34
economia & história: crônicas de história econômica
eh
“O Horror! O Horror!”: Roger Casement e a Borracha, no Congo
e na Amazônia
José Flávio Motta (*)
Luciana Suarez Lopes (**)
Então Mr. Ellis se aproximou dele e pediu que se agachasse para poder vendar
seus olhos, porque Roger era alto demais para ele. [...] Levando-o pelo braço, o
carrasco o fez galgar os degraus até a plataforma, devagar para que não tropeçasse.
Ouviu uns movimentos, rezas dos sacerdotes e por fim, outra vez, um sussurro
de Mr. Ellis pedindo que ele abaixasse a cabeça e se inclinasse um pouco, please,
sir. Atendeu e, então, sentiu que o outro havia posto a corda em volta do seu
pescoço. Ainda chegou a ouvir um último sussurro de Mr. Ellis: “Se prender a
respiração será mais rápido, sir.” Obedeceu.
[...]
Não ficaram marcas no Congo nem na Amazônia daquele que tanto fez para
denunciar os grandes crimes cometidos nessas terras nos tempos da borracha.
(VARGAS LLOSA, 2011, p. 384 e 388).
O título por nós escolhido para
esta crônica, como decerto muitos
leitores identificaram, reproduz
as últimas palavras sussurradas
pelo agonizante Kurtz,1 personagem criado por Joseph Conrad (ori-
ginalmente Józef Teodor Konrad
Korzeniowski), escritor nascido na
Ucrânia em 1857 e naturalizado
britânico em 1886. Esse personagem, Kurtz, é desenvolvido no
livro Heart of Darkness. A edição
agosto de 2016
dessa obra de que nos servimos, da
Penguin Books, publicada em 1995
e reimpressa em 2000, contém
também o breve The Congo Diary,
mantido pelo autor em sua viagem
ao Congo, desde sua chegada em
economia & história: crônicas de história econômica
Matadi aos 13 de junho de 1890.
Logo às primeiras linhas desse
diário, Conrad registrou o contato
feito com Roger Casement, este
último tema de nosso texto, bem
como do livro de Vargas Llosa, O
sonho do celta, de onde extraímos
os fragmentos da epígrafe. O registro de Conrad é o seguinte:
Made the acquaintance of Mr. Roger
Casement, which I should consider
as a great pleasure under any cir-
cumstances and now it becomes a
positive piece of luck.
Thinks, speaks well, most intelligent and very sympathetic. (CONRAD, 2000, p. 150)
Responsável pela introdução e
notas dessa edição do Heart of
Darkness (with The Congo Diary),
Robert Hampson, professor de literatura moderna na Royal Holloway,
Universidade de Londres, forneceu-nos alguns primeiros informes
sobre Casement:
Mr. Roger Casement: (1864-1916)
at this period [do contato relatado
por Conrad em seu Diário-JFM/
LSL] was working for the Compag-
nie du Chemin de Fer du Congo as
a supervisor of the railway that
was planned to connect Matadi
with Kinshasa; in 1898 he became
British Consul for the Congo Free
State; in 1903 he prepared a widely
publicized report on atrocities
committed by Belgian colonists.
He was knighted in 1911 and, after
wartime dealings with Germany
in the cause of Irish nationalism,
was hanged by the British in 1916.
(CONRAD, 2000, p. 162)
O enforcamento ocorreu na prisão
de Pentonville, em Londres, aos 3
de agosto. A efeméride à qual nos
reportamos neste mês de agosto
de 2016 é, portanto, o centenário da morte de Roger Casement.
Hampson, na sucinta nota acima
reproduzida, mencionou a atividade de Casement no Congo, o fato
de ter sido agraciado com o título
de cavaleiro (Sir), bem como seu
envolvimento com o nacionalismo
irlandês. Não nos ocuparemos aqui
desse último episódio, afinal o que
determinou sua execução por alta
traição “porque atuara no Levante
da Páscoa da Irlanda, em 1916” (MITCHELL, 2016, p.16).2
Nossa atenção estará voltada exclusivamente para a atuação de
Casement relacionada à atividade
econômica de extração da borracha. Primeiramente, trataremos de
sua experiência no continente africano, em especial no Estado Livre
do Congo, propriedade privada do
então soberano belga, Leopoldo II.
