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BUDISMO, MARCIALIDADE E LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA: o Kung Fu e as disputas historiográficas sobre o mosteiro de Shaolin José Otávio Aguiar* Rodrigo Wolff Apolloni** Resumo O ensaio reúne as contribuições da historiografia recente para a compreensão das relações entre Budismo, marcialidade e ascese na tradição marcial do Mosteiro de Shaolin, tradicional centro de cultivo de artes marciais e um dos berços da espiritualidade Chan, localizado no Norte da China. Para responder às interrogações centrais sobre a relação entre a marcialidade, a violência e a cultura chinesa, recorreu-se à literatura de época, à filmografia que abordou o tema e a entrevistas com mestres e praticantes de kung fu. Palavras-chave Violência; Arte Marcial; Historia da China; Culturas Políticas; Historia da Guerra. Abstract The text combines contributions of the recent historiography for the understanding of the relationships between Buddhism, martial asceticism and the martial tradition of the Shaolin Monastery, the traditional center of culture of martial arts and one of the cradles of Chan spirituality, located in northern China. To answer the central questions about the relationship between martial traditions, violence and Chinese culture, we made use of the literature of that time, the film collection that approached this theme and interviews with teachers and practitioners of kung fu. Keywords Violence; Martial Arts; History of China; Political Cultures; History of War. Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 261 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni 1 - Primeiras palavras Os historiadores, sabemos, que as batalhas que permeiam os eventos históricos que envolvem conflito, os lugares da memória, as personagens biografadas, são travadas em, no mínimo, dois momentos, o que lhes confere certo ar de permanência e presença. O primeiro é o instante mesmo do evento, com suas condições próprias e irrepetíveis de historicidade. O segundo, quando se disputa as versões de relatos a seu respeito, as guerras da memória, as querelas historiográficas. Trataremos, aqui, de uma querela historiográfica praticamente desconhecida nos meios acadêmicos brasileiros, aquela que envolve as relações entre budismo, violência e marcialidade na cultura chinesa. O mosteiro budista de Shaolin, fundado nos últimos decênios do século V d.C. nos montes Song, na província de Henan, ficou famoso, internacionalmente, pelas disciplinas espirituais e físicas que caracterizavam as práticas marciais e medicinais de seus monges. Modernamente, o cinema Norte Americano contribuiu para a difusão de alguns mitos sobre artes legatárias do templo. Não obstante, maioria dos brasileiros conhece muito pouco a respeito dessas técnicas e isso não é de se estranhar, até, porque, ao longo do século XX, vivemos uma relação bem mais próxima com a cultura japonesa e com suas artes marciais mais conhecidas e populares como o Judô e o Karatê. Isso ocorreu, primeiro, na Região Sudeste, e, depois, com a dispersão da influência cultural da imigração japonesa, por praticamente todo o território Nacional. Foi a partir da década dos anos de 1960 e das diversas levas de Migração chinesa recente, concentradas, principalmente, no Estado de São Paulo, bem como, da divulgação pelo cinema, e, mais tarde, pela TV, dos filmes de Bruce Lee ou da famosa série Kung Fu, estrelada por David Caradine, que alguns aspectos da marcialidade chinesa passaram a ser conhecidos entre nós. Vale observar que até o momento nós não somos um destino tradicional de imigrantes chineses (registros recentes indicam a existência de algo entre quarenta mil e sessenta mil imigrantes chineses do Brasil), o que limita um contato mais direto com uma “cultura de raiz” dotada de elementos marciais. Não há uma grande disponibilidade de sujeitos étnicos chineses com quem conversar e filtrar informações. Os escassos imigrantes chineses conhecedores de arte marcial - mestres como Chan Kowk Wai (estilo Shaolin do Norte) e Chiu Ping Lok (Fei Hok Phai) – são, porém, exemplos extraordinários de “patriarcas marciais” que difundiram entre nós técnicas marciais tradicionais. Dificuldades com o idioma e mesmo com a tradução de certos conceitos fizeram com que esses mestres se concentrassem nos elementos corporais – 262 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência rotinas e técnicas – e deixassem de transmitir muitos dos conteúdos semânticos nãocorporais (rituais, dados históricos e elementos da religiosidade popular chinesa) que também compõem a arte marcial.1 Conteúdos que, por serem essenciais à configuração da prática como “arte marcial”, foram recolhidos pelos interessados brasileiros nas mesmas fontes que os levaram a pisar pela primeira vez em uma academia de Kung-Fu. Este ensaio não pretende ser a reunião de dados de uma pesquisa empírica vasta e elucidativa. Antes, porém, pretendemos, aqui, suprir uma carência, atender a uma demanda imediata e premente. Considerando o papel essencial desempenhado pela arte marcial na sociedade chinesa clássica, constatando a ausência de um resumo introdutório que transportasse uma notícia da historiografia que aborda o tema, bem como, a lacuna didática nos cursos de graduação em história, pretendemos escrever uma introdução ao estudo de alguns aspectos essenciais da sociedade chinesa a partir do Wu Shu. 2 - Conhecendo o Wu Shu Wushu é um vocábulo chinês que, literalmente, significa arte marcial. Numa tradução mais literal, entretanto, o significado da expressão Wu Shu, para os chineses é “parar as armas”. Assim, as artes que envolvem as técnicas de guerra têm, por função essencial, evitar a guerra. São artes profiláticas. Previnem em nós mesmos a violência. Ajudam o Estado a manter a paz e asseguram tanto a defesa pessoal quanto a soberania nacional. Captando este espírito bem caro ao nacionalismo chinês do século XX, poderíamos também observar que, na China, o termo Kuo Shu, que significa arte nacional, também é usado, na acepção de arte marcial. A expressão Zheng Zong (正宗) significa “tradicional”, ou mais precisamente, “original”, mas não é nem representa um estilo em especial e sim um ideal, de recuperação de reminiscências das técnicas tradicionais e de suas seqüências e aplicações. Já, no Ocidente, talvez