ST7: Pretensões disciplinares e desafios
Seminários Temáticos
Antropologia à deriva ou os mil descaminhos para uma investigação que visa
saber-menos sobre o outro
Luciano von der Goltz Vianna1
Resumo: O presente trabalho objetiva produzir uma reflexão sobre os limites da
etnografia através das injunções e disjunções entre teorias do conhecimento “nativas” e
“antropológicas”. Um dos caminhos para alcançar esse objetivo é sugerir a possibilidade
de aliar uma não delimitação de um locus de pesquisa com a não “utilização” do método
etnográfico. Enquanto uma hesitação metodológica, e no “lugar” dessa dupla recusa,
proponho alguns descaminhos que poderiam conduzir “à deriva” essa investigação
antropológica; ou seja, a especular e deslocar-se por diferentes tempos|espaços sem
constituir um objeto de pesquisa. Para isso proponho algumas junções teóricometodológicas que viabilizem “múltiplas realidades” (Law) na produção de saberes em
Antropologia. Mais precisamente, essa será uma investigação na qual se perguntará:
como se pode saber-menos sobre um outro? Esse seria um “saber” que atingiria a
consistência de sua suficiência ao ser produzido pelos meios (como “equivocação” e
“deslumbramento”) com que uma alteridade se “estabelece” em uma dada relação
parcial e “imprevisível”. Portanto, essa pesquisa trata de questões “metodológicas”
sobre os modos de produzir conhecimento em Antropologia ao realizar pesquisa
empírica especulativa com/através dos meios|caminhos que os sujeitos e objetos dessa
mesma pesquisa se utilizam para “saber” sobre algo e sobre a própria Antropologia. Por
isso, a ideia é que não haja “sujeitos-objetos” (Latour) centrais ou definidos
previamente pelo pesquisador, mas sim co-definidos com os primeiros ao longo do
processo de criação e operacionalização do modo de investigação aqui construído. O
dispositivo de “controle” da aleatoriedade dessa especulação metodológica será uma
forma de autoanálise crítica dos pressupostos|convicções (retropredação) pelos quais
essa pesquisa se tornou viável, o qual teria como objetivo tornar menos “intensa” a
“vontade de saber” sobre um outro. Ao longo da pesquisa será buscada também uma
postura politico-filosófica em relação ao empreendimento disciplinar antropológico de
pensar a diferença, ou uma zoepolítica.
Palavras-chave: etnografia, teorias do conhecimento, ontologias.
O presente artigo especula sobre um modo de investigação em Antropologia
diferente do “método etnográfico”. Ele teria como objetivo central supor que seja
possível, nessa mesma pesquisa, “rejeitar” a “metodologia etnográfica” com os mesmos
argumentos que Alfred Whitehead elaborou sobre o funcionamento da razão na ciência.2
1
2
Doutorando no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social pela Universidade Federal de
Santa Catarina.
“Não há qualquer interesse que ultrapasse o alcance do método. De fato, essa última afirmação é por
demais limitada. Existe um interesse ativo em restringir a curiosidade aos limites estabelecidos pelo
método. Qualquer malogro desse interesse provoca um ressentimento emocional. Todo empirismo se
esvanece. A melhor possibilidade de se proceder a uma pesquisa mais ampla estaria em que tal
pesquisa apresentasse, ela própria, uma proposta de um método mais abrangente” (WHITEHEAD,
1985 p. 10).
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O motivo principal desta rejeição está na aparente “condição geral” de produção das
atuais etnografias: para escrever uma (“boa”) etnografia é preciso equacionar uma
agenda|projeto político, com um pensamento|consciência crítica aliado a uma
ascendente curiosidade etnográfica, que por sua vez será comparada ou equiparada com
as cosmologias|teorias|ontologias|curiosidades dos outros (e seus respectivos projetos e
agendas políticas). Por fim, e com essas características em mãos, é preciso redigir um
trabalho conciso e coerente chamado tese, dissertação, paper etc...
As conjecturas que aqui apresento têm como desafio não recair em três
“estilos” de debate sobre essa “condição geral” ou sobre as práticas e saberes
antropológicos: epistemologia da Antropologia, história da Antropologia ou
antropologia da Antropologia. O objetivo central dessa investigação seria questionar
sobre a possibilidade de uma ciência estudar algo sem tê-lo predefinido ou delimitado
previamente ao trabalho de campo “em si”. Ou seja, para isso seria preciso ter o frágil
pressuposto de que nenhum local, grupo, “objeto” ou mundo é “privilegiado”, mais
importante ou mais interessante que os outros a serem pesquisados. Sua fragilidade
estaria na “necessidade” de “propor” um descaminho para essa investigação que vise
deslocar-se|desvencilhar-se de seus pressupostos|convicções|persuasões|crenças3 indo
em direção a um modo de saber-menos sobre os outros e seus mundos (importando
menos quem estuda, ou quem está sendo estudado, e mais como se estuda, como se sabe
sobre algo).4 Esse termo, “saber-menos”, tem duplo sentido: o ato de saber cada vez
menos sobre algo e um saber menor, fraco ou de pouca intensidade. Para cunhar tal
termo/conceito é preciso visivelmente “valorizar” a diferença por meios contraintuitivos. Ele também seria uma prerrogativa para se tomar na pesquisa um
3
4
Os tipos de pressupostos que falo aqui são os mesmos citados por Paul Feyerabend: “Trata-se, em
todos os casos, de pressupostos abstratos e altamente discutíveis que dão forma à nossa concepção do
mundo, sem se tornarem acessíveis a uma crítica direta. Em geral, nem sequer nos damos conta desses
pressupostos e só lhes reconhecemos os efeitos quando nos defrontamos com uma cosmologia
inteiramente diversa: os preconceitos são descobertos graças a contraste e não graças à análise. O
material de que o cientista dispõe, inclusive suas mais elaboradas teorias e suas técnicas mais
refinadas, estrutura-se de modo exatamente idêntico” [...] “Ora, como nos seria possível examinar algo
de que nos estamos valendo o tempo todo? Como analisar, para lhes apontar os pressupostos, os
termos em que habitualmente expressamos nossas observações mais simples e diretas? Como, agindo
como agimos, descobrir a espécie de mundo que pressupomos? A resposta é clara: não podemos
descobrir o mundo a partir de dentro. Há necessidade de um padrão externo de crítica: precisamos de
um conjunto de pressupostos alternativos ou, uma vez que esses pressupostos serão muito gerais,
fazendo surgir, por assim dizer, todo um mundo alternativo, necessitamos de um mundo imaginário
para descobrir os traços do mundo real que supomos habitar (e que, talvez, em realidade não passe de
outro mundo imaginário)” (1977, p. 42 e 43).
“Vai contra a intuição tentar distinguir o que vem dos 'observadores' do que vem do 'objeto', pois a
resposta óbvia é 'deixar-se levar'. Objeto e sujeito talvez existam; mas tudo o que interessa acontece a
montante e a jusante. Apenas siga a corrente” (LATOUR, 2012 p. 339).