Em seguida, direcionaremos nosso
olhar para sua ação na Amazônia,
que Hampson nem ao menos mencionou, para o que aproveitaremos
a recente publicação em língua
portuguesa, pela Editora da Universidade de São Paulo, do Diário
da Amazônia de Roger Casement
(2016).
As vicissitudes sofridas pelo Congo,
que Casement presenciou e depois
denunciou, remontam à Conferência de Berlim, em 1885;3 nela, “as
potências ocidentais reconheceram
a soberania, a título privado, de Leopoldo II sobre boa parte da África
Central. Nascia o Estado Livre do
Congo.” (ALENCASTRO, 2008, p.
159). Até 1908, quando foi transformado em colônia belga, como
veremos mais adiante, o Congo
manteve-se como propriedade
privada do rei. A ambição de Leopoldo foi alimentada, primeiro,
pela extração do marfim, logo suplantada pela da borracha, e essas
explorações estiveram na raiz do
sofrimento dos congoleses:
Nos últimos anos do século XIX,
quando a principal riqueza, o marfim [...], foi substituída pela borracha, as atrocidades e o trabalho
compulsório extorquido dos congoleses atingiram outro patamar.
Inventado o processo de vulcani-
zação, a borracha começou a ser
usada em tubos, nos pneus das
bicicletas (1888) e dos carros da
nascente indústria automobilística
(1896). Na passagem das vendas de
marfim, extrativismo multissecular
conectado a um mercado estável, às
exportações de borracha, puxada
pela demanda crescente das novas
indústrias, tudo havia mudado.
Tirado de maneira predatória de
cipós e plantas oleaginosas distintas da seringueira, o látex do Congo
sofria a concorrência do produto
amazonense e, em seguida, da
agosto de 2016
35
36
economia & história: crônicas de história econômica
borracha exportada das plantações de seringueira na
Ásia. Daí o endurecimento da exploração dos congoleses.
(ALENCASTRO, 2008, p. 159)
Arthur Conan Doyle, em seu livro intitulado O crime
do Congo, insere o mosaico de fotografias que também
incluímos nesta crônica. São imagens que ilustram as
atrocidades cometidas no bojo do domínio exercido
por Leopoldo II em seu Estado Livre do Congo. Um
dos capítulos do livro de
Conan Doyle foi dedicado ao
relatório produzido por Casement no exercício de suas
f unções como Cônsul do
Império de Sua Majestade
Britânica. E, ao iniciar o capítulo em tela, Doyle teceu
breve comentário sobre o
Cônsul e o impacto do dito
relatório:
we mark the first step in that train of events which is
surely destined to remove the Congo State from hands
which have proved so unworthy, and to place it in conditions which shall no longer be a disgrace to European
civilization. (DOYLE, 1909, p. 41)4
O escritor e jornalista Adam Hochschild sugeriu, em
seu livro intitulado King Leopold’s Ghost, que o posicionamento crítico de Casement com relação às atrocidades cometidas no território
africano de Leopoldo talvez
tenha sido consequência de
uma viagem realizada de
barco pelo Rio Congo, em
1897, na qual o irlandês teve
a companhia de um oficial
da Força Pública de nome
Guillaume Van Kerckhoven.
Este teria explicado a Casement a forma mediante a
qual pagava seus soldados
A word or two as to Mr.
negros, com o que podemos
Casement’s own persoem alguma medida inferir
nality and qualifications
a natureza da dominação
may not be amiss, since
belga: “5 brass rods (2 ½ d.)
