II Seminário Internacional Mundos do Trabalho
VI Jornadas de História do Trabalho
Terra e Trabalho:
Reforma agrária e os mundos do trabalho
no estado de São Paulo
Clifford Andrew Welch
Departamento de História
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo
cawelch@unifesp.br
Resumo
Um dos aspectos menos comentados sobre reforma agrária é sua relação com os
mundos do trabalho. Terra, trabalho e capital são os fatores básicos de produção. Observamos
nas diversas versões das políticas de reforma agrária uma preocupação não só com terra e
capital, mas também com o trabalho. Já que o estado de São Paulo tem a história mais
comprida de experimentação com reforma agrária, nosso paper vai analisar os argumentos
utilizados para defender e justificar as políticas de reforma agrária estabelecidas a partir da Lei
de Revisão Agrária de 1960, bem como as experiências dos camponeses assentados no estado
e a representação e reconhecimento de sua perspectiva. O objetivo é de contribuir no
esclarecimento da relação entre as Histórias da luta pela terra e dos mundos do trabalho, como
são conceituadas entre os pesquisadores da História social do trabalho.
Resultado parcial do Projeto 478600/2010-0 da Edital Universal do CNPq.
27 e 30 de novembro de 2012
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV)
Rio de Janeiro, Brasil
2
Introdução
Historicamente, o apoio para a reforma agrária como política pública passou por
diversas justificativas. Na América Latina, eventos como a Revolução Mexicana destacaram a
terra como riqueza nacional que não poderia ser vendida aos estrangeiros e sim utilizado como
base de apoio produtivo para os povos originários. Argumentos similares foram provocados
em Guatemala e Bolívia logo depois da Segunda Guerra Mundial quando novas formas de
reforma agrária foram experimentadas. A Revolução Cubana de 1959, já no auge da Guerra
Fria, estimulou o impulso maior para a implantação de políticas de reforma agrária na região.
Daí, a justificativa de reproduzir a experiência cubana foi seu papel na realização do socialismo
e a justificativa de legislar políticas mais reformistas foi a utilidade delas em evitar outras
revoluções cubanas. Desta reação aos desenvolvimentos históricos, veio a predominar os
economistas políticos, os sociólogos rurais, o engenheiros e os planejadores e entre seus
argumentos, se encontrava a questão do trabalho.
No estado de São Paulo, o projeto da lei da “Revisão Agrária” veio à tona em março
de 1960, logo depois da revolução cubana, e foi aprovada como lei pela Assembleia Legislativa
no penúltimo dia do ano. Porém, logo foi “inviabilizada” por intervenção do governo federal
em abril de 1961. Durante sua curta vida de quatro meses, apenas 176 famílias foram
assentadas em dois assentamentos. Com o golpe militar de 1964, contudo, a lei paulista
recebeu um olhar renovado pelo regime e seus autores foram chamados para ajudar escrever o
Estatuto da Terra, aprovado como decreto federal in novembro de 1964.1 É o estatuto que
guiou todas as medidas de reforma agrária implementadas no país até a Constituição de 1988,
que modificou o estatuto, mas não o rescindiu, sendo ainda relevante para regular a estrutura
fundiária em todo território nacional até hoje. Durante a ditadura, a administração do estatuto
passou para o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Nos anos 1970,
o estatuto foi acionado em São Paulo na desapropriação de terras. Nos anos 1980, a luta pela
terra no estado intensificou e o governo estadual reorganizou, em 1991, seu braço
administrativo de assuntos fundiários para criar o ITESP - Instituto de Terras do estado.
Através da pressão dos movimentos socioterritoriais, o ITESP e o INCRA estabeleceram
dezenas de assentamentos de reforma agrária até os dias atuais.
