católica (CASCUDO, 2012, p. 161): “O beijo era homenagem de veneraçŌo submissa. A missiva na altura da cabeça significava a disposição de perder a vida antes que desobedecesse e não cumprisse, fiel e completamente, tudo quanto a ordem contivesse. Esses gestos se tornaram instintivos, maquinais, inevitáveis. Do Pasquitão, Pérsia, toda a Ásia Menor e África do Norte, conheceram e acataram a praxe que se transmitiu ao Império Bizantino. Árabes e mouros levaram-no à península Ibérica. Veio ter, oficialmente, ao Brasil. É de fácil encontro nas coleções das Mil e Uma Noites, repositário de usos e costumes do Mundo islâmico desde o século X. Da primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, julho de 1591, apresenta-se a provisão do Cardeal Inquisidor-Mor, Arquiduque Alberto, ao Bispo do Brasil, Dom Antonio Barreiros, e o ditto senhor Bispo leo e despois de lida a beijou.” Mas não são os atos solenes ou sacralizados que fazem parte do habitus do brasileiro e que suas raízes estão no oriente apenas, até cuspir no chão com conotação nojo ou repugnância pode ter raízes distantes, como ainda ressalta Câmara: 303 “No Brasil, o gesto perdeu a intençŌo esconjurativa ainda viva em Portugal, Espanha, Itália. Com o escarro eliminava-se o malefício atuante através da visão. Gregos e Romanos cuspiam afastando o encantamento do fascínio. Constituía um amuleto mímico. O Doutor Braz Luís de Abreu ensinava evitar o Mau-Olhado dizendo-se uma frase evocativa, “Benza-o Deus! Agouro, para o teu coro!” etc., “ou também cuspir logo fora; porque tinham para si, que o cuspo tinha a virtude para impedir toda a fascinação ou Natural, ou Mágica”. Árabes, Mouros, Turcos cospem valendo escárnio ou repulsa pela aproximação de algum cristão, fanatismo presentemente atenuado. O brasileiro do povo cospe à vista de asquerosidade ou ouvindo referências repugnantes.” (CASCUDO, 2012, p. 66). Há ainda inúmeras outras referências gestuais que comprovam as ascendências árabes trazidas pelos lusitanos na referida obra. Evidentemente o Brasil é um “caldeirŌo” que abarca uma infinidade de culturas desde sua gênese, se no início os milhões de indígenas de inúmeras etnias já povoavam o território do que veio a ser chamado de Brasil; acrescentou-se a esses elementos, o português, já fruto de uma miscigenação com árabes, com costumes arraigados e diluídos na mentalidade cuja resultante é o intrépido navegador das Grandes Navegações, e ainda os africanos que vieram a partir da segunda metade do século XVI nos navios negreiros, para substituir a mão de obra escrava indígena, este, alvo da catequese, portanto protegidos pelos jesuítas, aliás, é essa ordem religiosa quem solicitou a Tomé de Souza, primeiro governador geral, a importação de negros africanos em substituição ao índio, aí começou o martírio dos africanos, no maior êxodo forçado de todos os tempos. Mas é importante não usar dos tradicionais anacronismos ou juízos de valor para atribuir culpa a quem quer que seja, originado de fatos tão longínquos, até porque seria muito simplismo atribuir aos clérigos a culpa por todo o processo que já se encaminhava. Por causa desse “caldeirŌo cultural” que é o Brasil, as culturas se misturaram e se ressignificaram, tornando-se uma mescla de ambas, que com o passar do tempo perde-se a especificações da origem, portanto, sem o “fio da meada”; daí a dificuldade de identidade do indivíduo com uma cultura específica. Outra problemática, são as ondas de novas influências, como a já citada anteriormente e 304 estudada por Gilberto Freyre. Quando a família real portuguesa veio para cá fugindo das tropas de Napoleão, o Brasil era uma colônia dilapidatória, sem nenhum conforto ou requinte para uma monarquia, ainda mais europeia, cujos hábitos climáticos eram outros. No tocante às instituições brasileiras, tudo era muito arcaico e precisou se construir tudo em função da corte portuguesa, que não veio sozinha. À época, Portugal vivia uma profunda dependência financeira dos ingleses, iniciados ainda na falência da corte pelos tantos resgates de fidalgos pagos após o desastre de Al-Cácer-Quibir, pela profunda influência da Igreja que condenava o lucro e pela ingerência de tantos reis sustentando uma nobreza mórbida e indolente, e por aí vai. Os franceses ditaram as tendências do que seria valioso, luxuoso e requintado, às outras nações cabiam segui-la e por sobre si o rótulo de “civilizada”. Portanto Portugal abandonara suas raízes medievais e mourescas, e se “contaminava” com a influência anglo-francesa (SILVA apud OLIVEIRA, 2013), e para acomodar os milhares de súditos que o seguiu desde Lisboa, transformaram o Rio de Janeiro aos moldes principalmente franceses para reproduzir os ares da cidade, do luxo e da moda Europeia. Os rincões mais distantes dos conturbados, “contaminados” e efervescestes centos urbanos foram os locais onde a memória e as reminiscências mais remotas se preservaram. A partir do desenvolvimento do café no eixo sul-sudeste e da decadência do açúcar do Nordeste, o foco econômico e posteriormente industrial se voltou inteiramente para essa região. As regiões mais distantes, com populações humildes, em geral iletradas, é que guardaram a herança luso-mouresca por longos séculos e sem nenhuma consciência da riqueza guardada na ignorância. Uma das manifestações mais marcantes no sertão nordestino, principalmente no interior de Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe, o aboio do vaqueiro que tange o gado com seu canto; que sem palavras expressa uma melancolia atonal excetuada da estrutura físico-musical conhecida legada pelos gregos, que nem ele mesmo é consciente das origens mourescas do seu canto; do canto sem contracanto, do som agudo rasgado e sem métrica rígida e simétrica, num lamurioso canto micro tonal, que se bem comparado, se assemelham aos fados portugueses, também de origem árabe e que, nem um nem outro é “aprendido”, faz parte de um ethos, geralmente desconhecido ou pouco lembrado pelos mais jovens e que muitos estudiosos esqueceram. 305 Há ainda inúmeras questões sem resposta, ou ao menos de difícil resolução, uma delas se trata de questão chave na nossa história: a escravidão no Brasil, trauma coletivo dos mais cruéis na história da humanidade, e que até hoje não é uma questão resolvida na sociedade brasileira, quiçá no mundo, foi aprendida pelos portugueses no Périplo Africano, ou já havia um antecedente na miscigenação cultural com mouros e europeus na Península Ibérica? Curiosamente Câmara Cascudo afirma: “Qualquer livro de viagens na África dos séculos XVIII e XIX regista a obrigação do negro prosternar-se aos pés do seu Rei e não fitar para os olhos majestáticos. Certamente a influência árabe reforçara, se não determinara, a fórmula humilde de deitar-se por terra para saudar o Soberano.” (CASCUDO, 2012, p. 328). Outra: os Estados português e espanhol, tão católicos que, de difícil separação Estado/Igreja, seria uma resultante dos esforços em negar a influência árabe, que corria no sangue, principalmente português? Ou ainda: Se se argumenta ainda hoje, que Carlos Martel impediu o avanço das conquistas muçulmanas na Europa, e que esse continente só não se prostra a Allah cinco vezes ao dia, graças a sua vitória em Poitiers, como os ibéricos passaram quase oito séculos sob sua tutela e posteriormente se tornaram os países mais católicos da Europa? Várias questões ainda poderiam ser elencadas, seja qual for a vertente, seria fruto de muito estudo e de enormes controvérsias, seja como for, eis um campo de estudo pouco explorado e que merece aprofundamentos, pois ainda existem inúmeras lacunas sobre temas tão familiares aos brasileiros, mas que permanecem na penumbra. Referências Luciano é professor de história do ensino médio da rede pública e mestrando do Profhistoria da UFS. Mail: luciano.sferreira@hotmail.com ALMEIDA, Antônio Augusto Marques de. Saberes e Práticas de Ciência no Portugal dos Descobrimentos. In: TENGARRINHA, José (Org.). Historia de Portugal. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PO: Instituto Camões. p. 79 – 88. 2000. Disponível em: 306 http://www.uaisites.adm.br/iclas/pdf/historia_portugal.pdf . Acesso em 28 jun. 2017. CASCUDO, Luiz da Câmara. História dos nossos gestos: uma pesquisa na mímica do Brasil. 1 ed. digital. Global - São Paulo. 2012.Disponível em: http://lelivros.zone/?x=0&y=0&s=c%C3%A2mara+cascudo. Acesso em: 22 jun. 2017. GOMES, Morgana. A Batalha de Tours. Revista Leituras da História, São Paulo, a. 4, n. 58, p. 24 – 31, jan. 2013. MARTINS, Oliveira. História de Portugal. ed.Vercial. Disponível em: http://lelivros.group/book/download-historia-de-portugal-oliveiramartins-em-epub-mobi-e-pdf. Acesso em: 28 jun. 2017. OLIVEIRA, A. O Brasil e sua herança oriental na obra de Gilberto Freyre. Revista Esboços. Florianópolis, n. 29. v. 20. p. 177 – 183. ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/21757976.2013v20n29p177. Acesso em: 20 jun. 2017. 307 308 A ÉTICA ECONÔMICA BUDISTA E O ESPÍRITO CAPITALISTA JAPONÊS Luís Henrique Palácio da Silva Introdução O Japão - país esse que será o objeto de nossas colocações no presente projeto de pesquisa - graças a Restauração Meiji do século XIX, passou de um simples complexo de ilhas feudais a um país que rivalizava com grandes potências militares como a China e a Rússia. Para entendermos esse potencial dos japoneses de assimilação, será necessário uma compreensão e explicação histórica que remonta à sua formação ético-cultural a partir das influências budistas. Em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2006) o sociólogo alemão Max Weber analisa a religião como uma poderosa orientadora da vida diária e das práticas econômicas dos indivíduos em sociedade, onde Capitalismo e religião se interligam. Weber encontra, em seu livro, uma explicação histórica para o triunfo do Capitalismo: origina-se no protestantismo e seu ascetismo laico. Nosso objetivo com essa pesquisa – baseada na metodologia weberiana – foi analisar a relação entre a religião budista e a prosperidade econômica do Japão, especialmente em um monge da seita budista Zen do século XVI - Suzuki Shôsan. Iremos buscar aspectos no budismo japonês que, segundo Weber em sua obra Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2006), estão contidos no Protestantismo e presentes para o sucesso do Capitalismo: A racionalidade (rentabilidade, lucro, vida regrada), o laicismo (desvalorização de todos os meios de salvação, ascetismo laico) e o secularismo (trabalho no mundo profano, predestinação). A partir de uma profunda análise bibliográfica, embasamos a nossa pesquisa. Uma pesquisa bibliográfica (Gil, 2008) é quando esta é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos – dos quais partiremos. Neste estudo de caso, levantamos algumas questões e análises sobre como uma religião pode influenciar o comportamento econômico de uma sociedade, realizando um estudo como uma pesquisa exploratória (Gil, 2008). 309 Contexto histórico do Japão e o Budismo O Budismo japonês está associado a uma grande divisão do Budismo continental chamada Mahayana. (Frédéric, 2008). Mahayana difere da outra divisão budista - o Hinayana - sobre os termos da salvação dos ciclos de renascimentos e morte. No Budismo Mahayana se prega que todos os humanos podem salvar a si mesmo apenas ajudando outras pessoas sem necessitar de ser monge ou viver uma vida ascética. (Akira, 1990). Ambas denominam de veículo os ensinamentos de Budha. Mesmo com tal adesão, o budismo japonês difere muito das seitas budistas do continente asiático pois, quando atinge o território japonês, um ambiente completamente diferente da sua matriz indiana, o budismo se funde com os deuses e elementos autóctones, reavivando e os conservando. (Frédéric, 2008). O Budismo chega ao Japão, oficialmente, no século VI d.C. Um rei de um dos reinos coreanos (Kudara, ou Paekche) envia a corte dos Yamatos vários livros budistas, sutras em chinês e uma imagem de Buda em bronze. Quase que de imediato, toda corte se converte a nova religião. Imitando a corte, vários clãs japoneses se convertem. (Frédéric, 2008). Entre os anos 593 até 622, reina o famoso príncipe Shotoku que reforma a máquina governamental aos moldes da administração chinesa e adota o Budismo como religião oficial (Yamashiro, 1985). Laicização e secularização da sociedade japonesa: vida e obra de Suzuki Shôsan Desde o século XIII, no início dos Shogunatos samurais, já vinha ocorrendo um clima de secularização na sociedade nipônica e que se acentua com a Guerra Civil, no século XV e XVI. Antes disso, a religião - no caso o budismo e o shintoísmo - ditavam os valores e ideias das pessoas. Grandes correntes do Budismo japonês, o Zen e o Amidismo, contemplativo e devocional respectivamente, incentivavam a vida laica e pregavam que esta era tão importante quanto os mosteiros. Na prática, muitos monges saíram dos mosteiros para auxiliar governantes como conselheiros. (Gonçalves, 2007, p.49-50). Suzuki Shôsan nasceu em 1579, durante o processo de unificação do Japão por Oda Nobunaga e com os portos japoneses abertos ao mundo. Cresceu e foi educado para ser samurai, vida essa que levou por 40 anos ao servir o clã Tokugawa. Em 1648, se muda para Edo, 310 atual Tokyo, e se mantém ali até 1655, quando morre. (Gonçalves, 2007. p. 52-55). A doutrina de Shôsan é eclética e dialoga com várias seitas do budismo como as mais populares: a seita Zen que pregava um budismo contemplativo e monástico, desprezando o budismo devocional pois argumentava que esta vertente seria um caminho mais fácil para se ter uma vida ligada aos prazeres; e o budismo Amidista que pregava que a salvação poderia vir somente da fé e, por consequência, os monastérios e a contemplação seriam práticas inúteis. Ao invés de ter uma visão de mundo como verdadeiro e negar as outras visões, como as seitas citadas comumente faziam, Shôsan foge desse sectarismo pregando o Zen aos guerreiros e nobres e, ao mesmo tempo, o Amidismo aos camponeses. Ou seja, utilizava ambas as seitas em suas pregações, sem distinções. Além disso, sua meditação é particular e diferente das outras tradições budistas de sua época. Diferentemente das outras seitas, Shôsan não se concentra nos Patriarcas das escolas budistas, mas sim no própria Sidarta Gautama. (Gonçalves, 2007, p. 58-60). Outro grande avanço de Shôsan é sua relação do mundo laico com a salvação. Outros autores budistas anteriores a ele, oriundos da laicização da sociedade japonesa desde o século XIII, haviam somente demonstrado que não havia contradição da vida laica com a vida religiosa. (Gonçalves, 2007, p. 85) Contudo, isso não é novo no Budismo, não pelo menos no Budismo indiano. Sidarta Gautama, o Buda, mesmo negando o trabalho produtivo no mundo a Sanga, comunidade budista, ele compara seu trabalho ascético ao trabalho mundano: “Disse o brâmane: -Vós afirmais que sois cultivador, mas jamais vos vi cultivar a terra. Explicai de que modo vós cultivais, para que eu possa entender. Respondeu o Buda: A fé é a semente, o ascetismo é a chuva, a Sabedoria é a minha enxada e meu arado. A autocrítica é a haste do arado, a vontade a corda que o amarra, o pensamento é a ponta do arado e a lâmina da enxada. Controlo o corpo e os pensamentos e sou moderado nas refeições. Com a verdade eu corto as plantas daninhas. Com a brandura eu solto os bois do arado. O esforço é o boi atrelado ao arado, que me conduz diretamente a um lugar seguro e tranquilo, sem 311 jamais retroceder. Quem cultiva desta maneira se liberta de todos os sofrimentos.” (Gonçalves, 2007, p. 88). Como vemos, Buda não negava a vida laica como algo que impedisse o desenvolvimento religioso. Shôsan, seguindo essa linha de pensamento, vai adiante fazendo da vida laica um caminho espiritual em si. Pregando ao guerreiro, ao artesão, o agricultor e ao comerciante, Shôsan diz que as atividades desses indivíduos são uma verdadeira ascese que conduz à realização espiritual e que eles não precisariam se engajar em exercícios espirituais. A santificação do trabalho é o principal marco do pensamento de Suzuki Shôsan: "[...]o trabalho agrícola já é a própria Prática Búdica. [...] todas as atividades profissionais são a própria Prática Búdica [...] os homens deverão se realizar como Budas através de suas próprias atividades pelo mundo." (Gonçalves, 2007, p.85). Outro aspecto referente a vida laica e a realização religiosa em Buda e no budismo indiano, foi que o trabalho sempre foi visto como um complemento da vida ascética e de uma maneira positiva. A própria tradição Mahayana, ao qual o Budismo japonês faz parte, incentiva o trabalho no mundo e o compara à realização búdica. O budismo indiano, encorajava as atividades econômicas, principalmente as de caráter mercantil. Aos leigos era permitido se aplicarem no trabalho para acumularem bens (Gonçalves, 2007, p. 89-90): “Ó monges, há comerciantes que nŌo se esforçam nem pela manhã, nem pelo meio dia, nem à tarde. Aqueles que assim fazem não obterão novos bens, nem multiplicarão os que já possuem…Há comerciantes que se esforçam pela manhŌ, pelo meio-dia e pela tarde. Aqueles que assim fazem obterão novos bens e multiplicarão os que já possuem. (Gonçalves,2007, p. 89). ” Shôsan, como já dito, ultrapassando a própria fala de Buda que o trabalho é um complemento para a vida ascética, diz que o trabalho é a própria ascese. “A lei búdica e a lei profana sŌo uma só. Buda disse que aquele que mergulhar no mundo profano e domina-lo plenamente realizará a Lei de Buda com total perfeição. 312 Tanto a Lei de Buda como a profana consistem apenas em retificar a vida, praticar a justiça e usar a honestidade. (Gonçalves, 2007, p. 97).” Em uma fala ao agricultor, em um dos seus livros (Nônin Nichiyo), Shôsan incentiva converter o trabalho duro no aqui e agora numa ascese espiritual: “É necessário enfrentar a faina penosa no frio e no calor extremo e, com arados, enxadas e foices, enfrentar nossos inimigos, o corpo e a mente, onde crescem as ervas daninhas das paixões. Eles devem ser revolvidos, limpos e cultivados com a máxima atenção e o máximo de cuidado. Quando o homem se distrai, as ervas daninhas das paixões crescem e aumentam. Quando, entregando-se à faina penosa, o homem com ela adestra seu corpo e sua mente, não haverá angústia em seu coração. O agricultor que se entrega a essa Prática Búdica durante as quatro estações do ano não tem precisão de outras práticas...a cada golpe de enxada deverá ele recitar a invocação a Amida. Deverá integrar-se em cada golpe de foice, sem desviar os pensamentos. Desta forma, a roça se converterá na Terra Pura e os cereais, em alimento puro, em um remédio que eliminará todas as paixões daquele que o comer. (Gonçalves,2007, p. 97-98).” Ao contrário da sociedade de sua época, gerida pelos militares e que veem o trabalho como algo a ser desprezado e classificava algumas profissões como vis, Shôsan mostra a importância de todos eles e critica tal posicionamento social: “Existem também os benefícios que recebemos dos seres viventes: benefícios recebidos dos agricultores, dos artesãos, dos alfaiates, dos tecelões e dos comerciantes. Devemos saber que todas as atividades se beneficiaram, auxiliando-se mutuamente e por isso não devemos estabelecer discriminações entre as pessoas. Ao tratar com o amo, devemos compreender o coração do amo e tomar consciência da imperfeição de nossos atos. Ao tratar com as pessoas de condição inferior devemos compreender seu coração e perceber o quanto elas sofrem. Lembremo-nos que dia e noite elas enfrentam o calor extremo e frio 313 rigoroso, sem interrupção e sem descanso para suas mentes ou para seus corpos. Os camponeses dia e noite penam mental e fisicamente com sua faina, produzindo cereais para alimentar os habitantes do país. Dizem que cem mãos são necessárias para produzir uma pequena medida de arroz. Devemos ter em mente todo esse sofrimento. Além disso, com seu trabalho uma pessoa alimenta numerosos dependentes. Mal consegue o trabalhador garantir sua sobrevivência, o alimento é pouco e a preocupação é intensa. [...] (Gonçalves, 2007 p. 98-99).” O discípulo de Shôsan, Echû (1628-?), ao escrever a biografia do mestre, revela seu verdadeiro objetivo: “A ascese está nas diferentes atividades profissionais do mundo profano. Shôsan, ao esclarecer esse ponto, tinha em vista o benefício geral de todo o mundo profano. Mostrou ele que a essência do Mahayana está na doutrina da inexistência de obstruções separando a Lei de Buda da Lei do mundo profano e que o Ensinamento do Pequeno Veículo (Hinayana) que manda abandonar o mundo profano não passa de um ensinamento provisório. Esse ponto foi minuciosamente esclarecido nos textos sobre os preceitos diários para os diferentes profissionais. Particularmente em nosso país considera-se Verdadeira Lei tudo o que auxilia o desenvolvimento da bravura militar. Shôsan declarou que os ensinamentos que levam ao enfraquecimento da coragem guerreira não pertencem à Verdadeira Doutrina. [...] (Gonçalves,2007 p. 99-100). ” Com suas críticas, Shôsan não somente defende os trabalhadores braçais como também rebate a crítica e rebaixamento social em que estavam os comerciantes. Estes ocupavam o mais baixo degrau da sociedade por causa da influência confucionista do Japão sob os Tokugawas. A terra e não o trabalho era vista como fonte de riqueza. Contudo, Shôsan os rebate: “Aquele que se ocupa do comércio deve em primeiro lugar se exercitar no sentido de desenvolver a preocupação de aumentar seus lucros. Essa preocupação nada mais é senão entregar incondicionalmente sua vida ao Caminho Celeste e estudar com afinco o caminho da honestidade. O homem 314 honesto é beneficiado profundamente pelos Devas, consegue a proteção dos Budas e dos Deuses, afasta as calamidades e, de maneira espontânea e natural, aumenta sua felicidade. É amado e respeitado pelas pessoas e, de uma maneira profunda, todas as coisas se realizam conforme suas intenções. (Gonçalves, 2007, p. 110-111).” Para Shôsan, todo lucro é licito desde que alcançado honestamente. Para Shôsan, a essência da desonestidade está no egoísmo. Assim, no comércio, a honestidade gera felicidade e prosperidade, enquanto a desonestidade atrai infortúnio e desastre. (Gonçalves,2007, p. 112): “Ser da nobreza ou da plebe, superior ou inferior, rico ou pobre, ter uma vida longa ou breve, são coisas condicionadas pelas vidas passadas. Se de maneira egoísta almejamos conseguir honrarias e riquezas, não obteremos nenhum resultado. Em suma, aumentará a influência das más ações que nos ligará aos planos do mal, estaremos em oposição ao Caminho Celeste e certamente iremos receber a devida sanção. (Gonçalves, 2007, p. 112-113).” Também há em seu pensamento um certo determinismo: o homem tem sua posição social e profissão como parte da ordem cósmica prédeterminada e tendo de cumprir suas tarefas: “O Buda Uno do Real e da IluminaçŌo Original se subdivide em centenas de milhões de emanações para beneficiar o mundo...Existem assim, inumeráveis atividades diferentes que beneficiam o mundo, mas todas elas são manifestações da Virtude do Buda Uno. (Gonçalves, 2007, p. 115).” Por fim, após toda essa explanação, podemos concluir que o pensamento de Shôsan é favorável ao desenvolvimento do Capitalismo pelos motivos de valorizar o lucro e oferecer uma motivação religiosa para busca do mesmo e desencorajar o egoísmo; além de criar um clima favorável ao revestimento do lucro em novos empreendimentos mercantis. (Gonçalves, 2007, p. 127). Portanto, tentamos verificar os sustentáculos históricos e sociais para o sucesso econômico japonês que não somente se verifica pelos intensos investimentos em educação e infraestrutura, mas também 315 na mentalidade progressista e aberta para a acumulação de capital respaldada na ideologia religiosa. Suzuki Shôsan é a síntese de um contexto espiritual e material, onde encontramos a semente que será plantada e desabrochada em meados do século XIX, quando o país irá se abrir ao exterior e adotar o Capitalismo com muita facilidade. Conclusão Acreditamos haver demonstrado que o sucesso e o protagonismo japonês em sua rápida adesão ao capitalismo, ao entrar no quadro de nação imperialista no século XIX, quando se desvestia de centenas de anos de Feudalismo, está ligado à sua tradição milenar budista. Logo, o Budismo japonês e suas seitas apresentaram uma nova forma complementar de libertação e de vida espiritual: o trabalho. A síntese desse movimento espiritual laico se deu com o monge Suzuki Shôsan, que colocou o trabalho no mesmo nível que a vida ascética. Shôsan argumentava que o trabalhador e o monge realizavam o serviço búdico de devoção em diferentes áreas. Referências Luís Henrique Palácio da Silva é graduado em História pela Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) e Pós-Graduando na mesma universidade no curso de História, Sociedade e Cultura. [Contato]: luis.henrique.palacio.22@gmail.com AKIRA, H. A History of Indian Buddhism from Sakyamuni to Early Mahayana. Havaí: Asian Sutudies at Hawaii, n° 36. University of Hawaii Press, 1990. Disponível em: <http://www.ahandfulofleaves.org/documents/A%20History%20of %20Indian%20Buddhism_From%20Sakyamuni%20to%20Early%2 0Mahayana_Akira.pdf> Acesso em: 03/03/2016. FRÉDÉRIC. L. O Japão: dicionário e civilização. São Paulo: Globo, 2008. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008. Gonçalves. R. M. A ética budista e o espírito econômico do Japão. São Paulo: Elevação, 2007. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2006. Yamashiro. J. História da cultura japonesa. São Paulo: IBRASA, 1985. 316 O TIANZHU SHIYI, OU O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO SENHOR DO CÉU: COMENTÁRIOS SOBRE SUA NATUREZA E IMPACTO Luiz Felipe Urbieta Rego Livro lançado na China em 1603, o Tianzhu Shiyi foi um marco que cristalizou o modelo de evangelização jesuíta no Sudeste Asiático. Falar desta obra é falar da trajetória da Companhia de Jesus na Ásia. Seu autor Matteo Ricci, foi um dos primeiros cristãos do século XVI a ter permissão para pregar o Cristianismo no Império Ming. E embora a personalidade e trajetória individual de Ricci sejam centrais para explicar as particularidades da missão chinesa, é impossível falar de um jesuíta sem se remeter ao quadro maior e a natureza da organização a qual ele pertence. Fundada em 1534 e reconhecida em 1540 a Companhia de Jesus desde sua fundação fez de seu objetivo central a missionação estrangeira. Entretanto, ao contrário das diversas ordens que a precederam a ênfase no estudo das letras, erudição e dos nascentes novos conhecimentos desenvolvidos em luz das redescoberta dos clássicos da Antiguidade fez com seus membros fossem um elemento novo dentro do contexto religioso europeu marcado pelos debates da Reforma Protestante (1517-1648). Em 1552 Francisco Xavier lançou seu ultimo fôlego na pequena ilha de Shengchuan no litoral da costa chinesa. Com isso ele insuflou toda uma geração de missionários europeus a se aventurar no Império do Meio. Em pouco mais de dois anos (1549-1550) Xavier conseguira estabelecer uma rica comunidade cristã no Japão, composta tanto dos mais humildes camponeses aos mais poderosos senhores feudais. E mesmo com as limitações lingüísticas Xavier rapidamente percebeu que todo referencial para debate religioso dos japoneses tinha como base a autoridade chinesa. Foi da China que viera o Budismo. E embora ele tenha adquirido características locais próprias, como o zen budismo, os textos sagrados mais antigos eram todos de origem chinesa. Para garantir o sucesso da missão católica no Sudeste Asiático era então vital estabelecer uma forte base na China. E com a fundação do colégio de São Paulo em Macau em 1594 317 ficou estabelecida uma base fixa para planejar a invasão evangélica ao Império da Dinastia Ming. A freqüente comparação da Companhia de Jesus como uma companhia militar explica-se devido a origem de seu fundador Inácio de Loyola (1491-1556) .Ele foi um fidalgo espanhol que passou por um experiência de profunda revelação religiosa enquanto se recuperava de um ferimento de batalha. Após um breve retiro na cidade de Manresa ele abdicou das armas e ambições mundanas para fundar uma ordem religiosa que dispusesse a espalhar o Evangelho onde quer que o Papa ordenasse. A estrutura da Companhia de Jesus teve uma clara inspiração militar em vista na ênfase dada por Loyola e os outros membros fundadores na disciplina e obediência hierárquica. Entretanto, devido a própria natureza itinerante, a manutenção de práticas por demais rígidas condenaria ao fracasso quaisquer esforços evangélicos em espaços que estivessem fora da esfera de proteção imediata da Coroa Lusa. Portanto, quer estivessem cercados de nativos brasileiros ou mandarins os jesuítas deviam recorrer a sua própria inventividade para superar quaisquer obstáculos que encontrassem. Uma forma de compensar a adversidade externa era a prática da recitação silenciosa dos Exercícios Espirituais, obra escrita por Loyola entre 1522 e 1524 como um manual de meditação para interiorização da fé. A escrita de cartas era outro elemento central da identidade jesuíta. Elas seguiam um código especifico de composição, orientado nas Constituições da ordem, no qual deveria conter tanto as informações mais acuradas possíveis da situação pelo que passavam os jesuítas, como também uma versão "edificante", escrita tendo em mente divulgar os sucessos e méritos da ordem na Europa. A grande maioria das correspondências era vertida para o português, embora o latim fosse a língua corrente do meio erudito. É por isso que a versão ocidental do Tianzhu Shiyi foi encontrada em latim e existam diversas variações entre a versão européia e a original chinesa e mesmo diferenças entre versões chinesas manuscritas e impressas. Esse tratado reflete também a especificidade dos jesuítas em sua relação com as letras e correspondências. Pensando no horizonte das grandes navegações e as constantes intrigas entre as coroas européias pela controle das 318 lucrativas rotas orientais todo o cuidado era pouco e quaisquer deslize ou interpretação errônea dos textos jesuítas poderia colocar em risco toda a missão. Mesmo com esses cuidados quando a obra chegou ao Ocidente, ela despertou grande polêmica. Vale lembrar que o monopólio da Coroa Portuguesa por volta de 1603 já mostrava sinais de desgaste e Espanha, França e Holanda já buscavam se estabelecer no Sudeste Asiático. E embora teoricamente a lealdade da Companhia de Jesus estivesse sempre com Roma, a sua associação com a Coroa Portuguesa e a sua importância estratégica no tratamento diplomático com as nações estrangeiras orientais tornavam todas as suas ações e publicações alvos de profundo escrutínio dos poderes europeus, eclesiásticos ou não. Apesar das crescentes tensões na Europa a missão oriental ainda seguia sob a proteção do Padroado Português e qualquer jesuíta que fosse para a Ásia deveria se apresentar ao Rei de Portugal e embarcar em uma nau portuguesa que seguia a Rota das Índias. A missão estava então sujeita ao fluxo das rotas comerciais, mas também as orientações e experiências dos predecessores da Companhia. Antes de morrer Francisco Xavier escreveu uma carta ao Rei de Portugal pedindo não apenas o envio de mais missionários, mas de membros dotados de uma profunda formação intelectual. Eis uma das razões da centralidade de Ricci na missão, pois ele fora um dos membros da ordem que se destacava no estudo das ciências matemáticas e na astronomia, tendo privilegio de ter lições com Kepler e Galileu após seu noviciado em Roma. Ainda assim ele não estava sozinho e antes de chegar a Macau ele passou um período em Goa lecionando retórica e aprendendo teologia. Enquanto isso seu colega Michele Ruggieri (1543-1607) já se encontrava em Macau e dedicava-se ao aprendizado da língua chinesa segundo a orientação do Superior da Missão no Oriente Alessandro Valignano (1539-1606). Ruggieri desempenhou um papel tão importante quanto Ricci, pois foram seus escritos inicias em chinês que serviram de base para Ricci produzir os textos que seriam aclamados pela elite chinesa. Foi Ruggieri que escrevera a primeira versão dos Dez Mandamentos, do Credo e da Ave Maria em chinês. Ele fora auxiliado pelo padre Pedro Gómez (1533-1600) que o ajudou a desenvolver um catecismo para 319 os chineses. Esse catecismo foi o predecessor do Tianzhu Shiyi e fora descartado em 1596 em vista da nova compreensão dos jesuítas do ambiente e da sociedade chinesa. Instalados na China continental desde 1583 na Província de Guandong, Ricci e seus colegas puderam experimentar a sociedade chinesa e suas sutilezas. Ricci se dedicou avidamente aos estudos dos clássicos confucianos e já em 1593 ele comunicava ao Superior Geral da Companhia, Claudio Acquaviva (1543-1615) a necessidade de traduzir os Clássicos Quatro Livros de Confúcio para o latim. O estudo do Confucionismo foi acompanhado de uma radical mudança de atitude e imagem dos jesuítas. Antes de 1595 os membros da Companhia adotavam as vestimentas dos monges budistas e se apresentavam como membros de uma seita budista do Oeste. Mas ao perceber o desdém das elites intelectuais para com os budistas Ricci e seus sucessores passaram a se vestir e se apresentar como eruditos confucianos. Saindo de Guandong, a Companhia de Jesus buscou estabelecer bases no interior da China, tendo como objetivo final a capital Beijing. Nesse processo Ricci passou pelas províncias de Nanchang e Nanjing onde construiu uma reputação como erudito de memória prodigiosa. Ele impressionou a elite chinesa com seus conhecimentos matemáticos e astronômicos, mas foi apenas em 1595 com a publicação de um pequeno tratado sobre o tema da amizade que ele demonstrou o seu domínio da escrita chinesa clássica. O Jiaoyou lun, ou Tratado da Amizade, foi uma compilação de cerca de cem citações de pensadores da Antiguidade adaptados para o estilo clássico chinês. O sucesso dessa obra fez com que Ricci procurasse enfatizar as semelhanças entre os pensamentos ocidental e oriental como base para o proselitismo religioso. Ele também reflete a importância da sinicização para garantir o sucesso da inserção dos jesuítas no meio intelectual. Foi nessa obra que Ricci usa seu nome chinês, Li Madou, e se apresenta como um erudito segundo estilo confuciano clássico. Ricci rapidamente percebeu que o estudo e domínio dos clássicos confucianos era um elemento vital para compreender a complexa burocracia estatal e se inserir no meio intelectual chinês. Se ele conseguisse estabelecer uma ligação entre os textos clássicos confucianos e a presença histórica de um culto chinês ao Deus hebraico na antiguidade, ele estabeleceria uma base sólida para 320 relações e debates com os chineses, que eram extremamente avessos a elementos estrangeiro não sinicizados. A principal crítica ocidental em relação à obra era sua proposta de explicar que uma antiga divindade chinesa, venerada nas Dinastias Zhou, e a própria referencia ao Céu (Tian) em cultos rituais poderiam ser considerados como cultos ao Deus dos cristãos e judeus. Essa interpretação foi resultado dos profundos estudos de Matteo Ricci sobre os textos confucianos. Confúcio, entretanto, nunca foi um autor especializado na temática religiosa. Mas sua dedicação e respeito aos hábitos e costumes das dinastias ancestrais, tidas como exemplares, o coloca em uma perspectiva de defesa e resgate dos "bons costumes" e tolerância a qualquer assunto de natureza espiritual. Entretanto, para Confúcio mundano e sobrenatural não deveriam se misturar. Por serem de naturezas intrinsecamente diversas, ao homem deveria apenas se concentrar no cultivo pessoal para garantir uma existência pacifica para si e seus semelhantes. Sua preocupação não era o pós-vida, mas garantir a manutenção de uma sociedade harmônica. E para isso ele defendia que quaisquer rituais que fossem necessários para manter o equilíbrio entre o mundo natural e sobrenatural deveriam ser realizados. Entretanto, com o advento da expansão do Budismo na China, bem como do Taoísmo, as gerações de filósofos posteriores a Confúcio reinterpretaram seu pensamento à luz do Tao e dos ensinamentos de Sidarta Gautama. A relação entre os mundos espiritual e natural foi altamente problematizada sendo vista como interligados, reflexivos e complementares. Em contraste com a percepção ocidental que, monopolizada pelo Cristianismo, estabeleceu uma visão hierárquica e dogmática, os orientais nunca se preocuparam em impor um sistema absoluto de relação com o sagrado.Ricci, por sua vez,em sua leitura de Confúcio filtrou os seus escritos segundo a influência do Escolasticismo, ignorando os debates mais recentes dos textos confucianos. Impressionado com a desenvoltura do seu pensamento, Ricci o considerou um filósofo "natural" colocando ao lado dos grandes pensadores da Grécia Antiga. O sucesso de Ricci entre os chineses se deveu ao fato dele apresentar o Cristianismo como uma doutrina harmônica e complementar ao Confucionismo. Porém ao mesmo tempo Ricci procurava eliminar as influências do Taoísmo e do Budismo 321 O Tianzhu Shiyi inclusive busca emular um diálogo clássico entre ele (Ricci) e um chinês interessado no Cristianismo. A escolha desse modelo não foi uma originalidade de Ricci, mas uma retomada da obra original proposta por Ruggieri. Exceto pela questão do "nome chinês de Deus", o debate desenvolvido na obra é de natureza mais filosófica que religiosa. Embora Ricci ataque com firmeza aspectos da religião budista como a reencarnação, ele se concentra mais em expor para o chinês, em seus termos, as bases do pensamento filosófico ocidental clássico, inclusive citando pensadores romanos como Demócrito. Não sem motivo os jesuítas contemporâneos tratam esta obra de Ricci como um "diálogo pré-evangélico". A história de Cristo é apresentada de forma bastante resumida e o batismo é apenas mencionado. A idéia do livro é que ele fosse uma ferramenta de introdução ao Cristianismo voltada para elite letrada chinesa. Cada um dos seis capítulos deveria ser apresentado e comentado uma vez em cada dia, ao longo de seis dias seguidos. E ao final desse período, caso se verificasse um legitimo interesse, seriam apresentados os pontos mais profundos e complexos da doutrina cristã.Dentre eles estaria a questão da crucificação de Cristo, algo que não era visto com bons olhos pela elite chinesa, que associava o sofrimento físico como uma punição destinada a plebe ignorante. O Tianzhu Shiyi tido um grande sucesso evangélico pelo fato de ter sido a sua leitura responsável pela conversão do mandarim Xu Guanqxi, tido como um dos pilares do Catolicismo na China. Ele também entrou na história como a causa do evento que veio a ser conhecido como a Polêmica dos Ritos Chineses. Mesmo com sua morte em 1605, Ricci havia deixado um rico legado e uma comunidade florescente de convertidos. Entretanto, a nova geração de jesuítas entrou em conflito com seus antecessores devido a mudança geopolítica que veio com a ascensão da França e queda de Portugal em termos de poder e influência. Diante disso, a questão do "nome chinês de Deus" foi utilizada como justificativa para questionar o método acomodativo desenvolvido por Ricci e seus contemporâneos, sendo atacado principalmente por franciscanos e ordens religiosas ligadas a França e Espanha. A tolerância para com o culto aos ancestrais e a Confúcio, tidos para Ricci como práticas de cunho mais patriótico que religioso, assim como a permissividade do termo dos temos Tian como sinônimo de Deus foram as concessões 322 que garantiram um espaço para evangelizar no Império do Meio. E após passar pelo crivo de dois Papas que se mantiveram neutros, a questão do nome chinês de Deus foi tratada como uma heresia pela Propaganda Fide. Os católicos chineses deveriam destruir seus altares pessoais a Confúcio e aos seus ancestrais e substituir as doações aos templos por esmolas aos pobres. Os termos Tianzhu, Shangdi ou Tian deveriam ser substituídos por Deus. Um enviado papal chegou a ser preso e morreu de inanição em uma prisão em Macau por tentar implementar essas bulas papais. O Imperador Wanli promulgou um édito que expulsava todos os jesuítas que não respeitassem o modelo traçado pelo eminente Li Madou, ou Matteo Ricci, o primeiro ocidental a ter permissão de ser enterrado nos arredores da capital Beijing. A era de ouro do Catolicismo na China chegava ao fim ao mesmo tempo que os movimentos antijesuítas se espalhavam pela Europa, em especial Portugal. A Companhia de Jesus foi suprimida em toda Europa exceto na Rússia dos czares, aonde recebeu proteção especial. Ela só seria restabelecida em 1814. Quanto à polêmica dos Ritos Chineses, em 1938 uma bula papal retificou os julgamentos anteriores, permitindo a manutenção do culto confuciano e do uso do termo nativo Tianzhu. O Tianzhu Shiyi se estabelece, portanto como um testamento de seu tempo e do esforço de inserção por parte da Companhia de Jesus de um legítimo debate intercultural. Religião e filosofia andam lado a lado nessa obra singular que buscou apresentar os princípios do Cristianismo em um diálogo filosófico que aborda questões profundas como a própria natureza de Deus junto com elementos mais superficiais e práticos da fé católica, como as razões da prática do jejum durante a Quaresma. Referências Luiz Felipe Urbieta Rego, Mestre em História pela PUC-RIO. E-mail: pelifzuilraubiet@gmail.com BUENO, André. Mas, Confúcio era religioso? http://sinografia.blogspot.com.br/2012/02/mas-confucio-era.html. Artigo acessado em 03/09/2017. REGO, Luiz Felipe Urbieta. A China dos Jesuítas: o Tratado da Amizade de Matteo Ricci e sua contribuição para o diálogo 323 cultural entre Oriente e Ocidente. Dissertação de Mestrado.Rio de Janeiro .PUC-RIO 2012 RICCI, Matteo. On Friendship: one hundred maxims for a Chinese prince. Translated by Timothy Billings. Columbia University Press, 2009. RICCI, Matteo. The True Meaning of the Lord of Heaven. Instittue of Jesuit Sources. Boston College, 2016. SPENCE, Jonathan D. O palácio da Memória de Matteo Ricci: a historia de uma viagem: da Europa da Contra-Reforma a China da dinastia Ming. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. TRIGAULT, Nicolas. China in the Sixteenth Century: The Journals of Mathew Ricci: 1583-1610.Translated from Latin by Louis J. Gallagher. Random House: New York, 1953. 