devido a uma pronúncia mal interpretada surgida nos EUA a partir da observação de filmes de Bruce Lee, o termo Kung Fu – tempo de Habilidade –, devido à grande influência do cinema, acabou por predominar. Lembremo-nos novamente da série encenada por David Caradine e exibida nos anos de 1970 nos EUA que tinha este nome. Kung Fu é uma palavra chinesa coloquial que pode significar “Tempo de habilidade” ou “Trabalho Duro”, técnica obtida através de árduo esforço. O termo, que tem origem no dialeto cantonês, não era muito popular até a segunda metade do século XX, e, com muita raridade, o encontramos em textos chineses antigos. Acredita-se que, no Ocidente, a palavra foi usada pela primeira vez no século XVIII, pelo missionário jesuíta francês Jean Joseph Marie Amiot, o primeiro tradutor francês do clássico A Arte da Guerra, de Sun Tzu, um general da época dos Estados Combatentes.2 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 263 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni Na China, a arte marcial ocupa um papel essencial, por ser a partir dela que boa parte dos códigos sociais e culturais são veiculados. Essencialmente, pode-se subdividir as escolas de Wu Shu em dois grandes grupos: Waijia ou escola externa, e Neijia ou escola interna. Na primeira se inclui a maior parte dos estilos cuja tradição faz legatários de determinado templo ou região da China. O mais famoso representante dessa tradição foi o mosteiro budista de Shaolin. Já a segunda se tornou mais famosa partindo do templo do Monte Wudang, centro que enfatizava estilos tradicionais de influência taoista, alguns muito famosos no Ocidente, como o Pa Kua Chang (Baguazhang), Hsing-I Chuan (Xingyiquan) e, mais conhecido de todos, porque, largamente difundido no mundo – graças, em parte, à emigração que se seguiu às perseguições subsequentes à revolução cultural nos anos de 1960 – o Tai Chi Chuan (Taijiquan ou boxe do grau supremo). Recorrendo a um dicionário latino e reportando-nos, para efeito de comparação, à tradição ocidental, descobrimos que o vocábulo guerra teve origem no alemão arcaico werra, que guarda o significado de discórdia, combate, enfrentamento. Paz é uma palavra que se origina do latim pax, de um verbo cujo particípio é pactus, dando a entender o pacto celebrado entre os beligerantes para fazer cessar o estado de guerra. A etimologia das duas palavras explica o inter-relacionamento que permeia a dicotomia paz/guerra, na qual a guerra é o termo forte e a paz, por isso mesmo, é, usualmente, definida e semantizada como ausência de guerra. Na análise da vida internacional, em contraste com o que ocorre no plano interno, no qual o termo forte é ordem (pois a desordem é a falta de ordem), a prevalência da guerra sobre a paz é o pressuposto do que aqui prefiro chamar de realismo político. Este corrobora a leitura do filósofo político inglês Thomas Hobbes, para quem o sistema internacional, na inexistência de um pacto dotado de poder, corresponde à anarquia do estado de natureza da guerra de todos contra todos. Na anarquia do estado de natureza a paz é vista como um precário arranjo, fruto da prudência ou do expediente. Daí a recomendação do ditado latino: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra.” Sem que aqui nos reportemos aos teóricos da Guerra Chineses, – tarefa esta já, em parte, encetada por uma série de historiadores e cientistas políticos interessados nos desdobramentos dos conceitos e preceitos de Sun Tzu –, pretendo, aqui, me concentrar, especificamente, no Mosteiro de Shaolin e nas técnicas marciais que, conforme transmitido pela tradição oral e confirmado por uma historiografia recente, parecem lá terem-se originado ou sistematizado. Assim, inicialmente, trataremos de estabelecer uma síntese da historiografia que abordou o tema, limitando-nos, na medida do possível, àquilo que se encontra disponível em português. Em seguida, concentrar-nos-emos, respectivamente, na relação entre budismo e marcialidade e nas características específicas da arte marcial chinesa. 264 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência 3 - China: corpo, a marcialidade e a história Cumprindo simultaneamente as funções de instância física a partir da qual exercemos poder sobre mundo natural, e meio de interação com o universo do social, o corpo foi e é objeto das mais diversas estratégias disciplinares. Adaptá-lo ao tipo de função que deve exercer é um sonho que sempre povoou o imaginário daqueles que fizeram a guerra e organizaram os esportes, bem como dos que desejaram, modernamente, regular e moldar comportamentos, visando ao aumento da produção. Desejamos, aqui, encarar as artes da guerra na condição de mais um desses saberes disciplinadores do corpo. Nossa pergunta inicial seria: por que razão o Kung Fu Shaolin atrai a atenção dos homens do século XXI? O que, hoje, se busca em uma disciplina budista tão antiga? Seria essa disciplina tão budista assim? Quais as fronteiras entre o Budismo e a marcialidade? 4 - Polêmicas historiográficas em torno de Shaolin Marcel Granet, famoso sinólogo francês, discípulo de Durkheim, dedicou boa parte de sua existência ao estudo e compreensão das fontes eruditas chinesas. Granet, não obstante sua capacidade de síntese e atenção às fontes, não reserva, em sua obra, um papel especial para as artes marciais no universo de representações e mesmo no esquema de transmissão cultural daquela sociedade. Seu mais famoso livro, um best seller cuja primeira edição veio à luz em 1934, O Pensamento Chinês, lança-se à empreitada de compreender um pensamento que, ao contrário das principais matrizes greco-romanas ocidentais, não opõe sujeito e objeto, estabelecendo, antes, relações íntimas entre ambos, dentro de uma rede de significações que prevê uma certeza e um sentimento intrínseco da unidade do mundo.3 Assim, desaparecem as distinções entre o lógico e o real. Abandonase a chamada física da quantidade, aderindo-se à opção de construir modelos que estabelecem relações outras entre os números, o espaço e o tempo. Meir Shahar, historiador Israelense que mais se dedicou ao estudo da história das técnicas marciais de Shaolin localizou a mais antiga evidência de prática marcial no templo ainda no período da Dinastia Tang. Ele escreveu dois importantes artigos a respeito do tema: “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice” e “Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The case of te Shaolin Monastery”.4 O primeiro, trata da interligação entre o mosteiro e as artes marciais no final da dinastia Ming, e, o segundo, parte em busca de evidências e vestígios da participação das milícias de monges treinados em enfrentamentos de inimigos externos e piratas japoneses na época de transição entre as dinastias Sui e Tang, ou seja, o sétimo século de nossa era cristã ocidental. Meir Shahar foi o primeiro historiador no meio acadêmico ocidental a produzir trabalhos Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 265 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni sobre a relação entre marcialidade e religião budista em Shaolin. Seu trabalho se baseou na obra de um historiador chinês da primeira metade do século XX chamado Tong Hão (1897-1959). Shahar estudou os idiomas da China em Taipei, estudou na Inglaterra e nos EUA. Hoje ele chefia o departamento de Estudos Chineses da Universidade de Tel Aviv e destaca-se como um dos maiores estudiosos do tema no Mundo.5 A polêmica historiográfica em torno da ligação entre a origem das artes marciais chinesas e o Taoísmo encontra uma síntese no trabalho de Rodrigo Wolf Apollloni, que estudou a apropriação das técnicas da arte marcial Chinesa no Brasil e, escreveu um significativo trabalho sobre a história do estilo Shaolin do Norte em nosso país.6 Basicamente, os estudiosos se interrogaram sobre o momento em que religiosos chineses, aparentemente primeiro taoístas e depois budistas passaram a incluir as artes marciais como elemento de sua rotina religiosa, ou, até, como parece por vezes ser em Shaolin, elemento de sua ascese religiosa.7 A mais famosa das escolas de técnicas marciais chinesas é a que se originou num monastério budista provavelmente construído no ano de 495 da nossa era, o Templo da Floresta Pequena ou, Shaolin. Localizado nas encostas do monte Song, uma das cinco antigas montanhas sagradas da China, em Henan. Nessas montanhas sagradas o imperador deveria oferecer sacrifícios ao senhor dos céus, que corroborava com sua proteção a legitimidade de sua dinastia. Na Idade Média o templo foi generosamente sustentado por uma série de dinastias que estabeleceram sua capital na cidade de Luoyang. Lendas locais dão conta de que o vigésimo oitavo Patriarca do Budismo, o famoso monge indiano Bodhidharma, a quem se atribui também a introdução de novas técnicas de meditação na China, teria introduzido os monges de Shaolin na prática de algumas seqüências marciais que ele aprendera durante sua formação como nobre proveniente das castas guerreiras hindus. A essa arte marcial indiana, que, sob esta hipótese, teria se amalgamado às técnicas chinesas pré-existentes, se chamava em Sânscrito, a língua clássica dos Vedas Vajramushti. O Vajramushti (Vajra: real, bastão, ceptro, vara, directo, recto, correcto, sol, etc.; mushti: golpe, soco, punho, raio, etc.) data de época muito anterior ao surgimento do Budismo. Essa arte, praticada pela casta dos guerreiros, teve origem em época pré-ariana, durante a civilização dos Drávidas (3500 a 1500 a.C.). Hoje, a maioria dos especialistas acredita que, se Bodhidharma passou pelo templo Shaolin, e existem registros em estelas que dão conta disso, com certeza ele não terminou seus anos de vida lá. A atribuição de técnicas e Bodhidharma também não é ponto pacífico, uma vez que a tradição chinesa costuma atribuir a figuras históricas a invenção de coisas a que se atribui importância, mas que, com mais probabilidade, se devem à cumulativa soma de experiência de homens variados ao longo dos séculos. Assim, há lendas para o 266 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência surgimento tais como do chá, da seda, do papel, etc. Isso não é de se estranhar, já que os mitos de origem, as tradições de ancianidade sustentam e corroboram a legitimidade de determinada linhagem de monges, sejam eles taoístas, como os dos templos da Montanha Wudan ou budistas, como os de Shaolin, nas montanhas Song. Ao sabor da variação da política dos imperadores, houve maior apoio ao clero budista ou ao clero taoísta, bem como assim também variavam as os regimes de proteção ou perseguição. O desenvolvimento de uma cultura de marcialidade nos templos aponta para uma quebra do monopólio estatal sobre elas. Observou-se, efetivamente, neste durante o século XVI, um declino do efetivo dos exércitos regulares Ming. O banditismo crescia, piratas japoneses e marujos e comerciantes marítimos chineses herdeiros insatisfeitos da proibição da construção dos grandes juncos da época do imperador Yung Lo, saqueavam, com freqüência, o litoral. Parece que a situação calamitosa estava levando o governo a recorrer com mais freqüência a tropas milicianas locais. Algumas delas incluíam monges em suas fileiras. Contrariando boa parte das lendas, a mais antiga evidência da participação de Shaolin em combates efetivos data do período da dinastia Tang, mais precisamente em 610. O auxílio bem sucedido em campanhas militares permitiu que, em reconhecimento o Imperador Li Shimin ampliasse a área do templo, concedendo, inclusive, a patente de General a um de seus monges. Essas evidências, inferidas da leitura de textos de estelas e estupas8 não informam, entretanto, sobre a existência de alguma disciplina marcial no templo. Os viajantes Tang que visitaram a região neste período não ser referem de forma particularizada a nenhuma disciplina militar a que os monges seria submetidos no mosteiro. As dinastias seguintes, Song e Yuan, também não deixaram relatos que dêem conta desse treinamento, e esta lacuna de fontes se prolonga pelos sete séculos seguintes. Isso que leva os especialistas a duvidarem da existência de um sentido de marcialidade neste momento no templo das montanhas Song. Durante a dinastia Han, a China havia passado por alguns séculos de conflitos que tiveram fim com a implantação da Dinastia Sui (589-618), e, mais tarde, da Tang (618-906). Seguiu-se um período de riqueza em que a pluralidade de correntes filosóficas e religiosas que existia nas províncias atentava a intensidade dos contatos interculturais resultantes das relações internacionais, uma vez que, seguindo os passos de mercadores, peregrinavam religiosos, missionários e peregrinos que atravessava a rota entre a