No inicio, a teoria desenvolvimentista orientava as políticas a vincular as questões da
terra e trabalho através o processo de industrialização. Como observou a historiadora Ana
Maria dos Santos, contudo, nas propostas de reforma agrária da época, “os fins
desenvelopmentistas [...] sempre estiveram à frente dos interesses do trabalho de do
trabalhador.”2 O campo teria a função de criar demanda para bens industrializadas como
agroquímicos e maquinas agrícolas. Crescimento na produção de alimentos funcionaria como
subsidio para a indústria por baixar o custo de vida do trabalhador na cidade e assim diminuir
a pressão para aumentar salários. Falava muito a época da “fixação do homem do campo” ou
“da fixação do homem e sua família ao solo.” 3 Já no final dos anos 1960, a forma de
modernização implantado no Brasil, estimulou outros tipos de reforma agrária. A mecanização
e uso de químicos fariam um papel importante em “emancipar” mão-de-obra do campo para
também ser incorporado na oferta de trabalhadores na cidade. A industrialização da produção
agrícola também faria papel de absorver trabalhadores. Outra justificativa para uma outra
forma de reforma agraria – a colonização – foi de tentar remediar o que era visto como
1
Tolentino, Célia Aparecida Ferreira. O farmer contra o jeca: o projeto de revisão agrária do
governo Carvalho Pinto. Marília: Oficina Universitária, 2011, p. 9-14; 132-133.
2
Santos, Ana Maria dos. “Desenvolvimento, trabalho e reforma agrária no Brasil, 1950-1964,”
Tempo (Niterioi). p. 3
3
Carvalho Pinto. “Mensagem no. 52 do Sr Governador do Estado de 30 de mar., 1960.” Revisão
agrária. São Paulo: Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, 1960. p. 11.
3
problema da massificação da população em algumas cidades. No oeste de São Paulo, a criação
de assentamentos foi uma das respostas para “absorver excesso de trabalhadores”
desempregados com a conclusão de mega-projetos, como a construção de usinas
hidroelétricas. Reforma agrária na fronteira foi promovida para servir como alternativa para
trabalhadores des/sub-empregados e assim reduzir a probabilidade de rebelião na cidade e no
campo. Neste quadro, reforma agrária entra nos mundos do trabalho como política para gerar
postos de emprego e como tática de controle social.
Reforma agrária também mexeu com os mundos do trabalho em ser compreendido
como uma política que promova valores positivos do trabalho. Da perspectiva liberal, foi
bastante discutido no passado a ideia da reforma agrária como meio de fazer do agricultor
brasileiro um “farmer” no sentido que o Thomas Jefferson dos Estados Unidos da América
celebrou o “yeoman farmer” como fonte fundamental da democracia sendo ele um cidadão
auto-determinado - um “self-governing farmer.” A responsabilidade do lote como proprietário,
a demanda da produtividade, sua integração no mercado e seus vínculos com o estado como
usuário de seus bens e serviços, foram todos vistos como elementos importantes na
construção da cidadania e incorporação do trabalhador agrícola. Do campo socialista, foram
produzidos argumentos similares, valorizando “trabalho” como essencial para justificar o
direito de controlar terra – falaram que a “terra era para quem nela trabalha.” Depois, foram
elaborados argumentos de trabalho como a base da dignidade humana, com trabalho coletivo
(tipo mutirão) visto como uma prática social que alimenta socialismo e a transformação do
sistema capitalista.
Em tempos atuais, reforma agrária adotou pelo menos mais uma qualidade em relação
aos mundos do trabalho. Essa remete para a época da senzala e a função da terra na autosustentação e reprodução de mão de obra. Com a rápida expansão de cana-de-açúcar, certos
assentados arrendaram suas terras para o plantio da cana e se integraram no mercado de
trabalho como cortadores de cana assalariados (boias-frias). Outros, especialmente jovens
homens e mulheres, simplesmente entraram no mercado de trabalho e tratam seus lotes como
dormitórios. Assim, o assentamento de reforma agrária servi para garantir a reprodução da
oferta de trabalho por um dos mais brutais atividades econômicas imagináveis. No grande São
Paulo, a implantação de assentamentos criou uma experiência similar com a tendência dos
assentados procurar trabalho na área urbana e abandonar o aproveitamento agrícola de suas
terras. Assim, parte dos assentamentos fica como se fosse uma moradia para os trabalhadores
das cidades vizinhas. Ironicamente, segundo a constituição, um dos razões indicadas para a
desapropriação de fazendas para fins de reforma agrária é a violação das lei de trabalho e o uso
de trabalho forçado. A precariedade da rede de assentamentos de reforma agrária no estado de
São Paulo ajuda reproduzir a safra de trabalhadores de baixa renda para o agronegócio poder
funcionar quase sem a necessidade de utilizar trabalhadores escravizados.