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posicionamento nominalista, ou seja, anti-universalista e anti-generalista. No entanto,
ele seria um conceito provisório, já que pretenderia radicalizar acontecimentos no
trabalho de campo, desenrolados por sentimentos relacionados com o elogio a diferença
e a transformação (como, por exemplo, compaixão, piedade, igualdade, otimismo,
liberdade e solidariedade). A suposição desse exercício de auto-escrutínio seria
encontrar um tipo paradoxal de “romantismo niilista” na “escolha” e delimitação prévia
do objeto de pesquisa a ser explicado e compreendido. Essa postura não teria vontade de
mudar uma coisa qualquer, mas sim de aceitar|acreditar em todos os acontecimentos
transformadores do mundo (ou um vitalismo imanentista). A busca pelo/por sabermenos é, portanto, uma busca objetiva que não se contra-efetua em relação a um sabermais. Sua objetividade se justifica pela obstinação em encontrar um saber que seja
“suficiente” para duas ou mais pessoas poderem “conviver juntas”. Mas nesse conviver,
não são apenas as “regras de convivência” que funcionam para uma coexistência ser
consistente, também é o que faz essa convivência poder ser contrastante, perturbadora e
conflituosa. Saber-menos seria uma “arte da contínua interrogação” (CALAVIA SÁEZ,
2013 p.149) que abdica e substitui a narrativa sobre algo. A ideia central desse conceito
não conformaria, portanto, nem uma “quietude” intelectual, ou um “não-saber” (mas
talvez partiria dessa “condição”), nem uma perturbação dissonante; mas sim
corresponderia a uma produção de saber tão disciplinarmente rigorosa que se tornaria
uma transvaloração, descaminho, ou uma “rebelião contra o modelo do relato”
(CALAVIA SÁEZ, 2013 p. 191) ao “optar” pelo estilo argumentativo de escrita. E claro,
há uma pressuposição explícita aqui: saber sobre algo é saber sobre o que há fora, a
partir dos modos de saber sobre si (ou uma alopoiese). Com isso, esse “algo” tende
sempre a ser totalizante, cumulativo, externo e real; um objeto passivo de ser “predado”
pelo modo como se sabe sobre si. Essa proposta conceitual (saber-menos) tem íntima
relação com o conceito de “predação ontológica” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007) que
tenderia a ser utilizado tanto como um “verbo” quanto como um idioma. Em tal
pesquisa “fictícia”5 ele não apenas seria um conceito teórico, ideologia, relação
comensal, nutritiva ou alimentar. É também uma semântica das socialidades (que,
5
Dadas as atuais condições de “produção científica”, não seria viável transforma-la em um trabalho
acadêmico do tipo “tese de doutorado”. Embora diversos elementos, referências, estratégias de
pesquisa e mesmo “um pouco” do modo de investigação aqui inventado poderão compor minha
pesquisa de doutorado, eles, por enquanto, não passam de especulações insustentáveis por si sós (ou
seja, enquanto um experimento empírico) diante dos protocolos e exigências acadêmicas e
institucionais (ou pelo menos penso que o leitor chegará a mesma conclusão até o final desse artigo).
Portanto, a proposta aqui contida não é um “resumo” de meu projeto de pesquisa de doutorado, o qual
tem um tema, um objeto e um locus delimitados.
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portanto, obriga qualquer coisa existir apenas em-relação à outra coisa). Por outro lado,
parece haver, em uma relação de/por predação, uma ontologia em suspensão que
objetiva, vez por outra, o sucesso, a conquista, o êxito sobre um outro, e que por isso
“visa” (ou “necessita”) saber-sempre-mais sobre esse outro. Portanto, “predação” talvez
seja um conceito capaz de maximizar a ideia de que fazer uma pesquisa antropológica é
o mesmo que defrontar-se com suas próprias fronteiras, com o que não lhe convêm,
com a alteridade radical e suas “reversibilidades” (WAGNER, 2010); assim como
desdobra e é desdobramento da perturbação decorrente do processo ininterrupto de
duvidar|questionar|encontrar, a si, aos outros, ao saber6 e aos seus modos de produção e
teorias do conhecimento.
Nesse sentido, a pesquisa que especula sobre um saber-menos, aqui sugerida,
não poderia estabelecer qualquer “recorte” ou delimitação do “real”, dos “temas” ou dos
“objetos da pesquisa”, já que a definição do que é “real” é imprescindível para se
produzir métodos e teorias que visam saber sempre mais sobre algo. A incoerência e
impossibilidade maior estão presentes no efeito dessa definição de real: teorias e
métodos “servem” para descobri-lo no mesmo local e pelos mesmos meios com que ele
foi inventado. Por isso seria preciso compor um “modo de investigação” que produzisse
uma mixórdia entre as teorias dos outros e as “teorias antropológicas”. Ele visa, em um
primeiro momento, produzir “múltiplas realidades” (LAW, 2004) irredutíveis a Um
Real. Mas, em um segundo momento, teria de perguntar-se: seria possível fazer
etnografia sem qualquer teoria ou abstração?7 Na atual multiplicação de trabalhos
monográficos, que se utilizam do “método etnográfico, haveria um retorno a histórica
“fobia” a abstração? Ou seria possível fazer Antropologia sem “explicar” nada? Em
quais circunstâncias o método etnográfico poderia “errar”? Se a resposta for “ele nunca
pode errar”, mas sim ser sempre mais “completo” e “rico”, então a compreensão do real
que ele promove é igualmente mais rica, interessante e completa? Para se chegar a essa
conclusão (ou na de que o saber antropológico é irredutivelmente diferente dos demais)
6
7
Feyerabend sugere alguns modos de investigação da “maquinaria” científica produtora de
conhecimento ou a “atividade” do cientista: “De duas maneiras pode ser estudada essa atividade.
Podemos tentar estabelecer requisitos ideais de conhecimento e de aquisição de conhecimento e
procurar construir maquinaria (social) que obedeça a esses requisitos.” [...] Que seria a investigação
dos epistemólogos. Mas haveria outra modo de “estudar” a Ciência, ou uma investigação que, “de
outra parte, teria de examinar a maneira como os cientistas realmente lidam com a circunstância, teria
de examinar a forma real de seu produto, a saber, ‘conhecimento’, e a maneira como esse produto se
altera, em consequência de ações e decisões ocorridas em complexas condições sociais e materiais.
Em uma palavra, a investigação teria de ser antropológica” (FEYERABEND, 1977 p. 386).
Pensando que teoria pode ser uma “grade negativa, vazia e relativista, que nos permite não sintetizar
os ingredientes do social no lugar do ator” (LATOUR, 2012 p. 317).
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é necessário ter um conhecimento de fundo8 que seja suficientemente “relevante” para
alcançar essa compreensão “singular”. No entanto, como em qualquer “necessidade” de
compreender ou “lógica da explicação”9, saber sempre “mais” e “melhor” é fonte de
matéria-prima para se compreender cada vez mais. Compreender seria então, dessa
perspectiva, um ato de “devoração” insaciável, situacional e parcial10. Seguindo essa
“lógica”, fazer Antropologia é igual a fazer Etnografia, ou o mesmo que lançar um
ponto de vista sobre o que é “realidade”, no singular ou no plural. O que legitima esse
ponto de vista, como não apenas um dentre outros, é a equação entre “experiência” e
“descrição treinadas” por métodos comparativos “rigorosos”. Essa equação torna
equivalentes diversos binômios usados instrumentalmente na Antropologia: real versus
ficção|virtual; pluralismo versus monismo; objetividade versus subjetividade; exótico
versus familiar e crença versus dúvida|incerteza. Tendo essas equivalências latentes na
produção etnográfica, penso que a construção de um objeto de pesquisa não explicita
uma relação (imanente ou transcendental) entre duas situações díspares e correlatas (do
tipo eu e o outro), mas sim explicita um recorte arbitrário da realidade, negligenciando
e eclipsando a força dos pressupostos que definem o outro, o real ou as ontologias.
A suposição sobre o modo de investigar esboçado aqui teria de produzir uma
inversão da relação entre teoria e empiria: não existem muitas teorias para pensar um
objeto (ou objetos com características “em comum”), mas sim existem muitos objetos
heterogêneos para pensar e multiplicar teorias (experiência não seria algo passível de
ser “desperdiçado” por que todas elas multiplicam-se em mais teorias sobre
8
9
10
Conhecimento para Feyerabend é “antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e,
talvez, até mesmo incomensuráveis), onde cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito que
seja parte do todo força as demais partes a manterem articulação maior, fazendo com que todas
concorram através desse processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência”
(1977, p. 41). Para ele, portanto, um conhecimento atinge sua suficiência quando está em prol do
“desenvolvimento de nossa consciência”. Mas saber o suficiente sobre algo, em Antropologia, faz
dessa ciência um conjunto de teorias sobre esse mesmo “algo”, descrevendo-o sem contextualiza-lo ou
compara-lo com nenhum outro homólogo “algo”? Minha pergunta é: encontrar essa suficiência pela
mesma via a que o outro encontrou-a pode expor os objetivos, convicções e “lutas” contidas na
antropologia em busca dessa suficiência? Ou seja, esse exercício poderia evocar a seguinte pergunta
do outro para nós: se faz Antropologia em prol de que? Em resumo, essa questão (como afirmou
Feyerabend) expõe as discrepâncias entre as teorias e os fatos e pergunta-se sobre o que fazer com as
mesmas.