China e o mundo Islâmico e entre a China e a Índia. Meir Shahar localiza nos séculos XVI e XVII as primeiras evidências da existência de uma marcialidade sistemática e organizada em Shaolin.9 Portanto, é no período Ming Tardio, no final da Dinastia, que uma profusão de fontes dão conta do cultivo de artes marciais no mosteiro. Neste período, um grande número de oficiais, artistas marciais e Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 267 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni interessados viajavam pra o templo para estudarem com os monges técnicas consideradas de excelência. Além disso, as fontes que atestam sua participação bem sucedida em campanhas militares em apoio à Dinastia Ming Tardia são numerosas. È possível, entretanto, que se tenha construído, ao longo dos séculos subseqüentes, uma supervalorização de Shaolin como marco da nacionalidade chinesa. Como na historiografia sobre as poleis gregas se alimentou, durante certo tempo, um mito sobre a excelência superpotente do treinamento militar de Esparta, na historiografia e na memória da população de Henan, configurou-se um mito nacional que depois se difundiu por toda a China. Entretanto, fontes numerosas dos séculos XVI e XVII dão conta de uma extraordinária experiência marcial e de uma impressionante eficiência em combate dos monges de Shaolin. Essas fontes apontam para algo mais que um mito e, provavelmente, para uma preexistência de práticas marciais naquele templo.10 São numerosos os relatos de clara vantagem desses monges sobre seus adversários em combates armados e também em enfrentamentos com as mãos livres. Ao que parece, essa superioridade teria se revestido de grande valia no auxílio à defesa contra inimigos e rebeldes num período em que a ordem social era ameaçada e a Dinastia perdia o controle da situação nas províncias. Mesmo frequentemente acusados de inobservância dos preceitos budistas, fossem eles alimentares ou piedosos, os clérigos, embora sempre suspeitos de sedição, figuravam como uma reserva humana que detinha considerável Know How, respeitado em toda China. Logo a Dinastia Ming Cairia e estes mesmos monges, tradicionalmente fiéis a ela, seriam vistos com olhos de desconfiança pelo invasor Quing. A Dinastia Ming (Luz) havia sido fundada por um monge, que vivera em um mosteiro entre os 16 e os 33 anos, o futuro imperador Zhu Yuanzhang (1328-1398). A dinastia que fundou sobreviveria 300 anos. Oriundo da revolta dos Turbantes vermelhos, o imperador fundador era um homem simples que havia se arvorado em governantes divino. Paranóico com a possibilidade de traição perseguiu os movimentos secretos como a Lótus Branca e Maytreya. Não obstante, na clandestinidade, essas sociedades continuaram a prosperar.11 5 - Da relação entre Marcialidade e Budismo As evidências não permitem concluir em que século os monges de Shaolin começaram a se instruir na prática de artes marciais. Sabe-se, entretanto, dos desdobramentos da prática marcial sobre a vida religiosa do mosteiro. A própria associação sincrética que criou a divindade Junaluo, um protetor espiritual dotado de bastão e corroborador do caráter de guerra legítima em defesa da fé, reforçou a significação imaginária de que os monges seriam os defensores do Dharma. Para permitir a livre manifestação do Dharma, a guerra seria justa. Nunca, entretanto, para o ataque puro e simples, mas, como forma 268 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência de garantir a sobrevivência de si mesmo, da comunidade de monges, do império que os apoiava e da fé budista.12 Parece que a mais importante deixa de Shahar diz respeito justamente a este ponto. Em que medida haveria a associação entre a arte marcial, seu treinamento, a dedicação a ele e um caminho espiritual, uma ascese? A pesquisa levou a acreditar que, pelo menos no período Ming Tardio, não existe qualquer associação textual entre prática marcial e desenvolvimento de espiritualidade budista. O caminho contrário também não é apontado: o de que a meditação ou o respeito aos preceitos poderiam garantir refinamento marcial. Para este autor, essa relação parece ter sido estabelecida pela primeira vez no Japão. Junaluo, a divindade protetora do Templo Shaolin seria então uma justificadora religiosa da prática marcial dos monges, os defensores do Dharma. Uma divindade que, interagindo com a marcialidade do mundo dos homens, justificaria a associação entre budismo e artes marciais. A associação de marcialidade como caminho espiritual teria sido formulada, assim, talvez, pela primeira vez, no Japão, pelo Monge Zen Takuan Soho (1573-1645) que formulou a doutrina Mushin ou “não mente.” Ele associava de forma íntima o aprimoramento espiritual à perfeição no método de esgima. Essa doutrina, por sua vez, chegando à China, teria, talvez, influenciado a elaboração de uma doutrina moral e ascética durante a escrita de manuais sobre artes marciais em Shaolin. Como demonstrou o historiador chinês Tang Hão, a própria palavra utilizada pelos chineses neste período para designar arte marcial “roushu” foi uma transformação do original japonês “jiu jitzu”.13 Cabe observar, entretanto, que em termos de técnica marcial, a China parece ter influenciado muitos padrões constituintes das futuras artes marciais nipônicas neste período. Um exemplo é o chamado Shuai Jiao. Shuai = derrubar e Jiao = chifres, ou seja, chifres que derrubam. A tradição afirma que se tratava de um combate aguerrido, corpo-a-corpo, onde os lutadores utilizavam capacetes com chifres. Outro termo popular (na China) utilizado para se referir ao Shuai Jiao é “Kuai Jiao” que significa “derrubada rápida”. Um velho provérbio popular chinês diz: “Ataques com os punhos são superiores às técnicas de deslocamento; ataques que utilizam os pés aos ataques de punhos, e técnicas de derrubar e projetar superiores aos ataques com os pés”. Os combates eram normalmente vencidos por quem arremessou o adversário ao solo e não por quem havia conseguido um moderno “Knock Out”. Vários mestres são unânimes em dizer que boas técnicas de derrubar (Shuai) representam 40% de um bom lutador, completado por 30%, respectivamente, de técnicas de chutes e socos. A dedicação à compreensão do Shuai Jiao pode contribuir para o aprimoramento de qualquer estilo de Wu Shu praticado. Nele, está a origem remota do Jiu-Jitzu, do judô