O presente trabalho, resultado parcial de um projeto de pesquisa apoiado pelo Edital
Universal do CNPq de 2010, aborda o tópico em forma reduzida para não ultrapassar os
limites estabelecidos pelas comissões do seminário. Optei para examinar só um exemplo
histórico de políticas agrárias aplicados na escala do estado de São Paulo. A Lei de Revisão
Agrária de 1960, brevemente descrita nesta introdução, serva também para experimentar
estudos subalternos. O conceito originou com o teórico comunista Antônio Gramsci, mas foi
o grupo de historiadores na Índia que desenvolveu a escola dos estudos subalternos no anos
1980. Nos anos 1990, um conjunto de acadêmicos pósmarxistas de várias áreas das ciências
humanas, inicio um movimento de estudos subalternos de América Latina nos Estados
Unidos. A ideia comum entre todos é de utilizar o conceito do sublatern invés de classe social
para tentar representar e criticar melhor a complexidade das experiências de dominação e
4
hegemonia na história dos países pós-coloniais. 4 “’Subalternity’ seemed a more allencompassing term that ‘class’ in expressing the fullness of the disenfranchised community,”
wrote Ileana Rodríguez, um dos lideres do grupo nos EUA (p.5).
A questão do trabalho rural na Revisão Agrária
O movimento camponês, representado em 1960 pela ULTAB - União dos Lavradores
e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, vigorosamente criticou o projeto da “Lei de Revisão
Agrária” do momento que foi apresentado pelo governador Carlos Alberto A. Carvalho Pinto
em 30 de março. Nacionalmente, o movimento camponês estava regimentado abaixo do
controle do PCB - Partido Comunista do Brasil.5 A frente do Setor do Campo do comitê
central foi o Lindolpho Silva, que se representou em público como um oficial da ULTAB e
escreveu a coluna “Conheça seus Direitos” regularmente para o jornal da união, Terra Livre.
Como sua perspectiva de etapas históricas de modos de produção (feudalismo – capitalismo –
socialismo), o PCB integrou o movimento camponês como aliado importante, mas
subordinado ao movimento operário. Apoiador de uma reforma agrária radical como
estratégia para fragmentar o poder econômico e político dos grandes fazendeiros, usineiros e
interesses estrangeiros, especialmente firmas estadunidenses, a questão do trabalho nunca saiu
da vista. Criticando o governador por fazer um projeto que dependeria na compra e venda das
terras pelos camponeses, “sabendo que [...] não vai permitir aos arrendatários, parceiros,
meeiros, terceiros, colonos, camaradas e peões comprar seu pedacinho de chão.” Segundo
Silva, “os congressistas operários” tinham apresentado ao governador “emendas [...]
facilitando a compra de terras por todos” e era a hora para os camponeses se mobilizem para
pressionar o governo aceitar as modificações. Continuou o Silva, “É preciso que os
trabalhadores rurais se mexam no sentido de união da luta. Só assim os operários poderão
ajudar com bons resultados.”6
Este projeto de reforma agrária pelo mercado passou por um processo de debate e
modificação rigorosa na Assembleia Legislativa. Nas atas da assembleia, são centenas de
páginas de comentário sobre o projeto durante quase nove meses de sua consideração. A
questão que animou a ULTAB foi o núcleo de várias lutas: “quem paga para reforma agrária?”
