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A Realeza Cristã na Alta Idade Média

A realeza cristã na Alta Idade Média A realeza cristã na Alta Idade Média Os฀fundamentos฀da฀autoridade฀pública฀ no฀período฀merovíngio฀(séculos฀V-VIII)฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀ Copyright฀2008฀©฀Marcelo฀Cândido฀da฀Silva Edição:฀Joana฀Monteleone Assistente฀Editorial:฀Guilherme฀Kroll฀Domingues Projeto฀gráfico,฀Diagramação฀e฀Capa:฀Marília฀Chaves Revisão:฀Neusa฀Monteferrante Imagem฀da฀capa:฀O฀Bastismo฀de฀Clóvis,฀Mestre฀de฀Saint฀Gilles Dados฀Internacionais฀de฀Catalogação฀na฀Publicação฀(CIP) (Sindicato฀Nacional฀dos฀Editores฀de฀Livros,฀RJ,฀Brasil) S581r ฀ Silva,฀Marcelo฀Cândido฀da ฀฀฀฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média฀:฀os฀fundamentos฀da฀autoridade฀pública฀no฀período฀ merovíngio,฀(séculos฀V-VIII) ฀/฀Marcelo฀Cândido฀da฀Silva.฀–฀São฀Paulo฀:฀Alameda,฀2008.฀ ฀฀฀฀Inclui฀bibliografia ฀฀฀฀ISBN฀978-85฀฀฀฀฀1.฀Merovíngios.฀2.฀França฀-฀História฀-฀Até฀987.฀3.฀França฀-฀História฀eclesiástica฀-฀Até฀987.฀4.฀ França฀-฀Reis฀e฀governantes฀-฀História.฀5.฀Autoridade฀-฀Aspectos฀religiosos฀-฀Cristianismo.฀6.฀ Igreja฀e฀Estado฀-฀História.฀7.฀Europa฀-฀História฀-฀467-1492.฀I.฀Título.฀II.฀Título:฀Os฀fundamentos฀ da฀autoridade฀pública฀no฀período฀merovíngio,฀(séculos฀V-VIII).฀ 07-4700.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀CDD:฀944.013 ฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀CDU:฀94(44)”486/751” 14.12.07฀฀฀17.12.07฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀004714 ALAMEDA฀CASA฀EDITORIAL Rua฀Iperoig,฀351฀–฀Perdizes CEP฀05016-000฀–฀São฀Paulo฀-฀SP Tel.฀(11)฀3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br ÍNDICE Prefácio  Introdução  PARTE 1  Os francos e o Império Cristão Capítulo I  A fundação do Regnum Francorum Capítulo II  A “Realeza Constantiniana” (c.481-561) Capítulo III  O “interesse público” no século VI PARTE II  Os francos e a Realeza Cristã Capítulo I  O rei cristão nos escritos episcopais (c.481-c.594) Capítulo II  As guerras civis e a ascensão do episcopado (561-614) Capítulo III  A legislação real franca e a cristianização da utilitas publica Considerações finais  Referências Bibliográficas  Agradecimentos  Para฀minha฀avó฀Maria,฀ que฀jamais฀pôde฀ler฀um฀livro.  “Divertida฀senhoria฀que฀não฀tem฀vassalo฀nem฀suserano,฀nada฀abaixo,฀nada฀acima!฀É฀uma฀anomalia,฀um฀ monstro.฀Não฀se฀sabe฀que฀nome฀dar฀a฀essa฀coisa฀ridícula;฀ denominam-na฀ realeza”฀ (J.฀ Michelet.฀ A฀Agonia฀ da฀Idade฀Média.฀São฀Paulo:฀Edusc,฀1992,฀p.33). “O฀feudalismo฀é฀uma฀poliarquia;฀só฀existem฀senhores฀ e฀criados;฀na฀monarquia,฀ao฀contrário,฀existe฀um฀senhor฀ e฀nenhum฀criado,฀porque฀ela฀elimina฀a฀servidão,฀e฀nela฀ o฀direito฀e฀a฀lei฀têm฀validade.฀É฀da฀monarquia฀que฀surge฀ a฀real฀liberdade.฀Ela฀reprime,฀portanto,฀a฀arbitrariedade฀ de฀alguns฀e฀estabelece฀a฀soberania฀universal”฀฀(W.฀Hegel.฀ Filosofia฀da฀História.฀Brasília:฀Unb,฀1995,฀p.฀332). Prefácio  A฀ Realeza฀ Cristã฀ na฀Alta฀ Idade฀ Média:฀ os฀ fundamentos฀ da฀ autoridade฀pública฀no฀período฀merovíngio฀(séculos฀VI-VIII),฀que฀aqui฀se฀ oferece฀ao฀leitor฀em฀edição฀da฀Alameda฀Casa฀Editorial,฀com฀o฀apoio฀da฀ FAPESP,฀é฀a฀tese฀de฀doutorado฀de฀Marcelo฀Cândido฀da฀Silva,฀defendida฀ no฀Centre฀Universitaire฀d’Histoire฀et฀d’Archéologie฀Médiévales฀da฀Université฀Lumière฀Lyon฀2฀(França).฀O฀título฀corresponde฀plenamente฀ao฀ objeto฀e฀ao฀espírito฀da฀pesquisa฀do฀tema฀pelo฀qual฀o฀autor฀demonstrou฀ interesse฀ antes฀ mesmo฀ de฀ iniciar฀ seu฀ estudo฀ doutoral.฀ Em฀ sua฀ dissertação฀ de฀ mestrado฀ em฀ História฀ pela฀ Universidade฀ Federal฀ de฀ Minas฀ Gerais,฀ defendida฀ em฀ 1997,฀ intitulada฀ A฀idéia฀de฀Estado฀na฀Alta฀Idade฀Média฀ocidental.฀O฀Regnum฀Francorum฀entre฀os฀séculos฀V฀e฀VIII,฀ Marcelo฀Cândido฀examinava฀o฀sistema฀político฀merovíngio฀do฀ponto฀de฀ vista฀tradicional.฀No฀estudo฀Recherches฀sur฀la฀sacralisation฀du฀pouvoir฀ temporel฀dans฀le฀Haut฀Moyen฀Age,฀que฀apresentou฀para฀obtenção฀do฀ D.E.A.,฀na฀Universidade฀de฀Lyon฀2,฀em฀1998,฀reviu฀sua฀interpretação฀e฀฀ teceu฀crítica฀à฀tese฀da฀“patrimonialidade”฀e฀do฀“absolutismo”฀da฀realeza฀ franca.฀ 12฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média O฀ livro฀ de฀ Marcelo฀ Cândido฀ da฀ Silva฀ propõe฀ profunda฀ reflexão฀ sobre฀ o฀ poder฀ franco฀ entre฀ o฀ final฀ do฀ século฀V฀ e฀ o฀ início฀ do฀VIII,฀ e฀ revela฀ como฀ a฀ dinastia฀ merovíngia,฀ em฀ alguns฀ aspectos฀ sucessora฀ do฀ modelo฀romano,฀tornou-se฀verdadeiramente฀cristã.฀Em฀outros฀termos:฀ como฀e฀quando฀se฀processou฀na฀Gália฀o฀estabelecimento฀de฀nova฀autoridade฀ pública฀ de฀ inequívoca฀ influência฀ moral฀ e฀ política฀ da฀ Igreja.฀ O฀texto฀aborda฀aspecto฀fundamental฀para฀a฀compreensão฀do฀processo฀ de฀ estabelecimento฀ da฀ Realeza฀ Cristã฀ no฀ Ocidente.฀ Para฀ demonstrar฀ a฀influência฀da฀doutrina฀religiosa฀na฀legitimidade฀política฀da฀realeza,฀ o฀ autor฀ examina฀ pormenores฀ dos฀ vínculos฀ de฀ natureza฀ institucional.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀divorcia-se฀deliberadamente฀de฀teses฀renomadas฀e฀oferece฀nova฀interpretação฀sobre฀o฀exercício฀da฀utilitas฀publica฀ na฀primeira฀dinastia฀franca. O฀estudo฀começa฀pela฀análise฀da฀linha฀historiográfica฀tradicional,฀ que฀lança฀sobre฀os฀merovíngios฀pesadas฀acusações.฀Essa฀linha,฀apoiada฀em฀textos฀antigos,฀atribui฀à฀primeira฀dinastia฀franca฀a฀falência฀da฀ idéia฀de฀respublica฀e฀salienta฀a฀violência฀como฀prática฀dominante฀na฀ vida฀política.฀A฀ferocidade฀dos฀reis฀merovíngios,฀divulgada฀por฀Gregório฀ de฀ Tours฀ nas฀ Histórias,฀ deu฀ consistência฀ à฀ noção฀ de฀ uma฀ sociedade฀fundada฀na฀força.฀Fustel฀de฀Coulanges฀sublinhou฀a฀violência฀ brutal฀ dos฀ merovíngios฀ como฀ instrumento฀ de฀ política฀ dinástica฀ em฀ expressão฀famosa:฀“despotismo฀temperado฀pelo฀assassinato”.฀O฀livro฀ de฀Fustel฀de฀Coulanges,฀Histoire฀des฀institutions฀de฀l’ancienne฀France฀ (1912),฀é฀referência฀obrigatória฀para฀o฀estudo฀dos฀merovíngios฀e฀carolíngios,฀especialmente฀o฀volume฀3.฀Segundo฀Fustel฀de฀Coulanges,฀a฀ monarquia฀merovíngia฀identifica-se฀com฀o฀processo฀da฀crise฀da฀idéia฀ de฀respublica,฀que฀remonta฀ao฀Baixo฀Império.฀Sustenta฀o฀caráter฀patrimonial฀da฀realeza฀“que฀se฀transmite฀segundo฀regras฀comuns;฀mas฀ se฀podia฀mesmo฀legar฀por฀testamento฀ou฀por฀simples฀declaração฀de฀ vontade,฀como฀se฀faria฀com฀um฀domínio”.฀Desse฀modo,฀a฀sucessão฀se฀ processa฀de฀acordo฀com฀o฀direito฀privado,฀em฀que฀o฀poder฀se฀transmite฀ de฀ pai฀ para฀ filho.฀ Os฀ reis฀ francos฀ associam฀ o฀ interesse฀ público฀ ao฀seu฀poder฀pessoal.฀Portanto,฀as฀medidas฀do฀soberano฀merovíngio฀ refletem฀ sua฀ exclusiva฀ vontade฀ pessoal,฀ como฀ verdadeiro฀ proprietá- Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀13 rio฀do฀reino.฀Produto฀da฀conquista,฀o฀Regnum฀Francorum฀não฀possui฀ legitimidade฀teórica;฀por฀isso,฀busca฀legitimar฀seu฀poder฀na฀força฀militar฀e฀em฀Deus. ฀ As฀ idéias฀ de฀ Fustel฀ de฀ Coulanges฀ exerceram฀ poderosa฀ influência฀ sobre฀ os฀ que฀ se฀ dedicaram฀ a฀ estudar฀ a฀ dinastia฀ merovíngia.฀ Sua฀ tese฀ sobre฀o฀caráter฀patrimonial฀do฀Reino฀Franco฀e฀a฀falência฀da฀autoridade฀ pública฀fez฀notável฀sucesso฀entre฀os฀historiadores.฀F.฀Lot,฀L.฀Halphen,฀F.฀ L.฀ Ganshof฀ e฀ M.฀ Reydellet฀ perseguiram฀ o฀ caminho฀ de฀ Fustel฀ de฀ Coulanges.฀De฀modo฀geral,฀os฀trabalhos฀publicados฀do฀final฀do฀século฀XIX฀ até฀a฀década฀de฀oitenta฀do฀século฀seguinte฀indicam฀três฀características฀ básicas฀do฀sistema฀político฀merovíngio:฀a฀patrimonialidade,฀o฀desaparecimento฀ do฀ Estado฀ e฀ o฀ absolutismo฀ monárquico.฀ Obras฀ recentes฀ de฀ síntese฀sobre฀o฀período฀medieval฀acolhem฀a฀noção฀tradicional,฀como฀se฀ vê฀em฀A.฀Vauchez,฀La฀spiritualité฀dans฀le฀Moyen฀Age฀occidental฀(1994).฀฀ Em฀seu฀estudo฀Pouvoir฀et฀culture฀politique฀dans฀la฀France฀médiévale,฀de฀ 1999,฀ F.฀ Collard฀ faz,฀ igualmente,฀ dos฀ séculos฀ merovíngios฀ uma฀ época฀ ignominiosa.฀A฀mesma฀visão฀negativa฀da฀monarquia฀franca฀e฀da฀fixação฀ dos฀bárbaros฀no฀antigo฀território฀romano฀tem฀Jacques฀Le฀Goff.฀Na฀Civilisation฀de฀l’Occident฀Médiéval฀(1965),฀o฀conhecido฀historiador฀sustenta฀ que฀os฀invasores฀“precipitaram,฀agravaram฀e฀exageraram฀a฀decadência฀ que฀se฀tinha฀iniciado฀no฀Baixo฀Império.฀Do฀declínio฀fizeram฀a฀regressão.฀ Regressão฀também฀dos฀costumes฀e฀da฀majestade฀do฀governo.฀Com฀efeito,฀existe฀uma฀sólida฀tradição฀histórica฀que฀vê฀o฀começo฀da฀Idade฀Média฀ como฀a฀derrocada฀de฀Roma. Ancorado฀no฀rico฀acervo฀documental฀das฀bibliotecas฀universitárias฀ de฀ Lyon,฀ de฀ proveitosa฀ visita฀ à฀ École฀ Française฀ de฀ Rome฀ e฀ a฀ outros฀ centros฀importantes฀na฀Europa,฀Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀manifestase฀contrário฀à฀tendência฀comum฀que฀julga฀os฀primeiros฀séculos฀medievais฀como฀um฀período฀de฀recuo฀ou฀de฀declínio฀do฀mundo฀romano.฀ Paciente฀releitura฀das฀fontes,฀sistemática฀e฀criteriosa,฀lhe฀permite฀sustentar฀que฀o฀processo฀de฀mudança฀da฀“Realeza฀Constantiniana”฀–฀continuadora฀do฀modelo฀romano฀–฀em฀“Realeza฀Cristã”฀resulta฀da฀extraordinária฀influência฀da฀aristocracia฀episcopal,฀no฀século฀VI.฀Observa,฀ ainda,฀ que฀ o฀ problema฀ da฀ sobrevivência฀ da฀ utilitas฀ publica฀ culmina฀ 14฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média com฀a฀modificação฀da฀natureza฀da฀autoridade฀real฀no฀Regnum฀Francorum,฀no฀reinado฀de฀Gontran,฀quando฀o฀apoio฀dos฀bispos฀produz฀novo฀ equilíbrio฀nas฀relações฀entre฀Igreja฀e฀realeza.฀A฀minuciosa฀análise฀dos฀ concílios฀de฀Lyon฀(581)฀e฀de฀Mâcon฀(585),฀e฀mais฀tarde฀do฀Concílio฀ de฀Paris฀(614),฀dá-lhe฀ensejo฀de฀mostrar฀que฀o฀episcopado฀se฀torna,฀no฀ início฀do฀século฀VII,฀฀“o฀grupo฀político฀mais฀poderoso”,฀o฀que฀favorece฀ a฀cristianização฀acelerada฀da฀utilitas฀publica.฀É฀nesse฀momento฀que฀se฀ estabelece,฀diz฀o฀autor,฀o฀equilíbrio฀nas฀relações฀entre฀a฀Igreja฀e฀o฀poder฀ real.฀O฀Edito฀de฀Gontrão฀(585)฀ilustra฀e฀estreita฀a฀colaboração฀entre฀os฀ poderes฀temporal฀e฀religioso,฀“sob฀o฀signo฀da฀responsabilidade฀do฀rei฀ em฀face฀de฀Deus”.฀ O฀ erudito฀ trabalho฀ de฀ Marcelo฀ Cândido฀ da฀ Silva฀ fundamenta-se,฀ basicamente,฀ em฀ fontes฀ primárias฀ rigorosamente฀ selecionadas฀ (diplomas,฀prescrições,฀julgamentos,฀atas,฀textos฀narrativos฀de฀Gregório฀ de฀Tours฀e฀de฀Fredegário,฀poemas฀de฀Fortunato,฀obras฀hagiográficas,฀ fontes฀ legislativas฀ e฀ administrativas,฀ além฀ de฀ outras)฀ e฀ de฀ ampla฀ bibliografia.฀Todas฀as฀fontes฀referidas฀documentam฀afirmações฀do฀texto.฀ Debruçado฀sobre฀os฀primórdios฀da฀realeza฀franca,฀o฀jovem฀pesquisador฀revela฀sensibilidade฀ao฀perceber฀o฀novo,฀o฀processo฀de฀nascimento฀ na฀Gália฀de฀outro฀tipo฀de฀autoridade฀pública,฀que฀se฀alimentou฀na฀teologia฀política฀defendida฀e฀sustentada฀pelo฀episcopado฀franco.฀Criativo,฀ não฀teme฀ousar.฀Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀preocupa-se฀em฀responder฀ ao฀problema฀da฀definição฀da฀expressão฀reges฀pro฀publicis฀utilitatibus,฀ que,฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀significaria฀a฀continuação฀da฀ ideologia฀imperial฀(imitatio฀imperii),฀e฀mostra฀a฀passagem฀para฀o฀reges฀ pro฀populi฀salvatione฀para฀sublinhar฀o฀caráter฀“pastoral”฀do฀poder฀real.฀ É฀estudo฀de฀problema฀complexo฀e฀difícil,฀de฀capital฀importância฀para฀ compreender฀ a฀ formação฀ e฀ o฀ desenvolvimento฀ da฀ monarquia฀ merovíngia.฀ Para฀ enfatizar฀ a฀ preponderância฀ do฀ elemento฀ religioso฀ como฀ legitimador฀da฀autoridade฀pública,฀Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀faz฀penetrante฀ incursão฀ no฀ estudo฀ dos฀ vínculos฀ de฀ natureza฀ institucional.฀ Acredita฀que฀a฀sobrevida฀do฀Império฀não฀é฀uma฀“ficção฀constitucional”.฀ Defende฀ que฀ as฀ sucessivas฀ partilhas฀ não฀ romperam฀ a฀ unidade฀ fundamental฀do฀Reino฀dos฀Francos.฀Substituta฀do฀poder฀romano฀na฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀15 Gália,฀a฀realeza฀merovíngia฀soube฀preservar฀o฀essencial฀da฀autoridade฀ pública.฀Trata-se฀de฀livro฀importante฀e฀de฀alto฀sentido฀na฀bibliografia฀ da฀realeza฀merovíngia,฀carente฀ainda฀de฀obras฀recentes. Daniel฀Valle฀Ribeiro Professor฀Titular฀de฀História฀Medieval฀da Universidade฀Federal฀de฀Minas฀Gerais฀(UFMG) Introdução  Os฀chamados฀“reinos฀bárbaros”฀têm,฀há฀muito฀tempo,฀despertado฀o฀ interesse฀dos฀historiadores.฀Inúmeros฀trabalhos฀foram฀consagrados฀a฀esse฀ tema฀desde฀o฀século฀XVIII,฀como฀a฀Histoire฀critique฀de฀l’établissement฀ de฀la฀monarchie฀française฀dans฀les฀Gaules,฀ do฀ abade฀ Dubbos,฀ publicada฀em฀1742,฀e฀De฀l’esprit฀des฀lois,฀de฀Montesquieu,฀de฀1748.฀É฀bem฀ verdade฀que฀outros฀temas฀–฀por฀exemplo,฀“a฀crise฀do฀mundo฀romano”฀ –฀ suscitaram฀ uma฀ maior฀ diversidade฀ de฀ interpretações1.฀ Entretanto,฀ é฀ em฀torno฀da฀natureza฀dos฀“reinos฀bárbaros”฀que฀observamos฀as฀mais฀extraordinárias฀mudanças฀no฀posicionamento฀dos฀historiadores.฀Em฀uma฀ comparação฀ entre฀ os฀ trabalhos฀ publicados฀ sobre฀ o฀ assunto฀ no฀ século฀ XIX฀e฀as฀obras฀mais฀recentes,฀o฀que฀mais฀chama฀a฀atenção฀é฀a฀evolução฀dos฀pontos฀de฀vista฀sobre฀a฀natureza฀das฀realezas฀que฀sucederam฀ao฀ Império฀no฀Ocidente.฀Inicialmente฀consideradas฀fruto฀do฀ocaso฀da฀ci1 ฀Um฀bom฀exemplo฀dessa฀diversidade฀está฀na฀obra฀do฀historiador฀alemão฀A.฀Demandt฀que,฀ em฀1984,฀recenseou฀cerca฀de฀210฀fatores฀que฀eram฀até฀então฀invocados฀para฀explicar฀a฀crise฀do฀ mundo฀romano฀(A.฀Demandt,฀Der฀Fall฀Roms,฀p.฀493). 18฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média vilização฀romana,฀essas฀realezas฀são฀hoje฀vistas฀por฀vários฀historiadores฀ como฀ construções฀ institucionais฀ altamente฀ elaboradas;฀ alguns฀ autores฀ nem฀sequer฀hesitam฀em฀falar฀de฀“Estado”2฀para฀defini-las,฀algo฀bastante฀ improvável฀há฀alguns฀anos.฀ Certamente,฀essa฀“guinada฀historiográfica”฀não฀pode฀ser฀explicada฀pelo฀ advento฀de฀uma฀“revolução฀documental”.฀O฀conjunto฀de฀textos฀disponíveis฀ dos฀séculos฀V,฀VI฀e฀VII฀–฀bem฀reduzido฀se฀comparado฀com฀outros฀períodos฀ da฀Idade฀Média,฀diga-se฀de฀passagem฀–฀permanece฀praticamente฀inalterado฀ desde฀o฀final฀do฀século฀XIX.฀Não฀houve฀nenhuma฀descoberta฀significativa฀ –฀arqueológica฀ou฀documental฀–฀que฀pudesse฀transformar฀radicalmente฀o฀ conhecimento฀sobre฀o฀período฀–฀e฀assim฀explicar฀tamanha฀mudança.฀As฀ razões฀dessa฀evolução฀historiográfica฀devem,฀portanto,฀ser฀buscadas฀muito฀ além฀das฀polêmicas฀de฀erudição.฀Fatores฀políticos฀e฀ideológicos฀desempenharam฀um฀papel฀crucial฀nesse฀processo,฀sobretudo฀no฀que฀se฀refere฀ao฀caso฀ dos฀francos,฀referenciais฀da฀construção฀das฀identidades฀francesa฀e฀alemã,฀e฀ pomos฀da฀discórdia฀entre฀os฀historiadores฀de฀ambas฀as฀nacionalidades. “Patrimonialismo”฀e฀“absolutismo”฀฀ É฀possível฀identificar฀desde฀o฀final฀do฀século฀XIX฀entre฀os฀historiadores฀ franceses,฀bem฀como฀entre฀os฀historiadores฀alemães,฀duas฀visões฀distintas฀ sobre฀a฀natureza฀da฀monarquia฀franca.฀Entre฀os฀autores฀alemães฀a฀atitude฀ para฀com฀os฀francos฀não฀era฀homogênea฀–฀como฀veremos฀a฀seguir.฀Contudo,฀prevaleceu฀entre฀eles฀uma฀visão฀bastante฀positiva฀de฀Clóvis3฀(c.฀4812 ฀É฀o฀caso,฀por฀exemplo,฀de฀K.F.฀Werner฀(“L’Historien฀et฀la฀notion฀d’Etat”,฀pp.฀29-41)฀e฀de฀J.฀ Durliat฀(Les฀finances฀publiques฀de฀Dioclétien฀aux฀Carolingiens).฀฀฀ 3 ฀O฀nome฀Clóvis฀constitui฀uma฀interpretação฀bastante฀aleatória฀das฀formas฀utilizadas฀pelos฀historiadores฀da฀época฀franca.฀Gregório฀de฀Tours฀escreve฀Chlodovechus,฀ao฀passo฀que฀no฀terceiro฀ livro฀das฀crônicas฀atribuídas฀a฀Fredegário,฀nas฀cartas฀de฀Remígio฀e฀na฀Vita฀Genovefae,฀encontramos฀Chlodoveus;฀o฀Pactus฀legis฀Salicae฀adota฀as฀formas฀Chlodoveux฀e฀Chlodeveus฀(Pactus฀legis฀ Salicae,฀p.฀198);฀na฀Vita฀Remigii,฀encontramos฀Chlodovicus฀(Vita฀Remigii฀episcopi฀Remensis฀ auctore฀Hincmaro,฀11,฀p.฀291),฀enquanto฀Jordanes฀utiliza฀a฀forma฀Chlodoin฀(De฀rebus฀Geticis,฀ 57,฀p.฀133).฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀19 511)฀e฀de฀seus฀herdeiros,฀ou฀porque฀ele฀era฀visto฀como฀o฀conquistador฀e฀ o฀libertador฀da฀Gália,฀ou฀porque฀se฀percebe฀nele฀hoje฀o฀herdeiro฀daquilo฀ que฀se฀convencionou฀chamar฀de฀“Romanidade”.฀Durante฀o฀século฀XIX,฀ os฀eruditos฀alemães,฀a฀quem฀devemos฀as฀primeiras฀edições฀das฀fontes฀ escritas฀sobre฀o฀mundo฀romano฀e฀sobre฀os฀reinos฀romano-germânicos฀ –฀notadamente฀o฀Corpus฀Inscriptionum฀Latinarum฀e฀os฀Monumenta฀ Germaniae฀Historica฀–฀estavam฀majoritariamente฀convencidos฀que฀o฀ ano฀476฀d.C.฀marcou฀o฀fim฀do฀Império฀no฀Ocidente.฀Eles฀acreditavam฀ que฀as฀invasões฀germânicas฀significaram฀o฀triunfo฀de฀povos฀jovens฀e฀virtuosos฀em฀face฀de฀um฀Império฀“decadente”฀e฀“corrompido”.฀Para฀esses฀ autores฀era฀difícil,฀e฀até฀mesmo฀impossível,฀aceitar฀a฀descrição฀negativa฀ dos฀francos฀feita฀pelos฀historiadores฀franceses.฀Aqueles฀que฀teriam฀trazido฀ao฀Ocidente฀um฀vigor฀novo,฀e฀que฀o฀teriam฀regenerado฀após฀séculos฀ de฀crise฀política,฀econômica฀e฀moral,฀decididamente฀não฀poderiam฀ser฀ os฀criminosos฀de฀que฀falavam฀os฀historiadores฀franceses. Para฀ muitos฀ historiadores฀ franceses฀ no฀ mesmo฀ período,฀ a฀ predominância฀ dos฀ elementos฀ germânicos฀ na฀ formação฀ das฀ monarquias฀ ocidentais฀teria฀acarretado฀uma฀brutal฀regressão฀política.฀A฀publicação฀ dos฀Récits฀des฀temps฀mérovingiens,฀de฀Augustin฀Thierry,฀em฀1840,฀em฀ muito฀contribuiu฀para฀a฀difusão฀da฀“lenda฀negra”฀dos฀francos.฀A.฀Thierry฀queria฀demonstrar฀que฀o฀conflito฀entre฀a฀burguesia฀e฀a฀aristocracia฀do฀ seu฀tempo฀tivera฀como฀origem฀o฀antagonismo฀entre฀os฀galo-romanos฀e฀ os฀invasores฀bárbaros4.฀฀฀ Ambas฀as฀interpretações฀mencionadas฀reconhecem฀a฀predominância฀ do฀legado฀germânico฀na฀formação฀dos฀reinos฀ocidentais,฀daí฀a฀utilização฀ da฀ expressão฀“Escola฀ germanista”฀ para฀ designá-las.฀ Nascida฀ na฀ França฀ do฀século฀XVIII,฀essa฀corrente฀historiográfica฀não฀hesitava฀em฀apontar฀ os฀reinos฀bárbaros฀como฀o฀fruto฀da฀conquista฀germânica฀e฀do฀fim฀do฀ Império฀Romano.฀Essa฀tendência฀tornou-se฀majoritária฀entre฀os฀historiadores฀ de฀ língua฀ francesa฀ ao฀ longo฀ dos฀ séculos฀ XIX฀ e฀ XX.฀ Entre฀ os฀ adeptos฀da฀“Escola฀germanista”฀na฀Alemanha,฀havia฀G.฀Waitz,฀R.฀Sohm,฀ 4 ฀Ver฀A.฀Dhôtel,฀“Préface”,฀In:฀A.฀Thierry,฀Récits฀de฀temps฀mérovingiens,฀précédés฀de฀Considérations฀sur฀l’histoire฀de฀France,฀pp.฀9-22.฀฀฀ 20฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média W.฀Sickel฀e฀F.฀Dahn.฀Há฀vários฀pontos฀em฀comum฀na฀argumentação฀dos฀ adeptos฀alemães฀do฀“germanismo”:฀eles฀viam฀os฀germânicos฀como฀povos฀“virtuosos”฀cuja฀contribuição฀maior฀teria฀sido฀a฀de฀libertar฀os฀povos฀ do฀Ocidente฀do฀domínio฀da฀aristocracia฀romana;฀para฀eles,฀os฀reis฀merovíngios฀teriam฀exercido฀o฀governo฀na฀Gália฀muito฀mais฀em฀razão฀de฀um฀ direito฀ de฀ conquista฀ do฀ que฀ por฀ uma฀ delegação฀ imperial.฀ Entretanto,฀ nem฀todos฀os฀historiadores฀alemães฀do฀século฀XIX฀professaram฀o฀credo฀ germanista.฀C.฀von฀Savigny฀(1779-1861)฀e฀Th.฀Mommsen฀(1827-1903)฀ sustentaram฀ ambos฀ a฀ sobrevivência฀ do฀ direito฀ romano฀ na฀ Alta฀ Idade฀ Média.฀ A฀perenidade฀da฀herança฀imperial,฀após฀as฀invasões฀e฀apesar฀delas,฀ é฀ o฀ corolário฀ da฀ “Escola฀ romanista”,฀ cujo฀ primeiro฀ expoente฀ foi฀ um฀ francês,฀ o฀ abade฀ Dubos.฀ Em฀ sua฀ obra,฀ intitulada฀ Histoire฀critique฀de฀ l’établissement฀ de฀ la฀ monarchie฀ française฀ dans฀ les฀ Gaules,฀ ele฀ apresenta฀Childerico฀(c.456฀–฀c.482)฀e฀Clóvis฀como฀súditos฀do฀imperador,฀ ao฀invés฀de฀conquistadores฀da฀Gália.฀O฀poder฀real฀dos฀merovíngios฀terse-ia฀originado,฀segundo฀o฀abade฀Dubos,฀de฀uma฀delegação฀conferida฀ por฀Constantinopla.฀As฀instituições฀da฀monarquia฀franca฀seriam฀uma฀ transposição฀de฀Roma,฀e฀não฀uma฀criação฀do฀mundo฀germânico.฀Essas฀ idéias฀ encontraram฀ um฀ sucesso฀ limitado฀ no฀ ambiente฀ historiográfico฀ europeu฀até฀um฀período฀muito฀recente,฀pelas฀razões฀que฀mostraremos฀ a฀seguir.฀ Na฀França,฀durante฀o฀século฀XIX,฀o฀debate฀em฀torno฀da฀transição฀da฀ Antigüidade฀à฀Idade฀Média฀constitui-se฀em฀uma฀espécie฀de฀“front฀acadêmico”฀do฀combate฀nacional.฀Para฀os฀germanistas฀franceses,฀a฀“Germanité”฀foi฀durante฀muito฀tempo฀sinônimo฀de฀crueldade฀e฀decadência.฀ Esta฀ tendência฀ já฀ era฀ visível฀ a฀ partir฀ da฀ primeira฀ metade฀ século฀ XIX.฀ J.-M.฀ Lehuërou,฀ em฀ livro฀ publicado฀ em฀ 1842,฀ afirmava฀ que฀ os฀ francos฀eram,฀em฀sua฀origem,฀povos฀renegados,฀expulsos฀de฀sua฀terra฀natal฀ pela฀sua฀barbárie฀e฀pela฀ferocidade฀de฀seus฀costumes5.฀No฀entanto,฀foi฀ durante฀a฀3a฀República,฀e฀sob฀o฀choque฀da฀derrota฀de฀1871,฀que฀os฀me5 ฀J.-M.฀Lehuërou,฀Histoire฀des฀institutions฀mérovingiennes฀et฀du฀gouvernement฀des฀Mérovingiens฀jusqu’à฀l’édit฀de฀615฀(sic),฀pp.100-101. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀21 dievalistas฀franceses฀se฀habituaram฀a฀apresentar฀o฀desaparecimento฀do฀ Estado฀e฀o฀triunfo฀dos฀interesses฀privados฀como฀os฀corolários฀naturais฀ da฀“crueldade”฀dos฀povos฀germânicos6.฀Se฀a฀preocupação฀dos฀primeiros฀“germanistas”฀franceses฀era฀identificar฀até฀onde฀o฀estabelecimento฀ dos฀bárbaros฀na฀Gália฀tinha฀sido฀a฀fonte฀principal฀de฀legitimidade฀dos฀ privilégios฀da฀nobreza,฀mais฀tarde,฀durante฀o฀século฀XIX,฀eles฀passaram฀ a฀ associar฀ o฀ triunfo฀ das฀ tradições฀ germânicas฀ à฀ regressão฀ brutal฀ dos฀ costumes฀políticos.฀Com฀a฀queda฀do฀Império฀do฀Ocidente,฀a฀res฀publica,฀ encarnação฀suprema฀da฀vontade฀dos฀cidadãos,฀teria฀cessado฀de฀existir,฀ levando฀com฀ela฀as฀instituições฀públicas.฀Somente฀o฀“direito”฀teria฀sobrevivido,฀mas฀unicamente฀como฀encarnação฀da฀vontade฀pessoal฀dos฀ soberanos,฀até฀sucumbir฀por฀sua฀vez฀em฀face฀de฀uma฀aristocracia฀predadora฀que฀se฀amparou฀de฀todo฀o฀poder฀político,฀provocando฀o฀ocaso฀ do฀poder฀real.฀ Historiadores฀e฀arqueólogos฀franceses฀habituaram-se฀a฀opor฀a฀“crueldade”,฀inerente฀ao฀mundo฀germânico,฀à฀“civilização”฀romana,฀da฀qual฀a฀ França฀moderna฀seria฀a฀herdeira7.฀E฀quando฀faziam฀referência฀aos฀“bárbaros”,฀eram฀os฀alemães฀que฀eles฀visavam.฀Para฀citar฀apenas฀um฀exemplo,฀ E.฀Salin฀dedicou฀sua฀obra฀sobre฀a฀arqueologia฀merovíngia฀à฀memória฀do฀ Marquês฀de฀Baye฀que,฀segundo฀ele,฀“percebeu฀o฀alcance฀profundo฀das฀ grandes฀invasões฀do฀século฀V”,฀e฀também฀à฀memória฀de฀J.฀Déchelette,฀ 6 ฀Ver฀P.฀Geary,฀“Différence฀ethnique฀et฀nationalisme฀au฀XIXe฀siècle:฀un฀paysage฀empoisonné”,฀ In:฀ Quand฀ les฀ nations฀ refont฀ l’histoire.฀ L’invention฀ des฀ origines฀ médiévales฀ de฀ l’Europe,฀ Paris,฀2004,฀pp.25-56.฀฀ 7 ฀Em฀suas฀Leçons฀à฀l’impératrice,฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges฀escreveu:฀“Roma฀criou฀a฀administração.฀ Seu฀ sistema฀ administrativo฀ desabou฀ ao฀ mesmo฀ tempo฀ que฀ o฀ Império;฀ mas฀ restaram฀ lembranças,฀tradições.฀Um฀dia,฀a฀realeza฀franca฀recuperou฀essas฀lembranças฀e฀essas฀tradições฀e฀começou฀a฀reconstruir฀pouco฀a฀pouco฀o฀velho฀edifício.฀Eu฀devo฀dizer฀que฀a฀longo฀prazo฀ela฀conseguiu.฀ Quanto฀ às฀ leis฀ romanas,฀ elas฀ nunca฀ desapareceram฀ completamente.฀ É฀ verdade฀ que฀ outras฀ leis,฀ germânicas฀e฀feudais,฀vieram฀estabelecer-se฀na฀França,฀mas฀sem฀sufocar฀as฀leis฀romanas.฀As฀duas฀ legislações,฀romana฀e฀feudal,฀viveram฀lado฀a฀lado฀entre฀nós฀durante฀séculos,฀inimigas฀entre฀elas฀e฀ não฀cessando฀de฀guerrear.฀A฀luta฀terminou฀somente฀em฀1789฀com฀a฀vitória฀das฀leis฀romanas,฀que฀ predominaram฀efetivamente฀e฀que฀formam฀hoje฀as฀bases฀de฀nosso฀Código฀Napoleônico”฀(Leçons฀à฀ l’impératrice฀sur฀les฀origines฀de฀la฀civilisation฀française,฀pp.฀140-141). 22฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média cuja฀carreira฀tinha฀sido฀interrompida฀na฀aurora฀das฀“grandes฀invasões”฀ do฀século฀XX8.฀฀É฀clara฀aqui฀a฀intenção฀do฀autor฀em฀apontar฀uma฀linha฀ de฀continuidade฀entre฀a฀“barbárie”฀dos฀antigos฀germânicos฀e฀a฀moderna฀ “barbárie”฀alemã.฀฀ Não฀ se฀ pode฀ dividir฀ os฀ historiadores฀ do฀ mundo฀ franco฀ entre฀ os฀ adeptos฀das฀teses฀“germanistas”฀e฀os฀adeptos฀das฀teses฀“romanistas”.฀Na฀ França฀e฀na฀Alemanha,฀historiadores฀que฀professavam฀idéias฀da฀“Escola฀ germanista”฀ chegaram฀ a฀ conclusões฀ diametralmente฀ opostas฀ sobre฀ a฀ natureza฀da฀monarquia฀franca.฀Além฀disso,฀as฀obras฀de฀alguns฀autores฀ mostram฀a฀relativa฀permeabilidade฀entre฀os฀argumentos฀germanistas฀e฀ os฀argumentos฀romanistas.฀É฀o฀caso฀de฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges.฀Ele฀ acreditava฀que฀as฀instituições฀e฀o฀direito฀romanos฀sobreviveram฀às฀invasões;฀ao฀mesmo฀tempo,฀considerava฀que฀o฀que฀havia฀de฀negativo฀na฀ monarquia฀ franca฀ era฀ de฀ origem฀ germânica9.฀ Em฀ sua฀ obra,฀ Histoire฀ des฀institutions฀politiques฀de฀l’ancienne฀France,฀Fustel฀de฀Coulanges฀ afirmava฀ que,฀ como฀ as฀ instituições฀ germânicas฀ eram฀ inexistentes฀ ou฀ ineficazes฀para฀responder฀às฀necessidades฀de฀um฀sistema฀político฀complexo,฀Clóvis฀e฀seus฀descendentes฀não฀teriam฀tido฀outra฀solução฀senão฀ governar฀como฀seus฀antecessores฀romanos.฀No฀entanto,฀ele฀sustentava฀ que฀o฀germanismo,฀verdadeira฀força฀destrutiva,฀ter-se-ia฀exprimido฀pela฀ privatização฀do฀poder฀político฀e฀pela฀violência.฀Fustel฀de฀Coulanges฀queria฀provar฀que฀a฀formação฀dos฀reinos฀bárbaros฀não฀tinha฀provocado฀o฀ fim฀da฀romanidade.฀Ele฀via฀nas฀tomadas฀de฀posição฀dos฀historiadores฀ alemães฀um฀mero฀reflexo฀de฀suas฀paixões฀nacionais:฀o฀sentimento฀patriótico,฀e฀não฀a฀leitura฀dos฀textos,฀é฀que฀teria฀engendrado฀a฀interpretação฀ dos฀historiadores฀alemães฀sobre฀a฀monarquia฀franca10.฀A฀obra฀de฀Fustel฀ de฀Coulanges,฀apesar฀de฀suas฀pretensões฀de฀impessoalidade฀e฀de฀objeti- 8 ฀E.฀Salin,฀La฀civilisation฀mérovingienne฀d’après฀les฀sépultures,฀les฀textes฀et฀le฀laboratoire,฀t.฀ I,฀Les฀idées฀et฀les฀faits.฀ 9 ฀Sobre฀Fustel฀de฀Coulanges,฀ver฀F.฀Hartog.฀Le฀XIXe฀siècle฀et฀les฀historiens.฀Le฀cas฀Fustel฀de฀ Coulanges.฀฀ 10 La฀monarchie฀franque,฀1888,฀p.31.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀23 vidade,฀vibrava฀de฀todos฀os฀ecos฀das฀querelas฀ideológicas฀de฀seu฀tempo,฀ participando฀ à฀ todas฀ as฀ paixões฀ históricas฀ que฀ animavam฀ os฀ eruditos฀ de฀Paris฀e฀de฀Berlim฀e฀exprimindo-as฀com฀uma฀força฀comparável฀à฀dos฀ historiadores฀mais฀engajados฀do฀momento11.฀ Fustel฀de฀Coulanges฀identificava฀na฀monarquia฀dos฀francos฀o฀ponto฀culminante฀da฀crise฀da฀idéia฀de฀res฀publica฀cujos฀primeiros฀sintomas฀ remontariam฀ à฀ época฀ do฀ Baixo฀ Império.฀ O฀ caráter฀ patrimonial฀ do฀ sistema฀político฀merovíngio฀teria฀sua฀origem฀na฀transmissão฀do฀poder฀ real฀segundo฀as฀regras฀do฀direito฀privado.฀Não฀somente฀a฀realeza฀seria฀ um฀patrimônio฀que฀se฀transmitiria฀segundo฀as฀regras฀ordinárias,฀mas฀ ela฀poderia฀mesmo฀ser฀legada฀por฀testamento฀ou฀por฀simples฀declaração฀de฀vontade,฀da฀mesma฀forma฀que฀um฀domínio12.฀Nunca฀antes฀ dos฀merovíngios,฀dizia฀ele,฀o฀poder฀monárquico฀havia฀sido฀assim฀estreitamente฀associado฀a฀um฀bem฀privado13.฀Verdadeiros฀“proprietários฀ do฀reino”,฀esses฀príncipes฀teriam฀sido฀também฀mestres฀absolutos฀dos฀ homens฀e฀das฀terras14.฀฀฀฀ É฀difícil฀qualificar฀Fustel฀de฀Coulanges฀de฀“romanista”฀ou฀“germanista”,฀ dada฀a฀sutileza฀de฀sua฀análise:฀ele฀não฀subestimava฀a฀influência฀germânica฀ nas฀instituições฀francas,฀mas,฀ao฀mesmo฀tempo,฀não฀aceitava฀a฀idéia฀de฀que฀o฀ legado฀romano฀tivesse฀sido฀destruído.฀Por฀outro฀lado,฀sua฀afirmação฀segundo฀ a฀qual฀o฀governo฀merovíngio฀era฀em฀três฀quartos฀romano฀não฀deixa฀dúvidas฀ quanto฀às฀suas฀afinidades฀com฀as฀teses฀ditas฀romanistas15.฀Ainda฀assim,฀a฀ constatação฀de฀Fustel฀de฀Coulanges฀segundo฀a฀qual฀a฀monarquia฀franca฀era฀ “patrimonial”฀e฀“absoluta”฀marcou฀muito฀mais฀a฀historiografia฀francesa฀que฀ suas฀conclusões฀sobre฀a฀sobrevivência฀das฀idéias฀e฀das฀instituições฀políticas฀ romanas.฀Os฀historiadores฀franceses฀adotaram฀majoritariamente฀essas฀teses฀ de฀Fustel฀de฀Coulanges,฀mas฀deixaram฀outras฀de฀lado.฀Sua฀afirmação฀de฀que฀ 11 ฀H.฀Lavigne,฀“Introduction”,฀In:฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges,฀La฀Gaule฀romaine,฀pp.1-25.฀ ฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges,฀La฀monarchie฀franque,฀pp.฀36-37.฀฀฀฀฀ 13 ฀Idem,฀pp.฀649-651. 14 ฀Essa฀é,฀por฀exemplo,฀a฀opinião฀de฀P.-E.฀Fahlbeck,฀La฀royauté฀et฀le฀droit฀royal฀francs฀durant฀ la฀première฀période฀de฀l’existence฀du฀royaume฀(486-614),฀p.฀70฀et฀sq.฀ 15 ฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges,฀La฀monarchie฀franque,฀p.฀651. 12 24฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média as฀instituições฀romanas฀sobreviveram฀à฀queda฀de฀Roma฀acabou฀se฀dissipando฀em฀numerosos฀trabalhos฀sobre฀a฀monarquia฀franca฀que,฀ao฀longo฀século฀ XX,฀insistiram฀na฀tese฀do฀desaparecimento฀da฀autoridade฀pública. Nas฀ primeiras฀ décadas฀ do฀ século฀ XX,฀ houve฀ uma฀ tentativa฀ de฀ se฀ romper฀ com฀ a฀ clivagem฀ romanismo/germanismo.฀ Na฀ visão฀ de฀ F.฀ Lot,฀ por฀exemplo,฀procurar฀saber฀se฀a฀realeza฀franca฀estava฀mais฀próxima฀da฀ antiga฀Germânia฀ou฀do฀Império฀Romano฀era฀um฀falso฀problema16.฀No฀ livro฀La฀fin฀du฀monde฀antique฀et฀le฀début฀du฀Moyen-Age,฀publicado฀em฀ 1927,฀ele฀via฀na฀conquista,฀ou฀melhor,฀na฀“tomada”฀da฀Gália฀por฀Clóvis฀ um฀evento฀decisivo฀que฀teria฀criado฀um฀“sistema฀político฀mais฀original฀em฀ sua฀forma฀e฀em฀suas฀estruturas฀que฀os฀outros฀reinos฀bárbaros฀nascidos฀da฀ decomposição฀do฀mundo฀romano”.฀No฀entanto,฀o฀sentido฀negativo฀que฀F.฀ Lot฀atribui฀a฀essa฀originalidade฀é฀bastante฀explícito:฀da฀mesma฀maneira฀ que฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges,฀ele฀descreve฀o฀Regnum฀Francorum฀como฀a฀ propriedade฀do฀soberano.฀Quando฀da฀morte฀desse฀último,฀o฀reino฀seria฀ dividido฀entre฀seus฀filhos฀sem฀se฀levar฀em฀conta฀a฀geografia,฀a฀etnografia,฀ os฀desejos฀ou฀as฀conveniências฀das฀populações.฀Assim฀sendo,฀não฀haveria฀ e฀não฀teria฀podido฀haver฀limites฀ao฀poder฀arbitrário฀do฀rei.฀Se฀é฀possível฀ afirmar,฀como฀pretende฀P.฀Riché,฀que฀F.฀Lot฀foi฀um฀dos฀primeiros฀historiadores฀ a฀ recusar฀ a฀ ruptura฀ entre฀Antigüidade฀ e฀ Idade฀ Média17,฀ sua฀ maior฀preocupação,฀contrariamente฀ao฀que฀afirma฀P.฀Riché,฀não฀estava฀ em฀ mostrar฀ como฀ as฀ instituições฀ do฀ Baixo-Império฀ sobreviveram฀ na฀ Alta฀Idade฀Média,฀mas฀como฀a฀anarquia฀institucional฀do฀Baixo฀Império฀ prosseguiu฀nos฀reinos฀bárbaros.฀Esses฀últimos฀teriam฀sido฀incapazes฀de฀ “regenerar”฀o฀mundo฀antigo฀e฀de฀criar฀“fórmulas฀políticas฀melhores”18.฀฀฀ 16 ฀F.฀Lot,฀Naissance฀de฀la฀France,฀p.฀167. 17 ฀P.฀Riché,฀Dictionnaire฀des฀Francs.฀Les฀temps฀mérovingiens,฀p.216. 18 ฀ F.฀ Lot,฀ La฀fin฀du฀monde฀antique฀et฀le฀début฀du฀Moyen-Age,฀ p.฀ 433:฀ “A฀ regeneração฀ pelos฀ bárbaros฀é฀uma฀tese฀sedutora฀a฀priori.฀Mas฀quando฀observamos฀nos฀textos฀a฀corrupção฀assustadora฀ desses฀tempos,฀é฀impossível฀ver฀outra฀coisa฀além฀de฀um฀simples฀tema฀retórico฀de฀declamação.฀฀As฀ monarquias฀franca,฀visigoda,฀ostrogoda,฀lombarda,฀são,฀outras฀tantas฀Bizâncio฀germânicas,฀aliança฀da฀decrepitude฀e฀da฀barbárie.฀Tais฀estados,฀sem฀nenhum฀frescor,฀sem฀virtude฀purificadora,฀não฀ eram฀viáveis฀e฀somente฀podiam฀ter฀uma฀existência฀miserável.฀Nenhuma฀forca฀vital฀os฀animava,฀ uma฀vez฀terminado฀o฀período฀guerreiro฀de฀sua฀constituição”. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀25 O฀historiador฀belga฀F.L.฀Ganshof฀no฀iício฀da฀década฀de฀1960,฀também฀buscou฀distanciar-se฀da฀polêmica฀entre฀“romanistas”฀e฀“germanistas”.฀Entre฀todas฀as฀características฀das฀instituições฀da฀monarquia฀franca,฀ ele฀chamou฀a฀atenção฀para฀a฀presença฀de฀“elementos฀de฀origem฀diversa”฀ –฀numa฀tentativa฀de฀encontrar฀uma฀saída฀para฀o฀debate฀entre฀essas฀duas฀ vertentes฀interpretativas.฀Segundo฀Ganshof,฀nem฀a฀tradição฀germânica,฀ nem฀a฀tradição฀romana,฀teriam฀marcado฀a฀monarquia฀franca฀de฀uma฀ maneira฀ indelével฀ a฀ ponto฀ de฀ se฀ poder฀ falar฀ em฀ triunfo฀ de฀ um฀ ou฀ de฀ outro฀elemento19.฀Não฀obstante฀esse฀desejo฀de฀ultrapassar฀os฀limites฀estreitos฀do฀debate฀romanismo/germanismo,฀F.L.฀Ganshof฀contentou-se฀ em฀retomar฀a฀maior฀parte฀dos฀temas฀amplamente฀explorados฀por฀N.D.฀ Fustel฀de฀Coulanges฀e฀por฀F.฀Lot:฀ele฀afirma฀que฀o฀poder฀real฀merovíngio฀ é฀ patrimonial฀ e฀ absoluto,฀ e฀ não฀ possui฀ outros฀ limites฀ além฀ da฀ guerra฀ civil,฀do฀assassinato฀e฀do฀medo฀supersticioso฀de฀Deus฀e฀de฀seus฀santos20. Essa฀idéia,฀aliás,฀já฀se฀encontrava฀nos฀trabalhos฀de฀L.฀Halphen฀desde฀ o฀final฀dos฀anos฀1930.฀Através฀do฀qualificativo฀“bárbaro”฀que฀ele฀associava฀aos฀merovíngios,฀Halphen฀queria฀distinguir฀o฀Reino฀dos฀Francos฀ sob฀os฀merovíngios,฀daquele฀“reformado”฀pelos฀carolíngios.฀O฀primeiro฀ seria฀ um฀ produto฀ da฀ força,฀ um฀ conjunto฀ de฀ territórios฀ heterogêneos฀ unidos฀unicamente฀em฀razão฀da฀ambição฀guerreira฀de฀seus฀dirigentes.฀ O฀mundo฀carolíngio฀teria฀conseguido,฀ainda฀que฀durante฀pouco฀tempo,฀ reconstruir฀uma฀nova฀ordem฀sobre฀as฀ruínas฀do฀mundo฀antigo,฀e฀assim฀ oferecer฀uma฀nova฀alma฀a฀um฀Ocidente฀mortificado21.฀Foi฀em฀um฀artigo฀ publicado฀ no฀ final฀ dos฀ anos฀ cinqüenta฀ que฀ essa฀ comparação฀ assumiu฀ 19 ฀F.L.฀Ganshof,฀“Les฀traits฀généraux฀du฀système฀d’institutions฀de฀la฀monarchie฀franque”,฀pp.฀ 91-127,฀especialmente,฀p.฀93.฀Entre฀os฀que฀sustentam฀a฀idéia฀de฀uma฀“via฀media”,฀e฀que฀recusam฀ toda฀alternativa฀entre฀“germanismo”฀e฀“romanismo”,฀há฀C.฀Pfiester฀[“Gaul฀under฀the฀Merovingian฀Franks.฀Institutions”,฀pp.132-158,฀e฀também฀R.฀Folz,฀A.฀Guillou,฀L.฀Musset฀(De฀l’Antiquité฀ au฀monde฀médiéval,฀pp.116-117].฀ 20 ฀F.L.฀Ganshof,฀“Les฀traits฀généraux฀du฀système฀d’institutions฀de฀la฀monarchie฀franque”,฀p.฀97:฀ “O฀rei฀não฀é฀de฀forma฀alguma฀o฀detentor฀de฀um฀poder฀que฀em฀última฀instância฀tenha฀pertencido฀ a฀uma฀abstração,฀o฀Estado,฀a฀res฀publica.฀Sem฀que฀o฀rei฀tenha฀sido฀o฀proprietário฀de฀todo฀o฀solo฀no฀ reino,฀o฀reino฀como฀tal฀era฀considerado฀como฀sua฀coisa”. 21 ฀L.฀Halphen,฀Charlemagne฀et฀l’Empire฀Carolingien,฀p.฀17.฀฀฀฀ 26฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média toda฀sua฀amplitude.฀L.฀Halphen฀constatava฀o฀desaparecimento฀de฀toda฀ forma฀de฀autoridade฀pública฀sob฀os฀merovíngios.฀Em฀razão฀das฀invasões฀ germânicas฀dos฀séculos฀V฀e฀VI,฀a฀res฀publica฀–฀o฀conjunto฀de฀todos฀os฀ cidadãos,฀para฀o฀bem฀dos฀quais฀existia฀uma฀autoridade฀suprema฀–฀teria฀ cedido฀ lugar฀ a฀ uma฀ concepção฀ inteiramente฀ oposta฀ àquela฀ elaborada฀ pelos฀ romanos,฀ fundada฀ unicamente฀ nas฀ conveniências฀ pessoais฀ dos฀ príncipes.฀A฀noção฀de฀“bem฀público”฀somente฀teria฀sido฀incorporada฀à฀ monarquia฀franca฀sob฀os฀carolíngios,฀graças฀à฀ação฀da฀Igreja.฀O฀príncipe฀ carolíngio฀não฀teria฀sido฀somente฀o฀detentor฀de฀um฀conjunto฀de฀territórios฀dos฀quais฀ele฀retirava฀benefícios฀pessoais:฀ele฀falaria฀em฀nome฀da฀ comunidade฀dos฀povos฀colocados฀sob฀sua฀autoridade;฀ele฀seria฀também฀ o฀responsável฀pela฀salvação฀espiritual฀de฀seus฀súditos22.฀฀฀ A฀idéia฀de฀que฀os฀reis฀merovíngios฀foram฀incapazes฀de฀edificar฀uma฀ “Realeza฀ Cristã”฀ teve฀ grande฀ repercussão฀ durante฀ a฀ década฀ de฀ 1960.฀ R.฀Folz,฀em฀sua฀obra฀sobre฀a฀coroação฀imperial฀de฀Carlos฀Magno,฀reconheceu฀um฀princípio฀de฀cristianização฀na฀monarquia฀franca฀sob฀os฀ merovíngios.฀Para฀ele,฀entretanto,฀esse฀processo฀somente฀teria฀dado฀seus฀ frutos฀ mais฀ tarde,฀ quando฀ a฀ Igreja฀ franca฀ emergiu฀ da฀ crise฀ em฀ que฀ se฀ encontrava฀desde฀a฀metade฀do฀século฀VII23.฀Os฀príncipes฀merovíngios฀ teriam฀ sido฀ incapazes฀ de฀ compreender฀ o฀ programa฀ que฀ lhes฀ era฀ proposto฀pela฀Igreja.฀Essa฀também฀é฀a฀opinião฀de฀J.฀Imbert,฀para฀quem฀o฀ caráter฀cristão฀da฀monarquia฀franca฀teria฀se฀afirmado฀somente฀após฀o฀ golpe฀ de฀ Estado฀ de฀ Pepino,฀ o฀ Breve,฀ e฀ de฀ sua฀ dupla฀ unção,฀ em฀ 751฀ e฀ em฀75424.฀Para฀esses฀autores,฀a฀“Realeza฀Cristã”฀é฀indissociável฀da฀unção฀ real.฀ Uma฀ vez฀ que฀ as฀ fontes฀ não฀ apresentariam฀ o฀ mínimo฀ indício฀ da฀ prática฀da฀unção฀na฀Gália฀antes฀do฀século฀VIII,฀a฀fé฀cristã฀dos฀príncipes฀ merovíngios฀seria฀apenas฀uma฀fina฀camada฀de฀sentimento฀religioso,฀que฀ disfarçava฀mal฀as฀superstições.฀Somente฀o฀príncipe฀carolíngio,฀“rex฀Dei฀ 22 ฀L.฀Halphen,฀“L’idée฀d’Etat฀sous฀les฀Carolingiens”,฀pp.฀92-104.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 23 ฀R.฀Folz,฀Le฀couronnement฀impérial฀de฀Charlemagne,฀25฀décembre฀800,฀pp.฀36-37. 24 ฀J.฀Imbert,฀“L’influence฀du฀christianisme฀sur฀la฀législation฀des฀peuples฀Francs฀et฀Germains”,฀ pp.฀365-396.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀27 gratia”฀(“rei฀pela฀graça฀de฀Deus”),฀teria฀tido฀êxito฀em฀fundar฀uma฀realeza฀ verdadeiramente฀cristã.฀ Os฀merovíngios฀são฀tratados฀por฀boa฀parte฀da฀historiografia฀como฀ um฀espelho฀deformado฀dos฀carolíngios:฀seriam฀soberanos฀cúpidos฀demais฀e,฀sobretudo,฀demasiado฀rústicos฀para฀terem฀sido฀um฀dia฀portadores฀ de฀uma฀responsabilidade฀pública฀que฀consistia฀em฀conduzir฀o฀povo฀no฀ caminho฀da฀salvação.฀Faltariam-lhes฀os฀meios:฀não฀teriam฀recebido฀para฀ tal฀missão฀aquilo฀que฀era฀necessário,฀a฀benção฀contida฀no฀óleo฀santo25.฀ O฀pouco฀de฀autoridade฀que฀tinham฀sobre฀os฀seus฀súditos฀se฀deveria฀à฀ crença฀desses฀últimos฀em฀suas฀origens฀míticas.฀Esse฀prestígio฀é฀que฀teria฀ impedido฀ os฀“prefeitos฀ do฀ palácio”฀ de฀ derrubarem฀ com฀ sucesso,฀ pelo฀ menos฀até฀a฀metade฀do฀século฀VIII,฀os฀reis฀que฀“não฀possuíam฀o฀poder฀ real”฀(non฀habentes฀regalem฀potestatem),฀de฀acordo฀com฀a฀fórmula฀empregada฀pelos฀emissários฀de฀Pepino,฀o฀Breve,฀na฀entrevista฀com฀o฀papa฀ Zacarias26.฀Para฀alcançar฀o฀poder฀real,฀os฀carolíngios฀teriam฀procurado฀ junto฀à฀Igreja฀a฀legitimidade฀cristã฀para฀compensar฀e฀mesmo฀ultrapassar฀ a฀ legitimidade฀ concedida฀ pela฀ tradição฀ pagã.Em฀ face฀ dos฀ carolíngios,฀ “reis฀ cristianíssimos”,฀ os฀ reis฀ merovíngios฀ constituem฀ ainda฀ hoje฀ para฀ muitos฀historiadores฀a฀síntese฀perfeita฀em฀que฀se฀misturam฀a฀violência,฀ a฀crença฀supersticiosa฀nos฀antigos฀mitos฀germânicos฀e฀uma฀sacralidade฀ de฀origem฀pagã.฀ A฀persistência฀da฀autoridade฀pública Embora฀ as฀ opiniões฀ sobre฀ o฀ caráter฀“patrimonial”฀ e฀“absoluto”฀ da฀ monarquia฀franca฀fossem฀majoritárias฀entre฀os฀historiadores฀de฀língua฀ francesa฀pelo฀menos฀até฀os฀anos฀1970,฀elas฀nunca฀foram฀unânimes.฀É฀o฀ que฀se฀pode฀observar฀através฀da฀obra฀de฀H.฀Pirenne:฀para฀ele,฀os฀francos,฀do฀mesmo฀modo฀que฀os฀lombardos,฀os฀visigodos฀e฀os฀burgúndios,฀ 25 ฀F.฀Lot,฀Naissance฀de฀la฀France,฀p.฀168.฀฀฀ ฀Annales฀Regni฀Francorum,฀p.฀8.฀ 26 28฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média conseguiram฀preservar฀as฀instituições฀imperiais.฀Ao฀descrever฀os฀reinos฀ ocidentais฀às฀vésperas฀da฀ocupação฀muçulmana฀da฀Espanha,฀H.฀Pirenne฀ minimizava฀ o฀ caráter฀ patrimonial฀ normalmente฀ atribuído฀ às฀ monarquias฀germânicas,฀e฀particularmente฀à฀Gália฀merovíngia.฀Segundo฀ele,฀ se฀é฀verdade฀que฀o฀rei฀merovíngio฀se฀considerava฀proprietário฀do฀reino,฀ a฀realeza฀não฀possuía฀um฀caráter฀tão฀patrimonial฀quanto฀normalmente฀ se฀supunha.฀O฀rei฀distinguiria฀sua฀fortuna฀pessoal฀das฀finanças฀públicas.฀ Pirenne฀acreditava,฀entretanto,฀que฀a฀noção฀de฀poder฀era฀mais฀“primitiva”฀ entre฀ os฀ francos฀ que฀ entre฀ os฀ visigodos,฀ pois,฀ quando฀ da฀ morte฀ do฀rei,฀o฀reino฀era฀dividido฀entre฀seus฀filhos.฀A฀tradição฀dessas฀divisões฀ seria,฀segundo฀ele,฀conseqüência฀da฀conquista฀da฀Gália฀pelos฀francos฀e฀ não฀o฀resultado฀da฀influência฀germânica.฀Childerico฀e฀Clóvis฀não฀teriam฀ recebido฀um฀mandato฀do฀Império.฀A฀legitimidade฀obtida฀nos฀campos฀ de฀batalha฀é฀que฀teria฀permitido฀a฀Clóvis฀transmitir฀aos฀seus฀herdeiros฀ a฀terra฀franca27.฀As฀numerosas฀críticas฀recebidas฀pela฀tese฀de฀Pirenne฀no฀ que฀se฀refere฀à฀relação฀entre฀a฀expansão฀muçulmana,฀o฀fechamento฀do฀ Mediterrâneo฀ocidental฀aos฀cristãos฀e฀o฀deslocamento฀do฀eixo฀econômico฀do฀Ocidente฀para฀a฀Europa฀setentrional,฀atingiram฀igualmente฀suas฀ considerações฀ sobre฀ a฀ natureza฀ romana฀ das฀“monarquias฀ bárbaras”28.฀ Na฀Alemanha,฀onde฀o฀sentimento฀patriótico฀era฀muitas฀vezes฀indissociável฀ da฀ defesa฀ dos฀ pressupostos฀ germanistas,฀ sua฀ tese฀ também฀ não฀ recebeu฀uma฀acolhida฀favorável29.฀H.฀Pirenne฀foi,฀todavia,฀um฀dos฀poucos฀historiadores฀de฀língua฀francesa฀de฀seu฀tempo฀a฀sustentar฀a฀idéia฀de฀ sobrevivência฀da฀romanidade.฀A฀verdadeira฀ruptura,฀segundo฀ele,฀teria฀ produzido฀quando฀do฀fechamento฀do฀Mediterrâneo฀à฀navegação฀e฀ao฀ comércio฀dos฀cristãos.฀฀฀฀฀ 27 ฀H.฀Pirenne,฀Mahomet฀et฀Charlemagne,฀p.34.฀฀ ฀Em฀suas฀críticas฀à฀tese฀de฀Pirenne,฀W.฀Carrol฀Bark฀afirma,฀por฀exemplo,฀que฀a฀ruptura฀que฀ Pirenne฀identifica฀como฀sendo฀originária฀da฀expansão฀muçulmana,฀teria฀de฀fato฀resultado฀das฀ invasões฀germânicas฀dos฀séculos฀V฀e฀VI฀(Origens฀da฀Idade฀Média,฀pp.฀16-47). 29 ฀Talvez฀a฀única฀exceção฀seja฀o฀trabalho฀de฀E.฀Fueter,฀publicado฀nos฀anos฀1930฀(Der฀Beginn฀ des฀Mittelalters,฀reimpresso฀em฀Zur฀Frage฀der฀Periodengrenze฀zwischen฀Altertum฀und฀Mittelalter,฀pp.49-54).฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 28 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀29 M.฀ Silber฀ é฀ um฀ dos฀ raros฀ partidários฀ da฀ idéia฀ de฀ continuidade฀ da฀ herança฀romana฀nos฀reinos฀ocidentais฀nas฀primeiras฀décadas฀após฀a฀Segunda฀Grande฀Guerra.฀Ele฀defendia฀a฀idéia฀da฀continuidade฀entre฀Roma฀ e฀os฀reinos฀germânicos฀e฀colocava฀em฀dúvida฀a฀validade฀de฀termos฀tais฀ como฀“Império฀Romano฀do฀Ocidente”฀e฀“queda฀do฀Império฀Romano฀do฀ Ocidente”.฀Segundo฀ele,฀mesmo฀que฀tenham฀existido,฀após฀395,฀dois฀imperadores,฀os฀romanos฀reconheciam฀somente฀um฀Império.฀Falar฀do฀fim฀ do฀Império฀do฀Ocidente฀seria฀incorreto,฀na฀medida฀em฀que฀subsistiria฀ em฀Constantinopla฀um฀imperador฀e฀um฀Império฀reconhecido฀por฀todos,฀inclusive฀no฀Ocidente.฀Os฀reis฀bárbaros฀deviam฀seu฀próprio฀poder฀ unicamente฀às฀posições฀que฀ocupavam฀no฀seio฀da฀hierarquia฀imperial,฀e฀ em฀razão฀de฀uma฀concessão฀do฀imperador30.฀฀ Na฀França,฀foi฀preciso฀esperar฀até฀o฀início฀dos฀anos฀80฀para฀que฀ocorresse฀uma฀evolução฀na฀percepção฀historiográfica฀da฀monarquia฀franca.฀฀ K.F.฀Werner,฀que฀dirigiu฀o฀Instituto฀Histórico฀Alemão฀de฀Paris฀durante฀ cerca฀de฀um฀quarto฀de฀século,฀foi฀um฀dos฀pioneiros฀dessa฀mutação฀historiográfica.฀ Um฀ dos฀ eixos฀ dos฀ trabalhos฀ de฀ Werner฀ é฀ a฀ crítica฀ à฀ tese฀ da฀conquista฀da฀Gália฀pelos฀francos.฀Num฀artigo฀célebre฀(“La฀conquête฀ franque฀de฀la฀Gaule:฀itinéraires฀historiografiques฀d’une฀erreur”),฀cujo฀ título฀é฀uma฀resposta฀a฀um฀artigo฀de฀M.฀Bloch฀publicado฀em฀1929฀(“Observations฀sur฀la฀conquête฀de฀la฀Gaule฀romaine฀par฀les฀rois฀francs”),฀ Werner฀sustentava฀que฀os฀povos฀germânicos฀não฀conquistaram฀o฀Império฀ para฀ em฀ seguida฀ substituí-lo฀ por฀ uma฀“Germânia”.฀ Nenhum฀ rei฀ germânico฀jamais฀teria฀estendido฀as฀fronteiras฀primitivas฀de฀seu฀reino฀ de฀maneira฀que฀um฀“Estado฀germânico”฀viesse฀a฀substituir฀duravelmente฀uma฀parte฀do฀mundo฀romano.฀A฀tese฀do฀fim฀do฀Império฀seria฀apenas฀ um฀“mito฀historiográfico”,฀pois฀esse฀império฀teria฀sobrevivido฀mesmo฀ no฀Ocidente฀durante฀muitos฀séculos฀após฀as฀invasões.฀As฀estruturas฀hierárquicas฀ romanas,฀ afirma฀ ele,฀ não฀ sucumbiram฀ às฀ invasões฀ bárbaras฀ 30 ฀M.฀Silber,฀The฀Gallic฀Royalty฀of฀the฀Merovingians฀in฀its฀Relationship฀to฀the฀“Orbis฀Terrarum฀Romanum”฀during฀the฀5th฀and฀the฀6th฀Centuries฀A.D.,฀p.฀40.฀ 30฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média pela฀simples฀razão฀de฀que฀o฀que฀ocorreu฀foi฀uma฀tomada฀do฀poder฀no฀ interior฀do฀mundo฀romano฀pelos฀chefes฀bárbaros.฀Os฀reinos฀germânicos฀ teriam฀sido฀durante฀muito฀tempo฀Estados฀fundados฀pelos฀chefes฀bárbaros฀no฀interior฀das฀províncias฀romanas31.฀Werner฀responsabiliza฀uma฀ parte฀da฀historiografia฀moderna฀pela฀má฀reputação฀dos฀merovíngios:฀os฀ franceses฀não฀acreditariam฀que฀eles฀eram฀bons฀e฀verdadeiros฀cristãos,฀ao฀ passo฀que฀os฀alemães฀lhes฀imputariam฀o฀fato฀de฀terem฀sofrido฀a฀influência฀ galo-romana฀ a฀ ponto฀ de฀ terem฀ abandonado฀ sua฀“germanidade”.฀ Apesar฀dessa฀má฀reputação,฀K.F.฀Werner฀identificava฀no฀edifício฀político฀ merovíngio฀as฀características฀inerentes฀a฀um฀“Estado฀cristão”.฀As฀guerras฀ civis฀e฀o฀assassinato,฀muitas฀vezes฀apontados฀como฀traços฀essenciais฀da฀ realeza฀fundada฀por฀Clóvis,฀não฀teriam฀impedido฀que฀a฀paz฀reinasse฀de฀ maneira฀mais฀eficaz฀sob฀os฀merovíngios฀que฀durante฀o฀Baixo฀Império.฀ Apesar฀dessa฀evolução฀da฀historiografia฀sobre฀o฀mundo฀franco฀descrita฀ anteriormente,฀ a฀ visão฀ negativa฀ da฀ realeza฀ merovíngia,฀ enunciada฀ por฀ Fustel฀ de฀ Coulanges,฀ e฀ retomada฀ por฀ F.฀ Lot,฀ L.฀ Halphen฀ e฀ F.L.฀ Ganshof,฀ainda฀marca฀alguns฀trabalhos฀de฀não-especialistas฀do฀mundo฀ franco.฀Pode-se฀mencionar฀a฀esse฀respeito฀o฀trabalho฀de฀A.฀Vauchez฀sobre฀ a฀espiritualidade฀na฀Idade฀Média฀ocidental,฀publicado฀em฀1994.฀Vauchez฀ retomou฀ o฀ paralelo฀ entre฀ os฀ períodos฀ merovíngio฀ e฀ carolíngio,฀ como฀ apresentado฀por฀L.฀Halphen.฀O฀rei฀merovíngio,฀dizia,฀era฀um฀déspota฀ que฀tinha฀seu฀poder฀do฀sangue.฀O฀seu฀arbítrio฀teria฀sido฀limitado฀apenas฀ pela฀guerra฀civil,฀o฀assassinato฀e฀o฀temor฀supersticioso฀de฀Deus฀e฀de฀seus฀ santos.฀ Os฀ príncipes฀ carolíngios,฀ devido฀ ao฀ papel฀ desempenhado฀ por฀ eles฀ na฀ Igreja฀ e฀ na฀ sociedade,฀ apareceriam฀ como฀ verdadeiros฀ pastores฀ responsáveis฀ pela฀ salvação฀ das฀ almas.฀ Essa฀ nova฀ concepção฀ da฀ função฀ real฀ seria฀ conseqüência฀ da฀ sagração,฀ que฀ além฀ de฀ dar฀ ao฀ príncipe฀ um฀ prestígio฀de฀ordem฀sobrenatural,฀marcaria฀também฀certa฀predominância฀dos฀bispos32.฀฀ 31 ฀K.F.฀Werner,฀Les฀origines,฀avant฀l’an฀Mil,฀p.351-361.฀Ver฀também,฀K.F.฀Werner,฀Les฀origines฀ de฀la฀noblesse,฀pp.41-42.฀฀฀฀ 32 ฀A.฀Vauchez,฀La฀spiritualité฀dans฀le฀Moyen-Age฀occidental,฀p.19.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀31 As฀pesquisas฀sobre฀a฀monarquia฀franca฀levadas฀a฀cabo฀nos฀últimos฀ anos฀parecem฀confirmar฀as฀idéias฀de฀K.F.฀Werner:฀elas฀mostram฀que฀o฀poder฀público,฀suas฀práticas฀administrativas,฀a฀linguagem฀das฀chancelarias฀ e฀mesmo฀os฀títulos฀concedidos฀aos฀funcionários฀na฀Gália,฀não฀passaram฀ por฀ uma฀ mudança฀ suficientemente฀ importante฀ após฀ as฀ invasões฀ para฀ que฀se฀possa฀falar฀em฀ruptura.฀Os฀especialistas฀do฀mundo฀franco฀tendem฀ hoje฀a฀considerar฀que฀a฀administração฀romana฀na฀Gália฀merovíngia฀não฀ foi฀destruída฀pelos฀francos33.฀Retomando฀a฀questão฀colocada฀no฀inicio฀ desta฀introdução,฀procuraremos฀discutir฀agora฀as฀razões฀dessa฀“guinada฀ historiográfica”.฀Dois฀fenômenos฀podem฀ajudar-nos฀a฀compreendê-la.฀O฀ primeiro฀é฀a฀reavaliação฀de฀que฀foi฀objeto฀o฀Baixo฀Império฀em฀trabalhos฀ recentes:฀esse฀período฀é฀cada฀vez฀menos฀visto฀sob฀a฀ótica฀da฀crise฀e฀da฀ decadência34.฀A฀existência฀da฀“crise฀do฀século฀III”฀vem฀sendo฀questionada35,฀bem฀como฀a฀idéia฀de฀uma฀ruptura฀brutal฀entre฀o฀Alto฀Império฀e฀ 33 ฀W.฀Goffart,฀“Old฀and฀New฀in฀Merovingian฀taxation”,฀pp.213-231;฀P.฀Riché,฀P.฀Riché,฀Education฀et฀culture฀dans฀l’Occident฀barbare฀(VIe-VIIIe฀siècle),฀p.฀75;฀E.฀Magnou-Nortier,฀“Étude฀ sur฀le฀privilège฀d’immunité฀du฀IVe฀au฀IXe฀siècle”,฀pp.฀465-512฀et฀pp.฀474-481;฀do฀mesmo฀autor,฀ “Les฀Pagenses,฀notables฀et฀fermiers฀du฀fisc฀durant฀le฀haut฀Moyen-Age”,฀pp.฀237-256;฀e฀também,฀ “La฀gestion฀publique฀en฀Neustrie.฀Les฀moyens฀et฀les฀hommes฀(VIIe-IXe฀siècles)”,฀pp.฀271-320;฀J.฀ Durliat,฀“Attributions฀civiles฀des฀évêques฀mérovingiens:฀l’exemple฀de฀Didier,฀évêque฀de฀Cahors฀ (630-655)”,฀ pp.฀ 237-254;฀ do฀ mesmo฀ autor:฀“Le฀ salaire฀ de฀ la฀ paix฀ sociale฀ dans฀ les฀ royaumes฀ barbares฀(Ve-VIe฀siècles)”,฀pp.21-72;฀Les฀finances฀publiques฀de฀Dioclétien฀aux฀Carolingiens฀ (284-889);฀“Dominium฀et฀puissance฀sociale฀des฀papes฀au฀VIIe฀siècle”,฀pp.฀13-50;฀“Les฀fonctions฀ publiques฀ de฀ la฀ noblesse฀ gallo-franque฀ (481-561)”,฀ pp.฀ 193-215;฀“Episcopus,฀ civis฀ et฀ populus฀ dans฀les฀Historiarum฀Libri฀de฀Grégoire฀de฀Tours”,฀pp.฀185-193.฀Entre฀os฀historiadores฀anglosaxões,฀ver฀P.J.฀Geary฀(Naissance฀de฀la฀France.฀Le฀monde฀mérovingien),฀e฀I.฀Wood฀(The฀Merovingian฀Kingdoms).฀ 34 ฀Ver,฀por฀exemplo,฀H.-I.฀Marrou,฀Décadence฀romaine฀ou฀Antiquité฀Tardive฀?,฀e฀também฀P.฀ Brown,฀Genèse฀de฀l’Antiquité฀Tardive.฀ 35 ฀J.-M.฀Carrié,฀A.฀Rousselle,฀L’Empire฀romain฀en฀mutation฀des฀Sévères฀à฀Constantin,฀192337.฀Ver฀também฀o฀excelente฀dossiê฀publicado฀por฀J.฀Durliat฀na฀revista฀Francia฀que฀trata฀da฀ renovação฀dos฀estudos฀sobre฀o฀Baixo-Império฀e฀os฀primeiros฀séculos฀da฀Idade฀Média฀[“Qu’estce฀que฀c’est฀le฀Bas-Empire?฀A฀propos฀de฀trois฀ouvrages฀récents”,฀pp.฀137-154;฀“Qu’est-ce฀que฀ c’est฀le฀Bas-Empire?”,฀pp.฀125-138฀;฀“Bulletin฀d’études฀protomédiévales฀–฀La฀Loi”,฀pp.฀79-95;฀ “Bulletin฀d’études฀protomédiévale฀–฀Systèmes฀de฀pensée”,฀pp.฀129-151;฀“Bulletin฀d’études฀protomédiévales฀–฀Les฀institutions฀et฀les฀hommes”,฀pp.฀231-244].฀฀ 32฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média o฀Baixo฀Império36.฀Poucos฀historiadores฀hoje฀crêem฀que฀a฀chegada฀dos฀ francos,฀dos฀burgúndios฀ou฀dos฀ostrogodos฀tenha฀marcado฀uma฀ruptura฀ com฀ as฀ tradições฀ romanas37.฀Vários฀ trabalhos฀ mostraram,฀ além฀ disso,฀ que฀a฀sobrevivência฀do฀Império฀não฀era฀uma฀“ficção฀constitucional”,฀um฀ meio฀ utilizado฀ pelos฀ círculos฀ nostálgicos฀ da฀“romanidade”฀ para฀ mascarar฀a฀emergência฀de฀reinos฀autônomos฀no฀interior฀das฀fronteiras฀do฀ Império38.฀ As฀ invasões฀ bárbaras฀ foram฀ provavelmente฀ superestimadas฀ nos฀trabalhos฀de฀historiadores฀fascinados฀pelo฀tema฀da฀“decadência฀do฀ Império฀romano”39.฀฀ Outro฀ fenômeno,฀ de฀ natureza฀ política,฀ que฀ contribuiu฀ para฀ a฀ renovação฀ dos฀ estudos฀ sobre฀ os฀ francos฀ foi,฀ nos฀ anos฀ que฀ se฀ seguiram฀ à฀ Segunda฀ Guerra฀ Mundial,฀ o฀ fim฀ do฀ antagonismo฀ secular฀ entre฀ a฀ França฀e฀a฀Alemanha.฀Isso฀abriu฀caminho฀para฀reflexões฀historiográficas฀menos฀impregnadas฀pelas฀paixões฀nacionais.฀A฀partir฀do฀final฀da฀ Segunda฀Grande฀Guerra,฀o฀clima฀na฀Alemanha฀não฀era฀mais฀propício฀ à฀glorificação฀da฀“comunidade฀nacional”฀e฀das฀virtudes฀guerreiras฀dos฀ povos฀germânicos.฀Do฀lado฀francês,฀as฀novas฀gerações฀de฀historiadores฀ 36 ฀Um฀bom฀exemplo฀da฀renovação฀historiográfica฀sobre฀o฀Baixo฀Império฀é฀o฀livro฀de฀G.฀Ventura฀da฀Silva฀(Reis,฀santos฀e฀feiticeiros.฀Constâncio฀II฀e฀os฀fundamentos฀místicos฀da฀basileia,฀ 337-361).฀Ver฀também,฀F.฀Vittinghoff,฀“Zur฀Verfassung฀der฀spätantiken฀Stadt”,฀In:฀Studien฀zu฀ den฀Anfängen฀des฀europäischen฀Städtewesens,฀pp.฀11-39;฀H.-J.฀Horstkotte,฀Die฀Theorie฀vom฀ spätrömischen฀“Zwangsstaat”฀und฀das฀Problem฀der฀“Steuerhaftung”.฀฀฀ 37 ฀A฀esse฀respeito,฀ver฀P.฀Classen,฀Kaiserreskript฀und฀Königsurkunde.฀Diplomatische฀Studien฀ zum฀Problem฀der฀Kontinuität฀zwischen฀Altertum฀und฀Mittelalter,฀p.฀38;฀G.฀Tessier,฀Diplomatique฀royale฀française,฀pp.฀3-26;฀J.฀Vezin,฀“L’influence฀des฀actes฀des฀hauts฀fonctionnaires฀ romains฀sur฀les฀actes฀de฀Gaule฀et฀d’Espagne฀au฀VIIe฀siècle”,฀pp.฀71-74. 38 ฀ Contra฀ R.A.฀ Markus,฀“Les฀ commencements฀(v.฀ 350฀ –฀ v.฀ 750)”,฀ pp.฀78-147,฀ especialmente,฀ p.83.฀฀ 39 ฀M.฀Cândido฀da฀Silva,฀4฀de฀Setembro฀de฀476:฀A฀Queda฀de฀Roma.฀Mais฀recentemente,฀assistese฀a฀uma฀retomada฀do฀tema฀da฀“decadência”฀de฀Roma฀e฀do฀“fim฀da฀civilização”.฀É฀o฀caso,฀notadamente,฀do฀livro฀de฀B.฀Ward-Perkins,฀The฀Fall฀of฀Rome฀and฀the฀end฀of฀civilization,฀publicado฀ em฀2005.฀Para฀esse฀autor,฀o฀Império฀Romano฀entrou฀em฀colapso฀em฀razão฀de฀uma฀invasão฀ violenta,฀e฀os฀séculos฀seguintes฀a฀esse฀desaparecimento฀teriam฀sido฀efetivamente฀“sombrios”.฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀33 também฀conseguiram฀pouco฀a฀pouco฀escapar฀ao฀clima฀de฀hostilidade฀ para฀ com฀ a฀Alemanha.฀ O฀ debate฀ sobre฀ a฀ monarquia฀ franca,฀ nascido฀ com฀os฀nacionalismos฀do฀século฀XIX,฀perdeu฀sua฀virulência฀no฀mesmo฀momento฀em฀que฀se฀iniciava฀a฀construção฀européia.฀Nessa฀nova฀ conjuntura,฀ o฀ título฀ de฀ um฀ artigo฀ de฀ A.฀ Loyen,฀ de฀ 1963,฀ parece,฀ no฀ mínimo,฀ exótico:฀ “Resistentes฀ e฀ colaboradores฀ na฀ Gália฀ na฀ época฀ das฀grandes฀invasões”40.฀Nos฀últimos฀anos,฀tanto฀as฀obras฀publicadas฀ quanto฀os฀colóquios฀realizados฀sobre฀a฀Alta฀Idade฀Média฀testemunham฀ da฀premência฀do฀enfoque฀“europeu”฀em฀detrimento฀de฀enfoques฀nacionais.฀Poderíamos฀mencionar,฀nesse฀sentido,฀o฀estudo฀comparativo฀ de฀B.฀Dumézil฀sobre฀a฀conversão฀ao฀cristianismo฀na฀Espanha฀visigótica฀ e฀ na฀ Gália฀ franca฀ (Les฀racines฀chrétiennes฀de฀l’Europe),฀ bem฀ como฀ o฀ colóquio฀ organizado฀ em฀ setembro฀ de฀ 2006฀ por฀ M.฀ Rouche฀ para฀ comemorar฀os฀1500฀anos฀da฀publicação฀do฀Breviário฀de฀Alarico฀(Les฀ fondements฀de฀la฀culture฀européenne). Seria฀um฀exagero฀imaginar฀que฀há฀uma฀relação฀de฀causa฀e฀efeito฀ entre฀ a฀ rivalidade฀ franco-alemã฀ e฀ as฀ visões฀ respectivas฀ dos฀ historiadores฀ franceses฀ e฀ alemães฀ a฀ respeito฀ da฀ realeza฀ franca.฀ Deve-se,฀ no฀ entanto,฀sublinhar฀que฀o฀debate฀entre฀a฀“Escola฀germanista”฀e฀a฀“Escola฀romanista”,฀na฀França฀e฀na฀Alemanha,฀não฀pode฀ser฀apreendido฀ inteiramente฀ sem฀ se฀ compreenderem฀ as฀ relações,฀ freqüentemente฀ tensas,฀entre฀estes฀dois฀países฀desde฀a฀proclamação฀do฀Império฀alemão฀ na฀galeria฀de฀espelhos฀do฀palácio฀de฀Versailles,฀em฀1871.฀K.F.฀Werner฀ tinha฀ isso฀ em฀ mente฀ quando฀ escreveu฀ que฀ a฀ melhor฀ maneira฀ de฀ se฀ compreender฀a฀história฀da฀Gália฀entre฀os฀séculos฀IV-IX฀era฀através฀dos฀ textos฀e฀vestígios฀autênticos฀do฀período,฀e฀não฀das฀idéias฀dos฀séculos฀ XIX฀e฀XX41.฀ 40 ฀Publicado฀no฀Bulletin฀Assoc.฀G.฀Budé฀22฀(1963),฀pp.฀437-450. ฀K.F.฀Werner,฀“Préface”,฀In:฀J.฀Durliat,฀Les฀finances฀publiques,฀p.฀ix. 41 34฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média A฀“sacralidade”฀como฀problema฀historiográfico O฀ tema฀ do฀ prestígio฀ sobrenatural฀ dos฀ reis฀ francos฀ começou฀ a฀ ser฀ explorado฀ pela฀ historiografia฀ no฀ início฀ do฀ século฀ XX.฀ O฀ interesse฀ dos฀ historiadores฀pela฀“realeza฀sagrada”฀deve-se฀em฀grande฀parte฀à฀influência฀da฀Antropologia฀e฀de฀obras฀tais฀como฀O฀ramo฀de฀ouro฀e฀As฀origens฀ mágicas฀da฀realeza,฀de฀James฀Frazer.฀Essa฀influência฀se฀concretizou฀com฀ a฀publicação,฀em฀1924,฀do฀livro฀de฀M.฀Bloch,฀Os฀reis฀taumaturgos.฀Nessa฀obra,฀que฀é฀também฀um฀dos฀textos฀fundadores฀da฀chamada฀École฀des฀ Annales,฀Bloch฀analisa฀a฀evolução฀da฀crença฀no฀milagre฀régio฀entre฀os฀ séculos฀XII฀e฀XIX,฀ou฀seja,฀na฀capacidade฀dos฀reis฀franceses฀e฀ingleses฀em฀ curar฀o฀mal฀das฀escrófulas.฀No฀capítulo฀2฀de฀sua฀obra,฀ele฀busca฀identificar฀as฀origens฀do฀poder฀miraculoso฀dos฀reis฀na฀realeza฀sagrada฀dos฀ primeiros฀séculos฀da฀Idade฀Média.฀A฀base฀da฀crença฀no฀milagre฀régio฀ estaria,฀ segundo฀ Bloch,฀ na฀ aura฀ de฀ sacralidade฀ que฀ teria฀ envolvido฀ os฀ personagens฀reais฀desde฀a฀antiga฀Germânia.฀Na฀visão฀de฀M.฀Bloch,฀o฀advento฀do฀cristianismo,฀verdadeira฀“revolução฀religiosa”,฀teria฀privado฀a฀ realeza฀germânica฀de฀seu฀caráter฀semi-divino,฀reduzindo฀os฀reis฀a฀simples฀ chefes฀de฀Estado,฀mas฀somente฀do฀ponto฀de฀vista฀oficial42.฀Do฀ponto฀de฀ vista฀da฀“consciência฀coletiva”,฀no฀entanto,฀esses฀reis฀teriam฀sobrevivido฀ como฀criaturas฀sobrenaturais.฀A฀referência฀feita฀por฀Gregório฀de฀Tours฀ aos฀“reis฀de฀longos฀cabelos”฀indicaria฀essa฀sobrevivência.฀Ela฀teria฀sido,฀ aliás,฀decisiva฀para฀que฀a฀família฀merovíngia฀pudesse฀impor฀sua฀autoridade฀sobre฀os฀francos.฀O฀aparecimento฀da฀unção฀nos฀reinos฀ocidentais฀ ao฀longo฀dos฀séculos฀VII฀e฀VIII,฀sintoma฀da฀conversão฀de฀seus฀reis฀ao฀catolicismo,฀teria฀sacralizado฀a฀realeza฀de฀um฀ponto฀de฀vista฀cristão.฀Ainda฀ assim,฀a฀“sacralidade฀germânica”฀teria฀sobrevivido฀incólume,฀a฀ponto฀de฀ ter฀contribuído,฀séculos฀mais฀tarde,฀para฀o฀surgimento฀e฀a฀consolidação฀ da฀prática฀régia฀de฀tocar฀as฀escrófulas฀na฀França฀e฀na฀Inglaterra.฀Além฀ do฀interesse฀que฀suscitou฀entre฀os฀historiadores฀pelas฀“mentalidades”,฀ou฀ 42 ฀Essas฀opiniões฀foram฀criticadas฀por฀H.฀Fichtenau฀(L’Empire฀carolingien,฀p.฀85),฀por฀Y.฀Congar฀(L’ecclésiologie฀du฀Haut฀Moyen-Âge,฀p.297)฀e฀também฀por฀G.฀Duby฀(Les฀trois฀ordres฀ou฀ l’imaginaire฀du฀féodalisme,฀p.฀47).฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀35 ainda฀pela฀“longa฀duração”,฀a฀obra฀de฀M.฀Bloch฀incorporou฀ao฀debate฀ historiográfico฀o฀tema฀da฀“realeza฀sagrada”,฀que฀até฀então฀era฀o฀monopólio฀da฀Antropologia43. Um฀ estudo฀ sobre฀ a฀ “sacralidade฀ germânica”฀ dos฀ reis฀ merovíngios฀ confronta-se,฀no฀entanto,฀com฀o฀seguinte฀problema,฀que฀o฀próprio฀M.฀ Bloch฀reconhecia:฀não฀há฀nenhum฀indício฀dessa฀sacralidade฀nos฀textos฀ 43 ฀De฀acordo฀com฀M.฀Bloch฀a฀assimilação฀pelos฀príncipes฀cristãos฀das฀competências฀que฀pertenciam฀normalmente฀aos฀clérigos฀tinha,฀a฀seus฀olhos,฀certos฀limites.฀A฀simbiose฀entre฀a฀função฀real฀ e฀a฀função฀sacerdotal฀no฀mundo฀cristão฀não฀teria฀nunca฀sido฀completa฀e฀jamais฀poderia฀sê-lo.฀O฀ sacerdócio฀comportaria,฀no฀entender฀de฀um฀católico,฀privilégios฀de฀ordem฀supraterrestre฀perfeitamente฀definidos฀e฀que฀só฀a฀ordenação฀conferiria.฀De฀acordo฀com฀Bloch,฀nenhum฀monarca฀na฀ Idade฀Média฀jamais฀se฀creu฀capaz฀de฀celebrar฀o฀santo฀sacrifício฀da฀missa฀e,฀consagrando฀o฀pão฀e฀ o฀vinho,฀de฀invocar฀a฀presença฀de฀Deus฀no฀altar.฀Outras฀civilizações,฀a฀antiga฀Germânia,฀a฀Grécia฀ dos฀tempos฀homéricos,฀teriam฀conhecido฀reis-sacerdotes;฀na฀cristandade฀medieval,฀a฀existência฀ desta฀dignidade฀híbrida฀seria฀inconcebível฀(M.฀Bloch,฀Les฀rois฀thaumaturges,฀p.186).฀Em฀trabalho฀apresentado฀no฀Colóquio฀de฀Royaumont฀sobre฀a฀Realeza฀sagrada,฀J.฀Le฀Goff,฀mostrou-se฀ igualmente฀consciente฀das฀limitações฀impostas฀pela฀ortodoxia฀religiosa฀à฀idéia฀de฀rei฀sagrado.฀ No฀entanto,฀para฀ele,฀a฀insistência฀da฀Igreja฀em฀considerar฀o฀rei฀como฀um฀laico฀não฀colocava฀ em฀causa฀a฀existência฀de฀uma฀sacralidade฀real฀plena.฀Assim,฀o฀ritual฀da฀sagração฀evocaria฀um฀ caráter฀ao฀mesmo฀tempo฀episcopal,฀sacerdotal฀e฀diaconal฀das฀funções฀de฀rei,฀ainda฀que฀limitações฀estritas฀bloqueassem฀a฀possibilidade฀do฀rei฀de฀ser฀e฀de฀aparecer฀como฀um฀rex-sacerdos.฀O฀ rei,฀que฀a฀unção฀divina฀realizada฀pela฀Igreja฀teria฀transformado฀em฀um฀“novo฀Davi”,฀encabeçaria฀ uma฀teocracia฀cristã฀(J.฀Le฀Goff,฀“Aspects฀religieux฀et฀sacrés฀de฀la฀monarchie฀française฀du฀Xe฀au฀ XIIIe฀siècle”,฀pp.19-28).฀A฀essa฀visão฀de฀J.฀Le฀Goff,฀opõe-se฀a฀de฀A.฀Boureau.฀Inspirado฀na฀análise฀ de฀L.฀Dumont฀sobre฀a฀Índia฀bramânica฀antiga,฀Boureau฀procurou฀demonstrar฀que฀o฀monarca฀ ocidental฀na฀Idade฀Média฀jamais฀pôde฀desenvolver฀uma฀sacralidade฀autônoma,฀em฀virtude฀de฀ sua฀inserção฀num฀sistema฀hierárquico฀que฀o฀englobava.฀Segundo฀ele,฀o฀monopólio฀clerical฀do฀ sagrado,฀no฀Ocidente,฀bem฀como฀na฀Índia,฀teria฀reduzido฀consideravelmente฀o฀caráter฀sagrado฀ da฀monarquia฀(A.฀Boureau,฀“Un฀obstacle฀à฀la฀sacralité฀royale฀en฀Occident.฀Le฀principe฀hiérarchique”,฀pp.฀29-36).฀A.฀Guéry,฀em฀sua฀análise฀sobre฀as฀diversas฀formas฀de฀sacralidade฀monárquica,฀ mostrou฀ que฀ nas฀ monarquias฀ cristãs฀ do฀ Ocidente฀ medieval,฀ o฀ rei,฀ detentor฀ de฀ um฀ poder฀ de฀ origem฀divina,฀permaneceu฀apesar฀de฀tudo฀um฀homem,฀ainda฀que฀um฀intercessor฀entre฀a฀divinidade฀e฀a฀humanidade฀e฀um฀modelo฀dado฀ao฀seu฀povo฀por฀Deus฀(A.฀Guéry,฀“La฀dualité฀de฀ toutes฀les฀monarchies฀et฀la฀monarchie฀chrétienne”,฀pp.39-51).฀Em฀que฀pesem฀as฀diferenças฀entre฀ uma฀e฀outra฀abordagem,฀os฀autores฀que฀têm฀trabalhado฀sobre฀o฀tema฀da฀sacralidade฀cristã฀na฀ realeza฀medieval฀tendem,฀portanto,฀a฀enxergar฀limites฀a฀essa฀mesma฀sacralidade,฀e฀a฀questionar฀ a฀existência฀do฀rei-sacerdote฀no฀universo฀cristão. 36฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ou฀nos฀vestígios฀arqueológicos฀do฀período฀merovíngio44.฀Isso฀não฀significa฀que฀os฀reis฀merovíngios฀não฀fossem฀cercados฀de฀um฀prestígio฀“sobrenatural”฀de฀origem฀germânica.฀É฀necessário,฀no฀entanto,฀reconhecer฀ que฀um฀estudo฀nesse฀sentido฀tem฀sérios฀limites,฀que฀somente฀podem฀ser฀ ultrapassados฀com฀excesso฀de฀criatividade.฀É฀preciso฀também฀relativizar฀ a฀própria฀noção฀de฀“sacralidade”.฀Na฀história฀dos฀sistemas฀políticos,฀a฀ sacralidade฀não฀constitui฀um฀fenômeno฀excepcional,฀muito฀pelo฀contrário.฀As฀monarquias,฀tanto฀no฀Ocidente฀como฀no฀Oriente,฀e฀até฀mesmo฀ os฀ regimes฀ do฀ antigo฀ bloco฀ socialista,฀ conheceram฀ a฀ elevação฀ de฀ seus฀ governantes฀a฀um฀estatuto฀mais฀ou฀menos฀sobrenatural.฀Contudo,฀como฀ categoria฀de฀alcance฀“universal”,฀a฀noção฀de฀sacralidade฀não฀é฀historiograficamente฀operacional45.฀Ao฀invés฀de฀se฀idealizar฀a฀sacralidade฀como฀ algo฀difuso,฀e฀de฀certo฀modo฀inseparável฀de฀todas฀as฀formas฀de฀regime฀ político,฀é฀necessário฀tentar฀pensá-la฀historicamente,฀limitando-a฀a฀uma฀ época฀e฀a฀um฀espaço฀precisos,฀no฀caso฀específico฀deste฀livro,฀a฀Gália฀merovíngia฀ entre฀ os฀ séculos฀VI฀ e฀VII.฀ Além฀ disso,฀ a฀ idéia฀ da฀ sacralidade฀ germânica฀se฀fundamenta฀no฀pressuposto฀equivocado฀de฀que฀os฀povos฀ francos฀ no฀ século฀ VI฀ eram฀ recém-saídos฀ das฀ florestas฀ da฀ Germânia.฀ 44 ฀Essa฀opinião฀é฀partilhada฀pela฀maioria฀dos฀estudos฀que฀tratam฀do฀tema.฀Ver,฀a฀esse฀respeito,฀ o฀artigo฀de฀A.C.฀Murray,฀“Post฀vocantur฀Merohingii:฀Fredegar,฀Merovech,฀and฀‘Sacral฀kingship’”,฀ pp.฀121-152.฀Ver฀também,฀M.฀Cândido฀da฀Silva,฀“O฀problema฀da฀sacralidade฀real฀na฀monarquia฀ franca”,฀pp.฀138-142.฀฀฀ 45 ฀Um฀exemplo฀da฀utilização฀demasiado฀ampla฀da฀noção฀de฀sacralidade฀é฀o฀verbete฀de฀V.฀Valeri,฀ “Realeza”,฀publicado฀na฀Enciclopédia฀Einaudi.฀Nesse฀verbete,฀Valeri฀afirma฀que฀o฀que฀define฀a฀ Realeza฀é฀o฀fato฀de฀que฀no฀exercício฀de฀suas฀prerrogativas,฀o฀rei฀encarnaria฀฀os฀valores฀fundamentais฀da฀sociedade฀sobre฀a฀qual฀ele฀reina,฀sendo฀considerado฀como฀um฀ser฀sagrado฀e฀às฀vezes฀ divino:฀“Mesmo฀quando฀o฀rei฀não฀é฀sagrado฀stricto฀sensu,฀ele฀tem฀relações฀privilegiadas฀com฀ aquilo฀que฀é฀sagrado฀:฀deus฀ou฀clérigo฀que฀é฀seu฀intérprete”฀(V.฀Valeri,฀“Realeza”,฀pp.415-445,฀ especialmente,฀p.415).฀O฀caráter฀fora฀do฀comum฀da฀pessoa฀real฀seria฀assim฀um฀componente฀ das฀civilizações฀africanas,฀indo-européias฀e฀asiáticas.฀O฀mínimo฀que฀podemos฀dizer฀é฀que฀a฀ relação฀ com฀ o฀ sagrado฀ não฀ assumiu฀ uma฀ forma฀ homogênea฀ em฀ todas฀ essas฀ sociedades.฀ Há฀ uma฀grande฀distância฀entre฀a฀identificação฀do฀personagem฀real฀com฀um฀ser฀divino฀e฀a฀crença฀ de฀que฀o฀poder฀do฀rei฀é฀de฀origem฀divina.฀Para฀uma฀definição฀menos฀ampla฀e฀mais฀“histórica”฀ da฀Realeza,฀ver฀H.฀Anton,฀“König,฀Königtum”,฀col.฀1298-1306.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀37 Ora,฀fazia฀mais฀de฀dois฀séculos฀que฀eles฀viviam฀no฀interior฀do฀Império.฀ Entre฀ as฀“aparências฀ oficiais”฀ de฀ uma฀ monarquia฀“laica”฀ e฀ os฀ indícios฀ “subterrâneos”฀de฀uma฀monarquia฀“sagrada”,฀M.฀Bloch฀não฀hesitou฀em฀ escolher฀a฀primeira฀opção46.฀Aqueles฀que฀optavam฀pelo฀outro฀caminho,฀ ele฀chamava,฀não฀sem฀razão,฀de฀“folcloristas฀demasiado฀ardentes”47.฀ Ainda฀que฀os฀defensores฀da฀abordagem฀histórico-antropológica฀da฀ realeza฀tenham฀se฀preocupado฀com฀as฀“bases฀invisíveis”฀da฀legitimidade฀ dos฀reis฀francos฀–฀algo฀desprezado฀pela฀história฀política฀tradicional฀–,฀eles฀ subestimaram฀o฀alcance฀da฀cristianização฀da฀realeza฀merovíngia.฀Muito฀ se฀escreveu฀sobre฀o฀fato฀de฀que฀os฀reis฀merovíngios฀tinham฀seu฀poder฀da฀ força,฀de฀um฀prestígio฀sagrado฀de฀origem฀germânica฀ou฀ainda฀da฀conquista฀da฀Gália฀aos฀romanos.฀No฀entanto,฀não฀existe฀nenhuma฀reflexão฀ mais฀ampla฀sobre฀o฀papel฀desempenhado฀pela฀herança฀romano-cristã฀na฀ construção฀da฀autoridade฀pública฀durante฀esse฀período.฀Durante฀mais฀ de฀dois฀séculos,฀os฀historiadores฀habituaram-se฀a฀descrever฀as฀monarquias฀que฀sucederam฀o฀Império฀Romano฀no฀Ocidente฀como฀a฀“aliança฀ da฀decrepitude฀com฀a฀barbárie”.฀Dezenas฀de฀adjetivos฀foram฀utilizados฀ ao฀ longo฀ desse฀ período฀ para฀ salientar฀ o฀ caráter฀ primitivo฀ dos฀“reinos฀ bárbaros”48.฀ Ainda฀ que฀ os฀ historiadores฀ estejam฀ hoje฀ mais฀ atentos฀ ao฀ legado฀dos฀romanos฀à฀realeza฀merovíngia,฀e฀menos฀dispostos฀a฀considerar฀Clóvis฀como฀o฀conquistador฀da฀Gália,฀não฀há฀nenhum฀estudo฀sistemático฀sobre฀a฀cristianização฀da฀monarquia฀franca฀durante฀o฀período฀ 46 ฀M.฀Bloch,฀Les฀rois฀thaumaturges,฀pp.฀409-429.฀ ฀Ibid.,฀p.฀60,฀n.1.฀ 48 ฀Um฀dos฀casos฀mais฀recentes฀é฀o฀livro฀de฀O.฀Pontal,฀Les฀canons฀des฀conciles฀mérovingiens,฀ publicado฀ em฀ Paris฀ em฀ 1989;฀ segundo฀ essa฀ autora:฀“Os฀ príncipes฀ merovíngios,฀ ávidos,฀ cruéis,฀ usurpadores฀e฀não฀temendo฀o฀crime฀para฀aumentar฀seus฀benefícios,฀falseiam฀a฀idéia฀do฀cristianismo฀e฀se฀mantêm฀no฀crime฀pelas฀práticas฀de฀uma฀piedade฀supersticiosa.฀Fundar฀incessantemente฀ricos฀monastérios,฀dar฀aos฀monges฀e฀aos฀clérigos฀vastos฀domínios,฀isentá-los฀de฀todo฀imposto,฀estender฀ essas฀isenções฀a฀cidades฀inteiras฀em฀honra฀de฀qualquer฀santo,฀buscar฀relíquias฀em฀todos฀os฀lugares฀ e฀ligar฀a฀salvação฀eterna฀a฀um฀exterior฀de฀devoção,฀são฀as฀virtudes฀celebradas฀mais฀freqüentemente฀ pelos฀antigos฀analistas.฀Em฀face฀desses฀príncipes,฀encontramos฀bispos฀que,฀incapazes฀de฀refrear฀sua฀ barbárie,฀exploram฀suas฀tendências฀supersticiosas”฀(p.฀44).฀฀ 47 38฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média merovíngio,฀à฀exceção฀de฀alguns฀artigos฀ou฀de฀capítulos฀de฀obras฀mais฀ gerais49.฀O฀reconhecimento฀de฀uma฀dimensão฀cristã฀à฀realeza฀merovíngia฀limita-se฀ainda฀hoje฀a฀dois฀aspectos฀principais:฀primeiramente,฀ao฀ fato฀de฀que฀os฀eclesiásticos฀não฀cessaram฀de฀exortar฀os฀reis฀merovíngios฀ para฀que฀esses฀últimos฀incorporassem฀às฀suas฀atividades฀de฀governo฀noções฀tais฀como฀piedade฀(pietas),฀humildade฀(humilitas)฀e฀eqüidade฀(aequitas);฀em฀segundo฀lugar,฀os฀historiadores฀também฀constatam฀que฀os฀ príncipes฀daquela฀dinastia฀eram฀comparados฀algumas฀vezes฀pelos฀seus฀ contemporâneos฀aos฀reis฀do฀Antigo฀Testamento,฀notadamente฀Salomão฀ e฀Davi.฀Entretanto,฀o฀processo฀de฀cristianização฀da฀realeza฀merovíngia฀ não฀se฀resumiu฀a฀um฀conjunto฀de฀exortações฀piedosas฀dirigidas฀pelos฀ clérigos฀aos฀reis,฀ou฀ainda฀à฀elaboração฀de฀um฀modelo฀ideal฀de฀governante฀que,฀confrontado฀até฀a฀exaustão฀com฀o฀“governante฀real”,฀acabaria฀ por฀triunfar฀sobre฀ele.฀As฀implicações฀sócio-institucionais฀do฀processo฀ de฀cristianização,฀as฀mudanças฀no฀exercício฀da฀autoridade฀real฀que฀daí฀ 49 ฀Nos฀anos฀1950,฀E.฀Ewig฀buscou฀mostrar฀como฀os฀reinos฀ocidentais,฀notadamente฀o฀Reino฀ dos฀ Francos฀ na฀ época฀ merovíngia,฀ bem฀ como฀ o฀ Reino฀ dos฀Visigodos,฀ contribuíram฀ para฀ a฀ formação฀da฀Realeza฀Cristã.฀Ele฀menciona฀um฀progresso฀crescente฀da฀cristianização฀da฀monarquia฀sob฀o฀reinado฀de฀Gontrão฀(561-592)฀e฀de฀Brunilda.฀De฀acordo฀com฀Ewig,฀somente฀ após฀os฀reinados฀de฀Clotário฀II฀e,฀sobretudo฀de฀Dagoberto,฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VII,฀ é฀que฀se฀elaborou฀uma฀noção฀de฀serviço฀cristão฀para฀a฀realeza,฀ainda฀que฀essa฀noção฀tenha฀se฀ restringido,฀num฀primeiro฀momento,฀à฀idéia฀de฀assistência฀à฀Igreja.฀(E.฀Ewig,฀“Zum฀christlichen฀ Königsgedanken฀ im฀ Frühmittelalter”,฀ pp.7-73,฀ especialmente,฀ pp.฀ 17-19).฀Ver฀ também฀ os฀trabalhos฀de฀M.฀Heinzelmann฀[Bischofsherrschaft฀in฀Gallien.฀Zur฀Kontinuität฀römischer฀ Führungsschichten฀vom฀4.฀bis฀zum฀7.฀Jahrhundert.฀Soziale,฀prosopographische฀und฀bildungsgeschichtliche฀Aspekte];฀e฀ainda฀Gregor฀von฀Tours฀(538-594):฀“Zehn฀Bücher฀Geschichte”:฀ Historiographie฀und฀Gesellschaftskonzept฀im฀6.฀Jahrhundert.฀E฀também,฀“Studia฀sanctorum.฀ Education,฀ milieux฀‘instruction฀ et฀ valeurs฀ éducatives฀ dans฀ l’hagiographie฀ en฀ Gaule฀ jusqu’à฀ la฀ fin฀ de฀ l’époque฀ mérovingienne’,฀ pp.฀ 105-138;฀ F.฀ Dolbeau,฀ M.฀ Heinzelmann,฀ J.-C.฀ Poulin,฀ “Les฀sources฀hagiographiques฀composées฀en฀Gaule฀avant฀l’an฀Mil฀(SHG).฀Inventaire,฀examen฀ critique,฀ datation”,฀ pp.701-731.฀ A฀ obra฀ de฀Y.฀ Saissier฀ [Royauté฀ et฀ idéologie฀ au฀ Moyen฀Age,฀ Bas-Empire,฀Monde฀Franc,฀France฀(IVe-XIIe฀siècle),฀Paris,฀2002],฀é฀o฀mais฀recente฀exemplo฀ de฀obra฀geral฀que฀aborda฀a฀cristianização฀da฀realeza฀merovíngia,฀no฀capítulo฀2,฀intitulado฀“La฀ royauté฀romano-barbare”฀(pp.70-115).฀Ver฀também,฀a฀esse฀respeito,฀o฀artigo฀de฀Régine฀Le฀Jan,฀ “La฀sacralité฀de฀la฀royauté฀mérovingienne”,฀pp.1217-1241.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀39 decorreram,฀ permanecem฀ ainda฀ hoje฀ pouco฀ estudadas.฀ As฀ exortações฀ episcopais฀ou฀papais฀não฀foram฀suficientes฀para฀a฀cristianização฀da฀monarquia฀franca.฀Para฀tanto,฀era฀necessário฀que฀as฀idéias฀veiculadas฀pelos฀ clérigos฀encontrassem฀terreno฀favorável฀junto฀ao฀poder฀real,฀e฀que฀esse฀ último฀estivesse฀disposto฀a฀tomar฀medidas฀que฀fossem฀consonantes฀com฀ as฀ aspirações฀ da฀ hierarquia฀ eclesiástica.฀ Para฀ examinar฀ o฀ processo฀ de฀ cristianização฀sob฀esse฀ângulo,฀é฀necessário฀ampliar฀o฀terreno฀de฀visão฀ e฀ enxergar,฀ além฀ do฀ domínio฀ das฀ idéias,฀ o฀ das฀ relações฀ entre฀ o฀ poder฀ político฀ e฀ a฀ sociedade.฀ A฀ cristianização฀ da฀ realeza฀ franca฀ traduziu-se฀ no฀advento฀de฀uma฀autoridade฀pública฀profundamente฀impregnada฀de฀ uma฀visão฀cristã฀dos฀deveres฀dos฀governantes฀para฀com฀os฀governados,฀ o฀ que฀ teve฀ implicações฀ no฀ exercício฀ das฀ prerrogativas฀ tradicionais฀ do฀ governante฀e฀em฀suas฀relações฀com฀a฀sociedade.฀Esse฀é฀um฀caminho฀de฀ pesquisa฀que฀ainda฀não฀foi฀suficientemente฀explorado50.฀฀฀ Este฀trabalho,฀ao฀invés฀de฀se฀concentrar฀em฀uma฀“sacralidade฀germânica”฀imperscrutável,฀tentará฀analisar฀a฀influência฀sobre฀a฀realeza฀franca฀ das฀práticas฀institucionais฀e฀das฀concepções฀políticas฀do฀Império฀Cristão,฀bem฀como฀das฀exortações฀episcopais.฀Tentar-se-á฀compreender฀de฀ que฀modo฀um฀conjunto฀de฀preceitos฀de฀ordem฀moral฀e฀religiosa฀se฀uniu฀ progressivamente฀aos฀deveres฀tradicionais฀do฀príncipe฀para฀com฀os฀seus฀ súditos,฀alterando฀ao฀mesmo฀tempo฀a฀própria฀natureza฀do฀exercício฀da฀ 50 ฀Há฀alguns฀anos,฀K.F.฀Werner฀lastimava฀que฀para฀muitos฀historiadores,฀o฀verdadeiro฀cristianismo,฀ com฀ reis฀ verdadeiramente฀ cristãos,฀ teria฀ começado฀ apenas฀ com฀ os฀ carolíngios.฀ Ora,฀ dizia฀ele,฀as฀leis฀e฀os฀diplomas฀dos฀reis฀merovíngios,฀a฀sua฀correspondência฀com฀os฀imperadores฀ em฀Bizâncio,฀assim฀como฀os฀textos฀hagiográficos,฀mostram฀reis฀preocupados฀com฀o฀comportamento฀das฀igrejas,฀suas฀riquezas,฀seus฀privilégios฀(K.F.฀Werner,฀“Le฀rôle฀de฀l’aristocratie฀dans฀ la฀christianisation฀du฀nord-est฀de฀la฀Gaule”,฀pp.฀45-73,฀aqui,฀p.฀50).฀Werner฀sustenta฀que฀a฀idéia฀ do฀ministerium฀como฀a฀mais฀alta฀obrigação฀do฀príncipe฀em฀relação฀a฀Deus,฀teria฀aparecido฀ na฀época฀merovíngia,฀mesmo฀tendo฀se฀desenvolvido฀plenamente฀sob฀Pepino,฀o฀Breve,฀Carlos฀ Magno฀e,฀sobretudo,฀Luís,฀o฀Piedoso฀(K.F.฀Werner,฀“L’historien฀et฀la฀notion฀d’Etat”,฀pp.฀29-41,฀ especialmente฀p.฀40).฀Veremos,฀ao฀longo฀deste฀trabalho,฀que฀a฀preocupação฀dos฀reis฀merovíngios฀não฀se฀dirigia฀apenas฀às฀igrejas,฀seus฀bens฀e฀seus฀privilégios,฀mas฀também฀à฀salvação฀de฀ seus฀súditos.฀฀ 40฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média autoridade฀pública,฀e฀permitindo฀o฀nascimento฀daquilo฀que฀aqui฀chamamos฀de฀“Realeza฀Cristã”.฀Essa฀última฀pode฀ser฀definida,฀de฀maneira฀ preliminar,฀ como฀ uma฀ forma฀ de฀ governo฀ na฀ qual฀ a฀ realização฀ de฀ um฀ objetivo฀ exterior฀ ao฀ mundo,฀ isto฀ é,฀ o฀ bem฀ da฀ coletividade฀ entendido฀ como฀sua฀salvação,฀é฀associada฀ao฀exercício฀do฀poder฀político฀supremo,฀ a฀ponto฀de฀se฀tornar฀seu฀principal฀fundamento. Primeira฀Parte  Os฀francos฀e฀o฀Império฀Cristão Capítulo฀I A฀fundação฀do฀Regnum฀Francorum Em฀ sua฀ obra฀ consagrada฀ às฀ guerras฀ góticas,฀ o฀ historiador฀ grego฀ Procópio฀de฀Cesaréia฀(c.500-c.560)฀comenta฀um฀dos฀episódios฀da฀campanha฀ empreendida฀ pelo฀ imperador฀ Justiniano฀ (527-565)฀ contra฀ os฀ ostrogodos฀na฀Itália:฀ “Toda฀a฀parte฀das฀Gálias฀que฀estava฀submetida฀aos฀godos฀foi,฀desde฀o฀começo฀dessa฀guerra,฀deixada฀por฀eles฀[os฀godos]฀aos฀germânicos฀[brancos]:฀eles฀ não฀acreditavam฀poder฀enfrentar฀os฀dois฀povos฀ao฀mesmo฀tempo,฀como฀disse฀ nos฀discursos฀precedentes.฀Não฀somente฀os฀romanos฀não฀puderam฀impedir฀ essa฀cesão,฀mas฀Justiniano,฀seu฀rei,฀a฀confirmou฀por฀medo฀de฀ter฀diante฀de฀si฀ como฀adversários฀esses฀bárbaros฀excitados฀a฀lhe฀fazer฀a฀guerra.฀Pois฀os฀francos฀não฀acreditavam฀possuir฀em฀completa฀segurança฀as฀Gálias฀sem฀terem฀ um฀ato฀revestido฀do฀selo฀do฀imperador”฀(grifo฀nosso)1.฀ 1 ฀Procópio,฀De฀Bello฀Gothico฀III,฀33.฀฀฀฀ 44฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Procópio฀menciona฀aqui฀a฀cessão฀da฀Provença฀–฀que฀os฀ostrogodos฀ haviam฀ ocupado฀ quando฀ do฀ colapso฀ do฀ Reino฀ Visogodo฀ da฀ Aquitânia,฀ em฀ 507฀ –฀ aos฀ francos.฀ Essa฀ teria฀ sido฀ uma฀ maneira฀ de฀ apaziguar฀ esses฀últimos฀e฀impedir฀que฀se฀aliassem฀aos฀romanos.฀Por฀outro฀lado,฀ o฀próprio฀Justiniano,฀imperador฀romano,฀teria฀confirmado฀essa฀cessão฀ com฀o฀mesmo฀objetivo.฀A฀confirmação฀indica,฀em฀primeiro฀lugar,฀que฀ se฀ reconhecia฀ ainda฀ a฀ preeminência฀ do฀ Império฀ sobre฀ os฀ territórios฀ ocidentais.฀Mas฀o฀texto฀vai฀mais฀longe฀ainda.฀Procópio฀afirma฀que฀os฀ francos฀ não฀ se฀ acreditavam฀ capazes฀ de฀ manter฀ a฀ Gália฀ em฀ seu฀ poder฀ sem฀o฀consentimento฀do฀imperador฀romano.฀Os฀francos฀não฀aparecem฀ nesse฀relato฀como฀os฀conquistadores฀da฀Gália,฀e฀sim฀como฀os฀delegados฀ da฀autoridade฀imperial.฀฀ Essa฀descrição฀contradiz฀a฀visão,฀consagrada฀pela฀historiografia,฀segundo฀a฀qual฀os฀francos฀conquistaram฀a฀Gália฀à฀autoridade฀de฀Roma2.฀ Todavia,฀ ela฀ deve฀ ser฀ nuançada฀ pelo฀ ponto฀ de฀ vista฀ pró-imperial฀ que฀ Procópio฀apresenta฀em฀suas฀obras฀oficiais฀–฀à฀exceção฀de฀sua฀História฀ Secreta,฀ em฀ que฀ ele฀ traça฀ um฀ retrato฀ impiedoso฀ do฀ imperador฀ Justiniano฀e฀da฀imperatriz฀Teodora.฀Não฀surpreende฀que฀o฀autor฀que฀ficou฀ conhecido฀pela฀exaltação฀de฀Justiniano฀e฀de฀sua฀política฀de฀Reconquista฀ do฀ Ocidente฀ tenha฀ mostrado฀ os฀ francos฀ como฀ súditos฀ do฀ Império,฀ dependentes฀ da฀ aquiescência฀ do฀ imperador฀ para฀ manter฀ seu฀ próprio฀ poder.฀Por฀outro฀lado,฀há฀também฀algo฀de฀paradoxal฀na฀afirmação฀de฀ Procópio:฀não฀há฀indício฀algum฀de฀que฀o฀Império฀estivesse฀em฀condições฀de฀se฀impor฀pela฀força฀na฀Gália฀durante฀o฀reinado฀de฀Justiniano฀ –฀ e฀ isso฀ o฀ próprio฀ autor฀ deixa฀ claro฀ ao฀ afirmar฀ que฀ Justiniano฀ temia฀ que฀os฀francos฀lhe฀declarassem฀guerra.฀Porque฀então฀os฀francos฀teriam฀ necessitado฀do฀consentimento฀imperial?฀ É฀possível฀que฀a฀descrição฀de฀Procópio฀não฀tivesse฀o฀sentido฀que฀comumente฀lhe฀é฀atribuída,฀ou฀seja,฀o฀de฀marcar฀a฀inferioridade฀ou฀o฀temor฀militar฀dos฀francos฀em฀relação฀ao฀Império.฀Neste฀caso,฀ao฀afirmar฀ que฀os฀francos฀não฀se฀acreditavam฀capazes฀de฀manter฀seu฀poder฀sobre฀a฀ 2 ฀M.฀Bloch,฀“Observations฀sur฀la฀conquête฀de฀la฀Gaule฀romaine฀par฀les฀rois฀francs”,฀pp.฀161178.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀45 Gália฀sem฀o฀consentimento฀do฀imperador,฀o฀autor฀poderia฀estar฀apenas฀ constatando฀a฀percepção฀por฀esses฀últimos฀da฀existência฀de฀uma฀relação฀ hierárquica฀com฀a฀autoridade฀imperial.฀Um฀bom฀indício,฀nesse฀sentido,฀é฀ que฀essa฀percepção฀está฀presente฀de฀maneira฀explícita฀na฀correspondência฀ entre฀os฀reis฀francos฀e฀os฀imperadores฀em฀Constantinopla,฀cujos฀exemplares฀foram฀conservados฀na฀coleção฀Epistolae฀austrasicae.฀Além฀dos฀títulos฀ usuais฀de฀“imperador”฀e฀“augusto”,฀Justiniano฀é฀chamado฀de฀“pai”฀em฀duas฀ cartas฀ que฀ lhe฀ foram฀ enviadoas฀ pelo฀ rei฀ Teudeberto฀ I.฀ Entretanto,฀ é฀ na฀ correspondência฀de฀Childeberto฀II฀que฀encontramos฀o฀maior฀número฀de฀ referências฀filiais฀ao฀imperador.฀Primeiramente,฀em฀uma฀carta฀ao฀imperador฀Maurício,฀datada฀de฀584,฀Childeberto฀II฀o฀chama฀de฀“pai”3.฀Em฀outra฀ carta,฀Childeberto฀se฀endereça฀a฀Teodósio,฀filho฀do฀imperador฀Maurício,฀ e฀refere-se฀a฀esse฀último฀como฀“sereníssimo฀príncipe฀do฀Império฀Romano,฀ nosso฀ pai,฀ nosso฀ imperador”4.฀ Essa฀ situação,฀ aliás,฀ era฀ reconhecida฀ pelo฀ próprio฀imperador:฀em฀carta฀a฀Childeberto,฀após฀tê-lo฀violentamente฀repreendido,฀Maurício฀o฀chama฀de฀“parente฀cristianíssimo฀e฀amantíssimo”5.฀ Essa฀“família฀ dos฀ reis”฀ não฀ era฀ uma฀ simples฀ formalidade.฀ Ela฀ reunia฀ os฀ reis฀ocidentais฀reconhecidos฀pelo฀Império฀sob฀a฀autoridade฀de฀um฀imperador-pater,฀e฀assegurava฀ao฀rei฀franco฀uma฀forma฀sutil฀de฀soberania฀–฀e฀ também฀de฀legitimidade฀–฀que฀o฀ligava฀ao฀imperador฀e฀ao฀mundo฀romano฀ por฀uma฀relação฀semelhante฀à฀existente฀entre฀pai฀e฀filho6.฀ Tais฀vínculos฀hierárquicos฀mostram฀que฀os฀reis฀merovíngios฀não฀apresentavam฀sua฀autoridade฀como฀algo฀completamente฀dissociado฀do฀Império.฀O฀consentimento฀do฀imperador฀de฀que฀fala฀Procópio,฀sem฀o฀qual฀os฀ francos฀não฀se฀acreditavam฀capazes฀de฀manter฀a฀possessão฀da฀Gália,฀pode฀ ter฀sido฀uma฀fonte฀de฀legitimidade฀habilmente฀explorada฀no฀interior฀de฀ um฀Regnum฀Francorum฀habitado฀majoritariamente฀por฀galo-romanos.฀ 3 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀25.฀ ฀Epistolae฀Austrasicae,฀43.฀ 5 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀42.฀ 6 ฀F.J.฀Dölger,฀“Die฀‘Familie฀der฀Könige’฀im฀Mittelalter”,฀pp.฀34-69;฀sobre฀o฀mesmo฀assunto,฀ver฀ também฀S.฀Krautschick,฀“Die฀Familie฀der฀Könige฀in฀Spätantike฀und฀Frühmittelalter”,฀pp.฀104142. 4 46฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média A฀ascensão฀de฀Clóvis “Após฀esses฀eventos,฀tendo฀Childerico฀morrido,฀Clóvis,฀seu฀filho,฀reinou฀ em฀seu฀lugar.฀No฀quinto฀ano฀do฀reinado฀desse฀rei,฀Syagrius,฀rei฀dos฀romanos฀(Romanorum฀rex),฀filho฀de฀Egidius,฀vivia฀na฀cidade฀de฀Soissons,฀que฀o฀ próprio฀Egidius฀utilizava฀como฀sede.฀Clóvis฀marchou฀contra฀ele฀juntamente฀ com฀Ragnecharius,฀um฀parente฀seu฀–฀porque฀este฀também฀tinha฀um฀reino฀ –฀e฀convidou฀[seu฀adversário]฀a฀preparar฀o฀campo฀de฀batalha.฀Ora,฀ele฀não฀ recusou฀e฀não฀teve฀medo฀de฀resistir.฀Em฀seguida,฀enquanto฀eles฀combatiam,฀ Syagrius,฀vendo฀seu฀exército฀esmagado,฀retornou฀e฀correu฀rapidamente฀ao฀ encontro฀ do฀ rei฀Alarico฀ em฀ Toulouse.฀ Entretanto,฀ Clóvis฀ mandou฀ dizer฀ a฀ Alarico฀que฀ele฀devia฀entregar฀Syagrius,฀senão฀a฀guerra฀lhe฀seria฀declarada฀ por฀ ter฀ retido฀ esse฀ personagem.฀ Mas฀ [Alarico]฀ temendo,฀ por฀ causa฀ desse฀ último,฀ incorrer฀ na฀ ira฀ dos฀ francos,฀ pois฀ é฀ costume฀ dos฀ godos฀ ter฀ medo,฀ livrou-o฀acorrentado฀aos฀legados฀[de฀Clóvis].฀Quando฀Clóvis฀o฀recebeu,฀ele฀ ordenou฀que฀[Syagrius]฀fosse฀colocado฀sob฀boa฀custódia฀e฀após฀ter฀tomado฀ possessão฀de฀seu฀reino,฀deu฀a฀ordem฀para฀que฀ele฀fosse฀secretamente฀assassinado”7. ฀฀฀ Esse฀relato฀de฀Gregório฀de฀Tours8฀indica฀que,฀no฀final฀do฀século฀V,฀ havia฀na฀Gália฀setentrional฀um฀conflito฀que฀opunha฀dois฀personagens,฀ o฀ primeiro,฀ um฀ rei฀ bárbaro฀ que฀ era฀ igualmente฀ um฀ alto฀ funcionário฀ 7 ฀Histórias฀II,฀27.฀ ฀ Nascido฀ na฀ cidade฀ de฀ Clermont฀ (atual฀ Clermont-Ferrand),฀ por฀ volta฀ de฀ 538,฀ Gregório฀ de฀ Tours฀tornou-se฀bispo฀da฀cidade฀de฀Tours฀em฀573.฀Pertencia฀a฀uma฀família฀de฀origem฀senatorial฀ com฀uma฀longa฀tradição฀de฀serviço฀ao฀poder฀civil฀e฀à฀Igreja฀Católica.฀Era฀parente฀do฀último฀ imperador฀ galo-romano,฀Avitus;฀ seu฀ predecessor฀ no฀ episcopado฀ de฀ Tours฀ era฀ primo฀ de฀ sua฀ mãe;฀e฀além฀disso,฀um฀de฀seus฀ancestrais฀estava฀entre฀os฀primeiros฀mártires฀cristãos฀da฀Gália,฀ que฀foram฀assassinados฀em฀Lyon฀no฀ano฀de฀177.฀Graças฀à฀sua฀posição฀no฀seio฀da฀hierarquia฀ eclesiástica,฀Gregório฀de฀Tours฀foi฀um฀espectador฀privilegiado฀da฀sociedade฀franca;฀conviveu฀ com฀muitos฀dos฀personagens฀descritos฀em฀sua฀obra:฀reis,฀santos,฀mártires.฀Sua฀sé฀episcopal฀era,฀ também,฀o฀centro฀do฀culto฀a฀São฀Martinho฀(m.฀397),฀o฀santo฀padroeiro฀da฀dinastia฀merovíngia.฀Católico,฀Gregório฀multiplicou฀em฀suas฀obras฀a฀defesa฀da฀ortodoxia฀e฀também฀os฀ataques฀ contra฀os฀heréticos,฀clérigos฀ou฀laicos,฀de฀confissões฀ariana฀ou฀judia.฀O฀bispo฀de฀Tours฀escreveu 8 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀47 romano,฀e฀o฀segundo,฀o฀filho฀de฀um฀alto฀funcionário฀romano฀que฀havia฀se฀tornado฀rei.฀Syagrius,฀como฀seu฀pai฀antes฀dele,฀comandava฀uma฀ força฀armada,฀um฀exercitus฀Gallicanus฀que฀coexistia฀com฀um฀exercitus฀ Francorum฀de฀Childerico฀e฀de฀Clóvis.฀Esses฀dois฀exércitos,฀pelo฀menos฀ até฀a฀morte฀de฀Egidius,฀tinham฀defendido฀conjuntamente฀a฀Gália฀setentrional฀contra฀aqueles฀que฀ameaçavam฀a฀autoridade฀romana.฀Quando฀ os฀visigodos฀invadiram฀a฀Gália,฀por฀exemplo,฀tiveram฀de฀combater฀na฀ região฀de฀Orléans฀não฀apenas฀o฀“฀de฀Egidius,฀mas฀também฀o฀exercitus฀ Francorum฀ de฀ Childerico9.฀ Essa฀ aliança฀ foi฀ estabelecida฀ na฀ metade฀ do฀ século฀V฀com฀o฀intuito฀de฀defender฀a฀Gália฀contra฀as฀incursões฀bárbaras,฀ e฀era฀uma฀resposta฀ao฀enfraquecimento฀do฀poder฀imperial฀no฀Ocidente.฀ Os฀contingentes฀de฀francos฀do฀norte฀da฀Gália฀eram฀federados,฀ou฀seja,฀ constituíam฀corpos฀de฀tropas฀que฀serviam฀de฀maneira฀mais฀ou฀menos฀ dócil฀à฀causa฀imperial,฀e฀estavam฀aquartelados฀em฀Tournai,฀em฀Cologne฀ e฀em฀Cambrai10. Remígio,฀ bispo฀ de฀ Reims,฀ numa฀ epístola฀ enviada฀ a฀ Clóvis,฀ entre฀ 481฀e฀482,฀o฀felicita฀por฀ter฀assumido฀a฀administração฀da฀província฀da฀ Bélgica฀ Segunda:฀ “Um฀ grande฀ rumor฀ chegou฀ até฀ nós,฀ vós฀ assumistes฀ a฀ várias฀obras:฀os฀Septem฀libri฀miraculorum,฀dedicados฀aos฀milagres฀de฀santos;฀um฀livro฀contendo฀ 20฀vitae฀de฀“santos฀personagens”฀(Liber฀vitae฀Patrum);฀um฀comentário฀dos฀Salmos฀(In฀Psalterii฀ tractatum฀ commentarius);฀ um฀ texto฀ contendo฀ uma฀ descrição฀ das฀ posições฀ das฀ estrelas฀ para฀ orientar฀ os฀ cristãos฀ em฀ suas฀ preces฀ litúrgicas฀ (De฀ Cursu฀ Stellarum฀ ratio).฀ Gregório฀ escreveu฀ também฀uma฀edição฀prefaciada฀das฀missas฀de฀Sidônio฀Apolinário;฀um฀livro฀sobre฀os฀milagres฀ do฀Apóstolo฀André฀(Liber฀de฀miraculis฀beati฀Andreal฀apostoli)฀e฀um฀outro฀sobre฀a฀Paixão฀dos฀ sete฀dormentes฀de฀Éfeso฀(Passio฀sanctorum฀Martyrum฀Septem฀Dormientium฀apud฀Ephesum).฀ Contudo,฀foi฀através฀dos฀Decem฀Libri฀Historiarum฀(Dez฀Livros฀de฀História)฀que฀ele฀se฀tornou฀ conhecido฀ao฀longo฀do฀período฀medieval฀e฀entre฀os฀historiadores฀modernos฀[M.฀Cândido฀da฀ Silva;฀M.฀Mazetto฀Junior,฀“A฀Realeza฀nas฀fontes฀do฀período฀merovíngio฀(séculos฀VI-VIII)”,฀pp.฀ 89-119,฀especialmente,฀pp.91-97].฀฀ 9 ฀Histórias฀II,฀18:฀“Quanto฀ao฀conde฀Paulo,฀que฀estava฀com฀os฀romanos฀e฀com฀os฀francos,฀ele฀declarou฀guerra฀aos฀godos฀e฀fez฀pilhagem.฀Quanto฀a฀Odoacro,฀ele฀veio฀até฀Angers,฀mas฀o฀rei฀Childerico฀ chegou฀no฀dia฀seguinte฀e฀como฀o฀conde฀Paulo฀tinha฀sido฀assassinado,฀tomou฀possessão฀da฀cidade”.฀ Ver฀E.฀Zöllner,฀Geschichte฀der฀Franken฀bis฀zur฀Mitte฀des฀6.฀Jahrhunderts,฀pp.฀39-43. 10 ฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges,฀฀L’invasion฀germanique฀et฀la฀fin฀de฀l’Empire,฀p.470. 48฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média administração฀da฀Bélgica฀Segunda”11.฀Em฀sua฀epístola,฀o฀bispo฀de฀Reims฀ não฀menciona฀uma฀vez฀sequer฀Syagrius.฀É฀improvável฀que฀Remígio฀desconhecesse฀a฀existência฀desse฀personagem,฀o฀que฀coloca฀o฀problema฀de฀ se฀saber฀o฀que฀o฀teria฀levado฀a฀não฀fazer฀nenhuma฀referência฀a฀ele.฀Ora,฀ Gregório฀de฀Tours฀não฀apenas฀chama฀Syagrius฀de฀“rei”,฀mas฀afirma฀que฀ ele฀habitava฀em฀Soissons,฀cidade฀que฀se฀encontrava฀em฀pleno฀coração฀ da฀província฀da฀Bélgica฀Segunda12.฀Isso฀significa฀que฀cerca฀de฀cinco฀anos฀ após฀ter฀assumido฀as฀funções฀de฀“governador”฀da฀província฀daBélgica฀ Segunda,฀ Clóvis฀ ainda฀ convivia฀ com฀ um฀ rex฀ romano฀ no฀ interior฀ dos฀ territórios฀teoricamente฀sob฀sua฀jurisdição.฀A฀ausência฀de฀Syagrius฀da฀ epístola฀de฀Remígio฀pode฀significar฀que฀já฀no฀momento฀da฀chegada฀de฀ Clóvis฀ ao฀ poder,฀ havia฀ alguma฀ tensão฀ ou฀ mesmo฀ um฀ conflito฀ aberto฀ entre฀o฀governador฀da฀província฀e฀o฀rex฀romanorum.฀M.฀Heinzelmann฀e฀ J.-C.฀Poulin฀afirmam,฀em฀sua฀análise฀da฀Vida฀de฀Santa฀Genoveva,฀que฀ Childerico฀ameaçava฀a฀posição฀de฀Syagrius฀nas฀proximidades฀de฀Paris13.฀ O฀bloqueio฀que฀Childerico฀infligiu฀a฀essa฀cidade,฀e฀que฀é฀retratado฀na฀ Vida฀de฀Santa฀Genoveva,฀pode฀ter฀sido,฀aliás,฀um฀movimento฀na฀guerra฀ que฀o฀opunha฀ao฀filho฀de฀Egidius14.฀Em฀476,฀Childerico฀concluiu฀com฀ Odoacro฀–฀magister฀militum฀nomeado฀pelo฀imperador฀Zenon15฀–฀uma฀ 11 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀฀2.฀ ฀Histórias฀II,฀27.฀ 13 ฀M.฀Heinzelmann,฀J.-C.฀Poulin,฀Les฀vies฀anciennes฀de฀sainte฀Geneviève฀de฀Paris,฀pp.฀91-103.฀ 14 ฀A฀Vida฀de฀Santa฀Genoveva฀relata฀de฀que฀maneira,฀diante฀do฀bloqueio฀dos฀francos,฀a฀santa฀ organizou฀uma฀expedição฀fluvial฀no฀curso฀superior฀do฀rio฀Sena฀para฀aprovisionar฀os฀sitiados฀ (Vita฀Genovefae฀virginis฀Parisiensis).฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 15 ฀Odoacro,฀general฀romano฀residente฀na฀Itália,฀rei฀dos฀ciros฀e฀dos฀turcilingos,฀depôs฀o฀último฀ imperador฀do฀Ocidente,฀Romulus฀Augustulus,฀em฀476.฀Em฀seguida,฀enviou฀uma฀embaixada฀do฀ senado฀de฀Roma฀ao฀imperador฀Zenão฀para฀lhe฀dizer฀que฀a฀partir฀de฀então฀o฀Ocidente฀não฀mais฀ necessitava฀de฀um฀imperador,฀e฀que฀um฀só฀imperador฀seria฀suficiente฀para฀o฀Oriente฀e฀o฀Ocidente.฀Odoacro฀reconhecia฀Zenão฀como฀único฀imperador,฀e฀solicitava฀dele฀o฀título฀de฀patrício฀ e฀o฀governo฀da฀Itália฀(Malchus,฀Fragmenta,฀10).฀Foi฀então฀como฀representante฀da฀autoridade฀ imperial฀que฀Odoacro฀reinou฀sobre฀as฀populações฀italianas฀até฀que,฀sob฀as฀injunções฀de฀Zenão,฀ Teodorico฀invadiu฀a฀Itália฀com฀um฀exército฀de฀ostrogodos฀e฀de฀rúgios฀(Cassiodoro,฀Chronica฀ Magni฀Aurelii฀Cassiodori฀Senatoris,฀p.฀159;฀ver฀também,฀Jordanes,฀De฀rebus฀Geticis,฀57).฀Ver฀ M.฀Cândido฀da฀Silva,฀4฀de฀Setembro฀de฀476:฀A฀Queda฀de฀Roma.฀฀฀ 12 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀49 aliança฀através฀da฀qual฀ele฀se฀comprometia฀a฀combater฀os฀alamanos฀que฀ tinham฀invadido฀uma฀parte฀da฀Itália16.฀Nada฀se฀sabe,฀entretanto,฀da฀atitude฀de฀Syagrius.฀É฀possível฀que฀ele฀tenha฀se฀aproximado฀dos฀visigodos,฀ o฀que฀explicaria฀seu฀posterior฀exílio฀na฀corte฀de฀Toulouse17.฀Pode-se฀supor฀que฀Childerico฀e฀Clóvis฀permaneceram฀aliados฀do฀Império,฀ou฀pelo฀ menos฀de฀seu฀representante฀teórico฀na฀Itália,฀enquanto฀Syagrius฀tentava฀ instaurar฀um฀reino฀independente฀na฀Gália฀setentrional฀com฀o฀apoio฀dos฀ visigodos.฀É฀igualmente฀provável฀que฀Remígio฀tenha฀escolhido฀o฀partido฀da฀legalidade฀administrativa,฀representado฀por฀um฀chefe฀franco฀que฀ era฀governador,฀em฀face฀de฀um฀funcionário฀romano฀que฀se฀proclamou฀ rei฀e฀que฀era฀provavelmente฀um฀usurpador,฀visto฀que฀não฀há฀nenhuma฀ referência฀a฀uma฀suposta฀dignidade฀hierárquica฀sua฀em฀qualquer฀fonte฀ imperial18.฀A฀existência฀desse฀“enclave”฀na฀região฀governada฀por฀Clóvis฀é฀ um฀indício฀de฀que฀não฀se฀pode฀situar฀a฀fundação฀do฀Reino฀dos฀Francos฀ no฀momento฀da฀ascensão฀desse฀último฀ao฀poder,฀por฀volta฀de฀48119.฀฀฀ Ainda฀que฀Clóvis฀não฀tenha฀tomado฀o฀partido฀da฀autoridade฀imperial฀na฀Gália฀–฀o฀que฀parece฀pouco฀provável฀–฀sua฀vitória฀em฀Soissons,฀ em฀486,฀não฀marcou฀o฀desaparecimento฀dos฀últimos฀traços฀da฀autoridade฀romana฀na฀Gália฀do฀norte20.฀A฀idéia฀de฀que฀a฀derrota฀de฀Syagrius฀foi฀ também฀uma฀derrota฀da฀Romania฀resulta฀de฀uma฀sobrevalorização฀do฀ papel฀desse฀personagem,฀para฀a฀qual฀contribuiu฀Gregório฀de฀Tours,฀que฀ o฀chama฀rex฀romanorum21.฀Como฀explicar฀esse฀título฀que฀lhe฀é฀atribuí16 ฀Histórias฀II,฀19.฀Ver฀K.F.฀Werner,฀Les฀origines,฀p.฀336.฀฀ ฀É฀o฀que฀pensa฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.฀189-190.฀ 18 ฀Ver฀M.฀Heinzelmann,฀Gallische฀Prosopographie฀(260-527),฀p.฀699.฀฀ 19 ฀Quaisquer฀que฀tenham฀sido฀as฀atribuições฀específicas฀de฀Clóvis฀e฀de฀Syagrius฀é฀muito฀difícil฀ defini-las.฀P.฀Périn฀e฀L.-C.฀Feffer฀afirmam฀que฀Clóvis,฀da฀mesma฀forma฀que฀seu฀pai฀Childerico,฀ estava฀subordinado฀a฀Syagrius฀(P.฀Périn,฀L.-Ch.Feffer,฀Les฀Francs,฀I,฀La฀conquête฀de฀la฀Gaule,฀ pp.฀ 145-146).฀ E.฀ James,฀ por฀ sua฀ vez,฀ acredita฀ que฀ Syagrius฀ era฀ somente฀ o฀ comes฀ (conde)฀ da฀ cidade฀de฀Soissons,฀e,฀como฀tal,฀estaria฀submetido฀a฀Childerico฀e฀em฀seguida฀a฀Clóvis฀(E.฀James,฀ I฀Franchi,฀pp.฀59-63).฀ 20 ฀Sobre฀a฀batalha฀de฀Soissons,฀ver฀K.F.฀Werner,฀“De฀Childéric฀à฀Clovis:฀antécédents฀et฀conséquences฀de฀la฀bataille฀de฀Soissons฀en฀486”,฀pp.฀3-7.฀ 21 ฀Histórias฀II,฀27.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 17 50฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média do?฀É฀no฀mínimo฀paradoxal฀que฀o฀termo฀rex,฀que฀os฀romanos฀atribuíam฀ unicamente฀aos฀chefes฀bárbaros฀aliados,฀sirva฀de฀prova฀para฀a฀existência฀ de฀uma฀autoridade฀romana฀legítima฀na฀Gália.฀Para฀G.฀Kurth,฀o฀título฀de฀ rei฀que฀Gregório฀atribui฀a฀Syagrius฀teria฀sido฀tomado฀às฀tradições฀bárbaras,฀que฀não฀conheciam฀nenhum฀outro฀termo฀para฀designar฀um฀chefe฀ independente22.฀ Para฀ K.฀ Hauck,฀ a฀ datação฀ qüinqüenal฀ utilizada฀ pelo฀ bispo฀de฀Tours฀na฀descrição฀dos฀acontecimentos฀do฀reinado฀de฀Clóvis฀ sugere฀que฀ele฀se฀baseou฀nas฀quinquenalia,฀redigidas฀em฀homenagem฀a฀ esse฀último,฀para฀designar฀Syagrius฀como฀tal23:฀“Durante฀o฀quinto฀ano฀ do฀reinado฀desse฀rei,฀Syagrius,฀rei฀dos฀romanos,฀filho฀de฀Egydius,฀tinha฀sua฀ sede฀na฀cidade฀de฀Soissons...”24.฀A฀hipótese฀de฀Hauck฀é฀insuficiente฀para฀ explicar฀a฀atribuição฀do฀titulo฀de฀rei฀a฀Syagrius.฀Gregório฀designa฀esse฀ último฀ de฀ rex฀ romanorum฀ quando฀ descreve฀ sua฀ guerra฀ contra฀ Clóvis,฀ mas,฀quando฀o฀menciona฀em฀outras฀duas฀ocasiões฀nas฀Histórias,฀não฀há฀ referência฀alguma฀ao฀título฀real25.฀É฀provável฀que฀Gregório฀tenha฀insistido฀na฀dignidade฀real฀de฀Syagrius฀para฀melhor฀realçar฀a฀vitória฀de฀Clóvis.฀ Isso฀explicaria฀a฀alternância฀entre฀a฀utilização฀do฀título฀em฀alguns฀trechos฀do฀livro฀II฀das฀Histórias฀e฀a฀sua฀ausência฀em฀outros.฀ O฀terceiro฀livro฀das฀Crônicas฀atribuídas฀a฀Fredegário฀retoma฀as฀Histórias,฀de฀Gregório฀de฀Tours.฀No฀entanto,฀quando฀trata฀de฀Syagrius,฀o฀ autor฀não฀utiliza฀a฀designação฀adotada฀pelo฀bispo฀de฀Tours,฀ou฀seja,฀rex฀ 22 ฀G.฀Kurth,฀Clovis,฀p.฀218:฀“Sob฀a฀influência฀dessas฀tradições,฀outros฀foram฀mais฀longe,฀e฀imaginaram฀uma฀dinastia฀de฀reis฀romanos฀na฀Gália,฀na฀qual฀se฀sucedem฀de฀pai฀para฀filho฀Aetius,฀ Aegidius,฀Paulo฀e฀Syagrius.฀Se฀Gregório฀tivesse฀tido฀conhecimento฀disso฀por฀outras฀fontes฀que฀as฀ lendas฀francas,฀ele฀teria฀evitado฀lhe฀dar฀um฀titulo฀com฀tão฀pouca฀harmonia฀com฀a฀nomenclatura฀ oficial฀do฀Império.฀Mas฀estava฀no฀destino฀do฀último฀representante฀da฀civilização฀romana฀alcançar฀ a฀posteridade฀nas฀tradições฀nacionais฀de฀seus฀vencedores”.฀฀฀฀฀฀฀ 23 ฀Ver฀K.฀Hauck,฀“Von฀einer฀spätantiken฀Randkultur฀zum฀Karolingerischen฀Europa”,฀pp.฀3-93,฀ mais฀precisamente,฀pp.฀20-26 24 ฀Histórias฀II,฀27.฀฀฀ 25 ฀Histórias฀II,฀18:฀“Egidius฀morreu฀então฀e฀deixou฀um฀filho฀chamado฀Syagrius”;฀Histórias฀II,฀41:฀ “Quando฀[Clóvis]฀lutou฀contra฀Syagrius,฀Chararicus,฀chamado฀em฀socorro฀de฀Clóvis,฀manteve-se฀ a฀distancia”.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀51 Romanorum,฀mas฀prefere฀a฀de฀Romanorum฀patricius26.฀Para฀E.฀Demougeot฀e฀para฀M.฀Rouche,฀Syagrius฀era฀um฀funcionário฀imperial฀dotado฀ do฀título฀de฀patrício,฀que฀lhe฀teria฀sido฀concedido฀pelo฀imperador฀An- 26 ฀Cronicas฀III,฀15:฀“Após฀a฀morte฀de฀Childerico,฀seu฀filho฀Clóvis฀reinou฀em฀seu฀lugar.