http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/parc
http://dx.doi.org/10.20396/parc.v7i1.8644408
ENTRE A REIFICAÇÃO DA ARQUITETURA MODERNISTA E O
APAGAMENTO DA MEMÓRIA: O CASO DE CATAGUASES - MG
BETWEEN APPRECIATION OF THE MODERNIST ARCHITECTURE AND MEMORY
ERASURE: THE CASE OF CATAGUASES - MG
Danilo Celso Pereira1
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, Distrito Federal, Brasil, danilo.paraitinga@gmail.com
Resumo
Excluída da “civilização do ouro” de Minas Gerais, Cataguases teve sua colonização do começo do século XIX ligada à agropecuária
e à cafeicultura. No início do século XX recebeu algumas indústrias, destacando-se no ramo têxtil e metalúrgico, acarretando seu
desenvolvimento. Explica-se daí uma série de monumentos recentes assinados por alguns dos mais importantes artistas do
modernismo, o que permite aos moradores de Cataguases falarem de um “movimento modernista” da cidade, contudo, seu espaço
urbano apresenta uma riqueza de tipologias arquitetônicas com bens neocoloniais, ecléticos e art déco. Apesar disso, apenas o
modernismo é exaltado como de relevância, tanto pelas instituições locais, como pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan) que tombou a cidade em 1994. Assim, pretende-se nesse texto problematizar questões referentes ao processo de
seleção do conjunto urbano de Cataguases como patrimônio cultural nacional, com destaque para a delimitação do perímetro de
tombamento que se deu, sobretudo, pela valoração arquitetônica em detrimento da salvaguarda da memória dos grupos sociais que
habitam a cidade, em particular a memória operária.
Palavras-chave: Patrimônio cultural. Políticas de preservação. Memória. Cataguases. Iphan.
Abstract
Deleted from the "gold civilization", Cataguases had his colonization in the early nineteenth century linked to agriculture and
coffee growing. In the twentieth century, it received some industries, especially the textile and metal industry, encouraging its
development. This explains a number of recent monuments, signed by some of the most important artists of modernism, which
allows residents of Cataguases speak of a "modernist movement" of the city, yet its urban space presents a wealth of architectural
typologies neo-colonial, eclectic and art deco. However, only the modernist architecture is exalted as much relevance by local
institutions and by the National Institute of Historic and Artistic Heritage, responsible for the preservation of this urban area
since 1994. Thus, it is intended in this text discuss issues relating to listing the urban area preservation the Cataguases as national
cultural heritage, especially the delimitation of perimeter protection that occurred mainly by architectural valuation at the
expense of safeguarding the memory of groups social inhabiting the city, in particular, the working memory.
Keywords: Cultural heritage. Preservation policies. Memory. Cataguases. Iphan.
How to cite this article:
PEREIRA, Danilo Celso. Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG. PARC
Pesquisa em Arquitetura e Construção, Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016. ISSN 1980-6809. Disponível em:
<http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/parc/article/view/8644408>. Acesso em: 12 ago. 2016.
doi:http://dx.doi.org/10.20396/parc.v7i1.8644408.
Received in 19.03.2016 - accepted in 02.08.2016
46 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
Introdução
O tombamento federal de Cataguases desempenhou um
importante papel simbólico por se constituir na eleição da
primeira cidade-patrimônio que não representava o
período colonial e nem a arquitetura barroca no estado de
Minas Gerais, além de ter quebrado um hiato de 56 anos
sem tombamentos de cidades no estado, visto que as
ultimas ações nesse sentido foram a dos pioneiros
fundadores do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan)¹ em 1938. Assim, pretende-se
nesse texto problematizar questões referentes ao processo
de seleção da cidade de Cataguases como patrimônio
cultural a partir de uma análise do contexto nacional de
preservação federal, com destaque para a delimitação do
perímetro de tombamento que se deu, sobretudo, pela
valoração arquitetônica em detrimento da salvaguarda da
memória dos grupos sociais que habitam essa cidade.
Cataguases destacou-se no cenário nacional no século XX
por uma intensa produção cultural ligada ao cinema, à
literatura e à arquitetura modernista. Contudo, o principal
fator que possibilitou essa efervescência cultural em um
povoado fundado em 1828, através de uma campanha do
Império de explorar os territórios ainda não ocupados em
Minas Gerais por meio da exploração cafeeira, foi a
chegada da estrada de ferro Leopoldina Railway Company
em 1877, transformando a vila em um importante ponto de
embarque/desembarque e de exportação de café na região,
estabelecendo importante vínculo comercial com a então
capital do país, o Rio de Janeiro. A partir de 1905, em
decorrência da riqueza acumulada pela produção e
comercialização do café, Cataguases começa a vivenciar
um novo processo social, a industrialização, que acarretou
profundas transformações no seu espaço urbano.
A construção de um patrimônio cultural
nacional
No Brasil, como destacou Fonseca (2009), desde o século
XVIII foram encontradas referências sobre iniciativas
visando à salvaguarda do patrimônio, contudo, apenas em
1933 surgiu a primeira lei federal referente a essa temática,
o Decreto nº 22.298, de julho de 1933, que elevou a
também cidade mineira de Ouro Preto à categoria de
Monumento Nacional com a justificativa de este ser o
lugar da formação da nacionalidade brasileira, além da
presença de diversas obras de arte:
Considerando que a cidade de Ouro Preto, antiga
capital de Minas Gerais, foi palco de
acontecimentos de alto relevo histórico na
formação da nossa nacionalidade e que possui
velhos monumentos, edifícios e templos de
arquitetura colonial, verdadeiras obras de arte, que
merecem defesa e conservação. (BRASIL, 1933)
Para Sant’Anna (1995), a declaração de Ouro Preto como
Monumento Nacional, embora de caráter assistemático e
pontual, marcou o início da cidade mineira como cidadeparadigma da nacionalidade, berço da cultura brasileira e
obra de arte a ser conservada em sua total integridade.