“A lógica da explicação comporta, assim, o princípio de uma regressão ao infinito: a reduplicação das
razões não tem jamais razão de se deter. O que detém a regressão e concede ao sistema seu
fundamento é, simplesmente, que o explicador é o único juiz do ponto em que a explicação está, ela
própria, explicada” (RANCIÈRE, 2002 p. 18).
“Tal como o tempo, o sistema explicador se alimenta de seus próprios filhos, aos quais devora à
medida que são produzidos; uma nova explicação, um novo aperfeiçoamento nascem e morrem em
seguida, para dar lugar a milhares de outros [...]” (RANCIÈRE, 2002 p. 133).
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experiência)11. Portanto, esse modo de investigar visaria desdobrar as epistemologias
dos outros sobre as nossas. Isso talvez permitirá que “outras ontologias” possam
“apresentar” suas teorias sobre como um conhecimento é produzido. Esse modo de
investigação de uma Antropologia à deriva surge quando os métodos|técnicas
etnográficos não podem mais “dar conta”12 de explicar, compreender ou interpretar
objetos “intraduzíveis”13. Em geral, o método etnográfico tem se voltado para o
“mergulho” do pesquisador em um “universo de pesquisa”. Contudo, para que essa
“imersão” seja efetiva é necessário que o antropólogo realize sua investigação em um
período longo de tempo e em espaços pré-determinados pelo “recorte do universo de
pesquisa”. A seguir haveria o último passo da pesquisa, ou explicar essa imersão e as
experiências vividas pelo pesquisador com os outros (e as dos outros) com conceitos,
11
12
13
No entanto, a experiência não corrobora a validade da multiplicidade irredutível das teorias e nem de
cada pormenor de cada teoria. Cada experiência contém uma ou mais teorias, um método e um ou
mais conceitos sobre o conhecimento. Como afirma Feyerabend, o êxito de uma teoria, na ciência, é
mensurado através dos dados e dos fatos: “examinar o princípio em pormenor concreto significa traçar
as consequências das contra-regras que se opõem a algumas regras comuns do empreendimento
científico. Para ter ideia dessa forma de operação, consideremos a regra segundo a qual é a
‘experiência’ ou são os ‘fatos’ ou são os ‘ resultados experimentais’ que medem o êxito de nossas
teorias, a regra segundo a qual uma concordância entre a teoria e os ‘dados’ favorece a teoria (ou não
modifica a situação), ao passo que uma discordância ameaça a teoria e nos força, por vezes, a eliminála. Essa regra é elemento importante de todas as teorias da confirmação e da corroboração. É a
essência do empirismo. A ‘contra-regra’ a ela oposta aconselhamos a introduzir e elaborar hipóteses
que não se ajustam a teorias firmadas ou a fatos bem estabelecidos. Aconselha-nos a proceder contraindutivamente” (1977, p. 39). O conceito de retropredação seria uma contra-indução, mas sempre
duplicada sobre si mesma já que seria “essencialmente” especulativa e auto-destrutiva. Ele seria uma
espécie de força motriz de um sistema contra-saber, com frágeis engrenagens. O empirismo, diante
dele, não poderia ser mais do que uma “esteira de montagem” do conhecimento onde se multiplica, se
acumula e deslumbra-se com os fatos por ela criados. Feyerabend (falando sobre os desejos do
empirista) ainda exemplifica: “O cientista interessado em conseguir o máximo conteúdo empírico,
desejando compreender tantos aspectos de sua teoria quantos possível, adotará metodologia pluralista,
comparará as teorias com outras teorias e não com ‘experiências’, ‘dados’ ou ‘fatos’ e tentará antes
aperfeiçoar do que afastar concepções que aparentemente não resistem à competição” (1977, p. 67).
Utilizo aqui esse termo nos seus dois sentidos, “se dar conta” (“consciência”.) e “dar conta de”
(rendimento e aplicabilidade de algo). Estaria “por trás” desse termo ideias como a de progresso,
produtividade e eficiência. Evidenciar esses pressupostos em uma pesquisa antropológica teria a
intenção de tornar perceptível as contra-produtividades e as ineficiências que um conceito, teoria ou
técnica de pesquisa poderia ter quando desejasse saber-menos; ou falo aqui das fragilidades dos
modos de pensar conceitos como natureza, cultura e diferença quando os outros dos outros se
“intrometem” (pervertendo-os ao grau máximo de infirmidade) intensivamente em nossas
epistemologias. A cada “algo” que se pode “dar conta” pela Antropologia, restaria a pergunta sobre
quais as debilidades dadas ao sentido de produtividade e eficiência da epistemologia (que opera esse
“rendimento” sobre o outro) quando os atritos e conflitos de alteridade irresolvíveis ocorrem
recorrentemente na pesquisa de campo? Esse seria um problema “pós-moderno” (sobre autoria, estilos
de escrita ou interpretação) ou uma questão politico-epistemológica? O que poderia afirmar seria que
essa última questão antecede a escrita de uma etnografia e é resultado de uma noção de rendimento
sobre o outro, ou seja, que se utilizou dos “insights” e das teorias dos outros como matéria-prima para
alcançar um grau excelente de explicação e compreensão do “que é ser” um nativo X ou Y de acordo
com suas noções A ou B de rendimento.
Tradução se refere (no sentido usado aqui), ao que Latour chamou de “conexão que transporta
transformações”; tradução é “uma relação que não transporta causalidade, mas induz dois mediadores
a coexistência” (LATOUR, 2012 p. 160).
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imaginação, curiosidade, subjetividade, criatividade e chaves de análise suficientemente
eficientes para que a interpretação dali produzida seja relevante ou singular. Mas nessa
etapa da pesquisa poderia perguntar: o que aconteceria se os interlocutores da pesquisa
fossem os principais produtores dos conceitos com que se explicaria essas mesmas
experiências? Em outras palavras, essas seriam as “teorias nativas”, e/ou conceitos
êmicos, “entrando em ação” com maior força explicativa do que as antropológicas. Essa
ação deriva de uma suposição: a de que a coexistência de heterogêneos e a
fragmentação de uma lógica sobre o que é cognição são efeitos da recusa ao
denominador comum produzido pelo “avanço da ciência”. Esse denominador, ou o
“saber legítimo” com estatuto provisório de verdade, é condicionado por uma
convenção científica sobre o ato de saber: a “livre concorrência de ideias” (baseado no
duplo e concomitante exercício de crer na dúvida e duvidar da crença) que objetiva o
melhoramento, aperfeiçoamento e acúmulo de saber especializado. Mas essa “recusa”
acrescenta outras perguntas: e se todas as ideias/teorias fossem “levadas a sério”?14 E se
não tivéssemos que “escolher”, experenciar, classificar e descrever informações dos
outros para serem processadas, catalogadas e estruturadas em/por teorias? E se todos os
cientistas explicitassem suas motivações, alianças políticas, pressupostos morais e
filosóficos sobre seu fazer? O modo de fazer antropologia à deriva, esboçado nesse
artigo, teria como recusa primeira não “responder” essas questões mas sim insistir na
prática de “confundir” (não-explicar) as possíveis respostas que poderia compor, a fim
de produzir descaminhos para essa investigação. Um dos modos de produzi-los seria
absorver ou predar um sentido|direção multiplicando-o e confundindo-o por apropriação
com suas identidades, unidades, naturezas e modos de existência. Mas como ter acesso
a esses modos de existir (e as suas “imanências”)? Existiria um caminho seguro, reto,
expresso e efetivo em direção à compreensão do real? Para uma investigação que
visasse saber-menos só poderiam haver descaminhos nessa direção. Um descaminho é
produzido ao se apagar todas as referências, pistas ou sinais que poderiam levar alguém
a um destino exato e claro ou a definir o modo de existência que produziu esses mesmos
sinais. Como em uma neblina permanente, não haveria possibilidade de estabelecimento
14
Essas perguntas podem ser vistas como desdobramentos dessas: “poderíamos prever uma ciência
social capaz de levar a serio seres que induzem pessoas a agir? Poderá a sociologia se tornar empírica
no sentido de respeitar a estranha natureza daquilo que é 'dado à existência', como fazem os zoólogos
em seus zoológicos e os botânicos em seus herbários? Conseguiremos traçar conexões de um ser não
social a outro, em vez de substituir todas as entidades que povoam o mundo por algum ersatz feito 'de'
material social? Simplificando: terá a ciência social um objeto real para estudar?” (LATOUR, 2012 p.