e de outras formas de arte marcial japonesa caracterizadas pelo combate próximo Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 269 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni e pela projeção do adversário, utilizando-se, frequentemente, de sua própria força e impulso de ataque. As conclusões de Shahar sobre a inexistência de treinamento marcial em Shaolin antes do período Ming basearam-se, majoritariamente, na análise de fontes escritas. Se o entrecruzamento das informações obtidas por essa análise documental produz nexos interessantes, um relativo desprezo pela tradição oral também parece ressaltar na obra do autor. Se seguramente não parece ter havido um incêndio no mosteiro em 1736, como atesta Shahar, um estudo das lendas e tradições sobre este ataque mereceria mais atenção. Para além de uma retórica de prova, as fontes orais nos remetem a uma seleção de memória que revela, em análise mais atenta, muito de uma sociedade. Particularmente, acreditamos seja muito provável que considerável montante de significação espiritual da arte marcial chinesa tenha realmente resultado da influência budista e da introdução do budismo Chan. Sob a figura de Bodhidharma se reúne, frequentemente, uma série de monges itinerantes que conseguiram difundir largamente o budismo entre as populações mais pobres, e frequentemente, analfabetas, graças ao fato de concentrarem a ênfase da ascese na meditação e no cotidiano e não na leitura dos sutras e na erudição. Para o Budismo Chan, a iluminação se dá por despertar espiritual, por uma manifestação da natureza búdica interior que se faz de forma espontânea; não pelo acúmulo de conhecimento intelectual, mas, antes, por uma relação de concatenação e amadurecimento interior que chega a um ponto fulcral, produzindo algo que se assemelha àquilo que, sob a psicologia alemã da Gestaldt, chamamos Insight. Isso, sem dúvida, contribuiu para popularizar o Budismo, primeiro na China, e depois no Japão. Em terras nipônicas, a pronúncia do termo Sânscrito Dhiana (meditação), que se fizera na China como Chan, passou a ser lida como Zen. Para além das semelhanças e diferenças entre as doutrinas de Takuan e os preceitos do mosteiro de Shaolin, para além dos discursos ingênuos sobre preeminência ou não de surgimento de uma associação entre marcialidade e espiritualidade budista, cabe ressaltar que os monges guerreiros criaram, em seu ambiente e historicidade, uma interpretação inédita de sua própria doutrina religiosa. Essa capacidade de adaptação e criatividade, não obstante os textos dos sutras – e também o Tao Te Qui de Lao Tse – consagrassem a doutrina da não-violência, especialmente – e isso não é suficientemente explorado por Shahar – oferece uma excelente oportunidade de reflexão. A pergunta não deveria ser se existiu ou não um monge chamado Bodhidharma, a quem os chineses chamavam Ta Mo, e se ele teria transmitido, juntamente com a doutrina na ênfase meditativa do Budismo Chan, as técnicas marciais que mais tarde, amalgamadas às muitas que preexistiam na China, teriam engendrado a tradição de Shaolin. Mais 270 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência interessante seria despersonalizar essa transmissão e procurar, na própria gênese do Budismo Chan, aspectos significativos de cultura Guerreira. Muitos dos tradutores indianos dos sutras budistas do Pali ou do Sânscrito para o Cantonês pertenciam à casta dos guerreiros e nobres, à qual havia pertencido próprio Sidharta Gautama. Em Épicos antigos do hinduísmo encontram-se narrações de seqüências de combate. Essas narrações precedem o surgimento do próprio Budismo. Um exemplo é o Mahabhárata. Vale lembrar o combate descrito no Bhagavad Guitá, no Rámáyána, no Rig Vêda, assim como noutros textos religiosos e védicos, como o Buddhacarita Sútra, Jaiminiya Brahmana, e o Saddharmapundarika Sútra. O conhecimento dos pontos vulneráveis do corpo (m’armam), parecia já existir em meados do segundo milênio antes de cristo, mesmo sem uma aplicação nas práticas de luta. Sua utilização nos sistemas organizados de combate com e sem armas ainda não tinha sido registrada de forma escrita e organizada, mas, podemos imaginar que o que era utilizado para curar pudesse, em uma sociedade guerreira, também, facilmente, ser remetido para matar. O conhecimento dos pontos vitais tem, inclusive, uma obra que lhe é dedicada o M’arma Shastra. No Mahabhárata relata-se o que aconteceu quando Drona, um mestre nas artes marciais, ensina aos seus discípulos a disciplina do arco. Ele manda cada um dos discípulos mirar a uma ave que se encontrava no alto de uma torre, e, em seguida, pergunta-lhes, um por um, o que estão enxergando. A maioria descreve que vê o pássaro, as suas penas, as patas, a cauda, a torre, etc. Drona, o mestre marcial, usando de severidade, repreende-os bruscamente, como faria qualquer abade Cham, séculos mais tarde, diante de uma resposta equivocada a um Koan.14 Mas, Arjuna, o maior dos guerreiros, responde à mesma pergunta de forma satisfatória. Diz que vê apenas o olho do pássaro. Ou seja, Arjuna estava em êkagráta, a concentração da mente num só ponto, o mais elevado nível de atenção. Arjuna estava certo: ele, a seta, o arco, o alvo eram um só. Acabamos, portanto, de flagrar na tradição indiana religiosa, pré-budista, traços da retórica de atenção e concentração veiculada mais tarde pela tradição Chan Zen. 6 - Violência, Budismo e marcialidade nas telas de cinema. Durante os séculos XVI e XVII, e, até o início do século XIX, artistas marciais não militares também percorriam a China em busca do aprendizado de técnicas de bastão, lança, espada, alabarda, e uma série de outras armas. Essa busca pela excelência no manejo dessas armas passou a ser associada – em algum momento cuja localização divide os historiadores – a uma busca de perfeição espiritual e física, à perseguição de um ideal de desenvolvimento integral, que encontrava ressonâncias nas matrizes confucionistas, Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 271 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni taoístas e budistas. Por ideais menos elevados, lutadores itinerantes também se enfrentavam em competições públicas financiadas por ávidos expectadores. Além disso, artistas marciais trabalhavam em serviços temporários de escolta e proteção para particulares e caravanas