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Percursos entre o real e o sonho

2013, Revista Lingua Literatura

View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk brought to you by CORE provided by Revistas URI - FW (Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai... Resenha DEL FUEGO, Andréa. As miniaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 105 p. Percursos entre o real e o sonho Autora de várias publicações em literatura infantil e juvenil, a escritora Andréa del Fuego (São Paulo, 1975) publicou, também, os livros de contos Minto enquanto posso (Ed. O Nome da Rosa, 2004), Engano seu (Ed. O nome da Rosa, 2007) e Nego fogo (Ed. Dulcineia Catadora, 2009), além de ter participado das antologias 30 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2005) e Os cem menores contos brasileiros do século (2004), organizadas por Luiz Ruffato e Marcelino freire, respectivamente. No entanto, foi com seu primeiro romance, Os Malaquias (Língua Geral, 2010) - ganhador do Prêmio Literário José Saramago 2011 – que ela alcançou maior visibilidade no cenário literário nacional. Embalada pela notoriedade proporcionada pelo romance premiado, em julho deste ano Andréa publicou o romance As miniaturas pela editora Companhia das Letras. Nele, a autora abandona a atmosfera interiorana de Os Malaquias - livro baseado na história de sua família, marcada pela morte trágica de seus bisavós, fulminados por um raio em uma pequena cidade do interior - e penetra no espaço urbano da grande São Paulo. Em As miniaturas o leitor estabelece contato direto com o mundo dos sonhos, percorrendo caminhos que, sutilmente, levam-no a questões existenciais mais profundas. A explicação para a escolha do tema e para o tom filosófico do romance foi dada pela própria escritora em entrevista concedida à Revista Cult (julho 2013), onde conta que a ideia surgiu nas aulas da graduação de Filosofia, quando entrou em contato com o livro Sobre a interpretação dos sonhos, escrito no século II pelo grego Artemidoro - obra que teria servido de referência para Freud. Dispensando longas divagações filosóficas, que poderiam cansar o leitor atual (que, sabe-se, tem muita pressa), Andréa instiga questionamentos e reflexões através de um texto rápido, de linguagem direta e enxuta, numa sucessão de quadros narrados em primeira pessoa Roselei Battisti 278 por seus três narradores-personagens: o oneiro, a mãe e o filho. “O Edifício Midoro Filho fica no Centro. Minha função é simples e trato direto com o público.” (DEL FUEGO, 2013, p. 5). É assim que inicia a narrativa de As Miniaturas, com o primeiro narrador-personagem, o “oneiro”, situando o leitor no espaço dos acontecimentos. Os “oneiros” são seres cuja função é “sugerir” sonhos às pessoas que frequentam o Edifício, através da exposição de pequenas miniaturas de plástico. O Midoro Filho é um prédio imponente, com dezenas de andares, bem no centro da cidade de São Paulo, cuja fachada é descrita como espelhada (ou pode nem ser vista, ou sequer existir). A arquitetura e a organização do Edifício são extremamente funcionais e burocráticas, tudo para atender, dentro de um rigoroso controle de qualidade, a demanda dos “sonhantes” que passam por ali todos os dias. Uma das regras mais importantes a serem seguidas no Edifício é a de que as pessoas atendidas por um oneiro não podem ter parentesco entre si, nem se conhecerem. É uma medida de segurança adotada pela “diretoria” do Midoro Filho para evitar o envolvimento do oneiro com os sonhantes, pois os atendimentos devem ser impessoais, garantindo a eficiência do sistema. No entanto, é justamente uma falha nesse sistema que leva o personagem-narrador oneiro a atender mãe e filho. Por ser um tanto curioso, inquieto e questionador de regras, esse oneiro resolve não comunicar a falha a seus superiores e continua atendendo esses sonhantes. Envolvendo-se cada vez mais com os dois, ele é levado a quebrar outras regras durante as sugestões de sonhos, comprometendo os atendimentos e a vida dessas pessoas. É a partir dessa situação que a história desenrola-se em pequenos capítulos, narrados pelo oneiro, pela mãe e pelo filho, alternadamente, obedecendo à sequência dos atendimentos feitos no Edifício - no primeiro capítulo, o oneiro narra o sonho da mãe; no segundo, a mãe narra seu dia a dia; no terceiro, o oneiro narra o sonho do filho; e no quarto, o filho narra os acontecimentos seguintes, e assim por diante, totalizando 25 capítulos. Os narradores falam a partir de seus lugares: do mundo “irreal” dos sonhos; da dura realidade da classe baixa que habita a grande São Paulo, de uma perspectiva feminina e materna, e de outra, masculina e filial. Com essa sucessão de narradores diferentes, a auto- Revista Língua & Literatura | FW | v. 15 | n. 24 | p. 1-289 | Ago. 2013 ra proporciona ao leitor a observação de uma mesma realidade a partir de três pontos de vista distintos, provocando, no mínimo, inquietações e desconfortos que se refletem em posicionamentos e juízos feitos diariamente pelas pessoas. No entanto, essas três perspectivas diferentes vão se