337 grifos do autor).
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de uma coerência/foco direto entre os elementos imprevisíveis que surjam no trajeto ou
percurso descaminhado. De forma mais direta, esse é um meta-método que pode
multiplicar a imponderabilidade do trabalho de campo ao “aderir|embarcar” nos
percursos mais “tortuosos” e sinuosos que não pretendem chegar a Um Lugar e que não
conduzam a pesquisa para um destino-saber final.15 Nesse sentido, um descaminho não
ratifica nem retifica uma teoria e sim produz outras teorias. É preciso, para isso, fazer a
investigação “se perder”, transviar-se, contradizer-se, arruinar-se, desvairar-se ou
descaminhar-se16. Essa empreitada niilista só poderia interessar a quem não tem “nada a
defender”, e por isso nada a competir ou a comparar, mas por isso mesmo não se exime
de ter intenção, pressupostos e valores (não-defesa, não-competição), e com isso
“vontade de nada” (posicionamento) para com uma condição ou situação (nesse caso, a
acadêmica). Em outros termos, isso é o mesmo que forçar uma antropologia ex-nihilo a
ser a pedra de toque dessa antropologia à deriva17. Tendo em vista essas condições, a
intenção nessa pesquisa é de “fazer-valer”, em um mesmo argumento, sentidos e pontos
de vista heterogêneos. “Fazer-valer” (diferente de “dar conta”) é por em ação uma
15
16
17
Bruno Latour foi uma referência central usada para pensar sobre esse conceito (descaminho).
Parafraseando seu texto diria que: 'A Antropologia foi prejudicada pelo preconceito de que existe um
locus privilegiado no domínio social em que o saber é "concreto". Todavia, se o saber não é local,
então não pertence a um lugar especifico; é disseminado, variado, múltiplo, deslocado, verdadeiro
quebra-cabeça tanto para os analistas quanto para os atores’ […] 'Por todos esses motivos, o que não
se deve estabelecer logo de inicio é a escolha de um locus privilegiado onde o saber por ventura seja
mais abundante' (2012 p. 94 e 96, a paráfrase trocou o termo ação por saber, Sociologia por
Antropologia e suprimiu alguns exemplos). Mas com qual argumento se sustenta a escolha posterior
de um “locus previlegiado”? Seria possível nunca escolhe-lo? Em que isso implicaria para a
continuidade da produção antropológica (ou mesmo acadêmica em geral) com base no método
etnográfico?
“Se perder” seria outro modo de tentar investigar algo com uma teoria tão frágil (ou seja, altamente
falseável pelas teorias dos outros) que ao mínimo contado com a diferença se dissolveria em
fragmentos de experiência: “a experiência aparece acompanhada de pressupostos teóricos e não antes
deles; e a experiência sem teoria é tão incompreensível quanto, (supostamente) a teoria sem
experiência: eliminemos parte do conhecimento teorético de um ser senciente e teremos pessoa
completamente desorientada e incapaz de realizar a mais simples das ações” (FEYERABEND, 1977,
p. 263). A intenção contida nessa desorientação forçada da pesquisa aqui projetada seria a de testá-la e
mensurá-la em uma série de procedimentos metodológicos que pudessem levá-las ao seu desgaste e a
sua obsolescência e não necessariamente a sua “incompreensibilidade”. Com a abdicação dos
conceitos que essa experiência teórica trabalhou (creio eu) estaria aberta uma zona de
descomprensibilidade pragmática (estado do não-saber o que fazer) na qual as teorias do
conhecimento dos outros poderiam vir a atuar como um “reforço” dessa mesma zona.
Lembrando que deriva, como substantivo e verbo, significa perda ou não controle, movimento sem
vontade ou energia, desviar ou correr, nascer ou relacionar algo a sua origem e gerar uma palavra de
outra. Ser ou estar Nômade e estar à deriva, ou derivar, não são sinônimos, já que nomadizar se refere
ao que “deseja” mover-se (ou o ser que se posiciona de forma alóctone em um território), ao que
precisa andar; ao que não está somente sob os efeitos e vontades de forças externas, como o vento ou
as marés. As duas palavras juntas dão, de forma quase exata, o sentido que desejo dar a esse modo de
investigação à deriva: junção|disjunção concomitante de/entre continuidade e descontinuidade, de
forças internas e externas, vontade de ação e “inércia entrópica”, de desejo e irredutibilidade pelo/do
imponderável. John Law se utiliza de termos semelhantes para falar sobre os fluxos e
imprevisibilidades em geral (“mess”) ocorridas em uma pesquisa de campo (LAW, 2004).
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política que “trata” os “actantes” enquanto potências de ação-em-relação. Teríamos
com isso um universo|multidão permeado de seres com “potência de agir”. Ele estaria
densamente povoado sob a regra “universal” em que todos precisam viver juntos, que
para os gregos era denominado como zoé ( ou uma “zoé politiké”, AGAMBEN, 2004).
Mas investigar de acordo com essas suposições poderia ser chamada (“ainda”)
de
“ciência”
antropológica?
Paul
Feyerabend
define
ciência
enquanto
um
“empreendimento essencialmente anárquico”. Mas essa é uma anarquia “positiva”, que
não inibe o progresso; sua única lei é “tudo vale” (1977 p. 9). Para ele a ciência não
pode ser sempre coerente, precisa trabalhar também contra-indutivamente. O conceito
que tento esboçar aqui (retropredação) tem íntima relação com o processo anárquico
(ou melhor, dadaísta) da contra-indução. Por outro lado, pergunto-me sobre a
possibilidade de, ao “chocar” as teorias do conhecimento “científicas” com as teorias do
conhecimento “nativas” (e suas respectivas epistemologias), encontrar um saber
(produto negativo desse choque) que não seja um processo de produção de
conhecimento, nem por multiplicação nem por adição (que não seja um “progresso”
para nenhuma das duas teorias). Uma saída para esse dilema seria essa: ao ser levado
tudo a sério, ou seja, sem possibilidade de generalização sobre qualquer coisa, se pode
inventar qualquer caminho de aproximação não-comparativa entre as diversas perguntas
e respostas sobre/desse “tudo”. Para cada pesquisador que leve qualquer coisa a sério
temos apenas a multiplicidade irredutível de combinações e composições teóricometodológicas que objetivam compor um todo coerente (“dar ordem ao mundo”): uma
tese a ser defendida ou um argumento central sobre um tema qualquer. Mas, além disso,
esse “todo coerente” também pode transformar-se numa incomensurável rede de
“múltiplas realidades” (LAW, 2004). E essa rede pode ser um meio para se chegar a
conexões imparciais (em referência as “conexões parciais” de Strathern [2014])
efetuadas em uma “entre-realidade” chamada “trabalho de campo”. Logo, poderia dizer
que lançar um ponto de vista sobre o mundo é resultado do ato disciplinar e protocolar
de se estabelecer um “objeto” e “tema” de pesquisa previamente a pesquisa de campo.
Essa objetividade irá precisar, posteriormente, criar um lugar|estado de exceção no qual
se poderá “negociar” as realidades ou a definir o que é|está em-comum para poder
descrever sobre essa experiência de estar “entre” mundos. Essa parece ter sido (ao meu
ver) a invenção de grande interesse aos antropólogos(as) e não (necessariamente) aos
outros pesquisados; embutido no em-comum estão todas as convicções de que a
Antropologia pode ser uma ciência social contributiva, ou (até) mesmo intervencionista,
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dando “sugestões” de ação ao mesmo “social” que ela inventou e “reagregou”.