de comércio. Alguns se estabeleciam sob o financiamento de mecenas. Os que se demoravam no nomadismo, compartilhavam de um mundo onde certamente, como observou Shahar, as rígidas regras sociais chinesas se afrouxavam. Seu lugar para além do “curso” caudaloso da vida cotidiana ajudou a emprestar-lhes, no imaginário e na literatura, algo de mágico e livre, uma correspondente oriental, mutantis mutandis, para os mitos de cavalaria errante dos ocidentes Medieval e Moderno na Europa. A essa literatura épica chinesa denomina-se Wushia e suas raíses remontam ao século I da era cristã. Se a retórica de iluminação budista não consta nas artes marciais chinesas até o período Ming tardio e se este empréstimo de significado pretensamente japonês teve influência considerável sobre a transformação do sentido dessas artes, não há dúvida de que, em termos de transmissão de técnicas marciais, os padrões nipônicos receberam grande influência chinesa. Os itinerantes, fossem eles quais fossem, mambembes, caçadores de riquezas, pequenos mercadores e artistas marciais eram chamados de “rios e lagos”, devido à sua vida fluida como as águas. Como vimos, a invasão Machu de meados do século XVII representou a transição da dinastia Ming para a King (Ching ou Tsing), a última dinastia imperial. Os séculos XVII e XVIII marcam um momento de grande desenvolvimento cultural acompanhado do expansionismo manchu, que além de controlar o império Chinês e a Mongólia, estendeu-se pela Ásia Central e reforçou sua influência sobre o Tibet, que, a partir de 1751, transformou-se em protetorado chinês. Neste período ambienta-se o famoso filme Chinês O Tigre e o Dragão15 dirigido pelo polêmico Ang Lee, que teve no elenco atores e atrizes chinesas de grande carisma como Chow Yun-Fat, Michele Yeoh, Zhang Ziyi e Chang Chen. A obra do consagrado diretor taiwanês foi o primeiro filme em idioma estrangeiro a conquistar o total de dez indicações para o Oscar, incluindo as de melhor filme, estrangeiro, direção e roteiro adaptado entre outras. Com base em um romance épico de cinco volumes do escritor Wang Du Lu, o filme, falado em Mandarim, tenta reconstruir o cenário da China no início do século XIX, através da disputa entre dois casais de guerreiros por uma espada lendária, roubada após o mestre de artes marciais Li Um Bai ter se afastado, por razões religiosas, de sua vida guer- 272 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência reira violenta.. Mesclando romance, artes marciais e efeitos especiais, o filme prima pela exposição fotográfica de belíssimas regiões da China desertica, pode ser utilizado com proveito em sala de aula, principalmente se o professor souber se interrogar com sutileza sobre as motivações políticas e artísticas do cinema chinês contemporâneo.16 Entretanto, antes de chegar ao que está dentro dos filmes, é preciso analisar sua própria configuração. Nem todos os filmes chineses de artes marciais são, efetivamente, produções do nível técnico de “O Tigre e o Dragão” (2000) ou “O Clã das Adagas Voadoras” (2004). Mesmo assim, para quem pratica Kung-Fu e admira suas histórias e mitos, todos eles, de modo geral, trazem elementos de interesse. É difícil encontrar praticante de Kung-Fu que, diante de uma televisão ligada mostrando cenas de luta, não pare – nem que seja por um curto intervalo de tempo - para olhar. Podemos abstrair, dessa capacidade de “magnetizar” o público, uma tremenda competência técnica, não tanto em relação às coreografias marciais e efeitos especiais, mas às histórias. Via de regra há um herói injustiçado, um segredo mortal, uma população oprimida, belas guerreiras e, é claro, uma miríade de inimigos dotados de poderes extraordinários. De onde vem esse savoir-faire de roteiristas, coreógrafos de luta e diretores? Da própria História chinesa: o cinema possui pouco mais de cem anos, mas as tramas ligadas à marcialidade são cultivadas na China por literatos, atores, músicos e contadores de histórias há mais de vinte e cinco séculos. O gênero literário de que descende a tradição cinematográfica marcial é o Wusia, a literatura dos heróis errantes. ”Mulan”, poema que narra a saga de uma garota que se veste de general para combater os inimigos do pai (a história foi transformada em desenho animado pela Disney em 1998) é um exemplo clássico do gênero: foi escrita no séc. V e, desde então, encanta platéias. Uma fonte de informações preciosa para o conhecimento do significado da cultura Wusia na China e, a partir da transculturalidade dos valores marciais chineses, no mundo, é o documento “Wu and Shia”, publicado pela Comissão de Assuntos Exteriores de Taiwan. Por meio dele é possível conhecer a amplitude do “ideograma marcial” Wu e até perceber como, na história da China, os acontecimentos históricos inspiraram artistas, bardos e, em tempos recentes, diretores de cinema, roteiristas e coreógrafos de cenas marciais. Outro título essencial é “Kung-Fu Cult Masters – From Bruce Lee to Crouching Tiger”, livro do scholar Leon HUNT, da Universidade de Brunel (Grã-Bretanha). Nele, o autor relaciona os grandes temas do cinema marcial chinês – como o herói invencível e a mulher guerreira – à história chinesa antiga e recente. Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 273 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni 7 - Revisitando o termo Kung Fu A China possui uma história milenar de rebeliões, batalhas, disputas pelo poder e vasto desenvolvimento filosófico e intelectual. Está em uma vasta região, ocupada por dezenas de etnias com histórias e idiomas próprios. Comunidades que, ao longo do tempo e diante das necessidades, desenvolveram suas próprias técnicas de combate corporal com e sem armas. Ao contrário do que somos levados a crer, portanto, a história nos leva a perceber que não existe apenas uma arte marcial chinesa, mas dezenas de artes marciais chinesas, das quais algumas chegaram até nós. O engano, porém, tem razão de ser: afinal, toda essa massa de conhecimentos não recebe o nome genérico de “Kung-Fu”? Quando vou a uma academia que ensine arte marcial chinesa, não procuro uma academia de “Kung-Fu”? Na China, as artes marciais receberam, ao longo da História, outras denominações. ) é reconhecido, Apesar de não constar dos dicionários brasileiros, Kung-Fu ( no Ocidente, como sinônimo de “luta chinesa”. Aparentemente, ganhou