฀Durante฀ o฀quinto฀ano฀de฀seu฀reinado,฀Syagrius,฀patrício฀dos฀romanos,฀tinha฀sua฀sede฀na฀cidade฀de฀Soissons,฀que฀seu฀pai฀havia฀possuído”.฀As฀Chronica,฀um฀conjunto฀de฀relatos฀atribuídos฀desde฀o฀ século฀XVI฀a฀um฀certo฀“Fredegarius฀Scholasticus”,฀constituem฀a฀narrativa฀mais฀completa฀dos฀ acontecimentos฀na฀Gália฀durante฀o฀século฀VII.฀O฀nome฀“Fredegarius”฀apareceu฀pela฀primeira฀ vez฀ nas฀ Antiquitez฀ Gauloises฀ et฀ Françoises,฀ de฀ C.฀ Fauchet฀ (1579),฀ e฀ é฀ possível฀ encontrá-lo฀ também฀na฀edição฀de฀M.฀Freher,฀do฀inicio฀do฀século฀XVII.฀Hoje,฀ainda,฀os฀detalhes฀da฀composição฀ desses฀ textos,฀ que฀ os฀ historiadores฀ habituaram-se฀ a฀ designar฀ como฀ a฀“Crônica฀ de฀ Fredegário฀e฀suas฀continuações”,฀restam฀desconhecidos.฀O฀principal฀e฀também฀o฀mais฀antigo฀ dos฀manuscritos฀dessa฀obra,฀o฀Codex฀Claromontanus฀(714-715),฀originário฀de฀Metz฀ou฀da฀ Burgúndia฀ (Paris,฀ Bibliothèque฀ Nationale,฀ Lat.฀ 10910),฀ é฀ constituído฀ de฀ um฀ conjunto฀ de฀ crônicas฀que฀narram฀a฀“historia฀universal”฀até฀a฀época฀dos฀francos.฀O฀autor฀menciona฀cinco฀ crônicas฀que฀teriam฀precedido฀a฀sua:฀a฀crônica฀de฀Hipólito฀de฀Roma,฀de฀Eusébio฀de฀Cesaréia,฀ de฀ Hydatius,฀ de฀ Gregório฀ de฀ Tours฀ (trata-se฀ de฀ uma฀ versão฀ resumida฀ do฀ século฀VII)฀ e฀ de฀ Isidoro฀de฀Sevilha.฀Em฀sua฀estrutura฀original,฀a฀obra฀de฀Fredegário฀devia฀contar฀com฀cinco฀ ou฀seis฀livros.฀Entretanto,฀o฀copista฀do฀Codex฀Claromontanus฀adotou฀uma฀nova฀organização฀ das฀ crônicas,฀ que฀ foi฀ seguida฀ pelos฀ editores฀ contemporâneos.฀As฀ crônicas฀ originais฀ foram฀ condensadas฀em฀quatro฀livros฀diferentes,฀cada฀um฀precedido฀de฀um฀índice฀de฀capítulos.฀O฀ primeiro฀livro฀contém฀o฀resumo฀dos฀trabalhos฀de฀Hipólito฀de฀Roma฀e฀de฀Isidoro฀de฀Sevilha;฀ os฀trabalhos฀de฀Jerônimo฀e฀de฀Hydatius฀estão฀no฀segundo฀livro;฀uma฀parte฀das฀Histórias฀de฀ Gregório฀de฀Tours฀se฀encontra฀no฀terceiro฀livro,฀enquanto฀o฀quarto฀livro฀contém฀uma฀narrativa฀que฀se฀estende฀de฀584฀até฀642.฀฀As฀Crônicas฀foram฀continuadas฀por฀outros฀autores,฀em฀ grande฀parte฀desconhecidos.฀A฀primeira฀continuação฀compreende฀o฀período฀de฀462฀a฀720฀ –฀trata-se฀de฀um฀complemento฀de฀um฀ponto฀de฀vista฀austrasiano฀ao฀Liber฀Historiae฀Francorum฀–฀e฀também฀os฀anos฀de฀724฀a฀734.฀A฀segunda฀continuação,฀escrita฀por฀um฀membro฀ do฀séqüito฀de฀Childebrando,฀meio-irmão฀de฀Carlos฀Martel,฀compreende฀o฀período฀de฀736฀a฀ 751฀e฀apresenta฀uma฀visão฀“pipinida”฀dos฀acontecimentos.฀A฀terceira฀continuação,฀redigida฀ por฀Nibelungo,฀filho฀de฀Childebrando,฀descreve฀os฀eventos฀do฀reinado฀de฀Pepino,฀o฀Breve฀ até฀768.฀As฀crônicas฀de฀Fredegário฀e฀suas฀continuações฀foram฀editadas฀em฀1888฀por฀B.฀Krush฀ nos฀ M.G.H.฀ Entretanto,฀ mesmo฀ antes฀ dessa฀ edição,฀ o฀ autor,฀ a฀ data,฀ o฀ local฀ de฀ publicação,฀ assim฀ como฀ o฀ valor฀ histórico฀ desta฀ crônica,฀ foram฀ objeto฀ de฀ um฀ amplo฀ debate฀ entre฀ os฀ historiadores฀e฀eruditos฀[M.฀Cândido฀da฀Silva;฀M.฀Mazetto฀Junior,฀“A฀Realeza฀nas฀fontes฀do฀ período฀merovíngio฀(séculos฀VI-VIII)”,฀pp.฀89-119,฀especialmente฀pp.97-99]. 52฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média themius,฀em฀47127.฀Todavia,฀além฀da฀expressão฀citada฀por฀Fredegário,฀ não฀ há฀ referências฀ em฀ outras฀ fontes฀ sobre฀ a฀ concessão฀ a฀ Syagrius฀ do฀ título฀de฀patrício28.฀฀฀ Em฀sua฀primeira฀carta฀a฀Clóvis,฀Remígio฀o฀chama฀de฀rex,฀e฀ao฀mesmo฀tempo฀de฀vir฀magnificus29,฀epíteto฀normalmente฀atribuído฀a฀altos฀ funcionários฀da฀administração฀provincial฀romana.฀Em฀termos฀hierárquicos,฀essa฀função฀se฀situava฀em฀grau฀imediatamente฀inferior฀à฀de฀vir฀ illuster,฀que฀era฀utilizada฀na฀época฀romana฀pelo฀Prefeito฀do฀Pretório฀ das฀Gálias฀e฀pelo฀mestre฀das฀milícias.฀Já฀na฀segunda฀carta฀a฀Clóvis,฀escrita฀após฀o฀batismo,฀o฀bispo฀de฀Reims฀designa฀esse฀último฀de฀dominus฀ illuster30.฀ Em฀ relação฀ à฀ primeira฀ carta,฀ há฀ uma฀ mudança฀ na฀ fórmula฀ de฀ tratamento฀ que฀ indica฀ uma฀ progressão฀ de฀ Clóvis฀ na฀ hierarquia฀ romana฀de฀dignidades.฀Contudo,฀as฀condições฀nas฀quais฀isso฀ocorreu฀ são฀bastante฀obscuras31.฀É฀possível฀que฀o฀título฀de฀vir฀illuster฀provenha฀ 27 ฀E.฀Demougeot,฀La฀formation฀de฀l’Europe฀et฀les฀invasions฀barbares,฀II,฀De฀l’avènement฀de฀ Dioclétien฀au฀début฀du฀VIe฀siècle,฀p.686฀;฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀p.฀189.฀฀ 28 ฀Ver฀M.฀Heinzelmann,฀Gallische฀Prosopographie฀(260-527),฀p.฀699;฀e฀também฀J.R.฀Martindale฀(ed.),฀The฀prosopography฀of฀the฀Later฀Roman฀Empire,฀A.D.฀395-527,฀t.฀2,฀pp.฀1041-1042. 29 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀2:฀“Domino฀insigni฀et฀meritis฀magnifico,฀Hlodoveo฀regi,฀Remegius฀episcopus”.฀ 30 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀1:฀“Domino฀inlustro฀meritis,฀Chlodoveo฀regi,฀Remegius฀episcopus”.฀฀ 31 ฀J.฀Havet฀estima฀que฀os฀reis฀francos฀jamais฀utilizaram฀outro฀título฀que฀o฀de฀rex฀francorum.฀O฀ título฀de฀vir฀illuster฀nada฀mais฀seria฀que฀um฀erro฀na฀leitura฀de฀uma฀abreviação฀que฀seguia฀as฀ palavras฀rex฀francorum฀nos฀diplomas฀reais,฀e฀que฀dizia฀respeito฀aos฀altos฀funcionários฀do฀reino.฀ O฀correto฀seria฀então฀viris฀illustribus฀(J.฀Havet,฀Questions฀mérovingiennes:฀la฀formule฀N.฀rex฀ francorum,฀V.฀inl.).฀Essa฀tese฀foi฀criticada฀por฀M.฀Gasquet฀(L’Empire฀byzantin฀et฀la฀monarchie฀ franque,฀p.฀138),฀H.฀Bresslau฀(“Der฀Titel฀der฀merowinger฀Könige”,฀pp.฀353-360)฀e฀H.฀Pirenne฀ (“La฀formule฀N.฀rex฀Francorum฀v.฀inl.”,฀p.฀74).฀A฀opinião฀de฀J.฀Havet฀permanece฀bastante฀marginal,฀e฀não฀resiste฀a฀um฀exame฀mais฀apurado฀dos฀textos.฀A฀chave฀do฀problema฀encontra-se฀no฀ termo฀ilustre:฀como฀vimos฀anteriormente,฀Remígio฀chama฀Clóvis฀de฀dominus฀illuster.฀Outros textos฀oriundos฀da฀chancelaria฀merovíngia฀mostram฀claramente฀que฀o฀título฀vir฀illuster฀pertence฀exclusivamente฀ao฀rei฀(Childeberti฀Secundi฀Decretio,฀7:฀“Childebertus,฀rex฀Francorum,฀vir฀ inluster.฀Cum฀in฀Dei฀nomine฀nos฀omnes฀Kalendas฀Martias฀de฀quascumque฀condiciones฀una฀cum฀ nostris฀optimatibus฀pertractavimus,฀ad฀unumquemque฀noticia฀volumus฀pervenire”).฀A฀fórmula฀ é฀bastante฀diferente฀daquela฀que฀é฀utilizada฀quando฀o฀rei฀se฀dirige฀aos฀seus฀agentes,฀laicos฀ou Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀53 direta฀ou฀indiretamente฀da฀vitória฀de฀Clóvis฀sobre฀Syagrius32.฀Todavia,฀ nenhum฀documento฀menciona฀Syagrius฀como฀vir฀illuster33,฀nem฀mesmo฀Gregório฀de฀Tours.฀Esse฀último฀observa฀simplesmente฀que฀“Egidius฀ morreu฀então฀e฀deixou฀um฀filho฀chamado฀Syagrius”฀34.฀Após฀a฀morte฀de฀ Egidius,฀Syagrius฀deve฀ter฀tomado฀posse฀da฀dignidade฀de฀seu฀pai,฀sem฀ que฀ isso฀ tenha฀ sido฀ necessariamente฀ reconhecido฀ pelo฀ imperador,฀ o฀ que฀ explicaria฀ a฀ ausência฀ de฀ uma฀ menção฀ a฀ Syagrius฀ como฀vir฀ illuster฀nos฀textos฀imperiais.฀Ao฀vencer฀Syagrius,฀em฀486,฀Clóvis฀pode฀ter฀ sido฀reconhecido฀pelo฀imperador฀em฀Constantinopla฀como฀vir฀illuster.฀Como฀Remígio฀o฀utiliza฀em฀sua฀segunda฀carta฀a฀Clóvis,฀e฀dada฀a฀ preocupação฀legalista฀do฀bispo฀de฀Reims,฀o฀título฀deveria฀refletir฀uma฀ situação฀de฀iure.฀O฀recurso฀às฀dignidades฀romanas฀não฀deve฀ser฀visto฀ como฀fruto฀de฀um฀capricho฀de฀chefes฀bárbaros฀que฀nada฀entendiam฀do฀ significado฀delas.฀A฀autoridade฀exercida฀por฀Clóvis฀fundamentava-se฀ na฀defesa฀da฀Gália฀contra฀um฀alto฀funcionário฀romano฀em฀dissidência,฀ e฀mesmo฀em฀secessão.฀Clóvis฀encarnava฀assim฀a฀legalidade฀imperial฀e฀o฀ partido฀da฀continuidade฀romana.฀Ele฀representava฀para฀as฀populações฀ galo-romanas฀a฀garantia฀de฀que฀a฀Gália฀setentrional฀permaneceria฀na฀ esfera฀de฀influência฀da฀Romania.฀ Não฀ há฀ indícios฀ de฀ que฀ tenha฀ havido฀ uma฀ guerra฀ entre฀ romanos฀ e฀ francos฀ pelo฀ controle฀ da฀ Gália฀ ou฀ ainda฀ uma฀ conquista฀ franca฀ da฀ eclesiásticos:฀Chlotarii฀II.฀Praeceptio,฀8:฀“Clodacharius,฀rex฀Francorum,฀omnebus฀agentibus”฀ (grifo฀nosso);฀Guntchramni฀regis฀edictum฀5:฀“Gunthramnus฀rex฀Francorum฀omnibus฀pontificibus฀ac฀universis฀sacerdotibus฀et฀cunctis฀iudicibus฀in฀regione฀nostra฀constitutis”฀(grifo฀nosso).฀Sobre฀esse฀problema,฀ver฀H.฀Wolfram,฀Intitulatio฀I,฀pp.฀108-127. 32 ฀M.฀Rouche฀afirma฀que฀o฀título฀vir฀illuster฀foi฀retirado฀a฀Syagrius฀por฀Clóvis.฀Essa฀promoção,฀ segundo฀ele,฀não฀poderia฀ser฀atribuída฀ao฀poder฀imperial,฀então฀ausente฀do฀Ocidente.฀A฀única฀ explicação฀possível,฀segundo฀Rouche,฀seria฀que฀Clóvis,฀após฀sua฀vitória฀sobre฀Syagrius,฀em฀486,฀ lhe฀teria฀confiscado฀a฀dignidade฀(M.฀Rouche,฀Clovis,฀p.฀396).฀Ora,฀essa฀suposta฀ausência฀não฀ impediu฀que฀anos฀mais฀tarde,฀em฀508,฀na฀cidade฀de฀Tours,฀Clóvis฀recebesse฀uma฀dignidade฀ hierárquica฀do฀imperador.฀฀ 33 ฀Ver฀M.฀Heinzelmann,฀Gallische฀Prosopographie฀(260-527),฀p.699;฀e฀também,฀J.R.฀Martindale,฀The฀prosopography฀of฀the฀Later฀Roman฀Empire,฀A.D.฀395-527,฀t.฀II,฀pp.฀1041-1042.฀ 34 ฀Histórias฀II,฀18.฀ 54฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Gália.฀ É฀ possível฀ identificar฀ combates฀ entre฀ um฀ rei฀ bárbaro฀ à฀ frente฀ da฀administração฀romana฀–฀Clóvis฀–฀e฀outros฀pequenos฀reis฀bárbaros฀ oriundos฀ de฀ sua฀ própria฀ família.฀ É฀ o฀ que฀ mostra฀ o฀ relato฀ de฀ Gregório฀de฀Tours฀ao฀final฀do฀livro฀II฀das฀Histórias35.฀Essas฀disputas฀foram฀ movidas฀muito฀mais฀pelo฀choque฀de฀interesses฀no฀interior฀dos฀grupos฀ francos,฀do฀que฀por฀uma฀disputa฀entre฀uma฀“liga฀bárbara”฀e฀o฀mundo฀ romano.฀Também฀se฀poderia฀mencionar฀o฀conflito฀de฀Clóvis฀contra฀os฀ visigodos฀de฀Alarico฀II,฀que฀será฀abordada฀mais฀adiante;฀mas,฀também฀ nesse฀caso,฀nenhum฀dos฀dois฀oponentes฀combateu฀a฀Romania.฀ O฀ único฀ dos฀ conflitos฀ ocorridos฀ no฀ final฀ do฀ século฀V฀ que฀ poderia฀se฀assemelhar฀a฀uma฀“guerra฀de฀conquista”฀da฀Gália฀é฀o฀que฀opôs฀ Clóvis฀ e฀ Syagrius.฀ Não฀ se฀ pode฀ afirmar฀ categoricamente฀ que฀ Clóvis฀ tinha฀destruido฀em฀486฀os฀últimos฀vestígios฀da฀autoridade฀imperial฀na฀ Gália,฀pois฀ele฀próprio฀era฀um฀representante฀dessa฀autoridade.฀Além฀ do฀mais,฀mesmo฀que฀a฀vitória฀sobre฀Syagrius฀representasse฀para฀Clóvis฀ uma฀progressão฀na฀hierarquia฀romana,฀ela฀não฀fez฀do฀rei฀franco฀automaticamente฀o฀mestre฀de฀toda฀a฀Gália฀do฀norte.฀Segundo฀uma฀versão฀ da฀Vida฀de฀São฀Remígio,฀redigida฀no฀século฀IX,฀Clóvis฀só฀conseguiu฀ estender฀sua฀influência฀até฀o฀rio฀Loire฀muito฀tempo฀depois฀de฀sua฀vitória฀ contra฀ Syagrius36.฀ Ele฀ pode฀ ter฀ recebido฀ ajuda฀ de฀ contingentes฀ de฀soldados฀romanos,฀pois฀Procópio฀menciona฀soldados฀do฀Império฀ encarregados฀ da฀ defesa฀ das฀ regiões฀ mais฀ recuadas฀ da฀ Gália,฀ que฀ não฀ tendo฀mais฀a฀possibilidade฀de฀retornar฀a฀Roma,฀e฀após฀recusarem฀uma฀ aliança฀com฀os฀godos฀arianos,฀acabaram฀por฀se฀unir฀aos฀francos37. 35 ฀Particularmente฀os฀capítulos฀40,฀41฀e฀42.฀ ฀Vita฀Remigii฀episcopi฀Remensis฀auctore฀Hincmaro,฀11;฀e฀Vita฀Remigii,฀12;฀ver฀também,฀ Vita฀Maximini,฀pp.฀580-591,฀que฀é฀um฀texto฀posterior.฀฀ 37 ฀Procópio,฀De฀Bello฀Gothico,฀I,฀12:฀“Outros฀soldados฀romanos฀haviam฀sido฀postados฀nas฀extremidades฀das฀Gálias฀para฀guardá-las:฀como฀eles฀não฀podiam฀voltar฀para฀Roma฀e฀não฀queriam฀se฀ juntar฀aos฀seus฀inimigos,฀que฀eram฀arianos;฀eles฀se฀ofereceram,฀com฀suas฀insígnias฀e฀com฀o฀país฀que฀ eles฀guardavam฀há฀muito฀tempo฀para฀os฀romanos,฀aos฀armoricanos฀e฀aos฀germânicos;฀eles฀conservaram฀seus฀costumes฀nacionais฀e฀transmitiram฀aos฀seus฀descendentes฀que฀ainda฀hoje฀acreditam฀ dever฀guardá-los฀piedosamente”.฀฀฀฀฀ 36 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀55 Clóvis฀ permaneceu฀ integrado฀ à฀ hierarquia฀ romana฀ de฀ dignidades,฀ e฀ isso฀permitiu฀que฀se฀unissem฀em฀torno฀dele฀as฀guarnições฀estacionadas฀ na฀Gália,฀as฀elites฀galo-romanas,฀enfim,฀os฀partidários฀da฀Romania.฀Após฀a฀ vitória฀sobre฀Syagrius,฀em฀486,฀as฀guerras฀que฀Clóvis฀desencadeou฀foram฀ dirigidas฀ contra฀ francos,฀ turíngios,฀ alamanos,฀ burgúndios฀ e฀ visigodos.฀ Ele฀não฀conquistou฀esses฀territórios฀da฀Gália฀ao฀Império฀Romano.฀Muito฀ embora฀o฀Império฀Romano฀do฀Ocidente฀não฀existisse฀mais฀como฀entidade฀política,฀a฀influência฀do฀Império฀no฀Ocidente฀não฀havia฀desaparecido฀ por฀completo.฀O฀fato฀de฀Odoacro฀ter฀enviado฀ao฀Oriente฀as฀insígnias฀do฀ poder฀imperial฀e฀ter฀reclamado฀ao฀imperador฀Zenon฀o฀grau฀de฀patrício,฀ mostra฀que฀o฀Império฀não฀era฀uma฀mera฀ficção฀para฀os฀homens฀do฀final฀ do฀século฀V38.฀Era฀muito฀mais฀conveniente฀para฀Clóvis฀associar-se฀a฀uma฀ autoridade฀imperial฀que,฀embora฀distante,฀era฀ainda฀uma฀fonte฀de฀legitimidade,฀e฀cujos฀vínculos฀com฀o฀Ocidente฀eram฀relativamente฀frouxos,฀do฀ que฀aventurar-se฀em฀uma฀secessão.฀฀ A฀trajetória฀política฀de฀Clóvis,฀tal฀como฀ela฀aparece฀nos฀textos฀contemporâneos฀à฀sua฀ascensão฀ao฀poder,฀não฀indica฀ruptura.฀Em฀sua฀primeira฀ epístola฀a฀Clóvis,฀o฀bispo฀de฀Reims฀não฀menciona฀nenhuma฀sucessão฀real฀ –฀mesmo฀que฀no฀final฀da฀carta฀ele฀reconheça฀a฀dignidade฀real฀de฀Clóvis฀–,฀ tampouco฀uma฀mudança฀de฀regime,฀e฀menos฀ainda฀uma฀conquista:฀ “Um฀grande฀rumor฀chegou฀até฀nós,฀vós฀assumistes฀a฀administração฀da฀Bélgica฀Segunda.฀Isso฀não฀é฀novo,฀pois฀tu฀terás฀começado฀por฀ser฀aquilo฀que฀teus฀ pais฀sempre฀foram”39.฀ 38 ฀Malchus฀de฀Philadelphia,฀Fragmenta,฀10.฀Sobre฀essa฀questão,฀ver฀M.฀Cândido฀da฀Silva,฀4฀de฀ Setembro฀de฀476:฀A฀Queda฀de฀Roma,฀p฀ 39 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀2.฀Segundo฀G.฀Kurth,฀Clóvis฀teria฀recebido฀essa฀carta฀após฀ter฀derrotado฀Syagrius฀na฀batalha฀de฀Soissons,฀em฀486฀(Clovis,฀p.213,฀n.4),฀opinião฀que฀é฀compartilhada฀ por฀G.฀Tessier฀(Le฀baptême฀de฀Clovis,฀p.฀83).฀Para฀K.฀Hauck,฀essa฀carta฀foi฀escrita฀após฀Clóvis฀ ter฀feito฀sua฀entrada฀solene฀e฀à฀moda฀romana฀na฀metrópole฀por฀ocasião฀de฀sua฀ascensão฀ao฀ governo฀da฀Bélgica฀Segunda,฀por฀volta฀de฀481฀(“Von฀einer฀spätantiken฀Randkultur฀zum฀karolingschen฀Europa”,฀pp.3-93).฀Essa฀também฀é฀a฀opinião฀de฀M.฀Rouche฀(Clovis,฀pp.฀389-390).฀ 56฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média O฀que฀o฀bispo฀de฀Reims฀descreve฀nesse฀trecho฀é฀uma฀simples,฀e฀quase฀ corriqueira,฀tomada฀de฀função฀no฀interior฀da฀administração฀da฀província฀da฀Bélgica฀Segunda.฀Remígio฀afirma฀que฀Clóvis฀está฀ocupando฀uma฀ função฀que฀já฀era฀ocupada฀por฀outros฀membros฀de฀sua฀família.฀Nada฀ nesse฀ texto฀ sugere฀ que฀ Clóvis฀ tenha฀ adquirido฀ sua฀ posição฀ através฀ de฀ uma฀conquista฀ou฀de฀uma฀mudança฀abrupta฀de฀regime.฀Supondo฀que฀ a฀carta฀tivesse฀sido฀endereçada฀a฀um฀invasor,฀Remígio฀não฀teria฀tido฀o฀ cuidado฀de฀limitar฀a฀preeminência฀de฀Clóvis฀à฀província฀da฀Bélgica฀Segunda.฀As฀ fronteiras฀ dessa฀ província,฀ que฀ compreendia฀ as฀ civitates฀ de฀ Cambrai,฀Arras,฀Vermand,฀ Senlis,฀Amiens,฀ Reims,฀ Soissons฀ e฀ Tournai,฀ não฀eram฀barreiras฀naturais;฀e,฀ainda฀que฀o฀fossem,฀não฀poderiam฀ter฀ bloqueado฀a฀progressão฀de฀um฀exército฀bárbaro,฀como฀os฀Pireneus,฀os฀ Alpes฀e฀o฀Estreito฀de฀Gibraltar฀também฀não฀bloquearam.฀Um฀conquistador฀bárbaro฀não฀teria฀razões฀para฀respeitar฀os฀limites฀administrativos฀ romanos,฀mas฀um฀rei฀franco฀governando฀a฀província฀em฀nome฀da฀autoridade฀imperial,฀sim.฀Além฀disso,฀a฀menção฀por฀Remígio฀do฀“rumor”฀ que฀teria฀chegado฀até฀ele฀descarta฀a฀possibilidade฀de฀uma฀ação฀violenta฀ dos฀francos฀chefiados฀por฀Clóvis:฀é฀pouco฀provável฀que฀a฀conquista฀da฀ província฀pudesse฀ocorrer฀sem฀que฀a฀própria฀capital,฀Reims,฀fosse฀tomada.฀Nesse฀caso,฀Remígio฀não฀se฀referiria฀a฀essa฀ação฀como฀um฀simples฀ “rumor”.฀Se฀ele฀o฀faz,฀é฀porque฀não฀se฀tratava฀de฀uma฀guerra฀de฀conquista,฀mas฀de฀uma฀mudança฀no฀interior฀da฀própria฀administração฀romana.฀ É฀o฀que฀demonstra,฀aliás,฀a฀referência฀de฀Remígio฀ao฀fato฀de฀que฀Clóvis฀ assumiu฀a฀administração฀da฀Bélgica฀Segunda.฀A฀expressão฀rumor฀magnus฀pode฀ainda฀ser฀uma฀alusão฀à฀entrada฀solene฀de฀Clóvis฀na฀cidade฀de฀ Reims,฀ segundo฀ a฀ tradição฀ imperial,฀ sob฀ as฀ aclamações฀ da฀ população฀ –฀ daí฀ a฀ utilização฀ da฀ palavra฀ rumor,฀ que฀ também฀ pode฀ ser฀ traduzida฀ como฀murmúrio฀da฀multidão40. Há,฀no฀entanto,฀um฀problema฀com฀essa฀interpretação:฀como฀lembra฀ M.฀Rouche,฀Sidônio฀Apolinário,฀em฀uma฀de฀suas฀cartas,฀afirma฀que,฀depois฀da฀deposição฀de฀Romulus฀Augustulus,฀nenhum฀membro฀da฀alta฀ad40 ฀O.฀Guillot,฀A.฀Rigaudière,฀Y.฀Saissier,฀Pouvoirs฀et฀institutions฀dans฀la฀France฀médiévale.฀Des฀ origines฀à฀l’époque฀féodale,฀t.฀I,฀p.฀56.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀57 ministração฀civil฀romana฀foi฀nomeado฀no฀Ocidente.฀Ora,฀se฀não฀houve฀ conquista,฀e฀se฀Clóvis฀não฀foi฀nomeado฀governador฀da฀Bélgica฀Segunda,฀ como฀ele฀assumiu฀a฀sua฀administração?฀A฀solução฀para฀o฀problema฀pode฀ estar฀na฀frase฀seguinte฀da฀epístola฀de฀Remígio:฀“Isso฀não฀é฀novo,฀pois฀tu฀ terás฀começado฀por฀ser฀aquilo฀que฀teus฀pais฀sempre฀foram”.฀Remígio฀deixa฀claro฀nesse฀trecho฀que฀Clóvis฀está฀ocupando฀uma฀função฀que฀já฀era฀ ocupada฀por฀outros฀membros฀de฀sua฀família.฀Assim,฀Clóvis฀herdou฀de฀ seu฀ pai฀ Childerico฀ a฀ função฀ de฀ governador฀ da฀ província,฀ assim฀ como฀ a฀função฀de฀rex.฀Gregório฀de฀Tours,฀ao฀tratar฀da฀morte฀do฀pai฀de฀Clóvis,฀Childerico,฀também฀menciona฀uma฀sucessão฀dinástica:฀“Após฀esses฀ acontecimentos,฀com฀a฀morte฀de฀Childerico,฀seu฀filho฀Clóvis฀reinou฀em฀seu฀ lugar”41.฀Portanto,฀é฀bastante฀provável฀que฀não฀tenha฀havido฀conquista,฀ tampouco฀uma฀nomeação฀pelo฀imperador,฀mas฀uma฀sucessão฀no฀interior฀da฀família฀merovíngia.฀O฀afrouxamento฀das฀relações฀com฀o฀poder฀ imperial,฀destarte฀instalado฀na฀longínqua฀Constantinopla,฀pode฀explicar฀ como฀a฀chefia฀da฀administração฀provincial฀romana฀na฀Bélgica฀Segunda฀ converteu-se฀em฀uma฀função฀transmitida฀no฀interior฀da฀família฀merovíngia.฀Todavia,฀seria฀um฀equívoco฀considerar฀que,฀a฀partir฀do฀advento฀ de฀Clóvis,฀foram฀rompidos฀todos฀os฀laços฀entre฀a฀Gália฀e฀o฀Império.฀฀฀ Na฀mesma฀frase฀em฀que฀se฀refere฀a฀Clóvis฀como฀vir฀magnificus,฀Remígio฀o฀chama฀de฀rex.฀Em฀seguida,฀escreve฀que฀ele฀assumiu฀a฀administração฀da฀Bélgica฀Segunda.฀O฀restante฀da฀carta฀mantém฀essa฀ambigüidade฀ –฀Remígio฀parece฀ora฀se฀endereçar฀ao฀chefe฀da฀província฀romana,฀ora฀ao฀ rei฀–฀inclusive฀na฀última฀parte฀da฀última฀frase:฀“...e฀se฀queres฀reinar,฀julga฀ em฀ nobre”.฀ O฀ paradoxo฀ é฀ apenas฀ aparente,฀ pois฀ Clóvis฀ exerce฀ as฀ duas฀ funções,฀ele฀é฀governador฀da฀província฀da฀Bélgica฀Segunda฀–฀e,฀enquanto฀ tal,฀ alto฀ funcionário฀ romano฀ –,฀ e฀ rei.฀ Como฀ vimos฀ anteriormente,฀ ao฀ assumir฀as฀funções฀de฀seu฀pai,฀ele฀herdou฀não฀apenas฀o฀comando฀da฀administração฀romana,฀mas฀também฀suas฀prerrogativas฀reais.฀Mas฀em฀que฀ consistiam?฀É฀importante฀observar฀que,฀em฀momento฀algum฀da฀epístola,฀ Clóvis฀é฀chamado฀de฀rex฀francorum,฀título฀que฀as฀fontes฀posteriores฀lhe฀ 41 ฀Histórias฀II,฀27.฀฀ 58฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média outorgam,฀da฀mesma฀forma฀que฀seu฀pai฀Childerico,฀cujo฀anel฀descoberto฀em฀seu฀túmulo,฀em฀1653,฀continha฀a฀inscrição฀Childerici฀regis42.฀No฀ endereço฀da฀carta฀de฀Clóvis฀aos฀bispos,฀a฀expressão฀rex฀francorum฀também฀não฀aparece:฀“Dominis฀sanctis฀et฀apostolica฀sede฀dignissimis฀episcopis฀ Chlothovechus฀ rex”43.฀ O฀ mesmo฀ ocorre฀ na฀ carta฀ enviada฀ pelos฀ bispos฀ a฀ Clóvis฀ por฀ ocasião฀ do฀ Concílio฀ de฀ Orléans฀ I,฀ em฀ 511:฀ “Domno฀ suo฀ catholicae฀ecclesiae฀filio฀Chlotouecho฀gloriosissimo฀regi฀omnes฀sacerdotes,฀ quos฀ad฀concilium฀uenire฀iussistis”44.฀Não฀há,฀nas฀fontes฀contemporâneas฀ a฀ Clóvis฀ oriundas฀ da฀ Gália,฀ nenhum฀ termo฀ étnico฀ que฀ complemente฀ seu฀título฀real.฀Mesmo฀Avitus฀(494-518),฀bispo฀de฀Viena,฀que฀escreve฀do฀ Reino฀dos฀Burgúndios,฀refere-se฀a฀Clóvis฀como฀“rei”,฀e฀não฀“rei฀dos฀francos”:฀“Avitus฀episcopus฀Chlodovecho฀regi”45.฀A฀única฀fonte฀do฀período฀a฀ se฀referir฀a฀Clóvis฀como฀rex฀francorum฀é฀um฀extrato฀do฀Liber฀pontificalis,฀ redigido฀em฀Roma฀nas฀primeiras฀décadas฀do฀século฀VI46.฀ Além฀do฀mais,฀em฀duas฀ocasiões฀ao฀longo฀da฀epístola,฀Remígio฀dá฀a฀entender฀que฀o฀poder฀de฀Clóvis฀abrangia฀todos฀os฀habitantes฀da฀província:฀฀ “Anima฀teus฀cidadãos,฀alivia฀os฀aflitos,฀favorece฀as฀viúvas,฀alimenta฀os฀órfãos;฀mais฀do฀que฀iluminá-los,฀que฀todos฀te฀amem฀e฀te฀respeitem...฀Que฀teu฀ pretório฀esteja฀aberto฀a฀todos฀a฀fim฀de฀que฀ninguém฀regresse฀triste”฀(grifo฀ nosso)47.฀ 42 ฀P.฀Périn,฀L.-Ch.฀Feffer,฀Les฀Francs,฀p.127฀e฀ss.฀ ฀Chlodowici฀regis฀ad฀episcopos฀epistola฀(507-511),฀Capitularia฀regum฀Francorum,฀pp.฀1-2,฀ especialmente,฀p.฀1.฀É฀importante฀salientar฀que฀o฀próprio฀título฀de฀rex฀não฀é฀uma฀criação฀germânica,฀mas฀uma฀dignidade฀que฀a฀diplomacia฀romana฀outorgava฀aos฀chefes฀militares฀aliados฀ com฀quem฀assinava฀tratados.฀ 44 ฀Orléans฀I฀(511),฀Epistola฀ad฀regem,฀In:฀Les฀canons฀des฀conciles฀mérovingiens฀(VIe-VIIe฀ siècles),฀t.฀I,฀p.฀70.฀ 45 ฀Alcimi฀Ecdicii฀Aviti฀Viennensis฀Episcopi,฀46฀(41),฀Auctores฀Antiquissimi,฀pp.฀75-76,฀especialmente,฀p.฀75.฀ 46 ฀Liber฀pontificalis,฀p.฀271:฀“Eodem฀tempore฀venit฀regnus฀cum฀gemmis฀praetiosis฀a฀rege฀Francorum฀Cloduveum฀christianum,฀donum฀beato฀Petro฀apostolo”.฀ 47 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀2. 43 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀59 O฀“todos”฀a฀que฀se฀refere฀o฀bispo฀de฀Reims฀tem฀um฀duplo฀significado:฀ ele฀compreende฀os฀francos฀e฀os฀galo-romanos,฀mas฀inclui฀também฀os฀estrangeiros,฀pois฀o฀bispo฀afirma,฀em฀outro฀trecho฀da฀epístola,฀que฀Clóvis฀ deve฀realizar฀a฀justiça฀“...sem฀nada฀esperar฀dos฀pobres฀e฀dos฀estrangeiros”.฀Ao฀ longo฀de฀toda฀a฀epístola,฀a฀função฀de฀Clóvis฀sobre฀a฀qual฀Remígio฀chama฀ mais฀atenção฀é฀o฀exercício฀da฀justiça.฀Nada฀de฀mais฀natural฀em฀se฀tratando฀ de฀um฀rector฀provinciae฀cuja฀principal฀atribuição฀era฀presidir฀o฀pretório.฀ A฀última฀parte฀da฀última฀frase฀da฀epístola฀não฀deixa฀duvidas:฀“...se฀queres฀ reinar,฀julga฀em฀nobre”.฀Em฀outras฀palavras,฀Remígio฀sabia฀que฀Clóvis฀não฀ presidia฀o฀pretório฀provincial฀apenas฀como฀rector฀provinciae,฀mas฀como฀ um฀rei.฀“Julgar฀em฀nobre”฀significava฀dar฀um฀tratamento฀equânime฀a฀todos฀ os฀que฀procurassem฀seu฀pretório.฀Segundo฀o฀ideal฀de฀exercício฀da฀justiça฀ presente฀nessa฀epístola,฀seu฀destinatário฀deveria฀se฀comportar฀não฀apenas฀ como฀o฀rei฀dos฀francos,฀mas฀como฀o฀governante฀de฀todos฀os฀habitantes฀ da฀província,฀fossem฀eles฀francos,฀galo-romanos,฀burgúndios฀etc.฀Nesse฀ sentido,฀é฀possível฀afirmar฀que฀esse฀ideal฀se฀concretizou:฀Clóvis฀somente฀ pôde฀ocupar฀o฀vazio฀deixado฀pela฀autoridade฀imperial฀na฀Gália฀à฀medida฀ que฀ suas฀ prerrogativas฀ judiciárias฀ à฀ frente฀ da฀ administração฀ da฀ Bélgica฀ Segunda,฀mais฀precisamente฀as฀exigências฀de฀universalidade฀e฀equanimidade฀que฀acompanhavam฀tais฀prerrogativas,฀fizeram฀dele฀o฀governante฀de฀ todos฀os฀habitantes฀dos฀territórios฀por฀ele฀administrados. Desde฀a฀publicação฀do฀Espírito฀das฀Leis,฀de฀Montesquieu,฀os฀historiadores฀sustentam฀que฀houve฀uma฀conquista฀franca฀da฀Gália฀a฀partir฀ do฀fato฀de฀que฀a฀autoridade฀de฀Clóvis฀e฀dos฀primeiros฀reis฀merovíngios฀ teria฀uma฀natureza฀distinta฀segundo฀as฀origens฀étnicas฀das฀populações฀ sobre฀as฀quais฀ela฀se฀exercia.฀Essa฀dicotomia฀teria฀se฀manifestado฀através฀ das฀denominações฀rex฀e฀vir฀illuster.฀O฀título฀de฀rex฀indicaria฀a฀preeminência฀de฀Clóvis฀sobre฀os฀francos,฀enquanto฀o฀título฀de฀vir฀illuster฀sobre฀ as฀populações฀galo-romanas.฀O฀exemplo฀mais฀utilizado฀para฀sustentar฀ esse฀ponto฀de฀vista฀é฀o฀das฀multas฀previstas฀pelo฀Pactus฀legis฀Salicae48฀no฀ 48 ฀A฀chamada฀“Lei฀dos฀francos฀sálicos”฀foi฀transmitida฀por฀cerca฀de฀oitenta฀manuscritos,฀sendo฀ que฀o฀mais฀antigo฀deles฀data฀do฀final฀do฀século฀VIII.฀Pesquisas฀recentes฀identificaram฀três฀fases฀ na฀elaboração฀dessa฀lei:฀a฀primeira฀corresponderia฀aos฀44฀primeiros฀títulos฀da฀lei,฀a฀segunda 60฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média caso฀de฀assassinato฀de฀romanos฀e฀de฀francos.฀As฀multas฀tinham฀valores฀ distintos฀segundo฀a฀origem฀das฀vítimas,฀com฀penas฀mais฀elevadas฀previstas฀no฀caso฀de฀assassinato฀de฀um฀franco฀do฀que฀no฀de฀um฀romano: “XLI.฀Do฀assassinato฀dos฀homens฀livres. §1.฀Se฀alguém฀matou฀um฀franco฀livre฀ou฀um฀bárbaro฀que฀vive฀sob฀o฀regime฀ da฀ Lei฀ sálica฀ e฀ que฀ isso฀ seja฀ provado,฀ que฀ ele฀ seja฀ condenado฀ a฀ uma฀ multa฀ de฀8.000฀denários,฀que฀perfazem฀200฀soldos.฀§2.฀Se฀ele฀[a฀vítima]฀foi฀jogado฀ em฀um฀poço฀ou฀afogado,฀que฀ele฀[o฀culpado]฀seja฀condenado฀a฀uma฀multa฀ de฀24.000฀denários,฀que฀perfazem฀600฀soldos.฀฀(Que฀ele฀seja฀condenado฀de฀ qualquer฀maneira฀se฀escondeu฀o฀corpo฀como฀nós฀dissemos฀anteriormente).฀ dos฀títulos฀45฀a฀65,฀e฀a฀terceira฀corresponderia฀aos฀títulos฀66฀a฀78.฀Os฀65฀primeiros฀títulos฀foram฀ chamados฀de฀Pactus฀Legis฀Salicae.฀Um฀prólogo฀longo฀e฀um฀prólogo฀curto,฀alguns฀epílogos฀e฀฀ alguns฀textos฀legislativos฀(entre฀os฀quais฀se฀encontra฀o฀Pactus฀pro฀tenore฀pacis฀de฀Childeberto฀ e฀de฀Clotário,฀o฀Edito฀de฀Chilperico฀e฀o฀Decretio฀Childeberti)฀foram฀acrescentados฀a฀partir฀da฀ primeira฀metade฀do฀século฀VI.฀Durante฀muito฀tempo,฀alguns฀historiadores฀acreditaram฀que฀o฀ Pactus฀tomou฀forma฀sob฀o฀reinado฀de฀Clóvis.฀Outros,฀como฀os฀Bolandistas,฀presumiam฀que฀isso฀ teria฀ ocorrido฀ no฀ momento฀ em฀ que฀ os฀ francos฀ se฀ instalaram฀ em฀ Toxandria.฀ G.฀Waitz฀ situa฀ a฀ redação฀do฀Pactus฀na฀metade฀do฀século฀V,฀sob฀o฀reinado฀de฀Chlodion฀(G.฀Waitz,฀Das฀alte฀Recht฀ der฀Salischen฀Franken.฀p.฀5).฀Um฀epílogo,฀redigido฀muito฀provavelmente฀no฀início฀do฀século฀VI,฀ atribuía฀a฀paternidade฀do฀Pactus฀a฀um฀“primeiro฀rei฀dos฀francos”฀sem,฀no฀entanto,฀dar฀mais฀precisões.฀Alguns฀identificaram฀nesse฀misterioso฀personagem฀o฀rei฀Clóvis:฀segundo฀K.-A.฀Eckhardt,฀ o฀Pactus฀teria฀nascido฀sob฀o฀reinado฀desse฀último,฀por฀obra฀de฀juristas฀conhecedores฀do฀“direito฀ bárbaro”.฀Contudo,฀o฀texto฀desse฀prólogo฀sugere฀que฀muito฀tempo฀se฀passou฀entre฀o฀reinado฀do฀ primeiro฀rei฀franco฀até฀o฀reinado฀de฀Childeberto:฀“…Sic฀vero฀Childebertus฀rex฀post฀multum฀autem฀ tempus฀pertractauit…”.฀Ora,฀como฀Childeberto฀é฀filho฀de฀Clóvis,฀isso฀parece฀desqualificar฀esse฀último฀como฀autor฀potencial฀da฀lei.฀Segundo฀I.฀Wood,฀não฀há฀nada฀no฀prólogo฀que฀possa฀justificar฀ a฀atribuição฀do฀Pactus฀a฀Clóvis฀ou฀a฀um฀outro฀rei฀merovíngio฀mais฀antigo.฀O฀autor฀desse฀prólogo฀ não฀ teria฀ conhecido฀ o฀ nome฀ do฀ primeiro฀ rei฀ franco,฀ e฀ ao฀ citá-lo฀ vagamente,฀ apenas฀ repetiria฀ a฀tradição฀recorrente฀a฀respeito฀de฀um฀“rei-fundador”฀(I.฀Wood,฀The฀Merovingian฀Kingdoms,฀ p.111).฀Todavia,฀a฀hipótese฀segundo฀a฀qual฀o฀Pactus฀teria฀sido฀redigido฀sob฀o฀reinado฀de฀Clóvis฀é฀a฀ que฀possui,฀ainda฀hoje,฀maior฀número฀de฀adeptos฀entre฀os฀historiadores.฀Para฀eles,฀o฀Pactus฀é฀um฀ combinado฀de฀elementos฀do฀costume฀e฀da฀legislação฀real฀que฀foram฀compilados฀provavelmente฀ por฀francos฀especialistas฀em฀direito,฀mas฀certamente฀com฀o฀auxílio฀de฀juristas฀romanos฀(James,฀I฀ Franchi,฀p.23;฀Geary,฀Naissance฀de฀la฀France,฀pp.112-113). Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀61 §3.฀Se฀ele฀não฀o฀escondeu,฀que฀seja฀condenado฀a฀uma฀multa฀de฀8.000฀denários,฀ que฀ perfazem฀ 200฀ soldos).฀ §5.฀ Se฀ alguém฀ matou฀ aquele฀ que฀ fazia฀ parte฀ do฀ séqüito฀real฀(ou฀uma฀mulher฀livre),฀que฀ele฀seja฀condenado฀a฀pagar฀uma฀multa฀de฀24.000฀denários,฀que฀perfazem฀600฀soldos.฀§8.฀Se฀um฀romano,฀“conviva฀ do฀ rei”,฀ foi฀ assassinado฀ (e฀ que฀ isso฀ seja฀ provado),฀ que฀ ele฀ [o฀ culpado]฀ seja฀ condenado฀a฀uma฀multa฀de฀12.000฀denários,฀que฀perfazem฀300฀soldos.฀§9.฀Se฀ um฀romano฀proprietário฀(que฀não฀era฀um฀“conviva฀do฀rei”)฀foi฀assassinado฀ e฀que฀aquele฀que฀o฀matou฀seja฀identificado,฀que฀seja฀condenado฀a฀pagar฀uma฀ multa฀de฀4.000฀denários,฀que฀perfazem฀100฀soldos.฀§10.฀Se฀alguém฀matou฀um฀ romano฀tributário฀(e฀que฀isso฀seja฀provado,฀que฀[o฀culpado]฀seja฀condenado฀a฀ pagar฀uma฀multa฀de฀2.500฀denários,฀que฀perfazem฀62฀soldos฀e฀meio)”49.฀ O฀assassinato฀de฀um฀franco฀livre฀ou฀de฀um฀bárbaro,฀vivendo฀sob฀o฀ regime฀da฀Lei฀Sálica,฀era฀punido฀com฀uma฀multa฀de฀8.000฀denários.฀Se฀ a฀vítima฀de฀assassinato฀fosse฀um฀romano฀de฀mesma฀condição฀social฀que฀ o฀franco,฀como฀se฀pode฀observar฀no฀capítulo฀9,฀a฀multa฀é฀de฀4.000฀denários.฀Segundo฀Montesquieu,฀essa฀seria฀a฀prova฀de฀que,฀contrariamente฀à฀ Lei฀dos฀Burgúndios฀e฀à฀Lei฀dos฀Visigodos,฀a฀Lei฀Sálica฀estabelecia฀entre฀ francos฀e฀romanos฀as฀diferenças฀mais฀gritantes.฀Montesquieu฀pretendia฀ assim฀responder฀ao฀abade฀Dubos฀–฀para฀quem฀os฀francos฀tinham฀relações฀com฀os฀romanos฀fundadas฀em฀um฀regime฀de฀igualdade฀jurídica฀–฀e฀ afirmar฀ a฀ idéia฀ de฀ que฀ os฀ francos฀ conquistaram฀ a฀ Gália,฀ submetendo฀ as฀ populações฀ galo-romanas.฀As฀ diferentes฀ formas฀ de฀ tratamento฀ dispensadas฀aos฀francos฀e฀aos฀romanos฀explicariam฀inclusive฀o฀porquê฀do฀ desaparecimento฀do฀direito฀romano:฀dadas฀as฀vantagens฀que฀existiam฀ de฀ ser฀ franco,฀ bárbaro฀ ou฀ homem฀ vivendo฀ sob฀ a฀ Lei฀ sálica,฀ ninguém฀ pretendia฀viver฀sob฀a฀proteção฀do฀direito฀romano50.฀ Faz฀apenas฀alguns฀anos฀que฀a฀idéia฀conforme฀a฀qual฀a฀autoridade฀real฀ entre฀os฀merovíngios฀se฀exercia฀diferentemente฀segundo฀a฀origem฀étnica฀ dos฀habitantes฀da฀Gália฀vem฀sendo฀colocada฀em฀xeque.฀Segundo฀E.฀Ewig,฀o฀ regime฀em฀vigor฀sob฀Clóvis฀e฀seus฀herdeiros,฀apesar฀de฀atribuir฀um฀maior฀ 49 ฀Pactus฀Legis฀Salicae,฀41,฀1-10. ฀Montesquieu,฀O฀Espírito฀das฀Leis,฀t.฀II,฀p.223.฀ 50 62฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média valor฀como฀punição฀ao฀assassinato฀de฀um฀franco฀do฀que฀ao฀de฀um฀romano,฀ teria฀permitido฀aos฀galo-romanos฀beneficiar-se฀de฀uma฀proteção฀legal฀tal฀ que฀não฀se฀poderia฀falar฀em฀vencidos฀submetidos฀ao฀arbítrio฀dos฀vencedores51.฀Em฀estudo฀recente,฀O.฀Guillot฀apresenta฀duas฀explicações฀possíveis฀ para฀os฀diferentes฀valores฀das฀multas฀previstas฀na฀Lei฀sálica.฀A฀primeira฀é฀ que฀as฀tarifas฀seriam฀inversamente฀proporcionais฀à฀capacidade฀de฀defesa฀ das฀vítimas.฀Nesse฀caso,฀os฀francos,฀mais฀despojados฀de฀meios฀de฀defesa฀do฀ que฀as฀populações฀galo-romanas฀teriam฀direito฀a฀uma฀maior฀proteção฀jurídica.฀A฀segunda฀explicação฀é฀que฀a฀Lei฀Sálica,฀estabelecida฀para฀combater฀o฀ direito฀germânico฀de฀guerra฀e฀de฀vingança฀privada,฀indenizava฀muito฀mais฀ os฀francos,฀que฀deviam฀renunciar฀a฀esse฀direito,฀do฀que฀os฀romanos,฀que฀ não฀tinham฀essa฀necessidade52.฀A฀primeira฀hipótese฀parece฀pouco฀plausível,฀pois฀a฀Lei฀Sálica฀estabelecia฀multas฀bastante฀elevadas฀como฀punição฀do฀ assassinato฀de฀altos฀funcionários฀do฀que฀de฀pessoas฀comuns.฀Assim,฀por฀ exemplo,฀se฀um฀franco฀que฀fazia฀parte฀do฀séqüito฀real฀fosse฀assassinado,฀o฀ culpado฀seria฀punido฀com฀uma฀multa฀de฀24.000฀denários.฀Caso฀o฀franco฀ não฀ pertencesse฀ ao฀ séqüito฀ real,฀ a฀ multa฀ seria฀ de฀ 8.000฀ denários.฀ Se฀ um฀ romano฀“conviva฀do฀rei”฀fosse฀assassinado,฀a฀multa฀seria฀de฀12.000฀denários.฀Todavia,฀se฀o฀romano฀assassinado฀não฀fosse฀um฀“conviva฀do฀rei”,฀a฀ multa฀caía฀para฀4.000฀denários53.฀Não฀se฀trata,฀portanto,฀unicamente฀de฀um฀ dispositivo฀de฀proteção฀para฀aqueles฀que฀não฀podiam฀se฀defender.฀A฀explicação฀mais฀satisfatória฀é฀que฀os฀soldados฀do฀exercitus฀Francorum฀tinham฀ mais฀razões฀do฀que฀os฀romanos฀para฀serem฀indenizados฀para฀renunciarem฀ à฀vingança.฀A฀limitação฀das฀práticas฀de฀vingança฀aparece฀como฀um฀dos฀objetivos฀do฀Pactus฀legis฀Salicae฀e฀explica,฀em฀parte,฀as฀diferentes฀tarifas54.฀Há฀ 51 ฀E.฀Ewig,฀Die฀Merowinger฀und฀das฀Frankenreich,฀p.฀83.฀฀฀฀ ฀O.฀Guillot,฀“Clovis฀‘Auguste’,฀vecteur฀des฀conceptions฀romano-chrétiennes”,฀pp.฀705-737. 53 ฀Pactus฀Legis฀Salicae฀41,฀1฀e฀8.฀ 54 ฀A฀respeito฀da฀Lei฀Sálica,฀duas฀interpretações฀recentes฀ressaltam฀seu฀caráter฀romano,฀a฀de฀J.-P.฀ Poly฀(“La฀corde฀au฀cou.฀Les฀Francs,฀la฀France฀et฀la฀loi฀salique”,฀pp.฀287-320),฀e฀a฀de฀P.S.฀Barnwell฀ (Emperors,฀ Prefects฀ and฀ Kings.฀ The฀ Roman฀ West,฀ 395-565,฀ pp.฀ 97-99).฀ Para฀ Barnwell,฀ o฀ Pactus฀legis฀salicae฀não฀é฀uma฀lei฀germânica,฀mas฀uma฀atualização฀de฀práticas฀que฀teriam฀se฀ desenvolvido฀na฀época฀imperial฀sob฀a฀forma฀do฀“Código฀Rural”,฀texto฀jurídico฀bizantino฀que฀ retoma฀as฀disposições฀do฀direito฀romano฀(Ibid.,฀p.฀98).฀฀฀฀ 52 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀63 que฀se฀considerar฀também฀o฀papel฀do฀poder฀real฀nessa฀diferenciação:฀ a฀atribuição฀de฀multas฀mais฀elevadas฀como฀punição฀para฀o฀assassinato฀ de฀membros฀do฀séqüito฀real,฀ou฀de฀altos฀funcionários,฀testemunha฀do฀ fortalecimento฀do฀poder฀real฀a฀partir฀do฀início฀do฀século฀VI.฀ A฀diferença฀de฀estatuto฀entre฀francos฀e฀galo-romanos฀no฀interior฀do฀ Regnum฀ Francorum฀ é฀ muito฀ provavelmente฀ uma฀ ficção฀ jurídica฀ criada฀ no฀século฀XVIII฀pelos฀fundadores฀da฀“Escola฀Germanista”.฀Não฀há฀razões฀ para฀se฀pensar฀que฀a฀dupla฀titulatura฀de฀Clóvis฀correspondesse฀a฀uma฀autoridade฀que฀ele฀exercia฀de฀maneira฀diferente฀sobre฀francos฀e฀sobre฀galoromanos.฀O฀Regnum฀Francorum฀não฀era฀uma฀entidade฀étnica:฀a฀palavra฀ “franco”฀passou฀a฀designar,฀ao฀longo฀do฀século฀VI,฀tão฀somente฀o฀conjunto฀ dos฀territórios฀sobre฀os฀quais฀reinavam฀os฀francos.฀É฀assim฀que฀Gregório฀ de฀Tours,฀no฀prefácio฀do฀livro฀V฀de฀suas฀Histórias,฀afirma:฀“É-me฀repugnante฀ lembrar฀ as฀ vicissitudes฀ das฀ guerras฀ civis฀ que฀ enfraquecem฀ bastante฀ a฀nação฀(gens)฀e฀o฀Reino฀(regnum)฀dos฀Francos”55.฀Da฀mesma฀maneira,฀ na฀expressão฀rex฀francorum,฀a฀palavra฀“franco”฀não฀fazia฀referência฀a฀um฀ povo฀específico,฀mas฀remetia฀cada฀vez฀mais฀a฀uma฀identidade฀construída฀ a฀partir฀necessidades฀de฀legitimação฀dos฀sucessores฀de฀Clóvis56.฀฀ A฀principal฀fonte฀da฀autoridade฀pública฀de฀Clóvis฀e฀de฀seus฀sucessores฀ imediatos฀não฀era฀militar:฀ela฀não฀provinha฀do฀triunfo฀dos฀francos฀sobre฀ os฀ galo-romanos,฀ mas฀ de฀ uma฀ relação฀ estreita฀ com฀ as฀ práticas,฀ com฀ as฀ hierarquias฀ e฀ com฀ os฀ símbolos฀ da฀ romanidade.฀ Nem฀ Clóvis,฀ nem฀ seus฀ sucessores,฀retiravam฀sua฀legitimidade฀de฀um฀puro฀direito฀de฀conquista.฀ Se฀as฀vitórias฀militares฀tivessem฀sido฀suficientes฀para฀afirmar฀a฀autoridade฀ dos฀reis฀francos฀sobre฀a฀Gália,฀não฀teria฀sido฀necessário฀revesti-la฀de฀uma฀ aparência฀romana,฀nem฀conformá-la฀aos฀parâmetros฀romanos.฀Bastaria฀ adotar฀as฀construções฀institucionais฀sem,฀no฀entanto,฀recorrer฀aos฀sím55 ฀Histórias฀V,฀prólogo.฀฀ ฀Ver,฀a฀esse฀respeito,฀F.฀Curta,฀“some฀remarks฀on฀ehtnicity฀in฀medieval฀archeology”,฀pp.฀159185.฀Os฀estudos฀sobre฀“etnicidade”,฀realizados฀por฀historiadores฀e฀arqueologos,฀e฀que฀colocam฀ em฀xeque฀a฀existência,฀entre฀os฀bárbaros฀de฀comunidades฀étnicas฀biologicamente฀constituídas.฀ Tais฀comunidades฀não฀“refletiriam฀a฀realidade฀social,฀mas฀seriam฀constituídas฀segundo฀os฀interesses฀das฀elites฀políticas฀e฀com฀a฀participação฀ativa฀dos฀elementos฀da฀cultural฀material.฀฀ 56 64฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média bolos.฀ O฀ reconhecimento฀ pelo฀ imperador฀ permitia฀ que฀ os฀ reis฀ francos฀ afirmassem฀ sua฀ posição฀ em฀ face฀ dos฀ seus฀ súditos฀ galo-romanos,฀ que฀ é฀ importante฀ressaltar,฀constituíam฀a฀maioria฀esmagadora฀da฀população฀da฀ Gália.฀Era,฀portanto,฀um฀reconhecimento฀teórico,฀pois฀como฀salientado฀ anteriormente,฀o฀Império฀não฀possuía฀os฀meios฀materiais฀para฀interferir฀ diretamente฀na฀Gália.฀Mas฀é฀fundamental฀não฀esquecer฀que฀neste฀mundo฀“pós-clássico”,฀como฀mostrou฀P.฀Brown,฀o฀“estilo”฀das฀relações฀sociais฀ pode฀tornar-se฀o฀cerne฀de฀paixões฀tão฀ardentes฀quanto฀a฀satisfação฀das฀ necessidades฀materiais57.฀E฀é฀sob฀esse฀ponto฀de฀vista฀que฀é฀necessário฀compreender฀a฀afirmação฀de฀Procópio฀segundo฀a฀qual฀os฀francos฀acreditavam฀ serem฀incapazes฀de฀manter฀sua฀dominação฀sobre฀a฀Gália฀sem฀a฀aprovação฀ escrita฀e฀selada฀do฀imperador.฀A฀avidez฀de฀Clóvis฀e฀de฀seus฀filhos฀pelos฀ títulos฀e฀honrarias฀oriundas฀de฀Constantinopla฀não฀era฀o฀fruto฀de฀uma฀ vaidade฀desmedida:฀ela฀mostra฀que฀a฀integração฀na฀hierarquia฀imperial฀de฀ dignidades฀era,฀antes฀de฀mais฀nada,฀um฀instrumento฀de฀governo.฀฀฀฀฀฀ A฀cerimônia฀de฀Tours฀(508) Nada฀ilustra฀melhor฀a฀filiação฀romana฀de฀Clóvis฀do฀que฀a฀cerimônia฀de฀ Tours,฀de฀508.฀Trata-se฀da฀última฀e฀mais฀importante฀progressão฀de฀Clóvis฀ na฀hierarquia฀romana,฀e฀também,฀após฀o฀batismo,฀o฀evento฀de฀seu฀reinado฀ que฀suscita฀o฀maior฀número฀de฀polêmicas.฀Não฀há฀dúvidas฀de฀que฀essa฀ cerimônia฀está฀diretamente฀relacionada฀à฀vitória฀de฀Clóvis฀sobre฀os฀visigodos.฀Com฀o฀auxílio฀dos฀burgúndios,฀os฀francos฀atacaram฀e฀derrotaram,฀ na฀primavera฀de฀507,฀os฀visigodos฀em฀Vouillé.฀A฀interferência฀das฀tropas฀ enviadas฀por฀Teodorico,฀rei฀dos฀ostrogodos,฀contribuiu฀para฀diminuir฀a฀ amplitude฀ da฀ derrota฀ dos฀ visigodos,฀ e฀ evitou฀ que฀ os฀ francos฀ se฀ apoderassem฀da฀Septimânia฀e฀da฀Provença.฀Segundo฀Gregório฀de฀Tours,฀após฀a฀ vitória฀de฀Clóvis,฀os฀emissários฀do฀imperador฀Anastácio฀(491-518)฀trouxeram฀para฀ele฀em฀Tours฀uma฀túnica฀púrpura฀e฀um฀diadema,฀juntamente฀ com฀um฀documento฀imperial฀que฀o฀nomeava฀cônsul:฀ 57 ฀P.฀Brown,฀Genèse฀de฀l’Antiquité฀Tardive,฀especialmente,฀pp.21-63.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀65 “Em฀seguida,฀(Clóvis)฀recebeu฀do฀imperador฀Anastácio฀o฀codicilo฀do฀consulado฀e,฀tendo฀revestido฀na฀basílica฀do฀bem-aventurado฀Martinho฀uma฀túnica฀púrpura฀e฀o฀manto,฀colocou฀sobre฀sua฀cabeça฀um฀diadema.฀Em฀seguida,฀ montou฀a฀cavalo฀e฀distribuiu฀ouro฀e฀prata฀de฀suas฀próprias฀mãos฀com฀uma฀ grande฀generosidade฀às฀pessoas฀que฀estavam฀presentes฀no฀caminho฀entre฀a฀ porta฀do฀vestíbulo฀[da฀basílica]฀e฀a฀igreja฀da฀cidade…”58.฀ O฀que฀esse฀trecho฀das฀Histórias฀descreve฀é฀algo฀freqüente฀entre฀os฀ séculos฀V฀ e฀VI:฀ a฀ atribuição฀ pelo฀ imperador฀ de฀ títulos฀ honoríficos฀ a฀ altos฀dignitários฀de฀origem฀germânica.฀Ele฀descreve฀igualmente฀uma฀ “entrada฀triunfal”,฀prática฀herdada฀do฀período฀romano,฀e฀que฀consistia฀na฀entrada฀solene฀na฀civitas฀de฀um฀príncipe฀ou฀general฀vitorioso,฀ ou฀ então฀ de฀ um฀ imperador฀ por฀ ocasião฀ de฀ sua฀ entronização.฀ Como฀ concessão฀por฀parte฀do฀imperador฀de฀um฀título฀a฀um฀rex฀bárbaro,฀a฀ cerimônia฀de฀Tours฀não฀foi฀um฀evento฀excepcional59.฀O฀rei฀dos฀burgúndios,฀Gondebaldo,฀recebeu฀o฀título฀de฀patrício฀em฀472,฀da฀mesma฀ forma฀que฀Odoacro฀quatro฀anos฀mais฀tarde.฀Todos฀os฀dois฀tinham฀em฀ comum฀o฀fato฀de฀terem฀realizado฀proezas฀políticas฀ou฀militares฀que฀os฀ tornaram฀interlocutores฀privilegiados฀de฀Constantinopla.฀A฀ascensão฀ de฀Clóvis,฀desde฀sua฀vitória฀sobre฀Syagrius฀até฀seu฀triunfo฀em฀Vouillé฀ sobre฀os฀visigodos฀de฀Alarico,฀em฀507,฀fez฀dele฀um฀parceiro฀de฀primeira฀importância฀para฀o฀Império,฀uma฀peça฀fundamental฀no฀complexo฀ jogo฀de฀alianças฀na฀pars฀Occidentis60.฀Desde฀o฀final฀do฀século฀V,฀o฀rei฀ ostrogodo฀Teodorico฀conseguiu฀estruturar฀uma฀aliança฀que฀compre58 ฀Histórias฀II,฀38. ฀Ver฀R.฀Frouin,฀“Du฀titre฀de฀roi฀porté฀par฀quelques฀participants฀à฀l’Imperium฀romanum”,฀pp.฀ 140-149. 60 ฀ É฀ o฀ que฀ demonstram฀ as฀ tentativas฀ de฀ apaziguamento฀ de฀ Teodorico,฀ rei฀ dos฀ ostrogodos฀ e฀ mestre฀da฀Itália฀após฀a฀derrota฀de฀Odoacro฀,฀que฀enviou฀uma฀carta฀à฀Alarico฀II฀a฀fim฀de฀evitar฀ um฀conflito฀entre฀este฀e฀Clóvis฀(Cassiodoro,฀Variae,฀12).฀Por฀outro฀lado,฀o฀imperador฀Anastácio฀ tinha฀fortes฀razões฀para฀incentivar฀uma฀ação฀franca฀contra฀Teodorico.฀Este฀havia฀ocupado฀a฀ província฀da฀Panônia฀Segunda฀em฀504,฀mais฀precisamente฀o฀llyricum,฀região฀de฀onde฀era฀originário฀o฀próprio฀imperador฀[J.B.฀Bury,฀History฀of฀the฀Later฀Roman฀Empire฀from฀the฀Death฀ of฀Theodosius฀to฀the฀death฀of฀Justinian฀(A.D.฀395฀to฀A.D.฀565),฀p.฀465]. 59 66฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média endia฀ o฀ Reino฀ dos฀ Visigodos฀ e฀ o฀ Reino฀ dos฀ Burgúndios,฀ a฀ qual฀ M.฀ Rouche฀denominou฀de฀“internacional฀ariana”61.฀A฀cerimônia฀de฀Tours฀ marcou฀o฀reconhecimento฀por฀parte฀do฀imperador฀do฀novo฀equilíbrio฀ de฀forças฀no฀Ocidente฀após฀a฀derrota฀dos฀visigodos฀da฀Aquitânia฀pelos฀ francos62.฀A฀similitude฀entre฀essa฀cerimônia฀e฀o฀ritual฀imperial฀é฀evidente.฀Isso฀significa฀que฀Clóvis฀teria฀recebido฀uma฀dignidade฀que฀na฀ prática฀o฀teria฀transformado฀em฀uma฀espécie฀de฀“vice-imperador”฀no฀ Ocidente? As฀divergências฀entre฀os฀historiadores฀sobre฀a฀cerimônia฀de฀Tours฀ são฀sobretudo฀motivadas฀pela฀tradução฀do฀capítulo฀38฀do฀livro฀II฀dos฀ Decem฀Libri฀Historiarum.฀Para฀L.฀Schmidt,฀o฀título฀de฀proconsul฀que฀o฀ imperador฀teria฀atribuído฀a฀Clóvis฀seria฀o฀resultado฀de฀um฀erro฀na฀grafia฀da฀palavra฀praecelsus฀(elevadíssimo)63.฀Outros฀historiadores,฀como฀F.฀ Lot,฀Ch.฀Pfiester฀e฀F.L.฀Ganshof,฀não฀acreditam฀na฀veracidade฀do฀relato฀ de฀Gregório฀a฀respeito฀da฀cerimônia;฀Clóvis฀não฀poderia฀ter฀sido฀cha- 61 ฀A฀coalizão฀desses฀três฀estados฀arianos฀constituía฀uma฀garantia฀contra฀o฀expansionismo฀franco,฀mas฀também฀uma฀ameaça฀às฀posições฀e฀às฀pretensões฀imperiais฀na฀Itália,฀em฀particular,฀e฀no฀ Ocidente,฀em฀geral.฀Antes฀mesmo฀da฀campanha฀de฀507฀contra฀os฀visigodos฀da฀Aquitânia,฀houve฀tentativas฀por฀parte฀dos฀francos฀de฀romper฀esse฀“cordão฀sanitário”฀instalado฀em฀torno฀do฀ Reino฀dos฀Francos.฀Obtiveram฀sucesso฀no฀caso฀do฀Reino฀dos฀Burgúndios.฀Gregório฀de฀Tours฀ menciona฀uma฀intervenção฀franca฀na฀burgúndia฀por฀volta฀de฀500,฀com฀a฀qual฀Clóvis฀impôs฀ao฀ rei฀Gondebaldo฀o฀pagamento฀de฀um฀tributo฀anual฀(Histórias฀II,฀32).฀Segundo฀L.฀Levillan฀e฀G.฀ Tessier,฀antes฀mesmo฀da฀guerra฀de฀507,฀francos฀e฀visigodos฀tinham฀já฀tinham฀entrado฀em฀choque.฀Cidades฀que฀pertenciam฀ao฀Reino฀dos฀Visigodos฀como฀Saintes,฀em฀495,฀e฀Bordeaux,฀em฀ 498,฀já฀haviam฀sido฀ocupadas฀pelos฀francos.฀(“La฀conversion฀et฀le฀baptême฀de฀Clovis”,฀pp.161192;฀G.฀Tessier,฀Le฀baptême฀de฀Clovis,฀p.฀92,฀n.1฀e฀p.106).฀O฀fato฀de฀o฀rei฀Gondebaldo฀ter฀capturado฀um฀grupo฀de฀guerreiros฀francos฀e฀de฀tê-los฀enviado฀ao฀rei฀Alarico฀em฀Toulouse฀é฀sintomático฀da฀concórdia฀existente฀entre฀burgúndios฀e฀visigodos฀por฀ocasião฀do฀conflito฀de฀500฀ (Histórias฀II,฀33).฀฀฀฀฀฀ 62 ฀Além฀disso,฀no฀mesmo฀ano฀em฀que฀concedeu฀a฀Clóvis฀essas฀honrarias,฀Anastácio฀desencadeou฀hostilidades฀contra฀os฀ostrogodos฀(Amiano฀Marcelino,฀Comitis฀Chronicon,฀508,฀11).฀ 63 ฀L.฀Schmidt,฀Geschichte฀der฀deutschen฀Stämme฀bis฀zum฀Ausgang฀der฀Völkerwanderung,฀ t.฀2,฀p.฀491;฀esse฀autor฀crê฀inclusive฀que฀Clóvis฀rompeu฀todos฀os฀laços฀com฀o฀Império฀após฀ter฀ sucedido฀seu฀pai.฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀67 mado฀“augusto”,฀título฀reservado฀ao฀imperador฀em฀pessoa,฀nem฀portar฀ o฀diadema64.฀Para฀F.฀Lot,฀a฀descrição฀de฀Gregório฀permanece฀enigmática,฀pois฀os฀francos฀não฀teriam฀jamais฀se฀considerado฀súditos฀do฀Império65.฀Pode-se,฀portanto,฀concluir฀que฀Gregório฀foi฀influenciado฀por฀ testemunhos฀orais฀pouco฀fiáveis,฀ou฀que฀ele฀inventou฀deliberadamente฀ o฀relato฀da฀cerimônia฀de฀Tours฀com฀o฀intuito฀de฀mostrar฀o฀avô฀dos฀reis฀ francos฀de฀sua฀época฀como฀mais฀ilustre฀do฀que฀ele฀era฀na฀realidade?฀ Para฀a฀maior฀parte฀dos฀historiadores,฀não฀há฀dúvidas฀quanto฀à฀veracidade฀do฀relato฀de฀Gregório฀sobre฀a฀cerimônia฀de฀Tours.฀Há฀aqueles฀que฀ acreditam฀que฀o฀título฀recebido฀por฀Clóvis฀era฀o฀de฀“cônsul฀honorário”66.฀ Outros฀ sustentam฀ que฀ se฀ tratava฀ do฀ patriciado67.฀ Há฀ também฀ aqueles฀ que฀afirmam฀que฀era฀ao฀mesmo฀tempo฀um฀consulado฀honorário฀e฀um฀ patriciado68.฀Partidário฀dessa฀interpretação,฀R.฀Mathisen,฀considera฀que,฀ se฀Anastáco฀tivesse฀outorgado฀a฀Clóvis฀apenas฀o฀consulado฀honorário,฀ teria฀ sido฀ um฀“insulto”,฀ pois฀ este฀ ocuparia฀ uma฀ posição฀ inferior฀ à฀ do฀ 64 ฀F.฀Lot,฀Ch.฀Pfiester,฀F.L.฀Ganshof,฀Les฀destinées฀de฀l’Empire฀en฀Occident฀de฀358฀à฀888,฀p.฀ 194:฀“É฀exato฀que฀o฀novo฀cônsul฀jogava฀ouro฀e฀prata฀para฀a฀multidão,฀mas฀o฀nome฀de฀Clóvis฀não฀ figura฀sobre฀os฀dípticos฀consulares.฀Se฀se฀trata฀do฀consulado฀honorário,฀esse฀não฀comportava฀nem฀o฀ cerimonial฀nem฀as฀despesas฀do฀consulado฀real”.฀ 65 ฀Ibid.฀ 66 ฀ J.B.฀ Bury,฀ History฀ of฀ the฀ Later฀ Roman฀ Empire฀ from฀ the฀ Death฀ of฀ Theodosius฀ I฀ to฀ the฀ Death฀of฀Justinian,฀ p.464;฀W.฀ Ensslin,฀“Nochmals฀ zu฀ der฀ Ehrung฀ Chlodowecs฀ durch฀ Kaiser฀ Anastasius”,฀pp.฀499-507;฀Cf.฀K.฀Hauck,฀“Politische฀und฀Asketische฀Aspekte฀der฀Christianisierung฀ (von฀ Reims฀ und฀ Tours฀ nach฀Attigny฀ und฀ Paderborn)”,฀ pp.฀ 46-52;฀ E.฀ James,฀ I฀Franchi,฀ p.87;฀M.฀McCormick,฀“Clovis฀at฀Tours,฀Byzantine฀Public฀Ritual฀and฀the฀Origins฀of฀Medieval฀ Ruler฀Symbolism”,฀pp.155-180;฀M.฀Spencer,฀“Dating฀the฀Baptism฀of฀Clovis”,฀pp.฀97-116;฀K.F.฀ Stroheker,฀Der฀senatorische฀Adel฀im฀spatantiken฀Gallien,฀p.฀109;฀P.฀Leveel,฀“Le฀consulat฀de฀ Clovis฀à฀Tours”,฀pp.187-190;฀R.฀Weiss,฀Chlodowigs฀Taufe:฀Rheims฀508,฀pp.฀110-119;฀I.N.฀Wood,฀ “Gregory฀of฀Tours฀and฀Clovis”,฀pp.249-272. 67 ฀H.฀Gunther,฀“Der฀Patriziat฀Chlodowigs”,฀pp.฀468-475;฀E.A.฀Stückelberg,฀Der฀Constantinische฀Patriziat.฀Ein฀Beitrag฀zur฀Geschichte฀der฀Späteren฀Kaiserzeit. 68 ฀ S.฀ Dill,฀ Roman฀ Society฀ in฀ Gaul฀ in฀ the฀ Merovingian฀ Age,฀ pp.104฀ -105;฀ J.R.฀ Martindale฀ (ed.),฀Prosopography฀of฀the฀Later฀Roman฀Empire,฀t.฀11,฀p.฀290;฀M.฀Heinzelmann,฀Gallische฀ Prosopographie,฀p.฀581. 68฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média rei฀ ostrogodo฀ Teodorico฀ e฀ sobretudo฀ à฀ do฀ rei฀ burgúndio฀ Gondebaldo฀ –฀que฀o฀rei฀franco฀havia฀derrotado฀฀alguns฀anos฀antes.฀Caso฀o฀imperador฀ tivesse฀outorgado฀apenas฀o฀patriciado,฀o฀resultado฀teria฀sido฀o฀mesmo.฀ A฀ outorga฀ das฀ duas฀ dignidades฀ teria฀ permitido฀ a฀ Clóvis฀ ultrapassar฀ a฀ posição฀de฀Gondebaldo฀na฀hierarquia฀romana฀de฀dignidades,฀ainda฀que฀ ele฀permanecesse฀numa฀posição฀inferior฀à฀de฀Teodorico.฀Segundo฀Mathisen,฀apenas฀a฀dignidade฀de฀“augusto”฀teria฀permitido฀a฀Clóvis฀ultrapassar฀o฀nível฀do฀rei฀ostrogodo.฀Mas฀essa฀outorga฀jamais฀teria฀ocorrido69.฀ Há฀ ainda฀ os฀ historiadores฀ que฀ afirmam฀ que฀ poderia฀ ter฀ se฀ tratado฀ de฀ um฀consulado,฀ou฀de฀um฀patriciado,฀mas฀jamais฀das฀duas฀dignidades฀ao฀ mesmo฀tempo70.฀Quanto฀a฀R.฀Van฀Dam,฀ele฀estima฀que฀a฀cerimônia฀de฀ Tours฀transformou฀Clóvis฀em฀um฀quasi-Augustus71.฀฀฀ Apesar฀ das฀ diferentes฀ interpretações฀ a฀ respeito฀ da฀ cerimônia฀ de฀ Tours,฀pode-se฀afirmar฀que฀ela฀marcou฀uma฀progressão฀sem฀precedentes฀ de฀Clóvis฀no฀interior฀da฀hierarquia฀romana.฀Quanto฀à฀natureza฀da฀distinção฀concedida฀ao฀rei฀franco,฀tratava-se,฀muito฀provavelmente,฀de฀um฀ “proconsulado”฀ou฀de฀um฀“consulado฀honorário”,฀pois฀o฀nome฀de฀Clóvis฀ não฀aparece฀nem฀nos฀Fasti฀consulares฀imperiales,฀nem฀nas฀fórmulas฀de฀ datação฀na฀Gália72,฀o฀que฀deveria฀acontecer฀se฀se฀tratasse฀de฀um฀consulado฀ no฀ sentido฀ estrito฀ do฀ termo.฀ Entretanto,฀ se฀ Anastácio฀ realmente฀ pretendesse฀ colocar฀ Clóvis฀ numa฀ posição฀ pelo฀ menos฀ tão฀ prestigiosa฀ quanto฀aquela฀ocupada฀por฀Teodorico,฀com฀quem฀ele฀acabava฀de฀entrar฀ em฀guerra,฀o฀patriciado฀talvez฀fizesse฀parte฀das฀dignidades฀outorgadas฀ ao฀rei฀dos฀francos.฀A฀vantagem฀com฀a฀combinação฀desses฀títulos฀é฀que฀ ela฀não฀constituía฀uma฀ameaça฀à฀preeminência฀da฀dignidade฀imperial73.฀ Como฀explicar,฀entretanto,฀a฀menção฀por฀Gregório฀do฀título฀de฀“augusto”?฀A฀concessão฀desse฀epíteto฀significaria฀que฀Anastácio฀pretendia฀ 69 ฀R.฀Mathisen,฀“Clovis,฀Anastase฀et฀Grégoire฀de฀Tours:฀consul,฀patrice฀et฀roi”,฀p.฀400.฀฀฀฀฀฀ ฀ Y฀ Hen,฀ “Clovis,฀ Gregory฀ of฀ Tours฀ and฀ Pro-Merovingian฀ Propaganda”,฀ pp.271-276;฀ J.M.฀ Wallace-Hadrill,฀The฀Long-Haired฀Kings,฀pp.175-176. 71 ฀R.฀Van฀Dam,฀Leadership฀and฀Community฀in฀Late฀Antique฀Gaul,฀p.฀181.฀ 72 ฀Ver฀M.฀Heinzelmann,฀Gallische฀Prosopographie฀(260-527),฀pp.฀581-582.฀ 73 ฀O.฀Guillot,฀“Grégoire฀de฀Tours฀et฀la฀Justice฀mérovingienne”,฀p.฀722.฀ 70 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀69 fazer฀de฀Clóvis฀um฀“co-imperador”.฀Não฀há฀indício฀algum฀de฀que฀Anastácio฀tenha฀pretendido฀criar฀uma฀tal฀situação,฀que฀na฀prática฀significava฀ reconhecer฀em฀Clóvis฀o฀novo฀imperador฀do฀Ocidente.฀Além฀do฀mais,฀ um฀ tal฀ ato฀ teria฀ conferido฀ a฀ Clóvis฀ um฀ peso฀ que฀ ele,฀ mesmo฀ sendo฀ o฀ vencedor฀da฀batalha฀de฀Vouillé,฀não฀possuía.฀Nesse฀sentido,฀merece฀ser฀ mencionado฀o฀ponto฀de฀vista฀de฀M.฀Reydellet฀que฀coloca฀em฀dúvida฀a฀ tradução฀geralmente฀aceita฀da฀frase฀de฀Gregório฀de฀Tours:฀“…et฀ab฀ea฀ die฀tamquam฀consul฀aut฀augustus฀est฀vocitatus”74.฀Ele฀observa฀que฀a฀maior฀ parte฀dos฀tradutores฀negligenciam฀a฀tradução฀da฀palavra฀tamquam75.฀A฀ presença฀dessa฀palavra฀na฀frase฀significaria฀que฀Clóvis฀não฀foi฀realmente฀ cônsul฀ou฀augusto,฀pois฀mesmo฀na฀obra฀de฀Gregório,฀tamquam฀não฀seria฀ capaz฀de฀introduzir฀um฀atributo฀puro฀e฀simples.฀O฀sentido฀seria฀então:฀ “...como฀se฀ele฀fosse฀cônsul฀ou฀Augusto”.฀Colocada฀desse฀modo,฀segundo฀ Reydellet,฀ a฀ frase฀ constituiria฀ um฀ problema,฀ pois฀ os฀ dois฀ títulos฀ não฀ eram฀sinônimos,฀o฀que฀Gregório฀devia฀saber.฀Reydellet฀fala฀de฀um฀erro฀ do฀manuscrito฀para฀explicar฀o฀que฀segundo฀ele฀constitui฀um฀paradoxo.฀ O฀verdadeiro฀significado฀do฀texto฀seria฀então:฀“Ele฀foi฀chamado฀pelos฀Augustos฀(o฀imperador฀e฀a฀imperatriz)฀como฀se฀fosse฀cônsul”76.฀Trata-se,฀entretanto,฀apenas฀de฀uma฀hipótese฀de฀difícil฀verificação.฀Como฀estar฀certo฀ de฀que฀houve฀realmente฀um฀equívoco฀do฀copista?฀A฀solução฀encontrada฀ por฀K.F.฀Werner฀para฀resolver฀o฀problema฀é฀digna฀de฀nota:฀ele฀explica฀ a฀ presença฀ do฀ título฀“augusto”฀ como฀ uma฀ interpretação฀ por฀ parte฀ de฀ Gregório฀do฀papel฀dirigente฀exercido฀por฀Clóvis฀sobre฀a฀Igreja77.฀Ora,฀ os฀sucessores฀de฀Clóvis฀tiveram฀uma฀atitude฀semelhante฀em฀relação฀à฀ 74 ฀Histórias฀II,฀38.฀฀฀฀ ฀A฀Vita฀Remigi฀também฀omite฀a฀palavra฀tamquam:฀“Per฀idem฀tempus฀ab฀Anastasio฀imperatore฀codicellos฀Hludowicus฀rex฀pro฀consulatu฀accepit;฀cum฀quibus฀codicellos฀etiam฀illi฀Anastasius฀ coronam฀auream฀cum฀gemmis฀et฀tunicam฀blatteam฀misit,฀et฀ab฀ea฀die฀consul฀et฀augustus฀est฀ appellatus”฀[grifo฀nosso]฀(Vita฀Remigii฀episcopi฀Remensis฀auctore฀Hincmaro,฀20).฀ 76 ฀M.฀Reydellet,฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀p.฀408.฀฀฀ 75 77 ฀K.F.฀Werner,฀“La฀‘conquête฀franque’฀de฀la฀Gaule.฀Itinéraires฀historiographiques฀d’une฀erreur”,฀ p.฀30:฀“Ele฀era฀para฀a฀Igreja฀de฀seu฀regnum,฀a฀condição฀de฀ter฀a฀verdadeira฀fé,฀dominus฀(político)฀ e฀pius฀princeps,฀tomando฀acima฀dos฀bispos฀o฀lugar฀que฀era฀do฀imperador฀no฀Império”.฀฀฀฀฀ 70฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Igreja฀da฀Gália฀–฀como฀se฀verá฀mais฀adiante฀–,฀sem฀que,฀no฀entanto,฀lhes฀ fosse฀atribuído฀o฀título฀de฀“augusto”.฀Além฀do฀mais,฀em฀sua฀descrição฀do฀ governo฀de฀Tibério,฀bem฀como฀em฀outras฀partes฀de฀sua฀obra,฀Gregório฀ utiliza฀o฀título฀de฀“augusto”฀para฀designar฀apenas฀o฀exercício฀da฀função฀ imperial,฀sem฀que฀haja฀qualquer฀menção฀à฀Igreja78.฀ É฀possível฀que฀a฀cerimônia฀de฀Tours฀comportasse฀uma฀anomalia฀que฀ não฀passou฀despercebida฀ao฀bispo฀de฀Tours.฀Apesar฀da฀distância฀que฀separava฀o฀ano฀de฀508฀do฀momento฀em฀que฀Gregório฀escreveu฀sua฀obra,฀ este฀฀devia฀saber฀que฀a฀cerimônia฀se฀fundava฀sobre฀uma฀interpretação฀ exagerada฀ das฀ honras฀ que฀ eram฀ atribuídas฀ a฀ Clóvis.฀ Essa฀ defasagem฀ entre฀ o฀ título฀ de฀“cônsul฀ honorário”,฀ que฀ Clóvis฀ provavelmente฀ tenha฀ recebido,฀e฀a฀aclamação฀de฀que฀ele฀foi฀o฀objeto,฀é฀inclusive฀perceptível฀no฀ relato฀do฀bispo฀de฀Tours.฀Efetivamente,฀em฀nenhum฀momento฀Gregório฀ afirma฀que฀Clóvis฀recebeu฀o฀título฀de฀“augusto”฀do฀próprio฀imperador.฀ É฀dito฀apenas฀que฀ele฀[Clóvis]฀recebeu฀do฀imperador฀Anastácio฀o฀codicilo฀ do฀consulado.฀No฀final฀do฀capítulo,฀o฀bispo฀de฀Tours฀acrescenta฀que฀“a฀ partir฀ desse฀ dia฀ ele฀ foi฀ chamado฀ como฀ se฀ fosse฀ cônsul฀ ou฀ Augusto”,฀ sem฀ definir฀claramente฀a฀identidade฀daquele฀ou฀daqueles฀que฀o฀chamavam฀ assim.฀O฀texto฀indica฀claramente฀que฀há฀uma฀dissociação฀entre฀a฀aclamação฀ e฀ o฀ título฀ outorgado฀ pelo฀ imperador.฀ Gregório฀ diz฀ que฀ Clóvis฀ foi฀aclamado฀“cônsul฀ou฀Augusto”,฀e฀ao฀acrescentar฀a฀palavra฀tamquam฀ (como฀se),฀ele฀mostra฀claramente฀toda฀a฀ambigüidade฀da฀cerimônia.฀As฀ ovações฀rituais฀do฀exército฀e฀do฀povo฀reunidos฀em฀Tours฀provavelmente฀ ultrapassaram฀a฀iniciativa฀imperial,฀pois฀em฀nenhum฀outro฀texto฀de฀que฀ se฀dispõe฀para฀o฀período฀merovingio฀Clóvis฀é฀chamado฀de฀“augusto”79.฀ A฀cerimônia฀pode฀ter฀sido฀preparada฀cuidadosamente฀por฀Clóvis฀e฀por฀ seus฀conselheiros฀com฀o฀intuito฀de฀ampliar฀o฀valor฀político฀da฀distinção฀ que฀o฀imperador฀enviara฀à฀Gália.฀Isso฀explicaria฀também฀a฀utilização฀da฀ diadema฀e฀do฀manto฀púrpura,฀símbolos฀que฀um฀simples฀“cônsul฀honorário”฀não฀poderia฀revestir.฀฀฀฀ 78 ฀Histórias฀V,฀30;฀Histórias฀I,฀16;฀Histórias฀II,฀9;฀Histórias฀II,฀9.฀฀฀฀฀ ฀Cf.฀M.฀Heinzelmann,฀Gallische฀Prosopographie฀(260-527),฀pp.฀581-582. 79 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀71 Assim,฀no฀dia฀de฀sua฀entrada฀triunfal฀em฀Tours,฀Clóvis฀deve฀ter฀sido฀ aclamado฀como฀“augusto”฀em฀virtude฀de฀circunstâncias฀internas฀do฀Regnum฀Francorum,฀sem฀que฀isso฀tenha฀sido฀necessariamente฀reconhecido฀ por฀Constantinopla.฀Era฀talvez฀uma฀maneira฀para฀Clóvis฀de฀resolver฀o฀ problema฀de฀sua฀inferioridade฀hierárquica฀em฀relação฀a฀Teodorico,฀aclamado฀na฀qualidade฀de฀Flavius80.฀Mas฀ao฀mesmo฀tempo,฀ele฀demonstrava฀ publicamente฀ uma฀ pretensão฀ imperial.฀ Outros฀ aspectos฀ da฀ cerimônia฀ de฀Tours฀mostram฀igualmente฀a฀defasagem฀entre฀a฀“interpretação฀real”฀ e฀a฀“iniciativa฀imperial”.฀As฀vestimentas฀que฀Clóvis฀portava฀na฀ocasião฀ eram฀as฀mesmas฀que฀um฀generalíssimo฀romano฀utilizava฀na฀ocasião฀de฀ um฀triunfo.฀O฀vencedor฀de฀Vouillé฀não฀poderia฀deixar฀de฀explorar฀seu฀ sucesso฀militar.฀Uma฀vez฀que฀o฀título฀de฀“augusto”฀aparece฀somente฀por฀ ocasião฀dessa฀cerimônia,฀é฀possível฀que฀tenha฀se฀tratado฀de฀uma฀supervalorização฀intencional฀do฀titulo฀romano฀que฀não฀se฀repetiu฀em฀seguida.฀ A฀vitória฀de฀Clóvis฀sobre฀os฀visigodos฀era฀recente฀e฀ela฀pode฀ter฀inspirado฀essa฀iniciativa.฀Seria฀um฀erro฀considerar฀Clóvis฀apenas฀como฀um฀ rei฀franco฀ou฀por฀outro฀lado฀apenas฀como฀um฀alto฀funcionário฀romano.฀ Ele฀era฀as฀duas฀coisas.฀Seu฀principal฀trunfo,฀porém,฀estava฀na฀margem฀de฀ manobra฀que฀possuía,฀e฀que฀seus฀sucessores฀continuarão฀a฀explorar,฀em฀ virtude฀da฀crise฀da฀autoridade฀imperial฀no฀Ocidente,฀e฀que฀lhe฀permitia,฀ por฀ exemplo,฀ utilizar-se฀ como฀ bem฀ entendesse฀ das฀ distinções฀ que฀ lhe฀ eram฀outorgadas฀pelo฀imperador.฀ Qualquer฀que฀seja฀o฀valor฀que฀cada฀uma฀das฀partes฀–฀imperador฀e฀rei฀ –฀atribuíram฀às฀insígnias฀e฀aos฀títulos฀revestidos฀por฀Clóvis฀em฀Tours,฀ uma฀constatação฀se฀impõe:฀todo฀esse฀cerimonial฀que฀evoca฀ao฀mesmo฀ tempo฀ a฀ antiga฀ pompa฀ do฀ triunfo,฀ o฀ processus฀ consularis฀ e฀ o฀ advento฀ imperial,฀é฀carregado฀de฀cores฀romanas81.฀R.฀Mathisen฀afirma฀que฀Clóvis฀ não฀era฀um฀historiador,฀que฀ele฀não฀se฀interessava฀pelo฀passado฀romano,฀ mas฀ pelo฀ futuro฀ franco.฀ Ele฀ não฀ pretendia,฀ diz฀ Mathisen,฀ imitar฀ funcionários฀romanos฀desaparecidos,฀mas฀tornar-se฀poderoso฀como฀outros฀ 80 Idem,฀p.฀703.฀ ฀L.฀Pietri,฀La฀ville฀de฀Tours฀du฀IVe฀au฀VIe฀siècle:฀naissance฀d’une฀cité฀chrétienne,฀p.฀168. 81 72฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média reis฀ de฀ sua฀ época82.฀Ora,฀ a฀ cerimônia฀ de฀ Tours฀ mostra฀ que฀ o฀“futuro”฀ franco฀tinha฀uma฀relação฀estreita฀com฀o฀“passado”฀romano.฀O฀principal฀ fundamento฀da฀legitimidade฀real,฀não฀apenas฀na฀Gália,฀mas฀no฀Ocidente฀ no฀ início฀ do฀ século฀VI,฀ era฀ o฀ legado฀ político฀ de฀ Roma.฀ O฀ comportamento฀de฀Clóvis,฀quando฀da฀cerimônia฀de฀Tours,฀indica฀que฀ele฀estava฀ convencido฀de฀que฀o฀futuro฀franco฀era฀inconcebível฀fora฀do฀Império,฀de฀ suas฀construções฀políticas฀e฀administrativas,฀e฀mesmo฀de฀sua฀ideologia.฀ Para฀ele,฀como฀para฀aqueles฀que฀ele฀governava,฀o฀Império฀Romano฀não฀ pertencia฀ ao฀ passado,฀ era฀ uma฀ realidade.฀ Clóvis฀ não฀ era฀ um฀ historiador,฀mas฀antes฀de฀tudo฀um฀político฀hábil฀que฀sabia฀como฀tantos฀outros฀ de฀sua฀época,฀visualizar฀o฀equilíbrio฀de฀forças฀predominante฀e฀agir฀em฀ conseqüência฀para฀tirar฀o฀melhor฀proveito฀possível.฀Não฀é฀necessário฀ser฀ um฀historiador฀para฀saber฀utilizar฀a฀história฀a฀seu฀favor.฀O฀recurso฀aos฀ símbolos฀e฀aos฀títulos฀romanos,฀da฀mesma฀maneira฀que฀às฀construções฀ institucionais฀do฀Império,฀testemunham฀do฀quanto฀essa฀nova฀entidade,฀ o฀Regnum฀Francorum,฀estava฀ancorado฀na฀utilização฀e฀na฀adaptação฀da฀ herança฀romana83.฀ No฀final฀de฀seu฀reinado,฀Clóvis฀havia฀se฀afirmado฀como฀um฀dos฀reis฀ ocidentais฀ mais฀ romanizados,฀ ou฀ pelo฀ menos฀ como฀ um฀ daqueles฀ que฀ utilizarem฀o฀legado฀romano฀de฀maneira฀mais฀sistemática.฀O฀recurso฀aos฀ títulos฀e฀aos฀símbolos฀da฀romanidade฀mostra฀que฀os฀francos฀não฀haviam฀ retirado฀sua฀legitimidade฀de฀um฀puro฀direito฀de฀conquista.฀Não฀se฀pode฀ esquecer฀que฀os฀galo-romanos฀constituíam฀a฀maioria฀absoluta฀dos฀habitantes฀da฀Gália.฀Nesse฀sentido,฀Procópio฀tinha฀razão฀quando฀escrevia฀que฀ os฀francos฀não฀se฀acreditavam฀capazes฀de฀assegurar฀a฀possessão฀da฀Gália฀ 82 ฀R.฀Mathisen,฀“Clovis,฀Anastase฀et฀Grégoire฀de฀Tours:฀consul,฀patrice฀et฀roi”,฀p.฀405.฀฀฀฀฀฀฀฀฀ ฀Ver฀K.฀Hauck,฀“Von฀einer฀spätantiken฀Randkultur฀zum฀karolingischen฀Europa”,฀pp.฀3-93;฀L.฀ Pietri฀reconhece฀o฀significado฀romano฀da฀cerimônia฀de฀Tours;฀quanto฀a฀M.฀Rouche,฀ele฀estima฀ que฀essa฀cerimônia฀tinha฀um฀único฀objetivo:฀satisfazer฀os฀galo-romanos฀de฀Tours฀e฀da฀Aquitania฀que,฀após฀mais฀de฀cinqüenta฀anos฀defendendo฀o฀Império฀Romano฀contra฀tudo฀e฀contra฀ todos,฀estavam฀reunidos฀ao฀Regnum฀Francorum.฀Os฀visigodos,฀diz฀ele,฀tinham฀fracassado฀por฀ não฀terem฀sido฀suficientemente฀“romanófilos”฀(L’Aquitaine฀des฀Wisigoths฀aux฀Arabes,฀418781,฀pp.฀49-50).฀ 83 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀73 sem฀que฀o฀imperador฀desse฀sua฀aprovação.฀Era฀imperativo฀para฀Clóvis฀ aparecer฀para฀seus฀governados฀como฀um฀súdito฀fiel฀do฀imperador.฀Após฀ a฀cerimônia฀de฀Tours,฀Clóvis฀era฀mais฀do฀que฀nunca฀o฀representante฀de฀ uma฀ordem฀que,฀no฀meio฀das฀turbulências฀daquele฀tempo,฀permanecia฀ a฀expressão฀do฀direito84. Foi฀sob฀o฀reinado฀de฀Clóvis฀que,฀pela฀primeira฀vez,฀os฀diversos฀grupos฀de฀francos฀foram฀unificados฀em฀um฀único฀reino85.฀Essa฀nova฀entidade,฀muito฀embora฀se฀chamasse฀Regnum฀Francorum,฀estava฀longe฀de฀ ser฀um฀reino฀governado฀unicamente฀por฀francos฀e฀para฀os฀francos.฀Ver฀ em฀Clóvis฀o฀fundador฀do฀Reino฀dos฀Francos฀não฀significa฀considerá-lo฀ como฀o฀primeiro฀dentre฀os฀membros฀de฀sua฀dinastia฀a฀ter฀libertado฀a฀ Gália฀de฀toda฀relação฀com฀o฀Império.฀Ao฀se฀recusar฀a฀idéia฀de฀conquista฀ franca฀da฀Gália,฀esse฀“grande฀mito฀historiográfico”฀nas฀palavras฀de฀K.F.฀ Werner,฀é฀necessário฀admitir฀que฀a฀força฀não฀foi฀o฀único฀fundamento฀ da฀autoridade฀dos฀reis฀merovíngios.฀As฀proezas฀militares฀de฀Clóvis,฀bem฀ como฀as฀de฀seus฀herdeiros,฀são฀apenas฀a฀dimensão฀mais฀visível฀do฀sucesso฀dessa฀dinastia.฀Mas฀elas฀não฀a฀explicam฀totalmente.฀Mesmo฀tendo฀ utilizado฀a฀violência฀para฀atingir฀seus฀objetivos,฀Clóvis฀e฀seus฀sucessores฀ permaneceram฀ligados฀atavicamente฀ao฀Império,฀tanto฀à฀sua฀ideologia฀ quanto฀às฀suas฀práticas฀institucionais.฀E฀era฀dessa฀ligação฀que฀eles฀retiravam฀boa฀parte฀de฀sua฀legitimidade.฀Os฀francos฀estavam฀evidentemente฀ conscientes฀da฀superioridade฀do฀Império.฀ Ainda฀que฀se฀discuta฀aqui฀o฀legado฀do฀Império฀ao฀Regnum฀Francorum,฀esse฀termo฀não฀deve฀dar฀uma฀falsa฀impressão฀sobre฀a฀atitude฀de฀ Clóvis฀ e฀ de฀ seus฀ sucessores.฀ Quando฀ se฀ menciona฀ a฀ herança฀ romana,฀ seria฀um฀equívoco฀pensar฀em฀um฀conjunto฀de฀idéias฀e฀de฀práticas฀institucionais฀que฀se฀transmitiria฀integralmente฀e฀imutavelmente.฀Os฀francos฀ souberam฀adaptar฀o฀legado฀romano฀às฀condições฀particulares฀da฀Gália฀ do฀ século฀VI.฀ Admitindo฀ que฀ o฀ mundo฀ franco฀ ainda฀ fizesse฀ parte฀ do฀ mundo฀romano,฀e฀que,฀por฀conseguinte,฀o฀direito฀e฀as฀construções฀institucionais฀romanas฀lhe฀fossem฀familiares,฀havia฀na฀maneira฀“galo-franca”฀ 84 ฀E.฀Lavisse,฀“La฀Foi฀et฀la฀morale฀des฀Francs”,฀p.฀103. ฀P.S.฀Barnwell,฀Emperors,฀Prefects฀and฀Kings.฀The฀Roman฀West,฀395-565,฀p.฀90.฀ 85 74฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀ tratar฀ o฀ legado฀ romano฀ uma฀ mobilidade฀ e฀ uma฀ originalidade฀ que฀ ficaram฀ obscurecidas฀ pelo฀ debate฀ entre฀“romanistas”฀ e฀“germanistas”.฀ Uma฀análise฀da฀monarquia฀franca฀deve฀levar฀em฀conta฀essas฀particularidades.฀A฀cerimônia฀de฀Tours฀pode,฀aliás,฀muito฀bem฀ilustrar฀a฀capacidade฀ dos฀Francos฀de฀transformar฀e฀reinterpretar฀os฀símbolos฀da฀romanidade.฀ Isso฀ não฀ quer฀ dizer฀ que฀ Clóvis฀ e฀ os฀ seus฀ sucessores฀ fossem฀ brilhantes฀ teóricos,฀mas฀também฀não฀eram฀os฀bárbaros฀incapazes฀de฀compreender฀ qualquer฀abstração,฀tal฀como฀sustenta฀a฀historiografia฀tradicional.฀Não฀ se฀pode฀esquecer฀que฀eles฀eram฀o฀fruto฀de฀uma฀cultura฀política฀altamente฀romanizada.฀ Pelo฀menos฀no฀que฀diz฀respeito฀ao฀vocabulário฀do฀poder,฀o฀Reino฀dos฀ Francos฀permaneceu฀unido฀ao฀mundo฀romano.฀Uma฀leitura฀dos฀atos฀das฀ chancelarias,฀das฀crônicas฀ou฀da฀correspondência฀permite฀atestar฀que฀a฀ utilização฀dos฀títulos฀romanos฀no฀Ocidente฀não฀se฀interrompeu฀com฀a฀ “queda฀de฀Roma”.฀Noções฀chave฀da฀vida฀política,฀estes฀títulos฀aparecem฀ ininterruptamente฀do฀século฀IV฀ao฀século฀X.฀Esta฀perenidade฀é฀devida,฀ sobretudo,฀à฀ação฀dos฀imperadores฀de฀Constantinopla,฀que฀tiveram฀êxito฀ em฀cooptar฀os฀chefes฀e฀os฀reis฀bárbaros฀para฀a฀sua฀prestigiosa฀hierarquia฀ de฀ títulos฀ áulicos86.฀ Imersos฀ no฀ universo฀ político฀ romano฀ pelo฀ menos฀ desde฀o฀século฀IV,฀os฀francos฀não฀podiam฀ignorar฀o฀significado฀dos฀títulos฀que฀eles฀disputavam฀com฀outros฀povos฀germânicos.฀A฀capacidade฀ com฀a฀qual฀Clóvis฀explorou฀a฀dignidade฀que฀lhe฀foi฀concedida฀por฀Anastácio,฀em฀508,฀mostra฀que฀os฀merovíngios฀não฀eram฀ignorantes฀quanto฀ ao฀significado฀e,฀sobretudo,฀quanto฀às฀implicações฀desses฀símbolos฀sobre฀ sua฀própria฀autoridade.฀Os฀reis฀francos฀estavam฀conscientes฀que฀a฀afirmação฀ da฀ sua฀ autoridade฀ sobre฀ a฀ Gália฀ não฀ dependia฀ unicamente฀ de฀ suas฀proezas฀militares฀ou฀de฀sua฀origem฀real.฀ Pode-se,฀ no฀ entanto,฀ questionar฀ o฀ alcance฀ dos฀ títulos฀ romanos฀ no฀ exercício฀do฀poder฀na฀Gália฀franca.฀Na฀opinião฀de฀J.B.฀Bury,฀retomada฀ em฀ seguida฀ por฀ P.฀ Goubert,฀ os฀ reis฀ merovíngios฀ Cariberto,฀ Sigeberto฀ (†573),฀Chilperico฀e฀Gontrão,฀que฀disputavam฀entre฀si฀“os฀pedaços฀da฀ 86 ฀K.F.฀Werner,฀Naissance฀de฀la฀noblesse,฀p.฀276. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀75 França”,฀voltavam฀sua฀atenção฀para฀o฀imperador฀em฀Constantinopla฀na฀ esperança฀de฀obter฀dele,฀senão฀socorro฀em฀seus฀conflitos฀fratricidas,฀pelo฀ menos฀alguns฀presentes฀e฀as฀distinções฀honoríficas฀que฀preenchiam฀os฀ seus฀ desejos฀ de฀“novos-ricos”87.฀ Em฀ sua฀ correspondência฀ com฀ a฀ corte฀ de฀Constantinopla,฀os฀príncipes฀francos฀não฀cessaram฀de฀testemunhar฀ sua฀ submissão฀ em฀ relação฀ ao฀ Império.฀ Seria,฀ no฀ entanto,฀ precipitado฀ afirmar฀ que฀ os฀ títulos฀ e฀ as฀ noções฀ políticas฀ romanas฀ utilizadas฀ pelos฀ francos฀eram฀“embalagens฀vazias฀de฀conteúdo”.฀No฀próximo฀capítulo฀,฀ examinar-se-ão฀as฀implicações฀dessa฀atitude฀“nostálgica”฀no฀exercício฀da฀ autoridade฀pública฀durante฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀VI.฀฀฀ 87 ฀J.B.฀Bury,฀A฀History฀of฀the฀Later฀Roman฀Empire฀from฀Arcadius฀to฀Irene฀(395฀A.D.฀to฀800฀ A.D.),฀t.฀2,฀p.฀159;฀P.฀Goubert,฀Byzance฀et฀les฀Francs,฀I,฀Byzance฀et฀l’Occident฀sous฀les฀successeurs฀de฀Justinien,฀Byzance฀avant฀l’Islam,฀t.฀2,฀v.1,฀p.฀15.฀฀฀฀ Capítulo฀II A฀“Realeza฀Constantiniana”฀(c.481-561) Clóvis฀é฀sem฀sombra฀de฀dúvidas฀um฀dos฀personagens฀mais฀importantes฀da฀memória฀histórica฀francesa.฀Se฀os฀Bourbon฀adotaram-no฀como฀seu฀ antepassado,฀vinculando-se฀assim฀ao฀primeiro฀rei฀católico฀do฀Ocidente,฀ eles฀o฀transformaram฀igualmente฀em฀fundador฀da฀França.฀Mais฀do฀que฀ Carlos฀ Magno,฀ cujo฀ império฀ abrangia฀ boa฀ parte฀ da฀ Germânia฀ e฀ cujo฀ túmulo฀se฀encontra฀na฀cidade฀alemã฀de฀Aachen,฀Clóvis฀podia฀ser฀considerado฀como฀um฀rei฀“tipicamente฀francês”.฀Com฀exceção฀da฀Septimânia฀ e฀da฀Provença,฀o฀filho฀e฀sucessor฀de฀Childerico฀governava฀um฀território฀ que฀coincidia฀grosso฀modo฀com฀o฀espaço฀sobre฀o฀qual฀reinavam฀os฀reis฀ de฀França฀nos฀séculos฀XVII฀e฀XVIII.฀No฀entanto,฀o฀prestígio฀de฀Clóvis฀ não฀se฀converteu฀automaticamente฀em฀sucesso฀historiográfico:฀somente฀ no฀final฀do฀século฀XIX฀é฀que฀os฀historiadores฀franceses฀começaram฀a฀se฀ interessar฀realmente฀por฀ele.฀O฀objeto฀principal฀desse฀interesse฀eram฀as฀ anedotas฀de฀sua฀vida฀relatadas฀por฀Gregório฀de฀Tours,฀as฀quais฀pareciam฀ confirmar฀a฀idéia฀de฀que฀se฀tratava฀de฀um฀bárbaro฀que฀praticava฀o฀assassinato฀sistemático฀de฀membros฀de฀sua฀própria฀família฀como฀meio฀de฀ ampliar฀seu฀poder.฀฀฀ 78฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média No฀entanto,฀há฀uma฀dimensão฀da฀figura฀histórica฀de฀Clóvis฀que฀ sobreviveu฀ à฀ visão฀ negativa฀ veiculada฀ pela฀ historiografia฀ do฀ século฀ XIX:฀é฀a฀imagem฀de฀“fundador฀da฀França”.฀Mesmo฀com฀a฀concorrência฀ de฀Vercingétorix฀–฀que฀a฀3a฀República฀erigiu฀em฀herói฀de฀uma฀França฀ abalada฀pela฀derrota฀ante฀os฀prussianos฀–,฀ou฀com฀as฀críticas฀de฀uma฀ tradição฀historiográfica฀que฀fez฀da฀“crueldade”฀e฀da฀“superstição”฀as฀ pedras฀angulares฀da฀descrição฀dos฀tempos฀merovíngios,฀Clóvis฀permaneceu฀ associado฀ a฀ um฀ momento฀ crucial฀ da฀ formação฀ da฀ nação฀ francesa.฀Quando฀publicou฀a฀biografia฀desse฀personagem,฀em฀1893,฀ G.฀Kurth฀lamentava฀que฀“o฀homem฀que฀abre฀os฀anais฀do฀mundo฀moderno,฀o฀fundador฀da฀França,฀nunca฀teve฀biógrafo”.฀O฀“reinado฀criador”,฀aquele฀que฀havia฀impresso฀sua฀marca฀de฀maneira฀tão฀poderosa฀ na฀história,฀não฀havia฀deixado฀nenhum฀traço฀na฀historiografia1.฀Essa฀ situação฀alterou-se฀sensivelmente฀ao฀longo฀do฀último฀século.฀Ainda฀ que฀as฀biografias฀de฀Clóvis฀não฀sejam฀muito฀numerosas฀na฀França฀e฀ na฀Alemanha,฀os฀principais฀eventos฀do฀seu฀reinado฀–฀o฀batismo,฀as฀ guerras฀ contra฀ os฀ burgúndios,฀ contra฀ os฀ visigodos,฀ a฀ cerimônia฀ de฀ Tours,฀o฀Concílio฀de฀Orléans฀etc.฀–฀foram฀abordados฀por฀um฀grande฀ número฀de฀obras฀e฀artigos฀publicados฀até฀a฀metade฀dos฀anos฀19902.฀ As฀comemorações฀dos฀mil฀e฀quinhentos฀anos฀do฀baptismo฀de฀Clovis฀ foram฀ a฀ ocasião฀ de฀ colóquios,฀ exposições฀ e฀ também฀ da฀ publicação฀ 1 ฀G.฀Kurth,฀Clovis,฀p.฀xiii.฀฀฀ ฀A฀lista฀é฀demasiado฀longa฀para฀ser฀reproduzida฀aqui.฀Eis,฀no฀entanto,฀alguns฀exemplos:฀M.฀ Bloch,฀“Observations฀sur฀la฀conquête฀de฀la฀Gaule฀romaine฀par฀les฀rois฀francs”,฀pp.฀161-178;฀ B.S.฀ Bachrach,฀“Procopius฀ and฀ the฀ chronology฀ of฀ Clovis’฀ reign”฀ pp.฀ 21-31;฀ G.฀ Bordonove,฀ Clovis฀et฀les฀Mérovingiens;฀P.฀Courcelle,฀Histoire฀littéraire฀des฀grandes฀invasions฀germaniques;฀W.฀von฀Der฀Steinen,฀“Chlodwigs฀Übergang฀zum฀Christentum”,฀pp.฀417-501;฀W.M.฀ Doly,฀“Clovis,฀how฀barbaric,฀how฀pagan”,฀pp.฀619-664;฀J.฀Hoyoux,฀“Le฀collier฀de฀Clovis”,฀pp.฀ 169-174;฀ P.฀ Leveel,฀“Le฀ consulat฀ de฀ Clovis฀ à฀ Tours”,฀ pp.฀ 187-190;฀ F.฀ Lot,฀“La฀ conquête฀ des฀ pays฀d’Entre-Seine-et-Loire฀par฀les฀Francs”,฀pp.฀241-253;฀J.฀Verseuil,฀Clovis฀ou฀la฀naissance฀ des฀rois;฀P.฀Périn,฀Clovis฀et฀la฀naissance฀de฀la฀France;฀a฀respeito฀das฀festividades,฀ver฀a฀dissertação฀de฀M.฀Allouch,฀Un฀passé฀recomposé:฀les฀commémorations฀du฀baptême฀de฀Clovis,฀ étude฀comparé:฀1896-1996.฀฀ 2 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀79 de฀ vários฀ títulos฀ que฀ vieram฀ a฀ acrescentar-se฀ a฀ uma฀ bibliografia฀ já฀ bastante฀extensa3.฀ Na฀maior฀parte฀de฀trabalhos฀que฀lhe฀foram฀consagrados฀desde฀o฀final฀ século฀XIX,฀Clóvis฀aparece฀como฀um฀soberano฀bárbaro฀que,฀pela฀força฀ das฀armas,฀conseguiu฀apoderar-se฀da฀Gália฀romana.฀Às฀vezes,฀ele฀aparece฀ também฀como฀um฀alto฀funcionário฀romano฀cujas฀vitórias฀militares฀não฀ foram฀ suficientes฀ para฀ tornar฀ o฀ Reino฀ dos฀ Francos฀ menos฀ dependente฀ do฀ imperador.฀ Em฀ ambos฀ os฀ casos,฀ Clóvis฀ é฀ visto฀ como฀ um฀ mero฀ continuador฀de฀tradições฀ancestrais.฀O฀conquistador฀bárbaro,฀herdeiro฀ dos฀antigos฀costumes฀germânicos฀é฀tão฀pouco฀inovador฀quanto฀o฀alto฀ funcionário฀romano฀tornado฀chefe฀de฀um฀Estado฀galo-franco.฀Nos฀dois฀ casos,฀Clóvis฀teria฀apenas฀seguido฀um฀cenário฀determinado฀de฀antemão.฀ Se฀há฀um฀domínio฀no฀qual฀os฀historiadores฀lhe฀atribuíram฀certa฀capacidade฀criativa,฀é฀efetivamente฀o฀da฀“fundação฀da฀nação฀francesa”:฀isso฀ pode฀ser฀observado,฀notadamente,฀nas฀publicações฀que฀acompanharam฀ as฀festividades฀dos฀mil฀e฀quinhentos฀anos฀de฀seu฀batismo.฀Clóvis฀teria฀ adotado฀a฀fé฀católica฀mais฀por฀oportunismo฀que฀por฀convicção,฀e฀tornado฀essa฀religião฀o฀fundamento฀principal฀daquilo฀que฀se฀tornaria฀mais฀ tarde฀a฀França4.฀Fruto฀da฀imaginação฀dos฀modernos,฀a฀representação฀de฀ Clóvis฀como฀o฀primeiro฀rei฀dos฀franceses,฀ou฀ainda฀como฀seu฀primeiro฀ 3 ฀M.฀Rouche,฀(dir.)฀Clovis,฀histoire฀et฀mémoire;฀R.฀Mussot-Goulard,฀Le฀baptême฀qui฀a฀fait฀la฀ France;฀J.฀Schmidt,฀Le฀baptême฀de฀la฀France:฀Clovis,฀Clotilde,฀Geneviève;฀F.฀Dallais,฀Clovis฀ ou฀le฀combat฀de฀la฀gloire;฀P.-M.฀Couteaux,฀Clovis,฀une฀histoire฀de฀France;฀L.฀Theis,฀Clovis,฀de฀ l’histoire฀au฀mythe;฀M.฀Laforest,฀Clovis,฀un฀roi฀de฀légende;฀B.฀Chevallier,฀Clovis,฀un฀roi฀européen;฀A.฀Bernet,฀Clovis฀et฀le฀baptême฀de฀la฀France.฀Uma฀boa฀crítica฀à฀idéia฀de฀que฀Clóvis฀teria฀ convertido฀a฀Gália฀se฀encontra฀no฀livro฀de฀B.฀Dumézil,฀Les฀racines฀chrétiennes฀de฀l’Europe.฀ Conversion฀et฀liberté฀dans฀les฀royaumes฀barbares,฀Ve-VIIIe฀siècles,฀p.฀220฀e฀ss.฀ 4 ฀Em฀alguns฀desses฀numerosos฀trabalhos,฀o฀batismo฀de฀Clóvis฀é฀associado฀à฀fundação฀da฀França,฀ ou฀mesmo฀à฀fundação฀da฀Europa.฀Ver,฀por฀exemplo,฀R.฀Mussot-Goulard,฀Le฀baptême฀qui฀a฀fait฀ la฀France;฀J.฀Schmidt,฀Le฀baptême฀de฀la฀France:฀Clovis,฀Clotilde,฀Geneviève;฀P.-M.฀Couteaux,฀ Clovis,฀une฀histoire฀de฀France;฀A.฀Bernet,฀Clovis฀et฀le฀baptême฀de฀la฀France.฀É฀evidente฀que฀ uma฀tal฀interpretação฀é฀tributaria฀de฀uma฀apreciação฀a฀posteriori฀do฀evento.฀É฀pouco฀provável฀ que฀entre฀os฀contemporâneos฀da฀cerimônia฀de฀Reims฀houvesse฀alguém฀que฀acreditasse฀que,฀ao฀ entrar฀no฀batistério,฀Clovis฀estava฀fundando฀a฀“Europa฀cristã”฀ou฀a฀“França฀católica”.฀ 80฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média rei฀católico,฀acabou฀por฀tornar-se฀praticamente฀a฀única฀marca฀de฀originalidade฀do฀personagem.฀É฀como฀se฀o฀catolicismo฀de฀Clóvis฀estivesse฀ na฀base฀do฀catolicismo฀francês.฀Os฀títulos฀de฀certas฀obras฀que฀lhe฀foram฀ consagradas฀ em฀ 1996฀ mostram฀ efetivamente฀ que฀ “o฀ rei฀ europeu”,฀ “o฀ construtor”฀ou฀“o฀fundador”฀da฀França,฀eclipsou฀o฀“rei฀dos฀francos”฀5.฀ O฀problema฀fundamental฀dessa฀interpretação฀é฀que฀ela฀nada฀diz฀sobre฀o฀ significado฀do฀reinado฀de฀Clóvis฀na฀história฀da฀Gália฀no฀final฀do฀século฀ V฀e฀no฀início฀do฀século฀VI.฀฀ Clóvis,฀o฀“novo฀Constantino” “A฀rainha฀não฀cessava฀de฀pregar฀de฀modo฀que฀(Clóvis)฀conhecesse฀o฀verdadeiro฀Deus฀e฀abandonasse฀os฀ídolos;฀mas฀não฀pôde฀de฀nenhuma฀maneira฀ trazê-lo฀para฀essa฀crença฀até฀o฀dia฀em฀que฀a฀guerra฀foi฀desencadeada฀contra฀ os฀alamanos,฀guerra฀na฀qual฀ele฀foi฀levado฀pela฀necessidade฀a฀confessar฀o฀que฀ anteriormente฀tinha฀se฀recusado฀a฀fazer฀voluntariamente”6. Esse฀trecho฀faz฀parte฀do฀testemunho฀mais฀completo฀de฀que฀se฀dispõe฀sobre฀a฀cerimônia฀do฀batismo฀de฀Clovis,฀embora฀tenha฀sido฀escrito฀ por฀Gregório฀várias฀décadas฀depois,฀talvez฀com฀o฀auxílio฀de฀clérigos฀de฀ Tours฀que฀conheceram฀a฀rainha฀Clotilde,฀morta฀nessa฀cidade฀em฀545.฀ Isso฀explica,฀em฀parte,฀a฀importância฀atribuída฀à฀rainha฀no฀batismo,฀que฀ destoa฀do฀papel฀que฀lhe฀é฀acordado฀por฀outros฀autores,฀como฀Remígio฀ de฀Reims฀e฀Avitus฀de฀Viena.฀Ambos฀nem฀sequer฀mencionam฀a฀rainha฀ em฀suas฀epístolas.฀Gregório฀introduz฀igualmente฀em฀seu฀relato฀uma฀relação฀de฀causa฀e฀efeito฀entre฀a฀aceitação฀por฀Clóvis฀do฀verdadeiro฀Deus฀ 5 ฀Na฀Alemanha,฀a฀imagem฀de฀“pai฀fundador”฀é฀associada฀sobretudo฀a฀Carlos฀Magno.฀Alguns฀ historiadores฀alemães฀viram฀em฀Clóvis฀o฀herdeiro฀de฀uma฀pequena฀realeza฀(Gaukönigtum),฀ que฀estaria฀na฀origem฀do฀Regnum฀Francorum฀(L.฀Schmidt,฀“Des฀Ende฀der฀Römerherrschaft฀in฀ Gallien,฀Chlodowech฀und฀Syagrius”,฀pp.฀611-618).฀ 6 Histórias฀II,฀30. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀81 e฀sua฀vitória฀sobre฀os฀alamanos฀na฀batalha฀de฀Tolbiac.฀Segundo฀o฀bispo฀ de฀Tours,฀Clóvis฀teria฀invocado฀a฀ajuda฀de฀Cristo฀no฀momento฀em฀que฀ seu฀exército฀estava฀prestes฀a฀ser฀exterminado,฀comprometendo-se,฀em฀ troca,฀a฀ser฀batizado.฀Após฀o฀triunfo฀sobre฀os฀alamanos,฀a฀rainha฀Clotilde฀ teria฀mandado฀chamar฀o฀bispo฀de฀Reims,฀e฀ele฀teria฀convencido฀Clóvis฀ a฀aceitar฀a฀palavra฀da฀Salvação7.฀O฀relato฀de฀Gregório฀traz฀um฀problema฀ cronológico:฀há฀fortes฀indícios฀de฀que฀a฀batalha฀de฀Tolbiac฀tinha฀ocorrido฀depois฀do฀batismo,฀e฀não฀antes฀dele8.฀O฀“erro”฀cronológico฀do฀bispo฀ Tours฀não฀parece฀ter฀sido฀fruto฀do฀mero฀acaso:฀ao฀situar฀a฀batalha฀de฀ Tolbiac฀antes฀do฀batismo฀e,฀sobretudo,฀ao฀mostrá-la฀como฀causa฀desse฀ evento,฀Gregório฀estabelece฀um฀paralelismo฀entre฀a฀conversão฀de฀Clóvis฀ e฀a฀conversão฀de฀Constantino.฀Da฀mesma฀forma฀que฀o฀imperador฀no฀ episódio฀na฀batalha฀da฀Ponte฀Milvius,฀diante฀de฀uma฀dificuldade฀militar฀ que฀Clóvis฀recebeu฀a฀ajuda฀divina.฀Além฀disso,฀Gregório฀de฀Tours฀atribui฀ à฀rainha฀Clotilde,฀que฀teria฀realizado฀numerosos฀esforços฀para฀convencer฀ Clovis฀a฀aceitar฀a฀fé฀católica,฀papel฀semelhante฀ao฀que฀a฀tradição฀católica฀ atribui฀à฀Helena,฀mãe฀de฀Constantino.฀฀ Dentre฀todos฀os฀autores฀do฀século฀VI฀cujos฀textos฀foram฀preservados,฀ Gregório฀de฀Tours฀é฀o฀único฀a฀estabelecer฀uma฀relação฀de฀causa฀e฀efeito฀ entre฀a฀batalha฀contra฀os฀alamanos฀e฀o฀batismo฀de฀Clóvis.฀A฀carta฀de฀ Avitus,฀bispo฀de฀Viena,฀escrita฀ao฀rei฀franco฀quando฀de฀seu฀batismo9–฀e,฀ além฀ disso,฀ o฀ único฀ relato฀ contemporâneo฀ do฀ acontecimento฀ –฀ não฀ menciona฀nenhuma฀batalha,฀tampouco฀a฀participação฀da฀rainha฀Clotil- 7 ฀Idem.฀A฀data฀do฀batismo฀de฀Clóvis฀é฀ainda฀o฀objeto฀de฀certa฀controvérsia฀entre฀os฀historiadores;฀uns฀falam฀de฀496,฀outros฀de฀499,฀ou฀ainda฀506.฀Sobre฀estas฀controvérsias,฀ver฀G.฀Kurth,฀ Clovis,฀pp.฀295-319฀;฀L.฀Levillain,฀“La฀conversion฀et฀le฀baptême฀de฀Clovis”,฀pp.161-192;฀G.฀Tessier,฀Le฀baptême฀de฀Clovis,฀pp.฀87-96;฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.฀272-277.฀ 8 ฀Cf.฀W.฀Hartung,฀Süddeutschland฀in฀der฀frühen฀Merowingerzeit,฀p.฀98;฀I.N.฀Wood,฀“Gregory฀ of฀Tours฀and฀Clovis”,฀pp.฀249-272;฀K.F.฀Werner,฀“La฀‘conquête฀franque’฀de฀la฀Gaule”,฀p.฀38,฀n.฀ 102. 9 ฀ Essa฀ carta฀ de฀ Avitus฀ seria,฀ de฀ acordo฀ com฀ W.฀ von฀ Der฀ Steinen,฀ a฀ resposta฀ a฀ uma฀ circular฀ enviada฀por฀Clóvis฀aos฀bispos฀católicos฀do฀seu฀reino฀e฀do฀exterior฀para฀comunicar฀seu฀batismo฀ (“Chlodwigs฀Übergang฀zum฀Christentum”,฀pp.฀417-501). 82฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de.฀Muito฀embora฀trace฀um฀retrato฀“imperial”฀de฀Clóvis,฀como฀se฀verá฀ adiante,฀Avitus฀descreve฀a฀conversão฀de฀Clóvis฀apenas฀como฀o฀resultado฀ de฀uma฀escolha฀do฀rei:฀“A฀escolha฀que฀fizestes฀para฀vós฀vale฀para฀todos”10.฀ Avitus฀não฀menciona฀nenhum฀elemento฀externo฀que฀teria฀influenciado฀ a฀decisão฀de฀Clóvis฀de฀adotar฀a฀fé฀católica.฀Em฀uma฀carta฀à฀Clodosinda,฀ neta฀de฀Clóvis,฀escrita฀em฀562,฀Nizier,฀bispo฀de฀Trier,฀afirma฀que฀o฀rei฀ decidiu฀se฀converter฀graças฀à฀persuasão฀de฀Clotilde,฀e฀também฀porque฀ tinha฀se฀comovido฀com฀a฀força฀dos฀milagres฀no฀túmulo฀de฀São฀Martinho11.฀Nenhuma฀menção฀é฀feita฀aos฀alamanos.฀São฀Nizier฀não฀estabelece฀ relação฀direta฀entre฀as฀vitórias฀militares฀e฀a฀conversão;฀sua฀argumentação฀é฀sensivelmente฀diferente:฀apenas฀depois฀de฀seu฀batismo฀é฀que฀Clovis฀ teria฀realizado฀proezas฀contra฀os฀reis฀heréticos,฀Alarico฀e฀Gondebaldo12.฀ No฀ entanto,฀ Gregório฀ não฀ é฀ o฀ primeiro฀ nem฀ o฀ único฀ a฀ destacar฀ o฀ caráter฀“imperial”฀ do฀ batismo฀ de฀ Clóvis.฀ O฀ bispo฀ de฀ Reims฀ nomeou฀ Clóvis฀“praedicator฀fidei฀catholicae”฀(pregador฀da฀fé฀católica)฀e฀“gentium฀ triumphator”฀(vencedor฀dos฀pagãos),฀dando฀contornos฀imperiais฀e฀constantinianos฀ao฀rei฀dos฀francos13.฀Algo฀semelhante฀pode฀ser฀observado฀na฀ epístola฀de฀Avitus฀de฀Viena:฀฀฀ 10 ฀Alcimi฀Ecdicii฀Aviti฀Viennensis฀Episcopi,฀46฀(41).฀ Epistolae฀Austrasicae฀8:฀“Tu฀aprendestes฀como฀a฀tua฀avó,฀a฀senhora฀de฀boa฀memória,฀Clotilde,฀ veio฀em฀Francia,฀e฀como฀conduziu฀o฀senhor฀Clóvis฀à฀fé฀católica;฀e฀ele,฀como฀era฀um฀homem฀dos฀mais฀ astuciosos,฀não฀quis฀concordar฀antes฀de฀compreender฀que฀essas฀coisas฀eram฀verdadeiras.฀Quando฀se฀ percebeu฀que฀essas฀demonstrações,฀que฀acabo฀de฀mencionar฀mais฀acima,฀foram฀provadas,฀ele฀caiu฀ humildemente฀de฀joelhos฀sobre฀o฀chão฀do฀bem-aventurado฀Martinho฀e฀prometeu฀se฀fazer฀batizar฀ sem฀demora.฀Tu฀aprendestes฀que฀uma฀vez฀batizado,฀ele฀realizou฀numerosos฀feitos฀contra฀os฀ reis฀heréticos฀Alarico฀e฀Gondebaldo;฀tu฀não฀ignoras฀a฀qualidade฀dos฀dons฀que฀ele฀e฀seus฀filhos฀ receberam฀deste฀mundo”฀(grifo฀nosso).฀฀Não฀parece฀haver฀aqui฀qualquer฀intenção฀do฀autor฀em฀ traçar฀um฀paralelismo฀entre฀Clóvis฀e฀Constantino.฀No฀relato฀de฀São฀Nizier,฀os฀feitos฀militares฀ do฀rei฀franco฀sucedem฀e฀decorrrem฀de฀seu฀batismo,฀ao฀invés฀de฀precedê-lo฀e฀explicá-lo.฀฀฀฀฀ 12 ฀Sobre฀São฀Nizier,฀ver฀E.฀Ewig,฀Trier฀im฀Merowingerreich,฀Stadt,฀Bistum.฀Civitas,฀p.฀88;฀M.฀ Heinzelmann,฀Bischofsherrschaft฀in฀Gallien,฀p.฀171,฀p.฀174.฀฀฀ 13 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀3. 11 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀83 “Da฀mesma฀forma,฀a฀Grécia฀pode฀felicitar-se฀por฀ter฀escolhido฀um฀príncipe฀ que฀ seja฀ dos฀ nossos;฀ mas฀ de฀ agora฀ em฀ diante฀ não฀ é฀ mais฀ a฀ única฀ a฀ merecer฀o฀dom฀de฀uma฀tal฀recompensa.฀A฀sua฀clareza฀ilumina฀também฀o฀teu฀ orbis฀e,฀na฀parte฀ocidental฀(occiduis฀partibus)฀[do฀Império],฀o฀brilho฀de฀uma฀ glória฀que฀não฀é฀nova฀fulgura฀sobre฀um฀rei฀que฀não฀é฀novo.฀É฀por฀isso฀que฀a฀ Natividade฀do฀Nosso฀Senhor฀inaugurou฀esta฀glória,฀de฀modo฀que฀o฀dia฀em฀ que฀a฀água฀regenerativa฀vos฀preparava฀para฀a฀salvação฀seja฀também฀o฀dia฀ em฀que฀o฀mundo฀recebeu฀Aquele฀que฀nasceu฀para฀sua฀redenção,฀o฀mestre฀ do฀céu.฀E฀que฀o฀dia฀em฀que฀se฀celebra฀o฀nascimento฀do฀Senhor฀seja฀também฀ o฀vosso;฀ou฀seja,฀que฀o฀dia฀em฀que฀vós฀nascestes฀para฀o฀cristo฀seja฀também฀ o฀ dia฀ em฀ que฀ o฀ cristo฀ nasceu฀ para฀ o฀ mundo,฀ o฀ dia฀ em฀ que฀ consagrastes฀ vossa฀alma฀a฀Deus,฀a฀vossa฀vida฀aos฀vossos฀contemporâneos,฀a฀vossa฀fama฀à฀ posteridade”14฀฀ O฀bispo฀de฀Viena฀dirige-se฀a฀Clóvis฀como฀o฀igual,฀na฀parte฀ocidental฀ do฀Império,฀ao฀princeps฀da฀Grécia฀(que฀ele฀curiosamente฀não฀designa฀ como฀Império).฀É฀através฀do฀batismo฀que฀Clóvis฀teria฀alcançado฀uma฀ estatura฀ sem฀ precedentes.฀ Assim,฀ a฀“clareza”฀ desse฀ acontecimento฀ iluminaria฀mesmo฀a฀Grécia฀e฀seu฀princeps.฀Avitus฀destaca฀também฀a฀coincidência฀ entre฀ a฀ data฀ do฀ batismo฀ de฀ Clóvis฀ e฀ o฀ dia฀ da฀ Natividade฀ do฀ Senhor.฀Bispo฀católico฀de฀um฀reino฀ariano฀–฀a฀Burgúndia฀–,฀ele฀atribui฀ ao฀batismo฀de฀Clóvis฀um฀significado฀que฀ultrapassava฀as฀fronteiras฀do฀ Reino฀dos฀Francos.฀Além฀disso,฀ao฀afirmar,฀no฀início฀da฀epístola,฀que฀“A฀ escolha฀que฀fizestes฀para฀vós฀vale฀para฀todos”15,฀o฀bispo฀de฀Viena฀outorga฀ ao฀rei฀dos฀francos฀a฀estatura฀de฀um฀imperador฀cristão. I.฀Wood฀e฀F.฀Prinz฀consideram฀que฀Clóvis฀converteu-se฀provavelmente฀ ao฀arianismo฀antes฀de฀adotar฀a฀fé฀católica.฀Esses฀autores฀duvidam฀da฀veracidade฀daquilo฀que฀é฀relatado฀por฀Gregório,฀responsável,฀segundo฀eles,฀ por฀ter฀acrescentado฀o฀papel฀de฀Clotilde,฀assim฀como฀a฀batalha฀contra฀os฀ alamanos.฀Essa฀versão฀teria฀por฀objetivo฀tornar฀Clóvis฀aceitável฀aos฀olhos฀ 14 ฀Alcimi฀Ecdicii฀Aviti฀Viennensis฀Episcopi,฀46฀(41).฀ ฀Idem. 15 84฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média dos฀galo-romanos฀católicos,฀ao฀apagar฀qualquer฀vestígio฀de฀seu฀passado฀ herético16.฀Ainda฀que฀não฀se฀tratasse฀de฀esconder฀o฀arianismo฀de฀Clóvis฀ de฀seus฀súditos,฀o฀relato฀e฀a฀cronologia฀das฀Histórias฀serviam฀à฀demonstração฀do฀triunfo฀da฀Igreja฀do฀Cristo.฀Os฀acontecimentos฀são฀ordenados฀ de฀maneira฀a฀ilustrar฀a฀vitória฀do฀catolicismo฀sobre฀as฀heresias.฀Aliás,฀o฀ capítulo฀sobre฀os฀alamanos฀é฀imediatamente฀anterior฀ao฀que฀trata฀do฀ batismo.฀De฀resto,฀a฀intenção฀de฀Gregório฀é฀explicitamente฀apresentada฀ quando฀ele฀descreve฀o฀percurso฀de฀Clóvis฀até฀a฀pia฀batismal:฀ “Foi฀o฀rei฀quem฀primeiro฀pediu฀para฀ser฀batizado฀pelo฀pontífice.฀Ele฀avança,฀ novo฀ Constantino,฀ em฀ direção฀ à฀ piscina฀ para฀ curar-se฀ da฀ doença฀ de฀ uma฀ velha฀lepra฀e฀para฀apagar,฀com฀água฀fresca,฀manchas฀sujas฀feitas฀antigamente...฀ (grifo฀nosso)” 17. Essa฀“velha฀lepra”,฀curada฀pela฀água฀do฀baptismo฀é฀uma฀referência฀à฀ doença฀da฀qual,฀segundo฀a฀tradição,฀teria฀sido฀vítima฀o฀imperador฀Constantino.฀E฀no฀trecho฀logo฀a฀seguir,฀Gregório฀compara฀o฀bispo฀Remígio฀ ao฀papa฀Silvestre:฀ “São฀Remígio฀era฀um฀bispo฀de฀notável฀ciência฀e฀que,฀em฀primeiro฀lugar,฀ tinha฀se฀impregnado฀do฀estudo฀da฀retórica,฀mas฀se฀distinguia฀igualmente฀pela฀ santidade,฀igualando฀Silvestre฀pelos฀seus฀milagres”18.฀฀ Essa฀ comparação฀ completa฀ o฀ relato฀ “constantiniano”฀ do฀ batismo:฀ Remígio฀ estaria฀ para฀ Clóvis฀ assim฀ como฀ o฀ papa฀ Silvestre฀ estaria฀ para฀ Constantino.฀Vê-se,฀além฀disso,฀através฀da฀retórica฀da฀purificação฀pelo฀ batismo,฀a฀principal฀virtude฀de฀Clóvis,฀no฀entender฀do฀bispo฀Tours:฀como฀ o฀imperador,฀ele฀teria฀rompido฀com฀o฀paganismo฀e฀adotado฀a฀fé฀católica.฀ Como฀ se฀ pode฀ observar,฀ o฀ tema฀ de฀ Clóvis฀ como฀“novo฀ Constantino”฀ 16 ฀I.N.฀Wood,฀“Gregory฀of฀Tours฀and฀Clovis”,฀pp.฀249-272;฀F.฀Prinz,฀Grundlagen฀und฀Anfänge,฀ Deutschland฀bis฀1056,฀pp.฀63-64.฀ 17 ฀Histórias฀II,฀31.฀฀฀฀ 18 ฀Idem. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀85 alcançou,฀com฀Gregório,฀um฀nível฀de฀elaboração฀que฀ele฀provavelmente฀ não฀possuía฀no฀momento฀do฀batismo.฀ O฀bispo฀de฀Tours฀deve฀ter฀percebido฀que฀a฀conversão฀de฀Clóvis฀ao฀ catolicismo,฀como฀a฀de฀Constantino฀cerca฀de฀dois฀séculos฀antes,฀abria฀ possibilidades฀consideráveis฀para฀a฀Igreja.฀Clóvis฀era฀o฀primeiro฀rei฀ocidental฀a฀tornar-se฀católico.฀No฀entanto,฀Constantino฀não฀aparece฀no฀relato฀de฀Gregório฀como฀o฀campeão฀da฀fé฀católica.฀No฀único฀capítulo฀das฀ Histórias฀onde฀ele฀trata฀especificamente฀desse฀imperador฀(I,฀36),฀Gregório฀o฀acusa฀do฀assassinato฀da฀sua฀esposa฀Fausta฀e฀de฀seu฀filho19.฀Ainda฀ que฀o฀bispo฀de฀Tours฀afirme฀que฀foi฀durante฀o฀reinado฀de฀Constantino฀ que฀a฀paz฀retornou฀às฀Igrejas,฀não฀há฀nessa฀afirmação฀nenhum฀elogio฀ direto฀ao฀imperador฀nem฀a฀seu฀reinado:฀o฀falecimento฀de฀Diocleciano฀é฀ que฀teria฀produzido฀essa฀situação20.฀ Ao฀longo฀desse฀capítulo฀36,฀não฀há฀uma฀só฀referência฀à฀conversão฀de฀ Constantino,฀nem฀qualquer฀digressão฀sobre฀a฀maneira฀como฀esse฀ato฀teria฀ sido฀favorável฀ao฀catolicismo.฀Um฀“lapso”฀que฀é฀ainda฀mais฀surpreendente฀ se฀lembrarmos฀que฀Gregório฀cita฀Eusébio฀de฀Cesaréia฀(c.265-c.340),฀autor฀฀ que฀sublinhava฀a฀importância฀de฀Constantino฀para฀o฀triunfo฀do฀Império฀ Cristão21.฀O฀paralelismo฀entre฀o฀batismo฀de฀Clóvis฀e฀o฀batismo฀de฀Constantino฀não฀significa฀que฀o฀modelo฀constantiniano฀correspondesse฀ao฀modelo฀ 19 ฀Histórias฀I,฀36.฀Sobre฀Constantino,฀ver฀N.H.฀Baynes,฀Constantine฀the฀Great฀and฀the฀Christian฀Church;฀A.฀Alföldi,฀The฀Conversion฀of฀Constantine฀and฀Pagan฀Rome;฀W.฀Seston,฀“Constantin฀as฀a฀‘Bishop’”,฀pp.฀127-131;฀T.D.฀Barnes,฀Constantine฀and฀Eusebius;฀K.฀Baus,฀E.฀Ewig,฀ Die฀Reichskirche฀nach฀Konstantin฀der฀Grossen,฀I,฀Die฀Kirche฀von฀Nikäa฀bis฀Chalkedon;฀P.฀ Brezzi,฀“L’idea฀d’Impero฀nel฀IV฀secolo”,฀pp.265-279;฀J.-M.฀Carrié,฀A.฀Rousselle,฀L’Empire฀romain฀en฀mutation฀des฀Sévères฀à฀Constantin,฀192-337,฀pp.฀27-79.฀฀฀฀฀฀฀ 20 ฀Histórias฀I,฀36.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 21 ฀ Histórias฀ I,฀ prólogo:฀ “Quanto฀ à฀ cronologia฀ desse฀ mundo,฀ as฀ crônicas฀ de฀ Eusébio,฀ bispo฀ de฀ Cesaréia,฀e฀do฀padre฀Jerônimo฀a฀expõem฀claramente฀e฀apresentam฀um฀cálculo฀de฀toda฀a฀série฀de฀ anos”;฀ver฀também฀Histórias฀II,฀prólogo:฀“Da฀mesma฀maneira,฀Eusébio,฀Severo,฀Jerônimo,฀assim฀ que฀Orósio,฀inseriram฀em฀suas฀crônicas฀tanto฀os฀relatos฀das฀guerras฀dos฀reis฀quanto฀os฀dos฀milagres฀ de฀mártires”.฀Sobre฀os฀autores฀bizantinos฀utilizados฀por฀Gregório฀de฀Tours,฀ver฀o฀artigo฀de฀A.฀ Cameron,฀“The฀Byzantine฀Sources฀of฀Gregory฀of฀Tours”,฀pp.฀421-426. 86฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ideal฀de฀rei฀na฀visão฀do฀bispo฀de฀Tours.฀Não฀se฀pode฀esquecer฀que฀essa฀obra฀ foi฀redigida฀de฀uma฀só฀vez,฀por฀volta฀de฀594,฀o฀que฀significa฀que฀é฀pouco฀ provável฀que฀Gregório฀tenha฀mudado฀repentinamente฀de฀opinião฀sobre฀ Constantino฀entre฀a฀redação฀do฀primeiro฀e฀do฀segundo฀livro.฀A฀comparação฀entre฀esse฀último฀e฀Clóvis฀é,฀portanto,฀repleta฀de฀ambigüidades.฀ A฀comparação฀feita฀por฀Gregório฀entre฀Clóvis฀e฀Constantino,฀contrariamente฀ao฀que฀afirma฀M.฀Reydellet,฀não฀é฀fruto฀de฀uma฀mera฀alegoria฀ literária22.฀A฀apresentação฀de฀Clóvis฀nas฀Histórias฀como฀um฀“novo฀Constantino”฀acompanha฀uma฀descrição฀pelo฀menos฀ambígua฀que฀o฀bispo฀de฀ Tours฀dá฀do฀fundador฀do฀Regnum฀Francorum.฀No฀relato฀de฀Gregório฀de฀ Tours,฀Clóvis฀aparece฀como฀uma฀espécie฀de฀“Janus฀bicéfalo”,฀rei฀católico,฀ de฀um฀lado,฀devoto฀de฀São฀Martinho฀de฀Tours,฀e฀de฀outro,฀o฀soberano฀ ambicioso฀que฀não฀hesitava฀em฀assassinar฀os฀membros฀da฀sua฀família23.฀ Histórias฀pouco฀edificantes฀acompanham฀o฀elogio฀do฀príncipe฀cristão,฀o฀ unificador฀da฀Gália,฀o฀“pugnator฀egregius”฀(“guerreiro฀eminente”)24.฀ Para฀Gregório,฀Clóvis฀era฀apenas฀um฀instrumento฀da฀vontade฀divina,฀ que฀ fazia฀ aquilo฀ que฀ agradava฀ a฀ Deus.฀ Mas฀ ele฀ estava฀ longe,฀ da฀ mesma฀ maneira฀que฀Constantino,฀de฀encarnar฀o฀soberano฀ideal฀aos฀olhos฀do฀bispo฀de฀Tours.฀Gregório฀descreve฀as฀artimanhas฀empregadas฀pelo฀rei฀dos฀ francos฀para฀assassinar฀os฀membros฀da฀sua฀família฀e฀anexar฀os฀seus฀reinos.฀ A฀guerra฀de฀Clóvis฀contra฀Cloderico,฀filho฀do฀rei฀Sigeberto฀de฀Colônia,฀ testemunha฀da฀maneira฀pela฀qual฀o฀primeiro฀ampliou฀o฀Regnum฀Francorum฀à฀custa฀de฀seus฀vizinhos.฀Segundo฀Gregório,฀para฀excitar฀a฀cupidez฀ de฀Cloderico,฀Clóvis฀lhe฀teria฀enviado฀uma฀mensagem฀afirmando฀que฀se฀ seu฀pai฀morresse,฀o฀reino฀caberia฀a฀ele,฀Cloderico,฀por฀direito.฀Seguindo฀ os฀conselhos฀de฀Clóvis,฀Cloderico฀teria฀então฀assassinado฀seu฀pai฀e,฀em฀ seguida,฀se฀apossado฀de฀seus฀tesouros฀e฀de฀seu฀reino.฀Após฀estes฀eventos,฀ 22 ฀M.฀Reydellet,฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀p.฀408. ฀Pode-se฀dizer฀o฀mesmo฀da฀descrição฀feita฀por฀Gregório฀do฀reinado฀de฀Constantino:฀Histórias฀I,฀36:฀“Durante฀o฀vigésimo฀ano฀de฀seu฀reinado,฀o฀referido฀Constantino฀aprisionou฀seu฀filho฀ Crispus฀e฀assassinou฀sua฀esposa฀Fausta฀em฀um฀banho฀quente฀pois฀todos฀os฀dois฀pretendiam฀traí-lo,฀ a฀ele,฀o฀imperador”.฀ 24 ฀Histórias฀II,฀12.฀Ver฀J.-M.฀Wallace-Hadrill,฀The฀Long-Haired฀Kings,฀p.฀163.฀ 23 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀87 Cloderico฀teria฀sido฀assassinado฀por฀ordem฀de฀Clóvis,฀e฀esse฀teria฀ido฀então฀ reclamar฀o฀reino฀e฀seus฀tesouros.฀Dirigindo-se฀ao฀populus,฀ele฀teria฀pedido฀ que฀ esse฀ se฀ colocasse฀ sob฀ sua฀ proteção.฀Ao฀ ouvir฀ suas฀ palavras,฀ aqueles฀ que฀lá฀estavam฀teriam฀aplaudido฀com฀seus฀escudos฀e฀com฀seus฀gritos฀e฀ escolheram฀Clóvis฀como฀seu฀rei฀elevando-o฀sobre฀um฀escudo25.฀Gregório฀ inicia฀o฀relato฀de฀todos฀esses฀acontecimentos฀por฀uma฀fórmula฀lapidar: “Assim,฀Deus฀prosternava฀a฀cada฀dia฀seus฀inimigos฀sob฀sua฀mão฀e฀aumentava฀seu฀reino฀porque฀ele฀marchava฀com฀um฀coração฀reto฀e฀fazia฀aquilo฀que฀ agradava฀aos฀olhos฀de฀Deus”26. Nas฀ Histórias,฀ estamos฀ longe฀ do฀ tom฀ laudatório฀ empregado฀ por฀ Eusébio฀de฀Cesaréia฀no฀De฀Laudibus฀Constantini27.฀Isso฀pode฀refletir฀o฀ 25 ฀Histórias฀II,฀40.฀Ver฀também,฀Histórias฀II,฀41,฀42.฀ ฀Histórias฀II,฀40.฀ 27 ฀ Eusébio฀ de฀ Cesaréia฀ via฀ o฀ Império฀ como฀ uma฀ construção฀ providencial฀ encarregada฀ de฀ transcender฀ a฀ pluralidade฀ das฀ cidades฀ e฀ dos฀ reinos฀ politeístas฀ para฀ abrir฀ caminho฀ ao฀ cristianismo฀(J.R.฀Palanque,฀Saint฀Ambroise฀et฀l’Empire฀romain.฀Contribution฀à฀l’histoire฀des฀ rapports฀de฀l’Eglise฀et฀de฀l’Etat฀à฀la฀fin฀du฀IVe฀siècle,฀p.8).฀O฀De฀Laudibus฀Constantini฀reúne฀ dois฀discursos฀do฀bispo฀de฀Cesaréia,฀o฀primeiro,฀pronunciado฀em฀Constantinopla฀quando฀das฀ celebrações฀do฀trigésimo฀aniversário฀do฀reinado฀de฀Constantino,฀e฀o฀segundo,฀pronunciado฀ nesse฀mesmo฀ano฀em฀Jerusalém,฀por฀ocasião฀da฀fundação฀da฀igreja฀dos฀Santos฀Apóstolos.฀Os฀ historiadores฀vêem฀essa฀obra฀como฀o฀texto฀fundador฀do฀pensamento฀político฀bizantino฀(Ver฀ F.J.฀Foakes-Jackson,฀Eusebius฀Pamphili,฀bishop฀of฀Caesarea฀in฀Palestine฀and฀first฀Christian฀ historien.฀A฀study฀of฀the฀man฀and฀his฀writings,฀p.54;฀e฀também฀W.฀Seston,฀“Constantine฀as฀ a฀‘bishop’”,฀pp.฀127-131,฀ici฀p.129).฀Constantino฀aparece฀nesse฀documento฀como฀o฀“amigo฀do฀ Deus฀ todo-poderoso”,฀“um฀ novo฀ Moisés”,฀ o฀ representante฀ de฀ Deus฀ sobre฀ a฀ terra,฀ e฀ seu฀ império฀seria฀a฀imagem฀do฀reino฀celeste฀(Sobre฀as฀relações฀entre฀Eusébio฀e฀Constantino,฀ver฀a฀ obra฀de฀T.D.฀Barnes,฀Constantine฀and฀Eusebius;฀ver฀também,฀H.฀Moss,฀“The฀Formation฀of฀ the฀East฀Roman฀Empire”,฀pp.1-41).฀Um฀dos฀elementos฀essenciais฀da฀doutrina฀de฀Eusébio฀de฀ Cesaréia฀ era฀ a฀ associação฀ entre฀ a฀ monarquia฀ romana฀ e฀ a฀“realeza฀ do฀ Cristo”฀ (N.H.฀ Baynes,฀ “Eusebius฀and฀the฀Christian฀Empire”,฀pp.13-18).฀Segundo฀Eusébio,฀o฀governo฀terrestre฀somente฀poderia฀ser฀a฀copia฀da฀perfeição฀divina฀se฀ele฀desse฀ao฀mundo฀os฀benefícios฀da฀paz฀e฀da฀fé฀ em฀Deus.฀O฀universalismo฀cristão฀e฀o฀universalismo฀imperial฀pareciam฀encontrar฀assim฀pela฀ primeira฀ vez฀ um฀ ponto฀ de฀ concordância฀ na฀ realização฀ de฀ uma฀ missão฀ civilizadora฀ comum. 26 88฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média pessimismo฀dos฀meios฀eclesiásticos฀do฀final฀do฀século฀VI฀em฀relação฀ao฀ modelo฀de฀monarquia฀representado฀por฀esse฀imperador฀e฀adotado฀pelos฀ reis฀francos,฀modelo฀esse฀que฀implicava,฀como฀se฀verá฀mais฀adiante,฀uma฀ submissão฀do฀episcopado฀à฀realeza.฀A฀associação฀entre฀Clóvis฀e฀Constantino฀decididamente฀não฀era฀monopólio฀dos฀escritores฀eclesiásticos.฀ Várias฀vezes฀ao฀longo฀de฀seu฀reinado,฀o฀próprio฀Clóvis฀quis฀apresentar฀ o฀seu฀reinado฀como฀a฀continuidade฀do฀governo฀imperial฀constantiniano28.฀ Não฀ é฀ exagero฀ afirmar฀ que,฀ ao฀ convocar฀ o฀ Concílio฀ de฀ Orléans,฀ ao฀estabelecer฀a฀pauta฀dessa฀assembléia฀e฀ao฀nomear฀bispos฀para฀as฀sés฀ episcopais,฀Clóvis฀agiu฀como฀um฀princeps,฀o฀chefe฀do฀poder฀eclesiástico฀ na฀Gália.฀฀O฀santuário฀que฀Clóvis฀mandou฀construir฀para฀ser฀enterrado฀ era฀dedicado฀aos฀Santos฀Apóstolos,฀da฀mesma฀maneira฀que฀o฀mausoleu฀ imperial฀edificado฀em฀Constantinopla฀sob฀ordem฀de฀Constantino29.฀A฀ referência฀explícita฀ao฀imperador฀foi฀para฀Clóvis,฀no฀momento฀de฀sua฀ morte,฀o฀ponto฀culminante฀de฀uma฀política฀constantiniana฀na฀qual฀estavam฀incluídos฀o฀batismo,฀a฀cerimônia฀de฀Tours฀e,฀sobretudo,฀o฀Concílio฀ de฀Orléans.฀A฀associação฀entre฀Clóvis฀e฀Constantino฀talvez฀tenha฀sido฀ sugerida฀ pelos฀ próprios฀ bispos฀ no฀ momento฀ do฀ batismo.