A realeza cristã
na Alta Idade Média
A realeza cristã
na Alta Idade Média
Osfundamentosdaautoridadepública
noperíodomerovíngio(séculosV-VIII)
MarceloCândidodaSilva
Copyright2008©MarceloCândidodaSilva
Edição:JoanaMonteleone
AssistenteEditorial:GuilhermeKrollDomingues
Projetográfico,DiagramaçãoeCapa:MaríliaChaves
Revisão:NeusaMonteferrante
Imagemdacapa:OBastismodeClóvis,MestredeSaintGilles
DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)
(SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ,Brasil)
S581r
Silva,MarceloCândidoda
ArealezacristãnaAltaIdadeMédia:osfundamentosdaautoridadepúblicanoperíodo
merovíngio,(séculosV-VIII)
/MarceloCândidodaSilva.–SãoPaulo:Alameda,2008.
Incluibibliografia
ISBN978-851.Merovíngios.2.França-História-Até987.3.França-Históriaeclesiástica-Até987.4.
França-Reisegovernantes-História.5.Autoridade-Aspectosreligiosos-Cristianismo.6.
IgrejaeEstado-História.7.Europa-História-467-1492.I.Título.II.Título:Osfundamentos
daautoridadepúblicanoperíodomerovíngio,(séculosV-VIII).
07-4700.CDD:944.013
CDU:94(44)”486/751”
14.12.0717.12.07004714
ALAMEDACASAEDITORIAL
RuaIperoig,351–Perdizes
CEP05016-000–SãoPaulo-SP
Tel.(11)3862-0850
www.alamedaeditorial.com.br
ÍNDICE
Prefácio
Introdução
PARTE 1
Os francos e o Império Cristão
Capítulo I
A fundação do Regnum Francorum
Capítulo II
A “Realeza Constantiniana” (c.481-561)
Capítulo III
O “interesse público” no século VI
PARTE II
Os francos e a Realeza Cristã
Capítulo I
O rei cristão nos escritos episcopais
(c.481-c.594)
Capítulo II
As guerras civis e a ascensão do episcopado
(561-614)
Capítulo III
A legislação real franca e a cristianização
da utilitas publica
Considerações finais
Referências Bibliográficas
Agradecimentos
ParaminhaavóMaria,
quejamaispôdelerumlivro.
“Divertidasenhoriaquenãotemvassalonemsuserano,nadaabaixo,nadaacima!Éumaanomalia,um
monstro.Nãosesabequenomedaraessacoisaridícula; denominam-na realeza” (J. Michelet. AAgonia
daIdadeMédia.SãoPaulo:Edusc,1992,p.33).
“Ofeudalismoéumapoliarquia;sóexistemsenhores
ecriados;namonarquia,aocontrário,existeumsenhor
enenhumcriado,porqueelaeliminaaservidão,enela
odireitoealeitêmvalidade.Édamonarquiaquesurge
arealliberdade.Elareprime,portanto,aarbitrariedade
dealgunseestabeleceasoberaniauniversal”(W.Hegel.
FilosofiadaHistória.Brasília:Unb,1995,p.332).
Prefácio
A Realeza Cristã naAlta Idade Média: os fundamentos da autoridadepúblicanoperíodomerovíngio(séculosVI-VIII),queaquise
ofereceaoleitoremediçãodaAlamedaCasaEditorial,comoapoioda
FAPESP,éatesededoutoradodeMarceloCândidodaSilva,defendida
noCentreUniversitaired’Histoireetd’ArchéologieMédiévalesdaUniversitéLumièreLyon2(França).Otítulocorrespondeplenamenteao
objetoeaoespíritodapesquisadotemapeloqualoautordemonstrou
interesse antes mesmo de iniciar seu estudo doutoral. Em sua dissertação de mestrado em História pela Universidade Federal de Minas
Gerais, defendida em 1997, intitulada AidéiadeEstadonaAltaIdadeMédiaocidental.ORegnumFrancorumentreosséculosVeVIII,
MarceloCândidoexaminavaosistemapolíticomerovíngiodopontode
vistatradicional.NoestudoRecherchessurlasacralisationdupouvoir
temporeldansleHautMoyenAge,queapresentouparaobtençãodo
D.E.A.,naUniversidadedeLyon2,em1998,reviusuainterpretaçãoe
teceucríticaàteseda“patrimonialidade”edo“absolutismo”darealeza
franca.
12 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
O livro de Marcelo Cândido da Silva propõe profunda reflexão
sobre o poder franco entre o final do séculoV e o início doVIII, e
revela como a dinastia merovíngia, em alguns aspectos sucessora do
modeloromano,tornou-severdadeiramentecristã.Emoutrostermos:
comoequandoseprocessounaGáliaoestabelecimentodenovaautoridade pública de inequívoca influência moral e política da Igreja.
Otextoabordaaspectofundamentalparaacompreensãodoprocesso
de estabelecimento da Realeza Cristã no Ocidente. Para demonstrar
ainfluênciadadoutrinareligiosanalegitimidadepolíticadarealeza,
o autor examina pormenores dos vínculos de natureza institucional.
MarceloCândidodaSilvadivorcia-sedeliberadamentedetesesrenomadaseoferecenovainterpretaçãosobreoexercíciodautilitaspublica
naprimeiradinastiafranca.
Oestudocomeçapelaanálisedalinhahistoriográficatradicional,
quelançasobreosmerovíngiospesadasacusações.Essalinha,apoiadaemtextosantigos,atribuiàprimeiradinastiafrancaafalênciada
idéiaderespublicaesalientaaviolênciacomopráticadominantena
vidapolítica.Aferocidadedosreismerovíngios,divulgadaporGregório de Tours nas Histórias, deu consistência à noção de uma sociedadefundadanaforça.FusteldeCoulangessublinhouaviolência
brutal dos merovíngios como instrumento de política dinástica em
expressãofamosa:“despotismotemperadopeloassassinato”.Olivro
deFusteldeCoulanges,Histoiredesinstitutionsdel’ancienneFrance
(1912),éreferênciaobrigatóriaparaoestudodosmerovíngiosecarolíngios,especialmenteovolume3.SegundoFusteldeCoulanges,a
monarquiamerovíngiaidentifica-secomoprocessodacrisedaidéia
derespublica,queremontaaoBaixoImpério.Sustentaocaráterpatrimonialdarealeza“quesetransmitesegundoregrascomuns;mas
sepodiamesmolegarportestamentoouporsimplesdeclaraçãode
vontade,comosefariacomumdomínio”.Dessemodo,asucessãose
processadeacordocomodireitoprivado,emqueopodersetransmite de pai para filho. Os reis francos associam o interesse público
aoseupoderpessoal.Portanto,asmedidasdosoberanomerovíngio
refletem sua exclusiva vontade pessoal, como verdadeiro proprietá-
MarceloCândidodaSilva13
riodoreino.Produtodaconquista,oRegnumFrancorumnãopossui
legitimidadeteórica;porisso,buscalegitimarseupodernaforçamilitareemDeus.
As idéias de Fustel de Coulanges exerceram poderosa influência
sobre os que se dedicaram a estudar a dinastia merovíngia. Sua tese
sobreocaráterpatrimonialdoReinoFrancoeafalênciadaautoridade
públicafeznotávelsucessoentreoshistoriadores.F.Lot,L.Halphen,F.
L. Ganshof e M. Reydellet perseguiram o caminho de Fustel de Coulanges.Demodogeral,ostrabalhospublicadosdofinaldoséculoXIX
atéadécadadeoitentadoséculoseguinteindicamtrêscaracterísticas
básicasdosistemapolíticomerovíngio:apatrimonialidade,odesaparecimento do Estado e o absolutismo monárquico. Obras recentes de
síntesesobreoperíodomedievalacolhemanoçãotradicional,comose
vêemA.Vauchez,LaspiritualitédansleMoyenAgeoccidental(1994).
EmseuestudoPouvoiretculturepolitiquedanslaFrancemédiévale,de
1999, F. Collard faz, igualmente, dos séculos merovíngios uma época
ignominiosa.Amesmavisãonegativadamonarquiafrancaedafixação
dosbárbarosnoantigoterritórioromanotemJacquesLeGoff.NaCivilisationdel’OccidentMédiéval(1965),oconhecidohistoriadorsustenta
queosinvasores“precipitaram,agravarameexageraramadecadência
quesetinhainiciadonoBaixoImpério.Dodeclíniofizeramaregressão.
Regressãotambémdoscostumesedamajestadedogoverno.Comefeito,existeumasólidatradiçãohistóricaquevêocomeçodaIdadeMédia
comoaderrocadadeRoma.
Ancoradonoricoacervodocumentaldasbibliotecasuniversitárias
de Lyon, de proveitosa visita à École Française de Rome e a outros
centrosimportantesnaEuropa,MarceloCândidodaSilvamanifestasecontrárioàtendênciacomumquejulgaosprimeirosséculosmedievaiscomoumperíododerecuooudedeclíniodomundoromano.
Pacientereleituradasfontes,sistemáticaecriteriosa,lhepermitesustentarqueoprocessodemudançada“RealezaConstantiniana”–continuadoradomodeloromano–em“RealezaCristã”resultadaextraordináriainfluênciadaaristocraciaepiscopal,noséculoVI.Observa,
ainda, que o problema da sobrevivência da utilitas publica culmina
14 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
comamodificaçãodanaturezadaautoridaderealnoRegnumFrancorum,noreinadodeGontran,quandooapoiodosbisposproduznovo
equilíbrionasrelaçõesentreIgrejaerealeza.Aminuciosaanálisedos
concíliosdeLyon(581)edeMâcon(585),emaistardedoConcílio
deParis(614),dá-lheensejodemostrarqueoepiscopadosetorna,no
iníciodoséculoVII,“ogrupopolíticomaispoderoso”,oquefavorece
acristianizaçãoaceleradadautilitaspublica.Énessemomentoquese
estabelece,dizoautor,oequilíbrionasrelaçõesentreaIgrejaeopoder
real.OEditodeGontrão(585)ilustraeestreitaacolaboraçãoentreos
poderestemporalereligioso,“sobosignodaresponsabilidadedorei
emfacedeDeus”.
O erudito trabalho de Marcelo Cândido da Silva fundamenta-se,
basicamente, em fontes primárias rigorosamente selecionadas (diplomas,prescrições,julgamentos,atas,textosnarrativosdeGregório
deToursedeFredegário,poemasdeFortunato,obrashagiográficas,
fontes legislativas e administrativas, além de outras) e de ampla bibliografia.Todasasfontesreferidasdocumentamafirmaçõesdotexto.
Debruçadosobreosprimórdiosdarealezafranca,ojovempesquisadorrevelasensibilidadeaoperceberonovo,oprocessodenascimento
naGáliadeoutrotipodeautoridadepública,quesealimentounateologiapolíticadefendidaesustentadapeloepiscopadofranco.Criativo,
nãotemeousar.MarceloCândidodaSilvapreocupa-seemresponder
aoproblemadadefiniçãodaexpressãoregespropublicisutilitatibus,
que,naprimeirametadedoséculoVI,significariaacontinuaçãoda
ideologiaimperial(imitatioimperii),emostraapassagemparaoreges
propopulisalvationeparasublinharocaráter“pastoral”dopoderreal.
Éestudodeproblemacomplexoedifícil,decapitalimportânciapara
compreender a formação e o desenvolvimento da monarquia merovíngia. Para enfatizar a preponderância do elemento religioso como
legitimadordaautoridadepública,MarceloCândidodaSilvafazpenetrante incursão no estudo dos vínculos de natureza institucional.
AcreditaqueasobrevidadoImpérionãoéuma“ficçãoconstitucional”. Defende que as sucessivas partilhas não romperam a unidade
fundamentaldoReinodosFrancos.Substitutadopoderromanona
MarceloCândidodaSilva15
Gália,arealezamerovíngiasoubepreservaroessencialdaautoridade
pública.Trata-sedelivroimportanteedealtosentidonabibliografia
darealezamerovíngia,carenteaindadeobrasrecentes.
DanielValleRibeiro
ProfessorTitulardeHistóriaMedievalda
UniversidadeFederaldeMinasGerais(UFMG)
Introdução
Oschamados“reinosbárbaros”têm,hámuitotempo,despertadoo
interessedoshistoriadores.Inúmerostrabalhosforamconsagradosaesse
temadesdeoséculoXVIII,comoaHistoirecritiquedel’établissement
delamonarchiefrançaisedanslesGaules, do abade Dubbos, publicadaem1742,eDel’espritdeslois,deMontesquieu,de1748.Ébem
verdadequeoutrostemas–porexemplo,“acrisedomundoromano”
– suscitaram uma maior diversidade de interpretações1. Entretanto, é
emtornodanaturezados“reinosbárbaros”queobservamosasmaisextraordináriasmudançasnoposicionamentodoshistoriadores.Emuma
comparação entre os trabalhos publicados sobre o assunto no século
XIXeasobrasmaisrecentes,oquemaischamaaatençãoéaevoluçãodospontosdevistasobreanaturezadasrealezasquesucederamao
ImpérionoOcidente.Inicialmenteconsideradasfrutodoocasodaci1
UmbomexemplodessadiversidadeestánaobradohistoriadoralemãoA.Demandtque,
em1984,recenseoucercade210fatoresqueeramatéentãoinvocadosparaexplicaracrisedo
mundoromano(A.Demandt,DerFallRoms,p.493).
18 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
vilizaçãoromana,essasrealezassãohojevistasporvárioshistoriadores
como construções institucionais altamente elaboradas; alguns autores
nemsequerhesitamemfalarde“Estado”2paradefini-las,algobastante
improvávelháalgunsanos.
Certamente,essa“guinadahistoriográfica”nãopodeserexplicadapelo
adventodeuma“revoluçãodocumental”.Oconjuntodetextosdisponíveis
dosséculosV,VIeVII–bemreduzidosecomparadocomoutrosperíodos
daIdadeMédia,diga-sedepassagem–permanecepraticamenteinalterado
desdeofinaldoséculoXIX.Nãohouvenenhumadescobertasignificativa
–arqueológicaoudocumental–quepudessetransformarradicalmenteo
conhecimentosobreoperíodo–eassimexplicartamanhamudança.As
razõesdessaevoluçãohistoriográficadevem,portanto,serbuscadasmuito
alémdaspolêmicasdeerudição.Fatorespolíticoseideológicosdesempenharamumpapelcrucialnesseprocesso,sobretudonoqueserefereaocaso
dosfrancos,referenciaisdaconstruçãodasidentidadesfrancesaealemã,e
pomosdadiscórdiaentreoshistoriadoresdeambasasnacionalidades.
“Patrimonialismo”e“absolutismo”
ÉpossívelidentificardesdeofinaldoséculoXIXentreoshistoriadores
franceses,bemcomoentreoshistoriadoresalemães,duasvisõesdistintas
sobreanaturezadamonarquiafranca.Entreosautoresalemãesaatitude
paracomosfrancosnãoerahomogênea–comoveremosaseguir.Contudo,prevaleceuentreelesumavisãobastantepositivadeClóvis3(c.4812
Éocaso,porexemplo,deK.F.Werner(“L’Historienetlanotiond’Etat”,pp.29-41)edeJ.
Durliat(LesfinancespubliquesdeDioclétienauxCarolingiens).
3
OnomeClóvisconstituiumainterpretaçãobastantealeatóriadasformasutilizadaspeloshistoriadoresdaépocafranca.GregóriodeToursescreveChlodovechus,aopassoquenoterceiro
livrodascrônicasatribuídasaFredegário,nascartasdeRemígioenaVitaGenovefae,encontramosChlodoveus;oPactuslegisSalicaeadotaasformasChlodoveuxeChlodeveus(Pactuslegis
Salicae,p.198);naVitaRemigii,encontramosChlodovicus(VitaRemigiiepiscopiRemensis
auctoreHincmaro,11,p.291),enquantoJordanesutilizaaformaChlodoin(DerebusGeticis,
57,p.133).
MarceloCândidodaSilva19
511)edeseusherdeiros,ouporqueeleeravistocomooconquistadore
olibertadordaGália,ouporquesepercebenelehojeoherdeirodaquilo
queseconvencionouchamarde“Romanidade”.DuranteoséculoXIX,
oseruditosalemães,aquemdevemosasprimeirasediçõesdasfontes
escritassobreomundoromanoesobreosreinosromano-germânicos
–notadamenteoCorpusInscriptionumLatinarumeosMonumenta
GermaniaeHistorica–estavammajoritariamenteconvencidosqueo
ano476d.C.marcouofimdoImpérionoOcidente.Elesacreditavam
queasinvasõesgermânicassignificaramotriunfodepovosjovensevirtuososemfacedeumImpério“decadente”e“corrompido”.Paraesses
autoreseradifícil,eatémesmoimpossível,aceitaradescriçãonegativa
dosfrancosfeitapeloshistoriadoresfranceses.AquelesqueteriamtrazidoaoOcidenteumvigornovo,equeoteriamregeneradoapósséculos
decrisepolítica,econômicaemoral,decididamentenãopoderiamser
oscriminososdequefalavamoshistoriadoresfranceses.
Para muitos historiadores franceses no mesmo período, a predominância dos elementos germânicos na formação das monarquias
ocidentaisteriaacarretadoumabrutalregressãopolítica.Apublicação
dosRécitsdestempsmérovingiens,deAugustinThierry,em1840,em
muitocontribuiuparaadifusãoda“lendanegra”dosfrancos.A.Thierryqueriademonstrarqueoconflitoentreaburguesiaeaaristocraciado
seutempotiveracomoorigemoantagonismoentreosgalo-romanose
osinvasoresbárbaros4.
Ambasasinterpretaçõesmencionadasreconhecemapredominância
dolegadogermâniconaformaçãodosreinosocidentais,daíautilização
da expressão“Escola germanista” para designá-las. Nascida na França
doséculoXVIII,essacorrentehistoriográficanãohesitavaemapontar
osreinosbárbaroscomoofrutodaconquistagermânicaedofimdo
ImpérioRomano.Essatendênciatornou-semajoritáriaentreoshistoriadores de língua francesa ao longo dos séculos XIX e XX. Entre os
adeptosda“Escolagermanista”naAlemanha,haviaG.Waitz,R.Sohm,
4
VerA.Dhôtel,“Préface”,In:A.Thierry,Récitsdetempsmérovingiens,précédésdeConsidérationssurl’histoiredeFrance,pp.9-22.
20 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
W.SickeleF.Dahn.Háváriospontosemcomumnaargumentaçãodos
adeptosalemãesdo“germanismo”:elesviamosgermânicoscomopovos“virtuosos”cujacontribuiçãomaiorteriasidoadelibertarospovos
doOcidentedodomíniodaaristocraciaromana;paraeles,osreismerovíngiosteriamexercidoogovernonaGáliamuitomaisemrazãodeum
direito de conquista do que por uma delegação imperial. Entretanto,
nemtodososhistoriadoresalemãesdoséculoXIXprofessaramocredo
germanista.C.vonSavigny(1779-1861)eTh.Mommsen(1827-1903)
sustentaram ambos a sobrevivência do direito romano na Alta Idade
Média.
Aperenidadedaherançaimperial,apósasinvasõeseapesardelas,
é o corolário da “Escola romanista”, cujo primeiro expoente foi um
francês, o abade Dubos. Em sua obra, intitulada Histoirecritiquede
l’établissement de la monarchie française dans les Gaules, ele apresentaChilderico(c.456–c.482)eClóviscomosúditosdoimperador,
aoinvésdeconquistadoresdaGália.Opoderrealdosmerovíngiosterse-iaoriginado,segundooabadeDubos,deumadelegaçãoconferida
porConstantinopla.Asinstituiçõesdamonarquiafrancaseriamuma
transposiçãodeRoma,enãoumacriaçãodomundogermânico.Essas
idéias encontraram um sucesso limitado no ambiente historiográfico
europeuatéumperíodomuitorecente,pelasrazõesquemostraremos
aseguir.
NaFrança,duranteoséculoXIX,odebateemtornodatransiçãoda
AntigüidadeàIdadeMédiaconstitui-seemumaespéciede“frontacadêmico”docombatenacional.Paraosgermanistasfranceses,a“Germanité”foidurantemuitotemposinônimodecrueldadeedecadência.
Esta tendência já era visível a partir da primeira metade século XIX.
J.-M. Lehuërou, em livro publicado em 1842, afirmava que os francoseram,emsuaorigem,povosrenegados,expulsosdesuaterranatal
pelasuabarbárieepelaferocidadedeseuscostumes5.Noentanto,foi
durantea3aRepública,esobochoquedaderrotade1871,queosme5
J.-M.Lehuërou,HistoiredesinstitutionsmérovingiennesetdugouvernementdesMérovingiensjusqu’àl’éditde615(sic),pp.100-101.
MarceloCândidodaSilva21
dievalistasfrancesessehabituaramaapresentarodesaparecimentodo
Estadoeotriunfodosinteressesprivadoscomooscoroláriosnaturais
da“crueldade”dospovosgermânicos6.Seapreocupaçãodosprimeiros“germanistas”franceseseraidentificaratéondeoestabelecimento
dosbárbarosnaGáliatinhasidoafonteprincipaldelegitimidadedos
privilégiosdanobreza,maistarde,duranteoséculoXIX,elespassaram
a associar o triunfo das tradições germânicas à regressão brutal dos
costumespolíticos.ComaquedadoImpériodoOcidente,arespublica,
encarnaçãosupremadavontadedoscidadãos,teriacessadodeexistir,
levandocomelaasinstituiçõespúblicas.Somenteo“direito”teriasobrevivido,masunicamentecomoencarnaçãodavontadepessoaldos
soberanos,atésucumbirporsuavezemfacedeumaaristocraciapredadoraqueseamparoudetodoopoderpolítico,provocandooocaso
dopoderreal.
Historiadoresearqueólogosfranceseshabituaram-seaopora“crueldade”,inerenteaomundogermânico,à“civilização”romana,daquala
Françamodernaseriaaherdeira7.Equandofaziamreferênciaaos“bárbaros”,eramosalemãesqueelesvisavam.Paracitarapenasumexemplo,
E.Salindedicousuaobrasobreaarqueologiamerovíngiaàmemóriado
MarquêsdeBayeque,segundoele,“percebeuoalcanceprofundodas
grandesinvasõesdoséculoV”,etambémàmemóriadeJ.Déchelette,
6
VerP.Geary,“DifférenceethniqueetnationalismeauXIXesiècle:unpaysageempoisonné”,
In: Quand les nations refont l’histoire. L’invention des origines médiévales de l’Europe,
Paris,2004,pp.25-56.
7
EmsuasLeçonsàl’impératrice,N.D.FusteldeCoulangesescreveu:“Romacriouaadministração. Seu sistema administrativo desabou ao mesmo tempo que o Império; mas restaram
lembranças,tradições.Umdia,arealezafrancarecuperouessaslembrançaseessastradiçõesecomeçouareconstruirpoucoapoucoovelhoedifício.Eudevodizerquealongoprazoelaconseguiu.
Quanto às leis romanas, elas nunca desapareceram completamente. É verdade que outras leis,
germânicasefeudais,vieramestabelecer-senaFrança,massemsufocarasleisromanas.Asduas
legislações,romanaefeudal,viveramladoaladoentrenósduranteséculos,inimigasentreelase
nãocessandodeguerrear.Alutaterminousomenteem1789comavitóriadasleisromanas,que
predominaramefetivamenteequeformamhojeasbasesdenossoCódigoNapoleônico”(Leçonsà
l’impératricesurlesoriginesdelacivilisationfrançaise,pp.140-141).
22 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
cujacarreiratinhasidointerrompidanaauroradas“grandesinvasões”
doséculoXX8.Éclaraaquiaintençãodoautoremapontarumalinha
decontinuidadeentrea“barbárie”dosantigosgermânicoseamoderna
“barbárie”alemã.
Não se pode dividir os historiadores do mundo franco entre os
adeptosdasteses“germanistas”eosadeptosdasteses“romanistas”.Na
FrançaenaAlemanha,historiadoresqueprofessavamidéiasda“Escola
germanista” chegaram a conclusões diametralmente opostas sobre a
naturezadamonarquiafranca.Alémdisso,asobrasdealgunsautores
mostramarelativapermeabilidadeentreosargumentosgermanistase
osargumentosromanistas.ÉocasodeN.D.FusteldeCoulanges.Ele
acreditavaqueasinstituiçõeseodireitoromanossobreviveramàsinvasões;aomesmotempo,consideravaqueoquehaviadenegativona
monarquia franca era de origem germânica9. Em sua obra, Histoire
desinstitutionspolitiquesdel’ancienneFrance,FusteldeCoulanges
afirmava que, como as instituições germânicas eram inexistentes ou
ineficazespararesponderàsnecessidadesdeumsistemapolíticocomplexo,Clóviseseusdescendentesnãoteriamtidooutrasoluçãosenão
governarcomoseusantecessoresromanos.Noentanto,elesustentava
queogermanismo,verdadeiraforçadestrutiva,ter-se-iaexprimidopela
privatizaçãodopoderpolíticoepelaviolência.FusteldeCoulangesqueriaprovarqueaformaçãodosreinosbárbarosnãotinhaprovocadoo
fimdaromanidade.Elevianastomadasdeposiçãodoshistoriadores
alemãesummeroreflexodesuaspaixõesnacionais:osentimentopatriótico,enãoaleituradostextos,équeteriaengendradoainterpretação
doshistoriadoresalemãessobreamonarquiafranca10.AobradeFustel
deCoulanges,apesardesuaspretensõesdeimpessoalidadeedeobjeti-
8
E.Salin,Lacivilisationmérovingienned’aprèslessépultures,lestextesetlelaboratoire,t.
I,Lesidéesetlesfaits.
9
SobreFusteldeCoulanges,verF.Hartog.LeXIXesiècleetleshistoriens.LecasFustelde
Coulanges.
10
Lamonarchiefranque,1888,p.31.
MarceloCândidodaSilva23
vidade,vibravadetodososecosdasquerelasideológicasdeseutempo,
participando à todas as paixões históricas que animavam os eruditos
deParisedeBerlimeexprimindo-ascomumaforçacomparávelàdos
historiadoresmaisengajadosdomomento11.
FusteldeCoulangesidentificavanamonarquiadosfrancosopontoculminantedacrisedaidéiaderespublicacujosprimeirossintomas
remontariam à época do Baixo Império. O caráter patrimonial do
sistemapolíticomerovíngioteriasuaorigemnatransmissãodopoder
realsegundoasregrasdodireitoprivado.Nãosomentearealezaseria
umpatrimônioquesetransmitiriasegundoasregrasordinárias,mas
elapoderiamesmoserlegadaportestamentoouporsimplesdeclaraçãodevontade,damesmaformaqueumdomínio12.Nuncaantes
dosmerovíngios,diziaele,opodermonárquicohaviasidoassimestreitamenteassociadoaumbemprivado13.Verdadeiros“proprietários
doreino”,essespríncipesteriamsidotambémmestresabsolutosdos
homensedasterras14.
ÉdifícilqualificarFusteldeCoulangesde“romanista”ou“germanista”,
dadaasutilezadesuaanálise:elenãosubestimavaainfluênciagermânica
nasinstituiçõesfrancas,mas,aomesmotempo,nãoaceitavaaidéiadequeo
legadoromanotivessesidodestruído.Poroutrolado,suaafirmaçãosegundo
aqualogovernomerovíngioeraemtrêsquartosromanonãodeixadúvidas
quantoàssuasafinidadescomastesesditasromanistas15.Aindaassim,a
constataçãodeFusteldeCoulangessegundoaqualamonarquiafrancaera
“patrimonial”e“absoluta”marcoumuitomaisahistoriografiafrancesaque
suasconclusõessobreasobrevivênciadasidéiasedasinstituiçõespolíticas
romanas.Oshistoriadoresfrancesesadotarammajoritariamenteessasteses
deFusteldeCoulanges,masdeixaramoutrasdelado.Suaafirmaçãodeque
11
H.Lavigne,“Introduction”,In:N.D.FusteldeCoulanges,LaGauleromaine,pp.1-25.
N.D.FusteldeCoulanges,Lamonarchiefranque,pp.36-37.
13
Idem,pp.649-651.
14
Essaé,porexemplo,aopiniãodeP.-E.Fahlbeck,Laroyautéetledroitroyalfrancsdurant
lapremièrepériodedel’existenceduroyaume(486-614),p.70etsq.
15
N.D.FusteldeCoulanges,Lamonarchiefranque,p.651.
12
24 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
asinstituiçõesromanassobreviveramàquedadeRomaacabousedissipandoemnumerosostrabalhossobreamonarquiafrancaque,aolongoséculo
XX,insistiramnatesedodesaparecimentodaautoridadepública.
Nas primeiras décadas do século XX, houve uma tentativa de se
romper com a clivagem romanismo/germanismo. Na visão de F. Lot,
porexemplo,procurarsabersearealezafrancaestavamaispróximada
antigaGermâniaoudoImpérioRomanoeraumfalsoproblema16.No
livroLafindumondeantiqueetledébutduMoyen-Age,publicadoem
1927,elevianaconquista,oumelhor,na“tomada”daGáliaporClóvis
umeventodecisivoqueteriacriadoum“sistemapolíticomaisoriginalem
suaformaeemsuasestruturasqueosoutrosreinosbárbarosnascidosda
decomposiçãodomundoromano”.Noentanto,osentidonegativoqueF.
Lotatribuiaessaoriginalidadeébastanteexplícito:damesmamaneira
queN.D.FusteldeCoulanges,eledescreveoRegnumFrancorumcomoa
propriedadedosoberano.Quandodamortedesseúltimo,oreinoseria
divididoentreseusfilhossemselevaremcontaageografia,aetnografia,
osdesejosouasconveniênciasdaspopulações.Assimsendo,nãohaveria
enãoteriapodidohaverlimitesaopoderarbitráriodorei.Seépossível
afirmar,comopretendeP.Riché,queF.Lotfoiumdosprimeiroshistoriadores a recusar a ruptura entreAntigüidade e Idade Média17, sua
maiorpreocupação,contrariamenteaoqueafirmaP.Riché,nãoestava
em mostrar como as instituições do Baixo-Império sobreviveram na
AltaIdadeMédia,mascomoaanarquiainstitucionaldoBaixoImpério
prosseguiunosreinosbárbaros.Essesúltimosteriamsidoincapazesde
“regenerar”omundoantigoedecriar“fórmulaspolíticasmelhores”18.
16
F.Lot,NaissancedelaFrance,p.167.
17
P.Riché,DictionnairedesFrancs.Lestempsmérovingiens,p.216.
18
F. Lot, LafindumondeantiqueetledébutduMoyen-Age, p. 433: “A regeneração pelos
bárbaroséumatesesedutoraapriori.Masquandoobservamosnostextosacorrupçãoassustadora
dessestempos,éimpossívelveroutracoisaalémdeumsimplestemaretóricodedeclamação.As
monarquiasfranca,visigoda,ostrogoda,lombarda,são,outrastantasBizânciogermânicas,aliançadadecrepitudeedabarbárie.Taisestados,semnenhumfrescor,semvirtudepurificadora,não
eramviáveisesomentepodiamterumaexistênciamiserável.Nenhumaforcavitalosanimava,
umavezterminadooperíodoguerreirodesuaconstituição”.
MarceloCândidodaSilva25
OhistoriadorbelgaF.L.Ganshofnoiíciodadécadade1960,tambémbuscoudistanciar-sedapolêmicaentre“romanistas”e“germanistas”.Entretodasascaracterísticasdasinstituiçõesdamonarquiafranca,
elechamouaatençãoparaapresençade“elementosdeorigemdiversa”
–numatentativadeencontrarumasaídaparaodebateentreessasduas
vertentesinterpretativas.SegundoGanshof,nematradiçãogermânica,
nematradiçãoromana,teriammarcadoamonarquiafrancadeuma
maneira indelével a ponto de se poder falar em triunfo de um ou de
outroelemento19.Nãoobstanteessedesejodeultrapassaroslimitesestreitosdodebateromanismo/germanismo,F.L.Ganshofcontentou-se
emretomaramaiorpartedostemasamplamenteexploradosporN.D.
FusteldeCoulangeseporF.Lot:eleafirmaqueopoderrealmerovíngio
é patrimonial e absoluto, e não possui outros limites além da guerra
civil,doassassinatoedomedosupersticiosodeDeusedeseussantos20.
Essaidéia,aliás,jáseencontravanostrabalhosdeL.Halphendesde
ofinaldosanos1930.Atravésdoqualificativo“bárbaro”queeleassociavaaosmerovíngios,HalphenqueriadistinguiroReinodosFrancos
sobosmerovíngios,daquele“reformado”peloscarolíngios.Oprimeiro
seria um produto da força, um conjunto de territórios heterogêneos
unidosunicamenteemrazãodaambiçãoguerreiradeseusdirigentes.
Omundocarolíngioteriaconseguido,aindaquedurantepoucotempo,
reconstruirumanovaordemsobreasruínasdomundoantigo,eassim
oferecerumanovaalmaaumOcidentemortificado21.Foiemumartigo
publicado no final dos anos cinqüenta que essa comparação assumiu
19
F.L.Ganshof,“Lestraitsgénérauxdusystèmed’institutionsdelamonarchiefranque”,pp.
91-127,especialmente,p.93.Entreosquesustentamaidéiadeuma“viamedia”,equerecusam
todaalternativaentre“germanismo”e“romanismo”,háC.Pfiester[“GaulundertheMerovingianFranks.Institutions”,pp.132-158,etambémR.Folz,A.Guillou,L.Musset(Del’Antiquité
aumondemédiéval,pp.116-117].
20
F.L.Ganshof,“Lestraitsgénérauxdusystèmed’institutionsdelamonarchiefranque”,p.97:
“Oreinãoédeformaalgumaodetentordeumpoderqueemúltimainstânciatenhapertencido
aumaabstração,oEstado,arespublica.Semqueoreitenhasidooproprietáriodetodoosolono
reino,oreinocomotaleraconsideradocomosuacoisa”.
21
L.Halphen,Charlemagneetl’EmpireCarolingien,p.17.
26 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
todasuaamplitude.L.Halphenconstatavaodesaparecimentodetoda
formadeautoridadepúblicasobosmerovíngios.Emrazãodasinvasões
germânicasdosséculosVeVI,arespublica–oconjuntodetodosos
cidadãos,paraobemdosquaisexistiaumaautoridadesuprema–teria
cedido lugar a uma concepção inteiramente oposta àquela elaborada
pelos romanos, fundada unicamente nas conveniências pessoais dos
príncipes.Anoçãode“bempúblico”somenteteriasidoincorporadaà
monarquiafrancasoboscarolíngios,graçasàaçãodaIgreja.Opríncipe
carolíngionãoteriasidosomenteodetentordeumconjuntodeterritóriosdosquaiseleretiravabenefíciospessoais:elefalariaemnomeda
comunidadedospovoscolocadossobsuaautoridade;eleseriatambém
oresponsávelpelasalvaçãoespiritualdeseussúditos22.
Aidéiadequeosreismerovíngiosforamincapazesdeedificaruma
“Realeza Cristã” teve grande repercussão durante a década de 1960.
R.Folz,emsuaobrasobreacoroaçãoimperialdeCarlosMagno,reconheceuumprincípiodecristianizaçãonamonarquiafrancasobos
merovíngios.Paraele,entretanto,esseprocessosomenteteriadadoseus
frutos mais tarde, quando a Igreja franca emergiu da crise em que se
encontravadesdeametadedoséculoVII23.Ospríncipesmerovíngios
teriam sido incapazes de compreender o programa que lhes era propostopelaIgreja.EssatambéméaopiniãodeJ.Imbert,paraquemo
carátercristãodamonarquiafrancateriaseafirmadosomenteapóso
golpe de Estado de Pepino, o Breve, e de sua dupla unção, em 751 e
em75424.Paraessesautores,a“RealezaCristã”éindissociáveldaunção
real. Uma vez que as fontes não apresentariam o mínimo indício da
práticadaunçãonaGáliaantesdoséculoVIII,afécristãdospríncipes
merovíngiosseriaapenasumafinacamadadesentimentoreligioso,que
disfarçavamalassuperstições.Somenteopríncipecarolíngio,“rexDei
22
L.Halphen,“L’idéed’EtatsouslesCarolingiens”,pp.92-104.
23
R.Folz,LecouronnementimpérialdeCharlemagne,25décembre800,pp.36-37.
24
J.Imbert,“L’influenceduchristianismesurlalégislationdespeuplesFrancsetGermains”,
pp.365-396.
MarceloCândidodaSilva27
gratia”(“reipelagraçadeDeus”),teriatidoêxitoemfundarumarealeza
verdadeiramentecristã.
Osmerovíngiossãotratadosporboapartedahistoriografiacomo
umespelhodeformadodoscarolíngios:seriamsoberanoscúpidosdemaise,sobretudo,demasiadorústicosparateremsidoumdiaportadores
deumaresponsabilidadepúblicaqueconsistiaemconduziropovono
caminhodasalvação.Faltariam-lhesosmeios:nãoteriamrecebidopara
talmissãoaquiloqueeranecessário,abençãocontidanoóleosanto25.
Opoucodeautoridadequetinhamsobreosseussúditossedeveriaà
crençadessesúltimosemsuasorigensmíticas.Esseprestígioéqueteria
impedido os“prefeitos do palácio” de derrubarem com sucesso, pelo
menosatéametadedoséculoVIII,osreisque“nãopossuíamopoder
real”(nonhabentesregalempotestatem),deacordocomafórmulaempregadapelosemissáriosdePepino,oBreve,naentrevistacomopapa
Zacarias26.Paraalcançaropoderreal,oscarolíngiosteriamprocurado
juntoàIgrejaalegitimidadecristãparacompensaremesmoultrapassar
a legitimidade concedida pela tradição pagã.Em face dos carolíngios,
“reis cristianíssimos”, os reis merovíngios constituem ainda hoje para
muitoshistoriadoresasínteseperfeitaemquesemisturamaviolência,
acrençasupersticiosanosantigosmitosgermânicoseumasacralidade
deorigempagã.
Apersistênciadaautoridadepública
Embora as opiniões sobre o caráter“patrimonial” e“absoluto” da
monarquiafrancafossemmajoritáriasentreoshistoriadoresdelíngua
francesapelomenosatéosanos1970,elasnuncaforamunânimes.Éo
quesepodeobservaratravésdaobradeH.Pirenne:paraele,osfrancos,domesmomodoqueoslombardos,osvisigodoseosburgúndios,
25
F.Lot,NaissancedelaFrance,p.168.
AnnalesRegniFrancorum,p.8.
26
28 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
conseguirampreservarasinstituiçõesimperiais.Aodescreverosreinos
ocidentaisàsvésperasdaocupaçãomuçulmanadaEspanha,H.Pirenne
minimizava o caráter patrimonial normalmente atribuído às monarquiasgermânicas,eparticularmenteàGáliamerovíngia.Segundoele,
seéverdadequeoreimerovíngioseconsideravaproprietáriodoreino,
arealezanãopossuíaumcarátertãopatrimonialquantonormalmente
sesupunha.Oreidistinguiriasuafortunapessoaldasfinançaspúblicas.
Pirenneacreditava,entretanto,queanoçãodepodereramais“primitiva” entre os francos que entre os visigodos, pois, quando da morte
dorei,oreinoeradivididoentreseusfilhos.Atradiçãodessasdivisões
seria,segundoele,conseqüênciadaconquistadaGáliapelosfrancose
nãooresultadodainfluênciagermânica.ChildericoeClóvisnãoteriam
recebidoummandatodoImpério.Alegitimidadeobtidanoscampos
debatalhaéqueteriapermitidoaClóvistransmitiraosseusherdeiros
aterrafranca27.AsnumerosascríticasrecebidaspelatesedePirenneno
queserefereàrelaçãoentreaexpansãomuçulmana,ofechamentodo
MediterrâneoocidentalaoscristãoseodeslocamentodoeixoeconômicodoOcidenteparaaEuropasetentrional,atingiramigualmentesuas
considerações sobre a natureza romana das“monarquias bárbaras”28.
NaAlemanha,ondeosentimentopatrióticoeramuitasvezesindissociável da defesa dos pressupostos germanistas, sua tese também não
recebeuumaacolhidafavorável29.H.Pirennefoi,todavia,umdospoucoshistoriadoresdelínguafrancesadeseutempoasustentaraidéiade
sobrevivênciadaromanidade.Averdadeiraruptura,segundoele,teria
produzidoquandodofechamentodoMediterrâneoànavegaçãoeao
comérciodoscristãos.
27
H.Pirenne,MahometetCharlemagne,p.34.
EmsuascríticasàtesedePirenne,W.CarrolBarkafirma,porexemplo,quearupturaque
Pirenneidentificacomosendoorigináriadaexpansãomuçulmana,teriadefatoresultadodas
invasõesgermânicasdosséculosVeVI(OrigensdaIdadeMédia,pp.16-47).
29
TalvezaúnicaexceçãosejaotrabalhodeE.Fueter,publicadonosanos1930(DerBeginn
desMittelalters,reimpressoemZurFragederPeriodengrenzezwischenAltertumundMittelalter,pp.49-54).
28
MarceloCândidodaSilva29
M. Silber é um dos raros partidários da idéia de continuidade da
herançaromananosreinosocidentaisnasprimeirasdécadasapósaSegundaGrandeGuerra.EledefendiaaidéiadacontinuidadeentreRoma
eosreinosgermânicosecolocavaemdúvidaavalidadedetermostais
como“ImpérioRomanodoOcidente”e“quedadoImpérioRomanodo
Ocidente”.Segundoele,mesmoquetenhamexistido,após395,doisimperadores,osromanosreconheciamsomenteumImpério.Falardofim
doImpériodoOcidenteseriaincorreto,namedidaemquesubsistiria
emConstantinoplaumimperadoreumImpérioreconhecidoportodos,inclusivenoOcidente.Osreisbárbarosdeviamseuprópriopoder
unicamenteàsposiçõesqueocupavamnoseiodahierarquiaimperial,e
emrazãodeumaconcessãodoimperador30.
NaFrança,foiprecisoesperaratéoiníciodosanos80paraqueocorresseumaevoluçãonapercepçãohistoriográficadamonarquiafranca.
K.F.Werner,quedirigiuoInstitutoHistóricoAlemãodeParisdurante
cercadeumquartodeséculo,foiumdospioneirosdessamutaçãohistoriográfica. Um dos eixos dos trabalhos de Werner é a crítica à tese
daconquistadaGáliapelosfrancos.Numartigocélebre(“Laconquête
franquedelaGaule:itinéraireshistoriografiquesd’uneerreur”),cujo
títuloéumarespostaaumartigodeM.Blochpublicadoem1929(“ObservationssurlaconquêtedelaGauleromaineparlesroisfrancs”),
WernersustentavaqueospovosgermânicosnãoconquistaramoImpério para em seguida substituí-lo por uma“Germânia”. Nenhum rei
germânicojamaisteriaestendidoasfronteirasprimitivasdeseureino
demaneiraqueum“Estadogermânico”viesseasubstituirduravelmenteumapartedomundoromano.AtesedofimdoImpérioseriaapenas
um“mitohistoriográfico”,poisesseimpérioteriasobrevividomesmo
noOcidentedurantemuitosséculosapósasinvasões.Asestruturashierárquicas romanas, afirma ele, não sucumbiram às invasões bárbaras
30
M.Silber,TheGallicRoyaltyoftheMerovingiansinitsRelationshiptothe“OrbisTerrarumRomanum”duringthe5thandthe6thCenturiesA.D.,p.40.
30 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
pelasimplesrazãodequeoqueocorreufoiumatomadadopoderno
interiordomundoromanopeloschefesbárbaros.Osreinosgermânicos
teriamsidodurantemuitotempoEstadosfundadospeloschefesbárbarosnointeriordasprovínciasromanas31.Wernerresponsabilizauma
partedahistoriografiamodernapelamáreputaçãodosmerovíngios:os
francesesnãoacreditariamqueeleserambonseverdadeiroscristãos,ao
passoqueosalemãeslhesimputariamofatodeteremsofridoainfluência galo-romana a ponto de terem abandonado sua“germanidade”.
Apesardessamáreputação,K.F.Werneridentificavanoedifíciopolítico
merovíngioascaracterísticasinerentesaum“Estadocristão”.Asguerras
civiseoassassinato,muitasvezesapontadoscomotraçosessenciaisda
realezafundadaporClóvis,nãoteriamimpedidoqueapazreinassede
maneiramaiseficazsobosmerovíngiosqueduranteoBaixoImpério.
Apesardessaevoluçãodahistoriografiasobreomundofrancodescrita anteriormente, a visão negativa da realeza merovíngia, enunciada por Fustel de Coulanges, e retomada por F. Lot, L. Halphen e F.L.
Ganshof,aindamarcaalgunstrabalhosdenão-especialistasdomundo
franco.Pode-semencionaraesserespeitootrabalhodeA.Vauchezsobre
aespiritualidadenaIdadeMédiaocidental,publicadoem1994.Vauchez
retomou o paralelo entre os períodos merovíngio e carolíngio, como
apresentadoporL.Halphen.Oreimerovíngio,dizia,eraumdéspota
quetinhaseupoderdosangue.Oseuarbítrioteriasidolimitadoapenas
pelaguerracivil,oassassinatoeotemorsupersticiosodeDeusedeseus
santos. Os príncipes carolíngios, devido ao papel desempenhado por
eles na Igreja e na sociedade, apareceriam como verdadeiros pastores
responsáveis pela salvação das almas. Essa nova concepção da função
real seria conseqüência da sagração, que além de dar ao príncipe um
prestígiodeordemsobrenatural,marcariatambémcertapredominânciadosbispos32.
31
K.F.Werner,Lesorigines,avantl’anMil,p.351-361.Vertambém,K.F.Werner,Lesorigines
delanoblesse,pp.41-42.
32
A.Vauchez,LaspiritualitédansleMoyen-Ageoccidental,p.19.
MarceloCândidodaSilva31
Aspesquisassobreamonarquiafrancalevadasacabonosúltimos
anosparecemconfirmarasidéiasdeK.F.Werner:elasmostramqueopoderpúblico,suaspráticasadministrativas,alinguagemdaschancelarias
emesmoostítulosconcedidosaosfuncionáriosnaGália,nãopassaram
por uma mudança suficientemente importante após as invasões para
quesepossafalaremruptura.Osespecialistasdomundofrancotendem
hojeaconsiderarqueaadministraçãoromananaGáliamerovíngianão
foidestruídapelosfrancos33.Retomandoaquestãocolocadanoinicio
destaintrodução,procuraremosdiscutiragoraasrazõesdessa“guinada
historiográfica”.Doisfenômenospodemajudar-nosacompreendê-la.O
primeiroéareavaliaçãodequefoiobjetooBaixoImpérioemtrabalhos
recentes:esseperíodoécadavezmenosvistosobaóticadacriseeda
decadência34.Aexistênciada“crisedoséculoIII”vemsendoquestionada35,bemcomoaidéiadeumarupturabrutalentreoAltoImpérioe
33
W.Goffart,“OldandNewinMerovingiantaxation”,pp.213-231;P.Riché,P.Riché,Educationetculturedansl’Occidentbarbare(VIe-VIIIesiècle),p.75;E.Magnou-Nortier,“Étude
surleprivilèged’immunitéduIVeauIXesiècle”,pp.465-512etpp.474-481;domesmoautor,
“LesPagenses,notablesetfermiersdufiscdurantlehautMoyen-Age”,pp.237-256;etambém,
“LagestionpubliqueenNeustrie.Lesmoyensetleshommes(VIIe-IXesiècles)”,pp.271-320;J.
Durliat,“Attributionscivilesdesévêquesmérovingiens:l’exempledeDidier,évêquedeCahors
(630-655)”, pp. 237-254; do mesmo autor:“Le salaire de la paix sociale dans les royaumes
barbares(Ve-VIesiècles)”,pp.21-72;LesfinancespubliquesdeDioclétienauxCarolingiens
(284-889);“DominiumetpuissancesocialedespapesauVIIesiècle”,pp.13-50;“Lesfonctions
publiques de la noblesse gallo-franque (481-561)”, pp. 193-215;“Episcopus, civis et populus
danslesHistoriarumLibrideGrégoiredeTours”,pp.185-193.Entreoshistoriadoresanglosaxões,verP.J.Geary(NaissancedelaFrance.Lemondemérovingien),eI.Wood(TheMerovingianKingdoms).
34
Ver,porexemplo,H.-I.Marrou,DécadenceromaineouAntiquitéTardive?,etambémP.
Brown,Genèsedel’AntiquitéTardive.
35
J.-M.Carrié,A.Rousselle,L’EmpireromainenmutationdesSévèresàConstantin,192337.VertambémoexcelentedossiêpublicadoporJ.DurliatnarevistaFranciaquetratada
renovaçãodosestudossobreoBaixo-ImpérioeosprimeirosséculosdaIdadeMédia[“Qu’estcequec’estleBas-Empire?Aproposdetroisouvragesrécents”,pp.137-154;“Qu’est-ceque
c’estleBas-Empire?”,pp.125-138;“Bulletind’étudesprotomédiévales–LaLoi”,pp.79-95;
“Bulletind’étudesprotomédiévale–Systèmesdepensée”,pp.129-151;“Bulletind’étudesprotomédiévales–Lesinstitutionsetleshommes”,pp.231-244].
32 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
oBaixoImpério36.Poucoshistoriadoreshojecrêemqueachegadados
francos,dosburgúndiosoudosostrogodostenhamarcadoumaruptura
com as tradições romanas37.Vários trabalhos mostraram, além disso,
queasobrevivênciadoImpérionãoerauma“ficçãoconstitucional”,um
meio utilizado pelos círculos nostálgicos da“romanidade” para mascararaemergênciadereinosautônomosnointeriordasfronteirasdo
Império38. As invasões bárbaras foram provavelmente superestimadas
nostrabalhosdehistoriadoresfascinadospelotemada“decadênciado
Impérioromano”39.
Outro fenômeno, de natureza política, que contribuiu para a renovação dos estudos sobre os francos foi, nos anos que se seguiram
à Segunda Guerra Mundial, o fim do antagonismo secular entre a
FrançaeaAlemanha.Issoabriucaminhoparareflexõeshistoriográficasmenosimpregnadaspelaspaixõesnacionais.Apartirdofinalda
SegundaGrandeGuerra,oclimanaAlemanhanãoeramaispropício
àglorificaçãoda“comunidadenacional”edasvirtudesguerreirasdos
povosgermânicos.Doladofrancês,asnovasgeraçõesdehistoriadores
36
UmbomexemplodarenovaçãohistoriográficasobreoBaixoImpérioéolivrodeG.VenturadaSilva(Reis,santosefeiticeiros.ConstâncioIIeosfundamentosmísticosdabasileia,
337-361).Vertambém,F.Vittinghoff,“ZurVerfassungderspätantikenStadt”,In:Studienzu
denAnfängendeseuropäischenStädtewesens,pp.11-39;H.-J.Horstkotte,DieTheorievom
spätrömischen“Zwangsstaat”unddasProblemder“Steuerhaftung”.
37
Aesserespeito,verP.Classen,KaiserreskriptundKönigsurkunde.DiplomatischeStudien
zumProblemderKontinuitätzwischenAltertumundMittelalter,p.38;G.Tessier,Diplomatiqueroyalefrançaise,pp.3-26;J.Vezin,“L’influencedesactesdeshautsfonctionnaires
romainssurlesactesdeGauleetd’EspagneauVIIesiècle”,pp.71-74.
38
Contra R.A. Markus,“Les commencements(v. 350 – v. 750)”, pp.78-147, especialmente,
p.83.
39
M.CândidodaSilva,4deSetembrode476:AQuedadeRoma.Maisrecentemente,assisteseaumaretomadadotemada“decadência”deRomaedo“fimdacivilização”.Éocaso,notadamente,dolivrodeB.Ward-Perkins,TheFallofRomeandtheendofcivilization,publicado
em2005.Paraesseautor,oImpérioRomanoentrouemcolapsoemrazãodeumainvasão
violenta,eosséculosseguintesaessedesaparecimentoteriamsidoefetivamente“sombrios”.
MarceloCândidodaSilva33
tambémconseguirampoucoapoucoescaparaoclimadehostilidade
para com aAlemanha. O debate sobre a monarquia franca, nascido
comosnacionalismosdoséculoXIX,perdeusuavirulêncianomesmomomentoemqueseiniciavaaconstruçãoeuropéia.Nessanova
conjuntura, o título de um artigo de A. Loyen, de 1963, parece, no
mínimo, exótico: “Resistentes e colaboradores na Gália na época
dasgrandesinvasões”40.Nosúltimosanos,tantoasobraspublicadas
quantooscolóquiosrealizadossobreaAltaIdadeMédiatestemunham
dapremênciadoenfoque“europeu”emdetrimentodeenfoquesnacionais.Poderíamosmencionar,nessesentido,oestudocomparativo
deB.DumézilsobreaconversãoaocristianismonaEspanhavisigótica
e na Gália franca (Lesracineschrétiennesdel’Europe), bem como
o colóquio organizado em setembro de 2006 por M. Rouche para
comemoraros1500anosdapublicaçãodoBreviáriodeAlarico(Les
fondementsdelacultureeuropéenne).
Seriaumexageroimaginarqueháumarelaçãodecausaeefeito
entre a rivalidade franco-alemã e as visões respectivas dos historiadores franceses e alemães a respeito da realeza franca. Deve-se, no
entanto,sublinharqueodebateentrea“Escolagermanista”ea“Escolaromanista”,naFrançaenaAlemanha,nãopodeserapreendido
inteiramente sem se compreenderem as relações, freqüentemente
tensas,entreestesdoispaísesdesdeaproclamaçãodoImpérioalemão
nagaleriadeespelhosdopaláciodeVersailles,em1871.K.F.Werner
tinha isso em mente quando escreveu que a melhor maneira de se
compreenderahistóriadaGáliaentreosséculosIV-IXeraatravésdos
textosevestígiosautênticosdoperíodo,enãodasidéiasdosséculos
XIXeXX41.
40
PublicadonoBulletinAssoc.G.Budé22(1963),pp.437-450.
K.F.Werner,“Préface”,In:J.Durliat,Lesfinancespubliques,p.ix.
41
34 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
A“sacralidade”comoproblemahistoriográfico
O tema do prestígio sobrenatural dos reis francos começou a ser
explorado pela historiografia no início do século XX. O interesse dos
historiadorespela“realezasagrada”deve-seemgrandeparteàinfluênciadaAntropologiaedeobrastaiscomoOramodeouroeAsorigens
mágicasdarealeza,deJamesFrazer.Essainfluênciaseconcretizoucom
apublicação,em1924,dolivrodeM.Bloch,Osreistaumaturgos.Nessaobra,queétambémumdostextosfundadoresdachamadaÉcoledes
Annales,Blochanalisaaevoluçãodacrençanomilagrerégioentreos
séculosXIIeXIX,ouseja,nacapacidadedosreisfranceseseinglesesem
curaromaldasescrófulas.Nocapítulo2desuaobra,elebuscaidentificarasorigensdopodermiraculosodosreisnarealezasagradados
primeirosséculosdaIdadeMédia.Abasedacrençanomilagrerégio
estaria, segundo Bloch, na aura de sacralidade que teria envolvido os
personagensreaisdesdeaantigaGermânia.NavisãodeM.Bloch,oadventodocristianismo,verdadeira“revoluçãoreligiosa”,teriaprivadoa
realezagermânicadeseucarátersemi-divino,reduzindoosreisasimples
chefesdeEstado,massomentedopontodevistaoficial42.Dopontode
vistada“consciênciacoletiva”,noentanto,essesreisteriamsobrevivido
comocriaturassobrenaturais.AreferênciafeitaporGregóriodeTours
aos“reisdelongoscabelos”indicariaessasobrevivência.Elateriasido,
aliás,decisivaparaqueafamíliamerovíngiapudesseimporsuaautoridadesobreosfrancos.Oaparecimentodaunçãonosreinosocidentais
aolongodosséculosVIIeVIII,sintomadaconversãodeseusreisaocatolicismo,teriasacralizadoarealezadeumpontodevistacristão.Ainda
assim,a“sacralidadegermânica”teriasobrevividoincólume,apontode
tercontribuído,séculosmaistarde,paraosurgimentoeaconsolidação
dapráticarégiadetocarasescrófulasnaFrançaenaInglaterra.Além
dointeressequesuscitouentreoshistoriadorespelas“mentalidades”,ou
42
EssasopiniõesforamcriticadasporH.Fichtenau(L’Empirecarolingien,p.85),porY.Congar(L’ecclésiologieduHautMoyen-Âge,p.297)etambémporG.Duby(Lestroisordresou
l’imaginaireduféodalisme,p.47).
MarceloCândidodaSilva35
aindapela“longaduração”,aobradeM.Blochincorporouaodebate
historiográficootemada“realezasagrada”,queatéentãoeraomonopóliodaAntropologia43.
Um estudo sobre a “sacralidade germânica” dos reis merovíngios
confronta-se,noentanto,comoseguinteproblema,queopróprioM.
Blochreconhecia:nãohánenhumindíciodessasacralidadenostextos
43
DeacordocomM.Blochaassimilaçãopelospríncipescristãosdascompetênciasquepertenciamnormalmenteaosclérigostinha,aseusolhos,certoslimites.Asimbioseentreafunçãoreal
eafunçãosacerdotalnomundocristãonãoterianuncasidocompletaejamaispoderiasê-lo.O
sacerdóciocomportaria,noentenderdeumcatólico,privilégiosdeordemsupraterrestreperfeitamentedefinidosequesóaordenaçãoconferiria.DeacordocomBloch,nenhummonarcana
IdadeMédiajamaissecreucapazdecelebrarosantosacrifíciodamissae,consagrandoopãoe
ovinho,deinvocarapresençadeDeusnoaltar.Outrascivilizações,aantigaGermânia,aGrécia
dostemposhoméricos,teriamconhecidoreis-sacerdotes;nacristandademedieval,aexistência
destadignidadehíbridaseriainconcebível(M.Bloch,Lesroisthaumaturges,p.186).EmtrabalhoapresentadonoColóquiodeRoyaumontsobreaRealezasagrada,J.LeGoff,mostrou-se
igualmenteconscientedaslimitaçõesimpostaspelaortodoxiareligiosaàidéiadereisagrado.
Noentanto,paraele,ainsistênciadaIgrejaemconsideraroreicomoumlaiconãocolocava
emcausaaexistênciadeumasacralidaderealplena.Assim,oritualdasagraçãoevocariaum
caráteraomesmotempoepiscopal,sacerdotalediaconaldasfunçõesderei,aindaquelimitaçõesestritasbloqueassemapossibilidadedoreideseredeaparecercomoumrex-sacerdos.O
rei,queaunçãodivinarealizadapelaIgrejateriatransformadoemum“novoDavi”,encabeçaria
umateocraciacristã(J.LeGoff,“AspectsreligieuxetsacrésdelamonarchiefrançaiseduXeau
XIIIesiècle”,pp.19-28).AessavisãodeJ.LeGoff,opõe-seadeA.Boureau.Inspiradonaanálise
deL.DumontsobreaÍndiabramânicaantiga,Boureauprocuroudemonstrarqueomonarca
ocidentalnaIdadeMédiajamaispôdedesenvolverumasacralidadeautônoma,emvirtudede
suainserçãonumsistemahierárquicoqueoenglobava.Segundoele,omonopólioclericaldo
sagrado,noOcidente,bemcomonaÍndia,teriareduzidoconsideravelmenteocarátersagrado
damonarquia(A.Boureau,“UnobstacleàlasacralitéroyaleenOccident.Leprincipehiérarchique”,pp.29-36).A.Guéry,emsuaanálisesobreasdiversasformasdesacralidademonárquica,
mostrou que nas monarquias cristãs do Ocidente medieval, o rei, detentor de um poder de
origemdivina,permaneceuapesardetudoumhomem,aindaqueumintercessorentreadivinidadeeahumanidadeeummodelodadoaoseupovoporDeus(A.Guéry,“Ladualitéde
touteslesmonarchiesetlamonarchiechrétienne”,pp.39-51).Emquepesemasdiferençasentre
umaeoutraabordagem,osautoresquetêmtrabalhadosobreotemadasacralidadecristãna
realezamedievaltendem,portanto,aenxergarlimitesaessamesmasacralidade,eaquestionar
aexistênciadorei-sacerdotenouniversocristão.
36 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
ounosvestígiosarqueológicosdoperíodomerovíngio44.Issonãosignificaqueosreismerovíngiosnãofossemcercadosdeumprestígio“sobrenatural”deorigemgermânica.Énecessário,noentanto,reconhecer
queumestudonessesentidotemsérioslimites,quesomentepodemser
ultrapassadoscomexcessodecriatividade.Éprecisotambémrelativizar
apróprianoçãode“sacralidade”.Nahistóriadossistemaspolíticos,a
sacralidadenãoconstituiumfenômenoexcepcional,muitopelocontrário.Asmonarquias,tantonoOcidentecomonoOriente,eatémesmo
os regimes do antigo bloco socialista, conheceram a elevação de seus
governantesaumestatutomaisoumenossobrenatural.Contudo,como
categoriadealcance“universal”,anoçãodesacralidadenãoéhistoriograficamenteoperacional45.Aoinvésdeseidealizarasacralidadecomo
algodifuso,edecertomodoinseparáveldetodasasformasderegime
político,énecessáriotentarpensá-lahistoricamente,limitando-aauma
épocaeaumespaçoprecisos,nocasoespecíficodestelivro,aGáliamerovíngia entre os séculosVI eVII. Além disso, a idéia da sacralidade
germânicasefundamentanopressupostoequivocadodequeospovos
francos no século VI eram recém-saídos das florestas da Germânia.
44
Essaopiniãoépartilhadapelamaioriadosestudosquetratamdotema.Ver,aesserespeito,
oartigodeA.C.Murray,“PostvocanturMerohingii:Fredegar,Merovech,and‘Sacralkingship’”,
pp.121-152.Vertambém,M.CândidodaSilva,“Oproblemadasacralidaderealnamonarquia
franca”,pp.138-142.
45
UmexemplodautilizaçãodemasiadoampladanoçãodesacralidadeéoverbetedeV.Valeri,
“Realeza”,publicadonaEnciclopédiaEinaudi.Nesseverbete,Valeriafirmaqueoquedefinea
Realezaéofatodequenoexercíciodesuasprerrogativas,oreiencarnariaosvaloresfundamentaisdasociedadesobreaqualelereina,sendoconsideradocomoumsersagradoeàsvezes
divino:“Mesmoquandooreinãoésagradostrictosensu,eletemrelaçõesprivilegiadascom
aquiloqueésagrado:deusouclérigoqueéseuintérprete”(V.Valeri,“Realeza”,pp.415-445,
especialmente,p.415).Ocaráterforadocomumdapessoarealseriaassimumcomponente
dascivilizaçõesafricanas,indo-européiaseasiáticas.Omínimoquepodemosdizeréquea
relação com o sagrado não assumiu uma forma homogênea em todas essas sociedades. Há
umagrandedistânciaentreaidentificaçãodopersonagemrealcomumserdivinoeacrença
dequeopoderdoreiédeorigemdivina.Paraumadefiniçãomenosamplaemais“histórica”
daRealeza,verH.Anton,“König,Königtum”,col.1298-1306.
MarceloCândidodaSilva37
Ora,faziamaisdedoisséculosqueelesviviamnointeriordoImpério.
Entre as“aparências oficiais” de uma monarquia“laica” e os indícios
“subterrâneos”deumamonarquia“sagrada”,M.Blochnãohesitouem
escolheraprimeiraopção46.Aquelesqueoptavampelooutrocaminho,
elechamava,nãosemrazão,de“folcloristasdemasiadoardentes”47.
Aindaqueosdefensoresdaabordagemhistórico-antropológicada
realezatenhamsepreocupadocomas“basesinvisíveis”dalegitimidade
dosreisfrancos–algodesprezadopelahistóriapolíticatradicional–,eles
subestimaramoalcancedacristianizaçãodarealezamerovíngia.Muito
seescreveusobreofatodequeosreismerovíngiostinhamseupoderda
força,deumprestígiosagradodeorigemgermânicaouaindadaconquistadaGáliaaosromanos.Noentanto,nãoexistenenhumareflexão
maisamplasobreopapeldesempenhadopelaherançaromano-cristãna
construçãodaautoridadepúblicaduranteesseperíodo.Durantemais
dedoisséculos,oshistoriadoreshabituaram-seadescreverasmonarquiasquesucederamoImpérioRomanonoOcidentecomoa“aliança
dadecrepitudecomabarbárie”.Dezenasdeadjetivosforamutilizados
ao longo desse período para salientar o caráter primitivo dos“reinos
bárbaros”48. Ainda que os historiadores estejam hoje mais atentos ao
legadodosromanosàrealezamerovíngia,emenosdispostosaconsiderarClóviscomooconquistadordaGália,nãohánenhumestudosistemáticosobreacristianizaçãodamonarquiafrancaduranteoperíodo
46
M.Bloch,Lesroisthaumaturges,pp.409-429.
Ibid.,p.60,n.1.
48
UmdoscasosmaisrecenteséolivrodeO.Pontal,Lescanonsdesconcilesmérovingiens,
publicado em Paris em 1989; segundo essa autora:“Os príncipes merovíngios, ávidos, cruéis,
usurpadoresenãotemendoocrimeparaaumentarseusbenefícios,falseiamaidéiadocristianismoesemantêmnocrimepelaspráticasdeumapiedadesupersticiosa.Fundarincessantementericosmonastérios,daraosmongeseaosclérigosvastosdomínios,isentá-losdetodoimposto,estender
essasisençõesacidadesinteirasemhonradequalquersanto,buscarrelíquiasemtodososlugares
eligarasalvaçãoeternaaumexteriordedevoção,sãoasvirtudescelebradasmaisfreqüentemente
pelosantigosanalistas.Emfacedessespríncipes,encontramosbisposque,incapazesderefrearsua
barbárie,exploramsuastendênciassupersticiosas”(p.44).
47
38 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
merovíngio,àexceçãodealgunsartigosoudecapítulosdeobrasmais
gerais49.Oreconhecimentodeumadimensãocristãàrealezamerovíngialimita-seaindahojeadoisaspectosprincipais:primeiramente,ao
fatodequeoseclesiásticosnãocessaramdeexortarosreismerovíngios
paraqueessesúltimosincorporassemàssuasatividadesdegovernonoçõestaiscomopiedade(pietas),humildade(humilitas)eeqüidade(aequitas);emsegundolugar,oshistoriadorestambémconstatamqueos
príncipesdaqueladinastiaeramcomparadosalgumasvezespelosseus
contemporâneosaosreisdoAntigoTestamento,notadamenteSalomão
eDavi.Entretanto,oprocessodecristianizaçãodarealezamerovíngia
nãoseresumiuaumconjuntodeexortaçõespiedosasdirigidaspelos
clérigosaosreis,ouaindaàelaboraçãodeummodeloidealdegovernanteque,confrontadoatéaexaustãocomo“governantereal”,acabaria
portriunfarsobreele.Asimplicaçõessócio-institucionaisdoprocesso
decristianização,asmudançasnoexercíciodaautoridaderealquedaí
49
Nosanos1950,E.Ewigbuscoumostrarcomoosreinosocidentais,notadamenteoReino
dos Francos na época merovíngia, bem como o Reino dosVisigodos, contribuíram para a
formaçãodaRealezaCristã.ElemencionaumprogressocrescentedacristianizaçãodamonarquiasoboreinadodeGontrão(561-592)edeBrunilda.DeacordocomEwig,somente
apósosreinadosdeClotárioIIe,sobretudodeDagoberto,naprimeirametadedoséculoVII,
équeseelaborouumanoçãodeserviçocristãoparaarealeza,aindaqueessanoçãotenhase
restringido,numprimeiromomento,àidéiadeassistênciaàIgreja.(E.Ewig,“Zumchristlichen Königsgedanken im Frühmittelalter”, pp.7-73, especialmente, pp. 17-19).Ver também
ostrabalhosdeM.Heinzelmann[BischofsherrschaftinGallien.ZurKontinuitätrömischer
Führungsschichtenvom4.biszum7.Jahrhundert.Soziale,prosopographischeundbildungsgeschichtlicheAspekte];eaindaGregorvonTours(538-594):“ZehnBücherGeschichte”:
HistoriographieundGesellschaftskonzeptim6.Jahrhundert.Etambém,“Studiasanctorum.
Education, milieux‘instruction et valeurs éducatives dans l’hagiographie en Gaule jusqu’à
la fin de l’époque mérovingienne’, pp. 105-138; F. Dolbeau, M. Heinzelmann, J.-C. Poulin,
“LessourceshagiographiquescomposéesenGauleavantl’anMil(SHG).Inventaire,examen
critique, datation”, pp.701-731. A obra deY. Saissier [Royauté et idéologie au MoyenAge,
Bas-Empire,MondeFranc,France(IVe-XIIesiècle),Paris,2002],éomaisrecenteexemplo
deobrageralqueabordaacristianizaçãodarealezamerovíngia,nocapítulo2,intitulado“La
royautéromano-barbare”(pp.70-115).Vertambém,aesserespeito,oartigodeRégineLeJan,
“Lasacralitédelaroyautémérovingienne”,pp.1217-1241.
MarceloCândidodaSilva39
decorreram, permanecem ainda hoje pouco estudadas. As exortações
episcopaisoupapaisnãoforamsuficientesparaacristianizaçãodamonarquiafranca.Paratanto,eranecessárioqueasidéiasveiculadaspelos
clérigosencontrassemterrenofavoráveljuntoaopoderreal,equeesse
últimoestivessedispostoatomarmedidasquefossemconsonantescom
as aspirações da hierarquia eclesiástica. Para examinar o processo de
cristianizaçãosobesseângulo,énecessárioampliaroterrenodevisão
e enxergar, além do domínio das idéias, o das relações entre o poder
político e a sociedade. A cristianização da realeza franca traduziu-se
noadventodeumaautoridadepúblicaprofundamenteimpregnadade
umavisãocristãdosdeveresdosgovernantesparacomosgovernados,
o que teve implicações no exercício das prerrogativas tradicionais do
governanteeemsuasrelaçõescomasociedade.Esseéumcaminhode
pesquisaqueaindanãofoisuficientementeexplorado50.
Estetrabalho,aoinvésdeseconcentraremuma“sacralidadegermânica”imperscrutável,tentaráanalisarainfluênciasobrearealezafranca
daspráticasinstitucionaisedasconcepçõespolíticasdoImpérioCristão,bemcomodasexortaçõesepiscopais.Tentar-se-ácompreenderde
quemodoumconjuntodepreceitosdeordemmoralereligiosaseuniu
progressivamenteaosdeverestradicionaisdopríncipeparacomosseus
súditos,alterandoaomesmotempoapróprianaturezadoexercícioda
50
Háalgunsanos,K.F.Wernerlastimavaqueparamuitoshistoriadores,overdadeirocristianismo, com reis verdadeiramente cristãos, teria começado apenas com os carolíngios. Ora,
diziaele,asleiseosdiplomasdosreismerovíngios,asuacorrespondênciacomosimperadores
emBizâncio,assimcomoostextoshagiográficos,mostramreispreocupadoscomocomportamentodasigrejas,suasriquezas,seusprivilégios(K.F.Werner,“Lerôledel’aristocratiedans
lachristianisationdunord-estdelaGaule”,pp.45-73,aqui,p.50).Wernersustentaqueaidéia
doministeriumcomoamaisaltaobrigaçãodopríncipeemrelaçãoaDeus,teriaaparecido
naépocamerovíngia,mesmotendosedesenvolvidoplenamentesobPepino,oBreve,Carlos
Magnoe,sobretudo,Luís,oPiedoso(K.F.Werner,“L’historienetlanotiond’Etat”,pp.29-41,
especialmentep.40).Veremos,aolongodestetrabalho,queapreocupaçãodosreismerovíngiosnãosedirigiaapenasàsigrejas,seusbenseseusprivilégios,mastambémàsalvaçãode
seussúditos.
40 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
autoridadepública,epermitindoonascimentodaquiloqueaquichamamosde“RealezaCristã”.Essaúltimapodeserdefinida,demaneira
preliminar, como uma forma de governo na qual a realização de um
objetivo exterior ao mundo, isto é, o bem da coletividade entendido
comosuasalvação,éassociadaaoexercíciodopoderpolíticosupremo,
apontodesetornarseuprincipalfundamento.
PrimeiraParte
OsfrancoseoImpérioCristão
CapítuloI
AfundaçãodoRegnumFrancorum
Em sua obra consagrada às guerras góticas, o historiador grego
ProcópiodeCesaréia(c.500-c.560)comentaumdosepisódiosdacampanha empreendida pelo imperador Justiniano (527-565) contra os
ostrogodosnaItália:
“TodaapartedasGáliasqueestavasubmetidaaosgodosfoi,desdeocomeçodessaguerra,deixadaporeles[osgodos]aosgermânicos[brancos]:eles
nãoacreditavampoderenfrentarosdoispovosaomesmotempo,comodisse
nosdiscursosprecedentes.Nãosomenteosromanosnãopuderamimpedir
essacesão,masJustiniano,seurei,aconfirmoupormedodeterdiantedesi
comoadversáriosessesbárbarosexcitadosalhefazeraguerra.PoisosfrancosnãoacreditavampossuiremcompletasegurançaasGáliassemterem
umatorevestidodoselodoimperador”(grifonosso)1.
1
Procópio,DeBelloGothicoIII,33.
44 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
ProcópiomencionaaquiacessãodaProvença–queosostrogodos
haviam ocupado quando do colapso do Reino Visogodo da Aquitânia, em 507 – aos francos. Essa teria sido uma maneira de apaziguar
essesúltimoseimpedirquesealiassemaosromanos.Poroutrolado,
opróprioJustiniano,imperadorromano,teriaconfirmadoessacessão
comomesmoobjetivo.Aconfirmaçãoindica,emprimeirolugar,que
se reconhecia ainda a preeminência do Império sobre os territórios
ocidentais.Masotextovaimaislongeainda.Procópioafirmaqueos
francos não se acreditavam capazes de manter a Gália em seu poder
semoconsentimentodoimperadorromano.Osfrancosnãoaparecem
nesserelatocomoosconquistadoresdaGália,esimcomoosdelegados
daautoridadeimperial.
Essadescriçãocontradizavisão,consagradapelahistoriografia,segundoaqualosfrancosconquistaramaGáliaàautoridadedeRoma2.
Todavia, ela deve ser nuançada pelo ponto de vista pró-imperial que
Procópioapresentaemsuasobrasoficiais–àexceçãodesuaHistória
Secreta, em que ele traça um retrato impiedoso do imperador JustinianoedaimperatrizTeodora.Nãosurpreendequeoautorqueficou
conhecidopelaexaltaçãodeJustinianoedesuapolíticadeReconquista do Ocidente tenha mostrado os francos como súditos do Império,
dependentes da aquiescência do imperador para manter seu próprio
poder.Poroutrolado,hátambémalgodeparadoxalnaafirmaçãode
Procópio:nãoháindícioalgumdequeoImpérioestivesseemcondiçõesdeseimporpelaforçanaGáliaduranteoreinadodeJustiniano
– e isso o próprio autor deixa claro ao afirmar que Justiniano temia
queosfrancoslhedeclarassemguerra.Porqueentãoosfrancosteriam
necessitadodoconsentimentoimperial?
ÉpossívelqueadescriçãodeProcópionãotivesseosentidoquecomumentelheéatribuída,ouseja,odemarcarainferioridadeouotemormilitardosfrancosemrelaçãoaoImpério.Nestecaso,aoafirmar
queosfrancosnãoseacreditavamcapazesdemanterseupodersobrea
2
M.Bloch,“ObservationssurlaconquêtedelaGauleromaineparlesroisfrancs”,pp.161178.
MarceloCândidodaSilva45
Gáliasemoconsentimentodoimperador,oautorpoderiaestarapenas
constatandoapercepçãoporessesúltimosdaexistênciadeumarelação
hierárquicacomaautoridadeimperial.Umbomindício,nessesentido,é
queessapercepçãoestápresentedemaneiraexplícitanacorrespondência
entreosreisfrancoseosimperadoresemConstantinopla,cujosexemplaresforamconservadosnacoleçãoEpistolaeaustrasicae.Alémdostítulos
usuaisde“imperador”e“augusto”,Justinianoéchamadode“pai”emduas
cartas que lhe foram enviadoas pelo rei Teudeberto I. Entretanto, é na
correspondênciadeChildebertoIIqueencontramosomaiornúmerode
referênciasfiliaisaoimperador.Primeiramente,emumacartaaoimperadorMaurício,datadade584,ChildebertoIIochamade“pai”3.Emoutra
carta,ChildebertoseendereçaaTeodósio,filhodoimperadorMaurício,
erefere-seaesseúltimocomo“sereníssimopríncipedoImpérioRomano,
nosso pai, nosso imperador”4. Essa situação, aliás, era reconhecida pelo
próprioimperador:emcartaaChildeberto,apóstê-loviolentamenterepreendido,Maurícioochamade“parentecristianíssimoeamantíssimo”5.
Essa“família dos reis” não era uma simples formalidade. Ela reunia os
reisocidentaisreconhecidospeloImpériosobaautoridadedeumimperador-pater,easseguravaaoreifrancoumaformasutildesoberania–e
tambémdelegitimidade–queoligavaaoimperadoreaomundoromano
porumarelaçãosemelhanteàexistenteentrepaiefilho6.
TaisvínculoshierárquicosmostramqueosreismerovíngiosnãoapresentavamsuaautoridadecomoalgocompletamentedissociadodoImpério.OconsentimentodoimperadordequefalaProcópio,semoqualos
francosnãoseacreditavamcapazesdemanterapossessãodaGália,pode
tersidoumafontedelegitimidadehabilmenteexploradanointeriorde
umRegnumFrancorumhabitadomajoritariamenteporgalo-romanos.
3
EpistolaeAustrasicae,25.
EpistolaeAustrasicae,43.
5
EpistolaeAustrasicae,42.
6
F.J.Dölger,“Die‘FamiliederKönige’imMittelalter”,pp.34-69;sobreomesmoassunto,ver
tambémS.Krautschick,“DieFamiliederKönigeinSpätantikeundFrühmittelalter”,pp.104142.
4
46 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
AascensãodeClóvis
“Apósesseseventos,tendoChildericomorrido,Clóvis,seufilho,reinou
emseulugar.Noquintoanodoreinadodesserei,Syagrius,reidosromanos(Romanorumrex),filhodeEgidius,vivianacidadedeSoissons,queo
próprioEgidiusutilizavacomosede.Clóvismarchoucontraelejuntamente
comRagnecharius,umparenteseu–porqueestetambémtinhaumreino
–econvidou[seuadversário]aprepararocampodebatalha.Ora,elenão
recusouenãotevemedoderesistir.Emseguida,enquantoelescombatiam,
Syagrius,vendoseuexércitoesmagado,retornouecorreurapidamenteao
encontro do reiAlarico em Toulouse. Entretanto, Clóvis mandou dizer a
AlaricoqueeledeviaentregarSyagrius,senãoaguerralheseriadeclarada
por ter retido esse personagem. Mas [Alarico] temendo, por causa desse
último, incorrer na ira dos francos, pois é costume dos godos ter medo,
livrou-oacorrentadoaoslegados[deClóvis].QuandoClóvisorecebeu,ele
ordenouque[Syagrius]fossecolocadosobboacustódiaeapóstertomado
possessãodeseureino,deuaordemparaqueelefossesecretamenteassassinado”7.
EsserelatodeGregóriodeTours8indicaque,nofinaldoséculoV,
havianaGáliasetentrionalumconflitoqueopunhadoispersonagens,
o primeiro, um rei bárbaro que era igualmente um alto funcionário
7
HistóriasII,27.
Nascido na cidade de Clermont (atual Clermont-Ferrand), por volta de 538, Gregório de
Tourstornou-sebispodacidadedeToursem573.Pertenciaaumafamíliadeorigemsenatorial
comumalongatradiçãodeserviçoaopodercivileàIgrejaCatólica.Eraparentedoúltimo
imperador galo-romano,Avitus; seu predecessor no episcopado de Tours era primo de sua
mãe;ealémdisso,umdeseusancestraisestavaentreosprimeirosmártirescristãosdaGália,
queforamassassinadosemLyonnoanode177.Graçasàsuaposiçãonoseiodahierarquia
eclesiástica,GregóriodeToursfoiumespectadorprivilegiadodasociedadefranca;conviveu
commuitosdospersonagensdescritosemsuaobra:reis,santos,mártires.Suaséepiscopalera,
também,ocentrodocultoaSãoMartinho(m.397),osantopadroeirodadinastiamerovíngia.Católico,Gregóriomultiplicouemsuasobrasadefesadaortodoxiaetambémosataques
contraosheréticos,clérigosoulaicos,deconfissõesarianaoujudia.ObispodeToursescreveu
8
MarceloCândidodaSilva47
romano,eosegundo,ofilhodeumaltofuncionárioromanoquehaviasetornadorei.Syagrius,comoseupaiantesdele,comandavauma
forçaarmada,umexercitusGallicanusquecoexistiacomumexercitus
FrancorumdeChildericoedeClóvis.Essesdoisexércitos,pelomenos
atéamortedeEgidius,tinhamdefendidoconjuntamenteaGáliasetentrionalcontraaquelesqueameaçavamaautoridaderomana.Quando
osvisigodosinvadiramaGália,porexemplo,tiveramdecombaterna
regiãodeOrléansnãoapenaso“deEgidius,mastambémoexercitus
Francorum de Childerico9. Essa aliança foi estabelecida na metade do
séculoVcomointuitodedefenderaGáliacontraasincursõesbárbaras,
eeraumarespostaaoenfraquecimentodopoderimperialnoOcidente.
OscontingentesdefrancosdonortedaGáliaeramfederados,ouseja,
constituíamcorposdetropasqueserviamdemaneiramaisoumenos
dócilàcausaimperial,eestavamaquarteladosemTournai,emCologne
eemCambrai10.
Remígio, bispo de Reims, numa epístola enviada a Clóvis, entre
481e482,ofelicitaporterassumidoaadministraçãodaprovínciada
Bélgica Segunda: “Um grande rumor chegou até nós, vós assumistes a
váriasobras:osSeptemlibrimiraculorum,dedicadosaosmilagresdesantos;umlivrocontendo
20vitaede“santospersonagens”(LibervitaePatrum);umcomentáriodosSalmos(InPsalterii
tractatum commentarius); um texto contendo uma descrição das posições das estrelas para
orientar os cristãos em suas preces litúrgicas (De Cursu Stellarum ratio). Gregório escreveu
tambémumaediçãoprefaciadadasmissasdeSidônioApolinário;umlivrosobreosmilagres
doApóstoloAndré(LiberdemiraculisbeatiAndrealapostoli)eumoutrosobreaPaixãodos
setedormentesdeÉfeso(PassiosanctorumMartyrumSeptemDormientiumapudEphesum).
Contudo,foiatravésdosDecemLibriHistoriarum(DezLivrosdeHistória)queelesetornou
conhecidoaolongodoperíodomedievaleentreoshistoriadoresmodernos[M.Cândidoda
Silva;M.MazettoJunior,“ARealezanasfontesdoperíodomerovíngio(séculosVI-VIII)”,pp.
89-119,especialmente,pp.91-97].
9
HistóriasII,18:“QuantoaocondePaulo,queestavacomosromanosecomosfrancos,eledeclarouguerraaosgodosefezpilhagem.QuantoaOdoacro,eleveioatéAngers,masoreiChilderico
chegounodiaseguinteecomoocondePaulotinhasidoassassinado,tomoupossessãodacidade”.
VerE.Zöllner,GeschichtederFrankenbiszurMittedes6.Jahrhunderts,pp.39-43.
10
N.D.FusteldeCoulanges,L’invasiongermaniqueetlafindel’Empire,p.470.
48 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
administraçãodaBélgicaSegunda”11.Emsuaepístola,obispodeReims
nãomencionaumavezsequerSyagrius.ÉimprovávelqueRemígiodesconhecesseaexistênciadessepersonagem,oquecolocaoproblemade
sesaberoqueoterialevadoanãofazernenhumareferênciaaele.Ora,
GregóriodeToursnãoapenaschamaSyagriusde“rei”,masafirmaque
elehabitavaemSoissons,cidadequeseencontravaemplenocoração
daprovínciadaBélgicaSegunda12.Issosignificaquecercadecincoanos
apósterassumidoasfunçõesde“governador”daprovínciadaBélgica
Segunda, Clóvis ainda convivia com um rex romano no interior dos
territóriosteoricamentesobsuajurisdição.AausênciadeSyagriusda
epístoladeRemígiopodesignificarquejánomomentodachegadade
Clóvis ao poder, havia alguma tensão ou mesmo um conflito aberto
entreogovernadordaprovínciaeorexromanorum.M.Heinzelmanne
J.-C.Poulinafirmam,emsuaanálisedaVidadeSantaGenoveva,que
ChildericoameaçavaaposiçãodeSyagriusnasproximidadesdeParis13.
ObloqueioqueChildericoinfligiuaessacidade,equeéretratadona
VidadeSantaGenoveva,podetersido,aliás,ummovimentonaguerra
queoopunhaaofilhodeEgidius14.Em476,Childericoconcluiucom
Odoacro–magistermilitumnomeadopeloimperadorZenon15–uma
11
EpistolaeAustrasicae,2.
HistóriasII,27.
13
M.Heinzelmann,J.-C.Poulin,LesviesanciennesdesainteGenevièvedeParis,pp.91-103.
14
AVidadeSantaGenovevarelatadequemaneira,diantedobloqueiodosfrancos,asanta
organizouumaexpediçãofluvialnocursosuperiordorioSenaparaaprovisionarossitiados
(VitaGenovefaevirginisParisiensis).
15
Odoacro,generalromanoresidentenaItália,reidoscirosedosturcilingos,depôsoúltimo
imperadordoOcidente,RomulusAugustulus,em476.Emseguida,enviouumaembaixadado
senadodeRomaaoimperadorZenãoparalhedizerqueapartirdeentãooOcidentenãomais
necessitavadeumimperador,equeumsóimperadorseriasuficienteparaoOrienteeoOcidente.OdoacroreconheciaZenãocomoúnicoimperador,esolicitavadeleotítulodepatrício
eogovernodaItália(Malchus,Fragmenta,10).Foientãocomorepresentantedaautoridade
imperialqueOdoacroreinousobreaspopulaçõesitalianasatéque,sobasinjunçõesdeZenão,
TeodoricoinvadiuaItáliacomumexércitodeostrogodosederúgios(Cassiodoro,Chronica
MagniAureliiCassiodoriSenatoris,p.159;vertambém,Jordanes,DerebusGeticis,57).Ver
M.CândidodaSilva,4deSetembrode476:AQuedadeRoma.
12
MarceloCândidodaSilva49
aliançaatravésdaqualelesecomprometiaacombaterosalamanosque
tinhaminvadidoumapartedaItália16.Nadasesabe,entretanto,daatitudedeSyagrius.Épossívelqueeletenhaseaproximadodosvisigodos,
oqueexplicariaseuposteriorexílionacortedeToulouse17.Pode-sesuporqueChildericoeClóvispermaneceramaliadosdoImpério,oupelo
menosdeseurepresentanteteóriconaItália,enquantoSyagriustentava
instaurarumreinoindependentenaGáliasetentrionalcomoapoiodos
visigodos.ÉigualmenteprovávelqueRemígiotenhaescolhidoopartidodalegalidadeadministrativa,representadoporumchefefrancoque
eragovernador,emfacedeumfuncionárioromanoqueseproclamou
reiequeeraprovavelmenteumusurpador,vistoquenãohánenhuma
referênciaaumasupostadignidadehierárquicasuaemqualquerfonte
imperial18.Aexistênciadesse“enclave”naregiãogovernadaporClóvisé
umindíciodequenãosepodesituarafundaçãodoReinodosFrancos
nomomentodaascensãodesseúltimoaopoder,porvoltade48119.
AindaqueClóvisnãotenhatomadoopartidodaautoridadeimperialnaGália–oqueparecepoucoprovável–suavitóriaemSoissons,
em486,nãomarcouodesaparecimentodosúltimostraçosdaautoridaderomananaGáliadonorte20.AidéiadequeaderrotadeSyagriusfoi
tambémumaderrotadaRomaniaresultadeumasobrevalorizaçãodo
papeldessepersonagem,paraaqualcontribuiuGregóriodeTours,que
ochamarexromanorum21.Comoexplicaressetítuloquelheéatribuí16
HistóriasII,19.VerK.F.Werner,Lesorigines,p.336.
ÉoquepensaM.Rouche,Clovis,pp.189-190.
18
VerM.Heinzelmann,GallischeProsopographie(260-527),p.699.
19
QuaisquerquetenhamsidoasatribuiçõesespecíficasdeClóvisedeSyagriusémuitodifícil
defini-las.P.PérineL.-C.FefferafirmamqueClóvis,damesmaformaqueseupaiChilderico,
estavasubordinadoaSyagrius(P.Périn,L.-Ch.Feffer,LesFrancs,I,LaconquêtedelaGaule,
pp. 145-146). E. James, por sua vez, acredita que Syagrius era somente o comes (conde) da
cidadedeSoissons,e,comotal,estariasubmetidoaChildericoeemseguidaaClóvis(E.James,
IFranchi,pp.59-63).
20
SobreabatalhadeSoissons,verK.F.Werner,“DeChildéricàClovis:antécédentsetconséquencesdelabatailledeSoissonsen486”,pp.3-7.
21
HistóriasII,27.
17
50 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
do?Énomínimoparadoxalqueotermorex,queosromanosatribuíam
unicamenteaoschefesbárbarosaliados,sirvadeprovaparaaexistência
deumaautoridaderomanalegítimanaGália.ParaG.Kurth,otítulode
reiqueGregórioatribuiaSyagriusteriasidotomadoàstradiçõesbárbaras,quenãoconheciamnenhumoutrotermoparadesignarumchefe
independente22. Para K. Hauck, a datação qüinqüenal utilizada pelo
bispodeToursnadescriçãodosacontecimentosdoreinadodeClóvis
sugerequeelesebaseounasquinquenalia,redigidasemhomenagema
esseúltimo,paradesignarSyagriuscomotal23:“Duranteoquintoano
doreinadodesserei,Syagrius,reidosromanos,filhodeEgydius,tinhasua
sedenacidadedeSoissons...”24.AhipótesedeHauckéinsuficientepara
explicaraatribuiçãodotitulodereiaSyagrius.Gregóriodesignaesse
último de rex romanorum quando descreve sua guerra contra Clóvis,
mas,quandoomencionaemoutrasduasocasiõesnasHistórias,nãohá
referênciaalgumaaotítuloreal25.ÉprovávelqueGregóriotenhainsistidonadignidaderealdeSyagriusparamelhorrealçaravitóriadeClóvis.
IssoexplicariaaalternânciaentreautilizaçãodotítuloemalgunstrechosdolivroIIdasHistóriaseasuaausênciaemoutros.
OterceirolivrodasCrônicasatribuídasaFredegárioretomaasHistórias,deGregóriodeTours.Noentanto,quandotratadeSyagrius,o
autornãoutilizaadesignaçãoadotadapelobispodeTours,ouseja,rex
22
G.Kurth,Clovis,p.218:“Sobainfluênciadessastradições,outrosforammaislonge,eimaginaramumadinastiadereisromanosnaGália,naqualsesucedemdepaiparafilhoAetius,
Aegidius,PauloeSyagrius.SeGregóriotivessetidoconhecimentodissoporoutrasfontesqueas
lendasfrancas,eleteriaevitadolhedarumtitulocomtãopoucaharmoniacomanomenclatura
oficialdoImpério.Masestavanodestinodoúltimorepresentantedacivilizaçãoromanaalcançar
aposteridadenastradiçõesnacionaisdeseusvencedores”.
23
VerK.Hauck,“VoneinerspätantikenRandkulturzumKarolingerischenEuropa”,pp.3-93,
maisprecisamente,pp.20-26
24
HistóriasII,27.
25
HistóriasII,18:“EgidiusmorreuentãoedeixouumfilhochamadoSyagrius”;HistóriasII,41:
“Quando[Clóvis]lutoucontraSyagrius,Chararicus,chamadoemsocorrodeClóvis,manteve-se
adistancia”.
