DOI: 10.4322/CIFBRASIL.2021.011.pt
Possibilidades da CIF no contexto das Altas habilidades/Superdotação
Autores: André de Souza Rocha1; Ananda Ludwig Burin2; Aline Mendes3
1. Fisioterapeuta do Centro de Reabilitação Ana Maria Philippi – CENER;
Articulador de Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas – NESPE;
Fundação Catarinense de Educação Especial FCEE.
http://lattes.cnpq.br/2661547964572512
2. Professora de Matemática do Núcleo de Altas Habilidades/Superdotação –
NAAH/S; Fundação Catarinense de Educação Especial FCEE.
http://lattes.cnpq.br/3927288556773114
3. Psicóloga do Núcleo de Altas Habilidades/Superdotação – NAAH/S;
Fundação Catarinense de Educação Especial FCEE.
http://lattes.cnpq.br/9369228158874271
Editorial
A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde CIF é um modelo para a organização e documentação de informações sobre
funcionalidade e incapacidade 1. Ela conceitualiza a funcionalidade como uma
“interação dinâmica entre a condição de saúde de uma pessoa, os fatores
ambientais e os fatores pessoais” através de um modelo biopsicossocial,
relevante para obtenção de indicadores sobre a funcionalidade humana 2. A
partir de sua publicação pela Organização Mundial de Saúde – OMS em 20011
e tradução para português em 2003 3, diversas iniciativas nas áreas de políticas
públicas vêm direcionando o seu uso nos sistemas de saúde, assistência social
e educação em nível nacional e internacional 4–7. Com a apropriação e estudo
de seus conceitos na área da educação, surgem novas perspectivas de
aplicação e possibilidades de atualização da CIF. Nesse sentido, a
funcionalidade de crianças com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD)
representa um desafio à CIF no momento em que o modelo biopsicossocial
apresentado parece não alcançar, ou mesmo não contemplar, a funcionalidade
acima daquela considerada como padrão para a população em geral. Este
editorial irá discutir as possibilidades de aplicação da CIF na análise da
funcionalidade de crianças e jovens com AH/SD e apresentar uma proposta de
ampliação dos qualificadores que possam abranger esse contexto.
Segundo Renzulli 8,9 e Smedsrud 10, o conceito ampliado de altas
habilidades vai além da inteligência elevada e aborda o talento diferenciado
dentro de uma perspectiva mais alinhada com as altas competências funcionais
de um indivíduo. Nesse conceito são descritas as pessoas que demonstram
potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou
combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes, além
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de apresentar grande criatividade, envolvimento na aprendizagem e realização
de tarefas em áreas de seu interesse 8–11.
Assim, indivíduos com AH/SD são aqueles que, quando comparados a
seus pares (aqueles de mesma área de habilidade e interesse) apresentam
habilidade significativamente superior em uma ou em mais de uma área do
conhecimento, além de apresentarem envolvimento com tarefas e facilidade de
aprendizado (quando dentro de sua área de interesse), pensamento criativo e
curiosidade 8–10. Dados da OMS estimam que de 3,5 a 5% da população mundial
possuem escores superiores em testes tradicionais de QI, o que representa
apenas pessoas com AH/SD em uma ou mais áreas acadêmicas 12. Ao
incluirmos outras áreas do conhecimento como liderança, psicomotricidade e
artes esse percentual aumenta significativamente para 15 a 30% da população
mundial 11.
Este representativo contingente de pessoas não receberia, atualmente,
qualquer análise diferenciada de sua funcionalidade elevada ao considerarmos
o esquema de qualificadores proposto na CIF. Os qualificadores nos
componentes de funcionalidade e incapacidade direcionam apenas à
manutenção ou perda em um determinado construto de saúde. Deste modo, a
funcionalidade de pessoas com indicadores de AH/SD a partir da CIF não será
compatível com a condição desses sujeitos que se encontram acima da
capacidade de descrição dos qualificadores. Tendo em vista a forma como estão
propostos, a partir de escala negativa, não há previsibilidade para
funcionamentos acima da média.