Contudo, foi o Decreto-lei 25, de novembro de 1937, a
primeira lei brasileira específica referente à preservação
do patrimônio, quando se organizou a salvaguarda dos
bens culturais através do tombamento.
Nesse contexto, Getúlio Vargas, apoiado pelos intelectuais
modernistas, criou em 1937 o Iphan, órgão que passou a
replicar o modelo de preservação do patrimônio adotado
em Ouro Preto, a cidade “obra de arte”, para as outras
cidades do Brasil até fim os anos 1970.
Durante esses primeiros 40 anos de atuação do Iphan, os
critérios de seleção, autenticidade e restauração dos bens
eram sustentados basicamente na autoridade e no notório
saber dos intelectuais integrantes da instituição. O valor
estético do bem, que era atribuído conforme a visão dos
arquitetos modernistas, que constituíam a maioria dos
funcionários do Iphan, predominou sobre todos os outros
no trabalho de construção do patrimônio histórico e
artístico nacional. Assim, a avaliação do valor histórico
ficava em segundo plano, restrito à vinculação do bem aos
fatos memoráveis da história do Brasil (FONSECA,
2009).
Logo, no que se refere à salvaguarda de conjuntos urbanos,
o tratamento metodológico adotado na instrução dos
processos de tombamento identificava as representações
do espaço como monumentos, as cidades-monumentos.
Sant’Anna (1995, p. 137) aponta que:
Essa identificação, além de remeter a uma
preservação global do objeto urbano, implicou
também a sua apreensão como obra de arte, objeto
de época ou um todo fechado, cuja expansão ou
modificação jamais poderia ocorrer em seu próprio
âmbito, mas somente fora dele e bastante afastado.
A expressão cidade-monumento, correntemente
utilizada na época, indica esplendidamente essa
aproximação que, além de fundamentar a
abordagem mais propriamente urbanística do
problema, também teve importantes reflexos nas
regras que foram montadas nessa época para a
aceitação de construções novas nessas áreas.
Na prática, a cidade concebida como monumento consistia
na supervalorização do componente estético, era a cidade
concebida enquanto obra de arte, resultando em um
descaso aos seus componentes sociais e econômicos, o que
repercutia nos usos e atividades desenvolvidas nessas
cidades e nas possibilidades reais de conservação. Essa
concepção de cidade-monumento “possibilitou a
construção de um quadro conceitual e metodológico para
o desenvolvimento de ações que até hoje marcam
47 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
profundamente a instituição” (SANT’ANNA, 1995, p.
117).
prontas ou finitas, conforme desenvolvidas até então
(MOTTA, 2000).
Motta (2000) destacou ainda que o acervo selecionado
com base em critérios estético-estilísticos e de
excepcionalidade como patrimônio nacional, assimilado
como natural, formou um quadro social da memória e
incorporou-se à memória social, circunscrevendo as ações
dos períodos subsequentes, mesmo que baseados em
propostas diferentes.
Contudo, foi a partir dos anos 1980 que se iniciou de fato
um processo de revisão crítica dos procedimentos de
instrução dos tombamentos e dos critérios de seleção,
quando passou a reivindicando-se maior transparência e
legitimidade científica aos processos de valoração dos
bens culturais. Para Sant’Anna (1995), esse momento
marcou a crise da avaliação puramente estética e
arquitetônica das cidades-patrimônio, em favor de uma
abordagem mais ampla.
Deste modo, para a autora:
[...] a imagem da nação foi apropriada como ideia
lato sensu, ficando esquecidas a origem e os
motivos da escolha dos imóveis e sítios coloniais
e/ou excepcionais como patrimônio. Não houve
consciência de que este patrimônio era um
determinado recorte feito sobre a produção
brasileira em acordo com um projeto e momento
histórico específico, levando ao uso de critérios
semelhantes de seleção do patrimônio cultural,
observando-se aspectos estético-estilísticos e a
excepcionalidade, em contextos históricos
diferentes e diante de novos projetos de identidade
cultural. (MOTTA, 2000, p. 31)
Assim, o sentido inicial dos trabalhos do Iphan na
construção da noção de patrimônio no Brasil repercute na
sua atuação até hoje, vigorando a imagem de um
patrimônio excepcional. Ou seja, de acordo com
Sant’Anna (1995) e Motta (2000), a ênfase no valor
artístico segundo o gosto educado dos arquitetos, as
referências na história dos estilos, a ideia de uniformidade,
à semelhança do que foi selecionado como objeto da
memória nacional nos seus primeiros anos de atuação,
passou a identificar o valor de patrimônio, tornando-se
padrão exigido na seleção dos objetos culturais para
preservação, não considerando outros valores culturais
que os objetos pudessem conter. Trata-se de um status de
patrimônio incorporado à memória, correspondente a uma
imagem a qual outros valores de caráter histórico, cultural,
afetivo e cognitivo não tiveram força para se somar.
A partir da década de 1970 a valoração das cidadespatrimônio começou a passar por algumas mudanças. O
Iphan reconheceu a necessidade de abranger um acervo
mais numeroso de cidades, em vista do entendimento de
que o valor patrimonial também poderia servir ao
desenvolvimento do turismo e da promoção do
desenvolvimento das cidades, que não mais poderiam ser
tratadas apenas como obras de arte finita. Assim, passouse a admitir uma dinâmica desses bens, considerada
improvável anteriormente, e a sua percepção a partir de
diferentes fases de desenvolvimento fundamentando a
perspectiva histórica e o seu desenvolvimento como objeto
socialmente construído em permanente transformação e
não limitada às suas qualidades artísticas, acabadas,
Desta forma, nesse momento a grande mudança na prática
de seleção se referiu aos critérios estéticos que foram
deixados de lado, e parte significativa dos tombamentos
passaram a ser fundamentados pelos valores históricos dos
bens. Assim, ocorreu uma mudança de conceito, a cidadepatrimônio passou a ser concebida como um “documento
histórico, um objeto cultural vinculado também à história,
à etnografia, à arqueologia, ao urbanismo e a outras
disciplinas, além da história da arte e da arquitetura, como
era usual” (SANT’ANNA, 1995, p. 215), temos então, a
cidade-documento.