MarceloCândidodaSilva51
Romanorum,masprefereadeRomanorumpatricius26.ParaE.DemougeoteparaM.Rouche,Syagriuseraumfuncionárioimperialdotado
dotítulodepatrício,quelheteriasidoconcedidopeloimperadorAn-
26
CronicasIII,15:“ApósamortedeChilderico,seufilhoClóvisreinouemseulugar.Durante
oquintoanodeseureinado,Syagrius,patríciodosromanos,tinhasuasedenacidadedeSoissons,queseupaihaviapossuído”.AsChronica,umconjuntoderelatosatribuídosdesdeo
séculoXVIaumcerto“FredegariusScholasticus”,constituemanarrativamaiscompletados
acontecimentosnaGáliaduranteoséculoVII.Onome“Fredegarius”apareceupelaprimeira
vez nas Antiquitez Gauloises et Françoises, de C. Fauchet (1579), e é possível encontrá-lo
tambémnaediçãodeM.Freher,doiniciodoséculoXVII.Hoje,ainda,osdetalhesdacomposição desses textos, que os historiadores habituaram-se a designar como a“Crônica de
Fredegárioesuascontinuações”,restamdesconhecidos.Oprincipaletambémomaisantigo
dosmanuscritosdessaobra,oCodexClaromontanus(714-715),origináriodeMetzouda
Burgúndia (Paris, Bibliothèque Nationale, Lat. 10910), é constituído de um conjunto de
crônicasquenarrama“historiauniversal”atéaépocadosfrancos.Oautormencionacinco
crônicasqueteriamprecedidoasua:acrônicadeHipólitodeRoma,deEusébiodeCesaréia,
de Hydatius, de Gregório de Tours (trata-se de uma versão resumida do séculoVII) e de
IsidorodeSevilha.Emsuaestruturaoriginal,aobradeFredegáriodeviacontarcomcinco
ouseislivros.Entretanto,ocopistadoCodexClaromontanusadotouumanovaorganização
das crônicas, que foi seguida pelos editores contemporâneos.As crônicas originais foram
condensadasemquatrolivrosdiferentes,cadaumprecedidodeumíndicedecapítulos.O
primeirolivrocontémoresumodostrabalhosdeHipólitodeRomaedeIsidorodeSevilha;
ostrabalhosdeJerônimoedeHydatiusestãonosegundolivro;umapartedasHistóriasde
GregóriodeToursseencontranoterceirolivro,enquantooquartolivrocontémumanarrativaqueseestendede584até642.AsCrônicasforamcontinuadasporoutrosautores,em
grandepartedesconhecidos.Aprimeiracontinuaçãocompreendeoperíodode462a720
–trata-sedeumcomplementodeumpontodevistaaustrasianoaoLiberHistoriaeFrancorum–etambémosanosde724a734.Asegundacontinuação,escritaporummembro
doséqüitodeChildebrando,meio-irmãodeCarlosMartel,compreendeoperíodode736a
751eapresentaumavisão“pipinida”dosacontecimentos.Aterceiracontinuação,redigida
porNibelungo,filhodeChildebrando,descreveoseventosdoreinadodePepino,oBreve
até768.AscrônicasdeFredegárioesuascontinuaçõesforameditadasem1888porB.Krush
nos M.G.H. Entretanto, mesmo antes dessa edição, o autor, a data, o local de publicação,
assim como o valor histórico desta crônica, foram objeto de um amplo debate entre os
historiadoreseeruditos[M.CândidodaSilva;M.MazettoJunior,“ARealezanasfontesdo
períodomerovíngio(séculosVI-VIII)”,pp.89-119,especialmentepp.97-99].
52 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
themius,em47127.Todavia,alémdaexpressãocitadaporFredegário,
não há referências em outras fontes sobre a concessão a Syagrius do
títulodepatrício28.
EmsuaprimeiracartaaClóvis,Remígioochamaderex,eaomesmotempodevirmagnificus29,epítetonormalmenteatribuídoaaltos
funcionáriosdaadministraçãoprovincialromana.Emtermoshierárquicos,essafunçãosesituavaemgrauimediatamenteinferioràdevir
illuster,queerautilizadanaépocaromanapeloPrefeitodoPretório
dasGáliasepelomestredasmilícias.JánasegundacartaaClóvis,escritaapósobatismo,obispodeReimsdesignaesseúltimodedominus
illuster30. Em relação à primeira carta, há uma mudança na fórmula
de tratamento que indica uma progressão de Clóvis na hierarquia
romanadedignidades.Contudo,ascondiçõesnasquaisissoocorreu
sãobastanteobscuras31.Épossívelqueotítulodevirillusterprovenha
27
E.Demougeot,Laformationdel’Europeetlesinvasionsbarbares,II,Del’avènementde
DioclétienaudébutduVIesiècle,p.686;M.Rouche,Clovis,p.189.
28
VerM.Heinzelmann,GallischeProsopographie(260-527),p.699;etambémJ.R.Martindale(ed.),TheprosopographyoftheLaterRomanEmpire,A.D.395-527,t.2,pp.1041-1042.
29
EpistolaeAustrasicae,2:“Dominoinsignietmeritismagnifico,Hlodoveoregi,Remegiusepiscopus”.
30
EpistolaeAustrasicae,1:“Dominoinlustromeritis,Chlodoveoregi,Remegiusepiscopus”.
31
J.Havetestimaqueosreisfrancosjamaisutilizaramoutrotítuloqueoderexfrancorum.O
títulodevirillusternadamaisseriaqueumerronaleituradeumaabreviaçãoqueseguiaas
palavrasrexfrancorumnosdiplomasreais,equediziarespeitoaosaltosfuncionáriosdoreino.
Ocorretoseriaentãovirisillustribus(J.Havet,Questionsmérovingiennes:laformuleN.rex
francorum,V.inl.).EssatesefoicriticadaporM.Gasquet(L’Empirebyzantinetlamonarchie
franque,p.138),H.Bresslau(“DerTiteldermerowingerKönige”,pp.353-360)eH.Pirenne
(“LaformuleN.rexFrancorumv.inl.”,p.74).AopiniãodeJ.Havetpermanecebastantemarginal,enãoresisteaumexamemaisapuradodostextos.Achavedoproblemaencontra-seno
termoilustre:comovimosanteriormente,RemígiochamaClóvisdedominusilluster.Outros
textosoriundosdachancelariamerovíngiamostramclaramentequeotítulovirillusterpertenceexclusivamenteaorei(ChildebertiSecundiDecretio,7:“Childebertus,rexFrancorum,vir
inluster.CuminDeinominenosomnesKalendasMartiasdequascumquecondicionesunacum
nostrisoptimatibuspertractavimus,adunumquemquenoticiavolumuspervenire”).Afórmula
ébastantediferentedaquelaqueéutilizadaquandooreisedirigeaosseusagentes,laicosou
MarceloCândidodaSilva53
diretaouindiretamentedavitóriadeClóvissobreSyagrius32.Todavia,
nenhumdocumentomencionaSyagriuscomovirilluster33,nemmesmoGregóriodeTours.Esseúltimoobservasimplesmenteque“Egidius
morreuentãoedeixouumfilhochamadoSyagrius”34.Apósamortede
Egidius,Syagriusdevetertomadopossedadignidadedeseupai,sem
que isso tenha sido necessariamente reconhecido pelo imperador, o
que explicaria a ausência de uma menção a Syagrius comovir illusternostextosimperiais.AovencerSyagrius,em486,Clóvispodeter
sidoreconhecidopeloimperadoremConstantinoplacomovirilluster.ComoRemígiooutilizaemsuasegundacartaaClóvis,edadaa
preocupaçãolegalistadobispodeReims,otítulodeveriarefletiruma
situaçãodeiure.Orecursoàsdignidadesromanasnãodeveservisto
comofrutodeumcaprichodechefesbárbarosquenadaentendiamdo
significadodelas.AautoridadeexercidaporClóvisfundamentava-se
nadefesadaGáliacontraumaltofuncionárioromanoemdissidência,
emesmoemsecessão.Clóvisencarnavaassimalegalidadeimperialeo
partidodacontinuidaderomana.Elerepresentavaparaaspopulações
galo-romanasagarantiadequeaGáliasetentrionalpermaneceriana
esferadeinfluênciadaRomania.
Não há indícios de que tenha havido uma guerra entre romanos
e francos pelo controle da Gália ou ainda uma conquista franca da
eclesiásticos:ChlotariiII.Praeceptio,8:“Clodacharius,rexFrancorum,omnebusagentibus”
(grifonosso);Guntchramniregisedictum5:“GunthramnusrexFrancorumomnibuspontificibusacuniversissacerdotibusetcunctisiudicibusinregionenostraconstitutis”(grifonosso).Sobreesseproblema,verH.Wolfram,IntitulatioI,pp.108-127.
32
M.RoucheafirmaqueotítulovirillusterfoiretiradoaSyagriusporClóvis.Essapromoção,
segundoele,nãopoderiaseratribuídaaopoderimperial,entãoausentedoOcidente.Aúnica
explicaçãopossível,segundoRouche,seriaqueClóvis,apóssuavitóriasobreSyagrius,em486,
lheteriaconfiscadoadignidade(M.Rouche,Clovis,p.396).Ora,essasupostaausêncianão
impediuqueanosmaistarde,em508,nacidadedeTours,Clóvisrecebesseumadignidade
hierárquicadoimperador.
33
VerM.Heinzelmann,GallischeProsopographie(260-527),p.699;etambém,J.R.Martindale,TheprosopographyoftheLaterRomanEmpire,A.D.395-527,t.II,pp.1041-1042.
34
HistóriasII,18.
54 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Gália. É possível identificar combates entre um rei bárbaro à frente
daadministraçãoromana–Clóvis–eoutrospequenosreisbárbaros
oriundos de sua própria família. É o que mostra o relato de GregóriodeToursaofinaldolivroIIdasHistórias35.Essasdisputasforam
movidasmuitomaispelochoquedeinteressesnointeriordosgrupos
francos,doqueporumadisputaentreuma“ligabárbara”eomundo
romano.TambémsepoderiamencionaroconflitodeClóviscontraos
visigodosdeAlaricoII,queseráabordadamaisadiante;mas,também
nessecaso,nenhumdosdoisoponentescombateuaRomania.
O único dos conflitos ocorridos no final do séculoV que poderiaseassemelharauma“guerradeconquista”daGáliaéoqueopôs
Clóvis e Syagrius. Não se pode afirmar categoricamente que Clóvis
tinhadestruidoem486osúltimosvestígiosdaautoridadeimperialna
Gália,poiselepróprioeraumrepresentantedessaautoridade.Além
domais,mesmoqueavitóriasobreSyagriusrepresentasseparaClóvis
umaprogressãonahierarquiaromana,elanãofezdoreifrancoautomaticamenteomestredetodaaGáliadonorte.Segundoumaversão
daVidadeSãoRemígio,redigidanoséculoIX,Clóvissóconseguiu
estendersuainfluênciaatéorioLoiremuitotempodepoisdesuavitória contra Syagrius36. Ele pode ter recebido ajuda de contingentes
desoldadosromanos,poisProcópiomencionasoldadosdoImpério
encarregados da defesa das regiões mais recuadas da Gália, que não
tendomaisapossibilidadederetornaraRoma,eapósrecusaremuma
aliançacomosgodosarianos,acabaramporseuniraosfrancos37.
35
Particularmenteoscapítulos40,41e42.
VitaRemigiiepiscopiRemensisauctoreHincmaro,11;eVitaRemigii,12;vertambém,
VitaMaximini,pp.580-591,queéumtextoposterior.
37
Procópio,DeBelloGothico,I,12:“OutrossoldadosromanoshaviamsidopostadosnasextremidadesdasGáliasparaguardá-las:comoelesnãopodiamvoltarparaRomaenãoqueriamse
juntaraosseusinimigos,queeramarianos;elesseofereceram,comsuasinsígniasecomopaísque
elesguardavamhámuitotempoparaosromanos,aosarmoricanoseaosgermânicos;elesconservaramseuscostumesnacionaisetransmitiramaosseusdescendentesqueaindahojeacreditam
deverguardá-lospiedosamente”.
36
MarceloCândidodaSilva55
Clóvis permaneceu integrado à hierarquia romana de dignidades, e
issopermitiuqueseunissememtornodeleasguarniçõesestacionadas
naGália,aselitesgalo-romanas,enfim,ospartidáriosdaRomania.Apósa
vitóriasobreSyagrius,em486,asguerrasqueClóvisdesencadeouforam
dirigidas contra francos, turíngios, alamanos, burgúndios e visigodos.
ElenãoconquistouessesterritóriosdaGáliaaoImpérioRomano.Muito
emboraoImpérioRomanodoOcidentenãoexistissemaiscomoentidadepolítica,ainfluênciadoImpérionoOcidentenãohaviadesaparecido
porcompleto.OfatodeOdoacroterenviadoaoOrienteasinsígniasdo
poderimperialeterreclamadoaoimperadorZenonograudepatrício,
mostraqueoImpérionãoeraumameraficçãoparaoshomensdofinal
doséculoV38.EramuitomaisconvenienteparaClóvisassociar-seauma
autoridadeimperialque,emboradistante,eraaindaumafontedelegitimidade,ecujosvínculoscomoOcidenteeramrelativamentefrouxos,do
queaventurar-seemumasecessão.
AtrajetóriapolíticadeClóvis,talcomoelaaparecenostextoscontemporâneosàsuaascensãoaopoder,nãoindicaruptura.Emsuaprimeira
epístolaaClóvis,obispodeReimsnãomencionanenhumasucessãoreal
–mesmoquenofinaldacartaelereconheçaadignidaderealdeClóvis–,
tampoucoumamudançaderegime,emenosaindaumaconquista:
“Umgranderumorchegouaténós,vósassumistesaadministraçãodaBélgicaSegunda.Issonãoénovo,poistuteráscomeçadoporseraquiloqueteus
paissempreforam”39.
38
MalchusdePhiladelphia,Fragmenta,10.Sobreessaquestão,verM.CândidodaSilva,4de
Setembrode476:AQuedadeRoma,p
39
EpistolaeAustrasicae,2.SegundoG.Kurth,ClóvisteriarecebidoessacartaapósterderrotadoSyagriusnabatalhadeSoissons,em486(Clovis,p.213,n.4),opiniãoqueécompartilhada
porG.Tessier(LebaptêmedeClovis,p.83).ParaK.Hauck,essacartafoiescritaapósClóvis
terfeitosuaentradasoleneeàmodaromananametrópoleporocasiãodesuaascensãoao
governodaBélgicaSegunda,porvoltade481(“VoneinerspätantikenRandkulturzumkarolingschenEuropa”,pp.3-93).EssatambéméaopiniãodeM.Rouche(Clovis,pp.389-390).
56 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
OqueobispodeReimsdescrevenessetrechoéumasimples,equase
corriqueira,tomadadefunçãonointeriordaadministraçãodaprovínciadaBélgicaSegunda.RemígioafirmaqueClóvisestáocupandouma
funçãoquejáeraocupadaporoutrosmembrosdesuafamília.Nada
nesse texto sugere que Clóvis tenha adquirido sua posição através de
umaconquistaoudeumamudançaabruptaderegime.Supondoque
acartativessesidoendereçadaauminvasor,Remígionãoteriatidoo
cuidadodelimitarapreeminênciadeClóvisàprovínciadaBélgicaSegunda.As fronteiras dessa província, que compreendia as civitates de
Cambrai,Arras,Vermand, Senlis,Amiens, Reims, Soissons e Tournai,
nãoerambarreirasnaturais;e,aindaqueofossem,nãopoderiamter
bloqueadoaprogressãodeumexércitobárbaro,comoosPireneus,os
AlpeseoEstreitodeGibraltartambémnãobloquearam.Umconquistadorbárbaronãoteriarazõespararespeitaroslimitesadministrativos
romanos,masumreifrancogovernandoaprovínciaemnomedaautoridadeimperial,sim.Alémdisso,amençãoporRemígiodo“rumor”
queteriachegadoatéeledescartaapossibilidadedeumaaçãoviolenta
dosfrancoschefiadosporClóvis:époucoprovávelqueaconquistada
provínciapudesseocorrersemqueaprópriacapital,Reims,fossetomada.Nessecaso,Remígionãoserefeririaaessaaçãocomoumsimples
“rumor”.Seeleofaz,éporquenãosetratavadeumaguerradeconquista,masdeumamudançanointeriordaprópriaadministraçãoromana.
Éoquedemonstra,aliás,areferênciadeRemígioaofatodequeClóvis
assumiuaadministraçãodaBélgicaSegunda.AexpressãorumormagnuspodeaindaserumaalusãoàentradasolenedeClóvisnacidadede
Reims, segundo a tradição imperial, sob as aclamações da população
– daí a utilização da palavra rumor, que também pode ser traduzida
comomurmúriodamultidão40.
Há,noentanto,umproblemacomessainterpretação:comolembra
M.Rouche,SidônioApolinário,emumadesuascartas,afirmaque,depoisdadeposiçãodeRomulusAugustulus,nenhummembrodaaltaad40
O.Guillot,A.Rigaudière,Y.Saissier,PouvoirsetinstitutionsdanslaFrancemédiévale.Des
originesàl’époqueféodale,t.I,p.56.
MarceloCândidodaSilva57
ministraçãocivilromanafoinomeadonoOcidente.Ora,senãohouve
conquista,eseClóvisnãofoinomeadogovernadordaBélgicaSegunda,
comoeleassumiuasuaadministração?Asoluçãoparaoproblemapode
estarnafraseseguintedaepístoladeRemígio:“Issonãoénovo,poistu
teráscomeçadoporseraquiloqueteuspaissempreforam”.RemígiodeixaclaronessetrechoqueClóvisestáocupandoumafunçãoquejáera
ocupadaporoutrosmembrosdesuafamília.Assim,Clóvisherdoude
seu pai Childerico a função de governador da província, assim como
afunçãoderex.GregóriodeTours,aotratardamortedopaideClóvis,Childerico,tambémmencionaumasucessãodinástica:“Apósesses
acontecimentos,comamortedeChilderico,seufilhoClóvisreinouemseu
lugar”41.Portanto,ébastanteprovávelquenãotenhahavidoconquista,
tampoucoumanomeaçãopeloimperador,masumasucessãonointeriordafamíliamerovíngia.Oafrouxamentodasrelaçõescomopoder
imperial,destarteinstaladonalongínquaConstantinopla,podeexplicar
comoachefiadaadministraçãoprovincialromananaBélgicaSegunda
converteu-seemumafunçãotransmitidanointeriordafamíliamerovíngia.Todavia,seriaumequívococonsiderarque,apartirdoadvento
deClóvis,foramrompidostodososlaçosentreaGáliaeoImpério.
NamesmafraseemqueserefereaClóviscomovirmagnificus,Remígioochamaderex.Emseguida,escrevequeeleassumiuaadministraçãodaBélgicaSegunda.Orestantedacartamantémessaambigüidade
–Remígiopareceoraseendereçaraochefedaprovínciaromana,oraao
rei–inclusivenaúltimapartedaúltimafrase:“...esequeresreinar,julga
em nobre”. O paradoxo é apenas aparente, pois Clóvis exerce as duas
funções,eleégovernadordaprovínciadaBélgicaSegunda–e,enquanto
tal, alto funcionário romano –, e rei. Como vimos anteriormente, ao
assumirasfunçõesdeseupai,eleherdounãoapenasocomandodaadministraçãoromana,mastambémsuasprerrogativasreais.Masemque
consistiam?Éimportanteobservarque,emmomentoalgumdaepístola,
Clóviséchamadoderexfrancorum,títuloqueasfontesposterioreslhe
41
HistóriasII,27.
58 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
outorgam,damesmaformaqueseupaiChilderico,cujoaneldescobertoemseutúmulo,em1653,continhaainscriçãoChildericiregis42.No
endereçodacartadeClóvisaosbispos,aexpressãorexfrancorumtambémnãoaparece:“Dominissanctisetapostolicasededignissimisepiscopis
Chlothovechus rex”43. O mesmo ocorre na carta enviada pelos bispos
a Clóvis por ocasião do Concílio de Orléans I, em 511: “Domno suo
catholicaeecclesiaefilioChlotouechogloriosissimoregiomnessacerdotes,
quosadconciliumuenireiussistis”44.Nãohá,nasfontescontemporâneas
a Clóvis oriundas da Gália, nenhum termo étnico que complemente
seutítuloreal.MesmoAvitus(494-518),bispodeViena,queescrevedo
ReinodosBurgúndios,refere-seaClóviscomo“rei”,enão“reidosfrancos”:“AvitusepiscopusChlodovechoregi”45.Aúnicafontedoperíodoa
sereferiraClóviscomorexfrancoruméumextratodoLiberpontificalis,
redigidoemRomanasprimeirasdécadasdoséculoVI46.
Alémdomais,emduasocasiõesaolongodaepístola,RemígiodáaentenderqueopoderdeClóvisabrangiatodososhabitantesdaprovíncia:
“Animateuscidadãos,aliviaosaflitos,favoreceasviúvas,alimentaosórfãos;maisdoqueiluminá-los,quetodosteamemeterespeitem...Queteu
pretórioestejaabertoatodosafimdequeninguémregressetriste”(grifo
nosso)47.
42
P.Périn,L.-Ch.Feffer,LesFrancs,p.127ess.
Chlodowiciregisadepiscoposepistola(507-511),CapitulariaregumFrancorum,pp.1-2,
especialmente,p.1.Éimportantesalientarqueoprópriotítuloderexnãoéumacriaçãogermânica,masumadignidadequeadiplomaciaromanaoutorgavaaoschefesmilitaresaliados
comquemassinavatratados.
44
OrléansI(511),Epistolaadregem,In:Lescanonsdesconcilesmérovingiens(VIe-VIIe
siècles),t.I,p.70.
45
AlcimiEcdiciiAvitiViennensisEpiscopi,46(41),AuctoresAntiquissimi,pp.75-76,especialmente,p.75.
46
Liberpontificalis,p.271:“EodemtemporevenitregnuscumgemmispraetiosisaregeFrancorumCloduveumchristianum,donumbeatoPetroapostolo”.
47
EpistolaeAustrasicae,2.
43
MarceloCândidodaSilva59
O“todos”aqueserefereobispodeReimstemumduplosignificado:
elecompreendeosfrancoseosgalo-romanos,masincluitambémosestrangeiros,poisobispoafirma,emoutrotrechodaepístola,queClóvis
deverealizarajustiça“...semnadaesperardospobresedosestrangeiros”.Ao
longodetodaaepístola,afunçãodeClóvissobreaqualRemígiochama
maisatençãoéoexercíciodajustiça.Nadademaisnaturalemsetratando
deumrectorprovinciaecujaprincipalatribuiçãoerapresidiropretório.
Aúltimapartedaúltimafrasedaepístolanãodeixaduvidas:“...sequeres
reinar,julgaemnobre”.Emoutraspalavras,RemígiosabiaqueClóvisnão
presidiaopretórioprovincialapenascomorectorprovinciae,mascomo
umrei.“Julgaremnobre”significavadarumtratamentoequânimeatodos
osqueprocurassemseupretório.Segundooidealdeexercíciodajustiça
presentenessaepístola,seudestinatáriodeveriasecomportarnãoapenas
comooreidosfrancos,mascomoogovernantedetodososhabitantes
daprovíncia,fossemelesfrancos,galo-romanos,burgúndiosetc.Nesse
sentido,épossívelafirmarqueesseidealseconcretizou:Clóvissomente
pôdeocuparovaziodeixadopelaautoridadeimperialnaGáliaàmedida
que suas prerrogativas judiciárias à frente da administração da Bélgica
Segunda,maisprecisamenteasexigênciasdeuniversalidadeeequanimidadequeacompanhavamtaisprerrogativas,fizeramdeleogovernantede
todososhabitantesdosterritóriosporeleadministrados.
DesdeapublicaçãodoEspíritodasLeis,deMontesquieu,oshistoriadoressustentamquehouveumaconquistafrancadaGáliaapartir
dofatodequeaautoridadedeClóvisedosprimeirosreismerovíngios
teriaumanaturezadistintasegundoasorigensétnicasdaspopulações
sobreasquaiselaseexercia.Essadicotomiateriasemanifestadoatravés
dasdenominaçõesrexevirilluster.OtítuloderexindicariaapreeminênciadeClóvissobreosfrancos,enquantootítulodevirillustersobre
aspopulaçõesgalo-romanas.Oexemplomaisutilizadoparasustentar
essepontodevistaéodasmultasprevistaspeloPactuslegisSalicae48no
48
Achamada“Leidosfrancossálicos”foitransmitidaporcercadeoitentamanuscritos,sendo
queomaisantigodelesdatadofinaldoséculoVIII.Pesquisasrecentesidentificaramtrêsfases
naelaboraçãodessalei:aprimeiracorresponderiaaos44primeirostítulosdalei,asegunda
60 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
casodeassassinatoderomanosedefrancos.Asmultastinhamvalores
distintossegundoaorigemdasvítimas,compenasmaiselevadasprevistasnocasodeassassinatodeumfrancodoquenodeumromano:
“XLI.Doassassinatodoshomenslivres.
§1.Sealguémmatouumfrancolivreouumbárbaroquevivesoboregime
da Lei sálica e que isso seja provado, que ele seja condenado a uma multa
de8.000denários,queperfazem200soldos.§2.Seele[avítima]foijogado
emumpoçoouafogado,queele[oculpado]sejacondenadoaumamulta
de24.000denários,queperfazem600soldos.(Queelesejacondenadode
qualquermaneiraseescondeuocorpocomonósdissemosanteriormente).
dostítulos45a65,eaterceiracorresponderiaaostítulos66a78.Os65primeirostítulosforam
chamadosdePactusLegisSalicae.Umprólogolongoeumprólogocurto,algunsepílogose
algunstextoslegislativos(entreosquaisseencontraoPactusprotenorepacisdeChildeberto
edeClotário,oEditodeChilpericoeoDecretioChildeberti)foramacrescentadosapartirda
primeirametadedoséculoVI.Durantemuitotempo,algunshistoriadoresacreditaramqueo
PactustomouformasoboreinadodeClóvis.Outros,comoosBolandistas,presumiamqueisso
teria ocorrido no momento em que os francos se instalaram em Toxandria. G.Waitz situa a
redaçãodoPactusnametadedoséculoV,soboreinadodeChlodion(G.Waitz,DasalteRecht
derSalischenFranken.p.5).Umepílogo,redigidomuitoprovavelmentenoiníciodoséculoVI,
atribuíaapaternidadedoPactusaum“primeiroreidosfrancos”sem,noentanto,darmaisprecisões.AlgunsidentificaramnessemisteriosopersonagemoreiClóvis:segundoK.-A.Eckhardt,
oPactusterianascidosoboreinadodesseúltimo,porobradejuristasconhecedoresdo“direito
bárbaro”.Contudo,otextodesseprólogosugerequemuitotemposepassouentreoreinadodo
primeiroreifrancoatéoreinadodeChildeberto:“…SicveroChildebertusrexpostmultumautem
tempuspertractauit…”.Ora,comoChildebertoéfilhodeClóvis,issoparecedesqualificaresseúltimocomoautorpotencialdalei.SegundoI.Wood,nãohánadanoprólogoquepossajustificar
aatribuiçãodoPactusaClóvisouaumoutroreimerovíngiomaisantigo.Oautordesseprólogo
não teria conhecido o nome do primeiro rei franco, e ao citá-lo vagamente, apenas repetiria
atradiçãorecorrentearespeitodeum“rei-fundador”(I.Wood,TheMerovingianKingdoms,
p.111).Todavia,ahipótesesegundoaqualoPactusteriasidoredigidosoboreinadodeClóviséa
quepossui,aindahoje,maiornúmerodeadeptosentreoshistoriadores.Paraeles,oPactuséum
combinadodeelementosdocostumeedalegislaçãorealqueforamcompiladosprovavelmente
porfrancosespecialistasemdireito,mascertamentecomoauxíliodejuristasromanos(James,I
Franchi,p.23;Geary,NaissancedelaFrance,pp.112-113).
MarceloCândidodaSilva61
§3.Seelenãooescondeu,quesejacondenadoaumamultade8.000denários,
que perfazem 200 soldos). §5. Se alguém matou aquele que fazia parte do
séqüitoreal(ouumamulherlivre),queelesejacondenadoapagarumamultade24.000denários,queperfazem600soldos.§8.Seumromano,“conviva
do rei”, foi assassinado (e que isso seja provado), que ele [o culpado] seja
condenadoaumamultade12.000denários,queperfazem300soldos.§9.Se
umromanoproprietário(quenãoeraum“convivadorei”)foiassassinado
equeaquelequeomatousejaidentificado,quesejacondenadoapagaruma
multade4.000denários,queperfazem100soldos.§10.Sealguémmatouum
romanotributário(equeissosejaprovado,que[oculpado]sejacondenadoa
pagarumamultade2.500denários,queperfazem62soldosemeio)”49.
Oassassinatodeumfrancolivreoudeumbárbaro,vivendosobo
regimedaLeiSálica,erapunidocomumamultade8.000denários.Se
avítimadeassassinatofosseumromanodemesmacondiçãosocialque
ofranco,comosepodeobservarnocapítulo9,amultaéde4.000denários.SegundoMontesquieu,essaseriaaprovadeque,contrariamenteà
LeidosBurgúndioseàLeidosVisigodos,aLeiSálicaestabeleciaentre
francoseromanosasdiferençasmaisgritantes.Montesquieupretendia
assimresponderaoabadeDubos–paraquemosfrancostinhamrelaçõescomosromanosfundadasemumregimedeigualdadejurídica–e
afirmar a idéia de que os francos conquistaram a Gália, submetendo
as populações galo-romanas.As diferentes formas de tratamento dispensadasaosfrancoseaosromanosexplicariaminclusiveoporquêdo
desaparecimentododireitoromano:dadasasvantagensqueexistiam
de ser franco, bárbaro ou homem vivendo sob a Lei sálica, ninguém
pretendiaviversobaproteçãododireitoromano50.
Fazapenasalgunsanosqueaidéiaconformeaqualaautoridadereal
entreosmerovíngiosseexerciadiferentementesegundoaorigemétnica
doshabitantesdaGáliavemsendocolocadaemxeque.SegundoE.Ewig,o
regimeemvigorsobClóviseseusherdeiros,apesardeatribuirummaior
49
PactusLegisSalicae,41,1-10.
Montesquieu,OEspíritodasLeis,t.II,p.223.
50
62 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
valorcomopuniçãoaoassassinatodeumfrancodoqueaodeumromano,
teriapermitidoaosgalo-romanosbeneficiar-sedeumaproteçãolegaltal
quenãosepoderiafalaremvencidossubmetidosaoarbítriodosvencedores51.Emestudorecente,O.Guillotapresentaduasexplicaçõespossíveis
paraosdiferentesvaloresdasmultasprevistasnaLeisálica.Aprimeiraé
queastarifasseriaminversamenteproporcionaisàcapacidadededefesa
dasvítimas.Nessecaso,osfrancos,maisdespojadosdemeiosdedefesado
queaspopulaçõesgalo-romanasteriamdireitoaumamaiorproteçãojurídica.AsegundaexplicaçãoéqueaLeiSálica,estabelecidaparacombatero
direitogermânicodeguerraedevingançaprivada,indenizavamuitomais
osfrancos,quedeviamrenunciaraessedireito,doqueosromanos,que
nãotinhamessanecessidade52.Aprimeirahipóteseparecepoucoplausível,poisaLeiSálicaestabeleciamultasbastanteelevadascomopuniçãodo
assassinatodealtosfuncionáriosdoquedepessoascomuns.Assim,por
exemplo,seumfrancoquefaziapartedoséqüitorealfosseassassinado,o
culpadoseriapunidocomumamultade24.000denários.Casoofranco
não pertencesse ao séqüito real, a multa seria de 8.000 denários. Se um
romano“convivadorei”fosseassassinado,amultaseriade12.000denários.Todavia,seoromanoassassinadonãofosseum“convivadorei”,a
multacaíapara4.000denários53.Nãosetrata,portanto,unicamentedeum
dispositivodeproteçãoparaaquelesquenãopodiamsedefender.AexplicaçãomaissatisfatóriaéqueossoldadosdoexercitusFrancorumtinham
maisrazõesdoqueosromanosparaseremindenizadospararenunciarem
àvingança.AlimitaçãodaspráticasdevingançaaparececomoumdosobjetivosdoPactuslegisSalicaeeexplica,emparte,asdiferentestarifas54.Há
51
E.Ewig,DieMerowingerunddasFrankenreich,p.83.
O.Guillot,“Clovis‘Auguste’,vecteurdesconceptionsromano-chrétiennes”,pp.705-737.
53
PactusLegisSalicae41,1e8.
54
ArespeitodaLeiSálica,duasinterpretaçõesrecentesressaltamseucaráterromano,adeJ.-P.
Poly(“Lacordeaucou.LesFrancs,laFranceetlaloisalique”,pp.287-320),eadeP.S.Barnwell
(Emperors, Prefects and Kings. The Roman West, 395-565, pp. 97-99). Para Barnwell, o
Pactuslegissalicaenãoéumaleigermânica,masumaatualizaçãodepráticasqueteriamse
desenvolvidonaépocaimperialsobaformado“CódigoRural”,textojurídicobizantinoque
retomaasdisposiçõesdodireitoromano(Ibid.,p.98).
52
MarceloCândidodaSilva63
queseconsiderartambémopapeldopoderrealnessadiferenciação:
aatribuiçãodemultasmaiselevadascomopuniçãoparaoassassinato
demembrosdoséqüitoreal,oudealtosfuncionários,testemunhado
fortalecimentodopoderrealapartirdoiníciodoséculoVI.
Adiferençadeestatutoentrefrancosegalo-romanosnointeriordo
Regnum Francorum é muito provavelmente uma ficção jurídica criada
noséculoXVIIIpelosfundadoresda“EscolaGermanista”.Nãohárazões
parasepensarqueaduplatitulaturadeClóviscorrespondesseaumaautoridadequeeleexerciademaneiradiferentesobrefrancosesobregaloromanos.ORegnumFrancorumnãoeraumaentidadeétnica:apalavra
“franco”passouadesignar,aolongodoséculoVI,tãosomenteoconjunto
dosterritóriossobreosquaisreinavamosfrancos.ÉassimqueGregório
deTours,noprefáciodolivroVdesuasHistórias,afirma:“É-merepugnante lembrar as vicissitudes das guerras civis que enfraquecem bastante
anação(gens)eoReino(regnum)dosFrancos”55.Damesmamaneira,
naexpressãorexfrancorum,apalavra“franco”nãofaziareferênciaaum
povoespecífico,masremetiacadavezmaisaumaidentidadeconstruída
apartirnecessidadesdelegitimaçãodossucessoresdeClóvis56.
AprincipalfontedaautoridadepúblicadeClóvisedeseussucessores
imediatosnãoeramilitar:elanãoprovinhadotriunfodosfrancossobre
os galo-romanos, mas de uma relação estreita com as práticas, com as
hierarquias e com os símbolos da romanidade. Nem Clóvis, nem seus
sucessores,retiravamsualegitimidadedeumpurodireitodeconquista.
Seasvitóriasmilitarestivessemsidosuficientesparaafirmaraautoridade
dosreisfrancossobreaGália,nãoteriasidonecessáriorevesti-ladeuma
aparênciaromana,nemconformá-laaosparâmetrosromanos.Bastaria
adotarasconstruçõesinstitucionaissem,noentanto,recorreraossím55
HistóriasV,prólogo.
Ver,aesserespeito,F.Curta,“someremarksonehtnicityinmedievalarcheology”,pp.159185.Osestudossobre“etnicidade”,realizadosporhistoriadoresearqueologos,equecolocam
emxequeaexistência,entreosbárbarosdecomunidadesétnicasbiologicamenteconstituídas.
Taiscomunidadesnão“refletiriamarealidadesocial,masseriamconstituídassegundoosinteressesdaselitespolíticasecomaparticipaçãoativadoselementosdaculturalmaterial.
56
64 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
bolos. O reconhecimento pelo imperador permitia que os reis francos
afirmassem sua posição em face dos seus súditos galo-romanos, que é
importanteressaltar,constituíamamaioriaesmagadoradapopulaçãoda
Gália.Era,portanto,umreconhecimentoteórico,poiscomosalientado
anteriormente,oImpérionãopossuíaosmeiosmateriaisparainterferir
diretamentenaGália.Maséfundamentalnãoesquecerquenestemundo“pós-clássico”,comomostrouP.Brown,o“estilo”dasrelaçõessociais
podetornar-seocernedepaixõestãoardentesquantoasatisfaçãodas
necessidadesmateriais57.EésobessepontodevistaqueénecessáriocompreenderaafirmaçãodeProcópiosegundoaqualosfrancosacreditavam
seremincapazesdemantersuadominaçãosobreaGáliasemaaprovação
escritaeseladadoimperador.AavidezdeClóvisedeseusfilhospelos
títulosehonrariasoriundasdeConstantinoplanãoeraofrutodeuma
vaidadedesmedida:elamostraqueaintegraçãonahierarquiaimperialde
dignidadesera,antesdemaisnada,uminstrumentodegoverno.
AcerimôniadeTours(508)
NadailustramelhorafiliaçãoromanadeClóvisdoqueacerimôniade
Tours,de508.Trata-sedaúltimaemaisimportanteprogressãodeClóvis
nahierarquiaromana,etambém,apósobatismo,oeventodeseureinado
quesuscitaomaiornúmerodepolêmicas.Nãohádúvidasdequeessa
cerimôniaestádiretamenterelacionadaàvitóriadeClóvissobreosvisigodos.Comoauxíliodosburgúndios,osfrancosatacaramederrotaram,
naprimaverade507,osvisigodosemVouillé.Ainterferênciadastropas
enviadasporTeodorico,reidosostrogodos,contribuiuparadiminuira
amplitude da derrota dos visigodos, e evitou que os francos se apoderassemdaSeptimâniaedaProvença.SegundoGregóriodeTours,apósa
vitóriadeClóvis,osemissáriosdoimperadorAnastácio(491-518)trouxeramparaeleemToursumatúnicapúrpuraeumdiadema,juntamente
comumdocumentoimperialqueonomeavacônsul:
57
P.Brown,Genèsedel’AntiquitéTardive,especialmente,pp.21-63.
MarceloCândidodaSilva65
“Emseguida,(Clóvis)recebeudoimperadorAnastácioocodicilodoconsuladoe,tendorevestidonabasílicadobem-aventuradoMartinhoumatúnicapúrpuraeomanto,colocousobresuacabeçaumdiadema.Emseguida,
montouacavaloedistribuiuouroepratadesuasprópriasmãoscomuma
grandegenerosidadeàspessoasqueestavampresentesnocaminhoentrea
portadovestíbulo[dabasílica]eaigrejadacidade…”58.
OqueessetrechodasHistóriasdescreveéalgofreqüenteentreos
séculosV eVI: a atribuição pelo imperador de títulos honoríficos a
altosdignitáriosdeorigemgermânica.Eledescreveigualmenteuma
“entradatriunfal”,práticaherdadadoperíodoromano,equeconsistianaentradasolenenacivitasdeumpríncipeougeneralvitorioso,
ou então de um imperador por ocasião de sua entronização. Como
concessãoporpartedoimperadordeumtítuloaumrexbárbaro,a
cerimôniadeToursnãofoiumeventoexcepcional59.Oreidosburgúndios,Gondebaldo,recebeuotítulodepatrícioem472,damesma
formaqueOdoacroquatroanosmaistarde.Todososdoistinhamem
comumofatodeteremrealizadoproezaspolíticasoumilitaresqueos
tornaraminterlocutoresprivilegiadosdeConstantinopla.Aascensão
deClóvis,desdesuavitóriasobreSyagriusatéseutriunfoemVouillé
sobreosvisigodosdeAlarico,em507,fezdeleumparceirodeprimeiraimportânciaparaoImpério,umapeçafundamentalnocomplexo
jogodealiançasnaparsOccidentis60.DesdeofinaldoséculoV,orei
ostrogodoTeodoricoconseguiuestruturarumaaliançaquecompre58
HistóriasII,38.
VerR.Frouin,“Dutitrederoiportéparquelquesparticipantsàl’Imperiumromanum”,pp.
140-149.
60
É o que demonstram as tentativas de apaziguamento de Teodorico, rei dos ostrogodos e
mestredaItáliaapósaderrotadeOdoacro,queenviouumacartaàAlaricoIIafimdeevitar
umconflitoentreesteeClóvis(Cassiodoro,Variae,12).Poroutrolado,oimperadorAnastácio
tinhafortesrazõesparaincentivarumaaçãofrancacontraTeodorico.Estehaviaocupadoa
provínciadaPanôniaSegundaem504,maisprecisamenteollyricum,regiãodeondeeraoriginárioopróprioimperador[J.B.Bury,HistoryoftheLaterRomanEmpirefromtheDeath
ofTheodosiustothedeathofJustinian(A.D.395toA.D.565),p.465].
59
66 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
endia o Reino dos Visigodos e o Reino dos Burgúndios, a qual M.
Rouchedenominoude“internacionalariana”61.AcerimôniadeTours
marcouoreconhecimentoporpartedoimperadordonovoequilíbrio
deforçasnoOcidenteapósaderrotadosvisigodosdaAquitâniapelos
francos62.Asimilitudeentreessacerimôniaeoritualimperialéevidente.IssosignificaqueClóvisteriarecebidoumadignidadequena
práticaoteriatransformadoemumaespéciede“vice-imperador”no
Ocidente?
AsdivergênciasentreoshistoriadoressobreacerimôniadeTours
sãosobretudomotivadaspelatraduçãodocapítulo38dolivroIIdos
DecemLibriHistoriarum.ParaL.Schmidt,otítulodeproconsulqueo
imperadorteriaatribuídoaClóvisseriaoresultadodeumerronagrafiadapalavrapraecelsus(elevadíssimo)63.Outroshistoriadores,comoF.
Lot,Ch.PfiestereF.L.Ganshof,nãoacreditamnaveracidadedorelato
deGregórioarespeitodacerimônia;Clóvisnãopoderiatersidocha-
61
Acoalizãodessestrêsestadosarianosconstituíaumagarantiacontraoexpansionismofranco,mastambémumaameaçaàsposiçõeseàspretensõesimperiaisnaItália,emparticular,eno
Ocidente,emgeral.Antesmesmodacampanhade507contraosvisigodosdaAquitânia,houvetentativasporpartedosfrancosderomperesse“cordãosanitário”instaladoemtornodo
ReinodosFrancos.ObtiveramsucessonocasodoReinodosBurgúndios.GregóriodeTours
mencionaumaintervençãofrancanaburgúndiaporvoltade500,comaqualClóvisimpôsao
reiGondebaldoopagamentodeumtributoanual(HistóriasII,32).SegundoL.LevillaneG.
Tessier,antesmesmodaguerrade507,francosevisigodostinhamjátinhamentradoemchoque.CidadesquepertenciamaoReinodosVisigodoscomoSaintes,em495,eBordeaux,em
498,jáhaviamsidoocupadaspelosfrancos.(“LaconversionetlebaptêmedeClovis”,pp.161192;G.Tessier,LebaptêmedeClovis,p.92,n.1ep.106).OfatodeoreiGondebaldotercapturadoumgrupodeguerreirosfrancosedetê-losenviadoaoreiAlaricoemToulouseésintomáticodaconcórdiaexistenteentreburgúndiosevisigodosporocasiãodoconflitode500
(HistóriasII,33).
62
Alémdisso,nomesmoanoemqueconcedeuaClóvisessashonrarias,Anastáciodesencadeouhostilidadescontraosostrogodos(AmianoMarcelino,ComitisChronicon,508,11).
63
L.Schmidt,GeschichtederdeutschenStämmebiszumAusgangderVölkerwanderung,
t.2,p.491;esseautorcrêinclusivequeClóvisrompeutodososlaçoscomoImpérioapóster
sucedidoseupai.
MarceloCândidodaSilva67
mado“augusto”,títuloreservadoaoimperadorempessoa,nemportar
odiadema64.ParaF.Lot,adescriçãodeGregóriopermaneceenigmática,poisosfrancosnãoteriamjamaisseconsideradosúditosdoImpério65.Pode-se,portanto,concluirqueGregóriofoiinfluenciadopor
testemunhosoraispoucofiáveis,ouqueeleinventoudeliberadamente
orelatodacerimôniadeTourscomointuitodemostraroavôdosreis
francosdesuaépocacomomaisilustredoqueeleeranarealidade?
Paraamaiorpartedoshistoriadores,nãohádúvidasquantoàveracidadedorelatodeGregóriosobreacerimôniadeTours.Háaquelesque
acreditamqueotítulorecebidoporClóviseraode“cônsulhonorário”66.
Outros sustentam que se tratava do patriciado67. Há também aqueles
queafirmamqueeraaomesmotempoumconsuladohonorárioeum
patriciado68.Partidáriodessainterpretação,R.Mathisen,consideraque,
seAnastácotivesseoutorgadoaClóvisapenasoconsuladohonorário,
teria sido um“insulto”, pois este ocuparia uma posição inferior à do
64
F.Lot,Ch.Pfiester,F.L.Ganshof,Lesdestinéesdel’EmpireenOccidentde358à888,p.
194:“Éexatoqueonovocônsuljogavaouroeprataparaamultidão,masonomedeClóvisnão
figurasobreosdípticosconsulares.Sesetratadoconsuladohonorário,essenãocomportavanemo
cerimonialnemasdespesasdoconsuladoreal”.
65
Ibid.
66
J.B. Bury, History of the Later Roman Empire from the Death of Theodosius I to the
DeathofJustinian, p.464;W. Ensslin,“Nochmals zu der Ehrung Chlodowecs durch Kaiser
Anastasius”,pp.499-507;Cf.K.Hauck,“PolitischeundAsketischeAspektederChristianisierung (von Reims und Tours nachAttigny und Paderborn)”, pp. 46-52; E. James, IFranchi,
p.87;M.McCormick,“ClovisatTours,ByzantinePublicRitualandtheOriginsofMedieval
RulerSymbolism”,pp.155-180;M.Spencer,“DatingtheBaptismofClovis”,pp.97-116;K.F.
Stroheker,DersenatorischeAdelimspatantikenGallien,p.109;P.Leveel,“Leconsulatde
ClovisàTours”,pp.187-190;R.Weiss,ChlodowigsTaufe:Rheims508,pp.110-119;I.N.Wood,
“GregoryofToursandClovis”,pp.249-272.
67
H.Gunther,“DerPatriziatChlodowigs”,pp.468-475;E.A.Stückelberg,DerConstantinischePatriziat.EinBeitragzurGeschichtederSpäterenKaiserzeit.
68
S. Dill, Roman Society in Gaul in the Merovingian Age, pp.104 -105; J.R. Martindale
(ed.),ProsopographyoftheLaterRomanEmpire,t.11,p.290;M.Heinzelmann,Gallische
Prosopographie,p.581.
68 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
rei ostrogodo Teodorico e sobretudo à do rei burgúndio Gondebaldo
–queoreifrancohaviaderrotadoalgunsanosantes.Casooimperador
tivesseoutorgadoapenasopatriciado,oresultadoteriasidoomesmo.
A outorga das duas dignidades teria permitido a Clóvis ultrapassar a
posiçãodeGondebaldonahierarquiaromanadedignidades,aindaque
elepermanecessenumaposiçãoinferioràdeTeodorico.SegundoMathisen,apenasadignidadede“augusto”teriapermitidoaClóvisultrapassaroníveldoreiostrogodo.Masessaoutorgajamaisteriaocorrido69.
Há ainda os historiadores que afirmam que poderia ter se tratado de
umconsulado,oudeumpatriciado,masjamaisdasduasdignidadesao
mesmotempo70.QuantoaR.VanDam,eleestimaqueacerimôniade
TourstransformouClóvisemumquasi-Augustus71.
Apesar das diferentes interpretações a respeito da cerimônia de
Tours,pode-seafirmarqueelamarcouumaprogressãosemprecedentes
deClóvisnointeriordahierarquiaromana.Quantoànaturezadadistinçãoconcedidaaoreifranco,tratava-se,muitoprovavelmente,deum
“proconsulado”oudeum“consuladohonorário”,poisonomedeClóvis
nãoaparecenemnosFasticonsularesimperiales,nemnasfórmulasde
dataçãonaGália72,oquedeveriaacontecersesetratassedeumconsulado no sentido estrito do termo. Entretanto, se Anastácio realmente
pretendesse colocar Clóvis numa posição pelo menos tão prestigiosa
quantoaquelaocupadaporTeodorico,comquemeleacabavadeentrar
emguerra,opatriciadotalvezfizessepartedasdignidadesoutorgadas
aoreidosfrancos.Avantagemcomacombinaçãodessestítuloséque
elanãoconstituíaumaameaçaàpreeminênciadadignidadeimperial73.
Comoexplicar,entretanto,amençãoporGregóriodotítulode“augusto”?AconcessãodesseepítetosignificariaqueAnastáciopretendia
69
R.Mathisen,“Clovis,AnastaseetGrégoiredeTours:consul,patriceetroi”,p.400.
Y Hen, “Clovis, Gregory of Tours and Pro-Merovingian Propaganda”, pp.271-276; J.M.
Wallace-Hadrill,TheLong-HairedKings,pp.175-176.
71
R.VanDam,LeadershipandCommunityinLateAntiqueGaul,p.181.
72
VerM.Heinzelmann,GallischeProsopographie(260-527),pp.581-582.
73
O.Guillot,“GrégoiredeToursetlaJusticemérovingienne”,p.722.
70
MarceloCândidodaSilva69
fazerdeClóvisum“co-imperador”.NãoháindícioalgumdequeAnastáciotenhapretendidocriarumatalsituação,quenapráticasignificava
reconheceremClóvisonovoimperadordoOcidente.Alémdomais,
um tal ato teria conferido a Clóvis um peso que ele, mesmo sendo o
vencedordabatalhadeVouillé,nãopossuía.Nessesentido,mereceser
mencionadoopontodevistadeM.Reydelletquecolocaemdúvidaa
traduçãogeralmenteaceitadafrasedeGregóriodeTours:“…etabea
dietamquamconsulautaugustusestvocitatus”74.Eleobservaqueamaior
partedostradutoresnegligenciamatraduçãodapalavratamquam75.A
presençadessapalavranafrasesignificariaqueClóvisnãofoirealmente
cônsulouaugusto,poismesmonaobradeGregório,tamquamnãoseria
capazdeintroduzirumatributopuroesimples.Osentidoseriaentão:
“...comoseelefossecônsulouAugusto”.Colocadadessemodo,segundo
Reydellet, a frase constituiria um problema, pois os dois títulos não
eramsinônimos,oqueGregóriodeviasaber.Reydelletfaladeumerro
domanuscritoparaexplicaroquesegundoeleconstituiumparadoxo.
Overdadeirosignificadodotextoseriaentão:“ElefoichamadopelosAugustos(oimperadoreaimperatriz)comosefossecônsul”76.Trata-se,entretanto,apenasdeumahipótesededifícilverificação.Comoestarcerto
dequehouverealmenteumequívocodocopista?Asoluçãoencontrada
porK.F.Wernerpararesolveroproblemaédignadenota:eleexplica
a presença do título“augusto” como uma interpretação por parte de
GregóriodopapeldirigenteexercidoporClóvissobreaIgreja77.Ora,
ossucessoresdeClóvistiveramumaatitudesemelhanteemrelaçãoà
74
HistóriasII,38.
AVitaRemigitambémomiteapalavratamquam:“PeridemtempusabAnastasioimperatorecodicellosHludowicusrexproconsulatuaccepit;cumquibuscodicellosetiamilliAnastasius
coronamaureamcumgemmisettunicamblatteammisit,etabeadieconsuletaugustusest
appellatus”[grifonosso](VitaRemigiiepiscopiRemensisauctoreHincmaro,20).
76
M.Reydellet,Laroyautédanslalittératurelatine,p.408.
75
77
K.F.Werner,“La‘conquêtefranque’delaGaule.Itinéraireshistoriographiquesd’uneerreur”,
p.30:“EleeraparaaIgrejadeseuregnum,acondiçãodeteraverdadeirafé,dominus(político)
epiusprinceps,tomandoacimadosbisposolugarqueeradoimperadornoImpério”.
70 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
IgrejadaGália–comoseverámaisadiante–,semque,noentanto,lhes
fosseatribuídootítulode“augusto”.Alémdomais,emsuadescriçãodo
governodeTibério,bemcomoemoutraspartesdesuaobra,Gregório
utilizaotítulode“augusto”paradesignarapenasoexercíciodafunção
imperial,semquehajaqualquermençãoàIgreja78.
ÉpossívelqueacerimôniadeTourscomportasseumaanomaliaque
nãopassoudespercebidaaobispodeTours.Apesardadistânciaqueseparavaoanode508domomentoemqueGregórioescreveusuaobra,
estedeviasaberqueacerimôniasefundavasobreumainterpretação
exagerada das honras que eram atribuídas a Clóvis. Essa defasagem
entre o título de“cônsul honorário”, que Clóvis provavelmente tenha
recebido,eaaclamaçãodequeelefoioobjeto,éinclusiveperceptívelno
relatodobispodeTours.Efetivamente,emnenhummomentoGregório
afirmaqueClóvisrecebeuotítulode“augusto”dopróprioimperador.
Éditoapenasqueele[Clóvis]recebeudoimperadorAnastácioocodicilo
doconsulado.Nofinaldocapítulo,obispodeToursacrescentaque“a
partir desse dia ele foi chamado como se fosse cônsul ou Augusto”, sem
definirclaramenteaidentidadedaqueleoudaquelesqueochamavam
assim.Otextoindicaclaramentequeháumadissociaçãoentreaaclamação e o título outorgado pelo imperador. Gregório diz que Clóvis
foiaclamado“cônsulouAugusto”,eaoacrescentarapalavratamquam
(comose),elemostraclaramentetodaaambigüidadedacerimônia.As
ovaçõesrituaisdoexércitoedopovoreunidosemToursprovavelmente
ultrapassaramainiciativaimperial,poisemnenhumoutrotextodeque
sedispõeparaoperíodomerovingioClóviséchamadode“augusto”79.
AcerimôniapodetersidopreparadacuidadosamenteporClóvisepor
seusconselheiroscomointuitodeampliarovalorpolíticodadistinção
queoimperadorenviaraàGália.Issoexplicariatambémautilizaçãoda
diademaedomantopúrpura,símbolosqueumsimples“cônsulhonorário”nãopoderiarevestir.
78
HistóriasV,30;HistóriasI,16;HistóriasII,9;HistóriasII,9.
Cf.M.Heinzelmann,GallischeProsopographie(260-527),pp.581-582.
79
MarceloCândidodaSilva71
Assim,nodiadesuaentradatriunfalemTours,Clóvisdevetersido
aclamadocomo“augusto”emvirtudedecircunstânciasinternasdoRegnumFrancorum,semqueissotenhasidonecessariamentereconhecido
porConstantinopla.EratalvezumamaneiraparaClóvisderesolvero
problemadesuainferioridadehierárquicaemrelaçãoaTeodorico,aclamadonaqualidadedeFlavius80.Masaomesmotempo,eledemonstrava
publicamente uma pretensão imperial. Outros aspectos da cerimônia
deToursmostramigualmenteadefasagementrea“interpretaçãoreal”
ea“iniciativaimperial”.AsvestimentasqueClóvisportavanaocasião
eramasmesmasqueumgeneralíssimoromanoutilizavanaocasiãode
umtriunfo.OvencedordeVouillénãopoderiadeixardeexplorarseu
sucessomilitar.Umavezqueotítulode“augusto”aparecesomentepor
ocasiãodessacerimônia,épossívelquetenhasetratadodeumasupervalorizaçãointencionaldotituloromanoquenãoserepetiuemseguida.
AvitóriadeClóvissobreosvisigodoserarecenteeelapodeterinspiradoessainiciativa.SeriaumerroconsiderarClóvisapenascomoum
reifrancoouporoutroladoapenascomoumaltofuncionárioromano.
Eleeraasduascoisas.Seuprincipaltrunfo,porém,estavanamargemde
manobraquepossuía,equeseussucessorescontinuarãoaexplorar,em
virtudedacrisedaautoridadeimperialnoOcidente,equelhepermitia,
por exemplo, utilizar-se como bem entendesse das distinções que lhe
eramoutorgadaspeloimperador.
Qualquerquesejaovalorquecadaumadaspartes–imperadorerei
–atribuíramàsinsígniaseaostítulosrevestidosporClóvisemTours,
umaconstataçãoseimpõe:todoessecerimonialqueevocaaomesmo
tempo a antiga pompa do triunfo, o processus consularis e o advento
imperial,écarregadodecoresromanas81.R.MathisenafirmaqueClóvis
nãoeraumhistoriador,queelenãoseinteressavapelopassadoromano,
mas pelo futuro franco. Ele não pretendia, diz Mathisen, imitar funcionáriosromanosdesaparecidos,mastornar-sepoderosocomooutros
80
Idem,p.703.
L.Pietri,LavilledeToursduIVeauVIesiècle:naissanced’unecitéchrétienne,p.168.
81
72 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
reis de sua época82.Ora, a cerimônia de Tours mostra que o“futuro”
francotinhaumarelaçãoestreitacomo“passado”romano.Oprincipal
fundamentodalegitimidadereal,nãoapenasnaGália,masnoOcidente
no início do séculoVI, era o legado político de Roma. O comportamentodeClóvis,quandodacerimôniadeTours,indicaqueeleestava
convencidodequeofuturofrancoerainconcebívelforadoImpério,de
suasconstruçõespolíticaseadministrativas,emesmodesuaideologia.
Paraele,comoparaaquelesqueelegovernava,oImpérioRomanonão
pertencia ao passado, era uma realidade. Clóvis não era um historiador,masantesdetudoumpolíticohábilquesabiacomotantosoutros
desuaépoca,visualizaroequilíbriodeforçaspredominanteeagirem
conseqüênciaparatiraromelhorproveitopossível.Nãoénecessárioser
umhistoriadorparasaberutilizarahistóriaaseufavor.Orecursoaos
símboloseaostítulosromanos,damesmamaneiraqueàsconstruções
institucionaisdoImpério,testemunhamdoquantoessanovaentidade,
oRegnumFrancorum,estavaancoradonautilizaçãoenaadaptaçãoda
herançaromana83.
Nofinaldeseureinado,Clóvishaviaseafirmadocomoumdosreis
ocidentais mais romanizados, ou pelo menos como um daqueles que
utilizaremolegadoromanodemaneiramaissistemática.Orecursoaos
títuloseaossímbolosdaromanidademostraqueosfrancosnãohaviam
retiradosualegitimidadedeumpurodireitodeconquista.Nãosepode
esquecerqueosgalo-romanosconstituíamamaioriaabsolutadoshabitantesdaGália.Nessesentido,Procópiotinharazãoquandoescreviaque
osfrancosnãoseacreditavamcapazesdeassegurarapossessãodaGália
82
R.Mathisen,“Clovis,AnastaseetGrégoiredeTours:consul,patriceetroi”,p.405.
VerK.Hauck,“VoneinerspätantikenRandkulturzumkarolingischenEuropa”,pp.3-93;L.
PietrireconheceosignificadoromanodacerimôniadeTours;quantoaM.Rouche,eleestima
queessacerimôniatinhaumúnicoobjetivo:satisfazerosgalo-romanosdeToursedaAquitaniaque,apósmaisdecinqüentaanosdefendendooImpérioRomanocontratudoecontra
todos,estavamreunidosaoRegnumFrancorum.Osvisigodos,dizele,tinhamfracassadopor
nãoteremsidosuficientemente“romanófilos”(L’AquitainedesWisigothsauxArabes,418781,pp.49-50).
83
MarceloCândidodaSilva73
semqueoimperadordessesuaaprovação.EraimperativoparaClóvis
aparecerparaseusgovernadoscomoumsúditofieldoimperador.Após
acerimôniadeTours,Clóviseramaisdoquenuncaorepresentantede
umaordemque,nomeiodasturbulênciasdaqueletempo,permanecia
aexpressãododireito84.
FoisoboreinadodeClóvisque,pelaprimeiravez,osdiversosgruposdefrancosforamunificadosemumúnicoreino85.Essanovaentidade,muitoemborasechamasseRegnumFrancorum,estavalongede
serumreinogovernadounicamenteporfrancoseparaosfrancos.Ver
emClóvisofundadordoReinodosFrancosnãosignificaconsiderá-lo
comooprimeirodentreosmembrosdesuadinastiaaterlibertadoa
GáliadetodarelaçãocomoImpério.Aoserecusaraidéiadeconquista
francadaGália,esse“grandemitohistoriográfico”naspalavrasdeK.F.
Werner,énecessárioadmitirqueaforçanãofoioúnicofundamento
daautoridadedosreismerovíngios.AsproezasmilitaresdeClóvis,bem
comoasdeseusherdeiros,sãoapenasadimensãomaisvisíveldosucessodessadinastia.Maselasnãoaexplicamtotalmente.Mesmotendo
utilizadoaviolênciaparaatingirseusobjetivos,Clóviseseussucessores
permaneceramligadosatavicamenteaoImpério,tantoàsuaideologia
quantoàssuaspráticasinstitucionais.Eeradessaligaçãoqueelesretiravamboapartedesualegitimidade.Osfrancosestavamevidentemente
conscientesdasuperioridadedoImpério.
AindaquesediscutaaquiolegadodoImpérioaoRegnumFrancorum,essetermonãodevedarumafalsaimpressãosobreaatitudede
Clóvis e de seus sucessores. Quando se menciona a herança romana,
seriaumequívocopensaremumconjuntodeidéiasedepráticasinstitucionaisquesetransmitiriaintegralmenteeimutavelmente.Osfrancos
souberamadaptarolegadoromanoàscondiçõesparticularesdaGália
do séculoVI. Admitindo que o mundo franco ainda fizesse parte do
mundoromano,eque,porconseguinte,odireitoeasconstruçõesinstitucionaisromanaslhefossemfamiliares,havianamaneira“galo-franca”
84
E.Lavisse,“LaFoietlamoraledesFrancs”,p.103.
P.S.Barnwell,Emperors,PrefectsandKings.TheRomanWest,395-565,p.90.
85
74 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
de tratar o legado romano uma mobilidade e uma originalidade que
ficaram obscurecidas pelo debate entre“romanistas” e“germanistas”.
Umaanálisedamonarquiafrancadevelevaremcontaessasparticularidades.AcerimôniadeTourspode,aliás,muitobemilustraracapacidade
dosFrancosdetransformarereinterpretarossímbolosdaromanidade.
Isso não quer dizer que Clóvis e os seus sucessores fossem brilhantes
teóricos,mastambémnãoeramosbárbarosincapazesdecompreender
qualquerabstração,talcomosustentaahistoriografiatradicional.Não
sepodeesquecerqueeleseramofrutodeumaculturapolíticaaltamenteromanizada.
Pelomenosnoquedizrespeitoaovocabuláriodopoder,oReinodos
Francospermaneceuunidoaomundoromano.Umaleituradosatosdas
chancelarias,dascrônicasoudacorrespondênciapermiteatestarquea
utilizaçãodostítulosromanosnoOcidentenãoseinterrompeucoma
“quedadeRoma”.Noçõeschavedavidapolítica,estestítulosaparecem
ininterruptamentedoséculoIVaoséculoX.Estaperenidadeédevida,
sobretudo,àaçãodosimperadoresdeConstantinopla,quetiveramêxito
emcooptaroschefeseosreisbárbarosparaasuaprestigiosahierarquia
de títulos áulicos86. Imersos no universo político romano pelo menos
desdeoséculoIV,osfrancosnãopodiamignorarosignificadodostítulosqueelesdisputavamcomoutrospovosgermânicos.Acapacidade
comaqualClóvisexplorouadignidadequelhefoiconcedidaporAnastácio,em508,mostraqueosmerovíngiosnãoeramignorantesquanto
aosignificadoe,sobretudo,quantoàsimplicaçõesdessessímbolossobre
suaprópriaautoridade.Osreisfrancosestavamconscientesqueaafirmação da sua autoridade sobre a Gália não dependia unicamente de
suasproezasmilitaresoudesuaorigemreal.
Pode-se, no entanto, questionar o alcance dos títulos romanos no
exercíciodopodernaGáliafranca.NaopiniãodeJ.B.Bury,retomada
em seguida por P. Goubert, os reis merovíngios Cariberto, Sigeberto
(†573),ChilpericoeGontrão,quedisputavamentresi“ospedaçosda
86
K.F.Werner,Naissancedelanoblesse,p.276.
MarceloCândidodaSilva75
França”,voltavamsuaatençãoparaoimperadoremConstantinoplana
esperançadeobterdele,senãosocorroemseusconflitosfratricidas,pelo
menosalgunspresenteseasdistinçõeshonoríficasquepreenchiamos
seus desejos de“novos-ricos”87. Em sua correspondência com a corte
deConstantinopla,ospríncipesfrancosnãocessaramdetestemunhar
sua submissão em relação ao Império. Seria, no entanto, precipitado
afirmar que os títulos e as noções políticas romanas utilizadas pelos
francoseram“embalagensvaziasdeconteúdo”.Nopróximocapítulo,
examinar-se-ãoasimplicaçõesdessaatitude“nostálgica”noexercícioda
autoridadepúblicaduranteaprimeirametadedoséculoVI.
87
J.B.Bury,AHistoryoftheLaterRomanEmpirefromArcadiustoIrene(395A.D.to800
A.D.),t.2,p.159;P.Goubert,ByzanceetlesFrancs,I,Byzanceetl’OccidentsouslessuccesseursdeJustinien,Byzanceavantl’Islam,t.2,v.1,p.15.
CapítuloII
A“RealezaConstantiniana”(c.481-561)
Clóvisésemsombradedúvidasumdospersonagensmaisimportantesdamemóriahistóricafrancesa.SeosBourbonadotaram-nocomoseu
antepassado,vinculando-seassimaoprimeiroreicatólicodoOcidente,
elesotransformaramigualmenteemfundadordaFrança.Maisdoque
Carlos Magno, cujo império abrangia boa parte da Germânia e cujo
túmuloseencontranacidadealemãdeAachen,Clóvispodiaserconsideradocomoumrei“tipicamentefrancês”.ComexceçãodaSeptimânia
edaProvença,ofilhoesucessordeChildericogovernavaumterritório
quecoincidiagrossomodocomoespaçosobreoqualreinavamosreis
deFrançanosséculosXVIIeXVIII.Noentanto,oprestígiodeClóvis
nãoseconverteuautomaticamenteemsucessohistoriográfico:somente
nofinaldoséculoXIXéqueoshistoriadoresfrancesescomeçaramase
interessarrealmenteporele.Oobjetoprincipaldesseinteresseeramas
anedotasdesuavidarelatadasporGregóriodeTours,asquaispareciam
confirmaraidéiadequesetratavadeumbárbaroquepraticavaoassassinatosistemáticodemembrosdesuaprópriafamíliacomomeiode
ampliarseupoder.
78 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Noentanto,háumadimensãodafigurahistóricadeClóvisque
sobreviveu à visão negativa veiculada pela historiografia do século
XIX:éaimagemde“fundadordaFrança”.Mesmocomaconcorrência
deVercingétorix–quea3aRepúblicaerigiuemheróideumaFrança
abaladapeladerrotaanteosprussianos–,oucomascríticasdeuma
tradiçãohistoriográficaquefezda“crueldade”eda“superstição”as
pedrasangularesdadescriçãodostemposmerovíngios,Clóvispermaneceu associado a um momento crucial da formação da nação
francesa.Quandopublicouabiografiadessepersonagem,em1893,
G.Kurthlamentavaque“ohomemqueabreosanaisdomundomoderno,ofundadordaFrança,nuncatevebiógrafo”.O“reinadocriador”,aquelequehaviaimpressosuamarcademaneiratãopoderosa
nahistória,nãohaviadeixadonenhumtraçonahistoriografia1.Essa
situaçãoalterou-sesensivelmenteaolongodoúltimoséculo.Ainda
queasbiografiasdeClóvisnãosejammuitonumerosasnaFrançae
naAlemanha,osprincipaiseventosdoseureinado–obatismo,as
guerras contra os burgúndios, contra os visigodos, a cerimônia de
Tours,oConcíliodeOrléansetc.–foramabordadosporumgrande
númerodeobraseartigospublicadosatéametadedosanos19902.
AscomemoraçõesdosmilequinhentosanosdobaptismodeClovis
foram a ocasião de colóquios, exposições e também da publicação
1
G.Kurth,Clovis,p.xiii.
Alistaédemasiadolongaparaserreproduzidaaqui.Eis,noentanto,algunsexemplos:M.
Bloch,“ObservationssurlaconquêtedelaGauleromaineparlesroisfrancs”,pp.161-178;
B.S. Bachrach,“Procopius and the chronology of Clovis’ reign” pp. 21-31; G. Bordonove,
ClovisetlesMérovingiens;P.Courcelle,Histoirelittérairedesgrandesinvasionsgermaniques;W.vonDerSteinen,“ChlodwigsÜbergangzumChristentum”,pp.417-501;W.M.
Doly,“Clovis,howbarbaric,howpagan”,pp.619-664;J.Hoyoux,“LecollierdeClovis”,pp.
169-174; P. Leveel,“Le consulat de Clovis à Tours”, pp. 187-190; F. Lot,“La conquête des
paysd’Entre-Seine-et-LoireparlesFrancs”,pp.241-253;J.Verseuil,Clovisoulanaissance
desrois;P.Périn,ClovisetlanaissancedelaFrance;arespeitodasfestividades,veradissertaçãodeM.Allouch,Unpassérecomposé:lescommémorationsdubaptêmedeClovis,
étudecomparé:1896-1996.
2
MarceloCândidodaSilva79
de vários títulos que vieram a acrescentar-se a uma bibliografia já
bastanteextensa3.
Namaiorpartedetrabalhosquelheforamconsagradosdesdeofinal
séculoXIX,Clóvisaparececomoumsoberanobárbaroque,pelaforça
dasarmas,conseguiuapoderar-sedaGáliaromana.Àsvezes,eleaparece
tambémcomoumaltofuncionárioromanocujasvitóriasmilitaresnão
foram suficientes para tornar o Reino dos Francos menos dependente do imperador. Em ambos os casos, Clóvis é visto como um mero
continuadordetradiçõesancestrais.Oconquistadorbárbaro,herdeiro
dosantigoscostumesgermânicosétãopoucoinovadorquantooalto
funcionárioromanotornadochefedeumEstadogalo-franco.Nosdois
casos,Clóvisteriaapenasseguidoumcenáriodeterminadodeantemão.
Seháumdomínionoqualoshistoriadoreslheatribuíramcertacapacidadecriativa,éefetivamenteoda“fundaçãodanaçãofrancesa”:isso
podeserobservado,notadamente,naspublicaçõesqueacompanharam
asfestividadesdosmilequinhentosanosdeseubatismo.Clóvisteria
adotadoafécatólicamaisporoportunismoqueporconvicção,etornadoessareligiãoofundamentoprincipaldaquiloquesetornariamais
tardeaFrança4.Frutodaimaginaçãodosmodernos,arepresentaçãode
Clóviscomooprimeiroreidosfranceses,ouaindacomoseuprimeiro
3
M.Rouche,(dir.)Clovis,histoireetmémoire;R.Mussot-Goulard,Lebaptêmequiafaitla
France;J.Schmidt,LebaptêmedelaFrance:Clovis,Clotilde,Geneviève;F.Dallais,Clovis
oulecombatdelagloire;P.-M.Couteaux,Clovis,unehistoiredeFrance;L.Theis,Clovis,de
l’histoireaumythe;M.Laforest,Clovis,unroidelégende;B.Chevallier,Clovis,unroieuropéen;A.Bernet,ClovisetlebaptêmedelaFrance.UmaboacríticaàidéiadequeClóvisteria
convertidoaGáliaseencontranolivrodeB.Dumézil,Lesracineschrétiennesdel’Europe.
Conversionetlibertédanslesroyaumesbarbares,Ve-VIIIesiècles,p.220ess.
4
Emalgunsdessesnumerosostrabalhos,obatismodeClóviséassociadoàfundaçãodaFrança,
oumesmoàfundaçãodaEuropa.Ver,porexemplo,R.Mussot-Goulard,Lebaptêmequiafait
laFrance;J.Schmidt,LebaptêmedelaFrance:Clovis,Clotilde,Geneviève;P.-M.Couteaux,
Clovis,unehistoiredeFrance;A.Bernet,ClovisetlebaptêmedelaFrance.Éevidenteque
umatalinterpretaçãoétributariadeumaapreciaçãoaposterioridoevento.Époucoprovável
queentreoscontemporâneosdacerimôniadeReimshouvessealguémqueacreditasseque,ao
entrarnobatistério,Clovisestavafundandoa“Europacristã”oua“Françacatólica”.
80 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
reicatólico,acabouportornar-sepraticamenteaúnicamarcadeoriginalidadedopersonagem.ÉcomoseocatolicismodeClóvisestivesse
nabasedocatolicismofrancês.Ostítulosdecertasobrasquelheforam
consagradas em 1996 mostram efetivamente que “o rei europeu”, “o
construtor”ou“ofundador”daFrança,eclipsouo“reidosfrancos”5.
Oproblemafundamentaldessainterpretaçãoéqueelanadadizsobreo
significadodoreinadodeClóvisnahistóriadaGálianofinaldoséculo
VenoiníciodoséculoVI.
Clóvis,o“novoConstantino”
“Arainhanãocessavadepregardemodoque(Clóvis)conhecesseoverdadeiroDeuseabandonasseosídolos;masnãopôdedenenhumamaneira
trazê-loparaessacrençaatéodiaemqueaguerrafoidesencadeadacontra
osalamanos,guerranaqualelefoilevadopelanecessidadeaconfessaroque
anteriormentetinhaserecusadoafazervoluntariamente”6.
EssetrechofazpartedotestemunhomaiscompletodequesedispõesobreacerimôniadobatismodeClovis,emboratenhasidoescrito
porGregóriováriasdécadasdepois,talvezcomoauxíliodeclérigosde
ToursqueconheceramarainhaClotilde,mortanessacidadeem545.
Issoexplica,emparte,aimportânciaatribuídaàrainhanobatismo,que
destoadopapelquelheéacordadoporoutrosautores,comoRemígio
deReimseAvitusdeViena.Ambosnemsequermencionamarainha
emsuasepístolas.GregóriointroduzigualmenteemseurelatoumarelaçãodecausaeefeitoentreaaceitaçãoporClóvisdoverdadeiroDeus
5
NaAlemanha,aimagemde“paifundador”éassociadasobretudoaCarlosMagno.Alguns
historiadoresalemãesviramemClóvisoherdeirodeumapequenarealeza(Gaukönigtum),
queestarianaorigemdoRegnumFrancorum(L.Schmidt,“DesEndederRömerherrschaftin
Gallien,ChlodowechundSyagrius”,pp.611-618).
6
HistóriasII,30.
MarceloCândidodaSilva81
esuavitóriasobreosalamanosnabatalhadeTolbiac.Segundoobispo
deTours,ClóvisteriainvocadoaajudadeCristonomomentoemque
seuexércitoestavaprestesaserexterminado,comprometendo-se,em
troca,aserbatizado.Apósotriunfosobreosalamanos,arainhaClotilde
teriamandadochamarobispodeReims,eeleteriaconvencidoClóvis
aaceitarapalavradaSalvação7.OrelatodeGregóriotrazumproblema
cronológico:háfortesindíciosdequeabatalhadeTolbiactinhaocorridodepoisdobatismo,enãoantesdele8.O“erro”cronológicodobispo
Toursnãoparecetersidofrutodomeroacaso:aosituarabatalhade
Tolbiacantesdobatismoe,sobretudo,aomostrá-lacomocausadesse
evento,GregórioestabeleceumparalelismoentreaconversãodeClóvis
eaconversãodeConstantino.Damesmaformaqueoimperadorno
episódionabatalhadaPonteMilvius,diantedeumadificuldademilitar
queClóvisrecebeuaajudadivina.Alémdisso,GregóriodeToursatribui
àrainhaClotilde,queteriarealizadonumerososesforçosparaconvencer
Clovisaaceitarafécatólica,papelsemelhanteaoqueatradiçãocatólica
atribuiàHelena,mãedeConstantino.
DentretodososautoresdoséculoVIcujostextosforampreservados,
GregóriodeTourséoúnicoaestabelecerumarelaçãodecausaeefeito
entreabatalhacontraosalamanoseobatismodeClóvis.Acartade
Avitus,bispodeViena,escritaaoreifrancoquandodeseubatismo9–e,
além disso, o único relato contemporâneo do acontecimento – não
mencionanenhumabatalha,tampoucoaparticipaçãodarainhaClotil-
7
Idem.AdatadobatismodeClóviséaindaoobjetodecertacontrovérsiaentreoshistoriadores;unsfalamde496,outrosde499,ouainda506.Sobreestascontrovérsias,verG.Kurth,
Clovis,pp.295-319;L.Levillain,“LaconversionetlebaptêmedeClovis”,pp.161-192;G.Tessier,LebaptêmedeClovis,pp.87-96;M.Rouche,Clovis,pp.272-277.
8
Cf.W.Hartung,SüddeutschlandinderfrühenMerowingerzeit,p.98;I.N.Wood,“Gregory
ofToursandClovis”,pp.249-272;K.F.Werner,“La‘conquêtefranque’delaGaule”,p.38,n.
102.
9
Essa carta de Avitus seria, de acordo com W. von Der Steinen, a resposta a uma circular
enviadaporClóvisaosbisposcatólicosdoseureinoedoexteriorparacomunicarseubatismo
(“ChlodwigsÜbergangzumChristentum”,pp.417-501).
82 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
de.Muitoemboratraceumretrato“imperial”deClóvis,comoseverá
adiante,AvitusdescreveaconversãodeClóvisapenascomooresultado
deumaescolhadorei:“Aescolhaquefizestesparavósvaleparatodos”10.
Avitusnãomencionanenhumelementoexternoqueteriainfluenciado
adecisãodeClóvisdeadotarafécatólica.EmumacartaàClodosinda,
netadeClóvis,escritaem562,Nizier,bispodeTrier,afirmaqueorei
decidiuseconvertergraçasàpersuasãodeClotilde,etambémporque
tinhasecomovidocomaforçadosmilagresnotúmulodeSãoMartinho11.Nenhumamençãoéfeitaaosalamanos.SãoNiziernãoestabelece
relaçãodiretaentreasvitóriasmilitareseaconversão;suaargumentaçãoésensivelmentediferente:apenasdepoisdeseubatismoéqueClovis
teriarealizadoproezascontraosreisheréticos,AlaricoeGondebaldo12.
No entanto, Gregório não é o primeiro nem o único a destacar o
caráter“imperial” do batismo de Clóvis. O bispo de Reims nomeou
Clóvis“praedicatorfideicatholicae”(pregadordafécatólica)e“gentium
triumphator”(vencedordospagãos),dandocontornosimperiaiseconstantinianosaoreidosfrancos13.Algosemelhantepodeserobservadona
epístoladeAvitusdeViena:
10
AlcimiEcdiciiAvitiViennensisEpiscopi,46(41).
EpistolaeAustrasicae8:“Tuaprendestescomoatuaavó,asenhoradeboamemória,Clotilde,
veioemFrancia,ecomoconduziuosenhorClóvisàfécatólica;eele,comoeraumhomemdosmais
astuciosos,nãoquisconcordarantesdecompreenderqueessascoisaseramverdadeiras.Quandose
percebeuqueessasdemonstrações,queacabodemencionarmaisacima,foramprovadas,elecaiu
humildementedejoelhossobreochãodobem-aventuradoMartinhoeprometeusefazerbatizar
semdemora.Tuaprendestesqueumavezbatizado,elerealizounumerososfeitoscontraos
reisheréticosAlaricoeGondebaldo;tunãoignorasaqualidadedosdonsqueeleeseusfilhos
receberamdestemundo”(grifonosso).Nãoparecehaveraquiqualquerintençãodoautorem
traçarumparalelismoentreClóviseConstantino.NorelatodeSãoNizier,osfeitosmilitares
doreifrancosucedemedecorrremdeseubatismo,aoinvésdeprecedê-loeexplicá-lo.
12
SobreSãoNizier,verE.Ewig,TrierimMerowingerreich,Stadt,Bistum.Civitas,p.88;M.
Heinzelmann,BischofsherrschaftinGallien,p.171,p.174.
13
EpistolaeAustrasicae,3.
11
MarceloCândidodaSilva83
“Damesmaforma,aGréciapodefelicitar-seporterescolhidoumpríncipe que seja dos nossos; mas de agora em diante não é mais a única a
merecerodomdeumatalrecompensa.Asuaclarezailuminatambémoteu
orbise,naparteocidental(occiduispartibus)[doImpério],obrilhodeuma
glóriaquenãoénovafulgurasobreumreiquenãoénovo.Éporissoquea
NatividadedoNossoSenhorinaugurouestaglória,demodoqueodiaem
queaáguaregenerativavospreparavaparaasalvaçãosejatambémodia
emqueomundorecebeuAquelequenasceuparasuaredenção,omestre
docéu.EqueodiaemquesecelebraonascimentodoSenhorsejatambém
ovosso;ouseja,queodiaemquevósnascestesparaocristosejatambém
o dia em que o cristo nasceu para o mundo, o dia em que consagrastes
vossaalmaaDeus,avossavidaaosvossoscontemporâneos,avossafamaà
posteridade”14
ObispodeVienadirige-seaClóviscomooigual,naparteocidental
doImpério,aoprincepsdaGrécia(queelecuriosamentenãodesigna
comoImpério).ÉatravésdobatismoqueClóvisteriaalcançadouma
estatura sem precedentes. Assim, a“clareza” desse acontecimento iluminariamesmoaGréciaeseuprinceps.Avitusdestacatambémacoincidência entre a data do batismo de Clóvis e o dia da Natividade do
Senhor.Bispocatólicodeumreinoariano–aBurgúndia–,eleatribui
aobatismodeClóvisumsignificadoqueultrapassavaasfronteirasdo
ReinodosFrancos.Alémdisso,aoafirmar,noiníciodaepístola,que“A
escolhaquefizestesparavósvaleparatodos”15,obispodeVienaoutorga
aoreidosfrancosaestaturadeumimperadorcristão.
I.WoodeF.PrinzconsideramqueClóvisconverteu-seprovavelmente
aoarianismoantesdeadotarafécatólica.EssesautoresduvidamdaveracidadedaquiloqueérelatadoporGregório,responsável,segundoeles,
porteracrescentadoopapeldeClotilde,assimcomoabatalhacontraos
alamanos.EssaversãoteriaporobjetivotornarClóvisaceitávelaosolhos
14
AlcimiEcdiciiAvitiViennensisEpiscopi,46(41).
Idem.
15
84 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
dosgalo-romanoscatólicos,aoapagarqualquervestígiodeseupassado
herético16.AindaquenãosetratassedeesconderoarianismodeClóvis
deseussúditos,orelatoeacronologiadasHistóriasserviamàdemonstraçãodotriunfodaIgrejadoCristo.Osacontecimentossãoordenados
demaneiraailustraravitóriadocatolicismosobreasheresias.Aliás,o
capítulosobreosalamanoséimediatamenteanterioraoquetratado
batismo.Deresto,aintençãodeGregórioéexplicitamenteapresentada
quandoeledescreveopercursodeClóvisatéapiabatismal:
“Foioreiquemprimeiropediuparaserbatizadopelopontífice.Eleavança,
novo Constantino, em direção à piscina para curar-se da doença de uma
velhalepraeparaapagar,comáguafresca,manchassujasfeitasantigamente...
(grifonosso)” 17.
Essa“velhalepra”,curadapelaáguadobaptismoéumareferênciaà
doençadaqual,segundoatradição,teriasidovítimaoimperadorConstantino.Enotrechologoaseguir,GregóriocomparaobispoRemígio
aopapaSilvestre:
“SãoRemígioeraumbispodenotávelciênciaeque,emprimeirolugar,
tinhaseimpregnadodoestudodaretórica,massedistinguiaigualmentepela
santidade,igualandoSilvestrepelosseusmilagres”18.
Essa comparação completa o relato “constantiniano” do batismo:
Remígio estaria para Clóvis assim como o papa Silvestre estaria para
Constantino.Vê-se,alémdisso,atravésdaretóricadapurificaçãopelo
batismo,aprincipalvirtudedeClóvis,noentenderdobispoTours:como
oimperador,eleteriarompidocomopaganismoeadotadoafécatólica.
Como se pode observar, o tema de Clóvis como“novo Constantino”
16
I.N.Wood,“GregoryofToursandClovis”,pp.249-272;F.Prinz,GrundlagenundAnfänge,
Deutschlandbis1056,pp.63-64.
17
HistóriasII,31.
18
Idem.
MarceloCândidodaSilva85
alcançou,comGregório,umníveldeelaboraçãoqueeleprovavelmente
nãopossuíanomomentodobatismo.
ObispodeToursdeveterpercebidoqueaconversãodeClóvisao
catolicismo,comoadeConstantinocercadedoisséculosantes,abria
possibilidadesconsideráveisparaaIgreja.Clóviseraoprimeiroreiocidentalatornar-secatólico.Noentanto,ConstantinonãoaparecenorelatodeGregóriocomoocampeãodafécatólica.Noúnicocapítulodas
Históriasondeeletrataespecificamentedesseimperador(I,36),GregóriooacusadoassassinatodasuaesposaFaustaedeseufilho19.Ainda
queobispodeToursafirmequefoiduranteoreinadodeConstantino
queapazretornouàsIgrejas,nãohánessaafirmaçãonenhumelogio
diretoaoimperadornemaseureinado:ofalecimentodeDioclecianoé
queteriaproduzidoessasituação20.
Aolongodessecapítulo36,nãoháumasóreferênciaàconversãode
Constantino,nemqualquerdigressãosobreamaneiracomoesseatoteria
sidofavorávelaocatolicismo.Um“lapso”queéaindamaissurpreendente
selembrarmosqueGregóriocitaEusébiodeCesaréia(c.265-c.340),autor
quesublinhavaaimportânciadeConstantinoparaotriunfodoImpério
Cristão21.OparalelismoentreobatismodeClóviseobatismodeConstantinonãosignificaqueomodeloconstantinianocorrespondesseaomodelo
19
HistóriasI,36.SobreConstantino,verN.H.Baynes,ConstantinetheGreatandtheChristianChurch;A.Alföldi,TheConversionofConstantineandPaganRome;W.Seston,“Constantinasa‘Bishop’”,pp.127-131;T.D.Barnes,ConstantineandEusebius;K.Baus,E.Ewig,
DieReichskirchenachKonstantinderGrossen,I,DieKirchevonNikäabisChalkedon;P.
Brezzi,“L’idead’ImperonelIVsecolo”,pp.265-279;J.-M.Carrié,A.Rousselle,L’EmpireromainenmutationdesSévèresàConstantin,192-337,pp.27-79.
20
HistóriasI,36.
21
Histórias I, prólogo: “Quanto à cronologia desse mundo, as crônicas de Eusébio, bispo de
Cesaréia,edopadreJerônimoaexpõemclaramenteeapresentamumcálculodetodaasériede
anos”;vertambémHistóriasII,prólogo:“Damesmamaneira,Eusébio,Severo,Jerônimo,assim
queOrósio,inseriramemsuascrônicastantoosrelatosdasguerrasdosreisquantoosdosmilagres
demártires”.SobreosautoresbizantinosutilizadosporGregóriodeTours,veroartigodeA.
Cameron,“TheByzantineSourcesofGregoryofTours”,pp.421-426.
86 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
idealdereinavisãodobispodeTours.Nãosepodeesquecerqueessaobra
foiredigidadeumasóvez,porvoltade594,oquesignificaqueépouco
provávelqueGregóriotenhamudadorepentinamentedeopiniãosobre
Constantinoentrearedaçãodoprimeiroedosegundolivro.AcomparaçãoentreesseúltimoeClóvisé,portanto,repletadeambigüidades.
AcomparaçãofeitaporGregórioentreClóviseConstantino,contrariamenteaoqueafirmaM.Reydellet,nãoéfrutodeumameraalegoria
literária22.AapresentaçãodeClóvisnasHistóriascomoum“novoConstantino”acompanhaumadescriçãopelomenosambíguaqueobispode
ToursdádofundadordoRegnumFrancorum.NorelatodeGregóriode
Tours,Clóvisaparececomoumaespéciede“Janusbicéfalo”,reicatólico,
deumlado,devotodeSãoMartinhodeTours,edeoutro,osoberano
ambiciosoquenãohesitavaemassassinarosmembrosdasuafamília23.
Históriaspoucoedificantesacompanhamoelogiodopríncipecristão,o
unificadordaGália,o“pugnatoregregius”(“guerreiroeminente”)24.
ParaGregório,Clóviseraapenasuminstrumentodavontadedivina,
que fazia aquilo que agradava a Deus. Mas ele estava longe, da mesma
maneiraqueConstantino,deencarnarosoberanoidealaosolhosdobispodeTours.Gregóriodescreveasartimanhasempregadaspeloreidos
francosparaassassinarosmembrosdasuafamíliaeanexarosseusreinos.
AguerradeClóviscontraCloderico,filhodoreiSigebertodeColônia,
testemunhadamaneirapelaqualoprimeiroampliouoRegnumFrancorumàcustadeseusvizinhos.SegundoGregório,paraexcitaracupidez
deCloderico,Clóvislheteriaenviadoumamensagemafirmandoquese
seupaimorresse,oreinocaberiaaele,Cloderico,pordireito.Seguindo
osconselhosdeClóvis,Clodericoteriaentãoassassinadoseupaie,em
seguida,seapossadodeseustesourosedeseureino.Apósesteseventos,
22
M.Reydellet,Laroyautédanslalittératurelatine,p.408.
Pode-sedizeromesmodadescriçãofeitaporGregóriodoreinadodeConstantino:HistóriasI,36:“Duranteovigésimoanodeseureinado,oreferidoConstantinoaprisionouseufilho
CrispuseassassinousuaesposaFaustaemumbanhoquentepoistodososdoispretendiamtraí-lo,
aele,oimperador”.
24
HistóriasII,12.VerJ.-M.Wallace-Hadrill,TheLong-HairedKings,p.163.
23
MarceloCândidodaSilva87
ClodericoteriasidoassassinadoporordemdeClóvis,eesseteriaidoentão
reclamaroreinoeseustesouros.Dirigindo-seaopopulus,eleteriapedido
que esse se colocasse sob sua proteção.Ao ouvir suas palavras, aqueles
queláestavamteriamaplaudidocomseusescudosecomseusgritose
escolheramClóviscomoseureielevando-osobreumescudo25.Gregório
iniciaorelatodetodosessesacontecimentosporumafórmulalapidar:
“Assim,Deusprosternavaacadadiaseusinimigossobsuamãoeaumentavaseureinoporqueelemarchavacomumcoraçãoretoefaziaaquiloque
agradavaaosolhosdeDeus”26.
Nas Histórias, estamos longe do tom laudatório empregado por
EusébiodeCesaréianoDeLaudibusConstantini27.Issopoderefletiro
25
HistóriasII,40.Vertambém,HistóriasII,41,42.
HistóriasII,40.
27
Eusébio de Cesaréia via o Império como uma construção providencial encarregada de
transcender a pluralidade das cidades e dos reinos politeístas para abrir caminho ao cristianismo(J.R.Palanque,SaintAmbroiseetl’Empireromain.Contributionàl’histoiredes
rapportsdel’Egliseetdel’EtatàlafinduIVesiècle,p.8).ODeLaudibusConstantinireúne
doisdiscursosdobispodeCesaréia,oprimeiro,pronunciadoemConstantinoplaquandodas
celebraçõesdotrigésimoaniversáriodoreinadodeConstantino,eosegundo,pronunciado
nessemesmoanoemJerusalém,porocasiãodafundaçãodaigrejadosSantosApóstolos.Os
historiadoresvêemessaobracomootextofundadordopensamentopolíticobizantino(Ver
F.J.Foakes-Jackson,EusebiusPamphili,bishopofCaesareainPalestineandfirstChristian
historien.Astudyofthemanandhiswritings,p.54;etambémW.Seston,“Constantineas
a‘bishop’”,pp.127-131,icip.129).Constantinoaparecenessedocumentocomoo“amigodo
Deus todo-poderoso”,“um novo Moisés”, o representante de Deus sobre a terra, e seu impérioseriaaimagemdoreinoceleste(SobreasrelaçõesentreEusébioeConstantino,vera
obradeT.D.Barnes,ConstantineandEusebius;vertambém,H.Moss,“TheFormationof
theEastRomanEmpire”,pp.1-41).UmdoselementosessenciaisdadoutrinadeEusébiode
Cesaréia era a associação entre a monarquia romana e a“realeza do Cristo” (N.H. Baynes,
“EusebiusandtheChristianEmpire”,pp.13-18).SegundoEusébio,ogovernoterrestresomentepoderiaseracopiadaperfeiçãodivinaseeledesseaomundoosbenefíciosdapazedafé
emDeus.Ouniversalismocristãoeouniversalismoimperialpareciamencontrarassimpela
primeira vez um ponto de concordância na realização de uma missão civilizadora comum.