força na época da veiculação do seriado marcial de TV “Kung-Fu”, veiculado em muitos países entre 1972 e 1975. Em chinês, o termo expressa algo como uma habilidade intuitiva obtida pela repetição de uma ação. Ao associar maestria à superação do “Falso Ego”, o termo se aproxima da visão oriental de transcendência. Os chineses, porém, jamais utilizaram – a não ser recentemente, e em um contexto de transculturalidade - Kung-Fu para identificar ) e Guoshu ( ),17 que significam, sua arte marcial. Eles adotam os termos Wushu ( respectivamente, “Arte Guerreira” e “Arte Nacional”. Um terceiro termo identificador é Chung-kuo Ch’uan - “Boxe do País do Centro”. Outros termos são Ch’uan Fa, Ch’uan shu e Wuyi. A quantidade de termos é um indício da importância da arte marcial na cultura chinesa. De acordo com DRAEGER & SMITH, a forma Kuo-Shu (Guoshu) teria sido adotada institucionalmente na China em 1928, em substituição a Wushu, que, segundo os autores, teve seu uso resgatado anos mais tarde. Esse “resgate” estaria relacionado à chegada dos comunistas ao poder na China continental: além de reafirmar o termo, Beijing impôs uma passagem das formas tradicionais para desportivas que implicou em sua releitura. Isso se deu pela criação de rotinas e modalidades de luta – hoje praticadas como parte das atividades físicas nas escolas de toda a China. Apesar de os autores não informarem como se deu a mudança de nomenclatura, vale observar que, também em 1928, o governo republicano chinês fundou a primeira grande instituição representativa das artes marciais nacionais, o Central Wushu Institute, em Nanjing. Esse nome parece desmentir um desejo das instituições chinesas de mudar a forma identificadora da arte marcial nacional. 274 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência Atualmente, a instituição representativa das artes marciais chinesas junto ao Comitê Olímpico Internacional (COI) é a International Wushu Federation, criada em 1990 na República Popular da China. Uma de suas metas é transformar o Wushu em esporte olímpico, numa estratégia semelhante à do Japão e da Coréia do Sul em relação ao Judô e ao Tae-Kwon-Do. Não há, nos termos que identificam genericamente a arte marcial chinesa, uma conotação religiosa. Assim, pode-se dizer que, nesse nível, a arte marcial chinesa não possui corte religioso. Já Kung-Fu possui uma ligação com a religiosidade: o termo chegou ao Ocidente no séc. XVIII, através dos relatos enviados por jesuítas que atuavam na China. Esses documentos descrevem exercícios respiratórios taoístas e práticas corporais de grupos que também praticavam formas de pugilismo e luta com armas. Apesar da proximidade entre marcialidade e religião nesses grupos, porém, ela parece não ter implicado em mudanças na visão geral da arte marcial ou no significado básico do termo “Kung-Fu” para os chineses. 8 - Considerações finais A constatação inicial é a de que, para além se sua inserção numa lógica de Estado e eficiência bélica, já, em grande medida, esvaziada, em função dos avanços tecnológicos dos últimos duzentos anos, as artes marciais chinesas sobreviveram por seu conteúdo ideológico e mítico, articulado de forma íntima e inseparável, aos valores constituintes da noção de tradição e nacionalidade chinesa. Do chamado Império do Meio à China dos dias atuais, uma série de rupturas e continuidades fazem eco nas transformações vividas pelas artes bélicas em um Estado premido continuamente pela necessidade de defesa e manutenção de soberania. Este pequeno ensaio, publicado como livro de bolso, não pretendeu ser mais que um resumo da historiografia atual que aborda o tema. Nos abstivemos de considerar as particularidades do moderno Wu Shu da China comunista pós 1949, bem como de tecer considerações demoradas sobre o século XX, o que demandaria outro ensaio de não menos interesse e relevância, mas, que fugiria à nossa proposta inicial. Destaco, também, que, embora seja praticante da tradição Shaolin do Norte, não pretendi aqui elaborar um manual técnico, mas, simplesmente apresentar o estado atual da bibliografia. A lenda de Bodhidharma e o mito de ancianidade que a partir dela se construiu, bem como a pré-existência de oráculos, altares e referenciais sagrados nas Montanhas Song, fez de Shaolin um ícone não apenas do Budismo Chan, mas da religiosidade, do nacionalismo e da marcialidade chinesas. Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 275 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni A China Pós 1949 reuniu os muitos estilos antigos, procurando despi-los de sua roupagem sagrada, destituí-los de sua transcendência e criar o performático e acrobático Wu Shu moderno. Com a Revolução Cultural, mestres e monges taoistas e budistas foram torturados e mortos ou se refugiaram nos países ocidentais, onde suas tradições associadas à antiga china, pretensamente “burguesa” não fossem perseguidas. Episódio significativo ocorreu ha alguns meses atrás, quando a população da China, organizada por professores e literatos de diversa extração saiu às ruas para protestar contra o conteúdo didático dos livros de história japoneses.As informações sobre o massacre de Nanquim (1937-38) não são mencionadas nas escolas publicas japonesas em manuais sobre a história da Segunda Guerra Mundial. Por determinação do governo Japonês após o massacre de Nanquim, os motivos nunca foram esclarecidos ou questionados por autoridades internacionais, provocando instabilidade em relações diplomáticas entre os países da Ásia.18 A reconstrução de Shaolin, a transformação de seus monges, em meados da década de 1980, em “ícones pop” e a padronização dos estilos são parte das recentes reconfigurações e adaptações resultantes da abertura de mercado pela qual vem passando a China Contemporânea. O crescimento da economia foi acompanhado pelo surgimento do cinema épico que faz lembrar a antiga literatura heróica e traz para as telas o desejo de vitória sobre antigos inimigos abrindo a cultura do Grande Dragão a influências ocidentais. Relembrar Shaolin nos albores do Século XXI é, não só, atestar a atualidade do Budismo enquanto catalisador de atenções no ocidente e no oriente, mas, também, constatar o quanto do mito do Herói chinês clássico ainda permanece no imaginário dos chineses atuais, bem como na cultura de quantos admiram sua marcialidade e seus códigos de honra e espiritualidade. As artes marciais praticadas atualmente na encosta do monte Song fogem às de qualquer “velha tradição”, seguindo as orientações da “nova arte marcial chinesa” ditada por Beijing. Atualmente, o mosteiro dispõe de 180 “monges guerreiros” que fazem demonstrações do moderno Wushu na China, Europa e América do Norte. O Budismo, controlado pelo Estado, parece não encontrar guarida para qualquer relação séria com “espíritos guardiões guerreiros”, apesar da observação de SHAHAR sobre o renascimento do culto popular a Jinnaluo (patrono marcial tradicional de Shaolin). Os monges administradores, por sua vez, travam novas batalhas, como, por exemplo, a referente à exploração comercial da marca “Shaolin” por estrangeiros ou à inscrição do complexo religioso na lista de patrimônios da humanidade da ONU. Recebido em março/2008; aprovado em maio/2008. 