Enquanto a aquisição das fazendas e orçamentos administrativas estariam dependente em um
“Imposto Territorial Rural” (que foi elaborado como incentivo a produtividade eficaz da terra),
os lotes teriam que ser comprados pelos agricultores, confirmando a impotência do PCB no
âmbito da assembleia paulista. Pior, na lei aprovada o agricultores foram chamados
“adquirentes,” sublinhando seu papel de comprador. O preço da venda atendia não só o preço
da desapropriação, mas também “todas as despesas com as benfeitorias e melhoramentos
4
Rodríguez, Ileana. “Reading Subalterns Across Texts, Disciplines and Theiories: Fom
Rrepresentation to Recognition.” In: Rodríguez, Ileana. (org.) The Latin American Subaltern
Studies Reader. Durham: Duke University Press, 2001, p. 1-32.
5
Vale a pena anotar, contrário a representação dada pela Tolentino (2011, p.10), que o PCB era a
liderança hegemonica entre os trabalhadores rurais na época e a questão da reforma agrária estava
bastante presente no movimento em São Paulo. De fato, na escala da nação, o movimento em si era
dividido entre a influência da ULTAB, da Igreja Católica e as Ligas Camponesas do Francisco
Julião, para no falar de um número crescente de politicos como Leonel Brizola, que teve uma forte
influência sobre o MASTER- Movimento dos Agricultores Sem Terra no Rio Grande do Sul. Em
geral, as Ligas de Julião não tiveram presença no estado de São Paulo e o movimento da igreja
geralmente apoiava o governo Carvalho Pinto, que era do Partido Democrata Cristão. Ver Welch,
Clifford Andrew. A semente foi plantada: as raizes paulistas do movimento camponês no Brasil,
1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
6
Silva, Lindolpho. “Conheça seus direitos: Unir para vencer” Terra Livre, jun. 1961, página
central.
5
realizados pelo estado.” O trabalhador ficou preso um pagamento anual, sendo forçado
abandonar seu lote e todos os melhoramentos se fosse incapaz de fazer dois pagamentos em
seguidos. Pagamentos atrasados eram sujeitos uma multa de 10% e o agricultor ficou
responsável por tomar conto do lotes, aí estabelecendo sua residência dentro de um ano da
data do contrato. Toda a conta teria que ser quitada em 15 anos. Longe de privilegiar os
meeiros e peões identificados pelo Silva como alvos da lei, a própria lei indicou uma
preferencia para “arrendatários parceiros, produtores ou trabalhadores agrícolas em geral,
associados a cooperativas agropecuárias,” bem como agrônomos, veterinários, técnicos rurais
e, por último, “os que, a qualquer título tenham prática de trabalhos agrícolas.” Em outras
palavras, ou pela necessidade de compra ou pelas características preferidas dos “adquirentes,”
a lei não contemplou a mesma classe trabalhadora do campo que a ULTAB representou.7
Apesar destas limitações, a “conversa” em promoção da lei enfatizou seu papel como
instrumento de transformação social entre os segmentos mais pobres, sua relação, então, com
o mundo do trabalhador. Na versão final da lei, toda esta justificativa foi reduzida para uma
linha do Artigo 1o, dizendo que “[...] incentivará a exploração racional e econômica do solo e
facilitará a aquisição da pequena propriedade rural […].” 8 Era assim uma medida de
modernização capitalista do campo paulista, como Caio Prado Júnior bem reconheceu no
início da discussão do projeto de lei.9
Em seu discurso apresentando a proposta desta legislação, o governador enfatizou a
necessidade de modificar a estrutura agrária de São Paulo para “proporcionar ao homem do
cmap condições de vida cada vez mais elevada, [...] fixando-o à terra, objetiva também a
distribuição mais equitativa do solo.” Para os que “já se dedicam aos misteres do campo” a lei
proposta ofereceria “as maiores facilidades para a aquisição de lotes, proporcionando-lhes,
outrossim, condições que, com o decurso do tempo, elevarão cada vez mais o nível das nossas
populações rurais.” Para Carvalho Pinto, a lei constituiria um “poderoso instrumento de
equilíbrio social e propulsão de nossa economia.” 10 O sentido de estar uma lei para os
trabalhadores rurais sem-terra foi reforçado pelos ensaios do secretário da agricultura José
Bonifácio Coutinho Nogueira e dos técnicos responsável pela maioria de um boletim de 50
páginas produzido pela Secretaria da Agricultura para explicar o projeto de lei.11 Por exemplo,
para Coutinho Nogueira, a revolução cubana não teria acontecido se a classe dominante
tivesse mostrado interesse na reforma da estrutura fundiária. Ele também alimentou
expectativas populares escrevendo que:
Os planos de colonização destinam-se a dar oportunidade, anualmente, a 500
ou 1.000 novos agricultores, facilitando-se, assim, o acesso do homem do
campo à propriedade rural e, paralelamente, contribuindo para a criação, em
todo o Estado, de verdadeiros núcleos irradiadores da mais moderna técnica
agronômica.