26
88 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
pessimismodosmeioseclesiásticosdofinaldoséculoVIemrelaçãoao
modelodemonarquiarepresentadoporesseimperadoreadotadopelos
reisfrancos,modeloessequeimplicava,comoseverámaisadiante,uma
submissãodoepiscopadoàrealeza.AassociaçãoentreClóviseConstantinodecididamentenãoeramonopóliodosescritoreseclesiásticos.
Váriasvezesaolongodeseureinado,opróprioClóvisquisapresentar
oseureinadocomoacontinuidadedogovernoimperialconstantiniano28. Não é exagero afirmar que, ao convocar o Concílio de Orléans,
aoestabelecerapautadessaassembléiaeaonomearbisposparaassés
episcopais,Clóvisagiucomoumprinceps,ochefedopodereclesiástico
naGália.OsantuárioqueClóvismandouconstruirparaserenterrado
eradedicadoaosSantosApóstolos,damesmamaneiraqueomausoleu
imperialedificadoemConstantinoplasobordemdeConstantino29.A
referênciaexplícitaaoimperadorfoiparaClóvis,nomomentodesua
morte,opontoculminantedeumapolíticaconstantiniananaqualestavamincluídosobatismo,acerimôniadeTourse,sobretudo,oConcílio
deOrléans.AassociaçãoentreClóviseConstantinotalveztenhasido
sugerida pelos próprios bispos no momento do batismo. Remígio e
AvitusviamnobatismodeClóvisumeventosemelhanteàquelequea
Para Eusébio não haveria coincidência no fato de que a vinda do Cristo coincidisse com o
adventodoImpérioentreosromanos.AoriginalidademaiordadoutrinadobispodeCesaréia
édeterrefletidosobrea“revolução”personificadapelocristianismonanovatemporalidade
queeleimpunhaaosregimespolíticosestabelecidosnomundo.Amonarquiauniversalteria
começadocomavindadoCristo,eoImpério,personificaçãodoReinodeDeussobreaterra,
duraria até o fim dos tempos, quando se converteria em Reino dos Céus (Tricennelia, In:
EusebiusWerke,ed.Heikel,t.I,XIX,4).AidéiadequeoImpérioeraoveículodareligião
cristã na qual tomava forma o plano providencial de Deus para a salvação da humanidade
tornou-seumlugar-comumliterárioquenãocessariadeserevocadoporváriasgeraçõesde
apologistasdopoderimperial.
28
Aesserespeito,verE.H.Fischer,“TheBeliefincontinuityoftheRomanEmpireamongthe
Franksofthefifthandsixthcentury”,pp.536-553.
29
HistóriasII,43:“Apósesseseventos,elemorreuemParisefoienterradonabasílicadosSantos
Apóstolosqueelehaviaconstruído,juntamentecomarainhaClotilde”.
MarceloCândidodaSilva89
tradiçãohaviaconsagradoarespeitodoprimeiroimperadorcristão.No
entanto,nofinaldoreinadodeClóvis,essaassociação,maisdoqueuma
invençãoliteráriadosbisposcatólicos,erauminstrumentodegoverno.
OConcíliodeOrléans(511)
AconversãodeClóvisàfécatólicaoficializouumaconcórdiaquejá
existiaentreoreieahierarquiacatólicadoNortedaGália,equepode
serobservada,porexemplo,atravésdaepístolaquefoienviadaaopríncipepelobispodeReimsporvoltade481.Obatismodevetertranqüilizadoaspopulaçõescatólicas,majoritáriasemtodooSuldaGália,que
temiam o arianismo dos visigodos e dos burgúndios30; é, certamente,
eleserviuparaconquistaraadesãodoclerocatólicodaAquitânia.Os
historiadores questionaram muitas vezes as razões que teriam levado
Clóvisaseconverteraocatolicismo.Épossívelqueocultodossantos
easrelíquiasotenhamsinceramentecomovido,oquenãoexcluique
eletenhautilizadoesseselementosemproveitodaafirmaçãodesuaautoridade.Sejacomofor,asimplicaçõesdaconversãoedobatismosão
maisúteisparanossoestudoetambémmaisfacilmenteidentificáveis
queseusmotivos.AoficializaçãodaaliançacomaIgrejapermitiuque
Clóvissebeneficiassedoapoiodeumepiscopadocatólicocujaforçana
Gáliaeraconsiderável.
Noquedizrespeitoàextensãodaautoridadereal,obatismodeClóvisoficializouumaviaquefoiseguidapelospríncipesmerovíngiosao
longo do séculoVI, a da ingerência da realeza nos assuntos internos
da Igreja. O clero católico da Gália esperava que o rei fosse capaz de
apoiá-lo,criandoascondiçõesnecessáriasparaotriunfodocatolicismo.
ÉoqueafirmaRemígionacartaqueescreveuaClovisparaconsolá-lo
30
SobreaEspanhavisigótica,verJ.Fontaine,IsidoredeSévilleetlacultureclassiquedans
l’EspagneWisigothique;J.Herrin,TheformationoftheChristendom,pp.220-249;P.Cazier,
IsidoredeSévilleetlanaissancedel’Espagnecatholique.
90 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
da morte de sua irmã: “O entorpecimento da amargura sacudido, consagrareisvossasvigíliasparaasalvação[detodos]commaisacuidade”31.
Avitus é ainda mais incisivo: segundo ele, a Divina Providência teria
encontradoemClóvisoárbitrodasuaépoca.Aescolhaqueelefezpara
siseriaválidaparatodos32.RemígioeAvitusviamemClóvisumigualao
imperador,poisesperavamqueelefosseocampeãodafécatólicadentro
eforadoReinodosFrancos.Essaassociaçãoeraumaestratégiapolítica
hábildapartedeumepiscopadodesejosodeassociar-seàrealezaede
obteroseuapoiomaterialparaaevangelização.Havia,noentanto,uma
defasagementreavisãodosbisposeaaçãodopoderpolítico:oexercíciodaautoridadepúblicanosparâmetrosconstantinianos,segundo
compreendiam Clovis e os seus sucessores, significava manter o episcopadosobatuteladaautoridadereal.Nenhumeventoilustramelhor
essadiscrepânciadoqueoconcílioconvocadoporClóvisemOrléans
noúltimoanodeseureinado.
Algunshistoriadores,comoJ.E.Bimbenet,vêemnoConcíliodeOrléansumatopolíticoatravésdoqualClóvisteriaconseguidoimpôrsua
vontade a um clero que estava persuadido que o rei era para a Gália
umunificadordoelementogermânicoedoelementoromano33.Outros
vêemnesseconcílio,aocontrário,autilizaçãodopoderrealpelaIgreja.
ÉocasodeG.Kurth,paraquemareuniãodeOrléansfoioresultadodas
pressõesexercidassobreClóvispeloepiscopadocatólico34.Nãomuito
distantedaopiniãodeG.Kurth,O.Pontalconsideraqueoconcílioera
umamaneiradeoreirecompensaroclerodaAquitâniapeloapoioà
suacausa35.ParaM.Rouche,oConcíliodeOrléanssignificouavitória
31
EpistolaeAustrasicae,1.
AlcimiEcdiciiAvitiViennensisEpiscopi,46(41).
33
J.E. Bimbenet, Lesconcilesd’Orléansconsidéréscommesourcesdudroitcoutumieret
principedelaconstitutiondel’Eglisegauloise.
34
G.Kurth,Clovis,pp.448-449.
35
O.Pontal,Lescanonsdesconcilesmérovingiens,p.50.
32
MarceloCândidodaSilva91
deumaconcepção“gelasiana”dasrelaçõesentreaIgrejaeaRealeza,em
oposiçãoaumavisãodetipoconstantiniana36.
Ora,háumdomínionoqualarealezafranca,pelomenosaolongodo
séculoVI,identificou-seomaisexplicitamentepossívelcomamonarquia
constantiniana:odasrelaçõesentreaautoridaderealeaIgreja.OpreâmbulodoscânonesconciliaresdeOrléansIébastanteilustrativonessesentido:
“Ao seu senhor, filho da Igreja católica, o gloriosíssimo rei Clóvis, todos
osbisposaquemordenastesviraoconcílio.Vistoquetamanhoéocuidado
dafégloriosaquevosincitaahonrarareligiãocatólica,que,porestimapela
opiniãodosbispos,prescrevestesqueessesbispossereunissemparatratardas
questõesnecessárias,éconformeàconsultaeaostítulosdesejadosporvós
quenóselaboramosasrespostasquenosparecerambomformular”37.
36
M.Rouche,Clovis,p.339:“OsbisposdasGáliaseramfiéisaRomaaoreconheceremasidéias
deGelásioeaovotaremseuscânones.Diantedoespiritual,oreisesubmetia.AIgreja,naunião
comoEstado,permaneciaindependenteesuperioranodomínioreligioso.OReinodosFrancos
nãoeraumacristandadeconstantiniana”.
37
OrléansI(511),Epistolaadregem.Detodooperíodomerovíngio,foramconservadasasatas
decercadeduasdezenasdeconcíliosqueultrapassaramoslimitesdasprovínciaseclesiásticas,
dedoisconcíliosprovinciaisedeumconcíliodiocesano.Osconcíliosmerovíngiossãotambém
conhecidosatravésdealgumascrônicasquemencionameventualmenteocontextonoqualeles
serealizaram,sem,noentanto,apresentarotextodoscânones.Asfontesnarrativasmencionam
igualmentecertosconcílioscujoscânonesnãoforamconservados.Éocaso,notadamente,dos
DezLivrosdeHistória,deGregóriodeTours,quefazalusãoaseisdessesconcílios:doisconcílios
convocadospeloreiGontrão,em579(HistóriasV,27)eem581(HistóriasVI,1),doisconcílios
convocadospeloreiChilperico,em577(HistóriasV,18)eem580(HistóriasV,49),eaoutros
doisconcíliosqueocorreramem589(HistóriasIX,37)e590(HistóriasX,19-20),soboreinado
deChildebertoII.Nãohánenhumtraçodoscânonesdiscutidoseaprovadosnessasassembléias.
Oscânonesdosconcíliosmerovíngiosforamobjetodeváriasedições.Háaediçãode1893de
F.MaassennosM.G.H.(ConciliaaeviMerovingici,ed.F.Maassen,MGH,Leges(in-4°),sect.III,
ConciliaI).Umaoutraedição,deC.LeClercq,tambémdemuitoboaqualidade,trazumíndice
detodasasfonteseumexcelentetextocrítico[ConciliaeGalliae(v.511-695),ed.C.DeClercq,CC
148A].[M.CândidodaSilvaeM.MazettoJunior,“ARealezanasfontesdoperíodomerovíngio
(séculosVI-VIII)”,pp.89-119].Sobreosconcíliosmerovíngios,verO.Pontal,Histoiredesconciles
92 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Essedocumento,umfragmentodaepístoladosbisposnãodeixanenhumadúvidadequeareuniãofoiconvocadaporiniciativareal:Clóvis
équemteriaordenadoqueelessereunissememumconcílio.Osbispos
reuniram-seem511,quatroanosapósaconquistaeaanexaçãodaAquitâniaaoRegnumFrancorum.Maisimportanteainda,esobreestepontoa
cartaéinequívoca,osbispossereuniramparadiscutirdiversasquestões
preliminarmente estabelecidas por Clóvis, como anteriormente faziam
osimperadoresromanos.Éoreifrancoquemestabeleceua“pauta”da
reunião, ainda que os bispos tenham o cuidado de acrescentar que ele
procedeuassimemfunçãodesuapreocupaçãocomafécatólicaepela
estimaqueeletinhapelaopiniãodosbispos.Éoprincípioconstantiniano
da concordância entre a ordem política e a ordem eclesiástica que está
presentenessetrecho.OConcíliodeOrléanséoeventoquemelhortraduzaprática“constantiniana”deClóvis.Eleindicapelaprimeiravezde
maneiraincontestável,aintegraçãoàsatribuiçõesdarealezamerovíngia
doprincípiodeingerêncianosassuntosepiscopais38.
Asdecisõesdoconcíliode511reforçaramaposiçãodorei,emespecial,edasautoridadescivis,emgeral,emfacedoclero.Oquartocânone
estabelecia, por exemplo, que nenhum laico poderia ser promovido à
função clerical sem a ordem do rei ou a autorização do conde da cidade39.Essamedidatinhaprovavelmenteoobjetivodeimpedirqueos
homensaptosaocombatefugissemdoserviçomilitar,tendoemconta
aisençãodasfunçõesmilitaresecivisdasquaissebeneficiavaoclero.A
autoridaderealpodiaassimdominaraentradadequadrosnumaIgreja
quedelescarecia.
mérovingiens;E.Ewig,“BeobachtungenzudenBischofslistenderMerowingischenKonzilien
undBischofsprivilegien”,pp.427-455;vertambémJ.Champagne,R.Szramkiewicz,“Recherchessurlesconcilesdestempsmérovingiens”,pp.5-49.
38
K.Baus,E.Ewig,DieReichskirchenachKonstantinderGrossen,t.1,p.108.
39
OrléansI(511),c.4:“Arespeitodasordenaçõesdosclérigos,julgamosqueénecessárioobservar
oquesegue:quenenhumdossecularessejapromovidoàfunçãoclerical,anãoserporordemdo
rei,oupelavontadedoconde(iudex)...”.
MarceloCândidodaSilva93
Nãohavia,portanto,comoafirmaM.Rouche,relações“gelasianas”,
entreoepiscopadoeopoderrealnoiníciodoséculoVI.NacartaenviadaaClóvis,osbisposapresentamclaramenteumadasrazões,talvez
mesmoaprincipal,desuaresignaçãodiantedaautoridadereal:
“Demaneira,seaquiloquenósdeterminamoséreconhecidojustoaovosso
julgamento,aaprovaçãodeumtãograndereiesenhorconfirmaráoquedeve
serobservadocomumamaiorautoridadeasentençadetantosbispos”40.
Osprópriosbisposreconhecemclaramentequeaeficáciadasmedidasadotadaspeloconcíliodependeriadoreconhecimentodasmesmas
pelaautoridadedopríncipe.DamesmaformaqueConstantinoapóso
ConcíliodeNicéia,Clóviseraofiadordaaplicaçãodasdecisõesconciliares.Haviaoutrarazãoparaaaceitaçãopelosbisposdasuperioridade
daautoridadereal:oreconhecimentocanônicododireitodeingerência
realtinhacomocontrapartidaaaceitaçãoporClóvisdopapeldirigente
dos bispos no interior do clero. O décimo-quarto cânone previa, por
exemplo,queobispodeviatomarpossessãodametadedasoferendas,
bemcomodatotalidadedasterrasoferecidaspelosfiéis41.Eraproibido
aosabades,aospadreseatodososclérigosdedirigirem-seàsautorida40
Orleans I (511), Epistola ad regem. M. Rouche traduz da seguinte maneira esse trecho:
“Delasorte,sicequenousavonsdécidéestaussiapprouvéparvotrejugementcommedroit,le
consentementd’unsigrandroi,euégardàsonautoritéplusgrande,consolideralasentencedesi
grandsévêques”.Aautoridademencionadanessacarta,segundoM.Rouche,seriaaautoridade
dosbispos.Aoinsistiremsobresuaauctoritas,afirmaele,osbisposreunidosemOrléansse
posicionaramdiantedasconcepçõesgelasianaeconstantiniana.Elesteriamoptadopelogelasianismoaoafirmaremquesuaautoridadeerasuperior,eClóvisteriaaceitadoesseprincípio
(Clovis,p.451).Nãohárazãoparasepensarqueaauctoritasmencionadasejaefetivamentea
dosbispos.Faltaumpossessivodotipoeorumparaqueessaalternativasejaplausível.
41
OrléansI(511),c.14;vertambém,OrléansI(511),c.15;esseúltimocânoneestabeleceque
osbensquecadafieltrazparaasparóquias,comoterras,vinhas,escravosegado,deveriam
permanecersobaguardadobispo,assimcomooterçodasoferendasdepositadassobreoaltar;
odécimo-nonocânonedomesmoconcíliocolocavaosabadessobaautoridadedosbispos,
instandoosprimeirosacomparecerumavezporanodiantedessesúltimos.
94 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
descivisparapedirbenefíciossemqueosbisposfossemconsultados.
Todoaquelequetransgredisseessaregradeviaserprivadodadignidade
eexcomungadoatéqueobisporecebesse,pelapenitência,umaplena
satisfaçãodesuaparte42.Reforçadoemsuaposiçãode“líder”doclero
secularedocleroregular,oepiscopadoafirmou-secomooúnicointerlocutordaRealeza,aindaqueemposiçãosubalterna.
A aplicação dos dispositivos que previam a preeminência real em
matéria de ordenação episcopal não se fez sem oposição. A carta de
RemígioaosbisposHeraclius,LeãoeTeodósio,escritaem512,indica
quepelomenosumapartedoclerodaGáliaconsideravatalingerência
intolerável.EssestrêsbisposacusavamRemígiodeordenaraoclericato
umindivíduodesonesto,chamadoCláudio:
“FizdeCláudioumpadredemaneiraalgumaseduzidoporumarecompensa,massegundootestemunhodoexcelentíssimorei,oqualeranãosomentepregadordafécatólica,mastambémseudefensor”43.
A resposta de Remígio aos três bispos que o acusavam de não ter
agidoemconformidadecomoscânonesésurpreendente.Aoinvésde
invocar o quarto cânone do Concílio de Orléans, que daria respaldo
legalàdecisãoporeletomada,RemígiosecontentaemafirmarqueordenouCláudiodeacordocomotestemunhodoexcelentíssimorei.E
acrescenta,taxativo,maisadianteemsuaepístola:“…oresponsáveldas
regiões,oguardiãodapátria,aquelequetriunfousobreospovospagãos
o ordenou”44. O bispo de Reims não menciona nenhum cânone para
sustentar sua posição.A evocação da vontade real parecia-lhe ser um
argumentomaisdecisivoquequalquerrecursoàtradiçãoconciliar.Esse
posicionamentoquefaziadoreiochefedoepiscopadonãoeraarcaico
42
OrléansI(511),c.7.
EpistolaeAustrasicae,3.
44
Ibid.
43
MarceloCândidodaSilva95
em 512, como pensa M. Rouche45. Ele poderia ser arcaico em Roma,
onde alguns anos antes, o papa Gelásio I (492-496) havia sustentado
a separação e a colaboração entre o poder imperial e o poder papal,
mascertamentenãooeranaGália,ondeoreieratambémochefeda
hierarquiaadministrativadaqualfaziamparteosbispos.
Sob o reinado de Clóvis, não havia equilíbrio entre o episcopado e
a realeza, mas um claro predomínio dessa última. Clóvis não foi uma
espéciede“executortestamentário”dasideiasdopapaGelásionaGália.
Esseúltimoafirmoucomveemênciaumadistinçãoentreopodercivile
opoderreligioso,eissoconstituíaaantítesedocomportamentodeClóvisdiantedoepiscopado46.Evidentemente,seriaumexageroimaginá-lo
últimocomoum“brilhanteteórico”.Contudo,nãosepodequalificarde
dualistaumapolíticaqueconsistiaemcolocaroepiscopadosobatutela
darealeza,comosepodeobservarnoscânonesdoConcíliodeOrléansI.
45
M.Rouche,Clovis,p.460.
OtextofundamentalnoqualopapaGelásioIdesenvolveusuadoutrinasobreasrelações
entreIgrejaeEstadoéacartaqueeleenviouaoimperadorAnastácio,em494.Opreâmbulo
dessacartaébastanteconhecido:“Hádoispoderes,augustoimperador,apartirdosquaisesse
mundoésoberanamentegovernado:aautoridadesagradadospontíficeseopoderreal”.Emsua
carta,Gelásiodistingueaauctoritaspontifíciaeapotestasreal,indicandonãosomentequehá
doisdomíniosseparadosquepertencemàIgrejaeaoImpério,mastambémqueexisteuma
hierarquiaentreeles.Àprimeiravista,évisívelsuabuscadeequilíbrio:nosassuntostemporais,ossoberanossãosuperioresaosclérigos,enquantonosassuntosreligiosos,osclérigossão
superioresaossoberanos.ParaGelásio,astarefasdosclérigossãomaispesadasdoqueasdos
soberanos,poisosprimeirosdevemprestarcontasaDeusdosprópriosreis:“Masopoderdos
clérigos é maior, pois eles deverão, no Julgamento Final, prestar contas ao Senhor dos próprios
reis”.Osclérigossãosuperioresaosreis,poiselesdispõemdaautoridadehegemônicaemum
domínio que seria superior ao domínio reservado aos soberanos temporais. Estamos longe
deumasimplesisonomiadasrelaçõesentreIgrejaeEstado(K.F.Morrison,Traditionand
AuthorityintheWesternChurch,300-1140,pp.101-105).Éumadualidadequesepodequalificarde“hierárquicaecomplementar”,segundoexpressãodeL.Dumont(Oindividualismo:
umaperspectivaantropológicadaideologiamoderna,pp.51-55).Issoevitaoexcessoque
consistiriaemqualificaravisãodeGelásiode“teocrática”,comoofazW.Ullmann(GelasiusI.
492-496.DasPapsttumanderWendederSpätantikezumMittelalter).
46
96 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Esseconcílionãoapenasoficializouumapráticajáexistente,masconsagrouaautoridadedoreisobreoepiscopado.Osreismerovíngiosinterferiramnosassuntoseclesiásticoscomumaintensidadequesóencontra
precedentesnoImpérioCristão47.Asensibilidade“constantiniana”quese
observanoConcíliodeOrléansécaracterizada,antesdemaisnada,pelo
fatodequeaassembléiafoiconvocadapeloprópriorei;elatambémestá
presentenodesejorealemcontrolarasnomeaçõesdosbisposbemcomo
osbenefíciosmateriaisfeitosàsigrejas.SeemOrléans,em511,oritualda
eleiçãonãofoieliminadoemproveitodaescolhadiretapelorei,naprática,aquelequenãopossuíaoapoiorealparaascenderaocargodechefia
emumadioceseouemumaabadiatinhamuitopoucaschancesdiante
deumcandidatoquedispunhadeapoioreal48.Alémdomais,comofoi
mencionadoanteriormente,oquartocânoneestabeleciaexpressamente
47
Opapeldosimperadoresedosaltosfuncionáriosromanosnasordenaçõesepiscopaisdurante o Império Romano Tardio é objeto de polêmica entre os historiadores. J. Gaudemet
afirmaqueosimperadoresdoOcidenteagiamcomprudênciaquandodesuasintervenções–
pouconumerosassegundoele–naseleiçõesepiscopais[L’Eglisedansl’Empireromain(IVeVesiècles),pp.334ess.].D.Claudetemamesmaopinião:osimperadoresteriaminterferido
naseleiçõesepiscopaisapenasparapreencherassésepiscopaismaisimportantes(“DieBestellungderBischöfeimmerowingischenReiche”,pp.1-75).Poroutrolado,K.F.Wernersustentaqueasatribuiçõesdomagistermilitumseestendiam,pelomenosapós342,aosassuntos
eclesiásticos,etambémàseleiçõesepiscopais.Haveriaumaboarazãoparaisso:ofatodeque
osbispospertenciamàadministraçãopública,ouseja,elesestavampróximosdosaltosfuncionárioscomquemdividiamosprivilégioseastarefasnointeriordoImpérioRomanocristão.Osreisfrancos,sucessoresdosgeneraisromanos,nãoteriam,segundoWerner,inovado
nessedomínio,mantendoessamesmadivisãodetarefas(K.F.Werner,Lesorigines,pp.323324).Emseusestudos,noentanto,R.Kaiserdemonstrouqueosreismerovíngiosintervieram
demodomaisfreqüentequeosimperadoreseosaltosfuncionáriosromanosnosassuntos
eclesiásticos[R.Kaiser,“RoyautéetpouvoirépiscopalaunorddelaGaule(VIIe-IXesiècles)”,
pp.143-160,especialmente,p.145].SobreaseleiçõeseclesiásticasnaGália,vertambém,Les
électionsépiscopalesmérovingiennes,pp.18-29;P.Cloché,“Lesélectionsépiscopalessousles
Mérovingiens”,pp.227-237;etambémaobradeJ.Gaudemet,Lesélectionsdansl’EgliselatinedesoriginesauXVIesiècle,especialmentepp.49-62.
48
VerJ.Champagne,R.Szramkiewicz,“Recherchessurlesconcilesdestempsmérovingiens”,
pp.5-49.
MarceloCândidodaSilva97
quenenhumlaicopoderiaserpromovidoàfunçãoclericalsemaordem
doreiouaautorizaçãodocondedacidade49.
DuranteoséculoVI,oscânonesconciliaresnãocessaramdecombateranomeaçãodosbispospelorei,práticacontráriaàeleição“peloclero
epelopovo”,talcomoestabeleciamasregrascanônicas50.Ora,osbispos
eramfuncionáriosdarealeza,e,dopontodevistadopoderreal,eranaturalquesuaeleiçãofosseobjetodeaprovaçãodopríncipe.Asprerrogativas
públicas exercidas pelo episcopado na monarquia franca não eram um
fenômenorecente,nemumaconseqüênciadodesaparecimentodaautoridadepública51.ApolíticaeclesiásticadeClóvisapósseubatismotinhapor
objetivocontrolarestreitamenteessecorpodefuncionáriose,dessaforma,
afirmarsuaautoridadesobreaspopulaçõesgalo-romanas.Soboreinado
deClóvis,asatribuiçõesdoreiemmatériaeclesiásticaeramsemelhantes
àsdoimperadorcristão:eleconvocavaosconcílios,estabeleciaasquestões
49
OrléansI(511),c.4.
NósaencontramosnaProvençasobadominaçãovisigótica.NaVitaeCaesarii,SantoEoniusendereçaumpedidoaoclero,aopovoeàsautoridadesparaqueCesário,naépocaum
simplesabade,sejaeleitoseusucessorapóssuamorte(VitaeCaesariiI,13).
51
OstrabalhosdeM.HeinzelmannedeG.Scheibelreitermostraramqueoepiscopado,sobos
auspíciosdaautoridadeimperial,viu-seatribuir,jásoboreinadodeConstantino,umasériede
privilégioscomoaconcessãodeterraspúblicas.Essasterras,destinadasemgeralàsatividades
sociaisdaIgreja,guardavamumafunçãopública,comoaprópriaIgrejaaliás.Era,portanto,
naturalquemuitasvezesaconstruçãodasigrejasestivesseacargodaautoridadereal[G.Scheibelreiter, DerBischofinmerowingischerZeit; ver também, J. Durliat,“Attributions civiles
desévêquesmérovingiens:l’exempledeDidier,évêquedeCahors(630-655)”,pp.237-254.T.
Klauserfoiumdosprimeiroshistoriadoresaobservarqueosprivilégioshonoráriosdeque
gozavamosbispostinhamumaorigemsecular(DerUrsprungderbischöflichenInsignien
undEhrenrechte)].M.Heinzelmannmostroucomoasresponsabilidadesdosbisposaumentaramprogressivamenteatéabarcarnãosomenteostrabalhospúblicos(aquedutos,estradas,
muralhas),mastambémoapoioàpopulaçãocivil(M.Heinzelmann,“BischofundHerrschaft
vomspätantiken Gallienbis zudenkarolingischenHausmeiern.DieinstitutionellenGrundlagen”,pp.23-82).AIgrejatornou-seumdospilaressociaisepolíticosdoImpérioCristão
(K.F.Werner,“LaplaceduVIIesiècledansl’évolutionpolitiqueetinstitutionnelledelaGaule
franque”,pp.173-211,aquip.182).
50
98 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
aseremdiscutidasduranteaassembléiaconciliar,velavapelaaplicaçãode
suasdecisõesenomeavaosbispos.Suatarefafoifacilitadapelofatodea
IgrejadaGáliatersofridoconsideravelmentecomainstalaçãodosbárbaros
nasegundametadedoséculoV;váriassésepiscopaisestavamvagas,eas
diocesesdesorganizadas.Elereestruturouopodereclesiástico,conferiu-lhe
privilégiosecolocou-secomooúnicochefedaIgrejafranca.
AIgrejaobtevesoboreinadodeClóvisoestatutodereligiãooficialdo
reino,comooutrorasobConstantino,masestavaaindadistanteogovernoidealizadopelosbispos.Ocomprometimentodaautoridaderealno
auxílioàIgrejanatarefadaevangelizaçãofoibemmenosimportanteque
seuempenhonumapolíticadeingerêncianosassuntosinternosdopoder
eclesiástico.OsinteressesdarealezaaparecemclaramentenospoucostextosdisponíveisdoreinadodeClóvis,comoseverámaisadiante.Nãohá
nenhumapreocupaçãoemadaptarodiscursoeosatosreaisàsexortações
morais do episcopado. Os bispos eram tratados como funcionários da
realeza,enãocomoseusconselheirosouparceirosdomesmonível.
AcomparaçãocomoReinodosBurgúndiosofereceumpanorama
maisclarodanatureza“constantiniana”dapolíticaepiscopaldeClóvis.
Apesardesuaféariana,oreiGondebaldomantinhaboasrelaçõescomo
clerocatólico.ComonoReinodosFrancos,váriosaspectosdaadministraçãoromanaforampreservados:asinstituiçõesmunicipais,ospostos
dequestor,dechancelerede“majordomo”,olatimcomolínguaoficial
dosatosreais,aefígieimperialnasmoedaseasdatasconsularescomo
parâmetrodedatação52.Gondebaldo,quedispunhadotítulodemagister
52
Nodia29demarçode502emLyon,oreiburgúndioGondebaldopublicouumaleicopiada
emgrandepartedoCódigodeTeodósio.ConhecidacomoLexBurgundionumouLexGundobalda,elaestabeleciaaparidadedasmultasemcasodeassassinatoderomanoseburgúndios
demesmonívelsocial.Aleitambémautorizavaoscasamentosmistosedavaaosromanoso
direitodeportararmasedeserviroexército(M.Rouche, Clovis,p.290).VerGregóriode
Tours,HistóriasII,33.Sobreosburgúndios,verR.Guichard,Essaisurl’histoiredupeuple
burgonde,deBornholmverslaBourgogneetlesBourguignons;O.Perrin,LesBurgondes.
Leurhistoiredesoriginesàlafindupremierroyaume(534); I.Wood,“Ethnicity and the
ethnogenesis of the Burgundians”, pp.53-69; R. Krieger, Untersuchungen und Hypothesen
zurAnsiedlungderWestgoten,BurgunderundOstgoten.
MarceloCândidodaSilva99
militumGalliae,eraconsideradoumdelegadodoimperador.Seufilhoe
herdeiroSigismundorenunciouaoarianismoeadotouafécatólicaem
515.Aoassumirotrono,elesolicitoueobtevedoimperadorAnastácio
arenovaçãoemseufavordopostodemagistermilitumGalliae.
Umconcílioreuniu-senaBurgúndiaem517,maisprecisamentena
cidade de Epaone. Seus cânones mostram preocupações idênticas às
doConcíliodeOrléans,comoareformadoscostumes,adisciplinado
clero,asrelaçõescomoslaicosetc.Todavia,assimilitudesseencerram
aí.ContrariamenteàassembléiadeOrléans,areuniãodeEpaoneteve
umalcancemeramenteprovincialereuniuosbisposdaprovínciade
LyonedaprovínciadeViena.Adiferençamaisimportanteentreeles
está no papel da autoridade real. Em cartas que foram transmitidas
juntamentecomoscânones,nemAvitus,bispodeViena,nemViventiolus, bispo de Lyon, mencionam qualquer convite ou convocação
real:obispoAvituséquemteriaconvidadoosbisposdesuaprovíncia
aviremaoconcílio,eViventiolusteriaseassociadoàsuainiciativa.Os
bisposnãoforamobrigadosaresponder,comoemOrléans,àsquestões
apresentadaspelorei.Alémdomais,notrechoemqueseexplicitao
procedimentoseguidoduranteaassembléiaconciliar,nãohánenhuma
mençãoàautoridadereal:
“Porconseguinte,essasdecisõestendosidotomadasemcomumacordo
sob inspiração divina, se um dos santos bispos que confirmaram por sua
assinaturapessoalnospresentesestatutos–eissovaleparaaquelesqueDeus
quiserlhesdarcomosucessores–negligenciarsuaobservânciaintegral,que
elesaibaqueseráconsideradoculpadonojulgamentodeDeusedeseusirmãos”(grifonosso)53.
O texto acima salienta o comum acordo entre os bispos que teria
presididoatomadadedecisões,enadadizsobreaparticipaçãodorei
nosdebatesounatomadadedecisões.Todososparticipantes,damesma
53
Epaone(517),c.40.
100 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
formaqueseussucessores,foramconvocadosaseguirrespeitosamente
asdisposiçõesconciliaires,sobpenadejulgamentodivinoetambémde
umjulgamentoquepartiriadopróprioespiscopado.Nãoháreferência
algumaaumapuniçãoporpartedaRealeza.Oreinãofoichamadoareferendarouaaplicarasdecisõesconciliares.Essaéaprincipaldiferença
entreapolíticaepiscopalinauguradaporClóviseaqueerapraticadano
ReinodosBurgúndios:enquantoaprimeiraerafundadasobreopredomíniodopoderreal,asegunda,aindaquesecaracterizasseporumface
afaceentreumarealezaarianaeumepiscopadocatólico,resultavaem
maiorautonomiadosbispos.Essaautonomiairáatéaexcomunhãodo
reipelosbisposconciliares.Oreiseriaresponsável,segundoosbispos,
de ter protegido um funcionário real sobre quem pesavam acusações
deincesto.Essefuncionário,chamadoEstêvão,tinhasecasadoapósa
mortedesuaesposacomairmãdessaúltima,contrariandooqueera
definidopelovigésimocânonedoConcíliodeÉpaone.EmconcílioreunidoemLyonporvoltade518-523,osbisposburgúndiosconfirmaram
seujulgamentoanterior,condenandooacusado,bemcomoamulher
comaqualeleestava“ilegalmente”unido.Maisimportanteainda,os
bispos conciliares proclamaram publicamente sua solidariedade com
aquelesdentreelesqueviessemasofrerpunições,tormentosouhumilhaçõesdapartedopoderreal54.Essetomeraaltamenteimprovávelno
ReinodosFrancos,ondea“realezaconstantiniana”haviatriunfadono
ConcíliodeOrléansI.
Neste estágio do trabalho, há elementos suficientes para uma definição da realeza constantiniana. Trata-se de uma forma de governo
naqualopríncipe,estandoàfrentedoreino,buscaapareceraosolhos
daquelesqueelegovernacomoosucessorlegítimodaautoridadeimperial.Essa“imitação”,alémdenãoconstituiraespecificidadedessaforma
54
Lyon(518-523),c.1:“Adicionamososeguinteainda:sealgumdentrenósforobrigadoasofrer
qualquertribulação,tormentoouvexaçãoporpartedopoder,todossecompadecerãodeummesmocoraçãocomele,equaisquerquesejamasperturbaçõesouprejuízosqueelesofrerporcausa
disso,queaconsolaçãofraternareleveasansiedadesdessastribulações”.
MarceloCândidodaSilva101
deexercíciodopoderreal–poisaencontramosemoutroslugares,tais
comooReinodosBurgúndios–nãoserestringeaodomíniodossímbolosedostítuloshierárquicos:elatemimplicaçõesdecisivasnoplano
dasrelaçõesdepoder.Oquecaracterizaarealezaconstantiniana,éque
nelaopríncipetentaafirmarseupodersobreoepiscopado,talcomo
faziamosimperadorescristãos.Éele,comoumprinceps,quemconvocaosconcílios,equemditaasquestõesqueserãodiscutidas.Arealeza
constantinianacompreendeassimumpadrãonasrelaçõesentreaautoridaderealeopodereclesiásticoemqueaprimeiraexerceumcontrole
estritodoepiscopado,deseurecrutamento,desuasassembléiasedas
medidasquenelassãoaprovadas.
ArealezaconstantinianaapósClóvis
As reputações de Clotário, Childeberto, Teuderico (511-533) e
Clodomiro(511-524)sofreram,muitomaisqueadeClóvis,nasobras
dos historiadores franceses publicadas desde o século XIX. Este é ao
menos reconhecido pelos historiadores como o fundador do Regnum
Francorum. Seus herdeiros diretos não se beneficiaram, de um ponto
devistahistoriográfico,domesmoprestígio.Váriasanedotasrelatadas
porGregóriodeToursreforçaramaimagemdereisbrutais,impulsivos e sanguinários: por exemplo, a tentativa de Teuderico de assassinarClotárioquandoamboslutavamladoaladonaTuríngia;umavez
descobertoseuplano,Teudericoteriaprocuradomanterasaparências,
oferecendoaseuirmãopresentes,porémmaistardeteriaenviadoseu
filhorecuperá-los55.OpróprioTeuderico,apósterdadosuapalavrade
queoreidosturíngiosteriasuavidasalvaseserendesse,oteriamatado
comsuasprópriasmãos,segundoobispodeTours56.G.Tessiernota,
entretanto,queomeio-séculoqueseparaamortedeClóvisdamorte
55
HistóriasIII,7.
HistóriasIII,8.
56
102 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
deClotárioIfoimarcadopelaconsolidaçãodasconquistasdeClóvis
epelaexpansãodoRegnumFrancorum57.Eistalvezomaiorparadoxo
dahistóriamerovíngiaduranteaprimeirametadedoséculoVI:esses
reinados, execrados pela historiografia, coincidiram com um período
noqualaGáliafoipraticamenteunificadasobodomíniofranco.
Aexpansãomilitarconstituiuaespinhadorsaldapolíticaexternado
RegnumFrancorumdofinaldoséculoVatéaprimeirametadedoséculo
VI.Osreismerovíngiostiveramdefazerfrente,nosanosqueseguiramà
mortedeClóvis,aumverdadeiro“cordãosanitário”instaladoaoredor
deseusregna:osostrogodosmantiveramsuapresençanaProvença,os
visigodosconseguiramrestabelecersuaautoridadenosuldaAquitânia,
enquantoosburgúndiosrepresentavamumaameaçaconsiderável58.Em
537,ossucessoresdeClóvisvenceramosburgúndioseafirmaramahegemoniafrancasobreamaiorpartedaGália,àexceçãodaantigaprovínciaromanadaSeptimânia(sobcontroledosgodos)edaBretanha(que
haviaconservadosuaautonomia).Poroutrolado,oRegnumFrancorum
conseguiuobteracessoaoMediterrâneo.Osostrogodos,debilitadosapós
amortedeTeodoricoeconfrontadosquandodainvasãodapenínsula
Italianapelosexércitosimperiais,abandonaramaProvençaaosfrancos.
DuranteoséculoVI,oRegnumFrancorumtornou-seumdosreinos
maispoderososdoOcidente.NaEspanhavisigótica,osconflitossucessóriosnãopermitiamquearealezaexercesseinfluênciaparaalémdesuas
fronteiras.Eissoapesardeumindiscutívelesplendorintelectualdoqual
IsidorodeSevilhaéumadastestemunhasmaisnotáveis59.NaItália,odesaparecimentodoReinodosOstrogodos,soboimpactodaReconquista
deJustiniano,privouapenínsuladeumpólodeestabilidadepolítica60.
Na Grã-Bretanha, a vitória dos anglos e dos saxões sobre os bretões
57
G.Tessier,LebaptêmedeClovis,p.176.
H.Wolfram,TheHistoryoftheGoths,pp.244-245,pp.309-311;sobreadominaçãodos
ostrogodosnaProvença,vertambém,V.A.Sirago,“GliostrogotiinGallia,secondoleVariae
diCassiodoro”,pp.63-77.
59
VerJ.Fontaine,IsidoredeSévilleetlacultureclassiquedansl’EspagneWisigothique.
60
J.W.Barker,JustinianandtheLaterRomanEmpire.
58
MarceloCândidodaSilva103
nãoconduziuaumprocessodeunificaçãopolítica.SomenteoRegnum
Francorumfoicapazdereunirascondiçõesnecessáriasaoexercícioda
hegemonianoOcidente.Osburgúndios,turíngios,bávaroseoutrospovosquehabitavamasfronteirasorientaisdaGáliaforampacificadosou
submetidosaolongodoséculoVI:elesforneceramaosreisfrancosos
homenseostributoscomosquaisfoipossívelimplementarumapolítica
externaambiciosa,cujo“carro-chefe”eraaintervençãomilitarnaItália.
Entretanto,aforçanãoeraofundamentoprincipaldaautoridade
públicadosprimeirosmerovíngios61.Ascampanhasempreendidaspelos
reisfrancoseramparteintegrantedeumprojetopolíticocujoobjetivo
erafazerdoRegnumFrancorumaforçahegemônicanaparsOccidentis,o
herdeirodoImpérioCristão.OpreenchimentodetodososespaçosdeixadospeloImpérioRomanodoOcidenteexplicaemgrandeparteessa
política expansionista. Clotário, Childeberto, Teuderico, Teudeberto,
TeudebaldoedepoisChilpericoprosseguiramapolíticaconstantiniana
deClóviseseapropriaram,aindaqueemgrausdiferentes,dossímbolos
e das práticas políticas imperiais, mas também tentaram apropriar-se
doberçodaautoridaderomana,aItália.
Oexemplomaismarcantedapolíticadeimitatioimperiiéacunhagemdemoedas.SoboreinadodeClóvisedeseussucessores,asmoedas
quecirculavamnoReinodosFrancoserammodelosimperiais,emparte
cunhadasemateliêsfuncionandonaGáliadesdeaépocaimperial62.O
trabalhodessesateliêsconsistiafundamentalmenteemcopiarasmoedas
61
R.Collinsvênasguerrasdeconquistaofundamentodaautoridaderealdosmerovíngiosno
séculoVI(“TheodebertIRexMagnusFrancorum”,pp.7-33).EssaétambémaopiniãodeS.
Lebecq,Lesoriginesfranques,p.67.
62
EmumestudoconsagradoànumismáticadoLanguedoc,C.Robertmostrouqueosnomes
dosmoedeirosquefiguravamnasprimeirasmoedasmerovíngiaseramromanos(Trésorde
Chinon,In:AnnuairedelaSociétéfrançaisedenumismatique,t.VI,p.164,ApudM.Prou,
Lesmonnaiesmérovingiennes,xvi);sobreasmoedasmerovíngias,vertambémA.deBelfort,
Description générale des monnaies mérovingiennes par ordre alphabétique des ateliers;
P.LeGentilhomme,“Lemonnayageetlacirculationmonétairedanslesroyaumesbarbares
de l’Occident (VIe-VIIIe)”, pp. 45-112; C. Brenot,“Du monnayage impérial au monnayage
mérovingien:l’exempled’ArlesetdeMarseille”,pp.147-160;J.Kent,“Goldstandardsofthe
104 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
imperiais:ossoldosdeouroetambémosterçosdesoldos,chamados
tremisses ou trientes.A respeito da política monetária merovíngia, M.
Bouvier-Ajamafirmaque,aoadotaremasmoedasimperiaisromanas,
os merovíngios renunciavam a toda inovação revolucionária63. Para
M.Prou,osreismerovíngios,aoprosseguiremacunhagemdemoedas
imperiais,nãopretendiammanifestarqualquersubmissãoaoImpério.
Eles teriam simplesmente agido conforme considerações puramente
econômicasenointeressedeseufisco,poisumamoedadeouroprópria
aosreisbárbaros,inventadaporeles,nãoteriatidonenhumcrédito64.
Defato,eramaisrazoávelparaosmerovíngiosutilizaremseureinoas
moedasimperiais,quecirculavamaliásemtodaabaciadoMediterrâneo,tantonosterritóriosquejátinhampertencidoquantonaquelesque
aindapertenciamàesferadeinfluênciadoImpério.Nessesentido,esses
príncipesnãoforamrevolucionários.
Contudo,amoedanãopossuiapenasumvalordetroca.Elaconstitui
tambémumamanifestaçãovisíveldaautoridadepública,umamaneira
pelaqualogovernanteexpõepublicamentesenãosuasprerrogativas,
pelomenosamaneiracomoelequerserpercebidoporseussúditos.
ConservaramoedacorrentetalcomoemConstantinopla,paraalém
deumadecisãopuramenteeconômica(epode-sequestionaraocorrênciadedecisõeseconômicasstrictosensunesseperíodo)marcavaa
proximidadedosreisfrancoscomaautoridadeimperialemcujonome
eles deviam governar. O melhor indício de que as moedas não eram
concebidas na época merovíngia como um simples instrumento de
políticaeconômicaestánofatodequeomodelomonetárioromano
Merovingiancoinage,A.D.580-700”).SobreacunhagemdemoedasnofinaldoBaixoImpério,
verJ.Kent,TheRomanImperialCoinage.TheDividedEmpireandtheFalloftheWestern
Parts 395-491, vol. 10; G. Lacam, La fin de l’empire romain et le monnayage or en Italie,
455-493.
63
M.Bouvier-Ajam,Elémentsd’économiemonétaireauxtempsgaulois,gallo-romainset
mérovingiens,p.36.
64
M.Prou,Lesmonnaiesmérovingiennes,xix-xv;domesmoautor,LaGaulemérovingienne,p.72.
MarceloCândidodaSilva105
nemsemprefoiconservado.Oramo“austrasiano”dossucessoresimediatosdeClóvis,osmaisengajadosnapolíticaexpansionistadoRegnumFrancorum,foramosprimeirosarealizarumesboçodeinovação
monetária. Ora, se se tratasse de uma decisão meramente“contábil”,
eles teriam mantido as moedas romanas, mais amplamente aceitas,
notadamentenoqueserefereaocomérciointernacionalnabaciado
Mediterrâneo. Teuderico fez com que suas moedas fossem marcadas
comsuasiniciais,masseufilhoTeudebertofoimaislongeainda.Ele
cunhoumoedasquecontinhamseunome,seutítuloreal,ainscrição
deorigemromanaPAXETLIBERTAS65–queseencontranumamoeda
descobertanaBélgica–etambémVICTAVGG,presenteemumsolidus
conservadoemváriosexemplares.Apropósitodessesólido,elecomportatambémumarepresentaçãodaVitória.Maissignificativoainda,
sobreaoutraface,háumaimagemdeTeudeberto,cópiadaimagem
monetária de Anastásio, cercado da legenda DN THEODEBERTVS
VICTOR66. Essas moedas de Teudeberto eram obviamente imitações
dasmoedasimperiais,eforamcunhadasmuitoprovavelmenteemcomemoraçãodossucessosmilitaresfrancosnaItáliaentre538e54067.
O historiador grego Procópio testemunha o escândalo provocado na
corteimperialporessasimitações68.
65
M.Prou,Lesmonnaiesmérovingiennes,xxxi-xxxv.
P.LeGentilhomme,“Lemonnayageetlacirculationmonétairedanslesroyaumesbarbares
del’Occident(VIe-VIIIe)”,RevueNumismatique,ser.5,7(1943),pp.45-112;M.McCormick,
EternalVictory:TriumphalRulershipinLateAntiquity,ByzantiumandtheEarlyMedieval
West,pp.338-339;M.Prou,Lesmonnaiesmérovingiennes,x-xv.
67
M.Prou,Lesmonnaiesmérovingiennes,xxxii.
68
Procópio,BellumGothicum,III,33:“Sãoeles[osfrancos]hojeque,noanfiteatrodeArles,dão
oespetáculodaslutashípicas;fazemmoedacomoourodasminasdaGália,eessasmoedasnão
são,segundoocostume,cunhadasàimagemdoimperadordosromanos;elescolocamsuaprópria
imagem. O rei dos persas faz moeda de prata, e o costume lhe permite de fazê-lo segundo sua
vontade;masnemochefedessepovonemqualqueroutroreientreosbárbarospossuiodireitode
marcarcomsuaimagemamoedadeouro,ometallhepertencendoemtodapropriedade;porque,
emsuasrelaçõescomerciais,aindaquesejamelasdebárbarosabárbaros,elesnãopodemcolocar
essamoedaemcirculação.Eiscomoascoisassepassavamparaosfrancos”.
66
106 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
OssolidideTeudebertotinhaminclusiveomesmopesoqueosde
Constantinopla,masocaráterexcepcionaldesuasemissõeseofatode
queencontramosumaquantidadecrescentedetremissesnostesouros
doséculoVI,sugeremquesuacunhagemresultavamaisdoprestígioe
da“propagandareal”quedenecessidadescomerciais69.Alémdomais,
a iniciativa monetária de Teudeberto I permaneceu isolada e não se
converteuemumapráticarecorrente.EntretodososreisfrancosdaprimeirametadedoséculoVI,ChildebertoIéoúnicodoqualdispomos
deumtriensdeouro70.AtéoprincípiodoséculoVII,osfrancoscontinuaramacunharnaGáliamoedascomonomedosimperadores,tanto
oscontemporâneos,comoemMarselha,ondeumateliêmonetáriono
iníciodessemesmoséculoemitiusoldosemnomedeHéracliusI(610641), quanto em nome de imperadores cujas moedas tinham sido as
maisdifundidas,comoAnastásio,JustinoeJustiniano71.Essasmoedas
“pseudo-imperiais”persistirampormaisoumenostempo,conformeas
regiões.NaProvença,quepermaneceuemcontatoestreitocomoImpério,elascontinuaramasercunhadas,enquantonorestantedaGáliajá
haviamdesaparecidohámuitotempo72.
Não há nada de surpreendente no fato de que a substituição do
nomedoimperadorpelonomedoreinasmoedastenhasedifundido
durante o reinado de Teudeberto I. Esse personagem, que Marius de
AvencheschamouderexmagnusFrancorum,buscouincessantemente
associarossímbolosimperiaisaoseureinado73.Eleestavacercadopor
conselheirosoriundosdaelitegalo-romana,comoSecundius,AsterioluseespecialmenteParthenius.Esseúltimo,netodoimperadorAvitus
69
P.LeGentilhomme,“Lemonnayageetlacirculationmonétairedanslesroyaumesbarbares
del’Occident”,pp.100-101.
70
M.Prou,Lesmonnaiesmérovingiennes,xxxv.
71
Ibid.,xiv.
72
VerP.Grierson,M.Blackburn,MedievalEuropeanCoinage.WithaCatalogueoftheCoins
intheFitzwilliamMuseum,1,TheEarlyMiddleAges(5th–10thcenturies).
73
MariusdeAvenches,Cronica,an.548.Ver,aesserespeito,oestudodeF.Beisel,TheudebertusmagnusrexFrancorum:PersönlichkeitundZeit.
MarceloCândidodaSilva107
edobispoRuriciusdeLimoges,erapróximodobispoCesáriodeArles.
AntesdaconquistafrancadaProvença,Partheniustinhasidoenviadoà
cortedeRavenacomodelegadodaassembléiaprovincialecomodefensorcivitatisdeMarselha.NomeadopatrícioemArlese,em544,magister
officiorumatquepatriciusparaaGália,eleprovavelmenteexerceuuma
influênciaconsiderávelnogovernodeTeudeberto,epodetersidoum
dos inspiradores da política“imperial” desse rei74. Parthenius morreu
assassinadoemTrier,algumtempodepoisdamortedeTeudeberto.Ele
foivítima,deacordocomGregóriodeTours,darevoltadapopulação
queoconsideravaresponsávelpelograndevolumedetributosdaépoca
deTeudeberto75.
Opesadoregimedeimpostosserviamuitoprovavelmenteparacustear
ascampanhasnaItália.DuranteaReconquistadeJustiniano,Teudeberto
chegouaumacordocomosostrogodoseatacouaspossessõesimperiais
naItália.Apolíticaimperial,apartirdoadventodeJustiniano,consistia
emrestauraroImpérioemsuaintegridadeterritorialpelaanexaçãodo
nortedaÁfrica,daPenínsulaIbéricaedaPenínsulaItaliana.Apósasprimeirasvitóriassobreosvândalos,queocupavamonortedocontinente
africano,osexércitosimperiaisseconfrontaramcomaresistênciadosostrogodosnaItália.E,noentanto,omomentopareciaserfavorávelauma
campanhacontraoReinodosOstrogodos,poisamortedeTeuderico,em
526,otinhamergulhadonainstabilidade.Asolidezdasdefesasostrogóticas,bemcomoasdivisõesnocomandodoexércitoimperial,reduziram
consideravelmenteasvantagensdeJustiniano.Nenhumdosbeligerantes
conseguiuinfligiraooponenteumaderrotadecisiva,oquetornavafundamentaloapoiomilitardosfrancos76.ApolíticadeTeudebertonaItália
74
NãohánenhumestudoaprofundadosobreParthenius;existem,contudo,algumasinformaçõesnasobrasdeK.F.Stroheker(DersenatorischeAdelimspätantikenGallien,p.199),
deF.Beyerle(“DiebeidendeutschenStammesrechte”,pp.126-128),deP.Riché(Education
etculture,p.154),edeM.Heinzelmann(GallischeProsopographie,p.663;BischofsherrschaftinGallien,p.230).
75
HistóriasIII,36.
76
SobreaReconquistadeJustiniano,verP.Maraval,L’empereurJustinien.
108 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
oscilouentreoapoioaosgodoseaaliançacomosromanos.Em538,orei
francoenviouàItáliaumexércitodecercade10.000homensmobilizado
na Burgúndia.Após cruzar osAlpes, esse exército obrigou a guarnição
imperialdeMilãoaserenderaosgodosqueossitiavamháalgumtempo.
Teudebertotentouconvencerosromanosdequeesseexércitonãoestava
sobsuasordens.Poucodepois,àfrentedeoutroexércitofranco,TeudebertoinvadiuaItáliaeatacouaomesmotempoostrogadosebizantinos,
pilhandoedestruindoascidadesdonortedaItália77.Eleamparou-seda
Venécia,e,emepístolaenviadaaJustiniano,dizterseapoderadodaPanônia78.Époucoprovávelquetenhaconseguidotalproeza,mesmoporqueumaepidemia,quedizimouseuexército,bemcomoaoposiçãodos
lombardos,oimpediramdedominarovaledoPó79.SegundoAgathias,
suspeitava-se que Teudeberto preparava um ataque contra Constantinopla através doVale do Danúbio80. É pouco provável que Teudeberto
possuísseosmeiosmateriaisparaempreenderumataloperação;tomar
possedacapitalimperialnãoestavaaoalcancedeumpríncipefranco,
pormaispoderosoqueelefosse.Constantinoplapermaneciaforadeseu
alcance:haviaoobstáculodosBálcãsasertransposto.Entretanto,eéisso
que importa destacar, o fato de um cronista da época mencionar essa
possibilidadeéumindíciodaameaçaqueessereirepresentavaparaos
bizantinos.
ParagrandeescândalodaCorteimperialdeConstantinopla,segundo
Procópio,TeudebertotambémorganizoujogoshípicosemArles81.Era
necessáriomostraraosgalo-romanosqueoImpériotinhaencontrado
77
Procope.BellumGothicum,II,25.
Nessaepístola,Teudebertomencionaigualmente,entreosterritóriosqueafirmadominar,a
Turíngiaeopaísdossaxões(EpistolaeAustrasicae,20).
79
R.Collins,“ThéodebertIRexMagnusFrancorum”,pp.7-33.
80
Agathias,HistoriarumLibriQuinqueI,4,1-4.SobreAgathiaseaGáliamerovíngia,vero
artigodeA.Cameron,“AgathiasontheearlyMerovingians”,pp.95-140.
81
Procópio,BellumGothicum,III,33.Essainiciativanãosignificouumaretomadasistemática
doevergetismoromano.Aoorganizaressesespetáculos,TeudebertoI,comomaistardeChilpericoI,apenasmanifestavampublicamenteacontinuidadedaautoridadeimperial.
78
MarceloCândidodaSilva109
nopríncipefrancoseuherdeironaparsOccidentis.DetodososreisfrancosdoséculoVI,Teuderico,seufilhoTeudebertoeseunetoTeudebaldo,
cujosdomínioscorrespondiamàantigaFranciaRhinensiseaalgumas
possessõesnaAquitâniaenaBurgúndia,foramosmaiscomprometidos
comapolíticaexpansionistadoRegnumFrancorum.Porém,aautoridadedessespríncipesserestringiuàGália,poisastentativasdeconquista
daEspanhaedaItálianãoalcaçaramsucesso.Maselastiveramumcusto.
EmboraGregóriodeToursfaçaoelogiodoapoiodadoporTeudeberto
àsigrejasdeAuvérniadiantedosagentesdofisco,origordesuapolítica
fiscalestavaàalturadoscustosdesuascampanhasnaItália82.Amortede
Teudeberto,em547,pôsfimàspretensõesfrancassobreaItália,pelomenosatéquePepino,oBreve,atacasseoslombardos,nasegundametade
doséculoVIII.AassociaçãocomoImpériopermaneceriaainda,epor
longotempo,umcomponentedapolíticadosreisfrancos,aindaquealgunsanosmaistardeelanãofossemais–comoseveránasegundaparte
destetrabalho–oprincipalfundamentodesuaautoridadepública.
OsegundoeoterceirolivrosdascrônicasatribuídasaFredegário,
escritosnoséculoVII83,bemcomooLiberHistoriaeFrancorum84,de
82
Ver,porexemplo,orelatodamortedeParthenius,vítimadapopulaçãodeTrier,revoltada
comospesadostributosaosquaiselaestavasubmetida(HistóriasIII,36).
83
B. Krusch, para quem as Crônicas foram produzidas por dois autores e três redatores,
afirmaqueoprimeiroredatorfoiqueminseriualendatroiananaobra.W.WattenbacheW.
Levisonestimam,comoKrusch,quehádoisautores,masparaelesosegundoredatoréque
foioresponsávelpelainserçãodalenda(DeutschlandsGeschichtesquellenimMittelalter
I: dieVorzeit von den Anfängen bis zur Herrschaft der Karolinger, p. 110); W. Goffart
acredita que as Crônicas possuem um só autor, que foi o interpolador da lenda troiana
emsuasduasversões(“TheFredegarProblemreconsidered”,pp.206-241);R.A.Gerberding
atribuiuaoslivrosIeIIdasCrônicasadoisautoresdistintos,oprimeirotendoescritopor
volta de 613 e o segundo por volta de 660 (TheRiseofTheCarolingiansandtheLiber
HistoriaeFrancorum,pp.13-30).E.Ewigacredita,igualmente,naexistênciadedoisautores
(“Lemythetroyenetl’histoiredesFrancs”,pp.817-847).
84
O Liber Historiae Francorum é uma crônica do inicio do séculoVIII, escrita provavelmentenacidadedeSoissons.Elaéconstituídadeumresumodosseisprimeiroslivrosdas
Histórias,deGregoriodeTours,edeumacrônicadosacontecimentosentre584e727.No
110 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
720,relatamqueosfrancosdescendiamdeguerreirosquefugiramda
cidadedeTróiaapósasuadestruiçãopelosgregos85.Essemitolembra
a origem mítica dos romanos, segundo a qual esses últimos teriam
se originado de um grupo de troianos que fugiram de Tróia sob o
comandodeEnéiasequeteriamseinstaladonasmargensdoTibre.
Ascondiçõesnasquaisalendatroiano-francanasceuesedesenvolveu
sãobastanteobscuras.Éprovávelqueelatenhasurgidonomomento
dosprimeirostratadosentrefrancoseromanos,comoiniciativadadiplomaciaimperial,cujaintençãoeraconsolidaraaliançaentreosdois
povos86. Para os francos, essa associação tinha inúmeras vantagens.
Povojovem,etnicamenteheterogêneo,elesencontraramnalendaum
atributodeantigüidade,umaformadelegitimaçãohistórica.Parao
Império, a genealogia mostrou-se ser uma ponte dirigida a chefes e
quedizrespeitoaosacontecimentosposterioresa584,oautordoLiberutilizouIsidorodeSevilha,especialmenteasEtimologias,algunsrelatoscontemporâneoseprovavelmentetambém
recorreuàtradiçãooral.AindaqueaobradeGregóriosejaaprincipalfontedoLiber,existem
diferençasessenciaisentreosdoistrabalhos.EnquantoaprimeiratinhacomoobjetivoprimordialnarrarahistóriadaIgrejadoCristoeahistóriadopovoescolhido–osFrancos–,oautor
doLiberbuscoueliminardesuaobratudooquenãodiziadiretamenterespeitoàNêustria.
PoucaatençãofoidadaàAustrásia,àBurgúndiaouàAquitânia.Quandooautorfazreferência
àNêustria,eleutilizaotermoFrancia,edesignaseushabitantescomoFrancii,enquantoos
habitantesdaAustrásiasãochamadosAustrasianosouRipuários.Atítulodeexemplo,eledescreveareuniãodetodososgrandesaristocratasdaNêustriasemsequermencionaraexistência
detaisreuniõesemoutraspartesdoReinodosFrancos.OLiberapresentaumpontodevista
dahistóriafrancadeummembrodaaristocraciadaNêustria,oqualaparentementeeramuito
próximodopoderreal.Graçasàextensãocronológicadesuanarraçãoeàsimplicidadedesua
linguagem,oLiberteveumagrandedifusãodurantetodaaIdadeMédia,comodemonstram
oscercadecinqüentamanuscritosmedievaisidentificadosporB.Krusch.OLiberHistoriae
FrancoruméaprincipalfontesobreosacontecimentosdasúltimasdécadasdoséculoVII.
Seuautorbaseou-seemtextoshojeperdidosparaescreversobreoperíodoquevaide657até
727[M.CândidodaSilvaeM.MazettoJunior,“ARealezanasfontesdoperíodomerovíngio
(séculosVI-VIII)”,pp.89-119].
85
Sobrea“lendatroino-franca”,verE.Ewig,“Lemythetroyenetl’histoiredesFrancs”,pp.
817-847;E.Faral,“Lalégendedel’originetroyennedesFrancs”,pp.262-293.
86
VerI.Wood,“EthnicityandtheethnogenesisoftheBurgundians”,pp.53-69.
MarceloCândidodaSilva111
gruposbárbarosembuscadealiançaedeprestígio.Ospovoscomos
quaisRomapactuavaeramtratadoscomoumaraçaàparte,distinta
emaisnobrequeorestantedospovosgermânicos.AmianoMarcelino,porexemplo,sustentaemsuaHistóriaqueosburgúndioseram
irmãosdopovoromano87.Essarelaçãodeparentescoéprovavelmente
contemporâneadainiciativadoimperadorValentianianoembuscaro
apoiodosburgúndioscontraaameaçarepresentadapelosalamanos.
Ainda que tenha sido uma criação dos séculos III e IV, é durante o
reinadodeTeodebertoI,emumambienteculturalromanizadoepróximo da corte de Metz, que a lenda troiano-franca adquiriu importância88.Aopçãoporummitofundadorquepertenciaaumatradição
literária greco-romana diz muito sobre os signos do status político
noRegnumFrancorumduranteaprimeirametadedoséculoVI.Dotados de uma origem prestigiosa como a romana, apresentados por
Fredegáriocomocompetidoresevencedoresdosromanos,osfrancos
recuperaramassimaherançaideológicaromana89.
Osbisposeaatividadeconciliar(511-564)
ApósamortedeClotárioI,em561,osbispossereuniramemParis90
paradeliberarsobreaproteçãodosbensdaIgreja.Nesseterceirooncílio
87
AmianoMarcelino,HistóriaXXVIII,5,11.
J.Barlow,“GregoryofTours”,pp.89-93;essaétambémaopiniãodeI.Wood,TheMerovingianKingdoms,p.34.Outrosautores,comoG.UpperteC.Beaune,acreditamquealenda
nasceunoséculoVII(G.Uppert,“ThetrojanFranksandtheircritics”,pp.227-241;C.Beaune,
NaissancedelanationFrance,p.25).OpontodevistadeE.Ewigábastantepróximodode
Barlow:segundoele,atradiçãofranco-troianaéumacriaçãodaépocadeTeudebertoI(E.
Ewig,“Lemythetroyen”,p.843).
89
R.LeJan,“Lasacralitédelaroyautémérovingienneoulesambiguïtésdel’historiographie”,
pp.1217-1241.
90
ComosustentaO.Pontal,esseconcílionãopodeterocorridoapós564,poisPaternusde
AvrancheseLeontiusdeBordeauxoassinaram,etodososdoismorreramporvoltade564-565
(Histoiredesconcilesmérovingiens,pp.151-154).
88
112 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
deParis,ostermosutilizadosparadescreveroestadodaIgrejaepara
denunciaraingerênciadarealezasãodeumagravidadeinédita:
Nós impomos também o freio de uma tal sanção àqueles que se amparamdaspossessõesdaIgrejademaneiracondenável,sobopretextodeuma
liberalidadereal.Ébemtardequesomostocadosdearrependimentosobre
este tema, pois já no passado os bispos do Senhor deveriam, com o apoio
doscânones,ter-seopostoataispessoas,paraqueumaatitudeindulgente
nãoincitasseaaudáciadosmausacometerdiariamentesemelhantesatos.É
bemtardequeacordamoshoje,espantadossobopesodasinjúrias,também
movidospelosdanosvindosdenossossenhores91.
EssetextopodeserconsideradoumbalançodasituaçãodaIgreja
edesuasrelaçõescomopoderrealnoiníciodasegundametadedo
séculoVI.ElemostraqueoepiscopadodaGáliamerovíngiatinhadificuldadeemsuportaropesodasliberalidadesreais–leia-se:concedidasàcustadosbenseclesiásticos.Ostermosempregadossãoinéditos
noscânonesconciliares:osreis,chamadosaofinaldacitaçãode“senhores”92,sãoacusadosdeteremcausadoprejuízosàIgreja.Éprovável
queosbisposfizessemreferêncianãoapenasaosreiscontemporâneos
–Sigeberto,Cariberto,GontrãoeChilperico–mastambémaosreis
anteriores,osfilhoseherdeirosdeClóvisetalvezmesmoesseúltimo.
OsherdeirosdeClóvis,contraosquaisaadmoestaçãoepiscopalpareceestartambémdirigida,esperaramcercadevinteedoisanosantes
deconvocarumconcílio“geral”doRegnumFrancorum.Apósamorte
91
ParisIII(v.561-562),c.1.
Otermo“senhores”,traduçãodedomini,refere-seaosreis,damesmamaneiraquena
cartadosbisposaClóvis,porocasiãodoConcíliodeOrléansI(“Aoseusenhor,filhoda
IgrejaCatólica,ogloriosíssimoreiClóvis...”),ouaindanopreâmbulodoConcíliodeClermont,de535(“ComoosantosínodotinhasereunidoemnomedoSenhor,agregadopelo
EspíritoSanto,comoconsentimentodonossogloriosíssimoreiereligiosíssimosenhor,orei
Teudeberto...”).
92
MarceloCândidodaSilva113
deClóvis,eatéoConcíliodeOrléansII,em533,aatividadeconciliar
daIgrejafrancaseresumiuaalgumasreuniõesdeporteregionalque
tiveramlugaremReims,em514,eemMans,porvoltade516-517.Isso
significaqueospríncipesmerovíngiossedesinteressaramdosassuntos
eclesiáticos, muito ocupados em se digladiar e em conduzir a guerra
naItália,naBurgúndiaounaGermânia?Ouseja,sobosreinadosdos
filhos de Clóvis, teria havido uma redução da intensidade do caráter
“constantiniano”darealezamerovíngia?
Noquetangeàordenaçãodosbispos,aingerênciarealnãocessou
nosanosqueseparamoprimeiroeosegundoconcíliodeOrléans.No
curtoreinadodeClodomir,porexemplo,anomeaçãodebisposseguiu
menosasnormasestabelecidaspeloclerodoqueasconveniênciasdo
rei.OcasodosbisposdeToursésintomáticonessesentido.ApósamortedeDenifius,ClodomirordenouOmmatius,e,algunsanosdepois,foi
arainhaClotildequemnomeouparaamesmafunçãoaTeodoro,eem
seguidaaProculus93.
Alémdisso,oConcíliodeOrléansII,quereuniuosbisposdetodoo
RegnumFrancorum,reafirmou,pelomenosemseupreâmbulo,ocaráterconstantinianodarealezafranca:
“Assim,porordemdosgloriosíssimosreis,nosreunimos,comaajudade
Deus,nacidadedeOrléansparatratardaobservânciadafécatólicaeformulamos,namedidaemquealuzdoSenhornosdeuainteligência,aquilo que pensávamos, tanto das regras antigas, quanto das novas questões,
colocando por escrito, em constituições particulares e distintas, apoiadas
naautoridadedosantigoscânones,oquedeve,comaajudadeDeus,ser
observadonofuturo”94.
Otextoacimaéclaro:osbispossereuniramporordemdosreisfrancos.
DamesmamaneiraqueClóvishaviaconvocadooConcíliode511logo
93
HistóriasIII,17.
OrléansII(533),preâmbulo.
94
114 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
apósaanexaçãodaAquitânia,Clotário,ChildebertoeTeudericoconvocaramumconcílio“nacional”apósaincorporaçãodaBurgúndia.Aguerra
contraosburgúndioshaviasidoconduzidaemcomumpelospríncipes
francoseelaencerrava,pelomenosmomentaneamente,umperíodode
conflitosinternosdoReinodosFrancos.Pelonúmerodeparticipantes,
bem como pela preocupação em dotar o clero da Gália de um regime
disciplinarúnico,oConcíliodeOrléansIIdemonstraapreocupaçãodos
príncipes francos em afirmar a unidade da Igreja franca e também do
RegnumFrancorum95.Ébemverdadequeaparticipaçãonessesconcílios
“nacionais”alterava-seemfunçãodascircunstâncias,comoosconflitos
internosdoreino,ouaindaasdificuldadesdaviagem,invocadasporalgunsbisposparajustificarsuaausência.Note-se,porexemplo,aausência
emOrléans,em533,dosbisposdaAuvérnia,regiãoemplenainsurreição
contraoreiTeudeberto,queacabavadesucederaTeuderico.
HádoisgravesproblemasindicadosnoscânonesdeOrléansIIe
que serão temas recorrentes dos concílios merovíngios até o século
VII:asnormasdeeleiçãodosbispos,bemcomoasconseqüênciasdas
partilhasdoterritóriodaGáliasobreosbenseclesiásticos.Éemtorno
dessesdoisproblemasqueapolítica“constantiniana”dossucessores
de Clóvis pode ser melhor observada. Embora esses dois elementos
estejamligados,estecapítuloabordaránotadamenteoproblemadas
ordenaçõesepiscopais,deixandoparaexaminarnocapítuloseguinte
otemadaimplicaçãoparaosbensdaIgrejadaspartilhasterritoriais
francas.
Emquepeseopapeldopoderrealemsuaconvocação,oConcílio
deOrléansIIfoimarcadotambémporumaprimeirareaçãoàpratica
denomeaçãodosbispospelorei.Oepiscopadopareceentãobemmais
determinadoquesoboreinadodeClóvisafazervalerasnormascanônicasparasuaeleição.AausênciadeumreiúnicoparatodooRegnum
95
OConcíliodeOrléansIIreuniuosbisposdetodasaspartesdoRegnumFrancorum,àexceção
daAuvérnia,regiãoemconflitonaquelemomento.Deleparticiparam5bisposmetropolitanos
(Bourges,Tours,Rouen,Eauze,Viena),21bispose5padresrepresentandoosbisposausentes,
sendoqueumdelesrepresentavaobispometropolitanodeSens.
MarceloCândidodaSilva115
Francorum,comoem511,podeexplicaresseacirramentodotomempregadopelosbispos,poiscriavaumambientemaisfavorávelàssuas
reivindicações.Erabemmaisdifícilarrancarconcessõesdeumreipoderosodoquedeváriosreiscujasdisputaserammaisdoqueepisódicas.
Deumtotaldevinteeumcânonesdoconcíliode533,osseteprimeiros
constituíamumaafirmaçãodosdireitosedasobrigaçõesdoepiscopado.
Oterceirocânone,porexemplo,proibiaosbisposdesecorromperem
para aceitar as ordenações não conformes às regras eclesiásticas – no
queconstituiaprimeiraalusãodeumconcíliomerovíngioaoproblema
dacompradefunçõeseclésiasticas96;oquartocânoneameaçavadedestituiçãotodososbisposeoutrosclérigosqueobtivessemosacerdócio
graçasaumtráficodedinheiro97.Finalmente,osétimocânoneinsistia
na fórmula de nomeação dos bispos metropolitanos pelos bispos da
província,emconjuntocomocleroeopovo–elamentaqueelanão
sejamaisutilizada98.
SeasdivisõesentreospríncipesfrancosapósamortedeClóvistornaraminstáveisasdelimitaçõesentreosdiversosregna,comconseqüências negativas para as possessões eclesiásticas, paradoxalmente, elas
permitiramàIgrejaresistirmelhoraosavançosdaautoridadereal.No
Concílio de Orléans II, por exemplo, os bispos conciliares criticaram
abertamente os princípios que tinham sido ratificados em 511 e que
favoreciamaingerênciadaautoridaderealemmatériadeeleiçãoepis-
96
OrléansII(533),c.3:“Quenenhumdosbispossepermitareceberalgoporqualquercausa,nem
pelasordenaçõesdosbisposedeoutrosclérigos,poiséímpioqueumpontíficesedeixecorromper
pelavenalidadeecupidez”.
97
OrléansII(533),c.4:“Sealguém,porumaambiçãoexecrável,chegouaosacerdóciograçasa
umtráficodedinheiro,quesejadepostocomoreprovado,poisasentençadoapóstoloprescreveque
odomdeDeusnãodeveabsolutamenteseradquiridocomopesododinheiro”.
98
OrléansII(533),c.7:“Paraaordenaçãodosbisposmetropolitanos,nósrenovamosaantiga
fórmuladeinstituição,quenósvemoscairemdesusoemtodososlugaresporcausadaincúria.
Assim,queobispometropolitano,eleitopelosco-provinciais,pelocleroeopovo,sejaordenado
apósreuniãodetodososbisposco-provinciais,paraquecomaajudadeDeusseeleveaograudessa
dignidadealguémquesejacapazdemelhoraredefloresceradisciplinaeclesiástica”.
116 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
copal.NoconcíliodeOrléansII,em533,enasassembléiasdemenor
porte,comoasdeClermont,em535,adeOrléansIII,em538,eade
OrléansIV,em541,osbisposnãocessaramdeafirmarsuaindependênciaesuasprerrogativasemfacedopoderreal.Issopodeinclusiveajudar
aexplicarareticênciadosreisfrancosemconvocarnosanosseguintes
umconcíliodoportedeOrléansII.
Em535,realizou-seumconcílionacidadedeClermont,reunindoos
bisposdaantigaFranciaRhinensis,daAuvérniaedasregiõesdaBurgúndiaquetinhamsidoanexadasporTeudeberto.Osegundocânonedesse
concílio representa uma vitória daqueles que algumas décadas antes
tinhamcriticadoRemígiopelaordenaçãodeCláudio:
“Foitambémdecididoqueninguémdevebuscarahonrasagradadopontificadoporseusvotos,masporseusméritos,quenãosedeveadquirirodom
divinograçasaosseusrecursos,masgraçasàssuasqualidades,equesedeve
elevaràmaiseminentedignidadepelaeleiçãodetodos,nãopelofavordeuns
poucos...Queaquelequedesejaoepiscopadosejaordenadopontíficeapós
aeleiçãodosclérigosedoshabitantesdacidade,ecomoconsentimentodo
metropolitanodaprovíncia.Nãosedeverecorreraopatrocíniodospoderosos;nãosedeve,porhabilidosaastúcia,encorajaralgunsatravésdepresentes
aredigirodecretodesuaeleição,eforçaroutrospelomedo.Sealguémagir
assim,seráprivadodacomunhãodaIgrejaquepretendedirigirdemaneira
indigna”99.
Essesegundocânonereafirmaasregrassobreaseleiçõesepiscopais
quehaviamsidoenunciadasemOrléansII:aquelequepretendiatornarsebispodeveriaserordenadosomenteapósaeleiçãopelosclérigose
peloshabitantesdacidade,ecomoconsentimentodometropolitanoda
província.Masocânonevaialém,aoproibirexpressamentequeoscandidatosaoepiscopadorecorressemaospoderososetambémaoprevera
penadaexcomunhãoparaaquelesqueassimagissem.Trata-sedeuma
99
Clermont(535),c.2.
MarceloCândidodaSilva117
dasmaisveementescondenaçõesdapráticadeordenaçãoepiscopalsob
influêncialaica.Oconcíliocomoumtodo,aliás,émarcadopelodesejo
depreservaraautoridadeeosbensdaIgreja.Ocânone4,porexemplo,
proíbe os poderosos de apoiarem os clérigos contra a autoridade dos
seusbispos100;ocânone5atacaaquelesquesolicitam,dapartedorei,os
bensdaIgreja.Osbisposconciliaresprevêemaanulaçãodarequisição
assimcomoapenadeexcomunhãocontraaquelesqueincorressemem
taisatos101.
AparticipaçãodosbisposburgúndiosemClermontIpodeterinfluenciadoessetomcríticoemrelaçãoàrealeza,queébempróximo,
diga-se de passagem, do tom que predominou em Epaone, em 517.
Aqueles que assinaram os cânones do Concílio de Clermont I eram
emsuamaioriabisposquenãohaviamparticipadodoConcíliodeOrléansII,poisaAuvérniaviviaumasituaçãoinsurrecional[obispode
Clermont, Gallus (525-551), por exemplo, enviou um representante].
Muitosdelesparticipavampelaprimeiravezdeumconcíliofranco–os
bisposdeRodez,deJavols,deLangres,deAvenchesedeViviers.Desses
últimos,osbisposdeViviers,deLangresedeAvencheshaviamigualmenteparticipadodoConcíliodeEpaone,queconsagrouumposicionamentoextremamentecríticoemrelaçãoàrealezaburgúndia.Elesnão
participaram de Orléans I, e não ratificaram, portanto, os princípios
constantinianosimpostosporClóvis.Essesbisposvinhamdeumatradiçãoconciliardemaiorautonomiadiantedopoderreal.Oscânones
doConcíliodeClermontImostramqueaincorporaçãodaBurgúndia
aoReinodosFrancos,mesmotendosignificadoparaessesbisposasubmissãoaumreicatólico,nãoalterousignificativamenteaposturacrítica
anteasingerênciasdaautoridadereal.Nessesentido,pode-sefalarem
100
ClermontII(535),c.4:“Queosclérigosnãosejamdemodoalgumapoiadospelospoderosos
destemundodiantedeseusbispos”.
101
Clermont II (535), c. 5: “Se pessoas solicitam da parte do rei qualquer bem da Igreja e,
levadosporumahorrendacupidez,roubamosrecursosdosindigentes,quesejaconsideradonulo
oqueelesobtiveram,equesejamexcluídosdacomunhãodaIgrejadaqualelesesperamretirar
osrecursos”.
118 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
umaoposiçãoepiscopalà“RealezaConstantiniana”,quesedelineiajá
no reinado de Clóvis – e cuja carta de Remígio aos bispos Heraclius,
LeãoeTeodósioéomelhorindício–equeseconsolidapaulatinamente
duranteasassembléiasconciliaresdaprimeirametadedoséculoVI.
DeumtotaldedezesseiscânonesadotadosemClermont,em535,
seisretomaramdisposiçõesdasreuniõesconciliaresdeEpaone(517),
edeOrléansI(511)eII(533).Ocânone16deClermontretomao
cânone29deOrléansI,eproíbeoconvíviodediáconos,padresebispos com mulheres estranhas às suas famílias102; nada, portanto, que
repetisseoureafirmasseospreceitos“constantinianos”deingerência
darealezanosassuntosinternosdaIgreja,osquaiseramnumerosos
emOrléansI.Ocânone2deClermontIretomaecompletaprecisamenteoscânones4e7deOrléansII,quecondenavamaordenaçãode
clérigosporinfluênciadospoderososlaicosereafirmavamoprincípio
daeleiçãopelocleroepelopovo103.Ocânone6deClermontIrepete
ocânone19deOrléansII,eproíbeasuniõesentrejudeusecristãos104.
102
Clermont(535),c.16:“...Assim,pelaautoridadecanônicaeporumaconstituiçãoquepermaneceráparasempre,nósdecretamosquetodosevitemaliberdadeculpadaemrelaçãoàsmulheres
estranhas,equehabitemsomentecomumaavó,umamãe,umairmãouumasobrinha,senecessidadehá...”;OrléansI(511),c.29:“Sobreafreqüentaçãodasmulheresestranhas,queosbispos,
ospadreseosdiáconosrespeitemosestatutosdosantigoscânones”.
103
OrléansII(533),c.4:“Sealguém,porumaexecrávelambição,atingiuosacerdóciograçasa
umtráficodedinheiro,quesejadepostocomoreprovado,poisasentençadoapóstoloprescreveque
odomdeDeusnãodeveabsolutamenteseradquiridopelopesododinheiro”;OrléansII(533),c.
7:“Paraaordenaçãodosmetropolitanos,nósrenovamosaantigafórmuladeinstituição…Assim,
que o bispo metropolitano, eleito pelos co-provinciais, os clérigos e o povo, seja ordenado após
reuniãodetodososbisposco-provinciais,demodoquecomaajudadeDeusascendaaograudessa
dignidadealguémquesejacapazdemelhoraredefloresceradisciplinaeclesiástica”.
104
Clermont I (535), c. 6: “Se alguém, por causa de uma união conjugal, se associa ao erro
judaico,sejaumajudiaeumcristão,sejaumacristãeumjudeuquetenhamrelaçõescarnais,que
cadaumdaquelesqueéreconhecidoteraceitadotalinfâmiasejaexcluídodaassembléiaedamesa
doscristãosedacomunhãodaIgreja,acujosinimigosseassociou”;OrléansII(533),c.19:“Foi
decididoquenenhumcristãodesposeumamulherjudia,enenhumjudeuumacristã,poisnós
julgamosqueasnúpciassãoilícitasentretaispessoas.Aquelesque,apósadvertência,deixaremde
romperumatalunião,devem,semdúvida,serafastadosdagraçadacomunhão”.
MarceloCândidodaSilva119
Finalmente,oscânones10,11e15deClermontIretomamoscânones
5e35deEpaone,quereafirmamaautoridadedosbispossobreoclero
regulareoclerosecular105.
De um modo geral, a afirmação da independência do episcopado
aparecenasfórmulasutilizadasnospreâmbulosdoscânonesparaindicarascircunstânciasdasreuniõesconciliares.Em535,emClermont,
porexemplo,nãohánenhumareferênciaaumaordemreal:
“Como,emnomedoSenhor,osantosínodotinhasereunido,agregado
pelo Espírito Santo, com o consentimento do nosso gloriosíssimo rei e
religiosíssimosenhororeiTeudeberto,nacidadedeAuvérnia,equeajoelhados nós rezamos ao senhor pelo seu reino, por sua longevidade, por
seupovo–eletinhadadoapossibilidadedenosreunirmos:queoSenhor
exalteseureinocomfelicidade,orejacomautoridade,ogovernecomjustiça–enquantonóssediamosnaigrejasegundoocostumeeexaminamosos
cânones,pareceurazoável,aindaqueessescânonescontenhamquasetodos
ospontosdaregraeclesiástica,deacrescentaralgunsnovosederetirarantigos”(grifonosso)106.
Opapeldoreiaquiémenosimportantedoqueemconcíliosanteriores:eleteriadadoseuconsentimentoeprovavelmentetambémfornecidoajudamaterialaumareuniãoqueocorreusob“inspiração”do
EspíritoSanto.Osbisposdeixamclaroqueoreinãoconvocouneméo
inspiradordaassembléiaconciliar.Osconcíliosseguintes[odeOrléans
105
ClermontI(535),c.15:“…Quetodososhabitantesdacidadequesãodamaisaltaestirpe
venhamsejuntaraosseuspontíficesparaasditasfestas.Sealguns,porumaculpadatemeridade,
desprezamessaregra,queelessejam,duranteessasmesmasfestasemrazãodasquaiselesdesprezamdeviratéacidade,afastadosdacomunhão”;Epaone(517),c.5:“Quenenhumpadre
se permita de desservir as basílicas ou os oratórios de uma outra cidade sem a autorização de
seubispo…”;Epaone(517),c.35:“Queoshabitantesdemaisaltaestirpedacidadesaibamque
devemsejuntaraosbisposparaanoitedePáscoaeparaasolenidadedeNatalemvistadereceber
suabenção,qualquerquesejaacidadeondeelesseencontram”.
106
Clermont(535),preâmbulo.
120 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
III(538)eodeOrléansIV(541)],nemsequermencionamumconsentimentoreal.Issonãosignificaqueospríncipesfrancostenhamperdido
ointeressepelosassuntoseclesiásticosapósoConcíliodeOrléansII,ou
aindaqueaingerênciarealnosassuntosinternosdaIgrejatenhadiminuídodeintensidade.Aseleiçõesepiscopaiscontinuaramaserobjetode
atençãoparticulardeClodomiro,Childeberto,ClotárioIedeTeuderico
I.Teuderico,empenhadonumapolíticaexpansionista,proviaassésmais
importantescombisposquelheeramfiéis.Éocaso,porexemplo,de
Gallus,quesucedeuaSantoQuintianuscomobispodeClermont,com
oapoiodorei107.TeudebertoIeTeudebaldoIprosseguiramapolíticade
Teudericonasdiocesessituadasaoestedeseuregnum.Aleste,elesencorajaramavindadeclérigosdaAquitâniaeareconstruçãodasdioceses
abandonadasapósasinvasões108.NoreinodeChildebertoI,anomeação
peloreipredominousobreaeleição“pelocleroepelopovo”,aindaque
asnormasconciliarestenhamsidorespeitadasemalgunscasos,como
durantedaeleiçãodeSãoGermano(v.555-576),emParis109.ClotárioI
teverelaçõesmuitasvezesdifíceiscomosbispos110.Elepreferiuconduzir
apolíticada“sévaga”,abandonandoanomeaçãodebisposnascidades
maissetentrionaisounomeandohomensdeconfiançaparaassésmais
importantes. Assim, após a morte de Injuriosus (529-546), Baudinus
–designadoporGregóriodeTourscomdesdémcomoum“doméstico”
deClotário–foinomeadobispodeTours111.
DoisoutrosepisódiosdescritosporGregóriodeTourstambémmostramaimplicaçãodeClotárioInoprocessodesucessãoepiscopal.O
primeiroenvolveasédeTours:solicitadoporalgunsclérigosatornar-se
bispodaquelacidade,opadreCautinusteriapretendidoesperaralguns
107
HistóriasIV,5.
VerJ.Heuclin,HommesdeDieu,fonctionnairesduroi,pp.70-71.
109
VenâncioFortunato,VitaGermaniepiscopiParisiaci,p.14.
110
ElefoiexcomungadoporNicetiusdeTrèves(526-v.561),talvezporcausadeseucasamento
comWaldrade(GregóriodeTours,VitaePatrum,17,2).
111
HistóriasIV,3:“Injuriosus,bispodacidadedeTours,morreunodécimo-sétimoanodeseu
episcopado;seusucessorfoiBaudinus,quefaziapartedadomesticidadedoreiClotário...”.
108
MarceloCândidodaSilva121
diasantesdedarsuaresposta.Essesclérigoslheteriamlheditoentão
quenãoeraporvontadeprópriaqueotinhamprocurado,masporordemdorei112.OsegundoepisódioconcerneàsédeMans.Seriamente
doente após um pontificado de vinte e dois anos, o bispo Damnolus
teriaescolhidoparasubstituí-lo,comoconsentimentodorei,oabade
Theodulfus.Algumtempodepois,Clotárioteriamudadodeopiniãoe
escolhidocomonovobispodeMansoprefeitodopalácioreal,Badegisilus.Efoifinalmenteesseúltimoquemobteveafunçãoepiscopal,em
detrimentodocandidatoescolhidopelobispoDamnolus113.
Emsuma,aausêncianostextosconciliaresdeexpressõesqueindicassemumaordemrealparaaconvocaçãodosconcíliosnãosignificou
umabrandamentodadimensão“constantiniana”darealezafranca.Ao
contrário,aausênciadegrandesreuniõesconciliaresprejudicavaqualquer iniciativa de resistência organizada do episcopado à atuação da
realeza.SeasconvocaçõesreaissefizeramrarasapartirdeOrléansII,é
porque,provavelmente,osreisfrancosnãotinhamumgrandeinteresse
queessegênerodereuniõessemultiplicasse.Poroutrolado,asreuniões
demenorporteofereciamumarepercussãomenoràsdecisõestomadas
pelosbisposnadefesadaindependênciadopodereclesiástico.Ararefaçãodaatividadeconciliardegrandeporteduranteaprimeirametade
doséculoVInãocoincidiucomumadiminuiçãodaingerênciarealna
nomeaçãodosbispos.
Afórmulausadaparaindicaropapeldoreinaconvocaçãodeuma
assembléiaconciliarreapareceusomentenopreâmbulodoquintoConcíliodeOrléans,de549:
“Éàgraçadivinaquesedeveatribuirofatoqueosvotosdospríncipes
coincidemcomossentimentosdosbispos,quando,nomomentodarealizaçãodeumaassembléiaepiscopal,aregradevidaéfixadapelalembrança
dosantigoscânones,ousegundoolugareotempo,peloestabelecimento
112
HistóriasIV,11.
HistóriasVI,9.
113
122 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
de novas medidas prolongando alguns artigos antigos.É por isso que, no
momentoemqueonossoclementíssimoesenhorinvencívelnahonrade
seustriunfos,oreiChildeberto,peloamordasantaféeoestatutodasantareligião,reuniunacidadedeOrléansosbisposdoSenhor,nodesejode
aprenderpelabocadosPadresoqueésantoeoquepropõeaautoridade
pastoralparaogovernodaIgreja,afimdequesejaumanormaparaosfuturosfiéiseumaregraparaaquelesdehoje,ospontosqueconvêmobservar
desdeopresenteeemseguidaforam,pelagraçadeDeus,fixadosemdetalhe
artigoporartigo”114.
EsseconcíliofoiomaiordetodooséculoVI.Participaramdele
cercade71bisposeseusdelegados;cercade13provínciaseclesiásticas
estavamrepresentadas.Estiverampresentesosbisposmetropolitanos
deLyon,Arles,Viena,Trier,Bourges,EauzeeSens(osmetropolitanos
de Bordeaux e de Reims enviaram representantes). No preâmbulo
doscânones,osbisposcomeçamporagradeceràgraçadivinaofato
de que os votos dos príncipes coincidem com os seus sentimentos.
ComoemOrléansI,elesparecempersuadidosdequeaeficáciaeo
alcancedasmedidasporelesdefinidasdependemdaconcordânciado
príncipe.Alémdisso,otextodopreâmbuloétaxativo:foioreiquem
reuniu os bispos.Ao afirmar que o príncipe tinha agido pelo amor
dasantaféedoestatutodareligião,comoobjetivodeaprenderdos
PadresaquiloqueelespropunhamparaogovernodaIgreja,otexto
indicaigualmenteapreocupaçãodoreicomosassuntoseclesiásticos.
Apresentando-secomochefedoepiscopado,oreiChildebertointerferiunaquereladosTrêsCapítulos,como,aliás,oimperadorJustinianohaviafeito115.Areuniãode549fechouassimoparênteseaberto
comosegundoConcíliodeOrléansde533,eretomouosprincípios
doconcíliode511.NamelhortradiçãoConstantiniana,osbisposem
Orléans V, sob instigação de Childeberto, condenaram a heresia de
114
OrléansV(549),preâmbulo.
MarceloCândidodaSilva123
EutychesedeNestoriusalgunsanosantesqueoconcílioecumênico
emConstantinoplafizesseomesmo116.
OConcíliodeOrléansVfoimarcadoporumamudançanasregras
deordenaçãoepiscopal:
“Queaninguémsejapermitidoobteroepiscopadoporpresentesoupor
compra,masquesejacomoconsentimentodorei,emconformidadecoma
eleiçãodocleroedopovo,comoestáescritonosantigoscânones,queobispo
seja consagrado pelo metropolitano ou seu delegado, com a ajuda de seus
co-provinciais.Sealguém,porumacompra,violaaregradestasantaconstituição,nósdeterminamosqueaquelequefoiordenadograçasapresentes
sejaafastado”117.