both were attacked by his
per human head they brouBelgian detractors. He is a
ght him during the course
tried and experienced puof any military operation he
blic servant, who has had
conduct .” (HOCHSCHILD,
5
exceptional opportunities
2011). Não à toa, o jornaof knowing Africa and the
lista, ao descrever um novo
natives. He entered the
e posterior encontro entre
O crime do Congo, algumas vítimas (DOYLE, 1909, p. 2)
Casement e Conrad, sugeriu
Consular service in 1892,
também ter o relato sobre
served on the Niger till
1895, was Consul at Delagoa Bay to 1898, and was finally Van Kerckhoven contribuído para a construção do
transferred to the Congo. Personally, he is a man of the personagem Kurtz:
highest character, truthful, unselfish − one who is deeply
respected by all who know him. His experience which
The two men met again at a dinner in London, later in the
Book Africa, n. 1, 1904”. […] [T]his, the first official expo-
morning.” The novelist wrote to a friend: “He could tell
deals with the Crown Domain districts in the year 1903,
covers some sixty-two pages, to be read in full in “White
sure, was a historical document, and from its publication
agosto de 2016
decade, and according to Conrad, “went away from there
together to the Sports club and talked there till 3 in the
you things! Things I have tried to forget, things I never did
economia & história: crônicas de história econômica
known.” One of these things − an-
seus cartuchos, trouxeram num só
well have been the story about Van
(Emile Vandervelde, La Belgique
other possible source of Kurtz and
dia a um oficial que está ainda no
Kerckhoven, the collector of African
et le Congo. Le passé, le présent,
his palisade of human skulls − may
heads. (HOCHSCHILD, 2011)
O relatório de Roger Casement,
aliado a outras publicações também de inícios do Novecentos,
foram mencionados igualmente
6
pelo historiador Elikia M’Bokolo.
Cometeu-se no Congo, sem qualquer margem a dúvidas, um alentado conjunto de abominações,
convertendo aquele território num
inferno na terra criado pelo soberano belga: “ incêndios de aldeias,
morticínios a tiro, por enforcamento
ou por crucificação, mutilação dos
adultos considerados hostis à extração da borracha.” (M’BOKOLO,
2011, p. 403). O rei concedeu largas
porções de terras para exploração
monopolist a de empresas, t ais
como a Anglo-Belgian India Rubber
and Exploration Company-A.B.I.R.,
ou se ocupou diretamente dos negócios em áreas sob “Domínio da
Coroa”. O relato a seguir, inserido
da obra de M’Bokolo, é mais uma
ilustração dos horrores vivenciados pelos congoleses:
Nada do que se passou no território
da A.B.I.R. ultrapassa em horrores
os atos monstruosos que foram
praticados por volta de 1895 em
certas partes do Domínio da Coroa. [...] Houve soldados da Força
Pública que, querendo provar que
tinham utilizado eficazmente os
exército belga 1.357 mãos cortadas.
the “taking hostage and abduction
of women, the subjugation of chief-
tains to forced labor, the humilia-
tions to which they are subjected,
the chicotte used by harvest overse-
l’avenir. Paris: Félix Alcan, 1911, p.
ers, the violent actions on the part
Não foi possível à opinião pública
mundial desconsiderar o teor do
relatório do Cônsul britânico. Autores como os já mencionados Arthur Conan Doyle e Joseph Conrad,
além de outros, como Mark Twain,
manifestaram sua desaprovação às
atrocidades cometidas no Congo, e
suas vozes somaram-se a protestos
verificados no próprio Parlamento
inglês. Não obstante os esforços
que despendeu para evitar esse resultado, ao fim e ao cabo Leopoldo
teve de abrir mão de sua possessão
particular, o que foi feito em favor
do Estado Belga, em 1908. O Estado Livre do Congo era substituído
pelo Congo Belga:
rule rather than the exception. […]
7
47; apud M’BOKOLO, 2011, p. 404)
One year after the report appeared,
King Leopold found himself com-
pelled to send an international, independent investigative committee
to Congo. Three magistrates, one
Belgian, one Swiss, and an Italian,
were allowed to travel around
Congo for months and carry out
interviews in his Free State. […]
They listened to hundreds of witnesses, compiled plaints, and wrote
a down-to-earth report in which
the Free State’s policies were quite
accurately dissected. It was a dry
but devastating text, stating that
of blacks ostensibly occupied in
‘guarding’ the prisoners” were the
The international pressure on
King Leopold II was mounting.