276 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 Budismo, marcialidade e legitimação da violência Notas * Doutor e professor da UFCG e Pós-doutorando em História pela UFPE. E-mail: j.otavio.a@hotmail.com ** Doutorando em Sociologia pela UFPR. E-mail: rwapolloni@gmail.com 1 Baseamos essa informação em dados de campo obtidos em nossa pesquisa de mestrado, realizada junto a praticantes de Kung-Fu chineses e brasileiros das cidades de São Paulo, Campo Grande, Florianópolis, Curitiba e Belo Horizonte. 2 Sobre os vocábulos em Mandarin sua significação atual veja: Dicionário Português-Chinês - livro de bolso, 2.ª edição. A maioria dos termos aqui referenciados e traduzidos são provenientes do idioma Cantonês e não encontra tradução fácil em obras de referências no Brasil. A maioria dos mestres que veio para o Brasil, entretanto, é falante de cantonês. Muitas informações aqui reunidas foram coletadas através de diálogos com esses mestres. Dentre eles, sou especialmente grato aos Mestres Fanthum de Belo Horizonte e ao Grão Mestre Chan Kwok Way, de São Paulo. 3 Cf. GRANET, M. A Civilização Chinesa. Rio de Janeiro, Ferni, 1979. GRANET, M. Pensamento Chinês. Lisboa, Contraponto, 1997. Ver também, do mesmo autor, Pensamento Chinês. Lisboa: Contraponto, 1997 e La religion des Chinois (1922). Les Presses universitaires de France, 2. ed. Paris, 1951. 177 p. 4 SHAHAR, M., Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin Monastery, inédito, 21 p.__________. Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice, in Harvard Journal of Asiatic Studies, v. 61, n. 2, dez. 2001, p. 359 a 413. Ver também SHAHAR, M.. Evidências da Prática Marcial em Shaolin durante o Período Ming. In: Revista de Estudos da Religião. PUC- SP, n. 4, 2003, p. 135. 5 Shahar tem livros publicados sobre a tradição militar de Shaolin, bem como, sobre a religiosidade popular na China. Infelizmente, não há no momento nenhum desses livros traduzidos para o português. Esforço louvável o do Prof. Rodrigo Wolf Apolloni que traduziu artigos de Shahar com sua prévia autorização. Cf. APOLLONI, Rodrigo Wolff. Shaolin à brasileira: estudo sobre a presença e a transformação de elementos religiosos orientais no kung fu praticado no Brasil. PUC-SP: São Paulo, 2004 (Dissertação de Mestrado). Um dos artigos de Shahar foi traduzido por APOLLONI e publicado na seguinte fonte eletrônica: http:// www.pucsp.br/rever/i_shahar.html. Veja também de Shahar, em idioma inglês: The Shaolin Monastery: History, Religion and the Chinese Martial Arts, Forthcoming, Honolulu: The University of Hawai’i Press, 2007. Crazy Ji: Chinese Religion and Popular Literature, Harvard-Yenching Institute Monograph Series, 48, Cambridge: Harvard University Asia Center, 1998. The Chinese Religion, Ha-Dat ha-Sinit, in Hebrew, Tel Aviv: The Broadcast University Series Press, 1998. Unruly Gods: Divinity and Society in China, Coedited with Robert Weller, Honolulu: University of Hawai’i Press, 1996. 6 APOLLONI, Rodrigo Wolff. Shaolin à brasileira: estudo sobre a presença e a transformação de elementos religiosos orientais no Kung fu praticado no Brasil. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2004 (Dissertação de Mestrado). 7 Cf. DERRICKSON, Chinese for the Martial Arts; Rutland: Charles E. Tuttle, 1996. Ver também: HUNT, L. Kung Fu Cult Masters: From Bruce Lee to Crouching Tiger. Londres, Wallflower, 2003. 8 Estupas são monumentos funerários budistas em formato de sino. São muito comuns na China e há um cemitério repleto delas no templo Shaolin, que costuma ser chamado de floresta de estupas. Nas estupas consta, com freqüência, um epitáfio do morto, descrevendo seus feitos notáveis, sejam religiosos ou militares. 9 SHAHAR, Meir. Evidências da Prática Marcial em Shaolin durante o Período Ming. Revista de Estudos da Religião, PUC-SP, n 4, 2003, p. 108. 10 Sobre essas informações, confira: SHAHAR, idem, p. 135. 11 Cf. YAO, Xinzong. Religiões Chinesas. In: BOWKER, John. O livro de ouro das religiões: a fé no Ocidente e no Oriente da Pré-História aos nossos dias. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004, p.194. Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008 277 José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni 12 O Dharma (Sânscrito Dhamma (Pali) significa Lei Natural ou Realidade. Como doutrina moral sobre os direitos e deveres de cada um, o Dharma se refere, também, geralmente, ao exercício de uma tarefa espiritual, mas também significa ordem social, conduta reta ou, simplesmente, virtude intrínseca à natureza búdica de todos os seres. 13 SHAHAR, idem, p. 135. 14 Vyassa, Poema do Senhor - Bhagavad Guitá, transcrição, introdução notas e glossário de António Barahona, pg. 33 e 34 Cf: C:\Documents and Settings\win xp\Desktop\Vajramushti.htm 15 Filme: O Tigre e o Dragão. Wo Hu Zang Long. China/Hong Kong/Taiwan/EUA, 2000. 16 A essa discussão instigante, que ocuparia com proveito algumas páginas deste resumo, não dedicarei mais que este comentário, que visa abrir espaço para a produção de trabalhos posteriores mais exaustivos e abrangentes. 17 Variantes: Wu Shu, Wu-shu, Kuoshu, Kuo Shu e Kuo-shu. 18 Um estudo competentemente elaborado e impressionante pelos detalhes sobre o “Estupro de Nanquin” pode ser encontrado em: YOSHIAKI, Yoshimi, Comfort Women, sexual slavery in the Japanese military during World War II. Editora Columbia University Press, 2000. 278 Projeto História, São Paulo, n.37, p. 261-278, dez. 2008