Essa fórmula, mais do que um compromisso entre uma tradição
canônicaquepressupunhaaeleição“pelocleroepelopovo”,eaingerênciadaautoridadereal,marcavaotriunfolegaldoprincípiodoconsentimentodopríncipenasordenaçõesepiscopais.Esseconsentimento
115
Adenominação“TrêsCapítulos”édadaaTeodorodeMopsueste(c.350–428),aTeodoreto
deCyr(v.393–v.466)eaIbasdeEdessa(ms.457),bisposcujascríticasdomonofisismoforam
condenadaspeloConcíliodeConstantinoplaem553,sobinstigaçãodoimperadorJustiniano.
AsreaçõesaessacondenaçãonoOcidenteforambastantenegativas:váriosbisposnaÁfrica
do Norte, na Itália e na Gália posicionaram-se a favor dos Três Capítulos. Mas, quando o
papaVirgílioaderiuàsprescriçõesdoconcíliode553,umapartedoepiscopadofranconãoo
seguiu.Oconflitosomenteterminouem689,porocasiãodeumconcílioreunidoemPávia
sobainstigaçãodoreiCunipertusedopapaSegeI(687-701).Sobreapolêmicados“Três
Capítulos”,verL.Duchesne,L’EgliseauVIesiècle,p.191;etambém,L.Pietri,“L’Eglisedu
RegnumFrancorum”,pp.745-799.
116
OrléansV(549),1:“Assim,aseitaímpiaqueteveporautorefundadorumhomemdemá
consciênciaeafastando-sedafontevivadafécatólica,osacrílegoEutyches,eassimtudooque
proferiuovenenosoeímpioNestorius,seitasqueaSéapostólicacondenaigualmente,nóstambém,
execrando-ascomseusautoreseseussectários,asanatematizamosecondenamospelaautoridade
dapresenteconstituição,pregandoaregradafédireitaeapostólicaemnomedoCristo”.
117
OrléansV(549),c.10.
124 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
precede,aliás,aeleição“pelocleroepelopovo”.Aindaquenaprática,a
concordânciarealjáfosseachavedasordenaçõesepiscopais,elaobteve
emOrléansVoseureconhecimentooficial.Essaassembléiaconciliar
testemunhaoendurecimentodaposturadarealezadiantedoepiscopado,emostraumavezmaisqueapolíticaconstantinianadeClóvisnão
tinhaseenfraquecidosobseussucessores.
AlémdasingerênciasdequeaIgrejafrancafoiobjeto,asdisposições
dos concílios da primeira metade do séculoVI lançaram as bases do
controle episcopal sobre o clero da Gália. O Concílio de Orléans III,
porexemplo,proibiaaosclérigosdecitarumlaicodiantedajustiçasecularsemoconsentimentoepiscopal,damesmamaneiraqueproibia
aoslaicoscitarumclérigosemapermissãodeseubispo118.Atítulode
comparação,oConcíliodeEpaone(517),proibiaqueosclérigosrecorressemaotribunalcivilsemaautorizaçãodeumbispo,masosobrigava
acomparecercasofossemmencionados,eissosemanecessidadedeautorizaçãoporpartedaautoridadeepiscopal119.IssomostraquenoReino
dosFrancosaposiçãodoepiscopadoeramenosfrágilquenoReinodos
Burgúndiosduasdécadasantes.Apesardapolítica“constantiniana”que
praticaram, os reis francos utilizaram o episcopado católico da Gália
comoumapeçaimportantedeseudispositivodegoverno,algoqueos
reisarianosdaBurgúndianãofizeram.OConcíliodeOrléansIVconfirmouasdisposiçõesdeOrléansIIInotocanteaosprivilégiosjurídicos
dos clérigos, acrescentando duas regras: em primeiro lugar, nenhum
laicopoderiaforçar,julgaroucondenarumclérigoemnomeapenasde
suaautoridade,semreportar-seaopontíficeouaoprebostedaIgreja;
emsegundo,todasasvezesquehouvesseumprocessoentreumclérigo
eumlaico,ojuizlaiconãodeveriainstruiroprocessosemapresença
deumpadre,deumarquidiáconooudeumpreboste120.Alémdesses
privilégiosconcedidosaosclérigos,osbisposemOrléansIVproibiram
118
OrléansIII(538),c.35.
Epaone(517),c.11.
120
OrléansIV(541),c.20.
119
MarceloCândidodaSilva125
queosfuncionáriosreaisconvocassemparaarealizaçãodeserviçospúblicososclérigosqueestivessememserviçoeclesiásticooucujosnomes
estivesseminscritosnamatrículadaigreja121.
Osprivilégiosoutorgadosaosclérigosnocontextodaadministraçãolocalnãoerampoucos.Otrigésimo-quartocânonedoConcíliode
OrléansIII,de538,porexemplo,previaaexcomunhãodoscondesdas
cidadesquenãolevassemaostribunaisosbisposheréticosquerebatizaramcatólicos122.EmumconcílioreunidoemParisapósamortede
ClotárioI,osbisposderamumpassoimportantenadefesadasregras
canônicasdeeleiçãoepiscopal,aoestabelecerquetodasasordenações
feitasnopassadodeveriamserreavaliadas:
“Noquedizrespeitoàsordenaçõesdepontíficesfeitasnopassado,foidecididoqueometropolitano,umavezreunidocomseusbisposco-provinciais
oucomosbisposvizinhosqueeleescolher,nolugarquelheconvier,deveria
julgartudosegundoosantigosestatutoscanônicosesegundoojulgamento
eaopiniãodetodos”123.
Muitoprovavelmente,osbisposconciliarestenhamtentadoaproveitarasperturbaçõescausadaspelasdisputasentreospríncipesherdeiros
apósamortedeClotárioIparacorrigirosabusos.Esseconcíliotambém
éumaconstataçãodofracassodasmedidasadotadasnosconcíliosprecedentes.Seuscânonesmanifestamairritaçãodosbisposapósmaisde
meio-séculonoqualospríncipesfrancostinhamtentadofazerdaIgreja
uminstrumentodarealeza.
121
OrléansIV(541),c.13.
OrléansIII(538),c.34:“Seocondedacidadeoudolocalsouberqueumbispoherético,ou
bonasiano,oudequalqueroutraseita,rebatizouumsúditocatólicoeseele–vistoquenóstemos
reiscatólicos–nãoprendeurapidamenteosautoresdessessegundosbatismosenãoosconduziu
paraserempunidosaesserespeitoconformeafédoreieàsuajustiça,queelesejasubmetidoa
umaexcomunhãodeumano”.
123
ParisIII(v.561-562),c.8.
122
126 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Osconflitosentreaautoridaderealeosbisposduranteaprimeira
metadedoséculoVIsãoindicativosdasresistênciasnointeriordoepiscopadoàspráticas“constantinianas”darealeza.Odesejodeindependência
jáexistia,aliás,sobClóvis.AcartadeRemígioaosbisposHeraclius,Leão
eTeodósiotestemunhaumadasprimeirasreaçõesàpolítica“constantiniana”implementadapeladinastiamerovíngia.Aolongodasdécadas
seguintesessesentimentonãocessoudeseampliar,atéassumirotom
deumadenúnciaabertaevigorosacontraaposturadaautoridadereal.
Clóvistinhaaseufavorofatodetersidooprimeiroaseconverteraocatolicismo.Essaeradeumavantagemqueseussucessoresnãopossuíam.
Alémdomais,contrariamenteaosseussucessoresaté558,eleeraoúnico
reidaGáliamerovíngia.AspartilhasterritoriaisqueseseguiramàmortedeClóvisderamforçaàcontestaçãodopodereclesiástico,tornando
menosamploopoderdospríncipes.Poroutrolado,aincorporaçãoda
BurgúndiatrouxeparaointeriordoRegnumFrancorumumepiscopado
cujatradiçãodeautonomiaemfacedopoderrealhaviasidoconsagrada
noConcíliodeEpaone,em517.
Durantemuitotempoafirmou-sequeaquiloqueosreismerovíngiosbuscavamdefenderanteosbisposeraoseupoderpessoaleseus
privilégios.Oepiscopadoapareceassimcomooúnicodefensordo“interessepúblico”,enquantoospríncipesmerovíngiosseriammerosreis
“patrimoniais”,quetratariamoreinocomosefosseumbemprivado.O
conflitodeinteressesentrearealezaeoepiscopadoeraaexpressãode
umconflitomaior,masosbisposnãoeramosúnicosaagiremnome
do“interessepúblico”–quenocasoespecíficodelesestavaassociadoà
evangelização,aoauxílioaosfracoseàpromoçãodasalvação.OcontroleexercidopelarealezasobreaIgrejafranca,nessaprimeirametadedo
séculoVI,tambémeraaexpressãodeum“interessepúblico”daquala
primeiraeraportadora,comoveremosnocapítuloseguinte.
CapítuloIII
O“interessepúblico”noséculoVI
OshistoriadoresadmitemhojequeosfrancosseapoiaramemconstruçõeseconceitosherdadosdeRoma,masalegamqueessasestruturas
eram“embalagensvazias”,equeosconceitos–dosquaisesses“bárbaros”
nadaentenderiam–encobriamumarealidadesensivelmentediferenteda
épocaromana.Éclaroqueapermanênciadecertosconceitosnãosignificaqueosentidoquelheseradadofosserigorosamenteomesmodaépoca
romana; esse é um equívoco no qual incorrem, aliás, as interpretações
hiper-romanistas1.Contudo,osadeptosdatesedas“embalagensvazias”
opõem com freqüência a rudeza dos povos germânicos à capacidade
romanaemelaborarasabstraçõespolíticaseasconstruçõesinstitucionaismaiscomplexasapartirdesuaexperiênciasocial.Éoquefaz,por
exemplo,J.Ellul,paraquemseaindahavianaGáliamerovíngianomes
romanosdesignandoasrealidadesinstitucionais,o“espírito”nãoestava
1
VeracríticadeJ.-P.Devroeyao“fixismo”dasteseshiper-romanistas[Economieruraleet
sociétédansl’Europefranque(VIe-IXesiècles),pp.231esg.].
128 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
mais presente. O legado de Roma ao Ocidente, segundo ele, não teria
consistido na persistência material de algumas instituições romanas na
vidasocial,masemelementosmaisoumenosesparsosque,doséculoV
atéoséculoXII,teriamguardadoforçasuficientena“memóriacoletiva”
enareflexãodosclérigosparacausarpesareadmiração2.Aidéiadacrise
do“espíritopúblico”entreosmerovíngios,longedeserumpontodevista
isolado,écompartilhadoportrabalhosmaisrecentes,comoodeP.Geary,
paraquemsomenteosclérigosteriamguardadoalgumsentidodanoção
romanaderespublicanaGáliamerovíngia3.Pode-sefalar,portanto,em
desaparecimentodanoçãodeinteressepúblico?Seriacorretoafirmarque
daherançaromana,opoucoquedelateriasobradoestariasubutilizado
poressesbárbaros,laicosdesobremaneira,quenadacompreendiamdo
funcionamentodasinstituiçõesedoDireitoRomano?
Emprimeirolugar,éumequivocosupervalorizaropapeldosclérigos
no edifício político franco. P. Riché mostrou que eles não constituíam
acolunavertebraldaadministraçãofranca:pelomenosatéaprimeira
metadedoséculoVII,osfuncionáriosquedirigiamogovernofranco,da
mesmaformaqueosnotárioseosescribasqueneletrabalhavam,eram
laicos, como nos tempos da administração romana4. Poder-se-ia mencionar,atítulodeexemplo,oqueP.Richéchamoude“círculoliterário
austrásio-provençal”:umgrupoformadoporeruditosqueviveramsob
osreinadosdeSigebertoedeChildebertoIIequeeramversadosnolatim
eatraídospelaculturaclássica.OsnomesmaisrepresentativosdessegrupoeramospatrícioDynamiusdeMarselha,correspondentedeVenâncio
Fortunato5,bemcomodeAndarchiusedosenadorFélix,elogiadospor
GregóriodeToursporseuconhecimentodasletras,dodireitoedocálculo6.Pode-secitarigualmenteumoutrolaicoquedesempenhouumpapel
2
J.Ellul,Histoiredesinstitutions.LeMoyenAge,p.18.
P.Geary,NaissancedelaFrance,p.147.
4
P.Riché,Educationetculture,p.75
5
Fortunato,CarminaVI,10.
6
HistóriasIV,46.
3
MarceloCândidodaSilva129
importantenaadministraçãofranca,Asclepiodus,queredigiuoeditode
Gontrão,de585,equeapósmortedeste,serviuaChildebertoII7.
Éprecisoreconhecer,poroutrolado,queaexistênciadecertonúmero
delaicos,queparticipavamdaadministraçãoequeeramreputadospor
seustalentosemlatimouemretórica,nãoésuficienteparasesustentar
asobrevivênciadaautoridadepública.Oobjetivodestecapítuloé,portanto,analisarseesobquaisformasanoçãode“interessepúblico”,distintaesuperioraosinteressesparticularesdosgovernantes,assimcomo
aosinteressesdaIgreja,foipreservadanasconstruçõesinstitucionaisda
GáliamerovíngiaduranteoséculoVI.Afiliaçãoromanadasinstituições
francaséumtemacujacomplexidadefazcomquemereçaumtrabalho
àparte8.Naspáginasseguintes,aanálisedassobrevivênciasinstitucionaisromanasnãoconstituiumfimemsimesma.Essassobrevivências
somenteserãoabordadasàmedidaqueajudaremnacompreensãoda
naturezadaautoridaderealapósafundaçãodoRegnumFrancorum.
Aconstruçãodoespaçopúblico:“paxregia”e“sermoregis”
“Clóvis, rei, aos senhores santos e bispos digníssimos pela sé apostólica.
NãodeveterescapadoaVossaBeatitudeanovidadedivulgadasobreoque
foifeito(actum)eordenado(praeceptum)atodonossoexército,antesque
entremos na pátria das godos. Em primeiro lugar, ordenamos, no que diz
7
VerChildebertisecundidecretio,7:“Asclipiodusrecognovit”.SegundoK.A.Eckhardt,Asclepioduséoautordoprólogocurtodaleisálica(PactusLegisSalicae,p.171).
8
Sobreessetema,ver:J.Tardif,Etudessurlesinstitutionspolitiquesetadministrativesde
laFrance.Epoquemérovingienne;M.Thévenin,Textesrelatifsauxinstitutionsprivéeset
publiquesauxépoquesmérovingienneetcarolingienne;N.D.FusteldeCoulanges,Lamonarchiefranque;F.L.Ganshoff,“Lestraitsgénérauxdusystèmed’institutionsdelamonarchie
franque”,pp.91-127;Ch.Pfiester,“GaulundertheMerovingianFranks.Institutions”,pp.132158;E.Ewig,“DasFortlebenrömischerInstitutioneninGallienundGermanien”,pp.561-598;
K.F.Werner,“LaplaceduVIIesiècledansl’évolutionpolitiqueetinstitutionnelledelaGaule
franque”,pp.173-211.
130 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
respeitoaoserviçodetodasasigrejas,queninguémtentetirardeformaalgumanemassantasmonjasnemasviúvas,asquaissesabeforamdedicadas
aoserviçodoSenhor;queamesmacondiçãosejaválidaparaosclérigose
paraascriançasdestes,tantoosclérigosquantoasviúvasqueésabidoque
residemcomelesemsuascasas;idem,paraosescravosdasigrejasqueojuramentodosbisposprovarqueforamarrancadosdasigrejas;nenhumdano
ouviolênciadeveserexercidocontraeles.Éporissoqueordenamos,afim
dequetudoissosejabemsabido,queaqueledentreosacimamencionados
que sofrer a violência do cativeiro, tanto nas igrejas quanto fora da igreja,
seja completamente, e sem demora, devolvido. Para os outros prisioneiros
laicosquetiveremsidoapanhadosforadapaz(extrapacem)equeseissofor
provado,nãoserãonegadasasepístolasescritassegundovossoarbítriopara
quemdesejastes.Noqueserefereàqueles,tantoclérigosquantolaicos,que
terãosidoapanhadosemnossapaz(inpacenostra),sefizestessaberaverdade
porepístolasassinadascomvossoanel,queelasnossejamdirigidasdequalquermaneiraesabereisquenossaordem(nostrapraeceptionem)oriundade
nósdeveconfirmarisso.Assim,nossopovopedeque,paratodosaquelesque
julgaisdignosdeconcedervossascartas,nãotardeisadizersobjuramento
emnomedeDeusecomvossabênçãoqueissoéverdadeiroquereclamade
serprovado,poisasvariaçõeseasfalsificaçõesdemuitosforamdescobertasa
pontodecompreenderque,comoestáescrito:‘Ojustoperececomoímpio’.
Rezempormim,senhoressantosepaismuitodignospelaséapostólica”9.
ÚnicotextoautênticodeClóvisquefoipreservado,essaepístolaaos
bispostratadaentradadastropasfrancasnaAquitâniaduranteaguerra
contraosvisigodos,em507.Escritaalgumtempoapósofimdareferida
campanha10,elapretendeasseguraraosbisposcatólicosavalidadedas
medidasprevistasporumpraeceptumendereçadoaoexércitofranco,publicadopoucoantesdoiníciodashostilidades.Amaiorpartedaepístola,
aliás, é uma confirmação desse documento. Ela estipula, em primeiro
9
ChlodowiciRegisadepiscoposepistola,CapitulariaMerowingica,1.
Sobreadataçãodessacarta,verM.Rouche,Clovis,pp.441-442.
10
MarceloCândidodaSilva131
lugar,quetodosaquelesqueseencontrassemaserviçodasigrejasnão
deveriamservítimasderaptooudequalqueroutraformaviolência.Essa
proibição dizia respeito a cinco categorias de pessoas: monjas, viúvas,
clérigos,osfilhosdestese,finalmente,osescravos.Querfossemaprisionados“foradasigrejas”ou“dentrodasigrejas”,todosquepertencessem
a essas categorias deveriam ser libertados mediante um procedimento
detalhadomaisadiantenotexto.Nocasodoslaicoseeclesiásticosquese
encontrassemnapazdorei(inpacenostra),nãoapenasoedifícioeclesiástico,mastodooterritórioalémdesseslimites,eraconsideradoumespaçodeasilo.Clóvisrelembraaosbisposapossibilidadedeelesobterem
tambémalibertaçãodealgunscativoslaicos,aprisionadospeloexército
franco“foradapaz”(extrapacem).Nessecaso,ascondiçõesparaqueisso
ocorresseerammaisrestritivas:emprimeirolugar,deveriaserprovado
queelesforamaprisionadosnessacircunstância,ouseja,“foradapaz”;
emsegundolugar,osbisposdeveriamenviarcartaspedindoalibertação
daqueles que eles escolhessem. O procedimento para a libertação dos
cativosapanhadosnapazdorei(inpacenostra)eramenoscomplexo,e
consistianoenviodecartasseladaspeloanelepiscopal.Clóvisacrescenta
queseu“povo”–provavelmenteosoficiaisdoexércitofranco,dadoo
teornitidamentemilitardaepístola–pediaaosbisposquenãotardassemainiciaroprocedimento,certificando,atravésdeumjuramento,a
veracidadedasdemandasenviadas.
Oquevemaserapaxnostra,oumaisexatamentea“pazdorei”,que
otextomenciona?Qualéadiferençadeestatutoentreaquelesqueforam
capturadosinpacenostraeaquelesqueoforamextrapacem?A“pazdo
rei”,talcomoelaestáformuladanessaepístola,indicaoestatutodaqueles
quereceberamumaproteçãoespecífica.Elanãoéfrutodeumsimplescaprichodogovernante.Clóvis,aliás,nãopropunhaaosbisposalibertação
indiscriminadadeprisioneiros.Elepediaaosprimeirosqueseguissemum
certonúmerodeprocedimentos:noqueserefereaoscativosaprisionados
“extrapacem”,osbisposdeveriamprovarqueelestinhamsidoefetivamenteaprisionadosnessacondiçãoesedirigiraosfuncionárioscompetentesparaapresentarseuspedidos.A“pazdorei”erauminstrumento
deproteçãolegalquecolocavaaquelesaquemelaprotegiaaoabrigode
132 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
eventuaisarbitrariedadeseabusoscometidospeloexércitofranco.Amanutençãodapaz,aliás,aparececomoumdosfundamentosdaautoridade
públicaentreosfrancos.OobjetivofixadonoprólogocurtodoPactus
legis Salicae (século VI), de “zelar pela observância da paz entre todos
parasuprimirocrescimentodasdisputas”,nãoeraumameradeclaração
deintençõessemnenhumefeitoprático.A“buscadapaz”abriacaminho
paraaconsolidaçãodopoderreal,aofornecerajustificativa,emesmo
a legitimidade, para a interferência da autoridade pública no domínio
dasrelaçõesinterpessoais.Aoincentivarosindivíduosaresolveremseus
litígiosdiantedetribunaisespecialmentecriadosparatanto,opoderreal
tentavatornar-seainstâncianormativadasrelaçõessociais.
Apresentadacomooopostodaviolência,comoocampodanormalidade,odomíniodalei,a“pazdorei”ésemdúvidaalgumaumacategoriajurídicaemanadada“autoridadepública”.SuautilizaçãonoEdito
deChilperico,algumasdécadasmaistarde,mostraqueaautoridadereal
zelavaporumbemsuperioraosinteressesouaoscaprichospessoaisdo
príncipeoudeseuspróximosconselheiros:
“Sealguémdeveconduzirumacausanotribunal(mallus),quecomecepor
apresentarsuacausadiantedeseusvizinhos,equedepositeantecipadamentea
multalegalnasmãosdosRachimburgs,aoqueelepoderáentãoconduzirsua
causajuntoaotribunal.Elenãodeveterapresunçãodeseapresentardiantedo
tribunalsemisso;eseeleseapresentardiantedotribunal[semtercumprido
essasformalidades],perdesuacausa.Poisseelefoiumhomemmaliciosoque
perpetrouomalnopagus,quenãotemumlar,nempossessõesparacompensar
suasmalfeitorias,equevivenasflorestas,semqueseuadversárioouseusprópriosparentespossampôramãoneleparaconduzí-loaNossaPresença,então
seuadversário,etodosaquelesaquemeleterácausadomal,podemacusá-lo
diantedeNós,eNósoporemosforadeNossaPalavra(nostrosermone),afim
dequequemoencontrarpossamatá-losemoutraformalidade”11.
11
ChilpericiEdictum,CapitulariaMerowingica,4.SobreoeditodeChilperico,verF.Beyerle,“DaslegislativeWerkChilperichsI”,pp.1-38.
MarceloCândidodaSilva133
Diferentemente da carta de Clóvis aos bispos, o Edito de Chilpericonãomencionaa“paz”,masa“presença”(praesentia)ea“palavra”
(sermo)dorei.Arealidadeexpressaporessetermoparece,noentanto,
seramesmadanoçãode“pazdorei”.Aimportânciadadaàdimensão
sagradada“presença”realemmuitoobscureceusuadimensãojurídica.
M.Reydelletafirma,porexemplo,queapraesentiaequivaliaauma“absolvição”,umaespéciedesegurançaafiançadapelopoderdeproteção
eficazesagrado,“quasemágico”,da“presença”real.Otermopraesentia
remeteriatantoàsacralidaderomanaquantoàsacralidadegermânica.A
essetermoseassociariamigualmenteressonânciascristãs,maslimitadas
poresse“cristianismomerovíngio”,“superficialecarregadodesuperstições”.Apraesentiaseria,emsuma,sinônimodevirtus,ouseja,depoder
miraculoso12. Em primeiro lugar, não há nada no texto acima citado
queindiqueumafunção“sagrada”ou“miraculosa”dapresençareal.O
Edito de Chilperico menciona as circunstâncias nas quais aquele que
perpetrouomalnãopodeserconduzidodiantedoreiparaserjulgado.
Trata-se,portanto,deumareferênciaànecessidadedeumjulgamento
presididopeloreie,oqueéóbvio,emsuapresença,outalvezdeumrepresentanteseu.Emsegundolugar,otermomaisimportantenesseedito
nãoéapraesentia,masosermoregis,oua“palavradorei”:éessapalavra
quegaranteumjulgamentodeacordocomasnormasdoprocedimento
judiciário.Sercolocadoforadosermoregissignificaperdertodaapossibilidadedeumjulgamentoequânime:“...entãoseuadversário,etodos
aquelesaquemeleterácausadomal,podemacusá-lodiantedeNós,eNós
oporemosforadeNossaPalavra(nostrosermone),afimdequequem
o encontrar possa matá-lo sem outra formalidade” (grifo nosso). O
sermoregissignificaaquiaproteçãoformalconcedidaaosacusadosem
face da violência e da imprevisibilidade dos acertos interpessoais. No
capítulo19dolivroIXdasHistórias,GregóriodeToursconcluiorelato
das“guerrascivis”(bellacivilia)queteriamocorridonacivitasdeTours,
12
M.Reydellet,Laroyautédanslalittératurelatine,pp.380-381.
134 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
mencionandooassassinatodeSicariusporAustregésilo.Esteteriaido
aoencontrodoreiparajustificar-sepeloocorrido,deparando-seentão
com a cólera da rainha Brunilda (†613), pois Sicarius estava sob sua
proteção(ineiusverbo).Éemsobreposiçãoàsrelaçõesinterpessoaisque
a“palavra”realdeveserentendida:elagaranteaprevisibilidadedeum
ordenamentojurídiconoqualasmesmasregrasseaplicamatodosos
litigantes.
NoEditodeChilperico,aafirmaçãopeloreidaexistênciadeumdomínioondeasregrasjurídicasnãosãoválidaseondeoculpadopodeser
assassinado,semconseqüênciaslegaisparaoassassino,supõeaexistênciadeumoutrodomínionoqualessasregrasseaplicam.Essasregras
nãosãoosimplesprodutodearbítriodorei:aoafirmarqueosacusados
colocadosforadosermoregisestãoforadequalquerregimedeproteção
legal,otextoadmiteimplicitamentequeaquelesqueseencontramdentrodosermoregissebeneficiamdeumaproteçãolegal13.Pode-sefalar
em sobrevivência da autoridade pública quando as medidas tomadas
pelopoderrealsãofundamentadasporumareferênciaaosinteressesda
coletividade,mastambémquandoessasmesmasmedidassãoequânimeseuniversais.NacartadeClóvisaosbisposenoEditodeChilperico,
os príncipes agem como os depositários de uma autoridade superior,
comoosguardiõesdeprincípiosjurídicosqueseaplicamatodos.
Outroindíciodaexistênciadeumanoçãodeinteressepúblicono
governo merovíngio se encontra em um diploma de Teudeberto II,
de596.ÉoúnicodiplomarealpreservadodoséculoVIsobreoqual
nãohánenhumadúvidasobreaautenticidade,aindaquesetratede
umtextointerpolado,ouseja,ligeiramentemodificadoemrelaçãoao
documentooriginal.Essediplomaéconhecidoapartirdeumacópia
carolíngia do século IX (feita entre 857 e 862), que por sua vez foi
conservadaatravésdeummanuscritodoséculoXII(produzidoentre
13
Comoveremosmaisadiante,oprocessodobispoPretextatus,acusadodocrimedetraição,
mostraapreocupaçãodeChilpericocomaformajurídica(HistóriasV,18).
MarceloCândidodaSilva135
1143e1165)14.Otemadessedocumentoéaaconfirmaçãoporparte
doreideumadoaçãorealizadapordoisirmãos,Eoladius,umpadre,
eBaudomalla,umafreira.ElesconcedemàigrejadeSãoGervaiseà
igrejadeSãoProtais,localizadasnopagusdeMans,umcertonúmero
depossessõesnomesmolocal:terrascomvinhas,prados,etodosos
direitossobreessasterras,alémdeumapequenacapela(oratorio),dedicadaaSãoMartinho,queosdoadorestinhamfundadonasmuralhas
da cidade de Mans. Teudeberto II explica sua ação utilizando-se da
seguintefórmula:“Poressarazão,elesbuscaramnossaalteza,demodo
quedevemosconfirmarpornossaplenaautoridade...”15.Oreiinterfere
apartirdeumpedidodosdoadores.Entretanto,essepedidonãoéa
únicarazãoinvocadaporele.ÉsuaprópriaautoridadequeTeudeberto
invocaparajustificaraintervenção.Osdoadoresestãopersuadidosde
quesemaconfirmaçãoreal,adoaçãonãopossuinenhumvalorlegal.A
palavra“autoridade”designanessedocumentoumpoderpúblicoque
ultrapassaoslimitesdasrelaçõesinterpessoaisequeseimpõeaessas
últimas, conferindo às mesmas uma legitimidade que são incapazes
de criar por sí sós. Da mesma forma que nos textos anteriormente
citados,odiplomadeTeudebertoIItestemunhadaexistênciadeuma
“autoridadepública”comregraselógicasdistintasdosprincípiosque
sesobrepõemeorientamasrelaçõesinterpessoais.
O“público”nasfontesmerovíngias
Não basta encontrar algumas vezes a palavra“público” nas fontes
do séculosVI para se afirmar que a realeza não era considerada uma
simples extensão das possessões pessoais do príncipe.A existência de
termos designando uma esfera de domínio público distinta da esfera
dosinteressespessoaisdosgovernantesnãosignificaquehouvesseuma
14
VerDieUrkundenderMerowinger,ed.T.Kölzer,t.I,pp.68-69.
DieUrkundenderMerowinger,t.I,pp.69-70.
15
136 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
separaçãodefatoentreelas.Várioshistoriadoresatribuemaosmerovíngiosumainabilidadeatávicaementenderouemutilizarasnoções
essenciaisdavidapolíticaromana.AquestãoessencialresideemsesaberseosconceitospresentesnosdocumentosdoséculoVIrealmente
encobriamumadimensão“pública”daaçãodogovernoreal.Paratanto,
énecessárioqueas“palavras”estivessemdeacordocomas“coisas”que
elasaparentavamexpressar,istoé,aexistênciadeumaautoridadepública.
Nenhumoutrodomíniodaadministraçãofrancatemsidoobjetode
tantaspolêmicasquantoofisco16.Eleestánocentrodasargumentações
sobreocaráterpatrimonialdarealeza.Paraosdefensoresdessatese,o
fatodequenãohaviaentreosfrancosdistinçãoentreotesouropúblico
eotesouroprivadodosreisseriaaprovadequeoreinoeradirigido
comosefosseapropriedadedadinastiareinante.Aconfusãosemântica
16
VerJ.Durliat,Lesfinancespubliques,p.98.OstrabalhosdeJ.DurliatapresentamassociedadesdaAltaIdadeMédiaprofundamentemarcadaspelaperenidadedosistemafiscalromano.Aseliteslaicasseriamagentesdofisco,responsáveisporrecolherosimpostos,eaIgreja,
umsetordaadministraçãopública.SobreascríticasàobradeJ.Durliat,verespecialmente
Ch.Wickham,(“LachutedeRomen’aurapaslieu”,pp.107-126)eJ.-P.Devroey(Economie
ruraleetsociétédansl’Europefranque,pp.231-245).AindaqueaobradeJ.Durliattenha
sidoobjetodeinúmerascríticasquantoaofixismodesuainterpretaçãodovocabuláriofiscal,
umadasidéiasporeleveiculada,asobrevivênciadasestruturasfiscaisdaépocaromana,não
foipostaemchequeporseusdetratores.NalinhadaargumentaçãodeDurliat,vertambém
aobrarecenteeeruditadeA.Stoclet,emqueelepõeemevidênciacontinuidadedotonlieu
duranteaépocafranca(A.Stoclet,Immunesabomniteloneo).Asobrevivênciadadistinção
romanaentreotesouropúblicoeotesouroprivadodosgovernantesnãosignificaqueosistemafiscalnaGáliatinhapermanecidoinalteradoapósafundaçãodoRegnumFrancorum,
comoestimavaF.DahnnofinaldoséculoXIX(“ZummerowingischenFinanzrecht”,p.345).
Aopiniãodesseautornãolevaemcontaofatodequeosfrancostransformaramolegado
romanosegundosuasnecessidadesesegundoasespecificidadesdaGálianosséculosVIeVII.
Aindaqueaorigemromanadosistemafiscalfrancosejaindiscutível,nãosepodeafirmarque
astaxasnaépocadeClóvis,deClotário,deChilpericoedeGontrãoeramasmesmasdaépoca
deDioclecianoedeConstantino,comomostrouW.Goffart(“OldandNewinMerovingian
Taxation”, p. 213). Segundo Goffart, duas categorias de documentos dos séculosVII eVIII
MarceloCândidodaSilva137
queencontramosnasHistóriaspodeexplicaroprestígiodessatese:algumasvezes,GregóriodeToursmencionao“tesourodorei”,masaose
analisarocontextonoqualaexpressãoéutilizada,percebe-sequeele
fazreferênciaaotesouropúblico.Éocasodocapítulo45dolivroVI,
cujoassuntoéocasamentodafilhadoreiChilpericocomumpríncipe
visigodo.Nessecapítulo,arainhaFredegondafalados“tesourosdosreis
precedentes”,masficaclaroaolongodotexto,sobretudonaconclusão
do discurso que lhe é atribuído pelo bispo de Tours, que se trata do
“tesouropúblico”:
“Nãoacreditem,guerreiros,quehajaaquialgumacoisadostesourosdos
reisprecedentes…poisnãohánadaaquidostesourospúblicos”17.
Otermo“tesouro”empregadopelobispodeTourséàsvezesbastanteambíguoeseprestaàconfusão.SomentenasHistórias,épossível
identificartrêsacepçõesdistintasdessetermo.Aprimeiracorresponde
aocofredotesouropúblicoouoaerarium,istoé,olugarondeeram
conservadosouroedinheiro:
“Quantoaosservidoresqueforamenviadospeloreiparaprocurarosbens
dessehomem,elesdescobriramtantoemseustesouros(thesaurisillius)que
elesnãopoderiamterencontradonoscofresdotesouropúblico(aerariipublici)”(grifonosso)18.
mostramespecialmenteocontrasteentreafiscalidaderomanaeafiscalidademerovíngia.Os
primeirossãoosdiplomasdeimunidade–documentosreaisqueproibiamaosagentesdorei
oacessoaalgunsdomíniosfundiáriosparaacoletadeimpostosouparaoexercíciodajustiça.
Asegundacategoriadedocumentosseriamosregistrosdosdomínioslaicoseeclesiásticos.A
leituradosdiplomasdeimunidadedoséculoVIImostra,segundoW.Goffart,umvocabulário
quecontrastaprofundamentecomovocabuláriodasimunidadesromanas:nessasúltimas,em
nenhumaparteastaxaseraminvocadas;tratava-se,sobretudo,deliberarosbeneficiáriosdas
imunidadesdetodasasfunçõespúblicas(Ibid.,p.214).
17
HistóriasVI,45.
18
HistóriasIX,9.
138 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Asegundaacepçãodotermodizrespeitoaolocalondeestavamdepositadososdiplomasoficiais,osatospúblicos,bemcomoascópiasdas
cartasreais:
“EssesescritosforamdescobertosemumtesourodoreiChilperico,reunidosdentrodeumdeseuscofres,echegaramatéele(Childeberto)quando
apósoassassinatodeChilpericoostesourosdesseúltimoforamretiradosda
viladeChelles,quepertenceàcidadedeParis,paralheserenviado”(grifo
nosso)19.
“Essepapelnãofoitrazidodotesourodoreieduranteváriosanoselenão
esteveemvigor…”(grifonosso)20.
Otermo“tesouro”podedesignartambémotesouropessoaldorei,
de outros membros da família real, ou ainda o dote de uma princesa21.HácasosemqueobispodeToursmencionaapalavra“fisco”oua
expressão“tesouropúblico”,numaclaratentativadediferenciaçãoem
relaçãoa“possessõespessoais”:
“O bispo Eunius, o embaixador dos bretões, de quem falamos anteriormente,nãofoiautorizadoavoltarparaasuacidade,eoreiordenouqueele
fossemantidoemAngersàcustadotesouropúblico”(grifonosso)22.
Ofisco,outesouropúblico,provavelmentecompreendiaoaerarium
eos“arquivos”reais,mashárazõesparasepensarqueelenãoincluíaos
benspessoaisdorei,comoseverámaisadiante.Asreferênciasaofisco
19
HistóriasX,19.
HistóriasIX,30.
21
HistóriasVI,35:“Emseguida,arainhaapoderou-sedotesourodeseupequenofilho,edestruiupelofogotantoasvestimentasquantoosoutrosobjetos,fossemelesdesedaoudeumtecido
qualquer,etudooqueelapôdeencontrar”;HistóriasIV,28:“Opai,recebendoessaspromessas,
lheenviasuafilhacomohaviafeitocomaoutra,comgrandestesouros...”.
22
HistóriasV,40.
20
MarceloCândidodaSilva139
nãosupõemnecessariamenteaexistênciadeum“Estadofiscal”franco,
poiseste,comobemlembrouJ.-P.Devroey,nãodeixounemmanuais,
nem leis, nem instrumentos econômicos e administrativos que testemunhariamdeseufuncionamento.Boapartedodossiêdoimpostono
séculoVIsereduznaFranciaaostestemunhosantifiscaistransmitidos
porGregóriodeToursnumcontextodedefesadosdireitosdaIgreja.
De acordo com Devroey, ainda havia registros e tentativas de cobrar
impostoemcertascidadesdaGálianofinaldoséculoVI,masasfontes
sereferemaelesapenasparaassinalaradestruiçãodoslivroseoassassinatodoscoletores23.Nãoapenas.ObispodeToursmencionaoscasos
deváriospersonagenscujosbensteriamsidovertidosaofiscoapóssua
morte24.Pode-secitarigualmenteocasodoreiClotário,queimpôsa
todasasigrejasdeseureinoaobrigaçãodeentregaraterçapartedesuas
rendasaofisco:“OreiClotáriohaviaordenadoquetodasasigrejasdeseu
reinovertessemumterçodeseusfrutosaofisco”25.GregóriodeToursnão
éoúnicoautorquereconheceessefenômeno:nacrônicaatribuídaa
Fredegário,tambémhámençõesavítimasdofisco26.
Poder-se-ia argumentar que essa distinção entre“fisco” e“tesouro
pessoaldorei”erameramentesemântica,equehavia,naprática,confusãoentreambos.Ora,nenhumtrechodasHistóriasilustramelhora
existênciadeumaseparaçãorealentre“tesouropúblico”e“tesourodo
rei”queocapítuloquetratadocasamentodafilhadeChilpericoedeFredegondacomumpríncipevisigodo.DeacordocomGregório,dianteda
23
J.-P.Devroey,Economieruraleetsociétédansl’Europefranque,p.236.
HistóriasIII,14:“Quandoelefoiassassinado,seusbensforamvertidosaofisco”;Histórias
VI,28:“…emseguida,tendofeitopenitência,suaalmasefoieseusbensforamvertidosaofisco”;
HistóriasIV,13:“...seusbensforamconfiscados”.
25
HistóriasIV,2.
26
Fredegário,CrônicasIV,21:“NosétimoanodoreinadodeTeuderico,eleteve,deumaconcubina,umfilho,chamadoSigeberto,eopatrícioAegyla,semsequepossalheimputarnenhumerro,
foiassassanadoporinstigaçãodeBrunilda.Aúnicarazãoparaissoestánodesejocúpidodequeo
fiscoseapropriedesuafortuna”.
24
140 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
estupefaçãodosfrancoscomaquantidadedetesourosquefaziamparte
dodotedaprincesa,arainhaFredegondateriatentadoacalmá-los:
“Nãoacreditem,guerreiros,quehajaaquialgumacoisadostesourosdos
reisprecedentes.Tudooquevêsaquifoitiradodeminhapropriedade,pois
ogloriosíssimoreideu-memuitospresenteseeumesmaacrescenteialguns
benscommeuprópriotrabalho.Eutambémobtivemuitocomostributos
emdinheiroeinnaturadasvillaequemeforamconcedidas.Vósmedestes
muitopresentes,comosquaiseucompusoquevósvedesdiantedevós,pois
nadaháaquidostesourospúblicos”(grifonosso)27.
Emprimeirolugar,areaçãonegativadamultidão,descritaporGregóriodeTours,mostraquehaviaumaregrasegundoaqualospríncipes
nãopodiamutilizarofiscocomosesetratassedesuapossessãopessoal.A
justificativadarainhaperanteseussúditosconstituiumalembrançadesse
princípiodeseparação.Eladizaosfrancosqueostesourosquecompunhamadotedaprincesanãopertenciamaotesouropúblico,esimaseu
tesouropessoal.ObispodeToursnãoteriamencionadoessaressalvasea
confusãoentreambososdomíniosfosseumapráticarecorrenteouainda
umprincípioestabelecidopelatradiçãoeaceitoportodos.
Issonãoquerdizerqueoperíodomerovíngionãoconhecesseaconfusãoentreosbenspúblicoseosbenspessoaisdosreis.Aproximidade
geográfica–ambosostesourosseencontravamnoPalácio–provavelmentefacilitouamálgamas.Damesmamaneira,funcionárioscorruptos
confundiamosbensdofiscocomosseusprópriosbens.Gregóriode
Toursmenciona,porexemplo,Celso,nomeadopatrícioporGontrão:
“Elefoidominadoemseguidaporumatalcobiçaquefreqüentementetomavaosbensdasigrejasparaconfiscá-losemseupróprioproveito.Conta-se
quetendolidoumaveznumaigrejaoversodoprofetaIsaíasnoqualessediz:
‘Afliçãoaestesqueunemascasasàscasasereúnemoscamposaoscampos,
27
HistóriasVI,45.
MarceloCândidodaSilva141
atéosconfinsdopaís!’,eleteriagritado:‘Éincongruente;afliçãoamimeao
meufilho!’”28.
A descrição negativa de Gregório mostra uma vez mais que a
confusãoentreosbenspessoaiseosbenspúblicoseraumaanomalia
que os clérigos não hesitaram em combater – especialmente quandoasmalversaçõesdiziamrespeitoaosbenseclesiásticos,diga-sede
passagem.Umapráticadifundidaelegalnaadministraçãofranca,ao
menosnoqueserefereàadministraçãolocal,previaqueumaparte
dosimpostosarrecadadosfosseapropriadapelofuncionárioresponsávelpelaarrecadação,comoformaderemuneração,enquantooutra
parteiaparaofisco29.Apesardeumaconfusãofísicaentreotesouro
públicoeotesourodorei,edosinúmeroscasosdecorrupçãorelatados nas Histórias de Gregório de Tours ou nas Crônicas atribuídas
aFredegário,havianaadministraçãofrancaumaregradeseparação
entreambososdomínios.
Aabundânciadeexemplosdeseparaçãoentreotesouropúblicoe
otesouroprivadodospríncipesnãosignificaqueoshistoriadoresque
sustentamateseda“realezapatrimonial”desconsideremoualterem
eventosvoluntariamenteparaquesuasconclusõessejamdemonstradas.Simplesmente,adimensãoanedóticadasnarraçõessobreosreis
francos, por tudo o que elas mostram da“crueldade” e da“sede de
poder”dessespersonagens,deixouemsegundoplanoofatodequeos
excessosouasambiçõespessoaisnãosãonecessariamenteincompatíveiscomumaadministraçãopúblicaregidapeloprincípiodointeres-
28
HistóriasIV,24.
Amesmacoisaocorrianotocanteàsmultas.J.DurliatlembraquepelomenosnaBaviera,a
pessoaencarregadapelocondedeexercerajustiçarecebiaumnonodovalortotaldasmultas
atítuloderemuneração(L.Bav.2,15,citadaporJ.Durliat,Lesfinancespubliques,p.120,n.
205).Orestanteiaemparteàpessoalesadaeemparteàrealeza,nocasodejulgamentoentre
particulares, ou em sua totalidade à realeza, no caso de desrespeito às obrigações públicas,
notadamentemilitares(G.Waitz,DeutscheVerfassungsgeschichte,t.II,p.290,citadoporJ.
Durliat,Lesfinancespubliques,p.120).
29
142 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
sesuperior,distintodosinteressespessoaisdaquelesquegovernam.A
confusãoentreofiscoeaspossessõesdosreisfrancoséessencialmente
ummitodoRomantismocujovigorultrapassouemmuitooslimites
doséculoXIX30.
“Aequalance”:AspartiçõesterritoriaisdoRegnumFrancorumnoséculoVI
As partilhas de que foi objeto o Reino dos Francos a partir da
morte de Clóvis (511) são comumente apontadas como o melhor
indício do caráter patrimonial da realeza franca: com a morte do
rei, o reino seria dividido entre seus herdeiros como se fosse um
bem pessoal do rei ou da família merovíngia31. Por outro lado, a
demonstraçãodequeasdivisõesterritoriaisdoRegnumFrancorum
nãoeramorientadasporconveniênciaspessoaisoupatrimoniais,e
simporumalógicaderivadadointeressepúblico,éomelhoremais
30
AutorescomoH.Pirennetinhamsustentadoquenãohaviaconfusãoentreasfinançaspúblicaseasfinançaspessoaisdosreisfrancos,massuasidéiasnãoobtiverammuitarepercussão
entreoshistoriadores.ParaPirenne,aconservaçãodoimpostoromanoedo“tonlieu”eraa
fonteessencialdopoderdosreisfrancos(H.Pirenne,“LibertéetpropriétéenFlandreduVIIe
auXIesiècle”,p.522-523).Maisrecentemente,atesedePirennetemsidoreavaliadaportrabalhosquesustentamqueosistemafiscalerigidopelosromanostinhasobrevividoàsinvasões
eserviaaindaàsnecessidadesdosreismerovíngios[Abibliografiaaesserespeitoénumerosa.
Há os trabalhos de J. Barbier,“Palais et fisc à l’époque carolingienne:Attigny”, pp.132-162;
damesmaautora,“AspectsdufiscenNeustrie(VIe-Xesiècles).Résultatsd’unerechercheen
cours”,pp.129-142;deE.Magnou-Nortier,“LagestionpubliqueenNeustrie:lesmoyensetles
hommes(VIIe-IXesiècles)”,pp.271-320;e“LesPagenses,notablesetfermiersdufiscdurant
lehautmoyenage”,pp.237-256.NãosepodedeixardemencionarostrabalhosdeW.Goffart
(“OldandNewinMerovingiantaxation”,pp.213-231).
31
Emartigorecente,R.LeJanafirmaqueasoluçãodapartilhanãosignificaqueoreinoera
consideradocomoumbem“privado”,masqueeleeraopatrimôniodafamíliamerovíngia,por
suavezemanaçãodopovofranco[R.LeJan,“LeroyaumedesFrancsde481à888”,pp.11-111;
vertambém,damesmaautora,LesMérovingiens].
MarceloCândidodaSilva143
forteindíciodapermanênciadanoçãodeutilitaspublicanoedifício
políticofranco.
“ApósamortedoreiClovis,seusquatrofilhos,istoé,Teuderico,Clodomiro,ChildebertoeClotário,ampararam-sedeseureinoedividiram-noentre
simantendoumigualequilíbrio(aequalance)”32.
EssetrechodasHistóriasrelataaprimeirapartilhadoRegnumFrancorum.OsquatrofilhosdeClóvis,Teuderico,Clodomiro,Childebertoe
Clotário,obtiveram,cadaum,umapartedoreino.Conformeexpressão
utilizadapelobispodeTours,tratou-sedeumapartilha“aequalance”,
com“igualequilíbrio”,oucom“balançaigual”.AmesmaexpressãoaparecenovamentenorelatodeGregórioquandodescreveoassassinatodos
filhosdeClodomiro,mortoduranteaguerracontraosburgúndios.Após
teremassassinadoseussobrinhos,ClotárioeChildebertoteriampartilhadooreinodeseuirmão:“ElesentãodividiramoreinodeClodomiro
entresicomigualequilíbrio(aequalance)”33.Várioshistoriadoresinterpretaramessasduasreferênciasàeqüidadecomoaprovamaislímpida
docaráterpatrimonialdarealezafranca:osmerovíngiosteriamdividido
oreinocomoseestivessemdividindoumaextensãodeterrasquaisquer,
emsuma,umbempessoal.OabadeLeBeuf,porexemplo,viunotermo
“aequalance”aprovadequeosterritóriosobtidosporcadapríncipese
equivaliamdopontodevistadaextensãoterritorial34.Assimsendo,as
partilhaslevariamemcontaapenasasconveniênciaspessoaisdosherdeiros–acomeçarpeloseunúmero–emdetrimentodecontingênciasge-
32
HistóriasIII,1.
HistóriasIII,18.AausênciademençãoaTeudericosugere,àprimeiravista,queelenãofoi
beneficiadopelapartilhadoreinodeClodomiro.
34
J.LeBeuf,DissertationdanslaquelleonrecherchedepuisqueltempslenomdeFranceaété
enusage...,pp.84-85.EssaidéiaéopontodepartidadatesedeFusteldeCoulanges,paraquem
oReinodosFrancoseraumbemprivadodeseussoberanos,umaespéciedepatrimônioquese
transmitiasegundoasregrasordinárias,podendomesmoserlegadoportestamentoouporsimplesdeclaraçãodevontade(N.D.FusteldeCoulanges,Lamonarchiefranque,pp.649-651).
33
144 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
ográficasoupolíticas.Ora,obispodeTours,quandodescreveasucessão
deClotário,únicoreidosfrancosentre558e561,nãoempregaaexpressãoaequalance.SegundoGregório,apósamortedeClotário,seufilho
Chilpericoteriapretendidoapoderar-sedamaioriadaherançapaterna.
ElerapidamenteteriatomadopossedotesourorealdeParis,prestigioso
centropolíticodoreino,ondeClóvisestavaenterrado35.Osirmãosde
Chilpericouniram-secontraeleeprocederamentão,acrescentaGregório,aumpartilha“legitima”doreino36.Sabe-sequenãosetratoudeuma
partilhaterritorialmenteequânime,poisChilpericorecebeuumaparte
doreinoinferioràsdeseusirmãos37.Issopoderiasignificarqueaopre-
35
A captura do tesouro real e da cidade de Paris por Chilperico se explica provavelmente
peloseutemordeserexcluídodasucessãorealapósamortedeClotário.Contrariamentea
Gontrão,aSigebertoouaCariberto,elenãoerafrutodauniãodeClotáriocomIgonda,mas
comairmãdela,Aregonda.
36
HistóriasIV,22:“Logoemseguida,eleentrouemPariseocupouasededoreiChildeberto,mas
nãolhefoipermitidopossuí-ladurantemuitotempo,poisseusirmãosseunirameoexpulsaram,
eemseguidatodosessesquatro,ouseja,Cariberto,Gontrão,ChilpericoeSigeberto,fizeramuma
partilhalegítima”.
37
Ver A. Longnon, Géographie de la Gaule auVIe siècle, pp.115-152. Graças a fontes variadas,comoasHistóriasdeGregoriodeTorres,asCrônicasdeFredegárioouas“Vidasde
santos”,épossívelcompreendermelhoraspartilhasmerovíngias.Entretanto,araridadedos
testemunhostornadifícil,eatémesmoimpossível,areconstituiçãodoscontornosexatosdos
territórios atribuídos a cada príncipe franco durante as partilhas que ocorreram após 511.
Convém também ser prudente sobre o testemunho das fontes. Trabalhos antigos, como os
deA.Longnon,oumaisrecentes,comoosdeE.Ewig[“DiefränkischeTeilungenundTeilreiche (511-613)”], de M. Heinzelmann (GregorvonTours) e I.Wood (“Gregory of Tours
andClovis”,pp.249-272),têmpostoemevidênciaosenganos,voluntáriosounão,contidos
nanarraçãodobispodeTours.VerGrégoiredeToursetl’espacegaulois:actesducongrès
international.Amaioriadoimensotrabalhodereconstituiçãodoscontornosterritoriaisdas
partilhas merovíngias foi empreendido porA. Longnon e atualizado algumas décadas mais
tardeporE.Ewig.Éemseustrabalhosquenosapoiaremosnaspáginasseguintesparadelinear
oscontornosgeográficosdecadaumadaspartilhas.Épossívelquenovaspesquisasvenhama
mostrarqueumaououtracivitasaquicitadanãoestejacorretamentelocalizadaemcadaum
dosregna.Entretanto,oessencialnestecapítuloéidentificarqualeraouquaiseramaslógicas
quepresidiamaspartilhasdoRegnumFrancorumduranteoséculoVI.
MarceloCândidodaSilva145
ferirutilizaraexpressão“legitima”,aoinvésde“aequalance”,Gregório
estavaconscientedequeessaúltimasomenteseriaaplicávelnocasode
umapartilhaisonômicageograficamente,oquedecididamentenãoera
ocasodapartilhade561.
Oprimeiroargumentocontraessateseéque,aoseobservarum
mapadadivisãoterritorialde511,porexemplo,ficaclaroquenãohaviaequilíbriogeográficoalgum(vermapa1).Emextensãoterritorial,
porexemplo,oregnumdeChildebertoIerabemmenordoqueode
Teuderico.Poroutrolado,asucessãorealentreosfrancosnemsempre
beneficiou os filhos do príncipe. Segundo H.-W. Goetz, a“herança
dosfilhos”ea“herançadosirmãos”coexistiramcomodois“sistemas”
concorrentessemqueumpredominassesobreooutro,aindaqueasu38
cessãodosirmãosfosseexcepcional .Assim,porvoltade523,quando
o rumor da morte de Teuderico chegou àAuvérnia, foi a seu meioirmão, Childeberto, que os habitantes da cidade se submeteram, em
detrimento do filho legítimo de Teuderico, o príncipe Teudeberto39.
Noentanto,asituaçãoébemmaiscomplexa.Ascrônicasdosséculos
VIeVIIestãorepletasdesituaçõesnasquaisnemtodososfilhosdo
príncipeherdaramoreino.Entreosburgúndios,apósamortedorei
Gondebaldo,em516,seufilhoSigismundoéquemlhesucedeu:oreino
nãofoipartilhadoentreesteúltimoeseuirmãoGodomar40.Oterceiro
livrodasCrônicasatribuídasaFredegáriosugerequeSigismundose
tornoureipelavontadedeseupai,masnadaéditoarespeitodeseu
irmão41. É necessário, portanto, nuançar a fórmula citada por Gre-
38
H.-W.Goetz,“Coutumed’héritageetstructuresfamilialesauhautMoyenAge”,pp.203-237.
HistóriasIII,9:“EnquantoTeudericoaindaestavanaTuríngia,correuorumoremAuvérnia
(Clermont)queelehaviasidoassassinado.Arcadius,umdossenadoresauvérnios,convidaentão
Childebertoatomararegião”.
40
HistóriasIII,5:“ApósamortedeGondobaldo,seufilhoSigismundotomoupossedeseureino”.
41
Fredegário, Crônicas, III, 33: “Sigismundo, filho de Gondobaldo, foi elevado ao trono por
ordemdeseupaipróximoaGenebra,naviladeCarouge…”.SegundoK.Binding,Fredegário
retirou essa informação da Crônica de Marius d’Avenches (Das burgundisch-romanische
Königreich,vol.1,p.225,n.779).
39
146 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Mapa1
góriodeTours42:aindaquetodasascriançasnascidasdereisfossem
chamadaspríncipesreais,odireitodesucederaoreinãoeragarantido
automaticamenteatodososseusfilhos.Nessesentido,aspartilhasnão
obedeciam pura e simplesmente às conveniências patrimoniais dos
reisedeseusherdeiros.
Um terceiro argumento contra a tese patrimonial é que as regras
quepresidiamadivisãodosbenspessoaisnãoorientavamadivisãodo
reino.EmseutítuloLIX,quetratadaherançadosalódios,oPactuslegis
Salicaeestabeleciaqueodireitoàherançadosbensparentaiscabiaàs
criançase,nocasodeelasnãoexistirem,aopaiouàmãedodefunto.
42
HistóriasV, 20: “… ele começou a falar várias coisas a respeito do rei e a dizer que os filhosdesseúltimonãopodiamocuparoreino,poissuamãepertenciaàdomesticidadedofinado
Magnacariusquandofoichamadaparaacamadorei;eleignoravaquechamamosfilhodorei
aquelesqueforamprocriadosporreissemquetenhamoscontadafamíliadasmulheres”.
MarceloCândidodaSilva147
Naausênciadospais,aherançaiaparaosirmãoseasirmãsdodefunto
e,emseguida,paraatiamaternaeparaatiapaterna43.Omesmotítulo
LIX,entretanto,excluíaasmulheresdodireitoàherançadaterra44.Na
prática,noentanto,comomostrouR.LeJan,osalódiossetransmitiam
tantoaoshomensquantoàsmulheres.Ospaistinhamaescolhadedeixaraherançaparasuasfilhas.Noseiodocasal,aesposaconservavao
direitosobreseusbens,herdadosouadquiridosnomomentodocasamento45.Defato,apossibilidadeparaasmulheresdeherdarodomínio
fundiárioestavaprevistanoEditodeChilperico,umdos“Capitulários
adicionaisàLeiSálica”:otextoestabeleciaquenaausênciadeumhomem,asmulherespodiamherdaraterra46.Oreino,poroutrolado,ou
eraherdadoporumdosfilhosdorei,oupartilhadoentreeles,masem
qualquerdasduashipótesesasmulhereseramexcluídas.Asregrasde
sucessãodinásticanãopreviamodireitodeelasherdaremoreino;se,
emalgumasocasiões,asrainhasexerceraminfluêncianosassuntospolíticos,elasofizeramcomoregentes,enãocomotitularesdopoderreal47.
Tomando como parâmetro a discrepância entre as regras de sucessão
alodialprevistaspelaLeiSálicaeasregrasdesucessãodinásticavigentes
noReinodosFrancos,pode-seafirmar,então,queasucessãorealnão
43
PactusLegisSalicae,LIX:“Sobreterrasalodiais.1.Seumhomemmorrerenãodeixarfilhos,e
seseupaioumãesobreviveremaele,aherançaserádeles.2.Senãohouvermãenempai,masseele
deixouumirmãoouirmã,aherançaserádeles.3.Senãohouvernenhumdeles,entãoaherançaserá
dairmãdamãe.4.Senãohouverairmãdamãe,entãoairmãdopaireceberáaherança.5.Senão
houverairmãdopai,apósessasgerações,aquelequeforomaispróximodopaireceberáaherança”.
44
Idem,6:“Noqueserefereàterrasálica,nenhumapartepodeserherdadaporumamulher,
todavia,todaaterrapertenceaosdosexomasculinoquesãoseusirmãos”.
45
R.LeJan,Familleetpouvoirdanslemondefranc,pp.233-234.
46
Chilpericiedictum,3,p.8:“Damesmamaneira,foidecididoeordenadoquesetodososvizinhos
têmfilhosoufilhasquesobrevivamàsuamorte,quedisponhamdaterratodososfilhosquecontinuam
vivos,segundoaLeiSálica.Esederepenteosfilhosmorrerem,asfilhasdomesmomodorecebem
asterras,comosefossemosfilhosqueastivessem”(grifonosso).
47
Sobreasrainhasmerovíngias,verI.Wood(“RoyalWomen:Fredegund,BrunhildandRadegund”,
In:TheMerovingianKingdoms,pp.120-139)e,maisrecentemente,otrabalhodeN.Pancer(Sans
peuretsansvergogne.Del’honneuretdesfemmesauxpremierstempsmérovingiens).
148 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
eraordenadapelasregrasdesucessãoalodial,maspossuíaumalógica
quelheeraprópria.Masquallógica?
Consciente dos limites da tese patrimonial, M. Rouche, em sua
biografiadeClóvis,foibuscarnatradiçãogermânicaumaexplicação
paraaspartilhas.Segundoele,asucessãode511foioresultadodos
costumesmatrilinearesdaantigaGermânia48.Damesmamaneira,a
partilhadosterritóriosdeClodomiro,em524,seriaumacombinação
dedoiscostumesgermânicosancestrais:atanistry,queconcediaaherançadoreidefuntoaosseusirmãosenãoaosseusfilhos,easucessão
matrilinear,queexcluíadodireitoàherançaTeuderico,porsuacondiçãodemeio-irmãododefunto49.ÉnorelatodeGregóriodeTours
que M. Rouche se fundamenta para demonstrar a exclusão de TeudericodaherançadeClodomiro50.M.Roucheafirmaqueatanistry
easucessãomatrilinearforamasrazõesquemotivaramChildeberto
eClotárioaassassinaremseussobrinhoseaexcluíremTeodoricoda
partilha que se seguiu. Entretanto, há indícios de que Teuderico se
beneficioudeumaparceladosterritóriosdeseumeio-irmãoClodomiro.ApartilhadoregnumdesseúltimotrouxeparaTeudericopelo
menosumapartedacivitasdeSens,bemcomoascivitatesdeAuxerre
edeTroyes.Umacartaescritaem538aChildebertopelobispoLeão
48
M.Rouche,Clovis,pp.350-351:“Clóvispretendiaqueseusfilhoslhesucedessem,semespecificarmaisdoqueisso.SetivessempraticadoatanistryàmaneiradeGenserico,Teuderico,ofilho
primogênito,comvinteeumanos,teriasidooúnicoareceberotítulodereieadeixarsucessivamenteopoderacadaumdeseusmeios-irmãos,Clodomiro,ChildebertoeClotário.Masissoteria
sidoconsideradocomoumainjuriaàClotilderelegaraosegundoplanoascriançasdocasamento
oficialemproveitodofilhodeumauniãoanteriordenívelinferior.Atanistryfoiassimsimultânea
(…)ParaTeuderico,ascoisaserampraticamentecertas,emrazãododireitodamãe(Mutterecht)
(…)Esseretornoaoscostumesgermânicosmatrilinearestinhavantagensseasucessãovoltava
paraoúltimoirmãoquereunificavatudo».
49
Ibid.,pp.360-361.
50
HistóriasIII,18:“Apósessasmortes,Clotário,montandoacavalo,sefoisemsepreocuparcom
oassassinatodeseussobrinhos…[ClotárioeChildeberto]dividiramoreinodeClodomirocom
igualequilíbrioentreeles”.
MarceloCândidodaSilva149
deSensmostraqueacidadeepiscopaldessepreladodependiadeTeudeberto,filhoeherdeirodeTeuderico,poiseleserefereaoprimeiro
comoseurei51.
SeaspartilhasdoReinodosFrancosnãoeramfrutodeumapercepçãopatrimonialdoespaçopúblico,etampoucodetradiçõesdaantiga
Germânia,issosignificaqueelasseriamfrutodopuroacaso,docaprichodospríncipesfrancos,comosustentaA.Longnon?Emsuasobras,
Géographie de la Gaule au VIe siècle (publicada em 1878), e Atlas
historiquedelaFrance(1907),Longnonrefutaaidéiadeumalógica
geográficadaspartilhas.Paratanto,elecitaadescontinuidadeterritorial
dosdomíniosherdadospelosfilhosdeClóvis.A.Longnonobservaque
apósamortedeClóvis,osterritóriosdaGáliaquepertenciamaosfrancosantesde507foramdivididosdemaneiramaisoumenosregular,ao
passoqueaAquitânia,conquistadanessadata,foi“despedaçada”entre
todososherdeirossemrazãooulógicaaparentes.Emsuaopinião,isso
sópoderiaterumaexplicação:secadaumdosfilhosdeClóvisquisse
beneficiardeumaporçãodoterritóriodaAquitânia,eraporcausade
suas“famosasvinhas”52.
Nãosepodeaceitaraidéiadequeaspartilhasterritoriaiseramfruto
doacaso.Emprimeirolugar,éimportantelembrarqueasdivisõesrepetidasnãoprovocaramaimplosãodoReinodosFrancosemnumerosas
entidades políticas independentes. Houve até mesmo momentos em
que o reino recuperou sua unidade política. Da chegada ao poder de
Clóvis até a metade do séculoVIII, o Regnum Francorum foi em váriasocasiõesgovernadoporumsórei,eissodurantecercade72anos.
Mesmolevando-seemcontaqueapartirdasegundametadedoséculo
VI o poder dos prefeitos do palácio não cessou de aumentar e que o
particularismoregionalerabastanteforte,nãoseassistiuàformaçãode
51
Epistolaeaevimerowingicicollectae,3.Alémdisso,naVidadeSaint-Phal,oshistoriadores
encontraramindíciosdequeacivitasdeTroyespertenciaaoregnumdeTeudeberto[citadopor
A.Longnon,GéographiedelaGauleauVIesiècle,p.98ep.105,n.2].
52
A.Longnon,GéographiedelaGauleauVIesiècle,p.90.
150 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
unidadespolíticasindependentesapartirdoReinodosFrancos.Além
disso, é necessário lembrar que quando da morte de Clóvis, seu filho
TeudericoherdouoterritóriocorrespondenteàantigaFranciaRhinensis
(afuturaAustrásia).Essaregião,quehaviasidoincorporadaaoReino
dosFrancospoucosanosantes,mantevesuaintegridadeterritorialna
partilhade511enaspartilhasseguintes.Apartirdessasevidências,édifícilsustentarqueaspartilhasfrancaseramaleatórias,ousimplesmente
frutodocaprichodospríncipes.
Nosúltimosanos,oshistoriadorestendemaenxergarnaspartilhas
do século VI o resultado de um arranjo político. Para E. Ewig, por
exemplo,aspartilhas–ouTeilungen–queocorreramnaGáliaentre
511 e 714 constituíram um compromisso político dos reis francos
sem nenhuma relação com o passado germânico53. I.N.Wood vê na
partilhade511umarranjopolíticoreunindodeumladoClotildee
seusfilhos,edeoutro,Teuderico.Desseacordoteriamparticipadoos
bisposeosgrandesdoreino54.
AinfluênciadosbisposnaspartilhasdoRegnumFrancoruméuma
tesesedutoraapriori.Noentanto,háfortesindíciosdequeosresultadosdasmesmastrouxeramprejuízosàIgreja.Oscânonesdoconcílio
deClermont,de535,sãoacompanhadosporumacartanaqualosbispospedemaoreiTeudebertoquenãopermitaqueninguémpercaseus
bensesuaspossessõesquandoseencontraseparadodelesemvirtude
dopartilhadoreino55.Osbisposconciliarespreocupavam-seemsalvaguardar os bens eclesiásticos, ameaçados pelas constantes divisões
doreinoquenemsemprelevavamemcontaoslimitesdasprovíncias
eclesiásticas.DuranteoConcíliodeClermont,osbisposameaçaram
deexcomunhãoaquelesquetomavampossearbitrariamentedosbens
53
E.Ewig,“DiefränkischeTeilungenundTeilreiche(511-613)”,pp.651-715;K.F.Werner,Les
origines:avantl’anmil,pp.358-361;P.Geary,NaissancedelaFrance.Lemondemérovingien,pp.117-118;S.Lebecq,Lesoriginesfranques,p.63
54
I.Wood,“Kings,KingdomandConsent”,pp.6-29.
55
Clermont(535),EpistolaadregemTheodebertum.
MarceloCândidodaSilva151
edosrecursosdaIgreja,qualificadosdenecatorespauperum(“assassinosdospobres”)56.Odécimo-quartocânoneéumaadvertênciadirigidaaosbisposeclérigosdetodososníveisquepoderiamaproveitarda
partiçãoterritorialparaapropriar-sedaquiloquepertenciaàIgreja57.
Pode-senotar,atravésdoIVConcíliodeOrléans(549),aamplitude
queassumiuoseqüestroeoconfiscodosbensdaIgrejapelosreise
poroutrosmembros da aristocracia laica. O mesmo temareaparece
noprimeiroconcílioocorridoemParisapósamortedeClotário.Os
cânones desse concílio mencionam as ameaças constantes à integridadedopatrimônioeclesiástico,bemcomoasintervençõesreaisem
matériadedisciplinaedeorganizaçãodaIgreja58.Diantedaquelesque
justificavamaapropriaçãodosbenseclesiásticosemrazãodaspartilhasdoreino,osbispos,emduasocasiões–emParis,porvoltade562,
e em Tours, em 567 – opuseram o argumento da universalidade da
forçadoCristo.OstermosusadospelosbisposemParisIIIparaqualificarasituaçãodaIgreja,associandoosladrõesdebenseclesiásticosa
“assassinosdospobres”,eramdeumagravidadeinédita:esseshomens
agiriam sob a cobertura das partilhas e das liberalidades reais59. As
críticasconstantesàsimplicaçõesdaspartilhasnalegislaçãoconciliar
aolongodoséculoVImostramqueénecessárionuançaropapeldo
episcopado nos acordos sobre os limites e as fronteiras dos diversos
regna.Aindaqueosbispostenhameventualmenteparticipadodesua
organização,comoem511,ou,comoveremosmaisadiante,emAndelot,em587,aspartilhasdoséculoVIforamespecialmentefavoráveis
aospoderesreais,semquefossemlevadosemcontaosinteressesda
Igreja.Nãosepodesupor,portanto,quealógicadessaspartilhasfosse
inspiradapelaIgrejaepelahierarquiaeclesiástica.
F.Cardottambémcontribuiuparaodesenvolvimentodeumanova
interpretaçãodaspartilhas.Elaacreditaquenasucessãodospríncipes
56
OrléansV(549),c.13.
Ibid.,c.14.
58
ParisIII(v.561-562),c.1;ToursII(567),c.26.
59
ParisIII(v.561-562),c.1.
57
152 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
merovíngiospredominavaumalógicaterritorial,istoé,aspeculiaridadesregionaiserammuitomaisimportantesqueonúmerodeherdeiros.Contudo,essalógicasomenteteriatriunfadoapartirdofinaldo
séculoVI, quando “... à memória do poder de um homem se substitui
aconsciênciadeumregnumsemrei”60.ApartirdoséculoVIIéqueas
partesdoReinodosFrancosoriundasdaspartilhasseconverteramem
entidadesperenestendoumapersonalidadeprópria,expressaporuma
aristocraciarepresentantedosinteressesregionais.Ébemverdadeque
énessemomentoqueoPseudo-Fredegáriomencionapelaprimeiravez
otermoNêustria(Neptrico,Neuster)paradesignararegiãocompreendidaentreoRioLoire,oCanaldaManchaearegiãodaChampagne.
OtermoAustrásiaéumpoucoanterior,eaparecepelaprimeiraveznas
Histórias,deGregóriodeTours,nofinaldoséculoVI,quandoelenarra
osconflitosentreSigebertoIeChilperico.Alémdomais,F.Cardottem
razãoquandoafirmaqueTeudebertoI,emsuacartaaJustiniano,recorreatermosgeográficosapenascomoumexercícioretóricodestinado
aimpressionaroimperadordoOriente61.Evidentemente,nãosepode
ignorarquehaviaumadimensãopessoalnoexercíciodaautoridadepolíticaentreosfrancos:ageografiadaspartilhaslevavaemcontatambém
onúmerodepríncipesherdeiros62.ComosublinhaI.Wood,umadas
preocupaçõesdapartilhade511podetersidoadeevitarqueTeuderico,
filhodeumaprimeiraesposadeClóvis,fosseoseuúnicoherdeiro,em
detrimentodosfilhosdeClotilde63.Todavia,issonãoquerdizerquenão
houvessenenhumapercepçãopolíticadoespaçonoRegnumFrancorum
noséculoVI.
AimplementaçãodaspartilhasterritoriaisnoséculoVItambémlevou
em conta as contingências territoriais, e especialmente políticas: a afirmaçãodeumalógicaterritorialoupolíticaemdetrimentodeumarazão
puramentedinásticanãopareceserumfenômenotãotardiocomoacre60
F.Cardot,L’espaceetlepouvoir.Etudessurl’Austrasiemérovingienne,p.129.
EpistolaeAustrasicae,III,20.
62
E.Ewig,“DiefränkischeTeilungenundTeilreiche(511-613)”,pp.651-715.
63
I.N.Wood,“Kings,kingdomsandconsent”,pp.6-29.
61
MarceloCândidodaSilva153
ditaF.Cardot.EssalógicajáestavapresentequandoosfilhosdeClóvis
obtiveram,cadaum,umapartedoRegnumFrancorum,em511.Omelhor
exemplo,nessesentido,éaherançadeTeuderico:comofoiditoanteriormente, os territórios que ele passou a governar correspondiam, grosso
modo,aoantigoReinodeColônia,cujos“grandes”tinhamreconhecidoo
poderdeClóvisem507.Alémdisso,onomeTeuderico(Theudericus)evocaonomededoisreisrenanosdoséculoIV:Teudebaldo(Theudebaldus)e
Ricimero(Ricimerus).OsdescendentesdiretosdeTeudericocontinuaram
areinarduranteváriosanos,emesmoapósamortedeTeudebaldo,em
555,oreiClotárioseasseguroudequeofilhoquelhesucederianaAustrásiapossuísseomesmonomedeumantigoreideColônia,Sigeberto64.
ComexceçãodostrêsanosduranteosquaisClotárioIgovernousozinho
o Regnum Francorum, e durante os primeiros anos em que Clotário II
ocupouamesmafunção,aFranciaRhinensisteve,atéofimdoséculoVII,
seusprópriosreiscujosnomesevocavamosantigosreisdeColônia65.
Mesmoacriaçãodeenclaves,queàprimeiravistapareceseraprova
docaráterirracionaldaspartilhasterritoriais,éfrutodeumacordopolítico.Osenclaveseramvisivelmenteumasoluçãoquevisavafavorecer
acoesãoentreosregna.Paraatingiraeficiênciaadministrativadeseus
reinosrespectivos,bemcomoparaconduzirascampanhascontraum
inimigoexterno,ouparaestabelecerumadefesaefetivacontrataisameaças,osherdeirosdeClóviseramobrigadosabuscarentendimento.Na
partilhade511,aproximidadeterritorialdascapitaisescolhidas–Paris,
Reims,SoissonseOrléans,apartiçãodoreinoemdoisblocos,aosule
ao norte do rio Loire, a presença de enclaves territoriais, assim como
a escolha de Paris como capital comum, mostram que havia entre os
francosumapolíticadeunião,emaisdoqueisso,osentimentodapreservaçãodaintegridadedoRegnumFrancorum.
64
K.F.Werner,Lesoriginesavantl’anMil,p.360.
Teuderico I (511-533), Teudeberto I (534-547), Teudebaldo (547-555), Sigeberto I (561575),ChildebertoII(575-592),TheudebertoII(595-613),DagobertoI(623-629),Sigeberto
III(c.633-656),DagobertoII(656-v.660),Childeberto,oAdotado(656/61-662),Childerico
II(662-675)eDagobertoII(676-679).
65
154 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Aidéiadoacasoparaexplicaraspartiçõesfrancasdeveserdescartada:
édifícilacreditarquedivisõesaleatóriastenhamevitadoporsisóafragmentaçãocompletaeirreversíveldoreinoe,maisainda,queosimples
acasoexpliqueapreservaçãodaintegridadeterritorialdaAustrásia(FranciaRhinensis)edaBurgúndia.MesmosedermosrazãoaI.WoodeaE.
Ewigsobreopapeldosacordospolíticosnarealizaçãodaspartilhas,cabe
aindaperguntarquaiseramoscritériosqueconduziamessesarranjos.O
respeitoàsparticularidadesregionaisnãodevetersidooúnicodeles,pois
aAquitânia,porexemplo,conquistadaaosvisigodosem507,foidividida
apósamortedeClóvisentreClodomiro,ClotárioeTeuderico.Em561,
ocorreunovadispersãoterritorial:Chilperico,CaribertoeSigebertoreceberamporçõesdoterritórioaosuldorioLoire(verMapa2).Novamente,aintegridadedaquelaregiãonãofoirespeitada,aocontráriodoque
ocorreucomaFranciaRhinensisecomaBurgúndia.Essadiscrepânciano
Mapa2
MarceloCândidodaSilva155
tratamentodadoàAquitâniaporumlado,eàsdemaisregiõesporoutro,
significaqueosarranjospolíticosnaspartilhasnãocontemplavamapenas
osparticularismosregionais.Deve-sebuscarentãoumaoutraexplicação
paraapartilhadaAquitâniaentreospríncipesfrancos.
Atéopresentemomento,asinúmerasinterpretaçõessobreaspartilhas
doReinodosFrancosnãoderamimportânciasuficienteàscivitates.E,
portanto,elasocupavamlugardedestaquenoedifíciopolíticofranco.A
civitasera,pelomenosduranteoséculoVI,aunidadefiscalfundamental
doReinodosFrancos66.Essasituaçãosomentesemodificouduranteo
séculoVII,quandoopagussetornouaunidadeterritorialfundamental.
OnúmerodecircunscriçõesnaGáliapassouassimdeumacentenano
finaldoséculoV,paracercade600ou700unidadesnoséculoVII67.Nas
Histórias,deGregóriodeTours,cadaparteoriundadaspartilhaseradefinidanãoapenaspelapessoadorei,mastambémporsuascapitais:
“A sorte deu a Cariberto o reino de Childeberto com a sede em Paris; a
Gontrão,oreinodeClodomiroquetemporsedeOrléans;aChilpericoo
reino de seu pai Clotário com Soissons por capital; a Sigeberto o reino de
TeudericocomacapitalemReims”68.
66
J. Durliat, Les finances publiques de Dioclétien aux Carolingiens (284-889), p. 100; do
mesmoautor,“Lesattributionscivilesdesévêquesmérovingiens:l’exempledeDidier,évêque
deCahors(630-655)”,pp.67-77;H.H.Anton,porexemplo,vêemTrieroprotótipodeuma
cidadequepermaneceatéoséculoVIIIumaparteessencialdodispositivofiscalfranco(“VerfassungsgeschichtlicheKontinuitätundWandlungenvonderSpätantikezumhohenMittelalter:dasBeispielTrier”,pp.1-25,citadoporJ.Durliat,Lesfinancespubliques,p.100,n.21);ver
também,E.Magnou-Nortier,“Duroyaumedescivitatesauroyaumedeshonores”,p.324.
67
K.F.Werner,“Missus-Marchio-Comes.Entrel’administrationcentraleetl’administration
locale”,pp.191-239,especialmentep.191.
68
HistóriasIV,22.Ver,aesserespeito,A.Dierkens,P.Périn,“Lessedesregiaemérovingiennesentre
SeineetRhin”,pp.267-304.SobreanoçãodefronteirasnoOcidenteduranteaAntigüidadeTardia
eaAltaIdadeMédia,verH.-W.Goetz,“ConceptsofrealmandfrontiersfromlateAntiquityto
theEarlyMiddleAges”,In:W.Pohl,I.Wood,H.Reimitz(ed.),TheTransformationofFrontiers.
FromLateAntiquitytotheCarolingians,pp.73-82;etambém,D.Harrison,“Invisibleboundaries
andplacesofpower:NotionsofliminarityandCentralityintheearlyMiddleAges”,pp.83-93.
156 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
As Formulae de Marculfo e as Histórias, de Gregório de Tours,
mencionamquequandoosfrancoseosromanoseramconvocadospara
jurarfidelidadeaumnovoreisobreasrelíquias,eraemcadacivitasque
essacerimôniaocorria69.Alémdisso,umaparteconsideráveldoexército
francoseachavaemserviçojuntoaorei,prontaparaserrapidamente
convocadaparaalutaemcasodenecessidadeimediata,masoutraparte,
umaespéciedeexércitodereserva,sereunia,sobordemreal,emcada
umadascivitates.Osprópriossoldadoseramidentificadosemfunção
desuascidadesdeorigem70.
Épossívelentãoafirmarquehaviaisonomianuméricadascivitates
quecabiamacadaumdospríncipesnomomentodaspartilhas?Areconstituiçãodecadaumdosregnaéumatarefabastantedifícil.Como
bemnotouA.Lognon,GregóriodeToursnãosepreocupouemdefinir
claramenteacomposiçãoouoslimitesterritoriaisdasherançasdecada
umdospríncipesmerovíngios.Aindaassim,umatalreconstituiçãoé
possível.Tome-secomoexemploapartiçãode511,queGregórioqualificacomoaequalance:ClotárioIobteveaonortedorioLoire,Soissons,
Noyon,Tournai,Maastrich,Boulogne,Thérouanne,Laon,ArraseVermond;Teudericorecebeu,aonortedorioLoire,Reims,Cologne,Zulpich,Trèves,Metz,VerduneChalons-sur-Marne,enaAquitânia,Cahors,
eChildebertoherdouRouen,Amiens,Beauvais,Meaux,Evreux,Séez,
Lisieux,Bayeux,Coutances,Avenches,LeMans,Rennes,Vannes,Quimper.OreinodeClodomir,oúnicoapossuirumterritóriocontínuodos
69
FormulaeMarculfi,I,40;vertambém,HistóriasVII,26e33;Histórias,IX,30.
HistóriasVI,31.Aimagemtradicionalqueahistoriografiaconstruiudoexercitodaépoca
merovíngiaéadeumbandoarmadovivendodapilhagemedaexploraçãodaspopulações
civis.“Reis privados”, os merovíngios teriam sido sustentados por milícias de mercenários,
poucorespeitosasdeseushabitantesedesuaspossessões,equeeramarregimentadasfreqüentementenoexteriordaGália.Oexércitofranconãopossuíaumaestruturatãorudimentar
assim.Seussoldadoserampagospelasrendasfiscais,comumasomafixadaporlei,variável
paracadahomememfunçãodeseugrau(J.Durliat,Lesfinancespubliques,p.127;vertambém,B.S.Bachrach,MerovingianMilitaryOrganisation,p.123).
70
MarceloCândidodaSilva157
doisladosdorioLoire,eraconstituídoporcercadenovecivitates:Sens,
Auxerre, Bourges, Orléans, Chartres, Tours,Angers, Nantes e Poitiers.
Essarecapitulaçãomostraquenãohaviaisonomiaquantitativaentreas
civitatesquecouberamacadaumdosherdeiros.
AsegundapartilhanaqualapareceotermoaequalanceéaqueocorreuapósamortedeClodomiro,em524:Sens,Auxerre,Troyes,etalvez
Bourges,foramincorporadasaoreinodeTeuderico,oquecriouuma
continuidade territorial entre as possessões desse último naAuvérnia
enaFranciaRhinenses;ChildebertoobteveascivitatesdeOrléansede
Chartres;ClotárioincorporouaoseureinoToursedePoitiers.Teuderico recebeu, portanto, o dobro das civitates obtidas por cada um de
seusmeios-irmãos.Osignificadodotermoaequalancenãopodeser,
portanto,quantitativo,nemdopontodevistadaextensãoterritorialdos
regna,tampoucodopontodevistadonúmerodecivitates.Nessecaso,
podemos pensar qualitativamente na importância militar, estratégica,
fiscaloupolíticadecadaumadascivitates.
No livro V das Histórias, Gregório menciona a reação da rainha
Fredegondadiantedeumagraveepidemiaqueatingiuseusdoisfilhos;
dirigindo-seaoreiChilperico,elateriadito:
“‘Há muito tempo, a misericórdia divina nos sustenta, nós que somos
agentesdomal;poismuitasvezesfebreseoutrosmalesnospuniram,enão
nos corrigimos. Eis que agora perdemos nossos filhos; eis que as lágrimas
easlamentaçõesdospobreseossuspirosdosórfãososmatam,enãonos
restam mais esperanças de acumularmos bens para alguém. Entesouramos
sem saber para quem acumulamos. Eis que tesouros permanecem provados de possuidor, cheios de rapinas e de maldições! Nossos depósitos não
abundamdevinho?Nossosceleirosnãoestãorepletosdefrumento?Nossos
tesourosnãoestãorepletosdeouro,prata,pedraspreciosas,colareseoutras
jóiasimperiais?Eisqueperdemosoquetemosdemaisbelo!Agoravenha,por
favor;incendiemostodosesseslivrosdeimpostosiníquosequenossofiscose
contentecomaquiloqueerasuficienteaopaiereiClotário’.Apósdizerisso,
arainha,batendoospunhosemseupeito,ordenouquemostrassemoslivros
quehaviamsidotrazidosdascidadesporMarcos,etendo-oslançadoaofogo,
158 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
virou-separaoreiedisse:Queesperas?Façaoquetumevêsfazer,paraque
seperdermosnossosfilhospelomenosescapemosàpenaeterna’.Entãoorei,
ocoraçãograve,lançouaofogotodososlivrosdeimposiçõesequandoeles
foramqueimadosenvioupessoasparaproibirnovasimposições” 71.
Ficaclaroatravésdotrechoacimaqueosregistrosfiscaiseramestabelecidosemcadaumadascivitates.Oreiconheciaototaldesuasrendasfiscaissomandoasrendasregistradasemsuascidades.Aeqüidade
sugeridapelaexpressãodeGregóriodeTours,aequalance,podenãoter,
portanto,aconotaçãodeumadivisãosimétricadoterritóriodo RegnumFrancorum,tampoucodonúmerodecivitates.Aequalancepode
traduzirumadivisãoaproximativadasrendasfiscaisobtidasporcada
herdeiroapartirdascidadesquelheeramconfiadasnomomentodas
partições.GregóriodeToursmencionaarevisãodoimpostofundiário
noPoitouporordemdeChildebertoII.Esteteriaordenadoqueseus
coletoresfossemaPoitiersparaqueoimpostodevidopeloshabitantes
fosse pago somente após um recenseamento. Depois de ter restabelecido a justiça da imposição em Poitiers, eles teriam ido a Tours, para
exigir da população o pagamento do imposto devido de acordo com
umregistroqueelestinhamemmãos.Gregório,entãobispodeTours,
retorquiuafirmandoqueClotárioIhaviamandadoqueimaroexemplar
docadastrofiscal,isentandoassimapopulaçãodacidade72.Osagentes
reaislheapresentaramentãooreferidoregistro,masobisporeplicou
afirmandoquesetratavadeumexemplarconservadoporumdosnotáveis de Tours, e não um documento oriundo do tesouro público, o
que um milagre terminaria por demonstrar73.A disputa em torno da
civitasdeMarselhaéumdosmelhoresexemplosdaimportânciafiscal
dessas unidades territoriais e administrativas. Childeberto II, após ter
71
HistóriasV,34.
HistóriasIX,30.
73
Ibid.
72
MarceloCândidodaSilva159
feitoapazcomseutioChilperico,enviouembaixadoresaoreiGontrão
paraobrigá-loadevolver-lheametadedacivitasdeMarselha,queele
haviaconcedidoaesseúltimoquandodamortedeSigebertoI.Entretanto,oconflitoentreosdoisseprolongou,esomentenofinalde583é
queGontrãoteriadevolvidoaChildebertoIIametadedeMarselha74.A
importânciadacidadedeve-se,sobretudo,aofatodeelaseroprincipal
porto do Mediterrâneo ocidental, e cuja pujança se manifestou pelo
menosatéasegundametadedoséculoVI.Ovolumedemercadorias
trazidodoOrienteeraconsiderável(especiarias,sedas,papiroseazeite
de oliva), o que significava para o poder real uma renda fiscal considerável.QuandodadivisãodacidadeentreChildebertoIIeGontrão,
oaustrasianoDinamusdirigiuMarselhaemnomedosdoisreis75.Isso
mostraquenãohouvenecessariamenteumadivisãopolíticadacidade,
mas,oqueébemmaisprovável,umadivisãodasrendasfiscais.
Fundadasnovalorfiscaldascivitates,aspartilhasobedeciamaimperativosdeordempolíticaeadministrativa,istoé,àsnecessidadesmateriaisdecadapríncipeherdeirodecriaredemanterestruturasdegovernoemcadaumdeseusterritórios.Éimportante,contudo,sublinhar
que as considerações fiscais não eram as únicas a prevalecer durante
aspartilhasterritoriaisfrancas.Assuscetibilidadesregionaisconstituíramalgumasvezesumfatordeterminante,comonocasodorespeito
àintegridadeterritorialdoantigoreinodeColônia.Étambémpossível
queClóvistenhasidoguiadoemsuasucessãopeloprincípiodaImitatio
Imperii,poisodireitodetodososherdeiroshomensdesucederaoseu
paisedesenvolveunoImpérioapartirdoséculoIII.NaEspanhavisigótica,porexemplo,oreiLeovigildo,seguindoomodeloconstantiniano,
associouàrealezaseusdoisfilhos,RecaredoeHermenegildo76.Outras
razõestambémpodemserevocadasparaexplicaradecisãodeClóvisde
74
HistóriasVI,33.
HistóriasVI,11.
76
VerA.IslaFrez,“Lasrelacionesentreelreinovisigodoylosreyesmerovingiosafinalesdel
sigloVI”,pp.11-32.
75
160 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
outorgaracadaumdeseusfilhosumapartedoreino.Havia,porum
lado,asproezasmilitaresdeTeuderico,quedevemterconferidouma
aura de prestígio. Além disso, pode-se pensar nas pressões da rainha
Clotilde,paraquemaexclusãodeseusfilhosdaherançapaternateria
sidoumaafronta77.Todavia,essessãofatoresmeramenteconjecturais,
epodemexplicarascircunstânciasdeumadeterminadapartilha,como
a de 511, mas são insuficientes para se compreender o fenômeno em
suacontinuidadeeemsuacomplexidade,em561,em567ouem587.
Mapa3
77
I.N.Wood,“Kings,kingdomsandconsent”,pp.6-29.
MarceloCândidodaSilva161
AunidadeperenedoRegnumFrancorumresultoudofatodequeessas
partilhas constituíram um arranjo estrutural, de natureza política, e
cujoobjetivoeraodeconstituirumaautoridadepúblicaeficaz.
Alógicaterritorialqueseesboçaapartirdapartilhade511–ecujos
indícios serão ainda mais fortes nas partilhas de 561 e de 567 – tinha
porfundamentoumapreocupaçãodeequilíbriofiscal.Cadaumdosreis
procurava munir-se de meios próprios para assegurar sua autoridade
sobre as populações dos territórios por eles governados. Tratava-se de
dotar a autoridade real, em todas as partes do Reino dos Francos, dos
meiosdeaçãopermitindosustentaraadministraçãocivil,bemcomoo
exército.Essasolução,longedeterprovocadoafragmentaçãodoReino
dos Francos, contribuiu para a manutenção de sua unidade, inclusive
duranteoperíododasguerrascivis,quandoasrivalidadesentreosreis
francos alcançaram seu ponto culminante. Qualquer que tenha sido a
responsabilidadedaspartilhasnaeclosãodasguerrascivisqueopuseram
osreisfrancosdoiníciodasegundametadedoséculoVIatéoanode
613,nãosepodenegaralógicaeaeficáciadosprincípiosconsagrados
pelapartiçãode511.Concebidascomoumrecursodeestabilidadepara
omundofranco,osarranjosterritoriaisfundadosnasrendasfiscaisdas
cidadescumpriramseupapelnaprimeirametadedoséculoVI.Oestabelecimentodeenclaves,quecriouefetivamenteumasituaçãodeinterdependência,deveriagarantiracooperaçãodentrodomundofranco.Da
mesmaforma,aexcentricidadedascapitaisnapartilhade567tinhasido
compensadapelacriaçãodeum“condomínio”,compreendendoascidadesdeParis,SenliseRessons-sur-Matz,queestavamsubmetidasàautoridadedostrêsreis.Emboratudoissonãotenhagarantidoumaharmonia
totalentreospríncipesfrancos,nenhumconflitogeneralizadoocorreu
atémortedeClotárioI.Aindaqueseconstateofracassodessafórmula
em567,nãosepodenegarqueelaperseguiaentãooestabelecimentode
umequilíbriopolítico,maisaindaqueem561.Pormaisparadoxalque
issopossaparecer,aspartilhasnãoeramumelementodedivisão,masde
união.Entretanto,osarranjosterritoriaiseramincapazesdepromovera
estabilidadepolíticadeumreinoondeosprojetospolíticosdosreisti-
162 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
nhamsetornadomaisemaisconcorrenteseondeapersonalidadepolíticadosregnatinhaseafirmadoconsideravelmenteaolongodoséculoVI.
Aspartilhasfrancas,pelomenosduranteoséculoVI,foramorientadas
poruma“razãodeEstado”quenãosereduziaaosinteressesprivadosdo
reioudeumououtromembrodaselitesgalo-francas.