Something had to give, and the
only option was for Leopold to part
with his overseas territory and for
Belgium to take over Congo. In December 1906 the knot was cut, but
Leopold loitered over the modali-
ties of the transfer for almost two
more years. (REYBROUCK, 2014,
itálico no original)
Poucos anos depois de redigir seu
relatório sobre o Congo, Casement
foi nomeado cônsul britânico no
Brasil. Exerceu sua atividade em
Santos, entre 1906 e 1907. Na introdução que escreveu na Irlanda,
datada aos 3 de agosto de 2013,
para o Diário da Amazônia, Angus
MITCHELL (2016, p. 20) relata que,
“ao final daquele ano [1907], Casement foi transferido para Belém do
Pará e, poucas semanas após sua
chegada, foi-lhe atribuída a longa
missão de informar sobre o andamento da construção da ferrovia
8
Madeira-Mamoré.” Em 1910, ele foi
promovido a cônsul-geral britânico
no Brasil e, em seguida, recebeu
tarefa que decerto fez-lhe lembrar
da experiência africana:
agosto de 2016
37
38
economia & história: crônicas de história econômica
[...] Roger Casement foi oficialmen-
comentários sobre o abuso sistemático dos índios:
Quando os relatórios de Casement
cometidas no vale do rio Putumayo
dos, açoitados, acorrentados como
(chamado de rio Içá quando aden-
animais selvagens, caçados por
da borracha e a transferência do
lômbia, Peru e Brasil. Os supostos
lentadas, seus filhos são arrastados
te escolhido pelo secretário britânico de Relações Exteriores para
investigar boatos de atrocidades
Os índios não são apenas assassina-
foram publicados, em julho de
1912, suas revelações aceleraram
o fim do mercado de extração
capital de investimento para a
tra o território brasileiro), situado
toda parte e têm suas habitações
economia de plantação de rápido
na região fronteiriça entre Co-
queimadas; suas mulheres são vio-
crescimento, baseada principal-
autores de tais atrocidades eram os
para a escravidão e para uma vida
administradores da Peruvian Ama-
de indignação, e são, além do mais,
zon Company, financiada pela bolsa
descaradamente enganados. São
de Londres, mas em grande parte
palavras duras, mas não duras o
operada por gestores peruanos
bastante. A situação aqui é a mais
brancos. Essa investigação guar-
vergonhosa, a mais ilegal e a mais
dava notáveis semelhanças com
desumana que acredito que exista
a investigação no Congo, também
no mundo hoje. Excede de longe
preocupada com o trabalho força-
em termos de depravação e des-
do, com a propriedade de terras e
moralização o regime do Congo no
com as guerras pelos recursos na-
seu pior momento. A única carac-
turais. (MITCHELL, 2016, p. 20-21)
Os relatórios produzidos pelo cônsul como resultado de sua viagem
ao Peru foram, uma vez mais, impactantes. Neles, “Casement descreveu em detalhes, de forma sincera e
angustiante, a tragédia resultante
da cultura brutal de terror imposta
por uma empresa anglo-peruana de
extração de borracha, que preferiu
de forma vergonhosa o lucro às
pessoas.” (MITCHELL, 2016, p. 16).
E seria mesmo inevitável, assim
o cremos, que no seu Diário da
Amazônia aflorasse a comparação
explícita com a situação por ele encontrada anos antes na África. Isto
ocorreu, por exemplo, no domingo,
23 de outubro de 1910, quando
Casement registrou os seguintes
terística favorável que consigo ver
nesse sistema quando comparado
ao do rei Leopoldo é que, enquanto
a tirania ilegal de Leopoldo afetou
milhões de pessoas e semeou a
destruição no coração de um con-
tinente inteiro, essa tirania anárquica afeta apenas alguns milhares.
[...] Toda a população indígena dos
seringais peruanos e bolivianos
provavelmente não equivale a mais
de 250 mil pessoas, por alto. (Diário
da Amazônia, 2016, p. 252)9
Tal como no caso do Estado Livre
do Congo, as denúncias de Roger
Casement acerca da extração da
borracha no vale do rio Putumayo
de modo algum foram inócuas:
agosto de 2016
mente nas colônias britânicas e
holandesas no sudeste asiático.