Fundamentalmente ela, então, poderia ajudar a “melhorar o mundo”, torná-lo mais
“justo” e “harmônico”, de acordo com o que a mesma afirma serem esses termos tanto
para os “outros” quanto para “nós”. Parece haver um forte “rendimento”, sucesso e
consagração imediata em/de pesquisas antropológicas que se utilizam de termos como
esses para sustentar e justificar a “relevância” de sua ciência. Quando se fala que um
conceito ou método “da conta” ou não de algo, pressupõe-se que há no “campo”, ou na
teoria, uma noção estável de “utilidade” e de “real”. Nesse sentido, os acontecimentos e
dados coletados no trabalho de campo são objetos passivos (“fonte” de real) ou ativos
(quando as teorias nativas são toleradas por sua plausibilidade). Mas em qualquer uma
das duas abordagens e conexões, entre empiria e teoria, há uma amarração (e um
essencialismo) estratégica unificada através da convencionalização de um conceito de
conceito. Essa teleologia pergunta-se sobre o “que eles (os outros, as teorias e os
métodos) podem”; qual a potência que há neles de “dar conta” ou não de algo. Quando
“algo” é caracterizado pela sua adequação ou inadequação, um conjunto moral é
acionado por parte de quem age como classificador das qualidades conceituais de um
método ou conceito (ou das teorias e métodos dos outros).
Pergunto-me então: porque uma pesquisa “precisa ter”, durante todo o tempo
de sua realização, um lugar, grupo ou conjuntos de atores (que tenham elementos “em
comum”) e um conjunto de pressupostos teóricos, mais ou menos coerentes, que
guiarão boa parte dos caminhos traçados no processo de investigação? Porque uma
pesquisa não poderia ser nômade18? A única resposta plausível seria a de que “temos de”
produzir, ao final da pesquisa, um trabalho “coerente” e “relevante” que será avaliado,
qualificado e aceito por nossos pares e colegas? As especulações aqui produzidas visam
responder essas questões com outros modos de ser feita uma pergunta: como por
exemplo, com um dispositivo de “controle” da aleatoriedade presente nessa especulação
metodológica chamada retropredação. Retropredar não seria a busca pelas origens,
intenções, pontos de vista ou essências de cada predado/predador, mas sim a invenção
de operações epistêmicas que trabalhariam com as descontinuidades dos outros sobre as
18
Devo salientar aqui que não estou me referindo ao termo nômade enquanto uma qualidade ou estado
de ser “primitivo”, ou qualquer coisa do gênero. Essa taxonomia foi utilizada inúmeras vezes com
finalidades semelhantes: a de subjugar os outros como inferiores ou classificá-los em uma escala de
evolução onde o sedentário simboliza o estágio civilizatório. A referência central aqui é a Gilles
Deleuze e Félix Guattari e a sua ideia de “nomadologia” (1997). Contudo, me refiro com esse termo
ao idioma que o nômade entretém com o que passa por ele e com o que ele se utiliza para viver: os
restos, as sobras, o que ele cata ou colhe e toda a oikonomia de subsistência no qual ele baseia sua
derivante “predação ontológica” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007) de realidades.
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nossas|minhas continuidades (um movimento para trás, a contrapelo, de uma predação
que recua e hesita, um anti-progresso proclamado por uma “slow science”); sobre o que
é considerado externo, perigoso e contaminante para a nossa suposta individualidade e
racionalidade. Uma retropredação não seria a generalização explicativa dos conceitos
dos outros em relação aos nossos, mas sim a explicitação das genealogias dos nossos
conceitos quando fragmentados (por aproximações não-comparativas) pelos conceitos
dos outros; seria uma forma de deixar as partes desagregadas que sobram serem
suficientemente voláteis para não haver nenhum posterior e incomensurável todo19.
Conectando esse modo de investigação nômade com as cosmologias e relações
ameríndias, não importaria aqui os corpos que são comidos e canibalizados, mas as
bocas com que se come. Teria com isso bocas com corpos comendo bocas sem corpos,
(canibalismo às avessas, auto-fagia invertida); o que como não é meu corpo, mas a
minha boca com a boca dos outros. Seria a inversão anagramática da ordem e dos
termos da expressão|precaução “não se pode cair na boca do nativo”: 'Se pode sair da
boca do nativo por ter caído na boca do antropólogo (a)”, ou “é preciso deixar a boca do
nativo comer a boca do antropólogo antes que o corpo do nativo caia no corpo e na boca
de quem pretende dizer o que é nativo”. Em suma, esses seriam modos de se-perder-se,
já que tratar-se-ia de “levar quase tudo a sério”, menos a sí próprio e a Antropologia.
Poderia então cair em minha própria boca quando sou um desagregado de 'órgãos sem
corpo' (ou a inversão do “corpo sem órgãos” de Gilles Deleuze e Felix Guattari) ou um
corpo acéfalo. Enfim, todos esses corpos seriam corpos anti-solipsistas, onde haveria
um modo de individuação de fundo que os possibilitaria serem corpos em contínuo ou
descontínuo movimento e transformação. Qual caminho traço aqui? O que chega à
radicalização relativista da tematização fundante da Antropologia, ou o conceito de
“diferença”, que além de ser um processo entre seres (de ser sempre plural/devires), é
também o operador disjuntivo entre uma existência (a individuação de um ser) e o
“mundo”; uma operação de transformação e transvalorização.
Retropredação
19
poderia
também
ser
entendida
como
um
exercício
Ou também, uma retropredação seria uma analogia a uma retroapropriação, ou a asserção seguinte de
Strathern, só que ao contrário: … “todo conhecimento pode ser transformado em autoconhecimento:
quanto mais se aprende sobre os outros, mais se aprende sobre si mesmo. Além disso, em seus atos de
apropriação, os eus suplantam uns aos outros. Acima de tudo, se o conhecimento dos outros se torna
um veículo para o conhecimento do eu, ele se transforma na constituição do eu. A autoria se desloca
em relação a esses outros” (2014, p. 144). Reescrevendo e parafraseando (em relação à
retropredação), o oposto dessa assertiva seria: 'todo conhecimento pode ser transformado também em
retroautodesconhecimento: quanto menos se aprende sobre os outros, mais se desaprende sobre o
conceito de “si mesmo”'.
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constantemente repetido e replicado no “trabalho de campo”, onde haveria uma mescla
radicalizada entre o exercício de estranhamento e o de relativização. O “campo” seria
então uma espécie de série irregular e heterogênea de linhas de força, que atuam para
todos os lados; partindo de um ponto qualquer, aleatório e sem relevância ou relação
com os demais, e encontrando seus limites dinâmicos de contração e retração, de
intensidades variáveis, que não podem atingir qualquer forma durável. De modo
semelhante à forma com que Latour se desvia do verbo ser para o ter (influenciado por
Gabriel Tarde), utilizo o verbo predar de forma relacional: todo aquele que preda pode
ser predado e por isso está sempre na condição potencial de transformação, de vir-a-ser
outro pela experiência ontológica de adotar o ponto de vista do outro sem devorá-lo
completamente, mas sim tendo de introcanibalizar a si pelos mesmos modos que estava
predando o outro (como um “feitiço” enviado a “si mesmo”). Por outro lado, por dentro
da ideia de predação podemos encontrar o/um conceito de “experiência” (aqui enquanto
a possibilidade de experimentar o outro e ser experimentado e não apenas uma
experiência do “eu”) agindo como um modo de “compreender menos”. Ambas
operações do conceito de experiência (perspectivista e fenomenológica), quando aliadas
a circunscrição de um locus de pesquisa, produzem os mesmos processos de legitimação
de um saber: uma experiência, ao ser “testada” inúmeras vezes, até que se chegue a um
padrão de regularidades e repetições (como por exemplo, transformações, devires,
criatividades etc...) é potencialmente uma “nova” forma para se “conhecer mais e
melhor” sobre algo e sobre si. Parece ser nessa linha de argumentação que a
Antropologia defende e exalta o método etnográfico como um caminho “singular” em
direção ao “conhecimento”: ela pode “contribuir” com a etnografia para compreender
“melhor” o mundo ou/e “fornecer um novo olhar” sobre ele. No entanto, esse ponto de
vista sobre o fazer científico tem como base uma metodologia obsessiva em colecionar,
aprisionar informações e saberes e transformando-os em dados. Portanto essa seria uma
produção de Saber por canibalismo.