Assim, agora as cidades-patrimônio não se constituíam
mais como obra de arte, mas sim “como um documento
que informa sobre a ocupação do território brasileiro e
sobre os processos históricos de produção do espaço”
(SANT’ANNA, 1995, p. 218). Assim, teve-se pela
primeira vez o tombamento de áreas consideradas sem
valor artístico, mas que representavam situações sociais e
econômicas que marcaram a evolução das cidades no
Brasil.
Ainda nesse sentido, Motta (2000, p. 108) destacou que
essas cidades representavam:
[...] um marco da conquista do território brasileiro.
Mas o quê desse território ocupado? A sua relação
com o sítio natural que resulta de um complexo de
elementos que representam materialmente
processos de organização e evolução de uma
cidade. Não se tratava da preservação da soma de
valores individuais, mas dos vestígios do processo
de ocupação e permanência do homem ocidental
naquele lugar.
Não obstante, nos anos 1990 o Iphan se mostrou incapaz
de manter os avanços conquistados na década anterior,
sucumbindo novamente à seleção de bens culturais pelo
gosto dos arquitetos. Tais práticas de seleção até se
acentuaram com a exacerbação dos valores ditados pelo
neoliberalismo, o capital e o lucro, inserindo não só as
cidades-patrimônio, mas a maioria das cidades brasileiras
em um espaço de disputas do mercado global. Desta
forma, se fortaleceu a apropriação do patrimônio como
mercadoria, empregando critérios para sua transformação
em produto, visando o consumo visual, guiados por
48 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
padrões de beleza ditados pelo mercado. Conforme Motta
(2000, p. 17), no dia “15 de março de 1990, quando mudou
o governo federal, iniciou-se a implantação da política de
apropriação do patrimônio para o mercado de consumo”.
Contudo, como apontou Chuva (2013), no que se refere
aos discursos de valoração nos anos 1990, é necessário
considerar que os técnicos não tinham uma posição única,
as tensões e posições antagônicas eram constantes. Os
processos de tombamento refletem esse fato. Assim,
mesmo havendo o conceito de cidade-documento, que
predominou na instrução dos processos de tombamento
em certo momento, ele não foi homogêneo, ele conquistou
apenas parte dos técnicos. Esses técnicos foram superados,
mas não houve o retorno à cidade-monumento, não se
ignorou completamente a história da ocupação do
território, talvez o que seja significativo, mas os valores
estéticos voltaram a predominar (informação verbal)².
É nesse contexto, entre o final dos anos 1980 quando se
buscavam novos caminhos para a seleção das cidadespatrimônio, e o início dos anos 1990 com o retorno dos
critérios baseada na história da arquitetura e nos seus
valores estético-estilísticos, que se deram as ações do
Iphan em Cataguases.
Assim, em 1987, a partir de uma demanda local, quando a
Secretaria Municipal de Cultura solicitou ao Iphan uma
parceria que tinha como objetivo levantar dados visando o
resgate da cultura e da memória cataguasense,
evidenciando o movimento modernista ocorrido na cidade
na década de 1920, iniciaram-se as ações do instituto no
município.
Em parceria com a Prefeitura Municipal de Cataguases,
com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Cataguases (FAFIC) e a Superintendência do Iphan de
Minas Gerais, se desenvolveu o projeto “Memória e
Patrimônio Cultural de Cataguases”. O presente projeto
tinha como objetivo desenvolver um trabalho de
divulgação e valorização das manifestações culturais da
cidade, promovendo a preservação a partir da
conscientização da população através do reconhecimento
da importância das suas manifestações culturais. À época
não se objetivava tombamentos, a não ser que a partir
desse projeto essa demanda surgisse na comunidade,
concatenado, assim, com os novos preceitos de seleção de
bens culturais dos anos 1980, como foi exposto.
O projeto se deteve ao movimento modernista dos
“Verdes”, um grupo de jovens literatos moradores da
cidade que publicam a Revista Verde entre 1927 e 1929,
de cunho modernista e que alcançou repercussão nacional.
Para o Iphan (1994, p. 07):
A repercussão do fenômeno Cataguases deu-se
principalmente em função da origem da revista
Verde, pois a realização desta publicação da Mata
ofereceu ao país uma resposta positiva sobre a
viabilidade da produção cultural em regiões
excluídas dos centros polarizadores de informação
[...]. Foi a tradução provinciana de um esforço de
autossuperação cultural.
Desta forma, este grupo teria sido o responsável por abrir
caminho para outras manifestações culturais na cidade,
que viriam a ocorrer a partir de então.
Já em 1994, no contexto da volta da seleção das cidadespatrimônio ditada pelos valores estético-estilísticos, a
parceria se ampliou com a participação do Instituto de
Arquitetos do Brasil (IAB) e o Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
(IEPHA), resultando na publicação “Cataguases – um
olhar sobre a modernidade”, focado em arquitetura, artes
plásticas, mobiliário, cinema e literatura produzidos na
cidade. Para Alonso (2010, p. 34):
Pode-se dizer que aquela publicação foi uma das
primeiras
análises
detalhadas
daquelas
manifestações culturais de Cataguases e foi muito
utilizado para o embasamento técnico do dossiê de
tombamento que seria feito naquele mesmo ano de
1994.
Assim, essa última publicação marcou o momento de
ruptura entre os trabalhos até então realizados, voltado aos
inventários participativos, para uma ação voltada ao
patrimônio material edificado. Aqui cabe ressaltar que a
solicitação de tombamento foi feita pela então
superintendente do Iphan em Minas Gerais, Claudia Lage,
ao então presidente do Iphan, Glauco Campello, se
constituindo de uma ação “de cima para baixo”, no sentido
de que não foi necessário o surgimento de uma demanda
local de acautelamento como se havia proposto em 1987.