Na Grã-Bretanha, a investigação
fomentou uma alteração nas leis
que regulavam a escravidão e fez
com que empresas transnacionais
se responsabilizassem por seus
funcionários, independentemente
do lugar em que se encontravam no
mundo. (MITCHELL, 2016, p. 21)
Dessa forma, e aqui convém repetirmos um fragmento de nossa epígrafe, muito embora Vargas Llosa
possa não estar errado ao afirmar
que “não ficaram marcas no Congo
nem na Amazônia daquele que tanto
fez para denunciar os grandes crimes cometidos nessas terras nos
tempos da borracha”, cremos ser
impossível negar que os esforços
de Casement fizeram diferença
e merecem ser relembrados com
admiração. Contudo, a magnitude
dessa diferença, talvez pudéssemos
sugerir à guisa de conclusão de
nossa crônica e para a reflexão dos
leitores, esteve condicionada pelos
próprios cenários onde tais crimes
foram perpetrados.
Para explicarmos o significado
desta sugestão, voltemos novamente à comparação que o próprio
economia & história: crônicas de história econômica
Casement fez entre o Congo e a
Amazônia, os dois cenários que ele
conheceu em seus atributos mais
terríveis, vinculados à extração da
borracha em dois distintos continentes e ambos marcados por
conjuntos de atrocidades quase
inimagináveis. Se era uma comparação que inevitavelmente ocorreria ao Cônsul ao escrever seus
registros no Diário da Amazônia, o
leitor decerto concordará conosco
ser também uma tarefa demasiadamente ingrata, sobretudo no
tocante à tentativa de estabelecer alguma hierarquização entre
aqueles conjuntos. Elikia M’bokolo
(2011, p. 379), estudioso ao qual
já nos referimos nesta crônica, ao
comentar a ação violenta da Força
Pública no Estado Livre do Congo,
tal como Casement, distinguiu o
drama africano por sua grande
dimensão: “Essa violência permanente, deixada a si própria, sem
controle e sem outra sanção senão
a submissão dos povos a colonizar
e a eficácia econômica das tropas,
teve terríveis efeitos tanto na África
como na Europa.”
Para embasar essa sua avaliação,
valeu-se o historiador africano
do poeta e ativista Aimé Césaire,
quiçá o primeiro a aventar que a
dita violência permanente trazia
em si o “ ‘veneno instilado nas veias
da Europa e o avanço, lento mas
seguro, da barbarização do continente’, que conduziu ao nazismo.”
(M’BOKOLO (2011, p. 380). Ainda
Césaire, outrossim, observou que
a reação contrária ao nazismo foi
muito maior do que a gerada pelo
sofrimento africano. Nas palavras
do poeta:
Aquilo que [o muito cristão burguês
do século XX] não perdoa a Hitler,
não é o crime em si, o crime contra
o homem, não é a humilhação do
homem em si, é o crime contra o
homem branco, é a humilhação do
homem branco, é o de se ter aplicado à Europa processos colonialistas
que até então eram reservados
aos árabes da Argélia, aos coolies
da Índia e aos pretos da África.
(Discours sur le colonialisme, Paris,
Présence Africaine, 1955, p. 10-11
apud M’BOKOLO, 2011, p. 380)
Em suma, entendemos que esse
comentário de Aimé Césaire possui
grande pertinência, antes do mais,
por fornecer sólido denominador
comum às abominações verificadas por Casement na atividade
de extração da borracha levada a
cabo no Congo e na Amazônia. E
é pertinente, sobretudo, quando
pensamos em termos da dimensão
possível da diferença feita pelos
esforços do Cônsul para dar fim às
atrocidades.
Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Posfácio: persistência de trevas. In: CONRAD, Joseph.
Coração das trevas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008, p. 153-179.
BRUNSCHWIG, Henri. A partilha da África
Negra. São Paulo: Perspectiva, 1993.
CONRAD, Joseph. Heart of darkness (with
The Congo Diary). Introdução e notas
por Robert Hampson. London: Penguin
Books, 2000.