324 O ORIENTE MÉDIO ATRAVÉS DO CINEMA: DIÁLOGOS A PARTIR DAS REPRESENTAÇÕES PRODUZIDAS NOS ESTADOS UNIDOS Maicon Roberto Poli de Aguiar O debate acerca do outro é uma das questões que mais urge em nosso cotidiano, principalmente no contexto de crise econômica, política, social e cultural em que nosso país e o mundo estão inseridos. É nesse momento que alguns grupos com agendas próprias, compartilhando de interesses particulares acima do bem coletivo, discursam com palavras de ordem contra inimigos por eles apontados, generalizando culturas e povos, incentivando a xenofobia e praticando atos de violência. O outro é visto como o culpado pelos problemas e para tanto deve ser extirpado, humilhado, ter sua dignidade desrespeitada, a fim de atender os princípios morais de um determinado grupo, o qual se auto intitula defensor do que é o certo e combatente do que foge de sua linha de pensamento ou tradição. Saber sobre o outro exige tempo, pesquisa, diálogo e análise. Compreender o outro é um ato de investigação que não pode ser respondida por um artigo de revista, uma notícia de jornal, um documentário de televisão ou um comentário compartilhado numa rede social. É necessário analisar os diversos discursos produzidos, nas mais diversas fontes de informação, pelos próprios autores ou por aqueles que transformaram os mesmos em objeto de estudo. É fundamental identificar seus lugares de fala, com todos os seus interesses e concepções. E todo esse processo leva tempo, que muitas vezes não é permitido em sua totalidade, dada a forma como muitos, em especial os (as) estudantes, lidam com o mesmo atualmente. Mais do que nunca, a “realidade de hoje exige cada vez mais que os sujeitos saibam lidar com uma imensa gama de informações que invadem diariamente sua vida cotidiana, de forma desconhecida para nossas gerações precedentes. Lidar com o impacto desse fluxo acelerado de informações e, principalmente, dar-lhes um significado, ou seja, interpretá-las, integrando-as em sua visão de mundo, é uma tarefa inevitável dos sujeitos modernos”. [GUARESCHI, 2006, p.29-30] 325 O discurso sobre o outro deve ser compreendido dentro do seu contexto, visualizando-se o que se apresenta de dentro para fora das culturas em questão, mas principalmente, nos interesses de representação do outro feito por agentes externos. Quando lidamos com uma região como o Oriente Médio, o primeiro embate se configura na delimitação desse espaço. O mapa abaixo apresenta as principais versões acerca dos países que se inserem na região. Essa diferença não foi construída ao acaso, ela consiste numa seleção feita a partir de critérios estabelecidos não apenas de forma geográfica, como também política e economicamente. Em torno dos eventos atrelados à temática „Primavera Árabe‟, relacionar as estruturas governamentais de alguns países do Oriente Médio em sua divisão tradicional, com países da parte norte continental da África, atrelada à uma divisão proposta pelo G8 – grupo que engloba, teoricamente, as oito maiores economias do mundo – foi uma escolha desenvolvida e, que para o público sem uma compreensão mais fundamentada pode ter servido para a mesma classificação de países em guerra pertinentes à divisão tradicional. https://pt.wikipedia.org/wiki/Culin%C3%A1ria_do_Oriente_M%C 3%A9dio#/media/File:GreaterMiddleEast2.png Ao abordarmos uma outra região, suas culturas, devemos ter em mente que a relação que as mesmas tiveram entre si e com a nossa própria cultura ou região trazem vestígios de disputa. O olhar sobre o outro muitas vezes traz o embate de valores, o desejo de domínio, que muitas vezes ultrapassa o limite do bom convívio, o que permite o surgimento da violência, da guerra e da exploração. Segundo Albuquerque, precisamos entender que a história da 326 “dominaçŌo espacial capitalista é uma história geopolítica, mas também uma história de colonização ou de catequese de subjetividades. O capitalismo coloniza não apenas os espaços externos aos homens, mas coloniza seus corpos, suas mentes, suas subjetividades. A região não é uma realidade natural, econômica ou política apenas: ela é uma construção cultural que se faz a partir e levando em conta estas outras dimensões do sublunar”. [ALBUQUERQUE, 2008, p.60] A partir disso, é perceptível que o historiador e/ou o professorhistoriador tem em suas mãos uma tarefa das mais importantes: trazer essas questões para debate. Há muito tempo compreendemos que a escola não mais se configura no único espaço de acesso ao conhecimento. Os meios de comunicação, a rua, a família e as demais instituições concorrem diretamente com a sala de aula na elaboração dos saberes que estudantes das mais diversas culturas e classe sociais internalizam sobre as temáticas que permeiam o seu cotidiano. Cabe ao professor abordar os conceitos, questionar as verdades ditas absolutas, desconstruir os discursos que defendam a supremacia de uma cultura sobre a outra. Com base nos argumentos de Jörn Rüsen, Maria Lima afirma que, “o homem só pode viver no mundo relacionando-se com a natureza, com outros homens e consigo mesmo se não tomar esse universo como dado puro. É preciso que o ser humano interprete em função de suas intenções e se sua ação, espaço dentro do qual se representa algo que difere da própria realidade. A conjugação de interpretação, intenção e ação constitui o sentido da história na vida humana prática e, para o sujeito, ela ganha sentido quando é importante e significativa para entender e para lidar com circunstâncias da vida contemporânea”. [2014, p.61] Desta forma, pensando a importância de trazer a temática ao debate, para além dos poucos conteúdos específicos, em que a disciplina histórica aborda a região do Oriente Médio, inserimos a mesma dentro de um projeto inter e multidisciplinar intitulado „Festival de Cinema‟, anualmente desenvolvido pela Escola de Ensino Médio Professora Elza Henriqueta Techentin Pacheco, localizada na cidade de Blumenau/SC. Neste, uma determinada temática é debatida com todas as turmas da unidade escolar através de obras 327 cinematográficas selecionadas pelo corpo docente, envolvendo concomitantemente a realização de diversas atividades como a elaboração de pesquisas, produções textuais e audiovisuais. Este ano, a temática central selecionada foi „Diversidades‟, tendo como uma das sub-temáticas a „Diversidade Cultural no Oriente Médio‟. A metodologia de desenvolvimento de todo o projeto partir da realização de um questionário inicial, como parâmetro acerca dos conhecimentos trazidos pelo corpo discente acerca da região, o qual diagnosticou que a grande maioria dos (as) estudantes reproduz um conjunto de discursos construídos a partir de estereótipos veiculados pelos jornais, revistas, redes sociais, bem como por séries e filmes produzidos nos Estados Unidos. Essas representações se configuram num posicionamento, – construído dentro do contexto em que foram produzidas – colaborando muitas vezes com interesses de Estado ao atrelar à região a um constante espaço de conflitos causados pelas disputas econômicas (terras/petróleo) e religiosas (cristãos x judeus x muçulmanos), invisibilizando outros cotidianos e culturas. Desta forma, precisamos reconhecer que os “melhores espectadores do mundo nŌo podem interpretar senão os programas que podem ver. Sua capacidade interpretativa é, de outro lado, submissa a limites internos. Esses limites são os registros culturais disponíveis ou indisponíveis às diferentes comunidades interpretativas. A recepção depende de um leque de recursos culturais que o espectador pode dispor ou nŌo dispor”. [DAYAN, 2009, p.67] Com os resultados levantados a partir do questionário aplicado, construímos um primeiro diálogo acerca da região, debatendo os mapas e reportagens impressas ou televisionadas pela imprensa brasileira. A premissa inicial era reconhecer como os discursos vinculados a essas fontes contribuíram para a perpetuação de uma visão estereotipada acerca da região, impossibilitando qualquer concepção que não atrelasse àquelas populações à guerra, à religião ou ao petróleo. A primeira distinção que enfatizamos para iniciarmos a desconstrução da falácia da cultura única, reconhecendo as identidades dos mais diversos grupos inseridos na região foi de que 328 “nem todos os árabes sŌo muçulmanos, e nem todos os muçulmanos são árabes. Assim, de um modo geral, são árabes aqueles que se identificam com a língua, a cultura e os valores dos árabes, e são muçulmanos aqueles que seguem a religiŌo do islŌ, fundada por Maomé”. [GRINBERG, 2000, p.100-101] A análise das notícias trouxe a percepção que as principais informações trazidas pelas mesmas relatam a ocorrência de algum conflito, seja este o ataque suicida de um homem-bomba, a retaliação governamental ou de um grupo terrorista, porém de forma rápida, superficial, banalizando a situação como se fosse corriqueira e comum ao dia-a-dia das populações inseridas na região. Segundo Edward Said, a partir de uma ampla análise em obras literárias, documentários e nos noticiários “o árabe é sempre mostrado em grandes números. Nada de individualidade, nem de características ou experiências pessoais. A maioria das imagens representa fúria e desgraça de massas, ou gestos irracionais [...]. Espreitando por trás de todas essas imagens está a ameaça da jihad. Consequência: o medo de que os muçulmanos (ou árabes) tomem conta do mundo”. [2007, p.383] Num segundo passo de desenvolvimento do projeto, inserimos uma análise de fontes com base nos discursos produzidos por palestinos e israelenses acerca do conflito que atinge ambos desde meados do século XX. O objetivo dessa etapa era compreender as razões do conflito a partir de pontos de vista distintos inseridos dentro dos dois lados da guerra, de maneira a desconstruir a pretensão de verdade única de um discurso ou de outro. A partir desse diálogo, coube aos estudantes posicionarem-se acerca da temática, construindo uma dissertação-argumentativa que abordasse a temática a partir da figura abaixo, buscando analisar os princípios e ações empreendidas por todos os atores envolvidos. 329 http://www.carlosgeografia.com.br/2014/07/e-se-fosse-nobrasil.html. Com uma maior fundamentação teórica acerca da região, o que incluiu a indicação de obras cinematográficas produzidas na região, tais como Lemon Tree [Eran Riklis, 2008] e Cinco Câmeras Quebradas [Emad Burnat, Guy Davidi, 2011], selecionamos para o dia específico da temática, dentro da semana do projeto „Festival de Cinema‟, na qual as atividades escolares regulares sŌo interrompidas para a exibição de filmes e vídeos que servem de base para o debate, os filmes Paradise Now [Hany Abu-Assad, 2005] e Filmes Ruins, Árabes Malvados: como Hollywood vilificou um povo [Jack Shaheen, 2006], além do vídeo The DNA Journey. A utilização dessas obras leva em consideração a perspectiva atual da prática historiográfica, na qual “nenhum documento fala por si mesmo, ainda que as fontes primárias continuem sendo a alma do ofício do historiador. Assim, as fontes audiovisuais e musicais são, como qualquer outro tipo de documento histórico, portadoras de uma tensão entre evidência e representação. Em outras palavras, sem deixar de ser representação construída socialmente por um ator, por um grupo social ou por uma instituição qualquer, a fonte é uma evidência de um processo ou de um evento ocorrido, cujo estabelecimento do dado bruto é apenas o começo de um processo de interpretaçŌo com muitas variáveis”. [NAPOLITANO, 2005, p.240] Em Paradise Now é retratada a estória de dois rapazes palestinos que são recrutados para um ataque suicida em Tel Aviv, capital israelense. A abordagem principal utilizada a partir do filme foi a desmistificação da visão – muito presente nos discursos coletados a partir do questionário inicial realizado com os (as) estudantes – de que aqueles que executam tal ato são desprovidos de sentimento ou 330 de opinião própria, sendo meras marionetes nas mãos de grupos extremistas que os usariam a fim de alcançar seus objetivos econômicos e de poder. Das falas exibidas através do filme, selecionamos algumas como contraponto aos discursos produzidos pela mídia televisiva ou impressa, principalmente quando um dos protagonistas acusa o mundo de ver, passivamente, as atrocidades que ocorrem na região, não agindo para impedir a continuidade das mesmas. A mesma dinâmica utilizamos com o filme de Jack Shaheen. Focamos as discussões acerca dos estereótipos apresentados pelo próprio documentário, abordando as mais diversas representações pejorativas acerca das populações do Oriente Médio. Em Filmes Ruins, Arábes Malvados: como Hollywood vilificou um povo, baseado no livro do mesmo diretor, torna-se evidente o quanto “as representações possuem uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é exatamente o que elas dizem que é”. [CHARTIER, 2011, p.23]. De maneira gritante, outras vezes de maneira sutil, os mesmos estereótipos são constantemente reproduzidos. Nas palavras do próprio diretor: “„Árabe Land‟, um parque temático mítico e, em „Árabe Land‟, você sabe, você tem a música de suspense, você tem o deserto. Começamos com o deserto, sempre o deserto como um lugar ameaçador. Nós adicionamos um oásis, palmeiras, um palácio que tem uma câmara de tortura no porão. O Pasha fica lá em suas almofadas luxuosas, com um harém de donzelas circundando ele. Nenhuma das donzelas do harém conseguem agradá-lo então eles raptam a heroína loira do Oeste que não quer ser seduzida. Quando visitar „Árabe Land‟ devemos estar conscientes do kit Ali Baba. O que temos, temos os mestres de propriedade de Hollywood indo ao redor e eles estão revestindo as mulheres em calças transparentes, roupas de dança do ventre, eles estão dando os vilões árabes cimitarras - você sabe, essas longas, cimitarras longas. Vemos pessoas se deslocando ao redor em tapetes mágicos, encantadores de turbantes incitando cobras para dentro e fora de cestas. A „Árabe Land‟ do passado é „Árabe Land‟ de hoje”. [SHAHEEN, 2006] Por fim, utilizamos o pequeno vídeo The DNA Journey, a qual realizou um experimento com pessoas de diversas culturas e países, 331 questionando previamente as mesmas sobre suas origens e posteriormente lhes apresentando um mapa de seus laços culturais através de uma análise genética. A abordagem científica, trouxe à tona a percepção de como podemos estar conectados com as mais diversas culturas e povos, incluindo àqueles que julgamos, aparentemente, muito distantes de nós. A análise das obras cinematográficas não encerra a discussão, apenas insere a discussão no cotidiano do corpo discente, abrindo o caminho para que percebam que “o que chamamos de “realidade”, e que se coloca no plural, concerne às elaborações práticas conduzidas pelas diferentes narrativas dos diferentes polos do poder. [...] Cada qual com sua realidade, cada qual com sua narrativa. Isso coincide ou não. Isso se confirma. Isso se disputa. Mas continuamos no domínio da narrativa, em representações”. [COMOLLI, 2008, p.100] Há muito por conhecer ainda acerca dos povos do Oriente Médio – e sobre nós mesmos –, o que não pode ser reduzido a um pequeno conjunto de informações repetidas por uma mesma gama de veículos de imprensa e estúdios de cinema. A guerra existe, as consequências ruins que dela resultam também devem ser vistas, mas a região e a população nela inserida é muito mais ampla e diversa. Precisamos deixá-los serem ouvidos, pois assim muitos estereótipos se esfacelarão. Precisamos ver para além de nossas diferenças, precisamos exercer a atitude cotidiana de estranhar aquilo que nos é dito sobre o outro, precisamos conhecer melhor o outro, para assim conhecermos melhor a nós mesmos. Referências Maicon Roberto Poli de Aguiar é professor da Escola de Ensino Médio Professora Elza Henriqueta Techentin Pacheco; graduado em História pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB); mestre em Ensino de História pela Universidade Estadual de Santa Catarina (ProfHistória/UDESC); membro do Laboratório de Didática de História (LADIH). Mail: maicon_poly@yahoo.com.br 332 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região. In: Revista Fronteiras. – Dourados/MS, v. 10, mº 17, p.55-67, jan./jun. 2008. CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. In: Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n. 23, jan./jun. 2011. COMOLLI, Jean-Louis. 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Acesso em: 26.01.2017. 333 334 O OCIDENTE PELO ORIENTE: A REPRESENTAÇÃO DA SEGUNDA GUERRA PÚNICA NO MANGÁ “HEUREKA”, DE HITOSHI IWAAKI Maria Carolina Silva Martins Pereira Pedro Antonio de Brito Neto Este breve ensaio irá analisar como ocorreu a disputa pela cidade de Siracusa (fato histórico que ocorreu na Segunda Guerra Púnica durante a República Romana), que foi abordada pelo mangaká Hitoshi Iwaaki em seu mangá “Heureka”. Utilizando de técnicas como o anacronismo e o estereótipo, examinaremos como o autor, a partir de sua visão oriental, adaptou um fragmento da História Antiga do Ocidente, de modo que facilitasse a compreensão e assimilação do público japonês. Introdução O capitalismo e a dinâmica econômica que ele proporciona, gerou mudanças significativas no mundo. Somando-se a isso, o “encurtamento” das fronteiras espaciais, intensificado com o fenômeno da globalização, permitiu que a sociedade experimentasse um ilimitado número de encontros culturais provocados, principalmente, pela atuação dos meios de comunicação de massa. Neste sentido, Douglas Kellner (2001, p. 09) irá afirmar que “As narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje. A cultura veiculada pela mídia fornece material que cria as identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global”. Ou seja, na atual sociedade capitalista, verifica-se que os indivíduos sofrem influência direta da mídia e o seu conteúdo. Este último traz símbolos e novas significações para a cultura, deixando com que esta permaneça restrita a um espaço local, expandindo-se para todo o globo. 335 É a partir da premissa acima que se observa que as culturas do Ocidente e do Oriente, de certa forma, atravessaram fronteiras, inserindo-se uma no cotidiano da outra, a partir dos veículos de comunicação de massa. Entre estes veículos, verifica-se o objeto de estudo desse ensaio: os mangás. Para compreender melhor, Will Eisner (2005) afirma que a leitura visual se tornou obrigatória para a sociedade contemporânea. As imagens sempre fizeram parte da produção cultural da humanidade, mas, de acordo com o autor acima, são as histórias em quadrinhos o foco da linguagem visual neste século. Essa alteração de perspectiva fez com que os mangás (e os quadrinhos em geral) procurassem mudanças dentro do seu conteúdo, permitindo ampliar o número de consumidores, especialmente a partir da segunda metade do século XX: “entre 1965 e 1990 os quadrinhos começaram a procurar um conteúdo literário. [...] Autobiografias, protestos sociais, relacionamentos humanos e fatos históricos foram alguns dos temas que passaram a ser abraçados pelas histórias em quadrinhos” (EISNER, 2005, p. 08). Sobre essa questão, Sonia B. Luyten (2005, p. 08) explica que “atualmente, as imagens dos mangás, consumidos por milhares de pessoas semanalmente, mostram uma mudança de ideias políticas e culturais do oriente para o ocidente”. Desta forma, há uma convergência de ideias que são difundidas através dos mangás, que influenciam pessoas tanto no Oriente quanto no Ocidente, visto que neste último os quadrinhos japoneses possuem uma popularidade alta. ―Heureka‖ e o seu cenário histórico “Heureka” é um mangá lançado no ano de 2002 pela editora Jets Comics e é escrito desenhado pelo japonês Hitoshi Iwaaki (o mangaká é mais conhecido no Brasil e no mundo por outra obra, o mangá Parasyte). Este é o primeiro mangá de cunho histórico do autor que possui como plano de fundo a Antiguidade Clássica Ocidental, especificamente, Segunda Guerra Púnica, datada entre 218-201 a. C. O enredo acompanha o conflito que se estabeleceu entre a República Romana e a República de Cartago em torno da conquista da cidade de Siracusa, na Ilha da Sicília, localizada no Mar Mediterrâneo. 336 O ponto de destaque da obra é como se desenvolveu o conflito entre as duas repúblicas e como Siracusa manteve a vantagem sobre Roma a partir das invenções do físico, engenheiro e matemático Arquimedes. Sobre isto, João Monteiro (2015, p. 180) explana que Arquimedes “[...] inventou uma série de dispositivos engenhosos que frustraram os planos romanos”. Atenua-se no mangá a utilização massiva pelo exército cartaginês dos dispositivos elaborados por Arquimedes, derrotando, assim, uma quantidade excessiva de homens do exército romano, culminando na vitória dos cartagineses em primeiro momento. A narrativa se desenvolve em cima do argumento de como Roma conseguiu dominar Siracusa. Dentre as armas retratadas no mangá, podemos destacar as gruas, capazes de quebrar barcos ao meio e alçá-los a uma grande altura; as serras, responsáveis por cortar soldados romanos pela metade, e a roda de Euríalo, uma espécie de catapulta capaz de decepar corpos humanos e animais, bem como a capacidade de destruir armas romanas. Grua. Fonte: http://www.dm5.com/m47618/#ipg36 337 Serra. Fonte: http://www.dm5.com/m47618-p68/#ipg43 Roda de Euríalo. Fonte: http://www.dm5.com/m47618-p68/#ipg66 Todavia, não é Arquimedes o protagonista da história, e sim, Damipo, um espartano que possui a amizade de Cláudia, uma romana que habita a cidade. Mesmo que a trama se concentre nos personagens acima, Iwaaki traz para o leitor as principais figuras históricas envolvidas nas narrativas relacionadas às Guerras Púnicas, como o comandante do exército cartaginês Aníbal, o general Marcelo, de Roma e o próprio Arquimedes. Já Damipo e Cláudia possuem uma origem histórica contestável, ou seja, não se pode afirmar se estas personagens realmente existiram. O conflito ocorrido entre as forças romanas e cartaginesas pelo domínio do Mediterrâneo, tornou-se conhecido na historiografia 338 como as Guerras Púnicas, as quais se dividiram em três etapas: a Primeira Guerra Púnica (264-241 a. C.) centrada na Ilha da Sicília; a Segunda Guerra Púnica (218-201 a. C.), que serviu de plano de fundo para a história do mangá; e a Terceira Guerra Púnica (149-146 a. C.), que se estendeu por somente três anos em uma região ao Norte da África. A Segunda Guerra Púnica retratada em “Heureka” traz consigo alguns elementos já citados acima, como o comandante cartaginês Aníbal Barca e sua estratégia a partir da Hispânia, passando pelos Alpes para chegar ao Norte da Itália, e atacá-la por terra. Aníbal Barca. Fonte: http://www.dm5.com/m47618-p36/#ipg6 O general Marcelo e o próprio Arquimedes completam os elementos históricos centrais, assim como suas ações no desenrolar do enredo, que irá terminar na conquista da cidade de Siracusa pelos romanos, como descreve Monteiro (2015, p. 181): “Em finais de 212 a. C., Marcelo conseguiu, pois, tomar Siracusa, tendo Arquimedes sido morto na mesma ocasião. Na sequência deste sucesso, Roma pôde ampliar a sua rede de alianças na Sicília, ficando a resistência cartaginesa polarizada”. O Ocidente pelo Oriente: a dinâmica do Outro Peter Burke (2004) debate como as imagens podem ser utilizadas como fonte histórica e, ademais, como estas proporcionam, na contemporaneidade, a criação de uma perspectiva do que seria o passado, os povos que já existiram com sua cultura, relações sociais e conflitos. Neste sentido, 339 “Pinturas, estátuas, publicações e assim por diante permitem a nós, posteridade, compartilhar as experiências não-verbais ou o conhecimento de culturas passadas. Trazem-nos o que podemos ter conhecido, mas não havíamos levado tão a sério antes. Em resumo, imagens nos permitem „imaginar‟ o passado de forma mais vívida” (BURKE, 2004, p. 16 - 17). Para o autor, o passado pode ser visualizado melhor com a representação das imagens. Elas proporcionam pensar o passado de “forma mais vívida”. E os mangás, enquanto veículo de comunicaçŌo que se utiliza de texto e imagens realiza isso muito bem, pois estas imagens não fazem apenas o registro dos costumes e cultura das sociedades, como também carregam a impressŌo do “outro”. Os artistas, quando recriam a cultura material, não estão trazendo consigo a verdade/realidade. Todo o cenário é ressignificado baseado nas suas intenções ao desenhar/fotografar o ambiente. Ou seja, uma imagem nŌo é só um registro “cru” do espaço; ela carrega mensagens dos seus autores. Burke (2004) afirma que o artista não é uma máquina que faz a impressão do ambiente; antes de tudo, ele é um comunicador e as imagens são o seu veículo. É neste sentido que se pode considerar o funcionamento dos quadrinhos. Ademais, Barbosa (2005, p. 115) afirma que: “para a construçŌo do quadrinho histórico nŌo é o caráter histórico o guia para a sua confecção, mas sua humanização, sua forma de comportamento que nos leva ao presente, criando assim um tipo. Nesse ponto podemos dizer que a „história oficial‟ serve como pano de fundo para a ficçŌo”. A história oficial e os seus fatos retratados em “Heureka” nŌo sŌo o elemento principal do enredo, e sim, o plano de fundo. Verifica-se, então, que o mangaká constrói uma mensagem para o público contemporâneo. Sendo assim, o passado é utilizado para realçar elementos do presente. É desta forma que se encontram anacronismos na história, da mesma forma que estereótipos relacionados aos personagens. Anacronismo e personagens estereotipados são fundamentais para facilitar a associação dos elementos colocados no roteiro do mangá, 340 pois para assimilar o Outro, os leitores precisam de elementos nos quais eles reconheçam como pertencentes a sua cultura, uma vez que, para Burke (2004, p. 154) “é através da analogia que o exótico se torna inteligível, domesticado”. Desta forma, nota-se, por exemplo, que a estética dos personagens de “Heureka” se aproxima dos filmes hollywoodianos. O cinema, assim como os quadrinhos, é um veículo de comunicação que difunde costumes e hábitos culturais. Como também se utiliza da imagem para formar a sua narrativa, ele possibilita formar figuras que permanecem no imaginário popular. Batalha entre Cartago e Roma. Fonte: http://www.dm5.com/m47618-p36/#ipg5 Neste caminho, Peter Burke aprofunda questão dos estereótipos entre culturas: “em outras palavras, quando ocorrem encontros entre culturas, é provável que a imagem que cada cultura possui da outra seja estereotipada. A palavra „estereótipo‟, como a palavra clichê, é um sinal claro da ligação entre imagens visuais e mentais. O estereótipo pode não ser completamente falso, mas frequentemente exagera alguns traços da realidade e omite outros. O estereótipo pode ser mais ou menos tosco, mais ou menos violento” (BURKE, 2004, p. 155 -156). 341 O estereótipo, portanto, é algo recorrente entre culturas diferentes. A imagem do “outro” é construída a partir de elementos que foram difundidos na cultura popular, seja pelos meios de comunicação ou narrativas orais. O estereótipo nunca vai apresentar a real imagem dessa ou daquela sociedade. Será sempre superficial. Complementando, Alexandre Barbosa (2005) afirma que para os autores japoneses é até mais prático criar uma ficção histórica a partir da história do Ocidente, visto que para eles a cultura ocidental é exótica e fantasiosa; sendo assim, os autores teriam mais liberdade para a criação do enredo. Outro elemento que se percebe na obra é a presença da imagem do herói tradicional japonês, que pode ser definido como “[...] a construção do herói histórico japonês não busca a divindade, mas a humanidade” (BARBOSA, 2005, p. 108). O herói de Heureka, Damipo, não é um general ou o matemático genial. Ele é um rapaz grego simples que se envolve no conflito ao acaso. Ele não busca salvar a cidade, não tem força ou belezas extraordinárias. É uma pessoa comum que acaba mudando os rumos do conflito. Damipo e Arquimedes. Fonte: http://www.dm5.com/m47618p36/#ipg26 Eisner (2005) elucida que os leitores de quadrinhos necessitam que a narrativa lhes tenha elementos familiares. Se a história lhe trouxer elementos dos quais não reconhece, a reação a ela pode ser outro efeito, no qual o autor não espera. É importante que o formato lhe apresente signos reconhecíveis, pois a narrativa não irá fazer sentido. Barbosa (2005, p. 107) afirma que “os artistas japoneses souberam trabalhar os elementos ficcionais com os documentos históricos, criando junto ao público leitor um forte elo entre o real e o imaginário popular”. Os mangakás conseguem criar um equilíbrio 342 entre os fatos históricos, imaginário popular e ficção. É esse equilíbrio que permite com que a história do Ocidente adentre ao Oriente na forma de narrativa gráfica. O quadrinho histórico passa a ter outro sentido. Ele não é apenas uma imagem que retrata a imaginação sobre um passado distante, como também é uma ferramenta para discussão de elementos da sociedade, assim como representação da cultura de um povo. Conclui-se, então, que Hitoshi Iwaaki constrói uma narrativa gráfica consistente em torno da Segunda Guerra Púnica, apresentando as figuras históricas envolvidas de forma estereotipada. Percebe-se ainda o vigente anacronismo que o autor em sua pesquisa adaptou para o mangá. E vemos que, sendo o estereótipo e o anacronismo elementos comuns nas histórias em quadrinhos, o “olhar” oriental no mangá sobre a história do Ocidente é ainda fantástica, exótica, curiosa e essencialmente elaborada para atender ao público japonês. Referências Maria Carolina Silva Martins Pereira é graduada em Comunicação Social (habilitação em Jornalismo) e acadêmica do curso de Licenciatura em História da Estácio – polo Castanhal/PA. E-mail: mcarolinasmp@gmail.com Pedro Antonio de Brito Neto é acadêmico do curso de Licenciatura em História da Estácio – polo Castanhal/PA. E-mail: anthonionetto9@gmail.com BARBOSA, A. Quadrinhos Japoneses: uma perspectiva histórica e ficcional. In: LUYTEN, S. B. (org). Cultura pop japonesa: mangá e animê. São Paulo: Hedra, 2005, p. 107 – 118. BURKE, P. Testemunha Ocular: história e imagem. Tradução: Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004 EISNER, W. Narrativas Gráficas de Will Eisner. Tradução: Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005. KELLNER, D. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001, p. 09 – 21. LYUTEN, S. B. Introdução. In: ______ (org). Cultura pop japonesa: mangá e animê. São Paulo: Hedra, 2005, p. 07 – 13. MONTEIRO, J. G. Expansão no Mediterrâneo. In: BRANDÃO, J. L.; OLIVEIRA, F. de (coord). História de Roma Antiga: das origens à morte de César. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 145 – 219. 343 344 A CONSTRUÇÃO DOS 47 RONIN COMO SÍMBOLO NACIONALISTA Mariana Steiner Farias Introdução O objeto deste ensaio é a construção cultural no entorno do acontecimento histórico conhecido como “A vingança dos 47 ronin”. Segundo Turnbull, “essa versŌo desavergonhadamente ficcional da história, envolve mudanças de nomes, datas e locais, é universalmente reconhecida pelo que ela realmente é: um clássico drama baseado em um relato ficcional de um acontecimento histórico real” (1970, p. 9) O relato ocorreu no período histórico japonês conhecido como Xogunato, estima-se que tenha transcorrido entre 1701 e 1703, e foi transformado em um símbolo nacional na era Meiji, quando o governo japonês precisou recorrer ao “JapŌo tradicional” para “resgatar”, reler, reutilizar e reciclar símbolos, tradições e elementos culturais de períodos históricos anteriores ao período Meiji para criar uma identidade nacional perante a abertura das portas do país para o mundo ocidental. O relato retrata a morte de Asano Takuminokami, um jovem daimyo, ou seja, um senhor de terras, cujas funções incluíam preparativos rituais e apoio militar ao Xogum. Ele havia sido ordenado pelo Xogum para realizar as festividades dos convidados do Imperador, vindos de Kyoto para visitar Edo. Asano procurou orientações com o conselheiro Kira Kozuke-no-suke, mestre de cerimônias do Xogum e cujo poder de influência era de um nível hierárquico superior. Kira, entretanto, tratou-o com malícia, manchando sua honra de samurai. Incapaz de aguentar o insulto, Asano desembainhou a espada contra ele, sem matá-lo. Na época, era estritamente proibido de sacar a espada dentro do castelo de Edo. Asano foi imediatamente preso e condenado ao seppuku, um ritual samurai de suicídio onde o condenado procura manter sua honra. Sua morte resultou na degradação de seus samurais a condição de ronin, que são samurais que perderam seus mestres. Com isso, os 47 ronin de Asano esperaram por quase dois anos após a sua morte para vingá-lo. Após a vingança, os ronin se entregaram ao Xogum, alegando terem finalizado seu legado como samurai, sendo, também, sentenciados ao seppuku. 345 Essa história foi popularizada por meio de um kabuki conhecido como Kanadehon Chushingura, a peça surge em 1748, produzido no período Edo. Kabuki é uma forma de teatro muito popular entre todas as classes sociais, fazendo assim, com que um conto que tenha sido adaptado para o formato de kabuki, se tornando extremamente conhecido. A história dos 47 ronin tem sua importância, também, fora dos kabuki. Em Sengaku-ji – templo budista localizado em Tokyo, onde os restos mortais dos ronin e seu mestre se encontram – ocorrem entre 1 a 7 de Abril e 14 de Setembro festejos pela bravura, lealdade e honra dos ronin. Este ensaio trata da transformação de um acontecimento vingativo, violento e de desobediência ao governante em um símbolo de lealdade, dedicação, paciência e honra. Para isso, deve-se compreender alguns conceitos referentes a “nacionalismo”, “tradições”, “reciclagem de tradições” e “símbolos nacionalistas” em cada um dos períodos apresentados, Xogunato e Meiji. Benedict Anderson (1983) define a “naçŌo” como “uma comunidade política imaginada – e que é imaginada ao mesmo tempo como intrinsecamente limitada e soberana”, sendo imaginada como uma “imagem de comunhŌo” entre os seus membros, mesmo que esses conheçam apenas uma pequena parcela dos integrantes de sua “própria naçŌo”. Segundo Anne-Marie Thiesse (1999), a criação do nacionalismo é composta de vários elementos de um “check list” dos itens “necessários”. Um desses elementos apresentados pela autora é o Bildungsroman, onde a narrativa de formação do país é elaborada, dando um cenário e uma narrativa aos heróis e símbolos nacionais escolhidos. É a forma como o país será representado, a identidade que ele apresentará para si e para outros. No caso deste ensaio, a era Meiji utiliza dos “ heróis nacionais”, representados pelos 47 ronin, para auxiliar na elaboração do nacionalismo japonês. Ao analisar o surgimento e a criação de uma nação, deve-se ter em mente que os elementos que a formam foram cuidadosamente selecionados, deixando assim, outras características e elementos esquecidos. 346 Utilizando as ideias de Hobsbawm (1997) em “A invençŌo das Tradições”, pode-se concluir que a “tradiçŌo” é uma forma de “continuidade em relaçŌo ao passado”, onde a “continuidade” pode ocorrer de forma artificial quando essa “tradiçŌo” está ameaçada ou perdida, ou de forma mais natural, quando ela é reciclada ou adaptada as mudanças na comunidade, sem perder sua essência. O período Meiji busca essa “continuidade” das “tradições” japonesas ao sentir que as mesmas estão ameaçadas pela cultura “ocidental” que estava sendo apresentada e absorvida pelo “JapŌo” em formaçŌo como nação. Para que a tradição possa se tornar inventada, deve ocorrer uma ruptura entre o período em que ela era ativa e o período em que ela foi resgatada e reutilizada. Ao analisar o caso dos 47 ronin, deve-se entender que a “cultura samurai” ainda existia e estava em conflito com a nova forma de governo Meiji. Mas, o que é um samurai? Os “samurais” tiveram sua origem aproximadamente em 930 d.C. Eram originalmente coletores de impostos e servidores civis do império. Tinham ainda a capacidade de lidar com o campesinato, seja for força ou por respeito. Apenas no século X o termo “samurai” recebe um significado, e o indivíduo samurai passa a ter funções militares, onde todos que tivessem condições de seguir os ensinamentos do Kobudo – conhecido como “arte marcial samurai” - seguir a moral da época e atender, por contrato, as demandas de seu senhor feudal. O termo “samurai” significa “aquele que serve”. Seu papel era seguir rigidamente e moralmente seu dever para com os senhores feudais e o Imperador, em troca de pagamentos em terras, arroz ou privilégios, o que posteriormente facilitou sua transformação em uma classe social de alto nível. É importante ressaltar que a “moral” do período se baseava em o indivíduo realizar e seguir as “regras” e atividades que sua classe social e seu trabalho demandavam. Caso isso não fosse feito, o samurai seria castigado e sentenciado ao seppuku. “No período de Tokugawa, o seppuku era usado para punir guerreiros que haviam cometido ofensas graves. Mas era 347 considerado uma maneira digna de morrer; de fato, samurais cometiam rituais de suicídio por livre e espontânea vontade para defender sua honra, para provar sua sinceridade ou protestar contra ações injustas de seus superiores”. (HANE, 1992, p. 29) Xogunato do clã Tokugawa Para melhor entender a utilização dos 47 ronin como símbolo nacional, uma rápida explicação sobre a era Tokugawa e a era Meiji é necessária. O Xogunato de Tokugawa inicia em 1603, quando o jovem daimio Iyeyasu Tokugawa auxilia no golpe contra o Imperador e assume o poder como Xogum. Iyeyasu passou a governar com punho de ferro, implantando medidas que dificultaram a tomada do poder por apoiadores do Imperador e outros. Neste período, o Japão acaba tendo duas capitais, Kioto, onde vivia a família do Imperador e Yedo (atual Tóquio), onde ocorriam todas as decisões administrativas. A estrada que unia as capitais passou a ser ocupada militarmente. As alianças entre os daimios, foram enfraquecidas, afinal, “como os daimios fossem a eterna ameaça ao bakufu, coagiu-os a passarem um ano sim um ano não em Yedo. Essa ausência dos grandes senhores de seus castelos tirava-lhes grande parte da força e os dividia” (PALMARY, 1959, p. 39). Além dessas medidas, o Xogum decidiu tornar os limites entre classes mais rígidas, para que houvesse um maior controle e uma menor comunicação entre elas fora da relação servo-senhor. No caso dos samurais, o Xogum transformou-os em uma classe social, uma casta, onde o título era passado de geração em geração, acabando com a possibilidade de qualquer indivíduo se tornar um samurai. “Uma das separações mais importantes era a que existia entre samurais e os não samurais. Os samurais representavam apenas cerca de 6% da população e incluíam sobretudo burocratas, porque, de facto, foi nisso que se tornaram. Os não samurais estavam basicamente divididos entre os que viviam no campo e os que viviam nas cidades”. (HENSHALL, 2008, p.81). 348 O período Tokugawa durou 210 anos, com aberturas e fechamentos das portas japonesas para o mundo “ocidental”. Ainda no governo de Iyeyasu, ocorreu uma breve abertura, quando houve uma melhoria na frota marítima japonesa com a ajuda do capitão inglês William Adams. Com a constante pressão do mundo ocidental e do cristianismo, as postas haviam sido fechadas de forma brusca. Segundo Palmary “Os descendentes de Iyeyasu iriam levar o feudalismo e o isolamento japonês a um excesso que, por uma contradição clássica da História, abriria por fim o Japão inteiramente ao mundo” (1959, p. 41). Em 1750, a escolaridade japonesa cresce, apesar de as classes sociais mais baixas terem possibilidades menores de obter uma educação básica. Mesmo assim, o número de instituições educacionais básicas cresceu, já a educação dos nobres e samurais se torna mais refinada, com o foco nas artes. Realizavam-se torneios poéticos, sendo o poeta mais famoso na época o samurai Basho. Foi um período de “paz”, quando os samurais acabaram perdendo sua função militar, predominando funções administrativas e cerimoniais. A pressão industrial europeia e americana aumentou. Em 1792, os russos tentam invadir Hokaido sem sucesso, mas deixando o Xogum alerta. Nos anos seguintes, a costa japonesa passa a ser fortemente armada. A crise econômica e agrária que atingia o Império piorou, os intelectuais e os comerciantes queriam a abertura das fronteiras japonesas para o “Ocidente”, e a nobreza estava descontente, em suma, o Xogum perdeu todo seu apoio. “Os daimios, cansados da mŌo de ferro do Shogunato Tokugawa, começavam a rebelar-se. Os samurais, com 200 anos de paz, viam a perda do gume das catanas juntar-se à própria pobreza. Os chomins prosperavam mas sabiam que o intercâmbio mundial iria transformá-los de mercadores ricos em comerciantes milionários. Os intelectuais sentiamse inquietos com a inferioridade científica japonesa ante os milagres que a técnica européia criava. Os políticos, sob a influência filosófica de Motori e Hirata, viam na pobreza do Imperador a marca da ururpação do clã Tokugawa. O povo, sabendo vagamente das conquistas políticas da Revolução Francesa, começava a amadurecer políticamente. A família imperial, cansada do astracismo político, da penúria econômica e da prisão sem grades em que vivia, aguardava 349 com impaciência a queda do Bakufu” (PALMARY, 1959, p. 50) Neste mesmo período, a China estava perdendo a guerra contra a abertura dos portos para a Inglaterra, que utilizava o ópio e o vício chinês como arma principal. O temor japonês de passar por algo semelhante cresceu, fazendo com que, de muito malgrado, aceitassem o Tratado de Kanagawa em 1854 com os Estados Unidos da América. “O tratado, junto com outros que se lhe seguiram, concertados com nações europeias, punha fim às perseguições religiosas, abria os portos japoneses ao mundo e dava extraterritorialidade aos nacionais dos países signatários” (PALMARY, 1959, p. 51) Assim ocorre a abertura completa das portas japonesas para o “mundo ocidental”, apesar disso, ainda há uma resistência em relação aos novos costumes. Em 1868 morre o Imperador Komei, assumindo seu filho Meiji. “O novo imperador torna-se a esperança do país” (PALMARY,1959, p.52). O último Xogum abdica e “entrega” o poder administrativo ao novo Imperador, Meiji. O Império Meiji Oficialmente, a era Meiji começa em 1867, com as portas do Japão abertas, novas possibilidades políticas e reformas em todas as áreas. Ocorre uma tentativa frustrada de transformar o Japão em uma democracia capitalista, os samurais mais tradicionalistas se uniram em uma causa comum: evitar a entrada total do “Ocidente” no país, causando uma guerra civil. Apesar disso, o Imperador conseguiu criar diversos ministérios, criar um sistema monetário – cuja moeda era o yen – os impostos passaram a ser cobrados com mais facilidade e organização, facilitou o comércio internacional e organizou o ensino básico para todo o JapŌo, “O Imperador decreta que a educaçŌo deve visar o amor à pátria e a veneraçŌo ao trono” (PALMARY, 1959, p.59). Começou uma forte campanha para que a população em geral aprendesse o máximo possível com o mundo Ocidental, além de contratar estrangeiros para auxiliar na modernização do país, “Contrata-se 350 ingleses para as estradas de ferro, alemães para a medicina e higiene pública, americanos para a instrução, italianos para a arte. Por sua vez, a nata dos estudantes do país é enviada à Europa para aprender tudo que possa interessar à naçŌo” (PALMARY, 1959, p.58) e implantou o serviço militar obrigatório. Com essa última medida, os samurais perdem seu status social de guerreiros e deixaram de ser uma classe social, uma casta. “A lei de serviço militar obrigatório deu uma sacudida nos antigos samurais, pois ela questionou sua razão de ser, o significado de sua existência como classe privilegiada” (DUUS, 1976, p. 81). “Em 1876 todos os estipêndios foram obrigatórios e os samurais foram finalmente proibidos de usar as duas espadas que, há séculos, os separaram da gente comum. A abolição do samurai como uma classe estava completa. ” (DUUS, 1976, p. 83). Tornaram-se, então, magnatas da indústria e integrantes do governo. Em 1904, o Japão entra em guerra com a Rússia e vence, mas o período de “paz” japonês estava oficialmente acabado. Em 1912 morre o Imperador Meiji. Samurai em dois tempos Ao analisar o caminho do samurai no último Xogunato e na era Meiji, deve-se analisar alguns fatos importantes. Os samurais “perdem” sua funçŌo militar pelo longo período de “paz” durante o Xogunato, por isso, acabaram virando burocratas, administradores e mestres de cerimônias. “As suas guerras passaram a ser meras guerras de papel” (HENSHALL, 2008, p. 87). Com essa crescente perda de importância militar, surgiu uma imagem romantizada do samurai. “Durante os anos de paz no período Tokugawa, os filósofos guerreiros começaram a formular o que consideravam o modo ideal de conduta para o samurai. Claro que, mesmo antes de Tokugawa, uma conduta do que é certo e errado tinha sido definida, e era esperado do samurai viver esses princípios de dever, lealdade, integridade, honra, justiça, fidelidade e coragem”. (HANE, 1992, p. 28) O Bushido (O caminho do guerreiro) era utilizado como “guia” para o samurai voltar a seguir os passos de guerreiro, inspirado nessa visão romantizada dos samurais. “Ao narrar contos de guerreiros 351 que estavam envolvidos nas batalhas de poder no período Heian e posteriores, os contadores de história geralmente idealizavam a conduta do guerreiro, descritos como cavalheirescos, altruístas e heroicos. ” (HANE, 1992, p. 28). Uma definição que deve ser deixada bem clara é a da “moral”, que neste caso “nŌo é uma questŌo de bem e de mal, mas de fazer o que é esperado, no contexto das relações sociais e da ordem” (HENSHALL, 2008, p.88). Existia ainda uma influência do séc. XVI sobre as ações de certos samurais, o Zen. Este era um estudo que se baseava em pensamentos profundos e meditações longas sobre o nascimento e a morte, “infelizmente, essa crença reforçou a atitude de “sangue frio” dos samurais sobre o assassinato de pessoas, apesar disso, idealmente, o samurai deveria se comportar de forma compassiva e magnânima” (HANE, 1992, p.29). “Havia alguns no JapŌo dos Togukawa que perambulavam pelo país, causando perturbações aos aldeãos e inquietando as autoridades. Os quarenta e sete em questão, no entanto, sŌo vistos como a encarnaçŌo das virtudes do samurai” (HENSHALL, 2008, p. 87) Conclusão Com base nos conteúdos apresentados acima, conclui-se que a imagem do samurai já havia sido perdida no período do Xogunato, sendo então reinventada neste mesmo período. Com o início da era Meiji, a necessidade de criação de símbolos e heróis nacionais foi gigantesca, o que incentivou uma busca no passado por estes elementos. Os samurais continuavam existindo no período do Império Meiji, o que resulta em uma falsa ilusão de uma reciclagem direta da imagem dos samurais, portanto, dos 47 ronin. No caso dos 47 ronin, acabou sendo um elemento que ”restaurava” o “caminho do samurai”. Por ter existido uma perda do “real samurai” ainda no Xogunato, a era Meiji utiliza uma reciclagem de uma tradição reinventada baseada no causo da “vingança dos 47 ronin”. 352 Referências Mariana Steiner Farias, aluna da graduação em bacharelado em História da PUCRS. mariana.steiner@acad.pucrs.br ALLYN, John; TURNBULL, Stephen. 47 Ronin. Singapore: Tuttle Publishing, 1970. ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Rev. ed. ed. London: Verso. 1991. DUUS, Peter. The Rise of Modern Japan. Boston: Houghton Mifflin Company, 1976. HANE, Mikiso. Modern Japan: A historical survey. Boulder: Westview Press, 1992. HENSHALL, Kenneth G.. História do Japão. Lisboa: ed. 70, 2008. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. PALMARY, Luiz. Pequena História do Japão. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1959. THIESSE, Anne-Marie. A Criação das identidades nacionais: Europa, séculos XVIII-XX. Anos 90, Porto Alegre, n.15, 2001/2002. 