E. Ewig e K.F. Werner vêem desde o século VI uma progressiva
autonomização de cada um dos regna, de modo que a unidade do
RegnumFrancorumnãoseriamaisqueumaficçãonocomeçodoséculoVII.ApósamortedeClotárioII,eduranteasdécadasseguintes,
ter-se-ia assistido à consolidação de três grandes blocos territoriais:
aNêustria,aAustrásiaeaBurgúndia.Realmente,éapartirdoinício
doséculoVIIqueaassociaçãonominalentreosregnaeospríncipes
queasgovernavamcomeçouacairemdesuso.OreinodeSigeberto
I foi chamado deAustrásia, o de Gontrão retomou o nome de Burgúndia.Umpoucomaistarde,porvoltadametadedoséculoVII,os
territórios do noroeste da Gália, onde tinha reinado Chilperico, receberamadesignaçãodeNêustria78.Entretanto,nenhumdospríncipes que reinaram na Burgúndia, na Nêustria ou naAustrásia, todos
membros da mesma família até 751, utilizou os títulos respectivos
derexBurgundiaeourexNeustriae.Cadaumdeleserachamadorex
Francorum.A consciência da unidade do reino aparece também nas
fontes da época. Regnum Francorum, ou Francia, continuaram a ser
ostermostradicionalmenteutilizadosporcronistasdosséculosVIIe
VIIIparadesignaraGália79.Alógicafiscaldaspartilhasfoiduramente
78
AsregiõesdonortedorioLoirepermaneciamocentrodegravidadedoRegnumFrancorum,
oquecorrespondiaaproximadamenteaoantigo“ReinodeSyagrius”.NaausênciadeumadenominaçãomaisprecisaatéametadedoséculoVII,essasregiõessãodenominadascomoo
“ReinodeSoissons”.Adenominação“Nêustria”aparecepelaprimeiraveznaVitaColumbani,
escritaporvoltade643porJonasdeBobbio(I,24).
79
HistóriasIV,9:“FoisoboreinadodeTeodebertoqueBuccelenus,quehaviaanexadotodaa
ItáliaaoReinodosFrancos,foiassassinadoporNarses”;HistóriasV,prólogo:“Édifícilparamim
lembrarasvicissitudesdasguerrascivisqueenfraquecembastanteanaçãoeoReinodosFrancos”;
HistóriasVI,24:“OduqueGontrão,tendoprendidoobispoTeodoro,lançou-onaprisãopor
MarceloCândidodaSilva163
colocada à prova pelos antagonismos que opuseram, especialmente
entre561e613,osmembrosdadinastiamerovíngia,epelaemergênciadetrêsgrandesentidadespolíticasdentrodoreino,aNêustria,o
AustrásiaeaBurgúndia.ApartirdoprincípiodoséculoVII,assistiuse a um aumento em importância do particularismo regional e dos
particularismos eclesiásticos no dispositivo das partilhas. A política
dosreismerovíngiosatéofinaldoséculoVIfoicaracterizadaporuma
centralizaçãoeporumaautonomiadiantedoepiscopadoaqualseus
sucessoresabandonaramprogressivamente.
Utilitaspublica
Maisimportantequeaperenidadedealgumasconstruçõesinstitucionais ou de títulos romanos, o que constitui a originalidade
maiordoséculoVInaGáliafrancaéasobrevivênciadeumaidéia
segundo a qual o objetivo central do governo não estava na satisfação dos interesses pessoais dos príncipes, mas na realização do
“interessepúblico”.Omelhorindício,nessesentido,sãoaspartilhas
doRegnumFrancorumnoséculoVI.Essaspartilhasconciliavamtrês
princípiosdistintos,aunidadegeraldoreino,osparticularismosregionaiseaviabilidadepolíticaeadministrativadecadadomínio.A
criaçãodeenclaves,bemcomoaexistênciadeumacapitalcomum,
sãoosmelhoresindíciosdequeaspartilhasnãoperdiamdevistaa
integridadeterritorial,alémdeforneceremaoReinodosFrancosa
coesão de que ele necessitava para fazer frente às ameaças exterio-
essarazão;eleoacusavadeterintroduzidoumhomemestrangeironasGáliasdeterpretendido
poressemeiosubmeteroReinodosFrancosàdominaçãoimperial”;HistóriasVII,27:“...que
nenhumestrangeiroouseviolaroReinodosFrancos”;FredegárioCrônicasIV,42:“Firmou-sea
unidadedoReinodosFrancoscomohaviasidoocasoquandoClotárioIdominava”;Fredegário,
CrônicasIV,45:“Poressaépocatambém,comoestáescritoanteriormente,eles[oslombardos]
fizeramirrupçãonoReinodosFrancos”.
164 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
res. As partilhas também respeitaram a integridade territorial das
regiõesconquistadaspelosfrancossobClóviseseussucessores.Os
sentimentosautonomistasdaaristocraciadoantigoReinodeColônia – que mais tarde iria se tornar aAustrásia – foram igualmente
levadosemconsideração.Éprovávelquerazõesestratégicastenham
forçadoosmerovíngiosamanteraunidadepolíticaeadministrativa
dessa região de fronteira. Finalmente, o reino era partilhado entre
os herdeiros de maneira a conceder a cada um deles civitates que
forneciamumvolumedeimpostosmaisoumenosequivalente.Esse
sistema,duranteamaiorpartedoséculoVI,esteveemcontradição
comumalógicaparaleladeorganizaçãodoespaçofranco,alógica
do episcopado.As fronteiras das partilhas nem sempre coincidiam
comoslimitesdasprovínciaseclesiásticas,oqueocasionavaprejuízosaosbensdaIgreja,sujeitostambémàsdivisões.Atransmissãodo
regnumdepaiparafilhonãosefaziaconformeumalógicado“direitoprivado”,massegundoumoutroimperativo,odaviabilidadedo
exercíciodaautoridadepúblicaemcadaumadaspartesdoRegnum
Francorum.Esseimperativosechocoucomalógicaeclesiásticadas
partilhas, como mostram os conflitos constantes entre os reis e os
bisposarespeitodosbensdasigrejas.
Adistinçãoemesmoaoposiçãoentrealógica“eclesiástica”ealógica“real”daspartilhaséomelhorindíciodequehaviaumaespécie
de ratio política entre os merovíngios. Como designar esse princípio que colocava, durante a maior parte do séculoVI, os interesses
darealezaacimadosinteressespessoaisdosreisedoepiscopado?A
expressãodovocabuláriomerovíngioquemelhortraduzessalógica
própria à monarquia franca é utilitas publica. Ela pode ser traduzidapor“interessepúblico”,ouseja,aqueleencarnadopeloEstado.A
idéiasegundoaqualoobjetivodaautoridadepúblicaépromovero
interessedacoletividadeétãoantigaquantoaprópriapolítica,efoi
expressaclaramentepelaprimeiraveznaGréciaantiga.Entretanto,
é em Roma que ela encontrou terreno fértil para o seu desenvolvimento e foi lá também que sofreu as mais profundas alterações. A
utilitaspublicatornou-seumdoscomponentesessenciaisdavidapo-
MarceloCândidodaSilva165
líticaromana80.Dotadadeumsentidobastanteamplo,essaexpressão
designavaautilitascivium,ohominumcommunis,istoé,ointeresse
doconjuntodoscidadãos,mastambémautilidadedoEstado–entendidocomoumaentidadeautônomacomsuasnecessidades,senão
seus fins próprios. Os autores romanos durante o período republicano,notadamenteCícero,tinhamprivilegiadoemsuadefiniçãode
respublicaasobrigaçõesdosgovernantesparacomosgovernados.O
reforçodopoderimperialentreosSeveros,semprecedentesnahistoriaromana,marcouumaevoluçãoimportantedanoçãodeutilitas
publica,doravanteidentificadacomoumaespéciederazãodeEstado
queeclipsouanoçãodeutilitascommunis81.
NoCódigoTeodosiano(séculoIV),porexemplo,apalavrautilitas
apareceem69ocasiões,dasquais31sobaformadeutilitaspublica.No
CodexIustinianus(séculoVI),deumtotalde83mençõesdeutilitas,
32dizemrespeitoàutilitaspublica,esomente6mencionamautilitas
communis82.Autilitaspublicaaparecenasconstituiçõestardo-romanascomosinônimodedefesadaintegridadedoImpério83.Essamutaçãosemânticaseinserenocontextodofortalecimentodaautoridade
imperial,naqualoEstadoeraidentificadoaosserviçospúblicoseà
vontadedosoberano,muitomaisdoqueàcomunidadedecidadãos.
OadventodoImpérioCristãotransformoumaisumavezoconteúdo
da utilitas publica. No Código Justiniano, a utilitas publica aparece
associadaàidéiadeumamissãoedeumaresponsabilidadeconfiadas
porDeusaosgovernantes.Naóticadesta“teologiapolítica”,Deuste-
80
Noqueserefereànoçãodeutilitaspublicanaépocaromana,verM.Steinwenter,“Utilitaspublica,utilitassingulorum”,pp.84-102;J.Gaudemet,“Utilitaspublica”,pp.465-499;há
tambémolivromaisrecentedeP.Hibst,ondeoautorestudaasformasmedievaisdanoção
deutilitaspublica(UtilitasPublica–GemeinerNutz–Gemeinwohl.Untersuchungenzur
Idee eines politischen Leitbegriffes von derAntike bis zum späten Mittelalter, pp.1-6,
pp.142-160).
81
J.Gaudemet,“Utilitaspublica”,p.465.
82
Ibid.,p.480.
83
M.Steinwenter,“Utilitaspublica,utilitassingulorum”,pp.84-102.
166 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
riaconfiadoossúditosaoimperadorparaqueelevelassepelosseus
interesses84.Aoposiçãoentreessasduasformasdeutilitas–umaprimeiracentradanapreservaçãodasinstituiçõeseumasegundafocada
nocorposocial–nãoserestringeapenasàépocaromana,épossível
encontrá-latambémnahistóriapolíticadoRegnumFrancorum,como
veremosaseguir.
NaobradeGregóriodeTours,autilizaçãodapalavrautilitassugere,
àprimeiravista,umaconfusãoentreapessoadoreiearealeza.Obispo
deToursdescreveoconflitoentreoduquedosbretões,Weroc,eorei
Gontrão:
“Mas, quando (Weroc) veio encontrar Ebracharius, implorou a paz, entregourefénsassimcomonumerosospresentes,prometendonãocontrariar
jamaisosinteressesdoreiGontrão(contrautilitatemGuntchramniregisesse
venturum)” (grifonosso)85.
Nomesmocapítulo,obispodeVannesafirmanãotertidojamaisa
pretensãodeopor-seaosinteressesdosreisfrancos:
“Nósnãosomosemnadadevedoresemrelaçãoaosreisnossosmestres,diz
obispo,ejamaistivemosapresunçãodeopor-nosaosseusinteresses(contra
utilitatemeorum),mas,conquistadospelosbretões,fomossubmetidosaum
pesadojugo”(grifonosso)86.
ApalavrautilitasapareceaindaquandoobispodeReims,Egidius,
confessadiantedeumtribunaleclesiásticoseramigodoreiChilperico:
“EunãopoderianegarquetenhosidoamigodoreiChilperico;porém,não
écontraosinteressesdoreiChildeberto(contrautilitatemregisChildeberthi)
queestaafeiçãosedesenvolveu”(grifonosso)87.
84
VerCódigoJustinianoVI,5,1,14a.
HistóriasX,9.
86
Ibid.
87
HistóriasX,19.
85
MarceloCândidodaSilva167
Emnenhumdostrêstrechosacimacitados,estáclarosea utilitas
concernesomenteàpessoadoreioutambémàautoridadepúblicapor
ele encarnada. Em outro trecho das Histórias, fica claro que o autor
consideraointeressepúblicoeointeressepessoaldoreicomoduascoisasdistintas,emborapróximas.LevadoàpresençadeChildebertoII,o
duqueGontrãoBosonconfessateragidonãosócontraavontadedorei,
mastambémcontraautilitaspublica:
“Eupequeicontratietuamãe,aonãoobedeceravossospreceitos,mas
agindocontravossavontadeeointeressepúblico(...sedagendocontravoluntatemvestramatqueutilitatempublicam)”(grifonosso)88.
Duasidéiassãoimportantesnessetrecho.Aprimeiraéque,aocontrariar Childeberto, o duque Gontrão teria igualmente se oposto ao
interessepúblico.IssosignificaqueparaGregóriodeToursosinteresses
doreiChildebertIIsecoadunamcomautilitaspublica.Umpríncipe
pode,portanto,fazercoincidirseusinteressescomosinteressesgerais.
Em segundo lugar, ao mencionar no mesmo trecho e separadamente
osinteressesdoreieointeressepúblico,obispodeTourssugereque
os dois elementos nem sempre se confundem. Seria, entretanto, um
equívocoacreditarqueadistinçãoentreointeressedoreieointeressepúblicofosseummerocaprichodelinguagemdeGregório.Ocaso
anteriormentemencionadododotedafilhadoreiChilperico,emque
apareceareaçãonegativadosfrancosàsuspeitadequehaveriabenspúblicosentreostesourosofertadosàprincesa,éumforteindíciodequea
distinçãoentreaquiloquepertenciaaoreieaquiloqueeradedomínio
públicotinhaumalcanceconcreto.
Adistinçãoentreosinteressespúblicoseosinteressespessoaisdorei
apareceigualmentenosdocumentosoficiais,porexemplo,notratado
88
HistóriasIX,8.
168 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
deAndelot.Otextodotratadopreviaodireitodepassagematravésdo
reinoàquelesquedesejavamselocomoverparatratardeseusinteresses
privadosouparaos“assuntospúblicos”:
“EcomoumaconcórdiapuraesincerafoiseladaemnomedeDeusentre
os referidos reis, foi decidido que a passagem através do reino de um e de
outronãoserájamaisrecusadaaosfiéisnemdeumnemdeoutroquando
elesquiseremselocomoversejaparaosassuntospúblicos,sejaemnomede
interessesprivados”89.
NotítuloIdoPactuslegisSalicae,maisprecisamentenoscapítulos4e
5,háumadistinçãoentreoserviçodoreieoserviço“privado”:“§4.Seum
homemestáocupadoemumamissãodorei,elenãopodevir.§5.Porém,se
ohomemestivernopagusparatratardeseusprópriosassuntos,elepodeser
chamado,comodissemosacima”.Aquelequeestivesseemmissãodefinida
peloreinãopoderiaserchamadoaomallus,pelomenosenquantodurasseamissão,masaquelequeestivessetratandodeseusprópriosassuntos
nopagus,nãopoderiaescapardaconvocação.Há,portanto,nessesdois
capítulos,umaratioprópriaaoexercíciodaautoridadepública,encarnadanoserviçodoreiesobrepostaaosinteressespessoaisdossúditos.As
HistóriasmencionamtambémumaembaixadaenviadapeloreiGontrão
aChildebertoIIcomapropostadequeelesseencontrassem,nointeresse
davidadesseúltimo,mastambémemnomedautilitaspublica:
“Quetodososobstáculoscedamevenhaparaqueeuteveja.Trata-sede
uma necessidade certa, tanto no interesse de tua vida quanto no interesse
público,quenósnosvejamos”90.
Todos os exemplos mencionados até aqui a respeito da utilitas
publica são aparentemente neutros, ou seja, não se atribui qualquer
89
HistóriasIX,20.
HistóriasIX,10.
90
MarceloCândidodaSilva169
conteúdo ao “interesse público”. O máximo que se pode deduzir a
respeitodessaexpressãoéqueelaremeteaointeressedamonarquia,
e que não se confunde com os interesses pessoais do rei ou de um
ou outro membro das elites secular ou eclesiástica, ou ainda com o
interessedaIgrejafranca.
No entanto, se compararmos a descrição de Chilperico feita pelo
bispodeTourscomadescriçãoqueessemesmoautorfazdeGontrão,
podemosperceberquehánasHistóriasuminterpretaçãoteológico-políticadanoçãodeutilitaspublica.Aabordagem“gregoriana”apresenta
essanoçãoestreitamenteassociadaaumaéticacristãdopoder.Vejamos:
emduasocasiões,quandomencionaChilperico,Gregóriofazreferência
aos interesses pessoais que o guiavam. Ele começa o capítulo sobre o
julgamentodobispoPretextatusfalandodasmotivaçõesdeChilperico:
“Após realizar esses atos, Chilperico, sabendo que Pretextatus, bispo de
Rouen, distribuía presentes às populações para prejudicar seus interesses
(contrautilitatemsuam),mandouqueoconvocassem”91.
NobalançodoreinadodeChilperico,Gregóriosecontentaemmencionarqueelegovernavaprosuisutilitatibus92.Elequerassimmostrar
queChilpericodesconheciaqualquersentidodaresponsabilidadepública:elegovernarialevandoemcontasomenteseusinteressespessoais.
Nesse mesmo capítulo, Gregório afirma que Chilperico tinha aversão
aosinteressesdospobres(causaspauperumexosashabebat)eblasfemava
freqüentementecontraosbisposdosenhor(sacerdotesDominiassidue
blasphemabat).ArealezadeChilpericoseriaaencarnaçãodeumpoder
desligadodequalquerobrigaçãoemrelaçãoaospobres,quedespreza
osbisposequeestávoltadounicamenteparaasatisfaçãodosinteresses
pessoaisdorei(prosuisutilitatibus).Logo,pode-sededuzirqueautilitas
publica é, para Gregório, indissociável da preocupação do governante
comospobres,comaIgrejaecomosbispos.
91
HistóriasV,18.
HistóriasVI,46.
92
170 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Umindíciosuplementardocaráterfundamentalmentecristãoque
Gregóriooutorgaàutilitaspublicaestánofatodequeessaexpressão
aparecenasHistóriassomenteapartirdasúltimoslivrose,namaior
partedotempo,emcapítulosquesereferemaoreiGontrão,euma
outravezemumcapítulosobreChildebertoII(príncipesdaBurgúndia e da Austrásia dos quais o bispo de Tours é próximo). É muito
provável que se Gregório não utilizou o termo em questão quando
descreveu os príncipes francos antes de Gontrão, é porque considerava que eles foram incapazes de representar esse ideal de governo.
Esta é uma interpretação pessoal da história por parte de bispo de
Tours,ouasmençõesàutilitaspublicaencobremumarealidademais
complexa?
Aprimeirapossibilidadeépoucoprovável.AsHistóriasnãosão
aúnicafonteamencioanaraexpressãoutilitaspublicaeasublinhar
adistinçãoentreosassuntosprivadoseosassuntospúblicos.Oscânones dos concílios merovíngios a mencionam igualmente: é o que
podemosvernacartaenviadapelosbisposdoConcíliodeParis,em
573,aobispoEgidiusdeReims:“Assim,emfavordacausapúblicaedos
assuntosprivados,nósnosreunimosemParis...”93;ouainda,nopreâmbulodoconcíliodeMâconI:“Como,pelainjunçãodenossogloriosíssimosenhororeiGontrão,nossapequenezasereuniunacidadedeMâcon
nointeressedosassuntospúblicosdamesmaformaquedasnecessidades
dospobres...”94.
Como nas Histórias, a utilitas publica nos concílios de Paris e de
Mâcon tem, à primeira vista, um conteúdo neutro: não se trata, aparentemente,deumainterpretaçãocristãdaquiloquepoderiaconstituir
ointeressecomum.Contudo,aquiloqueosbisposdesignavamnoscânonesconciliarescomoautilitaspublicadesignavaasexpectativasdo
episcopadoemrelaçãoàquiloquedeveriaseraaçãodopoderreal.Os
bisposnãoserestringiamnosconcíliosàadministraçãointernadaIgre-
93
ParisIV(573),EpistolasynodiadEgidiumRemensemepiscopum.
MâconI(581-583).
94
MarceloCândidodaSilva171
ja,maslegislavamsobredomíniososmaisvariados,comoasrelações
entreclérigoselaicos,aaplicaçãodajustiçaouaindaanomeaçãode
juízeslaicos.Elesinsistiam,porexemplo,nanecessidadedeimpedirque
osjudeussetornassemjuízes,demodoquenenhumcristãoestivesse
sob suas ordens95. Eles ameaçavam com a excomunhão os autores de
perjúrio,easeuscúmplices,comainterdiçãodetestemunharemnovosprocessos96.Asmedidasprevistaspelosbisposconciliairesestavam
orientadas,portanto,pelapreocupaçãoemorganizarasociedadeconformeospreceitoscristãos.
Havianamonarquiafranca,pelomenosnaprimeirametadedoséculoVI,umanoçãodeautoridadepúblicaquenãosereduziaaosinteressesprivadosdosreisequetampoucoseconfundiacomosinteresses
dosclérigos,comopodemosobservaratravésdosconflitosenvolvendo
aspartilhas.Essanoçãopodeserdefinidaatravésdaresponsabilidade
dosreisemmantera“paz”,através,inclusive,dainterferêncianosassuntoseclesiásticos.Oqueestáemquestãoaquiéapazcivil,oequilíbriodo
reino.Trata-se,portanto,deumanoçãosemconteúdonitidamentecristão.ÀmedidaqueseaproximaofinaldoséculoVI,noentanto,autilitas
publicaadquiriuprogressivamente,nasfontesnarrativasetambémnos
textosoficiais,umsentido“salvacionista”.Éessamutaçãonosentidoda
utilitaspublicaqueseráabordadanasegundapartedestetrabalho.Ao
oporosreisquegovernavamprosuisutilitatibusaosquegovernavam
propopulisalvatione,GregóriodeToursopunhaduasformasderealeza.
Oaparecimentodotermoutilitaspublicanasegundametadedoséculo
VI,nasnarrativas,nostextosconciliaresenoseditosreais,foioresultadodeumaevoluçãodarealeza,evoluçãoessaquemarcouatransição
deumaRealezaConstantinianaemdireçãoaumaRealezaCristã.Éesse
processoqueseráanalisadonasegundapartedestetrabalho.
95
MâconI(581-583),c.13.
Ibid.,c.18.
96
SegundaParte
OsfrancoseaRealezaCristã
CapítuloI
Oreicristãonosescritosepiscopais
(c.481-c.594)
PelomenosdesdeoreinadodeClóvis,eantesmesmodesuaconversãoaocatolicismo,osbisposcatólicosdaGáliajáapresentavamaos
príncipesfrancosummodeloidealdegoverno.Éoquesepodeobservar
naepístolaescritaporRemígiodeReims,porvoltade481,equeserá
abordada a seguir.Através de suas epístolas, de seus sermões, de suas
crônicas ou dos textos conciliares, os bispos galo-francos buscaram
definirolugareopapeldeumpoderexercidoporumreiconvertido
ao catolicismo no interior da sociedade cristã. Sob vários aspectos, a
idéiadeumgovernocristão,desenvolvidapelopapaGregórioMagno
nofinaldoséculoVIemsuascartasaBrunilda,Fredegonda,ChildebertoII,ClotárioII,TeudebertoeTeuderico,jáhaviasidoesboçadapor
Remígio,Avitus,AurelianodeArles,VenâncioFortunatoouGregório
de Tours. Esses autores desenvolveram reflexões sobre os deveres dos
reisfrancosemrelaçãoaosseussúditosbemantesqueGregórioMagno
o fizesse em sua correspondência1. Neste primeiro capítulo, dar-se-á
1
ContrariamenteaoqueafirmaM.Reydellet,Laroyautédanslalittératurelatine,p.441.
176 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
ênfaseaosargumentosendereçadospelosbisposaosreisfrancospara
fundamentaraRealezaCristã.Poroutrolado,emquepeseopapelde
RemígiodeReims,deAvitusdeViena,deFortunatoedeGregóriode
Toursnadefesadeumpoderrealfundadonajustiçaeorientadopelos
conselhosdoepiscopado,suasexortaçõessãoinsuficientesparaexplicar
astransformaçõesdamonarquiafrancaduranteoséculoVI,ouaindaa
emergênciadaRealezaCristã.Asidéiaselaboradaspelosbisposcatólicossomentetiveramalgumarepercussãosobreaautoridaderealapartir
domomentoemqueessaúltimaoutorgouefetivamenteaoepiscopado
umpapelpreponderantenaconduçãodosassuntosdoreino.Talseráo
objetodosegundocapítulo.
AIgrejaeopoder
DesdeoiníciodahistóriadaIgreja,osautorescristãosnãocultivaram uma oposição sistemática ao poder político, nem mesmo sob os
reinadosdosimperadoresquemaissedestacaramnaperseguiçãoaos
cristãos,comoNeroouDiocleciano.Otextoquemelhorexprimeesse
posicionamentoequeparecetê-loinclusiveinfluenciadoéa“Epístola
aosRomanos”,dePaulo.Navisãodesseautor,bonsouruins,osgovernantesteriamsidoestabelecidospelavontadedeDeus,eelesdeveriam
então se beneficiar da obediência de todos os cristãos2.Apesar dessas
reflexões,osautorescristãosnãoelaboraramimediatamenteumadoutrinasobreolugardopoderpolíticonointeriordacomunidadecristã.
Eles se contentaram em apresentar visões sobre o poder tão díspares
quantoasprópriascomunidadescristãsdosprimeirosséculos.Emsua
versãomaispositiva,essasvisõesapresentavamopodercomoumarealidadeprovisóriadohomem,e,emsuavisãomaisnegativa,comoo
produtodaquedadehomememestadodepecado.Mesmoqueopoder
pudesseservistoporváriosautorescristãoscomouminstrumentoda
2
Rom.13,1-7.
MarceloCândidodaSilva177
cóleradivina,aindaassimeleerauminstrumentoessencialdarealizaçãodasprofeciasbíblicas.Aoformularaidéiadequeopoderpolíticoé
estabelecidoporDeusparafazerreinaraordemeajustiça,essesautores
abriramumaviaquefoiamplamenteutilizadanosséculosseguintese
que consistia em outorgar aos detentores de uma função pública um
certonúmerodedeveresinspiradosdatradiçãobíblica.Noentanto,se
aautoridadedopríncipeseimpôsàobediênciadoscristãosduranteos
trêsprimeirosséculosdaEraCristãéporqueglobalmenteelaeravista
comooinstrumentodeDeusparapromoverobemerefrearomal.
ApartirdoséculoIV,ocorreuumatransformaçãocrucialnaforma
comoosdetentoresdopoderaparecemnasobrasdosautorescristãos,a
qualvaledestacaraqui.Desimplesinstrumentosdepuniçãodospecadores,osgovernantestornaram-seinstrumentosdaredençãohumana.
OEditodeMilão(312),queacordouaoscristãosaliberdadedecultoe
àIgrejaoestatutodereligiolicita,eespecialmenteoEditodeTeodósio
(392),queconcedeuàIgrejaoestatutodereligiãooficialdoImpério3,
contribuíram profundamente para essa evolução4.A visão tradicional
quefaziadoEstadouminstrumentodepuniçãodospecadoresnãoera
maiscapazporsisóderesponderàsquestõescolocadaspelanovasituaçãonaqualessemesmoEstadohaviasetornadocristão.Adificuldade
comaqualseconfrontavamapartirdeentãoosautorescristãosconsistiaemdefinirolugardeumpodercivilrecentementecristianizado
nomundoeespecialmenteemrelaçãoàIgrejaeaosseusmembros.Essa
nova situação conduziu a uma ruptura com a atitude“pré-constanti-
3
N.H.Baynes,ConstantinetheGreatandthechristianChurch;P.Battifol,Lapaixconstantinienneetlecatholicisme;E.Becker,“KonstantinderGrosse,der‘neueMoses’”,pp.161-171;
S.Bradbury,“Constantineandtheproblemofanti-paganlegislationinthefourthcentury”,
pp.120-139.
4
VerS.Calderone,Costantinoeilcattolicesimo,Firenze,p.304;domesmoautor,“Eusebio
e l’ideologia imperiale”, pp.1-26; M. Pavan,“Cristianesimo e impero romano nel IV secolo
d.C.”,pp.1-16;G.Bonamente,“Poterepoliticoedautoritàreligiosanel‘DeobituTheodosii’di
Ambrogio”,vol.1,pp.83-133;domesmoautor,“Apoteosieimperatoricristiani”,pp.107-142.
178 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
niana”daIgreja,poisosautorescristãospassaramaassociaroEstado,
maisprecisamenteopoderimperial,àrealizaçãodaParusia.Eleselaboraramumadoutrinasobreocomportamentopolíticodosgovernados
e dos governantes, em que a realidade terrestre era ainda vista como
provisória,masnaqualapartirdeentãoopoderpolíticoparticipava
daeconomiadasalvação5.Omarcodessatransformaçãonasdoutrinas
cristãséEusébiodeCesaréia.ObispodeCesaréiaéoprimeiroaatribuir
umpapelativoaopríncipena“economiadasalvação”6:
“Comumpoderinfalível,eleenchecomsuamensagemtodaaterraquevê
osol,modelandooreinoterrestreàimagemdaqueledocéu,emdireçãoao
qualeleexortatodoogênerohumanoaseapressar,propondo-lheessabela
esperança”7.
AsmigraçõesbárbarasdosséculosIVeVnãodeixaramdeproduzir
umcertopessimismo,umaperdadeconfiaçanacapacidadedeoImpérioseroinstrumentodarealizaçãoda“Jerusalémterrestre”.Aobra
deAgostinho,ACidadedeDeuséamaisremarcáveltestemunhadesse
desencanto.A“descoberta”doOcidentepelaIgreja,maisprecisamente
dasmonarquiasromano-germânicas,abriuumanovaeradeotimismo
5
SobreoimpactodaconversãodeConstantino,háaobraclássicadeA.Alföldi,TheConversionofConstantineandPaganRome;sobreadimensão“eclesiológica”dessepersonagem,ver
oartigodeM.Agnes,“Ilmito‘teologico’diCostantino”,pp.183-192.
6
ArespeitodasacralizaçãodopodercivilnaAntigüidadeTardia,verostrabalhosdeP.Brown,
notadamente Religion and society in the age of the Saint Augustine, e também“Eastern
andwesternchristendominlateantiquity:apartingoftheways”,pp.1-24;domesmoautor,
Lasociétéetlesacrédansl’Antiquitétardive;Genèsedel’Antiquitétardive;efinalmente,
L’essorduchristianismeoccidental.Triompheetdiversitté,200-1000.Ograndeméritodos
trabalhosdeP.Brownfoideadmitirqueoutrasautoridadesalémdasautoridadespolíticas
podemamparar-sedosespíritosetornar-setemasdeconflitos,comoéocasodaautoridade
eclesiástica, e que essas autoridades, com as agitações e as paixões que elas provocam, não
se reduzem à simples racionalidade política (P. Veyne, “Préface”, In: P. Brown, Genèse de
l’AntiquitéTardive,pp.vii-xxii,especialmente,p.ix).
7
DeLaudibusConstantiniIV,2.
MarceloCândidodaSilva179
entreosautorescristãos.Oabismoqueexistiaentreaautoridadedos
primeirosreisfrancoseaIgrejaeramuitomenorqueaquelequeexistia
entreessaúltimaeoImpério.Aoseaproximaremdosreismerovíngios,
osbisposgalo-romanosnãoseconfrontaramcomumaformadegoverno em que o príncipe esperava ser adorado como um deus, como
eraocasonoImpérioRomanodoséculoIII8.Noqueserefereàrealeza
franca, a desconfiança e a hostilidade, típicas, conforme a fórmula já
clássica de P. M.Arcari, do “l’incontro di una religione troppo giovane
conunostatotroppovecchio”9,nãoexistiam.OsescritosdeRemígio,de
Avitus, deAureliano e de Fortunato testemunham do lugar acordado
pelasdoutrinascristãsaessepoderrecentementeconvertidoaocatolicismo.Emseusestudossobreasdoutrinascristãs,oshistoriadoresdas
idéiasdurantemuitotemposeinteressarammaisespecificamentepelos
escritospapais10.Todavia,osbisposcatólicosdaGáliaéqueforam,ao
8
VerR.Deniel,“OmnispotestasaDeo.L’originedupouvoirciviletsarelationàl’Eglise”,pp.4385.SeopoderpolíticonãoeramaisumadversáriodaIgreja,vistoqueasperseguiçõestinham
cessadoequeosimperadorestinhamseconvertidoaocristianismo,poroutrolado,osconflitosnãodesapareceram.OEstadoromanorevelou-seumparceirotãoincômodoquantopoderoso.AliteraturasobreasrelaçõesentreaIgrejaeoEstadoromanoéabundante.Aobrade
H.Rahner(L’Egliseetl’Etatdanslechristianismeprimitif)éfundamental.Pode-setambém
citaralgunstextosmaisrecentes:K.F.Morrison,TheTwoKingdoms:EcclesiologyinCarolingianpoliticalThought;domesmoautor,TraditionandAuthorityinthewesternChurch,
300-1140; e Holiness and Politics in Early Medieval Thought. Ver também, Ch. Thomas,
ChristianityintheRomanBritaintoA.D.500;G.G.Archi,“Interferenzetracristianesimoe
imperoromano(VeVIsecoli)”,pp.317-323.Sobreocultoimperial,verE.Beurlier,Essaisurle
culterenduauxempereursromains;E.Bréhier,P.Batiffol,Lessurvivancesduculteimpérial
romain;M.P.Charlesworth,“TheVertuesofaRomanEmperor.PropagandaastheCreation
ofBelief ”,pp.105-133;P.Brezzi,“L’idead’ImperonelIVsecolo”,pp.265-279;J.Beaujeu,“Les
apologètesetlecultedusouverain”,pp.101-142;também,G.W.Bowersock,“Greekintellectualsandtheimperialcultinthesecondcentury”,pp.177-212;L.CraccoRuggini,“Imperatori
romanieuominidivini(I-VIsecolod.C.)”,pp.9-91;eJ.B.Aufhauser,“DiesakraleKaiseridee
inByzanz”,pp.531-542.
9
P.M.Arcari,Ideeesentimentipoliticinell’AltoMedioevo,p.53.
10
Éocaso,porexemplo,deF.Cavallera,“Ladoctrinesurleprincechrétiendansleslettres
pontificalesduVesiècle”,pp.67-78,pp.119-135,pp.167-178.
180 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
longodetodooséculoVI,osinterlocutoresprivilegiadosdaautoridade
realfranca.Ofatodeconstituíremumcorpodefuncionáriosaserviço
darealezafavoreceuessaaproximação.
RemígioeClóvis
Nascidoemumafamíliadeorigemsenatorial,porvoltade437,nos
arredores de Laon, Remígio tornou-se bispo de Reims ainda jovem,
quandotinhaentre20e25anos.Elepossuíaumasólidaformaçãoliterária,comomostraumacartadeSidônioApolinário,escritaporvolta
de471,naqualfazoelogiodesuasDeclamationes.GregóriodeTours
tambémserefereaelecomoalguémde“umaciênciaextraordináriae
quetinhaseimpregnadodesdecedodoestudodaretórica”11.Remígioera
o“bispometropolitano”,ousuperiorhierárquicodetodososbisposda
BélgicaSegunda,poissuaséepiscopal,acivitasdeReims,eraacapitalda
provínciaeclesiástica.Seuepiscopadofoideumalongevidadeexcepcional;GregóriodeToursafirmaqueRemígiofoibispodeReimspormais
desetentaanos12.Elemorreuporvoltade532efoienterradoemReims
nabasílicaquepoucotempodepoisrecebeuseunome.Apesardeuma
produçãoaparentementeprolífica,poucostextosdeRemígioforampreservadoseseencontramquasetodosnacoleçãoEpistolaeAustrasicae
(Epístolasaustrasianas)13.FoiemumcódicenazarenodaBibliotecade
HeidelbergqueoeruditoM.Freherencontrouumasériedeepístolasdo
períodofranco,publicadasporeleemHanover,noanode161314.Qua-
11
HistóriasII,31.
GregóriodeTours,LiberinGloriaConfessorum,78.
13
AexceçãoéotestamentodeixadopelobispodeReims,transmitido,emsuaformacurta,
pelaVidadeSãoRemígio,escritaporHincmar,entre878e881,eemsuaformalongaporum
interpoladoranônimodoséculoXI,queintroduziuotextonaHistóriadaIgrejadeReims,
escritaem948porFlodoardodeReims.
14
CorpusFrancicaehistoriaeveterisetsincerae.
12
MarceloCândidodaSilva181
troediçõesdessasepístolasseseguiramantesdaquelaqueéconsiderada
amaisimportantedetodas,adeW.Gundlach,de189215.Emumartigo
de1888,Gundlachanalisouosprincipaisproblemascolocadosporesses
textos,sobretudoosdeordemcronológica.Segundoele,essasepístolas
teriamsidoreunidasporumnotárionacortedeMetz,capitaldoregnum
daAustrásia,sobainspiraçãodarainhaBrunilda.Issoteriaocorridono
finaldoséculoVI,duranteoreinadodeChildebertoII(575-595)16.No
entanto, quem melhor estabeleceu a cronologia das diversas epístolas
austrasianasfoiG.Reverdy,confrontando-ascomoutrostextos,como
osDecemLibriHistoriarum,deGregóriodeTours17.
ÉprovávelqueasEpistolaeAustrasicaetenhamsidoeditadascomo
objetivoderealçaroprestígiodaAustrásia,emmeioàsturbulênciasdas
guerrascivis.Dadoonúmerodeepístolasquepossuemcomoremetentes
e,sobretudo,destinatários,membrosdafamíliaimperial–23dentreelas
têmcomotemaprincipalasrelaçõesentreascortesdeMetzedeBizâncio
–,deduz-sequeoeditortentavamostrarqueospríncipesaustrasianos
eraminterlocutoresprivilegiadosdoImpério.Noentanto,apreocupaçãodoeditornãoparecerestringir-seàafirmaçãodaproximidadecom
oImpério.Asepístolasquefazempartedessacoleçãoemanamdosmais
importantes personagens da época, na Gália e fora dela: reis, rainhas,
bispos,altosdignitários,imperadoresouaelessedirigem.AsEpistolae
abrangemtodooespaçofrancoetambémaItália,aEspanhaeBizâncio.
Asduasprimeirasepístolasdessacoleçãoestãodispostasemordem
inversaàsuaelaboração:aprimeira,seguindoaordemestabelecidapelo
primeiroeditor,foienviadaporRemígioaClóvisapósoseubatismo18;a
segundaepístola,poroutrolado,écontemporâneadaascensãodeClóvisaopoder.Noentanto,aordemcronológicaérespeitadaemoutros
15
EpistolaeAustrasicae,pp.434-468.
W.Gundlach,“DieSammlungderEpistolaeAustrasicae”,pp.367-387.
17
G.Reverdy,“LesrelationsdeChildebertIIetdeByzance”,pp.61-85.
18
SobreaconversãoeobatismodeClóvis,verasíntesedeB.Dumézil(Lesracineschrétiennes
del’Europe.Conversionetlibertédanslesroyaumesbarbares,Ve-VIIIesiècle,pp.217-223).
16
182 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
casos: as epístolas de Childeberto II e de Brunilda encontram-se, por
exemplo,nasegundametadedacoleção.Aotodo,asEpistolaeAustrasicaeconservaramtodasasquatroepístolasconhecidasdeRemígio:duas
escritasaClóvis(EpistolaeAustrasicae,1e2),umaendereçadaaosbisposHeraclius,LeãoeTeodósio(EpistolaeAustrasicae,3)eumaoutra
dirigidaaFalco,bispodeMaastricht(EpistolaeAustrasicae,4).Como
acidadedeReimsfaziapartedoregnumdaAustrásia,énaturalquea
coleçãocontivessequatroepístolasdeRemígio,bemcomoduasoutras
escritasporumdeseussucessoresatestadosnaséepiscopal,Mapinius
(Epistolae Austrasicae, 11 e 15). Há também uma epístola do bispo
deParisGermanusàrainhaBrunilda(EpistolaeAustrasicae,9),uma
epístoladeAurelianoaTeudeberto,emqueautor,muitoprovavelmente
obispodeArles,enumeraasqualidadesqueconsideraindispensáveis
aoexercíciodopoderreal(EpistolaeAustrasicae,10).PodemsermencionadasigualmenteasepístolasdeTeudeberto(EpistolaeAustrasicae,
19 e 20) e de Teudebaldo (Epistolae Austrasicae, 18) ao imperador
Justiniano,assimcomoasepístolasdeChildebertoIIedeBrunildaao
imperador Maurício, à imperatriz e ao patriarca de Constantinopla
(EpistolaeAustrasicae,25,26,27,28,29,30).
Aformadecadaepístolacomportaum“endereço”comonomee
afunçãododestinatário,seguidodonomedoremetenteedesuafunção;emseguida,háocorpodotextoe,namaiorpartedotempo,um
explicitparaindicarofimdamensagem.Acoleçãocomeçapelaepístola
deRemígioaClóviseseencerraporumaoutraquetratadasrelações
do Reino dos Francos com o Império. Segundo M. Rouche, por não
encontrar uma epístola do imperador a Clóvis, o editor do séculoVI
teriaescolhidoostextosredigidosporRemígioparamostrarquedesde
o início o mundo franco estava perfeitamente integrado ao Império
Romano19.
Defato,Remígio,pelaposiçãoqueocupavanahierarquiaeclesiásticadaBélgicaSegunda,eraumaltofuncionáriodoImpério.Noentanto,
19
M.Rouche,Clovis,pp.388-389.
MarceloCândidodaSilva183
pode-sepensarque,alémdequerermostrarainserçãodamonarquia
francanoImpérioRomano,aescolhadasepístolasdobispodeReims
parainiciaracoleçãopodetertambémservidoparasublinharasestreitas
relaçõesentreosreisfrancoseumpersonagemdeindubitávelsantidade.Afinaldecontas,RemígioeraopadrinhoespiritualdeClóvis,aquele
queoconduziuatéapiabatismal.GregóriodeToursrefere-seaRemígio
comoalguém“tãodistintopelasuasantidadequeigualavaSilvestrepor
seusmilagres”20.Comovimosanterioremente,nessacomparaçãoentreo
bispodeReimseopapaSilvestre,oprimeiroestáparaomundofranco
assimcomoosegundo,paraoImpério:aobatizaremseusgovernantes,
ambosteriamcontribuídoparaotriunfodafécatólica.Essa,pelomenos,éavisãodeGregóriodeToursque,nãosepodeesquecer,eraum
próximodacortedeMetz,eredigiuosDecemLibriHistoriarumno
finaldoséculoVI,nomesmoperíodoemqueasEpistolaeAustrasicae
foramreunidas.Saliente-setambémquenessemomentoRemígiojáera
reconhecidocomoumsanto.Gregóriomencionaocasodeumacriança
queobispodeReimsteriaressuscitadocomsuasorações21,bemcomo
ofatodequeumafestaeradedicadaaosantotodososanosnacidade
deReims22.
Ébastanteprovávelqueopersonagemcujasepístolasinauguramas
EpistolaeAustrasicaefossevistonofinaldoséculoVImenoscomoo
funcionáriodoImpériodoquecomoopaiespiritualdadinastiamerovíngia,aquelecujacontribuiçãofoidecisivaparaaconversãodosreis
francos.SeoeditordasEpistolaeAustrasicaepretendesse,comoafirma
M.Rouche,ressaltaravinculaçãodomundofrancoaoImpério,eleteria
escolhidoparainiciaracoleçãoaepístolaemqueRemígiofelicitaClóvis
porterassumidoaadministraçãodaBélgicaSegunda.AepístolainauguraldacoleçãoéimediatamenteposterioraobatismodeClóvis,enela
obispodeReimsreconfortaoreifrancopelaperdadesuairmã.Isso
20
HistóriasII,31.
LiberinGloriaConfessorum,78.
22
HistóriasVIII,21.
21
184 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
podesignificarquenoambienteprofundamentemarcadopelaideologia
daRealezaCristã,naAustrásiadofinaldoséculoVI,aassociaçãocom
oImpérionãoeramaisoprincipalfundamentodaautoridadepública.
ComecemosaanálisepelaepístolaenviadaaClóvisquandoelesucedeu
seupai,porvoltade481:
“Aosenhorinsigneemagníficopelosméritos,oreiClóvis,Remígiobispo.
Umgranderumorchegouaténós,vósassumistesaadministraçãodaBélgica
Segunda.Issonãoénovo,poistuteráscomeçadoporseraquiloqueteuspais
sempreforam.ÉnecessáriofazerdemodoqueojulgamentodeDeuscontinueasustentá-lo,poiséemrecompensadetuahumildadequeelefezcom
quetuchegassesaoápice.Pois,comosedizvulgarmente,épelosatosquese
reconheceohomem.Tudevesteassociarconselheirosquepossamornartua
fama.Teubenefício(beneficium)devesercastoehonesto.Tudeverásrelatar
aosteusbisposerecorrersempreàssuasdeliberações.Poissetuteentendes
bem com eles, tua província somente poderá ser consolidada. Anima teus
cidadãos,aliviaosaflitos,favoreceasviúvas,alimentaosórfãos;maisdoque
iluminá-los,quetodosoamemeorespeitem.Queajustiçasaiadevossaboca
semnadaesperardospobresedosestrangeirosafimdequenãoqueirasde
forma alguma aceitar presentes ou qualquer coisa da parte deles. Que teu
pretórioestejaabertoatodosafimdequeninguémregressetriste.Tupossuisalgumasriquezaspaternaiscomasquaislibertarásosprisioneiroseos
desligarásdojugodaservidão.Sealguéméadmitidoemvossapresença,que
elenãosesintacomoumestrangeiro.Brincacomosjovens,deliberacomos
anciãos,e,sequeresreinar,julgaemnobre” 23.
EssaepístolaéoprimeirotestemunhoescritodoentendimentoentreummembrodadinastiamerovíngiaeosbisposcatólicosdaGália.
Masqualseusentido?Tratar-se-iadeumtextopuramenteformal,ouso
habitualdeumaltofuncionárioromanoqueseendereçavaaumdeseus
pares que acabava de ser nomeado governador da Bélgica Segunda24?
23
EpistolaeAustrasicae,2(trad.M.Rouche,Clovis,pp.387-388).
M.Rouche,Clovis,pp.391-392.
24
MarceloCândidodaSilva185
Ouseriaumtextocomexortaçõesteológico-políticasquetranscendiam
ocampodasquestõesadministrativas?ConformeM.Rouche,adeptoda
primeiroopção,haverianessedocumentosomenteumconselho“político”dadoporRemígioaClóvis,arecomendaçãoparaqueelemantivesse
boas relações com o episcopado de sua província: “Tu deverás relatar
aosteusbisposerecorrersempreàssuasdeliberações.Poissetuteentendes
bemcomeles,tuaprovínciasomentepoderáserconsolidada”.Clóviserao
maisaltoresponsáveldaadministraçãoromananaBélgicaSegunda:era
naturalqueRemígioesperassequeelerecorresseaoauxíliodosbispos,
tambémmembrosdamesmaadministração.Entretanto,todatentativa
de distinguir na carta de São Remígio os temas“políticos” dos temas
“não-políticos”, ou ainda“religiosos”, constitui um equívoco. Uma tal
distinçãorefleteumavisãomodernaquedificilmentecorresponderiaà
visãodobispodeReims.EmmomentoalgumemsuacartaRemigiofaz
umanítidadiscriminaçãoentreaquiloqueerapolíticoeaquiloquenão
era.NalógicadeumbispodoséculoVI,aliás,essadistinçãonãofaria
sentidoalgum.Seusconselhossobreobomgovernodaprovínciaeram
profundamente impregnados de uma percepção cristã do mundo em
geraledogovernoemparticular.
A carta de Remígio não constitui uma simples formalidade entre
doisaltosmembrosdahierarquiaromana.Seuautorestavaconsciente
dequeClóvisnãoeraapenasumaltofuncionárioromano,poisnoendereçodaepístolaeleéchamadoderei:“Aosenhorinsigneemagnífico
pelos méritos, o rei Clóvis, Remígio bispo”. Se o considerasse somente
umaltofuncionárioromano,obispodeReimsteriasecontentadoem
afirmar que Clóvis assumiu a administração da Bélgica Segunda. No
entanto, Remígio reconhece o duplo caráter da autoridade de Clóvis,
membro da administração romana e rei franco. Esse duplo caráter se
unificounapessoadeClóvis:maisdoquemembrodaadministração
romananaGália,eleeratambémseuchefe.Elerecebeutítuloehonraria
doimperador,em508,convocouumconcílioemOrléans,em511,em
suma, se comportou como um princeps. Há indícios dessa unificação
naprópriacarta:Remígionãoaconselhadiferentementeoreieoalto
funcionário. Suas palavras eram válidas para ambos. Esse documento
186 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
constituiumaprimeiratentativadeinculcaremumpersonagem,que
eraaomesmotemporeifrancoegovernadordeumaprovínciaromana,
umanoçãocristãdogoverno.
Remígio faz uma constatação em sua epístola: a função ocupada
porClóvisnãodiminuiemnadasuasobrigaçõesmorais,aocontrário,
torna-asaindamaisgraves:“Pois,comosedizvulgarmente,épelosatos
quesereconheceohomem”.Issoequivaleaafirmarqueopodernãoé
umprivilégioemsi,equeéatravésdeseusatosqueogovernantedeve
buscarseumérito.OqueobispodeReimspropõeaquiéumainterpretaçãodofundamentodalegitimidadepolíticaqueencontrasuasraízes
na tradição cristã. Trata-se do tema do poder como uma obrigação e
nãocomoumprivilégio,queseráretomadonofinaldoséculoVIpor
GregórioMagnoemsuascartasaosreisfrancosemsuasMoraliainJob.
Remígiodescreve,portanto,opodercomoumconjuntodeobrigações
dosgovernantesemrelaçãoaosgovernados.
EleinsistequeClóvisdevebuscaroconselhodosbispos:“Tudeverás
relatar aos teus bispos e recorrer sempre às suas deliberações”. Quando
menciona, algumas linhas antes, os conselheiros que podem ornar a
reputação de Clóvis, o bispo de Reims não está se referindo especificamente aos bispos: ele menciona consiliarios em geral, sem nenhum
tipodeprecisãosuplementar.Noentanto,Remígiopretendemostrara
Clóvisquedentretodosospersonagensquepoderiamexecutaratarefa
enunciadaporele,istoé,ornarareputaçãodogovernante,osbispossão
osmaisaptos.Remígioutiliza-sedopossessivo tuos paradeixarclaro
quesetratamdos“bisposdeClóvis”.ComoresponsávelpelaadministraçãodaBélgicaSegunda,eleeraochefedopessoaladministrativo,no
qualseincluíamosbispos.UmaNoveladeValentinianoIII,publicada
emjulhode445,estabeleciaquetodososbisposdasGáliasdeveriam
reconhecercomoleitudoaquiloqueaauctoritasdaséapostólicahavia
sancionadoouviesseasancionar.EssaNovelaeraumarespostaàsdemandasdopapaLeãoIque,emconflitocomobispoHiláriodeArles,
havia extinguido a função de Vigário das Gálias (444), ocupada por
esse último. Hilário foi privado pelo pontífice romano de seu direito
deconsagrarbisposedeconvocarconcílios.Valentinianotransformou
MarceloCândidodaSilva187
emleiimperialaprimaziadaséromanasobreaIgrejadasGálias.Os
bisposquefossemconvocados,equenãocomparecessemparaserem
julgados diante do pontífice romano, seriam obrigados a comparecer
pelaintervençãodogovernadordesuaprovíncia25.EssamedidareforçavanãoapenasaprimaziadaIgrejadeRomasobreoepiscopadodas
Gálias,massubmetia-oaopoderdeseusrespectivosgovernadoresde
província.AmençãodeRemígioaosbispos“de”Clóviséumreconhecimentodessaprimaziadorectorprovinciaesobreoepiscopado.Osbispos
eramfuncionáriospúblicos,responsáveis,juntamentecomoscondes,
pelaadministraçãodascivitates.OcasodeSãoPatiens,bispodeLyon,
éilustrativoarespeitodasresponsabilidadescivisdosbispos:segundo
GregóriodeTours,eleteriaalimentadoapopulaçãodeLyondurantea
fomequeseabateusobreaGálianofinaldoséculoV26.
VoltandoàfrasedeRemígio,éimportantenotarqueháneladuas
admoestaçõesdistintas,aindaquecomplementares.Emprimeirolugar,
obispodeReimssugerequeClóvisdeveriaconversarcomosseusbispos;emseguida,serianecessárioqueelerecorresseàssuasdeliberações
(consilia).Recorreraosconsiliaepiscopaisnãopodesertraduzidosimplesmentepor“ouvirosconselhosdosbispos”.Essaúltimaidéiajáestá
expostanaprimeirapartedafrase.Asegundapartetrazalgodistinto:
Clóviséaconselhadoarecorreràs“deliberaçõesdosbispos”.UmamaneiradeelerecorrerataisdeliberaçõesseriaconsultarasatasdosconcíliosepiscopaisquesereuniramnaGáliaaolongodetodooséculoV.A
instalaçãomuitasvezesviolentadosbárbaros,bemcomoaincursãodos
hunos,levouàdesorganizaçãodaestruturaeclesiástica,sobretudono
nortedaGália.MuitosbispadosdaprópriaprovínciadeReimsficaram
muitos anos sem serem preenchidos. O advento de Remígio coincide
25
NovellaeValent.III.tit.16.VerO.Guillot,A.Rigaudière,Y.Saissier,Pouvoirsetinstitutions
danslaFrancemédiévale,Desoriginesàl’époqueféodale,p.57;M.Rouche,Clovis,pp.143144.
26
DecemLibriHistoriarumII,24.M.Roucheafirmaqueosbisposnãoeramsucesssoresdo
defensorcivitatis,funçãoadministrativacriadaporValentinianoI,ecujaresponsabilidadeera
receberasqueixasdoscontribuintescontraospoderosos(M.Rouche,Clovis,p.147).
188 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
comofimdeumaaparentevacância:desdeoepiscopadodeBennagius,
nosanosde430,nãoseconheciaonomedeumbispodeReims.Apesar
disso,osconcíliosnãodeixaramdesereuniremAngers(453),Tours
(461),Vannes(465).Elessepronunciavamsobrequestõesdoutrinárias,
sobreosconflitosqueopunhamclérigoselaicos,fixavamasregrasde
condutadessesgrupos,lembravamaosclérigososdeveresdacaridade,
proibiamasmutilaçõeseosatosdebrutalidade,condenavamasrelaçõescomassassinos,excomungavamadúlterosehomicidas.Portanto,é
possívelqueRemígiofaçareferência,nessasegundapartedafrase,aos
cânonesconciliares.Masqualsentidopoderiateraconsultaàsatasdos
concílios,ou,emoutraspalavras,quetipodedeliberaçõeshavianesses
textosquepudesseserviraClóvisnoexercíciodesuasfunções?Asduas
frasesseguintestrazemumindícioderesposta:“Poissetuteentendes
bemcomeles,tuaprovínciasomentepoderáserconsolidada.Animateus
cidadãos,aliviaosaflitos,favoreceasviúvas,alimentaosórfãos;maisdo
queiluminá-los,quetodosoamemeorespeitem”.Areferênciaaoamor
eaorespeitodetodosmostraumarelaçãoentreogovernanteeosgovernadosquetranscendeospadrõestradicionais;oqueseexplicapela
naturezaespecíficadaautoridadedeClóvis(asboasobras,aretidão,a
humildadeetc.).Aexpressãocivostuoséumareferênciaaoshabitantes
da Bélgica Segunda, o que poderia, a princípio, significar que RemígioestádescrevendooquedeveriaseraatuaçãoidealdeClóviscomo
governadordaprovíncia.Noentanto,asaçõesqueeleesperadelevão
alémdasprerrogativasdeumsimplesgovernadordeprovíncia:aliviar
osaflitos,favorecerasviúvasealimentarosórfãosassemelham-semais
àstarefasdeumrei.Nãoéumasimplescoincidênciaofatodequeno
Deuteronômioseprescreve-sedefesadosestrangeiros,dosórfãosedas
viúvas:
“Nãoperverterásodireitodoestrangeiroedoórfão,nemtomaráscomo
penhoraroupadaviúva”27.
27
Deut.,24,17.
MarceloCândidodaSilva189
“Quandoestiveresceifandoacolheitaemteucampoeesqueceresumfeixe,
nãovoltesparapegá-lo:eleédoestrangeiro,doórfãoedaviúva,paraque
IahwehteuDeusteabençoeemtodotrabalhodastuasmãos.Quandosacudiresosfrutosdatuaoliveira,nãorepassesosramos:orestoserádoestrangeiro,
doórfãoedaviúva.Quandovindimaresatuavinha,nãovoltesarebuscá-la:
orestoserádoestrangeiro,doórfãoedaviúva”28.
RemígiobuscounoVelhoTestamentootemadoauxílioaosmais
necessitados,associando-oaoexercíciodopoder.Essaassociaçãotambémestápresentenostextosbíblicos,sobretudonolivrodeProvérbios,
ondeadefesadosfracosaparececomoumatributodorei:“Oreique
julga os fracos com verdade firmará seu trono para sempre” (Prov., 29,
14).AvisãodeRemígioarespeitodopoderrealémarcadapelatradição
veterotestamentáriadarealeza.Umdostraçosessenciaisdessatradição
éaprerrogativajudiciáriaassociadaàpraticadopoder:oreidoAntigo
Testamentoé,antesdetudo,umjuiz.Damesmaforma,osconselhosde
Remígioindicamqueoexercíciodajustiçaestáentreasfunçõesmais
importantes,senãoamaisimportante,dogovernodeClóvis:
“Queajustiçasaiadevossabocasemnadaesperardospobresedosestrangeiros a fim de que não queiras de forma alguma aceitar presentes ou
qualquercoisadapartedeles.Queteupretórioestejaabertoatodosafimde
queninguémregressetriste”.
Eis,então,naperspectivadobispodeReims,osignificadodeserecorrer aos cânones conciliares: esses textos seriam inspirados por um
ideal de eqüidade no exercício da justiça que deveria guiar Clóvis, e
elestambémpermitiriamqueelesoubesse,porexemplo,seobenefício
por ele concedido aos seus súditos era casto e honesto. O imperativo
daeqüidadenoexercíciodajustiçaaparececlaramentenasduasfrases
anteriormentecitadas.RemígioesperaqueClóvisnãoaceitequalquer
28
Deut.24,19-21.
190 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
tipoderemuneraçãooupresentedaquelesquenãotêmcondição,em
trocadojulgamentodeseusprocessosnotribunal(praetorium).
AinjunçãoparaqueopretóriodeClóvisestejaabertoatodosafim
de que ninguém regresse triste é uma defesa do tratamento equânime
àquelesqueprocuramajustiça:todosdevemserouvidospelotribunal,
independentementedesuacondiçãosocial.Amesmaidéiaapareceum
poucomaisadiante,quandoRemígioafirma:“Sealguéméadmitidoem
vossa presença, que ele não se sinta como um estrangeiro”. Galo-romanos,francosouestrangeiros,todosdevemteromesmotratamentono
pretório chefiado por Clóvis.A tarefa essencial dos governadores das
provínciasromanas,pelomenosdesdeoImpérioRomanotardio,era
defazerjustiça,oqueexplica,aliás,arazãodeelesseremchamadosde
iudices29.Emsuaepístola,Remígiodemonstraumanítidapreocupação
comalentidãodosprocessos,oqueé,aliás,umtemarecorrentenasreformasdajustiçanoperíodofranco.OCapitularedeiustitiisfaciendis,
porexemplo,publicadonofinaldoreinadodeCarlosMagno,pretendia
resolverasdisputaselitígiosqueháanospermaneciamsemsolução.O
imperadorpretendiagarantirtambémqueasdisputasentrecondese
poderososnãoatrapalhassemoandamentodosprocessosdospobrese
dosmenospoderosos30.
Emsuaepístola,Remígiopassaemrevistaascategoriasdaprovíncia
quenãopodemsedefendersozinhos;apósmencionarospobres,asviúvas,osórfãoseosestrangeiros,elesedetémnocasodosprisioneiros
edosservos.EleesperaqueClóvisutilizeaherançadeChildericopara
libertá-los:“Tupossuisalgumasriquezaspaternaiscomasquaislibertarás
osprisioneiroseosdesligarásdojugodaservidão”.Essasriquezassãoas
terraseosbensdofiscoromano,dequeClóvis,comogovernadorhereditáriodaprovíncia,poderiadispor.
O último conselho do bispo de Reims resume o espírito da carta:
se Clóvis deseja reinar, ele deve julgar como um“nobre”. Esse termo
29
A.Piganiol,L’Empirechrétien(325-395),p.351.
Capitulare de iustitiis faciendis (811-813), 80, Capitularia regum Francorum, pp.176177.
30
MarceloCândidodaSilva191
nãoéumareferênciaaoestatutosocialdodestinatário,masésinônimo
de“justo”.Eisoargumentoessencialdasexortaçõesdosbisposdurante
todooséculoVInaGália:oatodegovernarélegítimounicamentese
elesefudamentaemumcomportamentomoralinspiradopelosbispos.
Diantedeumchefemilitarquetambéméreiealtofuncionárioromano,
o bispo de Reims evoca os limites da força no exercício do governo;
apenasaverdadeirajustiça,emseusentidocristão,caracterizariaobom
governo.
AsexortaçõesdeRemígionãosãooriginais:elascontémtemasque
já haviam sido abordados por outros autores, como a idéia do poder
aserviçodafé.Noentanto,suacartaéoprimeirotestemunhoescrito
ondesepretendeinculcaraosreisfrancosumaidéiacristãda utilitas
publica. Ora, a pregação de Remígio parece ter, à primeira vista, um
significadomeramentepessoalquandoelesustentaque“...épelosatos
quesereconheceohomem”.Eleescrevecomoumpastorquesedirigea
uma das ovelhas de seu rebanho, prodigalizando-lhe conselhos sobre
comportamentomoralmentecorreto.Convémressaltarqueosatosque
obispodeReimsesperadeClóvisnãosãoosdeumfielcomoosoutros.
Ainda que a expressão utilitas publica não apareça explicitamente no
texto,éaelaqueRemígiofazreferênciaquandomencionaasobrigaçõesdeClóvisemdevolvercoragemaoscidadãos,emaliviarosaflitos,
emobsequiarasviúvas,emalimentarosórfãos.Nasdécadasseguintes,
tantonasfonteseclesiásticasquantonoscapituláriosreais,essasações
tornam-seoconteúdodautilitaspublica.Nãohánenhumadúvidade
que o cumprimento dessas tarefas equivaleria, também na visão do
bispodeReims,àrealizaçãodobempúblico,poistodososconselhos
anteriormentecitadosseterminampelafrase“...esequeresreinar,julga
emnobre”.Autilizaçãodoverboregnare(reinar)mostraqueRemígio
estáconscientedequeosconselhosqueeledáimplicamaconduçãodos
assuntospúblicos.
Noentanto,foiemsuasegundacartaaClóvisqueRemígiointegrou
pelaprimeiravezeexplicitamenteentreosdeveresdoreiaobrigação
dezelarpelasalvaçãodetodos:
192 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
“Meu senhor [rei], expulse de teu coração a tristeza; governa o reino de
maneira mais penetrante, com um espírito justamente dominado, tomandodecisõesmaisdifíceisgraçasaozelodaserenidade.Alentateusmembros
graçasaumcoraçãoalegre.Oentorpecimentodaamargurasacudido,consagrarástuasvigíliasparaasalvação[detodos]commaisacuidade.Queo
reinopermaneçaemtuamãoparaseradministradoe,comaajudadeDeus,
prosperar.Tuésacabeçadospovosepossuirogoverno.Possamaquelesque
sehabituaramavivergraçasatinasfelicidadesnãoteobservarsubjugado
pelaacidezdaperda”31.
Aconversãoeobatismotinhamacabadodeacontecer.Remígio,que
teveumpapelimportantenoseventos,tornou-seopadrinhoespiritualdeClóvis.Daísuapreocupaçãoemescrever-lheparaconsolar-loda
perdadesuairmã.Entretanto,suaspalavrasnãoserestringemaodomíniodoreconfortoespiritual.Remígiosugerequeaconversãofezde
Clóvisumherói,umgovernantequeseencontravadoravanteàfrente
dospovos.Eleafirmaquealémdesuasamarguraspessoaiseemvirtude
daposiçãoqueocupavanoreino,Clóvistinhaumdeveremrelaçãoao
seupovo:eledeveriavelarpelasalvaçãodetodoscommaisacuidade.
Na primeira carta ele evoca ao rei os deveres inerentes à sua função,
semmencionarumaresponsabilidadedessegênero.Nãohaviasentido,
aliás,emassociaraumgovernantepagãoaresponsabilidadenasalvação
espiritualdeseussúditos.Esseéumtemaquesomentepoderiaserdesenvolvidoparaumpríncipequetivesseadotadoafécristã.Vemosalgo
análogonoDelaudibusConstantini(ElogioaConstantino),redigido
porEusébiodeCesaréia,porocasiãodotrigésimoaniversáriodoreinadodesseimperador.Aidéiadequeopríncipetemresponsabilidadena
salvaçãodeseussúditoséumdoscomponentesessenciaisdaRealeza
Cristã, e a primeira vez que ela aparece na Gália merovíngia é nessa
epístoladobispodeReims.
31
EpistolaeAustrasicae,1(trad.M.Rouche,Clovis,pp.393-394).
MarceloCândidodaSilva193
Aotratardasimplicaçõesdobatismo,comofazRemígioemsuasegundaepístolaaoreidosfrancos,obispoAvitusdeViena32utilizaum
tom“constantiniano” que examinamos na primeira parte deste livro.
MasobispodeVienavaialém:
“Nomomentoemquetinhamosnosvoltadoparaaeternidadeequeesperávamosdojulgamentofuturoquesejaditooquehádedireitonaquiloque
cadaumsente,eisquebrilhouentreoshomensdehojeumraiodeverdade
iluminado. A divina Providência enfim encontrou um árbitro para nossa
época. A escolha que fizeste é uma sentença que vale para todos. Tua fé é
nossavitória...Tu,deumagenealogiadeorigemantiga,secontentastedetua
próprianobrezaequisfazersurgirdetiparatuadescendênciatudooque
podeornardegenerosidadeessealtograu.Tutensfundadores,homensde
bem,masquisestefazernascermelhores.Tuestásàalturadeteusancestrais,
quandoreinanoséculo;tuésumfundadorparatuadescendênciaquando
reinaresnocéu”33.
SegundoAvitus,opoderdeClóvisnãoresultariaapenasdoprestígio
deseusantepassados,mastambémdofatodequeeletinhasetornado
umreicristão.Avitus,bemcomoRemígio,consideraqueasimplicações
destaconversãoultrapassavamoslimitesdeumaprofissãodeféindividual.Édifícilafirmar,comofazW.vondenSteinen,quenãohaviapor
partedobispodeVienanenhumaconsciênciadoalcancedobatismode
Clóvis34.AvitusdizclaramenteapropósitodobatismodeClóvisquea
divinaProvidênciatinhaencontradoum“árbitro”parasuaépoca.Ele
crêqueaescolhadoreiéumasentençaquevalepara“todos”35.Apa-
32
CidadelocalizadaaosuldeLyon.SobreAvitus,verH.Goelzer,LelatindesaintAvit,évêque
deVienne(450?–526?);M.Burckhardt,DieBriefsammlungdesBischofsAvitus;etambém,
M.Reydellet,“AvitdeVienneetlaroyautéchrétienne”,In:Laroyautédanslalittératurelatine,
pp.87-137.
33
AvitusepiscopusClodovechoregi(trad.M.Rouche,pp.397-400).
34
W.vondenSteinen,“ChlodowigsÜbergangzumChristentum”,pp.417-501.
35
AlcimiEcdiciiAvitiViennensisEpiscopi,46(41).
194 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
lavra“todos”designava,provavelmente,nãosomenteoshabitantesdo
RegnumFrancorum,mastodososcatólicos.Avituseraumbispoestrangeiro,cujaséepiscopalseencontravanoReinodosBurgúndios.Épouco
provávelqueeletivesseemmenteexclusivamenteoshabitantesdoReinodosFrancosquandoredigiuessacarta.Elesepreocupavacomtodos
oscatólicos,incluindoaquelesqueeramgovernadosporreisheréticos.
AvitusacordavaumvalorimensoàconversãodeClóvis,nãosomente
porqueelafacilitariaaconversãodosfrancos,mastambémporqueela
faziadessereiapontadelançadafécatólica.Algumaslinhasadiantena
carta,osargumentosdobisposetornammaisincisivosnessesentido:
“Háumacoisanomundoquenósqueríamosqueelaoamplificasse:que
Deusfaçateu,parati,todooteupovoequeospovosmaisdistantes,mas
ainda não corrompidos, em sua ignorância natural, por germes dos maus
dogmas, recebam de ti a semente da fé, tomada no bom tesouro de teu
coração;nãotenhasnemvergonha,nemaborrecimentodeconstruir,pelo
enviodeembaixadassobreessetema,oreinodeDeus,elequetudofezpara
edificaroteu”36.
Avitus vê Clovis não apenas como o defensor da fé, mas também
comoseupropagador,umevangelizadorcujaaçãoultrapassariaasfronteirasdeseupróprioreino:
“À medida que esses povos exteriores pagãos estarão prontos a servi-lo
sobomandatodareligião,entãoperceberemosnovamentequeissotemuma
outrapropriedade.Nósadiscerniremosmaispelopertencimentoaumpovo
queaumpríncipe”37.
36
Ibid.
Ibid.
37
MarceloCândidodaSilva195
Na epístola de Avitus, as fronteiras políticas tradicionais cedem
lugar a uma nova forma de identificação coletiva fundada sobre o
pertencimento a uma mesma fé católica, e o que é mais importante,
sobre a lealdade a um governante que a incarnaria. A proposição é
nitidamenteconstantiniana:opríncipeaparececomoochefedeuma
comunidade cujo cimento é a religião. O fundamento da autoridade
“supranacional”dorexéareligião:“Àmedidaqueessespovosexteriores
pagãosestiveremprontosaservi-losobomandatodareligião”.Essacarta
émenosmarcadaqueasdeRemígiopelaidéiadequeopoderdevese
assentar na ajuda aos fracos e na promoção da salvação. Trata-se do
primeirodocumentoamencionarexplicitamenteamudançanalegitimidadedosreisfrancosprovocadapelobatismodeClóvis.Conforme
Avitus,oreifrancoretirasuaforçaédapropagaçãodafécatólicaeda
conversãodospovospagãos.
AsepístolasdeRemígioedeAvitusmostramqueaconversãoeobatismodeClóvisnãoforamapenasosmarcosdeumapolíticacujoobjetivoeraaproximarogovernofrancodomodeloimperialdegoverno.Eraa
primeiravezqueumreibárbaroadotavaafécatólica,nummomentoem
queapropagaçãodoarianismoameaçavapôremriscoaortodoxiaadotadapeloConcíliodeNicéia38.Entretanto,obatismonãodeveserconsideradocomoumeventoqueinauguroua“RealezaCristã”39.Aimpor-
38
Oarianismoopunhaaquelesque,comoArius,umpadredeAlexandria,sustentavamque
JesusnãoeraofilhodeDeus,aospartidáriosdoConciliodeNicéia,quehaviacondenadoas
idéiasdeAriuscomoheréticaseproclamadoodogmadaTrindade.Asdivisõesnãotardaram
a atingir os próprios arianos. Para os mais radicais, o Cristo era anomoiousios, ou seja, de
umaoutrasubstânciaqueDeus;umasegundatendênciasustentavaqueoCristoerahomoios,
semelhanteadeDeus;aquelesdentreosarianosqueerammaispróximosdaortodoxiaproclamavamoCristohomoiousios,semelhantepelasubstância.Masumadiferençapermanecia:
oConciliodeNicéiahaviaestabelecidoqueoflhoeradamesmasubstânciaqueoPai(Sobreo
arianismo,verH.G.Opitz,UrkundenzurGeschichtedesarianischenStreites;M.Simonetti,
LacrisiariananelIVsecolo;M.MeslinLesAriensd’Occident,335-430).
39
Ver R. Aigran, “L’Eglise franque sous les Mérovingiens”, pp.329-390; também, L. Pietri,
“L’EgliseduRegnumFrancorum”,pp.745-799.
196 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
tânciapolíticadaconversãoedobatismodoreidosfrancosnãodeveser
superestimada.AIgrejafrancaeamonarquiamerovíngianãoeramdois
parceirosrecentes.ObatismodeClóvisoficializoueaprofundouasrelaçõesentreambosospodereseabriugrandespossibilidadesàpropagação
dafécristãproclamadapelospadresdoConcíliodeNicéia.Elepermitiu
quealgunsbisposdesenvolvessememsuasexortaçõestemasqueatéentão
estavam ausentes de sua correspondência com os reis francos, como o
deverdopríncipeempromoveraevangelizaçãoesuaobrigaçãoparacom
asalvaçãodosseussúditos.Porém,aidéiadoreiaserviçodopovotinha
sidoabordadaporRemígioantesdobatismodeClóvis.Éapenasdepois
do batismo que a idéia de serviço foi associada à salvação, tornando o
conteúdodosdeveresmoraisdopríncipeexplicitamentecristão.Issonão
significaqueessasidéiastenhamsidoautomaticamenteincorporadasao
exercíciodopodernaGália.Foinecessárioumlongocaminhoparaque
essasidéiastomassemformanalegislaçãorealfranca.
AurelianodeArles
Depois das epístolas de Remígio e de Avitus, o melhor e o mais
completoexemplo,naprimeirametadedoséculoVI,deumaexortação
episcopaléaepístolaqueAureliano,bispodeArles,enviouaoreiTeudebertoI.Acartafoiescritaporvoltade546-548,nomomentoemquea
cidadetinhaacabadodeficarsobopoderdesserei40.Noiníciodoséculo
40
Epistolae Austrasicae, 10, pp. 124-126.W. Gundlach, que editou o texto dessa carta nos
M.G.H.,acreditavaqueseuautorfosseAurelianodeArles(546-551),poiseleéoúnicobispo
cujonomeémencionadonosfastosepiscopaiscomosendoumcontemporâneodeTeudeberto
I(“DieSammlungderEpistolaeAustrasicae”,pp.365-387,especialmentep.397).Essaopinião
épartilhadapelamaiorpartedoshistoriadoresqueanalisaramodocumento;éocaso,por
exemplo,deM.Heinzelmann(BischofsherrschaftinGallien,pp.149-152).Elaé,entretanto,
refutadaporR.Collins:paraele,dopontodevistaliterárioeestilístico,essacartanãopoderia
serdeAurelianodeArles.ComparandoaRegulaescritaporAurelianocomacartaquelheé
atribuída,Collinsafirmaqueessesdoistextosnãopodemtersidodeummesmoautor,pois
oprimeiroteriasidoescritoemumlatimdemáqualidade,contrariamenteàcartaenviadaa
MarceloCândidodaSilva197
VI,acivitasdeArleseraaMetrópoledasGáliasesuaimportânciacomo
centropolíticoereligiosohaviasidoampliadaduranteopontificadode
CesáriodeArles41.Nomeadobispodacidadeporvoltade502-503,Cesáriosofreu,comooutrosmembrosdoepiscopadoprovençal,osexcessosdopodervisigodo.ExiladoemBordeauxporAlaricoII(503-507),
emaistardereabilitado42,elevoltouaserexiladoquandoArlespassou
paraodomíniodosostrogodosapósaderrotadeAlarico,em50843.Cesárioteveumpapelimportanteemváriosconcíliosprovinciais,desdeo
concíliodeAgde,em506,atéodeMarselha,em533.EletambémpresidiuoConcíliodeOrange,em529.Em514,opapaSímacooutorgou-lhe
opallium44,enoanoseguinte,umacartapontificalonomeou“vigário
apostólico”naProvença,naNarbonesaenaEspanha.Pelaprimeiravez
nahistóriadaIgrejaCatólica,opalliumeraconcedidoaalguémforada
PenínsulaItaliana45.
MaisdoqueostextosanterioresdeRemígioedeAvitus,aepístolade
Aurelianoéumaespéciede“espelhodopríncipe”destinadoamostrar
Teudeberto,compostanumestiloapuradoecomumaretóricaelaborada.Oautordessaúltima
carta,afirmaR.Collins,praticavaolatimtalcomoumEnnodiusouumCassiodoro,enquanto
aRegulateriasidoredigidacomuma“simplicidadebárbara”.Eleestimaqueoautordacarta
aTeudebertoIeraumoutrobispochamadoAureliano,cujaidentidadedasedeepiscopalpermaneceincertaequeteriavividonosuldaGália,provavelmentenaProvença(“Théodebert
I,‘RexMagnusFrancorum’”,pp.7-33,especialmentepp.19-20).P.Riché,poroutrolado,não
compartilhaaopiniãodeCollinsarespeitodafaltadeerudiçãodeAurelianodeArles.Richéo
coloca,juntamentecomCyprianodeTouloneFerreoldeUrzes,comomembrodeumaúltima
geraçãodebisposletradosdaGáliadosul(Educationetculturedansl’Occidentbarbare,p.
220).OutroargumentoemfavordeAurelianodeArleséaimportânciaeoprestígiodesua
sedeepiscopal.Époucoprovávelqueumobscurobispoprovençalescrevesseaoreinostermos
deumaexortaçãomoral.
41
R.Collins,“ThéodebertI‘RexMagnusFrancorum’”,pp.7-33.
42
VitaCaesariiI,21-26,pp.465-466.
43
VitaCaesariiI,36,pp.470-471.
44
VitaCaesariiI,42,p.473.
45
L.Duchesne,L’EgliseauVIesiècle,p.532;P.Batiffol,SaintGrégoireleGrand,p.512.
198 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
parareiasvirtudesqueeledeveriapraticar46.Quasetodasasvirtudes
mencionadas por Aureliano e endereçadas ao rei Teudeberto pertenciamaovocabulárioromano:éocasoda“misericórdia”,da“justiça”,da
“concórdia”eda“generosidade”.Nadamaisnatural,umavezqueessa
epístolaseendereçavaaumpríncipecomnítidaspretensõesimperiais,
o qual recebeu, ainda no séculoVI, o epíteto de magnus. Entretanto,
como bem nota P.D. King, dentre as virtudes apresentadas porAureliano,háumaquenãopossuíaraízesnopensamentoromanosecular:
ahumilitas,virtudeidealdoimperadorparaAmbrósiodeMilãoepara
Agostinho,masinconcebívelparaosautorespagãos47.Emsuaprimeira
epístolaaClóvis,RemígioexaltaahumilitasdeClóvis,muitoembora
nãoaassociediretamenteàsuaconversãoàfécristã:“ÉnecessáriofazerdemodoqueojulgamentodeDeuscontinueasustentá-lo,poiséem
recompensadetuahumildadequeelefezcomquetuchegassesaoápice”.
EssahumilitasteriapermitidoaClóvischegaratéaposiçãoemquese
encontravaapósamortedeseupai,bemantes,portanto,daconversão
edobatismo.NacartadeAureliano,elaassumeplenamenteumcaráter
cristão.Ahumilitassignifica,paraobispodeArles,queopríncipedevia
reconheceropoderdeDeusesesubmeteràssuasordens.Amençãoa
essavirtudetemumaimplicaçãodesumaimportância:otemordopoderdeDeus.Virtudediametralmenteopostaàsuperbia(valorparticularmentecaroaosromanos),ahumilitasdochristianusprincepsabreaos
bisposapossibilidadedeensinaraosreisaquiloqueécorretoeaquilo
quenãooé.AurelianolembraaTeudebertoIaspuniçõesqueeleevita
aosecomportarcomoumpríncipecristão.EleinsistenodiadoJuízo
Final,temacaroaGelásioeaCesáriodeArles,etambémpresentena
primeiracartadeRemígio.
AurelianodesignaTeudebertocomosacratissimuspraesul(algocomo
“chefe muito sagrado”). Y. Saissier acredita que essa expressão revele
umadimensãoreligiosaesagradadematrizconstantiniana48.Obispo
46
EpistolaeAustrasicae,10.
P.D.King,“Lesroyaumesbarbares”,p.130.
48
Y.Saissier,RoyautéetidéologieauMoyenAge,p.82.
47
MarceloCândidodaSilva199
narraaoreiodiesterrorisinenarrabilis(“diadoterrorinenarrável”),o
diesfurorisDomini(“diadofurordeDeus”),noqualosbonseosmaus
serãojulgados,estescastigados,amaldiçoadosecondenadosaumapena
eterna sem a mínima consideração para com suas ilustres origens ou
suacondiçãosocial.Aúnicacoisaaserlevadaemcontaseriaomérito
decadaum:“Assim,serreinãoénãoumprivilégioemsimesmo”.Em
suarelaçãocomDeus,aresponsabilidadedoreiseriamuitomaiorem
virtudedaposiçãoqueeleocupa:“Quantomaisvocêtiverrecebidoem
quantidade, mais você será devedor”49. Nesse sentido, quanto mais seu
regnum for grande, maior é o risco que o rei corre durante a grande
prestaçãodecontas.Essaconcepçãoministerialdopodersecular,como
váriosautoresjáobservaram,temraízesnaEpístoladePauloaosRomanos, em que os governantes aparecem como servidores zelosos de
Deus:“Étambémporissoquepagaisosimpostos,poisosquegovernam
sãoservidoresdeDeus,quesedesincumbemcomzelodoseuofício”50.
Noentanto,asreflexõesdeAurelianotrazemimportantesmodificaçõesemrelaçãoàsidéiaspaulinassobreopoder.Notrechoqueacabade
sercitado,Paulofazreferênciaaosgovernantes,semseaterespecificamenteaosgovernantescristãos,problemaquenãosecolocavanaquele
momento.Aoretomaroprincípiodaresponsabilidadedosgovernantes,
Aurelianosepreocupafundamentalmentecomosgovernantescristãos:
“ÉimpossívelmedirascontasqueopríncipecristãodeveprestaraDeus”.
ParaAureliano,comoparaRemígioeparaAvitus,ogoverno,muitomais
doqueuminstrumentodeDeusparapunirospecadores,éumafunção,
umministério,exercidoemnomedeDeuseembenefíciodetodos.Essa
percepçãoconstituiumarupturaemrelaçãoàidéiadopodercomoum
castigo,expressanaEpístoladePauloaosRomanos,equedurantemuitotempoosautorescristãossustentaramcomosendoacaracterística
essencialdetodaformadeautoridade:
49
Ibid.
Rom.,13,6.
50
200 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
“Cadaumsesubmetaàsautoridadesconstituídas,poisnãoháautoridade
quenãovenhadeDeus,eaquelasqueexistemforamestabelecidasporDeus.
De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem
estabelecida por Deus. E os que se opõem, atrairão sobre si a condenação.
Osquegovernamincutemmedoquandosepraticaomal,nãoquandosefaz
obem.Queresnãotermedodaautoridade?Praticaobemedelareceberás
elogios,poiselaéinstrumentodeDeusparateconduziraobem.Se,porém,
praticaresomal,teme,porquenãoéàtoaqueelatrazaespada:elaéoinstrumentodeDeusparafazerjustiçaepunirquempraticaomal”51.
Ao pregar a obediência às autoridades pelo fato de elas terem sido
instauradasporDeus,Paulovianopoderpolíticoumorganismopunitivo,cujaexistênciasejustificariapelocastigodosímpios.Aassociação
dopoderàespada–ogládio–perpetuou-senosséculosseguintes,mas
aconversãodospríncipesàfécatólicacolocouparaosautorescristãoso
problemadafunçãodessespríncipesnointeriordacomunidade.Aidéia
dePaulosegundoaqualopoderétambémoinstrumentodeDeuspara
conduziraobemfoiaprofundada,eoconteúdodesse“bem”assimiladoà
salvaçãodasalmas.Damesmaforma,opapeldoepiscopadonarealização
dessatarefatambémfoidestacado.Osbisposseriamosconselheirosprivilegiadosdessepríncipecujatarefanãoéapenasadepuniraquelesque
escapamdobomcaminho.Eleéoresponsávelporguiá-losdemodoque
possamalcançarasalvação.Aoinsistiremmaissobreasimplicações“positivas”dopapeldaautoridadepolíticadoquesobreseusinstrumentos
punitivos,Remígio,AvituseAurelianooutorgamaopríncipeopapelde
“pastor”queconduzseurebanhoatéopastodavidaeterna,eatémesmo
de“pai”,muitomaisdoqueode“juiz”52.
51
Rom.,13,1-4.
Os próprios bispos se tornaram gradualmente, e no lugar da aristocracia senatorial, o
símbolo da paternidade, como mostrou M. Heinzelmann. Através do estudo de inúmeros
epitáfios e elogios escritos nos séculos V e VI, esse autor mostra que os bispos apareciam
nessa época como os“pais dos pobres” ou“pais da igreja”, e, de maneira mais sistemática,
como“paisdopovo”,“paiouamordacidade”,“pai,salvaçãoeorgulhodapátria”.Essesvalores
52
MarceloCândidodaSilva201
VenâncioFortunato
VenantiusHonoriusClementianusFortunatusnasceunosarredoresdeTrevisa,noiníciodoséculoVI.ElechegouàGáliaem565para
umaperegrinaçãoaotúmulodeSãoMartinhodeTours.Tornou-se
mongeporvoltade576,eemseguidabispodePoitiers,funçãoque
ocupouatésuamorte,porvoltadoano600.Entresuasobras,destacam-seosCarmina–sériedeonzelivrosdepoemassobrediversos
personagens da Gália merovíngia: reis, rainhas, aristocratas, bispos
etc.–bemcomováriashagiografias–a“VidadeSantaRadegonda”,
a“VidadeSãoMartinho”,a“VidadeSãoGermanodeParis”,a“Vida
deSantoAubindeAngers”,a“VidadeSãoPatérniodeAvranches”,a
“VidadeSãoMarcelodeParis”,a“VidadeSãoSeurindeBordeaux”53.
OsCarminaconstituemumasubstancialfontedeinformaçãoessobrearealeza:emseusonzelivros,hátrintapoemasquetratamdereis
ou rainhas. Pouco tempo depois de sua chegada à Gália, Fortunato
pronunciouemMetzoepitalâmiodocasamentodeSigebertoeBrunilda, seguido de um breve panegírico para marcar a conversão de
Brunildaaocatolicismo54.Emseguida,emParis,proferiuumlongo
elogiodedicadoaoreiCariberto55,ecompôsdoispoemas,oprimeiro
sobreaIgrejadeParis56,eosegundosobreosjardinsdeUltrogothe,
queassociavamoexercíciodopoderpúblicoaumconjuntodevirtudes,ocristianismoteria
ido buscar, segundo M. Heinzelmann, na aristocracia romana (M. Heinzelmann, BischofsherrschaftinGallien,especialmentepp.185-246).
53
VenantiiFortunatiopera,ed.F.Leo,B.Krusch,MGH,AA4/1.NoqueserefereaolivroIIe
aolivroVIquesãocitadosnestetrabalho,foiutilizadaatraduçãodeM.Reydellet(Poèmes).
54
CarminaVI,1,VI,1a.ApublicaçãodosCarminadeveterocorridoem576,oumaisprovavelmenteem577,poisCarminaV,5mencionaaconversãodosjudeusdeClermontque
GregóriodeTourssituaem576(HistóriasV,11).SobreasrelaçõesentreGregórioeFortunato,
háoexcelenteartigodeM.Reydellet,“ToursetPoitiers:lesrelationsentreGrégoiredeTours
etFortunat”,pp.159-167.
55
CarminaVI,2.
56
CarminaII,10.
202 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
viúvadoreiChildebertoI57.Em570,escreveuumlongotextosobre
amortedaprincesaGalswinta58.Em573,quandoGregóriosetornou
bispodeTours,FortunatoredigiudoispoemasàglóriadeSigeberto
edeBrunilda59,eem580,noConcíliodeBerny,convocadoporChilperico para julgar Gregório de Tours, pronunciou o elogio do rei e
da rainha Fredegonda60. Na mesma época, Fortunato escreveu dois
poemassobreChilpericoeFredegonda,paraconsolá-lospelamorte
deseusdoisfilhos,bemcomooepitáfiodecadaumdeles61.FortunatotambémescreveupoemasemhonradeBrunildaedeseufilho
ChildebertoII62.
O primeiro dos poemas que Fortunato dedicou à realeza foi escritoporocasiãodocasamentodeSigebertoeBrunilda.Elelouvaas
glóriaseasvirtudesdoreinadodeSigeberto,eofatodeBrunildater
escolhidoareligiãocatólica.OpoemacomeçamencionandoosméritosguerreirosdeSigeberto,cujareputaçãoé,segundoele,tãogrande
noOcidentequantonoOriente63.Emseguida,entreosversos7e14,
Fortunatorevelaqualéofeitomilitarqueéobjetodeseulouvor:as
campanhascontraosSaxõeseosTuríngios,nasquaisSigebertoauxiliouseupaiClotário:
57
CarminaVI,6.
CarminaVI,5.
59
CarminaV,3.
60
CarminaIX,1.
61
CarminaIX,2;IX,3;IX,4eIX,5.
62
CarminaX,10,8;ApêndiceV;ApêndiceVI,2.Noqueserefereàcronologiadospoemas
deFortunato,verW.Meyer(DerGelegenheitsdichterFortunatus).Adataçãosugeridapor
MeyernãoésempreaceitaporM.Reydellet,especialmentenoqueserefereaospoemassobre
BrunildaesobreChildebertoII,reunidosnolivroXenoApêndice(verM.Reydellet,“Fortunatetlavisionpoétiquedelaroyautémérovingienne”,Laroyautédanslalittératurelatinede
SidoineApollinaireàIsidoredeSéville,pp.297-344,especialmentepp.301-302).
63
Carmina,VI,1a,ItemdeSigebertoregeetBrunichilderegina,versos1-6.
58
MarceloCândidodaSilva203
“PoderosoSigeberto,ilustradoportriunfosluminosos,teuvalorinigualável
eteunascimentofazemtuaglória.Umavezraptadaporti,aVitóriacolocou
suasasasevoaespalhandoemtodososlugaressuasbenéficasproezas.Ela
ecoaosnomesdosaxãoedoturíngio:quantosheróis,provocandosuaprópriaperda,caíramparaaglóriadeapenasum!Portermarchadoàfrentedas
tropasapé,precedendoatodos,tupossuishojeumaescoltadereis.Poruma
prosperidadeinconcebível,tuasguerrasproduziramapazetuaespadacriou
umabondadeassegurada.Paraampliaratéolimiteteucharme,enquantoa
vitóriaéjactância,tupermanecesmaisdoceàmedidaquesobe”64.
Contrariamete ao que afirma J.W. George65, Fortunato não louva
nesse poema o guerreiro germânico, mas o chefe romano vitorioso.
AreferenciaàVitória,aliás,remeteaomesmotemaqueilustravárias
dasmoedascunhadasporSigeberto,ummotivoqueporsuavezéderivadodasmoedasdeTeudebertoI,deValentinianoedeGraciano66.A
máreputaçãodogênerolaudatórioentreoshistoriadoresfezcomque
durantemuitotempoeletenhasidomenosprezado,emdetrimentodos
“documentosoficiais”:atosdaschancelarias,textoslegislativos,tratados
etc.AampliaçãodasfontesdahistóriapolíticaaolongodoséculoXX
modificouasituação.Oshistoriadoresreconhecemhojequeostextos
laudatórios são fontes preciosas para a história política67. Os poemas
deFortunatopodem,sobretudoquandotratamdepersonagensreais,
traduzirumavisãosobrearealezaquenãoeraapenasoapanágiodoau-
64
Ibid.,versos6-18.SobreessascampanhasdeSigeberto,verHistóriasIV,10.
65
J.W.George,VenantiusFortunatus.ALatinPoetinMerovingianGaul,pp.39-40.
66
67
VerA.Blanchet,A.Dieudonné,Manueldenumismatiquefrançaise,v.1,p.201.
Ver,porexemplo,R.Koebner,VenantiusFortunatus.BeiträgezurKulturgeschichtedes
MittelaltersundderRenaissance,vol.22;D.Tardi,Fortunat.ÉtudesurundernierreprésentantdelapoésielatinedanslaGaulemérovingienne;J.W.George,VenantiusFortunatus.A
LatinPoetinMerovingianGaul,pp.35-61;domesmoautor,“Poetaspolitician:Venantius
Fortunatus’ panegyric to king Chilperic”, pp.5-18; B. Brennan,“The Image of the Frankish
KingsinthePoetryofVenantiusFortunatus”,pp.1-11.
204 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
tor,masqueseencontravaigualmentedifundidanascortesque“encomendaram”taisobras.Comefeito,Fortunatoprovavelmenterepercutiu
umasensibilidadedacorteaustrasianaquetendiaaassociarSigeberto
a um príncipe romano. O casamento com uma princesa oriunda da
maisromanizadadascortesocidentaiséumaatitudequeapontanesse
sentido.AsidéiaseatémesmoovocabuláriodessepoemadeFortunato
estãoatalpontoimpregnadasdatradiçãodafilosofiapolíticaromana
queautorescomoM.ReydelletenxergamparaleloscomoPanegírico
deTrajano68.Hátambémnopoemaumanítidadimensãocristã,observávelnapenúltimafrasedotexto:“Porumaprosperidadeinconcebível,
vossasguerrasproduziramapazevossaespadacriouumabondadeassegurada”.Vê-seaquiqueaidéiadopodercomoinstrumentodepunição
dosmausedospecadores,presentena“EpístoladePauloaosRomanos”,
cedelugaraumavisãopositivadogládioedesuafunção.Eleéoinstrumentoatravésdoquala“paz”ea“bondade”sãoestabelecidas.Apoesia
deFortunatorepercuteumtemarecorrentedalegislaçãorealnoséculo
VI,odopríncipeaserviçodapaz.OPactusprotenorepacis(“Pacto
paraamanutençãodapaz”),redigidoporChildebertoIeClotárioIantesde558,éumbomexemplonessesentido.Nosescritosepiscopais,no
entanto,apaznãoéumvaloremsi,comonoPactus,mastãosomente
ummeioparasealcançarasalvação.