Diário da Amazônia de Roger Casement.
Edição de Angus Mitchell; organização
de Laura P. Z. Izarra e Mariana Bolfarine;
tradução de Mariana Bolfarine (coord.),
Mail Marques de Azevedo e Maria Rita
Drumond Viana. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2016.
DOYLE, Arthur Conan. The crime of the
Congo. 4ª ed. London: Hutchinson &
Co., 1909. Disponível em: <http://www.
kongo-kinshasa.de/dokumente/lekture/
crime_of_congo.pdf>. Acesso em: 30 jul.
2016.
EINZIG, Paul. Primitive money: in its ethnological, historical and economic aspects.
Second edition, revised and enlarged.
Glasgow: Blackie and Son Ltd., 1966.
GAULD, Charles A. Farquhar, o último titã:
um empreendedor americano na América
Latina. São Paulo: Editora de Cultura,
2006.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma:
a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2ª ed. revista e ampliada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
HOCHSCHILD, Adam. King Leopold’s Ghost:
A story of greed, terror and heroism in colonial Africa. [kindle edition] Pan Books;
Main Market Ed., 2011.
M’BOKOLO, Elikia. África negra: história
e civilizações. Tomo II (Do século XIX
aos nossos dias). Com a colaboração de
Sophie le Callennec e de Thierno Bah.
Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das
Áfricas, 2011.
McGARRY, Fearghal. The Rising. Ireland:
easter 1916. Centenary Edition. [kindle
edition] Oxford, UK: Oxford University
Press, 2016.
MITCHELL, Angus. Introdução. In: Diário da
Amazônia de Roger Casement. Edição de
Angus Mitchell; organização de Laura P.
Z. Izarra e Mariana Bolfarine; tradução de
Mariana Bolfarine (coord.), Mail Marques
de Azevedo e Maria Rita Drumond Viana.
agosto de 2016
39
40
economia & história: crônicas de história econômica
1903, empreendeu uma viagem ao alto Congo
e produziu um relatório que precipitou uma
crise diplomática entre Bruxelas, Londres e
Washington.”
São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2016, p. 15-23.
MOREL, Edmund Dene. Red rubber: the
story of the rubber slave trade which
flourished on the Congo for twenty years,
1890-1910. New and revised edition (4ª).
London: The National Labour Press, Ltd.,
1919. Disponível em: <https://ia802608.
us.archive.org/7/items/redrubberstoryof00more/redrubberstoryof00more.
pdf>. Acesso em: 25 jul. 2016.
REYBROUCK, David Van. Congo: the epic history of a people. [kindle edition] New York:
HarperCollins Publishers, 2014.
VARGAS LLOSA, Mario. O sonho do celta. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2011.
WESSELING, Henk L. Dividir para dominar:
a partilha da África (1880-1914). 2ª ed.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora
Revan, 2008.
1 “He cried out twice, a cry that was no more
than a breath − ‘The horror! The horror!’.”
(CONRAD, 2000, p. 112).
2 A Revolta da Páscoa marcou a independência da República da Irlanda. Sobre ela
ver, por exemplo, McGarry (2016; edição
comemorativa do centenário do levante de
24 de abril de 1916, essa obra foi originalmente publicada em 2010).
3 Para uma análise do processo histórico conhecido como “A Partilha da África”, ocorrido
no bojo do avanço imperialista verificado no
último quarto do século XIX, ver, por exemplo, Brunschwig (1993) e Wesseling (2008).
4 Angus Mitchell (2016, p. 19), entre outros,
retomará essa caracterização de forma
similar: “[...] Casement foi nomeado cônsul
britânico na África ocidental portuguesa.