Os estudos voltam-se, a partir de então, à produção
arquitetônica modernista da cidade, produção essa que se
iniciou nos anos 1940 e estendeu-se até o fim da década de
1960. O marco inicial dessa produção foi a construção da
residência Francisco Inácio Peixoto, projetada em 1941
por Oscar Niemeyer, com jardins de Burle Marx,
esculturas de José Pedroso e Jan Zach e mobiliário de
Joaquim Tenreiro.
Peixoto é considerado o mentor da arquitetura moderna em
Cataguases. Participante ativo das atividades do grupo dos
Verdes nos anos 1920, o industrial foi um dos principais
financiadores desse processo de “renovação” na cidade.
Como destaca Iphan (1994, p. 06):
O mecenato surge como elemento decisivo na
produção e na difusão de bens culturais, encarnado
na figura de empresários de perfil tão modernista
quanto os artistas que apoiaram. Não se tem notícia
da injeção de recursos públicos na formação do
mais importante polo de modernidade em Minas
Gerais. Foi a iniciativa privada local que promoveu
49 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
a invasão de Cataguases pela arquitetura, pelas
artes plásticas e pelo design com as características
de modernidade que até hoje identificam e
orgulham a cidade.
Em 1943, o industrial encomenda a Niemeyer o projeto do
Colégio Cataguases (Figura 1) para a substituição do
antigo edifício que o abrigava. O colégio possui
paisagismo de Burle Marx, escultura de Jan Zach, painel
em pastilha de Paulo Werneck e mobiliário de Joaquim
Tenreiro, além de ter abrigado em seu saguão principal o
painel de Cândido Portinari, Tiradentes, hoje acervo do
Memorial da América Latina em São Paulo.
Figura 1 – Colégio Cataguases, projeto de Oscar Niemeye.
Cataguases não se conforma como um conjunto
homogêneo, como as cidades patrimônio até então
protegidas no estado, pois as edificações e as obras
modernistas estão dispersas pela cidade, mescladas a
outras tipologias, como o neocolonial, art decó, eclético e
arquitetura industrial. Tal realidade urbana representou
aos técnicos do Iphan um desafio, pois ao se reconhecer as
obras modernistas consideradas de valor significativo,
poderia se incorrer no risco de não reconhecer toda a
importância do processo histórico, cultural, social e
econômico produzidos em Cataguases. Assim,
considerou-se que:
[...] a melhor forma de se promover o
reconhecimento e a proteção do patrimônio
cultural da cidade é constituí-lo enquanto parte
integrante do centro urbano; a ausência de unidade
enfatiza uma das principais características do
movimento modernista em Cataguases, qual seja o
seu caráter inconcluso. As contradições e conflitos
decorrentes do tratamento do conjunto
representam ademais fator relevante para o
entendimento dos processos identificados com os
êxitos e malogros dos rumos imprimidos à
renovação da cidade e à ação dos “modernistas”.
(IPHAN, 1994, p. 51)
Para tanto, o documento enfatizou a necessidade de
discutir um novo conceito de Centro Histórico, onde
Cataguases:
Fonte: PEREIRA, 2015, p. 151
A partir desses dois projetos, seguiu-se a execução de
inúmeros outros, de uso público e privado, que a elite
cataguasense encomendou a arquitetos modernistas que
atuavam no Rio de Janeiro.
Tendo em vista essa produção arquitetônica, se elaborou
um dossiê de tombamento embasado pela seguinte
premissa:
No plano conceitual é mister situar o debate,
orientando-se no sentido da superação da
dicotomia entre as obras tidas e havidas de
excepcional valor, expressões máximas e acabadas
dos novos enunciados estéticos, emblemáticos e um
novo período artístico ou revelador de notáveis
qualidades de seus criadores e aquelas que apenas
denotam os padrões correntes, diluídos nas
paisagens rotineiras do cotidiano urbano [...].
(IPHAN, 1994, p. 49)
Contudo, ao eleger 16 bens para o tombamento isolado, o
documento, ao invés de superar tal dicotomia, a acentuou.
[...] revela a complexidade de sua história em um
novo conceito de Centro Histórico, considerandose, sobretudo, seus períodos mais recentes.
Conceito que rompe os limites impostos pelo peso
da herança adquirida irrefletidamente da cultura
europeia, acostumada a circunscrever os interesses
prioritários aos remanescentes da sociedade préindustrial cujo ideal de harmonia sempre estimulou
os sentimentos de admiração e respeito. (IPHAN,
1994, p. 52)
Desta forma, além dos bens tombados isoladamente – dos
quais onze são modernistas e cinco anteriores a estes –
estabeleceu-se o perímetro que definiu a área de interesse
cultural (Figura 2).
Não obstante, já prevendo as dificuldades de preservação,
o documento apontou que as diretrizes de gestão deveriam
ser diferentes das adotadas nas outras cidades-patrimônio
mineiras, ficando os bens inventariados sob tutela do
Iphan, assim como o traçado urbano. Já os demais imóveis
que compõem o centro histórico deveriam ficar
submetidos às posturas municipais.