De forma objetiva, os capítulos de Funções Mentais (b1) e Aprendizagem
e aplicação de conhecimento (d1) seriam os principais pontos de partida para a
codificação de crianças e jovens com altas habilidades. No entanto, conforme
abordado anteriormente, a natureza da qualificação destes códigos somente
permite, ainda, a possibilidade de direcionar a “perda” de saúde. Nesse sentido,
no âmbito das AH/SD, poderia ser adotado o mesmo conceito positivo relativo à
qualificação dos códigos de Fatores Ambientais, que permitem indicar se os
aspectos do ambiente atuam como facilitadores (e+, escala positiva) ou barreiras
(e., escala negativa). A própria CIF em seu Anexo 2 descreve que “a critério do
usuário, podem ser desenvolvidas escalas de codificação para indicar os
aspectos positivos da funcionalidade” 1. Assim sendo, os qualificadores poderiam
ser descritos de forma similar à escala de facilitadores, adequando-se a
nomenclatura de acordo com o componente codificado: xxx+0
função/capacidade sem problema/limitação (0-4%); xxx+1 função/capacidade
levemente elevada (5-24%); função/capacidade moderadamente elevada (2549%); xxx+3 função/capacidade consideravelmente elevada (50-95%); xxx+4
função/capacidade
completamente
elevada
(96-100%);
xxx+8
função/capacidade elevada não especificada.
A possibilidade de ampliar esse modelo de qualificação positiva para os
códigos de Funções Mentais (b1) e Aprendizagem e aplicação de conhecimento
(d1), permitiria a descrição da alta habilidade, criatividade e liderança em uma
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ou mais áreas da funcionalidade desses indivíduos. Por exemplo, uma criança
capaz de Aprender a calcular (d150) ou Calcular (d172) em um tempo
significativamente inferior comparativamente aos seus pares (a maioria das
crianças realizou essas atividades em 60 minutos, enquanto a criança realizou
em 10 minutos, muito menos da metade do tempo que os demais) seria
codificada apenas como d150.0 e d172.0 (ambos nenhuma limitação). Porém,
na realidade, ela tem uma habilidade acima da média para desempenhar essas
atividades de raciocínio e execução matemáticos. Esse talento certamente teria
impacto sobre as avaliações contemplando as Funções intelectuais (b117) e as
Funções de cálculo (b172). Sendo assim, caso houvesse a possibilidade de
codificação positiva, ela poderia receber os códigos d150+4 e d172+4 (ambos
capacidade completamente elevada) ou seja, uma capacidade até 100%
acima da média para essas atividades, conforme o esquema quantitativo dos
qualificadores. Além disso, os códigos de Funções mentais (b1) também
poderiam ser qualificados de forma positiva, mesmo na ausência de um teste
padronizado (por exemplo b117+8 e b172+8, função elevada não
especificada).
Tomando esse mesmo conceito, na análise da funcionalidade de crianças
com extrema habilidade motora e talento para execução de movimentos muito
acima da capacidade das demais crianças, nas possibilidades atuais da CIF, as
mesmas poderiam ser somente qualificadas em suas Funções psicomotoras
como b147.0 (nenhum problema) e em sua capacidade para Aquisição de
habilidades como d155.0 (nenhuma limitação). Mais uma vez, a adequação dos
qualificadores para uma escala positiva nos moldes dos capítulos de Fatores
Ambientais, permitiria uma codificação mais coerente com a real funcionalidade
dessas crianças, por exemplo b147+8 (função elevada não especificada) e
d155+4 (capacidade completamente elevada), este último em casos em que
os testes de habilidade motora tenham demostrado uma capacidade 100%
superior as demais, na mesma idade e sexo.
