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comunicação, mídias e temporalidades COMUNICAÇÃO , MÍDIAS E TEMPORALIDADES CHRISTINA FERRAZ MUSSE | HEROM VARGAS | MARCOS NICOLAU Organizadores COMUNICAÇÃO , MÍDIAS E TEMPORALIDADES UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA REITOR João Carlos Salles Pires da Silva VICE-REITOR Paulo Cesar Miguez de Oliveira ASSESSOR DO REITOR Paulo Costa Lima ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA DIRETORA Flávia Goullart Mota Garcia Rosa CONSELHO EDITORIAL Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Álves da Costa Charbel Niño El Hani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares de Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo EDUFBA Rua Barão de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina 40.170-115 Salvador - Bahia - Brasil Tel: 0055 (71) 3283-6160/6164 eduf ba@uf ba.br www.eduf ba.uf ba.br PRESIDENTE Edson Fernando Dalmonte VICE-PRESIDENTE Cristiane Freitas Gutfreind SECRETÁRIO - GERAL Rogério Ferraraz PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte -Subsolo, Sala ASS 633, 70910-900 Asa Norte - DF. http://www.compos.org.br/ CHRISTINA FERRAZ MUSSE | HEROM VARGAS | MARCOS NICOLAU Organizadores COMUNICAÇÃO , MÍDIAS E TEMPORALIDADES Salvador | EDUFBA | 2017 2017, autores. Direitos para esta edição cedidos à Eduf ba. Feito o depósito legal. Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. PROJETO GRÁFICO Alana Gonçalves de Carvalho Martins CAPA E EDITORAÇÃO Aléxia Barbosa Corujas NORMALIZAÇÃO Sandra Batista REVISÃO Alassol Queiroz SISTEMA DE BIBLIOTECAS C741 – UFBA COMUNICAÇÃO, MÍDIAS E TEMPORALIDADES. CHRISTINA FERRAZ MUSSE, HEROM VARGAS E MARCOS NICOLAU; ORGANIZADORES. SALVADOR, EDUFBA, 2017. 259P. 17X24CM INCLUI BIBLIOGRAFIA ISBN 978-85-232-1592-7 1. COMUNICAÇÃO E CULTURA. 2. COMUNICAÇÃO X ASPECTOS SOCIAIS. 3. MÍDIA DIGITAL. 4. MEMÓRIA COLETIVA. 5. PRESERVAÇÃO PELA DIGITALIZAÇÃO. 6. REDES SOCIAIS X MEMÓRIA. 7. COMUNICAÇÃO X HISTÓRIA. I. MUSSE, CHRISTINA FERRAZ (ORG) II.VARGAS, HEROM (ORG) III. NICOLAU, MARCOS (ORG.). IV. TÍTULO. CDU - 316.774 EDITORA FILIADA A Sumário  7 CHRISTINA FERRAZ MUSSE, HEROM VARGAS E MARCOS NICOLAU Apresentação - Temporalidades: dos conceitos às aplicações midiáticas TEMPORALIDADES EM CONCEITO  19 MARIALVA CARLOS BARBOSA Tempo, tempo histórico e tempo midiático: interrelações  37 ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES A historicidade dos processos comunicacionais: elementos para uma abordagem  59 LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO A arqueologia benjaminiana para iluminar o presente midiático  79 REGINA ROSSETTI Supressão do tempo na sociedade midiatizada  97 FÁBIO FONSECA DE CASTRO Temporalidade da comunicação na sua quotidianidade TEMPORALIDADES NAS MÍDIAS  119 MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA A agônica durée do bricoleur: temporalidades midiáticojornalísticas em tensão  137 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA Notícia em tempo real: as implicações da instantaneidade na credibilidade do telejornalismo  155 ELIZA BACHEGA CASADEI O fotojornalismo como fato da memória e a composição como problematizaçãodo tempo na imagem  173 ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA Audiência, participação e memória: temporalidade na apropriação dos espaços midiáticos pelos sujeitos sociais  193 CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO Desaios metodológicos na criação de memórias conectivas nas redes sociais on-line  213 CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES Tempo e técnica no cinema: relexos, contrabandos e mutações em Harun Farocki e Jean-Luc Godard  233 MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI As codiicações do tempo, da memória e dos cenários narrativos de role-playing games: o caso Tormenta RPG  255 Sobre os autores CHRISTINA FERRAZ MUSSE, HEROM VARGAS E MARCOS NICOLAU Apresentação1 Temporalidades: dos conceitos às aplicações midiáticas A finitude da existência biológica do ser humano o impeliu a construir socialmente objetos, teorias e conceitos para alongar a percepção de sua vida limitada pelo nascimento e pela morte. Se, de um jeito ou de outro, o tempo passa e o fim se aproxima, algumas coisas nos permitem ter a sensação de que podemos “existir” por anos a fio: uma fotografia que amarela dentro da moldura, mas persiste na parede; a receita daquele doce gostoso que passa de geração em geração e atualiza quem o fez pela primeira vez; nossas memórias constantemente narradas; as camadas de cultura que a arqueologia desvenda; as escrituras sagradas sempre relidas nos rituais; as músicas que se estruturam no tempo, mas sempre o desafiam; os amores chamados de eternos ou infinitos. Cada uma dessas ações e objetos, construções culturais e simbólicas por definição, tenta borrar a passagem inexorável do tempo, redefinir seu entendimento e alargá-lo em alguma medida. Isso ocorre tanto no âmbito da percepção individual e da subjetividade, como também se partilha em amplos coletivos que nos ajudam a dar sentido ao alongamento da duração. As mídias, das mais antigas às mais recentes, podem ser pensadas como tais artefatos – ferramentas que, na tarefa diária de mediar a vida e seus registros, reconstroem os momentos que passam e que não voltam. Não se trata apenas de mero registro documental. Suas ações permitem 1 As citações diretas desta apresentação, são trechos retirados de capítulos deste mesmo livro. 7 organizar a (re)construção da história e dos tempos para que as sociedades se conheçam, repensem-se e se reconstruam continuamente. Isso aponta para uma definição do tempo como duração e, principalmente, como construção relativa e mutável. Desde Albert Einstein e sua teoria da relatividade, sabemos da relativização da noção de tempo. Ou seja, não é o mesmo sempre, mas depende da percepção que se tem dele. A marcação ininterrupta do relógio é distinto do tempo narrativo do cinema, do sonho individual, das saudades de quem se ama ou do imediatismo do jornalismo e das redes sociais. Mais ainda, o tempo hoje parece ter perdido a noção de mera sucessão, pois é percebido como um acúmulo instantâneo de situações e informações. A noção de relatividade do tempo nunca foi tão disseminada como atualmente, movida pela rotinização do emprego das tecnologias digitais móveis de comunicação e pela ocupação diária da internet como espaço de comunicação e cenário tensivo de movimentações culturais, sociais e políticas. A facilidade atual em rebobinar e reconstruir passados no instante presente, das mais variadas formas, e em ensaiar projeções sobre o futuro demonstram maneiras peculiares de tratar as noções de tempo. Se nossa passagem pela vida é inexorável, as mídias são ferramentas de construção da noção de duração com a qual trabalhamos. E, por conta disso, cada mídia e cada processo comunicacional engendra um ou mais regimes de temporalidade. Cada um deles traduz o tempo e sua percepção de maneira peculiar conforme o uso social e simbólico que a sociedade faz dessa mediatização. Não é à toa que a cultura contemporânea pode ser pensada como uma cultura midiática. As mídias e os processos comunicacionais percorrem os meandros semióticos da cultura e constroem as percepções que a sociedade tem de si. As noções de tempo e os regimes de temporalidades das mídias são vetores dessa cultura contemporânea. Daí a necessidade de maior adensamento das discussões em torno dessas mudanças mais recentes, sem esquecer os processos históricos que lhes deram corpo, à luz de conceitos de tempo e das maneiras como ele é construído nos processos midiáticos. Para esta coletânea, foram propostas algumas questões: como as mídias interferem na construção ou reconstrução do tempo e, na outra 8APRESENTAÇÃO ponta, como agenciam as percepções individual e/ou coletiva dessa grandeza? Quais seriam os limites e articulações possíveis entre os conceitos de imediatismo e duração, passado, presente e futuro? Que espécies de regimes de temporalidades as mídias (ou cada uma delas) acionam? Como as lógicas de atuação das mídias se organizam em função da imediaticidade contemporânea? Que relações há entre comunicação, história e memória? Como pensar a memória nas mídias como organização provisória (construção) do passado no instante presente? Quais são as funções das narrativas midiáticas na projeção do futuro, nos seus vínculos com o passado e o presente e nas novas formas de organizar o tempo? Quais são as formas de acionamento de estruturas temporais realizadas nas redes sociais, sejam elas condensadas, estendidas, intercaladas, cíclicas ou em outras dinâmicas? A proposta da edição de 2017 do livro Compós é repensar essas e outras tensões da cultura midiática contemporânea, quando experimentamos mediações que reorganizam o real e o virtual, um em função do outro, para daí surgirem novas formas de tratar o tempo e as temporalidades, novos entendimentos conceituais e distintas articulações comunicacionais. Os capítulos do livro se articulam em duas partes: na primeira, mais teórica e conceitual, são mapeadas as interfaces da comunicação com a história e a filosofia e, na segunda, mais aplicada, as discussões sobre o tempo e as temporalidades midiáticas são pensadas nas áreas da comunicação, como jornalismo, fotografia, audiência de TV, games, cinema, redes sociais, etc. A primeira parte compõe-se de cinco capítulos. No primeiro, “Tempo, tempo histórico e tempo midiático: inter-relações”, de Marialva Barbosa, discute-se o conceito de tempo midiático a partir de, segundo a autora, duas questões: Poderíamos afirmar que existe um tempo próprio para se refletir sobre os processos comunicacionais e que poderia ser denominado tempo midiático? Poderíamos também caracterizar esse tempo que emerge das mídias como fluido e volátil, governado pela lógica exponencial da aceleração?. Parte da resposta está na ideia de presentismo, ou seja, da percepção “de que estamos no mundo contemporâneo diante da formulação de um novo regime de historicidade centrado no presente, estando em curso uma APRESENTAÇÃO9 vivência de tempo em que o presentismo suplanta definitivamente o futurismo”. Aqui, nas conjunções das mídias digitais, as durações se transformam em fluxo e o presente se estende, atualizado constantemente. O segundo capítulo, “A historicidade dos processos comunicacionais: elementos para uma abordagem”, escrito por Ana Paula Goulart, Bruno Leal e Itânia Gomes, discute a necessidade de os estudos em comunicação refletirem sobre a dimensão histórica dos seus fenômenos. Não se trata de realizar estudos históricos propriamente ditos, mas pensar os objetos da comunicação nas dimensões processuais do tempo, considerar as articulações provenientes da teoria da história nas análises e observar rastros e vestígios, a memória, as ações humanas mediadas pelas narrativas midiáticas. Trata-se daquilo que os autores definem como “imaginação histórica, uma maneira de perceber o mundo como universo histórico, descortinando as relações temporais, a forma como há nos fenômenos que observamos uma lógica temporal, uma apropriação e uma inserção no tempo”. As relações entre a comunicação e a arqueologia na visão de Walter Benjamin é o destaque do capítulo “A arqueologia benjaminiana para iluminar o presente midiático”, escrito por Lucia Santaella e Daniel Melo Ribeiro. Os autores trabalham a arqueologia como a ciência das ruínas que recupera fragmentos soterrados em busca de novas interpretações da história. A investigação arqueológica pode nos conduzir a uma reconstrução do nosso próprio presente, uma vez que estabelece novas conexões com o passado. Segundo Walter Benjamin, “que adotou uma postura arqueológica para erguer a sua própria filosofia, propondo uma abordagem original e crítica sobre a não linearidade do tempo histórico”, essas conexões surgem como “lampejos” a partir de uma tensão dialética de caráter temporal. A esse “lampejo”, o filósofo alemão deu o nome de “imagem dialética”. Santaella e Ribeiro defendem a hipótese de que as imagens podem ser instrumentos heurísticos de representação da realidade e que evidenciam propriedades anacrônicas da cultura. Consequentemente, demonstram que a postura crítica de Benjamin em relação à história pode gerar profundas implicações para os estudos da comunicação no que se refere à temporalidade. Uma abordagem diferenciada sobre o tempo nas sociedades contemporâneas e midiatizadas está no conceito de intemporal, tratado por Regina 10APRESENTAÇÃO Rossetti no capítulo quatro, “Supressão do tempo na sociedade midiatizada”. Segundo a autora, que trabalha conceitos na fronteira entre comunicação e filosofia, na sociedade atual, plena no uso das tecnologias digitais e da internet, vive-se o culto à velocidade e ao imediatismo, que transforma a percepção e o próprio conceito de tempo: não mais o linear, irreversível e mensurável, mas entendido como fragmentado, distendido, intensificado, acelerado, alentado, integrado. No entanto, se levado o conceito ao limite, significa que a sociedade midiatizada o suprime e recusa sua a própria condição temporal de sua existência. Em tal situação, a autora discute o intemporal: […] na sociedade atual, altamente tecnológica e midiatizada, surge uma nova concepção de tempo, ou mais precisamente, de não tempo. A aceleração dos processos, na busca pela rapidez cada vez maior da resposta a nossas demandas, acaba por comprimir o tempo até o instantâneo e faz surgir um tempo que está no limiar do intemporal. O quinto capítulo, último desta primeira parte, traz o título “Temporalidade da comunicação na sua quotidianidade”, de autoria de Fábio Fonseca de Castro. Nele, o autor discute a dimensão temporal do fenômeno da comunicação midiática a partir do conceito de falatório (Gerede), desenvolvido por Martin Heidegger, e, da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz para compreender o falatório como forma social intersubjetiva pela qual a cultura midiática se produz em termos de sínteses e se tipifica na vida social. O falatório é compreendido como dispositivo de marcação, indicação e reificação da experiência da quotidianidade e a cultura das mídias é tratada, a partir dele, como processo de produção social de sínteses e tipificações. Como isso, Castro propõe discutir uma das características centrais da cultura midiática: a sua temporalidade quotidiana. A segunda parte, “Temporalidades nas mídias”, compõe-se de seis capítulos. O primeiro “A agônica durée do bricoleur: temporalidades midiático-jornalísticas em tensão”, de Mozahir Salomão Bruck e Max Emiliano Oliveira, procura pensar as condições e circunstâncias em que o tempo atua sobre as mídias, em especial as jornalísticas. Como pensar o tempo presente e os presentes que o tempo invoca? Quais os jogos e deslocamentos entre um passado que nunca está concluído e um futuro que gravemente se antecipa? Como APRESENTAÇÃO11 os media jornalísticos e seus registros conformam uma camada de tempo específica sobre a qual é possível dizer e ver o mundo e a si mesmo?. Entre tantas questões que pautam a agenda contemporânea, os autores refletem sobre os dispositivos e processos midiáticos que definem a percepção da duração, a construção das narrativas da lembrança e do esquecimento e os usos da memória. No texto, são analisados a valorização do passado, a obsessão pelo presente e o desejo de antecipação do futuro. Segundo os autores: Questões que colocam em relevo, de modo diacrônico, as mudanças que as sociedades vêm experimentando nos últimos séculos e que, de modo mais agudo, se acentuaram a partir do início do século XX. E, de modo sincrônico, como os media, nas últimas décadas, têm se reinventado em função não apenas, certamente, das profundas mudanças de caráter tecnológico, mas, especialmente, em função dos novos cenários e circunstâncias atinentes às formas como o homem passou a experimentar seus processos de interação, mediação e midiatização. A exacerbação do tempo presente que marca a produção, veiculação e consumo imediato dos acontecimentos na tela da TV é o tema do segundo capítulo “Notícia em tempo real: as implicações da instantaneidade na credibilidade do telejornalismo”, de autoria de Bruna Scirea e Cristiane Finger. As tecnologias móveis e as transmissões sem fio instalam um canal direto entre o acontecimento e a audiência. Na simultaneidade da transmissão ao vivo, forma-se o laço de pertencimento entre emissor e receptor. É esse contrato de fidelidade mútua que é investigado pelas autoras por meio da observação da cobertura dos atentados terroristas realizados em Paris, França, no dia 13 de novembro de 2015, pela emissora brasileira Globo News, canal pago da Globosat. Segundo as autoras, [...] o material foi inicialmente sistematizado a partir de três unidades de registro: temporalidade da transmissão, local do enunciador e tecnologia empregada. Após, partiu-se para uma análise qualitativa acerca da temporalidade da cobertura e, em um segundo momento, as implicações que as características relativas ao tempo das transmissões teve nos processos de construção de credibilidade e legitimidade do fazer jornalístico. 12APRESENTAÇÃO Ao telespectador, o acompanhamento dos fatos em tempo real parecia dar a ele a sensação de estar vinculado emocionalmente ao evento, propiciando um leque de emoções que poderiam fazê-lo agir e reagir em sincronismo com o fato reportado, como por exemplo, quando repórteres estavam nos locais das homenagens às vítimas e traziam, em tempo real, imagens e depoimentos de parisienses que participavam daquele momento. Mas as autoras alertam: [...] a instantaneidade na potência máxima, o tempo real, tem a capacidade de criar a aparência de que a mediação do enunciador é eliminada, [a sensação de superação da mediação. [...] Por outro lado, no entanto,] verificou-se que, para dar conta deste imediatismo discutido acima, as informações eram divulgadas ainda sem apuração prévia, a partir de dados não confirmados ou não oficiais. Os sentidos do tempo explicitados pela imagem fotográfica são o tema do capítulo “O fotojornalismo como fato da memória e a composição como problematização do tempo na imagem”, de Eliza Bachega Casadei. Para a autora, “lidar com o fotojornalismo significa manejar um produto de uma temporalidade múltipla, complexa e dialética”. Para além do senso comum de que o fotojornalismo seria uma testemunha que suspenderia o fluxo ininterrupto do tempo, que poderia congelá-lo, a autora trabalha com o conceito de que a fotografia instaura uma nova temporalidade, uma duração que também se estrutura em fluxo. É nesse sentido que a imagem fotográfica não pode ser pensada nem como o testemunho de um presente absoluto, nem como um depoente de uma história empirista. É necessário abrir a imagem fotojornalística a novos modelos de temporalidade, defende a autora. No texto, são analisados os trabalhos dos fotojornalistas Alejandro Chaskielberg, Kazuma Obara e Camilo Vergara que, “a partir de diferentes técnicas composicionais, colocam a temporalidade fotojornalística no centro do conteúdo de suas representações e, com isso, questionam a vinculação ethópica do fotojornalismo como testemunha de um presente absoluto ou de um passado cristalizado e imóvel”. As percepções e usos do tempo adquirem formas e significados diferentes na grande mídia e nas mídias comunitárias. É a partir desse enqua- APRESENTAÇÃO13 dramento que Adilson Vaz Cabral Filho e Cinthya Pires Oliveira investigam as apropriações do tempo no quarto capítulo dessa parte, “Audiência, participação e memória: temporalidade na apropriação dos espaços midiáticos pelos sujeitos sociais”. Os produtos midiáticos são pautados nos índices de audiência e estes funcionam como indicadores de usos do tempo e espaço. Essas relações são construídas pelos fluxos comunicacionais que referendam a hegemonia da mídia. Em contrapartida, as culturas populares e outras alternativas locais de comunicação, como as iniciativas comunitárias de TV, tentam construir novas apropriações do tempo e espaço, desconstruindo o conceito de audiência, tendo em vista o direito humano à comunicação e à participação como instrumentos de reivindicação de demandas sociais. Segundo os autores, a partir desta problemática, refletimos sobre a centralidade do sujeito na construção dos processos sociais, e consequentemente, sobre sua correlação com o tempo diante das narrativas midiáticas, da construção histórica dos fatos e das memórias. Assim, a temporalidade é entendida como construção social, e o tempo do indivíduo, traduzido sob a forma de atenção, é visto como fazendo parte da estrutura de negócio dos meios de comunicação. Em contraposição, os autores propõem “a ressignificação do conceito de audiência, evidenciando a relatividade do tempo nas narrativas como propulsor das iniciativas comunitárias de TV na configuração da memória coletiva local proveniente de participação e demandas sociais”. As memórias gestadas nas redes sociais são o tema do quinto capítulo, “Desafios metodológicos na criação de memórias conectivas nas redes sociais on-line”, de Carlos Henrique Rezende Falci e Luciana Andrade Gomes Bicalho. Os autores buscam compreender as hashtags como rastros digitais – um tipo específico de metadados – e, nesse sentido, “investigar como elas aparecem e atuam na constituição de um acontecimento em rede, a ponto de surgirem redes de memória entre acontecimentos que, de outra forma, poderiam permanecer isolados, temporal ou espacialmente”. Para tanto, investigam as operações da hashtag #vemprarua, no Twitter, a partir de uma ferramenta de monitoramento automático, problematizando sua função mediadora durante o processo de impeachment da 14APRESENTAÇÃO presidente Dilma Rousseff, em 2016. Assim, pretendem visualizar as redes de memória acionadas pelos momentos de conexão dos intérpretes. Para os autores, esse movimento a que aludimos busca olhar para o caráter mais instável dos rastros digitais gerados pelas hashtags. Queremos perceber as trajetórias criadas no momento da ação dos agentes humanos e não humanos, para compreender o que vamos chamar, ao longo deste trabalho, de memória conectiva. A narrativa cinematográfica e a temporalidade são o tema do capítulo “Tempo e técnica no cinema: reflexos, contrabandos e mutações em Harun Farocki e Jean-Luc Godard”, de César Guimarães e Luís Felipe Duarte Flores. O realizador alemão Harun Farocki e o franco-suiço JeanLuc Godard têm como marca de seus trabalhos a profunda consciência do lugar do cinema no interior de uma indústria midiática globalizada, mas, ao mesmo tempo, como poucos, apropriam-se das possibilidades de desenvolvimento tecnológico da imagem, utilizando-se de recursos da linguagem e da estética da televisão, do vídeo e até do celular e das animações computacionais. Para os autores, uma das indagações principais deste artigo se refere aos modos como a presença crescente da técnica no mundo afeta a criação cinematográfica, transformando profundamente a experiência e a fabricação da temporalidade. Ao utilizar recursos como a fragmentação da montagem ou o reaproveitamento de imagens de arquivo em seus filmes, Harun Farocki e Jean-Luc Godard inserem em seus trabalhos a discussão sobre a produção do tempo e da história. Segundo os autores, Partindo de perspectivas pouco abordadas, indicamos alguns recursos e procedimentos utilizados pelos diretores para se contrapor às mediações dominantes da imagem audiovisual, estabelecendo conexões entre as novas possibilidades tecnológicas e os modos de experiência das temporalidades produzidas. O interesse dos autores “é explorar as relações entre o tempo e a técnica no cinema quando este se faz pela interação com outros dispositivos APRESENTAÇÃO15 midiáticos, bem como pelo contínuo deslocamento de fluxos, formas e destinos tradicionais da imagem fílmica”. O último capítulo, “As codificações do tempo, da memória e os cenários narrativos de Role-Playing Games: o caso Tormenta RPG”, de Mônica Rebecca Ferrari Nunes e Pedro Ernesto G. Tancini, busca entender as figurações da memória e do tempo, e suas imbricações, pelo viés dos mitos. Os autores procuram demonstrar como tais representações estão codificadas em narrativas midiáticas, como os cenários dos jogos de RPG, em especial, o cenário de Tormenta RPG, produção brasileira que cresce no mercado de jogos. Para os autores, os jogos trazem as lógicas temporais da contemporaneidade, que não abandonam de todo os aspectos míticos da memória, ao tensionarem avanço, retardo e urgências em meio à temporalização do social, como um dos efeitos da expansão tecnológica que permite a produção e o consumo gerados pela indústria do entretenimento da qual estes jogos participam. Assim, consegue-se entender como as estruturas míticas são fundamentais para o estudo dos processos comunicacionais, da mesma forma que é possível se observar a confluência entre as narrativas míticas e midiáticas. Segundo Nunes e Tancini, a primeira parte do texto apresenta a divinização da memória e do tempo como códigos entre os gregos arcaicos, a seguir, por meio da narrativa mítica de Prometeu e Epimeteu, aponta no avanço e no retardo a codificação necessária para a instrumentalização do tempo e a industrialização da memória, na sequência, traz os códigos historiográficos que balizam as representações do tempo e finalmente a análise do cenário Tormenta RPG. A coletânea de artigos busca, assim, cobrir alguns pontos da discussão sobre o tempo e as temporalidades nas mídias sob variado leque teórico e conceitual. Mesmo longe de esgotar o tema, este volume levanta questões importantes para as reflexões no campo da comunicação, sobretudo em épocas de agilidade e instantaneidade provocadas pelo uso crescente das tecnologias digitais e da internet. 16APRESENTAÇÃO TEMPORALIDADES EM CONCEITO  MARIALVA CARLOS BARBOSA Tempo, tempo histórico e tempo midiático interrelações Poderíamos afirmar que existe um tempo próprio para se refletir sobre os processos comunicacionais e que poderia ser denominado tempo midiático? Poderíamos também caracterizar esse tempo que emerge das mídias como fluido e volátil, governado pela lógica exponencial da aceleração? As duas questões são chaves para essa reflexão que parte do pressuposto da existência de um tempo midiático não apenas porque os meios tradicionais de comunicação (os jornais, a televisão etc.) marcam sua programação e/ou seu aparecimento por ordens de natureza temporal, mas também porque na confluência dos meios digitais o tempo perde sua espessura para se transformar em tempo de fluxo. Constrói-se um presente estendido, no qual eventos se atualizam sem cessar e numa velocidade que ultrapassa os limites passíveis de medição. Refletir, portanto, sobre a questão da temporalidade, ou seja, a forma como se vive na duração, enseja uma discussão preliminar sobre o que podemos caracterizar como tempo midiático, dependente e, ao mesmo tempo, produtor da espessura temporal contemporânea. Num segundo momento há que observar como a questão da temporalidade é fundamental para a definição do contexto vivenciado pelos regimes de historicidade (HARTOG, 2014) de cada época. Cabe, assim, uma reflexão sobre o tempo como conceito fundamental para os estudos que adotam a perspectiva histórica. Há que se ponderar ainda que no âmbito das ciências humanas a categoria tempo é tributária de duas tradições teóricas distintas. Ora considera-se 19 o tempo como experiência social e, como tal, submetido a diferenciações próprias das épocas históricas, ora percebe-se o tempo como dimensão narrativa, ou seja, sua humanização se dá pela forma como é narrado. No primeiro grupo situam-se as reflexões de Pomian (1984), Elias (1998) e Hartog (2014). No segundo estariam, sobretudo, Ricoeur (1994, 1995, 1997) e Beneviste (1966).1 Em todas elas o tempo não é mera medida, mimetizando-se de sua dimensão social. TEMPO MIDIÁTICO Não há dúvida de que estamos no mundo contemporâneo diante da formulação de um novo regime de historicidade centrado no presente, estando em curso uma vivência de tempo em que o presentismo suplanta definitivamente o futurismo. (HARTOG, 2014, p. 31) Ao mesmo tempo, a relação entre passado, presente e futuro assume características peculiares. Enquanto o passado pode ser demasiadamente lembrado, o futuro, que se caracteriza como ameaça, quase que desapareceu como horizonte de expectativa. O presente, por outro lado, se consome continuamente no imediatismo, assumindo uma espessura própria, construindo-se a ilusão de duração interminável. (HARTOG, 2014, p. 38) Diante de um mundo sem projeto futuro e da indistinção dos tempos (não há mais momentos do trabalho, do lazer, do ócio, por exemplo), qualquer instante se transforma em tempo de frenesi que dura continuamente. Além disso, as tecnologias avançadas de comunicação e a velocidade de circulação das informações modificam a experiência temporal cotidiana. 1 Para Pomian (1984) o tempo é uma arquitetura temporal estabelecida pela maneira como cada época histórica inscreveria suas atividades na duração, havendo numa mesma época a coexistência de multiplicidades de sentidos de tempo determinantes na construção dessa arquitetura. Para Elias (1998) o tempo não é um evento unívoco, mas a percepção da sucessão de eventos, pressupondo sua dimensão social. Se há a percepção da sucessão é porque existem no mundo seres capazes de identiicar em sua memória acontecimentos passados e construir mentalmente uma imagem que os associem a outros acontecimentos que estejam em curso. A percepção do tempo exige a existência daquilo de Elias denomina centros de perspectiva capazes de elaborar uma imagem mental em que eventos sucessivos sejam percebidos como um conjunto não simultâneo. Já para Ricoeur (1997) a qualiicação do tempo irá se relacionar diretamente ao modo narrativo, da mesma forma em que será pela narrativa que o tempo pode ser experimentado e apropriado. O modo narrativo pressupõe a instauração de um tempo próprio: o tempo humano, transformado em tempo da história. 20MARIALVA CARLOS BARBOSA Há o tempo em que todos devem estar conectados, em que todos podem ser alcançados sem demora, o tempo real, que abole os prazos e os tempos mortos. Instaura-se um tempo sem intervalo, fluido, numa espécie de eterno presente. A experiência do tempo na contemporaneidade coloca, portanto, em destaque o ininterrupto. Não havendo atividade com duração precisa, tudo passa a durar, durando eternamente. Dilui-se a fronteira entre o presente e o futuro. Paralelamente, a relação entre passado e presente altera-se de maneira evidente. O sentido de tempo hoje é marcado por um presente onipotente fazendo do presentismo valor inquestionável. Esse presentismo nos meios de comunicação é marcado pelo fluxo contínuo da informação, instaurando um tempo novo governado pela lógica do ininterrupto. É o tempo do fluxo que emerge das narrativas, notadamente no ambiente on-line, não permitindo a pausa necessária para a reflexão. Diante do fluxo de informações que frequenta as telas do nosso cotidiano digital em narrativas fluidas e voláteis, parece haver uma conexão entre esses formatos e a maneira como se experimenta o tempo. Na profusão de imagens e informações presentes nas telas digitais, o tempo midiático é marcado pela aceleração. O presente torna-se tempo sem espessura devendo durar do passado até o futuro, ou seja, incluir nele a expectativa e a experiência (KOSELLECK, 2006), produzindo o longo presente. Se a estrutura temporal dos tempos modernos era marcada pela abertura do futuro e pelo progresso, caracterizando-se pela assimetria entre experiência e expectativa (HARTOG, 2014, p. 39), hoje a experiência contemporânea é a do presente perpétuo. Num tempo sem projetos, o futuro passa a ser incluído no presente, instaurando um presentismo sem fim. Podemos dizer que em cada momento histórico existe uma arquitetura temporal (POMIAN, 1984) que marca a maneira como se vive a experiência do tempo. Na arquitetura temporal da civilização contemporânea, assiste-se a um processo de aceleração, no qual o passado é fluido, o presente volátil e inclui um futuro infinito. O sentido efêmero do tempo, que se expressa também na descartabilidade da maioria dos objetos consumidos por esta mesma civilização – objetos substituíveis no ato e na essência –, multiplica-se também na construção simbólico-discursiva dos meios de comunicação. TEMPO, TEMPO HISTÓRICO E TEMPO MIDIÁTICO21 O presente transforma-se no futuro que, assim, se dessacraliza, ao mesmo tempo em que se cria a ilusão de preservar o passado, em “lugares de memória” (NORA, 1984), signos de reconhecimento e de pertencimento de um grupo a uma sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos. Na medida em que no mundo não há mais uma memória espontânea seria preciso registrar, em profusão, a própria vida presente e relembrar o passado a cada instante. No processo de reconstrução do passado como história, os meios de comunicação incluem em suas narrativas materialidades que presentificam o passado, construindo-se como produtores de uma história imediata e reconstrutores da integralidade do passado. Se têm o papel de reconstruir o passado, reproduzindo-o como história, também cabe as mídias, de maneira geral, reproduzir discursivamente a aceleração exponencial do tempo. As mídias digitais com suas plataformas de inserção dos acontecimentos contemporâneos numa atualização incessante colocam em proeminência a aceleração que se espalha pela sociedade. Numa época exacerbada de presentismo, o que existe como espessura temporal é um presente estendido que não deixa brechas para o futuro. Se essa é uma constatação inequívoca, há que se ter em mente que esse presente não é nem uniforme, nem unívoco e que em função do lugar que se ocupa no mundo pode-se vivenciar de maneira diferente o tempo que denominamos presente. De um lado, há o tempo dos fluxos, da aceleração e da mobilidade (HARTOG, 2014, p. 14), e, de outro, há o tempo dos que continuam excluídos pela lógica perversa do capitalismo, em que se vivencia a permanência do transitório, nas relações de precarização do trabalho, o presente sem passado dos deslocados, dos que vivem as múltiplas diásporas sociais e onde não há um futuro, já que o tempo dos projetos nunca esteve aberto para eles. Num regime de historicidade marcado majoritariamente pela aceleração vive-se o eterno presente. E o futuro deixa de ser promessa para se tornar ameaça. Há, paradoxalmente, o medo do futuro tal como foi concebido por regimes de historicidade anteriores, já que se pode esperar catástrofes terríveis, decorrentes da ação humana ao viver o presente como se fosse eterno ou se nele já estivesse contido o futuro. 22MARIALVA CARLOS BARBOSA Nos tempos midiáticos, temos, portanto, o duplo movimento do uso exacerbado do passado e da construção de um presente estendido, que inclui o futuro. Em relação aos usos do passado realizados pelos meios de comunicação, observa-se que suas narrativas já possuem o desejo de futuro e são construídas visando sua permanência e sua reutilização em outro momento. São produzidas como arquivos da e para a história. Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao sentido de história apresentado pelos meios de comunicação, no qual a ideia de recuperação verdadeira se sobressai. Adota-se a perspectiva de que narrar o passado é trazê-lo incólume para o presente. Dependente da visão de verdade inquestionável, produzem um discurso sobre o passado repleto da essencialidade histórica. Daí a repetição sistemática daquilo que foi fixado pelos próprios veículos de comunicação no passado como verdade histórica no presente. Nas retrospectivas, nas efemérides, em jogos de lembrança e esquecimento, reproduzem um sentido de passado supra-histórico no qual se sobressai o valor de verdade. De maneira geral, podemos dizer que os meios de comunicação já produzem suas narrativas visando a sua reapropriação no futuro, ou seja, como documentos para a história. Daí o uso das múltiplas referências ao passado: ao passado transformado em Nação em torno de um discurso comum, inclusive do ponto de vista de uma memória histórica partilhada; ao passado de sua própria história; e ao passado como utopia midiática reconstruindo de maneira idílica os tempos de outrora. A multiplicação das marcas escriturarias do passado – as roupas, os utensílios, os adereços, as paisagens etc. – nas produções ficcionais da televisão é exemplo dessa apropriação narrativa. Constroem, enfim, passagens imagéticas em direção ao tempo pretérito. Mas não um passado qualquer, e sim o passado verdadeiro. O ritmo das narrativas midiáticas é dominado pela lógica aceleradora do tempo, marca singular do mundo contemporâneo. Aceleração visível na multiplicação simultânea dos usos dos artefatos digitais de comunicação, na ação de produzir uma programação em fatias de imagens aceleradas, na divisão do olhar entre telas concomitantes no nosso cotidiano como espectador. TEMPO, TEMPO HISTÓRICO E TEMPO MIDIÁTICO23 A narrativa midiática está inscrita no tempo também por obedecer à temporalidade construída, na qual ordem, duração e frequência são as constantes. Cada programa televisivo, por exemplo, segue uma ordem preestabelecida, dura certo número de minutos e é exibido em uma frequência que se repete. Transformar o tempo abstrato em uma forma concreta é materializar uma ideia preferencial e considerar a posição do leitor/espectador no ato de recepção. (BARBOSA, 2007) Ler um jornal ou ver uma emissão de televisão é estar inserido no tempo da transmissão, no formato temporal que indica a maneira como se deve se portar diante daquela mídia, considerando suas gramáticas narrativas, obedecendo a uma ordem temporal linear ou multifacetada. Já no que diz respeito ao mundo digital para alguns autores vivemos desde as duas últimas décadas do século XX um processo de banalização do tempo. (CHESNEAUX, 1996) Nesse ambiente em que não há mais divisão entre as horas do dia ou da noite, os meios de comunicação produzem e veiculam informações em profusão produzindo a saturação e também a banalização da informação. No fast food da difusão da vida via mídias digitais, não há mais tempo para pausa e para a reflexão. Instaura-se pelo modo narrativo um futuro inserido num presente que não cessa de se atualizar. De tal forma que talvez possamos afirmar que em relação ao futuro do passado construído no curso dos últimos três séculos, no qual vimos a temporalização da história, jamais se assistiu a uma aceleração do tempo tal como a que se tornou marca do mundo contemporâneo. Reflexo da forma como o tempo é percebido e construído, os meios de comunicação num duplo movimento referendam a lógica aceleradora e a incluem como marca fundamental de sua narrativa refletindo um mundo em movimento contínuo e intermitente. Um mundo sem promessa de futuro e no qual o presente passa ser tempo único e expansivo. Perceber a marca temporal para a caracterização contextual do mundo contemporâneo significa considerar as historicidades dos processos em curso numa dimensão em que o tempo constitui a espessura necessária para a compreensão das ações humanas. Para isso é importante, também, mostrar como a categoria conceitual tempo é fundamental para as reflexões históricas. 24MARIALVA CARLOS BARBOSA TEMPO HISTÓRICO A grande virtude da história, no âmbito das Ciências Humanas, é sua relação particular com o tempo. Revelando realidades empíricas já desaparecidas, colocando-as em confronto e relacionando-as ao presente, para a história a categoria tempo é definidora de sua própria estruturação como disciplina. Relacionando o passado com o presente, trabalha com o tempo como objeto em movimento numa tripla dimensão: o tempo organizado como sequência ou transcurso; o tempo organizado como lugar, ou espaço; e o tempo organizado pelas transformações, ou jogo de combinações, ou intensidade. (CARDOSO, 1988, p. 30) Conceito crucial, definidor do próprio processo histórico, o tempo como categoria teórica enseja um longo caminho reflexivo que começa pela própria definição de história. Instaura-se na e pela história o terceiro tempo, o tempo calendário, tempo vivido e construído teoricamente como mediador fundamental da ação humana. É o tempo calendário, entre o tempo cosmológico (da física e da natureza) e o tempo vivido, que baliza as concepções históricas, sendo o calendário a matriz desse terceiro tempo. “Ciência dos homens no tempo”, dizia Bloch (1993, p. 29). Particularizando o tempo da história, acrescentava: “O tempo não é mais do que uma medida. Realidade concreta e viva volvida à irreversibilidade do seu impulso, o tempo da história é, pelo contrário, o próprio plasma em que banham os fenômenos e como que o lugar de sua inteligibilidade”. (BLOCH, 1993, p. 29-30) O tempo, percebido dentro de determinados parâmetros que são de natureza cultural, vem sendo objeto da reflexão de filósofos, físicos e outros cientistas sociais, onde se incluem os historiadores, há longos séculos.2 A temporalidade se revela como um arcabouço de sentido para a pesquisa histórica. Mas, com frequência, os historiadores definem o tempo da história a partir de uma ideia de diferenciação. Para eles, o tempo da história seria de natureza “social” ou “cultural”, não guardando qualquer semelhança com o tempo dos físicos e dos filósofos. 2 Sobre os sentidos de tempo ao longo da história cf. Barbosa (2007). TEMPO, TEMPO HISTÓRICO E TEMPO MIDIÁTICO25 Em alguns textos de Fernand Braudel, o tempo aparece como algo externo que se impõe aos homens. Para o historiador tudo começa, tudo acaba, pelo tempo, tempo matemático e demiurgo, do qual seria fácil sorrir, tempo como que exterior aos homens, que os impele, constrange, apodera-se de seus tempos particulares de cores diversas: o tempo imperioso do mundo. (BRAUDEL, 1978, p. 22) Embora seja uma posição frequente entre os historiadores, há vozes destoantes. Pierre Vilar (1979, p. 159) diz: “falar do tempo criador nada significa”. Para ele, não seria a história um produto do tempo, mas, ao contrário, o tempo seria um produto da história, ou seja, as relações sociais no seio das estruturas criariam apropriações diferenciadas do tempo. Os historiadores desde a École des Annales3 vêm postulando tipos de temporalidade que se definem na dependência direta não só da cronologia, mas da forma como a análise histórica é realizada: a longa duração das estruturas, a média duração da conjuntura e a curta duração dos acontecimentos. O tempo da longa história, que não admite saltos, nem rupturas bruscas, se faz pela lentidão das mudanças, pelo inexorável sentido de permanência. Fernand Braudel (1978), num texto que se tornou clássico, proclama e exalta uma nova história que liga a conjuntura às estruturas e une tempo e espaço de maneira continuada na mesma análise. Negando com o tempo longo ou longa duração a ideia de ruptura que se pensava contida na noção de acontecimento (a história évènementielle dos franceses), esse tempo curto tornava-se a mais caprichosa e enganosa das durações e que dominara a história política dos últimos 100 anos. (BRAUDEL, 1958, 1976) Segundo Braudel (1978), a contribuição especial do historiador às ciências sociais é a consciência de que todas as estruturas estão sujeitas a mudanças, mesmo que lentas. Impaciente com as fronteiras que separavam aquilo que considerava a totalidade histórica, integrava num mesmo estudo o econômico, o social, o político e o cultural na perspectiva de uma 3 Movimento teórico fundamental para a História, a Escola dos Anais renovou os paradigmas teóricos e metodológicos da História, o que seria decisivo na transformação dos cânones da disciplina no século XX. Sobre a questão cf. verbete “Escola dos Anais” em Barbosa (2014). 26MARIALVA CARLOS BARBOSA história “total”. Construindo, assim, uma história “quase imóvel” ou quando muito “lentamente ritmada”. Os historiadores passaram a reafirmar aquilo que Michel Vovelle (1987, p. 271) classificou como os “triunfos do tempo longo”. Ou seja, a história abandonava a trama dos acontecimentos para formular os problemas que só se concebem na duração, deixando de lado definitivamente a história dos grandes feitos, dos grandes homens e dos grandes acontecimentos. O tempo longo significava, sobretudo, a visualização das permanências que desafiavam as histórias oficiais. Alguns chamaram essa história, campo privilegiado da longa duração, de história das mentalidades, como o próprio Michel Vovelle, outros preferiram termos menos polêmicos, como história da cultura, como Robert Darnton. Michel Vovelle (1987) afirmava que as mentalidades, ou terceiro nível – aquele em que as pertinências se inscrevem em atitudes e em representações coletivas – era o lugar da longa duração. Percebendo-se a força da inércia das estruturas mentais, chegaria-se a uma história que considerava o mental e, sobretudo, as representações coletivas que só poderiam ser percebidas pelo historiador na longuíssima duração. Toda a discussão sobre o longo tempo, inaugurada por Braudel, fez parte do debate entre os historiadores do século XX, suscitando polêmicas intermináveis. Alguns falaram da impropriedade do termo, outros se referiram ao esfacelamento da história que esses olhares e, sobretudo, as escolhas que novos métodos e novas abordagens produziram. A história se esmigalhava, perdendo a sua identidade ao se transformar numa micro-história.4 De qualquer forma, mesmo aqueles que consideram como questão central a longa duração do século (ou séculos) percebiam esse tempo também de maneira subjetiva, ou seja, classificado como cultural ou nada mais do que as diversas formas como em distintas épocas as sociedades conceberam a própria temporalidade. 4 Na frase, está referida a principal crítica a essa história que para alguns (DOSSE, 1992) transformava-se na “história em migalhas”. Há também referência à micro-história como um aporte e um olhar metodológico. Sobre o paradigma indiciário da micro-história (GIZSBURG, 1989; LEVI, 1998), veja também Microanálise e construção do social, de Jacques Revel (1998). TEMPO, TEMPO HISTÓRICO E TEMPO MIDIÁTICO27 O tempo, entendido como duração, por outro lado, nunca foi afastado das análises dos historiadores. Ao empreender qualquer estudo é necessário antes de mais nada fazer um recorte temporal: datar claramente o início daquela história e delimitar igualmente o seu fim. Por mais que o historiador queira se afastar das amarras de uma concepção linear do tempo, o estudo a ser feito será determinado, sempre, por marcos que contêm no seu cerne uma ideia específica de temporalidade. Para a história, mais do que qualquer outra disciplina, estrutura e ação aparecem como unidade, como maneira de descrever o que, na verdade, deve ser considerado como processo. Nos estudos históricos a ideia de processo deve prevalecer, já que ao se eleger o objeto de estudo se estabelecem possibilidades de recortes, determinados pelo período escolhido. Congela-se o objeto em função do período, recortando, a partir do tempo fixo, espaços sociais (grupos de bairros, sociedades pequenas ou grandes, unidades políticas, economias nacionais e assim por diante). Diante do tempo distingue-se o passado, presentificado com a análise, a partir de intensidades. O presente absoluto, por outro lado, reelabora se em três estados fundamentais: o agora mesmo, o agora e o estando agora. (HELLER, 1993) O presente agora mesmo denota o momento de desenvolvimento da ação mostrando o tempo passando para traz e para frente. A inexorabilidade da vida. As ações repetitivas que do passado duram até o presente são o agora mesmo, que não se constituem nem como tempos idos, nem como tempos por vir. É uma espécie de presente primário. Já o presente como agora se estabelece na relação com um passado que é único e que já terminou (os tempos idos). O agora apresenta-se como fronteira, linha entre aquilo que já aconteceu e o que ainda não aconteceu; entre o objeto relembrado e o objeto que é um propósito; entre o conhecido e o ignorado. O agora é sempre transcendido, já que se pode transformar o passado em presente pela ação memorável. Da mesma forma, viver significa sempre transformar o futuro no presente, na medida em que se planejam as ações por vir no território do presente. O passado passa a ser objeto de interpretação constante, de reconstrução, sendo objeto passível de mudança também no presente. Passado e futuro se realizam no presente como agora. 28MARIALVA CARLOS BARBOSA Por último, o presente se apresenta como estando agora, em relação a um começo e a um fim. Trata-se da interseção do ser na sequência da vida: infância, juventude, maturidade e velhice. O presente é, portanto, sempre um estando agora que se encerra num círculo de possibilidades limitadas. A vida enseja um movimento de aprisionamento no tempo e no espaço, entre o começo e o fim, entre o passado e o futuro. É nesse sentido que Agnes Heller (1993) afirma que somos sempre agora mesmo e estando agora. Naquele tempo havia um homem lá. Existiu, quando não existíamos. Assim, já não seremos, quando outros narrarem a nossa história, como tendo ocorrido naquele tempo. Nosso início e fim, como nossos tempos idos e os por vir, o passado e o futuro nossos estão relacionados com os outros. Nosso passado é o futuro de outros, assim como o nosso presente é o passado de outros. Somos os outros. Historicidade é história. (HELLER, 1993, p. 55) A essa relação humana nos seus múltiplos tempos (agora mesmo, estando agora e agora), Agnes Heller (1993) denomina conjuntividade. Estamos juntos com todos que vivem e a partir dessa junção se pode viver, agir e pensar a favor ou contra eles. “Estamos juntos com os mortos, quando contamos suas histórias, juntos com os que não nasceram, já que vivem em nós como promessa ou fé”. (HELLER, 1993, p. 55) Conjuntividade é, portanto, o contemporâneo como possibilidade narrativa de vida simultânea quando é compartilhada. A questão da narrativa enseja novamente o direcionamento da reflexão em favor do conceito de tempo e de temporalidade. Se considerarmos temporalidade como a inscrição das atividades humanas na duração, observa-se a impossibilidade da existência de um sentido único de tempo. Entretanto, historicamente o tempo foi considerado prioritariamente sob duas perspectivas: a primeira baseada na cosmologia e a segunda na experiência humana, isto é, percebendo-se a significação de viver o tempo. A história ao tentar recuperar o passado trazendo-o para o presente cria uma espécie de terceiro tempo, entre o tempo cosmológico e o tempo vivido, como já enfatizamos anteriormente. O agora deixa de ser instante pontual e presente vivido. Transforma-se em algo datado, capaz de munir o presente de um novo lugar no sistema de datas estabelecidas. Instaura-se TEMPO, TEMPO HISTÓRICO E TEMPO MIDIÁTICO29 a data inicial, ponto zero, considerada como evento fundador que cruza o instante cosmológico e o presente vivido. A relação tempo e narrativa, fundamental para as análises históricas, é construída nas reflexões de Paul Ricoeur (1994, 1995, 1997), para quem a história ao criar espécies de conectores históricos possibilita que se possa ir em direção ao passado. Esses conectores seriam certos instrumentos de pensamento como o calendário, a memória e a sequência de gerações. Se a memória é a mais emblemática abertura em direção ao passado, materializando sua própria existência, o calendário cria o que Beneviste (1966) chama de “tempo crônico”, estabelecendo três características que se repetem em qualquer divisão do tempo: a referencia a um acontecimento fundador que define o eixo do tempo – o “momento axial” – a partir do qual todos os acontecimentos serão datados; a possiblidade de percorrer o tempo em duas direções (anterior ou posterior), em relação ao marco zero; e o estabelecimento de unidades de medidas que denominam os intervalos constantes (dia, mês e ano). Guardando relação com o tempo físico (ou cosmológico), no cômputo, o tempo calendário inaugura um princípio – o da divisão – que foge inteiramente das concepções astronômicas e da física. Assim, se no primeiro aspecto (cômputo), é contínuo, uniforme, linear e segmentado, ou seja, figura um antes e depois, é mensurado e instaura a regularidade dos períodos (pelo movimento do sol e da lua cria-se, por exemplo, o ciclo do dia de 24 horas), em relação ao segundo (princípio), o estabelecimento de qualificações (presente, passado e futuro) o distingue inteiramente do tempo da física. Essas qualificações são constituídas a partir da fenomenologia do presente, ou seja, da ideia de que o presente é o hoje, a partir do qual há um amanhã e houve um ontem. A partir de um ponto zero (presente) cria-se um percurso bidirecional, do passado para o presente e do presente para o futuro, em uma palavra: qualifica-se o próximo e o distante. Todos os acontecimentos recebem uma posição no tempo em relação ao momento instituído como axial. (RICOEUR, 1997, p. 184-186) Por um lado, todos os acontecimentos adquirem uma posição no tempo, definida por sua distância em relação ao momento axial – distância medida em anos, meses, dias – ou por sua distância em relação a qualquer outro momento cuja distância do momento 30MARIALVA CARLOS BARBOSA axial é conhecida (30 anos depois da tomada da Bastilha); por outro lado os acontecimentos de nossa vida recebem uma situação relativamente aos acontecimentos datados. (RICOEUR, 1997, p. 185) Para Ricoeur (1997), a originalidade que o momento axial confere ao calendário permite-nos dizer que o tempo calendário é exterior tanto ao tempo físico quanto ao tempo vivido. Além disso, todos os instantes podem ser, em princípio, momentos axiais. Nada diz que um dia tomado no calendário seja passado, presente ou futuro. Para isso é preciso que alguém fale: O presente é, então, assinalado pela coincidência entre um acontecimento e o discurso que o enuncia: para alcançar o tempo vivido a partir do tempo crônico é preciso passar pelo tempo linguístico, referido ao discurso; é por isso que tal data, completa e explícita, não pode ser dita nem futura, nem passada, se ignorarmos a data da enunciação que a pronuncia. (RICOEUR, 1997, p. 186) Portanto, é o ato enunciativo que designa o presente, o passado e o futuro e para alcançar o tempo vivido a partir do tempo calendário é preciso que alguém fale o tempo. O tempo é narrativa também nesse aspecto, o que não impede que se considerem outras questões relativas à sua narratividade: o tempo instaura a vida; estabelece a experiência; se realiza pelo ato enunciativo; se torna palpável nas múltiplas configurações narrativas. A história instaura uma espécie de tempo híbrido, entre o tempo do rastro (que era do passado, mas que é transportado para o presente) e o tempo da vida (que possibilitou a permanência do rastro). É, portanto, a partir desses jogos com o tempo que podemos considerar os rastros e vestígios que do passado chegam até o presente, permitindo recontar histórias que envolvem prioritariamente as ações comunicacionais do passado que continuam durando com espessura no presente. Considerar o tempo como social e de natureza qualitativa é percebê-lo como construção a partir de variantes sociais e culturais, cuja realidade se fundaria sobre a mudança. Sem mudança não haveria tempo. Mas para que o tempo emerja a partir da mudança é necessário que haja várias mudanças próximas umas das outras. A multiplicidade de mudanças é também uma condição necessária do tempo. TEMPO, TEMPO HISTÓRICO E TEMPO MIDIÁTICO31 Emergindo a partir de uma multiplicidade de mudanças, há, pois, a necessidade de uma instância coordenadora que, agindo sobre as mudanças ou suas representações, as integrariam numa relação temporal. Essa instância seria tanto as relações qualitativas de contemporaneidade, de momento anterior-momento posterior, paralelismo, convergência, divergência, quanto as relações quantitativas de simultaneidade, distância, vitalidade. O indivíduo relaciona no seu pensamento as características qualitativas ou métricas das mudanças que ele acredita real, porque as observa ou pode reconstruí-las. Assim, um fenômeno natural – o sol, por exemplo – ou uma instituição social impõem aos membros de uma sociedade os mesmos ritmos, as mesmas pausas, a mesma alternância de atividades, que em outras sociedades estão ligadas aos relógios, a vitalidade do trabalho, etc. Thompson (1979), num texto que se tornou clássico, analisa a apropriação e, mais do que isso, a vivência do tempo no capitalismo, mostrando que a reestruturação dos hábitos de trabalho na sociedade industrial, com nova disciplina, novos incentivos e uma nova natureza humana, alterou a própria representação interna do homem no que se refere à temporalidade. Nesse mesmo estudo, o historiador inglês mostra que, no decorrer do século XIX, toda uma propaganda voltada para a economia do tempo se desenvolveu, em tratados e folhetos do começo da época vitoriana, dirigidos às massas. E se pergunta mais adiante: “até que ponto teve realmente êxito esta propaganda?”. Embora deixe claro que esse novo sentido do tempo já vinha sendo criado desde o século XVIII e que neste processo a ação da Igreja é definitiva, Thompson (1979) reitera que a difusão de um novo sentido econômico do tempo se deu através de ações nem sempre visíveis. A percepção e a coordenação de uma multiplicidade de mudanças, que instauram a ideia de temporalidade, realizam se, portanto, por intermédio de sinais emitidos pela instância coordenadora – raios luminosos, impulsos elétricos, sinetas etc. –, sendo em certos casos esses sinais portadores de signos. Aquilo que é designado pela palavra tempo é, portanto, uma coordenação de várias mudanças reais ou representadas, realizada por uma 32MARIALVA CARLOS BARBOSA instância que produz sinais de acordo com determinadas características das épocas históricas. Coordenação de várias mudanças, o tempo é, pois, uma relação ou uma classe de relações qualitativa ou quantitativa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dependente do tempo, o mundo contemporâneo fragmenta de tal forma as coordenações de mudança, que apenas o presente pode ter algum significado. O passado torna-se obsoleto e como o presente difere de tal forma desse passado, fica cada vez mais difícil compreendê-lo. “O passado está sendo triturado pela mudança inexorável, incompreensível”. (POMIAN, 1984, p. IV) Há, pois, um drástico estreitamento da perspectiva temporal em nosso cotidiano, que faz o presente parecer sumamente importante. O uso e a apologia da tecnologia – que se transformam num apêndice do próprio homem – mudaram o mundo em que vivemos e também a nossa relação temporal com este mundo. Veloz, revelando-se cada vez mais próxima, a aceleração contemporânea impõe novos ritmos ao deslocamento dos corpos e ao transporte de ideias, refletindo-se nas imagens construídas do presente e do futuro. A interpenetração entre essas temporalidades talvez seja a marca mais visível desse mundo acelerado e no qual se embaralham os lugares. Não há mais uma nítida divisão entre as vivências cotidianas do tempo. O nosso conceito de tempo não é, portanto, uma condição a priori, mas uma consequência de nossa experiência no mundo. A mente humana pode construir a ideia de tempo a partir da consciência de certos traços que caracterizam a experiência. Esses traços, restos, farrapos, vestígios constituem a memória, que não é apenas uma capacidade mnemônica, mas uma construção social e cultural com significações e peculiaridades próprias. Na arquitetura temporal da civilização contemporânea, assim como o presente já é futuro, os ritmos são regulados por novos artefatos que produzem a sensação de continuidade entre os vários momentos de um mesmo dia. Mas essa ideia de continuidade só existe na aparência, uma vez que, na essência, o descontínuo é a marca da nova arquitetura. A mesma descontinuidade dá a sensação de que vivemos um presente ultraestendido, TEMPO, TEMPO HISTÓRICO E TEMPO MIDIÁTICO33 um presente com espessura que engloba um futuro que só se realiza no presente e um passado, objeto de apropriações peculiares. Assiste-se a eclosão de uma cultura memorialística, na qual é necessário trazer o passado para ser incluído no presente.5 Por outro lado, o futuro passa a ser vivenciado como realidade plausível do próprio presente, criando-se um presente estendido na direção de um passado presumido e de um futuro irrealizável. No centro desse debate estaria também um certo desencanto do mundo produzido por uma série de transformações ocorridas desde as duas últimas décadas do século XX e que tiveram, como não poderia deixar de ser, repercussões do ponto de vista simbólico. A rápida decomposição dos regimes do Leste Europeu e a concomitante aparente vitalidade do capitalismo, aliado ao término da bipolaridade União Soviética-Estados Unidos ofereceram o pano de fundo inicial para a ofensiva cultural e ideológica do capitalismo. E para essa ofensiva era fundamental, ao mesmo tempo em que apregoava o fim da história, das ideologias e das utopias, construir um novo tempo, onde o paradigma fosse a aceleração e a condição fosse o pós-moderno. A pós-modernidade seria, pois, nessa construção simbólica referendada pelo discurso da ciência, uma etapa histórica na qual o mundo ingressou, caracterizada pelo encolhimento do espaço público, pelo recuo dos sujeitos sociais e políticos para os espaços privados, nos quais computadores interligados a redes planetárias e uma série de tecnologias confinariam esses homens à mais absoluta privacidade, tornando obsoleto os espaços clássicos de sociabilidade. As transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que marcaram o fim do século XX e o ingresso no novo milênio produziram nas últimas duas décadas uma profunda instabilidade nas múltiplas representações que a sociedade constrói de si própria. Nessa nova arquitetura temporal, ganha relevo um novo tempo que emerge das narrativas midiáticas, tornando-se cerne, contexto e influxo dos movimentos contemporâneos. 5 Sobre a cultura memorialística da contemporaneidade, cf. Huyssen (2000, 2014). 34MARIALVA CARLOS BARBOSA REFERÊNCIAS BARBOSA, M. Percursos do olhar: comunicação, narrativa e memória. Niterói: EDUFF, 2007. BARBOSA, M. Escola dos anais. In: CITELLI, A. et al. (Org.). Dicionário de comunicação: escolas, teorias e autores. São Paulo: Contexto, 2014. BENEVISTE, E. Le langage et l’expérience humaine. In: BENEVISTE, E. Problèmes du langage. Paris: Gallimard, 1966. BLOCH, M. Introdução à história. Lisboa: Publicações Europa-América, 1993. BRAUDEL, F. Escritos sobre a história. 