฀ Remígio฀ e฀ Avitus฀viam฀no฀batismo฀de฀Clóvis฀um฀evento฀semelhante฀àquele฀que฀a฀ Para฀ Eusébio฀ não฀ haveria฀ coincidência฀ no฀ fato฀ de฀ que฀ a฀ vinda฀ do฀ Cristo฀ coincidisse฀ com฀ o฀ advento฀do฀Império฀entre฀os฀romanos.฀A฀originalidade฀maior฀da฀doutrina฀do฀bispo฀de฀Cesaréia฀ é฀de฀ter฀refletido฀sobre฀a฀“revolução”฀personificada฀pelo฀cristianismo฀na฀nova฀temporalidade฀ que฀ele฀impunha฀aos฀regimes฀políticos฀estabelecidos฀no฀mundo.฀A฀monarquia฀universal฀teria฀ começado฀com฀a฀vinda฀do฀Cristo,฀e฀o฀Império,฀personificação฀do฀Reino฀de฀Deus฀sobre฀a฀terra,฀ duraria฀ até฀ o฀ fim฀ dos฀ tempos,฀ quando฀ se฀ converteria฀ em฀ Reino฀ dos฀ Céus฀ (Tricennelia,฀ In:฀ Eusebius฀Werke,฀ed.฀Heikel,฀t.฀I,฀XIX,฀4).฀A฀idéia฀de฀que฀o฀Império฀era฀o฀veículo฀da฀religião฀ cristã฀ na฀ qual฀ tomava฀ forma฀ o฀ plano฀ providencial฀ de฀ Deus฀ para฀ a฀ salvação฀ da฀ humanidade฀ tornou-se฀um฀lugar-comum฀literário฀que฀não฀cessaria฀de฀ser฀evocado฀por฀várias฀gerações฀de฀ apologistas฀do฀poder฀imperial. 28 ฀A฀esse฀respeito,฀ver฀E.฀H.฀Fischer,฀“The฀Belief฀in฀continuity฀of฀the฀Roman฀Empire฀among฀the฀ Franks฀of฀the฀fifth฀and฀sixth฀century”,฀pp.536-553. 29 ฀Histórias฀II,฀43:฀“Após฀esses฀eventos,฀ele฀morreu฀em฀Paris฀e฀foi฀enterrado฀na฀basílica฀dos฀Santos฀ Apóstolos฀que฀ele฀havia฀construído,฀juntamente฀com฀a฀rainha฀Clotilde”.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀89 tradição฀havia฀consagrado฀a฀respeito฀do฀primeiro฀imperador฀cristão.฀No฀ entanto,฀no฀final฀do฀reinado฀de฀Clóvis,฀essa฀associação,฀mais฀do฀que฀uma฀ invenção฀literária฀dos฀bispos฀católicos,฀era฀um฀instrumento฀de฀governo.฀฀ O฀Concílio฀de฀Orléans฀(511) A฀conversão฀de฀Clóvis฀à฀fé฀católica฀oficializou฀uma฀concórdia฀que฀já฀ existia฀entre฀o฀rei฀e฀a฀hierarquia฀católica฀do฀Norte฀da฀Gália,฀e฀que฀pode฀ ser฀observada,฀por฀exemplo,฀através฀da฀epístola฀que฀foi฀enviada฀ao฀príncipe฀pelo฀bispo฀de฀Reims฀por฀volta฀de฀481.฀O฀batismo฀deve฀ter฀tranqüilizado฀as฀populações฀católicas,฀majoritárias฀em฀todo฀o฀Sul฀da฀Gália,฀que฀ temiam฀ o฀ arianismo฀ dos฀ visigodos฀ e฀ dos฀ burgúndios30;฀ é,฀ certamente,฀ ele฀serviu฀para฀conquistar฀a฀adesão฀do฀clero฀católico฀da฀Aquitânia.฀Os฀ historiadores฀ questionaram฀ muitas฀ vezes฀ as฀ razões฀ que฀ teriam฀ levado฀ Clóvis฀a฀se฀converter฀ao฀catolicismo.฀É฀possível฀que฀o฀culto฀dos฀santos฀ e฀as฀relíquias฀o฀tenham฀sinceramente฀comovido,฀o฀que฀não฀exclui฀que฀ ele฀tenha฀utilizado฀esses฀elementos฀em฀proveito฀da฀afirmação฀de฀sua฀autoridade.฀Seja฀como฀for,฀as฀implicações฀da฀conversão฀e฀do฀batismo฀são฀ mais฀úteis฀para฀nosso฀estudo฀e฀também฀mais฀facilmente฀identificáveis฀ que฀seus฀motivos.฀A฀oficialização฀da฀aliança฀com฀a฀Igreja฀permitiu฀que฀ Clóvis฀se฀beneficiasse฀do฀apoio฀de฀um฀episcopado฀católico฀cuja฀força฀na฀ Gália฀era฀considerável. No฀que฀diz฀respeito฀à฀extensão฀da฀autoridade฀real,฀o฀batismo฀de฀Clóvis฀oficializou฀uma฀via฀que฀foi฀seguida฀pelos฀príncipes฀merovíngios฀ao฀ longo฀ do฀ século฀VI,฀ a฀ da฀ ingerência฀ da฀ realeza฀ nos฀ assuntos฀ internos฀ da฀ Igreja.฀ O฀ clero฀ católico฀ da฀ Gália฀ esperava฀ que฀ o฀ rei฀ fosse฀ capaz฀ de฀ apoiá-lo,฀criando฀as฀condições฀necessárias฀para฀o฀triunfo฀do฀catolicismo.฀ É฀o฀que฀afirma฀Remígio฀na฀carta฀que฀escreveu฀a฀Clovis฀para฀consolá-lo฀ 30 ฀Sobre฀a฀Espanha฀visigótica,฀ver฀J.฀Fontaine,฀Isidore฀de฀Séville฀et฀la฀culture฀classique฀dans฀ l’Espagne฀Wisigothique;฀J.฀Herrin,฀The฀formation฀of฀the฀Christendom,฀pp.฀220-249;฀P.฀Cazier,฀ Isidore฀de฀Séville฀et฀la฀naissance฀de฀l’Espagne฀catholique.฀฀฀ 90฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média da฀ morte฀ de฀ sua฀ irmã:฀ “O฀ entorpecimento฀ da฀ amargura฀ sacudido,฀ consagrareis฀vossas฀vigílias฀para฀a฀salvação฀[de฀todos]฀com฀mais฀acuidade”31.฀ Avitus฀ é฀ ainda฀ mais฀ incisivo:฀ segundo฀ ele,฀ a฀ Divina฀ Providência฀ teria฀ encontrado฀em฀Clóvis฀o฀árbitro฀da฀sua฀época.฀A฀escolha฀que฀ele฀fez฀para฀ si฀seria฀válida฀para฀todos32.฀Remígio฀e฀Avitus฀viam฀em฀Clóvis฀um฀igual฀ao฀ imperador,฀pois฀esperavam฀que฀ele฀fosse฀o฀campeão฀da฀fé฀católica฀dentro฀ e฀fora฀do฀Reino฀dos฀Francos.฀Essa฀associação฀era฀uma฀estratégia฀política฀ hábil฀da฀parte฀de฀um฀episcopado฀desejoso฀de฀associar-se฀à฀realeza฀e฀de฀ obter฀o฀seu฀apoio฀material฀para฀a฀evangelização.฀Havia,฀no฀entanto,฀uma฀ defasagem฀entre฀a฀visão฀dos฀bispos฀e฀a฀ação฀do฀poder฀político:฀o฀exercício฀da฀autoridade฀pública฀nos฀parâmetros฀constantinianos,฀segundo฀ compreendiam฀ Clovis฀ e฀ os฀ seus฀ sucessores,฀ significava฀ manter฀ o฀ episcopado฀sob฀a฀tutela฀da฀autoridade฀real.฀Nenhum฀evento฀ilustra฀melhor฀ essa฀discrepância฀do฀que฀o฀concílio฀convocado฀por฀Clóvis฀em฀Orléans฀ no฀último฀ano฀de฀seu฀reinado.฀฀฀฀฀฀ Alguns฀historiadores,฀como฀J.E.฀Bimbenet,฀vêem฀no฀Concílio฀de฀Orléans฀um฀ato฀político฀através฀do฀qual฀Clóvis฀teria฀conseguido฀impôr฀sua฀ vontade฀ a฀ um฀ clero฀ que฀ estava฀ persuadido฀ que฀ o฀ rei฀ era฀ para฀ a฀ Gália฀ um฀unificador฀do฀elemento฀germânico฀e฀do฀elemento฀romano33.฀Outros฀ vêem฀nesse฀concílio,฀ao฀contrário,฀a฀utilização฀do฀poder฀real฀pela฀Igreja.฀ É฀o฀caso฀de฀G.฀Kurth,฀para฀quem฀a฀reunião฀de฀Orléans฀foi฀o฀resultado฀das฀ pressões฀exercidas฀sobre฀Clóvis฀pelo฀episcopado฀católico34.฀Não฀muito฀ distante฀da฀opinião฀de฀G.฀Kurth,฀O.฀Pontal฀considera฀que฀o฀concílio฀era฀ uma฀maneira฀de฀o฀rei฀recompensar฀o฀clero฀da฀Aquitânia฀pelo฀apoio฀à฀ sua฀causa35.฀Para฀M.฀Rouche,฀o฀Concílio฀de฀Orléans฀significou฀a฀vitória฀ 31 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀1.฀ ฀Alcimi฀Ecdicii฀Aviti฀Viennensis฀Episcopi,฀46฀(41).฀ 33 ฀J.E.฀ Bimbenet,฀ Les฀conciles฀d’Orléans฀considérés฀comme฀sources฀du฀droit฀coutumier฀et฀ principe฀de฀la฀constitution฀de฀l’Eglise฀gauloise. 34 ฀G.฀Kurth,฀Clovis,฀pp.฀448-449. 35 ฀O.฀Pontal,฀Les฀canons฀des฀conciles฀mérovingiens,฀p.฀50.฀ 32 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀91 de฀uma฀concepção฀“gelasiana”฀das฀relações฀entre฀a฀Igreja฀e฀a฀Realeza,฀em฀ oposição฀a฀uma฀visão฀de฀tipo฀constantiniana36.฀฀฀ Ora,฀há฀um฀domínio฀no฀qual฀a฀realeza฀franca,฀pelo฀menos฀ao฀longo฀do฀ século฀VI,฀identificou-se฀o฀mais฀explicitamente฀possível฀com฀a฀monarquia฀ constantiniana:฀o฀das฀relações฀entre฀a฀autoridade฀real฀e฀a฀Igreja.฀O฀preâmbulo฀dos฀cânones฀conciliares฀de฀Orléans฀I฀é฀bastante฀ilustrativo฀nesse฀sentido:฀ “Ao฀ seu฀ senhor,฀ filho฀ da฀ Igreja฀ católica,฀ o฀ gloriosíssimo฀ rei฀ Clóvis,฀ todos฀ os฀bispos฀a฀quem฀ordenastes฀vir฀ao฀concílio.฀Visto฀que฀tamanho฀é฀o฀cuidado฀ da฀fé฀gloriosa฀que฀vos฀incita฀a฀honrar฀a฀religião฀católica,฀que,฀por฀estima฀pela฀ opinião฀dos฀bispos,฀prescrevestes฀que฀esses฀bispos฀se฀reunissem฀para฀tratar฀das฀ questões฀necessárias,฀é฀conforme฀à฀consulta฀e฀aos฀títulos฀desejados฀por฀vós฀ que฀nós฀elaboramos฀as฀respostas฀que฀nos฀pareceram฀bom฀formular”37.฀ 36 ฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀p.฀339:฀“Os฀bispos฀das฀Gálias฀eram฀fiéis฀a฀Roma฀ao฀reconhecerem฀as฀idéias฀ de฀Gelásio฀e฀ao฀votarem฀seus฀cânones.฀Diante฀do฀espiritual,฀o฀rei฀se฀submetia.฀A฀Igreja,฀na฀união฀ com฀o฀Estado,฀permanecia฀independente฀e฀superiora฀no฀domínio฀religioso.฀O฀Reino฀dos฀Francos฀ não฀era฀uma฀cristandade฀constantiniana”.฀ 37 ฀Orléans฀I฀(511),฀Epistola฀ad฀regem.฀De฀todo฀o฀período฀merovíngio,฀foram฀conservadas฀as฀atas฀ de฀cerca฀de฀duas฀dezenas฀de฀concílios฀que฀ultrapassaram฀os฀limites฀das฀províncias฀eclesiásticas,฀ de฀dois฀concílios฀provinciais฀e฀de฀um฀concílio฀diocesano.฀Os฀concílios฀merovíngios฀são฀também฀ conhecidos฀através฀de฀algumas฀crônicas฀que฀mencionam฀eventualmente฀o฀contexto฀no฀qual฀eles฀ se฀realizaram,฀sem,฀no฀entanto,฀apresentar฀o฀texto฀dos฀cânones.฀As฀fontes฀narrativas฀mencionam฀ igualmente฀certos฀concílios฀cujos฀cânones฀não฀foram฀conservados.฀É฀o฀caso,฀notadamente,฀dos฀ Dez฀Livros฀de฀História,฀de฀Gregório฀de฀Tours,฀que฀faz฀alusão฀a฀seis฀desses฀concílios:฀dois฀concílios฀ convocados฀pelo฀rei฀Gontrão,฀em฀579฀(Histórias฀V,฀27)฀e฀em฀581฀(Histórias฀VI,฀1),฀dois฀concílios฀ convocados฀pelo฀rei฀Chilperico,฀em฀577฀(Histórias฀V,฀18)฀e฀em฀580฀(Histórias฀V,฀49),฀e฀a฀outros฀ dois฀concílios฀que฀ocorreram฀em฀589฀(Histórias฀IX,฀37)฀e฀590฀(Histórias฀X,฀19-20),฀sob฀o฀reinado฀ de฀Childeberto฀II.฀Não฀há฀nenhum฀traço฀dos฀cânones฀discutidos฀e฀aprovados฀nessas฀assembléias.฀ Os฀cânones฀dos฀concílios฀merovíngios฀foram฀objeto฀de฀várias฀edições.฀Há฀a฀edição฀de฀1893฀de฀ F.฀Maassen฀nos฀M.G.H.฀(Concilia฀aevi฀Merovingici,฀ed.฀F.฀Maassen,฀MGH,฀Leges฀(in-4°),฀sect.฀III,฀ Concilia฀I).฀Uma฀outra฀edição,฀de฀C.฀Le฀Clercq,฀também฀de฀muito฀boa฀qualidade,฀traz฀um฀índice฀ de฀todas฀as฀fontes฀e฀um฀excelente฀texto฀crítico฀[Conciliae฀Galliae฀(v.511-695),฀ed.฀C.฀De฀Clercq,฀CC฀ 148A].฀[M.฀Cândido฀da฀Silva฀e฀M.฀Mazetto฀Junior,฀“A฀Realeza฀nas฀fontes฀do฀período฀merovíngio฀ (séculos฀VI-VIII)”,฀pp.฀89-119].฀Sobre฀os฀concílios฀merovíngios,฀ver฀O.฀Pontal,฀Histoire฀des฀conciles 92฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Esse฀documento,฀um฀fragmento฀da฀epístola฀dos฀bispos฀não฀deixa฀nenhuma฀dúvida฀de฀que฀a฀reunião฀foi฀convocada฀por฀iniciativa฀real:฀Clóvis฀ é฀quem฀teria฀ordenado฀que฀eles฀se฀reunissem฀em฀um฀concílio.฀Os฀bispos฀ reuniram-se฀em฀511,฀quatro฀anos฀após฀a฀conquista฀e฀a฀anexação฀da฀Aquitânia฀ao฀Regnum฀Francorum.฀Mais฀importante฀ainda,฀e฀sobre฀este฀ponto฀a฀ carta฀é฀inequívoca,฀os฀bispos฀se฀reuniram฀para฀discutir฀diversas฀questões฀ preliminarmente฀ estabelecidas฀ por฀ Clóvis,฀ como฀ anteriormente฀ faziam฀ os฀imperadores฀romanos.฀É฀o฀rei฀franco฀quem฀estabeleceu฀a฀“pauta”฀da฀ reunião,฀ ainda฀ que฀ os฀ bispos฀ tenham฀ o฀ cuidado฀ de฀ acrescentar฀ que฀ ele฀ procedeu฀assim฀em฀função฀de฀sua฀preocupação฀com฀a฀fé฀católica฀e฀pela฀ estima฀que฀ele฀tinha฀pela฀opinião฀dos฀bispos.฀É฀o฀princípio฀constantiniano฀ da฀ concordância฀ entre฀ a฀ ordem฀ política฀ e฀ a฀ ordem฀ eclesiástica฀ que฀ está฀ presente฀nesse฀trecho.฀O฀Concílio฀de฀Orléans฀é฀o฀evento฀que฀melhor฀traduz฀a฀prática฀“constantiniana”฀de฀Clóvis.฀Ele฀indica฀pela฀primeira฀vez฀de฀ maneira฀incontestável,฀a฀integração฀às฀atribuições฀da฀realeza฀merovíngia฀ do฀princípio฀de฀ingerência฀nos฀assuntos฀episcopais38.฀฀ As฀decisões฀do฀concílio฀de฀511฀reforçaram฀a฀posição฀do฀rei,฀em฀especial,฀e฀das฀autoridades฀civis,฀em฀geral,฀em฀face฀do฀clero.฀O฀quarto฀cânone฀ estabelecia,฀ por฀ exemplo,฀ que฀ nenhum฀ laico฀ poderia฀ ser฀ promovido฀ à฀ função฀ clerical฀ sem฀ a฀ ordem฀ do฀ rei฀ ou฀ a฀ autorização฀ do฀ conde฀ da฀ cidade39.฀Essa฀medida฀tinha฀provavelmente฀o฀objetivo฀de฀impedir฀que฀os฀ homens฀aptos฀ao฀combate฀fugissem฀do฀serviço฀militar,฀tendo฀em฀conta฀ a฀isenção฀das฀funções฀militares฀e฀civis฀das฀quais฀se฀beneficiava฀o฀clero.฀A฀ autoridade฀real฀podia฀assim฀dominar฀a฀entrada฀de฀quadros฀numa฀Igreja฀ que฀deles฀carecia.฀ mérovingiens;฀E.฀Ewig,฀“Beobachtungen฀zu฀den฀Bischofslisten฀der฀Merowingischen฀Konzilien฀ und฀Bischofsprivilegien”,฀pp.฀427-455;฀ver฀também฀J.฀Champagne,฀R.฀Szramkiewicz,฀“Recherches฀sur฀les฀conciles฀des฀temps฀mérovingiens”,฀pp.฀5-49. 38 ฀K.฀Baus,฀E.฀Ewig,฀Die฀Reichskirche฀nach฀Konstantin฀der฀Grossen,฀t.฀1,฀p.฀108.฀฀฀฀ 39 ฀Orléans฀I฀(511),฀c.฀4:฀“A฀respeito฀das฀ordenações฀dos฀clérigos,฀julgamos฀que฀é฀necessário฀observar฀ o฀que฀segue:฀que฀nenhum฀dos฀seculares฀seja฀promovido฀à฀função฀clerical,฀a฀não฀ser฀por฀ordem฀do฀ rei,฀ou฀pela฀vontade฀do฀conde฀(iudex)...”.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀93 Não฀havia,฀portanto,฀como฀afirma฀M.฀Rouche,฀relações฀“gelasianas”,฀ entre฀o฀episcopado฀e฀o฀poder฀real฀no฀início฀do฀século฀VI.฀Na฀carta฀enviada฀a฀Clóvis,฀os฀bispos฀apresentam฀claramente฀uma฀das฀razões,฀talvez฀ mesmo฀a฀principal,฀de฀sua฀resignação฀diante฀da฀autoridade฀real: “De฀maneira,฀se฀aquilo฀que฀nós฀determinamos฀é฀reconhecido฀justo฀ao฀vosso฀ julgamento,฀a฀aprovação฀de฀um฀tão฀grande฀rei฀e฀senhor฀confirmará฀o฀que฀deve฀ ser฀observado฀com฀uma฀maior฀autoridade฀a฀sentença฀de฀tantos฀bispos”40.฀ ฀ Os฀próprios฀bispos฀reconhecem฀claramente฀que฀a฀eficácia฀das฀medidas฀adotadas฀pelo฀concílio฀dependeria฀do฀reconhecimento฀das฀mesmas฀ pela฀autoridade฀do฀príncipe.฀Da฀mesma฀forma฀que฀Constantino฀após฀o฀ Concílio฀de฀Nicéia,฀Clóvis฀era฀o฀fiador฀da฀aplicação฀das฀decisões฀conciliares.฀Havia฀outra฀razão฀para฀a฀aceitação฀pelos฀bispos฀da฀superioridade฀ da฀autoridade฀real:฀o฀reconhecimento฀canônico฀do฀direito฀de฀ingerência฀ real฀tinha฀como฀contrapartida฀a฀aceitação฀por฀Clóvis฀do฀papel฀dirigente฀ dos฀ bispos฀ no฀ interior฀ do฀ clero.฀ O฀ décimo-quarto฀ cânone฀ previa,฀ por฀ exemplo,฀que฀o฀bispo฀devia฀tomar฀possessão฀da฀metade฀das฀oferendas,฀ bem฀como฀da฀totalidade฀das฀terras฀oferecidas฀pelos฀fiéis41.฀Era฀proibido฀ aos฀abades,฀aos฀padres฀e฀a฀todos฀os฀clérigos฀de฀dirigirem-se฀às฀autorida40 ฀ Orleans฀ I฀ (511),฀ Epistola฀ ad฀ regem.฀ M.฀ Rouche฀ traduz฀ da฀ seguinte฀ maneira฀ esse฀ trecho:฀ “De฀la฀sorte,฀si฀ce฀que฀nous฀avons฀décidé฀est฀aussi฀approuvé฀par฀votre฀jugement฀comme฀droit,฀le฀ consentement฀d’un฀si฀grand฀roi,฀eu฀égard฀à฀son฀autorité฀plus฀grande,฀consolidera฀la฀sentence฀de฀si฀ grands฀évêques”.฀A฀autoridade฀mencionada฀nessa฀carta,฀segundo฀M.฀Rouche,฀seria฀a฀autoridade฀ dos฀bispos.฀Ao฀insistirem฀sobre฀sua฀auctoritas,฀afirma฀ele,฀os฀bispos฀reunidos฀em฀Orléans฀se฀ posicionaram฀diante฀das฀concepções฀gelasiana฀e฀constantiniana.฀Eles฀teriam฀optado฀pelo฀gelasianismo฀ao฀afirmarem฀que฀sua฀autoridade฀era฀superior,฀e฀Clóvis฀teria฀aceitado฀esse฀princípio฀ (Clovis,฀p.฀451).฀Não฀há฀razão฀para฀se฀pensar฀que฀a฀auctoritas฀mencionada฀seja฀efetivamente฀a฀ dos฀bispos.฀Falta฀um฀possessivo฀do฀tipo฀eorum฀para฀que฀essa฀alternativa฀seja฀plausível.฀฀ 41 ฀Orléans฀I฀(511),฀c.฀14;฀ver฀também,฀Orléans฀I฀(511),฀c.฀15;฀esse฀último฀cânone฀estabelece฀que฀ os฀bens฀que฀cada฀fiel฀traz฀para฀as฀paróquias,฀como฀terras,฀vinhas,฀escravos฀e฀gado,฀deveriam฀ permanecer฀sob฀a฀guarda฀do฀bispo,฀assim฀como฀o฀terço฀das฀oferendas฀depositadas฀sobre฀o฀altar;฀ o฀décimo-nono฀cânone฀do฀mesmo฀concílio฀colocava฀os฀abades฀sob฀a฀autoridade฀dos฀bispos,฀ instando฀os฀primeiros฀a฀comparecer฀uma฀vez฀por฀ano฀diante฀desses฀últimos.฀ 94฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média des฀civis฀para฀pedir฀benefícios฀sem฀que฀os฀bispos฀fossem฀consultados.฀ Todo฀aquele฀que฀transgredisse฀essa฀regra฀devia฀ser฀privado฀da฀dignidade฀ e฀excomungado฀até฀que฀o฀bispo฀recebesse,฀pela฀penitência,฀uma฀plena฀ satisfação฀de฀sua฀parte42.฀Reforçado฀em฀sua฀posição฀de฀“líder”฀do฀clero฀ secular฀e฀do฀clero฀regular,฀o฀episcopado฀afirmou-se฀como฀o฀único฀interlocutor฀da฀Realeza,฀ainda฀que฀em฀posição฀subalterna.฀ A฀ aplicação฀ dos฀ dispositivos฀ que฀ previam฀ a฀ preeminência฀ real฀ em฀ matéria฀ de฀ ordenação฀ episcopal฀ não฀ se฀ fez฀ sem฀ oposição.฀ A฀ carta฀ de฀ Remígio฀aos฀bispos฀Heraclius,฀Leão฀e฀Teodósio,฀escrita฀em฀512,฀indica฀ que฀pelo฀menos฀uma฀parte฀do฀clero฀da฀Gália฀considerava฀tal฀ingerência฀ intolerável.฀Esses฀três฀bispos฀acusavam฀Remígio฀de฀ordenar฀ao฀clericato฀ um฀indivíduo฀desonesto,฀chamado฀Cláudio:฀ ฀“Fiz฀de฀Cláudio฀um฀padre฀de฀maneira฀alguma฀seduzido฀por฀uma฀recompensa,฀mas฀segundo฀o฀testemunho฀do฀excelentíssimo฀rei,฀o฀qual฀era฀não฀somente฀pregador฀da฀fé฀católica,฀mas฀também฀seu฀defensor”43.฀ A฀ resposta฀ de฀ Remígio฀ aos฀ três฀ bispos฀ que฀ o฀ acusavam฀ de฀ não฀ ter฀ agido฀em฀conformidade฀com฀os฀cânones฀é฀surpreendente.฀Ao฀invés฀de฀ invocar฀ o฀ quarto฀ cânone฀ do฀ Concílio฀ de฀ Orléans,฀ que฀ daria฀ respaldo฀ legal฀à฀decisão฀por฀ele฀tomada,฀Remígio฀se฀contenta฀em฀afirmar฀que฀ordenou฀Cláudio฀de฀acordo฀com฀o฀testemunho฀do฀excelentíssimo฀rei.฀E฀ acrescenta,฀taxativo,฀mais฀adiante฀em฀sua฀epístola:฀“…o฀responsável฀das฀ regiões,฀o฀guardião฀da฀pátria,฀aquele฀que฀triunfou฀sobre฀os฀povos฀pagãos฀ o฀ ordenou”44.฀ O฀ bispo฀ de฀ Reims฀ não฀ menciona฀ nenhum฀ cânone฀ para฀ sustentar฀ sua฀ posição.฀A฀ evocação฀ da฀ vontade฀ real฀ parecia-lhe฀ ser฀ um฀ argumento฀mais฀decisivo฀que฀qualquer฀recurso฀à฀tradição฀conciliar.฀Esse฀ posicionamento฀que฀fazia฀do฀rei฀o฀chefe฀do฀episcopado฀não฀era฀arcaico฀ 42 ฀Orléans฀I฀(511),฀c.฀7.฀฀ ฀Epistolae฀Austrasicae,฀3.฀฀฀ 44 ฀Ibid.฀ 43 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀95 em฀ 512,฀ como฀ pensa฀ M.฀ Rouche45.฀ Ele฀ poderia฀ ser฀ arcaico฀ em฀ Roma,฀ onde฀ alguns฀ anos฀ antes,฀ o฀ papa฀ Gelásio฀ I฀ (492-496)฀ havia฀ sustentado฀ a฀ separação฀ e฀ a฀ colaboração฀ entre฀ o฀ poder฀ imperial฀ e฀ o฀ poder฀ papal,฀ mas฀certamente฀não฀o฀era฀na฀Gália,฀onde฀o฀rei฀era฀também฀o฀chefe฀da฀ hierarquia฀administrativa฀da฀qual฀faziam฀parte฀os฀bispos. Sob฀ o฀ reinado฀ de฀ Clóvis,฀ não฀ havia฀ equilíbrio฀ entre฀ o฀ episcopado฀ e฀ a฀ realeza,฀ mas฀ um฀ claro฀ predomínio฀ dessa฀ última.฀ Clóvis฀ não฀ foi฀ uma฀ espécie฀de฀“executor฀testamentário”฀das฀ideias฀do฀papa฀Gelásio฀na฀Gália.฀ Esse฀último฀afirmou฀com฀veemência฀uma฀distinção฀entre฀o฀poder฀civil฀e฀ o฀poder฀religioso,฀e฀isso฀constituía฀a฀antítese฀do฀comportamento฀de฀Clóvis฀diante฀do฀episcopado46.฀Evidentemente,฀seria฀um฀exagero฀imaginá-lo฀ último฀como฀um฀“brilhante฀teórico”.฀Contudo,฀não฀se฀pode฀qualificar฀de฀ dualista฀uma฀política฀que฀consistia฀em฀colocar฀o฀episcopado฀sob฀a฀tutela฀ da฀realeza,฀como฀se฀pode฀observar฀nos฀cânones฀do฀Concílio฀de฀Orléans฀I.฀฀ 45 ฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀p.฀460.฀ ฀O฀texto฀fundamental฀no฀qual฀o฀papa฀Gelásio฀I฀desenvolveu฀sua฀doutrina฀sobre฀as฀relações฀ entre฀Igreja฀e฀Estado฀é฀a฀carta฀que฀ele฀enviou฀ao฀imperador฀Anastácio,฀em฀494.฀O฀preâmbulo฀ dessa฀carta฀é฀bastante฀conhecido:฀“Há฀dois฀poderes,฀augusto฀imperador,฀a฀partir฀dos฀quais฀esse฀ mundo฀é฀soberanamente฀governado:฀a฀autoridade฀sagrada฀dos฀pontífices฀e฀o฀poder฀real”.฀Em฀sua฀ carta,฀Gelásio฀distingue฀a฀auctoritas฀pontifícia฀e฀a฀potestas฀real,฀indicando฀não฀somente฀que฀há฀ dois฀domínios฀separados฀que฀pertencem฀à฀Igreja฀e฀ao฀Império,฀mas฀também฀que฀existe฀uma฀ hierarquia฀entre฀eles.฀À฀primeira฀vista,฀é฀visível฀sua฀busca฀de฀equilíbrio:฀nos฀assuntos฀temporais,฀os฀soberanos฀são฀superiores฀aos฀clérigos,฀enquanto฀nos฀assuntos฀religiosos,฀os฀clérigos฀são฀ superiores฀aos฀soberanos.฀Para฀Gelásio,฀as฀tarefas฀dos฀clérigos฀são฀mais฀pesadas฀do฀que฀as฀dos฀ soberanos,฀pois฀os฀primeiros฀devem฀prestar฀contas฀a฀Deus฀dos฀próprios฀reis:฀“Mas฀o฀poder฀dos฀ clérigos฀ é฀ maior,฀ pois฀ eles฀ deverão,฀ no฀ Julgamento฀ Final,฀ prestar฀ contas฀ ao฀ Senhor฀ dos฀ próprios฀ reis”.฀Os฀clérigos฀são฀superiores฀aos฀reis,฀pois฀eles฀dispõem฀da฀autoridade฀hegemônica฀em฀um฀ domínio฀ que฀ seria฀ superior฀ ao฀ domínio฀ reservado฀ aos฀ soberanos฀ temporais.฀ Estamos฀ longe฀ de฀uma฀simples฀isonomia฀das฀relações฀entre฀Igreja฀e฀Estado฀(K.฀F.฀Morrison,฀Tradition฀and฀ Authority฀in฀the฀Western฀Church,฀300-1140,฀pp.฀101-105).฀É฀uma฀dualidade฀que฀se฀pode฀qualificar฀de฀“hierárquica฀e฀complementar”,฀segundo฀expressão฀de฀L.฀Dumont฀(O฀individualismo:฀ uma฀perspectiva฀antropológica฀da฀ideologia฀moderna,฀pp.฀51-55).฀Isso฀evita฀o฀excesso฀que฀ consistiria฀em฀qualificar฀a฀visão฀de฀Gelásio฀de฀“teocrática”,฀como฀o฀faz฀W.฀Ullmann฀(Gelasius฀I.฀ 492-496.฀Das฀Papsttum฀an฀der฀Wende฀der฀Spätantike฀zum฀Mittelalter). 46 96฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Esse฀concílio฀não฀apenas฀oficializou฀uma฀prática฀já฀existente,฀mas฀consagrou฀a฀autoridade฀do฀rei฀sobre฀o฀episcopado.฀Os฀reis฀merovíngios฀interferiram฀nos฀assuntos฀eclesiásticos฀com฀uma฀intensidade฀que฀só฀encontra฀ precedentes฀no฀Império฀Cristão47.฀A฀sensibilidade฀“constantiniana”฀que฀se฀ observa฀no฀Concílio฀de฀Orléans฀é฀caracterizada,฀antes฀de฀mais฀nada,฀pelo฀ fato฀de฀que฀a฀assembléia฀foi฀convocada฀pelo฀próprio฀rei;฀ela฀também฀está฀ presente฀no฀desejo฀real฀em฀controlar฀as฀nomeações฀dos฀bispos฀bem฀como฀ os฀benefícios฀materiais฀feitos฀às฀igrejas.฀Se฀em฀Orléans,฀em฀511,฀o฀ritual฀da฀ eleição฀não฀foi฀eliminado฀em฀proveito฀da฀escolha฀direta฀pelo฀rei,฀na฀prática,฀aquele฀que฀não฀possuía฀o฀apoio฀real฀para฀ascender฀ao฀cargo฀de฀chefia฀ em฀uma฀diocese฀ou฀em฀uma฀abadia฀tinha฀muito฀poucas฀chances฀diante฀ de฀um฀candidato฀que฀dispunha฀de฀apoio฀real48.฀Além฀do฀mais,฀como฀foi฀ mencionado฀anteriormente,฀o฀quarto฀cânone฀estabelecia฀expressamente฀ 47 ฀O฀papel฀dos฀imperadores฀e฀dos฀altos฀funcionários฀romanos฀nas฀ordenações฀episcopais฀durante฀ o฀ Império฀ Romano฀ Tardio฀ é฀ objeto฀ de฀ polêmica฀ entre฀ os฀ historiadores.฀ J.฀ Gaudemet฀ afirma฀que฀os฀imperadores฀do฀Ocidente฀agiam฀com฀prudência฀quando฀de฀suas฀intervenções฀–฀ pouco฀numerosas฀segundo฀ele฀–฀nas฀eleições฀episcopais฀[L’Eglise฀dans฀l’Empire฀romain฀(IVeVe฀siècles),฀pp.฀334฀e฀ss.].฀D.฀Claude฀tem฀a฀mesma฀opinião:฀os฀imperadores฀teriam฀interferido฀ nas฀eleições฀episcopais฀apenas฀para฀preencher฀as฀sés฀episcopais฀mais฀importantes฀(“Die฀Bestellung฀der฀Bischöfe฀im฀merowingischen฀Reiche”,฀pp.฀1-75).฀Por฀outro฀lado,฀K.F.฀Werner฀sustenta฀que฀as฀atribuições฀do฀magister฀militum฀se฀estendiam,฀pelo฀menos฀após฀342,฀aos฀assuntos฀ eclesiásticos,฀e฀também฀às฀eleições฀episcopais.฀Haveria฀uma฀boa฀razão฀para฀isso:฀o฀fato฀de฀que฀ os฀bispos฀pertenciam฀à฀administração฀pública,฀ou฀seja,฀eles฀estavam฀próximos฀dos฀altos฀funcionários฀com฀quem฀dividiam฀os฀privilégios฀e฀as฀tarefas฀no฀interior฀do฀Império฀Romano฀cristão.฀Os฀reis฀francos,฀sucessores฀dos฀generais฀romanos,฀não฀teriam,฀segundo฀Werner,฀inovado฀ nesse฀domínio,฀mantendo฀essa฀mesma฀divisão฀de฀tarefas฀(K.F.฀Werner,฀Les฀origines,฀pp.฀323324).฀฀Em฀seus฀estudos,฀no฀entanto,฀R.฀Kaiser฀demonstrou฀que฀os฀reis฀merovíngios฀intervieram฀ de฀modo฀mais฀freqüente฀que฀os฀imperadores฀e฀os฀altos฀funcionários฀romanos฀nos฀assuntos฀ eclesiásticos฀[R.฀Kaiser,฀“Royauté฀et฀pouvoir฀épiscopal฀au฀nord฀de฀la฀Gaule฀(VIIe-IXe฀siècles)”,฀ pp.฀143-160,฀especialmente,฀p.฀145].฀Sobre฀as฀eleições฀eclesiásticas฀na฀Gália,฀ver฀também,฀Les฀ élections฀épiscopales฀mérovingiennes,฀pp.฀18-29;฀P.฀Cloché,฀“Les฀élections฀épiscopales฀sous฀les฀ Mérovingiens”,฀pp.฀227-237;฀e฀também฀a฀obra฀de฀J.฀Gaudemet,฀Les฀élections฀dans฀l’Eglise฀latine฀des฀origines฀au฀XVIe฀siècle,฀especialmente฀pp.฀49-62.฀฀฀฀฀ 48 ฀Ver฀J.฀Champagne,฀R.฀Szramkiewicz,฀“Recherches฀sur฀les฀conciles฀des฀temps฀mérovingiens”,฀ pp.฀5-49. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀97 que฀nenhum฀laico฀poderia฀ser฀promovido฀à฀função฀clerical฀sem฀a฀ordem฀ do฀rei฀ou฀a฀autorização฀do฀conde฀da฀cidade49. Durante฀o฀século฀VI,฀os฀cânones฀conciliares฀não฀cessaram฀de฀combater฀a฀nomeação฀dos฀bispos฀pelo฀rei,฀prática฀contrária฀à฀eleição฀“pelo฀clero฀ e฀pelo฀povo”,฀tal฀como฀estabeleciam฀as฀regras฀canônicas50.฀Ora,฀os฀bispos฀ eram฀funcionários฀da฀realeza,฀e,฀do฀ponto฀de฀vista฀do฀poder฀real,฀era฀natural฀que฀sua฀eleição฀fosse฀objeto฀de฀aprovação฀do฀príncipe.฀As฀prerrogativas฀ públicas฀ exercidas฀ pelo฀ episcopado฀ na฀ monarquia฀ franca฀ não฀ eram฀ um฀ fenômeno฀recente,฀nem฀uma฀conseqüência฀do฀desaparecimento฀da฀autoridade฀pública51.฀A฀política฀eclesiástica฀de฀Clóvis฀após฀seu฀batismo฀tinha฀por฀ objetivo฀controlar฀estreitamente฀esse฀corpo฀de฀funcionários฀e,฀dessa฀forma,฀ afirmar฀sua฀autoridade฀sobre฀as฀populações฀galo-romanas.฀Sob฀o฀reinado฀ de฀Clóvis,฀as฀atribuições฀do฀rei฀em฀matéria฀eclesiástica฀eram฀semelhantes฀ às฀do฀imperador฀cristão:฀ele฀convocava฀os฀concílios,฀estabelecia฀as฀questões฀ 49 ฀Orléans฀I฀(511),฀c.฀4.฀฀ ฀Nós฀a฀encontramos฀na฀Provença฀sob฀a฀dominação฀visigótica.฀Na฀Vitae฀Caesarii,฀Santo฀Eonius฀endereça฀um฀pedido฀ao฀clero,฀ao฀povo฀e฀às฀autoridades฀para฀que฀Cesário,฀na฀época฀um฀ simples฀abade,฀seja฀eleito฀seu฀sucessor฀após฀sua฀morte฀(Vitae฀Caesarii฀I,฀13).฀฀฀฀ 51 Os฀trabalhos฀de฀M.฀Heinzelmann฀e฀de฀G.฀Scheibelreiter฀mostraram฀que฀o฀episcopado,฀sob฀os฀ auspícios฀da฀autoridade฀imperial,฀viu-se฀atribuir,฀já฀sob฀o฀reinado฀de฀Constantino,฀uma฀série฀de฀ privilégios฀como฀a฀concessão฀de฀terras฀públicas.฀Essas฀terras,฀destinadas฀em฀geral฀às฀atividades฀ sociais฀da฀Igreja,฀guardavam฀uma฀função฀pública,฀como฀a฀própria฀Igreja฀aliás.฀Era,฀portanto,฀ natural฀que฀muitas฀vezes฀a฀construção฀das฀igrejas฀estivesse฀a฀cargo฀da฀autoridade฀real฀[G.฀Scheibelreiter,฀ Der฀Bischof฀in฀merowingischer฀Zeit;฀ ver฀ também,฀ J.฀ Durliat,฀“Attributions฀ civiles฀ des฀évêques฀mérovingiens:฀l’exemple฀de฀Didier,฀évêque฀de฀Cahors฀(630-655)”,฀pp.฀237-254.฀T.฀ Klauser฀foi฀um฀dos฀primeiros฀historiadores฀a฀observar฀que฀os฀privilégios฀honorários฀de฀que฀ gozavam฀os฀bispos฀tinham฀uma฀origem฀secular฀(Der฀Ursprung฀der฀bischöflichen฀Insignien฀ und฀Ehrenrechte)].฀M.฀Heinzelmann฀mostrou฀como฀as฀responsabilidades฀dos฀bispos฀aumentaram฀progressivamente฀até฀abarcar฀não฀somente฀os฀trabalhos฀públicos฀(aquedutos,฀estradas,฀ muralhas),฀mas฀também฀o฀apoio฀à฀população฀civil฀(M.฀Heinzelmann,฀“Bischof฀und฀Herrschaft฀ vom฀spätantiken฀ Gallien฀bis฀ zu฀den฀karolingischen฀Hausmeiern.฀Die฀institutionellen฀Grundlagen”,฀pp.฀23-82).฀A฀Igreja฀tornou-se฀um฀dos฀pilares฀sociais฀e฀políticos฀do฀Império฀Cristão฀ (K.F.฀Werner,฀“La฀place฀du฀VIIe฀siècle฀dans฀l’évolution฀politique฀et฀institutionnelle฀de฀la฀Gaule฀ franque”,฀pp.฀173-211,฀aqui฀p.฀182).฀ 50 98฀฀฀ A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média a฀serem฀discutidas฀durante฀a฀assembléia฀conciliar,฀velava฀pela฀aplicação฀de฀ suas฀decisões฀e฀nomeava฀os฀bispos.฀Sua฀tarefa฀foi฀facilitada฀pelo฀fato฀de฀a฀ Igreja฀da฀Gália฀ter฀sofrido฀consideravelmente฀com฀a฀instalação฀dos฀bárbaros฀ na฀segunda฀metade฀do฀século฀V;฀várias฀sés฀episcopais฀estavam฀vagas,฀e฀as฀ dioceses฀desorganizadas.฀Ele฀reestruturou฀o฀poder฀eclesiástico,฀conferiu-lhe฀ privilégios฀e฀colocou-se฀como฀o฀único฀chefe฀da฀Igreja฀franca.฀ A฀Igreja฀obteve฀sob฀o฀reinado฀de฀Clóvis฀o฀estatuto฀de฀religião฀oficial฀do฀ reino,฀como฀outrora฀sob฀Constantino,฀mas฀estava฀ainda฀distante฀o฀governo฀idealizado฀pelos฀bispos.฀O฀comprometimento฀da฀autoridade฀real฀no฀ auxílio฀à฀Igreja฀na฀tarefa฀da฀evangelização฀foi฀bem฀menos฀importante฀que฀ seu฀empenho฀numa฀política฀de฀ingerência฀nos฀assuntos฀internos฀do฀poder฀ eclesiástico.฀Os฀interesses฀da฀realeza฀aparecem฀claramente฀nos฀poucos฀textos฀disponíveis฀do฀reinado฀de฀Clóvis,฀como฀se฀verá฀mais฀adiante.฀Não฀há฀ nenhuma฀preocupação฀em฀adaptar฀o฀discurso฀e฀os฀atos฀reais฀às฀exortações฀ morais฀ do฀ episcopado.฀ Os฀ bispos฀ eram฀ tratados฀ como฀ funcionários฀ da฀ realeza,฀e฀não฀como฀seus฀conselheiros฀ou฀parceiros฀do฀mesmo฀nível.฀฀฀฀฀ A฀comparação฀com฀o฀Reino฀dos฀Burgúndios฀oferece฀um฀panorama฀ mais฀claro฀da฀natureza฀“constantiniana”฀da฀política฀episcopal฀de฀Clóvis.฀ Apesar฀de฀sua฀fé฀ariana,฀o฀rei฀Gondebaldo฀mantinha฀boas฀relações฀com฀o฀ clero฀católico.฀Como฀no฀Reino฀dos฀Francos,฀vários฀aspectos฀da฀administração฀romana฀foram฀preservados:฀as฀instituições฀municipais,฀os฀postos฀ de฀questor,฀de฀chanceler฀e฀de฀“majordomo”,฀o฀latim฀como฀língua฀oficial฀ dos฀atos฀reais,฀a฀efígie฀imperial฀nas฀moedas฀e฀as฀datas฀consulares฀como฀ parâmetro฀de฀datação52.฀Gondebaldo,฀que฀dispunha฀do฀título฀de฀magister฀ 52 ฀No฀dia฀29฀de฀março฀de฀502฀em฀Lyon,฀o฀rei฀burgúndio฀Gondebaldo฀publicou฀uma฀lei฀copiada฀ em฀grande฀parte฀do฀Código฀de฀Teodósio.฀Conhecida฀como฀Lex฀Burgundionum฀ou฀Lex฀Gundobalda,฀ela฀estabelecia฀a฀paridade฀das฀multas฀em฀caso฀de฀assassinato฀de฀romanos฀e฀burgúndios฀ de฀mesmo฀nível฀social.฀A฀lei฀também฀autorizava฀os฀casamentos฀mistos฀e฀dava฀aos฀romanos฀o฀ direito฀de฀portar฀armas฀e฀de฀servir฀o฀exército฀(M.฀Rouche,฀ Clovis,฀p.฀290).฀Ver฀Gregório฀de฀ Tours,฀Histórias฀II,฀33.฀Sobre฀os฀burgúndios,฀ver฀R.฀Guichard,฀Essai฀sur฀l’histoire฀du฀peuple฀ burgonde,฀de฀Bornholm฀vers฀la฀Bourgogne฀et฀les฀Bourguignons;฀O.฀Perrin,฀Les฀Burgondes.฀ Leur฀histoire฀des฀origines฀à฀la฀fin฀du฀premier฀royaume฀(534);฀ I.฀Wood,฀“Ethnicity฀ and฀ the฀ ethnogenesis฀ of฀ the฀ Burgundians”,฀ pp.53-69;฀ R.฀ Krieger,฀ Untersuchungen฀ und฀ Hypothesen฀ zur฀Ansiedlung฀der฀Westgoten,฀Burgunder฀und฀Ostgoten. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀99 militum฀Galliae,฀era฀considerado฀um฀delegado฀do฀imperador.฀Seu฀filho฀e฀ herdeiro฀Sigismundo฀renunciou฀ao฀arianismo฀e฀adotou฀a฀fé฀católica฀em฀ 515.฀Ao฀assumir฀o฀trono,฀ele฀solicitou฀e฀obteve฀do฀imperador฀Anastácio฀ a฀renovação฀em฀seu฀favor฀do฀posto฀de฀magister฀militum฀Galliae.฀ Um฀concílio฀reuniu-se฀na฀Burgúndia฀em฀517,฀mais฀precisamente฀na฀ cidade฀ de฀ Epaone.฀ Seus฀ cânones฀ mostram฀ preocupações฀ idênticas฀ às฀ do฀Concílio฀de฀Orléans,฀como฀a฀reforma฀dos฀costumes,฀a฀disciplina฀do฀ clero,฀as฀relações฀com฀os฀laicos฀etc.฀Todavia,฀as฀similitudes฀se฀encerram฀ aí.฀Contrariamente฀à฀assembléia฀de฀Orléans,฀a฀reunião฀de฀Epaone฀teve฀ um฀alcance฀meramente฀provincial฀e฀reuniu฀os฀bispos฀da฀província฀de฀ Lyon฀e฀da฀província฀de฀Viena.฀A฀diferença฀mais฀importante฀entre฀eles฀ está฀ no฀ papel฀ da฀ autoridade฀ real.฀ Em฀ cartas฀ que฀ foram฀ transmitidas฀ juntamente฀com฀os฀cânones,฀nem฀Avitus,฀bispo฀de฀Viena,฀nem฀Viventiolus,฀ bispo฀ de฀ Lyon,฀ mencionam฀ qualquer฀ convite฀ ou฀ convocação฀ real:฀o฀bispo฀Avitus฀é฀quem฀teria฀convidado฀os฀bispos฀de฀sua฀província฀ a฀virem฀ao฀concílio,฀e฀Viventiolus฀teria฀se฀associado฀à฀sua฀iniciativa.฀Os฀ bispos฀não฀foram฀obrigados฀a฀responder,฀como฀em฀Orléans,฀às฀questões฀ apresentadas฀pelo฀rei.฀Além฀do฀mais,฀no฀trecho฀em฀que฀se฀explicita฀o฀ procedimento฀seguido฀durante฀a฀assembléia฀conciliar,฀não฀há฀nenhuma฀ menção฀à฀autoridade฀real:฀ “Por฀conseguinte,฀essas฀decisões฀tendo฀sido฀tomadas฀em฀comum฀acordo฀ sob฀ inspiração฀ divina,฀ se฀ um฀ dos฀ santos฀ bispos฀ que฀ confirmaram฀ por฀ sua฀ assinatura฀pessoal฀nos฀presentes฀estatutos฀–฀e฀isso฀vale฀para฀aqueles฀que฀Deus฀ quiser฀lhes฀dar฀como฀sucessores฀–฀negligenciar฀sua฀observância฀integral,฀que฀ ele฀saiba฀que฀será฀considerado฀culpado฀no฀julgamento฀de฀Deus฀e฀de฀seus฀irmãos”฀(grifo฀nosso)53.฀฀ O฀ texto฀ acima฀ salienta฀ o฀ comum฀ acordo฀ entre฀ os฀ bispos฀ que฀ teria฀ presidido฀a฀tomada฀de฀decisões,฀e฀nada฀diz฀sobre฀a฀participação฀do฀rei฀ nos฀debates฀ou฀na฀tomada฀de฀decisões.฀Todos฀os฀participantes,฀da฀mesma฀ 53 ฀Epaone฀(517),฀฀c.฀40. 100฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média forma฀que฀seus฀sucessores,฀foram฀convocados฀a฀seguir฀respeitosamente฀ as฀disposições฀conciliaires,฀sob฀pena฀de฀julgamento฀divino฀e฀também฀de฀ um฀julgamento฀que฀partiria฀do฀próprio฀espiscopado.฀Não฀há฀referência฀ alguma฀a฀uma฀punição฀por฀parte฀da฀Realeza.฀O฀rei฀não฀foi฀chamado฀a฀referendar฀ou฀a฀aplicar฀as฀decisões฀conciliares.฀Essa฀é฀a฀principal฀diferença฀ entre฀a฀política฀episcopal฀inaugurada฀por฀Clóvis฀e฀a฀que฀era฀praticada฀no฀ Reino฀dos฀Burgúndios:฀enquanto฀a฀primeira฀era฀fundada฀sobre฀o฀predomínio฀do฀poder฀real,฀a฀segunda,฀ainda฀que฀se฀caracterizasse฀por฀um฀face฀ a฀face฀entre฀uma฀realeza฀ariana฀e฀um฀episcopado฀católico,฀resultava฀em฀ maior฀autonomia฀dos฀bispos.฀Essa฀autonomia฀irá฀até฀a฀excomunhão฀do฀ rei฀pelos฀bispos฀conciliares.฀O฀rei฀seria฀responsável,฀segundo฀os฀bispos,฀ de฀ ter฀ protegido฀ um฀ funcionário฀ real฀ sobre฀ quem฀ pesavam฀ acusações฀ de฀incesto.฀Esse฀funcionário,฀chamado฀Estêvão,฀tinha฀se฀casado฀após฀a฀ morte฀de฀sua฀esposa฀com฀a฀irmã฀dessa฀última,฀contrariando฀o฀que฀era฀ definido฀pelo฀vigésimo฀cânone฀do฀Concílio฀de฀Épaone.฀Em฀concílio฀reunido฀em฀Lyon฀por฀volta฀de฀518-523,฀os฀bispos฀burgúndios฀confirmaram฀ seu฀julgamento฀anterior,฀condenando฀o฀acusado,฀bem฀como฀a฀mulher฀ com฀a฀qual฀ele฀estava฀“ilegalmente”฀unido.฀Mais฀importante฀ainda,฀os฀ bispos฀ conciliares฀ proclamaram฀ publicamente฀ sua฀ solidariedade฀ com฀ aqueles฀dentre฀eles฀que฀viessem฀a฀sofrer฀punições,฀tormentos฀ou฀humilhações฀da฀parte฀do฀poder฀real54.฀Esse฀tom฀era฀altamente฀improvável฀no฀ Reino฀dos฀Francos,฀onde฀a฀“realeza฀constantiniana”฀havia฀triunfado฀no฀ Concílio฀de฀Orléans฀I. Neste฀ estágio฀ do฀ trabalho,฀ há฀ elementos฀ suficientes฀ para฀ uma฀ definição฀ da฀ realeza฀ constantiniana.฀ Trata-se฀ de฀ uma฀ forma฀ de฀ governo฀ na฀qual฀o฀príncipe,฀estando฀à฀frente฀do฀reino,฀busca฀aparecer฀aos฀olhos฀ daqueles฀que฀ele฀governa฀como฀o฀sucessor฀legítimo฀da฀autoridade฀imperial.฀Essa฀“imitação”,฀além฀de฀não฀constituir฀a฀especificidade฀dessa฀forma฀ 54 ฀Lyon฀(518-523),฀c.฀1:฀“Adicionamos฀o฀seguinte฀ainda:฀se฀algum฀dentre฀nós฀for฀obrigado฀a฀sofrer฀ qualquer฀tribulação,฀tormento฀ou฀vexação฀por฀parte฀do฀poder,฀todos฀se฀compadecerão฀de฀um฀mesmo฀coração฀com฀ele,฀e฀quaisquer฀que฀sejam฀as฀perturbações฀ou฀prejuízos฀que฀ele฀sofrer฀por฀causa฀ disso,฀que฀a฀consolação฀fraterna฀releve฀as฀ansiedades฀dessas฀tribulações”.฀฀฀฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀101 de฀exercício฀do฀poder฀real฀–฀pois฀a฀encontramos฀em฀outros฀lugares,฀tais฀ como฀o฀Reino฀dos฀Burgúndios฀–฀não฀se฀restringe฀ao฀domínio฀dos฀símbolos฀e฀dos฀títulos฀hierárquicos:฀ela฀tem฀implicações฀decisivas฀no฀plano฀ das฀relações฀de฀poder.฀O฀que฀caracteriza฀a฀realeza฀constantiniana,฀é฀que฀ nela฀o฀príncipe฀tenta฀afirmar฀seu฀poder฀sobre฀o฀episcopado,฀tal฀como฀ faziam฀os฀imperadores฀cristãos.฀É฀ele,฀como฀um฀princeps,฀quem฀convoca฀os฀concílios,฀e฀quem฀dita฀as฀questões฀que฀serão฀discutidas.฀A฀realeza฀ constantiniana฀compreende฀assim฀um฀padrão฀nas฀relações฀entre฀a฀autoridade฀real฀e฀o฀poder฀eclesiástico฀em฀que฀a฀primeira฀exerce฀um฀controle฀ estrito฀do฀episcopado,฀de฀seu฀recrutamento,฀de฀suas฀assembléias฀e฀das฀ medidas฀que฀nelas฀são฀aprovadas.฀฀฀฀฀ A฀realeza฀constantiniana฀após฀Clóvis฀ As฀ reputações฀ de฀ Clotário,฀ Childeberto,฀ Teuderico฀ (511-533)฀ e฀ Clodomiro฀(511-524)฀sofreram,฀muito฀mais฀que฀a฀de฀Clóvis,฀nas฀obras฀ dos฀ historiadores฀ franceses฀ publicadas฀ desde฀ o฀ século฀ XIX.฀ Este฀ é฀ ao฀ menos฀ reconhecido฀ pelos฀ historiadores฀ como฀ o฀ fundador฀ do฀ Regnum฀ Francorum.฀ Seus฀ herdeiros฀ diretos฀ não฀ se฀ beneficiaram,฀ de฀ um฀ ponto฀ de฀vista฀historiográfico,฀do฀mesmo฀prestígio.฀Várias฀anedotas฀relatadas฀ por฀Gregório฀de฀Tours฀reforçaram฀a฀imagem฀de฀reis฀brutais,฀impulsivos฀ e฀ sanguinários:฀ por฀ exemplo,฀ a฀ tentativa฀ de฀ Teuderico฀ de฀ assassinar฀Clotário฀quando฀ambos฀lutavam฀lado฀a฀lado฀na฀Turíngia;฀uma฀vez฀ descoberto฀seu฀plano,฀Teuderico฀teria฀procurado฀manter฀as฀aparências,฀ oferecendo฀a฀seu฀irmão฀presentes,฀porém฀mais฀tarde฀teria฀enviado฀seu฀ filho฀recuperá-los55.฀O฀próprio฀Teuderico,฀após฀ter฀dado฀sua฀palavra฀de฀ que฀o฀rei฀dos฀turíngios฀teria฀sua฀vida฀salva฀se฀se฀rendesse,฀o฀teria฀matado฀ com฀suas฀próprias฀mãos,฀segundo฀o฀bispo฀de฀Tours56.฀G.฀Tessier฀nota,฀ entretanto,฀que฀o฀meio-século฀que฀separa฀a฀morte฀de฀Clóvis฀da฀morte฀ 55 ฀Histórias฀III,฀7.฀ ฀Histórias฀III,฀8.฀฀฀ 56 102฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀Clotário฀I฀foi฀marcado฀pela฀consolidação฀das฀conquistas฀de฀Clóvis฀ e฀pela฀expansão฀do฀Regnum฀Francorum57.฀Eis฀talvez฀o฀maior฀paradoxo฀ da฀história฀merovíngia฀durante฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀VI:฀esses฀ reinados,฀ execrados฀ pela฀ historiografia,฀ coincidiram฀ com฀ um฀ período฀ no฀qual฀a฀Gália฀foi฀praticamente฀unificada฀sob฀o฀domínio฀franco.฀฀฀฀ A฀expansão฀militar฀constituiu฀a฀espinha฀dorsal฀da฀política฀externa฀do฀ Regnum฀Francorum฀do฀final฀do฀século฀V฀até฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀ VI.฀Os฀reis฀merovíngios฀tiveram฀de฀fazer฀frente,฀nos฀anos฀que฀seguiram฀à฀ morte฀de฀Clóvis,฀a฀um฀verdadeiro฀“cordão฀sanitário”฀instalado฀ao฀redor฀ de฀seus฀regna:฀os฀ostrogodos฀mantiveram฀sua฀presença฀na฀Provença,฀os฀ visigodos฀conseguiram฀restabelecer฀sua฀autoridade฀no฀sul฀da฀Aquitânia,฀ enquanto฀os฀burgúndios฀representavam฀uma฀ameaça฀considerável58.฀Em฀ 537,฀os฀sucessores฀de฀Clóvis฀venceram฀os฀burgúndios฀e฀afirmaram฀a฀hegemonia฀franca฀sobre฀a฀maior฀parte฀da฀Gália,฀à฀exceção฀da฀antiga฀província฀romana฀da฀Septimânia฀(sob฀controle฀dos฀godos)฀e฀da฀Bretanha฀(que฀ havia฀conservado฀sua฀autonomia).฀Por฀outro฀lado,฀o฀Regnum฀Francorum฀ conseguiu฀obter฀acesso฀ao฀Mediterrâneo.฀Os฀ostrogodos,฀debilitados฀após฀ a฀morte฀de฀Teodorico฀e฀confrontados฀quando฀da฀invasão฀da฀península฀ Italiana฀pelos฀exércitos฀imperiais,฀abandonaram฀a฀Provença฀aos฀francos.฀฀ Durante฀o฀século฀VI,฀o฀Regnum฀Francorum฀tornou-se฀um฀dos฀reinos฀ mais฀poderosos฀do฀Ocidente.฀Na฀Espanha฀visigótica,฀os฀conflitos฀sucessórios฀não฀permitiam฀que฀a฀realeza฀exercesse฀influência฀para฀além฀de฀suas฀ fronteiras.฀E฀isso฀apesar฀de฀um฀indiscutível฀esplendor฀intelectual฀do฀qual฀ Isidoro฀de฀Sevilha฀é฀uma฀das฀testemunhas฀mais฀notáveis59.฀Na฀Itália,฀o฀desaparecimento฀do฀Reino฀dos฀Ostrogodos,฀sob฀o฀impacto฀da฀Reconquista฀ de฀Justiniano,฀privou฀a฀península฀de฀um฀pólo฀de฀estabilidade฀política60.฀ Na฀ Grã-Bretanha,฀ a฀ vitória฀ dos฀ anglos฀ e฀ dos฀ saxões฀ sobre฀ os฀ bretões฀ 57 ฀G.฀Tessier,฀Le฀baptême฀de฀Clovis,฀p.176.฀฀฀฀฀฀฀ ฀H.฀Wolfram,฀The฀History฀of฀the฀Goths,฀pp.244-245,฀pp.309-311;฀sobre฀a฀dominação฀dos฀ ostrogodos฀na฀Provença,฀ver฀também,฀V.A.฀Sirago,฀“Gli฀ostrogoti฀in฀Gallia,฀secondo฀le฀Variae฀ di฀Cassiodoro”,฀pp.฀63-77. 59 ฀Ver฀J.฀Fontaine,฀Isidore฀de฀Séville฀et฀la฀culture฀classique฀dans฀l’Espagne฀Wisigothique.฀ 60 ฀J.฀W.฀Barker,฀Justinian฀and฀the฀Later฀Roman฀Empire. 58 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀103 não฀conduziu฀a฀um฀processo฀de฀unificação฀política.฀Somente฀o฀Regnum฀ Francorum฀foi฀capaz฀de฀reunir฀as฀condições฀necessárias฀ao฀exercício฀da฀ hegemonia฀no฀Ocidente.฀Os฀burgúndios,฀turíngios,฀bávaros฀e฀outros฀povos฀que฀habitavam฀as฀fronteiras฀orientais฀da฀Gália฀foram฀pacificados฀ou฀ submetidos฀ao฀longo฀do฀século฀VI:฀eles฀forneceram฀aos฀reis฀francos฀os฀ homens฀e฀os฀tributos฀com฀os฀quais฀foi฀possível฀implementar฀uma฀política฀ externa฀ambiciosa,฀cujo฀“carro-chefe”฀era฀a฀intervenção฀militar฀na฀Itália.฀฀฀ ฀Entretanto,฀a฀força฀não฀era฀o฀fundamento฀principal฀da฀autoridade฀ pública฀dos฀primeiros฀merovíngios61.฀As฀campanhas฀empreendidas฀pelos฀ reis฀francos฀eram฀parte฀integrante฀de฀um฀projeto฀político฀cujo฀objetivo฀ era฀fazer฀do฀Regnum฀Francorum฀a฀força฀hegemônica฀na฀pars฀Occidentis,฀o฀ herdeiro฀do฀Império฀Cristão.฀O฀preenchimento฀de฀todos฀os฀espaços฀deixados฀pelo฀Império฀Romano฀do฀Ocidente฀explica฀em฀grande฀parte฀essa฀ política฀ expansionista.฀ Clotário,฀ Childeberto,฀ Teuderico,฀ Teudeberto,฀ Teudebaldo฀e฀depois฀Chilperico฀prosseguiram฀a฀política฀constantiniana฀ de฀Clóvis฀e฀se฀apropriaram,฀ainda฀que฀em฀graus฀diferentes,฀dos฀símbolos฀ e฀ das฀ práticas฀ políticas฀ imperiais,฀ mas฀ também฀ tentaram฀ apropriar-se฀ do฀berço฀da฀autoridade฀romana,฀a฀Itália.฀฀ O฀exemplo฀mais฀marcante฀da฀política฀de฀imitatio฀imperii฀é฀a฀cunhagem฀de฀moedas.฀Sob฀o฀reinado฀de฀Clóvis฀e฀de฀seus฀sucessores,฀as฀moedas฀ que฀circulavam฀no฀Reino฀dos฀Francos฀eram฀modelos฀imperiais,฀em฀parte฀ cunhadas฀em฀ateliês฀funcionando฀na฀Gália฀desde฀a฀época฀imperial62.฀O฀ trabalho฀desses฀ateliês฀consistia฀fundamentalmente฀em฀copiar฀as฀moedas฀ 61 ฀R.฀Collins฀vê฀nas฀guerras฀de฀conquista฀o฀fundamento฀da฀autoridade฀real฀dos฀merovíngios฀no฀ século฀VI฀(฀“Theodebert฀I฀Rex฀Magnus฀Francorum”,฀pp.7-33).฀Essa฀é฀também฀a฀opinião฀de฀S.฀ Lebecq,฀Les฀origines฀franques,฀p.฀67.฀ 62 ฀Em฀um฀estudo฀consagrado฀à฀numismática฀do฀Languedoc,฀C.฀Robert฀mostrou฀que฀os฀nomes฀ dos฀moedeiros฀que฀figuravam฀nas฀primeiras฀moedas฀merovíngias฀eram฀romanos฀(Trésor฀de฀ Chinon,฀In:฀Annuaire฀de฀la฀Société฀française฀de฀numismatique,฀t.฀VI,฀p.฀164,฀Apud฀M.฀Prou,฀ Les฀monnaies฀mérovingiennes,฀xvi);฀sobre฀as฀moedas฀merovíngias,฀ver฀também฀A.฀de฀Belfort,฀ Description฀ générale฀ des฀ monnaies฀ mérovingiennes฀ par฀ ordre฀ alphabétique฀ des฀ ateliers;฀ P.฀Le฀Gentilhomme,฀“Le฀monnayage฀et฀la฀circulation฀monétaire฀dans฀les฀royaumes฀barbares฀ de฀ l’Occident฀ (VIe-VIIIe)”,฀ pp.฀ 45-112;฀ C.฀ Brenot,฀“Du฀ monnayage฀ impérial฀ au฀ monnayage฀ mérovingien:฀l’exemple฀d’Arles฀et฀de฀Marseille”,฀pp.฀147-160;฀J.฀Kent,฀“Gold฀standards฀of฀the 104฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média imperiais:฀os฀soldos฀de฀ouro฀e฀também฀os฀terços฀de฀soldos,฀chamados฀ tremisses฀ ou฀ trientes.฀A฀ respeito฀ da฀ política฀ monetária฀ merovíngia,฀ M.฀ Bouvier-Ajam฀afirma฀que,฀ao฀adotarem฀as฀moedas฀imperiais฀romanas,฀ os฀ merovíngios฀ renunciavam฀ a฀ toda฀ inovação฀ revolucionária63.฀ Para฀ M.฀Prou,฀os฀reis฀merovíngios,฀ao฀prosseguirem฀a฀cunhagem฀de฀moedas฀ imperiais,฀não฀pretendiam฀manifestar฀qualquer฀submissão฀ao฀Império.฀ Eles฀ teriam฀ simplesmente฀ agido฀ conforme฀ considerações฀ puramente฀ econômicas฀e฀no฀interesse฀de฀seu฀fisco,฀pois฀uma฀moeda฀de฀ouro฀própria฀ aos฀reis฀bárbaros,฀inventada฀por฀eles,฀não฀teria฀tido฀nenhum฀crédito64.฀ De฀fato,฀era฀mais฀razoável฀para฀os฀merovíngios฀utilizar฀em฀seu฀reino฀as฀ moedas฀imperiais,฀que฀circulavam฀aliás฀em฀toda฀a฀bacia฀do฀Mediterrâneo,฀tanto฀nos฀territórios฀que฀já฀tinham฀pertencido฀quanto฀naqueles฀que฀ ainda฀pertenciam฀à฀esfera฀de฀influência฀do฀Império.฀Nesse฀sentido,฀esses฀ príncipes฀não฀foram฀revolucionários.฀ Contudo,฀a฀moeda฀não฀possui฀apenas฀um฀valor฀de฀troca.฀Ela฀constitui฀ também฀uma฀manifestação฀visível฀da฀autoridade฀pública,฀uma฀maneira฀ pela฀qual฀o฀governante฀expõe฀publicamente฀senão฀suas฀prerrogativas,฀ pelo฀menos฀a฀maneira฀como฀ele฀quer฀ser฀percebido฀por฀seus฀súditos.฀ Conservar฀a฀moeda฀corrente฀tal฀como฀em฀Constantinopla,฀para฀além฀ de฀uma฀decisão฀puramente฀econômica฀(e฀pode-se฀questionar฀a฀ocorrência฀de฀decisões฀econômicas฀stricto฀sensu฀nesse฀período)฀marcava฀a฀ proximidade฀dos฀reis฀francos฀com฀a฀autoridade฀imperial฀em฀cujo฀nome฀฀ eles฀ deviam฀ governar.฀ O฀ melhor฀ indício฀ de฀ que฀ as฀ moedas฀ não฀ eram฀ concebidas฀ na฀ época฀ merovíngia฀ como฀ um฀ simples฀ instrumento฀ de฀ política฀econômica฀está฀no฀fato฀de฀que฀o฀modelo฀monetário฀romano฀ Merovingian฀coinage,฀A.D.฀580-700”).฀Sobre฀a฀cunhagem฀de฀moedas฀no฀final฀do฀Baixo฀Império,฀ ver฀J.฀Kent,฀The฀Roman฀Imperial฀Coinage.฀The฀Divided฀Empire฀and฀the฀Fall฀of฀the฀Western฀ Parts฀ 395-491,฀ vol.฀ 10;฀ G.฀ Lacam,฀ La฀ fin฀ de฀ l’empire฀ romain฀ et฀ le฀ monnayage฀ or฀ en฀ Italie,฀ 455-493.฀ 63 ฀M.฀Bouvier-Ajam,฀Eléments฀d’économie฀monétaire฀aux฀temps฀gaulois,฀gallo-romains฀et฀ mérovingiens,฀p.฀36.฀฀฀฀฀฀฀ 64 ฀M.฀Prou,฀Les฀monnaies฀mérovingiennes,฀xix-xv;฀do฀mesmo฀autor,฀La฀Gaule฀mérovingienne,฀p.฀72.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀105 nem฀sempre฀foi฀conservado.฀O฀ramo฀“austrasiano”฀dos฀sucessores฀imediatos฀de฀Clóvis,฀os฀mais฀engajados฀na฀política฀expansionista฀do฀Regnum฀Francorum,฀foram฀os฀primeiros฀a฀realizar฀um฀esboço฀de฀inovação฀ monetária.฀ Ora,฀ se฀ se฀ tratasse฀ de฀ uma฀ decisão฀ meramente฀“contábil”,฀ eles฀ teriam฀ mantido฀ as฀ moedas฀ romanas,฀ mais฀ amplamente฀ aceitas,฀ notadamente฀no฀que฀se฀refere฀ao฀comércio฀internacional฀na฀bacia฀do฀ Mediterrâneo.฀ Teuderico฀ fez฀ com฀ que฀ suas฀ moedas฀ fossem฀ marcadas฀ com฀suas฀iniciais,฀mas฀seu฀filho฀Teudeberto฀foi฀mais฀longe฀ainda.฀Ele฀ cunhou฀moedas฀que฀continham฀seu฀nome,฀seu฀título฀real,฀a฀inscrição฀ de฀origem฀romana฀PAX฀ET฀LIBERTAS65฀–฀que฀se฀encontra฀numa฀moeda฀ descoberta฀na฀Bélgica฀–฀e฀também฀VICT฀AVGG,฀presente฀em฀um฀solidus฀ conservado฀em฀vários฀exemplares.฀A฀propósito฀desse฀sólido,฀ele฀comporta฀também฀uma฀representação฀da฀Vitória.฀Mais฀significativo฀ainda,฀ sobre฀a฀outra฀face,฀há฀uma฀imagem฀de฀Teudeberto,฀cópia฀da฀imagem฀ monetária฀ de฀ Anastásio,฀ cercado฀ da฀ legenda฀ DN฀ THEODEBERTVS฀ VICTOR66.฀ Essas฀ moedas฀ de฀ Teudeberto฀ eram฀ obviamente฀ imitações฀ das฀moedas฀imperiais,฀e฀foram฀cunhadas฀muito฀provavelmente฀em฀comemoração฀dos฀sucessos฀militares฀francos฀na฀Itália฀entre฀538฀e฀54067.฀ O฀ historiador฀ grego฀ Procópio฀ testemunha฀ o฀ escândalo฀ provocado฀ na฀ corte฀imperial฀por฀essas฀imitações68. 65 ฀M.฀Prou,฀Les฀monnaies฀mérovingiennes,฀xxxi-xxxv.฀ ฀P.฀Le฀Gentilhomme,฀“Le฀monnayage฀et฀la฀circulation฀monétaire฀dans฀les฀royaumes฀barbares฀ de฀l’Occident฀(VIe-VIIIe)”,฀Revue฀Numismatique,฀ser.฀5,฀7฀(1943),฀pp.฀45-112;฀M.฀McCormick,฀ Eternal฀Victory:฀Triumphal฀Rulership฀in฀Late฀Antiquity,฀Byzantium฀and฀the฀Early฀Medieval฀ West,฀pp.฀338-339;฀M.฀Prou,฀Les฀monnaies฀mérovingiennes,฀x-xv.฀฀฀฀ 67 ฀M.฀Prou,฀Les฀monnaies฀mérovingiennes,฀xxxii.฀ 68 ฀Procópio,฀Bellum฀Gothicum,฀III,฀33:฀“São฀eles฀[os฀francos]฀hoje฀que,฀no฀anfiteatro฀de฀Arles,฀dão฀ o฀espetáculo฀das฀lutas฀hípicas;฀fazem฀moeda฀com฀o฀ouro฀das฀minas฀da฀Gália,฀e฀essas฀moedas฀não฀ são,฀segundo฀o฀costume,฀cunhadas฀à฀imagem฀do฀imperador฀dos฀romanos;฀eles฀colocam฀sua฀própria฀ imagem.฀ O฀ rei฀ dos฀ persas฀ faz฀ moeda฀ de฀ prata,฀ e฀ o฀ costume฀ lhe฀ permite฀ de฀ fazê-lo฀ segundo฀ sua฀ vontade;฀mas฀nem฀o฀chefe฀desse฀povo฀nem฀qualquer฀outro฀rei฀entre฀os฀bárbaros฀possui฀o฀direito฀de฀ marcar฀com฀sua฀imagem฀a฀moeda฀de฀ouro,฀o฀metal฀lhe฀pertencendo฀em฀toda฀propriedade;฀porque,฀ em฀suas฀relações฀comerciais,฀ainda฀que฀sejam฀elas฀de฀bárbaros฀a฀bárbaros,฀eles฀não฀podem฀colocar฀ essa฀moeda฀em฀circulação.฀Eis฀como฀as฀coisas฀se฀passavam฀para฀os฀francos”.฀ 66 106฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Os฀solidi฀de฀Teudeberto฀tinham฀inclusive฀o฀mesmo฀peso฀que฀os฀de฀ Constantinopla,฀mas฀o฀caráter฀excepcional฀de฀suas฀emissões฀e฀o฀fato฀de฀ que฀encontramos฀uma฀quantidade฀crescente฀de฀tremisses฀nos฀tesouros฀ do฀século฀VI,฀sugerem฀que฀sua฀cunhagem฀resultava฀mais฀do฀prestígio฀e฀ da฀“propaganda฀real”฀que฀de฀necessidades฀comerciais69.฀Além฀do฀mais,฀ a฀ iniciativa฀ monetária฀ de฀ Teudeberto฀ I฀ permaneceu฀ isolada฀ e฀ não฀ se฀ converteu฀em฀uma฀prática฀recorrente.฀Entre฀todos฀os฀reis฀francos฀da฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀Childeberto฀I฀é฀o฀único฀do฀qual฀dispomos฀ de฀um฀triens฀de฀ouro70.฀Até฀o฀princípio฀do฀século฀VII,฀os฀francos฀continuaram฀a฀cunhar฀na฀Gália฀moedas฀com฀o฀nome฀dos฀imperadores,฀tanto฀ os฀contemporâneos,฀como฀em฀Marselha,฀onde฀um฀ateliê฀monetário฀no฀ início฀desse฀mesmo฀século฀emitiu฀soldos฀em฀nome฀de฀Héraclius฀I฀(610641),฀ quanto฀ em฀ nome฀ de฀ imperadores฀ cujas฀ moedas฀ tinham฀ sido฀ as฀ mais฀difundidas,฀como฀Anastásio,฀Justino฀e฀Justiniano71.฀Essas฀moedas฀ “pseudo-imperiais”฀persistiram฀por฀mais฀ou฀menos฀tempo,฀conforme฀as฀ regiões.฀Na฀Provença,฀que฀permaneceu฀em฀contato฀estreito฀com฀o฀Império,฀elas฀continuaram฀a฀ser฀cunhadas,฀enquanto฀no฀restante฀da฀Gália฀já฀ haviam฀desaparecido฀há฀muito฀tempo72.฀ Não฀ há฀ nada฀ de฀ surpreendente฀ no฀ fato฀ de฀ que฀ a฀ substituição฀ do฀ nome฀do฀imperador฀pelo฀nome฀do฀rei฀nas฀moedas฀tenha฀se฀difundido฀ durante฀ o฀ reinado฀ de฀ Teudeberto฀ I.฀ Esse฀ personagem,฀ que฀ Marius฀ de฀ Avenches฀chamou฀de฀rex฀magnus฀Francorum,฀buscou฀incessantemente฀ associar฀os฀símbolos฀imperiais฀ao฀seu฀reinado73.฀Ele฀estava฀cercado฀por฀ conselheiros฀oriundos฀da฀elite฀galo-romana,฀como฀Secundius,฀Asteriolus฀e฀especialmente฀Parthenius.฀Esse฀último,฀neto฀do฀imperador฀Avitus฀ 69 ฀P.฀Le฀Gentilhomme,฀“Le฀monnayage฀et฀la฀circulation฀monétaire฀dans฀les฀royaumes฀barbares฀ de฀l’Occident”,฀pp.100-101. 70 ฀M.฀Prou,฀Les฀monnaies฀mérovingiennes,฀xxxv. 71 ฀Ibid.,฀xiv.฀฀ 72 ฀Ver฀P.฀Grierson,฀M.฀Blackburn,฀Medieval฀European฀Coinage.฀With฀a฀Catalogue฀of฀the฀Coins฀ in฀the฀Fitzwilliam฀Museum,฀1,฀The฀Early฀Middle฀Ages฀(5th฀–฀10th฀centuries).฀ 73 ฀Marius฀de฀Avenches,฀Cronica,฀an.฀548.฀Ver,฀a฀esse฀respeito,฀o฀estudo฀de฀F.฀Beisel,฀Theudebertus฀magnus฀rex฀Francorum:฀Persönlichkeit฀und฀Zeit. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀107 e฀do฀bispo฀Ruricius฀de฀Limoges,฀era฀próximo฀do฀bispo฀Cesário฀de฀Arles.฀ Antes฀da฀conquista฀franca฀da฀Provença,฀Parthenius฀tinha฀sido฀enviado฀à฀ corte฀de฀Ravena฀como฀delegado฀da฀assembléia฀provincial฀e฀como฀defensor฀civitatis฀de฀Marselha.฀Nomeado฀patrício฀em฀Arles฀e,฀em฀544,฀magister฀ officiorum฀atque฀patricius฀para฀a฀Gália,฀ele฀provavelmente฀exerceu฀uma฀ influência฀considerável฀no฀governo฀de฀Teudeberto,฀e฀pode฀ter฀sido฀um฀ dos฀ inspiradores฀ da฀ política฀“imperial”฀ desse฀ rei74.฀ Parthenius฀ morreu฀ assassinado฀em฀Trier,฀algum฀tempo฀depois฀da฀morte฀de฀Teudeberto.฀Ele฀ foi฀vítima,฀de฀acordo฀com฀Gregório฀de฀Tours,฀da฀revolta฀da฀população฀ que฀o฀considerava฀responsável฀pelo฀grande฀volume฀de฀tributos฀da฀época฀ de฀Teudeberto75.฀ O฀pesado฀regime฀de฀impostos฀servia฀muito฀provavelmente฀para฀custear฀ as฀campanhas฀na฀Itália.฀Durante฀a฀Reconquista฀de฀Justiniano,฀Teudeberto฀ chegou฀a฀um฀acordo฀com฀os฀ostrogodos฀e฀atacou฀as฀possessões฀imperiais฀ na฀Itália.฀A฀política฀imperial,฀a฀partir฀do฀advento฀de฀Justiniano,฀consistia฀ em฀restaurar฀o฀Império฀em฀sua฀integridade฀territorial฀pela฀anexação฀do฀ norte฀da฀África,฀da฀Península฀Ibérica฀e฀da฀Península฀Italiana.฀Após฀as฀primeiras฀vitórias฀sobre฀os฀vândalos,฀que฀ocupavam฀o฀norte฀do฀continente฀ africano,฀os฀exércitos฀imperiais฀se฀confrontaram฀com฀a฀resistência฀dos฀ostrogodos฀na฀Itália.฀E,฀no฀entanto,฀o฀momento฀parecia฀ser฀favorável฀a฀uma฀ campanha฀contra฀o฀Reino฀dos฀Ostrogodos,฀pois฀a฀morte฀de฀Teuderico,฀em฀ 526,฀o฀tinha฀mergulhado฀na฀instabilidade.฀A฀solidez฀das฀defesas฀ostrogóticas,฀bem฀como฀as฀divisões฀no฀comando฀do฀exército฀imperial,฀reduziram฀ consideravelmente฀as฀vantagens฀de฀Justiniano.฀Nenhum฀dos฀beligerantes฀ conseguiu฀infligir฀ao฀oponente฀uma฀derrota฀decisiva,฀o฀que฀tornava฀fundamental฀o฀apoio฀militar฀dos฀francos76.฀A฀política฀de฀Teudeberto฀na฀Itália฀ 74 ฀Não฀há฀nenhum฀estudo฀aprofundado฀sobre฀Parthenius;฀existem,฀contudo,฀algumas฀informações฀nas฀obras฀de฀K.F.฀Stroheker฀(Der฀senatorische฀Adel฀im฀spätantiken฀Gallien,฀p.฀199),฀ de฀F.฀Beyerle฀(“Die฀beiden฀deutschen฀Stammes฀rechte”,฀pp.฀126-128),฀de฀P.฀Riché฀(Education฀ et฀culture,฀p.฀154),฀e฀de฀M.฀Heinzelmann฀(Gallische฀Prosopographie,฀p.฀663;฀Bischofsherrschaft฀in฀Gallien,฀p.฀230). 75 ฀Histórias฀III,฀36.฀฀฀฀฀ 76 ฀Sobre฀a฀Reconquista฀de฀Justiniano,฀ver฀P.฀Maraval,฀L’empereur฀Justinien.฀฀ 108฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média oscilou฀entre฀o฀apoio฀aos฀godos฀e฀a฀aliança฀com฀os฀romanos.฀Em฀538,฀o฀rei฀ franco฀enviou฀à฀Itália฀um฀exército฀de฀cerca฀de฀10.000฀homens฀mobilizado฀ na฀ Burgúndia.฀Após฀ cruzar฀ os฀Alpes,฀ esse฀ exército฀ obrigou฀ a฀ guarnição฀ imperial฀de฀Milão฀a฀se฀render฀aos฀godos฀que฀os฀sitiavam฀há฀algum฀tempo.฀ Teudeberto฀tentou฀convencer฀os฀romanos฀de฀que฀esse฀exército฀não฀estava฀ sob฀suas฀ordens.฀Pouco฀depois,฀à฀frente฀de฀outro฀exército฀franco,฀Teudeberto฀invadiu฀a฀Itália฀e฀atacou฀ao฀mesmo฀tempo฀ostrogados฀e฀bizantinos,฀ pilhando฀e฀destruindo฀as฀cidades฀do฀norte฀da฀Itália77.฀Ele฀amparou-se฀da฀ Venécia,฀e,฀em฀epístola฀enviada฀a฀Justiniano,฀diz฀ter฀se฀apoderado฀da฀Panônia78.฀É฀pouco฀provável฀que฀tenha฀conseguido฀tal฀proeza,฀mesmo฀porque฀uma฀epidemia,฀que฀dizimou฀seu฀exército,฀bem฀como฀a฀oposição฀dos฀ lombardos,฀o฀impediram฀de฀dominar฀o฀vale฀do฀Pó79.฀Segundo฀Agathias,฀ suspeitava-se฀ que฀ Teudeberto฀ preparava฀ um฀ ataque฀ contra฀ Constantinopla฀ através฀ do฀Vale฀ do฀ Danúbio80.฀ É฀ pouco฀ provável฀ que฀ Teudeberto฀ possuísse฀os฀meios฀materiais฀para฀empreender฀uma฀tal฀operação;฀tomar฀ posse฀da฀capital฀imperial฀não฀estava฀ao฀alcance฀de฀um฀príncipe฀franco,฀ por฀mais฀poderoso฀que฀ele฀fosse.฀Constantinopla฀permanecia฀fora฀de฀seu฀ alcance:฀havia฀o฀obstáculo฀dos฀Bálcãs฀a฀ser฀transposto.฀Entretanto,฀e฀é฀isso฀ que฀ importa฀ destacar,฀ o฀ fato฀ de฀ um฀ cronista฀ da฀ época฀ mencionar฀ essa฀ possibilidade฀é฀um฀indício฀da฀ameaça฀que฀esse฀rei฀representava฀para฀os฀ bizantinos. Para฀grande฀escândalo฀da฀Corte฀imperial฀de฀Constantinopla,฀segundo฀ Procópio,฀Teudeberto฀também฀organizou฀jogos฀hípicos฀em฀Arles81.฀Era฀ necessário฀mostrar฀aos฀galo-romanos฀que฀o฀Império฀tinha฀encontrado฀ 77 ฀Procope.฀Bellum฀Gothicum,฀II,฀25.฀ ฀Nessa฀epístola,฀Teudeberto฀menciona฀igualmente,฀entre฀os฀territórios฀que฀afirma฀dominar,฀a฀ Turíngia฀e฀o฀país฀dos฀saxões฀(Epistolae฀Austrasicae,฀20).฀฀ 79 ฀R.฀Collins,฀“Théodebert฀I฀Rex฀Magnus฀Francorum”,฀pp.7-33. 80 ฀Agathias,฀Historiarum฀Libri฀Quinque฀I,฀4,฀1-4.฀Sobre฀Agathias฀e฀a฀Gália฀merovíngia,฀ver฀o฀ artigo฀de฀A.฀Cameron,฀“Agathias฀on฀the฀early฀Merovingians”,฀pp.95-140.฀฀฀฀ 81 ฀Procópio,฀Bellum฀Gothicum,฀III,฀33.฀Essa฀iniciativa฀não฀significou฀uma฀retomada฀sistemática฀ do฀evergetismo฀romano.฀Ao฀organizar฀esses฀espetáculos,฀Teudeberto฀I,฀como฀mais฀tarde฀Chilperico฀I,฀apenas฀manifestavam฀publicamente฀a฀continuidade฀da฀autoridade฀imperial.฀฀ 78 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀109 no฀príncipe฀franco฀seu฀herdeiro฀na฀pars฀Occidentis.฀De฀todos฀os฀reis฀francos฀do฀século฀VI,฀Teuderico,฀seu฀filho฀Teudeberto฀e฀seu฀neto฀Teudebaldo,฀ cujos฀domínios฀correspondiam฀à฀antiga฀Francia฀Rhinensis฀e฀a฀algumas฀ possessões฀na฀Aquitânia฀e฀na฀Burgúndia,฀foram฀os฀mais฀comprometidos฀ com฀a฀política฀expansionista฀do฀Regnum฀Francorum.฀Porém,฀a฀autoridade฀desses฀príncipes฀se฀restringiu฀à฀Gália,฀pois฀as฀tentativas฀de฀conquista฀ da฀Espanha฀e฀da฀Itália฀não฀alcaçaram฀sucesso.฀Mas฀elas฀tiveram฀um฀custo.฀ Embora฀Gregório฀de฀Tours฀faça฀o฀elogio฀do฀apoio฀dado฀por฀Teudeberto฀ às฀igrejas฀de฀Auvérnia฀diante฀dos฀agentes฀do฀fisco,฀o฀rigor฀de฀sua฀política฀ fiscal฀estava฀à฀altura฀dos฀custos฀de฀suas฀campanhas฀na฀Itália82.฀A฀morte฀de฀ Teudeberto,฀em฀547,฀pôs฀fim฀às฀pretensões฀francas฀sobre฀a฀Itália,฀pelo฀menos฀até฀que฀Pepino,฀o฀Breve,฀atacasse฀os฀lombardos,฀na฀segunda฀metade฀ do฀século฀VIII.฀A฀associação฀com฀o฀Império฀permaneceria฀ainda,฀e฀por฀ longo฀tempo,฀um฀componente฀da฀política฀dos฀reis฀francos,฀ainda฀que฀alguns฀anos฀mais฀tarde฀ela฀não฀fosse฀mais฀–฀como฀se฀verá฀na฀segunda฀parte฀ deste฀trabalho฀–฀o฀principal฀fundamento฀de฀sua฀autoridade฀pública.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ O฀segundo฀e฀o฀terceiro฀livros฀das฀crônicas฀atribuídas฀a฀Fredegário,฀ escritos฀no฀século฀VII83,฀bem฀como฀o฀Liber฀Historiae฀Francorum84,฀de฀ 82 ฀Ver,฀por฀exemplo,฀o฀relato฀da฀morte฀de฀Parthenius,฀vítima฀da฀população฀de฀Trier,฀revoltada฀ com฀os฀pesados฀tributos฀aos฀quais฀ela฀estava฀submetida฀(Histórias฀III,฀36).฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 83 ฀ B.฀ Krusch,฀ para฀ quem฀ as฀ Crônicas฀ foram฀ produzidas฀ por฀ dois฀ autores฀ e฀ três฀ redatores,฀ afirma฀que฀o฀primeiro฀redator฀foi฀quem฀inseriu฀a฀lenda฀troiana฀na฀obra.฀W.฀Wattenbach฀e฀W.฀ Levison฀estimam,฀como฀Krusch,฀que฀há฀dois฀autores,฀mas฀para฀eles฀o฀segundo฀redator฀é฀que฀ foi฀o฀responsável฀pela฀inserção฀da฀lenda฀(Deutschlands฀Geschichtesquellen฀im฀Mittelalter฀ I:฀ die฀Vorzeit฀ von฀ den฀ Anfängen฀ bis฀ zur฀ Herrschaft฀ der฀ Karolinger,฀ p.฀ 110);฀ W.฀ Goffart฀ acredita฀ que฀ as฀ Crônicas฀ possuem฀ um฀ só฀ autor,฀ que฀ foi฀ o฀ interpolador฀ da฀ lenda฀ troiana฀ em฀suas฀duas฀versões฀(“The฀Fredegar฀Problem฀reconsidered”,฀pp.206-241);฀R.A.฀Gerberding฀ atribuiu฀aos฀livros฀I฀e฀II฀das฀Crônicas฀a฀dois฀autores฀distintos,฀o฀primeiro฀tendo฀escrito฀por฀ volta฀ de฀ 613฀ e฀ o฀ segundo฀ por฀ volta฀ de฀ 660฀ (The฀Rise฀of฀The฀Carolingians฀and฀the฀Liber฀ Historiae฀Francorum,฀pp.13-30).฀E.฀Ewig฀acredita,฀igualmente,฀na฀existência฀de฀dois฀autores฀ (“Le฀mythe฀troyen฀et฀l’histoire฀des฀Francs”,฀pp.฀817-847).฀฀฀฀ 84 ฀ O฀ Liber฀ Historiae฀ Francorum฀ é฀ uma฀ crônica฀ do฀ inicio฀ do฀ século฀VIII,฀ escrita฀ provavelmente฀na฀cidade฀de฀Soissons.฀Ela฀é฀constituída฀de฀um฀resumo฀dos฀seis฀primeiros฀livros฀das฀ Histórias,฀de฀Gregorio฀de฀Tours,฀e฀de฀uma฀crônica฀dos฀acontecimentos฀entre฀584฀e฀727.฀No฀ 110฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média 720,฀relatam฀que฀os฀francos฀descendiam฀de฀guerreiros฀que฀fugiram฀da฀ cidade฀de฀Tróia฀após฀a฀sua฀destruição฀pelos฀gregos85.฀Esse฀mito฀lembra฀ a฀ origem฀ mítica฀ dos฀ romanos,฀ segundo฀ a฀ qual฀ esses฀ últimos฀ teriam฀ se฀ originado฀ de฀ um฀ grupo฀ de฀ troianos฀ que฀ fugiram฀ de฀ Tróia฀ sob฀ o฀ comando฀de฀Enéias฀e฀que฀teriam฀se฀instalado฀nas฀margens฀do฀Tibre.฀ As฀condições฀nas฀quais฀a฀lenda฀troiano-franca฀nasceu฀e฀se฀desenvolveu฀ são฀bastante฀obscuras.฀É฀provável฀que฀ela฀tenha฀surgido฀no฀momento฀ dos฀primeiros฀tratados฀entre฀francos฀e฀romanos,฀como฀iniciativa฀da฀diplomacia฀imperial,฀cuja฀intenção฀era฀consolidar฀a฀aliança฀entre฀os฀dois฀ povos86.฀ Para฀ os฀ francos,฀ essa฀ associação฀ tinha฀ inúmeras฀ vantagens.฀ Povo฀jovem,฀etnicamente฀heterogêneo,฀eles฀encontraram฀na฀lenda฀um฀ atributo฀de฀antigüidade,฀uma฀forma฀de฀legitimação฀histórica.฀Para฀o฀ Império,฀ a฀ genealogia฀ mostrou-se฀ ser฀ uma฀ ponte฀ dirigida฀ a฀ chefes฀ e฀ que฀diz฀respeito฀aos฀acontecimentos฀posteriores฀a฀584,฀o฀autor฀do฀Liber฀utilizou฀Isidoro฀de฀Sevilha,฀especialmente฀as฀Etimologias,฀alguns฀relatos฀contemporâneos฀e฀provavelmente฀também฀ recorreu฀à฀tradição฀oral.฀Ainda฀que฀a฀obra฀de฀Gregório฀seja฀a฀principal฀fonte฀do฀Liber,฀existem฀ diferenças฀essenciais฀entre฀os฀dois฀trabalhos.฀Enquanto฀a฀primeira฀tinha฀como฀objetivo฀primordial฀narrar฀a฀história฀da฀Igreja฀do฀Cristo฀e฀a฀história฀do฀povo฀escolhido฀–฀os฀Francos฀–,฀o฀autor฀ do฀Liber฀buscou฀eliminar฀de฀sua฀obra฀tudo฀o฀que฀não฀dizia฀diretamente฀respeito฀à฀Nêustria.฀ Pouca฀atenção฀foi฀dada฀à฀Austrásia,฀à฀Burgúndia฀ou฀à฀Aquitânia.฀Quando฀o฀autor฀faz฀referência฀ à฀Nêustria,฀ele฀utiliza฀o฀termo฀Francia,฀e฀designa฀seus฀habitantes฀como฀Francii,฀enquanto฀os฀ habitantes฀da฀Austrásia฀são฀chamados฀Austrasianos฀ou฀Ripuários.฀A฀título฀de฀exemplo,฀ele฀descreve฀a฀reunião฀de฀todos฀os฀grandes฀aristocratas฀da฀Nêustria฀sem฀sequer฀mencionar฀a฀existência฀ de฀tais฀reuniões฀em฀outras฀partes฀do฀Reino฀dos฀Francos.฀O฀Liber฀apresenta฀um฀ponto฀de฀vista฀ da฀história฀franca฀de฀um฀membro฀da฀aristocracia฀da฀Nêustria,฀o฀qual฀aparentemente฀era฀muito฀ próximo฀do฀poder฀real.฀Graças฀à฀extensão฀cronológica฀de฀sua฀narração฀e฀à฀simplicidade฀de฀sua฀ linguagem,฀o฀Liber฀teve฀uma฀grande฀difusão฀durante฀toda฀a฀Idade฀Média,฀como฀demonstram฀ os฀cerca฀de฀cinqüenta฀manuscritos฀medievais฀identificados฀por฀฀B.฀Krusch.฀O฀Liber฀Historiae฀ Francorum฀é฀a฀principal฀fonte฀sobre฀os฀acontecimentos฀das฀últimas฀décadas฀do฀século฀VII.฀ Seu฀autor฀baseou-se฀em฀textos฀hoje฀perdidos฀para฀escrever฀sobre฀o฀período฀que฀vai฀de฀657฀até฀ 727฀[M.฀Cândido฀da฀Silva฀e฀M.฀Mazetto฀Junior,฀“A฀Realeza฀nas฀fontes฀do฀período฀merovíngio฀ (séculos฀VI-VIII)”,฀pp.฀89-119]. 85 ฀Sobre฀a฀“lenda฀troino-franca”,฀ver฀E.฀Ewig,฀“Le฀mythe฀troyen฀et฀l’histoire฀des฀Francs”,฀pp.฀ 817-847;฀E.฀Faral,฀“La฀légende฀de฀l’origine฀troyenne฀des฀Francs”,฀pp.฀262-293. 86 ฀Ver฀I.฀Wood,฀“Ethnicity฀and฀the฀ethnogenesis฀of฀the฀Burgundians”,฀pp.฀53-69.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀111 grupos฀bárbaros฀em฀busca฀de฀aliança฀e฀de฀prestígio.฀Os฀povos฀com฀os฀ quais฀Roma฀pactuava฀eram฀tratados฀como฀uma฀raça฀à฀parte,฀distinta฀ e฀mais฀nobre฀que฀o฀restante฀dos฀povos฀germânicos.฀Amiano฀Marcelino,฀por฀exemplo,฀sustenta฀em฀sua฀História฀que฀os฀burgúndios฀eram฀ irmãos฀do฀povo฀romano87.฀Essa฀relação฀de฀parentesco฀é฀provavelmente฀ contemporânea฀da฀iniciativa฀do฀imperador฀Valentianiano฀em฀buscar฀o฀ apoio฀dos฀burgúndios฀contra฀a฀ameaça฀representada฀pelos฀alamanos.฀ Ainda฀ que฀ tenha฀ sido฀ uma฀ criação฀ dos฀ séculos฀ III฀ e฀ IV,฀ é฀ durante฀ o฀ reinado฀de฀Teodeberto฀I,฀em฀um฀ambiente฀cultural฀romanizado฀e฀próximo฀ da฀ corte฀ de฀ Metz,฀ que฀ a฀ lenda฀ troiano-franca฀ adquiriu฀ importância88.฀A฀opção฀por฀um฀mito฀fundador฀que฀pertencia฀a฀uma฀tradição฀ literária฀ greco-romana฀ diz฀ muito฀ sobre฀ os฀ signos฀ do฀ status฀ político฀ no฀Regnum฀Francorum฀durante฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀VI.฀Dotados฀ de฀ uma฀ origem฀ prestigiosa฀ como฀ a฀ romana,฀ apresentados฀ por฀ Fredegário฀como฀competidores฀e฀vencedores฀dos฀romanos,฀os฀francos฀ recuperaram฀assim฀a฀herança฀ideológica฀romana89.฀ Os฀bispos฀e฀a฀atividade฀conciliar฀(511-564) Após฀a฀morte฀de฀Clotário฀I,฀em฀561,฀os฀bispos฀se฀reuniram฀em฀Paris90฀ para฀deliberar฀sobre฀a฀proteção฀dos฀bens฀da฀Igreja.฀Nesse฀terceiro฀oncílio฀ 87 ฀Amiano฀Marcelino,฀História฀XXVIII,฀5,฀11.฀฀ ฀J.฀Barlow,฀“Gregory฀of฀Tours”,฀pp.฀89-93;฀essa฀é฀também฀a฀opinião฀de฀I.฀Wood,฀The฀Merovingian฀Kingdoms,฀p.฀34.฀Outros฀autores,฀como฀G.฀Uppert฀e฀C.฀Beaune,฀acreditam฀que฀a฀lenda฀ nasceu฀no฀século฀VII฀(G.฀Uppert,฀“The฀trojan฀Franks฀and฀their฀critics”,฀pp.฀227-241;฀C.฀Beaune,฀ Naissance฀de฀la฀nation฀France,฀p.฀25).฀O฀ponto฀de฀vista฀de฀E.฀Ewig฀á฀bastante฀próximo฀do฀de฀ Barlow:฀segundo฀ele,฀a฀tradição฀franco-troiana฀é฀uma฀criação฀da฀época฀de฀Teudeberto฀I฀(E.฀ Ewig,฀“Le฀mythe฀troyen”,฀p.฀843). 89 ฀R.฀Le฀Jan,฀“La฀sacralité฀de฀la฀royauté฀mérovingienne฀ou฀les฀ambiguïtés฀de฀l’historiographie”,฀ pp.฀1217-1241.฀ 90 ฀Como฀sustenta฀O.฀Pontal,฀esse฀concílio฀não฀pode฀ter฀ocorrido฀após฀564,฀pois฀Paternus฀de฀ Avranches฀e฀Leontius฀de฀Bordeaux฀o฀assinaram,฀e฀todos฀os฀dois฀morreram฀por฀volta฀de฀564-565฀ (Histoire฀des฀conciles฀mérovingiens,฀pp.฀151-154).฀ 88 112฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀Paris,฀os฀termos฀utilizados฀para฀descrever฀o฀estado฀da฀Igreja฀e฀para฀ denunciar฀a฀ingerência฀da฀realeza฀são฀de฀uma฀gravidade฀inédita:฀฀ Nós฀ impomos฀ também฀ o฀ freio฀ de฀ uma฀ tal฀ sanção฀ àqueles฀ que฀ se฀ amparam฀das฀possessões฀da฀Igreja฀de฀maneira฀condenável,฀sob฀o฀pretexto฀de฀uma฀ liberalidade฀real.฀É฀bem฀tarde฀que฀somos฀tocados฀de฀arrependimento฀sobre฀ este฀ tema,฀ pois฀ já฀ no฀ passado฀ os฀ bispos฀ do฀ Senhor฀ deveriam,฀ com฀ o฀ apoio฀ dos฀cânones,฀ter-se฀oposto฀a฀tais฀pessoas,฀para฀que฀uma฀atitude฀indulgente฀ não฀incitasse฀a฀audácia฀dos฀maus฀a฀cometer฀diariamente฀semelhantes฀atos.฀É฀ bem฀tarde฀que฀acordamos฀hoje,฀espantados฀sob฀o฀peso฀das฀injúrias,฀também฀ movidos฀pelos฀danos฀vindos฀de฀nossos฀senhores91. ฀ Esse฀texto฀pode฀ser฀considerado฀um฀balanço฀da฀situação฀da฀Igreja฀ e฀de฀suas฀relações฀com฀o฀poder฀real฀no฀início฀da฀segunda฀metade฀do฀ século฀VI.฀Ele฀mostra฀que฀o฀episcopado฀da฀Gália฀merovíngia฀tinha฀dificuldade฀em฀suportar฀o฀peso฀das฀liberalidades฀reais฀–฀leia-se:฀concedidas฀à฀custa฀dos฀bens฀eclesiásticos.฀Os฀termos฀empregados฀são฀inéditos฀ nos฀cânones฀conciliares:฀os฀reis,฀chamados฀ao฀final฀da฀citação฀de฀“senhores”92,฀são฀acusados฀de฀terem฀causado฀prejuízos฀à฀Igreja.฀É฀provável฀ que฀os฀bispos฀fizessem฀referência฀não฀apenas฀aos฀reis฀contemporâneos฀ –฀Sigeberto,฀Cariberto,฀Gontrão฀e฀Chilperico฀–฀mas฀também฀aos฀reis฀ anteriores,฀os฀filhos฀e฀herdeiros฀de฀Clóvis฀e฀talvez฀mesmo฀esse฀último. Os฀herdeiros฀de฀Clóvis,฀contra฀os฀quais฀a฀admoestação฀episcopal฀parece฀estar฀também฀dirigida,฀esperaram฀cerca฀de฀vinte฀e฀dois฀anos฀antes฀ de฀convocar฀um฀concílio฀“geral”฀do฀Regnum฀Francorum.฀Após฀a฀morte฀ 91 ฀Paris฀III฀(v.561-562),฀c.฀1. ฀O฀termo฀“senhores”,฀tradução฀de฀domini,฀refere-se฀aos฀reis,฀da฀mesma฀maneira฀que฀na฀ carta฀dos฀bispos฀a฀Clóvis,฀por฀ocasião฀do฀Concílio฀de฀Orléans฀I฀(“Ao฀seu฀senhor,฀filho฀da฀ Igreja฀Católica,฀o฀gloriosíssimo฀rei฀Clóvis...”),฀ou฀ainda฀no฀preâmbulo฀do฀Concílio฀de฀Clermont,฀de฀535฀(“Como฀o฀santo฀sínodo฀tinha฀se฀reunido฀em฀nome฀do฀Senhor,฀agregado฀pelo฀ Espírito฀Santo,฀com฀o฀consentimento฀do฀nosso฀gloriosíssimo฀rei฀e฀religiosíssimo฀senhor,฀o฀rei฀ Teudeberto...”).฀฀฀฀฀ 92 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀113 de฀Clóvis,฀e฀até฀o฀Concílio฀de฀Orléans฀II,฀em฀533,฀a฀atividade฀conciliar฀ da฀Igreja฀franca฀se฀resumiu฀a฀algumas฀reuniões฀de฀porte฀regional฀que฀ tiveram฀lugar฀em฀Reims,฀em฀514,฀e฀em฀Mans,฀por฀volta฀de฀516-517.฀Isso฀ significa฀que฀os฀príncipes฀merovíngios฀se฀desinteressaram฀dos฀assuntos฀ eclesiáticos,฀ muito฀ ocupados฀ em฀ se฀ digladiar฀ e฀ em฀ conduzir฀ a฀ guerra฀ na฀Itália,฀na฀Burgúndia฀ou฀na฀Germânia?฀Ou฀seja,฀sob฀os฀reinados฀dos฀ filhos฀ de฀ Clóvis,฀ teria฀ havido฀ uma฀ redução฀ da฀ intensidade฀ do฀ caráter฀ “constantiniano”฀da฀realeza฀merovíngia?฀฀ No฀que฀tange฀à฀ordenação฀dos฀bispos,฀a฀ingerência฀real฀não฀cessou฀ nos฀anos฀que฀separam฀o฀primeiro฀e฀o฀segundo฀concílio฀de฀Orléans.฀No฀ curto฀reinado฀de฀Clodomir,฀por฀exemplo,฀a฀nomeação฀de฀bispos฀seguiu฀ menos฀as฀normas฀estabelecidas฀pelo฀clero฀do฀que฀as฀conveniências฀do฀ rei.฀O฀caso฀dos฀bispos฀de฀Tours฀é฀sintomático฀nesse฀sentido.฀Após฀a฀morte฀de฀Denifius,฀Clodomir฀ordenou฀Ommatius,฀e,฀alguns฀anos฀depois,฀foi฀ a฀rainha฀Clotilde฀quem฀nomeou฀para฀a฀mesma฀função฀a฀Teodoro,฀e฀em฀ seguida฀a฀Proculus93.฀ Além฀disso,฀o฀Concílio฀de฀Orléans฀II,฀que฀reuniu฀os฀bispos฀de฀todo฀o฀ Regnum฀Francorum,฀reafirmou,฀pelo฀menos฀em฀seu฀preâmbulo,฀o฀caráter฀constantiniano฀da฀realeza฀franca:฀ “Assim,฀por฀ordem฀dos฀gloriosíssimos฀reis,฀nos฀reunimos,฀com฀a฀ajuda฀de฀ Deus,฀na฀cidade฀de฀Orléans฀para฀tratar฀da฀observância฀da฀fé฀católica฀e฀formulamos,฀na฀medida฀em฀que฀a฀luz฀do฀Senhor฀nos฀deu฀a฀inteligência,฀aquilo฀ que฀ pensávamos,฀ tanto฀ das฀ regras฀ antigas,฀ quanto฀ das฀ novas฀ questões,฀ colocando฀ por฀ escrito,฀ em฀ constituições฀ particulares฀ e฀ distintas,฀ apoiadas฀ na฀autoridade฀dos฀antigos฀cânones,฀o฀que฀deve,฀com฀a฀ajuda฀de฀Deus,฀ser฀ observado฀no฀futuro”94.฀฀ O฀texto฀acima฀é฀claro:฀os฀bispos฀se฀reuniram฀por฀ordem฀dos฀reis฀francos.฀ Da฀mesma฀maneira฀que฀Clóvis฀havia฀convocado฀o฀Concílio฀de฀511฀logo฀ 93 ฀Histórias฀III,฀17.฀ ฀Orléans฀II฀(533),฀preâmbulo. 94 114฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média após฀a฀anexação฀da฀Aquitânia,฀Clotário,฀Childeberto฀e฀Teuderico฀convocaram฀um฀concílio฀“nacional”฀após฀a฀incorporação฀da฀Burgúndia.฀A฀guerra฀ contra฀os฀burgúndios฀havia฀sido฀conduzida฀em฀comum฀pelos฀príncipes฀ francos฀e฀ela฀encerrava,฀pelo฀menos฀momentaneamente,฀um฀período฀de฀ conflitos฀internos฀do฀Reino฀dos฀Francos.฀Pelo฀número฀de฀participantes,฀ bem฀ como฀ pela฀ preocupação฀ em฀ dotar฀ o฀ clero฀ da฀ Gália฀ de฀ um฀ regime฀ disciplinar฀único,฀o฀Concílio฀de฀Orléans฀II฀demonstra฀a฀preocupação฀dos฀ príncipes฀ francos฀ em฀ afirmar฀ a฀ unidade฀ da฀ Igreja฀ franca฀ e฀ também฀ do฀ Regnum฀Francorum95.฀É฀bem฀verdade฀que฀a฀participação฀nesses฀concílios฀ “nacionais”฀alterava-se฀em฀função฀das฀circunstâncias,฀como฀os฀conflitos฀ internos฀do฀reino,฀ou฀ainda฀as฀dificuldades฀da฀viagem,฀invocadas฀por฀alguns฀bispos฀para฀justificar฀sua฀ausência.฀Note-se,฀por฀exemplo,฀a฀ausência฀ em฀Orléans,฀em฀533,฀dos฀bispos฀da฀Auvérnia,฀região฀em฀plena฀insurreição฀ contra฀o฀rei฀Teudeberto,฀que฀acabava฀de฀suceder฀a฀Teuderico.฀฀฀ Há฀dois฀graves฀problemas฀indicados฀nos฀cânones฀de฀Orléans฀II฀e฀ que฀ serão฀ temas฀ recorrentes฀ dos฀ concílios฀ merovíngios฀ até฀ o฀ século฀ VII:฀as฀normas฀de฀eleição฀dos฀bispos,฀bem฀como฀as฀conseqüências฀das฀ partilhas฀do฀território฀da฀Gália฀sobre฀os฀bens฀eclesiásticos.฀É฀em฀torno฀ desses฀dois฀problemas฀que฀a฀política฀“constantiniana”฀dos฀sucessores฀ de฀ Clóvis฀ pode฀ ser฀ melhor฀ observada.฀ Embora฀ esses฀ dois฀ elementos฀ estejam฀ligados,฀este฀capítulo฀abordará฀notadamente฀o฀problema฀das฀ ordenações฀episcopais,฀deixando฀para฀examinar฀no฀capítulo฀seguinte฀ o฀tema฀da฀implicação฀para฀os฀bens฀da฀Igreja฀das฀partilhas฀territoriais฀ francas.฀฀ Em฀que฀pese฀o฀papel฀do฀poder฀real฀em฀sua฀convocação,฀o฀Concílio฀ de฀Orléans฀II฀foi฀marcado฀também฀por฀uma฀primeira฀reação฀à฀pratica฀ de฀nomeação฀dos฀bispos฀pelo฀rei.฀O฀episcopado฀parece฀então฀bem฀mais฀ determinado฀que฀sob฀o฀reinado฀de฀Clóvis฀a฀fazer฀valer฀as฀normas฀canônicas฀para฀sua฀eleição.฀A฀ausência฀de฀um฀rei฀único฀para฀todo฀o฀Regnum฀ 95 ฀O฀Concílio฀de฀Orléans฀II฀reuniu฀os฀bispos฀de฀todas฀as฀partes฀do฀Regnum฀Francorum,฀à฀exceção฀ da฀Auvérnia,฀região฀em฀conflito฀naquele฀momento.฀Dele฀participaram฀5฀bispos฀metropolitanos฀ (Bourges,฀Tours,฀Rouen,฀Eauze,฀Viena),฀21฀bispos฀e฀5฀padres฀representando฀os฀bispos฀ausentes,฀ sendo฀que฀um฀deles฀representava฀o฀bispo฀metropolitano฀de฀Sens.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀115 Francorum,฀como฀em฀511,฀pode฀explicar฀esse฀acirramento฀do฀tom฀empregado฀pelos฀bispos,฀pois฀criava฀um฀ambiente฀mais฀favorável฀às฀suas฀ reivindicações.฀Era฀bem฀mais฀difícil฀arrancar฀concessões฀de฀um฀rei฀poderoso฀do฀que฀de฀vários฀reis฀cujas฀disputas฀eram฀mais฀do฀que฀episódicas.฀ De฀um฀total฀de฀vinte฀e฀um฀cânones฀do฀concílio฀de฀533,฀os฀sete฀primeiros฀ constituíam฀uma฀afirmação฀dos฀direitos฀e฀das฀obrigações฀do฀episcopado.฀ O฀terceiro฀cânone,฀por฀exemplo,฀proibia฀os฀bispos฀de฀se฀corromperem฀ para฀ aceitar฀ as฀ ordenações฀ não฀ conformes฀ às฀ regras฀ eclesiásticas฀ –฀ no฀ que฀constitui฀a฀primeira฀alusão฀de฀um฀concílio฀merovíngio฀ao฀problema฀ da฀compra฀de฀funções฀eclésiasticas96;฀o฀quarto฀cânone฀ameaçava฀de฀destituição฀todos฀os฀bispos฀e฀outros฀clérigos฀que฀obtivessem฀o฀sacerdócio฀ graças฀a฀um฀tráfico฀de฀dinheiro97.฀Finalmente,฀o฀sétimo฀cânone฀insistia฀ na฀ fórmula฀ de฀ nomeação฀ dos฀ bispos฀ metropolitanos฀ pelos฀ bispos฀ da฀ província,฀em฀conjunto฀com฀o฀clero฀e฀o฀povo฀–฀e฀lamenta฀que฀ela฀não฀ seja฀mais฀utilizada98. Se฀as฀divisões฀entre฀os฀príncipes฀francos฀após฀a฀morte฀de฀Clóvis฀tornaram฀instáveis฀as฀delimitações฀entre฀os฀diversos฀regna,฀com฀conseqüências฀ negativas฀ para฀ as฀ possessões฀ eclesiásticas,฀ paradoxalmente,฀ elas฀ permitiram฀à฀Igreja฀resistir฀melhor฀aos฀avanços฀da฀autoridade฀real.฀No฀ Concílio฀ de฀ Orléans฀ II,฀ por฀ exemplo,฀ os฀ bispos฀ conciliares฀ criticaram฀ abertamente฀ os฀ princípios฀ que฀ tinham฀ sido฀ ratificados฀ em฀ 511฀ e฀ que฀ favoreciam฀a฀ingerência฀da฀autoridade฀real฀em฀matéria฀de฀eleição฀epis- 96 ฀Orléans฀II฀(533),฀c.฀3:฀“Que฀nenhum฀dos฀bispos฀se฀permita฀receber฀algo฀por฀qualquer฀causa,฀nem฀ pelas฀ordenações฀dos฀bispos฀e฀de฀outros฀clérigos,฀pois฀é฀ímpio฀que฀um฀pontífice฀se฀deixe฀corromper฀ pela฀venalidade฀e฀cupidez”.฀ 97 ฀Orléans฀II฀(533),฀c.฀4:฀“Se฀alguém,฀por฀uma฀ambição฀execrável,฀chegou฀ao฀sacerdócio฀graças฀a฀ um฀tráfico฀de฀dinheiro,฀que฀seja฀deposto฀como฀reprovado,฀pois฀a฀sentença฀do฀apóstolo฀prescreve฀que฀ o฀dom฀de฀Deus฀não฀deve฀absolutamente฀ser฀adquirido฀com฀o฀peso฀do฀dinheiro”.฀฀ 98 ฀Orléans฀II฀(533),฀c.฀7:฀“Para฀a฀ordenação฀dos฀bispos฀metropolitanos,฀nós฀renovamos฀a฀antiga฀ fórmula฀de฀instituição,฀que฀nós฀vemos฀cair฀em฀desuso฀em฀todos฀os฀lugares฀por฀causa฀da฀incúria.฀ Assim,฀que฀o฀bispo฀metropolitano,฀eleito฀pelos฀co-provinciais,฀pelo฀clero฀e฀o฀povo,฀seja฀ordenado฀ após฀reunião฀de฀todos฀os฀bispos฀co-provinciais,฀para฀que฀com฀a฀ajuda฀de฀Deus฀se฀eleve฀ao฀grau฀dessa฀ dignidade฀alguém฀que฀seja฀capaz฀de฀melhorar฀e฀de฀florescer฀a฀disciplina฀eclesiástica”.฀ 116฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média copal.฀No฀concílio฀de฀Orléans฀II,฀em฀533,฀e฀nas฀assembléias฀de฀menor฀ porte,฀como฀as฀de฀Clermont,฀em฀535,฀a฀de฀Orléans฀III,฀em฀538,฀e฀a฀de฀ Orléans฀IV,฀em฀541,฀os฀bispos฀não฀cessaram฀de฀afirmar฀sua฀independência฀e฀suas฀prerrogativas฀em฀face฀do฀poder฀real.฀Isso฀pode฀inclusive฀ajudar฀ a฀explicar฀a฀reticência฀dos฀reis฀francos฀em฀convocar฀nos฀anos฀seguintes฀ um฀concílio฀do฀porte฀de฀Orléans฀II.฀฀฀ Em฀535,฀realizou-se฀um฀concílio฀na฀cidade฀de฀Clermont,฀reunindo฀os฀ bispos฀da฀antiga฀Francia฀Rhinensis,฀da฀Auvérnia฀e฀das฀regiões฀da฀Burgúndia฀que฀tinham฀sido฀anexadas฀por฀Teudeberto.฀O฀segundo฀cânone฀desse฀ concílio฀ representa฀ uma฀ vitória฀ daqueles฀ que฀ algumas฀ décadas฀ antes฀ tinham฀criticado฀Remígio฀pela฀ordenação฀de฀Cláudio: “Foi฀também฀decidido฀que฀ninguém฀deve฀buscar฀a฀honra฀sagrada฀do฀pontificado฀por฀seus฀votos,฀mas฀por฀seus฀méritos,฀que฀não฀se฀deve฀adquirir฀o฀dom฀ divino฀graças฀aos฀seus฀recursos,฀mas฀graças฀às฀suas฀qualidades,฀e฀que฀se฀deve฀ elevar฀à฀mais฀eminente฀dignidade฀pela฀eleição฀de฀todos,฀não฀pelo฀favor฀de฀uns฀ poucos...฀Que฀aquele฀que฀deseja฀o฀episcopado฀seja฀ordenado฀pontífice฀após฀ a฀eleição฀dos฀clérigos฀e฀dos฀habitantes฀da฀cidade,฀e฀com฀o฀consentimento฀do฀ metropolitano฀da฀província.฀Não฀se฀deve฀recorrer฀ao฀patrocínio฀dos฀poderosos;฀não฀se฀deve,฀por฀habilidosa฀astúcia,฀encorajar฀alguns฀através฀de฀presentes฀ a฀redigir฀o฀decreto฀de฀sua฀eleição,฀e฀forçar฀outros฀pelo฀medo.฀Se฀alguém฀agir฀ assim,฀será฀privado฀da฀comunhão฀da฀Igreja฀que฀pretende฀dirigir฀de฀maneira฀ indigna”99.฀ Esse฀segundo฀cânone฀reafirma฀as฀regras฀sobre฀as฀eleições฀episcopais฀ que฀haviam฀sido฀enunciadas฀em฀Orléans฀II:฀aquele฀que฀pretendia฀tornarse฀bispo฀deveria฀ser฀ordenado฀somente฀após฀a฀eleição฀pelos฀clérigos฀e฀ pelos฀habitantes฀da฀cidade,฀e฀com฀o฀consentimento฀do฀metropolitano฀da฀ província.฀Mas฀o฀cânone฀vai฀além,฀ao฀proibir฀expressamente฀que฀os฀candidatos฀ao฀episcopado฀recorressem฀aos฀poderosos฀e฀também฀ao฀prever฀a฀ pena฀da฀excomunhão฀para฀aqueles฀que฀assim฀agissem.฀Trata-se฀de฀uma฀ 99 ฀Clermont฀(535),฀c.฀2.฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀117 das฀mais฀veementes฀condenações฀da฀prática฀de฀ordenação฀episcopal฀sob฀ influência฀laica.฀O฀concílio฀como฀um฀todo,฀aliás,฀é฀marcado฀pelo฀desejo฀ de฀preservar฀a฀autoridade฀e฀os฀bens฀da฀Igreja.฀O฀cânone฀4,฀por฀exemplo,฀ proíbe฀ os฀ poderosos฀ de฀ apoiarem฀ os฀ clérigos฀ contra฀ a฀ autoridade฀ dos฀ seus฀bispos100;฀o฀cânone฀5฀ataca฀aqueles฀que฀solicitam,฀da฀parte฀do฀rei,฀os฀ bens฀da฀Igreja.฀Os฀bispos฀conciliares฀prevêem฀a฀anulação฀da฀requisição฀ assim฀como฀a฀pena฀de฀excomunhão฀contra฀aqueles฀que฀incorressem฀em฀ tais฀atos101. A฀participação฀dos฀bispos฀burgúndios฀em฀Clermont฀I฀pode฀ter฀influenciado฀esse฀tom฀crítico฀em฀relação฀à฀realeza,฀que฀é฀bem฀próximo,฀ diga-se฀ de฀ passagem,฀ do฀ tom฀ que฀ predominou฀ em฀ Epaone,฀ em฀ 517.฀ Aqueles฀ que฀ assinaram฀ os฀ cânones฀ do฀ Concílio฀ de฀ Clermont฀ I฀ eram฀ em฀sua฀maioria฀bispos฀que฀não฀haviam฀participado฀do฀Concílio฀de฀Orléans฀II,฀pois฀a฀Auvérnia฀vivia฀uma฀situação฀insurrecional฀[o฀bispo฀de฀ Clermont,฀ Gallus฀ (525-551),฀ por฀ exemplo,฀ enviou฀ um฀ representante].฀ Muitos฀deles฀participavam฀pela฀primeira฀vez฀de฀um฀concílio฀franco฀–฀os฀ bispos฀de฀Rodez,฀de฀Javols,฀de฀Langres,฀de฀Avenches฀e฀de฀Viviers.฀Desses฀ últimos,฀os฀bispos฀de฀Viviers,฀de฀Langres฀e฀de฀Avenches฀haviam฀igualmente฀participado฀do฀Concílio฀de฀Epaone,฀que฀consagrou฀um฀posicionamento฀extremamente฀crítico฀em฀relação฀à฀realeza฀burgúndia.฀Eles฀não฀ participaram฀ de฀ Orléans฀ I,฀ e฀ não฀ ratificaram,฀ portanto,฀ os฀ princípios฀ constantinianos฀impostos฀por฀Clóvis.฀Esses฀bispos฀vinham฀de฀uma฀tradição฀conciliar฀de฀maior฀autonomia฀diante฀do฀poder฀real.฀Os฀cânones฀ do฀Concílio฀de฀Clermont฀I฀mostram฀que฀a฀incorporação฀da฀Burgúndia฀ ao฀Reino฀dos฀Francos,฀mesmo฀tendo฀significado฀para฀esses฀bispos฀a฀submissão฀a฀um฀rei฀católico,฀não฀alterou฀significativamente฀a฀postura฀crítica฀ ante฀as฀ingerências฀da฀autoridade฀real.฀Nesse฀sentido,฀pode-se฀falar฀em฀ 100 ฀Clermont฀II฀(535),฀c.฀4:฀“Que฀os฀clérigos฀não฀sejam฀de฀modo฀algum฀apoiados฀pelos฀poderosos฀ deste฀mundo฀diante฀de฀seus฀bispos”.฀฀฀ 101 ฀ Clermont฀ II฀ (535),฀ c.฀ 5:฀ “Se฀ pessoas฀ solicitam฀ da฀ parte฀ do฀ rei฀ qualquer฀ bem฀ da฀ Igreja฀ e,฀ levados฀por฀uma฀horrenda฀cupidez,฀roubam฀os฀recursos฀dos฀indigentes,฀que฀seja฀considerado฀nulo฀ o฀que฀eles฀obtiveram,฀e฀que฀sejam฀excluídos฀da฀comunhão฀da฀Igreja฀da฀qual฀eles฀esperam฀retirar฀ os฀recursos”.฀ 118฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média uma฀oposição฀episcopal฀à฀“Realeza฀Constantiniana”,฀que฀se฀delineia฀já฀ no฀ reinado฀ de฀ Clóvis฀ –฀ e฀ cuja฀ carta฀ de฀ Remígio฀ aos฀ bispos฀ Heraclius,฀ Leão฀e฀Teodósio฀é฀o฀melhor฀indício฀–฀e฀que฀se฀consolida฀paulatinamente฀ durante฀as฀assembléias฀conciliares฀da฀primeira฀metade฀do฀século฀VI.฀฀฀฀ De฀um฀total฀de฀dezesseis฀cânones฀adotados฀em฀Clermont,฀em฀535,฀ seis฀retomaram฀disposições฀das฀reuniões฀conciliares฀de฀Epaone฀(517),฀ e฀de฀Orléans฀I฀(511)฀e฀II฀(533).฀O฀cânone฀16฀de฀Clermont฀retoma฀o฀ cânone฀29฀de฀Orléans฀I,฀e฀proíbe฀o฀convívio฀de฀diáconos,฀padres฀e฀bispos฀ com฀ mulheres฀ estranhas฀ às฀ suas฀ famílias102;฀ nada,฀ portanto,฀ que฀ repetisse฀ou฀reafirmasse฀os฀preceitos฀“constantinianos”฀de฀ingerência฀ da฀realeza฀nos฀assuntos฀internos฀da฀Igreja,฀os฀quais฀eram฀numerosos฀ em฀Orléans฀I.฀O฀cânone฀2฀de฀Clermont฀I฀retoma฀e฀completa฀precisamente฀os฀cânones฀4฀e฀7฀de฀Orléans฀II,฀que฀condenavam฀a฀ordenação฀de฀ clérigos฀por฀influência฀dos฀poderosos฀laicos฀e฀reafirmavam฀o฀princípio฀ da฀eleição฀pelo฀clero฀e฀pelo฀povo103.฀O฀cânone฀6฀de฀Clermont฀I฀repete฀ o฀cânone฀19฀de฀Orléans฀II,฀e฀proíbe฀as฀uniões฀entre฀judeus฀e฀cristãos104.฀ 102 ฀Clermont฀(535),฀c.฀16:฀“...Assim,฀pela฀autoridade฀canônica฀e฀por฀uma฀constituição฀que฀permanecerá฀para฀sempre,฀nós฀decretamos฀que฀todos฀evitem฀a฀liberdade฀culpada฀em฀relação฀às฀mulheres฀ estranhas,฀e฀que฀habitem฀somente฀com฀uma฀avó,฀uma฀mãe,฀uma฀irmã฀ou฀uma฀sobrinha,฀se฀necessidade฀há...”;฀Orléans฀I฀(511),฀c.฀29:฀“Sobre฀a฀freqüentação฀das฀mulheres฀estranhas,฀que฀os฀bispos,฀ os฀padres฀e฀os฀diáconos฀respeitem฀os฀estatutos฀dos฀antigos฀cânones”. 103 ฀Orléans฀II฀(533),฀c.฀4:฀“Se฀alguém,฀por฀uma฀execrável฀ambição,฀atingiu฀o฀sacerdócio฀graças฀a฀ um฀tráfico฀de฀dinheiro,฀que฀seja฀deposto฀como฀reprovado,฀pois฀a฀sentença฀do฀apóstolo฀prescreve฀que฀ o฀dom฀de฀Deus฀não฀deve฀absolutamente฀ser฀adquirido฀pelo฀peso฀do฀dinheiro”;฀Orléans฀II฀(533),฀c.฀ 7:฀“Para฀a฀ordenação฀dos฀metropolitanos,฀nós฀renovamos฀a฀antiga฀fórmula฀de฀instituição…฀Assim,฀ que฀ o฀ bispo฀ metropolitano,฀ eleito฀ pelos฀ co-provinciais,฀ os฀ clérigos฀ e฀ o฀ povo,฀ seja฀ ordenado฀ após฀ reunião฀de฀todos฀os฀bispos฀co-provinciais,฀de฀modo฀que฀com฀a฀ajuda฀de฀Deus฀ascenda฀ao฀grau฀dessa฀ dignidade฀alguém฀que฀seja฀capaz฀de฀melhorar฀e฀de฀florescer฀a฀disciplina฀eclesiástica”.฀ 104 ฀ Clermont฀ I฀ (535),฀ c.฀ 6:฀ “Se฀ alguém,฀ por฀ causa฀ de฀ uma฀ união฀ conjugal,฀ se฀ associa฀ ao฀ erro฀ judaico,฀seja฀uma฀judia฀e฀um฀cristão,฀seja฀uma฀cristã฀e฀um฀judeu฀que฀tenham฀relações฀carnais,฀que฀ cada฀um฀daqueles฀que฀é฀reconhecido฀ter฀aceitado฀tal฀infâmia฀seja฀excluído฀da฀assembléia฀e฀da฀mesa฀ dos฀cristãos฀e฀da฀comunhão฀da฀Igreja,฀a฀cujos฀inimigos฀se฀associou”;฀Orléans฀II฀(533),฀c.฀19:฀“Foi฀ decidido฀que฀nenhum฀cristão฀despose฀uma฀mulher฀judia,฀e฀nenhum฀judeu฀uma฀cristã,฀pois฀nós฀ julgamos฀que฀as฀núpcias฀são฀ilícitas฀entre฀tais฀pessoas.฀Aqueles฀que,฀após฀advertência,฀deixarem฀de฀ romper฀uma฀tal฀união,฀devem,฀sem฀dúvida,฀ser฀afastados฀da฀graça฀da฀comunhão”.฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀119 Finalmente,฀os฀cânones฀10,฀11฀e฀15฀de฀Clermont฀I฀retomam฀os฀cânones฀ 5฀e฀35฀de฀Epaone,฀que฀reafirmam฀a฀autoridade฀dos฀bispos฀sobre฀o฀clero฀ regular฀e฀o฀clero฀secular105. De฀ um฀ modo฀ geral,฀ a฀ afirmação฀ da฀ independência฀ do฀ episcopado฀ aparece฀nas฀fórmulas฀utilizadas฀nos฀preâmbulos฀dos฀cânones฀para฀indicar฀as฀circunstâncias฀das฀reuniões฀conciliares.฀Em฀535,฀em฀Clermont,฀ por฀exemplo,฀não฀há฀nenhuma฀referência฀a฀uma฀ordem฀real:฀ “Como,฀em฀nome฀do฀Senhor,฀o฀santo฀sínodo฀tinha฀se฀reunido,฀agregado฀ pelo฀ Espírito฀ Santo,฀ com฀ o฀ consentimento฀ do฀ nosso฀ gloriosíssimo฀ rei฀ e฀ religiosíssimo฀senhor฀o฀rei฀Teudeberto,฀na฀cidade฀de฀Auvérnia,฀e฀que฀ajoelhados฀ nós฀ rezamos฀ ao฀ senhor฀ pelo฀ seu฀ reino,฀ por฀ sua฀ longevidade,฀ por฀ seu฀povo฀–฀ele฀tinha฀dado฀a฀possibilidade฀de฀nos฀reunirmos:฀que฀o฀Senhor฀ exalte฀seu฀reino฀com฀felicidade,฀o฀reja฀com฀autoridade,฀o฀governe฀com฀justiça฀–฀enquanto฀nós฀sediamos฀na฀igreja฀segundo฀o฀costume฀e฀examinamos฀os฀ cânones,฀pareceu฀razoável,฀ainda฀que฀esses฀cânones฀contenham฀quase฀todos฀ os฀pontos฀da฀regra฀eclesiástica,฀de฀acrescentar฀alguns฀novos฀e฀de฀retirar฀antigos”฀(grifo฀nosso)106.฀฀฀ O฀papel฀do฀rei฀aqui฀é฀menos฀importante฀do฀que฀em฀concílios฀anteriores:฀ele฀teria฀dado฀seu฀consentimento฀e฀provavelmente฀também฀fornecido฀ajuda฀material฀a฀uma฀reunião฀que฀ocorreu฀sob฀“inspiração”฀do฀ Espírito฀Santo.฀Os฀bispos฀deixam฀claro฀que฀o฀rei฀não฀convocou฀nem฀é฀o฀ inspirador฀da฀assembléia฀conciliar.฀Os฀concílios฀seguintes฀[o฀de฀Orléans฀ 105 ฀Clermont฀I฀(535),฀c.฀15:฀“…Que฀todos฀os฀habitantes฀da฀cidade฀que฀são฀da฀mais฀alta฀estirpe฀ venham฀se฀juntar฀aos฀seus฀pontífices฀para฀as฀ditas฀festas.฀Se฀alguns,฀por฀uma฀culpada฀temeridade,฀ desprezam฀essa฀regra,฀que฀eles฀sejam,฀durante฀essas฀mesmas฀festas฀em฀razão฀das฀quais฀eles฀desprezam฀de฀vir฀até฀a฀cidade,฀afastados฀da฀comunhão”;฀Epaone฀(517),฀c.฀5:฀“Que฀nenhum฀padre฀ se฀ permita฀ de฀ desservir฀ as฀ basílicas฀ ou฀ os฀ oratórios฀ de฀ uma฀ outra฀ cidade฀ sem฀ a฀ autorização฀ de฀ seu฀bispo…”;฀Epaone฀(517),฀c.฀35:฀“Que฀os฀habitantes฀de฀mais฀alta฀estirpe฀da฀cidade฀saibam฀que฀ devem฀se฀juntar฀aos฀bispos฀para฀a฀noite฀de฀Páscoa฀e฀para฀a฀solenidade฀de฀Natal฀em฀vista฀de฀receber฀ sua฀benção,฀qualquer฀que฀seja฀a฀cidade฀onde฀eles฀se฀encontram”.฀ 106 ฀Clermont฀(535),฀preâmbulo.฀ 120฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média III฀(538)฀e฀o฀de฀Orléans฀IV฀(541)],฀nem฀sequer฀mencionam฀um฀consentimento฀real.฀Isso฀não฀significa฀que฀os฀príncipes฀francos฀tenham฀perdido฀ o฀interesse฀pelos฀assuntos฀eclesiásticos฀após฀o฀Concílio฀de฀Orléans฀II,฀ou฀ ainda฀que฀a฀ingerência฀real฀nos฀assuntos฀internos฀da฀Igreja฀tenha฀diminuído฀de฀intensidade.฀As฀eleições฀episcopais฀continuaram฀a฀ser฀objeto฀de฀ atenção฀particular฀de฀Clodomiro,฀Childeberto,฀Clotário฀I฀e฀de฀Teuderico฀ I.฀Teuderico,฀empenhado฀numa฀política฀expansionista,฀provia฀as฀sés฀mais฀ importantes฀com฀bispos฀que฀lhe฀eram฀fiéis.฀É฀o฀caso,฀por฀exemplo,฀de฀ Gallus,฀que฀sucedeu฀a฀Santo฀Quintianus฀como฀bispo฀de฀Clermont,฀com฀ o฀apoio฀do฀rei107.฀Teudeberto฀I฀e฀Teudebaldo฀I฀prosseguiram฀a฀política฀de฀ Teuderico฀nas฀dioceses฀situadas฀a฀oeste฀de฀seu฀regnum.฀A฀leste,฀eles฀encorajaram฀a฀vinda฀de฀clérigos฀da฀Aquitânia฀e฀a฀reconstrução฀das฀dioceses฀ abandonadas฀após฀as฀invasões108.฀No฀reino฀de฀Childeberto฀I,฀a฀nomeação฀ pelo฀rei฀predominou฀sobre฀a฀eleição฀“pelo฀clero฀e฀pelo฀povo”,฀ainda฀que฀ as฀normas฀conciliares฀tenham฀sido฀respeitadas฀em฀alguns฀casos,฀como฀ durante฀da฀eleição฀de฀São฀Germano฀(v.฀555-576),฀em฀Paris109.฀Clotário฀I฀ teve฀relações฀muitas฀vezes฀difíceis฀com฀os฀bispos110.฀Ele฀preferiu฀conduzir฀ a฀política฀da฀“sé฀vaga”,฀abandonando฀a฀nomeação฀de฀bispos฀nas฀cidades฀ mais฀setentrionais฀ou฀nomeando฀homens฀de฀confiança฀para฀as฀sés฀mais฀ importantes.฀ Assim,฀ após฀ a฀ morte฀ de฀ Injuriosus฀ (529-546),฀ Baudinus฀ –฀designado฀por฀Gregório฀de฀Tours฀com฀desdém฀como฀um฀“doméstico”฀ de฀Clotário฀–฀foi฀nomeado฀bispo฀de฀Tours111.฀ Dois฀outros฀episódios฀descritos฀por฀Gregório฀de฀Tours฀também฀mostram฀a฀implicação฀de฀Clotário฀I฀no฀processo฀de฀sucessão฀episcopal.฀O฀ primeiro฀envolve฀a฀sé฀de฀Tours:฀solicitado฀por฀alguns฀clérigos฀a฀tornar-se฀ bispo฀daquela฀cidade,฀o฀padre฀Cautinus฀teria฀pretendido฀esperar฀alguns฀ 107 ฀Histórias฀IV,฀5.฀฀ ฀Ver฀J.฀Heuclin,฀Hommes฀de฀Dieu,฀fonctionnaires฀du฀roi,฀pp.฀70-71. 109 ฀Venâncio฀Fortunato,฀Vita฀Germani฀episcopi฀Parisiaci,฀p.฀14.฀ 110 ฀Ele฀foi฀excomungado฀por฀Nicetius฀de฀Trèves฀(526-v.561),฀talvez฀por฀causa฀de฀seu฀casamento฀ com฀Waldrade฀(Gregório฀de฀Tours,฀Vitae฀Patrum,฀17,฀2).฀฀ 111 ฀Histórias฀IV,฀3:฀“Injuriosus,฀bispo฀da฀cidade฀de฀Tours,฀morreu฀no฀décimo-sétimo฀ano฀de฀seu฀ episcopado;฀seu฀sucessor฀foi฀Baudinus,฀que฀fazia฀parte฀da฀domesticidade฀do฀rei฀Clotário...”.฀฀฀ 108 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀121 dias฀antes฀de฀dar฀sua฀resposta.฀Esses฀clérigos฀lhe฀teriam฀lhe฀dito฀então฀ que฀não฀era฀por฀vontade฀própria฀que฀o฀tinham฀procurado,฀mas฀por฀ordem฀do฀rei112.฀O฀segundo฀episódio฀concerne฀à฀sé฀de฀Mans.฀Seriamente฀ doente฀ após฀ um฀ pontificado฀ de฀ vinte฀ e฀ dois฀ anos,฀ o฀ bispo฀ Damnolus฀ teria฀escolhido฀para฀substituí-lo,฀com฀o฀consentimento฀do฀rei,฀o฀abade฀ Theodulfus.฀Algum฀tempo฀depois,฀Clotário฀teria฀mudado฀de฀opinião฀e฀ escolhido฀como฀novo฀bispo฀de฀Mans฀o฀prefeito฀do฀palácio฀real,฀Badegisilus.฀E฀foi฀finalmente฀esse฀último฀quem฀obteve฀a฀função฀episcopal,฀em฀ detrimento฀do฀candidato฀escolhido฀pelo฀bispo฀Damnolus113.฀ Em฀suma,฀a฀ausência฀nos฀textos฀conciliares฀de฀expressões฀que฀indicassem฀uma฀ordem฀real฀para฀a฀convocação฀dos฀concílios฀não฀significou฀ um฀abrandamento฀da฀dimensão฀“constantiniana”฀da฀realeza฀franca.฀Ao฀ contrário,฀a฀ausência฀de฀grandes฀reuniões฀conciliares฀prejudicava฀qualquer฀ iniciativa฀ de฀ resistência฀ organizada฀ do฀ episcopado฀ à฀ atuação฀ da฀ realeza.฀Se฀as฀convocações฀reais฀se฀fizeram฀raras฀a฀partir฀de฀Orléans฀II,฀é฀ porque,฀provavelmente,฀os฀reis฀francos฀não฀tinham฀um฀grande฀interesse฀ que฀esse฀gênero฀de฀reuniões฀se฀multiplicasse.฀Por฀outro฀lado,฀as฀reuniões฀ de฀menor฀porte฀ofereciam฀uma฀repercussão฀menor฀às฀decisões฀tomadas฀ pelos฀bispos฀na฀defesa฀da฀independência฀do฀poder฀eclesiástico.฀A฀rarefação฀da฀atividade฀conciliar฀de฀grande฀porte฀durante฀a฀primeira฀metade฀ do฀século฀VI฀não฀coincidiu฀com฀uma฀diminuição฀da฀ingerência฀real฀na฀ nomeação฀dos฀bispos.฀฀฀฀฀ A฀fórmula฀usada฀para฀indicar฀o฀papel฀do฀rei฀na฀convocação฀de฀uma฀ assembléia฀conciliar฀reapareceu฀somente฀no฀preâmbulo฀do฀quinto฀Concílio฀de฀Orléans,฀de฀549: “É฀à฀graça฀divina฀que฀se฀deve฀atribuir฀o฀fato฀que฀os฀votos฀dos฀príncipes฀ coincidem฀com฀os฀sentimentos฀dos฀bispos,฀quando,฀no฀momento฀da฀realização฀de฀uma฀assembléia฀episcopal,฀a฀regra฀de฀vida฀é฀fixada฀pela฀lembrança฀ dos฀antigos฀cânones,฀ou฀segundo฀o฀lugar฀e฀o฀tempo,฀pelo฀estabelecimento฀ 112 ฀Histórias฀IV,฀11. ฀Histórias฀VI,฀9.฀ 113 122฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀ novas฀ medidas฀ prolongando฀ alguns฀ artigos฀ antigos.฀É฀ por฀ isso฀ que,฀ no฀ momento฀em฀que฀o฀nosso฀clementíssimo฀e฀senhor฀invencível฀na฀honra฀de฀ seus฀triunfos,฀o฀rei฀Childeberto,฀pelo฀amor฀da฀santa฀fé฀e฀o฀estatuto฀da฀santa฀religião,฀reuniu฀na฀cidade฀de฀Orléans฀os฀bispos฀do฀Senhor,฀no฀desejo฀de฀ aprender฀pela฀boca฀dos฀Padres฀o฀que฀é฀santo฀e฀o฀que฀propõe฀a฀autoridade฀ pastoral฀para฀o฀governo฀da฀Igreja,฀a฀fim฀de฀que฀seja฀uma฀norma฀para฀os฀futuros฀fiéis฀e฀uma฀regra฀para฀aqueles฀de฀hoje,฀os฀pontos฀que฀convêm฀observar฀ desde฀o฀presente฀e฀em฀seguida฀foram,฀pela฀graça฀de฀Deus,฀fixados฀em฀detalhe฀ artigo฀por฀artigo”114.฀฀ Esse฀concílio฀foi฀o฀maior฀de฀todo฀o฀século฀VI.฀Participaram฀dele฀ cerca฀de฀71฀bispos฀e฀seus฀delegados;฀cerca฀de฀13฀províncias฀eclesiásticas฀ estavam฀representadas.฀Estiveram฀presentes฀os฀bispos฀metropolitanos฀ de฀Lyon,฀Arles,฀Viena,฀Trier,฀Bourges,฀Eauze฀e฀Sens฀(os฀metropolitanos฀ de฀ Bordeaux฀ e฀ de฀ Reims฀ enviaram฀ representantes).฀ No฀ preâmbulo฀ dos฀cânones,฀os฀bispos฀começam฀por฀agradecer฀à฀graça฀divina฀o฀fato฀ de฀ que฀ os฀ votos฀ dos฀ príncipes฀ coincidem฀ com฀ os฀ seus฀ sentimentos.฀ Como฀em฀Orléans฀I,฀eles฀parecem฀persuadidos฀de฀que฀a฀eficácia฀e฀o฀ alcance฀das฀medidas฀por฀eles฀definidas฀dependem฀da฀concordância฀do฀ príncipe.฀Além฀disso,฀o฀texto฀do฀preâmbulo฀é฀taxativo:฀foi฀o฀rei฀quem฀ reuniu฀ os฀ bispos.฀Ao฀ afirmar฀ que฀ o฀ príncipe฀ tinha฀ agido฀ pelo฀ amor฀ da฀santa฀fé฀e฀do฀estatuto฀da฀religião,฀com฀o฀objetivo฀de฀aprender฀dos฀ Padres฀aquilo฀que฀eles฀propunham฀para฀o฀governo฀da฀Igreja,฀o฀texto฀ indica฀igualmente฀a฀preocupação฀do฀rei฀com฀os฀assuntos฀eclesiásticos.฀ Apresentando-se฀como฀chefe฀do฀episcopado,฀o฀rei฀Childeberto฀interferiu฀na฀querela฀dos฀Três฀Capítulos,฀como,฀aliás,฀o฀imperador฀Justiniano฀havia฀feito115.฀A฀reunião฀de฀549฀fechou฀assim฀o฀parêntese฀aberto฀ com฀o฀segundo฀Concílio฀de฀Orléans฀de฀533,฀e฀retomou฀os฀princípios฀ do฀concílio฀de฀511.฀Na฀melhor฀tradição฀Constantiniana,฀os฀bispos฀em฀ Orléans฀ V,฀ sob฀ instigação฀ de฀ Childeberto,฀ condenaram฀ a฀ heresia฀ de฀ 114 ฀Orléans฀V฀(549),฀preâmbulo.฀฀฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀123 Eutyches฀e฀de฀Nestorius฀alguns฀anos฀antes฀que฀o฀concílio฀ecumênico฀ em฀Constantinopla฀fizesse฀o฀mesmo116.฀฀฀฀ O฀Concílio฀de฀Orléans฀V฀foi฀marcado฀por฀uma฀mudança฀nas฀regras฀ de฀ordenação฀episcopal: “Que฀a฀ninguém฀seja฀permitido฀obter฀o฀episcopado฀por฀presentes฀ou฀por฀ compra,฀mas฀que฀seja฀com฀o฀consentimento฀do฀rei,฀em฀conformidade฀com฀a฀฀ eleição฀do฀clero฀e฀do฀povo,฀como฀está฀escrito฀nos฀antigos฀cânones,฀que฀o฀bispo฀ seja฀ consagrado฀ pelo฀ metropolitano฀ ou฀ seu฀ delegado,฀ com฀ a฀ ajuda฀ de฀ seus฀ co-provinciais.฀Se฀alguém,฀por฀uma฀compra,฀viola฀a฀regra฀desta฀santa฀constituição,฀nós฀determinamos฀que฀aquele฀que฀foi฀ordenado฀graças฀a฀presentes฀ seja฀afastado”117.฀฀฀ Essa฀ fórmula,฀ mais฀ do฀ que฀ um฀ compromisso฀ entre฀ uma฀ tradição฀ canônica฀que฀pressupunha฀a฀eleição฀“pelo฀clero฀e฀pelo฀povo”,฀e฀a฀ingerência฀da฀autoridade฀real,฀marcava฀o฀triunfo฀legal฀do฀princípio฀do฀consentimento฀do฀príncipe฀nas฀ordenações฀episcopais.฀Esse฀consentimento฀ 115 ฀A฀denominação฀“Três฀Capítulos”฀é฀dada฀a฀Teodoro฀de฀Mopsueste฀(c.350฀–฀428),฀a฀Teodoreto฀ de฀Cyr฀(v.393฀–฀v.466)฀e฀a฀Ibas฀de฀Edessa฀(ms.457),฀bispos฀cujas฀críticas฀do฀monofisismo฀foram฀ condenadas฀pelo฀Concílio฀de฀Constantinopla฀em฀553,฀sob฀instigação฀do฀imperador฀Justiniano.฀ As฀reações฀a฀essa฀condenação฀no฀Ocidente฀foram฀bastante฀negativas:฀vários฀bispos฀na฀África฀ do฀ Norte,฀ na฀ Itália฀ e฀ na฀ Gália฀ posicionaram-se฀ a฀ favor฀ dos฀ Três฀ Capítulos.฀ Mas,฀ quando฀ o฀ papa฀Virgílio฀aderiu฀às฀prescrições฀do฀concílio฀de฀553,฀uma฀parte฀do฀episcopado฀franco฀não฀o฀ seguiu.฀O฀conflito฀somente฀terminou฀em฀689,฀por฀ocasião฀de฀um฀concílio฀reunido฀em฀Pávia฀ sob฀a฀instigação฀do฀rei฀Cunipertus฀e฀do฀papa฀Sege฀I฀(687-701).฀Sobre฀a฀polêmica฀dos฀“Três฀ Capítulos”,฀ver฀L.฀Duchesne,฀L’Eglise฀au฀VIe฀siècle,฀p.฀191;฀e฀também,฀L.฀Pietri,฀“L’Eglise฀du฀ Regnum฀Francorum”,฀pp.฀745-799.฀฀฀฀ 116 ฀Orléans฀V฀(549),฀1:฀“Assim,฀a฀seita฀ímpia฀que฀teve฀por฀autor฀e฀fundador฀um฀homem฀de฀má฀ consciência฀e฀afastando-se฀da฀fonte฀viva฀da฀fé฀católica,฀o฀sacrílego฀Eutyches,฀e฀assim฀tudo฀o฀que฀ proferiu฀o฀venenoso฀e฀ímpio฀Nestorius,฀seitas฀que฀a฀Sé฀apostólica฀condena฀igualmente,฀nós฀também,฀ execrando-as฀com฀seus฀autores฀e฀seus฀sectários,฀as฀anatematizamos฀e฀condenamos฀pela฀autoridade฀ da฀presente฀constituição,฀pregando฀a฀regra฀da฀fé฀direita฀e฀apostólica฀em฀nome฀do฀Cristo”.฀฀ 117 ฀Orléans฀V฀(549),฀c.฀10.฀ 124฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média precede,฀aliás,฀a฀eleição฀“pelo฀clero฀e฀pelo฀povo”.฀Ainda฀que฀na฀prática,฀a฀ concordância฀real฀já฀fosse฀a฀chave฀das฀ordenações฀episcopais,฀ela฀obteve฀ em฀Orléans฀V฀o฀seu฀reconhecimento฀oficial.฀Essa฀assembléia฀conciliar฀ testemunha฀o฀endurecimento฀da฀postura฀da฀realeza฀diante฀do฀episcopado,฀e฀mostra฀uma฀vez฀mais฀que฀a฀política฀constantiniana฀de฀Clóvis฀não฀ tinha฀se฀enfraquecido฀sob฀seus฀sucessores.฀฀฀฀ Além฀das฀ingerências฀de฀que฀a฀Igreja฀franca฀foi฀objeto,฀as฀disposições฀ dos฀ concílios฀ da฀ primeira฀ metade฀ do฀ século฀VI฀ lançaram฀ as฀ bases฀ do฀ controle฀ episcopal฀ sobre฀ o฀ clero฀ da฀ Gália.฀ O฀ Concílio฀ de฀ Orléans฀ III,฀ por฀exemplo,฀proibia฀aos฀clérigos฀de฀citar฀um฀laico฀diante฀da฀justiça฀secular฀sem฀o฀consentimento฀episcopal,฀da฀mesma฀maneira฀que฀proibia฀ aos฀laicos฀citar฀um฀clérigo฀sem฀a฀permissão฀de฀seu฀bispo118.