Entreosversos25e29dopoemaaSigeberto,adimensãopropriamente“cristã”doelogioretomaotemadopríncipeaserviçodasalvação:
“Pelo descanso do povo estás imbuído de uma piedosa preocupação. Tu
fostedadoatodoscomoaúnicasalvaçãoe,conformeaordemdeDeus,tu
conduzesatodosnotempopresenteasalegriasdopassado”69.
Nesses versos, o rei está estreitamente associado ao seu povo por
meiodesuasobrigaçõesparacomesseúltimo.Fortunatoexprimenessa
68
VerM.Reydellet,Laroyautédanslalittératurelatine,p.321.
Carmina,VI,1a,ItemdeSigebertoregeetBrunichilderegina,versos25-29..
69
MarceloCândidodaSilva205
partedeseupoemaaidéiamaiordaeclesiologiadaGálianoséculoVI,
segundoaqualointeressegeralseconfundecomumbemnãomaterial,
asalvaçãodasalmas,equecompeteàrealezaarealizaçãodessatarefa.
Alémdisso,aimagemdeumreiquefoidadoaoseupovoevocaatradiçãoveterotestamentáriadainstituiçãodarealezaemIsrael.Oprimeiro
livro de Samuel narra como todos os anciãos de Israel se reuniram e
foramaoencontrodessejuiz,pedindoqueDeusestabelecessesobreeles
umrei.ExortadoporIahweh,Samuellembroudeexporaopovoosincovenientesdaexistênciadeumrei:
“Opovo,noentanto,recusou-seaatenderapalavraSamuel,edisse:‘Não!
Nósteremosumreieseremosnóstambémcomoasoutrasnações:onosso
reinosjulgará,iráànossafrenteefaráasnossasguerras’.Samuelouviutudo
oqueopovodisseecontouaoouvidodeIahweh.MasIahwehlherespondeu:
‘Escutaavozdelesefazereinarsobreelesumrei’”70.
AassociaçãoentreosdescendentesdeClóviseosreisdoAntigoTestamentotemsidovistadeumângulobastantenegativo.ParaF.Lot,por
exemplo,quandoosteóricosdaIgrejatentaramencontrarnopassado
ummodeloparaoreifranco,nãooprocuraramnopassadogermânico
ou no passado romano, mas entre os reis de Israel. Trata-se, segundo
Lot,domodelodeperfeiçãodo“déspotaoriental”71.Ora,aoevocarem
atradiçãoveterotestamentária,osautoresdoséculoVIviamarealeza
comoarealizaçãodosdesígniosdivinos,mascujaorigemprimeiraestavanavontadedopovo.Afinaldecontas,comonarraoprimeirolivrode
Samuel,DeusteriadadoumreiàsdozetribosdeIsraelemrazãododesejodopovo.Maisdoqueaimagemdodéspotaoriental,asreferências
aosreisdoAntigoTestamentoevocavamofatodequearealeza,mesmo
sendoinstituídaporDeus,erafrutodavontadedopovooupelomenos
destinava-seaoseuserviço.
70
ISamuel,8,19-22.
F.Lot,NaissancedelaFrance,p.167.
71
206 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Essaconcepçãosobreaorigemdarealezanãoénem“ascendente”,
nem “descendente”, para utilizar os termos consagrados por W. Ullmann.Numaobraquesetornouumclássicodahistóriadopensamento
político medieval, esse autor afirma que os princípios de governo na
Idade Média eram dirigidos por duas concepções sobre a origem do
poder:aascendente,oupopular,eadescendente,outeocrática.Nessa
última,aregulamentaçãodoespaçopublicoseencontarianasmãosde
um órgão supremo, na maior parte das vezes uma entidade sobrenatural,demodoqueasatribuiçõesdaquelesqueexercemopodernada
maisseriamqueoprodutodavontadedesseagentesituadoacimade
todos.Naconcepçãoascendente,aorganizaçãodoespaçopúblicoseria
umatributodacomunidadedecidadãos,opopulus–entidadejurídica,
fontedalegitimidadeedaautoridadedogoverno.AquedadeRoma,
o progresso da religião cristã e a constituição dos reinos bárbaros teriamprovocadoodesaparecimentodanoçãosegundoaqualopovoé
quemseriaodepositáriodasoberania,eteriaacapacidadedeconstituir
umaautoridadepolíticasuprema.Emseulugar,teriatriunfadoanoção
cristãeorientalnaqualessaautoridadeaparececomoprodutodavontadedivina.ApartirdoséculoXII,comodesenvolvimentodoDireito
Romanoeemrazãodaexperiênciadascomunasitalianas,aconcepção
ascendenteteria,segundoUllmann,recuperadoseuprestígio72.
O esquema interpretativo de W. Ullmann não é o melhor instrumentoquesecompreendamasdiferençasentreasconcepçõespolíticas
dofinaldaAntigüidadeedoiníciodaIdadeMédia.Maséemsuaanalise
da realeza franca que o esquema se revela mais redutor. O serviço ao
povocristãopodeserconsideradoumelemento“protocontratual”,que
dáaopoderpolíticoumabasedelegitimidadeameiocaminhoentreo
princípiodaorigemdivinaeoprincípiodaorigempopulardopoder.
SeparaoshomensdosséculosVIeVII,Deuséqueminstituitodasas
formas de autoridade, o poder político para eles respondia a um imperativo espiritual: o auxílio à Igreja na tarefa da salvação das almas.
72
W.Ullmann,PrincipiosdegobiernoypolíticaenlaEdadMedia,p.24.
MarceloCândidodaSilva207
O poder, longe de constituir um privilégio para aquele que governa,
podendoserexercidodemodoilimitado,érestritoaumconjuntode
obrigaçõesdosgovernantesemrelaçãoaosgovernados.Alegitimidade
dopríncipenãodependiamaisunicamentedeummandatodivino,mas
também,etalvez,sobretudo,darealizaçãodeumatarefasobrenatural
cujomaiorbeneficiárioeraopopulus.Oserviçodopovocristãotornasearaisond’êtredopoder,queporsuaveznãopodeserconsiderado
comounicamente“descendente”,vistoqueelerespondeàsexpectativas
dacomunidadedefiéis.Maisimportanteainda,osconstantesparalelos
comosreisdoAntigoTestamentomostramqueopoderrealeravisto
comoorigináriodeumademandadopopulusaDeus.Provavelmente
satisfatóriaparaaaristocraciasecular,poiselacolocavaopopulusnuma
posição privilegiada, essa noção veterotestamentária da realeza o era
tambémparaoclero,porquantocolocavaoreicomoumapeçaessencial
daeconomiadasalvação,sem,noentanto,apresentá-locomoorepresentantedeDeusnaterra.
OtemadarealezabíblicaemFortunatoaparecetambémnopoema
sobreCariberto73eemumpoemasobreaIgrejadeSãoVicente:
“NossoMelquisedeque,debomdireitoreiepadre,cumpriu,comoleigo,
umaobradereligião.Regentedacoisapública,osolhosvoltadosparaopalácioceleste,elefezdaglóriadospontíficessuaúnicaregra”74.
Melquisedequerepresenta,noAntigoTestamento,afigurado“reisacerdote”75.IssosignificaqueFortunatoidentificaamonarquiafranca
comoumarealezasacerdotal?Ouaindaqueelesustentaaexistênciano
73
Carmina,VI,2,versos77-81:“Quandopratiqueisapaciênciadeumamaneiratãoabertae
admirável,podemosdizerquepossuistesaindulgênciadeDavidemsuavida.Guiadajustiça,
amorosododireitovenerável,édeSalomãoquepossuistesvossojulgamentosábio”.
74
Carmina,II,10,versos21-24.
75
Gênesis14,18:“Melquisedeque,reideSalém,trouxepãoevinho;eleerasacerdotedoDeus
Altíssimo”.
208 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
seiodarealezamerovíngiadepretensõesteocráticassemelhantesàsda
monarquiabizantina?76NaobradeFortunato,acomparaçãoentreorei
francoeMelquisedequetemumsentidodistinto.Pormeiodela,oautor
buscasalientarqueoreiseinteressapelosassuntoseclesiásticose,sobretudo,queelesepreocupacomseusbispos.Daíaafirmação:“...elefezda
glóriadospontíficessuaúnicaregra”(“...unicapontificumglorianorma
fuit”).Alémdisso,naEpístolaaosHebreus,Melquisedequeaparececomo
a figura profética do Cristo77. A comparação feita por Fortunato não
implica,portanto,adefesadeuma“realezasacerdotal”.Trata-sedeuma
alegoriadestinadaasublinharumaspectoindissociáveldocomportamentodobomrei:aatençãodispensadaaosbisposeaosconselhosque
essesúltimosestavamdispostosalhedar78.
OsegundopoemaqueFortunatoconsagrouinteiramenteaumrei
merovíngiofoiescritoemhomenagemaCariberto,edeclamadopela
primeiravezemParis,muitoprovavelmenteporocasiãodeuma“entradatriunfal”(adventus)emParis,quandoassumiuaherançapaterna,
após a expulsão de seu irmão Chilperico da cidade. Muito embora o
própriopoematragaadescriçãodeumadventus,cerimôniatipicamen-
76
Essaé,porexemplo,aopiniãodeJ.W.George(VenantiusFortunatus.ALatinPoetinMerovingianGaul, p. 43). Sobre as referências a Melquisedeque nos primeiros séculos da Era
Cristã,verG.Bardy,“Melchisedequedanslatraditionpatristique”,pp.496-509.
77
Hebreus,7,1-3:“EsteMelquisedecédefato,reideSalém,sacerdotedeDeusAltíssimo.Ele
saiuaoencontrodeAbraãoquandoesteregressavadocombatecontraosreis,eoabençoou.Foi
a ele que Abraão entregou o dízimo de tudo. E seu nome significa, em primeiro lugar,‘Rei de
Justiça’;e,depois,‘ReideSalém’,oquequerdizer‘ReidaPaz’.Sempai,semmãe,semgenealogia,
nemprincípiodediasnemfimdevida!ÉassimqueseassemelhaaoFilhodeDeus,epermanece
sacerdoteeternamente”.
78
OparaleloentreosreisfrancoseosreisdoAntigoTestamentonãoéumaexclusividadedas
fontes“laudatórias”. Nas Histórias, por exemplo, Gregório descreve o rei Clotário avançando
comoumnovoDaviprontoacombaterseufilho:“Senhor,olhadoaltodeCéuejulgaminhacausa,
poiséinjustamentequeeusofroosultrajesdemeufilho.OlhaSenhor,julgajustamenteepronunciao
mesmojulgamentoqueoutroratupronunciasteparaAbsalãoeseupaiDavi”(HistóriasIV,20).
MarceloCândidodaSilva209
teromana,FortunatoidentificaemCaribertomaisdoqueosatributos
dogovernanteromano:
“Aquioaplaudemosbárbaros,láosromanos:emdiversaslínguas,éum
mesmoelogiodesseheróiquesobressai.Ama,Paris,aquelequereinaemtua
poderosacidadela,eveneraoprotetorqueteprestaassistência.Beija-ohoje,
alegreeentusiasta,detuasmãosplenasdedesejos:eleépelodireitoteusenhor,maspelabondadeteupai”(grifonosso)79.
Areferênciaà“bondadepaternal”indicaqueoreiprotegeeassiste
seussúditos,e,maisimportanteainda,queessaproteçãoeassistência
équefornecemoconteúdo,eprovavelmentealegitimidade,aoexercíciodadominação.Obomrei,portanto,estálongedeencontrarsua
fontenomundoromano:aoressaltaraindulgênciaeasabedoriade
Cariberto,FortunatoocomparaaDavieaSalomão.Encontramosna
obradeVenâncioFortunatoomesmotemadesenvolvidonasepístolas
de Remígio, Avitus e Aureliano: o rei que ultrapassa o rigor de um
simplesjuizporsuabondade.Ogovernanteidealnaperspectivade
Fortunatoéaquelequetraduznoexercíciodeseupoderoprincipio
dapietascristã.Trata-sedeumtemarecorrentenatradiçãoepiscopal
aolongodoséculoVI:serreinãoésuficiente,énecessárioserumrei
católico.
AindanessepoemaaCariberto,Fortunatoretomaotemadanobre linhagem dos merovíngios, desenvolvido pelo bispo Avitus de
VienaemsuacartaaClóvis,aoescreversobreosignificadodeseu
batismo:
“Descendentedeumaaltíssimalinhagem,centelhandodeumanobreluz,
tuaglóriaprovémdesublimesantepassados.Poisquaisquerquesejamaquelesdentreteusantigospaisqueeuqueiramencionar,sãoreisdeumaraça
gloriosaqueaparecemecujaféaltíssimaempurrouocumeatéocéu.Éela
79
CarminaVI,2,versos7-12.
210 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
quecolocouteupésobreacabeçadasnações,quetefezpisarosinimigos
inchadosdeorgulhoerelevarteusamigos,protegeuaquelesquesesubmetem
eesmagouosrebeldes”80.
Fortunato evoca a “nobre ascendência” de Cariberto, mas deixa
claroqueéaféqueterialevadoatéoápiceoprestígiodessalinhagem.
Noqueserefereaorestantedopoema,eacomeçarpelaevocaçãodo
adventus,opoemaaCaribertoéumretratobastanteromano.Caribertoélouvadoporsuacapacidadeemmanterapazeaprosperidade
deseureino81.Otextoseaproximaemmuitodospanegíricoslatinos
pelasvirtudesquesãoassociadasaoreifranco:apietas,asapientia,a
iustitia,apatientia,amoderatio82.ComparadoaTrajanoporsuabondadeeaFabiuspelasuagravidade,Caribertoétambémlouvadopor
seudomíniodalínguadosromanos83eporsuacapacidadedesero
defensoreoguiadeseupovo84.
OterceiropoemarealdeFortunatofoidedicadoaChilpericopor
ocasiãodoconcíliodeBerny,em58085.Esseconcíliofoiconvocadopor
Chilperico com o objetivo de julgar Gregório de Tours, acusado pelo
conde de Tours, Leudastus, de ter caluniado a rainha Fredegonda, ao
pretenderqueelamantinharelaçõesadúlterascomobispometropolitanodeBordeaux86.EsseéopoemadeFortunatoquegerouomaior
númerodepolêmicasentreoshistoriadoresmodernos:compreende-se
malqueumpróximodobispodeTourstenhaaceitadoproferiroelogio
daquelequeédescritonasHistóriascomoaantítesedobomrei.S.Dill
80
Ibid.,versos27-34.
Ibid.,versos37-44.
82
Ibid.,versos61-96.
83
Ibid.,versos97-100.
84
Ibid.,versos111-114.
85
CarminaIX,1.Sobreasdiscussõessobreolocaleadatadesseconcílio,verC.J.Hefelee
H.Leclercq,Histoiredesconcilesd’aprèsdesdocumentsoriginauxparC.J.Hefele,t.III,p.
200,n.1.
86
HistoriasV,49.
81
MarceloCândidodaSilva211
consideraFortunatoummanipuladordaspalavrassemnenhumaoutra
preocupaçãoqueseusprópriosinteresses87.ParaR.Koebner,Fortunato
temumcomportamentodeoportunista,masoqueestariaemcausa,
antesdemaisnada,éogêneroliterárioporelepraticado,queseriaparticularmentesusceptivelàdissimulação88.Cogitou-setambémqueFortunatoproferiuoelogiodeChilpericoparatentarremediarasituação
precáriadeGregórioduranteoconcílio.
OstermosutilizadosporFortunatosão,defato,bastanteelogiosos
emrelaçãoaChilpericoeàrainhaFredegonda,econtrastamemmuito
comadescriçãofeitapelobispodeTourssobreessespersonagens.FortunatosublinhaasrealizaçõesliteráriasdeChilperico:
“Tuacoragemevocateupai,tuaoratória,teutio;mastuultrapassastetua
família inteira por teu entusiasmo em aprender. Dentre todos os reis, teus
iguais,tupossuismaisaltaestimaemrazãodeteusversos,nenhumdeteus
antepassadosteigualounoaprendizado.Tuasqualidadesdeguerreirotefizeramàimagemdetuafamília,mastualiteraturatetornouexcepcional”89.
Ora, Gregório estigmatiza os versos“mancos” desse rei ignorante
queteriacolocado“assílabasbrevesnolugardassílabaslongaseaslongas
no lugar das breves”90. Há outras discrepâncias nos relatos desses dois
autores.Aqueleque,segundoobispodeTours,tinhaporhábitocastigar
oshomens“injustamenteporcausadesuasriquezas”,édescritoporFortunatocomoumamantedajustiça:
“Quedireidetuaadministraçãodajustiça,ópríncipe?Ninguémseindispõecontigoseprocurarealmenteajustiça,poisemteuhonestodiscursoestão
87
S.Dill,RomanSocietyinMerovingianGaul,p.333.
R.Koebner,VenantiusFortunatus.BeiträgezurKulturgeschichtedesMittelaltersundder
Renaissance,p.95.
88
89
Carmina,IX,1,versos103-108.
90
HistóriasVI,46.
212 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
presentesasescalasdajustamedidaeocursodajustiçacontínua.Averdade
nãoéincomodada,amentiraeoenganonãoarranjamnada,atrapaçafoge
diantedeteujulgamento,eaordemvolta”91.
Areferênciaàcapacidadedoreiemjulgarcorretamentepodeser
partedaestratégiadeFortunatoemconvencê-loaevitaracondenação
deGregório.Otextolaudatórionãoéumretratofieldoobjetodescrito, tampouco uma deliberada deturpação do mesmo com o simples
objetivode“adularorei”.Eleservecomoinstrumentodetransformaçãodeumadeterminadaconjuntura.Aqui,especificamente,opoema
busca um objetivo pontual: influenciar a atuação de Chilperico no
julgamentodobispodeTours.Àluzdocomentáriofeitopelopróprio
GregóriodeToursarespeitodaatuaçãodeChilpericonoConcíliode
Berny,oselogiosdeFortunatoparecemmenossurpreendentes:“Todos
admiraram a sabedoria e ao mesmo tempo a paciência do rei”92. Mais
adiante, veremos como os poemas de Fortunato podem ter buscado
umobjetivomaisamplo.
AocelebrarasvirtudesestratégicasdeChilperico,Fortunatoochamade“muro”,“torre”,“escudo”:
“Emti,nossogovernante,opaístemummurodedefesaestabelecidoaoredordeleeumportãodeferroelevatuacabeçamuitoalto.Tubrilhasadiante,
umatorreadamantinaparateupaísdosul,eabrigasasesperançasdopovo
sobumescudofirme”93.
Não há nenhuma referência a eventuais vitórias de Chilperico no
campodebatalha;somenteseustalentosdefensivossãocelebrados.Isso
pode ser, para Fortunato, uma maneira de evocar o fato de que esse
reiefetivamenteresistiu,edemaneiraeficaz,diga-sedepassagem,aos
91
Carmina,IX,1,versos85-90.
HistóriasV,49.
93
Carmina,IX,1,versos79-82.
92
MarceloCândidodaSilva213
ataquesdeseusirmãos.Comosepodeobservaratravésdesseexemplo,
ogênerolaudatórionãopodeprescindirdeummínimodeverossimilhança. Note-se que Fortunato não ousa louvar os talentos ofensivos
–queasfontessãounânimesemapontarqueeraminexistentes–de
Chilperico. Além disso, a alegoria defensiva traz consigo um aspecto
positivonaconstruçãodaimagemreal:elaserveparaevocaropapeldo
reicomooprotetordeseupovo.
Finalmente,nosversos50-54dopoemadedicadoaChilperico,há
umapassagemsobrearelaçãodoreicomosbispos:
“Quandoosinimigosprocuravamprovocarumaguerradestrutivacontra
ti,afé,forteanteàsarmas,lutouporti.Tuacausaalcançoucomsucessoum
julgamentosemti,easéelevadavoltouaoseujustolugar”94.
Apalavra“sé”,naúltimafrasedofragmentoacimacitado,deveser
interpretadanosentidodeassentoepiscopal,ou“cátedra”.Ofatodeque
elaretornouaoseujustolugarpodeserumaevocaçãodojulgamentode
Pretextatus,ocorridotrêsanosantes,em577.Saliente-sequeopróprio
Pretextatus confessou ter participado de um complô contra o rei.Ao
julgá-loeaobani-lodoreino,FortunatodáaentenderqueChilperico
teriaagidocorretamente.Nãoobstante,eéissoqueoautorparecesugerir,oreiseenganariaaoprocurarinimigosláondeelesnãoexistiam,
istoé,emGregóriodeTours95.ÉtambémaosbisposqueFortunatofaz
referênciaquandodescrevea“fé”lutandopeloseupríncipe.Elelouva
assimalealdadedoepiscopadoparacomChilperico,eoqueémaisimportante,associaavitóriadesteaoapoiodadoporaquelegrupo.Maneirahábildelembraraquiloqueoreideviaaoepiscopado,eanecessidade
demanteroapoiodeste,absolvendoGregório.
UmapossívelexplicaçãoparaotomapologéticousadoporFortunato
emseupanegíricoéqueoselogioseramdestinadosainfluenciarChilpe-
94
Carmina,IX,1,versos50-54.
J.Georges,VenantiusFortunatus.ALatinpoetinMerovingianGaul,pp.51-52.
95
214 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
rico,apersuadi-loaapoiarobispodeToursemfacedasacusaçõesquelhe
eramfeitasporLeudastusnoConcíliodeBerny.Todavia,essesversosde
umacondescendênciaextraordinária,sobretudosecomparadosaoretrato
deChilpericopintadoporGregório,nãoseexplicamsóporumaescolha
“tática”doautor.QuandoFortunatoatribuiaChilpericocertasvirtudes,
provavelmenteestivessepersuadidodequeessereinãoaspossuía,como,
por exemplo, o amor da justiça: ele apresenta, portanto, um modelo a
seguir. O panegírico de Chilperico, mais do que uma descrição de seu
governo,trazconsigoo“programa”desuatransformação.Aomostraros
bisposcomofiéisdoreiecomoosfiadoresdosucessodoseugoverno,
Fortunatoaproxima-sedavisãodeGregóriodeTourssobreopapelda
realezanomundo.Suaobraconstitui,defato,àprimeiravista,umretrato
excessivamentegenerosodosreisfrancos,maselaconstituitambém,etalvezsobretudo,ummodeloparaofuturodamonarquiafranca.
OspanegíricosreaisdeFortunatonãosãohomogêneos.AsdescriçõesdeSigeberto,deChilpericoedeCaribertoestãorepletasdenuances96.OsadjetivosusadosporFortunatonãosãoosmesmos,equando
issoocorre,elesnãosãoutilizadoscomamesmaintensidadeparacada
umdosreisemquestão.OpanegíricodeSigebertoestámuitomarcado
pelasqualidadesmilitares,mastambémporseupapelnasalvaçãodo
povo.AscaracterísticasromanaspredominamnopanegíricodeCariberto,masoselementoscristãosnãoestãoausentes.E,finalmente,no
panegírico de Chilperico, sobressai a imagem de um rei que governa
oreinocomjustiçaecomoauxiliodosbispos.Essasnuancespodem
serexplicadasporumaevoluçãodoestilodoautor,pelasdiferentescircunstânciascomasquaiseleseachavaconfrontado,eatémesmopelo
fatodequesuaconcepçãodarealezapodeterevoluídoàmedidaqueele
escreviasuaobra.Contudo,talvezseacordeumaimportânciaexcessiva
aosfatoresliteráriosparaexplicarasdiferençasentreessespanegíricos.
96
ContrariamenteàopiniãodeM.Reydellet:“ÉinútilprocuraremFortunatooquedistingue
SigebertoeCariberto,eessesdoissoberanosdeChilperico.Todosostrêssãoreisigualmentejustos,
bonsevirtuosos”(Laroyautédanslalittératurelatine,p.320).
MarceloCândidodaSilva215
Emseusretratosreais,Fortunatotentaseadaptaràspeculiaridadespolíticasdosdiversosregna.Assim,porexemplo,seuretrato“romano”de
Sigebertocoincidepropositadamentecomasensibilidadepró-romana
dacortedeMetzaquejáaludimosaquiequeseverificaatravésdeiniciativascomoacunhagemdemoedaspseudo-imperiais,soboreinado
deTeudeberto,ouaindaacompilação,ordenadapelarainhaBrunilda,
dacorrespondênciacomosimperadores.Entretanto,paraalémdesses
elogiosaumaprimeiravistadissonantes,haviaumamesmapercepção
da“RealezaCristã”.OreiidealnaperspectivadeFortunatoéaqueleque,
comoCariberto,éomestrepelodireitoeopaiporsuabondade.Como
Sigeberto,eleéoresponsávelpelasalvaçãodopovo,ecomoChilperico,
eledefendeajustiça,auxiliadopelosconselhosdosbispos.
GregóriodeTourseChilpericonosDecemLibriHistoriarum
Os Decem Libri Historiarum (também chamados de Histórias)
compõem-sede443capítulosdistribuídosem10livros.Oprimeirolivro,
comseus48capítulos,começacomacriaçãodaIgrejapeloCristo(queo
autorcolocaemparalelocomaCriaçãodomundoporDeus)etermina
comamortedeSãoMartinhodeTours,em397.Osegundolivro,que
aborda mais detalhadamente a história dos reis francos e da Igreja da
Gália,com43capítulos,seestendedesdeoadventodeBrício,sucessor
deSãoMartinho,atéamortedeClóvis,em511.Osoitolivrosrestantes
tratamdosreinadosdosfilhosedosnetosdeClóvisnoperíodocompreendidoentre511e591.Oterceirolivro(37capítulos)seprolongaatéa
mortedeTeodebertoI,em548.Oquarto,etambémomaislongopelo
númerodecapítulos(51),terminacomamortedoreiSigeberto,em575.
Apartirdoquintolivro,orelatotorna-secadavezmaisminucioso.Os
livrosVI,VII,VIII,IXeX,porexemplo,cobremumperíododeapenas
11anos,entre580e59197.A.H.B.Breukellaarestimaquenãohárazãoal97
M.CândidodaSilva,“ProvidencialismoehistóriapolíticanosDecemlibriHistoriarum,de
GregóriodeTours”,pp.137-160.
216 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
gumaparasepensarqueGregóriotenhaesperadosuaconsagraçãocomo
bispodeToursparacomeçaraescrever.Eleteriacomeçadobemantesde
semudarparaTours,quandoaindaocupavaumafunçãoeclesiásticaem
Clermont.OindícioqueBreukelaarapresentaparasustentarsuateseé
ofatodequenosprimeirosquatrolivrosdosDecemLibriHistoriarum,
asreferênciasàcidadedeClermontsãomuitomaisnumerosasdoque
aquelasqueremetemàcidadedeTours98.Contudo,comobemmostrou
M.Heinzelmann,osDecemLibriHistoriarumforamordenadoseeditadosporGregóriopoucoantesdesuamorte99.
Pormaisparadoxalquepossaparecer,achaveparasecompreender
avisãodeGregóriosobreosdeveresdoreicristãonãoestánadescriçãodo“governoideal”,masnadesuaantítese.Aoapontarospecadose
osdefeitosdoreiChilperico,obispodeToursexplicitaumanoçãode
“RealezaCristã”queéamplamentecompartilhadapeloepiscopadoda
Gáliafranca.Chilperico,opersonagemcujamorteédescritapelobispo
deToursnocapítulo46dolivroVIdasHistórias,éfilhodoreiClotário
IedarainhaAregonda(c.520-c.580),nascidoporvoltade537.Em561,
comamortedeseupai,herdouoregnumcujacapitaleraacidadede
Soissons.ApósrepudiarsuaesposaAudovera(†580),em564,ChilpericosecasoucomGalswinta,cujairmã,Brunilda,tinhaesposadoorei
francoSigeberto–meio-irmãodeChilperico.OassassinatodeGalswinta,cujaresponsabilidadefoiimputadaaChilperico,bemcomoasdesavençasemtornodaherançadeClotárioI,desencadearamumasériede
conflitosentreosreisfrancosquesóterminaramcomoassassinatode
Chilperico,em584.EntretodososdescendentesdeClóvis,Chilpericoé
aquelequedispõedapiorreputaçãoentreoshistoriadoresmodernos,e
issograçasàdescriçãofeitapelobispodeToursnasHistórias.G.Tessier,
porexemplo,afirmaqueossentimentospessoaisdeGregóriopodemter
interferidonoretrato,semnenhumaindulgência,queeleestabelecedo
98
A.H.B. Breukelaar, Historiography and episcopal authority in sixht-century Gaul: the
HistoriesofGregoryofToursinterpretedintheirhistoricalcontext,pp.29-50.
99
M.Heinzelmann,GregoryofTours:historyandsocietyinthesixthcentury,pp.96-102.
MarceloCândidodaSilva217
reifranco,masacreditaqueesseretratocorresponda,demodogeral,à
personalidadedeChilperico100.AsanálisesmaisrecentesdeW.Goffarte
deM.Heinzelmann,aochamarematençãoparaoconteúdoideológico
presentenaobradeGregório,permitiramqueseduvidassedaverossimilhança de alguns aspectos da descrição negativa de Chilperico. No
entanto,essasanálisestambémlançaramcertodescréditosobreopapel
dosDecemLibriHistoriarumnaescritadahistóriadamonarquiafranca.Ummanualdestinadoaservireaconfortaraposiçãodoepiscopado
nãoseriaotextomaisseguroeobjetivoapartirdoqualreconstituiras
relaçõesdepodernaGáliadasegundametadedoséculoVI.Naspáginas
seguintes, buscar-se-á discutir os problemas e os limites da utilização
dessetextopeloshistoriadores.
Naprimeirafrasedocapítulo46dolivroVIdasHistórias,Gregório
fazreferênciaaocasamentodafilhadeChilperico,aprincesaRigonta
comoreivisigodoRecaredo,eventodescritoporelenocapítuloanterior:“Enquantoessaspessoasprosseguiamsuarotacomseuespólio,Chilperico,oNeroeoHerodesdenossotempo,vaiatéavilladeChelles,quese
encontraacercadecemestádiosdeParis,eseexercenacaça”101.Aspessoas
queelemencionatinhamsidoencarregadasporChilpericodeconduzir
suafilhaatéaEspanha.Odotequeaprincesalevaconsigoéchamado
de“espólio”,poisnocapítuloanteriorGregóriodescrevecomootesouro público e os próprios francos foram dilapidados para constituí-lo.
Emboraessaacusaçãojáaponteparaumadescriçãobastantenegativa
deChilperico,omaissignificativo,nessafrase,éaafirmaçãodequeele
é“oNeroeoHerodesdenossotempo”.Éevidentequeareferênciapor
partedeumbispocristãoaessesdoispersonagensnãoénemumpouco
lisonjeira.Contudo,paracompreenderosentidoqueGregóriodáaessa
comparação,énecessárioobservarcomoeledescreveessespersonagens
em outras partes de sua obra: “Furioso contra eles porque pregavam o
Cristo,filhodeDeus,eporqueserecusavamaadorarosídolos,Nerofezpe-
100
101
G.Tessier,LebaptêmedeClovis,p.192.
HistóriasVI,46.
218 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
recerPedrosobreaCruzePaulopelaespada”102.Neroé,portanto,oimperadorqueatacouocultodoCristoequemandouassassinarSãoPedroe
SãoPaulo.Trata-sedeuminimigodaIgrejae,maisparticularmente,do
Cristoedeseusdiscípulos.EquantoaHerodes:“Herodes,temerosopor
suarealeza,equeperseguiuoCristo-Deus,massacroutodasascrianças
pequenas...”103.Maisdoqueogovernantecruelqueteriamandadomatarosrecém-nascidos,oquesobressainessetrechoéaimagemdeum
reiquetemiaqueoCristoameaçasseseugoverno.
NãoéumasimplescoincidênciaaassociaçãodeChilpericoaNero,o
“assassinodosApóstolos”,eaHerodes,o“inimigodarealezadoCristo”.
Atravésdessacomparação,ébastanteprovávelqueGregóriotenhapretendidoreferir-seaoreicomouminimigodosbisposecomoodetentor
de uma realeza que era o oposto daquela preconizada pelo Cristo. É
possíveligualmentequeobispodeTourstenhatentadomostraraaversão de Chilperico ao episcopado como um signo do“ciúme” nutrido
poresseúltimoemrelaçãoà“RealezadoCristo”,daíacomparaçãocom
Herodes. O orgulho e a crueldade de Nero e de Herodes servem, nas
Histórias,parasublinharumtraçodapersonalidadedeChilperico:sua
faltaderespeitoemrelaçãoaosbisposeaosconselhosqueessesúltimos
poderiamlheoferecer.
Otextoprosseguecomadescriçãodascircunstânciasdoassassinato
deChilperico:
“Quandoumdiaregressavadacaçasobumanoiteobscura,edesciado
cavaloapoiandoumamãosobreosombrosdeumservo,veioumhomem
queoatingiucomumafacasobaaxilaecomumoutrogolpeperfurouseu
ventre; imediatamente, jorrou sangue pelos ferimentos e sua alma iníqua
sefoi”104.
102
HistóriasI,25.
HistóriasI,19.
104
HistóriasVI,46.
103
MarceloCândidodaSilva219
A morte aqui aparece como a punição pelos atos perpetrados por
esserei,equeGregórioafirmaterdescritoanteriormente:“Omalque
fez,otextoqueprecedeomostra”.ObispodeToursparece,inicialmente,
remeteroleitoraostrechosanterioresdesuaobraemqueabordaos
malesfeitosporesserei,semdaraimpressãodequevaiseprolongarno
assunto.Noentanto,ocapítulo46constituiuminventáriodoreinado
deChilperico:“Devastoueincendiouinúmerasregiões,enãosentianenhumadorporisso,aocontrario,ficavaalegre,talcomoNeroemoutros
tempos, que cantava tragédias durante os incêndios de seu palácio”. Na
associaçãocomNeroecomosincêndiosporelepromovidos,ficanítida
afiliaçãoàtradiçãocristã,muitoemboranãosepossatambémdescartarumapossívelinfluênciadaliteraturadeorigemsenatorialnotexto
gregoriano. De fato, é possível traçar alguns paralelos entre o retrato
de Chilperico nas HistóriasVI, 46 e o retrato de Nero nos Anais, de
Tácito.Noprimeirotexto,Chilpericoaparececomoaqueleque“Noque
serefereàdepravaçãoeàluxúria,nãosepodeencontrarempensamento
algoquenãotenhaperpetradonarealidade...”.NosAnais,Neroéaquele
que“...nãoteriaomitidonenhumatovergonhosoparaatingiromaisalto
grau de corrupção”105. Isso não significa que Gregório tenha sido um
leitordeTácito;nãoháevidênciasnessesentido.Todavia,éprecisoreconhecerquealgunsdoselementosdaconstruçãodaimagemnegativa
deChilpericoparecemdiretamenteoriundosdeumatradiçãoliterária
anti-imperialdaqualfazparteaobradeTácito.Éocaso,porexemplo,
daacusaçãodequeChilperico“Eraumglutãocujodeuseraoventre”,ou
aindadequeele“Pretendiaqueninguémeramaissábiodoqueele”.O
paralelocomosfestinspromovidosporNeroecomassuaspretensões
literáriasébastanteverossímil.
Por outro lado, pode-se questionar o sentido da comparação de
ChilpericocomoimperadorNero.Exemplosdemausgovernantesnão
deveriamfaltaraGregório,emesmodemausgovernantesqueperse-
105
Tácito,AnaisXV,37.
220 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
guiramosbispos.AescolhadeNerotemumaoutrarazão.Arazãodessa
escolhasãoaspretensõesliteráriasdorei:
“Compôsdoislivros,àimitaçãodeSedulius,cujosversosdébeisnãopodem permanecer de pé – em sua ignorância, colocou as silabas breves no
lugardaslongaseaslongasnolugardasbreves–eopúsculos,hinosemissas
quenãopodemseraceitassobnenhumarazão”106.
Nessetrecho,épossívelobservarqueChilpericobuscouintroduzir
novasletrasnoalfabeto;ora,oimperadorCláudioprocedeudamesma
maneira.Ficaclarotambémqueaocomporhinosemissas,Chilperico
interferiuemmatériateológica,demaneiranãomuitodistintadoque
fez Justiniano.Através desse trecho de seu relato, Gregório revela um
príncipequetinhacomonortedesuaaçãoalgunsimperadoresromanoseomodeloimperialromano.Aoridicularizarasambiçõesliterárias
eteológicasdessepríncipe,obispodeToursdáindíciosdaexistênciade
uma política sistemática de imitatio imperii (“imitação do Império”).
Mas,aocompararChilpericoaNero,Gregóriobuscamostrarofracasso
dessapolítica.Outroindíciodequeoreifrancoatuavanosentidode
aproximarseugovernodospadrõesimperiaiséamençãopelobispode
Toursdacostumedearrancarosolhosdosculpadosdecertoscrimes,o
queeraumapráticarecorrenteemBizâncio107.
“...desse modo, se em seu tempo descobrisse culpados, seus olhos eram
arrancados.Enospreceitosquedirigiaaosjuízesparaseusprópriosinteresses,eleacrescentava:‘Sealguémviolanossospreceitos,apenadeveserteros
olhosarrancados’”108.
Emsuma,areferênciaaNerotemafunção,nanarrativadeGregório,deridicularizaraspretensõesimperiaisdeChilpericoetambémde
106
HistóriasVI,46.
M.Reydellet,Laroyautédanslalittératurelatine,p.419.
108
HistóriasVI,46.
107
MarceloCândidodaSilva221
mostrá-las sob o prisma da crueldade. É uma maneira hábil de desacreditarapolíticaconstantinianadeseurivalsem,noentanto,atacara
própriafunçãoimperial.Saliente-se,atítulodeexemplo,queTibério
representaparaGregóriooexemplodobomimperador.Nãosetrata,
portanto,deumaindisposiçãodobispodeToursparacomoImpério
oucomafunçãoimperial.Aobragregoriana,emquepeseseucaráterde
“manualdopoderepiscopal”–parautilizaraexpressãodeW.Goffart–,
podeserutilizadacomofonteparaoestudodamonarquiafranca,enão
apenasparaaconcepçãodepoderdosbisposdaGália.
Apesardeumapossívelinfluênciadaliteraturasenatorial,Gregório
buscadarumaconotaçãoespecíficaàcrueldadedeChilperico,próxima das preocupações do episcopado franco: “Puniu vários homens de
maneirainjusta.Emseutempo,poucosclérigosobtiveramoepiscopado”.
Alémdesecomportardemaneirainjusta,e,portanto,contráriaàquilo
queseesperadeumbomgovernante,Chilpericoterianomeadopoucos
clérigosàfunçãoepiscopal.AeleiçãodeumbisponaGáliadoséculo
VI,mesmoquandoocorriasegundoasregrascanônicas,ouseja,pela
eleição“docleroedopovo”,necessitavadaconfirmaçãodoreiparaser
validada. Faz sentido, portanto, que Chilperico tenha deixado vagas
varias sés episcopais. Mas por qual razão? Mais uma vez, é o próprio
Gregórioquemdáindíciosdeumapossívelresposta:
“Eletinhaaversãoaosinteressesdospobres.BlasfemavaassiduamentecontraossacerdotesdoSenhor,equandoestavaentreosseus,nadalheeramais
agradáveldoqueridicularizarepilheriarosbisposdasigrejas.Elediziaque
umeradesenvolto,ooutrovaidoso,umoutroexcessivoeumoutroluxurioso;pretendiaqueumeraaltaneiro,ooutroorgulhoso;nãohavianadaque
odiassemaisdoqueasigrejas.Poisemefeitodizianamaiorpartedotempo:
‘Eisquenossofiscopermanecepobre,eisquenossasriquezassãotransferidas
àsigrejas;ninguémreinamais,somenteosbispos;nossopoder(honor)morreuefoitransferidoaosbisposdascidades’”109.
109
Ibid.
222 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Pode-sesuporqueChilpericodesconfiassedosbisposque“usurpavam”asprerrogativasdaautoridadereal.Écompreensívelqueeletenha
praticadoapolíticada“séepiscopalvazia”,deformaareduzirainfluência dos bispos. De acordo com a descrição de Gregório, Chilperico
não só falava claramente de seus temores em relação ao crescimento
dainfluênciapolíticadosbispos,comotambémsequeixavadequeo
episcopado governava em seu lugar e usurpava as riquezas do reino.
Pode-sededuzirqueoprojetopolíticodessereicomportassearedução
dainfluênciadosbisposnascivitatese,aomesmotempo,arecuperação
dasprerrogativasdarealezaedeseusrepresentanteslaicos.
Maisdoquesuaignorânciadaliteratura,dosdogmasedamétrica,
ouaindaodesrespeitoàpalavradada,oquetornaChilpericooarquétipo do mau governante aos olhos de Gregório é sua relação com os
bispos(ofatodenãoescutá-loscomosedeveriaedehumilhá-los):
“Enquantoafirmavaisso,ostestamentosredigidosembenefíciodasigrejaseramnamaiorpartedotempoviolados,eelepisavafreqüentementeos
preceitosdeseupai,pensandoquenãorestavaninguémparafazerrespeitar
suasvontades”110.
QuandoGregórioremarcaavaidadedaquelequeacreditasermais
sábiodoquequalquerum,eleserefereàrecusadeChilpericoemouvir
e aceitar os conselhos dos bispos. É possível perceber nas ações desse
rei descritas pelo bispo de Tours uma concepção“constantiniana” do
exercíciodaautoridadereal.Éela,aliás,achaveparasecompreendera
oposiçãodobispodeToursaChilperico.Aspretensõesliteráriasreforçamaimagemdeumpríncipecujasreferênciaseramosimperadores
romanosque,comovimosanteriormente,eramtambémprolíficosem
incursõesnodomíniodaliturgia,daliteraturaedasquestõesdoutrinárias.GregóriovênasiniciativasdeChilpericoapenasumaimpostura,
frutodaambiçãodesmedidadeumreiqueteriaousadointerferirem
110
Ibid.
MarceloCândidodaSilva223
domíniosreservadosaosbispos.Emsuma,ofatodequeChilpericotenhapretendidoapareceraosseussúditoscomoumdignosucessordos
imperadoresromanosnãopassoudespercebidoparaGregório.
OcontrapontoqueGregóriooferecedessequepretendiaserigual
aosimperadoreséodeumreique,alémdeconseguirigualar-seapenas
aNero,governavalevandoemcontaunicamenteseusinteressespessoais:“Etinpraeceptionibusquasadiudicisprosuisutilitatibusdirigebat,
haecaddebat:‘Siquispraeceptanostracontempserit,oculorumavulsione
multetur’”.A tradução francesa e a tradução inglesa dos Decem Libri
Historiarumdãosentidossensivelmentediferentesaessafrase.R.Latoucheatraduzdaseguintemaneira:“…etdanslespréceptesqu’iladressait
auxjugespoursesaffairesilajoutaitcetteclause…”(p.72);jáL.Thorpe
prefere:“Intheinstructionswichheissuedtojudgesforthemaintenance
ofhisdecrees…”(p.380).AtraduçãodeR.Latoucheéamaisadequada,
poiscomotermoutilitas,emoutraspartesdeseutexto,Gregóriodesigna“assuntos”,“interesses”,enão“decretos”111.Nomesmocapítulo46,
GregórioafirmaqueChilperico“tinhaaversãoaosinteressesdospobres”
(“causaspauperumexosashabebat”).Háumaestreitacorrelaçãoentre
essafraseeaidéiasegundoaqualChilperico,emsuasações,“...prosuis
utilitatibusdirigebat...”.Serianormal,naperspectivadobispodeTours,
queumreiquetinhaaversãoaosinteressesdospobres,seocupasse,em
seusatosdegoverno,unicamentedeseusprópriosinteresses.
Em outros trechos das Histórias, Gregório emprega a expressão
“utilitaspublica”112.ElaapareceapenasemsituaçõesenvolvendoChildebertoIIeGontrão.Paraseentenderseusentido,épossívelpartirda
descriçãoqueGregóriofazdeChilperico.Emprimeirolugar,nolivro
VI,capítulo46,obispodeToursapresentaaoleitorumaantítesedorei
ideal,doreicristão.Chilpericoéoreicruel,quehumilhaedesprezaos
bisposetemaversãoaosinteressesdospobres.ArealezadeChilperico
seria a encarnação de um poder desligado de qualquer obrigação em
111
HistóriasX,9;HistóriasX,19.
HistóriasIX,10;HistóriasIX,20.
112
224 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
relaçãoaospobresevoltadounicamenteparaasatisfaçãodosinteresses
pessoaisdorei(“suisutilitatibus”).Logo,pode-sededuzirquea“utilitas
publica”é,paraGregório,indissociáveldapreocupaçãodogovernante
comospobres,comaIgrejaecomosbispos.OsinteressesdeChilperico,aosquaiseleatribuiumaconotaçãopessoal,seoporiamà“utilitas
publica”queobompríncipedeveperseguiremseusatosdegoverno.
QuandoobispodeToursqualificaasmotivaçõesdosatosdeChilperico
comoestritamentepessoais,elerecusaocomplemento“pública”auma
utilitas que não levaria em conta os conselhos dos bispos, e que por
issomesmoseriaestrangeiraatodaconsideraçãodeordemmoral.Para
Gregório,portanto,todaautoridadequenãoestejafundadanapreocupação cristã pelo interesse dos pobres não possui qualquer dimensão
pública,ouseja,qualquerlegitimidade.
AdescriçãodascondiçõesdamortedeChilpericoéopontoculminantedoretrato“gregoriano”desserei:
“Elejamaisamoualguémdemaneirapuraenãofoiamadoporninguém;
eisporque,quandoexalouseuúltimosuspiro,todosoabandonaram.Mallulfus,bispodeSenlins,queoesperavaemvãoporumaaudiênciahátrêsdias
emsuatenda,veioassimquesoubedeseuassassinato.Apóstê-lolavado,ele
ovestiucomsuasmelhoresroupase,tendopassadoanoiteacantarhinos,
eleocolocouemumnavioeoenterrounaBasílicadeSãoVicente,emParis,
enquantoarainhaFredegondapermaneciasozinhanacatedral”113.
Gregório mostra ao leitor que aquele que durante toda vida não
havia tido a mínima consideração em relação aos bispos – e que o
demonstroumesmonosseusúltimosinstantes,obrigandoobispode
Senlins a esperar três dias por uma audiência – acabou encontrando,
depoisdemorto,somenteessebispoparavestirseucadávereenterrálo.Oeventotem,portanto,umsentidomoralepolítico,maisdoque
simplesmenteexemplar:eledemonstraotriunfodoepiscopadosobreo
113
HistóriasVI,46.
MarceloCândidodaSilva225
seumaiorinimigoentreosreisfrancos.Atítulodecomparação,amorte
deGontrãonemsequerémencionadanasHistórias.Entretanto,Gregóriotomouconhecimentodelaantesdeterminararedaçãodessaobra,
comomostraumtrechodosSeptemlibrimiraculorumdedicadoaos
milagresdeSãoMartinho:“Temposdepois,apósamortedogloriosíssimo
reiGontrão...”114.Umapossívelexplicaçãoparaessaomissão,provavelmentedeliberada,estánosentidoprovidencialdorelatodamortede
Chilperico:oassassinatodessereicruel,inimigodosbisposedaIgreja,
marca,nasHistórias,aderrotadosopositoresda“RealezadoCristo”,da
mesmamaneiraqueasobrevivênciadaquelequeGregóriochamade“o
bomreiGontrão”indicaotriunfodessarealeza.Portanto,emfacede
umChilpericocujamortesignificaotriunfomoraldoepiscopado,há
Gontrão,cujamorteéomitidacomomesmointuito.
AlgunsautorespõememdúvidaaautenticidadedorelatodeGregóriodeTourssobreChilperico.SegundoW.Meyer,ofatodequeem
nenhumaoutrapartedasHistóriasseencontraumacríticatãoacerba
deChilpericocomoaqueladocapítulo46dolivroVI,provariaque
essecapítulofoiincorporadoàobraporumoutroautorapósamorte
deGregóriodeTours115.Essepontodevistaparecesedutor,vistoque
emoutrotrechodesuaobraGregóriorefere-seaChilpericodaseguinteforma:“Todosadmiraramasabedoriaeaomesmotempoapaciência
dorei”116.Contudo,essaafirmaçãonãotemnenhumaimplicaçãono
balançofinaldoreinadodeChilperico,queéextremamentenegativo.
Alémdisso,nãohárazãoparasecolocaremdúvidaaautenticidade
do referido capítulo 46. Ele apenas resume e reforça a imagem que
o bispo de Tours transmite de Chilperico ao longo das Histórias.A
primeiravezqueoreifrancoaparecenorelatodeGregórioécomo
usurpadorecorruptor:“Apósosfuneraisdeseupai,Chilpericotomou
possessãodeseutesouroqueestavaguardadonavilladeBerny.Emse-
114
DevirtutibusbeatiMartiniepiscopi,IV,37.
W.Meyer,DerGelegenheitsdicherFortunatus,p.310,n.53.
116
HistóriasV,49.
115
226 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
guida,elebuscouosfrancosmaisinfluentese,tendo-osconvencidocom
presentes,submeteu-lhes”117.
NoepisódiodeseucasamentocomGalswinta,Chilpericoédescrito
comoumgananciososemescrúpulos:“Eleaamavamuitoespecialmente
poiselahaviatrazidoconsigoumgrandedote”118.Gregóriovaialém,sugerindoqueChilpericoateriaassassinado:“Finalmente,elefezcomque
elafosseestranguladaporumdeseusescravoseelafoiencontradamorta
emseuleito”119.
GregórioretrataChilpericocomoumgovernantecruelquenãohesitavaemprolongarossofrimentosdaquelesqueestavamsobseujugo:
“Oreiordenouqueelefossetratadopormédicosatéquefossecuradodesses
ferimentosparaemseguidasermartirizadoporumlongosuplício”120.No
episódiodojulgamentodobispoPretextatus,acusadodetraição,Chilpericoémostradocomoalguémquenãopossuíanenhumrespeitopela
palavradada121.AmençãoàsabedoriaeàpaciênciadeChilperico,no
capítulo49dolivroV,éumaopiniãocircunscritaaumeventoespecífico,oposicionamentodoreidiantedasacusaçõesdetraiçãofeitasaGregórioporLeudastus.Chilpericohaviadecididoaceitaradeclaraçãode
inocênciadobispodeToursque,todavia,tevedepedirdesculpasatravés
deumjuramentoedemissasrezadasemtrêsaltaresdistintos.Gregório
acrescentaque“Sebemqueessasmedidasfossemcontráriasaoscânones,
nósasrealizamosporconsideraçãoaorei”122.Demaneirapoucosutil,o
queGregóriosugereéqueoreidesconheceasregrascanônicas.Ficaclaro,portanto,queocapítulo46dolivroVIestáemperfeitaconsonância
comaimagemqueédadadeChilpericoaolongodasHistórias.
OretratodeChilpericoexplica-semaisporrazõesteológicas,emesmopolíticas,doqueporrazõespessoais,emquepeseamuitoprovável
117
HistóriasIV,22.
HistóriasIV,28.
119
Ibid.
120
HistóriasVI,32.
121
HistóriasV,18.
122
HistóriasV,49.
118
MarceloCândidodaSilva227
indisposiçãodobispodeToursemrelaçãoaorei.Asrelaçõesentreum
reiqueinterferiaemmatériasdoutrináriaselitúrgicaseumbispoque
erapartidáriodaindependênciadopodereclesiásticoequeacreditava
queoepiscopadotinhaconselhosadarparaoexercíciodobomgovernonãopoderiamsermenosconflituosas.NãoéanódinoqueGregório
tenhaerigidoChilpericoemmodelodomaupríncipeeGontrãoemseu
contraponto.AoposiçãoentreessasduasmaneirasdetrataroepiscopadoaparecenasexplicaçõesdadasporGregório,nocapítulo48dolivro
IV,sobreasorigensdasguerrascivisqueassolaramaGália:
“Nósnosperguntamosaindasurpresoseestupefatosporquetantosdesastresseabateramsobreessespovos.Maslembremo-nosdoqueseusancestraisfizerameoqueelesperpetramhoje.Apósapredicaçãodosbispos,as
primeirasgeraçõesabandonaramostemplospelasigrejas;agora,saqueiam
cotidianamenteessasmesmasigrejas.Osantigosveneravameescutavamde
todo seu coração os bispos do Senhor; hoje, não somente não os escutam,
comoosperseguem.Seusancestraisenriquecerammonastérioseigrejas,hoje
asdilapidameaspõeabaixo”.
ArespostadeGregórioàquestãodasorigensdas“guerrascivis”(bella
civilia) é uma comparação entre os primeiros príncipes merovíngios e
aqueles que eram seus contemporâneos. Nesse texto, Gregório designa
Chilperico,sem,noentanto,citá-loformalmente.Gregóriopropõeaquia
inclusãodoepiscopadonavidapolíticadoReinodosFrancos.EssemodelodesociedadenãoeraumacriaçãodobispodeTours.Descritopela
historiografiaalemãpelotermoBischofsherrschaft,eletemsuasraízesna
Gália,duranteasegundametadedoséculoV.Entreseusopositores,encontramosChilperico,mastambémalgunsbisposquedesconfiavamde
umauniãoexcessivamenteestreitaentrearealezaeoepiscopado123.
O fato de Gregório de Tours ter sido o difusor de uma idéia de
Realeza Cristã coloca o problema do nível de comprometimento de
123
M.Heinzelmann,BischofsherrschaftinGallien,p.158.
228 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
seurelato:emoutraspalavras,pode-sequestionaratéquepontosua
descrição da monarquia franca foi influenciada e até mesmo obscurecida por seus preceitos ideológicos. Em caso afirmativo, seriam
as Histórias uma testemunha confiável da evolução das relações de
poder no séculoVI? Teria ele tentado, em sua narrativa, concatenar
oseventosdemodoamostrarotriunfodeumacertavisãodomundo que era também a sua? É verdade que sua obra é a expressão de
uma certa percepção episcopal do mundo em geral e da realeza em
particular, na qual os reis são chamados a buscar ajuda dos bispos
na administração dos assuntos públicos. Todavia, não encontramos
nos textos do bispo de Tours um alinhamento incondicional e sem
nuances à causa episcopal. Ele não cessou de denunciar os crimes e
ospecadosdecertosclérigos,damesmamaneiraquenãopoupouos
príncipes, nem mesmo Gontrão. Seria redutor ver em Gregório um
autor a serviço de uma ideologia. Sua postura em face da realeza é
a postura de um clérigo ciente de suas prerrogativas, mas também
perfeitamenteconscientedasuperioridadedosreisnessemundo.Ele
nãopodeserqualificadodedefensordeumregime“hierocrático”.Os
bispospoderiam,segundoele,estaràescutadosreis,aconselhá-los,
masjamaisassumiraposturadegerentesdopoder.Poroutrolado,há
navisãodeGregóriolimitesqueumrei,pormaispoderosoesanto
quefosse,nãopoderiajamaisultrapassar.Defensorda“RealezaCristã”,Gregórioseopunhaàidéiaeàpráticadeumarealezaemqueos
poderesdoreifossemabsolutos.Eletambémnãobuscoudissimulara
atraçãoqueessa“RealezaConstantiniana”exerciasobreospríncipes
merovíngios. Aliás, a existência de tais práticas possui uma função
pedagógicaemsuaobra:mostrar,atravésdochoqueentreosreisque
obedeciamaospreceitosdosbisposeosreisquenãoobedeciamaeles,
otriunfodosprimeiros.Damesmamaneira,osclérigos,respeitosos
diantedasatribuiçõestemporaisdorei,deveriamevitardesobedecer
aoreinessedomínio.
Emumcolóquiointernacionalocorridonofinaldosanos1980,K.F.
WernersustentouqueopapeldeGregóriodeToursnostrabalhossobreoperíodofrancoeraexcessivo;serianecessário,segundoele,retirar
MarceloCândidodaSilva229
ahistóriafrancado“controle”dobispodeTours124.Essaéumatarefa
difícil.BoapartedasinformaçõesdisponíveissobreaGáliamerovíngia,
sobretudonoqueserefereaoséculoVI,deve-seaosescritosdobispo
deTours.EmumaépocanaGáliaondeaproduçãohistoriográficase
resumianamaiorpartedotempoacrônicasdeeventoscujoalcance
raramenteultrapassavaoslimitesregionais,Gregóriofoiuminovador:
comosDecemLibriHistoriarum,elepretendeuescreveruma“históriauniversal”.Masénapróprianaturezadessa“históriauniversal”que
residearaizdascríticasdoshistoriadores:segundoA.H.B.Breukelaar,
porexemplo,essetextoconstituiriaumartefatoliterário,uminstrumentoparaoestabelecimentoeparaalegitimaçãodopoderepiscopal
na Gália, através da qual teria sido expresso o monopólio episcopal
sobreosagradoesobreasrelaçõespolíticas.Emsuma,aobradeGregórioseriaummanualdestinadoaservireaconfortarasposiçõesdos
bispos125.
AsHistóriasconstituemmaisdoqueapenasumtestemunhoepiscopaldaRealezaCristãnofinaldoséculoVI.AindaqueGregóriode
Tourssejapartidáriodeumaformadegovernofundadaemprincípios
cristãoseorientadapelosconselhosdosbispos,suanarrativapermite
observaraexistênciadeoutrosprojetospolíticos,comooda“Realeza
Constantiniana”. A visão episcopal da realeza que ele exprime várias
vezesnãooimpedededescreverosconflitoseascontradiçõesnoseio
da monarquia franca. Sua visão crítica e algumas vezes irônica – que
pareceservirparamostraroquantotaloutalreiestavalongedomodelo
ideal de príncipe – resulta em uma descrição do governo merovíngio
queébastanteútilaohistoriador.QuandoGregórioapresentaomodelo
eo“antimodelo”doreicristãoideal,opõea“RealezaCristã”à“Realeza
Constantiniana”. Seu estilo é marcado pela dicotomia, pela oposição
sistemática entre dois modelos de príncipes, mas não é maniqueísta.
124
K.F.Werner,“Fairerevivrelesouvenird’unpaysoublié:LaNeustrie”,pp.XIII-XXXI.
A.H.B.Breukelaar,Historiographyandepiscopalauthorityinsixth-centuryGaul,p.227.
125
230 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Mesmoquandodescreveaquelequeconsideracomoopríncipeideal,
Gontrão,obispodeToursnãobuscaesconderseuserros.É,portanto,
nosinterstíciosdeumrelatoàprimeiravistacomprometidocomuma
visãoprovidencialdahistóriaquesedevembuscaroselementosparase
reconstituirahistóriadamonarquiafranca.
NaGália,aolongodoséculoVI,osescritosepiscopaissãomarcados,
emgrausvariados,porduasidéiasprincipais.Aprimeiraéadefesaveementedoprincípiosegundooqualosreisdeveriamaprendercomos
bisposamaneiramaisjustadegovernaroreino.Asegundaidéia,uma
decorrênciadaprimeira,éadequeoobjetivodarealezaseriacriaras
condiçõesquefavorecessemasalvaçãodasalmas.Comefeito,emvárias
ocasiõesaolongodoséculoVI,osreisfrancosforamexortadosaexercer
umgovernocristão,comauxilioepiscopal,cujofimeraarealizaçãoda
salvação.Noentanto,essasexortaçõesnãoexplicamporsisósaemergênciadaRealezaCristã.Nãosepodeconfundiraquiloqueosbispos
esperavam da autoridade real com a natureza e a ação dessa mesma
autoridade.Restasaberemquemedidaasexortaçõesdosbisposforam
acompanhadasdeumatransformaçãonoexercíciodaautoridadepúblicaporClóviseseussucessores.
CapítuloII
Asguerrasciviseaascensãodoepiscopado(561-614)
AsguerrascivisqueassolaramoRegnumFrancorumdesdeamorte
deClotárioI,em561,atéoanode613,alteraramsgnificativamenteas
relações entre a realeza e as aristocracias laica e eclesiástica, e contribuíram para o aumento da importância dos bispos e dos grandes no
edifício político franco. Pretende-se abordar nas páginas seguintes a
evolução,aolongodasguerrasciviseemcadaumadaspartes(regna)
doReinodosFrancos,daspráticasdopoderrealemfacedoepiscopado.
Aconvocaçãodeassembléiasepiscopaisdecaráterlegislativoaparece,
especialmenteapartirdasegundametadedoseculoVI,comoumapráticarecorrentedopoderrealnaBurgúndia,governadaporGontrão.O
mesmonãoseverifica,poroutrolado,nasregiõesdoReinodosFrancos
sobaautoridadedeChilperico:nelas,osúnicosconcíliosconvocados
tinhamporfunçãojulgarbisposacusadosdetraição,comofoiocaso
dePretextatusdeRouenedeGregóriodeTours.Apartirdoiníciodas
guerrascivis,osreisfrancososcilaramentreduasviasdistintasdeafirmacãodesualegitimidade:aaproximaçãodiplomáticaemilitarcomo
Impérioecomsuaspráticaspolíticase,poroutrolado,aintegraçãodo
232 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
episcopadoedeseusvalorespolítico-moraisaoexercíciodopoderreal.
Asguerrascivisestãonocentrodessagrandemudançapolíticaquese
situanadécadade580,equeconsagrouaemergênciadaRealezaCristãcomoumprojetopolíticoviável,damesmamaneiraqueaRealeza
Constantinianahaviasidoatéentão.
Bellacivilia
“Édifícilparamimevocarosvicissitudesdasguerrascivis(bellacivilia)
quemuitoesgotamanaçãoeoReinodosFrancos.Eoqueépior,vemos,
chegarotempoqueoSenhorpredissequeseráocomeçodasdores:‘Opaise
levantarácontraofilho,ofilhocontraopai,oirmãocontraoirmão,opróximocontraopróximo’.Elesdeviam,realmente,estaramedrontadospelos
exemplos dos reis precedentes que, estando divididos, foram mortos pelos
inimigos.Todasasvezestambémqueaprópriacidadedascidades,acapital
domundointeiroselançounasguerrascivis,eladesmoronou;quandoelas
cessaram,elanovamenteemergiudaterra.Possaisvóstambém,óReis,vos
conduziremcombatestaiscomoaquelesquevossosancestraislivraramcom
osuordeseusrostosparaqueasnações,amedrontadaspelapazreinando
entrevós,sejamsubjugadasporvossaforça!”1.
EssaslinhassãoaconstataçãomaispessimistafeitaporGregóriode
TourssobreasituaçãodoRegnumFrancorumnoséculoVI;elasconstituemtambémumaadvertência.AtravésdoexemplodeRoma,obispo
deToursqueriaalertarosreismerovíngioscontraoriscodosconflitos
internos. Eles debilitam o reino, dizia ele, e absorvem toda a energia
que poderia ser utilizada contra os inimigos externos. Nas Histórias,
GregórionãocessouderelatarasdisputasnoseiodadinastiamerovíngianaprimeirametadedoséculoVI,comoatentativadeassassinato
deClotárioIporseumeio-irmãoTeudericoI2,ouaindaarebeliãode
1
HistóriasV,prefácio.
HistóriasIII,7.
2
MarceloCândidodaSilva233
Chram contra seu pai Clotário I3. Todavia, ao escrever o texto acima,
Gregório chama a atenção para a especificidade desses conflitos, cujo
desfecho,inclusive,elenãoconheceu,tendofalecidocercadedezanos
antes:tratava-sede“guerrascivis”(bellacivilia),noplural,enãoapenas
uma“guerracivil”.Defato,ofimdoreinadodeClotárioIconstituiu
uma reviravolta na história do Regnum Francorum: foi o começo de
uma série de conflitos endêmicos, entrecortados por períodos de paz
relativa,emqueseopuseramospríncipesfrancosdurantemaisdecinqüentaanos.Daíanecessidade,bemobservadaporGregório,desefalar
em“guerrascivis”noplural.
Apesardessesconflitos,asegundametadedoséculoVInãofoimarcadapela“decadência”quenormalmenteseassociaaomundofranco.
Ao contrário, foi um período que marcou a afirmação do Reino dos
Francos como a potência hegemônica do Mediterrâneo Ocidental. O
tompessimistausadoporGregóriodeTourspodeserempartecreditadoaocomportamentotípicodeumclérigoqueacreditavanadecadênciainelutáveldomundoqueanunciariaofimdostemposeavindado
Messias.Otextoeratambémumaadmoestação,umalertaparaqueos
conflitoscessassem,pois,paralelamenteaoteólogoqueestavaconvencidodocaráterefêmerodahistóriahumanasobreaterra,haviatambém
oaltofuncionárioquesepreocupavacomaunidadedesua“pátria”,o
ReinodosFrancos.Suaobratestemunha,poroutrolado,ofatodeque
asguerrascivisnãoabsorveramtodasasenergiasdosreismerovíngios.
OpróprioGregóriomencionaascampanhasconduzidasporSigeberto
contraosávaros,porGontrãocontraosvisigodos,ouaindaascampanhasdeChildebertoIInaItália.Aoladodessasatividadesmilitares,nem
todasbemsucedidas,diga-sedepassagem,houveigualmenteumaintensaatividadediplomática,daqualtestemunhamasembaixadasenviadaspelacortedeMetzepelacortedeSoissonsaBizâncio4.Aexpedição
3
HistóriasIV,16,17e20.
VerP.Goubert,ByzanceavantL’Islam,t.II.Byzanceetl’Occidentsouslessuccesseursde
Justinien,1,ByzanceetlesFrancs,p.16.
4
234 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
deGondovaldonaGália,naqualopapeldacortedeBizâncioéainda
obscuro, ilustra melhor do que qualquer outro evento a efervecência
políticadessefinaldoseculoVI.OReinodosFrancospermanecia,apesardasguerrascivis,umapotênciadeescala“européia”,comomostram
asdemandasdacorteimperialporumlado,edoslombardosporoutro,
paraqueospríncipesmerovíngiosinterviessemnosconflitosnaPenínsulaitaliana5.
FelizmenteparaosestudiososdasegundametadedoséculoVI,as
fontesnarrativassãomaisloquazessobreosnetosdeClóvisquesobre
seusfilhos.GraçasnotadamenteaGregóriodeTours,operíodocompreendidoentre561eoprincípiodosanos590émenosobscuroqueo
períodoquevaidamortedeClóvisàdeClotárioI.Noqueserefereao
desenrolar do conflito propriamente dito, a principal testemunha é o
quartolivrodascrônicasdeFredegário.
Pode-se reagrupar, grosso modo, o longo período das guerras civis
emquatrofasesdistintas,cadaumadelasmarcadasenãopelopredomínio,pelomenospelasiniciativasdeumdosregna.Assim,oprimeiro
período,quevaide561a575,caracteriza-sepeloprotagonismodaantiga Francia Rhinensis (mais tarde chamada de Austrásia), o segundo
período, compreendido entre 575 e 584, é dominado pelas iniciativas
dacortedeSoissons(capitaldoreinodeChilperico,afuturaNêustria);
oterceiroperíodo,quevaide584a592,correspondeàhegemoniada
Burgúndia; o quarto, situado entre 592 e 612, é dominado pelo eixo
Austrásia-Burgúndia; finalmente, os anos de 613-614, correspondem
àvitóriadeClotárioIIeàconsolidaçãodoeixoAustrásia-Burgúndia.
Asconstantesmodificaçõesdoequilíbriomilitar,assimcomoasreviravoltasnasaliançasentreospríncipesmerovíngiosfazemcomquea
reconstituiçãodessesconflitossejabastantedifícileirremediavelmente lacunar em vários aspectos. Alguns historiadores, como G. Tessier,
5
Ver,aesserespeito,P.Goubert,ByzanceavantL’Islam,t.II:Byzanceetl’Occidentsousles
successeursdeJustinien,1,ByzanceetlesFrancs,p.82;etambém,E.Ewig,DasMerowinger
unddasImperium,p.26.
MarceloCândidodaSilva235
diantedacomplexidadedessacronologia,preferem,inclusive,remetero
leitoraoutrostextos6.Optou-senaspáginasseguintesporumenfoque
queprivilegiaasrelaçõesdosreismerovíngioscomoepiscopadoecom
oImpérioemcadaumdosprincipaisregnaqueconstituíamoReino
dosFrancosnosséculosVIeVII:aAustrásia,aNêustriaeaBurgúndia.
AAustrásia(561-575)
Duranteosprimeirosanosdeseureinado,Sigebertodefendeueficazmente as fronteiras orientais da Austrásia contra os ávaros7, mas
também contra Chilperico, que considerava ter sido prejudicado pela
partilhade561.Seucasamento,em566,comBrunilda,filhadoreivisigodoAtanagildo(c.554-567),temumduplosignificado:eraummeio
defirmaraliançacomumadasmaispoderosasmonarquiasdaparsoccidentis,etambémumadasmaisromanizadas.Alémdisso,ocasamento
permitiuqueelesedemarcasseclaramentedeseusirmãosque,como
afirma Gregório, estavam unidos a mulheres“indignas”8. Pelo menos
noqueserefereaesseúltimoobjetivo,aestratégiadeSigebertofoicoroadadeêxito.ObispodeTourscomparou-oao“bomreiGontrão”,que
tinhacomoconcubinaumacriada9,eaCariberto,quehaviarepudiado
aesposaparaunir-seàfilhadeumartesão,eemseguidaàfilhadeum
pastor10.Emcontraste,Sigeberto,tinhatomadocomoesposa“...umajovemeleganteemsuasmaneiras,bela,honestaedistintaemseuscostumes,
6
G.Tessier,LebaptêmedeClovis,p.195:“Sente-sealgumescrúpuloementrarnosdetalhes
deumahistóriapuramentefactual,caídahoje,merecidaouimerecidamente,nomaiscompleto
descrédito...Assim,temosvontadedeenviarpuraesimplesmenteoleitoraAugustinThierryea
seus‘Récitsdestempsmérovingiens’”.
7
SobreascampanhasdeSigebertocontraosávaros,verHistóriasIV,23e29.
8
HistóriasIV,27.
9
HistóriasIV,25.
10
HistóriasIV,26.
236 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
sábiaemsuacondutaeagradávelemsuaconversação”11.Ofatodeque
ChilpericotenhaseapressadoemsolicitaraoreiAtanagildoaautorizaçãoparaesposarairmãdeBrunilda,mostraoimpactoprovocadopelo
casamentodeSigeberto.
DeacordocomP.Goubert,convertidaaocatolicismo,arainhaBrunilda tornou-se um dos mais firmes apoios à política pontifícia, que
pretendiaumauniãomaisestreitadasrealezasocidentaiscomBizâncio.
Arainhateriadesejadoumaespéciede“federação”depovoscatólicos
gravitandoemtornodoImpério,queneutralizariaaaçãodasnações
aindaarianasoupagãs,comoeraaindaocasodaEspanha12.Osindícios
de que Brunilda acalentava esse ambicioso projeto estão longe de ser
conclusivos;noentanto,seucasamentocomSigebertocontribuiupara
estreitaroslaçosentreacorteaustrasianaeoImpério.Umaembaixada
foi enviada por Sigeberto a Constantinopla por volta de 571-573. Os
embaixadores eramWarmarius e o duque de Clermont, Firminus, os
mesmosquetinham,porvoltade567,tentadoretiraracidadedeArles
dasmãosdoreidaBurgúndia13.IssomostraqueSigebertotalvezbuscasseoapoiopolíticoetalvezatémesmomilitardoimperadorcontrao
reiGontrão.PelasuaexperiêncianaProvença,FirminuseracapazdeexpôrasreivindicaçõesdeSigebertosobreoValedoRódano14.Deacordo
comGregóriodeTours,depoisdeumalongaviagem,osembaixadores
austrasianos chegaram à cidade de Constantinopla e, depois de uma
audiênciacomoimperador,firmaramumacordodepaz:
“OreiSigebertoenviouembaixadoresaoimperadorJustinoparapedira
paz;eramofrancoWarmárioeoauvérnioFirminus.Elesviajaramemum
11
HistóriasIV,27.
VerP.Goubert,ByzanceetlesFrancs,p.18;etambém,E.Ewig,DasMerowingerunddas
Imperium,pp.26-27.
13
HistóriasIV,30:“OreiSigeberto,desejosodetomaracidadedeArles,mobilizouosauvérnios.
OcondedacidadedeClermonteraentãoFirminusquepartiuàfrentedeles”.
14
P.Goubert,ByzanceetlesFrancs,p.17.
12
MarceloCândidodaSilva237
transporte naval, entraram em Constantinopla, em seguida após terem se
entrevistocomoimperador,obtiveramoquehaviampedido”15.
Essetextoébastantevagosobreoassunto,enadapermitedizerque
a“paz”comoImpériotenhasidoseguidadeajudamilitaràAustrásia.
Todavia,essaembaixadachegouaConstantinoplaemummomentoem
queSigebertoeGontrãoseencontravamnaeminênciadeumconflito
armado.DurantetodooreinadodeSigeberto,apolíticaexternaaustrasianamostrou-sehesitanteentre,porumlado,aaproximaçãocom
aEspanhavisigóticaecomoImpérioe,poroutro,comaBurgúndia.A
prioridadedadaaoconflitocomChilpericoacabouporprejudicaros
entendimentosdiplomáticoscomoImpério,pelomenossoboreinado
de Sigeberto: um acordo com Gontrão era indispensável para que os
austrasianospudessemfazerfrenteàagressãodeChilperico.AimpossibilidadedeumauxíliomilitarprovenientedoImpério–ocupadoalém
detudocominvasãolombardadeseusdomíniosnaItália,apartirde
567–podeterconvencidoSigebertodanecessidadedeumaaliançacom
Gontrão.
No entanto, as relações com o Oriente foram retomadas e intensificadassoboreinadodeChildebertoII,poriniciativadeBrunildae
deseuspartidários.OconflitocomaNêustriaabsorveuboapartedo
reinadodeSigeberto,esetraduziuigualmenteporumacertanegligênciaemrelaçãoaoepiscopado,sobretudosecomparadacomaintensa
atividadeconciliarnaBurgúndia.Nenhumconcíliofoiconvocadopor
Sigeberto,nemmesmoumaassembléiaconciliarregional.Issonãosignificaquetenhahavidoumareduçãodaingerêncianosassuntoseclesiásticos,comomostraacriaçãodeumbispadoemChâteaudun,civitas
quefaziapartedeseuregnum,masquepertenciaàdiocesedeChartres,
pertencenteaoregnumdeGontrão.Em573,quandodamortedobispo
de Chartres, Chaletricus, Pappolus foi eleito seu sucessor segundo as
15
HistóriasIV,40.
238 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
regrascanônicas,ouseja,pelo“cleroepelopovo”comaaprovaçãodo
rei Gontrão. Sigeberto ordenou que o bispo metropolitano de Reims,
Aegidius,nomeassePromotiusbispodeChâteaudun16.Acriaçãodesse
episcopadotransgrediuasregrasconciliaresqueproibiamaumbispo
interferirnosassuntosdeumadioceseestrangeira.Gontrãoconvocou
entãoumconcílioemParisparaobterdosbisposacondenaçãodeSigeberto17.Poucotempodepois,Sigebertofoiassassinado18.Ocupadoduranteamaioriadeseusquatorzeanosdereinadoacombaterasameaças
quepesavamsobreaintegridadeterritorialdeseureino,elepermaneceu
prisioneirodaestratégiaqueoforçavaacomporcomumaBurgúndia
“antivisigótica” e“antibizantina”, e ao mesmo tempo estabelecer uma
aliançacomaEspanhaecomoImpério.
ANêustria(575-584)
EntretodososdescendentesdeClóvis,Chilpericoéaquelequepossui
apiorreputaçãoentreoshistoriadoresmodernos.Eleconstituinahistoriografiamodernaoarquétipodabarbáriedostemposmerovíngios19.As
Histórias,comovimosnocapítuloanterior,constituemafonteprincipal
dessa“lendanegra”.Em561,nosdiasquesucederamamortedeClotário
I,Chilpericoapoderou-sedotesourorealassimcomodacidadedeParis20.
16
VerParisIV(573),EpistulasynodiadEgidiumRemensemepiscopum,eEpistulasynodi
adSigebertumregem.
17
HistóriasIV,47.F.MaassenacreditaqueessaassembléiaconciliarcorrespondeaoConcílio
deParisde573(ConciliaaeviMerovingici,p.146).
18
HistóriasIV,51.
19
G.Tessier,LebaptêmedeClovis,p.192:“AoladodeGontrão,Chilpericoaparececomoimpupulsivo,nãosomentecrueledepravado,masambiciosoecúpido,arredioatodaregra.Diríamos
mesmo um bruto descontrolado. Ainda que supersticioso, ele critica os bispos e se apodera do
patrimônioeclesiástico,oquetambémnãooimpededepressionarseussúditoslaicosrecorrendo
aumaimpiedosafiscalidade.Essedesequilibrado,essesemi-selvagemtinhatambémpretensões
intelectuaisquetraduzemumgostorudimentar,maspoucoesclarecido,pelascoisasdoespírito”.
20
HistóriasIV,22.
MarceloCândidodaSilva239
SegundoA.Thierry,aconquistadeParisporChilpericotinhaparaúnico
objetivoassegurarapossedopalácioimpérialcujosedifíciosejardinsse
encontravamnasmargensmeridionaisdorioSena,foradacidade.“Esta
suposição”,diz-ele,“nadatemdeimprovável,poisasvisõesambiciosasdos
reisfrancosnãoiamalémdaperspectivadeumlucroimediatoepessoal”21.
ContrariamenteaoquesugereA.Thierry,ébastanteprovávelqueaconquistadeParistenhasidofrutodeconsideraçõesestratégicasepolíticas.
Durantetodooseureinado,Chilpericobuscouaumentarseusdomínios
àcustadosoutrosregnafrancos.Emrazãodesuaposiçãocentralede
suasfortificações,Pariseranecessáriacomobaseparaseusmovimentos
militaresposteriores.Elaeratambémumsantuáriodamonarquia,olugarondeClóviseSantaGenovevatinhamsidoenterrados.Ofatodeque
ChilpericoeraomaisvelhodosfilhosdeClotáriopodeter-lhedadoa
impressãodequepordireitoeleeraoúnicoherdeirodoRegnumFrancorum.Aotomarpossedotesouroedacapitalreais,elerecusavaumarranjo
comoaquelede511quetinhafeitodeClodomiro,deChildebertoede
ClotárioosherdeirosdeClóvisaoladodoprimogênito,Teuderico.
VenâncioFortunato,nopoemadedicadoaChilperico,comovimos
anteriormente,ressaltaoafetoparticulardeClotárioemrelaçãoaoseu
primogênito:“Sobrevós,meucaro,repousavamtodasasesperançasdepai,
entretantosirmãos,somentevóstendesseuamor”22.ÉprovávelqueapoesiadeFortunatorefletisseopiniãopredominantenacortedeSoissons.
Asrelaçõesprivilegiadascomopai,nalinguagemdeFortunato,podem
explicaropapelqueChilpericoacreditavaseroseudentretodososoutros
príncipesfrancos.EleaparecenospoemasdeFortunatocomoomaisimportantedentreosfilhosdeClotário,vítimadociúmedeseusirmãos23.
21
A.Thierry,Récitsdestempsmérovingiens,p.30.
CarminaIX,1,versos31-34.
23
Ibid.,versos40-44:“Vóscrescestessobosmelhoresauspícios,omaiorpríncipe,constante
emvossoamorporvossopai.Masdesúbitoodestino,ciumentodetaisqualidades,procurandoperturbarapazdevossoreinadoeperturbandoapredisposiçãodaspessoasemrelaçãoa
vóseosacordosdevossosirmãosconseguiramemsuatentativadevosdestronar”.
22
240 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
SeChilpericoapressou-seemtomarpossedotesouroreal,eraporque buscava um meio de obter, ou melhor, de remunerar a lealdade
dosgrandes.ApartirdeParis,eletinhaacessoàsantigasterrasdofisco
romano. Contudo, não se pode perder de vista que a posse de meios
materiaisconstituíaumacondiçãonecessáriaparaatomadadopoder
entreosfrancos,masemnenhumcasoeraumacondiçãosuficiente.É
possívelqueosargumentosqueChilpericoapresentouaosgrandesdo
reinoparaatraí-losparaasuacausafossemsemelhantesaosqueFortunatoexpôsemseupoema.Eleprovavelmentetenhammencionadosuas
relaçõesprivilegiadascomClotário,eofatodeque,comoprimogênito,
tinhadireitoaosmesmosprivilégiosqueoutroraforamconcedidosa
TeudericoapósamortedeClóvis,osquaisincluíamaFranciaRhinensis,
berçodafamíliamerovíngia.
Aintervençãosimultâneadeseusmeios-irmãosforçouaumanova
partilha,naqualChilpericoobteveumnúmeromenordecivitatesque
seusirmãos.TodaapolíticadeChilperico,atémortedeCariberto,em
567,temsidomarcadaporiniciativasmilitarescomoobjetivoderecuperarascivitatesperdidasduranteessapartilha.Umanovapartilhado
RegnumFrancorum,ocorridaapósamortedeCariberto,em567,tentou
daralgumaestabilidadeparaoreino:tendosidoomaiorprejudicado
comapartilhade561,Chilpericoconseguiuobtercompensações,especialmentenaAquitânia.Contudo,osconflitosnãodiminuíram,eles
somenteganharamumaoutradimensão.GontrãoeSigeberto,julgando
queChilpericotinhaordenadooassassinatodeGalswinta,invadiram
oregnumdeSoissonse,segundoGregóriodeTourseFortunato,odestronaram24.
24
HistóriasIV,28.SeGregóriodeTourseVenâncioFortunato(CarminaIX,1,versos41-44)
sugerem que Chilperico foi destituído, no Liber Historiae Francorum, a versão dos fatos é
bastantediferente.OautordessaobraafirmaqueGontrãoeSigebertopretendiamdestronar
Chilperico,masnadadizsobreosucessodesuaempreitada(Liber,c.31).Segundootexto
doPactodeAndelot,ChilpericoteriaconcedidoaBrunilda,esposadavítima,ascivitatesde
Bordeaux,Cahors,Limoges,BéarneBigorre(HistóriasIX,20).
MarceloCândidodaSilva241
A“vingança”contraChilpericopeloassassinatodeGalswinta,tem
sidoapontadacomoacausadasguerrascivis25.Nessecaso,nãoestaríamosdiantede“ódiosprivados”noseiodadinastiareinantequeseriama
causademeioséculodeconflitosendêmicosnoReinodosFrancos,mas
deumalonga“faida”.“Faida”(doinglêsfeud,edoalemãoFehde)éum
termodeorigemgermânico,latinizadoemuitoutilizadopeloscronistas
daAltaIdadeMédiaocidentalparadesignaraameaçadehostilidade
entreduaslinhagens,bemcomooestadodehostilidadeentreelase,finalmente,asatisfaçãodasdiferençasearesoluçãoemtermosaceitáveis
para ambas26. É um equívoco enxergar uma oposição entre“público”
–ouseja,opoderrealeasuajustiça,suasnormaseseustribunais–e
“privado”–encarnadopelaspráticasfaidaisquetenderiamadesregular
aordempública.Ora,aoposiçãoentreessasduascategorias,“público”
e“privado”,nãoseaplicaàspráticasfaidais,quepossuíamumalcance
públicodignodenota.Oqueestáemjogoéahonraouasregrasdo
grupoaoqualsepertence.Alémdomais,osatoresdafaidamuitasvezes
querem apenas abrir um processo que se terminará por um pacto de
concessõesmútuas,porumaredefiniçãohonoráveldasrelaçõesinterpessoais.Assolidariedadesextensasqueasfaidasmobilizam,aclientela,
a parentela, as alianças, as amizades, a vizinhança, e o próprio poder
real,selocalizamemdiversosregistros.Noentanto,comoreconheceo
próprioWallace-Hadrill,anoçãodefaidacolocaproblemaseédifícil
encontrarnasfontesdaépocafranca“faidaspuras”.Poroutrolado,convémlembrarqueosconflitosentreosherdeirosdeClotáriocomeçaram
25
Essaé,porexemplo,aopiniãodeJ.M.Wallace-Hadrill(“ThebloodfeudoftheFranks”,The
Long-hairedKingsandOtherstudiesinFrankishHistory,pp.121-147).
26
Ibid., p.122. O aumento do interessepela faidanosúltimos anosdeve-se,notadamente,
à antropologia jurídica. Há uma extensa bibliografia sobre o assunto.Ver, por exemplo, D.
Barthélemy,“La vengeance, le jugement et le compromis”, pp.11-20; J. Byock, Feud in the
IcelandicSaga,1982;G.Courtois,“Vengeance”,pp.1507-1510;R.R.Davies,“TheSurvivalof
theBloodfeudinMedievalWales”,pp.338-57;S.White,“FeudingandPeace-Makinginthe
TouraineAroundtheYear1100”,pp.195-263.
242 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
imediatamenteapósoseufalecimento;amortedairmãdeBrunildafoi
maisumepisódiodeumconflitoquehaviacomeçadonapartilhade
561.Énessemomentoquesedevesituarocomeçodasguerrascivis,e
nãoem567.OassassinatodeGalswintaapenasagravouumatensãoque
jáeragrandeentreChilpericoeseusirmãos,equetinharaízesnatentativadeesseúltimoacaparar-sedamaioriaoudatotalidadedaherança
deClotárioI.
Deumpontodevistaestritamentemilitar,osesforçosdeChilperico,
atéofimdosanos570,tinhamporobjetivoarecuperaçãodascidades
queeletinhaperdidoparaSigebertoapósoassassinatodeGalswinta.
Porém,elenãoabandonouoprojetoconstantiniano,queconsistiana
ampliaçãodasprerrogativasreaisemmatériaeclesiástica,nahegemonia
neustriananointeriordoRegnumFrancorumeemumaaproximação,
tantonoplanosimbólicoquantonoplanodiplomático,comaautoridadeimperial.
Desde o momento em que se amparou de Paris e que passou a
reivindicar as civitates de seus irmãos, Chilperico buscou afirmar sua
preponderâncianomundofranco.Élegítimoafirmarqueeleéherdeiro
econtinuadordaRealezaConstantiniana.Pararealizaresseprojeto,os
afrontamentos com o clero eram inevitáveis. Os nomes que escolheu
paraseusfilhos(Clóvis,Meroveu)refletem,aliás,essavontadederetomarcontatocomomomentodafundaçãodamonarquia.É,noentanto,
napolíticareligiosaqueaambição“constantiniana”deChilpericoassumiutodasuaamplitude.Eleentendiaqueaafirmaçãodahegemonia
no seio do Regnum Francorum passava não somente pela adoção de
símbolosromanos,mas,sobretudo,pelasubmissãodaIgreja.Asduas
assembléiasconciliaresqueocorreramduranteseureinadotinhampor
objetivojulgarbisposacusadosdetraição,comomostramasHistórias.
A primeira ocorreu em Paris, em 577, para julgar o bispo de Rouen,
Pretextatus;asegunda,queocorreuemBerny,em580,tinhacomoréu
opróprioGregóriodeTours.
Naprimeiradessasassembléias,Chilpericoparticipoudosdebatese
foielequemformulouasacusaçõesaobispoPretextatus.Esteeraacusadodetercelebradoocasamentodeseufilho,Meroveu,comaviúva
MarceloCândidodaSilva243
de seu irmão, Brunilda, em detrimento dos cânones conciliares que
proibiamocasamentoentreumhomemeaviúvadeseutio.Chilperico
tambémacusavaobispodeRouendeterdistribuídobenefíciosàspopulações,tendocomoobjetivotornarMeroveureiemseulugar:
“Após esses acontecimentos, Chilperico, sabendo que Pretextatus, bispo
deRouen,distribuíapresentesàspopulaçõesparaprejudicarseusinteresses,
convocou-o à sua presença.Após tê-lo questionado, descobriu que bens da
rainha Brunilda tinham-lhe sido confiados, e após tê-los confiscados, ordenouquePretextatusfossebanidoatéqueseucasofosseexaminadoporum
concíliodebispos.Quandooconcíliosereuniu,fizeramcomquePretextatus
comparecesse...Oreidisseaoacusado:‘Quemotivotens,óbispo,paraunir
meuinimigo,quedeveriatersecomportadocomoumfilho,àsuatia,istoé,
aviúvadeseutio?Tuignorasassançõesqueoscânonesprevêemparauma
talcoisa?Alémdomais,nãoéapenasnissoqueéprovadoquevocêerrou,
tuconspirastescomMeroveucorrompendocertaspessoasparaqueeufosse
assassinado”27.
AdescriçãodojulgamentodePretextatusnãoédemodoalgummaniqueísta. Gregório mostra, por exemplo, que Chilperico permaneceu
presoàformalidadejurídicaequefoiatravésdeargumentosretirados
doscânonesconciliaresqueeletentoucondenarobispodeRouen.Orei
secolocouinclusivecomodefensordasnormascanônicasaodirigir-se
aPretextatuseacusá-lodeterrealizadoocasamentodeMeroveuede
Brunilda,adespeitodoqueafirmavamoscânones.QuandoChilperico
formulouasegundaacusação,adetraição,amultidão,segundoGregório,teriatentadoatacarobispo,oqueChilpericoteriaimpedido.Não
hádúvidasdequeoreiqueriapunirobispodeRoeun,maselepreferia
que ele fosse condenado pelos seus próprios pares. Chilperico pretendiafazerdePretextatusumexemplo.Sedopontodevistadaforma,o
reipermaneceufielàsregrascanônicas,dopontodevistadoconteúdo,
27
HistóriasV,18.
244 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
aparentementenãohesitouemdeturpá-lasaseufavor.Elaseramuminstrumentoqueeleutilizavasegundosuasintenções,como,porexemplo,
parajustificaradeposiçãoeaexcomunhãodobispoPretextatus28.
Era importante para Chilperico criar um precedente, utilizando a
assembléiaconciliarparapunirosmembrosdoepiscopadodeseureino
quenãosemostrassemsuficientementeleaisemumcontextopolítico
bastantedelicado.AacusaçãodequePretextatushaviatransgredidoos
cânones, ao unir em casamento um homem e a viúva de seu tio, era
apenas a primeira parte de um requisitório destinado a provar que o
bispohaviaparticipadodeumcomplôcontraorei.Éexatamenteessa
acusaçãoqueprovocouareaçãoviolentadamultidãoquequislincharo
bispoeétambémelaquedominouosdebates.Chilpericoesperavaque
Pretextatusfossecondenadopelosseusparesportraição.Elereuniao
episcopado,masapenasparareferendaravontadereal.Osbisposeram
vistoscomosimplesfuncionáriosdarealezae,comotais,deviamobediênciaaoreieaosseusrepresentantes.Essapolíticaconsistiaemrecusar
aoepiscopadoumpapelpolíticodeprimeiroplano.
Entre579e581,ocorreuamaisespetacularreviravoltapolíticade
Chilperico.Apósamortedeseusfilhos,umavezqueseencontravasem
herdeiro,aproximou-sedeChildebertoII,aquemadotoucomofilho,o
quepôsfimàaliançaqueestehaviaestabelecidocomseutioGontrão29.
EssaaproximaçãoentreaNêustriaeaAustrásiaécontemporâneade
umaembaixadaenviadaporChilpericoaBizâncio,cercadedezanos
depoisdaembaixadaenviadaporSigebertoI.Bizânciotinhainteresse
na aliança neustro-austrasiana, pois ela debilitava a Burgúndia e sua
política pró-lombarda30. Os três anos que se seguiram culminaram
28
Ibid.
HistóriasVI,3.