353 354 OS FESTIVAIS EGÍPCIOS: MITO, MAGIA E RELIGIOSIDADE Maura Regina Petruski O Egito antigo está presente na contemporaneidade sob as mais diferentes formas, contextos e interesses, isso não podemos negar. Mas o que faz com que essa sociedade desperte o fascínio dos hodiernos, que continuam buscando explicações a partir da materialidade de vários suportes por eles deixados, tentando entender o mundo por eles almejado e construído? A resposta talvez esteja na força dos sujeitos que ali viveram e partilharam, cada qual a sua maneira, ao deixaram suas marcas e contribuições no espaço que elevaram essa sociedade a condição de atemporal predominada pela referência da estruturação de uma realidade conduzida pela diferença e rotulados de distintas formas pelos seus posteriores que tentaram compreendê-los. Símbolos, traços e particularidade de uma cultura foram eternizados em artefatos que serviram de inspiração que foram apropriados e ressignificados ao longo do tempo, que reafirmam sua monumentalidade diante dos olhos dos observadores, os quais trazem à tona a história de uma sociedade que não se deixou apagar sob o território árido do nordeste africano. Rosalie David, faz menção a essa perspectiva quando escreveu que, “os antigos egípcios deixaram um rico legado, o qual, além de monumentos bem-preservados, artefatos e restos humanos, inclui uma extensa literatura religiosa e secular. Todas essas fontes nos possibilitam compreender e interpretar ideias e conceitos que, em alguns casos, se originaram há 5000 anos” (2011, p.40). E, de certa forma, é a sua perspectiva religiosa que mais despertou a curiosidade, visto que construíram concepções de crenças atreladas a dimensões políticas e sociais que transformaram sua trajetória em práticas de um porvir sustentadas e organizadas num complexo sistema que lhes assegurava a continuação da vida fundamentando condutas e modos para sua existência na tentativa de busca pela imortalidade. 355 Um amplo panteão de deuses com características antropozomórficas onde homens, animais e forças ocultas se misturavam e estabeleciam um conjunto de crenças transformadas em representações imagéticas que criava uma identidade religiosa, que foram construídas para serem lidas simbolicamente. De acordo com Filoramo e Prandi, “os comportamentos e sinais, as linguagens e os símbolos são o objeto privilegiado da antropologia religiosa, para a qual a experiência do sagrado interessa não só em suas origens, mas também na sua explicação em mitologias e cosmogonias, crenças e rituais observáveis como experiência humanas” (2003, p.205). Eram os deuses que concediam benesses aos mortais, sendo que no decorrer da história dessa sociedade, uns foram ganhando mais visibilidade e relevância em relação aos demais, como também o inverso, quando outros foram perdendo o lugar alcançado sendo substituídos. E para honrá-los os egípcios criaram várias formas de intermediação, dentre elas estão os festivais que refletiam anseios de indivíduos que canalizavam para esses momentos suas forças na busca pela atuação desses seres superiores no mundo terreno. Tais comemorações foram organizados pelos sacerdotes como forma de ordenar a vida civil e religiosa do Egito faraônico, que eram celebrados tendo como parâmetro de referência três modalidades de calendários: o primeiro; o calendário Lunar, de 30 dias dividido em três semanas de 10 dias, o segundo; o calendário civil, de 365 dias, tendo como base o sol e possuindo três divisões: Akhet ( inundação), Peret (semeadura) e Shemu ( colheita); e o terceiro, o calendário sótico, baseado no ciclo da estrela Sótis. Contudo, sua estruturação foram advindas de duas instâncias, do faraó e de alguns representantes da classe sacerdotal, que estabeleceram e configuraram quais seriam as honras festivas que deveriam ser oferecidas aos deuses, observando-as, podemos enquadrá-las em três categorias; os dedicados a um deus(a), para homenagear os mortos e os dos ciclos do trabalho agrário. 356 Esses eventos eram aguardados com entusiasmo pelos nilóticos e poderiam durar um dia somente ou mais, variando com as intenções das comemorações. Além de que, ao longo do tempo, dias foram acrescentados a temporada festiva, chegando a alcançar até o número de doze, dependendo da relação e proximidade que o faraó tinha para com o deus homenageado em função de seu devotamento, pois nesse caso a honraria se dava com mais grandiosidade, brilhantismo e pompa. Nem sempre o representante do Estado faraônico se fazia presente nesses períodos de solenidades, em muitos casos ele designava outros para representá-lo, sendo que em sua grande maioria o escolhido era integrante da classe sacerdotal, fato esse justificado porque alguns rituais só poderiam ser consumados por pessoas desse segmento. Era por intermédio das festas que os moradores da terra da esfinge chegavam próximos dos seus deuses, isso porque em outros momentos de sua religiosidade lhes era proibido o acesso ao interior do templo e seus arredores, dada a importância desse espaço para os egípcios e a organização da sua sociedade que vetava essa possibilidade. Assim, no conjunto festivo, temos dois momentos; a fração privada e restrita das celebrações que se davam no interior templário que contava com a presença dos sacerdotes, sacerdotisas, algumas dançarinas e músicos, sendo que cada segmento desses ocupava um lugar específico no espaço sagrado, porém somente os religiosos adentravam na sala do deus(a). E a outra, a parcela visível e pública, quando a população se juntava a esses formando o coletivo. E, diante da impossibilidade de participação total nos festivais, os indivíduos compartilhavam a presença materializada dos deuses quando acontecia a sua exibição pública, a partir de sua saída oficial do templo, etapa ímpar e esperada por todos. Nessa perspectiva, Julio Gralha registrou que, “Em vários festivais durante o ano egípcio, sobretudo o de Opet, as imagens das divindades deixavam os templos e, em pequenos santuários em forma de barca, eram carregadas nos ombros dos sacerdotes de onde, de acordo com o ritual, estariam acessíveis aos outros segmentos da 357 sociedade egípcia. Entretanto, a imagem do deus não era visível, com a exceção possível do deus Min (divindade parecida com Amon tendo o falo ereto). Durante o festival de Opet, que anualmente rejuvenescia o deus e o rei, Amon-Ra do templo de Karnak viajava até o templo de Luxor (a poucos quilômetros) e, em cortejo, o santuário da barca no qual o deus estava encerrado, podia ser visto pela população que acompanhava o cerimonial; em dado momento, Amon-Ra fornecia respostas através de oráculos e era acessível às preocupações humanas. Mesmo assim, esta imagem do deus nŌo podia ser vista” (2016, p. 268). A parte processional era uma característica comum nos festivais, sendo que o trajeto percorrido era variado podendo ser realizado entre dois pontos estabelecidos ou então visitar outros templos próximos ao seu. Quando cumprida em solo, o percurso poderia ser subdividido com o estabelecimento de paradas obrigatórias que se davam por um curto espaço de tempo para a realização de rituais, sendo que algumas das estruturas eram montadas especialmente para essa circunstância. Entretanto, outras, eram integrantes do próprio espaço, de caráter e uso permanente pelos moradores locais sendo incorporadas e desfrutadas como fração do caminho do séquito. Essas serviam também como descanso para os carregadores que se restabeleciam do cansaço do peso sobre seus ombros. Uma das vias processionais mais grandiosa trilhada durante os festejos era a do trajeto que ligava Karnak a Luxor, utilizada durante festa de Opet, a qual contava com uma avenida ladeada com várias esfinges que culminava com o templo do deus Amon. Temos também as procissões fluviais que se davam nas águas sagradas do rio Nilo, quando inúmeros barcos se moviam seguindo a barca que transportava a imagem do deus(a). Muitas saíam do ponto inicial, outras, ficam esperando no meio do percurso integrando-se as demais. A que acontecia em honra a deusa gato Bastet, na cidade de Bubástis, era nessa perspectiva. Para participarem dessas horas de laudação muitos indivíduos se deslocavam de longas distâncias, fazendo com que o festejar se transmutassem muitas vezes em „festas de peregrinaçŌo', pois 358 pessoas de várias partes do território saíam em direção ao local da celebração, sendo que nesse caso não eram as estradas ou caminhos que eles utilizavam, mas sim o rio Nilo o qual servia de elo ligação entre o ponto de partida e o de chegada. Destaca-se que essas não eram as únicas oportunidades de comemoração que estavam presente entre os egípcios, pois também encontramos outras modalidades de festas, ou heb, que poderiam ser de cunho privado ou público, civil ou particular. Um elemento que deve ser lembrado em relação a intensidade dos festejos é que ela não era a mesma nas várias localidades egípcias, referência cuja explicação pode ser estabelecida a partir de sua configuração urbana, pois a mesma estava dividida em cidades (niwt) e aldeias (dmi), visto que possuíam funções distintas no conjunto do Estado faraônico e, consequentemente, sua própria estrutura já era uma restrição para que algumas das fases comemorativas acontecessem. Nesse caso temos como referência a supremacia dos festivais que se davam em cidades como Tebas, Bubástis e Menfis. Outro aspecto a salientar no que se refere a intensidade das comemorações, é que elas intercorriam de forma sincrônica, ou seja, aconteciam em distintos lugares numa mesma temporalidade o que contribuía para que a sua grandeza se fizesse nos centros maiores em detrimento das menores. Essas eram bastante musicalizadas com sons provenientes de instrumentos como sistros, crotálos, pandeiros, tamborins, harpas e flautas, que proporcionavam inspiração às dançarinas que esbanjavam sensualidade nos movimentos corporais quando braços e pernas executavam coreografias e performances num jogo de sentidos estimulando a atenção dos presentes. Tanto a música quanto a dança eram utilizadas como forma de comunicação renovando os laços entre os terrenos com os seus superiores. Muitos hinos eram recitados em vários momentos, visto que através da música se afastava e acalmava forças temíveis que tentassem agir durante a realização dos ritos, chamando para a presença do divino. E é, a partir das inscrições contidas no interior dos templos, nas estelas, estátuas, túmulos, papiros e ostracas que obtemos informações a respeito dos antigos festivais egípcios, cujos 359 calendários festivos mais antigos conhecidos remontam ao período da quinta dinastia (2479-2311), sendo que o mais completo e preservado é o que se encontra registrado no Templo de Milhões de Anos do faraó Ramsés III (1194-1163), em Medinet Habu. Na obra de Heródoto intitulada Histórias, também encontramos menção às comemorações festivas religiosas que se passaram em algumas das cidades da terra dos faraós. Assim escreveu o autor: “Os Egípcios celebram todos os anos grande número de festas. A mais importante e cujo cerimonial é observado com maior zelo é a que se realiza em Bubástis, vindo em segundo lugar Heliópolis, em honra a Ísis. Em Bubástis, situada no meio do delta, existe um grande templo consagrado à referida deusa, que em grego se denomina Deméter. A festa de Minerva, celebrada em Saís, é a terceira em importância. A quarta se realiza em Heliópolis, em honra ao Sol; a quinta em Buto, em louvor de Latona, e, finalmente, a sexta em Paprémis, dedicada a Marte” (1964, p. 139). Outro documento que ficou registrado sobre os festivais é a Estela de Ikhernofret, que traz informações a respeito do Festival de Osíris que acontecia na cidade de Abidos, na qual encontramos elementos relacionados a preparação da comemoração que se subdivide em três etapas: a batalha travada pelo deus e a derrota dos seus inimigos, a sua morte e a transferência de seu corpo ao túmulo em Peker, e o seu renascimento ao amanhecer. A interpretação que se dá a esse festival é que com a derrota dos inimigos de Osíris, confirmaria a elevação do faraó como o único e legítimo herdeiro de sua posiçŌo como o „Senhor dos egípcios‟. Essas passagens relatadas na estela foram encenadas durante todo o período que o evento foi realizado, ou seja, ao longo de quase dois mil anos, como forma de rememorar a importância e a força desse personagem na sociedade faraônica. Joaquím Barceló, quando analisou as celebrações festivas que se passaram nas sociedades do mundo antigo, escreveu que “el sentido originário de la celebración festiva exige entender la acción humana em relación directa com lo 360 divino, porque sin la intervención de los dioses los esfurzos humanos no puedem prosperar ni dar frutos” (1998, p.81). Ainda, de acordo com o autor, “en la fiesta correspondiente, al hombre se le brinda la oportunidad de participar en una obra divina, la de re-crear una realidad y de restablecer su orden originario, haciéndole así colaborador de los dioses” (1998, p.81). Normalmente, os festivais religiosos eram regados pelo consumo exacerbado de bebidas, tais como o vinho e cerveja, como também de pão, carne e frutas, sendo que os alimentos, algumas vezes, eram oferecidos pelos sacerdotes. Nessa ocasião, havia a liberação para o consumo de peixe, o que não acontecia no restante do ano, pois a ingestão desse animal aquático era restringida em diversas partes do território egípcio, devido ao tabu imposto fundamentado pelo mito de Osíris, pois foi um peixe que comeu o falo dessa divindade. Por fim, vale dizer que os festivais eram uma forma de transmissão de elementos da religiosidade egípcia, na preservação de valores e crenças de uma sociedade que muito foi buscada no sentido de compreensão, além de que, eram aplicados como um instrumento de legitimação do poder por parte de poucos numa terra de muitos. Referências Maura Regina Petruski é professora doutora do departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Email: mpetruski@uol.com.br BARCELÓ, Joaquim. El Sentido Religioso de la Fiesta em el Mundo Antiguo. In: GRAMMATICO, G. et alli. (eds.). La Fiesta como el Tiempo del Dios. Santiago: CEC, 1998. p.77-86. DAVID, A. Rosalie & MACHADO, Angela. Religião e Magia no Egito Antigo. Rio de Janeiro:Difel, 2009. FILORAMO, Giovanni e PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. 3ª ed. SP: Paulus, 2003. GRALHA, Júlio. Aspectos da divindade no Egito (Reino Novo) Iconografia e a imagem como elemento de culto nas relações deus humanidade e deus-faraó. Revista Mundo Antigo – Ano V, Volume V, Número 09, 2016. p. 265- 280. HERÓDOTO. Histórias. Clássicos Jackson, 1964. 361 362 PIRATAS JUDEUS NA ANTIGUIDADE Nelson Rocha Neto O termo Hebreu tem origens obscuras em Éber ou Heber, designação para uma região da Síria e da Palestina, como também um povo. Em seu sentido primitivo foi proposta a etimologia Ibri, "aquele que vem do outro lado" (dos rios Eufrates ou Jordão). O historiador Isaías Golgher, apropriou-se deste pensamento para ilustrar o ato de "atravessar ou transpor", dando-lhes igualmente o sentido de "emigrante”, “apátrida" ou "escravo", evidenciando a linhagem de Abraão como semelhante à Habiru. Os Habirus ou Hapirus constam em variada documentação como distintos agrupamentos, semitas ou não. No entanto, as sociedades acadianas, ugaríticas e egípcias designavam “estrangeiros” os grupos sociais considerados intoleráveis e impossibilitados de estabelecerem-se como povo. [Guérios, 1987, p. 14]. Ao longo da Antiguidade Oriental, o convívio com os povos dominantes proporcionou aos viandantes hebreus transitarem dentre os muitos grupos: escravizados, comerciantes, tropas soldadescas, saqueadores, etc., até estabelecerem o laço de unidade grupal, formulando novas concepções de mundo. Assim, a proximidade com os fenícios “escumadores dos mares”, progrediu em meio à diplomacia. Os primeiros reis israelitas abasteciam-se de matéria-prima e negociavam a mão de obra na construção de embarcações com o povo que ultrapassou as “Colunas de Hércules”. Porquanto, desde a Antiguidade, as três vocações interdependentes coexistiram no mesmo indivíduo: marinheiro-pirata-mercador. Contudo o rei Davi, filho de Jessé, edificou o sentimento unitário entre os judeus, embora houvesse divergências entre as tribos desde os tempos do rei Saul. Unificou o reino de Judá, cineus, iemareus e demais povos não hebreus. Após a conquista de Jerusalém, a manutenção do Estado tornou-se instável: os mercenários exigiam pagamento e os recursos para as obras escasseavam. Assim, o desenlace foi perpetuar uma política expansionista, subjugando e despojando os inimigos. Cabe ressaltar a débil territorialidade do reino de Davi, se comparado aos impérios egípcios, babilônicos ou hititas. Porém, atingiu o ápice da região em séculos. [Pinsky, 2001]. 363 Somente por volta da Dinastia Hasmoneana (140-37 a.e.c.), os judeus puderam desfrutar de um porto marítimo. Desejosos em estender os domínios de Israel, iniciaram o processo de conversão obrigatória aos povoados subjugados. Simão Macabeu, sumo sacerdote e general, após conquistar o porto de Jope, desempenhou um importante papel na implementação da vocação marítima [Cohén, 2010]: “[...] este puerto, el principal de los Asmoneos, sirvió efectivamente de asilo a las fortificaciones piratas. En cierto modo la misma piratería puede juzgarse un hecho "oriental" por sus orígenes y vínculos portuarios, pero sobre todo por la explicación política de sus diversas funciones: em cuanto tal, la piratería se ajustaba a la doctrina política esencialmente "oriental" de Alejandro Janeo”. [Paul, 1986, p. 187]. Logo, um dos seus filhos, João Hircano tomou o porto de Asdode, “antigua ciudad filistea situada a cuatro kilómetros del litoral meridional [...] fue capital de la región y fortaleza hasta los Asmoneos”. [Paul, 1982, p. 194]. Em seguida, o primeiro rei da dinastia, Alexandre Janeu, anexou os portos de Gaza e da Torre de Strato (ou Cesarea). [Cohén, 2010]. Desta forma, recrutaram uma tropa de marinheiros para préstimo real: “[...] los piratas se reclutaban sobre todo en Cilicia, donde estaban sus bases de adiestramiento (“cilicio” era sinônimo de “pirata”). Pues bien, entre los mercenarios de Alejandro Janeo abundaban los naturales de Cilicia”. [Paul, 1986, p. 187]. O historiador Flávio Josefo, judeu helenizado, pormenorizou em sua obra, Antiguidades dos Judeus, as escaramuças dos piratas judeus contra os romanos e a transição para uma vida marinheiresca como uma subdivisão da sociedade: “[...] um grande número de judeus, tanto dos que se haviam revoltado contra os romanos, como dos que haviam fugido para as cidades de que se haviam apoderado, reconstruíram Jope, que Céstio havia destruído e, não podendo encontrar com o que viver em terra, por causa da devastação dos campos, construíram um grande número de pequenos 364 navios, puseram-se ao mar e percorrendo as costas da Fenícia, da Síria e mesmo do Egito, perturbaram com sua pirataria, todo o comércio daqueles mares”. [Josefo, 2004, cap. 29]. Destarte, Josefo menciona a acusação de Hircano II, direcionada ao seu irmão Aristóbulo II envolvido em atos de pirataria. Os filhos do rei Alexandre Janeu disputavam um litígio sobre a forma de governo que adotariam. Para Pompeu: “[...] equivalía a identificar su actividad con la de los reyes antirromanos, Tigrano y Mitrídates que mantenían estrechos lazos con los piratas”. [Paul, 1986, p. 186]. Por conseguinte, formou-se na cidade de Damasco uma assembleia mediada por Pompeu, onde se reuniram os embaixadores de toda a Síria, do Egito e da Judéia: “[...] Hircano queixava-se de que, sendo o mais velho, Aristóbulo queria privá-lo do que lhe pertencia por direito de nascimento e obrigá-lo a se contentar com uma pequena parte, usurpando todo o resto; que ele fazia incursões pelas terras contra os povos vizinhos e praticava a pirataria nos mares; que não se precisava de outra prova de seu mau caráter, de sua violência e de seu partidarismo senão o fato de haver levado o povo a se revoltar [...]”. [Josefo, 2004, cap. 5]. Não obstante, outra evidência da pirataria judaica do período Macabeu, século I a.e.c., encontra-se gravada na câmara funerária de Jasão, em Jerusalém. Dentre as lamentações grafadas em grego e aramaico, há uma menção sobre a travessia de Jasão para a costa do Egito. Também, um mural em carvão vegetal evoca a imagem de dois navios de guerra perseguindo uma embarcação. Estudiosos especulam que Jasão, filho de Pinhas, possa ter sido um comandante saduceu, marinheiro, comerciante ou pirata. [Schmidt, 1998]. Outro episódio de pirataria está na descrição de Josefo sobre Anileu (Anilaios) e Asineu (Asinaios), irmãos órfãos judeus oriundos de Neerda, na província da Babilônia. Margeada pelo rio Eufrates e fortificada, a cidade servia como entreposto de todo o erário que destinava a Jerusalém, pois não estava à mercê dos inimigos. Neerda contava com a proteção da cidade de Nisibe, ambas anexadas ao Império Parta (ou Arsácida). [Sommer, 2009]. 365 As façanhas dos mandriões relatadas pelo cronista, contam que após serem espancados pelo seu senhor ao chegarem repetidamente atrasados para o trabalho, Anileu e Asineu, voltam-se para o banditismo, refugiam-se nos pântanos do Eufrates e lideram um grande número de judeus renegados, fundando um principado de piratas: “Construíram depois um forte, de onde mandavam pedir aos habitantes dos países vizinhos uma contribuição, tanto em gado como quanto em outras coisas necessárias para a sua subsistência, com a promessa de defendê-los contra os que os quisessem atacar, se os atendessem, e com ameaça de matar os seus rebanhos, caso nŌo o fizessem”. [Josefo, 2004, cap. 12]. Ao ser noticiado sobre o despotismo dos irmãos e seus partidários, o rei parta Artabano II, destacou soldados para que os eliminassem em um sábado. Não obtendo sucesso em seu intento, Artabano II estabeleceu uma aliança com os piratas judeus para manter os sátrapas sob vigilância, preservado de ladrões e outras “calamidades”, confiando-lhes o controle do território babilônico que já ocupavam. Assim, formaram um Estado semi-autônomo ao longo de quinze anos. A ruína da “colônia pirata” iniciou com o casamento de Anileu com a viúva de um general parta, o qual matou em batalha. Os costumes pagãos da esposa de Anileu encontraram a desaprovação entre o bando e semeou dissensões. Asineu acabou envenenado pela cunhada por causa de suas declarações a respeito dos seus hábitos. Logo, Anileu acumulou toda autoridade e liderança das tropas, entrando em confronto com Mitrídates: “[...] que era uma das principais autoridades entre os partos e genro do rei Artabano. Saqueou o seu território, tomando um grande número de despojos, tanto em dinheiro quanto em escravos, animais e outras coisas de valor. Mitrídates, que então não estava afastado dali, ao ser informado de que Anileu tomara as suas vilas sem motivo, ficou enfurecido com aquela injúria e reuniu o maior número possível de soldados [...]”. [Josefo, 2004, cap. 12]. 366 Após submeter Mitrídates à humilhaçŌo como “montar nu sobre um burro, o que entre os partos é a maior das ignomínias” [Josefo, 2004, cap. 12], Anileu poupou a vida daquele que considerava um dos maiores generais e receava uma vingança desproporcional por parte do rei aos judeus da Babilônia, onde estava homiziado: “[...] investiam contra alguns castelos e devastavam toda a região ao redor. Os babilônios, vendo-se tratados daquela maneira, solicitaram aos judeus de Neerda que lhes entregassem Anileu. Estes, porém, responderam que isso não estava em seu poder, e os babilônios insistiram em que pelo menos tratassem com ele algumas condições de paz. Os judeus o prometeram e enviaram imediatamente a ele alguns deputados, acompanhados por representantes dos babilônios. Estes, após observar o lugar para onde Anileu se retirava, mataram-no durante a noite, bem como aos que estavam com ele. Nisso não correram risco algum, porque aqueles homens estavam todos embriagados”. [Josefo, 2004, cap. 12]. Portanto, a multiplicidade das práticas e leis exacerbou contínuas divergências nas relações entre babilônios e judeus. Após o assassinato de Anileu e a desarticulação do seu bando, o receio dos seus adversários findou. Artabano nomeou os irmãos piratas como generais com o intuito de frear uma conspiração sátrapa e aristocrática. Oferecendo apoio a comunidade judaica na Babilônia, Artabano preservou o seu poder e jogou vários grupos rivais uns contra os outros. O casamento de Anileu com a viúva de um oficial parto constituiu uma tentativa de se lançar à política dinástica. Finalmente, a apostasia de Anileu, instigada por sua esposa, e suas ações posteriores, indica que os irmãos fomentavam o judaísmo hostilmente em seu território. [Sommer, 2009]. Finalmente, os homens do mar ao longo da história distinguiram-se pela insatisfação social, instabilidade entre as relações de poder, insubmissão as leis e a servidão. Embora não estivessem apartados inteiramente da sociedade, a infração de transporem-se da terra para a água constituiu no domínio do antimundo, um lugar malfadado pela imaginação dos povos. O limiar dessa transição pela água representa a dualidade da visão da vida pirática: 367 “O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado. [...] É também no limiar que certas culturas paleoorientais (Babilônia, Egito, Israel) situavam o julgamento. O limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do espaço [...]”. [Eliade, 1992, p. 19]. Entretanto, numa sociedade pirata, as relações sociais se reproduziam na embarcação, sua revolta interpretada descompassadamente no tempo marítimo, na violência, na divisão de trabalho, despontando um mundo flutuante, representação dos devaneios coletivos em terra firme: hierarquia, subserviência e escravidão. Não fixar-se num território veiculava a ideia de transgressão e insurgência, tanto para a comunidade como para o indivíduo. O dilaceramento das relações entre as sociedades possibilitou aos piratas transformarem o madeirame das embarcações num mundo edênico no qual se optou socializar por vias turvas. Dividindo um enorme contingente, condensavam as incoerências da vida em sociedade. Além das violências contra as populações costeiras, os saques as embarcações, proliferações de moléstias, deserções e pagamentos por serviços prestados, grosso modo, a pirataria revelou uma faceta da condição humana sob a indiferença das regras de condutas sociais ou sagradas. Os conveses transformaram-se em espaços de socialização para variadas etnias relegadas às margens sociais. Sem demora ligaram os continentes, desbravando as relações humanas a partir do momento em que os primeiros piratas, “que vieram do outro lado”, removeram a rocha que obstruía a “boca de Tehom”. Referências Nelson Rocha Neto é graduado em História e especialista em História Cultural pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: nelsonrochaneto@gmail.com COHÉN, José Chocrón. Historias de piratas, corsarios y bucaneros. Maguén-Escudo. Revista trimestral de la Asociación israelita de Venezuela y el centro de estudios sefardíes de Caracas. n. 156, jul./sep. 2010. p. 32-38. 368 ELIADE, Mircea. 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Seu relato estimulou Cristóvão Colombo a buscar uma rota ocidental para o fabuloso arquipélago. Contudo, somente em 1543 os portugueses conseguiriam enfim chegar ao Japão, iniciando uma história de encontros, conflitos e aprendizados. Portugal no século XVI Ao final do século XV, a Península Ibérica vivia um momento de transformação. Os portugueses iniciaram em 1415 sua expansão marítima, com a conquista de Ceuta, no norte da África. Os espanhóis haviam retomado Granada, último reduto mouro na península. Em 1494, os dois reinos dividiram as terras “descobertas e a descobrir” no Tratado de Tordesilhas. A descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama em 1499 permitiu o acesso às riquezas da Ásia, expandindo as rotas comerciais até a Malásia, Indonésia e China. Com a expansão do comércio, expandiu-se o cristianismo. Segundo o Padre Antonio Vieira, “os pregadores levam a Fé aos reinos estranhos, e o comércio leva às costas os pregadores” [Vieira, 1718] Esta associação entre comércio e religião marcaria a presença portuguesa no mundo, em especial no Japão. Os vínculos entre Igreja e Estado fortaleceram-se com a criação da Companhia de Jesus em 1534. O rei Dom João II acolheu a nova ordem religiosa e incorporou os jesuítas nos planos de expansão portuguesa, estabelecendo-os nos pontos mais distantes do Império Português. O Japão no século XVI Enquanto os portugueses avançavam pelos mares, o Japão vivia o final de um longo período de conflitos internos. O imperador era apenas uma figura decorativa; o poder político de facto passou às mãos da classe guerreira desde o estabelecimento do shogunato Kamakura em 1135. Com sua queda em 1333, o Japão entrou em permanente estado de guerra, com os senhores feudais lutando entre si pelo comando do país. No final do século XVI, emergiram três daimyos que contribuíram para unificar o país e encerrar o longo 371 período de guerra: Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu, os três unificadores, que tiveram papel relevante no relacionamento entre portugueses e japoneses. Primeiros Contatos O “século cristŌo do JapŌo” [Boxer, 1967] começou com a chegada dos primeiros portugueses em 1543. Fernão Mendes Pinto, ao descrever seus habitantes, diz que “toda a gente do JapŌo é naturalmente bem inclinada e conversadora” [Pinto, 1614, 134], acrescentando que eram corteses, hospitaleiros e curiosos em conhecer mais sobre os bárbaros que chegaram em suas praias. Os japoneses são menos elogiosos: as Crônicas Teppo-Ki (“Relatos das Armas de Fogo”), escritas em 1606, relatam que “sŌo comerciantes, compreendem até certo ponto a distinção entre inferior e superior, mas não sei se existe entre eles um sistema próprio de etiqueta. [...] São gente que passa a vida errando de aqui para além, sem morada certa, e trocam as coisas que possuem pelas que não têm, mas no fundo são gente que não faz mal” [Sadler, 2016]. Neste primeiro contato, um fato marcou a história do Japão. Ao presenciar um dos portugueses caçando com um arcabuz, que desconheciam, os japoneses perceberam sua utilidade e insistiram em adquirir alguns. Fernão Mendes Pinto descreve a descoberta das armas de fogo pelos japoneses: “um dos três que éramos, por nome Diogo Zeimoto, tomava algumas vezes por passatempo tirar com uma espingarda que tinha de sua [...] e na qual era assaz destro. E acertando um dia de ir ter a um pau onde havia grande soma de aves de toda a sorte, matou nele com a munição umas vinte e seis marrecas. Os Japões vendo aquele novo modo de tiros [...] não se sabiam determinar com que aquilo era, nem entendiam o segredo da pólvora, e assentaram todos que era feitiçaria” [Pinto, 1614]. Os japoneses aprenderam a utilizar os arcabuzes e a fabricá-los; após alguns anos, estimava-se que havia no Japão mais de 30.000 deles [Pinto, 1614, 294]. As armas de fogo transformaram as táticas militares e permitiram que o unificador Oda Nobunaga superasse seus rivais e consolidasse seu poder sobre o Japão. O sucesso dos 372 japoneses na produção de armamentos foi tão grande que, séculos depois, os vendiam aos próprios portugueses, como relatou o escritor Wenceslau de Moraes: “[...] tendo vindo ao Japão em 1893, comissionado pelo governo de Macau, para comprar, num dos arsenais do império, algumas peças de artilharia de montanha para aquela colónia portuguesa, não pode reter neste momento um sorriso, considerada a circunstância de ter vindo ele pedir armas de fogo aos japoneses, quando foi Diogo Zeymoto quem ofereceu aos japoneses a primeira arma de fogo que eles viram!... [Moraes, 2004]. A Chegada dos Jesuítas Em 1549, chegou ao Japão outra personagem de profunda relevância no relacionamento entre portugueses e japoneses: o padre jesuíta espanhol Francisco de Jasso y Azpilicueta, hoje conhecido como São Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia de Jesus e o principal responsável pela difusão do cristianismo na Ásia. Acompanhado de um japonês convertido, Xavier desembarcou com o intuito de disseminar o catolicismo, reforçando a posição da Igreja e fortalecendo as relações comerciais entre Portugal e Japão. A recepção inicial aos ensinamentos de Xavier foi promissora. Os japoneses, interessados no comércio com os portugueses, mostravam-se ansiosos por se converterem ao catolicismo. O sucesso surpreendeu Xavier, ao ponto de declarar, de forma otimista, que os japoneses eram “la mejor [gente] que hasta agora está descubierta” [Xavier, 1549]. Ao deixar o Japão em 1551, havia ali um pequeno grupo de cerca de mil convertidos, que em pouco tempo se tornaria uma das maiores comunidades católicas da Ásia. A vinda dos navios portugueses permitiu aos daimyos japoneses obterem mercadorias como seda armamentos, além de produtos da Ásia, Índia e Europa. Para assegurar esse lucrativo comércio, os daimyos competiam entre si para oferecer aos portugueses condições privilegiadas como ancoradouros e terrenos para a construção de feitorias. A própria conversão ao catolicismo do daimyo e de seus vassalos foi utilizada como moeda de troca, para assegurar a boa vontade dos padres jesuítas e suas conexões com os comerciantes portugueses. 373 Os japoneses nunca haviam visto embarcações do porte dos galeões portugueses. Os costumes, trajes e diversidade étnica da tripulação, que incluia portugueses, malaios, indianos e africanos, causavam curiosidade e estranhamento, registrados em uma vertente da arte japonesa dos séculos XVI e XVII, denominada a Arte Nanban, ou a “arte dos bárbaros do sul”. A Arte Nanban A temática Nanban introduziu no cenário artístico japonês situações do cotidiano, em uma arte então caracterizada por temas religiosos ou literários. Segundo a historiadora Alexandra Curvelo, da Universidade Nova de Lisboa, os artistas retratavam o exotismo dos portugueses, sem qualquer intervenção destes, o que realça o aspecto documental da arte nanban [Pereira, 2017]. Os objetos nanban são registros detalhados da aparência dos portugueses do período, sua indumentária, costumes e até o desenho de seus navios. Biombos Nanban As melhores representações dos portugueses no Japão são os biombos Nanban. Nestas obras, as técnicas de desenho e pintura japonesa são utilizadas para retratar a chegada dos navios europeus. Cada painel conta uma parte da história, como se observa no conjunto formado por dois painéis de seis folhas do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque. São um registro fiel do momento e permitem conhecer detalhadamente os trajes, a hierarquia e os costumes dos portugueses, pela ótica dos japoneses. https://goo.gl/3XYCsu 374 O Nanban nas Artes Decorativas As peças decoradas com motivos europeus tornaram-se populares na elite japonesa. Além dos biombos, a arte nanban passou a decorar outros objetos da vida cotidiana, como caixas, frascos, bolsas e acessórios de vestuário. Armamentos Outra aplicação da temática nanban ocorreu no desenho e na decoração de armamentos. Mesmo itens tradicionalmente japoneses, como espadas e armaduras, foram afetadas pelo contato com os portugueses. A produção de arcabuzes tornou-se uma indústria de grandes proporções. Baseando-se nos modelos europeus, os armeiros japoneses criaram seus próprios arcabuses, de qualidade superior à dos originais [Perrin, 1988]. https://goo.gl/1rswpf As armas de fogo transformaram a estratégia militar japonesa. Na batalha de Nagashino, ocorrida em 1575, Oda Nobunaga venceu o clã Takeda, famoso pelo poderio de sua cavalaria, ao utilizar armas de fogo de forma similar à empregada pelos exércitos ocidentais. Este 375 ponto de inflexão na arte da guerra japonesa foi imortalizado pelo cineasta Akira Kurosawa no filme Kagemusha (1980). As armas de fogo também afetaram a produção de armaduras samurais. Os modelos tradicionais, feita de placas de metal unidas por fios de seda, eram ineficazes contra as balas dos arcabuzes. Assim, os armeiros japoneses passaram a incorporar elementos das armaduras utilizadas pelos soldados portugueses, com as placas de metal substituídas por uma couraça inteiriça cobrindo toda a região do tórax. Os elaborados elmos deram lugar a modelos cônicos e lisos, semelhantes aos usados pelos portugueses. Itens como as guardas de espada também incorporaram a estética nanban. https://goo.gl/EkMnx3 Viajantes Japoneses na Europa O intercâmbio entre Japão e Europa não se limitou ao comércio. Nos navios portugueses viajaram também os primeiros japoneses a visitar a Europa. O primeiro japonês a fazer a longa viagem até a Europa foi Bernardo de Kagoshima, convertido por São Francisco 376 Xavier. Bernardo acompanhou o missionário e chegou a Lisboa em 1553, onde tornou-se noviço jesuíta e iniciou estudos em Coimbra. Visitou Roma em 1555 e conheceu Ignácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus. Faleceu em Lisboa em 1557, sem voltar ao Japão. Em 1582, uma missão composta por quatro adolescentes japoneses convertidos ao cristianismo visitou a Europa. Os jovens deixaram Nagasaki e passaram por Macau e Goa, chegando a Lisboa em 1584. Foram recebidos na Espanha pelo rei Felipe II, então soberano de Portugal, e pelo Papa Gregório XIII em Roma, ao qual entregaram um presente de Oda Nobunaga: um biombo da mesma Escola Kano que produziu as peças retratando os portugueses. Este biombo foi provavelmente a primeira obra de arte japonesa a chegar à Europa. https://goo.gl/tuQyBN A embaixada gerou as primeiras representações de japoneses por artistas europeus. Na gravura alemã acima, observa-se a dificuldade em registrar os traços faciais e a testa raspada dos jovens de famílias samurai, que aparecem vestidos com roupas européias da época. Em sua longa viagem pela Europa, os jovens visitaram 70 cidades em Portugal, Espanha e Itália. Retornaram ao Japão carregados de presentes, além de uma prensa e muitos livros e pinturas, que seriam reproduzidas e usadas na catequização. As pinturas européias trazidas pelos jovens destinavam-se a um seminário de pintura. Este seminário, fundado em Kagoshima pelo 377 jesuíta italiano Giovanni Niccolò em 1590, ensinava técnicas ocidentais de pintura em aquarela e óleo e produzia as imagens religiosas que os missionários tanto necessitavam. Ao contrário da arte nanban, concebida sob uma perspectiva japonesa, as imagens produzidas pelos aprendizes de Niccolò seguiam os padrões da pintura sacra européia. No relatório de 1593, os jesuítas afirmam que as obras produzidas no Seminário eram de excelente qualidade, a ponto de não serem diferenciáveis das produzidas na Europa. Apesar de seu objetivo ser a reprodução em massa de modelos europeus, logo as técnicas ocidentais foram dominadas pelos aprendizes, introduzindo um estilo japonês na representação das imagens sacras. Segundo a historiadora Alexandra Curvelo, tinha “vários alunos japoneses a aprender pintura com iconografia ocidental, a modulação do claro escuro, da luz e da sombra, a adoção da perspetiva ocidental, com ponto de fuga: as implicações que isto tem, inclusivamente da representaçŌo do mundo, sŌo imensas” [Pereira, 2017]. Algumas pinturas produzidas no Seminário foram enviadas à Europa para comprovar a habilidade dos aprendizes japoneses. Talvez hoje repousem em alguma igreja portuguesa, sem que os fiéis conheçam sua origem. No Japão poucos exemplares sobreviveram à feroz perseguição movida contra os católicos em meados do século XVII. Os que restaram, contudo, são magníficos exemplos da aplicação dos padrões artísticos europeus no ambiente japonês, formando uma mescla de estilos que torna a arte nanban apreciada não apenas pela importância histórica, mas também pela elevada qualidade estética. 378 https://goo.gl/28kqoU Em 1613, uma nova embaixada japonesa foi enviada para estabelecer relações comerciais com a Espanha e reforçar o cristianismo no Japão. O samurai Hasekura Tsunenaga foi escolhido para liderar a missão. Chegando à Europa, Hasekura converteu-se ao catolicismo e encontrou-se com o Rei Felipe III da Espanha e com o Papa Paulo V. Quando a embaixada iria retornar ao Japão, em 1616, o ambiente político havia mudado radicalmente. O shogunato Tokugawa havia determinado a expulsão dos missionários católicos e passou a perseguir e executar seus seguidores. Alguns dos integrantes da embaixada, convertidos ao catolicismo, preferiram ficar na Espanha por temerem as perseguições. Ainda hoje seus descendentes, que adotaram o sobrenome Japón, moram em Coría del Rio, próximo de Sevilha. Hasekura, porém, retornou apesar das ameaças, tendo sido martirizado com sua família. A Embaixada Hasekura foi esquecida no Japão, até que em 1873 uma nova missão, enviada após a reabertura do país ao mundo, espantou-se ao saber que japoneses haviam visitado a Europa séculos antes. A visita de Hasekura foi registrada em várias obras. A mais notável é o retrato pintado por Claude Deruet em 1615. Um dos expoentes do Barroco francês, Deruet estudava na Itália quando a embaixada japonesa chegou ao país. O retrato, de elevada qualidade técnica, é um excelente registro da visita de Hasekura, equilibrando o exotismo da indumentária com elementos tradicionais da pintura européia. 379 https://goo.gl/kyMUxs O Fim do Século Católico Toyotomi Hideyoshi, o segundo unificador do Japão, permitiu que a atividade religiosa prosseguisse, para não prejudicar o comércio com os europeus. Contudo, em 1597, determinou a execução de religiosos e leigos em Nagasaki. Estes foram denominados os 26 Mártires do Japão, posteriormente beatificados em 1627 e canonizados em 1862. A partir deste incidente, “as imagens felizes do encontro dos portugueses com os japoneses foram apagadas pelas imagens sangrentas das perseguições” [Kuniyoshi, 1998]. A ascensão de Tokugawa Ieyasu, o terceiro unificador, intensificou as perseguições aos católicos. Embora tentassem manter o comércio com os portugueses, os governantes japoneses ampliaram as restrições, culminando com a expulsão dos religiosos. Uma prática foi criada para identificar os fiéis: o ritual do fumie. Neste ritual, oficiais do shogunato exigiam que os suspeitos de serem católicos 380 pisassem numa imagem de metal retratando algum tema religioso. Aqueles que se recusassem a pisar eram imediatamente executados. O fumie e as perseguições sofridas pelos católicos japoneses são mostrados de forma dramatizada no filme “Silêncio”, de Martin Scorcese (2016). https://goo.gl/zLJ8R2 Muitos exemplares dessas imagens sobreviveram no Japão, atestando seu uso disseminado. O que distingue os fumie é o fato de serem uma forma de arte religiosa, feita no Japão e por artistas japoneses. Pela variedade e detalhamento das imagens, os fumie foram certamente inspirados em modelos europeus. Contudo, ao contrário das imagens produzidas no Seminário de Giovanni Niccolò, os fumie destinavam-se não à adoração ou à decoração, mas sim à apostasia, ou seja, à manifestação da renúncia à fé católica. A repressão pelo shogunato Tokugawa levou ao surgimento de um novo movimento entre os católicos japoneses: os Kakure Kurishitan, ou “cristŌos ocultos”. Praticavam o catolicismo em segredo, enquanto diziam-se budistas e realizavam o fumie sempre que requerido. Os cristãos ocultos seguiam o calendário religioso, batizavam seus filhos e reuniam-se para orações em grupo. Espantosamente, mantiveram sua fé por mais de 250 anos, mesmo sem a presença da Igreja. 