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Essas questões também têm sido objeto de uma reflexão continuada e sistemática em áreas do conhecimento de larga tradição, principalmente a filosofia e a história, e mais contemporaneamente são fruto de um esforço intelectual interdisciplinar, de um conjunto de saberes em torno das diferentes disciplinas científicas. (ADAM, 2003; ELIAS, 1998; DOSSE, 2013; HARTOG, 2013; SANTOS, 2003; URRY, 2000) Nessas reflexões, desenvolve-se tanto uma percepção de um “presentismo” (ou “presenteísmo”) cotidiano quanto a sua crítica. A partir da crise da ideia de uma clara inteligibilidade do regime de experiência temporal alicerçado em uma compreensão de que o passado iluminava o futuro ou que o futuro como promessa justificava as coisas presentes (HARTOG, 2005), teríamos um regime de apologia do instante, no qual a mídia joga um papel importante ao produzir permanentemente certo tipo de equivalência entre tempo presente e atualidade. O “presentismo” assim teria raízes na percepção difusa da diminuição do sentido histórico em favor de um horizonte restrito somente ao presente. (BODEI, 2001, p. 72) Muitas vezes associado à dinâmica dos meios de comunicação e seu fluxo 37 ininterrupto e dantesco de informações que vincularia os indivíduos a uma imediaticidade do “tempo real”, o elemento chave é a formação de um hábito cultural marcado pelo choque e repetitividade: “mesmo o novo parece assim surgir e declinar ao reclame do eterno retorno do igual”. (BODEI, 2001, p. 72) A apologia ao instante, que dissolveria ou minimizaria a significação do passado e do futuro, gera imagens aparentemente contraditórias, como a de um presente acelerado (NORA, 1979) ou, ao contrário, lento. (GUMBRECHT, 2010) Em ambos os casos, o “presentismo” aparece como uma constatação de que a perspectiva temporal que alicerçou a forma como na vida moderna percebemos o mundo – não apenas de maneira individual, mas fundamentalmente em termos sociais – baseada em uma ideia de passado, presente e futuro, de um ontem, de um hoje e de um amanhã, não encontra mais lastros forte na vida cotidiana. A própria ideia de que a sociedade contemporânea é definida pelo “risco”, conforme formulação do sociólogo Ulrich Beck, está assentada nessa noção quando uma ideia de futuro toma o lugar do passado na determinação causal do tempo presente, quando há uma dominância do futuro na perspectiva histórica. Não se trataria de um mero estado da incerteza sobre os destinos do mundo – traço que caracteriza a história da humanidade, mas de uma noção historicamente fundamentada que indica a maneira como isto é agora compreendido ou explicado. Esse diagnóstico, se parece verificável e adequado a certos traços da vida cotidiana, não é suficiente, porém, nem para entender a complexidade da experiência temporal das sociedades nem para apreender teórica e metodologicamente os papéis, as implicações e as especificidades dos fenômenos e processos midiáticos. Para avançar em relação a esse diagnóstico aparentemente paralisante, faz-se necessária a adoção de outra perspectiva crítica, que, por um lado, não suporia o tempo como algo “objetivo” (ELIAS, 1998) e, por outro, consequentemente, implicaria uma visada diferente acerca das experiências temporais contemporâneas. Nos termos de Paul Ricoeur (2010c), faz-se necessária, então, uma “consciência histórica” capaz de distender o presente para além de si mesmo e oferecer condições para a vivência do passado e do futuro. É o que Ricoeur chama de “presente histórico” ou “presente vivo” e que envolve, 38ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES a seu ver, a ruptura com certas visões do passado, que o colocam como morto ou a ser esquecido, e do futuro, tido como já pré-determinado por utopias e certezas. A constituição de um presente histórico implica a possibilidade de um sujeito capaz de iniciativa, de um agir que não seria, por sua vez, arrogante a ponto de superar as circunstâncias e os legados. O agir, a iniciativa, lembra Ricoeur, só é possível em condições específicas, que chegam ao sujeito para além de sua vontade. Isso não implica uma predeterminação, ao contrário, é a partir da consciência histórica que o indivíduo se vê afetado pelo tempo, capaz de dar sentido ao passado e gerar expectativas em relação ao futuro. Tomando os conceitos de Koselleck, de espaço de experiência e horizonte de expectativas, como categorias meta-históricas, Ricoeur observa que o presente se torna vivo e histórico, ou seja, não é congelado como um estado de coisas permanente, exatamente quando é percebido em conexão com o passado e o futuro. Servindo, então, para apreender como o tempo histórico é percebido e configurado, essas categorias têm permanentes e fundamentais implicações éticas e políticas. Nesse sentido, o espaço de experiência se constitui como fonte de sentidos e de verdades a serem chamados na configuração do agir no presente. A consciência se faz histórica quando é afetada por um passado que é recebido e interpretado à luz das proposições de sentido e pretensões à verdade que carrega. O passado deixa de ser visto como um depositário morto de fatos dados ou como uma verdade imperativa e se faz presente, oferecendo condições para que o indivíduo produza, nesse seu agir, expectativas quanto ao futuro. O presente é vivo, portanto, porque é histórico, porque permite a reconfiguração constante do passado e do futuro. Todo narrar, todo esforço de configurar a experiência temporal – midiático inclusive – resulta, então, desse agir, se constitui como uma operação de produção de sentido, de configuração de mundos, a partir da proposição de uma experiência do tempo, ao configurar presente, passado e futuro. Como afirma Koselleck (2006), a palavra “moderno”, ao inaugurar um agora, um tempo que é novo, que se opõe ao tempo passado e que antecipa um futuro, jamais perdeu seu significado de tempo atual. Parte A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS39 das transformações que geraram a modernidade, essa atualidade comprime o passado, expande o futuro e apreende o presente, tal como observa Ricoeur (2010b), como uma categoria do ver, do diante dos olhos, do sincrônico. Diante do fracasso de uma série de projetos de modernidade, esse atual adquire muitas vezes a forma de um eterno presente, marcado pela valorização do instante, do agora, da juventude, da simultaneidade, do “tempo real” etc. Contra essa relação com o tempo é que o filósofo francês afirma a importância da consciência histórica, que implica o reconhecimento do poder de afetação do passado e a ampliação do espaço de experiência, posto, por sua vez, em constante tensão com o horizonte de expectativas. “É projetando um horizonte histórico que experimentamos, na tensão com o horizonte do presente, a eficácia do passado, da qual o ser-afetado é o correlato”, diz Ricoeur (2010c, p. 376, grifo do autor). O presente, assim, não se apresenta mais em sua associação ao ver, mas simultaneamente como um agir e um sofrer em que os sentidos do passado e do futuro são constantemente realinhados pela consciência histórica. A DIMENSÃO HISTÓRICA NOS ESTUDOS DE COMUNICAÇÃO É nesse sentido que nos propomos a refletir sobre a dimensão histórica necessária aos estudos da comunicação. Na comunicação, grosso modo, as pesquisas tendem a não considerar a visão processual e a enfatizar relações que têm como centro reflexivo a questão da temporalidade imersa num presente absoluto. (BARBOSA, 2007; LEAL, 2015; NORD, 2008) Os fenômenos estudados, assim, localizam-se num presente imutável, ao mesmo tempo em que a dimensão processual, isto é, as transformações no tempo e a visão de continuidade não são consideradas. Rupturas emblemáticas marcam as lógicas argumentativas dos fenômenos estudados na comunicação. Quando se fala em refletir sobre a dimensão histórica, não é necessariamente realizar estudos históricos, mas considerar aspectos fundamentais na teoria da história para empreender análises dos processos e das práticas de comunicação. Entre esses fundamentos, enumeramos além dos dois pilares centrais da análise que leva em conta a historicidade dos 40ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES fenômenos – tempo e espaço – outras questões teóricas referentes aos argumentos inseridos na historicidade: rastros e vestígios, memória, ação humana, mediadas de forma privilegiada pelas narrativas. Estamos propondo o desenvolvimento de uma “imaginação histórica”,1 uma maneira de perceber o mundo como universo histórico, descortinando as relações temporais, a forma como há nos fenômenos que observamos uma lógica temporal, uma apropriação e uma inserção no tempo. Pensar historicamente é destacar a visão processual do mundo e pensar as práticas e processos comunicacionais como próprios de um dado momento e lugar. A história, portanto, é a forma como nos sentimos na duração, como nos visualizamos como ser, ao longo de uma trajetória, que classificamos como existência num espaço – que, por vezes, denominamos mundo ou realidade. A história é a nossa relação silenciosa ou ruidosa com os estasses do tempo: o presente, o passado e o futuro. A história é o fato de estarmos no mundo. Do presente, do nosso agora sempre transitório, olhamos o passado e projetamos o futuro. Mas o passado só existe como representação mental a partir do olhar daquele que o descortina nos tempos idos. Portanto, o passado não é fixo: é materializado pelas recordações e sempre transformado pela interpretação que fazemos. (BARBOSA, 2007) Assim, como o passado não é fixo, também o presente não é apenas um instante pontual. O presente indica o que vivemos, mas também as rememorações que o passado proporciona e as projeções para um futuro. Essas rememorações existem sempre no presente, construindo-o pelo entrelaçamento do mesmo (as ações vividas no presente) e do outro (as rememorações que fazem o passado presente). Enumeramos a seguir algumas questões centrais nos debates teóricos da história que, ao nosso ver, podem ser úteis para uma compreensão do que estamos denominando de sua dimensão histórica da comunicação ou, melhor dizendo, para uma percepção da sua historicidade. 1 Fazemos aqui uma paráfrase em relação à expressão usada por Wright Mills (1969). Para o autor, imaginação sociológica se deine como a capacidade de olhar o mundo criativamente, a partir de uma perspectiva vasta, diferente daquela que caracteriza nossa visão cotidiana. É, em resumo, a capacidade de articulação entre o eu e a sociedade, entre o indivíduo e a história. A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS41 A NARRATIVA OU “TEMPO DE CONTAR E TEMPO CONTADO” A aproximação com os modos de narrar tanto nos estudos de comunicação quanto nos da história direciona a reflexão para o “contar histórias”. Contar uma história significa estar no mundo. (HELLER, 1993) Se o objetivo das pesquisas em comunicação é o desvendamento da ação interpretativa, o pesquisador deve recuperar em sua análise a questão da narratividade ou, como enfatiza Ricoeur (2010a), a reflexão em torno do tempo de contar e do tempo contado. Em última instância, recupera-se um tempo vivenciado por um outrem, narrado por um outrem, que instaura o tempo das coisas contadas. Esse mesmo narrador seleciona, de um conjunto de acidentes, uma história completa. Pressupor a questão da narrativa nos estudos em comunicação é discutir a temporalidade e as convenções narrativas em regimes de historicidades precisos. Se as narrativas perpassam boa parte dos produtos e processos comunicacionais que nos dão a ver uma série de problemas teóricos e metodológicos relativos aos imbricamentos da historicidade que deles necessariamente fazem parte, sua análise tem se revelado complexa. No entrecruzamento entre duas dimensões, a de materialidades sob escrutínio (textos jornalísticos, materiais televisuais diversos, dentre outros) e a de conjunto de pressupostos de valor heurístico se encontra boa parte dos desafios a enfrentar. Nesse sentido, a análise das narrativas na proposição de um “olhar narrativizante” um ponto de partida e de ancoragem. O pressuposto é que as narrativas constituem perspectivas analíticas que permitem compreender a complexidade dos vínculos sociais. As narrativas são um fenômeno complexo, cuja existência se dá em pelo menos três dimensões: como metáfora (fazendo visível um conjunto de relações teoricamente elaboradas); como objeto (como fenômeno social que inclui o pesquisador, sendo também externa a ele); e como procedimento analítico (daí implicando categorias e pressupostos). “Os diferentes estatutos e usos da narrativa acentuam, por um lado, sua amplitude e sua importância; por outro, marcam uma atitude epistemológica de constituição de um objeto de pesquisa fundado no diálogo e no trânsito de saberes e realidades culturais”. (LEAL, 2006, p. 21) 42ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES Não é por acaso que autores como Jean-François Lyotard (2006) propõem que as formas narrativas têm ocupado lugar central para a compreensão de fenômenos como os modos de contar as descobertas científicas, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo. Relativamente à primeira, trata-se da adoção da tradição narrativa como método de aproximação com um conjunto heterogêneo de pessoas que tomam contato com o universo das descobertas e desafios da ciência, extrapolando, portanto, o que se convencionou chamar de público especializado, formado pelos próprios pesquisadores. Quanto ao conteúdo, Lyotard chama atenção para o fim dos metarrelatos, ou das grandes narrativas, empreitadas à maneira, por exemplo, das tradições marxistas ou positivistas que queriam dar conta da complexidade social a partir de modelos incapazes de prestar atenção às sutilezas e às clivagens próprias da dinâmica social. As narrativas aparecem assim, simultaneamente, como materialidades que constituem corpus específicos submetidos à investigação e como uma perspectiva teórico-metodológica que deixa entrever transformações em muitas das nossas tradições de saber. Buscando uma aproximação mais forte entre a ação de narrar e a dimensão histórica aí sempre presente, tal como concebida por Paul Ricoeur, a narrativa é a síntese do heterogêneo, que implica a tessitura de uma intriga articuladora da experiência do tempo. Para uma discussão sobre a memória, assim, é elucidativa a proposição do autor de que “é principalmente na narrativa que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a diferenciação e a continuidade”. (RICOEUR, 2007, p. 108) Tempo e tessitura da intriga são, assim, constituintes de toda narrativa e a memória “é caracterizada inicialmente como afecção (pathos), o que a distingue precisamente da recordação”. (RICOEUR, 2007, p. 35) Não estamos, portanto, tratando de mera alusão a lembranças de acontecimentos, mas do esforço de recuperação que implica pesquisar origens, buscar interconexões, encontrar coerências, pontos nebulosos, perspectivas de explicação, mas sobretudo indicar agentes e sofredores das ações dos acontecimentos. (QUÉRÉ, 2005; RICOEUR, 1991) Imbricadas nos jogos da memória, as narrativas se encontram fortemente enraizadas na história, o que tem pelo menos duas implicações imediatas segundo Ricoeur (2007): a própria historiografia recorre metodologicamente às condições narrativas para produção de seus relatos A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS43 históricos, inclusive adotando “gêneros”, como épica, epopeia e outros, mas também implica que as narrativas são fundamentais para a preservação da história da humanidade. É nessa perspectiva que, reconhecendo a aporética do tempo como insuperável, Ricoeur (2010a) propõe que o tempo só se torna humano à medida que é narrado. Como narrar é articular intriga e tempo, o autor conclui, ao final do percurso da trilogia Tempo e narrativa, que a função primordial da narrativa é ser a “guardiã do tempo”. (RICOEUR, 2010a) Embora à perspectiva ricoeuriana dos modos de constituição da narrativa seja necessário o acréscimo de outras contribuições, suas proposições apontam para um terreno fértil, pois efetiva um vasto campo a ser explorado das interconexões entre narrativa, tempo passado, tempo presente e tempo futuro, tensionando perspectivas que reduzem o problema da historicidade dos produtos e processos comunicacionais a um eterno presentismo, cuja melhor exemplificação estaria na urgência da factualidade em relatos jornalísticos. O LUGAR DOS VESTÍGIOS, AS GENERALIZAÇÕES E OS JOGOS COM O TEMPO Um segundo aspecto a ser considerado em relação às teorias da história diz respeito à consciência crítica. Questionar o nosso agora mesmo, nas palavras de Agnes Heller (1993), significa distinguir entre presente histórico e idade presente. Significa mover os fenômenos para dentro do nosso mundo, produzindo uma alteração do mundo a partir de ações significativas. (HELLER, 1993, p. 86) Aqui se conjuga, portanto, o problema da relevância: assim como a historiografia não decide sozinha o que é passado – já que depende do grau de consciência histórica que vai opor o “novo” ao “velho” –, qualquer teoria também não decide o que possui relevância no presente. Aquilo que será objeto de estudo, mesmo que a reflexão refira-se ao nosso aqui agora, está na dependência do grau de consciência que faz desse presente o presente histórico. Se o que será decifrado, através da interpretação, está sempre localizado no presente, a busca pelos vestígios se apresenta como ferramenta metodológica para o estudo da historicidade dos fenômenos comunica- 44ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES cionais. São os vestígios que estão impressos no presente sob a forma de mensagens e sinais que servirão como matéria prima da análise..Compreendendo o vestígio como mensagem, atribuindo a ele um valor, produz-se a interpretação indispensável. A historiografia implica em leituras de mensagens sobre algo considerado como ausente, a disponibilidade para visualizar nos indícios a mensagem (método) e a sua leitura (a crítica). Para a teoria da história é fundamental o que aconteceu, como aconteceu e, sobretudo, por que aconteceu. (BARBOSA, 2007) Essa talvez seja a principal contribuição que a utilização dos postulados da teoria da história pode fornecer aos estudos de comunicação. Nesse aspecto, as articulações entre as compreensões do que é particular e do que é passível de generalização são fundamentais e têm nos vestígios suas pedras angulares. O particular é um dos princípios orientadores da dimensão histórica. Ao se proceder uma interpretação não há como generalizar as conclusões para todos os contextos, já que cada espaço social possui uma conformidade histórica, uma trajetória particular. Pensar historicamente pressupõe contextualizar os espaços sociais numa cadeia de fatos, eventos, ocorrências, costumes, instituições que se conformam como um fluxo (antes/depois). Esse tipo de olhar impede generalizações excessivas, sobretudo no que diz respeito aos espaços sociais estudados. A explicação histórica nos leva a entender questões sociais dentro das dimensões de espaço e tempo, ou seja, perceber as mudanças espaço-temporais de uma questão social. Pensar historicamente atos comunicacionais (jornalísticos, por exemplo) significa reconstruir, interpretar, dar um sentido presumido a essas questões numa dimensão espaço-temporal. O tempo é a relação que as pessoas, os processos, os produtos e as sociedades estabelecem com a duração e o fluxo. (POMIAN, 1984) Trata-se de um processo que se constrói como uma arquitetura, dentro de regimes de historicidade. Há sempre superposição de tempos. Ao lado de um tempo coletivo – solar, religioso e político –, existem o tempo biológico e físico. Ao lado do tempo da natureza (biológico e físico), há os tempos da sociedade e das subjetividades (dos grupos e dos indivíduos). Ou ainda, o tempo pode ser quantitativo, presumidamente mensurável, ou qualitativo, repleto de valores e significações. É essa multiplicidade de tempos que constitui a arquitetura temporal de cada época, construída a partir das A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS45 experiências humanas, modeladas por crenças e representações. Há na sociedade contemporânea uma multiplicidade de apreensões temporais, constituindo a nossa arquitetura temporal. Há que se considerar essa arquitetura como um processo no qual tem importância as ideias de cada época, determinadas pela ação do homem no mundo. AS FIGURAS DE HISTORICIDADE A história é a forma como nos sentimos na duração, como nos visualizamos como ser ao longo de uma trajetória, que localizamos num espaço. É a nossa relação silenciosa ou ruidosa com o tempo: o presente, o passado e o futuro. Do presente, do nosso agora sempre transitório, olhamos o passado e projetamos o futuro. Mas o passado só existe como representação mental a partir do olhar individual daquele que o descortina. O passado não é fixo: é materializado pelas recordações e sempre transformado pela interpretação. (BARBOSA, 2009) Assim como o passado não é fixo, também o presente não é apenas um instante pontual. O presente indica o que vivemos, mas também se define pelas rememorações do passado que proporciona. As rememorações se constroem pelo entrelaçamento das ações vividas no presente e das rememorações que tornam o passado presente. Para responder aos desafios teórico-metodológicos que a complexa relação temporal presente nos processos e produtos midiáticos impõem, é essencial levar em conta as “figuras de historicidade”, ou seja, algumas imagens conceituais capazes, simultaneamente, de fazer ver diferentes problemas temporais nos fenômenos midiáticos (uma dimensão reflexiva) e sugerir caminhos e operadores para sua apreensão (uma dimensão operacional). Essas “figuras de historicidade”, portanto, têm uma dupla face: correspondem a núcleos de investigação teórica e também servem como propulsores para a investigação metodológica. A primeira dessas figuras que gostaríamos de discutir brevemente neste texto é o tempo histórico. Trata-se de uma forma de representação do modo como o tempo passa, centrada em diferentes processos, acontecimentos e estruturas a partir de uma determinada matriz historiográfica. Por exemplo, para Fernand Braudel (1978), o tempo histórico se configura numa tripla e simultânea dimensão: a das estruturas, a das conjunturas 46ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES e a dos eventos. O tempo das estruturas é o da longa duração, dos sistemas econômicos, dos estados e das sociedades, que ocorre mais lentamente, no tempo de gerações, de séculos e até mesmo de milênios: são os “grilhões da história”. Remonta, portanto, aos padrões civilizatórios que modulam os processos sociais. O tempo das conjunturas é o da média duração, das regularidades cíclicas que operam mudanças na estrutura, mas sem alterar seus elementos fundamentais. Trata-se de uma história de “respiração mais contida”, que estuda o passado em largas seções: 10, 20 ou 50 anos. Ou seja, é um tipo de recitativo histórico que constantemente analisa o que muda e o que persiste nas estruturas sociais em determinados contextos. Já o tempo dos eventos é o da curta duração, dos acontecimentos, na medida dos indivíduos e de suas atividades cotidianas, escolhas, atos e tomadas de consciência. Remete à vida ordinária: um crime, a estreia de um filme, o aumento da inflação, um incêndio, uma greve. No contraste entre as reflexões sobre o tempo histórico e os “jogos de tempo” dos processos midiáticos é que o tempo, como uma construção, como uma imagem retórica e narrativa presente nos processos midiáticos, passa a servir, como “figura de historicidade”. Um exemplo do vigor dessa figura pode ser percebido nos processos jornalísticos. Nesses, em geral, a ideia de tempo e de história é de um tempo linear, orientado para o futuro e norteado por valores associados ao conceito de progresso. O jornalismo efetivamente participa da construção da relação com o tempo e das concepções sobre o que é história e sobre o sentido histórico que as pessoas têm. O jornalismo moderno, genericamente, se consolidou, a partir do modelo norte-americano, como instância privilegiada de informação não apenas sobre a atualidade, mas também sobre o passado e, ainda, sobre as tendências futuras. (RIBEIRO, 2003) A segunda figura de historicidade que gostaríamos de destacar é o testemunho. Alinhamo-nos com diversos estudos recentes que têm buscado refinar uma definição no campo de estudos da comunicação, buscando evidenciar seu potencial heurístico. Para Frosh e Pinchevski (2009), cuja tentativa parece dimensionar o problema em questão, o testemunho midiático é sobretudo um fenômeno culturalmente significante, que diz respeito não somente à produção midiática, da qual seria inseparável, mas A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS47 a novas modalidades de interação entre mídias e públicos e, por conseguinte, modificando as maneiras de permitir a experiência social. Tomamos o testemunho, portanto, no quadro do fundo-comum (BRESCIANI, 2004) – da experiência jornalística e midiática de configuração dos acontecimentos. Os mais diferentes sujeitos – público, profissionais e os diversos agentes que interagem no processo de fabricação do jornalismo e dos demais produtos midiáticos – se alinham perante relatos de episódios que encenam as diferentes dimensões da vida social. A condição de testemunho do e no relato jornalístico dos acontecimentos, por exemplo, é em geral tomada como fator crucial para não apenas atestar a veracidade do ocorrido, mas também como lugar privilegiado para representar e colocar o acontecimento em “figuras”. O uso mesmo do termo “testemunho” midiático vem se tornando expressão recorrente nos estudos em comunicação (ELLIS, 2009; FROSH, 2009; FROSH; PINCHEVSKI, 2009; LEAL, ANTUNES, 2015a, TAIT, 2011) por permitir refletir sobre os aspectos político-interpretativos, contextuais, de confiança e crença (ASHURI; PINCHEVSKI, 2009; SERELLE, 2009; 2012) que envolvem a relação do jornalismo (ou a televisão, por exemplo), incluindo-se aí seus processos produtivos e profissionais específicos, e os acontecimentos sociais. Por outro lado, possibilita também uma forma de apreender a relação dos públicos, das pessoas comuns, com as realidades apresentadas na televisão, no jornal, no rádio, na internet e nos mais diferentes dispositivos. Ao recuperar a etimologia da palavra e seus parentescos semânticos, Seligman-Silva (2010) mostra que ocorre confusão entre sujeito que testemunha (o que sabe por ter visto e julga, e um terceiro que presenciou um fato) e o testemunho em si. E reivindica uma noção “aberta aos testemunhos e também ao próprio evento do testemunhar, sem reduzir o testemunho a meio”, mas como uma espécie de vértice entre os “fatos” e as narrativas. A visada teórica mais geral, porém, não nos deve levar a eclipsar a compreensão do testemunho no jornalismo e em outras manifestações comunicacionais em sua condição histórica. Assim pensando a relação entre testemunho e jornalismo, bem como das demais modalidades da comunicação midiática, seria preciso indagar que figuras de imbricamento comporta historicamente? Quais caminhos percorreu 48ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES para que se apresentasse contemporaneamente como uma chave de compreensão da experiência jornalística e midiática? Que articulações tais figuras guardariam com as tecnologias modernas de transmissão e registro? Que relações teria com diferentes regimes de compreensão do real e com modos perceptivos e de registro, formas do ver, ouvir, contar, ler, escrever? Uma outra figura de historicidade a destacar seria a memória. A mídia assumiu, na sociedade contemporânea, o lugar privilegiado de narradora dos fatos históricos. Pela narrativa midiática, uma infinidade de eventos e de pessoas pode ser reverenciada como históricos. Nesse contexto, uma nova mnemotécnica vigora. A técnica de estimulação da memória tem correspondido às tecnologias midiáticas de construção da realidade social, com um real próprio e com uma história sedutora e crível. Tal técnica é mais eficaz quanto mais invisível ela se torna, quanto mais natural ela parece ser, quanto mais imperceptivelmente seus códigos e suas regras se atrelam à vida social. É, portanto, imperativo considerar as condições sociais e as práticas discursivas que têm permitido a mútua afetação e, até mesmo, a imprecisão na definição das fronteiras entre o fato histórico e o fato midiático, já que se vivencia intensamente na contemporaneidade a relação entre memória e amnésia. (HUYSSEN, 2001; MORRIS-SUZUKI, 2005; RIBEIRO, 2003, 2008) Ao ser portadora de um discurso socialmente reconhecido, que pode ser transformado em documento histórico para o futuro, a mídia se configura como um dos “senhores da memória” do nosso tempo. (BARBOSA, 2009) A memória é uma apropriação seletiva do passado, apoiada num feixe de subjetividades, do qual o tempo faz parte. É importante levar em consideração, portanto, a noção de agentes de memórias, considerando sua pluralidade de funções e de significações. A memória é uma construção e não um dado. Tem o poder selecionar certos fatos para os leitores, em detrimento de outros que passam à categoria do esquecimento. (RIBEIRO, 2003) E os jornalistas fazem a memória, na medida em que é papel da mídia reter assuntos que, guardando identificação com o leitor, precisam ser permanentemente atualizados. Essa reconfiguração da memória e da história tem a exacerbação das narrativas sobre trajetórias individuais como um dos principais vetores. A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS49 Se, por um lado, tal novidade se explica pela necessidade de “âncoras temporais” num mundo marcado pela aceleração, pela desterritorialização e pela fragmentação promovidas pela disseminação do uso hegemônico das novas tecnologias de comunicação e balizado pelo consumo do “biográfico” (de celebridades, de gênios, de mitos, de heróis) como forma de orientar condutas individuais e de legitimar normas sociais, por outro, essa nova experiência com os “passados individuais” de eleitos como protagonistas é resultado da renovação do individualismo na sociedade contemporânea. (HERSCHMANN; PEREIRA, 2003; LEVILLAIN, 2003) Sendo assim, muito mais do que celebrar a primazia absoluta do “eu”, a tarefa da crítica, nesse caso, é especular, por exemplo, os meandros das construções midiáticas da individualidade na articulação com dinâmicas sociais profundas que a constituem. O percurso sobre as potencialidades heurísticas da noção de memória encontra no esquecimento outro elemento importante. Para que memória e esquecimento não sejam considerados pares antinômicos, há de se levar em conta a relação intrínseca e necessária entre ambos: não se esquecer é permitir a memória, que, por sua vez mantida, evita o esquecimento. Essa é uma das condições, e mesmo ponto de partida, para que Ricoeur (2007) dê curso a outra proposição: o esquecimento mantém relações com o perdão, seja pela negação, sob a forma de um recalque, de um ressentimento (em que há recusa em esquecer, portanto, em perdoar), seja pela afirmação, em diversas formas individuais e coletivas de absolvição, indulto, anistia, desculpa. Tais considerações nos permitem ultrapassar determinadas concepções simplistas sobre as relações do jornalismo e das mídias com o tempo. É possível, em primeiro lugar, reinscrevê-las em termos de temporalidade, portanto, não as reduzindo a problemas de urgência na produção dos relatos noticiosos e midiáticos. O que passa a estar em jogo, mesmo nas circunstâncias em que prevalece a urgência da factualidade, é que as relações entre história, memória e esquecimento com as narrativas jornalísticas, por exemplo, estão inscritas na condição mais ampla das narrativas históricas e ficcionais: narramos sempre com o background de um mundo prefigurado (mimese I), configurado narrativamente (mimese II) e disponibilizado para tantas reconfigurações quantas forem as maneiras de 50ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES leitura dessas narrativas (mimese III). Para o jornalismo, essa equação traz ainda à tona os preceitos éticos e morais sempre implicados no mundo prefigurado do qual parte todo gesto narrativo. A experiência é outra figura de historicidade importante na perspectiva analítica que propomos. Transformações no tempo tomam forma na experiência dos sujeitos, configurando relações de natureza histórica e estética. A condição histórica e estética das expressões culturais foi abordada de forma muito interessante em campos variados de estudos. Pela hermenêutica de Paul Ricoeur, pelos escritos da Estética da Recepção (sobretudo na figura de Hans-Robert Jauss, 2002) ou mesmo pelo campo da história cultural e dos conceitos (em Reinhart Koselleck). O modo como a relação entre recepção estética e histórica se exprime é, constantemente, denominada pelo termo “experiência”. Ao menos dois elementos compõem a experiência. Um deles é o campo, que regula e serve como referência para a experiência em desenvolvimento. O segundo é a singularidade, que projeta a experiência para fora daquele referente previsível. Como é possível perceber, a experiência é descrita como composta por dimensões conflitantes (determinação x indeterminação, convencionalidade x singularidade) e apresenta uma relação entre campo de possibilidades e situação indeterminada que garante uma perspectiva de exame dos fenômenos inseridos numa certa tradição, mas com potencialidades de abertura para a reinvenção. As formas de emergência da experiência revelam uma importante relação entre suas performances e a mimesis, trabalhada de forma sistemática pela teoria estética, por exemplo, que pode ser devidamente compreendido por uma perspectiva hermenêutica de análise. Desde as formulações iniciais, segundo a qual a atividade mimética era a de mera cópia da realidade, atacada por Platão, passando pela apropriação aristotélica de uma imitação criativa e, portanto, poética, muitos autores se debruçaram sobre os desafios colocados pelas práticas miméticas a fim de estabelecer seus limites e potencialidades. (BENJAMIN, 2003; RICOEUR, 1994; LIMA, 2003) Por fim, destacamos o gênero como uma figura de historicidade essencial à análise dos processos comunicacionais. O conceito vem ganhando espaço no campo da comunicação como uma profícua ferramenta para a A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS51 análise dos produtos da cultura midiática. Conceber gênero como categoria analítica (FEUER, 1992) ou conceito metodológico (GOMES, 2010, 2011) implica considerá-lo como uma formulação teórica que prova validade no campo de análise empírica. Nesses termos, atua como uma espécie de lugar de articulação entre diversos produtos midiáticos e práticas sociais que ganha centralidade quando se busca interpretar os processos comunicativos. Especificamente, o empenho em examinar as marcas constitutivas de produtos e linguagens da televisão e do telejornalismo, por exemplo (GOMES, 2011), vem apontando para o espaço de desenvolvimento de reflexões acerca da relevância do conceito de gênero televisivo e das formas de expressão colocadas ao seu dispor para a construção de um caminho metodológico de análise das produções midiáticas contemporâneas. Tendo origem nas discussões literárias, a ideia de gênero foi inicialmente concebida como tipo de texto institucionalizado que funciona como horizonte de expectativas para os leitores e modelo de escritura para os autores. (TODOROV, 1980, p. 49) Esses tipos textuais constitutivos de discursos reconhecidos socialmente são assim tomados enquanto categorias representativas de tendências estáveis e organizadas de cada esfera de utilização da língua. Apesar de variar de acordo com as atividades humanas, os gêneros preservam continuidades que também permitem defini-los como tipos específicos. Essa concepção é responsável por instituir o entendimento tradicional de gênero enquanto modelo discursivo estável de produção e recepção operado no interior das obras a partir de elementos textuais formais que servem como referência para sua classificação. Quando o conceito de gênero é apropriado para pensar os produtos midiáticos, como a televisão, o referencial tomado, pelo menos a princípio, deriva dessa concepção literária responsável por pautar a ideia de fórmula, convenção e repetição que estariam postas nos textos. Nesses termos, “a abordagem de gênero nos estudos de televisão é uma forma de teorizar como programas televisivos são classificados e organizados. Isso inclui a consideração dos códigos e convenções no interior e entre os programas”. (CASEY et al., 2002, p. 135) Tal abordagem, fincada numa perspectiva estruturalista, define gênero a partir do sentido de rigidez de tipos discursivos identificados no nível textual, o que deixa de fora articulações com contextos culturais, sociais e políticos, inviabilizando 52ANA PAULA GOULART RIBEIRO, BRUNO SOUZA LEAL E ITÂNIA GOMES a avaliação de marcas de transformações e rupturas no diálogo com marcas de institucionalização dos gêneros. Por outro lado, mesmo em perspectivas mais afinadas com os estudos culturais, que buscam dar conta de relações contextuais que contribuem para o reconhecimento do gênero, é possível identificar o movimento contrário, quando este, por exemplo, é adotado como um pressuposto pré-textual para análise das relações de poder e constituição de representações identitárias. Butsch (2008) toma os sitcoms americanos produzidos ao longo de quatro décadas como pretexto para traçar características dos estereótipos masculinos e femininos relacionados a distintas representaçõesde classe desse período, mas não nos mostra como tais representações são construídas pelos elementos expressivos e poéticos das produções televisivas. Gênero encontra ressonância na “multiplicidade de temporalidades, (na) multiplicidade de histórias, com seus próprios ritmos e com suas próprias lógicas” na concepção desenvolvida por Martín-Barbero (1995, p. 43). Apoiado em Raymond Williams (1979), o autor pretende chamar atenção para a heterogeneidade de temporalidades vividas por cada sociedade ou, em outros termos, para o fato de que “em toda sociedade convivem formações culturais arcaicas, residuais e emergentes” (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 44) e que essas formações são articuladas, na cultura midiática, através dos gêneros midiáticos. O mapa das mediações, de Martín-Barbero, move-se sobre dois eixos, um diacrônico, entre as matrizes culturais e os formatos industriais, e um sincrônico, entre as lógicas de produção e competências de recepção ou consumo. Claramente, a configuração desses dois eixos lhe permite incorporar a uma proposta metodológica mais consistente a preocupação que ele tem, desde o início, com a heterogeneidade de temporalidades. Para o autor, é fundamental compreender a relação histórica que marca a passagem das matrizes culturais aos formatos industriais, o que para ele significa remeter “à história das mudanças na articulação entre movimentos sociais e discursos públicos e destes com os modos de produção do público que agenciam as formas hegemônicas de comunicação coletiva”. (MARTÍNBARBERO, 2006, p. 16) Para compreendermos a relação entre matrizes culturais e formatos industriais é fundamental recorrermos às noções de dominante, residual e emergente que Raymond Williams utiliza em Marxismo e Literatura para A HISTORICIDADE DOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS53 descrever elementos de diferentes temporalidades e origens que configuram o processo cultural. Segundo Williams (1979, p. 124), é claro que a análise cultural deve considerar as características dominantes de um determinado processo ou sistema cultural, mas o analista precisa estar atento também a um certo senso de movimento, de processo histórico, e às articulações e inter-relações complexas entre esses elementos dominantes e os residuais (aqueles elementos que foram efetivamente formados no passado, mas que ainda estão ativos no processo cultural, não só como elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente) e os emergentes (novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relação que são efetivamente criados e que aparecem como substancialmente alternativos ou opostos na cultura dominante). De todo modo, o fundamental na análise cultural de Williams, e que é captado por Martín-Barbero na construção do seu mapa das mediações, é a crucial importância da consideração das diversas temporalidades sociais em qualquer análise da cultura. Para Martín-Barbero (1995, p. 44), a consideração da heterogeneidade de temporalidades significa “uma nova maneira de introduzir a dimensão histórica nos processos de comunicação”, o que ele faz ao pensar na mediação da relação histórica das matrizes culturais com os formatos industriais, mas também com as lógicas de produção e com as competências de recepção. A delimitação do conjunto de problemas apresentados neste texto certamente não esgota a gama de questões suscitadas pelas interconexões entre processos comunicacionais e historicidade. O tema é complexo e pouco explorado. Há ainda muito a se descortinar. Mas acreditamos que a reflexão aqui rascunhada nos indica um tipo de caminho a percorrer, ao mesmo tempo em que abre novas possibilidades investigativas. REFERÊNCIAS ADAM, B. Ref lexive modernization temporalized. Theory, Culture & Society, London, v. 20, n. 2, p. 59-78, 2003. ASHURI, T.; PINCHEVSKI, A. Witnessing as a field. In: FROSH, P.; PINCHEVSKI, A. 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Um dos traços mais caracterizadores da passagem da modernidade para a condição pós-moderna (LYOTARD, 1979), traço esse apontado por vários autores, encontra-se na mudança cabal por que veio passar a concepção do tempo linear que dominou do Renascimento até o crepúsculo da Modernidade, no limiar da Segunda Guerra Mundial. A ruptura da linearidade temporal aí insinuada foi se intensificando na mesma medida em que foram crescendo as mídias e a circulação social dos signos que por elas transitam, gerando a enorme densidade e extensão da produção simbólica e a intensificação do fluxo veloz de signos, textos, imagens, sons a partir do advento da cultura digital e da mobilidade. A ordem de complexidade é imensa e são múltiplas as coreografias tempo-espaciais decorrentes. Para fazer frente à complexidade temporal contemporânea, não é por acaso que têm emergido com muita ênfase autores que vêm colocando em relevo métodos e procedimentos arqueológicos para repensar o tempo e a história. Como não poderia deixar de ser, também não é casual que o pensamento de Walter Benjamin esteja sendo retomado ainda com mais 59 frequência e vigor do que o foi nos anos 1970 e 1980. É nesse contexto que este ensaio está situado. LEITURAS ARQUEOLÓGICAS DA CULTURA Podemos dizer que a arqueologia é a ciência que se interessa pelo estudo dos objetos da cultura que se encontram adormecidos sob os escombros da história, à espera de escavadores interessados em reconstruir, no presente, narrativas de tempos remotos. A reconstrução dessa narrativa parte da análise não somente das condições materiais apresentadas por esse objeto, como, por exemplo, seu estado de degradação, mas do contexto em que ele foi descoberto. Também é possível considerar que a arqueologia se interessa pelo potencial interpretativo desses objetos. Contudo, esse potencial repousa em estado latente, uma vez que os objetos arqueológicos frequentemente se apresentam parcialmente ou em fragmentos desgastados. Nesse sentido, Agamben (2010) afirma que a arqueologia é uma ciência das ruínas, cujo objeto nunca pode se dar como um todo empiricamente presente. Ao revirar escombros em busca da ressignificação da história, a arqueologia propõe um procedimento que pressupõe uma tensão temporal entre o presente e o passado. Essa tensão é manifestada pelo contraste entre a materialidade do objeto que se apresenta e o contexto anterior a que ele aponta. Assim, a ação de desenterrar esses objetos esquecidos permite à arqueologia iluminar o presente ao ressignificar o passado. Portanto, a nossa noção compartilhada da narrativa histórica pode ser desconstruída a partir da descoberta de elementos que revelam rupturas ou descontinuidades no tempo, com reflexos no presente. Essa maneira de ressignificar o passado no presente, escavando índices e rastros que iluminam novas faces do passado, há muito vem seduzindo outras disciplinas. A filosofia, a psicanálise, a história da arte e a própria comunicação, por exemplo, têm elegido essa abordagem. Autores como Freud, Foucault e Derrida são frequentemente lembrados por terem se aproximado das noções de arqueologia para levantar considerações sobre seus respectivos objetos de investigação. Por exemplo, nos estudos da psicanálise, Freud estabelece analogias entre o trabalho do arqueólogo 60LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO e do analista, que busca ressignificar os vestígios fragmentários da memória a fim de levantar hipóteses sobre o comportamento atual de seus pacientes. Por sua vez, Foucault, sobretudo em sua primeira fase, propõe um método arqueológico de compreensão das descontinuidades na formação do saber e de que maneira essa produção de discursos se legitima. Por fim Derrida se interessa pelas questões do arquivo e suas relações com a tradição e o poder. (SANTAELLA, 2016) No campo da comunicação, destaca-se a vertente da arqueologia das mídias. Autores como Zielinski (2005) e Kittler (1999) propõem reflexões sobre as tecnologias que se encontram na formação das mídias, acrescentando uma dimensão histórica vital à crítica atual sobre os meios de comunicação. Assim, a arqueologia da mídia é a abordagem teórica que “em uma perspectiva pragmática, significa desenterrar caminhos secretos na história, o que poderia nos ajudar a encontrar nosso caminho para o futuro”, estimulando “extravagantes justaposições de fenômenos heterogêneos da história da mídia”. (ZIELINSKI, 2005, p. 56) Os procedimentos arqueológicos de interpretação da cultura também ganharam grande impulso a partir da redescoberta dos estudos de Aby Warburg (1856-1929). Suas pesquisas sobre as imagens e suas relações anacrônicas com o tempo transversalizam nossa noção de história, ultrapassando, inclusive, o âmbito da história da arte e ampliando a tradicional noção de iconografia. Warburg propõe uma interpretação das imagens que vai além dos meros aspectos formais, ressaltando duas propriedades que possuem estreito vínculo com a arqueologia: a “fórmula de pathos” – a carga emotiva das imagens que nos provocam estranhamentos e deslocamentos de sentido – e o “pós-vida” – as evidências de anacronismo das imagens que reforçam a não linearidade do tempo histórico. (AGAMBEN, 2015; DIDIHUBERMAN, 2013a, 2013b) Para identificar essas propriedades das imagens, Warburg desenvolveu pesquisas que se aprofundaram tanto nas obras do Renascimento italiano quanto nas manifestações ritualísticas de povos indígenas da América do Norte. Segundo Baitello Júnior (2010, p. 60): “O que resultou de suas instigantes descobertas foi a proposição de uma abrangente Ciência da Cultura como grande abrigo das formas expressivas diversas, entre elas a importante expressividade da imagem”. A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO61 As implicações da relação entre história, memória e narrativa estão entre os grandes temas do filósofo Walter Benjamin que adotou uma postura arqueológica para erguer a sua própria filosofia, propondo uma abordagem original e crítica sobre a não linearidade do tempo histórico. Além de defender a ideia de que a história não deveria ser entendida como uma sucessão acumulativa de acontecimentos, Benjamin cria a noção de imagens dialéticas, um conceito que implica um choque de temporalidades. Após esse breve panorama sobre algumas perspectivas arqueológicas de interpretação de fenômenos ligados à cultura, este ensaio irá se concentrar na proposta arqueológica desenvolvida por Benjamin e, em especial, na aplicação desse conceito para a análise de imagens. Sugerimos que a noção de arqueologia em Benjamin e sua definição de imagens dialéticas estruturam um fundamento teórico relevante para a análise das imagens no campo da comunicação e da cultura contemporânea, uma vez que evidenciam a ressignificação dos índices históricos que as constituem. Para isso, é fundamental compreender a crítica de Walter Benjamin sobre a noção positivista da história o que demanda um breve percurso por algumas de suas principais obras, a fim de identificar alguns elementos-chave em seu pensamento. WALTER BENJAMIN: CRÍTICA À HISTÓRIA LINEAR A relevância e atualidade do pensamento benjaminiano podem ser identificadas na recente retomada de suas ideias por filósofos do gabarito de Giorgio Agamben e Georges Didi-Huberman. A obra de Benjamin é reconhecidamente multifacetada, abordando temas que envolvem a literatura, a religião, a estética e a própria filosofia. Dessa maneira, tornase complexa a tarefa de identificar traços basilares em seu pensamento. Porém, pode-se dizer que há uma espécie de linha mestra que percorre toda a sua obra: a crítica à noção de linearidade da história, da qual ele foi um árduo contestador. Benjamin sempre buscou distinguir-se da tradição acadêmica que entendia a história como um percurso sequencial e temporal contínuo – pensamento típico da burguesia europeia e positivista que se consolidou na virada do século XIX para o século XX, mas que começava a enfrentar 62LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO as graves contradições do período entre guerras. Para isso, Benjamin procurou ressaltar, em diferentes momentos de seu percurso filosófico, os traços de ruptura e descontinuidade da história, revelando os elementos desagregadores e contestadores que pudessem penetrar nas brechas da concepção burguesa de ciência, de arte e de linguagem. (FERRARI, 2000) Sua contundente crítica à noção de continuidade histórica ganhou um teor fortemente político a partir de meados da década de 1920, quando Benjamin passou a se envolver com o materialismo histórico marxista e com as ideias de outros pensadores, tais como Adorno, Arendt e Brecht. Segundo o próprio Benjamin (2009, p. 512, fragm. [N 7a, 2]): “O materialismo histórico não aspira a uma apresentação homogênea nem tampouco contínua da história”. O ápice dessa crítica se encontra nas famosas teses “Sobre o conceito de história”, seu último trabalho de 1940. No entanto, é importante ressaltar que essa concepção crítica da história, em Benjamin, não surgiu apenas em seus textos tardios: ela já vinha se desenvolvendo desde seus escritos de juventude. Por exemplo, em seus primeiros escritos, Benjamin se engajou na crítica sobre o mito e sobre a teoria do conhecimento a partir de uma investigação sobre a linguagem. Destacam-se textos como Sobre a linguagem geral e sobre a linguagem do homem, de 1916; sua tese de doutorado sobre O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, de 1919; A tarefa do tradutor, de 1921; As afinidades eletivas de Goethe, de 1922. Na apresentação do livro Escritos sobre mito e linguagem (BENJAMIN, 2013a), Jeanne Marie Gagnebin (2013a) afirma que os textos da juventude de Benjamin, de caráter metafísico, revelam uma face ainda pouco explorada do autor, mas que já criticavam “uma concepção de vida e de destino que sempre ameaça, sob formas diversas, as tentativas humanas de agir histórica e livremente”. Ainda segundo Gagnebin (2013a), razão e história são noções que andam juntas e só podem ser apreendidas pelo domínio da linguagem: Não há, portanto, nenhuma formação de linguagem, obra literária ou filosófica, que não seja trespassada pela história, em particular, pela história de sua transmissão; como tampouco pode existir uma história humana verdadeira que não seja objeto de reelaboração e transformação pela linguagem. (BENJAMIN, 2013a, p. 10) A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO63 Dessa maneira, Benjamin já perseguia as evidências de um tempo histórico não linear que se manifestam por meio da linguagem. Na sequência, o autor prosseguiu com a investigação desse tema em um contexto artístico bem específico: o drama barroco alemão. ALEGORIAS E RUÍNAS NO DRAMA BARROCO ALEMÃO Em sua tese de habilitação acadêmica sobre a Origem do drama barroco alemão, escrita entre 1923 e 1928, Benjamin se ocupou de um gênero literário aparentemente marginal naquele contexto, o drama barroco alemão, contrapondo-o à tragédia. Nessa tese, Benjamin destaca os elementos expressivos típicos do barroco – tais como as contradições, a multiplicidade de sentidos, as ambiguidades e polissemias – representados pela figura da alegoria. Em contraste com a totalização do símbolo, presente no classicismo, a alegoria é, segundo Benjamin (2013b, p. 259), fragmento amorfo, “dependência, imperfeição, descontinuidade da physis [princípio evolutivo da natureza] sensível e bela”. Justamente por revelar características de descontinuidade e fragmentação, as alegorias do drama barroco alemão remetem a um conceito que Benjamin explorou intensamente em suas futuras obras: as ruínas. Segundo o próprio autor: A fisionomia alegórica da história natural, que o drama trágico1 coloca em cena, está realmente presente sob a forma da ruína [...] Assim configurada, a história não se revela como processo de uma vida eterna, mas antes como o progredir de um inevitável declínio. Com isso, a alegoria coloca-se declaradamente pra lá da beleza. As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas. Daí vem o culto barroco da ruína. [...] O que jaz em ruínas, o fragmento altamente significativo, a ruína: é esta a mais nobre matéria da criação barroca. (BENJAMIN, 2013b, p. 189-190) As ruínas, definidas por Benjamin como o princípio “mais nobre da criação barroca”, seriam então o correspondente material do pensamento 1 Na referência bibliográica consultada para a elaboração deste texto, o tradutor João Barrento opta pelo termo “drama trágico” ao invés de “drama barroco”, mais comum em outras traduções de Benjamin para a língua portuguesa. 64LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO alegórico, ou seja, os elementos concretos que rompem com a história eterna e progressiva, conduzindo a um declínio inevitável. Assim, na Origem do drama barroco alemão, Benjamin já demonstrava claro interesse pelos elementos destoantes e desagregadores, uma vez que possuem a capacidade de estimular interpretações abertas, polissêmicas, em que a narrativa histórica não encontra um ciclo linear e seus personagens convivem com a presença da morte e da vida “fantasmática”. Não é o desejo de reabilitar um gênero dramático arcano o que motiva Benjamin, mas o desejo de tornar real a alegoria. O modo alegórico permite a Benjamin tornar a experiência de um mundo em fragmentos visivelmente palpável, onde o passar do tempo não significa progresso, mas desintegração. (BUCK-MORSS, 2002, p. 41) Para Benjamin, portanto, as ruínas são fragmentos concretos que estão na base de um movimento artístico que já se encontrava em declínio. No entanto, seu objetivo não é ser saudosista. Cabe ao filósofo extrair verdades gerais a partir do estudo desses elementos e, assim, encontrar, na obra, uma beleza que não seja efêmera, redimindo-a. O objeto da crítica filosófica é o de mostrar que a função da forma artística – e o drama trágico é uma dessas formas – consiste em transformar em conteúdos de verdade filosóficos os conteúdos históricos objetivos que estão na base de toda obra de arte significativa. Esta transformação dos conteúdos objetivos em conteúdos de verdade torna o enfraquecimento da capacidade de repercussão, manifesto no decréscimo do fascínio original da obra ao longo de decênios2, no fundamento de um renascer em que toda a beleza efêmera desaparece completamente e a obra como que se afirma enquanto ruína. Na construção alegórica do drama trágico barroco, revelam-se, desde o início, essas formas-escombros da obra de arte salva. (BENJAMIN, 2013b, p. 259-260) Contudo, dois acontecimentos conduziram Benjamin a novas trajetórias em seu pensamento, deslocando seus interesses para uma análise materialista da história: em primeiro lugar, Benjamin teve sua tese de 2 Nota-se, nesse trecho, que Benjamin já manifestava um interesse estético pelo declínio do “fascínio original da obra” de arte, questão que seria retomada com vigor em seu célebre artigo sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO65 habilitação acadêmica sobre o drama barroco rejeitada pela Universidade de Frankfurt, comprometendo não somente suas pretensões acadêmicas, mas também sua estabilidade financeira. Em segundo lugar, Benjamin simpatizou-se com o comunismo, a partir da leitura de História e consciência de classe de Georg Lukács e de um relacionamento com uma artista comunista chamada Asja Lacis. (KONDER, 2003) Após esses acontecimentos, Benjamin se mudou para Paris e estreitou seus laços com o instituto de pesquisa dirigido por Horkheimer e Adorno, em busca de apoio financeiro. Nessa nova fase, Benjamin escreveu inúmeros ensaios nos quais ele continuou explorando as relações entre a história e a linguagem em diferentes manifestações culturais. Seus objetos de pesquisa passaram a incluir as cenas urbanas, as memórias de infância, os movimentos artísticos de vanguarda, a literatura de Baudelaire e de Kafka, o cinema e a fotografia. Seus textos anteciparam questões de grande impacto para as décadas seguintes, tais como as transformações da narração, da percepção e do próprio estatuto da arte. COLECIONADOR DE RASTROS A proposta investigativa de Benjamin – de esmiuçar as ruínas em busca de “conteúdos de verdade filosófica” – é uma evidência de sua postura arqueológica. Em suas publicações posteriores à tese sobre o drama barroco alemão, Benjamin também adotou esse procedimento de análise. Por exemplo, em Rua de mão única (1928), ele publicou uma coletânea de aforismos e fragmentos de textos, reunidos de maneira descontínua em uma espécie de colagem ou montagem de cenas. Nessa obra – que adota um estilo de escrita completamente distinto de sua tese sobre o drama barroco –, Benjamin dirige seu olhar para os elementos do cotidiano urbano, levantando breves reflexões sobre suas memórias de viagens, seus sonhos, os personagens anônimos das cidades, antiguidades, objetos de escritório, fachadas arquitetônicas. Inspirado tanto pelos movimentos de vanguarda do início do século (como o surrealismo), bem como pelas leituras de Baudelaire e Proust – autores que ele se empenhou em traduzir para o alemão – Benjamin almeja um fazer filosófico através de traços 66LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO singulares e banais do cotidiano a fim de demonstrar um mundo de descontinuidades e fragmentos. Tal como um colecionador ou um arqueólogo, Benjamin se perde, como um flanêur, nos labirintos das ruas e de sua própria memória, em busca de detalhes que possam ajudar a descosturar outros fios da história. A partir de 1927, já morando em Paris, Benjamin passa a se dedicar ao seu projeto mais ambicioso, porém inacabado: o livro das Passagens. Seguindo um modelo semelhante a Rua de mão única, coletou inúmeros fragmentos de texto sobre diferentes assuntos que seriam agrupados em torno de um tema principal, as passagens parisienses do século XIX: galerias arquitetônicas para o trânsito de pedestres e que também abrigavam comerciantes, colecionadores, pequenos cafés, engraxates, boutiques, floristas etc. Ao longo dos anos seguintes, Benjamin reuniu um vasto material para a elaboração desse livro. Seus manuscritos foram organizados por cadernos temáticos, identificados por uma letra. Por exemplo, o caderno B trata de “Moda”; o caderno E, “Haussmannização, lutas de barricadas”, trata do impacto das grandes transformações urbanísticas conduzidas pelo Barão de Haussmann em Paris; o caderno M aborda o tema do “Flâneur”; o caderno J – o maior de todos – trata de “Baudelaire”, e assim por diante. No entanto, influenciado por pressões do instituto que financiava suas pesquisas, Benjamin não conseguiu concluir o projeto. Por outro lado, esse vasto material serviu de base para seus textos sobre “Baudelaire e a modernidade”. O critério de organização dos cadernos indica a metodologia adotada por Benjamin: uma montagem literária de fragmentos e resíduos de caráter arqueológico, capazes de iluminar imagens de pensamento sobre os efeitos da modernidade. Sobre a elaboração do projeto das Passagens, Benjamin (2009, p. 502, fragm. [N 1a, 8]) afirma: Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os. O fragmento acima indica dois aspectos relevantes sobre a metodologia adotada por Benjamin: por um lado, trata-se de um procedimento A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO67 de montagem, em que o autor coleta e agrupa materiais cuja aparente desordem é capaz de iluminar um sentido novo para o leitor. Por outro lado, as peças dessa montagem literária não se originam de formulações “valiosas” ou “espirituosas”, e sim de farrapos e resíduos. Trata-se, em outras palavras, de um procedimento arqueológico, por meio do qual Benjamin recupera e organiza fragmentos a fim de estimular novos sentidos interpretativos. Ao “fazer-lhes justiça”, Benjamin está justamente creditando um valor significativo a certos elementos que são tradicionalmente desprezados pela ciência e pela filosofia. Pois, através da análise desses pequenos elementos, “recortados com clareza e precisão”, podemos encontrar o “acontecimento total” cristalizado. Essa descoberta permitiria “conciliar um incremento de visibilidade com a realização do método marxista” (BENJAMIN, 2009, p. 503, fragm. [N 2, 6]), como também “fixar a imagem da história nos aspectos mais insignificantes da existência, isto é, nos seus dejetos”. (BENJAMIN apud FERRARI, 2000, p. 161) Portanto, é nas ruínas e nos resíduos que Benjamin, tal como um arqueólogo, procura reconstruir a narrativa de um passado desprezado pelo discurso dominante. Dessa maneira, ele se coloca como um pensador marginal, que busca respostas em lugares não convencionais. “O que são desvios para os outros, são para mim os dados que determinam a minha rota. Construo meus cálculos sobre os diferenciais de tempo – que, para outros, perturbam as ‘grandes linhas’ da pesquisa”. (BENJAMIN, 2009, p. 499, fragm. [N 1, 2]) Os elementos que perturbam a estabilidade da história encontram-se no âmbito da arqueologia. A instabilidade causada por uma descoberta arqueológica revela o princípio de um procedimento heurístico, pelo qual as imagens que desconstroem a relação dialética entre presente e passado podem ser apoderadas. Como afirma Didi-Huberman (2015, p. 121): O fato de uma coisa ser passada não significa apenas que ela está longe de nós no tempo. Ela permanece distante, certamente, mas seu próprio distanciamento pode aproximar-se de nós – trata-se, segundo Benjamin, do fenômeno aurático por excelência. 68LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO Dessa maneira, conecta-se a noção de arqueologia em Benjamin com suas considerações sobre “aura” e “imagem dialética”, que serão fundamentais para se compreender as imagens no âmbito da comunicação. IMAGENS DIALÉTICAS E A HEURÍSTICA DO ANACRONISMO Inseparável do ambiente no qual se instaura, a imagem é uma espécie de passaporte que abre fronteiras para acesso a territórios de uma cultura. A imagem é também um suporte que carrega vínculos comunicacionais com certos aspectos de um tempo anterior, ou seja, um signo que atravessa distâncias geográficas e temporais para nos dizer algo sobre um ausente. Como afirma Didi-Huberman (2013b, p. 33): Uma imagem, toda imagem, resulta dos movimentos provisoriamente sedimentados ou cristalizados nela. Esses movimentos a atravessam de fora a fora, e cada qual tem uma trajetória – histórica, antropológica, psicológica – que parte de longe e continua além dela. Portanto, podemos afirmar que as imagens são signos que portam, de maneira indissociável, os rastros de uma cultura. De acordo com Agamben (2010), esses rastros ou índices constituem uma verdadeira assinatura dos objetos históricos, determinando temporalmente sua legitimidade. Nesse sentido, devemos seguir o fio sutil e não aparente dessas assinaturas, que são, por natureza, efêmeras. Ao mesmo tempo, são também capazes de manifestar a virtude oculta das coisas, atuando como uma espécie de operador-chave para o conhecimento. No entanto, como podemos identificar os traços culturais que estão historicamente impregnados em uma imagem? Ou, em outras palavras, de que maneira podemos associar o método arqueológico de Benjamin ao estudo das imagens no campo da comunicação? O tema das imagens perpassa a obra de Benjamin em vários momentos. Em sua tese sobre o drama barroco, Benjamin (2015, p. 184) entendia a alegoria não somente como uma figura de linguagem, mas também em seus aspectos imagéticos: “o interesse original pela alegoria não é linguístico, mas óptico: ‘As imagens, minha grande primitiva paixão’”. Evidentemente, as imagens também ocuparam uma posição central em A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO69 seus ensaios sobre a fotografia. Seu texto sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, que teve mais de uma versão escrita em alemão e em francês entre os anos de 1934 e 1935, alcançou grande repercussão nos estudos da comunicação. Nesse estudo, Benjamin discute a questão da perda da aura nas artes tradicionais em razão das profundas mudanças de percepção das imagens introduzidas pela fotografia e pelo cinema. Segundo Schöttker (2012), as reflexões de Benjamin não se limitavam às influências da fotografia e do cinema na cultura. O núcleo da sua crítica consistia em expor as novas experiências de percepção da modernidade que foram impactadas de maneira irreversível pela presença das imagens técnicas. Nesses ensaios, Benjamin trabalhou as imagens tendo em vista o conceito de aura, que ele define tanto como uma “trama singular de espaço e tempo” que resulta na aparição única de um ausente, como também sendo uma propriedade das imagens de “retribuir o olhar”. (ROCHLITZ, 2003) A originalidade desse conceito pode ser avaliada pelo espanto que produziu em Brecht, quando este o considerou místico a partir de uma postura antimística. “Adapta-se assim a concepção materialista da história! É horrível”. (BRECHT apud SCHÖTTKER, 2012, p. 85) No entanto, a relação entre imagens e arqueologia na obra de Walter Benjamin se torna explícita no seu conceito de imagens dialéticas, desenvolvido principalmente no livro das Passagens. Para defini-las, Benjamin faz uso de metáforas luminosas: são lampejos surgidos a partir do choque de dois elementos temporais, cujas diferenças contrastantes, em uma tensão dialética, formam novas constelações de significados. Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhes são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. (Esta explosão, e nada mais, é a morte da intentio, que coincide com o nascimento do tempo histórico autêntico, o tempo da verdade.) Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não-arcaicas. 70LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura. (BENJAMIN, 2009, p. 505, fragm. [N 3, 1]) Nessa citação, podemos encontrar a essência do pensamento de Benjamin sobre as imagens e sua relação com a história. O tempo do presente, o “agora da cognoscibilidade”, é determinado por imagens que estão, por sua vez, impregnadas de índices históricos, pois, toda imagem é portadora de uma carga cultural. Contudo, a imagem se torna dialética a partir do momento em que ocorre um choque entre o “agora” e o “ocorrido”, ou seja, uma espécie de iluminação ou esclarecimento que vai além da mera leitura unidirecional do tempo (o olhar do presente em direção ao passado ou vice-versa). Deve haver, portanto, um embate dialético temporal, cujos efeitos podem ser capazes de revelar o autêntico tempo da verdade, a marca do momento crítico. Enfim, a imagem dialética é aquela que surge pela percepção consciente (cognoscível) de um anacronismo. Ou, em outras palavras, ela surge quando um escavador da cultura (que poderia ser, por exemplo, um pesquisador da área de comunicação ou um estudioso de história da arte) encontra marcas reveladoras de um passado adormecido em um fragmento residual inesperado. Esse encontro desconcertante é potencialmente capaz de ressignificar o próprio presente, conduzindo-o a novos patamares de conhecimento. Como afirma Didi-Huberman (2015, p. 43), “o poder de estranhamento do anacronismo é uma chance heurística de emergência do saber”. RASTROS DE MEMÓRIA E O LIMIAR DO DESPERTAR NAS PASSAGENS PARISIENSES Benjamin também tratou das imagens no âmbito da memória. Motivado pelas leituras de Proust e por seu conceito de memória involuntária, Benjamin se interessou pelo despertar do sonho e, consequentemente, pelas imagens do pensamento. Como o personagem autobiográfico de Proust em À la recherche du temps perdu, que, no momento de despertar, traz ao presente uma cadeia de lembranças que não pertence a um tempo linear, Benjamin vai em busca desses fragmentos que se encontram A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO71 justamente no limiar, na passagem entre o sono profundo e a vigília. Como afirma Gagnebin (2014, p. 164): “a leitura de Proust permite a Benjamin elaborar um novo conceito de imagem, não mais a partir de uma estética da visão e da contemplação, mas a partir de uma reflexão sobre a memória e sobre a imagem mnêmica”. No entanto, Benjamin tentou transpor a experiência individual do despertar para a experiência coletiva da sociedade da virada do século, tomando as passagens parisienses como objeto representativo desse fenômeno. Cabe lembrar que a cidade de Paris, naquele contexto, era considerada o centro cultural da Europa, ponto de convergência no qual o sonho da modernidade encontrava os traços mais fortes de sua materialização. Mas, Benjamin já previa que esse sonho burguês caminhava para a catástrofe e que a sociedade capitalista nos conduzia para uma ilusão onde a técnica e a mercadoria representavam, na verdade, uma utopia. É a percepção de que o progresso e o desenvolvimento históricos são uma ilusão, é a experiência da história como um processo descontínuo, o que torna possível pensar a sua interrupção. A continuidade da ilusão, do sonho do passado no presente impede a revelação das forças que agem nele. Mas para tanto é necessário experimentar os cenários da cidade, viver o ‘passado com a intensidade do sonho’ para fazer despertarem as forças coletivas que podem romper com esse passado de sonho que assombra o presente. É necessário penetrar no sonho para poder dele despertar. (FERRARI, 2000, p. 162) A escolha das passagens, portanto, não é fortuita. Tratava-se de lugares que representavam a transição de uma sociedade capitalista em rápida transformação, mas que ainda guardavam resquícios da pré-modernidade. Assim, a partir de analogias com o despertar do sonho, os termos “passagem” e “limiar” também adquirem conotações dialéticas, que remetem tanto ao aspecto geográfico e físico de um ambiente, como também ao seu aspecto temporal, transitório. E é nesse trânsito entre dois polos que podemos estabelecer correspondências entre os limiares (ou nuances) e a noção de imagem dialética em Benjamin: a imagem que se ilumina a partir do contraste dialético dos limiares do tempo. O próprio Benjamin (2009, p. 501, fragm. [N 1a, 4]) afirma que “o que interessa não são os grandes contrastes, e sim os contrastes dialéticos, que frequentemente se 72LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO confundem com nuances. A partir deles, no entanto, recria-se sempre a vida de novo”. Em resumo, aplicando o método arqueológico de coleta de rastros e indícios, Benjamin dedicou grande parte de seu esforço intelectual na elaboração do livro das Passagens: um projeto sobre as imagens do despertar, ou as imagens que “indicam a existência das rupturas no sistema aparentemente harmônico e homogêneo da produção de significados”. (FERRARI, 2000, p. 167) Os limiares, portanto, são aberturas no tempo histórico que nos permitem atravessar espaços para alcançar um outro nível de interpretação da cultura. RUÍNAS E CATÁSTROFE: A IMAGEM POLÍTICA Como vimos, o interesse arqueológico pelas ruínas conduziu Benjamin a elaborar uma profunda reflexão sobre as imagens. Contudo, a análise aqui elaborada não estaria completa sem um breve comentário sobre outro conceito, também significativo em seu pensamento: a catástrofe. Ambos – catástrofe e ruínas – foram retomados pelo autor no seu último texto elaborado em vida: as teses Sobre o conceito de história, de 1940, escrito às vésperas de sua morte por suicídio. Mais precisamente na tese 9, onde Benjamin descreve a figura do Angelus Novus em um quadro de Paul Klee. Benjamin era um ferrenho crítico do positivismo histórico, uma tradição de pensamento que pregava um princípio evolutivo linear, uma sucessão acumulativa de fatos em direção ao progresso e à razão. Esse pensamento – que se colocou em evidência na sociedade moderna burguesa e que ainda se encontra presente na cultura ocidental atual – é conveniente para o discurso das classes dominantes. Afinal, o registro oficial e a transmissão da história para as próximas gerações são determinados pelos dominadores, os “herdeiros de todos os que venceram antes”. (BENJAMIN, 2012, p. 244) Em outras palavras, a história tal qual nos foi contada contém um viés narrativo parcial e certamente reflete a versão daqueles que se impuseram como vencedores. Nas suas teses, Benjamin (2012) afirma que a noção de progresso, que nos obriga a olhar sempre para frente, negando o passado, impede-nos de perceber a catástrofe gerada pelo imenso acúmulo de ruínas. Essas ruínas estão presentes nos bens culturais, pois A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO73 “nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”. (BENJAMIN, 2012, p. 245) Nesse sentido, Benjamin quer explicitar que a história não foi somente escrita por poucos personagens: seus registros estão repletos de marcas deixadas pela “servidão anônima” daqueles que ficaram esquecidos pelo tempo.3 A imagem que permanece, portanto, contém um índice secreto capaz de redimir o passado, mas que só se deixa capturar “como imagem que relampeja irreversivelmente no momento de sua cognoscibilidade”. (BENJAMIN, 2012, p. 243) Portanto, para Benjamin, a imagem dialética é também uma imagem política, no sentido de que é capaz de redimir o passado de sua trajetória de catástrofes. Antes da trágica morte de Benjamin, as teses foram encaminhadas para seus amigos, mas ele, em verdade, não tinha a intenção de publicá-las. A leitura dessas teses hoje nos indica aquilo que Benjamin já previa e que veio a se concretizar nos anos seguintes: a barbárie da guerra como catástrofe e o declínio da modernidade. O fim de uma sociedade que apostou no valor emancipatório da razão, abalroado pelas contradições inerentes ao capitalismo. Essa crítica política de Benjamin amarra todo o seu percurso filosófico desde então. No contexto mais diretamente político das ‘Teses’, Benjamin ressalta que a narração da historiografia dominante, sob sua aparente universalidade, remete à dominação de uma classe e às suas estratégias discursivas. Esta narração por demais coerente deve ser interrompida, desmontada, recortada e entrecortada. (GAGNEBIN, 2013b, p. 17) Uma leitura política da noção de história em Benjamin, portanto, nos permite alcançar imagens que possam justamente romper com o discurso dos vencedores – aqueles responsáveis pela construção da história linear, tal como a conhecemos. Esse rompimento requer um movimento duplo de destruição de um discurso para reconstrução de outro. “Pois o que a história tradicional quer apagar são os buracos da narrativa que indicam 3 Neste trecho, em particular, Benjamin faz uma referência ao famoso poema “Perguntas de um operário que lê”, escrito por seu companheiro Brecht, onde ele questiona, dentre outras coisas, “para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China icou pronta?”. Cf. BRECHT (1982) 74LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO tantas brechas possíveis no continuum da dominação”. (GAGNEBIN, 2013b, p. 100) É por isso que Benjamin propõe “ler a história a contrapelo”: ou seja, navegar no sentido inverso, revirar a camada superficial para evidenciar os rastros arqueológicos de uma outra história possível. Reconstruir narrativas marginais a partir do choque dialético provocado pelos índices do passado, que nunca vão desaparecer totalmente nas ruínas do presente. WALTER BENJAMIN: POR UMA LEITURA DAS IMAGENS NA COMUNICAÇÃO Defendemos aqui a hipótese de que as imagens podem ser instrumentos heurísticos de representação da realidade, evidenciando propriedades anacrônicas da cultura. Nesse sentido, as imagens contemporâneas que são objetos de estudo dos pesquisadores da área de comunicação – como, por exemplo, as fotografias selfies, as cenas de um filme, os ícones de um aplicativo, as capas de uma revista de moda, os personagens de jogo de fantasia para videogame, uma revista em quadrinhos no estilo mangá, etc. – podem ser analisadas à luz do pensamento arqueológico de Walter Benjamin. Todas elas, certamente, carregam as marcas da nossa contemporaneidade. Mas uma investigação cuidadosa por parte do pesquisador irá revelar que as imagens também são portadoras de rastros culturais de um tempo anterior. Para exemplificar, poderíamos dizer que as fotografias selfies já estavam presentes no mito de Narciso, ou que as histórias em quadrinhos são releituras das pinturas rupestres. Um filme de Godard nos abre um universo inteiro de interpretações a partir do momento em que exploramos as inúmeras citações históricas que o cineasta frequentemente inclui em suas obras (RIBEIRO, 2016), e assim por diante. No entanto, pensar arqueologicamente essas imagens envolve o confronto de temporalidades e a perturbação das continuidades, o que desestabiliza nossa noção tradicional de espaço e tempo. A imagem dialética convidanos a conhecer a história por um outro caminho, a contrapelo. É preciso ressaltar ainda que a leitura arqueológica das imagens implica o fato de que o surgimento de novas mídias não elimina as antigas. Pelo contrário, elas são absorvidas e levadas à frente. (SCHÖTTKER, 2012) A ARQUEOLOGIA BENJAMINIANA PARA ILUMINAR O PRESENTE MIDIÁTICO75 Em outras palavras: a fotografia não eliminou a pintura, assim como o cinema não eliminou a fotografia; tampouco os tablets eliminaram os livros, e assim sucessivamente. (SANTAELLA, 2003) Por exemplo, embora as técnicas fotográficas do século XIX há muito já tenham sido superadas, as discussões sobre a fotografia nunca estiveram tão presentes e atuais desde a popularização dos smartphones. Ou seja, mesmo em uma outra roupagem, as fotografias digitais ainda guardam fortes resquícios dos antigos princípios ópticos de captura de imagens, o que reflete, de algum modo, seu caráter arqueológico de sobrevivência ao tempo. Benjamin, nesse sentido, se revela como uma fonte riquíssima para nós, pesquisadores da comunicação: seu pensamento nos faz questionar sobre a própria natureza da nossa ciência e, sobretudo, sobre a maneira como levantamos perguntas aos nossos objetos empíricos. A comunicação não é uma área que pode prescindir da materialidade de seus objetos de investigação, que são múltiplos e singulares. Segundo Buck-Morss (2002), o método de Benjamin se opõe radicalmente ao formalismo da exposição metodológica tradicional abstrata, desconectada da construção específica do objeto analisado. De maneira análoga, Ferrari (2000, p. 4) afirma: O trabalho da escrita benjaminiana não se resume na organização dos dados pesquisados, de modo a que o resultado apareça como deduzido claramente dos pressupostos e argumentos iniciais, mas que revela que o trabalho do filósofo é o ‘deixar falar’ o material, e, de posse dos elementos essenciais desse material – como se estes fossem ‘chaves’ – penetrar nas profundidades da obra para trazer à luz o que está mais interno: o seu ‘teor de verdade’, o seu ‘núcleo prosaico’. Nesse sentido, Benjamin também se apresenta como um filósofo de linha anticartesiana. Não há, em seu pensamento, uma imposição racional do sujeito sobre seu objeto, e sim o contrário. Por ser um pensador do desvio, dos limiares, Benjamin não propõe certezas absolutas, recusando o caminho direto que conduz à verdade inabalável da razão. Ao lidar com o tempo que não é linear, Benjamin escapa das narrativas dominantes e critica a perenidade da história contínua. Seu tempo é o tempo do agora que cintila ao ressignificar o passado e pressentir os desdobramentos 76LUCIA SANTAELLA E DANIEL MELO RIBEIRO futuros. Ao fim e ao cabo, seu método arqueológico indica que o fazer comunicacional se encontra nas brechas da história, e não na estabilidade dos conceitos. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Aby Warburg e a ciência sem nome. In: AGAMBEN, G. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre el método. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010. BAITELLO JUNIOR, N. 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Com o advento das tecnologias digitais, como os cronômetros de nossos computadores e celulares, é possível ter a consciência desses tempos ínfimos, fato que acaba por impactar nossa atitude no cotidiano a ponto de nos impacientarmos com a espera de alguns segundos para um download. Assim, cada vez mais ansiamos pelo instantâneo, porque afinal não temos tempo a perder. Na sociedade midiatizada, vivemos sob o culto da velocidade e do imediato. “O culto da velocidade, manifesto em ritmos frenéticos de montagem e edição, não constitui senão um dos aspectos dessa grande transformação no modo de conceber e representar a temporalidade nas artes 79 e na mídia”. (BALOGH, 2003, p. 247) Assim, não é somente nossa percepção do tempo que mudou, mas nosso conceito de tempo também sofreu transformações. O tempo na sociedade em rede não é mais definido como sendo linear, irreversível, mensurável e previsível. A nova concepção de tempo permite que ele possa ser fragmentado, distendido, intensificado, acelerado, alentado, integrado. Mas essa mudança de concepção nem sempre é pacífica, pois é capaz de gerar uma “crise das sociedades lastreadas em maneiras de lidar com o tempo que criam ‘tiranias’ e ‘doenças’ decorrentes da pressa e do imediato”. (ANTUNES, 2007, p. 26) Essa mudança levada ao limite faz a sociedade midiatizada recusar a condição temporal da existência. Mas como isso é possível se somos essencialmente seres temporais? Então, o desejo pela supressão do tempo, cada vez mais satisfeito pela sociedade midiatizada, entra em conflito com a própria condição temporal humana. Mas antes de compreender essa aparente aporia, é necessário responder a uma questão anterior: o que é o tempo? Questão difícil de ser respondida por que o tempo possui uma impossibilidade ontológica de ser definido positivamente, o que torna a busca por responder a essa pergunta uma das tarefas mais complicadas do pensamento. Essa impossibilidade ontológica significa que o tempo por sua própria natureza, escapa a qualquer definição que busca dizer o que ele é, pois o tempo somente pode ser definido de forma negativa, isto é, pelo o que ele não é. No século IV, Santo Agostinho refletiu sobre essa dificuldade de definição do tempo e acabou por desenvolver uma das mais elaboradas concepções de tempo vivido. Agostinho (1984) nos diz nas Confissões: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”. Agostinho (1984) aponta para a ideia de que podemos intuir o tempo, embora tenhamos dificuldades de dizer o que ele é. Sabemos o que é o tempo porque podemos sentir o tempo, pois ele está em nós, em nossa alma, é vivido pela consciência. Mas definir o tempo e explicar sua natureza é algo muito difícil, quase impossível. E é por isso, desde a antiguidade, com Platão e Aristóteles, a passagem do tempo é tida como problemática. No intuito de abordar essa difícil questão, este artigo, por meio de pesquisa bibliográfica, trata de três temporalidades distintas inseridas no 80REGINA ROSSETTI contexto midiático da sociedade contemporânea: o tempo duração, vivido e real; o tempo cronológico, linear e mensurável; o intemporal, instantâneo e eterno. A distinção entre o conceito de tempo cronológico, contraposto ao tempo duração, contribui para esclarecer essa nova temporalidade vivenciada pela sociedade tecnológica. O tempo cronológico pode ser definido como a medida do movimento, ou seja, a parte do movimento que pode ser mensurável. É o tempo científico, o tempo físico, o tempo do senso comum; um tempo exterior independente e existente fora de nós. O tempo duração, por sua vez, diz respeito à consciência, é o tempo como movimento intuído. É nossa temporalidade, o tempo psicológico, o tempo interno vivido em nós e por nós. Mas na sociedade atual, altamente tecnológica e midiatizada, surge uma nova concepção de tempo, ou mais precisamente, de não tempo. A aceleração dos processos, na busca pela rapidez cada vez maior da resposta a nossas demandas, acaba por comprimir o tempo até o instantâneo e faz surgir um tempo que está no limiar do intemporal. Ao final deste estudo, procura-se explicar a causa dessa tendência humana pela recusa do tempo. TEMPO DURAÇÃO: O HOMEM COMO UM SER TEMPORAL Para Bergson, filósofo francês do século XX, o tempo real é o tempo que dura, isto é, o tempo que se constitui como movimento contínuo e como mudança constante. Nesse sentido, o tempo pode ser encontrado no universo que se expande, na vida que evolui, na matéria que se transforma, no pensamento que flui. Esse tempo ele chama de duração. Ele define a duração como um fluxo unitário de diferenças múltiplas. Mesmo mudando constantemente, o universo, a vida, a matéria e o pensamento não se fragmentam. Cada novo momento, mesmo diferente do momento anterior, continua uno, como o girar de um caleidoscópio que muda a cada movimento mantendo a unidade do conjunto. Tempo duração significa passagem, transitoriedade, devir, movimento, mudança e transformação e está em oposição à permanência, à estabilidade, à subsistência e à imobilidade. Como a explosão de fogos de artifício, esse tempo traz a mudança em direções diversas, em sentidos radiantes. Assim, a mudança não é somente para frente, como o é SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA81 no tempo linear, mas pode ser no sentido da evolução ou da degradação, do progresso ou do retrocesso, ou até mesmo em sentidos intermediários e divergentes. A dualidade é superada no tempo duração. Na visão bergsoniana, o tempo é a essência do real, não somente porque tudo está submetido ao tempo, mas porque tudo é tempo. A duração é a própria substância da realidade, logo, não há a imobilidade em nenhuma parte do real: por trás do movimento há somente movimento, ou seja, por trás das coisas que mudam há uma essência que é ela própria mudança. Nesse mesmo sentido, não há “a coisa que muda”, há somente a mudança, porque “a coisa”, toda ela é duração. A duração encontra-se por toda parte, da essência à superfície, do espírito à matéria, do eu ao universo. Tudo dura, muda, transforma-se constantemente. O real é devir, isto é, um fluxo contínuo de mudanças, um movimento indivisível e substancial, imanente a si mesmo, numa duração que se prolonga sem fim. E se toda realidade é temporal, consequentemente, o homem, como parte dessa realidade, também é temporal. Inserido nesse devir universal, o homem também se constitui como um ser temporal. A duração em geral quando vivida pelo homem é chamada, por Bergson, de duração psicológica, isto é, o fluxo temporal constante de mudanças dos estados psicológicos. A consciência é constituída por estados internos que vivem na pura duração, como qualidades puras, intensivas, heterogêneas e em constante mudança, são estados indistintos e contínuos porque se interpenetram mutuamente. O movimento da vida interior é compreendido como uma passagem contínua, da multiplicidade qualitativa e heterogênea dos estados profundos do eu, que se sucedem de forma indistinta, interpenetrando-se e modificando-se constantemente, permitindo que o ser humano seja, essencialmente, a mudança contínua de si em si mesmo e, assim, a duração da vida interior a torna essencialmente temporal. Para exemplificar a duração psicológica, Bergson (1989, p. 15) usa a metáfora de um sentimento na sua duração interior: Por exemplo, um desejo obscuro, torna-se pouco a pouco uma paixão profunda. Vereis que a fraca intensidade deste desejo consistiria, primeiro, no fato de vos parecer isolado e como que estranho a todo o resto de nossa vida interna. Mas, pouco a pouco, penetrou 82REGINA ROSSETTI num maior número de elementos psíquicos, tingindo-os, por assim dizer, com a sua própria cor; e eis que o vosso ponto de vista sobre o conjunto das coisas vos parece agora ter mudado. Esse exemplo fala de um primeiro estado psicológico (desejo obscuro) que muda para um segundo estado (paixão profunda). Essa mudança é aquilo que Bergson chama de duração psicológica. Nesse sentido, o tempo interior não é um invólucro dentro do qual os estados psicológicos passam, mas ele é a própria passagem. Um aspecto a ser observado é que não ocorre um aumento quantitativo do sentimento original, não se trata de um desejo que se tornaria maior até ser chamado de paixão. O que de fato ocorre é uma mudança de natureza e não um aumento de grandeza. Por meio da intensificação do desejo primordial, que se torna mais complexo e intenso ao adquirir novos elementos, ocorre uma mudança qualitativa no sentimento que gradativamente muda de natureza e torna-se paixão, como um novo sentimento qualitativamente diferente do desejo. Nesse momento, fica claro o caráter criador do tempo que faz surgir novas realidades, no caso, faz surgir um novo sentimento. Essa paixão surgida torna-se cada vez mais forte e vai aos poucos tomando conta da alma inteira, impondo seu movimento à totalidade da vida psíquica. Essa integração ocorre porque no tempo vivido há uma continuidade dinâmica dos estados psicológicos, na consciência tudo está conectado a tudo. A consequência é que a alma toda se torna, aos poucos, apaixonada. A razão dessa expansão é o fato de que na interioridade tudo é solidário e, por isso, uma nova tendência pode impregnar a alma inteira, a nova paixão pode impregnar tanto as percepções presentes quanto as recordações passadas, dando-lhes um novo tom. O novo sentimento modifica inclusive o passado guardado na memória dando-lhe novo significado; tudo se renova ao ser visto pelo novo olhar, porque o passado não está separado do presente, mas nele se prolonga, por meio da continuidade temporal. Do mesmo modo, mas em outro sentido da mesma via, as percepções e recordações contribuem para tornar ainda mais complexa e mais intensa a paixão que se instaurou. SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA83 Seria preciso, pois, evocar a imagem de um espectro com mil nuances, com degradações insensíveis que fazem com que passemos de um tom a outro. Uma corrente de sentimento que atravessaria o espectro tingindo-se, de cada vez, com cada uma das nuances, experimentaria mudanças graduais, cada uma anunciando a seguinte e resumindo nela as que precedem. (BERGSON, 1984, p. 16) Importante é perceber, por meio desse exemplo, a sucessão e a interpenetração dos estados psicológicos acontecendo. A nova paixão que surge é um prolongamento do estado anterior, o desejo; não se pode definir onde termina um estado e começa o outro, por causa da interpenetração recíproca dos estados envolvidos que se fundem, se penetram, sem contornos precisos, sem estabelecerem entre si fronteiras exteriores. O movimento de fusão é crescente visto que tudo na alma integra-se num todo e, assim, não existem rupturas; logo, desejo e paixão não somente se prolongam um no outro como também se fundem com outros estados da alma, modificando-os e sendo modificado por eles, o que torna o conjunto mais complexo e profundo, num progresso contínuo de mudanças de natureza que constitui o próprio tempo duração. A consciência humana é o modo privilegiado de acesso ao tempo em geral, porque nela o tempo não é uma representação lógica, mas é o tempo vivido. A experiência vivida do tempo pela consciência é sentida como um fluxo de diferenças de estados psicológicos heterogêneos que se sucedem incessantemente e mudam constantemente, substituindo-se uns aos outros e variando continuamente, como no exemplo do desejo que se torna paixão. Essa duração interior é uma passagem, um processo de mudança incessante, mas de uma mudança essencial, que é a própria substância do eu que dura; o homem como ser temporal é um fluxo incessante de seus estados de consciência, num único e contínuo devir interior. A consciência humana na sucessão indistinta e contínua de seus estados é temporal por excelência. Assim, num movimento de introspecção é possível alcançar o tempo real durando no eu profundo do psiquismo humano. Ao tratar da temporalidade do acontecimento comunicacional, Marcondes Filho (2016) identifica essa vivência comunicacional do tempo no cinema, na música e na fotografia. Esse tempo duração é o tempo interno do receptor e do emissor, cujas lembranças e atenção ao futuro 84REGINA ROSSETTI fazem com que se integre à mensagem e flua no movimento do processo comunicativo. É o tempo do espectador que flui ao assistir o filme no cinema, sentindo e vivendo a história que é narrada. É o tempo criador do publicitário que cria uma nova propaganda a partir de uma intuição. É o tempo que não se sente passar quando se navega na internet. O tempo interno do receptor e do emissor tem ritmos de duração variáveis. Em Matéria e memória, Bergson (1990, p. 170) fala dos vários ritmos da duração correspondentes aos seus níveis de intensidade, “em realidade, não há um ritmo único da duração; é possível imaginar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou mais rápidos, mediriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências, e deste modo, fixariam seus respectivos lugares na série dos seres.” As durações internas, próprias das consciências envolvidas no processo de comunicação, possuem ritmos próprios e podem ora acelerar, ora alentar-se conforme o estado de espírito desses participantes. Assim, em certos momentos, podem coincidir com o tempo cronológico das mensagens e dos meios, mas podem também divergir desse tempo cronológico. TEMPO CRONOLÓGICO: AS MENSAGENS E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Mas nem sempre o homem se vê como um ser temporal. Habituado à exterioridade material e espacial do mundo, muitas vezes se equivoca e se representa em um tempo espacial de caráter cronológico. A verdadeira multiplicidade qualitativa da consciência é interna, sucessiva e somente aparece na pura duração, porque é uma multiplicidade temporal e não espacial. (DELEUZE, 1989, p. 30) Própria dos estados internos da consciência, que se sucedem fundindo-se e a cada nova fusão mudando por completo sua natureza. Na duração interna, tudo se modifica o tempo todo porque o progresso dos estados psicológicos é dinâmico; se algo se solidifica, é porque o homem se deixa representar, ilusoriamente, a si mesmo, como se existisse num tempo homogêneo e espacial. A representação da duração psicológica como uma multiplicidade quantitativa e homogênea é ilusória e se origina de uma invasão imprópria do espaço no âmbito da pura duração. Nessa ilusão está a raiz do conceito de tempo cronológico. SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA85 O tempo cronológico é o tempo do senso comum e da ciência. Por ser um tempo que pode ser dividido em partes e mensurado em medidas temporais – séculos, anos, dias, horas, minutos, segundos – é o tempo dos cronômetros, dos relógios e dos calendários. O tempo cronológico tem por característica fundamental a divisibilidade, ele pode ser dividido em partes, estas partes em partes menores e, assim, indefinidamente. Esse tempo pode ser cíclico ou linear, mas de qualquer modo, submetido a uma escala de medidas. Quando cíclico, se pode, por exemplo, pensar nas estações do ano, na geração e corrupção da vida, nas fases da lua e, assim, contar os momentos temporais: quatro estações, quatro fases da lua, as gerações que se sucedem. Quando linear ele também pode ser contado: os dias que passam, os anos que se tornam décadas, séculos; tempo sem retorno, sempre em frente. Linear, exatamente porque uma linha pode ser dividida em partes e suas partes relacionadas a números e os números contados. Assim, o tempo cronológico é um tempo quantitativo. A concepção de tempo cronológico existe desde a Antiguidade. Para Aristóteles (1996) o tempo pode ser apreendido juntamente com a percepção do movimento, ou seja, ao se perceber um movimento qualquer, interno ou externo ao observador, percebe-se juntamente que o tempo passa. Assim, segundo Aristóteles (1996, p. 36 ), o tempo está relacionado com o movimento, sendo dele a sua medida: “o tempo é o número do movimento conforme o antes e o depois”. O tempo é um número, isto é, a medida do movimento segundo o antes e o depois, o anterior e o posterior, então, têm-se aqui claramente a identificação do tempo com a parte do movimento que pode ser mensurável. O tempo pensado como sucessão temporal inclui conceitos como antes, agora e depois. O antes, o agora e o depois são partes do tempo que podem ser justapostas umas as outras por terem limites definidos entre si, isto porque são partes exteriores umas as outras, o antes termina quando começa o agora e o depois começa quando termina o agora. O tempo é uma espécie de número, pois pode ser medido. Das concepções antigas de tempo, a aristotélica é a que teve maior influência nas definições posteriores de movimento, chegando até a modernidade. O tempo cronológico é também o tempo dos modernos Descartes, Newton, Leibiniz, Kant que consolidaram esse conceito científico de tempo. 86REGINA ROSSETTI De maneira simplificada, pode se dizer que as ideias fundamentais modernas acerca do tempo seguem o modelo de suas ideias acerca do espaço. Dito de outro modo, modernamente, cientistas e filósofos trataram o tempo como se ele fosse espacial, transferiram as características do espaço para conceituar o tempo. Isto porque, estavam interessados em entender o tempo em sua relação com as coisas, com os fenômenos da natureza, com a exterioridade circundante e com a matéria. Mas o tempo cronológico não é o tempo real. Este conceito surge da aplicação imprópria de noções como quantidade, extensão e espaço à concepção do tempo duração, deformando o tempo-qualidade vivido pelo eu, transformando-o no tempo-quantidade representado pelo espaço. Tal deformação, no fundo, ocorre porque se confunde a verdadeira duração da consciência com sua representação simbólica, ou seja, substitui-se o tempo pelo espaço. Bergson (1989, p. 73) explica como se processa esta confusão entre tempo e espaço “[...] em resumo, projetamos o tempo no espaço, exprimimos a duração pela extensão, e a sucessão toma para nós a forma de uma linha contínua, ou de uma cadeia, cujas partes se tocam sem se penetrar”. O tempo cronológico não é a verdadeira duração, mas um conceito híbrido, formado por meio da representação espacial que introduz seus cortes descontínuos na sucessão interna, heterogênea e contínua da duração psicológica. Há um espaço sem duração, mas onde fenômenos aparecem e desaparecem simultaneamente com os nossos estados da consciência. Há uma duração real, cujos momentos heterogêneos se interpenetram podendo cada momento aproximar-se de um estado do mundo exterior que é dele contemporâneo e separar outros momentos por efeito dessa aproximação. Da comparação destas duas realidades nasce uma representação simbólica da duração, tirada do espaço. A duração toma assim a forma ilusória de um meio homogêneo. (BERGSON, 1989, p. 78) O tempo cronológico é apresentado como um meio homogêneo onde os fatos da consciência se alinham e se justapõem formando uma multiplicidade quantitativa e onde cada estado separadamente se sucede um após o outro, sendo assim, é uma representação absolutamente distinta da verdadeira duração. Quando se define o tempo desta forma o que SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA87 se está definindo na realidade é o espaço e a verdadeira duração não tem a menor relação com o espaço. Na raiz do problema, está a confusão que se faz entre tempo e espaço quando não se percebe que os estados psicológicos e toda vida psíquica são de natureza temporal e não espacial. A partir desta confusão, tem-se a representação de um eu superficial e de uma multiplicidade quantitativa dos estados da consciência porque se concebe a vida psíquica existindo no espaço e representada em um tempo espacial. Em suma, o tempo cronológico é um tempo ilusório porque na verdade ele é de natureza espacial e não temporal. Bergson distingue entre o tempo duração e o tempo espacial. A duração é o tempo que passa incessante e contínuo, é a própria essência da realidade, tempo real que dura e que passa continuamente transformando tudo, sendo ele próprio mudança. O tempo cronológico é apenas o espaço camuflado de tempo, é um tempo ilusório originário da confusão entre tempo e espaço. Somente a duração é a essência do tempo real e que o tempo cientificamente conhecido é, em sua realidade última, espaço. Em suma, a crítica de Bergson destaca que a ilusão acontece porque se confunde o tempo-duração – o intensivo, o interno e o qualitativo – com o espaço, o extensivo, o externo e o quantitativo, assim desnaturando os estados de consciência e impossibilitando seu real conhecimento. Se o tempo duração é o tempo do emissor e do receptor, o tempo cronológico é o tempo dos objetos de comunicação. O tempo cronológico é o das mensagens e dos meios. É o tempo que mede o tamanho temporal de uma mensagem. É o tempo dos meios de comunicação que seguem uma sequência predeterminada e cuja interferência do receptor é restrita. É o tempo que mede a duração dos produtos da comunicação: duas horas de filme na sessão de cinema, meia hora do episódio da série, 30 segundos da propaganda comercial, a hora que começa e termina a Voz do Brasil no rádio. INTEMPORAL: AS MÍDIAS DIGITAIS NO LIMIAR DO NÃO TEMPO A sociedade em rede midiatizada transformou o conceito de tempo, passou do cronos ao aión, isto é, do tempo cronológico ao tempo eterno. O tempo cronológico é linear, irreversível, mensurável e previsível e embora ainda 88REGINA ROSSETTI domine em grande parte as sociedades tradicionais, vem sendo fragmentado na sociedade em rede dando lugar a um tempo não linear, aleatório e incursivo, que Castells (2005, p. 523) chama de tempo intemporal. Proponho a ideia de que o tempo intemporal, como chamo a temporalidade dominante de nossa sociedade, ocorre quando as características de um dado contexto, ou seja, o paradigma informacional e a sociedade em rede, causam confusão sistêmica na ordem sequencial dos fenômenos sucedidos naquele contexto. (CASTELLS, 2005, p. 556, grifo do autor) Essa confusão sistêmica na ordem temporal de sucessão dos fenômenos ocorre por dois motivos: quando a ordem cronológica das ocorrências desses fenômenos é comprimida ao limiar da instantaneidade ou quando uma descontinuidade aleatória é introduzida na sequência. Essa supressão da sequência cronológica, seja pelo instantâneo seja pelo descontínuo, cria um tempo não diferenciado, equivalente ao intemporal. O intemporal pode ser definido como o não tempo ou como a eternidade instantânea. Essa recusa do temporal pode ser compreendida ao se analisar a ligação intrínseca do tempo com o conceito do não ser. O tempo duração é definido como sendo a própria mudança da realidade. Essa mudança, por sua vez, é compreendida como sendo a passagem do ser ao não ser, porque algo somente muda quando passa a ser aquilo que não era. Assim, o tempo, como mudança, traz em seu bojo, as noções de ser e não ser. Essa implicação do não ser no tempo, leva-o a ser considerado pelos filósofos como algo que não pode ser positivado completamente. Ou seja, se tempo é mudança, ele é necessariamente marcado pelo não ser, o que implica na impossibilidade ontológica de ser definido positivamente. Sendo uma realidade que escapa a uma definição, somente resta a tradição de pensamento problematizá-lo. E a filosofia que melhor espelhou essa recusa natural do tempo foi a platônica. Platão define o tempo como a imagem móvel da eternidade. Para chegar a essa noção de eternidade, o platonismo se utilizou metodicamente da atividade de isolamento, parcelamento, paralisação e reestruturação do movimento temporal, em função de sua concepção extratemporal do ser inteligível. Segundo a análise que Moutosopoulos (1980, p. 44) faz: primeiro, a realidade é confinada em estados isolados no intemporal estático, SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA89 como unidades acabadas chamadas de essências; depois, essas unidades acabadas e isoladas, que não estão submetidas a nenhum devir, acabam por adquirir uma permanência absoluta e tornam-se imutáveis; por fim, a reestruturação mental da realidade implica uma mudança de disposição da inteligência frente ao visado imóvel, e assim, a essência é concebida por Platão como sendo eterna e fora do fluxo do tempo. A razão da utilização deste mecanismo está na própria atitude platônica que é dualista: parte fundada sobre o ser, e noutra parte fundada sobre o devir. Esse dualismo dá passagem a uma metafísica estática que põe o princípio da realidade, a Ideia, no ser imutável e eterno. É conhecida a tese bergsoniana do mecanismo cinematográfico da inteligência para explicar visões de mundo que negam o tempo, como a platônica. Quando se passa por fora do devir, a consequência é uma visão cinematográfica das coisas e dos seres, visão que também pode ser encontrada na Filosofia das Ideias de Platão, quando se constata a imutabilidade e a intemporalidade da essência do real, a ideia. “O que significa que se chega à filosofia das Ideias quando se aplica o mecanismo cinematográfico da inteligência à análise do real”. (MOUTOSOPOULOS, 1980, p. 44) A partir da constatação do método cinematográfico da inteligência, o termo eídos, além de significar forma ou ideia, também pode ser traduzido por visão ou momento. Nesse sentido, eídos pode ser entendido como um momento do devir ou uma visão estável da instabilidade das coisas: a qualidade é um momento do devir, a forma é um momento da evolução, a essência é a forma média antecipada do movimento, o desenho inspirador do ato acabado. A Filosofia das Ideias reduz as coisas às ideias, porque abstrai do devir seus momentos principais, como se tirasse fotografias dos momentos essenciais do fluxo das coisas, aplicando o mecanismo cinematográfico da inteligência à análise do real. Quando se raciocina por meio deste mecanismo, fazendo sobressair artificialmente instantes privilegiados do decorrer contínuo e indivisível do devir universal, a representação do real daí decorrente é exatamente aquela que se encontra na filosofia antiga, na Filosofia das Formas e no Platonismo. A ontologia platônica, fundada na teoria das ideias, concebe o ser num campo extratemporal, extraduração e, embora reconheça que os seres correspondam a dados sensíveis numa certa temporalidade do devir, 90REGINA ROSSETTI insiste que em suas essências inteligíveis eles são isolados do devir, ou seja, são intemporais e eternos. (MOUTSOPOULOS, 1980, p. 48) Isso porque o platonismo tem uma visão idealizada do mundo e sua teoria das ideias pode ser qualificada como o resultado de se conceber o devir a partir de uma ilusão da inteligência. Para o Platonismo, o tempo não é mais do que uma aparência que a razão rejeita, como sendo contrária aos princípios, longe do qual buscará o fundamento permanente do mundo inteligível. Portanto, a Teoria das Ideias de Platão, ao conceber as ideias como entidades autônomas, imutáveis, isoladas do devir, intemporais e eternas, elevando-as ao estatuto de essência da realidade, acabam por idealizar um princípio exterior e imutável para a realidade movente, um princípio que é eterno e que não dura porque está fora do tempo. Processo esse resultante da aplicação do mecanismo cinematográfico da inteligência e da percepção, que parte do princípio, ilusório, de que o movimento é feito de imobilidades e de que o tempo é feito de instantes. Em Platão, não se trata de uma filosofia da duração, mas de uma filosofia do instante essencial. A filosofia antiga procede da mesma forma que o mecanismo cinematográfico da inteligência e da percepção: instala-se no imutável e só conhece Ideias eternas, isto é, a forma paralisada do movimento. As grandes linhas da doutrina que evolui desde Platão até Plotino, passando por Aristóteles [...] desenham a visão que uma inteligência sistemática terá do devir universal quando olhar para ele através de instantâneos tomados de longe a longe sobre o seu decorrer. (BERGSON, 1971, p. 307) A filosofia grega permaneceu prisioneira da inteligência e concebeu uma metafísica do princípio imutável e eterno que negligencia o movimento e o tempo real, relegando-os a uma posição secundária e artificial, ignorando assim seu caráter primordial, que se revela quando a realidade é intuída em sua essência temporal. No mundo atual, a busca pelo instantâneo é uma tendência cada vez mais efetiva. O homem vive no limiar do atemporal em que tudo deve acontecer o mais rápido possível e essa aceleração contínua dos processos leva a uma compressão da passagem temporal até o limite do instantâneo. Chega ao limiar do não tempo, impulsionado pela imediatez SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA91 dos processos tecnológicos. E o mercado, para satisfazer o desejo de supressão da passagem do tempo que tanto incomoda, lança produtos com processamentos cada vez mais rápidos. No campo da comunicação social, a aceleração temporal é evidente em diversos processos: aplicativos como o WhatsApp, transmissão ao vivo via redes sociais, tradução simultânea automática, troca de informações pelo Twitter, imagens instantâneas do Instagram, respostas imediatas às mensagens recebidas, o uso de múltiplas telas simultâneas. A internet não somente aproximou os espaços como diminuiu o tempo das operações humanas. O tempo na contemporaneidade tornou-se um não tempo. O intemporal define a temporalidade das mídias digitais em que o instantâneo e o imediato constituem a meta do produtor e o interesse do usuário. MOTIVOS NATURAIS DA RECUSA DO TEMPO Essa busca pelo instantâneo e pela supressão da passagem do tempo é impulsionada por uma tendência natural no ser humano. Embora o homem esteja no tempo e seja um ser temporal, ele naturalmente repudia o tempo, movido pelo instinto de preservação da vida. Isso acontece porque o tempo porta em si mesmo uma contradição básica entre o ser e não ser, ou seja, entre o aparecimento e desaparecimento das coisas. E o problema está nesse desaparecimento, pois nada é mais contrária a vida do que o desaparecer, isto é, a morte. A vida, cujo estofo temporal marca o nascimento, crescimento e morte dos seres vivos, carrega em si uma força extraordinária de permanência, dito de outro modo, a vida luta contra a morte, mas a passagem do tempo leva a degradação e a morte do corpo vivo. Se as coisas não surgissem e não desaparecessem seriam eternas e a eternidade é a ausência da passagem do tempo. Assim, a experiência do tempo, ao mesmo tempo em que define o humano, aflige e causa uma atitude de repudio a sua passagem. Movido por interesses úteis à ação, espontaneamente o ser humano substituí o tempo duração, o verdadeiro tempo da existência e da consciência, pela ilusão do tempo cronológico da ciência e da vida cotidiana. Ao introduzir a ideia de espaço na pura duração, chega se à ideia de um tempo cronológico, homogêneo e sem qualidade. Essa intromissão inde- 92REGINA ROSSETTI vida tira do tempo seu essencial, isto é, a duração e, consequentemente, tira também a ideia de que as coisas são e depois deixam de ser, aparecem e desaparecem. Desse modo, o tempo cronológico derruba aquilo que ameaça da manutenção da vida. Como animal inteligente, o ser humano foi criado, pelo processo de evolução da vida, para agir. Instinto para os animais e inteligência para o homem: duas soluções para o problema da mudança substancial da realidade visando a manutenção da vida, a adaptação pragmática a realidade e a sobrevivência. Assim, a maneira intemporal de pensar, de perceber, de falar e de agir ignorando a passagem do tempo é natural no ser humano. É a forma que a natureza encontrou de formar o homem para a vida social, onde a linguagem é necessária para os relacionamentos sociais e onde a visão da estabilidade das coisas permite não somente a comunicação, mas também a ação sobre o mundo. A necessidade de supressão do tempo acaba por moldar as condições de representação da realidade. Para se adaptar ao mundo o homem tem que representá-lo como estável, homogêneo, como uma totalidade bem dividida e bem articulada, como uma multiplicidade que possa ser reduzida a uma unidade e como uma diversidade que possa ser reduzida a uma identidade. Esse recorte da realidade feito pela inteligência humana visa entrar em acordo com ela e, assim, criar condições cognitivas para operar no mundo. Trata-se de um modo pragmático de se adaptar ao real. A ação humana depende dessa estabilidade e dessa forma de representar. Pelo processo de simbolização o homem traduz a realidade móvel em um objeto imóvel e traduz o tempo duração em um tempo cronológico. A inserção humana eficaz e produtiva no mundo deve excluir a essência do tempo, isto é, deve excluir a passagem, a heterogeneidade, a mutação e a diferença. Esse recorte no devir e essa tradução simbólica do fluxo temporal não permite que o homem veja a realidade tal como ela é, mas como ela aparece a percepção voltada para a ação visando a preservação da vida. Portanto, finalidades práticas estão presentes nas condições de representação da realidade. Para agir, há a necessidade de se estabelecer uma imagem operacional da realidade, que paralisa o fluxo contínuo de diferenças e anula a duração. E quando se depara com esse fluxo de duração o homem necessita subordiná-lo a lógica da estabilidade. Essa subordinação SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA93 implica em recortar, articular, simbolizar, traduzir o devir. Esses procedimentos aplicados ao tempo geram uma imagem fixa do tempo e uma concepção intemporal da existência. Por um esforço da inteligência e movido pela necessidade de sobrevivência, o homem anseia pelo intemporal e se representa existindo mais no tempo cronológico do que no tempo real que dura. Essa visão de mundo não temporal é a forma que governa a ação, a ciência e o conhecimento e impulsiona a construção de instrumentos tecnológicos que suprimem o tempo e permitem a humanidade viver em um mundo onde não é mais necessário esperar para que as coisas aconteçam, dando a reconfortante sensação de que, finalmente, se pode viver na eternidade. Movido pelo impulso vital, o homem tende a traduzir o tempo no sentido da persistência do ser e na busca pela imortalidade quere o instantâneo e o imediato do intemporal, de um tempo cuja passagem foi finalmente suprimida. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os meios de comunicação de massa tradicionais possuem uma temporalidade cronológica. Ao assistir uma novela, o telespectador deve respeitar a ordem de aparição dos capítulos seguindo o tempo cronológico de exibição imposto pela emissora. Entretanto, os meios evoluíram no sentido de dar mais autonomia ao receptor, que não precisa mais se subjugar ao tempo cronológico, chegando ao ponto de poder suprimi-lo. Com o advento das mídias digitais e da internet, os fluxos temporais se alteraram, o usuário pode interromper a ordem de aparição dos fenômenos de forma aleatória. Não há mais a imposição de um tempo linear. Os processos midiáticos podem ser imediatos e instantâneos sem a necessidade de esperar pela passagem do tempo, o que leva a expectativa da existência de um tempo intemporal. Todavia, para além do tempo cronológico e do intemporal, existe o tempo duração, que é o tempo interno do telespectador e do usuário. Se comparado aos dois primeiros esse é o único tempo realmente verdadeiro, pois é o tempo vivido, que passa incessantemente é não pode ser interrompido ou alterado. O tempo real é a mudança essencial e contínua, tempo que passa incessantemente modificando tudo e que constitui a própria essência da 94REGINA ROSSETTI realidade. Entretanto, não é assim que naturalmente o ser humano percebe a realidade. Preso aos hábitos da inteligência, que visa sua ação no mundo, o homem percebe a realidade como estática, atemporal e passível de ser fragmentada em partes que facilitam seu agir no mundo. Surge, assim, uma concepção espacial da realidade que olha o mundo do ponto de vista da extensão. A essa visão espacial da realidade, escapa o tempo real que flui incessantemente em seu contínuo movimento, porque pensa o tempo nos moldes do espaço e, assim, concebe um tempo ilusório: o tempo cronológico, originado da confusão que inadvertidamente se faz entre tempo e espaço. E a consciência, imbuída de representações espaciais, olha para si mesma e não se reconhece como duração pura, ao contrário, enxerga estados que se sucedem sem se penetrarem, não vê o eu no seu conjunto inter-relacionado, esquece o passado num lugar escondido e sem relação com o presente, torna as sensações e os sentimentos unidades estanques sem movimento, concebe a imobilidade como substrato da realidade. E levando ao limite esse processo, almeja o instante, o imediato e deseja viver fora do tempo, em uma eternidade em que tudo é instantâneo. Construída sob a égide das tecnologias da informação e da comunicação, a nova sociedade em rede almeja resultados imediatos em ações instantâneas. Nas ações midiáticas, a passagem do tempo é um obstáculo que deve ser superado constantemente. No encalço do imediato, da rapidez e da aceleração cada vez maiores dos processos comunicacionais, a sociedade midiatizada busca comprimir o tempo até o limite e acaba por recusar a condição temporal da existência. Essa compreensão do tempo equivale a fazer com que a sequência temporal desapareça, pois tudo deve ser instantâneo e imediato. Isso ocorre porque a percepção, a prática e a teoria, visam à anulação dos efeitos da duração do tempo, visam a criação de instrumentos para adaptar, agir e sobreviver no mundo. A análise da estrutura da percepção e da inteligência mostra que a natureza fez o homem para a ação e não para o conhecimento: homo fabris e não homo sapiens. A ordem natural é conhecer para agir, criar instrumentos de ação e assim, manter e aprimorar a vida. A recusa do tempo deriva da própria evolução de vida que originou o homem e na qual ele está inserido. Disposições naturais originárias psicobiológicas do homem, para a recusa o tempo, para não perceber, sentir, ver o mundo a partir do tempo, mas SUPRESSÃO DO TEMPO NA SOCIEDADE MIDIATIZADA95 da fixidez, eternidade, permanências, substâncias, essências, estabilidade, subsistência, imobilidade. O homem recusa o tempo porque o tempo traz no seu bojo o não ser, repudia sua passagem porque o impulso vital o move a manter indefinidamente a permanência da vida. Mas o tempo real não tem como ser reduzidos aos esquemas lógicos e pragmáticos da inteligência, porque o tempo é liberdade, indeterminação, continua criação, e no sujeito contínua criação de si por ele mesmo. A realidade é tempo e o homem é temporal porque se constitui como um fluxo contínuo de diferenças indefinível. Em sua relação com esses diferentes tempos, o homem é tempo duração, se representa como tempo cronológico e anseia pelo tempo intemporal. Naturalmente, recusa a passagem do tempo porque o impulso vital que o sustenta aspira à eternidade da permanência da vida, sem a morte e sem o fim, e é nesse sentido que a sociedade midiatizada busca suprimir o tempo, construindo um mundo cada vez mais intemporal, marcado pelo instantâneo e pelo imediato. REFERÊNCIAS AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1984. ANTUNES, E. Temporalidade e produção de acontecimento jornalístico. Em Questão, Porto Alegre, v. 13, n. 1, 2007. ARISTÓTELES. Física. Madrid: Gredos, 1996. BALOGH, A. M. O admirável mundo novo: marcas de temporalidade em objetos artísticos e midiáticos. In: ADAMI, A. (Org.). Mídia, cultura, comunicação. São Paulo: Arte & Ciência, 2003. p. 243-250. BERGSON, H. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1971. BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Setenta, 1989. BERGSON, H. Introdução à metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BERGSON, H. Matéria e memória. 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Nesse percurso, utilizamos o conceito de falatório (Gerede), desenvolvido pelo filósofo Martin Heidegger (1976) em sua analítica existencial e dialogamos com a hipótese, construída em Castro (2013, 2014, 2015a, 2015c) de que o conceito heideggeriano de Gerede constitui a experiência comunicativa comum do Dasein,1 na sua vida quotidiana. Acrescentamos a essa perspectiva a proposição de que o falatório conforma-se, também, como a experiência midiática mais fundamental, no sentido de que estrutura, por meio da sua temporalidade quotidiana e inautêntica, o modo como se produz, de forma mais recorrente, a relação das sociedades contemporâneas com a cultura das mídias. 1 Dasein, literalmente ser-aí, é o neologismo utilizado por Heidegger para falar do homem em sua dimensão existencial, ou seja, no ato de se perceber estando presente no mundo sem ter nenhuma certeza ou precisão sobre o que signiica estar no mundo. O Dasein somos todos nós, portanto, em nossa dimensão existencial, quando nos percebemos estando presentes numa totalidade que, à força de tentar dominar, explicar ou tranquilizar, podemos chamar de mundo, de vida, de sociedade, de identidade etc. 97 Nosso objetivo é construir uma possibilidade de abordagem, para a relação entre comunicação e quotidiano, pela via da fenomenologia hermenêutica. Partimos de uma discussão colocada inicialmente num plano filosófico procurando agregar elementos que viabilizem sua construção no plano das ciências sociais. Nesse percurso, nosso referencial inicial são as reflexões de Heidegger sobre a temporalidade inautêntica do falatório e sua relação com a comunicação e a quotidianidade. Dele, seguimos em direção à sociologia fenomenológica de Alfred Schutz (1967, 2012), ensaiando uma compreensão do falatório como forma social intersubjetiva por meio da qual a cultura midiática se produz em termos de sínteses politéticas da realidade, ou seja, se tipifica na vida social. A abordagem fenomenológica da comunicação, talvez, não seja evidente no debate em curso, no Brasil, sobre a natureza do fenômeno comunicacional – sobretudo quando confrontado aos fechamentos epistemológicos presentes na ideia de “campo comunicacional” –, mas acreditamos que Heidegger é um pensador que abordou de maneira tão inovadora a questão do quotidiano e, da mesma forma, as questões da técnica e das tecnologias, que trazê-lo para pensar a comunicação torna-se um percurso instigante. Da mesma forma, Alfred Schutz é um autor que tem se tornado mais conhecido e utilizado, com frequência cada vez maior, na discussão de fenômenos associados à comunicação midiática, como demonstram os trabalhos de Fish e Dorris (1975), Hawes (1977), Azevedo (2009) e Hanks (2013). O artigo constitui-se como reflexão de fundo teórico e metodológico sobre a possibilidade de pensar a relação das sociedades com a cultura das mídias em sua quotidianidade e em sua dimensão temporal. A discussão proposta tem um horizonte teórico e metodológico com o qual buscamos pensar, fenomenologicamente, o fenômeno comunicativo. Nosso intuito é agregar elementos que permitam posteriores aplicações de um modelo de compreensão da dimensão temporal e das formas sociais da temporalidade na cultura midiática. 