Se porventura, esse o modo de investigação, aqui sugerido, nunca deixasse de
ser uma suposição, então ele teria de adotar uma pré-posição: a “anti-narcísica”
(VIVEIROS DE CASTRO, 1986). Esse estado de “supor” (pré-especulativo) está
marcado por um contraceticismo (nem denotativo, nem conotativo e nem indutivo). As
suposições, que seriam feitas no trabalho de campo, seriam “disparadas” por uma
intuição reversa, onde poderia haver duas situações: minhas respostas são respondidas
pelas perguntas que os outros me fizeram, mas que foram apenas perguntas reversas (ou
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endereçadas à condição sui generis daquele momento) ou uma segunda situação, onde
não se teriam quaisquer respostas porque as perguntas possíveis, em uma pesquisa sem
objeto e com teorias frágeis, não respondem com algumas respostas, mas sim com
outras tantas perguntas possíveis que quaisquer outros poderiam também perguntar da
mesma ou de outras tantas maneiras. Em outras palavras, essa seria uma ciência, que em
vez de duvidar, supõem, como premissa circunstancial irredutível, que todo saber
(produzido, imaginado, sonhado ou “testado”) é “verdadeiro”20. Logo, teríamos uma
ciência que “acredita”21 de forma absoluta (por antidogmatismo). Em vez de relativista
ela seria uma ciência que especula sobre materialismos vitalistas em cada
“territorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1995) por onde ela envolve-se e
desenrola-se. Em vez de ter certezas ela acontece na panveracidade com que o outro
interpela seu saber ao nosso. Esse modo de pesquisar pergunta então se é possível
conhecer cada-vez-menos a cada vez que, no processo de constituição do objeto a ser
investigado, ocorrer um “equívoco controlado” retropredante (VIVEIROS DE
CASTRO, 2004). A questão metodológica que daí surge seria encontrar a suficiência de
um saber (uma espécie de economia política do saber operado nas interfaces entre
diferença e alteridade); ou o seu ponto de virada reversa, onde ele torna-se efetivo (que
tem efeitos) para quem foi “sujeito” e para quem foi “objeto” de um modo de saber. Ao
invés de produzir o movimento da metafísica em direção as ontologias (LATOUR,
2012, p. 172), seria preciso considerar ambas como avatares uma da outra, oscilando
constantemente entre “real” e “atual” (assim como entre imanência e transcendência),
para que não fosse formado qualquer caminho e lugar seguro da pesquisa em direção ao
saber purificado (para que nenhuma suficiência desse saber se torne definitiva); para
que ninguém fosse “seguido”, mas sim “deixado para trás”. Nem um “real realista” nem
“ficções imaginárias”, o trabalho do antropólogo consistiria no exercício não radical de
auto-sabotagem, no jogo não psicanalítico do auto-escrutínio e na desmesura de cada
20
21
Há aqui uma noção de simetria diferente da que pressupõem um “fundo comum” imanente entre todos
os seres, no qual existam ideias como as de capacidade, dom, potência ou talento. Latour não deixa
dúvida sobre a postura dos teóricos da ANT (Teoria Ator-Rede) em relação a esse fundo de imanência:
“A ANT não é - repito: não é - a criação de uma absurda 'simetria entre humanos e não humanos'.
Obter simetria, para nós, significa não impor a priori uma assimetria espúria entre ação humana
intencional e mundo material de relações causais. Existem divisões que não devemos ultrapassar
superar, reduzir dialeticamente. Elas precisam isto sim, serem ignoradas e abandonadas a seus
próprios recursos, como um castelo outrora formidável e hoje em ruínas" (2012, p. 114). Esse
“castelo”, ao meu entender, é esse “fundo comum” de imanência entre os sujeitos e objetos e não
deles.
Lembrando que esse verbo está sempre densamente carregado de significações solipsistas e que, como
alerta John Law, “believing something is never enough to make it true” (LAW, 2004 p.8).
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perspectiva irredutível e irreversível adotada. Mas então qual seria “fundamentalmente”
o ofício pragmático do antropólogo(a)? A resposta mais polêmica seria a de que ele(a)
produz perguntas sem “necessidades” de terem suas respostas, ou deveria ter uma
resposta fraca (portanto faria uma ciência “inútil”)22. Mas a outra resposta (a mais
“oficial”) seria que a Antropologia seria uma ciência questionadora e reflexiva, que tem
como força motriz primeira o ato de deixar qualquer aporia em suspensão
(“desconstrução”). Nesse sentido, a retropredação seria “acionada” a cada efeito de
verdade e a cada pressuposto lançado sobre cada geografia|endemia. Ela trabalha com
os restos e rastros, sobras e ruídos gerados no encontro com a “multidão” (HARDT;
NEGRI, 2005) que sobra da experiência de “sair por ai”.23 O exercício especular de
complementariedade e concomitância entre uma Antropologia à deriva e a
retropredação precisaria ser constante e contínuo para que a pergunta sobre a
possibilidade de saber-menos possa ser respondida. Mas essa é a pergunta de partida
para as demais perguntas que se perguntam pelos motivos de se perguntar, as quais não
tem qualquer obrigação de responder a si mesmas. E ela “aflora” de uma condição atual
na qual se produz conhecimento acadêmico: ele exige sempre coerência, relevância e
excelência de acordo com um padrão de qualidade e produtividade. A busca por
reconhecimento, inovação, produtividade e amplitude dos debates e do método
22
23
Outro ponto de vista sobre o explicar em antropologia poderia ser esse: “A explicação há de encerrar
algum conteúdo - de outra forma, seria inútil. Não deve, entretanto, encerrar conteúdo demasiado, sob
pena de termos de revê-la a cada instante.” (FEYERABEND, 1977 p. 397). Em outra palavras (ou nas
palavras que essa investigação pretende enunciar) essa seria a busca por um saber-menos, um saber
que “encerra algum conteúdo” mas que não é “recorte” ou parte de um conjunto limitado ou ilimitado
de conteúdos. E ele só é suficiente quando parte de uma relação improvisada por uma intuição
reversa. Para a obtenção de um saber-menos seria preciso de “conexões em circulação que você pode
subscrever e baixar na hora, para se tornar local e provisoriamente competente” (LATOUR, 2012 p.
302). Fazer dessas “conexões em circulação” uma fonte de sinais, dados, rastros e conexões a serem
descritos, reproduzidos, explicados e “reagregados”, através de uma operação de ventriloquismo, tem
sido, me parece, a atividade principal de “pesquisas etnográficas” (de um “modo geral”, parece haver
uma “necessidade” maior para que isso ocorra sempre). Pensando nesses termos, explicar poderia ser
uma atividade incompleta ou vaga? Poderia a Antropologia “quase explicar”, dar meias (“erradas”)
explicações ou mesmo “nada” explicar? Ou antes, seria (sempre) essa a discussão “de fundo” quando
questionamos os modos particulares da Antropologia de produzir conhecimento?
Gostaria de reiterar que “sair por ai” é duplamente mais romântico (e talvez, duplamente menos
“iluminista”) do que “estar lá”, já que soma o fato de “estar entre eles” com a condição de perda do
sentido e dos objetivos com que se foi “para lá”, que não é nenhum lugar específico nesse caso, mas
qualquer lugar que “eles”, os outros, achem mais “interessante” para a pesquisa continuar movendose. Em resumo, esse exercício de especulação teórica sobre o “método etnográfico” pretendia apenas
submeter o último “a exame”: “talvez que esses pressupostos (os que são reafirmados por “regras
metodológicas”) sejam plausíveis e até mesmo verdadeiros. Não obstante, convém, de tempos em
tempos, submete-los a exame. Submetê-los a exame significa deixar de utilizar a metodologia a eles
associada, passar a praticar a ciência de maneira diversa e verificar o que vem a ocorrer” […] “Todas
as metodologias têm limitações e só a ‘regra’ do ‘tudo vale’ é capaz de manter-se” (FEYERABEND,
1977 p. 449 e 450, parênteses meu). Contudo, acrescentaria: as metodologias parecem ter inumeráveis
limitações quando, diante de uma ciência dadaísta à deriva, valer “nada” ou “tudo” não faz diferença.