50 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Conjunto Histórico, Arquitetônico e Paisagístico da Cidade de Cataguases-MG: entre a reificação da arquitetura e o apagamento da memória
Figura 2. Mapa da Poligonal e dos Bens tombados isoladamente do Conjunto Histórico, Arquitetônico e Paisagístico da Cidade de Cataguases
Fonte: IPHAN-MG, 1994. Elaborado pelo autor
O processo de tombamento apontou ainda a necessidade
da realização de novos inventários dentro do perímetro de
proteção para listar outros imóveis relacionados à
formação e desenvolvimento da cidade, contudo entendese que tais inventários deveriam ter sido realizados durante
a instrução do processo, de preferência com a participação
da comunidade, para que os mesmos pudessem ter sido
apreciados pelo Conselho Consultivo do Patrimônio do
Iphan. Corrobora com essa afirmação o fato de que tais
inventários nunca foram elaborados, fazendo com que a
inscrição do bem tombado em 1994 só ocorresse em 2003
nos Livros do Tombo de Belas Artes, Histórico e
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
Dentre as consequências da não realização de tais
inventários, houve a exclusão do acervo móvel
(mobiliário), uma vez que não era possível precisar no que
se referiam tais bens, assim, ficou tombado:
O Conjunto Histórico, Arquitetônico e Paisagístico
da Cidade de Cataguases, no Estado de Minas
Gerais, de acordo com o perímetro delimitado nos
autos, observando a condição de especial destaque
conferida aos bens imóveis e integrada
relacionada, assim como a exclusão do acervo
móvel. (IPHAN, 2003, p.01, grifo nosso)
Quanto às posturas municipais, em 2006 elaborou-se um
Plano Diretor Participativo (PDP), exigido pelo Estatuto
da Cidade. Com recursos do Programa Monumenta, um
dos eixos abordados deveria ter sido a preservação do
patrimônio cultural, contudo, esse tema não foi levantado
em nenhuma das reuniões com a comunidade durante sua
elaboração, fato que mostra como a questão da
preservação se mostrava distante da comunidade.
Por iniciativas de técnicos municipais, foi sugerido na
criação do anteprojeto o estabelecimento de uma Zona de
Preservação Cultural que, além da poligonal de
tombamento do Iphan, reconhecia o interesse cultural de
outras áreas adjacentes. A Zona teria uma permeabilidade
mínima de 30% e limite de gabarito de no máximo nove
metros para as novas edificações, assim se garantiria a
manutenção da paisagem do conjunto urbano tombado
Received in 19.03.2016 - accepted in 02.08.2016
51 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
que, segundo Alonso (2013), vem sofrendo forte pressão
do setor imobiliário por verticalização, o que além do
prejuízo paisagístico, acarretaria um desconforto
ambiental por prejudicar a circulação dos ventos e
propiciaria a formação de ilhas de calor (informação
verbal)³.
Contudo, quando a lei já aprovada pela Câmara Municipal
retornou ao Executivo para ser sancionada, o Prefeito
Municipal vetou os incisos que tratavam da
permeabilidade e do gabarito da Zona de Proteção
Cultural. Para Alonso (2013), tais vetos estão relacionados
a pressões por parte de alguns setores da construção civil
que atuam no município (informação verbal)4.
Desta forma, percebe-se o quão complexo é a gestão do
patrimônio em Cataguases, de um lado por parte da
municipalidade e de outro pelo próprio Iphan que, por não
ter normas e critérios estabelecidos, e nem ter realizado os
inventários sugeridos no processo de tombamento, tem
dado margens a ações de grupos influentes contrários à
preservação. Conforme Alonso (2010, p. 96):
O detalhamento das coisas individualmente que ao
ser somado daria escopo ao conjunto não há. Não
há inventário. Não há no processo os critérios e a
justificativa técnica da escolha dos suportes – bens
tombados individualmente e delimitação do
perímetro − que representariam as manifestações
culturais de Cataguases.
Logo, constatou-se que, mesmo protegido juridicamente,
sem a realização dos inventários capazes de detalhar o
complexo e rico patrimônio da cidade de Cataguases −
dotando-o de normativas claras e eficientes de gestão,
tendo o poder público e a comunidade local como
parceiros −, a sua salvaguarda não está garantida.
Entre a reificação da arquitetura
modernista e o apagamento da memória
industrial
O Dossiê de Tombamento de Cataguases traz em sua
apresentação uma noção ampliada de patrimônio cultural,
afinada com as reflexões realizadas durante os anos 1970
e 1980 e com a definição de patrimônio cultural
apresentada na Constituição de 1988, como podem ser
observadas:
Este fim de século mostra a saturação de certas
práticas e certas teorias e nos empurra para a
busca de alternativas aptas a acercarem-se da
identificação, documentação, proteção e promoção
do patrimônio cultural, em sua pluralidade. Se
antes as políticas públicas privilegiavam os
monumentos barrocos e a homogeneidade dos
conjuntos arquitetônicos setecentistas, agora são
as cidades e as diferenças que o espaço urbano
concentra que estão no centro da cena. O
patrimônio cultural é hoje composto, construído e
tecido na vida cotidiana de todas as cidades, não
apenas daquelas chamadas históricas, pois afinal a
história de Minas não parou no século XVIII, nem
a história do Brasil começou com a chegada dos
portugueses. Agora que a orientação linear da
História encontra-se sob relativa suspeição, a
ocupação do território, com seus diferentes modos
de criar, fazer e viver exigiu a superação da
clássica distinção entre cultura e natureza.
(IPHAN, 1994, p. 05)
O documento traz ainda diversas citações que dizem
respeito à memória, onde destaca-se a seguinte passagem:
Toda dificuldade se encontra em considerar a
memória construída em termos de movimento,
conflito e imprevisibilidade [...]. À medida que
aspectos sociais são considerados os conceitos de
memória se diversificam: memória social, atos
coletivos de lembrar e esquecer, tradição [...].
(SANTOS, 1993 apud IPHAN, 1994, p. 19)5
Contudo, cabe o questionamento de que se a noção
ampliada de patrimônio e de memória balizaram os
estudos para o tombamento da cidade-patrimônio de
Cataguases, por que o conjunto protegido ali não reflete
tais discussões? O documento demonstra uma
preocupação em garantir a salvaguarda das várias
manifestações culturais da cidade ao se embasar nas
manifestações culturais, sociais e econômicas de
Cataguases – a morfologia inicial do arraial, a economia
cafeeira, a importância da ferrovia para o desenvolvimento
econômico, social e urbano, a chegada de imigrantes, as
edificações neocoloniais, ecléticas, art decó, modernistas,
o processo de industrialização, a classe operária e suas
vilas, a literatura com os Verdes, o ciclo do cinema de
Humberto Mauro, Pedro Camello e Eva Nill. Desta forma,
o que parecia ambicioso e sem dúvida traria importantes
contribuições para as políticas de preservação do
patrimônio no Brasil, o tombamento não conseguiu
efetivar.