98FÁBIO FONSECA DE CASTRO A NOÇÃO DE FALATÓRIO EM HEIDEGGER: UMA TEMPORALIDADE INAUTÊNTICA QUE CARACTERIZA A VIDA QUOTIDIANA Iniciamos apresentando o conceito de falatório (Gerede) e discutindo seu papel na formação da experiência do estar-junto-com-outros numa data quotidianidade – nos termos heideggerianos uma experiência de ser-entre-outros (Mitsein), dimensão imanencial do ser-aí (Dasein), estruturalmente comunicativa, que Heidegger associa, diretamente, à experiência da vida quotidiana. Dessa maneira, procuramos compreender a experiência comunicacional contemporânea, sobretudo em relação à mídia, ou da tecnologia, por meio do debate aberto por Heidegger. Meschonnic (1990, p. 190) sugere que a origem da noção heideggeriana de Gerede está na oposição entre autêntico (eigentlich) e inautêntico (uneigentlich) presente no curso de Husserl de 1905 sobre a questão do tempo, e, antes dele, em Brentano, para quem uneigentlich designava uma experiência de natureza intuitiva e vivencial e eigentlich designava o simbólico, aquilo que usa signos, e, assim, constituía uma experiência mais reflexiva e consolidada em dada cultura. Husserl desloca as proposições de Brentano para uma dimensão fenomenológica e Heidegger, ainda de acordo com Meschonnic (1990, p. 190), utiliza a noção de uneigentlich para fazer valer o estatuto de “degradação” que acompanha a sua Gerede. Degradação no sentido de queda (Verfallen) de um estado temporal transcendente e reflexivo num estado temporal imanencial e quotidiano. Assim, ao descrever a relação entre o ser, que somos nós, reflexivamente (ontologicamente) e o tempo, que constitui a possibilidade de duração projetada por esse ser, Heidegger estabelece duas formas, ou modos, de temporalidade: uma delas autêntica, por meio da qual o ser, um dado Ser-aí (Dasein), percebe a sua finitude temporal e a sua condição existencial única e problemática e, outra, inautêntica, por meio da qual esse mesmo Ser-aí se dispersa na vida quotidiana, perdendo de vista a questão de sua problemática existencial e tornando-se parte de uma multidão de seres-aí num processo de dispersão ontológica. A passagem do autêntico para o inautêntico não constitui um fato definitivo e nem um fato negativo. Bem ao contrário, ir de um modo ao outro constitui uma rotina na existência do Ser-aí, um fato humano maior, TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE99 uma dinâmica ontológica necessária à própria dinâmica reflexiva do indivíduo, sempre dividido entre sua existência unitária e sua facticidade coletiva. A temporalidade inautêntica do Ser-aí, expresso por meio do falatório e de suas condições complementares, conforma-se como dispersão no quotidiano e na coletividade. E se materializa por meio de um compreender medíocre (durchschnittlichen Vertehens) (HEIDEGGER, 1967, p. 168), como indiferença e fechamento (Verschliessen) e como uma ausência de fundamento (Bodenlosigkeit). (HEIDEGGER; 1967, p. 169) No entanto, é através do falatório, nele próprio e contra ele, que concretiza-se toda compreensão, interpretação e comunicação, bem como toda redescoberta e renovação. (HEIDEGGER; 1967, p. 169) Heidegger (1967, p. 170) define o falatório como um “desenraizamento existencial”. O que quer isso dizer? Analisando com a frieza fenomenológica, não se trata de avaliar moralmente a cultura e recair num negativismo ou num pessimismo e nem, tampouco, de oferecer ao homem novas e sofisticadas elucubrações de identidade, tornando-o um novo “sujeito”, híbrido, trans ou pós-cartesiano. Trata-se, apenas, de perceber, fenomenologicamente, o caráter de estrangeiridade (Unheimlichkeit) do Dasein contemporâneo, um caráter centrado na angústia existencial que desde sempre moldou o Dasein e que, na contemporaneidade, a partir da modernidade, ganha novos contornos. Assim, em síntese, o termo “Gerede” é usado por Heidegger para referir uma forma da temporalidade inautêntica, um existenciário inverso, que distancia o indivíduo – o Ser-aí, o Dasein – da sua temporalidade fundamental e essencial, que é a temporalidade da sua finitude. É o contrário de Rede, discurso, aquilo que é dito com pertinência, com coerência e com consequência em relação à dimensão ontológica desse Ser-aí que se realiza no tempo. Contrário porque se distancia dessa ontologia, carregada de solidão e fadada à finitude, e, o fazendo, imiscui-se num não saber repetitivo e numa repetição permanente, numa temporalidade coletiva que o torna, centralmente, um ser-com-outros (Mitsein). É fundamental não confundir quotidianidade com inautenticidade. Os dois conceitos não são análogos. Von Herrmann (2008) relaciona o primeiro desses fenômenos com quilo a que Husserl chamava de vida 100FÁBIO FONSECA DE CASTRO pré-científica e demonstra como o “Da”, de Dasein, o seu Aí, possui uma dupla dimensão, uma dupla abertura: de um lado, a abertura extática (selbsthaftekstatische) que a existência tem a propósito dela mesma e, de outro, uma abertura para o próprio ser do ente que o Dasein é, efetivamente, no seu mundo – e assim, portanto, uma abertura existencial. As duas aberturas não são estanques, mas complementares e fazem com que a existência humana seja uma eterna sucessão entre a temporalidade autêntica evocada por essa abertura existencial e a temporalidade inautêntica, evocada por essa abertura extática. Assim, pode haver autenticidade na quotidianidade e, por outro lado, a inautenticidade não deve ser pensada como algo negativo, e sim como um necessário desligamento, por assim dizer, da condição existencial densa do estar-no-mundo e Ser-aí. Efetivamente, para esse Dasein que é temporalmente e que se realiza na medida de sua própria temporalização, se trata de uma necessária oportunidade de viver o tempo comum e banal, o tempo do quotidiano, de ser consigo mesmo (bei ihm selbst) – no sentido de “dar um tempo”, de maneira a prospeccionar descuidadamente a temporalidade dos outros. Trata-se de uma temporalidade extática, que tem a faculdade de projetar o Dasein para a banalidade do mundo. Gerede, assim, significa senso comum, opinião corrente, bate-papo. Falatório. O essencial do Gerede é justamente o senso comum, aquilo que é sabido por todos como impressão, não necessariamente como conhecimento de uma realidade, via pela qual Heidegger associa o termo à publicidade – no sentido de opinião geral, ou opinião pública (Öffentlichkeit) – algo que, uma vez tornado acessível, é passível de ser usado, comentado e referido por qualquer um e, assim, não constitui uma verdade, propriamente, mas uma impressão vaga. Isso se torna patente quando se observa que a palavra é formada por Rede, discurso, e pelo prefixo Ge-, que, na língua alemã, ainda que indiretamente, evoca certa dubiedade, como em Gebirge, conjunto de montanhas, mas não uma montanha, em especial, e Gesicht, palavra que, embora traduza diretamente face, rosto, também sugere o coletivo de Sicht, um passar a vista, um olhar superficial, um espiar, uma olhadela, forma de percepção carregada de intuição. Gerede é o conjunto do que é referido e, em consequência, o excesso de sentidos com o consequente vazio de sentidos que dele decorre. Um falar banal, TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE101 iterativo, repetitivo, razão pela qual o compreendemos, em português, como falatório. O Dasein que se atém ao falatório se distancia cada vez mais de seus vínculos ontológicos com o mundo. Ele se desenraíza. É um fenômeno presente no humano, em geral, mas que encontra novas forças, novas dinamizações, com os processos de tecnologização da experiência social e particularmente com a tecnologização da experiência comunicativa. A cultura midiática – e, por extensão, a cultura pop, ainda que esta não seja um produto meramente extensivo da primeira – constituiria, a nosso ver, uma espécie de equivalente textual dessa banalidade quotidiana da temporalidade inautêntica do Dasein. Não se trata de associar a noção de inautenticidade ao debate sobre a alienação e nem à leitura dominante que se costuma fazer do pensamento frankfurtiano, a qual compreende de maneira sombria e negativa a relação entre a tecnologia e a cultura discutida por Horkheimer e Adorno (1985), mas de perceber que o processo da dispersão ontológica constitui um movimento básico de todo existir humano, o qual se potencializa por meio da tecnologia. Nesse sentido, o conceito de cultura das mídias que utilizamos não corresponde, exatamente, ao utilizado por Santaella (2003), mas aproxima-se ao debate de Selton (2010), que parece empenhar-se numa percepção mais antropológica da questão. Santaella (1992, 2003), como se sabe, discute a variedade e as interrelações entre diferentes formas culturais: a cultura oral, a cultura escrita, a cultura impressa, a cultura de massas, a cultura das mídias e a cultura digital, ou cibercultura. A cultura das mídias, para essa autora, situa-se entre a cultura de massas – na qual a sociedade seria dominada por vetores culturais provenientes da indústria cultural – e a cultura digital – na qual coexistem múltiplos fluxos de produção e intervenção da cultura. Entre essas duas dimensões, uma mais fechada e outra mais aberta, a cultura das mídias consistiria numa experiência social peculiar de produção, distribuição e consumo comunicacionais, marcada pela possibilidade da integração entre processos de emissão e de recepção. (SANTAELLA, 2003, p. 24) Setton (2010), por sua vez, compreende a cultura das mídias como um contexto de produção de conteúdos que expressam, mais do que simples fluxo de informação, sentidos e valores da experiência social, assim 102FÁBIO FONSECA DE CASTRO contribuindo para a transformação e para a criação de novos sentidos e valores. Pensamos ser interessante deslocar o debate da sua dimensão categorial ou de uma percepção baseada na ideia de fluxo, para sugerir que cultura das mídias não corresponde, necessariamente, à uma prática cultural pós-massiva e nem pré-digital, caracterizada pela acessibilidade do uso dos dispositivos midiáticos, mas, simplesmente, à experiência social de uma sociedade culturalmente associada à tecnologia da comunicação. Nesse sentido, inclusive, é preciso considerar que a ideia de cultura das mídias não está ausente do próprio pensamento de Horkheimer e Adorno que, de certa maneira, para além da narrativa sombria e apocalíptica que acompanha sua interpretação dominante, parece ser, mais do que o diagnóstico de uma situação de dominação incontornável, a compreensão crítica de que a tecnologia da comunicação leva a uma situação de ubiquidade que caracterizaria a contemporaneidade. A discussão de Kellner (1995) a respeito da teoria crítica parece indicar essa percepção, como indica Hepp (2015), quando coloca que a sociedade e a cultura são “colonizadas pela cultura das mídias”, a “cultura das mídias passou a dominar a vida cotidiana, servindo como pano de fundo ubíquo e geralmente o primeiro plano altamente sedutor da nossa atenção e atividade”. (KELLNER, 1995, p. 3 apud HEPP, 2015, p. 5) De fato, pensamos não ser possível encontrar uma conceituação ou uma caracterização de ordem geral para definir o que seja a cultura das mídias. Mais apropriado seria compreendê-la como um conjunto heterogêneo de práticas, dinâmicas e expectativas socioculturais presentes na mediação cultural dos conteúdos comunicativos, particularmente de conteúdos midiáticos e no agenciamento desses conteúdos, de forma tipificada (SCHUTZ, 1976), por meio dos grandes processos presentes na vida social, como a política, a economia, a religiosidade e o gosto, dentre outras. Ainda assim, é preciso acrescentar variáveis temporais, étnicas e contextuais para referir essa cultura das mídias: os conjuntos heterogêneos de práticas dinâmicas e expectativas também transformam-se conforme a experiência étnica e/ou contextual das populações e, também, conforme a experiência temporal das gerações. TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE103 Algumas características, no entanto, parecem indicar elementos presentes nessa imensa variedade de componentes e possibilidades do que possamos referir por cultura das mídias. Nos parece que a principal delas é, justamente, o estado de imersão em um ser coletivo caracterizado pela dispersão ontológica. Ou seja, caracterizado pela ausência de senso crítico, de incômodo existencial, de positividade das condutas organizativas e de mediação do mundo pela tecnologia. A CURIOSIDADE E O EQUÍVOCO: DOIS FENÔMENOS COMPLEMENTARES AO FALATÓRIO O falatório anda de par com duas outras formas de obscurecimento, ou fechamento, do mundo – efetivamente, de imersão do Ser-aí numa temporalidade inautêntica: a curiosidade (Neugier) e o equívoco (Zweideutigkeit). A curiosidade é a compreensão na vida quotidiana. O equívoco, por sua vez, é a explicitação na vida quotidiana. No §36 de Ser e Tempo, Heidegger trata da maneira como o discurso, degradado, se torna “curiosidade” (Neugier). Trata-se da degradação do compreender na quotidianidade. O existenciário “compreender” decorre do permanente interesse do Dasein pelo mundo e pelos outros. Essa condição de interesse permanente confere ao Dasein uma de suas características principais, a reflexividade, e, portanto, o próprio mote de sua dimensão ontológica. Porém, quando esse movimento de “compreensão” recai no quotidiano e banaliza-se ele se torna um mero espiar, um ver por ver, ou melhor, um olhar por olhar. A compreensão no quotidiano é a curiosidade. Nesse momento, “não é mais para compreender o que é visto, ou seja, para aceder a um ser para o que é visto, mas somente para ver”. (HEIDEGGER, 1967, §36) O que caracteriza a curiosidade é a dispersão. É o procurar do novo-pelo-novo. É a compulsão da moda, do despender, gastar, o amor pelo supérfluo, o zapping, o jornalismo de banalidades, a cultura midiática, a pornografia. A curiosidade, na discussão de Heidegger, tem três dimensões. A primeira delas é sua instabilidade (Unverweilen), ou seja, sua incapacidade de permanência. É uma característica antípoda à surpresa repentina, ao étonement – o afeto filosófico fundamental, tematizado por Platão 104FÁBIO FONSECA DE CASTRO e Aristóteles na forma do thaumádzein, e que diz respeito à capacidade se ater a algo longamente, com um vivo interesse, capaz de duvidar das próprias assertivas e desconstruir as próprias certezas. A segunda característica é a distração (Zerstreuung), uma dispersão, com efeito, análoga ao di-vertir – no sentido de tomar um caminho ambíguo, de produzir um efeito de atenção descompromissado, o qual conduz ao entretenimento. Por fim, a terceira característica da curiosidade é a agitação (Aufenthaltslosigkeit), num sentido para o qual não dispomos de uma palavra mais apropriada em português, mas que tem pleno sentido no francês bougeottage, ou seja, o estar em todo lugar e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Agitação, em português, tem certa ambiguidade porque evoca, igualmente, a ideia de nervosismo, que desloca o sentido para um campo alheio ao que Heidegger quer dizer e que se resume na ideia de movimento, trânsito. Além da curiosidade, o falatório também se produz, conjuntamente, com o equívoco (Zweideutigkeit). No §37 de Ser e Tempo, Heidegger fala sobre esse fenômeno, que é o modo quotidiano da explicitação. Trata-se da confusão entre o compreender autêntico e o inautêntico. É o saber-por-aí, o ouvir-dizer. O equívoco é fruto da ação conjunta do falatório com a curiosidade. Em sua união, levam o Dasein à situação da existência inautêntica (uneigentlich): “falatório e curiosidade, em seu equívoco, conspiram para que toda criação verdadeira seja, desde sua aparição, já envelhecida aos olhos do público”. (HEIDEGGER 1967, p. 174) Nessa citação, Heidegger sugere um conflito entre duas temporalidades: o tempo necessariamente longo e lento da criação, da mise-enoeuvre, do Dasein que investe realmente numa realização (sich einsetzendes Dasein) e o tempo acelerado, vertiginoso, da curiosidade. A curiosidade nunca tem tempo a perder, e por isso desaprende a todo instante. Como diz Heidegger (1967, p. 174), “o compreender do Dasein não cessa de desaprender (Versehen), em seus projetos, quanto à suas possibilidades de serem verdadeiras”. A curiosidade e o equívoco compõem a factibilidade do falatório. Podemos perceber como são elementos presentes e co-constituintes da temporalidade quotidiana e, assim, da cultura das mídias. Na vida quotidiana estão ambos presentes na fofoca, no boato, na falácia, na persuasão, na insídia, na suspeita, da impressão, no ouvir-dizer. Na quotidianidade TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE105 midiática, estão presentes na própria conformação dos gêneros que formam a mídia e nas práticas profissionais da comunicação, do jornalismo à publicidade e propaganda, passando pela produção cultural, pela produção audiovisual e multimidiática, pelas relações públicas etc. Na mesma quotidianidade produzem-se as relações, igualmente, da cultura digital. Perceber como o falatório se forma por meio da curiosidade e do equívoco possibilita compreender melhor a sua materialidade, como tipificação, padrão e prática comunicativa. Na verdade, percebê-lo permite observar que, juntamente com o padrão da temporalização caminha o padrão dos gêneros e práticas temporalizados, o que remete à dicotomia entre o falatório como modo temporal e potencial de tipificação e o falatório como práticas tipificadoras, como se discute no tópico seguinte. A DUPLA CONSTITUIÇÃO DO FALATÓRIO Há ainda que distinguir entre a simples quotidianidade – segundo Husserl (1995), o mundo da vida, no qual levamos uma vida plena de validade e repleta de suposições ontológicas ingênuas, naïves – e a quotidianidade narrada pela mídia. O falatório, presente nas duas esferas, tem, nesta última, uma função cognoscente: a de retemporalizar o próprio quotidiano. No mundo da vida quotidiana o falatório tem uma dinâmica de fazer mundo, produzir mundo, realizando, por assim dizer, uma ordo essendi, uma lógica por meio da qual o mundo é imediato e parece coincidir com o presente, ou seja, como a própria disposição ontológica geral do indivíduo. Já no mundo da vida quotidiana narrada pela mídia, a sua função é renovar o mundo, refazer o mundo, realizando uma ordo cognoscendi, uma lógica pela qual o mundo é informado e reconhecido como próprio, por meio de processos de tipificação. Há, portanto, uma dupla constituição do falatório: como modo temporal e potencial de tipificação da vida quotidiana e como prática tipificadora, ou seja, a materialização desse modo temporal tipificado em termos de gêneros, linguagens e práticas. De um lado, a disposição comunicativa e, de outro, a materialidade comunicativa, o que nos permite pensar a temporalidade da cultura das mídias nesses dois planos e, de um ponto de vista sociológico ou antropológico, indagar sobre o processo social pelo 106FÁBIO FONSECA DE CASTRO qual essa ordo essendi dinamiza a ordo cognoscendi – ou melhor, o processo pelo qual uma cultura das mídias se produz no contexto da quotidianidade geral que a precede e envolve, produzindo tipificações que são, fundamentalmente, tipificações de uma temporalidade extática. No horizonte dessa perspectiva, uma coisa é o falatório enquanto dinâmica da temporalidade inautêntica presente na vida quotidiana – uma vida quotidiana que, como assinalamos, não é dominada, exclusivamente, pela temporalidade inautêntica – e outra coisa é esse mesmo falatório tipificado na forma da cultura das mídias. O próprio Heidegger indicou que o falatório tem um equivalente textual, a Geschreibe. Martineau, um dos grandes tradutores do filósofo para o francês, traduz Gerede por “o é dito” e traduz Geschreibe por “o está escrito”. A Geschreibe é a literatura de folhetim, o Readers Digest, o pulp fiction, os quadrinhos de massa, a música pop, a telenovela, o fait-divers, a programação televisiva de auditório, o best seller, mas, também, as práticas comunicativas presentes nas redes sociais e os usos contemporâneos da tecnologia, com sua ubiquidade. Parece-nos evidente a proximidade entre a cultura midiática e a reflexão heideggeriana sobre a temporalidade inautêntica do falatório, mas cabe fazer essa distinção entre o falatório como disposição ontológica geral (ordo essendi) e o falatório dela decorrente, como tipificação (ordo cognoscendi). Sem essa distinção recairíamos numa compreensão ôntica da cultura das mídias, pois na medida em que o falatório se conforma como uma dispersão do Ser-aí num mundo de confortáveis aparências, num mundo marcado pela sensação de factibilidade e de identidade grupal e, sobretudo, de conversão da experiência temporal ao momento presente, encontramos similitudes profundas com aquilo que tem sido descrito, na área da comunicação, como sendo o centro da experiência social que identificamos como cultura das mídias: uma experiência de coesão ao grupo por meio do gosto e de uma aisthesis comum (MAFFESOLI, 1996, 1998); de construção de um evento interpretativo (MILBANK, 2001); de reconfiguração da deliberação política (MAIA, 2001); de ilusão midiática sobre a memória (EMST, 2002); de regulamentação da comunicação por meio do diálogo (BLACK, 2002); de produção sociocognitiva (MÄKITALO; TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE107 SÄLJÖ 2002); de organização de um horizonte étnico diaspórico (COHEN, 2003); de reconfiguração das expectativas humanas fundamentais por meio da mediação tecnológica (SODRÉ, 2006, 2009); de coesão social comunitária (PAIVA, 2003, 2007); de combinação de selfs por meio de “mass mediated spacetimes” (AGHA, 2007); de socialização imediata e mediata (FRANÇA, 2004, 2008) ou de socialização convergente e interativa (RECUERO, 2006); de mediação do conhecimento público por meio de sistemas midiáticos (CURRAN et al., 2009); de construção de uma comunidade ética (LORENZO, 2011); de retemporalizacão do estar-no-mundo (CASTRO, 2015b), ou, por fim, de uma experiência de dispersão identitária e de transindividualização. (MALDONADO, 2015) A diferenciação a fazer entre o problema heideggeriano e a pesquisa em comunicação tende a se dar em relação ao plano em que os dois caminhos são colocados. Enquanto a abordagem heideggeriana constrói-se por meio de uma indagação essencialmente ontológica – e, portanto, referente à maneira como os fenômenos são percebidos – a pesquisa em comunicação, à força de suas tradições epistemológicas, tende a se produzir em torno de uma dimensão estritamente ôntica dos fenômenos observados. Para que possamos transpor o debate sobre a temporalidade do falatório para a análise de processos e fenômenos comunicativos, sobretudo se comunicativos-midiáticos, é preciso deslocar o objeto analisado dessa dimensão estritamente ôntica e recolocá-lo num plano ontológico. É grande, por exemplo, a tentação de fazer uma analogia entre a noção heideggeriana da passagem entre uma temporalidade autêntica e outra inautêntica e a tese marxista da mediação ideológica da realidade: o sujeito alienado de Marx e da teoria crítica seria equivalente ao Dasein lançado ao mundo do quotidiano, de Heidegger? A resposta para essa pergunta é não. Essa analogia não é possível, porque a teoria marxista – e, de forma especial, a abordagem frankfurtiana (ADORNO, 1985, 1996; HORKHEIMER; ADORNO, 1985) – atêm-se ao caráter ôntico da questão, procurando explicar o ontológico por aquilo que é ôntico, enquanto que a abordagem de Heidegger se dá, toda ela, no plano ontológico e, portanto, reflexivo. Com efeito, utilizar a análise fenomenológica-existencial de Heidegger na pesquisa sobre comunicação, mídia e cultura exige, na verdade, a superação da equação metafísica que funda a epistemologia da comu- 108FÁBIO FONSECA DE CASTRO nicação, que a apresenta como processo centrado na eficiência de uma relação entre sujeitos. Esse pressuposto, presente não apenas na teoria crítica, mas em todo o funcionalismo, no estruturalismo, na semiótica e em boa parte das análises culturológicas sobre mídia e comunicação, está centrado no primado do ôntico sobre o ontológico e, em consequência, sobre um julgamento moral, de ordem metafísica. Para trabalhar com os instrumentos disponibilizados por Heidegger faz-se fundamental não perder de vista a distância entre julgamento moral e análise ontológica. Como assinala Greisch (1994, p. 219, tradução nossa), “o problema não é de identificar, por trás das imagens que nos são disbrituídas, um grande manipulador e mistificador animado por uma intensão deliberada de nos enganar”,2 mas sim de perceber que a imersão do indivíduo num mundo de chavões, repetições, banalidades, obviedades constitui um movimento característico do Dasein, na sua eterna passagem da temporalidade autêntica para a temporalidade inautêntica e vice-versa. O falatório possibilita, afirma Greisch (1994, p. 219) certas formas de compreensão ao mesmo tempo em que nos esconde outras. Impossível qualificá-lo como condição da mistificação da cultura massificada. Igualmente impossível percebê-lo como estado de desqualificação da inteligência, da condição política, da sensibilidade estética. Trata-se, sobretudo, de um processo de coesão do indivíduo ao coletivo social e, assim, podemos arriscar, de um processo de socialização. No plano filosófico, o falatório constitui a transmutação do Ser-aí (Dasein) em Ser-com-outros (Mitsein/ Mitdasein). Mas é possível colocá-lo, também, no plano de uma sociologia da comunicação – ou, seguindo Schutz (1967, 2012), de uma sociologia fenomenológica que possa pensar a comunicação, para, em o fazendo, compreender como a cultura das mídias se conforma em experiência temporal. É a dupla constituição do falatório que permite, assim, a sua discussão nesses dois planos, que são o da filosofia, por meio da fenomenologia existencial, e o da sociologia fenomenológica. 2 “le probleme n’est pas d’identiier derrière les images qui nous sont assénées, un grand manipulateur et mystiicateur animé par une intention déliberée de nous tromper”. TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE109 O FALATÓRIO COMO DISPOSITIVO DE TIPIFICAÇÃO E DE COESÃO SOCIAL NA COMUNICAÇÃO Alfred Schutz, como se sabe, traz a fenomenologia para pensar a vida social, propondo uma sociologia fenomenológica que se constitui como síntese entre a abordagem husserliana (HUSSERL, 1995, 2001) e a sociologia compreensiva weberiana. (WEBER, 1999) Com essa perspectiva, ele discute como o conhecimento comum é formado: não em torno de um processo de introjeção, no sujeito, de verdades externas, mas sim da construção comum de uma compreensão possível, circunstancializada pelas vivências e pelas intencionalidades que formam a ação social. Schutz (1967) indica que essa compreensão comum se dá por meio de um processo contínuo de produção de sínteses, ou, especificamente, de tipificações, que se sedimentam, ou melhor, consolidam-se, dentro de um determinado momento da vida social, por meio da prática – ou seja, da recorrência do seu uso e da eficácia da sua ação. Utilizando Schutz, trazendo a sua sociologia fenomenológica para pensar a cultura das mídias, podemos percebê-la como um tecido de tipificações, de sínteses que ele chamaria de politéticas, ou generalistas, cuja eficácia se dá em produzir senso comum e, por meio dele, uma dada coesão social. Certamente há muitos planos e formas de sínteses politéticas envolvendo a cultura das mídias e evidentemente que muitas delas são concorrentes e mesmo contraditórias entre si. Não buscamos, aqui, uma generalização, mas sim a indicação de um processo geral de coesão social por meio do senso comum. Buscamos assinalar, efetivamente, que no plano ontológico da vida social, a coesão social por meio da cultura das mídias constitui-se por meio de constelações de tipificações que produzem o efeito existencial, discutido por Heidegger, da passagem de uma temporalidade autêntica centrada no Ser-aí (Dasein) para uma temporalidade inautência centrada na dinâmica de ser-com-outros (Mitsein) e ser-como-os-outros desse Ser-aí. A centralidade dos dois modos temporais entrevistos por Heidegger (1967) na vida humana se conforma como a problemática central da existência – efetivamente, como as duas mediações por meio das quais o ser se relaciona com o tempo, ou melhor, com a sua percepção do tempo. 110FÁBIO FONSECA DE CASTRO Deslocar essa questão para o plano da pesquisa em comunicação talvez não seja evidente, mas nos parece pertinente compreender como a cultura das mídias produz dispositivos de coesão social e, assim, de produção dessa temporalidade extática que caracteriza a vida quotidiana. Não se trata, pois, de uma colocação puramente filosófica do problema, mas da construção de instrumentos metodológicos que permitam empreender uma sociologia fenomenológica da comunicação e da cultura, ou da cultura das mídias, em particular. É o trabalho que viemos fazendo em nosso grupo de pesquisa, com alguns pressupostos teóricos e metodológicos que encontram-se resumidos neste artigo. Não se trata, sobretudo, de pensar o papel da cultura das mídias como um anestésico da vida social, mas sim como parte constituinte e fundamental da coesão social na contemporaneidade – talvez no rumo daquilo que Muniz Sodré (2009) descreve como sendo o bios midiático. Não há critério moral ou juízo de valor, aqui, no uso da expressão temporalidade inautêntica. Trata-se de perceber que, ontologicamente falando, a coesão social não se dá sem um distanciamento da questão existencial fundamental, que é a da finitude da própria existência – questão necessariamente individual, ainda que referente à finitude da vida de outrem. Ontologicamente falando, a temporalidade da mídia pode ser pensada como um abrigo para o ser. Uma fuga, em relação à temporalidade autêntica. Não que seja necessariamente ou exclusivamente isso, mas tal relação parece constituir uma possibilidade recorrente, na cultura contemporânea e parece se potencializar com a convergência midiática. De acordo com Heidegger (1967, p. 256), o ser, recorrendo à sua quotidianidade, mascara a si mesmo o fato central da temporalidade autêntica, que é a sua destinação à própria finitude. Como coloca Ciocan (2010), em seu estudo sobre o problema da finitude em Heidegger, enquanto a temporalidade autêntica se caracteriza pela estranheza (Unheimlichkeit), pela sensação de “estar fora de casa” (Unzuhause) e pela ausência de toda familiaridade, a temporalidade inautêntica, alçada pelo falatório, permite, ao Ser-aí, uma mobilidade fundamental em direção a um abrigo: Como fuga face a seu próprio ser (HEIDEGGER, 1967, p. 44), como fuga face a si mesmo (Flucht vor ihm selbst) (HEIDEGGER, 1967, p. 184 e 195), como fuga face ao ente intramundano, como TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE111 fuga face ao “familiar” da publicidade (Flucht in das Zuhause der Öffentlichkeit), como fuga face ao não familiar (Flucht vor dem Unzuhause) (HEIDEGGER, 1967, p. 189), como fuga face à estranheza (Flucht vor der Unheimlichkeit) (HEIDEGGER 1967, p. 276), como fuga face à consciência (Flucht vor dem Gewissen) (HEIDEGGER 1967, p. 278) e, finalmente, como fuga face à morte (Flucht vor dem Tode). (HEIDEGGER, 1967, p. 255, 390, 424, 425) Trata-se de uma pluralidade de aspectos coordenados (ou de níveis fenomenais) da única verdadeira fuga, uma fuga essencial, que marca a queda (Verfallen).3 (CIOCAN, 2010, p. 476, tradução nossa) Essa fuga do Ser-aí de sua temporalidade existencial, com suas diversas formas, tem um efeito geral no plano da vida social: a coesão. A queda (Verfallen) do Ser-aí numa temporalidade extática, ainda que no plano filosófico possa ser vista como a negação da temporalidade fundamental, constitui, no plano social, a própria gênese da vida comum e em grupo. A síntese pode parecer óbvia, mas não é evidente no debate filosófico: o ser social é fundamentalmente inautêntico, porquanto a autenticidade demanda finitude, solidão e unicidade, enquanto que a vida social demanda similitude, repetição, padrão e, assim, inautenticidade. O tempo social da vida quotidiana é, por sua vez, fundamentalmente, extático, porquanto é coletivo, a-histórico, presenteísta, sem passado e sem futuro. Nesse sentido é interessante recuperar, aqui, a fórmula de Maldiney (1976) para explicitar o que constitui a factibilidade da temporalidade do presente, em fenomenologia: há presente porque há presença. É a percepção centrada no estar-aqui, no Ser-aí, na presença, que converte o tempo em imanência. Assim se dá, concretamente, no plano da cultura das mídias, a temporalização operada pelo falatório. No plano geral da vida quotidiana, a temporalidade permitida pelo falatório é, sobretudo, a temporalidade de descolar a questão do tempo da sua perspectiva 3 “comme fuite devant son propre être (Heidegger 1967: 44), comme fuite devant lui-même (Flucht vor ihm selbst) (Heidegger 1967: 184 e 195), comme fuite vers l’étant intramondain, comme fuite dans le « chez soi » de la publicité (Flucht in das Zuhause der Öffentlichkeit), comme fuite de « nepas-chez-soi » (Flucht vor dem Unzuhause) (Heidegger 1967: 189), comme fuite devant l’étrangeté (Flucht vor der Unheimlichkeit) (Heidegger 1967: 276), comme fuite devant la conscience (Flucht vor dem Gewissen) (Heidegger 1967: 278) et, inalement, comme fuite devant la mort (Flucht vor dem Tode) (Heidegger 1967: 255, 390, 424, 425). Il s’agit d’une pluralité d’aspects coordonnés (ou des niveaux phénoménaux) de l’unique et seule fuite, une fuite essentielle qui est la marque de la déchéance (Verfallen)”. 112FÁBIO FONSECA DE CASTRO existencial – ou seja, para aquela marcada pela finitude – para torná-la o referido abrigo para o ser. Já no plano tipificado da cultura das mídias o processo é o mesmo; porém, agora, como uma ontologia da experiência cultural. As tipificações efetivam intencionalidades. Embora se possa dizer que há uma temporalidade na narrativa da mídia, ou melhor, que cada narrativa midiática possui tramas, intrigas temporais (RICOEUR, 1983) que tendem a reproduzir a temporalidade da experiência cultural, o que nos parece realmente interessante é o fato antropológico de que os indivíduos constituem temporalidades, na sua vida social, a partir e por meio dessas temporalidades midiáticas. Na perspectiva de uma antropologia ou de uma sociologia da comunicação e com uma abordagem fenomenológica, podemos pensar o fenômeno comunicativo ao nível de uma fusão de horizontes por meio de sínteses – dessas sínteses politéticas de que fala Schutz (1967), que equivalem a estruturas de pertinência para a constituição de tipificações. Com essa perspectiva, o fenômeno comunicativo conforma uma predisposição a uma temporalidade presente, a uma temporalidade imanencial, cabendo sempre lembrar que usamos o termo “predisposição” indicando tendência, mas não obrigatoriedade – posto que na quotidianidade também pode estar presente, como dissemos, a experiência da transcendência. A tendência a reproduzir, a tipificar e a converter toda experiência temporal às aparências da quotidianidade. Nesse horizonte, o falatório conforma um dispositivo que, acionado, permite a passagem do individual em direção ao coletivo e, assim, a marcação, a indicação e a reificação de uma temporalidade associada à ideia de quotidiano. REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. Dialética do esclarecimento. Zahar, 1985. ADORNO, T. W. Teoria da semicultura. Educação e sociedade, Campinas, v. 56, n. 17, p. 388-411, dez. 1996. AGHA, A. Recombinant selves in mass mediated spacetime. Language & Communication, [S.l.], v. 27, n. 1, p. 320-335, 2007. AZEVÊDEO, E. A. de. O mundo da vida e a ação, em Alfred Schütz. Problemata: revista internacional de filosofia, João Pessoa, v. 2, n.1, p. 54-74, 2011. TEMPORALIDADE DA COMUNICAÇÃO NA SUA QUOTIDIANIDADE113 BLACK, J. Regulatory Conversations. Journal of law and society, Montreal, v. 29, n. 1, p. 163-196, 2002. CASTRO, F. F. de. Fenomenologia da comunicação em sua quotidianidade. InterCom: revista brasileira de ciências da comunicação, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 21-39, 2013. 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Com o incessante e agilíssimo redesenho das possibilidades midiáticas, também a discussão acerca do estatuto temporal dos media (DIAS, 2011) desponta reiteradamente nas pesquisas e estudos sobre comunicação. A valorização do passado como marco referencial de compreensão do mundo e constituição identitária e, por assim dizer, a angustiada obsessão pelo presente parecem cada vez mais verem-se impactadas pelas narrativas que trazem em si apelos de antecipação do futuro. Operações de sentido que tornam ainda mais paradoxal o próprio sentido de realidade e do modo como esta é apropriada e representada nos ambientes midiáticos, o que provoca, muitas vezes, a sensação de nos vermos, inevitavelmente, diante da irrupção de uma nova ordem/desordem temporal. A midiatização e o horizonte de instâncias, processos e dispositivos que podem ser reunidos sob o nome de comunicação digital impactaram ainda mais os sentidos e ordens da experiência humana do tempo – o tempo da vida, ligado à experiência concreta, as passagens e gradações entre dia e noite, do trabalho e do lazer, das relações sociais e, como não poderia deixar de ser, dos sistemas de produção, circulação e recepção dos 119 produtos simbólicos da cultura, entre eles os do jornalismo e suas séries narrativas. A discussão proposta busca, de modo reflexivo e tentativo, elencar pontos de partida para pensar as condições e circunstâncias em que o tempo atua sobre os media, nomeadamente os jornalísticos. Como pensar o tempo presente e os presentes que o tempo invoca? Quais os jogos e deslocamentos entre um passado que nunca está concluído e um futuro que gravemente se antecipa? Como os media jornalísticos e seus registros conformam uma camada de tempo específica sobre a qual é possível dizer e ver o mundo e a si mesmo? Questões que colocam em relevo, de modo diacrônico, as mudanças que as sociedades vêm experimentando nos últimos séculos e que, de modo mais agudo, se acentuaram a partir do início do século XX. E, de modo sincrônico, como os media, nas últimas décadas, têm se reinventado em função não apenas, certamente, das profundas mudanças de caráter tecnológico, mas, especialmente, em função dos novos cenários e circunstâncias atinentes às formas como o homem passou a experimentar seus processos de interação, mediação e midiatização. TEMPO E RELAÇÕES DE PODER Sucintamente, cabe lembrar que a percepção das sociedades sobre o tempo sempre foi determinada, prioritariamente, por relações de poder. Desde sempre, toda a ativação de caráter simbólico dá-se em relação direta com o tempo, que bem pode ser metaforizada pelo enigma da esfinge, que nos interroga e convoca a percorrer seus fios, a descobrir suas tramas e segredos. O desejo de Santo Agostinho1 de compreendê-lo forneceu ao pensamento ocidental pistas importantes. Mas a filosofia agostiniana sobre o tempo, ao final, parece levar-nos não a uma decifração, mas a um paradoxo: como pode o tempo ser, se o passado já não é, se o futuro ainda não é e o presente é exatamente o que nos escapa? E se o tempo não é, como podemos medi-lo? 1 São extremamente conhecidas as relexões de Santo Agostinho (2008) acerca da noção do tempo e, em especial, das diiculdades por ele apontadas em deini-lo e conceituá-lo. 120MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA O tempo calendarizado é o tempo social, mas que institui-se em função dos ritmos do universo. (LE GOFF, 2013) Ligado à natureza, mas também à cultura, religião e à política, o tempo se distingue em suas faces de objeto científico, religioso, cultural e, acima de tudo, como parametrizador das relações sociais. Medida do tempo coletivo e individual, o calendário estabeleceu-se para a coletividade humana como instrumento de poder, pois quem o controla, controla os ritmos da vida – o trabalho, o lazer, as festas e o tempo privado/íntimo, aquele que é possível dedicar a si próprio. Uma função essencial do calendário é a de ritmar a dialética do trabalho e do tempo livre, o entrecruzamento dos dois tempos: o tempo regular, mas linear, do trabalho, mais sensível às mutações históricas, e o tempo cíclico da festa, mais tradicional, mas permeável às mudanças da história. (LE GOFF, 2013, p. 472) [...] o calendário é em qualquer sociedade, por mais diversa que seja, um instrumento de poder religioso ou laico, e em particular, do poder do Estado. Permite de fato realizar, com o controle do tempo, o controle dos homens nas suas atividades econômico-sociais que, através do calendário, são ritualmente separadas do tempo. (LE GOFF, 2013, p. 441) As noções redimensionadas de tempo real e de um futuro cada vez mais próximo instalaram novos modos de como o tempo é experimentado. Mais que isso. Com a colonização do espaço, o passo seguinte das forças econômicas foi a busca de controle do tempo. No que mais de perto interessa a esta reflexão, vale a pena citar que, mesmo já no século XX, tais fenômenos já podiam ser observados, como foi com a criação da edição de domingo dos jornais (em vários países do mundo, em função mesmo de justificativas de natureza religiosa, o domingo era “guardado”) e em seguida, com a programação das emissoras de rádio estendida para o período da noite. A comunicação – e com ela o trabalho e o lazer – avançaram para a integralidade do tempo da vida humana. O homem, cada vez mais, como destaca Subtil (2006), foi sendo privado dos elementos naturais que sempre preencheram sua experiência não só de espaço e tempo, mas da língua, crenças, modo de ser em sociedade, ou seja, a cultura. A AGÔNICA DURÉE DO BRICOLEUR121 E privado também do próprio mundo material, sendo lançado “numa nova dimensão com sua própria temporalidade, espacialidade e modo de ser”. (SUBTIL, 2006, p. 150) Com as capacidades de interacção e de interactividade instantânea proporcionadas pelos novos meios de transmissão da era pósindustrial da velocidade, somos a primeira geração a viver num tempo único, universal e astronómico (um tempo sem referente histórico, sem relação com o tempo local da geografia que faz a história) que se transformou no tempo do próprio mundo, no live, no tempo real. O processo de desqualificação do tempo local fez se acompanhar da desqualificação do espaço local em proveito do tempo mundial e do não-lugar. Na realidade, apesar das novas teletecnologias da informação, o telefone, a televisão e o zapping propiciarem qualquer transmissão instantânea em tempo real, permitindo tocar, ouvir e sentir o outro à distância e de assim estarmos juntos no tempo mundial, continuamos separados, já que não se está junto em nenhum lugar do espaço. A velocidade absoluta da luz permite que o tempo real substitua o espaço real (local), induzindo profundas perturbações na percepção. Nestas circunstâncias, as diferenças geográficas entre o ‘aqui’ e o ‘ali’, perto e longe, entre vizinho e estranho, entre imagem e coisa são obliteradas pela velocidade da luz. Virilio chama a esta nova situação ‘derrota dos factos’, o fim do hic et nunc, que permitia a interacção no espaço e tempo locais. (SUBTIL, 2006, p. 150) Em uma palavra, se espaço e tempo, na história humana, sempre tiveram uma indissociável ligação, as distinções entre o tempo local e o global também se arrefeceram na atualidade. Não seria exagero dizer que a tradição filosófica, assim como as ciências, dedicara-se empenhadamente em tentar compreender o tempo na sua essencialidade etérea e movediça. Um debate que atravessou os séculos e que parece ganhar ares de maior complexidade à medida que o homem agrega à discussão novos elementos por meios dos quais reinventa-se. A partir de uma instigante leitura de Innis e McLuhan, Subtil (2006) tenta caracterizar o que distingue serem os meios que ligam o espaço e os meios que ligam o tempo, articulando planos de duração distintos e as relações entre tecnologia e comunicação. A autora assinala em seu estudo que o espaço-tempo é utilizado como categoria de análise dos media e todo o conjunto que deles deriva. 122MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA Na civilização ocidental, a necessidade do comércio em vencer as longas distâncias para o envio de bens e serviços e de fazer circularem com agilidade as informações, exigiu a criação de novas competências para que fossem vencidas as barreiras do espaço, o que levou, também, à busca da superação dos obstáculos colocados pelo próprio tempo. Em artigo dedicado à expansão do jornalismo, no início da década de 1940,2 Innis (2011) apresentou a tese de que a imprensa escrita teve papel decisivo para o aumento da velocidade na comunicação e no transporte no século XIX. O telégrafo traduziu bem esse momento. Em geral, seguindo os traçados das próprias linhas de trens, os cabos aéreos de comunicação tinham o objetivo de fazer com que as mensagens chegassem mais rapidamente – o deslocamento da informação sobrepujando-se à chegada dos bens materiais e serviços. Uma nova ordem de tempo e, por conseguinte, de espaço, já se impunha. O passo seguinte foi a substituição dos cabos (meio físico) pelas ondas eletromagnéticas (wireless) – e um passo, nem tão longo, a seguir, levou à tecnologia do rádio e da televisão, de consumo massivo de conteúdos e cujo recheio, desde o início, foi o homem e sua cultura. O século XX é aberto com novas lógicas de domínio espaço-temporal. Retomando a teoria innisiana dos meios, Subtil detém-se sobre a tese de que o modo tecnológico de comunicação predominante acaba por exercer um condicionamento central na limitação espaço-temporal das sociedades. Os media poderiam ser descritos num contínuo de espaço e tempo. Os meios que ligam o espaço seriam marcados pela passagem e trânsito entre distâncias, carregando mensagens de uso ordinário, que se dirigem ao comum da vida. O destino último é a regulação, a média das coisas, o alcance a longa distância. Funcionam como redes de vinculação entre populações geograficamente dispersas. Estão inscritos, espacial e fisicamente, numa economia em escala. De algum modo, corroem as culturas regionais e planificam as práticas locais. Do ponto de vista da forma, são fáceis de traduzir e operar, contudo, se destinam, quase sempre, à substituição. Já os meios que ligam o tempo implicam termos de conjunto e continuidade. Quando era preponderante, a comunicação oral ligava o tempo, 2 Trata-se de The Newspaper Economic Delevopment, publicado no Journal of Economic History, em 1942. A AGÔNICA DURÉE DO BRICOLEUR123 instituindo no presente e pela memória, referências de laços e partilha. Em seguida, a escrita alterou a memória coletiva: ao ampliar o limiar do tempo e espaço, para além da lembrança e rastros, a palavra escrita e sua matéria tornaram-se a imagem-fim da ligação de tempo. As mensagens que ligam o tempo se destinam ao eterno, ao domínio da metafísica e da cultura. O traço distintivo é a permanência. Se os meios que ligam o espaço operam em uma lógica física de partida, presença e chegada, os meios que ligam o tempo, por sua vez, operam numa outra perspectiva (metafísica) de passagem, de continuum e numa infinita renovação do presente que inclui, de distintas maneiras, o passado e o devir. CONEXÃO COM O INFINITO Por isso mesmo, convocar Henri Bergson para refletir sobre o tempo mostra-se tão importante quanto inquietante. Nome controverso tanto nas ciências quanto na filosofia, Bergson entendia que se a filosofia tinha o tempo como questão filosófica essencial, por outro lado, equivocou-se ao negligenciar a abordagem metafísica, e mesmo espiritual, de como os indivíduos constituem suas experiências temporais. Também o debate deste filósofo francês com cientistas (nomeadamente Eisntein3) sobre a temporalidade deixou em evidência a discordância acerca de suas teses em que defende a aproximação entre ciência e metafísica e de que o conhecimento científico só se plenificaria substanciado por um discurso filosófico. Mas, inegavelmente, há contribuições muito relevantes da obra bergsoniana em relação à tentativa de compreensão da dimensão temporal. No entendimento do filósofo francês, quando se fala em tempo, tudo está em relação e conexão com tudo em um infinito e expansivo universo, que abarca desde o passado mais longínquo e virtual ao presente mais atual e efetivo. Carvalho (2012) procurou sistematizar o que entendeu ser uma filosofia bergsoniana do tempo, elencando sete princípios que a constituem. 3 Bergon buscou enquadramentos metafísicos aplicáveis à teoria da relatividade. Em Duração e simultaneidade, o ilósofo francês refuta a teoria da relatividade que aponta para a unidade de um tempo único, igual para todos que o observam. Para Bergson (2006), não há um tempo único de duração das consciências, mas a única duração, mas múltiplas durações. O embate direto entre os dois pensadores foi muito curto, mas estendeu-se por décadas entre seus simpatizantes. 124MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA Desses, destacamos três,4 que serão basilares no desenvolvimento à frente de nossa reflexão:    a afirmação do tempo enquanto realidade substancial (a substância do real); a afirmação do tempo como duração (passagem ou trânsito do tempo como um ritmo próprio ou irredutível); e a afirmação da duração como princípio atuante na vida do sujeito e na realidade (em função das novidades e imprevisibilidades radicais em termos qualitativos). É no final do século XIX que Bergson arquiteta melhor sua proposição da noção de duração (durée), ao contrapor-se à confusão que, segundo ele, as ciências insistiam em termos da abordagem dos conceitos de espaço e movimento. Para Bergson (2006), ao pensarmos o tempo, devemos observar a passagem e não o que passa, ou seja, no processo do tempo que vai e não no ponto de chegada, o resultado do percorrido. A atenção deve estar no intervalo e não nos instantes. Segundo o filósofo, os instantes seriam como fotografias tiradas sobre uma transição. Por isso, Bergson associa a durée imediatamente percebida (o tempo) à memória, que seria interior à própria passagem do tempo, que “prolongaria o antes no depois e os unifica como parte de um mesmo movimento e impede que desapareçam na fugacidade do presente”. (CARVALHO, 2012, p. 101) É com essa chave de compreensão do tempo que Bergson vai ratificar seu entendimento de que a duração é o que permite ao homem estabelecer-se como indivíduo histórico, afirmando assim, e por isso, a própria identidade. A linguagem, por sua vez, faz-se também substância do tempo. Pode-se afirmar que é por meio da linguagem e da ação de narrar que a “natureza do tempo, a identidade do sujeito narrador e o sentido da narração” (GAGNEBIN, 1997, p. 71) se dão a ver, se conectam e formam o sentido de pertencer a um tempo. Pertencer a um tempo é estar inscrito numa certa ordem, é estabelecer uma relação de força e “ajuste”; é trazer 4 Os demais princípios dizem respeito, principalmente, à negação do tempo como grandeza mensurável e análoga ao espaço e a negação do tempo abstrato, que não seja vivido e experimentado concretamente pelos sujeitos. A AGÔNICA DURÉE DO BRICOLEUR125 à superfície a contradição de vincular-se e contraditar. É um problema discursivo, mas também topicamente linguístico/linguageiro: pensar em conceitos, imagens, textos sobre o tempo, sua localização e limites significa tentar codificar e dar corpo a uma textura e abstração original, da qual não se pode fugir ou negar. A infinitude do tempo espraia-se na linguagem. “Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar na linguagem que o diz e que ‘nele’ se diz”. (GAGNEBIN, 1997, p. 75) Com efeito, a comunicação e, precisamente, os media, operam neste ponto – a linguagem e a representação, ou o signo e imaginários e consciências. Se a partilha do comum (SODRÉ, 2014) é a rede e tecido que edifica e organiza as mediações culturais, os aparelhos técnico-discursivos são os mecanismos e fragmentos desse processo, e se inscrevem, com tal característica, num espaço-tempo específico. A comunicação é reflexo e espelho, meio e produto desse cenário, como o é das mediações e signos que desloca e concentra. Pode-se considerar, então, a comunicação a disciplina desse tempo movediço e fraturado, um saber de devires e de indícios. O método e objeto da comunicação – o problema do comum, o socius e a polis às quais estamos “presos” – indicam as “especificidades do modo próprio de inteligibilidade do processo de produção de sentido e de discursos sociais” (SODRÉ, 2014, p. 293), isto é, as práticas socioculturais que instituem uma nova forma de vida, o bios midiático. (SODRÉ, 2002) TENSIONAMENTOS DO TEMPO MIDIÁTICO-JORNALÍSTICO A noção de tempo é uma contrassenha que nos leva a um paroxismo ontológico (RICOEUR, 2010) que se mostra, simultaneamente, opaco e transparente. Às vezes, insinua revelar-se, outras vezes se esconde e volta a despontar em nuances. Habitar o tempo é um modo de organizá-lo e de instituir marcas ou cortes, que vão do tempo da natureza ao tempo da fábrica, dos meios de produção ao tempo do homem. Ao relacionar tempo e narrativa, Ricoeur (2010) toma de Santo Agostinho a conhecida formulação de que o tempo se estabelece em três: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Nesse presente ampliado é que incluímos e acionamos a memória das coisas 126MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA passadas e a expectativa do devir. “Um presente ampliado e dialetizado que não é nem o passado, nem o futuro, nem o presente pontual, nem mesmo a passagem do presente.” (RICOEUR, 2010, p. 23) Para Agostinho, a memória seria o presente do passado; a expectativa, o presente do futuro e a visão o presente do presente. Os media parecem estabelecer circunstâncias agônicas para tais experiências temporais, ao instaurar novos regimes de forças e agentes e produzir dimensões nunca antes experimentadas, ao oferecer-lhe uma sucessão de instantes matizada por fluxos sobrepostos de consciência e de captura das categorias de passado, presente e futuro. A experiência humana de tempo e no tempo se altera no fluxo de sua própria ocorrência e sua percepção. O chamado presentismo do jornalismo nos remete a sensação de um presente infinito, do tempo que parece nunca escoar, firmada pela intensidade da vivência. Um presente desancorado do passado que lhe precedeu e do futuro cada vez mais imediato. A reforçada noção de que o jornalismo orquestra-se no tempo presente (ANTUNES 2007; BENETTI, 2009; DALMONTE, 2009; DIAS, 2011) atesta a vocação histórica da notícia como dispositivo de enunciação (BRUCK, 2015) que tem como contrato comunicativo (CHAREAUDEAU, 2006) visibilizar, por operações discursivas com demarcações estético-sociotécnicas muito próprias, os acontecimentos cotidianos. Antunes aponta para essa prevalência hoje no conjunto das textualidades jornalísticas da incessante busca e construção de um presentismo. Nesse sentido, estamos tomando como hipótese que a manifestação do ‘presentismo’ na notícia está relacionada com certa perda da faculdade de discernir critérios para associar a temporalidade ao relato jornalístico. Ao invés de operar como um critério que ao mesmo tempo permite selecionar e singularizar elementos relevantes dos fatos relatados, a temporalidade é tomada como um mero dispositivo de ativação da atualidade da notícia pela sua equivalência com o presente histórico. (ANTUNES, 2007) Benetti (2009, p. 296) percebe esse presentismo em outra perspectiva. Para a autora, o jornalismo constrói-se na linha do tempo sobre universalidades arquetípicas, que “tomam formas concretas a cada evento A AGÔNICA DURÉE DO BRICOLEUR127 singular”, noção denominada por ela de eixo longo do jornalismo. O que, para Benetti (2009), indica que o discurso jornalístico antes de ser compreendido como o relato de acontecimentos e informações que se deve, em seguida, descartar, carece de uma efetiva problematização, e que ele deve ser percebido como “um discurso durável composto de inúmeros interdiscursos baseados em imagens arquetípicas”: O singular, que morre a cada atualização periódica do jornalismo, traz em si a universalidade. As referências sobre a ordem e a desordem do mundo, que obviamente dependem de cada cultura, são expostas pelo jornalismo como um resumo constante do que somos como humanidade. Exatamente porque o jornalismo diz narrar ‘a verdade’ sobre os fatos, sua credibilidade como narrador dessas referências fornece uma espécie de retrato do homem – com suas virtudes, deficiências, transgressões e amoralidades. (BENETTI, 2009, p. 296) No final dos anos 1970, Schlesinger (1993) debruçou-se sobre a natureza da notícia como produto rapidamente deteriorável. Para o autor, os conceitos de tempo dos jornalistas estão embutidos nas suas rotinas de produção e no seu modo de percebê-las e construí-las. O autor retoma estudos de Lyman e Scott em que os pesquisadores põem em contraste o que seriam duas atitudes básicas em relação ao tempo. Mencionam, por um lado, o que seriam os caminhos humanísticos do tempo, onde as pessoas sentem que têm o domínio e o controle sobre as suas atividades e, por outro lado, os caminhos fatalistas do tempo, em que os sentimentos prevalentes seriam o de compulsão e obrigação. Para Schlesinger, a atuação profissional da comunidade jornalística é tracejada por ambas atitudes. O que poderia ser explicado pelos “peculiares constrangimentos situacionais colocados pela produção jornalística”. (SCHLESINGER, 1993, p. 188) Por um lado, resulta de uma rotinização marcada pelo planejamento, uma pré-preparação. Por outro, convive com o imprevisível, que em si, geralmente, impõe-se como valor-notícia e faz explodir a essência do que contraditoriamente os jornalistas parecem gostar, mas, pelo menos no discurso, delas reclamam por retirá-los exatamente do que fora planejado. 128MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA A equação aqui proposta coloca em relação as sabidas circunstâncias compartimentadas e fragmentadas do fazer jornalístico e as também recorrentemente estudadas condições temporais da notícia como produto simbólico – tanto em termos de seu tempo de realização quanto da sua efemeridade, ou seja, curtíssima duração (cada vez mais rapidamente perecível). Processos esses que, na atualidade, independentemente das plataformas nas quais o jornalismo se faz presente, parecem estar em intenso processo de agudização. A DURÉE DO BRICOLEUR Como realizador, indica Barbara Philips (1993), o jornalista estaria próximo do empírico primitivo do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o bricoleur. O termo se refere à pessoa que faz todo tipo de trabalho manual, um faztudo. Mas o sentido, naquilo que nos interessa, se qualifica ainda mais quando observamos o verbo do qual a palavra deriva: bricoler, que tem o sentido de ziguezaguear, fazer de forma provisória. Ou, ainda, utilizar-se de meios indiretos, tortuosos e improvisados. E ainda bricole, substantivo, que, entre outras significações, destacamos engano, trabalho inesperado, pequeno acessório, coisa insignificante. Bricolage diz respeito ao trabalho de amador e em que a técnica é improvisada, adaptada ao material disponível e às circunstâncias. No livro O Pensamento selvagem, Lévi-Strauss argumenta que o bricoleur usa a lógica das mãos e dos olhos, sem preciosismos em suas medidas e escolha de técnicas e ferramentas, deixando levar-se pelo instinto e pelo impulso na realização de seu ofício. Lévi-Strauss destaca que apesar de estar apto a realizar um grande número de tarefas, o bricoleur não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas de utensílios e procurados na medida de seu projeto: seu universo é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com seus ‘meios-limites’, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular, mas é o resultado do contingente de todas as oportunidades [...]. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 34) A AGÔNICA DURÉE DO BRICOLEUR129 A metáfora da atividade do jornalista como a de um bricoleur, à LéviStrauss, comportaria, certamente, outras variações interessantes que, de certo modo, atestam como a natureza do fazer jornalístico é marcadamente sujeita a imprevisibilidades, improvisos, desvios e atalhos e sucessivos rearranjos em todas as fases da construção noticiosa. A começar pelo tipo de conhecimento promovido pelo jornalismo cotidiano, seja por meio da notícia ou outros formatos, que é, em geral, limitado e de curto período de validade. Como também não seria exagero afirmar que mesmo submetido a padrões específicos de linguagens definidos e que definem os veículos em que atuam, o trabalho jornalístico se mostra mais próximo de uma artesanalidade, uma bricolagem. Por outro lado, se a fotografia mostrou-se, por muito tempo, uma boa metáfora para a notícia, pois como aquela também é resultado de escolhas – angulação – e por mais excluir do que mostrar – enquadramento –, hoje essa comparação se mostra insuficiente e o sentido que ela produz já não dá conta da complexidade do mundo informativo: a fotografia congela no tempo e é um registro para a memória. Já há algum tempo o jornalismo distanciou-se da memória e da história. Talvez o close de uma câmera nervosa e trêmula, em alguns momentos desfocada, deambulando pela paisagem e ao vivo, visada que se perderá para sempre, seja, hoje, a mais pertinente metáfora da notícia. E se na midiatização ainda de base analógica e linear, caracteristicamente massiva, os media já constituíam sofisticados processos de experimentação de tempo, deve-se considerar a hipótese de que tais processos tenham ainda mais se complexificado, ganhando novos contornos e possibilidades patrocinados pela comunicação em rede. Pensar a temporalidade midiática na atualidade remete, ato contínuo, a refletir sobre os jogos de temporalidade por meio dos quais os media abordam os acontecimentos e por meio dos quais, eles próprios, dão-se a ver. O que aqui denominamos de jogos de temporalidade aludem aos imbricados processos de produção, circulação e consumo de conteúdos jornalísticos na internet. Desde a digitalização dos processos de registro, edição até a publicação/transmissão da informação transformada em narrativa jornalística. Bradshaw (2014) destaca que o comportamento do consumidor de notícias alterou-se bastante nas últimas décadas e ainda 130MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA continua se transformando. Por um lado, a facilitação do acesso ao conteúdo jornalístico ampliou-se de tal modo que parece ser imensurável, dadas as facilidades de aceder a internet. Mesmo antes dos benefícios trazidos pela portabilidade, o consumo full-time e diversificado em termos do seu ponto de acesso já era uma realidade. Bradshaw destaca que “o ritmo do nosso consumo de notícias tem se tornado tão regular que mal temos consciência disto: passamos de uma irregular mas pronunciada batida para uma constante estática”. (BRADSHAW, 2014, p. 112) O arco temporal da notícia, isto é, sua duração e existência, é ampliado, produz um efeito de real específico: as narrativas jornalísticas e o circuito que lhes é próprio fabrica uma rede se sentidos (REDE DE) ou estados de referência cujo traço distintivo é a atualização. Os modos de contar e os contratos de comunicação também se atualizam; as notícias parecem formar uma curva de atualização. À GUISA DE BRICOLAGENS Se para Ricoeur (2010) a intriga é o modo privilegiado pelo qual construímos nossa experiência de tempo, os media possuem inegável papel de relevância nesse processo. Mais do que meios, são elementos referenciais dessa intriga e, portanto, da instituição dessas temporalidades. Entre as perguntas motrizes de nossa reflexão sobre a relação entre o tempo e os ambientes e circunstâncias midiático-jornalísticas, está a relacionada aos modos como os media jornalísticos e seus registros conformam uma camada de tempo específica sobre a qual é possível dizer e ver o mundo e a si mesmo. A opção nesta reflexão foi de valermo-nos de três elementos constituintes da noção bergsoniana de temporalidade para pensarmos os jogos temporais que instituem a comunicação jornalística na atualidade. A primeira delas diz respeito à afirmação do tempo enquanto realidade substancial (a substância do real). A segunda refere-se ao entendimento do tempo como duração (passagem ou trânsito do tempo como um ritmo próprio ou irredutível) e, por fim, a afirmação da duração como princípio atuante na vida do sujeito e na realidade (em função das novidades e imprevisibilidades radicais em termos qualitativos). Pode-se afirmar que A AGÔNICA DURÉE DO BRICOLEUR131 as práticas de midiatização do conteúdo jornalístico não apenas resultam de circunstâncias e ações laborais que têm intrínseca relação com a temporalidade. Mantêm uma sobreposição, uma aderência tão intensa ao tempo, que experimentá-las associa-se à vivência da passagem do próprio tempo. Mônica Rebeca Ferrari Nunes (1997), ao estudar manifestações de mitificação nas programações radiofônicas, sinalizou para o que entende serem nos media, processos de ritualização que acabam por cumprir uma função de mitigar déficits de natureza emocional gerado pelo desconhecimento em relação ao futuro, ao devir. Embalados pelo entretenimento e ofertas de lazer, os media se oferecem para amenizar angústias tão próprias do humano. Nessa ritualização ritmada, prometem “a certeza de que o universo continua como está. O mundo por vir se vai construindo e não será diferente do presente”. (NUNES, 1997, p. 35) A colagem das narrativas jornalísticas à medição social do tempo, o calendário, faz revelar a experiência do tempo como duração. Nas mídias de tradição analógica, as dicotomias dia/noite, claro/escuro (incluir barra), trabalho/lazer buscaram associar, de modo efetivo, essa instalação do homem no tempo que passa e se esvai, medido e controlado por quem detém os poderes. Se o relógio e o calendário são provas materiais da alienação do homem de sua liberdade, socialmente se apresentam como a marcação do momento de exercê-la. Contradição da temporalidade sintomática da condição humana. Os media, nessa perspectiva, sempre cumpriram um forte papel de socialização e de subordinação a essa lógica. Ao transformar datas históricas, religiosas, celebrações de afeto e tantas outras em “conteúdo”, os media transformam o tempo em substância, a memória em ação, o passado em presente, ou, como apontou Ricoeur (2010), a partir de Agostinho, vivencia abertamente o presente do passado. Calendarizada, a memória torna-se refém de acontecimentos específicos – versões dos que, ao dominar o tempo, dominam por tabela as narrativas que lhes dão forma, impondo restrições aos sentidos possíveis do passado e fechando a porta a contradições e “re-visões”. O presente do passado refunda, com os olhos de hoje, imagens possíveis do ocorrido e do imaginado. 132MOZAHIR SALOMÃO BRUCK E MAX EMILIANO OLIVEIRA No presente do presente, a elevada temperatura da discursividade midiática patrocina uma febre à flor da pele que estressa os sentidos. A sensação é de que estamos postos em um curtocircuitado carrossel que descontroladamente gira e do qual não podemos escapar e expostos a conteúdos reiterados. Uma circularidade estonteante, mas que, paradoxalmente, gera no receptor das mídias eletrônicas massivas e, nos anos mais recentes, no usuário da internet, uma estranha sensação de que, apesar de tudo, o mundo tem ainda lá suas regularidades. No presente do futuro, situam-se as expectativas e apostas que os media fazem acerca dos rumos que o mundo deve tomar. Oracular e prescritivos, tantas vezes moralistas e profetas do risco e do fim das coisas, os media tentam muitas vezes exercer o presente do futuro como lugar privilegiado da efetuação de sua ideologia e de sua moralidade. Somente interesses outros, os mais difusos, muito além do objetivo precípuo de informar, justificariam relatar o presente graduando-o de modo futuro. Denuncia uma pretensão que os media – e, em especial, o jornalismo – parecem possuir de relatar o todo do acontecimento – compondo um quadro narrativo que o antecipa, como risco, que faz-lhe mediação quando de sua irrupção até seu desenrolar e desdobramentos de um futuro possível. A sensação é de que o tempo real parece cada vez mais distanciar-se do marco do acontecimento, do ocorrido que o referenciou, e mais associado à ação discursiva. Os media massivos, ainda em sua fase adolescente, como definiu Katz (1993) roubaram em parte, da sociedade, o sentido de ocasião, ao transformar eventos sociais em eventos prevalentemente midiáticos. O jornalismo, por assim dizer, institui-se ambiguamente como a história do tempo presente, de um triplo presente, nos termos de Ricoeur (2010), que aciona outras temporalidades e jogos, sempre atualizável e permeado por injunções, enquanto narra o mundo e a si mesmo. Para aquém e além dos regimes de midiatização em seus distintos condicionamentos e determinações, os processos que experimentamos, nos anos mais recentes, de mudanças de hábitos de consumo de produtos simbólicos e a exponenciação das ofertas de conteúdos em infinitas plataformas parecem instalar-nos num presente desancorado e agônico, em que o agora passante se converte quase que imediatamente em um agora A AGÔNICA DURÉE DO BRICOLEUR133 passado, e em que o futuro se mostra tão imediato que talvez, enfim, já nem valha a pena planejá-lo ou sonhá-lo. REFERÊNCIAS AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. 