Na linha anterior da citada, o secretário identificou o “homem do campo” como um
trabalhador rural em descrever a metodologia a ser empregado pela lei: “com os recursos
arrecadadas através dos imposto territorial rural, o Govêrno adquirirá terras inaproveitadas e
7
“Lei no. 5.994, de 30 de dezembro de 1960. Estabelece normas de estimulo à exploração racional
e econômica da propriedade rural e outras providências.” Departamento de Documentação e
Informação, Secretaria Geral Parlamentar, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,
8
Lei no. 5.994.
9
Prado Jr., Caio. “A reforma agrarian e o momento nacional,” Revista Brasiliense n. 29 (mai./jun.,
1960) in Prado, A questão agrária no Brasil. 4a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 127141.
10
Carvalho Pinto. “Mensagem no. 52,” p. 10-12.
11
Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo. Revisão agrária. São Paulo, 1960.
6
as revenderá a trabalhadores rurais que as desejam lavrar.” Assim, o apoio para aprovação do
projeto da “revisão agrária” estava explicitamente movido por um projeto social de
redistribuição terras para os camponeses no contexto da ameaça de rebelião.12
O debate na assembleia certamente forçou mudanças no discurso do governador e
seus secretários. Mas tudo indica uma preocupação mínima com os mais necessitados. No
meio do debate, o governador interveio em vários conflitos camponeses em apoio ao lado dos
fazendeiros, o mais famoso sendo o da “arranca capim” em Santa Fé do Sul, que percorreu
entre 1959 e 1961, justamente no período da gestação, composição e aplicação da Lei de
Revisão Agrária. 13 Aliás, o próprio Coutinho Nogueira revelou a contradição quando foi
entrevistado pelo Tolentino em 1989. Perguntado sobre sua tese que o objetivo da lei foi de
implantar a Via farmer no Brasil – a construção de um sistema de agriculturas familiares da
classe média igual dos Estados Unidos – o antigo secretário falou: “Mas era isso: de um
imposto cobrado progressivo, tentar fazer aquela classe média, que quando se vai aos EUA se
tem admiração.” Não podia falar bem do modelo estadunidense assim nesta época
nacionalista, ele explicou. 14 Por isso, não nos aparece sensata examinar profundamente o
debate em volta da legislação e sim analisar a lei em prática.
Na Lei de Revisão Agrária temos uma ilustração do esforço do estado liberal interferir
no mercado de terras e trabalho. O imposto territorial seria empregado para estimular a
modernização da agricultura e da sociedade rural em sua relação de subordinação de um plano
de industrialização e urbanização. A mobilização da terra, um fator básica de produção, teria
impacto direito em outro fator básico, o trabalho. No primeiro lugar, crescimento na
quantidade de terra sob produção significaria a geração de mais emprego para os trabalhadores
rurais. No segundo lugar, a arrecadação do imposto aplicado na comprar de terra seria
utilizado para assentar 500 a 1.000 famílias camponesas por ano, criando mais postos de
trabalho. No terceiro lugar, o imposto territorial e a necessidade que as famílias comprassem
os lotes, estimularia maiores economias e eficiências para intensificar a produção e assim gerar
mais produtos, abastecendo a população urbana, e incentivando produção industrial para
mecanizar mais a produção. Mais alimentos disponíveis no mercado, melhores preços para
comida, mais demanda para a indústria, tudo isso ia ajudar em melhorar as condições de
trabalho na cidade e no campo. Finalmente, a intervenção do estado nos mercados de terra e
trabalho serviria para melhorar as condições de vida e harmonizar as relações sociais,
desestimulando a radicalização da mobilização política camponesa tão presente no período.