No que se refere à produção arquitetônica modernista,
como já foi mencionado, tem-se uma expressiva produção
de artistas residentes no Rio de Janeiro na década de 1940,
como Niemeyer, Bolonha, Portinari, Burle Marx, entre
outros. Na década seguinte surgem obras do arquiteto
Luzimar Goés Telles, morador da cidade e que teve uma
produção, segundo Alonso (2010, p. 87), que “se destaca
pela quantidade e variedade dos programas
arquitetônicos”, sendo o arquiteto que mais produziu obras
modernistas em Cataguases, que vão desde industrias e
seus respectivos escritórios, reformulação de praças,
sindicatos, clubes, fórum, hospitais, consultórios médicos,
blocos residenciais, residências, entre tantos outros
projetos. Contudo, mesmo o dossiê reconhecendo a
importância do legado de Telles, autor de cerca de sessenta
52 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
projetos realizados em Cataguases, o arquiteto não teve
nenhum exemplar eleito para tombamento individual.
Figura 3 – Igreja de Santa Rita de Cássia em estilo modernista
Outra ausência marcante entre os bens listados para o
tombamento isolado foi a da Igreja Matriz Santa Rita de
Cássia (Figura 3), o projeto de Edgar Guimarães do Valle
com mural externo em azulejos de Djanira e pinturas
parietais internas de Nanzito Salgado, segundo pesquisas
realizadas em 2006 para a elaboração do PDP com a
população local para identificar quais seriam as
edificações mais representativas de Cataguases, foi
apontada como o principal sustentáculo de identidade da
comunidade, como pode se observar:
Em relação à arquitetura temos a quase
unanimidade na avaliação popular em relação à
Igreja de Santa Rita, com 93,3% de respostas
válidas para os quesitos “importante” e “muito
importante”; seguida pelo Colégio Cataguases,
com 90,9% e a Chácara Catarina, com 84,4%.
Aqui, a grande distinção encontra-se no
conhecimento amplo destes monumentos pela
comunidade, o que os tornam amplamente
populares. (UFMG, 2006 apud ALONSO, 2010, p.
84)6
Desta forma, para um documento que aparentemente
pretendia salvaguardar uma significativa variedade de
manifestações culturais, no âmbito da arquitetura as
escolhas já se mostraram bem restritas. Ao selecionar
dezesseis bens para o tombamento individual, o processo
já criou uma hierarquia simbólica dos bens que compõem
o conjunto, que associado ao fato de que os bens filiados à
tradição modernistas são todos criações de arquitetos e
artistas renomados que possuem obras dispersas pelo
Brasil e pelo mundo, permite afirmar que a memória que
se salvaguardou foi, em primeiro lugar, de um grupo
específico de arquitetos e artistas, os mesmos que
historicamente o Iphan reverenciou, e, por outro lado, da
elite de Cataguases, que financiou essa produção
arquitetônica, práticas das mais arraigadas, tradicionalistas
e anacrónicas do instituto federal.
Além disso, a eleição desses bens no plano do vivido
significou a valoração de um processo de renovação
urbana que substituiu alguns dos principais espaços
públicos da cidade, espaços com os quais certamente a
população local mantinha laços de identidade, por imóveis
até então estranhos naquela cidade, apenas para saciar
desejos pessoais das elites locais.
Não obstante, o Dossiê de Tombamento de Cataguases foi
conivente com a substituição desses lugares das
lembranças do viver e da vida cotidiana, legitimando a
reificação da técnica e da arquitetura em detrimento da
memória, em particular da memória das camadas sociais
populares.
Fonte: PEREIRA, 2015, p.149
Figura 4 – Igreja Matriz de Santa Rita de Cássia na década de 1940
Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de Cataguases, s/d
Nesta perspectiva, vale citar a substituição da Igreja
Matriz de Santa Rita, construída em 1894 em arquitetura
neogótica (Figuras 4), e do Cine-Teatro Recreio de 1893,
em arquitetura maneirista italiano, que, ao lado do Paço
Municipal, da Fábrica Irmãos Peixoto, da Chácara Dona
Catarina e do Hotel Villas, representavam o primeiro ciclo
de expansão econômica da cidade, com a chegada da
ferrovia no final do século XIX e início do XX, momento
em que Cataguases se constituía como uma ilha de
desenvolvimento envolvida por grandes áreas de cultivo
de café. A Igreja e o Cine-Tetro foram, respectivamente,
substituídos em 1944 e 1946, ou seja, ambos com cerca de
50 anos de história.
No que se refere aos bens tombados individualmente de
períodos anteriores ao modernismo, estes têm uma forte
ligação com o ciclo da cafeicultura e com o processo de
industrialização que marcou a história de Cataguases. O
palacete onde hoje funciona o Museu da Eletricidade
Cataguases-Leopoldina e o edifício do Grupo Escolar
Coronel Vieira são exemplares ricos do auge da
cafeicultura na Zona da Mata mineira. Já a Estação
53 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
Ferroviária representa a chegada da modernidade, que
possibilitou a industrialização, processo representado pela
Indústria Irmão Peixoto e pela Ponte Metálica, essa última
possibilitou a ocupação da outra margem do rio pela
expansão da atividade industrial.
Aqui cabe uma observação, além da arquitetura
modernista, no processo de tombamento do Conjunto
Histórico, Arquitetônico e Paisagístico de Cataguases
perdeu-se a oportunidade de valorar outro importante
elemento fortemente marcante do conjunto da cidade, e
que poderia lhe conferir destaque em relação a outras
cidades-patrimônio, visto que estas são formas de
produção do espaço historicamente desvalorizadas, o
patrimônio industrial.
regulada pelo tempo do relógio e do apito da
fábrica e pela necessidade de organização e luta.