23. ed. Bragança Paulista: EDUSF, 2008. ALSINA, M. R. A construção da notícia. Petrópolis: Vozes, 2009. ANTUNES, E. Temporalidade e produção do acontecimento jornalístico. Em Questão, Porto Alegre, v. 13, n. 1, p. 24-40, 2007. BENETTI, M. Jornalismo e imaginário: o lugar do universal. In: ESFERA pública, redes e jornalismo. 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No que se refere à prática jornalística, a evolução da internet e as possibilidades de interação por meio dela trouxeram, sobretudo, um aceleramento na produção e na divulgação das notícias. Se por um lado rádios, emissoras de televisão e jornais impressos tiveram suas rotinas modificadas e seus processos agilizados em virtude do emprego da tecnologia, por outro, viram-se, principalmente na última década, concorrendo cada vez mais com a instantaneidade do jornalismo, apresentado nos portais de notícias, e com a divulgação de informações de forma praticamente simultânea realizada via redes sociais. Não é exagero, portanto, dizer que o tempo do jornalismo já é outro – e que diferentes também passam a ser seus mecanismos de produção e suas estratégias de reconhecimento junto ao público. Desse cenário em que as mídias se readaptam a fim de manter e ampliar seus espaços, não ficou de fora nem mesmo a televisão, um dos meios de maior influência no país, assistida diariamente por 95% da população. Em média, o brasileiro fica 4h31 por dia em frente à televisão, sendo que oito em cada dez deles afirmam ligar a TV com um objetivo: 137 informar-se. (BRASIL, 2014)1 Pois na televisão, a informação tem o seu altar: o telejornal, produto jornalístico que se vê cada vez mais permeado pela lógica da instantaneidade, sobretudo em coberturas de grandes eventos midiáticos que ocorrem de maneira inesperada. Diante da importância de atentar-se profissional e academicamente para esse período de transição, este artigo tem como objetivo sugerir implicações que a velocidade característica dos novos tempos tem sobre a legitimidade e a credibilidade de conteúdos e agentes envolvidos na produção jornalística televisiva. Entre os objetivos específicos, pretende-se apontar de que maneira o imediatismo foi incorporado pelas coberturas televisivas e aferir que contribuições ou prejuízos as possibilidades geradas pelas novas tecnologias trouxeram para as transmissões jornalísticas na televisão. Para se chegar aos objetivos propostos, foi definido como objeto de análise a cobertura realizada pela emissora brasileira Globo News, canal pago da Globosat, sobre os atentados simultâneos em Paris em 13 de novembro de 2015 – ataques que deixaram, naquela noite, 130 vítimas, além de outras 99 pessoas feridas em estado grave. A escolha pela emissora deu-se em virtude de ser um canal voltado exclusivamente ao jornalismo, com grande número de transmissões realizadas ao vivo e com potencial para derrubar toda a grade de programação prevista diante da ocorrência de um fato de grande repercussão. Já a delimitação do objeto, a cobertura dos ataques na capital francesa, ocorreu em função de seus critérios de valor-notícia e das características apresentadas durante as transmissões, evidenciadas em termos de imediatismo, mobilidade e emprego de novas tecnologias. A partir dos preceitos da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977), foram observados nove1 vídeos sobre os acontecimentos em Paris, publicados no site da emissora entre 13 e 18 de novembro. O material foi inicialmente sistematizado a partir de três unidades de registro: temporalidade da transmissão, local do enunciador e tecnologia empregada. Após, partiu-se para uma análise qualitativa acerca da temporalidade da cobertura 1 Dados da Pesquisa Brasileira de Mídia 2015, realizada pelo Ibope, disponível em: http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-de-contratos-atuais/ pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf. Acesso em: 10 set. 2016. 138 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA e, em um segundo momento, para as implicações que as características relativas ao tempo das transmissões tiveram nos processos de construção de credibilidade e legitimidade do fazer jornalístico. O AO VIVO NA TELEVISÃO BRASILEIRA Basta ligar a televisão, sobretudo em canais dedicados exclusivamente ao jornalismo e na ocorrência de eventos de grande importância midiática, para se notar que transmissões ao vivo estão cada vez mais frequentes. Repórteres transmitem diretamente das ruas protestos contra o aumento das passagens de ônibus, sessões de votação no Congresso passam nos canais televisivos por longas horas a fio, e já não demora muito para as primeiras informações sobre atentados e eventos de repercussão mundial irem ao ar, logo acompanhadas de imagens e áudios transmitidos por jornalistas experientes ou por testemunhas que nunca antes haviam sido enquadradas na tela de uma televisão. O ao vivo não é uma novidade no meio televisivo. Foi ao vivo que a televisão nasceu na década de 1950 e foi também assim que desenvolveu todo o repertório que veio a torná-la a mídia mais importante do país. Somente na década seguinte, 1960, com a chegada do Videoteipe (VT), as produções televisivas realizadas essencialmente em transmissão direta deram lugar às gravações, determinando uma das primeiras guinadas na forma de se pensar e também de se fazer o conteúdo jornalístico na televisão. Se a possibilidade de armazenar as imagens e editá-las para uma exibição posterior permitiu a produção de programas mais interessantes e com maior qualidade técnica e estética, o frequente uso do VT, entretanto, tirou a transmissão ao vivo da rotina telejornalística por quase toda a sua trajetória, desacostumando as redações a operarem com as notícias no momento em que elas ocorrem. Emerim e Cavenaghi (2012) definem assim a passagem do uso excessivo do ao vivo para o do VT a partir de 1960: […] o excesso do uso de produtos gravados acabou por restringir o emprego das transmissões ao vivo aos eventos esportivos e a pequenas aparições de repórteres atualizando ou noticiando resumidamente a posse de um político, a morte de alguma celebridade ou NOTÍCIA EM TEMPO REAL139 outro fato cuja produção dos programas não pudera recobrir com maior aprofundamento de imagens e reportagens ou especiais. (EMERIM; CAVENAGHI, 2012) Esse seria o primeiro ponto de virada no que se refere à temporalidade das transmissões telejornalísticas. O segundo, de acordo com as pesquisadoras, ocorreu somente após o 11 de setembro de 2001, quando profissionais da televisão foram surpreendidos pela grandeza e subitaneidade da notícia e se mostraram despreparados para lidar com o acontecimento no momento em que ele ocorria. Segundo as autoras, diante dos atentados nos Estados Unidos, profissionais de televisão foram alçados, assim como toda a audiência, a meros espectadores – que tinham, no entanto, a missão de tentar dotar de sentido as imagens que se repetiam por horas na televisão. (EMERIM; CAVENAGHI, 2012) Na década seguinte àquela em que o mundo viu as torres gêmeas do World Trade Center desabarem em rede mundial, a técnica da transmissão direta e as coberturas ao vivo já podiam ser identificadas com maior peso em programas televisivos de diferentes gêneros, sugerem Emerim e Cavenaghi (2012). Segundo as autoras, tal fato deve-se aos avanços tecnológicos, possibilidade de convergência entre as tecnologias e mobilidade dos dispositivos. Para Silva (2008), o uso cada vez mais frequente de tecnologias móveis e conexões sem fio abriram as portas para uma maior produção e capacidade de geração de conteúdo em situação de instantaneidade mais potencializada. Em outras palavras, a convergência tecnológica possibilitou que a redação jornalística saísse de um local físico fixo, passando a ser qualquer lugar. Popularizou-se, assim, a condição técnica de transmissão de áudio ou vídeo em tempo real e de forma contínua, até então exclusividade do broadcasting. E um complexo aparato, formado por estrutura pesada, que exigia um maior número de profissionais envolvidos em uma cobertura, pôde ser substituído por ferramentas portáteis on-line, como smartphones, capazes de processar informações de forma digital e transmitir de forma instantânea. Tem-se o estabelecimento de novas relações no processo jornalístico, caracterizado a partir de então pelo deadline contínuo e pelas novas formas de interação com o espaço urbano. Para Santaella (2007), a explosão do universo digital reforçou ainda, nesse sentido, a sensação de ubiquidade, 140 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA de se estar em dois espaços ao mesmo tempo. O celular e sua conexão constante, usado enquanto pessoas se movem “no burburinho fervilhante da cidade”, foi capaz ainda de inserir “contextos remotos dentro de contextos presentes” – fazendo com que interlocutores entrassem em um “estado pervasivo de presença ausente”, como sugere a autora. (SANTAELLA, 2007, p. 236) O DISCURSO E A CONSTRUÇÃO DA TEMPORALIDADE NO TELEJORNALISMO Apesar de a concepção do telejornalismo como um simples espelho da realidade ainda encontrar grande espaço em redações e faculdades de Jornalismo, é crescente o campo de estudos que procura compreender o telejornalismo como uma forma de conhecimento da realidade – o que coloca o jornalista como alguém que não apenas comunica o conhecimento da realidade, mas também o produz e reproduz, confome sugere Vizeu (2004). Segundo o autor, o jornalista é servido, no dia a dia de sua profissão, pela língua e pelos códigos e regras do campo das linguagens. E é a partir desses elementos que este profissional, no trabalho da enunciação, produz discursos. De acordo com Vizeu (2008), as formas de enunciação jornalística são marcadas por processos de raciocínio que objetivam determinados efeitos de reconhecimento, de apreensão e compreensão pela audiência. Esses processos permeiam operações enunciativas que são mobilizadas pelos jornalistas diariamente na produção dos textos, de forma consciente ou inconsciente. Uma delas é a operação de atualidade. Segundo Vizeu (2008), o tempo do telejornal não é um tempo concreto, não é necessariamente o tempo do fato, mas um tempo formal, abstrato. De forma que, se o presente absoluto do fato é impossível, o discurso se organizará sobre o presente da enunciação do fato, este sim absoluto: o presente do próprio ato enunciativo, o presente do telejornal. É o que destaca Fechine (2008) ao reforçar em seus estudos a importância de se diferenciar os diversos tempos que são construídos e apresentados durante uma transmissão telejornalística – cada um deles responsável por um efeito distinto na divulgação das notícias e na sensação de NOTÍCIA EM TEMPO REAL141 pertencimento do telespectador. Para a autora, o telejornal é um conjunto de sucessivas unidades (reportagens gravadas, entrevistas em estúdio, entradas ao vivo, gráficos e material de arquivo) reunidas em uma instância enunciativa que as engloba, marcada pela temporalidade. Esta temporalidade, segundo a pesquisadora, corresponde à duração na qual se dá a própria transmissão do telejornal, continuamente no presente: “[...] essa duração da transmissão corresponde, do ponto de vista enunciativo, ao agora do ato de enunciação”. (FECHINE, 2008, p. 111-112) Há, portanto, unidades (reportagens, inserções de repórteres e outros conteúdos veiculados em um jornal de TV) que se situam ou no mesmo agora da enunciação ou em um então, quando ocorrem em um tempo passado em relação ao presente. Para que um enunciado se situe no mesmo agora da enunciação, é preciso que ele esteja se fazendo discursivamente no mesmo momento que o enunciado englobante, o telejornal. Em outras palavras: tem-se uma entrada ao vivo, uma sequência direta. Quando, pelo contrário, o enunciado englobado situa-se em um então, é porque se trata de uma sequência previamente gravada. O que diferencia uma transmissão ao vivo de uma previamente gravada é a instauração de efeitos de sentido de maior ou menor proximidade entre o ato de enunciação e o conteúdo enunciado, afirma Fechine (2008). Mas há ainda particularidades dentro do conceito da transmissão ao vivo, uma vez que ela pode se dar em tempo atual ou em tempo real. Conforme a definição de Fechine (2008), a configuração do tempo atual está associada às situações nas quais um repórter entra ao vivo para falar de algo que já ocorreu, situando-se geralmente no local onde o fato reportado aconteceu. Por meio dessa estratégia de inserção do repórter e do apresentador no mesmo agora em que se dá a transmissão, promove-se a atualização de um fato passado ao presente do telejornal. Por sua vez, a configuração do tempo real está associada às situações nas quais um telejornal registra e exibe um determinado acontecimento que ocorre no momento em que está sendo transmitido pela televisão. (FECHINE, 2008) Nesses casos, apresentador, repórter e aquilo sobre o qual ambos falam estão inseridos em uma mesma duração. Ou seja, destinadores e destinatários estão inseridos em uma mesma temporalidade, que é tanto a do discurso (da TV) quanto do mundo (dos fatos). A partir da continuidade temporal, 142 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA a transmissão direta é capaz de instaurar um espaço sem qualquer correspondência no mundo natural, como sugere a autora: O efeito de contato produzido pela transmissão direta parece ser justamente o resultado do reconhecimento tácito de que algo está se atualizando (se fazendo) agora tanto aqui (espaço do eu) quanto lá (espaço do outro): um contato produzido pela e na duração. Compartilho com os responsáveis pela emissão (produtores) e com milhares de outros espectadores (receptores) de um mesmo tempo – o tempo instituído pela própria transmissão – e, através deste, todos nos encontramos em um mesmo lugar, um espaço que não se constitui mais materialmente, um espaço simbólico, um espaço vivido tão somente através da transmissão. [...] É sincronizando o passar do tempo do meu cotidiano com o de grupos sociais mais amplos que a TV instaura um sentido de estar com que se manifesta unicamente na copresença que essa similaridade da programação (todos vendo a mesma coisa, mesmo que não importe exatamente o quê) e essa simultaneidade da sua transmissão (ao mesmo tempo) propiciam. (FECHINE, 2004, p. 54) Efeitos como o de aproximação do tempo e do local dos eventos, bem como a sensação de pertencimento e de testemunha dos fatos, são o que, de acordo com Franciscato (2003), fazem com o que o ao vivo atribua credibilidade ao discurso jornalístico. Segundo o autor, o jornalismo em tempo real exacerba o seu “poder de dizer” utilizando modos específicos para isso, baseados na tensão emotiva das imagens, na velocidade de sua transmissão, no sentimento de envolvimento, na dramaticidade da narrativa e na imprevisibilidade do desfecho. Para Franciscato (2003), o ao vivo na televisão traz ainda ao telespectador a sensação de contato direto com o acontecimento narrado: Ao transmitir ao vivo, instaura-se um novo contrato de sentido no discurso jornalístico, em que não é mais conveniente aceitar intervalos de tempo entre o evento e sua disponibilização pública (no máximo, alguns poucos segundos em decorrência do retardo do sinal nas transmissões por satélite). Isto significa dizer que o ‘ao vivo’ é uma construção discursiva que se baseia em uma mediação operada tecnologicamente para dar um efeito de audiência de mediação, um efeito de contato direto do público com o evento. [...] A aparência é de que o jornalismo em tempo real coloca-nos em contato direto com o evento, como se estivessemos superando NOTÍCIA EM TEMPO REAL143 a mediação do veículo – e superar a mediação seria uma forma de afirmar um discurso com a pretensão de verdade, de eliminar a interpretação e a subjetividade. (FRANCISCATO, 2003, p. 278) Sobre as transmissões instantâneas, Becker sugere que “a tecnologia garante cada vez mais um melhor aproveitamento dos recursos técnicos para marcar a contemporaneidade da linguagem televisual, os quais espetacularizam notícias e estão aliados ao princípio de ubiquidade”. (BECKER, 2005, p. 90) A ubiquidade está associada à capacidade de percepção do receptor, que tem a sensação de que poder ver tudo, de estar em todo lugar. De acordo com a autora, tal sentimento é ainda mais reforçado pela transmissão ao vivo, quando ocorre o que define como ubiquidade instantânea: o telespectador vivencia um suspense real, “já que tudo passa a ser imprevisível, e o fato ganha ainda mais importância e conteúdo”. (BECKER, 2005, p. 76-77) ANÁLISE DA COBERTURA DA GLOBO NEWS SOBRE OS ATENTADOS EM PARIS Para verificar as alterações nas configurações da temporalidade possibilitadas pelo uso e pela convergência das novas tecnologias, bem como o efeito que tais mudanças têm no que diz respeito à construção da credibilidade do fazer jornalístico, este estudo toma como objeto de análise a cobertura realizada pela Globo News sobre os atentados simultâneos em Paris em novembro de 2015. Os 91 vídeos disponibilizados pela emissora em seu site entre 13 e 18 de novembro de 2015, período em que o assunto ganhou destaque na emissora, foram analisados em duas perspectivas. A partir da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977), o material passou primeiramente por uma análise quantitativa, sendo sistematizado por meio de categorias relativas ao tempo das transmissões (ao vivo, gravado, tempo atual e tempo atual); ao local de onde as transmissões foram realizadas (estúdio, casa do correspondente, pontos externos aleatórios ou local dos fatos) e à tecnologia empregada nas transmissões (satélite, ligação por celular, streaming via computador ou streaming via celular). Em seguida, os resultados da primeira etapa foram levados a uma segunda análise, dessa vez qualitativa, realizada a partir de três perspectivas: a legitimidade do 144 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA conteúdo, a credibilidade do jornalista (enunciador) e a sensação de ubiquidade do telespectador. Antes de os resultados serem apresentados, no entanto, cabe uma breve descrição do material apreendido para a análise. A informação de que Paris havia virado alvo de terroristas naquela noite foi dada pela primeira vez entre as emissoras brasileiras no Jornal das 19h da Globo News, apresentado pela jornalista Leilane Neubarth, com a entrada ao vivo da repórter Lúcia Muzell, correspondente na capital francesa. As informações iniciais eram vagas – não se confirmava ainda que se tratava de um ataque terrorista, nem o número de possíveis vítimas. A partir da primeira entrada ao vivo, em torno das 19h24, a programação da Globo News foi suspensa, e a emissora passou a noticiar os novos fatos sem pausa, com o uso de imagens do Cable News Network (CNN). A cobertura ganhou destaque entre as emissoras brasileiras, em grande parte, devido a uma coincidência: de férias, a repórter da Globo News no Rio de Janeiro, Carolina Cimenti, assistia ao amistoso França x Alemanha, no Stade de France, estádio próximo ao qual um dos terroristas explodiu bombas na noite daquela sexta-feira. A repórter, assim que possível, passou a fazer parte da cobertura da Globo News. Sua primeira entrada ao vivo foi por celular, ainda de dentro do estádio, narrando como estava a situação que levava milhares de torcedores a se concentrarem no gramado, à espera de informações para deixar o local. Como ela mesmo esclareceu durante a transmissão, o sinal de internet móvel no local era precário naquele momento, em função do grande número de pessoas que buscavam informações e tentavam se comunicar com amigos e familiares. Assim, não foi possível que a repórter entrasse ao vivo do estádio por meio de um streaming, com imagens. A partir do celular, gravou imagens que mais tarde foram exibidas também na Rede Globo. E, em seguida, quando conseguiu conexão, entrou ao vivo via Skype, enquanto se deslocava ao hotel em um táxi. Nos dias seguintes, a repórter seguiu transmitindo os acontecimentos e o clima nas ruas da capital francesa, onde homenagens e operações policiais continuavam ocorrendo – quase sempre a partir do celular, raramente acompanhada de cinegrafistas. Da cobertura dos atentados, também fez parte a repórter Bianca Rothier, correspondente em Genebra, que foi deslocada para Paris. Ela NOTÍCIA EM TEMPO REAL145 passou a fazer transmissões ao vivo dos locais das homenagens via satélite. Lúcia Müzell, correspondente do canal na França, também participou da cobertura, assim como outros repórteres já residentes em Paris foram chamados para a transmissão dos fatos decorrentes do evento. Correspondentes da Globo News na Inglaterra, Roberto Kovalick e Pedro Vedova foram deslocados para a capital francesa nos dias seguintes. Entre a sexta-feira dos ataques e o domingo seguinte, segundo dados do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), cerca de 8,8 milhões de pessoas passaram pela Globo News – o que significa uma audiência 73% maior que a média anual do canal nestes dias, de acordo com o jornal O Globo.2 (ALVIM, 2015) Mais do que informações atualizadas instantaneamente por jornalistas, a emissora oferecia aos seus telespectadores relatos no local dos eventos, quando não no momento em que eles ocorriam, além de cenas ainda não tão comuns na televisão brasileira, a de repórteres improvisando entrevistas assim que encontravam testemunhas e de correspondentes movendo-se pelo local dos eventos, com transmissões que dependiam apenas de celulares, fones de ouvido e conexão à internet. A cobertura tomada para análise reforça a premissa de que as transmissões jornalísticas de grandes eventos midiáticos estão cada vez mais instantâneas. O que comprova isso é o próprio corpus composto por 91 vídeos tomados para observação nesta pesquisa. Na primeira etapa da análise, de sistematização, verificou-se que, dentre todos os vídeos, 88% eram de transmissões ao vivo (fossem elas entradas de repórteres; pronunciamentos de autoridades francesas ou lideranças mundiais; entrevistas feitas no estúdio ou por telefone) e somente 12% do total traziam reportagens ou vídeos gravados anteriormente. Este é um dado importante relativo à natureza da cobertura no que diz respeito à temporalidade: em sua extensa maioria, deu-se a partir de transmissões ao vivo. Se consideradas somente as inserções de correspondentes ao vivo de pontos externo à redação do telejornal, somam-se 45 vídeos. Destes, 71% correspondem a entradas de repórteres em tempo atual e 29% em tempo real, conforme as definições de Fechine (2008). Cabe ainda destacar que quase 50% das 2 Disponível em: blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/atentados-em-paris-dao-globonews-segunda- maior-audiencia-do-ano.html. Acesso em: 10 de set. 2016. 146 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA transmissões foram realizadas exatamente no local dos eventos narrados. Outro dado importante é que 55% das transmissões protagonizadas por repórteres a partir de pontos externos à redação foram realizadas via internet (sendo que destas ocorrências, a maioria foi por streaming via celular) e 38% via satélite (meio utilizado por repórteres que estavam acompanhados de cinegrafistas) – além disso, em número menos significativo, houve três entradas por ligação de celular. Uma análise mais qualitativa do corpus traz os seguintes resultados: dispendiosos processos de transmissão puderam ser substituídos, em grande parte, por tecnologias mais simples, que possibilitaram uma divulgação mais imediata da notícia, mesmo quando inesperada (imediatismo); a simplicidade e a portabilidade dos equipamentos garantiram que um número maior de jornalistas pudesse integrar a cobertura, emitindo seus relatos com maior frequência (fluxo contínuo) e com distâncias temporais mínimas, quando não nulas, em relação aos eventos noticiados (possibilidade de tempo real); a cobertura de eventos simultâneos (simultaneidade) foi possível devido ao maior número de jornalistas envolvidos; enunciadores puderam fazer suas entradas ao vivo de pontos diversos da cidade, trazendo elementos visuais e um referencial de localização para as transmissões; o uso de tecnologias e conexões móveis também permitiram uma maior mobilidade física durante a transmissão e a possibilidade de se trazer diferentes perspectivas sobre os eventos narrados, como abordagens mais singulares sobre os fatos e elementos de bastidores da cobertura jornalística. Em relação à temporalidade, de maneira geral, pode-se dizer que o grande impacto dos avanços técnicos nas transmissões está no efeito de atualidade, característica temporal que se deu a partir da instantaneidade e da simultaneidade ainda mais potencializadas, e na capacidade de se estar no local dos fatos narrados ou, ao menos, em lugares próximos a eles, quando não circulando por eles. Assim, pode-se dizer que as novas tecnologias foram fundamentais para que a cobertura analisada ampliasse sua possibilidade de transmissões em tempo real e para que, na maior parte das vezes, pudesse aproximar o tempo da narração dos fatos ao dos eventos – ou seja, reduzir a distância temporal nas transmissões em tempo atual. NOTÍCIA EM TEMPO REAL147 Tal efeito de atualidade destina-se a mostrar não haver um desencaixe entre o tempo do mundo e o tempo da produção jornalística. Cria-se com isso um discurso que parece transmitir o evento em sua plenitude, com uma aparente ausência de edição, que costuma recortar os fatos de sua linearidade temporal, como sugere Franciscato (2003). No objeto analisado, ao permitir que o telespectador compartilhasse do mesmo fluxo temporal do evento, a instantaneidade dava a ele se não o sentimento de participar dos eventos em desdobramento, pelo menos o lugar de telespectador que se vincula emocionalmente ao evento, propiciando um leque de emoções que poderiam fazê-lo agir e reagir em sincronismo com o fato reportado – como por exemplo, quando repórteres estavam nos locais das homenagens às vítimas e traziam em tempo real imagens e depoimentos de parisienses que participavam daquele momento. A instantaneidade na potência máxima, o tempo real, tem a capacidade de criar a sensação de superação da mediação. A possibilidade de um grande número de repórteres se espalhar pela cidade onde ocorriam os eventos decorrentes dos atentados (bastavam celular e conexão para tanto), como verificado nos vídeos analisados, e o potencial que tinham de entrar ao vivo a cada nova informação davam ao telespectador a sensação de que havia câmeras espalhadas por todas as partes, aptas a registrarem tudo e transmitirem instantaneamente. Tinha-se, assim, novamente o reforço da legitimidade do conteúdo e a confiança de que a emissora divulgaria todos os fatos relevantes. A simultaneidade dos eventos, trazidos de forma sincronizada, permitiram ainda que o telespectador sentisse o seu próprio tempo presente como um tempo expandido. Estando onde estivesse, ele ainda poderia se imaginar no local em que cada um destes enunciadores estavam, o que seria fisicamente impossível. Atribui-se assim ao jornalismo uma capacidade única, que o próprio telespectador não teria se ele mesmo estivesse no local do evento. O que se tem, então, é uma “supervisão” do evento, a partir de perspectivas diferentes sobre o que ocorre naquele exato momento. A instantaneidade que marcou as transmissões, no entanto, por vezes revelou processos que, em outras circunstâncias, como em reportagens gravadas, não sairiam dos bastidores. Vários foram os momentos em que detalhes do processo 148 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA da produção jornalística eram citados, revelando-se aos olhos do telespectador e reforçando, assim, de certa maneira, a credibilidade do exercício. Por outro lado, no entanto, verificou-se que, para dar conta da transmissão das notícias com agilidade e velocidade, as informações eram divulgadas ainda sem apuração prévia, a partir de dados não confirmados ou não oficiais. Além disso, percebeu-se que a velocidade imposta às transmissões fez com que o padrão de qualidade, normalmente preservado pela emissora, passasse a ser menos relevante do que a possibilidade de se informar de forma instantânea. O que se viu no objeto estudado foi a permissão para entradas ao vivo em que as imagens não tinham necessariamente qualidade técnica, podendo “congelar” por alguns instantes devido à problemas de transmissão do sinal (geralmente via internet). Como se observou durante todas as etapas de análise desta pesquisa, diante da necessidade/escolha de trazer as notícias com maior agilidade, motivada principalmente pelas possibilidades trazidas pelo jornalismo on-line – em que as tecnologias se convergem em formatos distintos e em constante atualização, e em que as pontas do processo comunicativo (repórteres e público) são unidas onde quer que estejam –, a televisão, assim como todas as mídias ditas tradicionais, são forçadas a uma remodelação. Como sugerem Emerim e Cavenaghi (2012), longe de decretar o fim, como já apostaram alguns críticos, a internet oferece o suporte para que a televisão se torne cada vez mais qualificada no que é a sua essência: a transmissão ao vivo – afinal, foi com uma programação feita em transmissão direta que a televisão nasceu e se consolidou no Brasil em seus primeiros anos, na década de 1950. No entanto, com este suporte, surgem novas formas de se fazer jornalismo, que tem entre suas características a possibilidade de transmissões com qualidade técnica inferior, realizadas por jornalistas de credibilidade conferida em função de estarem no local do evento, e não em virtude de uma trajetória reconhecida, e, o mais discutível, que tem a permissão para noticiar as informações em desenvolvimento, em construção, sem uma aprofundada apuração dos fatos – prática que sempre se constituiu em um dos exercícios mais fundamentais do jornalismo. A justificativa é a mesma, o valor está sobre o informar, no local e no tempo dos eventos. NOTÍCIA EM TEMPO REAL149 CONSIDERAÇÕES FINAIS A evolução dos dispositivos tecnológicos em paralelo ao avanço e à consolidação da internet, principalmente nas duas últimas décadas, alterou os processos comunicativos em geral: reduziu distâncias, simulou presenças, colocou em contato, em som e imagens, interlocutores que passaram a estar sempre acessíveis. Basta um clique, um toque na tela, e tem-se a conexão instantânea. A comunicação mediada pela computação é a marca dos novos tempos. E poucos passaram imune a ela. Não é o caso do fazer jornalístico. Tome-se como exemplo a mídia que for, e se observará: todas sofreram impacto em alguma medida e de alguma maneira. Este estudo dedicou-se a analisar como a velocidade imbricada nos processos comunicativos deste novo cenário, desenhado aos moldes dos avanços tecnológicos, implicou alterações na temporalidade do jornalismo na televisão e, assim, também em suas estratégias de legitimidade e credibilidade, perpetuadas ao longo de sua trajetória. Fala-se de um momento em que a soberana das mídias no Brasil, a televisiva, perdeu a exclusividade em transmitir imagens e sons em tempo real, com agilidade e qualidade técnica. Em outras palavras: a televisão deixou de ser a única “janela para o mundo”. Neste novo contexto, o imediatismo e a capacidade de interação, características intrínsecas às relações mediadas pela internet, viraram valor agregado aos meios de comunicação que se viram diante de uma revolução para continuar a firmar não apenas presença, mas relevância. Na televisão, e mais especificamente no telejornal, o início das transformações foi, sobretudo, nos modos de organização dos discursos. De forma que, assim, um dos resultados mais perceptíveis desta fase de readaptação é o reforço da transmissão ao vivo, capaz não apenas de produzir o efeito de atualidade na divulgação da informação, mas também de construir um sentido de presença comum entre os envolvidos no processo comunicativo. Ao telejornalismo e, principalmente, às coberturas televisivas de eventos midiáticos, o impacto do uso convergente das novas tecnologias está na temporalidade em que se dá o fazer jornalístico – processo que compreende desde a apuração e a produção da notícia até a divulgação e a recepção dela por parte do público. O tempo do jornalismo sempre foi 150 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA a atualidade. Não seria equivocado dizer então que, neste novo cenário, ele passa a ser ainda mais o da instantaneidade. Muita coisa mudou em relação às transmissões ao vivo realizadas pelas emissoras brasileiras há 15 anos, quando a internet ainda estava no início de seu rápido avanço no país. À época, o uso habitual das transmissões ao vivo na televisão brasileira dava-se principalmente como maneira de marcar a presença da televisão fora dos estúdios, mas não necessariamente no tempo dos eventos. Aliás, resquícios desta fase imperam ainda hoje no telejornalismo, principalmente nas emissoras de TV aberta, quem têm horários predeterminados para o jornalismo, dificilmente coincidindo com os momentos dos fatos. Os casos mais emblemáticos são aqueles em que repórteres de política trazem informações a partir de entradas ao vivo em frente às sedes de órgãos do governo, em locais que têm um vínculo com a notícia, mas onde geralmente já não acontece mais nada. São exemplos em que a informação pode até estar bem apurada, mas em que há uma certa banalização do uso da transmissão direta. O efeito pode ser o esvaziamento da legitimidade do conteúdo, uma vez que um simples boletim carece de imagens, sons e demais elementos que comprovam a veracidade do relato. Não é improvável ainda o prejuízo da credibilidade do enunciador – o que garante que o que ele diz é verdade? Nessas situações, a confiabilidade parece estar sujeita unicamente ao respeito que se tem, ou não, em relação à trajetória do repórter e da emissora em que ele trabalha. No atual cenário, se os telejornais das emissoras de TV aberta continuam restritos dentro de grades de programação, os canais voltados exclusivamente ao telejornalismo mostram-se como espaços fortalecidos para a transmissão de eventos que estão em desenvolvimento, para a divulgação dos fatos em tempo real – há espaço e já experiência para tanto. Não se pode desconsiderar, no entanto, que a remodelação do fazer telejornalístico imposta pelo imediatismo se refletiu também em novas configurações de operação dos conceitos de legitimidade e credibilidade, que permeiam os processos da divulgação da notícia. Em coberturas ao vivo, que agora têm as participações em tempo real ampliadas e as entradas em tempo atual com menor deslocamento temporal em relação aos eventos, a informação vira notícia em um processo que ocorre diante dos olhos do público. NOTÍCIA EM TEMPO REAL151 Isso só é possível porque a transmissão se dá, então, principalmente no local e no tempo dos eventos. E são exatamente estas duas características que conferem legitimidade aos conteúdos transmitidos e credibilidade aos jornalistas envolvidos nas coberturas telejornalísticas desse novo cenário, em que as informações, por vezes, viram notícia sem que necessariamente passem por uma apuração mais aprofundada. Afinal, é a velocidade que está em jogo. Em função da pressa de se reportar, parece não ser mais admissível esperar que informações sejam confirmadas por fontes oficiais. Diferentemente das transmissões ao vivo anteriores, que traziam relatos de fatos quase sempre já encerrados, as entradas em tempo real neste novo cenário podem ter a informação prejudicada pela falta de checagem, mas revelam fatos que acontecem diante dos olhos do telespectador, que tem a sensação de ser testemunha das notícias. Assim, a legitimidade do conteúdo passa a ser construída por fatores que envolvem uma aparente ausência de mediação: nas transmissões em tempo real, o telespectador vê com os próprios olhos o acontecimento relatado pelo jornalista, e sente-se participando do evento em desdobramento. No jornalismo das reportagens gravadas, a credibilidade do discurso se dá a partir da apuração, da busca dos vários lados da notícia, da edição equilibrada – e também do relato informativo, da passagem feita por um repórter já conhecido, de carreira consolidada. A credibilidade, antes ligada ao trabalho do jornalista ao longo de sua carreira ou à familiaridade de sua feição, agora dá espaço à outra, calcada no fato de o enunciador estar diante dos eventos nos momentos em que eles acontecem. A presença do repórter no local – e no tempo – dos fatos narrados garante ao profissional uma autorização enquanto fonte confiável. De forma que o quadro de jornalistas da emissora, em grandes eventos midiáticos repentinos, é reforçado por profissionais freelancers, que neste momento têm suas estreias nos veículos ou mesmo no próprio meio televisivo. Pela capacidade temporal, no sentido de uma cobertura se desenrolar pelo tempo que for ditado pelos acontecimentos, surgem ainda novas possibilidades de enunciadores, como testemunhas dos fatos que enviam vídeos e fazem até mesmo participações ao vivo, sem que para isso sejam necessariamente jornalistas. São novos sujeitos que aparecem nas coberturas, alçados à 152 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA função de correspondentes na medida em que estiveram ou estão no local dos acontecimentos. Cabe discutir até que ponto a nova temporalidade presente no telejornalismo e a construção de credibilidade e legitimidade decorrente dela se fazem válidas. Entre dúvidas, no entanto, está a certeza de que a internet e o avanço das novas tecnologias não determinaram o fim da televisão. Aliás, pode ser que, pelo contrário, tenham favorecido para que o meio televisivo voltasse a assumir sua capacidade diante de episódios inesperados e de alto valor-notícia: transmissões ao vivo, com potencial de aliar som à imagem e, mais, reunir multidões diante de um evento comum a toda elas. REFERÊNCIAS ALVIM, M. Atentados em Paris dão à Globo News a segunda maior audiência do ano. O Globo, Rio de Janeiro, 20 nov. 2015. 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Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 154 CRISTIANE FINGER E BRUNA SCIREA ELIZA BACHEGA CASADEI O fotojornalismo como fato da memória e a composição como problematização do tempo na imagem INTRODUÇÃO Manguel (2001, p. 284) conta uma história interessante a respeito do arquiteto alemão Albert Speer que, já no período pós-guerra, ao ver algumas plantas nascendo entre os degraus do abandonado estádio de Nuremberg, teria comentado “o führer ficaria furioso se soubesse que o concreto deixa passar ervas daninhas”. Algo similar parece engendrar a temporalidade nas imagens fotojornalísticas. Assim como as ervas daninhas que nascem por entre o concreto, por detrás de deontologias e mitologias profissionais rígidas que pregam uma empatia a um presente absoluto, há a rebeldia insistente de uma temporalidade híbrida. Lidar com o fotojornalismo significa manejar um produto de uma temporalidade múltipla, complexa e dialética. A despeito do senso comum de que o fotojornalismo seria uma testemunha que imobilizaria o fio do tempo em uma imagem estática, contrapõe-se a ideia de que a fotografia possui uma duração própria, “que abandona o tempo crônico [...] para entrar numa temporalidade nova, separada e simbólica, a da foto: uma temporalidade que também dura”. (DUBOIS, 2001, p. 168) Assim, se “o que torna uma foto surreal é o seu pathos irrefutável como mensagem do passado” (SONTAG, 2004, p. 68), tal passado não é simples ou fixo. Trata-se de um passado cujos sentidos são moventes, 155 articulados de forma dialética e sujeitos a certos circuitos de produção, consumo e memória. “Sempre, diante da imagem, estamos diante do tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 15) e isso significa assumir que, na fotografia, estamos diante da imagem “como diante de um objeto de tempo complexo, de tempo impuro: uma extraordinária montagem de tempos heterogêneos formando anacronismos”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 23, grifo do autor) É nesse sentido que a imagem fotográfica não pode ser pensada nem como o testemunho de um presente absoluto, nem como um depoente de uma história empirista. É necessário abrir a imagem fotojornalística a novos modelos de temporalidade. Embora toda fotografia carregue uma duração múltipla e dialética, o presente artigo tem como objetivo analisar imagens que problematizam a temporalidade fotográfica a partir de suas próprias técnicas de composição. Nesses termos, “a experiência visual não é o ‘resultado’ ou um ‘efeito’ da obra plástica, mas um componente fundamental de sua própria forma que, enquanto forma, produz a espacialidade de sua apresentação”. (DIDIHUBERMAN, 2015, p. 207) Nesse sentido, serão analisados os trabalhos dos fotojornalistas Alejandro Chaskielberg, Kazuma Obara e Camilo Vergara que, a partir de diferentes técnicas composicionais, colocam a temporalidade fotojornalística no centro do conteúdo de suas representações e, com isso, questionam a vinculação ethópica do fotojornalismo como testemunha de um presente absoluto ou de um passado cristalizado e imóvel. Em um primeiro momento, discutiremos os tensionamentos presentes nas discussões sobre a temporalidade fotográfica para, em seguida, analisar como o tempo é materializado como composição na obra dos três fotógrafos citados. Ao passo que Chaskielberg metaforiza a questão temporal a partir da mimetização dos processos de produção da imagem no nível do conteúdo a partir da colagem, Obara o faz a partir de uma ênfase no suporte e no processo fotográfico. Vergara, por sua vez, metaforiza a temporalidade nos próprios modos de exibição das imagens, conforme discutiremos adiante. 156ELIZA BACHEGA CASADEI O ANACRONISMO COMO CONCEITO OPERATÓRIO E O TESTEMUNHO COMO OPERAÇÃO DIALÉTICA A temática da fotografia como detentora de uma temporalidade expandida, para além do senso comum da imagem estática, foi um argumento trabalhado por diversos autores, sob diferentes perspectivas teóricas. Para alguns deles, a temporalidade heterogênea foi atribuída aos procedimentos técnicos envolvidos no ato ou no acontecimento fotográfico, de forma que o contexto prático da produção ganha primazia na análise do decalque do tempo na imagem. É nesse sentido que, para Cartier-Bresson (2004), a temporalidade da fotografia é composta a partir de um jogo estabelecido entre o instante em que o operador percebe a realidade no visor da máquina, o momento em que o disparo fixa o presente, combinado com a espera pressuposta na imagem latente que é formada. Daí, sua famosa afirmação de que “jogamos com coisas que desaparecem, e quando elas desaparecem, é impossível fazer com que elas revivam. Para nós, o que desaparece, desaparece para sempre: daí nossa angústia e também a originalidade essencial de nossa profissão”. (CARTIER-BRESSON, 2004, p. 18) O presente do ato de se produzir uma fotografia é entendido, portanto, tanto como uma extensão em direção a um futuro de uma imagem latente quanto em relação a um passado do referente retratado. Nesse mesmo sentido, Dubois (2001, p. 174) pontua que o corte temporal que o ato fotográfico implica não é “somente redução de uma temporalidade decorrida num simples ponto (o instantâneo)”, mas sim, “é também passagem (até superação) desse ponto rumo a uma nova inscrição na duração: tempo de parada, decerto, mas também [...] tempo de perpetuação (no outro mundo) do que só aconteceu uma vez”. Muitas vezes, contudo, tal temporalidade complexa foi atribuída à esfera da recepção de uma fotografia. É nesse sentido que Sontag (2004, p. 86) coloca que “uma foto é apenas um fragmento e, com a passagem do tempo, suas amarras se afrouxam. Ela se solta à deriva num passado flexível e abstrato, aberto a qualquer tipo de leitura (ou de associação a outras fotos)”. E, assim, “uma foto também poderia ser descrita como uma citação, o que torna um livro de fotos semelhante a um livro de citações”. Nessa perspectiva, as temporalidades complexas da fotografia estariam O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM157 postas nos contextos sociais de seus usos, de maneira que diferentes temporalidades se sobrepõem no processo a partir do qual os usos originais de uma imagem são modificados, ressiginificados e suplantados por seus usos subsequentes, em diferentes contextos de recepção. Também para Barthes (1984), a temporalidade de uma fotografia se complexifica na recepção, de forma que, diante de uma imagem, nunca estamos diante meramente de seu referente, mas sim, de um cruzamento muito particular entre a presença virtual do referente do passado e as memórias e impressões projetadas pelo espectador da foto no presente. Trata-se de um raciocínio similar ao de Rouillé (2009, p. 213), para quem “a percepção de uma fotografia atual, presente aqui e agora, será acompanhada da criação de uma imagem virtual, espécie de duplo ou reflexo, com a qual ela ganha uma unidade: uma imagem-cristal, em que se permutam o atual e o virtual, o real e o imaginário, o presente e o passado”. A isso, contudo, outros autores irão contrapor outras perspectivas a partir das quais a temporalidade estendida do ato fotográfico não estaria nem na produção e nem na recepção, mas sim, na própria constituição da imagem como ato performativo. Ao tempo de perpetuação da imagem fotográfica trazida por Dubois (2001, p. 174), portanto, autores como Rancière e Didi-Huberman irão contrapor o tempo da perturbação, em que uma imagem é, em sua composição, rasgada por uma temporalidade complexa que a atravessa. Não se trata meramente de assumir que toda fotografia traz uma imagem do passado em direção a uma leitura futura, mas sim, de submeter a fotografia ao mesmo processo que rege todo processo memorialístico, ou seja, um processo em que os sentidos estão sob constante reelaboração, ficcionalização e “inquietação continuada de um processo em ato”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 223) Esse ponto de vista exige “a elaboração de novos modelos de tempo: a imagem não está na história como um ponto sobre uma linha. Ela não é nem um simples evento no devir histórico, nem um bloco de eternidade insensível às condições desse devir”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 106) A imagem é, sim, entendida como um dispositivo articulado em torno de uma impropriedade cronológica, como “fósseis em movimento” que operam a urdidura, na representação, de “uma carga afetiva e de uma fórmula iconográfica”. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 174) Tal impropriedade 158ELIZA BACHEGA CASADEI cronológica manifesta-se no fato de que o passado retratado na imagem fotográfica não cessa de ser ressignificado, de forma que, em uma imagem, há camadas de sedimentação do passado sobrepostas que, por sua vez, tem seus sentidos constantemente reengendrados. Toda imagem, sob essa perspectiva, carrega anacronismos, uma vez que ela é a manifestação do encontro entre presentes reminiscentes e passados ressignificados. Tal acepção, portanto, expurga os sentidos pejorativos do conceito de anacronismo e transforma-o em um conceito operatório para o entendimento das imagens. O anacronismo pode ser entendido como a ação a partir da qual certos modos de operação “fazem circular o sentido de uma maneira que escapa a toda a contemporaneidade, a toda identidade do tempo com ele mesmo”. (RANCIÈRE, 2011, p. 49) Utilizar o anacronismo como conceito operatório significa tanto um entendimento a respeito dos modos de transmissão de uma imagem quanto da articulação de seu dispositivo mesmo. Quanto ao primeiro termo, trata-se de um conceito que insere a imagem em um contexto mais amplo da circulação, onde já não é possível uma distinção completa entre o ponto de emissão e o campo da recepção de uma informação. (BRAGA, 2012) Em outros termos, pressupõe o entendimento de que um fotógrafo, ao compor uma imagem, não remete apenas a um sistema de signos de seu próprio tempo presente, mas sim, opera uma montagem de reminiscências de sistemas de significações passados e anacrônicos. Eles serão sobrepostos, ainda, a outros sistemas de significado que irão compor o contexto de recepção dessa obra em diferentes eixos temporais (com os anacronismos da própria interpretação e as possibilidades não previstas da mudança de sentido que um mesmo termo pode sofrer ao longo ao tempo). É por isso que, para Rancière (2011, p. 49), a ideia de anacronismo como erro precisa ser desconstruída, de forma que “a multiplicidade das linhas de temporalidades, os próprios sentidos de tempo incluídos em um ‘mesmo’ tempo é a condição do agir histórico”. Quanto ao segundo termo, referente ao dispositivo, é necessário considerar o fato de que, diante de uma imagem, tanto presente quanto passado nunca cessam de se reconfigurar, “visto que essa imagem só se torna possível numa construção da memória”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 16) A imagem fotojornalística, entendida dessa forma, é a expressão da O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM159 montagem de diversos sedimentos temporais de sentido, que lhe conferem duração, extrapolando a sua mitologia de testemunha inerte dos fatos. Em outros termos, a imagem fotojornalística apostaria “num conhecimento pela montagem”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 132) Entender o fotojornalismo sob essa perspectiva significa não mais apreendê-lo como a representação de coisas que são encontradas e isoladas na imagem em suas características indiciais (DUBOIS, 2001), mas sim, significa assimilá-lo como um fato da memória. Significa apreendê-lo como a representação de “coisas dialéticas, coisas em movimento: aquilo que, lá do passado, vem ‘nos surpreender’ como uma ‘tarefa da recordação’”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 116) Para isso, é necessário adotar um modelo de tempo relacional para o fotojornalismo em que as significações acumuladas do passado e do presente se encontram em uma imagem estática que adquire duração, sem que haja, com isso, contradição entre esses dois termos. Ou, ainda, assumir que o fotojornalismo produz significações a partir de uma dialética não apaziguadora, de síntese aberta. A imagem dialética seria, portanto, a imagem dada a partir de um choque entre temporalidades distintas, materializada no “anacronismo de uma colisão onde o Outrora se acha interpretado e ‘lido’, isto é, revisto pelo acontecimento de um Agora resolutamente novo”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 203) A imagem fotojornalística pode ser pensada, assim, em uma dupla temporalidade, “de ‘atualidade integral’ e de ‘abertura para todos os lados’”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 127) A partir de uma leitura benjaminiana, Didi-Huberman (2015, p. 122) irá propor que “de fato, a noção de memória toma aqui uma dimensão que extrapola a noção do documento objetivo tanto quanto a da ‘faculdade’ subjetiva”. E, assim, “a memória está, certamente, nos vestígios que a escavação arqueológica traz à tona; mas está também na própria substância do solo, nos sedimentos agitados pela enxada do escavador”. Tratase, aqui, portanto, de uma noção de memória como processo e não como fato lembrado. Assim como nos processos memorialísticos, os sentidos de uma imagem estão sujeitos a um trabalho constante de deslocamentos, transformações e refigurações de sentido que rasgam a imagem em uma temporalidade complexa. 160ELIZA BACHEGA CASADEI A assunção de tal modelo teórico implica também em uma crítica ao próprio conceito de representação, uma vez que o presente da imagem, assim proposto, não deve ser entendido em seu sentido usual, na medida em que não se trata do “presente da ‘presença’ – se entendermos com isso o que Derrida justamente questionou na metafísica clássica –, mas o presente da apresentação, que se impõe diante de nós mais soberanamente do que o conhecimento representacional”. Isso tem uma consequência importante na medida em que “quem diz apresentação – como se diz formação – diz processo, e não estase”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 237, grifo do autor) Além disso, implica também uma reelaboração da própria experiência visual: Ver só significa perceber no campo das experiências triviais ou, antes, no campo das concepções triviais da experiência. Se quisermos trabalhar o ver (na atividade artística), se quisermos pensar o ver (na atividade crítica), devemos, então, exigir muito mais: exigir que o ver assassine o perceber, se essa última palavra for compreendida como uma ‘observação passiva’ da realidade tautológica. [...] Devemos exigir que o ver amplie o perceber (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 239, grifo do autor) Assim, o consumo de uma fotografia é posto nos termos de uma captação de uma realidade ainda invisível, que aparece por meio da imagem, na fricção dos tempos diversos, que a destitui de seu caráter de testemunha simples da história. A fotografia, pelo contrário, “rejeita o ato de voyeur e reivindica o do voyant”, ao anunciar visualmente algo que não é visível. E isso significa assumir que “sem dúvida a imagem – a iconografia – emite mensagens, ‘signos de época’, como se diz. Mas a imagem, por sua vez, turva as mensagens, emite sintomas, nos entrega ao que ainda se esquiva. Porque ela é dialética e inventiva, porque ela abre o tempo”. (DIDIHUBERMAN, 2015, p. 240, grifo do autor) Se da fotografia pode se exigir algo próximo a uma testemunha do tempo, portanto, o próprio testemunho deve ser entendido como uma operação dialética de síntese aberta. O testemunho da fotografia só pode ser o resultado do choque dos tempos heterogêneos que faz surgir uma imagem nova a cada vez, resultado de choques das montagens do tempo pressupostos na imagem. O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM161 PROBLEMATIZAÇÕES DO TEMPO NA COMPOSIÇÃO DA IMAGEM Uma das peculiaridades da visão de Didi-Huberman (2015, p. 207) sobre a articulação temporal das imagens em relação a outros autores está no fato de que a heterogeneidade pressuposta não se articula meramente como uma característica universalmente atribuível a todas as produções, mas sim, possui certas particularidades em cada contexto, de forma que a experiência temporal é construída como composição, na obra para, em seguida, ser sentida pelo espectador como acontecimento. Assim, “a experiência visual não é um ‘resultado’ ou um ‘efeito’ da obra plástica, mas um componente fundamental de sua própria forma”. A recepção da fotografia, portanto, não é entendida como um mero resultado, mas sim, como algo inscrito nas próprias formas, de maneira que a composição ganha primazia como objeto de análise do tempo, apreensível nas singularidades formais de uma imagem. É sob essa perspectiva que, neste artigo, analisaremos a construção temporal nas técnicas de composição das obras dos fotojornalistas Alejandro Chaskielberg, Kazuma Obara e Camilo Vergara. Em comum, os três fotógrafos tematizam o tempo e a memória como articuladores do conteúdo de seus trabalhos e utilizam, para isso, diferentes técnicas de composição que engendram diferentes efeitos de sentido e modos de construção da temporalidade diversos. A problematização do tempo, em suas obras, ganha uma dimensão plástica, que urde novos modos de ver e perceber as situações retratadas em suas fotografias. O fotojornalista Alejandro Chaskielberg, no trabalho Otsuchi Future Memories, ganhador de uma menção honrosa do fotógrafo Martin Parr no Magnum Photography Awards de 2016, retrata o tsunami que atingiu o noroeste do Japão em 11 de março de 2011. A cidade de Otsuchi foi um dos locais mais afetados pelo desastre, onde cerca de 10% da população foi morta ou desapareceu, 60% dos edifícios residenciais sofreram danos e as funções administrativas da cidade foram paralisadas. Em meio aos destroços remanescentes, era possível encontrar algumas fotografias de família entre os escombros. A obra de Chaskielberg faz uma remontagem das fotografias familiares encontradas, colando-as sobre fotografias recentes do cenário deixado pelo tsunami. De acordo com o próprio fotojornalista, 162ELIZA BACHEGA CASADEI “este projeto apresenta uma documentação visual de destruição e perda, conectando as paisagens sobreviventes de Otsuchi com as fotografias de família recuperadas das águas”. (OTSUCHI..., [2016?], tradução nossa) As fotos dos sobreviventes não são inseridas em cenários aleatórios, mas sim, são postas nos lugares que essas pessoas costumavam frequentar, como suas casas ou seus locais de trabalho. Como uma tentativa de oferecer uma reflexão sobre a dinâmica das memórias individuais com as tragédias coletivas, Chaskielberg destaca a cor como um dos principais elementos composicionais de criação de sentido em sua obra. Segundo ele, as cores das fotografias destruídas, deformadas e desfocadas, alteradas pelos efeitos da água salgada, por vezes, criou novas cores ou misturou as originais. Estas cores foram ressignificadas através de um exercício de arqueologia da cor, onde cada uma das cores encontradas nas fotografias destruídas foi utilizada para colorir os retratos que tirei dos sobreviventes. (CHASKIELBERG, 2016) Assim, “as cores constituem uma ponte que relaciona o passado com o presente, estabelecendo um diálogo entre os dois”. (CHASKIELBERG, 2016) A colagem e o uso das cores, portanto, se destacam como as principais técnicas de composição utilizadas por Chaskielberg para a materialização da problematização do tempo e das intersecções entre a memória singular em meio a uma perda coletiva. Isso traz implicações no que se refere à construção da temporalidade na imagem, conforme discutiremos a seguir. Há nas costuras entre a memória individual e as grandes tragédias coletivas sempre uma dificuldade. Como nos lembra Manguel (2001, p. 280), a problemática dos monumentos está justamente aí, no questionamento da capacidade da representação das dores individuais em meio a um drama público, de forma que, ao tentar representar a dor “não estaríamos silenciando sua miríade de vozes individuais, reduzindo sua complexidade horrenda a uma singularidade compreensível, misturando seu aglomerado de nomes e rostos em um emblema sem nome e sem face?”. A partir do pressuposto de que a dor “pertence apenas às vítimas” e que “todos os demais são intrusos”, o resgate das histórias individuais de O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM163 sofrimento, para obter legitimidade, “precisaria representar quase uma infinidade de casos individuais clamando para serem ouvidos; deveria considerar as revelações intermináveis que surgem diariamente das trevas”. (MANGUEL, 2001, p. 285) Nas fotografias de Chaskielberg, a colagem opera não apenas como elemento de composição, mas também como operação metafórica, na adição de uma informação de caráter extremamente individual e pessoal (a fotografia de família) em um cenário coletivo pautado por uma experiência em comum. O próprio processo de feitura da imagem, nesse sentido, se torna seu tema, ao operacionalizar um jogo entre aquilo que é comum e aquilo que está na esfera subjetiva. Além disso, é necessário considerar que a colagem mobiliza efeitos de sentido bastante marcados como elemento estético da composição. Tal procedimento consiste em acrescentar um material alheio à representação que, incorporado a ela, afeta de forma decisiva a leitura global da imagem. Para Krauss (2013, p. 166), isso se dá de duas formas: pelo questionamento metafórico da capacidade de representação da imagem fotográfica, de um lado, e pela inserção de um novo material significante, de outro. Quanto ao primeiro aspecto, é marcante a forma a partir da qual a colagem “revela a natureza puramente convencional da marca gráfica, graças a um sobrelanço no contraste ontológico”. Assim, ela explicita para o espectador a ilusão referencial da expressão fotográfica. No outro eixo, contudo, se a colagem “afeta a grafismo da obra, esse grafismo, por sua vez, modifica a realidade dos fragmentos colados, absorvendo-os na linguagem metafórica da descrição visual”. O fragmento colado, assim, adquire uma capacidade de significação para além daquilo que ele é, de forma que “o pedaço de colagem afirma sua existência enquanto objeto real e, ao mesmo tempo, sua capacidade de representar, significar, substituir algo mais”. A partir dos recortes das fotografias familiares, portanto, Chaskielberg mobiliza a experiência memorialística como um efeito de real, de forma que o próprio processo de feitura da imagem converte-se em uma metáfora da legitimidade do sofrimento das vítimas que não pode ser subsumido a uma experiência coletiva – como as imagens familiares forçosamente coladas sobre o cenário destruído representam. O processo de colagem não apenas tematiza a memória, como valoriza a sua inscrição como 164ELIZA BACHEGA CASADEI uma forma mais validada de experiência, como um efeito de real calcado no estatuto da esfera testemunhal e do sofrimento em primeira pessoa. Há, contudo, uma outra questão a ser posta: a condição de fragmento do objeto da colagem é um elemento fundamental da composição proposta. E isso porque é seu caráter fragmentário que “permite-lhe agir nas pretensões à integralidade de toda representação”. Em outros termos, o elemento colado, por sua imperiosa condição de fragmento, chama a atenção para essa qualidade de ausência, torna a própria ausência presente, por assim dizer, e revela a verdadeira natureza da representação, que não passa de aparência, redução, substituta, signo. (KRAUSS, 2013, p. 167) A colagem age, assim, contra toda pretensão de uma imagem autorreferente, autônoma e total, na medida em que opera um questionamento do estatuto indiciário da fotografia a partir de um ponto de vista metafórico: trata-se de um modo de mobilizar, na própria composição, a noção de uma realidade percebida como arbitrária, “que necessariamente obriga toda representação a não ser mais que uma coleção de fragmentos”. E, assim, “no próprio centro de seu poder de representação reside essa mensagem da ausência (do real), que é a primeira condição de qualquer representação”. (KRAUSS, 2013, p. 168) A colagem, portanto, mobiliza na composição uma crítica metafórica a toda e qualquer prática fotográfica. As fotografias de Chaskielberg, assim, evocam o efeito de real das fotografias familiares (metaforizadas como memória e experiência individual) para melhor operacionalizar uma desconstrução de seus efeitos de sentido a partir de uma crítica da própria imagem. O fragmento familiar cria um espaço para a falta na composição imagética e, mais do que isso, enfatiza, no processo, a arbitrariedade dessas mesmas memórias evocadas, em seus aspectos de ficcionalização, de montagem aleatória e de encaixe de elementos díspares e contraditórios. O próprio processo de feitura da imagem, assim, é mimetizado no nível do conteúdo e da metaforização da memória enquanto processo. Se a colagem é uma forma de metaforizar e mimetizar o processo memorialístico no próprio processo de feitura da imagem, a utilização das cores também evoca a mesma significação. Ao misturar a coloração das foto- O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM165 grafias familiares com as imagens do cenário de destruição, Chaskielberg evoca o amalgamado entre o coletivo e o individual na construção do passado, de forma que o processo fotográfico de composição da imagem mimetiza o conteúdo proposto pelo fotógrafo. Dessa forma, as fotografias de Chaskielberg, a partir do mecanismo de colagem e da fusão de cores, operam a partir da decomposição do espaço antropocêntrico e referencial, como forma de melhor retratar o tempo da memória na imagem, composto por cortes, intersecções e refigurações constantes. Outros fotógrafos utilizam outros recursos expressivos de composição como forma de problematização da temporalidade na imagem. A obra Exposure, de Kazuma Obara, foi uma das finalistas do Magnum Photography Awards de 2016 e retrata os efeitos do acidente nuclear de Chernobyl. Ao longo de 30 anos, o fotojornalista retrata a vida de uma menina chamada Maria – que não aparece nas fotografias – que nasceu cinco meses após o acidente e sofreu inúmeros problemas de saúde decorrentes da exposição nuclear (como, por exemplo, o fato de que, desde seus 24 anos, ela ter que tomar de 10 a 20 pílulas por dia). O objetivo da série é mostrar que os problemas das vítimas sobreviventes não são necessariamente visíveis ou óbvios para as pessoas – fato esse que é reforçado na composição fotográfica pela ausência da garota afetada nas imagens. A palavra “exposição”, portanto, que nomeia o trabalho, é utilizada de modo a ressaltar a emergência de um problema pouco óbvio e pouco visível. Ainda quanto à composição, como forma de representar a invisibilidade dos problemas sofridos pelas pessoas e da própria radiação ainda presente em si, Obara utilizou filmes ucranianos antigos, encontrados na cidade abandonada de Pripyat, localizada a cinco quilômetros do local do acidente. O filme traz um efeito bastante granulado para as fotos e foram eles próprios sujeitos à radiação do local, em um processo que mimetiza a violência sofrida pelas vítimas. Como os próprios organizadores do prêmio pontuam, “assim como Maria, que foi exposta antes do nascimento, antes de visibilidade e contra sua própria vontade, o uso deste filme por Obara, com seu caráter incontrolável e visualmente confuso, se recusa a aparente instantaneidade da imagem fotográfica”, (EXPOSURE..., [2016], tradução nossa) em uma mimetização do conteúdo na técnica. 