381 https://goo.gl/MJnFcH Com a proibição do catolicismo, ter qualquer artefato católico era punido com a morte. Mesmo assim, muitos japoneses desafiavam esta regra ao disfarçar imagens sacras como divindades budistas. Um exemplo é a transformação sincrética da Virgem na divindade budista Avalokiteshvara, conhecida entre os japoneses como Kannon Bosatsu, a deusa da misericórdia. Por ser uma das divindades mais populares do panteão budista, as imagens de Kannon são frequentes nas casas, templos e espaços públicos japoneses. Ao produzir imagens de Kannon com atributos da Virgem, como o Jesus Menino no colo ou a suástica budista transformada em cruz, os kakure kurishitan mantinham sua devoção sem despertar suspeitas nos oficiais do shogunato. Estas estátuas, conhecidas como Maria Kannon, são frequentes no sul do Japão, onde a ação dos missionários católicos foi mais intensa. As imagens de Maria Kannon formam um contraponto aos fumie, como duas formas de expressão artística de caráter oposto, mas com a mesma origem: a perseguição aos católicos pelas autoridades japonesas. O período católico e a presença portuguesa no Japão terminaram de forma trágica, com a revolta de Shimabara em 1637. Durante meses, cerca de 37 mil camponeses católicos ocuparam um castelo abandonado e resistiram até serem totalmente exterminados. Iemitsu, o terceiro shogun da dinastia Tokugawa, expulsou os europeus remanescentes. A presença de estrangeiros no Japão foi proscrita, e qualquer japonês que estivesse no exterior foi proibido de retornar. Nos dois casos, a punição era a morte. Iniciou-se um período no qual o Japão permaneceu isolado do mundo exterior, 382 exceto por um pequeno entreposto holandês na ilha de Dejima, no porto de Nagasaki. Conclusão Em 1647, fracassou a última tentativa de restabelecer o comércio entre Portugal e Japão [Boxer, 1967, 388]. Na segunda metade do século XVII, poucos vestígios restavam da presença portuguesa no Japão. Dos 300.000 fiéis, poucos milhares resistiam nas ilhas e povoados em torno de Nagasaki. Para o império português, a expulsão do Japão coincidiu com um refluxo em sua expansão, que nem mesmo a recuperação da autonomia diante da Espanha em 1640 conseguiria reverter. Contudo, a presença portuguesa no Japão resistiu ao período de fechamento, não apenas na culinária e nas palavras incorporadas ao idioma japonês. Em 1875, quando o Japão voltara a permitir a liberdade religiosa, o padre francês Bernard Petitjean ficou surpreso ao ser abordado em Nagasaki por um grupo de japoneses que identificaram-se como católicos, fazendo o sinal da cruz e pronunciando algumas orações em latim. Os contatos, aproximações e afastamentos entre portugueses e japoneses foram eternizados nas manifestações artísticas geradas por esse encontro de culturas tão diversas. Os biombos nanban e as pinturas barrocas européias testemunham um momento em que dois mundos distantes estiveram em contato, enxergaram-se mutuamente e puderam aprender um com o outro. Referências Newton Ribeiro Machado Neto é aluno do curso de Museologia da Universidade de Brasília (DF). Mail: newtonribeiromachado@gmail.com Trabalho elaborado sob orientação da professora Celina Kuniyoshi, da Faculdade de Ciência da Informação – UnB. BOXER, C.R. The Christian Century in Japan 1549-1650. Berkeley: University of California Press, 1967. COOPER, Michael. Spiritual Saga: When Four Boys Went to Meet the Pope, 400 Years Ago. The Japan Times, Tokyo, 21 fev.1982. KUNIYOSHI, Celina. Imagens do Japão – Uma Utopia de Viajantes. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 383 MORAES, Wenceslau de. Fernão Mendes Pinto no Japão. 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Exposições itinerantes atraem estudantes e curiosos, filmes trazem entretenimento e ao mesmo tempo invocam um Egito mágico, e muitas edificações urbanas inspiram-se em formatos piramidais ou obeliscos. Essa interação com culturas milenares habita o imaginário de muitas pessoas na contemporaneidade. Propomos estabelecer uma breve análise das representações do Egito Antigo no jogo eletrônico Age of Mythology (AoM), considerando suas visualidades e narrativas, vestuários, figuras míticas, edifícios, cenários e desenvolvimento da civilização egípcia. O Egito é apresentado nos games desde o surgimento dos primeiros videogames. Alguns jogos exploraram a cultura egípcia de maneira complexa, apresentando a sociedade e cultura como: Civilization (1991), Age of Empires (1999) e Assassin's Creed Origins (2017). Outros games apresentam a cultura egípcia como parte de sua narrativa, parcialmente em cenários e personagens, como: Darkstalkers (1995), Castlevania: Portrait of Ruin (2006), Plants vs. Zombies 2: It's About Time (2013) e Overwatch (2016). Contudo, o diferencial de AoM e os jogos citados, é um desenvolvimento e aprofundamento nos mitos do Egito Antigo. Consideramos o processo de pré-produção do jogo, porque este momento envolve elementos como o design instrucional e a pesquisa histórica. Compreendemos estas representações do Egito Antigo como uma manifestação da Egiptomania. A Egiptomania é hoje um ramo de pesquisas mais específico no âmbito da Egiptologia, sendo uma prática que inicialmente teria começado com os próprios gregos antigos, teria se afamado depois com os franceses e posteriormente se espalhou pelo mundo todo. Após a empreitada de Napoleão Bonaparte ao Egito essas representações intensificaram-se. 385 Dentro do contexto de intriga entre franceses e ingleses está o Egito, que em pleno século XIX era uma colônia, na verdade entendida como uma extensão da Europa. Essas e muitas outras representações que surgem neste período, principalmente na literatura, marcaram o que Edward Said denomina de Orientalismo Moderno, uma invenção do Oriente a partir do olhar europeu colonizador. O Egito foi o protagonista das representações ocidentais a respeito do Oriente Próximo e suscitou paixões de muitos aventureiros. Egiptomania e Orientalismo De acordo a pesquisadora referência em Egiptomania no panorama brasileiro, Margaret Bakos (2014), o Egito Antigo promoveu seu legado na contemporaneidade a partir das apropriações de suas simbologias que foram readaptadas e ressignificadas em diversos suportes, como na arquitetura, na mídia e nas novas religiosidades. Os estudos sobre a Egiptomania no Brasil foram iniciados pelo Laboratório de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro baseando-se em experiências realizadas em países europeus. Muitas destas pesquisas abordaram a manifestação da Egiptomania em várias regiões do Brasil, como no Rio Grande do Sul, na Paraíba, no Amazonas e no Paraná. Também há pesquisas que analisaram a Egiptomania em cemitérios, coleções, acervos, e em grupos esotéricos dentre os quais se destaca a Ordem Rosacruz. Jean-Marcel Humbert cunhou o termo Egiptomania (1994, p. 21), definindo essa prática como a interpretação das imagens do Egito readaptadas na atualidade. A Egiptomania para Bakos (2007, p. 05) é “o agente de um dos mais longos fenômenos de transferência cultural já contabilizado, matriz de valores e de gostos estéticos mundiais contemporâneos”. A Egiptomania é um novo ramo de pesquisa que aborda as práticas culturais que retomam elementos do Egito Antigo, analisando a permanência de certos valores e suas transformações ou adaptações (Ibidem, p. 02). Segundo Bakos, a Egiptomania tem origem no século IV a.C., quando Alexandre o Grande conquista o Egito, saqueando peças egípcias que depois alastraram-se para outros países. A historiografia grega também atribui ao Egito uma imagem fascinante como pode-se perceber nos relatos de Heródoto: “Todo homem sensato que ainda não tenha ouvido falar nisso notará, 386 visitando o país, ser o Egito uma terra nova e um presente do Nilo” (HERÓDOTO, 2006, p. 136); “Estender-me-ei mais no que concerne ao Egito, por encerrar ele mais maravilhas do que qualquer outro país; e não existe lugar onde se vejam tantas obras admiráveis, não havendo palavras que possam descrevê-las” (Ibidem, p. 149). A Egiptomania se intensificou a partir das expedições de Napoleão Bonaparte, Champollion e Howard Carter. Em 1798 a Campanha de Napoleão no Egito tornou ainda mais populares as práticas da Egiptomania, alocando este estudo a um novo ramo da Egiptologia. Napoleão sonhou com uma reconquista ao Egito, como um novo Alexandre. Nesse período, o Egito ocupava uma posição central nas relações entre Europa, África e Ásia, passando a ser um anexo da Europa a partir de um projeto civilizador. Esse projeto visava a sua grandeza clássica, sendo colocado dentro do contexto da antiguidade europeia clássica. Esse discurso foi difundido através da publicação da obra de NapoleŌo “Descríption de l’Égypte” em 1809. Esse empreendimento de Napoleão estimulou a chegada de muitos europeus para o Egito com interesse científico ou literário. Pensando nessa fascinação ocidental pelo Oriente que perdurará pelo século XX, remetemos aos estudos sobre o Orientalismo, a partir de Edward Said (1990). O autor procura realizar uma genealogia do Orientalismo, mostrando que o mesmo surgiu dentro do pensamento colonialista eurocêntrico. Partimos da ideia de que houve a priori, a criação do que nós, ocidentais, entendemos por “Oriente”. O Orientalismo surge entŌo como um ramo de estudos dentro da academia que aborda essa relação estabelecida entre Ocidente-Oriente. O Orientalismo entende que foram criadas concepções sobre o Oriente, mas recheadas de ideais eurocêntricos. Said afirma que: “Orientalismo é o termo genérico que venho usando para descrever a abordagem ocidental do Oriente. É a disciplina por meio da qual o Oriente é abordado sistematicamente, como um tema de erudição, de descobertas e de prática. Mas, além disso, eu tenho usado a palavra para designar 387 aquela coleção de sonhos, imagens e vocabulários disponíveis para qualquer um que tenha tentado falar sobre o que está ao Leste da linha divisória” (SAID, 1990, p. 82). A chegada de viajantes aventureiros ou escritores interessados no exotismo destes países foi a responsável pelas novas atribuições dadas ao Oriente no século XIX. Afinal, neste momento, o Egito passa a ser colônia britânica, propriamente em 1882, o que perdurou até 1954. Até o século XIX essa dominação francesa e inglesa no Egito foi a responsável pela criação de um olhar romântico que denota um Egito exótico e mágico. Ao mesmo tempo em que ele era dominado, sendo sujeito à imposição de uma sensação de superioridade europeia, que se mostrava nos quesitos além do militar, econômico mas até mesmo cultural, o Egito por outro lado, seduzia esses europeus de alguma forma. Após o longo contexto das independências asiáticas e africanas, tendo o Egito o nosso foco, vislumbramos neste momento que se inicia no decorrer do século XX, uma nova posição do Oriente. Agora ele se posiciona contra a colonização europeia, mas acabou sendo atraído por um outro imperialismo, o norte-americano. Este novo imperialismo manteve esse olhar orientalista romântico, como uma herança colonial. A partir da década de 60 houve um adentramento da cultura oriental nos Estados Unidos possibilitada pelas imigrações de indianos e pelo surgimento do movimento de contracultura. Com o aumento desse fluxo entre Oriente e Ocidente, podemos perceber uma conexão entre as sabedorias orientais que irão se difundir pelo país. Dentro deste contexto podemos perceber o Egito sendo representado amplamente na indústria cinematográfica, como os filmes César e Cleópatra (1945), O egípcio (1954), Terra dos Faraós (1955) e Cleópatra (1963). Posteriormente com o advento dos jogos eletrônicos, também podemos encontrar várias representações do Egito que se popularizaram em várias mídias. 388 Age of Mythology (AoM) In techtudo.com.br Age of Mythology é um game do gênero RTS – real time strategy, desenvolvido pela Ensemble Studios e publicado pela Microsoft Game Studios em 2002. Este gênero é baseado no desenvolvimento e administração de recursos encontrados pelo mapa, esses recursos financiam a construção de novos edifícios e unidades. Além disso, os combates acontecem dentro de uma narrativa linear ou contra a inteligência artificial (I.A) e outros jogadores. Essas batalhas acontecem em termo real, diferente de outros jogos de estratégia que funcionam através de turnos. O jogo Age of Mythology é um derivado da série Age of Empires (1999), entretanto, em vez de focar em acontecimentos históricos e personalidades históricas, AoM se baseia nos mitos das culturas egípcias, gregas e nórdicas. Em 2014 foi lançado uma versão em alta resolução do jogo – esta versão foi utilizada para a construção do artigo. Desde então, estima-se que até o momento, as versões de AoM tenham vendido aproximadamente 9 milhões de cópias. AoM é um jogo preocupado em trazer informações históricas sobre as civilizações retratadas. No menu inicial, há informações sobre o que é mitologia, explicando de forma didática a sua importância no estudo de uma determinada civilização. Justifica que a análise da mitologia é importante para se compreender a mentalidade de uma época, a sua forma de tentar explicar determinados fenômenos naturais e a origem de um povo. 389 A narrativa é permeada pela presença dos deuses Isis, Rá, Seth, Anúbis, Bastet, Ptah, Hathor, Néftis, Sekhmet, Hórus, Osíris e Thot. As suas cidadelas devem adorar aos deuses para receber bênçãos importantes para sobrevivência em determinadas fases da campanha. A Isis é retratada como a deusa mãe e do casamento. Conhecida pela sua manipulação da magia e ressurreição de seu marido Osíris. É comumente retratada amamentando Hórus. É filha de Geb e Nut, uma união entre a terra e o céu. Seth por sua vez é retratado como o deus das tempestades e do deserto, e a sua inveja de seu irmão Osíris. O jogo relata sobre os fatos ao redor da morte de Osíris e a consequente retomada da vingança pelo seu filho Hórus. Assim, o jogo chama Seth de “Deus do mal”. Os egípcios aparecem dentro de um panorama maior da campanha do jogo, a épica jornada de Arkantos (personagem ficcional), um herói atlante que participou da Guerra de Troia ao lado dos gregos. Ao passar pelo mundo inferior e conseguir sair dele juntamente com Ájax e Quíron, Arkantos se encontra em uma outra parte do mundo. Perdidos, deparam-se com Amanra, uma heroína egípcia e outra personagem ficcional. Ajax é um conhecido personagem da mitologia grega, um herói importante na guerra de Troia, explorado pela Ilíada; Quíron é um centauro pupilo de Apolo, que tornou-se um sábio e posteriormente doutrinou heróis como o próprio Aquiles. Amanra precisa da ajuda destes heróis para desenterrar a espada do Guardião, aquela mesma utilizada por Hórus para matar Seth. O antagonista da história é Kemsyt (personagem ficcional), um antigo inimigo de Amanra que pretende pegar a espada e destruir os pedaços de Osíris. Para impedi-lo, os heróis precisam resgatar a espada e posteriormente a caixa funerária contendo os pedaços de Osíris. A caracterização das cidadelas egípcias é uma procura por um retrato fiel ao que se conhece pela historiografia, algumas fases se passam em regiões desérticas e alguns oásis. Seus cidadãos são negros, diferente de muitas produções cinematográficas que insistem em apresentar egípcios com feições de um europeu. Ciro Flamarion problematizou essa questão da cor da pele entre os egípcios antigos: 390 “Esta visŌo, que assegurava serem “caucasoides” (brancos) em forma predominante os antigos egípcios, foi fortemente atacada por historiadores negro-africanos - C. Anta Diop e T. Obenga -, que com argumentos lingüísticos (semelhança entre o antigo egípcio e línguas negro-africanas de hoje) e de outros tipos trataram de provar que os egípcios da Antigüidade eram negros. [...] Foi lembrado também que o Egito, situado na confluência da África e da Ásia, nunca esteve isolado, sendo inaceitável pretender que sua populaçŌo foi exclusiva ou predominantemente “branca”, tanto quanto “negra” já que tudo indica ter sido sempre muito mesclada, pelo menos desde o Neolítico” (CARDOSO, 1982, p. 04-05). Os aldeões trabalham compulsoriamente em minas de ouro, fazendas, construção de edifícios e cortam lenha. Mas esta característica não os diferencia das demais civilizações retratadas em AoM. O jogador necessita impor este trabalho aos seus aldeões para se ter recursos para as guerras. “A base da mŌo-de-obra do antigo Egito eram os camponeses, maioria absoluta da população. Viviam em aldeias, pagavam impostos ao Estado (em certos casos, a um templo ou senhor que gozasse de imunidade fiscal) em forma de cereais, linho, gado e outros produtos, e também se prestavam a corveias ou trabalhos forçados, a nível local (obras de irrigaçŌo) ou nas obras públicas” (CARDOSO, 1982, p. 15). A caracterização dos faraós é detalhista, pois eles possuem o cetro, conhecido como heqa, um símbolo de autoridade. Esse é um tipo de cajado utilizado por pastores de ovelhas para ordenhá-las. Esse é o símbolo da ordem e da lei que está sob a autoridade do faraó. Ele ordenha e cuida de seu povo. O faraó também apresenta a barba de cerimônia que é trançada e postiça, elemento comumente presentes em representações de faraós. Outro elemento importante que aparece em AoM é a utilização da saia, vestimenta muito comum no Egito Antigo, que de acordo Brancaglion (2009) era o item principal utilizado nas indumentárias masculinas no período do Médio Império (2134 – 1784). O faraó também usa a coroa militar, de cor 391 azul, que era utilizada apenas nas ocasiões de guerra, sendo conveniente ser retratado com ela no jogo. “A vestimenta era, antes de tudo, um símbolo de prestígio. Podemos dizer que quanto mais elevada fosse a posição social de um egípcio antigo mais as roupas eram volumosas e numerosas” (BRANCAGLION, 2009, p. 01). Caracterização do faraó Sobekhotep in game. Brancaglion também analisa a questão da indumentária afirmando que o branco era uma cor sempre presente, e isso podemos também verificar na saia dos nossos faraós de AoM, e o linho era na maior parte das vezes o material. O autor afirma que a vestimenta dos trabalhadores homens também poderia ser saia, como podemos perceber nos aldeões representados pelo jogo. Caracterização dos aldeões egípcios in game. 392 “Dessa forma as vestimentas traduziam as funções que o homem e a mulher ocupavam na sociedade e juntamente com os seus títulos a roupa era um identificar da situação social de um egípcio” (BRANCAGLION, 2009, p. 02). Ainda sobre os faraós, temos alguns retratados pelo jogo como é o caso de Sobekhotep, faraó da 12ª ou 13ª dinastia (não há consenso entre os historiadores). Pouco se conhecia sobre esse faraó, até que um grupo de arqueólogos norte-americanos encontrou uma tumba e no local havia uma inscrição em seu nome. Haviam muitos objetos e urnas funerárias, o que possibilitou o início de muitas pesquisas para se conhecer melhor este faraó. Outro faraó retratado no jogo é Neferhotep III que também deixou dúvidas entre os historiadores se seria da 13ª ou 16ª dinastia. Governante de Tebas, Neferhotep III ficou conhecido como aquele que salvou a sua cidade da fome e também teria se envolvido em uma guerra para defendê-la (RYHOLT, 1997, p. 202). No quesito arquitetura, a maravilha egípcia, o principal edifício de cada civilização em AoM, é um templo semelhante ao Templo de Luxor (1.400 a.C.), localizado na cidade da antiga Tebas, atual Luxor, na margem do rio Nilo. É dedicado ao deus Amon, obra do faraó Ramsés II, e um dos edifícios mais importantes da arquitetura do Egito Antigo. Foi declarado Patrimônio Mundial da UNESCO em 1979. Templo de Luxor. In http://www.penaestrada.blog.br 393 Maravilha egípcia in game As cidades são repletas de estátuas de deuses e obeliscos. Nos templos o jogador pode criar seres mitológicos. Dentre eles está o Anúbis, o próprio deus dos mortos e da mumificação, mas que nesse caso aparece como unidade mítica para ser empregada nas guerras. Esfinge, escaravelho, homem-escorpião, fênix, múmia e tartaruga são outras unidades míticas empregadas nas batalhas. Cada um possui determinados poderes, dos quais pode-se perceber que o jogo utilizou de sua liberdade criativa. É necessário que o jogador construa estátuas de deuses, para que ele obtenha “favor”, que seriam poderes sobrenaturais para criar unidades míticas e aperfeiçoá-las, tendo destaque a estátua de Isis. O jogo apresenta Isis em uma de suas várias representações clássicas, quando ela recebeu uma influência de elementos da deusa Hathor, com os cornos de uma vaca e um disco solar. Apresenta as asas de falcão, visto que ela pode se transformar neste animal. Suas asas estão relacionadas a seus poderes mágicos como a ressurreição dos mortos. Os adornos de ouro na estátua compõem as paisagens das cidades repletas deste minério. Enquanto os aldeões trabalham nas minas, o ouro adorna templos, esculturas e os faraós, conferindo uma imagem de riqueza e poder. 394 Estátua de Isis in game. Uma das preocupações dos desenvolvedores era criar uma narrativa imersiva, por isso a campanha solo se tornou tão importante. Os personagens apresentam personalidade e contam também com dublagem. Antes do lançamento oficial, os programadores estavam empolgados com as possibilidades da tecnologia 3D aplicada aos games. Em entrevista o programador chefe Robert Fermier afirmou que a intenção era transformar a série Age of em um produto mais cinematográfico, algo até então inédito na série (HeavenGames LLC, 2002). Para conseguir imergir o jogador naquele universo mitológico, a imagem é um elemento importante, mas a trilha sonora é indispensável para a ambientação do jogador. O artista de som Kevin McMullan questionado sobre o processo criativo das composições em AoM diz o seguinte: “Para Age of Mythology, tivemos que ajustar nosso pensamento um pouco, porque simplesmente não há uma grande quantidade de material de referência sobre as tradições musicais dessas culturas antigas. Para esta trilha sonora, expandimos os temas que foram apresentados nos jogos anteriores, enquanto incluímos uma interpretação ampla das culturas, pois sentimos que elas são apresentadas no jogo” (IGN, 2002, s/p). De acordo com o compositor, mesmo sem ter uma referência das músicas da época, houve uma tentativa de interpretação. Assim, foram utilizados instrumentos característicos de cada civilização, 395 como um alaúde egípcio e conchas marinhas. O processo para criar som e imagem que remetam a uma era mitológica, é apenas possível através da imaginação de artistas junto à tecnologia, como os videogames. Considerações Finais Age of Mythology não deixa de ser uma narrativa a partir de olhares imperialistas, que manteve uma concepção orientalista romântica nos mínimos detalhes, não esquecendo de enfatizar o caráter mágico que permeia a mitologia egípcia e imagem de grandeza e poder de seus deuses. O jogo evoca um egípcio mágico da mesma forma que muitos filmes hollywoodianos. Sempre retratado lado a lado com as civilizações da antiguidade europeia, o Egito Antigo é comumente entendido como parte deste contexto, o que não considera as suas especificidades. Mas por outro lado, podemos perceber que Age of Mythology é além de entretenimento, um dispositivo que possibilita o conhecimento da mitológica egípcia sem abrir mão da liberdade criativa. A campanha de Amanra em sua jornada pela busca dos pedaços de Osíris mostra que durante o desenvolvimento do jogo, houve uma pesquisa sobre o que se retratar, o que se divagar e o que deixar por livre interpretação do jogador. Pode ser uma ferramenta poderosa nas mãos do docente que souber empregá-la como recurso metodológico, visto que, o jogo é uma mídia presente na vida de crianças e adolescentes dos dias de hoje. Assim, muitas discussões ainda podem ser desenvolvidas a este respeito. Referências Pepita de Souza Afiune é doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Mestra em Ciências Sociais e Humanidades (UEG). Contato: pepita_af@hotmail.com José Loures é artista multimídia, doutorando e bolsista CAPES no Programa de Pós-graduação em Arte pela Universidade de Brasília. Mestre em Arte e Cultura Visual. Contato: jloures-arte@hotmail.com BAKOS, Margaret. A Egiptomania na América do Sul: um estudo multidisciplinar e comparativo. In: XXIV Simpósio Nacional de História. História e Multidisciplinaridade: territórios e 396 deslocamentos. São Leopoldo (RS): UNISINOS, 2007. Disponível em: http://anais.anpuh.org/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S24.1196.pdf. 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A própria Academia ainda está redescobrindo essa região. Destarte, Mitani foi uma das maiores potências no Antigo Oriente Próximo durante o século XIV AEC. Por isso, busco, aqui, trazer um panorama sobre a História de Mitani e seus estudos. Este trabalho é parte resultada da minha pesquisa de mestrado e visa apresentar Mitani, suas particularidades e suas possibilidades, apontando caminhos para o estudo da sociedade mitânia. Os debates acadêmicos Pesquisadores interessados em Mitani enfrentam alguns obstáculos em diferentes âmbitos, e, mais do que superá-los, deve-se entender que muitos desses empecilhos não poderão ser, ao menos por hora, resolvidos. Para além dos limites da própria História enquanto disciplina, outros elementos criam fronteiras específicas quando se pretende traçar uma trajetória de Mitani. Até os dias atuais, por exemplo, não conhecemos a delimitação geográfica exata deste reino, nem sequer sabemos onde foi situada sua capital, Washukanni. Temos, é claro, algumas estimativas. Sabemos, por exemplo, que Mitani se localizava ao norte da Mesopotâmia e ao leste da Anatólia. Washkanni, possivelmente poderá ser encontrada, após escavações, na região da atual Tell Fakhariyah. Outras cidades reais, porém, já foram encontradas, como a antiga Taide, hoje chamada de Tell alHamidiya, situada no norte da Síria, perto da fronteira com o Iraque e a Turquia [EVANS: 2008, p. 195]. Uma estimativa das fronteiras de Mitani no momento de sua maior extensão pode ser visto no mapa a seguir: 399 In: VAN DE MIEROOP, 2007, p. 151. Como podemos perceber, Mitani estava situado em uma região que hoje enfrenta disputas e confrontos, o que dificulta a expedição de campanhas arqueológicas e pesquisas na área. Consequentemente, os estudos de campo são interrompidos e novas documentações ou vestígios não são encontradas. As fontes disponíveis, portanto, são limitadas e, em muito, dependem de referências estrangeiras sobre o reino. Dentre estas referências, o conjunto que reúne a maior documentação em linguagem hurrita (língua oficial) descoberta até hoje foi encontrado em Amarna, no Egito [FREU, 2003, p. 9]. A necessidade de referências externas para o estudo de Mitani, nos reflete outra dificuldade a ser enfrentada pelo pesquisador, como afirma Jacques Freu: “conhecido por fontes exteriores ao seu território, Mitani, não poderia se apresentar, até agora, como objeto nem como a entidade política que as pesquisas indiretas tornaram possível [de se conhecer] por meio das numerosas menções feitas em textos egípcios, hititas e assírios” [FREU, 2003, p. 15. Tradução da autora]. 400 Isto é, não podemos entender toda a complexidade de Mitani somente pelo que outros locais nos apresentam. O trabalho de Freu é um dos poucos disponíveis atualmente que se focam na História de Mitani e não nas relações entre mitânios e outros reinos. Contudo, dada a realidade das fontes, não podemos ignorar os contatos exteriores, e por isso as Cartas de Amarna (cuja tradução em português está disponível em SCOVILLE, 2017), e outros documentos de teor parecido são comumente referenciados. Além da limitação de materiais, tanto em relação à documentação como a trabalhos que abordem o tema, Mitani ainda é alvo de debates sobre sua própria identidade étnica. Existem referências a povos de territórios chamados de Mitani e Hurri. Há, ainda, outros nomes, como Nahrin e Hanigalbat, que hoje entendemos como variações locais para Mitani. Contudo, a discussão sobre Hurri ainda é mais acalorada. A ideia de que Mitani e Hurri eram territórios separados foi proposta por Goetze. Segundo ele, Mitani foi uma unidade política incapaz de unificar os territórios hurritas, tendo, então, que dividir a região com Hurri [GOETZE, 1957, pp. 67 – 68]. Em contrapartida, a teoria mais aceita, defendida por pesquisadores como Freu e Liverani, afirma que Hurri e Mitani são o mesmo território, sendo o primeiro o nome que representa a realidade étnica (por abrigar povos hurritas) e o segundo a qualidade política [LIVERANI, 1962]. Acredita-se que Mitani tenha se formado a partir da união de povos hurritas, presentes na região, e grupos indo-arianos, que teriam chegado no norte da Mesopotâmia no mesmo momento em que os cassitas entravam na Babilônia (no século XVI AEC). Os indoarianos teriam formado a aristocracia de Mitani, enquanto a população teria origem hurrita. Essa perspectiva, porém, não pode ser confirmada e estudiosos ainda discutem sobre o grau e as formas de influência indo-ariana em Mitani. A teoria sobre reis indo-arianos é defendida com argumentos que apontam para a presença de elementos linguísticos, em especial em relação aos nomes destes reis, e para deuses estranhos aos hurritas no panteão. Entre as divindades podemos encontrar, por exemplo, Mitra, Varuna, Indra, e os Nasatyas, 401 descritas em correspondências hititas [Kbo 1.1. In: BECKMAN, 1996, pp. 37 – 50]. Em relação aos nomes reais, Garelli [1982, p. 144] e Wilhem [1989, p. 18] apontam a influência indo-arianda, explicando-os por meio do Veda: Artatama (Ṛta-dhāma), que significa “aquele cuja residência é a lei divina”; Parsashatar (Para-sastar), “o que castiga os inimigos”; e Tushratta (Tuiš-ratta), “o que possui o carro de esplendor”. A presença de nomes indo-arianos, porém, não reflete um domínio cultural. Nesse sentido, a língua oficial e a maior parte dos nomes (inclusive o de alguns membros da família real) são hurritas. Wilhem [1989, p. 18], em contrapartida, aponta que o próprio contato de mensageiros com outros povos (e línguas) poderia ser uma explicação para a existência de nomes indo-arianos em um território hurrita. Já a pesquisadora Podany [2010, p. 154], aponta que a maioria dos reis mitânios tiveram nomes hurritas antes de assumir ao trono e muitos membros da família real tinham nomes que homenageavam os deuses hurritas. Aliado a isso, temos a pouca expressividade de deuses indo-arianos na religião [WILHEM, 1989, pp. 18-19; e PODANY, 2010, p. 155]. Para Von Dassown [2014, pp. 12-13], por outro lado, não há material linguístico suficiente que ateste, ou não, um domínio indo-ariano. Uma possibilidade é a ocorrência de um costume. Nesse caso, os reis não seriam indo-arianos, mas descendentes que se consideravam hurritas. Nesse sentido, os nomes representariam uma tradição, não a realidade individual [PODANY, 2010, pp. 154-155]. Outra possibilidade, é que não haja uma relação direta, mas que, por algum motivo, esses governantes queriam se identificar com indoarianos, e os nomes, seriam usados como elemento de distinção social [MARTINO, 2014, p. 69]. A teoria mais bem aceita, porém, como apontada por Podany [2010, p. 154] e Freu [2003, pp. 16-17], é a de que rei mitânios descendiam de grupos falantes de alguma língua parecida com o sânscrito. Tais grupos teriam se assentado no norte da Mesopotâmia em meados do século XVI AEC. A formação de Mitani também é alvo de discussão entre os pesquisadores. Uma hipótese afirma que o reino já existia de forma concreta e influente no final do século XVII ou início do século XV 402 AEC. Contudo, as fontes desse período não nos trazem o topônimo “Mitani”, apenas mencionam o “rei das tropas hurritas”; “o inimigo hurrita”; e “as tropas de Hanigalbat” – sendo essa última usada apenas em uma referência babilônica [MARTINO, 2014, pp. 62-63]. Uma segunda hipótese, por outro lado, defende que um vácuo de poder criado no norte da Síria, no século XVI AEC, teria possibilitado o surgimento (e fortalecimento) de Mitani. Segundo Martino [2014, pp. 64-66], a população hurrita anterior a esse momento, apesar de organizada, não formava um grupo unitário, tendo diversas tribos sob diferentes regimes. O autor aponta que quando o rei hitita, Hattusili I, encontrou resistência na Síria durante suas campanhas, ele contou com a ajuda de um rei hurrita de Tikunani. Aliado a isso, temos a ausência do topônimo “Mitani” e uma grande variedade de títulos para governantes hurritas. Esses fatores nos levam a crer, então, em uma fragmentação do território. A primeira referência a Mitani, como tal, na tumba de um funcionário egípcio, Amenenhet, sendo Mitani colocado em referência ao reinado de Tothmés I. Uma breve história Traçar a História de Mitani é, então, uma tarefa difícil. A obra de Freu [2003] a divide em seis momentos principais: formação (c. 1560 – 1500 AEC), desenvolvimento imperial (c. 1500 – 1450 AEC), crise (c. 1450 – 1430 AEC), apogeu (c. 1430 – 1340 AEC), final do império (c. 1340 – 1325 AEC), e fragmentação territorial entre assírios e hititas (c. 1325 – 1260 AEC). A provável origem de Mitani é datada, então, de meados do século XVI AEC, quando, supostamente, grupos estrangeiros teriam chegado na região. Essa estimativa se dá porque os primeiros registros indo-arianos, até hoje encontrados, são dessa época, tendo se intensificado no século seguinte [GARELLI, 1982, p. 145]. Aparentemente, o primeiro rei mitânio foi Kirta, encontrado em referências bibliográficas, mas sem documentação ou comentários aprofundados, possivelmente por falta de vestígios. O primeiro rei de quem temos registros é Parattarna I e, de antes dele, Shuttarna I, do qual só possuímos um selo usado posteriormente por Shaushtatar. [MARTINO, 2004, p. 36]. Uma datação específica para o reinado desses reis inicias é complicada, estima-se que Kirta seria de algum momento entre 1600-1560AEC; Shuttarna I de cerca de 1560 AEC; Parattarna, c. 1500 AEC; e Shaushtatar, c. 1475 AEC. 403 Mesmo partindo apenas de aproximações, podemos entender que o momento de expansão mitânia acontece em um período de choques no Oriente Próximo. Na Babilônia os cassitas formavam uma nova dinastia; os hititas expandiam suas fronteiras em todas as direções; os egípcios lidavam com os últimos resquícios hicsos e lançavam militares campanhas ao leste. Mitani, portanto, esteve, desde seu surgimento, intimamente ligada com embates militares e, tendo desenvolvido uma noção diversa, conseguiu prevalecer e crescer rapidamente. “Os cassitas nŌo aparentaram ter tido algum projeto para os territórios ao redor deles de nenhuma forma, e a ideia de conquista dos hititas, até então, era para atacar, saquear e sair. Tothmés I era agressivo, mas ainda não tinha um sistema bem-sucedido para impor seu governo nas terras estrangeiras. Os reis de Mitani, em contraste, claramente queriam controlar um império, permitindo que reis vassalos permanecessem no trono enquanto controlava – e compensava – esses vassalos por meio de negociações formais” [PODANY, 2010, p. 156. TraduçŌo da autora]. Com essa abordagem, o território mitânio se expandiu e, em adição, tributos de diferentes cidades chegavam a Mitani, contribuindo para um rápido enriquecimento local e segurança para seus subordinados. Mitani, assim, logo se tornou um reino perigoso para os seus vizinhos, Hatti e Egito, em especial. Mitani possivelmente teria acabado de conquistar a Síria quando Tothmés I iniciou suas campanhas na região. A relação com Hatti se manteve conflituosa, mas o Egito logo formou uma aliança com Mitani. Os acordos diplomáticos entre reis egípcios e mitânios aconteceram desde, pelo menos, os tempos de Artatama (c. 1400 – 1375 AEC) e Tothmés IV (c. 1400 – 1390 AEC), segundo nos informa Tushratta (c. 1352 – 1335 AEC), em uma das Cartas de Amarna [EA29, linhas 16-20. In: SCOVILLE, 2017, pp. 203-2012]. A natureza das relações entre Egito e Mitani pode ser estudada a partir das Cartas de Amarna. Contudo, essa documentação ainda é bastante limitada: temos apenas cartas enviadas por Tushratta, rei de Mitani, ao Egito. As correspondências, porém, ainda podem nos 404 relevar alguns aspectos dessa amizade, que, aparentemente, teve altos e baixos. Tushratta se correspondeu com os faraós Amenhotep III (c. 1390– 1353 AEC) e Akhenaton (c. 1353–1336 AEC), além de uma carta enviada para a Rainha Tiye. A análise das cartas pode nos levar a algumas conclusões. Destaco, aqui, apenas um aspecto: o apelo militar [para debates maiores sobre a análise das cartas ver SCOVILLE, 2017]. Isso porque, como dito, as relações com Hatti não eram amistosas, deixando a região sob ameaça constante. Os desentendimentos com Hatti são evidentes, por exemplo, em uma correspondência do rei hitita Suppiluliuma I (c. 1344-1322 AEC), que relata conflitos nas margens do Eufrates [CTH 51, KBo 1 1. In: BECKMAN, 1996, p. 38]. Guerras, porém, custam caro e exigem muitas pessoas. Nesse sentido, uma relação amistosa com o Egito era vantajosa, uma vez que esse reino possuía uma forte equipe militar, tendo conquistado grande parte da Síria, e era conhecido como um fornecedor de ouro para o Oriente Próximo. Podemos entender, então, que Tushratta pretendia manter a aliança com o Egito como uma forma de segurança militar, diante a um confronto iminente, mesmo que as cartas não mencionem o assunto de forma direta. Não cabe a este trabalho o aprofundamento no modo como as relações se desenvolveram, contudo, cabe dizer que Hatti e Mitani, de fato, tiveram embates diretos. O primeiro deles foi repelido por Tushratta, mas o segundo chegou de surpresa, por um caminho não esperado. Consequentemente, muitos territórios mitânios foram sendo agregados às terras hititas [LIVERANI, 2016, p. 405]. Aliado a isso, temos uma virtual instabilidade interna em Mitani e Tushratta é assassinado possivelmente por um dos seus filhos, ainda que apoiado por forças estrangeiras [FREU, 2003, pp. 133-138]. A partir desse momento, a ascensão no trono mitânio se torna uma disputa constante entre hititas e assírios. Os hititas tiveram a vantagem inicial, mas paulatinamente a Assíria foi ganhando espaço, em especial por estar em uma posição geográfica mais estratégica. [LIVERANI, 2016, p. 405] 405 Foram apenas três séculos de História, mas Mitani, ainda assim, deixou sua marca. Graças a esse reino, a cultura hurrita, até então deixada em segundo plano, pode ser unificada, fortificada e difundida. Além disso, Mitani contribuiu com suas técnicas militares e novas formas de organização do Oriente Próximo, sendo atribuída aos mitânios, por exemplo, o uso de bigas puxadas por cavalos – tecnologia essa disseminada a ponto de se tornar um marco “patrimonial” do Oriente Próximo. Novos caminhos Muitos são os obstáculos no estudo de Mitani, mas também, muitas são as possibilidades. Uma vez que as limitações sejam aceitas, podemos trabalhar com diferentes aspectos que temos disponíveis, desde elementos partindo de representações estrangeiras e correspondências até o estudo da tradição hurrita, por meio de territórios como Nuzi. É claro, o estudo direto é dificultado, mas podemos entender alguns fenômenos a partir desses estudos externos e, elencando os dados, criar uma noção de como seria a vida dos mitânios – esperando que, um dia, a arqueologia nos apresente novos documentos. No começo deste texto, comentei sobre a Academia ainda estar dando seus primeiros passos em relação aos estudos mitânios. Isso resulta em uma quantidade tímida de trabalhos sobre o tema e, como dito, muitos trazendo questões sobre os contatos com Mitani (como foi o caso da minha própria dissertação de mestrado). Contudo, isso também significa que muitas coisas ainda podem ser expandidas e abordadas e que cada novo olhar contribui para o amadurecimento das pesquisas. Estudar as sociedades antigas nos propões diferentes formas de se pensar a vida e a existência humana. Quanto mais pudermos entender os moldes antigos, mais poderemos, também, entender a nossa própria trajetória. Por mais que Mitani tenha sido um reino esquecido por muitos anos, e redescoberto apenas recentemente, ele teve um impacto fundamental na vida dos antigos e no próprio desenvolvimento do homem, como apontado anteriormente. O fato de não termos materiais suficientes sobre ele certamente dificulta, mas não nos impede de tentar entendê-lo. O estudo do passado é incessante e, como afirma Marc Bloch, “o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” [BLOCH, 2002, p. 54] 406 Referências Priscila Scoville é mestra em História e bacharela em História Memória e Imagem pela Universidade Federal do Paraná. Representante do Association for Students of Egyptology - ASE. E-mail: pcnlscoville@gmail.com BECKMAN, Gary M. Hittite Diplomatic Texts. Atlanta: Scholars Press, 1996. BLOCH, Marc. A Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2002. EVANS, Jean M. The Mitanni State. IN: ARUZ, Joan; BENZEL, Kim; EVANS, Jean M. (eds.). Beyond Babylon. Art, Trade, and Diplomacy in the Second Millennium B.C. Nova York: The Metropolitan Museum of Art, 2008, pp. 194-196. FREU, Jacques. Histoire du Mitanni. Paris: L‟Harmattan, 2003. 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Warminster: Aris and Phillips Ltd, 1989. 408 REPRESENTAÇÕES DA RAPOSA NA LITERATURA MARAVILHOSA MEDIEVAL: UMA COMPARAÇÃO ENTRE O IMAGINÁRIO EUROPEU E O JAPONÊS Raphaella Ânanda Sâmsara Maia Augusto de Souza Faria Identificando-se as possíveis representações da raposa no imaginário popular, constata-se que algumas delas foram influenciadas por imaginários construídos ainda na Idade Média. Sempre vista de forma negativa, a raposa desempenhava o papel de vilã no imaginário medieval europeu, posto esse em que se manteve através dos séculos. No Japão, ela é interpretada de maneira diferente, nem sempre sendo vista de forma negativa. Ela mantém a dualidade de animal real e animal maravilhoso que possui no imaginário europeu, porém essa dualidade se estende à sua natureza. Ao analisar as características das raposas com base em quatro contos é possível definir modelos de raposas europeia e japonesa. Assim sendo, diferenças e semelhanças podem ser consideradas para uma possível comparação entre as distintas representações e interpretações relativas a esse animal, ao seu comportamento e sua dualidade. Contos europeus, contos japoneses Os dois contos europeus escolhidos por sua proximidade dentro do recorte temporal apresentam raposas más, vis, desordeiras e aproveitadoras. Em The History of Reynard, The Fox, tradução do Francês Roman de Renart, o mais famoso conjunto de histórias de animais produzidas na Idade Média - cuja origem remete ao conjunto de versos escrito por Pierre de Saint-Cloud em 1170 -, a raposa é convocada pela corte a se explicar quanto às reclamações de outros animais, que a acusavam de diversos crimes. Utilizando-se de sua astúcia, Renart consegue enganar o rei, clamando seu temor a Deus e pedindo perdão àqueles a quem tenha causado algum mal. Entretanto, a raposa continua a pregar peças e aterrorizar os outros animais da corte, armando ciladas e mais de uma vez eliminando quem o desafiava. Após inúmeras artimanhas, assassinatos e injúrias causadas aos outros animais da corte, Renart se apresenta à corte e confessa seus crimes perante o rei, porém, astuto, ele novamente convence o rei de sua inocência. Tempos depois, Renart arma contra Isengrin, o lobo, e então o rei lhes permite uma batalha. A raposa 409 provoca o lobo até que, em um vacilo de Isengrin, Renart desfere o golpe final. Convencido pelo julgamento por batalha, o rei então perdoa Renart, que retorna a seu castelo, assegurando as vidas de sua mulher e filhos e finalmente livrando-se de suas penas. No Livro das Bestas, escrito por Ramon Lull entre 1288-1289, a raposa, infeliz com a escolha do novo rei, faz de tudo para usurpá-lo, agindo de forma sorrateira para não atrair atenção para si. Ela convence outros animais da injustiça de se haver um rei e um conselho real composto por carnívoros enquanto a maioria dos animais da corte é herbívora. Utilizando-se de todas as artimanhas possíveis, ela consegue se infiltrar no conselho, pregando em nome dos animais mais fracos. Ao afastar os membros mais perigosos do conselho real, Dona Raposa convence alguns animais a ajudarem em sua empreitada, porém não revela a nenhum deles que seu objetivo é o assassinato do rei. Entretanto, com o retorno do conselho e suas acusações, o rei pressiona os outros animais para que revelem a verdade. Temendo mais o rei do que a raposa, os animais relatam a ele o medo que sentiam de se oporem à Dona Raposa, despertando a ira do rei. Ela então é descoberta a tempo e, diferente de Renart que escapou sem penalidade por seus atos bárbaros, foi morta pelo próprio rei diante de toda a corte. Ambos os contos, apesar das diferenças em seus desfechos, relatam raposas similares, que visam objetivos semelhantes. Entretanto, os contos japoneses apresentam raposas com características diversas. O primeiro conto escolhido, Tamamo-nomae, também conhecido como The Lady of the Jewels, que se passa por volta do ano 1155 durante a Era Heian no Japão (794-1185) e encontra-se presente no Otogi Zoshi, um conjunto de prosas reunido e escrito durante o período Muromachi (1336-1573), traz um relato de uma raposa que assume a forma de uma bela e jovem mulher para encantar o imperador. Tendo vivido anteriormente na China e lá morta por sua extrema crueldade, a raposa teria renascido no Japão, buscando novamente uma posição de poder. Ao ser notada pelo Imperador por sua extrema beleza e sabedoria, ele a incorpora à corte. Porém, a presença maligna da raposa o adoece e, ao ser descoberta foge, assassinando muitos homens em seu caminho até, por fim, ser morta. Já o conto The Fox in the Brothel, de autoria desconhecida porém proveniente da mesma época, presente no livro Tales from the Japanese Storytellers de Post Wheeler, trata de uma raposa que, liberta de uma armadilha por um camponês, resolve recompensá-lo. Após se oferecer a ele como esposa e ser negada, se 410 faz passar por sua filha para que ele possa vendê-la por uma boa quantia. Após retornar e se oferecer novamente, para mais uma vez ser negada, ela desaparece em um turbilhão de luzes, abençoando o camponês por sua pureza de caráter. É possível notar as diferenças entre as raposas dos contos japoneses, sua dualidade estendida não apenas para sua natureza de animal real e imaginário, mas também para o conceito entre bem e mal. Análise e comparação Tomando por base as características destas raposas, é possível chegar a um modelo europeu e um modelo japonês. Utilizando o método proposto por Marcel Detienne em Comparar o Incomparável, institui-se uma comparação entre cada raposa dentro de suas respectivas culturas. Para tanto, as características compreendidas pelos textos seriam o alicerce para tal comparação. Em The History of Reynard, The Fox, a raposa é identificada como astuta, traiçoeira, orgulhosa e persuasiva. No Livro das Bestas, ela se mantém astuta e traiçoeira, porém também eloquente e manipuladora. Sendo essas as principais características de ambas as raposas, é possível traçar um modelo, em que as semelhanças são muito próximas tornando essas raposas exemplos de uma visão unificada de sua interpretação na época e localidade. Tamamo-no-mae é descrita como cruel, nociva, impiedosa, extremamente bela e sábia. A raposa de The Fox in the Brothel se mostra grata, piedosa, extremamente bela e astuta. Também aqui se traça um modelo, porém seus moldes se divergem, demonstrando suas diferenças e a dualidade na percepção da raposa no Japão feudal. Algo que também pode ser citado é a forma como, nos contos europeus, a raposa é vista de forma masculina – Renart é um raposo, que possui mulher e filhos, e mesmo a Dona Raposa do Livro das Bestas demonstra atitudes mais condizentes com o comportamento masculino da época – enquanto nos contos japoneses ela é uma manifestação feminina, sendo descrita em ambos os contos como capaz de se transformar em belas mulheres. A partir de tal análise, chegamos ao modelo final de raposa com base em cada localidade. Comparada ao diabo tanto no Phisiologus de Theobald quanto no The Aberdeen Bestiary da Universidade de 411 Aberdeen, a raposa europeia nos idos dos séculos XII e XIII possui uma imagem profana. Como Renart e Dona Raposa, é uma figura extremamente racional, sua astúcia se sobrepondo à sua sabedoria. Má por natureza, imoral, sua visão implica fraqueza de caráter, e seu aspecto é masculino. Considerada como tanto divina quanto demoníaca por Kincaid em seu livro Come and Sleep: The Folklore of the Japanese Fox e como símbolo do deus Inari – divindade do arroz – ao mesmo tempo em que um ser vingativo e brincalhão por Kiyoshi Nozaki em Kitsune: Japan’s fox of Mistery, a raposa feudal japonesa possui uma imagem sagrada. Como Tamamo-no-mae e a raposa sem nome de The Fox in the Brothel, é um ser emocional de profunda sabedoria, porém igualmente astuta. Amoral por não compreender a noção de moral humana, é um ser dúbio, transitando entre o bem e o mal, entre crueldade, travessura e piedade, em comportamentos considerados então femininos. Por fim, concluímos que a raposa medieval europeia é intrinsecamente negativa, de natureza maldosa e interpretação masculina, cuja dualidade apenas se aplica à sua existência no mundo real e no maravilhoso, enquanto a raposa medieval japonesa possui naturezas distintas, sendo possível a dualidade entre o bem e o mal, o real e o maravilhoso, representando “a alma japonesa e os caminhos obscuros da humanidade” [Kincaid, 2016], seu aspecto feminino ressaltado por sua interpretação emocional. Opostos, os modelos de raposa se fazem presentes em ambos os mundos, real e maravilhoso. Suas características tornam-se traços marcantes de suas respectivas, tão diferentes culturas, e suas estruturas, enquanto por vezes semelhantes, apresentam diferentes aspectos e interpretações, ressaltando as diferentes noções de moral presentes em cada cultura. Referências Raphaella Ânanda Sâmsara é graduanda em História pela UNIRIO. É membro do Laboratório de Estudos Medievais do Núcleo de Estudos e Referências da Antiguidade e do Medievo (NERO-LEM/ UNIRIO) e sua pesquisa é orientada pelo Professor Dr. Paulo André Leira Parente. Mail: ananda.samsara@ymail.com 412 ______. Of the Fox. In: The Aberdeen Bestiary. Online. Disponível em <http:// http://www.abdn.ac.uk/bestiary/ms24/f16r>. Acesso em: 21 maio 2017. ______. Tamamo-no-mae. In: Enjoying Otogi Zoshi with the help of synopsis and illustrations. Online. Disponível em: <http://edb.kulib.kyoto-u.ac.jp/exhibite/otogi/tamamo/tamamo.html>. Acesso em: 21 maio 2017. ______; CAXTON, William (trad.); MORLEY, Henry (ed.). The History of Reynard, The Fox. In: Early Prose Romances. The Carisbrooke Library, Volume IV. Londres: George Routledge And Sons, 1889. ______; WHEELER, Post. The Fox In The Brothel. In: Tales from Japanese Storytellers. Tuttle Publishing, 1976. DETIENNE, Marcel. Comparar o Incomparável. Trad. Ivo Storniolo. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004. 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Londres: John & Edward Bumpus, Ltd., 1928. 413 414 A INFLUÊNCIA GEOGRÁFICA NA DEFINIÇÃO DA GUERRA NAVAL RUSSO-JAPONESA (1904-1905) Rayanne Gabrielle da Silva Conflito pouco comentando por autores brasileiros, a Guerra RussoJaponesa, ou Nipo-Russa, ocorreu entre fevereiro de 1904 e maio de 1905, caracterizado pelo uso das forças navais entre a potência russa em declínio sociopolítico e o ascendente império japonês, bem como pelo controle das regiões continentais da Coreia e da China, ambas enfraquecidas político e economicamente dentro do quadro de disputas internas, rebeliões civis e projeções imperialistas dos vizinhos asiáticos. Os objetivos da Rússia e do Japão com esse conflito tornam-se claros na medida em que se delineiam suas necessidades de obtenção de matérias-primas, inexistentes ou escassos em seus territórios, alargamento das fronteiras e consequente busca por saídas terrestres e/ou marítimas mais viáveis para a realização das negociações econômico-comerciais, principalmente com o Ocidente. A Guerra Russo-Japonesa está inserida no contexto das guerras asiáticas ocorridas no final do século XIX e início do XX, cujas consequências, desenvolvidas mais adiante neste trabalho, terão reflexos indiretos sobre as duas Grandes Guerras Mundiais que se seguirão. Entre essas guerras estão as duas Guerras do Ópio (18391842 e 1856-1860), na China, e a Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), as primeiras permitindo a abertura chinesa ao comércio Ocidental e a segunda marcada pela afirmação de soberania entre a China e o Japão, este último saindo vencedor e enfrentando, por quase os mesmos motivos, a Rússia uma década depois. Difícil será compreender a eclosão das contendas entre a gigante euro-asiática e o pequeno, mas ocidentalizado, império nipônico, sem conhecer, ainda que brevemente, os conflitos anteriores. Antecedentes da Guerra Russo-Japonesa No século XIX, o Extremo Oriente estava passando por uma pressão enorme das potências ocidentais para abrir seus portos ao mercado externo. A China, o Japão e a Coreia detinham tradições políticas e culturais muito fortes e arraigadas, primando pela preservação dessas tradições ao fechar suas fronteiras às influências ocidentais, cada vez mais impositivas e imperialistas. A Rússia era o único 415 Estado a participar ativamente da vida ocidentalizada que os seus vizinhos tanto tentavam evitar, através de escaramuças por territórios, adesão às ideologias e filosofias em voga na Europa e alianças estratégicas por meio de acordos ou casamentos entre membros da realeza. Mapa do Extremo Oriente no século XIX. Observação para o avanço da colonização europeia no Pacífico. Fonte: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=252 Contudo, a Europa tinha a pretensão de dar continuidade as suas influências e expansões territoriais, além de ampliar seus mercados, vendo no Extremo Oriente um fornecedor comercial em potencial. Como as conversações pacíficas não dessem frutos satisfatórios, em quase todos os casos, decidiu-se usar a força das armas. Na China, por exemplo, as forças britânicas obrigaram os chineses a abrir seus portos para os navios ocidentais, na disputa pelo mercado do ópio. Os Estados Unidos, vizinho americano do outro lado do Pacífico, também deu mostras de intenção colonizadora e obrigou o Japão, em 1853, a fazer o mesmo, sob a ameaça dos canhões das frotas navais (ALBUQUERQUE, 2009, p. 327). Enquanto a China tentava aliar seu tradicionalismo às intervenções estrangeiras em seu território, o Japão optou pela modernização, bem-vinda com o fim da dinastia Tokugawa e o início da era Meiji, pró-Ocidente, em 1868. As consequências dessa súbita modernização refletiram-se, principalmente, na educação, inclusive militar, e na aquisição e posterior desenvolvimento da indústria bélica japonesa. A Coreia, 416 por sua vez, manteve-se subordinada economicamente à China, preservando a alcunha de “reino-eremita”, pela continuidade de sua política de isolamento do resto do mundo (SAKURAI, 2007, p. 138). Além dessa alcunha, a Coreia era tida como um dos vários estadosvassalos chineses, ou seja, possuía independência e administração autônoma, mas reconhecia a supremacia do imperador chinês (CHANG, 2014, p. 168). Mas o Japão não pararia por aí. Sua súbita modernização cobrou um preço considerável do império. Como afirma Albuquerque (2009, p. 329), “Tóquio sabia que sua industrializaçŌo tinha um ponto fraco, que era a falta de matérias-primas. Estas estavam no continente asiático, nas ilhas indonésias ou do outro lado do mundo, como nos Estados Unidos da América. Tendo consciência clara disso, o governo japonês viu a grande importância de sua marinha de guerra, pois do ponto de vista estratégico o Japão tinha situação análoga à da GrãBretanha. Ambos dependiam fortemente de seu poder naval para garantir as comunicações marítimas.” Portanto, o império nipônico precisava garantir a sobrevivência de sua indústria explorando outros territórios que tivessem aquilo do qual precisava, isto é, carvão e minérios de ferro principalmente. E a Coreia parecia ser perfeita para dar início a essas conquistas no Extremo Oriente, localizada estrategicamente a oeste. Geograficamente, o Japão estava cercado por territórios pertencentes à Rússia – ao norte, a parte sul da ilha Sacalina, e as ilhas Ryukyu, ao sul – e à China – as ilhas Pescadores e Formosa, ambas também no sul. Para tanto, sabia que entraria em conflito com os dois países, os quais tinham pretensões econômicas sobre a Coreia tal como o rival japonês (ALBUQUERQUE, loc. cit.). O caso da Rússia era semelhante. O império detinha um território tão vasto quanto à China. A diferença entre os dois é que o segundo não sabia controlar politicamente o seu, enquanto o primeiro preocupava-se com o avanço modernizador da pequena ilha nipônica, localizada a sudeste do território. Sua limitação com a Europa se dá através dos montes Urais, tendo toda a costa leste banhada pelo oceano Pacífico. Subindo para o norte, defronta-se com o inverno rigoroso da Sibéria e a noroeste com o 417 frequentemente congelado mar Branco. Dessa forma, faltava aos russos uma saída navegável para águas quentes em seu litoral, contando apenas com a base naval de Vladivostok, ao sul, cujas águas eram normalmente navegáveis, além de limitadas pelo mar do Japão (ALBUQUERQUE, 2009, p. 330). Em decorrência da sua política expansionista asiática – e aproveitando-se da fraqueza chinesa em manter-se intacta territorialmente –, a Rússia deu início à construção da ferrovia transiberiana, em 1861, ligando o sul da Sibéria, passando pela região da Manchúria Russa (a Manchúria era dividida entre russos e chineses) e alcançando a base naval de Vladivostok, ignorando, por ora, o interesse por espaços na Europa. Em 1894 inicia-se a Primeira Guerra Sino-Japonesa (haveria outra na altura da Segunda Guerra Mundial), em virtude da invasão à Coreia pelo Japão, cuja vitória esmagadora sobre a China, decidida através da batalha naval de Yalu (1895), surpreendeu o Império Russo e acendeu o sinal de alerta para a política expansionista nipônica no Pacífico. Além disso, o Japão obteve dos chineses a Manchúria Chinesa, as ilhas Pescadores e Formosa, e parte do território coreano, em troca da manutenção parcial da independência da Coreia através do Tratado de Shimonoseki (SAKURAI, 2007, p. 139). Nesse ínterim, a Rússia tomou o lado do partido coreano contrário a ocupação japonesa, enviando colonos ao país, e junto à China, em 1898, passou a operar uma base naval na altura do mar Amarelo chamada de Port Arthur, ao sul da Manchúria Chinesa. A escolha da enseada para a construção da base se deu por ser o único porto no Pacífico que não congela no inverno, o que facilita a navegabilidade, algo caro na busca por saídas marítimas pelos russos (SAKURAI, op. cit., p. 140; DARÓZ, 2009). No mesmo período, os russos também aceleraram a construção da ferrovia, agora ampliando o percurso até Port Arthur, gerando a insatisfação, tal como a construção da base na região, dos japoneses. Estes, por volta de 1902, deram início às negociações, mediadas pela Grã-Bretanha, para a retirada dos colonos russos da Coreia e das tropas russas da Manchúria Chinesa, o que não ocorreu até 1904, quando, sem declaração prévia de guerra, o Japão iniciou o conflito. A Guerra Naval Russo-Japonesa: consequências territoriais e geopolíticas decorrentes Os japoneses tinham como objetivo essencial “[...] obter o domínio do mar e fazer a guerra também no continente” (ALBUQUERQUE, op. cit., p. 340), isto é, conquistar e consolidar o domínio sobre todo 418 o Pacífico e controlar os territórios conquistados com a Primeira Guerra Sino-Japonesa, incluindo a Manchúria – rica em recursos minerais, como o gás natural, o petróleo e o diamante -, de modo a impedir o avanço russo. Só assim conseguiria suprir suas carências materiais e fortalecer seu poderia militar, de forma a intimidar quaisquer outras pretensões imperialistas na região, um recado claro às potências europeias, aos Estados Unidos, do outro lado do oceano, e a própria Rússia. O bloqueio e ataque a Port Arthur (Batalha de Port Arthur) e o afundamento de couraçados russos em Inchon, na Coreia, marcaram o início das hostilidades navais, caracterizando o conflito como uma guerra naval. Segundo a Enciclopédia de Guerras e Revoluções Vol. I (2015), uma guerra naval “é a parte da guerra constituída por ações militares realizadas predominantemente em áreas marítimas e/ou águas interiores”, porém, tal conceito aplicado ao presente objeto de estudo não exclui o uso da força terrestre por ambos os beligerantes em batalhas que mobilizaram grandes contingentes, uso em larga escala, pela primeira vez na História, da metralhadora e a adoção de trincheiras, como visto nas batalhas de Yalu – próximo ao rio de mesmo nome onde, dez anos antes, o Japão obteve uma expressiva vitória em campanha naval contra a China – e, principalmente, a de Mukden, esta última, decisiva para o domínio pleno da Manchúria pelos nipônicos. Tais ações prenunciaram o que viria a ser a caracterização da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) (SONDHAUS, 2013). Liderados pelo almirante Heihachiro Togo, os japoneses detinham o que era considerada a frota naval mais poderosa do Pacífico, enquanto a frota russa era a mais numerosa, porém menos modernizada e espalhada em missões no Báltico e no Mar Negro, além da que já estava estacionada no Pacífico. Uma observação a respeito da composição das frotas destacada por Freire (2004), indica que a geografia dos países em guerra influenciou na formação de seus marinheiros. Enquanto os russos passavam pouco tempo a bordo de suas embarcações, além daqueles que nunca tinham visto o mar devido às dificuldades territoriais impostas, os japoneses, ao contrário, viviam intensamente em contato com suas belonaves de guerra e com o próprio mar, muitos tendo nascido na costa ou perto dela, sendo pescadores ou até mesmo piratas. Lembrando que a Rússia é um território extremamente continental, enquanto o Japão 419 é um arquipélago, cujas quatro principais ilhas que a compõem constituem o império propriamente dito e conhecido. A frota russa, de início, foi liderada pelo vice-almirante Stepan Makarov, morto quando seu navio capitânia, o encouraçado Petropavlovsk, afundou ao bater numa mina japonesa. Seu sucessor, o contra-almirante Vilgelm Vitgeft, teve o mesmo destino, sendo então substituído pelo vice-almirante Zinovi Rodjestivensk, comandante do Segundo Esquadrão do Pacífico e que levou a guerra até o fim. Completado um ano do conflito, Rússia e Japão viram-se diante de um impasse, com perdas importantes de navios por causa das minas submarinas e da ausência de vantagens táticas (DARÓZ, 2009). Almirante Togo. In http://www.oexplorador.com.br/togo-heihachiro-comandantedas-forcas-japonesas-na-batalha-de-tsushima/ No dia 25 de maio de 1905, a frota russa dirigiu-se para o estreito de Tsushima, localizado entre a ilha de Tsushima e a ilha Honshiu, a principal do arquipélago japonês, localizada ao sul. Segundo Albuquerque (2009, p. 347), no local “o tempo apresentava-se ruim, com fortes ventos e uma chuva fina; a neblina espessa tornava nula a visibilidade”, condições meteorológicas consideradas favoráveis pelos russos para iludir a frota japonesa em aproximação e atacá-la. O plano não deu certo e na madrugada do dia 27 para o dia 28 de maio, foram avistados por um navio mercante armado japonês, que informou imediatamente a frota naval de Togo, resultando no ataque que garantiu a vitória japonesa e a rendição da frota russa, colocando fim ao conflito armado. Tal feito ficou conhecido como 420 Batalha Naval de Tsushima ou Batalha do Mar do Japão, cujo impacto gerou comparações com a vitória obtida pelo Almirante Nelson em Trafalgar em 1805 contra as forças napoleônicas cem anos antes (YAMASHIRO, 1964, p. 162). Vice-Almirante Rodjestivensk. In https://laguerrarusojaponesa19041905.wordpress.com/tag/vigo/ A paz foi assinada por meio de um tratado, na cidade de Portsmouth, nos Estados Unidos, tendo sido mediada por este último a partir de conversações iniciadas pelos japoneses. Através desse tratado, “[...] a Rússia foi coagida a abrir mão de seus direitos sobre Port Arthur, evacuar a Manchúria e reconhecer a Coréia como área de influência japonesa” (SAKURAI, 2007, p. 140). O JapŌo ainda obteve os direitos sobre o sul da ilha Sacalina, anexando finalmente a Coreia a seu território em 1910. Já o Império Russo, após sofrer uma derrota naval e territorial considerada vergonhosa, obteve os direitos de pescar comercialmente na costa da Sibéria oriental, sem anular suas pretensões colonialistas (FREIRE, 2004; SAKURAI, loc. cit.; SONDHAUS, 2013). O clima político e socioeconômico interno estava fragilizado, agravado com o início da primeira revolução socialista no mesmo ano de término da guerra, cujo auge em 1917 resultou na queda da monarquia e na retirada imediata da Rússia da Primeira Guerra Mundial. Para John Darwin (2015, p. 319), “Nem mesmo o desastre da Guerra Russo-Japonesa (19041905) [...] conseguiu quebrar a pretensão da Rússia a ser uma potência do Pacífico ou fazer recuar a sua expansão no Norte da Ásia Oriental. Assim, apesar da instabilidade do seu sistema imperial, do seu atraso tecnológico, fragilidade 421 económica e fraco magnetismo cultural, a Rússia conseguira acompanhar os Estados mundiais rivais. Seguira a sua própria trajetória para o colonialismo mundial.” Mapa apresentando as áreas de influência russa (cor escura) e as áreas de influência japonesa (cor clara) durante a Guerra RussoJaponesa. In ALBUQUERQUE (2009, p. 353). Em termos geopolíticos, o Japão tornou-se a potência inconteste do Pacífico. Suas necessidades prementes de matéria-prima e de comunicações marítimas traduziram-se em algo maior, capaz de lhe assegurar o controle total da região extremo-oriental, inclusive do oceano ao seu redor, com grande potencial estratégico, assim como dos territórios adjacentes, capazes de lhe fornecer as bases necessárias para continuar a fazer frente às grandes potências mundiais. Com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, voltara suas intenções para a fragilizada China e demonstrara hostilidade e uma política dura de não-intervenção no Pacífico contra o gigante Estados Unidos até a Segunda Guerra Mundial, quando atacaram a base naval de Pearl Harbor, no ano de 1941. As bombas atômicas lançadas pelos americanos sobre as ilhas nipônicas em agosto de 1945 foram as consequências do imperialismo desenfreado promovido pelo Trono do Crisântemo. 422 A Rússia, desde a revolução bolchevique que derrubara a monarquia imperial, viu-se diante do desafio de crescer frente ao Ocidente capitalista sob a condução pesada do comunismo ditatorial. Seu projeto de expansão posterior caracterizou-se pela subjugação de quase toda a Ásia através da ideologia vermelha, resultando na bipolarização tensa, com os Estados Unidos como adversário, logo após a Segunda Guerra, no que ficou conhecida na História como Guerra Fria. Isso não excluiu a possessão de boa parte dos territórios do leste europeu, alargando sobremaneira suas fronteiras, ampliando sua produção e manobras militares e usufruindo das riquezas minerais, como o urânio e o petróleo, capazes de abastecer sua indústria armamentista em crescente produção. Em síntese, a Guerra Russo-Japonesa dependeu exclusivamente das condições existentes para sobreviver economicamente e se comunicar estrategicamente dos países beligerantes nos espaços geográficos em que estavam inseridos. A necessidade de matériasprimas para abastecer a industrialização, a busca por canais de comunicação além dos meios restritos, a procura por saídas, tanto terrestres quanto para a navegabilidade comercial e militar, as condições meteorológicas adversas e o uso do poder naval para a conquista foram determinantes para definir o resultado do conflito e possibilitar a reflexão sobre as consequências das ações dos rivais em questão ao longo do tumultuado século XX. Referências Rayanne Gabrielle da Silva é pós-graduanda em História Militar pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). E-mail: rayannegabrielle_28@hotmail.com. CHANG, J. A Imperatriz de Ferro: a concubina que criou a China moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. SILVA, F. C. T. et alli (Orgs.). 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Revista Militar, n. 2427, abr. 2004. Disponível em: <https://www.revistamilitar.pt/artigo/394>. DARÓZ, C. Batalha de Porto Arthur (1904): a vez das minas. Blog Carlos Daróz – História Militar. 26 mar. 2009. Disponível em: <http://darozhistoriamilitar.blogspot.com.br/2009/03/batalha-deporto-arthur-1904-vez-das.html>. 424 INTERVENÇÃO DO PIBID DE HISTÓRIA: O JAPÃO NA SALA DE AULA Renan Lourenço da Fonseca A cultura japonesa, bem como a cultura oriental como um todo, é desprivilegiada no que diz respeito ao repertório de conhecimentos básicos existentes em materiais didáticos, livros de história, revistas, etc. Tanto no ensino básico como nas universidades, a cultura nipônica passa por meras menções, dificultando uma melhor compreensŌo dessa civilizaçŌo de alicerces “milenares”, como sempre o é destacado ao tratar deste assunto. Sobre o eurocentrismo, Barbosa nos diz que “Existem diversas formas de caracterizar o chamado eurocentrismo. Por vezes, ele é visto como mero fenômeno etnocêntrico, comum aos povos em outras épocas históricas. Mas para a maioria dos autores que tratam atualmente da questão, o eurocentrismo deveria ser caracterizado, diferentemente, como um etnocentrismo singular, entendido como uma ideologia, paradigma e/ou discurso” [BARBOSA, 2008, p. 46]. O Brasil teve um contato significativo com o Japão durante as grandes guerras mundiais, e os japoneses que aqui vieram durante esse período são responsáveis, assim como muitos dos imigrantes advindos do outro lado do Pacífico, por parcelas de mudanças na estrutura sociocultural brasileira. Logo seriam responsáveis por traçar novos caminhos para a história de nossa nação. Porém, em alguns momentos da história, houve considerável distanciamento entre brasileiros e japoneses. Segundo Teles, com base em Sousa, o Brasil marginalizou os descendentes japoneses durante Segunda Guerra Mundial, pois estes foram declarados inimigos dos Estados Unidos, logo, inimigos de nosso país. Nesse sentido o autor diz que “como política de combate, o JapŌo foi rechaçado, uma vez que fazia parte do lado contrário, o Eixo, e assim, romperam-se todas as relações possíveis” [TELES, 2010]. Com o decorrer das décadas, novas roupagens surgiram, e a relação Japão-Brasil tornou-se mais íntima e, portanto, é muito importante que analisemos e compartilhemos desta aproximação histórica entre os dois países. 425 O PIBID de História da UNESPAR, campus de Campo Mourão, se preocupando com as demandas do ensino, nas suas mais variadas abordagens, deu condições para que alunos da graduação realizassem intervenções, que colaborassem com o processo de ensino e aprendizagem de alunos da escola do Ensino Básico. Nosso grupo, que na época era composto pelos discentes Alisson Amaro Fernandes, Anna Karina Firmo de Lima Alves, Daiane Aparecida Freita dos Santos, Polyana de Paula Ramos e eu, Renan Lourenço da Fonseca, realizamos a execuçŌo de atividades, na temática “JapŌo”, que serão descritas a seguir. Foram seguidas as orientações dos coordenadores do PIBID de História, os professores Dr. Fábio André Hanh e Dr. Bruno Flávio Lontra Fagundes, contando também com a supervisŌo do professor Lincoln D‟Avila Ferreira. Nosso objetivo era propor a reflexão histórica de alguns elementos da história japonesa, dialogando com a cultura, religião, filosofia, comportamento, culinária e outros componentes que colaborem com a desconstrução de estereótipos que são comuns em nossa sociedade. As intervenções foram realizadas em duas turmas de 2º ano, do período matutino, no colégio Estadual Doutor Osvaldo Cruz, do município de Campo Mourão. O total de aulas utilizadas foi de 9 aulas por turma, distribuídas no decorrer do segundo semestre do ano de 2016. Nossas ações foram executadas em três etapas distintas: aplicação de questionários (1), exposição de conteúdo (2) e Atividade Final (3). Os questionários foram aplicados em dois momentos. Os primeiros foram aplicados antes das exposições de conteúdo e os demais foram aplicados depois de realizadas todas as intervenções, como uma última ação dos bolsistas no colégio. Para melhor análise das informações, foram estruturados dois tipos de questionário: abertos e fechados. A intençŌo dos questionários “abertos” foi de coletar informações mais personalizadas de cada aluno, referente ao tema Japão. As questões contidas nos questionários deveriam ser respondidas em pequenos textos, que apresentariam noções interessantes sobre o assunto. Os questionários “fechados” tiveram como objetivo a coleta de dados específicos, contendo informações sobre o aluno, sobre suas aulas de História e sobre o Japão. Neste modelo, as questões foram objetivas. Num primeiro momento, com a posse dos questionários respondidos, analisamos conjuntamente os dois tipos, que acabavam por complementar o raciocínio das respostas. Foi uma estratégia interessante para perceber tanto as 426 conexões como também as contradições existentes em cada argumento em função dos dados e vice-e-versa. O segundo momento dos questionários foi realizado no final das intervenções. Por meio dos mesmos procedimentos da primeira etapa, aplicamos os dois tipos de questionário e analisamos as respostas. Com as considerações de ambos os momentos – após análise dos questionários aplicados no início e no fim das intervenções – identificamos ligeiras mudanças nas visões dos alunos, referente ao Japão e sua cultura. A partir, do dia 12 de setembro, em sala de aula, os pibidianos começaram a abordar as principais Eras do Japão, partindo da PréHistória japonesa, seguidos das Eras Jomon, Yayoi, Kofun, Nara, Heian, Kamakura, Muromatchi, Azutchi-Momoyama, Edo, Meiji, Taisho e Showa, sempre fazendo ligações com temas atuais, além de fazer conexões do tema com animes japoneses, aspectos culturais (yoga, karaokê), que, segundo as informações coletadas nos questionários, estão presentes no cotidiano dos alunos. A proposta de apresentarmos essa divisão de 12 Eras, mais a pré-história, teve como objetivo demonstrar que as formas de divisão da História podem acontecer de várias formas, dependo dos critérios baseados na cultura local ou até da seleção das mais sofisticadas teorias e metodologias historiográficas, que geralmente partem do referencial da História “quadripartite” (Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), baseada numa espécie de “tronco” da história, que sustentaria os “galhos” e “ramos” feitas de histórias paralelas e simultâneas. Posto isso, achamos mais interessante estudar a história do Japão vista pelo ângulo japonês. A maior parte do material foi retirada da Internet, principalmente do site intitulado “Cultura Japonesa”. Como recurso ilustrativo, utilizamos o livro “História do JapŌo em Imagens”, de Shigeo Nishimura. Utilizamos também, ao final de cada exposição, alguns objetos típicos dos Japão (veja um exemplo na Figura 1), que serviram como complemento de todo conteúdo. 427 Figura 1 – Leque Fonte: Do autor (2016) O uso dessa última ferramenta não foi meramente decorativo, pois acredito que o processo de ensino e aprendizagem deve munir-se de qualquer tipo de recurso, seja ele material ou não, que corrobore com a assimilação dos conteúdos. Como diz Siman: “A presença de outros mediadores culturais, como os objetos da cultura, material, visual ou simbólica, que ancorados nos procedimentos de produção do conhecimento histórico possibilitarão a construção do conhecimento pelos alunos, tornando possível “imaginar”, reconstruir o não vivido diretamente, por meio de variadas fontes documentais”. [SIMAN, 2004, p. 88] No caso do uso dos objetos típicos, pensamos que os conhecimentos adquiridos em sala poderiam ser depositados em um receptáculo material, que carregado de simbologias, faria relação direta com os conteúdos estudados. Ao todo, as exposições duraram três semanas. No dia 21 de novembro, retomamos as atividades, dando início a um conteúdo complementar sobre a religião no Japão, seguido de um segundo encontro, sob a temática dos animes e da culinária japonesa. Ao fim das exposições em sala de aula, finalizamos nossas atividades, num penúltimo encontro (o último foi com a aplicação da segunda fase dos questionários) com a “Sala Temática” (Figura 2), a atividade final. 428 Figura 2 – Sala temática Fonte: Do autor (2016) Teve como objetivo instigar os alunos à reflexão sobre o tema de uma forma dinâmica, divertida e atrativa. Assim, os alunos puderam ter um contato direto com alguns dos assuntos abordados nas intervenções em sala de aula. Começamos as interações com a sala propondo uma gincana com perguntas e respostas. A gincana consistia numa espécie de “prender o rabo no burro”, que foi adaptada tematicamente na construção do rosto de uma gueixa. Foram colados um cartaz com duas imagens em uma parede para que dois grupos pudessem competir. Tinha direito de colar uma parte do rosto da gueixa aquele que acertasse a resposta da pergunta. As perguntas foram baseadas no conteúdo das exposições em sala de aula. Num segundo momento, reproduzimos em um televisor alguns trechos da animação japonesa do Studio Ghibli, “O Conto da Princesa Kaguya”, que baseada no folclore O Conto do Cortador de Bambu, apresentava particularidades dos costumes japoneses e da religião xintoísta, que foram debatidas em sala de aula, anteriormente. Após a reprodução da animação abrimos para uma vivência mais livre, por meio da manipulação de objetos, jornais e mangás dispostos em uma mesa, acompanhados da degustação voluntária de Senbeis (biscoitos a base de arroz). Encerramos a atividade com uma breve discussão e agendamos nosso último encontro para aplicação da segunda fase dos questionários, que já foram descrevidas mais acima. Considerando que o nosso intuito foi o de introduzir uma reflexão da importância das outras culturas, além da nossa cultura, bem como da europeia, da qual temos grande influência, quisemos propor transformações, compartilhando dos conhecimentos históricos. Esperamos que os alunos tenham aguçado seus olhares críticos 429 sobre importância de se dar atenção ao que está distante, ao diferente. E pela análise dos últimos questionários, foi possível perceber a transformação na mentalidade dos alunos, principalmente no que diz respeito aos estereótipos que envolvem o Japão. Referências Renan Lourenço da Fonseca é do 3º ano de História, bolsista do PIBID, da UNESPAR, campus de Campo Mourão, Paraná. Mail: renan.l.fonseca@gmail.com BARBOSA, M. S. Eurocentrismo, história e história da África. Sankofa - Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, n. 1, p. 46-63, jun. 2008. TELES, M. G.. Os valores japoneses e sua influência no comportamento cultural corporativo brasileiro. C@LEA – Revista Cadernos de Aulas do LEA, Ilhéus, n. 3, p. 75 – 87, nov. 2014. NISHIMURA, Shigeo. História do Japão em Imagens. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2008. SIMAN, Lana Mara de Castro. ―O papel dos mediadores culturais e da ação mediadora do professor no processo de construção do conhecimento histórico pelos alunos‖. In: ZARTH, Paulo A. e outros (orgs). Ensino de História e Educação. Ijuí: Ed. UNIJUÍ: 2004. O Conto da Princesa Kaguya. Direção: Isao Takahata. Japão: Studio Ghibli, 2015. 1 DVD. 430 “MIMOS INDIANOS” E “DELÍCIAS DA ÁSIA”: UM DEBATE SOBRE O IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI Ricardo Hiroyuki Shibata O percurso literário do topos da “Idade de Ferro”, que traz consigo, para uns, a derrocada do império português no século XVI (se é que um dia foi mesmo um verdadeiro império), e, para outros, o empobrecimento da vida social, pode se lastreado desde as críticas de Sá de Miranda e sua retirada da corte, passando pelas queixas de Gil Vicente a respeito da perda da alegria de viver do povo português até a tŌo famosa “austera, apagada, e vil tristeza” no gosto da cobiça de Camões (Os Lusíadas X.145) (RAMALHO, 1997, p.17). Para o pensamento moral que subjaz a todos eles, a degradação das virtudes e dos laços sociais que transformam os súditos em uma verdadeira comunidade política são conseqüência da expansão marítima e desses “fumos da Índia” – ou para dizer com Miranda, desses “mimos indianos” –, que se deu progressivamente do reinado de D. Manuel para o de D. João III. Em verdade, era ao bom exemplo do reinado de D. João II a que se referia Sá de Miranda, na carta “A El Rei nosso senhor”, quando admoestava a D. João III das mazelas que grassavam no reino: Do vosso nome um gram rei Neste reino lusitano. Se pos essa mesma lei: Que diz o seu pelicano: Pola lei e pola grei. (MIRANDA, 1989, p.204) Dante, na Divina Comedia (XXV, 112), comparava a figura do pelicano que se volta para os filhos para alimentá-los com seu próprio sangue com a figura do Cristo. Essa comparação, que parece por demais mundana, foi estabelecida através de três fontes: a Bíblia (Salmo 101.7-8), que representa o pelicano como animal do desterro e da solidão; a retomada dos bestiários medievais; e do Horopollon, muito em voga no século XVI. É assim que se dissemina a associação do auto-sacrifício do pelicano com o de Cristo que salva seus filhos, imolando-se na cruz e que ressuscita após três dias, como representação da Caridade e do Amor de Deus pelos homens (BONARDI, 1990), ou, como esclarece Emile Male, como sinal da 431 Ressurreição e da virtude teologal da esperança (MÂLE, 1948, p.91s). Por ocasião das cortes de 1490, segundo informa Manuela Mendonça, as reformas empreendidas por D. João II, em nome do amor aos súditos, deram tanto resultado que os povos de muito bom grado resolveram contribuir voluntariamente com todas as despesas do casamento de príncipe D. Afonso, indicando, com isso, que se vivia numa época próspera em Portugal. As bodas do príncipe português com a filha dos Reis Católicos seriam o espelho do reinado de D. João II e um signo a mais da magnificência régia, além da construção da fortaleza da Graciosa no interior do Marrocos, da sagração do conde de Vila Real como Marquês e da visita triunfante ao “reino do Algarve”. Como diz Garcia de Resende, em sua Crônica de D. João II, para as Cortes o rei nŌo estipulou quantia certa, contudo antes “o que elles por suas vontades quisessem, e podessem boamente fazer”. Uma solicitação que punha à prova a situação econômica dos súditos e a popularidade do monarca. É ainda Garcia de Resende que apresenta a resposta dos estados do Reino: “os procuradores todos pollo muyto amor que os povos a el Rey tinhão (...) fizerão a el Rey serviço de cem mil cruzados” (MENDONÇA, 1991, pp.411-412). No entanto, durante o século XVI, a sorte de Portugal mudara. Pelo menos duas vezes, em 1542 e novamente em 1570, levantou-se a possibilidade de desistir do estado da Índia, a fim de levar a cabo a conquista de Marrocos, foi seriamente discutida por escritores (moralistas, sobretudo) portugueses e mesmo no conselho régio (THOMAZ, 1994, p.191). D. João III havia herdado uma situação fiscal complicadíssima. D. João II deixara para D. Manuel enormes dívidas fiscais, que, por sua vez, foram acrescidas pelos gastos com a descoberta da Índia (ALBUQUERQUE, 1884, p.34). Além disso, acrescentarem-se dois erros cruciais: a expulsão dos judeus e a renúncia fiscal dos impostos do estado eclesiástico, das ordens militares e seus respectivos criados. De fato, os produtos vindos da Índia traziam enormes dividendos ao Reino, porém esse comércio dependia de substanciais investimentos em navios e na construção de fortificações, o que levou o monarca português a contrair empréstimos e antecipar os lucros com os contratos, fragilizando ainda mais o Fisco e aumentando as despesas 432 públicas. Portugal também atuava em várias frentes de expansão e conquista (Índia, Brasil, Norte da África) e, devido aos precários instrumentos de fiscalização, havia o comércio ilícito que burlava o monopólio régio. Por volta de 1524, com a forte expansão do poderio muçulmano no Norte da África, as praças portuguesas, até então auto-suficientes, começaram a sofrer problemas de abastecimento e de proteção, necessitando, portanto, maiores investimentos. É basicamente por essa data que se levanta a solução de abandonar as praças do Marrocos. A conjuntura desfavorável contribuía para isso: estado de guerra permanente, abastecimentos locais muito dependentes da metrópole, deficiências portuárias, guerra de corso, falta de organização militar, aliado à vasta extensão pelas quais se dispersavam as possessões portuguesas. Para a mentalidade nobiliárquica da época, abandonar qualquer praça que havia sido conquistada era, sem dúvida alguma, um opróbrio difícil de aceitar. Todavia, a queda de Santa Cruz do Cabo de Gué em 1541, vai mostrar a D. João III o caminho a seguir. Como se sabe, abandona-se, na África, as praças de Safim, Azamor (1541), Alcácer Céguer (1549) e Arzila (1550) (FONTOURA, 1999, p.8). O projeto de conquista de Azamor na África, cuja praça traria enormes dividendos a D. Manuel – cereais, peixes, tecidos, cavalos e porto para a navegação atlântica –, foi empreendida em 1512 pelo duque de Bragança, D. Jaime. Muitos nobres concorreram para tal empreendimento a partir do clima cavalheiresco e de cruzada, cuja partida foi celebrada pela representação nos Paços da Ribeira da Exortação da Guerra de Gil Vicente. A praça de Azamor era protegida pela fortaleza de Mazagão, cuja situação privilegiada permitia controlar as vias marítimas e comerciais do Algarve, Açores e costa marroquina, além disso era rica em trigo e pastagens. Como diz Joaquim SerrŌo: “a construçŌo de uma fortaleza ou „presídio‟ integrava-se no plano de defesa das outras praças do Ocidente marroquino” (SERRÃO, 1980, p.24). No entanto, ainda com Veríssimo Serrão, as praças de além-mar herdadas por D. João III de D. Manuel causavam enormes despesas para o reino, além do que Portugal teve de pagar exorbitante indenização para Carlos V para garantir o direito às ilhas Molucas a partir do que foi acordado no Tratado de Saragoça (1529), conseqüência da viagem de circum-navegação de Fernão de 433 Magalhães e Sebastián del Cano. Os conselheiros de D. João III desde o início de seu reinado, levantaram a questão do abandono de certas praças no além-mar. Vasco da Gama e D. Jaime, duque de Bragança, aconselharam a abandonarem-se Ormuz e Malaca, mantendo apenas Goa e Cochim. Outros defendiam o das praças marroquinas, mais dispendiosas e difíceis de defender de ataques. Em 1529, D. João III pede novo parecer a seus conselheiros. O duque de Bragança era favorável a entrega ao imperador Carlos V, por ser impossível a conquista do reino de Fez, das fortalezas no estreito de Gibraltar, mantendo-se apenas Azamor e Safim. Por razões religiosas e políticas, eram contrários António Leite (defendia tomar o porto de Salé e isolá-lo do comércio mouro e turco), Simão Gonçalves da Costa (devia-se manter a fortaleza de Santa Cruz para proteger as outras praças fortes) e Gonçalo Mendes Çacoto (o norte da África tinha sido tomado em serviço de Deus e abandoná-lo traria conseqüências terríveis ao resto do império). A mesma questão retorna em 1534 quando do problema de se abandonar Safim e Azamor. Foram desfavoráveis o Infante D. Fernando, D. Pedro de Meneses, marquês de Vila Real, D. Rodrigo de Lima, Visconde de Vila Nova de Cerveira, Cristóvão da Távora, D. João de Melo Barreto, Fernão Vaz de Sampaio, João Mendes de Vasconcelos, D. Fradique Manuel, Nuno Rodrigues Barreto e Manuel de Sousa; pelo total abandono, afirmavam-se D. Fernando Coutinho, bispo do Algarve, D. Fernando de Meneses, bispo de Lamego, D. Jorge, mestre da Ordem de Sant‟Iago, Francisco Lobo e Francisco Perreira. Absteve-se o bispo-conde de Coimbra, D. Jorge de Almeida. Já antes em 1532, D. João III pensara em guardar apenas Ceuta, Tânger e Arzila, para então empreender a conquista a conquista de Fez. Em 1541, à força das circunstâncias e da premência da situação, os que eram partidários da manutenção das praças no Marrocos perderam voz no conselho régio. Abandonaram-se as possessões de Safim e de Santa Cruz e manteve-se Mazagão. Em 1548, o Infante D. Luís propõe a retirada de Arzila e Alcácer Ceguer. Assim, “o domínio português ficava reduzido a Ceuta e Tânger, portas do Estreito e de mais fácil manutenção dada a sua proximidade do Algarve, e ao presídio de Mazagão, que podia servir de apoio à navegação do Atlântico. Em pouco mais de um século desfizera-se o projeto de um Portugal marroquino que o Reino não tinha meio de conservar, atendendo a que o esforço ultramarino da Nação se encaminhara 434 para a empresa do Oriente. Pela mesma época começava também a política de governo e colonização que permitiu o surto do Brasil português” (Idem, ibidem). Diogo do Couto era da opinião que se deveria ficar na Índia e abandonar as praças africanas. Diz ele, em seu O Soldado Prático (III. IV), que um Reino para ser próspero deve possuir, primeiro, “fructos e gados em abundância para sustentaçŌo dos povos”, e, segundo, “minas de ouro e prata, e outros metais, para sustentação da paz e prosseguimento da guerra”. Aqui, a verdadeira contraposiçŌo se dá entre o “ouro da Mina” e as “drogas da Índia”. A conquista da África sempre fora muito difícil: os romanos nunca conseguiram um domínio estável da região, os imperadores alemães e outros potentados europeus nunca se atreveram a tal empresa e mesmo os portugueses controlam suas praças com o enorme esforço da ajuda externa tanto de armas como de provisões, a despeito da grande quantidade de ouro que se retira dali. Por outro lado, os reinos europeus sempre se interessaram pelas riquezas e diversos produtos da Índia. Para Couto, apenas as possessões indianas preenchiam os dois requisitos fundamentais para a prosperidade de um Reino, porque, além da existência de enormes quantidades de metais e pedras preciosas, “Na Índia, [existem] os mais puros ares do Mundo, fructas, águas de fontes e rios, as melhores e mais salutíferas de toda a terra, pão, cevada, todos os legumes, todas as hortaliças, gado grosso e miúdo, que pode sustentar o mundo, tudo o mais maravilhoso”. Ademais, nŌo se poderia abdicar da missŌo investida por Cristo aos portugueses de dilatar a fé cristã naquela parte do mundo; muito menos, perder-se a ocasião propícia para se mostrar feitos de armas dignos de memória, sobretudo para uma parte da representativa da nobreza de Portugal (“A muitos deu a Índia muitos haveres e riquezas; mui ricos homens foram de lá; mas em nenhuma das histórias achareis feita memória destes, por muito alevantados que fossem em sangue e dignidades; e muitos vereis de mediano nascimento, sublimados nelas por seus feitos, que lhe podem ter grandes invejas os mais ricos do Mundo”) (COUTO, 1937, pp.204216). Em sentido complementar, o parecer anônimo de 1543 acerca da permanência dos portugueses nas praças da Índia argumenta que, de nenhum modo, pode-se atribuir a derrocada do Reino, primeiro, 435 a “defficuldade da navegaçŌo como de conquista”, nem, segundo, ao “pouco proveito que deste descobrimento e conquista se esperava”, muito menos ainda às “delicias Indianas” que poderiam “affiminar os animos Varonis dos Portuguezes, e com a cobiça as riquezas da Asia despovoar-se o Reyno de Lavradores” (CRUZ, 1997, p.123). Quanto à primeira razão, está mais do que provado que a navegação tinha vencido a contento inúmeros obstáculos, inclusive contra a opinião corrente dos geógrafos antigos e dos autores de fábulas. Quanto à segunda, os dividendos trazidos da Índia possibilitaram a várias casas senhoriais manterem-se com dignidade, além de ter proporcionado ganhos para muitos outros vassalos, e “o que se allega das delicias Asianas algu[m]a mostra e apparencia tem de rasão, mas tudo se remedea facilmente com os Reys não uzarem dellas, de maneira que primeiro percão o esforço e animo varonil” (Idem, ibidem, p.159). Desde o início, o objetivo da conquista da Índia foi o comércio e, nunca, a colonização; aqueles que defendiam a retirada do Oriente, por ser um sorvedouro de gente, e ao mesmo tempo argumentavam a favor da colonizaçŌo da África diziam que: “Conquista para povoar he muy differente da conquista para comercio”, pois “com aquella se despovoa a própria pátria e se cultiva terra estranha, com esta se enriquece e se conserva a pátria à custa da Estranha” (Idem, ibidem, p.161). E aos que insistiam que “o Reyno se despovoa ao cheiro da canella”, basta observar que Lisboa está repleta de gente e as cidades do Reino nunca tiveram tantos moradores. Um outro parecer de 1543, contrário ao anterior, admite como solução mais viável o abandono das praças indianas e a manutenção das possessões africanas. Começa por concordar com a opinião geral de que é necessário “que se deixe uma delas por nŌo perder ambas” (Idem, ibidem, p.135). O argumento de maior força persuasiva é que a conquista do norte da África foi realização ilustre dos reis antigos e, portanto, faz parte integrante do “tempo da memória” da dinastia régia. Para a mentalidade fortemente tradicional como a do Antigo regime, isto significaria introduzir uma “novidade” nas práticas de excelência da realeza, colidindo de frente com vários privilégios assentados no estado da nobreza. Num desdobramento muito semelhante ao que Diogo do Couto utilizara para defender a manutenção da Índia, o parecerista 436 anônimo argumenta que a África preenche todas os requisitos que fazem um reino riquíssimo: frutos, gado e metais preciosos. Mais ainda: não há dúvida da legitimidade da conquista africana, uma vez que se trata de combater os muçulmanos e cumprir a missão providencial destinada aos portugueses, confirmada por todos os reinos da cristandade e pelas bulas papais. No entanto, continua o parecerista anônimo, argumentando de modo semelhante às epístolas de Sá de Miranda, o maior impacto dessas “delicias da Asia” é que causaram enorme prejuízo para o Reino (daí, a exaustŌo do Fisco) e a “ruyna da parcimónia e corrupçŌo da natureza humana”, ou seja, o comércio dos “pannos de algodŌo, sedas, aljofres, perfumes e outras couzas desta callidade” lançaram “a perder os bons costumes antigos e introduzindo outros affiminados pera perdiçŌo total de toda a republica” (Idem, ibidem, p.141). No pensamento moral do século XVI, o luxo e a riqueza excessivos conduzem à cobiça e à concupiscência, abrindo caminho para todos os vícios morais; é por isso que é freqüente encontrarmos o topos da retidão das virtudes em oposição aos argumentos de ordem epicurista, isto é, os deleites e os prazeres estão ligados à parte material, finita e perecível do ser humano (ao corpo), enquanto que, a partir da lei natural, inscrita por Deus nos homens, a razão pertence à alma, cujo aperfeiçoamento é o objetivo central de todo cristão. Nesse sentido, dedicar-se às delicias corporais é ao mesmo tempo moral e racionalmente reprovável, pois todos os que levam a vida em busca da satisfação dos desejos do corpo estão mais próximos às bestas feras (Idem, ibidem, pp.141-142). Além dos danos no âmbito moral, os “mimos indianos”, ainda em modo semelhante aos de Sá de Miranda, também causam a despovoamento dos campos e da agricultura, pois prejudicam “defençŌo da Patria” (Idem, ibidem, p.152). Ora, esse aspecto da “defençŌo da Patria”, que pode ser entendido como uma das realizações do topos humanista do louvor das armas, ao lado dos temas do cultivo dos campos (a agricultura) e do povoamento, consiste num dos argumentos principais da “literatura econômica” do século XVI, isto é, aqueles discursos que tratam estrategicamente do “governo da casa e da família”. No Libro dela Economica, de Xenofonte, uma das atividades que se considera decorosa ao “pai de família” é a “arte militar”, ou seja, “las cosas dela guerra”, ao mesmo tempo que todas artes mecânicas estão absolutamente proibidas por serem baixas e diminuírem a dignidade do chefe da casa. 437 Referências Ricardo Hiroyuki Shibata é Prof. Dr. de Literatura Portuguesa da Unicentro Email: rd.shibata@gmail.com ALBUQUERQUE, Afonso. Cartas de Afonso de Albuquerque seguidas de documentos que as elucidam. Lisboa: ACL, 1884. BONARDI, Marie-Odile. Essai d‟iconographie au XVIIe siècle: le pélican et le coeur. 