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etnográfico em direção a outras áreas do conhecimento parecem produzir alguns
“excessos” na Antropologia. O seu acúmulo, por sua vez, tem um efeito metodológico
colateral: quanto mais se conhece sobre “algo”, por apenas um meio (etnografia) para
atingir um Saber, mais quem “quer” conhecer (o “especialista” em alteridade) se
“sedentariza” (com sua expertise) sobre seu montante acumulado de saber (o seu
campo, seus outros, suas aldeias, seus povos, ruas, estórias e subjetividades). Essa foi
uma das “conclusões” encontradas a partir de meu trabalho de campo no mestrado com
cuidadores de pessoas com doença de Alzheimer (VIANNA, 2013). Quanto mais reunia
informações sobre “a doença”, mais “especialista” me tornava sobre ela e mais
legitimidade tinha para falar sobre o “doente”. Esse último tornou-se um objeto passível
de ser lançada toda a sorte de perspectivas, interpretações e explicações. A etnografia
proporcionava (em tal pesquisa) uma noção singular de progresso, a qual
paradoxalmente foi sua “âncora”. Ela define uma quantidade progressiva de saber:
quanto mais se sabe, melhor se sabe, já que mais se compreende. Os demais meios
(complementares) que produzem esse saber (hesitação, dúvida, relativização,
subjetivação, transformação, interpretação, tradução etc...) seriam, para esse modo
“sedentário”, processos e mecanismos legitimadores desse mesmo saber. Eles
possibilitam construir uma explicação coerente, complexa, completa, relevante e
“singular” sobre o montante acumulado de conhecimento “descoberto” em um restrito e
delimitável locus de pesquisa. Se pelo contrário, a cada vez que se quisesse conhecer
algo se usasse “outras epistemologias”, e com isso outras “metafísicas”, se poderia cada
vez se conhecer-menos já que a cada “novo” conhecimento proto-formado se teria um
“novo” enclave epistemológico auto-destrutivo (ou um estado de impropriedade e
supersaturação sem auto-referenciação). A cada “novo saber descoberto” descobrimos
que a “máquina” de produzir eles sempre produzirá “novos saberes”, já que o objeto
agora a ser descoberto é a própria máquina (a do outro), além dos objetos que ela
produz, os quais podem ser igualmente “descobertos”. Isso se torna possível quando a
figura do antropólogo em campo é vista como um “mediador” (LATOUR, 2012)24. Mas
me pergunto o que aconteceria se considerássemos suas teorias, conceitos e premissas
24
“Os mediadores, por seu turno, não podem ser contados como apenas um, eles podem valer por um,
por nenhuma, por várias ou uma infinidade. O que entra neles nunca define exatamente o que sai; sua
especificidade precisa ser levada em conta todas às vezes. Os mediadores transformam, traduzem,
distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam. Não importa quão
complicado seja um intermediário, ele deve, para todos os propósitos práticos, ser considerado como
uma unidade - ou nada, pois e fácil esquece-lo. Um mediador, apesar de sua aparência simples, pode
se revelar complexo e arrastar-nos em muitas direções que modificarão os relatos contraditórios
atribuídos a seu papel” (LATOUR, 2012, p. 65).
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como “intermediárias” no/do trabalho de campo? Essa seria a hipótese de “entrada” no
“campo”, de acordo com o modo de investigação de uma Antropologia à deriva: fazer
da passagem do antropólogo em “campo” uma mediação de intermediários, onde não se
encontram (ao final dessa mesma passagem) qualquer lugar-comum, “reagregação do
social” (ou a “composição justa do coletivo” [LATOUR, 2012 p.236]). A passagem dele
poderia, portanto, desagregar a ordem que possibilitaria a invenção de qualquer
explicação, com causas e efeitos, das estabilizações dos mundos dos outros ou da
própria passagem dele nesse mesmo mundo. Mover-se,25 dessa forma (a qual não é o
mesmo que mover-se desenfreadamente), poderá causar nessa Antropologia um efeito
de deriva26. Estar à deriva não é qualquer “antídoto” contra algum mal-estar ou crise da
disciplina ou contra uma sensação de frustração ou angústia por ter que lidar com
questões políticas, éticas e filosóficas cada vez mais “sérias”, “complexas” e
incomensuráveis. Deixar a Antropologia à deriva não é qualquer purgante da
racionalidade e da objetividade que estaria “emperrando” o “avanço” do saber
antropológico; ou ainda, não seria um modo de “despertar” qualquer criatividade
contida em cada antropólogo pronto para ser liberada, fazendo brotar os mil novos
outros em seus mil novos mundos “interessantes”, “instigantes”, “fascinantes”,
“deslumbrantes” etc... “Estar à deriva” permite ficar mais do que sem-referências ou
perdido, é permitir-se confundir suas próprias confusões (o que possibilitaria o
pesquisador a fazer algumas perguntas ao seu “modo de pesquisar” no qual apenas “ele”
teria as respostas, como por exemplo: “como se” confunde? O “que é” uma confusão?).
Da regularidade das diferenças diferenciadas (ou as diferenças que seriam mais
diferentes do que outras), da “homogeneização do outro” produzida na “fabricação da
alteridade” necessária para que uma etnografia exista (THOMAS, 1991), temos outras
25
26
Nesse modo de investigar, o deslocamento de um lugar para o outro poderia ser dado no trabalho de
campo por um sistema não aleatório, operacionalizado após uma sequência de perguntas, interações e
diálogos aleatórios, onde o pesquisador pediria uma sugestão ao pesquisado de um “outro
lugar|tempo” para a pesquisa continuar movendo-se. A ideia é que essas formas de
“desterritorialização” sem “reterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1995) aconteçam de forma
forçada para que se possa dar sequência (ver até onde ele pode ir) ao “objetivo” geral, “autoritário” e
“artificial” dessa investigação: saber-menos sobre algo.
A ANT tem influência direta sobre boa parte da exposição acima feita “a favor” da deriva: “Assim, é
perfeitamente lícito dizer que qualquer interação parece superabundar em elementos que já se
encontram na situação, elementos vindos de outro tempo, de outro lugar e gerados por outra
mediação. Essa poderosa intuição é tão velha quanto às ciências sociais. Como afirmei anteriormente,
a ação é sempre deslocada, articulada, delegada, traduzida. Assim, se um observador é fiel à direção
sugerida por essa superabundância, ele será afastado de qualquer interação para outros lugares, outros
tempos e outras agências que parecem tê-la moldado. É como se um vento forte impedisse alguém de
permanecer no local e soprasse para longe os espectadores; como se uma forte corrente estivesse
sempre nos forçando a abandonar a cena local. O problema é saber para onde ir a partir dali”
(LATOUR, 2012 p. 240 e 241, grifos do autor).
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marcações que regulam o que será tomado como uma possibilidade de diferença e as
que jamais poderiam ser resgatadas de seu estado de repetição e homogeneidade. Esse
estado parece ser produzido no mesmo instante em que se defini o conceito de
diferença. Parece haver nele uma espécie de diferença residual, ou um efeito do
reducionismo necessário para definir precisamente uma chave de análise antropológica.
Para configurar esse conceito é preciso “relativizar” o “relativo” 27 (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002), tornando irredutível o irrelativizável. Um desses “resíduos” parece
estar na seguinte distinção entre zoé e bios de Giorgio Agamben: zoé “exprimia o
simples fato de viver comum a todos os seres vivos; como os animais, homens ou
deuses” e bios “indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um
grupo” (AGAMBEN, 2007 p. 9). Pensando no que já foi proposto sob os nomes de
antropologia à deriva e retropredação, o “viver comum a todos seres” tornar-se-ia o
pano de fundo para toda e qualquer bios atuar suas políticas sobre o mundo (a polis não
expulsa o cosmos para fora de seus muros, mas sim tem a zoé como condição de sua
existência).28 A vida, então, não existe sobre o espaço-tempo da humanidade de fundo,
mas sim no regime da zoé de fundo; da situação irremediável a que todos os seres,
existentes ou vindo a existir, estão atrelados uns aos outros ('existir é viver junto').