Como fala o agente provocateur inglês William Walker, a personagem representado por Marlon
Brando no filme Queimada (1969), foi um “tidy package”(pacote nítida).
A história desta lei não saiu tão “tidy” assim como planejado. Aliás, a história não se
conta da perspectiva narrada pelo Estado, nem como ponto de partida, porque a inspiração
toda para a ação do governo Carvalho Pinto foi a mobilização global do campesinato e outros
grupos sociais subalternos. Na escala internacional, desde o período final da segunda guerra
mundial, os centros capitalista e comunista ficaram preocupados com seu capacidade de
controlar o campesinato na periferia e política agrárias vieram fazer parte fundamental dos
planos de desenvolvimento, como reconheceu o Coutinho Nogueira na sua apresentação do
projeto da lei.15 Depois a revolução cubana nos países politicamente subordinados aos EUA
na América Latina, a implementação de reforma agrária foi a demanda principal da Aliança
12
A primeira citação de Coutinho Nogueira é de sua “Apresentação do Projeto de Lei no. 154,” na
página 18 de Revisão agrária (1960) e as demais do préfacio na página 7 da mesma publicação,
sob o título, “Conceitação do projeto de revisão agrária.”
13
Welch, Clifford Andrew. Jofrê Corrêa Netto, capitão camponês. São Paulo: Expressão Popular,
2010.
14
Tolentino, O farmer contra o Jeca, p. 54.
15
Coutinho Nogueira. “Apresentação do Projeto,” Revisão agrária, p. 17-18,
7
para o Progresso endossado pelos diplomatas em Punta del Este em 1961.16 Mas, seguir as
diretrizes dos EUA não foi popular na época – a mobilização dos trabalhadores estava tingida
a cor vermelha. No mesmo tempo, muitos donos do poder do Brasil continuaram a pensar
que desenvolvimento não ia necessitar a redistribuição de bens ou poder.
Essa tradição de modernização conservadora complicou qualquer projeto burguês no
país. O governo Carvalho Pinto, que não escondeu sua identidade com a classe média em
formação, se mostrou muito hábil nas negociações legislativas, mas a oposição de certos
políticos, partidos e interesses organizados, como a Sociedade Rural Brasileira (associação
principalmente de cafeicultores e pecuaristas), continuou feroz e eventualmente contribuiu
para derrubar a lei e acabar com a carreira política do governador e seu sucessor preferido,
Coutinho Nogueira.17
Em um ensaio de 1989, o historiador indiano mais identificado com os estudos
subalternos, o Ranajit Guha, comentou esta situação como um paradoxo típico da condição
pós-colonial:
Since the paradoxes characteristic of the political culture of colonialism testify to the
failure of the bourgeoisie to acknowledge itself the structural limitations of bourgeois
dominance, it is hardly surprising that the liberal historical discourse too should be
blind to those paradoxes.18
Vejamos a situação complicado do governo Carvalho Pinto – sua incapacidade de enxergar as
“limitações estruturais da dominação da burguesia” – em utilizar os mecanismos do capital
(incentivos do mercado e dos impostos) para fazer mudanças liberais através de processos
graduais. Sabemos que a falha de tais medidas agitou os movimentos populares e contribuiu
para animar o curso de eventos que trouxe o golpe militar com a plena apoio dos EUA, que
apoiaram logo depois disso a reforma agrária implantada pela ditadura na forma do Estatuto
da Terra, decreto de novembro de 1964.19 O que o Guha aponta também é nossa dificuldade,
como intelectuais, de elaborar um discurso suficientemente critica para perceber as fontes
reais da história.