(SCIFONI, 2013a, p. 105)
Ao eleger para tombamento individual a Indústria Irmãos
Peixoto e ao incluir na poligonal de tombamento a
Companhia Industrial de Cataguases, as duas principais
indústrias na formação histórica e cultural da cidade, se
garante a salvaguarda da materialidade dos lugares de
memória do trabalho, mesmo que o uso da primeira já
tenha mudado, hoje se constituindo como um shopping
popular.
Já os lugares de moradia operária, para Scifoni (2013, p.
104) representam:
Cataguases possui um expressivo patrimônio industrial
formado por indústrias, vilas operárias, sindicatos e o
conjunto ferroviário, contudo, o tombamento federal não
garante a proteção desse rico conjunto que, sem o respaldo
das políticas públicas de patrimônio, está em franco
processo de desaparecimento, em particular as residências
das vilas que passaram a ser vendidas individualmente
pelas empresas, como também já destacou Alonso (2010).
[...] as experiências compartilhadas do viver
operário, com seus limites e possibilidades.
Incluem-se projetos que surgiram de forma
pioneira como alternativa coletiva, frente às
precárias condições de vida e que tornaram os
operários sujeitos na produção do espaço da
cidade. Lugares que expressam, também, a
intenção de controle e sujeição total do trabalhador
ao Capital e ao Estado e as consequentes formas de
resistências à imposição do espaço abstrato.
Nesta perspectiva, antes de proceder a análise destes
lugares marcados pela atividade industrial, e tendo em
vista que o Dossiê de Tombamento de Cataguases teve na
discussão de memória uma de suas sustentações de
valoração como já mencionamos, entende-se que cabe a
reflexão acerca dos lugares de memória operária.
Conforme Scifoni (2013a, p. 103), sua compreensão:
Esses lugares de morar, que em Cataguases já foram sete
vilas, estão desaparecendo, e mesmo com todos os
problemas de gestão que esta cidade patrimônio apresenta,
como já citado, os modos de morar operário nem foram
incluídos na poligonal de tombamento, com exceção da
Vila Operária Irmãos Peixoto, que se constitui como uma
extensão espacial da Fábrica.
[...] envolve pensar na ordem local, como dimensão
na qual se criam os laços de identidade e de
solidariedade, o plano em que se dá a vida
cotidiana marcada pelo ritmo da fábrica e pelas
lutas e resistência ao processo de alienação no
trabalho, atravessadas, contraditoriamente, pelas
contingências da ordem distante, do mundial [...].
Neste sentido, as categorias de lugares de memória
operária representam as diferentes formas como
essas experiências coletivas e de classe se
inscrevem nos espaços concretos.
Contudo, na primeira área de expansão da cidade
determinada pelo traçado da linha férrea, onde se encontra
a Estação, uma importante área que possibilitaria
concatenar esse momento histórico da cidade ficou fora do
perímetro de tombamento. Trata-se da Vila Operária da
Estação Ferroviária, onde ficavam as moradias dos
funcionários da ferrovia e várias edificações que
mantinham relação com a estação, como armazéns (área A
destacada no mapa da Figura 2).
Em Cataguases, as experiências coletivas da classe
operária inscritas no espaço que se destacam são,
basicamente, os lugares de memória do trabalho e os de
moradia. Para a autora o primeiro se define:
[...] pelas fábricas ou pelos eixos viários ao longo
dos quais estas se concentraram, conformando
espaços da industrialização. A fábrica revela-se
como organizadora da vida social e como
referência espacial, pois que regula o movimento
do bairro, a circulação nas ruas próximas. Nela se
inscreve a memória operária não só como
lembrança da atividade profissional e das
condições do trabalho parcelar e repetitivo que
aliena, mas como recordação de uma sociabilidade
O mesmo ocorreu onde se encontram as instalações da
Companhia Industrial de Cataguases. No entanto, neste
caso a reificação da arquitetura em detrimento da memória
do trabalho é explícita. A linha que delimita a poligonal de
tombamento passa dentro do Bairro Jardim (Figuras 5 e 6),
vila operária da Companhia Industrial, contudo, somente
foram incluídas as edificações projetadas por Francisco
Bolonha – bens que foram tombados individualmente –
não incluindo as outras cem moradias dispostas na encosta
construídas antes da obra de Bolonha (área A destacada no
mapa da Figura 2).
54 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
Figuras 5 – Imóveis projetados por Francisco Bolonha na Vila Operária Bairro Jardim
desconfortáveis [...]. Este tipo de implantação
seria, a nosso ver, inclusive um exemplo a ser
seguido nas demais ocupações de encostas no
restante da cidade.
Portanto, considera-se que os bens culturais reconhecidos
pelo Estado em Cataguases hoje representam a memória
da elite em detrimento das classes sociais populares, em
particular a dos trabalhadores. A arquitetura modernista
eleita é a vinculada aos arquitetos do Rio de Janeiro, que
foi construída para satisfazer os anseios da elite industrial
local, acarretando a demolição de importantes
sustentáculos de identidade coletiva cataguasense.
Considerações Finais
Fonte: O autor (registro de 2013)
Figura 6 – Vila Operária Bairro Jardim
Fonte: O autor (registro de 2013)
De acordo com Alonso (2010, p. 89):
O Bairro Jardim chama a atenção pela sua
implantação: ruas quase que paralelas às curvas de
nível; moradias implantadas no meio do terreno
com afastamentos nas quatro faces; cortes
cuidadosos nos terrenos de forma a evitar
deslizamentos de terra; jardins frontais nas
residências sem fechamentos por muros ou gradis
[...]. Esta morfologia confere a essa vila operária
condições bastante favoráveis de conforto
ambiental, principalmente, no que diz respeito à
ventilação e sombreamento, numa cidade onde os
níveis de temperatura e umidade são razoavelmente
É importante salientar que não se objetivou aqui diminuir
a importância da arquitetura modernista de Cataguases,
uma vez que essa se constituiu em um dos mais
importantes exemplares de conjunto em arquitetura
modernista do Brasil7, mas entende-se que seja necessário
reconhecer que, além de modernista, Cataguases é uma
cidade moderna, uma vez que a arquitetura neocolonial, a
eclética, a art decó e a industrial são vertentes diferentes
do movimento moderno, e que o modo de vida pautado
pelo tempo do relógio e pelo apito da fábrica são os
maiores símbolos da modernidade, o que de fato
justificaria o título de “Patrimônio da Modernidade” da
cidade.