30
HistóriasVI,2:“Nessemeiotempo,osembaixadoresdoreiChilperico,quetrêsanosantes
tinham sido enviados ao imperador Tibério, retornaram sem grandes danos e sem muita dificuldade”.Osembaixadorestrouxeramdessaviagem,quedurouentre578e581,umasériede
objetos preciosos: “Ele mostrou-me também moedas de ouro pesando uma libra cada uma
queoimperadorlhehaviaenviado;elastinhamdeumladoaimagemdoimperadoreemum
29
MarceloCândidodaSilva245
com um novo entendimento entre Gontrão e Sigeberto II, enquanto
Chilpericoadotouumaestratégiadefensiva.Em583,naAustrásia,uma
insurreiçãodominorpopulusexpulsoudopoderobispoAegidiusde
Reims e os leudes partidários da aliança com a Nêustria31. Uma vez
quebradaaaliançacomosaustrasianos,ChilpericotentouumaaliançacomaEspanhavisigótica.Atrocadeembaixadasculminoucomo
projetodecasamentoentreafilhadeChilperico,aprincesaRigonta,
eRecaredo,filhodoreiLeuvigildo32.OassassinatodeChilperico,em
584,impediuarealizaçãodocasamento,emarcou,aomesmotempo,
o fortalecimento da Burgúndia. Com regências em curso no regnum
deSoissonsenoregnumdeMetz,Gontrãosetornouoárbitrodavida
políticafranca.
Durante muito tempo considerado como um bárbaro sem escrúpulos,reibrutaleprimitivo,Chilpericodestacou-seentreospríncipes
francosdesuaépocacomodefensordaRealezaConstantiniana.Elefoi,
aliás,omaispoderosorepresentantedomodeloconstantinianonasegundametadedoséculoVI.
círculo estava gravado: TIBERII CONSTANTINI PERPETVI AVGVSTI; do outro lado, havia
uma quadriga e um cavaleiro e elas continham essa inscrição: GLORIA ROMANORUM. Ele
mostrou igualmente muitos outros ornamentos que haviam sido trazidos pelos embaixadores”
(Ibid.).Essasmoedas,deumpesoinsólitodeumalibra,eramprovavelmentemedalhascomemorativasdoadventoimperialdeTibério(P.Goubert,ByzanceetlesFrancs,p.23).Note-se
que,sidoquandoChilpericoapresentaaGregórioumdosobjetosquehaviamsidofabricados
comoouroeaspedraspreciosastrazidasdeConstantinopla,eleafirmaqueeleshaviamfabricadosparahonrareenobreceranaçãodosfrancos.Elenãofaziareferênciaaovalormaterial
dosobjetos,masaofatodequeeleshaviamsidofeitosapartirdoouroedaspedraspreciosas
enviadaspeloimperador.
31
HistóriasVI,31.
32
HistóriasVI,34.
246 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
ABurgúndia(567-592)
ParasecompreenderopapeldaBurgúndiaduranteasguerrascivis,
serianecessáriolevaremcontaduascaracterísticasdoreinadodeGontrão.A primeira é o papel de árbitro desempenhado por esse rei nos
conflitosqueopuseramChilpericoaSigeberto,eemseguidaClotário
IIaChildebertoII.Asegundaéolugardedestaqueacordadoaosbisposnosassuntospolíticos.Comefeito,apósamortedeCariberto,em
567,Gontrãoadotouumaposiçãoambíguaemfacedosconflitosentre
ChilpericoeSigeberto,apoiandoumououtrobeligeranteemfunção
daconjuntura.Éprovávelqueelebuscasseatodopreçoimpedirque
oregnumdeSoissonsouoregnumdeMetzobtivessemumavantagem
decisivanessesconflitos.Aconstituiçãodeumapotênciaaustrasianaou
neustrianaeraumaameaçaparaaBurgúndia.
ApolíticaexternadeGontrãofoiritmadaporumaoposiçãoradical
aoImpério.Sósetemconhecimentodeumaembaixadaenviadapor
essereiaConstantinopla,provavelmenteapósaconclusãodotratado
deAndelot33.Osobjetivosdessaembaixadasãobastanteobscuros:ela
buscavaimpedirarealizaçãodaaliançaentreRecaredoeacorteaustrasiana34,ouomatrimônioentreBrunildaeumdosfilhosdeGondovaldo,refugiadonaEspanha35.Noentanto,essaembaixadanãoresultou
emnenhumaaliança,nememrelaçõesduráveisentreaBurgúndiaeo
Império.
33
Fredegário,CrônicasIV,6.
HistóriasIX,20:“Depoisqueeledisseessaspalavras,Félixdeclarou:‘Acreditoqueanotícia
chegouavossaglóriasegundoaqualRecaredoenviouumaembaixadaavossosobrinhoparapedir
emcasamentoClodosinda,filhadevossoirmão.Maselenadaquisdecidirsempedirvossoconselho’.Oreireplicou:‘Nãoémuitobomqueminhasobrinhaváparaondesuairmãfoiassassinada
erazoavelmenteéruimqueamortedeminhasobrinhaIgondanãosejavingada.Félixrespondeu:
‘Elesqueremsedesculparcompletamente,sejaporjuramentos,sejaporqualqueroutromeioque
vós ordenardes; querei dar vosso consentimento para que Clodosinda despose Recaredo’. O rei
disse:‘Semeusobrinhocumpriraquiloqueeleaceitouqueconsignássemosnospactos,também
fareisuavontadeaesserespeito’”.
35
HistóriasIX,28.
34
MarceloCândidodaSilva247
Longedospilarestradicionaisdaautoridaderealmerovíngia,Gontrão não hesitou em buscar o apoio político do episcopado. É nesse
sentido que se pode falar em uma “revolução” burgúndia, que foi o
resultadodabuscadeapoioideológicoepolíticojuntoaosbispospor
partedaautoridadereal.OreinadodeGontrãocontribuiu,maisdoque
qualqueroutrodessasegundametadedoséculoVI,paraoaumentoda
influênciapolíticadoepiscopado36.Essefenômenomanifestou-sepela
primeiraveznoRegnumFrancorumatravésdosconcíliosreunidosna
Burgúndia.Demaneirageral,osconcíliosdasegundametadedoséculo
VItratarammaisdetemasgeraisdoreinoquedosassuntosinternosda
Igreja. Isso significa que os bispos foram introduzidos no campo dos
conflitosqueopuseramosreisfrancosdemaneiraendêmicaentre573
e613.Gontrãorecorreuváriasvezesaosconcíliosnaesperançadeque
elespudessemservirdeapoioàautoridadereal,mastambémcomomediadoresnosconflitosqueoopunhamaosseusirmãos.NaBurgúndia,
osbispostornaram-se,maisdoqueemqualqueroutrolugarnoRegnumFrancorum,osparceirosdaautoridadepública,conselheirosqueo
reiescutavaparaconduzirabomtermoogovernodoreino.
O edito que Gontrão publicou em 585 era endereçado tanto aos
iudices(juízes)laicosquantoaosbisposdeseureino:“Gontrão,reidos
francos,atodososjuízesebisposemnossoreino”37.Ambasascategorias
sãoresponsáveispelaaplicaçãodasmedidasprevistaspelotexto.Ajulgar pelo endereço do documento, os bispos parecem ter ocupado na
administraçãorealnaBurgúndiaumlugarcomparávelaodosiudices.
Damesmamaneira,opreâmbulodopactodeAndelotmencionaque,
nessaocasião,asdecisõestinhamsidotomadascomaajudadosbispos
edosgrandes:“mediantibussacerdotibusatqueproceribus”38.Essessão
dois bons exemplos do crescimento do papel político dos bispos na
36
SobreasrelaçõesentreGontrãoeosbispos,verG.Tabbaco,“ReGontranoeisuoiVescovi
nellaGalliadiGregoriodiTours”,pp.327-354.
37
Guntchramniregisedictum,5.
38
HistóriasIX,20.
248 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
segunda metade do séculoVI.A título de comparação, em seu edito,
Chilpericomencionasomenteaparticipaçãodeseus“virimagnificentissimioptimatesvelantrustiones”39.Aoexcluirosbispos,eledeixaclaro
queseusúnicosinterlocutoresnaadministraçãodoreinosãoosaltos
funcionárioslaicos.Aidéiadaparticipaçãoeclesiásticanogovernodo
regnum impregna a um tal ponto o edito de Gontrão de 585, que se
poderiadizerqueGregóriofoiquemoescreveu40.
Hásemdúvidaumagrandeconvergênciaentreapolíticareligiosa
deGontrãoeateologiapolíticadeGregório.Poroutrolado,ocontraste
entreapolíticareligiosadeChilpericoeadeGontrãoébemvisível.Um
bomexemplodissoéojulgamentodosbisposSaloniusdeEmbrune
SagittariusdeGap:
“EntãocomeçouumarevoltacontraosbisposSaloniuseSagittarius.Esses
personagens,quehaviamsidoeducadosporSãoNizier,bispodeLyon,chegaramàdignidadedodiaconatoefoiemseutempoqueSaloniusfoidesignado
bispodacidadedeEmbrumeSagittariusbispodacidadedeGap.Umavez
oepiscopadoobtidoeestandolivradosaosseuscaprichos,elescomeçaram
comumloucofuroraselançarembrigas,emmassacres,emhomicídios,em
adultérioseemdiversosoutroscrimes;foiassimqueumdiaquandoVítor,
bispodeTrois-Châteauxcelebravasolenementeoaniversáriodeseunascimento,elesenviaramumatropaquecomespadaseflechasselançoucontra
ele.Aochegarem,essaspessoasrasgaramsuasvestimentas,maltrataramseus
servidores,levandoconsigoosvasosetodoovasilhamedafestaedeixando
obisposoboefeitodessesgravesultrajes.AssimqueoreiGontrãosoubedo
acontecido,reuniuumsínodonacidadedeLyon” 41.
Oseditoresdascoleçõesconciliaresidentificamesse“sínodo”citado
por Gregório de Tours como sendo o concílio que ocorreu em Lyon
39
Chilpericiedictum,4.
M.Heinzelmann,BischofsherrschaftinGallien,pp.162-166.
41
HistóriasV,20.
40
MarceloCândidodaSilva249
emalgummomentoentreoanode567e570,ecujaatafoipublicada
pelaprimeiravezporSuriusapartirdeummanuscritoqueseperdeu
desdeentão42.Poroutrolado,C.DeClercqestimasetratadedoisconcíliosdistintos,poisosbisposdeGap,deEmbrunedeTrois-Châteaux
estandosubmetidosaobispometropolitanodeArles,nãopoderiamser
julgadosemLyon,semaomenosapresençadeumrepresentantedesua
hierarquiaeclesiástica43.DeClercqtemrazãoaoafirmarqueoconcílio
mencionadoporGregóriodeToursnãoéomesmocujaatafoipublicadaporSurius.Entretanto,O.PontalmostraqueoargumentoqueDe
Clercqapresentaparasustentarsuaposiçãonãoéválido,poisosatos
dosbisposSaloniuseSagittariussãorediscutidosnoconcíliodeChalon,
nadiocesedeLyon,em57944.
Além disso, o cânone 4 do Concílio de Lyon II (567-570) está em
contradiçãocomasmedidastomadaspelosbisposemrelaçãoaVítor,
medidasessasqueGregóriodeToursmencionanocapítulo20dolivroV
dasHistórias:elesoexcomungaramapóseleteraceitadoemcomunhão
SaloniuseSagittarius.AoexcomungaremVítor,osbispossevaliamdo
oitavocânonedoConcíliodeToursII(567),queestipulavaqueaquele
quefosseexcomungadoporumbispodeveriaserconsideradocomotal
portodososoutros,sobpenadesofreramesmapuniçãoatéarealização
deumnovoconcílio.OquartocânonedoconcílioeditadoporSurius
confirmaessaregra:seumbisposuspendeualguémdacomunhão,esse
últimodeveserconsideradocomoestranhoàcomunhãoportodosos
bispos;mas,aomesmotempo,eleprevêqueoexcomungadopossaser
reintegradoporaquelequeohaviaexcluídodacomunhãodaIgreja.É
exatamenteoquefezVítor;eelenãoteriasidosancionadopelosseus
paresseoquartocânonedoconcílioeditadoporSuriustivessesidopu-
42
L.Surius,ConciliorumOmnia,I-VI,Cologne,1567,citadoporC.J.Héfèle,Histoiredes
concilesd’aprèslesdocumentsoriginaux,III,trad.francesa,notascríticasebibliográficaspor
DomH.Leclerq,Paris,1909,p.182,n.2.
43
ConciliaGalliae,A.511-695,p.200.
44
O.Pontol,Histoiredesconcilesmérovingiens,p.167;HistóriasV,27.
250 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
blicadoantesdeeleterreintegradonacomunhãoSaloniuseSagittarius.
Essequartocânonesoacomoumcompromissoetambémcomouma
justificativaaposterioridocomportamentodeVítor.Estamosdiante,
portanto,dedoisconcíliosdistintos.Alémdisso,enquantoGregóriode
Tours afirma que o concílio que deveria julgar Salonius e Sagittarius
foi convocado por Gontrão, o nome desse rei não é sequer citado no
prefácio do concílio editado por Surius. Esse último concílio ocorreu
provavelmenteentre569e570,enquantooconcíliocitadoporGregório
deToursnocapítulo20dolivroVdasHistóriasdeveterocorridopor
voltade567-568.
Embora ele também tenha reunido durante seu reinado concílios
cujoobjetivoeraodejulgaralgunsbispos–comofoiocasodojulgamento de Salonius de Embrun e Sagittarius de Gap, acusados de
assassinatoedeadultério–Gontrãoadotouumaposturaemrelação
aoepiscopadodiferentedaquelaadotadaporChilperico.Emprimeiro
lugar,SaloniuseSagittariuseramacusadosporatosperpetradoscontra
seuspares,nãocontraopoderreal.Alémdisso,acondenaçãodeambos
foipronunciadaporoutrosbispos,enãopelorei.Umavezdepostos
da função episcopal, Salonius e Sagittarius compareceram diante do
reiparareclamardapunição.Elespedirameobtiveramaautorização
parairatéRomaafimdedefendersuacausajuntoaopapa.Munidos
decartasreais,chegaramaRoma,ondeopapaJoãoIII(561-574)deulhes o direito de retomar suas sés – no que foi praticamente a única
intervençãoconhecidadeumpapaemumassuntodaIgrejafrancaduranteoséculoVI.ApósteremsidorepreendidosporGontrão,osdois
bispos recuperaram seus postos45.Após terem sido repreendidos por
Gontrão,osdoisbisposrecuperaramseuspostos.Ora,diantedopedidodeambos,oreinãointerferiudiretamente,porexemplo,ordenando
queelesfossemreintegradosàhierarquiaeclesiástica.Suaatitudefoi
mais nuançada. As cartas reais não constituíam uma defesa da cau-
45
HistóriasV,20.
MarceloCândidodaSilva251
sadosbispos,massomenteumaautorizaçãoparaqueelespudessem
defender-sejuntoaopontíficeromano.Alémdisso,restabelecendo-os
emseusrespectivosbispados,orei,comodizclaramenteGregóriode
Tours,nadamaisfezqueseguirasrecomendaçõesdopapa.
É nesse contexto que se deve compreender o Concílio de Lyon II
(c.569-570),cujoscânonesforameditadosporSurius.Trata-sedeum
apeloàunidadedoepiscopadoapósoprimeirojulgamentodeSalonius
edeSagittariusesuaviagemaRoma:
“Emprimeirolugar,convémqueaunidadeentreosbispos,amadapelo
Senhor, aconselhável pelas Escrituras, reclamada pela união na caridade,
seja guardada por todos, de maneira que em toda deliberação e decisão
o acordo entre bispos se mantenha em um único espírito, em um único
sentimento”46.
Nesseconcílio,osbisposbuscaramtambémcircunscreverseusconflitoseimpedirqueospersonagensestrangeirosaoepiscopado–talvez
fizessemreferênciaaoreiGontrão–interviessem.Osbisposadversários
eramorientadosaremeterem-seaojulgamentodometropolitanoede
seusco-provinciais,casopertencessemaumamesmaprovíncia,ouaos
seus metropolitanos reunidos, caso fossem originários de províncias
diferentes47. Esse compromisso, ao qual chegaram os bispos reunidos
emLyonII,traduziaumdesejodeautonomia.Nãoeraumsentimento
novo:eleestápresentenosconcíliosmerovíngiosdesdeoiníciodoséculoVI.Note-se,noentanto,nocasodosbisposSaloniuseSagittarius,que
osbisposconciliaresapoiaramadecisãodobispoVítordeperdoaraos
seus agressores, ao aceitá-los de volta em comunhão. Eles ratificavam
assimadecisãodoreiquedesejavaofimdasançãoquepesavasobreo
bispodeTrois-Châteaux48.
46
LyonII(c.569-570),c.1.
Ibid.
48
Ibid.,c.4.
47
252 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Um outro concílio foi convocado em Paris por Gontrão em 573,
após seu conflito com Sigeberto a respeito da criação do bispado de
Châteaudun.Sigebertopretendia,comofoimencionadoanteriormente,constituirumbispadoemChâteauduncomaconivênciadobispo
Aegidius. Ao convocar os bispos, Gontrão queria obter seu apoio no
conflitoqueoopunhaaSigeberto,eéoqueeleconseguiu:numacarta
aAegidius, os bispos o informam da deposição de Promotius49, e em
outracartaenviadaaSigeberto,comumtombastantediplomático,afirmavamnãoacreditarqueumatalinjustiçapudessesercometidacom
seuconsentimento,etambémpediamqueelefizessecessaroabuso50.
Essasegundacartamostraqueaautoridademoraldoclerotranscendia
oslimitesgeográficosoriundosdaspartilhas:osbisposqueparticiparamdesseconcílioemParispertenciamapenasaoregnumdeGontrão,
oquenãoosimpediudedirigirumaadmoestaçãoaSigeberto.
Durante seu reinado, Gontrão apoiou-se nesse episcopado cuja
autoridade moral transcendia os limites dos regna. Em que pesem as
dificuldades atravessadas pela Igreja franca em razão das partilhas, a
atividadeconciliaréomelhorexemplodapersistênciadaunidadedessa instituição.Além da freqüência com que as assembléias conciliares
se reuniam, as medidas por elas aprovadas também apontam para a
construçãodeumaunidadehierárquicaetambémlitúrgica.Oprimeiro
cânonedoconcíliode538,porexemplo,evocavaaobrigaçãodetodos
os bispos participarem da reunião anual, e denunciava as“desculpas”
daquelesqueestavamausentes51.Em549,oapeloparaquetodososbisposparticipassemdosínodoanualfoirenovado52.Osbisposreunidos
emconcílioadotaramtambémumamesmaorganizaçãodoanolitúr-
49
ParisIV(573):EpistulasynodiadEgidiumRemensemepiscopumregem,pp.147-148.
ParisIV(573):EpistulaJynodiadSigebertumregem,pp.149-150.Nalistadebisposque
assinaramasditascartas,podemosobservarqueapenasasdiocesesdaprovínciadeArles,que
pertenciamaoregnumdeGontrão,estavamrepresentadas.
51
OrléansIII(538),c.1.
52
OrléansV(549),c.18.
50
MarceloCândidodaSilva253
gicoparatodaaGália53.Elesrelembraramaobrigaçãodeumaperíodo
deabstinênciaantesdasfestaspascais–cujaduraçãoeraestritamente
limitada a quarenta dias – e durante o qual era obrigatório o jejum,
salvoaosdomingos,eaossábados,somenteparaosdoentes.Elestambémestenderamaperíododojejumacinqüentaousessentadias54.Em
541,osbisposreunidosemOrléansdecidiramqueaPáscoadeveriaser
celebradanomesmomomentoemtodaaGália55.NãohaviaumaIgreja
daAustrásia,umaIgrejadaNêustriaouumaIgrejadaBurgúndia.As
comunidadeseclesiásticasdaGáliafrancapermaneciamunidasnosentimentodepertencimentoaummesmoorganismopolítico–oReino
dos Francos. O melhor indício dessa coesão eclesiástica é que os reis
merovíngiosnãoconseguiramcriarumnovobispado,semseremconfrontadoscomumaforteoposiçãoepiscopal.Éoqueocorreuquando
ChildebertoItentouconverterMelunembispado56.Osbisposdecada
regnumeramfuncionáriosdopoderreal,deviamobediênciaaseussoberanosrespectivos;masnãosepodeconfundirumaIgrejasubmetidaa
umalógicapolíticaetambémaoarbítriodopoderrealcomumaIgreja
fragmentada.Alógicapolíticadaspartiçõesprevaleceueventualmente
sobreodesejodeuniãodosbispos.Apesardeseuempenho,elesnão
conseguiram impedir a fragmentação de algumas províncias eclesiásticaseadivisãodediocesesentreosreinosoriundosdaspartilhas.No
entanto,asmedidasdoConcíliode511,quetransformaramaIgrejada
GálianaIgrejadoRegnumFrancorum,nãoforamcolocadasemquestão
pelaspartilhas.Elacontinuouaexistircomoumaentidadeindivisível,
apesardasdificuldadesqueosbisposdetodaaGálianãocessaramde
evocarduranteosconcílios.
OtextodotratadodeAndelottrazaprimeirareferênciaexplícitaà
participaçãodosbisposemumareuniãoemquehouveumapartilhado
RegnumFrancorum:
L.Pietri,“L’EgliseduRegnumFrancorum”,pp.745-799,especialmentep.756.
OrléansI(511),c.24;Orléans541,can.2.
55
OrléansIV(541),c.1.
56
Epistolaeaevimerowingicicollectae,VII,3,pp.437-438.
53
54
254 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
“EmnomedoCristo,osexcelentíssimossenhoresreisGontrãoeChildebertoeagloriosíssimadama,arainhaBrunilda,sereuniramemAndelotdentrodeumsentimentodeafeiçãopararesolverapósumadeliberaçãoplenária
asquestõesdetodanaturezaquepudessemgerarentreelesumconflito,e,
nessesentimentodeafeição,foiretido,decididoeconvindoentreeles,coma
ajudadosbisposedosgrandes,egraçasàmediaçãodeDeus,que,tantoque
Deus todo-poderoso consentiria na sua sobrevivência no mundo presente,
elesdeverãomanterentresiumaféeumaafeiçãopurasesinceras”57.
Aparticipaçãodosbisposnadeliberaçãoplenárianaqualopacto
foidebatidoepreparadoatestaumaprovávelreduçãodetensõesentre
opoderrealeoepiscopadonoqueserefereàspartiçõesterritoriais.
Nãoobstante,éemsuapenúltimadisposiçãoqueopactoconsagrou
explicitamente o sucesso das orientações episcopais em matéria de
partilhas:
“Damesmamaneira,tudooqueosditosreisconferiramàsigrejasoua
seusfiéisequeelesdesejarãoaindalhesconferirjustamentecomagraçade
Deusdeveráserrespeitadoirrevocavelmente.Equantoaoqueédevidoacada
57
HistóriasIX,20.OpactodeAndelotnoscolocadiantedeumdilema.Pode-seperguntar
qual era a razão pela qual Brunilda, assim como Galsvinta antes dela, tinha direito a uma
compensaçãofiscal.Elasnãoestavamàfrentedeumregnum.Issopoderiaserinterpretado
comoumprovadocaráterprivado,“patrimonial”,dosarranjosterritoriaismerovingios?Em
razãodeseuinteresseedesuacomplexidade,oestatutodasrainhasmerovíngiasmereceria
umapesquisaaparte.Opoderdessasrainhasnãoeratão“privado”comoseacredita.Bastaria
citarocasodeClotilde,deFredegondaoudeBrunildaparademonstraropapelpreponderante
que elas desempenharam na história merovíngia até a época de Clotario II (Ver I. Wood,
“RoyalWomen:Fredegund,BrunihildandRadegund”,TheMerovingianKingdoms,pp.120139;etambémoestudorecentedeN.Pancer,Sanspeuretsansvergogne.Del’honneuret
desfemmesauxpremierstempsmérovingiens).Asrainhasestavammuitasvezesàfrentede
umaestruturaadministrativabastantecomplexa(HistóriasVIII,32;HistóriasV,42).Daía
necessidadedeumafontederendacapazdeproveràsnecessidadesdesseaparelho,embora
esseúltimofossebemmenosimportantequeaadministraçãoreal.Nãosepodefalar,nesse
sentido,deduasestruturasestataisconcorrentes,masdeduasentidadescomplementares.
MarceloCândidodaSilva255
um dos fiéis no reino de um e de outro em virtude da lei da justiça, esses
nãodeverãosofrernenhumprejuízo,masserãoautorizadosapossuirseus
benseareceberoutros,esealgumacoisafoiretiradaaumdelesduranteos
interregnossemquetenhahavidoerrodesuaparte,essalheserárestituída
apóstersidofeitaumainvestigação”58.
Essetrechosustentaquetodososbensqueosreistinhamconferido
àsigrejasouaseusfiéisdeveriaserrespeitado.Otratadoquisrepararos
danoscausadospelasguerrasciviserestituiraspossessõesàquelesque
astinhamperdidoemvirtudedoapoioaumadaspartesemluta.Os
príncipesfrancosaceitavamtambémumadasdemandasmaisfreqüente
dosbispos,equeconsistianagarantiadaintegridadedosbenseclesiásticosemcasodepartilha.
Gontrãocontavacomaautoridademoraldosbispospararegularas
disputasdentrodoRegnumFrancorum;éoquetambémmostraoconcílioqueeleconvocouemLyon,em581.Temerosodosdesdobramentos
daaliançaqueChildebertoIIestavaconcretizandocomChilperico,em
detrimento de acordo concluído com a Burgúndia, Gontrão recorreu
umavezmaisàarbitragemepiscopal59.Eleconvocouumoutroconcílio
em589paraqueosbisposarbitrassemsuasdisputascomChildeberto
II,etambémjulgassemopatrícioMummolusportraição.ElesuspeitavaqueChildebertoIIbuscavaumaliançacomosvisigodos.Oconcílio
nãoocorreu,poissegundoGregóriodeTours,arainhaBrunildarefutou
essasacusaçõesatravésdeumjuramento60.
É nos concílios que ocorreram na década de 580 em Mâcon, em
Lyon,eemAuxerre,quesepodeidentificarmelhoroalcancedainfluênciapolíticadoepiscopadonaBurgúndia.Nopreâmbulodoprimeiro
ConcíliodeMâcon(581-583),convocadoCumadiniunctionemgloriosissimidomniGuntramniregis(“Comainjunçãodogloriosissimosenhor
58
Ibid.
59
60
HistóriasVI,1.
HistóriasIX,32.
256 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
oreiGontrão”),osbispossustentamquesereuniram...tamprocausis
publicisquampronecessitatibuspauperum(“...tantopelascausaspúblicas
quantopelasnecessidadesdospobres”).Essaasserçãoilustraanatureza
das assembléias conciliares durante o reinado de Gontrão: ainda que
reunidos por uma determinação do rei, os bispos expressavam claramente,epelaprimeiravezemumconcíliomerovíngio,odesejodese
ocupardas“causaspúblicas”.Ver-se-ámaisadiantequeasmedidasadotadasduranteesseconcíliodiziamrespeitoatemasqueeramatéentão
oapanágiodaautoridadereal.Contudo,oquemelhorrevelaoalcance
daspretensõesepiscopaiséofatodequeopreâmbulodesseConcílio
deMâconIassociavaos“assuntospúblicos”àsnecessidadesdospobres.
Os bispos conciliares nunca tinham ido tão longe. Nos concílios precedentes,elestinhamsecontentadodeestabelecercomohorizonteda
assembléiaconciliarapaceetinstructioneecclesia61,aordoecclesiae”62,e
a“populisalvatione”63.Alémdomais,asmedidasadotadasnesseprimeiroConcíliodeMâconfavoreciamosclérigosemdetrimentodosjuízes
seculares:osétimocânone,porexemplo,estabeleciaquenenhumclérigodeveriaserpostonaprisão,ouvítimadeinjustiçacometidaporum
juizsecular.Osbisposconciliaresameaçavamcomaexcomunhãotodo
juizqueousasserepreenderoupôremprisãoumclérigosemantester
consultadoobispoaoqualoreferidoclérigoestavasubordinado:
“Quenenhumclérigo,pornenhummotivo,seja,semoexameporpartede
seubispo,vítimadainjustiçadeumjuizsecularoucolocadonaprisão.Seum
juizpermitetratardessemodooclérigodealguém,amenosquesetratede
umcrime,ouseja,homicídio,rouboemalefício,queelesejaafastadodosolo
daigrejaotempoqueobispodolugarjulgarnecessário”64.
ToursII(567).
LyonIII(v.570).
63
Ibid.
64
MâconI(581-583),c.7.
61
62
MarceloCândidodaSilva257
Osclérigoseramproibidosdeacusarseuscolegasdiantedeumjuiz
secular.Mas,ésobretudonoquetangeàsmedidastomadascontraos
judeusquesepodenotaratendênciadosbisposemlegislarsobretemas
queeramatéentãoomonopóliodaautoridadereal,comoanomeação
de funcionários. Eles proibiram, por exemplo, que os judeus fossem
nomeadosjuízes:
“Queosjudeusnãosejamdadoscomojuízesaopovocristãoequeelesnão
tenhamodireitodeserempreceptores,oquecolocariaoscristãossobseu
comandoenãoagradariaaDeus”65.
O episcopado burgúndio entrava em um domínio que pertencia
tradicionalmente à realeza e se colocava como fiador da retidão dos
“assuntospúblicos”.Essatendênciaseacentuounosconcíliosposteriores.OconcíliodeMâconII,ocorridoem585,é,dessepontodevista,o
maisambiciosodetodososconcíliosmerovíngiosdasegundametade
doséculoVI.OstemasdesenvolvidospelosbisposconstituíamumverdadeiroprogramaparaaRealezaCristã.Note-sequenopreâmbuloaos
cânonesdesseconcílio,osbisposnãofazemqualquermençãoaofato
dequeoreiosteriaconvocado.Aocontrário,elesdeixamclaroquese
reuniramporsuaprópriainiciativa:
“Éporissoquedevemostodosrezarincessantementeparaqueamajestade
doDeustodo-poderosoconservecomsuabondadehabitualasaúdedenosso
rei e nos conceda a todos nós que, membros de um só corpo, reunidos de
nossaprópriainiciativa,possamosrealizaroqueagradaàsuaserenidadeeà
suamajestade”66.
Ésurpreendentequeumconcíliopoliticamenterelevantecomoode
MâconIItenhapodidoserealizarsemumaconvocaçãoreal.Todavia,os
65
Ibid.,c.13.
MâconII(585),prefácio.
66
258 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
bispostomavamocuidadodeespecificarquesuaassembléiatinhapor
objetivorealizaraquiloqueagradavaaorei.Essamençãoaoreipoderia
salvarasaparências.Entretanto,aosecolocaremcomointérpretesda
vontadedorei,osbisposseoutorgavamumaresponsabilidadeeuma
autoridade públicas consideráveis, confirmando assim os princípios
expostosnoprimeiroConcíliodeMâcon:
“UmavezqueaindivisívelTrindadenosreuniu,tantodeespíritoquantode
corpo,emumasóassembléia,nósdevemoscomumasábiaprudênciaajudar
atodos,portemordequenossosilêncionosvalhaareprovaçãodaDivindade
eexponhanossossúditosàtentação”67.
Elesestabelecemcomomissãoajudaratodososhabitantesdoreino,
oquejustificamatravésdesuareponsabilidadediantedeDeus.Aidéia
dequeosbisposdevemprestarcontasàDivindadedasaçõesdeseurebanhoconstituiaprincipaljustificativaparaaingerênciadoepiscopado
nosassuntosde“interessepúblico”.Estamosbemlongedoespíritodo
primeiroConcíliodeOrléans,quandoosbispostinhamseremetidohumildementeaClóvisparaqueesteaplicasseasdisposiçõesconciliares,
inclusivenodomíniodaorganizaçãointernadaIgreja68.
O interesse público do qual os bispos de Mâcon II se afirmaram
comointérpretestinhaumsentidoprofundamentecristão.Noprimeirocânone,elesdefiniamaobrigaçãoderespeitarorepousoduranteo
domingo69.Osegundocânonetratavadaobrigaçãodetodososcristãos
celebrarem a Páscoa70. O quinto cânone estabelecia a necessidade do
pagamento do dízimo71. Em 585, os bispos estabeleceram regras cuja
amplitudeiaalémdolimiteestritodaorganizaçãohierárquicaedaadministraçãocotidianadaIgreja.Elesultrapassavamumlimitequeseus
67
Ibid.
OrléansI(511),Epistolaadregem
69
MâconII(585),c.1.
70
Ibid.,c.2.
71
Ibid.,c.5.
68
MarceloCândidodaSilva259
predecessores não haviam ousado transpor. O Concílio de Mâcon II
supõenãoapenasaexistênciadeumaRealezaCristã,mastrazconsigoo
projetodeumasociedadecristã,poisosbisposconciliaressecolocaram
comoguardiãesdosinteresses(utilitas)detodos.Essapalavrareveste-se
aquidomesmosentidoquetinhanosescritosepiscopaisdesdeoincício
doséculoVI:tratava-sedezelarpelobem-estarespiritualdoscristãos,
ouseja,pelasuasalvação.Aquiloqueosbisposdeveriamdefender,eque
éresumidopordoistemasprincipais,apazeasalvação,justificariasua
ingerêncianaconduçãodosassuntospúblicos,aconselhandoeinfluenciandoasdecisõesreais.
Umavezqueeraseudevercumpriressasduastarefas,osbisposnão
hesitavamemproclamarsuasuperioridadeperanteosiudiceseosoutros
representanteslaicosdaautoridadereal.Comparativamente,osconcílios
daprimeirametadedoséculoVInãoerammarcadosporessapreocupaçãodoepiscopadoemdefiniraconduçãodos“assuntospúblicos”:
“Enquanto sediavam juntos na cidade de Auvérnia, os bispos de vossas
igrejas,vossosfiéis,comoobjetivodereiterarosestatutoscanônicosedeelucidaraleieclesiásticaparaaquelesqueseacharassemoprimidospeladúvida
nacondutadesuavidapessoal,umamultidãomuitonumerosadepessoas
implorandoumremédioparaseudesesperoafluiuemvoltadenós”72.
NesseprimeiroconcíliodeClermont,de535,osbisposfixaramcomo
objetivoapenasreiterarosestatutoscanônicoseelucidaraleieclesiásticaparaaquelesqueseencontrassemoprimidospeladúvidanaconduta
desuasvidaspessoais.Háaquiumadefiniçãoclaradasprerrogativas
episcopais:aosbisposcaberiaatarefadeestabeleceradoutrinaecuidar
dasaúdemoraldeseurebanho.Nadatransparecedeuminteressepelos
“assuntospúblicos”.OqueseobservanoConcíliodeMâconIIéuma
extensãodasprerrogativasdoepiscopado:ointeressepúblicotorna-se
matériadeimplicaçãomoralereligiosa.
ClermontI(535),EpistolaadregemTheodebertum.
72
260 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Secompararmos,atítulodeexemplo,asmedidasdegovernodeChilpericocomasmedidastomadasporGontrão,épossívelobservaruma
diferençaquenãoselimitaaumsimplescontrasteentrea“crueldade”
doprimeiroea“bondade”dosegundo.Oqueosopõeantesdetudoéo
entendimentoquecadaumdelestinhasobreanaturezaeoexercícioda
autoridadereal.GontrãobuscounaIgreja,maisprecisamentejuntoao
episcopado,afonteprincipaldesualegitimidade.Éemseureinadoquese
podeobservaroenfraquecimentodecisivodesseelementocaracterístico
davidapolíticafrancaaomenosdesdeClóvis,istoé,apolíticadeimitatio
imperii.Esseenfraquecimentonãosignificouumabandonocompletoda
referênciaromanaedasrelaçõescomoImpério.Nãohavianenhumaescolhaexclusivaentre,porumlado,alegitimaçãoeclesiásticaouepiscopal
e, por outro lado, a legitimação pelos símbolos romanos. Os príncipes
francoscontinuaramarecorreraopassadoromano.GregóriodeTours
descreve,porexemplo,aentradatriunfaldeGontranemOrléans:
“TendoemseguidaabandonadoNevers,eleveioàcidadedeOrléansonde
semostrouemsuamajestadeaoshabitantes,poiseleiaasuascasasparaas
quais era convidado e participava dos banquetes que lhe eram oferecidos.
Tendorecebidodelesnumerosospresentes,eletambémlhesconcedeuvários
benefícios com uma bondosa generosidade. Ora, quando chegou à cidade
deOrléans,eradiadafestadobem-aventuradoMartinho,(...).Umaimensa
multidãodepessoasveioaoseuencontrocomestandartesebandeiras,cantandosuaslaudas”73.
A“entradatriunfal”deGontrãoemOrléanseraumacerimôniamais
cristãqueromana,apesardareferênciaaos“benefícios”concedidospelo
73
HistóriasVIII,1.Ver,aesserespeito,N.Gussone,“Adventus-ZeremoniellundTranslation
vonReliquien:VictriciusvonRouen,DelaudeSanctorum”,pp.125-133;sobreoAdventusdas
relíquiasdeSantoEstéfanoemBizâncio,verK.G.HolumetG.Vikan,“TheTrierIvory,AdventusCeremonial,andtheRelicsofSt.Stephen”,pp.113-133;vertambémS.G.McCormack,Art
andCeremonyinLateAntiquity,pp.15-89.
MarceloCândidodaSilva261
reieaofatodequeelesemostrouemmajestadeaoshabitantesdacidade
eparticipadodosbanquetesquelheeramoferecidos.Gontrãochegou
àcidadenodiadacelebraçãodeSãoMartinho,eissotinhaumsignificadoparticular.Umagrandequantidadedepessoasveioaoseuencontro,comestandartesebandeiras,cantandohinos.Ocortejorealeraao
mesmotempoumcortejoemhonradosanto.Oreifoiaclamadopelos
habitantes,entretanto,eissoéfundamental,elenãoeraopersonagem
centraldacerimônia,contrariamenteaClóvisem507.Eleparticipava
comoosoutroshabitantesdeToursdareverênciaaosanto.
OsanosquesucederamamortedeGontrãoforammarcadospor
uma atividade conciliar bastante fraca.A radicalização das lutas internas não favorecia a convocação desses concílios; além do mais, a
rainhaBrunilda,quemantinhaasrédeasdopodernaAustrásiaena
BurgúndiaatéoprincípiodoséculoVII,hesitavaemreunirumconcílio.EissoapesardospedidosrepetidosdopapaGregórioMagno.As
dificuldadesencontradasporeleoemsuasrelaçõescomospríncipes
merovíngiosforamimensas74.Opapanãoencontrounomundofran-
74
AbibliografiasobreGregórioMagnoéconsiderável.Nãoéocasoaquidefazerumadescriçãoexaustiva.Poderíamos,noentanto,citaralgumasobras.Temosinicialmentealgunsclássicos:Th.Bonsmann,GregorderGrosse.Einlebensbild;P.Battifol,SaintGrégoireleGrand;
C. Dagens, SaintGrégoireleGrand; sobre seu pontificado e sua atividade missionária, ver
H.Grisar,SanGregorioMagno(590-604);L.Bréhier,R.Aigran,GrégoireleGrand,lesétats
barbaresetlaconquêtearabe(590-754);E.Demougeot,“GrégoireleGrandetlaconversion
duroigermainauVIesiècle”,pp.191-203;G.R.Evans,TheThoughtofGregorytheGreat;
H. Chadwick,“Gregory of Tours and Gregory the Great”, pp.38-49; sobre sua doutrina, C.
Dagens,“SaintGrégoireleGrand,ConsulDei.Lamissionprophétiqued’unpasteur”,pp.33-45;
F.E.Consolino,“Ilpapaeleregine:poterefemminileepoliticaecclesiasticanell’epistolariodi
GregorioMagno”,pp.225-249;domesmoautor,“IdoveridelprincipechristianonelRegistrum
EpistolarumdiGregorioMagno”,pp.57-82;B.Judic,“GrégoireleGrandetsoninfluencesurle
hautMoyenAgeoccidental”,pp.09-32;D.V.Ribeiro,“AsacralizaçãodopodertemporalnaAlta
IdadeMédiaOcidental:GrégorioMagnoetIsidorodeSevilha”,pp.91-112.Umbomrepertório
bilbliográficosobreGregórioMagnofoipublicadoporR.Godding,BibliografiadiGregorio
Magno(1890-1989),(OperediGregorioMagno.Complementi,1);domesmoautor,vertambém,“CentoannidiricerchesuGregorioMagno:apropositodiunabibliografia”,pp.293-304.
262 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
co uma rede de representantes ou de correspondentes oficiais da Sé
Apostólica.
QuandooreiGontrãofaleceu,em592,ChildebertoIItornou-seo
reidaBurgúndia75.Amortedesseúltimo,quatroanosdepois,conduziu
àdivisãodeseuregnum,queconstituíamaisdetrêsquartosdaGália
merovíngia.Seusdoisfilhos,TeudebertoIIeTeudericoII,passarama
reinarrespectivamentesobreaAustrásiaesobreaBurgúndia76.Ambos
iniciaramhostilidadescontraClotárioII,cujoreinoestavareduzidoa
uma pequena porção das terras entre o rio Sena, o Oise e o canal da
Mancha77.Asdisputasentreosirmãosacabaramporabsorverquasetodasassuasenergiasdurantecercadeduasdécadas.TeudericoIIatacou
ematouTeudebertoII,em61278.Poucotempodepois,eleteriaperecido
tentandoderrotarClotárioII.Abandonadapelaaristocracia,Brunilda
foiassassinadaem613poresseúltimo.Pelaprimeiravez,desde558,o
RegnumFrancorumpassouasergovernadoporumsórei79.
OVConcíliodeParis(614)
OquintoconcíliodeParis,reunidoemoutubrode61480,foiamaior
reuniãoconciliardoperíodomerovíngio,nãosomentedopontodevistadonúmerodeparticipantes–deletomavampartedozebisposmetropolitanos,sessentaesetebisposeumabadevindodaInglaterra–,mas
tambémemrazãodostópicostratados81.Osbispospretendiamcorrigir
asfalhasnahierarquiaeclesiásticaaparecidasduranteasguerrascivis,
75
Fredegário,CrônicasIV,14.
Fredegário,CrônicasIV,16.
77
Fredegário,CrônicasIV,20.
78
Fredegário,CrônicasIV,27,37e38.
79
Fredegário,CrônicasIV,39-42.
80
A data do concílio é dada por um manuscrito do séculoVIII (Munique, Staatsbibl. Lat.
5508).
81
ParisV(614),pp.190-192.
76
MarceloCândidodaSilva263
mas,alémdisso,contribuirparaahomogeneizaçãodalegislaçãoeclesiásticanaGália.ClotárioII,ovencedordasguerrascivis,era,apósmais
desessentaanos,oprimeiroreifrancoagovernaraomesmotempoos
trêsregna.FoisobinspiraçãodeClotárioqueoconcílioocorreu:“...com
oconvitedenossogloriosíssimopríncipe,osenhorreiClotário...”82.
Osbisposinvocavamtrêsrazõesqueteriamorientadosuasdeliberações:ointeressedopríncipe,asalvaçãodopovoeaordemdaIgreja:
“...nós deliberamos aquilo que convinha mais apropriadamente, seja ao
interessedopríncipe,sejaàsalvaçãodopovo,sejaàquiloqueobservavapositivamenteaordemeclesiástica”83.Afórmulaéquaseidênticaàutilizada
pelosbisposduranteoConcíliodeLyonII(c.569-570),comadiferença
queessaúltimaomitiatodaequalquerreferênciaaointeressedopríncipe.OsbisposdeParisVpareciammuitomaispreocupadosqueemLyon
detudooquepoderiaconviràautoridadereal.Pode-sequestionarqual
osentidoeoalcancedessafórmulanamedidaemque,porexemplo,no
queserefereàseleiçõesepiscopais,osegundocânonedeParisVrecusou
todaingerênciadaautoridadereal.Osbisposescolheramaeleiçãopelo
cleroepelopovo,seguidadaordenaçãopelometropolitanoeseuscoprovinciais.Aquelesqueobtivessemafunçãoepiscopalporumavianão
previstanoscânonesteriamsuaeleiçãoinvalidada84.
TantoosbisposdeParisem614,comoaquelesdeMâconIIem585
acreditavam-sequalificadosparatraduzireexpressaraquiloqueerao
“interesse”dopríncipe,bemcomoo“interessepúblico”.Afórmulasobreointeressedopríncipenãoeraumaconcessãofeitaàrealeza:elaindicavaavontadedoepiscopadoemparticiparativamentedacondução
dosassuntosdoreinoedadefiniçãodoconteúdodautilitaspublica.
OsprimeiroscânonesdoVConcíliodeParistratavamespecialmentedoestatutodosbispos.Eleseramproibidosdeescolherseusucessor85
82
ParisV(614),prefácio.
83
Ibid.
84
ParisV(614),c.2.
85
ParisV(614),c.3.
264 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
ou de expulsar, sem razão canônica, um abade86.Ao mesmo tempo,
osbisposrecebiamgarantiastaiscomoaproibiçãoaosclérigos,qualquer que fosse sua dignidade, de recorrer ao príncipe ou aos poderososemdetrimentodeseussuperiores87.Issoasseguravaocontrole
doepiscopadosobreahierarquiaeclesiástica,comoemváriosoutros
concíliosdoséculoVI.Entretanto,oscânonesdeParisViamalémao
afirmar as prerrogativas episcopais em detrimento dos juízes laicos.
Eles proibiam a esses últimos de condenar um padre, um diácono
ou um outro membro da igreja contra a vontade de seu bispo88. Da
mesma forma, proibia-se aos bispos a possibilidade de resolver seus
conflitosdiantedeumiudex:elestinhamdebuscarojulgamentode
seusmetropolitanos89.
Noqueserefereàdefesadosbenseclesiásticos,osbisposdeParis
Vtambémpretenderamfazerprevalecersuavontadeemdetrimento
dospreceitosreaisedaautoridadedosiudiceslaicos.Ononocânone
determinavaqueaspossessõesquepertenceramaumclérigodefunto
nãopoderiamserreivindicadasporalguémquepossuísseumaautorizaçãorealouqueagisseemnomedeumiudex.Aquelesquecometeriamtaisatossãodesignados,comoaliásnoConcíliodeOrléansV,de
549,“necatorespauperum”(“assassinosdospobres”)90.Comofimdas
guerras civis, é natural que os padres conciliares quisessem pôr fim
àsconstantesviolaçõesdosbenseclesiásticos.Atravésdoscânonesde
ParisV,pode-seobservarqueoepiscopadotinhaampliadosuasprerrogativasemrelaçãoàprimeirametadedoséculoVI.ComonosconcíliosdeMâconIeII,osbisposreunidosemParis,em614,proibiram
86
ParisV(614),c.4.
ParisV(614),c.5.
88
ParisV(614),c.6.
89
ParisV(614),c.13.
90
ParisV(614),c.9.Odécimo,odécimo-primeiroeodécimo-segundocânonespreviamigualmentemedidasparaimpedirqueosbisposouosarquidiáconosseapossassemdosbensdos
clérigosmortos.
87
MarceloCândidodaSilva265
aosjudeusexercerqualquerfunçãopúblicaquelhesdesseautoridade
sobreoscristãos91.
Aindaqueainfluênciapolíticadoepiscopadonoiníciodoséculo
VIIfosseconsiderável,asmedidasporeledefendidasnemsempreeram
adotadaspelaautoridadereal,comoseveránocapítuloseguinte.Não
sepodeconfundirasexortaçõesconciliarescomasmedidasdegoverno adotadas pela autoridade real. Entretanto, o fato de que os bispos
tenham podido se exprimir em Paris, em 614, com tanta liberdade e
sobreumtalnúmerodetemas,testemunhaaevoluçãorealizadadesdeo
primeiroconcíliodeOrléans,em511.
DaRealezaconstantinianaàemergênciadoepiscopado
Asguerrasciviscoincidiramcomumperíododeimportantesmutaçõesnaculturapolíticaenasrelaçõesdepodernomundofranco.Esses
conflitoscontribuíramdedoismodosparaacristianizaçãodarealezae
danoçãodeutilitaspublica.Emprimeirolugar,ofimdasguerrascivis
significouaderrotamilitarepolíticadosúltimospartidáriosdaRealeza
Constantiniana.OassassinatodeChilpericoe,anosdepois,odeBrunilda,significaramaderrotadeumapráticadoexercíciodopoderreal
inauguradaporClóvisecontinuadaporseussucessoresimediatos.Em
segundolugar,apartirde550,houveumcrescimentoextraordináriodo
papel político do episcopado galo-franco. Os bispos, notadamente na
Burgúndia,tornaram-seatorespolíticosdeprimeiroplano.Elespropuseramaopoderrealumanovanoçãosobreexercíciodogovernoe,por
conseguinte,umnovafontedelegitimidade.
As guerras civis significaram, portanto, mais do que uma disputa
entredoisramosdadinastiareinanteporalgumasparcelasdeterritório
91
ParisV (614), c. 17: “Que nenhum judeu tenha a audácia de solicitar do príncipe que ele
exerçaumofícioouumcargopúblicoquelhedêautoridadesobreoscristãos.Seelesearriscar,
queelerecebacomtodasuafamília,dasmãosdobispodacidadeondeeleexerceuseuofícioem
contradiçãocomosestatutoscanônicos,agraçadobatismo”.
266 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
franco.Elastambémnãoeramsimplesmenteoresultadodoacirramentode“ódiosprivados”oqualopôsoreiChilpericoeseusdescendentes
àrainhaBrunilda.Paramostraroquantoasdisputasinterdinásticasnão
constituemnecessariamenteasfronteirasideaisparaquesecompreendamasbellaciviliadoReinodosFrancos,bastalembrarqueChilperico
eBrunildapossuíamambosumamesmapercepçãoconstantinianadas
prerrogativas da realeza. Se o primeiro deplorava o empobrecimento
dotesouropúblicoemdetrimentodosbispos92,asegundaexerceuum
poder sobre a Austrásia em nome de seu filho Childeberto II, e em
seguida em nome de seus netos Teudeberto II e Teuderico II, que se
chocavacomosinteressesdaaristocracia,sobretudopeloseucentralismoepeloexcessivofiscalismo93.ApósamortedeChilperico,Brunilda
permaneceucomooúltimoavatardeumpoderdeinspiração“mediterrânica”,ouemtodocasogalo-romana,ávidodepoderedesejosode
restaurarafiscalidadedireta94.Nãohaviaentreessesdoispríncipesum
dueloideológico,masumconflitodeinteresses,poiscadaumpretendia
garantiràssuasrespectivaslinhagensahegemonianoRegnumFrancorum.Aspráticasdegovernodeamboserammarcadasporumamesma
percepçãoconstantinianadopoder.Asclivagensquantoàsatitudesem
relação ao Império não separavam Chilperico e Brunilda, nem BrunildaeFredegonda,masChilpericoeGontrão,BrunildaeGontrão,e
finalmenteBrunildaeClotárioII.Deumlado,apolíticapró-bizantina
e“imperial” levada a cabo por Chilperico, mas também, e em menor
grau,porSigebertoeporChildebertoII,eporoutro,avia“nacional”
e episcopal escolhida por Gontrão, e em seguida por Clotário II; essa
viaconsistianumapolíticadecididamentehostilemrelaçãoaBizâncio
eàEspanhavisigótica.NoqueserefereaGontrão,queseencontrava
isoladonoplanoexterior,aescolhaqueseimpôsconsistiaembuscaro
92
HistóriasVI,46.
Fredegário,CrônicasIV,19.
94
VerJ.L.Nelson,“QueensasJezebels:theCareersofBrunehildandBathildinMerovingian
History”,pp.1-48;S.Lebecq,Lesoriginesfranques,p.119.
93
MarceloCândidodaSilva267
apoiodoepiscopado,eseuprojetopolíticoincluíaaparticipaçãodesse
grupo no governo do reino. Para Chilperico, ao contrário, tratava-se
deassegurarocontroleabsolutodoreisobreaadministraçãolocal,e
issoemdetrimentodosbispos.AviaescolhidaporSigeberto,etambem
por Childeberto II, era mais nuançada. Mesmo construindo alianças,
oracomaNêustria,oracomaBurgúndia,osaustrasianostentaramse
aproximardoImpério.OsherdeirosdeChilpericoforamosvencedores
dasguerrascivis.Porém,oprojetopolíticoqueencarnaramnãoerao
projetodeChilperico.ClotárioIIretomouasgrandeslinhasdapolítica
deGontrão,buscandooauxíliodaaristocraciaseculareespecialmente
aeclesiástica,oquelhepermitiuobterumavitóriadecisivasobreseus
rivais.ÉimportanteressaltarquesuavitóriasobreBrunildaeseusfiéis
somentefoipossívelcomoapoiodaaristocraciadaBurgúndia.
Aindaquesejadifícilestabelecerumarelaçãodecausaeefeitoentre
ambososfenômenos,énecessárioconstatarqueamudançadeatitude
dosreismerovíngiosemrelaçãoaosbisposfoiacompanhadadeuma
mutaçãonasrelaçõesdessesprimeiroscomoImpério.Mesmoapóso
fracasso da Reconquista de Justiniano, a presença militar imperial na
Itália prosseguiu até o século XI. Embora não tenha havido ruptura,
sinais de tensão apareceram entre o Reino dos Francos e o Império.
AscampanhasdaItália,nosanos540,opuserampelaprimeiravezas
tropas do Regnum Francorum ao exército imperial. Sob Teudeberto I,
houve um aumento da desconfiança na corte de Constantinopla em
relação aos reis francos, que queriam aparecer como os novos imperadoresdoOcidente.Procópioéumadasmelhorestestemunhasdessa
desconfiança.TeudebertoI,mesmomantendoapolítica“pró-imperial”
deseuspredecessores,levouatéumpontoinaceitávelparaoImpérioa
identificação com Roma. Uma identificação que se traduziu tanto no
domíniomonetárioquantonodomíniomilitarequeconsistiatambém
nareivindicaçãodeumaautoridadesobreoOcidenteetalvezmesmo
além–segundoorelatodeProcópio,eseconsideramosqueadescrição
feitaporTeudebertodesuaspossessõesnumacartaaoimperadornão
eraumsimplesexercícioretórico.Claro,nadaindicaqueTeudebertoI
tenhaefetivamenteconquistadotodososterritóriosquediziacontrolar.
268 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Entretanto,osimplesfatodereivindicá-losdiantedoimperadortestemunhaaextensãodaspretensõesdessereifranco.
DuranteasegundametadedoséculoVI,aincapacidadedosaustrasianosemintervireficazmentenaItáliacontraoslombardos,comopretendiaoimperadorMaurício,etambémopapaGregórioMagno,apenasfez
aumentaroabismoqueseparavaaGáliamerovíngiaeConstantinopla.
AscartasdeChildebertoIIedeBrunildamostrambemessamudançade
tom.AformarecorrenteadotadaparadesignaroImpérioerarespublica
–amesmaempregadaporGregóriodeTours95.Autilizaçãodessetermo
contribuiu para dissolver a hierarquia contida na noção de Imperium.
Estaexpressãoaparecesomentenascartasdenúmeros37e4396.NorestantedascartasreaisrepertoriadasnasEpistolaeAustrasicae,da29à39,
eda45à47,éotermorespublicaqueprevalece97.ApósJustiniano,os
95
HistóriasVI,30:“‘Eisquesintoterpreenchidootempodeminhavida;agora,devoescolhera
partirdeteuconselhoaquelequedeveráestaràfrentedarespublica’”.
96
EpistolaeAustrasicae,3,37:“Praecelsepotestativestraegenerosapraeconia,quaevostantum
extulerunt,divinitatepropitia,utdevestrogermineprocreareturfeliciter,quiguberaretimperia,
nobisprosperenuntiataprovocat,ut,quosaffectucolumus,missisetiamepistolisambiamus”.
97
EpistolaeAustrasicae,3,29:“…utdevestranoslaetificareincolomitatepraecipiat,quisingulorumdesideriaetsecretorumnovitarcana,significandumcuravimus,adserenissimumprincipem Romane reipublicae praesentium nos…”; Epistolae Austrasicae, 3, 30: “Tranquillitatis
vestraesupereminensdignitas,quaecursuprosperitatisvosextulit,rempublicamfelicissimeregere,
hortaturnosefficaciter,siChristidictumplacuerit,amicitiarumfoederapropagate”;Epistolae
Austrasicae,3,32:“…noveritbeatitudovestra,praesentiumlegatariosnostros,Dominoprosperante,adprincipemRomanereipublicaecausafutureconcordieetcommunisutilitatisprovidentiamdirexisse…”;EpistolaeAustrasicae,3,33:“…notitiaevestraedeferimus,nospraesentium
latores,legatariosnostros,communiproutilitateadtranquillissimumRomanereipublicaeprincipedirexisse…”;EpistolaeAustrasicae,3,34:“…cumtranquillissimoRomanereipubliceprincipe
caritatisstudiadeliberaveruntexcolere…”;EpistolaeAustrasicae,3,35:“…adtranquillissimum
principem Romane reipublice…”; Epistolae Austrasicae, 3, 36: “…ad tranquillissimum principemRomanereipublicaedevinctissimedestinasse…”;EpistolaeAustrasicae,3,37:“…causa
communis utilitatis studiosissime destinasse…”; Epistolae Austrasicae, 3, 38: “…presentium
legatariosnostrosadserenissimumprincipemRomanereipublicae…”;EpistolaeAustrasicae,3,
39:“…presentiumnostroslegatariosadclementiamserenissimiprincipisdistinasse,Romanam
rempublicamgubernantes”;EpistolaeAustrasicae,3,45:“…etperhocinternosetRomanam
MarceloCândidodaSilva269
reismerovíngiosbuscaramconstruirrelaçõesmenoshierárquicascom
umImpérioquenecessitava,aliás,deseuapoiomilitarcontraaameaça
lombarda.NoConcíliodeOrléansV,em549,osbisposdesignavamorei
comoprinceps,oqueconstituiprovavelmenteumindíciodequeviam
neleochefedaIgrejadaGália,nolugardoimperador98.
OmovimentodescritopelaRealezafrancaduranteasegundametadedoséculoVIpodeserdefinidocomoumaespéciede“marchapara
oOcidente”,semelhanteàquelaqueopapadoentamousobGregório
Magno.DamesmaformaqueaIgrejadeRomaconseguiuvencersua
desconfiança em relação às monarquias ocidentais, os reis merovíngios“descobriram”aIgrejafrancaeseuepiscopado.Primeiradentre
ostriaregnaarompercomapolíticadeimitatioimperii,aBurgúndia
foitambémpioneiranaconstruçãodeumaRealezaCristã,nofinaldo
séculoVI.NoReinodosBurgúndios,jánaépocadeGondebaldo,no
rempublicam sit diuturnae pacis et quietis fructus, non terminus”; Epistolae Austrasicae, 3,
46: “…iuxta votum Romanae reipublicae vel sacratissimi patris nostri imperatoris in Italiam
direximusadversumgentemLangobardorumrelegioniacfideiiniquissimaeperfidam”;Epistolae
Austrasicae,3,47:“…perquivestrumculmenRomanamrempublicamlongafeliciter…”.
98
OrléansV(549):“Eisoporquê–nomomentoemquenossoclementíssimopríncipe[princeps]
esenhormuitoinvencívelnahonradeseustriunfos,oreiChildeberto…”.Ver,aesserespeito,
K.F.Werner,“La notion de princeps”, pp. 162-163. Fustel de Coulanges acredita que foi em
539 que os reis francos romperam as relações de subordinação em relação ao Império. Ele
retiraoargumentoquejustificaessaafirmaçãodaVitaS.Treverii,queafirmaque,em539,
osreisfrancos,deixandodeladoosdireitosdoImpérioenãolevandomaisemconsideração a soberania da Res publica romana, governaram a Gália em seu próprio nome (VitaS.
Treverii,Bouquet,t.III,p.411:“QuumGalliarumFrancorumquereges,sublatoImperiijure
et postposita reipublicae dominatione, propria fruerentur potestate…” – citado por Fustel de
Coulanges, L’invasiongermaniqueetlafindel’Empire, p. 511, n. 1).É verdade que nessa
épocaascampanhasdeTeodebertoInaItáliacontribuíramparaadegradaçãodasrelações
entre os francos e o Império. Entretanto, há um exagero em se falar em ruptura. É o que
mostramasrelaçõesepistolaresentreacortedeMetz,sobChildebertoIIeBrunilda,eoImpério,damesmaformaqueasdiversasembaixadasenviadasàConstantinoplapelospríncipes
francos durante a segunda metade do século VI. Sobre a política externa do Império, ver,
por exemplo, E. Chrysos,“Byzantine diplomacy, A.D. 300-800: means and ends”, pp.25-39.
270 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
iníciodoséculoVI,oepiscopadojádemonstravabastanteautonomia
emfacedopoderreal,comomostraoconcíliodeEpaone(517).As
práticasconstantinianasdossucessoresdeClóvisdevemterrepercutidonegativamenteentreosbisposburgúndios,paraquemoreinadode
Gontrãorepresentavaoreforçodesuasposiçõestradicionais.Ébom
lembrarquenoConcíliodeOrléans,queconsagrouapolíticaconstantiniana de Clóvis, não havia nenhum bispo da Burgúndia. GontrãoencontrounoepiscopadoumafontedelegitimidadequeClóvis,
Teudeberto I e Chilperico haviam buscado na imitatio imperii e na
tentativadecontrolaraIgreja.Apolíticaabertamenteantiimperiale
“antivisigótica” do rei burgúndio aliou-se com o fortalecimento do
papelpolíticodosbispos.
Éevidentequeasguerrascivisbeneficiaramaaristocracialaicae
a aristocracia eclesiástica da Gália, na medida em que esses grupos
puderamampliarsuainfluênciadiantedasdivisõesdopoderreal.DuranteasegundametadedoséculoVI,osgrandesdoreinoexerceram
umpapelbemmaisimportantenoRegnumFrancorumqueduranteos
períodosprecedentes.AsminoridadesdeChildebertoII,deClotário
II,deTeudericoIIedeTeudebertoIIproporcionaramaessesgrupos,
umaexperiênciaímpareapráticadoexercíciodopodernostriaregna.DuranteaprimeirametadedoséculoVI,essefenômenohaviasido
maisraro.
Isso não significa que as aristocracias galo-francas irromperam
subitamentenavidapolíticadoReinodosFrancos.Aimagemde“servidores”queusurparamopoder,consagradapelohistoriadoralemão
P.-E.Fahlbeck,ébastantecaricatural.Alémdisso,aidéiadeumalonga
eimplacávellutaentreosgrandeseorei,entreospodereslocaiseo
poder central, que necessariamente conduziu à vitória do primeiro,
econseqüentementedo“Feudalismo”,éumacriaçãodoshistoriadoresmodernos.Aaquisiçãoporpartedosbisposgalo-francosdeum
estatuto político de primeira ordem não pode ser assimilada à uma
“revoluçãoaristocrática”ouaum“golpedeEstado”.Emváriostrabalhos sobre a Gália merovíngia, o final das guerras civis, em 613,
teriacoincididocomoiníciodapreeminênciadasaristocraciassobre
MarceloCândidodaSilva271
o poder real99. Essa data marcaria, segundo os autores dessas obras,
umarupturanahistóriafranca,omomentoapartirdoqualasprerrogativasreaisteriamcomeçadoatornar-semaisemaisreduzidasatése
dissolveremdiantedaascençãodosgrandesproprietáriosdeterras.As
guerrascivissãomuitasvezesjulgadascomosetivessemacentuadoo
caráterpatrimonialdarealezafranca.Muitoocupadossedigladiando,
ospríncipesfrancosteriamacabadopordeixaradireçãodogoverno
nas mãos dos altos funcionários, que teriam, de uma maneira bem
maisradicalqueantes,tratadooreinocomosefosseumbemprivado.QuantoaosreisdoséculoVII,sobretudoapartirdeDagoberto,
desprovidos de vigor moral e intelectual, bem como de atitudes governamentais,teriamperdidoopoucoquelhesrestavada“autoridade
pública”.
Nãosedeveexageraroalcanceda“politização”,oumelhor,doaumentodaimportânciapolíticadasaristocracias,nessasegundametade
doséculoVI.Éamelhormaneiradeseevitarumaleituraesquemática
daevoluçãodaautoridaderealfranca,queconsisteemdividirahistória
política da Gália merovíngia em duas fases: a primeira, de Clóvis até
ClotárioII,ounomáximo,Dagoberto,marcadaporumpoderrealilimitado;easegunda,dametadedoséculoVIIatéadeposiçãodoúltimo
merovíngio,ChildericoIII,porPepino,oBreve,marcadapelotriunfoda
aristocraciaepeloenfraquecimentodopoderreal.Algunshistoriadores
explicaramessamutaçãopela“revoluçãoconstitucional”queteria,em
614,conduzidoaaristocraciaaoápicedopoder,emdetrimentodeuma
autoridaderealenfraquecidapordécadasdeguerrascivis100.
99
É o que sustentaram no final do século XIX os historiadores alemães P.-E. Fahlbeck (La
royautéetledroitroyalFrancspendantlapremièrepériodedel’existenceduroyaume)eG.
Waitz(DeutscheVerfassungsgeschichte,t.II,p.215).
100
EssaéaopiniãodeP.-E.Fahlbeck(LaroyautéetledroitroyalFrancs,p.208).Éinteressanteressaltarqueosautoresquesustentamessepontodevistasãoquasesempreosmesmos
aconsiderarogovernomerovíngiocomoumamonarquiaabsoluta.Trata-sedemostraroano
de613,oanodavitóriadeClotárioIIsobreBrunilda,eoanode614,odapublicaçãodoedito
deParis,comopontosderupturanahistóriapolíticadoregnumFrancorum:exercendo-seaté
entãosemlimites,opoderrealteriasetornadooprisioneirodaaristocracia.
272 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Acristianizaçãodaautoridadepúblicaentreosfrancoséumprocesso
pordemaislongoecomplexoparaserreduzidoauma“datafundadora”.
Podemos, por outro lado, identificar o momento em que essa mutação
(queumlongoprazomodificouasrelaçõesentreopoderrealeosbispos,
etambémentrearealezaeasociedade)setornouvisível.Issoocorreucom
aascençãodoepiscopadonasegundametadedoséculoVI.Apartirdessa
época,vêem-secadavezmaisosbisposinterferindo,comoconsentimento
real,navidapolíticadoRegnumFrancorum.Nocontextodaadministração
local,elesadquiriramcertapreeminênciaemfacedoscondescomosquais
tradicionalmentedividiamogovernodascivitates.Oequilíbriodeforças
tornou-sedetalmododesfavorávelaosiudicesque,nofinaldoséculoVI,a
nomeaçãodelesestavasubmetidaàaprovaçãodosbisposemcadacidade.
Porvoltadessemesmoperíodo,asgrandesreuniõesconciliares,comoasde
MâconouadeParis,em614,tratavamcadavezmaisdetemasqueeram
atéentãooapanágiodaautoridadereal.Emfacedasdesordenscausadas
pelasguerrascivis,oepiscopadofoichamdoaexercerumpapelpolítico
deprimeiraordem.Paraosreis,nãosetratavamais,comonoregnumde
Chilperico,deopor-seaosbisposeàsuainfluência,masdeassociá-losàs
suasdecisões.Énessecontextoqueosbispospuderaminspirarumaprática
cristãdoexercíciodopoder.Aautoridaderealnasegundametadedoséculo
VInaBurgúndia,enasprimeirasdécadasdoséculoVIIemtodaaGália,
erapermeávelàsinfluênciasideológicasdoepiscopado:nessesentido,os
reismerovíngiosforamperfeitamentecapazesdeconstituirumasociedade
políticaorientadaparaarealizaçãodautilitaspublicanosentidocristão,ou
seja,paraasalvação.
Tornando-seatorespolíticosdeprimeiraordemnoregnumFrancorum,osgrandesdoreino
acabaramporconfiscaraosreismerovíngiosasubstânciadesuaautoridadepolíticadurante
o séculoVII (Ibid. pp. 211-212: “É o velho e o novo tempo; é a antiga e verdadeira realeza
merovíngia, com suas tradições e suas pretensões, colocada em presença de uma realeza nova,
nascida no meio de novas condições sociais e políticas. Traída e abandonada por todos, a velha rainha morre de uma morte ignóbil e cruel, e todo um sistema de governo desce com ela
ao túmulo. O período de governo pessoal e de poder absoluto e não disputado dos reis é substituídopeloregimedosprefeitosdopalácioeporumpoderrelativamenteimpotente.Aaristocraciavenceu,earealezaseviuforçadaacurvaracabeçadiantedeseusprópriosservidores”).
CapítuloIII
Alegislaçãorealfrancaeacristianização
dautilitaspublica
OseditoseospreceitosreaismerovíngiossãoosmelhorestestemunhosdastransformaçõesnautilitaspublicaentreosséculosVIe
VII.AlegislaçãorealdasegundametadedoséculoVIcontrastacom
aquelaqueaprecedeunotocanteànaturezaeàextensãodasobrigaçõesdopríncipeemrelaçãoaosseussúditos.Oobjetivodestecapítulo
éodeanalisar,atravésdealgunspreceitoseeditos,aemergênciade
umanoçãocristãdeutilitaspublica,queassociavaoatodegovernar
a um conjunto de deveres morais em relação aos governados. Tais
deveresseconsubstanciaramnacriaçãodecondiçõesparaasalvação
doshabitantesdoRegnumFrancorum.Buscar-se-á,igualmente,tecer
algumasreflexõessobreainfluênciadacristianizaçãodautilitaspublicanaperenidadedadinastiamerovíngiaatéaprimeirametadedo
séculoVIII.
274 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
AlegislaçãorealnaprimeirametadedoséculoVI
OtextodoprólogodaLexBaiwariorum,queseencontraigualmente
naLexRipuaria,descrevecomooreiTeudericoIescolheuhomenssábios
queconheciamasantigasleis,ecomosobsuaorientaçãoelesescreveram
aLeidosfrancos,aLeidosalamanoseaLeidosbávaros.Otextoprecisa
queoreitomouocuidadoderealizaressatarefaconformeocostume
decadanaçãoqueestavasobseugoverno.Elelembratambémqueorei
acrescentouaquiloquesedeviaacrescentar,mudouaquiloquedeviaser
mudado,tendoocuidadodemodificar,segundoospreceitosdaleicristã,
aquiloqueeraconformeaocostumepagão1.Aliás,oempenhodopríncipeemimporosprincípiosdafécristãemdetrimentodaspráticaspagãs
pontuatodoodocumento.Teudericopretendiaqueaspráticasreligiosas
doshabitantesdoRegnumFrancorumfossemfundadasnospreceitoscristãos,livresdetodoresquíciodepaganismo.Afédoshabitantesdoregnum
deveriaseconformaràfédeseuprinceps.Essaformadeingerêncianos
assuntosreligiososéumaconstantenalegislaçãorealmerovíngianoséculoVI:encontramo-lanoPreceitodeChildebertoI,noEditodeGontrãoe
noDecretodeChildebertoII2.Aparticipaçãodopríncipenasatividades
deevangelizaçãoémuitomaisumaherançadoImpérioRomanotardio
doqueumacriaçãodaRealezaCristã.Masonderesideaoriginalidade
dessaúltima?SehouveduranteoséculoVIumacristianizaçãodautilitas
publica, é porque não somente os reis francos se tornaram cristãos ou
queosfrancossetornaramtambém,mas,sobretudo,porqueosprimeiros
aceitaramoprincípiodaparticipaçãodosbisposnosassuntospúblicose
porqueemseusatosdegovernoessespríncipesincorporaramanoção
1
LexBaiwariorum,Delegibus,pp.201-203.
Odécimo-quartocapítulodoDecretodeChildebertoII,porexemplo,proibiatodaforma
de trabalho durante os domingos (ChildebertiSecundiDecretio 7, c. 14: “Deo die dominico similiter placuit observare, ut si quiscumque ingenuus, excepto quod ad coquendum vel ad
manducandumpertinet,aliaoperaindiedominicofacerepraesumpserit,siSalicusfuerit,solidos
quindecimcomponat;siRomanus,septemetdimidiumsolidi.Servusveroauttressolidosreddat,
autdedorsumsuumcomponat”.
2
MarceloCândidodaSilva275
segundoaqualafinalidadedaautoridaderealéfavorecerasalvaçãodas
almas.ObatismodeClóvisnãosignificouautomaticamenteacristianizaçãodetodososfrancos.Comefeito,nãosedeveconfundirosatosdos
príncipesmerovíngiosquetinhamporobjetivoextirparaspráticaspagãs
emfavordafécristã,comaconcessãodeumpapelpolíticoaoepiscopado
ecomafundamentaçãodoatodegovernarnanecessidadedesalvaras
almas–elementosqueestãonocernedaRealezaCristã.
ObatismodeClóvis,aconversãodosfrancoseacristianizaçãoda
utilitas publica são três fenômenos distintos, muito embora estreitamenteligados.Oprimeirodeles,quefoiacompanhadopelaconversão
deumapartedoexércitofranco,marcouumatransformaçãonolugar
dafécristãnaGáliafranca,muitomaisdoqueumamudançanoestatuto oficial da Igreja católica. Os clérigos já gozavam de privilégios
devidos ao seu estatuto de membros da administração pública. Eles
eram funcionários que se tornaram indispensáveis ao funcionamento
do aparelho de Estado, pelo menos desde a época romana. A grande
transformaçãotrazidapelobatismodeClóvisdiziarespeitoaoestatuto
dafécristã;elaeraapartirdeentãoareligiãooficialdoRegnumFrancorum.Éessenovoestatutoquepermitiuacristianizaçãodosfrancos.
Umadasconclusõesquesepodetirardesseúltimofenômeno,queainda
permaneciainacabadonaépocadeGregórioMagno3,équeelenãofoi
3
SobreacristianizaçãodaGáliamerovíngia,verJ.Imbert,“l’influenceduchristianismesurla
législationdespeuplesFrancsetGermains”,pp.365-396;K.F.Werner,“Lerôledel’aristocratie
danslachristianisationdunord-estdelaGaule”,pp.45-73;hátambémocolóquiodeNanterre,
intituladoLaChristianisationdespaysentreLoireetRhin(IVe-VIIesiècle);R.Butzen,Die
Merowinger östlich des mittleren Rheins: Studien zur militärischen, politischen, rechtlichen,religiösen,kirchlichen,kulturellenErfassungdurchKönigtumundAdelim6.sowie7.
Jahrhundert,especialmentep.32;etambém,A.Dierkens,“Superstitions,christianismeetpaganismeàlafindel’époquemérovingienne.Aproposdel’Indiculussuperstitionumpaganiarum”,
pp.9-26.SobreacristianizaçãodaEuropaOcidentalnofinaldaAntigüidade,verA.H.M.Jones,
“TheSocialBackgroundoftheStrugglebetweenPaganismandChristianity”,pp.17-37;P.Brown,
“AspectsoftheChristianizationoftheRomanAristocracy”,pp.1-11;G.Crifo,“Romanizzazione
ecristianizzazione.Certezzeedubbiintemadirapportotracristianieistituzioni”,pp.75-106;J.M.Carrié,A.Rousselle,L’EmpireromainenmutationdesSévèresàConstantin,pp.665-679.
276 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
somente o resultado dos esforços dos bispos, como se pôde observar,
aliás, no documento anteriormente mencionado. Teuderico I, como
outrospríncipesmerovíngiosantesdele,nãomediuesforçosparacombateroselementospagãoseparafazercomqueseussúditosaceitassem
eseguissemospreceitoscristãos.
Entretanto,seaidéiadoreidefensordaféestavapresentenaatividade
legislativamerovíngianaprimeirametadedoséculoVI,aautoridadereal
nãotinhaincorporadoaidéiadeumgovernoconformeosprincípios
moraisenunciadospelosbispos.Oreisepreocupavaunicamentecomas
“reminiscênciaspagãs”,ouseja,comaefetividadedaconversãodeseus
súditos,damesmaformacomooimperadorcristãozelavapelacorreção
daféedadoutrinadosromanos.Asingerênciasdosprimeirosreisfrancosnoprocessodeevangelizaçãoeramfortementemarcadasporuma
percepção“constantiniana”quantoàsobrigaçõesdopoderreal.
ÉnesseespíritoqueChildebertoIpublicouumpreceito,quefoipreservadoincompletoecujadataprecisapermanecedesconhecida:
“Aquicomeçaaepístoladenossoclementíssimoebem-aventuradoreiChildeberto,dadaàsigrejasepiscopaiseatodoopovo.Nósacreditamosque,favorecendo-nosDeus,serábomparanossarecompensa(eterna)bemcomoparaa
salvaçãodopovo,seopovocristão,tendorenunciadoaocultodosídolos,servir
aDeus,aquemprometemosumaféexclusiva,comoElenosinspirou.E,porque
énecessárioqueopovo,quenãosegueospreceitosdosbisposcomosedeve,
sejacorrigidotambémsegundoNossaautoridade,decretamosqueessaepístola
sejaenviadaatodososlugares[noreino].Ordenamosquetodososhomensque,
umavezadvertidosquehaviaemsuasterrasimagenseídolosconsagradosaos
demôniosecriadospeloshomens,nãoexpulsaremimediatamenteouimpediremosbisposdeosdestruírem,nãoserãolibertadosaindaquedêemcauções,
antesdevirememNossaPresença.AmaneiracomoainjúriafeitaaDeuspor
essessacrílegosserávingadacabeanósdecidir,porquenossafé,comoobispo
pronunciadoaltar...tudooquefoianunciadopeloEvangelho,osprofetaseo
ApóstolonamedidaemqueDeusnosdáacompreensão.Noqueserefereao
culto,certasqueixaschegamaténóssegundoasquaisopovocometemuitos
sacrilégios,pelosquaisDeuséofendidoequeconduzemaspessoasàmortepelo
MarceloCândidodaSilva277
pecado:noitesinteiraspassadasnabebedeira,nadançaenocanto,mesmonos
diassantosdePáscoa,daNatividadedoSenhoreoutrasfestas[eclesiásticas].Ou
ainda,quandochegaodomingo,sãoosdançarinosquevãodançandodedomínioemdomínio.NósproibimostodasessascoisaspelasquaissabemosqueDeus
éofendido.Qualquerumqueapósaadmoestaçãodosbisposou(aproclamação
de)NossoPreceito,ousarcometeressessacrilégios,seeleéumservo,ordenamos
queelerecebacemchicotadas.Seeleélivreoudeestatutohonorável[orestante
dodocumentofoiperdido]…”4.
Oobjetivoprincipalmencionadopelotextoéocombateàspráticas
pagãs.Nessatarefa,oreiatuacomooúnicoresponsáveldiantedeDeus
peloestadomoraldeseureino,poisinterpelaoepiscopadosobreesse
tema5. Childeberto I não pretende em seu preceito forçar a aceitação
4
ChildebertiI.RegisPraeceptum,2,pp.2-3.OsCapitulariaMerowingicasãoumconjuntode
novetextosoriginalmenteescritosentreoiníciodoséculoVIeoiníciodoséculoVII,queforamreunidoseeditadosnofinaldoséculoXIXporA.BorétiusnosMGH.Éprecisoressaltar,no
entanto,queotermo“capitulário”,empregadoparadesignaressesdocumentos,éumaescolha
deliberadadoeditorenãocorrespondeaovocabuláriomerovíngio.Estetermoaparecepelaprimeiravezemumatooficialde779(Ganshof,Recherchessurlescapitulaires,p.3).Alémdisso,a
reuniãoemummesmovolumedosMGH.dostextosquecompõemosCapitulariaMerowingica
seexplicamuitomaisporumaescolhadeliberadadeBorétiusdoqueporumacoerênciainterna
dessesdocumentos.Senãovejamos:oprimeirotextoafigurarnessaseleçãoéumacartadeClóvisaosbispos,escritaporocasiãodoConcíliodeOrléans,em511.Osegundotexto,seguindoa
ordemestabelecidaporBorétius(comotítuloIncipitepistolaclementissimietbeatiregisnostri
Childeberti,dataperecclesiassacerdotumvelomnipopulo),éumpreceitomutiladodeChildeberto
I(511-558);oterceiroéumpactoestabelecidoentreesseúltimoeClotárioI(511-561),chamado
Pactusprotenorepacis;oquartotextoéumeditodeChilperico;oquinto,umeditodeGontrão,
publicadoporocasiãodoConcíliodeMâcon,em585;osextotextoéumtratadoassinadoem587
porChildebertoIIeporGontrãonacidadedeAndelot;osétimoéumdecretodeChildebertoII,
de596;hátambémumpreceitoqueBorétiusatribuiaoreiClotárioII(584-613).Finalmente,há
umeditodeClotárioII,publicadoporocasiãodoConcíliodeParis,de614[M.CândidodaSilvae
M.MazettoJunior,“ARealezanasfontesdoperíodomerovíngio(séculosVI-VIII)”,pp.89-119].
5
Há,naVitaCesarii,umretratobastanteotimistadaatitudedeChildebertoIemrelaçãoà
Igreja(II,45,p.499):“…efoienquantoele[Cesário]assumiaessatarefasagradaqueseestabeleceu,graçasaDeus,enãoemrazãodesuatraição,comoacusamosarianos,massimplesmente
278 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
dafécristãpelospagãos,masextirpartudooqueéincompatívelcom
ocomportamentodoscristãos6.Tambémnãosetratadecolocarcomo
objetivoúltimodapolítica“antipagã”arealizaçãodasalvação.Opreceitoafirmasomentequeagraçadoreieasalvaçãodopovosomente
poderiam ser alcançados se esse último abandonasse a adoração dos
ídolos.Emseupreceito,ChildebertoIjustificasuaposiçãopelopesode
suaautoridade,muitoemborareconheçapartilharsuaresponsabilidade
comosbispos:“E,porqueénecessárioqueaspessoas,quenãoseguemos
preceitosdosbisposcomosedeve,sejamcorrigidastambémsegundoNossa
autoridade...”(grifo nosso).Ao mesmo tempo, essa afirmação realça a
insuficiênciadoepiscopadoemlevarabomtermosuatarefadeadmoestação,poisaspessoasnãoseguiriamospreceitosdosbispos“comose
deve”.Opríncipeassume,assim,adireçãodocombateàsreminiscências
pagãs:eleagecomoochefesupremodaIgrejafranca,seuprinceps,no
sentido“constantiniano”dotermo.Childebertoseestimaigualmenteo
únicoresponsáveldiantedeDeuspelocomportamentodeseussúditos,
oúnicointerlocutordaProvidênciadivina:“Nósproibimostodasessas
coisaspelasquaissabemosqueDeuséofendido”.ComomostraoConcílio
deOrléansV,de549,Childebertonãohesitouemimporsuavontade
aosbispos,tantonoquediziarespeitoàseleiçõesepiscopais,quantoem
matériadedoutrina.Provadissoéotítulodeprincepsqueosbisposlhe
atribuem,fatosemprecedentesnahistóriamerovíngia.
pelassuasoraçõescontínuas,oreinadocatolicíssimodogloriosíssimoChildeberto,emnome
doCristo,paraacalmaeatranqüilidadedacidadedeArles;esserei,docecomfirmeza,velavacomrigor,eminentecomhumildade,nãodominandopeloterrorospadresdosenhor,mas
ligando-osaelepelorespeito;mesmodominandotudonasGálias,eleeraigualatodosnaIgreja,
reconhecendooprivilégiodaCidadedoaltoentreoshomens”.Ootimismodoautordevia-se
notadamenteaofatodequeacidadedeArlestinhaacabadodeserlivradadadominaçãodos
godos,equeospadresesperavamdosfrancoscatólicosmuitomaisdoquedosgodosarianos.
6
VerK.F.Werner,“Lerôledel’aristocratie”,pp.56-57,n.29.Efetivamente,váriostextosatestamasobrevivênciadepráticaspagãsnaGáliamerovíngia.OprimeirocânonedoConcíliode
MâconII(585),porexemplo,atacouaquelesque“sãocristãosapenasdenome”.Emumacarta
àrainhaBrunilda,datadade597,opapaGregórioMagnomanifestouseudescontentamento
pelaidolatriadosfrancos,econvidaarainhaacombatê-la(Reg.VIII,4).
MarceloCândidodaSilva279
OConcíliodeOrléans,em533,doqualparticiparamosbisposdo
reino de Childeberto I, estabeleceu a expulsão da Igreja daqueles que
tinhamretornadoaocultodosídolosouàsoutraspráticaspagãs:
“Queoscatólicosquenãopreservamintactaagraçadobatismorecebido
eretornemaocultodosídolos,ouaquelesqueseaprazemaburlaruminterdito, usam alimentos imolados ao culto dos ídolos, sejam excluídos das
assembléiasdaIgreja”7.
Apenaprevistapeloconcílionãoiaalémdeumasançãoeclesiástica.OPreceitodeChildeberto,noentanto,ameaçavacomprisãoecom
castigos corporais aqueles que persistissem na idolatria.A autoridade
real se dispunha assim a utilizar a força contra as infrações às regras
canônicasqueosbisposeramincapazesdepunir.Elanãoagiasimplesmenteemcomplementoàautoridadedosbispos,masseimpunhaao
episcopado,determinandoocaminhoaserseguidoparaapuniçãodos
pecadoresereprovandoafaltadeseveridadedoepiscopadoemmatéria
decombateàidolatriaeàssuperstiçõespagãs.
OtomdostextosreaisdasegundametadedoséculoVIésensivelmentediferentedaqueleadotadopelopreceitodeChildebertoI.Ostrês
documentosquemelhorilustramessamudançadeatitudedarealeza
diantedoepiscopadosão:oEditodeGontrãoedoisoutrostextoslegislativos,umeditoeumpreceito,ambosgeralmenteatribuídosaClotário
II.Essestextosassociavammuitomaisdiretamenteaautoridaderealà
realizaçãodasalvaçãodasalmas.
OEditodeGontrão
O primeiro ponto a ser ressaltado no Edito de Gontrão são as
condiçõesnasquaiselefoiredigido,em585nacidadedeMâcon.Sua
7
OrléansII(533),c.20.
280 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
publicação serviu para ratificar as medidas que tinham sido discutidaseaprovadaspelosbisposreunidosnamesmacidadepoucotempo
antes:“Essascoisasquedecretamosnesseeditodevemserperpetuamente
observadas, pois no santo sínodo de Mâcon, como vós sabeis, buscamos
definir aquilo que publicamos agora segundo a declaração presente”8. A
proximidadecomoIIConcíliodeMâconnãoestáapenasnaforma.O
editoreforçadecisõesquehaviamsidotomadaspelosbisposconciliares,
comoaobrigaçãodeseguardarrepousonosdiassantos:
“NósdecretamosnessaleigeralqueduranteosdiasdoSenhor,nosquais
nóshonramosomistériodaSantaRessureiçãoeduranteoutrosbanquetes
quandoaspessoasestãohabitualmentereunidasnaigreja,nenhumtrabalho
físicodeveserfeito,salvooqueénecessárioparaprepararaalimentação”9
OEditodeGontrãodesenvolveumtemaqueapareceváriasvezesno
discursodosautorescristãos,aconexãoentrearealizaçãodajustiçaea
vontadedivina:
“NóscremosqueoAutordaMajestadeDivina,pormeiodequemtodas
ascoisassãodirigidas,estarásatisfeitoseasregrasdejustiçasãoobservadas
entrenossopovoequeEle,oPaiPiedosoeoSenhor,quesemprepreservou
afragilidadehumanaatravésdeSuaajuda,aceitaráconcederasnecessidades
entreaquelesqueElesabequemantêmseusmandamentos”10.
Paraorei,aestabilidadeeaprosperidadedeseureinodependeriam da realização da justiça. Entretanto, a justiça não é vista aqui
comoumvaloremsi,umprincípioabsoluto.Emseusentidocristão,
elaéapenasummeiodeatingirumobjetivomaior:“Emconseqüência,
enquantonósdeliberamosparaaestabilidadedenossoreinoeasalvação
8
GuntchramniRegisEdictum,5.
Ibid.
10
Ibid.
9
MarceloCândidodaSilva281
denossopovo…”11.Gontrãocolocaexplicitamentecomoocentrode
gravidadedesuaaçãoarealizaçãodessatarefaespiritual.Eisonovo
sentido da utilitas publica na Gália merovíngia a partir da segunda
metadedoséculoVI:tratava-sedegarantiraestabilidadedoreinode
formaasealcançarasalvação.
Éaprimeiravez,sobosmerovíngios,queumdocumentorealestabeleciaasalvaçãodasalmascomooobjetivoúltimodaatividadedegoverno.
OpreceitodeChildebertoImencionavaigualmenteasalvação.Adiferençaessencialencontra-senaformaenosmeiosalocadosparaseatingir
esseobjetivo.OEditodeGontrãoprevê,comocondiçãopreliminarpara
arealizaçãodasalvação,umacooperaçãocrescenteentreaautoridadereal
eoepiscopado.Oautordoeditosecontentaemrepetir,resumindo-as,as
decisõesconciliares,mas,sobretudo,dandoaelasforçadelei.Aautoridaderealnãoiaalémdoquehaviasidoprevistopelosbispos.Emnenhum
momentoemseuedito,Gontrãorecriminavadiretaouindiretamenteaos
bispossuaincapacidadedecolocarumtermoàspráticaspagãs.Elereconhecia as responsabilidaes e as prerrogativas da realeza nesse domínio.
Pode-semesmofalardeuma“responsabilidadepartilhada”.Aosbispos,
cabiacorrigiropovopelaoraçãoegoverná-loscomacaridadepastoral:
“Conseqüentemente, é a vós, os bispos mais santos, a quem a clemência
paternaldeDeusdeuvossoofício,quenossodiscursoéinicialmenteendereçado,naesperançadequeestudareisparacorrigiraspessoasqueaProvidênciaDivinacolocousobvossaresponsabilidadepelospecadosfreqüentese
governá-loscomacaridadepastoral.Assim,quandotodososhomens,amandoajustiça,tentamviverhonestamente,aboavontadecelestepodeconceder
atranqüilidadeeasalvaçãodetodososhomens.E,aindaqueaoraçãoseja
notadamentedevossaresponsabilidadesemqualqueroutraadmoestaçãode
nossaparte,nósacreditamosquedividisospecadosdeoutrossenãocorrigir
assiduamenteasfalhasdevossosfilhos,masaspassaisemsilencio”12.
11
Ibid.
Ibid.
12
282 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Oreidirige-seemprimeirolugaraosbispos.ÉaelesqueaDivina
Providênciateriaconcedidoatarefadeguiarespiritualmenteopovo.O
governantenãopossuíamais,comoeraocasonopreceitodeChildebertoI,omonopóliodessamissãoconfiadaporDeusequedizrespeitoà
pazeàsalvaçãodoreino.Aresponsabilidadedaautoridaderealseriade
umaoutranatureza.ResponsávelperanteDeuspelogovernodopovo,
oreidevetomarmedidasqueconvenhamparaqueaordemeajustiça
triunfem:“Paraquenadadissoaconteçaanós,aquemaautoridadedo
ReiSupremodeuopoderdereinar,parasubtrair-sedeSuaCólera,senós
nãonospreocuparmosdopovoquenosestásubmetido”13.
Acomplementaridadeentreosbisposeosiudiceseraexpressaem
umsentidoprofundamentegelasiano:
“Masvós,osbisposapostólicos,juntando-vosavossoscompanheirospadres,osfilhosmaisvelhosdaIgrejaeosjuízeslocaisequalquerumquevós
sabeisqueahonestidadedavidaorecomendacorrigiropovocomorações
constantesparaqueaexortaçãomísticapossafazerprogrediraboacorreção
pastoral,possatrazerdevoltaaobomcaminhoaquelesquesedesviam,para
quetodospossamjuntosseesforçarparaviverjuntosepreservaraunidade
eajustiça,equeaSantaIgrejapossarecebercristãoslivresdetodasujeirado
pecado”14.
“Éapropriadoqueajustiçaeaeqüidadesejamaplicadasemtodasascoisas
equeapuniçãolegaldosjuízesajasobreaquiloqueaspregaçõescanônicas
dosbisposnãocorrigiram”15.
Aorei,caberiaatarefadereinarsobreopovo,enquantoosbispos
deveriamcuidardaoração.Comosepodeobservar,nãofoicomClóvis
queodualismogelasianoseafirmounoRegnumFrancorum,massob
oreinadodeGontrão.OdualismogelasianoaparecetambémnoEdito
13
Ibid.
Ibid.
15
Ibid.
14
MarceloCândidodaSilva283
deGontrãoquandosedefinemasatribuiçõesrespectivasdosbispose
dosiudiceslaicos.Oreiafirmaqueocastigoaplicadopelosiudicesdeve
atuarnasinstânciasemqueasexortaçõesepiscopaisnãosurtamefeito
algum:
“Todososjuízesseesforçarãoemfazerjulgamentosjustos,queagradema
Deus,paraquenãohajanenhumadúvidaquenossasentençacondenarámais
rapidamenteaquelesquenãojulgaramconformeaeqüidade.Osjuízesnão
poderãocomandarouenviarrepresentantesàsregiõesconsagradasaosque
exercemajustiçavenaloupilharoqueésuaresponsabilidade”16.