฀A฀título฀de฀ comparação,฀o฀Concílio฀de฀Epaone฀(517),฀proibia฀que฀os฀clérigos฀recorressem฀ao฀tribunal฀civil฀sem฀a฀autorização฀de฀um฀bispo,฀mas฀os฀obrigava฀ a฀comparecer฀caso฀fossem฀mencionados,฀e฀isso฀sem฀a฀necessidade฀de฀autorização฀por฀parte฀da฀autoridade฀episcopal119.฀Isso฀mostra฀que฀no฀Reino฀ dos฀Francos฀a฀posição฀do฀episcopado฀era฀menos฀frágil฀que฀no฀Reino฀dos฀ Burgúndios฀duas฀décadas฀antes.฀Apesar฀da฀política฀“constantiniana”฀que฀ praticaram,฀ os฀ reis฀ francos฀ utilizaram฀ o฀ episcopado฀ católico฀ da฀ Gália฀ como฀uma฀peça฀importante฀de฀seu฀dispositivo฀de฀governo,฀algo฀que฀os฀ reis฀arianos฀da฀Burgúndia฀não฀fizeram.฀O฀Concílio฀de฀Orléans฀IV฀confirmou฀as฀disposições฀de฀Orléans฀III฀no฀tocante฀aos฀privilégios฀jurídicos฀ dos฀ clérigos,฀ acrescentando฀ duas฀ regras:฀ em฀ primeiro฀ lugar,฀ nenhum฀ laico฀poderia฀forçar,฀julgar฀ou฀condenar฀um฀clérigo฀em฀nome฀apenas฀de฀ sua฀autoridade,฀sem฀reportar-se฀ao฀pontífice฀ou฀ao฀preboste฀da฀Igreja;฀ em฀segundo,฀todas฀as฀vezes฀que฀houvesse฀um฀processo฀entre฀um฀clérigo฀ e฀um฀laico,฀o฀juiz฀laico฀não฀deveria฀instruir฀o฀processo฀sem฀a฀presença฀ de฀um฀padre,฀de฀um฀arquidiácono฀ou฀de฀um฀preboste120.฀Além฀desses฀ privilégios฀concedidos฀aos฀clérigos,฀os฀bispos฀em฀Orléans฀IV฀proibiram฀ 118 ฀Orléans฀III฀(538),฀c.฀35.฀ ฀Epaone฀(517),฀c.฀11.฀ 120 ฀Orléans฀IV฀(541),฀c.฀20.฀฀ 119 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀125 que฀os฀funcionários฀reais฀convocassem฀para฀a฀realização฀de฀serviços฀públicos฀os฀clérigos฀que฀estivessem฀em฀serviço฀eclesiástico฀ou฀cujos฀nomes฀ estivessem฀inscritos฀na฀matrícula฀da฀igreja121. Os฀privilégios฀outorgados฀aos฀clérigos฀no฀contexto฀da฀administração฀local฀não฀eram฀poucos.฀O฀trigésimo-quarto฀cânone฀do฀Concílio฀de฀ Orléans฀III,฀de฀538,฀por฀exemplo,฀previa฀a฀excomunhão฀dos฀condes฀das฀ cidades฀que฀não฀levassem฀aos฀tribunais฀os฀bispos฀heréticos฀que฀rebatizaram฀católicos122.฀Em฀um฀concílio฀reunido฀em฀Paris฀após฀a฀morte฀de฀ Clotário฀I,฀os฀bispos฀deram฀um฀passo฀importante฀na฀defesa฀das฀regras฀ canônicas฀de฀eleição฀episcopal,฀ao฀estabelecer฀que฀todas฀as฀ordenações฀ feitas฀no฀passado฀deveriam฀ser฀reavaliadas: “No฀que฀diz฀respeito฀às฀ordenações฀de฀pontífices฀feitas฀no฀passado,฀foi฀decidido฀que฀o฀metropolitano,฀uma฀vez฀reunido฀com฀seus฀bispos฀co-provinciais฀ ou฀com฀os฀bispos฀vizinhos฀que฀ele฀escolher,฀no฀lugar฀que฀lhe฀convier,฀deveria฀ julgar฀tudo฀segundo฀os฀antigos฀estatutos฀canônicos฀e฀segundo฀o฀julgamento฀ e฀a฀opinião฀de฀todos”123.฀ Muito฀provavelmente,฀os฀bispos฀conciliares฀tenham฀tentado฀aproveitar฀as฀perturbações฀causadas฀pelas฀disputas฀entre฀os฀príncipes฀herdeiros฀ após฀a฀morte฀de฀Clotário฀I฀para฀corrigir฀os฀abusos.฀Esse฀concílio฀também฀ é฀uma฀constatação฀do฀fracasso฀das฀medidas฀adotadas฀nos฀concílios฀precedentes.฀Seus฀cânones฀manifestam฀a฀irritação฀dos฀bispos฀após฀mais฀de฀ meio-século฀no฀qual฀os฀príncipes฀francos฀tinham฀tentado฀fazer฀da฀Igreja฀ um฀instrumento฀da฀realeza.฀฀ 121 ฀Orléans฀IV฀(541),฀c.฀13.฀ ฀Orléans฀III฀(538),฀c.฀34:฀“Se฀o฀conde฀da฀cidade฀ou฀do฀local฀souber฀que฀um฀bispo฀herético,฀ou฀ bonasiano,฀ou฀de฀qualquer฀outra฀seita,฀rebatizou฀um฀súdito฀católico฀e฀se฀ele฀–฀visto฀que฀nós฀temos฀ reis฀católicos฀–฀não฀prendeu฀rapidamente฀os฀autores฀desses฀segundos฀batismos฀e฀฀não฀os฀conduziu฀ para฀serem฀punidos฀a฀esse฀respeito฀conforme฀a฀fé฀do฀rei฀e฀à฀sua฀justiça,฀que฀ele฀seja฀submetido฀a฀ uma฀excomunhão฀de฀um฀ano”.฀฀฀฀ 123 ฀Paris฀III฀(v.561-562),฀c.฀8.฀ 122 126฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Os฀conflitos฀entre฀a฀autoridade฀real฀e฀os฀bispos฀durante฀a฀primeira฀ metade฀do฀século฀VI฀são฀indicativos฀das฀resistências฀no฀interior฀do฀episcopado฀às฀práticas฀“constantinianas”฀da฀realeza.฀O฀desejo฀de฀independência฀ já฀existia,฀aliás,฀sob฀Clóvis.฀A฀carta฀de฀Remígio฀aos฀bispos฀Heraclius,฀Leão฀ e฀Teodósio฀testemunha฀uma฀das฀primeiras฀reações฀à฀política฀“constantiniana”฀implementada฀pela฀dinastia฀merovíngia.฀Ao฀longo฀das฀décadas฀ seguintes฀esse฀sentimento฀não฀cessou฀de฀se฀ampliar,฀até฀assumir฀o฀tom฀ de฀uma฀denúncia฀aberta฀e฀vigorosa฀contra฀a฀postura฀da฀autoridade฀real.฀ Clóvis฀tinha฀a฀seu฀favor฀o฀fato฀de฀ter฀sido฀o฀primeiro฀a฀se฀converter฀ao฀catolicismo.฀Essa฀era฀de฀uma฀vantagem฀que฀seus฀sucessores฀não฀possuíam.฀ Além฀do฀mais,฀contrariamente฀aos฀seus฀sucessores฀até฀558,฀ele฀era฀o฀único฀ rei฀da฀Gália฀merovíngia.฀As฀partilhas฀territoriais฀que฀se฀seguiram฀à฀morte฀de฀Clóvis฀deram฀força฀à฀contestação฀do฀poder฀eclesiástico,฀tornando฀ menos฀amplo฀o฀poder฀dos฀príncipes.฀Por฀outro฀lado,฀a฀incorporação฀da฀ Burgúndia฀trouxe฀para฀o฀interior฀do฀Regnum฀Francorum฀um฀episcopado฀ cuja฀tradição฀de฀autonomia฀em฀face฀do฀poder฀real฀havia฀sido฀consagrada฀ no฀Concílio฀de฀Epaone,฀em฀517.฀฀ Durante฀muito฀tempo฀afirmou-se฀que฀aquilo฀que฀os฀reis฀merovíngios฀buscavam฀defender฀ante฀os฀bispos฀era฀o฀seu฀poder฀pessoal฀e฀seus฀ privilégios.฀O฀episcopado฀aparece฀assim฀como฀o฀único฀defensor฀do฀“interesse฀público”,฀enquanto฀os฀príncipes฀merovíngios฀seriam฀meros฀reis฀ “patrimoniais”,฀que฀tratariam฀o฀reino฀como฀se฀fosse฀um฀bem฀privado.฀O฀ conflito฀de฀interesses฀entre฀a฀realeza฀e฀o฀episcopado฀era฀a฀expressão฀de฀ um฀conflito฀maior,฀mas฀os฀bispos฀não฀eram฀os฀únicos฀a฀agir฀em฀nome฀ do฀“interesse฀público”฀–฀que฀no฀caso฀específico฀deles฀estava฀associado฀à฀ evangelização,฀ao฀auxílio฀aos฀fracos฀e฀à฀promoção฀da฀salvação.฀O฀controle฀exercido฀pela฀realeza฀sobre฀a฀Igreja฀franca,฀nessa฀primeira฀metade฀do฀ século฀VI,฀também฀era฀a฀expressão฀de฀um฀“interesse฀público”฀da฀qual฀a฀ primeira฀era฀portadora,฀como฀veremos฀no฀capítulo฀seguinte.฀฀฀฀ Capítulo฀III O฀“interesse฀público”฀no฀século฀VI Os฀historiadores฀admitem฀hoje฀que฀os฀francos฀se฀apoiaram฀em฀construções฀e฀conceitos฀herdados฀de฀Roma,฀mas฀alegam฀que฀essas฀estruturas฀ eram฀“embalagens฀vazias”,฀e฀que฀os฀conceitos฀–฀dos฀quais฀esses฀“bárbaros”฀ nada฀entenderiam฀–฀encobriam฀uma฀realidade฀sensivelmente฀diferente฀da฀ época฀romana.฀É฀claro฀que฀a฀permanência฀de฀certos฀conceitos฀não฀significa฀que฀o฀sentido฀que฀lhes฀era฀dado฀fosse฀rigorosamente฀o฀mesmo฀da฀época฀ romana;฀ esse฀ é฀ um฀ equívoco฀ no฀ qual฀ incorrem,฀ aliás,฀ as฀ interpretações฀ hiper-romanistas1.฀Contudo,฀os฀adeptos฀da฀tese฀das฀“embalagens฀vazias”฀ opõem฀ com฀ freqüência฀ a฀ rudeza฀ dos฀ povos฀ germânicos฀ à฀ capacidade฀ romana฀em฀elaborar฀as฀abstrações฀políticas฀e฀as฀construções฀institucionais฀mais฀complexas฀a฀partir฀de฀sua฀experiência฀social.฀É฀o฀que฀faz,฀por฀ exemplo,฀J.฀Ellul,฀para฀quem฀se฀ainda฀havia฀na฀Gália฀merovíngia฀nomes฀ romanos฀designando฀as฀realidades฀institucionais,฀o฀“espírito”฀não฀estava฀ 1 ฀Ver฀a฀crítica฀de฀J.-P.฀Devroey฀ao฀“fixismo”฀das฀teses฀hiper-romanistas฀[Economie฀rurale฀et฀ société฀dans฀l’Europe฀franque฀(VIe-IXe฀siècles),฀pp.฀231฀e฀sg.].฀฀ 128฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média mais฀ presente.฀ O฀ legado฀ de฀ Roma฀ ao฀ Ocidente,฀ segundo฀ ele,฀ não฀ teria฀ consistido฀ na฀ persistência฀ material฀ de฀ algumas฀ instituições฀ romanas฀ na฀ vida฀social,฀mas฀em฀elementos฀mais฀ou฀menos฀esparsos฀que,฀do฀século฀V฀ até฀o฀século฀XII,฀teriam฀guardado฀força฀suficiente฀na฀“memória฀coletiva”฀ e฀na฀reflexão฀dos฀clérigos฀para฀causar฀pesar฀e฀admiração2.฀A฀idéia฀da฀crise฀ do฀“espírito฀público”฀entre฀os฀merovíngios,฀longe฀de฀ser฀um฀ponto฀de฀vista฀ isolado,฀é฀compartilhado฀por฀trabalhos฀mais฀recentes,฀como฀o฀de฀P.฀Geary,฀ para฀quem฀somente฀os฀clérigos฀teriam฀guardado฀algum฀sentido฀da฀noção฀ romana฀de฀res฀publica฀na฀Gália฀merovíngia3.฀Pode-se฀falar,฀portanto,฀em฀ desaparecimento฀da฀noção฀de฀interesse฀público?฀Seria฀correto฀afirmar฀que฀ da฀herança฀romana,฀o฀pouco฀que฀dela฀teria฀sobrado฀estaria฀subutilizado฀ por฀esses฀bárbaros,฀laicos฀de฀sobremaneira,฀que฀nada฀compreendiam฀do฀ funcionamento฀das฀instituições฀e฀do฀Direito฀Romano? Em฀primeiro฀lugar,฀é฀um฀equivoco฀supervalorizar฀o฀papel฀dos฀clérigos฀ no฀ edifício฀ político฀ franco.฀ P.฀ Riché฀ mostrou฀ que฀ eles฀ não฀ constituíam฀ a฀coluna฀vertebral฀da฀administração฀franca:฀pelo฀menos฀até฀a฀primeira฀ metade฀do฀século฀VII,฀os฀funcionários฀que฀dirigiam฀o฀governo฀franco,฀da฀ mesma฀forma฀que฀os฀notários฀e฀os฀escribas฀que฀nele฀trabalhavam,฀eram฀ laicos,฀ como฀ nos฀ tempos฀ da฀ administração฀ romana4.฀ Poder-se-ia฀ mencionar,฀a฀título฀de฀exemplo,฀o฀que฀P.฀Riché฀chamou฀de฀“círculo฀literário฀ austrásio-provençal”:฀um฀grupo฀formado฀por฀eruditos฀que฀viveram฀sob฀ os฀reinados฀de฀Sigeberto฀e฀de฀Childeberto฀II฀e฀que฀eram฀versados฀no฀latim฀ e฀atraídos฀pela฀cultura฀clássica.฀Os฀nomes฀mais฀representativos฀desse฀grupo฀eram฀os฀patrício฀Dynamius฀de฀Marselha,฀correspondente฀de฀Venâncio฀ Fortunato5,฀bem฀como฀de฀Andarchius฀e฀do฀senador฀Félix,฀elogiados฀por฀ Gregório฀de฀Tours฀por฀seu฀conhecimento฀das฀letras,฀do฀direito฀e฀do฀cálculo6.฀Pode-se฀citar฀igualmente฀um฀outro฀laico฀que฀desempenhou฀um฀papel฀ 2 ฀J.฀Ellul,฀Histoire฀des฀institutions.฀Le฀Moyen฀Age,฀p.18. ฀P.฀Geary,฀Naissance฀de฀la฀France,฀p.฀147.฀฀฀฀฀฀ 4 ฀P.฀Riché,฀Education฀et฀culture,฀p.฀75 5 ฀Fortunato,฀Carmina฀VI,฀10. 6 ฀Histórias฀IV,฀46. 3 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀129 importante฀na฀administração฀franca,฀Asclepiodus,฀que฀redigiu฀o฀edito฀de฀ Gontrão,฀de฀585,฀e฀que฀após฀morte฀deste,฀serviu฀a฀Childeberto฀II7.฀฀ É฀preciso฀reconhecer,฀por฀outro฀lado,฀que฀a฀existência฀de฀certo฀número฀ de฀laicos,฀que฀participavam฀da฀administração฀e฀que฀eram฀reputados฀por฀ seus฀talentos฀em฀latim฀ou฀em฀retórica,฀não฀é฀suficiente฀para฀se฀sustentar฀ a฀sobrevivência฀da฀autoridade฀pública.฀O฀objetivo฀deste฀capítulo฀é,฀portanto,฀analisar฀se฀e฀sob฀quais฀formas฀a฀noção฀de฀“interesse฀público”,฀distinta฀e฀superior฀aos฀interesses฀particulares฀dos฀governantes,฀assim฀como฀ aos฀interesses฀da฀Igreja,฀foi฀preservada฀nas฀construções฀institucionais฀da฀ Gália฀merovíngia฀durante฀o฀século฀VI.฀A฀filiação฀romana฀das฀instituições฀ francas฀é฀um฀tema฀cuja฀complexidade฀faz฀com฀que฀mereça฀um฀trabalho฀ à฀parte8.฀Nas฀páginas฀seguintes,฀a฀análise฀das฀sobrevivências฀institucionais฀romanas฀não฀constitui฀um฀fim฀em฀si฀mesma.฀Essas฀sobrevivências฀ somente฀serão฀abordadas฀à฀medida฀que฀ajudarem฀na฀compreensão฀da฀ natureza฀da฀autoridade฀real฀após฀a฀fundação฀do฀Regnum฀Francorum.฀฀ A฀construção฀do฀espaço฀público:฀“pax฀regia”฀e฀“sermo฀regis” “Clóvis,฀ rei,฀ aos฀ senhores฀ santos฀ e฀ bispos฀ digníssimos฀ pela฀ sé฀ apostólica.฀ Não฀deve฀ter฀escapado฀a฀Vossa฀Beatitude฀a฀novidade฀divulgada฀sobre฀o฀que฀ foi฀feito฀(actum)฀e฀ordenado฀(praeceptum)฀a฀todo฀nosso฀exército,฀antes฀que฀ entremos฀ na฀ pátria฀ das฀ godos.฀ Em฀ primeiro฀ lugar,฀ ordenamos,฀ no฀ que฀ diz฀ 7 ฀Ver฀Childeberti฀secundi฀decretio,฀7:฀“Asclipiodus฀recognovit”.฀Segundo฀K.A.Eckhardt,฀Asclepiodus฀é฀o฀autor฀do฀prólogo฀curto฀da฀lei฀sálica฀(Pactus฀Legis฀Salicae,฀p.171). 8 ฀Sobre฀esse฀tema,฀ver:฀J.฀Tardif,฀Etudes฀sur฀les฀institutions฀politiques฀et฀administratives฀de฀ la฀France.฀Epoque฀mérovingienne;฀M.฀Thévenin,฀Textes฀relatifs฀aux฀institutions฀privées฀et฀ publiques฀aux฀époques฀mérovingienne฀et฀carolingienne;฀N.D.฀Fustel฀de฀Coulanges,฀La฀monarchie฀franque;฀F.L.฀Ganshoff,฀“Les฀traits฀généraux฀du฀système฀d’institutions฀de฀la฀monarchie฀ franque”,฀pp.฀91-127;฀Ch.฀Pfiester,฀“Gaul฀under฀the฀Merovingian฀Franks.฀Institutions”,฀pp.132158;฀E.฀Ewig,฀“Das฀Fortleben฀römischer฀Institutionen฀in฀Gallien฀und฀Germanien”,฀pp.฀561-598;฀ K.F.฀Werner,฀“La฀place฀du฀VIIe฀siècle฀dans฀l’évolution฀politique฀et฀institutionnelle฀de฀la฀Gaule฀ franque”,฀pp.฀173-211.฀฀฀ 130฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média respeito฀ao฀serviço฀de฀todas฀as฀igrejas,฀que฀ninguém฀tente฀tirar฀de฀forma฀alguma฀nem฀as฀santas฀monjas฀nem฀as฀viúvas,฀as฀quais฀se฀sabe฀foram฀dedicadas฀ ao฀serviço฀do฀Senhor;฀que฀a฀mesma฀condição฀seja฀válida฀para฀os฀clérigos฀e฀ para฀as฀crianças฀destes,฀tanto฀os฀clérigos฀quanto฀as฀viúvas฀que฀é฀sabido฀que฀ residem฀com฀eles฀em฀suas฀casas;฀idem,฀para฀os฀escravos฀das฀igrejas฀que฀o฀juramento฀dos฀bispos฀provar฀que฀foram฀arrancados฀das฀igrejas;฀nenhum฀dano฀ ou฀violência฀deve฀ser฀exercido฀contra฀eles.฀É฀por฀isso฀que฀ordenamos,฀a฀fim฀ de฀que฀tudo฀isso฀seja฀bem฀sabido,฀que฀aquele฀dentre฀os฀acima฀mencionados฀ que฀ sofrer฀ a฀ violência฀ do฀ cativeiro,฀ tanto฀ nas฀ igrejas฀ quanto฀ fora฀ da฀ igreja,฀ seja฀ completamente,฀ e฀ sem฀ demora,฀ devolvido.฀ Para฀ os฀ outros฀ prisioneiros฀ laicos฀que฀tiverem฀sido฀apanhados฀fora฀da฀paz฀(extra฀pacem)฀e฀que฀se฀isso฀for฀ provado,฀não฀serão฀negadas฀as฀epístolas฀escritas฀segundo฀vosso฀arbítrio฀para฀ quem฀desejastes.฀No฀que฀se฀refere฀àqueles,฀tanto฀clérigos฀quanto฀laicos,฀฀que฀ terão฀sido฀apanhados฀em฀nossa฀paz฀(in฀pace฀nostra),฀se฀fizestes฀saber฀a฀verdade฀ por฀epístolas฀assinadas฀com฀vosso฀anel,฀que฀elas฀nos฀sejam฀dirigidas฀de฀qualquer฀maneira฀e฀sabereis฀que฀nossa฀ordem฀(nostra฀praeceptionem)฀oriunda฀de฀ nós฀deve฀confirmar฀isso.฀Assim,฀nosso฀povo฀pede฀que,฀para฀todos฀aqueles฀que฀ julgais฀dignos฀de฀conceder฀vossas฀cartas,฀não฀tardeis฀a฀dizer฀sob฀juramento฀ em฀nome฀de฀Deus฀e฀com฀vossa฀bênção฀que฀isso฀é฀verdadeiro฀que฀reclama฀de฀ ser฀provado,฀pois฀as฀variações฀e฀as฀falsificações฀de฀muitos฀foram฀descobertas฀a฀ ponto฀de฀compreender฀que,฀como฀está฀escrito:฀‘O฀justo฀perece฀com฀o฀ímpio’.฀ Rezem฀por฀mim,฀senhores฀santos฀e฀pais฀muito฀dignos฀pela฀sé฀apostólica”9.฀฀ ฀฀ Único฀texto฀autêntico฀de฀Clóvis฀que฀foi฀preservado,฀essa฀epístola฀aos฀ bispos฀trata฀da฀entrada฀das฀tropas฀francas฀na฀Aquitânia฀durante฀a฀guerra฀ contra฀os฀visigodos,฀em฀507.฀Escrita฀algum฀tempo฀após฀o฀fim฀da฀referida฀ campanha10,฀ela฀pretende฀assegurar฀aos฀bispos฀católicos฀a฀validade฀das฀ medidas฀previstas฀por฀um฀praeceptum฀endereçado฀ao฀exército฀franco,฀publicado฀pouco฀antes฀do฀início฀das฀hostilidades.฀A฀maior฀parte฀da฀epístola,฀ aliás,฀ é฀ uma฀ confirmação฀ desse฀ documento.฀ Ela฀ estipula,฀ em฀ primeiro฀ 9 ฀Chlodowici฀Regis฀ad฀episcopos฀epistola,฀Capitularia฀Merowingica,฀1.฀ ฀Sobre฀a฀datação฀dessa฀carta,฀ver฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.฀441-442.฀ 10 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀131 lugar,฀que฀todos฀aqueles฀que฀se฀encontrassem฀a฀serviço฀das฀igrejas฀não฀ deveriam฀ser฀vítimas฀de฀rapto฀ou฀de฀qualquer฀outra฀forma฀violência.฀Essa฀ proibição฀ dizia฀ respeito฀ a฀ cinco฀ categorias฀ de฀ pessoas:฀ monjas,฀ viúvas,฀ clérigos,฀os฀filhos฀destes฀e,฀finalmente,฀os฀escravos.฀Quer฀fossem฀aprisionados฀“fora฀das฀igrejas”฀ou฀“dentro฀das฀igrejas”,฀todos฀que฀pertencessem฀ a฀ essas฀ categorias฀ deveriam฀ ser฀ libertados฀ mediante฀ um฀ procedimento฀ detalhado฀mais฀adiante฀no฀texto.฀No฀caso฀dos฀laicos฀e฀eclesiásticos฀que฀se฀ encontrassem฀na฀paz฀do฀rei฀(in฀pace฀nostra),฀não฀apenas฀o฀edifício฀eclesiástico,฀mas฀todo฀o฀território฀além฀desses฀limites,฀era฀considerado฀um฀espaço฀de฀asilo.฀Clóvis฀relembra฀aos฀bispos฀a฀possibilidade฀de฀eles฀obterem฀ também฀a฀libertação฀de฀alguns฀cativos฀laicos,฀aprisionados฀pelo฀exército฀ franco฀“fora฀da฀paz”฀(extra฀pacem).฀Nesse฀caso,฀as฀condições฀para฀que฀isso฀ ocorresse฀eram฀mais฀restritivas:฀em฀primeiro฀lugar,฀deveria฀ser฀provado฀ que฀eles฀foram฀aprisionados฀nessa฀circunstância,฀ou฀seja,฀“fora฀da฀paz”;฀ em฀segundo฀lugar,฀os฀bispos฀deveriam฀enviar฀cartas฀pedindo฀a฀libertação฀ daqueles฀ que฀ eles฀ escolhessem.฀ O฀ procedimento฀ para฀ a฀ libertação฀ dos฀ cativos฀apanhados฀na฀paz฀do฀rei฀(in฀pace฀nostra)฀era฀menos฀complexo,฀e฀ consistia฀no฀envio฀de฀cartas฀seladas฀pelo฀anel฀episcopal.฀Clóvis฀acrescenta฀ que฀seu฀“povo”฀–฀provavelmente฀os฀oficiais฀do฀exército฀franco,฀dado฀o฀ teor฀nitidamente฀militar฀da฀epístola฀–฀pedia฀aos฀bispos฀que฀não฀tardassem฀a฀iniciar฀o฀procedimento,฀certificando,฀através฀de฀um฀juramento,฀a฀ veracidade฀das฀demandas฀enviadas.฀ O฀que฀vem฀a฀ser฀a฀pax฀nostra,฀ou฀mais฀exatamente฀a฀“paz฀do฀rei”,฀que฀ o฀texto฀menciona?฀Qual฀é฀a฀diferença฀de฀estatuto฀entre฀aqueles฀que฀foram฀ capturados฀in฀pace฀nostra฀e฀aqueles฀que฀o฀foram฀extra฀pacem?฀A฀“paz฀do฀ rei”,฀tal฀como฀ela฀está฀formulada฀nessa฀epístola,฀indica฀o฀estatuto฀daqueles฀ que฀receberam฀uma฀proteção฀específica.฀Ela฀não฀é฀fruto฀de฀um฀simples฀capricho฀do฀governante.฀Clóvis,฀aliás,฀não฀propunha฀aos฀bispos฀a฀libertação฀ indiscriminada฀de฀prisioneiros.฀Ele฀pedia฀aos฀primeiros฀que฀seguissem฀um฀ certo฀número฀de฀procedimentos:฀no฀que฀se฀refere฀aos฀cativos฀aprisionados฀ “extra฀pacem”,฀os฀bispos฀deveriam฀provar฀que฀eles฀tinham฀sido฀efetivamente฀aprisionados฀nessa฀condição฀e฀se฀dirigir฀aos฀funcionários฀competentes฀para฀apresentar฀seus฀pedidos.฀A฀“paz฀do฀rei”฀era฀um฀instrumento฀ de฀proteção฀legal฀que฀colocava฀aqueles฀a฀quem฀ela฀protegia฀ao฀abrigo฀de฀ 132฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média eventuais฀arbitrariedades฀e฀abusos฀cometidos฀pelo฀exército฀franco.฀A฀manutenção฀da฀paz,฀aliás,฀aparece฀como฀um฀dos฀fundamentos฀da฀autoridade฀ pública฀entre฀os฀francos.฀O฀objetivo฀fixado฀no฀prólogo฀curto฀do฀Pactus฀ legis฀ Salicae฀ (século฀ VI),฀ de฀ “zelar฀ pela฀ observância฀ da฀ paz฀ entre฀ todos฀ para฀suprimir฀o฀crescimento฀das฀disputas”,฀não฀era฀uma฀mera฀declaração฀ de฀intenções฀sem฀nenhum฀efeito฀prático.฀A฀“busca฀da฀paz”฀abria฀caminho฀ para฀a฀consolidação฀do฀poder฀real,฀ao฀fornecer฀a฀justificativa,฀e฀mesmo฀ a฀ legitimidade,฀ para฀ a฀ interferência฀ da฀ autoridade฀ pública฀ no฀ domínio฀ das฀relações฀interpessoais.฀Ao฀incentivar฀os฀indivíduos฀a฀resolverem฀seus฀ litígios฀diante฀de฀tribunais฀especialmente฀criados฀para฀tanto,฀o฀poder฀real฀ tentava฀tornar-se฀a฀instância฀normativa฀das฀relações฀sociais.฀ Apresentada฀como฀o฀oposto฀da฀violência,฀como฀o฀campo฀da฀normalidade,฀o฀domínio฀da฀lei,฀a฀“paz฀do฀rei”฀é฀sem฀dúvida฀alguma฀uma฀categoria฀jurídica฀emanada฀da฀“autoridade฀pública”.฀Sua฀utilização฀no฀Edito฀ de฀Chilperico,฀algumas฀décadas฀mais฀tarde,฀mostra฀que฀a฀autoridade฀real฀ zelava฀por฀um฀bem฀superior฀aos฀interesses฀ou฀aos฀caprichos฀pessoais฀do฀ príncipe฀ou฀de฀seus฀próximos฀conselheiros: ฀“Se฀alguém฀deve฀conduzir฀uma฀causa฀no฀tribunal฀(mallus),฀que฀comece฀por฀ apresentar฀sua฀causa฀diante฀de฀seus฀vizinhos,฀e฀que฀deposite฀antecipadamente฀a฀ multa฀legal฀nas฀mãos฀dos฀Rachimburgs,฀ao฀que฀ele฀poderá฀então฀conduzir฀sua฀ causa฀junto฀ao฀tribunal.฀Ele฀não฀deve฀ter฀a฀presunção฀de฀se฀apresentar฀diante฀do฀ tribunal฀sem฀isso;฀e฀se฀ele฀se฀apresentar฀diante฀do฀tribunal฀[sem฀ter฀cumprido฀ essas฀formalidades],฀perde฀sua฀causa.฀Pois฀se฀ele฀foi฀um฀homem฀malicioso฀que฀ perpetrou฀o฀mal฀no฀pagus,฀que฀não฀tem฀um฀lar,฀nem฀possessões฀para฀compensar฀ suas฀malfeitorias,฀e฀que฀vive฀nas฀florestas,฀sem฀que฀seu฀adversário฀ou฀seus฀próprios฀parentes฀possam฀pôr฀a฀mão฀nele฀para฀conduzí-lo฀a฀Nossa฀Presença,฀então฀ seu฀adversário,฀e฀todos฀aqueles฀a฀quem฀ele฀terá฀causado฀mal,฀podem฀acusá-lo฀ diante฀de฀Nós,฀e฀Nós฀o฀poremos฀fora฀de฀Nossa฀Palavra฀(nostro฀sermone),฀a฀fim฀ de฀que฀quem฀o฀encontrar฀possa฀matá-lo฀sem฀outra฀formalidade”11.฀฀ 11 ฀Chilperici฀Edictum,฀Capitularia฀Merowingica,฀4.฀Sobre฀o฀edito฀de฀Chilperico,฀ver฀F.฀Beyerle,฀“Das฀legislative฀Werk฀Chilperichs฀I”,฀pp.฀1-38.฀฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀133 Diferentemente฀ da฀ carta฀ de฀ Clóvis฀ aos฀ bispos,฀ o฀ Edito฀ de฀ Chilperico฀não฀menciona฀a฀“paz”,฀mas฀a฀“presença”฀(praesentia)฀e฀a฀“palavra”฀ (sermo)฀do฀rei.฀A฀realidade฀expressa฀por฀esse฀termo฀parece,฀no฀entanto,฀ ser฀a฀mesma฀da฀noção฀de฀“paz฀do฀rei”.฀A฀importância฀dada฀à฀dimensão฀ sagrada฀da฀“presença”฀real฀em฀muito฀obscureceu฀sua฀dimensão฀jurídica.฀ M.฀Reydellet฀afirma,฀por฀exemplo,฀que฀a฀praesentia฀equivalia฀a฀uma฀“absolvição”,฀uma฀espécie฀de฀segurança฀afiançada฀pelo฀poder฀de฀proteção฀ eficaz฀e฀sagrado,฀“quase฀mágico”,฀da฀“presença”฀real.฀O฀termo฀praesentia฀ remeteria฀tanto฀à฀sacralidade฀romana฀quanto฀à฀sacralidade฀germânica.฀A฀ esse฀termo฀se฀associariam฀igualmente฀ressonâncias฀cristãs,฀mas฀limitadas฀ por฀esse฀“cristianismo฀merovíngio”,฀“superficial฀e฀carregado฀de฀superstições”.฀A฀praesentia฀seria,฀em฀suma,฀sinônimo฀de฀virtus,฀ou฀seja,฀de฀poder฀ miraculoso12.฀ Em฀ primeiro฀ lugar,฀ não฀ há฀ nada฀ no฀ texto฀ acima฀ citado฀ que฀indique฀uma฀função฀“sagrada”฀ou฀“miraculosa”฀da฀presença฀real.฀O฀ Edito฀ de฀ Chilperico฀ menciona฀ as฀ circunstâncias฀ nas฀ quais฀ aquele฀ que฀ perpetrou฀o฀mal฀não฀pode฀ser฀conduzido฀diante฀do฀rei฀para฀ser฀julgado.฀ Trata-se,฀portanto,฀de฀uma฀referência฀à฀necessidade฀de฀um฀julgamento฀ presidido฀pelo฀rei฀e,฀o฀que฀é฀óbvio,฀em฀sua฀presença,฀ou฀talvez฀de฀um฀representante฀seu.฀Em฀segundo฀lugar,฀o฀termo฀mais฀importante฀nesse฀edito฀ não฀é฀a฀praesentia,฀mas฀o฀sermo฀regis,฀ou฀a฀“palavra฀do฀rei”:฀é฀essa฀palavra฀ que฀garante฀um฀julgamento฀de฀acordo฀com฀as฀normas฀do฀procedimento฀ judiciário.฀Ser฀colocado฀fora฀do฀sermo฀regis฀significa฀perder฀toda฀a฀possibilidade฀de฀um฀julgamento฀equânime:฀“...então฀seu฀adversário,฀e฀todos฀ aqueles฀a฀quem฀ele฀terá฀causado฀mal,฀podem฀acusá-lo฀diante฀de฀Nós,฀e฀Nós฀ o฀poremos฀fora฀de฀Nossa฀Palavra฀(nostro฀sermone),฀a฀fim฀de฀que฀quem฀ o฀ encontrar฀ possa฀ matá-lo฀ sem฀ outra฀ formalidade”฀ (grifo฀ nosso).฀ O฀ sermo฀regis฀significa฀aqui฀a฀proteção฀formal฀concedida฀aos฀acusados฀em฀ face฀ da฀ violência฀ e฀ da฀ imprevisibilidade฀ dos฀ acertos฀ interpessoais.฀ No฀ capítulo฀19฀do฀livro฀IX฀das฀Histórias,฀Gregório฀de฀Tours฀conclui฀o฀relato฀ das฀“guerras฀civis”฀(bella฀civilia)฀que฀teriam฀ocorrido฀na฀civitas฀de฀Tours,฀ 12 ฀M.฀Reydellet,฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀pp.฀380-381.฀ 134฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média mencionando฀o฀assassinato฀de฀Sicarius฀por฀Austregésilo.฀Este฀teria฀ido฀ ao฀encontro฀do฀rei฀para฀justificar-se฀pelo฀ocorrido,฀deparando-se฀então฀ com฀ a฀ cólera฀ da฀ rainha฀ Brunilda฀ (†613),฀ pois฀ Sicarius฀ estava฀ sob฀ sua฀ proteção฀(in฀eius฀verbo).฀É฀em฀sobreposição฀às฀relações฀interpessoais฀que฀ a฀“palavra”฀real฀deve฀ser฀entendida:฀ela฀garante฀a฀previsibilidade฀de฀um฀ ordenamento฀jurídico฀no฀qual฀as฀mesmas฀regras฀se฀aplicam฀a฀todos฀os฀ litigantes.฀฀฀฀ No฀Edito฀de฀Chilperico,฀a฀afirmação฀pelo฀rei฀da฀existência฀de฀um฀domínio฀onde฀as฀regras฀jurídicas฀não฀são฀válidas฀e฀onde฀o฀culpado฀pode฀ser฀ assassinado,฀sem฀conseqüências฀legais฀para฀o฀assassino,฀supõe฀a฀existência฀de฀um฀outro฀domínio฀no฀qual฀essas฀regras฀se฀aplicam.฀Essas฀regras฀ não฀são฀o฀simples฀produto฀de฀arbítrio฀do฀rei:฀ao฀afirmar฀que฀os฀acusados฀ colocados฀fora฀do฀sermo฀regis฀estão฀fora฀de฀qualquer฀regime฀de฀proteção฀ legal,฀o฀texto฀admite฀implicitamente฀que฀aqueles฀que฀se฀encontram฀dentro฀do฀sermo฀regis฀se฀beneficiam฀de฀uma฀proteção฀legal13.฀Pode-se฀falar฀ em฀ sobrevivência฀ da฀ autoridade฀ pública฀ quando฀ as฀ medidas฀ tomadas฀ pelo฀poder฀real฀são฀fundamentadas฀por฀uma฀referência฀aos฀interesses฀da฀ coletividade,฀mas฀também฀quando฀essas฀mesmas฀medidas฀são฀equânimes฀e฀universais.฀Na฀carta฀de฀Clóvis฀aos฀bispos฀e฀no฀Edito฀de฀Chilperico,฀ os฀ príncipes฀ agem฀ como฀ os฀ depositários฀ de฀ uma฀ autoridade฀ superior,฀ como฀os฀guardiões฀de฀princípios฀jurídicos฀que฀se฀aplicam฀a฀todos.฀ Outro฀indício฀da฀existência฀de฀uma฀noção฀de฀interesse฀público฀no฀ governo฀ merovíngio฀ se฀ encontra฀ em฀ um฀ diploma฀ de฀ Teudeberto฀ II,฀ de฀596.฀É฀o฀único฀diploma฀real฀preservado฀do฀século฀VI฀sobre฀o฀qual฀ não฀há฀nenhuma฀dúvida฀sobre฀a฀autenticidade,฀ainda฀que฀se฀trate฀de฀ um฀texto฀interpolado,฀ou฀seja,฀ligeiramente฀modificado฀em฀relação฀ao฀ documento฀original.฀Esse฀diploma฀é฀conhecido฀a฀partir฀de฀uma฀cópia฀ carolíngia฀ do฀ século฀ IX฀ (feita฀ entre฀ 857฀ e฀ 862),฀ que฀ por฀ sua฀ vez฀ foi฀ conservada฀através฀de฀um฀manuscrito฀do฀século฀XII฀(produzido฀entre฀ 13 ฀Como฀veremos฀mais฀adiante,฀o฀processo฀do฀bispo฀Pretextatus,฀acusado฀do฀crime฀de฀traição,฀ mostra฀a฀preocupação฀de฀Chilperico฀com฀a฀forma฀jurídica฀(Histórias฀V,฀18).฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀135 1143฀e฀1165)฀14.฀O฀tema฀desse฀documento฀é฀a฀a฀confirmação฀por฀parte฀ do฀rei฀de฀uma฀doação฀realizada฀por฀dois฀irmãos,฀Eoladius,฀um฀padre,฀ e฀Baudomalla,฀uma฀freira.฀Eles฀concedem฀à฀igreja฀de฀São฀Gervais฀e฀à฀ igreja฀de฀São฀Protais,฀localizadas฀no฀pagus฀de฀Mans,฀um฀certo฀número฀ de฀possessões฀no฀mesmo฀local:฀terras฀com฀vinhas,฀prados,฀e฀todos฀os฀ direitos฀sobre฀essas฀terras,฀além฀de฀uma฀pequena฀capela฀(oratorio),฀dedicada฀a฀São฀Martinho,฀que฀os฀doadores฀tinham฀fundado฀nas฀muralhas฀ da฀ cidade฀ de฀ Mans.฀ Teudeberto฀ II฀ explica฀ sua฀ ação฀ utilizando-se฀ da฀ seguinte฀fórmula:฀“Por฀essa฀razão,฀eles฀buscaram฀nossa฀alteza,฀de฀modo฀ que฀devemos฀confirmar฀por฀nossa฀plena฀autoridade...”15.฀O฀rei฀interfere฀ a฀partir฀de฀um฀pedido฀dos฀doadores.฀Entretanto,฀esse฀pedido฀não฀é฀a฀ única฀razão฀invocada฀por฀ele.฀É฀sua฀própria฀autoridade฀que฀Teudeberto฀ invoca฀para฀justificar฀a฀intervenção.฀Os฀doadores฀estão฀persuadidos฀de฀ que฀sem฀a฀confirmação฀real,฀a฀doação฀não฀possui฀nenhum฀valor฀legal.฀A฀ palavra฀“autoridade”฀designa฀nesse฀documento฀um฀poder฀público฀que฀ ultrapassa฀os฀limites฀das฀relações฀interpessoais฀e฀que฀se฀impõe฀a฀essas฀ últimas,฀ conferindo฀ às฀ mesmas฀ uma฀ legitimidade฀ que฀ são฀ incapazes฀ de฀ criar฀ por฀ sí฀ sós.฀ Da฀ mesma฀ forma฀ que฀ nos฀ textos฀ anteriormente฀ citados,฀o฀diploma฀de฀Teudeberto฀II฀testemunha฀da฀existência฀de฀uma฀ “autoridade฀pública”฀com฀regras฀e฀lógicas฀distintas฀dos฀princípios฀que฀ se฀sobrepõem฀e฀orientam฀as฀relações฀interpessoais.฀฀฀ O฀“público”฀nas฀fontes฀merovíngias Não฀ basta฀ encontrar฀ algumas฀ vezes฀ a฀ palavra฀“público”฀ nas฀ fontes฀ do฀ séculos฀VI฀ para฀ se฀ afirmar฀ que฀ a฀ realeza฀ não฀ era฀ considerada฀ uma฀ simples฀ extensão฀ das฀ possessões฀ pessoais฀ do฀ príncipe.฀A฀ existência฀ de฀ termos฀ designando฀ uma฀ esfera฀ de฀ domínio฀ público฀ distinta฀ da฀ esfera฀ dos฀interesses฀pessoais฀dos฀governantes฀não฀significa฀que฀houvesse฀uma฀ 14 ฀Ver฀Die฀Urkunden฀der฀Merowinger,฀ed.฀T.฀Kölzer,฀t.฀I,฀pp.฀68-69.฀ ฀Die฀Urkunden฀der฀Merowinger,฀t.฀I,฀pp.฀69-70.฀ 15 136฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média separação฀de฀fato฀entre฀elas.฀Vários฀historiadores฀atribuem฀aos฀merovíngios฀uma฀inabilidade฀atávica฀em฀entender฀ou฀em฀utilizar฀as฀noções฀ essenciais฀da฀vida฀política฀romana.฀A฀questão฀essencial฀reside฀em฀se฀saber฀se฀os฀conceitos฀presentes฀nos฀documentos฀do฀século฀VI฀realmente฀ encobriam฀uma฀dimensão฀“pública”฀da฀ação฀do฀governo฀real.฀Para฀tanto,฀ é฀necessário฀que฀as฀“palavras”฀estivessem฀de฀acordo฀com฀as฀“coisas”฀que฀ elas฀aparentavam฀expressar,฀isto฀é,฀a฀existência฀de฀uma฀autoridade฀pública.฀฀฀ Nenhum฀outro฀domínio฀da฀administração฀franca฀tem฀sido฀objeto฀de฀ tantas฀polêmicas฀quanto฀o฀fisco16.฀Ele฀está฀no฀centro฀das฀argumentações฀ sobre฀o฀caráter฀patrimonial฀da฀realeza.฀Para฀os฀defensores฀dessa฀tese,฀o฀ fato฀de฀que฀não฀havia฀entre฀os฀francos฀distinção฀entre฀o฀tesouro฀público฀ e฀o฀tesouro฀privado฀dos฀reis฀seria฀a฀prova฀de฀que฀o฀reino฀era฀dirigido฀ como฀se฀fosse฀a฀propriedade฀da฀dinastia฀reinante.฀A฀confusão฀semântica฀ 16 ฀Ver฀J.฀Durliat,฀Les฀finances฀publiques,฀p.฀98.฀Os฀trabalhos฀de฀J.฀Durliat฀apresentam฀as฀sociedades฀da฀Alta฀Idade฀Média฀profundamente฀marcadas฀pela฀perenidade฀do฀sistema฀fiscal฀romano.฀As฀elites฀laicas฀seriam฀agentes฀do฀fisco,฀responsáveis฀por฀recolher฀os฀impostos,฀e฀a฀Igreja,฀ um฀setor฀da฀administração฀pública.฀Sobre฀as฀críticas฀à฀obra฀de฀J.฀Durliat,฀ver฀especialmente฀ Ch.฀Wickham,฀(“La฀chute฀de฀Rome฀n’aura฀pas฀lieu”,฀pp.฀107-126)฀e฀J.-P.฀Devroey฀(Economie฀ rurale฀et฀société฀dans฀l’Europe฀franque,฀pp.231-245).฀Ainda฀que฀a฀obra฀de฀J.฀Durliat฀tenha฀ sido฀objeto฀de฀inúmeras฀críticas฀quanto฀ao฀fixismo฀de฀sua฀interpretação฀do฀vocabulário฀fiscal,฀ uma฀das฀idéias฀por฀ele฀veiculada,฀a฀sobrevivência฀das฀estruturas฀fiscais฀da฀época฀romana,฀não฀ foi฀posta฀em฀cheque฀por฀seus฀detratores.฀Na฀linha฀da฀argumentação฀de฀Durliat,฀ver฀também฀ a฀obra฀recente฀e฀erudita฀de฀A.฀Stoclet,฀em฀que฀ele฀põe฀em฀evidência฀continuidade฀do฀tonlieu฀ durante฀a฀época฀franca฀(A.฀Stoclet,฀Immunes฀ab฀omni฀teloneo).฀A฀sobrevivência฀da฀distinção฀ romana฀entre฀o฀tesouro฀público฀e฀o฀tesouro฀privado฀dos฀governantes฀não฀significa฀que฀o฀sistema฀fiscal฀na฀Gália฀tinha฀permanecido฀inalterado฀após฀a฀fundação฀do฀Regnum฀Francorum,฀ como฀estimava฀F.฀Dahn฀no฀final฀do฀século฀XIX฀(“Zum฀merowingischen฀Finanzrecht”,฀p.฀345).฀ A฀opinião฀desse฀autor฀não฀leva฀em฀conta฀o฀fato฀de฀que฀os฀francos฀transformaram฀o฀legado฀ romano฀segundo฀suas฀necessidades฀e฀segundo฀as฀especificidades฀da฀Gália฀nos฀séculos฀VI฀e฀VII.฀ Ainda฀que฀a฀origem฀romana฀do฀sistema฀fiscal฀franco฀seja฀indiscutível,฀não฀se฀pode฀afirmar฀que฀ as฀taxas฀na฀época฀de฀Clóvis,฀de฀Clotário,฀de฀Chilperico฀e฀de฀Gontrão฀eram฀as฀mesmas฀da฀época฀ de฀Diocleciano฀e฀de฀Constantino,฀como฀mostrou฀W.฀Goffart฀(“Old฀and฀New฀in฀Merovingian฀ Taxation”,฀ p.฀ 213).฀ Segundo฀ Goffart,฀ duas฀ categorias฀ de฀ documentos฀ dos฀ séculos฀VII฀ e฀VIII Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀137 que฀encontramos฀nas฀Histórias฀pode฀explicar฀o฀prestígio฀dessa฀tese:฀algumas฀vezes,฀Gregório฀de฀Tours฀menciona฀o฀“tesouro฀do฀rei”,฀mas฀ao฀se฀ analisar฀o฀contexto฀no฀qual฀a฀expressão฀é฀utilizada,฀percebe-se฀que฀ele฀ faz฀referência฀ao฀tesouro฀público.฀É฀o฀caso฀do฀capítulo฀45฀do฀livro฀VI,฀ cujo฀assunto฀é฀o฀casamento฀da฀filha฀do฀rei฀Chilperico฀com฀um฀príncipe฀ visigodo.฀Nesse฀capítulo,฀a฀rainha฀Fredegonda฀fala฀dos฀“tesouros฀dos฀reis฀ precedentes”,฀mas฀fica฀claro฀ao฀longo฀do฀texto,฀sobretudo฀na฀conclusão฀ do฀ discurso฀ que฀ lhe฀ é฀ atribuído฀ pelo฀ bispo฀ de฀ Tours,฀ que฀ se฀ trata฀ do฀ “tesouro฀público”: “Não฀acreditem,฀guerreiros,฀que฀haja฀aqui฀alguma฀coisa฀dos฀tesouros฀dos฀ reis฀precedentes…pois฀não฀há฀nada฀aqui฀dos฀tesouros฀públicos”17.฀ O฀termo฀“tesouro”฀empregado฀pelo฀bispo฀de฀Tours฀é฀às฀vezes฀bastante฀ambíguo฀e฀se฀presta฀à฀confusão.฀Somente฀nas฀Histórias,฀é฀possível฀ identificar฀três฀acepções฀distintas฀desse฀termo.฀A฀primeira฀corresponde฀ ao฀cofre฀do฀tesouro฀público฀ou฀o฀aerarium,฀isto฀é,฀o฀lugar฀onde฀eram฀ conservados฀ouro฀e฀dinheiro: “Quanto฀aos฀servidores฀que฀foram฀enviados฀pelo฀rei฀para฀procurar฀os฀bens฀ desse฀homem,฀eles฀descobriram฀tanto฀em฀seus฀tesouros฀(thesauris฀illius)฀que฀ eles฀não฀poderiam฀ter฀encontrado฀nos฀cofres฀do฀tesouro฀público฀(aerarii฀publici)”฀(grifo฀nosso)18.฀฀ mostram฀especialmente฀o฀contraste฀entre฀a฀fiscalidade฀romana฀e฀a฀fiscalidade฀merovíngia.฀Os฀ primeiros฀são฀os฀diplomas฀de฀imunidade฀–฀documentos฀reais฀que฀proibiam฀aos฀agentes฀do฀rei฀ o฀acesso฀a฀alguns฀domínios฀fundiários฀para฀a฀coleta฀de฀impostos฀ou฀para฀o฀exercício฀da฀justiça.฀ A฀segunda฀categoria฀de฀documentos฀seriam฀os฀registros฀dos฀domínios฀laicos฀e฀eclesiásticos.฀A฀ leitura฀dos฀diplomas฀de฀imunidade฀do฀século฀VII฀mostra,฀segundo฀W.฀Goffart,฀um฀vocabulário฀ que฀contrasta฀profundamente฀com฀o฀vocabulário฀das฀imunidades฀romanas:฀nessas฀últimas,฀em฀ nenhuma฀parte฀as฀taxas฀eram฀invocadas;฀tratava-se,฀sobretudo,฀de฀liberar฀os฀beneficiários฀das฀ imunidades฀de฀todas฀as฀funções฀públicas฀(Ibid.,฀p.฀214).฀ 17 Histórias฀VI,฀45. 18 ฀Histórias฀IX,฀9.฀฀฀ 138฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média A฀segunda฀acepção฀do฀termo฀diz฀respeito฀ao฀local฀onde฀estavam฀depositados฀os฀diplomas฀oficiais,฀os฀atos฀públicos,฀bem฀como฀as฀cópias฀das฀ cartas฀reais: “Esses฀escritos฀foram฀descobertos฀em฀um฀tesouro฀do฀rei฀Chilperico,฀reunidos฀dentro฀de฀um฀de฀seus฀cofres,฀e฀chegaram฀até฀ele฀(Childeberto)฀quando฀ após฀o฀assassinato฀de฀Chilperico฀os฀tesouros฀desse฀último฀foram฀retirados฀da฀ vila฀de฀Chelles,฀que฀pertence฀à฀cidade฀de฀Paris,฀para฀lhe฀ser฀enviado”฀(grifo฀ nosso)19.฀฀ “Esse฀papel฀não฀foi฀trazido฀do฀tesouro฀do฀rei฀e฀durante฀vários฀anos฀ele฀não฀ esteve฀em฀vigor…”฀(grifo฀nosso)20.฀ O฀termo฀“tesouro”฀pode฀designar฀também฀o฀tesouro฀pessoal฀do฀rei,฀ de฀ outros฀ membros฀ da฀ família฀ real,฀ ou฀ ainda฀ o฀ dote฀ de฀ uma฀ princesa21.฀Há฀casos฀em฀que฀o฀bispo฀de฀Tours฀menciona฀a฀palavra฀“fisco”฀ou฀a฀ expressão฀“tesouro฀público”,฀numa฀clara฀tentativa฀de฀diferenciação฀em฀ relação฀a฀“possessões฀pessoais”: “O฀ bispo฀ Eunius,฀ o฀ embaixador฀ dos฀ bretões,฀ de฀ quem฀ falamos฀ anteriormente,฀não฀foi฀autorizado฀a฀voltar฀para฀a฀sua฀cidade,฀e฀o฀rei฀ordenou฀que฀ele฀ fosse฀mantido฀em฀Angers฀à฀custa฀do฀tesouro฀público”฀(grifo฀nosso)22.฀฀ O฀fisco,฀ou฀tesouro฀público,฀provavelmente฀compreendia฀o฀aerarium฀ e฀os฀“arquivos”฀reais,฀mas฀há฀razões฀para฀se฀pensar฀que฀ele฀não฀incluía฀os฀ bens฀pessoais฀do฀rei,฀como฀se฀verá฀mais฀adiante.฀As฀referências฀ao฀fisco฀ 19 ฀Histórias฀X,฀19.฀฀ ฀Histórias฀IX,฀30.฀ 21 ฀Histórias฀VI,฀35:฀“Em฀seguida,฀a฀rainha฀apoderou-se฀do฀tesouro฀de฀seu฀pequeno฀filho,฀e฀destruiu฀pelo฀fogo฀tanto฀as฀vestimentas฀quanto฀os฀outros฀objetos,฀fossem฀eles฀de฀seda฀ou฀de฀um฀tecido฀ qualquer,฀e฀tudo฀o฀que฀ela฀pôde฀encontrar”฀;฀Histórias฀IV,฀28:฀“O฀pai,฀recebendo฀essas฀promessas,฀ lhe฀envia฀sua฀filha฀como฀havia฀feito฀com฀a฀outra,฀com฀grandes฀tesouros...”.฀฀ 22 ฀Histórias฀V,฀40.฀฀฀฀฀฀ 20 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀139 não฀supõem฀necessariamente฀a฀existência฀de฀um฀“Estado฀fiscal”฀franco,฀ pois฀este,฀como฀bem฀lembrou฀J.-P.฀Devroey,฀não฀deixou฀nem฀manuais,฀ nem฀ leis,฀ nem฀ instrumentos฀ econômicos฀ e฀ administrativos฀ que฀ testemunhariam฀de฀seu฀funcionamento.฀Boa฀parte฀do฀dossiê฀do฀imposto฀no฀ século฀VI฀se฀reduz฀na฀Francia฀aos฀testemunhos฀antifiscais฀transmitidos฀ por฀Gregório฀de฀Tours฀num฀contexto฀de฀defesa฀dos฀direitos฀da฀Igreja.฀ De฀ acordo฀ com฀ Devroey,฀ ainda฀ havia฀ registros฀ e฀ tentativas฀ de฀ cobrar฀ imposto฀em฀certas฀cidades฀da฀Gália฀no฀final฀do฀século฀VI,฀mas฀as฀fontes฀ se฀referem฀a฀eles฀apenas฀para฀assinalar฀a฀destruição฀dos฀livros฀e฀o฀assassinato฀dos฀coletores23.฀Não฀apenas.฀O฀bispo฀de฀Tours฀menciona฀os฀casos฀ de฀vários฀personagens฀cujos฀bens฀teriam฀sido฀vertidos฀ao฀fisco฀após฀sua฀ morte24.฀Pode-se฀citar฀igualmente฀o฀caso฀do฀rei฀Clotário,฀que฀impôs฀a฀ todas฀as฀igrejas฀de฀seu฀reino฀a฀obrigação฀de฀entregar฀a฀terça฀parte฀de฀suas฀ rendas฀ao฀fisco:฀“O฀rei฀Clotário฀havia฀ordenado฀que฀todas฀as฀igrejas฀de฀seu฀ reino฀vertessem฀um฀terço฀de฀seus฀frutos฀ao฀fisco”25.฀Gregório฀de฀Tours฀não฀ é฀o฀único฀autor฀que฀reconhece฀esse฀fenômeno:฀na฀crônica฀atribuída฀a฀ Fredegário,฀também฀há฀menções฀a฀vítimas฀do฀fisco26.฀ Poder-se-ia฀ argumentar฀ que฀ essa฀ distinção฀ entre฀“fisco”฀ e฀“tesouro฀ pessoal฀do฀rei”฀era฀meramente฀semântica,฀e฀que฀havia,฀na฀prática,฀confusão฀entre฀ambos.฀Ora,฀nenhum฀trecho฀das฀Histórias฀ilustra฀melhor฀a฀ existência฀de฀uma฀separação฀real฀entre฀“tesouro฀público”฀e฀“tesouro฀do฀ rei”฀que฀o฀capítulo฀que฀trata฀do฀casamento฀da฀filha฀de฀Chilperico฀e฀de฀Fredegonda฀com฀um฀príncipe฀visigodo.฀De฀acordo฀com฀Gregório,฀diante฀da฀ 23 ฀J.-P.฀Devroey,฀Economie฀rurale฀et฀société฀dans฀l’Europe฀franque,฀p.฀236.฀฀฀฀ ฀Histórias฀III,฀14:฀฀“Quando฀ele฀foi฀assassinado,฀seus฀bens฀foram฀vertidos฀ao฀fisco”;฀Histórias฀ VI,฀28:฀“…em฀seguida,฀tendo฀feito฀penitência,฀sua฀alma฀se฀foi฀e฀seus฀bens฀foram฀vertidos฀ao฀fisco”;฀ Histórias฀IV,฀13:฀“...seus฀bens฀foram฀confiscados”.฀฀ 25 ฀Histórias฀IV,฀2.฀฀฀฀฀฀฀ 26 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀21:฀“No฀sétimo฀ano฀do฀reinado฀de฀Teuderico,฀ele฀teve,฀de฀uma฀concubina,฀um฀filho,฀chamado฀Sigeberto,฀e฀o฀patrício฀Aegyla,฀sem฀se฀que฀possa฀lhe฀imputar฀nenhum฀erro,฀ foi฀assassanado฀por฀instigação฀de฀Brunilda.฀A฀única฀razão฀para฀isso฀está฀no฀desejo฀cúpido฀de฀que฀o฀ fisco฀se฀aproprie฀de฀sua฀fortuna”.฀ 24 140฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média estupefação฀dos฀francos฀com฀a฀quantidade฀de฀tesouros฀que฀faziam฀parte฀ do฀dote฀da฀princesa,฀a฀rainha฀Fredegonda฀teria฀tentado฀acalmá-los: “Não฀acreditem,฀guerreiros,฀que฀haja฀aqui฀alguma฀coisa฀dos฀tesouros฀dos฀ reis฀precedentes.฀Tudo฀o฀que฀vês฀aqui฀foi฀tirado฀de฀minha฀propriedade,฀pois฀ o฀gloriosíssimo฀rei฀deu-me฀muitos฀presentes฀e฀eu฀mesma฀acrescentei฀alguns฀ bens฀com฀meu฀próprio฀trabalho.฀Eu฀também฀obtive฀muito฀com฀os฀tributos฀ em฀dinheiro฀e฀in฀natura฀das฀villae฀que฀me฀foram฀concedidas.฀Vós฀me฀destes฀ muito฀presentes,฀com฀os฀quais฀eu฀compus฀o฀que฀vós฀vedes฀diante฀de฀vós,฀pois฀ nada฀há฀aqui฀dos฀tesouros฀públicos”฀(grifo฀nosso)27.฀ Em฀primeiro฀lugar,฀a฀reação฀negativa฀da฀multidão,฀descrita฀por฀Gregório฀de฀Tours,฀mostra฀que฀havia฀uma฀regra฀segundo฀a฀qual฀os฀príncipes฀ não฀podiam฀utilizar฀o฀fisco฀como฀se฀se฀tratasse฀de฀sua฀possessão฀pessoal.฀A฀ justificativa฀da฀rainha฀perante฀seus฀súditos฀constitui฀uma฀lembrança฀desse฀ princípio฀de฀separação.฀Ela฀diz฀aos฀francos฀que฀os฀tesouros฀que฀compunham฀a฀dote฀da฀princesa฀não฀pertenciam฀ao฀tesouro฀público,฀e฀sim฀a฀seu฀ tesouro฀pessoal.฀O฀bispo฀de฀Tours฀não฀teria฀mencionado฀essa฀ressalva฀se฀a฀ confusão฀entre฀ambos฀os฀domínios฀fosse฀uma฀prática฀recorrente฀ou฀ainda฀ um฀princípio฀estabelecido฀pela฀tradição฀e฀aceito฀por฀todos.฀฀ Isso฀não฀quer฀dizer฀que฀o฀período฀merovíngio฀não฀conhecesse฀a฀confusão฀entre฀os฀bens฀públicos฀e฀os฀bens฀pessoais฀dos฀reis.฀A฀proximidade฀ geográfica฀–฀ambos฀os฀tesouros฀se฀encontravam฀no฀Palácio฀–฀provavelmente฀facilitou฀amálgamas.฀Da฀mesma฀maneira,฀funcionários฀corruptos฀ confundiam฀os฀bens฀do฀fisco฀com฀os฀seus฀próprios฀bens.฀Gregório฀de฀ Tours฀menciona,฀por฀exemplo,฀Celso,฀nomeado฀patrício฀por฀Gontrão: “Ele฀foi฀dominado฀em฀seguida฀por฀uma฀tal฀cobiça฀que฀freqüentemente฀tomava฀os฀bens฀das฀igrejas฀para฀confiscá-los฀em฀seu฀próprio฀proveito.฀Conta-se฀ que฀tendo฀lido฀uma฀vez฀numa฀igreja฀o฀verso฀do฀profeta฀Isaías฀no฀qual฀esse฀diz:฀ ‘Aflição฀a฀estes฀que฀unem฀as฀casas฀às฀casas฀e฀reúnem฀os฀campos฀aos฀campos,฀ 27 ฀Histórias฀VI,฀45. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀141 até฀os฀confins฀do฀país!’,฀ele฀teria฀gritado:฀‘É฀incongruente;฀aflição฀a฀mim฀e฀ao฀ meu฀filho!’”28.฀฀฀ A฀ descrição฀ negativa฀ de฀ Gregório฀ mostra฀ uma฀ vez฀ mais฀ que฀ a฀ confusão฀entre฀os฀bens฀pessoais฀e฀os฀bens฀públicos฀era฀uma฀anomalia฀ que฀ os฀ clérigos฀ não฀ hesitaram฀ em฀ combater฀ –฀ especialmente฀ quando฀as฀malversações฀diziam฀respeito฀aos฀bens฀eclesiásticos,฀diga-se฀de฀ passagem.฀Uma฀prática฀difundida฀e฀legal฀na฀administração฀franca,฀ao฀ menos฀no฀que฀se฀refere฀à฀administração฀local,฀previa฀que฀uma฀parte฀ dos฀impostos฀arrecadados฀fosse฀apropriada฀pelo฀funcionário฀responsável฀pela฀arrecadação,฀como฀forma฀de฀remuneração,฀enquanto฀outra฀ parte฀ia฀para฀o฀fisco29.฀Apesar฀de฀uma฀confusão฀física฀entre฀o฀tesouro฀ público฀e฀o฀tesouro฀do฀rei,฀e฀dos฀inúmeros฀casos฀de฀corrupção฀relatados฀ nas฀ Histórias฀ de฀ Gregório฀ de฀ Tours฀ ou฀ nas฀ Crônicas฀ atribuídas฀ a฀Fredegário,฀havia฀na฀administração฀franca฀uma฀regra฀de฀separação฀ entre฀ambos฀os฀domínios.฀ A฀abundância฀de฀exemplos฀de฀separação฀entre฀o฀tesouro฀público฀e฀ o฀tesouro฀privado฀dos฀príncipes฀não฀significa฀que฀os฀historiadores฀que฀ sustentam฀a฀tese฀da฀“realeza฀patrimonial”฀desconsiderem฀ou฀alterem฀ eventos฀voluntariamente฀para฀que฀suas฀conclusões฀sejam฀demonstradas.฀Simplesmente,฀a฀dimensão฀anedótica฀das฀narrações฀sobre฀os฀reis฀ francos,฀ por฀ tudo฀ o฀ que฀ elas฀ mostram฀ da฀“crueldade”฀ e฀ da฀“sede฀ de฀ poder”฀desses฀personagens,฀deixou฀em฀segundo฀plano฀o฀fato฀de฀que฀os฀ excessos฀ou฀as฀ambições฀pessoais฀não฀são฀necessariamente฀incompatíveis฀com฀uma฀administração฀pública฀regida฀pelo฀princípio฀do฀interes- 28 ฀Histórias฀IV,฀24. ฀A฀mesma฀coisa฀ocorria฀no฀tocante฀às฀multas.฀J.฀Durliat฀lembra฀que฀pelo฀menos฀na฀Baviera,฀a฀ pessoa฀encarregada฀pelo฀conde฀de฀exercer฀a฀justiça฀recebia฀um฀nono฀do฀valor฀total฀das฀multas฀ a฀título฀de฀remuneração฀(L.฀Bav.฀2,฀15,฀citada฀por฀J.฀Durliat,฀Les฀finances฀publiques,฀p.฀120,฀n.฀ 205).฀O฀restante฀ia฀em฀parte฀à฀pessoa฀lesada฀e฀em฀parte฀à฀realeza,฀no฀caso฀de฀julgamento฀entre฀ particulares,฀ ou฀ em฀ sua฀ totalidade฀ à฀ realeza,฀ no฀ caso฀ de฀ desrespeito฀ às฀ obrigações฀ públicas,฀ notadamente฀militares฀(G.฀Waitz,฀Deutsche฀Verfassungsgeschichte,฀t.฀II,฀p.฀290,฀citado฀por฀J.฀ Durliat,฀Les฀finances฀publiques,฀p.฀120).฀฀฀฀฀ 29 142฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média se฀superior,฀distinto฀dos฀interesses฀pessoais฀daqueles฀que฀governam.฀A฀ confusão฀entre฀o฀fisco฀e฀as฀possessões฀dos฀reis฀francos฀é฀essencialmente฀ um฀mito฀do฀Romantismo฀cujo฀vigor฀ultrapassou฀em฀muito฀os฀limites฀ do฀século฀XIX30. “Aequa฀lance”:฀As฀partições฀territoriais฀do฀Regnum฀Francorum฀no฀século฀VI As฀ partilhas฀ de฀ que฀ foi฀ objeto฀ o฀ Reino฀ dos฀ Francos฀ a฀ partir฀ da฀ morte฀ de฀ Clóvis฀ (511)฀ são฀ comumente฀ apontadas฀ como฀ o฀ melhor฀ indício฀ do฀ caráter฀ patrimonial฀ da฀ realeza฀ franca:฀ com฀ a฀ morte฀ do฀ rei,฀ o฀ reino฀ seria฀ dividido฀ entre฀ seus฀ herdeiros฀ como฀ se฀ fosse฀ um฀ bem฀ pessoal฀ do฀ rei฀ ou฀ da฀ família฀ merovíngia31.฀ Por฀ outro฀ lado,฀ a฀ demonstração฀de฀que฀as฀divisões฀territoriais฀do฀Regnum฀Francorum฀ não฀eram฀orientadas฀por฀conveniências฀pessoais฀ou฀patrimoniais,฀e฀ sim฀por฀uma฀lógica฀derivada฀do฀interesse฀público,฀é฀o฀melhor฀e฀mais฀ 30 ฀Autores฀como฀H.฀Pirenne฀tinham฀sustentado฀que฀não฀havia฀confusão฀entre฀as฀finanças฀públicas฀e฀as฀finanças฀pessoais฀dos฀reis฀francos,฀mas฀suas฀idéias฀não฀obtiveram฀muita฀repercussão฀ entre฀os฀historiadores.฀Para฀Pirenne,฀a฀conservação฀do฀imposto฀romano฀e฀do฀“tonlieu”฀era฀a฀ fonte฀essencial฀do฀poder฀dos฀reis฀francos฀(H.฀Pirenne,฀“Liberté฀et฀propriété฀en฀Flandre฀du฀VIIe฀ au฀XIe฀siècle”,฀p.฀522-523).฀Mais฀recentemente,฀a฀tese฀de฀Pirenne฀tem฀sido฀reavaliada฀por฀trabalhos฀que฀sustentam฀que฀o฀sistema฀fiscal฀erigido฀pelos฀romanos฀tinha฀sobrevivido฀às฀invasões฀ e฀servia฀ainda฀às฀necessidades฀dos฀reis฀merovíngios฀[A฀bibliografia฀a฀esse฀respeito฀é฀numerosa.฀ Há฀ os฀ trabalhos฀ de฀ J.฀ Barbier,฀“Palais฀ et฀ fisc฀ à฀ l’époque฀ carolingienne:฀Attigny”,฀ pp.132-162;฀ da฀mesma฀autora,฀“Aspects฀du฀fisc฀en฀Neustrie฀(VIe-Xe฀siècles).฀Résultats฀d’une฀recherche฀en฀ cours”,฀pp.฀129-142;฀de฀E.฀Magnou-Nortier,฀“La฀gestion฀publique฀en฀Neustrie:฀les฀moyens฀et฀les฀ hommes฀(VIIe-IXe฀siècles)”,฀pp.฀271-320;฀e฀“Les฀Pagenses,฀notables฀et฀fermiers฀du฀fisc฀durant฀ le฀haut฀moyen฀age”,฀pp.฀237-256.฀Não฀se฀pode฀deixar฀de฀mencionar฀os฀trabalhos฀de฀W.฀Goffart฀ (“Old฀and฀New฀in฀Merovingian฀taxation”,฀pp.213-231).฀฀฀฀ 31 ฀Em฀artigo฀recente,฀R.฀Le฀Jan฀afirma฀que฀a฀solução฀da฀partilha฀não฀significa฀que฀o฀reino฀era฀ considerado฀como฀um฀bem฀“privado”,฀mas฀que฀ele฀era฀o฀patrimônio฀da฀família฀merovíngia,฀por฀ sua฀vez฀emanação฀do฀povo฀franco฀[R.฀Le฀Jan,฀“Le฀royaume฀des฀Francs฀de฀481฀à฀888”,฀pp.11-111;฀ ver฀também,฀da฀mesma฀autora,฀Les฀Mérovingiens].฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀143 forte฀indício฀da฀permanência฀da฀noção฀de฀utilitas฀publica฀no฀edifício฀ político฀franco. ฀“Após฀a฀morte฀do฀rei฀Clovis,฀seus฀quatro฀filhos,฀isto฀é,฀Teuderico,฀Clodomiro,฀Childeberto฀e฀Clotário,฀ampararam-se฀de฀seu฀reino฀e฀dividiram-no฀entre฀ si฀mantendo฀um฀igual฀equilíbrio฀(aequa฀lance)”32.฀ Esse฀trecho฀das฀Histórias฀relata฀a฀primeira฀partilha฀do฀Regnum฀Francorum.฀Os฀quatro฀filhos฀de฀Clóvis,฀Teuderico,฀Clodomiro,฀Childeberto฀e฀ Clotário,฀obtiveram,฀cada฀um,฀uma฀parte฀do฀reino.฀Conforme฀expressão฀ utilizada฀pelo฀bispo฀de฀Tours,฀tratou-se฀de฀uma฀partilha฀“aequa฀lance”,฀ com฀“igual฀equilíbrio”,฀ou฀com฀“balança฀igual”.฀A฀mesma฀expressão฀aparece฀novamente฀no฀relato฀de฀Gregório฀quando฀descreve฀o฀assassinato฀dos฀ filhos฀de฀Clodomiro,฀morto฀durante฀a฀guerra฀contra฀os฀burgúndios.฀Após฀ terem฀assassinado฀seus฀sobrinhos,฀Clotário฀e฀Childeberto฀teriam฀partilhado฀o฀reino฀de฀seu฀irmão:฀“Eles฀então฀dividiram฀o฀reino฀de฀Clodomiro฀ entre฀si฀com฀igual฀equilíbrio฀(aequa฀lance)”33.฀Vários฀historiadores฀interpretaram฀essas฀duas฀referências฀à฀eqüidade฀como฀a฀prova฀mais฀límpida฀ do฀caráter฀patrimonial฀da฀realeza฀franca:฀os฀merovíngios฀teriam฀dividido฀ o฀reino฀como฀se฀estivessem฀dividindo฀uma฀extensão฀de฀terras฀quaisquer,฀ em฀suma,฀um฀bem฀pessoal.฀O฀abade฀Le฀Beuf,฀por฀exemplo,฀viu฀no฀termo฀ “aequa฀lance”฀a฀prova฀de฀que฀os฀territórios฀obtidos฀por฀cada฀príncipe฀se฀ equivaliam฀do฀ponto฀de฀vista฀da฀extensão฀territorial34.฀Assim฀sendo,฀as฀ partilhas฀levariam฀em฀conta฀apenas฀as฀conveniências฀pessoais฀dos฀herdeiros฀–฀a฀começar฀pelo฀seu฀número฀–฀em฀detrimento฀de฀contingências฀ge- 32 ฀Histórias฀III,฀1. ฀Histórias฀III,฀18.฀A฀ausência฀de฀menção฀a฀Teuderico฀sugere,฀à฀primeira฀vista,฀que฀ele฀não฀foi฀ beneficiado฀pela฀partilha฀do฀reino฀de฀Clodomiro.฀ 34 ฀J.฀Le฀Beuf,฀Dissertation฀dans฀laquelle฀on฀recherche฀depuis฀quel฀temps฀le฀nom฀de฀France฀a฀été฀ en฀usage...,฀pp.฀84-85.฀Essa฀idéia฀é฀o฀ponto฀de฀partida฀da฀tese฀de฀Fustel฀de฀Coulanges,฀para฀quem฀ o฀Reino฀dos฀Francos฀era฀um฀bem฀privado฀de฀seus฀soberanos,฀uma฀espécie฀de฀patrimônio฀que฀se฀ transmitia฀segundo฀as฀regras฀ordinárias,฀podendo฀mesmo฀ser฀legado฀por฀testamento฀ou฀por฀simples฀declaração฀de฀vontade฀(N.฀D.฀Fustel฀de฀Coulanges,฀La฀monarchie฀franque,฀pp.฀649-651).฀฀ 33 144฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ográficas฀ou฀políticas.฀Ora,฀o฀bispo฀de฀Tours,฀quando฀descreve฀a฀sucessão฀ de฀Clotário,฀único฀rei฀dos฀francos฀entre฀558฀e฀561,฀não฀emprega฀a฀expressão฀aequa฀lance.฀Segundo฀Gregório,฀após฀a฀morte฀de฀Clotário,฀seu฀filho฀ Chilperico฀teria฀pretendido฀apoderar-se฀da฀maioria฀da฀herança฀paterna.฀ Ele฀rapidamente฀teria฀tomado฀posse฀do฀tesouro฀real฀de฀Paris,฀prestigioso฀ centro฀político฀do฀reino,฀onde฀Clóvis฀estava฀enterrado35.฀Os฀irmãos฀de฀ Chilperico฀uniram-se฀contra฀ele฀e฀procederam฀então,฀acrescenta฀Gregório,฀a฀um฀partilha฀“legitima”฀do฀reino36.฀Sabe-se฀que฀não฀se฀tratou฀de฀uma฀ partilha฀territorialmente฀equânime,฀pois฀Chilperico฀recebeu฀uma฀parte฀ do฀reino฀inferior฀às฀de฀seus฀irmãos37.฀Isso฀poderia฀significar฀que฀ao฀pre- 35 ฀ A฀ captura฀ do฀ tesouro฀ real฀ e฀ da฀ cidade฀ de฀ Paris฀ por฀ Chilperico฀ se฀ explica฀ provavelmente฀ pelo฀seu฀temor฀de฀ser฀excluído฀da฀sucessão฀real฀após฀a฀morte฀de฀Clotário.฀Contrariamente฀a฀ Gontrão,฀a฀Sigeberto฀ou฀a฀Cariberto,฀ele฀não฀era฀fruto฀da฀união฀de฀Clotário฀com฀Igonda,฀mas฀ com฀a฀irmã฀dela,฀Aregonda.฀ 36 ฀Histórias฀IV,฀22:฀“Logo฀em฀seguida,฀ele฀entrou฀em฀Paris฀e฀ocupou฀a฀sede฀do฀rei฀Childeberto,฀mas฀ não฀lhe฀foi฀permitido฀possuí-la฀durante฀muito฀tempo,฀pois฀seus฀irmãos฀se฀uniram฀e฀o฀expulsaram,฀ e฀em฀seguida฀todos฀esses฀quatro,฀ou฀seja,฀Cariberto,฀Gontrão,฀Chilperico฀e฀Sigeberto,฀fizeram฀uma฀ partilha฀legítima”.฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 37 ฀Ver฀ A.฀ Longnon,฀ Géographie฀ de฀ la฀ Gaule฀ au฀VIe฀ siècle,฀ pp.115-152.฀ Graças฀ a฀ fontes฀ variadas,฀como฀as฀Histórias฀de฀Gregorio฀de฀Torres,฀as฀Crônicas฀de฀Fredegário฀ou฀as฀“Vidas฀de฀ santos”,฀é฀possível฀compreender฀melhor฀as฀partilhas฀merovíngias.฀Entretanto,฀a฀raridade฀dos฀ testemunhos฀torna฀difícil,฀e฀até฀mesmo฀impossível,฀a฀reconstituição฀dos฀contornos฀exatos฀dos฀ territórios฀ atribuídos฀ a฀ cada฀ príncipe฀ franco฀ durante฀ as฀ partilhas฀ que฀ ocorreram฀ após฀ 511.฀ Convém฀ também฀ ser฀ prudente฀ sobre฀ o฀ testemunho฀ das฀ fontes.฀ Trabalhos฀ antigos,฀ como฀ os฀ de฀A.฀Longnon,฀ou฀mais฀recentes,฀como฀os฀de฀E.฀Ewig฀[฀“Die฀fränkische฀Teilungen฀und฀Teilreiche฀ (511-613)”],฀ de฀ M.฀ Heinzelmann฀ (Gregor฀von฀Tours)฀ e฀ I.฀Wood฀ (“Gregory฀ of฀ Tours฀ and฀Clovis”,฀pp.฀249-272),฀têm฀posto฀em฀evidência฀os฀enganos,฀voluntários฀ou฀não,฀contidos฀ na฀narração฀do฀bispo฀de฀Tours.฀Ver฀Grégoire฀de฀Tours฀et฀l’espace฀gaulois:฀actes฀du฀congrès฀ international.฀A฀maioria฀do฀imenso฀trabalho฀de฀reconstituição฀dos฀contornos฀territoriais฀das฀ partilhas฀ merovíngias฀ foi฀ empreendido฀ por฀A.฀ Longnon฀ e฀ atualizado฀ algumas฀ décadas฀ mais฀ tarde฀por฀E.฀Ewig.฀É฀em฀seus฀trabalhos฀que฀nos฀apoiaremos฀nas฀páginas฀seguintes฀para฀delinear฀ os฀contornos฀geográficos฀de฀cada฀uma฀das฀partilhas.฀É฀possível฀que฀novas฀pesquisas฀venham฀a฀ mostrar฀que฀uma฀ou฀outra฀civitas฀aqui฀citada฀não฀esteja฀corretamente฀localizada฀em฀cada฀um฀ dos฀regna.฀Entretanto,฀o฀essencial฀neste฀capítulo฀é฀identificar฀qual฀era฀ou฀quais฀eram฀as฀lógicas฀ que฀presidiam฀as฀partilhas฀do฀Regnum฀Francorum฀durante฀o฀século฀VI. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀145 ferir฀utilizar฀a฀expressão฀“legitima”,฀ao฀invés฀de฀“aequa฀lance”,฀Gregório฀ estava฀consciente฀de฀que฀essa฀última฀somente฀seria฀aplicável฀no฀caso฀de฀ uma฀partilha฀isonômica฀geograficamente,฀o฀que฀decididamente฀não฀era฀ o฀caso฀da฀partilha฀de฀561.฀฀฀฀฀฀฀ O฀primeiro฀argumento฀contra฀essa฀tese฀é฀que,฀ao฀se฀observar฀um฀ mapa฀da฀divisão฀territorial฀de฀511,฀por฀exemplo,฀fica฀claro฀que฀não฀havia฀equilíbrio฀geográfico฀algum฀(ver฀mapa฀1).฀Em฀extensão฀territorial,฀ por฀exemplo,฀o฀regnum฀de฀Childeberto฀I฀era฀bem฀menor฀do฀que฀o฀de฀ Teuderico.฀Por฀outro฀lado,฀a฀sucessão฀real฀entre฀os฀francos฀nem฀sempre฀ beneficiou฀ os฀ filhos฀ do฀ príncipe.฀ Segundo฀ H.-W.฀ Goetz,฀ a฀“herança฀ dos฀filhos”฀e฀a฀“herança฀dos฀irmãos”฀coexistiram฀como฀dois฀“sistemas”฀ concorrentes฀sem฀que฀um฀predominasse฀sobre฀o฀outro,฀ainda฀que฀a฀su38 cessão฀dos฀irmãos฀fosse฀excepcional .฀Assim,฀por฀volta฀de฀523,฀quando฀ o฀ rumor฀ da฀ morte฀ de฀ Teuderico฀ chegou฀ à฀Auvérnia,฀ foi฀ a฀ seu฀ meioirmão,฀ Childeberto,฀ que฀ os฀ habitantes฀ da฀ cidade฀ se฀ submeteram,฀ em฀ detrimento฀ do฀ filho฀ legítimo฀ de฀ Teuderico,฀ o฀ príncipe฀ Teudeberto39.฀ No฀entanto,฀a฀situação฀é฀bem฀mais฀complexa.฀As฀crônicas฀dos฀séculos฀ VI฀e฀VII฀estão฀repletas฀de฀situações฀nas฀quais฀nem฀todos฀os฀filhos฀do฀ príncipe฀herdaram฀o฀reino.฀Entre฀os฀burgúndios,฀após฀a฀morte฀do฀rei฀ Gondebaldo,฀em฀516,฀seu฀filho฀Sigismundo฀é฀quem฀lhe฀sucedeu:฀o฀reino฀ não฀foi฀partilhado฀entre฀este฀último฀e฀seu฀irmão฀Godomar40.฀O฀terceiro฀ livro฀das฀Crônicas฀atribuídas฀a฀Fredegário฀sugere฀que฀Sigismundo฀se฀ tornou฀rei฀pela฀vontade฀de฀seu฀pai,฀mas฀nada฀é฀dito฀a฀respeito฀de฀seu฀ irmão41.฀ É฀ necessário,฀ portanto,฀ nuançar฀ a฀ fórmula฀ citada฀ por฀ Gre- 38 ฀H.-W.฀Goetz,฀“Coutume฀d’héritage฀et฀structures฀familiales฀au฀haut฀Moyen฀Age”,฀pp.฀203-237. ฀Histórias฀III,฀9:฀“Enquanto฀Teuderico฀ainda฀estava฀na฀Turíngia,฀correu฀o฀rumor฀em฀Auvérnia฀ (Clermont)฀que฀ele฀havia฀sido฀assassinado.฀Arcadius,฀um฀dos฀senadores฀auvérnios,฀convida฀então฀ Childeberto฀a฀tomar฀a฀região”.฀ 40 ฀Histórias฀III,฀5:฀“Após฀a฀morte฀de฀Gondobaldo,฀seu฀filho฀Sigismundo฀tomou฀posse฀de฀seu฀reino”.฀฀฀ 41 ฀ Fredegário,฀ Crônicas,฀ III,฀ 33:฀ “Sigismundo,฀ filho฀ de฀ Gondobaldo,฀ foi฀ elevado฀ ao฀ trono฀ por฀ ordem฀de฀seu฀pai฀próximo฀a฀Genebra,฀na฀vila฀de฀Carouge…”.฀Segundo฀K.฀Binding,฀Fredegário฀ retirou฀ essa฀ informação฀ da฀ Crônica฀ de฀ Marius฀ d’Avenches฀ (Das฀ burgundisch-romanische฀ Königreich,฀vol.฀1,฀p.฀225,฀n.779).฀฀ 39 146฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Mapa฀1 gório฀de฀Tours42:฀ainda฀que฀todas฀as฀crianças฀nascidas฀de฀reis฀fossem฀ chamadas฀príncipes฀reais,฀o฀direito฀de฀suceder฀ao฀rei฀não฀era฀garantido฀ automaticamente฀a฀todos฀os฀seus฀filhos.฀Nesse฀sentido,฀as฀partilhas฀não฀ obedeciam฀ pura฀ e฀ simplesmente฀ às฀ conveniências฀ patrimoniais฀ dos฀ reis฀e฀de฀seus฀herdeiros.฀฀฀฀฀ Um฀ terceiro฀ argumento฀ contra฀ a฀ tese฀ patrimonial฀ é฀ que฀ as฀ regras฀ que฀presidiam฀a฀divisão฀dos฀bens฀pessoais฀não฀orientavam฀a฀divisão฀do฀ reino.฀Em฀seu฀título฀LIX,฀que฀trata฀da฀herança฀dos฀alódios,฀o฀Pactus฀legis฀ Salicae฀estabelecia฀que฀o฀direito฀à฀herança฀dos฀bens฀parentais฀cabia฀às฀ crianças฀e,฀no฀caso฀de฀elas฀não฀existirem,฀ao฀pai฀ou฀à฀mãe฀do฀defunto.฀ 42 ฀ Histórias฀V,฀ 20:฀ “…฀ ele฀ começou฀ a฀ falar฀ várias฀ coisas฀ a฀ respeito฀ do฀ rei฀ e฀ a฀ dizer฀ que฀ os฀ filhos฀desse฀último฀não฀podiam฀ocupar฀o฀reino,฀pois฀sua฀mãe฀pertencia฀à฀domesticidade฀do฀finado฀ Magnacarius฀quando฀foi฀chamada฀para฀a฀cama฀do฀rei;฀ele฀ignorava฀que฀chamamos฀filho฀do฀rei฀ aqueles฀que฀foram฀procriados฀por฀reis฀sem฀que฀tenhamos฀conta฀da฀família฀das฀mulheres”.฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀147 Na฀ausência฀dos฀pais,฀a฀herança฀ia฀para฀os฀irmãos฀e฀as฀irmãs฀do฀defunto฀ e,฀em฀seguida,฀para฀a฀tia฀materna฀e฀para฀a฀tia฀paterna43.฀O฀mesmo฀título฀ LIX,฀entretanto,฀excluía฀as฀mulheres฀do฀direito฀à฀herança฀da฀terra44.฀Na฀ prática,฀no฀entanto,฀como฀mostrou฀R.฀Le฀Jan,฀os฀alódios฀se฀transmitiam฀ tanto฀aos฀homens฀quanto฀às฀mulheres.฀Os฀pais฀tinham฀a฀escolha฀de฀deixar฀a฀herança฀para฀suas฀filhas.฀No฀seio฀do฀casal,฀a฀esposa฀conservava฀o฀ direito฀sobre฀seus฀bens,฀herdados฀ou฀adquiridos฀no฀momento฀do฀casamento45.฀De฀fato,฀a฀possibilidade฀para฀as฀mulheres฀de฀herdar฀o฀domínio฀ fundiário฀estava฀prevista฀no฀Edito฀de฀Chilperico,฀um฀dos฀“Capitulários฀ adicionais฀à฀Lei฀Sálica”:฀o฀texto฀estabelecia฀que฀na฀ausência฀de฀um฀homem,฀as฀mulheres฀podiam฀herdar฀a฀terra46.฀O฀reino,฀por฀outro฀lado,฀ou฀ era฀herdado฀por฀um฀dos฀filhos฀do฀rei,฀ou฀partilhado฀entre฀eles,฀mas฀em฀ qualquer฀das฀duas฀hipóteses฀as฀mulheres฀eram฀excluídas.฀As฀regras฀de฀ sucessão฀dinástica฀não฀previam฀o฀direito฀de฀elas฀herdarem฀o฀reino;฀se,฀ em฀algumas฀ocasiões,฀as฀rainhas฀exerceram฀influência฀nos฀assuntos฀políticos,฀elas฀o฀fizeram฀como฀regentes,฀e฀não฀como฀titulares฀do฀poder฀real47.฀ Tomando฀ como฀ parâmetro฀ a฀ discrepância฀ entre฀ as฀ regras฀ de฀ sucessão฀ alodial฀previstas฀pela฀Lei฀Sálica฀e฀as฀regras฀de฀sucessão฀dinástica฀vigentes฀ no฀Reino฀dos฀Francos,฀pode-se฀afirmar,฀então,฀que฀a฀sucessão฀real฀não฀ 43 ฀Pactus฀Legis฀Salicae,฀LIX:฀“Sobre฀terras฀alodiais.฀1.฀Se฀um฀homem฀morrer฀e฀não฀deixar฀filhos,฀e฀ se฀seu฀pai฀ou฀mãe฀sobreviverem฀a฀ele,฀a฀herança฀será฀deles.฀2.฀Se฀não฀houver฀mãe฀nem฀pai,฀mas฀se฀ele฀ deixou฀um฀irmão฀ou฀irmã,฀a฀herança฀será฀deles.฀3.฀Se฀não฀houver฀nenhum฀deles,฀então฀a฀herança฀será฀ da฀irmã฀da฀mãe.฀4.฀Se฀não฀houver฀a฀irmã฀da฀mãe,฀então฀a฀irmã฀do฀pai฀receberá฀a฀herança.฀5.฀Se฀não฀ houver฀a฀irmã฀do฀pai,฀após฀essas฀gerações,฀aquele฀que฀for฀o฀mais฀próximo฀do฀pai฀receberá฀a฀herança”.฀฀ ฀ 44 ฀Idem,฀6:฀“No฀que฀se฀refere฀à฀terra฀sálica,฀nenhuma฀parte฀pode฀ser฀herdada฀por฀uma฀mulher,฀ todavia,฀toda฀a฀terra฀pertence฀aos฀do฀sexo฀masculino฀que฀são฀seus฀irmãos”.฀ 45 ฀R.฀Le฀Jan,฀Famille฀et฀pouvoir฀dans฀le฀monde฀franc,฀pp.233-234.฀฀฀฀฀ 46 ฀Chilperici฀edictum,฀3,฀p.8:฀“Da฀mesma฀maneira,฀foi฀decidido฀e฀ordenado฀que฀se฀todos฀os฀vizinhos฀ têm฀filhos฀ou฀filhas฀que฀sobrevivam฀à฀sua฀morte,฀que฀disponham฀da฀terra฀todos฀os฀filhos฀que฀continuam฀ vivos,฀segundo฀a฀Lei฀Sálica.฀E฀se฀de฀repente฀os฀filhos฀morrerem,฀as฀filhas฀do฀mesmo฀modo฀recebem฀ as฀terras,฀como฀se฀fossem฀os฀filhos฀que฀as฀tivessem”฀(grifo฀nosso).฀฀฀ 47 ฀Sobre฀as฀rainhas฀merovíngias,฀ver฀I.฀Wood฀(“Royal฀Women:฀Fredegund,฀Brunhild฀and฀Radegund”,฀ In:฀The฀Merovingian฀Kingdoms,฀pp.฀120-139)฀e,฀mais฀recentemente,฀o฀trabalho฀de฀N.฀Pancer฀(Sans฀ peur฀et฀sans฀vergogne.฀De฀l’honneur฀et฀des฀femmes฀aux฀premiers฀temps฀mérovingiens). 148฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média era฀ordenada฀pelas฀regras฀de฀sucessão฀alodial,฀mas฀possuía฀uma฀lógica฀ que฀lhe฀era฀própria.฀Mas฀qual฀lógica?฀฀฀฀ Consciente฀ dos฀ limites฀ da฀ tese฀ patrimonial,฀ M.฀ Rouche,฀ em฀ sua฀ biografia฀de฀Clóvis,฀foi฀buscar฀na฀tradição฀germânica฀uma฀explicação฀ para฀as฀partilhas.฀Segundo฀ele,฀a฀sucessão฀de฀511฀foi฀o฀resultado฀dos฀ costumes฀matrilineares฀da฀antiga฀Germânia48.฀Da฀mesma฀maneira,฀a฀ partilha฀dos฀territórios฀de฀Clodomiro,฀em฀524,฀seria฀uma฀combinação฀ de฀dois฀costumes฀germânicos฀ancestrais:฀a฀tanistry,฀que฀concedia฀a฀herança฀do฀rei฀defunto฀aos฀seus฀irmãos฀e฀não฀aos฀seus฀filhos,฀e฀a฀sucessão฀ matrilinear,฀que฀excluía฀do฀direito฀à฀herança฀Teuderico,฀por฀sua฀condição฀de฀meio-irmão฀do฀defunto49.฀É฀no฀relato฀de฀Gregório฀de฀Tours฀ que฀ M.฀ Rouche฀ se฀ fundamenta฀ para฀ demonstrar฀ a฀ exclusão฀ de฀ Teuderico฀da฀herança฀de฀Clodomiro50.฀M.฀Rouche฀afirma฀que฀a฀tanistry฀ e฀a฀sucessão฀matrilinear฀foram฀as฀razões฀que฀motivaram฀Childeberto฀ e฀Clotário฀a฀assassinarem฀seus฀sobrinhos฀e฀a฀excluírem฀Teodorico฀da฀ partilha฀ que฀ se฀ seguiu.฀ Entretanto,฀ há฀ indícios฀ de฀ que฀ Teuderico฀ se฀ beneficiou฀de฀uma฀parcela฀dos฀territórios฀de฀seu฀meio-irmão฀Clodomiro.฀A฀partilha฀do฀regnum฀desse฀último฀trouxe฀para฀Teuderico฀pelo฀ menos฀uma฀parte฀da฀civitas฀de฀Sens,฀bem฀como฀as฀civitates฀de฀Auxerre฀ e฀de฀Troyes.฀Uma฀carta฀escrita฀em฀538฀a฀Childeberto฀pelo฀bispo฀Leão฀ 48 ฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.฀350-351:฀“Clóvis฀pretendia฀que฀seus฀filhos฀lhe฀sucedessem,฀sem฀especificar฀mais฀do฀que฀isso.฀Se฀tivessem฀praticado฀a฀tanistry฀à฀maneira฀de฀Genserico,฀Teuderico,฀o฀filho฀ primogênito,฀com฀vinte฀e฀um฀anos,฀teria฀sido฀o฀único฀a฀receber฀o฀título฀de฀rei฀e฀a฀deixar฀sucessivamente฀o฀poder฀a฀cada฀um฀de฀seus฀meios-irmãos,฀Clodomiro,฀Childeberto฀e฀Clotário.฀Mas฀isso฀teria฀ sido฀considerado฀como฀uma฀injuria฀à฀Clotilde฀relegar฀ao฀segundo฀plano฀as฀crianças฀do฀casamento฀ oficial฀em฀proveito฀do฀filho฀de฀uma฀união฀anterior฀de฀nível฀inferior.฀A฀tanistry฀foi฀assim฀simultânea฀ (…)฀Para฀Teuderico,฀as฀coisas฀eram฀praticamente฀certas,฀em฀razão฀do฀direito฀da฀mãe฀(Mutterecht)฀ (…)฀Esse฀retorno฀aos฀costumes฀germânicos฀matrilineares฀tinha฀vantagens฀se฀a฀sucessão฀voltava฀ para฀o฀último฀irmão฀que฀reunificava฀tudo฀».฀฀฀฀฀฀฀฀ 49 ฀Ibid.,฀pp.360-361. 50 ฀Histórias฀III,฀18:฀“Após฀essas฀mortes,฀Clotário,฀montando฀a฀cavalo,฀se฀foi฀sem฀se฀preocupar฀com฀ o฀assassinato฀de฀seus฀sobrinhos…฀[Clotário฀e฀Childeberto]฀dividiram฀o฀reino฀de฀Clodomiro฀com฀ igual฀equilíbrio฀entre฀eles”.฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀149 de฀Sens฀mostra฀que฀a฀cidade฀episcopal฀desse฀prelado฀dependia฀de฀Teudeberto,฀filho฀e฀herdeiro฀de฀Teuderico,฀pois฀ele฀se฀refere฀ao฀primeiro฀ como฀seu฀rei51.฀฀฀ Se฀as฀partilhas฀do฀Reino฀dos฀Francos฀não฀eram฀fruto฀de฀uma฀percepção฀patrimonial฀do฀espaço฀público,฀e฀tampouco฀de฀tradições฀da฀antiga฀ Germânia,฀isso฀significa฀que฀elas฀seriam฀fruto฀do฀puro฀acaso,฀do฀capricho฀dos฀príncipes฀francos,฀como฀sustenta฀A.฀Longnon?฀Em฀suas฀obras,฀ Géographie฀ de฀ la฀ Gaule฀ au฀ VIe฀ siècle฀ (publicada฀ em฀ 1878),฀ e฀ Atlas฀ historique฀de฀la฀France฀(1907),฀Longnon฀refuta฀a฀idéia฀de฀uma฀lógica฀ geográfica฀das฀partilhas.฀Para฀tanto,฀ele฀cita฀a฀descontinuidade฀territorial฀ dos฀domínios฀herdados฀pelos฀filhos฀de฀Clóvis.฀A.฀Longnon฀observa฀que฀ após฀a฀morte฀de฀Clóvis,฀os฀territórios฀da฀Gália฀que฀pertenciam฀aos฀francos฀antes฀de฀507฀foram฀divididos฀de฀maneira฀mais฀ou฀menos฀regular,฀ao฀ passo฀que฀a฀Aquitânia,฀conquistada฀nessa฀data,฀foi฀“despedaçada”฀entre฀ todos฀os฀herdeiros฀sem฀razão฀ou฀lógica฀aparentes.฀Em฀sua฀opinião,฀isso฀ só฀poderia฀ter฀uma฀explicação:฀se฀cada฀um฀dos฀filhos฀de฀Clóvis฀quis฀se฀ beneficiar฀de฀uma฀porção฀do฀território฀da฀Aquitânia,฀era฀por฀causa฀de฀ suas฀“famosas฀vinhas”52.฀฀ Não฀se฀pode฀aceitar฀a฀idéia฀de฀que฀as฀partilhas฀territoriais฀eram฀fruto฀ do฀acaso.฀Em฀primeiro฀lugar,฀é฀importante฀lembrar฀que฀as฀divisões฀repetidas฀não฀provocaram฀a฀implosão฀do฀Reino฀dos฀Francos฀em฀numerosas฀ entidades฀ políticas฀ independentes.฀ Houve฀ até฀ mesmo฀ momentos฀ em฀ que฀ o฀ reino฀ recuperou฀ sua฀ unidade฀ política.฀ Da฀ chegada฀ ao฀ poder฀ de฀ Clóvis฀ até฀ a฀ metade฀ do฀ século฀VIII,฀ o฀ Regnum฀ Francorum฀ foi฀ em฀ várias฀ocasiões฀governado฀por฀um฀só฀rei,฀e฀isso฀durante฀cerca฀de฀72฀anos.฀ Mesmo฀levando-se฀em฀conta฀que฀a฀partir฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀ VI฀ o฀ poder฀ dos฀ prefeitos฀ do฀ palácio฀ não฀ cessou฀ de฀ aumentar฀ e฀ que฀ o฀ particularismo฀regional฀era฀bastante฀forte,฀não฀se฀assistiu฀à฀formação฀de฀ 51 ฀Epistolae฀aevi฀merowingici฀collectae,฀3.฀Além฀disso,฀na฀Vida฀de฀Saint-Phal,฀os฀historiadores฀ encontraram฀indícios฀de฀que฀a฀civitas฀de฀Troyes฀pertencia฀ao฀regnum฀de฀Teudeberto฀[citado฀por฀ A.฀Longnon,฀Géographie฀de฀la฀Gaule฀au฀VIe฀siècle,฀p.฀98฀e฀p.฀105,฀n.฀2].฀฀฀฀฀ 52 ฀A.฀Longnon,฀Géographie฀de฀la฀Gaule฀au฀VIe฀siècle,฀p.฀90.฀ 150฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média unidades฀políticas฀independentes฀a฀partir฀do฀Reino฀dos฀Francos.฀Além฀ disso,฀ é฀ necessário฀ lembrar฀ que฀ quando฀ da฀ morte฀ de฀ Clóvis,฀ seu฀ filho฀ Teuderico฀herdou฀o฀território฀correspondente฀à฀antiga฀Francia฀Rhinensis฀ (a฀futura฀Austrásia).฀Essa฀região,฀que฀havia฀sido฀incorporada฀ao฀Reino฀ dos฀Francos฀poucos฀anos฀antes,฀manteve฀sua฀integridade฀territorial฀na฀ partilha฀de฀511฀e฀nas฀partilhas฀seguintes.฀A฀partir฀dessas฀evidências,฀é฀difícil฀sustentar฀que฀as฀partilhas฀francas฀eram฀aleatórias,฀ou฀simplesmente฀฀ fruto฀do฀capricho฀dos฀príncipes.฀฀฀ Nos฀últimos฀anos,฀os฀historiadores฀tendem฀a฀enxergar฀nas฀partilhas฀ do฀ século฀ VI฀ o฀ resultado฀ de฀ um฀ arranjo฀ político.฀ Para฀ E.฀ Ewig,฀ por฀ exemplo,฀as฀partilhas฀–฀ou฀Teilungen฀–฀que฀ocorreram฀na฀Gália฀entre฀ 511฀ e฀ 714฀ constituíram฀ um฀ compromisso฀ político฀ dos฀ reis฀ francos฀ sem฀ nenhuma฀ relação฀ com฀ o฀ passado฀ germânico53.฀ I.N.฀Wood฀ vê฀ na฀ partilha฀de฀511฀um฀arranjo฀político฀reunindo฀de฀um฀lado฀Clotilde฀e฀ seus฀filhos,฀e฀de฀outro,฀Teuderico.฀Desse฀acordo฀teriam฀participado฀os฀ bispos฀e฀os฀grandes฀do฀reino54.฀ A฀influência฀dos฀bispos฀nas฀partilhas฀do฀Regnum฀Francorum฀é฀uma฀ tese฀sedutora฀a฀priori.฀No฀entanto,฀há฀fortes฀indícios฀de฀que฀os฀resultados฀das฀mesmas฀trouxeram฀prejuízos฀à฀Igreja.฀Os฀cânones฀do฀concílio฀ de฀Clermont,฀de฀535,฀são฀acompanhados฀por฀uma฀carta฀na฀qual฀os฀bispos฀pedem฀ao฀rei฀Teudeberto฀que฀não฀permita฀que฀ninguém฀perca฀seus฀ bens฀e฀suas฀possessões฀quando฀se฀encontra฀separado฀deles฀em฀virtude฀ do฀partilha฀do฀reino55.฀Os฀bispos฀conciliares฀preocupavam-se฀em฀salvaguardar฀ os฀ bens฀ eclesiásticos,฀ ameaçados฀ pelas฀ constantes฀ divisões฀ do฀reino฀que฀nem฀sempre฀levavam฀em฀conta฀os฀limites฀das฀províncias฀ eclesiásticas.฀Durante฀o฀Concílio฀de฀Clermont,฀os฀bispos฀ameaçaram฀ de฀excomunhão฀aqueles฀que฀tomavam฀posse฀arbitrariamente฀dos฀bens฀ 53 ฀E.฀Ewig,฀“Die฀fränkische฀Teilungen฀und฀Teilreiche฀(511-613)”,฀pp.651-715;฀K.฀F.฀Werner,฀Les฀ origines฀:฀avant฀l’an฀mil,฀pp.฀358-361฀;฀P.฀Geary,฀Naissance฀de฀la฀France.฀Le฀monde฀mérovingien,฀pp.฀117-118฀;฀S.฀Lebecq,฀Les฀origines฀franques,฀p.฀63 54 ฀I.฀Wood,฀“Kings,฀Kingdom฀and฀Consent”,฀pp.฀6-29.฀฀฀ 55 ฀Clermont฀(535),฀Epistola฀ad฀regem฀Theodebertum.฀฀฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀151 e฀dos฀recursos฀da฀Igreja,฀qualificados฀de฀necatores฀pauperum฀(“assassinos฀dos฀pobres”)56.฀O฀décimo-quarto฀cânone฀é฀uma฀advertência฀dirigida฀aos฀bispos฀e฀clérigos฀de฀todos฀os฀níveis฀que฀poderiam฀aproveitar฀da฀ partição฀territorial฀para฀apropriar-se฀daquilo฀que฀pertencia฀à฀Igreja57.฀ Pode-se฀notar,฀através฀do฀IV฀Concílio฀de฀Orléans฀(549),฀a฀amplitude฀ que฀assumiu฀o฀seqüestro฀e฀o฀confisco฀dos฀bens฀da฀Igreja฀pelos฀reis฀e฀ por฀outros฀membros฀ da฀ aristocracia฀ laica.฀ O฀ mesmo฀ tema฀reaparece฀ no฀primeiro฀concílio฀ocorrido฀em฀Paris฀após฀a฀morte฀de฀Clotário.฀Os฀ cânones฀ desse฀ concílio฀ mencionam฀ as฀ ameaças฀ constantes฀ à฀ integridade฀do฀patrimônio฀eclesiástico,฀bem฀como฀as฀intervenções฀reais฀em฀ matéria฀de฀disciplina฀e฀de฀organização฀da฀Igreja58.฀Diante฀daqueles฀que฀ justificavam฀a฀apropriação฀dos฀bens฀eclesiásticos฀em฀razão฀das฀partilhas฀do฀reino,฀os฀bispos,฀em฀duas฀ocasiões฀–฀em฀Paris,฀por฀volta฀de฀562,฀ e฀ em฀ Tours,฀ em฀ 567฀ –฀ opuseram฀ o฀ argumento฀ da฀ universalidade฀ da฀ força฀do฀Cristo.฀Os฀termos฀usados฀pelos฀bispos฀em฀Paris฀III฀para฀qualificar฀a฀situação฀da฀Igreja,฀associando฀os฀ladrões฀de฀bens฀eclesiásticos฀a฀ “assassinos฀dos฀pobres”,฀eram฀de฀uma฀gravidade฀inédita:฀esses฀homens฀ agiriam฀ sob฀ a฀ cobertura฀ das฀ partilhas฀ e฀ das฀ liberalidades฀ reais59.฀ As฀ críticas฀constantes฀às฀implicações฀das฀partilhas฀na฀legislação฀conciliar฀ ao฀longo฀do฀século฀VI฀mostram฀que฀é฀necessário฀nuançar฀o฀papel฀do฀ episcopado฀ nos฀ acordos฀ sobre฀ os฀ limites฀ e฀ as฀ fronteiras฀ dos฀ diversos฀ regna.฀Ainda฀que฀os฀bispos฀tenham฀eventualmente฀participado฀de฀sua฀ organização,฀como฀em฀511,฀ou,฀como฀veremos฀mais฀adiante,฀em฀Andelot,฀em฀587,฀as฀partilhas฀do฀século฀VI฀foram฀especialmente฀favoráveis฀ aos฀poderes฀reais,฀sem฀que฀fossem฀levados฀em฀conta฀os฀interesses฀da฀ Igreja.฀Não฀se฀pode฀supor,฀portanto,฀que฀a฀lógica฀dessas฀partilhas฀fosse฀ inspirada฀pela฀Igreja฀e฀pela฀hierarquia฀eclesiástica.฀฀฀฀฀ F.฀Cardot฀também฀contribuiu฀para฀o฀desenvolvimento฀de฀uma฀nova฀ interpretação฀das฀partilhas.฀Ela฀acredita฀que฀na฀sucessão฀dos฀príncipes฀ 56 ฀Orléans฀V฀(549),฀c.฀13.฀฀฀ ฀Ibid.,฀c.฀14.฀฀฀ 58 ฀Paris฀III฀(v.฀561-562),฀c.฀1;฀Tours฀II฀(567),฀c.฀26.฀฀ 59 ฀Paris฀III฀(v.฀561-562),฀c.฀1.฀฀฀ 57 152฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média merovíngios฀predominava฀uma฀lógica฀territorial,฀isto฀é,฀as฀peculiaridades฀regionais฀eram฀muito฀mais฀importantes฀que฀o฀número฀de฀herdeiros.฀Contudo,฀essa฀lógica฀somente฀teria฀triunfado฀a฀partir฀do฀final฀do฀ século฀VI,฀ quando฀ “...฀ à฀ memória฀ do฀ poder฀ de฀ um฀ homem฀ se฀ substitui฀ a฀consciência฀de฀um฀regnum฀sem฀rei”60.฀A฀partir฀do฀século฀VII฀é฀que฀as฀ partes฀do฀Reino฀dos฀Francos฀oriundas฀das฀partilhas฀se฀converteram฀em฀ entidades฀perenes฀tendo฀uma฀personalidade฀própria,฀expressa฀por฀uma฀ aristocracia฀representante฀dos฀interesses฀regionais.฀É฀bem฀verdade฀que฀ é฀nesse฀momento฀que฀o฀Pseudo-Fredegário฀menciona฀pela฀primeira฀vez฀ o฀termo฀Nêustria฀(Neptrico,฀Neuster)฀para฀designar฀a฀região฀compreendida฀entre฀o฀Rio฀Loire,฀o฀Canal฀da฀Mancha฀e฀a฀região฀da฀Champagne.฀ O฀termo฀Austrásia฀é฀um฀pouco฀anterior,฀e฀aparece฀pela฀primeira฀vez฀nas฀ Histórias,฀de฀Gregório฀de฀Tours,฀no฀final฀do฀século฀VI,฀quando฀ele฀narra฀ os฀conflitos฀entre฀Sigeberto฀I฀e฀Chilperico.฀Além฀do฀mais,฀F.฀Cardot฀tem฀ razão฀quando฀afirma฀que฀Teudeberto฀I,฀em฀sua฀carta฀a฀Justiniano,฀recorre฀a฀termos฀geográficos฀apenas฀como฀um฀exercício฀retórico฀destinado฀ a฀impressionar฀o฀imperador฀do฀Oriente61.฀Evidentemente,฀não฀se฀pode฀ ignorar฀que฀havia฀uma฀dimensão฀pessoal฀no฀exercício฀da฀autoridade฀política฀entre฀os฀francos:฀a฀geografia฀das฀partilhas฀levava฀em฀conta฀também฀ o฀número฀de฀príncipes฀herdeiros62.฀Como฀sublinha฀I.฀Wood,฀uma฀das฀ preocupações฀da฀partilha฀de฀511฀pode฀ter฀sido฀a฀de฀evitar฀que฀Teuderico,฀ filho฀de฀uma฀primeira฀esposa฀de฀Clóvis,฀fosse฀o฀seu฀único฀herdeiro,฀em฀ detrimento฀dos฀filhos฀de฀Clotilde63.฀Todavia,฀isso฀não฀quer฀dizer฀que฀não฀ houvesse฀nenhuma฀percepção฀política฀do฀espaço฀no฀Regnum฀Francorum฀ no฀século฀VI. A฀implementação฀das฀partilhas฀territoriais฀no฀século฀VI฀também฀levou฀ em฀ conta฀ as฀ contingências฀ territoriais,฀ e฀ especialmente฀ políticas:฀ a฀ afirmação฀de฀uma฀lógica฀territorial฀ou฀política฀em฀detrimento฀de฀uma฀razão฀ puramente฀dinástica฀não฀parece฀ser฀um฀fenômeno฀tão฀tardio฀como฀acre60 ฀F.฀Cardot,฀L’espace฀et฀le฀pouvoir.฀Etudes฀sur฀l’Austrasie฀mérovingienne,฀p.฀129. ฀Epistolae฀Austrasicae,฀III,฀20.฀฀ 62 ฀E.฀Ewig,฀“Die฀fränkische฀Teilungen฀und฀Teilreiche฀(511-613)”,฀pp.฀651-715. 63 ฀I.N.฀Wood,฀“Kings,฀kingdoms฀and฀consent”,฀pp.฀6-29.฀ 61 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀153 dita฀F.฀Cardot.฀Essa฀lógica฀já฀estava฀presente฀quando฀os฀filhos฀de฀Clóvis฀ obtiveram,฀cada฀um,฀uma฀parte฀do฀Regnum฀Francorum,฀em฀511.฀O฀melhor฀ exemplo,฀nesse฀sentido,฀é฀a฀herança฀de฀Teuderico:฀como฀foi฀dito฀anteriormente,฀ os฀ territórios฀ que฀ ele฀ passou฀ a฀ governar฀ correspondiam,฀ grosso฀ modo,฀ao฀antigo฀Reino฀de฀Colônia,฀cujos฀“grandes”฀tinham฀reconhecido฀o฀ poder฀de฀Clóvis฀em฀507.฀Além฀disso,฀o฀nome฀Teuderico฀(Theudericus)฀evoca฀o฀nome฀de฀dois฀reis฀renanos฀do฀século฀IV:฀Teudebaldo฀(Theudebaldus)฀e฀ Ricimero฀(Ricimerus).฀Os฀descendentes฀diretos฀de฀Teuderico฀continuaram฀ a฀reinar฀durante฀vários฀anos,฀e฀mesmo฀após฀a฀morte฀de฀Teudebaldo,฀em฀ 555,฀o฀rei฀Clotário฀se฀assegurou฀de฀que฀o฀filho฀que฀lhe฀sucederia฀na฀Austrásia฀possuísse฀o฀mesmo฀nome฀de฀um฀antigo฀rei฀de฀Colônia,฀Sigeberto64.฀ Com฀exceção฀dos฀três฀anos฀durante฀os฀quais฀Clotário฀I฀governou฀sozinho฀ o฀ Regnum฀ Francorum,฀ e฀ durante฀ os฀ primeiros฀ anos฀ em฀ que฀ Clotário฀ II฀ ocupou฀a฀mesma฀função,฀a฀Francia฀Rhinensis฀teve,฀até฀o฀fim฀do฀século฀VII,฀ seus฀próprios฀reis฀cujos฀nomes฀evocavam฀os฀antigos฀reis฀de฀Colônia65.฀฀฀฀ Mesmo฀a฀criação฀de฀enclaves,฀que฀à฀primeira฀vista฀parece฀ser฀a฀prova฀ do฀caráter฀irracional฀das฀partilhas฀territoriais,฀é฀fruto฀de฀um฀acordo฀político.฀Os฀enclaves฀eram฀visivelmente฀uma฀solução฀que฀visava฀favorecer฀ a฀coesão฀entre฀os฀regna.฀Para฀atingir฀a฀eficiência฀administrativa฀de฀seus฀ reinos฀respectivos,฀bem฀como฀para฀conduzir฀as฀campanhas฀contra฀um฀ inimigo฀externo,฀ou฀para฀estabelecer฀uma฀defesa฀efetiva฀contra฀tais฀ameaças,฀os฀herdeiros฀de฀Clóvis฀eram฀obrigados฀a฀buscar฀entendimento.฀Na฀ partilha฀de฀511,฀a฀proximidade฀territorial฀das฀capitais฀escolhidas฀–฀Paris,฀ Reims,฀Soissons฀e฀Orléans,฀a฀partição฀do฀reino฀em฀dois฀blocos,฀ao฀sul฀e฀ ao฀ norte฀ do฀ rio฀ Loire,฀ a฀ presença฀ de฀ enclaves฀ territoriais,฀ assim฀ como฀ a฀ escolha฀ de฀ Paris฀ como฀ capital฀ comum,฀ mostram฀ que฀ havia฀ entre฀ os฀ francos฀uma฀política฀de฀união,฀e฀mais฀do฀que฀isso,฀o฀sentimento฀da฀preservação฀da฀integridade฀do฀Regnum฀Francorum. 64 ฀K.฀F.฀Werner,฀Les฀origines฀avant฀l’an฀Mil,฀p.฀360.฀฀ ฀ Teuderico฀ I฀ (511-533),฀ Teudeberto฀ I฀ (534-547),฀ Teudebaldo฀ (547-555),฀ Sigeberto฀ I฀ (561575),฀Childeberto฀II฀(575-592),฀Theudeberto฀II฀(595-613),฀Dagoberto฀I฀(623-629),฀Sigeberto฀ III฀(c.฀633-656),฀Dagoberto฀II฀(656-v.฀660),฀Childeberto,฀o฀Adotado฀(656/61-662),฀Childerico฀ II฀(662-675)฀e฀Dagoberto฀II฀(676-679).฀฀ 65 154฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média A฀idéia฀do฀acaso฀para฀explicar฀as฀partições฀francas฀deve฀ser฀descartada:฀ é฀difícil฀acreditar฀que฀divisões฀aleatórias฀tenham฀evitado฀por฀si฀só฀a฀fragmentação฀completa฀e฀irreversível฀do฀reino฀e,฀mais฀ainda,฀que฀o฀simples฀ acaso฀explique฀a฀preservação฀da฀integridade฀territorial฀da฀Austrásia฀(Francia฀Rhinensis)฀e฀da฀Burgúndia.฀Mesmo฀se฀dermos฀razão฀a฀I.฀Wood฀e฀a฀E.฀ Ewig฀sobre฀o฀papel฀dos฀acordos฀políticos฀na฀realização฀das฀partilhas,฀cabe฀ ainda฀perguntar฀quais฀eram฀os฀critérios฀que฀conduziam฀esses฀arranjos.฀O฀ respeito฀às฀particularidades฀regionais฀não฀deve฀ter฀sido฀o฀único฀deles,฀pois฀ a฀Aquitânia,฀por฀exemplo,฀conquistada฀aos฀visigodos฀em฀507,฀foi฀dividida฀ após฀a฀morte฀de฀Clóvis฀entre฀Clodomiro,฀Clotário฀e฀Teuderico.฀Em฀561,฀ ocorreu฀nova฀dispersão฀territorial:฀Chilperico,฀Cariberto฀e฀Sigeberto฀receberam฀porções฀do฀território฀ao฀sul฀do฀rio฀Loire฀(ver฀Mapa฀2).฀Novamente,฀a฀integridade฀daquela฀região฀não฀foi฀respeitada,฀ao฀contrário฀do฀que฀ ocorreu฀com฀a฀Francia฀Rhinensis฀e฀com฀a฀Burgúndia.฀Essa฀discrepância฀no฀ Mapa฀2 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀155 tratamento฀dado฀à฀Aquitânia฀por฀um฀lado,฀e฀às฀demais฀regiões฀por฀outro,฀ significa฀que฀os฀arranjos฀políticos฀nas฀partilhas฀não฀contemplavam฀apenas฀ os฀particularismos฀regionais.฀Deve-se฀buscar฀então฀uma฀outra฀explicação฀ para฀a฀partilha฀da฀Aquitânia฀entre฀os฀príncipes฀francos. Até฀o฀presente฀momento,฀as฀inúmeras฀interpretações฀sobre฀as฀partilhas฀ do฀Reino฀dos฀Francos฀não฀deram฀importância฀suficiente฀às฀civitates.฀E,฀ portanto,฀elas฀ocupavam฀lugar฀de฀destaque฀no฀edifício฀político฀franco.฀A฀ civitas฀era,฀pelo฀menos฀durante฀o฀século฀VI,฀a฀unidade฀fiscal฀fundamental฀ do฀Reino฀dos฀Francos66.฀Essa฀situação฀somente฀se฀modificou฀durante฀o฀ século฀VII,฀quando฀o฀pagus฀se฀tornou฀a฀unidade฀territorial฀fundamental.฀ O฀número฀de฀circunscrições฀na฀Gália฀passou฀assim฀de฀uma฀centena฀no฀ final฀do฀século฀V,฀para฀cerca฀de฀600฀ou฀700฀unidades฀no฀século฀VII67.฀Nas฀ Histórias,฀de฀Gregório฀de฀Tours,฀cada฀parte฀oriunda฀das฀partilhas฀era฀definida฀não฀apenas฀pela฀pessoa฀do฀rei,฀mas฀também฀por฀suas฀capitais:฀ “A฀ sorte฀ deu฀ a฀ Cariberto฀ o฀ reino฀ de฀ Childeberto฀ com฀ a฀ sede฀ em฀ Paris;฀ a฀ Gontrão,฀o฀reino฀de฀Clodomir฀o฀que฀tem฀por฀sede฀Orléans;฀a฀Chilperico฀o฀ reino฀ de฀ seu฀ pai฀ Clotário฀ com฀ Soissons฀ por฀ capital;฀ a฀ Sigeberto฀ o฀ reino฀ de฀ Teuderico฀com฀a฀capital฀em฀Reims”68.฀ 66 ฀ J.฀ Durliat,฀ Les฀ finances฀ publiques฀ de฀ Dioclétien฀ aux฀ Carolingiens฀ (284-889),฀ p.฀ 100;฀ do฀ mesmo฀autor,฀“Les฀attributions฀civiles฀des฀évêques฀mérovingiens:฀l’exemple฀de฀Didier,฀évêque฀ de฀Cahors฀(630-655)”,฀pp.฀67-77;฀H.H.฀Anton,฀por฀exemplo,฀vê฀em฀Trier฀o฀protótipo฀de฀uma฀ cidade฀que฀permanece฀até฀o฀século฀VIII฀uma฀parte฀essencial฀do฀dispositivo฀fiscal฀franco฀(“Verfassungsgeschichtliche฀Kontinuität฀und฀Wandlungen฀von฀der฀Spätantike฀zum฀hohen฀Mittelalter:฀das฀Beispiel฀Trier”,฀pp.฀1-25,฀citado฀por฀J.฀Durliat,฀Les฀finances฀publiques,฀p.฀100,฀n.฀21);฀ver฀ também,฀E.฀Magnou-Nortier,฀“Du฀royaume฀des฀civitates฀au฀royaume฀des฀honores”,฀p.฀324.฀฀฀฀฀ 67 ฀K.฀F.฀Werner,฀“Missus-Marchio-Comes.฀Entre฀l’administration฀centrale฀et฀l’administration฀ locale”,฀pp.฀191-239,฀especialmente฀p.฀191. 68 ฀Histórias฀IV,฀22.฀Ver,฀a฀esse฀respeito,฀A.฀Dierkens,฀P.฀Périn,฀“Les฀sedes฀regiae฀mérovingiennes฀entre฀ Seine฀et฀Rhin”,฀pp.฀267-304.฀Sobre฀a฀noção฀de฀fronteiras฀no฀Ocidente฀durante฀a฀Antigüidade฀Tardia฀ e฀a฀Alta฀Idade฀Média,฀ver฀H.-W.฀Goetz,฀“Concepts฀of฀realm฀and฀frontiers฀from฀late฀Antiquity฀to฀ the฀Early฀Middle฀Ages”,฀In:฀W.฀Pohl,฀I.฀Wood,฀H.฀Reimitz฀(ed.),฀The฀Transformation฀of฀Frontiers.฀ From฀Late฀Antiquity฀to฀the฀Carolingians,฀pp.฀73-82;฀e฀também,฀D.฀Harrison,฀“Invisible฀boundaries฀ and฀places฀of฀power฀:฀Notions฀of฀liminarity฀and฀Centrality฀in฀the฀early฀Middle฀Ages”,฀pp.฀83-93.฀฀฀฀฀฀฀฀ 156฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média As฀ Formulae฀ de฀ Marculfo฀ e฀ as฀ Histórias,฀ de฀ Gregório฀ de฀ Tours,฀ mencionam฀que฀quando฀os฀francos฀e฀os฀romanos฀eram฀convocados฀para฀ jurar฀fidelidade฀a฀um฀novo฀rei฀sobre฀as฀relíquias,฀era฀em฀cada฀civitas฀que฀ essa฀cerimônia฀ocorria69.฀Além฀disso,฀uma฀parte฀considerável฀do฀exército฀ franco฀se฀achava฀em฀serviço฀junto฀ao฀rei,฀pronta฀para฀ser฀rapidamente฀ convocada฀para฀a฀luta฀em฀caso฀de฀necessidade฀imediata,฀mas฀outra฀parte,฀ uma฀espécie฀de฀exército฀de฀reserva,฀se฀reunia,฀sob฀ordem฀real,฀em฀cada฀ uma฀das฀civitates.฀Os฀próprios฀soldados฀eram฀identificados฀em฀função฀ de฀suas฀cidades฀de฀origem70.฀ É฀possível฀então฀afirmar฀que฀havia฀isonomia฀numérica฀das฀civitates฀ que฀cabiam฀a฀cada฀um฀dos฀príncipes฀no฀momento฀das฀partilhas?฀A฀reconstituição฀de฀cada฀um฀dos฀regna฀é฀uma฀tarefa฀bastante฀difícil.฀Como฀ bem฀notou฀A.฀Lognon,฀Gregório฀de฀Tours฀não฀se฀preocupou฀em฀definir฀ claramente฀a฀composição฀ou฀os฀limites฀territoriais฀das฀heranças฀de฀cada฀ um฀dos฀príncipes฀merovíngios.฀Ainda฀assim,฀uma฀tal฀reconstituição฀é฀ possível.฀Tome-se฀como฀exemplo฀a฀partição฀de฀511,฀que฀Gregório฀qualifica฀como฀aequa฀lance:฀Clotário฀I฀obteve฀ao฀norte฀do฀rio฀Loire,฀Soissons,฀ Noyon,฀Tournai,฀Maastrich,฀Boulogne,฀Thérouanne,฀Laon,฀Arras฀e฀Vermond;฀Teuderico฀recebeu,฀ao฀norte฀do฀rio฀Loire,฀Reims,฀Cologne,฀Zulpich,฀Trèves,฀Metz,฀Verdun฀e฀Chalons-sur-Marne,฀e฀na฀Aquitânia,฀Cahors,฀ e฀Childeberto฀herdou฀Rouen,฀Amiens,฀Beauvais,฀Meaux,฀Evreux,฀Séez,฀ Lisieux,฀Bayeux,฀Coutances,฀Avenches,฀Le฀Mans,฀Rennes,฀Vannes,฀Quimper.฀O฀reino฀de฀Clodomir,฀o฀único฀a฀possuir฀um฀território฀contínuo฀dos฀ 69 ฀Formulae฀Marculfi,฀I,฀40;฀ver฀também,฀Histórias฀VII,฀26฀e฀33;฀Histórias,฀IX,฀30.฀ ฀Histórias฀VI,฀31.฀A฀imagem฀tradicional฀que฀a฀historiografia฀construiu฀do฀exercito฀da฀época฀ merovíngia฀é฀a฀de฀um฀bando฀armado฀vivendo฀da฀pilhagem฀e฀da฀exploração฀das฀populações฀ civis.฀“Reis฀ privados”,฀ os฀ merovíngios฀ teriam฀ sido฀ sustentados฀ por฀ milícias฀ de฀ mercenários,฀ pouco฀respeitosas฀de฀seus฀habitantes฀e฀de฀suas฀possessões,฀e฀que฀eram฀arregimentadas฀freqüentemente฀no฀exterior฀da฀Gália.฀O฀exército฀franco฀não฀possuía฀uma฀estrutura฀tão฀rudimentar฀ assim.฀Seus฀soldados฀eram฀pagos฀pelas฀rendas฀fiscais,฀com฀uma฀soma฀fixada฀por฀lei,฀variável฀ para฀cada฀homem฀em฀função฀de฀seu฀grau฀(J.฀Durliat,฀Les฀finances฀publiques,฀p.฀127;฀ver฀também,฀B.S.฀Bachrach,฀Merovingian฀Military฀Organisation,฀p.฀123).฀ 70 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀157 dois฀lados฀do฀rio฀Loire,฀era฀constituído฀por฀cerca฀de฀nove฀civitates:฀Sens,฀ Auxerre,฀ Bourges,฀ Orléans,฀ Chartres,฀ Tours,฀Angers,฀ Nantes฀ e฀ Poitiers.฀ Essa฀recapitulação฀mostra฀que฀não฀havia฀isonomia฀quantitativa฀entre฀as฀ civitates฀que฀couberam฀a฀cada฀um฀dos฀herdeiros.฀ A฀segunda฀partilha฀na฀qual฀aparece฀o฀termo฀aequa฀lance฀é฀a฀que฀ocorreu฀após฀a฀morte฀de฀Clodomiro,฀em฀524:฀Sens,฀Auxerre,฀Troyes,฀e฀talvez฀ Bourges,฀foram฀incorporadas฀ao฀reino฀de฀Teuderico,฀o฀que฀criou฀uma฀ continuidade฀ territorial฀ entre฀ as฀ possessões฀ desse฀ último฀ na฀Auvérnia฀ e฀na฀Francia฀Rhinenses;฀Childeberto฀obteve฀as฀civitates฀de฀Orléans฀e฀de฀ Chartres;฀Clotário฀incorporou฀ao฀seu฀reino฀Tours฀e฀de฀Poitiers.฀Teuderico฀ recebeu,฀ portanto,฀ o฀ dobro฀ das฀ civitates฀ obtidas฀ por฀ cada฀ um฀ de฀ seus฀meios-irmãos.฀O฀significado฀do฀termo฀aequa฀lance฀não฀pode฀ser,฀ portanto,฀quantitativo,฀nem฀do฀ponto฀de฀vista฀da฀extensão฀territorial฀dos฀ regna,฀tampouco฀do฀ponto฀de฀vista฀do฀número฀de฀civitates.฀Nesse฀caso,฀ podemos฀ pensar฀ qualitativamente฀ na฀ importância฀ militar,฀ estratégica,฀ fiscal฀ou฀política฀de฀cada฀uma฀das฀civitates.฀฀฀฀฀ No฀ livro฀ V฀ das฀ Histórias,฀ Gregório฀ menciona฀ a฀ reação฀ da฀ rainha฀ Fredegonda฀diante฀de฀uma฀grave฀epidemia฀que฀atingiu฀seus฀dois฀filhos;฀ dirigindo-se฀ao฀rei฀Chilperico,฀ela฀teria฀dito: ฀“‘Há฀ muito฀ tempo,฀ a฀ misericórdia฀ divina฀ nos฀ sustenta,฀ nós฀ que฀ somos฀ agentes฀do฀mal;฀pois฀muitas฀vezes฀febres฀e฀outros฀males฀nos฀puniram,฀e฀não฀ nos฀ corrigimos.฀ Eis฀ que฀ agora฀ perdemos฀ nossos฀ filhos;฀ eis฀ que฀ as฀ lágrimas฀ e฀as฀lamentações฀dos฀pobres฀e฀os฀suspiros฀dos฀órfãos฀os฀matam,฀e฀não฀nos฀ restam฀ mais฀ esperanças฀ de฀ acumularmos฀ bens฀ para฀ alguém.฀ Entesouramos฀ sem฀ saber฀ para฀ quem฀ acumulamos.฀ Eis฀ que฀ tesouros฀ permanecem฀ provados฀ de฀ possuidor,฀ cheios฀ de฀ rapinas฀ e฀ de฀ maldições!฀ Nossos฀ depósitos฀ não฀ abundam฀de฀vinho?฀Nossos฀celeiros฀não฀estão฀repletos฀de฀frumento?฀Nossos฀ tesouros฀não฀estão฀repletos฀de฀ouro,฀prata,฀pedras฀preciosas,฀colares฀e฀outras฀ jóias฀imperiais?฀Eis฀que฀perdemos฀o฀que฀temos฀de฀mais฀belo!฀Agora฀venha,฀por฀ favor;฀incendiemos฀todos฀esses฀livros฀de฀impostos฀iníquos฀e฀que฀nosso฀fisco฀se฀ contente฀com฀aquilo฀que฀era฀suficiente฀ao฀pai฀e฀rei฀Clotário’.฀Após฀dizer฀isso,฀ a฀rainha,฀batendo฀os฀punhos฀em฀seu฀peito,฀ordenou฀que฀mostrassem฀os฀livros฀ que฀haviam฀sido฀trazidos฀das฀cidades฀por฀Marcos,฀e฀tendo-os฀lançado฀ao฀fogo,฀ 158฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média virou-se฀para฀o฀rei฀e฀disse:฀Que฀esperas?฀Faça฀o฀que฀tu฀me฀vês฀fazer,฀para฀que฀ se฀perdermos฀nossos฀filhos฀pelo฀menos฀escapemos฀à฀pena฀eterna’.฀Então฀o฀rei,฀ o฀coração฀grave,฀lançou฀ao฀fogo฀todos฀os฀livros฀de฀imposições฀e฀quando฀eles฀ foram฀queimados฀enviou฀pessoas฀para฀proibir฀novas฀imposições” 71.฀฀ Fica฀claro฀através฀do฀trecho฀acima฀que฀os฀registros฀fiscais฀eram฀estabelecidos฀em฀cada฀uma฀das฀civitates.฀O฀rei฀conhecia฀o฀total฀de฀suas฀rendas฀fiscais฀somando฀as฀rendas฀registradas฀em฀suas฀cidades.฀A฀eqüidade฀ sugerida฀pela฀expressão฀de฀Gregório฀de฀Tours,฀aequa฀lance,฀pode฀não฀ter,฀ portanto,฀a฀conotação฀de฀uma฀divisão฀simétrica฀do฀território฀do฀ Regnum฀Francorum,฀tampouco฀do฀número฀de฀civitates.฀Aequa฀lance฀pode฀ traduzir฀uma฀divisão฀aproximativa฀das฀rendas฀fiscais฀obtidas฀por฀cada฀ herdeiro฀a฀partir฀das฀cidades฀que฀lhe฀eram฀confiadas฀no฀momento฀das฀ partições.฀Gregório฀de฀Tours฀menciona฀a฀revisão฀do฀imposto฀fundiário฀ no฀Poitou฀por฀ordem฀de฀Childeberto฀II.฀Este฀teria฀ordenado฀que฀seus฀ coletores฀fossem฀a฀Poitiers฀para฀que฀o฀imposto฀devido฀pelos฀habitantes฀ fosse฀ pago฀ somente฀ após฀ um฀ recenseamento.฀ Depois฀ de฀ ter฀ restabelecido฀ a฀ justiça฀ da฀ imposição฀ em฀ Poitiers,฀ eles฀ teriam฀ ido฀ a฀ Tours,฀ para฀ exigir฀ da฀ população฀ o฀ pagamento฀ do฀ imposto฀ devido฀ de฀ acordo฀ com฀ um฀registro฀que฀eles฀tinham฀em฀mãos.฀Gregório,฀então฀bispo฀de฀Tours,฀ retorquiu฀afirmando฀que฀Clotário฀I฀havia฀mandado฀queimar฀o฀exemplar฀ do฀cadastro฀fiscal,฀isentando฀assim฀a฀população฀da฀cidade72.฀Os฀agentes฀ reais฀lhe฀apresentaram฀então฀o฀referido฀registro,฀mas฀o฀bispo฀replicou฀ afirmando฀que฀se฀tratava฀de฀um฀exemplar฀conservado฀por฀um฀dos฀notáveis฀ de฀ Tours,฀ e฀ não฀ um฀ documento฀ oriundo฀ do฀ tesouro฀ público,฀ o฀ que฀ um฀ milagre฀ terminaria฀ por฀ demonstrar73.฀A฀ disputa฀ em฀ torno฀ da฀ civitas฀de฀Marselha฀é฀um฀dos฀melhores฀exemplos฀da฀importância฀fiscal฀ dessas฀ unidades฀ territoriais฀ e฀ administrativas.฀ Childeberto฀ II,฀ após฀ ter฀ 71 ฀Histórias฀V,฀34.฀฀ ฀Histórias฀IX,฀30.฀ 73 ฀Ibid.฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 72 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀159 feito฀a฀paz฀com฀seu฀tio฀Chilperico,฀enviou฀embaixadores฀ao฀rei฀Gontrão฀ para฀obrigá-lo฀a฀devolver-lhe฀a฀metade฀da฀civitas฀de฀Marselha,฀que฀ele฀ havia฀concedido฀a฀esse฀último฀quando฀da฀morte฀de฀Sigeberto฀I.฀Entretanto,฀o฀conflito฀entre฀os฀dois฀se฀prolongou,฀e฀somente฀no฀final฀de฀583฀é฀ que฀Gontrão฀teria฀devolvido฀a฀Childeberto฀II฀a฀metade฀de฀Marselha74.฀A฀ importância฀da฀cidade฀deve-se,฀sobretudo,฀ao฀fato฀de฀ela฀ser฀o฀principal฀ porto฀ do฀ Mediterrâneo฀ ocidental,฀ e฀ cuja฀ pujança฀ se฀ manifestou฀ pelo฀ menos฀até฀a฀segunda฀metade฀do฀século฀VI.฀O฀volume฀de฀mercadorias฀ trazido฀do฀Oriente฀era฀considerável฀(especiarias,฀sedas,฀papiros฀e฀azeite฀ de฀ oliva),฀ o฀ que฀ significava฀ para฀ o฀ poder฀ real฀ uma฀ renda฀ fiscal฀ considerável.฀Quando฀da฀divisão฀da฀cidade฀entre฀Childeberto฀II฀e฀Gontrão,฀ o฀austrasiano฀Dinamus฀dirigiu฀Marselha฀em฀nome฀dos฀dois฀reis75.฀Isso฀ mostra฀que฀não฀houve฀necessariamente฀uma฀divisão฀política฀da฀cidade,฀ mas,฀o฀que฀é฀bem฀mais฀provável,฀uma฀divisão฀das฀rendas฀fiscais.฀฀ Fundadas฀no฀valor฀fiscal฀das฀civitates,฀as฀partilhas฀obedeciam฀a฀imperativos฀de฀ordem฀política฀e฀administrativa,฀isto฀é,฀às฀necessidades฀materiais฀de฀cada฀príncipe฀herdeiro฀de฀criar฀e฀de฀manter฀estruturas฀de฀governo฀em฀cada฀um฀de฀seus฀territórios.฀É฀importante,฀contudo,฀sublinhar฀ que฀ as฀ considerações฀ fiscais฀ não฀ eram฀ as฀ únicas฀ a฀ prevalecer฀ durante฀ as฀partilhas฀territoriais฀francas.฀As฀suscetibilidades฀regionais฀constituíram฀algumas฀vezes฀um฀fator฀determinante,฀como฀no฀caso฀do฀respeito฀ à฀integridade฀territorial฀do฀antigo฀reino฀de฀Colônia.฀É฀também฀possível฀ que฀Clóvis฀tenha฀sido฀guiado฀em฀sua฀sucessão฀pelo฀princípio฀da฀Imitatio฀ Imperii,฀pois฀o฀direito฀de฀todos฀os฀herdeiros฀homens฀de฀suceder฀ao฀seu฀ pai฀se฀desenvolveu฀no฀Império฀a฀partir฀do฀século฀III.฀Na฀Espanha฀visigótica,฀por฀exemplo,฀o฀rei฀Leovigildo,฀seguindo฀o฀modelo฀constantiniano,฀ associou฀à฀realeza฀seus฀dois฀filhos,฀Recaredo฀e฀Hermenegildo76.฀Outras฀ razões฀também฀podem฀ser฀evocadas฀para฀explicar฀a฀decisão฀de฀Clóvis฀de฀ 74 ฀Histórias฀VI,฀33.฀ ฀Histórias฀VI,฀11.฀ 76 ฀Ver฀A.฀Isla฀Frez,฀“Las฀relaciones฀entre฀el฀reino฀visigodo฀y฀los฀reyes฀merovingios฀a฀finales฀del฀ siglo฀VI”,฀pp.11-32. 75 160฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média outorgar฀a฀cada฀um฀de฀seus฀filhos฀uma฀parte฀do฀reino.฀Havia,฀por฀um฀ lado,฀as฀proezas฀militares฀de฀Teuderico,฀que฀devem฀ter฀conferido฀uma฀ aura฀ de฀ prestígio.฀ Além฀ disso,฀ pode-se฀ pensar฀ nas฀ pressões฀ da฀ rainha฀ Clotilde,฀para฀quem฀a฀exclusão฀de฀seus฀filhos฀da฀herança฀paterna฀teria฀ sido฀uma฀afronta77.฀Todavia,฀esses฀são฀fatores฀meramente฀conjecturais,฀ e฀podem฀explicar฀as฀circunstâncias฀de฀uma฀determinada฀partilha,฀como฀ a฀ de฀ 511,฀ mas฀ são฀ insuficientes฀ para฀ se฀ compreender฀ o฀ fenômeno฀ em฀ sua฀continuidade฀e฀em฀sua฀complexidade,฀em฀561,฀em฀567฀ou฀em฀587.฀ Mapa฀3 77 ฀I.N.฀Wood,฀“Kings,฀kingdoms฀and฀consent”,฀pp.6-29.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀161 A฀unidade฀perene฀do฀Regnum฀Francorum฀resultou฀do฀fato฀de฀que฀essas฀ partilhas฀ constituíram฀ um฀ arranjo฀ estrutural,฀ de฀ natureza฀ política,฀ e฀ cujo฀objetivo฀era฀o฀de฀constituir฀uma฀autoridade฀pública฀eficaz.฀ A฀lógica฀territorial฀que฀se฀esboça฀a฀partir฀da฀partilha฀de฀511฀–฀e฀cujos฀ indícios฀ serão฀ ainda฀ mais฀ fortes฀ nas฀ partilhas฀ de฀ 561฀ e฀ de฀ 567฀ –฀ tinha฀ por฀fundamento฀uma฀preocupação฀de฀equilíbrio฀fiscal.฀Cada฀um฀dos฀reis฀ procurava฀ munir-se฀ de฀ meios฀ próprios฀ para฀ assegurar฀ sua฀ autoridade฀ sobre฀ as฀ populações฀ dos฀ territórios฀ por฀ eles฀ governados.฀ Tratava-se฀ de฀ dotar฀ a฀ autoridade฀ real,฀ em฀ todas฀ as฀ partes฀ do฀ Reino฀ dos฀ Francos,฀ dos฀ meios฀de฀ação฀permitindo฀sustentar฀a฀administração฀civil,฀bem฀como฀o฀ exército.฀Essa฀solução,฀longe฀de฀ter฀provocado฀a฀fragmentação฀do฀Reino฀ dos฀ Francos,฀ contribuiu฀ para฀ a฀ manutenção฀ de฀ sua฀ unidade,฀ inclusive฀ durante฀o฀período฀das฀guerras฀civis,฀quando฀as฀rivalidades฀entre฀os฀reis฀ francos฀ alcançaram฀ seu฀ ponto฀ culminante.฀ Qualquer฀ que฀ tenha฀ sido฀ a฀ responsabilidade฀das฀partilhas฀na฀eclosão฀das฀guerras฀civis฀que฀opuseram฀ os฀reis฀francos฀do฀início฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀VI฀até฀o฀ano฀de฀ 613,฀não฀se฀pode฀negar฀a฀lógica฀e฀a฀eficácia฀dos฀princípios฀consagrados฀ pela฀partição฀de฀511.฀Concebidas฀como฀um฀recurso฀de฀estabilidade฀para฀ o฀mundo฀franco,฀os฀arranjos฀territoriais฀fundados฀nas฀rendas฀fiscais฀das฀ cidades฀cumpriram฀seu฀papel฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI.฀O฀estabelecimento฀de฀enclaves,฀que฀criou฀efetivamente฀uma฀situação฀de฀interdependência,฀deveria฀garantir฀a฀cooperação฀dentro฀do฀mundo฀franco.฀Da฀ mesma฀forma,฀a฀excentricidade฀das฀capitais฀na฀partilha฀de฀567฀tinha฀sido฀ compensada฀pela฀criação฀de฀um฀“condomínio”,฀compreendendo฀as฀cidades฀de฀Paris,฀Senlis฀e฀Ressons-sur-Matz,฀que฀estavam฀submetidas฀à฀autoridade฀dos฀três฀reis.฀Embora฀tudo฀isso฀não฀tenha฀garantido฀uma฀harmonia฀ total฀entre฀os฀príncipes฀francos,฀nenhum฀conflito฀generalizado฀ocorreu฀ até฀morte฀de฀Clotário฀I.฀Ainda฀que฀se฀constate฀o฀fracasso฀dessa฀fórmula฀ em฀567,฀não฀se฀pode฀negar฀que฀ela฀perseguia฀então฀o฀estabelecimento฀de฀ um฀equilíbrio฀político,฀mais฀ainda฀que฀em฀561.฀Por฀mais฀paradoxal฀que฀ isso฀possa฀parecer,฀as฀partilhas฀não฀eram฀um฀elemento฀de฀divisão,฀mas฀de฀ união.฀Entretanto,฀os฀arranjos฀territoriais฀eram฀incapazes฀de฀promover฀a฀ estabilidade฀política฀de฀um฀reino฀onde฀os฀projetos฀políticos฀dos฀reis฀ti- 162฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média nham฀se฀tornado฀mais฀e฀mais฀concorrentes฀e฀onde฀a฀personalidade฀política฀dos฀regna฀tinha฀se฀afirmado฀consideravelmente฀ao฀longo฀do฀século฀VI.฀ As฀partilhas฀francas,฀pelo฀menos฀durante฀o฀século฀VI,฀foram฀orientadas฀ por฀uma฀“razão฀de฀Estado”฀que฀não฀se฀reduzia฀aos฀interesses฀privados฀do฀ rei฀ou฀de฀um฀ou฀outro฀membro฀das฀elites฀galo-francas.฀ E.฀ Ewig฀ e฀ K.F.฀ Werner฀ vêem฀ desde฀ o฀ século฀ VI฀ uma฀ progressiva฀ autonomização฀ de฀ cada฀ um฀ dos฀ regna,฀ de฀ modo฀ que฀ a฀ unidade฀ do฀ Regnum฀Francorum฀não฀seria฀mais฀que฀uma฀ficção฀no฀começo฀do฀século฀VII.฀Após฀a฀morte฀de฀Clotário฀II,฀e฀durante฀as฀décadas฀seguintes,฀ ter-se-ia฀ assistido฀ à฀ consolidação฀ de฀ três฀ grandes฀ blocos฀ territoriais:฀ a฀Nêustria,฀a฀Austrásia฀e฀a฀Burgúndia.฀Realmente,฀é฀a฀partir฀do฀início฀ do฀século฀VII฀que฀a฀associação฀nominal฀entre฀os฀regna฀e฀os฀príncipes฀ que฀as฀governavam฀começou฀a฀cair฀em฀desuso.฀O฀reino฀de฀Sigeberto฀ I฀ foi฀ chamado฀ de฀Austrásia,฀ o฀ de฀ Gontrão฀ retomou฀ o฀ nome฀ de฀ Burgúndia.฀Um฀pouco฀mais฀tarde,฀por฀volta฀da฀metade฀do฀século฀VII,฀os฀ territórios฀ do฀ noroeste฀ da฀ Gália,฀ onde฀ tinha฀ reinado฀ Chilperico,฀ receberam฀a฀designação฀de฀Nêustria78.฀Entretanto,฀nenhum฀dos฀príncipes฀ que฀ reinaram฀ na฀ Burgúndia,฀ na฀ Nêustria฀ ou฀ na฀Austrásia,฀ todos฀ membros฀ da฀ mesma฀ família฀ até฀ 751,฀ utilizou฀ os฀ títulos฀ respectivos฀ de฀rex฀Burgundiae฀ou฀rex฀Neustriae.฀Cada฀um฀deles฀era฀chamado฀rex฀ Francorum.฀A฀ consciência฀ da฀ unidade฀ do฀ reino฀ aparece฀ também฀ nas฀ fontes฀ da฀ época.฀ Regnum฀ Francorum,฀ ou฀ Francia,฀ continuaram฀ a฀ ser฀ os฀termos฀tradicionalmente฀utilizados฀por฀cronistas฀dos฀séculos฀VII฀e฀ VIII฀para฀designar฀a฀Gália79.฀A฀lógica฀fiscal฀das฀partilhas฀foi฀duramente฀ 78 ฀As฀regiões฀do฀norte฀do฀rio฀Loire฀permaneciam฀o฀centro฀de฀gravidade฀do฀Regnum฀Francorum,฀ o฀que฀correspondia฀aproximadamente฀ao฀antigo฀“Reino฀de฀Syagrius”.฀Na฀ausência฀de฀uma฀denominação฀mais฀precisa฀até฀a฀metade฀do฀século฀VII,฀essas฀regiões฀são฀denominadas฀como฀o฀ “Reino฀de฀Soissons”.฀A฀denominação฀“Nêustria”฀aparece฀pela฀primeira฀vez฀na฀Vita฀Columbani,฀ escrita฀por฀volta฀de฀643฀por฀Jonas฀de฀Bobbio฀(I,฀24).฀ 79 ฀Histórias฀IV,฀9:฀“Foi฀sob฀o฀reinado฀de฀Teodeberto฀que฀Buccelenus,฀que฀havia฀anexado฀toda฀a฀ Itália฀ao฀Reino฀dos฀Francos,฀foi฀assassinado฀por฀Narses”;฀Histórias฀V,฀prólogo:฀“É฀difícil฀para฀mim฀ lembrar฀as฀vicissitudes฀das฀guerras฀civis฀que฀enfraquecem฀bastante฀a฀nação฀e฀o฀Reino฀dos฀Francos”;฀ Histórias฀VI,฀24:฀“O฀duque฀Gontrão,฀tendo฀prendido฀o฀bispo฀Teodoro,฀lançou-o฀na฀prisão฀por฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀163 colocada฀ à฀ prova฀ pelos฀ antagonismos฀ que฀ opuseram,฀ especialmente฀ entre฀561฀e฀613,฀os฀membros฀da฀dinastia฀merovíngia,฀e฀pela฀emergência฀de฀três฀grandes฀entidades฀políticas฀dentro฀do฀reino,฀a฀Nêustria,฀o฀ Austrásia฀e฀a฀Burgúndia.฀A฀partir฀do฀princípio฀do฀século฀VII,฀assistiuse฀ a฀ um฀ aumento฀ em฀ importância฀ do฀ particularismo฀ regional฀ e฀ dos฀ particularismos฀ eclesiásticos฀ no฀ dispositivo฀ das฀ partilhas.฀ A฀ política฀ dos฀reis฀merovíngios฀até฀o฀final฀do฀século฀VI฀foi฀caracterizada฀por฀uma฀ centralização฀e฀por฀uma฀autonomia฀diante฀do฀episcopado฀a฀qual฀seus฀ sucessores฀abandonaram฀progressivamente.฀ ฀฀ Utilitas฀publica Mais฀importante฀que฀a฀perenidade฀de฀algumas฀construções฀institucionais฀ ou฀ de฀ títulos฀ romanos,฀ o฀ que฀ constitui฀ a฀ originalidade฀ maior฀do฀século฀VI฀na฀Gália฀franca฀é฀a฀sobrevivência฀de฀uma฀idéia฀ segundo฀ a฀ qual฀ o฀ objetivo฀ central฀ do฀ governo฀ não฀ estava฀ na฀ satisfação฀ dos฀ interesses฀ pessoais฀ dos฀ príncipes,฀ mas฀ na฀ realização฀ do฀ “interesse฀público”.฀O฀melhor฀indício,฀nesse฀sentido,฀são฀as฀partilhas฀ do฀Regnum฀Francorum฀no฀século฀VI.฀Essas฀partilhas฀conciliavam฀três฀ princípios฀distintos,฀a฀unidade฀geral฀do฀reino,฀os฀particularismos฀regionais฀e฀a฀viabilidade฀política฀e฀administrativa฀de฀cada฀domínio.