166ELIZA BACHEGA CASADEI A invisibilidade da vítima é mobilizada, na composição, por sua ausência na representação que é substituída pelo processo de produção da fotografia que se torna o seu próprio conteúdo. O lugar da personagem Maria não apenas é substituído pela própria falta (que é, ela mesma, um elemento da composição), mas principalmente, pelo processo fotográfico, que mimetiza e metaforiza o conteúdo proposto. O que é enfatizado, nas imagens de Obara, é o próprio procedimento de feitura da imagem como processo metafórico do conteúdo, a própria “exterioridade da luz”, “o sol imprimindo em todos esses sujeitos”, as vítimas, “o selo de sua independência”, a tirania de sua vontade em oposição à dos sofrentes. E, assim, a imagem é urdida “como se a luz tivesse se tornado símbolo de tudo o que é exterior, de tudo que é dado, de tudo que se diferencia do espaço interno da consciência”. (KRAUSS, 2013, p. 64) Isso significa que o fotógrafo se afasta da tentativa de imitar, na imagem, a iconologia de referentes exteriores e movimenta a sua imagem dirigindo-as às modalidades internas do processo de produção. Tal procedimento significa trabalhar a fragmentação da imagem pictórica na composição, “reduzindo a imagem ao desfraldar de seus componentes concretos”, como o filme, seus grãos, o processo de revelação, a textura fibrosa do negativo. Isso tem, como efeito de sentido, o levantamento de uma “barreira entre o observador e o que ele desejava ver”. (KRAUSS, 2013, p. 64) E isso na medida em que “explora uma região do espaço do qual estamos naturalmente excluídos enquanto sujeitos”. (KRAUSS, 2013, p. 75) Trata-se de estabelecer um jogo, na composição, em que a imagem, “em sua estrutura mesma, em sua semiosis [...] faz a trança e o interstício de sua existência de suporte [...] e de sua existência significante”. (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 48) Se, nas imagens de Chaskielberg, a metaforização da memória era operacionalizada na ênfase do processo de produção da imagem a partir da colagem, nas imagens de Obara a metaforização é urdida de modo diferente, ao enfatizar o suporte. É o filme exposto que é utilizado como metaforização da memória e da temporalidade da imagem. Tal metaforização, nas fotografias de Obara, funciona a partir do mecanismo que Didi-Huberman (2012) irá colocar sob o signo da subjectio. Ela é, antes de tudo, “o ato da jectio, uma projeção material (e não ideal, O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM167 não geométrica) sobre um suporte”. Ela operacionaliza-se, portanto, a partir de um processo material de inscrição enfatizado na composição. “Em seguida, e consequentemente, é uma espetacularização: [...] o que foi jogado [...] torna-se de fato subjectus sub adspectum, sujeito a ou sujeito de uma intencionalidade do ver”. E, por fim, “a subjectio é o ato de uma conversão [...]. Trata-se ao mesmo tempo de uma conversão do objeto visível e de uma conversão de sua condição de visibilidade – é, diga-se, uma subordinação (subjectio) do testemunho”. (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 49) As imagens de Obara funcionam justamente ao dar ênfase ao ato da jectio (da projeção sobre um suporte, no caso, da luz sobre o filme exposto à radiação) como forma de espetacularizar os processos memorialísticos, dando visibilidade a um ato de testemunho articulado na imagem. A memória, aqui, é urdida a partir da dialética de um duplo testemunho: de um lado, a articulação da ausência da menina das fotos e, de outro, a presença física da radiação no filme. Tal dialética metaforiza os processos memorialísticos, oferecendo-lhes uma condição de visibilidade a partir dessa dupla instância. A jectio que dá a ver, contudo, também esconde nas fotografias de Obara. O aspecto marcadamente granulado das fotografias e a existência de sombras em lugares pouco convenientes na imagem produzida pelo filme estragado impede muitas vezes a identificação dos objetos referenciais expostos nas imagens, criando uma atmosfera de dúvida e abrindo espaço para projeções diversas por parte da instância da recepção. A temporalidade, nessas imagens, é problematizada, assim, tanto do ponto de vista do suporte – o filme exposto à radiação anos antes – quanto do ponto de vista do conteúdo – que mimetiza os processos memorialísticos ao utilizar o suporte como metaforização do conteúdo proposto. Se tanto as imagens de Obara quanto as de Chaskielberg engendram a temporalidade imagética a partir da mimetização, no nível das formas, do próprio processo fotográfico (seja a partir da colagem ou do suporte), outros fotógrafos irão preferir urdir o tempo na imagem a partir dos modos de exposição. É o caso de Camilo Vergara.1 A obra do fotojornalista chileno retrata há mais de quarenta anos as mudanças que cidades norteamericanas sofreram com o passar dos anos com o objetivo de retratar 1 Ver em: <http://www.camilojosevergara.com>. 168ELIZA BACHEGA CASADEI a degradação urbana. Segundo o próprio fotógrafo, “minha obra faz perguntas básicas sobre a cidade: como ela era no passado? Quem mora nela hoje? Quais as expectativas dessas pessoas?”. E, assim, “tento ver como os moradores transformam o espaço enquanto respondem a altos níveis de insegurança” e “como a desigualdade nas cidades americanas é reforçada pelas condições de instituições e prédios públicos, como os projects, escolas, agências do correio e postos de saúde”. (MOCHKOFSKY, 2015) As suas principais estratégias de composição na produção para a criação de sentidos consistem em apresentar uma mesma paisagem, em fotografias diferentes (duas ou mais) que são expostas juntas, com o mesmo enquadramento e equipamento, com uma distância temporal acentuada entre uma imagem e outra, de alguns anos, justamente para enfatizar as mudanças na paisagem urbana. A obra de Vergara tematiza a alteração da paisagem como material fotográfico, enfatizada pela exposição conjunta das duas imagens tiradas. A temporalidade, na composição de Vergara, é problematizada na medida em que o confronto das duas imagens explicita a questão de que o passado constitui-se a partir do interior do presente – e, se tomado a partir da concepção de Didi-Huberman (2013, p. 150), “em sua potência intrínseca de passagem e não em sua negação por um outro presente que o rejeite como morto atrás de si”. Isso se dá na medida em que a leitura de cada uma das imagens não se processa de forma autônoma, sendo sempre influenciada pela outra fotografia que a acompanha. As imagens de Vergara são materializações, portanto, da ideia de que a leitura do passado será sempre feita a partir de um ponto de vista do presente, ao mesmo tempo em que o presente só tem sentido a partir de um passado de referência que, ainda assim, muda o tempo todo. Em outros termos, as semelhanças e diferenças patentes entre as duas imagens expostas explicita a questão da imagem fotojornalística como um locus privilegiado para a problematização da temporalidade, posto que ela sempre se processa a partir do confronto de informações dadas pela exposição. Além disso, a obra de Vergara confere um lugar privilegiado para o espectador da imagem, posto que as rotas de sentido entre o presente e passado, na composição, são múltiplas, pessoais e mutáveis, dependendo do ponto de atenção fixado. Suas fotografias, assim, metaforizam o O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM169 processo da temporalidade múltipla do fotojornalismo a partir do processo de exposição das fotos, no contexto dado pelo confronto entre um passado que sempre muda e um presente que é ressignificado constantemente. CONSIDERAÇÕES FINAIS À temporalidade múltipla, anacrônica e dialética presente nas imagens estáticas, os fotógrafos estudados acrescentam, em seus trabalhos, a dimensão de uma problematização do tempo em suas próprias estratégias de composição, na própria forma dos trabalhos apresentados. As obras desses fotojornalistas evocam, portanto, na própria composição, mecanismos a partir dos quais a imagem não se mostra apenas como “o fim de um processo ou o fóssil de um processo”, mas sim, “a inquietação continuada do processo em ato”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 223) A problematização do tempo se processa a partir da construção daquilo que Didi-Huberman (2015, p. 224) chama de substituição do “espaço-condição – isto é, o espaço-estendido, o espaço a priori” que dá lugar ao “espaço-problema, que não é uma equação constituída a ser resolvida, mas uma quadratura, se ouso dizer, da experiência interior e da experiência espacial”, uma “inquietação ativa do espaço” que é também uma inquietação ativa do próprio tempo. Isso significa dizer, portanto, que a desinquietação temporal das imagens fotojornalísticas não operam abstratamente, mas sim, estão urdidas a uma inscrição em um espaço que é problematizado a partir das técnicas de composição mobilizadas em sua feitura. Em comum, as técnicas de composição mobilizadas pelos três fotógrafos estudados operam uma espécie de “violência operatória específica da forma” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 218), na medida em que problematizam a própria ideia de espaço contínuo que está pressuposta nas formas tradicionais da representação fotojornalística. E, assim, ao decompor o espaço a partir da ênfase em unidades descontínuas (sejam elas pessoas, objetos, suportes ou processos), esses fotógrafos problematizam a própria temporalidade da inscrição fotográfica. O tipo de rasgo temporal operado nas imagens estudadas se estrutura na desarticulação dos efeitos de real obtidos a partir da ênfase na mimetização de um referente em direção a um efeito de real que se calca 170ELIZA BACHEGA CASADEI nos elementos de formação do objeto fotográfico. Com isso, ao enfatizar os elementos de montagem do espaço, as fotografias estudadas problematizam os processos memorialísticos, mimetizando os processos de decomposição e remontagem do passado pressupostos nos atos de memória em metaforizações visuais. Chaskielberg o faz a partir das técnicas de coloração e montagem, Obara a partir da ênfase no suporte e no processo fotográfico e Vergara a partir dos modos de exibição da imagem. Todos eles, contudo, solicitam uma posição outra por parte do sujeito espectador ao propor um novo jogo entre as formas tradicionalmente expostas pelo fotojornalismo. “Inventar um campo novo de formas”, como coloca Didi-Huberman (2015, p. 220), “é inventar um campo de forças capaz de ‘criar o real’, de determinar uma nova realidade por meio de uma forma óptica nova”. A demanda por uma outra posição-sujeito do espectador para um outro tipo de experiência, nesse sentido, se processa porque tais imagens decompostas não “tem que representar, mas [...] trabalhar” em um processo de problematização do tempo – um trabalho que se faz “na incessante dialética de uma decomposição fecunda e de uma produção que nunca encontra descanso nem resultado fixo, justamente porque sua força reside na abertura inquieta, na capacidade de insurreição perpétua e de autodecomposição da forma”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 220) As imagens de Chaskielberg, Obara e Vergara, assim, não se apresentam ao leitor como testemunhas de um fato, mas como uma instância problematizadora das temporalidades que estão urdidas a um acontecimento, que rompe não apenas com o espaço tradicional, mas também, com a própria ideia de duração, ao enfatizar a decomposição do tempo nas técnicas fotográficas. A temporalidade no fotojornalismo, portanto, a partir da mimetização dos processos de memória na forma, apresentase, nessas imagens, como processo, inquietude e descontinuidade. Apresenta-se, sobretudo, como uma crítica à fixação imobilizante do tempo e dos sentidos no fotojornalismo. O FOTOJORNALISMO COMO FATO DA MEMÓRIA E A COMPOSIÇÃO COMO PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMPO NA IMAGEM171 REFERÊNCIAS BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BRAGA, J. L. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, M. A.; JANOTTI JUNIOR, J.; JACKS, N. (Org.). Mediação & midiatização. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 29-52. CARTIER-BRESSON, H. O imaginário segundo a natureza. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2004. CHASKIELBERG, A. Otsuchi Future Memories: a haunting ref lection on the dynamic relationship between family photographs and community memory in the aftermath of tragedies, in this case, japan’s still painful earthquake and tsunami disaster. 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São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 172ELIZA BACHEGA CASADEI ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA Audiência, participação e memória temporalidade na apropriação dos espaços midiáticos pelos sujeitos sociais INTRODUÇÃO: A ATENÇÃO NO TEMPO E O TEMPO DA ATENÇÃO O tempo possui diferentes significados e aplicações enquanto elemento fundamental da vida social. A partir de sua interferência em contextos diversos com variações que dependem da sociedade analisada, neste estudo consideraremos suas diferentes perspectivas que, embora indissociáveis, carregam nuances sobre a participação social perante o cenário midiático ocidental. Assim, o tempo físico cronometrado, que passa e é contabilizado em horas, está ensejado de processos sociais que incidem sobre a temporalidade construída social, cultural, histórica, política e economicamente. É ele que em números absolutos conduz ao conceito de atenção, que marca a disputa entre as empresas pelo domínio do cenário midiático. Porém a atenção segue parâmetros subjetivos e abstratos que trazem a complexidade do “tempo psicológico individual” enquanto promove a busca por uma percepção média de “tempo coletivo” que traduza os índices de audiência. Por sua vez, o índice de audiência, como número médio carregado de razão por intermédio de cálculos estatísticos, insinua a representação de questionamentos complexos e abstratos sobre o sujeito social, sobre sua fidelidade, sua experiência, seu comportamento e seus hábitos. 173 Sua observação isolada das temporalidades, do amplo contexto midiático e da estrutura social, econômica e política pode gerar distorções. Portanto, a consciência da relatividade do tempo e de seus usos diante da oferta de conteúdos audiovisuais devem ser consideradas nas reflexões sobre participação dos sujeitos nas esferas públicas a partir das iniciativas comunitárias de TV.1 As contribuições da tecnologia e da mídia produzem constantes debates sobre a influência do simbólico na construção de hábitos, o agenciamento de usos do tempo e do espaço, assim como o acesso à informação como possível garantia da democracia. (GITLIN, 2003; JENKINS, 2009; MORAES, 2009) Desse modo, a divisão do tempo e sua construção social, a partir dos mecanismos que permeiam a estrutura mercadológica dos meios de comunicação, também interferem no comportamento determinante do uso dos veículos de informação. Diante da evolução tecnológica e de novas mídias, a comunicação em rede é exaltada pela magnitude da globalização proporcionando aceleração e imediatismo a seus integrantes. Logo, devemos considerar as novas proporções da disjunção entre espaço e tempo, conforme descreve Thompson (1998, p. 29): O uso dos meios técnicos dá aos indivíduos novas maneiras de organizar e controlar o espaço e o tempo, e novas maneiras de usar o tempo e o espaço para os próprios fins. O desenvolvimento de novos meios técnicos pode também aprofundar o impacto com que os indivíduos experimentam as dimensões de espaço e de tempo da vida social. Portanto, é possível compreender que a saturação de mensagens envolve os espectadores com os conteúdos a partir do seu “consumo” e dedicação de tempo. Determinismo tecnológico a parte, leva-se em consideração legítima a importância da tecnologia no cotidiano através dos meios de comunicação: 1 Para efeito deste artigo, consideramos as iniciativas comunitárias de TV através da atuação dos canais comunitários de TV a cabo, organizados em torno da materialidade de organizações usualmente denominadas TVs Comunitárias, denominação que consideraremos aqui. 174ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA Críticos e comentaristas procuram o contrabando, mas não veem o caminhão – a imensidade da experiência das mídias, a quantidade absurda de atenção dispensada, as devoções e rituais que absorvem nosso tempo e nossos recursos. A verdade óbvia, mas difícil de perceber é que, hoje, conviver com as mídias é uma das principais coisas que americanos e tantos outros seres humanos fazem. (GITLIN, 2003, p. 13) Propõe-se discutir o uso do tempo a partir do conceito de audiência como instrumento de formação de hábitos, ao mesmo tempo em que se busca compreender o papel das iniciativas comunitárias de TV e sua atuação junto à sociedade no local. Considerando a relevância dos meios de comunicação no cotidiano da sociedade, o modo como os conteúdos são distribuídos atravessam a esfera real dos indivíduos e os situam num esquema de organização virtual, a partir dos horários de transmissões das grades de programação das emissoras de TV e rádio, atualização dos veículos impressos e velocidade de atualização da internet. Desse modo, a mídia desenvolve seus produtos e constrói projetos de comunicação embasada em índices de audiência, que em última instância funcionam como indicadores de usos do tempo e espaço. Tais relações são estabelecidas perante o sujeito coletivo a partir de fluxos comunicacionais constituídos individualmente como forma de referendar a hegemonia da mídia. No entanto, além das grandes empresas de comunicação, também devemos considerar a relação do sujeito com as culturas populares e outras alternativas locais de comunicação como as iniciativas comunitárias de TV. Com foco na complexa inserção destas últimas estruturas mediadoras no cenário midiático, apresentaremos reflexões iniciais sobre possibilidades de desconstruir e reapropriar o conceito de audiência, tendo em vista o direito humano à comunicação e a participação como instrumentos de reivindicação de demandas sociais. Para este estudo, consideraremos indiscriminadamente o conceito de comunicação popular ou comunitária para explorar as iniciativas comunitárias de TV como “canal de expressão do povo, que respeite a diversidade e esteja a serviço de interesse público” (PERUZZO, 2007, p. 52), ou seja, que se oriente por um objetivo comum. AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA175 Apesar de possível avanço para a representação comunitária, o acesso e a participação da população local ainda se configuram de modo restrito uma vez que, de modo geral, a gestão e organização desses canais comunitários estão condicionadas à representação de associações e organizações sem fins lucrativos que de certo modo acabam por concentrar as decisões referentes à programação. Assim, o sujeito social permanece distante das principais decisões. Ao evidenciarmos este panorama, propomos refletir a centralidade do sujeito na construção dos processos sociais, e consequentemente, sua correlação com o tempo diante das narrativas midiáticas, da construção histórica dos fatos e das memórias. Compreendendo a influência das construções simbólicas e das tecnologias na relação do indivíduo com o tempo, e sobretudo, na organização da temporalidade como construção social, inicialmente apresentaremos o conceito de audiência a partir dos estudos críticos de comunicação. Na sequência, evidenciaremos como o tempo do indivíduo, traduzido sob a forma de atenção, faz parte da estrutura de negócio dos meios de comunicação. Por fim, propomos a ressignificação do conceito de audiência, evidenciando a relatividade do tempo nas narrativas como propulsor das iniciativas comunitárias de TV na configuração de memória coletiva local proveniente de participação e demandas sociais. O TEMPO COMO BASE NOS DADOS DE AUDIÊNCIA Com a evolução dos meios de comunicação de massa TV e rádio, os estudos mercadológicos de audiência gradualmente se espalharam pelas principais capitais economicamente ativas do país. Atualmente a metodologia2 de coleta dos dados do meio TV utiliza amostra domiciliar e individual (moradores nos respectivos domicílios) que através de ponderações estatísticas representam a totalidade da população de determinada região. O aparelho ou meter3 indica através de transmissões por antena em 2 Realizada pelos Institutos de Pesquisa Kantar Ibope Media e GFK. 3 Nas regiões do interior ou em mercados com inviabilidade inanceira para sustentar a aquisição desses estudos, podem ser realizadas pesquisas especiais utilizando cadernos com questões estruturadas para a coleta de respostas sobre o hábito de assistir televisão ou rádio. 176ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA qual emissora o domicílio/morador está sintonizado e reporta dados de audiência minuto a minuto, inclusive sinalizando se está assistindo canal de circuito interno (muito comum em condomínios) ou outros aparelhos (aparelho de DVD ou videogames, por exemplo). Embora esse procedimento seja eficaz do ponto de vista tecnológico, como em qualquer pesquisa, não está imune a possíveis desvios. Caso o morador durma ou saia do ambiente em que o aparelho de TV está ligado, os equipamentos continuarão reportando audiência como se estivesse assistindo ao programa exibido naquela faixa horária. Ou seja, os relatórios de audiência reportam, em última instância, o tempo médio dedicado a uma emissora, consolidando informações sobre a possível atenção direcionada às construções simbólicas. A coleta automatizada de informações básicas como tempo dedicado e número de telespectadores desdobra-se em diversos outros índices constituídos para facilitar tanto a leitura e a interpretação dos dados, como também a tomada de decisões estratégicas de marketing e programação de canais de TV. São dados numéricos a serem considerados como instrumentos norteadores sobre a interferência da mídia tanto no tempo físico quanto no tempo psicológico dos indivíduos, enquanto submetem a possibilidade de imersão em um tempo virtual em que são apresentados os conteúdos (jornalísticos ou não) e a construção de memórias – instituídas pelas narrativas apresentadas. Pelo exposto, parece pouco apropriado o uso do termo audiência stricto sensu para modelos de comunicação que não estejam sob a lógica comercial, como é o caso das iniciativas comunitárias de TV. Nesse sentido, considerando as especificidades dos veículos comunitários, fazse necessário avaliar os mecanismos comunicacionais que apresentam a participação social. Uma vez que tais canais são historicamente deslocados para a periferia e ficam afastados do grande circuito mercadológico promovido pela indústria televisiva, os dados de audiência ou “consumo” das iniciativas comunitárias de TV somente seriam reportados mediante interesse do mercado, relevância e/ou contratação do serviço pelo próprio canal. Diante desta característica e da proposta geral de inserção de iniciativas comunitárias de TV como contraponto em relação aos fluxos comunica- AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA177 cionais estabelecidos pelos conglomerados de comunicação, acreditamos que seja importante a ressignificação do conceito para utilizá-lo no contexto próprio dos canais comunitários. Nesse sentido, devemos considerar as limitações técnicas dessas iniciativas e o raio de atuação para transmissão do sinal, conforme previsto em lei. Isso significa que, embora uma TV comunitária possa estar geograficamente localizada no mesmo município que outros canais de mídia privada, de fato sua abrangência é muito menor devido a fatores como defasagem técnica, sobreposição de sinais que interferem na frequência e retiram o canal do ar, e sobretudo, pela amplitude do raio do sinal limitado. No caso das iniciativas comunitárias de TV, há restrições legais de abrangência do sinal, dificuldades relacionadas ao financiamento de novos equipamentos e ainda relatos de descasos quando recorrem às instâncias públicas reguladoras. Tópicos que, a partir dos critérios mercadológicos, evidenciam a percepção de menor relevância quando comparadas com as demais emissoras, mantendo seu deslocamento para a periferia do sistema de produção e distribuição de conteúdo audiovisual. Adicionalmente, a fidelização da audiência parece processo que demanda cada vez maior esforço das empresas, uma vez que o público tem se tornado mais exigente, e, tendo acesso a um significativo e crescente volume de informações, dispõe de maior quantidade de recursos tecnológicos com interfaces mais amigáveis. O tempo é um dos pilares no cálculo dos índices de audiência, tendo relevante valor comercial no mercado de comunicação. No entanto, para adequar o conceito de audiência à realidade das iniciativas comunitárias de TV, caberia enfocar a participação, atendo-se a como essas mídias locais interferem na construção do tempo individual e coletivo, enquanto referência para enquadramentos diferenciados da grande mídia. Portanto, a concepção de “consumo” dos meios deve abranger outras percepções que não dizem respeito somente à recepção, mas perpassa o processo de envolvimento e as conjecturas relacionadas aos discursos midiáticos e suas incorporações nas relações sociais. Nesse sentido, as TVs comunitárias podem ser melhor representadas como oportunidade de viabilizar ações deliberativas que promovam envolvimento e participação social. 178ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA Pelo exposto, percebemos a necessidade de analisar criticamente os estudos mercadológicos de consumo a partir de sua influência sobre a elaboração de estratégias voltadas para ampliar a inserção dos meios no cotidiano dos indivíduos. Ao programar conteúdos, a mídia projeta sua potencial interferência no tempo e na rotina das pessoas. A disputa entre os diferentes meios é por alcançar o maior número de pessoas possíveis dentro do maior espaço de tempo. Numa análise simplificada, o retorno deste esforço é representado através dos índices de audiência. AUDIÊNCIA COMO MOEDA DO TEMPO DEDICADO O conceito de audiência discutido pelo mercado, com suas utilizações em prol de realizações de negócios entre anunciantes e veículos de comunicação para inserção de publicidade, frequentemente é alvo de debates no meio acadêmico. A audiência seria a tradução do consumo dos meios de comunicação conforme parâmetros estabelecidos e regulados pela concorrência da indústria cultural. Assim, o conceito de audiência acaba sendo um índice sobre o consumo de conteúdos simbólicos, composto por variáveis que consideram o número de indivíduos alcançados (alcance) e o tempo dedicado (tempo). Sua manutenção sé dá com a construção do hábito de ler, assistir ou ouvir. De acordo com Barbosa (2004, p. 31), a visão predominante parte dos apontamentos de Don Slater, que enfatiza a cultura do consumidor como cultura da sociedade de mercado e, portanto, sendo regulada por escolhas, individualismo e relações de mercado. Logo, a possibilidade de adquirir algo está baseada nas atividades de troca (moeda salário versus moeda trabalho) a partir da logística de distribuição tanto de recursos materiais quanto culturais. As instituições produtoras orientariam o consumo e direcionariam hábitos, numa perspectiva de centralização do poder baseada na ordem do capital e do mercado. Porém, é importante refletir se esta ordem generalista de causa e consequência, com o predomínio da indústria nos campos da comunicação e cultura, também prevalece no microambiente com as iniciativas comunitárias de TV, na esfera local sujeita à interferência de outras vozes, olhares diferenciados e organização própria de seus atores sociais. AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA179 Os meios de comunicação são responsáveis por disseminar produtos simbólicos, que contribuem para a formação do ser social e o estabelecimento de relações que privilegiam a lógica de mercado concorrencial instituído pelo capitalismo. Por esta perspectiva, o consumidor ou telespectador é passivo e direcionado a saciar necessidades materiais e simbólicas manipuladas por grupos que visam a manutenção de poder. Seguindo este entendimento, Moraes (2009, p. 69) alerta que cultura e economia são itens indissociáveis do capitalismo atual, minando a diferença entre produção de mercadorias e produção artística: Na moldura de midiatização da vida social, caracterizada por mediações e interações baseadas em dispositivos teleinformacionais, os ramos culturais estão imersos na lógica do lucro que preside a expansão da forma-mercadoria a todos os campos da vida social. Não raro, as imagens e as obras de arte transcendem as intenções originais de seus criadores para integrar um circuito de produção e comercialização transnacional que engloba mercados, museus, festivais, bienais, feiras e eventos midiáticos. A integridade dos valores simbólicos é afetada pela imposição do valor de troca, em muitos casos esvaziando os produtos culturais de suas qualidades artísticas. Integrada, como as demais áreas produtivas, ao consumismo, a esfera cultural vem se tornando componente essencial na lubrificação do sistema econômico. (MORAES, 2009, p. 68) Deste modo, Moraes expõe a influência do capital e da economia nos valores simbólicos, gerando domínio, regras e determinações de cunho financeiro sobre os processos de produção. Submete-se a esfera cultural ao campo industrial e de tal modo, aos mecanismos de inserção no mercado e, consequentemente, à lógica do consumo e aos usos do tempo ao atravessar o cotidiano dos indivíduos. Nesse cenário, Bolaño (2000, p. 222) também sinaliza que na indústria cultural, o trabalho possui duplo valor a partir da geração de duas mercadorias simultaneamente: o produto cultural e a audiência. Para o estudioso, até chegar a este ponto, tudo teve de ser transformado em capital, inclusive as relações sociais. Portanto, o meio de comunicação é capaz de transformar o volume de indivíduos alcançados por um determinado conteúdo audiovisual, por exemplo, em índices de audiência que, por sua vez, são monetizados pelo mercado publicitário. Esse seria, portanto, um modo de considerar a “mer- 180ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA cadoria audiência” como uma derivação ou adaptação da teoria econômica marxista a partir da fluidez dos produtos comunicacionais e seu entrelaçamento diante das instituições e diferentes esferas sociais. Tomando como base o exemplo da televisão, cita: [...] é a atenção dos indivíduos que vai ser negociada no mercado pelo burocrata da estação ou da network. A atenção pode ser mensurada em tempo (de exposição dos indivíduos à programação e não o contrário), uma unidade de medida perfeitamente homogênea, bem ao gosto dos economistas neoclássicos, mas que deve ser sempre referida a uma quantidade (domicílios ou telespectadores) e a qualidades da audiência (variáveis socioeconômicas), o que indica que a audiência deve ter um valor de uso para o anunciante. Quanto à emissora, o que interessa, evidentemente, é o valor de troca da audiência. (BOLAÑO, 2000, p. 225) Também devemos considerar a influência da tecnologia no cotidiano das pessoas, de modo a alterar as relações mediadas, intensificar a individualização do hábito de assistir TV e reconfigurar o espaço público, gerando ainda maior problemática para atrair a atenção do público e engajar os sujeitos sociais. Para os estudos críticos no campo da comunicação, a relevância do posicionamento da mercadoria para o consumo estabelece relações sociais que privilegiam o poder e consequente manutenção de dominantes e dominados. No livro Sobre a televisão seguido de a influência do jornalismo e os jogos olímpicos, Bourdieu (1997, p. 56) mantém como referência essa atuação econômica e mercadológica, descrevendo a existência de forças invisíveis, moldadas pelas fatias de mercado e concorrência no mercado de comunicação. Relata que o espaço social construído a partir dessas instituições favorece um campo de forças em que coexistem dominantes e dominados. A tensão ocorre tanto internamente nos próprios veículos de comunicação quanto externamente, sendo o poder dos mesmos determinado tanto por seu peso econômico ou share de mercado, quanto pelo seu poder simbólico – que, segundo o autor, é mais difícil de quantificar. (BOURDIEU, 1997, p. 58) Conforme sua crítica, o sociólogo francês menciona que as informações transmitidas são banalizadas e despolitizadas, mantendo o que o estudioso chama de “estruturas mentais” do público em conformidade, AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA181 a medida que pauta seus conteúdos pelos supostos interesses da audiência. Portanto, longe de promover uma “revolução simbólica”, o mercado televisivo se mantém orquestrado pela lógica concorrencial de mercado. Assim, evitando temas que evidenciam as “asperezas” do cotidiano, a mídia procura direcionar consciências e pensamentos sobre o que é relevante, sobre o que deve ser disseminado e consequentemente discutido e do conhecimento da sociedade. Por esta análise, se propõe o direcionamento de hábitos evidenciados nas construções sociais pelo desenvolvimento de narrativas e pelo transcorrer do tempo midiático. Desse modo, pensamentos ideológicos são direcionados com objetivo comum de unificar e homogeneizar o conhecimento sobre determinado tema, garantindo o domínio das instituições de comunicação como fonte de informação confiável, enquanto concomitantemente mensagens são construídas para atingir segmentos de público. Essa abordagem técnica e instrumentalização dos fluxos de comunicação podem ser percebidas tanto pela publicidade quanto pela esfera cultural como um todo, embora, nesse último caso, os esquemas são menos divulgados e perceptíveis. No entanto, é inegável que a lógica da publicidade pautada pela sustentação econômica pode ser encontrada nas estratégias dos meios de comunicação de massa. No caso dos canais de TV paga e suas faixas de programação, tanto a segmentação para qualificar o público através de classificações socioeconômicas, quanto a consolidação para legitimar são mecanismos de atração do público para maior dedicação de tempo e argumentos utilizados junto ao mercado anunciante. Como as programações são constituídas por estruturas que concentram o poder de comunicação, a homogeneização dependerá do nível de resistência, questionamentos e opções a que os indivíduos estão sujeitos. E o tempo dedicado é reflexo das tensões entre essas variáveis, dos interesses individuais e coletivos envolvidos, da receptividade aos agendamentos de conteúdos e dos enquadramentos propostos para a sucessão de fatos. Com este entendimento, a concepção mercadológica de audiência como instrumento de câmbio do tempo e da atenção dedicada aos conteúdos adquire outras nuances. Em contrapartida, os níveis de envolvimento e criticidade obtêm maior relevância, conforme influência da participação social nos processos de comunicação comunitária. A temporalidade repre- 182ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA senta enfoque essencial para investigar as relações sociais mediadas diante dos possíveis movimentos de apropriação dos espaços midiáticos pelos sujeitos sociais, conforme ocorrência de participação e deslocamentos de atenção dos conteúdos hegemônicos para projetos locais e alternativos de comunicação. No microambiente, as TVs comunitárias, são vislumbradas como oportunidades de disponibilizar outros usos locais do tempo e de acessar narrativas através de outros olhares. Porém, antes mesmo dos processos produtivos, bem como à consequente caracterização da desigualdade instaurada na permanência de discursos e ideologias disseminados por uma minoria, questões como acesso à tecnologia, capacitação, educação e participação também devem ser consideradas. Ao solucionar esses entraves, teríamos potencialmente um ambiente com menos vícios e de fato propício para que qualquer indivíduo não somente tenha livre acesso à informação, como também se torne parte ativa dos fluxos comunicacionais e possa criticamente debater sobre o que lhe é apresentado, ter maior consciência sobre o uso de seu tempo a partir das suas escolhas, e se for o caso, apresentar sua opinião. Ao se envolver criticamente com os processos comunicacionais, o indivíduo pode adquirir maior controle sobre seu tempo, seus interesses e suas opções de envolvimento. Altera-se, portanto, a temporalidade e a relação com os meios e com as informações recebidas, enquanto é reafirmado o direito humano à comunicação e a democratização dos fluxos. Para esse lugar de representação social e pluralidade de vozes na apropriação dos espaços midiáticos, assim como a interlocução com a comunidade, a atuação das iniciativas comunitárias de TV como instrumento de comunicação pública não somente é conveniente como prevista pela Constituição do Brasil de 1988. Por conseguinte, é válida a ressignificação do conceito de audiência tendo em vista fatores relacionados à participação de indivíduos em relação aos produtos culturais, com dedicação de tempo e construção de memória coletiva local. AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA183 PARTICIPAÇÃO PELA DEMANDA SOCIAL E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA COLETIVA LOCAL Como Moraes (2009, p. 18) denuncia, outras iniciativas que garantam maior diversidade informativa e cultural contribuem para mais experiências que funcionem como contraponto aos discursos da grande mídia. Logo, as iniciativas comunitárias de TV podem se configurar como “projetos criativos capazes de descentralizar, progressivamente, os processos comunicacionais e contribuir para o alargamento das margens da diversidade”. No entanto, é essencial a inserção do sujeito social nos processos criativos para que atue ativamente e se aproprie desses espaços comunicacionais, zelando por abordagens que priorizem a perspectiva de sujeitos sociais nas localidades. Assim, a garantia do pluralismo e a busca pelo equilíbrio de vozes sobre os mais diversos temas representam caminhos a serem continuamente construídos para afiançar a democratização dos processos comunicacionais. No âmbito do processo social em que o “consumo” ou recepção de produtos simbólicos se configura como inevitável, um paradoxo também se instaura. Diante do modo como é instaurada a relação da sociedade com a estrutura da esfera cultural, a partir de estratégias baseadas nos índices de audiência, Bolaño (2000, p. 143) conclui que a mercadoria dos meios é o próprio público que também presta serviços ao anunciante. Além disso, é importante considerar os aspectos políticos e econômicos da indústria midiática com os impactos na temporalidade e nos modos de vida (hábitos) a partir da dinâmica dos meios. Para o público, essa estrutura complexa representa outras possibilidades de acesso em qualquer horário e local através de diferentes dispositivos, além dos habituais rádio, TV e jornal. Para as empresas, reconfiguração dos processos de produção e trabalho, investimentos contínuos em inovação, novas propostas de empacotamento de conteúdos e oportunidade de alcançar o público por mais tempo, com maior frequência, onde estiver. Ou seja, o esforço para a manutenção do poder também garante conversão em valor para negociações junto aos anunciantes. 184ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA Com este entendimento, torna-se possível projetar as consequências no uso da esfera pública para atender interesses privados. O espaço simbólico como disputa de poder para prevalência do particular sobre o coletivo. E ainda, diante do mecanismo retroalimentar pautado pela busca por atenção e pelas alterações de programação como influenciadora no consumo e influenciada pelos hábitos, a diversidade informativa e cultural não adquirem prioridade. Com esse processo, a ampla participação dos sujeitos sociais e a abordagem de questões relacionadas ao coletivo ficam aniquiladas, descaracterizando o processo democrático que deveria fundamentar os meios de comunicação. As interferências econômicas e políticoideológicas cerceiam o pluralismo, bloqueiam o exercício da cidadania e turvam o debate em prol de causas sociais. Porém, apesar do acesso às tecnologias ainda ser um desafio em áreas mais afastadas das regiões metropolitanas, é inegável que o aumento da penetração desses dispositivos junto à sociedade viabiliza a apropriação social e novas configurações de fluxos comunicacionais. Desta forma, é possível constituir redes de cidadania que garantam mobilizações sociais em prol do bem comum, fortalecendo reciprocamente as esferas públicas no local, regional e nacional, a partir de ações de comunicação partilhadas e potencializadas pelo sentimento de pertença. Logo, o sentido político da cidadania está contido no comunitário (bem comum), independente de restrição territorial, de modo a contribuir para o desenvolvimento de atividades coletivas. Com essa percepção, os fluxos comunicacionais, a partir de recursos tecnológicos que proporcionam a reorganização de uso do tempo e do espaço, também corroboram para a construção de audiências potencialmente participantes. Estes indivíduos ativamente compromissados com demandas sociais pautadas pela coletividade podem fazer parte dos processos de produção de conteúdos audiovisuais e, a partir desse olhar, promover temporalidade diferenciada pelo envolvimento crítico e pela memória coletiva local. A história aprendida faz parte de esquemas e organizações cronológicas que se assemelham aos noticiários com seus marcos de aniversários de fatos. No entanto, é a vivência de uma situação que proporciona insumo para a memória individual e construção comum da lembrança social, AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA185 do coletivo. Logo, a história de um país é um recorte de fatos contribuindo para a construção da memória coletiva local e para o sentimento de pertencimento entre os cidadãos. Por esta perspectiva, é possível compreender a relevância da TV comunitária e sua atuação através da internet, para dar voz e garantir “espaço” para os acontecimentos locais, da narrativa. De acordo com Halbwachs (2006) e Rossi (2010), a memória é constituída a partir dos vestígios e rastros que permaneceram e prevaleceram ao longo do tempo e da história. Desse modo, a “consciência social” pode ser construída através de dados (relatos, registros, textos, vídeos, fotografias) preservados e selecionados para a organização de uma determinada narrativa. O tempo passado reconstruído no presente também poderá ser diferente no futuro, a depender do referencial narrativo e do enquadramento dos fatos. Os meios de comunicação, sobretudo hegemônicos, promovem a configuração de um discurso que se consolida como verdade, história, e consequentemente prevalece na “consciência social”. A homogeneização de certos fatos prevalece em detrimento de outros a partir do desenvolvimento narrativo. A ausência de comunicação ou discurso unívoco, enquadrado sob uma única abordagem, corrobora para o apagamento, uma das estratégias para gerar esquecimento. Do mesmo modo, a construção hegemônica de uma narrativa subjuga detalhes em prol de outros para estruturar a versão de fatos memoráveis, enquanto promove o esquecimento de outros aspectos que fazem parte do mesmo cenário. Tudo agora é atropelado na urgência dos milésimos. A existência dilui-se e restabelece-se sem direito a intervalo. As pausas para respirar parecem insolentes e extemporâneas. Até os refúgios nas cavernas e o silêncio meditativo das pirâmides já não estão isentos de instabilidades. Pouco importa o tempo escasso entre presente e futuro imediato, muito menos a advertência de que inexiste sentido de historicidade ou futuridade na pressa indomável. (MORAES, 2009, p. 58) Nesse sentido, seguindo vertente diferenciada e conforme proposta de Moraes (2009), compreende-se que as iniciativas comunitárias de TV se estabeleçam através de mecanismos de resistência, contornando a ordem hegemônica que pauta a atuação da mídia pelo imediatismo do cotidiano 186ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA e pelo discurso midiático comercial. Portanto, as iniciativas comunitárias de TV podem valorizar e promover o passado das comunidades, suas origens, como se formaram, características e como se desenvolveram para contribuir com a “consciência social” (HALBWACHS, 2006), possibilitando aos sujeitos sociais a capacidade de posicionamento crítico diante do que é dito. Diante desse cenário, a TV comunitária pode atuar como opção diversa, expondo outros enquadramentos, opiniões e pontos de vista, proporcionando um olhar diferenciado, ainda que também constituído a partir de determinados filtros. Sob esta perspectiva, parece necessário reforçar a missão dos meios de comunicação pública, sobretudo com atuação comunitária, para expor e promover enfrentamentos em relação aos usos do tempo na rotina ordinária e à “consciência social” moldada por discursos hegemônicos. Se a consciência social for limitada por esses mecanismos midiáticos, engessa a construção da democracia e da cidadania, formando a construção de memórias que podem alienar. Como as narrativas midiáticas são reconstituições que chegam até nós, sendo apropriadas pela sociedade e digeridas como fatos inquestionáveis, a complexidade envolve a “consciência social” ao se basear e configurar suas memórias em dados também já selecionados. E quanto maior o afastamento histórico-temporal, mas facilmente vieses podem ser reforçados devido à reconfiguração pautada em reconstituições. (RICOEUR, 2004) A partir desse entendimento compreende-se o conceito de memória coletiva de Halbwachs (2006), que aponta a configuração de múltiplas vozes na constituição do coletivo, enquanto paradoxalmente o uno se configura pelos múltiplos encontros sociais. Considerando a memória como um fenômeno social, configurado a partir de interações construídas em contextos que viabilizam o estabelecimento de “laços sociais”, observamos que o “encontro virtual” de grupos pode ser considerado suporte para a constituição de crenças coletivas. A importância da construção de uma “solidariedade comunitária” a partir de movimentos sociais voltados para a comunicação pública como representante e voz da população local, pode ser melhor entendida através do conceito de memória coletiva. Cada um dos militantes e indivíduos de determinada comunidade resgata suas lembranças, suas histórias a partir AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA187 da comunhão com o grupo social, visto que “temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem”. (HALBWACHS, 2006, p. 17) Essa relação consigo mesmo e com o outro no presente, também pode caracterizar o perfil dos movimentos sociais sinalizados por Gohn (1997). A comunicação comunitária pode valorizar a opinião dos sujeitos sociais, evitando a substituição de seus atores de interesse, assim como ocorre com a grande mídia. A atuação circunspecta deve procurar se envolver com os diferentes casos que permeiam a comunidade, não necessariamente se restringindo ao presente e a temas que atraem atenção seguindo a lógica mercadológica de substituição de grupos ou personagens. A Comunicação Pública Comunitária, e mais precisamente as TVs comunitárias com sua atuação através dos mais diversos dispositivos – incluindo o uso da internet e redes sociais on-line de modo complementar à radiodifusão –, caracteriza-se como espaço de participação e de expressão por demandas sociais que viabilizam outros enquadramentos para a construção da memória coletiva. CONCLUSÃO: PARTICIPAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA A PARTIR DA APROPRIAÇÃO DE ESPAÇOS MIDIÁTICOS Pelo apresentado, é essencial o posicionamento diferenciado das iniciativas comunitárias de TV, buscando equilíbrio entre a linguagem jornalística e seu compromisso com a resistência ao propiciar espaço para a expressão da comunidade, tendo ciência de que a memória dos indivíduos e da coletividade local são reflexos de uma visão alternativa do passado. (ROSSI, 2010, p. 29) Segundo Barbosa (2007, p. 41), “a memória funciona como lugar de nutrição da identidade. Sem memória, o sujeito não existe, não é”. E se “todo o conhecimento é uma forma de lembrança” (ROSSI, 2010, p. 16), a constituição do saber coletivo e individual é consequência da dinâmica entre o olvido4/esquecimento e memória/lembrança. O conhecimento é fruto de uma construção fragmentada e forjada. Por isso, “a história é jogo de revelação e encobrimento, de manifestação e ocultação”. 4 Em Espanhol: esquecimento ou apagamento. 188ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA (ROSSI, 2010, p. 19) O tempo e suas construções estão entremeados nos fluxos comunicacionais e possuem papel fundamental na configuração de estruturas de poder e resistência. A história aprendida faz parte de esquemas e organizações cronológicas que se assemelham aos noticiários com seus marcos de aniversários de fatos. No entanto, é a vivência de uma situação que proporciona insumo para a memória individual e construção comum da lembrança social, do coletivo. Logo, a história de um país é um recorte de fatos devidamente selecionados que contribuem para a construção da memória coletiva local e para o sentimento de pertencimento entre os cidadãos. Por esta perspectiva, é possível compreender a relevância da TV comunitária e sua atuação complementar através da internet e das mídias sociais para dar voz e garantir “espaço” para a narrativa dos acontecimentos locais. Nesse ponto, devemos considerar a inserção da TV comunitária na constituição da temporalidade e da memória coletiva da comunidade, pois uma “sociedade sem memória é um anátema”. (HUYSSEN, 2004, p. 1) O jogo dialógico entre lembrar e esquecer, assim como suas consequências, fazem parte da dinâmica do ser social, sendo, no entanto, direcionado ou manipulado conforme os interesses da indústria midiática e de movimentos sociais, de acordo com a construção dos acontecimentos de determinada época. Isto nos possibilita inferir que as iniciativas comunitárias de TV devem atuar ativamente para construir perspectivas diferenciadas dos fatos e outros usos do tempo midiático, sob a égide da sua missão de representar a comunidade local, embora ciente de que se trata de uma construção narrativa apoiada em filtros, numa relação constante entre produtores e população. Nesse caso, a atuação das iniciativas comunitárias de TV no contexto da comunidade como narradora de fatos, carregada de outras visões, pode funcionar como contraponto de valores já que “o passado não é só passado, mas portador de valores morais, civis”. (LE GOFF, 2003, p. 212) Sua inserção como narradora ativa de fatos que evidenciam visões não hegemônicas, seja reforçando a memória coletiva, seja confrontando-a, possui potencial de viabilizar a educação, a imersão de um coletivo que não seja imposto pelo indivíduo, mas que este se identifique como constitutivo AUDIÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E MEMÓRIA189 do coletivo e vice-versa, inclusive trazendo essa noção para discussão da narrativa midiática. Portanto, a partir da influência do tempo e da narrativa, a TV comunitária deve ter como missão o fortalecimento de vínculos sobre bases comuns do grupo, viabilizando mais do que simples audiência, mas a participação do sujeito social em prol de uma comunicação comunitária local direcionada para a pluralidade de vozes, para a cidadania e para o desenvolvimento crítico da sociedade. De fato, são muitos os desafios para que as TVs comunitárias tenham a oportunidade de utilizar o espaço público de radiodifusão e, complementarmente, as tecnologias digitais, de modo pleno e inclusivo, contando com o envolvimento e a participação de sujeitos sociais para debater e expor demandas do coletivo. Portanto, paralelamente às reivindicações de regulamentação e política pública de apoio a tais iniciativas, as ações devem possibilitar maior aproximação da sociedade e diálogo com os sujeitos sociais. Tais projetos de comunicação devem ser pautados pelo respectivo potencial em promover mobilizações sociais do coletivo, utilizar os recursos tecnológicos disponíveis e organizar processos efetivos de comunicação. Destarte, há a possibilidade do sujeito social adquirir maior consciência e visão crítica sobre os atravessamentos e influências da temporalidade na apropriação dos espaços midiáticos proporcionados pela tecnologia, para catalisar envolvimento e processos comunicacionais que gerem ruptura em prol do direito humano à comunicação. REFERÊNCIAS ASSMANN, A. Sobre as metáforas da recordação. In: ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Unicamp, 2007. p. 161-220. BARBOSA, L. Sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BARBOSA, M. Percursos do olhar: comunicação, narrativa e memória. Niterói: EdUFF, 2007. BOLAÑO, C. Indústria cultural: informação e capitalismo. São Paulo: Hucitec: Polis, 2000. BOURDIEU, P. Sobre a televisão, seguido de a inf luência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 190ADILSON VAZ CABRAL FILHO E CINTHYA PIRES OLIVEIRA CABRAL, A. 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Os eventos sociopolíticos, que antes ganhavam visibilidade apenas pela agenda midiática tradicional, agora também são registrados e, principalmente, disseminados pelo olhar do cidadão comum. Esses registros são organizados em grandes arquivos nos ambientes programáveis, sofrendo influência dos algoritmos que desenham a dinâmica da rede. Dessa forma, no contexto do Big Data,1 os rastros digitais têm se tornado valiosas fontes de pesquisa para o campo das ciências humanas e sociais. Por isso, acreditamos ser necessário um mergulho nas potencialidades e limitações que o estudo desses rastros comunicacionais oferece para a área da comunicação, principalmente quando os esforços envolvem a recuperação e processamento de dados. Se todo ato comunicacional deixa 1 O conceito de Big Data tem sido muito discutido por autores contemporâneos. Segundo Rob Kitchin (2014), o termo foi usado pela primeira vez por John Mashey, em meados da década de 1990, para se referir à manipulação e análise de um grande volume de dados. 