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Diogo de Gouveia, o Velho, e os “negócios estrangeiros” da expansŌo portuguesa. Presença de Portugal no Mundo. Actas. Lisboa: APH, 1982. THOMAZ, Luís Felipe. A “política oriental” de D. Manuel I e suas contra-correntes. In: _____. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. 438 RELEITURAS DO PERÍODO “MUROMACHI BAFUKU” ATRAVÉS DO FILME OS SETE SAMURAIS Rodrigo Galo Quintino Introdução Os temas e conteúdos históricos são recorrentes as salas de cinema desde os primórdios da sétima arte, tornando a ficção histórica um dos gêneros mais apreciados entre os espectadores. Kornis (1992) ressalta, no entanto, que ao abordarem determinados períodos ou acontecimentos históricos, os filmes não retratam a realidade em si, mas trazem uma reconstrução desta utilizando uma linguagem artística própria, construída de acordo com o contexto histórico no qual são produzidos. O presente trabalho busca uma breve reflexão sobre o filme Os sete samurais (1954) dirigido pelo celebre cineasta japonês Akira Kurosawa, com o objetivo de analisar as releituras apresentadas a respeito do período histórico apresentado. Também é proposto verificar quais foram as influencias do diretor para o desenvolvimento de tal representação da realidade. Desta forma se fazem necessárias algumas abordagens e técnicas específicas para tomar um filme como material de pesquisa. Vanoye e Goliot-Lete (2002) argumentam que para uma melhor analise é necessário à desconstrução, de forma mais ou menos aprofundada, do filme, obtendo assim os diversos elementos distintos que formam a obra em conjunto. Napolitano (2015) aponta também três possíveis abordagens para trabalhar a relação entre História e cinema, sendo elas: Cinema na História, História no cinema e História do cinema. O filme e as influencias de Akira Kurosawa Lançado em 1954, Os sete samurais é um filme japonês dirigido por Akira Kurosawa, considerado um dos maiores cineastas da história do Japão, produzido pela empresa Toho sob o comando de Sojiro Motoki, e com a distribuição brasileira pela Europa Filmes. O filme se passa no inicio do século XVI, período no qual o Japão passava por uma violenta guerra civil. É apresentada uma aldeia de produtores rurais constantemente atacada por saqueadores. Em 439 uma medida desesperada para não morrerem de fome, os moradores decidem contratar samurais para defender o vilarejo. Com três atos bem definidos, o filme retrata a busca dos aldeões pelos samurais e as motivações pessoais de cada um para entrar na causa até chegar a um total de sete, a elaboração de um plano e o treinamento dos camponeses para enfrentar os saqueadores e a batalha final e decisiva. A película se divide em dois momentos, separados por uma inscrição acompanhada de trilha sonora, que dura cerca de 10min. Kurosawa desenvolve muito bem a relação entre os personagens, mostrando aspectos do cotidiano do vilarejo e apresentando uma possível interpretação acerca da figura do samurai dentro do imaginário popular do período. Aspectos a respeito da cultura e mentalidade dos samurais também são evidenciados. As atuações carregam um elevado grau de intensidade, o que indica uma possível influencia do teatro tradicional japonês, em especial o teatro de comedia chamado de kyôguen. A presença de elementos dos westerns, filmes que retratam a expansão para o oeste dos Estados Unidos, também pode ser observada, sobretudo o trabalho do diretor norte-americano John Ford. A respeito das influencias dos westerns na cinematografia mundial Vugman (2006) argumenta que “[...] o sucesso do gênero nŌo se limitou ao público; sua influência sobre a cinematografia de outros países pode ser observada em filmes de samurais japoneses [...]”. Vieira e Alencar (2016, p. 272) também discorrem a respeito do assunto: “Durante toda a sua história, o cinema de samurai influenciou e foi influenciado pela cinematografia ocidental. Essa troca pode ser vista de forma clara na relação entre os filmes de samurai e os de faroeste. Tanto Akira Kurosawa quanto Masaki Kobayashi, dois importantes diretores de filmes de chanbara, por exemplo, citam John Ford como uma influência importante para suas obras. Os filmes de Kurosawa em particular foram 440 fonte de inspiração para uma grande variedade de filmes de faroeste.” Os sete samurais serviria futuramente de inspiração para outro western, a produção Sete homens e um destino (1960). O mesmo movimento pode ser observado em outras obras do diretor, como Yojimbo – O guarda costas (1961), que serviu de base para o filme Por um punhado de dólares (1964), dirigido pelo italiano Sérgio Leone (THORNE, 2008). Os aspectos interculturais apresentados em sua obra tornaram Kurosawa extremamente bem sucedido fora do contexto japonês, como destaca Novielli (2007, p. 192): “Kurosawa é, sem dúvida, o mais conhecido de todos os diretores japoneses no Ocidente, e seus filmes sempre tiveram as maiores probabilidades de distribuição em todos os países; talvez esteja também entre os principais objetos de estudo e fontes de inspiração para os diretores ocidentais”. O período Muromachi Bakufu Durante o chamado período Kamakura (1192-1333 d.C), conhecido como período dos governos militares, o Japão sofreu com tentativas de invasões mongóis, forçando os governantes a investir fortemente em seu exercito. Destaca-se no período que o poder político não se encontrava no imperador, mas nos membros da família Hojo (YAMASHIRO, 1964). Yamashiro (1964) argumenta que após a expulsão dos invasores, devido aos muitos gastos bélicos, o governo entrou em uma fase de instabilidade econômica, sem poder premiar os samurais que se destacaram nas batalhas e passavam dificuldades devido aos gastos de guerra. Aproveitando-se da situação, o Imperador Godaigo Tenno, sob o auxilio de Takauji Ashikaga, um general que se rebelou contra o governo vigente, consegue reconquistar o poder político pondo fim ao xogunato de Kamakura. O mesmo autor (1964) afirma que Takauji Ashikaga por sua vez, após não ter seu pedido de se tornar xogum atendido, se rebelou 441 novamente, agora contra o próprio imperador, colocando um membro da família Komyo, rival da família imperial, no titulo de imperador em Kyoto e conquistando o titulo de desejado. Com isso Godaigo foi forçado a fugir para Yoshino, levando o exemplar verdadeiro do cetro real e fundando sua própria corte que rivalizava com a de Kyoto. Segundo Henshall (2014) Godaigo fugiu de Kyoto para Yoshino, onde estabeleceu sua corte, deixando o Japão com dois imperadores. A dualidade prosseguiu até Yoshimitsu (1358-1408 r. 1369-1395), neto de Takauji, reunificar as duas prometendo aos membros da corte de Yoshino, chamada de corte do sul, que alternariam no poder com os de Kyoto, ou corte do Norte. A linhagem da corte do Sul, porém, deixou de existir em pouco tempo, pois Yoshimitsu não cumpriu sua promessa. Com a unificação das cortes do Norte e do Sul se consolidou o xogunato de Ashikaga, período conhecido como Muromachi Bakufu, datado de aproximadamente 1333 a 1568 d.C. e marcado por uma grande desorganização administrativa. Como apresenta Yamashiro (1964, p. 81) “[...] o shogunato de Ashikaga, que governou o Japão por cerca de 250 anos, foi caracterizado por um caos quase permanente e intermitente guerra civil”. Tal característica se evidenciou devido ao estilo de vida caro e o descuido com a administração pública por parte dos xoguns, iniciado por Yoshimitsu, que se entregou a um luxo excessivo causando um déficit no tesouro, forçando o xogunato a aumentar a cobrança de impostos e causando um grande descontentamento da população. Segundo Sakurai (2007), tanto os camponeses, que tinham seus produtos e terras taxados, como os comerciantes, obrigados a pagar impostos e pedágios pelo transporte de suas mercadorias, demonstraram insatisfação com as politicas adotadas pelo xogum, se rebelando em uma série de levantes e revoltas e ocasionando o enfraquecimento político e econômico. A mesma autora (2007) afirma que os gastos para conter as manifestações acabavam por forçar a cobrança de mais impostos, gerando assim um circulo vicioso. 442 Para Henshall (2014), a maior das revoltas é a chamada guerra civil de Onin, que durou aproximadamente de 1467 a 1477, revelando a incapacidade do xogunato de conter a agitação da sociedade e inaugurando um período de distúrbios civis conhecido como Era dos Sengoku, ou estados em guerra. As representações apresentadas no filme O filme se inicia mostrando os saqueadores sondando o vilarejo agrícola onde se desenvolve grande parte da trama. Kurosawa opta por introduzir os antagonistas primeiro, passando a sensação de real ameaça para o vilarejo, que é apresentado como imerso na pobreza. Os habitantes do local em um ato desesperado, após se reunirem para debater o assunto e consultarem o patriarca do local, decidem por contratar samurais para defendê-los contra os invasores. Durante os períodos compreendidos antes da restauração Meiji, as famílias entre os agricultores possuíam uma estrutura patriarcal, onde os chefes das famílias as representavam nos conselhos das aldeias (SAKURAI, 2007). Tais características se evidenciam nas cenas iniciais, onde, após uma longa discussão, os habitantes buscam o conselho do patriarca mais velho da aldeia para decidir qual medida deve ser tomada. Outro aspecto introduzido no inicio, e que é revisitado diversas vezes durante o filme, é o aparente temor por parte de alguns camponeses para com os samurais. Observa-se uma clara objeção por parte de alguns com o conselho do ancião da aldeia de contratar samurais para defendê-los. Alguns personagens mostram também uma relativa aceitação com a situação em que se encontra a aldeia, que é evidenciada pelo discurso por eles empregado de que essa seria sua sina, e que camponeses são destinados a sofrer. O diretor introduz assim a ideia de diferença de classes sociais no Japão do período abordado. Sobre isso, Yamashiro (1964) afirma que desde o período Kamakura já havia se estabelecido uma divisão composta por classes sociais distintas. Mesmo com a aparente divergência de opiniões, o conselho é acatado, e um grupo de quatro camponeses liderado por Rikichi (Yoshiro Tsuchiya) vai até a cidade mais próxima à procura dos 443 samurais, tarefa que se mostra difícil uma vez que teriam de encontrar guerreiros saudáveis e dispostos a lutar apenas por comida. O primeiro samurai a se juntar ao grupo é Kambei, interpretado por Takeshi Shimura. Na cena de introdução do personagem, para realizar o resgate de uma criança que foi feita refém por um bandido, Kambei se disfarça de monge tendo que raspar seu cabelo. Fingindo oferecer comida ao sequestrador, ele rapidamente entra no local onde a criança estava preza e a salva. O ato de astucia e habilidade chama atenção dos camponeses e do jovem Katsushiro, interpretado por Isao Kimura, que deseja se tornar um samurai e passa a caminhar com Kambei. Os aldeões veem a oportunidade e os convidam para a missão. Após ponderar Kambei aceita o desafio, traçando um plano de defesa no qual deduz que seriam necessários sete samurais. Com a ajuda de Katsushiro, Kambei recruta outros samurais para a missão, sendo eles: Gorobei Katayama, interpretado por Yoshio Inaba; Shichiroji, amigo de Kambei vivido por Daisuke Kato; Minoru Chiaki, interpretado por Hayashida Heihachi e Kyūz , por Seiji Miyaguchi. O último a se juntar ao grupo é Kikuchiyo, vivido por Toshiro Mifune em grande atuação. Esse, embora se apresente como um samurai e carregue uma espada, é extremamente desajeitado, bruto e temperamental. A questão do temor pelos samurais é novamente abordada na película. Em um ato extremo, a personagem Shino, interpretada por Keiko Tsushima, é forçada por seu pai, Manzo (Kamatari Fujiwara) a cortar o cabelo, se vestir como um homem e se esconder na floresta. Os demais moradores se escondem em suas casas, de modo que os samurais, ao chegarem ao vilarejo, o encontram vazio e com aparência de desabitado. O panorama muda rapidamente quando, enquanto os recémchegados estão em uma audiência com o patriarca do vilarejo, é ouvido o barulho do sino que avisa da chegada dos invasores. Os moradores, em desespero, saem apressadamente de suas casas se aglomerando em volta dos samurais e suplicando por ajuda. 444 Kikuchiyo revela então que não existia invasão, e ele próprio havia soado o alerta para forçar os aldeões a sair de suas casas, e expor para todos sua indignação com a maneira que foi recebido. O temor e desconfiança da população se justificam pelo fato do Muromachi Bakufu ser comandado exatamente por samurais. O próprio Takauji Ashikaga participava da classe dos bushi (IBID, 1964). Observa-se tal aspecto em outra cena apresentada posteriormente no filme, na qual Kikuchiyo encontra armaduras e diversas vestimentas de guerra escondidas com Manzo e as leva para os demais bushi, para que possam utiliza-las na batalha. Logo que veem o encontrado, eles o repreendem dizendo que é desonroso para um samurai utilizar as vestimentas de um companheiro morto. Fica implícito que os pertences eram de samurais mortos pelos próprios aldeões. Kikuchiyo se irrita, alegando que os camponeses eram sim astutos, mesquinhos, oportunistas e assassinos, e que quando farejam a batalha, caçam o derrotado. Mas que, quem os havia deixado daquela maneira eram os próprios samurais. Após a situação se estabilizar, os samurais traçam um plano de defesa iniciam o treinamento com os aldeões. Henshall (2014) diz que durante o período em questão, interesse e medo eram mais determinantes que lealdade. Tal característica pode ser observada tanto no comportamento de alguns samurais do período, quanto dos camponeses. Durante todo o segundo ato do filme, Kurosawa desenvolve a relação entre os samurais, e a interação com os moradores da aldeia. A película utiliza da caracterização do passado para tratar de diversos temas pertinentes ao período em que foi produzida, característica originaria das peças de teatro jidaimono, originarias do século XVII (VIEIRA E ALENCAR, 2016). Enquanto Kambei e Shichiroji analisam a aldeia, Katsushiro encontra Shino na floresta. O jovem, em uma luta corporal, percebe que se trata de uma garota e passa a visita-la periodicamente, chegando a lhe oferecer o arroz que recebia como pagamento. Shino opta por levar o alimento até uma idosa que vivia sozinha, cujos parentes foram mortos pelos saqueadores. Katsushiro é visto por Kyuzo entregando seu arroz a Shino. O jovem revela então a situação 445 da senhora aos demais samurais, que passam a ajuda-la. Velhice, morte e miséria, temas comuns à sociedade japonesa na década de cinquenta, em reconstrução após o fim da segunda guerra mundial, são trabalhados através desta senhora. Através da relação entre Shino e Katsushiro, o filme explora novamente a questão da desigualdade social. Em diversos momentos é mostrada a dificuldade de ficarem juntos devido a pertencerem a grupos sociais diferentes. Em certo momento da película, três espiões são vistos próximos a aldeia. Após Kikuchiyo ser visto por descuido, os demais bushi os perseguem, matando dois deles e capturando o terceiro, que revela o esconderijo dos bandidos. Os moradores da aldeia, enfurecidos, tentam linchar o espião sobrevivente enquanto os samurais os contem. A população só para as investidas quando a idosa surge com um instrumento agrícola na mão. Os samurais não a impedem de vingar a morte de seu filho. Em uma investida com o intuito de diminuir o número de adversários na grande batalha, Minoru Chiaki, Kikuchiyo e Kyuzo queimam o local de estadia dos bandidos. Na cena é revelado que Rikichi teve sua esposa, Heinachi, tomada pelos saqueadores. Minoru Chiaki, na tentativa de impedir Rikichi de entrar na casa em chamas e salvar sua amada, acaba sendo atingido por um tiro. Rikihi não consegue salvar Heinachi, que morre queimada junto a casa em chamas. As cenas seguintes mostram também o passado de Kikuchiyo. Para executar o plano de Kambei três casas da aldeia e o moinho no qual o patriarca vivia precisariam ser evacuados. O patriarca, no entanto, se recusa a deixar seu lar. Com a chegada dos bandidos, o moinho é queimado com o patriarca, um jovem casal e seus filhos dentro. Kikuchiyo corre para a construção tentando retirar as pessoas de lá. Salvando uma criança, ele chora e revela que era filho de camponeses, e que aquilo havia acontecido com ele em sua infância. O terceiro ato inteiro é dedicado à batalha dos os camponeses e bushis contra os saqueadores da aldeia. Kyuzo consegue sozinho atacar os adversários em sua guarnição e pegar uma arma de fogo. Kikuchiyo vendo a façanha decide se provar e abandona seu posto 446 tentando conseguir também uma arma. O posto em que ele era responsável fica vazio, sendo atacado pelos saqueadores, que conseguem matar Gorobei. Durante a noite que antecede a batalha final, Katsushiro e Shino tem seu amor consumado. Manzo, ao procurar sua filha para se despedir, acaba por flagrar o casal dormindo junto. Furioso, o pai arrasta Shino para o pátio principal da aldeia, reprimindo-a e a castigando duramente por, segundo ele, ter sido seduzida por um samurai. A cena aborda repressão sexual e liberdade feminina, temas intrínsecos e pertinentes à sociedade da época de produção da película, visto que Sakurai (2007) destaca um choque de mentalidades a respeito do papel feminino na sociedade japonesa pós-guerra, quando o aumento dos direitos das mulheres contrastavam com os valores tradicionais. Após Shichiroji tentar acalmar Manzo, Rikichi o repreende, argumentando que os jovens se amam, e que sua filha não havia sido entregue aos bandidos. O filme utiliza muito bem o efeito da chuva na batalha final que ocorre na manhã seguinte a da cena acima citada. Kyuzo morre por um tiro. Kikuchiyo, tentando vingar companheiro, também é acertado. Antes de morrer, porém, ainda consegue derrotar o líder dos saqueadores. Sobrando apenas Kambei, Shichiroji e Katsushiro, como samurais vivos, a batalha termina com vitória dos aldeões, que conseguem se defender. O filme se encerra com os aldeões cantando e cultivando arroz. Katsushiro observa Shino trabalhar na lavoura. Segundo Sakurai (2007) o trabalho dos camponeses era efetuado tanto por homens como por mulheres, como é evidenciado na cena. Kambei observa o local onde foram enterrados os quatro samurais mortos, e comenta com Shichiroji que eles haviam sido derrotados naquela batalha, mas os aldeões ganharam, confirmando uma fala do inicio do filme, na qual argumenta com Katsushiro que nunca havia ganhado uma batalha. 447 Considerações Finais A respeito de Kurosawa, Novielli (2007, p. 193) que destaca que “A complexidade artística de sua filmografia e a extrema riqueza estilística o tornaram um dos diretores mais importantes de toda história do cinema [...]”. Visualmente belo e inovador, Os sete samurais faz jus as palavras da autora. Apresentando uma ambientação histórica extremamente bem executada, o filme promove uma releitura interessante do período Muromachi Bakufu ao mesmo tempo em que demonstra sensibilidade ao tratar de temas pertinentes a sociedade japonesa da década de cinquenta. Referências Rodrigo Galo Quintino é discente de Licenciatura em História pela Universidade do Sagrado Coração (USC – Bauru/SP). Mail: rodrigogquintino@outlook.com HENSHALL, Kenneth G. História do Japão. 2 ed. Lisboa: Edições 70, 2014. KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos históricos, Rio de janeiro, v. 5, n. 10, p. 237-250, 1992. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/194 0>. Acesso em: 01 de jun. de 2017. NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. 3 ed., 2 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015. p. 235-290. NOVIELLI, Maria Roberta. História do cinema japonês. Tradução: Lavínia Porciúncula. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. Os sete samurais. Direção: Akira Kurosawa. Produção: Sojiro Motoki. Japão: TOHO C. Ltda., c1954. 1 DVD (207min), fullscreen, preto e branco. Por um punhado de dólares. Direção: Sérgio Leone. Produção: Arrigo Colombo e Giorgio Papi. Itália, Espanha, Alemanha: Paragon Multimedia, c1964. 1 DVD (99min), widescreen, color. SAKURAI, Célia. Os Japoneses. São Paulo: Contexto, 2007. Sete homens e um destino. Direção: John Sturges. Produção: John Sturges. Estados Unidos da América: Mirisch Company, c1960. 1 DVD (128min), wildescreen, color. 448 THORNE, Roland. Samurai Films. England: Kamera Books, 2008. VANOYE, Francis; GOLIOT-LETE, Anna. Ensaio sobre análise fílmica. Tradução: Marina Appenzeller. 2 ed. Campinas: Papirus, 2002. VIEIRA, Marcelo Dídimo Souza; ALENCAR, Jorge Couto de. Chanbara: História e honra no cinema de samurai japonês. Pós, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 157 - 174, novembro, 2016. 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Para ele, nem o termo Oriente nem o conceito de Ocidente têm estabilidade ontológica. No entanto, orientalismo também pode ser uma disciplina em si. Sendo assim, as dimensões do conceito de orientalismo podem ser entendidas no nível acadêmico, ontológico/epistemológico e também como discurso de dominação. Para Said, um dos projetos mais vultosos de orientalismo a obter sucesso operacional foi aquele criado por Napoleão Bonaparte em uma série de campanhas de dominação sobre o Egito, entre o fim do século XVIII e o século XIX. É importante perceber como as grandes nações européias promoveram a destruição física, a inquietação política e uma série de choques implacáveis e irremediáveis no mundo oriental, algo também trabalhado em A Era das Revoluções e A Era dos Impérios, de Eric Hobsbawm. Para Said, existem dois tipos de conhecimento sobre o Oriente, “existe uma diferença entre o desejo de compreender por razões de coexistência e de alargamento de horizontes, e o desejo de conhecimento por razões de controle e dominaçŌo externa” (2007, p. 15). Inúmeras vezes isso já ocorreu com o Oriente, esse constructo semimítico que, desde a invasão do Egito por Napoleão, pode inaugurar um projeto colossal do ocidente sobre o Oriente, projeto este que já foi feito e refeito um sem-número de vezes, sempre pela força agindo por intermédio de um tipo de conhecimento, cujo objetivo é dizer que tal ou qual é a natureza do Oriente. Pensar de modo totalizante e unitário o Oriente é uma ignorância frequente, quando, na verdade, encontramos uma variedade estonteante de povos, línguas, experiências e culturas. Para Said, as sociedades orientais sofreram um ataque tão maciço, calculadamente agressivo em razão de um suposto atraso, de sua falta de democracia e de sua supressão de direitos que simplesmente esquecemos que noções 451 como modernidade, iluminismo e democracia não são conceitos consensuais que se encontram no Ocidente. Ou seja, como os Ocidentais poderiam, ao final do século XVIII, aplicar isso ao Oriente? O pensamento Ocidental acreditava que podia mudar a cultura Oriental e seus costumes. Desta forma, analisa Said, das mesas diretoras acadêmicas e de poder político, usando de estereótipos, agiram com as mesmas justificativas para o uso da força e da violência. Em A invenção das tradições, de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, percebemos a antiga e inatacável superioridade dos europeus, como algo inventado, construído sobre bases não existentes, mas que pretendiam ser científicas. Portanto, sobre a polarização oriente-ocidente, há uma responsabilidade intelectual e moral dos acadêmicos, e é necessário desmistificar essa polarização. Vejamos uma série de pinturas tidas como orientalistas, de Jean-Léon Gérôme e Léon Cogniet: 1. 3. 2. 4. Imagem 1: Napoleão diante da esfinge, de Jean-Léon Gérôme, 18671868. Imagem 2: General Bonaparte e seus funcionários no Egito, de Jean-Léon Gérôme, 1867. Imagem 3: General Bonaparte no Cairo, de Jean-Léon Gérôme (1824–1904), 1863. Imagem 4: A Expedição do Egito sob as ordens de Bonaparte (em 1798), de Léon Cogniet (1794-1880), 1835. Johann Wolfgang von Goethe, escritor e estadista alemão, foi um dos primeiros a pensar sobre orientalismo. Relatou que ocorre no ocidente uma estandardização e uma homogeneidade sobre o Oriente que devemos prevenir. Para Goethe, em seu livro O divã 452 ocidental-oriental, devia-se repensar o Oriente, pois, havia uma avaliação superficial da intrusão imperial e uma maneira sumária de lidar com a imensa distorção introduzida pelos impérios europeus na vida dos povos ditos “menores”. Vários países e povos foram e continuam sendo alvo de estereótipos e generalizações. Cada uma das fases do orientalismo (o britânico, o francês, etc.) produziu seu próprio conhecimento distorcido do outro, bem como suas próprias imagens redutivas e preconceitos étnicos e religiosos. Para Said, o orientalismo trouxe uma demonização de um inimigo que não existe “o oriente”. Ainda para Said, estamos tratando de um conjunto de ideias abstratas que celebram a excepcionalidade de uma suposta civilização do mundo ocidental, denegrindo a relevância do contexto e vendo as outras culturas com descaso. O problema também se encontra na invenção de identidades coletivas para multidões de indivíduos que na realidade são muito diferentes. Para Facina e Castro, em capítulo intitulado As resistências dos povos à partilha do mundo, a expansão imperialista do século XIX foi um novo passo no processo de mundialização da ordem capitalista. As populações africanas e asiáticas foram subjugadas e incorporadas à ordem européia e tal expansão neocolonial teve conexões profundas com o processo de desagregaçŌo da “velha ordem” colonial, bem como com a emergência do nacionalismo entre os povos. As conquistas não foram necessariamente militares, e não utilizaram somente a violência aberta como meio de expressão, pois elas também foram conquistas culturais e de cunho religioso. De acordo com um dos primeiros historiadores a refletir sobre o neocolonialismo, Henri Brunschwig, em A partilha da África negra, as potências buscavam novas áreas de investimento de capitais, motivadas pelo capitalismo industrial e financeiro. O neocolonialismo se apresentava como altruísta e levaria aos colonizados melhores condições de vida dados pela civilização européia. O ideal de “levar a fé aos infiéis” na colonizaçŌo do século XVI foi substituído pela “missŌo civilizadora” do século XIX. A dominação imperialista era realizada por meio da administração direta, através da exploração de terras, da mão-de-obra e do controle da produção local. As potências contavam com o apoio das classes dirigentes locais, mas promoviam a dependência das colônias, assim, as disputas entre potências por áreas coloniais agravaram conflitos e estimularam o armamentismo. 453 Foi da noção de orientalismo que surgiu a concepção de neocolonialismo visto como “um conjunto de práticas militares e culturais desenvolvidas por potências para exercer domínios sobre outros estados politicamente independentes” (2006, p. 218). Em seguida a isso, para embasar a dominação européia sobre possessões na África e na Ásia, surgiram teorias racistas por toda a Europa, que tentavam comprovar cientificamente a inferioridade dos povos conquistados. Sobre o conceito de raça, Sérgio Pena e Telma Birchal escrevem que, “nŌo existem raças humanas do ponto de vista genético ou biológico, porém, esses mesmos autores concordam que o conceito de raças possui existência social, daí deriva o racismo, a transformaçŌo da diferença em desigualdade”. Explicando o ideário civilizatório, Marc Ferro (2004, p. 22-3) reflete que os europeus entendiam a expansão colonial como o objetivo final da política e que ingleses e franceses foram os primeiros a associar os benefícios do imperialismo ao triunfo da civilização, assegurados pelo avanço da ciência e pelo sucesso da teoria da seleção natural de Darwin. Conforme Edward Said, “Embora fossem quase imediatamente precedidas por ao menos dois projetos orientalistas capitais, a invasão do Egito por Napoleão em 1798 e sua posterior incursão no Oriente teve de longe a maior consequência para a história moderna do Orientalismo” (2007, p. 118). Antes de Napoleão, apenas dois esforços tinham sido feitos, ambos por eruditos. O primeiro foi realizado por Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron (1731-1805), que viajou para a Ásia para provar a existência real de um povo eleito por Deus e das genealogias da Bíblia. Depois de examinar uma série de documentos, ultrapassando sua primeira meta, partiu rumo à Índia encontrando depósitos secretos de textos avésticos e completando sua tradução do Zend-Avesta. Pela primeira vez, o Oriente era revelado à Europa na materialidade de seus textos, línguas e civilizações e o Oriente adquiria a precisa dimensão intelectual e histórica com que apoiar os mitos de sua distância geográfica. O segundo foi William Jones (1746-1794) que, além de abrir panoramas sobre o Oriente, codificou, tabulou e comparou dados. Deixou a Inglaterra rumo à Índia, em 1783. Em seguida, foi nomeado para uma posição honrosa e lucrativa na Companhia das Índias Orientais, onde deu início a uma trajetória de estudo pessoal que devia reunir, cercar e domesticar o oriente e transformá-lo numa província da erudição européia. Jones adquiriu um conhecimento efetivo do oriente e dos orientais, que mais tarde deveria torná-lo o fundador indiscutível do orientalismo, codificando e submetendo a infinita variedade do Oriente a um 454 “digesto completo” de leis, figuras, costumes e obras. A conclusŌo dos dois primeiros tomada por Edward Said foi que, “O orientalista europeu julgava ser seu dever resgatar parte de uma perdida grandeza do passado oriental clássico para “facilitar melhoramentos” no Oriente do presente. (...) Anquetil e Jones, por exemplo, só adquiriram o seu conhecimento sobre o Oriente depois de ali chegarem. Foram como que confrontados pelo Oriente inteiro, e foi só depois de um certo tempo e de um considerável aperfeiçoamento que conseguiram reduzi-lo a uma província menor (2007, p. 122-123)”. Vejamos, abaixo, pintura de Napoleão na Batalha das Pirâmides, e os dois sujeitos históricos tratados, acima. 5. 6. 7. Imagem 5: A Batalha das Pirâmides, óleo sobre tela de Antoine-Jean Gros (1771–1835), 1810. Imagem 6: Abraham Hyacinthe AnquetilDuperron ( 1731 – 1805). Imagem 7: Retratado de Sir William Jones (1746-1794), por Joshua Reynolds (1723–1792). Antes dos planos de Napoleão, era característico de todos os projetos orientalistas que muito pouco podia ser feito de antemão para preparar o seu sucesso. Essa perspectiva muda com o projeto napoleônico. As campanhas militares da França no Egito começaram desde a Revolução Francesa, e foram comandadas por Napoleão Bonaparte desde os anos de 1798 e 1799. Além de ser uma campanha militar, foi também acompanhada de grande projeto científico, no qual se empenharam muitos acadêmicos franceses, compostos na Comissão Francesa das Ciências e das Artes do Egito por 167 cientistas, técnicos e artistas e uma força militar de mais de 32 mil homens. 455 A Pedra de Roseta, por exemplo, foi encontrada durante esta campanha por um soldado de nome Bouchard, em 1799. Napoleão acreditava que era necessário ir ao Oriente e que a Europa não lhe proporcionaria mais glórias, como as que o Oriente podia proporcionar. Observemos que Bonaparte relacionava as glórias dos grandes imperadores da antiguidade a sua própria glória na investida do Egito. A imagem do Egito era de abundância e sedução, mas outra grande coisa interessava: as glórias do Egito Antigo. Napoleão queria nada menos do que apoderar-se de todo o Egito, e seus preparativos prévios foram de uma magnitude e minúcia sem paralelo. Parecia que o caminho para o leste era inevitável tanto em suas vantagens, como em seu objetivo de barrar os avanços da Inglaterra. Para Ricardo Vélez Rodriguez, no artigo Napoleão Bonaparte: imperador dos franceses duzentos anos depois, 1804-2004, Napoleão sentia-se atraído pelo oriente desde sua adolescência. A ideia de invasão ao Egito foi amadurecida, tornando-se um projeto executável. Segundo Said, “o Egito era um projeto que adquiriu realidade na sua mente, e mais tarde nos seus preparativos para a conquista, por meio de experiências que pertencem ao domínio das ideias dos mitos colhidos de textos, e nŌo da realidade empírica” (2007, p. 124). Para Nina Burleigh, tais cientistas passaram por condições extremamente adversas, incertezas e doenças, arriscaram suas vidas e entraram não como dominadores, mas como especialistas, estudando desde as pirâmides até a fauna. De fato, tais cientistas foram os primeiros do Ocidente a refletir sobre o Egito Antigo. No entanto, a imagem dos cientistas que levavam apenas lápis ao invés de espadas e materiais de laboratório ao invés de canhões é romantizada e até utópica. Napoleão confiava bastante na visão do Conde de Volney sobre o oriente, notadamente, por conta de seu livro de nome Voyage en Syrie et en Égypte, de 1787. Para Said, o filósofo e historiador orientalista “via o Oriente próximo como um lugar provável para a realização da ambição colonial francesa. O que Napoleão aproveitou em Volney foi a enumeração, em ordem ascendente de dificuldades, dos obstáculos a serem enfrentados no Oriente por qualquer força expedicionária francesa (2007, p. 125)”. 456 Ainda, “Volney (...) considerava que havia três barreiras à hegemonia francesa no Oriente (...): uma contra a Inglaterra, uma segunda contra a Porta Otomana, e uma terceira, a mais difícil, contra os muçulmanos”. (2007, p. 125). Para Said, a obra de Volney constituía um manual para atenuar o choque humano que um europeu sentiria diante do oriente. Segundo Edward Said (2007, p. 126), Napoleão usou eruditos para administrar seus contatos com os nativos. Tentou provar que estava lutando pelo Islã, usando de uma tática que parecia benigna, mas que na verdade era seletiva e estrategicamente pensada. Para melhor desempenho da análise, vejamos as seguintes imagens: 8. 9. 10. Imagem 8: A Pedra de Roseta, Museu Britânico, Londres. Foi decifrada por Jean-François Champollion, em 1822. Imagem 9: Napoleão viajando pelo Egito. Pintura de Jean-Léon Gérôme, 1863. Imagem 10 : Constantin François de Chassebœuf, Conde de Volney (1757– 1820). Escultura do francês David d'Angers (1825). Quando pareceu óbvio para Napoleão que sua força era demasiado pequena para se impor aos egípcios, ele tentou fazer com que os grupos egípcios interpretassem o Alcorão em favor da grande armeé. As estratégias funcionaram e logo a população do Cairo parecia ter perdido a sua desconfiança em relação às forças de ocupação. Depois, Napoleão deu instruções para que o Egito sempre fosse administrado por meio dos orientalistas e dos líderes islâmicos convencidos da glória francesa. O triunfo de Napoleão foi preparado muito antes de uma expediçŌo militar. Para Said, “A ideia de levar junto uma academia completa é uma aspecto dessa atitude textual para com o oriente. (...) Muitos [orientalistas] foram politicamente úteis, do modo como muitos tinham sido para NapoleŌo no Egito” (2007, p. 127). Said entende que um dos objetivos principais de Napoleão era tornar o Egito aberto, totalmente acessível ao 457 escrutínio europeu, ou seja, “o Egito deveria tornar-se um departamento da erudiçŌo francesa” (2007, p. 128). Para Said, a obra de Napoleão sobre o Egito deveria ser um empreendimento universal, uma grande apropriação de um país por outro, registrado em 23 enormes volumes na Description de l’Égypte. A singularidade desta obra está na atitude para com o tema central, e é essa atitude que fez o mundo se interessar pelo estudo efetuado pelos orientalistas. Na História da Arte, encontramos uma série de pinturas que representaram as batalhas da França no Egito, conforme, abaixo: 11. 12. 13. Imagem 11 : Batalha das Pirâmides, de Louis-François Baron Lejeune, 1808. Musée National des Châteaux de Versailles, França. Imagem 12 : A batalha das pirâmides, de François Watteau, 17981799. Museu de Belas Artes, Valença, França. Imagem 13: Batalha Naval de Abukir. Pintura de Thomas Luny (1759–1837), de 1798. Outro personagem importante para entendermos a conquista do Egito é Jean-Baptiste-Joseph Fourier. Ele deixa claro no préface historique de Description de l’Égypte que o projeto francês é que cria o Egito. O Egito era o ponto focal das relações entre a África e a Ásia, entre a Europa e o Oriente, entre a memória e os fatos. Uma das citações de Fourier, apresentada por Said diz: “Situado entre a África e a Ásia, e comunicando-se facilmente com a Europa, o Egito ocupa o centro do antigo continente africano. Esse país (...) é o lar das artes e conserva inúmeros monumentos; seus principais templos e os palácios habitados pelos seus reis ainda existem, mesmo 458 que seus edifícios menos antigos já tivessem sido construídos na época da Guerra de Tróia (2007, p. 128129)”. Jean-Baptiste-Joseph Fourier justifica a expedição napoleônica como algo que precisava ser realizado no momento em que aconteceu. A notícia de que os franceses estavam no Oriente espantou toda a Europa. Mas, “apenas um herói poderia unir todos esses fatores”, era o que descrevia Fourier ao avaliar NapoleŌo. Vejamos algumas imagens: 14. 15. 16 17. Imagem 14: Folha de rosto de Description de l‟Égypte, ediçŌo de 1809. Imagem 15: ilustração de frontispício de um dos volumes de Description de l‟Égypte, publicado pelo governo francês entre 18091823. Imagem 16: Napoleão visitando as vítimas da peste de Jaffa. Pintura de Antoine-Jean Gros, de 1804. Imagem 17: Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830), retrato de 1823. Edward Said descreve as características do projeto orientalista da Description de l’Égypte. Para ele, “A história registrada na Description suplanta a história egípcia e oriental, identificando-se direta e imediatamente com a história mundial, um eufemismo para a história européia”. (2007, p. 131). Ainda nos debruçando sobre Said: “[o] fracasso militar da ocupaçŌo do Egito por NapoleŌo não destruiu a fertilidade de sua projeção global para o 459 Egito e o resto do oriente. Bem literalmente, a ocupação deu origem a toda a experiência moderna do Oriente interpretada a partir do interior do universo de discurso fundado por Napoleão no Egito (...) (2007, p. 132)”. Em concordância com Said, para os orientalistas clássicos, salvar uma história do esquecimento equivalia a transformar o Oriente num teatro para as representações do Ocidente. É como se descrever o Oriente em termos Ocidentais modernos significasse retirá-lo da obscuridade em que permaneceu negligenciado por tantos séculos e o iluminasse na moderna ciência européia. Servia também como contraste, como se os orientalistas quisessem acentuar a racionalidade dos hábitos ocidentais. Para nós, esta modesta reflexão possibilita entender também a Conquista do Egito por Napoleão por meio das pinturas e imagens. De fato, nos detivemos na revisão do livro de Edward Said, cujas análises abriram espaço para todo um campo de estudos. Notadamente, no tópico “Projetos”, do Capítulo 1, “O alcance do orientalismo”, adentramos os detalhes do texto, compreendendo que cada um dos sujeitos citados devem ser analisados de modo mais relacional. O próprio Napoleão Bonaparte seria um campo à parte, tamanha a vastidão de referências sobre ele. As pinturas sobre Napoleão no Egito também mereceriam um estudo detido. Além do próprio estudo do Egito Antigo, a Egiptologia, e o abre alas que representou a Description de l’Égypte. Assim, friso que não foi nossa intenção resumir este tema de empreendimento universal a tão poucas palavras, mas sim o de enfatizar e refletir sobre alguns dos principais problemas encontrados. Faltou-nos também elencar com mais afinco as consequências mais duradouras das Campanhas, como a idealização por Lesseps e construção do Canal de Suez, que aproximou o Ocidente do Oriente de modo singular, representativo e entusiasmaste. Referências Rodrigo Henrique Araújo da Costa é doutorando em História pela Universidade de São Paulo. Prof. Me. em História pelo PPGH/UFPB. Atualmente, Prof. Substituto, classe assistente, nível 1, da Unidade Acadêmica de História da UFCG. BRUNSCHWIG, H. A partilha da África negra. São Paulo: Perspectiva, 1974. 