฀A฀ criação฀de฀enclaves,฀bem฀como฀a฀existência฀de฀uma฀capital฀comum,฀ são฀os฀melhores฀indícios฀de฀que฀as฀partilhas฀não฀perdiam฀de฀vista฀a฀ integridade฀territorial,฀além฀de฀fornecerem฀ao฀Reino฀dos฀Francos฀a฀ coesão฀ de฀ que฀ ele฀ necessitava฀ para฀ fazer฀ frente฀ às฀ ameaças฀ exterio- essa฀razão;฀ele฀o฀acusava฀de฀ter฀introduzido฀um฀homem฀estrangeiro฀nas฀Gálias฀de฀ter฀pretendido฀ por฀esse฀meio฀submeter฀o฀Reino฀dos฀Francos฀à฀dominação฀imperial”;฀Histórias฀VII,฀27:฀“...que฀ nenhum฀estrangeiro฀ouse฀violar฀o฀Reino฀dos฀Francos”;฀Fredegário฀Crônicas฀IV,฀42:฀“Firmou-se฀a฀ unidade฀do฀Reino฀dos฀Francos฀como฀havia฀sido฀o฀caso฀quando฀Clotário฀I฀dominava”;฀Fredegário,฀ Crônicas฀IV,฀45:฀“Por฀essa฀época฀também,฀como฀está฀escrito฀anteriormente,฀eles฀[os฀lombardos]฀ fizeram฀irrupção฀no฀Reino฀dos฀Francos”.฀฀฀฀฀฀ 164฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média res.฀ As฀ partilhas฀ também฀ respeitaram฀ a฀ integridade฀ territorial฀ das฀ regiões฀conquistadas฀pelos฀francos฀sob฀Clóvis฀e฀seus฀sucessores.฀Os฀ sentimentos฀autonomistas฀da฀aristocracia฀do฀antigo฀Reino฀de฀Colônia฀ –฀ que฀ mais฀ tarde฀ iria฀ se฀ tornar฀ a฀Austrásia฀ –฀ foram฀ igualmente฀ levados฀em฀consideração.฀É฀provável฀que฀razões฀estratégicas฀tenham฀ forçado฀os฀merovíngios฀a฀manter฀a฀unidade฀política฀e฀administrativa฀ dessa฀ região฀ de฀ fronteira.฀ Finalmente,฀ o฀ reino฀ era฀ partilhado฀ entre฀ os฀ herdeiros฀ de฀ maneira฀ a฀ conceder฀ a฀ cada฀ um฀ deles฀ civitates฀ que฀ forneciam฀um฀volume฀de฀impostos฀mais฀ou฀menos฀equivalente.฀Esse฀ sistema,฀durante฀a฀maior฀parte฀do฀século฀VI,฀esteve฀em฀contradição฀ com฀uma฀lógica฀paralela฀de฀organização฀do฀espaço฀franco,฀a฀lógica฀ do฀ episcopado.฀As฀ fronteiras฀ das฀ partilhas฀ nem฀ sempre฀ coincidiam฀ com฀os฀limites฀das฀províncias฀eclesiásticas,฀o฀que฀ocasionava฀prejuízos฀aos฀bens฀da฀Igreja,฀sujeitos฀também฀às฀divisões.฀A฀transmissão฀do฀ regnum฀de฀pai฀para฀filho฀não฀se฀fazia฀conforme฀uma฀lógica฀do฀“direito฀privado”,฀mas฀segundo฀um฀outro฀imperativo,฀o฀da฀viabilidade฀do฀ exercício฀da฀autoridade฀pública฀em฀cada฀uma฀das฀partes฀do฀Regnum฀ Francorum.฀Esse฀imperativo฀se฀chocou฀com฀a฀lógica฀eclesiástica฀das฀ partilhas,฀ como฀ mostram฀ os฀ conflitos฀ constantes฀ entre฀ os฀ reis฀ e฀ os฀ bispos฀a฀respeito฀dos฀bens฀das฀igrejas.฀ A฀distinção฀e฀mesmo฀a฀oposição฀entre฀a฀lógica฀“eclesiástica”฀e฀a฀lógica฀“real”฀das฀partilhas฀é฀o฀melhor฀indício฀de฀que฀havia฀uma฀espécie฀ de฀ ratio฀ política฀ entre฀ os฀ merovíngios.฀ Como฀ designar฀ esse฀ princípio฀ que฀ colocava,฀ durante฀ a฀ maior฀ parte฀ do฀ século฀VI,฀ os฀ interesses฀ da฀realeza฀acima฀dos฀interesses฀pessoais฀dos฀reis฀e฀do฀episcopado?฀A฀ expressão฀do฀vocabulário฀merovíngio฀que฀melhor฀traduz฀essa฀lógica฀ própria฀ à฀ monarquia฀ franca฀ é฀ utilitas฀ publica.฀ Ela฀ pode฀ ser฀ traduzida฀por฀“interesse฀público”,฀ou฀seja,฀aquele฀encarnado฀pelo฀Estado.฀A฀ idéia฀segundo฀a฀qual฀o฀objetivo฀da฀autoridade฀pública฀é฀promover฀o฀ interesse฀da฀coletividade฀é฀tão฀antiga฀quanto฀a฀própria฀política,฀e฀foi฀ expressa฀claramente฀pela฀primeira฀vez฀na฀Grécia฀antiga.฀Entretanto,฀ é฀ em฀ Roma฀ que฀ ela฀ encontrou฀ terreno฀ fértil฀ para฀ o฀ seu฀ desenvolvimento฀ e฀ foi฀ lá฀ também฀ que฀ sofreu฀ as฀ mais฀ profundas฀ alterações.฀ A฀ utilitas฀publica฀tornou-se฀um฀dos฀componentes฀essenciais฀da฀vida฀po- Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀165 lítica฀romana80.฀Dotada฀de฀um฀sentido฀bastante฀amplo,฀essa฀expressão฀ designava฀a฀utilitas฀civium,฀o฀hominum฀communis,฀isto฀é,฀o฀interesse฀ do฀conjunto฀dos฀cidadãos,฀mas฀também฀a฀utilidade฀do฀Estado฀–฀entendido฀como฀uma฀entidade฀autônoma฀com฀suas฀necessidades,฀senão฀ seus฀ fins฀ próprios.฀ Os฀ autores฀ romanos฀ durante฀ o฀ período฀ republicano,฀notadamente฀Cícero,฀tinham฀privilegiado฀em฀sua฀definição฀de฀ res฀publica฀as฀obrigações฀dos฀governantes฀para฀com฀os฀governados.฀O฀ reforço฀do฀poder฀imperial฀entre฀os฀Severos,฀sem฀precedentes฀na฀historia฀romana,฀marcou฀uma฀evolução฀importante฀da฀noção฀de฀utilitas฀ publica,฀doravante฀identificada฀como฀uma฀espécie฀de฀razão฀de฀Estado฀ que฀eclipsou฀a฀noção฀de฀utilitas฀communis81. No฀Código฀Teodosiano฀(século฀IV),฀por฀exemplo,฀a฀palavra฀utilitas฀ aparece฀em฀69฀ocasiões,฀das฀quais฀31฀sob฀a฀forma฀de฀utilitas฀publica.฀No฀ Codex฀Iustinianus฀(século฀VI),฀de฀um฀total฀de฀83฀menções฀de฀utilitas,฀ 32฀dizem฀respeito฀à฀utilitas฀publica,฀e฀somente฀6฀mencionam฀a฀utilitas฀ communis82.฀A฀utilitas฀publica฀aparece฀nas฀constituições฀tardo-romanas฀como฀sinônimo฀de฀defesa฀da฀integridade฀do฀Império83.฀Essa฀mutação฀semântica฀se฀insere฀no฀contexto฀do฀fortalecimento฀da฀autoridade฀ imperial,฀na฀qual฀o฀Estado฀era฀identificado฀aos฀serviços฀públicos฀e฀à฀ vontade฀do฀soberano,฀muito฀mais฀do฀que฀à฀comunidade฀de฀cidadãos.฀ O฀advento฀do฀Império฀Cristão฀transformou฀mais฀uma฀vez฀o฀conteúdo฀ da฀ utilitas฀ publica.฀ No฀ Código฀ Justiniano,฀ a฀ utilitas฀ publica฀ aparece฀ associada฀à฀idéia฀de฀uma฀missão฀e฀de฀uma฀responsabilidade฀confiadas฀ por฀Deus฀aos฀governantes.฀Na฀ótica฀desta฀“teologia฀política”,฀Deus฀te- 80 ฀No฀que฀se฀refere฀à฀noção฀de฀utilitas฀publica฀na฀época฀romana,฀ver฀M.฀Steinwenter,฀“Utilitas฀publica,฀utilitas฀singulorum”,฀pp.฀84-102;฀J.฀Gaudemet,฀“Utilitas฀publica”,฀pp.฀465-499;฀há฀ também฀o฀livro฀mais฀recente฀de฀P.฀Hibst,฀onde฀o฀autor฀estuda฀as฀formas฀medievais฀da฀noção฀ de฀utilitas฀publica฀(Utilitas฀Publica฀–฀Gemeiner฀Nutz฀–Gemeinwohl.฀Untersuchungen฀zur฀ Idee฀ eines฀ politischen฀ Leitbegriffes฀ von฀ der฀Antike฀ bis฀ zum฀ späten฀ Mittelalter,฀ pp.1-6,฀ pp.฀142-160). 81 ฀J.฀Gaudemet,฀“Utilitas฀publica”,฀p.฀465. 82 ฀Ibid.,฀p.฀480.฀฀ 83 ฀M.฀Steinwenter,฀“Utilitas฀publica,฀utilitas฀singulorum”,฀pp.฀84-102.฀ 166฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ria฀confiado฀os฀súditos฀ao฀imperador฀para฀que฀ele฀velasse฀pelos฀seus฀ interesses84.฀A฀oposição฀entre฀essas฀duas฀formas฀de฀utilitas฀–฀uma฀primeira฀centrada฀na฀preservação฀das฀instituições฀e฀uma฀segunda฀focada฀ no฀corpo฀social฀–฀não฀se฀restringe฀apenas฀à฀época฀romana,฀é฀possível฀ encontrá-la฀também฀na฀história฀política฀do฀Regnum฀Francorum,฀como฀ veremos฀a฀seguir.฀฀฀฀ Na฀obra฀de฀Gregório฀de฀Tours,฀a฀utilização฀da฀palavra฀utilitas฀sugere,฀ à฀primeira฀vista,฀uma฀confusão฀entre฀a฀pessoa฀do฀rei฀e฀a฀realeza.฀O฀bispo฀ de฀Tours฀descreve฀o฀conflito฀entre฀o฀duque฀dos฀bretões,฀Weroc,฀e฀o฀rei฀ Gontrão:฀ “Mas,฀ quando฀ (Weroc)฀ veio฀ encontrar฀ Ebracharius,฀ implorou฀ a฀ paz,฀ entregou฀reféns฀assim฀como฀numerosos฀presentes,฀prometendo฀não฀contrariar฀ jamais฀os฀interesses฀do฀rei฀Gontrão฀(contra฀utilitatem฀Guntchramni฀regis฀esse฀ venturum)” (grifo฀nosso)85.฀฀ No฀mesmo฀capítulo,฀o฀bispo฀de฀Vannes฀afirma฀não฀ter฀tido฀jamais฀a฀ pretensão฀de฀opor-se฀aos฀interesses฀dos฀reis฀francos:฀ ฀“Nós฀não฀somos฀em฀nada฀devedores฀em฀relação฀aos฀reis฀nossos฀mestres,฀diz฀ o฀bispo,฀e฀jamais฀tivemos฀a฀presunção฀de฀opor-nos฀aos฀seus฀interesses฀(contra฀ utilitatem฀eorum),฀mas,฀conquistados฀pelos฀bretões,฀fomos฀submetidos฀a฀um฀ pesado฀jugo”฀(grifo฀nosso)86.฀ A฀palavra฀utilitas฀aparece฀ainda฀quando฀o฀bispo฀de฀Reims,฀Egidius,฀ confessa฀diante฀de฀um฀tribunal฀eclesiástico฀ser฀amigo฀do฀rei฀Chilperico:฀ “Eu฀não฀poderia฀negar฀que฀tenho฀sido฀amigo฀do฀rei฀Chilperico;฀porém,฀não฀ é฀contra฀os฀interesses฀do฀rei฀Childeberto฀(contra฀utilitatem฀regis฀Childeberthi)฀ que฀esta฀afeição฀se฀desenvolveu”฀(grifo฀nosso)87.฀ 84 ฀Ver฀Código฀Justiniano฀VI,฀5,฀1,฀14a. ฀Histórias฀X,฀9.฀ 86 ฀Ibid.฀ 87 ฀Histórias฀X,฀19.฀ 85 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀167 Em฀nenhum฀dos฀três฀trechos฀acima฀citados,฀está฀claro฀se฀a฀ utilitas฀ concerne฀somente฀à฀pessoa฀do฀rei฀ou฀também฀à฀autoridade฀pública฀por฀ ele฀ encarnada.฀ Em฀ outro฀ trecho฀ das฀ Histórias,฀ fica฀ claro฀ que฀ o฀ autor฀ considera฀o฀interesse฀público฀e฀o฀interesse฀pessoal฀do฀rei฀como฀duas฀coisas฀distintas,฀embora฀próximas.฀Levado฀à฀presença฀de฀Childeberto฀II,฀o฀ duque฀Gontrão฀Boson฀confessa฀ter฀agido฀não฀só฀contra฀a฀vontade฀do฀rei,฀ mas฀também฀contra฀a฀utilitas฀publica:฀ “Eu฀pequei฀contra฀ti฀e฀tua฀mãe,฀ao฀não฀obedecer฀a฀vossos฀preceitos,฀mas฀ agindo฀contra฀vossa฀vontade฀e฀o฀interesse฀público฀(...sed฀agendo฀contra฀voluntatem฀vestram฀atque฀utilitatem฀publicam)”฀(grifo฀nosso)88.฀ Duas฀idéias฀são฀importantes฀nesse฀trecho.฀A฀primeira฀é฀que,฀ao฀contrariar฀ Childeberto,฀ o฀ duque฀ Gontrão฀ teria฀ igualmente฀ se฀ oposto฀ ao฀ interesse฀público.฀Isso฀significa฀que฀para฀Gregório฀de฀Tours฀os฀interesses฀ do฀rei฀Childebert฀II฀se฀coadunam฀com฀a฀utilitas฀publica.฀Um฀príncipe฀ pode,฀portanto,฀fazer฀coincidir฀seus฀interesses฀com฀os฀interesses฀gerais.฀ Em฀ segundo฀ lugar,฀ ao฀ mencionar฀ no฀ mesmo฀ trecho฀ e฀ separadamente฀ os฀interesses฀do฀rei฀e฀o฀interesse฀público,฀o฀bispo฀de฀Tours฀sugere฀que฀ os฀ dois฀ elementos฀ nem฀ sempre฀ se฀ confundem.฀ Seria,฀ entretanto,฀ um฀ equívoco฀acreditar฀que฀a฀distinção฀entre฀o฀interesse฀do฀rei฀e฀o฀interesse฀público฀fosse฀um฀mero฀capricho฀de฀linguagem฀de฀Gregório.฀O฀caso฀ anteriormente฀mencionado฀do฀dote฀da฀filha฀do฀rei฀Chilperico,฀em฀que฀ aparece฀a฀reação฀negativa฀dos฀francos฀à฀suspeita฀de฀que฀haveria฀bens฀públicos฀entre฀os฀tesouros฀ofertados฀à฀princesa,฀é฀um฀forte฀indício฀de฀que฀a฀ distinção฀entre฀aquilo฀que฀pertencia฀ao฀rei฀e฀aquilo฀que฀era฀de฀domínio฀ público฀tinha฀um฀alcance฀concreto.฀฀฀฀฀฀ A฀distinção฀entre฀os฀interesses฀públicos฀e฀os฀interesses฀pessoais฀do฀rei฀ aparece฀igualmente฀nos฀documentos฀oficiais,฀por฀exemplo,฀no฀tratado฀ 88 ฀Histórias฀IX,฀8.฀ 168฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀Andelot.฀O฀texto฀do฀tratado฀previa฀o฀direito฀de฀passagem฀através฀do฀ reino฀àqueles฀que฀desejavam฀se฀locomover฀para฀tratar฀de฀seus฀interesses฀ privados฀ou฀para฀os฀“assuntos฀públicos”: “E฀como฀uma฀concórdia฀pura฀e฀sincera฀foi฀selada฀em฀nome฀de฀Deus฀entre฀ os฀ referidos฀ reis,฀ foi฀ decidido฀ que฀ a฀ passagem฀ através฀ do฀ reino฀ de฀ um฀ e฀ de฀ outro฀não฀será฀jamais฀recusada฀aos฀fiéis฀nem฀de฀um฀nem฀de฀outro฀quando฀ eles฀quiserem฀se฀locomover฀seja฀para฀os฀assuntos฀públicos,฀seja฀em฀nome฀de฀ interesses฀privados”89.฀ No฀título฀I฀do฀Pactus฀legis฀Salicae,฀mais฀precisamente฀nos฀capítulos฀4฀e฀ 5,฀há฀uma฀distinção฀entre฀o฀serviço฀do฀rei฀e฀o฀serviço฀“privado”:฀“§4.฀Se฀um฀ homem฀está฀ocupado฀em฀uma฀missão฀do฀rei,฀ele฀não฀pode฀vir.฀§5.฀Porém,฀se฀ o฀homem฀estiver฀no฀pagus฀para฀tratar฀de฀seus฀próprios฀assuntos,฀ele฀pode฀ser฀ chamado,฀como฀dissemos฀acima”.฀Aquele฀que฀estivesse฀em฀missão฀definida฀ pelo฀rei฀não฀poderia฀ser฀chamado฀ao฀mallus,฀pelo฀menos฀enquanto฀durasse฀a฀missão,฀mas฀aquele฀que฀estivesse฀tratando฀de฀seus฀próprios฀assuntos฀ no฀pagus,฀não฀poderia฀escapar฀da฀convocação.฀Há,฀portanto,฀nesses฀dois฀ capítulos,฀uma฀ratio฀própria฀ao฀exercício฀da฀autoridade฀pública,฀encarnada฀no฀serviço฀do฀rei฀e฀sobreposta฀aos฀interesses฀pessoais฀dos฀súditos.฀As฀ Histórias฀mencionam฀também฀uma฀embaixada฀enviada฀pelo฀rei฀Gontrão฀ a฀Childeberto฀II฀com฀a฀proposta฀de฀que฀eles฀se฀encontrassem,฀no฀interesse฀ da฀vida฀desse฀último,฀mas฀também฀em฀nome฀da฀utilitas฀publica: “Que฀todos฀os฀obstáculos฀cedam฀e฀venha฀para฀que฀eu฀te฀veja.฀Trata-se฀de฀ uma฀ necessidade฀ certa,฀ tanto฀ no฀ interesse฀ de฀ tua฀ vida฀ quanto฀ no฀ interesse฀ público,฀que฀nós฀nos฀vejamos”90.฀฀฀ Todos฀ os฀ exemplos฀ mencionados฀ até฀ aqui฀ a฀ respeito฀ da฀ utilitas฀ publica฀ são฀ aparentemente฀ neutros,฀ ou฀ seja,฀ não฀ se฀ atribui฀ qualquer฀ 89 ฀Histórias฀IX,฀20.฀฀ ฀Histórias฀IX,฀10. 90 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀169 conteúdo฀ ao฀ “interesse฀ público”.฀ O฀ máximo฀ que฀ se฀ pode฀ deduzir฀ a฀ respeito฀dessa฀expressão฀é฀que฀ela฀remete฀ao฀interesse฀da฀monarquia,฀ e฀ que฀ não฀ se฀ confunde฀ com฀ os฀ interesses฀ pessoais฀ do฀ rei฀ ou฀ de฀ um฀ ou฀ outro฀ membro฀ das฀ elites฀ secular฀ ou฀ eclesiástica,฀ ou฀ ainda฀ com฀ o฀ interesse฀da฀Igreja฀franca.฀ No฀ entanto,฀ se฀ compararmos฀ a฀ descrição฀ de฀ Chilperico฀ feita฀ pelo฀ bispo฀de฀Tours฀com฀a฀descrição฀que฀esse฀mesmo฀autor฀faz฀de฀Gontrão,฀ podemos฀perceber฀que฀há฀nas฀Histórias฀um฀interpretação฀teológico-política฀da฀noção฀de฀utilitas฀publica.฀A฀abordagem฀“gregoriana”฀apresenta฀ essa฀noção฀estreitamente฀associada฀a฀uma฀ética฀cristã฀do฀poder.฀Vejamos:฀ em฀duas฀ocasiões,฀quando฀menciona฀Chilperico,฀Gregório฀faz฀referência฀ aos฀ interesses฀ pessoais฀ que฀ o฀ guiavam.฀ Ele฀ começa฀ o฀ capítulo฀ sobre฀ o฀ julgamento฀do฀bispo฀Pretextatus฀falando฀das฀motivações฀de฀Chilperico: “Após฀ realizar฀ esses฀ atos,฀ Chilperico,฀ sabendo฀ que฀ Pretextatus,฀ bispo฀ de฀ Rouen,฀ distribuía฀ ฀ presentes฀ às฀ populações฀ para฀ prejudicar฀ seus฀ interesses฀ (contra฀utilitatem฀suam),฀mandou฀que฀o฀convocassem”91.฀฀ No฀balanço฀do฀reinado฀de฀Chilperico,฀Gregório฀se฀contenta฀em฀mencionar฀que฀ele฀governava฀pro฀suis฀utilitatibus92.฀Ele฀quer฀assim฀mostrar฀ que฀Chilperico฀desconhecia฀qualquer฀sentido฀da฀responsabilidade฀pública:฀ele฀governaria฀levando฀em฀conta฀somente฀seus฀interesses฀pessoais.฀ Nesse฀ mesmo฀ capítulo,฀ Gregório฀ afirma฀ que฀ Chilperico฀ tinha฀ aversão฀ aos฀interesses฀dos฀pobres฀(causas฀pauperum฀exosas฀habebat)฀e฀blasfemava฀ freqüentemente฀contra฀os฀bispos฀do฀senhor฀(sacerdotes฀Domini฀assidue฀ blasphemabat).฀A฀realeza฀de฀Chilperico฀seria฀a฀encarnação฀de฀um฀poder฀ desligado฀de฀qualquer฀obrigação฀em฀relação฀aos฀pobres,฀que฀despreza฀ os฀bispos฀e฀que฀está฀voltado฀unicamente฀para฀a฀satisfação฀dos฀interesses฀ pessoais฀do฀rei฀(pro฀suis฀utilitatibus).฀Logo,฀pode-se฀deduzir฀que฀a฀utilitas฀ publica฀ é,฀ para฀ Gregório,฀ indissociável฀ da฀ preocupação฀ do฀ governante฀ com฀os฀pobres,฀com฀a฀Igreja฀e฀com฀os฀bispos.฀ 91 ฀Histórias฀V,฀18.฀ ฀Histórias฀VI,฀46.฀ 92 170฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Um฀indício฀suplementar฀do฀caráter฀fundamentalmente฀cristão฀que฀ Gregório฀outorga฀à฀utilitas฀publica฀está฀no฀fato฀de฀que฀essa฀expressão฀ aparece฀nas฀Histórias฀somente฀a฀partir฀das฀últimos฀livros฀e,฀na฀maior฀ parte฀do฀tempo,฀em฀capítulos฀que฀se฀referem฀ao฀rei฀Gontrão,฀e฀uma฀ outra฀vez฀em฀um฀capítulo฀sobre฀Childeberto฀II฀(príncipes฀da฀Burgúndia฀ e฀ da฀ Austrásia฀ dos฀ quais฀ o฀ bispo฀ de฀ Tours฀ é฀ próximo).฀ É฀ muito฀ provável฀ que฀ se฀ Gregório฀ não฀ utilizou฀ o฀ termo฀ em฀ questão฀ quando฀ descreveu฀ os฀ príncipes฀ francos฀ antes฀ de฀ Gontrão,฀ é฀ porque฀ considerava฀ que฀ eles฀ foram฀ incapazes฀ de฀ representar฀ esse฀ ideal฀ de฀ governo.฀ Esta฀ é฀ uma฀ interpretação฀ pessoal฀ da฀ história฀ por฀ parte฀ de฀ bispo฀ de฀ Tours,฀ou฀as฀menções฀à฀utilitas฀publica฀encobrem฀uma฀realidade฀mais฀ complexa?฀ A฀primeira฀possibilidade฀é฀pouco฀provável.฀As฀Histórias฀não฀são฀ a฀única฀fonte฀a฀mencioanar฀a฀expressão฀utilitas฀publica฀e฀a฀sublinhar฀ a฀distinção฀entre฀os฀assuntos฀privados฀e฀os฀assuntos฀públicos.฀Os฀cânones฀ dos฀ concílios฀ merovíngios฀ a฀ mencionam฀ igualmente:฀ é฀ o฀ que฀ podemos฀ver฀na฀carta฀enviada฀pelos฀bispos฀do฀Concílio฀de฀Paris,฀em฀ 573,฀ao฀bispo฀Egidius฀de฀Reims:“Assim,฀em฀favor฀da฀causa฀pública฀e฀dos฀ assuntos฀privados,฀nós฀nos฀reunimos฀em฀Paris...”93;฀ou฀ainda,฀no฀preâmbulo฀do฀concílio฀de฀Mâcon฀I:฀“Como,฀pela฀injunção฀de฀nosso฀gloriosíssimo฀senhor฀o฀rei฀Gontrão,฀nossa฀pequeneza฀se฀reuniu฀na฀cidade฀de฀Mâcon฀ no฀interesse฀dos฀assuntos฀públicos฀da฀mesma฀forma฀que฀das฀necessidades฀ dos฀pobres...”94.฀฀฀฀฀ Como฀ nas฀ Histórias,฀ a฀ utilitas฀ publica฀ nos฀ concílios฀ de฀ Paris฀ e฀ de฀ Mâcon฀ tem,฀ à฀ primeira฀ vista,฀ um฀ conteúdo฀ neutro:฀ não฀ se฀ trata,฀ aparentemente,฀de฀uma฀interpretação฀cristã฀daquilo฀que฀poderia฀constituir฀ o฀interesse฀comum.฀Contudo,฀aquilo฀que฀os฀bispos฀designavam฀nos฀cânones฀conciliares฀como฀a฀utilitas฀publica฀designava฀as฀expectativas฀do฀ episcopado฀em฀relação฀àquilo฀que฀deveria฀ser฀a฀ação฀do฀poder฀real.฀Os฀ bispos฀não฀se฀restringiam฀nos฀concílios฀à฀administração฀interna฀da฀Igre- 93 ฀Paris฀IV฀(573),฀Epistola฀synodi฀ad฀Egidium฀Remensem฀episcopum.฀ ฀Mâcon฀I฀(581-583).฀ 94 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀171 ja,฀mas฀legislavam฀sobre฀domínios฀os฀mais฀variados,฀como฀as฀relações฀ entre฀clérigos฀e฀laicos,฀a฀aplicação฀da฀justiça฀ou฀ainda฀a฀nomeação฀de฀ juízes฀laicos.฀Eles฀insistiam,฀por฀exemplo,฀na฀necessidade฀de฀impedir฀que฀ os฀judeus฀se฀tornassem฀juízes,฀de฀modo฀que฀nenhum฀cristão฀estivesse฀ sob฀ suas฀ ordens95.฀ Eles฀ ameaçavam฀ com฀ a฀ excomunhão฀ os฀ autores฀ de฀ perjúrio,฀e฀aseus฀cúmplices,฀com฀a฀interdição฀de฀testemunhar฀em฀novos฀processos96.฀As฀medidas฀previstas฀pelos฀bispos฀conciliaires฀estavam฀ orientadas,฀portanto,฀pela฀preocupação฀em฀organizar฀a฀sociedade฀conforme฀os฀preceitos฀cristãos.฀ Havia฀na฀monarquia฀franca,฀pelo฀menos฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀uma฀noção฀de฀autoridade฀pública฀que฀não฀se฀reduzia฀aos฀interesses฀privados฀dos฀reis฀e฀que฀tampouco฀se฀confundia฀com฀os฀interesses฀ dos฀clérigos,฀como฀podemos฀observar฀através฀dos฀conflitos฀envolvendo฀ as฀partilhas.฀Essa฀noção฀pode฀ser฀definida฀através฀da฀responsabilidade฀ dos฀reis฀em฀manter฀a฀“paz”,฀através,฀inclusive,฀da฀interferência฀nos฀assuntos฀eclesiásticos.฀O฀que฀está฀em฀questão฀aqui฀é฀a฀paz฀civil,฀o฀equilíbrio฀do฀ reino.฀Trata-se,฀portanto,฀de฀uma฀noção฀sem฀conteúdo฀nitidamente฀cristão.฀À฀medida฀que฀se฀aproxima฀o฀final฀do฀século฀VI,฀no฀entanto,฀a฀utilitas฀ publica฀adquiriu฀progressivamente,฀nas฀fontes฀narrativas฀e฀também฀nos฀ textos฀oficiais,฀um฀sentido฀“salvacionista”.฀É฀essa฀mutação฀no฀sentido฀da฀ utilitas฀publica฀que฀será฀abordada฀na฀segunda฀parte฀deste฀trabalho.฀Ao฀ opor฀os฀reis฀que฀governavam฀pro฀suis฀utilitatibus฀aos฀que฀governavam฀ pro฀populi฀salvatione,฀Gregório฀de฀Tours฀opunha฀duas฀formas฀de฀realeza.฀ O฀aparecimento฀do฀termo฀utilitas฀publica฀na฀segunda฀metade฀do฀século฀ VI,฀nas฀narrativas,฀nos฀textos฀conciliares฀e฀nos฀editos฀reais,฀foi฀o฀resultado฀de฀uma฀evolução฀da฀realeza,฀evolução฀essa฀que฀marcou฀a฀transição฀ de฀uma฀Realeza฀Constantiniana฀em฀direção฀a฀uma฀Realeza฀Cristã.฀É฀esse฀ processo฀que฀será฀analisado฀na฀segunda฀parte฀deste฀trabalho.฀฀ ฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 95 ฀Mâcon฀I฀(581-583),฀c.฀13.฀ ฀Ibid.,฀c.฀18.฀ 96 Segunda฀Parte  Os฀francos฀e฀a฀Realeza฀Cristã Capítulo฀I O฀rei฀cristão฀nos฀escritos฀episcopais฀ (c.481-c.594) Pelo฀menos฀desde฀o฀reinado฀de฀Clóvis,฀e฀antes฀mesmo฀de฀sua฀conversão฀ao฀catolicismo,฀os฀bispos฀católicos฀da฀Gália฀já฀apresentavam฀aos฀ príncipes฀francos฀um฀modelo฀ideal฀de฀governo.฀É฀o฀que฀se฀pode฀observar฀ na฀epístola฀escrita฀por฀Remígio฀de฀Reims,฀por฀volta฀de฀481,฀e฀que฀será฀ abordada฀ a฀ seguir.฀Através฀ de฀ suas฀ epístolas,฀ de฀ seus฀ sermões,฀ de฀ suas฀ crônicas฀ ou฀ dos฀ textos฀ conciliares,฀ os฀ bispos฀ galo-francos฀ buscaram฀ definir฀o฀lugar฀e฀o฀papel฀de฀um฀poder฀exercido฀por฀um฀rei฀convertido฀ ao฀ catolicismo฀ no฀ interior฀ da฀ sociedade฀ cristã.฀ Sob฀ vários฀ aspectos,฀ a฀ idéia฀de฀um฀governo฀cristão,฀desenvolvida฀pelo฀papa฀Gregório฀Magno฀ no฀final฀do฀século฀VI฀em฀suas฀cartas฀a฀Brunilda,฀Fredegonda,฀Childeberto฀II,฀Clotário฀II,฀Teudeberto฀e฀Teuderico,฀já฀havia฀sido฀esboçada฀por฀ Remígio,฀Avitus,฀Aureliano฀de฀Arles,฀Venâncio฀Fortunato฀ou฀Gregório฀ de฀ Tours.฀ Esses฀ autores฀ desenvolveram฀ reflexões฀ sobre฀ os฀ deveres฀ dos฀ reis฀francos฀em฀relação฀aos฀seus฀súditos฀bem฀antes฀que฀Gregório฀Magno฀ o฀ fizesse฀ em฀ sua฀ correspondência1.฀ Neste฀ primeiro฀ capítulo,฀ dar-se-á฀ 1 Contrariamente฀ao฀que฀afirma฀M.฀Reydellet,฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀p.฀441. 176฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ênfase฀aos฀argumentos฀endereçados฀pelos฀bispos฀aos฀reis฀francos฀para฀ fundamentar฀a฀Realeza฀Cristã.฀Por฀outro฀lado,฀em฀que฀pese฀o฀papel฀de฀ Remígio฀de฀Reims,฀de฀Avitus฀de฀Viena,฀de฀Fortunato฀e฀de฀Gregório฀de฀ Tours฀na฀defesa฀de฀um฀poder฀real฀fundado฀na฀justiça฀e฀orientado฀pelos฀ conselhos฀do฀episcopado,฀suas฀exortações฀são฀insuficientes฀para฀explicar฀ as฀transformações฀da฀monarquia฀franca฀durante฀o฀século฀VI,฀ou฀ainda฀a฀ emergência฀da฀Realeza฀Cristã.฀As฀idéias฀elaboradas฀pelos฀bispos฀católicos฀somente฀tiveram฀alguma฀repercussão฀sobre฀a฀autoridade฀real฀a฀partir฀ do฀momento฀em฀que฀essa฀última฀outorgou฀efetivamente฀ao฀episcopado฀ um฀papel฀preponderante฀na฀condução฀dos฀assuntos฀do฀reino.฀Tal฀será฀o฀ objeto฀do฀segundo฀capítulo.฀ A฀Igreja฀e฀o฀poder Desde฀o฀início฀da฀história฀da฀Igreja,฀os฀autores฀cristãos฀não฀cultivaram฀ uma฀ oposição฀ sistemática฀ ao฀ poder฀ político,฀ nem฀ mesmo฀ sob฀ os฀ reinados฀dos฀imperadores฀que฀mais฀se฀destacaram฀na฀perseguição฀aos฀ cristãos,฀como฀Nero฀ou฀Diocleciano.฀O฀texto฀que฀melhor฀exprime฀esse฀ posicionamento฀e฀que฀parece฀tê-lo฀inclusive฀influenciado฀é฀a฀“Epístola฀ aos฀Romanos”,฀de฀Paulo.฀Na฀visão฀desse฀autor,฀bons฀ou฀ruins,฀os฀governantes฀teriam฀sido฀estabelecidos฀pela฀vontade฀de฀Deus,฀e฀eles฀deveriam฀ então฀ se฀ beneficiar฀ da฀ obediência฀ de฀ todos฀ os฀ cristãos2.฀Apesar฀ dessas฀ reflexões,฀os฀autores฀cristãos฀não฀elaboraram฀imediatamente฀uma฀doutrina฀sobre฀o฀lugar฀do฀poder฀político฀no฀interior฀da฀comunidade฀cristã.฀ Eles฀ se฀ contentaram฀ em฀ apresentar฀ visões฀ sobre฀ o฀ poder฀ tão฀ díspares฀ quanto฀as฀próprias฀comunidades฀cristãs฀dos฀primeiros฀séculos.฀Em฀sua฀ versão฀mais฀positiva,฀essas฀visões฀apresentavam฀o฀poder฀como฀uma฀realidade฀provisória฀do฀homem,฀e,฀em฀sua฀visão฀mais฀negativa,฀como฀o฀ produto฀da฀queda฀de฀homem฀em฀estado฀de฀pecado.฀Mesmo฀que฀o฀poder฀ pudesse฀ser฀visto฀por฀vários฀autores฀cristãos฀como฀um฀instrumento฀da฀ 2 ฀Rom.฀13,฀1-7.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀177 cólera฀divina,฀ainda฀assim฀ele฀era฀um฀instrumento฀essencial฀da฀realização฀das฀profecias฀bíblicas.฀Ao฀formular฀a฀idéia฀de฀que฀o฀poder฀político฀é฀ estabelecido฀por฀Deus฀para฀fazer฀reinar฀a฀ordem฀e฀a฀justiça,฀esses฀autores฀ abriram฀uma฀via฀que฀foi฀amplamente฀utilizada฀nos฀séculos฀seguintes฀e฀ que฀ consistia฀ em฀ outorgar฀ aos฀ detentores฀ de฀ uma฀ função฀ pública฀ um฀ certo฀número฀de฀deveres฀inspirados฀da฀tradição฀bíblica.฀No฀entanto,฀se฀ a฀autoridade฀do฀príncipe฀se฀impôs฀à฀obediência฀dos฀cristãos฀durante฀os฀ três฀primeiros฀séculos฀da฀Era฀Cristã฀é฀porque฀globalmente฀ela฀era฀vista฀ como฀o฀instrumento฀de฀Deus฀para฀promover฀o฀bem฀e฀refrear฀o฀mal.฀฀฀ A฀partir฀do฀século฀IV,฀ocorreu฀uma฀transformação฀crucial฀na฀forma฀ como฀os฀detentores฀do฀poder฀aparecem฀nas฀obras฀dos฀autores฀cristãos,฀a฀ qual฀vale฀destacar฀aqui.฀De฀simples฀instrumentos฀de฀punição฀dos฀pecadores,฀os฀governantes฀tornaram-se฀instrumentos฀da฀redenção฀humana.฀ O฀Edito฀de฀Milão฀(312),฀que฀acordou฀aos฀cristãos฀a฀liberdade฀de฀culto฀e฀ à฀Igreja฀o฀estatuto฀de฀religio฀licita,฀e฀especialmente฀o฀Edito฀de฀Teodósio฀ (392),฀que฀concedeu฀à฀Igreja฀o฀estatuto฀de฀religião฀oficial฀do฀Império3,฀ contribuíram฀ profundamente฀ para฀ essa฀ evolução4.฀A฀ visão฀ tradicional฀ que฀fazia฀do฀Estado฀um฀instrumento฀de฀punição฀dos฀pecadores฀não฀era฀ mais฀capaz฀por฀si฀só฀de฀responder฀às฀questões฀colocadas฀pela฀nova฀situação฀na฀qual฀esse฀mesmo฀Estado฀havia฀se฀tornado฀cristão.฀A฀dificuldade฀ com฀a฀qual฀se฀confrontavam฀a฀partir฀de฀então฀os฀autores฀cristãos฀consistia฀em฀definir฀o฀lugar฀de฀um฀poder฀civil฀recentemente฀cristianizado฀ no฀mundo฀e฀especialmente฀em฀relação฀à฀Igreja฀e฀aos฀seus฀membros.฀Essa฀ nova฀ situação฀ conduziu฀ a฀ uma฀ ruptura฀ com฀ a฀ atitude฀“pré-constanti- 3 ฀N.H.฀Baynes,฀Constantine฀the฀Great฀and฀the฀christian฀Church;฀P.฀Battifol,฀La฀paix฀constantinienne฀et฀le฀catholicisme;฀E.฀Becker,฀“Konstantin฀der฀Grosse,฀der฀‘neue฀Moses’”,฀pp.161-171;฀ S.฀Bradbury,฀“Constantine฀and฀the฀problem฀of฀anti-pagan฀legislation฀in฀the฀fourth฀century”,฀ pp.120-139.฀฀฀฀ 4 ฀Ver฀S.฀Calderone,฀Costantino฀e฀il฀cattolicesimo,฀Firenze,฀p.฀304;฀do฀mesmo฀autor,฀“Eusebio฀ e฀ l’ideologia฀ imperiale”,฀ pp.1-26;฀ M.฀ Pavan,฀“Cristianesimo฀ e฀ impero฀ romano฀ nel฀ IV฀ secolo฀ d.C.”,฀pp.฀1-16;฀G.฀Bonamente,฀“Potere฀politico฀ed฀autorità฀religiosa฀nel฀‘De฀obitu฀Theodosii’฀di฀ Ambrogio”,฀vol.฀1,฀pp.฀83-133;฀do฀mesmo฀autor,฀“Apoteosi฀e฀imperatori฀cristiani”,฀pp.฀107-142.฀฀ 178฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média niana”฀da฀Igreja,฀pois฀os฀autores฀cristãos฀passaram฀a฀associar฀o฀Estado,฀ mais฀precisamente฀o฀poder฀imperial,฀à฀realização฀da฀Parusia.฀Eles฀elaboraram฀uma฀doutrina฀sobre฀o฀comportamento฀político฀dos฀governados฀ e฀ dos฀ governantes,฀ em฀ que฀ a฀ realidade฀ terrestre฀ era฀ ainda฀ vista฀ como฀ provisória,฀mas฀na฀qual฀a฀partir฀de฀então฀o฀poder฀político฀participava฀ da฀economia฀da฀salvação5.฀O฀marco฀dessa฀transformação฀nas฀doutrinas฀ cristãs฀é฀Eusébio฀de฀Cesaréia.฀O฀bispo฀de฀Cesaréia฀é฀o฀primeiro฀a฀atribuir฀ um฀papel฀ativo฀ao฀príncipe฀na฀“economia฀da฀salvação”฀6:฀ “Com฀um฀poder฀infalível,฀ele฀enche฀com฀sua฀mensagem฀toda฀a฀terra฀que฀vê฀ o฀sol,฀modelando฀o฀reino฀terrestre฀à฀imagem฀daquele฀do฀céu,฀em฀direção฀ao฀ qual฀ele฀exorta฀todo฀o฀gênero฀humano฀a฀se฀apressar,฀propondo-lhe฀essa฀bela฀ esperança”7.฀ As฀migrações฀bárbaras฀dos฀séculos฀IV฀e฀V฀não฀deixaram฀de฀produzir฀ um฀certo฀pessimismo,฀uma฀perda฀de฀confiaça฀na฀capacidade฀de฀o฀Império฀ser฀o฀instrumento฀da฀realização฀da฀“Jerusalém฀terrestre”.฀A฀obra฀ de฀Agostinho,฀A฀Cidade฀de฀Deus฀é฀a฀mais฀remarcável฀testemunha฀desse฀ desencanto.฀A฀“descoberta”฀do฀Ocidente฀pela฀Igreja,฀mais฀precisamente฀ das฀monarquias฀romano-germânicas,฀abriu฀uma฀nova฀era฀de฀otimismo฀ 5 ฀Sobre฀o฀impacto฀da฀conversão฀de฀Constantino,฀há฀a฀obra฀clássica฀de฀A.฀Alföldi,฀The฀Conversion฀of฀Constantine฀and฀Pagan฀Rome;฀sobre฀a฀dimensão฀“eclesiológica”฀desse฀personagem,฀ver฀ o฀artigo฀de฀M.฀Agnes,฀“Il฀mito฀‘teologico’฀di฀Costantino”,฀pp.183-192.฀ 6 ฀A฀respeito฀da฀sacralização฀do฀poder฀civil฀na฀Antigüidade฀Tardia,฀ver฀os฀trabalhos฀de฀P.฀Brown,฀ notadamente฀ Religion฀ and฀ society฀ in฀ the฀ age฀ of฀ the฀ Saint฀ Augustine,฀ e฀ também฀“Eastern฀ and฀western฀christendom฀in฀late฀antiquity:฀a฀parting฀of฀the฀ways”,฀pp.฀1-24;฀do฀mesmo฀autor,฀ La฀société฀et฀le฀sacré฀dans฀l’Antiquité฀tardive;฀Genèse฀de฀l’Antiquité฀tardive;฀e฀finalmente,฀ L’essor฀du฀christianisme฀occidental.฀Triomphe฀et฀diversitté,฀200-1000.฀O฀grande฀mérito฀dos฀ trabalhos฀de฀P.฀Brown฀foi฀de฀admitir฀que฀outras฀autoridades฀além฀das฀autoridades฀políticas฀ podem฀amparar-se฀dos฀espíritos฀e฀tornar-se฀temas฀de฀conflitos,฀como฀é฀o฀caso฀da฀autoridade฀ eclesiástica,฀ e฀ que฀ essas฀ autoridades,฀ com฀ as฀ agitações฀ e฀ as฀ paixões฀ que฀ elas฀ provocam,฀ não฀ se฀ reduzem฀ à฀ simples฀ racionalidade฀ política฀ (P.฀ Veyne,฀ “Préface”,฀ In:฀ P.฀ Brown,฀ Genèse฀ de฀ l’Antiquité฀Tardive,฀pp.vii-xxii,฀especialmente,฀p.ix).฀ 7 ฀De฀Laudibus฀Constantini฀IV,฀2.฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀179 entre฀os฀autores฀cristãos.฀O฀abismo฀que฀existia฀entre฀a฀autoridade฀dos฀ primeiros฀reis฀francos฀e฀a฀Igreja฀era฀muito฀menor฀que฀aquele฀que฀existia฀ entre฀essa฀última฀e฀o฀Império.฀Ao฀se฀aproximarem฀dos฀reis฀merovíngios,฀ os฀bispos฀galo-romanos฀não฀se฀confrontaram฀com฀uma฀forma฀de฀governo฀ em฀ que฀ o฀ príncipe฀ esperava฀ ser฀ adorado฀ como฀ um฀ deus,฀ como฀ era฀o฀caso฀no฀Império฀Romano฀do฀século฀III8.฀No฀que฀se฀refere฀à฀realeza฀ franca,฀ a฀ desconfiança฀ e฀ a฀ hostilidade,฀ típicas,฀ conforme฀ a฀ fórmula฀ já฀ clássica฀ de฀ P.฀ M.฀Arcari,฀ do฀ “l’incontro฀ di฀ una฀ religione฀ troppo฀ giovane฀ con฀uno฀stato฀troppo฀vecchio”9,฀não฀existiam.฀Os฀escritos฀de฀Remígio,฀de฀ Avitus,฀ de฀Aureliano฀ e฀ de฀ Fortunato฀ testemunham฀ do฀ lugar฀ acordado฀ pelas฀doutrinas฀cristãs฀a฀esse฀poder฀recentemente฀convertido฀ao฀catolicismo.฀Em฀seus฀estudos฀sobre฀as฀doutrinas฀cristãs,฀os฀historiadores฀das฀ idéias฀durante฀muito฀tempo฀se฀interessaram฀mais฀especificamente฀pelos฀ escritos฀papais10.฀Todavia,฀os฀bispos฀católicos฀da฀Gália฀é฀que฀foram,฀ao฀ 8 ฀Ver฀R.฀Deniel,฀“Omnis฀potestas฀a฀Deo.฀L’origine฀du฀pouvoir฀civil฀et฀sa฀relation฀à฀l’Eglise”,฀pp.4385.฀Se฀o฀poder฀político฀não฀era฀mais฀um฀adversário฀da฀Igreja,฀visto฀que฀as฀perseguições฀tinham฀ cessado฀e฀que฀os฀imperadores฀tinham฀se฀convertido฀ao฀cristianismo,฀por฀outro฀lado,฀os฀conflitos฀não฀desapareceram.฀O฀Estado฀romano฀revelou-se฀um฀parceiro฀tão฀incômodo฀quanto฀poderoso.฀A฀literatura฀sobre฀as฀relações฀entre฀a฀Igreja฀e฀o฀Estado฀romano฀é฀abundante.฀A฀obra฀de฀ H.฀Rahner฀(L’Eglise฀et฀l’Etat฀dans฀le฀christianisme฀primitif)฀é฀fundamental.฀Pode-se฀também฀ citar฀alguns฀textos฀mais฀recentes:฀K.F.฀Morrison,฀The฀Two฀Kingdoms:฀Ecclesiology฀in฀Carolingian฀political฀Thought;฀do฀mesmo฀autor,฀Tradition฀and฀Authority฀in฀the฀western฀Church,฀ 300-1140;฀ e฀ Holiness฀ and฀ Politics฀ in฀ Early฀ Medieval฀ Thought.฀ Ver฀ também,฀ Ch.฀ Thomas,฀ Christianity฀in฀the฀Roman฀Britain฀to฀A.D.฀500;฀G.G.฀Archi,฀“Interferenze฀tra฀cristianesimo฀e฀ impero฀romano฀(V฀e฀VI฀secoli)”,฀pp.317-323.฀Sobre฀o฀culto฀imperial,฀ver฀E.฀Beurlier,฀Essai฀sur฀le฀ culte฀rendu฀aux฀empereurs฀romains;฀E.฀Bréhier,฀P.฀Batiffol,฀Les฀survivances฀du฀culte฀impérial฀ romain;฀M.P.฀Charlesworth,฀“The฀Vertues฀of฀a฀Roman฀Emperor.฀Propaganda฀as฀the฀Creation฀ of฀Belief ”,฀pp.105-133;฀P.฀Brezzi,฀“L’idea฀d’Impero฀nel฀IV฀secolo”,฀pp.265-279;฀J.฀Beaujeu,฀“Les฀ apologètes฀et฀le฀culte฀du฀souverain”,฀pp.101-142;฀também,฀G.W.฀Bowersock,฀“Greek฀intellectuals฀and฀the฀imperial฀cult฀in฀the฀second฀century”,฀pp.177-212;฀L.฀Cracco฀Ruggini,฀“Imperatori฀ romani฀e฀uomini฀divini฀(I-VI฀secolo฀d.C.)”,฀pp.9-91;฀e฀J.฀B.฀Aufhauser,฀“Die฀sakrale฀Kaiseridee฀ in฀Byzanz”,฀pp.฀531-542. 9 ฀P.M.฀Arcari,฀Idee฀e฀sentimenti฀politici฀nell’Alto฀Medioevo,฀p.฀53.฀฀฀ 10 ฀É฀o฀caso,฀por฀exemplo,฀de฀F.฀Cavallera,฀“La฀doctrine฀sur฀le฀prince฀chrétien฀dans฀les฀lettres฀ pontificales฀du฀Ve฀siècle”,฀pp.฀67-78,฀pp.฀119-135,฀pp.฀167-178.฀ 180฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média longo฀de฀todo฀o฀século฀VI,฀os฀interlocutores฀privilegiados฀da฀autoridade฀ real฀franca.฀O฀fato฀de฀constituírem฀um฀corpo฀de฀funcionários฀a฀serviço฀ da฀realeza฀favoreceu฀essa฀aproximação.฀฀฀฀฀ Remígio฀e฀Clóvis Nascido฀em฀uma฀família฀de฀origem฀senatorial,฀por฀volta฀de฀437,฀nos฀ arredores฀ de฀ Laon,฀ Remígio฀ tornou-se฀ bispo฀ de฀ Reims฀ ainda฀ jovem,฀ quando฀tinha฀entre฀20฀e฀25฀anos.฀Ele฀possuía฀uma฀sólida฀formação฀literária,฀como฀mostra฀uma฀carta฀de฀Sidônio฀Apolinário,฀escrita฀por฀volta฀ de฀471,฀na฀qual฀faz฀o฀elogio฀de฀suas฀Declamationes.฀Gregório฀de฀Tours฀ também฀se฀refere฀a฀ele฀como฀alguém฀de฀“uma฀ciência฀extraordinária฀e฀ que฀tinha฀se฀impregnado฀desde฀cedo฀do฀estudo฀da฀retórica”11.฀Remígio฀era฀ o฀“bispo฀metropolitano”,฀ou฀superior฀hierárquico฀de฀todos฀os฀bispos฀da฀ Bélgica฀Segunda,฀pois฀sua฀sé฀episcopal,฀a฀civitas฀de฀Reims,฀era฀a฀capital฀da฀ província฀eclesiástica.฀Seu฀episcopado฀foi฀de฀uma฀longevidade฀excepcional;฀Gregório฀de฀Tours฀afirma฀que฀Remígio฀foi฀bispo฀de฀Reims฀por฀mais฀ de฀setenta฀anos12.฀Ele฀morreu฀por฀volta฀de฀532฀e฀foi฀enterrado฀em฀Reims฀ na฀basílica฀que฀pouco฀tempo฀depois฀recebeu฀seu฀nome.฀Apesar฀de฀uma฀ produção฀aparentemente฀prolífica,฀poucos฀textos฀de฀Remígio฀foram฀preservados฀e฀se฀encontram฀quase฀todos฀na฀coleção฀Epistolae฀Austrasicae฀ (Epístolas฀austrasianas)13.฀Foi฀em฀um฀códice฀nazareno฀da฀Biblioteca฀de฀ Heidelberg฀que฀o฀erudito฀M.฀Freher฀encontrou฀uma฀série฀de฀epístolas฀do฀ período฀franco,฀publicadas฀por฀ele฀em฀Hanover,฀no฀ano฀de฀161314.฀Qua- 11 ฀Histórias฀II,฀31.฀ ฀Gregório฀de฀Tours,฀Liber฀in฀Gloria฀Confessorum,฀78.฀ 13 ฀A฀exceção฀é฀o฀testamento฀deixado฀pelo฀bispo฀de฀Reims,฀transmitido,฀em฀sua฀forma฀curta,฀ pela฀Vida฀de฀São฀Remígio,฀escrita฀por฀Hincmar,฀entre฀878฀e฀881,฀e฀em฀sua฀forma฀longa฀por฀um฀ interpolador฀anônimo฀do฀século฀XI,฀que฀introduziu฀o฀texto฀na฀História฀da฀Igreja฀de฀Reims,฀ escrita฀em฀948฀por฀Flodoardo฀de฀Reims.฀ 14 ฀Corpus฀Francicae฀historiae฀veteris฀et฀sincerae.฀ 12 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀181 tro฀edições฀dessas฀epístolas฀se฀seguiram฀antes฀daquela฀que฀é฀considerada฀ a฀mais฀importante฀de฀todas,฀a฀de฀W.฀Gundlach,฀de฀189215.฀Em฀um฀artigo฀ de฀1888,฀Gundlach฀analisou฀os฀principais฀problemas฀colocados฀por฀esses฀ textos,฀sobretudo฀os฀de฀ordem฀cronológica.฀Segundo฀ele,฀essas฀epístolas฀ teriam฀sido฀reunidas฀por฀um฀notário฀na฀corte฀de฀Metz,฀capital฀do฀regnum฀ da฀Austrásia,฀sob฀a฀inspiração฀da฀rainha฀Brunilda.฀Isso฀teria฀ocorrido฀no฀ final฀do฀século฀VI,฀durante฀o฀reinado฀de฀Childeberto฀II฀(575-595)16.฀No฀ entanto,฀ quem฀ melhor฀ estabeleceu฀ a฀ cronologia฀ das฀ diversas฀ epístolas฀ austrasianas฀foi฀G.฀Reverdy,฀confrontando-as฀com฀outros฀textos,฀como฀ os฀Decem฀Libri฀Historiarum,฀de฀Gregório฀de฀Tours17.฀฀ É฀provável฀que฀as฀Epistolae฀Austrasicae฀tenham฀sido฀editadas฀com฀o฀ objetivo฀de฀realçar฀o฀prestígio฀da฀Austrásia,฀em฀meio฀às฀turbulências฀das฀ guerras฀civis.฀Dado฀o฀número฀de฀epístolas฀que฀possuem฀como฀remetentes฀ e,฀sobretudo,฀destinatários,฀membros฀da฀família฀imperial฀–฀23฀dentre฀elas฀ têm฀como฀tema฀principal฀as฀relações฀entre฀as฀cortes฀de฀Metz฀e฀de฀Bizâncio฀ –,฀deduz-se฀que฀o฀editor฀tentava฀mostrar฀que฀os฀príncipes฀austrasianos฀ eram฀interlocutores฀privilegiados฀do฀Império.฀No฀entanto,฀a฀preocupação฀do฀editor฀não฀parece฀restringir-se฀à฀afirmação฀da฀proximidade฀com฀ o฀Império.฀As฀epístolas฀que฀fazem฀parte฀dessa฀coleção฀emanam฀dos฀mais฀ importantes฀ personagens฀ da฀ época,฀ na฀ Gália฀ e฀ fora฀ dela:฀ reis,฀ rainhas,฀ bispos,฀altos฀dignitários,฀imperadores฀ou฀a฀eles฀se฀dirigem.฀As฀Epistolae฀ abrangem฀todo฀o฀espaço฀franco฀e฀também฀a฀Itália,฀a฀Espanha฀e฀Bizâncio.฀฀ As฀duas฀primeiras฀epístolas฀dessa฀coleção฀estão฀dispostas฀em฀ordem฀ inversa฀à฀sua฀elaboração:฀a฀primeira,฀seguindo฀a฀ordem฀estabelecida฀pelo฀ primeiro฀editor,฀foi฀enviada฀por฀Remígio฀a฀Clóvis฀após฀o฀seu฀batismo18;฀a฀ segunda฀epístola,฀por฀outro฀lado,฀é฀contemporânea฀da฀ascensão฀de฀Clóvis฀ao฀poder.฀No฀entanto,฀a฀ordem฀cronológica฀é฀respeitada฀em฀outros฀ 15 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀pp.฀434-468.฀ ฀W.฀Gundlach,฀“Die฀Sammlung฀der฀Epistolae฀Austrasicae”,฀pp.฀367-387. 17 ฀G.฀Reverdy,฀“Les฀relations฀de฀Childebert฀II฀et฀de฀Byzance”,฀pp.฀61-85.฀ 18 ฀Sobre฀a฀conversão฀e฀o฀batismo฀de฀Clóvis,฀ver฀a฀síntese฀de฀B.฀Dumézil฀(Les฀racines฀chrétiennes฀ de฀l’Europe.฀Conversion฀et฀liberté฀dans฀les฀royaumes฀barbares,฀Ve-VIIIe฀siècle,฀pp.฀217-223).฀ 16 182฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média casos:฀ as฀ epístolas฀ de฀ Childeberto฀ II฀ e฀ de฀ Brunilda฀ encontram-se,฀ por฀ exemplo,฀na฀segunda฀metade฀da฀coleção.฀Ao฀todo,฀as฀Epistolae฀Austrasicae฀conservaram฀todas฀as฀quatro฀epístolas฀conhecidas฀de฀Remígio:฀duas฀ escritas฀a฀Clóvis฀(Epistolae฀Austrasicae,฀1฀e฀2),฀uma฀endereçada฀aos฀bispos฀Heraclius,฀Leão฀e฀Teodósio฀(Epistolae฀Austrasicae,฀3)฀e฀uma฀outra฀ dirigida฀a฀Falco,฀bispo฀de฀Maastricht฀(Epistolae฀Austrasicae,฀4).฀Como฀ a฀cidade฀de฀Reims฀fazia฀parte฀do฀regnum฀da฀Austrásia,฀é฀natural฀que฀a฀ coleção฀contivesse฀quatro฀epístolas฀de฀Remígio,฀bem฀como฀duas฀outras฀ escritas฀por฀um฀de฀seus฀sucessores฀atestados฀na฀sé฀episcopal,฀Mapinius฀ (Epistolae฀ Austrasicae,฀ 11฀ e฀ 15).฀ Há฀ também฀ uma฀ epístola฀ do฀ bispo฀ de฀Paris฀Germanus฀à฀rainha฀Brunilda฀(Epistolae฀Austrasicae,฀9),฀uma฀ epístola฀de฀Aureliano฀a฀Teudeberto,฀em฀que฀autor,฀muito฀provavelmente฀ o฀bispo฀de฀Arles,฀enumera฀as฀qualidades฀que฀considera฀indispensáveis฀ ao฀exercício฀do฀poder฀real฀(Epistolae฀Austrasicae,฀10).฀Podem฀ser฀mencionadas฀igualmente฀as฀epístolas฀de฀Teudeberto฀(Epistolae฀Austrasicae,฀ 19฀ e฀ 20)฀ e฀ de฀ Teudebaldo฀ (Epistolae฀ Austrasicae,฀ 18)฀ ao฀ imperador฀ Justiniano,฀assim฀como฀as฀epístolas฀de฀Childeberto฀II฀e฀de฀Brunilda฀ao฀ imperador฀ Maurício,฀ à฀ imperatriz฀ e฀ ao฀ patriarca฀ de฀ Constantinopla฀ (Epistolae฀Austrasicae,฀25,฀26,฀27,฀28,฀29,฀30).฀ A฀forma฀de฀cada฀epístola฀comporta฀um฀“endereço”฀com฀o฀nome฀e฀ a฀função฀do฀destinatário,฀seguido฀do฀nome฀do฀remetente฀e฀de฀sua฀função;฀em฀seguida,฀há฀o฀corpo฀do฀texto฀e,฀na฀maior฀parte฀do฀tempo,฀um฀ explicit฀para฀indicar฀o฀fim฀da฀mensagem.฀A฀coleção฀começa฀pela฀epístola฀ de฀Remígio฀a฀Clóvis฀e฀se฀encerra฀por฀uma฀outra฀que฀trata฀das฀relações฀ do฀ Reino฀ dos฀ Francos฀ com฀ o฀ Império.฀ Segundo฀ M.฀ Rouche,฀ por฀ não฀ encontrar฀ uma฀ epístola฀ do฀ imperador฀ a฀ Clóvis,฀ o฀ editor฀ do฀ século฀VI฀ teria฀escolhido฀os฀textos฀redigidos฀por฀Remígio฀para฀mostrar฀que฀desde฀ o฀ início฀ o฀ mundo฀ franco฀ estava฀ perfeitamente฀ integrado฀ ao฀ Império฀ Romano19.฀฀฀ De฀fato,฀Remígio,฀pela฀posição฀que฀ocupava฀na฀hierarquia฀eclesiástica฀da฀Bélgica฀Segunda,฀era฀um฀alto฀funcionário฀do฀Império.฀No฀entanto,฀ 19 ฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.฀388-389.฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀183 pode-se฀pensar฀que,฀além฀de฀querer฀mostrar฀a฀inserção฀da฀monarquia฀ franca฀no฀Império฀Romano,฀a฀escolha฀das฀epístolas฀do฀bispo฀de฀Reims฀ para฀iniciar฀a฀coleção฀pode฀ter฀também฀servido฀para฀sublinhar฀as฀estreitas฀ relações฀entre฀os฀reis฀francos฀e฀um฀personagem฀de฀indubitável฀santidade.฀Afinal฀de฀contas,฀Remígio฀era฀o฀padrinho฀espiritual฀de฀Clóvis,฀aquele฀ que฀o฀conduziu฀até฀a฀pia฀batismal.฀Gregório฀de฀Tours฀refere-se฀a฀Remígio฀ como฀alguém฀“tão฀distinto฀pela฀sua฀santidade฀que฀igualava฀Silvestre฀por฀ seus฀milagres”20.฀Como฀vimos฀anterioremente,฀nessa฀comparação฀entre฀o฀ bispo฀de฀Reims฀e฀o฀papa฀Silvestre,฀o฀primeiro฀está฀para฀o฀mundo฀franco฀ assim฀como฀o฀segundo,฀para฀o฀Império:฀ao฀batizarem฀seus฀governantes,฀ ambos฀teriam฀contribuído฀para฀o฀triunfo฀da฀fé฀católica.฀Essa,฀pelo฀menos,฀é฀a฀visão฀de฀Gregório฀de฀Tours฀que,฀não฀se฀pode฀esquecer,฀era฀um฀ próximo฀da฀corte฀de฀Metz,฀e฀redigiu฀os฀Decem฀Libri฀Historiarum฀no฀ final฀do฀século฀VI,฀no฀mesmo฀período฀em฀que฀as฀Epistolae฀Austrasicae฀ foram฀reunidas.฀Saliente-se฀também฀que฀nesse฀momento฀Remígio฀já฀era฀ reconhecido฀como฀um฀santo.฀Gregório฀menciona฀o฀caso฀de฀uma฀criança฀ que฀o฀bispo฀de฀Reims฀teria฀ressuscitado฀com฀suas฀orações21,฀bem฀como฀ o฀fato฀de฀que฀uma฀festa฀era฀dedicada฀ao฀santo฀todos฀os฀anos฀na฀cidade฀ de฀Reims22. É฀bastante฀provável฀que฀o฀personagem฀cujas฀epístolas฀inauguram฀as฀ Epistolae฀Austrasicae฀fosse฀visto฀no฀final฀do฀século฀VI฀menos฀como฀o฀ funcionário฀do฀Império฀do฀que฀como฀o฀pai฀espiritual฀da฀dinastia฀merovíngia,฀aquele฀cuja฀contribuição฀foi฀decisiva฀para฀a฀conversão฀dos฀reis฀ francos.฀Se฀o฀editor฀das฀Epistolae฀Austrasicae฀pretendesse,฀como฀afirma฀ M.฀Rouche,฀ressaltar฀a฀vinculação฀do฀mundo฀franco฀ao฀Império,฀ele฀teria฀ escolhido฀para฀iniciar฀a฀coleção฀a฀epístola฀em฀que฀Remígio฀felicita฀Clóvis฀ por฀ter฀assumido฀a฀administração฀da฀Bélgica฀Segunda.฀A฀epístola฀inaugural฀da฀coleção฀é฀imediatamente฀posterior฀ao฀batismo฀de฀Clóvis,฀e฀nela฀ o฀bispo฀de฀Reims฀reconforta฀o฀rei฀franco฀pela฀perda฀de฀sua฀irmã.฀Isso฀ 20 ฀Histórias฀II,฀31.฀ ฀Liber฀in฀Gloria฀Confessorum,฀78. 22 ฀Histórias฀VIII,฀21.฀ 21 184฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média pode฀significar฀que฀no฀ambiente฀profundamente฀marcado฀pela฀ideologia฀ da฀Realeza฀Cristã,฀na฀Austrásia฀do฀final฀do฀século฀VI,฀a฀associação฀com฀ o฀Império฀não฀era฀mais฀o฀principal฀fundamento฀da฀autoridade฀pública.฀ Comecemos฀a฀análise฀pela฀epístola฀enviada฀a฀Clóvis฀quando฀ele฀sucedeu฀ seu฀pai,฀por฀volta฀de฀481: ฀“Ao฀senhor฀insigne฀e฀magnífico฀pelos฀méritos,฀o฀rei฀Clóvis,฀Remígio฀bispo.฀ Um฀grande฀rumor฀chegou฀até฀nós,฀vós฀assumistes฀a฀administração฀da฀Bélgica฀ Segunda.฀Isso฀não฀é฀novo,฀pois฀tu฀terás฀começado฀por฀ser฀aquilo฀que฀teus฀pais฀ sempre฀foram.฀É฀necessário฀fazer฀de฀modo฀que฀o฀julgamento฀de฀Deus฀continue฀a฀sustentá-lo,฀pois฀é฀em฀recompensa฀de฀tua฀humildade฀que฀ele฀fez฀com฀ que฀tu฀chegasses฀ao฀ápice.฀Pois,฀como฀se฀diz฀vulgarmente,฀é฀pelos฀atos฀que฀se฀ reconhece฀o฀homem.฀Tu฀deves฀te฀associar฀conselheiros฀que฀possam฀ornar฀tua฀ fama.฀Teu฀benefício฀(beneficium)฀deve฀ser฀casto฀e฀honesto.฀Tu฀deverás฀relatar฀ aos฀teus฀bispos฀e฀recorrer฀sempre฀às฀suas฀deliberações.฀Pois฀se฀tu฀te฀entendes฀ bem฀ com฀ eles,฀ tua฀ província฀ somente฀ poderá฀ ser฀ consolidada.฀ Anima฀ teus฀ cidadãos,฀alivia฀os฀aflitos,฀favorece฀as฀viúvas,฀alimenta฀os฀órfãos;฀mais฀do฀que฀ iluminá-los,฀que฀todos฀o฀amem฀e฀o฀respeitem.฀Que฀a฀justiça฀saia฀de฀vossa฀boca฀ sem฀nada฀esperar฀dos฀pobres฀e฀dos฀estrangeiros฀a฀fim฀de฀que฀não฀queiras฀de฀ forma฀ alguma฀ aceitar฀ presentes฀ ou฀ qualquer฀ coisa฀ da฀ parte฀ deles.฀ Que฀ teu฀ pretório฀esteja฀aberto฀a฀todos฀a฀fim฀de฀que฀ninguém฀regresse฀triste.฀Tu฀possuis฀algumas฀riquezas฀paternais฀com฀as฀quais฀libertarás฀os฀prisioneiros฀e฀os฀ desligarás฀do฀jugo฀da฀servidão.฀Se฀alguém฀é฀admitido฀em฀vossa฀presença,฀que฀ ele฀não฀se฀sinta฀como฀um฀estrangeiro.฀Brinca฀com฀os฀jovens,฀delibera฀com฀os฀ anciãos,฀e,฀se฀queres฀reinar,฀julga฀em฀nobre” 23.฀ Essa฀epístola฀é฀o฀primeiro฀testemunho฀escrito฀do฀entendimento฀entre฀um฀membro฀da฀dinastia฀merovíngia฀e฀os฀bispos฀católicos฀da฀Gália.฀ Mas฀qual฀seu฀sentido?฀Tratar-se-ia฀de฀um฀texto฀puramente฀formal,฀o฀uso฀ habitual฀de฀um฀alto฀funcionário฀romano฀que฀se฀endereçava฀a฀um฀de฀seus฀ pares฀ que฀ acabava฀ de฀ ser฀ nomeado฀ governador฀ da฀ Bélgica฀ Segunda24?฀ 23 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀2฀฀(trad.฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.387-388). ฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.391-392.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 24 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀185 Ou฀seria฀um฀texto฀com฀exortações฀teológico-políticas฀que฀transcendiam฀ o฀campo฀das฀questões฀administrativas?฀Conforme฀M.฀Rouche,฀adepto฀da฀ primeiro฀opção,฀haveria฀nesse฀documento฀somente฀um฀conselho฀“político”฀dado฀por฀Remígio฀a฀Clóvis,฀a฀recomendação฀para฀que฀ele฀mantivesse฀ boas฀ relações฀ com฀ o฀ episcopado฀ de฀ sua฀ província:฀ “Tu฀ deverás฀ relatar฀ aos฀teus฀bispos฀e฀recorrer฀sempre฀às฀suas฀deliberações.฀Pois฀se฀tu฀te฀entendes฀ bem฀com฀eles,฀tua฀província฀somente฀poderá฀ser฀consolidada”.฀Clóvis฀era฀o฀ mais฀alto฀responsável฀da฀administração฀romana฀na฀Bélgica฀Segunda:฀era฀ natural฀que฀Remígio฀esperasse฀que฀ele฀recorresse฀ao฀auxílio฀dos฀bispos,฀ também฀membros฀da฀mesma฀administração.฀Entretanto,฀toda฀tentativa฀ de฀ distinguir฀ na฀ carta฀ de฀ São฀ Remígio฀ os฀ temas฀“políticos”฀ dos฀ temas฀ “não-políticos”,฀ ou฀ ainda฀“religiosos”,฀ constitui฀ um฀ equívoco.฀ Uma฀ tal฀ distinção฀reflete฀uma฀visão฀moderna฀que฀dificilmente฀corresponderia฀à฀ visão฀do฀bispo฀de฀Reims.฀Em฀momento฀algum฀em฀sua฀carta฀Remigio฀faz฀ uma฀nítida฀discriminação฀entre฀aquilo฀que฀era฀político฀e฀aquilo฀que฀não฀ era.฀Na฀lógica฀de฀um฀bispo฀do฀século฀VI,฀aliás,฀essa฀distinção฀não฀faria฀ sentido฀algum.฀Seus฀conselhos฀sobre฀o฀bom฀governo฀da฀província฀eram฀ profundamente฀ impregnados฀ de฀ uma฀ percepção฀ cristã฀ do฀ mundo฀ em฀ geral฀e฀do฀governo฀em฀particular.฀ A฀ carta฀ de฀ Remígio฀ não฀ constitui฀ uma฀ simples฀ formalidade฀ entre฀ dois฀altos฀membros฀da฀hierarquia฀romana.฀Seu฀autor฀estava฀consciente฀ de฀que฀Clóvis฀não฀era฀apenas฀um฀alto฀funcionário฀romano,฀pois฀no฀endereço฀da฀epístola฀ele฀é฀chamado฀de฀rei:฀“Ao฀senhor฀insigne฀e฀magnífico฀ pelos฀ méritos,฀ o฀ rei฀ Clóvis,฀ Remígio฀ bispo”.฀ Se฀ o฀ considerasse฀ somente฀ um฀alto฀funcionário฀romano,฀o฀bispo฀de฀Reims฀teria฀se฀contentado฀em฀ afirmar฀ que฀ Clóvis฀ assumiu฀ a฀ administração฀ da฀ Bélgica฀ Segunda.฀ No฀ entanto,฀ Remígio฀ reconhece฀ o฀ duplo฀ caráter฀ da฀ autoridade฀ de฀ Clóvis,฀ membro฀ da฀ administração฀ romana฀ e฀ rei฀ franco.฀ Esse฀ duplo฀ caráter฀ se฀ unificou฀na฀pessoa฀de฀Clóvis:฀mais฀do฀que฀membro฀da฀administração฀ romana฀na฀Gália,฀ele฀era฀também฀seu฀chefe.฀Ele฀recebeu฀título฀e฀honraria฀ do฀imperador,฀em฀508,฀convocou฀um฀concílio฀em฀Orléans,฀em฀511,฀em฀ suma,฀ se฀ comportou฀ como฀ um฀ princeps.฀ Há฀ indícios฀ dessa฀ unificação฀ na฀própria฀carta:฀Remígio฀não฀aconselha฀diferentemente฀o฀rei฀e฀o฀alto฀ funcionário.฀ Suas฀ palavras฀ eram฀ válidas฀ para฀ ambos.฀ Esse฀ documento฀ 186฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média constitui฀uma฀primeira฀tentativa฀de฀inculcar฀em฀um฀personagem,฀que฀ era฀ao฀mesmo฀tempo฀rei฀franco฀e฀governador฀de฀uma฀província฀romana,฀ uma฀noção฀cristã฀do฀governo.฀ Remígio฀ faz฀ uma฀ constatação฀ em฀ sua฀ epístola:฀ a฀ função฀ ocupada฀ por฀Clóvis฀não฀diminui฀em฀nada฀suas฀obrigações฀morais,฀ao฀contrário,฀ torna-as฀ainda฀mais฀graves:฀“Pois,฀como฀se฀diz฀vulgarmente,฀é฀pelos฀atos฀ que฀se฀reconhece฀o฀homem”.฀Isso฀equivale฀a฀afirmar฀que฀o฀poder฀não฀é฀ um฀privilégio฀em฀si,฀e฀que฀é฀através฀de฀seus฀atos฀que฀o฀governante฀deve฀ buscar฀seu฀mérito.฀O฀que฀o฀bispo฀de฀Reims฀propõe฀aqui฀é฀uma฀interpretação฀do฀fundamento฀da฀legitimidade฀política฀que฀encontra฀suas฀raízes฀ na฀ tradição฀ cristã.฀ Trata-se฀ do฀ tema฀ do฀ poder฀ como฀ uma฀ obrigação฀ e฀ não฀como฀um฀privilégio,฀que฀será฀retomado฀no฀final฀do฀século฀VI฀por฀ Gregório฀Magno฀em฀suas฀cartas฀aos฀reis฀francos฀em฀suas฀Moralia฀in฀Job.฀ Remígio฀descreve,฀portanto,฀o฀poder฀como฀um฀conjunto฀de฀obrigações฀ dos฀governantes฀em฀relação฀aos฀governados.฀ Ele฀insiste฀que฀Clóvis฀deve฀buscar฀o฀conselho฀dos฀bispos:฀“Tu฀deverás฀ relatar฀ aos฀ teus฀ bispos฀ e฀ recorrer฀ sempre฀ às฀ suas฀ deliberações”.฀ Quando฀ menciona,฀ algumas฀ linhas฀ antes,฀ os฀ conselheiros฀ que฀ podem฀ ornar฀ a฀ reputação฀ de฀ Clóvis,฀ o฀ bispo฀ de฀ Reims฀ não฀ está฀ se฀ referindo฀ especificamente฀ aos฀ bispos:฀ ele฀ menciona฀ consiliarios฀ em฀ geral,฀ sem฀ nenhum฀ tipo฀de฀precisão฀suplementar.฀No฀entanto,฀Remígio฀pretende฀mostrar฀a฀ Clóvis฀que฀dentre฀todos฀os฀personagens฀que฀poderiam฀executar฀a฀tarefa฀ enunciada฀por฀ele,฀isto฀é,฀ornar฀a฀reputação฀do฀governante,฀os฀bispos฀são฀ os฀mais฀aptos.฀Remígio฀utiliza-se฀do฀possessivo฀ tuos฀ para฀deixar฀claro฀ que฀se฀tratam฀dos฀“bispos฀de฀Clóvis”.฀Como฀responsável฀pela฀administração฀da฀Bélgica฀Segunda,฀ele฀era฀o฀chefe฀do฀pessoal฀administrativo,฀no฀ qual฀se฀incluíam฀os฀bispos.฀Uma฀Novela฀de฀Valentiniano฀III,฀publicada฀ em฀julho฀de฀445,฀estabelecia฀que฀todos฀os฀bispos฀das฀Gálias฀deveriam฀ reconhecer฀como฀lei฀tudo฀aquilo฀que฀a฀auctoritas฀da฀sé฀apostólica฀havia฀ sancionado฀ou฀viesse฀a฀sancionar.฀Essa฀Novela฀era฀uma฀resposta฀às฀demandas฀do฀papa฀Leão฀I฀que,฀em฀conflito฀com฀o฀bispo฀Hilário฀de฀Arles,฀ havia฀ extinguido฀ a฀ função฀ de฀ Vigário฀ das฀ Gálias฀ (444),฀ ocupada฀ por฀ esse฀ último.฀ Hilário฀ foi฀ privado฀ pelo฀ pontífice฀ romano฀ de฀ seu฀ direito฀ de฀consagrar฀bispos฀e฀de฀convocar฀concílios.฀Valentiniano฀transformou฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀187 em฀lei฀imperial฀a฀primazia฀da฀sé฀romana฀sobre฀a฀Igreja฀das฀Gálias.฀Os฀ bispos฀que฀fossem฀convocados,฀e฀que฀não฀comparecessem฀para฀serem฀ julgados฀ diante฀ do฀ pontífice฀ romano,฀ seriam฀ obrigados฀ a฀ comparecer฀ pela฀intervenção฀do฀governador฀de฀sua฀província25.฀Essa฀medida฀reforçava฀não฀apenas฀a฀primazia฀da฀Igreja฀de฀Roma฀sobre฀o฀episcopado฀das฀ Gálias,฀mas฀submetia-o฀ao฀poder฀de฀seus฀respectivos฀governadores฀de฀ província.฀A฀menção฀de฀Remígio฀aos฀bispos฀“de”฀Clóvis฀é฀um฀reconhecimento฀dessa฀primazia฀do฀rector฀provinciae฀sobre฀o฀episcopado.฀Os฀bispos฀ eram฀funcionários฀públicos,฀responsáveis,฀juntamente฀com฀os฀condes,฀ pela฀administração฀das฀civitates.฀O฀caso฀de฀São฀Patiens,฀bispo฀de฀Lyon,฀ é฀ilustrativo฀a฀respeito฀das฀responsabilidades฀civis฀dos฀bispos:฀segundo฀ Gregório฀de฀Tours,฀ele฀teria฀alimentado฀a฀população฀de฀Lyon฀durante฀a฀ fome฀que฀se฀abateu฀sobre฀a฀Gália฀no฀final฀do฀século฀V26.฀ Voltando฀à฀frase฀de฀Remígio,฀é฀importante฀notar฀que฀há฀nela฀duas฀ admoestações฀distintas,฀ainda฀que฀complementares.฀Em฀primeiro฀lugar,฀ o฀bispo฀de฀Reims฀sugere฀que฀Clóvis฀deveria฀conversar฀com฀os฀seus฀bispos;฀em฀seguida,฀seria฀necessário฀que฀ele฀recorresse฀às฀suas฀deliberações฀ (consilia).฀Recorrer฀aos฀consilia฀episcopais฀não฀pode฀ser฀traduzido฀simplesmente฀por฀“ouvir฀os฀conselhos฀dos฀bispos”.฀Essa฀última฀idéia฀já฀está฀ exposta฀na฀primeira฀parte฀da฀frase.฀A฀segunda฀parte฀traz฀algo฀distinto:฀ Clóvis฀é฀aconselhado฀a฀recorrer฀às฀“deliberações฀dos฀bispos”.฀Uma฀maneira฀de฀ele฀recorrer฀a฀tais฀deliberações฀seria฀consultar฀as฀atas฀dos฀concílios฀episcopais฀que฀se฀reuniram฀na฀Gália฀ao฀longo฀de฀todo฀o฀século฀V.฀A฀ instalação฀muitas฀vezes฀violenta฀dos฀bárbaros,฀bem฀como฀a฀incursão฀dos฀ hunos,฀levou฀à฀desorganização฀da฀estrutura฀eclesiástica,฀sobretudo฀no฀ norte฀da฀Gália.฀Muitos฀bispados฀da฀própria฀província฀de฀Reims฀ficaram฀ muitos฀ anos฀ sem฀ serem฀ preenchidos.฀ O฀ advento฀ de฀ Remígio฀ coincide฀ 25 ฀Novellae฀Valent.฀III.฀tit.฀16.฀Ver฀O.฀Guillot,฀A.฀Rigaudière,฀Y.฀Saissier,฀Pouvoirs฀et฀institutions฀ dans฀la฀France฀médiévale,฀Des฀origines฀à฀l’époque฀féodale,฀p.฀57;฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.฀143144.฀฀฀฀฀฀฀ 26 ฀Decem฀Libri฀Historiarum฀II,฀24.฀M.฀Rouche฀afirma฀que฀os฀bispos฀não฀eram฀sucesssores฀do฀ defensor฀civitatis,฀função฀administrativa฀criada฀por฀Valentiniano฀I,฀e฀cuja฀responsabilidade฀era฀ receber฀as฀queixas฀dos฀contribuintes฀contra฀os฀poderosos฀(M.฀Rouche,฀Clovis,฀p.147).฀ 188฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média com฀o฀fim฀de฀uma฀aparente฀vacância:฀desde฀o฀episcopado฀de฀Bennagius,฀ nos฀anos฀de฀430,฀não฀se฀conhecia฀o฀nome฀de฀um฀bispo฀de฀Reims.฀Apesar฀ disso,฀os฀concílios฀não฀deixaram฀de฀se฀reunir฀em฀Angers฀(453),฀Tours฀ (461),฀Vannes฀(465).฀Eles฀se฀pronunciavam฀sobre฀questões฀doutrinárias,฀ sobre฀os฀conflitos฀que฀opunham฀clérigos฀e฀laicos,฀fixavam฀as฀regras฀de฀ conduta฀desses฀grupos,฀lembravam฀aos฀clérigos฀os฀deveres฀da฀caridade,฀ proibiam฀as฀mutilações฀e฀os฀atos฀de฀brutalidade,฀condenavam฀as฀relações฀com฀assassinos,฀excomungavam฀adúlteros฀e฀homicidas.฀Portanto,฀é฀ possível฀que฀Remígio฀faça฀referência,฀nessa฀segunda฀parte฀da฀frase,฀aos฀ cânones฀conciliares.฀Mas฀qual฀sentido฀poderia฀ter฀a฀consulta฀às฀atas฀dos฀ concílios,฀ou,฀em฀outras฀palavras,฀que฀tipo฀de฀deliberações฀havia฀nesses฀ textos฀que฀pudesse฀servir฀a฀Clóvis฀no฀exercício฀de฀suas฀funções?฀As฀duas฀ frases฀seguintes฀trazem฀um฀indício฀de฀resposta:฀“Pois฀se฀tu฀te฀entendes฀ bem฀com฀eles,฀tua฀província฀somente฀poderá฀ser฀consolidada.฀Anima฀teus฀ cidadãos,฀alivia฀os฀aflitos,฀favorece฀as฀viúvas,฀alimenta฀os฀órfãos;฀mais฀do฀ que฀iluminá-los,฀que฀todos฀o฀amem฀e฀o฀respeitem”.฀A฀referência฀ao฀amor฀ e฀ao฀respeito฀de฀todos฀mostra฀uma฀relação฀entre฀o฀governante฀e฀os฀governados฀que฀transcende฀os฀padrões฀tradicionais;฀o฀que฀se฀explica฀pela฀ natureza฀específica฀da฀autoridade฀de฀Clóvis฀(as฀boas฀obras,฀a฀retidão,฀a฀ humildade฀etc.).฀A฀expressão฀civos฀tuos฀é฀uma฀referência฀aos฀habitantes฀ da฀ Bélgica฀ Segunda,฀ o฀ que฀ poderia,฀ a฀ princípio,฀ significar฀ que฀ Remígio฀está฀descrevendo฀o฀que฀deveria฀ser฀a฀atuação฀ideal฀de฀Clóvis฀como฀ governador฀da฀província.฀No฀entanto,฀as฀ações฀que฀ele฀espera฀dele฀vão฀ além฀das฀prerrogativas฀de฀um฀simples฀governador฀de฀província:฀aliviar฀ os฀aflitos,฀favorecer฀as฀viúvas฀e฀alimentar฀os฀órfãos฀assemelham-se฀mais฀ às฀tarefas฀de฀um฀rei.฀Não฀é฀uma฀simples฀coincidência฀o฀fato฀de฀que฀no฀ Deuteronômio฀se฀prescreve-se฀defesa฀dos฀estrangeiros,฀dos฀órfãos฀e฀das฀ viúvas:฀ “Não฀perverterás฀o฀direito฀do฀estrangeiro฀e฀do฀órfão,฀nem฀tomarás฀como฀ penhor฀a฀roupa฀da฀viúva”27.฀ 27 ฀Deut.,฀24,฀17.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀189 ฀“Quando฀estiveres฀ceifando฀a฀colheita฀em฀teu฀campo฀e฀esqueceres฀um฀feixe,฀ não฀voltes฀para฀pegá-lo:฀ele฀é฀do฀estrangeiro,฀do฀órfão฀e฀da฀viúva,฀para฀que฀ Iahweh฀teu฀Deus฀te฀abençoe฀em฀todo฀trabalho฀das฀tuas฀mãos.฀Quando฀sacudires฀os฀frutos฀da฀tua฀oliveira,฀não฀repasses฀os฀ramos:฀o฀resto฀será฀do฀estrangeiro,฀ do฀órfão฀e฀da฀viúva.฀Quando฀vindimares฀a฀tua฀vinha,฀não฀voltes฀a฀rebuscá-la:฀ o฀resto฀será฀do฀estrangeiro,฀do฀órfão฀e฀da฀viúva”28.฀ ฀Remígio฀buscou฀no฀Velho฀Testamento฀o฀tema฀do฀auxílio฀aos฀mais฀ necessitados,฀associando-o฀ao฀exercício฀do฀poder.฀Essa฀associação฀também฀está฀presente฀nos฀textos฀bíblicos,฀sobretudo฀no฀livro฀de฀Provérbios,฀ onde฀a฀defesa฀dos฀fracos฀aparece฀como฀um฀atributo฀do฀rei:฀“O฀rei฀que฀ julga฀ os฀ fracos฀ com฀ verdade฀ firmará฀ seu฀ trono฀ para฀ sempre”฀ (Prov.,฀ 29,฀ 14).฀A฀visão฀de฀Remígio฀a฀respeito฀do฀poder฀real฀é฀marcada฀pela฀tradição฀ veterotestamentária฀da฀realeza.฀Um฀dos฀traços฀essenciais฀dessa฀tradição฀ é฀a฀prerrogativa฀judiciária฀associada฀à฀pratica฀do฀poder:฀o฀rei฀do฀Antigo฀ Testamento฀é,฀antes฀de฀tudo,฀um฀juiz.฀Da฀mesma฀forma,฀os฀conselhos฀de฀ Remígio฀indicam฀que฀o฀exercício฀da฀justiça฀está฀entre฀as฀funções฀mais฀ importantes,฀senão฀a฀mais฀importante,฀do฀governo฀de฀Clóvis:฀฀ “Que฀a฀justiça฀saia฀de฀vossa฀boca฀sem฀nada฀esperar฀dos฀pobres฀e฀dos฀estrangeiros฀ a฀ fim฀ de฀ que฀ não฀ queiras฀ de฀ forma฀ alguma฀ aceitar฀ presentes฀ ou฀ qualquer฀coisa฀da฀parte฀deles.฀Que฀teu฀pretório฀esteja฀aberto฀a฀todos฀a฀fim฀de฀ que฀ninguém฀regresse฀triste”.฀฀฀฀฀ Eis,฀então,฀na฀perspectiva฀do฀bispo฀de฀Reims,฀o฀significado฀de฀se฀recorrer฀ aos฀ cânones฀ conciliares:฀ esses฀ textos฀ seriam฀ inspirados฀ por฀ um฀ ideal฀ de฀ eqüidade฀ no฀ exercício฀ da฀ justiça฀ que฀ deveria฀ guiar฀ Clóvis,฀ e฀ eles฀também฀permitiriam฀que฀ele฀soubesse,฀por฀exemplo,฀se฀o฀benefício฀ por฀ ele฀ concedido฀ aos฀ seus฀ súditos฀ era฀ casto฀ e฀ honesto.฀ O฀ imperativo฀ da฀eqüidade฀no฀exercício฀da฀justiça฀aparece฀claramente฀nas฀duas฀frases฀ anteriormente฀citadas.฀Remígio฀espera฀que฀Clóvis฀não฀aceite฀qualquer฀ 28 ฀Deut.฀24,฀19-21.฀ 190฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média tipo฀de฀remuneração฀ou฀presente฀daqueles฀que฀não฀têm฀condição,฀em฀ troca฀do฀julgamento฀de฀seus฀processos฀no฀tribunal฀(praetorium).฀ A฀injunção฀para฀que฀o฀pretório฀de฀Clóvis฀esteja฀aberto฀a฀todos฀a฀fim฀ de฀ que฀ ninguém฀ regresse฀ triste฀ é฀ uma฀ defesa฀ do฀ tratamento฀ equânime฀ àqueles฀que฀procuram฀a฀justiça:฀todos฀devem฀ser฀ouvidos฀pelo฀tribunal,฀ independentemente฀de฀sua฀condição฀social.฀A฀mesma฀idéia฀aparece฀um฀ pouco฀mais฀adiante,฀quando฀Remígio฀afirma:฀“Se฀alguém฀é฀admitido฀em฀ vossa฀ presença,฀ que฀ ele฀ não฀ se฀ sinta฀ como฀ um฀ estrangeiro”.฀ Galo-romanos,฀francos฀ou฀estrangeiros,฀todos฀devem฀ter฀o฀mesmo฀tratamento฀no฀ pretório฀ chefiado฀ por฀ Clóvis.฀A฀ tarefa฀ essencial฀ dos฀ governadores฀ das฀ províncias฀romanas,฀pelo฀menos฀desde฀o฀Império฀Romano฀tardio,฀era฀ de฀fazer฀justiça,฀o฀que฀explica,฀aliás,฀a฀razão฀de฀eles฀serem฀chamados฀de฀ iudices29.฀Em฀sua฀epístola,฀Remígio฀demonstra฀uma฀nítida฀preocupação฀ com฀a฀lentidão฀dos฀processos,฀o฀que฀é,฀aliás,฀um฀tema฀recorrente฀nas฀reformas฀da฀justiça฀no฀período฀franco.฀O฀Capitulare฀de฀iustitiis฀faciendis,฀ por฀exemplo,฀publicado฀no฀final฀do฀reinado฀de฀Carlos฀Magno,฀pretendia฀ resolver฀as฀disputas฀e฀litígios฀que฀há฀anos฀permaneciam฀sem฀solução.฀O฀ imperador฀pretendia฀garantir฀também฀que฀as฀disputas฀entre฀condes฀e฀ poderosos฀não฀atrapalhassem฀o฀andamento฀dos฀processos฀dos฀pobres฀e฀ dos฀menos฀poderosos30.฀฀ Em฀sua฀epístola,฀Remígio฀passa฀em฀revista฀as฀categorias฀da฀província฀ que฀não฀podem฀se฀defender฀sozinhos;฀após฀mencionar฀os฀pobres,฀as฀viúvas,฀os฀órfãos฀e฀os฀estrangeiros,฀ele฀se฀detém฀no฀caso฀dos฀prisioneiros฀ e฀dos฀servos.฀Ele฀espera฀que฀Clóvis฀utilize฀a฀herança฀de฀Childerico฀para฀ libertá-los:฀“Tu฀possuis฀algumas฀riquezas฀paternais฀com฀as฀quais฀libertarás฀ os฀prisioneiros฀e฀os฀desligarás฀do฀jugo฀da฀servidão”.฀Essas฀riquezas฀são฀as฀ terras฀e฀os฀bens฀do฀fisco฀romano,฀de฀que฀Clóvis,฀como฀governador฀hereditário฀da฀província,฀poderia฀dispor. O฀ último฀ conselho฀ do฀ bispo฀ de฀ Reims฀ resume฀ o฀ espírito฀ da฀ carta:฀ se฀ Clóvis฀ deseja฀ reinar,฀ ele฀ deve฀ julgar฀ como฀ um฀“nobre”.฀ Esse฀ termo฀ 29 ฀A.฀Piganiol,฀L’Empire฀chrétien฀(325-395),฀p.฀351. ฀ Capitulare฀ de฀ iustitiis฀ faciendis฀ (811-813),฀ 80,฀ Capitularia฀ regum฀ Francorum,฀ pp.176177.฀ 30 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀191 não฀é฀uma฀referência฀ao฀estatuto฀social฀do฀destinatário,฀mas฀é฀sinônimo฀ de฀“justo”.฀Eis฀o฀argumento฀essencial฀das฀exortações฀dos฀bispos฀durante฀ todo฀o฀século฀VI฀na฀Gália:฀o฀ato฀de฀governar฀é฀legítimo฀unicamente฀se฀ ele฀se฀fudamenta฀em฀um฀comportamento฀moral฀inspirado฀pelos฀bispos.฀ Diante฀de฀um฀chefe฀militar฀que฀também฀é฀rei฀e฀alto฀funcionário฀romano,฀ o฀ bispo฀ de฀ Reims฀ evoca฀ os฀ limites฀ da฀ força฀ no฀ exercício฀ do฀ governo;฀ apenas฀a฀verdadeira฀justiça,฀em฀seu฀sentido฀cristão,฀฀caracterizaria฀o฀bom฀ governo.฀฀ As฀exortações฀de฀Remígio฀não฀são฀originais:฀elas฀contém฀temas฀que฀ já฀ haviam฀ sido฀ abordados฀ por฀ outros฀ autores,฀ como฀ a฀ idéia฀ do฀ poder฀ a฀serviço฀da฀fé.฀No฀entanto,฀sua฀carta฀é฀o฀primeiro฀testemunho฀escrito฀ onde฀se฀pretende฀inculcar฀aos฀reis฀francos฀uma฀idéia฀cristã฀da฀ utilitas฀ publica.฀ Ora,฀ a฀ pregação฀ de฀ Remígio฀ parece฀ ter,฀ à฀ primeira฀ vista,฀ um฀ significado฀meramente฀pessoal฀quando฀ele฀sustenta฀que฀฀“...é฀pelos฀atos฀ que฀se฀reconhece฀o฀homem”.฀Ele฀escreve฀como฀um฀pastor฀que฀se฀dirige฀a฀ uma฀ das฀ ovelhas฀ de฀ seu฀ rebanho,฀ prodigalizando-lhe฀ conselhos฀ sobre฀ comportamento฀moralmente฀correto.฀Convém฀ressaltar฀que฀os฀atos฀que฀ o฀bispo฀de฀Reims฀espera฀de฀Clóvis฀não฀são฀os฀de฀um฀fiel฀como฀os฀outros.฀ Ainda฀ que฀ a฀ expressão฀ utilitas฀ publica฀ não฀ apareça฀ explicitamente฀ no฀ texto,฀é฀a฀ela฀que฀Remígio฀faz฀referência฀quando฀menciona฀as฀obrigações฀de฀Clóvis฀em฀devolver฀coragem฀aos฀cidadãos,฀em฀aliviar฀os฀aflitos,฀ em฀obsequiar฀as฀viúvas,฀em฀alimentar฀os฀órfãos.฀Nas฀décadas฀seguintes,฀ tanto฀nas฀fontes฀eclesiásticas฀quanto฀nos฀capitulários฀reais,฀essas฀ações฀ tornam-se฀o฀conteúdo฀da฀utilitas฀publica.฀Não฀há฀nenhuma฀dúvida฀de฀ que฀ o฀ cumprimento฀ dessas฀ tarefas฀ equivaleria,฀ também฀ na฀ visão฀ do฀ bispo฀de฀Reims,฀à฀realização฀do฀bem฀público,฀pois฀todos฀os฀conselhos฀ anteriormente฀citados฀se฀terminam฀pela฀frase฀“...e฀se฀queres฀reinar,฀julga฀ em฀nobre”.฀A฀utilização฀do฀verbo฀regnare฀(reinar)฀mostra฀que฀Remígio฀ está฀consciente฀de฀que฀os฀conselhos฀que฀ele฀dá฀implicam฀a฀condução฀dos฀ assuntos฀públicos.฀ No฀entanto,฀foi฀em฀sua฀segunda฀carta฀a฀Clóvis฀que฀Remígio฀integrou฀ pela฀primeira฀vez฀฀e฀explicitamente฀entre฀os฀deveres฀do฀rei฀a฀obrigação฀ de฀zelar฀pela฀salvação฀de฀todos: 192฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média “Meu฀ senhor฀ [rei],฀ expulse฀ de฀ teu฀ coração฀ a฀ tristeza;฀ governa฀ o฀ reino฀ de฀ maneira฀ mais฀ penetrante,฀ com฀ um฀ espírito฀ justamente฀ dominado,฀ tomando฀decisões฀mais฀difíceis฀graças฀ao฀zelo฀da฀serenidade.฀Alenta฀teus฀membros฀ graças฀a฀um฀coração฀alegre.฀O฀entorpecimento฀da฀amargura฀sacudido,฀consagrarás฀tuas฀vigílias฀para฀a฀salvação฀[de฀todos]฀com฀mais฀acuidade.฀Que฀o฀ reino฀permaneça฀em฀tua฀mão฀para฀ser฀administrado฀e,฀com฀a฀ajuda฀de฀Deus,฀ prosperar.฀Tu฀és฀a฀cabeça฀dos฀povos฀e฀possuir฀o฀governo.฀Possam฀aqueles฀que฀ se฀habituaram฀a฀viver฀graças฀a฀ti฀nas฀felicidades฀não฀te฀observar฀subjugado฀ pela฀acidez฀da฀perda”31.฀ A฀conversão฀e฀o฀batismo฀tinham฀acabado฀de฀acontecer.฀Remígio,฀que฀ teve฀um฀papel฀importante฀nos฀eventos,฀tornou-se฀o฀padrinho฀espiritual฀de฀Clóvis.฀Daí฀sua฀preocupação฀em฀escrever-lhe฀para฀consolar-lo฀da฀ perda฀de฀sua฀irmã.฀Entretanto,฀suas฀palavras฀não฀se฀restringem฀ao฀domínio฀do฀reconforto฀espiritual.฀Remígio฀sugere฀que฀a฀conversão฀fez฀de฀ Clóvis฀um฀herói,฀um฀governante฀que฀se฀encontrava฀doravante฀à฀frente฀ dos฀povos.฀Ele฀afirma฀que฀além฀de฀suas฀amarguras฀pessoais฀e฀em฀virtude฀ da฀posição฀que฀ocupava฀no฀reino,฀Clóvis฀tinha฀um฀dever฀em฀relação฀ao฀ seu฀povo:฀ele฀deveria฀velar฀pela฀salvação฀de฀todos฀com฀mais฀acuidade.฀ Na฀ primeira฀ carta฀ ele฀ evoca฀ ao฀ rei฀ os฀ deveres฀ inerentes฀ à฀ sua฀ função,฀ sem฀mencionar฀uma฀responsabilidade฀desse฀gênero.฀Não฀havia฀sentido,฀ aliás,฀em฀associar฀a฀um฀governante฀pagão฀a฀responsabilidade฀na฀salvação฀ espiritual฀de฀seus฀súditos.฀Esse฀é฀um฀tema฀que฀somente฀poderia฀ser฀desenvolvido฀para฀um฀príncipe฀que฀tivesse฀adotado฀a฀fé฀cristã.฀Vemos฀algo฀ análogo฀no฀De฀laudibus฀Constantini฀(Elogio฀a฀Constantino),฀redigido฀ por฀Eusébio฀de฀Cesaréia,฀por฀ocasião฀do฀trigésimo฀aniversário฀do฀reinado฀desse฀imperador.฀A฀idéia฀de฀que฀o฀príncipe฀tem฀responsabilidade฀na฀ salvação฀de฀seus฀súditos฀é฀um฀dos฀componentes฀essenciais฀da฀Realeza฀ Cristã,฀ e฀ a฀ primeira฀ vez฀ que฀ ela฀ aparece฀ na฀ Gália฀ merovíngia฀ é฀ nessa฀ epístola฀do฀bispo฀de฀Reims.฀ 31 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀1฀(trad.฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀pp.฀393-394).฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀193 Ao฀tratar฀das฀implicações฀do฀batismo,฀como฀faz฀Remígio฀em฀sua฀segunda฀epístola฀ao฀rei฀dos฀francos,฀o฀bispo฀Avitus฀de฀Viena32฀utiliza฀um฀ tom฀“constantiniano”฀ que฀ examinamos฀ na฀ primeira฀ parte฀ deste฀ livro.฀ Mas฀o฀bispo฀de฀Viena฀vai฀além: “No฀momento฀em฀que฀tinhamos฀nos฀voltado฀para฀a฀eternidade฀e฀que฀esperávamos฀do฀julgamento฀futuro฀que฀seja฀dito฀o฀que฀há฀de฀direito฀naquilo฀que฀ cada฀um฀sente,฀eis฀que฀brilhou฀entre฀os฀homens฀de฀hoje฀um฀raio฀de฀verdade฀ iluminado.฀ A฀ divina฀ Providência฀ enfim฀ encontrou฀ um฀ árbitro฀ para฀ nossa฀ época.฀ A฀ escolha฀ que฀ fizeste฀ é฀ uma฀ sentença฀ que฀ vale฀ para฀ todos.฀ Tua฀ fé฀ é฀ nossa฀vitória...Tu,฀de฀uma฀genealogia฀de฀origem฀antiga,฀se฀contentaste฀de฀tua฀ própria฀nobreza฀e฀quis฀fazer฀surgir฀de฀ti฀para฀tua฀descendência฀tudo฀o฀que฀ pode฀ornar฀de฀generosidade฀esse฀alto฀grau.฀Tu฀tens฀fundadores,฀homens฀de฀ bem,฀mas฀quiseste฀fazer฀nascer฀melhores.฀Tu฀estás฀à฀altura฀de฀teus฀ancestrais,฀ quando฀reina฀no฀século;฀tu฀és฀um฀fundador฀para฀tua฀descendência฀quando฀ reinares฀no฀céu”33.฀฀ Segundo฀Avitus,฀o฀poder฀de฀Clóvis฀não฀resultaria฀apenas฀do฀prestígio฀ de฀seus฀antepassados,฀mas฀também฀do฀fato฀de฀que฀ele฀tinha฀se฀tornado฀ um฀rei฀cristão.฀Avitus,฀bem฀como฀Remígio,฀considera฀que฀as฀implicações฀ desta฀conversão฀ultrapassavam฀os฀limites฀de฀uma฀profissão฀de฀fé฀individual.฀É฀difícil฀afirmar,฀como฀faz฀W.฀von฀den฀Steinen,฀que฀não฀havia฀por฀ parte฀do฀bispo฀de฀Viena฀nenhuma฀consciência฀do฀alcance฀do฀batismo฀de฀ Clóvis34.฀Avitus฀diz฀claramente฀a฀propósito฀do฀batismo฀de฀Clóvis฀que฀a฀ divina฀Providência฀tinha฀encontrado฀um฀“árbitro”฀para฀sua฀época.฀Ele฀ crê฀que฀a฀escolha฀do฀rei฀é฀uma฀sentença฀que฀vale฀para฀“todos”35.฀A฀pa- 32 ฀Cidade฀localizada฀ao฀sul฀de฀Lyon.฀Sobre฀Avitus,฀ver฀H.฀Goelzer,฀Le฀latin฀de฀saint฀Avit,฀évêque฀ de฀Vienne฀(450฀?฀–฀526฀?);฀M.฀Burckhardt,฀Die฀Briefsammlung฀des฀Bischofs฀Avitus;฀e฀também,฀ M.฀Reydellet,฀“Avit฀de฀Vienne฀et฀la฀royauté฀chrétienne”,฀In:฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀ pp.฀87-137. 33 ฀Avitus฀episcopus฀Clodovecho฀regi฀(trad.฀M.฀Rouche,฀pp.฀397-400). 34 ฀W.฀von฀den฀Steinen,฀“Chlodowigs฀Übergang฀zum฀Christentum”,฀pp.฀417-501. 35 ฀Alcimi฀Ecdicii฀Aviti฀Viennensis฀Episcopi,฀46฀(41).฀฀฀ 194฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média lavra฀“todos”฀designava,฀provavelmente,฀não฀somente฀os฀habitantes฀do฀ Regnum฀Francorum,฀mas฀todos฀os฀católicos.฀Avitus฀era฀um฀bispo฀estrangeiro,฀cuja฀sé฀episcopal฀se฀encontrava฀no฀Reino฀dos฀Burgúndios.฀É฀pouco฀ provável฀que฀ele฀tivesse฀em฀mente฀exclusivamente฀os฀habitantes฀do฀Reino฀dos฀Francos฀quando฀redigiu฀essa฀carta.฀Ele฀se฀preocupava฀com฀todos฀ os฀católicos,฀incluindo฀aqueles฀que฀eram฀governados฀por฀reis฀heréticos.฀ Avitus฀acordava฀um฀valor฀imenso฀à฀conversão฀de฀Clóvis,฀não฀somente฀ porque฀ela฀facilitaria฀a฀conversão฀dos฀francos,฀mas฀também฀porque฀ela฀ fazia฀desse฀rei฀a฀ponta฀de฀lança฀da฀fé฀católica.฀Algumas฀linhas฀adiante฀na฀ carta,฀os฀argumentos฀do฀bispo฀se฀tornam฀mais฀incisivos฀nesse฀sentido:฀ “Há฀uma฀coisa฀no฀mundo฀que฀nós฀queríamos฀que฀ela฀o฀amplificasse:฀que฀ Deus฀faça฀teu,฀para฀ti,฀todo฀o฀teu฀povo฀e฀que฀os฀povos฀mais฀distantes,฀mas฀ ainda฀ não฀ corrompidos,฀ em฀ sua฀ ignorância฀ natural,฀ por฀ germes฀ dos฀ maus฀ dogmas,฀ recebam฀ de฀ ti฀ a฀ semente฀ da฀ fé,฀ tomada฀ no฀ bom฀ tesouro฀ de฀ teu฀ coração;฀não฀tenhas฀nem฀vergonha,฀nem฀aborrecimento฀de฀construir,฀pelo฀ envio฀de฀embaixadas฀sobre฀esse฀tema,฀o฀reino฀de฀Deus,฀ele฀que฀tudo฀fez฀para฀ edificar฀o฀teu”36.฀ Avitus฀ vê฀ Clovis฀ não฀ apenas฀ como฀ o฀ defensor฀ da฀ fé,฀ mas฀ também฀ como฀seu฀propagador,฀um฀evangelizador฀cuja฀ação฀ultrapassaria฀as฀fronteiras฀de฀seu฀próprio฀reino:฀ “À฀ medida฀ que฀ esses฀ povos฀ exteriores฀ pagãos฀ estarão฀ prontos฀ a฀ servi-lo฀ sob฀o฀mandato฀da฀religião,฀então฀perceberemos฀novamente฀que฀isso฀tem฀uma฀ outra฀propriedade.฀Nós฀a฀discerniremos฀mais฀pelo฀pertencimento฀a฀um฀povo฀ que฀a฀um฀príncipe”37.฀฀ 36 ฀Ibid.฀฀ ฀Ibid.฀ 37 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀195 Na฀ epístola฀ de฀ Avitus,฀ as฀ fronteiras฀ políticas฀ tradicionais฀ cedem฀ lugar฀ a฀ uma฀ nova฀ forma฀ de฀ identificação฀ coletiva฀ fundada฀ sobre฀ o฀ pertencimento฀ a฀ uma฀ mesma฀ fé฀ católica,฀ e฀ o฀ que฀ é฀ mais฀ importante,฀ sobre฀ a฀ lealdade฀ a฀ um฀ governante฀ que฀ a฀ incarnaria.฀ A฀ proposição฀ é฀ nitidamente฀constantiniana:฀o฀príncipe฀aparece฀como฀o฀chefe฀de฀uma฀ comunidade฀ cujo฀ cimento฀ é฀ a฀ religião.฀ O฀ fundamento฀ da฀ autoridade฀ “supranacional”฀do฀rex฀é฀a฀religião:฀“À฀medida฀que฀esses฀povos฀exteriores฀ pagãos฀estiverem฀prontos฀a฀servi-lo฀sob฀o฀mandato฀da฀religião”.฀Essa฀carta฀ é฀menos฀marcada฀que฀as฀de฀Remígio฀pela฀idéia฀de฀que฀o฀poder฀deve฀se฀ assentar฀ na฀ ajuda฀ aos฀ fracos฀ e฀ na฀ promoção฀ da฀ salvação.฀ Trata-se฀ do฀ primeiro฀documento฀a฀mencionar฀explicitamente฀a฀mudança฀na฀legitimidade฀dos฀reis฀francos฀provocada฀pelo฀batismo฀de฀Clóvis.฀Conforme฀ Avitus,฀o฀rei฀franco฀retira฀sua฀força฀é฀da฀propagação฀da฀fé฀católica฀e฀da฀ conversão฀dos฀povos฀pagãos.฀ As฀epístolas฀de฀Remígio฀e฀de฀Avitus฀mostram฀que฀a฀conversão฀e฀o฀batismo฀de฀Clóvis฀não฀foram฀apenas฀os฀marcos฀de฀uma฀política฀cujo฀objetivo฀era฀aproximar฀o฀governo฀franco฀do฀modelo฀imperial฀de฀governo.฀Era฀a฀ primeira฀vez฀que฀um฀rei฀bárbaro฀adotava฀a฀fé฀católica,฀num฀momento฀em฀ que฀a฀propagação฀do฀arianismo฀ameaçava฀pôr฀em฀risco฀a฀ortodoxia฀adotada฀pelo฀Concílio฀de฀Nicéia38.฀Entretanto,฀o฀batismo฀não฀deve฀ser฀considerado฀como฀um฀evento฀que฀inaugurou฀a฀“Realeza฀Cristã”39.฀A฀impor- 38 ฀O฀arianismo฀opunha฀aqueles฀que,฀como฀Arius,฀um฀padre฀de฀Alexandria,฀sustentavam฀que฀ Jesus฀não฀era฀o฀filho฀de฀Deus,฀aos฀partidários฀do฀Concilio฀de฀Nicéia,฀que฀havia฀condenado฀as฀ idéias฀de฀Arius฀como฀heréticas฀e฀proclamado฀o฀dogma฀da฀Trindade.฀As฀divisões฀não฀tardaram฀ a฀ atingir฀ os฀ próprios฀ arianos.฀ Para฀ os฀ mais฀ radicais,฀ o฀ Cristo฀ era฀ anomoiousios,฀ ou฀ seja,฀ de฀ uma฀outra฀substância฀que฀Deus;฀uma฀segunda฀tendência฀sustentava฀que฀o฀Cristo฀era฀homoios,฀ semelhante฀a฀de฀Deus;฀aqueles฀dentre฀os฀arianos฀que฀eram฀mais฀próximos฀da฀ortodoxia฀proclamavam฀o฀Cristo฀homoiousios,฀semelhante฀pela฀substância.฀Mas฀uma฀diferença฀permanecia:฀ o฀Concilio฀de฀Nicéia฀havia฀estabelecido฀que฀o฀flho฀era฀da฀mesma฀substância฀que฀o฀Pai฀(Sobre฀o฀ arianismo,฀ver฀H.G.฀Opitz,฀Urkunden฀zur฀Geschichte฀des฀arianischen฀Streites;฀M.฀Simonetti,฀ La฀crisi฀ariana฀nel฀IV฀secolo;฀M.฀Meslin฀Les฀Ariens฀d’Occident,฀335-430).฀฀ 39 ฀ Ver฀ R.฀ Aigran,฀ “L’Eglise฀ franque฀ sous฀ les฀ Mérovingiens”,฀ pp.329-390;฀ também,฀ L.฀ Pietri,฀ “L’Eglise฀du฀Regnum฀Francorum”,฀pp.฀745-799.฀ 196฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média tância฀política฀da฀conversão฀e฀do฀batismo฀do฀rei฀dos฀francos฀não฀deve฀ser฀ superestimada.฀A฀Igreja฀franca฀e฀a฀monarquia฀merovíngia฀não฀eram฀dois฀ parceiros฀recentes.฀O฀batismo฀de฀Clóvis฀oficializou฀e฀aprofundou฀as฀relações฀entre฀ambos฀os฀poderes฀e฀abriu฀grandes฀possibilidades฀à฀propagação฀ da฀fé฀cristã฀proclamada฀pelos฀padres฀do฀Concílio฀de฀Nicéia.฀Ele฀permitiu฀ que฀alguns฀bispos฀desenvolvessem฀em฀suas฀exortações฀temas฀que฀até฀então฀ estavam฀ ausentes฀ de฀ sua฀ correspondência฀ com฀ os฀ reis฀ francos,฀ como฀ o฀ dever฀do฀príncipe฀em฀promover฀a฀evangelização฀e฀sua฀obrigação฀para฀com฀ a฀salvação฀dos฀seus฀súditos.฀Porém,฀a฀idéia฀do฀rei฀a฀serviço฀do฀povo฀tinha฀ sido฀abordada฀por฀Remígio฀antes฀do฀batismo฀de฀Clóvis.฀É฀apenas฀depois฀ do฀ batismo฀ que฀ a฀ idéia฀ de฀ serviço฀ foi฀ associada฀ à฀ salvação,฀ tornando฀ o฀ conteúdo฀dos฀deveres฀morais฀do฀príncipe฀explicitamente฀cristão.฀Isso฀não฀ significa฀que฀essas฀idéias฀tenham฀sido฀automaticamente฀incorporadas฀ao฀ exercício฀do฀poder฀na฀Gália.฀Foi฀necessário฀um฀longo฀caminho฀para฀que฀ essas฀idéias฀tomassem฀forma฀na฀legislação฀real฀franca.฀฀฀฀฀ Aureliano฀de฀Arles Depois฀ das฀ epístolas฀ de฀ Remígio฀ e฀ de฀ Avitus,฀ o฀ melhor฀ e฀ o฀ mais฀ completo฀exemplo,฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀de฀uma฀exortação฀ episcopal฀é฀a฀epístola฀que฀Aureliano,฀bispo฀de฀Arles,฀enviou฀ao฀rei฀Teudeberto฀I.฀A฀carta฀foi฀escrita฀por฀volta฀de฀546-548,฀no฀momento฀em฀que฀a฀ cidade฀tinha฀acabado฀de฀ficar฀sob฀o฀poder฀desse฀rei40.฀No฀início฀do฀século฀ 40 ฀ Epistolae฀ Austrasicae,฀ 10,฀ pp.฀ 124-126.฀W.฀ Gundlach,฀ que฀ editou฀ o฀ texto฀ dessa฀ carta฀ nos฀ M.G.H.,฀acreditava฀que฀seu฀autor฀fosse฀Aureliano฀de฀Arles฀(546-551),฀pois฀ele฀é฀o฀único฀bispo฀ cujo฀nome฀é฀mencionado฀nos฀fastos฀episcopais฀como฀sendo฀um฀contemporâneo฀de฀Teudeberto฀ I฀(“Die฀Sammlung฀der฀Epistolae฀Austrasicae”,฀pp.฀365-387,฀especialmente฀p.฀397).฀Essa฀opinião฀ é฀partilhada฀pela฀maior฀parte฀dos฀historiadores฀que฀analisaram฀o฀documento;฀é฀o฀caso,฀por฀ exemplo,฀de฀M.฀Heinzelmann฀(Bischofsherrschaft฀in฀Gallien,฀pp.฀149-152).฀Ela฀é,฀entretanto,฀ refutada฀por฀R.฀Collins:฀para฀ele,฀do฀ponto฀de฀vista฀literário฀e฀estilístico,฀essa฀carta฀não฀poderia฀ ser฀de฀Aureliano฀de฀Arles.฀Comparando฀a฀Regula฀escrita฀por฀Aureliano฀com฀a฀carta฀que฀lhe฀é฀ atribuída,฀Collins฀afirma฀que฀esses฀dois฀textos฀não฀podem฀ter฀sido฀de฀um฀mesmo฀autor,฀pois฀ o฀primeiro฀teria฀sido฀escrito฀em฀um฀latim฀de฀má฀qualidade,฀contrariamente฀à฀carta฀enviada฀a Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀197 VI,฀a฀civitas฀de฀Arles฀era฀a฀Metrópole฀das฀Gálias฀e฀sua฀importância฀como฀ centro฀político฀e฀religioso฀havia฀sido฀ampliada฀durante฀o฀pontificado฀de฀ Cesário฀de฀Arles41.฀Nomeado฀bispo฀da฀cidade฀por฀volta฀de฀502-503,฀Cesário฀sofreu,฀como฀outros฀membros฀do฀episcopado฀provençal,฀os฀excessos฀do฀poder฀visigodo.฀Exilado฀em฀Bordeaux฀por฀Alarico฀II฀(503-507),฀ e฀mais฀tarde฀reabilitado42,฀ele฀voltou฀a฀ser฀exilado฀quando฀Arles฀passou฀ para฀o฀domínio฀dos฀ostrogodos฀após฀a฀derrota฀de฀Alarico,฀em฀50843.฀Cesário฀teve฀um฀papel฀importante฀em฀vários฀concílios฀provinciais,฀desde฀o฀ concílio฀de฀Agde,฀em฀506,฀até฀o฀de฀Marselha,฀em฀533.฀Ele฀também฀presidiu฀o฀Concílio฀de฀Orange,฀em฀529.฀Em฀514,฀o฀papa฀Símaco฀outorgou-lhe฀ o฀pallium44,฀e฀no฀ano฀seguinte,฀uma฀carta฀pontifical฀o฀nomeou฀“vigário฀ apostólico”฀na฀Provença,฀na฀Narbonesa฀e฀na฀Espanha.฀Pela฀primeira฀vez฀ na฀história฀da฀Igreja฀Católica,฀o฀pallium฀era฀concedido฀a฀alguém฀fora฀da฀ Península฀Italiana45. Mais฀do฀que฀os฀textos฀anteriores฀de฀Remígio฀e฀de฀Avitus,฀a฀epístola฀de฀ Aureliano฀é฀uma฀espécie฀de฀“espelho฀do฀príncipe”฀destinado฀a฀mostrar฀ Teudeberto,฀composta฀num฀estilo฀apurado฀e฀com฀uma฀retórica฀elaborada.฀O฀autor฀dessa฀última฀ carta,฀afirma฀R.฀Collins,฀praticava฀o฀latim฀tal฀como฀um฀Ennodius฀ou฀um฀Cassiodoro,฀enquanto฀ a฀Regula฀teria฀sido฀redigida฀com฀uma฀“simplicidade฀bárbara”.฀Ele฀estima฀que฀o฀autor฀da฀carta฀ a฀Teudeberto฀I฀era฀um฀outro฀bispo฀chamado฀Aureliano,฀cuja฀identidade฀da฀sede฀episcopal฀permanece฀incerta฀e฀que฀teria฀vivido฀no฀sul฀da฀Gália,฀provavelmente฀na฀Provença฀(“Théodebert฀ I,฀‘Rex฀Magnus฀Francorum’”,฀pp.7-33,฀especialmente฀pp.฀19-20).฀P.฀Riché,฀por฀outro฀lado,฀não฀ compartilha฀a฀opinião฀de฀Collins฀a฀respeito฀da฀falta฀de฀erudição฀de฀Aureliano฀de฀Arles.฀Riché฀o฀ coloca,฀juntamente฀com฀Cypriano฀de฀Toulon฀e฀Ferreol฀de฀Urzes,฀como฀membro฀de฀uma฀última฀ geração฀de฀bispos฀letrados฀da฀Gália฀do฀sul฀(Education฀et฀culture฀dans฀l’Occident฀barbare,฀p.฀ 220).฀Outro฀argumento฀em฀favor฀de฀Aureliano฀de฀Arles฀é฀a฀importância฀e฀o฀prestígio฀de฀sua฀ sede฀episcopal.฀É฀pouco฀provável฀que฀um฀obscuro฀bispo฀provençal฀escrevesse฀ao฀rei฀nos฀termos฀ de฀uma฀exortação฀moral.฀ 41 ฀R.฀Collins,฀“Théodebert฀I฀‘Rex฀Magnus฀Francorum’”,฀pp.7-33.฀฀ 42 ฀Vita฀Caesarii฀I,฀21-26,฀pp.฀465-466.฀฀ 43 ฀Vita฀Caesarii฀I,฀36,฀pp.฀470-471. 44 ฀Vita฀Caesarii฀I,฀42,฀p.฀473.฀฀฀฀ 45 ฀L.฀Duchesne,฀L’Eglise฀au฀VIe฀siècle,฀p.532;฀P.฀Batiffol,฀Saint฀Grégoire฀le฀Grand,฀p.512. 198฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média para฀rei฀as฀virtudes฀que฀ele฀deveria฀praticar46.฀Quase฀todas฀as฀virtudes฀ mencionadas฀ por฀ Aureliano฀ e฀ endereçadas฀ ao฀ rei฀ Teudeberto฀ pertenciam฀ao฀vocabulário฀romano:฀é฀o฀caso฀da฀“misericórdia”,฀da฀“justiça”,฀da฀ “concórdia”฀e฀da฀“generosidade”.฀Nada฀mais฀natural,฀uma฀vez฀que฀essa฀ epístola฀se฀endereçava฀a฀um฀príncipe฀com฀nítidas฀pretensões฀imperiais,฀ o฀ qual฀ recebeu,฀ ainda฀ no฀ século฀VI,฀ o฀ epíteto฀ de฀ magnus.฀ Entretanto,฀ como฀ bem฀ nota฀ P.D.฀ King,฀ dentre฀ as฀ virtudes฀ apresentadas฀ por฀Aureliano,฀há฀uma฀que฀não฀possuía฀raízes฀no฀pensamento฀romano฀secular:฀ a฀humilitas,฀virtude฀ideal฀do฀imperador฀para฀Ambrósio฀de฀Milão฀e฀para฀ Agostinho,฀mas฀inconcebível฀para฀os฀autores฀pagãos47.฀Em฀sua฀primeira฀ epístola฀a฀Clóvis,฀Remígio฀exalta฀a฀humilitas฀de฀Clóvis,฀muito฀embora฀ não฀a฀associe฀diretamente฀à฀sua฀conversão฀à฀fé฀cristã:฀“É฀necessário฀fazer฀de฀modo฀que฀o฀julgamento฀de฀Deus฀continue฀a฀sustentá-lo,฀pois฀é฀em฀ recompensa฀de฀tua฀humildade฀que฀ele฀fez฀com฀que฀tu฀chegasses฀ao฀ápice”.฀ Essa฀humilitas฀teria฀permitido฀a฀Clóvis฀chegar฀até฀a฀posição฀em฀que฀se฀ encontrava฀após฀a฀morte฀de฀seu฀pai,฀bem฀antes,฀portanto,฀da฀conversão฀ e฀do฀batismo.฀Na฀carta฀de฀Aureliano,฀ela฀assume฀plenamente฀um฀caráter฀ cristão.฀A฀humilitas฀significa,฀para฀o฀bispo฀de฀Arles,฀que฀o฀príncipe฀devia฀ reconhecer฀o฀poder฀de฀Deus฀e฀se฀submeter฀às฀suas฀ordens.฀A฀menção฀a฀ essa฀virtude฀tem฀uma฀implicação฀de฀suma฀importância:฀o฀temor฀do฀poder฀de฀Deus.฀Virtude฀diametralmente฀oposta฀à฀superbia฀(valor฀particularmente฀caro฀aos฀romanos),฀a฀humilitas฀do฀christianus฀princeps฀abre฀aos฀ bispos฀a฀possibilidade฀de฀ensinar฀aos฀reis฀aquilo฀que฀é฀correto฀e฀aquilo฀ que฀não฀o฀é.฀Aureliano฀lembra฀a฀Teudeberto฀I฀as฀punições฀que฀ele฀evita฀ ao฀se฀comportar฀como฀um฀príncipe฀cristão.฀Ele฀insiste฀no฀dia฀do฀Juízo฀ Final,฀tema฀caro฀a฀Gelásio฀e฀a฀Cesário฀de฀Arles,฀e฀também฀presente฀na฀ primeira฀carta฀de฀Remígio.฀ Aureliano฀designa฀Teudeberto฀como฀sacratissimus฀praesul฀(algo฀como฀ “chefe฀ muito฀ sagrado”).฀ Y.฀ Saissier฀ acredita฀ que฀ essa฀ expressão฀ revele฀ uma฀dimensão฀religiosa฀e฀sagrada฀de฀matriz฀constantiniana48.฀O฀bispo฀ 46 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀10.฀฀฀฀฀฀ ฀P.D.฀King,฀“Les฀royaumes฀barbares”,฀p.130.฀฀ 48 ฀Y.฀Saissier,฀Royauté฀et฀idéologie฀au฀Moyen฀Age,฀p.82.฀ 47 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀199 narra฀ao฀rei฀o฀dies฀terroris฀inenarrabilis฀(“dia฀do฀terror฀inenarrável”),฀o฀ dies฀furoris฀Domini฀(“dia฀do฀furor฀de฀Deus”),฀no฀qual฀os฀bons฀e฀os฀maus฀ serão฀julgados,฀estes฀castigados,฀amaldiçoados฀e฀condenados฀a฀uma฀pena฀ eterna฀ sem฀ a฀ mínima฀ consideração฀ para฀ com฀ suas฀ ilustres฀ origens฀ ou฀ sua฀condição฀social.฀A฀única฀coisa฀a฀ser฀levada฀em฀conta฀seria฀o฀mérito฀ de฀cada฀um:฀“Assim,฀ser฀rei฀não฀é฀não฀um฀privilégio฀em฀si฀mesmo”.฀Em฀ sua฀relação฀com฀Deus,฀a฀responsabilidade฀do฀rei฀seria฀muito฀maior฀em฀ virtude฀da฀posição฀que฀ele฀ocupa:฀“Quanto฀mais฀você฀tiver฀recebido฀em฀ quantidade,฀ mais฀ você฀ será฀ devedor”49.฀ Nesse฀ sentido,฀ quanto฀ mais฀ seu฀ regnum฀ for฀ grande,฀ maior฀ é฀ o฀ risco฀ que฀ o฀ rei฀ corre฀ durante฀ a฀ grande฀ prestação฀de฀contas.฀Essa฀concepção฀ministerial฀do฀poder฀secular,฀como฀ vários฀autores฀já฀observaram,฀tem฀raízes฀na฀Epístola฀de฀Paulo฀aos฀Romanos,฀ em฀ que฀ os฀ governantes฀ aparecem฀ como฀ servidores฀ zelosos฀ de฀ Deus:฀“É฀também฀por฀isso฀que฀pagais฀os฀impostos,฀pois฀os฀que฀governam฀ são฀servidores฀de฀Deus,฀que฀se฀desincumbem฀com฀zelo฀do฀seu฀ofício”50.฀ No฀entanto,฀as฀reflexões฀de฀Aureliano฀trazem฀importantes฀modificações฀em฀relação฀às฀idéias฀paulinas฀sobre฀o฀poder.฀No฀trecho฀que฀acaba฀de฀ ser฀citado,฀Paulo฀faz฀referência฀aos฀governantes,฀sem฀se฀ater฀especificamente฀aos฀governantes฀cristãos,฀problema฀que฀não฀se฀colocava฀naquele฀ momento.฀Ao฀retomar฀o฀princípio฀da฀responsabilidade฀dos฀governantes,฀ Aureliano฀se฀preocupa฀fundamentalmente฀com฀os฀governantes฀cristãos:฀ “É฀impossível฀medir฀as฀contas฀que฀o฀príncipe฀cristão฀deve฀prestar฀a฀Deus”.฀ Para฀Aureliano,฀como฀para฀Remígio฀e฀para฀Avitus,฀o฀governo,฀muito฀mais฀ do฀que฀um฀instrumento฀de฀Deus฀para฀punir฀os฀pecadores,฀é฀uma฀função,฀ um฀ministério,฀exercido฀em฀nome฀de฀Deus฀e฀em฀benefício฀de฀todos.฀Essa฀ percepção฀constitui฀uma฀ruptura฀em฀relação฀à฀idéia฀do฀poder฀como฀um฀ castigo,฀expressa฀na฀Epístola฀de฀Paulo฀aos฀Romanos,฀e฀que฀durante฀muito฀tempo฀os฀autores฀cristãos฀sustentaram฀como฀sendo฀a฀característica฀ essencial฀de฀toda฀forma฀de฀autoridade:฀ 49 ฀Ibid.฀฀฀฀฀ ฀Rom.,฀13,฀6.฀ 50 200฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média “Cada฀um฀se฀submeta฀às฀autoridades฀constituídas,฀pois฀não฀há฀autoridade฀ que฀não฀venha฀de฀Deus,฀e฀aquelas฀que฀existem฀foram฀estabelecidas฀por฀Deus.฀ De฀ modo฀ que฀ aquele฀ que฀ se฀ revolta฀ contra฀ a฀ autoridade,฀ opõe-se฀ à฀ ordem฀ estabelecida฀ por฀ Deus.฀ E฀ os฀ que฀ se฀ opõem,฀ atrairão฀ sobre฀ si฀ a฀ condenação.฀ Os฀que฀governam฀incutem฀medo฀quando฀se฀pratica฀o฀mal,฀não฀quando฀se฀faz฀ o฀bem.฀Queres฀não฀ter฀medo฀da฀autoridade?฀Pratica฀o฀bem฀e฀dela฀receberás฀ elogios,฀pois฀ela฀é฀instrumento฀de฀Deus฀para฀te฀conduzir฀ao฀bem.฀Se,฀porém,฀ praticares฀o฀mal,฀teme,฀porque฀não฀é฀à฀toa฀que฀ela฀traz฀a฀espada:฀ela฀é฀o฀instrumento฀de฀Deus฀para฀fazer฀justiça฀e฀punir฀quem฀pratica฀o฀mal”51.฀ Ao฀ pregar฀ a฀ obediência฀ às฀ autoridades฀ pelo฀ fato฀ de฀ elas฀ terem฀ sido฀ instauradas฀por฀Deus,฀Paulo฀via฀no฀poder฀político฀um฀organismo฀punitivo,฀cuja฀existência฀se฀justificaria฀pelo฀castigo฀dos฀ímpios.฀A฀associação฀ do฀poder฀à฀espada฀–฀o฀gládio฀–฀perpetuou-se฀nos฀séculos฀seguintes,฀mas฀ a฀conversão฀dos฀príncipes฀à฀fé฀católica฀colocou฀para฀os฀autores฀cristãos฀o฀ problema฀da฀função฀desses฀príncipes฀no฀interior฀da฀comunidade.฀A฀idéia฀ de฀Paulo฀segundo฀a฀qual฀o฀poder฀é฀também฀o฀instrumento฀de฀Deus฀฀para฀ conduzir฀ao฀bem฀foi฀aprofundada,฀e฀o฀conteúdo฀desse฀“bem”฀assimilado฀à฀ salvação฀das฀almas.฀Da฀mesma฀forma,฀o฀papel฀do฀episcopado฀na฀realização฀ dessa฀tarefa฀também฀foi฀destacado.฀Os฀bispos฀seriam฀os฀conselheiros฀privilegiados฀desse฀príncipe฀cuja฀tarefa฀não฀é฀apenas฀a฀de฀punir฀aqueles฀que฀ escapam฀do฀bom฀caminho.฀Ele฀é฀o฀responsável฀por฀guiá-los฀de฀modo฀que฀ possam฀alcançar฀a฀salvação.฀Ao฀insistirem฀mais฀sobre฀as฀implicações฀“positivas”฀do฀papel฀da฀autoridade฀política฀do฀que฀sobre฀seus฀instrumentos฀ punitivos,฀Remígio,฀Avitus฀e฀Aureliano฀outorgam฀ao฀príncipe฀o฀papel฀de฀ “pastor”฀que฀conduz฀seu฀rebanho฀até฀o฀pasto฀da฀vida฀eterna,฀e฀até฀mesmo฀ de฀“pai”,฀muito฀mais฀do฀que฀o฀de฀“juiz”52.฀ 51 ฀Rom.,฀13,฀1-4. ฀ Os฀ próprios฀ bispos฀ se฀ tornaram฀ gradualmente,฀ e฀ no฀ lugar฀ da฀ aristocracia฀ senatorial,฀ o฀ símbolo฀ da฀ paternidade,฀ como฀ mostrou฀ M.฀ Heinzelmann.฀ Através฀ do฀ estudo฀ de฀ inúmeros฀ epitáfios฀ e฀ elogios฀ escritos฀ nos฀ séculos฀ V฀ e฀ VI,฀ esse฀ autor฀ mostra฀ que฀ os฀ bispos฀ apareciam฀ nessa฀ época฀ como฀ os฀“pais฀ dos฀ pobres”฀ ou฀“pais฀ da฀ igreja”,฀ e,฀ de฀ maneira฀ mais฀ sistemática,฀ como฀“pais฀do฀povo”,฀“pai฀ou฀amor฀da฀cidade”,฀“pai,฀salvação฀e฀orgulho฀da฀pátria”.฀Esses฀valores฀ 52 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀201 Venâncio฀Fortunato Venantius฀Honorius฀Clementianus฀Fortunatus฀nasceu฀nos฀arredores฀de฀Trevisa,฀no฀início฀do฀século฀VI.฀Ele฀chegou฀à฀Gália฀em฀565฀para฀ uma฀peregrinação฀ao฀túmulo฀de฀São฀Martinho฀de฀Tours.฀Tornou-se฀ monge฀por฀volta฀de฀576,฀e฀em฀seguida฀bispo฀de฀Poitiers,฀função฀que฀ ocupou฀até฀sua฀morte,฀por฀volta฀do฀ano฀600.฀Entre฀suas฀obras,฀destacam-se฀os฀Carmina฀–฀série฀de฀onze฀livros฀de฀poemas฀sobre฀diversos฀ personagens฀ da฀ Gália฀ merovíngia:฀ reis,฀ rainhas,฀ aristocratas,฀ bispos฀ etc.฀–฀bem฀como฀várias฀hagiografias฀–฀a฀“Vida฀de฀Santa฀Radegonda”,฀ a฀“Vida฀de฀São฀Martinho”,฀a฀“Vida฀de฀São฀Germano฀de฀Paris”,฀a฀“Vida฀ de฀Santo฀Aubin฀de฀Angers”,฀a฀“Vida฀de฀São฀Patérnio฀de฀Avranches”,฀a฀ “Vida฀de฀São฀Marcelo฀de฀Paris”,฀a฀“Vida฀de฀São฀Seurin฀de฀Bordeaux”53.฀ Os฀Carmina฀constituem฀uma฀substancial฀fonte฀de฀informaçãoes฀sobre฀a฀realeza:฀em฀seus฀onze฀livros,฀há฀trinta฀poemas฀que฀tratam฀de฀reis฀ ou฀ rainhas.฀ Pouco฀ tempo฀ depois฀ de฀ sua฀ chegada฀ à฀ Gália,฀ Fortunato฀ pronunciou฀em฀Metz฀o฀epitalâmio฀do฀casamento฀de฀Sigeberto฀e฀Brunilda,฀ seguido฀ de฀ um฀ breve฀ panegírico฀ para฀ marcar฀ a฀ conversão฀ de฀ Brunilda฀ao฀catolicismo54.฀Em฀seguida,฀em฀Paris,฀proferiu฀um฀longo฀ elogio฀dedicado฀ao฀rei฀Cariberto55,฀e฀compôs฀dois฀poemas,฀o฀primeiro฀ sobre฀a฀Igreja฀de฀Paris56,฀e฀o฀segundo฀sobre฀os฀jardins฀de฀Ultrogothe,฀ que฀associavam฀o฀exercício฀do฀poder฀público฀a฀um฀conjunto฀de฀virtudes,฀o฀cristianismo฀teria฀ ido฀ buscar,฀ segundo฀ M.฀ Heinzelmann,฀ na฀ aristocracia฀ romana฀ (M.฀ Heinzelmann,฀ Bischofsherrschaft฀in฀Gallien,฀especialmente฀pp.฀185-246).฀฀฀฀฀฀ 53 ฀Venantii฀Fortunati฀opera,฀ed.฀F.฀Leo,฀B.฀Krusch,฀MGH,฀AA฀4/1.฀No฀que฀se฀refere฀ao฀livro฀II฀e฀ ao฀livro฀VI฀que฀são฀citados฀neste฀trabalho,฀foi฀utilizada฀a฀tradução฀de฀M.฀Reydellet฀(Poèmes).฀฀฀฀ 54 ฀Carmina฀VI,฀1,฀VI,฀1a.฀A฀publicação฀dos฀Carmina฀deve฀ter฀ocorrido฀em฀576,฀ou฀mais฀provavelmente฀em฀577,฀pois฀Carmina฀V,฀5฀menciona฀a฀conversão฀dos฀judeus฀de฀Clermont฀que฀ Gregório฀de฀Tours฀situa฀em฀576฀(Histórias฀V,฀11).฀Sobre฀as฀relações฀entre฀Gregório฀e฀Fortunato,฀ há฀o฀excelente฀artigo฀de฀M.฀Reydellet,฀“Tours฀et฀Poitiers:฀les฀relations฀entre฀Grégoire฀de฀Tours฀ et฀Fortunat”,฀pp.฀159-167.฀ 55 ฀Carmina฀VI,฀2. 56 ฀Carmina฀II,฀10.฀฀฀฀฀฀ 202฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média viúva฀do฀rei฀Childeberto฀I57.฀Em฀570,฀escreveu฀um฀longo฀texto฀sobre฀ a฀morte฀da฀princesa฀Galswinta58.฀Em฀573,฀quando฀Gregório฀se฀tornou฀ bispo฀de฀Tours,฀Fortunato฀redigiu฀dois฀poemas฀à฀glória฀de฀Sigeberto฀ e฀de฀Brunilda59,฀e฀em฀580,฀no฀Concílio฀de฀Berny,฀convocado฀por฀Chilperico฀ para฀ julgar฀ Gregório฀ de฀ Tours,฀ pronunciou฀ o฀ elogio฀ do฀ rei฀ e฀ da฀ rainha฀ Fredegonda60.฀ Na฀ mesma฀ época,฀ Fortunato฀ escreveu฀ dois฀ poemas฀sobre฀Chilperico฀e฀Fredegonda,฀para฀consolá-los฀pela฀morte฀ de฀seus฀dois฀filhos,฀bem฀como฀o฀epitáfio฀de฀cada฀um฀deles61.฀Fortunato฀também฀escreveu฀poemas฀em฀honra฀de฀Brunilda฀e฀de฀seu฀filho฀ Childeberto฀II62.฀ O฀ primeiro฀ dos฀ poemas฀ que฀ Fortunato฀ dedicou฀ à฀ realeza฀ foi฀ escrito฀por฀ocasião฀do฀casamento฀de฀Sigeberto฀e฀Brunilda.฀Ele฀louva฀as฀ glórias฀e฀as฀virtudes฀do฀reinado฀de฀Sigeberto,฀e฀o฀fato฀de฀Brunilda฀ter฀ escolhido฀a฀religião฀católica.฀O฀poema฀começa฀mencionando฀os฀méritos฀guerreiros฀de฀Sigeberto,฀cuja฀reputação฀é,฀segundo฀ele,฀tão฀grande฀ no฀Ocidente฀quanto฀no฀Oriente63.฀Em฀seguida,฀entre฀os฀versos฀7฀e฀14,฀ Fortunato฀revela฀qual฀é฀o฀feito฀militar฀que฀é฀objeto฀de฀seu฀louvor:฀as฀ campanhas฀contra฀os฀Saxões฀e฀os฀Turíngios,฀nas฀quais฀Sigeberto฀auxiliou฀seu฀pai฀Clotário: 57 ฀Carmina฀VI,฀6.฀ ฀Carmina฀VI,฀5.฀฀ 59 ฀Carmina฀V,฀3.฀ 60 ฀Carmina฀IX,฀1.฀฀ 61 ฀Carmina฀IX,฀2;฀IX,฀3;฀IX,฀4฀e฀IX,฀5.฀฀฀ 62 ฀Carmina฀X,฀10,฀8;฀Apêndice฀V;฀Apêndice฀VI,฀2.฀No฀que฀se฀refere฀à฀cronologia฀dos฀poemas฀ de฀Fortunato,฀ver฀W.฀Meyer฀(Der฀Gelegenheitsdichter฀Fortunatus).฀A฀datação฀sugerida฀por฀ Meyer฀não฀é฀sempre฀aceita฀por฀M.฀Reydellet,฀especialmente฀no฀que฀se฀refere฀aos฀poemas฀sobre฀ Brunilda฀e฀sobre฀Childeberto฀II,฀reunidos฀no฀livro฀X฀e฀no฀Apêndice฀(ver฀M.฀Reydellet,฀“Fortunat฀et฀la฀vision฀poétique฀de฀la฀royauté฀mérovingienne”,฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine฀de฀ Sidoine฀Apollinaire฀à฀Isidore฀de฀Séville,฀pp.฀297-344,฀especialmente฀pp.฀301-302).฀฀ 63 ฀Carmina,฀VI,฀1a,฀Item฀de฀Sigeberto฀rege฀et฀Brunichilde฀regina,฀versos฀1-6. 58 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀203 “Poderoso฀Sigeberto,฀ilustrado฀por฀triunfos฀luminosos,฀teu฀valor฀inigualável฀ e฀teu฀nascimento฀fazem฀tua฀glória.฀Uma฀vez฀raptada฀por฀ti,฀a฀Vitória฀colocou฀ suas฀asas฀e฀voa฀espalhando฀em฀todos฀os฀lugares฀suas฀benéficas฀proezas.฀Ela฀ ecoa฀os฀nomes฀do฀saxão฀e฀do฀turíngio:฀quantos฀heróis,฀provocando฀sua฀própria฀perda,฀caíram฀para฀a฀glória฀de฀apenas฀um!฀Por฀ter฀marchado฀à฀frente฀das฀ tropas฀a฀pé,฀precedendo฀a฀todos,฀tu฀possuis฀hoje฀uma฀escolta฀de฀reis.฀Por฀uma฀ prosperidade฀inconcebível,฀tuas฀guerras฀produziram฀a฀paz฀e฀tua฀espada฀criou฀ uma฀bondade฀assegurada.฀Para฀ampliar฀até฀o฀limite฀teu฀charme,฀enquanto฀a฀ vitória฀é฀jactância,฀tu฀permaneces฀mais฀doce฀à฀medida฀que฀sobe”64.฀฀ Contrariamete฀ ao฀ que฀ afirma฀ J.W.฀ George65,฀ Fortunato฀ não฀ louva฀ nesse฀ poema฀ o฀ guerreiro฀ germânico,฀ mas฀ o฀ chefe฀ romano฀ vitorioso.฀ A฀referencia฀à฀Vitória,฀aliás,฀remete฀ao฀mesmo฀tema฀que฀ilustra฀várias฀ das฀moedas฀cunhadas฀por฀Sigeberto,฀um฀motivo฀que฀por฀sua฀vez฀é฀derivado฀das฀moedas฀de฀Teudeberto฀I,฀de฀Valentiniano฀e฀de฀Graciano66.฀A฀ má฀reputação฀do฀gênero฀laudatório฀entre฀os฀historiadores฀fez฀com฀que฀ durante฀muito฀tempo฀ele฀tenha฀sido฀menosprezado,฀em฀detrimento฀dos฀ “documentos฀oficiais”:฀atos฀das฀chancelarias,฀textos฀legislativos,฀tratados฀ etc.฀A฀ampliação฀das฀fontes฀da฀história฀política฀ao฀longo฀do฀século฀XX฀ modificou฀a฀situação.฀Os฀historiadores฀reconhecem฀hoje฀que฀os฀textos฀ laudatórios฀ são฀ fontes฀ preciosas฀ para฀ a฀ história฀ política67.฀ Os฀ poemas฀ de฀Fortunato฀podem,฀sobretudo฀quando฀tratam฀de฀personagens฀reais,฀ traduzir฀uma฀visão฀sobre฀a฀realeza฀que฀não฀era฀apenas฀o฀apanágio฀do฀au- 64 ฀Ibid.,฀versos฀6-18.฀Sobre฀essas฀campanhas฀de฀Sigeberto,฀ver฀Histórias฀IV,฀10.฀฀฀฀฀ 65 ฀J.W.฀George,฀Venantius฀Fortunatus.฀A฀Latin฀Poet฀in฀Merovingian฀Gaul,฀pp.฀39-40.฀฀฀฀฀ 66 67 Ver฀A.฀Blanchet,฀A.฀Dieudonné,฀Manuel฀de฀numismatique฀française,฀v.฀1,฀p.฀201. ฀Ver,฀por฀exemplo,฀R.฀Koebner,฀Venantius฀Fortunatus.฀Beiträge฀zur฀Kulturgeschichte฀des฀ Mittelalters฀und฀der฀Renaissance,฀vol.฀22;฀D.฀Tardi,฀Fortunat.฀Étude฀sur฀un฀dernier฀représentant฀de฀la฀poésie฀latine฀dans฀la฀Gaule฀mérovingienne;฀J.W.฀George,฀Venantius฀Fortunatus.฀A฀ Latin฀Poet฀in฀Merovingian฀Gaul,฀pp.฀35-61;฀do฀mesmo฀autor,฀“Poet฀as฀politician:฀Venantius฀ Fortunatus’฀ panegyric฀ to฀ king฀ Chilperic”,฀ pp.5-18;฀ B.฀ Brennan,฀“The฀ Image฀ of฀ the฀ Frankish฀ Kings฀in฀the฀Poetry฀of฀Venantius฀Fortunatus”,฀pp.฀1-11.฀ 204฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média tor,฀mas฀que฀se฀encontrava฀igualmente฀difundida฀nas฀cortes฀que฀“encomendaram”฀tais฀obras.฀Com฀efeito,฀Fortunato฀provavelmente฀repercutiu฀ uma฀sensibilidade฀da฀corte฀austrasiana฀que฀tendia฀a฀associar฀Sigeberto฀ a฀ um฀ príncipe฀ romano.฀ O฀ casamento฀ com฀ uma฀ princesa฀ oriunda฀ da฀ mais฀romanizada฀das฀cortes฀ocidentais฀é฀uma฀atitude฀que฀aponta฀nesse฀ sentido.฀As฀idéias฀e฀até฀mesmo฀o฀vocabulário฀desse฀poema฀de฀Fortunato฀ estão฀a฀tal฀ponto฀impregnadas฀da฀tradição฀da฀filosofia฀política฀romana฀ que฀autores฀como฀M.฀Reydellet฀enxergam฀paralelos฀com฀o฀Panegírico฀ de฀Trajano68.฀Há฀também฀no฀poema฀uma฀nítida฀dimensão฀cristã,฀observável฀na฀penúltima฀frase฀do฀texto:฀“Por฀uma฀prosperidade฀inconcebível,฀ vossas฀guerras฀produziram฀a฀paz฀e฀vossa฀espada฀criou฀uma฀bondade฀assegurada”.฀Vê-se฀aqui฀que฀a฀idéia฀do฀poder฀como฀instrumento฀de฀punição฀ dos฀maus฀e฀dos฀pecadores,฀presente฀na฀“Epístola฀de฀Paulo฀aos฀Romanos”,฀ cede฀lugar฀a฀uma฀visão฀positiva฀do฀gládio฀e฀de฀sua฀função.฀Ele฀é฀o฀instrumento฀através฀do฀qual฀a฀“paz”฀e฀a฀“bondade”฀são฀estabelecidas.฀A฀poesia฀ de฀Fortunato฀repercute฀um฀tema฀recorrente฀da฀legislação฀real฀no฀século฀ VI,฀o฀do฀príncipe฀a฀serviço฀da฀paz.฀O฀Pactus฀pro฀tenore฀pacis฀(“Pacto฀ para฀a฀manutenção฀da฀paz”),฀redigido฀por฀Childeberto฀I฀e฀Clotário฀I฀antes฀de฀558,฀é฀um฀bom฀exemplo฀nesse฀sentido.฀Nos฀escritos฀episcopais,฀no฀ entanto,฀a฀paz฀não฀é฀um฀valor฀em฀si,฀como฀no฀Pactus,฀mas฀tão฀somente฀ um฀meio฀para฀se฀alcançar฀a฀salvação.฀ Entre฀os฀versos฀25฀e฀29฀do฀poema฀a฀Sigeberto,฀a฀dimensão฀propriamente฀“cristã”฀do฀elogio฀retoma฀o฀tema฀do฀príncipe฀a฀serviço฀da฀salvação:฀฀ “Pelo฀ descanso฀ do฀ povo฀ estás฀ imbuído฀ de฀ uma฀ piedosa฀ preocupação.฀ Tu฀ foste฀dado฀a฀todos฀como฀a฀única฀salvação฀e,฀conforme฀a฀ordem฀de฀Deus,฀tu฀ conduzes฀a฀todos฀no฀tempo฀presente฀as฀alegrias฀do฀passado”69.฀ Nesses฀ versos,฀ o฀ rei฀ está฀ estreitamente฀ associado฀ ao฀ seu฀ povo฀ por฀ meio฀de฀suas฀obrigações฀para฀com฀esse฀último.฀Fortunato฀exprime฀nessa฀ 68 ฀Ver฀M.฀Reydellet,฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀p.฀321. ฀Carmina,฀VI,฀1a,฀Item฀de฀Sigeberto฀rege฀et฀Brunichilde฀regina,฀versos฀25-29.฀. 69 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀205 parte฀de฀seu฀poema฀a฀idéia฀maior฀da฀eclesiologia฀da฀Gália฀no฀século฀VI,฀ segundo฀a฀qual฀o฀interesse฀geral฀se฀confunde฀com฀um฀bem฀não฀material,฀ a฀salvação฀das฀almas,฀e฀que฀compete฀à฀realeza฀a฀realização฀dessa฀tarefa.฀ Além฀disso,฀a฀imagem฀de฀um฀rei฀que฀foi฀dado฀ao฀seu฀povo฀evoca฀a฀tradição฀veterotestamentária฀da฀instituição฀da฀realeza฀em฀Israel.฀O฀primeiro฀ livro฀ de฀ Samuel฀ narra฀ como฀ todos฀ os฀ anciãos฀ de฀ Israel฀ se฀ reuniram฀ e฀ foram฀ao฀encontro฀desse฀juiz,฀pedindo฀que฀Deus฀estabelecesse฀sobre฀eles฀ um฀rei.฀Exortado฀por฀Iahweh,฀Samuel฀lembrou฀de฀expor฀ao฀povo฀os฀incovenientes฀da฀existência฀de฀um฀rei: “O฀povo,฀no฀entanto,฀recusou-se฀a฀atender฀a฀palavra฀Samuel,฀e฀disse:฀‘Não!฀ Nós฀teremos฀um฀rei฀e฀seremos฀nós฀também฀como฀as฀outras฀nações:฀o฀nosso฀ rei฀nos฀julgará,฀irá฀à฀nossa฀frente฀e฀fará฀as฀nossas฀guerras’.฀Samuel฀ouviu฀tudo฀ o฀que฀o฀povo฀disse฀e฀contou฀ao฀ouvido฀de฀Iahweh.฀Mas฀Iahweh฀lhe฀respondeu:฀ ‘Escuta฀a฀voz฀deles฀e฀faze฀reinar฀sobre฀eles฀um฀rei’”70.฀฀ A฀associação฀entre฀os฀descendentes฀de฀Clóvis฀e฀os฀reis฀do฀Antigo฀Testamento฀tem฀sido฀vista฀de฀um฀ângulo฀bastante฀negativo.฀Para฀F.