193 um rastro (BRUNO, 2012), no ambiente digital sua materialização é vista com mais facilidade. Além disso, estamos falando de um rastro híbrido, criado pela ação de agentes humanos e não humanos. Entretanto, apesar de ser um solo rico e promissor, precisamos olhar criticamente para esse cenário, vislumbrando questões que entrelacem a atuação do pesquisador de comunicação. O primeiro ponto diz respeito, justamente, aos entusiastas do Big Data, que enxergam esse movimento apenas como uma revolução para processar um conjunto grandioso de dados. Esse pensamento não caracteriza a mudança mais profunda que estamos vivendo. Segundo Parks (2014), existem promessas e preocupações que devem estar no centro das pesquisas. De um lado, há uma facilidade maior de coletar e processar dados, que oferecem novas questões e novas formas de pensar velhas questões. Além disso, alguns conjuntos de dados, que no passado não seriam relevantes para um trabalho científico, hoje são considerados e referenciados, como no caso das redes sociais on-line. Por outro lado, Parks (2014) afirma que existe também uma caixa preta dos algoritmos e precisamos pensar na validade das medições e das métricas utilizadas. Um erro corriqueiro é pensar que o Big Data abarca a totalidade do corpus pesquisado, nos permitindo trabalhar com dados completos. Não conhecemos a fundo os mecanismos de operação dos algoritmos, sendo impossível inferir a quantidade exata dos dados existentes. Isso nos leva ao questionamento da representatividade ou proporcionalidade das amostras para a criação de generalizações. Outro ponto fundamental é que essas plataformas não foram pensadas para o uso acadêmico, tendo um forte apelo comercial. Por isso, elas são alteradas frequentemente, até para manter sua vitalidade, como acontece sempre com o Facebook, Twitter, Instagram etc. A questão principal é que mesmo sem o conhecimento exato da atuação dos algoritmos, os modelos de pesquisa estão sendo mediados por eles. Por esse viés, lançamos uma discussão crítica a respeito dos processamentos de dados e análise de resultados nos trabalhos de comunicação, utilizando como foco a problematização em torno da memória nas redes sociais on-line. Nosso esforço é compreender como esse volume de dados pode configurar objetos de memória nas plataformas on-line, em que não há uma relação direta de tais objetos com os deslocamentos temporais 194CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO entre passado e presente que os interligam. Isso porque são ambientes que oferecem organizações provisórias, apontando sempre para um fluxo múltiplo e contínuo em torno de temporalidades específicas e efêmeras. Assim, neste trabalho, buscamos compreender as hashtags como rastros digitais – um tipo específico de metadados – e investigaremos como elas aparecem e atuam na constituição de um acontecimento em rede, a ponto de surgirem redes de memória entre acontecimentos que, de outra forma, poderiam permanecer isolados, temporal ou espacialmente. Queremos propor um exercício metodológico ancorado nos pressupostos da semiótica de Charles Sanders Peirce, tomando as hashtags como processos sígnicos e aproximando os conceitos de memória conectiva de Andrew Hoskins (2011a) e experiência colateral de Peirce (2003). Nossa intenção é investigar as operações da hashtag #vemprarua no Twitter, a partir da ferramenta de monitoramento automático Hashtagify.me,2 problematizando sua função mediadora durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, para visualizar as redes de memória acionadas pelos momentos de conexão e criação dos interpretantes. O principal desafio proposto é usar as ferramentas de monitoramento automático de redes sociais on-line, que lidam com um volume extensivo de dados, para analisar qualitativamente as redes criadas pela hashtag. Como as temporalidades são múltiplas e só conseguimos visualizar essas redes de memória no instante da conexão entre os usuários, vamos ancorar nossos procedimentos teórico-metodológicos na semiótica peirceana. Além de ser um método de pesquisa que considera a fluidez e o dinamismo dos objetos analisados, também define as questões relativas à memória dentro do campo da comunicação, visto que, conforme Santaella e Nöth (2004), as teorias semióticas são também teorias da comunicação. Esse movimento a que aludimos busca olhar para o caráter mais instável dos rastros digitais gerados pelas hashtags. Queremos perceber as trajetórias criadas no momento da ação dos agentes humanos e não humanos, para compreender o que vamos chamar, ao longo deste trabalho, de memória conectiva. Certeau (2004) menciona a categoria de trajetória 2 Ferramenta de uso on-line que oferece recursos para observar a rede de hashtags acionada por proximidade e ver quais são os principais inluenciadores no compartilhamento das hashtags. DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE195 como um procedimento que tornaria possível compreender o uso e o consumo de bens culturais. No entanto, o autor faz uma crítica a essa mesma noção, ao afirmar que ela deveria evocar um movimento temporal no espaço, apontando para a integridade de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos e não para a figura que tais pontos formam num lugar supostamente sincrônico ou acrônico. Ao transmutar a articulação temporal dos lugares em uma sequência espacial de pontos, o que a trajetória faz é criar uma estrutura rígida no lugar daquilo que é uma performance, uma operação. Afinal, quando tal metamorfose se faz presente “a trajetória se desenha e o tempo ou o movimento se acha assim reduzido a uma linha totalizável pela vista, legível num instante”. (CERTEAU, 2004, p. 98) Dessa forma, nos deparamos com um desafio metodológico na descrição das operações empreendidas pelas e através das hashtags, pois é preciso evitar reduzir tais operações a trajetórias percorridas com esse tipo de elementos. Entendemos que as operações se revelam, apenas parcialmente, em rastros que evocam dinâmicas temporais e espaciais mais amplas e distintas, presentes na criação de memórias conectivas. MEMÓRIAS CONECTIVAS E TEMPO DE MEMÓRIA EM AMBIENTES PROGRAMÁVEIS Andrew Hoskins (2011a) defende que o momento de memória é um momento de conexão. Com esse enfoque, pode-se dizer que a memória é algo da ordem de um movimento de contato, de conexão, sendo o seu registro apenas um tensionamento de um processo dinâmico. É preciso, desse modo, compreender como as ações de conectividade podem ensejar novas formas de ver a memória contemporânea. Iniciamos o trajeto até o termo ora indicado passando, primeiramente, pelas “memórias mediadas” (VAN DIJCK, 2007) para caracterizar aquelas que aparecem em ambientes programáveis. Trata-se de uma qualidade relacionada ao modo de existência dos objetos de memória, e ao modo de acessar tais objetos. Ainda que esse conceito seja mais amplo e anterior ao de memórias conectivas, ele nos auxilia a entender conexões entre memória e acontecimento. Van Dijck (2007) introduz a questão a partir da percepção de que alguns itens seriam capazes de realizar a mediação entre indivíduos e 196CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO grupos de pessoas, itens esses que funcionariam não apenas como lembranças de coisas passadas. É importante ter em mente que esses elementos são produzidos pelas tecnologias de mídia. Pensar os objetos de memória como objetos dialógicos (que estabelecem relações entre) é entendê-los como móveis, como pontos que tensionam camadas temporais invisíveis e não definidas como passado, presente ou futuro por si só. Essas mediações podem ser compreendidas como eventos que se cruzam e fazem aparecer uma parte dessas camadas temporais. A memória seria, então, nesse sentido, um fenômeno que dura pouco tempo num só formato, porque ela é uma relação entre coisas. Ela é um acontecimento. Dessa forma, tal memória encontra-se marcada pelos discursos e narrativas que produzem sua visibilidade, ressaltando-se o fato de que não se pode reduzir o acontecimento somente à sua aparição midiática inicial. A mirada de Van Dijck abre caminho para nos determos, de um lado, na maneira como os discursos se tornam visíveis; e de outro, nos elementos que autorizam a visibilidade de conteúdos específicos. Em relação ao primeiro ponto, tomaremos de empréstimo a exploração e os estudos relativos à virada conectiva e às trajetórias interacionais. (HOSKINS, 2011a, 2011b) No que diz respeito aos elementos ou procedimentos de autorização, nos debruçamos sobre a ação sígnica dos algoritmos e o papel dos rastros digitais na produção de memórias conectivas. Na visão de Hoskins (2011a), a noção de memórias conectivas está primariamente associada ao que ele denomina de “virada conectiva”, ou “ponto de virada em direção à conectividade”. Segundo o autor, esse fato indica que os agentes humanos e não humanos estariam perpetuamente “em movimento”, quando sujeitos à virada conectiva, e isso afetaria a maneira como devemos pensar a noção de memória, que seria cada vez mais visível quando surgissem situações de conectividade. Essas situações podem ser derivadas de momentos “nodais”, cuja relevância para uma comunidade de pessoas derivaria da sua presença estendida em discursos midiáticos. Outrossim, seriam as conexões que tais discursos criam, e que os mantém presentes numa temporalidade estendida, as responsáveis, em parte, por autorizá-los como importantes para a construção da memória sobre determinados eventos, em meio a um conjunto sempre crescente de informações sobre um dado assunto. DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE197 Memórias conectivas estariam relacionadas a fluxos de contato entre pessoas, tecnologias digitais e mídias variadas, estabelecendo uma dinâmica intermídia. Os fluxos são chamados de trajetórias interacionais por Hoskins (2011b), como uma forma de caracterizar os momentos de conexão e desconexão que as pessoas experimentam dentro do conjunto de redes de memória das quais participam, através das ligações que procuram estabelecer com conteúdos, objetos, pessoas etc. Além disso, os movimentos empreendidos nas trajetórias teriam relação direta com deslocamentos temporais entre passado e presente, o que nos permite pensar também em temporalidades específicas para memórias produzidas em ambientes programáveis. Não haveria, nesses espaços, uma temporalidade definida a priori para cada evento contido na rede de memórias; antes, o que se verifica, cada vez mais, é um tipo de estrutura temporal que se configura pela navegação e pela maneira como elementos próprios da conexão (as hashtags, no nosso caso) efetivam camadas temporais em que os tempos se misturam. Não se trata, obviamente, de dizer que o borramento das fronteiras entre passado e presente impede que tais denominações não possam mais ser associadas aos fatos. O que enfatizamos é precisamente a existência de mais de uma forma de configurar a percepção temporal sobre fatos ligados à memória de um determinado evento. É como se o modo de ligar os fatos, dentro do evento de memória, trouxesse a esse evento sua própria temporalidade, que se desenvolve na medida em que novas conexões são realizadas. As memórias conectivas, na proposta do autor, seriam conectadas ou apareceriam através de um conjunto continuado de trajetórias interacionais de lembranças, que são amplificadas, reduzidas, interseccionadas através do grupo de elementos indicados acima. No entanto, os cruzamentos assim realizados seriam capazes de produzir um novo olhar sobre essas memórias? Entendemos que sim, e é possível trazer para essa argumentação a forma como Peirce (1983) trabalha com os conceitos de mediação e agência. Para o autor, as noções de mediação e semiose estão intrinsecamente ligadas, envolvendo um processo híbrido de comunicação (COLAPIETRO, 2011), como veremos mais adiante. Na visão de Peirce (1983), toda mente capaz de aprender é também capaz de gerar inteligência e operar nas 198CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO redes de semiose, não sendo uma atividade exclusiva da mente humana. Nesse caso, agência diz respeito à capacidade de ação, envolvendo humanos e não humanos nas redes de semiose, ou seja, nos processos de produção de sentido. (COLAPIETRO, 2011) Segundo Hoskins (2011a), cada objeto, testemunho ou mesmo interface é capaz de criar novas configurações para memórias que pareciam já estabilizadas e institucionalizadas. Dessa maneira, abrem-se novos ciclos de memória, em função das novas conexões propostas. Esse também parece ser o caso quando olhamos para as hashtags elencadas neste artigo, e aí reside o desafio metodológico para mapear qualitativamente como tais elementos criam a memória dos eventos aos quais se referem. É importante deixar claro que, em nossa abordagem, entendemos as trajetórias não como figuras formadas pelas conexões entre pontos sincrônicos, mas sim como momentos dentro de uma operação dinâmica que não cessa de acontecer. Trata-se, dessa forma, de caracterizar as maneiras como tal operação é levada a cabo, e quais elementos produzem os momentos de memória. Tomamos a hashtag como um processo sígnico, que possui uma função mediadora de vinculação sociotécnica e encadeamento de signos, que conformam a produção de sentidos na rede. Além disso, a investigação pressupõe a ação integrada entre humanos e algoritmos na conformação dos processos de mediação, visto que a hashtag é também um metadado de monitoramento de rede, além de ser reconfigurada pelas ações dos algoritmos dos ambientes midiáticos, como no caso do Twitter. São eles que organizam e visibilizam todo o conteúdo publicado, exercendo forte influência sobre os processos de semiose gerados pelas hashtags. Veremos mais à frente como metadados e algoritmos podem ser associados duplamente à memória conectiva e à noção de experiência colateral. MEDIAÇÃO, EXPERIÊNCIA COLATERAL E MEMÓRIA CONECTIVA Para Peirce (1983), todo o universo está permeado por signos, compreendendo a semiose como um processo de interpretação ad infinitum, visto que o significado de um signo é sempre outro signo, e assim por diante. Trata-se de um permanente devir que, na visão de Santaella (2004), explicita DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE199 como a semiose está enraizada num processo comunicacional. Nesse sentido, um evento qualquer de comunicação deve ser considerado um processo sígnico que se inscreve em uma intricada teia de relações lógicas e continuamente aprimoráveis pela semiose. Partindo desse pressuposto, compreendemos as hashtags como processos sígnicos que cumprem funções mediadoras. Se para Peirce (2003), um signo é, de certo modo, aquilo que representa algo para alguém, uma hashtag pode ser vista como um signo capaz de representar um posicionamento sociopolítico, articulando as dinâmicas on-line dos ambientes programáveis e as dinâmicas off-line das ruas. Dessa forma, segundo Santaella (2004), podemos evidenciar as relações de mediação por meio do engendramento lógico que existe entre o signo, o objeto e o interpretante. Em seus escritos mais maduros, Peirce define meio como a função mediadora do signo através da qual o signo produz comunicação e cognição. Isso significa que o processo de semiose é também um processo de mediação (PEIRCE, 1983), visto que um signo sempre produz um efeito em uma mente, de natureza humana ou não, com intuito de representar o objeto que o determinou. Entretanto, um signo só consegue revelar parcialmente o objeto, sendo dependente da experiência colateral para a formação do interpretante. Essa experiência, ancorada na bagagem e no acúmulo de conhecimento de cada intérprete (agente), associa novos signos à semiose, criando uma dinâmica de conexão por aproximações sígnicas. (COLAPIETRO, 2011) Isso configura uma rede em constante expansão, garantindo a manutenção da referência ao objeto sem comprometer a capacidade criativa da semiose. Para Colapietro (2011), signo é um lugar que uma partícula ocupa em um lapso de tempo. Assim, quando concebemos as hashtags como signos, dentro da dinâmica de compartilhamento das redes sociais on-line, percebemos que elas se relacionam com os objetos que as determinam em domínios distintos e provisórios de representação. Na categoria de primeiridade, o signo se apresenta como um ícone em relação ao objeto, remetendo a uma mera qualidade (sentimento), que não pode ser apreendida ou descrita. Já em nível de secundidade, o signo é um índice que estabelece uma conexão física, deixando um rastro que aponta diretamente para o seu objeto. Por último, em nível de terceiridade, percebemos que o signo 200CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO opera pela força de uma lei, de uma convenção, tornando-se um símbolo pela repetição indicial. (PEIRCE, 2003) É a terceiridade que vai proporcionar a mediação entre a primeiridade e a secundidade, estabelecendo um propósito para a ação. Isso mostra que uma categoria prescinde da outra, formando o conceito de mediação de Peirce, que está empiricamente atrelado à sua noção de signo. São esses os processos que culminam na rede de sentidos e significados de uma hashtag enquanto signo, visto que ela apresenta um sentimento, em nível de primeiridade, que determina sua inscrição física através do # (hash), em nível de secundidade, tornando possível a produção de um pensamento, em nível de terceiridade. Esse pensamento constitui um hábito de ação, sendo fruto da mediação entre o sentimento e a inscrição física da hashtag. Isso acontece porque, quando tomamos a hashtag como um signo, entendemos que sua atuação raramente acontece de forma isolada, temporal ou espacialmente, promovendo uma forte conexão com outras hashtags. Trata-se de um recurso que convoca a audiência para as conversações nas conexões de rede sociais on-line em interface com os ambientes off-line. As hashtags, então, são atualizadas recorrentemente pelo compartilhamento dos intérpretes, gerando uma teia de conexões lógicas. É essa dinâmica criativa, oferecida pela experiência colateral, que articula o encadeamento de hashtags, aprimorando o processo de semiose, que se encontra junto à operação de surgimento de memórias conectivas. Nesse sentido, podemos entender a função mediadora das hashtags de duas formas complementares. Por um lado, elas promovem uma mediação entre um posicionamento sociopolítico comum, que seria o seu objeto, e um efeito de vinculação sociotécnica que aciona um novo contexto sociocomunicacional, seu interpretante. Por outro lado, elas conectam uma instância de significação a outra por meio do encadeamento de hashtags, criando uma dinâmica que pode legitimar ou reconfigurar o sentido inicial de uma hashtag. É essa trajetória espaço-temporal, formatada pelos processos de mediação, que impõe novos desafios para a percepção e criação de memórias nas redes sociais on-line, em fluxo contínuo com os ambientes off-line. Por essa perspectiva, relacionamos o conceito de memória conectiva de Hoskins (2011a) ao conceito de semiose de Peirce (1983), visto que, nesse DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE201 contexto, a memória seria um processo de mediação, revelando uma dinâmica de conexão entre coisas, em constante ressignificação. A memória, dessa forma, seria apenas um processo efêmero, sem demarcação temporal duradoura, que ganha visibilidade nos processos de construção de sentidos pela experiência colateral. Esse fluxo de associações visibiliza um conjunto de redes de memória que se expande infinitamente. Como não há uma temporalidade definida a priori, nosso conhecimento sobre a memória de uma hashtag está centrado nas trajetórias interacionais (HOSKINS, 2011b), abarcando os deslocamentos temporais entre passado e presente. Tais trajetórias, no entanto, se distinguem do que Certeau (2004) critica na ideia de trajetória, pois dizem respeito aos momentos de interação entre humanos e não humanos, e não tem a pretensão de criar uma única representação espacial das interações. Para investigar empiricamente a questão da memória a partir do subsídio teórico-metodológico peirceano, buscamos aferir a função mediadora da hashtag #vemprarua, compreendendo como a experiência colateral influencia o curso da semiose gerada pela hashtag, a fim de visualizar as redes de memória acionadas pelos momentos de conexão dos interpretantes. Como Peirce não limita o efeito de um signo a uma mente de natureza humana, afirmando que mente é igual à inteligência (PEIRCE, 1983), vamos compreender, neste trabalho, os algoritmos como uma mente capaz de agenciar e influenciar o curso da semiose. Afinal, para Nöth (2001), as diferenças entre a semiose humana e das máquinas são apenas uma questão de grau, visto que nenhum processo de semiose hoje se encontra completamente desvinculado ao mundo das máquinas. SEMIOSE DA HASHTAG #VEMPRARUA NAS REDES SOCIAIS ON-LINE Apesar de existirem várias ferramentas para a coleta e monitoramento de conteúdos nas redes sociais on-line, não é simples o trabalho de remontar as operações de uma hashtag, principalmente na intenção de buscar uma relação linear entre passado e presente nos ambientes de compartilhamento. Certamente, o movimento será falho se o objetivo for construir uma memória que procure espacializar a temporalidade de uma ação. Como já vimos anteriormente, estamos concebendo o momento de memória como 202CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO o momento de conexão, num intuito de mostrar como a historicidade dos eventos está sujeita a instabilidades, fluxos não planejados, conexões não imaginadas. A cada novo clique, resultado da experiência colateral, conseguimos vislumbrar a memória pela conectividade presente. Peirce (1983) delineou toda a sua teoria a partir da noção de pragmatismo, ou pragmaticismo, sendo um método de refinamento lógico das ações. Para o autor, esse aprimoramento lógico é um processo autocorretivo da ação sígnica, ou seja, da semiose. E essa autocorreção pressupõe transmissão, atualização e tradução por associação sígnica, que acontece por meio da experiência colateral. Colapietro (2004) chamou esse processo de significação de “drama da autocorreção”, apresentando a metáfora de um caminho que não tem rotas pré-fixadas, mas trajetórias emergentes e alteráveis, definidas pelos movimentos dos viajantes. Assim, não se trata de um caminho imutavelmente apontado, como muitos formalistas enxergam a teoria de Peirce, mas de trajetórias fluidas, que podem encontrar bifurcações, resultando em um grande labirinto. É dessa forma que vamos compreender o conceito de trajetórias interacionais de Hoskins (2011b), pensando nessa dinâmica sígnica de associação para visualizar os pontos de conexão da memória. Porém, para Colapietro (2004) essas múltiplas rotas sempre oferecem novas possibilidades e frustrações. Isso porque o processo de semiose é também um processo de determinação, não apenas de representação. Existe um propósito comunicativo que não pode ser descartado, pois além da dimensão criativa, provida da experiência colateral, o interpretante possui também uma dimensão radical em relação ao objeto. Por isso, vamos também investigar as trajetórias criadas pela hashtag a partir de uma visão pragmática da ação, tendo como referência a função determinante do signo. Para fazer esse exercício metodológico, escolhemos a hashtag #vemprarua por ser um signo que circula nos ambientes on-line e off-line há algum tempo, criando uma teia de significados lógicos diversos. Segundo Malini e colaboradores (2014), o grito de guerra “vem pra rua” não surgiu da insatisfação com o governo da presidente Dilma Rousseff em um primeiro momento. Apesar de ter sido o mote dos protestos das Jornadas de Junho de 2013, o bordão começou a ser utilizado no início dos anos 2000, com o Movimento Passe Livre (MPL), que refletia os problemas DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE203 da mobilidade urbana dos estudantes. Ele nasceu, então, na dinâmica offline das ruas, sendo uma expressão de cunho convocatório para a performance ativista. O bordão só entrou na dinâmica das redes online no ano de 2013, quando o MPL passou a utilizar o Facebook para divulgar o movimento e os eventos relacionados. Na mesma época, a empresa Fiat lançou uma campanha para a Copa das Confederações com o slogan “vem pra rua”, que tinha como refrão a frase “porque a rua é a maior arquibancada do Brasil”. A intenção era convidar a torcida para ocupar as ruas durante os jogos. A música de entrada da campanha, na voz de Falcão do grupo O Rappa, foi utilizada no dia 14 de junho de 2013 para compor uma montagem das manifestações, que circulou pelas redes sociais on-line, reconfigurando a rede de sentidos gerada pela semiose da campanha publicitária (SCHOLZ, 2013) e ganhando um significado sociopolítico. Em seguida, a Fiat alterou a letra da música, retirando o trecho que se referia à expressão “vem pra rua”. Simultaneamente, o termo começou a vigorar também no Twitter e no Instagram. Foi quando nasceu a hashtag #vemprarua com intuito de ganhar visibilidade nos ambientes on-line. Na lógica tecida pelos algoritmos, a hashtag aparece como uma forte ferramenta de monitoramento, agregando conteúdos rastreáveis por palavras-chave através do sinal # (hash). Isso facilita a busca e a recuperação dessas publicações na plataforma, principalmente no caso do Twitter, pois sua API3 (Application Programming Interface) é aberta e amistosa para a realização de coletas automáticas. Nesse contexto, percebemos que as semioses geradas pelas hashtags revelam um predomínio indicial da mediação no Twitter, quando observadas pelo viés da relação entre signo e objeto. Notamos esse comportamento tanto no que se refere à especificidade do rastro sociotécnico gerado, quanto em relação à forma de comunicação projetada, sendo uma 3 Interface de Programação de Aplicação é um conjunto de ferramentas disponíveis para que a plataforma possa receber aplicações secundárias a partir de trabalhos independentes de desenvolvedores web. 204CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO plataforma ancorada na repetição para agregar conteúdos com intenção de chegar aos Trending Topics.4 Assim, os rastros sígnicos funcionam no Twitter como vestígio da ação sígnica que conecta por repetição. Quanto mais menções a uma hashtag, maior será sua visibilidade na rede, sendo uma estratégia muito utilizada por meio dos bots (robôs), principalmente no cenário político e comercial. Dessa forma, ela mantém o crescimento criativo da semiose, sendo condição inevitável para o processo de mediação. Por isso, “apesar de as citações serem aparentemente repetitivas, em cada variação algo novo é apresentado”. (SANTAELLA, 2004) Pela experiência colateral vemos a abertura de uma nova cadeia sígnica, sendo um movimento que se repete ao infinito. Na visão de Bergman (2010), a experiência colateral está demasiadamente ancorada em índices, estando situada no nível de secundidade. E essa repetição transforma o signo em uma convenção, tornando-se um símbolo, como acontece nas ruas, por exemplo. Quando alguém usa a hashtag #vemprarua em cartazes e camisetas significa que ela já opera como uma norma, perdendo seu caráter de monitoramento para exprimir um pensamento articulado. Por isso a importância de se pensar as redes de memória a partir da convergência entre on-line e off-line. Esse é o aspecto empírico da comunicação. Apesar do fundamento peirceano da determinação, as experiências não são idênticas, prevendo uma forte troca comunicativa. Para Bergman (2010), então, o verdadeiro desenvolvimento exige também divergências empíricas. Para visualizar algumas das trajetórias sígnicas geradas pela experiência colateral da hashtag #vemprarua, usamos a ferramenta de monitoramento automático Hashtagify.me, durante os três principais momentos do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. O primeiro diz respeito à votação na Câmara dos Deputados, no dia 17 de abril, quando o pedido foi formalmente protocolado. Em seguida, entre os dias 11 e 12 de maio, houve a votação do processo no Senado Federal, sendo aceito para investigação. Entre os dias 25 e 31 de agosto, aconteceu o 4 Sistema oferecido pela plataforma do Twitter para dar visibilidade às hashtags mais comentadas durante um curto período de tempo. DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE205 julgamento final, concedendo a destituição da presidente do poder. Os dados obtidos revelaram algumas operações traçadas pela hashtag, ao longo do tempo, mostrando, pela experiência colateral a partir do encadeamento de hashtags, algumas possíveis redes de memórias conectivas criadas. A ferramenta rastreia as conexões dessas e entre essas hashtags, mostrando quais outras hashtags foram acionadas por elas ao logo do tempo. O que diferencia o processo de semiose é o grau de proximidade entre elas, marcadas na ferramenta pela linha que relaciona umas às outras. Quanto mais próxima da hashtag analisada, mais recente é a associação. Quanto mais grossa a linha, maior a intensidade da ligação no contexto da conectividade. Porém, o único rastro que conseguimos apreender dessas temporalidades distintas é a formação dos interpretantes (novos signos), materializados na forma de hashtags relacionadas. Dessa forma, a memória conectiva só pode ser visualizada por essa ferramenta nos momentos de interpretação do signo, prevendo uma série de trajetórias irregulares. Não há, nesse aspecto, uma leitura quantitativa ou mensurável dos dados. Apenas conseguimos identificar os momentos de memória de forma qualitativa pela cadeia da semiose, um processo infinito e sem pretensão de abarcar a totalidade. Isso é visível no instantâneo gerado pelo monitoramento da hashtag na votação da abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, dia 17 de abril às 18h, conforme Figura 1. 206CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO Figura 1 – Relações estabelecidas pela hashtag #vemprarua em17/04/2016 All-time Top 10 Hashtags related to #VemPraRua protestorj ForaDilma Brasil AcordaBrasil SHARE EMBED Impeachment VemPraRua MudaBrasil ForaPT ImpeachmentDilma ChangeBrazil ogiganteacordou Fonte: http://hashtagify.me. Percebemos que, em algum momento, houve uma forte conexão com a hashtag #ogiganteacordou, muito utilizada durante as Jornadas de Junho de 2013, mostrando sua natureza determinante ligada aos movimentos do MPL. Na sequência, as hashtags #foradilma e #forapt também são muito expressivas, tendendo a mostrar que as trajetórias da hashtag #vemprarua estão ligadas a um posicionamento sociopolítico a favor do impeachment, principalmente pela relação mais recente com a hashtag DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE207 #impeachmentdilma. Porém, notamos do lado esquerdo, uma ligação também importante com a hashtag #mudamais, relacionada a um grupo de ativistas contra o pedido de destituição da presidente Dilma. Da mesma forma, quando olhamos a semiose gerada pela hashtag #naovaitergolpe, um signo importante para as manifestações contra o processo de impeachment, ela também aciona a hashtag #vemprarua. Podemos notar então uma heterogeneidade de interpretantes, que aponta para a representação circunstancial do objeto que as determinou, mas também aciona outras representações que reconfiguram os sentidos previamente convencionados por experiência colateral. É o uso social das hashtags que gera hábitos provisórios de ação. Esses processos coletivos de associação criativa conduzem à configuração sociotécnica de um posicionamento sociopolítico comum em contextos diferenciados. É assim que se formam as memórias conectivas, de maneira provisória e, por vezes, contraditória, de acordo com as experiências colaterais adicionadas. E essas trajetórias interacionais podem aparecer e desaparecer de acordo com a atuação dos agentes humanos e não humanos. No caso da hashtag #nãovaitergolpe com acento, o algoritmo desenha uma trajetória bem diferente da semiose gerada pela hashtag sem acento. Nessa segunda rede, não há a presença da hashtag #vemprarua, mostrando que os agentes não humanos também desenvolvem um tipo de experiência colateral. É claro que não é uma experiência autônoma, mas que passa pelos agenciamentos humanos. Entretanto, de forma automatizada, eles acabam alterando substancialmente a criação de novos interpretantes, ou seja, de novos signos. Isso também é fruto das próprias potencialidades e limitações da ferramenta de análise. Apesar da API do Twitter ser aberta e de fácil manipulação, por trabalhar com uma enorme quantidade de dados, só conseguimos extrair cerca de 1% de todo o conteúdo publicado com as hashtags analisadas. Isso significa que essas visualizações são pequenas amostras de algumas das possíveis conexões criadas. No dia 29 de maio, data da defesa da presidente Dilma Rousseff no julgamento final do impeachment, a rede do signo #vemprarua se modificou, tornando-se mais neutra na dualidade sociopolítica. Ela apareceu relacionada imediatamente com as hashtags #brasil e #acordabrasil, dois signos usados tanto pelos manifestantes a favor quanto contra o pedido 208CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO de destituição. Da mesma forma, durante a votação no Senado entre os dias 11 e 12 de maio, o signo #vemprarua desapareceu na rede formada pela hashtag #naovaitergolpe (sem acento), passando a vigorar outras conexões, principalmente com a hashtag #vaiterluta. Porém, na medida em que foi se aproximando do julgamento final, a hashtag #naovaitergolpe caiu praticamente em desuso, rompendo toda a semiose criada e desfazendo suas conexões de memória. CONSIDERAÇÕES FINAIS As hashtags são rastros digitais que operam na mediação de um posicionamento sociopolítico comum, acionando outras hashtags na criação de uma rede complexa e provisória de sentidos. Partindo desse pensamento, o estudo em questão teve por objetivo investigar a atuação das hashtags na constituição de um acontecimento, através dos conceitos de memória conectiva, semiose e experiência colateral. Recorremos aos pressupostos teóricos e metodológicos da semiótica de Charles Sanders Peirce para trazer a discussão sobre a memória para o campo da teoria da comunicação. Além da validade teórica, entendemos a semiótica como um método profícuo para se pensar a fluidez e instabilidade das trajetórias dos objetos de memória, fazendo interface com as dinâmicas on-line e off-line. Isso porque as hashtags operam de forma intermídia, por associação sígnica, criando uma conexão entre vários ambientes midiáticos. Nossa intenção foi entender como podemos pensar as questões relativas à memória dentro da dinâmica do banco de dados, trabalhando com um número excessivo de registros que transcendem a passagem temporal entre passado e presente. O desafio metodológico, apresentado pelas potencialidades e limitações encontradas nos trabalhos relacionados às coletas de dados nas redes sociais on-line, foi abordado a partir da lógica de memórias conectivas sendo estabelecidas momentaneamente através e com as hashtags. Pensamos as trajetórias interacionais como os momentos de formação de novos interpretantes dentro das redes de memória, apontando para uma semiose provisória e em constante reformulação. As conexões que analisamos se fazem presentes também entre temporalidades muito diversas, considerando o momento de aparecimento, DESAFIOS METODOLÓGICOS NA CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS CONECTIVAS NAS REDES SOCIAIS ON-LINE209 ou a intensidade, com que cada hashtag ativa redes de memórias relativas aos acontecimentos políticos no país. Nesse caso, é preciso pensar tais temporalidades não somente numa lógica cronológica, mas como organizações de conteúdos a partir da ativação provocada por determinadas hashtags. Essa organização de conteúdos se liga à ideia de memória conectiva elaborada por Hoskins, uma vez que as memórias são organizadas e organizam um conjunto de informações em torno de um momento nodal. Dessa forma, entendemos as hashtags como processos sígnicos, construindo sua teia de sentidos a partir do hábito de ação gerado pela experiência colateral dos interpretantes. Propomos relacionar as experiências colaterais do nosso objeto de análise como uma espécie de memória conectiva que surge com o uso de metadados (as hashtags). As memórias conectivas contribuem para colocar em evidência a semiose da hashtag #vemprarua: uma rede variada de significados tecida coletivamente e conectivamente ao longo dos protestos de rua, desde as Jornadas de Junho de 2013, que produz momentos nodais distintos, de acordo com a análise realizada neste trabalho. De um lado, ela conecta movimentos contra o impeachment, configurando então uma trajetória interacional muito mais voltada para o que poderíamos chamar do campo de esquerda, no espectro sociopolítico. Simultaneamente, ou quase, ela também organiza informações relativas ao campo político de direita. Há assim, uma coexistência de redes de memórias e, ao mesmo tempo, uma coexistência de temporalidades. Nesse aspecto, uma análise puramente cronológica poderia deixar escapar justamente o cruzamento entre tais trajetórias interacionais. Poderíamos dizer que as temporalidades surgem em função das hashtags e da forma como elas organizam as memórias sobre os acontecimentos em torno de si. Assim, a noção de memória conectiva nos abre a possibilidade de aplicar uma metodologia de análise qualitativa voltada para investigar momentos específicos de conexão propiciados pelas hashtags. Isso pode se configurar como uma alternativa para rompermos com a visualização espacializada das conexões exaustivas de um instante de redes que se mostram, cada vez mais, fluidas e extremamente dinâmicas. 210CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI E LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO REFERÊNCIAS BERGMAN, M. C. S. Peirce on interpretation and collateral experience. Signs, [S.l.], v. 4, p. 134-161, 2010. BRUNO, F. Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede. Famecos, Rio Grande do Sul, v. 19, n. 3, p. 681-704, 2012. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs. br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/12893/8601>. Acesso em: 21 mar. 2016. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Tradução de Ephaim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2004. COLAPIETRO, V. The routes of significance: ref lections on Peirce’s theory of interpretants. Cognitio, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 11-27, 2004. COLAPIETRO, V. 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Muito rapidamente, cineastas renomados, ainda sem abandonarem definitivamente a filmagem ou a montagem com celuloide – algo que a televisão já prenunciava – passaram a integrar, experimentalmente, diferentes objetos e fluxos televisuais aos seus processos de escritura. No ritmo da mudança tecnológica em curso – mas não exatamente em um compasso estrito com a direção predominante das transformações técnicas – o cinema deixava de ser um dispositivo isolado, intransitivo, fechado em seus modos convencionais de representação e de exibição, e se arriscava em domínios até então desconhecidos, ao circular por outros espaços, como a casa, a cidade, os museus e as galerias de arte. De maneira inversa, as imagens técnicas, produzidas profusamente em diferentes ambientes sociais, eram apropriadas continuamente pelo meio cinematográfico, que as combinava e recombinava de modo eminentemente crítico, oferecendo-as ao espectador como o médium de uma experiência estética configurada em novos moldes (em especial, no que 213 concerne à dimensão temporal das imagens, como sublinharemos neste artigo). Entretanto, como ressalta Deleuze, a imbricação entre as combinações audiovisuais e as pedagogias inventadas pelos cineastas modernos (de Roberto Rossellini a Marguerite Duras, passando por Hans-Jürgen Syberberg e pelos Straub-Huillet) – que poderiam encontrar na televisão um fértil campo de pesquisa – e o próprio desenvolvimento autônomo da televisão, com seus recursos específicos, não se deu em um mesmo nível de influência: Se o cinema buscava na televisão e no vídeo um ‘retransmissor’ para as novas funções estéticas e noéticas, a televisão, por seu lado, (apesar dos raros primeiros esforços) assegurou para si antes de tudo uma função social que quebrava de antemão qualquer retransmissão, apropriou-se do vídeo, e substituiu as possibilidades de beleza e pensamento por poderes inteiramente outros. (DELEUZE, 1992, p. 92, grifo do autor) O realizador alemão Harun Farocki e o franco-suiço Jean-Luc Godard representam, possivelmente, os principais (embora não únicos) expoentes dessa geração de cineastas marcada pelo intenso contato com novos limiares tecnográficos. Habitantes de um tempo em que os objetos técnicos, notadamente os hipervisuais, são difundidos e desenvolvidos em níveis sem precedentes,1 parte significativa da potência dos seus trabalhos decorre justamente da atenção às questões que atravessam o campo da visualidade em sua época. Ao caminharem pela história da imagem, do cinema e da própria técnica em sentido mais amplo, ambos demonstram profunda consciência crítica dos lugares ocupados por sua arte – bem como das forças que a tensionam e a disputam – no interior de uma indústria midiática globalizada. Ao mesmo tempo, apropriaram-se como poucos das possibilidades do desenvolvimento tecnológico da imagem, desde as técnicas do vídeo e da televisão até, mais recentemente, das gravações de celular, projeção tridimensional, artifícios de pós-produção, e imagens 1 “Sem dúvida haverá um aumento no tempo passado em frente a todos os tipos de telas, que serão re-conceituadas e terão suas funções re-deinidas (tornando-se terminais de tele-ação), com suas inúmeras aplicações expandindo-se em milhares, notadamente no nível proissional; tais processos buscarão, com graus crescentes de complexidade e cada vez mais facilidade e sensibilidade, a temporalização industrial da consciência.” (STIEGLER, 2011, p. 2, tradução nossa) 214CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES de síntese (COUCHOT, 1984; KITTLER, 1997), como videogames, simuladores, modelos 3D e animações computacionais. Uma das indagações principais deste artigo se refere aos modos como a presença crescente da técnica no mundo humano – ao ponto de alguns pensadores falarem de uma “teoria do ciborgue” (HARAWAY, 1991) ou de uma “ontologia dos objetos técnicos” (STIEGLER, 1998) – afeta a criação cinematográfica, transformando profundamente a experiência e a fabricação da temporalidade. Nesse sentido, procuramos indicar aqui as maneiras singulares com que Godard e Farocki se valem criticamente da dimensão tecnológica nas suas criações, de modo a problematizar, confrontar ou subverter certo ritmo hegemônico ou massivo de construção temporal. A aproximação entre eles se justifica, primeiramente, pelo fato de estarem entre os principais cineastas a tratar frontalmente a questão da técnica do cinema, problematizando-a na economia interna do filme: seja ao abordar a máquina do cinema e suas operações (da filmagem à montagem), seja ao abordar os modos de produção e circulação das imagens na vida social. Em seguida, pelas afinidades históricas e formais entre suas obras (lembremos que Farocki, inclusive, chegou a publicar, em colaboração com Kaja Silverman, um livro sobre a obra de Godard). Por fim, é preciso notar também que há entre seus filmes contrastes estilísticos importantes, que matizam a singularidade de cada um. Sabe-se que o cinema pode ser tomado, em graus variados, como um meio privilegiado para a produção do tempo, isto é, uma ferramenta capaz de inscrever uma série de imagens e sons no interior de um fluxo visual para, posteriormente, projetar ou repetir esse fluxo por meio da sua reprodução técnica. Por um lado, esse fluxo, correspondendo ao da própria consciência (do espectador, do grupo, da sociedade), estabelece aproximações ou distanciamentos com outros objetos e sujeitos. Por outro, enquanto meio de retenção terciária – segundo os termos de Stiegler (2011, p. 16, tradução nossa), “uma memória que resulta de qualquer forma de gravação”2 – o cinema carrega consigo toda uma herança antropogênica, provocando integrações ou rupturas numa dimensão histórica que 2 “A memory resulting from all forms of recordings”. TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA215 remete, ulteriormente, à própria técnica enquanto elemento originário do humano. (STIEGLER, 2011) Godard e Farocki jogam de maneira complexa com essa dupla temporalidade, seja pela contínua fragmentação das cadeias temporais que constituem seus filmes, seja pela utilização das imagens de arquivo como índices visuais que permitem revelar ou ressignificar, por meio dos recursos cinematográficos, as formas de construção da história. Neste artigo, buscamos aproximar alguns filmes desses dois realizadores, marcados por modos heteróclitos de agenciamento da imagem técnica. Partindo de perspectivas pouco abordadas, indicamos alguns recursos e procedimentos utilizados pelos diretores para se contrapor às mediações dominantes da imagem audiovisual, estabelecendo conexões entre as novas possibilidades tecnológicas e os modos de experiência das temporalidades produzidas. Nosso interesse primordial é explorar as relações entre o tempo e a técnica no cinema quando este se faz pela interação com outros dispositivos midiáticos, bem como pelo contínuo deslocamento de fluxos, formas e destinos tradicionais da imagem fílmica. A DIMENSÃO TECNOLÓGICA DO CINEMA A concepção do cinema como dispositivo capaz de produzir novas formas de conhecer e de experimentar o mundo, com base na dimensão tecnológica, está presente, de maneiras mais ou menos conscientes, desde seus primórdios. É preciso recordar que a forma cinema, enquanto sistema de representação historicamente determinado, “não nasce com sua invenção técnica, pois leva cerca de uma década para [...] se fixar como modelo”. (PARENTE, 2009) Tal fixação corresponde, grosso modo, à “criação de um padrão ambiental para o consumo de filmes, um padrão narrativo e um processo de massificação”. (COSTA, 2005, p. 67) Assim, essa inovação técnica que oferecia, inicialmente, um campo amplo e difuso de experimentação selvagem para diferentes interesses científicos ou estéticos, é submetida a um esforço de domesticação por parte das forças econômicas e sociais dominantes. (COSTA, 2005, p. 65-70) É o fim do “primeiro cinema” (1894-1908) e a estabilização de uma indústria do cinema “na qual se apagam as evidências visuais, estéticas e ambientais das diferenças de classe, 216CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES diferenças de sexo, diferenças técnicas. A transição é, neste sentido, uma forma de homogeneização”. (COSTA, 2005, p. 67) Em História(s) do cinema (1988-1998), no episódio 1A, Godard ironiza as expectativas frustradas dos irmãos Lumière diante do investimento industrial no cinema – “uma arte sem futuro” (comercial), advertiam eles – para afirmar sua potência estética: “uma arte do presente/uma arte que dá e que recebe antes de dar/digamos/a infância da arte”. Nesse sentido, as vanguardas cinematográficas produziram diferentes contrapontos ao modelo hegemônico, em especial pela recusa criativa da separação arbitrária entre arte e técnica.3 Eisenstein afirmaria a nova tecnologia como forma específica de investigação científica. Vertov conceituaria e colocaria em prática a noção de câmera-olho (kino-oki). Os impressionistas franceses utilizariam o cinema como meio de acesso a uma dimensão oculta. A heterogênea vanguarda norte-americana ressaltaria a primazia da forma, a interferência direta na película e a valorização das operações técnicas. E mesmo um diretor tão “espetacular” quanto Frank Capra problematizaria o papel do cinema na economia libidinal da indústria capitalista, definindo-o como uma espécie complexa de pharmakon, ao mesmo tempo antídoto e veneno.4 Resta perguntar, pois, qual seria o lugar desse dispositivo – essa máquina de visão – quando ele cresce a ponto de transbordar para outros campos práticos e teóricos, no momento em que “as imagens se estendem para além dos espaços habituais em que eram expostas, como a sala de cinema e a televisão doméstica” (PARENTE, 2009, p. 34), e alcançam uma multiplicidade de espaços expositivos ou de fluxo. (BRASIL, 2011) Com efeito, a emergência das mídias eletrônicas e digitais desencadeou transformações radicais no meio cinematográfico, explicitadas por diferentes noções: um cinema expandido, que acolheria a multiplicação das formas de criação e de exibição da imagem em movimento (YOUNGBLOOD, 1970); um cinema futuro, “que se constituiria para além do filme, em experiências contemporâneas, de certa forma, herdeiras de proposições das décadas de sessenta e setenta” (SHAW, 2003); um outro cinema, 3 Para possíveis problematizações dessa ideia, conferir Faure (2010) e Albera (2012). 4 “Film is a disease. [...] As with heroin, the antidote to ilm is more ilm”. TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA217 que operaria a multiplicação dos dispositivos, das telas e dos meios disponíveis para a fabricação fílmica. (BELLOUR, 2009) Essas noções constituem um arcabouço teórico inicial para compreender a criação e a recepção das imagens cinemáticas em contato com outros fluxos, espaços e objetos temporais – as galerias, os museus, a cidade, os videogames, a publicidade, a internet, os aparelhos móveis – resultando em novas interações ou interseções. Ao retomar diferentes críticas do pensamento ocidental em relação ao ritmo do desenvolvimento tecnológico humano a partir da modernidade, Bernard Stiegler reivindica a urgência de se refundar as relações entre homem e técnica no mundo contemporâneo. Para ele, o ponto fulcral estaria nas formas de temporalidade e espacialidade produzidas, histórica e fenomenologicamente, pelos chamados objetos temporais, que não apenas existem no interior do fluxo do tempo, mas são temporalmente constituídos, “tecidos com fios do tempo”.5 (STIEGLER, 2011, p. 14, tradução nossa) Para além da percepção e da imaginação, eles ofereceriam suportes de memória terciária, cada vez mais abundantes, para a sedimentação, gravação e reprodução da memória humana. O cinema, contudo, não seria simplesmente mais um desses objetos temporais. Stiegler acompanha, aqui, uma reflexão de Deleuze em torno da noção bergsoniana de “ilusão cinemática”: O cinema procede com dois dados complementares: cortes instantâneos chamados imagens; e um movimento ou um tempo impessoal, uniforme, abstrato, invisível ou imperceptível, que está ‘no’ aparelho e ‘com’ o qual se faz desfilar as imagens. O cinema dá-nos pois um falso movimento, ele é o exemplo típico do falso movimento. Mas é curioso que Bergson dê um nome tão moderno e recente (‘cinematográfico’) à mais velha das ilusões. [...] Deverá entender-se que, segundo Bergson, o cinema seria apenas a projeção, a reprodução de uma ilusão constante, universal? Como se sempre se tivesse feito cinema sem o saber? (DELEUZE, 2009, p. 14) Stiegler (2011) reconhece a relevância dessa formulação de Deleuze, com a ressalva de que este não alcançaria as consequências derradeiras de sua própria argumentação. A seu ver, faltaria considerar “a especificidade 5 “Woven in threads of time”. 218CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES desse tipo de reprodução enquanto técnica de gravação analógico-fotográfica integrada ao ‘já foi’ barthesiano, por um lado, e fusão de poses instantâneas dentro do fluxo de um objeto temporal, por outro”.6 (STIEGLER, 2011, p. 13, tradução nossa) Ele defende, então, que o aparato fílmico consistiria na culminância tecnológica de “uma estrutura fundamentalmente cinemato-gráfica da consciência em geral”.7 (STIEGLER, 2011, p. 13, tradução nossa) Trata-se, assim, de um objeto tecnológico-temporal complexo, cujas promessas incluem possibilidades outras de percepção, cognição e comunicação. Pois o que acontece, pode-se indagar, quando esse objeto temporal complexo, que é o cinema, passa a jogar com outros objetos tecnológicos que também produzem relações temporais? DOIS CINEASTAS DA TÉCNICA Em Número dois (1975), reivindicado pelo autor como um filme amador ou de família que caracteriza a casa como uma fábrica (com suas várias relações cotidianas, do trabalho doméstico ao sexo), e na série televisiva Six fois deux/Sur et sous la communication (1976), Godard imbrica os recursos expressivos do cinema e do vídeo e promove diversas combinações (sob o signo da partícula “e”) entre imagens produzidas em diferentes contextos, como programas televisivos, conflitos bélicos, salas de aula, agências de fotografia, exposições museológicas etc. A partir de meados da década de 1970, ao se servir experimentalmente dos recursos da imagem eletrônica, Godard intensifica seu discurso crítico sobre as operações do cinema (a incessante inquietação com as relações entre a imagem e o som), sobre a máquina do cinema (o que ela enquadra, recorta, esconde, exibe) e o que ela permite comunicar (o que ela faz passar entre o filme e os espectadores), assim como a maneira insidiosa com que a divisão do trabalho (assim como a dos sexos) se infiltra nos meios de produção e de criação dos filmes. Seja com os meios do cinema ou do vídeo, 6 “The speciicity of this reproduction as a technique of analogico-photographic recording integrating the Barthesian ‘that-has-been’, and as the fusion of instantaneous poses within the lux of a temporal object”. 7 “An essentially cinemato-graphic structure for consciousness in general”. TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA219 o trabalho crítico do cineasta consistirá em quebrar a linha de montagem das imagens – como vemos em Ici et ailleurs (1974) – seu modo habitual de fabricação, para confrontar a maneira com que os poderes ora nos fazem ver cada menos nas imagens, ora nos impõem – com suas palavras de ordem – o que devemos perceber nelas. Se a questão da técnica do cinema sempre intrigou Godard é porque ela, com seus vários componentes, lhe permitiu, ao longo de sua obra inteira, se mover em duas direções, como identificou Deleuze (1992, p. 58): Por um lado, restituir às imagens exteriores seu pleno, fazer com que não percebamos menos, fazer com que a percepção seja igual à imagem, devolver às imagens tudo o que elas têm; o que já é uma maneira de lutar contra tal ou qual poder e seus golpes. Por outro lado, desfazer a linguagem como tomada de poder, fazê-la gaguejar nas ondas sonoras, decompor todo conjunto de ideias que se pretendam ideias ‘justas’ a fim de extrair daí ‘justo’ ideias. Em sua insistente experimentação com os meios técnicos de criação – tomando-os como meios sem fim, como quer Agamben (2015) – Godard (1998, p. 385, tradução nossa) resumiu sua preocupação com a comunicação – como algo que (se) movimenta – do seguinte modo: “fazer cinema ou televisão, tecnicamente, é enviar vinte e cinco cartões postais por segundo a milhões de pessoas, seja no tempo, seja no espaço, o que só pode ser irreal”.8 Ninguém tem os meios técnicos para fazer isso: somente a televisão ou a publicidade podem visar o espectador desse modo, indistintamente. Fazer um outro cinema, uma outra televisão é fazer duas coisas: buscar outro endereçamento (encontrar novas maneiras de dizer “eu” para se dirigir aos outros, singularmente, alcançados um a um, na sua relação com os filmes) e articular as imagens (entre si) e os sons sob um modo distinto daquele da associação e da combinação que o cinema praticou desde o seu início. No plano de abertura de Número dois, vemos o projetor de cinema ligado (mas não vemos o que ele projeta), uma mesa de edição e um aparelho de televisão que reproduz, em plano fechado, o rosto de Godard que, com 8 “Faire du cinéma ou de la télévision, c’est envoyer vingt-cinq cartes postales par seconde à des millions de gens, dans le temps et dans l’espace, de ce qui est irréel.” 220CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES o braço apoiado no aparelho, comenta a composição da cena que vemos (o autor como produtor, ao lado das suas máquinas de imagens) e do filme que já se desenrola. Ele se afirma, ao mesmo tempo, como patrão e como alguém que tem a companhia dos trabalhadores que tomaram o poder, isto é, o poder de produzir e combinar as imagens e os sons, emancipados do regime de trabalho e da cadeia de produção tanto do cinema industrial quanto da televisão. E se passamos desse plano a um outro, e se entre eles surge um letreiro com os motivos do filme (“fábrica”, “fabricação”, “reprodução”), entre um e outro, uns e outros, imagens, sons, inscrições e comentários (in e off), já não se trata de uma associação de elementos díspares, mas o que Deleuze (2007, p. 217) denomina interstício: “dada uma imagem, trata-se de escolher outra imagem que induzirá um interstício entre as duas”. Surge aí uma temporalidade compósita, que situa o espectador entre uma e outra coisa, continuamente, pois agora uma “imagem cortada do exterior” (como diz Deleuze, ao notar que o extracampo passa a residir na voz off) vem abrigar outras imagens (exibidas nos monitores): não apenas aquelas retiradas do mundo da informação (como a reportagem sobre a manifestação dos trabalhadores e sindicatos no primeiro de maio) e de outros filmes (como um pornô, por exemplo), mas as cenas inventadas pelo próprio filme, com seus personagens (as três gerações, os avós, os pais e as crianças), todas elas reproduzidas nos monitores de televisão e filmadas pela máquina do cinema. Didi-Huberman (2015, p. 221) afirma que “Godard toma pessoalmente e ostensivamente posse das imagens [...] que ele dispõe em torno dele. Ele nunca deixa de afirmar seu estilo: lirismo, ritmo efervescente, festival de pulsações visuais”. Embora o filósofo sintetize bem alguns aspectos recorrentes na obra do cineasta franco-suíço, é preciso ressaltar que os filmes de Godard nunca se fecham em torno de um sentido unívoco, que poderia resultar, por exemplo, daqueles modos de “associação” ou síntese pautados pelo privilégio da presença, como se o encadeamento das imagens sob a forma do juízo ou da oposição fornecesse acesso direto a uma ideia exterior, uma espécie de essência ou cifra. Com efeito, Godard renuncia a qualquer tentativa de homogeneização discursiva das ideias e coisas, e prefere deixar as imagens (ou sons) emergirem umas das outras através de brechas, desvios, interstícios, em TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA221 um movimento de contínua diferenciação e recomposição. A montagem assim constituída se coloca, então, na contramão de todo gesto de possessão, e realiza um ato de resistência fílmica, contra a temporalidade (e a mirada) possessiva que tenta capturar o mundo e os sujeitos, uma temporalidade que tem muitos nomes, como pornografia, propaganda, estado, televisão (ao menos certa forma de televisão). Daí a predileção de Godard por processos de escritura fragmentários, carregados de citações, com recombinações incessantes entre imagem e som, de modo a produzir formas de pensamento em permanente construção, abertas à participação do espectador e ao surgimento de sentidos imprevistos. Algo que Rancière (2012, p. 70), ao comentar as Historie(s) du cinéma, chamará de “fraseimagem”. Philippe Dubois (2011) e Jacques Aumont (1999) dedicaram um olhar acurado a essa peculiaridade da arte godardiana. O primeiro faz uma longa investigação de estética comparada em torno dos desdobramentos do vídeo – entendido “como estado imagem, como forma que pensa” (DUBOIS, 2011, p. 100) – na obra de Godard, com foco nos filmes realizados entre 1972 e 2002. Para Dubois (2011, p. 289), “nenhum cineasta problematizou com tanta insistência, profundidade e diversidade a questão da mutação das imagens quanto Jean-Luc Godard”, cujo processo criativo envolve “a aparição e a integração imediata do vídeo [...], seu uso sistemático e multiforme, esta vontade de se apropriar totalmente deste suporte”. Aumont, por sua vez, dedica seu estudo às História(s) do cinema, organizando-o em torno de três eixos: a montagem, a melancolia, e o próprio cinema. Ele destaca a admirável multiplicidade – de formas, sentidos, vozes, figuras, sujeitos – que resulta da heterogênea escritura godardiana, concebida como verdadeira formulação estética e política que confronta, sem cessar, os modos apoteóticos da percepção (e da celebração) tecnológica no mundo contemporâneo. Em obras mais recentes, como é o caso de Filme Socialismo, Os três desastres e Adeus à linguagem, escolhas como a tecnologia estereoscópica e o privilégio das sequências da natureza perturbam fortemente a relação do espectador com os objetos e recursos técnicos do filme (como as imagens de celular em Filme Socialismo ou os procedimentos de 3D em Adeus à linguagem, fortemente deslocados 222CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES da função e do uso habituais entre nós, alimentados pelo crescente e descartável consumo dos gadgets tecnológicos). Embora trabalhe muitas vezes com temas, recursos e perspectivas afins às de Godard, Farocki usualmente “apaga seu estilo ou não hesita em perder velocidade em benefício de uma clareza mais modesta que ele deseja imprimir a suas montagens”, como nota Didi-Huberman (2015, p. 221). Via de regra, seu gesto consiste no “atravessamento” – oferecido ao espectador – das imagens extraídas das entranhas do poder, retirando-as “de uma rede de controle muito fechada” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 212) e as contrabandeando para a esfera pública. Atento leitor de Foucault, o cineasta sabe bem que “o dispositivo cinematográfico [...] não nasce do simples favor de um desenvolvimento lógico das técnicas, ele pertence plenamente à história das tecnologias de controle” (BRENEZ, 2014, p. 218) Seu cinema adquire, portanto, uma formulação notadamente biopolítica ou zoopolítica, especialmente sensível aos “tópicos que servem de matriz sociopolítica à imagem mecânica e eletronicamente reproduzida”9 e que incluem “a história das relações homem/máquina, a transformação do trabalho, as máquinas de visão e a evolução ou utilização midiática”.10 (TOMAS, 2013, p. 231, tradução nossa) Diferentemente de Godard, para quem a questão da técnica geralmente é abordada, discursiva e formalmente, em relação aos entes e usos humanos, os filmes de Farocki estão às voltas com visualidades produzidas, também, por modos de inteligência não humanos, próprios de seres inorgânicos organizados (STIEGLER, 1998, p. 17), os chamados objetos técnicos. Esse aspecto se encontra, por exemplo, na utilização crítica das imagens operacionais, “que fazem parte de um bloco técnico e não seguem nenhum interesse estético primário: [...] câmeras de vigilância, reproduções informáticas visuais de scanners da íris ou programas de rastreamento” (PANTENBURG, 2010, p. 181), ou das imagens de síntese, como os jogos de computador e as modelagens gráficas por satélite. Ao convocar diferentes tipos de imagem técnica na escritura fílmica, Farocki fabrica “um meta- 9 “Topics that serve as the sociopolitical matrix for the mechanically and electronically reproduced image.” 10 “The history of human/machine relations, transforming labor practices, the history of machine ivision, and the media’s evolution and social uses.” TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA223 cinema: ele ultrapassa o cinema que nos é familiar, refletindo sobre o cinema que nos é desconhecido”.11 (ELSAESSER, 2008, p. 40, tradução nossa) Parece evidente que a temporalidade da máquina autônoma é bastante diversa da sua operação humana: a princípio, uma câmera de elevador ou de supermercado não manipula o tempo, não convoca a operação central da grande maioria dos discursos audiovisuais, por meio de cortes, elipses, fusões. Com efeito, memorizar é também esquecer, pois nada pode ser retido ou recordado sem algum tipo de seleção. No registro infinito, o tempo cessa de existir, pois os instantes não produzem diferenças entre si. Resta indagar, portanto, o que resta do tempo quando a montagem recupera esse fluxo – ao mesmo tempo infinito e vazio, sem história, sem cortes, sem narrativa – no interior de um novo processo de fabricação discursiva e temporal. Então, qual experiência o cinema poderia refundar, sem aderir ao programa hegemônico da cultura tecnológica e nem se limitar à mera manifestação de seus sintomas? Autores de obras guiadas pelo engajamento com diferentes processos e contextos antropotécnicos, Godard e Farocki meditam sobre as relações do cinema com os demais sistemas tecnológicos e midiáticos, ao mesmo tempo em que problematizam a fabricação fílmica enquanto atividade técnica inserida na produção industrial de fluxos espaço-temporais em escala global.12 Para os efeitos deste artigo, esboçamos a seguir uma pequena tipologia que distingue a maneira como os dois cineastas, a partir principalmente da montagem, lidam com a problemática da temporalidade na produção da imagem técnica. REFLEXOS, CONTRABANDOS E MUTAÇÕES Propomos reunir os filmes dos dois autores em três grupos, denominados reflexos, contrabandos e mutações. É preciso esclarecer que esses grupos possuem natureza heurística, e servem, a princípio, como base de 11 “Il dépasse le cinéma qui nous est familier, en réléchissant au cinéma qui nous est inconnu”. 12 A partir dos anos 2000, há uma intensa migração de cineastas para o mundo das galerias. Além de Farocki e Godard, pode-se citar os exemplos de Agnès Varda, Chris Marker, Abbas Kiarostami, Chantal Akerman, Victor Erice, Jürgen Reble, Raúl Ruiz, Peter Greenaway, Alexander Sokurov, Hans-Jurgen Syberberg, Raymond Depardon e Jonas Mekas. 224CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES trabalho para se compreender algumas das estratégias formais utilizadas por Godard e Farocki na elaboração de dinâmicas fílmicas singulares que organizam a circulação da técnica nos diferentes níveis de construção e reflexão estética das obras. O elencamento dos filmes, por sua vez, não pretende esgotar as extensas filmografias dos dois cineastas. Outras obras poderiam ser convocadas, tarefa que não cabe, contudo, ao espaço deste texto. Nesse sentido, os critérios de escolha são notadamente relacionais, e visam estabelecer um conjunto de filmes com procedimentos diversos, capazes de lançar luzes uns sobre os outros em um movimento de aproximação preliminar, que demanda maior aprofundamento em estudos subsequentes. O primeiro grupo se caracteriza por discursos crítico-reflexivos mais explícitos em relação às formas de mediação da imagem no mundo contemporâneo, passando pela guerra, pela televisão, pela fábrica, pelo cinema etc. Embora grande parte dos filmes de Godard (pelo menos a partir da guinada em sua carreira catalisada pelos eventos de maio de 1968) e de Farocki contenham procedimentos ensaísticos, como a utilização de imagens de arquivo, comentários em off e associações livres na montagem, a questão aqui se liga, principalmente, à utilização do cinema “como meio de expressão do pensamento” (Astruc), capaz de se voltar para as condições de criação, circulação e recepção da imagem técnica. Nesse gesto, muitas vezes constituído por abordagens arqueológicas ou meta-subjetivas (reflexo se torna reflexão, reflexividade), o tempo é trabalhado por meio da chave do distanciamento, a fim de colocar as imagens em perspectiva para a construção do pensamento. Interface (1995), de Harun Farocki, reflete sobre próprio mecanismo da montagem audiovisual. Nele, vemos o próprio cineasta sentado em sua ilha de edição (formada por dois monitores), onde executa operações e reflete sobre as imagens, enquanto a tela do filme, dividida em dois quadros distintos, reforça a importância da montagem. A indagação que move a obra, enunciada pelo diretor no começo do filme, é “o que significa perceber uma imagem em relação com outras imagens?”. A resposta estaria, talvez, no funcionamento do dispositivo fílmico, “que permite experimentar a simultaneidade das imagens que o cinema normalmente ordena em sucessão”. (BLÜMLINGER, 2004, p. 62) Assim, como outros filmes TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA225 de Farocki, Interface se contrapõe ao modelo da narrativa linear, uma vez que privilegia as relações temporais de atraso, antecipação ou repetição entre imagens e sons. Como afirma Christa Blüminger (2004, p. 62, grifo do autor): O título Schnittstelle reúne a bifurcação de techné e poética. O que está em questão são os processos fílmicos fundamentais de organização espaço-temporal do material imagético – a questão do intervalo, dos interstícios das imagens (e sons) – bem como a combinação da representação analógica e (paradigmaticamente) digital e, finalmente, as possibilidades e perigos da chegada da montagem à era da eletrônica e da informática. Essa construção temporal não linear, marcada pela valorização dos intervalos, está presente também em A origem do século XXI (2000), de Jean-Luc Godard. Aqui, o cineasta francês reúne imagens de diferentes períodos para condensar os perigos históricos que subjazem no novo milênio. Ao mesmo tempo, o curta retraça as origens da imagem digital, utilizada nos primeiros planos do filme, através dos horrores e desgraças do século XX (exércitos, refugiados, canhões, prisioneiros, trens da morte, corpos empilhados, conflitos territoriais, humilhações, torturas, campos de concentração, são alguns dos tópicos abordados). Há forte consciência formal das possibilidades de construção mnemônica envolvidas na produção das imagens técnicas, consciência esta que se reflete nas colagens de gestos e figuras, a fim de compor uma antiescrita da história oficial ou, na esteira de Walter Benjamin (1994, p. 225), de “escovar a história a contrapelo”. O grupo dos contrabandos, por sua vez, é marcado pela utilização de imagens extraídas de lugares velados ou privados do domínio visual, a fim de conferir atenção ao que restava apagado, escondido, não dito pela estrutura do poder. Nicole Brenez ([2012]) afirma que um dos princípios do cinema engajado é “praticar e difundir a contrainformação, face à desinformação oficial”. Um desejo semelhante move as obras deste grupo: desenterrar imagens encobertas pelas temporalidades hegemônicas, evidenciar “a relação dos personagens e do próprio espectador com a simulação, com a performance, com o espaço circundante e com a experiência do tempo real monitorado”. (BENTES, 2006, p. 100) Nesse movimento, 226CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES os diretores não se contentam simplesmente em operar distanciamentos temporais, mas compõem obras capazes de engendrar incrustações, anacronismos ou perfurações furtivas nas fronteiras do tempo. Número dois (1975) apresenta suas imagens em duas televisões que ocupam a tela simultaneamente ao longo do filme, configuração que remete, por um lado, às instalações de galerias, compostas muitas vezes pela colagem de painéis ou monitores televisivos; por outro, à linha de montagem cinematográfica, à operação de combinar diferentes imagens (e sons) para aproximar ou colidir pares simbólicos antes separados. Esse processo faz emergir significados múltiplos, inesperados, capazes de deslocar a visualidade privada e domiciliar para outros contextos. (DUARTE, 2015) Como afirma o próprio Farocki, em diálogo com Kaja Silverman, a simultaneidade dessa dupla cobertura sugere que “o microcosmos da família é tão importante quanto o macrocosmos da política mais convencional – tão significativo que deve ser filmado em todas as direções, como um grande acontecimento público”.13 (FAROCKI; SILVERMAN, 1998, p. 115, tradução nossa) Trata-se, portanto, de contrabandear as temporalidades da casa e fazê-las atravessar o maquinário imagético do mundo televisivo. Farocki, por sua vez, aborda a insidiosa presença das máquinas de imagens no cotidiano da vida social a partir da lógica da vigilância, como na dupla de filmes Imagens da prisão (2000) e Achei que estava vendo condenados (2000). Neles, o diretor associa registros produzidos por câmeras de vigilância em prisões de segurança máxima a trechos performáticos de algumas obras cinematográficas, como Um canto de amor (1950), de Jean Genet, e com uma narração em off que problematiza os sentidos das imagens mostradas. À maneira de Número dois, as imagens são arrancadas do seu fluxo convencional e inseridas em novas relações sensíveis, a fim de oferecer contrapontos críticos aos modos de organização temporal dos sistemas de controle.14 13 “The micro-world of the family is as important as the macro-world of more conventional politics— so signiicant that it must be ilmed from every direction, like a major public event.” 