Nesse conceito (vida) há um aforismo: todos têm|devem viver juntos em um dado
cosmos infinito. As bios não se dissolvem na zoé, mas sim são constituídas nela, sem
fazerem de suas “partes” unidades do “todo”. Essa inquietude com um sistema de
transcodificação sem intermediários, ou uma “tradução” por imediatez entre signo e
signo (sem equivalência, originalidade, ponderabilidade e intraduzibilidade), seria a
resiliência das unidades com os quais operariam as “codificações humanas” (operações
semióticas). Talvez seja torcendo nossas línguas com as dos outros, multiplicando a
multidão de solecismos, oxímoros e neologismos de um texto, ao seu ponto de mutação
mínimo-diferenciante, que poderíamos radicalizar nossos sinais e produzir uma
27
28
“A boa diferença, ou diferença real, é entre o que pensa (ou faz) o nativo e o que o antropólogo pensa
que (e faz com o que) o nativo pensa, e são esses dois pensamentos (ou fazeres) que se confrontam.
Tal confronto não precisa se resumir a uma mesma equivocidade de parte a parte - o equívoco nunca é
o mesmo, as partes não o sendo; e de resto, quem definiria a adequada univocidade? -, mas tampouco
precisa se contentar em ser um diálogo edificante. O confronto deve poder produzir a mútua
implicação, a comum alteração dos discursos em jogo, pois não se trata de chegar ao consenso, mas ao
conceito” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002 p. 119).
Poderíamos também fazer uma correlação com o perspectivismo ameríndio: há uma monozoé para
uma multibios. Assim como talvez haja na ideia de zoepolítica algum paralelo com o conceito de
sociedade para Latour: “A sociedade não é o todo 'onde' todas as coisas estão inseridas, mas aquilo
que 'atravessa' tudo, calibrando conexões dando a cada entidade que encontra uma chance de
comensurabilidade” (LATOUR, 2012 p. 344). Portanto, essa “comensurabilidade” só seria definida a
partir da incomensurabilidade predisposta pela zona de indiferenciação projetada pela zoé.
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transcriptografia: ou a transfiguração dos pontos de vista dos outros pela “transdução”
(SIMONDON, 1958) que ocorreria nesse dispositivo que estou chamando de
retropredação. Na zoé não há possível já que tudo é potência de acontecimento; ela é um
acontecimento extensivo e intensivo. Zoé é efeito da vida enquanto um poder de afetar e
ser afetado.
Dados os conceitos e propostas acima delineados, o objetivo desse exercício
teórico-metodológico foi torná-los estranhamente frágeis ao ponto de poderem ser
implodidos, destruídos e predados por qualquer antropologia ou epistemologia dos
outros. Essa seria, portanto, uma auto-sabotagem epistemológica que explicaria o que
os outros pensam e fazem de um modo “fraco” e “familiar”, tornando o que foi
explicado um saber “não-factual” (VEYNE, 1982).29 Sabotadas as explicações
antropológicas, haveria então um triplo revés: uma auto-validação das explicações dos
outros, uma avaliação deles sobre a auto-sabotagem antropológica e um “autoconhecimento” antropológico movido por um constante interesse e curiosidade pelos
dois primeiros revés30. Todo esse processo “deveria” por em cheque (ou reduzi-los a
nada) conceitos como os de equivocação, confusão, perturbação, suficiência,
estranhamento, alteridade, retropredação, deslumbramento etc... Mas talvez seja as
seguintes perguntas que ele mais faz reverberar por todas as etapas dessa investigação à
deriva: porque é preciso compreender o outro? Há alguma “necessidade” intrínseca a
“ele” que passe a ser obrigatório ou inevitável compreendê-lo e/em seu mundo?
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Isso implicaria (da mesma forma que Veyne pensou em relação a história) em ter de afirmar que 'tudo
é antropológico, logo, a Antropologia não existe'. “Em outras palavras, o termo explicação é tomado,
ora num sentido forte, onde explicar significa 'atribuir um fato a seu princípio ou uma teoria a uma
outra mais geral', como fazem as ciências ou a filosofia; ou num sentido fraco e familiar, como ao
dizer: 'deixe-me explicar-lhe o que se passou e logo compreenderá'” [...] “Isso quer dizer que, em
história, explicar é explicitar: quando o historiador recusa a deter-se na primeira liberdade ou no
primeiro acaso encontrado, ele não os substituiu por um determinismo, mas os explicita descobrindo
outras liberdades e acasos.” (1982, p.82 e 86). Mas uma “explicação fraca” poderia ser uma
“representação do real” em escala reduzida? Produzir uma “explicação fraca” poderia explicitar a
“necessidade” de explicar em toda explicação? A retropredação poderia fazer isso? O que ela “pode”
diante de toda a “operação de preenchimento” (ou a “retrodição”, VEYNE, 1982, p. 117) que
acompanha o método etnográfico?
“A questão a ser enfatizada é muito simples: os relatos antropológicos sobre as sociedades exógenas
como a das ilhas Trobriand nunca será autoconhecimento da mesma forma que um relato paralelo
sobre o mundo social, digamos, dos habitantes de Elmdon o seria. Não importa de onde o antropólogo
venha; não pode ser autoconhecimento em um sentido autorreflexivo porque não se baseia nas
técnicas específicas por meio das quais as pessoas conhecem a si mesmas.” (2014, p. 154). Em
resumo, a ideia “por trás” de uma auto-sabotagem epistemológica seria tentar utilizar as “técnicas
específicas por meio das quais as pessoas conhecem a si mesmas” para produzir uma auto-reflexão
sobre o deslumbramento com a “eficiência” das técnicas específicas que uma etnografia se utiliza ao
saber cada vez mais sobre essas mesmas pessoas. No entanto, essa transposição de técnicas não é uma
tradução, mas sim a montagem de uma armadilha, ou de uma sabotagem, onde o sabotador arma a
arapuca no caminho por onde ele mesmo passará. Trata-se, portanto de um método anti-progressivo ou
retroativo, e com isso também de uma anti-auto-antropologia.
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Enfim, penso que tenha ficado evidente ao leitor que há nessa suposição sobre
modo de investigação nômade um “anarquismo epistemológico” (FEYERABEND,
1977) estranhamente romântico e niilista, movido por um antiutopismo autocentrado e
autocontido presente nesse modo dadaísta de abordar a ciência. Essas, por exemplo, são
algumas das antirotas dessa Antropologia à deriva. Elas estão ligadas fracamente pelo
argumento que “defenderia” a possibilidade de fazer ao mesmo tempo uma “pesquisa
metodológica empírica” sobre os “limites” do método etnográfico (e não sobre o limite
do empirismo da Antropologia31) e “propor” um “outro” modo de investigação para a
Antropologia que não “sirva” para ninguém (não-utilizável), a não ser para essa própria
pesquisa, enquanto uma especulação sobre o que uma etnografia pode “dar conta”.
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UFMG, 2007.
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LAW, John. After Method: Mess in Social Science Research. London: Routledge.
2004.
RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação
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No entanto, poderia asseverar que, sendo eu um “empirista” não convicto, a palavra “progresso”
deverá significar como afirmou Feyerabend, uma “transição para uma teoria capaz de permitir que a
maioria de seus pressupostos básicos seja objeto de testes empíricos diretos” (1977, p. 34). Por hora, e
antes de “ir a campo”, o que poderia ser “adotado” como um método seria um método dadaísta, que
(de acordo com o mesmo autor) explicita a fragilidade e limitação de todas as metodologias e que não
tem um programa, mas sim é contra todos os programas.
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intelectual (trad. Lilian do Valle). Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
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