฀Lot,฀por฀ exemplo,฀quando฀os฀teóricos฀da฀Igreja฀tentaram฀encontrar฀no฀passado฀ um฀modelo฀para฀o฀rei฀franco,฀não฀o฀procuraram฀no฀passado฀germânico฀ ou฀ no฀ passado฀ romano,฀ mas฀ entre฀ os฀ reis฀ de฀ Israel.฀ Trata-se,฀ segundo฀ Lot,฀do฀modelo฀de฀perfeição฀do฀“déspota฀oriental”71.฀Ora,฀ao฀evocarem฀ a฀tradição฀veterotestamentária,฀os฀autores฀do฀século฀VI฀viam฀a฀realeza฀ como฀a฀realização฀dos฀desígnios฀divinos,฀mas฀cuja฀origem฀primeira฀estava฀na฀vontade฀do฀povo.฀Afinal฀de฀contas,฀como฀narra฀o฀primeiro฀livro฀de฀ Samuel,฀Deus฀teria฀dado฀um฀rei฀às฀doze฀tribos฀de฀Israel฀em฀razão฀do฀desejo฀do฀povo.฀Mais฀do฀que฀a฀imagem฀do฀déspota฀oriental,฀as฀referências฀ aos฀reis฀do฀Antigo฀Testamento฀evocavam฀o฀fato฀de฀que฀a฀realeza,฀mesmo฀ sendo฀instituída฀por฀Deus,฀era฀fruto฀da฀vontade฀do฀povo฀ou฀pelo฀menos฀ destinava-se฀ao฀seu฀serviço.฀฀ 70 ฀I฀Samuel,฀8,฀19-22. ฀F.฀Lot,฀Naissance฀de฀la฀France,฀p.฀167. 71 206฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Essa฀concepção฀sobre฀a฀origem฀da฀realeza฀não฀é฀nem฀“ascendente”,฀ nem฀ “descendente”,฀ para฀ utilizar฀ os฀ termos฀ consagrados฀ por฀ W.฀ Ullmann.฀Numa฀obra฀que฀se฀tornou฀um฀clássico฀da฀história฀do฀pensamento฀ político฀ medieval,฀ esse฀ autor฀ afirma฀ que฀ os฀ princípios฀ de฀ governo฀ na฀ Idade฀ Média฀ eram฀ dirigidos฀ por฀ duas฀ concepções฀ sobre฀ a฀ origem฀ do฀ poder:฀a฀ascendente,฀ou฀popular,฀e฀a฀descendente,฀ou฀teocrática.฀Nessa฀ última,฀a฀regulamentação฀do฀espaço฀publico฀se฀encontaria฀nas฀mãos฀de฀ um฀ órgão฀ supremo,฀ na฀ maior฀ parte฀ das฀ vezes฀ uma฀ entidade฀ sobrenatural,฀de฀modo฀que฀as฀atribuições฀daqueles฀que฀exercem฀o฀poder฀nada฀ mais฀seriam฀que฀o฀produto฀da฀vontade฀desse฀agente฀situado฀acima฀de฀ todos.฀Na฀concepção฀ascendente,฀a฀organização฀do฀espaço฀público฀seria฀ um฀atributo฀da฀comunidade฀de฀cidadãos,฀o฀populus฀–฀entidade฀jurídica,฀ fonte฀da฀legitimidade฀e฀da฀autoridade฀do฀governo.฀A฀queda฀de฀Roma,฀ o฀ progresso฀ da฀ religião฀ cristã฀ e฀ a฀ constituição฀ dos฀ reinos฀ bárbaros฀ teriam฀provocado฀o฀desaparecimento฀da฀noção฀segundo฀a฀qual฀o฀povo฀é฀ quem฀seria฀o฀depositário฀da฀soberania,฀e฀teria฀a฀capacidade฀de฀constituir฀ uma฀autoridade฀política฀suprema.฀Em฀seu฀lugar,฀teria฀triunfado฀a฀noção฀ cristã฀e฀oriental฀na฀qual฀essa฀autoridade฀aparece฀como฀produto฀da฀vontade฀divina.฀A฀partir฀do฀século฀XII,฀com฀o฀desenvolvimento฀do฀Direito฀ Romano฀e฀em฀razão฀da฀experiência฀das฀comunas฀italianas,฀a฀concepção฀ ascendente฀teria,฀segundo฀Ullmann,฀recuperado฀seu฀prestígio72.฀ O฀ esquema฀ interpretativo฀ de฀ W.฀ Ullmann฀ não฀ é฀ o฀ melhor฀ instrumento฀que฀se฀compreendam฀as฀diferenças฀entre฀as฀concepções฀políticas฀ do฀final฀da฀Antigüidade฀e฀do฀início฀da฀Idade฀Média.฀Mas฀é฀em฀sua฀analise฀ da฀ realeza฀ franca฀ que฀ o฀ esquema฀ se฀ revela฀ mais฀ redutor.฀ O฀ serviço฀ ao฀ povo฀cristão฀pode฀ser฀considerado฀um฀elemento฀“protocontratual”,฀que฀ dá฀ao฀poder฀político฀uma฀base฀de฀legitimidade฀a฀meio฀caminho฀entre฀o฀ princípio฀da฀origem฀divina฀e฀o฀princípio฀da฀origem฀popular฀do฀poder.฀ Se฀para฀os฀homens฀dos฀séculos฀VI฀e฀VII,฀Deus฀é฀quem฀institui฀todas฀as฀ formas฀ de฀ autoridade,฀ o฀ poder฀ político฀ para฀ eles฀ respondia฀ a฀ um฀ imperativo฀ espiritual:฀ o฀ auxílio฀ à฀ Igreja฀ na฀ tarefa฀ da฀ salvação฀ das฀ almas.฀ 72 ฀W.฀Ullmann,฀Principios฀de฀gobierno฀y฀política฀en฀la฀Edad฀Media,฀p.฀24.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀207 O฀ poder,฀ longe฀ de฀ constituir฀ um฀ privilégio฀ para฀ aquele฀ que฀ governa,฀ podendo฀ser฀exercido฀de฀modo฀ilimitado,฀é฀restrito฀a฀um฀conjunto฀de฀ obrigações฀dos฀governantes฀em฀relação฀aos฀governados.฀A฀legitimidade฀ do฀príncipe฀não฀dependia฀mais฀unicamente฀de฀um฀mandato฀divino,฀mas฀ também,฀e฀talvez,฀sobretudo,฀da฀realização฀de฀uma฀tarefa฀sobrenatural฀ cujo฀maior฀beneficiário฀era฀o฀populus.฀O฀serviço฀do฀povo฀cristão฀tornase฀a฀raison฀d’être฀do฀poder,฀que฀por฀sua฀vez฀não฀pode฀ser฀considerado฀ como฀unicamente฀“descendente”,฀visto฀que฀ele฀responde฀às฀expectativas฀ da฀comunidade฀de฀fiéis.฀Mais฀importante฀ainda,฀os฀constantes฀paralelos฀ com฀os฀reis฀do฀Antigo฀Testamento฀mostram฀que฀o฀poder฀real฀era฀visto฀ como฀originário฀de฀uma฀demanda฀do฀populus฀a฀Deus.฀Provavelmente฀ satisfatória฀para฀a฀aristocracia฀secular,฀pois฀ela฀colocava฀o฀populus฀numa฀ posição฀ privilegiada,฀ essa฀ noção฀ veterotestamentária฀ da฀ realeza฀ o฀ era฀ também฀para฀o฀clero,฀porquanto฀colocava฀o฀rei฀como฀uma฀peça฀essencial฀ da฀economia฀da฀salvação,฀sem,฀no฀entanto,฀apresentá-lo฀como฀o฀representante฀de฀Deus฀na฀terra. O฀tema฀da฀realeza฀bíblica฀em฀Fortunato฀aparece฀também฀no฀poema฀ sobre฀Cariberto73฀e฀em฀um฀poema฀sobre฀a฀Igreja฀de฀São฀Vicente:฀ “Nosso฀Melquisedeque,฀de฀bom฀direito฀rei฀e฀padre,฀cumpriu,฀como฀leigo,฀ uma฀obra฀de฀religião.฀Regente฀da฀coisa฀pública,฀os฀olhos฀voltados฀para฀o฀palácio฀celeste,฀ele฀fez฀da฀glória฀dos฀pontífices฀sua฀única฀regra”74.฀฀฀฀ Melquisedeque฀representa,฀no฀Antigo฀Testamento,฀a฀figura฀do฀“reisacerdote”75.฀Isso฀significa฀que฀Fortunato฀identifica฀a฀monarquia฀franca฀ como฀uma฀realeza฀sacerdotal?฀Ou฀ainda฀que฀ele฀sustenta฀a฀existência฀no฀ 73 ฀Carmina,฀VI,฀2,฀versos฀77-81:฀“Quando฀pratiqueis฀a฀paciência฀de฀uma฀maneira฀tão฀aberta฀e฀ admirável,฀podemos฀dizer฀que฀possuistes฀a฀indulgência฀de฀David฀em฀sua฀vida.฀Guia฀da฀justiça,฀ amoroso฀do฀direito฀venerável,฀é฀de฀Salomão฀que฀possuistes฀vosso฀julgamento฀sábio”.฀฀฀ 74 ฀Carmina,฀II,฀10,฀versos฀21-24. 75 ฀Gênesis฀14,฀18:฀“Melquisedeque,฀rei฀de฀Salém,฀trouxe฀pão฀e฀vinho;฀ele฀era฀sacerdote฀do฀Deus฀ Altíssimo”.฀ 208฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média seio฀da฀realeza฀merovíngia฀de฀pretensões฀teocráticas฀semelhantes฀às฀da฀ monarquia฀bizantina?76฀Na฀obra฀de฀Fortunato,฀a฀comparação฀entre฀o฀rei฀ franco฀e฀Melquisedeque฀tem฀um฀sentido฀distinto.฀Por฀meio฀dela,฀o฀autor฀ busca฀salientar฀que฀o฀rei฀se฀interessa฀pelos฀assuntos฀eclesiásticos฀e,฀sobretudo,฀que฀ele฀se฀preocupa฀com฀seus฀bispos.฀Daí฀a฀afirmação:฀“...ele฀fez฀da฀ glória฀dos฀pontífices฀sua฀única฀regra”฀(“...unica฀pontificum฀gloria฀norma฀ fuit”).฀Além฀disso,฀na฀Epístola฀aos฀Hebreus,฀Melquisedeque฀aparece฀como฀ a฀ figura฀ profética฀ do฀ Cristo77.฀ A฀ comparação฀ feita฀ por฀ Fortunato฀ não฀ implica,฀portanto,฀a฀defesa฀de฀uma฀“realeza฀sacerdotal”.฀Trata-se฀de฀uma฀ alegoria฀destinada฀a฀sublinhar฀um฀aspecto฀indissociável฀do฀comportamento฀do฀bom฀rei:฀a฀atenção฀dispensada฀aos฀bispos฀e฀aos฀conselhos฀que฀ esses฀últimos฀estavam฀dispostos฀a฀lhe฀dar78. O฀segundo฀poema฀que฀Fortunato฀consagrou฀inteiramente฀a฀um฀rei฀ merovíngio฀foi฀escrito฀em฀homenagem฀a฀Cariberto,฀e฀declamado฀pela฀ primeira฀vez฀em฀Paris,฀muito฀provavelmente฀por฀ocasião฀de฀uma฀“entrada฀triunfal”฀(adventus)฀em฀Paris,฀quando฀assumiu฀a฀herança฀paterna,฀ após฀ a฀ expulsão฀ de฀ seu฀ irmão฀ Chilperico฀ da฀ cidade.฀ Muito฀ embora฀ o฀ próprio฀poema฀traga฀a฀descrição฀de฀um฀adventus,฀cerimônia฀tipicamen- 76 ฀Essa฀é,฀por฀exemplo,฀a฀opinião฀de฀J.W.฀George฀(Venantius฀Fortunatus.฀A฀Latin฀Poet฀in฀Merovingian฀Gaul,฀ p.฀ 43).฀ Sobre฀ as฀ referências฀ a฀ Melquisedeque฀ nos฀ primeiros฀ séculos฀ da฀ Era฀ Cristã,฀ver฀G.฀Bardy,฀“Melchisedeque฀dans฀la฀tradition฀patristique”,฀pp.496-509.฀ 77 ฀Hebreus,฀7,฀1-3:฀“Este฀Melquisedec฀é฀de฀fato,฀rei฀de฀Salém,฀sacerdote฀de฀Deus฀Altíssimo.฀Ele฀ saiu฀ao฀encontro฀de฀Abraão฀quando฀este฀regressava฀do฀combate฀contra฀os฀reis,฀e฀o฀abençoou.฀Foi฀ a฀ ele฀ que฀ Abraão฀ entregou฀ o฀ dízimo฀ de฀ tudo.฀ E฀ seu฀ nome฀ significa,฀ em฀ primeiro฀ lugar,฀‘Rei฀ de฀ Justiça’;฀e,฀depois,฀‘Rei฀de฀Salém’,฀o฀que฀quer฀dizer฀‘Rei฀da฀Paz’.฀Sem฀pai,฀sem฀mãe,฀sem฀genealogia,฀ nem฀princípio฀de฀dias฀nem฀fim฀de฀vida!฀É฀assim฀que฀se฀assemelha฀ao฀Filho฀de฀Deus,฀e฀permanece฀ sacerdote฀eternamente”.฀ 78 ฀O฀paralelo฀entre฀os฀reis฀francos฀e฀os฀reis฀do฀Antigo฀Testamento฀não฀é฀uma฀exclusividade฀das฀ fontes฀“laudatórias”.฀ Nas฀ Histórias,฀ por฀ exemplo,฀ Gregório฀ descreve฀ o฀ rei฀ Clotário฀ avançando฀ como฀um฀novo฀Davi฀pronto฀a฀combater฀seu฀filho:฀“Senhor,฀olha฀do฀alto฀de฀Céu฀e฀julga฀minha฀causa,฀ pois฀é฀injustamente฀que฀eu฀sofro฀os฀ultrajes฀de฀meu฀filho.฀Olha฀Senhor,฀julga฀justamente฀e฀pronuncia฀o฀ mesmo฀julgamento฀que฀outrora฀tu฀pronunciaste฀para฀Absalão฀e฀seu฀pai฀Davi”฀(Histórias฀IV,฀20). Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀209 te฀romana,฀Fortunato฀identifica฀em฀Cariberto฀mais฀do฀que฀os฀atributos฀ do฀governante฀romano:฀ “Aqui฀o฀aplaudem฀os฀bárbaros,฀lá฀os฀romanos:฀em฀diversas฀línguas,฀é฀um฀ mesmo฀elogio฀desse฀herói฀que฀sobressai.฀Ama,฀Paris,฀aquele฀que฀reina฀em฀tua฀ poderosa฀cidadela,฀e฀venera฀o฀protetor฀que฀te฀presta฀assistência.฀Beija-o฀hoje,฀ alegre฀e฀entusiasta,฀de฀tuas฀mãos฀plenas฀de฀desejos:฀ele฀é฀pelo฀direito฀teu฀senhor,฀mas฀pela฀bondade฀teu฀pai”฀(grifo฀nosso)79.฀฀ A฀referência฀à฀“bondade฀paternal”฀indica฀que฀o฀rei฀protege฀e฀assiste฀ seus฀súditos,฀e,฀mais฀importante฀ainda,฀que฀essa฀proteção฀e฀assistência฀ é฀que฀fornecem฀o฀conteúdo,฀e฀provavelmente฀a฀legitimidade,฀ao฀exercício฀da฀dominação.฀O฀bom฀rei,฀portanto,฀está฀longe฀de฀encontrar฀sua฀ fonte฀no฀mundo฀romano:฀ao฀ressaltar฀a฀indulgência฀e฀a฀sabedoria฀de฀ Cariberto,฀Fortunato฀o฀compara฀a฀Davi฀e฀a฀Salomão.฀Encontramos฀na฀ obra฀de฀Venâncio฀Fortunato฀o฀mesmo฀tema฀desenvolvido฀nas฀epístolas฀ de฀ Remígio,฀ Avitus฀ e฀ Aureliano:฀ o฀ rei฀ que฀ ultrapassa฀ o฀ rigor฀ de฀ um฀ simples฀juiz฀por฀sua฀bondade.฀O฀governante฀ideal฀na฀perspectiva฀de฀ Fortunato฀é฀aquele฀que฀traduz฀no฀exercício฀de฀seu฀poder฀o฀principio฀ da฀pietas฀cristã.฀Trata-se฀de฀um฀tema฀recorrente฀na฀tradição฀episcopal฀ ao฀longo฀do฀século฀VI:฀ser฀rei฀não฀é฀suficiente,฀é฀necessário฀ser฀um฀rei฀ católico. Ainda฀nesse฀poema฀a฀Cariberto,฀Fortunato฀retoma฀o฀tema฀da฀nobre฀ linhagem฀ dos฀ merovíngios,฀ desenvolvido฀ pelo฀ bispo฀ Avitus฀ de฀ Viena฀em฀sua฀carta฀a฀Clóvis,฀ao฀escrever฀sobre฀o฀significado฀de฀seu฀ batismo:฀฀ “Descendente฀de฀uma฀altíssima฀linhagem,฀centelhando฀de฀uma฀nobre฀luz,฀ tua฀glória฀provém฀de฀sublimes฀antepassados.฀Pois฀quaisquer฀que฀sejam฀aqueles฀dentre฀teus฀antigos฀pais฀que฀eu฀queira฀mencionar,฀são฀reis฀de฀uma฀raça฀ gloriosa฀que฀aparecem฀e฀cuja฀fé฀altíssima฀empurrou฀o฀cume฀até฀o฀céu.฀É฀ela฀ 79 ฀Carmina฀VI,฀2,฀versos฀7-12.฀ 210฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média que฀colocou฀teu฀pé฀sobre฀a฀cabeça฀das฀nações,฀que฀te฀fez฀pisar฀os฀inimigos฀ inchados฀de฀orgulho฀e฀relevar฀teus฀amigos,฀protegeu฀aqueles฀que฀se฀submetem฀ e฀esmagou฀os฀rebeldes”80.฀ Fortunato฀ evoca฀ a฀ “nobre฀ ascendência”฀ de฀ Cariberto,฀ mas฀ deixa฀ claro฀que฀é฀a฀fé฀que฀teria฀levado฀até฀o฀ápice฀o฀prestígio฀dessa฀linhagem.฀ No฀que฀se฀refere฀ao฀restante฀do฀poema,฀e฀a฀começar฀pela฀evocação฀do฀ adventus,฀o฀poema฀a฀Cariberto฀é฀um฀retrato฀bastante฀romano.฀Cariberto฀é฀louvado฀por฀sua฀capacidade฀em฀manter฀a฀paz฀e฀a฀prosperidade฀ de฀seu฀reino81.฀O฀texto฀se฀aproxima฀em฀muito฀dos฀panegíricos฀latinos฀ pelas฀virtudes฀que฀são฀associadas฀ao฀rei฀franco:฀a฀pietas,฀a฀sapientia,฀a฀ iustitia,฀a฀patientia,฀a฀moderatio82.฀Comparado฀a฀Trajano฀por฀sua฀bondade฀e฀a฀Fabius฀pela฀sua฀gravidade,฀Cariberto฀é฀também฀louvado฀por฀ seu฀domínio฀da฀língua฀dos฀romanos83฀e฀por฀sua฀capacidade฀de฀ser฀o฀ defensor฀e฀o฀guia฀de฀seu฀povo84.฀ O฀terceiro฀poema฀real฀de฀Fortunato฀foi฀dedicado฀a฀Chilperico฀por฀ ocasião฀do฀concílio฀de฀Berny,฀em฀58085.฀Esse฀concílio฀foi฀convocado฀por฀ Chilperico฀ com฀ o฀ objetivo฀ de฀ julgar฀ Gregório฀ de฀ Tours,฀ acusado฀ pelo฀ conde฀ de฀ Tours,฀ Leudastus,฀ de฀ ter฀ caluniado฀ a฀ rainha฀ Fredegonda,฀ ao฀ pretender฀que฀ela฀mantinha฀relações฀adúlteras฀com฀o฀bispo฀metropolitano฀de฀Bordeaux86.฀Esse฀é฀o฀poema฀de฀Fortunato฀que฀gerou฀o฀maior฀ número฀de฀polêmicas฀entre฀os฀historiadores฀modernos:฀compreende-se฀ mal฀que฀um฀próximo฀do฀bispo฀de฀Tours฀tenha฀aceitado฀proferir฀o฀elogio฀ daquele฀que฀é฀descrito฀nas฀Histórias฀como฀a฀antítese฀do฀bom฀rei.฀S.฀Dill฀ 80 ฀Ibid.,฀versos฀27-34.฀ ฀Ibid.,฀versos฀37-44.฀ 82 ฀Ibid.,฀versos฀61-96.฀ 83 ฀Ibid.,฀versos฀97-100. 84 ฀Ibid.,฀versos฀111-114. 85 ฀Carmina฀IX,฀1.฀Sobre฀as฀discussões฀sobre฀o฀local฀e฀a฀data฀desse฀concílio,฀ver฀C.J.฀Hefele฀e฀ H.฀Leclercq,฀Histoire฀des฀conciles฀d’après฀des฀documents฀originaux฀par฀C.J.฀Hefele,฀t.฀III,฀p.฀ 200,฀n.฀1.฀฀ 86 ฀Historias฀V,฀49.฀฀฀ 81 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀211 considera฀Fortunato฀um฀manipulador฀das฀palavras฀sem฀nenhuma฀outra฀ preocupação฀que฀seus฀próprios฀interesses87.฀Para฀R.฀Koebner,฀Fortunato฀ tem฀um฀comportamento฀de฀oportunista,฀mas฀o฀que฀estaria฀em฀causa,฀ antes฀de฀mais฀nada,฀é฀o฀gênero฀literário฀por฀ele฀praticado,฀que฀seria฀particularmente฀susceptivel฀à฀dissimulação88.฀Cogitou-se฀também฀que฀Fortunato฀proferiu฀o฀elogio฀de฀Chilperico฀para฀tentar฀remediar฀a฀situação฀ precária฀de฀Gregório฀durante฀o฀concílio.฀฀ Os฀termos฀utilizados฀por฀Fortunato฀são,฀de฀fato,฀bastante฀elogiosos฀ em฀relação฀a฀Chilperico฀e฀à฀rainha฀Fredegonda,฀e฀contrastam฀em฀muito฀ com฀a฀descrição฀feita฀pelo฀bispo฀de฀Tours฀sobre฀esses฀personagens.฀Fortunato฀sublinha฀as฀realizações฀literárias฀de฀Chilperico:฀ “Tua฀coragem฀evoca฀teu฀pai,฀tua฀oratória,฀teu฀tio;฀mas฀tu฀ultrapassaste฀tua฀ família฀ inteira฀ por฀ teu฀ entusiasmo฀ em฀ aprender.฀ Dentre฀ todos฀ os฀ reis,฀ teus฀ iguais,฀tu฀possuis฀mais฀alta฀estima฀em฀razão฀de฀teus฀versos,฀nenhum฀de฀teus฀ antepassados฀te฀igualou฀no฀aprendizado.฀Tuas฀qualidades฀de฀guerreiro฀te฀fizeram฀à฀imagem฀de฀tua฀família,฀mas฀tua฀literatura฀te฀tornou฀excepcional”89.฀ Ora,฀ Gregório฀ estigmatiza฀ os฀ versos฀“mancos”฀ desse฀ rei฀ ignorante฀ que฀teria฀colocado฀“as฀sílabas฀breves฀no฀lugar฀das฀sílabas฀longas฀e฀as฀longas฀ no฀ lugar฀ das฀ breves”90.฀ Há฀ outras฀ discrepâncias฀ nos฀ relatos฀ desses฀ dois฀ autores.฀Aquele฀que,฀segundo฀o฀bispo฀de฀Tours,฀tinha฀por฀hábito฀castigar฀ os฀homens฀“injustamente฀por฀causa฀de฀suas฀riquezas”,฀é฀descrito฀por฀Fortunato฀como฀um฀amante฀da฀justiça:฀ “Que฀direi฀de฀tua฀administração฀da฀justiça,฀ó฀príncipe?฀Ninguém฀se฀indispõe฀contigo฀se฀procura฀realmente฀a฀justiça,฀pois฀em฀teu฀honesto฀discurso฀estão฀ 87 ฀S.฀Dill,฀Roman฀Society฀in฀Merovingian฀Gaul,฀p.฀333. ฀R.฀Koebner,฀Venantius฀Fortunatus.฀Beiträge฀zur฀Kulturgeschichte฀des฀Mittelalters฀und฀der฀ Renaissance,฀p.฀95.฀ 88 89 ฀Carmina,฀IX,฀1,฀versos฀103-108.฀฀฀ 90 ฀Histórias฀VI,฀46.฀฀฀ 212฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média presentes฀as฀escalas฀da฀justa฀medida฀e฀o฀curso฀da฀justiça฀contínua.฀A฀verdade฀ não฀é฀incomodada,฀a฀mentira฀e฀o฀engano฀não฀arranjam฀nada,฀a฀trapaça฀foge฀ diante฀de฀teu฀julgamento,฀e฀a฀ordem฀volta”91.฀฀ A฀referência฀à฀capacidade฀do฀rei฀em฀julgar฀corretamente฀pode฀ser฀ parte฀da฀estratégia฀de฀Fortunato฀em฀convencê-lo฀a฀evitar฀a฀condenação฀ de฀Gregório.฀O฀texto฀laudatório฀não฀é฀um฀retrato฀fiel฀do฀objeto฀descrito,฀ tampouco฀ uma฀ deliberada฀ deturpação฀ do฀ mesmo฀ com฀ o฀ simples฀ objetivo฀de฀“adular฀o฀rei”.฀Ele฀serve฀como฀instrumento฀de฀transformação฀de฀uma฀determinada฀conjuntura.฀Aqui,฀especificamente,฀o฀poema฀ busca฀ um฀ objetivo฀ pontual:฀ influenciar฀ a฀ atuação฀ de฀ Chilperico฀ no฀ julgamento฀do฀bispo฀de฀Tours.฀À฀luz฀do฀comentário฀feito฀pelo฀próprio฀ Gregório฀de฀Tours฀a฀respeito฀da฀atuação฀de฀Chilperico฀no฀Concílio฀de฀ Berny,฀os฀elogios฀de฀Fortunato฀parecem฀menos฀surpreendentes:฀“Todos฀ admiraram฀ a฀ sabedoria฀ e฀ ao฀ mesmo฀ tempo฀ a฀ paciência฀ do฀ rei”92.฀ Mais฀ adiante,฀ veremos฀ como฀ os฀ poemas฀ de฀ Fortunato฀ podem฀ ter฀ buscado฀ um฀objetivo฀mais฀amplo.฀ Ao฀celebrar฀as฀virtudes฀estratégicas฀de฀Chilperico,฀Fortunato฀o฀chama฀de฀“muro”,฀“torre”,฀“escudo”: “Em฀ti,฀nosso฀governante,฀o฀país฀tem฀um฀muro฀de฀defesa฀estabelecido฀ao฀redor฀dele฀e฀um฀portão฀de฀ferro฀eleva฀tua฀cabeça฀muito฀alto.฀Tu฀brilhas฀adiante,฀ uma฀torre฀adamantina฀para฀teu฀país฀do฀sul,฀e฀abrigas฀as฀esperanças฀do฀povo฀ sob฀um฀escudo฀firme”93.฀ Não฀ há฀ nenhuma฀ referência฀ a฀ eventuais฀ vitórias฀ de฀ Chilperico฀ no฀ campo฀de฀batalha;฀somente฀seus฀talentos฀defensivos฀são฀celebrados.฀Isso฀ pode฀ ser,฀ para฀ Fortunato,฀ uma฀ maneira฀ de฀ evocar฀ o฀ fato฀ de฀ que฀ esse฀ rei฀efetivamente฀resistiu,฀e฀de฀maneira฀eficaz,฀diga-se฀de฀passagem,฀aos฀ 91 ฀Carmina,฀IX,฀1,฀versos฀85-90.฀ ฀Histórias฀V,฀49.฀฀฀฀฀฀ 93 ฀Carmina,฀IX,฀1,฀versos฀79-82. 92 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀213 ataques฀de฀seus฀irmãos.฀Como฀se฀pode฀observar฀através฀desse฀exemplo,฀ o฀gênero฀laudatório฀não฀pode฀prescindir฀de฀um฀mínimo฀de฀verossimilhança.฀ Note-se฀ que฀ Fortunato฀ não฀ ousa฀ louvar฀ os฀ talentos฀ ofensivos฀ –฀que฀as฀fontes฀são฀unânimes฀em฀apontar฀que฀eram฀inexistentes฀–฀de฀ Chilperico.฀ Além฀ disso,฀ a฀ alegoria฀ defensiva฀ traz฀ consigo฀ um฀ aspecto฀ positivo฀na฀construção฀da฀imagem฀real:฀ela฀serve฀para฀evocar฀o฀papel฀do฀ rei฀como฀o฀protetor฀de฀seu฀povo.฀ ฀Finalmente,฀nos฀versos฀50-54฀do฀poema฀dedicado฀a฀Chilperico,฀há฀ uma฀passagem฀sobre฀a฀relação฀do฀rei฀com฀os฀bispos฀: “Quando฀os฀inimigos฀procuravam฀provocar฀uma฀guerra฀destrutiva฀contra฀ ti,฀a฀fé,฀forte฀ante฀às฀armas,฀lutou฀por฀ti.฀Tua฀causa฀alcançou฀com฀sucesso฀um฀ julgamento฀sem฀ti,฀e฀a฀sé฀elevada฀voltou฀ao฀seu฀justo฀lugar”94.฀ A฀palavra฀“sé”,฀na฀última฀frase฀do฀fragmento฀acima฀citado,฀deve฀ser฀ interpretada฀no฀sentido฀de฀assento฀episcopal,฀ou฀“cátedra”.฀O฀fato฀de฀que฀ ela฀retornou฀ao฀seu฀justo฀lugar฀pode฀ser฀uma฀evocação฀do฀julgamento฀de฀ Pretextatus,฀ocorrido฀três฀anos฀antes,฀em฀577.฀Saliente-se฀que฀o฀próprio฀ Pretextatus฀ confessou฀ ter฀ participado฀ de฀ um฀ complô฀ contra฀ o฀ rei.฀Ao฀ julgá-lo฀e฀ao฀bani-lo฀do฀reino,฀Fortunato฀dá฀a฀entender฀que฀Chilperico฀ teria฀agido฀corretamente.฀Não฀obstante,฀e฀é฀isso฀que฀o฀autor฀parece฀sugerir,฀o฀rei฀se฀enganaria฀ao฀procurar฀inimigos฀lá฀onde฀eles฀não฀existiam,฀ isto฀é,฀em฀Gregório฀de฀Tours95.฀É฀também฀aos฀bispos฀que฀Fortunato฀faz฀ referência฀quando฀descreve฀a฀“fé”฀lutando฀pelo฀seu฀príncipe.฀Ele฀louva฀ assim฀a฀lealdade฀do฀episcopado฀para฀com฀Chilperico,฀e฀o฀que฀é฀mais฀importante,฀associa฀a฀vitória฀deste฀ao฀apoio฀dado฀por฀aquele฀grupo.฀Maneira฀hábil฀de฀lembrar฀aquilo฀que฀o฀rei฀devia฀ao฀episcopado,฀e฀a฀necessidade฀ de฀manter฀o฀apoio฀deste,฀absolvendo฀Gregório.฀฀ Uma฀possível฀explicação฀para฀o฀tom฀apologético฀usado฀por฀Fortunato฀ em฀seu฀panegírico฀é฀que฀os฀elogios฀eram฀destinados฀a฀influenciar฀Chilpe- 94 ฀Carmina,฀IX,฀1,฀versos฀50-54.฀ ฀J.฀Georges,฀Venantius฀Fortunatus.฀A฀Latin฀poet฀in฀Merovingian฀Gaul,฀pp.฀51-52.฀฀ 95 214฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média rico,฀a฀persuadi-lo฀a฀apoiar฀o฀bispo฀de฀Tours฀em฀face฀das฀acusações฀que฀lhe฀ eram฀feitas฀por฀Leudastus฀no฀Concílio฀de฀Berny.฀Todavia,฀esses฀versos฀de฀ uma฀condescendência฀extraordinária,฀sobretudo฀se฀comparados฀ao฀retrato฀ de฀Chilperico฀pintado฀por฀Gregório,฀não฀se฀explicam฀só฀por฀uma฀escolha฀ “tática”฀do฀autor.฀Quando฀Fortunato฀atribui฀a฀Chilperico฀certas฀virtudes,฀ provavelmente฀estivesse฀persuadido฀de฀que฀esse฀rei฀não฀as฀possuía,฀como,฀ por฀ exemplo,฀ o฀ amor฀ da฀ justiça:฀ ele฀ apresenta,฀ portanto,฀ um฀ modelo฀ a฀ seguir.฀ O฀ panegírico฀ de฀ Chilperico,฀ mais฀ do฀ que฀ uma฀ descrição฀ de฀ seu฀ governo,฀traz฀consigo฀o฀“programa”฀de฀sua฀transformação.฀Ao฀mostrar฀os฀ bispos฀como฀fiéis฀do฀rei฀e฀como฀os฀fiadores฀do฀sucesso฀do฀seu฀governo,฀ Fortunato฀aproxima-se฀da฀visão฀de฀Gregório฀de฀Tours฀sobre฀o฀papel฀da฀ realeza฀no฀mundo.฀Sua฀obra฀constitui,฀de฀fato,฀à฀primeira฀vista,฀um฀retrato฀ excessivamente฀generoso฀dos฀reis฀francos,฀mas฀ela฀constitui฀também,฀e฀talvez฀sobretudo,฀um฀modelo฀para฀o฀futuro฀da฀monarquia฀franca.฀ Os฀panegíricos฀reais฀de฀Fortunato฀não฀são฀homogêneos.฀As฀descrições฀de฀Sigeberto,฀de฀Chilperico฀e฀de฀Cariberto฀estão฀repletas฀de฀nuances96.฀Os฀adjetivos฀usados฀por฀Fortunato฀não฀são฀os฀mesmos,฀e฀quando฀ isso฀ocorre,฀eles฀não฀são฀utilizados฀com฀a฀mesma฀intensidade฀para฀cada฀ um฀dos฀reis฀em฀questão.฀O฀panegírico฀de฀Sigeberto฀está฀muito฀marcado฀ pelas฀qualidades฀militares,฀mas฀também฀por฀seu฀papel฀na฀salvação฀do฀ povo.฀As฀características฀romanas฀predominam฀no฀panegírico฀de฀Cariberto,฀mas฀os฀elementos฀cristãos฀não฀estão฀ausentes.฀E,฀finalmente,฀no฀ panegírico฀ de฀ Chilperico,฀ sobressai฀ a฀ imagem฀ de฀ um฀ rei฀ que฀ governa฀ o฀reino฀com฀justiça฀e฀com฀o฀auxilio฀dos฀bispos.฀Essas฀nuances฀podem฀ ser฀explicadas฀por฀uma฀evolução฀do฀estilo฀do฀autor,฀pelas฀diferentes฀circunstâncias฀com฀as฀quais฀ele฀se฀achava฀confrontado,฀e฀até฀mesmo฀pelo฀ fato฀de฀que฀sua฀concepção฀da฀realeza฀pode฀ter฀evoluído฀à฀medida฀que฀ele฀ escrevia฀sua฀obra.฀Contudo,฀talvez฀se฀acorde฀uma฀importância฀excessiva฀ aos฀fatores฀literários฀para฀explicar฀as฀diferenças฀entre฀esses฀panegíricos.฀ 96 ฀Contrariamente฀à฀opinião฀de฀M.฀Reydellet:฀“É฀inútil฀procurar฀em฀Fortunato฀o฀que฀distingue฀ Sigeberto฀e฀Cariberto,฀e฀esses฀dois฀soberanos฀de฀Chilperico.฀Todos฀os฀três฀são฀reis฀igualmente฀justos,฀ bons฀e฀virtuosos”฀(La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀p.฀320).฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀215 Em฀seus฀retratos฀reais,฀Fortunato฀tenta฀se฀adaptar฀às฀peculiaridades฀políticas฀dos฀diversos฀regna.฀Assim,฀por฀exemplo,฀seu฀retrato฀“romano”฀de฀ Sigeberto฀coincide฀propositadamente฀com฀a฀sensibilidade฀pró-romana฀ da฀corte฀de฀Metz฀a฀que฀já฀aludimos฀aqui฀e฀que฀se฀verifica฀através฀de฀iniciativas฀como฀a฀cunhagem฀de฀moedas฀pseudo-imperiais,฀sob฀o฀reinado฀ de฀Teudeberto,฀ou฀ainda฀a฀compilação,฀ordenada฀pela฀rainha฀Brunilda,฀ da฀correspondência฀com฀os฀imperadores.฀Entretanto,฀para฀além฀desses฀ elogios฀a฀uma฀primeira฀vista฀dissonantes,฀havia฀uma฀mesma฀percepção฀ da฀“Realeza฀Cristã”.฀O฀rei฀ideal฀na฀perspectiva฀de฀Fortunato฀é฀aquele฀que,฀ como฀Cariberto,฀é฀o฀mestre฀pelo฀direito฀e฀o฀pai฀por฀sua฀bondade.฀Como฀ Sigeberto,฀ele฀é฀o฀responsável฀pela฀salvação฀do฀povo,฀e฀como฀Chilperico,฀ ele฀defende฀a฀justiça,฀auxiliado฀pelos฀conselhos฀dos฀bispos. Gregório฀de฀Tours฀e฀Chilperico฀nos฀Decem฀Libri฀Historiarum฀ Os฀ Decem฀ Libri฀ Historiarum฀ (também฀ chamados฀ de฀ Histórias)฀ compõem-se฀de฀443฀capítulos฀distribuídos฀em฀10฀livros.฀O฀primeiro฀livro,฀ com฀seus฀48฀capítulos,฀começa฀com฀a฀criação฀da฀Igreja฀pelo฀Cristo฀(que฀o฀ autor฀coloca฀em฀paralelo฀com฀a฀Criação฀do฀mundo฀por฀Deus)฀e฀termina฀ com฀a฀morte฀de฀São฀Martinho฀de฀Tours,฀em฀397.฀O฀segundo฀livro,฀que฀ aborda฀ mais฀ detalhadamente฀ a฀ história฀ dos฀ reis฀ francos฀ e฀ da฀ Igreja฀ da฀ Gália,฀com฀43฀capítulos,฀se฀estende฀desde฀o฀advento฀de฀Brício,฀sucessor฀ de฀São฀Martinho,฀até฀a฀morte฀de฀Clóvis,฀em฀511.฀Os฀oito฀livros฀restantes฀ tratam฀dos฀reinados฀dos฀filhos฀e฀dos฀netos฀de฀Clóvis฀no฀período฀compreendido฀entre฀511฀e฀591.฀O฀terceiro฀livro฀(37฀capítulos)฀se฀prolonga฀até฀a฀ morte฀de฀Teodeberto฀I,฀em฀548.฀O฀quarto,฀e฀também฀o฀mais฀longo฀pelo฀ número฀de฀capítulos฀(51),฀termina฀com฀a฀morte฀do฀rei฀Sigeberto,฀em฀575.฀ A฀partir฀do฀quinto฀livro,฀o฀relato฀torna-se฀cada฀vez฀mais฀minucioso.฀Os฀ livros฀VI,฀VII,฀VIII,฀IX฀e฀X,฀por฀exemplo,฀cobrem฀um฀período฀de฀apenas฀ 11฀anos,฀entre฀580฀e฀59197.฀A.H.B.฀Breukellaar฀estima฀que฀não฀há฀razão฀al97 ฀M.฀Cândido฀da฀Silva,฀“Providencialismo฀e฀história฀política฀nos฀Decem฀libri฀Historiarum,฀de฀ Gregório฀de฀Tours”,฀pp.137-160.฀ 216฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média guma฀para฀se฀pensar฀que฀Gregório฀tenha฀esperado฀sua฀consagração฀como฀ bispo฀de฀Tours฀para฀começar฀a฀escrever.฀Ele฀teria฀começado฀bem฀antes฀de฀ se฀mudar฀para฀Tours,฀quando฀ainda฀ocupava฀uma฀função฀eclesiástica฀em฀ Clermont.฀O฀indício฀que฀Breukelaar฀apresenta฀para฀sustentar฀sua฀tese฀é฀ o฀fato฀de฀que฀nos฀primeiros฀quatro฀livros฀dos฀Decem฀Libri฀Historiarum,฀ as฀referências฀à฀cidade฀de฀Clermont฀são฀muito฀mais฀numerosas฀do฀que฀ aquelas฀que฀remetem฀à฀cidade฀de฀Tours98.฀Contudo,฀como฀bem฀mostrou฀ M.฀Heinzelmann,฀os฀Decem฀Libri฀Historiarum฀foram฀ordenados฀e฀editados฀por฀Gregório฀pouco฀antes฀de฀sua฀morte99. Por฀mais฀paradoxal฀que฀possa฀parecer,฀a฀chave฀para฀se฀compreender฀ a฀visão฀de฀Gregório฀sobre฀os฀deveres฀do฀rei฀cristão฀não฀está฀na฀descrição฀do฀“governo฀ideal”,฀mas฀na฀de฀sua฀antítese.฀Ao฀apontar฀os฀pecados฀e฀ os฀defeitos฀do฀rei฀Chilperico,฀o฀bispo฀de฀Tours฀explicita฀uma฀noção฀de฀ “Realeza฀Cristã”฀que฀é฀amplamente฀compartilhada฀pelo฀episcopado฀da฀ Gália฀franca.฀Chilperico,฀o฀personagem฀cuja฀morte฀é฀descrita฀pelo฀bispo฀ de฀Tours฀no฀capítulo฀46฀do฀livro฀VI฀das฀Histórias,฀é฀filho฀do฀rei฀Clotário฀ I฀e฀da฀rainha฀Aregonda฀(c.520-c.580),฀nascido฀por฀volta฀de฀537.฀Em฀561,฀ com฀a฀morte฀de฀seu฀pai,฀herdou฀o฀regnum฀cuja฀capital฀era฀a฀cidade฀de฀ Soissons.฀Após฀repudiar฀sua฀esposa฀Audovera฀(†580),฀em฀564,฀Chilperico฀se฀casou฀com฀Galswinta,฀cuja฀irmã,฀Brunilda,฀tinha฀esposado฀o฀rei฀ franco฀Sigeberto฀–฀meio-irmão฀de฀Chilperico.฀O฀assassinato฀de฀Galswinta,฀cuja฀responsabilidade฀foi฀imputada฀a฀Chilperico,฀bem฀como฀as฀desavenças฀em฀torno฀da฀herança฀de฀Clotário฀I,฀desencadearam฀uma฀série฀de฀ conflitos฀entre฀os฀reis฀francos฀que฀só฀terminaram฀com฀o฀assassinato฀de฀ Chilperico,฀em฀584.฀Entre฀todos฀os฀descendentes฀de฀Clóvis,฀Chilperico฀é฀ aquele฀que฀dispõe฀da฀pior฀reputação฀entre฀os฀historiadores฀modernos,฀e฀ isso฀graças฀à฀descrição฀feita฀pelo฀bispo฀de฀Tours฀nas฀Histórias.฀G.฀Tessier,฀ por฀exemplo,฀afirma฀que฀os฀sentimentos฀pessoais฀de฀Gregório฀podem฀ter฀ interferido฀no฀retrato,฀sem฀nenhuma฀indulgência,฀que฀ele฀estabelece฀do฀ 98 ฀ A.H.B.฀ Breukelaar,฀ Historiography฀ and฀ episcopal฀ authority฀ in฀ sixht-century฀ Gaul:฀ the฀ Histories฀of฀Gregory฀of฀Tours฀interpreted฀in฀their฀historical฀context,฀pp.฀29-50.฀ 99 ฀M.฀Heinzelmann,฀Gregory฀of฀Tours:฀history฀and฀society฀in฀the฀sixth฀century,฀pp.฀96-102.฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀217 rei฀franco,฀mas฀acredita฀que฀esse฀retrato฀corresponda,฀de฀modo฀geral,฀à฀ personalidade฀de฀Chilperico100.฀As฀análises฀mais฀recentes฀de฀W.฀Goffart฀e฀ de฀M.฀Heinzelmann,฀ao฀chamarem฀atenção฀para฀o฀conteúdo฀ideológico฀ presente฀na฀obra฀de฀Gregório,฀permitiram฀que฀se฀duvidasse฀da฀verossimilhança฀ de฀ alguns฀ aspectos฀ da฀ descrição฀ negativa฀ de฀ Chilperico.฀ No฀ entanto,฀essas฀análises฀também฀lançaram฀certo฀descrédito฀sobre฀o฀papel฀ dos฀Decem฀Libri฀Historiarum฀na฀escrita฀da฀história฀da฀monarquia฀franca.฀Um฀manual฀destinado฀a฀servir฀e฀a฀confortar฀a฀posição฀do฀episcopado฀ não฀seria฀o฀texto฀mais฀seguro฀e฀objetivo฀a฀partir฀do฀qual฀reconstituir฀as฀ relações฀de฀poder฀na฀Gália฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀VI.฀Nas฀páginas฀ seguintes,฀ buscar-se-á฀ discutir฀ os฀ problemas฀ e฀ os฀ limites฀ da฀ utilização฀ desse฀texto฀pelos฀historiadores. Na฀primeira฀frase฀do฀capítulo฀46฀do฀livro฀VI฀das฀Histórias,฀Gregório฀ faz฀referência฀ao฀casamento฀da฀filha฀de฀Chilperico,฀a฀princesa฀Rigonta฀ com฀o฀rei฀visigodo฀Recaredo,฀evento฀descrito฀por฀ele฀no฀capítulo฀anterior:฀“Enquanto฀essas฀pessoas฀prosseguiam฀sua฀rota฀com฀seu฀espólio,฀Chilperico,฀o฀Nero฀e฀o฀Herodes฀de฀nosso฀tempo,฀vai฀até฀a฀villa฀de฀Chelles,฀que฀se฀ encontra฀a฀cerca฀de฀cem฀estádios฀de฀Paris,฀e฀se฀exerce฀na฀caça”101.฀As฀pessoas฀ que฀ele฀menciona฀tinham฀sido฀encarregadas฀por฀Chilperico฀de฀conduzir฀ sua฀filha฀até฀a฀Espanha.฀O฀dote฀que฀a฀princesa฀leva฀consigo฀é฀chamado฀ de฀“espólio”,฀pois฀no฀capítulo฀anterior฀Gregório฀descreve฀como฀o฀tesouro฀ público฀ e฀ os฀ próprios฀ francos฀ foram฀ dilapidados฀ para฀ constituí-lo.฀ Embora฀essa฀acusação฀já฀aponte฀para฀uma฀descrição฀bastante฀negativa฀ de฀Chilperico,฀o฀mais฀significativo,฀nessa฀frase,฀é฀a฀afirmação฀de฀que฀ele฀ é฀“o฀Nero฀e฀o฀Herodes฀de฀nosso฀tempo”.฀É฀evidente฀que฀a฀referência฀por฀ parte฀de฀um฀bispo฀cristão฀a฀esses฀dois฀personagens฀não฀é฀nem฀um฀pouco฀ lisonjeira.฀Contudo,฀para฀compreender฀o฀sentido฀que฀Gregório฀dá฀a฀essa฀ comparação,฀é฀necessário฀observar฀como฀ele฀descreve฀esses฀personagens฀ em฀ outras฀ partes฀ de฀ sua฀ obra:฀ “Furioso฀ contra฀ eles฀ porque฀ pregavam฀ o฀ Cristo,฀filho฀de฀Deus,฀e฀porque฀se฀recusavam฀a฀adorar฀os฀ídolos,฀Nero฀fez฀pe- 100 101 ฀G.฀Tessier,฀Le฀baptême฀de฀Clovis,฀p.฀192. ฀Histórias฀VI,฀46.฀ 218฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média recer฀Pedro฀sobre฀a฀Cruz฀e฀Paulo฀pela฀espada”102.฀Nero฀é,฀portanto,฀o฀imperador฀que฀atacou฀o฀culto฀do฀Cristo฀e฀que฀mandou฀assassinar฀São฀Pedro฀e฀ São฀Paulo.฀Trata-se฀de฀um฀inimigo฀da฀Igreja฀e,฀mais฀particularmente,฀do฀ Cristo฀e฀de฀seus฀discípulos.฀E฀quanto฀a฀Herodes:฀“Herodes,฀temeroso฀por฀ sua฀realeza,฀e฀que฀perseguiu฀o฀Cristo-Deus,฀massacrou฀฀todas฀as฀crianças฀ pequenas...”103.฀Mais฀do฀que฀o฀governante฀cruel฀que฀teria฀mandado฀matar฀os฀recém-nascidos,฀o฀que฀sobressai฀nesse฀trecho฀é฀a฀imagem฀de฀um฀ rei฀que฀temia฀que฀o฀Cristo฀ameaçasse฀seu฀governo.฀฀ Não฀é฀uma฀simples฀coincidência฀a฀associação฀de฀Chilperico฀a฀Nero,฀o฀ “assassino฀dos฀Apóstolos”,฀e฀a฀Herodes,฀o฀“inimigo฀da฀realeza฀do฀Cristo”.฀ Através฀dessa฀comparação,฀é฀bastante฀provável฀que฀Gregório฀tenha฀pretendido฀referir-se฀ao฀rei฀como฀um฀inimigo฀dos฀bispos฀e฀como฀o฀detentor฀ de฀ uma฀ realeza฀ que฀ era฀ o฀ oposto฀ daquela฀ preconizada฀ pelo฀ Cristo.฀ É฀ possível฀igualmente฀que฀o฀bispo฀de฀Tours฀tenha฀tentado฀mostrar฀a฀aversão฀ de฀ Chilperico฀ ao฀ episcopado฀ como฀ um฀ signo฀ do฀“ciúme”฀ nutrido฀ por฀esse฀último฀em฀relação฀à฀“Realeza฀do฀Cristo”,฀daí฀a฀comparação฀com฀ Herodes.฀ O฀ orgulho฀ e฀ a฀ crueldade฀ de฀ Nero฀ e฀ de฀ Herodes฀ servem,฀ nas฀ Histórias,฀para฀sublinhar฀um฀traço฀da฀personalidade฀de฀Chilperico:฀sua฀ falta฀de฀respeito฀em฀relação฀aos฀bispos฀e฀aos฀conselhos฀que฀esses฀últimos฀ poderiam฀lhe฀oferecer.฀ O฀texto฀prossegue฀com฀a฀descrição฀das฀circunstâncias฀do฀assassinato฀ de฀Chilperico:฀ “Quando฀um฀dia฀regressava฀da฀caça฀sob฀uma฀noite฀obscura,฀e฀descia฀do฀ cavalo฀apoiando฀uma฀mão฀sobre฀os฀ombros฀de฀um฀servo,฀veio฀um฀homem฀ que฀o฀atingiu฀com฀uma฀faca฀sob฀a฀axila฀e฀com฀um฀outro฀golpe฀perfurou฀seu฀ ventre;฀ imediatamente,฀ jorrou฀ sangue฀ pelos฀ ferimentos฀ e฀ sua฀ alma฀ iníqua฀ se฀foi”104.฀฀ 102 ฀Histórias฀I,฀25.฀ ฀Histórias฀I,฀19.฀ 104 ฀Histórias฀VI,฀46.฀ 103 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀219 A฀ morte฀ aqui฀ aparece฀ como฀ a฀ punição฀ pelos฀ atos฀ perpetrados฀ por฀ esse฀rei,฀e฀que฀Gregório฀afirma฀ter฀descrito฀anteriormente:฀“O฀mal฀que฀ fez,฀o฀texto฀que฀precede฀o฀mostra”.฀O฀bispo฀de฀Tours฀parece,฀inicialmente,฀ remeter฀o฀leitor฀aos฀trechos฀anteriores฀de฀sua฀obra฀em฀que฀aborda฀os฀ males฀feitos฀por฀esse฀rei,฀sem฀dar฀a฀impressão฀de฀que฀vai฀se฀prolongar฀no฀ assunto.฀No฀entanto,฀o฀capítulo฀46฀constitui฀um฀inventário฀do฀reinado฀ de฀Chilperico:฀“Devastou฀e฀incendiou฀inúmeras฀regiões,฀e฀não฀sentia฀nenhuma฀dor฀por฀isso,฀ao฀contrario,฀ficava฀alegre,฀tal฀como฀Nero฀em฀outros฀ tempos,฀ que฀ cantava฀ tragédias฀ durante฀ os฀ incêndios฀ de฀ seu฀ palácio”.฀ Na฀ associação฀com฀Nero฀e฀com฀os฀incêndios฀por฀ele฀promovidos,฀fica฀nítida฀ a฀filiação฀à฀tradição฀cristã,฀muito฀embora฀não฀se฀possa฀também฀descartar฀uma฀possível฀influência฀da฀literatura฀de฀origem฀senatorial฀no฀texto฀ gregoriano.฀ De฀ fato,฀ é฀ possível฀ traçar฀ alguns฀ paralelos฀ entre฀ o฀ retrato฀ de฀ Chilperico฀ nas฀ Histórias฀VI,฀ 46฀ e฀ o฀ retrato฀ de฀ Nero฀ nos฀ Anais,฀ de฀ Tácito.฀No฀primeiro฀texto,฀Chilperico฀aparece฀como฀aquele฀que฀“No฀que฀ se฀refere฀à฀depravação฀e฀à฀luxúria,฀não฀se฀pode฀encontrar฀em฀pensamento฀ algo฀que฀não฀tenha฀perpetrado฀na฀realidade...”.฀Nos฀Anais,฀Nero฀é฀aquele฀ que฀“...não฀teria฀omitido฀nenhum฀ato฀vergonhoso฀para฀atingir฀o฀mais฀alto฀ grau฀ de฀ corrupção”105.฀ Isso฀ não฀ ฀ significa฀ que฀ Gregório฀ tenha฀ sido฀ um฀ leitor฀de฀Tácito;฀não฀há฀evidências฀nesse฀sentido.฀Todavia,฀é฀preciso฀reconhecer฀que฀alguns฀dos฀elementos฀da฀construção฀da฀imagem฀negativa฀ de฀Chilperico฀parecem฀diretamente฀oriundos฀de฀uma฀tradição฀literária฀ anti-imperial฀da฀qual฀faz฀parte฀a฀obra฀de฀Tácito.฀É฀o฀caso,฀por฀exemplo,฀ da฀acusação฀de฀que฀Chilperico฀“Era฀um฀glutão฀cujo฀deus฀era฀o฀ventre”,฀ou฀ ainda฀de฀que฀ele฀“Pretendia฀que฀ninguém฀era฀mais฀sábio฀do฀que฀ele”.฀O฀ paralelo฀com฀os฀festins฀promovidos฀por฀Nero฀e฀com฀as฀suas฀pretensões฀ literárias฀é฀bastante฀verossímil.฀฀ Por฀ outro฀ lado,฀ pode-se฀ questionar฀ o฀ sentido฀ da฀ comparação฀ de฀ Chilperico฀com฀o฀imperador฀Nero.฀Exemplos฀de฀maus฀governantes฀não฀ deveriam฀faltar฀a฀Gregório,฀e฀mesmo฀de฀maus฀governantes฀que฀perse- 105 ฀Tácito,฀Anais฀XV,฀37.฀ 220฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média guiram฀os฀bispos.฀A฀escolha฀de฀Nero฀tem฀uma฀outra฀razão.฀A฀razão฀dessa฀ escolha฀são฀as฀pretensões฀literárias฀do฀rei:฀ “Compôs฀dois฀livros,฀à฀imitação฀de฀Sedulius,฀cujos฀versos฀débeis฀não฀podem฀ permanecer฀ de฀ pé฀ –฀ em฀ sua฀ ignorância,฀ colocou฀ as฀ silabas฀ breves฀ no฀ lugar฀das฀longas฀e฀as฀longas฀no฀lugar฀das฀breves฀–฀e฀opúsculos,฀hinos฀e฀missas฀ que฀não฀podem฀ser฀aceitas฀sob฀nenhuma฀razão”106.฀ Nesse฀trecho,฀é฀possível฀observar฀que฀Chilperico฀buscou฀introduzir฀ novas฀letras฀no฀alfabeto;฀ora,฀o฀imperador฀Cláudio฀procedeu฀da฀mesma฀ maneira.฀Fica฀claro฀também฀que฀ao฀compor฀hinos฀e฀missas,฀Chilperico฀ interferiu฀em฀matéria฀teológica,฀de฀maneira฀não฀muito฀distinta฀do฀que฀ fez฀ Justiniano.฀Através฀ desse฀ trecho฀ de฀ seu฀ relato,฀ Gregório฀ revela฀ um฀ príncipe฀que฀tinha฀como฀norte฀de฀sua฀ação฀alguns฀imperadores฀romanos฀e฀o฀modelo฀imperial฀romano.฀Ao฀ridicularizar฀as฀ambições฀literárias฀ e฀teológicas฀desse฀príncipe,฀o฀bispo฀de฀Tours฀dá฀indícios฀da฀existência฀de฀ uma฀ política฀ sistemática฀ de฀ imitatio฀ imperii฀ (“imitação฀ do฀ Império”).฀ Mas,฀ao฀comparar฀Chilperico฀a฀Nero,฀Gregório฀busca฀mostrar฀o฀fracasso฀ dessa฀política.฀Outro฀indício฀de฀que฀o฀rei฀franco฀atuava฀no฀sentido฀de฀ aproximar฀seu฀governo฀dos฀padrões฀imperiais฀é฀a฀menção฀pelo฀bispo฀de฀ Tours฀da฀costume฀de฀arrancar฀os฀olhos฀dos฀culpados฀de฀certos฀crimes,฀o฀ que฀era฀uma฀prática฀recorrente฀em฀Bizâncio107. “...desse฀ modo,฀ se฀ em฀ seu฀ tempo฀ descobrisse฀ culpados,฀ seus฀ olhos฀ eram฀ arrancados.฀E฀nos฀preceitos฀que฀dirigia฀aos฀juízes฀para฀seus฀próprios฀interesses,฀ele฀acrescentava:฀‘Se฀alguém฀viola฀nossos฀preceitos,฀a฀pena฀deve฀ser฀ter฀os฀ olhos฀arrancados’”108.฀ Em฀suma,฀a฀referência฀a฀Nero฀tem฀a฀função,฀na฀narrativa฀de฀Gregório,฀de฀ridicularizar฀as฀pretensões฀imperiais฀de฀Chilperico฀e฀também฀de฀ 106 ฀Histórias฀VI,฀46.฀ ฀M.฀Reydellet,฀La฀royauté฀dans฀la฀littérature฀latine,฀p.฀419.฀ 108 ฀Histórias฀VI,฀46.฀ 107 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀221 mostrá-las฀ sob฀ o฀ prisma฀ da฀ crueldade.฀ É฀ uma฀ maneira฀ hábil฀ de฀ desacreditar฀a฀política฀constantiniana฀de฀seu฀rival฀sem,฀no฀entanto,฀atacar฀a฀ própria฀função฀imperial.฀Saliente-se,฀a฀título฀de฀exemplo,฀que฀Tibério฀ representa฀para฀Gregório฀o฀exemplo฀do฀bom฀imperador.฀Não฀se฀trata,฀ portanto,฀de฀uma฀indisposição฀do฀bispo฀de฀Tours฀para฀com฀o฀Império฀ ou฀com฀a฀função฀imperial.฀A฀obra฀gregoriana,฀em฀que฀pese฀seu฀caráter฀de฀ “manual฀do฀poder฀episcopal”฀–฀para฀utilizar฀a฀expressão฀de฀W.฀Goffart฀–,฀ pode฀ser฀utilizada฀como฀fonte฀para฀o฀estudo฀da฀monarquia฀franca,฀e฀não฀ apenas฀para฀a฀concepção฀de฀poder฀dos฀bispos฀da฀Gália.฀฀฀฀฀฀฀ Apesar฀de฀uma฀possível฀influência฀da฀literatura฀senatorial,฀Gregório฀ busca฀dar฀uma฀conotação฀específica฀à฀crueldade฀de฀Chilperico,฀próxima฀ das฀ preocupações฀ do฀ episcopado฀ franco:฀ “Puniu฀ vários฀ homens฀ de฀ maneira฀injusta.฀Em฀seu฀tempo,฀poucos฀clérigos฀obtiveram฀o฀episcopado”.฀ Além฀de฀se฀comportar฀de฀maneira฀injusta,฀e,฀portanto,฀contrária฀àquilo฀ que฀se฀espera฀de฀um฀bom฀governante,฀Chilperico฀teria฀nomeado฀poucos฀ clérigos฀à฀função฀episcopal.฀A฀eleição฀de฀um฀bispo฀na฀Gália฀do฀século฀ VI,฀mesmo฀quando฀ocorria฀segundo฀as฀regras฀canônicas,฀ou฀seja,฀pela฀ eleição฀“do฀clero฀e฀do฀povo”,฀necessitava฀da฀confirmação฀do฀rei฀para฀ser฀ validada.฀ Faz฀ sentido,฀ portanto,฀ que฀ Chilperico฀ tenha฀ deixado฀ vagas฀ varias฀ sés฀ episcopais.฀ Mas฀ por฀ qual฀ razão?฀ Mais฀ uma฀ vez,฀ é฀ o฀ próprio฀ Gregório฀quem฀dá฀indícios฀de฀uma฀possível฀resposta:฀ “Ele฀tinha฀aversão฀aos฀interesses฀dos฀pobres.฀Blasfemava฀assiduamente฀contra฀os฀sacerdotes฀do฀Senhor,฀e฀quando฀estava฀entre฀os฀seus,฀nada฀lhe฀era฀mais฀ agradável฀do฀que฀ridicularizar฀e฀pilheriar฀os฀bispos฀das฀igrejas.฀Ele฀dizia฀que฀ um฀era฀desenvolto,฀o฀outro฀vaidoso,฀um฀outro฀excessivo฀e฀um฀outro฀luxurioso;฀pretendia฀que฀um฀era฀altaneiro,฀o฀outro฀orgulhoso;฀não฀havia฀nada฀que฀ odiasse฀mais฀do฀que฀as฀igrejas.฀Pois฀em฀efeito฀dizia฀na฀maior฀parte฀do฀tempo:฀ ‘Eis฀que฀nosso฀fisco฀permanece฀pobre,฀eis฀que฀nossas฀riquezas฀são฀transferidas฀ às฀igrejas;฀ninguém฀reina฀mais,฀somente฀os฀bispos;฀nosso฀poder฀(honor)฀morreu฀e฀foi฀transferido฀aos฀bispos฀das฀cidades’”109.฀ 109 ฀Ibid.฀ 222฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Pode-se฀supor฀que฀Chilperico฀desconfiasse฀dos฀bispos฀que฀“usurpavam”฀as฀prerrogativas฀da฀autoridade฀real.฀É฀compreensível฀que฀ele฀tenha฀ praticado฀a฀política฀da฀“sé฀episcopal฀vazia”,฀de฀forma฀a฀reduzir฀a฀influência฀ dos฀ bispos.฀ De฀ acordo฀ com฀ a฀ descrição฀ de฀ Gregório,฀ Chilperico฀ não฀ só฀ falava฀ claramente฀ de฀ seus฀ temores฀ em฀ relação฀ ao฀ crescimento฀ da฀influência฀política฀dos฀bispos,฀como฀também฀se฀queixava฀de฀que฀o฀ episcopado฀ governava฀ em฀ seu฀ lugar฀ e฀ usurpava฀ as฀ riquezas฀ do฀ reino.฀ Pode-se฀deduzir฀que฀o฀projeto฀político฀desse฀rei฀comportasse฀a฀redução฀ da฀influência฀dos฀bispos฀nas฀civitates฀e,฀ao฀mesmo฀tempo,฀a฀recuperação฀ das฀prerrogativas฀da฀realeza฀e฀de฀seus฀representantes฀laicos.฀ Mais฀do฀que฀sua฀ignorância฀da฀literatura,฀dos฀dogmas฀e฀da฀métrica,฀ ou฀ainda฀o฀desrespeito฀à฀palavra฀dada,฀o฀que฀torna฀Chilperico฀o฀arquétipo฀ do฀ mau฀ governante฀ aos฀ olhos฀ de฀ Gregório฀ é฀ sua฀ relação฀ com฀ os฀ bispos฀(o฀fato฀de฀não฀escutá-los฀como฀se฀deveria฀e฀de฀humilhá-los):฀฀฀ “Enquanto฀afirmava฀isso,฀os฀testamentos฀redigidos฀em฀benefício฀das฀igrejas฀eram฀na฀maior฀parte฀do฀tempo฀violados,฀e฀ele฀pisava฀freqüentemente฀os฀ preceitos฀de฀seu฀pai,฀pensando฀que฀não฀restava฀ninguém฀para฀fazer฀respeitar฀ suas฀vontades”110.฀ Quando฀Gregório฀remarca฀a฀vaidade฀daquele฀que฀acredita฀ser฀mais฀ sábio฀do฀que฀qualquer฀um,฀ele฀se฀refere฀à฀recusa฀de฀Chilperico฀em฀ouvir฀ e฀ aceitar฀ os฀ conselhos฀ dos฀ bispos.฀ É฀ possível฀ perceber฀ nas฀ ações฀ desse฀ rei฀ descritas฀ pelo฀ bispo฀ de฀ Tours฀ uma฀ concepção฀“constantiniana”฀ do฀ exercício฀da฀autoridade฀real.฀É฀ela,฀aliás,฀a฀chave฀para฀se฀compreender฀a฀ oposição฀do฀bispo฀de฀Tours฀a฀Chilperico.฀As฀pretensões฀literárias฀reforçam฀a฀imagem฀de฀um฀príncipe฀cujas฀referências฀eram฀os฀imperadores฀ romanos฀que,฀como฀vimos฀anteriormente,฀eram฀também฀prolíficos฀em฀ incursões฀no฀domínio฀da฀liturgia,฀da฀literatura฀e฀das฀questões฀doutrinárias.฀Gregório฀vê฀nas฀iniciativas฀de฀Chilperico฀apenas฀uma฀impostura,฀ fruto฀da฀ambição฀desmedida฀de฀um฀rei฀que฀teria฀ousado฀interferir฀em฀ 110 ฀Ibid.฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀223 domínios฀reservados฀aos฀bispos.฀Em฀suma,฀o฀fato฀de฀que฀Chilperico฀tenha฀pretendido฀aparecer฀aos฀seus฀súditos฀como฀um฀digno฀sucessor฀dos฀ imperadores฀romanos฀não฀passou฀despercebido฀para฀Gregório.฀฀฀ O฀contraponto฀que฀Gregório฀oferece฀desse฀que฀pretendia฀ser฀igual฀ aos฀imperadores฀é฀o฀de฀um฀rei฀que,฀além฀de฀conseguir฀igualar-se฀apenas฀ a฀Nero,฀governava฀levando฀em฀conta฀unicamente฀seus฀interesses฀pessoais:฀“Et฀in฀praeceptionibus฀quas฀ad฀iudicis฀pro฀suis฀utilitatibus฀dirigebat,฀ haec฀addebat:฀‘Si฀quis฀praecepta฀nostra฀contempserit,฀oculorum฀avulsione฀ multetur’”.฀A฀ tradução฀ francesa฀ e฀ a฀ tradução฀ inglesa฀ dos฀ Decem฀ Libri฀ Historiarum฀dão฀sentidos฀sensivelmente฀diferentes฀a฀essa฀frase.฀R.฀Latouche฀a฀traduz฀da฀seguinte฀maneira฀:฀“…et฀dans฀les฀préceptes฀qu’il฀adressait฀ aux฀juges฀pour฀ses฀affaires฀il฀ajoutait฀cette฀clause…”฀(p.฀72);฀já฀L.฀Thorpe฀ prefere:฀“In฀the฀instructions฀wich฀he฀issued฀to฀judges฀for฀the฀maintenance฀ of฀his฀decrees…”฀(p.฀380).฀A฀tradução฀de฀R.฀Latouche฀é฀a฀mais฀adequada,฀ pois฀com฀o฀termo฀utilitas,฀em฀outras฀partes฀de฀seu฀texto,฀Gregório฀designa฀“assuntos”,฀“interesses”,฀e฀não฀“decretos”111.฀No฀mesmo฀capítulo฀46,฀ Gregório฀afirma฀que฀Chilperico฀“tinha฀aversão฀aos฀interesses฀dos฀pobres”฀ (“causas฀pauperum฀exosas฀habebat”).฀Há฀uma฀estreita฀correlação฀entre฀ essa฀frase฀e฀a฀idéia฀segundo฀a฀qual฀Chilperico,฀em฀suas฀ações,฀“...pro฀suis฀ utilitatibus฀dirigebat...”.฀Seria฀normal,฀na฀perspectiva฀do฀bispo฀de฀Tours,฀ que฀um฀rei฀que฀tinha฀aversão฀aos฀interesses฀dos฀pobres,฀se฀ocupasse,฀em฀ seus฀atos฀de฀governo,฀unicamente฀de฀seus฀próprios฀interesses.฀ Em฀ outros฀ trechos฀ das฀ Histórias,฀ Gregório฀ emprega฀ a฀ expressão฀ “utilitas฀publica”112.฀Ela฀aparece฀apenas฀em฀situações฀envolvendo฀Childeberto฀II฀e฀Gontrão.฀Para฀se฀entender฀seu฀sentido,฀é฀possível฀partir฀da฀ descrição฀que฀Gregório฀faz฀de฀Chilperico.฀Em฀primeiro฀lugar,฀no฀livro฀ VI,฀capítulo฀46,฀o฀bispo฀de฀Tours฀apresenta฀ao฀leitor฀uma฀antítese฀do฀rei฀ ideal,฀do฀rei฀cristão.฀Chilperico฀é฀o฀rei฀cruel,฀que฀humilha฀e฀despreza฀os฀ bispos฀e฀tem฀aversão฀aos฀interesses฀dos฀pobres.฀A฀realeza฀de฀Chilperico฀ seria฀ a฀ encarnação฀ de฀ um฀ poder฀ desligado฀ de฀ qualquer฀ obrigação฀ em฀ 111 ฀Histórias฀X,฀9;฀Histórias฀X,฀19.฀ ฀Histórias฀IX,฀10;฀Histórias฀IX,฀20.฀ 112 224฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média relação฀aos฀pobres฀e฀voltado฀unicamente฀para฀a฀satisfação฀dos฀interesses฀ pessoais฀do฀rei฀(“suis฀utilitatibus”).฀Logo,฀pode-se฀deduzir฀que฀a฀“utilitas฀ publica”฀é,฀para฀Gregório,฀indissociável฀da฀preocupação฀do฀governante฀ com฀os฀pobres,฀com฀a฀Igreja฀e฀com฀os฀bispos.฀Os฀interesses฀de฀Chilperico,฀aos฀quais฀ele฀atribui฀uma฀conotação฀pessoal,฀se฀oporiam฀à฀“utilitas฀ publica”฀que฀o฀bom฀príncipe฀deve฀perseguir฀em฀seus฀atos฀de฀governo.฀ Quando฀o฀bispo฀de฀Tours฀qualifica฀as฀motivações฀dos฀atos฀de฀Chilperico฀ como฀estritamente฀pessoais,฀ele฀recusa฀o฀complemento฀“pública”฀a฀uma฀ utilitas฀ que฀ não฀ levaria฀ em฀ conta฀ os฀ conselhos฀ dos฀ bispos,฀ e฀ que฀ por฀ isso฀mesmo฀seria฀estrangeira฀a฀toda฀consideração฀de฀ordem฀moral.฀Para฀ Gregório,฀portanto,฀toda฀autoridade฀que฀não฀esteja฀fundada฀na฀preocupação฀ cristã฀ pelo฀ interesse฀ dos฀ pobres฀ não฀ possui฀ qualquer฀ dimensão฀ pública,฀ou฀seja,฀qualquer฀legitimidade.฀฀฀฀ A฀descrição฀das฀condições฀da฀morte฀de฀Chilperico฀é฀o฀ponto฀culminante฀do฀retrato฀“gregoriano”฀desse฀rei:฀ “Ele฀jamais฀amou฀alguém฀de฀maneira฀pura฀e฀não฀foi฀amado฀por฀ninguém;฀ eis฀porque,฀quando฀exalou฀seu฀último฀suspiro,฀todos฀o฀abandonaram.฀Mallulfus,฀bispo฀de฀Senlins,฀que฀o฀esperava฀em฀vão฀por฀uma฀audiência฀há฀três฀dias฀ em฀sua฀tenda,฀veio฀assim฀que฀soube฀de฀seu฀assassinato.฀Após฀tê-lo฀lavado,฀ele฀ o฀vestiu฀com฀suas฀melhores฀roupas฀e,฀tendo฀passado฀a฀noite฀a฀cantar฀hinos,฀ ele฀o฀colocou฀em฀um฀navio฀e฀o฀enterrou฀na฀Basílica฀de฀São฀Vicente,฀em฀Paris,฀ enquanto฀a฀rainha฀Fredegonda฀permanecia฀sozinha฀na฀catedral”113.฀ Gregório฀ mostra฀ ao฀ leitor฀ que฀ aquele฀ que฀ durante฀ toda฀ vida฀ não฀ havia฀ tido฀ a฀ mínima฀ consideração฀ em฀ relação฀ aos฀ bispos฀ –฀ e฀ que฀ o฀ demonstrou฀mesmo฀nos฀seus฀últimos฀instantes,฀obrigando฀o฀bispo฀de฀ Senlins฀ a฀ esperar฀ três฀ dias฀ por฀ uma฀ audiência฀ –฀ acabou฀ encontrando,฀ depois฀de฀morto,฀somente฀esse฀bispo฀para฀vestir฀seu฀cadáver฀e฀enterrálo.฀O฀evento฀tem,฀portanto,฀um฀sentido฀moral฀e฀político,฀mais฀do฀que฀ simplesmente฀exemplar:฀ele฀demonstra฀o฀triunfo฀do฀episcopado฀sobre฀o฀ 113 ฀Histórias฀VI,฀46.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀225 seu฀maior฀inimigo฀entre฀os฀reis฀francos.฀A฀título฀de฀comparação,฀a฀morte฀ de฀Gontrão฀nem฀sequer฀é฀mencionada฀nas฀Histórias.฀Entretanto,฀Gregório฀tomou฀conhecimento฀dela฀antes฀de฀terminar฀a฀redação฀dessa฀obra,฀ como฀mostra฀um฀trecho฀dos฀Septem฀libri฀miraculorum฀dedicado฀aos฀ milagres฀de฀São฀Martinho:฀“Tempos฀depois,฀após฀a฀morte฀do฀gloriosíssimo฀ rei฀Gontrão...”114.฀Uma฀possível฀explicação฀para฀essa฀omissão,฀provavelmente฀deliberada,฀está฀no฀sentido฀providencial฀do฀relato฀da฀morte฀de฀ Chilperico:฀o฀assassinato฀desse฀rei฀cruel,฀inimigo฀dos฀bispos฀e฀da฀Igreja,฀ marca,฀nas฀Histórias,฀a฀derrota฀dos฀opositores฀da฀“Realeza฀do฀Cristo”,฀da฀ mesma฀maneira฀que฀a฀sobrevivência฀daquele฀que฀Gregório฀chama฀de฀“o฀ bom฀rei฀Gontrão”฀indica฀o฀triunfo฀dessa฀realeza.฀Portanto,฀em฀face฀de฀ um฀Chilperico฀cuja฀morte฀significa฀o฀triunfo฀moral฀do฀episcopado,฀há฀ Gontrão,฀cuja฀morte฀é฀omitida฀com฀o฀mesmo฀intuito.฀฀฀ Alguns฀autores฀põem฀em฀dúvida฀a฀autenticidade฀do฀relato฀de฀Gregório฀de฀Tours฀sobre฀Chilperico.฀Segundo฀W.฀Meyer,฀o฀fato฀de฀que฀em฀ nenhuma฀outra฀parte฀das฀Histórias฀se฀encontra฀uma฀crítica฀tão฀acerba฀ de฀Chilperico฀como฀aquela฀do฀capítulo฀46฀do฀livro฀VI,฀provaria฀que฀ esse฀capítulo฀foi฀incorporado฀à฀obra฀por฀um฀outro฀autor฀após฀a฀morte฀ de฀Gregório฀de฀Tours115.฀Esse฀ponto฀de฀vista฀parece฀sedutor,฀visto฀que฀ em฀outro฀trecho฀de฀sua฀obra฀Gregório฀refere-se฀a฀Chilperico฀da฀seguinte฀forma:฀“Todos฀admiraram฀a฀sabedoria฀e฀ao฀mesmo฀tempo฀a฀paciência฀ do฀rei”116.฀Contudo,฀essa฀afirmação฀não฀tem฀nenhuma฀implicação฀no฀ balanço฀final฀do฀reinado฀de฀Chilperico,฀que฀é฀extremamente฀negativo.฀ Além฀disso,฀não฀há฀razão฀para฀se฀colocar฀em฀dúvida฀a฀autenticidade฀ do฀ referido฀ capítulo฀ 46.฀ Ele฀ apenas฀ resume฀ e฀ reforça฀ a฀ imagem฀ que฀ o฀ bispo฀ de฀ Tours฀ transmite฀ de฀ Chilperico฀ ao฀ longo฀ das฀ Histórias.฀A฀ primeira฀vez฀que฀o฀rei฀franco฀aparece฀no฀relato฀de฀Gregório฀é฀como฀ usurpador฀e฀corruptor:฀“Após฀os฀funerais฀de฀seu฀pai,฀Chilperico฀tomou฀ possessão฀de฀seu฀tesouro฀que฀estava฀guardado฀na฀villa฀de฀Berny.฀Em฀se- 114 ฀De฀virtutibus฀beati฀Martini฀episcopi,฀IV,฀37.฀ ฀W.฀Meyer,฀Der฀Gelegenheitsdicher฀Fortunatus,฀p.฀310,฀n.53.฀ 116 ฀Histórias฀V,฀49. 115 226฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média guida,฀ele฀buscou฀os฀francos฀mais฀influentes฀e,฀tendo-os฀convencido฀com฀ presentes,฀submeteu-lhes”117.฀ No฀episódio฀de฀seu฀casamento฀com฀Galswinta,฀Chilperico฀é฀descrito฀ como฀um฀ganancioso฀sem฀escrúpulos:฀“Ele฀a฀amava฀muito฀especialmente฀ pois฀ela฀havia฀trazido฀consigo฀um฀grande฀dote”118.฀Gregório฀vai฀além,฀sugerindo฀que฀Chilperico฀a฀teria฀assassinado:฀“Finalmente,฀ele฀fez฀com฀que฀ ela฀fosse฀estrangulada฀por฀um฀de฀seus฀escravos฀e฀ela฀foi฀encontrada฀morta฀ em฀seu฀leito”119.฀฀฀ Gregório฀retrata฀Chilperico฀como฀um฀governante฀cruel฀que฀não฀hesitava฀em฀prolongar฀os฀sofrimentos฀daqueles฀que฀estavam฀sob฀seu฀jugo:฀ “O฀rei฀ordenou฀que฀ele฀fosse฀tratado฀por฀médicos฀até฀que฀fosse฀curado฀desses฀ ferimentos฀para฀em฀seguida฀ser฀martirizado฀por฀um฀longo฀suplício”120.฀No฀ episódio฀do฀julgamento฀do฀bispo฀Pretextatus,฀acusado฀de฀traição,฀Chilperico฀é฀mostrado฀como฀alguém฀que฀não฀possuía฀nenhum฀respeito฀pela฀ palavra฀dada121.฀A฀menção฀à฀sabedoria฀e฀à฀paciência฀de฀Chilperico,฀no฀ capítulo฀49฀do฀livro฀V,฀é฀uma฀opinião฀circunscrita฀a฀um฀evento฀específico,฀o฀posicionamento฀do฀rei฀diante฀das฀acusações฀de฀traição฀feitas฀a฀Gregório฀por฀Leudastus.฀Chilperico฀havia฀decidido฀aceitar฀a฀declaração฀de฀ inocência฀do฀bispo฀de฀Tours฀que,฀todavia,฀teve฀de฀pedir฀desculpas฀através฀ de฀um฀juramento฀e฀de฀missas฀rezadas฀em฀três฀altares฀distintos.฀Gregório฀ acrescenta฀que฀“Se฀bem฀que฀essas฀medidas฀fossem฀contrárias฀aos฀cânones,฀ nós฀as฀realizamos฀por฀consideração฀ao฀rei”122.฀De฀maneira฀pouco฀sutil,฀o฀ que฀Gregório฀sugere฀é฀que฀o฀rei฀desconhece฀as฀regras฀canônicas.฀Fica฀claro,฀portanto,฀que฀o฀capítulo฀46฀do฀livro฀VI฀está฀em฀perfeita฀consonância฀ com฀a฀imagem฀que฀é฀dada฀de฀Chilperico฀ao฀longo฀das฀Histórias.฀ O฀retrato฀de฀Chilperico฀explica-se฀mais฀por฀razões฀teológicas,฀e฀mesmo฀políticas,฀do฀que฀por฀razões฀pessoais,฀em฀que฀pese฀a฀muito฀provável฀ 117 ฀Histórias฀IV,฀22. ฀Histórias฀IV,฀28. 119 ฀Ibid. 120 ฀Histórias฀VI,฀32.฀฀ 121 ฀Histórias฀V,฀18. 122 ฀Histórias฀V,฀49.฀฀ 118 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀227 indisposição฀do฀bispo฀de฀Tours฀em฀relação฀ao฀rei.฀As฀relações฀entre฀um฀ rei฀que฀interferia฀em฀matérias฀doutrinárias฀e฀litúrgicas฀e฀um฀bispo฀que฀ era฀partidário฀da฀independência฀do฀poder฀eclesiástico฀e฀que฀acreditava฀ que฀o฀episcopado฀tinha฀conselhos฀a฀dar฀para฀o฀exercício฀do฀bom฀governo฀não฀poderiam฀ser฀menos฀conflituosas.฀Não฀é฀anódino฀que฀Gregório฀ tenha฀erigido฀Chilperico฀em฀modelo฀do฀mau฀príncipe฀e฀Gontrão฀em฀seu฀ contraponto.฀A฀oposição฀entre฀essas฀duas฀maneiras฀de฀tratar฀o฀episcopado฀aparece฀nas฀explicações฀dadas฀por฀Gregório,฀no฀capítulo฀48฀do฀livro฀ IV,฀sobre฀as฀origens฀das฀guerras฀civis฀que฀assolaram฀a฀Gália:฀ “Nós฀nos฀perguntamos฀ainda฀surpresos฀e฀estupefatos฀por฀que฀tantos฀desastres฀se฀abateram฀sobre฀esses฀povos.฀Mas฀lembremo-nos฀do฀que฀seus฀ancestrais฀fizeram฀e฀o฀que฀eles฀perpetram฀hoje.฀Após฀a฀predicação฀dos฀bispos,฀as฀ primeiras฀gerações฀abandonaram฀os฀templos฀pelas฀igrejas;฀agora,฀saqueiam฀ cotidianamente฀essas฀mesmas฀igrejas.฀Os฀antigos฀veneravam฀e฀escutavam฀de฀ todo฀ seu฀ coração฀ os฀ bispos฀ do฀ Senhor;฀ hoje,฀ não฀ somente฀ não฀ os฀ escutam,฀ como฀os฀perseguem.฀Seus฀ancestrais฀enriqueceram฀monastérios฀e฀igrejas,฀hoje฀ as฀dilapidam฀e฀as฀põe฀abaixo”.฀฀ A฀resposta฀de฀Gregório฀à฀questão฀das฀origens฀das฀“guerras฀civis”฀(bella฀ civilia)฀ é฀ uma฀ comparação฀ entre฀ os฀ primeiros฀ príncipes฀ merovíngios฀ e฀ aqueles฀ que฀ eram฀ seus฀ contemporâneos.฀ Nesse฀ texto,฀ Gregório฀ designa฀ Chilperico,฀sem,฀no฀entanto,฀citá-lo฀formalmente.฀Gregório฀propõe฀aqui฀a฀ inclusão฀do฀episcopado฀na฀vida฀política฀do฀Reino฀dos฀Francos.฀Esse฀modelo฀de฀sociedade฀não฀era฀uma฀criação฀do฀bispo฀de฀Tours.฀Descrito฀pela฀ historiografia฀alemã฀pelo฀termo฀Bischofsherrschaft,฀ele฀tem฀suas฀raízes฀na฀ Gália,฀durante฀a฀segunda฀metade฀do฀século฀V.฀Entre฀seus฀opositores,฀encontramos฀Chilperico,฀mas฀também฀alguns฀bispos฀que฀desconfiavam฀de฀ uma฀união฀excessivamente฀estreita฀entre฀a฀realeza฀e฀o฀episcopado123.฀฀ O฀ fato฀ de฀ Gregório฀ de฀ Tours฀ ter฀ sido฀ o฀ difusor฀ de฀ uma฀ idéia฀ de฀ Realeza฀ Cristã฀ coloca฀ o฀ problema฀ do฀ nível฀ de฀ comprometimento฀ de฀ 123 ฀M.฀Heinzelmann,฀Bischofsherrschaft฀in฀Gallien,฀p.158.฀ 228฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média seu฀relato:฀em฀outras฀palavras,฀pode-se฀questionar฀até฀que฀ponto฀sua฀ descrição฀ da฀ monarquia฀ franca฀ foi฀ influenciada฀ e฀ até฀ mesmo฀ obscurecida฀ por฀ seus฀ preceitos฀ ideológicos.฀ Em฀ caso฀ afirmativo,฀ seriam฀ as฀ Histórias฀ uma฀ testemunha฀ confiável฀ da฀ evolução฀ das฀ relações฀ de฀ poder฀ no฀ século฀VI?฀ Teria฀ ele฀ tentado,฀ em฀ sua฀ narrativa,฀ concatenar฀ os฀eventos฀de฀modo฀a฀mostrar฀o฀triunfo฀de฀uma฀certa฀visão฀do฀mundo฀ que฀ era฀ também฀ a฀ sua?฀ É฀ verdade฀ que฀ sua฀ obra฀ é฀ a฀ expressão฀ de฀ uma฀ certa฀ percepção฀ episcopal฀ do฀ mundo฀ em฀ geral฀ e฀ da฀ realeza฀ em฀ particular,฀ na฀ qual฀ os฀ reis฀ são฀ chamados฀ a฀ buscar฀ ajuda฀ dos฀ bispos฀ na฀ administração฀ dos฀ assuntos฀ públicos.฀ Todavia,฀ não฀ encontramos฀ nos฀ textos฀ do฀ bispo฀ de฀ Tours฀ um฀ alinhamento฀ incondicional฀ e฀ sem฀ nuances฀ à฀ causa฀ episcopal.฀ Ele฀ não฀ cessou฀ de฀ denunciar฀ os฀ crimes฀ e฀ os฀pecados฀de฀certos฀clérigos,฀da฀mesma฀maneira฀que฀não฀poupou฀os฀ príncipes,฀ nem฀ mesmo฀ Gontrão.฀ Seria฀ redutor฀ ver฀ em฀ Gregório฀ um฀ autor฀ a฀ serviço฀ de฀ uma฀ ideologia.฀ Sua฀ postura฀ em฀ face฀ da฀ realeza฀ é฀ a฀ postura฀ de฀ um฀ clérigo฀ ciente฀ de฀ suas฀ prerrogativas,฀ mas฀ também฀ perfeitamente฀consciente฀da฀superioridade฀dos฀reis฀nesse฀mundo.฀Ele฀ não฀pode฀ser฀qualificado฀de฀defensor฀de฀um฀regime฀“hierocrático”.฀Os฀ bispos฀poderiam,฀segundo฀ele,฀estar฀à฀escuta฀dos฀reis,฀aconselhá-los,฀ mas฀jamais฀assumir฀a฀postura฀de฀gerentes฀do฀poder.฀Por฀outro฀lado,฀há฀ na฀visão฀de฀Gregório฀limites฀que฀um฀rei,฀por฀mais฀poderoso฀e฀santo฀ que฀fosse,฀não฀poderia฀jamais฀ultrapassar.฀Defensor฀da฀“Realeza฀Cristã”,฀Gregório฀se฀opunha฀à฀idéia฀e฀à฀prática฀de฀uma฀realeza฀em฀que฀os฀ poderes฀do฀rei฀fossem฀absolutos.฀Ele฀também฀não฀buscou฀dissimular฀a฀ atração฀que฀essa฀“Realeza฀Constantiniana”฀exercia฀sobre฀os฀príncipes฀ merovíngios.฀ Aliás,฀ a฀ existência฀ de฀ tais฀ práticas฀ possui฀ uma฀ função฀ pedagógica฀em฀sua฀obra:฀mostrar,฀através฀do฀choque฀entre฀os฀reis฀que฀ obedeciam฀aos฀preceitos฀dos฀bispos฀e฀os฀reis฀que฀não฀obedeciam฀a฀eles,฀ o฀triunfo฀dos฀primeiros.฀Da฀mesma฀maneira,฀os฀clérigos,฀respeitosos฀ diante฀das฀atribuições฀temporais฀do฀rei,฀deveriam฀evitar฀desobedecer฀ ao฀rei฀nesse฀domínio. Em฀um฀colóquio฀internacional฀ocorrido฀no฀final฀dos฀anos฀1980,฀K.F.฀ Werner฀sustentou฀que฀o฀papel฀de฀Gregório฀de฀Tours฀nos฀trabalhos฀sobre฀o฀período฀franco฀era฀excessivo;฀seria฀necessário,฀segundo฀ele,฀retirar฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀229 a฀história฀franca฀do฀“controle”฀do฀bispo฀de฀Tours124.฀Essa฀é฀uma฀tarefa฀ difícil.฀Boa฀parte฀das฀informações฀disponíveis฀sobre฀a฀Gália฀merovíngia,฀ sobretudo฀no฀que฀se฀refere฀ao฀século฀VI,฀deve-se฀aos฀escritos฀do฀bispo฀ de฀Tours.฀Em฀uma฀época฀na฀Gália฀onde฀a฀produção฀historiográfica฀se฀ resumia฀na฀maior฀parte฀do฀tempo฀a฀crônicas฀de฀eventos฀cujo฀alcance฀ raramente฀ultrapassava฀os฀limites฀regionais,฀Gregório฀foi฀um฀inovador:฀ com฀os฀Decem฀Libri฀Historiarum,฀ele฀pretendeu฀escrever฀uma฀“história฀universal”.฀Mas฀é฀na฀própria฀natureza฀dessa฀“história฀universal”฀que฀ reside฀a฀raiz฀das฀críticas฀dos฀historiadores:฀segundo฀A.H.B.฀Breukelaar,฀ por฀exemplo,฀esse฀texto฀constituiria฀um฀artefato฀literário,฀um฀instrumento฀para฀o฀estabelecimento฀e฀para฀a฀legitimação฀do฀poder฀episcopal฀ na฀ Gália,฀ através฀ da฀ qual฀ teria฀ sido฀ expresso฀ o฀ monopólio฀ episcopal฀ sobre฀o฀sagrado฀e฀sobre฀as฀relações฀políticas.฀Em฀suma,฀a฀obra฀de฀Gregório฀seria฀um฀manual฀destinado฀a฀servir฀e฀a฀confortar฀as฀posições฀dos฀ bispos125.฀ As฀Histórias฀constituem฀mais฀do฀que฀apenas฀um฀testemunho฀episcopal฀da฀Realeza฀Cristã฀no฀final฀do฀século฀VI.฀Ainda฀que฀Gregório฀de฀ Tours฀seja฀partidário฀de฀uma฀forma฀de฀governo฀fundada฀em฀princípios฀ cristãos฀e฀orientada฀pelos฀conselhos฀dos฀bispos,฀sua฀narrativa฀permite฀ observar฀a฀existência฀de฀outros฀projetos฀políticos,฀como฀o฀da฀“Realeza฀ Constantiniana”.฀ A฀ visão฀ episcopal฀ da฀ realeza฀ que฀ ele฀ exprime฀ várias฀ vezes฀não฀o฀impede฀de฀descrever฀os฀conflitos฀e฀as฀contradições฀no฀seio฀ da฀ monarquia฀ franca.฀ Sua฀ visão฀ crítica฀ e฀ algumas฀ vezes฀ irônica฀ –฀ que฀ parece฀servir฀para฀mostrar฀o฀quanto฀tal฀ou฀tal฀rei฀estava฀longe฀do฀modelo฀ ideal฀ de฀ príncipe฀ –฀ resulta฀ em฀ uma฀ descrição฀ do฀ governo฀ merovíngio฀ que฀é฀bastante฀útil฀ao฀historiador.฀Quando฀Gregório฀apresenta฀o฀modelo฀ e฀o฀“antimodelo”฀do฀rei฀cristão฀ideal,฀opõe฀a฀“Realeza฀Cristã”฀à฀“Realeza฀ Constantiniana”.฀ Seu฀ estilo฀ é฀ marcado฀ pela฀ dicotomia,฀ pela฀ oposição฀ sistemática฀ entre฀ dois฀ modelos฀ de฀ príncipes,฀ mas฀ não฀ é฀ maniqueísta.฀ 124 ฀K.F.฀Werner,฀“Faire฀revivre฀le฀souvenir฀d’un฀pays฀oublié:฀La฀Neustrie”,฀pp.XIII-XXXI.฀ ฀A.H.B.฀Breukelaar,฀Historiography฀and฀episcopal฀authority฀in฀sixth-century฀Gaul,฀p.฀227.฀ 125 230฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Mesmo฀quando฀descreve฀aquele฀que฀considera฀como฀o฀príncipe฀ideal,฀ Gontrão,฀o฀bispo฀de฀Tours฀não฀busca฀esconder฀seus฀erros.฀É,฀portanto,฀ nos฀interstícios฀de฀um฀relato฀à฀primeira฀vista฀comprometido฀com฀uma฀ visão฀providencial฀da฀história฀que฀se฀devem฀buscar฀os฀elementos฀para฀se฀ reconstituir฀a฀história฀da฀monarquia฀franca.฀฀฀ Na฀Gália,฀ao฀longo฀do฀século฀VI,฀os฀escritos฀episcopais฀são฀marcados,฀ em฀graus฀variados,฀por฀duas฀idéias฀principais.฀A฀primeira฀é฀a฀defesa฀veemente฀do฀princípio฀segundo฀o฀qual฀os฀reis฀deveriam฀aprender฀com฀os฀ bispos฀a฀maneira฀mais฀justa฀de฀governar฀o฀reino.฀A฀segunda฀idéia,฀uma฀ decorrência฀da฀primeira,฀é฀a฀de฀que฀o฀objetivo฀da฀realeza฀seria฀criar฀as฀ condições฀que฀favorecessem฀a฀salvação฀das฀almas.฀Com฀efeito,฀em฀várias฀ ocasiões฀ao฀longo฀do฀século฀VI,฀os฀reis฀francos฀foram฀exortados฀a฀exercer฀ um฀governo฀cristão,฀com฀auxilio฀episcopal,฀cujo฀fim฀era฀a฀realização฀da฀ salvação.฀No฀entanto,฀essas฀exortações฀não฀explicam฀por฀si฀sós฀a฀emergência฀da฀Realeza฀Cristã.฀Não฀se฀pode฀confundir฀aquilo฀que฀os฀bispos฀ esperavam฀ da฀ autoridade฀ real฀ com฀ a฀ natureza฀ e฀ a฀ ação฀ dessa฀ mesma฀ autoridade.฀Resta฀saber฀em฀que฀medida฀as฀exortações฀dos฀bispos฀foram฀ acompanhadas฀de฀uma฀transformação฀no฀exercício฀da฀autoridade฀pública฀por฀Clóvis฀e฀seus฀sucessores. Capítulo฀II As฀guerras฀civis฀e฀a฀ascensão฀do฀episcopado฀(561-614) As฀guerras฀civis฀que฀assolaram฀o฀Regnum฀Francorum฀desde฀a฀morte฀ de฀Clotário฀I,฀em฀561,฀até฀o฀ano฀de฀613,฀alteraram฀sgnificativamente฀as฀ relações฀ entre฀ a฀ realeza฀ e฀ as฀ aristocracias฀ laica฀ e฀ eclesiástica,฀ e฀ contribuíram฀ para฀ o฀ aumento฀ da฀ importância฀ dos฀ bispos฀ e฀ dos฀ grandes฀ no฀ edifício฀ político฀ franco.฀ Pretende-se฀ abordar฀ nas฀ páginas฀ seguintes฀ a฀ evolução,฀ao฀longo฀das฀guerras฀civis฀e฀em฀cada฀uma฀das฀partes฀(regna)฀ do฀Reino฀dos฀Francos,฀das฀práticas฀do฀poder฀real฀em฀face฀do฀episcopado.฀ A฀convocação฀de฀assembléias฀episcopais฀de฀caráter฀legislativo฀aparece,฀ especialmente฀a฀partir฀da฀segunda฀metade฀do฀seculo฀VI,฀como฀uma฀prática฀recorrente฀do฀poder฀real฀na฀Burgúndia,฀governada฀por฀Gontrão.฀O฀ mesmo฀não฀se฀verifica,฀por฀outro฀lado,฀nas฀regiões฀do฀Reino฀dos฀Francos฀ sob฀a฀autoridade฀de฀Chilperico:฀nelas,฀os฀únicos฀concílios฀convocados฀ tinham฀por฀função฀julgar฀bispos฀acusados฀de฀traição,฀como฀foi฀o฀caso฀ de฀Pretextatus฀de฀Rouen฀e฀de฀Gregório฀de฀Tours.฀A฀partir฀do฀início฀das฀ guerras฀civis,฀os฀reis฀francos฀oscilaram฀entre฀duas฀vias฀distintas฀de฀afirmacão฀de฀sua฀legitimidade:฀a฀aproximação฀diplomática฀e฀militar฀com฀o฀ Império฀e฀com฀suas฀práticas฀políticas฀e,฀por฀outro฀lado,฀a฀integração฀do฀ 232฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média episcopado฀e฀de฀seus฀valores฀político-morais฀ao฀exercício฀do฀poder฀real.฀ As฀guerras฀civis฀estão฀no฀centro฀dessa฀grande฀mudança฀política฀que฀se฀ situa฀na฀década฀de฀580,฀e฀que฀consagrou฀a฀emergência฀da฀Realeza฀Cristã฀como฀um฀projeto฀político฀viável,฀da฀mesma฀maneira฀que฀a฀Realeza฀ Constantiniana฀havia฀sido฀até฀então.฀฀ ฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ Bella฀civilia “É฀difícil฀para฀mim฀evocar฀os฀vicissitudes฀das฀guerras฀civis฀(bella฀civilia)฀ que฀muito฀esgotam฀a฀nação฀e฀o฀Reino฀dos฀Francos.฀E฀o฀que฀é฀pior,฀vemos,฀ chegar฀o฀tempo฀que฀o฀Senhor฀predisse฀que฀será฀o฀começo฀das฀dores:฀‘O฀pai฀se฀ levantará฀contra฀o฀filho,฀o฀filho฀contra฀o฀pai,฀o฀irmão฀contra฀o฀irmão,฀o฀próximo฀contra฀o฀próximo’.฀Eles฀deviam,฀realmente,฀estar฀amedrontados฀pelos฀ exemplos฀ dos฀ reis฀ precedentes฀ que,฀ estando฀ divididos,฀ foram฀ mortos฀ pelos฀ inimigos.฀Todas฀as฀vezes฀também฀que฀a฀própria฀cidade฀das฀cidades,฀a฀capital฀ do฀mundo฀inteiro฀se฀lançou฀nas฀guerras฀civis,฀ela฀desmoronou;฀quando฀elas฀ cessaram,฀ela฀novamente฀emergiu฀da฀terra.฀Possais฀vós฀também,฀ó฀Reis,฀vos฀ conduzir฀em฀combates฀tais฀como฀aqueles฀que฀vossos฀ancestrais฀livraram฀com฀ o฀suor฀de฀seus฀rostos฀para฀que฀as฀nações,฀amedrontadas฀pela฀paz฀reinando฀ entre฀vós,฀sejam฀subjugadas฀por฀vossa฀força!”1.฀ ฀ ฀ Essas฀linhas฀são฀a฀constatação฀mais฀pessimista฀feita฀por฀Gregório฀de฀ Tours฀sobre฀a฀situação฀do฀Regnum฀Francorum฀no฀século฀VI;฀elas฀constituem฀também฀uma฀advertência.฀Através฀do฀exemplo฀de฀Roma,฀o฀bispo฀ de฀Tours฀queria฀alertar฀os฀reis฀merovíngios฀contra฀o฀risco฀dos฀conflitos฀ internos.฀ Eles฀ debilitam฀ o฀ reino,฀ dizia฀ ele,฀ e฀ absorvem฀ toda฀ a฀ energia฀ que฀ poderia฀ ser฀ utilizada฀ contra฀ os฀ inimigos฀ externos.฀ Nas฀ Histórias,฀ Gregório฀não฀cessou฀de฀relatar฀as฀disputas฀no฀seio฀da฀dinastia฀merovíngia฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀como฀a฀tentativa฀de฀assassinato฀ de฀Clotário฀I฀por฀seu฀meio-irmão฀Teuderico฀I2,฀ou฀ainda฀a฀rebelião฀de฀ 1 ฀Histórias฀V,฀prefácio.฀ ฀Histórias฀III,฀7. 2 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀233 Chram฀ contra฀ seu฀ pai฀ Clotário฀ I3.฀ Todavia,฀ ao฀ escrever฀ o฀ texto฀ acima,฀ Gregório฀ chama฀ a฀ atenção฀ para฀ a฀ especificidade฀ desses฀ conflitos,฀ cujo฀ desfecho,฀inclusive,฀ele฀não฀conheceu,฀tendo฀falecido฀cerca฀de฀dez฀anos฀ antes:฀tratava-se฀de฀“guerras฀civis”฀(bella฀civilia),฀no฀plural,฀e฀não฀apenas฀ uma฀“guerra฀civil”.฀De฀fato,฀o฀fim฀do฀reinado฀de฀Clotário฀I฀constituiu฀ uma฀ reviravolta฀ na฀ história฀ do฀ Regnum฀ Francorum:฀ foi฀ o฀ começo฀ de฀ uma฀ série฀ de฀ conflitos฀ endêmicos,฀ entrecortados฀ por฀ períodos฀ de฀ paz฀ relativa,฀em฀que฀se฀opuseram฀os฀príncipes฀francos฀durante฀mais฀de฀cinqüenta฀anos.฀Daí฀a฀necessidade,฀bem฀observada฀por฀Gregório,฀de฀se฀falar฀ em฀“guerras฀civis”฀no฀plural.฀ Apesar฀desses฀conflitos,฀a฀segunda฀metade฀do฀século฀VI฀não฀foi฀marcada฀pela฀“decadência”฀que฀normalmente฀se฀associa฀ao฀mundo฀franco.฀ Ao฀ contrário,฀ foi฀ um฀ período฀ que฀ marcou฀ a฀ afirmação฀ do฀ Reino฀ dos฀ Francos฀ como฀ a฀ potência฀ hegemônica฀ do฀ Mediterrâneo฀ Ocidental.฀ O฀ tom฀pessimista฀usado฀por฀Gregório฀de฀Tours฀pode฀ser฀em฀parte฀creditado฀ao฀comportamento฀típico฀de฀um฀clérigo฀que฀acreditava฀na฀decadência฀inelutável฀do฀mundo฀que฀anunciaria฀o฀fim฀dos฀tempos฀e฀a฀vinda฀do฀ Messias.฀O฀texto฀era฀também฀uma฀admoestação,฀um฀alerta฀para฀que฀os฀ conflitos฀cessassem,฀pois,฀paralelamente฀ao฀teólogo฀que฀estava฀convencido฀do฀caráter฀efêmero฀da฀história฀humana฀sobre฀a฀terra,฀havia฀também฀ o฀alto฀funcionário฀que฀se฀preocupava฀com฀a฀unidade฀de฀sua฀“pátria”,฀o฀ Reino฀dos฀Francos.฀Sua฀obra฀testemunha,฀por฀outro฀lado,฀o฀fato฀de฀que฀ as฀guerras฀civis฀não฀absorveram฀todas฀as฀energias฀dos฀reis฀merovíngios.฀ O฀próprio฀Gregório฀menciona฀as฀campanhas฀conduzidas฀por฀Sigeberto฀ contra฀os฀ávaros,฀por฀Gontrão฀contra฀os฀visigodos,฀ou฀ainda฀as฀campanhas฀de฀Childeberto฀II฀na฀Itália.฀Ao฀lado฀dessas฀atividades฀militares,฀nem฀ todas฀bem฀sucedidas,฀diga-se฀de฀passagem,฀houve฀igualmente฀uma฀intensa฀atividade฀diplomática,฀da฀qual฀testemunham฀as฀embaixadas฀enviadas฀pela฀corte฀de฀Metz฀e฀pela฀corte฀de฀Soissons฀a฀Bizâncio4.฀A฀expedição฀ 3 ฀Histórias฀IV,฀16,฀17฀e฀20.฀ ฀Ver฀P.฀Goubert,฀Byzance฀avant฀L’Islam,฀t.฀II.฀Byzance฀et฀l’Occident฀sous฀les฀successeurs฀de฀ Justinien,฀1,฀Byzance฀et฀les฀Francs,฀p.฀16.฀ 4 234฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀Gondovaldo฀na฀Gália,฀na฀qual฀o฀papel฀da฀corte฀de฀Bizâncio฀é฀ainda฀ obscuro,฀ ilustra฀ melhor฀ do฀ que฀ qualquer฀ outro฀ evento฀ a฀ efervecência฀ política฀desse฀final฀do฀seculo฀VI.฀O฀Reino฀dos฀Francos฀permanecia,฀apesar฀das฀guerras฀civis,฀uma฀potência฀de฀escala฀“européia”,฀como฀mostram฀ as฀demandas฀da฀corte฀imperial฀por฀um฀lado,฀e฀dos฀lombardos฀por฀outro,฀ para฀que฀os฀príncipes฀merovíngios฀interviessem฀nos฀conflitos฀na฀Península฀italiana5.฀฀฀฀฀฀ Felizmente฀para฀os฀estudiosos฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀VI,฀as฀ fontes฀narrativas฀são฀mais฀loquazes฀sobre฀os฀netos฀de฀Clóvis฀que฀sobre฀ seus฀filhos.฀Graças฀notadamente฀a฀Gregório฀de฀Tours,฀o฀período฀compreendido฀entre฀561฀e฀o฀princípio฀dos฀anos฀590฀é฀menos฀obscuro฀que฀o฀ período฀que฀vai฀da฀morte฀de฀Clóvis฀à฀de฀Clotário฀I.฀No฀que฀se฀refere฀ao฀ desenrolar฀ do฀ conflito฀ propriamente฀ dito,฀ a฀ principal฀ testemunha฀ é฀ o฀ quarto฀livro฀das฀crônicas฀de฀Fredegário.฀ Pode-se฀ reagrupar,฀ grosso฀ modo,฀ o฀ longo฀ período฀ das฀ guerras฀ civis฀ em฀quatro฀fases฀distintas,฀cada฀uma฀delas฀marcada฀senão฀pelo฀predomínio,฀pelo฀menos฀pelas฀iniciativas฀de฀um฀dos฀regna.฀Assim,฀o฀primeiro฀ período,฀que฀vai฀de฀561฀a฀575,฀caracteriza-se฀pelo฀protagonismo฀da฀antiga฀ Francia฀ Rhinensis฀ (mais฀ tarde฀ chamada฀ de฀ Austrásia),฀ o฀ segundo฀ período,฀ compreendido฀ entre฀ 575฀ e฀ 584,฀ é฀ dominado฀ pelas฀ iniciativas฀ da฀corte฀de฀Soissons฀(capital฀do฀reino฀de฀Chilperico,฀a฀futura฀Nêustria);฀ o฀terceiro฀período,฀que฀vai฀de฀584฀a฀592,฀corresponde฀à฀hegemonia฀da฀ Burgúndia;฀ o฀ quarto,฀ situado฀ entre฀ 592฀ e฀ 612,฀ é฀ dominado฀ pelo฀ eixo฀ Austrásia-Burgúndia;฀ finalmente,฀ os฀ anos฀ de฀ 613-614,฀ correspondem฀ à฀vitória฀de฀Clotário฀II฀e฀à฀consolidação฀do฀eixo฀Austrásia-Burgúndia.฀ As฀constantes฀modificações฀do฀equilíbrio฀militar,฀assim฀como฀as฀reviravoltas฀nas฀alianças฀entre฀os฀príncipes฀merovíngios฀fazem฀com฀que฀a฀ reconstituição฀desses฀conflitos฀seja฀bastante฀difícil฀e฀irremediavelmente฀ lacunar฀ em฀ vários฀ aspectos.฀ Alguns฀ historiadores,฀ como฀ G.฀ Tessier,฀ 5 ฀Ver,฀a฀esse฀respeito,฀P.฀Goubert,฀Byzance฀avant฀L’Islam,฀t.฀II:฀Byzance฀et฀l’Occident฀sous฀les฀ successeurs฀de฀Justinien,฀1,฀Byzance฀et฀les฀Francs,฀p.฀82;฀e฀também,฀E.฀Ewig,฀Das฀Merowinger฀ und฀das฀Imperium,฀p.฀26.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀235 diante฀da฀complexidade฀dessa฀cronologia,฀preferem,฀inclusive,฀remeter฀o฀ leitor฀a฀outros฀textos6.฀Optou-se฀nas฀páginas฀seguintes฀por฀um฀enfoque฀ que฀privilegia฀as฀relações฀dos฀reis฀merovíngios฀com฀o฀episcopado฀e฀com฀ o฀Império฀em฀cada฀um฀dos฀principais฀regna฀que฀constituíam฀o฀Reino฀ dos฀Francos฀nos฀séculos฀VI฀e฀VII:฀a฀Austrásia,฀a฀Nêustria฀e฀a฀Burgúndia.฀฀ A฀Austrásia฀(561-575) Durante฀os฀primeiros฀anos฀de฀seu฀reinado,฀Sigeberto฀defendeu฀eficazmente฀ as฀ fronteiras฀ orientais฀ da฀ Austrásia฀ contra฀ os฀ ávaros7,฀ mas฀ também฀ contra฀ Chilperico,฀ que฀ considerava฀ ter฀ sido฀ prejudicado฀ pela฀ partilha฀de฀561.฀Seu฀casamento,฀em฀566,฀com฀Brunilda,฀filha฀do฀rei฀visigodo฀Atanagildo฀(c.554-567),฀tem฀um฀duplo฀significado:฀era฀um฀meio฀ de฀firmar฀aliança฀com฀uma฀das฀mais฀poderosas฀monarquias฀da฀pars฀occidentis,฀e฀também฀uma฀das฀mais฀romanizadas.฀Além฀disso,฀o฀casamento฀ permitiu฀que฀ele฀se฀demarcasse฀claramente฀de฀seus฀irmãos฀que,฀como฀ afirma฀ Gregório,฀ estavam฀ unidos฀ a฀ mulheres฀“indignas”8.฀ Pelo฀ menos฀ no฀que฀se฀refere฀a฀esse฀último฀objetivo,฀a฀estratégia฀de฀Sigeberto฀foi฀coroada฀de฀êxito.฀O฀bispo฀de฀Tours฀comparou-o฀ao฀“bom฀rei฀Gontrão”,฀que฀ tinha฀como฀concubina฀uma฀criada9,฀e฀a฀Cariberto,฀que฀havia฀repudiado฀ a฀esposa฀para฀unir-se฀à฀filha฀de฀um฀artesão,฀e฀em฀seguida฀à฀filha฀de฀um฀ pastor10.฀Em฀contraste,฀Sigeberto,฀tinha฀tomado฀como฀esposa฀“...uma฀jovem฀elegante฀em฀suas฀maneiras,฀bela,฀honesta฀e฀distinta฀em฀seus฀costumes,฀ 6 ฀G.฀Tessier,฀Le฀baptême฀de฀Clovis,฀p.฀195:฀“Sente-se฀algum฀escrúpulo฀em฀entrar฀nos฀detalhes฀ de฀uma฀história฀puramente฀factual,฀caída฀hoje,฀merecida฀ou฀imerecidamente,฀no฀mais฀completo฀ descrédito...฀Assim,฀temos฀vontade฀de฀enviar฀pura฀e฀simplesmente฀o฀leitor฀a฀Augustin฀Thierry฀e฀a฀ seus฀‘Récits฀des฀temps฀mérovingiens’”. 7 ฀Sobre฀as฀campanhas฀de฀Sigeberto฀contra฀os฀ávaros,฀ver฀Histórias฀IV,฀23฀e฀29.฀ 8 ฀Histórias฀IV,฀27.฀฀ 9 ฀Histórias฀฀IV,฀25.฀฀฀฀฀ 10 ฀Histórias฀฀IV,฀26.฀ 236฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média sábia฀em฀sua฀conduta฀e฀agradável฀em฀sua฀conversação”11.฀O฀fato฀de฀que฀ Chilperico฀tenha฀se฀apressado฀em฀solicitar฀ao฀rei฀Atanagildo฀a฀autorização฀para฀esposar฀a฀irmã฀de฀Brunilda,฀mostra฀o฀impacto฀provocado฀pelo฀ casamento฀de฀Sigeberto.฀ De฀acordo฀com฀P.฀Goubert,฀convertida฀ao฀catolicismo,฀a฀rainha฀Brunilda฀ tornou-se฀ um฀ dos฀ mais฀ firmes฀ apoios฀ à฀ política฀ pontifícia,฀ que฀ pretendia฀uma฀união฀mais฀estreita฀das฀realezas฀ocidentais฀com฀Bizâncio.฀ A฀rainha฀teria฀desejado฀uma฀espécie฀de฀“federação”฀de฀povos฀católicos฀ gravitando฀em฀torno฀do฀Império,฀que฀neutralizaria฀a฀ação฀das฀nações฀ ainda฀arianas฀ou฀pagãs,฀como฀era฀ainda฀o฀caso฀da฀Espanha12.฀Os฀indícios฀ de฀ que฀ Brunilda฀ acalentava฀ esse฀ ambicioso฀ projeto฀ estão฀ longe฀ de฀ ser฀ conclusivos;฀no฀entanto,฀seu฀casamento฀com฀Sigeberto฀contribuiu฀para฀ estreitar฀os฀laços฀entre฀a฀corte฀austrasiana฀e฀o฀Império.฀Uma฀embaixada฀ foi฀ enviada฀ por฀ Sigeberto฀ a฀ Constantinopla฀ por฀ volta฀ de฀ 571-573.฀ Os฀ embaixadores฀ eram฀Warmarius฀ e฀ o฀ duque฀ de฀ Clermont,฀ Firminus,฀ os฀ mesmos฀que฀tinham,฀por฀volta฀de฀567,฀tentado฀retirar฀a฀cidade฀de฀Arles฀ das฀mãos฀do฀rei฀da฀Burgúndia13.฀Isso฀mostra฀que฀Sigeberto฀talvez฀buscasse฀o฀apoio฀político฀e฀talvez฀até฀mesmo฀militar฀do฀imperador฀contra฀o฀ rei฀Gontrão.฀Pela฀sua฀experiência฀na฀Provença,฀Firminus฀era฀capaz฀de฀expôr฀as฀reivindicações฀de฀Sigeberto฀sobre฀o฀Vale฀do฀Ródano14.฀De฀acordo฀ com฀Gregório฀de฀Tours,฀depois฀de฀uma฀longa฀viagem,฀os฀embaixadores฀ austrasianos฀ chegaram฀ à฀ cidade฀ de฀ Constantinopla฀ e,฀ depois฀ de฀ uma฀ audiência฀com฀o฀imperador,฀firmaram฀um฀acordo฀de฀paz: “O฀rei฀Sigeberto฀enviou฀embaixadores฀ao฀imperador฀Justino฀para฀pedir฀a฀ paz;฀eram฀o฀franco฀Warmário฀e฀o฀auvérnio฀Firminus.฀Eles฀viajaram฀em฀um฀ 11 ฀Histórias฀IV,฀27.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ ฀Ver฀P.฀Goubert,฀Byzance฀et฀les฀Francs,฀p.฀18;฀e฀também,฀E.฀Ewig,฀Das฀Merowinger฀und฀das฀ Imperium,฀pp.฀26-27.฀ 13 ฀Histórias฀IV,฀30:฀“O฀rei฀Sigeberto,฀desejoso฀de฀tomar฀a฀cidade฀de฀Arles,฀mobilizou฀os฀auvérnios.฀ O฀conde฀da฀cidade฀de฀Clermont฀era฀então฀Firminus฀que฀partiu฀à฀frente฀deles”.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 14 ฀P.฀Goubert,฀Byzance฀et฀les฀Francs,฀p.฀17. 12 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀237 transporte฀ naval,฀ entraram฀ em฀ Constantinopla,฀ em฀ seguida฀ após฀ terem฀ se฀ entrevisto฀com฀o฀imperador,฀obtiveram฀o฀que฀haviam฀pedido”15.฀ Esse฀texto฀é฀bastante฀vago฀sobre฀o฀assunto,฀e฀nada฀permite฀dizer฀que฀ a฀“paz”฀com฀o฀Império฀tenha฀sido฀seguida฀de฀ajuda฀militar฀à฀Austrásia.฀ Todavia,฀essa฀embaixada฀chegou฀a฀Constantinopla฀em฀um฀momento฀em฀ que฀Sigeberto฀e฀Gontrão฀se฀encontravam฀na฀eminência฀de฀um฀conflito฀ armado.฀Durante฀todo฀o฀reinado฀de฀Sigeberto,฀a฀política฀externa฀austrasiana฀mostrou-se฀hesitante฀entre,฀por฀um฀lado,฀a฀aproximação฀com฀ a฀Espanha฀visigótica฀e฀com฀o฀Império฀e,฀por฀outro,฀com฀a฀Burgúndia.฀A฀ prioridade฀dada฀ao฀conflito฀com฀Chilperico฀acabou฀por฀prejudicar฀os฀ entendimentos฀diplomáticos฀com฀o฀Império,฀pelo฀menos฀sob฀o฀reinado฀ de฀ Sigeberto:฀ um฀ acordo฀ com฀ Gontrão฀ era฀ indispensável฀ para฀ que฀ os฀ austrasianos฀pudessem฀fazer฀frente฀à฀agressão฀de฀Chilperico.฀A฀impossibilidade฀de฀um฀auxílio฀militar฀proveniente฀do฀Império฀–฀ocupado฀além฀ de฀tudo฀com฀invasão฀lombarda฀de฀seus฀domínios฀na฀Itália,฀a฀partir฀de฀ 567฀–฀pode฀ter฀convencido฀Sigeberto฀da฀necessidade฀de฀uma฀aliança฀com฀ Gontrão.฀ No฀ entanto,฀ as฀ relações฀ com฀ o฀ Oriente฀ foram฀ retomadas฀ e฀ intensificadas฀sob฀o฀reinado฀de฀Childeberto฀II,฀por฀iniciativa฀de฀Brunilda฀e฀ de฀seus฀partidários.฀O฀conflito฀com฀a฀Nêustria฀absorveu฀boa฀parte฀do฀ reinado฀de฀Sigeberto,฀e฀se฀traduziu฀igualmente฀por฀uma฀certa฀negligência฀em฀relação฀ao฀episcopado,฀sobretudo฀se฀comparada฀com฀a฀intensa฀ atividade฀conciliar฀na฀Burgúndia.฀Nenhum฀concílio฀foi฀convocado฀por฀ Sigeberto,฀nem฀mesmo฀uma฀assembléia฀conciliar฀regional.฀Isso฀não฀significa฀que฀tenha฀havido฀uma฀redução฀da฀ingerência฀nos฀assuntos฀eclesiásticos,฀como฀mostra฀a฀criação฀de฀um฀bispado฀em฀Châteaudun,฀civitas฀ que฀fazia฀parte฀de฀seu฀regnum,฀mas฀que฀pertencia฀à฀diocese฀de฀Chartres,฀ pertencente฀ao฀regnum฀de฀Gontrão.฀Em฀573,฀quando฀da฀morte฀do฀bispo฀ de฀ Chartres,฀ Chaletricus,฀ Pappolus฀ foi฀ eleito฀ seu฀ sucessor฀ segundo฀ as฀ 15 ฀Histórias฀IV,฀40.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 238฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média regras฀canônicas,฀ou฀seja,฀pelo฀“clero฀e฀pelo฀povo”฀com฀a฀aprovação฀do฀ rei฀ Gontrão.฀ Sigeberto฀ ordenou฀ que฀ o฀ bispo฀ metropolitano฀ de฀ Reims,฀ Aegidius,฀nomeasse฀Promotius฀bispo฀de฀Châteaudun16.฀A฀criação฀desse฀ episcopado฀transgrediu฀as฀regras฀conciliares฀que฀proibiam฀a฀um฀bispo฀ interferir฀nos฀assuntos฀de฀uma฀diocese฀estrangeira.฀Gontrão฀convocou฀ então฀um฀concílio฀em฀Paris฀para฀obter฀dos฀bispos฀a฀condenação฀de฀Sigeberto17.฀Pouco฀tempo฀depois,฀Sigeberto฀foi฀assassinado18.฀Ocupado฀durante฀a฀maioria฀de฀seus฀quatorze฀anos฀de฀reinado฀a฀combater฀as฀ameaças฀ que฀pesavam฀sobre฀a฀integridade฀territorial฀de฀seu฀reino,฀ele฀permaneceu฀ prisioneiro฀da฀estratégia฀que฀o฀forçava฀a฀compor฀com฀uma฀Burgúndia฀ “antivisigótica”฀ e฀“antibizantina”,฀ e฀ ao฀ mesmo฀ tempo฀ estabelecer฀ uma฀ aliança฀com฀a฀Espanha฀e฀com฀o฀Império.฀ A฀Nêustria฀(575-584) Entre฀todos฀os฀descendentes฀de฀Clóvis,฀Chilperico฀é฀aquele฀que฀possui฀ a฀pior฀reputação฀entre฀os฀historiadores฀modernos.฀Ele฀constitui฀na฀historiografia฀moderna฀o฀arquétipo฀da฀barbárie฀dos฀tempos฀merovíngios19.฀As฀ Histórias,฀como฀vimos฀no฀capítulo฀anterior,฀constituem฀a฀fonte฀principal฀ dessa฀“lenda฀negra”.฀Em฀561,฀nos฀dias฀que฀sucederam฀a฀morte฀de฀Clotário฀ I,฀Chilperico฀apoderou-se฀do฀tesouro฀real฀assim฀como฀da฀cidade฀de฀Paris20.฀ 16 ฀Ver฀Paris฀IV฀(573),฀Epistula฀synodi฀ad฀Egidium฀Remensem฀episcopum,฀e฀Epistula฀synodi฀ ad฀Sigebertum฀regem.฀ 17 ฀Histórias฀IV,฀47.฀F.฀Maassen฀acredita฀que฀essa฀assembléia฀conciliar฀corresponde฀ao฀Concílio฀ de฀Paris฀de฀573฀(Concilia฀aevi฀Merovingici,฀p.฀146).฀฀ 18 ฀Histórias฀IV,฀51.฀฀฀ 19 ฀G.฀Tessier,฀Le฀baptême฀de฀Clovis,฀p.192:฀“Ao฀lado฀de฀Gontrão,฀Chilperico฀aparece฀como฀impupulsivo,฀não฀somente฀cruel฀e฀depravado,฀mas฀ambicioso฀e฀cúpido,฀arredio฀a฀toda฀regra.฀Diríamos฀ mesmo฀ um฀ bruto฀ descontrolado.฀ Ainda฀ que฀ supersticioso,฀ ele฀ critica฀ os฀ bispos฀ e฀ se฀ apodera฀ do฀ patrimônio฀eclesiástico,฀o฀que฀também฀não฀o฀impede฀de฀pressionar฀seus฀súditos฀laicos฀recorrendo฀ a฀uma฀impiedosa฀fiscalidade.฀Esse฀desequilibrado,฀esse฀semi-selvagem฀tinha฀também฀pretensões฀ intelectuais฀que฀traduzem฀um฀gosto฀rudimentar,฀mas฀pouco฀esclarecido,฀pelas฀coisas฀do฀espírito”. 20 ฀Histórias฀IV,฀22.฀฀฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀239 Segundo฀A.฀Thierry,฀a฀conquista฀de฀Paris฀por฀Chilperico฀tinha฀para฀único฀ objetivo฀assegurar฀a฀posse฀do฀palácio฀impérial฀cujos฀edifícios฀e฀jardins฀se฀ encontravam฀nas฀margens฀meridionais฀do฀rio฀Sena,฀fora฀da฀cidade.฀“Esta฀ suposição”,฀diz-ele,฀“nada฀tem฀de฀improvável,฀pois฀as฀visões฀ambiciosas฀dos฀ reis฀francos฀não฀iam฀além฀da฀perspectiva฀de฀um฀lucro฀imediato฀e฀pessoal”21.฀ Contrariamente฀ao฀que฀sugere฀A.฀Thierry,฀é฀bastante฀provável฀que฀a฀conquista฀de฀Paris฀tenha฀sido฀fruto฀de฀considerações฀estratégicas฀e฀políticas.฀ Durante฀todo฀o฀seu฀reinado,฀Chilperico฀buscou฀aumentar฀seus฀domínios฀ à฀custa฀dos฀outros฀regna฀francos.฀Em฀razão฀de฀sua฀posição฀central฀e฀de฀ suas฀fortificações,฀Paris฀era฀necessária฀como฀base฀para฀seus฀movimentos฀ militares฀posteriores.฀Ela฀era฀também฀um฀santuário฀da฀monarquia,฀o฀lugar฀onde฀Clóvis฀e฀Santa฀Genoveva฀tinham฀sido฀enterrados.฀O฀fato฀de฀que฀ Chilperico฀era฀o฀mais฀velho฀dos฀filhos฀de฀Clotário฀pode฀ter-lhe฀dado฀a฀ impressão฀de฀que฀por฀direito฀ele฀era฀o฀único฀herdeiro฀do฀Regnum฀Francorum.฀Ao฀tomar฀posse฀do฀tesouro฀e฀da฀capital฀reais,฀ele฀recusava฀um฀arranjo฀ como฀aquele฀de฀511฀que฀tinha฀feito฀de฀Clodomiro,฀de฀Childeberto฀e฀de฀ Clotário฀os฀herdeiros฀de฀Clóvis฀ao฀lado฀do฀primogênito,฀Teuderico.฀ Venâncio฀Fortunato,฀no฀poema฀dedicado฀a฀Chilperico,฀como฀vimos฀ anteriormente,฀ressalta฀o฀afeto฀particular฀de฀Clotário฀em฀relação฀ao฀seu฀ primogênito:฀“Sobre฀vós,฀meu฀caro,฀repousavam฀todas฀as฀esperanças฀de฀pai,฀ entre฀tantos฀irmãos,฀somente฀vós฀tendes฀seu฀amor”22.฀É฀provável฀que฀a฀poesia฀de฀Fortunato฀refletisse฀opinião฀predominante฀na฀corte฀de฀Soissons.฀ As฀relações฀privilegiadas฀com฀o฀pai,฀na฀linguagem฀de฀Fortunato,฀podem฀ explicar฀o฀papel฀que฀Chilperico฀acreditava฀ser฀o฀seu฀dentre฀todos฀os฀outros฀ príncipes฀francos.฀Ele฀aparece฀nos฀poemas฀de฀Fortunato฀como฀o฀mais฀importante฀dentre฀os฀filhos฀de฀Clotário,฀vítima฀do฀ciúme฀de฀seus฀irmãos23.฀฀฀ 21 ฀A.฀Thierry,฀Récits฀des฀temps฀mérovingiens,฀p.฀30.฀฀฀ ฀Carmina฀IX,฀1,฀versos฀31-34.฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 23 ฀Ibid.,฀versos฀40-44:฀“Vós฀crescestes฀sob฀os฀melhores฀auspícios,฀o฀maior฀príncipe,฀constante฀ em฀vosso฀amor฀por฀vosso฀pai.฀Mas฀de฀súbito฀o฀destino,฀ciumento฀de฀tais฀qualidades,฀procurando฀perturbar฀a฀paz฀de฀vosso฀reinado฀e฀perturbando฀a฀predisposição฀das฀pessoas฀em฀relação฀a฀ vós฀e฀os฀acordos฀de฀vossos฀irmãos฀conseguiram฀em฀sua฀tentativa฀de฀vos฀destronar”.฀฀฀฀฀฀฀ 22 240฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Se฀Chilperico฀apressou-se฀em฀tomar฀posse฀do฀tesouro฀real,฀era฀porque฀ buscava฀ um฀ meio฀ de฀ obter,฀ ou฀ melhor,฀ de฀ remunerar฀ a฀ lealdade฀ dos฀grandes.฀A฀partir฀de฀Paris,฀ele฀tinha฀acesso฀às฀antigas฀terras฀do฀fisco฀ romano.฀ Contudo,฀ não฀ se฀ pode฀ perder฀ de฀ vista฀ que฀ a฀ posse฀ de฀ meios฀ materiais฀constituía฀uma฀condição฀necessária฀para฀a฀tomada฀do฀poder฀ entre฀os฀francos,฀mas฀em฀nenhum฀caso฀era฀uma฀condição฀suficiente.฀É฀ possível฀que฀os฀argumentos฀que฀Chilperico฀apresentou฀aos฀grandes฀do฀ reino฀para฀atraí-los฀para฀a฀sua฀causa฀fossem฀semelhantes฀aos฀que฀Fortunato฀expôs฀em฀seu฀poema.฀Ele฀provavelmente฀tenham฀mencionado฀suas฀ relações฀privilegiadas฀com฀Clotário,฀e฀o฀fato฀de฀que,฀como฀primogênito,฀ tinha฀direito฀aos฀mesmos฀privilégios฀que฀outrora฀foram฀concedidos฀a฀ Teuderico฀após฀a฀morte฀de฀Clóvis,฀os฀quais฀incluíam฀a฀Francia฀Rhinensis,฀ berço฀da฀família฀merovíngia.฀฀฀ A฀intervenção฀simultânea฀de฀seus฀meios-irmãos฀forçou฀a฀uma฀nova฀ partilha,฀na฀qual฀Chilperico฀obteve฀um฀número฀menor฀de฀civitates฀que฀ seus฀irmãos.฀Toda฀a฀política฀de฀Chilperico,฀até฀morte฀de฀Cariberto,฀em฀ 567,฀tem฀sido฀marcada฀por฀iniciativas฀militares฀com฀o฀objetivo฀de฀recuperar฀as฀civitates฀perdidas฀durante฀essa฀partilha.฀Uma฀nova฀partilha฀do฀ Regnum฀Francorum,฀ocorrida฀após฀a฀morte฀de฀Cariberto,฀em฀567,฀tentou฀ dar฀alguma฀estabilidade฀para฀o฀reino:฀tendo฀sido฀o฀maior฀prejudicado฀ com฀a฀partilha฀de฀561,฀Chilperico฀conseguiu฀obter฀compensações,฀especialmente฀na฀Aquitânia.฀Contudo,฀os฀conflitos฀não฀diminuíram,฀eles฀ somente฀ganharam฀uma฀outra฀dimensão.฀Gontrão฀e฀Sigeberto,฀julgando฀ que฀Chilperico฀tinha฀ordenado฀o฀assassinato฀de฀Galswinta,฀invadiram฀ o฀regnum฀de฀Soissons฀e,฀segundo฀Gregório฀de฀Tours฀e฀Fortunato,฀o฀destronaram24.฀ 24 ฀Histórias฀IV,฀28.฀Se฀Gregório฀de฀Tours฀e฀Venâncio฀Fortunato฀(Carmina฀฀IX,฀1,฀versos฀41-44)฀ sugerem฀ que฀ Chilperico฀ foi฀ destituído,฀ no฀ Liber฀ Historiae฀ Francorum,฀ a฀ versão฀ dos฀ fatos฀ é฀ bastante฀diferente.฀O฀autor฀dessa฀obra฀afirma฀que฀Gontrão฀e฀Sigeberto฀pretendiam฀destronar฀ Chilperico,฀mas฀nada฀diz฀sobre฀o฀sucesso฀de฀sua฀empreitada฀(Liber,฀c.฀31).฀Segundo฀o฀texto฀ do฀Pacto฀de฀Andelot,฀Chilperico฀teria฀concedido฀a฀Brunilda,฀esposa฀da฀vítima,฀as฀civitates฀de฀ Bordeaux,฀Cahors,฀Limoges,฀Béarn฀e฀Bigorre฀(Histórias฀IX,฀20).฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀241 A฀“vingança”฀contra฀Chilperico฀pelo฀assassinato฀de฀Galswinta,฀tem฀ sido฀apontada฀como฀a฀causa฀das฀guerras฀civis25.฀Nesse฀caso,฀não฀estaríamos฀diante฀de฀“ódios฀privados”฀no฀seio฀da฀dinastia฀reinante฀que฀seriam฀a฀ causa฀de฀meio฀século฀de฀conflitos฀endêmicos฀no฀Reino฀dos฀Francos,฀mas฀ de฀uma฀longa฀“faida”.฀“Faida”฀(do฀inglês฀feud,฀e฀do฀alemão฀Fehde)฀é฀um฀ termo฀de฀origem฀germânico,฀latinizado฀e฀muito฀utilizado฀pelos฀cronistas฀ da฀Alta฀Idade฀Média฀ocidental฀para฀designar฀a฀ameaça฀de฀hostilidade฀ entre฀duas฀linhagens,฀bem฀como฀o฀estado฀de฀hostilidade฀entre฀elas฀e,฀finalmente,฀a฀satisfação฀das฀diferenças฀e฀a฀resolução฀em฀termos฀aceitáveis฀ para฀ ambas26.฀ É฀ um฀ equívoco฀ enxergar฀ uma฀ oposição฀ entre฀“público”฀ –฀ou฀seja,฀o฀poder฀real฀e฀a฀sua฀justiça,฀suas฀normas฀e฀seus฀tribunais฀–฀e฀ “privado”฀–฀encarnado฀pelas฀práticas฀faidais฀que฀tenderiam฀a฀desregular฀ a฀ordem฀pública.฀Ora,฀a฀oposição฀entre฀essas฀duas฀categorias,฀“público”฀ e฀“privado”,฀não฀se฀aplica฀às฀práticas฀faidais,฀que฀possuíam฀um฀alcance฀ público฀digno฀de฀nota.฀O฀que฀está฀em฀jogo฀é฀a฀honra฀ou฀as฀regras฀do฀ grupo฀ao฀qual฀se฀pertence.฀Além฀do฀mais,฀os฀atores฀da฀faida฀muitas฀vezes฀ querem฀ apenas฀ abrir฀ um฀ processo฀ que฀ se฀ terminará฀ por฀ um฀ pacto฀ de฀ concessões฀mútuas,฀por฀uma฀redefinição฀honorável฀das฀relações฀interpessoais.฀As฀solidariedades฀extensas฀que฀as฀faidas฀mobilizam,฀a฀clientela,฀ a฀ parentela,฀ as฀ alianças,฀ as฀ amizades,฀ a฀ vizinhança,฀ e฀ o฀ próprio฀ poder฀ real,฀se฀localizam฀em฀diversos฀registros.฀No฀entanto,฀como฀reconhece฀o฀ próprio฀Wallace-Hadrill,฀a฀noção฀de฀faida฀coloca฀problemas฀e฀é฀difícil฀ encontrar฀nas฀fontes฀da฀época฀franca฀“faidas฀puras”.฀Por฀outro฀lado,฀convém฀lembrar฀que฀os฀conflitos฀entre฀os฀herdeiros฀de฀Clotário฀começaram฀ 25 ฀Essa฀é,฀por฀exemplo,฀a฀opinião฀de฀J.M.฀Wallace-Hadrill฀(“The฀bloodfeud฀of฀the฀Franks”,฀The฀ Long-haired฀Kings฀and฀Other฀studies฀in฀Frankish฀History,฀pp.฀121-147).฀฀฀฀฀฀ 26 ฀ Ibid.,฀ p.122.฀฀ O฀ aumento฀ do฀ interesse฀pela฀ faida฀nos฀últimos฀ anos฀deve-se,฀notadamente,฀ à฀ antropologia฀ jurídica.฀ Há฀ uma฀ extensa฀ bibliografia฀ sobre฀ o฀ assunto.฀Ver,฀ por฀ exemplo,฀ D.฀ Barthélemy,฀“La฀ vengeance,฀ le฀ jugement฀ et฀ le฀ compromis”,฀ pp.11-20;฀ J.฀ Byock,฀ Feud฀ in฀ the฀ Icelandic฀Saga,฀1982;฀G.฀Courtois,฀“Vengeance”,฀pp.1507-1510;฀R.฀R.฀Davies,฀“The฀Survival฀of฀ the฀Bloodfeud฀in฀Medieval฀Wales”,฀pp.฀338-57;฀S.฀White,฀“Feuding฀and฀Peace-Making฀in฀the฀ Touraine฀Around฀the฀Year฀1100”,฀pp.฀195-263.฀ 242฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média imediatamente฀após฀o฀seu฀falecimento;฀a฀morte฀da฀irmã฀de฀Brunilda฀foi฀ mais฀um฀episódio฀de฀um฀conflito฀que฀havia฀começado฀na฀partilha฀de฀ 561.฀É฀nesse฀momento฀que฀se฀deve฀situar฀o฀começo฀das฀guerras฀civis,฀e฀ não฀em฀567.฀O฀assassinato฀de฀Galswinta฀apenas฀agravou฀uma฀tensão฀que฀ já฀era฀grande฀entre฀Chilperico฀e฀seus฀irmãos,฀e฀que฀tinha฀raízes฀na฀tentativa฀de฀esse฀último฀acaparar-se฀da฀maioria฀ou฀da฀totalidade฀da฀herança฀ de฀Clotário฀I.฀ De฀um฀ponto฀de฀vista฀estritamente฀militar,฀os฀esforços฀de฀Chilperico,฀ até฀o฀fim฀dos฀anos฀570,฀tinham฀por฀objetivo฀a฀recuperação฀das฀cidades฀ que฀ele฀tinha฀perdido฀para฀Sigeberto฀após฀o฀assassinato฀de฀Galswinta.฀ Porém,฀ele฀não฀abandonou฀o฀projeto฀constantiniano,฀que฀consistia฀na฀ ampliação฀das฀prerrogativas฀reais฀em฀matéria฀eclesiástica,฀na฀hegemonia฀ neustriana฀no฀interior฀do฀Regnum฀Francorum฀e฀em฀uma฀aproximação,฀ tanto฀no฀plano฀simbólico฀quanto฀no฀plano฀diplomático,฀com฀a฀autoridade฀imperial.฀ Desde฀ o฀ momento฀ em฀ que฀ se฀ amparou฀ de฀ Paris฀ e฀ que฀ passou฀ a฀ reivindicar฀ as฀ civitates฀ de฀ seus฀ irmãos,฀ Chilperico฀ buscou฀ afirmar฀ sua฀ preponderância฀no฀mundo฀franco.฀É฀legítimo฀afirmar฀que฀ele฀é฀herdeiro฀ e฀continuador฀da฀Realeza฀Constantiniana.฀Para฀realizar฀esse฀projeto,฀os฀ afrontamentos฀ com฀ o฀ clero฀ eram฀ inevitáveis.฀ Os฀ nomes฀ que฀ escolheu฀ para฀seus฀filhos฀(Clóvis,฀Meroveu)฀refletem,฀aliás,฀essa฀vontade฀de฀retomar฀contato฀com฀o฀momento฀da฀fundação฀da฀monarquia.฀É,฀no฀entanto,฀ na฀política฀religiosa฀que฀a฀ambição฀“constantiniana”฀de฀Chilperico฀assumiu฀toda฀sua฀amplitude.฀Ele฀entendia฀que฀a฀afirmação฀da฀hegemonia฀ no฀ seio฀ do฀ Regnum฀ Francorum฀ passava฀ não฀ somente฀ pela฀ adoção฀ de฀ símbolos฀romanos,฀mas,฀sobretudo,฀pela฀submissão฀da฀Igreja.฀As฀duas฀ assembléias฀conciliares฀que฀ocorreram฀durante฀seu฀reinado฀tinham฀por฀ objetivo฀julgar฀bispos฀acusados฀de฀traição,฀como฀mostram฀as฀Histórias.฀ A฀ primeira฀ ocorreu฀ em฀ Paris,฀ em฀ 577,฀ para฀ julgar฀ o฀ bispo฀ de฀ Rouen,฀ Pretextatus;฀a฀segunda,฀que฀ocorreu฀em฀Berny,฀em฀580,฀tinha฀como฀réu฀ o฀próprio฀Gregório฀de฀Tours.฀฀฀ Na฀primeira฀dessas฀assembléias,฀Chilperico฀participou฀dos฀debates฀e฀ foi฀ele฀quem฀formulou฀as฀acusações฀ao฀bispo฀Pretextatus.฀Este฀era฀acusado฀de฀ter฀celebrado฀o฀casamento฀de฀seu฀filho,฀Meroveu,฀com฀a฀viúva฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀243 de฀ seu฀ irmão,฀ Brunilda,฀ em฀ detrimento฀ dos฀ cânones฀ conciliares฀ que฀ proibiam฀o฀casamento฀entre฀um฀homem฀e฀a฀viúva฀de฀seu฀tio.฀Chilperico฀ também฀acusava฀o฀bispo฀de฀Rouen฀de฀ter฀distribuído฀benefícios฀às฀populações,฀tendo฀como฀objetivo฀tornar฀Meroveu฀rei฀em฀seu฀lugar: “Após฀ esses฀ acontecimentos,฀ Chilperico,฀ sabendo฀ que฀ ฀ Pretextatus,฀ bispo฀ de฀Rouen,฀distribuía฀presentes฀às฀populações฀para฀prejudicar฀seus฀interesses,฀ convocou-o฀ à฀ sua฀ presença.฀Após฀ tê-lo฀ questionado,฀ descobriu฀ que฀ bens฀ da฀ rainha฀ Brunilda฀ tinham-lhe฀ sido฀ confiados,฀ e฀ após฀ tê-los฀ confiscados,฀ ordenou฀que฀Pretextatus฀fosse฀banido฀até฀que฀seu฀caso฀fosse฀examinado฀por฀um฀ concílio฀de฀bispos.฀Quando฀o฀concílio฀se฀reuniu,฀fizeram฀com฀que฀Pretextatus฀ comparecesse...O฀rei฀disse฀ao฀acusado:฀‘Que฀motivo฀tens,฀ó฀bispo,฀para฀unir฀ meu฀inimigo,฀que฀deveria฀ter฀se฀comportado฀como฀um฀filho,฀à฀sua฀tia,฀isto฀é,฀ a฀viúva฀de฀seu฀tio?฀Tu฀ignoras฀as฀sanções฀que฀os฀cânones฀prevêem฀para฀uma฀ tal฀coisa฀?฀Além฀do฀mais,฀não฀é฀apenas฀nisso฀que฀é฀provado฀que฀você฀errou,฀ tu฀conspirastes฀com฀Meroveu฀corrompendo฀certas฀pessoas฀para฀que฀eu฀fosse฀ assassinado”27.฀฀ A฀descrição฀do฀julgamento฀de฀Pretextatus฀não฀é฀de฀modo฀algum฀maniqueísta.฀ Gregório฀ mostra,฀ por฀ exemplo,฀ que฀ Chilperico฀ permaneceu฀ preso฀à฀formalidade฀jurídica฀e฀que฀foi฀através฀de฀argumentos฀retirados฀ dos฀cânones฀conciliares฀que฀ele฀tentou฀condenar฀o฀bispo฀de฀Rouen.฀O฀rei฀ se฀colocou฀inclusive฀como฀defensor฀das฀normas฀canônicas฀ao฀dirigir-se฀ a฀Pretextatus฀e฀acusá-lo฀de฀ter฀realizado฀o฀casamento฀de฀Meroveu฀e฀de฀ Brunilda,฀a฀despeito฀do฀que฀afirmavam฀os฀cânones.฀Quando฀Chilperico฀ formulou฀a฀segunda฀acusação,฀a฀de฀traição,฀a฀multidão,฀segundo฀Gregório,฀teria฀tentado฀atacar฀o฀bispo,฀o฀que฀Chilperico฀teria฀impedido.฀Não฀ há฀dúvidas฀de฀que฀o฀rei฀queria฀punir฀o฀bispo฀de฀Roeun,฀mas฀ele฀preferia฀ que฀ ele฀ fosse฀ condenado฀ pelos฀ seus฀ próprios฀ pares.฀ Chilperico฀ pretendia฀fazer฀de฀Pretextatus฀um฀exemplo.฀Se฀do฀ponto฀de฀vista฀da฀forma,฀o฀ rei฀permaneceu฀fiel฀às฀regras฀canônicas,฀do฀ponto฀de฀vista฀do฀conteúdo,฀ 27 ฀Histórias฀V,฀18.฀฀ 244฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média aparentemente฀não฀hesitou฀em฀deturpá-las฀a฀seu฀favor.฀Elas฀eram฀um฀instrumento฀que฀ele฀utilizava฀segundo฀suas฀intenções,฀como,฀por฀exemplo,฀ para฀justificar฀a฀deposição฀e฀a฀excomunhão฀do฀bispo฀Pretextatus28.฀ Era฀ importante฀ para฀ Chilperico฀ criar฀ um฀ precedente,฀ utilizando฀ a฀ assembléia฀conciliar฀para฀punir฀os฀membros฀do฀episcopado฀de฀seu฀reino฀ que฀não฀se฀mostrassem฀suficientemente฀leais฀em฀um฀contexto฀político฀ bastante฀delicado.฀A฀acusação฀de฀que฀Pretextatus฀havia฀transgredido฀os฀ cânones,฀ ao฀ unir฀ em฀ casamento฀ um฀ homem฀ e฀ a฀ viúva฀ de฀ seu฀ tio,฀ era฀ apenas฀ a฀ primeira฀ parte฀ de฀ um฀ requisitório฀ destinado฀ a฀ provar฀ que฀ o฀ bispo฀havia฀participado฀de฀um฀complô฀contra฀o฀rei.฀É฀exatamente฀essa฀ acusação฀que฀provocou฀a฀reação฀violenta฀da฀multidão฀que฀quis฀linchar฀o฀ bispo฀e฀é฀também฀ela฀que฀dominou฀os฀debates.฀Chilperico฀esperava฀que฀ Pretextatus฀fosse฀condenado฀pelos฀seus฀pares฀por฀traição.฀Ele฀reunia฀o฀ episcopado,฀mas฀apenas฀para฀referendar฀a฀vontade฀real.฀Os฀bispos฀eram฀ vistos฀como฀simples฀funcionários฀da฀realeza฀e,฀como฀tais,฀deviam฀obediência฀ao฀rei฀e฀aos฀seus฀representantes.฀Essa฀política฀consistia฀em฀recusar฀ ao฀episcopado฀um฀papel฀político฀de฀primeiro฀plano.฀ Entre฀579฀e฀581,฀ocorreu฀a฀mais฀espetacular฀reviravolta฀política฀de฀ Chilperico.฀Após฀a฀morte฀de฀seus฀filhos,฀uma฀vez฀que฀se฀encontrava฀sem฀ herdeiro,฀aproximou-se฀de฀Childeberto฀II,฀a฀quem฀adotou฀como฀filho,฀o฀ que฀pôs฀fim฀à฀aliança฀que฀este฀havia฀estabelecido฀com฀seu฀tio฀Gontrão29.฀ Essa฀aproximação฀entre฀a฀Nêustria฀e฀a฀Austrásia฀é฀contemporânea฀de฀ uma฀embaixada฀enviada฀por฀Chilperico฀a฀Bizâncio,฀cerca฀de฀dez฀anos฀ depois฀da฀embaixada฀enviada฀por฀Sigeberto฀I.฀Bizâncio฀tinha฀interesse฀ na฀ aliança฀ neustro-austrasiana,฀ pois฀ ela฀ debilitava฀ a฀ Burgúndia฀ e฀ sua฀ política฀ pró-lombarda30.฀ Os฀ três฀ anos฀ que฀ se฀ seguiram฀ culminaram฀ 28 ฀Ibid.฀ ฀Histórias฀฀VI,฀3.฀฀ 30 ฀Histórias฀฀VI,฀2:฀“Nesse฀meio฀tempo,฀os฀embaixadores฀do฀rei฀Chilperico,฀que฀três฀anos฀antes฀ tinham฀ sido฀ enviados฀ ao฀ imperador฀ Tibério,฀ retornaram฀ sem฀ grandes฀ danos฀ e฀ sem฀ muita฀ dificuldade”.฀Os฀embaixadores฀trouxeram฀dessa฀viagem,฀que฀durou฀entre฀578฀e฀581,฀uma฀série฀de฀ objetos฀ preciosos:฀ “Ele฀ mostrou-me฀ também฀ moedas฀ de฀ ouro฀ pesando฀ uma฀ libra฀ cada฀ uma฀ que฀o฀imperador฀lhe฀havia฀enviado;฀elas฀tinham฀de฀um฀lado฀a฀imagem฀do฀imperador฀e฀em฀um฀ 29 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀245 com฀ um฀ novo฀ entendimento฀ entre฀ Gontrão฀ e฀ Sigeberto฀ II,฀ enquanto฀ Chilperico฀adotou฀uma฀estratégia฀defensiva.฀Em฀583,฀na฀Austrásia,฀uma฀ insurreição฀do฀minor฀populus฀expulsou฀do฀poder฀o฀bispo฀Aegidius฀de฀ Reims฀ e฀ os฀ leudes฀ partidários฀ da฀ aliança฀ com฀ a฀ Nêustria31.฀ Uma฀ vez฀ quebrada฀a฀aliança฀com฀os฀austrasianos,฀Chilperico฀tentou฀uma฀aliança฀com฀a฀Espanha฀visigótica.฀A฀troca฀de฀embaixadas฀culminou฀com฀o฀ projeto฀de฀casamento฀entre฀a฀filha฀de฀Chilperico,฀a฀princesa฀Rigonta,฀ e฀Recaredo,฀filho฀do฀rei฀Leuvigildo32.฀O฀assassinato฀de฀Chilperico,฀em฀ 584,฀impediu฀a฀realização฀do฀casamento,฀e฀marcou,฀ao฀mesmo฀tempo,฀ o฀ fortalecimento฀ da฀ Burgúndia.฀ Com฀ regências฀ em฀ curso฀ no฀ regnum฀ de฀Soissons฀e฀no฀regnum฀de฀Metz,฀Gontrão฀se฀tornou฀o฀árbitro฀da฀vida฀ política฀franca.฀ Durante฀ muito฀ tempo฀ considerado฀ como฀ um฀ bárbaro฀ sem฀ escrúpulos,฀rei฀brutal฀e฀primitivo,฀Chilperico฀destacou-se฀entre฀os฀príncipes฀ francos฀de฀sua฀época฀como฀defensor฀da฀Realeza฀Constantiniana.฀Ele฀foi,฀ aliás,฀o฀mais฀poderoso฀representante฀do฀modelo฀constantiniano฀na฀segunda฀metade฀do฀século฀VI.฀฀ círculo฀ estava฀ gravado:฀ TIBERII฀ CONSTANTINI฀ PERPETVI฀ AVGVSTI;฀ do฀ outro฀ lado,฀ havia฀ uma฀ quadriga฀ e฀ um฀ cavaleiro฀ e฀ elas฀ continham฀ essa฀ inscrição:฀ GLORIA฀ ROMANORUM.฀ Ele฀ mostrou฀ igualmente฀ muitos฀ outros฀ ornamentos฀ que฀ haviam฀ sido฀ trazidos฀ pelos฀ embaixadores”฀ (Ibid.).฀Essas฀moedas,฀de฀um฀peso฀insólito฀de฀uma฀libra,฀eram฀provavelmente฀medalhas฀comemorativas฀do฀advento฀imperial฀de฀Tibério฀(P.฀Goubert,฀Byzance฀et฀les฀Francs,฀p.฀23).฀Note-se฀ que,฀sido฀quando฀Chilperico฀apresenta฀a฀Gregório฀um฀dos฀objetos฀que฀haviam฀sido฀fabricados฀ com฀o฀ouro฀e฀as฀pedras฀preciosas฀trazidas฀de฀Constantinopla,฀ele฀afirma฀que฀eles฀haviam฀fabricados฀para฀honrar฀e฀enobrecer฀a฀nação฀dos฀francos.฀Ele฀não฀fazia฀referência฀ao฀valor฀material฀ dos฀objetos,฀mas฀ao฀fato฀de฀que฀eles฀haviam฀sido฀feitos฀a฀partir฀do฀ouro฀e฀das฀pedras฀preciosas฀ enviadas฀pelo฀imperador.฀฀ 31 ฀HistóriasVI,฀31.฀ 32 ฀HistóriasVI,฀34.