À primeira vista, a necessidade de submeter a justiça secular aos
preceitoscristãosparecereafirmarasuperioridadedoepiscopado.Entretanto,háigualmenteumaadmoestaçãodirigidaaosbispos:
“Quandooseclesiásticostransgridem,comomaioréareverênciaquelhes
édevidapeloamordeDeus,elesdevemsermaisbruscamenterepreendidos.
Sesantospastoresoujuízes(queDeusproibe!)tentamesconderoscrimes
deseussúditosaoinvésdelhesrestringir,elespodemsaberqueelesserão
culpados”17.
OreipedeaosbisposqueelesnãoescondamoscrimesdeseussúditoseinvocaagranderesponsabilidadedosprimeirosdiantedeDeus.Da
mesmamaneiraqueosreis,osbispossãoreconhecidoscomointerlocutoresprivilegiadosdaProvidência.Esseeditoéprovavelmenteomais
importantedocumentorealquetratadadivisãoderesponsabilidades
entrearealezaeoepiscopado.Nãoéumexageroafirmarqueesseedito
marcaoprelúdiodaRealezaCristãentreosfrancos.Comele,estamos
emumuniversoondedominam,maisdoqueemqualqueroutrotexto
legislativoanterior,ascaracterísticastípicasdaRealezaCristã.Oprincí-
16
Ibid.
17
Ibid.
284 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
piogelasianodasuperioridademoraldopodereclesiásticoapareceaqui
nitidamente.Maisimportanteainda,elemostraumreipreocupadoem
adaptarsuacondutacomogovernanteàvontadedeDeusesegundoos
preceitosdosbispos.ParaqueumreiagradeaDeus,eledevemantera
iustitia,tendoconsciênciaqueomalpodeseencontraremtodososlugares.Opecado,inerenteaohomem,estarianaorigemdascalamidades
terrestres.
O rei encontra-se estreitamente ligado ao seu povo. Mais do que
umaescolhadeliberada,essaproximidadeévistanoeditocomouma
obrigação: “Nós também, a quem a autoridade do rei celeste confiou a
funçãodegovernar,nãopoderemosevitarsuacólerasenósnãomostramos
nenhuma solicitude em relação ao povo que está submetido a nós”18. O
reicompartilhacomosbisposaresponsabilidadediantedeDeuspela
condutadeseussúditos.Issofazcomqueasoluçãoparaoproblemadas
transgressõesàsregrascristãssejadupla:elarepousaporumladona
pregaçãoenacorreçãoasseguradaspelocleroe,emcasodefracasso,no
rigordalei,canônicaousecular.Quandooepiscopadoéincapaz,pela
forçadaoração,dereconduziraobomcaminhooshabitantesdoreino,
opoderrealintervémcomalei.
OPreceitodeChildebertoIétambémmarcadopelaidéiaqueaautoridaderealdeveatuarnosdomíniosenassituaçõesnasquaisaautoridade
moraldosbisposeraimpotente.Entretanto,eessaéadiferençaessencial,
noEditodeGontrãoacooperaçãonãonasceapenassobosignodaresponsabilidadedoreiperanteDeus,elaresultadeumavisãocristãquanto
ànaturezaeosobjetivosdopoderreal.Nãovemosnadadissonopreceito
deChildebertoI:oreiintervémparasuprirumadeficiênciadosbispos,
emaisimportanteainda,suaaçãonãoparecetersidoguiadaporuma
crençanacapacidadedopoderrealemcristianizarasociedade.Opoder
ageemdefesadafécristã,maseleéapenasogládioqueseimpõeaospecadores.Nadamaisqueisso.NoEditode585,arealezaafixacomoobjetivo
declaradodeconduzirtodososseussúditosaamaraiustitiaeaviverhonestamente,edissoresultariamdoisbensessenciais:oprimeiro,deordem
18
Ibid.
MarceloCândidodaSilva285
terrestre,seriaapaz,eosegundo,asalvação.Ostextosreaismerovíngios,
notadamenteapósaprimeirametadedoséculoVI,nãocessaramdeevocarapazcomovaloraserperseguidonaatividadedegoverno.Amenção
àpazcomoobjetivoúltimodoexercíciodaautoridadepolíticaécompreensívelnesseperíodomarcadoporconflitosendêmicos.Entretanto,esta
paz,bemcomoaprópriaiustitia,nãoconstituiumvaloremsimesma;ela
évistacomoumacondiçãopréviaparaasalvaçãodasalmas.
OepicentrodaRealezaCristãsobosmerovíngiosnasegundametadedoséculoVInãoestánaresponsabilidademoralcompartilhadaentre
osreiseosbisposemrelaçãoaopovo,massimnapercepçãodequeo
poderrealatuadiretamente,eemestreitacolaboraçãocomoepiscopado,narealizaçãodaSalvação.Ofundamentodalegitimidaderealnãose
encontrasomentenosatributosdosangue,tampouconaúnicaconcessãodebensmateriais,mastambém,etalvezsobretudo,nesseministério
exercidopeloreicomaajudadosbispos.Otemadasalvaçãotornou-se
maisemaispresentenalegislaçãomerovíngiaapartirdofinaldoséculo
VI;eelenãoserestringiuapenasàBurgúndia.NoiníciodoVII,quando
otemadoreiaserviçodasalvaçãoaparecenoeditodeClotárioII,ele
abrangeoRegnumFrancorumcomoumtodo.
OEditodeClotárioII(614)
Alguns dias após o quinto concílio de Paris, Clotário II publicou
um edito cujas disposições confirmavam, especificavam e em alguns
casosmodificavamoscânonesquetinhamsidodiscutidospelosbispos
conciliares.Emseupreâmbulo,oEditocontinhaumafórmulaquese
endereçavaatodoopovo,masdeixaclaroqueelefoipublicadodurante
aassembléiadosbisposreunidosemParis:“Osatosouconstituiçõesdo
Ilustrepríncipe,oreiClotário,paratodoopovonaassembléiadosbispos
reunidosnoSínododeParis”19.
19
ChlotariiII.Edictum,9.
286 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Essasmotivaçõestambémestãopresentes,emaisclaramenteainda,
nadeclaraçãoquesegue:
“Não há nenhuma dúvida de que a felicidade de nosso reino cresce e o
favordivinoserevelamaisemais,senósnosesforçamosemnossotempoem
preservarinvioladotudoissoque,comagraçadeDeus,foidecidido,resolvidoeordenadoemnossoreino.Nóstambémdecidimos,comoCristocomo
protetor,corrigirgeralmentepelocontidodenossodecretotudoaquiloque
foi decididoe instituído contra a ordemda razão, paraque nofuturo não
aconteçaqueDeussedesviedenós”20.
Oreiapresentacomoobjetivopreservarainviolabilidadedosatos,
dosestatutosedosdecretospublicadossobinspiraçãodivina,mastambém pretende reformar, sob os auspícios do Cristo, tudo o que tinha
sidofeitocontraodireitoearazão,demodoaimpedirqueosmesmos
errosfossemcometidosnofuturo.Nãosetratavasomentedemodificar
aspráticaspagãsconformeosprincípiosdafécristã,comoproclamava
oPreceitodeChildebertoI.OqueoEditodeClotárioIIpropunhaera
uma“reformacristã”dasociedadeedosmecanismosdegoverno.Seriam
reformuladastodasasdisposiçõespresentesnospreceitosenoseditos
anterioresqueentrassememcontradiçãocomumaratiocujanatureza
profundamentecristãéreveladaaolongodotexto.
As medidas previstas por esse edito diziam respeito ao clero, aos
grandeslaicos,bemcomoaoconjuntodoshabitantesdoRegnumFrancorum.Paralelamenteaseuobjetivo“reformador”,oEditodeClotárioII
tinhapretensõesmaisconservadoras:mantereconfirmarasdisposições
dosreisprecedentes:“Tudooquenossosparentesquereinaramantesde
nós,ounósmesmos,concederamconformealeieautorizaram,seráconfirmadoemtodosossentidos”21.Emsualegislação,ClotárioIIadotouos
princípiosmoraisqueosbisposhaviamproclamadonoVConcíliode
20
Ibid.
ChlotariiII.Edictum,c.16.
21
MarceloCândidodaSilva287
Paris.Aratiodesseeditonãoéoutrasenãoadoutrinamoralquefazdo
soberanooresponsáveldiantedeDeuspelapazepelajustiça:“Quecom
aajudadeCristopossareinarsempreapazeaordempúblicaemnosso
reinoepossamarebeliãoeaaltivezdohomemmauseromaisseveramentereprimidas”22.Oeditoconfirmavaigualmenteumasériedemedidas
doconcíliodeParisVqueoutorgavamaoclero,emaisprecisamenteao
episcopado,privilégiossignificativos.Eleproibiaaosclérigoscontornar
aautoridadedeseusbisposparaapelaraoreiouaumgrandedoreino:
“Seumeclesiásticodequalquergrau,desprezandoseubispoouignorando-o,decidedirigiraopríncipeouaosfuncionáriospoderosos(potentiores)
ouaqualqueroutrapessoaparapedirseuapoio,elenãodeveserrecebido,
amenosqueelebusqueoperdão.Eseporalgumarazãoeleseaproximado
príncipeeretornaaseubispocomumacartadessepríncipe,queelesejaacolhidoedesculpado.Equeaquelesquepretendemretê-loapóseleterrecebido
umavisodeseubispo,sejamexcomungados”23.
Diantedosiudices,osclérigosobtêm,comopretendiam,umprivilégiodejurisdição:nenhumiudexpodiareteroucondenarumclérigo,
salvosenãohouvessenenhumadúvidasobresuaresponsabilidade.Para
osclérigosculpadosdeumcrimecapital,cabiaaosbisposjulgá-lose
aprisioná-losconformeoscânones.
Nenhumjuiz,qualquerquesejaseugrau,poderájulgaroucondenarde
suaprópriavontadeclérigosemprocessostemporais(civilescausae),salvo
nasquestõescriminais,[e]amenosqueoclérigonãosejamanifestadamentereconhecidoculpado;padresediáconosestãoisentos.Aquelesque
sãoreconhecidosculpadosdeumcrimecapitaldevemfazersuasprovas
conformeoscânonesedevemserjulgadosempresençadosbispos24.
Nocasodeumprocessoentreumoficialdopoderrealeumhomem
daIgreja,osiudicesdevemjulgaroassuntonumaaudiênciapúblicaem
22
ChlotariiII.Edictum,c.11.
ChlotariiII.Edictum,c.3.
24
ChlotariiII.Edictum,c.4.
23
288 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
colaboração com os decanos da Igreja25. O clero é também responsável
peladefesadoslibertosdiantedaspossíveisdemandasdofisco26.Clotário II confirma o cânone de ParisV que proibia aos judeus o exercício
de qualquer autoridade sobre os cristãos. Ele ameaçava com uma pena
prevista pelos cânones aqueles que ousassem infringir essa regra27. Da
mesmamaneiraquenoVConcíliodeParis,hánoEditodeClotáriouma
medidaquevisavagarantirainviolabilidadedasvirgens,dasviúvasedas
religiosas28.Alémdomais,garante-seaosfiéiseaosleudes,queperderam
suaspossessõesduranteasguerrascivis,restituiçãodaquiloquelheshavia
sidosubtraído29.
OEditodePariscomporta,alémdisso,medidasemfavordo“interessegeral”,quepreviam,porexemplo,queseopopulusprotestassecontra
umnovataxa,essadeveriaserobjetodeumainvestigaçãoporparteda
autoridadereal30.Garantia-setambémqueaspossessõesdasigrejas,dos
padresedospobresquenãopoderiamporelesserdefendidas,deviam
serdefendidaspelos iudices31.Entretanto,seriaprecipitadoconsiderar
esseeditocomoomarcodotriunfodosbispossobrearealeza32.Ébem
verdadequeoeditonãoconstituiumconjuntodedecisõesarbitrárias
tomadassomenteemvistadavontadedorei.Emseuúltimoartigo,o
Editopretendequeasdisposiçõesforamtomadaspeloreiemconselho
sinodal,comaparticipaçãodospreladosedosgrandesdoreino:
25
ChlotariiII.Edictum,c.5.
ChlotariiII.Edictum,c.7.
27
ChlotariiII.Edictum,c.10.
28
ChlotariiII.Edictum,c.18.
29
ChlotariiII.Edictum,c.17.
30
ChlotariiII.Edictum,c.8.
31
ChlotariiII.Edictum,c.14.
32
ÉoquesustentaG.Waitz:paraele,emParis,em614,aaristocraciaafirmousuavitóriasobre
aRealeza,apresentandoaoreiumasériededisposiçõesqueasseguravamsuaautonomia;ele,
porém,nãotinhaoutraalternativasenãoratificar,dadasuafraqueza(DeutscheVerfassungsgeschichte,p.215).
26
MarceloCândidodaSilva289
“Sealguémtentarviolarestaresolução,quenósredigimoscomosbispos
juntamentecomnossosgrandeshomensecomdiscípulosleaisemumaassembléiasinodal,acondenaçãoàmortedeveserdeclaradacontraele;assim,
outrosnãocometerãoamesmaviolação”33.
Noentanto,aformacomoocorreramasdeliberaçõesnãosignifica
queoeditosejaumaespéciede“constituição”arrancadaàrealezapela
aristocracia. Clotário II não concedeu aos bispos todos os privilégios
queelesdesejavam.Oeditoapresenta,nessesentido,algumasdiferenças
notáveisemrelaçãoaoscânonesdoVConcíliodeParis:
“Foi decidido que os regulamentos canônicos devem ser mantidos em
todososaspectoseaquelesqueforamtransgredidosnopassadodevemser
mantidos.Quandomorrerumbispo,apessoaquedeveserordenadaemseu
lugarpelometropolitano,juntamentecomosbisposprovinciais,seráescolhidapelocleroeopovo.Seforumapessoadigna,seráordenadoconformea
ordemdorei.Seforescolhidonopalácio,evidentemente,deveserordenado
emrazãodoméritodesuapessoaedesuaformaçãoreligiosa”34.
Noqueserefereàseleiçõesepiscopais,orei,emboraaceiteoprincípiodaordenaçãopelobispoMetropolitanoepelosbisposdaprovíncia,
mantémodireitodeescolherentreoscandidatosaquelequeeleconsideraomais“digno”.Oeditoprevêatémesmoapossibilidadedessaescolha
serfeitaentreosmembrosdaadministraçãoreal.Todavia,ofatodeos
bispos terem inspirado o Edito de Clotário II, ou ainda disporem de
inúmerasprerrogativasnaadministraçãoreal,nãosignificaquetenham
tomadopossedogoverno.ARealezaCristãnãoésinônimoderegime
“hierocrático”, ou “governo dos bispos” (Bischofsherrschaft), segundo
noçãoconsagradapelahistoriografiaalemã.Oeditoilustramuitobem
oequilíbrioqueClotárioIIconseguiuinstaurarnofinaldasguerrasci-
33
ChlotariiII.Edictum,9,c.24.
ChlotariiII.Edictum,c.1.
34
290 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
vis.EletinhasebeneficiadodoapoiodasaristocraciasdaAustrásiaeda
Burgúndia.GraçasàsmanobrasdeArnoul,bispodeMetz(c.611-641)
edePepino(t.640),chefedaaristocraciaaustrasiana,eleinvadiucom
sucessoaAustrásia,em61335.Comofimdosconflitos,aautoridadereal
permaneciaaprincipalforçadoreino,eissoapesardasconcessõesfeitas
àaristocracia.Éoquepodeserobservadoatravésdeduasmedidasprevistaspeloeditode614.Primeiramente,osgrandeseosclérigoseram
obrigadosaresponderàsconvocaçõesdosiudices36.Emsegundolugar,
osgrandeseramadmoestadosemrelaçãoaosrouboseàviolênciade
seusagentes37.Aautoridaderealnãoperdeusuasprerrogativas.Aocontrário,aRealezaCristãconsolidou-as:aoreicabiapromoverajustiça,
manteraordemeapaznoreinocomvistasàsalvação.
OPreceitoatribuídoaClotárioII(618?)38
De todos os nove textos dos Capitularia Merowingica, o Preceito
atribuídoporA.BorétiusaClotárioIIéoquecolocaomaiornúmero
deproblemasdedataçãoedeinterpretação.
MontesquieuatribuiuessepreceitoaClotárioII(584-628),ecom
issocontrariouoseruditosdesuaépoca,quepensavamtratar-sedeum
textodeClotárioI.Montesquieuenumeratrêsargumentosparajustificarseupontodevista.Oprimeirodeleséqueumdosmanuscritosdo
preceitomenciona,nocapítulo11,queoreiteriaconservadoasimunidadesoutorgadasàsigrejasporseupaieseuavô:
35
Fredegário,CrônicasIV,40.
ChlotariiII.Edictum,c.15.
37
Ibid.,c.20
38
Otextodessepretextofoiconservadoemdoismanuscritos,otexton°1(segundoaterminologiadeA.Borétius)encontra-seemParis,naBibliothèqueNationaledeFrance(man.latino
S.-Germain, 936, 12097 – manuscrito de Corbie). O texto n° 2 encontra-se igualmente na
BibliothèqueNationaledeFrance(ms.latino10753,antigosuplementolatino215).
36
MarceloCândidodaSilva291
“Agraria,pascuariaveldecimasporcorumecclesiaeprofideinostraedevotioneconcedemus,itautactorautdecimaturinrebusecclesiaenullusaccedat.
Ecclesiaevelclericisnullamrequirantagentespublicifunctionem,quiavivel
genetorisnostriimmunitatemmeruerunt”(grifonosso)39.
Ocapítuloacimatratadaconcessãopeloreiàsigrejasdoproduto
dosdízimosagrícolaseosdaspastagensdeporcos,etambémproíbe
osagentesdofiscodereclamaremimpostosdosbensdasigrejas.No
caso das igrejas que tivessem recebido imunidades do pai e do avô
dorei,osagentesdofiscoficariamproibidosdeexigiraparticipação
dosclérigosemtrabalhospúblicos.Ora,afirmaMontesquieu,“quais
imunidades teria sido capaz de conceder às igrejas Childerico, avô de
Clotário I, que não era cristão e que viveu antes que a monarquia tivessesidofundada?”40.Seguindoesseraciocínio,oautordopreceito
somentepoderiaserClotárioII,cujoavô,ClotárioI,teriaconcedido
benefíciosàsigrejasparaexpiararesponsabilidadepelamortedeseu
filho41.OsegundoargumentodeMontesquieuéqueosabusosqueo
preceito queria corrigir, isto é, as medidas arbitrárias do poder real,
foramcaracterísticasdomeioséculoqueseseguiuàmortedeClotário
I;issosignifica,paraele,queopreceitosomentepoderiaserdeClotárioII42.OterceiroeúltimoargumentodeMontesquieuéquenão
39
PraeceptioChlotariiII(Ms.latino10753,fol.87,antigosuplementolatino215):“Nósconcedemosàsigrejas,pelafédenossadevoção,osdízimosagrícolasbemcomoosdepastagens
dosporcos,demaneiraqueosagentesdofisconãopoderãoseaproximardosbensdasigrejas.
Osagentesnãopoderãorequererasigrejas,oumaisprecisamenteosclérigos,paraasfunções
públicas,osquaisobtiveramasimunidadesdenossosavósepais”.Ooutromanuscritomencionaaexpressão“...quiavivelgenetorisautgermaninostriimmunitatemmeruerunt”,que
podemostraduzirpor:“...osquaisobtiveramasimunidadesdenossospaisounossosirmãos(ms.
latinoS.-Germain,936,12097–manuscritodeCorbie).
40
Montesquieu,Del’espritdeslois,XXXI,2,p.366.
41
GregóriodeToursdescreveoassassinatodeChramn,filhodeClotárioI,porordemdesse
último.EnolivroVI,capítulo46,obispodeToursafirmaque“Masnãoháindíciodequeas
concessõesàsigrejastenhamdecorridodoarrependimentodorei”.
42
Montesquieu,Del’espritdeslois,XXXI,2,pp.366-367.
292 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
haveria,soboreinadodeClotárioI,otipodequeixasqueestãosendo
contempladasnopreceito.
Asopiniõesquantoàautoridadedessepreceitocontinuaramdivididas
noséculoXIX:C.VonSavigny43,bemcomoE.Lehuërou44,acreditavam
queelenadamaiseraqueumaconstituiçãodeClotárioI,publicadapor
voltade560.P.-E.Fahlbeck,emseuobratraduzidanaFrançaem1883,
seguiuaopiniãodeMontesquieu,eatribuiuopreceitoaClotárioII45.O
debatecontinuouaolongodoséculoXX.M.Bloch46atribuiuopreceitoa
ClotárioI,enquantoG.Tessier47vianessetextoumaobradeClotárioII,
opiniãocompartilhadaporP.Riché48eporJ.Gaudemet49.Algunsautores
vêem nesse preceito um projeto de decretos elaborado pelos bispos da
Aquitâniaequeconstituiriaoprogramadoconcíliode61450.G.Kocher
afirmaqueodocumentodatadoprincípiodoreinadodeClotárioII,por
voltade58451.I.Woll52naAlemanha,eWallace-Hadrill53,naInglaterra,
acreditamquesetratadeumpreceitodeClotárioI.AtualmentenaFrança,
aidéiaqueessepreceitofoipublicadoporClotárioItemváriosadeptos.
Éocaso,porexemplo,deO.Guillot54edeM.Rouche55.
43
F.C.vonSavigny,GeschichtedesrömischenRechtsimMittalalten,pp.59-60.
J.-M.Lehuërou,Histoiredesinstitutionsetdugouvernementdesmérovingiens,p.412.
45
PraeceptioChlotariiII.
46
M.Bloch,“LaconquêtedelaGauleromaineparlesroisfrancs”,pp.166-168.
47
G.Tessier,Diplomatiqueroyalefrançaise,p.3ess.
48
P.Riché,Educationetculturedansl’Occidentbarbare,p.497,n.462.
49
J. Gaudemet,“Survivances romaines dans le droit de la monarchie franque duVe au Xe
siècle”,p.149-286,especialmentep.157.
50
M.Handelsmann,“Lesoi-disantpréceptede614”,p.121;O.Pontal,Histoiredesconciles
mérovingiens,p.205.
51
G.Kocher,“PraeceptioChlotariiII”,p.1851.
52
I.Woll,“UntersuchungenzuÜberlieferungundEiginartdermerovingischenKapitularien”,
pp.17-29.
53
J.M.Wallace-Hadrill,TheLong-HairedKings,p.194.
54
O. Guillot,“La justice dans le royaume Franc”, pp. 673-676; ver também O. Guillot, A.
Rigaudière,Y. Sassier, PouvoirsetinstitutionsdanslaFrancemédiévale,I,Desoriginesà
l’époqueféodale,p.76.
55
M.Rouche,Clovis,p.194;emsuaTesesobreaAquitânia,M.Rouchevianessepreceitouma
petiçãodosbisposaquitânios(L’AquitainedesWisigothsauxArabes,p.501,n.181).
44
MarceloCândidodaSilva293
Guillotobservaqueumafrasecontidanaversãodeumdosmanuscritos–omaisantigo,oBNms.lat.12097–fazreferênciaaimunidades
concedidasanteriormenteporirmãosdorei:“...quiavivelgenetorisaut
germani nostri immunitatem meruerunt” (grifo nosso), o que significaria que o rei em questão era Clotário I, pois Clotário II não teve
nenhumirmãoquetenhachegadoareinar.Elesustentatambémque
atranscriçãomaisantigadessedocumentodatadofinaldoséculoVI,
oqueexcluiriatodapossibilidadedequeseuautortenhasidoClotário
II56. Esse primeiro manuscrito citado por O. Guillot não é levado em
contapeloeditordoséculoXIX,A.Borétius,queconsideraaexpressão
autgermanicomoapócrifa57.
ParaM.Handelsmann,emumartigopublicadoem1926,omais
antigodostextosconservadosnemsempreéomaispróximodotexto
primitivo, e o texto mais correto não é necessariamente o texto autêntico58. Através de uma análise paleográfica dos dois manuscritos,
Handelsmannsustentaqueomanuscriton°1,aquelequeO.Guillot
consideraráanosmaistardecomoautêntico,aindaquesejaumacópia
contemporânea ou muito próxima do original do preceito, conteria
alterações deliberadas do sentido primitivo do texto. O manuscrito
n° 2, mesmo sendo uma cópia tardia do século X, seria o mais fiel
ao modelo primitivo59. A adição da expressão aut germani no texto
n° 1 – sobre o qual O. Guillot funda sua argumentação – seria uma
tentativadeaumentaronúmerodebenfeitoresdaIgreja,oumesmo
uma modificação do sentido do texto primitivo, visando atribuí-lo
deliberadamenteaClotárioI60.O.GuillotjulgaasafirmaçõesdeHandelsmann“aberrantes”,esustentaqueosfoliosobreosquaisopreceito
emquestãofoitranscritopertenciamaocodexoriginal,cujaelabora-
56
O.Guillot,“LajusticedansleroyaumeFranc”,pp.673-674,n.63en.64.
PraeceptioChlotariiII,p.19.
58
M.Handelsmann,“Lesoi-disantpréceptede614”,p.124.
59
Ibid.,p.127.
60
Ibid.,p.128ess.
57
294 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
çãodeveterocorridopoucodepoisde57361.Comosepodeobservar,
adiscussãosobreaautoridadedessepreceitoestálongedeencontrar
umasoluçãoconsensualentreoshistoriadores.
Emquepesemessasdivergências,há,noentanto,consensoquanto
àinfluênciadoBreviáriodeAlariconaelaboraçãodotextoaquianalisado. Tanto os defensores da hipótese sustentada por Montesquieu,
quanto aqueles que acreditam tratar-se de um preceito de Clotário I,
reconhecem que alguns trechos do breviário publicado pelo rei visigodoAlarico,porvoltade506-507,foramretomadospeloredatordo
preceitoemquestão.ComobemlembraO.Guillot,ocapítulo9,bem
comoalgumaspassagensdopreâmbulodessepreceito,inspiram-seem
umanoveladeValentinianoIII62.O.Guillotquerdemonstrarqueseo
preceitofoipublicadoporClotárioI,issosignificariaqueClóvisadotou
oBreviário,provavelmenteapóssuavitóriasobreAlarico.Noentanto,
ainfluênciadoBreviárioéevocadaporoutrosautoresparasustentara
hipótesedequeopreceitopertenceaClotárioII.S.Esders,porexemplo,
acreditaqueainfluênciadoBreviárioresultadodesfechodasguerras
civis,quandoaBurgúndiafoiintegradaaosregnagovernadosporClotárioII.Esderspretendemostrarqueopreceitofoipublicadoporesse
últimoem616,depoisdeeletersetornadooúnicoreidosfrancosede
terconseguidoafirmarseupodersobreaBurgúndia63.Essatambémé
aopiniãodeK.Kroeschell64.UmadasrazõesapresentadasporEsders
61
O.Guillot,“LajusticedansleroyaumeFranc”,p.674,n.64:“Orilsetrouveque,contrairementauxaffirmationsàcoupsûraberrantesdeM.Handelsmann...onalapreuvequelesff.
169-170,surlesquelsaététranscritnotreacte,loind’avoirétéajoutésaprèscoupau‘codex’comme
cetauteurl’acru,constituentlesdeuxderniersfeuilletsduquaterniond’origine,numérotéXXII
exactementdelamêmemainquelesquaternionsXXIeXXIII(voir,respectivementlesff.170v°,
162v°,178v°).Ilfautdoncconclurequenotreactefaitpartied’unensembledontl’élaboration,par
ailleurs,tendraitàétrerapportéeauVIesiècle,peuaprès573”.
62
O.Guillot,“LajusticedansleroyaumeFranc”,p.676.
63
S. Esders, Römische Rechtstradition und merowingisches Königtum. Zum RechtscharakterpolitischerHerrschaftinBurgundim6.und7.Jahrhundert,pp.105-108.
64
K.Kroeschell,“RechtundGerichtindenMerowingischen‘Kapitularien’”,pp.746-748,pp.
760-761.
MarceloCândidodaSilva295
paradefiniropreceitocomouma“leiburgúndia”,équeosdoismanuscritosnosquaiselefoiconservadofaziampartedaLexBurgundiorum.
Ele também fundamenta sua hipótese em uma análise minuciosa das
correspondênciasentreaLeiromanadosburgúndioseopreceito65.Em
suma,aatestadainfluênciadoBreviáriodeAlariconãoéumelemento
decisivo para se atribuir o preceito a Clotário I ou a Clotário II. No
entanto, uma investigação sobre a natureza e as especificidades dessa
influênciaseráútilparasublinharolegadodoDireitoromanonaGália,
mastambém,comoseveráaseguir,paraidentificaroslimitesàação
judicantedoreimerovíngio.
Um dos princípios consagrados pelo Breviário de Alarico é a supremaciadalex.Eleestápresentenainterpretatiodotítulo1,2,5ena
interpretatiodotítulo1,2,1:
“Serãocondenadososjuízesquenegligenciaremospreceitosdopríncipe
quesãoconformesàslegesouquemodificaremaaplicaçãoporumartifício
qualquer”66.
“Oquequerquesejaobtidodopríncipequeforcontraalei,nãoéválido”67.
Aprimeirainterpretatioconstituiumaadmoestaçãoaosjuízes,com
aameaçadepuniçãoparaaquelesquenegligenciassemouquemodificassem,porumartifícioqualquer,ospreceitosdopríncipe.Háuma
restrição deliberada na argumentação do texto: a ameaça de punição
dizrespeitosomenteaospreceitosdopríncipequefossemconformes
àsleges.Pode-sededuzir,portanto,quehaveriapreceitosreaisquenão
estivessemdeacordocomasleges.Éexatamentedissoquetrataasegunda interpretatio mencionada acima: tudo aquilo que fosse obtido
65
S. Esders, Römische Rechtstradition und merowingisches Königtum. Zum RechtscharakterpolitischerHerrschaftinBurgundim6.und7.Jahrhundert,p.108.
66
BreviarumAlaricianum,1,2,5,p.669.
67
BreviarumAlaricianum,1,2,1,p.663.
296 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
dopríncipe,equeseopusesseàsleges,nãoteriavaloralgum.Note-se
a presença, mais uma vez, do princípio restritivo, isto é, a interdição
prevista pela interpretatio seria válida apenas para tudo aquilo (quaecumque)quefosseobtidodopríncipeequeestivesseemcontradição
comasleges.Apalavraquaecumquenãodesignademaneirageraltodas
asaçõesdopríncipe,maspossuiumsentidomaisestrito,econcerneos
preceitos emitidos pelo poder real que estivessem em desacordo com
as leges. Há uma idéia semelhante no final do preâmbulo do preceito
atribuídoaClotárioII:
“Éporissoquenósordenamosatravésdestadiretivageralqueemtodas
ascausasanormadoantigodireitosejaobservada,equenenhumasentença
oujulgamentoobtidopossuavalidadequeexcedaajustamedidadaleieda
eqüidade”68.
Vemosaquiapreocupaçãoemseestabelecerapreeminênciadoius
antigo,etambém,comonainterpretatioanteriormentemencionada,o
combate às sentenças ou julgamentos obtidos que excedessem a justa
medidadaleiedaeqüidade.
AindanopreceitoatribuídoaClotárioII,ocapítulo5,damesma
formaqueocapítulo9,tambémsustentaoprincípiodasupremacia
dalei:
“Sealguémobtémdesonestamenteumadiretivanossacontraalei,enganandoopríncipe,elanãoseráválida”69.
“Asdiretivasconformeàjustiçaeàleipermanecerãoválidas,enãoserão
anuladaspordiretivassubseqüentesobtidascontraalei”70.
68
PraeceptioChlotariiII.
PraeceptioChlotariiIIc.5.
70
PraeceptioChlotariiIIc.9.
69
MarceloCândidodaSilva297
Ocapítulo5constituiumaretomada,comalgumasnuances,daidéia
expostanainterpretatiotítuloI,II,1:qualquerdiretivaquecontrariasse
alei,obtidadopríncipedemaneiradesonesta,nãoteriavalidade.Anuance,nocasodopreceito,équeseadmitiasomentequeopríncipetenha
publicado diretivas que contrariem a lex se ele tivesse sido enganado.
ContrariamenteaoBreviário,otextomerovíngionãoadmitia,emúltimainstância,queopríncipepudessesecolocaremoposiçãoàquiloque
estabelecia a lei. Isso significa que o príncipe era descrito no preceito
comoaencarnaçãodalei?Deformaalguma:nessecapítulo5,comona
interpretatioanteriormentemencionada,opríncipedeveriasesubmeter
à“lei”, aqui mencionada no singular. No capítulo 9, a lex continua a
aparecer como o princípio supremo, mas dessa vez acompanhada do
termoiustitia.Note-seumadiferençafundamental:enquantonoBreviáriodeAlarico,aslegesimpunham-secomolimitesàaçãodosjuizes,
etambémdoprópriopríncipe,noPreceitoatribuídoaClotárioII,esse
papelédesempenhadopela“justamedidadalei”,pela“eqüidade”epela
“justiça”.OBreviárioéoriundodeummeioprofundamentemarcado
pelasupremaciadaslex,eopreceito,porsuavez,pareceindissociável
deumambientemarcadopeloprincípiodaequanimidadenoexercício
dajustiça.
Restasaberoqueoeditordopreceitoentendiapor“justamedida
dalei”,por“eqüidade”epor“justiça”.Umindícionessesentidoestáno
capítulo6dopreceito:
“Seumjuizcondenacontraaleialguéminjustamente,emnossaausência
eleserárepreendidopelosbispos,demodoqueeleseesforceemcorrigirseu
julgamentoquandohouverumamelhordiscussão”71.
Osbispossãoindicadosnessetrechocomoosintérpretesdalei,aquelesquepoderiam,naausênciadorei,repreenderoiudexportercondenadoalguéminjustamente.Acondenaçãoinjustaequivaliaaopor-seà
71
PraeceptioChlotariiIIc.6.
298 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
lei,oquesignifica,portanto,queoquedeterminaalexéaiustitia.Tendo
emvistaqueafunçãooutorgadaaosbispospelopreceito,superioresaos
própriosiudices,ficaevidenteaconotaçãomoral,emaisprecisamente
cristã,dotermoiustitia.Outrasdisposiçõesdessepreceito,notadamente
noqueserefereàproteçãodasviúvas,dasvirgensedasreligiosas,apontavamigualmenteparaessacorrelaçãoentreoprincepsealex:
“Que ninguém ouse buscar matrimônio com uma viúva ou com uma
mulhercontrasuavontade,pormeiodeumadenossasinstruções;elasnão
devemsertiradasinjustamentepormeiodeperguntasenganosas[oupossivelmenteintimidações]”72.
“Que ninguém ouse se unir em casamento a uma mulher consagrada a
Deus(sanctimonialis)”73.
Ocapítulo8pretendiaimpedirocasamentodasmulheresconsagradasaDeus,enquantoocapítulo7proibiaquesebuscassematrimôniocomumaviúvaououtramulhercontraavontadedelasepor
meio da utilização de um preceito do príncipe. O texto aplica nesse
casoomesmoprincípioestabelecidopelocapítulo5,ouseja,queos
preceitos obtidos do príncipe e que contrariem a“justiça” não têm
validade.
Oscapítulos7e8dopreceitoemquestãotratamdomesmotemaque
ocapítulo18doEditodeParis,publicadosoboreinadodeClotárioII:
“Asvirgens,assantasviúvaseasreligiosasquesededicaramaDeus,ouque
permaneceramemsuasprópriascasas,ouquevivememummonastério,que
ninguémasrequisite,nãoasseqüestreounãoasdespose,valendo-sedeum
praeceptum de nossa mão. E se qualquer um obtém sorrateiramente um
semelhantepraeceptum,queessenãosejadenenhumefeito.Esequalquer
72
PraeceptioChlotariiIIc.7.
PraeceptioChlotariiIIc.8.
73
MarceloCândidodaSilva299
um,sejapelaforçaouporoutromeio,seatreveraseqüestrá-lasouunir-sea
elasemcasamento,quesejacastigadocomamorte.Seomatrimôniosefezna
igreja,equeamulherseqüestradaouapontodeserpareçaanuir,quesejam
separados,queosenvieemexílioequeseusbenspertençamaseusherdeiros
naturais”(grifonosso)74.
Aquitambémháacondenaçãodocasamentodasreligiosas,dasviúvas
edasvirgenscolocadassobaproteçãodaIgrejaedaautoridadereal.No
entanto,essecapítuloémaiscompletoqueasprescriçõesestabelecidasno
Preceito,acomeçarpelapenademorteprevistaparaaquelesqueseatrevessemaseqüestrarouforçarocasamentocomasvirgens,asviúvasou
asreligiosas.OEditotambémprevêaseparação,oexílioeatransferência
dosbensaosherdeirosnaturaisquandohouverouparecerhaveranuência
porpartedamulher.Noentanto,oqueémaismarcantenessetextoéofato
dequesuasegundafrase(“Etsiquisexindepraeceptumeleguerit,nullum
sorciatureffectum”)repeteocapítulo5dopreceitoatribuídoaClotárioII,
inclusiveaoindicarailegalidadedostextosobtidos“sorrateiramente”do
poderreal:“Siquisauctoritatemnostramsubreptitiecontralegemelicuerit
fallendoprincipem,nonvalebit”75.OEditodePariscontestaigualmentea
validadedospreceitosqueseopusessemaoprincípiodajustiça,istoé,da
justamedidadalei.Issomostraqueessetexto,bemcomooPreceitoaqui
analisado,provémdeummesmoambienteintelectual,ondeopríncipe
devesesubmeteraosimperativosdajustiçaedaeqüidade.
Aconvergênciaentreessesdoistextosnãoéumaprova,masapenas
umindíciodequeopreceitoemquestãopodetersidopublicadodurante
oreinadodeClotárioII.Asmedidasadotadaspelopreceitorespondiam
aumasituaçãoespecífica,queeramaispróxima,aliás,daconjunturado
finaldasguerrascivisdoquedaprimeirametadedoséculoVI.Alémdisso,taismedidasnãoseenquadramnapolíticadeClotárioIemrelaçãoà
74
ChlotariiII.Edictum,9,c.18.
PraeceptioChlotariiII,c.5:“Sealguémobtémdesonestamenteumadiretivanossacontraa
leienganandoopríncipe,elanãoseráválida”.
75
300 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Igreja.Oqueotextodopreceitobuscavacorrigireramosassassinatos,
a execução de acusados que não tinham sido ouvidos, os casamentos
ilícitosouaindaasfraudesaodireitodeherançadosherdeiros.Montesquieu pode não ter se equivocado ao tentar entender o preceito a partirdasituaçãoqueelequeriamodificar.OreinadodeClotárioInãose
caracterizouporamplasconcessõesemfavordasigrejas.Apósmorteda
rainhaClotilde,em544,essereinãohesitouemconfiscarumapartedas
rendasdoclero.Eleordenouquetodasasdiocesesdeseureinovertessem
paraofiscoaterçapartedesuasrendas,oqueprovocouumavivareação
dobispodacidadedeTours,Injuriosus76.GregóriodeToursafirmaque
poucoantesdesuamorte,ClotárioIfoitomadoderemorsoportodas
assuasmásações,maselenãomencionanenhumamedidaemfavorda
Igreja,taiscomoasqueencontramosnopreceito77.Aúnicamençãoatais
medidasencontra-senocapítulodasHistóriasnoqualGregóriodescreve
amortedeChilperico:eleafirmaqueesserei“...pisavafreqüentementeos
preceitosdeseupai,pensandoquenãorestavaninguémparafazerrespeitar
suasvontades”78.
Poroutrolado,emumbalançodoreinadodeClotárioI,osbispos
conciliares, reunidos em Paris pouco após sua morte, indicaram claramentequeaautoridaderealeraresponsávelpelosprejuízossofridos
pelasigrejasnoperíodoprecedente.Elesameaçamcomsançõesaqueles
queseamparavamdosbensdaIgrejautilizandoparatantoumpreceito
real.Osbispostambémreconhecemterematentadoparaoproblema
tardiamente, e afirmam que o episcopado deveria no passado, com o
apoiodoscânones,terseopostoataisações79.Entretodososfilhosde
Clóvis,ClotárioIéaquelecujapolíticareligiosafoiamaisclaramente
opostaaosinteressesdosbispos,tantonoqueserefereàingerêncianas
eleiçõesepiscopais,comoaoconfiscodosbenseclesiásticos.
76
HistóriasIV,2.
HistóriasIV,21.
78
HistóriasVI,46:“...ipsasquepatrissuipraeceptiones,potans,quodnonremaneritquivoluntatemeiusservaret,saepecalcavit”.
79
ParisIII(v.561-562),c.1.
77
MarceloCândidodaSilva301
Éprovávelqueapublicaçãodopreceitotenhaocorridoduranteo
reconhecimentoporClotárioIIdoestatutodaBurgúndia,umaregião
profundamentemarcadapelainfluênciaromanaenaqualoBreviáriode
Alaricoeraconhecido.Ocapítulo4dopreceito,aliás,podeserinterpretadocomoumaconcessãoaoparticularismojurídicodaBurgúndia:
“Entreromanos,nósordenamosqueascausassejamlevadasatermopela
leiromana”80.
Confirma-se,assim,avalidadedaLexBurgundiorumparaojulgamentodecasosqueenvolviamaquelequeopreceitochamade“romanos”,ouseja,oshabitantesdaBurgúndiaqueviviamsobaleiromana.
Outroindicioquantoàautoriadopreceitoemquestãopodeestar
nocapítulo13:
“TudoaquiloqueforprovadoqueaIgreja,oseclesiásticosounossosprovinciais possuem durante trinta anos, sem que seus direitos sejam perturbados,permanecememsuapossessãosobseucomando,sedesdeoinícioa
possessãoéjusta;qualqueraçãoquepermaneceusepultadapormaisdoque
esseperíododetemponãodeveserrestabelecidacontraalei,paraquesem
dúvidaapossessãopermaneçacomseupossuidordedireito”81.
Essecapítulotratadaquiloquechamamosde“usucapião”,ouseja,
umaformadeaquisiçãodeumbempelodecursodotempo.Duassãoas
condiçõesestabelecidasparaqueodireitoàpossessãodoreferidobem
sejareconhecido:aprimeiraéajustiçadapossessão;asegunda,éaausênciadequestionamentoàpossessãoporumperíododemaisdetrinta
anos.Areferênciaaos30anos,comoindicaopróprioeditordopreceito
no final do século XIX,A. Borétius, é uma modificação em relação a
LexWisigothorum,V,24,interpretatio,quepreviaamesmaregra,mas
80
PraeceptioChlotariiII,c.4.
PraeceptioChlotariiII,c.13.
81
302 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
dentrodeumperíododevinteanos:“Viagintiannorumnonrequisitam
possessionem,sitameniustumpossidendiinitiumintercessisseprobatur,
possessoriprodessecertumest”82.
Essamodificaçãode20para30anospodedecorrerdanecessidade
defazercoincidiroperíodoinicialdacontagemdetempoparaavalidaçãodapossecomoiníciodoreinadodeClotárioII.Defato,como
ClotárioIIcomeçouareinarem584,comos30anosdecorridos,se
estaria em 614. Em suma, o preceito pode ter sido promulgado duranteumaassembléiareunidanacidadedeBonnueil,após614.Essa
assembléia, presidida pelo rei, foi, muito provavelmente, a ocasião
paraosbisposeosgrandesdaBurgúndiacompletaremeconfirmaremasmedidasdoEditode614.Éoquesepodeinferirdorelatode
Fredegário:
“No trigésimo-terceiro ano do reinado de Clotário II, ele ordenou que
Warnacharius,oprefeitodopalácio,comtodososbisposdaBurgúndia,bem
comoseussubordinadosdaBurgúndia,viessemencontrá-lonodomíniode
Bonnueil.Nesselocal,concordandocomtodasassuasjustaspetições,eleas
validouporpreceitos”(grifonosso)83.
Ascontestaçõeseascobrançaseraminúmerasnomomentoemque
as guerras civis terminaram. A assembléia de Bonneuil pode ter sido
o momento para Clotário II compensar os “grandes” da Austrásia e
daNêustriaporseupreciosoapoioem613.OmesmoWarnacharius,
quandofoinomeadoprefeitodopaláciodaBurgúndia,recebeudeClotárioIIoprivilégiodairrevogabilidade84.Nãosepodeesquecerquea
82
PraeceptioChlotariiII,p.19,n.7.
Fredegário,CrônicasIV,44.SobreaassembléiadeBonneuil,verCh.DeClercq,LalégislationreligieusefranquedeClovisàCharlemagne,t.I.Etudessurlesactesdesconcilesetles
capitulaires,lesstatutsdiocésainsetlesrèglesmonastiques,p.62;O.Pontal,Histoiredes
concilesmérovingiens,p.198ep.211.
84
Fredegário,CrônicasIV,42:“WarnachariusinregnumBurgundiaesubstitueturmaiordomi,
sacramentumaChlothariumacceptumneumquamuitaesuaetemporebusdegradaretur”.
83
MarceloCândidodaSilva303
defecção dos grandes da Burgúndia, à frente dos quais se encontrava
Warnacharius,équedesfechouumgolpefatalnacapacidadederesistênciadarainhaBrunildadiantedoavançodeClotárioII.Aovalidaras
petições dos grandes da Burgúndia por decretos, Clotário II pode ter
publicado o preceito que lhe é atribuído. Note-se que Fredegário faz
referênciaa“justaspetições”validadasporpreceitosdopríncipe,oque
significaqueemBonnueil,em618,sabia-seque“asdiretivasconformeà
justiçaeàleipermanecerãoválidas”,exatamentecomopreviaopreceito
atribuídoaClotárioII.
Oreimerovíngioeaselites
Como acabamos de observar, ao longo da segunda metade do
século VI, houve uma evolução significativa na monarquia franca.
A partir de então, as relações entre os governantes e os governados
não se fundavam somente na concessão de vantagens materiais, na
proteção militar ou ainda na identificação política e militar com o
Império. Os textos legislativos examinados neste capítulo mostram
que a autoridade pública, e isso é particularmente visível no que se
refereaosreinadosdeGontrãoedeClotárioII,tambémfundavasua
legitimidade na execução de um programa teleológico: a criação de
condiçõesparaasalvaçãodasalmas.OqueoséculoVItrouxedenovo
paraaGália,edecertaformatambémparaoOcidentemedieval,foi
menosumprincípio“protocontratual”queligavaosgovernantesaos
seussúditos,doqueanaturezadasobrigaçõesdosprimeirosemrelaçãoaossegundos.
Àprimeiravista,poder-se-iadeduzirqueoprocessodecristianização
dautilitaspublicaduranteoséculoVIaproximouopríncipedaqueles
queelegovernavaatravésdeumasériedeobrigaçõesmorais.“Tirano”
naprimeirametadedoséculoVI,eleter-se-iaconvertidoem“príncipe cristão” sob Gontrão e Clotário II. É o que pensa, por exemplo, F.
Lot,paraquemosreismerovíngiossecolocaramcomoosdefensores
dosfracos,“aliviandosuatiraniacomoummeiodemelhorutilizaropo-
304 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
der político para fins privados”85. Ora, os príncipes merovíngios, antes
mesmo de se esboçar o processo de cristianização da utilitas publica,
já estavam ligados aos seus súditos por obrigações que não cessaram
deevoluiraolongodoséculoVI.Aautoridadedospríncipesfrancos,
pelomenosdesdeosprimórdiosdoReinodosFrancos,fundava-se,em
boa medida, no consentimento dos“grandes do reino”, que na maior
parte das fontes do período são identificados como o populus. Nesse
sentido,alegitimidadeincorporadaàrealezapelasdoutrinascristãsnão
significouuma“revolução”nasrelaçõesentreoreieaaristocracia.Mais
ainda,épossíveltambémafirmarqueessasrelações“protocontratuais”
jáexistentesforamterrenofértilparaodesenvolvimentodaidéiados
regespropopulisalvatione.
Aextensãodaautoridadedosreisfrancosfoifreqüentementeexagerada pela historiografia até a primeira metade do século XX. Eles
não eram soberanos de“direito divino”,“proprietários do reino” cuja
tiraniaencontravalimitesapenasnasuperstiçãoenoassassinato.Os
textoslegislativos,bemcomoascrônicasouasepístolas,mostramque
osgrandesdoreinoeramestreitamenteassociadosàsmaisimportantes
decisões.Ochamado“prólogocurto”daLeiSálica,escritoentreofinal
doséculoVIIeoiníciodoséculoVIII,salientaopapeldos“grandes”na
elaboraçãodessalei:“Foidecididoeacordado,comoauxíliodeDeus,entreosfrancoseseusgrandes,comosedeveriazelarpelaobservânciadapaz
entretodosparasuprimirocrescimentodasdisputas”86.Osjuramentode
fidelidade da época merovíngia testemunham igualmente a existência
de uma ordem“protocontratual” na monarquia franca. O grande do
reino,emborajurefidelidadeaoreiedelerecebahonoresoubeneficia,
nãoésuacriatura.Aspalavras,queGregóriodeToursatribuiaousurpadorMundericus,mostramcomumasurpreendentetransparênciaa
importânciadopopulus.Pretendendoserdesanguereal,elereivindica
seudireitodeserrei:“QuedevofazercomoreiTeuderico?Otronodo
85
F.Lot,NaissancedelaFrance,p.168.
PactuslegisSalicae,pp.2-3.
86
MarceloCândidodaSilva305
reinomeédevidocomoaele.Sairei,reunireimeupovoeexigireiojuramento,paraqueTeudericosaibaqueeusoureitantoquantoele”87.
O reconhecimento, ou melhor, o juramento do populus seria suficiente, segundo o discurso de Mondericus, para provar seu estatuto
real. Há nessas palavras um reconhecimento tácito de que o estatuto
realdependia,pelomenosnocasodeumpríncipecujalegitimidadeera
questionada,doacordodopopulus.Osdetalhespresentesnascrônicas
daépocaarespeitodaslutaspelopoderrealmostramqueoconsentimentodessegrupoeraumaparteimportantedalegitimaçãodopoder
real.Duaspráticasfreqüentesentreosmerovíngios–ascerimôniasde
instalaçãodosreiseosjuramentosprestadosaeles–sãosintomáticos
dadependênciadarealezaemrelaçãoàquelesqueeledeviagovernar.
Na cerimônia de instalação no trono, o novo rei era elevado em um
escudo e conduzido sobre os ombros de alguns homens em público.
ÉimportantelembrarqueGregóriodeToursdescreveessacerimônia
somentenocasodereisquecareciamdelegitimidade,comoo“usurpador” Gondovaldo. A segunda cerimônia ocorria após a ascensão à
realeza.Cadanovoreiexigiaentãodeseupovoumademonstraçãode
fidelidade. Segundo as Formulae de Marculfo, os súditos, fossem eles
francos ou romanos, se reuniam para prestar juramento ao novo rei
sobreasrelíquiaseempresençadeumfuncionárioreal88.
Essas cerimônias eram mais que dos simples encenações. Elas
mostram que até mesmo o advento de um príncipe sobre quem não
pairavamdúvidasquantoaseupertencimentoàdinastiarealnãoaconteciasemoreconhecimentooficialdopopulus,ouseja,osgrandesdo
reino.Além de pertencer à família merovíngia, para tornar-se rei, era
necessárioserreconhecidocomotaleaceitopelopopulus.Nãosepode,
evidentemente, confundir essa prática com um sistema de“soberania
popular”.Opopulusqueémencionadonessascerimôniaspúblicasera
umconjuntodepersonagenseminentesedeguerreiros,cujasubmissão
87
HistóriasIII,14.
FormulaeMarculfi,I,40.
88
306 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
aochefedependiadeseupertencimentoàfamíliamerovíngia.Poroutro
lado,aquelequepretendiaascenderàRealezasemserreconhecidocomo
filhodeumreipelosmembroseminentesdafamíliareal,eraforçado
aconquistarparaasuacausaumcertonúmerodegrandesdoreino,
convencendo-osdequeerasimfilhodeumrei.Mondericus,deacordo
comorelatodeGregóriodeTours,estavaconscientedessefato.Emsua
arenga,eleafirma,“princepsergosum”comoseelequisesse,atravésde
umargumentodinástico,demonstrarseudireitodereinar89.Oacordo
formaldopopulusexpressoatravésdessascerimôniasnãotinhaporsisó
opoderdecriarorei;eleserviaapenasetãosomenteparareconhecer
umasituaçãodefato.ÉassimqueaoreconhecerojovemChildeberto
deapenascincoanoscomoseurei,osgrandesdaAustrásianãocriaram
umreiapartirdonada,masreconheceramoficialmenteumacriança
sobreaqualnãopairavanenhumadúvidaquantoàsuafiliação,eque
tinha,portanto,odireitodeelevar-seaessafunção.OtextodeGregório
deToursébastanteclaronessesentido:ChildebertoIIcomeçouareinarapartirdomomentoemquefoiaclamadoreiporessaassembléia
dopopulus90.Osimplesfatodeseproclamarfilhodeumreimortoou
vivonãoerasuficienteparaseteracessoàrealeza.Gondovaldo,ooutro
pretendenteàrealezaentreosfrancosnofinaldoséculoVI,dirigiu-se
aoshabitantesdacidadedeCommingesnosseguintestermos:“Saibam
quefuieleitoreiportodosaquelesqueestãonoreinodeChildebertoeque
tenhocomigoforçasconsideráveis”91.
Gondovaldo menciona claramente aqui o procedimento de uma
eleição,quedevemosentendercomoumaespéciedeengajamentoso-
89
HistóriasIII,14.
HistóriasV,1:“QuandooreiChildebertofoiassassinadonaviladeVitry,arainhaBrunehaut
residiacomseusfilhosemParis.Quandoanotícialhefoitrazidaenaconfusãoquelhecausavam
suadoreseuexílioelanãosabiaoquefazer,oduqueGondovaldo,tomandoseufilhoChildeberto
queeraumacriança,osequestrasecretamenteeapóstê-lolivradodeumamorteiminenteeter
reunido os povos sobre os quais seu pai havia reinado, ele o instituiu rei ainda que ele tivesse
apenasconcluídooprimeiroanodesuaexistência”.
91
HistóriasVII,34.
90
MarceloCândidodaSilva307
lene do populus ao lado daquele que era considerado por muitos um
pretendentelegítimoàrealeza.Aprimeiraconseqüênciadojuramento
defidelidadeéqueelenãoempenhavaapenasossúditosemrelaçãoa
seusreis92.Essesúltimostambémseengajavamemrelaçãoaoseupovo.
Mas qual era o conteúdo desse engajamento? Mundericus exprimiu
claramente esse princípio, ao insistir nas conseqüências positivas que
podiamadvirparaaquelesqueoseguissem:“Sequiminime,eteritvobis
bene”93.Masotextonãopermiteinferiroconteúdodessa“benesse”real.
GregóriodeToursémaisexplícitoaomencionarojuramentofeitopeloshabitantesdeToursaoreiCariberto:
Após a morte do rei Clotário, essa população prestou juramento ao rei
Caribertoeesteigualmente,edamesmaforma,prometeuejurouquenão
infligiriaàpopulaçãonovasleisnemnovoscostumes,masqueagovernaria
comomesmoestatutocomoqualelatinhavividosoboreinadodeseupai;
elesecomprometiaanãolheinfligirnenhumanovaimposiçãodequepoderiadespojá-lo94.
OreiassumeocompromissodegovernaropopulusdamesmamaneiracomoelevinhasendogovernadoporClotário:otemordeuma
mudançanoexercíciodogovernoéexplicitamentefiscal;Caribertojura
nãoimpornovostributos.
Noentanto,asbenessesconcedidaspeloreipodiamassumiraforma
debeneficia,vantagensmateriaisquenamaiorpartedasvezesconsistia em terras do fisco, direitos à cobrança de taxas devidas ao poder
realouàparticipaçãonadivisãodobutimdeumacampanhamilitar.
92
Sobreosjuramentosdefidelidadenaépocamerovíngia,verU.Eckardt,Untersuchungen
zuFormundFunktionderTreueidleistungimmerowingeischenFrankenreich,Marburg,
1976;D.Claude.“Königs-undUntertaneneidimWestgotenreich”,pp.358-378;E.MagnouNortier,“Foietfidélité.Recherchessurl’évolutiondeslienspersonnelschezlesFrancsduVIIe
auIXesiècle”,pp.884-886.
93
HistóriasIII,14.
94
HistóriasIX,30.
308 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
Efetivamente,emváriosmomentosaolongodoséculoVI,aconcessão
debensmateriaisaparececomoumdosinstrumentosdoexercícioda
autoridaderealentreosfrancos.Daíaimportânciaparaumpríncipe
herdeiro de tomar possessão dos tesouros deixados por seu pai. Há
muitosexemplosdesituaçõesemqueafidelidadeaumreieramantida através da concessão de vantagens materiais, terras, produtos de
pilhagemetc.QuandoTeudericoImorreu,ClotárioIeChildebertoI
uniram-se contra Teudeberto I e tentaram apoderar-se do regnum de
Metz.SegundoGregóriodeTours,Teudebertosomenteconseguiuresistirgraçasàaçãodosleudes,cujafidelidadeelehaviagarantidoatravés
depresentes95.OmesmoobservamosquandoChilperico,apósamorte
deseupaiClotárioI,tomoupossessãodotesouroreale,cobrindo“os
francosmaisinfluentes”depresentes,ossubmeteu96.GregóriodeTours
relatatambémqueClotárioIeChildebertoIatacaramaBurgúndiae
pediramaajudadeseumeio-irmãoTeuderico,queserecusou.OsfrancosqueestavamsobasordensdeTeudericoteriamentãomanifestado
seudesacordocomadecisãodesseúltimo,eameaçadoabandoná-loe
seguirseusmeios-irmãosseelenãoofizesse.Foisomente,aoprometer
enriquecê-los em outros lugares, que Teuderico conseguiu convencer
seushomensanãopartirparaaBurgúndiaeapermanecerfiéisaele97.
AcampanhadeClotárioIcontraossaxõesdegenerouemumarebelião
militar,poisosguerreirosqueriamforçá-loacombatercomelescontra
suavontade98.
OEditodeGontrãoeoEditodeClotárioIImostramqueasobrigaçõesdopríncipeparacomseussúditospassaramaincluir,apartir
dasegundametadedoséculoVI,ocuidadocomasviúvas,osórfãos,
amanutençãodapazeacriaçãodecondiçõesparaasalvação.Énesse
contexto que é preciso entender a razão pela qual Gregório de Tours
95
HistóriasIII,23.
HistóriasIV,22.
97
HistóriasIII,11.
98
HistóriasIV,14.
96
MarceloCândidodaSilva309
mencionaautilitaspublicasomentenosúltimoslivrosdasHistórias,e
namaiorpartedasvezesquandoserefereaoreinadodeGontrão.Tratase para ele de marcar o triunfo desse modelo de realeza fundado na
participaçãodosbispos,emqueopríncipesepreocupamuitomaisda
salvaçãodeseupovodoquedapromoçãodeseusprópriosinteresses.
Issonãosignificaqueosregespropublicisutilitatibusnãoexistiamna
GáliadaprimeirametadedoséculoVI,ouqueospríncipesmerovíngiostenhamcessadodeconcederbeneficiaaosgrandes.Éoconteúdoda
expressãoregespropublicisutilitatibusqueevoluiuatésignificarigualmente–e,pelomenos,nosescritoseclesiásticos,sobretudo–aoutorga
debensespirituais:agarantiadepazedejustiça,condiçõesessenciais
para a salvação das almas. Isso explica o porquê da sobrevivência da
autoridadepúblicadécadasdepoisqueasfontesdasprebendastradicionalmenteconcedidasaosgrandes(terrasdofisco,butinsdeconquista)
haviamseexaurido.Comefeito,osAnnalesMettensesPriores,umafonte
carolíngiadoséculoVIII,descrevemaAssembléiadosfrancos,ocorrida
noanode692,emtermossurpreendentes:
“Acadaanonascalendasdemarço,ele[Pepino]reuniaumconcíliogeral
deacordocomoscostumesantigos,noqual,pelasuareverênciapelonome
dorei,queelehaviacolocadoacimadesiemrazãodaimportânciadesua
humildade e clemência, [Pepino] dava ordens para que [o rei] presidisse,
enquantooferendaseramaceitasdetodososnobresfrancos,engajamentos
eramfeitosemproldapazedadefesadasigrejasdeDeus,órfãoseviúvas,o
raptodemulhereseosincêndios[criminosos]eramfirmementeproibidos
comumdecreto...”
Acerimôniaacimadescritaéumconsiliumgenerale,reuniãoanual
daqualparticipavamoschefesdasmaispoderosasfamíliasdaaristocraciafranca,queeramtambémosrepresentantesdopodercentralnas
diversasregiõesdoregnumFrancorum.OautordosAnnalesressaltaque
emrazãodareverênciadevidaaotítuloreal,PepinoII(majordomusda
Austrásiade687a718),teriapermitidoaoreimerovíngio[cujonome
nãoénemsequermencionado,masquesetratadeClovisIII(690-695)]
310 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
depresidiroconsilium.Mesmoqueseupapeltenhosidofundamentalmenteritual,éimportantenotarqueéesse“reiindolente”quemrecebe
dos“grandes do reino” as garantias de que eles assumem a tarefa de
promovero“interessepúblico”–quecompreendeadefesadapaz,das
igrejasdeDeus,dosorfãosedasviúvas.Maisimportanteainda,asmedidasaprovadasnaassembléiaestãoemconsonânciacomoespiritodos
engajamentosassumidospelos“grandes”.Ora,osAnnalessalientamem
váriosmomentosafraquezadosreismerovíngiosdiantedosmembros
dafamíliadePepinoII.Menciona-seavitóriadePepinoIIemTertry
(687)etambémamaneiracomoeleconquistouoprincipatus,inicialmentesobreaAustrásiaemaistardesobretodooregnumFrancorum99.
Osreismerovíngiossãomostradoscomomerosinstrumentosnasmãos
domajordomus.ClóvisIII,aindaquetenhasidotratadocom“honrae
respeito”,éumprisioneirodePepinoII.Nãosepode,portanto,acusar
osAnnalesMettensesdesimpatiapelacausamerovíngia:elenão“exagerou” deliberadamente a importância dos príncipes merovíngios no
finaldoséculoVII.Comoseexplicaentãoofatoqueessemesmorei
desempenhaumpapeldeprimeiraordemnaassembléiadosFrancos?
Seosmerovíngiosconseguirampreservarotítulorealdurantetanto
tempoemfacedopodercrescentedomajordomusfoigraçasàmissão
político-moralquelhesfoioutorgadapeloepiscopado.Elespossuíam
umafunçãoprecisanoedifíciopolíticofranco:exercerumministério
cristãoegarantiratravésdessamissãoo“interessepúblico”.Aofinalde
umaevoluçãonofundamentodesuaautoridadequeteveinícionaBurgúndiadoséculoVI,osreisfrancosaparecemcomo“pastoresdealmas”,
responsáveis perante Deus pela salvação de seus súditos. Em virtude
disso,elesaindaseencontravamnofinaldoséculoVII,notopodeuma
hierarquiadeobrigaçõesrecíprocas.
99
AnnalesMettensesPriores(691),p.320.VerW.Levison,“ZudemAnnalesMettenses”,pp.
474-483;P.Fouracre,R.Gerberding,“AnnalesMettensesPriores(TheEarlierAnnalsofMetz)”,
In:LateMerovingianFrance,pp.350-370.
ConsideraçõesFinais
Um trabalho sobre a realeza na Idade Média coloca necessariamente o problema da conveniência da utilização da noção de“Estado”. M. Senellart, em obra que retraça a história do conceito de
governonoOcidente,desdeaPatrísticaatéoséculoXVII,acredita
que durante aAlta Idade Média o“governo” existiu independentementedoEstado.Todopensamentomedieval,segundoele,apartir
de SantoAgostinho e até o século XIII, foi marcado pela oposição
entreregere(dirigir,governar,comandar)edominar,atoeminentementetirânico.Enquantoo“governo”corresponderiaaumfimou
aumapluralidadedefinsexteriores,a“dominação”nãoteriaoutro
objetivo que sua própria manutenção. Regere, a atividade de reger,
dedirigiropovoemdireçãoaumhorizonteescatológico,seriacontráriaàdominação.SenellartidentificaemMaquiavelaomissãoda
temáticadogovernoemproveitodeumatecnologia,violentaouhábil,dadominação.Noperíodomedieval,pelomenosatéSãoTomás
deAquino,afirmaM.Senellart,oreigovernavamaisdoquereinava,
poisseutítulodependiadaretidãodeseusatos.Aausênciadanoção
312 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
desoberaniadocorpopolíticoteriaprivadoaAltaIdadeMédiade
autênticasestruturasdeEstado.Serianecessárioentãofalarem“ofíciodogoverno”paradefinirasrealezasmerovíngiaecarolíngia,pois
seriaumanoçãomaisapropriadaaoestudodoperíodomedievaldo
queàpalavra“Estado”,quealémdissonãofariapartedovocabulário
políticomedieval1.
O“Estado”seria,segundoM.Senellart,indissociáveldessasoberania
queasdoutrinasmedievais,pelomenosatéoséculoXIII,maispreocupadascomacausadasalvação,nãolheoutorgavam.SenellartdesenvolveumtemabastanterecorrentenateoriapolíticadoséculoXX,oda
“ruptura”entreopensamentopolíticomedievalepensamentopolítico
moderno.Outrosautoresantesdele,historiadores,sociólogosejuristas,
adotaramamesmaposição2.AspesquisaslevadasacaboporJ.-Ph.GeneteporsuaequipesobreasorigensdoEstadoModernorelativizam
asposiçõesdeSenellart.OEstado,conformeJ.-Ph.Genet,foidurante
muitotempoconsideradoumorganismoestranhoaumaIdadeMédia
vistacomoumparêntesedeanarquiafeudal.Foinessaépoca,segundo
Genet,queosaparelhosadministrativos,opessoaladministrativo,assim
comoumpensamentovalorizandoopapeldopríncipecomofonteda
leieumaconcepçãoterritorialdopoder,teriamfeitosuaaparição.Mas
essaapariçãoseriaumprodutodaIdadeMédiaTardia.OEstadoteria
nascidoentre1280e1360quando,confrontadoscomguerrasincessan-
1
M.Senellart,Lesartsdegouverner.Duregimenmédiévalauconceptdegouvernement,
pp.19-31.
2
Atítulodeexemplo,podemoscitarocasodeL.Weckmann.EledefineoEstadocomouma
categoriapolíticaegeográficaquedispõedeautonomiadiantedosvaloresedasnormassociais
eécapazdeserafontedoDireito.Apartirdessadefinição,eleafirmaquenãoexistiuEstadona
IdadeMédia.Asoberania,traçoessencialdoEstado,mastambématerritorialidadeestariam
ausentesdo“Estadomedieval”.Suaexistênciaseriajustificadanasdoutrinascristãsunicamentepelasubordinaçãoaumprincípioabsoluto.Nãosetrataria,portanto,deumEstadostricto
sensu,masdeumaabstração,ummeioparaarealizaçãodoidealsupremodaCristandade,a
realizaçãodoReinodeDeussobreaterra(L.Weckmann,Elpensamientopolíticomedievaly
lasorigenesdelderechointernacional,pp.149-153).
MarceloCândidodaSilva313
tes,osreiseospríncipesapelaramàquelesqueresidiamemsuasterras
paraasseguraradefesaeaproteçãodacomunidade3.
Apesar do progresso que traz em relação às perspectivas tradicionais,aposiçãodeJ.-Ph.Genetrefleteumaopiniãobastanteantigana
historiografia, segundo a qual a confusão entre o domínio religioso e
odomíniopolíticonoperíodomedievaléumcontra-sensoemrelação
aosentimentoexpressopelanoçãodeEstado.Sobessepontodevista,
trata-sesemdúvidadeumconceitohistoricamentedatado,umproduto
damodernidadeedasociedadeburocrática.Oproblemapermaneceem
saberse,primeiramente,essaconfusãoentreo“político”eo“religioso”
eratãoperfeitaquantoseacredita,e,emsegundolugar,seelatornava
inconcebíveloatodereinar,istoé,acapacidadedopríncipedetomar
decisõespolíticasparaalémdoquadroestritoimpostopelaIgrejaepelosprincípiosmoraisdosquaisosbisposeramosporta-vozes.
AvisãodohistoriadoralemãoK.F.Wernerarespeitodautilizaçãoda
noçãodeEstadoentreosfrancosémaisoriginaletambémmaisadequada
aoestudodaAltaIdadeMédiadoqueadeM.Senellart.Werneracredita
queoEstadoquehaviareconhecidoocristianismocomoreligiãooficial
nãodesapareceucomasinvasõesbárbaras4.Eleteriasobrevividoatravés
daúnicahierarquiapolíticalegítimareconhecidapelacristandade,anobreza,eatravésdoprinceps,termoquedesignariaochefeeoverdadeiro
fundadordoEstado,eteriaseencarnadonoRegnum5.K.F.Wernerempregaotermo“Estado”comosinônimodeumaentidadeàqualserviam
agentesqueexerciamumafunçãoquesedesignahojecomo“ofício”ou
“funçãopública”.IssonãosignificaqueasdiferençasentreK.F.Werner
3
VerJ.-Ph.Genet,Etatmoderne:genèse,bilansetperspectives,especialmentep.261.
K.F.Wernernãoéoúnicoasustentarqueanoçãoderespublicanãodesapareceucoma
chegadadosbárbaros.EssaidéiaétambémsustentadaporL.Genicot(“Surlasurvivancedela
notiond’Etat”,p.162ess.),eY.Saissier(“L’utilisationd’unconceptromainauxtempscarolingiens:larespublicaauxIXeetXesiècles”,pp.17-29).
5
K.F.Werner,“L’historienetlanotiond’Etat”,pp.29-41;vertambém,domesmoautor,Naissancedelanoblesse,pp.145-186.
4
314 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
e M. Senellart possam ser resumidas na seguinte fórmula: um acredita
queoconceitode“Estado”seescondeatrásdotermoRegnum,enquanto
ooutropensaqueaausênciadotermo“Estado”nasfontesmedievais
tornainexatatodareferênciaaumtalconceito.Hánessesdoisautores
duasperspectivasdistintassobreamatrizdasociedadepolíticamoderna.
M.SenellartoutorgamuitomaisimportânciadoqueK.F.Werneràteoria
políticadeMaquiaveloudeHobbes:énelesqueserianecessáriobuscara
gênesedofenômenoestatal.OprocedimentodeK.F.Wernerconsisteem
buscarostermosdosséculosIVaoXVIparadescobrirasorigensromanasecristãsdoEstado.WernernãoacreditaqueoEstadomodernotenha
nascidoaosedesvinculardasidéiaspolíticaselaboradaspelasdoutrinas
cristãs,masaosecularizá-las6.Pode-seaproximarasopiniõesdeK.F.WernerdaobradeumjuristaqueasegundametadedoséculoXXaprendeua
detestar,C.Schmitt.Eleestimavaqueosconceitoshegemônicosdateoria
políticamodernadoEstadoeramconceitossecularizados7.Éessamesma
perpectiva“genealógica”queinspiraK.F.Werner,equeseopõeàperspectiva“evolucionista”deM.Senellart.Oproblemacomainterpretaçãode
M.Senellartéqueeledistingueradicalmenteoconceitode“governo”do
fenômenoda“dominação”.Ogovernocristão,talcomovimosaolongo
destetrabalho,éumaformadedominaçãocujalegitimidadeestánarealizaçãodeumaobraescatológica.Entretanto,issonãoretiraemnadaseus
atributos“estatais”,taiscomoacapacidadeemimporumcertonúmero
deleisaumapopulaçãohabitandoumespaçodeterminado,ouaindaa
existência de um corpo de funcionários organizado em torno do rei e
cujoobjetivoeraarealizaçãodointeressepúblico,qualquerquefosseo
conteúdodesseúltimo.
Àquestão“aGáliamerovíngiaconheceuumEstado?”,pode-seresponderafirmativamente,semsecairnumanacronismo.Autilizaçãodo
6
Ibid.,p.36:“QuandooinglêsThomasPeinedeuaosamericanos,emrevoltacontraacoroa,ajustificativadesuaação,eleprovapelaBíbliaquenãofoiDeusquemdesejouarealeza,massimosjudeus
quepediramaEleparateremreiscomoospagãos!Ele[ThomasPeine]destruiuassimaconstrução
deumamonarquiapelagraçadivinaedeumanobrezaelevadaaoseunívelpelosreis”.
7
C.Schmitt,Théologiepolitique,p.46.
MarceloCândidodaSilva315
conceitodeEstadonãoestálivredeproblemas.Trata-sedeumtermo
ligadopordemaisao“Estado-Nação”.K.F.Wernertentaresolveroproblemautilizandootermode“Estadocristão”.AatitudedeWernerdeve
sercompreendidapelasuavontadeemreabilitarumperíododurante
muito tempo desconsiderado pelos historiadores. Daí a utilização da
noçãodeEstadoparasublinharocaráterestável,elaboradoeeficazdo
poderpolíticosobosmerovíngios.Se,aolongodestetrabalho,otermo
“Estado”nãofoisistematicamenteutilizadoparacaracterizararealeza
merovíngia,équeanoçãode“autoridadepública”nosparecemaisbem
adaptadaaesteestudosobrearealezafranca.Essanoção,aoevocara
noçãodelegitimidade,lembraqueofundamentodopoderpolíticose
encontra na realização de um certo número de deveres em benefício
daqueles que se governa.Assim,“autoridade pública” traduz, de uma
maneiramaiseficazqueoconceitode“ofíciodegoverno”,osignificado
dapalavraregere,quenaGália,apartirdasegundametadedoséculoVI,
significa,muitomaisdoquegovernar,conduziràsalvação.
Neste trabalho, procuramos identificar os diversos significados da
expressãoutilitaspublicanaGáliaentreosséculosVeVII.Oprincipal
problemacomoqualsomosconfrontadoséofatodequeessaexpressão
nãoaparecenasfontesdahistóriafrancaatéaprimeirametadedoséculo
VI.Aprimeiravezqueissoocorreéemumacartaenviadapelosbispos
doConcíliodeParis,de573,aobispoEgidiusdeReims,sobaforma
ligeiramente nuançada de causis publicis8.A expressão traduz então a
vontadedosbisposconciliaresdeseocuparemdointeressegeral.Todavia,nadaéditonomesmodocumentosobreumaeventualpreocupação
daautoridaderealpelautilitaspublica.JánosescritosdeGregóriode
Tours,estafraseapareceassociadaàrealeza.Poroutrolado,ospreceitos
eoseditosreaisnãoamencionam.Issoparececorroborar,àprimeira
vista,aopiniãodeP.Geary,paraquemosclérigosforamosúnicos,duranteoperíodomerovíngio,aconservaranoçãoderespublica,istoé,
o“interessegeral”,emoposiçãoaospríncipes,queteriampermanecido
8
ParisIV(573),EpistolasynodiadEgidiumRemensemepiscopum,p.147.
316 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
presosaosseusinteressespessoais.Seriafácildeduzirentãoquerealeza
merovíngiaeraumamonarquiapatrimonial,equeopoderexercidopor
seusreisnãotinhanenhumdosatributosdeuma“autoridadepública”.
Toda a primeira parte deste livro procurou mostrar que, mesmo se a
expressãoutilitaspublicanãoéexplicitamenteevocadapelasfontesmerovíngiasdaprimeirametadedoséculoVI,aindaassimépossívelidentificarnogovernofrancodessaépocaosentidodo“interessepúblico”
quenãoseconfundecomosinteressespessoaisdosreis.Essapercepção
sobreosobjetivoseanaturezadarealezafoi,mesmonoiníciodoséculo
VI,aprincipalfontedelegitimidadedospríncipesmerovíngios.
Éimpossívelcompreenderaexistênciadeumanoçãode“autoridade
pública”naGáliamerovíngianasprimeirasdécadasdoséculoVIsem
sereferiràsrelaçõesentreosfrancoseoImpério.Éatravésdaatitude
dosfrancosparacomolegadopolíticodeRomaqueénecessárioentenderolugareasprerrogativasdaautoridaderealnaGália.Vimosquea
ascensãodeClóviscomogovernadordaprovínciadaBélgicaSegunda
nãopodeserconsideradacomoummarcodofimdaromanidadeno
Ocidente.BemmaisdoqueSyagrius,ofundadordoReinodosFrancos
foiocontinuadordapolíticadecooperaçãocomoImpériocristão.É
verdadequesetratava,naépocadeClóvis,derelaçõesmaisteóricasque
reais,poisoreconhecimentodasuperioridadehierárquicadoImpério
nãocorrespondiaàumadominaçãoefetivadoimperadorsobreaGália.
Entretanto, a independência de fato da qual se beneficiava o Regnum
Francorum em relação ao Império Romano não significa que os reis
merovíngios detivessem sua autoridade em razão de um puro direito
deconquista.Orecursosistemáticoaostítuloseaossímbolosromanos
mostraquealegitimidaderealnesseperíodoeraindissociáveldeuma
identificação com o Império. É necessário sublinhar que os príncipes
francos não se contentaram em retomar alguns legados romanos. Do
ponto de vista funcional, era a solução mais evidente, devido ao fato
queosfrancosestavamintegradosaomundoromanohápelomenos
doisséculos,etambémporqueelesnãotinhamalternativasàsconstruçõesinstitucionaislegadaspeloImpério.Essespríncipesseesforçaram
tambémemtornarpúblicasuafiliaçãoaosistemapolíticoromano.Eles
MarceloCândidodaSilva317
estavamprovavelmenteconscientesquesualegitimidadeseriamaiseficazmenteconsolidadasefossemcapazesdeaparecerdiantedeseussúditosgalo-romanoscomoosfiéiscontinuadoresdeumestadodecoisas
aoqualessesúltimosaindasesentiamprofundamenteligados.
Nessesentido,seriaumequívocosubestimaracapacidadedosreis
merovíngiosemreformularaherançapolíticaromana.Apolêmicaentre
“germanistas”e“romanistas”obscureceudurantemuitotempoascaracterísticasoriginaisdoedifíciopolíticofranco.ORegnumFrancorumfoi
freqüentementeapresentadocomooresultadodeumarupturaemrelaçãoaopassadoromanoelatino,istoé,umpuroprodutodaconquista
daGáliapelopovofranco.Oexcessoinversoconsistiaemapresentara
Gália franca como a simples transposição de Roma. A reapropriação
dossímbolospolíticosromanos,comoatitulaturaouacunhagemde
moedas,sãoalgunsdosaspectosmaisimportantesdessacapacidadedos
reisemseapropriardolegadoromano,dando-lheumsentidoporvezes
distintodooriginal.AcerimôniadeToursfoiummomentoprivilegiado
emquepercebemosqueosgovernantesfrancoseramperfeitamentecapazesdeinterpretarossímboloseatitulaturaromanoseespecialmente
deutilizá-losemseufavor,supondo,comoparecetersidoocaso,que
otítulodeaugustussejaoprodutodeumainiciativadosfrancosqueia
alémdaquiloqueAnastáciotinhaoutorgadoaClóvis.SobTeudebertoI,
apolíticadeimitatioimperiiatingiuseupontoculminante.Oreifranco
não se satisfazia mais somente em retomar a titulatura e os símbolos
romanos,masreivindicavaalémdissoumasoberaniasobreoOcidente.Osterritóriosque,numacartaaoimperador,eleafirmavadominar,
bemcomosuascampanhasnaItáliaeacunhagemdemoedascomsua
imagem, mostram um rei persuadido de ser um igual do imperador
romano,pelomenosnoqueserefereaoOcidente.
A ligação atávica com a romanidade teve conseqüências sobre
a autoridade dos reis merovíngios, não apenas no que diz respeito à
continuidadedasestruturaspolíticas,mastambémnoqueserefereà
sobrevivênciadanoçãode“interessepúblico”.Essanoção,noiníciodo
séculoVI, traduzia, sobretudo, uma“razão de Estado”, em que estava
emjogoaperenidadedamonarquia,amanutençãodapaz,amanuten-
318 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
çãodeumpodercentralefetivoecapazdesesobrepor,commaiorou
menor sucesso, às lógicas ou às estruturas concorrentes, tais como as
solidariedadesfamiliarestradicionaisouaindaopodereclesiástico.O
domínionoqualessanoçãodeutilitaspublicaémaisdiscernívelnessa
primeirametadedoséculoVIéodasrelaçõescomosbispos.Emfaceao
episcopado,ospríncipesfrancosdaprimeirametadedoséculoVInão
cessaramdetentarimporàIgrejaumdiktatqueépossívelqualificarde
“constantiniano”.AconvocaçãoporClóvisdoIConcíliodeOrléans,em
511,noqualatémesmoasquestõesdiscutidasforamestabelecidaspor
ele,bemcomosuasnumerosasingerênciasnasnomeaçõesdosbispos,
eraconseqüênciadestanoçãosegundoaqualarealezaeraoepicentro
doRegnumFrancorum.Poroutrolado,ainfluênciapolíticadosbispos,
construídaapartirdesuaautoridademoraledopapelquedesempenhavam na administração das cidades, não cessou de se ampliar no
decorrer dos séculosV eVI, a ponto de ameaçar as prerrogativas da
realezaedeseusrepresentantesnascidades.Oexemplomaisradicalde
umapolíticadeliberadamentevoltadaparaadiminuiçãodainfluência
dosbisposestánoreinadoChilperico.
AspartilhasdoRegnumFrancorumconstituemummomentoprivilegiado em que se pode observaro choqueentreuma lógicade organização de espaço que é própria à autoridade real – que pretendia
criarrelaçõesdeinterdependênciaentreosdiversosreinosoriundosdas
partilhas,eaomesmotempopermitiraviabilidadedecadaumdesses
reinos,freqüentementeemdetrimentodageografiaeclesiásticadaGália
–eumaoutra,alógicadaIgreja,oumelhordoepiscopado–quepretendiapreservaratotalidadedosbispadosedaspossessõeseclesiásticas.O
fatodequeospríncipesmerovíngiosnãosecurvaramàsadmoestações
dosbisposnessesassuntos,comomostramosrepetidosprotestosdesses
últimosnoscânonesenascartasescritasaosreisduranteosconcílios,é
umexcelenteindicadordaexistênciadeuma“autoridadepública”independentedopodereclesiástico.
OséculoVIconstituiumperíodocrucialnaevoluçãodamonarquia
franca,quepodemosdefinircomoumamudançanosentidodautilitas
publica. É inicialmente nas exortações dos bispos merovíngios que se
MarceloCândidodaSilva319
pode observar esse fenômeno. O exercício do poder político está freqüentementeassociadoàidéiade“interessegeral”.Trata-se,aliás,deum
temarecorrentedopensamentopolíticoocidental.Aespecificidadedas
reflexõesdosbisposcatólicossobreessetemaestánaestreitaassociação
queessesúltimosfizeramentreautilitaspublicaearealizaçãodeum
bemespiritual.Ospríncipesmerovíngioseramosprincipaisdestinatáriosdasadmoestaçõesdosclérigos:eleseramchamadospelosbisposa
participardaconstruçãodaJérusalemterrestre.OreimerovíngioaparecenasepístolasdeRemígio,deAvitusedeAureliano,bemcomonos
poemasdeFortunato,comoumverdadeiropastortendoporfunçãoauxiliarnasalvaçãodasalmas.Éevidentequeasexortaçõesepiscopaissão
porsisósincapazesdeexplicaraemergênciadaRealezaCristãentreos
merovíngios.Paratanto,eraaindanecessárioqueaautoridaderealfosse
“permeável”àidéiadogovernocristãotalcomoosbisposaelaboraram.
Énessesentidoqueoperíododasguerrasciviséessencial.
BoapartedosexemplosqueserviramparaatestarocaráterdespóticodarealezamerovíngiaprovémdosúltimoslivrosdasHistórias,que
tratam do período das guerras civis. Esse período está saturado, mais
doquequalqueroutro,pelosexcessoscometidospelasfacçõesemluta.
AGáliamerovíngiaconheceuapráticadaeliminaçãofísicadosadversários,masnãomaisdoqueaRomadeSila–queinstitucionalizoua
eliminaçãofísicacomoarmanalutapolítica.NoRegnumFrancorum,
operíodocompreendidoentre561e613,foimarcadomaisdoqueos
anos precedentes pela utilização da força como instrumento de conquistaedemanutençãodopoderemtodososníveis.Entretanto,essa
violêncianãopodeservistacomoumacaracterísticaestruturaldosistemapolíticomerovíngio.Contrariamenteaoquesepoderiapensar,operíododasguerrascivisfoiprolíficoparaaautoridadereal:emprimeiro
lugar,assistiu-seàderrotadosúltimospartidáriosdarealezaimperial;
emsegundo,houveumaumentoconsideráveldainfluênciadosbispos,
inicialmentenaBurgúndiaeemseguidaemtodooReinodosFrancos.
Os bispos da Gália puderam, através das prerrogativas que lhes eram
reconhecidaspelopoderreal,especialmenteapartirdoreinadodeGontrão, interferir de maneira decisiva nos assuntos do reino.A segunda
320 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
metadedoséculoVIéomomentoprivilegiadoemqueosconcíliosmerovíngiossetornaramumainstituiçãopolíticaalémdeumainstituição
eclesiástica. Eles foram uma das fontes mais importantes da Realeza
Cristã.DuranteaprimeirametadedoséculoVI,osreis,àmaneirados
imperadorescristãos,convocavamosconcílioseatéditavamaosbispos,
comofoiocasodeClóvis,asquestõesaseremdiscutidasduranteessas
assembléiaseclesiásticas.Umavezmergulhadosnasguerrascivis,osreis
merovíngios,GontrãoeemseguidaClotárioII,recorreramaosconcílioscomoinstrumentoderegulamentaçãodosconflitosedeafirmação
desuaautoridade.NosconcíliosdofinaldoséculoVIedoiníciodo
século VII, os bispos não se contentavam em discutir as questões de
organizaçãointernadaIgreja;eleseramchamadosatomarpartidonas
disputasqueenvolviamospríncipes,ouaindaparajulgaraquelesque
essesúltimosconsideravamcomotraidores.
Aautoridaderealtornou-secadavezmais,apartirdofinaldoséculo
VI,impregnadadospreceitoscristãos.Nãosetratava,noentanto,deum
movimentolinear.Nãosepodesepararradicalmentea“RealezaConstantiniana”ea“RealezaCristã”.Váriosfatoresasaproximam.Remígio,
o defensor do papel constantiniano do rei, é o mesmo que sustentou
pela primeira vez a responsabilidade do príncipe na salvação de seus
súditos.Essaidéia,queampliavaopapelatribuídoàrealezaparaalém
desuasatribuiçõestradicionais,somentepôdenasceremumambiente
constantiniano,ondeoreiocupavaumlugardedestaquenaIgrejaena
conduçãodosassuntoseclesiásticos.Umbomexemplo,nessesentido,
é Eusébio de Cesaréia. Em seu De laudibus Constantini, ele defende
aidéiadequeoimperadorparticipadasalvaçãodeseussúditos.Mas
há uma diferença essencial entre os dois modelos de realeza, o que é
definidoporEusébioeaquelequeédefendidoporRemígioemsuacarta
aClóvis.AoriginalidadedomodeloderealezadeRemígioéqueeleveio
acompanhadodanoçãodequeospríncipesdevemescutarosconselhos
dosbispos.
A cristianização da noção de utilitas publica não deu aos reis merovíngios o sentido do interesse público que eles não possuíam. Em
outraspalavras,elesnãosetornaramregespropublicisutilitatibussob
MarceloCândidodaSilva321
ainfluênciadosbispos.ElesjáoeramsobClóvis,sobTeudebertoou
sobChilperico,aindaqueosbispos,acomeçarporGregóriodeTours,
serecusassemaadmiti-lo.Sobainfluênciadoepiscopado,foiapenas
o conteúdo dessa noção que se transformou, assumindo progressivementeumsentidopróximoaoquehaviasidoestabelecidopelosautores
cristãosdoséculoVI.Masacristianizaçãodautilitaspublicanãosignificouapenasaintegraçãodanecessidadedeauxilioàsalvaçãoentreas
obrigaçõestradicionaisdopríncipe,taiscomooauxílioaospobreseaos
fracos.Étambémaestratégiapararealizaressamissãoprovidencialque
semodificou:aparticipaçãodosbispostornou-seaespinhadorsaldessa
novapercepçãodointeressepúblico.
ContrariamenteaoqueafirmavaL.Halphen,oscarolíngiosnão“ressuscitaram” a idéia de res publica através da noção cristã de que o poderestáaoserviçomoraleespiritualdacoletividade.Esseéumlegado
merovíngio.Aoolharcomadmiraçãoaobradosgovernantescarolíngios
dosséculosVIIIeIX,ahistoriografiacontemporâneaesqueceuoquanto
Pepino,oBreve,eCarlosMagnoforamtributáriosdaexperiênciamerovíngia.Ainfluênciadamonarquiavisigótica,ouaindaadomonaquismo
irlandês,sobrearealezacarolíngiaatraiumaisaatençãodoshistoriadores
que a influência de sua predecessora, mais próxima, cultural, geográficaepoliticamente.Clóviseseusherdeirosnãopodemserconsiderados
como simples chefes de bandos de guerreiros que governaram por um
simplesdireitodeconquista.Seriaumgraveequívococonsiderararealezamerovíngiacomoumparêntesedetotalitarismoedebarbárieentre
oImpériocristãodosromanoseoImpériocristãodoscarolíngios.Tal
foi,nofinaldascontas,oobjetivoprincipaldestetrabalho:tentarmostrar
queaunçãodePepino,oBreve,nãoestevenaorigemdacristianizaçãoda
monarquiafrancaequeaépocacarolíngia,contrariamenteaoqueafirma
R.Mckitterick,nãofoiopalcodaprimeiraedificaçãodeumasociedade
cristã verdadeiramente digna desse nome. É necessário reconhecer que
boapartedahistoriografiaeuropéiadesdeofinaldoséculoXIXpintou
umquadroexcessivamentesombriodarealezamerovíngia.Noentanto,
estetrabalhonãoteveporobjetivosubstituira“lendanegra”quecerca
Clóviseseusdescendentesporumaespéciede“lendadourada”,sedutora
322 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
porsuanovidade,masigualmentetendenciosa.Trata-sesomentedesalientarque,pelomenosnoquedizrespeitoàRealezaCristã,semClóvis,
CarlosMagnoteriasidoinconcebível.
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Agradecimentos
Ao final deste trabalho, não poderia deixar de expressar minhas
gratidãoparacomtodosaquelesquedeumaformaoudeoutracontribuíram para a sua realização. Ao CNPq (Conselho Nacional do
Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico), que concedeu a bolsa de
estudosquetornoupossívelminhaestadiaemLyonentre1997e2002.
Aomeuorientador,JacquesChiffoleau,etambémaosprofessoresMarcelPacaut,DenisMenjoteNicoleBériou.ADominiqueAugerd,Nicole
Dusserre e Anne-Marie Weil, pelo tempo e pela atenção que me dispensaramna“UnitéMixtedeRecherches–HistoireetArchéologiedes
MondesChrétiensetMusulmansMedievaux”(UMR5648).AosprofessoresMartinHeinzelmann,JeanDurliateAlainStoclet,pelaleiturade
algunscapítulosepelassugestões.AosmeuscolegasdoDepartamento
deHistóriadaUSP,pelaacolhidaemSãoPaulo.Àsminhasprofessoras
doDepartamentodeHistóriadaUFMG,BeatrizRicardina,CarlaAnastasia, Cristina Campolina e Eliana Dutra, pelo incentivo inestimável.
AoDanieleàAnaMaria,afamíliaqueencontreiemBeloHorizonte,
eaFrédérique,Claude,NicolaseOlivier,minhafamíliadeMetz.Aos
362 ArealezacristãnaAltaIdadeMédia
amigos,Norberto,Solange,Sara,AnaPaula,Mônica,Íris,Milton,Didier
eRossana.ÀNérieàMarina,quetêmsidotãoimportantesemtodosos
momentosecujasvidasesperopodercompartilharnosanosquevirão.
Finalmente, aos meus pais e ao meu irmão, que dividiram comigo o
pesodasdistânciasimpostaspelosimperativosdestapesquisa.