entrelaçando de tal modo que é possível perceber não só a influência dos sonhos na vida real do filho e da mãe, como também a repercussão da vida e da personalidade desses dois nas atitudes e escolhas do oneiro. Aos poucos, essas interferências vão se tornando mais evidentes, por vezes confusas até, revelando um caminho de mão dupla, capaz de gerar diversas crises e conflitos dentro e fora do Edifício Midoro Filho. É através desse enredo entrecruzado que a autora sugere inúmeras “brechas”, através das quais o leitor é capaz de entrever possibilidades variadas e imaginar tantas outras. São questões que vão desde as mais simples e rotineiras até as mais complexas, que abordam valores individuais e sociais, capazes de determinar, por exemplo, vida e morte, amor e ódio. Paralelamente ao mundo de sonhos burocraticamente organizado, a narrativa de Andréa del Fuego mostra flashes da realidade - por vezes inusitada, mas perfeitamente possível - vivida por milhares de pessoas que circulam pelas ruas de São Paulo. Além dos narradores-personagens mãe (Maria Aparecida) e filho (Gilsinho), do marido (Ademar), do amante e gerente do posto de gasolina (Nelson) e de sua esposa e filho, desfilam pela narrativa vários indivíduos anônimos, porém representativos da diversidade humana presente no espaço urbano. A maioria deles aparece como usuário do táxi de Maria Aparecida, que está sempre sendo envolvida pelos dramas de seus clientes, ou envolvendo-os nos dramas da comunicativa taxista. Ainda sobre essa personagem, é interessante perceber como a autora constrói uma imagem feminina que foge do estereótipo comumente visto na literatura, da mulher que deseja e é feliz no universo do lar, cujo instinto materno é capaz de anular a própria vida e os desejos mais profundos em nome de um amor “naturalmente” incondicional pelo filho. Contrariando essa lógica, a mãe, Maria Aparecida, apesar de ser uma mulher na casa dos quarenta anos, que foi abandonada pelo marido e que tem um filho adolescente para sustentar, apresenta outro perfil. Ela só sente falta Revista Língua & Literatura | FW | v. 15 | n. 24 | p. 1-289 | Ago. 2013 Percursos entre o real e o sonho 279 Roselei Battisti 280 do marido porque “gosta de homem”, pois, na verdade, aprecia a liberdade que tem. É uma mãe consciente de suas responsabilidades, no entanto, não sofre por nutrir certos sentimentos nada “maternais” pelo filho e por pensar que viveria melhor sem ele. Sua própria profissão de taxista evidencia a necessidade que sente de estar na rua, de estabelecer contato (breve) com várias pessoas. Demonstrando seu espírito aventureiro e inquieto, não é capaz de ficar parada em seu ponto esperando pelos passageiros, prefere ir ao encontro deles. É uma mulher destemida, que sonha em andar sem rumo, livre, que dificilmente aparece retratada na literatura. Essa personalidade feminina forte mais influencia o oneiro do que é influenciada por ele. Até o final da narrativa, além dessa troca de papéis, outras subversões da ordem “natural” das coisas, vão acontecendo. O livro termina sugerindo uma inversão entre realidade e sonho, muito bem retratada na reflexão do oneiro que encerra a narrativa: “A não ser que as imagens daqui não sejam as principais, mas mínimas, laterais, dispensáveis.” (DEL FUEGO, 2013, p. 103). Desse modo, a impressão que se tem é que o que estava no centro – o Edifício Midoro Filho – torna-se periférico. Isso parece um tanto sugestivo, na medida em que se está diante de uma narrativa situada na periferia do fazer literário canônico nacional. Sabe-se que essa escrita periférica, por suas “novidades” e diversidades, ainda causa certo “desconforto” em alguns leitores e críticos literários, pois os critérios que orientam os juízos emitidos sobre as obras continuam muito presos aos padrões da literatura tradicional. Então, pode-se pensar que a própria narrativa de del Fuego estaria sugerindo um questionamento a respeito da validade das posições de centro e periferia socialmente determinadas? Diante de tais considerações, é preciso esclarecer que não se trata de afirmar que o simples fato de uma literatura ser de autoria feminina (ou de qualquer outra minoria) seja suficiente para determinar seu valor na literatura contemporânea. Tão pouco que esse tenha sido o critério aqui utilizado. Todavia, também não é possível ignorar completamente o lugar de fala do autor e de seus narradores no momento da reflexão sobre o que está sendo dito. Assim, é possível afirmar que As miniaturas de Andréa del Fuego, através de sua forma e do modo como aborda os me- Revista Língua & Literatura | FW | v. 15 | n. 24 | p. 1-289 | Ago. 2013 canismos do subconsciente humano, é um romance cuja leitura ilumina lugares muitas vezes obscurecidos pela rigidez de valores sociais e artísticos homogeneizados em um mundo tão desigual. Só por isso, a leitura já valeria a pena. Roselei Battisti Mestranda em Letras (URI-FW), área de concentração em Literatura Comparada. Bolsista CAPES – PROSUP Percursos entre o real e o sonho 281 Revista Língua & Literatura | FW | v. 15 | n. 24 | p. 1-289 | Ago. 2013