Cego pela crença na modernidade, no ocidentalismo, no enredo de progresso, o
historiador se perca no caminho da procura da verdadeira voz do subalterno. Apesar do
abandono do programa da “revisão agrária” pelo estado, para os camponeses a história da lei
não acabou em 1961. especialmente não tem relevância esta história para uma porção das 176
famílias assentadas e o movimento camponês, que continua a pleitear “reforma agrária já” até
os dias de hoje na sombra criada pela equipe paulista de Coutinho Nogueira na composição
do Estatuto da Terra.20
Do movimento camponês, o interlocutor mais expressivo na representação da
experiência dos trabalhadores frente a “revisão agrária” foi o PCB. Mas, as reclamações de
Silva, já relatados, poderiam deixar o historiador confuso, pensando que um grupo comunista
teria de fato tomado uma posição contra a lei. Pelo contrário, seus parlamentares na
16
Welch, LASA paper 2012
Tolentino. O farmer contra o Jeca, p. 97-125.
18
Guha, Ranajit. Dominance without Hegemony and Its Historiography. Subaltern Studies:
Writings on South Asian History and Society. New Delhi. n. 6 (1989), p. 216.
19
Welch, Clifford Andrew. “Rivalidade e unificação: mobilizando os trabalhadores rurais em São
Paullo na véspera do golpe de 1964,” Projeto História. São Paulo, v. 29, t. 2, Julho/dezembro,
2004, p. 363-390.
20
Tolentino. O farmer contra o Jeca, p. 127-136; Bombardi, Larissa Mies. O Bairro Reforma
Agrária e o processo de territorialização camponesa. São Paulo: Annablume, 2004, p. 111-196 e
Bruno, Regina. “O Estatuto da Terra: entre a conciliação e o confronto,” Estudos sociedade e
agricultura 5 (Nov., 1995), p. 5-31
17
8
Assembleia, tais como Luciano Lepera de Ribeirão Preto, eleito pela chapa do Partido
Trabalhista Brasileiro. Ele tentou alterar o projeto de lei, mas sem muito efeito, ele ainda
votou a favor da medida, porque o partidão neste período buscou uma aliança com a
“burguesia nacionalista” que também buscou construir capitalismo no Brasil. (O partidão
apoiou capitalismo como etapa histórica necessária a se passar antes de chegar no socialismo.)
Fora desta representação política, é o jornal Terra Livre da ULTAB que resta como a
maior fonte da “fala sobre” o campesinato paulista do período.21 Na representação da relação
entre os camponeses e a lei no jornal, “os homens do campo sem terra em nada serão
beneficiados, pois as condições de pagamento, prazos e métodos de produção lhes impedem
qualquer beneficio da lei.”22 Nota se as detalhes da crítica, são sobre as condições de compra e
de trabalho. Como Silva reclamou no momento do anuncio do projeto de lei, seria difícil para
os sem-terra compra as terras. Mas a proposta, neste momento político, não foi a demanda
para dar de graça a terra para o campesinato. Era de incentivar o Estado a comprar as terras
identificadas para reforma agrária em valores equivalentes do valor fiscal utilizado para calcular
impostos (sempre menor que o valor do mercado), de passar esta poupança na compra para
os camponeses na forma de prestações anuais mais baixas e de isentar o pagamento de
impostos por eles, especialmente no primeiro ano.23 Sobre as condições de trabalho, a lei
indicou um nível de controle sobre as culturas e técnicas de produção que acabou causando
muitas famílias a desistir “com medo de não poderem cumprir tantos requisitos e acabar
perdendo a terra.”24 A mensagem do partido, então, foi de criar um sistema de maior liberdade
para os camponeses produzir do jeito deles. Desafiou as autoridades a participar no congresso
camponês planejado para Belo Horizonte em novembro de 1961, “para sentar a mesa conosco
e ouvir o que nos entendemos de reforma agrária” e não ver a Revisão Agrária como modelo,
sendo promovido na contradição de um governador que “manda prender o homem do
campo” na mesma hora que pretendia o dar terras.25 Apesar da narrativa militante a favor do
camponês, não podemos tirar nosso olhar dos interesses particulares do PCB e a distância
entre sua realidade como partido clandestino e uma convivência material com os camponeses.