Sua jurisdição consular incluía as extensas
áreas da África central e do Estado Livre
do Congo e, entre 1898 e 1903, ele usou sua
posição oficial para desafiar a administração
colonial e as práticas comerciais do regime do
rei Leopoldo II no Estado Livre do Congo. Em
5 Sobre a moeda do Congo, ver, por exemplo,
Paul Einzig (1966, cap. 41, p. 151-158). O
preço da cabeça humana referido por Van
Kerckhoven, de cinco unidades da moeda
congolesa, equivalia a 2,5 dinheiros, sendo
o dinheiro (penny) uma fração da libra
esterlina (cada libra correspondia a 240
dinheiros até a adoção do novo sistema monetário decimal, em fevereiro de 1971). Nas
palavras de Einzig (1966, p. 151): “Writing at
the beginning of this century [século XX-JFM/
LSL], Wauters states that the money of the
Congolese varied from one district to another,
according to the riches of the people, their
requirements, their tastes of the day. Although
trade between Africans was transacted as
a rule by barter, there was nearly always a
monetary unit, some object of common use
or of a value well known to all. There were
certain objects which served as money over
a vast area. Amongst them brass rods played
a very prominent part. Originally they were
said to have been produced through melting
down brass ornaments, but subsequently
they came to be imported on large scale from
Europe.”
6 Entre essas outras publicações figuraram,
por exemplo, as do ativista Edmund Dene
Morel, autor de vários livros sobre o Congo,
como o intitulado Red Rubber, originalmente
publicado em 1906 (MOREL, 1919). Juntamente com Morel e com a historiadora Alice
Stopford Green, Casement fundou a Congo
Reform Association, em 1904 (cf. MITCHELL,
2016, p. 19-20).
7 Hochschild (2011) descreveu o motivo
para o corte das mãos: “If a village refused
to submit to the rubber regime, state or
company troops or their allies sometimes
shot everyone in sight, so that nearby villages
would get the message. But on such occasions
some European officers were mistrustful. For
each cartridge issued to their soldiers they
demanded proof that the bullet had been used
to kill someone, not ‘wasted’ in hunting or,
worse yet, saved for possible use in a mutiny.
The standard proof was the right hand from
a corpse. Or occasionally not from a corpse.
‘Sometimes,’ said one officer to a missionary,
agosto de 2016
soldiers ‘shot a cartridge at an animal in
hunting; they then cut off a hand from a living man’.” O “regime da borracha”, ao qual se
referiu Adam Hochschild, consubstanciou-se
no cumprimento, pelos congoleses, de cotas
deles exigidas em quilos daquele produto:
“In the A.B.I.R. concession company’s rich
territory just below the Congo River’s great
half-circle bend, for example, the normal
quota assigned to each village was three to
four kilos of dried rubber per adult male per
fortnight − which essentially meant full-time
labor for those men. Elsewhere, quotas were
higher and might be raised as time went on.”
8 A construção dessa estrada de ferro até a
Bolívia seria a contrapartida brasileira à
cessão do Acre ao Brasil pelo país vizinho. O
contrato da construção ficou a cargo de Percival Farquhar e as obras, iniciadas em 1908,
estenderam-se até 1912. O funcionamento
da ferrovia foi comprometido pelo colapso
do mercado de extração da borracha então
havido (cf. MITCHELL, 2016, p. 20). Sobre
a Madeira-Mamoré e o empresário norteamericano responsável por sua construção
ver, respectivamente, por exemplo, os trabalhos de Hardman (2005) e Gauld (2006).
9 Dois dias depois, na terça-feira, 25 de outubro, Casement voltou ao tema da tragédia
dos índios sul-americanos, dando vazão
à própria indignação: “Nunca vi nada tão
desprezível, nem mesmo no Congo, como
a maioria dos homens que se encontram
aqui. O homem belga mais vil é um cavalheiro em comparação a eles. São pessoas de
outro mundo. E o índio, quanto mais indignado, flagelado e degradado é, quando não
é destruído, do nosso mundo. Ele é um ser humano muito melhor. Esses lordes e senhores,
padroeiros indiscutíveis da vida (todos eles
têm haréns de meninas e mulheres que são
violadas) e da morte, todos eles assassinam
e são infinitamente inferiores ao homem que
eles caçam com chibatas e tochas através de
suas florestas virgens.” (Diário da Amazônia,
2016, p. 267).
(*) Livre-Docente da FEA/USP.
(E-mail: jflaviom@usp.br).
(**) Professora Doutora da FEA/USP.
(E-mail: lslopes@usp.br).