460 BURLEIGH, Nina. Miragem - Os Cientistas de Napoleão e Suas Descobertas no Egito. São Paulo: Editora Landscape, 2008. D. J. PENA, Sérgio e S. BIRCHAL, Telma. A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social? REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 10-21, dezembro/fevereiro 2005-2006. FACINA, Adriana e CASTRO, Ricardo Figueiredo de. As resistências dos povos à partilha do mundo. In.: O século XX / organização, Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira, Celeste Zenha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. FERRO, Marc. (Org.) O Livro Negro do Colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Napoleão Bonaparte – Imperador dos franceses – Duzentos anos (1804-2004). Revista da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2004. SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Ed. Contexto, 2006. Filmografia consultada O Egito sob o olhar de Napoleão - Acervo Itaú. Disponível no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=H6MiYKAJiPU Egito: A Obsessão de Napoleão. Documentário da Discovery Civilization. Disponível no You Tube em: https://www.youtube.com/watch?v=lWGVOpXH2n0 Construindo Um Império: Napoleão. History Channel. Disponível no You Tube em: https://www.youtube.com/watch?v=P4Q_dU0iTAA 461 462 LITERATURA COMO ABORDAGEM DO PASSADO: DEFESA DA TRADIÇÃO JAPONESA NO ENSAIO EM LOUVOR DA SOMBRA DE JUN‟ICHIR TANIZAKI Ronny Costa Pereira Introdução Foi por longo tempo creditado aos documentos oficiais a monopolização das frestas do passado da qual o historiador poderia deslumbrar e teorizar. Ideia essa derivada das propostas cientificas positivistas do século XIX, em que a História nasce como saber cientifico, e passa a buscar no rigor metodológico e na objetividade, se aproximar da verdade. Dessa forma, na tentativa de uma neutralidade, a interpretação de fontes ou utilização de outras formas de documentos que não fossem os institucionalmente oficiais eram descartadas [BURKE, 2010]. Quadro esse que foi superado somente no fim dos anos 20, com a difusão de novas propostas metodológicas e teóricas para historiografia, feita por diversas “escolas” [Annales por exemplo] que foram ganhando espaço e por meio de aprimoramentos e divergências, foram se formando “várias linhas historiográficas” [História social, cultural, econômica, de gênero, etc.] e dentro dessas vertentes, foi se buscando diferentes formas de praticar o oficio do historiador, tentando se distanciar muitas vezes da forma tradicional do século XIX. E uma das formas mais utilizadas para buscar esse distanciamento foi a abordagem e a concepção das fontes, buscando sair do modelo tradicional das fontes oficiais propostas pelos pesquisadores do século XIX [BURKE, 2010], foi sendo considerado um documento não mais o que fica no passado, mas todo produto da sociedade que se formou por meio de relações de força [LE GOFF, 1990]. E a literatura foi uma delas, que além de passar a ser considerado um documento valido para os historiadores, é analisado [principalmente a partir da década de 80] por novas perspectivas, com uma maior atenção e problematização para o lugar social do escritor, suas relações sociais, sendo pensados além do romance, e considerados produtos sociais que são evidencias importantes para 463 melhor compreender os pensamentos, ideais e ações do tempo em que foi escrito. Nesse contexto, entendendo a relevância da literatura para compreensão de concepções sociais, e buscando contribuir para os debates acerca da história japonesa contemporânea, que esse trabalho busca a utilização da literatura como fonte, analisando o ensaio Em louvor da Sombra [In’ei Raisan], do japonês Jun‟ichir Tanizaki, obra não literária mais famosa do autor, que aborda as formas que as novas tecnologias e ideologias ocidentais implantadas no Japão estão levando cada vez mais a escassez a cultura tradicional nipônica . E por meio do auxílio dos estudos historiográficos sobre o período, entender um pouco mais como as relações culturais japonesas foram afetadas no período imperial japonês. O autor das sombras Jun‟ichir Tanizaki nasceu em Tóquio em 24 de julho de 1886 e faleceu em 30 de julho de 1965. Foi estudante de literatura japonesa na Universidade Imperial de Tóquio [entretanto, devido à falta de recursos financeiros se viu obrigado a abandonar o curso], sendo um romancista bastante conceituado no meio literário em seu período. Recebeu o prêmio imperial da literatura em 1949 e foi o primeiro japonês a ser membro honorário da American Academy and Institute of Arts and Letters em 1964. Tanizaki fazia parte de uma família de mercadores e durante a sua juventude foi grande admirador das novas influencias absorvidas pelo Japão, do conceito de modernidade e progresso vindas do mundo ocidental, vivendo por um curto período de tempo em uma casa ao estilo ocidental em Yokohama. Fez parte da escola Tanbiha que valorizava escritores ocidentais como Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire, que foram suas inspirações literárias ocidentais. Porém, sua predileção pelas tendências estrangeiras, viria a se modificar após o grande terremoto de Kanto em 1923, com sua ida para Quioto e o desenvolvimento de um profundo interesse pela cultura japonesa tradicional [PASTANA, 2016:22]. E é nesse período que Tanizaki modifica seu modo de escrever, ao vivenciar de perto a destruição que o terremoto causou a população japonesa e a arquitetura, o ainda jovem literato vê que as tecnologias ocidentais restauravam rapidamente as construções perdidas e os 464 utensílios em abundância vindos dos mares do Oeste eram tão baratos e eficazes que o retorno ao cotidiano por parte da população foi rapidamente feito. E isso assombrou Tanizaki, pois ele sentiu algo que a maioria dos japoneses atingidos pelo terremoto não sentiram, que essa rápida restruturação teve um preço grande, a cultura japonesa [PASTANA, 2016:23]. As casas passaram a usar madeiras ocidentais ou cimento, aparelhos elétricos instalados em todas casas, tecidos e roupas ocidentais se tornaram padrão no vestuário do japonês urbano, entre outras mudanças. E sentindo essas mudanças, Tanizaki passou a perceber que isso se dava em todo Japão, para além dos terremotos, e que cada vez mais se tornavam raro se encontrar objetos e hábitos tradicionais japoneses no Japão. É nessa época que ele decide escrever folhetins para demonstrar seu lamento aos costumes que ele via se desvairando, e em 1933 ele escreve seu ensaio Em Louvor das Sombras [In’ei Raisan]. As luzes que tudo ofuscam, ou os avanços do imperialismo ocidental Em seu ensaio, Tanizaki analisa como a incorporação de costumes e tecnologias vindas do ocidente modificaram a arquitetura da casa nipônica, da arquitetura da cidade e do campo, dos hábitos cotidianos dos japoneses e os prejuízos (na concepção do autor, irreparáveis) que essa influência ocidental gera na cultura japonesa. E o foco de Tanizaki está na dicotomia entre luz e sombra, que para o mesmo, é a representação perfeita do ocidente e oriente, sendo a luz o progresso, a necessidade de embranquecer tudo e todos e as tecnologias elétricas; enquanto as sombras são o mistério, a tradição, a reflexão e a cor da cultura japonesa em si. É importante contextualizar o período em que o Japão passava durante a época em que Tanizaki sentia essas transformações em seu pais. Desde a abertura dos portos nipônicos em 1968, o Japão, que até então era uma ilha completamente impermeável de influências externas devido as leis isolacionistas do Xogunato do Bakufu, passa a ter relações culturais, políticas e econômicas com os demais países do globo e a modernizar o pais. E esse processo leva a população japonesa a questionamentos dos limites de influência externa que deveria haver no pais, gerando inúmeras revoltas armadas e queima de portos [YAMASHIRO, 1964]. 465 O Japão da era Meiji se vê então em uma situação complicada, pois os avanços da potencias imperialistas ocidentais [Alemanha, Eua, Inglaterra e Rússia] estavam ameaçando a o controle japonês sobre sua região, mas as tecnologias dos mesmos eram fundamentais para o recém-formado Império [MANDEL, 1989]. Dessa maneira, é decidido que a solução nipônica era expandir seus territórios, para se proteger e poder ter finanças suficientes para comprar e criar mais tecnologias. O Império Japonês se mantém assim até o fim da grande guerra, focalizando as tecnologias ocidentais nos aparatos de guerra, e culturalmente somente nos setores mais abastados da sociedade. Entretanto, a guerra e as anexações da Coreia e China ao Império geraram muitos custos, que levou parte da população japonesa a extrema pobreza, que acarretou na necessidade de o Império exportar e criar diversos produtos em massa para possibilitar a sobrevivência da população, além dos projetos modernizadores nas grandes cidades, que faziam parte da demonstração de potência do Império, como detalha o historiador Yamashiro: “Com a evoluçŌo da nova cultura, os costumes sofreram, naturalmente, sua influência e se modificaram radicalmente. Desapareceu o hábito de trazer catana à cintura, os homens começaram a cortar o cabelo à ocidental, vestiram o traje europeu. Jornais e revistas surgiram, a luz elétrica e lâmpadas a gás passaram a iluminar as ruas das cidades, prédios de estilo ocidental foram erguidos. Até a alimentação sofreu modificação sob o influxo da arte culinária ocidental” [YAMASHIRO, 1964: 153]. Que considera mais fácil a incorporação das tecnologias ocidentais [que já estavam se propagando por todo oriente] do que uma tentativa de desenvolvimento interno da mesma, que seria lento e arriscado. O que é nitidamente um ponto de desencanto em Tanizaki: “E foi nessa altura que me dei conta: luminárias, aquecedores e aparelhos sanitários são modernidades a cuja adoção não me oponho; mas como foi que nós, os japoneses, não nos empenhamos em aperfeiçoa-los para 466 melhor conformá-los a nossos hábitos, gostos e modo de vida? ” [TANIZAKI, 2007:16]. O desencanto de Tanizaki em relaçŌo a incorporaçŌo “fácil” japonesa fazem o autor lamentar o como a tradição nipônica não buscou desenvolver a própria ciência ao invés de buscar a ocidental. Que para o mesmo é a diferença que leva o Japão a não valorizar sua própria tradiçŌo “...quŌo diferente seria o aspecto atual da nossa sociedade caso uma cultura cientifica única, diversa do ocidental, houvesse prosperado no oriente. ” [TANIZAKI, 2007:17]. Nesse contexto, em que o Império japonês crescia territorialmente, objetos tradicionais japoneses que remetiam ao período do xogunato não eram bem vistos pelo governo, que aproveitando as necessidades e vontades de modernização, incentivavam a substituição desses objetos e hábitos do cotidiano nipônico. É esse processo que Tanizaki sente ao se mudar para Quioto, e tenta descrever mais tarde no seu ensaio. Ao ponto de nesse mesmo período, suas obras recentes que possuíam esse mesmo teor de apego a tradição são censuradas devido ao foco dado em suas narrativas ao Japão feudal em contraste ao Japão militarizado da época [PASTANA, 2016:23]. E esse projeto por parte do Império Japonês, implanta energia elétrica nas cidades, para facilitar os trabalhos burocráticos do governo, e a vida da população urbana, o que para isso necessitava a substituição de telhados e todo tipo de ornamentos das casas, palácios e templos tradicionais japoneses, para se adequar ao implemento da eletricidade residencial. Que para Tanizaki, representava as luzes do ocidente corroendo a cultura japonesa: “Hoje em dia, qualquer indivíduo interessado em construir sua própria casa no mais puro estilo arquitetônico japonês procura recorrer a uma serie de estratagemas engenhosas para harmonizar certas instalações como rede elétrica, de agua e de luz com a sobriedade dos aposentos japoneses...” [TANIZAKI, 2007:07]. E para o autor, a cultura japonesa não era perdida somente aos estragos e substituição dos objetos tradicionalmente japoneses que não se adequavam aos modos da tecnologia ocidental [que por si só já era um dano gigantesco de acordo com o autor] mas 467 principalmente devido as modificações que isso implicaria nos costumes nipônicos. Pois o autor considera que a cultura se constrói por meio da interação dos grupos com a natureza e os objetos que eles criam por meio dela. E com a retirada dos objetos tradicionalmente japoneses das casas e ruas japonesas, os hábitos morriam juntos, e os poucos que sobrassem, perderiam seu sentido, se tornando vazios. Tanizaki entretanto não se contenta em somente lamentar a dominação ocidental e o sumiço da cultura oriental, como um bom literato, o autor deixa explicito que entende a literatura como um espaço em que se “salvaguarda” pensamentos e hábitos no tempo, e sabendo da predominância irrevogável da tecnologia e progresso ocidental, ele busca também em seu ensaio mostrar o outro lado do Japão, as sombras escondias, valorizar a tradição e mostrar sua beleza, “eu mesmo quero chamar de volta, pelo menos ao campo literário, esse mundo de sombras que estamos prestes a perder.” [TANIZAKI, 2007:63], como categoriza o próprio autor. E essas sombras para Tanizaki são o epicentro da cultura japonesa, é a base para toda tradição, costume, arquitetura e objeto tipicamente japonês. Desde o teatro nó que tem sua beleza localizada na escuridão do ambiente e dos trajes dos atores á até mesmo as comidas japonesas, que servidas em tigelas escuras de madeira a luz de velas, ofuscam o olhar de que se alimenta e impulsiona o olfato. Dentre os louvores a sombras que Tanizaki faz, o mais representativo para o mesmo está nas próprias construções japonesas, que nas palavras do mesmo: “...um templo em nosso pais começa a ser construído pela cobertura, ampla e revestida de pesada telha, e na sombra densa limitada pelo beiral recolhemos toda edificação. Externamente, o que mais se destaca nas construções japonesas, sejam templos, palácios ou casas populares, é o telhado...e a espessa sombra reinante sob o beiral.” [TANIZAKI, 2007:30]. Os telhados japoneses são a representação mais concreta para Tanizaki pois o telhado que tudo protege e escurece, é a cultura japonesa tradicional, que imponente é o que faz o morador se sentir em casa, mas que está sendo substituída por telhados mais baratos, 468 ou por construções de concreto, que habitam mais pessoas em menos espaço. E as sombras desse telhado são para o autor, a chave da mente oriental: “Creio que nós, os orientais, buscamos satisfaçŌo no ambiente que nos cerca, ou seja, tendemos a nos resignar com a situação em que nos encontramos. Não nos queixamos do escuro, mas resignamo-nos com ele como algo inevitável. E se a claridade é deficiente, imergimos na sombra e descobrimos a beleza que lhe é inerente. Mas os ocidentais, progressistas, nunca se cansam de melhorar suas próprias condições. De vela a lampião, de lampião a lampião de gás, de lampião de gás a lâmpada elétrica, buscaram a claridade sem cessar, empenharam-se em eliminar o mais insignificante traço de sombra.” [TANIZAKI, 2007:48]. O questionamento do autor está na necessidade de se agarrar as tecnologias ocidentais com tamanha voracidade e não buscar desenvolver uma tecnologia que permita o japonês ter conforto sem ter que abdicar de sua cultura; o lamento dele está em saber que isso não é possível devido a incorporação permanente dessa cultura ocidental em seu pais; e a felicidade dele existe em poder escrever sobre as sombras que aliviam seu corpo e mente das luzes ferventes do progresso. Algumas reflexões finais Dessa forma, fica claro o incomodo que Tanizaki passa a sentir a partir da década de 20 em seu pais, que passa a retirar de maneira massiva os costumes do Japão feudal para legitimar uma nova ordem imperial. Não é possível afirmar que o autor possuía qualquer concepção de que o Império Japonês ou o Imperialismo ocidental possuíam projetos de modernização tão claros [já que em seu ensaio o mesmo não menciona as posições do império em momento nenhum], mas seu ensaio é uma prova material que o mesmo sentiu as transformações e se incomodou com elas. A beleza que Jun‟ichir Tanizaki enxerga nas sombras é a satisfaçŌo que o autor sente em poder compreender que mesmo entendendo o fim eminente de aspectos de sua cultura, é essa mesma cultura das sombras que o permitiu descrever de maneira bela e poética os 469 aspectos dessa tradição, e permitir que ela se perpetue, ou ao menos se mantenha eterna nas páginas de seu escrito. Referências Ronny Costa Pereira é estudante de graduação em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. E-Mail: PereiraRonny@outlook.com BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. 2 ed: São Paulo: UNESP, 2010. LE GOFF, J. Documento/Monumento, In: História e memória. Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990, p.462-476. MANDEL, E. O significado da segunda guerra mundial. São Paulo, Ática, 1989. PASTANA, R. D. L. O autor e sua produção literária. In: Da polaridade a dualidade: Um estudo da obra literária Amor insensato de Jun’ichiro Tanizaki. Dissertação de Mestrado. São Paulo, USP, 2016, p.14-30 TANIZAKI, J. Em louvor da sombra. Tradução do japonês: Leiko Gotoda – São Paulo, companhia das letras, 2007. YAMASHIRO, J. Pequena História do Japão. Editora Herder, São Paulo, 1964. 470 ALÉM DA GUERRA E RADIAÇÃO - UMA ANÁLISE DA HISTÓRIA ANTIGA DO JAPÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MEDIO DAS ESCOLAS ESTADUAIS DE MEDIANEIRA NO PARANÁ Sander Fernando de Paula Muito mais do que sua participação na Segunda Guerra Mundial ou os episódios ocorridos em Hiroshima e Nagasaki, o Japão possui uma extensa cultura que remonta dos períodos mais antigos da humanidade. Este artigo teve por finalidade analisar cinco coleções de livros didáticos do ensino médio distribuídos aos alunos das Escolas Estaduais na cidade de Medianeira no Paraná pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNDL, 2015) procurando informações que contam dos primórdios do Japão, influências culturais e religiosas. O intuito é saber o quanto os alunos tem contato, através dos livros, sobre a história antiga desse povo, sua origem, costumes e influências com a história oriental e ocidental. A Gênese Japonesa Não se sabe com exatidão quando os primeiros povos surgiram no Japão. Há muitas hipóteses de que esses primeiros habitantes são mais antigos do que muitas outras civilizações. “Já foi defendida uma data tão remota como 500 mil anos e alguns esperam mesmo que se chegue a provar que essa história remonta há mais de um milhŌo de anos” (HENSHALL, 1999). Ainda segundo o autor, atualmente existe um consenso que delimita uma data acerca de 200 mil anos, contudo já foram encontrados fósseis humanos com datas superiores há 300 mil anos. Para YAMASHIRO (1964) saber com exatidão quando os primitivos adentraram em solo japonês é incerto e um dos lugares onde os pesquisadores buscam estas informações são os sambaquis. “Nestes são encontrados, além de conchas e mariscos, ossos de peixes e animais e várias espécies de instrumentos usados pelos homens da época”. Ainda segundo o autor a caça e a pesca eram os principais meios de sobrevivência. Para caçar usavam flechas feitas com pontas de 471 pedras e anzóis de chifres e para guardar a comida caçada utilizavam vasos e utensílios fabricados de cerâmica (YAMASHIRO, 1964). Claro que esse breve histórico é apenas superficial perante a grandiosidade da história desse País. Ainda existe muito material a ser estudado que vão dos seus primórdios, dinastias, lendas de samurais e seres mitológicos, culinária singular e uma cultura única. Mas por que incluir esse material nos livros didáticos brasileiros? Apesar da divergência entre historiadores e pesquisadores sobre as fases de imigração japonesa eles são unanimes em afirmar que os primeiros imigrantes chegaram ao Brasil em 1908: “Os japoneses radicados no Brasil comemoram o Dia dos Imigrantes na data de 18 de junho. É que nesse dia e mês de 1908 chegaram a Santos os primeiros imigrantes do navio Kasato-Maru”[HANDA, 1987]. A data foi posteriormente oficializada a partir da lei n° 11.142 do ano de 2005, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (BRASIL, 2017). “Estes imigrantes enxergavam a vinda para o Brasil como uma condição provisória (dekassegui) eles foram atraídos pelas propagandas da companhia de imigração que de certa forma não correspondiam com a realidade e essa motivação inicial influenciará o processo de absorçŌo dos imigrantes” (FILHO, 2009) Hoje o Brasil concentra de acordo com o Consulado Geral do Japão em São Paulo mais de 1,5 milhões de descendentes japoneses, sendo considerada a maior comunidade japonesa fora do Japão. A região Sul e Sudeste são as que mais se concentram esses imigrantes. Para se ter uma ideia da grandiosidade dessa influência oriental, o Bairro da Liberdade em São Paulo, onde a maioria dos japoneses reside, carrega ideogramas nas fachadas e uma arquitetura estilo oriental atraindo turistas de todo o mundo e aos finais de semana a famosa Feira da Liberdade dá aos visitantes um pedaço do Japão aqui no Brasil com elementos da cultura oriental, principalmente a gastronomia (BRASIL, 2017). Esses são alguns motivos que levam a importância do Japão aqui no Brasil. Muitos outros motivos tanto de relevância cultural, religiosa e comercial poderiam aqui ser citados. Mas mesmo assim os livros 472 didáticos ainda refletem um Japão atormentado pela Guerra e pela Bomba nuclear. Há muito mais para se explorar em sala de aula. Baseando nessa premissa, o livro didático é o veículo no qual o aluno poderá adquirir conhecimento como relata ABUD (1986). “É ele o construtor do conhecimento histórico cujo saber não vai além do que lhe foi transmitido pela escola de primeiro e segundo grau” Ainda segundo ABUD, (1986) o homem comum, no caso o aluno em questão, vê as histórias dos livros como uma epopeia e passa a acreditar nos fatos de heroísmo dos seus personagens. “A narraçŌo dos feitos desses indivíduos constituiria, então, a história para este homem comum” ABUD, (1986). Ou seja, se o aluno aprende apenas uma parte da história de um determinado povo, ele passa a interpretar esse povo apenas sob a ótica que lhe foi dada. Cabe aos professore então aprofundar o conhecimento que não se encontra nos livros didáticos? Mas qual base metodológica ele deve usar para complementar o conteúdo que falta nos livros didáticos? Para SCHIMIDT & CAINELLI (2006) as relações que o docente de História tem com relação ao livro didático pode ser baseado na sua própria concepção de ensino e aprendizagem mas fundamentalmente acaba se baseando em outra concepção: A que estes professores tem do significado de escola. “A clareza acerca dessas questões pode servir de referência para que o livro didático ser visto como parte articulada e articuladora das relações entre professor, aluno e conhecimento histórico, e não como algo arbitrário e compulsório” (SCHIMIDT & CAINELLI, 2006). Metodologia Foram analisados 5 coleções de livros didáticos do Ensino Médio aprovados pele Plano Nacional do Livro Didático (PNDL 2015). Foi delimitado a análise do conteúdo disponível nos livros didático que se referem a história antiga do Japão, sua cultura e religião. Conteúdos referentes à Segunda Guerra Mundial ou períodos modernos e contemporâneos apesar de importantes não são objetivos do artigo. 473 Análise Foram analisadas as seguintes coleções: Novo Olhar da História (PELEGRINI, 2013), História Sociedade e Cidadania (BOULOS, 2013), História em Movimento (AZEVEDO, 2013), Caminhos do Homem (MARQUES, 2013) e Por dentro da História (SANTIAGO, 2013). Das cinco analisadas, apenas a coleção História em Movimento (AZEVEDO, 2013) contém material referente aos primórdios do Japão. O conteúdo se dispõe na unidade 4 do livro I no capítulo “civilizações asiáticas” com o subtítulo: O JapŌo dos Samurais. AZEVEDO (2013) cita a origem do Japão nas páginas 132 e 133 do livro em 3 parágrafos e uma imagem de uma pintura representando o ataque noturno no palácio de sanjo. O material disposto no capítulo é superficial quanto à origem do território japonês: “O JapŌo é um arquipélago formado por quatro ilhas principais e cerca de quatro mil ilhotas. Por muito tempo, esse território fragmentado esteve dividido entre diversos reinos, até que, por volta de 660 a.C., eles foram unificados por um líder chamado Jimu, que recebeu o título de imperador” (AZEVEDO, 2013). O autor cita dinastias de imperadores protegidos por samurais. “A proteção do imperador e de seus cortesões era garantida pelos samurais, guerreiros que lideravam poderosos clŌs provinciais”. Por fim AZEVEDO (2013) conclui a supremacia dos samurais como grandes guerreiros enquanto que o poder dos imperadores se enfraquecia passando posteriormente a ser apenas uma figura decorativa. Conclusão É possível perceber que os livros didáticos citados neste artigo e apresentados nas escolas públicas apresentam superficialmente a origem do Japão e qualquer outra influência cultural que ele proporciona, se limitando somente em um conteúdo já demasiadamente repetitivo, onde o Japão fica envolto na neblina densa e fria da Segunda Guerra Mundial e os episódios ocorridos Hiroshima e Nagasaki. 474 O artigo não tem por finalidade a crítica quanto ao conteúdo disposto nos livros didáticos analisados muito menos aos autores que com esmero e competência elaborar um material indispensável para a educação brasileira. Que o artigo apresentando sirva de apoio e talvez reflexão sobre a necessidade de incluir a história mais antiga do Japão nos livros didáticos pois estes são responsáveis pela disseminação do conhecimento histórico e muitas vezes é o único meio de aprendizado que o indivíduo terá naquele momento. Referências: Sander Fernando de Paula Graduado em História pela Universidade de Maringá, UNICESUMAR e Pós Graduando em Docência do Ensino Superior pela mesma Instituição. sanderdepaula@gmail.com ABUD, Kátia Maria. O livro didático e a popularização do saber histórico, 1984. AZEVEDO, Gislane Campos e SERIACOPI, Reinaldo. História em movimento. 2. ed. São Paulo: Ática, 2013. BOULOS JUNIOR, Alfredo . História Cidadania & Sociedade. 1. Ed. São Paulo, 2013. BRASIL (2005).Câmara dos deputados. Lei n 11142 de 25 de julho de 2005. Institui o dia nacional da imigração japonesa. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2005/lei-11142-25-julho2005-537901-publicacaooriginal-31044-pl.html Diário oficial da União. Acesso em 15/08/2017. Brasil (2017). Brasil tem 1,5 milhão de cidadãos de origem japonesa. Portal Brasil. Publicado: 16/06/2017. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/turismo/2017/06/brasil-tem-1-5-milhaode-cidadaos-de-origem-japonesa. Acesso em 15/08/2017. Guia de livros didáticos : PNLD 2015 : história : ensino médio. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2014. 140p. : il. HANDA, Tomoo. O imigrante japonês: história de sua vida no Brasil. TA Queiroz, Editor, 1987. HENSHALL, Kenneth G. A History of Japan: From Stone Age to Superpower. New York: St. 1999. MARQUES, Adhemar e Berutti, Flávia. Caminhos do Homem – 2. Ed. Curitiba, PR. Base Editorial, 2013. 475 PELEGRINI, Marcos César, DIAS, Adriana Machado e GRINBERG, Keila. Novo Olhar História. 2. Ed. São Paulo, 2013. SANTIAGO, Pedro, CERQUEIRA, Célia e PONTES, Maria Aparecida Por dentro da História. 3. Ed. São Paulo. Escala Educacional, 2013. SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene Rosa. Ensinar História. Scipione, 2006. YAMASHIRO, José. Pequena História do Japão. Editora Herder, 1964. SOARES FILHO, Paulo José. Política Imigratória Tutelada Japonesa: Uma política do Estado Japonês. Anpuh – xxv simpósio nacional de história – Fortaleza, 2009, p. 03. 476 ENTRE RASTROS: PISTAS SOBRE UMA PRÁTICA RITUAL DO CULTO DA DEUSA INANNA Simone Aparecida Dupla O presente ensaio pretende realizar uma breve abordagem de alguns indícios referentes à prática do hierogamos, em que a deusa súmeria Inanna era protagonista, e discutir até que ponto estes podem ser considerados evidências de que tal prática constitui-se como um ritual na Antiga Mesopotâmia, principalmente a partir do período de Ur III (2112-2004). A ideia do hierogamos tendo Inanna como protagonista parece fato consumado entre os autores clássicos da Antiga Mesopotâmia, tanto que uma das últimas obras de Samuel Noah Kramer leva exatamente o título de O Casamento Sagrado na Antiga Suméria. Nessa obra o autor sustenta que o hierogamos com Inanna foi celebrado por dois mil anos e relaciona essa cerimônia ao desejo de riqueza dos sumérios que tinham que a prosperidade era dádiva dos deuses. Para pensar se essas relações entre a divindade e o rei, como forma de legitimação de poder ou táticas de sobrevivência do culto, se expressavam em forma de um ritual, cujo ápice era a consumação do casamento, é preciso verificar até que ponto essas fontes poderiam trazer indícios realmente de um ritual, ou seja, em que sentido a documentação sobre Inanna nos leva a crer que haveria tal cerimônia, se pública ou privada e qual seu papel no imaginário religioso mesopotâmico. Ainda sobre a obra de Kramer, os dados usados por ele, não são concretos em relação à celebração e o próprio culto à divindade, pois ao colocar a divindade como sendo tardiamente adorada em seu local de culto, o Eanna, e afirmando que esta apenas foi introduzida no local como hierodula do deus do Céu, An, ignora ou desconhece as evidências arqueológicas que confirmam o culto a Inanna desde meados do IV milênio antes da nossa era (SZARZYNSKA, 1993). Embora aponte que a filha de Nanna, o deus Lua, tenha sido uma das principais divindades adoradas nessa região desde o terceiro milênio, diz que há indícios de que o Rito do Matrimônio Sagrado tendo Inanna como protagonista teve lugar, na cidade de Ur, algumas gerações antes que Dumuzi, seu consorte, possivelmente 477 uma divindade da vegetação, entrasse em cena. Essa perspectiva liga a divindade aos monarcas de Ur, principalmente do período de Ur III, mas não abarca períodos anteriores, onde as evidências também se fazem presentes, como por exemplo, aquelas referentes à própria cidade de Uruk e seu complexo templário. Gonzalo Rubio acredita que o casamento sagrado fazia parte da “celebração do Ano Novo a partir da segunda metade do terceiro milênio para o início do segundo, o rei, representando Dumuzi, teria - ou, mais provavelmente, fingia ter - relações sexuais com uma mulher (talvez uma entu-sacerdotisa) (RUBIO, 2001, p. 268)” que representaria a deusa Inanna. Para o autor, esta cerimônia teria sobrevivido até o primeiro milênio, onde se encontram pistas da celebração em textos que descrevem rituais reais tanto na Assíria quanto na Babilônia, mas tento como protagonistas outras divindades, como é o caso de Nabu e Nanaya (RUBIO, 2001). Os textos do período de Ur III, da cidade de Lagash, trazem a menção de que sacerdotisas passavam a noite no dormitório da divindade (RUBIO, 2001), denotando uma possível relação entre essas duas personagens. Nas fontes denominadas o Ciclo de Inanna, as referências são mais escancaradas, as relações entre Inanna e Dumuzi são descritas detalhadamente: “Ele esculpiu meus quadris com suas doces mŌos, O pastor Dumuzi encheu meu colo com creme e leite, Ele acariciou meus pelos púbicos, Ele aguou meu útero. Ele tocou com suas mãos em minha sagrada vulva, Ele alisou minha nau escura com seu creme, Ele tocou minha nau estreita com seu leite, Ele me acariciou-me no leito. Então eu acariciei o alto sacerdote no leito, Eu acariciei o fiel pastor Dumuzi, Eu acariciei seus quadris, a força do pastoreio da terra, Eu decretei um doce destino para ele” (KRAMER; WOLKSTEIN, 1998, p. 4). O trecho acima aponta para uma troca de carícias entre a divindade e Dumuzi, seu consorte, essas “preliminares” ocorreriam em um período específico, pois parece incorreto afirmar que a sanção do destino real ocorresse cotidianamente e não fosse objeto de uma 478 cerimônia específica. Além disso, o leito preparado requer cuidados para sua confecção, foi erigido especialmente para agradar a divindade e tinha data determinada, deveria ser durante o desaparecimento da lua, ou seja, lua nova, em dia marcado para a inspeção do leito: “Quando ela faz confortavelmente, quando ela faz confortavelmente, quando ela faz confortavelmente no leito; quando ela faz confortavelmente no leito que alegra o coração, quando ela faz no leito confortável; quando ela faz no leito do doce abraço confortável, quando ela faz confortavelmente no leito; (...) ela cobre o leito para ele ......, cobre o leito para ele; ela cobre o leito para ele ......, cobre o leito para ele; ela chama o rei para seu doce leito, ela chama o amado (...)” ( ETCSL: T.4.08.30). Ou ainda: “170-180. (...) para que no dia do desaparecimento da lua os poderes divinos possam ser aperfeiçoados, uma cama é erigida para minha senhora .Espargida é purificada com perfume de cedro e dispostas no leito para minha senhora, e um lençol é alisado em cima (?) do mesmo. 181-186. A fim de encontrar doçura na cama sobre o lençol da alegria, minha senhora banha suas santas coxas. Ela se banha para as coxas do rei; {ela se banha para (...) com a cabeça erguida ela vai para} as coxas de Iddin- Dagan . A Santa Inana esfrega-se com sabão; ela borrifa de óleo e essência de cedro no chão. 187-194. O rei vai para as coxas sagradas com a cabeça erguida (...) Ela vai para as coxas de Iddin- Dagan , ele vai para as coxas de Inana . Com a cabeça erguida Amaušumgal-ana deita ao lado dela e {acaricia suas coxas sagradas} (...) (diz:) "ó minhas santas coxas O minha Santa Inana !"}. Depois a senhora fez dele se alegrar com as coxas sagradas sobre a cama, depois de santa Inana fez dele se alegrar com as coxas sagradas na cama, ela relaxa com ele em sua cama (?): Iddin-Dagan , você é realmente meu Amado! "(ETCSL: T. 2.5.3.1). Percebe-se que o leito desejado pela divindade não era um leito comum, mas o leito real, onde o senhor (rei/Dumuzi) iria fazer 479 amor, um leito de rainha, ou seja, finamente elaborado, com um lençol de linho branco, salpicado de flores que lembram o lápis lazulli. No segundo trecho, o qual traz como avatar de Dumuzi, o rei Iddin-Dagan, é clara a junção carnal e a purificação ritual, o gesto de jogar perfume no chŌo e ir para “as coxas” apontam tanto a consumação quanto a performance ritual. Além disso, o texto menciona um lugar especial para onde o rei iria, o Egal-Mah, para “derramar libações, para realizar rituais de purificação, amontoar ofertas de incenso, para queimar zimbro, para ofertar alimentos (ETCSL: T. 2.5.3.1, linhas 195-202)”. Dessa foram, antes da consumação do casamento deveria haver uma purificação e oferta por parte do monarca, não apenas de presentes para a noiva, mas de sacrifícios em sua homenagem. A cerimônia exigia também um banquete, o qual o rei preparava a frente da divindade, essa celebração deveria demonstrar a abundância do reino: “Ele organiza um banquete rico para ela. O povo de cabeça negra alinhadas à sua frente. Com instrumentos altos o suficiente para abafar o vento sul-tempestade, com doce sonoridade do instrumento Algar, a glória do palácio, e com harpas, a fonte de alegria para a humanidade, os músicos executam canções que encantam seu coração. O rei vê o que é comido e bebido, Ama-ušumgal-ana vê o que é comido e bebido. O palácio está em clima de festa, o rei está alegre. As pessoas passam o dia em meio à fartura. Amaušumgal-ana está em grande alegria. Que seus dias sejam longos no esplêndido trono! Ele orgulhosamente (?) Ocupa o estrado real" (ETCSL: T. 2.5.3.1). Dessa forma, o rei oferecia um banquete para Inanna, um banquete que era reproduzido em cada lar, possivelmente como sinal de abundância ou desejo desta e também como oferenda. Assim, enchia-se a mesa com queijo, sete tipos de frutas, onde se oferecia os primeiros frutos para a divindade, vertia-se cerveja escura e clara, assavam-se bolos de mel (ETCSL: T. 2.5.3.1). Havia o costume de realizar logo pela manhã uma espécie de rito onde se derramava farinha, mel e vinho ao nascer do sol. O deus pessoal dos participantes também a servia com alimentos e bebidas 480 (ETCSL: T. 2.5.3.1, linhas 150-162). A ideia de deus pessoal deve-se ao fato dos mesopotâmicos se ligarem a apenas uma divindade durante toda a vida, mas aceitarem a existência de outros deuses, sendo, portanto, henoteístas. Assim, Inanna teria devotos mesmo entre aqueles cujo deus pessoal não era ela, ou ao menos estes lhe renderiam homenagens nessa festividade juntamente com o restante do panteão. Também é interessante notar que a divindade embora se prepare para cópula com purificações, era preciso que a terra estivesse purificada para sua descida, o texto aponta que todos (os que estão envolvidos com a cerimônia, fieis que vem de outros lugares e aqueles preparam a festividade) se apressam em deixar tudo purificado e organizado para a chegada da “sagrada Inana”. Assim, nos lugares “puros da planície, em seus lugares acolhedores, os telhados das habitações, nos santuários da humanidade, são oferecidos incensos, como uma floresta de cedros aromáticos são ofertados a ela. Eles purificam a terra para a senhora” (ETCSL: T. 2.5.3.1), e a celebram em canções. Outro elemento também atestado na documentação é a virilidade do rei: “12-18. Quando meu doce precioso, meu coração, deitou-se também, beijaram-se com a língua, um de cada vez, então meu irmão dos belos olhos fez cinquenta vezes para ela, exaustivamente esperando por ela, enquanto ela tremia por baixo dele em silêncio, em silêncio para ele. Minha querida preciosa passou o tempo com o meu irmão, colocando as mŌos nos quadris dela” (ETCSL, T.4.08.04). Dessa forma, pode ser dado como certo, que Inanna manteve uma relação carnal com o rei-pastor, cuja execução correta trazia prosperidade ao povo sumério. Mas quando o monarca partia para a terra sem retorno era preciso substituí-lo, encontrar alguém a altura de ser o avatar de Dumuzi, o primeiro amante. Essa preocupação em perpetuar o evento, em repetir periodicamente a cerimônia, podemos chamar de tradição e por estar relacionada à tradição, por manter traços, frases e atitudes da primeira cerimônia, podemos chamar isso de ritual. 481 Como lembra Verhoeven é “através da ação ritual que as crenças religiosas sŌo comunicadas, negociadas e transmitidas” (VERHOEVEN, 2011, p.117). Dessa forma, é possível afirmar que existia um ritual do casamento sagrado, voltado à crença de que os esponsais com a divindade asseguravam a fertilidade de seres humanos e animais, a prosperidade do povo e a proteção contra catástrofes e guerras. Se era uma sacerdotisa Entu, ou uma das esposas do rei, a questão parece irrelevante, visto que geralmente as mulheres da corte estavam envolvidas com alguma função clerical. Há dados, por exemplo, acerca de Enheduana, neta de Sargão de Akkad, que comprovam sua atuação como sacerdotisa de Nanna e adoradora de Inanna, a qual recorre quando destituída de seu cargo. Ou mesmo os hinos dedicados a reis, como é o caso de Shulgi, onde, segundo Leick, quem escreveu foi uma de suas esposas (LEICK, 2001). Ainda sobre o ritual, Leo Openheim, em sua obra “Mesopotâmia: retrato de uma civilizaçŌo extinta”, acredita que em relaçŌo à performance, nessa cultura podemos classificar três tipos de rituais nessa categoria: orações, textos mitológicos e textos rituais (OPPENHEIM, 2003). Os textos mitológicos, se assim, podemos qualificá-los, visto que esse termo se refere, a mitos e obras literárias, que evocam certa imagem mitológica, dizem respeito, para o autor, às formulações literárias que são obras de poetas sumérios da corte, as quais os escribas paleobabilônicos vieram a imitar posteriormente. Essas obras “contem adaptações feitas para um público relativamente recente, de elementos mitológicos simples, e frequentemente primitivos, pálidos reflexos de histórias que circulavam entre determinados grupos da população mesopotâmica, trazidos de um passado longínquo” (OPPENHEIM, 2003, p. 176). O terceiro grupo apontado por Oppenheim, diz respeito às numerosas descrições de rituais, que se executava frequentemente nos santuários, por sacerdotes e técnicos do templo. “Estes textos descrevem, quase sempre com muitos detalhes, os atos particulares de um determinado ritual, as orações e fórmulas que se deveria recitar (citadas integralmente ou bem por seu incipit), assim como as 482 oferendas e o aparato sacrificial necessários; em resumo, logram transmitir-nos parte das atividades que se desenvolviam no interior de um templo mesopotâmico” (OPPENHEIM, p. 176). Assim, estes textos trazem de forma detalhada, a performance ritual, como é o caso do festiva de Ano Novo babilônico, que possivelmente tem suas raízes no período pré-sargônico, mas o qual não podemos datar com exatidão, dado a natureza furtuita das fontes, portanto a antiguidade a que remonta tais rituais e festividades só pode ser pressuposta, por meio dos resquícios arqueológicos a que as fontes estão sujeitas. A literatura mesopotâmica era rica em material de cunho religioso, seus mitos contavam a gesta dos deuses, explicavam a organização do universo e davam sentido ao universo material e espiritual dessa cultura. Nos hinos de louvor que trazem aspectos do ritual do hierogamos, percebemos que a presença de referências a essa festividade é uma recorrente, assim como a ideia de junção carnal entre o rei e a divindade. Os monarcas de Ur III quiseram deixar registradas suas relações pessoais com a divindade, entre eles Shulgi e Naram-Sin, mesmos os hinos que dedicados aos reis, mencionam Inanna como esposa e protetora destes, como é o caso do hino dedicado ao Shulgi, onde este diz ser aquele que é destinado ao deleite de Inanna (PEINADO, 1988, p. 163) ou aquele dedicado a Ishbierra, onde este diz que construiu um leito para a divindade: “El construyó para ella um lecho [...] y lo introdujo después en el templo de Inanna [..] [a derecha] e izquierda él [tendió] um león” (PEINADO, 1988, p. 169). Após os monarcas de Ur, aqueles de Isin-Larsa também disseram amantes da divindade, como é o caso de Lipit-Ishtar, cantado como desejado esposo de Inanna, a delícia de seu coração (PEINADO, 1988, p. 181). “Lipit-Ishtar, el hijo de Enlil, soy yo. Al palácio real, mi morada, yo entro: Mi esposa, la sagrada Inanna, ha hecho firme el fundamento de mi trono. a la cama, el lugar de alegría de [su] corazón, [voy hacia ella]: Para mucho tempo, para siempre me ha abrasado ella. 483 !En esse sito querría passar, en jovialidade y alegría de corazón, los días com la dueña del cielo!” (PEINADO, 1988, p. 185). Dessa forma, o aparato de imagens e símbolos criados em torno da festividade, bem como as descrições detalhadas da cópula e da relação especial com o rei apontam sempre para a consumação do casamento. Nesse sentido, os ex-votos denominados “amantes abraçados no leito”, que discutiremos em outro momento, parecem vir de encontro a essa relação sexual estabelecida entre o monarca e a divindade. Assim, torna-se possível afirmar, que de acordo com as pistas encontradas nas fontes, havia um ritual de hierogamos, onde Inanna foi o objeto principal de culto e cuja magnitude em termos estilísticos e a dimensão de tal festividade contribuiu para perpetuação do culto, ratificou o reinando dos soberanos, além de servir de modelo comportamental reproduzido no cotidiano das pessoas comuns. Referências Simone Aparecida Dupla é doutoranda em História pela UEM, sob orientação da professora Dra. Solange Ramos de Andrade. E-mail: cathain_celta@hotmail.com LEICK, G. Sex and eroticism in Mesopotamian literature. New York: Taylor & Francis, 2003. ETCSL, T.4.08.04. A balbale to Inana (Dumuzid-Inana D). Disponível: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgibin/etcsl.cgi?text=t.4.08.04# ETCSL: T. 2.5.3.1. A šir-namursaĝa to Ninsiana for IddinDagan (Iddin-Dagan A). Disponível em: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.2.5.3.1# ETCSL: T.4.08.30A song of Inana and Dumuzid (Dumuzid-Inana D1). Disponível em: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgibin/etcsl.cgi?text=t.4.08.30# KRAMER, S.N. El Matrimonio Sagrado em la Antigua Sumer. Barcelona: AUSA, 1999. OPPENHEIM, A. Leo. La Antigua Mesopotamia: retrato de una civilización extinguida. Madrid: Gredos, 2003. 484 RUBIO, Gonzalo. Inanna and Dumuzi: A Sumerian Love Story. Journal of the American Oriental Society, Vol. 121, No. 2 (Apr. - Jun., 2001), pp. 268-274. SZARZYNSKA, Krystyna. Offerings for the Goddess Inanna in Archaic Uruk. In: Revue d’Assyriologie. Paris: Gabala, 87, 1993. VERHOEVEN, Marc. The many dimensions of ritual. In: INSOLL, Timothy. The archaeology of ritual and religion. OXFORD: University Press, 2011. 