É importante destacar também, que as contradições
presentes do processo de tombamento da cidadepatrimônio de Cataguases refletem um momento de
transição e de disputas internas no Iphan, quando
diferentes grupos de técnicos se articulavam para terem
suas concepções de patrimônio dominantes em um dos
momentos de maior crise da instituição, quando tanto o
instituto quanto o Ministério da Cultura foram extintos
pelo governo Collor.
Por fim, para garantir a preservação desse importante
patrimônio do Brasil, é necessário que se retome os
projetos participativos iniciados em 1987, com a
aproximação do Iphan, da prefeitura e da comunidade,
para que juntos elaborem os inventários solicitados à
época do tombamento, que seja revisto o perímetro de
tombamento e se estabeleçam as normativas para guiar as
intervenções dentro do perímetro de tombamento.
Agradecimentos
Este texto é parte dos resultados da dissertação intitulada “Cidades patrimônio: uma geografia das políticas públicas de preservação
no Brasil” apresentada ao Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Agradeço
a Profª Drª Simone Scifoni por ter orientado essa pesquisa e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
pelo seu financiamento. Seus apoios foram imprescindíveis para o desenvolvimento deste trabalho.
55 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
Notas
(1) Durante os seus 79 anos de existência, o órgão federal de preservação possuiu várias designações, o que mostrava o seu
lugar na estrutura política de governo. Foi criado como SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
em 1937, assumindo a sigla de DPHAN (Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1946, IPHAN
em 1970, voltando a ser SPHAN em 1979, IBPC (Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural) em 1990 e, por fim,
novamente IPHAN em 1995. Contudo, por preferência, o órgão de preservação do patrimônio cultural federal será
referido sempre como Iphan.
(2) Informação fornecida por Márcia Chuva, historiadora do Iphan entre 1985 e 2009, em entrevista ao autor (Rio de Janeiro,
setembro de 2013).
(3) Informações concedidas por Paulo Henrique Alonso, presidente do Instituto Cidade de Cataguases, em entrevista ao autor
(Cataguases, dezembro de 2013).
(4) Ibid.
(5) SANTOS, M. O passado da amnésia coletiva: um estudo sobre os conceitos da memória, tradição e traços do passado.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: ANDOCS, n. 23, 1993.
(6) Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, 2006.
(7) O primeiro bem modernista tombado pelo Iphan foi a Igreja de São Francisco de Assis (MG) em 1947, seguido pelo
tombamento de dezenas de bens isolados no país. A primeiro conjunto urbano modernista só foi tombada em 1990,
Brasília (DF), seguido por Cataguases (MG) e pela Lagoa da Pampulha (MG) em 1994, e pala Vila de Serra do Navio
(AP) em 2012, completando o quadro de conjuntos urbanos modernistas tombadas em nível federal.
Referências
ALONSO, P. H. A construção de um patrimônio cultural: o tombamento federal de Cataguases, Minas Gerais. 2010. 201 f.
Dissertação (Mestrado em Gestão do Patrimônio em Ambiente Construído) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
______. Guia da Arquitetura Modernista de Cataguases. Cataguases: Instituto Cidade de Cataguases, 2012.
BRASIL. Decreto-Lei nº 22.928 de 12 de junho de 1933. Erige a cidade de Ouro Preto em monumento nacional. Diário Oficial da
União. Rio de Janeiro, DF, jul. 1933.
______. Decreto-Lei nº 25 de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Diário
Oficial da União. Rio de Janeiro, DF, nov. 1937.
FONSECA, M. C. L. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro:
UFRJ/Iphan, 2009.
IPHAN. Dossiê de Tombamento – Cataguases. Belo Horizonte: Iphan/MinC, 1994.
______. Anexos – Processo de tombamento de Cataguases. Rio de Janeiro: Iphan/MinC, 2003.
MOTTA, L. Patrimônio Urbano e Memória Social: práticas discursivas e seletivas de preservação cultural – 1975 a 1990.
2000. 173f. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Documento) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
PEREIRA, D.C. Cidades patrimônio: uma geografia das políticas públicas de preservação no Brasil. 2015. 188f. Dissertação
(Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
SANT’ANNA, M. Da cidade-monumento à cidade-documento: a trajetória da norma de preservação de áreas urbanas no
Brasil (1937-1990). 1995. 283f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal da Bahia, Salvador.
SCIFONI, Simone. LUGARES DE MEMÓRIA OPERÁRIA NA METRÓPOLE PAULISTA. GEOUSP: Espaço e Tempo
(Online), São Paulo, n. 33, p. 98-110, apr. 2013. ISSN 2179-0892. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/74304>. Acesso em: 09 aug. 2016. doi::http://dx.doi.org/10.11606/issn.21790892.geousp.2013.74304.
56 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809
PEREIRA, Danilo Celso
Entre a reificação da arquitetura modernista e o apagamento da memória: o caso de Cataguases - MG
______. Para além do capital: o patrimônio industrial na perspectiva dos trabalhadores. In: Anais do VI Encontro
Internacional Arquimemória. Salvador: IAB, 2013b, p. 1-17.
1
Danilo Celso Pereira
Geógrafo. Mestre em Geografia Humana. Endereço postal: SEP 713/913, Bloco D, 3º andar, Brasília, DF, Brasil, CEP 70398-135
57 | PARC Pesq. em Arquit. e Constr., Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 46-57, mar. 2016, ISSN 1980-6809