Temos então histórias escritas pelo governo, pelos ruralistas, pelos partidos, cada uma
com sua perspectiva legitima, seus pontos de convergência e divergência, seus momentos de
consenso e conflito. Mas esta história não será escrita sem a voz do camponês; tão
frequentemente esquecido, em sua experiência encontraremos a narrativa complementar,
sempre relevante senão contra-hegemônico. 26 Felizmente, além da Terra Livre, existem
histórias orais com alguns assentados das duas experiências iniciadas antes de que o congresso
nacional extinguiu o dever dos estados arrecadar impostos territoriais e efetivamente
inviabilizou a expansão do projeto da lei paulista.27
Ainda para elaborar....
Conclusão
Ainda para elaborar...
21
Spivak, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak? In: Nelson, C. & Gossberg, L. (orgs).
Marxism and the Intepretation of Culture. Basingstroke, Ing: Macmillan Education, 1988, p. 271313.
22
“Revisão Agrária de Carvalho Pinto é contra os camponêses,” Terra Livre, An.12, no.95, p. 2
(jan., 1961).
23
“Emendas para a Revisão Agrária” Terra Livre. An.12, no. 87 (mai., 1960), Caderno 2, p. 3.
24
Tolentino, Célia Aparecida Ferreira. “Os fios da história de um assentamento ‘desaparecido’.”
Cadernos AEL (Campinas, SP). n.7 (1997), p. 107.
25
“Reforma agrarian não é ‘revisão’” Terra Livre. An.13, no. 103 (set, 1961), p. 2.
26
Rodríguez. (org.) The Latin American Subaltern Studies Reader.
27
Os estudos de caso são, Tolentino. “Os fios da história de um assentamento ‘desaparecido’,”
105-129 e Bombardi. O Bairro Reforma Agrária.
9
Nossa identidade como historiadores pode indicar certa simpatia com uma perspectiva
ou outra, mas seria arrogância perigosa julgar nossos irmãos do passado. Pesquisadores, temos
o dever de interferir no mundo político como intelectuais, “alguém que engaja numa luta
política sua competência e sua autonomia especificas e os valores associados com sua
profissão, como os valores de verdade e de desinteresse,” não a confundir como um
engajamento desinteressado.28 Quando abordamos a questão agrária, estamos engajando uma
luta política no cerne da sociedade brasileira. Nosso compromisso com a história da questão
exigi que tomamos com sinceridade a narração a partir dos grupos e pessoas subalternos.
28
Bourdieu, Pierre. Contrafogos 2. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001, p. 37.
10
Sobre o autor
Cliff Welch nasceu em São Francisco, Califórnia em 1956. Atualmente é professor da
História do Brasil Contemporâneo da UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo e
pesquisador CNPq. Durante anos, trabalhou como vaqueiro, estivador, marinheiro,
carpinteiro e jornalista. Em 1979 ganhou bacharelado na University of Califórnia, Santa Cruz;
em 1987, completou Mestrado em História da University de Maryland, College Park e, em
1990, realizou Doutorado (Ph.D.) em História da Duke University. Durante 20 anos ministrou
aulas de história e estudos de América Latina nos programas de graduação e pós-graduação da
Grand Valley State University em Michigan, onde também era fundador e diretor do
Programa de Estudos de América Latina. De 2003 a 2005, foi PVE - Professor Visitante
Estrangeiro da CAPES nos programas de pós-graduação de Ciências Sociais e História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e de Geografia da UNESP -Universidade
Estadual Paulista em Presidente Prudente e da Universidade de São Paulo. É autor dos livros
A semente foi plantada: As raizes paulistas do movimento sindical camponês no Brasil (2010), Jôfre Corrêa
Netto, Capitão camponês (2010), co-organizador de Camponeses brasileiros: leituras e interpretações
clássicas (2009) e co-autor de Lutas camponesas no interior paulista: a memória de Irineu Luís de Moraes
(1992), entre numerosos artigos, resenhas, coletâneas e documentários.