Conforme abordado previamente, as habilidades nos domínios da
criatividade e liderança são componentes importantes na análise do
desempenho de atividades que indiquem se uma criança ou jovem tem um
talento diferenciado 8,9. Ao se analisar a habilidade de tocar um instrumento
musical, esses aspectos da funcionalidade poderiam, também, ser descritos no
escopo da CIF adotando-se a mesma lógica de escala positiva de qualificadores
dos Fatores Ambientais. Neste caso, a habilidade poderia ser descrita no
contexto das Funções mentais de sequenciamento de movimentos complexos
(b176) relacionadas a Aquisição de habilidades (d155) para tocar um dado
instrumento (Arte e cultura - d9202). Crianças que apresentam destacada
maestria nesses componentes, no sentido de demonstrar o aprendizado do
instrumento musical de maneira muito acima do esperado, teriam códigos
variando de d155+8 a d155+4 ao invés de simplesmente receber d155.0
(nenhuma limitação em adquirir habilidades). Esse mesmo aspecto poderia ser
aplicado aos comportamentos que indicam uma capacidade elevada de
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liderança, como por exemplo, nas atividades de Tomar decisões (d177+8) e
Lidar com o estresse e outras demandas psicológicas (d240+8).
Outro ponto relevante a ser debatido envolve a temática das crianças que
apresentam dupla excepcionalidade. São indivíduos que possuem alguma
deficiência/transtorno e ao mesmo tempo um desempenho acima da média em
alguma área, ou seja, possuem capacidade superior em alguma área do
desempenho humano concomitante a outras condições como: dislexia, disgrafia,
desordens psiquiátricas, deficiências físicas e sensoriais, déficit no
processamento central, déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno
de espectro autista (TEA) 13,14. Nesse caso é possível uma criança com TEA
apresentar uma restrição nas Interações interpessoais básicas (d710.8) e ser
capaz de concentrar grande nível de atenção em um exercício de cálculo de
maneira muito superior comparativamente aos seus pares (Concentrar a atenção
- d160 e Calcular - d172). A possibilidade de aplicar um qualificador positivo a
estes componentes de Atividade e Participação permitiria identificar a dupla
excepcionalidade nessas crianças (d160.+8 e d172+8), de outra forma apenas a
ausência de limitação poderia ser qualificada (d160.0 e d172.0).
Tendo em vista o exposto, torna-se de grande relevância a discussão
sobre a possibilidade de ampliação do alcance da CIF para inclusão das altas
habilidades. Os desdobramentos da inserção de qualificadores positivos podem
possibilitar o uso da CIF como triagem ou rastreio de crianças com indicadores
de precocidade e/ou indicadores de AH/SD elegíveis para avaliação de tais
indicadores. Conforme os diversos exemplos de aplicação discutidos neste
editorial, a proposta de incorporar ao modelo biopsicossocial os qualificadores
positivos nos demais componentes da CIF, além dos Fatores Ambientais, têm
um grande potencial para direcionar possíveis encaminhamentos para
programas que possam avaliar as singularidades e características das AH/SD.
Esta ação irá oportunizar a essas crianças abordagens educacionais e de saúde
mais assertivas. A identificação precoce da alta funcionalidade, traduzida em um
talento diferenciado, tem um impacto positivo no futuro destas crianças que
poderão contribuir para a sociedade ao desempenhar papéis destacados como
acadêmicos, pesquisadores, atletas de alto rendimento, reconhecidos artistas e
lideranças empreendedoras e sociais 9.
De acordo com os Anexos 7 e 8 da CIF 1, a classificação está em
aperfeiçoamento e revisão constantes e a proposição aqui apresentada visa
contribuir para esse processo, trazendo à tona o debate sobre a funcionalidade
elevada. Além disso, a iniciativa de conferir maior abrangência à CIF, permitindo
a análise das especificidades das pessoas com AH/SD, irá estimular seu uso no
cenário educacional e adicionar possibilidades de aplicação principalmente na
área da educação especial.
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