14 Como airma Didi-Huberman (2010, p. 46, grifo do autor), “uma crítica das imagens não pode dispensar o uso, a prática e a produção de imagens críticas. Não importa o quão terrível é a violência que instrumentaliza as imagens, estas não estão completamente ao lado do inimigo. Desse ponto de vista, Harun Farocki constrói outras imagens que, ao confrontar as imagens do inimigo, estão destinadas a fazer parte do bem comum”. TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA227 É o que acontece também em Jogos sérios (2009-2010), mais um filmecontrabando, no qual Farocki se debruça sobre os jogos de simulação utilizados pelo exército americano para treinar os soldados que embarcariam rumo ao conflito do Iraque. As mesmas imagens são utilizadas para tratar dos traumas desencadeados pela guerra, quando os soldados retornam para casa. A obra justapõe, lado a lado, registros dos combatentes em treinamento e encenações das simulações, a fim de mostrar “dois usos da imagem, do preparo para a guerra ao tratamento do trauma. Esse exercício com a imagem digital dá a entender como se constrói a memória da guerra”. (FAROCKI apud MARTÍ, 2010) Novamente, elementos pouco conhecidos da visualidade hegemônica, no caso da instituição estatal-militar, são atravessados para o público. A questão do tempo chega com fôlego renovado: esses softwares modelariam um mundo de representação sintética que, ao apresentar normatizações, cortes e esquemas ideológicos, imporia uma temporalidade artificial ao mundo concreto dos territórios bélicos. Por fim, o grupo das mutações se caracteriza pela abertura do discurso cinematográfico a técnicas e fluxos imagéticos radicalmente modernos. Como nas imprevistas mutações genéticas, cabe perguntar quais novas formas, figuras e sentidos fílmicos são engendrados pela convocação de elementos pouco explorados no cinema, ou explorados de maneira demasiado normativa, tal como sublinha Fatorelli (2006, p. 36) ao afirmar que as sociedades informacionais estão “gestando uma cultura marcada pela propagação generalizada de dimensões virtuais, que invocam novos modos de experienciar o tempo e o espaço”, originados dos processos de difusão da imagem em tempo real e da criação de espaços virtuais simulados. A contínua imbricação temporal pode se desdobrar em uma experiência da ordem da desorientação, que o artista pode trabalhar por meio do paroxismo ou da recondução analítica. A primeira forma pode ser vista em Adeus à linguagem (2014), no qual Godard convoca a tecnologia estereoscópica na contramão da plenitude espaço-temporal oferecida pelos blockbusters tridimensionais. A montagem vertiginosa, os comentários filosóficos em off, as distorções cenográficas e as justaposições imagéticas são articulados para radicalizar a desorientação sensorial e despedaçar o continuum da visão. Esse gesto estético, intrinsicamente político, “desopera” 228CÉSAR GUIMARÃES E LUÍS FELIPE DUARTE FLORES (NANCY, 1999), por meio de uma singular economia criativa, a imagem de um mundo (e de um tempo) projetado por uma tecnofilia aceleracionista, esta que atravessaria o cinema enquanto máquina arquetípica de visão. A segunda forma, da recondução, informa a obra Paralelo (2014), de Farocki, composta por trechos de computação gráfica oriundos, sobretudo, dos games digitais e dos simuladores. Diferentemente de Adeus à linguagem, a imbricação temporal é aqui decomposta e analisada, com o intuito de recuperar o que foi obliterado pelo ritmo da progressão tecnológica. A montagem organiza as imagens em sequências analíticas comparativas, atravessadas por comentários em off, a fim de refletir sobre as formas de fabricação do tempo e do espaço nos mundos digitais, bem como conectá-las ao mundo real. Se as novas mídias foram cercadas, usualmente, pela obsessão do futuro e da novidade próprias de uma teleologia do progresso, Paralelo oferece um retrospecto histórico e uma pausa para a reflexão, ao investigar as especificidades das imagens de videogame e situá-las em uma tradição mais ampla da visualidade ocidental. Esse duplo intervalo ou interstício – passado, suspensão – seria capaz de produzir maneiras de ver e pensar as imagens na contramão da adesão ou da identificação irrestritas, estas normalmente convocadas pelos jogos cibernéticos. Uma terceira via seria utilizada por Farocki em Deep play (2007), obra formada pela “justaposição de doze telas reproduzindo os diversos esquemas [...] da final França/Itália da Copa do Mundo [...] de 2006, onde o menor movimento sobre o terreno, como ao redor dele, é verdadeiramente vigiado, analisado, quantificado e esquadrinhado”. (BRENEZ, 2014, p. 218) Trata-se de reunir diferentes imagens da técnica relacionadas a um mesmo acontecimento e deixar que os sentidos apareçam das relações comparativas entre elas. Valendo-se desde vídeos gravados pelo cineasta até câmeras de segurança do estádio, passando pela transmissão oficial da Federação Internacional de Futebol (Fifa), pelos grafos estatísticos e pelas animações computadorizadas, o filme “cria um contraponto analítico” (PANTENBURG, 2010, p. 181) aos modos de organização visual e tecnológica da dramaturgia futebolística. Esse emaranhado de imagens e dados desarticula a experiência temporal totalizadora dos grandes espetáculos, TEMPO E TÉCNICA NO CINEMA229 ao colocar questões sobre os regimes de visualidade, seus esquematismos e seu poder esmagador sobre a representação ou a subjetividade. Os filmes que mencionamos operam, de algum modo, sobre “a interface entre a nossa antiquada historiografia e uma nova, de natureza técnica” (FAROCKI, 2010), e problematizam as formas de construção do olhar e da memória na era da tecnologia digital. Eles nos permitem indagar quais são as formas de mediação, de experiência e de conhecimento oferecidos pela imagem técnica, a fim de articular contrapontos – econômicos, políticos, estéticos – aos excessos da evolução e da difusão dos objetos tecnológicos midiáticos no mundo humano. Ao confrontarem e desconstruírem a temporalidade hegemônica fabricada pela indústria midiática, Godard e Farocki inventam outros fluxos temporais para as operações de nossa memória subjetiva e histórica. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. ALBERA, F. Modernidade e vanguarda do cinema. Rio de Janeiro: Azougue, 2012. AUMONT, J.; MARIE, M. L’analyse des films. Paris: Nathan, 2002. AUMONT, J. Amnésies: fictions du cinéma d’après Jean-Luc Godard. Paris: P.O.L., 1999. BENTES, I. Mídia-arte ou as estéticas da comunicação e seus modelos teóricos. In: FATORELLI, A.; BRUNO, F. (Org.). Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. 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Relato que atravessa o fio do tempo e, em seus processos de transmissão e movência, espraia e revela simbolizações complexas como já elucidaram autores de linhagens teóricas diversas, tais quais Morin (1973) ao ponderar que a hominização se faz na interseção do sapiens-demens; Cassirer (1985) e sua concepção de que o mito é forma simbólica não no sentido de designar um real existente, mas como gerador de mundos significativos; ou ainda Le Goff (1998, p. 7) que indica, no seio da historiografia, o entendimento de que “as sociedades imaginárias são tão reais quanto as outras”. Do mesmo modo, a compreensão das estruturas míticas mostra-se fundamental para o estudo dos processos comu1 Este trabalho integra a pesquisa Comunicação, consumo e memória: da cena cosplay a outras teatralidades juvenis (chamada ciências humanas, sociais, sociais aplicadas MCTI/CNPq/MEC/ CAPES n. 22/2014 - Processo 472038/2014-1) em cujo escopo inclui-se o estudo da memória do ponto de vista semiótico e também das temporalidades, especialmente as do jogo Tormenta RPG. 233 nicacionais, como já demonstramos (NUNES, 1993, 2001) assim como os trabalhos de Baitello Junior (1997, 2010) vêm assinalando as confluências entre narrativas míticas e midiáticas. Buscando entender as figurações da memória e do tempo, suas imbricações, pelo viés dos mitos, especialmente graças aos trabalhos de Vernant (1990), Stiegler (1994, 1996) e, a seguir, por meio do conceito moderno de história (KOSELLECK, 2006), procuramos demonstrar como tais representações estão codificadas em narrativas midiáticas, como os cenários dos jogos de Role-Playing Game (RPG), que em sua dimensão lúdica e ficcional, trazem as lógicas temporais da contemporaneidade, que não abandonam de todo os aspectos míticos da memória, ao tensionarem avanço, retardo e urgências em meio à temporalização do social, como um dos efeitos da expansão tecnológica que permite a produção e o consumo gerados pela indústria do entretenimento da qual estes jogos participam. Este artigo toma como objeto empírico o cenário de Tormenta RPG, produção brasileira que cresce no mercado de jogos, e estuda a linha temporal de sua narrativa procurando reconhecer os códigos do tempo e da memória lá presentes. O trabalho fundamenta-se na semiótica da cultura e da mídia e em autores das ciências sociais e humanas. A primeira parte do texto apresenta a divinização da memória e do tempo como códigos entre os gregos arcaicos, a seguir, por meio da narrativa mítica de Prometeu e Epimeteu, aponta no avanço e no retardo a codificação necessária para a instrumentalização do tempo e a industrialização da memória, na sequência, traz os códigos historiográficos que balizam as representações do tempo e finalmente a análise do cenário Tormenta RPG. A DIVINIZAÇÃO COMO CÓDIGO PARA A MEMÓRIA E O TEMPO Somos feitos de memória e tempo, e as culturas, compreendidas em sua dimensão semiótica como semiosfera (LOTMAN, 1996), tratam de codificá-los. A Grécia Arcaica, entre os séculos XII a.C e VIII a.C, antes da difusão da escrita, atribui sacralidade à memória. No panteão, Mnemosyne ou Memória é a deusa que representa uma função psicológica, um atributo humano. Irmã de Chronos, o deus do Tempo, e mãe das Musas, ela preside aos poetas-cantores, os aedos, doando-lhes sophia, sabedoria e onisciência 234MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI sobre “as partes do tempo incessíveis às criaturas mortais”, conforme Vernant (1990, p. 109). O poeta, mestre da verdade, possuído pelas Musas, torna-se intérprete de Mnemosyne, assim como os profetas. Mas, diferentemente dos adivinhos, voltados para o futuro, o poeta dirige-se ao passado, mas não ao passado individual ou geral, mas ao tempo primordial dos grandes feitos que merecem ser consagrados, pois têm o poder de organizar a sociedade à que pertencem no tempo presente, revelando-lhe a idade heroica, o tempo das origens. A força divina da Memória e o estatuto mágico-religioso da palavra, como afirma Detienne (1988), conferem ao poeta o poder de transmitir a experiência de transitar entre o passado e o presente. Porém, ao poeta cabe a preparação. Fórmulas de evocação da Memória se dão em grupos de palavras já fixadas, de versificações estabelecidas e, de igual maneira, técnicas de dicção formular, catálogos e listas de nomes próprios criam um jogo mnemônico que permite ao poeta ascender a outras eras. Entre os gregos arcaicos, a rememoração como ato voluntário de evocar o passado não tem função de situar os acontecimentos em um eixo temporal. Aquelas sociedades concebiam a memória fora do tempo. O objetivo da rememoração é “atingir o fundo do ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual saiu o cosmos e permite compreender o devir em seu conjunto”. (VERNANT, 1990, p. 112) A gênese do mundo traz o que antecede e o que sucede, mas não de modo a obedecer uma duração homogênea, em um tempo único. Não há cronologias, mas, sim, genealogias, e o tempo está incluído nas relações de filiação. Cada raça tem seu próprio tempo, sua idade e essas raças formam o tempo antigo evocado. Mas, a Memória nem anula o tempo nem o reconstitui, uma vez que o retorno ao tempo não faz omitir as realidades atuais, considerando que apenas com o distanciamento do presente é possível descobrir outros níveis cósmicos, normalmente inacessíveis. A Memória une o mundo dos vivos ao do além, e o passado aparece como uma de suas dimensões. A divinização da Memória ganha novos contornos com a mudança operada pela transposição de Mnemosyne do plano dos mitos cosmogônicos, as narrações da gênese do cosmos e das genealogias, ao plano AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES235 escatológico, mitos de fim. Agora Memória diz respeito às encarnações sucessivas dos indivíduos e seu objetivo é colocar um termo no ciclo das gerações. O esforço da memória para recordar vidas anteriores passa a significar purificação e ascese, pois a existência terrena se torna lugar de sofrimento. Nesta mirada, a Memória, se porventura é exaltada, é por promover a saída do tempo e o retorno ao divino. Nas teorias da reencarnação que dominam o mundo grego, Chronos é divinizado e entendido como a própria origem do cosmos. Vernant (1990, p. 123) adverte que Chronos sacralizado “é o tempo que não envelhece, o tempo imortal e imperecível [...]”, pois a divindade de Chronos se opõem ao tempo humano, cujo predicado é sua instabilidade e força destruidora regendo o esquecimento e a morte. Toda a mitologia em torno de Mnemosyne e Chronos fala à crise de representação do tempo que se evidencia na Grécia por volta do século VII, com o nascimento da poesia lírica e a criação de uma nova imagem do homem graças aos valores ligados à afetividade e à submissão às circunstâncias da vida que a poesia lírica expressa ao trazer o sujeito para o centro da linguagem. A divinização da Memória e do Tempo não promoveram uma engenharia do tempo. Mesmo em Platão, em que a memória não mais está sob o domínio do mito, ainda quer subtrair-se à experiência temporal histórica. O relembrar tem função de conhecer as verdades que compõem o real e a memória se insere em uma teoria do conhecimento. Em Aristóteles, os aspectos míticos da memória já não encontram guarida; ela será conservação do passado e a reminiscência, sua evocação voluntária. Há um lapso de tempo entre estes atos. A memória aparece então incluída no tempo, é função do tempo e marca de nossa imperfeição. Os poetas-cantores já faziam uso do aprendizado oral para as fórmulas verbais de evocação a deusa Mnemosyne, ou seja, valiam-se de uma tecnicidade ou de um programa para a memória, como quer Leroi-Gourhan (1987, p. 58) ao dizer que “o homem recebe da sociedade uma série de programas sobre os quais tece suas variações” e conceber as transmissões orais como um deles. Com a laicização da memória, o decorrer da história cultural e a propagação de seus programas, dos utensílios aos suportes 236MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI digitais exteriorizando sinapses e lembranças, os nós tramados entre a técnica, o tempo e a memória apenas se complexificam. A CODIFICAÇÃO DO TEMPO INSTRUMENTALIZADO E DA MEMÓRIA INDUSTRIALIZADA Atentamos ainda à narrativa mítica que confirma o pensamento de Gourhan considerando a memória exteriorizada como tecnicidade e suplemento, desde o mais tenro desenvolvimento da linguagem, apontando a indissociável ligação homem- técnica. Por sua vez, Stiegler (1994, 1996) retoma este pressuposto ao referir-se ao mito de Prometeu e Epimeteu, irmãos gêmeos, para abordar as relações epistêmicas envolvendo técnica e tempo, e, por consequência, as implicações com a memória. Na versão apresentada em Platão, da qual o autor também se vale, narra-se o tempo em que os deuses já existiam, mas as raças mortais não. Para que os homens saíssem de dentro da terra, era necessário distribuir entre eles qualidades. Epimeteu pediu a Prometeu para realizar tal tarefa. Mas, Epimeteu, cuja prudência era imperfeita, já havia distribuído todas as qualidades a favor dos animais, e os homens ainda não haviam recebido. Chegado o dia dos homens virem à luz, Prometeu aparece. Frente ao embaraço dos homens nus e sem qualidades, decide por roubar o as habilidades de Hefesto e Atena e, as artes do fogo, doando-as aos homens. “É assim que os homens se encontram em possessão de todas as fontes necessárias à vida, e que Prometeu, em consequência, foi acusado de roubo” (narrado em Platão, Protágoras, 320 c. -322). Stiegler atribui a Epimeteu a falta primordial: o esquecimento, por seu turno responsável pela artimanha prometeica: o roubo e a fraude. No lugar dos recursos cedidos aos animais, resta aos homens as artes do fogo roubadas a Zeus: luz e potência técnica. Suplemento de defeitos: a falha da memória de Epimeteu; a falta das qualidades humanas. A técnica, entretanto, é prêmio dos homens, pois lhes permite a vida, mas igualmente, a condenação de Prometeu doravante acorrentado nas rochas do Cáucaso onde, à noite, visitam-no abutres dilacerando seu fígado. Tecnologia é tanatalogia (STIEGLER, 1994), afinal, o castigo de Zeus não se limita ao AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES237 filho de Jápeto, pois os homens, ainda que vindos à luz, serão eternamente obrigados ao trabalho2. O mito inaugura uma desorientação originária. A mesma presente hoje ao se conhecer o pensamento científico e compreender que a técnica, como tecnologia e tecnociência, especialmente a partir do início do século XIX, anuncia o progresso que, todavia, para a maioria da população mundial, não se cumpre. (STIEGLER, 1996) O que a narrativa mítica demonstra é que a relação indissociável entre a história das técnicas e a do homem não se faz senão mediante negociações, resultando em um equilíbrio meta-instável atravessado por uma tensão irredutível: o tempo. Vernant (1990) assinala que a prometeica e epimeteica em sua inseparabilidade e gemeidade são figuras de temporalização. Avanço e retardamento marcados na ação e nos nomes míticos. O princípio ordenador, temporal, expressa-se em Metheia, de Manthano: compreender, aprender, perceber ou notar. A etimologia de Manthano aproxima-se a Month-ya, uma das prováveis raízes de mousa, musa: fixar o espírito sobre uma ideia ou arte. As musas são filhas de Mnemosyne, por sua vez, derivada do verbo minneskein, fazer-se lembrar, fazer pensar. (BRANDÃO, 1991) Prometeu é o que compreende antes, o previdente, deve ter o domínio da memória, da inteligência e da previdência. Por seu turno, Epimeteu é o que compreende acidentalmente, epi, em atraso. Stiegler (1996) assinala que a ambiguidade destas figurações temporais constitui a reflexão (saber antes, saber depois) no tempo, na mortalidade que é a antecipação. Desde o mito, a técnica traz de chofre o avanço e o retardamento e abre uma extensão propriamente temporal. Nas sociedades históricas, a desorientação atual, fruto da velocidade promovida pelo desenvolvimento tecnológico, gera um retardo entre as organizações sociais e os sistemas técnicos. A técnica evolui mais rápido que as culturas. Há um avanço e um retardo, uma tensão que caracteriza a temporalização. O autor ainda aponta que as mídias, o tempo real, o direto, e, acrescentaríamos, o on-line têm papel preponderante neste cenário 2 Na versão do mito em Hesíodo (1995), o mito de Prometeu inda a Idade do Ouro, era da fartura e da fecundidade entre os mortais. 238MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI que resulta não só na instrumentalização do tempo, tornado capital, como na industrialização da memória. Respondendo às necessidades dos processos de inovação permanentes, e à tensão entre o novo e a obsolescência produzida pela própria novidade, o imperativo econômico informacional, especialmente potencializado pela comunicação midiática, constitui a memória como fundo de comércio. Para Stiegler (1996), tanto as condições de memorização, os critérios de seleção, de esquecimento, de retenção, concentram-se em uma aparelhagem técnico-industrial cuja finalidade é a mais-valia. Sendo assim, o imperativo que regula a atividade da memória é o ganho de tempo, pois o capital, o relógio metaforizado pelo fígado de Prometeu regenerado periodicamente, é o crédito acordado sobre o futuro, sobre a antecipação. No limite, a antecipação que faz da velocidade seu apanágio gera um estado de urgência generalizado. Como ser de tempo, a urgência mostra-se quando o futuro se introduz com violência no presente e como possibilidade indeterminada mais iminente de um acontecimento imprevisto, favorecendo uma paisagem bastante instável para o futuro. PASSADOS DISTANTES, FUTUROS POSSÍVEIS: OS CÓDIGOS HISTORIOGRÁFICOS Em face ao domínio da técnica como dispositivo de produção e gestão da velocidade, já mostra o mito de Prometeu e Epimeteu, movimentos de retardo podem surgir nas sociedades vigorosamente, o que levou Huyssen (2000) a denominar por cultura da memória a produção cultural voltada a uma espécie de musealização a partir dos anos 1980. O autor entende este movimento como reação à instabilidade gerada pelo rompimento do presente. As recriações da estabilidade, projetada pelo passado, trazem a existência de temporalidades que não se inscrevem na lógica do presente inseguro, instantâneo, veloz e dissociado da continuidade do tempo. Porém, o autor destaca que esses fenômenos de memória não devem ser encarados como resgates fiéis do passado, mas como representações mediadas. As representações de passado que compõem a cultura da memória são afetadas pelas lógicas de produção características da contemporaneidade. Logo, envolvem negociações de sentido, mediações entre permanências, AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES239 ausências e transformações, categorias que propomos para pensar adiante os cenários de Tormenta RPG e as codificações do tempo e da memória. Reinhart Koselleck (2006) tece considerações importantes acerca dos quadros apresentados por Huyssen e também, podemos ler, no que tange às considerações de Stiegler sobre o avanço e o retardo proporcionado pelo desenvolvimento das tecnologias. O historiador alemão propõe que a história, antes do advento da modernidade, era concebida como a acumulação de relatos passados sem relação entre si. Tais relatos guardavam a sabedoria do passado e serviam para guiar a conduta do presente, evitando fracassos e repetindo sucessos. A história era plural em sua fragmentação, contínua em relação ao presente e futuro. Não havia espaço para mudanças velozes, redirecionamentos ou invenção de novas soluções, já que as circunstâncias e bases para ação não variavam perceptivelmente. O autor compreende que esse conceito se origina no cristianismo, que pregava a visão de um futuro limitado por um fim apocalíptico. Por meio de tal narrativa, a Igreja garantia a sua longevidade, já que se colocava como uma instituição capaz de prover a estabilidade pré-apocalíptica. E, como esse fim não era determinado temporalmente, poderia ser adiado quantas vezes fosse necessário. Assim, a Igreja mantinha e estendia o seu poder integrador, constantemente protegendo os indivíduos da iminência do apocalipse, sempre futuro, mas nunca presente, suspenso no tempo. O passado e presente regiam, invariavelmente, o curso de acontecimentos. Já a Modernidade experimentou uma qualidade de tempo relativa a um novo conceito de história. A partir das rupturas políticas iniciadas na Revolução Francesa, mas já antecipadas pelo Renascimento e acelerado pelo desenvolvimento tecnológico, a história passou de um conjunto de acontecimentos não relacionados entre si e indissociáveis da ação presente, para uma história universal, coesa e descolada do presente. Esse conceito moderno de história passou a considerar os acontecimentos do passado como partes integrantes de uma narrativa única, composta por relações causais. Assim, tornou-se referenciado no singular coletivo, ordenado narrativamente, por uma estrutura temporal linear e progressiva. Ainda, o conceito de história moderna distanciou-se das circunstâncias que possibilitaram os acontecimentos do passado, firmando-se como uma narrativa sustentada apenas pela sua causalidade interna. 240MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI Os acontecimentos do passado, articulados em uma narrativa singular, não puderam ser deduzidos apenas pelas forças dos contextos que os originaram. As fórmulas de sucessos e fracassos não puderam ser repetidas nas situações do presente e perderam seu caráter de ensinamento. O presente passou a mostrar novos desafios e a história tornou-se um conceito reflexivo, objeto distante a ser analisado, mas não repetido. O passado, apesar de não prover modelos de ação, transformou-se em uma narrativa universal e tornou possível a ideia de que a humanidade trilhava um caminho único, em direção ao futuro. Esse caminho, em razão da sua singularidade e descolamento com as circunstâncias, não poderia ser determinado. Porém, por essas mesmas razões, poderia ser orientado (ou reorientado) para futuros desejáveis. Estudando a trajetória do passado, em distância, a humanidade ganhou o poder de negá-lo, e exercer as forças que poderiam alçar um novo futuro, vinculado ao conceito de progresso. O futuro abriu-se para o desconhecido e, ainda que não garantissem o sucesso, as ações de presentes puderam operar como ferramentas de manobra a fim de orientar o progresso de forma ativa, consciente e ideológica. Em suma, passado, presente e futuro cindidos definitivamente: o passado completo em si mesmo, incapaz de oferecer as soluções para o presente, mas com a função de anteceder uma narrativa universal singular orientada para o futuro; o presente capaz de negar o passado e fundar as forças de um futuro desejado; o futuro em condição de ser reformulado e acelerado, mas, em razão das rupturas entre os presentes, cada vez mais instável. O CENÁRIO TORMENTA RPG E AS CODIFICAÇÃO DO PRESENTE, PASSADO E FUTURO Os jogos de RPG constituem-se textos culturais midiáticos nascidos nas sociedades do consumo talhadas pela antecipação prometeica, extensão temporal aberta graças à complexa interface homem-técnica, como discorremos, que dota como código para o tempo, a instrumentalização, e, para a memória, a industrialização. Tempo e memória vinculados às lógicas do capital marcado pela temporalização do social e pela criação do efeito AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES241 de urgência, apontado por Stiegler (1994, 1996). Entretanto, o cenário Tormenta RPG, analisado nesta seção, parece conduzir a momentos epimeteicos, de retardamento, uma vez que as representações do tempo trazem as codificações da contemporaneidade em meio à divinização como código da memória e do próprio tempo, considerando os aspectos míticos do cenário que rompem, em certa medida, com a progressão linear. Os participantes desse tipo de jogo, o RPG de mesa, reúnem-se em um espaço que permite a comunicação entre todos os jogadores. Apesar de tal espaço equivaler originalmente a um ambiente físico, ferramentas de comunicação à longa distância, como chamadas de vídeo e softwares especializados, também se estendem como possibilidades de encontro. Quando reunidos, os participantes criam personagens que serão interpretados no desenrolar de uma dada narrativa. Essa interpretação pode enfatizar a comunicação verbal, mas também abranger movimentos físicos, vestuário e objetos, como no caso dos RPGs Live Actions. A partida resulta em uma narrativa criada de forma presencial, colaborativa, com maior ou menor grau de improviso. Os jogos de RPGs contam com a figura do mestre, que, por sua vez, não cria personagens para si, mas é responsável por gerenciar a sequência de ações e as consequências que jogadores vivenciam e por cuidar de todos os elementos narrativos alheios ao controle desses personagensjogadores, como as ações de outros personagens da trama, os conflitos e o cenário. Essas diretrizes estimulam a imersão lúdica, não competitiva, valorizando o esforço coletivo a fim de superar desafios comuns. De forma complementar, mestre e jogadores podem dispor de objetos que facilitam o desenvolvimento do jogo, como fichas, registros planificados que resumem as características mais relevantes de cada participante com o objetivo de mantê-las acessíveis, comparáveis e recordáveis, e os dados, dispositivos opcionais que inserem aleatoriedade, tornando o jogo mais verossímil, imprevisível e justo. Os manuais e suplementos são livros que descrevem uma série de mecânicas que auxiliam o mestre na determinação das consequências das ações dos personagens-jogadores e na dinâmica geral do universo ficcional. Em 1974, Gary Gygax e Dave Arneson, inspirados por jogos de miniaturas que simulavam exércitos, criaram o primeiro jogo de interpretação de 242MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI papéis, o RPG de Dungeons & Dragons, que, posteriormente, tomaria como enfoque a interpretação de personagens individuais. (PETERSON, 2012) Assim, criou-se o substrato necessário para o surgimento de diversas modalidades de RPG que puderam se manifestar por diferentes meios e assumir variados temas. No decorrer do desenvolvimento da prática, o mercado editorial assistiu ao surgimento de publicações que, também por meio de manuais, aventuras e suplementos, constroem vastos cenários ficcionais para as partidas. Tais cenários são ofertados como ambientações predefinidas com história, geografia e mitologia próprias. Tormenta, publicada pela marca brasileira Jambô, é um cenário de RPG de fantasia medieval, inspirado na ambientação da Europa Ocidental no período da Idade Média, marcado por elementos fantásticos apropriados e consolidados pelas narrativas ficcionais posteriores a esse período. Porém, nota-se que ali coexistem elementos referentes a universos simbólicos de outros períodos históricos como armas do Império Romano, pistoleiros do velho oeste norte-americano e vikings da história escandinava, e universos simbólicos futuristas, tais como robôs. O material analisado aqui engloba o conteúdo textual inserido no subcapítulo “Uma história parcial”, do livro Tormenta RPG. (BRAUNER, 2010) O livro descreve as informações básicas do cenário, como, por exemplo, os deuses maiores, as raças existentes e os personagens icônicos. O fragmento selecionado apresenta os acontecimentos históricos do mundo de Arton, o universo ficcional de Tormenta RPG, em uma estrutura de linha do tempo. Dispomos de algumas categorias analíticas que permitem interpretar conceitualmente o material disponível. São elas: permanências, ausências e transformações e estão baseadas nos estudos da semiótica da cultura, especificamente na obra de Lotman e Uspenskii (1981) que destaca um paradigma que prevê os processos de memória como movimento intrínseco à manutenção e renovação do campo simbólico compartilhado da cultura. As permanências referem-se às estruturas temporais confluentes com o conceito moderno de história, como proposto por Koselleck (2006), isto é: o passado completo em si mesmo, o presente negando o passado e fundando um futuro desejado, e o futuro reformulado, acelerado e AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES243 instável. As ausências falam às omissões, aos elementos que não são apropriados a partir dessas mesmas estruturas. Por fim, as transformações dizem respeito aos novos sentidos dados à linha do tempo dentro do cenário ficcional, inclusos os elementos fantásticos que a interpelam. Por meio dessas categorias, investigamos como os códigos entendidos como fundantes às representações do tempo e da memória encontram-se representados no cenário de Tormenta, seja a divinização do tempo e da memória considerando os aspectos míticos envolvidos, seja a instrumentalização do tempo e a industrialização da memória tomando o desenvolvimento tecnológico responsivo às figurações da temporalidade expressas pelo mito de Prometeu. O subcapítulo em estudo organiza os eventos da história do mundo de Arton em tópicos que mostram, primeiramente, a marcação temporal e, em seguida, o evento referido. A linha do tempo inicia em “7 bilhões de anos atrás. O Nada e o Vazio se unem para gerar Arton e os vinte deuses maiores que formariam o Panteão” e termina em “1410. Época atual”. Com objetivo de comparar as estruturas temporais de determinação histórica, propomos a divisão desta linha do tempo em três segmentos denominados como passado, presente e futuro. Os acontecimentos de cada grupo têm características em comum exploradas a seguir. PASSADO Consideramos neste grupo os tópicos entre “7 bilhões de anos atrás” e “1399”. Tais marcações temporais têm a qualidade comum de serem referenciadas como eventos passados, considerando qualquer das publicações editoriais de Tormenta RPG, desde a primeira até a mais recente. Tormenta RPG gradualmente acrescentou novos acontecimentos em seu cenário, que foram sendo incorporados em novos anos, ampliando a extensão da linha temporal fictícia. Como os acontecimentos desse grupo estão indicados desde a primeira publicação, são considerados fixos, ou seja, servem como pano de fundo para qualquer representação de presente do jogo, já que, diferente desses últimos, não variam de acordo com o livro referido. 244MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI Alguns apontamentos merecem destaque. O primeiro reporta-se às características dos acontecimentos iniciados em “7 bilhões de anos atrás” até “90 mil anos atrás”. Todos esses acontecimentos antecedem às marcações temporais, iniciadas no ano 0 e que seguem até o ano 1399. Esses tópicos apresentam tais designações em uma estrutura particular: um número de bilhões ou milhões seguido pela expressão “de anos atrás”. Não há determinações temporais precisas e são mobilizados vastos períodos de tempo na grandeza dos milhões e bilhões de anos. Por fim, é importante perceber que todos os eventos assim referenciados são eventos cósmicos que indicam a criação do mundo como expressos em “O Nada e o Vazio se unem para gerar Arton e os vinte deuses maiores que formariam o Panteão,” retratam a criação de aspectos físicos do mundo, tal qual encontramos no fragmento “Arton recebe doze horas de luz e doze horas de escuridão” e a criação de seres vivos, como revela a descrição trazida no excerto “Uma lágrima de Lena, a Deusa da Vida, preenche os oceanos com as primeiras criaturas vivas”. Esses tópicos operam permanências em relação às estruturas temporais do conceito moderno de história, pois, ao afirmar a existência de um começo dos tempos marcado pela criação de múltiplos aspectos da realidade, emprestam caráter narrativo ao passado, ordenando os acontecimentos que vêm antes e que causam os que vêm depois, hibridizando a presença de genealogias, como nos mitos cosmogônicos narrados pelas Musas que relatam o que antecede e o que sucede, mas não considerando o tempo homogêneo, único, à de cronologias. Reconhecem-se traços das narrativas míticas relativas aos grandes feitos originados no tempo primordial, citados na primeira parte deste artigo, como a geração de Arton e dos 20 deuses formadores do Panteão, e, de igual maneira, os aspectos divinos da memória e do tempo (VERNANT, 1990), que, neste trabalho, tomamos como códigos. Adiante, notam-se características em comum no subconjunto de eventos entre “0” e “1399”. Tais determinações temporais são mais precisas que as anteriores, já que estão marcadas por um algarismo indicando a quantidade de anos decorridos a partir do “ano 0”. Nota-se, também, que a maioria dos acontecimentos inseridos nesse fragmento faz referência a fundações de centros de civilização, tais como “Fundação da cidade AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES245 de Lenórienn”, “Fundação de Tamu-ra, o Império de Jade”, “Fundação do vilarejo de Triunphus” e a guerras e conflitos, como expressos em “Em Lamnor, ocorre a Grande Batalha”; “Guerra civil em Deheon”; “Começa o conflito entre hobgoblins e elfos que ficaria conhecido como a Infinita Guerra”. Ainda notamos a presença de relações políticas entre povos e raças, como em “Os orcs escravizam os minotauros”; “Surgem as primeiras histórias a respeito de uma terra de fadas nos confins de Sambúrdia”, e igualmente personalidades notáveis como “Lorde Niebling, o gnomo, chega a Arton após aparecer no Deserto da Perdição”; “Nasce o futuro Rei-Imperador Thormy”; “Primeira aparição do caçador de recompensas Crânio Negro”. As permanências mobilizadas por esse grupo de eventos envolvem a apropriação da contagem de anos a partir de um marco temporal inicial, infundindo uma lógica de continuidade e progressão, abrindo uma extensão temporal, a mesma prevista pelo desenvolvimento tecnológico do qual o próprio cenário, como texto cultural midiático e de entretenimento, é fruto. As permanências emprestam sentido unidirecional para a história, impelindo o sequenciamento de acontecimentos para o futuro. Entretanto, a não causalidade interna entre os eventos caracteriza uma ausência em relação ao conceito moderno de história. Por fim, como transformação, percebe-se a prevalência em apresentar marcos políticos, relativos à história dos povos e civilizações. A história do mundo de Arton, diferente do conceito de história moderno, não tem seu “marco 0” pautado nos eventos de uma narrativa religiosa. De forma oposta, o “marco 0” define o fim dos acontecimentos míticos e o início da história das civilizações que, mesmo fantásticas, não têm seus traços mágicos ressaltados. Em suma, na porção da linha do tempo que agrupamos como passado, notamos uma aparente hibridização entre acontecimentos de qualidade pré-histórica, fantásticos, mitológicos e de imprecisa determinação temporal, revelando os códigos míticos para o tempo e a memória, e acontecimentos de qualidade civilizatória, com enfoque em eventos mundanos. Tais eventos se inserem em uma estrutura que evidencia determinações temporais precisas e alinhadas em uma continuidade cronológica, por isso, afastando-se de uma representação de memória como aquelas dos 246MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI mitos de origem e, portanto, aproximando-se de uma qualidade de passado institucionalizado em um fluxo temporal instrumentalizado. PRESENTE Esse grupo contempla os tópicos iniciados em “1400” e encerrados em “1407”. A existência destas marcações históricas do mundo de Arton varia de acordo com a publicação usada como referência. Ao longo do tempo, o cenário estendeu sua linha de tempo com novos anos e acontecimentos inéditos, ou seja, atualizou-se pela inserção de outras narrativas, já futuras em relação ao ano presente do primeiro livro de Tormenta RPG. Nesse fragmento, estão inclusos apenas eventos que foram introduzidos por essa variedade de publicações: as aventuras, os manuais e suplementos e as histórias. As aventuras são livros que oferecem o roteiro de uma narrativa semiestruturada, com seus objetivos e desafios, a ser jogada e vivenciada nas partidas de RPG. Os manuais e suplementos apresentam poucos traços narrativos, pois são livros que têm como objetivo discorrer sobre aspectos do mundo de Arton, tanto gerais, como os manuais, como específicos a certas áreas ou assuntos, tais quais os suplementos. Por fim, as histórias consistem em romances e histórias em quadrinhos que respeitam uma estrutura textual linear. O primeiro traço evidenciado nesse fragmento textual é o menor número de tópicos e menor abrangência temporal em relação ao grupo antecedente. Percebe-se que contêm a descrição de apenas sete anos diferentes (1400, 1401, 1402, 1403, 1405, 1406, 1407), e abrangem o período total de apenas oito anos (de 1400 a 1407), em contraste com os tópicos anteriores, que descrevem 70 anos com abrangência de um período de 1400 anos. Nota-se que o volume de texto para cada ano é maior, apresentando uma média de mais acontecimentos e descrições por tópico. Tormenta RPG é um cenário que se descreve repetidamente como “um mundo de problemas”. A exemplo disso, na página 14 do livro, o subcapítulo intitulado “Um mundo de problemas” apresenta os maiores conflitos que assolam Arton. Esses conflitos são colocados como possíveis pretextos para aventuras. O cenário mantém seus problemas para que os jogadores, ao desenvolverem suas partidas, orientem seus esforços visando AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES247 suas resoluções por meio de variados desafios lúdicos, como combates, espionagens e ações diplomáticas. Os problemas maiores do cenário são a Tormenta, tempestade de sangue e demônios, que dá nome ao cenário, e a Aliança Negra, vasto exército de monstros que ameaça destruir o centro da civilização. Eles são colocados como conflitos de grande proporção e complexidade e não são apontados meios claros para a sua resolução. Existem os problemas de proporção menor, como a ameaça de Mestre Arsenal, um vilão devoto do Deus da Guerra, e o aprisionamento de Valkaria, a Deusa dos Humanos. No que se refere aos dois últimos, existem publicações de aventuras semiestruturadas, como “Contra Arsenal” e “A Libertação de Valkaria” que descrevem narrativas encadeadas por uma série de desafios lúdicos. A recompensa de cumprir uma dessas aventuras e vencer os desafios propostos, em partidas de RPG, é a resolução do problema em questão, como a derrota de Mestre Arsenal e a liberdade de Valkaria. A maioria dos acontecimentos apresentados nesse grupo refere-se aos problemas do cenário, tanto em caráter de suas resoluções, como demonstrado em “Valkaria é liberta de seu cativeiro por heróis durante uma aventura épica. Estes aventureiros passariam a ser conhecidos como Os Libertadores”; “Mestre Arsenal ataca o Reinado com o Kishin, mas é derrotado por forças conjuntas de aventureiros”, como de atualizações sobre os conflitos maiores: “Formação da área de Tormenta de Zakharov”; “Thwor Ironfist toma Khalifor”. Relacionamos a opção editorial/narrativa de priorizar “um mundo de problemas” postos pelo cenário à urgência generalizada, como efeito da velocidade fruto do desenvolvimento tecnocientífico e midiático discorridos por Stiegler (1994, 1996), que nos faz pensar na instrumentalização do tempo como código para interpretá-lo, uma vez que experimentar a urgência coloca-nos em face da mais valia do tempo e da própria memória regulada pelo princípio econômico do ganho de tempo. Os problemas do cenário são apresentados acumulados em um breve período de anos, possibilitando e estimulando suas resoluções em um curto prazo se considerada a extensão total da linha do tempo de Tormenta RPG. Assim, a urgência de resolver os problemas está implícita na construção da linha do tempo pelo cenário. 248MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI Esse fragmento da linha temporal rompe com os tópicos reunidos no primeiro grupo, pois permite o movimento inédito de resolução dos problemas que se estendiam desde o passado fixo e comum a todas as publicações. Logo, como permanência em relação ao conceito moderno de história, há a reorientação do curso temporal de acontecimentos iniciados no passado, que, por sua vez, pode ter seus conflitos resolvidos em poucos anos. Tal reorientação convoca a atuação de quem joga, com o objetivo de transformar o mundo fictício em um mundo melhor, livre de problemas. Contudo, como transformação, nota-se uma incongruência com o conceito moderno de história, já que a reorientação do passado pelas ações do presente viabiliza-se por meio de aventuras, desafios lúdicos, e não por meio de revoluções, ideologicamente coletivas, como proposto por Koselleck (2006). FUTURO Neste grupo, encontra-se apenas o último tópico: “1410. Época atual”. Ainda que pareça contraditória essa classificação, optamos por agrupar este tópico como “futuro”, pois ele apresenta uma natureza de abertura para os eventos indefinidos, que ainda não aconteceram, mas poderão acontecer. A partir dessa data, cabe aos jogadores, na criação de suas partidas, definir o que se seguirá no cenário. É importante notar, como permanência, que o futuro dessa linha do tempo é lançado ao desconhecido, assim como o futuro referente ao conceito moderno de história. As ausências, porém, revelam que a linha do tempo de Tormenta RPG não mobiliza o conceito de progresso. Por fim, percebemos que, apesar de o esforço esperado dos jogadores voltar-se à resolução dos problemas atuais do cenário, fundando assim as circunstâncias de um mundo melhor, esse movimento não é estimulado pela idealização de um mundo utópico desejado e planificado. De forma diferente, o futuro é construído por ações fragmentadas, completas nas resoluções de cada problema, encerradas nas próprias aventuras. AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES249 CONSIDERAÇÕES FINAIS O tempo, como instrumento de ordenação social que é, opera e sintetiza as lógicas pelas quais os indivíduos relativizam suas ações e posições entre si e no mundo. Ao definir-se como abstração articulada no domínio simbólico da cultura, inscreve-se como códigos que produzem sentidos. Quando a divinização da memória e do tempo deixam de ser códigos para a civilização grega compreendê-los e lhes atribuir significados, a memória passa a ser concebida como modo de perceber o tempo, o que expressou Aristóteles (1955) em Da Memoria et da Reminiscentia. Curiosamente, a moderna neurociência reforça o que o filósofo antecipara. A memória ordena o tempo das mudanças sucessivas: “de fato, a memória não seria de nenhuma utilidade se ela não pudesse [...] dar conta do encadeamento de acontecimentos no tempo, tanto no que concerne aos acontecimentos sensoriais como as sequências de comportamento motores”. (EDELMAN, 1992, p. 161) A memória garantiu que as representações fossem inscritas na continuidade do tempo e, como defende Elias (1998), que o próprio tempo fosse concebido em sua continuidade. A necessidade de preservar as instituições implicou a codificação do tempo como fluxo unidirecional e da memória como instrumento de conservação do conhecimento, religião e poder no encadeamento de sucessivas gerações. Contudo, a contemporaneidade inaugurou outras relações entre o tempo e os processos de presentificação do passado e futuro operadas pelas representações de memória, que como vimos em Bernard Stiegler (1994, 1996), mostra-se como desorientação original fruto da indissociável relação entre o homem e a técnica. Observa-se, em meio ao fluxo veloz das produções midiáticas, narrativas que podem representar o tempo de forma a revelar essa contrariedade, hibridizando códigos temporais e memoriais distintos, como Tormenta RPG demonstra. Aqui, genealogias e cosmogonias, voltadas aos tempos divinos de Mnemosyne, convivem com as urgências em forma de proposição de problemas apresentados pelo cenário – urgências típicas da tessitura midiática urdida à velocidade como código. 250MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI Entretanto, os jogos de RPG promovem a delimitação de um círculo mágico (HUIZINGA, 1980) que, ao ressignificar o contexto externo ordinário, permitem uma temporalidade interna própria, alternativa e imersiva que, de certa maneira, rompe com as urgências exteriores, fluidas e aceleradas. A linha do tempo, em Tormenta, apresenta uma estrutura temporal que destaca três naturezas de acontecimentos: fixos, imutáveis em referência a todas as publicações de Tormenta RPG; variáveis, atualizados de acordo com o avanço da cronologia do cenário e seus problemas; a acontecer, indefinidos e dependentes da atuação dos jogadores. Assim, o jogo constrói um passado em forma de narrativa universal, unindo eventos de natureza diversa, de cósmicos a políticos, que caminha em progressão e impele os acontecimentos para o futuro. Ademais, cria uma dimensão presente em que esse passado pode ser reorientado pelas ações dos jogadores. Essa reorientação é rápida e rompe com múltiplos problemas do cenário em poucos anos. Por fim, Tormenta RPG apresenta um futuro desconhecido, mas que, ao pedir a resolução dos problemas ainda em aberto, promete fundar as bases de um mundo melhor. Nesse sentido, reforçam o conceito moderno de história. Porém, é importante ressaltar que há alguns aspectos particulares à linha do tempo de Tormenta. Os eventos do passado não são engendrados por uma causalidade interna e, ao invés de formar uma narrativa única, apresentam diversas narrativas entrecruzadas. No mesmo sentido, o futuro não é orientado para uma grande utopia, única em sua ideologia. Ao contrário, tem como objetivo final a resolução de cada problema isoladamente, com aventuras múltiplas, encerradas em si mesmas. Desse modo, diferente do conceito moderno de história, não há planejamentos e idealizações de futuros universais. Há o acúmulo de ações individuais, sem relação entre si. Os elementos fantásticos alteram a natureza dos eventos históricos, como por exemplo, aqueles relacionados à criação do mundo. Porém, não afetam de forma significativa as estruturas temporais da história, mas apenas os eventos que as constituem. Assim, o começo dos tempos, ainda que explicado em Tormenta não por teorias científicas, mas por eventos mitológicos, respeita as mesmas estruturas narrativas do conceito moderno de história. No mesmo sentido, ainda que os acontecimentos se refiram a raças fantásticas, descrevem movimentos políticos e resoluções AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES251 de conflitos não de todo atrelados aos elementos mágicos, evidenciando, sobretudo, a pluralidade de códigos que representam o tempo e a memória nestas narrativas midiáticas. Tormenta RPG revela-se fecundo para o entendimento das representações do tempo e da memória hoje, pois podemos ler em sua linha temporal, além dos códigos historiográficos apresentados em Koselleck (2006), a própria tensão epistêmica posta pelas tecnicidades das culturas, especialmente das culturas do consumo: avanço e retardamento (STIEGLER, 1994, 1996); extensão temporal aberta pelo desenvolvimento tecnológico; imperativo da novidade gerador de obsolescências. Neste jogo, a divinização como código da memória e do tempo responde à lógica epimeteica, ao não tempo dos tempos primordiais (ELIADE, 1986), às genealogias também descritas em Hesíodo (1995) e em Vernant (1990) presentes na linha do tempo “passado”. O cenário acumula todos os problemas em um curto período de tempo, agrupados sob o que nomeamos “presente”, e, assim, instaura uma ruptura entre passado, presente e futuro. Donde decorre seu caráter de hibridização: empresta os valores de memória relacionados aos mitos cosmogônicos e elementos fantásticos e os insere em uma lógica em que tais problemas ancestrais podem ser resolvidos no instante, no presente da mudança. Assim, as lógicas do conceito moderno de história, herdadas de um tempo instrumentalizado e de uma memória industrializada, transformam a memória do mito em algo mundano, à altura das ações do homem, ações do presente. Em outras palavras, enquadra o tempo da memória mítica em um tempo da memória do homem como ser da técnica. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. De memoria et reminiscentia. In: ARISTÓTELES. Parva Naturalia. London: Oxford, 1955. BAITELLO JUNIOR, N. O animal que parou os relógios. São Paulo: Annablume, 1997. BAITELLO JUNIOR, N. A serpente, a maçã e o holograma: esboço para uma teoria da mídia. São Paulo: Paulus, 2010. BRANDÃO, J. Dicionário mitíco-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. 2 v. BRAUNER, G. et al. Tormenta RPG. Porto Alegre: Jambô, 2010. 252MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES E PEDRO ERNESTO G. TANCINI CASSIRER, E. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1985. DETIENNE, M. Os mestres da verdade da Grécia arcaica. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. EDELMAN, G. Biologie de la conscience. Paris: Odile Jacob, 1992. ELIAS, N. Sobre o tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. ELIADE, M. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1986. HESIODO. Os trabalhos e os dias. São Paulo: Iluminuras, 1995. HUIZINGA, J. Homo Ludens: a study of the play-element in culture. Londres: Routledge, 1980. HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória. Tradução de Sergio Alcides. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000. KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Vergangene Zukunft. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2006. LEROI-GOURHAN, A. O gesto e a palavra 2: memória e ritmos. Lisboa: Edições 70, 1987. LE GOFF, J. Prefácio. In: FRANCO JÚNIOR, H. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 7-13. LOTMAN, I. La semiosfera. Madrid: Ediciones Cátedra, 1996. v. 2. LOTMAN, I.; USPENSKII, B. Sobre o mecanismo semiótico da cultura. In: LOTMAN, I.; USPENSKII, B.; IVANOV, V. Ensaios de semiótica soviética. Lisboa: Livros Horizonte, 1981, p. 37-65. MORIN, E. O paradigma perdido. Lisboa: Publicações Europa-America, 1973. NUNES, M. R. F. A memória na mídia: a evolução dos memes de afeto. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001. NUNES, M. R. F. O mito no rádio: a voz e os signos de renovação periódica. São Paulo: Annablume, 1993. PETERSON, J. Playing at the World: a history of simulating wars, people, and fantastic adventure from chess to role-playing games. San Diego: Unreason Press, 2012. PLATON. Platon oeuvres completes: Protagoras. Paris: Les Belles Lettres, 1984. Tome III. SALADINO, R. Holy Avenger. Parte 1: o início de uma saga épica para AD&D e GURPS Fantasy. Dragão Brasil, São Paulo, n. 44, p. 26-40, nov. 1998. STIEGLER, B. La Technique et le temps. Paris: Galilée, 1994. v.1. STIEGLER, B. La Technique et le temps. Paris: Galilée, 1996. v. 2. VERNANT, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. AS CODIFICAÇÕES DO TEMPO, DA MEMÓRIA E DOS CENÁRIOS NARRATIVOS DE ROLE-PLAYING GAMES253 Sobre os autores  ADILSON VAZ CABRAL FILHO Pós-doutor em Comunicação pela Universidade Carlos III de Madrid. Doutor em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Professor do curso de Comunicação Social e dos Programas de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano e de Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador do grupo de pesquisa Centro de Pesquisas e Produção em Comunicação e Emergência (Emerge).  ANA PAULA GOULART RIBEIRO Pós-doutora em História pela Université Grenoble Alpes (UGA). Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e da Escola de Comunicação da UFRJ. Bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenadora do grupo de pesquisa Mídia, Memória e Temporalidades.  BRUNA SCIREA Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Mestre em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação Social da PUC-RS.  BRUNO SOUZA LEAL Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Pós-doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Coordena o Núcleo de Estudos Tramas Comunicacionais: Narrativa e Experiência, tendo integrado o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) da UFMG e os grupos de pesquisa Poéticas da Experiência e Gris, também da UFMG. 255  CARLOS HENRIQUE REZENDE FALCI Doutor em Literatura. Professor do Programa de Pós-Graduação em Artes e do curso de Cinema de Animação e Arte Digital, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador do Grupo de Pesquisa 1magináriO, associado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  CÉSAR GUIMARÃES Pós-doutor pela Universidade de Paris 8. Doutor em Estudos Literários (Literatura Comparada) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da UFMG, integra o Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Instituição. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  CINTHYA PIRES OLIVEIRA Mestre no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Pesquisadora integrante do Centro de Pesquisas e Produção em Comunicação e Emergência (Emerge) e do Projeto EBC Unesco – Centro de Pesquisa Aplicada, Desenvolvimento e Inovação em Comunicação Pública.  CHRISTINA FERRAZ MUSSE Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e do curso de graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do grupo de pesquisa Comunicação, Cidade e Memória (Comcime).  CRISTIANE FINGER Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professora titular do curso de Comunicação Social, habilitação Jornalismo, da PUC-RS. Coordenadora da Rede de Pesquisadores em Telejornalismo – Rede TELEJOR – da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).  DANIEL MELO RIBEIRO Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Pesquisador integrante do Centro Internacional de Estudos Peircianos (Ciep). Foi bolsista do Emerging Leaders in the Americas Program no Canadá.  ELIZA BACHEGA CASADEI Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da Escola Superior 256SOBRE OS AUTORES de Propaganda e Marketing (ESPM) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Estadual Paulista (Unesp).  FÁBIO FONSECA DE CASTRO Pós-doutor pela Universidade de Montreal. Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V. Mestre em Antropologia pela Universidade de Paris III e em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Docente do Programa de Pós-graduação Comunicação, Cultura e Amazônia e do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, na Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do grupo de pesquisa Fenomenologia da Cultura e da Comunicação.  HEROM VARGAS Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com pós-doutorado em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Líder do grupo de pesquisa Mídia, Arte e Cultura (PósCom/Umesp).  ITÂNIA GOMES Pós-doutora pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris III). Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e bolsista produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Membro titular do Comitê de Assessoramento Artes, Ciência da Informação e Comunicação. Coordena o Centro de Pesquisa em Estudos Culturais e Transformações na Comunicação.  LUCIA SANTAELLA Doutora em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e livre-docente em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, na PUC-SP. Recebeu os prêmios Jabuti (2002, 2009, 2011, 2014), Sergio Motta (2005) e Luiz Beltrão (2010).  LUCIANA ANDRADE GOMES BICALHO Doutoranda em Comunicação Social – bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) –, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCon/UFMG), vinculado ao Centro de Convergência de Novas Mídias associado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). SOBRE OS AUTORES257  LUÍS FELIPE DUARTE FLORES Doutorando em Comunicação Social no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do curso de pós-graduação em Produção Audiovisual: Documentário, no Centro Universitário Una. Professor da Escola Livre de Cinema.  MARCOS NICOLAU Pós-doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Letras e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Paraíba (UFPB). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) e Computação, Comunicação e Artes (PPGCCA). Docente do curso de Comunicação em Mídias Digitais. Coordenador do grupo de pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas (Gmid).  MARIALVA CARLOS BARBOSA Pós-doutora em Comunicação pelo Centre National de Recherche Scientifique – Laboratoire d’Anthropologie des Institutions et des Organisations Sociales (CNRS-LAIOS), em Paris, França. Professora titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ. Pesquisadora 1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  MAX EMILIANO OLIVEIRA Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Integra os grupos de pesquisa Campo Comunicacional e suas Interfaces, e Mídia e Memória: construção de identidades.  MÔNICA REBECCA FERRARI NUNES Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Líder do grupo de pesquisa Memória, Comunicação e Consumo pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  MOZAHIR SALOMÃO BRUCK Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com pós-doutorado em Teorias e Ética do Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa, em Portugal. Professor da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC-MG na graduação em Jornalismo. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-MG. Coordenador do grupo de pesquisa Mídia e Memória: construção de identidades. 258SOBRE OS AUTORES  PEDRO ERNESTO G. TANCINI Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Membro do grupo de pesquisa em Memória, Comunicação e Consumo pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  REGINA ROSSETTI Pós-doutora e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Líder do grupo de pesquisa Pensamento Filosófico na Comunicação. SOBRE OS AUTORES259 Colofão Formato Tipologia Papel Impressão Capa e Acabamento Tiragem 17 x 24 cm Scala 10,8/14,5 (texto) Scala Sans Pro (títulos) Alcalino 75 g/m2 (miolo) Cartão Supremo 300 g/m2 (capa) Edufba Bigraf 700 Comunicação, mídias e temporalidades apresenta chaves-analíticas indispensáveis para a interpretação desse campo transdisciplinar do conhecimento contemporâneo. Múltiplos olhares se somam para decifrar as novas formas de perceber, narrar e consumir o passado, o presente e o futuro, que se misturam em um fluxo instantâneo e intenso, em ambientes cada vez mais midiatizados, onde ainda podem sobreviver, no entanto, formas arcaicas de sociabilidade, fruto da tradição. Os capítulos do livro articulam-se em duas partes: na primeira, mais teórica e conceitual, são mapeadas as interfaces da comunicação com a história e a filosofia e, na segunda, mais aplicada, as discussões sobre o tempo e as temporalidades midiáticas são pensadas nas áreas da comunicação, como jornalismo, fotografia, televisão, games, cinema e redes sociais. ISBN 978-85-232-1592-7 9 7 88 5 2 3 2 1 5 92 7