฀ 246฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média A฀Burgúndia฀(567-592) Para฀se฀compreender฀o฀papel฀da฀Burgúndia฀durante฀as฀guerras฀civis,฀ seria฀necessário฀levar฀em฀conta฀duas฀características฀do฀reinado฀de฀Gontrão.฀A฀ primeira฀ é฀ o฀ papel฀ de฀ árbitro฀ desempenhado฀ por฀ esse฀ rei฀ nos฀ conflitos฀que฀opuseram฀Chilperico฀a฀Sigeberto,฀e฀em฀seguida฀Clotário฀ II฀a฀Childeberto฀II.฀A฀segunda฀é฀o฀lugar฀de฀destaque฀acordado฀aos฀bispos฀nos฀assuntos฀políticos.฀Com฀efeito,฀após฀a฀morte฀de฀Cariberto,฀em฀ 567,฀Gontrão฀adotou฀uma฀posição฀ambígua฀em฀face฀dos฀conflitos฀entre฀ Chilperico฀e฀Sigeberto,฀apoiando฀um฀ou฀outro฀beligerante฀em฀função฀ da฀conjuntura.฀É฀provável฀que฀ele฀buscasse฀a฀todo฀preço฀impedir฀que฀ o฀regnum฀de฀Soissons฀ou฀o฀regnum฀de฀Metz฀obtivessem฀uma฀vantagem฀ decisiva฀nesses฀conflitos.฀A฀constituição฀de฀uma฀potência฀austrasiana฀ou฀ neustriana฀era฀uma฀ameaça฀para฀a฀Burgúndia.฀ A฀política฀externa฀de฀Gontrão฀foi฀ritmada฀por฀uma฀oposição฀radical฀ ao฀Império.฀Só฀se฀tem฀conhecimento฀de฀uma฀embaixada฀enviada฀por฀ esse฀rei฀a฀Constantinopla,฀provavelmente฀após฀a฀conclusão฀do฀tratado฀ de฀Andelot33.฀Os฀objetivos฀dessa฀embaixada฀são฀bastante฀obscuros:฀ela฀ buscava฀impedir฀a฀realização฀da฀aliança฀entre฀Recaredo฀e฀a฀corte฀austrasiana34,฀ou฀o฀matrimônio฀entre฀Brunilda฀e฀um฀dos฀filhos฀de฀Gondovaldo,฀refugiado฀na฀Espanha35.฀No฀entanto,฀essa฀embaixada฀não฀resultou฀ em฀nenhuma฀aliança,฀nem฀em฀relações฀duráveis฀entre฀a฀Burgúndia฀e฀o฀ Império.฀ 33 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀6.฀ ฀Histórias฀IX,฀20:฀“Depois฀que฀ele฀disse฀essas฀palavras,฀Félix฀declarou:฀‘Acredito฀que฀a฀notícia฀ chegou฀a฀vossa฀glória฀segundo฀a฀qual฀Recaredo฀enviou฀uma฀embaixada฀a฀vosso฀sobrinho฀para฀pedir฀ em฀casamento฀Clodosinda,฀filha฀de฀vosso฀irmão.฀Mas฀ele฀nada฀quis฀decidir฀sem฀pedir฀vosso฀conselho’.฀O฀rei฀replicou:฀‘Não฀é฀muito฀bom฀que฀minha฀sobrinha฀vá฀para฀onde฀sua฀irmã฀foi฀assassinada฀ e฀razoavelmente฀é฀ruim฀que฀a฀morte฀de฀minha฀sobrinha฀Igonda฀não฀seja฀vingada.฀Félix฀respondeu:฀ ‘Eles฀querem฀se฀desculpar฀completamente,฀seja฀por฀juramentos,฀seja฀por฀qualquer฀outro฀meio฀que฀ vós฀ ordenardes;฀ querei฀ dar฀ vosso฀ consentimento฀ para฀ que฀ Clodosinda฀ despose฀ Recaredo’.฀ O฀ rei฀ disse:฀‘Se฀meu฀sobrinho฀cumprir฀aquilo฀que฀ele฀aceitou฀que฀consignássemos฀nos฀pactos,฀também฀ farei฀sua฀vontade฀a฀esse฀respeito฀’”.฀฀฀ 35 ฀Histórias฀IX,฀28.฀฀ 34 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀247 Longe฀dos฀pilares฀tradicionais฀da฀autoridade฀real฀merovíngia,฀Gontrão฀ não฀ hesitou฀ em฀ buscar฀ o฀ apoio฀ político฀ do฀ episcopado.฀ É฀ nesse฀ sentido฀ que฀ se฀ pode฀ falar฀ em฀ uma฀ “revolução”฀ burgúndia,฀ que฀ foi฀ o฀ resultado฀da฀busca฀de฀apoio฀ideológico฀e฀político฀junto฀aos฀bispos฀por฀ parte฀da฀autoridade฀real.฀O฀reinado฀de฀Gontrão฀contribuiu,฀mais฀do฀que฀ qualquer฀outro฀dessa฀segunda฀metade฀do฀século฀VI,฀para฀o฀aumento฀da฀ influência฀política฀do฀episcopado36.฀Esse฀fenômeno฀manifestou-se฀pela฀ primeira฀vez฀no฀Regnum฀Francorum฀através฀dos฀concílios฀reunidos฀na฀ Burgúndia.฀De฀maneira฀geral,฀os฀concílios฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀ VI฀trataram฀mais฀de฀temas฀gerais฀do฀reino฀que฀dos฀assuntos฀internos฀da฀ Igreja.฀ Isso฀ significa฀ que฀ os฀ bispos฀ foram฀ introduzidos฀ no฀ campo฀ dos฀ conflitos฀que฀opuseram฀os฀reis฀francos฀de฀maneira฀endêmica฀entre฀573฀ e฀613.฀Gontrão฀recorreu฀várias฀vezes฀aos฀concílios฀na฀esperança฀de฀que฀ eles฀pudessem฀servir฀de฀apoio฀à฀autoridade฀real,฀mas฀também฀como฀mediadores฀nos฀conflitos฀que฀o฀opunham฀aos฀seus฀irmãos.฀Na฀Burgúndia,฀ os฀bispos฀tornaram-se,฀mais฀do฀que฀em฀qualquer฀outro฀lugar฀no฀Regnum฀Francorum,฀os฀parceiros฀da฀autoridade฀pública,฀conselheiros฀que฀o฀ rei฀escutava฀para฀conduzir฀a฀bom฀termo฀o฀governo฀do฀reino.฀฀ O฀ edito฀ que฀ Gontrão฀ publicou฀ em฀ 585฀ era฀ endereçado฀ tanto฀ aos฀ iudices฀(juízes)฀laicos฀quanto฀aos฀bispos฀de฀seu฀reino:฀“Gontrão,฀rei฀dos฀ francos,฀a฀todos฀os฀juízes฀e฀bispos฀em฀nosso฀reino”37.฀Ambas฀as฀categorias฀ são฀responsáveis฀pela฀aplicação฀das฀medidas฀previstas฀pelo฀texto.฀A฀julgar฀ pelo฀ endereço฀ do฀ documento,฀ os฀ bispos฀ parecem฀ ter฀ ocupado฀ na฀ administração฀real฀na฀Burgúndia฀um฀lugar฀comparável฀ao฀dos฀iudices.฀ Da฀mesma฀maneira,฀o฀preâmbulo฀do฀pacto฀de฀Andelot฀menciona฀que,฀ nessa฀ocasião,฀as฀decisões฀tinham฀sido฀tomadas฀com฀a฀ajuda฀dos฀bispos฀ e฀dos฀grandes:฀“mediantibus฀sacerdotibus฀atque฀proceribus”38.฀Esses฀são฀ dois฀ bons฀ exemplos฀ do฀ crescimento฀ do฀ papel฀ político฀ dos฀ bispos฀ na฀ 36 ฀Sobre฀as฀relações฀entre฀Gontrão฀e฀os฀bispos,฀ver฀G.฀Tabbaco,฀“Re฀Gontrano฀e฀i฀suoi฀Vescovi฀ nella฀Gallia฀di฀Gregorio฀di฀Tours”,฀pp.฀327-354. 37 ฀Guntchramni฀regis฀edictum,฀5. 38 ฀Histórias฀IX,฀20.฀ 248฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média segunda฀ metade฀ do฀ século฀VI.฀A฀ título฀ de฀ comparação,฀ em฀ seu฀ edito,฀ Chilperico฀menciona฀somente฀a฀participação฀de฀seus฀“viri฀magnificentissimi฀optimates฀vel฀antrustiones”39.฀Ao฀excluir฀os฀bispos,฀ele฀deixa฀claro฀ que฀seus฀únicos฀interlocutores฀na฀administração฀do฀reino฀são฀os฀altos฀ funcionários฀laicos.฀A฀idéia฀da฀participação฀eclesiástica฀no฀governo฀do฀ regnum฀ impregna฀ a฀ um฀ tal฀ ponto฀ o฀ edito฀ de฀ Gontrão฀ de฀ 585,฀ que฀ se฀ poderia฀dizer฀que฀Gregório฀foi฀quem฀o฀escreveu40.฀ Há฀sem฀dúvida฀uma฀grande฀convergência฀entre฀a฀política฀religiosa฀ de฀Gontrão฀e฀a฀teologia฀política฀de฀Gregório.฀Por฀outro฀lado,฀o฀contraste฀ entre฀a฀política฀religiosa฀de฀Chilperico฀e฀a฀de฀Gontrão฀é฀bem฀visível.฀Um฀ bom฀exemplo฀disso฀é฀o฀julgamento฀dos฀bispos฀Salonius฀de฀Embrun฀e฀ Sagittarius฀de฀Gap:฀ “Então฀começou฀uma฀revolta฀contra฀os฀bispos฀Salonius฀e฀Sagittarius.฀Esses฀ personagens,฀que฀haviam฀sido฀educados฀por฀São฀Nizier,฀bispo฀de฀Lyon,฀chegaram฀à฀dignidade฀do฀diaconato฀e฀foi฀em฀seu฀tempo฀que฀Salonius฀foi฀designado฀ bispo฀da฀cidade฀de฀Embrum฀e฀Sagittarius฀bispo฀da฀cidade฀de฀Gap.฀Uma฀vez฀ o฀episcopado฀obtido฀e฀estando฀livrados฀aos฀seus฀caprichos,฀eles฀começaram฀ com฀um฀louco฀furor฀a฀se฀lançar฀em฀brigas,฀em฀massacres,฀em฀homicídios,฀em฀ adultérios฀e฀em฀diversos฀outros฀crimes;฀foi฀assim฀que฀um฀dia฀quando฀Vítor,฀ bispo฀de฀Trois-Châteaux฀celebrava฀solenemente฀o฀aniversário฀de฀seu฀nascimento,฀eles฀enviaram฀uma฀tropa฀que฀com฀espadas฀e฀flechas฀se฀lançou฀contra฀ ele.฀Ao฀chegarem,฀essas฀pessoas฀rasgaram฀suas฀vestimentas,฀maltrataram฀seus฀ servidores,฀levando฀consigo฀os฀vasos฀e฀todo฀o฀vasilhame฀da฀festa฀e฀deixando฀ o฀bispo฀sob฀o฀efeito฀desses฀graves฀ultrajes.฀Assim฀que฀o฀rei฀Gontrão฀soube฀do฀ acontecido,฀reuniu฀um฀sínodo฀na฀cidade฀de฀Lyon” 41. Os฀editores฀das฀coleções฀conciliares฀identificam฀esse฀“sínodo”฀citado฀ por฀ Gregório฀ de฀ Tours฀ como฀ sendo฀ o฀ concílio฀ que฀ ocorreu฀ em฀ Lyon฀ 39 ฀Chilperici฀edictum,฀4. ฀M.฀Heinzelmann,฀Bischofsherrschaft฀in฀Gallien,฀pp.฀162-166. 41 ฀Histórias฀V,฀20. 40 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀249 em฀algum฀momento฀entre฀o฀ano฀de฀567฀e฀570,฀e฀cuja฀ata฀foi฀publicada฀ pela฀primeira฀vez฀por฀Surius฀a฀partir฀de฀um฀manuscrito฀que฀se฀perdeu฀ desde฀então42.฀Por฀outro฀lado,฀C.฀De฀Clercq฀estima฀se฀trata฀de฀dois฀concílios฀distintos,฀pois฀os฀bispos฀de฀Gap,฀de฀Embrun฀e฀de฀Trois-Châteaux฀ estando฀submetidos฀ao฀bispo฀metropolitano฀de฀Arles,฀não฀poderiam฀ser฀ julgados฀em฀Lyon,฀sem฀ao฀menos฀a฀presença฀de฀um฀representante฀de฀sua฀ hierarquia฀eclesiástica43.฀De฀Clercq฀tem฀razão฀ao฀afirmar฀que฀o฀concílio฀ mencionado฀por฀Gregório฀de฀Tours฀não฀é฀o฀mesmo฀cuja฀ata฀foi฀publicada฀por฀Surius.฀Entretanto,฀O.฀Pontal฀mostra฀que฀o฀argumento฀que฀De฀ Clercq฀apresenta฀para฀sustentar฀sua฀posição฀não฀é฀válido,฀pois฀os฀atos฀ dos฀bispos฀Salonius฀e฀Sagittarius฀são฀rediscutidos฀no฀concílio฀de฀Chalon,฀ na฀diocese฀de฀Lyon,฀em฀57944.฀ Além฀ disso,฀ o฀ cânone฀ 4฀ do฀ Concílio฀ de฀ Lyon฀ II฀ (567-570)฀ está฀ em฀ contradição฀com฀as฀medidas฀tomadas฀pelos฀bispos฀em฀relação฀a฀Vítor,฀ medidas฀essas฀que฀Gregório฀de฀Tours฀menciona฀no฀capítulo฀20฀do฀livro฀V฀ das฀Histórias:฀eles฀o฀excomungaram฀após฀ele฀ter฀aceitado฀em฀comunhão฀ Salonius฀e฀Sagittarius.฀Ao฀excomungarem฀Vítor,฀os฀bispos฀se฀valiam฀do฀ oitavo฀cânone฀do฀Concílio฀de฀Tours฀II฀(567),฀que฀estipulava฀que฀aquele฀ que฀fosse฀excomungado฀por฀um฀bispo฀deveria฀ser฀considerado฀como฀tal฀ por฀todos฀os฀outros,฀sob฀pena฀de฀sofrer฀a฀mesma฀punição฀até฀a฀realização฀ de฀um฀novo฀concílio.฀O฀quarto฀cânone฀do฀concílio฀editado฀por฀Surius฀ confirma฀essa฀regra:฀se฀um฀bispo฀suspendeu฀alguém฀da฀comunhão,฀esse฀ último฀deve฀ser฀considerado฀como฀estranho฀à฀comunhão฀por฀todos฀os฀ bispos;฀mas,฀ao฀mesmo฀tempo,฀ele฀prevê฀que฀o฀excomungado฀possa฀ser฀ reintegrado฀por฀aquele฀que฀o฀havia฀excluído฀da฀comunhão฀da฀Igreja.฀É฀ exatamente฀o฀que฀fez฀Vítor;฀e฀ele฀não฀teria฀sido฀sancionado฀pelos฀seus฀ pares฀se฀o฀quarto฀cânone฀do฀concílio฀editado฀por฀Surius฀tivesse฀sido฀pu- 42 ฀L.฀Surius,฀Conciliorum฀Omnia,฀I-VI,฀Cologne,฀1567,฀citado฀por฀C.J.฀Héfèle,฀Histoire฀des฀ conciles฀d’après฀les฀documents฀originaux,฀III,฀trad.฀francesa,฀notas฀críticas฀e฀bibliográficas฀por฀ Dom฀H.฀Leclerq,฀Paris,฀1909,฀p.฀182,฀n.฀2.฀ 43 ฀Concilia฀Galliae,฀A.฀511-695,฀p.฀200.฀ 44 ฀O.฀Pontol,฀Histoire฀des฀conciles฀mérovingiens,฀p.฀167;฀Histórias฀V,฀27.฀ 250฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média blicado฀antes฀de฀ele฀ter฀reintegrado฀na฀comunhão฀Salonius฀e฀Sagittarius.฀ Esse฀quarto฀cânone฀soa฀como฀um฀compromisso฀e฀também฀como฀uma฀ justificativa฀a฀posteriori฀do฀comportamento฀de฀Vítor.฀Estamos฀diante,฀ portanto,฀de฀dois฀concílios฀distintos.฀Além฀disso,฀enquanto฀Gregório฀de฀ Tours฀ afirma฀ que฀ o฀ concílio฀ que฀ deveria฀ julgar฀ Salonius฀ e฀ Sagittarius฀ foi฀ convocado฀ por฀ Gontrão,฀ o฀ nome฀ desse฀ rei฀ não฀ é฀ sequer฀ citado฀ no฀ prefácio฀ do฀ concílio฀ editado฀ por฀ Surius.฀ Esse฀ último฀ concílio฀ ocorreu฀ provavelmente฀entre฀569฀e฀570,฀enquanto฀o฀concílio฀citado฀por฀Gregório฀ de฀Tours฀no฀capítulo฀20฀do฀livro฀V฀das฀Histórias฀deve฀ter฀ocorrido฀por฀ volta฀de฀567-568.฀ Embora฀ ele฀ também฀ tenha฀ reunido฀ durante฀ seu฀ reinado฀ concílios฀ cujo฀objetivo฀era฀o฀de฀julgar฀alguns฀bispos฀–฀como฀foi฀o฀caso฀do฀julgamento฀ de฀ Salonius฀ de฀ Embrun฀ e฀ Sagittarius฀ de฀ Gap,฀ acusados฀ de฀ assassinato฀e฀de฀adultério฀–฀Gontrão฀adotou฀uma฀postura฀em฀relação฀ ao฀episcopado฀diferente฀daquela฀adotada฀por฀Chilperico.฀Em฀primeiro฀ lugar,฀Salonius฀e฀Sagittarius฀eram฀acusados฀por฀atos฀perpetrados฀contra฀ seus฀pares,฀não฀contra฀o฀poder฀real.฀Além฀disso,฀a฀condenação฀de฀ambos฀ foi฀pronunciada฀por฀outros฀bispos,฀e฀não฀pelo฀rei.฀Uma฀vez฀depostos฀ da฀ função฀ episcopal,฀ Salonius฀ e฀ Sagittarius฀ compareceram฀ diante฀ do฀ rei฀para฀reclamar฀da฀punição.฀Eles฀pediram฀e฀obtiveram฀a฀autorização฀ para฀ir฀até฀Roma฀a฀fim฀de฀defender฀sua฀causa฀junto฀ao฀papa.฀Munidos฀ de฀cartas฀reais,฀chegaram฀a฀Roma,฀onde฀o฀papa฀João฀III฀(561-574)฀deulhes฀ o฀ direito฀ de฀ retomar฀ suas฀ sés฀ –฀ no฀ que฀ foi฀ praticamente฀ a฀ única฀ intervenção฀conhecida฀de฀um฀papa฀em฀um฀assunto฀da฀Igreja฀franca฀durante฀o฀século฀VI.฀Após฀terem฀sido฀repreendidos฀por฀Gontrão,฀os฀dois฀ bispos฀ recuperaram฀ seus฀ postos45.฀Após฀ terem฀ sido฀ repreendidos฀ por฀ Gontrão,฀os฀dois฀bispos฀recuperaram฀seus฀postos.฀Ora,฀diante฀do฀pedido฀de฀ambos,฀o฀rei฀não฀interferiu฀diretamente,฀por฀exemplo,฀ordenando฀ que฀eles฀fossem฀reintegrados฀à฀hierarquia฀eclesiástica.฀Sua฀atitude฀foi฀ mais฀ nuançada.฀ As฀ cartas฀ reais฀ não฀ constituíam฀ uma฀ defesa฀ da฀ cau- 45 ฀Histórias฀V,฀20. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀251 sa฀dos฀bispos,฀mas฀somente฀uma฀autorização฀para฀que฀eles฀pudessem฀ defender-se฀junto฀ao฀pontífice฀romano.฀Além฀disso,฀restabelecendo-os฀ em฀seus฀respectivos฀bispados,฀o฀rei,฀como฀diz฀claramente฀Gregório฀de฀ Tours,฀nada฀mais฀fez฀que฀seguir฀as฀recomendações฀do฀papa.฀฀฀ É฀ nesse฀ contexto฀ que฀ se฀ deve฀ compreender฀ o฀ Concílio฀ de฀ Lyon฀ II฀ (c.569-570),฀cujos฀cânones฀foram฀editados฀por฀Surius.฀Trata-se฀de฀um฀ apelo฀à฀unidade฀do฀episcopado฀após฀o฀primeiro฀julgamento฀de฀Salonius฀ e฀de฀Sagittarius฀e฀sua฀viagem฀a฀Roma: “Em฀primeiro฀lugar,฀convém฀que฀a฀unidade฀entre฀os฀bispos,฀amada฀pelo฀ Senhor,฀ aconselhável฀ pelas฀ Escrituras,฀ reclamada฀ pela฀ união฀ na฀ caridade,฀ seja฀ guardada฀ por฀ todos,฀ de฀ maneira฀ que฀ em฀ toda฀ deliberação฀ e฀ decisão฀ o฀ acordo฀ entre฀ bispos฀ se฀ mantenha฀ em฀ um฀ único฀ espírito,฀ em฀ um฀ único฀ sentimento”46.฀ Nesse฀concílio,฀os฀bispos฀buscaram฀também฀circunscrever฀seus฀conflitos฀e฀impedir฀que฀os฀personagens฀estrangeiros฀ao฀episcopado฀–฀talvez฀ fizessem฀referência฀ao฀rei฀Gontrão฀–฀interviessem.฀Os฀bispos฀adversários฀ eram฀orientados฀a฀remeterem-se฀ao฀julgamento฀do฀metropolitano฀e฀de฀ seus฀co-provinciais,฀caso฀pertencessem฀a฀uma฀mesma฀província,฀ou฀aos฀ seus฀ metropolitanos฀ reunidos,฀ caso฀ fossem฀ originários฀ de฀ províncias฀ diferentes47.฀ Esse฀ compromisso,฀ ao฀ qual฀ chegaram฀ os฀ bispos฀ reunidos฀ em฀Lyon฀II,฀traduzia฀um฀desejo฀de฀autonomia.฀Não฀era฀um฀sentimento฀ novo:฀ele฀está฀presente฀nos฀concílios฀merovíngios฀desde฀o฀início฀do฀século฀VI.฀Note-se,฀no฀entanto,฀no฀caso฀dos฀bispos฀Salonius฀e฀Sagittarius,฀que฀ os฀bispos฀conciliares฀apoiaram฀a฀decisão฀do฀bispo฀Vítor฀de฀perdoar฀aos฀ seus฀ agressores,฀ ao฀ aceitá-los฀ de฀ volta฀ em฀ comunhão.฀ Eles฀ ratificavam฀ assim฀a฀decisão฀do฀rei฀que฀desejava฀o฀fim฀da฀sanção฀que฀pesava฀sobre฀o฀ bispo฀de฀Trois-Châteaux48. 46 ฀Lyon฀II฀(฀c.฀569-570),฀c.฀1.฀฀฀฀฀฀ ฀Ibid.฀ 48 ฀Ibid.,฀c.฀4. 47 252฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Um฀ outro฀ concílio฀ foi฀ convocado฀ em฀ Paris฀ por฀ Gontrão฀ em฀ 573,฀ após฀ seu฀ conflito฀ com฀ Sigeberto฀ a฀ respeito฀ da฀ criação฀ do฀ bispado฀ de฀ Châteaudun.฀Sigeberto฀pretendia,฀como฀foi฀mencionado฀anteriormente,฀constituir฀um฀bispado฀em฀Châteaudun฀com฀a฀conivência฀do฀bispo฀ Aegidius.฀ Ao฀ convocar฀ os฀ bispos,฀ Gontrão฀ queria฀ obter฀ seu฀ apoio฀ no฀ conflito฀que฀o฀opunha฀a฀Sigeberto,฀e฀é฀o฀que฀ele฀conseguiu:฀numa฀carta฀ a฀Aegidius,฀ os฀ bispos฀ o฀ informam฀ da฀ deposição฀ de฀ Promotius49,฀ e฀ em฀ outra฀carta฀enviada฀a฀Sigeberto,฀com฀um฀tom฀bastante฀diplomático,฀afirmavam฀não฀acreditar฀que฀uma฀tal฀injustiça฀pudesse฀ser฀cometida฀com฀ seu฀consentimento,฀e฀também฀pediam฀que฀ele฀fizesse฀cessar฀o฀abuso50.฀ Essa฀segunda฀carta฀mostra฀que฀a฀autoridade฀moral฀do฀clero฀transcendia฀ os฀limites฀geográficos฀oriundos฀das฀partilhas:฀os฀bispos฀que฀participaram฀desse฀concílio฀em฀Paris฀pertenciam฀apenas฀ao฀regnum฀de฀Gontrão,฀ o฀que฀não฀os฀impediu฀de฀dirigir฀uma฀admoestação฀a฀Sigeberto.฀ Durante฀ seu฀ reinado,฀ Gontrão฀ apoiou-se฀ nesse฀ episcopado฀ cuja฀ autoridade฀ moral฀ transcendia฀ os฀ limites฀ dos฀ regna.฀ Em฀ que฀ pesem฀ as฀ dificuldades฀ atravessadas฀ pela฀ Igreja฀ franca฀ em฀ razão฀ das฀ partilhas,฀ a฀ atividade฀conciliar฀é฀o฀melhor฀exemplo฀da฀persistência฀da฀unidade฀dessa฀ instituição.฀Além฀ da฀ freqüência฀ com฀ que฀ as฀ assembléias฀ conciliares฀ se฀ reuniam,฀ as฀ medidas฀ por฀ elas฀ aprovadas฀ também฀ apontam฀ para฀ a฀ construção฀de฀uma฀unidade฀hierárquica฀e฀também฀litúrgica.฀O฀primeiro฀ cânone฀do฀concílio฀de฀538,฀por฀exemplo,฀evocava฀a฀obrigação฀de฀todos฀ os฀ bispos฀ participarem฀ da฀ reunião฀ anual,฀ e฀ denunciava฀ as฀“desculpas”฀ daqueles฀que฀estavam฀ausentes51.฀Em฀549,฀o฀apelo฀para฀que฀todos฀os฀bispos฀participassem฀do฀sínodo฀anual฀foi฀renovado52.฀Os฀bispos฀reunidos฀ em฀concílio฀adotaram฀também฀uma฀mesma฀organização฀do฀ano฀litúr- 49 ฀Paris฀IV฀(573):฀Epistula฀synodi฀ad฀Egidium฀Remensem฀episcopum฀regem,฀pp.฀147-148.฀฀฀฀ ฀Paris฀IV฀(573):฀Epistula฀Jynodi฀ad฀Sigebertum฀regem,฀pp.฀149-150.฀Na฀lista฀de฀bispos฀que฀ assinaram฀as฀ditas฀cartas,฀podemos฀observar฀que฀apenas฀as฀dioceses฀da฀província฀de฀Arles,฀que฀ pertenciam฀ao฀regnum฀de฀Gontrão,฀estavam฀representadas.฀ 51 ฀Orléans฀III฀(538),฀c.฀1. 52 ฀Orléans฀V฀(549),฀c.฀18.฀฀ 50 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀253 gico฀para฀toda฀a฀Gália53.฀Eles฀relembraram฀a฀obrigação฀de฀uma฀período฀ de฀abstinência฀antes฀das฀festas฀pascais฀–฀cuja฀duração฀era฀estritamente฀ limitada฀ a฀ quarenta฀ dias฀ –฀ e฀ durante฀ o฀ qual฀ era฀ obrigatório฀ o฀ jejum,฀ salvo฀aos฀domingos,฀e฀aos฀sábados,฀somente฀para฀os฀doentes.฀Eles฀também฀estenderam฀a฀período฀do฀jejum฀a฀cinqüenta฀ou฀sessenta฀dias54.฀Em฀ 541,฀os฀bispos฀reunidos฀em฀Orléans฀decidiram฀que฀a฀Páscoa฀deveria฀ser฀ celebrada฀no฀mesmo฀momento฀em฀toda฀a฀Gália55.฀Não฀havia฀uma฀Igreja฀ da฀Austrásia,฀uma฀Igreja฀da฀Nêustria฀ou฀uma฀Igreja฀da฀Burgúndia.฀As฀ comunidades฀eclesiásticas฀da฀Gália฀franca฀permaneciam฀unidas฀no฀sentimento฀de฀pertencimento฀a฀um฀mesmo฀organismo฀político฀–฀o฀Reino฀ dos฀ Francos.฀ O฀ melhor฀ indício฀ dessa฀ coesão฀ eclesiástica฀ é฀ que฀ os฀ reis฀ merovíngios฀não฀conseguiram฀criar฀um฀novo฀bispado,฀sem฀serem฀confrontados฀com฀uma฀forte฀oposição฀episcopal.฀É฀o฀que฀ocorreu฀quando฀ Childeberto฀I฀tentou฀converter฀Melun฀em฀bispado56.฀Os฀bispos฀de฀cada฀ regnum฀eram฀funcionários฀do฀poder฀real,฀deviam฀obediência฀a฀seus฀soberanos฀respectivos;฀mas฀não฀se฀pode฀confundir฀uma฀Igreja฀submetida฀a฀ uma฀lógica฀política฀e฀também฀ao฀arbítrio฀do฀poder฀real฀com฀uma฀Igreja฀ fragmentada.฀A฀lógica฀política฀das฀partições฀prevaleceu฀eventualmente฀ sobre฀o฀desejo฀de฀união฀dos฀bispos.฀Apesar฀de฀seu฀empenho,฀eles฀não฀ conseguiram฀ impedir฀ a฀ fragmentação฀ de฀ algumas฀ províncias฀ eclesiásticas฀e฀a฀divisão฀de฀dioceses฀entre฀os฀reinos฀oriundos฀das฀partilhas.฀No฀ entanto,฀as฀medidas฀do฀Concílio฀de฀511,฀que฀transformaram฀a฀Igreja฀da฀ Gália฀na฀Igreja฀do฀Regnum฀Francorum,฀não฀foram฀colocadas฀em฀questão฀ pelas฀partilhas.฀Ela฀continuou฀a฀existir฀como฀uma฀entidade฀indivisível,฀ apesar฀das฀dificuldades฀que฀os฀bispos฀de฀toda฀a฀Gália฀não฀cessaram฀de฀ evocar฀durante฀os฀concílios.฀฀ O฀texto฀do฀tratado฀de฀Andelot฀traz฀a฀primeira฀referência฀explícita฀à฀ participação฀dos฀bispos฀em฀uma฀reunião฀em฀que฀houve฀uma฀partilha฀do฀ Regnum฀Francorum:฀฀ ฀L.฀Pietri,฀“L’Eglise฀du฀Regnum฀Francorum”,฀pp.฀745-799,฀especialmente฀p.฀756. ฀Orléans฀I฀(511),฀c.฀24;฀Orléans฀541,฀can.฀2.฀ 55฀ Orléans฀IV฀(541),฀c.฀1.฀ 56 ฀Epistolae฀aevi฀merowingici฀collectae,฀VII,฀3,฀pp.฀437-438.฀ 53 54 254฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média “Em฀nome฀do฀Cristo,฀os฀excelentíssimos฀senhores฀reis฀Gontrão฀e฀Childeberto฀e฀a฀gloriosíssima฀dama,฀a฀rainha฀Brunilda,฀se฀reuniram฀em฀Andelot฀dentro฀de฀um฀sentimento฀de฀afeição฀para฀resolver฀após฀uma฀deliberação฀plenária฀ as฀questões฀de฀toda฀natureza฀que฀pudessem฀gerar฀entre฀eles฀um฀conflito,฀e,฀ nesse฀sentimento฀de฀afeição,฀foi฀retido,฀decidido฀e฀convindo฀entre฀eles,฀com฀a฀ ajuda฀dos฀bispos฀e฀dos฀grandes,฀e฀graças฀à฀mediação฀de฀Deus,฀que,฀tanto฀que฀ Deus฀ todo-poderoso฀ consentiria฀ na฀ sua฀ sobrevivência฀ no฀ mundo฀ presente,฀ eles฀deverão฀manter฀entre฀si฀uma฀fé฀e฀uma฀afeição฀puras฀e฀sinceras”57.฀฀฀฀฀฀฀ A฀participação฀dos฀bispos฀na฀deliberação฀plenária฀na฀qual฀o฀pacto฀ foi฀debatido฀e฀preparado฀atesta฀uma฀provável฀redução฀de฀tensões฀entre฀ o฀poder฀real฀e฀o฀episcopado฀no฀que฀se฀refere฀às฀partições฀territoriais.฀ Não฀obstante,฀é฀em฀sua฀penúltima฀disposição฀que฀o฀pacto฀consagrou฀ explicitamente฀ o฀ sucesso฀ das฀ orientações฀ episcopais฀ em฀ matéria฀ de฀ partilhas: “Da฀mesma฀maneira,฀tudo฀o฀que฀os฀ditos฀reis฀conferiram฀às฀igrejas฀ou฀a฀ seus฀fiéis฀e฀que฀eles฀desejarão฀ainda฀lhes฀conferir฀justamente฀com฀a฀graça฀de฀ Deus฀deverá฀ser฀respeitado฀irrevocavelmente.฀E฀quanto฀ao฀que฀é฀devido฀a฀cada฀ 57 ฀Histórias฀IX,฀20.฀O฀pacto฀de฀Andelot฀nos฀coloca฀diante฀de฀um฀dilema.฀Pode-se฀perguntar฀ qual฀ era฀ a฀ razão฀ pela฀ qual฀ Brunilda,฀ assim฀ como฀ Galsvinta฀ antes฀ dela,฀ tinha฀ direito฀ a฀ uma฀ compensação฀fiscal.฀Elas฀não฀estavam฀à฀frente฀de฀um฀regnum.฀Isso฀poderia฀ser฀interpretado฀ como฀um฀prova฀do฀caráter฀privado,฀“patrimonial”,฀dos฀arranjos฀territoriais฀merovingios?฀Em฀ razão฀de฀seu฀interesse฀e฀de฀sua฀complexidade,฀o฀estatuto฀das฀rainhas฀merovíngias฀mereceria฀ uma฀pesquisa฀a฀parte.฀O฀poder฀dessas฀rainhas฀não฀era฀tão฀“privado”฀como฀se฀acredita.฀Bastaria฀ citar฀o฀caso฀de฀Clotilde,฀de฀Fredegonda฀ou฀de฀Brunilda฀para฀demonstrar฀o฀papel฀preponderante฀ que฀ elas฀ desempenharam฀ na฀ história฀ merovíngia฀ até฀ a฀ época฀ de฀ Clotario฀ II฀ ฀ (Ver฀ I.฀ Wood,฀ “Royal฀Women:฀Fredegund,฀Brunihild฀and฀Radegund”,฀The฀Merovingian฀Kingdoms,฀pp.฀120139;฀e฀também฀o฀estudo฀recente฀de฀N.฀Pancer,฀Sans฀peur฀et฀sans฀vergogne.฀De฀l’honneur฀et฀ des฀femmes฀aux฀premiers฀temps฀mérovingiens).฀As฀rainhas฀estavam฀muitas฀vezes฀à฀frente฀de฀ uma฀estrutura฀administrativa฀bastante฀complexa฀(Histórias฀VIII,฀32;฀Histórias฀V,฀42).฀Daí฀a฀ necessidade฀de฀uma฀fonte฀de฀renda฀capaz฀de฀prover฀às฀necessidades฀desse฀aparelho,฀embora฀ esse฀último฀fosse฀bem฀menos฀importante฀que฀a฀administração฀real.฀Não฀se฀pode฀falar,฀nesse฀ sentido,฀de฀duas฀estruturas฀estatais฀concorrentes,฀mas฀de฀duas฀entidades฀complementares.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀255 um฀ dos฀ fiéis฀ no฀ reino฀ de฀ um฀ e฀ de฀ outro฀ em฀ virtude฀ da฀ lei฀ da฀ justiça,฀ esses฀ não฀deverão฀sofrer฀nenhum฀prejuízo,฀mas฀serão฀autorizados฀a฀possuir฀seus฀ bens฀e฀a฀receber฀outros,฀e฀se฀alguma฀coisa฀foi฀retirada฀a฀um฀deles฀durante฀os฀ interregnos฀sem฀que฀tenha฀havido฀erro฀de฀sua฀parte,฀essa฀lhe฀será฀restituída฀ após฀ter฀sido฀feita฀uma฀investigação”58. Esse฀trecho฀sustenta฀que฀todos฀os฀bens฀que฀os฀reis฀tinham฀conferido฀ às฀igrejas฀ou฀a฀seus฀fiéis฀deveria฀ser฀respeitado.฀O฀tratado฀quis฀reparar฀os฀ danos฀causados฀pelas฀guerras฀civis฀e฀restituir฀as฀possessões฀àqueles฀que฀ as฀tinham฀perdido฀em฀virtude฀do฀apoio฀a฀uma฀das฀partes฀em฀luta.฀Os฀ príncipes฀francos฀aceitavam฀também฀uma฀das฀demandas฀mais฀freqüente฀ dos฀bispos,฀e฀que฀consistia฀na฀garantia฀da฀integridade฀dos฀bens฀eclesiásticos฀em฀caso฀de฀partilha.฀ Gontrão฀contava฀com฀a฀autoridade฀moral฀dos฀bispos฀para฀regular฀as฀ disputas฀dentro฀do฀Regnum฀Francorum;฀é฀o฀que฀também฀mostra฀o฀concílio฀que฀ele฀convocou฀em฀Lyon,฀em฀581.฀Temeroso฀dos฀desdobramentos฀ da฀aliança฀que฀Childeberto฀II฀estava฀concretizando฀com฀Chilperico,฀em฀ detrimento฀ de฀ acordo฀ concluído฀ com฀ a฀ Burgúndia,฀ Gontrão฀ recorreu฀ uma฀vez฀mais฀à฀arbitragem฀episcopal59.฀Ele฀convocou฀um฀outro฀concílio฀ em฀589฀para฀que฀os฀bispos฀arbitrassem฀suas฀disputas฀com฀Childeberto฀ II,฀e฀também฀julgassem฀o฀patrício฀Mummolus฀por฀traição.฀Ele฀suspeitava฀que฀Childeberto฀II฀buscava฀um฀aliança฀com฀os฀visigodos.฀O฀concílio฀ não฀ocorreu,฀pois฀segundo฀Gregório฀de฀Tours,฀a฀rainha฀Brunilda฀refutou฀ essas฀acusações฀através฀de฀um฀juramento60.฀ É฀ nos฀ concílios฀ que฀ ocorreram฀ na฀ década฀ de฀ 580฀ em฀ Mâcon,฀ em฀ Lyon,฀e฀em฀Auxerre,฀que฀se฀pode฀identificar฀melhor฀o฀alcance฀da฀influência฀política฀do฀episcopado฀na฀Burgúndia.฀No฀preâmbulo฀do฀primeiro฀ Concílio฀de฀Mâcon฀(581-583),฀convocado฀Cum฀ad฀iniunctionem฀gloriosissimi฀domni฀Guntramni฀regis฀(“Com฀a฀injunção฀do฀gloriosissimo฀senhor฀ 58 ฀Ibid. 59 60 ฀Histórias฀VI,฀1. ฀Histórias฀IX,฀32.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 256฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média o฀rei฀Gontrão”),฀os฀bispos฀sustentam฀que฀se฀reuniram฀...tam฀pro฀causis฀ publicis฀quam฀pro฀necessitatibus฀pauperum฀(“...tanto฀pelas฀causas฀públicas฀ quanto฀pelas฀necessidades฀dos฀pobres”).฀Essa฀asserção฀ilustra฀a฀natureza฀ das฀ assembléias฀ conciliares฀ durante฀ o฀ reinado฀ de฀ Gontrão:฀ ainda฀ que฀ reunidos฀ por฀ uma฀ determinação฀ do฀ rei,฀ os฀ bispos฀ expressavam฀ claramente,฀e฀pela฀primeira฀vez฀em฀um฀concílio฀merovíngio,฀o฀desejo฀de฀se฀ ocupar฀das฀“causas฀públicas”.฀Ver-se-á฀mais฀adiante฀que฀as฀medidas฀adotadas฀durante฀esse฀concílio฀diziam฀respeito฀a฀temas฀que฀eram฀até฀então฀ o฀apanágio฀da฀autoridade฀real.฀Contudo,฀o฀que฀melhor฀revela฀o฀alcance฀ das฀pretensões฀episcopais฀é฀o฀fato฀de฀que฀o฀preâmbulo฀desse฀Concílio฀ de฀Mâcon฀I฀associava฀os฀“assuntos฀públicos”฀às฀necessidades฀dos฀pobres.฀ Os฀ bispos฀ conciliares฀ nunca฀ tinham฀ ido฀ tão฀ longe.฀ Nos฀ concílios฀ precedentes,฀eles฀tinham฀se฀contentado฀de฀estabelecer฀como฀horizonte฀da฀ assembléia฀conciliar฀a฀pace฀et฀instructione฀ecclesia61,฀a฀ordo฀ecclesiae”62฀,฀e฀ a฀“populi฀salvatione”63.฀Além฀do฀mais,฀as฀medidas฀adotadas฀nesse฀primeiro฀Concílio฀de฀Mâcon฀favoreciam฀os฀clérigos฀em฀detrimento฀dos฀juízes฀ seculares:฀o฀sétimo฀cânone,฀por฀exemplo,฀estabelecia฀que฀nenhum฀clérigo฀deveria฀ser฀posto฀na฀prisão,฀ou฀vítima฀de฀injustiça฀cometida฀por฀um฀ juiz฀secular.฀Os฀bispos฀conciliares฀ameaçavam฀com฀a฀excomunhão฀todo฀ juiz฀que฀ousasse฀repreender฀ou฀pôr฀em฀prisão฀um฀clérigo฀sem฀antes฀ter฀ consultado฀o฀bispo฀ao฀qual฀o฀referido฀clérigo฀estava฀subordinado: “Que฀nenhum฀clérigo,฀por฀nenhum฀motivo,฀seja,฀sem฀o฀exame฀por฀parte฀de฀ seu฀bispo,฀vítima฀da฀injustiça฀de฀um฀juiz฀secular฀ou฀colocado฀na฀prisão.฀Se฀um฀ juiz฀permite฀tratar฀desse฀modo฀o฀clérigo฀de฀alguém,฀a฀menos฀que฀se฀trate฀de฀ um฀crime,฀ou฀seja,฀homicídio,฀roubo฀e฀malefício,฀que฀ele฀seja฀afastado฀do฀solo฀ da฀igreja฀o฀tempo฀que฀o฀bispo฀do฀lugar฀julgar฀necessário”64.฀฀ Tours฀II฀(567).฀ ฀Lyon฀III฀(v.฀570).฀ 63 ฀Ibid.฀฀ 64 ฀Mâcon฀I฀(581-583),฀c.฀7.฀฀ 61 62 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀257 Os฀clérigos฀eram฀proibidos฀de฀acusar฀seus฀colegas฀diante฀de฀um฀juiz฀ secular.฀Mas,฀é฀sobretudo฀no฀que฀tange฀às฀medidas฀tomadas฀contra฀os฀ judeus฀que฀se฀pode฀notar฀a฀tendência฀dos฀bispos฀em฀legislar฀sobre฀temas฀ que฀eram฀até฀então฀o฀monopólio฀da฀autoridade฀real,฀como฀a฀nomeação฀ de฀ funcionários.฀ Eles฀ proibiram,฀ por฀ exemplo,฀ que฀ os฀ judeus฀ fossem฀ nomeados฀juízes:฀ “Que฀os฀judeus฀não฀sejam฀dados฀como฀juízes฀ao฀povo฀cristão฀e฀que฀eles฀não฀ tenham฀o฀direito฀de฀serem฀preceptores,฀o฀que฀colocaria฀os฀cristãos฀sob฀seu฀ comando฀e฀não฀agradaria฀a฀Deus”65.฀฀ O฀ episcopado฀ burgúndio฀ entrava฀ em฀ um฀ domínio฀ que฀ pertencia฀ tradicionalmente฀ à฀ realeza฀ e฀ se฀ colocava฀ como฀ fiador฀ da฀ retidão฀ dos฀ “assuntos฀públicos”.฀Essa฀tendência฀se฀acentuou฀nos฀concílios฀posteriores.฀O฀concílio฀de฀Mâcon฀II,฀ocorrido฀em฀585,฀é,฀desse฀ponto฀de฀vista,฀o฀ mais฀ambicioso฀de฀todos฀os฀concílios฀merovíngios฀da฀segunda฀metade฀ do฀século฀VI.฀Os฀temas฀desenvolvidos฀pelos฀bispos฀constituíam฀um฀verdadeiro฀programa฀para฀a฀Realeza฀Cristã.฀Note-se฀que฀no฀preâmbulo฀aos฀ cânones฀desse฀concílio,฀os฀bispos฀não฀fazem฀qualquer฀menção฀ao฀fato฀ de฀que฀o฀rei฀os฀teria฀convocado.฀Ao฀contrário,฀eles฀deixam฀claro฀que฀se฀ reuniram฀por฀sua฀própria฀iniciativa: ฀ “É฀por฀isso฀que฀devemos฀todos฀rezar฀incessantemente฀para฀que฀a฀majestade฀ do฀Deus฀todo-poderoso฀conserve฀com฀sua฀bondade฀habitual฀a฀saúde฀de฀nosso฀ rei฀ e฀ nos฀ conceda฀ a฀ todos฀ nós฀ que,฀ membros฀ de฀ um฀ só฀ corpo,฀ reunidos฀ de฀ nossa฀própria฀iniciativa,฀possamos฀realizar฀o฀que฀agrada฀à฀sua฀serenidade฀e฀à฀ sua฀majestade”66.฀ É฀surpreendente฀que฀um฀concílio฀politicamente฀relevante฀como฀o฀de฀ Mâcon฀II฀tenha฀podido฀se฀realizar฀sem฀uma฀convocação฀real.฀Todavia,฀os฀ 65 ฀Ibid.,฀c.฀13.฀฀฀฀ ฀Mâcon฀II฀(585),฀prefácio. 66 258฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média bispos฀tomavam฀o฀cuidado฀de฀especificar฀que฀sua฀assembléia฀tinha฀por฀ objetivo฀realizar฀aquilo฀que฀agradava฀ao฀rei.฀Essa฀menção฀ao฀rei฀poderia฀ salvar฀as฀aparências.฀Entretanto,฀ao฀se฀colocarem฀como฀intérpretes฀da฀ vontade฀do฀rei,฀os฀bispos฀se฀outorgavam฀uma฀responsabilidade฀e฀uma฀ autoridade฀ públicas฀ consideráveis,฀ confirmando฀ assim฀ os฀ princípios฀ expostos฀no฀primeiro฀Concílio฀de฀Mâcon: “Uma฀vez฀que฀a฀indivisível฀Trindade฀nos฀reuniu,฀tanto฀de฀espírito฀quanto฀de฀ corpo,฀em฀uma฀só฀assembléia,฀nós฀devemos฀com฀uma฀sábia฀prudência฀ajudar฀ a฀todos,฀por฀temor฀de฀que฀nosso฀silêncio฀nos฀valha฀a฀reprovação฀da฀Divindade฀ e฀exponha฀nossos฀súditos฀à฀tentação”67.฀ Eles฀estabelecem฀como฀missão฀ajudar฀a฀todos฀os฀habitantes฀do฀reino,฀ o฀que฀justificam฀através฀de฀sua฀reponsabilidade฀diante฀de฀Deus.฀A฀idéia฀ de฀que฀os฀bispos฀devem฀prestar฀contas฀à฀Divindade฀das฀ações฀de฀seu฀rebanho฀constitui฀a฀principal฀justificativa฀para฀a฀ingerência฀do฀episcopado฀ nos฀assuntos฀de฀“interesse฀público”.฀Estamos฀bem฀longe฀do฀espírito฀do฀ primeiro฀Concílio฀de฀Orléans,฀quando฀os฀bispos฀tinham฀se฀remetido฀humildemente฀a฀Clóvis฀para฀que฀este฀aplicasse฀as฀disposições฀conciliares,฀ inclusive฀no฀domínio฀da฀organização฀interna฀da฀Igreja68. O฀ interesse฀ público฀ do฀ qual฀ os฀ bispos฀ de฀ Mâcon฀ II฀ se฀ afirmaram฀ como฀intérpretes฀tinha฀um฀sentido฀profundamente฀cristão.฀No฀primeiro฀cânone,฀eles฀definiam฀a฀obrigação฀de฀respeitar฀o฀repouso฀durante฀o฀ domingo69.฀O฀segundo฀cânone฀tratava฀da฀obrigação฀de฀todos฀os฀cristãos฀ celebrarem฀ a฀ Páscoa70.฀ O฀ quinto฀ cânone฀ estabelecia฀ a฀ necessidade฀ do฀ pagamento฀ do฀ dízimo71.฀ Em฀ 585,฀ os฀ bispos฀ estabeleceram฀ regras฀ cuja฀ amplitude฀ia฀além฀do฀limite฀estrito฀da฀organização฀hierárquica฀e฀da฀administração฀cotidiana฀da฀Igreja.฀Eles฀ultrapassavam฀um฀limite฀que฀seus฀ 67 ฀Ibid. ฀Orléans฀I฀(511),฀Epistola฀ad฀regem 69 ฀Mâcon฀II฀(585),฀c.1. 70 ฀Ibid.,฀c.฀2. 71 ฀Ibid.,฀c.฀5. 68 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀259 predecessores฀ não฀ haviam฀ ousado฀ transpor.฀ O฀ Concílio฀ de฀ Mâcon฀ II฀ supõe฀não฀apenas฀a฀existência฀de฀uma฀Realeza฀Cristã,฀mas฀traz฀consigo฀o฀ projeto฀de฀uma฀sociedade฀cristã,฀pois฀os฀bispos฀conciliares฀se฀colocaram฀ como฀guardiães฀dos฀interesses฀(utilitas)฀de฀todos.฀Essa฀palavra฀reveste-se฀ aqui฀do฀mesmo฀sentido฀que฀tinha฀nos฀escritos฀episcopais฀desde฀o฀incício฀ do฀século฀VI:฀tratava-se฀de฀zelar฀pelo฀bem-estar฀espiritual฀dos฀cristãos,฀ ou฀seja,฀pela฀sua฀salvação.฀Aquilo฀que฀os฀bispos฀deveriam฀defender,฀e฀que฀ é฀resumido฀por฀dois฀temas฀principais,฀a฀paz฀e฀a฀salvação,฀justificaria฀sua฀ ingerência฀na฀condução฀dos฀assuntos฀públicos,฀aconselhando฀e฀influenciando฀as฀decisões฀reais.฀฀฀ Uma฀vez฀que฀era฀seu฀dever฀cumprir฀essas฀duas฀tarefas,฀os฀bispos฀não฀ hesitavam฀em฀proclamar฀sua฀superioridade฀perante฀os฀iudices฀e฀os฀outros฀ representantes฀laicos฀da฀autoridade฀real.฀Comparativamente,฀os฀concílios฀ da฀primeira฀metade฀do฀século฀VI฀não฀eram฀marcados฀por฀essa฀preocupação฀do฀episcopado฀em฀definir฀a฀condução฀dos฀“assuntos฀públicos”: “Enquanto฀ sediavam฀ juntos฀ na฀ cidade฀ de฀ Auvérnia,฀ os฀ bispos฀ de฀ vossas฀ igrejas,฀vossos฀fiéis,฀com฀o฀objetivo฀de฀reiterar฀os฀estatutos฀canônicos฀e฀de฀elucidar฀a฀lei฀eclesiástica฀para฀aqueles฀que฀se฀acharassem฀oprimidos฀pela฀dúvida฀ na฀conduta฀de฀sua฀vida฀pessoal,฀uma฀multidão฀muito฀numerosa฀de฀pessoas฀ implorando฀um฀remédio฀para฀seu฀desespero฀afluiu฀em฀volta฀de฀nós”72.฀฀ Nesse฀primeiro฀concílio฀de฀Clermont,฀de฀535,฀os฀bispos฀fixaram฀como฀ objetivo฀apenas฀reiterar฀os฀estatutos฀canônicos฀e฀elucidar฀a฀lei฀eclesiástica฀para฀aqueles฀que฀se฀encontrassem฀oprimidos฀pela฀dúvida฀na฀conduta฀ de฀suas฀vidas฀pessoais.฀Há฀aqui฀uma฀definição฀clara฀das฀prerrogativas฀ episcopais:฀aos฀bispos฀caberia฀a฀tarefa฀de฀estabelecer฀a฀doutrina฀e฀cuidar฀ da฀saúde฀moral฀de฀seu฀rebanho.฀Nada฀transparece฀de฀um฀interesse฀pelos฀ “assuntos฀públicos”.฀O฀que฀se฀observa฀no฀Concílio฀de฀Mâcon฀II฀é฀uma฀ extensão฀das฀prerrogativas฀do฀episcopado:฀o฀interesse฀público฀torna-se฀ matéria฀de฀implicação฀moral฀e฀religiosa.฀ ฀Clermont฀I฀(535),฀Epistola฀ad฀regem฀Theodebertum.฀ 72 260฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Se฀compararmos,฀a฀título฀de฀exemplo,฀as฀medidas฀de฀governo฀de฀Chilperico฀com฀as฀medidas฀tomadas฀por฀Gontrão,฀é฀possível฀observar฀uma฀ diferença฀que฀não฀se฀limita฀a฀um฀simples฀contraste฀entre฀a฀“crueldade”฀ do฀primeiro฀e฀a฀“bondade”฀do฀segundo.฀O฀que฀os฀opõe฀antes฀de฀tudo฀é฀o฀ entendimento฀que฀cada฀um฀deles฀tinha฀sobre฀a฀natureza฀e฀o฀exercício฀da฀ autoridade฀real.฀Gontrão฀buscou฀na฀Igreja,฀mais฀precisamente฀junto฀ao฀ episcopado,฀a฀fonte฀principal฀de฀sua฀legitimidade.฀É฀em฀seu฀reinado฀que฀se฀ pode฀observar฀o฀enfraquecimento฀decisivo฀desse฀elemento฀característico฀ da฀vida฀política฀franca฀ao฀menos฀desde฀Clóvis,฀isto฀é,฀a฀política฀de฀imitatio฀ imperii.฀Esse฀enfraquecimento฀não฀significou฀um฀abandono฀completo฀da฀ referência฀romana฀e฀das฀relações฀com฀o฀Império.฀Não฀havia฀nenhuma฀escolha฀exclusiva฀entre,฀por฀um฀lado,฀a฀legitimação฀eclesiástica฀ou฀episcopal฀ e,฀ por฀ outro฀ lado,฀ a฀ legitimação฀ pelos฀ símbolos฀ romanos.฀ Os฀ príncipes฀ francos฀continuaram฀a฀recorrer฀ao฀passado฀romano.฀Gregório฀de฀Tours฀ descreve,฀por฀exemplo,฀a฀entrada฀triunfal฀de฀Gontran฀em฀Orléans: “Tendo฀em฀seguida฀abandonado฀Nevers,฀ele฀veio฀à฀cidade฀de฀Orléans฀onde฀ se฀mostrou฀em฀sua฀majestade฀aos฀habitantes,฀pois฀ele฀ia฀a฀suas฀casas฀para฀as฀ quais฀ era฀ convidado฀ e฀ participava฀ dos฀ banquetes฀ que฀ lhe฀ eram฀ oferecidos.฀ Tendo฀recebido฀deles฀numerosos฀presentes,฀ele฀também฀lhes฀concedeu฀vários฀ benefícios฀ com฀ uma฀ bondosa฀ generosidade.฀ Ora,฀ quando฀ chegou฀ à฀ cidade฀ de฀Orléans,฀era฀dia฀da฀festa฀do฀bem-aventurado฀Martinho,฀(...).฀Uma฀imensa฀฀ multidão฀de฀pessoas฀veio฀ao฀seu฀encontro฀com฀estandartes฀e฀bandeiras,฀cantando฀suas฀laudas”73.฀฀฀฀ A฀“entrada฀triunfal”฀de฀Gontrão฀em฀Orléans฀era฀uma฀cerimônia฀mais฀ cristã฀que฀romana,฀apesar฀da฀referência฀aos฀“benefícios”฀concedidos฀pelo฀ 73 ฀Histórias฀฀VIII,฀1.฀Ver,฀a฀esse฀respeito,฀N.฀Gussone,฀“Adventus-Zeremoniell฀und฀Translation฀ von฀Reliquien:฀Victricius฀von฀Rouen,฀De฀laude฀Sanctorum”,฀pp.฀125-133;฀sobre฀o฀Adventus฀das฀ relíquias฀de฀Santo฀Estéfano฀em฀Bizâncio,฀ver฀K.G.฀Holum฀et฀G.฀Vikan,฀“The฀Trier฀Ivory,฀Adventus฀Ceremonial,฀and฀the฀Relics฀of฀St.฀Stephen”,฀pp.฀113-133;฀ver฀também฀S.G.฀McCormack,฀Art฀ and฀Ceremony฀in฀Late฀Antiquity,฀pp.฀15-89. Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀261 rei฀e฀ao฀fato฀de฀que฀ele฀se฀mostrou฀em฀majestade฀aos฀habitantes฀da฀cidade฀ e฀participado฀dos฀banquetes฀que฀lhe฀eram฀oferecidos.฀Gontrão฀chegou฀ à฀cidade฀no฀dia฀da฀celebração฀de฀São฀Martinho,฀e฀isso฀tinha฀um฀significado฀particular.฀Uma฀grande฀quantidade฀de฀pessoas฀veio฀ao฀seu฀encontro,฀com฀estandartes฀e฀bandeiras,฀cantando฀hinos.฀O฀cortejo฀real฀era฀ao฀ mesmo฀tempo฀um฀cortejo฀em฀honra฀do฀santo.฀O฀rei฀foi฀aclamado฀pelos฀ habitantes,฀entretanto,฀e฀isso฀é฀fundamental,฀ele฀não฀era฀o฀personagem฀ central฀da฀cerimônia,฀contrariamente฀a฀Clóvis฀em฀507.฀Ele฀participava฀ como฀os฀outros฀habitantes฀de฀Tours฀da฀reverência฀ao฀santo.฀฀ Os฀anos฀que฀sucederam฀a฀morte฀de฀Gontrão฀foram฀marcados฀por฀ uma฀ atividade฀ conciliar฀ bastante฀ fraca.฀A฀ radicalização฀ das฀ lutas฀ internas฀ não฀ favorecia฀ a฀ convocação฀ desses฀ concílios;฀ além฀ do฀ mais,฀ a฀ rainha฀Brunilda,฀que฀mantinha฀as฀rédeas฀do฀poder฀na฀Austrásia฀e฀na฀ Burgúndia฀até฀o฀princípio฀do฀século฀VII,฀hesitava฀em฀reunir฀um฀concílio.฀E฀isso฀apesar฀dos฀pedidos฀repetidos฀do฀papa฀Gregório฀Magno.฀As฀ dificuldades฀encontradas฀por฀eleo฀em฀suas฀relações฀com฀os฀príncipes฀ merovíngios฀foram฀imensas74.฀O฀papa฀não฀encontrou฀no฀mundo฀fran- 74 ฀A฀bibliografia฀sobre฀Gregório฀Magno฀é฀considerável.฀Não฀é฀o฀caso฀aqui฀de฀fazer฀uma฀descrição฀exaustiva.฀Poderíamos,฀no฀entanto,฀citar฀algumas฀obras.฀Temos฀inicialmente฀alguns฀clássicos:฀Th.฀Bonsmann,฀Gregor฀der฀Grosse.฀Ein฀lebensbild;฀P.฀Battifol,฀Saint฀Grégoire฀le฀Grand;฀ C.฀ Dagens,฀ Saint฀Grégoire฀le฀Grand;฀ sobre฀ seu฀ pontificado฀ e฀ sua฀ atividade฀ missionária,฀ ver฀ H.฀Grisar,฀San฀Gregorio฀Magno฀(590-604);฀L.฀Bréhier,฀R.฀Aigran,฀Grégoire฀le฀Grand,฀les฀états฀ barbares฀et฀la฀conquête฀arabe฀(590-754);฀E.฀Demougeot,฀“Grégoire฀le฀Grand฀et฀la฀conversion฀ du฀roi฀germain฀au฀VIe฀siècle”,฀pp.191-203;฀G.R.฀Evans,฀The฀Thought฀of฀Gregory฀the฀Great;฀ H.฀ Chadwick,฀“Gregory฀ of฀ Tours฀ and฀ Gregory฀ the฀ Great”,฀ pp.38-49;฀ sobre฀ sua฀ doutrina,฀ C.฀ Dagens,฀“Saint฀Grégoire฀le฀Grand,฀Consul฀Dei.฀La฀mission฀prophétique฀d’un฀pasteur”,฀pp.33-45;฀ F.E.฀Consolino,฀“Il฀papa฀e฀le฀regine:฀potere฀femminile฀e฀politica฀ecclesiastica฀nell’epistolario฀di฀ Gregorio฀Magno”,฀pp.225-249;฀do฀mesmo฀autor,฀“I฀doveri฀del฀principe฀christiano฀nel฀Registrum฀ Epistolarum฀di฀Gregorio฀Magno”,฀pp.57-82;฀B.฀Judic,฀“Grégoire฀le฀Grand฀et฀son฀influence฀sur฀le฀ haut฀Moyen฀Age฀occidental”,฀pp.฀09-32;฀D.V.฀Ribeiro,฀“A฀sacralização฀do฀poder฀temporal฀na฀Alta฀ Idade฀Média฀Ocidental:฀Grégorio฀Magno฀et฀Isidoro฀de฀Sevilha”,฀pp.฀91-112.฀Um฀bom฀repertório฀ bilbliográfico฀sobre฀Gregório฀Magno฀foi฀publicado฀por฀R.฀Godding,฀Bibliografia฀di฀Gregorio฀ Magno฀(1890-1989),฀(Opere฀di฀Gregorio฀Magno.฀Complementi,฀1);฀do฀mesmo฀autor,฀ver฀também,฀“Cento฀anni฀di฀ricerche฀su฀Gregorio฀Magno:฀a฀proposito฀di฀una฀bibliografia”,฀pp.฀293-304.฀฀ 262฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média co฀ uma฀ rede฀ de฀ representantes฀ ou฀ de฀ correspondentes฀ oficiais฀ da฀ Sé฀ Apostólica.฀ Quando฀o฀rei฀Gontrão฀faleceu,฀em฀592,฀Childeberto฀II฀tornou-se฀o฀ rei฀da฀Burgúndia75.฀A฀morte฀desse฀último,฀quatro฀anos฀depois,฀conduziu฀ à฀divisão฀de฀seu฀regnum,฀que฀constituía฀mais฀de฀três฀quartos฀da฀Gália฀ merovíngia.฀Seus฀dois฀filhos,฀Teudeberto฀II฀e฀Teuderico฀II,฀passaram฀a฀ reinar฀respectivamente฀sobre฀a฀Austrásia฀e฀sobre฀a฀Burgúndia76.฀Ambos฀ iniciaram฀hostilidades฀contra฀Clotário฀II,฀cujo฀reino฀estava฀reduzido฀a฀ uma฀ pequena฀ porção฀ das฀ terras฀ entre฀ o฀ rio฀ Sena,฀ o฀ Oise฀ e฀ o฀ canal฀ da฀ Mancha77.฀As฀disputas฀entre฀os฀irmãos฀acabaram฀por฀absorver฀quase฀todas฀as฀suas฀energias฀durante฀cerca฀de฀duas฀décadas.฀Teuderico฀II฀atacou฀ e฀matou฀Teudeberto฀II,฀em฀61278.฀Pouco฀tempo฀depois,฀ele฀teria฀perecido฀ tentando฀derrotar฀Clotário฀II.฀Abandonada฀pela฀aristocracia,฀Brunilda฀ foi฀assassinada฀em฀613฀por฀esse฀último.฀Pela฀primeira฀vez,฀desde฀558,฀o฀ Regnum฀Francorum฀passou฀a฀ser฀governado฀por฀um฀só฀rei79.฀ O฀V฀Concílio฀de฀Paris฀(614) O฀quinto฀concílio฀de฀Paris,฀reunido฀em฀outubro฀de฀61480,฀foi฀a฀maior฀ reunião฀conciliar฀do฀período฀merovíngio,฀não฀somente฀do฀ponto฀de฀vista฀do฀número฀de฀participantes฀–฀dele฀tomavam฀parte฀doze฀bispos฀metropolitanos,฀sessenta฀e฀sete฀bispos฀e฀um฀abade฀vindo฀da฀Inglaterra฀–,฀mas฀ também฀em฀razão฀dos฀tópicos฀tratados81.฀Os฀bispos฀pretendiam฀corrigir฀ as฀falhas฀na฀hierarquia฀eclesiástica฀aparecidas฀durante฀as฀guerras฀civis,฀ 75 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀14.฀฀฀฀ ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀16. 77 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀20.฀฀ 78 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀27,฀37฀e฀38.฀฀฀฀฀฀ 79 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀39-42.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 80 ฀A฀ data฀ do฀ concílio฀ é฀ dada฀ por฀ um฀ manuscrito฀ do฀ século฀VIII฀ (Munique,฀ Staatsbibl.฀ Lat.฀ 5508).฀ 81 ฀Paris฀V฀(614),฀pp.฀190-192. 76 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀263 mas,฀além฀disso,฀contribuir฀para฀a฀homogeneização฀da฀legislação฀eclesiástica฀na฀Gália.฀Clotário฀II,฀o฀vencedor฀das฀guerras฀civis,฀era,฀após฀mais฀ de฀sessenta฀anos,฀o฀primeiro฀rei฀franco฀a฀governar฀ao฀mesmo฀tempo฀os฀ três฀regna.฀Foi฀sob฀inspiração฀de฀Clotário฀que฀o฀concílio฀ocorreu:฀“...com฀ o฀convite฀de฀nosso฀gloriosíssimo฀príncipe,฀o฀senhor฀rei฀Clotário...”82.฀฀ Os฀bispos฀invocavam฀três฀razões฀que฀teriam฀orientado฀suas฀deliberações฀:฀o฀interesse฀do฀príncipe,฀a฀salvação฀do฀povo฀e฀a฀ordem฀da฀Igreja:฀ “...nós฀ deliberamos฀ aquilo฀ que฀ convinha฀ mais฀ apropriadamente,฀ seja฀ ao฀ interesse฀do฀príncipe,฀seja฀à฀salvação฀do฀povo,฀seja฀àquilo฀que฀observava฀positivamente฀a฀ordem฀eclesiástica”83.฀A฀fórmula฀é฀quase฀idêntica฀à฀utilizada฀ pelos฀bispos฀durante฀o฀Concílio฀de฀Lyon฀II฀(c.฀569-570),฀com฀a฀diferença฀ que฀essa฀última฀omitia฀toda฀e฀qualquer฀referência฀ao฀interesse฀do฀príncipe.฀Os฀bispos฀de฀Paris฀V฀pareciam฀muito฀mais฀preocupados฀que฀em฀Lyon฀ de฀tudo฀o฀que฀poderia฀convir฀à฀autoridade฀real.฀Pode-se฀questionar฀qual฀ o฀sentido฀e฀o฀alcance฀dessa฀fórmula฀na฀medida฀em฀que,฀por฀exemplo,฀no฀ que฀se฀refere฀às฀eleições฀episcopais,฀o฀segundo฀cânone฀de฀Paris฀V฀recusou฀ toda฀ingerência฀da฀autoridade฀real.฀Os฀bispos฀escolheram฀a฀eleição฀pelo฀ clero฀e฀pelo฀povo,฀seguida฀da฀ordenação฀pelo฀metropolitano฀e฀seus฀coprovinciais.฀Aqueles฀que฀obtivessem฀a฀função฀episcopal฀por฀uma฀via฀não฀ prevista฀nos฀cânones฀teriam฀sua฀eleição฀invalidada84.฀ Tanto฀os฀bispos฀de฀Paris฀em฀614,฀como฀aqueles฀de฀Mâcon฀II฀em฀585฀ acreditavam-se฀qualificados฀para฀traduzir฀e฀expressar฀aquilo฀que฀era฀o฀ “interesse”฀do฀príncipe,฀bem฀como฀o฀“interesse฀público”.฀A฀fórmula฀sobre฀o฀interesse฀do฀príncipe฀não฀era฀uma฀concessão฀feita฀à฀realeza:฀ela฀indicava฀a฀vontade฀do฀episcopado฀em฀participar฀ativamente฀da฀condução฀ dos฀assuntos฀do฀reino฀e฀da฀definição฀do฀conteúdo฀da฀utilitas฀publica.฀฀฀ Os฀primeiros฀cânones฀do฀V฀Concílio฀de฀Paris฀tratavam฀especialmente฀do฀estatuto฀dos฀bispos.฀Eles฀eram฀proibidos฀de฀escolher฀seu฀sucessor85฀ 82 ฀Paris฀V฀(614),฀prefácio.฀ 83 ฀Ibid.฀ 84 ฀Paris฀V฀(614),฀c.฀2.฀฀฀ 85 ฀Paris฀V฀(614),฀c.฀3.฀฀ 264฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ou฀ de฀ expulsar,฀ sem฀ razão฀ canônica,฀ um฀ abade86.฀Ao฀ mesmo฀ tempo,฀ os฀bispos฀recebiam฀garantias฀tais฀como฀a฀proibição฀aos฀clérigos,฀qualquer฀ que฀ fosse฀ sua฀ dignidade,฀ de฀ recorrer฀ ao฀ príncipe฀ ou฀ aos฀ poderosos฀em฀detrimento฀de฀seus฀superiores87.฀Isso฀assegurava฀o฀controle฀ do฀episcopado฀sobre฀a฀hierarquia฀eclesiástica,฀como฀em฀vários฀outros฀ concílios฀do฀século฀VI.฀Entretanto,฀os฀cânones฀de฀Paris฀V฀iam฀além฀ao฀ afirmar฀ as฀ prerrogativas฀ episcopais฀ em฀ detrimento฀ dos฀ juízes฀ laicos.฀ Eles฀ proibiam฀ a฀ esses฀ últimos฀ de฀ condenar฀ um฀ padre,฀ um฀ diácono฀ ou฀ um฀ outro฀ membro฀ da฀ igreja฀ contra฀ a฀ vontade฀ de฀ seu฀ bispo88.฀ Da฀ mesma฀ forma,฀ proibia-se฀ aos฀ bispos฀ a฀ possibilidade฀ de฀ resolver฀ seus฀ conflitos฀diante฀de฀um฀iudex:฀eles฀tinham฀de฀buscar฀o฀julgamento฀de฀ seus฀metropolitanos89. No฀que฀se฀refere฀à฀defesa฀dos฀bens฀eclesiásticos,฀os฀bispos฀de฀Paris฀ V฀também฀pretenderam฀fazer฀prevalecer฀sua฀vontade฀em฀detrimento฀ dos฀preceitos฀reais฀e฀da฀autoridade฀dos฀iudices฀laicos.฀O฀nono฀cânone฀ determinava฀que฀as฀possessões฀que฀pertenceram฀a฀um฀clérigo฀defunto฀ não฀poderiam฀ser฀reivindicadas฀por฀alguém฀que฀possuísse฀uma฀autorização฀real฀ou฀que฀agisse฀em฀nome฀de฀um฀iudex.฀Aqueles฀que฀cometeriam฀tais฀atos฀são฀designados,฀como฀aliás฀no฀Concílio฀de฀Orléans฀V,฀de฀ 549,฀“necatores฀pauperum”฀(“assassinos฀dos฀pobres”)90.฀Com฀o฀fim฀das฀ guerras฀ civis,฀ é฀ natural฀ que฀ os฀ padres฀ conciliares฀ quisessem฀ pôr฀ fim฀ às฀constantes฀violações฀dos฀bens฀eclesiásticos.฀Através฀dos฀cânones฀de฀ Paris฀V,฀pode-se฀observar฀que฀o฀episcopado฀tinha฀ampliado฀suas฀prerrogativas฀em฀relação฀à฀primeira฀metade฀do฀século฀VI.฀Como฀nos฀concílios฀de฀Mâcon฀I฀e฀II,฀os฀bispos฀reunidos฀em฀Paris,฀em฀614,฀proibiram฀ 86 ฀Paris฀V฀(614),฀c.฀4.฀ ฀Paris฀V฀(614),฀c.฀5.฀ 88 ฀Paris฀V฀(614),฀c.฀6.฀ 89 ฀Paris฀V฀(614),฀c.฀13.฀฀ 90 ฀Paris฀V฀(614),฀c.฀9.฀O฀décimo,฀o฀décimo-primeiro฀e฀o฀décimo-segundo฀cânones฀previam฀igualmente฀medidas฀para฀impedir฀que฀os฀bispos฀ou฀os฀arquidiáconos฀se฀apossassem฀dos฀bens฀dos฀ clérigos฀mortos.฀฀฀฀฀ 87 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀265 aos฀judeus฀exercer฀qualquer฀função฀pública฀que฀lhes฀desse฀autoridade฀ sobre฀os฀cristãos91.฀฀ Ainda฀que฀a฀influência฀política฀do฀episcopado฀no฀início฀do฀século฀ VII฀fosse฀considerável,฀as฀medidas฀por฀ele฀defendidas฀nem฀sempre฀eram฀ adotadas฀pela฀autoridade฀real,฀como฀se฀verá฀no฀capítulo฀seguinte.฀Não฀ se฀pode฀confundir฀as฀exortações฀conciliares฀com฀as฀medidas฀de฀governo฀ adotadas฀ pela฀ autoridade฀ real.฀ Entretanto,฀ o฀ fato฀ de฀ que฀ os฀ bispos฀ tenham฀ podido฀ se฀ exprimir฀ em฀ Paris,฀ em฀ 614,฀ com฀ tanta฀ liberdade฀ e฀ sobre฀um฀tal฀número฀de฀temas,฀testemunha฀a฀evolução฀realizada฀desde฀o฀ primeiro฀concílio฀de฀Orléans,฀em฀511. Da฀Realeza฀constantiniana฀à฀emergência฀do฀episcopado฀ As฀guerras฀civis฀coincidiram฀com฀um฀período฀de฀importantes฀mutações฀na฀cultura฀política฀e฀nas฀relações฀de฀poder฀no฀mundo฀franco.฀Esses฀ conflitos฀contribuíram฀de฀dois฀modos฀para฀a฀cristianização฀da฀realeza฀e฀ da฀noção฀de฀utilitas฀publica.฀Em฀primeiro฀lugar,฀o฀fim฀das฀guerras฀civis฀ significou฀a฀derrota฀militar฀e฀política฀dos฀últimos฀partidários฀da฀Realeza฀ Constantiniana.฀O฀assassinato฀de฀Chilperico฀e,฀anos฀depois,฀o฀de฀Brunilda,฀significaram฀a฀derrota฀de฀uma฀prática฀do฀exercício฀do฀poder฀real฀ inaugurada฀por฀Clóvis฀e฀continuada฀por฀seus฀sucessores฀imediatos.฀Em฀ segundo฀lugar,฀a฀partir฀de฀550,฀houve฀um฀crescimento฀extraordinário฀do฀ papel฀ político฀ do฀ episcopado฀ galo-franco.฀ Os฀ bispos,฀ notadamente฀ na฀ Burgúndia,฀tornaram-se฀atores฀políticos฀de฀primeiro฀plano.฀Eles฀propuseram฀ao฀poder฀real฀uma฀nova฀noção฀sobre฀exercício฀do฀governo฀e,฀por฀ conseguinte,฀um฀nova฀fonte฀de฀legitimidade.฀฀ As฀ guerras฀ civis฀ significaram,฀ portanto,฀ mais฀ do฀ que฀ uma฀ disputa฀ entre฀dois฀ramos฀da฀dinastia฀reinante฀por฀algumas฀parcelas฀de฀território฀ 91 ฀ Paris฀V฀ (614),฀ c.฀ 17:฀ “Que฀ nenhum฀ judeu฀ tenha฀ a฀ audácia฀ de฀ solicitar฀ do฀ príncipe฀ que฀ ele฀ exerça฀um฀ofício฀ou฀um฀cargo฀público฀que฀lhe฀dê฀autoridade฀sobre฀os฀cristãos.฀Se฀ele฀se฀arriscar,฀ que฀ele฀receba฀com฀toda฀sua฀família,฀das฀mãos฀do฀฀bispo฀da฀cidade฀onde฀ele฀exerceu฀seu฀ofício฀em฀ contradição฀com฀os฀estatutos฀canônicos,฀a฀graça฀do฀batismo”.฀฀ 266฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média franco.฀Elas฀também฀não฀eram฀simplesmente฀o฀resultado฀do฀acirramento฀de฀“ódios฀privados”฀o฀qual฀opôs฀o฀rei฀Chilperico฀e฀seus฀descendentes฀ à฀rainha฀Brunilda.฀Para฀mostrar฀o฀quanto฀as฀disputas฀interdinásticas฀não฀ constituem฀necessariamente฀as฀fronteiras฀ideais฀para฀que฀se฀compreendam฀as฀bella฀civilia฀do฀Reino฀dos฀Francos,฀basta฀lembrar฀que฀Chilperico฀ e฀Brunilda฀possuíam฀ambos฀uma฀mesma฀percepção฀constantiniana฀das฀ prerrogativas฀ da฀ realeza.฀ Se฀ o฀ primeiro฀ deplorava฀ o฀ empobrecimento฀ do฀tesouro฀público฀em฀detrimento฀dos฀bispos92,฀a฀segunda฀exerceu฀um฀ poder฀ sobre฀ a฀ Austrásia฀ em฀ nome฀ de฀ seu฀ filho฀ Childeberto฀ II,฀ e฀ em฀ seguida฀ em฀ nome฀ de฀ seus฀ netos฀ Teudeberto฀ II฀ e฀ Teuderico฀ II,฀ que฀ se฀ chocava฀com฀os฀interesses฀da฀aristocracia,฀sobretudo฀pelo฀seu฀centralismo฀e฀pelo฀excessivo฀fiscalismo93.฀Após฀a฀morte฀de฀Chilperico,฀Brunilda฀ permaneceu฀como฀o฀último฀avatar฀de฀um฀poder฀de฀inspiração฀“mediterrânica”,฀ou฀em฀todo฀caso฀galo-romana,฀ávido฀de฀poder฀e฀desejoso฀de฀ restaurar฀a฀fiscalidade฀direta94.฀Não฀havia฀entre฀esses฀dois฀príncipes฀um฀ duelo฀ideológico,฀mas฀um฀conflito฀de฀interesses,฀pois฀cada฀um฀pretendia฀ garantir฀às฀suas฀respectivas฀linhagens฀a฀hegemonia฀no฀Regnum฀Francorum.฀As฀práticas฀de฀governo฀de฀ambos฀eram฀marcadas฀por฀uma฀mesma฀ percepção฀constantiniana฀do฀poder.฀As฀clivagens฀quanto฀às฀atitudes฀em฀ relação฀ ao฀ Império฀ não฀ separavam฀ Chilperico฀ e฀ Brunilda,฀ nem฀ Brunilda฀e฀Fredegonda,฀mas฀Chilperico฀e฀Gontrão,฀Brunilda฀e฀Gontrão,฀e฀ finalmente฀Brunilda฀e฀Clotário฀II.฀De฀um฀lado,฀a฀política฀pró-bizantina฀ e฀“imperial”฀ levada฀ a฀ cabo฀ por฀ Chilperico,฀ mas฀ também,฀ e฀ em฀ menor฀ grau,฀por฀Sigeberto฀e฀por฀Childeberto฀II,฀e฀por฀outro,฀a฀via฀“nacional”฀ e฀ episcopal฀ escolhida฀ por฀ Gontrão,฀ e฀ em฀ seguida฀ por฀ Clotário฀ II;฀ essa฀ via฀consistia฀numa฀política฀decididamente฀hostil฀em฀relação฀a฀Bizâncio฀ e฀à฀Espanha฀visigótica.฀No฀que฀se฀refere฀a฀Gontrão,฀que฀se฀encontrava฀ isolado฀no฀plano฀exterior,฀a฀escolha฀que฀se฀impôs฀consistia฀em฀buscar฀o฀ 92 ฀HistóriasVI,฀46.฀ Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀19.฀฀ 94 ฀Ver฀J.L.฀Nelson,฀“Queens฀as฀Jezebels:฀the฀Careers฀of฀Brunehild฀and฀Bathild฀in฀Merovingian฀ History”,฀pp.฀1-48;฀S.฀Lebecq,฀Les฀origines฀franques,฀p.฀119.฀ 93 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀267 apoio฀do฀episcopado,฀e฀seu฀projeto฀político฀incluía฀a฀participação฀desse฀ grupo฀ no฀ governo฀ do฀ reino.฀ Para฀ Chilperico,฀ ao฀ contrário,฀ tratava-se฀ de฀assegurar฀o฀controle฀absoluto฀do฀rei฀sobre฀a฀administração฀local,฀e฀ isso฀em฀detrimento฀dos฀bispos.฀A฀via฀escolhida฀por฀Sigeberto,฀e฀tambem฀ por฀ Childeberto฀ II,฀ era฀ mais฀ nuançada.฀ Mesmo฀ construindo฀ alianças,฀ ora฀com฀a฀Nêustria,฀ora฀com฀a฀Burgúndia,฀os฀austrasianos฀tentaram฀se฀ aproximar฀do฀Império.฀Os฀herdeiros฀de฀Chilperico฀foram฀os฀vencedores฀ das฀guerras฀civis.฀Porém,฀o฀projeto฀político฀que฀encarnaram฀não฀era฀o฀ projeto฀de฀Chilperico.฀Clotário฀II฀retomou฀as฀grandes฀linhas฀da฀política฀ de฀Gontrão,฀buscando฀o฀auxílio฀da฀aristocracia฀secular฀e฀especialmente฀ a฀eclesiástica,฀o฀que฀lhe฀permitiu฀obter฀uma฀vitória฀decisiva฀sobre฀seus฀ rivais.฀É฀importante฀ressaltar฀que฀sua฀vitória฀sobre฀Brunilda฀e฀seus฀fiéis฀ somente฀foi฀possível฀com฀o฀apoio฀da฀aristocracia฀da฀Burgúndia.฀ Ainda฀que฀seja฀difícil฀estabelecer฀uma฀relação฀de฀causa฀e฀efeito฀entre฀ ambos฀os฀fenômenos,฀é฀necessário฀constatar฀que฀a฀mudança฀de฀atitude฀ dos฀reis฀merovíngios฀em฀relação฀aos฀bispos฀foi฀acompanhada฀de฀uma฀ mutação฀nas฀relações฀desses฀primeiros฀com฀o฀Império.฀Mesmo฀após฀o฀ fracasso฀ da฀ Reconquista฀ de฀ Justiniano,฀ a฀ presença฀ militar฀ imperial฀ na฀ Itália฀ prosseguiu฀ até฀ o฀ século฀ XI.฀ Embora฀ não฀ tenha฀ havido฀ ruptura,฀ sinais฀ de฀ tensão฀ apareceram฀ entre฀ o฀ Reino฀ dos฀ Francos฀ e฀ o฀ Império.฀ As฀campanhas฀da฀Itália,฀nos฀anos฀540,฀opuseram฀pela฀primeira฀vez฀as฀ tropas฀ do฀ Regnum฀ Francorum฀ ao฀ exército฀ imperial.฀ Sob฀ Teudeberto฀ I,฀ houve฀ um฀ aumento฀ da฀ desconfiança฀ na฀ corte฀ de฀ Constantinopla฀ em฀ relação฀ aos฀ reis฀ francos,฀ que฀ queriam฀ aparecer฀ como฀ os฀ novos฀ imperadores฀do฀Ocidente.฀Procópio฀é฀uma฀das฀melhores฀testemunhas฀dessa฀ desconfiança.฀Teudeberto฀I,฀mesmo฀mantendo฀a฀política฀“pró-imperial”฀ de฀seus฀predecessores,฀levou฀até฀um฀ponto฀inaceitável฀para฀o฀Império฀a฀ identificação฀ com฀ Roma.฀ Uma฀ identificação฀ que฀ se฀ traduziu฀ tanto฀ no฀ domínio฀monetário฀quanto฀no฀domínio฀militar฀e฀que฀consistia฀também฀ na฀reivindicação฀de฀uma฀autoridade฀sobre฀o฀Ocidente฀e฀talvez฀mesmo฀ além฀–฀segundo฀o฀relato฀de฀Procópio,฀e฀se฀consideramos฀que฀a฀descrição฀ feita฀por฀Teudeberto฀de฀suas฀possessões฀numa฀carta฀ao฀imperador฀não฀ era฀um฀simples฀exercício฀retórico.฀Claro,฀nada฀indica฀que฀Teudeberto฀I฀ tenha฀efetivamente฀conquistado฀todos฀os฀territórios฀que฀dizia฀controlar.฀ 268฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Entretanto,฀o฀simples฀fato฀de฀reivindicá-los฀diante฀do฀imperador฀testemunha฀a฀extensão฀das฀pretensões฀desse฀rei฀franco.฀฀฀ Durante฀a฀segunda฀metade฀do฀século฀VI,฀a฀incapacidade฀dos฀austrasianos฀em฀intervir฀eficazmente฀na฀Itália฀contra฀os฀lombardos,฀como฀pretendia฀o฀imperador฀Maurício,฀e฀também฀o฀papa฀Gregório฀Magno,฀apenas฀fez฀ aumentar฀o฀abismo฀que฀separava฀a฀Gália฀merovíngia฀e฀Constantinopla.฀ As฀cartas฀de฀Childeberto฀II฀e฀de฀Brunilda฀mostram฀bem฀essa฀mudança฀de฀ tom.฀A฀forma฀recorrente฀adotada฀para฀designar฀o฀Império฀era฀res฀publica฀ –฀a฀mesma฀empregada฀por฀Gregório฀de฀Tours95.฀A฀utilização฀desse฀termo฀ contribuiu฀ para฀ dissolver฀ a฀ hierarquia฀ contida฀ na฀ noção฀ de฀ Imperium.฀ Esta฀expressão฀aparece฀somente฀nas฀cartas฀de฀números฀37฀e฀4396.฀No฀restante฀das฀cartas฀reais฀repertoriadas฀nas฀Epistolae฀Austrasicae,฀da฀29฀à฀39,฀ e฀da฀45฀à฀47,฀é฀o฀termo฀res฀publica฀que฀prevalece97.฀Após฀Justiniano,฀os฀ 95 ฀Histórias฀VI,฀30:฀“‘Eis฀que฀sinto฀ter฀preenchido฀o฀tempo฀de฀minha฀vida;฀agora,฀devo฀escolher฀a฀ partir฀de฀teu฀conselho฀aquele฀que฀deverá฀estar฀à฀frente฀da฀res฀publica’”.฀฀ 96 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀37:฀“Praecelse฀potestati฀vestrae฀generosa฀praeconia,฀quae฀vos฀tantum฀ extulerunt,฀divinitate฀propitia,฀ut฀de฀vestro฀germine฀procrearetur฀feliciter,฀qui฀guberaret฀imperia,฀ nobis฀prospere฀nuntiata฀provocat,฀ut,฀quos฀affectu฀columus,฀missis฀etiam฀epistolis฀ambiamus”.฀฀ 97 ฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀29:฀“…ut฀de฀vestra฀nos฀laetificare฀incolomitate฀praecipiat,฀qui฀singulorum฀desideria฀et฀secretorum฀novit฀arcana,฀significandum฀curavimus,฀ad฀serenissimum฀principem฀ Romane฀ reipublicae฀ praesentium฀ nos…”;฀ Epistolae฀ Austrasicae,฀ 3,฀ 30:฀ “Tranquillitatis฀ vestrae฀supereminens฀dignitas,฀quae฀cursu฀prosperitatis฀vos฀extulit,฀rempublicam฀felicissime฀regere,฀ hortatur฀nos฀efficaciter,฀si฀Christi฀dictum฀placuerit,฀amicitiarum฀foedera฀propagate”;฀Epistolae฀ Austrasicae,฀3,฀32:฀“…noverit฀beatitudo฀vestra,฀praesentium฀legatarios฀nostros,฀Domino฀prosperante,฀ad฀principem฀Romane฀reipublicae฀causa฀future฀concordie฀et฀communis฀utilitatis฀providentiam฀direxisse…”฀;฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀33:฀“…notitiae฀vestrae฀deferimus,฀nos฀praesentium฀ latores,฀legatarios฀nostros,฀communi฀pro฀utilitate฀ad฀tranquillissimum฀Romane฀reipublicae฀principe฀direxisse…”;฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀34:฀“…cum฀tranquillissimo฀Romane฀reipublice฀principe฀ caritatis฀studia฀deliberaverunt฀excolere…”;฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀35:฀“…ad฀tranquillissimum฀ principem฀ Romane฀ reipublice…”;฀ Epistolae฀ Austrasicae,฀ 3,฀ 36:฀ “…ad฀ tranquillissimum฀ principem฀Romane฀reipublicae฀devinctissime฀destinasse…”;฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀37:฀“…causa฀ communis฀ utilitatis฀ studiosissime฀ destinasse…”;฀ Epistolae฀ Austrasicae,฀ 3,฀ 38:฀ “…presentium฀ legatarios฀nostros฀ad฀serenissimum฀principem฀Romane฀reipublicae…”;฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀ 39:฀“…presentium฀nostros฀legatarios฀ad฀clementiam฀serenissimi฀principis฀distinasse,฀Romanam฀ rempublicam฀gubernantes”;฀Epistolae฀Austrasicae,฀3,฀45:฀“…et฀per฀hoc฀inter฀nos฀et฀Romanam Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀269 reis฀merovíngios฀buscaram฀construir฀relações฀menos฀hierárquicas฀com฀ um฀Império฀que฀necessitava,฀aliás,฀de฀seu฀apoio฀militar฀contra฀a฀ameaça฀ lombarda.฀No฀Concílio฀de฀Orléans฀V,฀em฀549,฀os฀bispos฀designavam฀o฀rei฀ como฀princeps,฀o฀que฀constitui฀provavelmente฀um฀indício฀de฀que฀viam฀ nele฀o฀chefe฀da฀Igreja฀da฀Gália,฀no฀lugar฀do฀imperador98.฀฀ O฀movimento฀descrito฀pela฀Realeza฀franca฀durante฀a฀segunda฀metade฀do฀século฀VI฀pode฀ser฀definido฀como฀uma฀espécie฀de฀“marcha฀para฀ o฀Ocidente”,฀semelhante฀àquela฀que฀o฀papado฀entamou฀sob฀Gregório฀ Magno.฀Da฀mesma฀forma฀que฀a฀Igreja฀de฀Roma฀conseguiu฀vencer฀sua฀ desconfiança฀ em฀ relação฀ às฀ monarquias฀ ocidentais,฀ os฀ reis฀ merovíngios฀“descobriram”฀a฀Igreja฀franca฀e฀seu฀episcopado.฀Primeira฀dentre฀ os฀tria฀regna฀a฀romper฀com฀a฀política฀de฀imitatio฀imperii,฀a฀Burgúndia฀ foi฀também฀pioneira฀na฀construção฀de฀uma฀Realeza฀Cristã,฀no฀final฀do฀ século฀VI.฀No฀Reino฀dos฀Burgúndios,฀já฀na฀época฀de฀Gondebaldo,฀no฀ rempublicam฀ sit฀ diuturnae฀ pacis฀ et฀ quietis฀ fructus,฀ non฀ terminus”;฀ Epistolae฀ Austrasicae,฀ 3,฀ 46:฀ “…iuxta฀ votum฀ Romanae฀ reipublicae฀ vel฀ sacratissimi฀ patris฀ nostri฀ imperatoris฀ in฀ Italiam฀ direximus฀adversum฀gentem฀Langobardorum฀relegioni฀ac฀fidei฀iniquissimae฀perfidam”;฀Epistolae฀ Austrasicae,฀3,฀47:฀“…per฀qui฀vestrum฀culmen฀Romanam฀rempublicam฀longa฀feliciter…”.฀฀ 98 ฀Orléans฀V฀(549):฀“Eis฀o฀porquê฀–฀no฀momento฀em฀que฀nosso฀clementíssimo฀príncipe฀[princeps]฀ e฀senhor฀muito฀invencível฀na฀honra฀de฀seus฀triunfos,฀o฀rei฀Childeberto…”.฀Ver,฀a฀esse฀respeito,฀ K.F.฀Werner,฀“La฀ notion฀ de฀ princeps”,฀ pp.฀ 162-163.฀ Fustel฀ de฀ Coulanges฀ acredita฀ que฀ foi฀ em฀ 539฀ que฀ os฀ reis฀ francos฀ romperam฀ as฀ relações฀ de฀ subordinação฀ em฀ relação฀ ao฀ Império.฀ Ele฀ retira฀o฀argumento฀que฀justifica฀essa฀฀afirmação฀da฀Vita฀S.฀Treverii,฀que฀afirma฀que,฀em฀539,฀ os฀reis฀francos,฀deixando฀de฀lado฀os฀direitos฀do฀Império฀e฀não฀levando฀mais฀em฀consideração฀ a฀ soberania฀ da฀ Res฀ publica฀ romana,฀ governaram฀ a฀ Gália฀ em฀ seu฀ próprio฀ nome฀ (Vita฀S.฀ Treverii,฀Bouquet,฀t.฀III,฀p.฀411฀:฀“Quum฀Galliarum฀Francorumque฀reges,฀sublato฀Imperii฀jure฀ et฀ postposita฀ reipublicae฀ dominatione,฀ propria฀ fruerentur฀ potestate…”฀ –฀ citado฀ por฀ Fustel฀ de฀ Coulanges,฀ L’invasion฀germanique฀et฀la฀fin฀de฀l’Empire,฀ p.฀ 511,฀ n.฀ 1).฀É฀ verdade฀ que฀ nessa฀ época฀as฀campanhas฀de฀Teodeberto฀I฀na฀Itália฀contribuíram฀para฀a฀degradação฀das฀relações฀ entre฀ os฀ francos฀ e฀ o฀ Império.฀ Entretanto,฀ há฀ um฀ exagero฀ em฀ se฀ falar฀ em฀ ruptura.฀ É฀ o฀ que฀ mostram฀as฀relações฀epistolares฀entre฀a฀corte฀de฀Metz,฀sob฀Childeberto฀II฀e฀Brunilda,฀e฀o฀Império,฀da฀mesma฀forma฀que฀as฀diversas฀embaixadas฀enviadas฀à฀Constantinopla฀pelos฀príncipes฀ francos฀ durante฀ a฀ segunda฀ metade฀ do฀ século฀ VI.฀ Sobre฀ a฀ política฀ externa฀ do฀ Império,฀ ver,฀ por฀ exemplo,฀ E.฀ Chrysos,฀“Byzantine฀ diplomacy,฀ A.D.฀ 300-800:฀ means฀ and฀ ends”,฀ pp.25-39. 270฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média início฀do฀século฀VI,฀o฀episcopado฀já฀demonstrava฀bastante฀autonomia฀ em฀face฀do฀poder฀real,฀como฀mostra฀o฀concílio฀de฀Epaone฀(517).฀As฀ práticas฀constantinianas฀dos฀sucessores฀de฀Clóvis฀devem฀ter฀repercutido฀negativamente฀entre฀os฀bispos฀burgúndios,฀para฀quem฀o฀reinado฀de฀ Gontrão฀representava฀o฀reforço฀de฀suas฀posições฀tradicionais.฀É฀bom฀ lembrar฀que฀no฀Concílio฀de฀Orléans,฀que฀consagrou฀a฀política฀constantiniana฀ de฀ Clóvis,฀ não฀ havia฀ nenhum฀ bispo฀ da฀ Burgúndia.฀ Gontrão฀encontrou฀no฀episcopado฀uma฀fonte฀de฀legitimidade฀que฀Clóvis,฀ Teudeberto฀ I฀ e฀ Chilperico฀ haviam฀ buscado฀ na฀ imitatio฀ imperii฀ e฀ na฀ tentativa฀de฀controlar฀a฀Igreja.฀A฀política฀abertamente฀antiimperial฀e฀ “antivisigótica”฀ do฀ rei฀ burgúndio฀ aliou-se฀ com฀ o฀ fortalecimento฀ do฀ papel฀político฀dos฀bispos.฀฀ É฀evidente฀que฀as฀guerras฀civis฀beneficiaram฀a฀aristocracia฀laica฀e฀ a฀ aristocracia฀ eclesiástica฀ da฀ Gália,฀ na฀ medida฀ em฀ que฀ esses฀ grupos฀ puderam฀ampliar฀sua฀influência฀diante฀das฀divisões฀do฀poder฀real.฀Durante฀a฀segunda฀metade฀do฀século฀VI,฀os฀grandes฀do฀reino฀exerceram฀ um฀papel฀bem฀mais฀importante฀no฀Regnum฀Francorum฀que฀durante฀os฀ períodos฀precedentes.฀As฀minoridades฀de฀Childeberto฀II,฀de฀Clotário฀ II,฀de฀Teuderico฀II฀e฀de฀Teudeberto฀II฀proporcionaram฀a฀esses฀grupos,฀ uma฀experiência฀ímpar฀e฀a฀prática฀do฀exercício฀do฀poder฀nos฀tria฀regna.฀Durante฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀esse฀fenômeno฀havia฀sido฀ mais฀raro.฀ Isso฀ não฀ significa฀ que฀ as฀ aristocracias฀ galo-francas฀ irromperam฀ subitamente฀na฀vida฀política฀do฀Reino฀dos฀Francos.฀A฀imagem฀de฀“servidores”฀que฀usurparam฀o฀poder,฀consagrada฀pelo฀historiador฀alemão฀ P.-E.฀Fahlbeck,฀é฀bastante฀caricatural.฀Além฀disso,฀a฀idéia฀de฀uma฀longa฀ e฀implacável฀luta฀entre฀os฀grandes฀e฀o฀rei,฀entre฀os฀poderes฀locais฀e฀o฀ poder฀ central,฀ que฀ necessariamente฀ conduziu฀ à฀ vitória฀ do฀ primeiro,฀ e฀conseqüentemente฀do฀“Feudalismo”,฀é฀uma฀criação฀dos฀historiadores฀modernos.฀A฀aquisição฀por฀parte฀dos฀bispos฀galo-francos฀de฀um฀ estatuto฀ político฀ de฀ primeira฀ ordem฀ não฀ pode฀ ser฀ assimilada฀ à฀ uma฀ “revolução฀฀aristocrática”฀ou฀a฀um฀“golpe฀de฀Estado”.฀Em฀vários฀trabalhos฀ sobre฀ a฀ Gália฀ merovíngia,฀ o฀ final฀ das฀ guerras฀ civis,฀ em฀ 613,฀ teria฀coincidido฀com฀o฀início฀da฀preeminência฀das฀aristocracias฀sobre฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀271 o฀ poder฀ real99.฀ Essa฀ data฀ marcaria,฀ segundo฀ os฀ autores฀ dessas฀ obras,฀ uma฀ruptura฀na฀história฀franca,฀o฀momento฀a฀partir฀do฀qual฀as฀prerrogativas฀reais฀teriam฀começado฀a฀tornar-se฀mais฀e฀mais฀reduzidas฀até฀se฀ dissolverem฀diante฀da฀ascenção฀dos฀grandes฀proprietários฀de฀terras.฀As฀ guerras฀civis฀são฀muitas฀vezes฀julgadas฀como฀se฀tivessem฀acentuado฀o฀ caráter฀patrimonial฀da฀realeza฀franca.฀Muito฀ocupados฀se฀digladiando,฀ os฀príncipes฀francos฀teriam฀acabado฀por฀deixar฀a฀direção฀do฀governo฀ nas฀ mãos฀ dos฀ altos฀ funcionários,฀ que฀ teriam,฀ de฀ uma฀ maneira฀ bem฀ mais฀radical฀que฀antes,฀tratado฀o฀reino฀como฀se฀fosse฀um฀bem฀privado.฀Quanto฀aos฀reis฀do฀século฀VII,฀sobretudo฀a฀partir฀de฀Dagoberto,฀ desprovidos฀ de฀ vigor฀ moral฀ e฀ intelectual,฀ bem฀ como฀ de฀ atitudes฀ governamentais,฀teriam฀perdido฀o฀pouco฀que฀lhes฀restava฀da฀“autoridade฀ pública”.฀฀฀ Não฀se฀deve฀exagerar฀o฀alcance฀da฀“politização”,฀ou฀melhor,฀do฀aumento฀da฀importância฀política฀das฀aristocracias,฀nessa฀segunda฀metade฀ do฀século฀VI.฀É฀a฀melhor฀maneira฀de฀se฀evitar฀uma฀leitura฀esquemática฀ da฀evolução฀da฀autoridade฀real฀franca,฀que฀consiste฀em฀dividir฀a฀história฀ política฀ da฀ Gália฀ merovíngia฀ em฀ duas฀ fases:฀ a฀ primeira,฀ de฀ Clóvis฀ até฀ Clotário฀II,฀ou฀no฀máximo,฀Dagoberto,฀marcada฀por฀um฀poder฀real฀ilimitado;฀e฀a฀segunda,฀da฀metade฀do฀século฀VII฀até฀a฀deposição฀do฀último฀ merovíngio,฀Childerico฀III,฀por฀Pepino,฀o฀Breve,฀marcada฀pelo฀triunfo฀da฀ aristocracia฀e฀pelo฀enfraquecimento฀do฀poder฀real.฀Alguns฀historiadores฀ explicaram฀essa฀mutação฀pela฀“revolução฀constitucional”฀que฀teria,฀em฀ 614,฀conduzido฀a฀aristocracia฀ao฀ápice฀do฀poder,฀em฀detrimento฀de฀uma฀ autoridade฀real฀enfraquecida฀por฀décadas฀de฀guerras฀civis100.฀ 99 É฀ o฀ que฀ sustentaram฀ no฀ final฀ do฀ século฀ XIX฀ os฀ historiadores฀ alemães฀ P.-E.฀ Fahlbeck฀ (La฀ royauté฀et฀le฀droit฀royal฀Francs฀pendant฀la฀première฀période฀de฀l’existence฀du฀royaume)฀e฀G.฀ Waitz฀(Deutsche฀Verfassungsgeschichte,฀t.฀II,฀p.฀215).฀ 100 ฀Essa฀é฀a฀opinião฀de฀P.-E.฀Fahlbeck฀(La฀royauté฀et฀le฀droit฀royal฀Francs,฀p.฀208).฀É฀interessante฀ressaltar฀que฀os฀autores฀que฀sustentam฀esse฀ponto฀de฀vista฀são฀quase฀sempre฀os฀mesmos฀ a฀considerar฀o฀governo฀merovíngio฀como฀uma฀monarquia฀absoluta.฀Trata-se฀de฀mostrar฀o฀ano฀ de฀613,฀o฀ano฀da฀vitória฀de฀Clotário฀II฀sobre฀Brunilda,฀e฀o฀ano฀de฀614,฀o฀da฀publicação฀do฀edito฀ de฀Paris,฀como฀pontos฀de฀ruptura฀na฀história฀política฀do฀regnum฀Francorum฀:฀exercendo-se฀até฀ então฀sem฀limites,฀o฀poder฀real฀teria฀se฀tornado฀o฀prisioneiro฀da฀aristocracia. 272฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média A฀cristianização฀da฀autoridade฀pública฀entre฀os฀francos฀é฀um฀processo฀ por฀demais฀longo฀e฀complexo฀para฀ser฀reduzido฀a฀uma฀“data฀fundadora”.฀ Podemos,฀ por฀ outro฀ lado,฀ identificar฀ o฀ momento฀ em฀ que฀ essa฀ mutação฀ (que฀um฀longo฀prazo฀modificou฀as฀relações฀entre฀o฀poder฀real฀e฀os฀bispos,฀ e฀também฀entre฀a฀realeza฀e฀a฀sociedade)฀se฀tornou฀visível.฀Isso฀ocorreu฀com฀ a฀ascenção฀do฀episcopado฀na฀segunda฀metade฀do฀século฀VI.฀A฀partir฀dessa฀ época,฀vêem-se฀cada฀vez฀mais฀os฀bispos฀interferindo,฀com฀o฀consentimento฀ real,฀na฀vida฀política฀do฀Regnum฀Francorum.฀No฀contexto฀da฀administração฀ local,฀eles฀adquiriram฀certa฀preeminência฀em฀face฀dos฀condes฀com฀os฀quais฀ tradicionalmente฀dividiam฀o฀governo฀das฀civitates.฀O฀equilíbrio฀de฀forças฀ tornou-se฀de฀tal฀modo฀desfavorável฀aos฀iudices฀que,฀no฀final฀do฀século฀VI,฀a฀ nomeação฀deles฀estava฀submetida฀à฀aprovação฀dos฀bispos฀em฀cada฀cidade.฀ Por฀volta฀desse฀mesmo฀período,฀as฀grandes฀reuniões฀conciliares,฀como฀as฀de฀ Mâcon฀ou฀a฀de฀Paris,฀em฀614,฀tratavam฀cada฀vez฀mais฀de฀temas฀que฀eram฀ até฀então฀o฀apanágio฀da฀autoridade฀real.฀Em฀face฀das฀desordens฀causadas฀ pelas฀guerras฀civis,฀o฀episcopado฀foi฀chamdo฀a฀exercer฀um฀papel฀político฀ de฀primeira฀ordem.฀Para฀os฀reis,฀não฀se฀tratava฀mais,฀como฀no฀regnum฀de฀ Chilperico,฀de฀opor-se฀aos฀bispos฀e฀à฀sua฀influência,฀mas฀de฀associá-los฀às฀ suas฀decisões.฀É฀nesse฀contexto฀que฀os฀bispos฀puderam฀inspirar฀uma฀prática฀ cristã฀do฀exercício฀do฀poder.฀A฀autoridade฀real฀na฀segunda฀metade฀do฀século฀ VI฀na฀Burgúndia,฀e฀nas฀primeiras฀décadas฀do฀século฀VII฀em฀toda฀a฀Gália,฀ era฀permeável฀às฀influências฀ideológicas฀do฀episcopado:฀nesse฀sentido,฀os฀ reis฀merovíngios฀foram฀perfeitamente฀capazes฀de฀constituir฀uma฀sociedade฀ política฀orientada฀para฀a฀realização฀da฀utilitas฀publica฀no฀sentido฀cristão,฀ou฀ seja,฀para฀a฀salvação.฀ Tornando-se฀atores฀políticos฀de฀primeira฀ordem฀no฀regnum฀Francorum,฀os฀grandes฀do฀reino฀ acabaram฀por฀confiscar฀aos฀reis฀merovíngios฀a฀substância฀de฀sua฀autoridade฀política฀durante฀ o฀ século฀VII฀ (Ibid.฀ pp.฀ 211-212฀:฀ “É฀ o฀ velho฀ e฀ o฀ novo฀ tempo;฀ é฀ a฀ antiga฀ e฀ verdadeira฀ realeza฀ merovíngia,฀ com฀ suas฀ tradições฀ e฀ suas฀ pretensões,฀ colocada฀ em฀ presença฀ de฀ uma฀ realeza฀ nova,฀ nascida฀ no฀ meio฀ de฀ novas฀ condições฀ sociais฀ e฀ políticas.฀ Traída฀ e฀ abandonada฀ por฀ todos,฀ a฀ velha฀ rainha฀ morre฀ de฀ uma฀ morte฀ ignóbil฀ e฀ cruel,฀ e฀ todo฀ um฀ sistema฀ de฀ governo฀ desce฀ com฀ ela฀ ao฀ túmulo.฀ O฀ período฀ de฀ governo฀ pessoal฀ e฀ de฀ poder฀ absoluto฀ e฀ não฀ disputado฀ dos฀ reis฀ é฀ substituído฀pelo฀regime฀dos฀prefeitos฀do฀palácio฀e฀por฀um฀poder฀relativamente฀impotente.฀A฀aristocracia฀venceu,฀e฀a฀realeza฀se฀viu฀forçada฀a฀curvar฀a฀cabeça฀diante฀de฀seus฀próprios฀servidores”). Capítulo฀III A฀legislação฀real฀franca฀e฀a฀cristianização฀ da฀utilitas฀publica Os฀editos฀e฀os฀preceitos฀reais฀merovíngios฀são฀os฀melhores฀testemunhos฀das฀transformações฀na฀utilitas฀publica฀entre฀os฀séculos฀VI฀e฀ VII.฀A฀legislação฀real฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀VI฀contrasta฀com฀ aquela฀que฀a฀precedeu฀no฀tocante฀à฀natureza฀e฀à฀extensão฀das฀obrigações฀do฀príncipe฀em฀relação฀aos฀seus฀súditos.฀O฀objetivo฀deste฀capítulo฀ é฀o฀de฀analisar,฀através฀de฀alguns฀preceitos฀e฀editos,฀a฀emergência฀de฀ uma฀noção฀cristã฀de฀utilitas฀publica,฀que฀associava฀o฀ato฀de฀governar฀ a฀ um฀ conjunto฀ de฀ deveres฀ morais฀ em฀ relação฀ aos฀ governados.฀ Tais฀ deveres฀se฀consubstanciaram฀na฀criação฀de฀condições฀para฀a฀salvação฀ dos฀habitantes฀do฀Regnum฀Francorum.฀Buscar-se-á,฀igualmente,฀tecer฀ algumas฀reflexões฀sobre฀a฀influência฀da฀cristianização฀da฀utilitas฀publica฀na฀perenidade฀da฀dinastia฀merovíngia฀até฀a฀primeira฀metade฀do฀ século฀VIII.฀฀฀฀ 274฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média A฀legislação฀real฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI O฀texto฀do฀prólogo฀da฀Lex฀Baiwariorum,฀que฀se฀encontra฀igualmente฀ na฀Lex฀Ripuaria,฀descreve฀como฀o฀rei฀Teuderico฀I฀escolheu฀homens฀sábios฀ que฀conheciam฀as฀antigas฀leis,฀e฀como฀sob฀sua฀orientação฀eles฀escreveram฀ a฀Lei฀dos฀francos,฀a฀Lei฀dos฀alamanos฀e฀a฀Lei฀dos฀bávaros.฀O฀texto฀precisa฀ que฀o฀rei฀tomou฀o฀cuidado฀de฀realizar฀essa฀tarefa฀conforme฀o฀costume฀ de฀cada฀nação฀que฀estava฀sob฀seu฀governo.฀Ele฀lembra฀também฀que฀o฀rei฀ acrescentou฀aquilo฀que฀se฀devia฀acrescentar,฀mudou฀aquilo฀que฀devia฀ser฀ mudado,฀tendo฀o฀cuidado฀de฀modificar,฀segundo฀os฀preceitos฀da฀lei฀cristã,฀ aquilo฀que฀era฀conforme฀ao฀costume฀pagão1.฀Aliás,฀o฀empenho฀do฀príncipe฀em฀impor฀os฀princípios฀da฀fé฀cristã฀em฀detrimento฀das฀práticas฀pagãs฀ pontua฀todo฀o฀documento.฀Teuderico฀pretendia฀que฀as฀práticas฀religiosas฀ dos฀habitantes฀do฀Regnum฀Francorum฀fossem฀fundadas฀nos฀preceitos฀cristãos,฀livres฀de฀todo฀resquício฀de฀paganismo.฀A฀fé฀dos฀habitantes฀do฀regnum฀ deveria฀se฀conformar฀à฀fé฀de฀seu฀princeps.฀Essa฀forma฀de฀ingerência฀nos฀ assuntos฀religiosos฀é฀uma฀constante฀na฀legislação฀real฀merovíngia฀no฀século฀VI:฀encontramo-la฀no฀Preceito฀de฀Childeberto฀I,฀no฀Edito฀de฀Gontrão฀e฀ no฀Decreto฀de฀Childeberto฀II2.฀A฀participação฀do฀príncipe฀nas฀atividades฀ de฀evangelização฀é฀muito฀mais฀uma฀herança฀do฀Império฀Romano฀tardio฀ do฀que฀uma฀criação฀da฀Realeza฀Cristã.฀Mas฀onde฀reside฀a฀originalidade฀ dessa฀última?฀Se฀houve฀durante฀o฀século฀VI฀uma฀cristianização฀da฀utilitas฀ publica,฀ é฀ porque฀ não฀ somente฀ os฀ reis฀ francos฀ se฀ tornaram฀ cristãos฀ ou฀ que฀os฀francos฀se฀tornaram฀também,฀mas,฀sobretudo,฀porque฀os฀primeiros฀ aceitaram฀o฀princípio฀da฀participação฀dos฀bispos฀nos฀assuntos฀públicos฀e฀ porque฀em฀seus฀atos฀de฀governo฀esses฀príncipes฀incorporaram฀a฀noção฀ 1 ฀Lex฀Baiwariorum,฀De฀legibus,฀pp.฀201-203.฀฀฀฀ ฀O฀décimo-quarto฀capítulo฀do฀Decreto฀de฀Childeberto฀II,฀por฀exemplo,฀proibia฀toda฀forma฀ de฀ trabalho฀ durante฀ os฀ domingos฀ (Childeberti฀Secundi฀Decretio฀ 7,฀ c.฀ 14:฀ “Deo฀ die฀ dominico฀ similiter฀ placuit฀ observare,฀ ut฀ si฀ quiscumque฀ ingenuus,฀ excepto฀ quod฀ ad฀ coquendum฀ vel฀ ad฀ manducandum฀pertinet,฀alia฀opera฀in฀die฀dominico฀facere฀praesumpserit,฀si฀Salicus฀fuerit,฀solidos฀ quindecim฀componat;฀si฀Romanus,฀septem฀et฀dimidium฀solidi.฀Servus฀vero฀aut฀tres฀solidos฀reddat,฀ aut฀de฀dorsum฀suum฀componat”. 2 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀275 segundo฀a฀qual฀a฀finalidade฀da฀autoridade฀real฀é฀favorecer฀a฀salvação฀das฀ almas.฀O฀batismo฀de฀Clóvis฀não฀significou฀automaticamente฀a฀cristianização฀de฀todos฀os฀francos.฀Com฀efeito,฀não฀se฀deve฀confundir฀os฀atos฀dos฀ príncipes฀merovíngios฀que฀tinham฀por฀objetivo฀extirpar฀as฀práticas฀pagãs฀ em฀favor฀da฀fé฀cristã,฀com฀a฀concessão฀de฀um฀papel฀político฀ao฀episcopado฀ e฀com฀a฀fundamentação฀do฀ato฀de฀governar฀na฀necessidade฀de฀salvar฀as฀ almas฀–฀elementos฀que฀estão฀no฀cerne฀da฀Realeza฀Cristã.฀฀฀ O฀batismo฀de฀Clóvis,฀a฀conversão฀dos฀francos฀e฀a฀cristianização฀da฀ utilitas฀ publica฀ são฀ três฀ fenômenos฀ distintos,฀ muito฀ embora฀ estreitamente฀ligados.฀O฀primeiro฀deles,฀que฀foi฀acompanhado฀pela฀conversão฀ de฀uma฀parte฀do฀exército฀franco,฀marcou฀uma฀transformação฀no฀lugar฀ da฀fé฀cristã฀na฀Gália฀franca,฀muito฀mais฀do฀que฀uma฀mudança฀no฀estatuto฀ oficial฀ da฀ Igreja฀ católica.฀ Os฀ clérigos฀ já฀ gozavam฀ de฀ privilégios฀ devidos฀ ao฀ seu฀ estatuto฀ de฀ membros฀ da฀ administração฀ pública.฀ Eles฀ eram฀ funcionários฀ que฀ se฀ tornaram฀ indispensáveis฀ ao฀ funcionamento฀ do฀ aparelho฀ de฀ Estado,฀ pelo฀ menos฀ desde฀ a฀ época฀ romana.฀ A฀ grande฀ transformação฀trazida฀pelo฀batismo฀de฀Clóvis฀dizia฀respeito฀ao฀estatuto฀ da฀fé฀cristã;฀ela฀era฀a฀partir฀de฀então฀a฀religião฀oficial฀do฀Regnum฀Francorum.฀É฀esse฀novo฀estatuto฀que฀permitiu฀a฀cristianização฀dos฀francos.฀ Uma฀das฀conclusões฀que฀se฀pode฀tirar฀desse฀último฀fenômeno,฀que฀ainda฀ permanecia฀inacabado฀na฀época฀de฀Gregório฀Magno3,฀é฀que฀ele฀não฀foi฀ 3 ฀Sobre฀a฀cristianização฀da฀Gália฀merovíngia,฀ver฀J.฀Imbert,฀“l’influence฀du฀christianisme฀sur฀la฀ législation฀des฀peuples฀Francs฀et฀Germains”,฀pp.฀365-396;฀K.F.฀Werner,฀“Le฀rôle฀de฀l’aristocratie฀ dans฀la฀christianisation฀du฀nord-est฀de฀la฀Gaule”,฀pp.฀45-73;฀há฀também฀o฀colóquio฀de฀Nanterre,฀ intitulado฀La฀Christianisation฀des฀pays฀entre฀Loire฀et฀Rhin฀(IVe-VIIe฀siècle);฀R.฀Butzen,฀Die฀ Merowinger฀ östlich฀ des฀ mittleren฀ Rheins:฀ Studien฀ zur฀ militärischen,฀ politischen,฀ rechtlichen,฀religiösen,฀kirchlichen,฀kulturellen฀Erfassung฀durch฀Königtum฀und฀Adel฀im฀6.฀sowie฀7.฀ Jahrhundert,฀especialmente฀p.฀32;฀e฀também,฀A.฀Dierkens,฀“Superstitions,฀christianisme฀et฀paganisme฀à฀la฀fin฀de฀l’époque฀mérovingienne.฀A฀propos฀de฀l’Indiculus฀superstitionum฀paganiarum”,฀ pp.฀9-26.฀Sobre฀a฀cristianização฀da฀Europa฀Ocidental฀no฀final฀da฀Antigüidade,฀ver฀A.H.M.฀Jones,฀ “The฀Social฀Background฀of฀the฀Struggle฀between฀Paganism฀and฀Christianity”,฀pp.฀17-37;฀P.฀Brown,฀ “Aspects฀of฀the฀Christianization฀of฀the฀Roman฀Aristocracy”,฀pp.฀1-11;฀G.฀Crifo,฀“Romanizzazione฀ e฀cristianizzazione.฀Certezze฀e฀dubbi฀in฀tema฀di฀rapporto฀tra฀cristiani฀e฀istituzioni”,฀pp.฀75-106;฀J.M.฀Carrié,฀A.฀Rousselle,฀L’Empire฀romain฀en฀mutation฀des฀Sévères฀à฀Constantin,฀pp.฀665-679.฀ 276฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média somente฀ o฀ resultado฀ dos฀ esforços฀ dos฀ bispos,฀ como฀ se฀ pôde฀ observar,฀ aliás,฀ no฀ documento฀ anteriormente฀ mencionado.฀ Teuderico฀ I,฀ como฀ outros฀príncipes฀merovíngios฀antes฀dele,฀não฀mediu฀esforços฀para฀combater฀os฀elementos฀pagãos฀e฀para฀fazer฀com฀que฀seus฀súditos฀aceitassem฀ e฀seguissem฀os฀preceitos฀cristãos.฀฀฀ Entretanto,฀se฀a฀idéia฀do฀rei฀defensor฀da฀fé฀estava฀presente฀na฀atividade฀ legislativa฀merovíngia฀na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀a฀autoridade฀real฀ não฀tinha฀incorporado฀a฀idéia฀de฀um฀governo฀conforme฀os฀princípios฀ morais฀enunciados฀pelos฀bispos.฀O฀rei฀se฀preocupava฀unicamente฀com฀as฀ “reminiscências฀pagãs”,฀ou฀seja,฀com฀a฀efetividade฀da฀conversão฀de฀seus฀ súditos,฀da฀mesma฀forma฀como฀o฀imperador฀cristão฀zelava฀pela฀correção฀ da฀fé฀e฀da฀doutrina฀dos฀romanos.฀As฀ingerências฀dos฀primeiros฀reis฀francos฀no฀processo฀de฀evangelização฀eram฀fortemente฀marcadas฀por฀uma฀ percepção฀฀“constantiniana”฀quanto฀às฀obrigações฀do฀poder฀real.฀ É฀nesse฀espírito฀que฀Childeberto฀I฀publicou฀um฀preceito,฀que฀foi฀preservado฀incompleto฀e฀cuja฀data฀precisa฀permanece฀desconhecida:฀฀ “Aqui฀começa฀a฀epístola฀de฀nosso฀clementíssimo฀e฀bem-aventurado฀rei฀Childeberto,฀฀dada฀às฀igrejas฀episcopais฀e฀a฀todo฀o฀povo.฀Nós฀acreditamos฀que,฀favorecendo-nos฀Deus,฀será฀bom฀para฀nossa฀recompensa฀(eterna)฀bem฀como฀para฀a฀ salvação฀do฀povo,฀se฀o฀povo฀cristão,฀tendo฀renunciado฀ao฀culto฀dos฀ídolos,฀servir฀ a฀Deus,฀a฀quem฀prometemos฀uma฀fé฀exclusiva,฀como฀Ele฀nos฀inspirou.฀E,฀porque฀ é฀necessário฀que฀o฀povo,฀que฀não฀segue฀os฀preceitos฀dos฀bispos฀como฀se฀deve,฀ seja฀corrigido฀também฀segundo฀Nossa฀autoridade,฀decretamos฀que฀essa฀epístola฀ seja฀enviada฀a฀todos฀os฀lugares฀[no฀reino].฀Ordenamos฀que฀todos฀os฀homens฀que,฀ uma฀vez฀advertidos฀que฀havia฀em฀suas฀terras฀imagens฀e฀ídolos฀consagrados฀aos฀ demônios฀e฀criados฀pelos฀homens,฀não฀expulsarem฀imediatamente฀ou฀impedirem฀os฀bispos฀de฀os฀destruírem,฀não฀serão฀libertados฀ainda฀que฀dêem฀cauções,฀ antes฀de฀virem฀em฀Nossa฀Presença.฀A฀maneira฀como฀a฀injúria฀feita฀a฀Deus฀por฀ esses฀sacrílegos฀será฀vingada฀cabe฀a฀nós฀decidir,฀porque฀nossa฀fé,฀como฀o฀bispo฀ pronuncia฀do฀altar...฀tudo฀o฀que฀foi฀anunciado฀pelo฀Evangelho,฀os฀profetas฀e฀o฀ Apóstolo฀na฀medida฀em฀que฀Deus฀nos฀dá฀a฀compreensão.฀No฀que฀se฀refere฀ao฀ culto,฀certas฀queixas฀chegam฀até฀nós฀segundo฀as฀quais฀o฀povo฀comete฀muitos฀ sacrilégios,฀pelos฀quais฀Deus฀é฀ofendido฀e฀que฀conduzem฀as฀pessoas฀à฀morte฀pelo฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀277 pecado:฀noites฀inteiras฀passadas฀na฀bebedeira,฀na฀dança฀e฀no฀canto,฀mesmo฀nos฀ dias฀santos฀de฀Páscoa,฀da฀Natividade฀do฀Senhor฀e฀outras฀festas฀[eclesiásticas].฀Ou฀ ainda,฀quando฀chega฀o฀domingo,฀são฀os฀dançarinos฀que฀vão฀dançando฀de฀domínio฀em฀domínio.฀Nós฀proibimos฀todas฀essas฀coisas฀pelas฀quais฀sabemos฀que฀Deus฀ é฀ofendido.฀Qualquer฀um฀que฀após฀a฀admoestação฀dos฀bispos฀ou฀(a฀proclamação฀ de)฀Nosso฀Preceito,฀ousar฀cometer฀esses฀sacrilégios,฀se฀ele฀é฀um฀servo,฀ordenamos฀ que฀ele฀receba฀cem฀chicotadas.฀Se฀ele฀é฀livre฀ou฀de฀estatuto฀honorável฀[o฀restante฀ do฀documento฀foi฀perdido]…”4.฀฀฀ O฀objetivo฀principal฀mencionado฀pelo฀texto฀é฀o฀combate฀às฀práticas฀ pagãs.฀Nessa฀tarefa,฀o฀rei฀atua฀como฀o฀único฀responsável฀diante฀de฀Deus฀ pelo฀estado฀moral฀de฀seu฀reino,฀pois฀interpela฀o฀episcopado฀sobre฀esse฀ tema5.฀ Childeberto฀ I฀ não฀ pretende฀ em฀ seu฀ preceito฀ forçar฀ a฀ aceitação฀ 4 ฀Childeberti฀I.฀Regis฀Praeceptum,฀2,฀pp.฀2-3.฀Os฀Capitularia฀Merowingica฀são฀um฀conjunto฀de฀ nove฀textos฀originalmente฀escritos฀entre฀o฀início฀do฀século฀VI฀e฀o฀início฀do฀século฀VII,฀que฀foram฀reunidos฀e฀editados฀no฀final฀do฀século฀XIX฀por฀A.฀Borétius฀nos฀MGH.฀É฀preciso฀ressaltar,฀no฀ entanto,฀que฀o฀termo฀“capitulário”,฀empregado฀para฀designar฀esses฀documentos,฀é฀uma฀escolha฀ deliberada฀do฀editor฀e฀não฀corresponde฀ao฀vocabulário฀merovíngio.฀Este฀termo฀aparece฀pela฀primeira฀vez฀em฀um฀ato฀oficial฀de฀779฀(Ganshof,฀Recherches฀sur฀les฀capitulaires,฀p.฀3).฀Além฀disso,฀a฀ reunião฀em฀um฀mesmo฀volume฀dos฀MGH.฀dos฀textos฀que฀compõem฀os฀Capitularia฀Merowingica฀ se฀explica฀muito฀mais฀por฀uma฀escolha฀deliberada฀de฀Borétius฀do฀que฀por฀uma฀coerência฀interna฀ desses฀documentos.฀Senão฀vejamos:฀o฀primeiro฀texto฀a฀figurar฀nessa฀seleção฀é฀uma฀carta฀de฀Clóvis฀aos฀bispos,฀escrita฀por฀ocasião฀do฀Concílio฀de฀Orléans,฀em฀511.฀O฀segundo฀texto,฀seguindo฀a฀ ordem฀estabelecida฀por฀Borétius฀(com฀o฀título฀Incipit฀epistola฀clementissimi฀et฀beati฀regis฀nostri฀ Childeberti,฀data฀per฀ecclesias฀sacerdotum฀vel฀omni฀populo),฀é฀um฀preceito฀mutilado฀de฀Childeberto฀ I฀(511-558);฀o฀terceiro฀é฀um฀pacto฀estabelecido฀entre฀esse฀último฀e฀Clotário฀I฀(511-561),฀chamado฀ Pactus฀pro฀tenore฀pacis;฀o฀quarto฀texto฀é฀um฀edito฀de฀Chilperico;฀o฀quinto,฀um฀edito฀de฀Gontrão,฀ publicado฀por฀ocasião฀do฀Concílio฀de฀Mâcon,฀em฀585;฀o฀sexto฀texto฀é฀um฀tratado฀assinado฀em฀587฀ por฀Childeberto฀II฀e฀por฀Gontrão฀na฀cidade฀de฀Andelot;฀o฀sétimo฀é฀um฀decreto฀de฀Childeberto฀II,฀ de฀596;฀há฀também฀um฀preceito฀que฀Borétius฀atribui฀ao฀rei฀Clotário฀II฀(584-613).฀Finalmente,฀há฀ um฀edito฀de฀Clotário฀II,฀publicado฀por฀ocasião฀do฀Concílio฀de฀Paris,฀de฀614฀[M.฀Cândido฀da฀Silva฀e฀฀ M.฀Mazetto฀Junior,฀“A฀Realeza฀nas฀fontes฀do฀período฀merovíngio฀(séculos฀VI-VIII)”,฀pp.฀89-119]. 5 ฀Há,฀na฀Vita฀Cesarii,฀um฀retrato฀bastante฀otimista฀da฀atitude฀de฀Childeberto฀I฀em฀relação฀à฀ Igreja฀(II,฀45,฀p.฀499):฀“…e฀foi฀enquanto฀ele฀[Cesário]฀assumia฀essa฀tarefa฀sagrada฀que฀se฀estabeleceu,฀graças฀a฀Deus,฀e฀não฀em฀razão฀de฀sua฀traição,฀como฀acusam฀os฀arianos,฀mas฀simplesmente 278฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média da฀fé฀cristã฀pelos฀pagãos,฀mas฀extirpar฀tudo฀o฀que฀é฀incompatível฀com฀ o฀comportamento฀dos฀cristãos6.฀Também฀não฀se฀trata฀de฀colocar฀como฀ objetivo฀último฀da฀política฀“antipagã”฀a฀realização฀da฀salvação.฀O฀preceito฀afirma฀somente฀que฀a฀graça฀do฀rei฀e฀a฀salvação฀do฀povo฀somente฀ poderiam฀ ser฀ alcançados฀ se฀ esse฀ último฀ abandonasse฀ a฀ adoração฀ dos฀ ídolos.฀Em฀seu฀preceito,฀Childeberto฀I฀justifica฀sua฀posição฀pelo฀peso฀de฀ sua฀autoridade,฀muito฀embora฀reconheça฀partilhar฀sua฀responsabilidade฀ com฀os฀bispos:฀“E,฀porque฀é฀necessário฀que฀as฀pessoas,฀que฀não฀seguem฀os฀ preceitos฀dos฀bispos฀como฀se฀deve,฀sejam฀corrigidas฀também฀segundo฀Nossa฀ autoridade...”(grifo฀ nosso).฀Ao฀ mesmo฀ tempo,฀ essa฀ afirmação฀ realça฀ a฀ insuficiência฀do฀episcopado฀em฀levar฀a฀bom฀termo฀sua฀tarefa฀de฀admoestação,฀pois฀as฀pessoas฀não฀seguiriam฀os฀preceitos฀dos฀bispos฀“como฀se฀ deve”.฀O฀príncipe฀assume,฀assim,฀a฀direção฀do฀combate฀às฀reminiscências฀ pagãs:฀ele฀age฀como฀o฀chefe฀supremo฀da฀Igreja฀franca,฀seu฀princeps,฀no฀ sentido฀“constantiniano”฀do฀termo.฀Childeberto฀se฀estima฀igualmente฀o฀ único฀responsável฀diante฀de฀Deus฀pelo฀comportamento฀de฀seus฀súditos,฀ o฀único฀interlocutor฀da฀Providência฀divina:฀“Nós฀proibimos฀todas฀essas฀ coisas฀pelas฀quais฀sabemos฀que฀Deus฀é฀ofendido”.฀Como฀mostra฀o฀Concílio฀ de฀Orléans฀V,฀de฀549,฀Childeberto฀não฀hesitou฀em฀impor฀sua฀vontade฀ aos฀bispos,฀tanto฀no฀que฀dizia฀respeito฀às฀eleições฀episcopais,฀quanto฀em฀ matéria฀de฀doutrina.฀Prova฀disso฀é฀o฀título฀de฀princeps฀que฀os฀bispos฀lhe฀ atribuem,฀fato฀sem฀precedentes฀na฀história฀merovíngia.฀฀฀ pelas฀suas฀orações฀contínuas,฀o฀reinado฀catolicíssimo฀do฀gloriosíssimo฀Childeberto,฀em฀nome฀ do฀Cristo,฀para฀a฀calma฀e฀a฀tranqüilidade฀da฀cidade฀de฀Arles;฀esse฀rei,฀doce฀com฀firmeza,฀velava฀com฀rigor,฀eminente฀com฀humildade,฀não฀dominando฀pelo฀terror฀os฀padres฀do฀senhor,฀mas฀ ligando-os฀a฀ele฀pelo฀respeito;฀mesmo฀dominando฀tudo฀nas฀Gálias,฀ele฀era฀igual฀a฀todos฀na฀Igreja,฀ reconhecendo฀o฀privilégio฀da฀Cidade฀do฀alto฀entre฀os฀homens”.฀O฀otimismo฀do฀autor฀devia-se฀ notadamente฀ao฀fato฀de฀que฀a฀cidade฀de฀Arles฀tinha฀acabado฀de฀ser฀livrada฀da฀dominação฀dos฀ godos,฀e฀que฀os฀padres฀esperavam฀dos฀francos฀católicos฀muito฀mais฀do฀que฀dos฀godos฀arianos.฀ 6 ฀Ver฀K.F.฀Werner,฀“Le฀rôle฀de฀l’aristocratie”,฀pp.฀56-57,฀n.฀29.฀Efetivamente,฀vários฀textos฀atestam฀a฀sobrevivência฀de฀práticas฀pagãs฀na฀Gália฀merovíngia.฀O฀primeiro฀cânone฀do฀Concílio฀de฀ Mâcon฀II฀(585),฀por฀exemplo,฀฀atacou฀aqueles฀que฀“são฀cristãos฀apenas฀de฀nome”.฀Em฀uma฀carta฀ à฀rainha฀Brunilda,฀datada฀de฀597,฀o฀papa฀Gregório฀Magno฀manifestou฀seu฀descontentamento฀ pela฀idolatria฀dos฀francos,฀e฀convida฀a฀rainha฀a฀combatê-la฀(Reg.฀VIII,฀4). Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀279 O฀Concílio฀de฀Orléans,฀em฀533,฀do฀qual฀participaram฀os฀bispos฀do฀ reino฀ de฀ Childeberto฀ I,฀ estabeleceu฀ a฀ expulsão฀ da฀ Igreja฀ daqueles฀ que฀ tinham฀retornado฀ao฀culto฀dos฀ídolos฀ou฀às฀outras฀práticas฀pagãs: “Que฀os฀católicos฀que฀não฀preservam฀intacta฀a฀graça฀do฀batismo฀recebido฀ e฀retornem฀ao฀culto฀dos฀ídolos,฀ou฀aqueles฀que฀se฀aprazem฀a฀burlar฀um฀interdito,฀ usam฀ alimentos฀ imolados฀ ao฀ culto฀ dos฀ ídolos,฀ sejam฀ excluídos฀ das฀ assembléias฀da฀Igreja”7.฀฀ A฀pena฀prevista฀pelo฀concílio฀não฀ia฀além฀de฀uma฀sanção฀eclesiástica.฀O฀Preceito฀de฀Childeberto,฀no฀entanto,฀ameaçava฀com฀prisão฀e฀com฀ castigos฀ corporais฀ aqueles฀ que฀ persistissem฀ na฀ idolatria.฀A฀ autoridade฀ real฀ se฀ dispunha฀ assim฀ a฀ utilizar฀ a฀ força฀ contra฀ as฀ infrações฀ às฀ regras฀ canônicas฀que฀os฀bispos฀eram฀incapazes฀de฀punir.฀Ela฀não฀agia฀simplesmente฀em฀complemento฀à฀autoridade฀dos฀bispos,฀mas฀se฀impunha฀ao฀ episcopado,฀determinando฀o฀caminho฀a฀ser฀seguido฀para฀a฀punição฀dos฀ pecadores฀e฀reprovando฀a฀falta฀de฀severidade฀do฀episcopado฀em฀matéria฀ de฀combate฀à฀idolatria฀e฀às฀superstições฀pagãs.฀฀฀ O฀tom฀dos฀textos฀reais฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀VI฀é฀sensivelmente฀diferente฀daquele฀adotado฀pelo฀preceito฀de฀Childeberto฀I.฀Os฀três฀ documentos฀que฀melhor฀ilustram฀essa฀mudança฀de฀atitude฀da฀realeza฀ diante฀do฀episcopado฀são:฀o฀Edito฀de฀Gontrão฀e฀dois฀outros฀textos฀legislativos,฀um฀edito฀e฀um฀preceito,฀ambos฀geralmente฀atribuídos฀a฀Clotário฀ II.฀Esses฀textos฀associavam฀muito฀mais฀diretamente฀a฀autoridade฀real฀à฀ realização฀da฀salvação฀das฀almas.฀ O฀Edito฀de฀Gontrão฀ O฀ primeiro฀ ponto฀ a฀ ser฀ ressaltado฀ no฀ Edito฀ de฀ Gontrão฀ são฀ as฀ condições฀nas฀quais฀ele฀foi฀redigido,฀em฀585฀na฀cidade฀de฀Mâcon.฀Sua฀ 7 ฀Orléans฀II฀(533),฀c.฀20.฀฀ 280฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média publicação฀ serviu฀ para฀ ratificar฀ as฀ medidas฀ que฀ tinham฀ sido฀ discutidas฀e฀aprovadas฀pelos฀bispos฀reunidos฀na฀mesma฀cidade฀pouco฀tempo฀ antes:฀“Essas฀coisas฀que฀decretamos฀nesse฀edito฀devem฀ser฀perpetuamente฀ observadas,฀ pois฀ no฀ santo฀ sínodo฀ de฀ Mâcon,฀ como฀ vós฀ sabeis,฀ buscamos฀ definir฀ aquilo฀ que฀ publicamos฀ agora฀ segundo฀ a฀ declaração฀ presente”8.฀ A฀ proximidade฀com฀o฀II฀Concílio฀de฀Mâcon฀não฀está฀apenas฀na฀forma.฀O฀ edito฀reforça฀decisões฀que฀haviam฀sido฀tomadas฀pelos฀bispos฀conciliares,฀ como฀a฀obrigação฀de฀se฀guardar฀repouso฀nos฀dias฀santos: “Nós฀decretamos฀nessa฀lei฀geral฀que฀durante฀os฀dias฀do฀Senhor,฀nos฀quais฀ nós฀honramos฀o฀mistério฀da฀Santa฀Ressureição฀e฀durante฀outros฀banquetes฀ quando฀as฀pessoas฀estão฀habitualmente฀reunidas฀na฀igreja,฀nenhum฀trabalho฀ físico฀deve฀ser฀feito,฀salvo฀o฀que฀é฀necessário฀para฀preparar฀a฀alimentação”9฀ O฀Edito฀de฀Gontrão฀desenvolve฀um฀tema฀que฀aparece฀várias฀vezes฀no฀ discurso฀dos฀autores฀cristãos,฀a฀conexão฀entre฀a฀realização฀da฀justiça฀e฀a฀ vontade฀divina:฀ “Nós฀cremos฀que฀o฀Autor฀da฀Majestade฀Divina,฀por฀meio฀de฀quem฀todas฀ as฀coisas฀são฀dirigidas,฀estará฀satisfeito฀se฀as฀regras฀de฀justiça฀são฀observadas฀ entre฀nosso฀povo฀e฀que฀Ele,฀o฀Pai฀Piedoso฀e฀o฀Senhor,฀que฀sempre฀preservou฀ a฀fragilidade฀humana฀através฀de฀Sua฀ajuda,฀aceitará฀conceder฀as฀necessidades฀ entre฀aqueles฀que฀Ele฀sabe฀que฀mantêm฀seus฀mandamentos”10.฀฀ Para฀o฀rei,฀a฀estabilidade฀e฀a฀prosperidade฀de฀seu฀reino฀dependeriam฀ da฀ realização฀ da฀ justiça.฀ Entretanto,฀ a฀ justiça฀ não฀ é฀ vista฀ aqui฀ como฀um฀valor฀em฀si,฀um฀princípio฀absoluto.฀Em฀seu฀sentido฀cristão,฀ ela฀é฀apenas฀um฀meio฀de฀atingir฀um฀objetivo฀maior:฀“Em฀conseqüência,฀ enquanto฀nós฀deliberamos฀para฀a฀estabilidade฀de฀nosso฀reino฀e฀a฀salvação฀ 8 ฀Guntchramni฀Regis฀Edictum,฀5. ฀Ibid.฀฀฀ 10 ฀Ibid. 9 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀281 de฀nosso฀povo฀…”11.฀Gontrão฀coloca฀explicitamente฀como฀o฀centro฀de฀ gravidade฀de฀sua฀ação฀a฀realização฀dessa฀tarefa฀espiritual.฀Eis฀o฀novo฀ sentido฀ da฀ utilitas฀ publica฀ na฀ Gália฀ merovíngia฀ a฀ partir฀ da฀ segunda฀ metade฀do฀século฀VI:฀tratava-se฀de฀garantir฀a฀estabilidade฀do฀reino฀de฀ forma฀a฀se฀alcançar฀a฀salvação.฀ É฀a฀primeira฀vez,฀sob฀os฀merovíngios,฀que฀um฀documento฀real฀estabelecia฀a฀salvação฀das฀almas฀como฀o฀objetivo฀último฀da฀atividade฀de฀governo.฀ O฀preceito฀de฀Childeberto฀I฀mencionava฀igualmente฀a฀salvação.฀A฀diferença฀essencial฀encontra-se฀na฀forma฀e฀nos฀meios฀alocados฀para฀se฀atingir฀ esse฀objetivo.฀O฀Edito฀de฀Gontrão฀prevê,฀como฀condição฀preliminar฀para฀ a฀realização฀da฀salvação,฀uma฀cooperação฀crescente฀entre฀a฀autoridade฀real฀ e฀o฀episcopado.฀O฀autor฀do฀edito฀se฀contenta฀em฀repetir,฀resumindo-as,฀as฀ decisões฀conciliares,฀mas,฀sobretudo,฀dando฀a฀elas฀força฀de฀lei.฀A฀autoridade฀real฀não฀ia฀além฀do฀que฀havia฀sido฀previsto฀pelos฀bispos.฀Em฀nenhum฀ momento฀em฀seu฀edito,฀Gontrão฀recriminava฀direta฀ou฀indiretamente฀aos฀ bispos฀sua฀incapacidade฀de฀colocar฀um฀termo฀às฀práticas฀pagãs.฀Ele฀reconhecia฀ as฀ responsabilidaes฀ e฀ as฀ prerrogativas฀ da฀ realeza฀ nesse฀ domínio.฀ Pode-se฀mesmo฀falar฀de฀uma฀“responsabilidade฀partilhada”.฀Aos฀bispos,฀ cabia฀corrigir฀o฀povo฀pela฀oração฀e฀governá-los฀com฀a฀caridade฀pastoral:฀ “Conseqüentemente,฀ é฀ a฀ vós,฀ os฀ bispos฀ mais฀ santos,฀ a฀ quem฀ a฀ clemência฀ paternal฀de฀Deus฀deu฀vosso฀ofício,฀que฀nosso฀discurso฀é฀inicialmente฀endereçado,฀na฀esperança฀de฀que฀estudareis฀para฀corrigir฀as฀pessoas฀que฀a฀Providência฀Divina฀colocou฀sob฀vossa฀responsabilidade฀pelos฀pecados฀freqüentes฀e฀ governá-los฀com฀a฀caridade฀pastoral.฀Assim,฀quando฀todos฀os฀homens,฀amando฀a฀justiça,฀tentam฀viver฀honestamente,฀a฀boa฀vontade฀celeste฀pode฀conceder฀ a฀tranqüilidade฀e฀a฀salvação฀de฀todos฀os฀homens.฀E,฀ainda฀que฀a฀oração฀seja฀ notadamente฀de฀vossa฀responsabilidade฀sem฀qualquer฀outra฀admoestação฀de฀ nossa฀parte,฀nós฀acreditamos฀que฀dividis฀os฀pecados฀de฀outros฀se฀não฀corrigir฀ assiduamente฀as฀falhas฀de฀vossos฀filhos,฀mas฀as฀passais฀em฀silencio”12.฀ 11 ฀Ibid. ฀Ibid. 12 282฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média O฀rei฀dirige-se฀em฀primeiro฀lugar฀aos฀bispos.฀É฀a฀eles฀que฀a฀Divina฀ Providência฀teria฀concedido฀a฀tarefa฀de฀guiar฀espiritualmente฀o฀povo.฀O฀ governante฀não฀possuía฀mais,฀como฀era฀o฀caso฀no฀preceito฀de฀Childeberto฀I,฀o฀monopólio฀dessa฀missão฀confiada฀por฀Deus฀e฀que฀diz฀respeito฀à฀ paz฀e฀à฀salvação฀do฀reino.฀A฀responsabilidade฀da฀autoridade฀real฀seria฀de฀ uma฀outra฀natureza.฀Responsável฀perante฀Deus฀pelo฀governo฀do฀povo,฀ o฀rei฀deve฀tomar฀medidas฀que฀convenham฀para฀que฀a฀ordem฀e฀a฀justiça฀ triunfem:฀“Para฀que฀nada฀disso฀aconteça฀a฀nós,฀a฀quem฀a฀autoridade฀do฀ Rei฀Supremo฀deu฀o฀poder฀de฀reinar,฀para฀subtrair-se฀de฀Sua฀Cólera,฀se฀nós฀ não฀nos฀preocuparmos฀do฀povo฀que฀nos฀está฀submetido”13.฀ A฀complementaridade฀entre฀os฀bispos฀e฀os฀iudices฀era฀expressa฀em฀ um฀sentido฀profundamente฀gelasiano:฀ “Mas฀vós,฀os฀bispos฀apostólicos,฀juntando-vos฀a฀vossos฀companheiros฀padres,฀os฀filhos฀mais฀velhos฀da฀Igreja฀e฀os฀juízes฀locais฀e฀qualquer฀um฀que฀vós฀ sabeis฀que฀a฀honestidade฀da฀vida฀o฀recomenda฀corrigir฀o฀povo฀com฀orações฀ constantes฀para฀que฀a฀exortação฀mística฀possa฀fazer฀progredir฀a฀boa฀correção฀ pastoral,฀possa฀trazer฀de฀volta฀ao฀bom฀caminho฀aqueles฀que฀se฀desviam,฀para฀ que฀todos฀possam฀juntos฀se฀esforçar฀para฀viver฀juntos฀e฀preservar฀a฀unidade฀ e฀a฀justiça,฀e฀que฀a฀Santa฀Igreja฀possa฀receber฀cristãos฀livres฀de฀toda฀sujeira฀do฀ pecado”14.฀฀ “É฀apropriado฀que฀a฀justiça฀e฀a฀eqüidade฀sejam฀aplicadas฀em฀todas฀as฀coisas฀ e฀que฀a฀punição฀legal฀dos฀juízes฀aja฀sobre฀aquilo฀que฀as฀pregações฀canônicas฀ dos฀bispos฀não฀corrigiram”15. Ao฀rei,฀caberia฀a฀tarefa฀de฀reinar฀sobre฀o฀povo,฀enquanto฀os฀bispos฀ deveriam฀cuidar฀da฀oração.฀Como฀se฀pode฀observar,฀não฀foi฀com฀Clóvis฀ que฀o฀dualismo฀gelasiano฀se฀afirmou฀no฀Regnum฀Francorum,฀mas฀sob฀ o฀reinado฀de฀Gontrão.฀O฀dualismo฀gelasiano฀aparece฀também฀no฀Edito฀ 13 ฀Ibid. ฀Ibid. 15 ฀Ibid.฀ 14 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀283 de฀Gontrão฀quando฀se฀definem฀as฀atribuições฀respectivas฀dos฀bispos฀e฀ dos฀iudices฀laicos.฀O฀rei฀afirma฀que฀o฀castigo฀aplicado฀pelos฀iudices฀deve฀ atuar฀nas฀instâncias฀em฀que฀as฀exortações฀episcopais฀não฀surtam฀efeito฀ algum: “Todos฀os฀juízes฀se฀esforçarão฀em฀fazer฀julgamentos฀justos,฀que฀agradem฀a฀ Deus,฀para฀que฀não฀haja฀nenhuma฀dúvida฀que฀nossa฀sentença฀condenará฀mais฀ rapidamente฀aqueles฀que฀não฀julgaram฀conforme฀a฀eqüidade.฀Os฀juízes฀não฀ poderão฀comandar฀ou฀enviar฀representantes฀às฀regiões฀consagradas฀aos฀que฀ exercem฀a฀justiça฀venal฀ou฀pilhar฀o฀que฀é฀sua฀responsabilidade”16.฀ À฀ primeira฀ vista,฀ a฀ necessidade฀ de฀ submeter฀ a฀ justiça฀ secular฀ aos฀ preceitos฀cristãos฀parece฀reafirmar฀a฀superioridade฀do฀episcopado.฀Entretanto,฀há฀igualmente฀uma฀admoestação฀dirigida฀aos฀bispos:฀ “Quando฀os฀eclesiásticos฀transgridem,฀como฀maior฀é฀a฀reverência฀que฀lhes฀ é฀devida฀pelo฀amor฀de฀Deus,฀eles฀devem฀ser฀mais฀bruscamente฀repreendidos.฀ Se฀santos฀pastores฀ou฀juízes฀(que฀Deus฀proibe฀!)฀tentam฀esconder฀os฀crimes฀ de฀seus฀súditos฀ao฀invés฀de฀lhes฀restringir,฀eles฀podem฀saber฀que฀eles฀serão฀ culpados”17.฀ O฀rei฀pede฀aos฀bispos฀que฀eles฀não฀escondam฀os฀crimes฀de฀seus฀súditos฀e฀invoca฀a฀grande฀responsabilidade฀dos฀primeiros฀diante฀de฀Deus.฀Da฀ mesma฀maneira฀que฀os฀reis,฀os฀bispos฀são฀reconhecidos฀como฀interlocutores฀privilegiados฀da฀Providência.฀Esse฀edito฀é฀provavelmente฀o฀mais฀ importante฀documento฀real฀que฀trata฀da฀divisão฀de฀responsabilidades฀ entre฀a฀realeza฀e฀o฀episcopado.฀Não฀é฀um฀exagero฀afirmar฀que฀esse฀edito฀ marca฀o฀prelúdio฀da฀Realeza฀Cristã฀entre฀os฀francos.฀Com฀ele,฀estamos฀ em฀um฀universo฀onde฀dominam,฀mais฀do฀que฀em฀qualquer฀outro฀texto฀ legislativo฀anterior,฀as฀características฀típicas฀da฀Realeza฀Cristã.฀O฀princí- 16 ฀Ibid.฀฀ 17 ฀Ibid.฀ 284฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média pio฀gelasiano฀da฀superioridade฀moral฀do฀poder฀eclesiástico฀aparece฀aqui฀ nitidamente.฀Mais฀importante฀ainda,฀ele฀mostra฀um฀rei฀preocupado฀em฀ adaptar฀sua฀conduta฀como฀governante฀à฀vontade฀de฀Deus฀e฀segundo฀os฀ preceitos฀dos฀bispos.฀Para฀que฀um฀rei฀agrade฀a฀Deus,฀ele฀deve฀manter฀a฀ iustitia,฀tendo฀consciência฀que฀o฀mal฀pode฀se฀encontrar฀em฀todos฀os฀lugares.