485 486 O SOCIAL DARWINISMO OCIDENTAL E O PROGRESSO JAPONÊS Tiago Tormes Souza O presente artigo tem com objetivo explicar a relação entre o pensamento social darwinista, o Imperialismo das potências industriais ocidentais e o Estado Japonês pós Restauração, evidenciando as reformas na educação, na economia e no exército decorrentes disso. O Social Darwinismo no Ocidente A publicação da obra A Origem das Espécies [1859], de Charles Darwin, revolucionou as ciências naturais e a própria cultura ocidental. Hobsbawm [2012] aponta a relevância da obra não só para a biologia, mas para a história. “A teoria da evoluçŌo pela seleçŌo natural ia bem mais longe que os limites da biologia, e nisso reside sua importância. Ela ratificava o triunfo da historia sobre todas as ciências, embora “história” fosse nesse sentido fosse normalmente confundida pelos contemporâneos com „progresso‟” [HOBSBAWM, 2012, p.390] Assim, o evolucionismo não se manteve como um conceito apenas para as ciências biológicas. Com a ascensão da Sociologia de Augusto Comte como ciência, e de seu positivismo como um paradigma hegemônico, o evolucionismo passou a fazer parte das produções acadêmicas de diversas novas ciências, que passaram a explicar todas as sociedades pelo prisma do “progresso” e da “evoluçŌo”. Deste modo, o "Progresso" seria alcançado pelo desenvolvimento científico que os Estados europeus alcançaram através da Revolução Industrial e pela liberdade individual alcançada com a Revolução Francesa. Para isso, seria necessária uma "Ordem", de acordo com a qual a sociedade deveria obedecer a uma hierarquia natural para atingir o Estado Positivo. “Pregava-se aqui a „conciliaçŌo de classes‟, na verdade a submissão da massa de trabalhadores aos industriais que deveriam ser os responsáveis em encaminhar o bem ordenado progresso positivista.” [BARROS, 2014, p.95] 487 Portanto, a riqueza e a pobreza seriam apenas sinais da diferenciação entre a burguesia e o proletariado, que estaria relacionada a capacidade da espécie humana de se adaptar ao ambiente. Assim sendo, algumas pessoas seriam mais evoluídas que outras e, em consequência, a pobreza não teria causas sociais, mas sim biológicas. Logo, o Social Darwinismo surge como uma junção das teorias evolucionistas de Darwin com as novas ciências sociais que surgem na segunda metade do século XIX, como a Sociologia, a Antropologia e a Linguística. Essa nova teoria foi utilizada para hierarquizar a sociedade e categorizar os seres humanos. "O darwinismo social, no entanto, envolve um quinto pressuposto crucial, isto é, que esse determinismo se estende não apenas às propriedades físicas dos seres humanos, mas também à sua existência social e aos atributos psicológicos que desempenham um papel fundamental na vida social, e.g. razão, religião e moralidade [...] Os darwinistas sociais, no entanto, acreditam que muitos (se não todos) os aspectos da cultura - religião, ética, instituições políticas, o surgimento e a queda dos impérios e civilizações, além de muitas características psicológicas e comportamentais - podem ser explicados pela aplicação dos primeiros quatro elementos a esses domínios. Os darwinistas sociais, portanto, endossam dois fatos fundamentais sobre a natureza humana: que é contínua como a psicologia animal e que evoluiu através da seleção natural." [HAWKINS, 1997, p.31] O Social Darwinismo não considera apenas os aspectos biológicos dos seres humanos, mas também a sua cultura como um todo. Analisando as sociedades tribais como muito aquém do progresso industrial e liberal visto no Ocidente, fora do contexto europeu, as ciências próximas do social darwinismo passam a hierarquizar as diferentes sociedades e relacionar seu grau de evolução com seu desenvolvimento. Nesse momento, o conceito de “raça” passa a ser o catalisador de todo o pensamento a respeito do Imperialismo Ocidental imposto a outros povos. Na Ásia, os Estados Europeus sobrepujaram as grandes civilizações com seu armamento e tecnologia. A Índia passou a ser parte do Império Britânico. O Império Chinês, da Dinastia Qing, sofreu diversos boicotes econômicos e teve seu poder esfacelado, tornando488 se território dividido em diversas em áreas de influência das grandes potências imperialistas. Em apenas um século, uma Europa que sempre viu o Império chinês como uma grande nação civilizada e avançadíssima passou a vê-la como uma nação semi-bárbara e muito distante do ideal de progresso da modernidade e do liberalismo Ocidental. A Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), entre Inglaterra e China, foi a primeira demonstração de que o grande império tradicional não era páreo para o poderio militar ocidental. Uma pequena frota inglesa de mais ou menos vinte mil homens derrotou as forças armadas Qing e forçou a abertura econômica chinesa. A China tentou preservar sua cultura e governos tradicionais, resistindo ao avanço ocidental, mas foi derrotada. Logo em seguida, diversas revoltas ocorreram, dentre as quais as principais foram a Revolta dos Boxers (1900) e a Rebelião Taiping (1850-1864). O Japão e a Busca pelo Progresso Os navios negros do comodoro norte americano Matthew C. Perry aportaram no Japão em 1853. O Bakufu Tokugawa se viu intimidado com o poderio militar ocidental. Pela primeira vez, desde o isolamento do Japão no século XVI, a ilha no pacifico se viu sitiada e impossibilitada de reagir contra essas novas tecnologias. A “diplomacia da canhoneira” surtiu efeito, os Estados Unidos abriram o comercio japonês para o mundo e o Imperialismo industrial finalmente tinha chegado a terras nipônicas. Após a Restauração Meiji em 1868, o Governo Imperial enviou diversas missões diplomáticas e intercâmbios para a Europa e a América. Em especial a “MissŌo Iwakura” com o objetivo de absorver novos modelos políticos, econômicos, técnicos e científicos. O Império do Japão estava em busca do "Progresso" e diversas obras ocidentais chegaram ao Japão, com um crescimento rápido de traduções e produções acadêmicas em língua japonesa embasadas nos grandes teóricos e cientistas ocidentais. O conceito de “Progresso” estaria intimamente ligado ao conceito de “Modernidade disponível” e nŌo uma modernidade generalizante como os teóricos positivistas e ligados ao Social Darwinismo propunham. 489 “Para o JapŌo, as modernidades disponíveis nas ultimas três décadas do século XIX eram chamadas de “civilizaçŌo” (bunmei), o que os japoneses entendiam como um estágio universal na historia mundial, assim como o que estava exemplificado pelos modelos “euroamericanos” contemporâneos.” [GLUCK, 2014, p.21] Assim, a “Modernidade disponível” que existia na segunda metade do século XIX seria ligada ao progresso industrial, ao Estado-Nação e as políticas imperialistas. Porque não havia outra forma de manter um Estado soberano sem interferências externas com um governo “tradicional” e “nŌo civilizado”. Era necessário para o JapŌo buscar a “civilizaçŌo”, reformar o seu sistema de educação pública sua economia e suas forças armadas. Esses três pontos seriam cruciais para que o progresso da nação fosse possível, importando diversos modelos do ocidente. “O modelo inglês servia naturalmente como um guia para as estradas de ferro, telégrafo, obras públicas, indústria têxtil e muito dos métodos de comércio. O modelo Francês inspirava a reforma legal, e inicialmente a reforma militar, até que o modelo prussiano veia a prevalecer (a marinha evidentemente seguiu o exemplo inglês).” [HOBSBAWN, 2012, p.239] As reformas da educação e da economia japonesa buscaram no Ocidente seu modelo e, através disso, o país alcançaria o progresso. Autores como Herbert Spencer, Mill e Comte contribuíram para que os ideais do Ocidente fossem usados pelos japoneses que buscavam a ascensão da Nação e o bloqueio das forças Imperialistas em seu território por meio de uma ideologia progressista e modernizadora. “No entanto, uma inspeçŌo das influências spencerianas no Japão mostra que o uso conservador de Spencer, por exemplo, está intimamente relacionado com a natureza única da ideologia social e política conservadora japonesa e com a complexa estrutura social do Japão da era Meiji. Isso ilustra as maneiras pelas quais o pensamento ocidental, recentemente introduzido, contribuiu para a ideologia dos grupos que possuíam o poder na sociedade Meiji." [NAGAI, 1954,p.56] 490 O Código Fundamental de educaçŌo de 1872 “decretou a criaçŌo de uma rede de oito distritos universitários e 32 distritos preparatórios, cada um deles com uma dotaçŌo de 210 escolas primarias” [Collcutt, Jansen, Kumakura, 2008, p.175]. Uma mudança drástica em relação ao período Tempô, em que o ensino ainda era voltado para a classe samurai e dos daymio. A educação formal durante a Era Meiji incluiu lições morais, desde lealdade e patriotismo. Suas universidades eram extremamente liberais para que os acadêmicos japoneses pudessem rivalizar com seus pares ocidentais. O que constituía em uma educação extremamente utilitarista, em que o cidadão servindo a si mesmo, serviria a pátria e ao Imperador. No mesmo Código, há um trecho que explica a busca pelo "Progresso" por parte do governo Imperial. "O aprendizado é a chave do êxito na vida, e nenhum homem pode se atrever a rejeitá-lo. É a ignorância o que impede o homem de progredir, o empobrece, dispersa a família e termina por destruí-lo" [COLLCUTT; JANSEN; KUMAKURA, 2008, p.175]. Deste modo, a Educação Pública seria a forma de encaminhar a sociedade japonesa para o progresso. Porque ela seria necessária para introduzir as pessoas ao modelo de sociedade e política ocidental, em que a liberdade individual e a igualdade seriam respeitadas e não atrelada aos velhos costumes e tradições presentes no modelo social de estamentos do Bakufu Tokugawa. A economia japonesa teve um grande crescimento desde a Restauração através de sua política de fortalecimento o mercado interno, da construção de ferrovias e da indústria pesada, tornando a economia japonesa sólida e incentivando uma expansão imperialista para outros países asiáticos, como a Coréia e a China, em busca de matérias-primas e um mercado consumidor, seguindo o exemplo das grandes potencias ocidentais que colonizaram a África e a Ásia no mesmo período temporal. “Alguns aspectos do fenômeno global e conjuntural são coercitivos, como foi o caso do governo imperialista dos britânicos na índia e dos japoneses na Coréia. Sob uma coação menos direta, mas não menos poderosa, o Japão para preservar sua soberania na ordem internacional dos 491 fins do século XIX, dominado pelo Ocidente.” [GLUCK, 2014,p.21] O militarismo japonês é um ponto crucial para se compreender a própria idéia de "Progresso", pois sem um exercito e uma marinha poderosa seria impossível uma política expansionista colonial. Uma vez que a ideia de uma classe samurai relacionada com a fragmentação política do Bakufo Tokugawa era um empecilho para a forma de se criar um Estado-Nação coeso. A partir da Revolução Francesa o mundo ocidental passou a recrutar soldados de sua própria população, abandonando exércitos menores e extremamente profissionais. Porém, o levante de uma infantaria das massas abre caminho para o cidadão constituir uma identidade nacional, um nacionalismo exacerbado, o que não fazia parte da mentalidade japonesa, em que as instituições no Período Edo eram estamentarias e a arte bélica ainda era monopolizada por uma classe guerreira. Jansen [2008] aponta essa questão quando trata da “guerra boshin”, em que a apatia por parte do campesinato japonês em relação ao conflito é notada pelo governo Meiji após o termino do conflito. “A guerra franco-prussiana de 1870-1871 surpreendeu vários dirigentes restauradores na Europa, que ao regressar compararam o alto grau de participação demonstrado pelos cidadãos de Paris na defesa da cidade com a indiferença da maioria dos camponeses japoneses durante as guerras de restauração. Estava claro que o caminho para a segurança nacional dentro do violento contexto internacional em que o pais estava envolvido passava pela educação e instrução do povo comum, transformando assim o Japão em uma “naçŌo armada” em vez de depender de uma classe com armas. Também era possível citar o respeito em relação a tradição, já que o antigo Japão de inspiração institucional chinesa havia contado com camponeses recrutados.” [COLLCUT, 2008, p. 175] Influenciado pelo Darwinismo Social, o governo Imperial passou a perseguir grupos étnicos minoritários. O maior exemplo disso foram os Ainu da ilha de Hokkaido, que foram obrigados a abandonar seus costumes tradicionais e assimilar a cultura nacional. 492 Conclusão O Social Darwinismo e o desdobramento do Imperialismo, no Século XIX, tiveram grande influência sobre o Japão no governo Meiji., levando a mudanças em suas políticas publicas em relação a educação, em sua economia e em seu militarismo. Criou-se assim as bases para que o Império do Japão se tornasse a grande potência econômica e militar na Ásia, aos moldes das outras potências imperialistas ocidentais. Referências Tiago Tormes Souza é graduando em História/Licenciatura pela FURG. Email: tormes.tiago@gmail.com BARROS, José D‟AssunçŌo. Teoria da História II. Os primeiros paradgmas: Positivismo e Historicismo. 4.Ed . Petrópolis: Vozes, 2014 COLLCUT, M.; JANSEN, M. B.; KIMAKURA, I. Japão. 1.Ed. Barcelona: Ediciones Folio, S.A, 2008 HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital, 15. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012 HAWKINS, Mike. Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945: nature as model and nature as threat. 1. Ed. New York: Cambridge University Press, 1997 NAGAI, Michio. Herbert Spencer in Early Meiji Japan, The Far Eastern Quaterly, Volume. 14 No. 1, 1954. P.55-64 GLUCK, Carol. Meiji e moderninadade: da historia à teoria. In: PEREIRA, Ronan Alves; SUZUKI, Tae. Japão no Caleidoscópio: Estudos da Sociedade e da História Japonesa. São Paulo: Pontes Editores, 2014. p. 15-37 493 494 A IGREJA TENRIKYO AMAZÔNIA: A HISTÓRIA E A CULTURA DA RELIGIÃO Vitor Moises Nascimento Therezo Este artigo traz aspectos gerais da história da Religião Tenrikyo e da Igreja Tenrikyo Amazônia, uma das religiões que formam o cenário plural brasileiro. O intuito é fornecer um breve histórico da religião de origem nipônica presente de maneira considerável no Brasil, país com a maior colônia japonesa do mundo. Fornecendo sugestões e percepções para entender as complexas circunstâncias em que uma nova religião japonesa está localizada na cultura japonesa. Introdução ao Objeto A pesquisa sobre a cultura japonesa na Amazônia me levou a um objeto abstrato desta comunidade, tendo como ponto de partida os padrões ocidentais. Tal objeto é a religião. Como historiador que tem preocupações antropológicas, acho muito inviável que seja possível situar a cultura, e neste caso a japonesa, em relação a todas as outras. Especialmente a quem não nasceu ou viveu nela, sempre estando seus aspectos mais profundos inacessíveis, pois a cultura de maneira geral é imensurável. Existe saída para esta questão? Talvez com a mesma preocupação pode-se dizer que sim, já que boa parte do trabalho do antropólogo está centrado em mapear culturas das mais diversas, e muitas fora dos padrões do observador, que deve interpretar com uma metodologia que permita a aproximação dela. Para começar, serei claro em meu ponto de partida para pensar a religião para os nikkeis. É um aspecto cultural, que lhe dando profundidade histórica irá mostrar continuidades e rupturas ao longo do tempo. Mas fica a pergunta, não devemos pensar a sua especificidade? Antes de qualquer resposta será muito importante o estudo cada vez mais abrangente desta especificidade, entendendo origens, doutrinas, práticas rituais e o que considero mais importante a relação homem/religião em meio a determinados contextos. Acredito que a construção deste saber, e do estudo do objeto religião, possa ter arquétipos externos a de sua formação conceitual ocidental. Não se trata de uma importação de outros padrões postos em supremacia, e sim como uma percepção que pode contribuir para 495 uma analise mais próxima da especificidade, realidade e da percepção sobre a religião. Estes arquétipos externos seriam os costumes japoneses em lidar com a prática religiosa, que transcendem o campo da religião pensada e conceituada no ocidente cristão. Partido desta questão é fundamental que se tome conhecimento destas outras especificidades, uma delas é a Igreja Tenrikyo. Ressaltando que o objetivo aqui não é pensar a originalidade, origens, passados ou culturas enxergadas como estáticas, o que seria um erro. Aqui simplesmente queremos descrever com o objetivo de informar para se começar um processo de dialogo sem notórios estranhamentos e desconhecimentos. Na história religiosa do Japão, emergiram novas religiões durante períodos de desintegração social, urbanização e guerra global (como o período Tokugawa, as décadas de 1920 e 1930 e Segunda Guerra Mundial). Houve um grande número de literatura americana, europeia e japonesa sobre novos movimentos religiosos japoneses, e o assunto pode cair em duas questões: Seu desenvolvimento doméstico e propagação mundial. A primeira envolve uma série de estruturas conceituais pertinentes ao nascimento e ao desenvolvimento destes novos movimentos religiosos no Japão, e a segunda diz respeito a sua relação com o mundo moderno e suas transformações em outros espaços, distintos ao seu local de origem (HUANG, 2017). Uma destas novas religiões japonesas é a Tenrikyo. Histórico da Religião No dia 18 de abril de 1798, em Sanmaiden, nasce Miki, condado de Yamabe, na província de Yamato (atual prefeitura de Nara). Em 1810, ela se casou com Zenbei Nakayama de uma aldeia próxima aos 13 anos e foi encarregada de todo o trabalho doméstico da família Nakayama em 1813. Ela deu à luz seu primeiro filho, Shuji, em 1821 e depois a cinco filhas. (ELLWOOD, 1982). Em 1837, Shuji estava doente com dor nas pernas, e a família Nakayama tinha Nakano Ichibei, um shugenja, praticante de um ritual associado a uma seita de montanha, que realizava rituais de oração para ele. No dia 23 de outubro, um encanamento (yosekaji) foi realizado para Shuji com Miki atuando como meio espiritual, durante o qual Deus desceu no corpo de Miki e afirmou usar Miki como o "Santuário de Deus". Após três dias de diálogo tenso entre a 496 entidade e os membros da família, Miki Nakayama foi reconhecida como o santuário de Deus no dia 26 de outubro de 1838 após o consentimento de seu marido, marcando assim a fundação do ensino (ELLWOOD, 1982). Durante os próximos três anos, após o processo de incorporação, Miki isolou-se em um armazém e depois começou a entregar seus pertences e os bens da família até o final do processo de desmantelar a construção da casa. As ações incomuns de Miki causaram desconfiança de seus parentes e aldeões e levaram a família à pobreza. Ela ousou quebrar alguns costumes estabelecidos e desencadeou conflitos. Como uma maneira de evitar os confrontos, os seguidores de Miki procuraram obter autorização oficial do Yoshida de Shinto (Yoshida jingi kanryo) em Kyoto para que pudessem realizar encontros em sua residência privada. Esta autorização oficial foi concedida em 1867, mas foi posteriormente anulada em 1870 (ELLWOOD, 1982). Miki designou a construção do tsutome basho, lugar de realização do serviço religioso, em 1864, e com a ajuda dos primeiros seguidores, especialmente Iburi Izo, que era carpinteiro de profissão deu inicio as obras (ELLWOOD, 1982). Em 1866, Miki começou a ensinar a forma de serviço (tsutome) que deveria ser usado em seu movimento. O serviço envolve músicas e gestos com a mão com dança que são realizados em sintonia com as melodias de instrumentos musicais. Este ritual viria a ser realizado em Jiba, um espaço que Miki identificou em 1875 nas instalações da residência de Nakayama para marcar o lugar da concepção humana original (ELLWOOD, 1982). Além de fazer arranjos para o ritual, Miki começou a escrever o que mais tarde se chamaria Ofudesaki. Escrito de 1869 a 1882, o texto contém um total de 1.711 versos em dezessete partes escritas no estilo waka de poesia (ELLWOOD, 1982). Enquanto isso, Miki começou a se mostrar como o santuário de Deus vestindo um pano vermelho em 1874, e no mesmo ano ela começou a conferir de várias formas a verdade do Sazuke (concessão divina), orações de cura para aqueles que sofrem de doença (ELLWOOD, 1982). Após a Restauração Meiji (1868), Miki e seu movimento entraram em vigilância e perseguição das autoridades políticas como um grupo religioso não autorizado, e para completar Miki sempre se 497 opôs a qualquer mudança que fosse comprometer seu ensino. Nessas circunstâncias, Shinnosuke Nakayama, o neto de Miki que se tornou o chefe da família Nakayama, tentou estabelecer uma igreja independente (kyokai setsuritsu undo) em 1882. Obteve permissão para estabelecer uma igreja sob a supervisão direta do xintoísmo em 1885, mas a autorização oficial do governo ainda não havia sido alcançada. Em 1887, após a realização de um serviço, Miki faleceu aos noventa anos. Na Tenrikyo, acredita-se que Miki se retirou da vida física e ainda está viva supervisionando o movimento e trabalhando para a salvação dos seres humanos (ELLWOOD, 1982). Após a morte de Miki, Iburi Izo tornou-se o Honseki (pessoa que concede o Sazuke em nome de Miki), enquanto Shinnosuke desempenhou o papel de Shinbashira (pilar central, ou seja, o líder espiritual e administrativo do movimento). Em 1888, o movimento religioso obteve autorização oficial como Shinto Tenri Kyokai sob a supervisão direta do Xintoísmo em 1888. Também em 1888, a Tenri Kyokai publicou o Mikagura-uta (músicas do serviço), que é a compilação das músicas ensinadas por Miki. Como uma maneira de responder ao público e as críticas, a Tenri Kyokai começou a fazer campanha pela independência sectária em 1899. Para atender aos critérios do governo para uma organização religiosa legítima, o grupo desenvolveu uma organização religiosa institucionalizada e uma doutrina sistematizada conhecida como a “versŌo Meiji” da Tenrikyo kyoten (a doutrina da Tenrikyo), que obedeceu ao regulamento do governo que exigia que as doutrinas religiosas estivessem em consonância com o Shinto do Estado. Em 1908, o grupo recebeu permissão para se tornar uma organização religiosa independente como uma das religiões reconhecidas nas treze seitas Shinto (ELLWOOD, 1982). Depois de ganhar a independência sectária, o grupo religioso, agora com o nome de Tenrikyo, desfrutou de um tempo relativamente pacífico com relação à pressão política e social sob a liderança de Shinnosuke Nakayama. Com a oficialidade, a Tenrikyo revitalizou seus esforços de propagação nos anos subsequentes, particularmente organizando palestras públicas em lugares por todo o país. Como resultado dos esforços de propagação, a Tenrikyo experimentou um rápido crescimento nos anos que antecederam 1920, especialmente em regiões urbanas com alto crescimento populacional devido ao fluxo de pessoas de áreas rurais. Shozen Nakayama tornou-se o 498 Shinbashira da Tenrikyo em 1915 após a morte de Shinnosuke no ano anterior (ELLWOOD, 1982). Nos anos seguintes, a Tenrikyo se desenvolveu mais e estabeleceu várias sub-organizações. Em 1925, a Escola Tenri de Línguas Estrangeiras (Tenri Gaikokugo Gakko) foi estabelecida juntamente com o que mais tarde se tornaria a Biblioteca Central de Tenri (Tenri toshokan). A escola de línguas tinha como objetivo apoiar seguidores no exterior para o trabalho missionário, que já havia começado no final de 1890 nos países e regiões vizinhas do Japão, como Coréia e Taiwan, bem como em regiões com imigrantes japoneses, incluindo Hawai e Estados Unidos. A Tenrikyo também estabeleceu o Departamento de Doutrina e Materiais Históricos (Kyogi oyobi shiryo shuseibu), bem como instalações educacionais. O Osashizu (uma compilação de mensagens divinas entregues através de Iburi Iz ) e o Ofudesaki (o livro sagrado da religiŌo) começaram a ser publicados em 1927 e 1928, respectivamente. Em 1933 e 1934, a construção do Santuário da Fundação (Kyosoden) e o Salão do Adágio Sul do Santuário Principal (Shinden) foram concluídos, respectivamente. Esses desenvolvimentos doutrinários e rituais, no entanto, passaram a ser prejudicados pela iniciativa conhecida como “adequaçŌo” (kakushin) em 1939. Para cumprir a demanda do estado, a Tenrikyo fez várias mudanças, incluindo a remoção de certos versos do Mikagura-Uta, além de retirar o Ofudesaki e o Osashizu de circulação (ELLWOOD, 1982). Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 15 de agosto de 1945, Shozen Nakayama anunciou a restauração dos ensinamentos de Tenrikyo conforme ensinado pela fundadora. Ele restaurou o serviço Kagura no mesmo ano e, nos anos seguintes, publicou as três escrituras, o Ofudesaki (1948), o Mikagura-uta (1946) e o Osashizu (1949), todas proibidas pelo governo durante a guerra. Em 1949, ele publicou a Tenrikyo kyoten com base nas três escrituras para substituir a versão Meiji da doutrina. Como biografia da fundadora, ele publicou a Kohon Tenrikyo kyosoden (edição manuscrita da Vida de Oyasama, fundadora da Tenrikyo) em 1956. Em 1953, Shozen anunciou a construção do complexo de Oyasato-yakata (Oyasato yakata) que rodearia o santuário em Jiba (ELLWOOD, 1982). Com a morte do segundo Shinbashira em 1967, Zenye Nakayama, filho de Shozen, tornou-se o terceiro Shinbashira. Sob sua liderança, 499 a Tenrikyo começou a por ênfase na educação religiosa dos membros da igreja. Ao seguir os passos de seu antecessor que abriu um amplo caminho para o desenvolvimento da tradição em vários campos, o terceiro Shinbashira concentrou-se principalmente no aprimoramento da qualidade de cada comunidade da igreja através de seminários sobre doutrina, bem como o desempenho do serviço. Enquanto isso, a Tenrikyo deixou a união ao Shinto definitivamente em 1970 e depois aboliu alguns dos materiais relacionados ao Shinto, como o himorogi (ou mais precisamente o masakaki, um par de ramos de árvores sagradas, as roupas de seda coloridas, bem como uma espada ritual) e Shimenawa (uma corda que marca o espaço sagrado) em 1976 e 1986, respectivamente. Além disso, a construção dos salões de adoração do oriente e oeste do santuário principal foi concluída em 1984. Em 1998, Zenye Nakayama passou a liderança o filho, Zenji Nakayama, que agora serve como o quarto Shinbashira. Durante esta troca de liderança, a Tenrikyo realizou dois eventos de diálogo entre a Tenrikyo e o Cristianismo entre a Universidade Tenri e a Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma em 1998 pela primeira vez, e a segunda vez em Tenri, em 2002. Os dois eventos envolveram um simpósio que reuniu acadêmicos de ambas as universidades e alguns estudiosos externos para trocar pontos de vista teológicos e doutrinários sobre temas comuns, incluindo revelação, salvação, família e educação (FUSS, 2002). Em 2013, Daisuke Nakayama, filho adotado de Zenji, tornou-se o sucessor designado da posição da Shinbashira. Em 2014, Zenye Nakayama, o terceiro Shinbashira, faleceu aos 80 anos. A Tenrikyo na Amazônia A Tenrikyo chegou ao Brasil oficialmente em 1929 com o envio de alguns missionários, e é enquadrada dentro do grupo das novas religiões japonesas. Dentre os primeiros missionários, estava o primeiro primaz da Tenrikyo Brasil, o Sr. Chujiro Otake. Em 1935 foi autorizada a fundação da primeira igreja no Brasil. Já em 1951 foi fundada a sede missionaria da Tenrikyo do Brasil em Bauru (SP). O reconhecimento por parte do governo brasileiro aconteceu em 1955. A partir de 1971 se iniciou a publicação do Jornal Tenri, usado para veicular em português a instrução religiosa e fazer divulgação as atividades realizadas pela igreja (PEREIRA, 1992). 500 A Igreja Tenrikyo Amazônia teve sua origem nas atividades de divulgação da Igreja-Mor de Honshiba, e foi inaugurada no dia 20 de Agosto de 1972. O senhor Tateo Maruoka, que era o condutor do Centro de Divulgação Amazônia e empossado como o condutor da Igreja Tenrikyo Amazônia, faleceu um pouco antes de sua inauguração, isso em julho de 1972. Após sua morte, seu filho Yoshio Maruoka assumiu como o II Condutor. Atualmente, a Igreja Tenrikyo Amazônia conta com dezoito casas de divulgação e um centro de divulgação, situadas em diversos locais na Região Norte e também em outras regiões do Brasil. Realiza diversas atividades como: Divulgação de ensinamentos sócio-culturais e educativos, implantação de escola de língua japonesa e outras atividades. Atualmente, tem como condutor, Leonardo Maruoka, filho mais velho do Sr. Yoshio Maruoka, que assumiu o cargo recentemente, em novembro de 2016. Em pesquisa recentemente realizada sobre a sonoridade japonesa e os sentidos da prática musical (THEREZO, 2016) pude constatar com algumas integrantes do grupo de Koto (um instrumento em formato de prancha que tem treze cordas que são afinadas através de cavaletes móveis) da Associação Pan-Amazônica Nipo Brasileira a relação direta da prática musical com a prática religiosa. O grupo de Koto em questão tem basicamente a função de divulgação da cultura através da música, tendo por via de um instrumento musical que remete as tradições sonoras do Japão. Porém, a fundadora do grupo e líder do mesmo (Kuniko Maruoka) tem relação direta com o instrumento musical em função de sua religião, a Tenrikyo, pois o tradicional instrumento japonês faz parte das cerimônias na Igreja. A partir do constatado comecei a pensar e investigar mais a fundo a relação entre a prática musical e a religião. O trabalho de campo na Tenrikyo, se iniciou com a minha participação nas tsukinamisai (cerimonias mensais da Tenrikyo), onde consegui manter uma boa relação com os membros daquela instituição haja vista a minha já inserção na comunidade japonesa há alguns anos, inclusive acompanhando o grupo de koto tocando piano, e ainda o fato de a religião ser aberta e ter um caráter proselitista institucionalizado. O Mura Perpetuado É interessante observar, que na Igreja Tenrikyo Amazônia, um grupo típico da sociedade japonesa durante muito tempo, o mura (A 501 tradução seria vila ou vilarejos, porem pode ser utilizado com outros sentidos semelhantes. Um grupo que é basicamente composto por membros familiares entre si), é uma boa analogia para a organização familiar da Igreja Tenrikyo Amazônia. Como define Kato (2012) a sociedade japonesa tem uma tendência de viver o presente. Os acontecimentos ocorrem no espaço de um determinado grupo. A fronteira entre o grupo e o que está fora é latente, e a relação entre os membros do grupo e os de fora são contrastantes. Isso não significa que exista diretamente uma tendência de aversão a quem é de fora na igreja, ainda mais lembrando de seu discurso proselitista institucional. Esse contraste é na verdade indireto e ofuscado, demostrado na utilização da língua japonesa e instrumentos típicos japoneses nas cerimônias, além de sua ampla maioria de adeptos ser composta de nikkeis, ou seja, de japoneses e seus descendentes. Este pode ser o caso de outras culturas também, não sendo exclusivo da cultura japonesa ou do caso especifico da igreja Tenrikyo Amazônia, porém, deriva de uma tradição que é atualizada de diversas formas, sendo parte de uma modernidade que não perde raízes. Mesmo após a industrialização que dissolve o mura tradicional, parte daquele senso permanece. De toda maneira, ainda sim vemos transformações a todo momento desta realidade, mas aqui esta questão só é lembrada para não ser acusado de não considerar as possíveis hibridizações ou bricolagens, ou mesmo considerar a cultura estática. Da mesma maneira a tradição não necessariamente é um padrão inabalável, e é aí que as propostas partidas de uma dualidade tendem a entrar em conflito interno. Hoje ocorrem algumas transformações que são importantes a respeito da essência desta organização da igreja, como por exemplo, a posse do novo condutor, Leonardo Maruoka, que é filho do fundador e missionário Yoshio Maruoka. Isso pode significar muitas transformações a médio e longo prazo, porém, ainda seguem a dinâmica familiar e de favorecimento do interior do grupo, sendo a lógica do mura a constituição da vida cotidiana, com um forte senso de integração e de uma hierarquia social conservada tanto pelos membros como pela instituição. Por tanto a passagem de pai para filho é no mínimo paradoxal, levando em conta o observado até aqui. Ocorre então que o espaço constituído pela Tenrikyo ou um grupo dentro da religião, como a Tenrikyo Amazônia, existe uma pressão para uma adaptação a maioria. Isso é forte, apesar de as vezes indireto, e dificulta o contato e o dialogo com o exterior da 502 instituição. Assim a visão de mundo difere segundo a cultura, logo a religião não ultrapassa as diferenças culturais e com certeza segue um padrão próprio em cada cultura, por mais que o discurso incorpore aspectos aparentemente distintos a essa realidade. O espaço da Igreja Tenrikyo Amazônia entŌo é uma “versŌo” moderna e amazônica do mura. As fronteiras do grupo são claras e delimitadas, de acordo com a “necessidade” abre-se ou fecha-se. Os adeptos dentro da Tenrikyo vivem de acordo com o senso do mura. Isso mostra uma capacidade de por o grupo e o senso da tradição em primeiro lugar, mesmo com as suas atualizações. Inibe suas liberdades, mas não tolhe suas transformações. Em resumo o grupo é eficiente para atingir um objetivo, mas ineficaz de mudar de objeto. Assim a religião acaba por ser uma manifestação da cultura do sagrado, e que difere segundo seus padrões próprios. Isto nos leva a questões como: tradução religiosa; busca de significado e sentido nestas particularidades de sagrado; contribuições para perspectivas em colapso no ocidente; entre outras. O que pode ser considerado classicamente nas ciências sociais como, ópio, ética normativa ou alienação pode ter outra face, ou mesmo uma função social tão ativa e militante quanto a sociologia de ação proposta por Bourdieu (2007). A religião (não aquela delimita pela ortodoxia ocidental, e sim a baseada na comutação social e ortopraxia) pode ser libertadora. Sem a compreensão de outras mentalidades, o dialogo torna-se impossível. Compreender é uma expressão de respeito ante uma cultura, e que pode vir a ser uma forma de assistir e responder a seus próprios anseios. Referências Vitor Moises Nascimento Therezo. Graduado em História (FIBRA), especialista em História Contemporânea (FIBRA) e mestrando em Ciências da Religião (UEPA). Professor na Prefeitura Municipal de Belém, e Professor Horista da Universidade do Estado do Pará (UEPA). vitortherezo@gmail.com. BOURDIEU, Pierre. Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. ELLWOOD, Robert. Tenrikyo: a pilgrimage faith. The structure and meanings of a modern japanese religion, Tenri, Nara, Oyasato Research Institute/Tenri University, 1982. 503 FUSS, Michael. Tenrikyo-Christian Dialogue II: Tenri International Symposium 2002" Tenrikyo-Christian Dialogue Religion, Education, and the Family". Tenri University Press, 2002. HARDACRE, Helen. "Conflict between Shugend and the New Religions of Bakumatsu Japan." Japanese Journal of Religious Studies, 1994. HUANG, Yueh-po. The methods of propagation of a Japanese new religion in the UK - Tenrikyo. Cogent Social Sciences, 2017. KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. PEREIRA, Ronan. Alves. Possessão por espírito e inovação cultural: a experiência religiosa das japonesas Miki Nakayama e Nao Deguchi. São Paulo: Aliança Cultural BrasilJapão - Massao Ohno, 1992. THEREZO, Vitor Moises Nascimento. A Sonoridade Japonesa em Belém. Mudanças nos Sentidos da Prática Musical e Resistência Cultural no Contexto Imigratório do PósGuerra. Trabalho de conclusão de especialização (FIBRA), Belém, 2016. 504 OS MANGÁS COMO METODOLOGIA LÚDICA NO ENSINO-APRENDIZAGEM Wallysson Klebson de Medeiros Silva Camila Teixeira de Carvalho Dias Atualmente, o número de estudos desenvolvidos a respeito do lúdico como metodologia empregada, para melhorar o ensino aprendizagem do aluno, tem crescido satisfatoriamente. Isso se deve pela relevância que a temática apresenta. Sendo assim, a finalidade do presente trabalho corresponde a de abordar a relevância do ensino lúdico por meio de mangás como material didático. Mangá é uma palavra de origem japonesa que surgiu da junção de dois vocábulos: “man” (involuntário) e “gá” (desenho, imagem), referindo-se à história em quadrinhos. O vocábulo surgiu com base nos trabalhos do artista de ukiyo-e Katsushika Hokusai, que elaborou o Hokusai Manga, uma coleção de livros com ilustrações em 15 volumes. Atualmente, os mangás consolidam-se como fenômeno contemporâneo, devido a sua narrativa visual impressa típica, com foco na sociedade japonesa (Vasconcellos, 2006). Deste modo, esse artigo tem como objetivo mostrar como os mangás podem ser usados para potencializar a aprendizagem do aluno no ensino da história. As principais características de um mangá que diferem dos quadrinhos ocidentais são as representações gráficas, os ideogramas que consistem em sons e ideias. Os traços dos desenhos são peculiares, com olhos exagerados e corpos esguios. Outro ponto é ter até quatro quadros em uma só página. Além disso, o sentido da leitura do mangá é diferente do ocidental, pois começa do fim e termina do início da nossa tradicional leitura, como mostrado da figura. Gravett (2006) e Luyten (2005) relatam ainda que o planejamento é primordial, haja vista o caráter corriqueiro no período de publicação, por serem feitas pesquisas de opinião para saber se a história está sendo bem recebida pelo público. 505 Fonte: Elaboração própria No Brasil, os títulos mais conhecidos são: Astro Boy (Tetsuwan Atomu, no original), Kimba, o Leão Branco (Jungle Taitei) e A Princesa e O Cavaleiro (Ribbon no Kishi), que ajudaram a popularizar os mangás no país. Os mangás podem ser delimitados conforme seu público alvo, para garotas adolescentes (shoujo mangá), cujo foco é a delicadeza nos traços, ao contrário dos shounen mangá para os garotos, no qual os traços são carregados e com foco em cenas de ação (Vasconcellos, 2006). O mangá também é base de animes de sucesso no Brasil, como Cavaleiros dos zodíacos, Dragon Ball e Sakura Card Captors. No japão, os mangás são utilizados como principal ferramenta no ensino aprendizagem, desde a infância, pois ajuda na compreensão das palavras, devido à dificuldade que a língua por si só apresenta. Desta forma, os mangás proporcionam uma capacidade para desenvolver o raciocínio visual maior do que a da escrita alfabética romana (Vasconcellos, 2006). De acordo com Gravett (2006, p. 123) “os mangás de conteúdo educativo não são um fenômeno recente no Japão. O primeiro mangá didático data de 1939 [...]. Desde então, o mangá tem seu lugar nas aulas e é válido transformar qualquer assunto em quadrinhos: desde cursos de matemática e história até biografias de personagens famosos e adaptações de obras literárias”. A partir disso, ocorreu uma consolidação no mercado, fazendo com que diversos livros didáticos fossem adaptados para mangás, tornandose eficaz no ensino japonês. Portanto, os mangás, como qualquer produção cultural, possuem historicidade, do mesmo jeito que pode ser objeto de investigação e 506 estudo no ensino da história. Na sala de aula, os mangás podem ser estratégicos para potencializar o ensino aprendizagem. No ensino da história, o melhor mangá para ser trabalhado são os intitulados jidai mono mangá (mangá de relato histórico), no qual apresenta figuras ou eventos históricos de maneira lúdica, por meio de representações através de desenhos, relatando os eventos ocorridos historicamente (Vasconcellos, 2006). O mangá “Gen Pés Descalços” de Keiji Nakazawa, baseia-se nas experiências do próprio autor, relatando a história de um sobrevivente do ataque nuclear em Hiroshima, expondo as relutâncias ocorridas na guerra e seus desafios. O mangá também destaca como os lideres manipulavam a população, fazendo-nos refletir de maneira diferente (Nakazawa, 2011). Enquanto que o mangá “Hiroshima – a cidade da calmaria” de Fumiyo Kouno, tem como plano de fundo o final da segunda guerra mundial, destacando as bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki. O mangá relata a vida de uma sobrevivente após o ataque, mostrando as consequências e perdas de maneira afetuosa (Kuono, 2011). Já o mangá “Zero Eterno” de Naoki Hyakuta e Souichi Sumoto, traz de forma didática a segunda guerra, sob as compreensões atuais. O mangá se inicia perante os questionamentos do protagonista, interrogando os valores da sociedade para compreender a vida e escolhas feitas pelo seu avô, que foi piloto de um caça na guerra do pacífico (Hyakuta; Sumoto, 2015). O mangá “Hetalia Axis Powers” de Hidekaz Himaruya destaca os acontecimentos da segunda guerra mundial, na visão dos países do eixo: Japão, Alemanha e Itália, mostrando desde a história antiga até a primeira guerra mundial, sendo fundamentados fielmente os acontecimentos nesse período (Himaruya, 2012). Outros mangás que podem ser utilizados no ensino da história é “Adolf”, “1945”, “Who Fighter e o coraçŌo das trevas” e “El Alamen”, no qual abordam histórias adaptadas antes e durante a segunda guerra mundial. Já os mangás “Vinland Saga” relata o período que a Inglaterra tinha controle sobre a Dinamarca, “Versailles no Bara” trata sobre a revoluçŌo francesa e “Gate 7” no qual mostra fatos 507 históricos ocorridos no oriente. Esses temas podem ser ensinados desde o ensino fundamental ao ensino médio (Brasil, 2017). Vale ainda ressaltar que, além do jidai mono, os mangás proporcionam ao professor explorar temas históricos e transdisciplinar, relacionados à pintura, teatro e artes, pois estão presentes em quase todos os mangás, sendo uma das características dos contos japoneses. Deste modo, podemos dizer que um mangá é considerado um material lúdico, já que proporciona uma maneira diferente de aprendizado, através de uma linguagem diferenciada, permitindo ao aluno vivenciar as histórias e contexto histórico do personagem ali inserido. Mediante a compreensŌo de “lúdico” defendido por Huizinga (2000), o mesmo acredita que seja necessário ter caráter espontâneo e não associado a um fazer produtivo, não devendo ser aplicado na escola com finalidade didática e pedagógica, tendo em vista que, pelo menos na teoria a finalidade está associada ao alcance de alguns objetivos propostos, sendo um instrumento de aprendizagem realizado para garantir um melhor desenvolvimento dos alunos, no que se tange o conteúdo ali aplicado. De acordo com Kishimoto (2011) o uso de atividades lúdicas no meio escolar expressa um fator relevante para que se atinja uma aprendizagem mais significativa. Deste modo, através dos mangás em junção com o ensino lúdico, o educando pode melhorar a sua afetividade, desenvolver ações sensório-motoras e vivenciam, de forma ativa, os aspectos de participação e interação social, que são justamente fatores que favorecem o bom desenvolvimento e uma melhor aprendizagem. Assim, o mangá pode ser utilizado com dimensão educativa, com o objetivo de favorecer a aprendizagem, desde que exista um planejamento do professor. Maluf (2008, p. 41) “propõe uma nova postura existencial, cujo paradigma é um novo sistema de aprender brincando inspirado numa concepçŌo de educaçŌo para além da instruçŌo”. Dessa maneira, o lúdico rompe com abordagens tradicionais de ensino, buscando alternativas mais dinâmicas para auxiliar no processo de ensino- aprendizagem. 508 A partir do desenvolvimento desta pesquisa, tornou-se possível aprofundar conhecimentos acerca da relevância do uso dos mangás para o ensino aprendizagem. Cabe dizer, que é necessário que o professor atue de uma maneira bastante intensa, motivando seus alunos. Quanto à escola, necessita-se de uma maior disponibilidade de treinamentos, capacitações direcionadas ao ensino lúdico, entendendo o quão proveitosa essa utilização pode ser na aprendizagem do educando. Assim, os conhecimentos e forma diferenciada que o mangá proporciona ao educando, promovendo o aprendizado mais significativo. Além disso, uma boa alternativa para que os pais dos alunos se sintam seguros em relação a esse método de aprendizagem é que a escola integre os mesmos em algumas atividades desenvolvidas na escola, convidando-os, para que possam ter contato com o método de ensino e verificar com seus próprios olhos os benefícios que podem apresentar. Outra maneira, para solidificação do uso dos mangás vem ocorrendo na cidade de São Vicente, em São Paulo, onde a prefeitura, vem publicando desde 1998, mangás para serem utilizados em sala de aula. Referências Wallysson Klebson de Medeiros Silva é Historiador, Economista e atualmente estuda mestrado acadêmico em Energias Renováveis pela Universidade Federal da Paraíba. Mail: wallyssonk@gmail.com. Camila Teixeira de Carvalho Dias é Docente do Centro Universitário de João Pessoa e Mestre em Ciências da Educação. Mail: camilatcs2@gmail.com. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Terceira versão. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.p df>. Acesso em: 31 ago. 2017. GRAVETT, Paul. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos. São Paulo: Conrad, 2006. HIMARUYA, Hidekaz. Hetalia: Axis Powers. São Paulo: New Pop, 2012. HOSHINO Yukinobu. El Alaimen. São Paulo: New Pop, 2009. HUIZINGA, J. Homo ludens. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. HYAKUTA, Naoki; SUMOTO, SOUICHI. O Zero Eterno. São Paulo: JBC, 2015. ICHIGUCH, Keiko. 1945. São Paulo: New Pop, 2007. 509 IKEDA, Riyoko. Versailles no Bara. 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