฀O฀pecado,฀inerente฀ao฀homem,฀estaria฀na฀origem฀das฀calamidades฀ terrestres.฀ O฀ rei฀ encontra-se฀ estreitamente฀ ligado฀ ao฀ seu฀ povo.฀ Mais฀ do฀ que฀ uma฀escolha฀deliberada,฀essa฀proximidade฀é฀vista฀no฀edito฀como฀uma฀ obrigação:฀ “Nós฀ também,฀ a฀ quem฀ a฀ autoridade฀ do฀ rei฀ celeste฀ confiou฀ a฀ função฀de฀governar,฀não฀poderemos฀evitar฀sua฀cólera฀se฀nós฀não฀mostramos฀ nenhuma฀ solicitude฀ em฀ relação฀ ao฀ povo฀ que฀ está฀ submetido฀ a฀ nós”18.฀ O฀ rei฀compartilha฀com฀os฀bispos฀a฀responsabilidade฀diante฀de฀Deus฀pela฀ conduta฀de฀seus฀súditos.฀Isso฀faz฀com฀que฀a฀solução฀para฀o฀problema฀das฀ transgressões฀às฀regras฀cristãs฀seja฀dupla:฀ela฀repousa฀por฀um฀lado฀na฀ pregação฀e฀na฀correção฀asseguradas฀pelo฀clero฀e,฀em฀caso฀de฀fracasso,฀no฀ rigor฀da฀lei,฀canônica฀ou฀secular.฀Quando฀o฀episcopado฀é฀incapaz,฀pela฀ força฀da฀oração,฀de฀reconduzir฀ao฀bom฀caminho฀os฀habitantes฀do฀reino,฀ o฀poder฀real฀intervém฀com฀a฀lei.฀ O฀Preceito฀de฀Childeberto฀I฀é฀também฀marcado฀pela฀idéia฀que฀a฀autoridade฀real฀deve฀atuar฀nos฀domínios฀e฀nas฀situações฀nas฀quais฀a฀autoridade฀ moral฀dos฀bispos฀era฀impotente.฀Entretanto,฀e฀essa฀é฀a฀diferença฀essencial,฀ no฀Edito฀de฀Gontrão฀a฀cooperação฀não฀nasce฀apenas฀sob฀o฀signo฀da฀responsabilidade฀do฀rei฀perante฀Deus,฀ela฀resulta฀de฀uma฀visão฀cristã฀quanto฀ à฀natureza฀e฀os฀objetivos฀do฀poder฀real.฀Não฀vemos฀nada฀disso฀no฀preceito฀ de฀Childeberto฀I:฀o฀rei฀intervém฀para฀suprir฀uma฀deficiência฀dos฀bispos,฀ e฀mais฀importante฀ainda,฀sua฀ação฀não฀parece฀ter฀sido฀guiada฀por฀uma฀ crença฀na฀capacidade฀do฀poder฀real฀em฀cristianizar฀a฀sociedade.฀O฀poder฀ age฀em฀defesa฀da฀fé฀cristã,฀mas฀ele฀é฀apenas฀o฀gládio฀que฀se฀impõe฀aos฀pecadores.฀Nada฀mais฀que฀isso.฀No฀Edito฀de฀585,฀a฀realeza฀afixa฀como฀objetivo฀ declarado฀de฀conduzir฀todos฀os฀seus฀súditos฀a฀amar฀a฀iustitia฀e฀a฀viver฀honestamente,฀e฀disso฀resultariam฀dois฀bens฀essenciais:฀o฀primeiro,฀de฀ordem฀ 18 ฀Ibid.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀285 terrestre,฀seria฀a฀paz,฀e฀o฀segundo,฀a฀salvação.฀Os฀textos฀reais฀merovíngios,฀ notadamente฀após฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀não฀cessaram฀de฀evocar฀a฀paz฀como฀valor฀a฀ser฀perseguido฀na฀atividade฀de฀governo.฀A฀menção฀ à฀paz฀como฀objetivo฀último฀do฀exercício฀da฀autoridade฀política฀é฀compreensível฀nesse฀período฀marcado฀por฀conflitos฀endêmicos.฀Entretanto,฀esta฀ paz,฀bem฀como฀a฀própria฀iustitia,฀não฀constitui฀um฀valor฀em฀si฀mesma;฀ela฀ é฀vista฀como฀uma฀condição฀prévia฀para฀a฀salvação฀das฀almas.฀ O฀epicentro฀da฀Realeza฀Cristã฀sob฀os฀merovíngios฀na฀segunda฀metade฀do฀século฀VI฀não฀está฀na฀responsabilidade฀moral฀compartilhada฀entre฀ os฀reis฀e฀os฀bispos฀em฀relação฀ao฀povo,฀mas฀sim฀na฀percepção฀de฀que฀o฀ poder฀real฀atua฀diretamente,฀e฀em฀estreita฀colaboração฀com฀o฀episcopado,฀na฀realização฀da฀Salvação.฀O฀fundamento฀da฀legitimidade฀real฀não฀se฀ encontra฀somente฀nos฀atributos฀do฀sangue,฀tampouco฀na฀única฀concessão฀de฀bens฀materiais,฀mas฀também,฀e฀talvez฀sobretudo,฀nesse฀ministério฀ exercido฀pelo฀rei฀com฀a฀ajuda฀dos฀bispos.฀O฀tema฀da฀salvação฀tornou-se฀ mais฀e฀mais฀presente฀na฀legislação฀merovíngia฀a฀partir฀do฀final฀do฀século฀ VI;฀e฀ele฀não฀se฀restringiu฀apenas฀à฀Burgúndia.฀No฀início฀do฀VII,฀quando฀ o฀tema฀do฀rei฀a฀serviço฀da฀salvação฀aparece฀no฀edito฀de฀Clotário฀II,฀ele฀ abrange฀o฀Regnum฀Francorum฀como฀um฀todo.฀฀ O฀Edito฀de฀Clotário฀II฀(614) Alguns฀ dias฀ após฀ o฀ quinto฀ concílio฀ de฀ Paris,฀ Clotário฀ II฀ publicou฀ um฀ edito฀ cujas฀ disposições฀ confirmavam,฀ especificavam฀ e฀ em฀ alguns฀ casos฀modificavam฀os฀cânones฀que฀tinham฀sido฀discutidos฀pelos฀bispos฀ conciliares.฀Em฀seu฀preâmbulo,฀o฀Edito฀continha฀uma฀fórmula฀que฀se฀ endereçava฀a฀todo฀o฀povo,฀mas฀deixa฀claro฀que฀ele฀foi฀publicado฀durante฀ a฀assembléia฀dos฀bispos฀reunidos฀em฀Paris:฀“Os฀atos฀ou฀constituições฀do฀ Ilustre฀príncipe,฀o฀rei฀Clotário,฀para฀todo฀o฀povo฀na฀assembléia฀dos฀bispos฀ reunidos฀no฀Sínodo฀de฀Paris”19.฀฀ 19 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀9. 286฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Essas฀motivações฀também฀estão฀presentes,฀e฀mais฀claramente฀ainda,฀ na฀declaração฀que฀segue: “Não฀ há฀ nenhuma฀ dúvida฀ de฀ que฀ a฀ felicidade฀ de฀ nosso฀ reino฀ cresce฀ e฀ o฀ favor฀divino฀se฀revela฀mais฀e฀mais,฀se฀nós฀nos฀esforçamos฀em฀nosso฀tempo฀em฀ preservar฀inviolado฀tudo฀isso฀que,฀com฀a฀graça฀de฀Deus,฀foi฀decidido,฀resolvido฀e฀ordenado฀em฀nosso฀reino.฀Nós฀também฀decidimos,฀com฀o฀Cristo฀como฀ protetor,฀corrigir฀geralmente฀pelo฀contido฀de฀nosso฀decreto฀tudo฀aquilo฀que฀ foi฀ decidido฀e฀ instituído฀ contra฀ a฀ ordem฀da฀ razão,฀ para฀que฀ no฀futuro฀ não฀ aconteça฀que฀Deus฀se฀desvie฀de฀nós”20.฀฀ O฀rei฀apresenta฀como฀objetivo฀preservar฀a฀inviolabilidade฀dos฀atos,฀ dos฀estatutos฀e฀dos฀decretos฀publicados฀sob฀inspiração฀divina,฀mas฀também฀ pretende฀ reformar,฀ sob฀ os฀ auspícios฀ do฀ Cristo,฀ tudo฀ o฀ que฀ tinha฀ sido฀feito฀contra฀o฀direito฀e฀a฀razão,฀de฀modo฀a฀impedir฀que฀os฀mesmos฀ erros฀fossem฀cometidos฀no฀futuro.฀Não฀se฀tratava฀somente฀de฀modificar฀ as฀práticas฀pagãs฀conforme฀os฀princípios฀da฀fé฀cristã,฀como฀proclamava฀ o฀Preceito฀de฀Childeberto฀I.฀O฀que฀o฀Edito฀de฀Clotário฀II฀propunha฀era฀ uma฀“reforma฀cristã”฀da฀sociedade฀e฀dos฀mecanismos฀de฀governo.฀Seriam฀ reformuladas฀todas฀as฀disposições฀presentes฀nos฀preceitos฀e฀nos฀editos฀ anteriores฀que฀entrassem฀em฀contradição฀com฀uma฀ratio฀cuja฀natureza฀ profundamente฀cristã฀é฀revelada฀ao฀longo฀do฀texto.฀ As฀ medidas฀ previstas฀ por฀ esse฀ edito฀ diziam฀ respeito฀ ao฀ clero,฀ aos฀ grandes฀laicos,฀bem฀como฀ao฀conjunto฀dos฀habitantes฀do฀Regnum฀Francorum.฀Paralelamente฀a฀seu฀objetivo฀“reformador”,฀o฀Edito฀de฀Clotário฀II฀ tinha฀pretensões฀mais฀conservadoras:฀manter฀e฀confirmar฀as฀disposições฀ dos฀reis฀precedentes:฀“Tudo฀o฀que฀nossos฀parentes฀que฀reinaram฀antes฀de฀ nós,฀ou฀nós฀mesmos,฀concederam฀conforme฀a฀lei฀e฀autorizaram,฀será฀confirmado฀em฀todos฀os฀sentidos”21.฀Em฀sua฀legislação,฀Clotário฀II฀adotou฀os฀ princípios฀morais฀que฀os฀bispos฀haviam฀proclamado฀no฀V฀Concílio฀de฀ 20 ฀Ibid. ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀16. 21 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀287 Paris.฀A฀ratio฀desse฀edito฀não฀é฀outra฀senão฀a฀doutrina฀moral฀que฀faz฀do฀ soberano฀o฀responsável฀diante฀de฀Deus฀pela฀paz฀e฀pela฀justiça:฀“Que฀com฀ a฀ajuda฀de฀Cristo฀possa฀reinar฀sempre฀a฀paz฀e฀a฀ordem฀pública฀em฀nosso฀ reino฀e฀possam฀a฀rebelião฀e฀a฀altivez฀do฀homem฀mau฀ser฀o฀mais฀severamente฀reprimidas”22.฀O฀edito฀confirmava฀igualmente฀uma฀série฀de฀medidas฀ do฀concílio฀de฀Paris฀V฀que฀outorgavam฀ao฀clero,฀e฀mais฀precisamente฀ao฀ episcopado,฀privilégios฀significativos.฀Ele฀proibia฀aos฀clérigos฀contornar฀ a฀autoridade฀de฀seus฀bispos฀para฀apelar฀ao฀rei฀ou฀a฀um฀grande฀do฀reino: “Se฀um฀eclesiástico฀de฀qualquer฀grau,฀desprezando฀seu฀bispo฀ou฀ignorando-o,฀decide฀dirigir฀ao฀príncipe฀ou฀aos฀funcionários฀poderosos฀(potentiores)฀ ou฀a฀qualquer฀outra฀pessoa฀para฀pedir฀seu฀apoio,฀ele฀não฀deve฀฀ser฀recebido,฀ a฀menos฀que฀ele฀busque฀o฀perdão.฀E฀se฀por฀alguma฀razão฀ele฀se฀aproxima฀do฀ príncipe฀e฀retorna฀a฀seu฀bispo฀com฀uma฀carta฀desse฀príncipe,฀que฀ele฀seja฀acolhido฀e฀desculpado.฀E฀que฀aqueles฀que฀pretendem฀retê-lo฀após฀ele฀ter฀recebido฀ um฀aviso฀de฀seu฀bispo,฀sejam฀excomungados”23.฀ Diante฀dos฀iudices,฀os฀clérigos฀obtêm,฀como฀pretendiam,฀um฀privilégio฀de฀jurisdição:฀nenhum฀iudex฀podia฀reter฀ou฀condenar฀um฀clérigo,฀ salvo฀se฀não฀houvesse฀nenhuma฀dúvida฀sobre฀sua฀responsabilidade.฀Para฀ os฀clérigos฀culpados฀de฀um฀crime฀capital,฀cabia฀aos฀bispos฀julgá-los฀e฀ aprisioná-los฀conforme฀os฀cânones. Nenhum฀juiz,฀qualquer฀que฀seja฀seu฀grau,฀poderá฀julgar฀ou฀condenar฀de฀ sua฀própria฀vontade฀clérigos฀em฀processos฀temporais฀(civiles฀causae),฀salvo฀ nas฀questões฀criminais,฀[e]฀a฀menos฀que฀o฀clérigo฀não฀seja฀manifestadamente฀reconhecido฀culpado;฀padres฀e฀diáconos฀estão฀isentos.฀Aqueles฀que฀ são฀reconhecidos฀culpados฀de฀um฀crime฀capital฀devem฀fazer฀suas฀provas฀ conforme฀os฀cânones฀e฀devem฀ser฀julgados฀em฀presença฀dos฀bispos24. No฀caso฀de฀um฀processo฀entre฀um฀oficial฀do฀poder฀real฀e฀um฀homem฀ da฀Igreja,฀os฀iudices฀devem฀julgar฀o฀assunto฀numa฀audiência฀pública฀em฀ 22 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀11.฀฀ ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀3. 24 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀4.฀ 23 288฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média colaboração฀ com฀ os฀ decanos฀ da฀ Igreja25.฀ O฀ clero฀ é฀ também฀ responsável฀ pela฀defesa฀dos฀libertos฀diante฀das฀possíveis฀demandas฀do฀fisco26.฀Clotário฀ II฀ confirma฀ o฀ cânone฀ de฀ Paris฀V฀ que฀ proibia฀ aos฀ judeus฀ o฀ exercício฀ de฀ qualquer฀ autoridade฀ sobre฀ os฀ cristãos.฀ Ele฀ ameaçava฀ com฀ uma฀ pena฀ prevista฀ pelos฀ cânones฀ aqueles฀ que฀ ousassem฀ infringir฀ essa฀ regra27.฀ Da฀ mesma฀maneira฀que฀no฀V฀Concílio฀de฀Paris,฀há฀no฀Edito฀de฀Clotário฀uma฀ medida฀que฀visava฀garantir฀a฀inviolabilidade฀das฀virgens,฀das฀viúvas฀e฀das฀ religiosas28.฀Além฀do฀mais,฀garante-se฀aos฀fiéis฀e฀aos฀leudes,฀que฀perderam฀ suas฀possessões฀durante฀as฀guerras฀civis,฀restituição฀daquilo฀que฀lhes฀havia฀ sido฀subtraído29. O฀Edito฀de฀Paris฀comporta,฀além฀disso,฀medidas฀em฀favor฀do฀“interesse฀geral”,฀que฀previam,฀por฀exemplo,฀que฀se฀o฀populus฀protestasse฀contra฀ um฀nova฀taxa,฀essa฀deveria฀ser฀objeto฀de฀uma฀investigação฀por฀parte฀da฀ autoridade฀real30.฀Garantia-se฀também฀que฀as฀possessões฀das฀igrejas,฀dos฀ padres฀e฀dos฀pobres฀que฀não฀poderiam฀por฀eles฀ser฀defendidas,฀deviam฀ ser฀defendidas฀pelos฀ iudices31.฀Entretanto,฀seria฀precipitado฀considerar฀ esse฀edito฀como฀o฀marco฀do฀triunfo฀dos฀bispos฀sobre฀a฀realeza32.฀É฀bem฀ verdade฀que฀o฀edito฀não฀constitui฀um฀conjunto฀de฀decisões฀arbitrárias฀ tomadas฀somente฀em฀vista฀da฀vontade฀do฀rei.฀Em฀seu฀último฀artigo,฀o฀ Edito฀pretende฀que฀as฀disposições฀foram฀tomadas฀pelo฀rei฀em฀conselho฀ sinodal,฀com฀a฀participação฀dos฀prelados฀e฀dos฀grandes฀do฀reino: 25 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀5.฀ ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀7.฀ 27 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀10.฀฀ 28 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀18.฀ 29 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀17.฀฀ 30 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀8.฀ 31 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀14.฀ 32 ฀É฀o฀que฀sustenta฀G.฀Waitz:฀para฀ele,฀em฀Paris,฀em฀614,฀a฀aristocracia฀afirmou฀sua฀vitória฀sobre฀ a฀Realeza,฀apresentando฀ao฀rei฀uma฀série฀de฀disposições฀que฀asseguravam฀sua฀autonomia;฀ele,฀ porém,฀não฀tinha฀outra฀alternativa฀senão฀ratificar,฀dada฀sua฀fraqueza฀(Deutsche฀Verfassungsgeschichte,฀p.฀215).฀ 26 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀289 “Se฀alguém฀tentar฀violar฀esta฀resolução,฀que฀nós฀redigimos฀com฀os฀bispos฀ juntamente฀com฀nossos฀grandes฀homens฀e฀com฀discípulos฀leais฀em฀uma฀assembléia฀sinodal,฀a฀condenação฀à฀morte฀deve฀ser฀declarada฀contra฀ele;฀assim,฀ outros฀não฀cometerão฀a฀mesma฀violação”33.฀ No฀entanto,฀a฀forma฀como฀ocorreram฀as฀deliberações฀não฀significa฀ que฀o฀edito฀seja฀uma฀espécie฀de฀“constituição”฀arrancada฀à฀realeza฀pela฀ aristocracia.฀ Clotário฀ II฀ não฀ concedeu฀ aos฀ bispos฀ todos฀ os฀ privilégios฀ que฀eles฀desejavam.฀O฀edito฀apresenta,฀nesse฀sentido,฀algumas฀diferenças฀ notáveis฀em฀relação฀aos฀cânones฀do฀V฀Concílio฀de฀Paris: ฀“Foi฀ decidido฀ que฀ os฀ regulamentos฀ canônicos฀ devem฀ ser฀ mantidos฀ em฀ todos฀os฀aspectos฀e฀aqueles฀que฀foram฀transgredidos฀no฀passado฀devem฀ser฀ mantidos.฀Quando฀morrer฀um฀bispo,฀a฀pessoa฀que฀deve฀ser฀ordenada฀em฀seu฀ lugar฀pelo฀metropolitano,฀juntamente฀com฀os฀bispos฀provinciais,฀será฀escolhida฀pelo฀clero฀e฀o฀povo.฀Se฀for฀uma฀pessoa฀digna,฀será฀ordenado฀conforme฀a฀ ordem฀do฀rei.฀Se฀for฀escolhido฀no฀palácio,฀evidentemente,฀deve฀ser฀ordenado฀ em฀razão฀do฀mérito฀de฀sua฀pessoa฀e฀de฀sua฀formação฀religiosa”34.฀ No฀que฀se฀refere฀às฀eleições฀episcopais,฀o฀rei,฀embora฀aceite฀o฀princípio฀da฀ordenação฀pelo฀bispo฀Metropolitano฀e฀pelos฀bispos฀da฀província,฀ mantém฀o฀direito฀de฀escolher฀entre฀os฀candidatos฀aquele฀que฀ele฀considera฀o฀mais฀“digno”.฀O฀edito฀prevê฀até฀mesmo฀a฀possibilidade฀dessa฀escolha฀ ser฀feita฀entre฀os฀membros฀da฀administração฀real.฀Todavia,฀o฀fato฀de฀os฀ bispos฀ terem฀ inspirado฀ o฀ Edito฀ de฀ Clotário฀ II,฀ ou฀ ainda฀ disporem฀ de฀ inúmeras฀prerrogativas฀na฀administração฀real,฀não฀significa฀que฀tenham฀ tomado฀posse฀do฀governo.฀A฀Realeza฀Cristã฀não฀é฀sinônimo฀de฀regime฀ “hierocrático”,฀ ou฀ “governo฀ dos฀ bispos”฀ (Bischofsherrschaft),฀ segundo฀ noção฀consagrada฀pela฀historiografia฀alemã.฀O฀edito฀ilustra฀muito฀bem฀ o฀equilíbrio฀que฀Clotário฀II฀conseguiu฀instaurar฀no฀final฀das฀guerras฀ci- 33 ฀฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀9,฀c.฀24.฀ ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀1.฀฀ 34 290฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média vis.฀Ele฀tinha฀se฀beneficiado฀do฀apoio฀das฀aristocracias฀da฀Austrásia฀e฀da฀ Burgúndia.฀Graças฀às฀manobras฀de฀Arnoul,฀bispo฀de฀Metz฀(c.฀611-641)฀ e฀de฀Pepino฀(t.฀640),฀chefe฀da฀aristocracia฀austrasiana,฀ele฀invadiu฀com฀ sucesso฀a฀Austrásia,฀em฀61335.฀Com฀o฀fim฀dos฀conflitos,฀a฀autoridade฀real฀ permanecia฀a฀principal฀força฀do฀reino,฀e฀isso฀apesar฀das฀concessões฀feitas฀ à฀aristocracia.฀É฀o฀que฀pode฀ser฀observado฀através฀de฀duas฀medidas฀previstas฀pelo฀edito฀de฀614.฀Primeiramente,฀os฀grandes฀e฀os฀clérigos฀eram฀ obrigados฀a฀responder฀às฀convocações฀dos฀iudices36.฀Em฀segundo฀lugar,฀ os฀grandes฀eram฀admoestados฀em฀relação฀aos฀roubos฀e฀à฀violência฀de฀ seus฀agentes37.฀A฀autoridade฀real฀não฀perdeu฀suas฀prerrogativas.฀Ao฀contrário,฀a฀Realeza฀Cristã฀consolidou-as:฀ao฀rei฀cabia฀promover฀a฀justiça,฀ manter฀a฀ordem฀e฀a฀paz฀no฀reino฀com฀vistas฀à฀salvação.฀฀ O฀Preceito฀atribuído฀a฀Clotário฀II฀(618฀?)38฀ De฀ todos฀ os฀ nove฀ textos฀ dos฀ Capitularia฀ Merowingica,฀ o฀ Preceito฀ atribuído฀por฀A.฀Borétius฀a฀Clotário฀II฀é฀o฀que฀coloca฀o฀maior฀número฀ de฀problemas฀de฀datação฀e฀de฀interpretação.฀ Montesquieu฀atribuiu฀esse฀preceito฀a฀Clotário฀II฀(584-628),฀e฀com฀ isso฀contrariou฀os฀eruditos฀de฀sua฀época,฀que฀pensavam฀tratar-se฀de฀um฀ texto฀de฀Clotário฀I.฀Montesquieu฀enumera฀três฀argumentos฀para฀justificar฀seu฀ponto฀de฀vista.฀O฀primeiro฀deles฀é฀que฀um฀dos฀manuscritos฀do฀ preceito฀menciona,฀no฀capítulo฀11,฀que฀o฀rei฀teria฀conservado฀as฀imunidades฀outorgadas฀às฀igrejas฀por฀seu฀pai฀e฀seu฀avô: 35 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀40.฀฀฀ ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀c.฀15.฀฀ 37 ฀Ibid.,฀c.฀20 38 ฀O฀texto฀desse฀pretexto฀foi฀conservado฀em฀dois฀manuscritos,฀o฀texto฀n°฀1฀(segundo฀a฀terminologia฀de฀A.฀Borétius)฀encontra-se฀em฀Paris,฀na฀Bibliothèque฀Nationale฀de฀France฀(man.฀latino฀ S.-Germain,฀ 936,฀ 12097฀ –฀ manuscrito฀ de฀ Corbie).฀ O฀ texto฀ n°฀ 2฀ encontra-se฀ igualmente฀ na฀ Bibliothèque฀Nationale฀de฀France฀(ms.฀latino฀10753,฀antigo฀suplemento฀latino฀215).฀ 36 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀291 “Agraria,฀pascuaria฀vel฀decimas฀porcorum฀ecclesiae฀pro฀fidei฀nostrae฀devotione฀concedemus,฀ita฀ut฀actor฀aut฀decimatur฀in฀rebus฀ecclesiae฀nullus฀accedat.฀ Ecclesiae฀vel฀clericis฀nullam฀requirant฀agentes฀publici฀functionem,฀qui฀avi฀vel฀ genetoris฀nostri฀immunitatem฀meruerunt”(grifo฀nosso)39.฀ O฀capítulo฀acima฀trata฀da฀concessão฀pelo฀rei฀às฀igrejas฀do฀produto฀ dos฀dízimos฀agrícolas฀e฀os฀das฀pastagens฀de฀porcos,฀e฀também฀proíbe฀ os฀agentes฀do฀fisco฀de฀reclamarem฀impostos฀dos฀bens฀das฀igrejas.฀No฀ caso฀ das฀ igrejas฀ que฀ tivessem฀ recebido฀ imunidades฀ do฀ pai฀ e฀ do฀ avô฀ do฀rei,฀os฀agentes฀do฀fisco฀ficariam฀proibidos฀de฀exigir฀a฀participação฀ dos฀clérigos฀em฀trabalhos฀públicos.฀Ora,฀afirma฀Montesquieu,฀“quais฀ imunidades฀ teria฀ sido฀ capaz฀ de฀ conceder฀ às฀ igrejas฀ Childerico,฀ avô฀ de฀ Clotário฀ I,฀ que฀ não฀ era฀ cristão฀ e฀ que฀ viveu฀ antes฀ que฀ a฀ monarquia฀ tivesse฀sido฀fundada฀?”40.฀Seguindo฀esse฀raciocínio,฀o฀autor฀do฀preceito฀ somente฀poderia฀ser฀Clotário฀II,฀cujo฀avô,฀Clotário฀I,฀teria฀concedido฀ benefícios฀às฀igrejas฀para฀expiar฀a฀responsabilidade฀pela฀morte฀de฀seu฀ filho41.฀O฀segundo฀argumento฀de฀Montesquieu฀é฀que฀os฀abusos฀que฀o฀ preceito฀ queria฀ corrigir,฀ isto฀ é,฀ as฀ medidas฀ arbitrárias฀ do฀ poder฀ real,฀ foram฀características฀do฀meio฀século฀que฀se฀seguiu฀à฀morte฀de฀Clotário฀ I;฀isso฀significa,฀para฀ele,฀que฀o฀preceito฀somente฀poderia฀ser฀de฀Clotário฀II42.฀O฀terceiro฀e฀último฀argumento฀de฀Montesquieu฀é฀que฀não฀ 39 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II฀(Ms.฀latino฀10753,฀fol.฀87,฀antigo฀suplemento฀latino฀215):฀“Nós฀concedemos฀às฀igrejas,฀pela฀fé฀de฀nossa฀devoção,฀os฀dízimos฀agrícolas฀bem฀como฀os฀de฀pastagens฀ dos฀porcos,฀de฀maneira฀que฀os฀agentes฀do฀fisco฀não฀poderão฀se฀aproximar฀dos฀bens฀das฀igrejas.฀ Os฀agentes฀não฀poderão฀requerer฀as฀igrejas,฀ou฀mais฀precisamente฀os฀clérigos,฀para฀as฀funções฀ públicas,฀os฀quais฀obtiveram฀as฀imunidades฀de฀nossos฀avós฀e฀pais”.฀O฀outro฀manuscrito฀menciona฀a฀expressão฀“...qui฀avi฀vel฀genetoris฀aut฀germani฀nostri฀immunitatem฀meruerunt”,฀que฀ podemos฀traduzir฀por:฀“...os฀quais฀obtiveram฀as฀imunidades฀de฀nossos฀pais฀ou฀nossos฀irmãos฀฀(ms.฀ latino฀S.-Germain,฀936,฀12097฀–฀manuscrito฀de฀Corbie).฀ 40 ฀Montesquieu,฀De฀l’esprit฀des฀lois,฀XXXI,฀2,฀p.฀366.฀ 41 ฀Gregório฀de฀Tours฀descreve฀o฀assassinato฀de฀Chramn,฀filho฀de฀Clotário฀I,฀por฀ordem฀desse฀ último.฀฀E฀no฀livro฀VI,฀capítulo฀46,฀o฀bispo฀de฀Tours฀afirma฀que฀“Mas฀não฀há฀indício฀de฀que฀as concessões฀às฀igrejas฀tenham฀decorrido฀do฀arrependimento฀do฀rei”.฀฀฀ 42 ฀Montesquieu,฀De฀l’esprit฀des฀lois,฀XXXI,฀2,฀pp.฀366-367.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 292฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média haveria,฀sob฀o฀reinado฀de฀Clotário฀I,฀o฀tipo฀de฀queixas฀que฀estão฀sendo฀ contempladas฀no฀preceito.฀฀ As฀opiniões฀quanto฀à฀autoridade฀desse฀preceito฀continuaram฀divididas฀ no฀século฀XIX:฀C.฀Von฀Savigny43,฀bem฀como฀E.฀Lehuërou44,฀acreditavam฀ que฀ele฀nada฀mais฀era฀que฀uma฀constituição฀de฀Clotário฀I,฀publicada฀por฀ volta฀de฀560.฀P.-E.฀Fahlbeck,฀em฀seu฀obra฀traduzida฀na฀França฀em฀1883,฀ seguiu฀a฀opinião฀de฀Montesquieu,฀e฀atribuiu฀o฀preceito฀a฀Clotário฀II45.฀O฀ debate฀continuou฀ao฀longo฀do฀século฀XX.฀M.฀Bloch46฀atribuiu฀o฀preceito฀a฀ Clotário฀I,฀enquanto฀G.฀Tessier47฀via฀nesse฀texto฀uma฀obra฀de฀Clotário฀II,฀ opinião฀compartilhada฀por฀P.฀Riché48฀e฀por฀J.฀Gaudemet49.฀Alguns฀autores฀ vêem฀ nesse฀ preceito฀ um฀ projeto฀ de฀ decretos฀ elaborado฀ pelos฀ bispos฀ da฀ Aquitânia฀e฀que฀constituiria฀o฀programa฀do฀concílio฀de฀61450.฀G.฀Kocher฀ afirma฀que฀o฀documento฀data฀do฀princípio฀do฀reinado฀de฀Clotário฀II,฀por฀ volta฀de฀58451.฀I.฀Woll52฀na฀Alemanha,฀e฀Wallace-Hadrill53,฀na฀Inglaterra,฀ acreditam฀que฀se฀trata฀de฀um฀preceito฀de฀Clotário฀I.฀Atualmente฀na฀França,฀ a฀idéia฀que฀esse฀preceito฀foi฀publicado฀por฀Clotário฀I฀tem฀vários฀adeptos.฀ É฀o฀caso,฀por฀exemplo,฀de฀O.฀Guillot54฀e฀de฀M.฀Rouche55.฀ 43 ฀F.C.฀von฀Savigny,฀Geschichte฀des฀römischen฀Rechts฀im฀Mittalalten,฀pp.฀59-60.฀฀฀ ฀J.-M.฀Lehuërou,฀Histoire฀des฀institutions฀et฀du฀gouvernement฀des฀mérovingiens,฀p.฀412.฀ 45 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II.฀ 46 ฀M.฀Bloch,฀“La฀conquête฀de฀la฀Gaule฀romaine฀par฀les฀rois฀francs”,฀pp.฀166-168.฀฀฀ 47 ฀G.฀Tessier,฀Diplomatique฀royale฀française,฀p.฀3฀e฀ss.฀ 48 ฀P.฀Riché,฀Education฀et฀culture฀dans฀l’Occident฀barbare,฀p.฀497,฀n.฀462. 49 ฀ J.฀ Gaudemet,฀“Survivances฀ romaines฀ dans฀ le฀ droit฀ de฀ la฀ monarchie฀ franque฀ du฀Ve฀ au฀ Xe฀ siècle”,฀p.149-286,฀especialmente฀p.฀157.฀฀฀฀฀ 50 ฀M.฀Handelsmann,฀“Le฀soi-disant฀précepte฀de฀614”,฀p.121;฀O.฀Pontal,฀Histoire฀des฀conciles฀ mérovingiens,฀p.฀205.฀ 51 ฀G.฀Kocher,฀“Praeceptio฀Chlotarii฀II”,฀p.฀1851.฀ 52 ฀I.฀Woll,฀“Untersuchungen฀zu฀Überlieferung฀und฀Eiginart฀der฀merovingischen฀Kapitularien”,฀ pp.฀17-29. 53 ฀J.M.฀Wallace-Hadrill,฀The฀Long-Haired฀Kings,฀p.฀194. 54 ฀ O.฀ Guillot,฀“La฀ justice฀ dans฀ le฀ royaume฀ Franc”,฀ pp.฀ 673-676฀;฀ ver฀ também฀ O.฀ Guillot,฀ A.฀ Rigaudière,฀Y.฀ Sassier,฀ Pouvoirs฀et฀institutions฀dans฀la฀France฀médiévale,฀I,฀Des฀origines฀à฀ l’époque฀féodale,฀p.฀76.฀฀ 55 ฀M.฀Rouche,฀Clovis,฀p.194;฀em฀sua฀Tese฀sobre฀a฀Aquitânia,฀M.฀Rouche฀via฀nesse฀preceito฀uma฀ petição฀dos฀bispos฀aquitânios฀(L’Aquitaine฀des฀Wisigoths฀aux฀Arabes,฀p.฀501,฀n.฀181).฀฀฀฀฀ 44 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀293 Guillot฀observa฀que฀uma฀frase฀contida฀na฀versão฀de฀um฀dos฀manuscritos฀–฀o฀mais฀antigo,฀o฀BN฀ms.฀lat.฀12097฀–฀faz฀referência฀a฀imunidades฀ concedidas฀anteriormente฀por฀irmãos฀do฀rei:฀“...qui฀avi฀vel฀genetoris฀aut฀ germani฀ nostri฀ immunitatem฀ meruerunt”฀ (grifo฀ nosso),฀ o฀ que฀ significaria฀ que฀ o฀ rei฀ em฀ questão฀ era฀ Clotário฀ I,฀ pois฀ Clotário฀ II฀ não฀ teve฀ nenhum฀irmão฀que฀tenha฀chegado฀a฀reinar.฀Ele฀sustenta฀também฀que฀ a฀transcrição฀mais฀antiga฀desse฀documento฀data฀do฀final฀do฀século฀VI,฀ o฀que฀excluiria฀toda฀possibilidade฀de฀que฀seu฀autor฀tenha฀sido฀Clotário฀ II56.฀ Esse฀ primeiro฀ manuscrito฀ citado฀ por฀ O.฀ Guillot฀ não฀ é฀ levado฀ em฀ conta฀pelo฀editor฀do฀século฀XIX,฀A.฀Borétius,฀que฀considera฀a฀expressão฀ aut฀germani฀como฀apócrifa57. Para฀M.฀Handelsmann,฀em฀um฀artigo฀publicado฀em฀1926,฀o฀mais฀ antigo฀dos฀textos฀conservados฀nem฀sempre฀é฀o฀mais฀próximo฀do฀texto฀ primitivo,฀ e฀ o฀ texto฀ mais฀ correto฀ não฀ é฀ necessariamente฀ o฀ texto฀ autêntico58.฀ Através฀ de฀ uma฀ análise฀ paleográfica฀ dos฀ dois฀ manuscritos,฀ Handelsmann฀sustenta฀que฀o฀manuscrito฀n°฀1,฀aquele฀que฀O.฀Guillot฀ considerará฀anos฀mais฀tarde฀como฀autêntico,฀ainda฀que฀seja฀uma฀cópia฀ contemporânea฀ ou฀ muito฀ próxima฀ do฀ original฀ do฀ preceito,฀ conteria฀ alterações฀ deliberadas฀ do฀ sentido฀ primitivo฀ do฀ texto.฀ O฀ manuscrito฀ n°฀ 2,฀ mesmo฀ sendo฀ uma฀ cópia฀ tardia฀ do฀ século฀ X,฀ seria฀ o฀ mais฀ fiel฀ ao฀ modelo฀ primitivo59.฀ A฀ adição฀ da฀ expressão฀ aut฀ germani฀ no฀ texto฀ n°฀ 1฀ –฀ sobre฀ o฀ qual฀ O.฀ Guillot฀ funda฀ sua฀ argumentação฀ –฀ seria฀ uma฀ tentativa฀de฀aumentar฀o฀número฀de฀benfeitores฀da฀Igreja,฀ou฀mesmo฀ uma฀ modificação฀ do฀ sentido฀ do฀ texto฀ primitivo,฀ visando฀ atribuí-lo฀ deliberadamente฀a฀Clotário฀I60.฀O.฀Guillot฀julga฀as฀afirmações฀de฀Handelsmann฀“aberrantes”,฀e฀sustenta฀que฀os฀folio฀sobre฀os฀quais฀o฀preceito฀ em฀questão฀foi฀transcrito฀pertenciam฀ao฀codex฀original,฀cuja฀elabora- 56 ฀O.฀Guillot,฀“La฀justice฀dans฀le฀royaume฀Franc”,฀pp.฀673-674,฀n.฀63฀e฀n.฀64.฀฀ ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II,฀p.฀19.฀ 58 ฀M.฀Handelsmann,฀“Le฀soi-disant฀précepte฀de฀614”,฀p.฀124.฀฀ 59 ฀Ibid.,฀p.฀127.฀ 60 ฀Ibid.,฀p.฀128฀e฀ss. 57 294฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ção฀deve฀ter฀ocorrido฀pouco฀depois฀de฀57361.฀Como฀se฀pode฀observar,฀ a฀discussão฀sobre฀a฀autoridade฀desse฀preceito฀está฀longe฀de฀encontrar฀ uma฀solução฀consensual฀entre฀os฀historiadores.฀฀ Em฀que฀pesem฀essas฀divergências,฀há,฀no฀entanto,฀consenso฀quanto฀ à฀influência฀do฀Breviário฀de฀Alarico฀na฀elaboração฀do฀texto฀aqui฀analisado.฀ Tanto฀ os฀ defensores฀ da฀ hipótese฀ sustentada฀ por฀ Montesquieu,฀ quanto฀ aqueles฀ que฀ acreditam฀ tratar-se฀ de฀ um฀ preceito฀ de฀ Clotário฀ I,฀ reconhecem฀ que฀ alguns฀ trechos฀ do฀ breviário฀ publicado฀ pelo฀ rei฀ visigodo฀Alarico,฀por฀volta฀de฀506-507,฀foram฀retomados฀pelo฀redator฀do฀ preceito฀em฀questão.฀Como฀bem฀lembra฀O.฀Guillot,฀o฀capítulo฀9,฀bem฀ como฀algumas฀passagens฀do฀preâmbulo฀desse฀preceito,฀inspiram-se฀em฀ uma฀novela฀de฀Valentiniano฀III62.฀O.฀Guillot฀quer฀demonstrar฀que฀se฀o฀ preceito฀foi฀publicado฀por฀Clotário฀I,฀isso฀significaria฀que฀Clóvis฀adotou฀ o฀Breviário,฀provavelmente฀após฀sua฀vitória฀sobre฀Alarico.฀No฀entanto,฀ a฀influência฀do฀Breviário฀é฀evocada฀por฀outros฀autores฀para฀sustentar฀a฀ hipótese฀de฀que฀o฀preceito฀pertence฀a฀Clotário฀II.฀S.฀Esders,฀por฀exemplo,฀ acredita฀que฀a฀influência฀do฀Breviário฀resulta฀do฀desfecho฀das฀guerras฀ civis,฀quando฀a฀Burgúndia฀foi฀integrada฀aos฀regna฀governados฀por฀Clotário฀II.฀Esders฀pretende฀mostrar฀que฀o฀preceito฀foi฀publicado฀por฀esse฀ último฀em฀616,฀depois฀de฀ele฀ter฀se฀tornado฀o฀único฀rei฀dos฀francos฀e฀de฀ ter฀conseguido฀afirmar฀seu฀poder฀sobre฀a฀Burgúndia63.฀Essa฀também฀é฀ a฀opinião฀de฀K.฀Kroeschell64.฀Uma฀das฀razões฀apresentadas฀por฀Esders฀ 61 ฀O.฀Guillot,฀“La฀justice฀dans฀le฀royaume฀Franc”,฀p.฀674,฀n.฀64:฀“Or฀il฀se฀trouve฀que,฀contrairement฀aux฀affirmations฀à฀coup฀sûr฀aberrantes฀de฀M.฀Handelsmann...฀on฀a฀la฀preuve฀que฀les฀ff.฀ 169-170,฀sur฀lesquels฀a฀été฀transcrit฀notre฀acte,฀loin฀d’avoir฀été฀ajoutés฀après฀coup฀au฀‘codex’฀comme฀ cet฀auteur฀l’a฀cru,฀constituent฀les฀deux฀derniers฀feuillets฀du฀quaternion฀d’origine,฀numéroté฀XXII฀ exactement฀de฀la฀même฀main฀que฀les฀quaternions฀XXI฀e฀XXIII฀(voir,฀respectivement฀les฀ff.฀170v°,฀ 162v°,฀178v°).฀Il฀faut฀donc฀conclure฀que฀notre฀acte฀fait฀partie฀d’un฀ensemble฀dont฀l’élaboration,฀par฀ ailleurs,฀tendrait฀à฀étre฀rapportée฀au฀VIe฀siècle,฀peu฀après฀573”.฀฀฀ 62 ฀O.฀Guillot,฀“La฀justice฀dans฀le฀royaume฀Franc”,฀p.฀676.฀฀฀ 63 ฀ S.฀ Esders,฀ Römische฀ Rechtstradition฀ und฀ merowingisches฀ Königtum.฀ Zum฀ Rechtscharakter฀politischer฀Herrschaft฀in฀Burgund฀im฀6.฀und฀7.฀Jahrhundert,฀pp.฀105-108. 64 ฀K.฀Kroeschell,฀“Recht฀und฀Gericht฀in฀den฀Merowingischen฀‘Kapitularien’”,฀pp.฀746-748,฀pp.฀ 760-761.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀295 para฀definir฀o฀preceito฀como฀uma฀“lei฀burgúndia”,฀é฀que฀os฀dois฀manuscritos฀nos฀quais฀ele฀foi฀conservado฀faziam฀parte฀da฀Lex฀Burgundiorum.฀ Ele฀ também฀ fundamenta฀ sua฀ hipótese฀ em฀ uma฀ análise฀ minuciosa฀ das฀ correspondências฀entre฀a฀Lei฀romana฀dos฀burgúndios฀e฀o฀preceito65.฀Em฀ suma,฀a฀atestada฀influência฀do฀Breviário฀de฀Alarico฀não฀é฀um฀elemento฀ decisivo฀ para฀ se฀ atribuir฀ o฀ preceito฀ a฀ Clotário฀ I฀ ou฀ a฀ Clotário฀ II.฀ No฀ entanto,฀ uma฀ investigação฀ sobre฀ a฀ natureza฀ e฀ as฀ especificidades฀ dessa฀ influência฀será฀útil฀para฀sublinhar฀o฀legado฀do฀Direito฀romano฀na฀Gália,฀ mas฀também,฀como฀se฀verá฀a฀seguir,฀para฀identificar฀os฀limites฀à฀ação฀ judicante฀do฀rei฀merovíngio.฀฀ Um฀ dos฀ princípios฀ consagrados฀ pelo฀ Breviário฀ de฀ Alarico฀ é฀ a฀ supremacia฀da฀lex.฀Ele฀está฀presente฀na฀interpretatio฀do฀título฀1,฀2,฀5฀e฀na฀ interpretatio฀do฀título฀1,฀2,฀1: “Serão฀condenados฀os฀juízes฀que฀negligenciarem฀os฀preceitos฀do฀príncipe฀ que฀são฀conformes฀às฀leges฀ou฀que฀modificarem฀a฀aplicação฀por฀um฀artifício฀ qualquer”66.฀ “O฀que฀quer฀que฀seja฀obtido฀do฀príncipe฀que฀for฀contra฀a฀lei,฀não฀é฀válido”67.฀฀ A฀primeira฀interpretatio฀constitui฀uma฀admoestação฀aos฀juízes,฀com฀ a฀ameaça฀de฀punição฀para฀aqueles฀que฀negligenciassem฀ou฀que฀modificassem,฀por฀um฀artifício฀qualquer,฀os฀preceitos฀do฀príncipe.฀Há฀uma฀ restrição฀ deliberada฀ na฀ argumentação฀ do฀ texto:฀ a฀ ameaça฀ de฀ punição฀ diz฀respeito฀somente฀aos฀preceitos฀do฀príncipe฀que฀fossem฀conformes฀ às฀leges.฀Pode-se฀deduzir,฀portanto,฀que฀haveria฀preceitos฀reais฀que฀não฀ estivessem฀de฀acordo฀com฀as฀leges.฀É฀exatamente฀disso฀que฀trata฀a฀segunda฀ interpretatio฀ mencionada฀ acima:฀ tudo฀ aquilo฀ que฀ fosse฀ obtido฀ 65 ฀ S.฀ Esders,฀ Römische฀ Rechtstradition฀ und฀ merowingisches฀ Königtum.฀ Zum฀ Rechtscharakter฀politischer฀Herrschaft฀in฀Burgund฀im฀6.฀und฀7.฀Jahrhundert,฀p.108.฀฀฀฀฀ 66 ฀Breviarum฀Alaricianum,฀1,฀2,฀5,฀p.฀669.฀ 67 Breviarum฀Alaricianum,฀1,฀2,฀1,฀p.฀663.฀ 296฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média do฀príncipe,฀e฀que฀se฀opusesse฀às฀leges,฀não฀teria฀valor฀algum.฀Note-se฀ a฀ presença,฀ mais฀ uma฀ vez,฀ do฀ princípio฀ restritivo,฀ isto฀ é,฀ a฀ interdição฀ prevista฀ pela฀ interpretatio฀ seria฀ válida฀ apenas฀ para฀ tudo฀ aquilo฀ (quaecumque)฀que฀fosse฀obtido฀do฀príncipe฀e฀que฀estivesse฀em฀contradição฀ com฀as฀leges.฀A฀palavra฀quaecumque฀não฀designa฀de฀maneira฀geral฀todas฀ as฀ações฀do฀príncipe,฀mas฀possui฀um฀sentido฀mais฀estrito,฀e฀concerne฀os฀ preceitos฀ emitidos฀ pelo฀ poder฀ real฀ que฀ estivessem฀ em฀ desacordo฀ com฀ as฀ leges.฀ Há฀ uma฀ idéia฀ semelhante฀ no฀ final฀ do฀ preâmbulo฀ do฀ preceito฀ atribuído฀a฀Clotário฀II:฀ “É฀por฀isso฀que฀nós฀ordenamos฀através฀desta฀diretiva฀geral฀que฀em฀todas฀ as฀causas฀a฀norma฀do฀antigo฀direito฀seja฀observada,฀e฀que฀nenhuma฀sentença฀ ou฀julgamento฀obtido฀possua฀validade฀que฀exceda฀a฀justa฀medida฀da฀lei฀e฀da฀ eqüidade”68. Vemos฀aqui฀a฀preocupação฀em฀se฀estabelecer฀a฀preeminência฀do฀ius฀ antigo,฀e฀também,฀como฀na฀interpretatio฀anteriormente฀mencionada,฀o฀ combate฀ às฀ sentenças฀ ou฀ julgamentos฀ obtidos฀ que฀ excedessem฀ a฀ justa฀ medida฀da฀lei฀e฀da฀eqüidade.฀฀ Ainda฀no฀preceito฀atribuído฀a฀Clotário฀II,฀o฀capítulo฀5,฀da฀mesma฀ forma฀que฀o฀capítulo฀9,฀também฀sustenta฀o฀princípio฀da฀supremacia฀ da฀lei: “Se฀alguém฀obtém฀desonestamente฀uma฀diretiva฀nossa฀contra฀a฀lei,฀enganando฀o฀príncipe,฀ela฀não฀será฀válida”69.฀ “As฀diretivas฀conforme฀à฀justiça฀e฀à฀lei฀permanecerão฀válidas,฀e฀não฀serão฀ anuladas฀por฀diretivas฀subseqüentes฀obtidas฀contra฀a฀lei”70. 68 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II.฀ ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II฀c.฀5.฀ 70 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II฀c.฀9.฀ 69 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀297 O฀capítulo฀5฀constitui฀uma฀retomada,฀com฀algumas฀nuances,฀da฀idéia฀ exposta฀na฀interpretatio฀título฀I,฀II,฀1:฀qualquer฀diretiva฀que฀contrariasse฀ a฀lei,฀obtida฀do฀príncipe฀de฀maneira฀desonesta,฀não฀teria฀validade.฀A฀nuance,฀no฀caso฀do฀preceito,฀é฀que฀se฀admitia฀somente฀que฀o฀príncipe฀tenha฀ publicado฀ diretivas฀ que฀ contrariem฀ a฀ lex฀ se฀ ele฀ tivesse฀ sido฀ enganado.฀ Contrariamente฀ao฀Breviário,฀o฀texto฀merovíngio฀não฀admitia,฀em฀última฀instância,฀que฀o฀príncipe฀pudesse฀se฀colocar฀em฀oposição฀àquilo฀que฀ estabelecia฀ a฀ lei.฀ Isso฀ significa฀ que฀ o฀ príncipe฀ era฀ descrito฀ no฀ preceito฀ como฀a฀encarnação฀da฀lei?฀De฀forma฀alguma:฀nesse฀capítulo฀5,฀como฀na฀ interpretatio฀anteriormente฀mencionada,฀o฀príncipe฀deveria฀se฀submeter฀ à฀“lei”,฀ aqui฀ mencionada฀ no฀ singular.฀ No฀ capítulo฀ 9,฀ a฀ lex฀ continua฀ a฀ aparecer฀ como฀ o฀ princípio฀ supremo,฀ mas฀ dessa฀ vez฀ acompanhada฀ do฀ termo฀iustitia.฀Note-se฀uma฀diferença฀fundamental:฀enquanto฀no฀Breviário฀de฀Alarico,฀as฀leges฀impunham-se฀como฀limites฀à฀ação฀dos฀juizes,฀ e฀também฀do฀próprio฀príncipe,฀no฀Preceito฀atribuído฀a฀Clotário฀II,฀esse฀ papel฀é฀desempenhado฀pela฀“justa฀medida฀da฀lei”,฀pela฀“eqüidade”฀e฀pela฀ “justiça”.฀O฀Breviário฀é฀oriundo฀de฀um฀meio฀profundamente฀marcado฀ pela฀supremacia฀das฀lex,฀e฀o฀preceito,฀por฀sua฀vez,฀parece฀indissociável฀ de฀um฀ambiente฀marcado฀pelo฀princípio฀da฀equanimidade฀no฀exercício฀ da฀justiça.฀฀ Resta฀saber฀o฀que฀o฀editor฀do฀preceito฀entendia฀por฀“justa฀medida฀ da฀lei”,฀por฀“eqüidade”฀e฀por฀“justiça”.฀Um฀indício฀nesse฀sentido฀está฀no฀ capítulo฀6฀do฀preceito: “Se฀um฀juiz฀condena฀contra฀a฀lei฀alguém฀injustamente,฀em฀nossa฀ausência฀ ele฀será฀repreendido฀pelos฀bispos,฀de฀modo฀que฀ele฀se฀esforce฀em฀corrigir฀seu฀ julgamento฀quando฀houver฀uma฀melhor฀discussão”71. Os฀bispos฀são฀indicados฀nesse฀trecho฀como฀os฀intérpretes฀da฀lei,฀aqueles฀que฀poderiam,฀na฀ausência฀do฀rei,฀repreender฀o฀iudex฀por฀ter฀condenado฀alguém฀injustamente.฀A฀condenação฀injusta฀equivalia฀a฀opor-se฀à฀ 71 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II฀c.฀6.฀ 298฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média lei,฀o฀que฀significa,฀portanto,฀que฀o฀que฀determina฀a฀lex฀é฀a฀iustitia.฀Tendo฀ em฀vista฀que฀a฀função฀outorgada฀aos฀bispos฀pelo฀preceito,฀superiores฀aos฀ próprios฀iudices,฀fica฀evidente฀a฀conotação฀moral,฀e฀mais฀precisamente฀ cristã,฀do฀termo฀iustitia.฀Outras฀disposições฀desse฀preceito,฀notadamente฀ no฀que฀se฀refere฀à฀proteção฀das฀viúvas,฀das฀virgens฀e฀das฀religiosas,฀apontavam฀igualmente฀para฀essa฀correlação฀entre฀o฀princeps฀e฀a฀lex:฀ “Que฀ ninguém฀ ouse฀ buscar฀ matrimônio฀ com฀ uma฀ viúva฀ ou฀ com฀ uma฀ mulher฀contra฀sua฀vontade,฀por฀meio฀de฀uma฀de฀nossas฀instruções;฀elas฀não฀ devem฀ser฀tiradas฀injustamente฀por฀meio฀de฀perguntas฀enganosas฀[ou฀possivelmente฀intimidações]”72.฀฀ “Que฀ ninguém฀ ouse฀ se฀ unir฀ em฀ casamento฀ a฀ uma฀ mulher฀ consagrada฀ a฀ Deus฀(sanctimonialis)”73.฀ O฀capítulo฀8฀pretendia฀impedir฀o฀casamento฀das฀mulheres฀consagradas฀a฀Deus,฀enquanto฀o฀capítulo฀7฀proibia฀que฀se฀buscasse฀matrimônio฀com฀uma฀viúva฀ou฀outra฀mulher฀contra฀a฀vontade฀delas฀e฀por฀ meio฀ da฀ utilização฀ de฀ um฀ preceito฀ do฀ príncipe.฀ O฀ texto฀ aplica฀ nesse฀ caso฀o฀mesmo฀princípio฀estabelecido฀pelo฀capítulo฀5,฀ou฀seja,฀que฀os฀ preceitos฀ obtidos฀ do฀ príncipe฀ e฀ que฀ contrariem฀ a฀“justiça”฀ não฀ têm฀ validade.฀฀฀ Os฀capítulos฀7฀e฀8฀do฀preceito฀em฀questão฀tratam฀do฀mesmo฀tema฀que฀ o฀capítulo฀18฀do฀Edito฀de฀Paris,฀publicado฀sob฀o฀reinado฀de฀Clotário฀II:฀ “As฀virgens,฀as฀santas฀viúvas฀e฀as฀religiosas฀que฀se฀dedicaram฀a฀Deus,฀ou฀que฀ permaneceram฀em฀suas฀próprias฀casas,฀ou฀que฀vivem฀em฀um฀monastério,฀que฀ ninguém฀as฀requisite,฀não฀as฀seqüestre฀ou฀não฀as฀despose,฀valendo-se฀de฀um฀ praeceptum฀ de฀ nossa฀ mão.฀ E฀ se฀ qualquer฀ um฀ obtém฀ sorrateiramente฀ um฀ semelhante฀praeceptum,฀que฀esse฀não฀seja฀de฀nenhum฀efeito.฀E฀se฀qualquer฀ 72 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II฀c.฀7.฀฀ ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II฀c.฀8.฀฀ 73 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀299 um,฀seja฀pela฀força฀ou฀por฀outro฀meio,฀se฀atrever฀a฀seqüestrá-las฀ou฀unir-se฀a฀ elas฀em฀casamento,฀que฀seja฀castigado฀com฀a฀morte.฀Se฀o฀matrimônio฀se฀fez฀na฀ igreja,฀e฀que฀a฀mulher฀seqüestrada฀ou฀a฀ponto฀de฀ser฀pareça฀anuir,฀que฀sejam฀ separados,฀que฀os฀envie฀em฀exílio฀e฀que฀seus฀bens฀pertençam฀a฀seus฀herdeiros฀ naturais”฀(grifo฀nosso)74. Aqui฀também฀há฀a฀condenação฀do฀casamento฀das฀religiosas,฀das฀viúvas฀ e฀das฀virgens฀colocadas฀sob฀a฀proteção฀da฀Igreja฀e฀da฀autoridade฀real.฀No฀ entanto,฀esse฀capítulo฀é฀mais฀completo฀que฀as฀prescrições฀estabelecidas฀no฀ Preceito,฀a฀começar฀pela฀pena฀de฀morte฀prevista฀para฀aqueles฀que฀se฀atrevessem฀a฀seqüestrar฀ou฀forçar฀o฀casamento฀com฀as฀virgens,฀as฀viúvas฀ou฀ as฀religiosas.฀O฀Edito฀também฀prevê฀a฀separação,฀o฀exílio฀e฀a฀transferência฀ dos฀bens฀aos฀herdeiros฀naturais฀quando฀houver฀ou฀parecer฀haver฀anuência฀ por฀parte฀da฀mulher.฀No฀entanto,฀o฀que฀é฀mais฀marcante฀nesse฀texto฀é฀o฀fato฀ de฀que฀sua฀segunda฀frase฀(“Et฀si฀quis฀exinde฀praeceptum฀eleguerit,฀nullum฀ sorciatur฀effectum”)฀repete฀o฀capítulo฀5฀do฀preceito฀atribuído฀a฀Clotário฀II,฀ inclusive฀ao฀indicar฀a฀ilegalidade฀dos฀textos฀obtidos฀“sorrateiramente”฀do฀ poder฀real:฀“Si฀quis฀auctoritatem฀nostram฀subreptitie฀contra฀legem฀elicuerit฀ fallendo฀principem,฀non฀valebit”75.฀O฀Edito฀de฀Paris฀contesta฀igualmente฀a฀ validade฀dos฀preceitos฀que฀se฀opusessem฀ao฀princípio฀da฀justiça,฀isto฀é,฀da฀ justa฀medida฀da฀lei.฀Isso฀mostra฀que฀esse฀texto,฀bem฀como฀o฀Preceito฀aqui฀ analisado,฀provém฀de฀um฀mesmo฀ambiente฀intelectual,฀onde฀o฀príncipe฀ deve฀se฀submeter฀aos฀imperativos฀da฀justiça฀e฀da฀eqüidade.฀฀฀ A฀convergência฀entre฀esses฀dois฀textos฀não฀é฀uma฀prova,฀mas฀apenas฀ um฀indício฀de฀que฀o฀preceito฀em฀questão฀pode฀ter฀sido฀publicado฀durante฀ o฀reinado฀de฀Clotário฀II.฀As฀medidas฀adotadas฀pelo฀preceito฀respondiam฀ a฀uma฀situação฀específica,฀que฀era฀mais฀próxima,฀aliás,฀da฀conjuntura฀do฀ final฀das฀guerras฀civis฀do฀que฀da฀primeira฀metade฀do฀século฀VI.฀Além฀disso,฀tais฀medidas฀não฀se฀enquadram฀na฀política฀de฀Clotário฀I฀em฀relação฀à฀ 74 ฀Chlotarii฀II.฀Edictum,฀9,฀c.฀18.฀฀฀ ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II,฀c.5:฀“Se฀alguém฀obtém฀desonestamente฀uma฀diretiva฀nossa฀contra฀a฀ lei฀enganando฀o฀príncipe,฀ela฀não฀será฀válida”.฀ 75 300฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Igreja.฀O฀que฀o฀texto฀do฀preceito฀buscava฀corrigir฀eram฀os฀assassinatos,฀ a฀ execução฀ de฀ acusados฀ que฀ não฀ tinham฀ sido฀ ouvidos,฀ os฀ casamentos฀ ilícitos฀ou฀ainda฀as฀fraudes฀ao฀direito฀de฀herança฀dos฀herdeiros.฀Montesquieu฀ pode฀ não฀ ter฀ se฀ equivocado฀ ao฀ tentar฀ entender฀ o฀ preceito฀ a฀ partir฀da฀situação฀que฀ele฀queria฀modificar.฀O฀reinado฀de฀Clotário฀I฀não฀se฀ caracterizou฀por฀amplas฀concessões฀em฀favor฀das฀igrejas.฀Após฀morte฀da฀ rainha฀Clotilde,฀em฀544,฀esse฀rei฀não฀hesitou฀em฀confiscar฀uma฀parte฀das฀ rendas฀do฀clero.฀Ele฀ordenou฀que฀todas฀as฀dioceses฀de฀seu฀reino฀vertessem฀ para฀o฀fisco฀a฀terça฀parte฀de฀suas฀rendas,฀o฀que฀provocou฀uma฀viva฀reação฀ do฀bispo฀da฀cidade฀de฀Tours,฀Injuriosus76.฀Gregório฀de฀Tours฀afirma฀que฀ pouco฀antes฀de฀sua฀morte,฀Clotário฀I฀foi฀tomado฀de฀remorso฀por฀todas฀ as฀suas฀más฀ações,฀mas฀ele฀não฀menciona฀nenhuma฀medida฀em฀favor฀da฀ Igreja,฀tais฀como฀as฀que฀encontramos฀no฀preceito77.฀A฀única฀menção฀a฀tais฀ medidas฀encontra-se฀no฀capítulo฀das฀Histórias฀no฀qual฀Gregório฀descreve฀ a฀morte฀de฀Chilperico:฀ele฀afirma฀que฀esse฀rei฀“...pisava฀freqüentemente฀os฀ preceitos฀de฀seu฀pai,฀pensando฀que฀não฀restava฀ninguém฀para฀fazer฀respeitar฀ suas฀vontades”78.฀ Por฀outro฀lado,฀em฀um฀balanço฀do฀reinado฀de฀Clotário฀I,฀os฀bispos฀ conciliares,฀ reunidos฀ em฀ Paris฀ pouco฀ após฀ sua฀ morte,฀ indicaram฀ claramente฀que฀a฀autoridade฀real฀era฀responsável฀pelos฀prejuízos฀sofridos฀ pelas฀igrejas฀no฀período฀precedente.฀Eles฀ameaçam฀com฀sanções฀aqueles฀ que฀se฀amparavam฀dos฀bens฀da฀Igreja฀utilizando฀para฀tanto฀um฀preceito฀ real.฀Os฀bispos฀também฀reconhecem฀terem฀atentado฀para฀o฀problema฀ tardiamente,฀ e฀ afirmam฀ que฀ o฀ episcopado฀ deveria฀ no฀ passado,฀ com฀ o฀ apoio฀dos฀cânones,฀ter฀se฀oposto฀a฀tais฀ações79.฀Entre฀todos฀os฀filhos฀de฀ Clóvis,฀Clotário฀I฀é฀aquele฀cuja฀política฀religiosa฀foi฀a฀mais฀claramente฀ oposta฀aos฀interesses฀dos฀bispos,฀tanto฀no฀que฀se฀refere฀à฀ingerência฀nas฀ eleições฀episcopais,฀como฀ao฀confisco฀dos฀bens฀eclesiásticos.฀฀ 76 ฀Histórias฀IV,฀2.฀฀ ฀Histórias฀IV,฀21.฀฀ 78 ฀Histórias฀VI,฀46:฀“...ipsasque฀patris฀sui฀praeceptiones,฀potans,฀quod฀non฀remanerit฀qui฀voluntatem฀eius฀servaret,฀saepe฀calcavit”.฀ 79 ฀Paris฀III฀(v.฀561-562),฀c.฀1. 77 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀301 É฀provável฀que฀a฀publicação฀do฀preceito฀tenha฀ocorrido฀durante฀o฀ reconhecimento฀por฀Clotário฀II฀do฀estatuto฀da฀Burgúndia,฀uma฀região฀ profundamente฀marcada฀pela฀influência฀romana฀e฀na฀qual฀o฀Breviário฀de฀ Alarico฀era฀conhecido.฀O฀capítulo฀4฀do฀preceito,฀aliás,฀pode฀ser฀interpretado฀como฀uma฀concessão฀ao฀particularismo฀jurídico฀da฀Burgúndia: “Entre฀romanos,฀nós฀ordenamos฀que฀as฀causas฀sejam฀levadas฀a฀termo฀pela฀ lei฀romana”80.฀ Confirma-se,฀assim,฀a฀validade฀da฀Lex฀Burgundiorum฀para฀o฀julgamento฀de฀casos฀que฀envolviam฀aquele฀que฀o฀preceito฀chama฀de฀“romanos”,฀ou฀seja,฀os฀habitantes฀da฀Burgúndia฀que฀viviam฀sob฀a฀lei฀romana.฀฀ Outro฀indicio฀quanto฀à฀autoria฀do฀preceito฀em฀questão฀pode฀estar฀ no฀capítulo฀13: “Tudo฀aquilo฀que฀for฀provado฀que฀a฀Igreja,฀os฀eclesiásticos฀ou฀nossos฀provinciais฀ possuem฀ durante฀ trinta฀ anos,฀ sem฀ que฀ seus฀ direitos฀ sejam฀ perturbados,฀permanecem฀em฀sua฀possessão฀sob฀seu฀comando,฀se฀desde฀o฀início฀a฀ possessão฀é฀justa;฀qualquer฀ação฀que฀permaneceu฀sepultada฀por฀mais฀do฀que฀ esse฀período฀de฀tempo฀não฀deve฀ser฀restabelecida฀contra฀a฀lei,฀para฀que฀sem฀ dúvida฀a฀possessão฀permaneça฀com฀seu฀possuidor฀de฀direito”81. Esse฀capítulo฀trata฀daquilo฀que฀chamamos฀de฀“usucapião”,฀ou฀seja,฀ uma฀forma฀de฀aquisição฀de฀um฀bem฀pelo฀decurso฀do฀tempo.฀Duas฀são฀as฀ condições฀estabelecidas฀para฀que฀o฀direito฀à฀possessão฀do฀referido฀bem฀ seja฀reconhecido:฀a฀primeira฀é฀a฀justiça฀da฀possessão;฀a฀segunda,฀é฀฀a฀ausência฀de฀questionamento฀à฀possessão฀por฀um฀período฀de฀mais฀de฀trinta฀ anos.฀A฀referência฀aos฀30฀anos,฀como฀indica฀o฀próprio฀editor฀do฀preceito฀ no฀ final฀ do฀ século฀ XIX,฀A.฀ Borétius,฀ é฀ uma฀ modificação฀ em฀ relação฀ a฀ Lex฀Wisigothorum,฀V,฀24,฀interpretatio,฀que฀previa฀a฀mesma฀regra,฀mas฀ 80 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II,฀c.4.฀ ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II,฀c.฀13.฀ 81 302฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média dentro฀de฀um฀período฀de฀vinte฀anos:฀“Viaginti฀annorum฀non฀requisitam฀ possessionem,฀si฀tamen฀iustum฀possidendi฀initium฀intercessisse฀probatur,฀ possessori฀prodesse฀certum฀est”82.฀ Essa฀modificação฀de฀20฀para฀30฀anos฀pode฀decorrer฀da฀necessidade฀ de฀fazer฀coincidir฀o฀período฀inicial฀da฀contagem฀de฀tempo฀para฀a฀validação฀da฀posse฀com฀o฀início฀do฀reinado฀de฀Clotário฀II.฀De฀fato,฀como฀ Clotário฀II฀começou฀a฀reinar฀em฀584,฀com฀os฀30฀anos฀decorridos,฀se฀ estaria฀ em฀ 614.฀ Em฀ suma,฀ o฀ preceito฀ pode฀ ter฀ sido฀ promulgado฀ durante฀uma฀assembléia฀reunida฀na฀cidade฀de฀Bonnueil,฀após฀614.฀Essa฀ assembléia,฀ presidida฀ pelo฀ rei,฀ foi,฀ muito฀ provavelmente,฀ a฀ ocasião฀ para฀os฀bispos฀e฀os฀grandes฀da฀Burgúndia฀completarem฀e฀confirmarem฀as฀medidas฀do฀Edito฀de฀614.฀É฀o฀que฀se฀pode฀inferir฀do฀relato฀de฀ Fredegário:฀ “No฀ trigésimo-terceiro฀ ano฀ do฀ reinado฀ de฀ Clotário฀ II,฀ ele฀ ordenou฀ que฀ Warnacharius,฀o฀prefeito฀do฀palácio,฀com฀todos฀os฀bispos฀da฀Burgúndia,฀bem฀ como฀seus฀subordinados฀da฀Burgúndia,฀viessem฀encontrá-lo฀no฀domínio฀de฀ Bonnueil.฀Nesse฀local,฀concordando฀com฀todas฀as฀suas฀justas฀petições,฀ele฀as฀ validou฀por฀preceitos”(grifo฀nosso)83.฀฀ As฀contestações฀e฀as฀cobranças฀eram฀inúmeras฀no฀momento฀em฀que฀ as฀ guerras฀ civis฀ terminaram.฀ A฀ assembléia฀ de฀ Bonneuil฀ pode฀ ter฀ sido฀ o฀ momento฀ para฀ Clotário฀ II฀ compensar฀ os฀ “grandes”฀ da฀ Austrásia฀ e฀ da฀Nêustria฀por฀seu฀precioso฀apoio฀em฀613.฀O฀mesmo฀Warnacharius,฀ quando฀foi฀nomeado฀prefeito฀do฀palácio฀da฀Burgúndia,฀recebeu฀de฀Clotário฀II฀o฀privilégio฀da฀irrevogabilidade84.฀Não฀se฀pode฀esquecer฀que฀a฀ 82 ฀Praeceptio฀Chlotarii฀II,฀p.19,฀n.7.฀ ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀44.฀Sobre฀a฀assembléia฀de฀Bonneuil,฀ver฀Ch.฀De฀Clercq,฀La฀législation฀religieuse฀franque฀de฀Clovis฀à฀Charlemagne,฀t.฀I.฀Etudes฀sur฀les฀actes฀des฀conciles฀et฀les฀ capitulaires,฀les฀statuts฀diocésains฀et฀les฀règles฀monastiques,฀p.฀62;฀O.฀Pontal,฀Histoire฀des฀ conciles฀mérovingiens,฀p.฀198฀e฀p.฀211. 84 ฀Fredegário,฀Crônicas฀IV,฀42:฀“Warnacharius฀in฀regnum฀Burgundiae฀substituetur฀maior฀domi,฀ sacramentum฀a฀Chlotharium฀acceptum฀ne฀umquam฀uitae฀suae฀temporebus฀degradaretur”.฀฀ 83 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀303 defecção฀ dos฀ grandes฀ da฀ Burgúndia,฀ à฀ frente฀ dos฀ quais฀ se฀ encontrava฀ Warnacharius,฀é฀que฀desfechou฀um฀golpe฀fatal฀na฀capacidade฀de฀resistência฀da฀rainha฀Brunilda฀diante฀do฀avanço฀de฀Clotário฀II.฀Ao฀validar฀as฀ petições฀ dos฀ grandes฀ da฀ Burgúndia฀ por฀ decretos,฀ Clotário฀ II฀ pode฀ ter฀ publicado฀ o฀ preceito฀ que฀ lhe฀ é฀ atribuído.฀ Note-se฀ que฀ Fredegário฀ faz฀ referência฀a฀“justas฀petições”฀validadas฀por฀preceitos฀do฀príncipe,฀o฀que฀ significa฀que฀em฀Bonnueil,฀em฀618,฀sabia-se฀que฀“as฀diretivas฀conforme฀à฀ justiça฀e฀à฀lei฀permanecerão฀válidas”,฀exatamente฀como฀previa฀o฀preceito฀ atribuído฀a฀Clotário฀II. O฀rei฀merovíngio฀e฀as฀elites Como฀ acabamos฀ de฀ observar,฀ ao฀ longo฀ da฀ segunda฀ metade฀ do฀ século฀ VI,฀ houve฀ uma฀ evolução฀ significativa฀ na฀ monarquia฀ franca.฀ A฀ partir฀ de฀ então,฀ as฀ relações฀ entre฀ os฀ governantes฀ e฀ os฀ governados฀ não฀ se฀ fundavam฀ somente฀ na฀ concessão฀ de฀ vantagens฀ materiais,฀ na฀ proteção฀ militar฀ ou฀ ainda฀ na฀ identificação฀ política฀ e฀ militar฀ com฀ o฀ Império.฀ Os฀ textos฀ legislativos฀ examinados฀ neste฀ capítulo฀ mostram฀ que฀ a฀ autoridade฀ pública,฀ e฀ isso฀ é฀ particularmente฀ visível฀ no฀ que฀ se฀ refere฀aos฀reinados฀de฀Gontrão฀e฀de฀Clotário฀II,฀também฀fundava฀sua฀ legitimidade฀ na฀ execução฀ de฀ um฀ programa฀ teleológico:฀ a฀ criação฀ de฀ condições฀para฀a฀salvação฀das฀almas.฀O฀que฀o฀século฀VI฀trouxe฀de฀novo฀ para฀a฀Gália,฀e฀de฀certa฀forma฀também฀para฀o฀Ocidente฀medieval,฀foi฀ menos฀um฀princípio฀“protocontratual”฀que฀ligava฀os฀governantes฀aos฀ seus฀súditos,฀do฀que฀a฀natureza฀das฀obrigações฀dos฀primeiros฀em฀relação฀aos฀segundos.฀ À฀primeira฀vista,฀poder-se-ia฀deduzir฀que฀o฀processo฀de฀cristianização฀ da฀utilitas฀publica฀durante฀o฀século฀VI฀aproximou฀o฀príncipe฀daqueles฀ que฀ele฀governava฀através฀de฀uma฀série฀de฀obrigações฀morais.฀“Tirano”฀ na฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀ele฀ter-se-ia฀convertido฀em฀“príncipe฀ cristão”฀ sob฀ Gontrão฀ e฀ Clotário฀ II.฀ É฀ o฀ que฀ pensa,฀ por฀ exemplo,฀ F.฀ Lot,฀para฀quem฀os฀reis฀merovíngios฀se฀colocaram฀como฀os฀defensores฀ dos฀fracos,฀“aliviando฀sua฀tirania฀como฀um฀meio฀de฀melhor฀utilizar฀o฀po- 304฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média der฀ político฀ para฀ fins฀ privados”85.฀ Ora,฀ os฀ príncipes฀ merovíngios,฀ antes฀ mesmo฀ de฀ se฀ esboçar฀ o฀ processo฀ de฀ cristianização฀ da฀ utilitas฀ publica,฀ já฀ estavam฀ ligados฀ aos฀ seus฀ súditos฀ por฀ obrigações฀ que฀ não฀ cessaram฀ de฀evoluir฀ao฀longo฀do฀século฀VI.฀A฀autoridade฀dos฀príncipes฀francos,฀ pelo฀menos฀desde฀os฀primórdios฀do฀Reino฀dos฀Francos,฀fundava-se,฀em฀ boa฀ medida,฀ no฀ consentimento฀ dos฀“grandes฀ do฀ reino”,฀ que฀ na฀ maior฀ parte฀ das฀ fontes฀ do฀ período฀ são฀ identificados฀ como฀ o฀ populus.฀ Nesse฀ sentido,฀a฀legitimidade฀incorporada฀à฀realeza฀pelas฀doutrinas฀cristãs฀não฀ significou฀uma฀“revolução”฀nas฀relações฀entre฀o฀rei฀e฀a฀aristocracia.฀Mais฀ ainda,฀é฀possível฀também฀afirmar฀que฀essas฀relações฀“protocontratuais”฀ já฀existentes฀foram฀terreno฀fértil฀para฀o฀desenvolvimento฀da฀idéia฀dos฀ reges฀pro฀populi฀salvatione.฀฀ A฀extensão฀da฀autoridade฀dos฀reis฀francos฀foi฀freqüentemente฀exagerada฀ pela฀ historiografia฀ até฀ a฀ primeira฀ metade฀ do฀ século฀ XX.฀ Eles฀ não฀ eram฀ soberanos฀ de฀“direito฀ divino”,฀“proprietários฀ do฀ reino”฀ cuja฀ tirania฀encontrava฀limites฀apenas฀na฀superstição฀e฀no฀assassinato.฀฀Os฀ textos฀legislativos,฀bem฀como฀as฀crônicas฀ou฀as฀epístolas,฀mostram฀que฀ os฀grandes฀do฀reino฀eram฀estreitamente฀associados฀às฀mais฀importantes฀ decisões.฀O฀chamado฀“prólogo฀curto”฀da฀Lei฀Sálica,฀escrito฀entre฀o฀final฀ do฀século฀VII฀e฀o฀início฀do฀século฀VIII,฀salienta฀o฀papel฀dos฀“grandes”฀na฀ elaboração฀dessa฀lei:฀“Foi฀decidido฀e฀acordado,฀com฀o฀auxílio฀de฀Deus,฀entre฀os฀francos฀e฀seus฀grandes,฀como฀se฀deveria฀zelar฀pela฀observância฀da฀paz฀ entre฀todos฀para฀suprimir฀o฀crescimento฀das฀disputas”฀86.฀Os฀juramento฀de฀ fidelidade฀ da฀ época฀ merovíngia฀ testemunham฀ igualmente฀ a฀ existência฀ de฀ uma฀ ordem฀“protocontratual”฀ na฀ monarquia฀ franca.฀ O฀ grande฀ do฀ reino,฀embora฀jure฀fidelidade฀ao฀rei฀e฀dele฀receba฀honores฀ou฀beneficia,฀ não฀é฀sua฀criatura.฀As฀palavras,฀que฀Gregório฀de฀Tours฀atribui฀ao฀usurpador฀Mundericus,฀mostram฀com฀uma฀surpreendente฀transparência฀a฀ importância฀do฀populus.฀Pretendendo฀ser฀de฀sangue฀real,฀ele฀reivindica฀ seu฀direito฀de฀ser฀rei:฀“Que฀devo฀fazer฀com฀o฀rei฀Teuderico?฀O฀trono฀do฀ 85 ฀F.฀Lot,฀Naissance฀de฀la฀France,฀p.฀168. ฀Pactus฀legis฀Salicae,฀pp.2-3.฀ 86 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀305 reino฀me฀é฀devido฀como฀a฀ele.฀Sairei,฀reunirei฀meu฀povo฀e฀exigirei฀o฀juramento,฀para฀que฀Teuderico฀saiba฀que฀eu฀sou฀rei฀tanto฀quanto฀ele”87.฀ O฀ reconhecimento,฀ ou฀ melhor,฀ o฀ juramento฀ do฀ populus฀ seria฀ suficiente,฀ segundo฀ o฀ discurso฀ de฀ Mondericus,฀ para฀ provar฀ seu฀ estatuto฀ real.฀ Há฀ nessas฀ palavras฀ um฀ reconhecimento฀ tácito฀ de฀ que฀ o฀ estatuto฀ real฀dependia,฀pelo฀menos฀no฀caso฀de฀um฀príncipe฀cuja฀legitimidade฀era฀ questionada,฀do฀acordo฀do฀populus.฀Os฀detalhes฀presentes฀nas฀crônicas฀ da฀época฀a฀respeito฀das฀lutas฀pelo฀poder฀real฀mostram฀que฀o฀consentimento฀desse฀grupo฀era฀uma฀parte฀importante฀da฀legitimação฀do฀poder฀ real.฀Duas฀práticas฀freqüentes฀entre฀os฀merovíngios฀–฀as฀cerimônias฀de฀ instalação฀dos฀reis฀e฀os฀juramentos฀prestados฀a฀eles฀–฀são฀sintomáticos฀ da฀dependência฀da฀realeza฀em฀relação฀àqueles฀que฀ele฀devia฀governar.฀ Na฀ cerimônia฀ de฀ instalação฀ no฀ trono,฀ o฀ novo฀ rei฀ era฀ elevado฀ em฀ um฀ escudo฀ e฀ conduzido฀ sobre฀ os฀ ombros฀ de฀ alguns฀ homens฀ em฀ público.฀ É฀importante฀lembrar฀que฀Gregório฀de฀Tours฀descreve฀essa฀cerimônia฀ somente฀no฀caso฀de฀reis฀que฀careciam฀de฀legitimidade,฀como฀o฀“usurpador”฀ Gondovaldo.฀ A฀ segunda฀ cerimônia฀ ocorria฀ após฀ a฀ ascensão฀ à฀ realeza.฀Cada฀novo฀rei฀exigia฀então฀de฀seu฀povo฀uma฀demonstração฀de฀ fidelidade.฀ Segundo฀ as฀ Formulae฀ de฀ Marculfo,฀ os฀ súditos,฀ fossem฀ eles฀ francos฀ ou฀ romanos,฀ se฀ reuniam฀ para฀ prestar฀ juramento฀ ao฀ novo฀ rei฀ sobre฀as฀relíquias฀e฀em฀presença฀de฀um฀funcionário฀real88.฀ Essas฀ cerimônias฀ eram฀ mais฀ que฀ dos฀ simples฀ encenações.฀ Elas฀ mostram฀ que฀ até฀ mesmo฀ o฀ advento฀ de฀ um฀ príncipe฀ sobre฀ quem฀ não฀ pairavam฀dúvidas฀quanto฀a฀seu฀pertencimento฀à฀dinastia฀real฀não฀acontecia฀sem฀o฀reconhecimento฀oficial฀do฀populus,฀ou฀seja,฀os฀grandes฀do฀ reino.฀Além฀ de฀ pertencer฀ à฀ família฀ merovíngia,฀ para฀ tornar-se฀ rei,฀ era฀ necessário฀ser฀reconhecido฀como฀tal฀e฀aceito฀pelo฀populus.฀Não฀se฀pode,฀ evidentemente,฀ confundir฀ essa฀ prática฀ com฀ um฀ sistema฀ de฀“soberania฀ popular”.฀O฀populus฀que฀é฀mencionado฀nessas฀cerimônias฀públicas฀era฀ um฀conjunto฀de฀personagens฀eminentes฀e฀de฀guerreiros,฀cuja฀submissão฀ 87 ฀Histórias฀III,฀14. ฀Formulae฀Marculfi,฀I,฀40. 88 306฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ao฀chefe฀dependia฀de฀seu฀pertencimento฀à฀família฀merovíngia.฀Por฀outro฀ lado,฀aquele฀que฀pretendia฀ascender฀à฀Realeza฀sem฀ser฀reconhecido฀como฀ filho฀de฀um฀rei฀pelos฀membros฀eminentes฀da฀família฀real,฀era฀forçado฀ a฀conquistar฀para฀a฀sua฀causa฀um฀certo฀número฀de฀grandes฀do฀reino,฀ convencendo-os฀de฀que฀era฀sim฀filho฀de฀um฀rei.฀Mondericus,฀de฀acordo฀ com฀o฀relato฀de฀Gregório฀de฀Tours,฀estava฀consciente฀desse฀fato.฀Em฀sua฀ arenga,฀ele฀afirma,฀“princeps฀ergo฀sum”฀como฀se฀ele฀quisesse,฀através฀de฀ um฀argumento฀dinástico,฀demonstrar฀seu฀direito฀de฀reinar89.฀O฀acordo฀ formal฀do฀populus฀expresso฀através฀dessas฀cerimônias฀não฀tinha฀por฀si฀só฀ o฀poder฀de฀criar฀o฀rei;฀ele฀servia฀apenas฀e฀tão฀somente฀para฀reconhecer฀ uma฀situação฀de฀fato.฀É฀assim฀que฀ao฀reconhecer฀o฀jovem฀Childeberto฀ de฀apenas฀cinco฀anos฀como฀seu฀rei,฀os฀grandes฀da฀Austrásia฀não฀criaram฀ um฀rei฀a฀partir฀do฀nada,฀mas฀reconheceram฀oficialmente฀uma฀criança฀ sobre฀a฀qual฀não฀pairava฀nenhuma฀dúvida฀quanto฀à฀sua฀filiação,฀e฀que฀ tinha,฀portanto,฀o฀direito฀de฀elevar-se฀a฀essa฀função.฀O฀texto฀de฀Gregório฀ de฀Tours฀é฀bastante฀claro฀nesse฀sentido:฀Childeberto฀II฀começou฀a฀reinar฀a฀partir฀do฀momento฀em฀que฀foi฀aclamado฀rei฀por฀essa฀assembléia฀ do฀populus90.฀O฀simples฀fato฀de฀se฀proclamar฀filho฀de฀um฀rei฀morto฀ou฀ vivo฀não฀era฀suficiente฀para฀se฀ter฀acesso฀à฀realeza.฀Gondovaldo,฀o฀outro฀ pretendente฀à฀realeza฀entre฀os฀francos฀no฀final฀do฀século฀VI,฀dirigiu-se฀ aos฀habitantes฀da฀cidade฀de฀Comminges฀nos฀seguintes฀termos:฀“Saibam฀ que฀fui฀eleito฀rei฀por฀todos฀aqueles฀que฀estão฀no฀reino฀de฀Childeberto฀e฀que฀ tenho฀comigo฀forças฀consideráveis”91.฀฀ Gondovaldo฀ menciona฀ claramente฀ aqui฀ o฀ procedimento฀ de฀ uma฀ eleição,฀que฀devemos฀entender฀como฀uma฀espécie฀de฀engajamento฀so- 89 ฀Histórias฀III,฀14. ฀Histórias฀V,฀1:฀“Quando฀o฀rei฀Childeberto฀foi฀assassinado฀na฀vila฀de฀Vitry,฀a฀rainha฀Brunehaut฀ residia฀com฀seus฀filhos฀em฀Paris.฀Quando฀a฀notícia฀lhe฀foi฀trazida฀e฀na฀confusão฀que฀lhe฀causavam฀ sua฀dor฀e฀seu฀exílio฀ela฀não฀sabia฀o฀que฀fazer,฀o฀duque฀Gondovaldo,฀tomando฀seu฀filho฀Childeberto฀ que฀era฀uma฀criança,฀o฀sequestra฀secretamente฀e฀após฀tê-lo฀livrado฀de฀uma฀morte฀iminente฀e฀ter฀ reunido฀ os฀ povos฀ sobre฀ os฀ quais฀ seu฀ pai฀ havia฀ reinado,฀ ele฀ o฀ instituiu฀ rei฀ ainda฀ que฀ ele฀ tivesse฀ apenas฀concluído฀o฀primeiro฀ano฀de฀sua฀existência”.฀฀฀฀฀฀฀฀ 91 ฀Histórias฀VII,฀34.฀ 90 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀307 lene฀ do฀ populus฀ ao฀ lado฀ daquele฀ que฀ era฀ considerado฀ por฀ muitos฀ um฀ pretendente฀legítimo฀à฀realeza.฀A฀primeira฀conseqüência฀do฀juramento฀ de฀fidelidade฀é฀que฀ele฀não฀empenhava฀apenas฀os฀súditos฀em฀relação฀a฀ seus฀reis92.฀Esses฀últimos฀também฀se฀engajavam฀em฀relação฀ao฀seu฀povo.฀ Mas฀ qual฀ era฀ o฀ conteúdo฀ desse฀ engajamento?฀ Mundericus฀ exprimiu฀ claramente฀ esse฀ princípio,฀ ao฀ insistir฀ nas฀ conseqüências฀ positivas฀ que฀ podiam฀advir฀para฀aqueles฀que฀o฀seguissem:฀“Sequimini฀me,฀et฀erit฀vobis฀ bene”93.฀Mas฀o฀texto฀não฀permite฀inferir฀o฀conteúdo฀dessa฀“benesse”฀real.฀ Gregório฀de฀Tours฀é฀mais฀explícito฀ao฀mencionar฀o฀juramento฀feito฀pelos฀habitantes฀de฀Tours฀ao฀rei฀Cariberto: Após฀ a฀ morte฀ do฀ rei฀ Clotário,฀ essa฀ população฀ prestou฀ juramento฀ ao฀ rei฀ Cariberto฀e฀este฀igualmente,฀e฀da฀mesma฀forma,฀prometeu฀e฀jurou฀que฀não฀ infligiria฀à฀população฀novas฀leis฀nem฀novos฀costumes,฀mas฀que฀a฀governaria฀ com฀o฀mesmo฀estatuto฀com฀o฀qual฀ela฀tinha฀vivido฀sob฀o฀reinado฀de฀seu฀pai;฀ ele฀se฀comprometia฀a฀não฀lhe฀infligir฀nenhuma฀nova฀imposição฀de฀que฀poderia฀despojá-lo94.฀฀฀ O฀rei฀assume฀o฀compromisso฀de฀governar฀o฀populus฀da฀mesma฀maneira฀como฀ele฀vinha฀sendo฀governado฀por฀Clotário:฀o฀temor฀de฀uma฀ mudança฀no฀exercício฀do฀governo฀é฀explicitamente฀fiscal;฀Cariberto฀jura฀ não฀impor฀novos฀tributos.฀ No฀entanto,฀as฀benesses฀concedidas฀pelo฀rei฀podiam฀assumir฀a฀forma฀ de฀beneficia,฀vantagens฀materiais฀que฀na฀maior฀parte฀das฀vezes฀consistia฀ em฀ terras฀ do฀ fisco,฀ direitos฀ à฀ cobrança฀ de฀ taxas฀ devidas฀ ao฀ poder฀ real฀ou฀à฀participação฀na฀divisão฀do฀butim฀de฀uma฀campanha฀militar.฀ 92 ฀Sobre฀os฀juramentos฀de฀fidelidade฀na฀época฀merovíngia,฀ver฀U.฀Eckardt,฀Untersuchungen฀ zu฀Form฀und฀Funktion฀der฀Treueidleistung฀im฀merowingeischen฀Frankenreich,฀Marburg,฀ 1976;฀D.฀Claude.฀“Königs-฀und฀Untertaneneid฀im฀Westgotenreich”,฀pp.฀358-378;฀E.฀MagnouNortier,฀“Foi฀et฀fidélité.฀Recherches฀sur฀l’évolution฀des฀liens฀personnels฀chez฀les฀Francs฀du฀VIIe฀ au฀IXe฀siècle”,฀pp.฀884-886.฀฀฀ 93 ฀Histórias฀III,฀14.฀ 94 ฀Histórias฀IX,฀30.฀ 308฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média Efetivamente,฀em฀vários฀momentos฀ao฀longo฀do฀século฀VI,฀a฀concessão฀ de฀bens฀materiais฀aparece฀como฀um฀dos฀instrumentos฀do฀exercício฀da฀ autoridade฀real฀entre฀os฀francos.฀Daí฀a฀importância฀para฀um฀príncipe฀ herdeiro฀ de฀ tomar฀ possessão฀ dos฀ tesouros฀ deixados฀ por฀ seu฀ pai.฀ Há฀ muitos฀exemplos฀de฀situações฀em฀que฀a฀fidelidade฀a฀um฀rei฀era฀mantida฀ através฀ da฀ concessão฀ de฀ vantagens฀ materiais,฀ terras,฀ produtos฀ de฀ pilhagem฀etc.฀Quando฀Teuderico฀I฀morreu,฀Clotário฀I฀e฀Childeberto฀I฀ uniram-se฀ contra฀ Teudeberto฀ I฀ e฀ tentaram฀ apoderar-se฀ do฀ regnum฀ de฀ Metz.฀Segundo฀Gregório฀de฀Tours,฀Teudeberto฀somente฀conseguiu฀resistir฀graças฀à฀ação฀dos฀leudes,฀cuja฀fidelidade฀ele฀havia฀garantido฀através฀ de฀presentes95.฀O฀mesmo฀observamos฀quando฀Chilperico,฀após฀a฀morte฀ de฀seu฀pai฀Clotário฀I,฀tomou฀possessão฀do฀tesouro฀real฀e,฀cobrindo฀“os฀ francos฀mais฀influentes”฀de฀presentes,฀os฀submeteu96.฀Gregório฀de฀Tours฀ relata฀também฀que฀Clotário฀I฀e฀Childeberto฀I฀atacaram฀a฀Burgúndia฀e฀ pediram฀a฀ajuda฀de฀seu฀meio-irmão฀Teuderico,฀que฀se฀recusou.฀Os฀francos฀que฀estavam฀sob฀as฀ordens฀de฀Teuderico฀teriam฀então฀manifestado฀ seu฀desacordo฀com฀a฀decisão฀desse฀último,฀e฀ameaçado฀abandoná-lo฀e฀ seguir฀seus฀meios-irmãos฀se฀ele฀não฀o฀fizesse.฀Foi฀somente,฀ao฀prometer฀ enriquecê-los฀ em฀ outros฀ lugares,฀ que฀ Teuderico฀ conseguiu฀ convencer฀ seus฀homens฀a฀não฀partir฀para฀a฀Burgúndia฀e฀a฀permanecer฀fiéis฀a฀ele97.฀ A฀campanha฀de฀Clotário฀I฀contra฀os฀saxões฀degenerou฀em฀uma฀rebelião฀ militar,฀pois฀os฀guerreiros฀queriam฀forçá-lo฀a฀combater฀com฀eles฀contra฀ sua฀vontade98.฀ O฀Edito฀de฀Gontrão฀e฀o฀Edito฀de฀Clotário฀II฀mostram฀que฀as฀obrigações฀do฀príncipe฀para฀com฀seus฀súditos฀passaram฀a฀incluir,฀a฀partir฀ da฀segunda฀metade฀do฀século฀VI,฀o฀cuidado฀com฀as฀viúvas,฀os฀órfãos,฀ a฀manutenção฀da฀paz฀e฀a฀criação฀de฀condições฀para฀a฀salvação.฀É฀nesse฀ contexto฀ que฀ é฀ preciso฀ entender฀ a฀ razão฀ pela฀ qual฀ Gregório฀ de฀ Tours฀ 95 ฀Histórias฀III,฀23.฀ ฀Histórias฀IV,฀22.฀ 97 ฀Histórias฀III,฀11.฀ 98 ฀Histórias฀IV,฀14.฀฀ 96 Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀309 menciona฀a฀utilitas฀publica฀somente฀nos฀últimos฀livros฀das฀Histórias,฀e฀ na฀maior฀parte฀das฀vezes฀quando฀se฀refere฀ao฀reinado฀de฀Gontrão.฀Tratase฀ para฀ ele฀ de฀ marcar฀ o฀ triunfo฀ desse฀ modelo฀ de฀ realeza฀ fundado฀ na฀ participação฀dos฀bispos,฀em฀que฀o฀príncipe฀se฀preocupa฀muito฀mais฀da฀ salvação฀de฀seu฀povo฀do฀que฀da฀promoção฀de฀seus฀próprios฀interesses.฀ Isso฀não฀significa฀que฀os฀reges฀pro฀publicis฀utilitatibus฀não฀existiam฀na฀ Gália฀da฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀ou฀que฀os฀príncipes฀merovíngios฀tenham฀cessado฀de฀conceder฀beneficia฀aos฀grandes.฀É฀o฀conteúdo฀da฀ expressão฀reges฀pro฀publicis฀utilitatibus฀que฀evoluiu฀até฀significar฀igualmente฀–฀e,฀pelo฀menos,฀nos฀escritos฀eclesiásticos,฀sobretudo฀–฀a฀outorga฀ de฀bens฀espirituais:฀a฀garantia฀de฀paz฀e฀de฀justiça,฀condições฀essenciais฀ para฀ a฀ salvação฀ das฀ almas.฀ Isso฀ explica฀ o฀ porquê฀ da฀ sobrevivência฀ da฀ autoridade฀pública฀décadas฀depois฀que฀as฀fontes฀das฀prebendas฀tradicionalmente฀concedidas฀aos฀grandes฀(terras฀do฀fisco,฀butins฀de฀conquista)฀ haviam฀se฀exaurido.฀Com฀efeito,฀os฀Annales฀Mettenses฀Priores,฀uma฀fonte฀ carolíngia฀do฀século฀VIII,฀descrevem฀a฀Assembléia฀dos฀francos,฀ocorrida฀ no฀ano฀de฀692,฀em฀termos฀surpreendentes:฀ “A฀cada฀ano฀nas฀calendas฀de฀março,฀ele฀[Pepino]฀reunia฀um฀concílio฀geral฀ de฀acordo฀com฀os฀costumes฀antigos,฀no฀qual,฀pela฀sua฀reverência฀pelo฀nome฀ do฀rei,฀que฀ele฀havia฀colocado฀acima฀de฀si฀em฀razão฀da฀importância฀de฀sua฀ humildade฀ e฀ clemência,฀ [Pepino]฀ dava฀ ordens฀ para฀ que฀ [o฀ rei]฀ presidisse,฀ enquanto฀oferendas฀eram฀aceitas฀de฀todos฀os฀nobres฀francos,฀engajamentos฀ eram฀feitos฀em฀prol฀da฀paz฀e฀da฀defesa฀das฀igrejas฀de฀Deus,฀órfãos฀e฀viúvas,฀o฀ rapto฀de฀mulheres฀e฀os฀incêndios฀[criminosos]฀eram฀firmemente฀proibidos฀ com฀um฀decreto...” A฀cerimônia฀acima฀descrita฀é฀um฀consilium฀generale,฀reunião฀anual฀ da฀qual฀participavam฀os฀chefes฀das฀mais฀poderosas฀famílias฀da฀aristocracia฀franca,฀que฀eram฀também฀os฀representantes฀do฀poder฀central฀nas฀ diversas฀regiões฀do฀regnum฀Francorum.฀O฀autor฀dos฀Annales฀ressalta฀que฀ em฀razão฀da฀reverência฀devida฀ao฀título฀real,฀Pepino฀II฀(major฀domus฀da฀ Austrásia฀de฀687฀a฀718),฀teria฀permitido฀ao฀rei฀merovíngio฀[cujo฀nome฀ não฀é฀nem฀sequer฀mencionado,฀mas฀que฀se฀trata฀de฀Clovis฀III฀(690-695)]฀ 310฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀presidir฀o฀consilium.฀Mesmo฀que฀seu฀papel฀tenho฀sido฀fundamentalmente฀ritual,฀é฀importante฀notar฀que฀é฀esse฀“rei฀indolente”฀quem฀recebe฀ dos฀“grandes฀ do฀ reino”฀ as฀ garantias฀ de฀ que฀ eles฀ assumem฀ a฀ tarefa฀ de฀ promover฀o฀“interesse฀público”฀–฀que฀compreende฀a฀defesa฀da฀paz,฀das฀ igrejas฀de฀Deus,฀dos฀orfãos฀e฀das฀viúvas.฀Mais฀importante฀ainda,฀as฀medidas฀aprovadas฀na฀assembléia฀estão฀em฀consonância฀com฀o฀espirito฀dos฀ engajamentos฀assumidos฀pelos฀“grandes”.฀Ora,฀os฀Annales฀salientam฀em฀ vários฀momentos฀a฀fraqueza฀dos฀reis฀merovíngios฀diante฀dos฀membros฀ da฀família฀de฀Pepino฀II.฀Menciona-se฀a฀vitória฀de฀Pepino฀II฀em฀Tertry฀ (687)฀e฀também฀a฀maneira฀como฀ele฀conquistou฀o฀principatus,฀inicialmente฀sobre฀a฀Austrásia฀e฀mais฀tarde฀sobre฀todo฀o฀regnum฀Francorum99.฀ Os฀reis฀merovíngios฀são฀mostrados฀como฀meros฀instrumentos฀nas฀mãos฀ do฀major฀domus.฀Clóvis฀III,฀ainda฀que฀tenha฀sido฀tratado฀com฀“honra฀e฀ respeito”,฀é฀um฀prisioneiro฀de฀Pepino฀II.฀Não฀se฀pode,฀portanto,฀acusar฀ os฀Annales฀Mettenses฀de฀simpatia฀pela฀causa฀merovíngia:฀ele฀não฀฀“exagerou”฀ deliberadamente฀ a฀ importância฀ dos฀ príncipes฀ merovíngios฀ no฀ final฀do฀século฀VII.฀Como฀se฀explica฀então฀o฀fato฀que฀esse฀mesmo฀rei฀ desempenha฀um฀papel฀de฀primeira฀ordem฀na฀assembléia฀dos฀Francos?฀ Se฀os฀merovíngios฀conseguiram฀preservar฀o฀título฀real฀durante฀tanto฀ tempo฀em฀face฀do฀poder฀crescente฀do฀major฀domus฀foi฀graças฀à฀missão฀ político-moral฀que฀lhes฀foi฀outorgada฀pelo฀episcopado.฀Eles฀possuíam฀ uma฀função฀precisa฀no฀edifício฀político฀franco:฀exercer฀um฀ministério฀ cristão฀e฀garantir฀através฀dessa฀missão฀o฀“interesse฀público”.฀Ao฀final฀de฀ uma฀evolução฀no฀fundamento฀de฀sua฀autoridade฀que฀teve฀início฀na฀Burgúndia฀do฀século฀VI,฀os฀reis฀francos฀aparecem฀como฀“pastores฀de฀almas”,฀ responsáveis฀ perante฀ Deus฀ pela฀ salvação฀ de฀ seus฀ súditos.฀ Em฀ virtude฀ disso,฀eles฀ainda฀se฀encontravam฀no฀final฀do฀século฀VII,฀no฀topo฀de฀uma฀ hierarquia฀de฀obrigações฀recíprocas.฀฀฀ 99 ฀Annales฀Mettenses฀Priores฀(691),฀p.฀320.฀Ver฀W.฀Levison,฀“Zu฀dem฀Annales฀Mettenses”,฀pp.฀ 474-483;฀P.฀Fouracre,฀R.฀Gerberding,฀“Annales฀Mettenses฀Priores฀(The฀Earlier฀Annals฀of฀Metz)”,฀ In:฀Late฀Merovingian฀France,฀pp.฀350-370. Considerações฀Finais  Um฀ trabalho฀ sobre฀ a฀ realeza฀ na฀ Idade฀ Média฀ coloca฀ necessariamente฀ o฀ problema฀ da฀ conveniência฀ da฀ utilização฀ da฀ noção฀ de฀“Estado”.฀ M.฀ Senellart,฀ em฀ obra฀ que฀ retraça฀ a฀ história฀ do฀ conceito฀ de฀ governo฀no฀Ocidente,฀desde฀a฀Patrística฀até฀o฀século฀XVII,฀acredita฀ que฀ durante฀ a฀Alta฀ Idade฀ Média฀ o฀“governo”฀ existiu฀ independentemente฀do฀Estado.฀Todo฀pensamento฀medieval,฀segundo฀ele,฀a฀partir฀ de฀ Santo฀Agostinho฀ e฀ até฀ o฀ século฀ XIII,฀ foi฀ marcado฀ pela฀ oposição฀ entre฀regere฀(dirigir,฀governar,฀comandar)฀e฀dominar,฀ato฀eminentemente฀tirânico.฀Enquanto฀o฀“governo”฀corresponderia฀a฀um฀fim฀ou฀ a฀uma฀pluralidade฀de฀fins฀exteriores,฀a฀“dominação”฀não฀teria฀outro฀ objetivo฀ que฀ sua฀ própria฀ manutenção.฀ Regere,฀ a฀ atividade฀ de฀ reger,฀ de฀dirigir฀o฀povo฀em฀direção฀a฀um฀horizonte฀escatológico,฀seria฀contrária฀à฀dominação.฀Senellart฀identifica฀em฀Maquiavel฀a฀omissão฀da฀ temática฀do฀governo฀em฀proveito฀de฀uma฀tecnologia,฀violenta฀ou฀hábil,฀da฀dominação.฀No฀período฀medieval,฀pelo฀menos฀até฀São฀Tomás฀ de฀Aquino,฀afirma฀M.฀Senellart,฀o฀rei฀governava฀mais฀do฀que฀reinava,฀ pois฀seu฀título฀dependia฀da฀retidão฀de฀seus฀atos.฀A฀ausência฀da฀noção฀ 312฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média de฀soberania฀do฀corpo฀político฀teria฀privado฀a฀Alta฀Idade฀Média฀de฀ autênticas฀estruturas฀de฀Estado.฀Seria฀necessário฀então฀falar฀em฀“ofício฀do฀governo”฀para฀definir฀as฀realezas฀merovíngia฀e฀carolíngia,฀pois฀ seria฀uma฀noção฀mais฀apropriada฀ao฀estudo฀do฀período฀medieval฀do฀ que฀à฀palavra฀“Estado”,฀que฀além฀disso฀não฀faria฀parte฀do฀vocabulário฀ político฀medieval1.฀ O฀“Estado”฀seria,฀segundo฀M.฀Senellart,฀indissociável฀dessa฀soberania฀ que฀as฀doutrinas฀medievais,฀pelo฀menos฀até฀o฀século฀XIII,฀mais฀preocupadas฀com฀a฀causa฀da฀salvação,฀não฀lhe฀outorgavam.฀Senellart฀desenvolve฀um฀tema฀bastante฀recorrente฀na฀teoria฀política฀do฀século฀XX,฀o฀da฀ “ruptura”฀entre฀o฀pensamento฀político฀medieval฀e฀pensamento฀político฀ moderno.฀Outros฀autores฀antes฀dele,฀historiadores,฀sociólogos฀e฀juristas,฀ adotaram฀a฀mesma฀posição2.฀As฀pesquisas฀levadas฀a฀cabo฀por฀J.-Ph.฀Genet฀e฀por฀sua฀equipe฀sobre฀as฀origens฀do฀Estado฀Moderno฀relativizam฀ as฀posições฀de฀Senellart.฀O฀Estado,฀conforme฀J.-Ph.฀Genet,฀foi฀durante฀ muito฀tempo฀considerado฀um฀organismo฀estranho฀a฀uma฀Idade฀Média฀ vista฀como฀um฀parêntese฀de฀anarquia฀feudal.฀Foi฀nessa฀época,฀segundo฀ Genet,฀que฀os฀aparelhos฀administrativos,฀o฀pessoal฀administrativo,฀assim฀ como฀um฀pensamento฀valorizando฀o฀papel฀do฀príncipe฀como฀fonte฀da฀ lei฀e฀uma฀concepção฀territorial฀do฀poder,฀teriam฀feito฀sua฀aparição.฀Mas฀ essa฀aparição฀seria฀um฀produto฀da฀Idade฀Média฀Tardia.฀O฀Estado฀teria฀ nascido฀entre฀1280฀e฀1360฀quando,฀confrontados฀com฀guerras฀incessan- 1 ฀M.฀Senellart,฀Les฀arts฀de฀gouverner.฀Du฀regimen฀médiéval฀au฀concept฀de฀gouvernement,฀ pp.19-31.฀฀฀ 2 ฀A฀título฀de฀exemplo,฀podemos฀citar฀o฀caso฀de฀L.฀Weckmann.฀Ele฀define฀o฀Estado฀como฀uma฀ categoria฀política฀e฀geográfica฀que฀dispõe฀de฀autonomia฀diante฀dos฀valores฀e฀das฀normas฀sociais฀ e฀é฀capaz฀de฀ser฀a฀fonte฀do฀Direito.฀A฀partir฀dessa฀definição,฀ele฀afirma฀que฀não฀existiu฀Estado฀na฀ Idade฀Média.฀A฀soberania,฀traço฀essencial฀do฀Estado,฀mas฀também฀a฀territorialidade฀estariam฀ ausentes฀do฀“Estado฀medieval”.฀Sua฀existência฀seria฀justificada฀nas฀doutrinas฀cristãs฀unicamente฀pela฀subordinação฀a฀um฀princípio฀absoluto.฀Não฀se฀trataria,฀portanto,฀de฀um฀Estado฀stricto฀ sensu,฀mas฀de฀uma฀abstração,฀um฀meio฀para฀a฀realização฀do฀ideal฀supremo฀da฀Cristandade,฀a฀ realização฀do฀Reino฀de฀Deus฀sobre฀a฀terra฀(L.฀Weckmann,฀El฀pensamiento฀político฀medieval฀y฀ las฀origenes฀del฀derecho฀internacional,฀pp.149-153).฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀313 tes,฀os฀reis฀e฀os฀príncipes฀apelaram฀àqueles฀que฀residiam฀em฀suas฀terras฀ para฀assegurar฀a฀defesa฀e฀a฀proteção฀da฀comunidade3. Apesar฀ do฀ progresso฀ que฀ traz฀ em฀ relação฀ às฀ perspectivas฀ tradicionais,฀a฀posição฀de฀J.-Ph.฀Genet฀reflete฀uma฀opinião฀bastante฀antiga฀na฀ historiografia,฀ segundo฀ a฀ qual฀ a฀ confusão฀ entre฀ o฀ domínio฀ religioso฀ e฀ o฀domínio฀político฀no฀período฀medieval฀é฀um฀contra-senso฀em฀relação฀ ao฀sentimento฀expresso฀pela฀noção฀de฀Estado.฀Sob฀esse฀ponto฀de฀vista,฀ trata-se฀sem฀dúvida฀de฀um฀conceito฀historicamente฀datado,฀um฀produto฀ da฀modernidade฀e฀da฀sociedade฀burocrática.฀O฀problema฀permanece฀em฀ saber฀se,฀primeiramente,฀essa฀confusão฀entre฀o฀“político”฀e฀o฀“religioso”฀ era฀tão฀perfeita฀quanto฀se฀acredita,฀e,฀em฀segundo฀lugar,฀se฀ela฀tornava฀ inconcebível฀o฀ato฀de฀reinar,฀isto฀é,฀a฀capacidade฀do฀príncipe฀de฀tomar฀ decisões฀políticas฀para฀além฀do฀quadro฀estrito฀imposto฀pela฀Igreja฀e฀pelos฀princípios฀morais฀dos฀quais฀os฀bispos฀eram฀os฀porta-vozes. A฀visão฀do฀historiador฀alemão฀K.F.฀Werner฀a฀respeito฀da฀utilização฀da฀ noção฀de฀Estado฀entre฀os฀francos฀é฀mais฀original฀e฀também฀mais฀adequada฀ ao฀estudo฀da฀Alta฀Idade฀Média฀do฀que฀a฀de฀M.฀Senellart.฀Werner฀acredita฀ que฀o฀Estado฀que฀havia฀reconhecido฀o฀cristianismo฀como฀religião฀oficial฀ não฀desapareceu฀com฀as฀invasões฀bárbaras4.฀Ele฀teria฀sobrevivido฀através฀ da฀única฀hierarquia฀política฀legítima฀reconhecida฀pela฀cristandade,฀a฀nobreza,฀e฀através฀do฀princeps,฀termo฀que฀designaria฀o฀chefe฀e฀o฀verdadeiro฀ fundador฀do฀Estado,฀e฀teria฀se฀encarnado฀no฀Regnum5.฀K.F.฀Werner฀emprega฀o฀termo฀“Estado”฀como฀sinônimo฀de฀uma฀entidade฀à฀qual฀serviam฀ agentes฀que฀exerciam฀uma฀função฀que฀se฀designa฀hoje฀como฀“ofício”฀ou฀ “função฀pública”.฀Isso฀não฀significa฀que฀as฀diferenças฀entre฀K.F.฀Werner฀ 3 ฀Ver฀J.-Ph.฀Genet,฀Etat฀moderne:฀genèse,฀bilans฀et฀perspectives,฀especialmente฀p.261.฀ ฀K.F.฀Werner฀não฀é฀o฀único฀a฀sustentar฀que฀a฀noção฀de฀res฀publica฀não฀desapareceu฀com฀a฀ chegada฀dos฀bárbaros.฀Essa฀idéia฀é฀também฀sustentada฀por฀L.฀Genicot฀(“Sur฀la฀survivance฀de฀la฀ notion฀d’Etat”,฀p.฀162฀e฀ss.),฀e฀Y.฀Saissier฀(“L’utilisation฀d’un฀concept฀romain฀aux฀temps฀carolingiens:฀la฀res฀publica฀aux฀IXe฀et฀Xe฀siècles”,฀pp.฀17-29).฀฀฀฀ 5 ฀K.F.฀Werner,฀“L’historien฀et฀la฀notion฀d’Etat”,฀pp.฀29-41;฀ver฀também,฀do฀mesmo฀autor,฀Naissance฀de฀la฀noblesse,฀pp.฀145-186.฀฀฀฀฀฀฀ 4 314฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média e฀ M.฀ Senellart฀ possam฀ ser฀ resumidas฀ na฀ seguinte฀ fórmula:฀ um฀ acredita฀ que฀o฀conceito฀de฀“Estado”฀se฀esconde฀atrás฀do฀termo฀Regnum,฀enquanto฀ o฀outro฀฀pensa฀que฀a฀ausência฀do฀termo฀“Estado”฀nas฀fontes฀medievais฀ torna฀inexata฀toda฀referência฀a฀um฀tal฀conceito.฀Há฀nesses฀dois฀autores฀ duas฀perspectivas฀distintas฀sobre฀a฀matriz฀da฀sociedade฀política฀moderna.฀ M.฀Senellart฀outorga฀muito฀mais฀importância฀do฀que฀K.F.฀Werner฀à฀teoria฀ política฀de฀Maquiavel฀ou฀de฀Hobbes:฀é฀neles฀que฀seria฀necessário฀buscar฀a฀ gênese฀do฀fenômeno฀estatal.฀O฀procedimento฀de฀K.F.฀Werner฀consiste฀em฀ buscar฀os฀termos฀dos฀séculos฀IV฀ao฀XVI฀para฀descobrir฀as฀origens฀romanas฀e฀cristãs฀do฀Estado.฀Werner฀não฀acredita฀que฀o฀Estado฀moderno฀tenha฀ nascido฀ao฀se฀desvincular฀das฀idéias฀políticas฀elaboradas฀pelas฀doutrinas฀ cristãs,฀mas฀ao฀secularizá-las6.฀Pode-se฀aproximar฀as฀opiniões฀de฀K.F.฀Werner฀da฀obra฀de฀um฀jurista฀que฀a฀segunda฀metade฀do฀século฀XX฀aprendeu฀a฀ detestar,฀C.฀Schmitt.฀Ele฀estimava฀que฀os฀conceitos฀hegemônicos฀da฀teoria฀ política฀moderna฀do฀Estado฀eram฀conceitos฀secularizados7.฀É฀essa฀mesma฀ perpectiva฀“genealógica”฀que฀inspira฀K.F.฀Werner,฀e฀que฀se฀opõe฀à฀perspectiva฀“evolucionista”฀de฀M.฀Senellart.฀O฀problema฀com฀a฀interpretação฀de฀ M.฀Senellart฀é฀que฀ele฀distingue฀radicalmente฀o฀conceito฀de฀“governo”฀do฀ fenômeno฀da฀“dominação”.฀O฀governo฀cristão,฀tal฀como฀vimos฀ao฀longo฀ deste฀trabalho,฀é฀uma฀forma฀de฀dominação฀cuja฀legitimidade฀está฀na฀realização฀de฀uma฀obra฀escatológica.฀Entretanto,฀isso฀não฀retira฀em฀nada฀seus฀ atributos฀“estatais”,฀tais฀como฀a฀capacidade฀em฀impor฀um฀certo฀número฀ de฀leis฀a฀uma฀população฀habitando฀um฀espaço฀determinado,฀ou฀ainda฀a฀ existência฀ de฀ um฀ corpo฀ de฀ funcionários฀ organizado฀ em฀ torno฀ do฀ rei฀ e฀ cujo฀objetivo฀era฀a฀realização฀do฀interesse฀público,฀qualquer฀que฀fosse฀o฀ conteúdo฀desse฀último.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ À฀questão฀“a฀Gália฀merovíngia฀conheceu฀um฀Estado?”,฀pode-se฀responder฀afirmativamente,฀sem฀se฀cair฀num฀anacronismo.฀A฀utilização฀do฀ 6 ฀Ibid.,฀p.฀36฀:฀“Quando฀o฀inglês฀Thomas฀Peine฀deu฀aos฀americanos,฀em฀revolta฀contra฀a฀coroa,฀a฀justificativa฀de฀sua฀ação,฀ele฀prova฀pela฀Bíblia฀que฀não฀foi฀Deus฀quem฀desejou฀a฀realeza,฀mas฀sim฀os฀judeus฀ que฀pediram฀a฀Ele฀para฀terem฀reis฀como฀os฀pagãos!฀Ele฀[Thomas฀Peine]฀destruiu฀assim฀a฀construção฀ de฀uma฀monarquia฀pela฀graça฀divina฀e฀de฀uma฀nobreza฀elevada฀ao฀seu฀nível฀pelos฀reis”.฀฀฀฀฀฀฀฀฀฀ 7 ฀C.฀Schmitt,฀Théologie฀politique,฀p.46.฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀315 conceito฀de฀Estado฀não฀está฀livre฀de฀problemas.฀Trata-se฀de฀um฀termo฀ ligado฀por฀demais฀ao฀“Estado-Nação”.฀K.F.฀Werner฀tenta฀resolver฀o฀problema฀utilizando฀o฀termo฀de฀“Estado฀cristão”.฀A฀atitude฀de฀Werner฀deve฀ ser฀compreendida฀pela฀sua฀vontade฀em฀reabilitar฀um฀período฀durante฀ muito฀ tempo฀ desconsiderado฀ pelos฀ historiadores.฀ Daí฀ a฀ utilização฀ da฀ noção฀de฀Estado฀para฀sublinhar฀o฀caráter฀estável,฀elaborado฀e฀eficaz฀do฀ poder฀político฀sob฀os฀merovíngios.฀Se,฀ao฀longo฀deste฀trabalho,฀o฀termo฀ “Estado”฀não฀foi฀sistematicamente฀utilizado฀para฀caracterizar฀a฀realeza฀ merovíngia,฀é฀que฀a฀noção฀de฀“autoridade฀pública”฀nos฀parece฀mais฀bem฀ adaptada฀a฀este฀estudo฀sobre฀a฀realeza฀franca.฀Essa฀noção,฀ao฀evocar฀a฀ noção฀de฀legitimidade,฀lembra฀que฀o฀fundamento฀do฀poder฀político฀se฀ encontra฀ na฀ realização฀ de฀ um฀ certo฀ número฀ de฀ deveres฀ em฀ benefício฀ daqueles฀ que฀ se฀ governa.฀Assim,฀“autoridade฀ pública”฀ traduz,฀ de฀ uma฀ maneira฀mais฀eficaz฀que฀o฀conceito฀de฀“ofício฀de฀governo”,฀o฀significado฀ da฀palavra฀regere,฀que฀na฀Gália,฀a฀partir฀da฀segunda฀metade฀do฀século฀VI,฀ significa,฀muito฀mais฀do฀que฀governar,฀conduzir฀à฀salvação.฀฀฀ Neste฀ trabalho,฀ procuramos฀ identificar฀ os฀ diversos฀ significados฀ da฀ expressão฀utilitas฀publica฀na฀Gália฀entre฀os฀séculos฀V฀e฀VII.฀O฀principal฀ problema฀com฀o฀qual฀somos฀confrontados฀é฀o฀fato฀de฀que฀essa฀expressão฀ não฀aparece฀nas฀fontes฀da฀história฀franca฀até฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀ VI.฀A฀primeira฀vez฀que฀isso฀ocorre฀é฀em฀uma฀carta฀enviada฀pelos฀bispos฀ do฀Concílio฀de฀Paris,฀de฀573,฀ao฀bispo฀Egidius฀de฀Reims,฀sob฀a฀forma฀ ligeiramente฀ nuançada฀ de฀ causis฀ publicis8.฀A฀ expressão฀ traduz฀ então฀ a฀ vontade฀dos฀bispos฀conciliares฀de฀se฀ocuparem฀do฀interesse฀geral.฀Todavia,฀nada฀é฀dito฀no฀mesmo฀documento฀sobre฀uma฀eventual฀preocupação฀ da฀autoridade฀real฀pela฀utilitas฀publica.฀Já฀nos฀escritos฀de฀Gregório฀de฀ Tours,฀esta฀frase฀aparece฀associada฀à฀realeza.฀Por฀outro฀lado,฀os฀preceitos฀ e฀os฀editos฀reais฀não฀a฀mencionam.฀Isso฀parece฀corroborar,฀à฀primeira฀ vista,฀a฀opinião฀de฀P.฀Geary,฀para฀quem฀os฀clérigos฀foram฀os฀únicos,฀durante฀o฀período฀merovíngio,฀a฀conservar฀a฀noção฀de฀res฀publica,฀isto฀é,฀ o฀“interesse฀geral”,฀em฀oposição฀aos฀príncipes,฀que฀teriam฀permanecido฀ 8 ฀Paris฀IV฀(573),฀Epistola฀synodi฀ad฀Egidium฀Remensem฀episcopum,฀p.฀147.฀ 316฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média presos฀aos฀seus฀interesses฀pessoais.฀Seria฀fácil฀deduzir฀então฀que฀realeza฀ merovíngia฀era฀uma฀monarquia฀patrimonial,฀e฀que฀o฀poder฀exercido฀por฀ seus฀reis฀não฀tinha฀nenhum฀dos฀atributos฀de฀uma฀“autoridade฀pública”.฀ Toda฀ a฀ primeira฀ parte฀ deste฀ livro฀ procurou฀ mostrar฀ que,฀ mesmo฀ se฀ a฀ expressão฀utilitas฀publica฀não฀é฀explicitamente฀evocada฀pelas฀fontes฀merovíngias฀da฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀ainda฀assim฀é฀possível฀identificar฀no฀governo฀franco฀dessa฀época฀o฀sentido฀do฀“interesse฀público”฀ que฀não฀se฀confunde฀com฀os฀interesses฀pessoais฀dos฀reis.฀Essa฀percepção฀ sobre฀os฀objetivos฀e฀a฀natureza฀da฀realeza฀foi,฀mesmo฀no฀início฀do฀século฀ VI,฀a฀principal฀fonte฀de฀legitimidade฀dos฀príncipes฀merovíngios.฀฀฀฀ É฀impossível฀compreender฀a฀existência฀de฀uma฀noção฀de฀“autoridade฀ pública”฀na฀Gália฀merovíngia฀nas฀primeiras฀décadas฀do฀século฀VI฀sem฀ se฀referir฀às฀relações฀entre฀os฀francos฀e฀o฀Império.฀É฀através฀da฀atitude฀ dos฀francos฀para฀com฀o฀legado฀político฀de฀Roma฀que฀é฀necessário฀entender฀o฀lugar฀e฀as฀prerrogativas฀da฀autoridade฀real฀na฀Gália.฀Vimos฀que฀a฀ ascensão฀de฀Clóvis฀como฀governador฀da฀província฀da฀Bélgica฀Segunda฀ não฀pode฀ser฀considerada฀como฀um฀marco฀do฀fim฀da฀romanidade฀no฀ Ocidente.฀Bem฀mais฀do฀que฀Syagrius,฀o฀fundador฀do฀Reino฀dos฀Francos฀ foi฀o฀continuador฀da฀política฀de฀cooperação฀com฀o฀Império฀cristão.฀É฀ verdade฀que฀se฀tratava,฀na฀época฀de฀Clóvis,฀de฀relações฀mais฀teóricas฀que฀ reais,฀pois฀o฀reconhecimento฀da฀superioridade฀hierárquica฀do฀Império฀ não฀correspondia฀à฀uma฀dominação฀efetiva฀do฀imperador฀sobre฀a฀Gália.฀ Entretanto,฀ a฀ independência฀ de฀ fato฀ da฀ qual฀ se฀ beneficiava฀ o฀ Regnum฀ Francorum฀ em฀ relação฀ ao฀ Império฀ Romano฀ não฀ significa฀ que฀ os฀ reis฀ merovíngios฀ detivessem฀ sua฀ autoridade฀ em฀ razão฀ de฀ um฀ puro฀ direito฀ de฀conquista.฀O฀recurso฀sistemático฀aos฀títulos฀e฀aos฀símbolos฀romanos฀ mostra฀que฀a฀legitimidade฀real฀nesse฀período฀era฀indissociável฀de฀uma฀ identificação฀ com฀ o฀ Império.฀ É฀ necessário฀ sublinhar฀ que฀ os฀ príncipes฀ francos฀ não฀ se฀ contentaram฀ em฀ retomar฀ alguns฀ legados฀ romanos.฀ Do฀ ponto฀ de฀ vista฀ funcional,฀ era฀ a฀ solução฀ mais฀ evidente,฀ devido฀ ao฀ fato฀ que฀os฀francos฀estavam฀integrados฀ao฀mundo฀romano฀há฀pelo฀menos฀ dois฀séculos,฀e฀também฀porque฀eles฀não฀tinham฀alternativas฀às฀construções฀institucionais฀legadas฀pelo฀Império.฀Esses฀príncipes฀se฀esforçaram฀ também฀em฀tornar฀pública฀sua฀filiação฀ao฀sistema฀político฀romano.฀Eles฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀317 estavam฀provavelmente฀conscientes฀que฀sua฀legitimidade฀seria฀mais฀eficazmente฀consolidada฀se฀fossem฀capazes฀de฀aparecer฀diante฀de฀seus฀súditos฀galo-romanos฀como฀os฀fiéis฀continuadores฀de฀um฀estado฀de฀coisas฀ ao฀qual฀esses฀últimos฀ainda฀se฀sentiam฀profundamente฀ligados. Nesse฀sentido,฀seria฀um฀equívoco฀subestimar฀a฀capacidade฀dos฀reis฀ merovíngios฀em฀reformular฀a฀herança฀política฀romana.฀A฀polêmica฀entre฀ “germanistas”฀e฀“romanistas”฀obscureceu฀durante฀muito฀tempo฀as฀características฀originais฀do฀edifício฀político฀franco.฀O฀Regnum฀Francorum฀foi฀ freqüentemente฀apresentado฀como฀o฀resultado฀de฀uma฀ruptura฀em฀relação฀ao฀passado฀romano฀e฀latino,฀isto฀é,฀um฀puro฀produto฀da฀conquista฀ da฀Gália฀pelo฀povo฀franco.฀O฀excesso฀inverso฀consistia฀em฀apresentar฀a฀ Gália฀ franca฀ como฀ a฀ simples฀ transposição฀ de฀ Roma.฀ A฀ reapropriação฀ dos฀símbolos฀políticos฀romanos,฀como฀a฀titulatura฀ou฀a฀cunhagem฀de฀ moedas,฀são฀alguns฀dos฀aspectos฀mais฀importantes฀dessa฀capacidade฀dos฀ reis฀em฀se฀apropriar฀do฀legado฀romano,฀dando-lhe฀um฀sentido฀por฀vezes฀ distinto฀do฀original.฀A฀cerimônia฀de฀Tours฀foi฀um฀momento฀privilegiado฀ em฀que฀percebemos฀que฀os฀governantes฀francos฀eram฀perfeitamente฀capazes฀de฀interpretar฀os฀símbolos฀e฀a฀titulatura฀romanos฀e฀especialmente฀ de฀utilizá-los฀em฀seu฀favor,฀supondo,฀como฀parece฀ter฀sido฀o฀caso,฀que฀ o฀título฀de฀augustus฀seja฀o฀produto฀de฀uma฀iniciativa฀dos฀francos฀que฀ia฀ além฀daquilo฀que฀Anastácio฀tinha฀outorgado฀a฀Clóvis.฀Sob฀Teudeberto฀I,฀ a฀política฀de฀imitatio฀imperii฀atingiu฀seu฀ponto฀culminante.฀O฀rei฀franco฀ não฀ se฀ satisfazia฀ mais฀ somente฀ em฀ retomar฀ a฀ titulatura฀ e฀ os฀ símbolos฀ romanos,฀mas฀reivindicava฀além฀disso฀uma฀soberania฀sobre฀o฀Ocidente.฀Os฀territórios฀que,฀numa฀carta฀ao฀imperador,฀ele฀afirmava฀dominar,฀ bem฀como฀suas฀campanhas฀na฀Itália฀e฀a฀cunhagem฀de฀moedas฀com฀sua฀ imagem,฀ mostram฀ um฀ rei฀ persuadido฀ de฀ ser฀ um฀ igual฀ do฀ imperador฀ romano,฀pelo฀menos฀no฀que฀se฀refere฀ao฀Ocidente.฀฀ A฀ ligação฀ atávica฀ com฀ a฀ romanidade฀ teve฀ conseqüências฀ sobre฀ a฀ autoridade฀ dos฀ reis฀ merovíngios,฀ não฀ apenas฀ no฀ que฀ diz฀ respeito฀ à฀ continuidade฀das฀estruturas฀políticas,฀mas฀também฀no฀que฀se฀refere฀à฀ sobrevivência฀da฀noção฀de฀“interesse฀público”.฀Essa฀noção,฀no฀início฀do฀ século฀VI,฀ traduzia,฀ sobretudo,฀ uma฀“razão฀ de฀ Estado”,฀ em฀ que฀ estava฀ em฀jogo฀a฀perenidade฀da฀monarquia,฀a฀manutenção฀da฀paz,฀a฀manuten- 318฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média ção฀de฀um฀poder฀central฀efetivo฀e฀capaz฀de฀se฀sobrepor,฀com฀maior฀ou฀ menor฀ sucesso,฀ às฀ lógicas฀ ou฀ às฀ estruturas฀ concorrentes,฀ tais฀ como฀ as฀ solidariedades฀familiares฀tradicionais฀ou฀ainda฀o฀poder฀eclesiástico.฀O฀ domínio฀no฀qual฀essa฀noção฀de฀utilitas฀publica฀é฀mais฀discernível฀nessa฀ primeira฀metade฀do฀século฀VI฀é฀o฀das฀relações฀com฀os฀bispos.฀Em฀face฀ao฀ episcopado,฀os฀príncipes฀francos฀da฀primeira฀metade฀do฀século฀VI฀não฀ cessaram฀de฀tentar฀impor฀à฀Igreja฀um฀diktat฀que฀é฀possível฀qualificar฀de฀ “constantiniano”.฀A฀convocação฀por฀Clóvis฀do฀I฀Concílio฀de฀Orléans,฀em฀ 511,฀no฀qual฀até฀mesmo฀as฀questões฀discutidas฀foram฀estabelecidas฀por฀ ele,฀bem฀como฀suas฀numerosas฀ingerências฀nas฀nomeações฀dos฀bispos,฀ era฀conseqüência฀desta฀noção฀segundo฀a฀qual฀a฀realeza฀era฀o฀epicentro฀ do฀Regnum฀Francorum.฀Por฀outro฀lado,฀a฀influência฀política฀dos฀bispos,฀ construída฀a฀partir฀de฀sua฀autoridade฀moral฀e฀do฀papel฀que฀desempenhavam฀ na฀ administração฀ das฀ cidades,฀ não฀ cessou฀ de฀ se฀ ampliar฀ no฀ decorrer฀ dos฀ séculos฀V฀ e฀VI,฀ a฀ ponto฀ de฀ ameaçar฀ as฀ prerrogativas฀ da฀ realeza฀e฀de฀seus฀representantes฀nas฀cidades.฀O฀exemplo฀mais฀radical฀de฀ uma฀política฀deliberadamente฀voltada฀para฀a฀diminuição฀da฀influência฀ dos฀bispos฀está฀no฀reinado฀Chilperico.฀฀ As฀partilhas฀do฀Regnum฀Francorum฀constituem฀um฀momento฀privilegiado฀ em฀ que฀ se฀ pode฀ observar฀o฀ choque฀entre฀uma฀ lógica฀de฀ organização฀ de฀ espaço฀ que฀ é฀ própria฀ à฀ autoridade฀ real฀ –฀ que฀ pretendia฀ criar฀relações฀de฀interdependência฀entre฀os฀diversos฀reinos฀oriundos฀das฀ partilhas,฀e฀ao฀mesmo฀tempo฀permitir฀a฀viabilidade฀de฀cada฀um฀desses฀ reinos,฀freqüentemente฀em฀detrimento฀da฀geografia฀eclesiástica฀da฀Gália฀ –฀e฀uma฀outra,฀a฀lógica฀da฀Igreja,฀ou฀melhor฀do฀episcopado฀–฀que฀pretendia฀preservar฀a฀totalidade฀dos฀bispados฀e฀das฀possessões฀eclesiásticas.฀O฀ fato฀de฀que฀os฀príncipes฀merovíngios฀não฀se฀curvaram฀às฀admoestações฀ dos฀bispos฀nesses฀assuntos,฀como฀mostram฀os฀repetidos฀protestos฀desses฀ últimos฀nos฀cânones฀e฀nas฀cartas฀escritas฀aos฀reis฀durante฀os฀concílios,฀é฀ um฀excelente฀indicador฀da฀existência฀de฀uma฀“autoridade฀pública”฀independente฀do฀poder฀eclesiástico. O฀século฀VI฀constitui฀um฀período฀crucial฀na฀evolução฀da฀monarquia฀ franca,฀que฀podemos฀definir฀como฀uma฀mudança฀no฀sentido฀da฀utilitas฀ publica.฀ É฀ inicialmente฀ nas฀ exortações฀ dos฀ bispos฀ merovíngios฀ que฀ se฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀319 pode฀ observar฀ esse฀ fenômeno.฀ O฀ exercício฀ do฀ poder฀ político฀ está฀ freqüentemente฀associado฀à฀idéia฀de฀“interesse฀geral”.฀Trata-se,฀aliás,฀de฀um฀ tema฀recorrente฀do฀pensamento฀político฀ocidental.฀A฀especificidade฀das฀ reflexões฀dos฀bispos฀católicos฀sobre฀esse฀tema฀está฀na฀estreita฀associação฀ que฀esses฀últimos฀fizeram฀entre฀a฀utilitas฀publica฀e฀a฀realização฀de฀um฀ bem฀espiritual.฀Os฀príncipes฀merovíngios฀eram฀os฀principais฀destinatários฀das฀admoestações฀dos฀clérigos:฀eles฀eram฀chamados฀pelos฀bispos฀a฀ participar฀da฀construção฀da฀Jérusalem฀terrestre.฀O฀rei฀merovíngio฀aparece฀nas฀epístolas฀de฀Remígio,฀de฀Avitus฀e฀de฀Aureliano,฀bem฀como฀nos฀ poemas฀de฀Fortunato,฀como฀um฀verdadeiro฀pastor฀tendo฀por฀função฀auxiliar฀na฀salvação฀das฀almas.฀É฀evidente฀que฀as฀exortações฀episcopais฀são฀ por฀si฀sós฀incapazes฀de฀explicar฀a฀emergência฀da฀Realeza฀Cristã฀entre฀os฀ merovíngios.฀Para฀tanto,฀era฀ainda฀necessário฀que฀a฀autoridade฀real฀fosse฀ “permeável”฀à฀idéia฀do฀governo฀cristão฀tal฀como฀os฀bispos฀a฀elaboraram.฀ É฀nesse฀sentido฀que฀o฀período฀das฀guerras฀civis฀é฀essencial. Boa฀parte฀dos฀exemplos฀que฀serviram฀para฀atestar฀o฀caráter฀despótico฀da฀realeza฀merovíngia฀provém฀dos฀últimos฀livros฀das฀Histórias,฀que฀ tratam฀ do฀ período฀ das฀ guerras฀ civis.฀ Esse฀ período฀ está฀ saturado,฀ mais฀ do฀que฀qualquer฀outro,฀pelos฀excessos฀cometidos฀pelas฀facções฀em฀luta.฀ A฀Gália฀merovíngia฀conheceu฀a฀prática฀da฀eliminação฀física฀dos฀adversários,฀mas฀não฀mais฀do฀que฀a฀Roma฀de฀Sila฀–฀que฀institucionalizou฀a฀ eliminação฀física฀como฀arma฀na฀luta฀política.฀No฀Regnum฀Francorum,฀ o฀período฀compreendido฀entre฀561฀e฀613,฀foi฀marcado฀mais฀do฀que฀os฀ anos฀ precedentes฀ pela฀ utilização฀ da฀ força฀ como฀ instrumento฀ de฀ conquista฀e฀de฀manutenção฀do฀poder฀em฀todos฀os฀níveis.฀Entretanto,฀essa฀ violência฀não฀pode฀ser฀vista฀como฀uma฀característica฀estrutural฀do฀sistema฀político฀merovíngio.฀Contrariamente฀ao฀que฀se฀poderia฀pensar,฀o฀período฀das฀guerras฀civis฀foi฀prolífico฀para฀a฀autoridade฀real:฀em฀primeiro฀ lugar,฀assistiu-se฀à฀derrota฀dos฀últimos฀partidários฀da฀realeza฀imperial;฀ em฀segundo,฀houve฀um฀aumento฀considerável฀da฀influência฀dos฀bispos,฀ inicialmente฀na฀Burgúndia฀e฀em฀seguida฀em฀todo฀o฀Reino฀dos฀Francos.฀ Os฀ bispos฀ da฀ Gália฀ puderam,฀ através฀ das฀ prerrogativas฀ que฀ lhes฀ eram฀ reconhecidas฀pelo฀poder฀real,฀especialmente฀a฀partir฀do฀reinado฀de฀Gontrão,฀ interferir฀ de฀ maneira฀ decisiva฀ nos฀ assuntos฀ do฀ reino.฀A฀ segunda฀ 320฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média metade฀do฀século฀VI฀é฀o฀momento฀privilegiado฀em฀que฀os฀concílios฀merovíngios฀se฀tornaram฀uma฀instituição฀política฀além฀de฀uma฀instituição฀ eclesiástica.฀ Eles฀ foram฀ uma฀ das฀ fontes฀ mais฀ importantes฀ da฀ Realeza฀ Cristã.฀Durante฀a฀primeira฀metade฀do฀século฀VI,฀os฀reis,฀à฀maneira฀dos฀ imperadores฀cristãos,฀convocavam฀os฀concílios฀e฀até฀ditavam฀aos฀bispos,฀ como฀foi฀o฀caso฀de฀Clóvis,฀as฀questões฀a฀serem฀discutidas฀durante฀essas฀ assembléias฀eclesiásticas.฀Uma฀vez฀mergulhados฀nas฀guerras฀civis,฀os฀reis฀ merovíngios,฀Gontrão฀e฀em฀seguida฀Clotário฀II,฀recorreram฀aos฀concílios฀como฀instrumento฀de฀regulamentação฀dos฀conflitos฀e฀de฀afirmação฀ de฀sua฀autoridade.฀Nos฀concílios฀do฀final฀do฀século฀VI฀e฀do฀início฀do฀ século฀ VII,฀ os฀ bispos฀ não฀ se฀ contentavam฀ em฀ discutir฀ as฀ questões฀ de฀ organização฀interna฀da฀Igreja;฀eles฀eram฀chamados฀a฀tomar฀partido฀nas฀ disputas฀que฀envolviam฀os฀príncipes,฀ou฀ainda฀para฀julgar฀aqueles฀que฀ esses฀últimos฀consideravam฀como฀traidores.฀ A฀autoridade฀real฀tornou-se฀cada฀vez฀mais,฀a฀partir฀do฀final฀do฀século฀ VI,฀impregnada฀dos฀preceitos฀cristãos.฀Não฀se฀tratava,฀no฀entanto,฀de฀um฀ movimento฀linear.฀Não฀se฀pode฀separar฀radicalmente฀a฀“Realeza฀Constantiniana”฀e฀a฀“Realeza฀Cristã”.฀Vários฀fatores฀as฀aproximam.฀Remígio,฀ o฀ defensor฀ do฀ papel฀ constantiniano฀ do฀ rei,฀ é฀ o฀ mesmo฀ que฀ sustentou฀ pela฀ primeira฀ vez฀ a฀ responsabilidade฀ do฀ príncipe฀ na฀ salvação฀ de฀ seus฀ súditos.฀Essa฀idéia,฀que฀ampliava฀o฀papel฀atribuído฀à฀realeza฀para฀além฀ de฀suas฀atribuições฀tradicionais,฀somente฀pôde฀nascer฀em฀um฀ambiente฀ constantiniano,฀onde฀o฀rei฀ocupava฀um฀lugar฀de฀destaque฀na฀Igreja฀e฀na฀ condução฀dos฀assuntos฀eclesiásticos.฀Um฀bom฀exemplo,฀nesse฀sentido,฀ é฀ Eusébio฀ de฀ Cesaréia.฀ Em฀ seu฀ De฀ laudibus฀ Constantini,฀ ele฀ defende฀ a฀idéia฀de฀que฀o฀imperador฀participa฀da฀salvação฀de฀seus฀súditos.฀Mas฀ há฀ uma฀ diferença฀ essencial฀ entre฀ os฀ dois฀ modelos฀ de฀ realeza,฀ o฀ que฀ é฀ definido฀por฀Eusébio฀e฀aquele฀que฀é฀defendido฀por฀Remígio฀em฀sua฀carta฀ a฀Clóvis.฀A฀originalidade฀do฀modelo฀de฀realeza฀de฀Remígio฀é฀que฀ele฀veio฀ acompanhado฀da฀noção฀de฀que฀os฀príncipes฀devem฀escutar฀os฀conselhos฀ dos฀bispos.฀ A฀ cristianização฀ da฀ noção฀ de฀ utilitas฀ publica฀ não฀ deu฀ aos฀ reis฀ merovíngios฀ o฀ sentido฀ do฀ interesse฀ público฀ que฀ eles฀ não฀ possuíam.฀ Em฀ outras฀palavras,฀eles฀não฀se฀tornaram฀reges฀pro฀publicis฀utilitatibus฀sob฀ Marcelo฀Cândido฀da฀Silva฀฀฀฀321 a฀influência฀dos฀bispos.฀Eles฀já฀o฀eram฀sob฀Clóvis,฀sob฀Teudeberto฀ou฀ sob฀Chilperico,฀ainda฀que฀os฀bispos,฀a฀começar฀por฀Gregório฀de฀Tours,฀ se฀recusassem฀a฀admiti-lo.฀Sob฀a฀influência฀do฀episcopado,฀foi฀apenas฀ o฀ conteúdo฀ dessa฀ noção฀ que฀ se฀ transformou,฀ assumindo฀ progressivemente฀um฀sentido฀próximo฀ao฀que฀havia฀sido฀estabelecido฀pelos฀autores฀ cristãos฀do฀século฀VI.฀Mas฀a฀cristianização฀da฀utilitas฀publica฀não฀significou฀apenas฀a฀integração฀da฀necessidade฀de฀auxilio฀à฀salvação฀entre฀as฀ obrigações฀tradicionais฀do฀príncipe,฀tais฀como฀o฀auxílio฀aos฀pobres฀e฀aos฀ fracos.฀É฀também฀a฀estratégia฀para฀realizar฀essa฀missão฀providencial฀que฀ se฀modificou:฀a฀participação฀dos฀bispos฀tornou-se฀a฀espinha฀dorsal฀dessa฀ nova฀percepção฀do฀interesse฀público.฀ Contrariamente฀ao฀que฀afirmava฀L.฀Halphen,฀os฀carolíngios฀não฀“ressuscitaram”฀ a฀ idéia฀ de฀ res฀ publica฀ através฀ da฀ noção฀ cristã฀ de฀ que฀ o฀ poder฀está฀ao฀serviço฀moral฀e฀espiritual฀da฀coletividade.฀Esse฀é฀um฀legado฀ merovíngio.฀Ao฀olhar฀com฀admiração฀a฀obra฀dos฀governantes฀carolíngios฀ dos฀séculos฀VIII฀e฀IX,฀a฀historiografia฀contemporânea฀esqueceu฀o฀quanto฀ Pepino,฀o฀Breve,฀e฀Carlos฀Magno฀foram฀tributários฀da฀experiência฀merovíngia.฀A฀influência฀da฀monarquia฀visigótica,฀ou฀ainda฀a฀do฀monaquismo฀ irlandês,฀sobre฀a฀realeza฀carolíngia฀atraiu฀mais฀a฀atenção฀dos฀historiadores฀ que฀ a฀ influência฀ de฀ sua฀ predecessora,฀ mais฀ próxima,฀ cultural,฀ geográfica฀e฀politicamente.฀Clóvis฀e฀seus฀herdeiros฀não฀podem฀ser฀considerados฀ como฀ simples฀ chefes฀ de฀ bandos฀ de฀ guerreiros฀ que฀ governaram฀ por฀ um฀ simples฀direito฀de฀conquista.฀Seria฀um฀grave฀equívoco฀considerar฀a฀realeza฀merovíngia฀como฀um฀parêntese฀de฀totalitarismo฀e฀de฀barbárie฀entre฀ o฀Império฀cristão฀dos฀romanos฀e฀o฀Império฀cristão฀dos฀carolíngios.฀฀Tal฀ foi,฀no฀final฀das฀contas,฀o฀objetivo฀principal฀deste฀trabalho:฀tentar฀mostrar฀ que฀a฀unção฀de฀Pepino,฀o฀Breve,฀não฀esteve฀na฀origem฀da฀cristianização฀da฀ monarquia฀franca฀e฀que฀a฀época฀carolíngia,฀contrariamente฀ao฀que฀afirma฀ R.฀Mckitterick,฀não฀foi฀o฀palco฀da฀primeira฀edificação฀de฀uma฀sociedade฀ cristã฀ verdadeiramente฀ digna฀ desse฀ nome.฀ É฀ necessário฀ reconhecer฀ que฀ boa฀parte฀da฀historiografia฀européia฀desde฀o฀final฀do฀século฀XIX฀pintou฀ um฀quadro฀excessivamente฀sombrio฀da฀realeza฀merovíngia.฀No฀entanto,฀ este฀trabalho฀não฀teve฀por฀objetivo฀substituir฀a฀“lenda฀negra”฀que฀cerca฀ Clóvis฀e฀seus฀descendentes฀por฀uma฀espécie฀de฀“lenda฀dourada”,฀sedutora฀ 322฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média por฀sua฀novidade,฀mas฀igualmente฀tendenciosa.฀Trata-se฀somente฀de฀salientar฀que,฀pelo฀menos฀no฀que฀diz฀respeito฀à฀Realeza฀Cristã,฀sem฀Clóvis,฀ Carlos฀Magno฀teria฀sido฀inconcebível.฀฀ Nova฀Viçosa,฀julho฀de฀2006.฀ Referências฀Bibliográficas  Abreviações฀utilizadas฀nas฀referências฀bibliográficas: AASS฀:฀Acta฀Sanctorum฀quotquot฀toto฀urbe฀coluntur,฀1643-1894,฀70฀vols. 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Agradecimentos  Ao฀ final฀ deste฀ trabalho,฀ não฀ poderia฀ deixar฀ de฀ expressar฀ minhas฀ gratidão฀para฀com฀todos฀aqueles฀que฀de฀uma฀forma฀ou฀de฀outra฀contribuíram฀ para฀ a฀ sua฀ realização.฀ Ao฀ CNPq฀ ฀(Conselho฀ Nacional฀ do฀ Desenvolvimento฀ Cientifico฀ e฀ Tecnológico),฀ que฀ concedeu฀ a฀ bolsa฀ de฀ estudos฀que฀tornou฀possível฀minha฀estadia฀em฀Lyon฀entre฀1997฀e฀2002.฀ Ao฀meu฀orientador,฀Jacques฀Chiffoleau,฀e฀também฀aos฀professores฀Marcel฀Pacaut,฀Denis฀Menjot฀e฀Nicole฀Bériou.฀A฀Dominique฀Augerd,฀Nicole฀ Dusserre฀ e฀ Anne-Marie฀ Weil,฀ pelo฀ tempo฀ e฀ pela฀ atenção฀ que฀ me฀ dispensaram฀na฀“Unité฀Mixte฀de฀Recherches฀–฀Histoire฀et฀Archéologie฀des฀ Mondes฀Chrétiens฀et฀Musulmans฀Medievaux”฀(UMR฀5648).฀Aos฀professores฀Martin฀Heinzelmann,฀Jean฀Durliat฀e฀Alain฀Stoclet,฀pela฀leitura฀de฀ alguns฀capítulos฀e฀pelas฀sugestões.฀Aos฀meus฀colegas฀do฀Departamento฀ de฀História฀da฀USP,฀pela฀acolhida฀em฀São฀Paulo.฀Às฀minhas฀professoras฀ do฀Departamento฀de฀História฀da฀UFMG,฀Beatriz฀Ricardina,฀Carla฀Anastasia,฀ Cristina฀ Campolina฀ e฀ Eliana฀ Dutra,฀ pelo฀ incentivo฀ inestimável.฀ Ao฀Daniel฀e฀à฀Ana฀Maria,฀a฀família฀que฀encontrei฀em฀Belo฀Horizonte,฀ e฀a฀Frédérique,฀Claude,฀Nicolas฀e฀Olivier,฀minha฀família฀de฀Metz.฀Aos฀ 362฀฀ ฀A฀realeza฀cristã฀na฀Alta฀Idade฀Média amigos,฀Norberto,฀Solange,฀Sara,฀Ana฀Paula,฀Mônica,฀Íris,฀Milton,฀Didier฀ e฀Rossana.฀À฀Néri฀e฀à฀Marina,฀que฀têm฀sido฀tão฀importantes฀em฀todos฀os฀ momentos฀e฀cujas฀vidas฀espero฀poder฀compartilhar฀nos฀anos฀que฀virão.฀ Finalmente,฀ aos฀ meus฀ pais฀ e฀ ao฀ meu฀ irmão,฀ que฀ dividiram฀ comigo฀ o฀ peso฀das฀distâncias฀impostas฀pelos฀imperativos฀desta฀pesquisa.